HELENA RODRIGUES ROCHA MARTINS DE OLIVEIRA Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite Rio de Janeiro 2011 HELENA RODRIGUES ROCHA MARTINS DE OLIVEIRA Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite I Vol. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas. Orientadora: Profa Dra Silvia Inés Cárcamo de Arcuri. Rio de Janeiro 2011 Oliveira, Helena Rodrigues Rocha Martins Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martin Gaite / Helena Rodrigues Rocha Martins de Oliveira – Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras 2011 x, 215 f.: il; 31 cm Orientadora: Silvia Inés Cárcamo Arcuri Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras, 2011 Referências bibliográficas: f. 203-215 1.Carmen Martín Gaite. 2. Ensaio. 3. Autobiografia. 4. Autoficção. 5. Metaficção historiográfica. 6. Literaturas Hispânicas – Tese. I. Cárcamo Arcuri, Silvia Inés. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite. Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martin Gaite Helena Rodrigues Rocha Martins de Oliveira Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas). Examinada por: _____________________________________________________________________ Presidente: Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ _____________________________________________________________________ Professora Doutora Valéria De Marco – USP _____________________________________________________________________ Professora Doutora Elena Palmero – UFRJ _____________________________________________________________________ Professora Doutora Magnólia Brasil do Nascimento – UFF _____________________________________________________________________ Professora Doutora Sônia Monnerat – UFF _____________________________________________________________________ Professor Doutor Júlio Dalloz – UFRJ, suplente _____________________________________________________________________ Professora Doutora Ana Isabel Guimarães Borges – UFF, suplente Rio de Janeiro Abril de 2011 Dedico esta tese: Ao meu amoroso marido, Afrânio, pela imensa dedicação e amor com que me acompanhou em todo o trajeto de elaboração desta tese, desde o exame de seleção para o ingresso no curso até o dia da defesa. Por sua generosidade, paciência e carinho que tanto me ajudaram a concluir esta pesquisa. Por partilhar todas as lutas nesse caminho em que a vida nos uniu. Ao meu amado filho Jorge Lucas que enche minha vida de sorrisos, abraços e felicidade. A meus pais que me mostraram, desde menina, que estudar é bom, incentivando-me a buscar sempre o melhor na vida. A meus irmãos Luisinho, Roberto e Carla e a minha sobrinha Leda, pelo carinho de sempre. A todos que, de alguma maneira, em algum momento, colaboraram para esta realização. Agradeço a Deus pela força de cada dia. Agradeço a toda a minha família pelo incentivo, por torcer e rezar pelo meu sucesso. Agradeço a minha querida orientadora, Silvia Cárcamo, pelo apoio, pelo incentivo e por partilhar o conhecimento de maneira tão simples e generosa. A todos vocês: Muito obrigada! RESUMO OLIVEIRA, Helena R. R. M. de. Ensaio de autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite. Rio de Janeiro: UFRJ, abr. 2011. 217 fls. Tese de Doutorado (Letras Neolatinas). Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas-Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A escritora espanhola Carmen Martín Gaite (1925-2000) elaborou uma extensa obra literária durante a segunda metade do século XX, cultivando uma variada gama de gêneros literários ao longo de mais de quarenta anos de criação onde o ensaio, a autobiografia, a narrativa ficcional intimista, o romance fantástico, os roteiros de teatro e televisão conquistaram o apreço da crítica e dos leitores comuns, tanto na Espanha quanto em outros países. O objetivo desta pesquisa consiste em analisar a presença dos discursos autobiográfico e ensaístico na construção da narrativa autoficcional da escritora no romance “El cuarto de atrás”. Como suporte teórico apresentam-se, no campo da autobiografia, as teorias de Phillipe Lejeune, em “El pacto autobiográfico” e Georges Gurdorf, em “Condiciones y límites de la autobiografia”, teóricos que iniciaram respectivamente em 1956 e 1975 as discussões sobre este vasto campo de pesquisa. Suas teorias servem-nos de embasamento e pretexto para a discussão sobre a configuração e os limites desta prática narrativa na contemporaneidade. Como contraponto são apresentados os pontos de vista de teóricos que discutiram mais recentemente a autobiografia a partir da perspectiva pós-moderna da ruptura dos limites genéricos. Temos como exemplo desta linha investigativa: Darío Villanueva, Guy Mercadier, Anna Caballé e José María Pozuelo Yvancos. No