Cada um com a sua língua

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REVISTA
ITAÚ CULTURAL
20
Cada um com a
sua língua
Veja também
O compositor Nei Lopes
fala da influência do samba
no português.
Por que falamos diferente? Descubra a
origem dos sotaques.
Fotorreportagem: objetos, animais e lugares
inusitados ganham forma de letras.
Participe com suas ideias
1
itaucultural.org.br/continuum | participe com suas ideias
“A língua é pra comer e pra falar”
Pense rápido: quando você viaja para um país ao qual nunca foi antes, qual a primeira medida que toma?
Acertou se decidiu comprar um guia local. Mas, se o idioma falado não é de seu domínio, outra regra deve
ser seguida com atenção: abrir um espaço na mala para um providencial dicionário de bolso. É ele que
vai livrar você daqueles apuros tão frequentes quando não se sabe o que está sendo falado. A língua é,
portanto, o principal fator de entendimento e desentendimento entre as pessoas. Isso acontece porque ela
está na raiz da comunicação. E sua força é tão grande que acaba por determinar nossos hábitos culturais e
sociais, nossa forma de pensar e de agir.
Neste bimestre a Continuum fala, em português renovado, sobre os vários aspectos que envolvem a língua. A reportagem que abre a edição mostra que ela é viva e evolui
com o passar do tempo, a ponto de hoje a internet configurar-se como um idioma à parte. Em entrevista, o escritor
e compositor Nei Lopes fala de seu trabalho de pesquisa
sobre as influências que as línguas africanas exerceram na
formação do português. É de uma das canções de Lopes,
Samba de Eleguá, o verso que dá nome a este texto.
Na fotorreportagem, imagens de animais e objetos sugerem letras do alfabeto. Conto inédito do escritor
paulistano Ronaldo Bressane traz para a Ficção a linguagem bem-humorada e nada politicamente
correta do portunhol selbagem, movimento literário inspirado na fala dos habitantes das fronteiras
do Brasil com os outros países sul-americanos. Em reportagem especial, a revista vai a Vale
Vêneto, no Rio Grande do Sul, para conhecer seus velhos habitantes, que ainda falam, e
ajudam a preservar, o dialeto vêneto, derivado do italiano.
ilustração: Guilherme Kramer
Contribua também para ampliar a abordagem do tema. Saiba como na
seção Convocação. E acompanhe a cada semana os novos
conteúdos publicados na Continuum On-Line.
Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Redação André Seiti, Érica Teruel Guerra, Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda, Thiago
Rosenberg Colaboraram nesta edição Alexandre Hypolito, Allan Sieber, Antonio Carlos Viana, Carlos Costa, Cia de Foto, Cristiano Santana,
Davi Calil, Diogo Sponchiato, Fabio Prikladnicki, Fernanda Preto, Formiga, Guilherme Kramer, Gustavo Pellizzon, Hare Lanz, Hilton Lacerda,
Joana Lira, João Pereira Coutinho, João Wainer, Jorge Filó, Josely Vianna Baptista, Luana Fischer, Luciana Veras, Mariana Sgarioni, Micheliny
Verunschk, Mirian Fichtner, Pedro David, Projeto Dulcinéia Catadora, Rebeca Rasel, Regina Stocklen, Rita Loiola, Roberto DaMatta, Rodrigo
Lara Serrano, Rodrigo Silveira, Ronaldo Bressane On-Line Alcir Pécora, Augusto Paim, Cacá Machado, Mayra Rodrigues Gomes, Ricardo
Aleixo, Welington Andrade Agradecimentos Benjamin Taubkin, Fundação Biblioteca Nacional, Ruy Quaresma (Fina Flor Produções)
capa A língua une e segrega pessoas | imagem: André Seiti
ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007)
Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento
2
Continuum Itaú Cultural
[email protected]. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554
Esta publicação segue as normas de Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro
de com
2009suas ideias
Participe
3
6
Entrevista
16. O beija-flor de Nei Lopes
O compositor e escritor comenta as contribuições dos idiomas africanos para
o português falado no Brasil. Muitas delas vindas do samba.
46
Artigo
10. Palavras são sensações
O escritor Antonio Carlos Viana fala da importância do
aspecto lúdico no aprendizado de uma língua.
On-Line
22. Na rede em maio e junho
Veja as atualizações exclusivas com matérias e
trabalhos artísticos dos leitores.
Reportagem
6. Fala aí, meu camarada!
Arena
56. Roçando a língua de Luís de Camões
Como nascem os sotaques, as gírias, as variações das
falas – e os preconceitos que surgem com elas –, que
fazem do Brasil um caldeirão linguístico.
Unidos pelos falares, separados pela cultura: por que
há tantos obstáculos para se criar uma comunidade
lusófona em nível mundial?
12. Uma visita à Torre de Babel
60. Uma operação nada matemática
28. Acordo ou desacordo?
Convenção da discórdia: o antropólogo Roberto DaMatta e o jornalista João Pereira Coutinho debatem se
o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa tem
o poder de unir os países que falam o idioma.
Descobrir a origem das línguas pode ser tarefa
impossível. Mas descobrir os usos que se fazem
delas não só é possível como revela muito sobre um
indivíduo ou uma sociedade.
Não basta verter palavras para outro idioma. O
trabalho do tradutor consiste também em interpretar
o tom, o humor e as demais sutilezas do texto – e de
seus autores.
46. Entre dois tempos
Em um vilarejo gaúcho, a última geração de moradores
que ainda fala um dialeto em extinção.
64. A, b, c, dó, ré, mi
30. Comunicar é preciso
Dicas para entender a língua por meio de filmes, livros
e músicas.
No início era o som: o método que ensina crianças a
“ler” música como se leem palavras.
Fotorreportagem
Balaio
32. Letras que não são
Fotógrafos de todas as partes do país encontram, nas
coisas e nos lugares mais inesperados, formatos de letras.
4
Continuum Itaú Cultural
64
Ficção
38. Los cibermonos de Locombia
Ronaldo Bressane apresenta o insólito relatório, escrito
em genuíno portunhol selbagem, do desaparecimento
do Agente Zed Stein.
Resenha
42. Amolando a língua no veludo
Dicionário que nada! Conheça a história da Aurélia,
a “dicionária” que reuniu palavras e expressões do
universo gay.
Mirada
52. Uma cidade tomada por livros
Uma relação fervorosa: os portenhos e a afeição pelas
históricas livrarias de Buenos Aires.
Espaço do Leitor
23. Convocação
Conheça o tema da próxima edição e envie sugestões,
críticas e, é claro, elogios.
24. Área Livre
Contos e fotos de leitores ampliam a compreensão
da língua.
|20
2009
Participe com suas ideias
5
reportagem
Fala aí, meu camarada!
O Brasil é um verdadeiro caldeirão de sotaques, gírias e variações de falas.
Conhecer cada um deles é saber um pouco mais sobre a nossa identidade.
Línguas brasileiras: para muitos nosso português já se transformou num novo idioma
Por Mariana Sgarioni | Poemas Jorge Filó | Fotos Cia de Foto
“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” Essa frase foi escrita por Machado de Assis, em 1881, ao abrir seu primeiro romance realista,
Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trata-se de um português perfeito, impecável, porém um pouco distante
do que falamos nos dias de hoje.
Por isso, vamos propor um exercício de imaginação e pensar como Machado, com seu humor impagável,
escreveria essa mesma dedicatória com gírias populares, se estivesse vivinho da silva no ano de 2009. Acho
que ficaria mais ou menos assim:
“Para os bichos que comeram este meu presunto gelado, dedico estas memórias que escrevi depois de
bater as botas.”
E se pensássemos ainda que Machado fosse um blogueiro de mão cheia, e ficasse ligado o dia inteiro com
seu laptop, conectado com a rede wireless? Talvez escreveria algo parecido com isto:
“Pros vermes q roeram meu kdaver, aki vão minhas lbrças. Abs.”
Podemos viajar no tempo e escrever esse mesmo trecho nos anos 1950, 1970, 1990. Mesmo existindo formas atuais de dizer a mesma coisa, evidentemente, o original de 1881 continua sendo uma obra recomendadíssima – sobretudo para quem quer conhecer bem a língua portuguesa e dominar a escrita. Por outro
lado, esse exercício simplório – e divertido – que propusemos aqui mostra quanto nosso idioma é vivo e está
em constante movimento. A língua se transforma, ela é dinâmica. Só desaparece quando as pessoas que a
falam são forçadas a adotar outra – coisa que passou a acontecer aqui no Brasil, quando, em 1757, o Marquês
de Pombal instituiu o português como língua oficial e proibiu o uso das línguas nativas.
No Sudeste é “uai”
Uma forma de expressão
Se a pergunta é – “como vai?”
Se tá bom se diz “tá bão”.
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Participe com suas ideias
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Foi um esforço tremendo para impor a língua portuguesa
em todo o território nacional. Quando os
portugueses chegaram ao Brasil havia cerca
de 1,2 mil línguas indígenas na região. Hoje, são
180. O português ganhou enfim sua unificação –
por outro lado, a diversidade linguística permanece.
As razões são diversas: primeiro, houve resistência dos
povos dominados, claro, que mantiveram muitas de suas
expressões e palavras. Segundo, o português trazido pelo
colonizador não era uma língua homogênea, havia variações dependendo da região de Portugal de onde ele vinha. Sem contar os diversos momentos de chegada dos
portugueses, que foram se encontrando com muitas outras nacionalidades no Brasil, o que ia produzindo diversidades linguísticas que caracterizam falares diferentes.
Em São Paulo, por exemplo, houve primeiro o encontro linguístico de portugueses com índios. Depois,
vieram os negros da África, os italianos, os japoneses,
os alemães, os árabes, todos com suas línguas. O resultado é que na mesma cidade é possível encontrar
modos de falar completamente distintos. “O português falado, hoje, no Brasil, resulta de uma série de
mudanças determinadas por fatores de natureza linguística e histórico-cultural que se vão apresentando
ao longo do tempo”, afirma Silvia Brandão, professora
da Faculdade de Letras da Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
Alguns exemplos: o “s” chiado (quase um “x”) dos cariocas nasceu com a transferência da família real portuguesa para a cidade em 1808, que produziu no Rio
uma versão peculiar da pronúncia lisboeta. Em Santa
Catarina, o sotaque cantado é influência direta da
forte imigração de portugueses da ilha de Açores. Já
Pernambuco ganhou a forte pronúncia do “r” como
herança da longa presença holandesa no Recife.
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Continuum Itaú Cultural
Vôte, pru mode e oxente
É a fala do Nordeste
Se o sujeito é valente
Também é cabra da peste.
Segundo Antonio Houaiss, professor, diplomata, filólogo e lexicógrafo, a variedade de sotaques do Brasil
não só enriquece a língua como é sinônimo do seu
domínio territorial. Houaiss costumava dizer que a
nossa língua, depois de tantas influências, se tornou
nova, algo que poderia se chamar de “brasileiro” e não
mais “português”.
O curioso é que, há muitos anos, antes da lei do Marquês de Pombal, existiu, sim, uma “língua brasileira”
por aqui. Era o nheengatu, ainda falado em alguns
pontos do Brasil, como na fronteira com o Paraguai e
no Amazonas. A língua foi criada no século XVI pelos
jesuítas, especialmente pelo Padre Anchieta, que era
linguista. Para se entender com os índios, classificou
o tupi e criou uma língua que não era nem de português, nem de índio. Eram ambas. Só falava português
mesmo quem fosse estrangeiro, ou seja, os portugueses. Herdamos muitas palavras dessa língua, tais como
abacaxi, jururu, cipó. E o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, quando usou a expressão “chega de
nhenhenhém”, estava falando nheengatu.
No Centro-Oeste o “candango”
Come “Maria-Isabel”
Sua dança é o fandango
Se é de fora é tabaréu.
O nheengatu ajudou muito a formar, por exemplo, o
popular sotaque caipira. De acordo com José de Souza Martins, professor de sociologia da Universidade
de São Paulo, os índios tinham dificuldades em falar
uma série de palavras portuguesas, sobretudo aquelas com a letra “r”. Mulher, colher e orelha eram ditas
como “muié“, “cuié“ e “oreia“. A partir daí veio o chamado “r” retroflexo, aquele “r” dobrado que, com a letra “i”,
resulta naquele jeito de falar “cairne” e “poirta”, característico do interior de São Paulo.
Muita gente considera esse sotaque como um jeito
de falar equivocado. Martins deixa claro que se trata
de uma língua dialetal, e não de um erro. “O caipira
inventa algo que ele entenda, só isso. Por exemplo, fizemos uma pesquisa no interior em que perguntávamos: ‘Você concorda ou não concorda?‘. Muita gente
não entendia. Até que mudamos a pergunta: ‘Você
concorda ou disconcorda?‘ ”. Daí entenderam.
Lá no Sul é trilegal
Ver um guapo de bombacha
Tem china e tem bagual
Ai tchê, tudo se acha.
em relação a outros aspectos da vida social, a forma
de falar de grupos menos prestigiados socialmente
acaba por ter alguns de seus traços estigmatizados”,
explica Silvia Brandão.
A boa notícia é que esse estigma pode desaparecer
caso o sotaque caia, literalmente, na boca do povo. “A
partir do momento em que um traço, antes restrito a
um grupo, se difunde e atinge a fala da maioria dos
indivíduos, ele deixa de ser socialmente marcado.”
No Norte tem xirimbaba
Animal de estimação
Matrinxã e maniçoba
Servem de alimentação.
Justamente por esse julgamento de achar errado o
modo de falar do outro existem muitos preconceitos
em relação aos sotaques brasileiros. O sujeito abre a
boca e quem ouve já imagina de onde ele veio, sua
classe social e assim por diante. Especialistas dizem
que boa parte desse preconceito se dá por causa da
tentativa de uniformizar os sotaques dos apresentadores de televisão conforme o padrão das duas maiores capitais, Rio de Janeiro e São Paulo.
A difusão de um modo de falar é algo realmente fascinante. E isso acontece, muitas vezes, não apenas a
partir de um sotaque como também de uma só pessoa. É o que se chama de “idioleto”, ou seja, o conjunto dos usos de uma língua próprio de um determinado indivíduo. Cada pessoa, além de apresentar, na
sua maneira de falar, o seu sotaque, usa a língua de
uma forma peculiar. Quem não se lembra da língua
inventada pelo Mussum, de Os Trapalhões, que fazia a
criançada morrer de rir quando dizia “Ai, Cacildis!”. Rapidamente, o idioleto de Mussum, uma língua própria
terminada em “s”, misturada ao seu sotaque carioca, se
difundiu. Tanto que até hoje muita gente fala (em tom
de brincadeira, claro) como ele.
É como torcer o nariz quando o mineiro abandona
algumas palavras no meio do caminho ao perguntar “ôndôtô?” em vez de “onde eu estou?”. Ou ainda
o “s” dos cariocas ou o “oxente” nordestino. “Embora, do ponto de vista linguístico, não haja
forma errada de falar, os indivíduos atribuem julgamentos de valor a determinadas características linguísticas. Como acontece
Mussum adotava um jeito específico de falar, e não
gírias, que são palavras, termos ou expressões que, de
tanto usadas, podem até entrar no dicionário. “Foi o
que ocorreu, por exemplo, com as novas acepções de
vocábulos como broto, grilo, legal, bacana, entre outros”, lembra Silvia Brandão. Agora é esperar para ver
o que será incorporado com o advento da internet,
que usa uma linguagem escrita semelhante à falada.
O que Machado de Assis acharia disso?
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9
artigo
Palavras são sensações
Quando aprendidas na infância, certas palavras adquirem significados que
nos acompanham vida afora.
Por Antonio Carlos Viana | Ilustração Joana Lira
No tempo em que se cantava o Hino Nacional antes das aulas, eu ficava intrigado com o verso que dizia:
“Dos filhos deste solesmãe gentil, pátria amada Brasil”. O que significava aquele “solesmãe”? Para mim, era um
mistério. Tê-lo um dia desfeito, ainda mais pela análise sintática, acabou com a beleza do verso. Mesmo hoje,
ao ouvir o hino, o “solesmãe” me transporta para um tempo em que as palavras tinham um sabor ainda não
contaminado pela gramática e pelos dicionários.
Todos nós temos um dicionário pessoal. Ele se constrói naturalmente, à revelia dos dicionários oficiais. Quando tomamos consciência de que estes existem, o nosso já está formado e é difícil contrariá-lo. A criança vive
numa eterna metalinguagem. Ela mesma cria seus códigos de decifração e, assim, vai formando seu dicionário particular, até o dia em que vêm os dicionários de verdade e acabam com a fantasia.
Voltando aos meus encontros mais remotos com as palavras, lembro-me de uma expressão cujo sentido
que lhe dei é o que me vem logo à cabeça ao me deparar com ela. Quando tinha meus 7, 8 anos, passava
diante dos cinemas e via cartazes anunciando alguns filmes para “em breve”. Nunca perguntei a ninguém o
que aquilo significava. Como o filme anunciado demorava muito a passar, a expressão entrou para o meu
dicionário como sinônimo de “dali a um bom tempo”.
É na infância que construímos uma língua própria, que nos faz entender o mundo diferentemente de como
os adultos o entendem. Ela é uma janela particular por onde observamos coisas e pessoas. Mesmo quando
aprendemos a folhear os dicionários, raramente perdemos o sentido original que demos a algumas palavras.
