FONEMAS OCLUSIVOS: PROCESSOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS NA FALA DOS CAMBAS E DOS COLLAS Rosinete Vasconcelos Costa (Universidade Federal de Rondônia-UNIR) Sabe-se que o falante conhece vários aspectos de sua língua, mas, normalmente, não reflete sobre ela, ficando a cargo dos lingüistas fazê-lo de forma sistemática. Diante disto, propõe-se como objeto de pesquisa para este estudo a observação e a análise dos processos fonético-fonológicos dos fonemas consonantais oclusivos: , , , , , nos dialetos cambaa e collab, do espanhol boliviano falado em Guayaramerín/Beni/Bolívia, com o objetivo de analisar a realização desses fonemas. Por conseguinte, foi realizada a identificação dos processos relacionados a esses segmentos e os contextos onde ocorremc. Os informantes são dez falantes nativos dos dialetos camba e collad, dos quais seis são cambas, dois são filhos de colla, e os outros dois são collas; selecionados conforme a idade, sexo e grau de instrução, por tratar-se de variáveis que contribuem para a diversidade lingüística em um mesmo ambiente. Os contatos foram realizados em espanhol com a intenção de evitar interferências da língua portuguesa. Contudo, se percebe interferências léxicas e fônicas. A coleta dos dados deu-se por meio do método da observação direta e do uso de técnicas de entrevistas, com perguntas despadronizadas, através de conversação espontânea, com gravação em fita cassete. Após a audição e análise das gravações, transcreve-se o corpus coletado com apoio do Alfabeto Fonético Internacional (AFI) e do quadro dos sons do espanhol europeue. E, para descrever os contextos fônicos, em que se encontra a realização de determinado fonema, utiliza-se a seguinte regra como regra geral: A→B/ C ― Df. Que pode ser definida como: A fala realiza-se através de uma cadeia de sons, produzindo um contínuo sonoro de qualidades variáveis ao longo do tempo. Um ambiente fonológico ou contexto é constituído por tudo o que precede ou segue um determinado segmento da fala (CAGLIARI, 1997, p.15). Do corpus analisado se apresenta somente algumas palavras ou expressões, em que se constatam os processos estudados, que fazem parte de um corpus maior, isto é, das entrevistas realizadas. CONTEXTUALIZAÇÃO TEÓRICA Geograficamente, o castelhano boliviano como variante dialetal do espanhol se divide em três tipos de zonas dialetais, determinadas, […], en gran medida, por la influencia del sustrato, por el bilingüismo y por las consecuencias emergentes de las lenguas en contacto. Ese abigarrado conjunto de hablas y tipos humanos –‘collas’, ‘cambas’ y ‘chapacos’ – más las etnias originarias, son, en síntesis, la nación boliviana. (VILA, 2000, p.173). Essas zonas se classificam em “A”g, “B” e “C”. Das quais, nos interessa a zona “B” formada pelos Estados do Pando, Beni e Santa Cruz que leva o tipo: “castelhano camba”; caracterizada pela influência das línguas da família tupi-guarani. Esta zona se subdivide em subzonas 1, 2 e 3. Trataremos aqui da subzona 2 formada pela variedade camba do oriente, onde se encontra o Departamento Beni, e, portanto, Guayaramerín. Guayaramerín é uma cidade que, possui 42.000 habitantes, pertence ao departamento do Beni e está localizada à margem esquerda do rio Mamoré, limitandose com o Brasil, fronteira com Guajará-Mirim, no Estado de Rondônia. Esta cidade está habitada por dois grupos sociais, conhecidos como collas e cambas, como eles mesmos se autodenominam, fato observado nas entrevistas: “En Bliia, no , hay do tipo d de lengua, un com, com nosotro halam com, com camba, no, y hay otro que s tipo colla”. Enquanto outro informante, quando perguntamos a que grupo ele pertence diz o seguinte: “A los dos ya, a los dos [...]. Com porejemplo yo, quincañs adicado en aqui ya com ser camba ya. Pero he nacido allá en enccident.”h REALIZAÇÕES FONÉTICAS DOS FONEMAS CONSONANTAIS , , , , Dos segmentos consonantais nos dialetos camba e colla, observa-se que a maioria dos sons analisados possui as mesmas funções e realizações, porém há casos específicos que ocorrem em apenas um dos dialetos, como se verá a seguir. a) oclusivo, bilabial, surdo: No corpus analisado, observa-se que na palavra “campo”, o fonema converteu-se no início de sílaba em , $ ― V > , por meio do processo de assimilação progressiva do traço nasal e sonoro. Isto se explica porque o relaxamento de em sílaba átona é mais freqüente do que em sílaba tônica (D’INTRONO, 1995, p.261). Em seguida houve um segundo processo, o de enfraquecimento da nasal precedente , $ ― > , que ocupava a posição coda, ocorrendo, portanto, o apagamento do elemento nasal no overlap, / m / v > . A combinação de dois sons semelhantes, oclusivo bilabial surdo e oclusivo bilabial sonoro , modificou em contato com , adquirindo suas características articulatórias. Cabe salientar que este fenômeno foi encontrado na fala relaxada de um dos informantes camba, de nível médio, do sexo feminino. b) oclusivo, dental, surdo: Observou-se o apagamento do fonema , em final de sílaba seguido de nasal, () ― $ > “ritmo”, na fala informal e descontraída de um informante camba, professor de ensino fundamental, com grau de instrução de nível técnico superior. O contexto de final de sílaba é “relevante” para a debilitação ou elisão desse fone, em estilo informal (D’INTRONO, 1995, p.264). c) oclusivo, velar, surdo: Verificou-se no dialeto camba, que palavras como “exige”, “existe” e “exame” realizam-se tanto com o grupo variante oclusiva velar mais fricativa alveolar, realização culta, “exame/prova”, como também com a fricativa alveolar , “exigem”, “existe”, considerada “não culta”. Portanto, esse processo resulta em uma variação livre, em contexto intervocálico, pela ocorrência e não ocorrência da consoante. Já nos falantes colla e filhos de colla observou-se apenas o registro de em posição intervocálica, “exame/prova” “moto táxi”. Após a análise de diversos contextos para verificar como se comporta em final de sílaba, detectou-se que antes de , , ora se realiza e ora se apaga , com simplificação do grupo consonantal, resultando no seguinte processo, ― $ , , > “dialeto”, “eleição”, “técnico”. Estes registros se deram em camba e filhos de colla, devido ao fato de terem nascido em ambiente camba. Assim, constata-se que: La puede aparecer a final de sílaba seguida de , , y . En este contexto se relaja y sonoriza. En algunos dialectos también se elide y más raramente se asimila […] (D’INTRONO, 1995, p.264). Enquanto no dialeto colla, nas palavras analisadas, não se observou elisão, apenas realizando-se como ela mesma, ou seja, como oclusiva. d) oclusivo, bilabial, sonoro: No fonema , assim como no fonema , mencionado acima, registrou-se uma seqüência de processos; no início de sílaba precedido de consoante nasal, , o fonema se converteu em , $ ― > “também”, por meio do fenômeno fonético conhecido como assimilação progressiva do traço nasal, e em seguida houve o enfraquecimento da nasal, $― > , em posição coda, passando a mesma a ocupar o lugar do overlap, apagando-se logo depois, , V > , com alteração da estrutura silábica que, inicialmente, era CVC e agora CV. Este processo realizado por um jovem filho de colla, de nível secundário, deu-se pela combinação de dois sons semelhantes, oclusivo e bilabial sonoro, através da qual foi modificado em contato com , adquirindo sua característica articulatória + nasal. A mesma palavra foi pronunciada por uma jovem camba filha de colla, que a realizou sem elisão. Observou-se que na palavra “hablamos”, realizou-se na fala de apenas um informante do dialeto camba, com ensino médio incompleto, ora elidindo-se entre ( ― ) e outras vezes como a variante fricativa , considerada culta, () $ ― > () “falamos”. Neste contexto, o fonema primeiro realizou-se como , em seguida enfraqueceu e logo se apagou, em fala rápida e relaxada, ou seja, em registro estilístico menos formal. e) oclusivo, dental, sonoro: O fonema realiza-se como fricativa relaxada , V ― V; ― # > “Trinidad”, e às vezes se apaga, , ― # > “cidade”, “saúde”, em final de palavra, tanto no dialeto camba como no colla, ocorrendo, assim, uma variação livre nestes falantes. Já em posição intervocálica, ocorre apagamento, apenas, no dialeto camba, V ― V > “mercado”, “majado”, “ao redor”. Na palavra “alrededor”, levanta-se a hipótese de que possa ser uma interferência do português do Brasil. A palavra “tradición”, por exemplo, foi pronunciada por um informante camba, com curso técnico superior, em dois momentos: em fala formal, mantendo o , e em fala informal (descontraída), com apagamento do , “tradição”, podendo fora de contexto causar ambigüidade semântica, já que existe a palavra “traición”. O apagamento de em posição intervocálica trata-se de uma realização que ocorre não só no espanhol de Guayaramerín, mas no espanhol de uma forma geral. Na Bolívia se conserva e às vezes se apaga na classe popular, enquanto que na Espanha perde-se quase que totalmente e é mantida apenas por alguns falantes cultos (QUILIS, 1999:220). Em Guayaramerín, a elisão de intervocálica foi encontrada na fala de três informantes camba, um de nível técnico universitário e os outros de nível secundário completo e incompleto. Apesar do grau de instrução, esses informantes apagam essa consoante em fala rápida e relaxada. Verificou-se na pronúncia da palavra “majadito”, ao contrário do que ocorre na realização da palavra “majado”, quando é acrescentado à palavra o sufixo a permanência do como uma fricativa