que se refere ao ensaio, fundamenta-se esta pesquisa na teoria do ensaio desenvolvida por José Gómez Martínez e María Elena Arenas Cruz que traçam os aspectos caracterizadores deste gênero. Como contraponto, apresentam-se opiniões de estudiosos que analisam a especificidade do ensaio literário, como Alberto Giordano. O terceiro campo teórico que dá suporte à tese, refere-se à Autoficção, campo literário que caracteriza-se pela mescla do discurso autobiográfico com o discurso ficcional. Neste ponto toma-se por base as considerações de Manuel Alberca, no livro “El pacto ambíguo”, onde traça o histórico e constituição do gênero, aplicando a teoria à análise de obras da literatura espanhola e hispanoamericana. Com base nos aspectos assinalados pelos teóricos dessas áreas do fazer literário, analisa-se o livro “El cuarto de atrás”, identificando a utilização do discurso ensaístico e autobiográfico na elaboração da autoficcionalidade do texto. Como pano de fundo, a questão da metaliterariedade, da intertextualidade, e autorreflexividade presentes no pós-modernismo, aspectos contitutivos das metaficções historiográfica, conceito definido por Linda Hutcheon em sua Poética do pós-modernismo. Palavras chave: Carmen Martín Gaite – Ensaio –Autobiografia – Autoficção – Metaficção historiográfica – Literaturas Hispânicas RESUMEN OLIVEIRA, Helena R. R. M. de. Ensaio de autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite. Rio de Janeiro: UFRJ, abr. 2011. 217 fls. Tese de Doutorado (Letras Neolatinas). Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas-Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. La escritora española Carmen Martín Gaite (1925-2000) elaboró una extensa obra literaria a lo largo de la segunda mitad del siglo XX, cultivando un variado espectro de géneros literarios por más de cuarenta años de creación donde el ensayo, la autobiografía, la narrativa ficcional intimista, la novela fantástica, los guiones para teatro y televisión han conquistado el aprecio de la crítica y de los lectores comunes, tanto en España como en otros países. El objetivo de esta investigación consiste en analizar la presencia de los discursos autobiográfico y ensayístico en la construcción de la narrativa autoficcional de la escritora en la novela “El cuarto de atrás”. Como base teórica se presentan, en el campo de la autobiografía, las teorías de Phillipe Lejeune, en “El pacto autobiográfico” y Georges Gurdorf, en “Condiciones y límites de la autobiografía”, teóricos que iniciaron respectivamente en 1956 e 1975 las discusiones sobre este amplio campo de estudio. Sus teorías nos sirven de base y pretexto para la discusión sobre la configuración y los límites de esta práctica narrativa en la contemporaneidad. Como contrapunto se presentan los puntos de vista de teóricos que discutieron más recientemente la autobiografía a partir de la perspectiva posmoderna de la ruptura de los límites genéricos. Tenemos como ejemplo de esta vertiente de investigación: Darío Villanueva, Guy Mercadier, Anna Caballé y José María Pozuelo Yvancos entre otros. Cuanto al ensayo, se fundamenta esta investigación en la teoría del ensayo desarrollada por José Gómez Martínez y María Elena Arenas Cruz que identifican los aspectos caracterizadores de este género. Como contrapunto, se presentan opiniones de estudiosos que también analizan la especificidad del ensayo literario, como, por ejemplo, Alberto Giordano. El tercero campo teórico que sostiene la tesis, se refiere a la Autoficción, campo literario que se caracteriza por la mescla del discurso autobiográfico con el discurso ficcional. En este punto se toma por base las consideraciones de Manuel Alberca, en el libro “El pacto ambiguo”, donde presenta el histórico y la constitución del género, aplicando la teoría al análisis de obras de la literatura española e hispanoamericana. Tomando por base los aspectos señalados por los teóricos de esas áreas del quehacer literario, se analiza el libro “El cuarto de atrás”, identificando la utilización de los discursos ensayístico y autobiográfico en la elaboración de la autoficcionalidad del texto. En el trasfondo, la cuestión de la metaliterariedad, de la intertextualidad, y la autorreflexividad presentes en el posmodernismo, siendo aspectos constitutivos de las metaficciones historiográficas, concepto definido por Linda Hutcheon en su “Poética del posmodernismo”. Palabras clave: Carmen Martín Gaite – Ensayo – Autobiografía – Autoficción – Metaficción historiográfica – Literaturas Hispánicas A medida que lo absurdo y lo irracional proliferan en torno nuestro y nos tambalea una creciente sensación de provisionalidad, más se nos van quitando las ganas de acudir a la literatura en busca de soluciones ni respuestas y más agradecemos – o por lo menos yo – esa sombra ambigua y confortable de los textos que espejan nuestras propias perplejidades. Me refiero a esos relatos que no dejan clara la frontera entre lo vivido y lo soñado, entre el espacio y el tiempo, entre la mentira y la verdad… Carmen Martín Gaite SUMÁRIO Pág. Introdução................................................................................................... Cap. 1 Cap. 2 Cap. 3 01 Carmen Martín Gaite................................................................................ 