São elas que forram o nosso chão primordial. Não há dicionários que as traduzam da forma como as sentimos pela primeira vez. Elas são antes sensações que significados. Geralmente nos decepcionamos quando
descobrimos que o dicionário oficial nos contraria.
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Continuum Itaú Cultural
Jamais me esqueci de
uma palavra que, para mim, pertencia ao gênero masculino. Quando
descobri que era feminina, não a reconheci.
Achei que os dicionários estavam errados. Pesquisei em vários deles para ver se algum me salvava e a dava como masculina. Não dava. Para mim,
“a comichão” não era o mesmo que “o comichão”. Eu
achava que só lhe cabia os artigos “o” ou “um”. Desde então, ela não passa de um termo morto no meu
acervo linguístico.
Janelas para o mundo
Minhas primeiras relações com as palavras, como
as de toda criança, foram sempre lúdicas. Quando
descobri o gosto por elas, lia os textos do livro de
português antes que o professor os lesse em sala
de aula. Eu protelava a consulta ao vocabulário que
ficava no final do livro ou ao pé da página. Preferia
deduzir pelo contexto o que elas significavam. Às
vezes dava certo, outras vezes não. Imagino como
seriam bem mais interessantes as aulas de língua se,
em vez de mandarmos os alunos direto ao dicionário, os incentivássemos a imaginar um sentido para
as palavras desconhecidas.
Quando comecei a estudar francês, meu primeiro professor gostava de brincar com as palavras
e foi isso que me levou a me apaixonar, cada vez
mais, por essa língua. Já o professor de inglês
era seco, técnico, nos mandava logo ao dicionário, sem nenhuma poesia. Suas aulas eram de
um tédio sem fim. O de francês fazia com que
a gente atentasse para a combinação dos sons,
para a sequência das sílabas, e o sentido apareceria depois. Era um exercício que deixava toda a
turma em contínua atenção. O verbo “bouleverser” foi um dos exemplos mais vivos que ele deu.
Quando vou
traduzi-lo, fico sempre
insatisfeito, acho que está faltando alguma coisa. Não sinto em
“transtornar” o mesmo movimento interior do original. Não é que haja uma língua
mais expressiva que outra, cada uma o é à sua
maneira, mas há palavras que nunca deveriam
ser traduzidas. “Bouleverser” seria uma delas.
Seja em que língua for, o primeiro contato com as
palavras é decisivo para a construção de nosso estar
no mundo. Por mais que, um dia, você lide com elas,
o que vale mesmo é a forma como as sentiu pela primeira vez. Há um dicionário vivo que nos acompanha desde o momento em que passamos a nomear o
que nos cerca. Um menino que nasce no sertão nordestino não vê a palavra “terra” com o mesmo olhar
de outro que nasce no Sul. Cada um cria um universo
de sentidos particulares que carregará vida afora. Há
um dicionário que antecede todos os dicionários, e é
esse o que mais conta na hora da criação.
As palavras abrem janelas para o mundo, mas para
abri-las de verdade precisam ter um sopro original.
Quando escrevemos um poema, um conto, é bem
isto o que procuramos: buscar sentidos ainda não
contaminados pela baba do mundo. Para encerrar,
recorro a Roland Barthes, quando diz que o escritor
“não possui mais em si paixões, humores, sentimentos, impressões, mas esse imenso dicionário de onde
retira uma escritura [...] a vida nunca faz outra coisa
senão imitar o livro, e esse mesmo livro não é mais
que um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente recuada”.
Antonio Carlos Viana, mestre em teoria literária e
doutor em literatura comparada, é autor de O Meio do
Mundo e Outros Contos (1999) e Aberto Está o Inferno
(2004), publicados pela Cia. das Letras.
Participe com suas ideias
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reportagem
Uma visita à Torre de Babel
Para entender uma sociedade, entenda primeiro sua língua.
Por Rita Loiola | Fotos João Wainer
O homem tem a sorte, entre outras, de conhecer sua história desde o princípio. E o começo diz que havia
apenas um homem, que falava uma língua concedida por um ser divino. Mas, um dia, os descendentes
desse homem resolveram construir uma torre muito alta e chegar aos céus, onde morava seu deus. Só que
o proprietário das nuvens não gostou nada dessa invasão e evitou a construção dos últimos andares com
uma ideia muito engenhosa: confundiu a língua dos operários. Sem se entenderem, eles migraram para
outras regiões, amargando o fracasso do projeto.
Torre de Babel, Grande Pirâmide de Cholula e Zacuali são alguns dos nomes que a construção leva em
diferentes tradições. O mito é uma das tentativas mais bem-sucedidas de resolver a questão milenar da
diversidade das línguas no mundo. Afinal, como explicar um assunto que se confunde com a origem do
homem? Como abordar essa “coisa” que chamamos língua e que já foi definida como uma energia, um organismo ou um sistema social?
No século XVIII, conhecido como século das luzes, o filósofo francês Rousseau escreveu, em um de
seus ensaios menos conhecidos, longamente sobre o assunto. Para ele, o homem começou a falar para emocionar os outros. “Pode-se crer que a necessidade ditou
os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras vozes”,
diz ele em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas, de
1761 (Unicamp, 2008). Rousseau acreditava
que, se o homem tivesse apenas necessidades físicas, da mesma maneira que
outros animais, ele provavelmente
nunca falaria. Mas, como se desconfia, o Homo sapiens precisa
de algumas coisas a mais.
Tem desejos e sentimentos
e, depois que começou a
duvidar da narrativa bíblica sobre a origem
12
Continuum Itaú Cultural
humana, conheceu novas vontades. Quis
entender
qual era a linguagem que caminhou com
o primeiro homem e começou, no fim do século XIX,
a especular sobre a “língua perfeita”, “original” ou “adâ
mica”.
Foi nesse rastro, por exemplo, que nasceu
o esperanto, na Polônia, ou o volapük, na Alem
anha, línguas francas internacionais [faladas por gent
e de diferentes idiomas com o objetivo de comunic
aremse entre si] com a missão de acabar com a
maldição
de Babel. “Afinal de contas, o plurilinguismo
é visto
como um castigo de Deus em todo o Ocid
ente, e
só é redimido com a descida do Espírito Sant
o sobre os apóstolos”, explica o linguista José Luiz
Fiorin,
da Universidade de São Paulo. “Nesse episó
dio, todos falaram e se entenderam, mas não se
sabe se
os apóstolos ouviram a mensagem na sua
própria
língua ou se ganharam todos os idiomas,
numa espécie de ‘esperanto místico’ ”, explica.
As partes da colcha de retalhos
s práA solução do Espírito Santo ganhou contorno
bemmais
s
ideia
ticos nas línguas universais ou em
as
que
humoradas, como a de Jonathan Swift: “Visto
nte
palavras são apenas nomes de coisas, seria basta
as
igo
cons
gasse
carre
um
mais cômodo que cada
que
tos
assun
os
coisas que lhe servem para exprimir
potenciona falar [...] desse modo, os embaixadores
estranderiam negociar com príncipes ou ministros
as”, diz
língu
suas
as
ecer
geiros sem terem que conh
1726
de
er,
Gulliv
o autor irlandês nas suas Viagens de
esém
(L&PM, 2005). Nessa época apareceram tamb
am
peculações sobre a origem e o motivo que levav
de
ria
histó
uma
o
com
r,
os homens a se comunica
s
hido
grun
dos
r
que eles começaram a falar a parti
dos.
pesa
associados ao esforço para levantar objetos
os esCansados dessas ideias estapafúrdias, em 1866
iram
proib
Paris
de
ística
tudiosos da Sociedade Lingu
da
em
“orig
à
vo
todo e qualquer estudo de tema relati
ser
de
e
linguagem”. Para eles, o assunto estava long
n Jocientífico. No entanto, um inglês chamado Willia
que
de
o
encid
conv
ou
acab
nes viajou para a Índia e
io
Méd
te
Orien
do
alguns falares da Europa, da Índia e
é
os
estud
tinham parentesco. A publicação de seus
nsáo marco inicial da linguística comparada, a respo
os
ecem
conh
hoje
que
do
vel pelo estabelecimento
se
que
imo
próx
como famílias linguísticas, o mais
pôde chegar dos primórdios das línguas.
Participe com suas ideias
13
Aquelas
semelhanças que
Jones apontou acabaram no indoeuropeu, uma língua que jamais foi ouvida,
mas que pôde ser reconstruída a partir das
coincidências entre idiomas aparentemente
tão díspares como o sânscrito, o grego e o latim.
Seus ramos são os responsáveis pelo nosso português, mas também por muitas outras línguas,
entre elas o romeno (também do braço latino), o
inglês e o alemão (do grupo germânico) e o russo
(do grupo balto-eslavo). Atualmente, os pesquisadores acreditam que haja no mínimo duas dezenas
de famílias como o indo-europeu que, remontadas a
mais de 10 mil anos a.C., poderiam acabar em uma única língua, ainda muito mais antiga, chamada scan. Ou não!
Porque, como não existem registros, poderiam existir várias línguas dos vários primeiros homens que deram origem a essa colcha de
retalhos dos quase 7 mil idiomas falados em todo o mundo.
totalmente orais e que acabam enterradas
com o último conhecedor”, explica Faraco. Foi assim
com o dalmático, antigamente falado nas margens
do Mar Adriático, e com dezenas de línguas indígenas brasileiras, que sumiram ao mesmo tempo que
suas tribos.
Melhor que falar de morte, então, seria falar de falta
de uso. “Quanto mais a língua é praticada, mais ela
se fortalece”, explica a professora de linguística histórica Enilde Faulstich, da Universidade de Brasília.
“Falar de morte é uma metáfora, porque língua é
algo abstrato. E ninguém mata algo abstrato. Língua e mente caminham juntas e é por isso que, para
matá-la, é preciso, antes, matar as pessoas”, diz.
Fazer a mágica de “reviver” uma língua só é possível
se houver registros de seu uso. E, como a escrita é o
modo mais antigo de “guardar” a fala, é a partir desses
Prática e fortalecimento
Mas, se não é possível saber como as línguas surgiram, pelo menos
sabemos que elas morrem, certo? Nem sempre. “Essa história
de pensar que a língua nasce, evolui e morre é coisa do
século XIX, quando se tentava enquadrar tudo nos
esquemas biológicos e evolucionistas”, explica
o professor de linguística Carlos Faraco, da
Universidade Federal do Paraná. Basta pensar, por exemplo, no hebraico,
que deixou de ser falado por causa da
dispersão dos judeus pelo mundo.
Ou seja, estava morto. Só que, com
a criação de Israel, em 1948, ele foi
resgatado, adaptado e virou a língua oficial da nação. No Norte da
Itália também há dialetos desaparecidos, mas registrados em documentos e livros, que voltaram
a ser estudados e, como o hebraico, “reviveram” no país com
os novos falantes. “As únicas línguas que morrem são aquelas
14
Continuum Itaú Cultural
documentos que se pode sair por aí “des
enterrando”
idiomas. Só que, mesmo com eles, descobrir
como os
seres humanos se expressavam antigame
nte é tarefa
quase impossível. Porque escrita e oralidade
são duas
modalidades distintas da linguagem, e não
o espelho
uma da outra. É só pensar que, se alguém
começar a
falar como escreve, o resultado sairá um
tanto esquisito. “É como se imaginássemos uma linha
contínua que
vai de algo mais escrito a algo mais oral.
De uma ponta a outra existem várias nuances, vários
gêneros que
misturam características dos dois”, explica
Fiorin. O diálogo em casa, por exemplo, estaria numa
extremidade
oral, enquanto um artigo científico, cheio
de burocracias, estaria em outra. Mas a fala de um
apresentador
de telejornal fica entre as duas porque, apes
ar de falado, tem marcas claras da caneta de quem
construiu o
texto. ”Fala e escrita são coisas muito difer
entes, mas
não opostas”, diz o professor. Juntas, no enta
nto, essas
duas modalidades compõem o todo que,
além de ser
dito ou grafado, é capaz de definir o hom
em e seu lugar no mundo.
Construção de sentidos
“A sociedade só é possível pel
a língua; e por ela também o indivíduo”, escreveu
Émile Benveniste, em
Problemas de Linguística Geral,
de 1966 (Pontes Editores, 2008). Mas será que a líng
ua é mesmo capaz de
construir tudo isso, como acredi
ta o teórico francês?
“É por meio dela que o ser hum
ano se revela”, esclarece Luiz Francisco Dias, pro
fessor de linguística e
semântica da Universidade Fed
eral de Minas Gerais.
“Falando para o outro, falamo
s para nós mesmos e,
assim, construímos os sentido
s e nos descobrimos.”
Afinal, basta alguém começar
a dizer algo para, imediatamente, denunciar de ond
e veio, qual a “turma” a
que pertence e, nas entrelinha
s e entonações, declarar até os sentimentos e medos
que o cercam. Ou, ao
menos, foi nisso que o neurolo
gista alemão Sigmund
Freud pensou quando conceb
eu a psicanálise, em
1890. Grosseiramente, seu mé
todo nada mais é que
uma forma de desbravar o inc
onsciente por meio
das artimanhas da linguagem
.
As palavras usadas, no entanto, fazem parte de outro sistema, definido política e socialmente. A língua,
afinal, é o meio de comunicação de um determinado território, usado por seus indivíduos, “um dialeto
com exército e marinha”, nas palavras do linguista
alemão Max Weinreich. A primeira coisa que uma
nova nação precisa, além de definir suas fronteiras,
é de uma língua nacional. “Nosso idioma está inscrito na Constituição, e ele é um dos elementos que
nos definem como brasileiros”, diz a especialista em
linguística histórica Rosa Mattos e Silva, da Universidade Federal da Bahia. “A construção da identidade
pessoal passa pela língua, porque é por meio dela
que os seres veem a realidade e é com ela que eles
se expressam”, diz. Tanto é que não existe gente sem
língua, qualquer que seja. E talvez seja por isso que
tantas mitologias, tentando explicar o começo do
mundo a partir do nada, foram parar na palavra.
Leia na Continuum On-Line entrevista com a linguista Marta Scherre, da Universidade Federal do Espírito
Santo, sobre preconceito linguístico.
Participe com suas ideias
15
entrevista
O beija-flor de Nei Lopes
Por Marco Aurélio Fiochi | Foto Cia de Foto
O samba deu régua e compasso ao compositor, cantor e escritor carioca Nei Lopes para
empreender seu respeitável estudo sobre a presença das línguas africanas na formação do
português falado no Brasil. Sua produção inclui 23 livros publicados e dois a ser lançados
neste ano. São ensaios, contos, perfis e narrativas, além do constante levantamento das
palavras de origem africana que integram o vocabulário dos brasileiros, o que rendeu quatro dicionários (dois voltados ao grupo linguístico banto, outro com termos afro-brasileiros
para estudantes e mais um com verbetes sobre a produção literária negra). No campo da
história, Lopes realizou a extensa pesquisa que compõe os cerca de 9 mil verbetes de sua
Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (Summus, 2004). Um dos mestres do partido
alto, reunião musical em que o improviso é essencial para criar na hora versos inspirados e
bem-humorados sobre o cotidiano, é autor de vários sambas de sucesso, cantados, entre
outros, por Clara Nunes, Alcione e Beth Carvalho. Distante da agitação do Rio de Janeiro e
de sua paixão, o Salgueiro, vive tranquilo com a esposa, Sonia, em Seropédica, interior fluminense. É lá que funciona o NEI (Núcleo de Estudos Independentes), uma brincadeira do
escritor para falar de seu lugar de trabalho, um escritório repleto de livros, e para ressaltar
que sua produção é feita de maneira solitária, sem filiação a nenhuma universidade, mas
com a generosidade de amigos que lhe trazem materiais de estudo de várias partes do
mundo. É no jardim de sua casa que ele recebe de vez em quando a visita de um passarinho, que, graças à verve afiada do sambista para a improvisação, foi batizado de “beija-flor
de Nei Lopes”, trocadilho saboroso com o nome de outra famosa escola de samba, a BeijaFlor de Nilópolis.
O sambista Nei Lopes em sua casa: “O samba é fonte de referência, apesar do esvaziamento cultural”
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Continuum Itaú Cultural
Participe com suas ideias
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Você ficou contente com a vitória do Salgueiro no
último Carnaval?
Esta é uma longa história. Estou afastado do Salgueiro desde 1989. Quando saí da escola, devido a uma
incompatibilidade com a direção, fui para a Vila Isabel. Sempre morei naquela região, da Grande Tijuca.
Eu era um simples componente do Salgueiro e na Vila
Isabel virei dirigente.
Você era da ala dos compositores do Salgueiro?
Fui da ala dos compositores, mas quando saí estava
na velha-guarda. Eu me desentendi com eles porque
concorri com um samba-enredo para o Carnaval de
de escravo foi uma mudança difícil. Negro queria era
sair fantasiado de senhor. É até ilógica minha participação no Salgueiro pelo fato de eu ter nascido e sido
criado no Irajá, subúrbio carioca, completamente distante do núcleo salgueirense. O Irajá tem forte tradição de samba, pois está cercado pelo Império Serrano, pela Portela. O lógico seria eu ir para uma dessas.
Inclusive, quando menino, tinha uma tia que foi uma
grande figura da Portela, foi compositora, cozinheira.