dental , ou como vibrante simples alveolar , rotacismo, , ou, ainda, como lateral alveolar , lateralização, V ― V > , em variação livre, na fala de três informantes camba, um com o ensino médio completo e o outro de nível médio incompleto, e o terceiro cursou até o quarto ano primário (todos do sexo feminino). Os processos de rotacismo e lateralização se explicam pelo fato da proximidade do ponto de articulação que existe entre e , ocorrendo principalmente em fala espontânea e relaxada. Além da palavra “majadito”, percebeu-se a lateralização do , em lugar de , também na palavra “coludo”, “rabudo”, em contexto intervocálico, produzida por uma falante camba, de nível médio. Nos vocábulos “ganar dinero” e “todo lo que” o fonema é apagado , resultando nos seguintes processos # $ ― V; ― # $ > , “ganhar dinheiro”, “tudo que”, por meio de uma juntura intervocabular. No primeiro caso, quando o substantivo foi precedido por um infinitivo, com apagamento do no ato da juntura, realizando uma ditongação e, no segundo, quando o pronome indefinido foi seguido de artigo neutro, na fala rápida e descontraída de uma camba que estudou até a primeira série do ensino médio. CONCLUSÃO Na análise do corpus dos dialetos camba e colla, do espanhol boliviano falado em Guayaramerín, foram identificados os seguintes processos fonéticofonológicos: assimilação progressiva do traço nasal, enfraquecimento da nasal em posição coda e apagamento do elemento nasal no overlap em palavras com os fonemas , , apagamento do e do , apagamento do no grupo consonantal em registro estilístico menos formal, apagamento do , lateralização do , rotacismo do e apagamento do (onset) em juntura de palavras. Além desses fenômenos, verificou-se a interferência de um dialeto no outro, observado nos filhos de colla, os quais oscilam, por contato, entre o dialeto camba e o dialeto colla, e, ainda, levantou-se a hipótese de interferência do português brasileiro no dialeto camba. Portanto, conclui-se que os falantes do dialeto camba realizam mais variantes, que não se encontram na variedade culta do espanhol, do que os informantes do dialeto colla. Esta sucessão de variedades registradas no corpus analisado corresponde de maneira peculiar ao estilo próprio de seus falantes e a dinâmica própria da língua, possibilitando a mudança sem afetar o percurso da comunicação. REFERÊNCIAS ALVAR, M. (direc.) Manual de Dialectología Hispánica. Español de América. In: VILA, Carlos Coello. Bolivia. Barcelona: Ariel, 2000. CAGLIARI, Luiz Carlos. Análise Fonológica: Introdução à teoria e à prática com especial destaque para o modelo fonêmico. Campinas: edição do autor, 1997. v.1. D’INTRONO, Francesco. et al. Fonética y Fonología Actual del Español. Madrid: Cátedra, 1995. GRUPO DE CIENCIAS HUMANAS Y DEL LENGUAJE. Diccionario de Lenguas y Dialectos del Mundo. Madrid: <http://www.diccionariosdigitales.com/> Acesso em fevereiro de 2007. QUILIS, Antonio. Tratado de Fonología y Fonética Españolas. 2.ed. Madrid: Biblioteca Románica Hispánica. Gredos, 1999. NOTAS a Segundo o “Diccionario de Lenguas y Dialectos del Mundo” online: camba significa “Dialecto del subgrupo tupí, guaraní, perteneciente al grupo tupí-guaraní, de la familia tupí hablado por tribus de Brasil y Venezuela.” b E colla “Dialecto del subgrupo aimara, del grupo aru, de la familia quechumaran (sic), hablado por tribus Bolivia y Perú.” Idem, ibidem. Veremos, na página seguinte, que os próprios falantes se autodefinem como camba e colla. c Trata-se de parte da Dissertação de Mestrado em Lingüística c, intitulada “A fala dos cambas e dos collas: processos fonético-fonológicos” realizada na Universidade Federal de Rondônia-UNIR, no campus de Guajará-Mirim/Rondônia/Brasil, fronteira com Guayaramerín/Beni/Bolívia, sob a orientação da professora Doutora Geralda de Lima Vitor Angenot. d Oito deles nascidos em Guayaramerín, sendo dois destes filhos de colla - considerados camba por terem nascidos em ambiente camba - os outros dois informantes nasceram em La Paz (collas). e Constante na obra “Tratado de Fonología y Fonética Españolas”, de Quilis. f A→B/ C ― D: A é um fonema que se realiza como B, que é um alofone, se ocorre no contexto (→) em que, lugar, (―) esteja precedido de C (contexto precedente) e seguido de D (contexto subseqüente). g Região Andina centro e sul do Ocidente, onde se encontram os Departamentos de La Paz, Oruro, Cochabamba, Potosí y Chuquisaca e falam o tipo castellano colla (nome do povoador nativo e da zona) h Ou seja, quando afirma que é do Ocidente (região predominantemente colla) está dizendo que na realidade ele é colla, mas se considera camba pelo fato de já viver em Guyaramerín há quinze anos. Porém o seu modo de falar diferencia do falar camba.