06 1.1 – Carmen Martín Gaite: uma biografia literária.................................... 07 1.2 – Para uma poética literária na ficção.................................................... 28 1.3 – Narrativa e interlocução: uma questão vital........................................ 41 As fronteiras fluídas da pós-modernidade: ensaio, autobiografia e autoficção.................................................................................................... 48 2.1 – O pós-modernismo nos estudos literários: uma aproximação teórica. 49 2.2 – O ensaio: um gênero para pensar e fazer pensar................................. 67 2.2.1 – O ensaio de uma ficcionista..................................................... 92 2.3 – Definições e redefinições do gênero autobiográfico........................... 105 2.4 – A autoficção: uma teoria em construção............................................. 124 “El cuarto de atrás”. ¿Que obra e esta? 157 3.1 – Revisão crítica..................................................................................... 157 3.2 - Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional em “El cuarto de atrás”...................................................................................... 172 Conclusões................................................................................................................ 197 Referências................................................................................................................ 203 Introdução. A presente tese de doutorado tem como objeto de estudo a obra da escritora espanhola Carmen Martín Gaite (Salamanca 1925 – Madrid 2000). A genialidade expressa em seus textos é reconhecida tanto pela crítica especializada quanto por seus milhares de leitores na Espanha e em outros países. Aclamada tanto pela crítica e pelos leitores, a escritora salmantina possui uma obra literária que abrange mais de quarenta anos de criação. As reflexões que pretendemos realizar sobre sua obra terá como ponto de partida a observação da variedade de gêneros literários pelos quais a escritora transitou com maestria e a recorrência de temas em sua obra ficcional e ensaística. Mas não somente a variedade de gêneros existentes na obra de Carmen Martín Gaite estará em pauta, mas também o entrelaçamento desses gêneros em uma mesma obra, colocando em jogo a questão dos limites ou fronteiras literárias. A escritora espanhola consagrou-se por sua produção ficcional, mas além de uma elaborada obra narrativa, com romances e contos, Carmen Martín Gaite também escreveu ensaios literários e históricos, poesia e roteiros para a televisão e teatro. Se considerarmos que nesta variedade de gêneros pode-se verificar a presença de temas que aparecem reiteradamente e são reelaborados segundo as normas internas que regem formalmente cada gênero, podemos supor que a autora utiliza seu próprio processo criativo como ponto de partida para novas escrituras, inclusive a autocitação é um recurso comum em sua obra, tanto na ensaística, quanto na narrativa. Este processo de escrita e reescrita da própria obra culminou com o ―romance‖ El cuarto de atrás (1978). A escritura híbrida desse ―romance‖ remete o leitor a um discurso ora autobiográfico, ora ensaístico, ora ficcional. Ou as três coisas ao mesmo tempo. As narrativas híbridas são uma constante na literatura contemporânrea, sendo um traço bastante frequente em 1 obras pós-modernistas, como observa Linda Hutcheon em sua Poética do Pósmodernismo. O hibridismo literário é atualmente um dos traços mais presentes na narrativa espanhola atual, com o registro de um acentuado crescimento no número de obras com esta característica nas duas últimas décadas do século passado e na primeira do atual. Mas, considerando que El cuarto de atrás foi escrito entre os anos de 1975 e 1978 estamos diante de uma das obras precursoras da narrativa espanhola atual. Aspectos desenvolvidos por Carmen Martín Gaite no referido romance serão intensamente explorados por escritores que publicarão seus relatos nas décadas posteriores. Um desses aspectos é a autoficcionalidade. Para se ter uma idéia, das 269 autoficções espanholas e