Recentemente tive acesso a uma carteirinha dela e ali
estão seu nome e número da matrícula. Imagina um
componente da Portela com a carteirinha de número
5, então é da fundação mesmo. Alguns membros da
“O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição vocabular, que andava solta pelos morros.”
1989 e houve algumas confusões, que são típicas de
escolas de samba. Mas meu coração é salgueirense.
Fiquei muito feliz com a vitória da escola nesse Carnaval. Eu vi o desfile pela televisão, mas não se tem a
noção exata do que seja, pois, apesar de toda a tecnologia, ela não aprendeu ainda a transmitir desfiles de
escolas de samba. É algo tão rico... Um cortejo no qual
se encena um espetáculo, como se fosse uma ópera.
Neste ano, eu me emocionei profundamente porque
o desfile estava muito bom, muito bem acabado do
início ao fim. A Vila Isabel eu não vi, lá tenho grandes
amigos, mas ela não mexe com minha sensibilidade
como o Salgueiro, para o qual entrei no final da adolescência. Foi um convívio muito intenso.
O Salgueiro foi uma das primeiras escolas a trabalhar
com temas ligados a questões dos negros...
Sim, isso foi o que me chamou a atenção na adolescência. A primeira vez que vi o Salgueiro foi em 1958.
A escola tem uma história social completa, muito coerente em toda a sua existência. Foi a primeira agremiação na qual se exercitou a possibilidade de o meio
conduzir a mensagem. Normalmente, o que se via nas
escolas de samba era a comunidade majoritariamente negra transmitir os conteúdos da história convencional, oficial, eurocêntrica. Colocar um negro vestido
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Continuum Itaú Cultural
velha-guarda, como Monarco e Casquinha, a conheceram bem e, de vez em quando, me questionam por eu
não pegar os sambas dela, que só tinham a primeira
parte – usual naquele tempo –, e não os completar.
Conheço uns dois, que estão na memória, só. Ela foi
uma pessoa que me influenciou muito. Seria coerente,
então, que eu fosse da Portela ou do Império Serrano,
onde tenho amigos, mas nunca estive lá. A razão, no
entanto, é muito simples: tenho um amigo de infância que atualmente mora no Recife e sai todo ano na
velha-guarda do Salgueiro. Ele pertencia à comunidade dessa escola, era um salgueirense convicto. A gente se criou junto. Quando atingimos a maioridade, ele
me convidou para sair no Salgueiro, eu disse que não
dava, não tinha dinheiro, não estava trabalhando, e ele
me falou que a escola iria dar a roupa a pessoas que
tivessem facilidade com dança, para integrar um quadro que não era exatamente de samba, era um balé.
Isso foi em 1963, o primeiro ano em que a escola foi
campeã, com o enredo sobre Xica da Silva. No ano
seguinte, eu me tornei componente. Depois, meu
filho, aos 10 anos, deu continuidade a essa tradição,
saiu na bateria, ficou ligado à escola por muito
tempo. É algo natural. Um dia perguntaram
aos meus netos, que são gêmeos, com 9
para 10 anos, de que escola eram, responderam “do Salgueiro”.
O senhor é
um dos criadores e mestres do samba de partido alto. Esse
gênero é marcado por narrações de casos do cotidiano. Quais artifícios ou ferramentas a língua oferece para criá-los?
É um estilo de samba que me encanta muito pela
proximidade com a tradição africana. É a forma menos desafricanizada do samba. Eu me tornei um praticante dele. Hoje já não tenho tanta agilidade como
antigamente, é algo que vai se perdendo com a falta de exercício. Partido alto é uma cantoria na base
do improviso. Então, quando se escreve, quando se
grava esse samba, ele já deixou de ser partido alto.
Daí se tem um samba em estilo partido alto, mas em
essência não é. Ao gravar, já se escreveu, se memorizou, então não há improviso. O improviso sempre
acontece no ambiente da informalidade. Quando é
apresentado num teatro, perde a espontaneidade.
Todas as cantorias ocorrem ao sabor do momento.
Tem de haver uma base, uma poesia previamente
preparada, mas o que vai surgir dali não se sabe. Há
determinados motivos, dentro de refrões, e tem de
se versar com esses temas. A cantoria nordestina, por
exemplo, tem vários estilos, cada um com muita rigidez formal. O partido alto tem algumas regras, mas
não essa rigidez, essa formalidade em que não se
pode sair do estabelecido. O partido alto tem mais o
caráter de brincadeira, de algo mais lúdico do que a
competição de saber quem é o melhor, como os trovadores na cantoria nordestina. Nele, quanto mais se
rimar dentro de uma métrica, melhor. Por exemplo,
quando se faz uma quadrinha: “Lá em cima daquele
morro tem um pé de manacá”. Pode-se brincar assim:
“Lá em cima daquele morro eu peço socorro”, entende? Inclui-se outra qualidade de rima, transforma-se
a quadra numa sextilha, fica algo mais encorpado,
balançado, gostoso. Aí é que se vê a habilidade do
partideiro. Há grandes partideiros atualmente, como
o Tantinho da Mangueira. Dos que estão em atuação
no momento, ele é o melhor. O Arlindo Cruz também
é excelente.
O samba é comumente associado à preservação
da cultura nacional. Nisso se inclui a língua portuguesa. Qual a contribuição efetiva que o samba
deu à nossa língua?
O samba fixou muita coisa, principalmente na contribuição vocabular. Ele consagrou muita criação lexical
que andava solta pelos morros. Na construção de um
dicionário, por exemplo, se determinada palavra tem
importância histórica, para registrá-la é preciso fazer
uma abonação. Onde está essa palavra, em que local foi usada. Muitas vezes, essa abonação só vai ser
encontrada em letra de samba. São palavras de uso
muito localizado, como qualquer gíria. A gíria é uma
forma verbal sempre restrita a determinado ambiente,
contexto e grupo. O samba é fonte de referência, apesar do esvaziamento cultural, para o qual a indústria
cultural contribuiu decisivamente.
É o fenômeno do samba axé...
Exato, e também o chamado neopagode, que é sexualização pura e de uma ingenuidade... O samba não é
isso, em sua essência é crítico, é cronista da vida. Ultimamente, está nas mãos de muito poucos compositores. Vemos isso no repertório do Zeca Pagodinho. Sua
grande importância é essa, ele é o guardião, vamos dizer assim, o bastião da resistência do modo de vida, da
cultura, da expressão oral do mundo do samba. Outros
compositores, como Luís Grande, Zé Roberto e Barbeirinho do Jacarezinho, também são muito bons.
Foi do samba que surgiu seu interesse por estudar as
línguas africanas e sua influência no português?
Tudo começou com a necessidade que eu sentia desde muito cedo de denunciar essa forma de as pessoas
encararem tudo que é africano como negativo, desinteressante, desimportante. Quando descobri que o
português que se fala no Brasil tem forte influência
africana, não só na sua estrutura, mas no modo de
falar, no vocabulário, não parei mais. Há palavras que
a gente nem supõe que sejam de origem africana.
Nesta semana, por exemplo, me ocorreu que “maluco”
poderia ser africana. E é. “Maluco” vem do Congo. Outro exemplo, uma palavra que é do campo semântico
da tecnologia, “carimbo”. Ela é de origem africana. Mais
uma: “sunga”, do campo da vestimenta, dá a impressão
de ser extremamente moderna. Mas não é. Vem das
origens africanas, quando se usava o termo “assungar”,
que significa diminuir, encurtar. Então, uma roupa assungada é uma roupa encurtada, daí vem “sunga”.
Há uma infinidade de palavras africanas sendo pes-
Participe com suas ideias
19
q u i s a d a s,
inclusive os falares dos
quilombos remanescentes, como
o Cafundó, no interior de São Paulo. São
palavras que têm uso restrito nessas comunidades, que não chegaram ao domínio geral,
mas têm uma filiação africana muito clara. Muitas
delas, já observei, são permanentes. Elas “hibernam” durante um tempo e, por alguma razão, voltam. Quer saber outro termo? Por causa da televisão,
todos sabem o que é uma “quenga”. É uma palavra
africana muito usada no interior e que ficou restrita
a essas localidades por um bom tempo. Hoje, tem
circulação nacional. Há outras ainda: “tamanco”, “camundongo”, “marimbondo”, palavras extremamente
sonoras, do grupo banto.
O senhor é ligado a algum grupo acadêmico de
estudo da língua?
Não. Minha formação é incompleta, sou bacharel em
direito e ciências sociais. O tempo da faculdade foi de
muita turbulência política e o ensino não me agradava muito. Apesar disso, eu me formei e advoguei durante um período, mas o que ficou foi só uma base.
Acho que tinha vocação de antropólogo mesmo.
Na época era o tipo de conhecimento que não era
vulgarizado. Sou autodidata. Tenho uma base formal,
mas não sou ligado a nenhum grupo acadêmico.
Mesmo porque tenho críticas à academia. O trabalho
acadêmico é muito em torno do próprio umbigo. As
pessoas, em geral, não têm uma preocupação mais
adiante, mais social, de transformação. Querem é defender sua tese, ganhar sua promoção, fazer grana. E
a vaidade é muito grande.
Seus estudos linguísticos começaram a despontar quando a carreira musical já estava consolidada. Hoje, como um assunto visita o outro: o
estudo abastece a composição e a composição
exemplifica o estudo?
Em 2006, por exemplo, publiquei um livro de ficção,
Vinte Contos e uns Trocados, pela editora Record. Ou-
20
Continuum Itaú Cultural
tro dia, comecei a relê-lo e me surpreendi. Eu escrevi
esses contos no intervalo de outro trabalho, que não
foi publicado ainda, o Dicionário da Antiguidade Africana. Ele vai sair pela Civilização Brasileira, que é do
grupo Record também. É um estudo que está sendo
muito bem elaborado, porque é pioneiro, ninguém
tinha analisado a África antes da chegada dos portugueses. Pois bem, eu percebi, ao reler as histórias de
Vinte Contos que nelas, em vários momentos, aparecem referências à música. Todos os contos se passam
no ambiente das escolas de samba. A todo momento esse ritmo está nas histórias; e, em várias passagens, a antiguidade africana também. Então tudo
vai se ligando, não há dúvida. Reparei também que,
atualmente, quando faço um samba, muita coisa da
minha formação jurídica tem entrado nas composições. Quero reunir as músicas em que essa influência
é recorrente. Esse recurso é usado mais como uma
brincadeira, como um deboche, mas é interessante,
de qualquer forma. As coisas se entrecruzam sem
preconceito nenhum.
mandinga são línguas
que têm subdivisões dialetais,
de acordo com as regiões. Chamar
toda língua africana de dialeto é racista,
inferiorizante. Em outro livro meu, Dicionário
Literário Afro-Brasileiro (Pallas, 2007), discuto a
questão do racismo na literatura. Por exemplo, há
um grupo de literatos negros em São Paulo, chamado Quilombhoje, que se reúne em torno dos Cadernos Negros, publicação editada há cerca de 30 anos.
Eles publicam às próprias custas antologias de ficção
Na introdução do Novo Dicionário Banto do Brasil
(Pallas, 2003), o senhor faz uma observação sobre a
influência das línguas africanas no português ao
dizer que uma das formas de racismo mais arraigadas na alma brasileira é reduzir essas línguas à
condição de “dialetos”. Outro aspecto pontuado
nesse texto é a definição do português brasileiro
como um dialeto do idioma falado em Portugal...
e de poesia. É um grupo reconhecido internacionalmente, mas o Brasil não o reconhece. Em nosso país
só alcançam reconhecimento as pessoas que estão
ligadas aos círculos literários influentes, que vendem
muitos livros, estão em grandes editoras.
Teoricamente seria, porque um dialeto é uma forma
linguística resultante da transmutação, da transposição de uma língua para outro ambiente. O que aconteceu com o português de Portugal e do Brasil? A língua de Portugal, ao vir para o Brasil e ter contato com
outras realidades linguísticas, transformou-se bastante. Minha crítica nesse texto é ao preconceito
de que toda língua africana é um dialeto. A existência de um dialeto pressupõe a existência de
uma língua. É evidente que na África há dialetos, mas há línguas também. O quicongo é uma língua falada por milhões
de pessoas, o hauçá, o
totalmente africana, tenha um grau de mestiçagem.
Em casa, desde cedo fui o primeiro a pensar nas questões que envolvem os negros, por ter sido o primeiro a ter acesso a esse tipo de informação – meu pai
e minha mãe não gostavam de tocar nesse assunto.
Diziam: “Deixa para lá que a gente tem que melhorar”. Era aquele conceito de melhorar no sentido do
embranquecimento mesmo, de deixar a condição de
negro para trás. Minha mãe não queria que eu me envolvesse com gente do samba, e eu me envolvi, contrariando todas as expectativas. Além do samba, havia a questão da religião, quanto menos africanizada
“Há uma infinidade de palavras africanas sendo pesquisadas, inclusive os falares dos quilombos remanescentes.
São de uso restrito nessas comunidades, que não chegaram ao domínio geral.”
O senhor postou recentemente em seu blog
[www.neilopes.blogger.com.br] um texto sobre
uma recente pesquisa da situação social do negro brasileiro no último ano. Nele, faz uma crítica
ao debate atual sobre a existência ou não de raças. Por que surgem essas proposições, e por que
elas ganham força?
Meu pai e minha mãe são do século XIX; meu pai
nasceu em 1888, poucos meses antes da Abolição.
Para mim, o grande acontecimento de 2008 foi a descoberta de minha ancestralidade um pouco além de
meu pai. O historiador Flávio Santos Gomes está trabalhando com registros de batismos de pessoas nascidas nos séculos XVIII, XIX, pertencentes a igrejas. Ele
me auxiliou. Meu pai dizia que tinha sido batizado na
Igreja da Lampadosa, no centro do Rio, que concentrou grande irmandade de pardos. Então, pressupõese que minha ancestralidade mais próxima não seja
fosse, melhor, apesar de minha mãe ser médium. Ela
recebia preta-velha, e meus tios recebiam caboclos.
Mas, quanto menos africano a gente fosse, melhor. É
lógico, um pai que nasceu em 1888 e uma mãe que
nasceu em 1900 não vão querer nunca que a formação do filho remeta àquele passado aviltante do qual,
embora distantes, sentiram as consequências. Não era
bom ser negro, não era confortável. O que eles queriam? Que o filho estudasse, subisse na vida. Comecei,
então, a ver que enquanto o negro permanecesse no
lugar reservado a ele, ocuparia, sem demérito, funções
como mecânico ou operário qualificado, como se dizia antigamente. Se, no entanto, o negro pensasse em
ser doutor, um ser pensante, começaria a entrar numa
área de conflito com o branco. E é exatamente isso o
que está acontecendo. Mas também é um momento muito saudável, pois se trata de um assunto que
nunca se discutiu e agora está na pauta do Congresso,
com o Estatuto da Igualdade Racial. Se raça não existe,
existe o racismo! Essa é a grande questão. Se não tenho a possibilidade de avançar, tenho no mínimo de
me preocupar.
Assista na Continuum On-Line a trecho do DVD Toca
Brasil – Nei Lopes.
Participe com suas ideias
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on-line
convocação
Em outras palavras...
Abra a gaveta e participe!
Escrever “é viajar entre mundos e ter morada apenas na zona de fronteira”. As palavras são do escritor moçambicano Mia Couto, um dos mais conhecidos do continente africano e da literatura em língua portuguesa. Biólogo e jornalista de formação, tem mais de 20 livros publicados, em países como Alemanha e
Dinamarca. Em entrevista, Couto fala de seu trabalho e de questões como a lusofonia e o acordo ortográfico.
Cansado de guardar sua produção na gaveta? Mande contos, poemas, ilustrações, fotografias, vídeos
e demais trabalhos artísticos para a Continuum Itaú Cultural! Eles podem ser publicados nas páginas –
impressas e virtuais – da revista.
Basta ficar de olho no tema do mês e enviar sua obra pelo e-mail [email protected].
***
O que pode acontecer com uma língua quando retirada de seu contexto? Se os costumes estão intimamente
ligados ao idioma e à evolução deste, o que significa retirá-lo de seu local de origem? Muitos afirmam que ele
se estagnaria. Em artigo, o professor de teoria literária da Unicamp Alcir Pécora discorda: “A matriz da língua não
anula o seu exercício, seja ele partilhado pelos membros da comunidade original de falantes, seja pelos de um
grupo mais reduzido, por vezes interessado num registro exclusivamente literário dessa língua”.
***
A relação entre língua e música também tem espaço na versão on-line da Continuum. Ouça o programa
Mapa – Em Busca do Brasil Sonoro com Luiz Tatit, um dos participantes do grupo Rumo, que reuniu também
Ná Ozzetti e Gal Oppido, entre outros. Com 30 anos de formação e discos como Rumo aos Antigos e Diletantismo, o grupo inovou a forma de utilizar os recursos da língua em suas letras.
Maio-junho: Língua
Julho-agosto: Conectividade
As portas da Continuum não estão abertas apenas para obras de arte. Você também pode participar com
matérias jornalísticas, reflexões, comentários, críticas, sugestões etc. A cada edição uma enquete convida os
leitores a dar sua opinião. Para o tema corrente entre maio e junho, a enquete é: Qual o futuro das línguas?.
Acesse e diga o que pensa!
***
***
Confira, em maio e junho, atualizações exclusivas no site da Continuum (www.itaucultural.org.br/continuum). Ouça o audiobook produzido com curadoria de Cacá Machado, responsável pela exposição sobre
Machado de Assis do Museu da Língua Portuguesa; leia o glossário sobre linguagem escrito pela professora
Mayra Rodrigues Gomes; conheça a poesia verbovocovisual em criação de Ricardo Aleixo; saiba qual a relação entre som e significado no artigo do professor Welington Andrade, entre muitos outras. No site, você
também pode se cadastrar para receber nossa newsletter e acessar as edições anteriores da revista.
O escritor moçambicano Mia Couto: “A língua é uma moradia, uma casa para o pensamento”
As relações sociais estabelecidas por intermédio da internet – tema cada vez mais presente em tempos de
Orkut, MySpace, Twitter e outros programas que vêm tornando o mundo mais integrado e em conexão
– são o mote da entrevista especial, com o jornalista Marcelo Tas, que será publicada na edição sobre
Conectividade (julho-agosto).
E quem vai fazer essa entrevista é você: envie perguntas, exclusivamente relacionadas ao universo da
internet, para ser respondidas por Tas. O fim do mês de maio é o prazo para mandar quantas perguntas
quiser, usando o e-mail da redação: [email protected].
Para conhecer mais sobre o comunicador, visite seu blog (marcelotas.uol.com.br), uma das páginas virtuais
mais visitadas do país. É lá que ele comenta e analisa as novidades da rede não só brasileira, mas a de todo
o mundo. Tas também é um dos mais seguidos no Twitter, em que dá dicas sobre o que é bom ficar de olho
na internet.
Para saber mais, acesse www.itaucultural.org.br/continuum.
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O homem que abdicou das palavras
Por Diogo Sponchiato | Ilustração Hare Lanz
Abdicou das palavras como quem para de beber cerveja. Talvez estivesse bêbado quando ditou a aposta. Os
companheiros de bar nunca acreditaram na proposta de Jorge. Mas ele a fez. Fez para si, porque sabia que
de suas entranhas não brotariam revoluções. Usou os amigos e os quatro ou cinco copos de cerveja como
álibi para dar força ao seu plano egoísta. Sabia que não era o primeiro nem o último a fazê-lo. E ninguém
atentou às suas últimas palavras.
Jorge se achava mais um lobo da estepe. Não tinha nem 50 anos, mas se portava feito um velho carcomido
por um tempo sem alterações. Considerava-se o melhor entre os alunos e o pior entre os professores. Nunca
publicou um livro, ele que se via intelectual, com os óculos na ponta do nariz adunco, o cigarro no canto
direito da boca, um ou dois livros presos à axila. Tantas poesias confinadas no armário, prisioneiras do pó. E
um romance que o fogo da lareira dilacerou, após uma noite regada a puro malte escocês. Não que fosse
pusilânime, mas ciente de que o mundo não se importaria com suas insossas palavras e débeis ideias. Seus
textos não refletiam a originalidade que, um dia assegurou ele, habitava sua mente. Jorge era o intelectual
que estaria sempre prestes a nascer, mas nunca nasceria.
Nesse impasse, decidiu-se pelo aborto. Cansou-se da prosa, esse mar artificial; enfastiou-se da poesia, esse
riacho de extremos, antíteses e falsidades. Rasgou os jornais, a interpretação barata da realidade estúpida
que vivia. Cobriu com uma lona sua exígua biblioteca, repleta de exemplares emprestados e nunca lidos,
afinal, ele sempre preferiu os livros comprados pelo próprio bolso. Ao espreitar um volume de contos de
Machado de Assis, colocou-se no lugar do alienista, mas logo cuspiu a lembrança. Árduo trabalho o de mandar ao inferno, ao vazio, ao nada, tudo o que havia lido. Adeus a personagens e mundos. Adeus ao tempo
construído por frases. Sua meta era se desvencilhar das palavras.
Aposentou-se da leitura. E maior esforço despendeu para renunciar aos diálogos do cotidiano, essas coisas
aparentemente insignificantes, mas que são os verdadeiros tijolos do conhecimento humano. Suou para
transformar os pedidos de café na padaria em singelos gestos e interpretações. Tornou-se um ator de filme
mudo. Logo se viu posicionando os dedos em “v” e levando-os à boca. Minutos depois, estaria com um novo
maço de cigarros. Preteriu todos os bons-dias, obrigados e rituais de reciprocidade que, há algum tempo,
saíram de moda na urbe. Abnegou o céu, evitando os outdoors e as fantasias sugeridas pelas nuvens.
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Extinguiram-se as poucas amizades. O telefone antigo
fora arrancado, a caixa de correio lacrada, o rádio de
pilha chutado e a televisão relegada à calçada. Deixou
num ferro velho o fusca, herança da esquecida família; evitaria assim os xingamentos que tanto praticava
no trânsito. Sobretudo, sofreu para abster-se dos filhos
da puta, cacetes e putas que o pariu. As topadas no pé
da cama não eram respondidas. Ao esbarrar com um
jovem desatento na rua, retribuía apenas um olhar. Os
olhos tornaram-se delatores; deles, saíam calados todos
os impropérios. As relações humanas se apagavam, mas
ele sobrevivia. Tentou se acostumar, simplesmente.
O primeiro ano calado e fechado aos discursos alheios
fora uma sucessão de crises. Como desde o princípio
temeu, embora não proferisse as palavras, elas continuavam vivendo em seu pensar. As reflexões, as lembranças, os anseios e os sonhos sempre negados estavam lá, dentro daquela cabeça careca, construídos
e consolidados por meio de substantivos, adjetivos e
verbos, um infinito de verbos.
Contorcia-se, espancava as têmporas tentando expulsar as palavras. Pensou em desistir, mas resistia.
De repente, sua mente entrava em transe e observava a tênue diferença que residia entre esses
dois verbos: desistir e resistir. Lágrimas vertiam
daqueles olhos esbugalhados, enquanto
um “d” se transformava em “r” e, como
um relâmpago, ocorria o movimento inverso.
Certa noite, para obliterar as letras e mergulhar no rio
do sono, sorveu, ansioso, duas garrafas de pinga. Caiu
e adormeceu. Acordou no meio da madrugada devolvendo ao mundo aquilo que só os canaviais poderiam
conceber. Jorge, esse nome que, todos os dias, se desenhava em sua mente, quis se valer do vômito para
expurgar as palavras que pulsavam em sua cabeça.
Tomou banho, para lavar-se das sílabas e do cheiro de
álcool. Sentou-se na cama e persignou-se, um velho
hábito que era menos fé do que mania. Dessa vez, ao
completar o sinal da cruz, Deus invadiu-lhe o cérebro.
Antes tivesse se endereçado ao coração. “D”, “E”, “U”,
“S”. Essas letras pululavam, emergiam e submergiam,
metamorfoseavam-se, apagavam-se como um vagalume que some na imensidão da noite e estouravam
feito um rojão. Ele pensou estar diante de uma revelação. Decerto era um castigo. Estava a ponto de gritar,
de urrar, mas manteve o silêncio e pensou que Deus,
tão menosprezado em suas antigas conversas filosóficas, havia sentido pena. Três anos tentando fazer de seu
mundo a negação do verbo. Três anos seculares. Uma
guerra cujas trincheiras estavam dispostas dentro de si.
Desarmado, desalmado, Jorge já avistava a derrota.
Enxergou a morte travestida de abecedário e deixou
de sair de casa. Uma semana esgotando as cervejas. A
única semana em que as palavras não o perturbaram.
Talvez profetizasse o início de um fim. Se no princípio
era o Verbo, ao fim somente caberia o silêncio. Um silêncio antecipado. Um silêncio ambíguo. Vencedor e
vencido; necessário e egocêntrico.
No último dia daquela última semana, percebeu que as palavras já recomeçavam a borbulhar. Sentiu a morte tocar-lhe as
costas. Olhou-se no espelho e viu-se no meio de uma ponte
em cujas extremidades se opunham a palavra e a morte.
Subitamente, sentiu uma intensa dor no peito. E, num
rodamoinho de imagens e nomes que assaltou seu
pensar, pegou um papel escondido debaixo da cama.
Ele previa o momento.
Gritou, gemeu, pediu perdão aos
homens, aos verbos e a Deus. Praguejou, recitou um soneto. Sucumbiu
com um dicionário explodindo na mente. Para
Jorge, a morte não era a maior derrota.
Em seu túmulo não havia seu nome, tampouco um epitáfio. Uma lápide lisa. Poucos compareceram ao enterro.
Um funcionário da funerária dirigiu-se a um dos antigos
amigos e entregou-lhe um papel. O amigo abriu uma folha
de caderno já amarelada pelos anos e reconheceu a caligrafia de Jorge, tão perfeita como nos tempos em que escrevia
poemas no colégio. O verbo derradeiro cumpria sua ação.
Talvez as palavras não o rodeariam mais. Talvez seu livro se
fecharia sob o som do silêncio e à luz da escuridão.
Diogo Sponchiato é jornalista.
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Série Paisagens Descritas-SP, 2009, de Rebeca Rasel
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Continuum Itaú Cultural
Sem Título, de Alexandre Hypolito
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arena
O desacordo ortográfico
Por João Pereira Coutinho
A unificação da língua portuguesa aproximará o Brasil dos outros países lusófonos? O Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa, em vigor desde janeiro último, além de normatizar o uso escrito do idioma, traz em seu bojo
implicações históricas e antropológicas. Seria esse documento capaz de promover uma união mais coesa entre
oito povos dispersos em três continentes? Nações irmãs, mas em muito estranhas entre si, seus laços por vezes
circunscrevem-se aos limites da diplomacia. Seria a língua capaz de superar essa barreira?
Não é preciso ter lido os românticos para saber que a língua é o produto de um povo, e não de
alguns sábios que resolvem decidir que existe apenas uma forma correcta de falar, escrever e
pensar em português.
O primeiro problema com o Acordo Ortográfico começa aqui: tomando como base duas pronúnciaspadrão – a brasileira e a portuguesa –, os sábios de ambos os países chamaram a si a tarefa hercúlea
de “unificar” a língua, como se isso fosse desejável. Não é. Ao ignorar os outros falantes do português,
a atitude revela prepotência perante povos terceiros e alegadamente “inferiores”.
Esforço de “universalização”
Não existem donos de uma língua. Ela pertence a quem a fala, com suas variações fonéticas e
ortográficas. O caso não é singular: o inglês, o francês ou o espanhol possuem variações linguísticas
e geográficas que nunca puseram em causa sua importância no mundo. A diversidade é uma
força, não uma fraqueza.
Por Roberto DaMatta
Os elos entre visões de mundo e seu modo de expressão mais potente, fluido, permanente e fundamental –
a linguagem articulada, falada ou escrita – são problemáticos. Sem um suporte material – uma escrita e uma
literatura – as línguas desaparecem com os seus falantes. A expressão “língua morta”, usada para designar
linguagens cifradas, utilizadas em campos específicos, como o do direito e da filosofia, é uma contradição
em termos. Pois essas línguas estão mais vivas do que muitos idiomas que, devido ao contato cultural, têmse esvanecido sistemática e tragicamente do mapa da humanidade. Isso nos dá, talvez, uma noção mais
precisa da importância de uma padronização da língua na sua dimensão escrita, com todas as dificuldades
e limitações que ela apresenta aos seus usuários, sejam eles nativos, sejam estrangeiros, analfabetos ou
instruídos. Pois uma língua escrita unifica-se revelando – como tem ocorrido com a reforma do português
– os seus arbítrios. Estes nada mais são do que as escolhas de sons e sentidos que todos os códigos de
comunicação humanos, como meios de contato projetados para fora e independentes do organismo e
dos códigos genéticos que regem o mundo da biologia, expõem. Pois todas as línguas humanas escolhem,
distinguem e excluem sons e modos de combinar cadeias sintáticas e semânticas que formam seu léxico e
sua gramática.
Roberto DaMatta é professor de antropologia da PUC/Rio e professor emérito da Universidade de Notre
Dame, Indiana, Estados Unidos. Autor de livros sobre sociedades indígenas do Brasil e a sociedade brasileira
e colunista dos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo.
De acordo com os pais do acordo, a “unidade da língua” só se consegue quando a ortografia de
base alfabética for uma transcrição fonética o mais fidedigna possível. Assim se entende a obsessão
de eliminar certas consoantes mudas, como o “p” de “adopção” ou o “c” de “actor”.
ilustração Liane Iwahashi
Por esse motivo, entendo que o acordo de reunir, num único protocolo, a dimensão escrita de uma mesma
língua falada por oito nações localizadas em continentes diversos é algo muito importante. Trata-se de um
esforço de “universalização” do português. O acordo ortográfico – ainda que remeta às nossas dificuldades
mais elementares de reaprender a escrever o português, daí algumas das reações à novidade – traz no seu
eixo uma padronização da forma ou do material que carrega o pensamento, os valores e os hábitos, num
sistema capaz de juntar num mesmo código as inevitáveis e mais do que importantes variações culturais
e sociais, bem como históricas, que separam os países falantes do idioma. Penso que isso o redime de um
paulificante reaprendizado da língua.
Mas a natureza aberrante do acordo não está apenas na forma desrespeitosa como se tratam
tradições linguísticas que devem e merecem ser protegidas. Como cidadão português, existe uma
razão suplementar para me opôr a ele. E essa é estritamente linguística.
Essa obsessão assenta em novo erro. O facto de existirem certas consoantes mudas nas palavras
do português de Portugal começa por representar uma pegada etimológica de inegável riqueza
para o estudo de uma língua. O “p” de “adopção” não é um mero arcaísmo: é uma expressão de
história e de identidade. Mas não só: o “p” permite aos portugueses abrir a vogal que antecede a
consoante, funcionando assim como importante indicador fonético.
A discussão ignora algumas dessas idéias. E até os opositores do acordo, pelo menos em Portugal,
parecem ter preferido considerações nacionalistas (e economicistas) que passam ao largo do
real problema: persistem em dizer que ele apenas serve os interesses económicos do Brasil, que
acabará por ter posição dominante no mercado livreiro em todo o mundo de língua portuguesa.
Ainda que isso seja verdade, o problema principal não está na economia; está no reduto histórico,
filosófico e cultural. Aceitar o acordo será aceitar uma imposição artificial sobre a mais singular construção
humana. Será compactuar com uma intromissão arbitrária na nossa mais profunda humanidade.
João Pereira Coutinho é jornalista português, escritor e autor de Avenida Paulista (Editora Record,
2009). Escreve semanalmente para a Folha de S.Paulo.
Este artigo foi escrito com as regras ortográficas utilizadas em Portugal antes do atual
Boom,acordo.
de Lúcio Carvalho
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Continuum Itaú Cultural
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INTERNET
balaio
Comunicar é preciso
A língua que se expressa pela arte
Enciclopédia Itaú Cultural de Literatura Brasileira
(www.itaucultural.org.br/literatura)
Criada em 2007, a enciclopédia é uma das mais completas referências sobre literatura brasileira disponibilizada gratuitamente. Além dos verbetes sobre obras,
movimentos literários e biografias de romancistas, poetas, contistas e críticos, a publicação oferece histórias
de bastidores, ensaios e textos reflexivos, trechos de
obras e uma seção de vídeos. Nessa seção, é possível encontrar pérolas, como a recitação de poemas
de Adélia Prado e Ferreira Gullar, feita pelos próprios
autores; e os depoimentos de Lygia Fagundes Telles e
Milton Hatoum, entre outros.
CINEMA
MÚSICA
Língua – Vidas em Português, de Victor Lopes (idem,
Brasil e Portugal, 2002, TV Zero/Sambascope)
Documentário, dirigido por um moçambicano de nacionalidade portuguesa que vive no Brasil, traça um
retrato poético sobre a língua portuguesa e a lusofonia mundo afora. Rodado em países como Moçambique, Brasil, Índia, Portugal e Japão, a obra deixa evidente o paradoxo língua/cultura: enquanto a primeira
une, a segunda separa.
[este documentário faz parte da Midiateca do Itaú
Cultural e pode ser consultado gratuitamente]
imagem: TVZero/divulgação
imagem: Ricardo Labastier/divulgação
CINEMA
LITERATURA
Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira (idem, Portugal, 2003, Paris Filmes)
Rosa Maria (Leonor Silveira), professora de uma universidade portuguesa, e sua pequena filha, Maria Joana
(Filipa de Almeida), partem em um cruzeiro de Lisboa
rumo a Bombaim (Índia). No trajeto, visitam lugares
que marcaram a civilização ocidental, como Pompeia
(Itália), Ceuta (Espanha), Atenas (Grécia), Cairo (Egito),
Istambul (Turquia). Preste atenção na cena em que
um americano, uma francesa, uma grega e uma italiana conversam, cada qual falando seu idioma, e todos
se entendem.
La Divina Increnca, de Juó Bananére (Editora 34, 43
páginas, 2001)
Em paródia à língua falada pelos italianos que imigraram para São Paulo no começo do século passado,
este livro reúne poemas publicados, em sua maioria,
no periódico O Pirralho. Bananére, pseudônimo do
poeta paulista Alexandre Marcondes Machado, satiriza não só o falar, mas também os hábitos da numerosa colônia, como nos poemas O Studenti du Bó
Ritiro e Círgolo Vizioso, este último dedicado a um tal
de Maxado di Assizi.