hispanoamericanas inventariadas por Manuel Alberca, ao final de seu livro ―El pacto ambíguo‖ (2007), 222 foram publicadas após El cuarto de atrás, principalmente nas décadas de 90 do século passado e na primeira década de nosso século, o que comprova o pioneirismo de Carmen Martín Gaite no âmbito das literaturas hispânicas atuais. Todas essas obras têm como traço comum: a presença do autor, enquanto personagem e narrador, designado por seu nome próprio, num processo narrativo que mescla seus dados autobiográficos com elementos de criação ficcional. É este processo narrativo que tentaremos explorar no capítulo final, buscando identificar os diferentes tipos materiais de discurso (autobiográfico e ensaístico) e como eles se organizam na composição da autoficcionalidade da obra. A presença da autobiografia e do ensaio na narrativa ficcional de Carmen Martín Gaite revela uma escritora que utiliza sua ficção para cultivar a memória, através de uma elaborada narrativa intimista, bem como exercitar a reflexão sobre sua prática ficcional. Esta autorreflexividade do texto literário, além de antecipar uma tendência 2 pós-moderna, conecta a criação literária da escritora a uma tradição do romance hispânico – a tradição cervantina – em que a ficção é objeto de reflexão na própria ficção. Tradição cultivada por Torres Villaroel e Unamuno. Esta prática metaliterária é um dos fios condutores do argumento de El cuarto de atrás, introduzindo a obra de Carmen Martín Gaite no campo da criação literária cujo estudo e definição ainda estão em curso na atualidade: a autoficcção. O hibridismo literário é um dos traços caracterizadores da autoficção. O uuso do discurso autobiográfico e do ensaístico, ambos plenos de componentes metanarrativos que são os elementos fundamentais da autoficcionalidade de El cuarto de atrás. Para início de trabalho, buscamos um referencial teórico que trata de definir os gêneros literários com os quais Carmen Martín Gaite enlaça El cuarto de atrás, ou seja, o ensaio, a autobiografia e a autoficção. Inicialmente, trabalhamos com o texto de José Luis Gómez Martínez, ―Teoría del ensayo‖, para a exposição da teoria do ensaio de forma didática, abrangendo desde sua conformação histórica até uma caracterização detalhada do gênero. Em seguida, partimos para a tese de doutorado de María Elena Arenas Cruz, em que estuda o ensaio a partir do conceito de classe de textos. Desta forma, antes de abordar a questão do ensaio propriamente dito, Arenas Cruz busca uma definição do que podemos considerar como uma classe de textos. Tal perspectiva nos interessa, particularmente, por ser a classe de texto uma noção mais abrangente que a do gênero literário, sendo aplicável ao nosso estudo já que o hibridismo dos textos de Carmen Martín Gaite os fazem escapar de um noção estanque de gênero literário. A concepção de classe de textos também guarda alguma relação com o conceito de gênero do discurso, conforme aborda Mikhail Bakhtin, conforme veremos. Para ampliar nossas reflexões sobre o ensaio, traremos para a discussão algumas observações de outros 3 estudiosos que tratam especificamente do ensaio dos escritores e finalizaremos com alguns exemplos de ensaios de Carmen Martín Gaite. Com relação à autobiografia, baseamos-nos em diversos trabalhos que problematizam as especifidades da autobiografia enquanto gênero literário. Ressaltamos os números monográficos da revista Anthropos dedicados especialmente ao tema. Um dos trabalhos fundamentais que nos oferece suporte teórico a nossa pesquisa é ―El pacto autobiográfico‖ (1991), de Phillippe Lejeune que, ao lado de ―Condiciones y limites de la autobiografía‖ (1991), de Georges Gusdorf, nos orienta na identificação dos aspectos mais importantes do gênero autobiográfico, pois tentam delimitar suas fronteiras enquanto gênero literário. No entanto, falar em fronteiras literárias é algo incerto e ao mesmo tempo instigante já que grande parte das discussões teóricas sobre literatura na atualidade questionam a existência dessas fronteiras. Ou seja, questionam se é possível estabelecê-las, pois elas estão cada vez mais fluídas. Sendo assim, as reflexões sobre a autobiografia se completam com alguns estudos que propõem a investigação da problemática dos limites e fronteiras do gênero, tema essencial para nossa pesquisa, considerando-se a autoficção um gênero limítrofe entre a autobiografia e a ficção. Tendo como objetivo verificar a função desses dois gêneros – o ensaio e a autobiografia – na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite, nosso suporte teórico se completa com o estudo sobre a autoficção. Neste campo, destacam-se os trabalhos de Manuel Alberca (1999, 2007, 2009) sobre o gênero. Autor dos principais trabalhos sobre autoficcção em língua espanhola, além de apresentar uma visão ampla sobre os textos autoficcionais no âmbito das literaturas hispânicas, Alberca oferece uma perspectiva histórica da origem e evolução do gênero. 