[este livro faz parte da Midiateca do Itaú Cultural e
pode ser consultado gratuitamente]
imagem: Paris Filmes/divulgação
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Continuum Itaú Cultural
Violas de Bronze, de Roberto Corrêa e Siba (independente, 2009)
Disco marca o encontro do violeiro mineiro Roberto
Corrêa com o rabequeiro pernambucano Siba. Músicas como Cara de Bronze (nome também de um conto
de Guimarães Rosa), Big Brother Mental, Boi Tristeza e
Lume demonstram a harmonia entre a viola (caipira,
de cocho, elétrica...) e a rabeca, e – por que não? – entre o sertão de Corrêa e a zona da mata de Siba. Destaque para a faixa Nos Gerais, que narra um confronto
com o diabo no sertão mineiro, a qual ficou curiosamente bela no sotaque de Siba.
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fotorreportagem
Letras que não são
Pessoas, objetos, paisagens... Nos lugares menos
esperados, elas ganham corpo. Fotógrafos de todo
o país encontram formatos de letras onde poucos
as percebem.
imagem: Pedro David (pedrodavid.com)
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Continuum Itaú Cultural
imagem: Gustavo Pellizzon (gustavopellizzon.com)
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imagem: Fernanda Preto (fernandapreto.com)
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Continuum Itaú Cultural
imagem: Pedro David (pedrodavid.com)
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imagem: Formiga (flickr.com/-formiga-)
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Continuum Itaú Cultural
imagem: Mirian Fichtner (mirianfichtner.com)
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ficção
Los cibermonos de Locombia
Por Ronaldo Bressane | Ilustração Projeto Dulcinéia Catadora
Fragmento do relatório do Agente Zed Stein encontrado em um sebo de livros escolares
no mercado de Getsemaní, em Cartagena de Índias, maio de 2051. É o último documento
deixado por Stein antes de desligar-se da Divisão dos Não Lineares.
De: Agente Zed Stein
Para: Subcomandante Mark Sandman
Asunto: El desaparecimiento del Agente Seymour Glass
En: Barichara, Colômbia, 12 de março de 2047
Voy te contar, papito. No es facil escrivir nesta lengua nueva. Ja no es facil cuentar esta historia. Ni mesmo
sei bien lo que se pasó. Estoy en una sinistra ciudadezita colonial que parece extraída de los montes de
Minas Gerais, mas quedase en los Andes, aunque los sinos toquem con gusto de orapronobis y jo acabe de
almorzar um maravilloso bode, que acá ellos jamam de cabros. No es facil una lengua nueva, toda palabra
parece un error. Voy te cuentar.
Bueno, conforme la misión, estoy en Locombia em busca do Agente Glass: los ultimos sinales que envió perderanse entre las cordilleras Central y Oriental. Y de hecho aché uns parceros en Bogotá, pierto del Mercado
San Alejo, que terian visto en janero un gringo narigudo com una superchevere ropa de monge, pedindo infos sobre cactus Sanpedro. Solo sería Glass: el siempre tuve essa quediña por mescalina. Ahora deveria estar
ahi por La Candelaria. Donde? No pára de llover, un frio y una neblina ducaray que envolven como chantilly
la enormisima ciudad, cuadriculada como um jugo de xadrez donde los peones son enanos vestidos de
mariachis, los caballos burricos desembestados, los bispos ziguezagueantes táxis amarillentos subindo los
calzadones y continue tu mesmo la metafora (acá en Locombia todo quer dizer otra coisa, como voy a explicar más tarde): un lugar perfecto para sumir.
– Si, me acuerdo, he venido dos noches seguidas, pareció meditabundo, como un niño sin su brinquedo... Bebia mojitos encuanto facia palabras cruzadas. Recuerdo
que cuando terminó su librito sonrió, una única vez. Ay,
dejó acá su libro! Pega, ia mesmo atirar afuera.
Guardé las cruzadas y fue de bar en bar hasta la Macarena, donde, en un tal de Ciudad Invisible, una guapisima danzarina insinuó:
– Lo vi comprar unos vestidos de um travesti.
– Enserio?
– Cual es lo problema?
playboys,
no habia miserabiles.
No tengo nada que ver con essas tradiciones que gozan con el palo
alleno: me cagué si el toro o si el torero o
el público van a morir; aché el espetáculo una
chatura sin fin... Un toro entrava, danzava y moria, otro toro entrava, danzava y moria, estava a
me quedar de sueño, si!, de sueño, de dormirme,
y no de sueño, de fantasiar encuanto se durme (jo
hablo que esto portuñol oficial es más pobre que
el muerto português), embora parecesse mesmo un
sueño estúpido, toro após toro si jodiendo, de sus
almofaditas los gomelos atirando sombreros y gritando olé, olé, olé, cuando de repente sucedió una
puta cosa esquisita.
– Pareciam amigos, ele y lo travesti? Los viu antes deso?
El torero cayó muertito de la silva.
– No, fue la unica vez. Pareciam amigos, hablavam de
moda... Ah! me acuerdo que el tiozito estaba tambié
interesado en ropas de torero...
Pagué y sali, zonzo con el perfume opiáceo de la chica.
Tuve una iluminación sin noción y domingo seguinte
compré un sombrero preto y fue a la Plaza de Toros
Santamaria. Pagué los ojos de la cara, cien mijones
de dineros, por un lugar apretado entre los vinte mil
Si! Y poco a poco los toreros assistentes comenzaran
a joderse en la arena, espajando pánico por la plaza
de cuernos. Pensé: algun puto francoatirador con una
arma phaser, una arma que solo nosotros, Agentes,
podemos usar. Tenté quedarme parado encuanto los
plays corrian y giré mis ojos para encuentrar la fuente
de los disparos – y bum!, dez fileras abajo, una viejita
no dejaba dúvidas.
Despues de muchas rumbas y andanzas sin rumbo, descobri, en una galeria llamada Terraza Pasteur, donde
allá por las diez de la noche se encontra de tudo, un cierto bar Rayuela, decorado con motivos de Escher.
Mostré la fueto de Glass a lo mesero, un punk cafeinómano:
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Alugué una barca y subi el
Magdalena hasta salir por el Caribe,
y atraqué en el Cabo San Juan de Guia.
Como siempre, no pensaba que el más fácil
fuese mesmo tan fácil, me olvidava da esquisita
conexión entre los Agentes No-Lineares, aquejo
iman que pulsa en nuestro sangue congelado que
nos afasta y nos atrai y, claro, trai nuestra condición
de pós-humanos, nuestra maldición maçon de judeus errantes que desenbocan en la puta y mesma
Jerusalém. El cielo estaba azul y el espacio, lleno de
luz – y vi el Escritor Recluso, J. D. Salinger, aquejo que
paró de escribir en 1963, la lenda, la piel enferma, la
boca rota por copas y copas de mojitos, desdibujado,
desangrado, completamente solo en la pequeña angra del Cabo, sob las palmas de coqueros, nu sobre
– Agente Glass, hijoeputa! –, grité, feliz.
Luego en seguida la viejita mató el último torero, volteó su cabeza y me miró. En la muesca: era elle, el Escritor Recluso travestido. Desapareció en la multidón
– perdón, papito...
Las semanas siguientes otros atentados acontecieran
formando un padrón, lo que, como sabe el Subcomandante, é algo dificil en Locombia, donde ni mesmo las mijones de maneras de salsar facen lógica,
donde cada cosa quer dizer otra cosa. Mas de gringos
que perdieran las orejas en asaltos en Villa de Neyva,
freiras molestadas en las busetas de Medellín (lo que
parece jover en el mojado), buembas explodindo nas
mansiones de narcocaudillos de Cartago y trafico de
cadáveres de cantores de pós-vallenato en maletas
etc., los jornales estan llenos, hoy, mañana y siempre.
Extrañísimo, sí, fueran los episodios de la Gallera San
Miguel, en Bogotá, y de la Finca Paraíso, en un pántano pierto de Mompós.
En el clube gallístico moriran uns cien – todos enbenenados, losers. Solamente restaran los gallos
y don Claudio Tovar, el dono, que estaba en el
bañero haciendo titica cuando la fumaza
asasinou sus sócios. La policía tartamudaba de un veneno a que los supergallos son imunes.
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– Un silêncio extraño, povoado por cantos de gallos...
Jo me senti acuerdando dentro de un pesadelo kafkiano –, el sobrevivente cacarejaba a la prensa, bañado en lágrimas, su ton paradojalmente gallináceo a
lembrar un crítico literário.
Ja en la Finca Paraíso facian otra pelea: telecatch de cachuerrones teleguiados. Nada se pasó con los canzitos
mutantes, de mastins-sucuris a pitbulls de seis pernas
hasta akitas cocainómanos, todos sin lengua, para no
llamar atención de la ley. Mas los apostadores, propietarios y visitantes y hasta las tiazitas que venden chicha,
aquella cachaza de millo horrible, unos 50 adictos por
la pelea de perros fueran snifar coca pela raiz.
Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás
que matava solo humanos y no afectava animales, jo,
entre una rumba y otra, imaginava el proximo paso
del ensandecido Agente Seymour Glass. Si estaba
indo para el norte, mas cierto que se marchase para el
Parque Tayrona, território militarizado de las reservas
de robonobos, la espécimen de cibermonos creada
con orgullo nacional – “Los Macacos Locombianos
Do It Better” – para el marketing de porn snuff movies
aditivados por la triptoheroina plantada en los contrafortes de la Sierra Nevada de Santa Marta.
– Hace tiempo, Agente Stein –, mandó con su voz de
tronco seco.
– Hace tiempo, Agente Glass! Gran idea, jamás hé
pensado en la ecologia sexual como terrorismo político –, y andé hasta la canga de caballo con mi mano en
el culo, con miedo de ser violado por um robonobo,
mi mamá nunca me perdonaria, papito.
Abrazamonos y el Agente Glass me ofereció un cachimbito.
– Te acuesta al sol un poco, hombre. Mira! El ópio locombiano és el mas relax del mundo –, y me estendió
el fuego.
Poco antes de tragar pensé en mostrar, como un aluno estudioso, el librito de palabras cruzadas donde
todo estava completo – minos la contesta para “Par-
Si de un lado el goberno notava un padrón en el gás que
matava solo humanos y no afectava animales, jo, entre una
rumba y otra, imaginava el proximo paso del ensandecido
Agente Seymour Glass.
una canga colorida en que se percebia el deseño de
un caballo. En sus manos, una caneta, un cuaderno.
Jo digo solo pues era el unico ser humano en la plaja
tomada por los cibermonos que hacian sexo como se
no havia mañana, a dos, a tres, cuatro, cinco, octaedros,
trenziños, mandalas de macacos lúbricos dando duro
en su lenguaje requintada y obsesiva, pero ahora sin
un director ditador. El Agente Seymour Glass miraba
esto verdadero congreso politico y todo escribia en
su cuadernito, rindo, rindose todiño el loko terrorista
en su solitário labor libertário, un diós que pregase la
anarquia para atingir el zen en la literatura, devolviendo su propio senso al mundo – mesmo que un senso
mico. Esto observé de mi barca, mirando las piedras
que pareciam gigantescas cobras, tortugas, peces, y el
mar parecia el ciel, y el ciel parecia las montañas, y cada
una desas cosas parecian símbolos de la civilización
Tayrona... acá cada cosa quer dizer otra cosa.
que donde se localiza Sierra Nevada de Santa Marta”:
el Tayrona. Ni Jack Sparrow ni españoles imaginarian
su Eldorado devastado por monos herosexômanos
anestesiados en un toreo tántrico.
Tragué el ópio y, tras olor de flores y amendoas y manos
del viento, me recuerdo del Agente fejar el cuadierno y
salir a pescar unas piedritas volcánicas; juntó sus cosas,
guardó na canga y caminó lento sobre los lilases del
Caribe. La trilha sonora en mi cabeza era mambo chocolate cuando empezé a cuentar el ritmo de las ondas.
Series de tres, cinco, nove, cuatro. Tres, cinco, nove, cuatro. Un padrón. Todo quer dizer otra cosa. Mas fue nessa
hora, cuando ja estaba cuase achando buena una bonoba, que jo mesmo comenzé a levitar.
Ronaldo Bressane é jornalista e escritor. Publicou, entre
outros, a trilogia de contos A Outra Comédia, entre 1999 e
2003. Mantém o blog Impostor (impostor.wordpress.com).
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resenha
Amolando a língua no veludo
A história da Aurélia, a “dicionária” sem preconceitos.
Por Hilton Lacerda | Cartuns Allan Sieber
Uma das diversões mais tolas que eu experimentava quando era adolescente consistia em abrir o dicionário em uma página aleatória e ler numa roda de amigos – invariavelmente em estado de um interessante
transtorno de humor – o significado de algum verbete, e eles tinham que descobrir qual a palavra a que
me referia. Divertimento engraçado e pouco útil, diga-se de passagem. Agora me vejo aqui, com o nariz
tocando a tela do computador, desmembrando meu raciocínio para falar sobre a Aurélia – A Dicionária da
Língua Afiada.
Acredito que no ano 2000, num sábado de sol, encontrei-me com Fred Libi – codinome de Wanderley Joaquim, que nem nome é – em torno da Praça Benedito Calixto, em São Paulo. Ele estava na companhia de
amigos e por essa época ainda não tinha assumido o picumã vasto e descolorido que passou a usar algum
tempo depois. Ainda morava em São Paulo – o destino e as convicções o empurraram para Ushuaia, no início do fim do mundo, bem ali na Argentina. Eu estava acompanhado de duas mamíferas (Duda e Juliana) e
mais que rapidamente fui chamado de marsupiellen. Como é mais fácil perder amigos que piadas, fiquei feliz
ao saber de onde vinha essa palavra. Até hoje fico em dúvida se eu era o motivo da criação ou um exemplo
prático que se aproximava no momento da descoberta. Libi, juntamente com Angelo Vip (Victor Ângelo,
jornalista), uma espécie de diplomata do xoxo, estava, naquela altura, trabalhando num site gay chamado
Supersite. Ambos, fazia certo tempo, traduziam algumas expressões para tornar o site mais compreensível.
Um glossário à Laranja Mecânica (A Clockwork Orange,
de Anthony Burgess, escrito em 1962 e levado às telas
em 1971 por Stanley Kubrick). Muitas outras pessoas,
direta ou indiretamente, participaram dessa brigada.
A questão é que, ao pescar o monge, o hábito veio
junto. O dialeto específico de grupos pesquisados
em algumas capitais brasileiras trazia uma quantidade imensa de termos afinados na língua e com aspectos regionais interessantíssimos. Sorte e semente
estavam lançadas. E a máquina da imaginação começou a funcionar junto.
Da experiência passageira do Supersite, as expressões
ganharam fôlego e ocuparam um degrau de eternidade com a realização da “dicionária” Aurélia. Assim
mesmo, palavra desvirtuada em seu gênero, travestida, em homenagem que se tornou quase problema,
quando a família do filólogo Aurélio Buarque de Holanda e a editora do dicionário Aurélio, a Nova Fronteira, tentaram impedir o lançamento do compêndio.
Aurélio, que já estava adjetivado, agora era sublimado a outro espaço de convivência dos modos
da fala. Não foi possível o impedimento. Lucrou
a língua, que a partir daquele momento começou a ser afiada no veludo do bajubá
(ou pajubá), que vinha logo dali, das
esquinas fervidas do Brasil.
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Continuum Itaú Cultural
O bajubá é a língua utilizada nos terreiros de umbanda e candomblé, adotada pelas amapoas de canudo,
que a popularizaram, a recriaram e nela enxertaram
um tanto de vivências e línguas que estão presentes
na dicionária. Uma combinação de criação e adequação da língua iorubá (nagô) com a velocidade da fala
marginal desenvolvida para defesa e ataque. Essas
expressões tomaram o universo gay e finalmente desaguaram no mundo como uma catarata criativa e
abundante. Logo, o ofidã ficou popular, e o ofofi veio
junto. E a adé acorreu e aquendou na confusão. Pense
numa coisa viva e ativa (e passiva). Pensou? É ela, a
dicionária.
Mundo-satélite
Claro que essa abertura tem seus padrinhos no passado.
Um pequeno compêndio havia sido realizado por José
Fabio Barbosa da Silva em sua dissertação de mestrado Homossexualismo em São Paulo: Estudo de um Grupo
Minoritário, escrita em fins dos anos 1950 e publicada
em 2005 pela Editora Unesp, em conjunto com outros
textos organizados pelos pesquisadores James Green e
Ronaldo Trindade. Numa provinciana São Paulo do meio
do século passado, falar sobre néctar divino, salão de chá,
quebrar a louça e divino ato é algo quase incrível. O orientador da tese foi o sociólogo Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso fez parte da banca.
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43
Aurélia, lançada oficialmente no primeiro semestre
de 2006, pela Editora do(a) Bispo(a), de São Paulo, não
teve novas edições. Mas dezenas de sites estampam,
senão integralmente, partes de seu conteúdo, basta
“googlar” seu nome.
Mas a dicionária não é apenas veículo de expressões
que nasceram do bajubá ou de suas pequenas (ou
grandes) corruptelas. Ela foi muito além disso, buscando no mundo lusófono palavras e expressões en-
Para Angelo Vip, a dicionária não é apenas instrumento de tradução e revelação. Tem uma função prática.
Em matérias publicadas na época do lançamento da
dicionária, ele afirmava que o livro tinha a função de
aproximar pais e filhos, além de bofes e suas namoradas. Acredito que ela é uma heroína ao desbravar
todas as línguas que desaguam no aparentemente divertido e no claramente utilitário (você pode se tornar
poliglota em muito pouco tempo!).
Ao pescar o monge, o hábito veio junto. O dialeto específico de cada grupo pesquisado trazia uma quantidade
imensa de termos afinados na língua e com aspectos regionais interessantíssimos.
riquecedoras para o mundo gay (mais uma língua) e
suas adjacências (muitas e outras línguas). O mundosatélite está ali para marcar presença. Além das expressões regionais brasileiras (Úrsula; trucosa; asilada etc.),
a África portuguesa emprestou termos (andzáco; anuna; turra, entre outros); e Portugal bateu à porta (abafar a palhinha; abébia etc.). É como se, de repente,
todo o mundo fosse unificado pela língua afiada.
E assim Ronalda ganha vida além de seu quintal; Gustafa leva seu muxoxo para o mundo;
e as Ornitorrincas saem do isolamento
que lhes foi imposto pelo meio
e pela mensagem.
A Aurélia vai de a a zuzo bem. Mas seu alcance é maior.
Vai dar bem longe, onde o lugar para a imaginação
faz a língua ganhar vida. Devo concordar com A. Jaccourd, doutor em linguística, especialista na obra de
Ferdinand de Saussaure, Ph.D. em lexicografia, filólogo, com tese de doutorado na Sorbonne, Paris, sobre
a linguagem chula e a linguagem erudita falada nos
tristes trópicos. Autor da “prefácia” da dicionária, ele reflete nesse texto sobre a criação da incomunicabilidade a partir do evento da Torre de Babel. Mas a Aurélia
é um sopro de vida, mantendo certa unidade entre
os mundos, equilibrando balanças, fazendo algo para
que, por falta de comunicação, a vida não se torne o
uó que por vezes achamos que ela é.
De a a zuzo bem
Gustafa – s. f. Gay cansativo.
Conheça alguns verbetes da Aurélia.
A – art. def. f. No mundo gay, o artigo definido feminino é,
em muitos casos, anteposto a substantivos próprios ou comuns do gênero masculino. No caso dos comuns, o substantivo, ele próprio, também passa, se possível, para o feminino, criando-se um neologismo. Ex.: a Pedro, a Mário, a
Zezinho, a Robertão; a prédia, a fota, a relógia, a dicionária.
Abafar a palhinha – (Portugal) expr. Ser passivo numa relação homossexual.
Abébia – (Portugal) s. f. Mentira, truque, caô, tanga, couros.
Adé – (do bajubá) s. m. Homossexual masculino.
Amapoa de canudo – (do bajubá, Rio de Janeiro) s. f. Travesti.
Andzáco – (do ronga, Moçambique) adv. O lado de trás.
Anuna – (do changana, Moçambique) s. Marido.
Aquendar – (do bajubá) v. t. d. e intr. 1. Chamar para prestar
atenção; prestar atenção; 2. Pegar; roubar. Forma imperativa
e sincopada do verbo kuein!
Asilada – (Ceará) adj. Louca.
Bajubá – s. m. Baseado nas línguas africanas empregadas
pela umbanda e pelo candomblé. É a linguagem praticada
inicialmente pelos travestis e posteriormente estendida a
todo o universo gay. O bajubá falado emprega uma mistura
lexical (do próprio bajubá, do português e, em menor grau,
do tupi) sobre a base gramatical e fonológica da língua portuguesa. [var.: pajubá].
Bofe – s. m. Homem heterossexual ou homossexual ativo.
Mamíferas – s. f. pl. Grupo de mulheres que saem em bando.
Marsupiellen – s. f. Gay que anda anexo às mamíferas.
Ofidã – (do bajubá) s. m. 1. Zona erógena do bofe; 2. O próprio bofe.
Ofofi – (do bajubá) s. m. Fedor, catinga [var.: afofi].
Ornitorrinca – s. f. Mulher híbrida, meio pata, antagônica
da mamífera.
Picumã – (do bajubá) s. m. Peruca, cabeleira; cabelo.
Ronalda – s. f. Gay grandalhão, bigodudo e empertigado,
com fala grossa e lenta. Podem-se ouvir as vibrações de suas
cordas vocais quando diz: “Meu nome é Ronaaaaalda!“.
Trucosa – (Pará) adj. Relativo ao gay mentiroso.
Turra – (Moçambique) s. m. Bandido.
Uó – (do bajubá) adj. Ruim, feio, desagradável, desprezível,
errado, equivocado.
Úrsula – (São Paulo) s. f. Gay que compra em lugar barato,
mas diz que foi em local caro.
Xoxo – s. m. Deboche, sarro, onda, caçoada, grea, gozo, avacalhação, ironia.
Zuzo bem – adv. “Tudo bem” de bêbado. Ex.: Ficou zuzo
bem pra zozo mundo, menos pra Gustafa!
Fervida – 1. s. f. Pessoa ou local agitado; adj. 2 Próprio do
que ou de quem ferve; divertido.
Hilton Lacerda é cineasta e roteirista. Realizou os roteiros de Baile
Perfumado (Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e Amarelo Manga
(Cláudio Assis, 2002).
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reportagem
Entre dois tempos
Um pequeno lugarejo no interior gaúcho assiste à desaparição do dialeto
de seus antepassados.
Por Fábio Prikladnicki | Fotos Cristiano Santana
Pela posição geográfica distante dos centros urbanos, acredita-se que as coisas tenham mudado menos do
que em outras localidades que datam aproximadamente da mesma época (os primeiros imigrantes chegaram em 1878). Os moradores ainda cultivam a lavoura com poucas máquinas e muito gado, fazem comidas
e bebidas caseiras e, principalmente, conservam uma maneira bastante particular de se comunicar. É um
dos únicos lugares do mundo onde ainda se fala o dialeto vêneto. O nome é referência à região do Norte
da Itália de onde levas de pessoas saíram para diversas partes do mundo em busca de uma vida melhor.
Em cada lugar, o vêneto sofreu pequenas modificações e ganhou cores locais. Em uma definição simples,
dialeto é uma variação linguística que se desenvolve em certo território. Já uma língua é a elevação de uma
das variações existentes ao status de idioma oficial, em geral escolhida em função de prestígio (econômico,
cultural etc.).
Há um debate entre estudiosos que defendem o italiano dos descendentes de imigrantes como dialeto e outros
que dizem se tratar de uma língua propriamente dita. Mas os moradores de Vale Vêneto estão mais preocupados
com outra coisa: o lugar se tornou uma terra de idosos e, com isso, o “italiano gaúcho” é cada vez menos falado.
Metade dos cerca de 100 alunos da única escola que resta vem das redondezas, e o ensino contempla apenas o
ciclo fundamental. Os jovens completam sua formação fora, entram na faculdade, começam a trabalhar e vol-
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A família Venturini, que fala o dialeto friulano
No sábado que antecede o feriado de Carnaval, os moradores de Vale Vêneto têm sua rotina consideravelmente alterada. O clube onde os idosos costumam se reunir para jogar baralho e conversar, depois da missa
das 20 horas, é fechado para uma festa pré-carnavalesca que reúne de 700 a 800 jovens da região. Até a
madrugada que anuncia o dia seguinte, a população local, de 530 habitantes, aumenta temporariamente
em mais de 100%. Embora seja um lugar de colonização tipicamente italiana, o repertório que se ouve, em
volume máximo, dos carros dos jovens estacionados na rua não é nada folclórico. Funk carioca e Macarena
dão o tom. Vale Vêneto, hoje, vive desses paradoxos. Distrito do não menos desconhecido município de
São João do Polêsine, no coração da “quarta colônia”, região na qual se instalou uma das principais ondas
de imigração italiana no Rio Grande do Sul, o pacato vilarejo está a 40 quilômetros de Santa Maria, uma das
maiores cidades gaúchas, e a 250 quilômetros da capital. Se alguém colocar o dedo no centro do mapa do
estado – desde que seja um mapa rico em detalhes –, lá estará Vale Vêneto.
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tam apenas nos fins de semana para visitar os parentes. “Não
é mais como antes, que ficavam em
casa trabalhando na roça. Eram famílias
tão numerosas que, quando iam à missa, enchiam a igreja. Se havia serão, jogava-se baralho,
cantava-se, comia-se batata-doce, amendoim, pipoca. Era bonita a nossa vida assim”, lembra Antônia
Carolina Bortoluzzi, 82 anos, que mora com o irmão,
seu Ângelo, 75. Língua e religião, como ela sugere,
conviviam em paz: “A missa era em latim, mas o padre
fazia o sermão em dialeto. Era difícil alguém falar português”. A portentosa igreja, com capacidade para
cerca de 300 pessoas, foi reformada recentemente. A
casa de retiro das irmãs, que já foi um internato, agora
recebe turistas, e o seminário dos padres também já
viveu dias mais movimentados. A geração deles é a
última a dominar o vêneto. Os filhos compreendem,
mas, na maioria das vezes, não falam. Os netos, nos
melhores casos, sapecam apenas algumas palavras.
O dialeto também virou coisa de idosos.
Antônio e Amadeu, membros da família Cielo, durante ensaio musical
Outras falas
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Os Bortoluzzi foram a família mais numerosa a desembarcar por lá, e Paolo Bortoluzzi – primo do avô
paterno de dona Antônia e seu Ângelo –, a figura
mais importante da história local. Espécie de líder
comunitário, foi quem mandou trazer da Itália os primeiros dois padres. A influência era tão grande que o
local foi chamado inicialmente de Vale dos Bortoluzzi. Depois da chegada de outras famílias e de muita
discussão, além da intervenção pacificadora de um
sacerdote, decidiu-se rebatizá-lo com o nome atual.
O vêneto, entretanto, não é o único dialeto de Vale
Vêneto. Há uma minoria de imigrantes que vieram da
região de Friuli-Venezia Giulia, no extremo Nordeste
italiano, a leste da região do Vêneto. O dialeto que
trouxeram de lá é outro, o friulano. Enquanto o vêneto se assemelha mais ao italiano padrão, o friulano tem influência de localidades fronteiriças, como
o alemão e o esloveno. O tempo se encarregou de
integrar os imigrantes vindos das duas regiões. Houve casamentos mistos e seus descendentes se orgulham de dizer que falam vêneto, friulano e português.
Nem sempre foi assim. Como os dois grupos, literalmente, nem sempre se entendiam, o senso de convivência obrigou os imigrantes friulanos a aprender o
dialeto da maioria de seus vizinhos. A recíproca, claro,
não era verdadeira. Até hoje os moradores das duas
procedências chamam o dialeto vêneto de “italiano”,
como se o friulano fosse um idioma estrangeiro. As
provocações começavam já na infância, como conta
Archilino Guido Venturini, 80, neto de imigrantes que
vieram da comuna de Gemona del Friuli: “Às vezes
dava até rolo, aquelas briguinhas de gurizada. Jogavam pedras uns nos outros, mas no dia seguinte estava tudo bem”. Sua esposa, Ana Maria Forsin Venturini,
63, recorda-se de uma típica rixa familiar: “Quando a
vó falava com minha mãe sobre assuntos que não
queria que as crianças entendessem – por exemplo,
se alguma vizinha ganhava nenê –, falavam em friulano. E minha outra vó dizia: ‘É uma língua tão estúpida
que não existe nenhum livro sobre isso’ ”.
Talvez por isso os Venturini exibam com tanto orgulho o material que recebem de uma associação internacional dedicada à divulgação da cultura friulana. É
uma coleção de livros, todos escritos no dialeto, alguns dedicados a ensiná-lo. Mas não adiantou para
estimular os filhos a aprender. A maioria nem mora
mais por lá. Um deles trabalha em São Paulo, outros
dois se mudaram para Mato Grosso do Sul para cultivar arroz. Restou José, 23, que cursa matemática
em Santa Maria. E depois da faculdade? “Acho que o
melhor é voltar para casa mesmo”, responde. Ele alega que a profissão não tem futuro, diz que precisaria
fazer mestrado e doutorado, mas parece motivado
mesmo por um sentimento de que alguém precisa
ficar para cuidar da família e da terra. É uma escolha
rara entre os jovens de Vale Vêneto. A volta não significa um retorno ao dialeto. “Eu entendo tudo,
mas não falo. Meus irmãos também não falam
muita coisa. Acho que não houve muito
incentivo por medo de que a gente
não fosse aprender o português
correto na escola”, diz.
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É possível que, por circunstâncias socioeconômicas,
os dialetos viessem a perder espaço para o português entre os descendentes de imigrantes. Mas um
fato, mencionado por todos com quem se conversa
em Vale Vêneto, parece ter ficado como um trauma:
a proibição de manifestações em dialeto durante o
Estado Novo, na década de 1940, na esteira do projeto de nacionalização de Getúlio Vargas. Ainda se
conta, por lá, a história de um senhor que teria dado
bom-dia, em italiano, a um conhecido na rua e que,
por isso, teria sido levado preso por um encarregado do governo de fiscalizar o lugarejo. O detalhe
mórbido é que, por motivos de saúde, ele teria logo
morrido na prisão.
De resto, as escolas intensificaram o ensino do português, e todos aprenderam a rezar na língua pátria. A lei alimentou, inclusive, intrigas entre famílias,
como relata Iracema Fátima Cielo, 64: “Famílias que
não se gostavam colocavam livros estrangeiros nas
outras casas e depois denunciavam. Aí eles prendiam. Muita literatura boa se perdeu dessa forma”.
Os Cielo têm se esforçado para que outras coisas
não se percam. “O pai queria que nós tomássemos
vinho e cantássemos. No começo da família, ele tinha um conjunto. Foi um dos meus irmãos que incentivou os outros a fazer vinho e botar o conjunto
de volta. Depois, faleceu”, conta. A família é uma das
últimas que ainda realiza o tradicional “filó”, reunião
com muita música (em italiano), bebida (vinho, claro) e conversa. A casa da matriarca, dona Virgínia
Varaschini Cielo, 88, tem inclusive um parreiral no
quintal. “Naquele tempo, se fazia muito vinho. Então, chegava gente de todos os lados para tomar,
e ficavam todos bêbados. Os ricos pensam mais
em fazer dinheiro; os pobres, em se divertir e
cantar”, diz ela. “Não somos apegados aos bens
materiais, então conservamos os costumes”,
completa o filho, Pio, 51, um dos músicos
do conjunto, que congrega cinco familiares e três amigos.
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Continuum Itaú Cultural
O maior desejo do patriarca, no entanto, era conhecer
Trissino, na província de Vicenza, na Itália, de onde tinha vindo seu pai. A filha Iracema tratou de fazer umas
economias e marcou a viagem de ambos para certo
dia 24 de agosto. Em 31 de maio, o patriarca morreu.
Decidiu ir sozinha mesmo assim e descobriu que a
casa dos antepassados ainda existia. Fez contato com
parentes que buscou no guia telefônico e ficou um
mês em um tour genealógico. Iracema foi decidida a
praticar não o dialeto, mas o italiano padrão, que havia aprendido por iniciativa própria: “Gosto mais do
italiano gramatical. Acho mais bonito, mais sonoro.
Mas quando me escapava uma palavra em dialeto
eles vibravam, porque sentiam que eu estava falando
como eles. Lá o dialeto também está se perdendo, eu
ouvia muito pouco. Os mais idosos falam. Mas no rádio, na TV, na escola é o gramatical”.
Em 2002, a escola de Vale Vêneto iniciou um projeto de resgate da história e da cultura com os alunos.
Foram trabalhados temas como o motivo da vinda
dos imigrantes para o Brasil, o que encontraram por
aqui e como viviam. “As crianças pesquisaram muito
em casa com os avós e os pais”, diz Maria do Carmo
Pivetta Cielo, 41, professora da escola e esposa de Pio.
“Elas tinham que escrever as palavras conforme ouviam, porque se escrevessem como está na gramática
já não seria dialeto.” O projeto durou seis anos, mas
não incluiu o ensino da língua – nem do dialeto, nem
do italiano padrão. No currículo da escola, que é estadual, consta apenas o inglês como idioma estrangeiro. Uma solução seria um projeto que funcionasse em
turno inverso, mas que esbarraria na falta de pessoas
com tempo ou disposição para o trabalho voluntário
– problema que provocou a descontinuidade do projeto de resgate. Os pais dos alunos tampouco manifestam vontade de que as novas gerações aprendam
o dialeto que um dia foi moeda corrente nas ruas do
simpático lugarejo. Vale Vêneto vive, mesmo, de paradoxos: lamenta que as coisas tenham mudado, mas
não quer estar na contramão da história.
Confira, na Continuum On-Line, relato sobre a visita do
repórter ao Vale Vêneto.
Vista do Vale Vêneto
Parreiral no quintal
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mirada
É que − como negar? − as palavras curam ou ferem.
E as livrarias são verdadeiros Bancos Centrais de Palavras. A escritora Cecilia Szperling vê a coisa desse
modo: “No sábado passado, entrou na Caleidoscopio
[uma pequena livraria no bairro Belgrano R] o intelectual Eduardo Grunner, procurando por uma biografia
de 1.500 páginas do escritor Osvaldo Lamborghini”.
Um homem de leituras maratônicas? Não necessariamente: “Disse que gostaria de lê-la para ver o que
dizia sobre ele, já que conhecia o biografado e lhe haviam dito que seu nome era mencionado no livro. Os
comentários foram feitos por amigos nem um pouco
contentes com o modo pelo qual foram retratados
na biografia, bem completa e exaustiva”.