4 A pesquisa chega a seu objetivo final com a aplicação dessas teorias na análise de El cuarto de atrás, obra reconhecida pela crítica como autêntico exemplo de autoficção e onde podemos observar tanto o discurso autobiográfico, quanto o discurso ensaístico de Carmen Martín Gaite. No entanto, pareceu-nos impossível limitar nossa análise a este livro, e embora seja ele o fio condutor de nossas investigações, não pudemos deixar comentar diversos trabalhos da escritora, onde temas explorados nesse livro são reiteradamente abordados. São de suma importância seus ensaios publicados em coletâneas como La búsqueda de intelocutor (2.000) e Tirando del hilo (2.007). Ambos são recopilações da obra ensaística da autora dispersa em revistas e jornais em épocas distintas de sua vida. Sendo assim, partimos agora para uma apresentação mais detalhada de Carmen Martín Gaite. 5 Capítulo 1 – Carmen Martín Gaite. Ao iniciar a apresentação dos resultados da pesquisa desta tese de doutorado, façamos uma aproximação à carreira literária de Carmen Martín Gaite, através de informações coletadas em estudos críticos sobre a escritora e em seus próprios artigos publicados em revistas e jornais, onde recorda passagens de sua vida, sempre tendo como referencial a carreira acadêmica e literária. Cumprimos este propósito traçando um panorama de sua carreira literária na primeira seção deste capítulo, Carmen Martín Gaite: uma biografia literária, onde fatos da vida da escritora são contados por ela mesma em textos em que recorda a infância, os estudos acadêmicos e suas primeiras experiências como escritora. A contextualização histórica da vida e da obra da escritora também se realiza nesse momento, já que é de caráter absolutamente relevante o fato da escritora ter vivido mais da metade de sua vida sob o regime franquista, sofrendo suas consequências como cidadã espanhola, como mulher, como intelectual e como escritora. Em seguida, em Para uma poética literária na ficção, discutiremos as concepções literárias de Carmen Martín Gaite elaboradas a partir de sua própria ficção onde, à maneira de ensaio, trata de valorizar a questão da narrativa dentro do ensaio e do ensaio dentro da narrativa. Em Narrativa e interlocução: uma questão vital, finalizamos esta aproximação à escritora com um estudo sobre um tema vital em sua obra: a interlocução. Tema presente nos ensaios literários sobre outros escritores, em sua obra narrativa e ensaística e em algumas entrevistas que concedeu a imprensa. 6 1.1 - Carmen Martín Gaite: uma biografia literária. Neste capítulo inicial, cuja pretensão é a de traçar, em linhas gerais, a trajetória biográfico-literária de Carmen Martín Gaite, busca-se resgatar os acontecimentos de sua vida e de sua carreira através de dados recolhidos não só em diversas publicações de estudiosos e críticos literários, mas também, através de depoimentos da própria escritora relatados em vários textos de sua autoria. Desta forma, já iniciamos nosso trabalho ressaltando a tendência autobiográfica na obra de Carmen Martín Gaite, cuja trajetória literária e biográfica é representada em sua própria obra. Carmen Martín Gaite nasceu na cidade de Salamanca, Espanha, no dia 8 de dezembro de 1925, filha caçula de José Martín e María Gaite. Seus primeiros estudos não ocorreram convencionalmente devido às convicções ideológicas de seu pai que era contrario à educação religiosa institucionalizada e, naquela época, eram raros os bons colégios laicos em Salamanca. Desta forma, a escritora teve sua instrução inicial em casa com professores particulares e com seu próprio pai que lhe transmitiu os primeiros conhecimentos em arte, história e literatura. O ambiente familiar foi bastante propício ao desenvolvimento de seu talento desde a infância, como nos relata Isabel Laguna no artigo ―Una rebelde poco agresiva‖, publicado na ocasião da morte da escritora: De su madre, una mujer gallega a quien definió como medio ―meiga‖, heredó su capacidad para llevar la fantasía a la realidad y la realidad a la fantasía, y de su padre, un notario aficionado a la lectura, el descubrimiento de la literatura, pues fue él quien encauzó sus gustos, desde la gran biblioteca que tenían en casa. (LAGUNA, 2000, p. 40) O adjetivo ―meiga” atribuído à sua mãe adquire fundamental importância, pois significa ―bruxa‖ em português e enfatiza, portanto, a ligação da mãe da escritora com o 7 que podemos chamar de esfera fantástica. Esfera esta a qual a escritora adotou como fonte de matéria para sua criação