Uma cidade tomada por livros
Às vezes, Buenos Aires parece uma livraria a céu aberto.
Por Rodrigo Lara Serrano, de Buenos Aires, Argentina | Tradução Josely Vianna Baptista |
Ilustração Davi Calil
Que tipo de vinho seria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche? E quanto ao pensador francês Michel Foucault? Na Eterna Cadencia, uma das livrarias mais originais de Buenos Aires, têm-se as respostas: o primeiro
seria um syrah; e o segundo nada mais nada menos que um robusto malbec.
Mensalmente, em uma terça-feira, ocorre no local o evento Cata de Ideas, comandado por Luis Diego Fernández, o alquimista que busca o prazer combinando filosofia e vinhos. Durante os encontros, ele e os
demais participantes degustam algumas taças e travam polêmicas – no caso do filósofo alemão – acerca do
super-homem e da ausência do divino.
Falando dessa mistura de enologia e filosofia, Lucio Ramírez, diretor comercial do espaço, sorri. Para ele,
mais que uma livraria, Eterna Cadencia “é uma casa tomada por escritores”. Localizado na Rua Honduras,
em uma área conhecida como Palermo Hollywood, o local é um exemplo do fervor dos portenhos pelos
livros. “Estamos preparando o que batizamos de ‘serviço aspiracional’ ”, conta. “O cliente estipula um valor e,
com base nele, nós lhe montamos uma biblioteca ideal.” Os funcionários da Eterna Cadencia entrevistarão o
interessado, farão perguntas sobre seu cônjuge, seus filhos e amigos e, finalmente, estenderão uma ponte a
um mundo onde os livros não são mais um castigo escolar. “Talvez fracassemos completamente”, desabafa
Ramírez, abrindo um sorriso bem-humorado.
Ecos de outro tempo
Mas, se há uma coisa que não fracassou em Buenos Aires, é a venda de livros. E a Ávila, localizada na Rua Bolívar,
no microcentro da cidade, é um bom exemplo disso. “Que eu saiba, é a única livraria do mundo que se mantém
no mesmo espaço físico desde o final do século XVIII”, comenta seu dono, Miguel Ávila. “Por isso muitos turistas
vêm aqui. E, às vezes, até compram algum livro”, acrescenta, soltando uma gargalhada.
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Do edifício clássico de 1830, quando ainda se chamava
La Librería del Colegio, passou-se ao atual, construído
em 1926. O estabelecimento, situado a duas quadras
da sede do governo (a Casa Rosada), foi visitado assiduamente por quase todos os presidentes argentinos
e por intelectuais. Ainda assim, para não ter de fechar
as portas, a livraria se especializou em história local e do
continente americano. E, no silêncio de suas estantes,
ecoa um tempo “em que o que se dizia com a língua
se sustentava com os colhões”, sublinha o livreiro, lembrando como os duelos verbais de outrora terminavam
em duelos com pistola ou sabre.
Palcos de amizades e rivalidades
As livrarias portenhas são redutos de grandes amizades, grandes ciúmes e grandes despedidas. A Alberto
Casares – Libros Antiguos y Modernos foi testemunha,
por exemplo, do adeus entre dois dos mais importantes escritores de expressão hispânica do século XX:
Jorge Luis Borges e Adolfo Bioy Casares. Isso ocorreu
em 27 de novembro de 1985. No dia seguinte, Borges
partiu para a Europa, onde viria a morrer em Genebra.
A livraria já não fica na Rua Arenales, onde se deu a
despedida, e sim na Suipacha, e Alberto Casares
transformou-se num dos organizadores da feira
do livro antigo da cidade. Na edição 2008, por
exemplo, Casares ofereceu um exemplar
da primeira edição de Fervor de Buenos Aires (1923), de Borges, por
30 mil dólares.
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A Libros Alberto Casares foi testemunha
do adeus entre Borges e Bioy Casares.
Mas Buenos Aires não é
somente o lugar de livrarias para
gostos hipercaros e refinados. “Quando
eu era adolescente, morava no sul, nos arredores da capital, e uma vez por mês, ou a cada
mês e meio, ia ao centro com meus amigos para
comprar livros na Avenida Corrientes”, relata o escritor e revisor Fernando Mazzeo. “Naquela época, a
Corrientes estava coalhada de livrarias; o que existe
hoje não é nem a sombra do que havia antes.” A “sombra” são as quase 30 lojas que sobrevivem na via, entre a Cerrito e a Riobamba, e herdaram a glória, mas
não o público, daquele que era o local de maior concentração de livrarias do mundo hispânico na América Latina: “Só nessa avenida há mais livrarias do que
em todo o Chile”, costumava dizer o escritor chileno
Darío Oses ao visitá-la.
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Nela sobrevivem algumas “históricas”, como a Gandhi
ou a Hernández. No porão desta última, Alberto Laiseca lançou seu Los Soria, o mais longo de todos os romances argentinos: 1.390 páginas e um protagonista
chamado Personagem. Alejandro Seselovsky, autor de
Cristo, Llame Ya! Crónicas de la Avanzada Evangélica en
la Argentina (Editorial Norma, 2005), lembra-se de ter
comparecido ao evento, “que foi muito divertido: Rodolfo Fogwill, com seu brilhantismo delirante, estava
entre os palestrantes e, de repente, começou a atacar
Ricardo Piglia, o romancista mais respeitado dos anos
1980 e 1990, resmungando em seu estilo sarcástico e
incendiário algumas barbaridades terríveis contra ele.
E então, ao fundo, abriu-se uma clareira no público, e
lá estava Piglia, muito sorridente. De braços cruzados,
assentindo em voz baixa: ‘Sim, Rodolfo, claro, Rodolfo...’ ”.
Palácios fundados pela tentação
Formada em letras, Patricia Anselmo lembra que abriu
a pequena La Cautiva – situada quase na esquina da
Salguero com a El Salvador, na região de Palermo que
não está na moda – em outubro de 2008, “em plena
“Muitos não compram livros, mas vêm para sentir-se
rodeados por eles.” (Néstor
Pascuozzo, da Crack Up)
crise financeira mundial”, com seu companheiro, o
poeta Fernando Molle. Nada indica que seja um lugar
apropriado para uma livraria: “Agora estamos começando a vender pela internet, para não dependermos
das pessoas que passam”, explica.
O fato é que instalar uma livraria em Buenos Aires não
é um negócio, mas uma tentação. Néstor Horacio Pascuozzo, com Diego Singer, da Crack Up, vê a coisa do
seguinte modo: “Em março de 2006, eu e seis amigos,
que vínhamos de empregos em livrarias, pensamos: nós
gostamos disso e, se vamos fracassar, que fracassemos
melhor, como diria Beckett. Então fundamos a loja”.
Situada na Rua Costa Rica, quase esquina com a J. L.
Borges, representa, como a Eterna Cadencia ou La Internacional Argentina, um tipo de livraria que faz de
tudo para se manter – edita livros, vende café, sanduíches ou CDs de tango –, mas recupera uma tradição:
tem funcionários à moda antiga, que entendem de livros. Em seu caso, norte-americanos ou colombianos.
“Todos os livros têm uma aura: cada palavra que usamos já percorreu a civilização inteira. É uma dívida
impagável”, diz com entusiasmo. “Muitas vezes as
pessoas não compram nossos livros, mas vêm aqui
para sentar e sentir-se rodeadas por eles.”
Tal “abrigo” é particularmente impactante na livraria El
Ateneo Grand Splendid, um velho teatro reformado
na Avenida Santa Fe que se tornou uma das joias da
cidade. Parece um palácio de ópera transformado em
livraria. Seu aspecto grandioso certamente espanta
muitos bibliófilos, mas faz com que sintamos fortemente esse toque da civilização que é a tolerância
para com o prazer e a leitura alheios. Sentada no café
construído sobre o que um dia foi o palco do teatro,
Florencia Gutman, desenhista gráfica especializada
em capas (fez as de livros de Paulo Coelho editados em espanhol e na Europa do Leste), come
uma minipizza de mussarela, observa a galáxia
livresca repleta de luzes e leitores num domingo à tarde e exclama: “Não é mesmo fabuloso estar aqui!?”.
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reportagem
Roçando a língua de Luís de Camões
Os desafios para a construção de uma comunidade lusófona internacional
Por Micheliny Verunschk | Fotos Cia de Foto
Um avô contava histórias de Trancoso, na Bahia, e relatos maravilhosos de princesas e castelos fabulosos de
além-mar ou de além-sonho. O outro avô, por sua vez, falava de índios e, em particular, de uma moça que
virou pássaro e que até hoje canta nas noites do sertão, a “mãe da lua”. A mãe a colocava para dormir embalada na leitura de poetas românticos do século XIX. Os três, sem saber, exerciam uma língua viva, capaz de
se reinventar e de se lançar rumo ao futuro. Fora de qualquer pauta política, exerciam lusofonia e criaram
alguém absolutamente encantado pela palavra e pelo seu poder.
Ao pé da letra a palavra lusofonia significa “o que tem som luso”, ou o que soa em língua portuguesa. Para
além do significado estrito, é um conceito político-cultural que compreende o conjunto de identidades
comuns existentes entre os falantes do português, o terceiro idioma de origem europeia mais falado no
mundo, com cerca de 230 milhões de “usuários” atualmente.
Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro
Da própria língua e seus “produtos” mais evidentes,
como a música, a literatura e as artes em geral, passando pela gastronomia, até a preocupação com o
ensino e a difusão do português pelo mundo, a lusofonia é presença política oficial desde 1996, ano de
criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), organismo internacional que reúne Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique,
Portugal, São Tomé e Princípe e Timor Leste, além de
nações observadoras e outras interessadas, caso da
Venezuela, por sua proximidade territorial e cultural
com o Brasil.
“Prefiro a associação de quem fala português no mundo
não como lusofonia, voz de luso, mas como as vozes que
falam português pelo mundo. A língua portuguesa não é
de luso, mas de todos os que a usam.” (Horácio Costa)
Segundo projeções estatísticas, até 2050 o português será falado por mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo, daí a justificativa de uma
integração mais eficiente entre os países lusófonos,
que possa inserir programas de desenvolvimento e
cooperação mútua em níveis políticos, econômicos
ou culturais.
Mas o que é lusofonia de fato?
Fora das agendas políticas, a lusofonia viva deveria ser
aquela que superasse os desconhecimentos que temos
acerca de nós mesmos como falantes do português e
da sociedade contemporânea que nos cerca. Essa seria a lusofonia potente que reside na fala do povo nas
ruas do Rio de Janeiro, na contação de histórias seja
num grotão da Amazônia, seja em Catió, na GuinéBissau, no portunhol falado na região entre fronteiras da América do Sul, nas relações íntimas
que oralidade e literatura mantêm na
construção e reconstrução de
uma língua pulsante.
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Horácio Costa, poeta e
professor da Universidade de São
Paulo (USP), dá conta da pluralidade dessa imersão da língua na contemporaneidade:
“Como brasileiro, prefiro pensar a terra ao mar.
Interessa-me a fala de língua portuguesa no mundo
em suas fronteiras: no caso das Américas, o confronto entre o português brasileiro e o espanhol; no caso
africano, entre a voz que fala português e o inglês da
África austral”.
Geralmente quando se pensa em lusofonia no sentido
mais formal do termo, pensa-se também numa suposta
participação do escritor na propagação da sua língua e da
cultura que ela abarca. O escritor moçambicano Mia Couto rechaça essa incumbência: “Minha responsabilidade é
escrever. E fazê-lo o melhor que posso. Não chamo para
mim outras missões. Escrever é outra coisa e não pode
ser sujeita a esse sentido utilitário. A língua não pode ser
entendida como o único veículo de identidade comum.
Existem componentes que por vezes esquecemos. E um
deles é o factor religioso”.
Língua não centralizadora
Nascida em Portugal e radicada no Brasil, Cremilda Medina, também professora da USP e autora de Sonha Mamana África (Epopéia; Secretaria de Cultura do Estado de São
Paulo, 1987), tem uma longa trajetória no que diz respeito
às relações entre os países de língua portuguesa, trabalho
que se iniciou na década de 1970, quando os chamados
“cinco da África” (Moçambique, Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde) se aprofundavam nas
lutas pela independência e o Brasil se municiava para o
que ela chama de “período épico” de luta pela queda da
ditadura militar na década seguinte.
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Uma das funções do escritor lusófono é garantir a continuidade do português
Cremilda ressalta que lusofonia é muito mais uma questão de conhecer a si mesmo e ao outro. “O que facilita é
nos conhecermos e, principalmente, nos reconhecermos
dentro da diferença e da diversidade da fértil diáspora
que espalhou a língua portuguesa pelo mundo. Quando vemos as especificidades da literatura de Mia Couto,
em Moçambique, de Nélida Piñon, no Brasil, e de Teolinda Gersão, em Portugal, compreendemos que a língua
é o espelho das culturas, de sua diversidade. O fato de
Portugal não ter tido, a exemplo de outros países, uma
academia real da língua fez do português uma língua não
centralizadora, o que, à luz da história, é uma bênção.”
O que nos une é o que nos separa
Com um programa que pretende atuar em tantas
frentes, o projeto lusófono institucional de organizações como a CPLP, como não poderia deixar de ser,
apresenta suas fragilidades. Uma delas é o exagerado
foco em Portugal e no Brasil. As críticas ao país são
tantas que se fala até numa “brasilofonia”, que seria
uma tentativa colonialista contemporânea de sobrepor os interesses brasileiros aos dos demais países
da comunidade no uso do português.
Esse debate tem se intensificado com a recente entrada em vigor do Acordo Ortográfico
da Língua Portuguesa. A poetisa e artista plástica portuguesa Ana Hatherly afirma ter dúvidas
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quanto à eficácia imediata do acordo, mas acrescenta
que “uma das funções relevantes do escritor – neste
caso, do escritor lusófono – é contribuir para a continuidade e a dignidade de uma língua tão antiga e tão
prestigiada como é o português”.
Para o escritor e crítico literário português Arnaldo
Saraiva, a língua e sua difusão devem estar a serviço
do ser humano e não o contrário. “Se é natural o empenho na língua materna, também parece perigosa a
tentativa de sobrepô-la a línguas maternas de outros,
sobretudo se com ela não vai a luta por uma sociedade mais democrática, mais rica e mais justa.” Saraiva
lembra que o português já foi língua imperial e língua
franca no Oriente. “Não se trata de colocar [o idioma]
de novo a serviço de algum projecto imperial, mas de
afirmar a dignidade e a cultura nunca devidamente
reconhecida das nossas comunidades, e fazer com
que [a língua] seja também um instrumento valioso
para a melhoria do mundo.”
Outra questão, como coloca Costa, é a distância entre a teoria e a prática dessa suposta aproximação:
“Quando se fala em lusofonia, pensa-se muito no mar
português, no imaginário daquele país, nas suas dores como um ex-império e nos sentimentos belos ou
confusos que isso tudo causa. Prefiro a associação de
quem fala português no mundo não como lusofonia,
voz de luso, mas como as vozes que falam português
pelo mundo. A língua portuguesa não é de luso, mas
de todos os que a usam”.
Essa opinião é compartilhada por Mia Couto, crítico
ardoroso do projeto lusófono no âmbito institucional. “Somos nós que falamos
e escrevemos em língua portuguesa todos os
dias. E aqui reside uma das muitas inverdades
quando se fala de lusofonia. Boa parte dos 20 milhões de moçambicanos não fala português. Não
são lusófonos. Se a cidadania que buscamos passa exclusivamente pelo idioma, esses meus compatriotas
estão excluídos. Precisamos de uma lusofonia suficientemente plural para poder ser falada nas línguas que
são as nossas. Como diz Eduardo Lourenço [ensaísta
português]: o que importa não é apenas a língua que
falamos mas como somos falados por essa língua.”
mas conviria aproveitar mais as instituições culturais e
a televisão, os jornais e as revistas para que as classes
médias se familiarizassem com autores que só chegam,
quando muito, a escassas elites. Urge criar em Portugal
uma grande biblioteca brasileira. E convirá multiplicar
os encontros de autores, até em festivais.”
Relações de familiaridade
A grafia dos depoimentos de participantes de outras
nacionalidades foi preservada.
Talvez uma das respostas desse distanciamento das nações falantes de língua portuguesa entre si e também
de parte do mundo resida no fato de que nenhum dos
membros da CPLP está entre os índices desejáveis de
desenvolvimento humano, o que demonstra que as
questões de aproximação passam por agendas muito mais complexas que simplesmente o encontro e a
simplificação das diversidades linguísticas.
Certamente, falta para a desejada integração lusófona sentir a respiração ofegante, entremeada de sintaxes muito próprias, de sotaques diversos, de modos
muito únicos de se falar a língua mais que plural que
nasceu em Portugal. Falta ainda compreender o que o
poeta Manuel Bandeira chamou de “língua errada do
povo/língua certa do povo”, o português gostoso do
cotidiano das gentes.
Leia na Continuum On-Line entrevista com o escritor
Mia Couto.
Saraiva vê na internet e na universidade o começo de
ações mais palpáveis de aproximação entre as múltiplas culturas lusófonas. “A internet está a fazer milagres,
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reportagem
Uma operação nada matemática
Os desafios de verter o sentido, o tom, a vida de palavras de um idioma para outro.