fictícia. Além disso, em sua casa a literatura ocupava um lugar importante e Carmen Martín Gaite teve uma infância rodeada de livros. Eles também estavam na casa de veraneio, na Galícia, como companheiros inseparáveis de suas horas de lazer e solidão voluntária. Testemunha dos anos de guerra civil – tinha dez anos quando eclodiu a contenda – encontrou nos livros a necessária alternativa ao mundo real. Eles foram ponto de partida para o desenvolvimento de uma mente criadora, em que o sonho e a fuga da realidade configuraram-se como elementos chave para toda a sua futura criação literária. Essa atmosfera da infância estimulante para a leitura determinou em sua opção pela literatura como forma e meio de vida. Seus relatos e ensaios mostram como, desde pequena, o gosto pela literatura, assim como o hábito de refletir sobre os textos que lia, era parte inerente de seu modo de viver e de pensar desde muito jovem. No primeiro ensaio de La búsqueda de interlocutor1, intitulado ―Los malos espejos‖, a autora assinala a impressão que lhe causava, em suas leituras de infância, a maneira como os autores construíam as cenas do primeiro encontro de um par romântico nos livros que lia naquela época: Cuando yo era niña, recuerdo haberme sentido muy fascinada por un recurso literario común a varias de las historias de amor primeras que leí, bien procedentes del campo de la novela rosa (…) bien de unos folletines decimonónicos con olor a humedad que habían alimentado también sueños juveniles de mi madre y se guardaban en los armarios de una casa donde veraneábamos, en Galicia. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 15) Após os anos de estudos iniciais em casa, Carmen Martín Gaite passou à formação secundária no Instituto Feminino de Salamanca e ingressou na Universidade 1 Esta coletânea de ensaios de Carmen Martín Gaite publicados em revistas e jornais teve sua primeira a edição em 1973. Aqui utilizamos o texto da 3 edição, de 1979, em reedição do ano 2000. 8 de Salamanca, em 1943, no curso de Filologia Românica, concluindo-o em 1948. Os anos universitários foram culturalmente muito produtivos. A escritora, além de participar de teatro universitário, começou a publicar seus primeiros poemas na revista Trabajos y dias2. A autora se refere a estas primeiras incursões literárias no ensaio ―Salamanca, la novia eterna‖, também publicado em La búsqueda de interlocutor. Durante mi etapa de bachiller, en Salamanca hacía un frío tan riguroso que el Tormes llegó a helarse y los niños lo cruzaban patinando. Mi primer poema publicado en la revista Trabajos y días evocaba aquella larga tregua del invierno y se titulaba ―la barca nevada‖. (MARTÍN GAITE, 2000, p.193) Os anos de universidade foram uma época de iniciação e experimentação literária para Carmen Martín Gaite. Esta fase se deu no período pós-guerra civil, em plenos anos 40, em que havia um grande isolamento cultural e poucas possibilidades de expressão artística no controlado panorama das letras espanholas daquele período histórico. A escritora encontrou na poesia e nos amigos de universidade um refúgio e um estímulo à criação. A poesia era o gênero literário preferido daqueles estudantes, entre os quais figurava Ignacio Aldecoa, líder dos jovens escritores e que viria a ser, na década seguinte, um dos mais destacados representantes do neo-realismo espanhol. Aldecoa tornou-se grande amigo de Carmen Martín Gaite e é recordado por esta no ensaio ―Un aviso: ha muerto Ignacio Aldecoa‖3, que escreveu como homenagem póstuma. Neste ensaio, publicado pela primeira vez na revista La estafeta literaria, em novembro de 1969, e compilado pela autora em La búsqueda de interlocutor, relembrase a importância de Ignacio Aldecoa para o grupo de poetas ao qual pertenceu e destaca o entusiasmo dos estudantes com a poesia: 2 3 Revista universitária salmantina de pós-guerra publicada do ano de 1946 a 1951. In.: La búsqueda de interlocutor, pp. 33-45. 9 Estas cosas escribía Ignacio Aldecoa por los primeros años del cuarenta, cuando yo lo conocí en la Facultad de Letras de Salamanca. Nos gustaba mucho a los amigos de entonces, todos entre los diecisiete y los veinte años, esta historia del pistolero Larrigan y la recitábamos mientras tomábamos el sol apoyados en la barandilla de piedra del palacio de Anaya entre clase y clase, o cuando íbamos a remar en grupo al río. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 34) E mais adiante: Los versos de los otros amigos – y todos escribíamos versos entonces – no los recitábamos en alta voz; eran versos de cuchicheo íntimo para ser leídos en casa. Hablaban preferentemente de congojas del ánimo, de preocupaciones metafísicas, y poco después vinieron a ver la luz en la primera revista donde yo colaboré asiduamente, Trabajos y días, revista provinciana hecha por universitarios a que Ignacio no se asomó nunca. (MARTÍN GAITE, 2000, p.34) Como veremos mais adiante, este amigo será uma das personalidades mais presentes na vida literária de Carmen Martín Gaite. De fato, o ensaio citado apresenta aspectos autobiográficos que nos ajudam nessa tentativa de reconstruir a biografia de Carmen Martín Gaite, já que a escritora não chegou a escrever uma autobiografia, propriamente dita. Observaremos que será frequente a inclusão do discurso autobiográfico na obra ensaística da escritora, como observa Juan Senís Fernández, no artigo ―Márgenes de la autobiografia en la obra de Carmen Martín Gaite‖ (2004). Discutindo a questão dos limites genéricos e as possibilidades de fontes de informação na constituição de aspectos autobiográficos na obra da escritora, o crítico revela que seus ensaios são, além de importantes contribuições à crítica literária, uma grande fonte de informação sobre a vida da escritora. Además de éstos, incluidos en ―Andando el tiempo‖, hay otros textos que también se hallan en los márgenes de lo autobiográfico y donde la propia Carmen Martín Gaite nos da, por tanto, datos sobre su periplo vital. Pero en este caso se trata de obras que no nacen, como en el caso anterior, con voluntad de explicar una parte de su vida o con ocasión de acontecimientos 10 relacionados directamente con su trayectoria vital; más bien estamos ante escritos que nacen con otra intención y que, por necesidades de la materia tratada en ellos, derivan hacia regiones muy cercanas a la autobiografía. El caso más ejemplar es Esperando el porvenir, cuyo origen está en un ciclo de conferencias sobre Ignacio Aldecoa que Carmen Martín Gaite impartió en la fundación Juan March en 1994, cuando se cumplía el vigésimoquinto aniversario de su muerte. En principio, no se trataba más de eso, de una conferencia; pero en esta ocasión, la escritora salmantina no podía hacer unas charlas convencionales, pues como es bien sabido, Aldecoa era su amigo, habían coincidido en las universidades de Salamanca y Madrid y habían iniciado sus carreras literarias a la par y arropados por el mismo grupo de amigos y las páginas de las mismas revistas. Así, sobre todo los primeros capítulos del libro, cuentan más la historia de esta generación de escritores y, por lo tanto, están llenos de datos personales sobre la propia vida de Carmen Martín Gaite, además de ilustrado con numerosas fotografías. (SENÍS FERNÁNDEZ, 2004, pp. 625-626) A passagem refere-se ao ciclo de conferências que ocorreu vinte e cinco anos após a morte de Ignacio Aldecoa, promovido pela fundação Juan March. Passados vinte e cinco anos da publicação do artigo de Carmen Martín Gaite que comunicava a morte do amigo, homenageando-o, a escritora participa de um ciclo de conferências em que relembrar Aldecoa serviu de motivo para homenagear também a geração de escritores que em pleno primeiro pós-guerra buscava não asfixiar-se com as limitações dos anos iniciais do franquismo. O fragmento do artigo de Senis Fernández além de ressaltar a importância dos ensaios de Carmen Martín Gaite para a recomposição de sua trajetória biogrfica e literária, alude àquele grupo de escritores que compunham uma intelectualidade espanhola sem presunções messiânicas, mas que, nas palavras de Vazquez Montalbán4, foram uma espécie de ―puente para sensibilidades posteriores‖. Tratava-se da geração de ―medio siglo‖. Antes mesmo de se formar, em 1946, aos 21 anos, a escritora teve a sua primeira oportunidade de estudar fora da Espanha com uma bolsa de estudos da Universidade de Coimbra. Foi a sua primeira viagem ao exterior. Em Portugal, conheceu também as 4 La literatura en la construcción de la ciudad democrática. P.73. 11 cidades do Porto e Lisboa. A estadia em Portugal durou dois meses e rendeu-lhe frutos na carreira literária e acadêmica. Além do interesse pelo cancioneiro galaico-português, posteriormente a escritora dedicou estudos à obra de Eça de Queiroz. É importante observar que, embora a estadia de Carmen Martín Gaite em Portugal tenha se dado durante um período em que este país, assim como a Espanha, estava sob um regime ditatorial, o de Salazar (que permaneceu no poder de 1932 a 1968), para Carmen Martín Gaite, o período representou um passo para a liberdade, pois, somente o fato de uma moça solteira viajar sozinha para o exterior, desafiava as regras impostas às mulheres espanholas da época. Era necessário já ter cumprido suas obrigações como o ―Servicio Social‖ dirigido pela ―Sección Femenina‖, órgão subordinado à Falange Espanhola encarregado de dar uma formação às mulheres, preparando-as para o cumprimento de seu papel de