Por Luciana Veras | Ilustração Rodrigo Silveira
Diz a história que São Jerônimo deu à luz a primeira Bíblia em latim. A Vulgata, publicada por volta do ano
400, é até hoje referendada pela Igreja Católica. Concebidos em aramaico e hebraico, antes os textos cristãos
haviam apenas sido passados para o grego. Ao imortalizar as Sagradas Escrituras na língua de Roma, ele se
tornou o patrono da tradução. Na acepção teórica, o ato de traduzir é uma transferência de palavras, frases
e orações de um idioma “de partida” para um “de chegada”. Uma operação exata, quase matemática. Na prática, contudo, a tradução não se restringe à fidelidade, à matriz ou à transformation de, por exemplo, uma
edição em inglês de Rei Lear, de William Shakespeare, para o português. Para especialistas, escritores, leitores
e, acima de tudo, tradutores, ela é um renascimento. Uma criação. E uma homenagem.
Writer and translator Modesto Carone – the main responsible for the translation of the oeuvre of Franz Kafka
in Brazil – who for the past twenty-four years has been immersed in the universe that the Czech writer of The
Metamorphosis, The Trial, and Letter to His Father (all published in Brazil by Cia. das Letras publishing house in 1997)
erected in German–, reminds us that “Goethe believed in the existence of two kinds of translation. One aimed at
making the original work an integral part of the literature to which it was being translated. The second advocated
that the target language should get as close as possible to the source language, thus creating a third language.”
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“Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir o
original pela tradução é impraticável.” (Modesto Carone)
O argentino Jorge Luis Borges foi o primeiro tradutor dos densos e atormentados escritos de Kafka na
América Latina. “Kafka possui beleza em qualquer lugar, mas na tradução de Borges havia a elegância de
sua própria literatura. Aquilo não era Kafka, era Borges.
Toda tradução é impossível se levada a sério. Substituir o original pela tradução é impraticável. O que se
busca é uma correspondência entre as duas línguas.
As traduções de Borges são belíssimas”, completa Carone, ele mesmo author de vários livros.
americana Karen Sotelino, Ph.D. em literatura pela
Universidade da Califórnia com uma tese sobre a ambiguidade da linguagem das memórias em Machado
de Assis e tradutora para o inglês de Lavoura Arcaica
(Cia. das Letras, 1989), do brasileiro Raduan Nassar
(à espera de uma decisão editorial para ser publicado). “Acredito que Benjamin está certo: traduzir é fazer renascer um texto. Se não acreditasse nisso, não
me dedicaria à arte de tradução. Traduzir é uma das
maneiras mais sérias de homenagear um texto e seu
autor”, continua.
As várias vidas de um texto
Se para Carone a tradução literal não existe diante da
impossibilidade de se reproduzir, letra a letra, uma impossibilidade de se reproduzir, letra a letra, uma construção semântica e um conjunto de significados, que
se reinvente o desafio. “A questão é a maneira pela
qual o tradutor consegue – ou não – captar o humor,
a lástima, a sutileza, o que Walter Benjamin chamaria
‘a vida’ do texto original”, comenta a acadêmica norte-
No intuito de cumprir sua missão, o profissional deve
se preparar. “Os requisitos básicos são o conhecimento mais amplo possível da língua a ser vertida,
sensibilidade para o tom em que o texto foi escrito e
boa capacidade de expressão na língua de chegada”,
explica o journaliste e crítico de cinema José Geraldo
Couto, tradutor de Uma Viagem Pessoal pelo Cinema
Americano (Cosac Naif, 2004), de Martin Scorsese, e
Fora do Lugar (Cia. das Letras, 2004), de Edward Said.
No meio do caminho, alguns dilemas. “Além das dificuldades técnicas pontuais de encontrar os termos
exatos, há a dificuldade geral, agravada em certos
casos, de encontrar a ‘embocadura’, o tom, algo
que vai além do mero sentido das palavras. Às
vezes, é preciso sacrificar a literalidade para
buscar uma aproximação com o estilo,
com o ritmo, com o sabor do original”, pontua.
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A escritora, pensadora e crítica norte-americana Susan Sontag discorreu sobre “os paradoxos ideológicos embutidos no exercício da tradução” em um dos
ensaios reunidos no livro Questão de Ênfase (Cia. das
Letras, 2005). O motivo: em Sarajevo, durante a guerra
dos Bálcãs, ela dirigiu uma montagem teatral de Esperando Godot, pelo dramaturgo irlandês. peça escrita
em francês e em inglês de Samuel Beckett, No palco,
os atores falavam em servo-croata. No livro, a indagação de Sontag: “O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À
literatura? À língua? Ao público?”.
“Ele é um mediador necessário. Sem a tradução, não
conheceríamos As 1001 Noites”, responde Carone –
que destinou dois anos e meio a O Castelo, tempos
después de ter morado em Viena e lá estudado germanística para estrangeiros, o que o direcionou a
Kafka no original. “Sempre existe grau de perda em
qualquer tradução. Talvez só um italiano do século
XIV fosse capaz de fruir em sua plenitude de A Divina
Comédia, de Dante, mas a humanidade seria culturalmente mais pobre se não existissem as traduções
para as mais diversas línguas”, acrescenta Couto.
para Ensaio sobre a Cegueira (Cia. das Letras, 1995), romance de José Saramago, estreou na Espanha, o autor português reclamou do título local – Às Cegas. Sua
alegação: os personagens, cegos por uma condição
física, não pertencem ao sentido implícito na expressão usada pelos espanhóis.
Acertos e desacertos
Por um lado, os tradutores cultuam o trabalho de seus
pares. “As traduções de Constance Garnett e Rosemary Edmunds da obra de Leon Tolstói são muito boas.
Às vezes, ao ler o trabalho de Garnett (Anna Karenina)
e de Edmunds (Guerra e Paz), tinha que me lembrar
que era tradução. Ao mesmo tempo, elas criaram um
ambiente suficientemente estranho para estimular
a estética do desconhecido. Ou seja, um texto bem
escrito no original carrega o tradutor”, observa Karen
Sotelino. “A primeira tradução francesa do difícil Ulisses
foi feita por Valery Larbaud com a colaboração do próprio James Joyce”, cita Carone. “Na poesia, traduções
maravilhosas são as reunidas por Augusto de Campos
em O Anticrítico (Cia. das Letras, 1986). Na prosa, as
traduções do russo de Boris Schnaiderman e as traduções do inglês de Paulo Henriques Britto são admiráveis”, enumera Couto.
Por outro lado, admitem equívocos e desacertos.
“Em Madame Bovary, de Flaubert, traduzia-se ‘l’amour
fou’ por ‘amor louco’, quando uma tradução de maior
sensibilidade seria ‘uma paixão enlouquecedora’ ou
mesmo ‘uma paixão’ ”, pondera Carone. O cinema
é um campo no qual, para infelicidade geral, a má
translation é recorrente. La Peau Douce (a pele doce)
e Baisers Volés (beijos roubados), de François Truffaut,
viraram, respectivamente, Um Só Pecado e Beijos Proibidos. Em 1992, um filme que nos Estados Unidos havia sido intitulado Leap of Faith (livremente, um salto
de fé) chegou ao país como Fé Demais Não Cheira Bem
(Richard Pearce, 1992). Em março deste ano, quando
a adaptação do cineasta paulista Fernando Meirelles
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Outro exemplo recente é dado pela tradutora Débora Baldelli, com anos de experiência em tradução
cinematográfica, inclusive na coordenação do departamento de legendagem em duas edições do Festival do Rio. “O filme Sim Senhor (Peyton Reed, 2008) é
baseado no livro Yes Man. Na verdade, o significado
é O Homem do Sim, como o personagem é chamado
no livro. Portanto, Sim Senhor não faz o menor sentido”, situa. Para cinema, DVD e television, a tradução
é mais econômica, dada a escassez de espaço. “Infelizmente, existe um limite de caracteres que deve ser
respeitado. A quantidade na legenda eletrônica não é
a mesma das cópias com legendas queimadas, nem
da exibida em programas de TV. É sempre um grande
exercício de síntese”, contextualiza Débora.
Síntese, escolha, estudos, dedicação... A rotina de um
tradutor é repleta de palavras – como não? – que determinam os rumos de seus trabalhos. Há confrontos,
claro. Carone julga a profissão “importante e indispensável” e “mal paga”. Karen elege a pressa “a grande inimiga da tradução, pois o tradutor, em muitos casos,
tem uma carreira acadêmica e outros compromissos
e precisa ganhar a vida”. E Couto crê que sua experiência como jornalista pode atrapalhar “justamente pela
tendência ao texto objetivo e despojado, que nem
sempre é o que a obra de origem pede”.
“O tradutor é fiel à obra? Ao escritor? À literatura? À língua?
Ao público?”(Susan Sontag)
Entretanto, o que seria da literatura, da civilização, da
vida sem eles? Sem a tradução, os brasileiros não apreciariam Henri Stendhal, Ivan Turguêniev, Julio Cortázar,
Umberto Eco, William Faulkner, Virginia Woolf, Hermann
Hesse, Salman Rushdie e tantos outros. Sem a tradução, Machado de Assis não seria um genius universal e
Guimarães Rosa não teria esboçado, em uma carta de
1963 a seu tradutor italiano, uma lírica e simbólica definição para dois ofícios-irmãos: “Eu, quando escrevo
um livro, vou fazendo como se o estivesse ‘traduzindo’ de algum alto original, existente alhures, no mundo astral ou no ‘plano das ideias’, dos arquétipos, por
exemplo. Nunca sei se estou acertando ou falhando
nessa ‘tradução’. Assim, quando me ‘re’-traduzem para
outro idioma, nunca sei, também, em casos de divergência, se não foi o tradutor quem, de fato, acertou,
restabelecendo a verdade do ‘original ideal’, que eu
desvirtuara...”.
Na Continuum On-Line leia entrevista com o tradutor
Modesto Carone.
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Os registros musicais mais antigos, datados da Idade Média, eram realizados em manuscritos que não
tinham o pentagrama como base. Foi no século XIX,
com a consolidação da indústria de edição musical,
que surgiu a partitura no formato atual. A música e
seu sistema de escrita evoluíram. Além das notas, surgiram as figuras musicais, os compassos, as claves, as
pausas, as deslocações de tons e as especificações sobre a forma de execução (volume, tempo, articulação
e acentuação). Hoje, a linguagem da notação musical
é compreendida por músicos de qualquer nacionalidade; mas, apesar do progresso, essa linguagem não
foi capaz de solucionar a contradição de a partitura
não ter som.
“A notação musical não dá conta de uma série de aspectos relacionados à interpretação e, de forma alguma, substitui a experiência concreta da audição”, diz
Eduardo Patrício, compositor, professor e mestrando
em música pela Universidade Federal do Paraná. “Mas
ela é um imenso recurso, não só para registro, mas
para o exercício da criatividade e a expansão de possibilidades estruturais na música.”
Língua e música
Contudo, a partitura não é a única forma de escrita musical. A cifra – sistema de representação de
acordes – e a tablatura – sistema baseado na posição dos dedos do músico nos instrumentos
– são outras maneiras de escrever música. E,
além da escrita, há o registro auditivo, a
chamada “música de ouvido”.
Para o Método Suzuki, é possível aplicar os princípios da linguagem ao aprendizado musical
reportagem
Alunas da Escuela Cuatro Cuerdas, em Madri
A, b, c, dó, ré, mi
As relações entre a linguagem musical e a língua falada são muitas, como
mostra o Método Suzuki de ensino de música a crianças.
Por Carlos Costa | Fotos Luana Fischer
Antes de existir o alfabeto, existia o som. A música do vento, árias de ar e poeira, os estalos do fogo, as batucadas de trovões... A música talvez seja a primeira das línguas e, apesar de não ser propriamente um idioma, é
considerada uma linguagem universal – que tem na partitura o padrão mundial de sua representação gráfica.
Formada por conjuntos de cinco linhas, chamados de pauta ou pentagrama, a partitura dá suporte a uma
série de símbolos que definem como uma peça musical será interpretada: as notas, os tons e a duração
dos sons, das suspensões e dos silêncios. Trata-se de um sistema de escrita conhecido genericamente por
notação musical, cuja origem está ligada aos cantos da Igreja Católica Romana da Idade Média e à figura do
monge italiano Guido D’Arezzo (992-1050) – que deu nome, a partir das frases iniciais do hino a São João
Batista Hymnus in Ioannem, às sete notas musicais (dó, ré, mi, fá, sol, lá e si).
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Atento a essa relação da música com a língua falada,
o instrumentista e pedagogo japonês Shinichi Suzuki
(1898-1998) desenvolveu o Método Suzuki. Sistema
filosófico de ensino musical a crianças, visa aplicar os
princípios da aquisição da linguagem ao aprendizado de música.
O método surgiu no Japão em 1945, após a Segunda Guerra Mundial, e reflete a experiência pessoal de
Suzuki, que concebeu a relação entre língua materna
e música depois de se mudar para a Alemanha, aos
22 anos, e perceber como as crianças aprendiam facilmente o idioma que tanto lhe custou falar. É uma
tentativa de reduzir as consequências traumatizantes
do conflito na vida de meninos e meninas, oferecendo a música como um alento.
Também conhecido como Educação para o Talento, o sistema preconiza que qualquer pessoa pode
aprender música, pois a habilidade não é inata e o talento se constrói, e que a relação com essa arte gera
cidadãos mais felizes e mais preparados para a vida.
Outros preceitos norteiam a aprendizagem por meio
do método, como a participação dos pais, o começo
precoce (a partir dos 3 anos) e o aprendizado junto
com outras crianças.
Brincadeiras e melodias
Atualmente, o Método Suzuki é aplicado em escolas de música de mais de 40 países, dos cinco continentes, seguindo os livros, as partituras e os registros de áudio deixados por seu fundador.
No Brasil, é pequeno o número de professores capacitados oficialmente para
o uso do sistema. Um deles
é Emmanuel
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Marcelo, de Curitiba, que se dedica há quatro anos ao
ensino utilizando o processo desenvolvido por Suzuki.
“Informalmente, diversos professores usam conhecimentos do método, mas, seguindo à risca, há muito
poucos, apenas em algumas cidades do Sul e em São
Paulo”, conta.
Há 15 anos no centro de Madri, Espanha, a Escuela
Cuatro Cuerdas funciona como centro exclusivo de
ensino por meio da Educação para o Talento. Visitar
a escola é uma experiência lúdica. Na entrada, um espaço para deixar os calçados dá mostras de quem domina o ambiente: a quantidade de pares de sapatos
com menos de 15 centímetros é bem superior à de
adultos. E as crianças correm e brincam por todos os
espaços comuns do local. Austeridade e compostura,
apenas na hora e na sala de aula.
O músico Carlos Albuisech dá aulas de violino e viola
na escola e é pai de Clara, de 4 anos, uma dos 120
estudantes da instituição. “O aprendizado de música
na infância ajuda no desenvolvimento de funções cerebrais”, diz ele, que aponta como uma das principais
facetas do método o triângulo formado por pai, professor e aluno. Os pais assistem às aulas com os filhos
e participam em casa do processo de aprendizagem.
“Mesmo um leigo em música tem de ir aprendendo
junto. É essencial que os pais se envolvam”, reforça.
Os alunos têm duas aulas semanais. Uma, de 30 minutos, com um dos pais e o professor. Outra, de 45
minutos, em grupos de cerca de dez crianças, com
um professor à frente. Em meio a brincadeiras e jogos,
vão aprendendo melodias e técnicas para apreciar e
produzir sons.
A partitura é introduzida quando os estudantes atingem a puberdade. “Ela entra no processo de aprendizado no período em que o aluno começa a se tornar
independente, maduro. Por volta dos 10, 12 anos”, comenta Albuisech. A experiência marca o amadurecimento do jovem, pronto para seguir, simultaneamente, pelos mundos da palavra e da música. Ao mesmo
tempo que, no colégio, podem tomar contato com os
símbolos e os segredos da literatura, da arte da palavra, aprendem, na escola de música, a extrair do papel
– bem como a inserir nele – a língua da música, com
seus próprios símbolos e segredos.
PARA O INFOGRÁFICO
Como se lê uma partitura? O que querem dizer as bolas, os traços e os caracteres em preto e branco inseridos no pentagrama? Com base em um trecho da canção Brejeiro, de Ernesto Nazareth, o músico Benjamim
Taubkin comenta alguns deles:
O contato com a partitura acontece quando o aluno atinge a puberdade
Patrício, por exemplo, conta que sua experiência com
a música nasceu com a partitura, mas seguiu pela
audição. “Passei anos sem utilizar partituras em meus
estudos, tocando música ‘de ouvido’ ”, afirma. E, como
ele, artistas populares e de culturas não eruditas vivenciam o fenômeno musical “de ouvido”, encarando
a arte como um idioma, aprendido por meio da audição e da repetição.
CLAVE (que define a posição das notas na pauta)
UMA FRAÇÃO NUMÉRICA (que determina o tempo
e o compasso, marcando a estrutura rítmica da música e, consequentemente, seu estilo)
AS FIGURAS MUSICAIS (semibreve, mínima, semínima, colcheia, semicolcheia, fusa e semifusa – que
representam as notas)
SUSTENIDOS E BEMÓIS
PAUSAS
INTENSIDADE
ANDAMENTO
OUTROS...
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