mãe e esposa, em consonância com a ideologia imposta pelo regime franquista. Esta questão é retratada detalhadamente no livro Usos amorosos de la postguerra española (1987) . No terceiro capítulo desse ensaio histórico, intitulado ―El legado de José Antonio‖, Carmen Martín Gaite parte de um importante acontecimento histórico – a morte de José Antonio Primo de Rivera por fuzilamento – para comentar alguns aspectos relativos à ―Sección Femenina‖. Este órgão político cumpriu um papel determinante na formação e no comportamento de várias gerações de mulheres na Espanha de pós-guerra. Dirigida pela irmã de Primo de Rivera, Pilar Primo de Rivera, a ―Sección Femenina‖ era a responsável pelo Serviço Social. Tratava-se de uma espécie de estágio com cursos obrigatórios para as mulheres solteiras ou viúvas sem filhos, onde obtinham conhecimentos sobre os afazeres do lar, corte e costura, puericultura, economia doméstica etc. Ou seja, assuntos relacionados ao âmbito da casa e da família, 12 ao qual a vida das mulheres deveria restringir-se. No ensaio, Carmen Martín Gaite nos dá um testemunho bastante pessoal sobre sua experiência no Serviço Social: Cuando empezábamos a hacer el Servicio Social nos daban una chapita roja de esmalte con las iniciales S.S. grabadas en dorado, indicadora de que se estaba cumpliendo. En el plazo, a veces de años, que mediaba entre la penitencia de esa insignia provisional y la adjudicación libertadora de otra exactamente igual pero en esmalte azul. A algunas no había dado tiempo a terminar una carrera y soñábamos con hacerla, a despecho del mes de formación teórica, los dos de asistencia a escuelas del hogar y los tres de prestación que se podía cumplir en comedor infantil, taller o cocina. Además de gimnasia y un poco de baloncesto, se había aprendido, haciendo empanadilla de escabeche y la canastilla del bebé, que para la mujer la tierra es la familia. (MARTÍN GAITE, 1994, 63) O fragmento demonstra que, para algumas mulheres, como é o caso da escritora, o Serviço Social era um sacrifício que deveria ser cumprido por mera obrigação. É importante observar que o não cumprimento do Serviço Social representava a perda da possibilidade de ter acesso a direitos simples como o de tirar uma carteira de motorista ou um passaporte. O Estado exercia, através desse mecanismo, um controle total sobre as mulheres, esperando, assim, zelar pela moral e pelos bons costumes das famílias, preparando as mulheres para seu destino mais desejável, o casamento. Ainda que na Espanha de pós-guerra o número de mulheres fosse consideravelmente superior ao número de homens. Nesse contexto, é fácil entender o significado que a primeira viagem ao exterior teve para Carmen Martín Gaite, ainda que tenha sido para um país cujo regime político fosse muito semelhante ao instaurado na Espanha. Segundo David González Couso, autor do artigo ―Carmen Martín Gaite y su geografía literaria‖, ―Portugal significa la primera apertura hacia el extranjero que experimenta la escritora y, como tal, deja en su 13 obra alusiones que lo relacionan con un ámbito de libertad‖ (GONZÁLEZ COUSO, 2009). Esta primeira saída de Carmen Martín Gaite da Espanha foi mais do que uma simples viagem de estudos de uma jovem estudante. É preciso considerar o momento histórico que a década de 40 representa na vida cultural da Espanha, onde o regime do pós-guerra civil, em um primeiro momento, submergiu o país em um total isolamento, gerando uma estagnação cultural que, somente a duras penas, podia ser vencida pelos jovens da época. O anseio de liberdade e novidade era uma marca do espírito da escritora. O desejo de conhecer o novo, a abertura ao mundo externo ao seu, tão cheio de limitações e restrições a sua mente talentosa, manifestava-se em sua juventude. Isto se reflete na relação que a escritora estabeleceu com sua cidade natal, que, embora tão querida, não lhe bastava. É o que podemos ler nas linhas iniciais do ensaio que novamente citamos, ―Salamanca, la novia eterna‖. Supe muy pronto, tal vez al borde de la adolescencia, que con la ciudad donde nací, aprendí a hablar y llevé a cabo mis estudios, nunca me uniría una relación matrimonial, sino de noviazgo sin formular del todo, uno de aquellos amores contrariados de los que habla santa Teresa al aludir a los suyos con Dios. (MARTÍN GAITE, 2000, p.193) Em 1948, ao término de sua licenciatura, Carmen Martín Gaite obteve uma bolsa de estudos para um curso de verão na Universidade de Cannes. Nessa oportunidade, pôde ler muitos escritores franceses e, como relatou no ensaio ―Brechas en la costumbre‖5, conheceu o ―sabor autêntico da liberdade‖. Carmen Martín Gaite, portanto, faz parte de uma geração de escritores que, naquele contexto de pós-guerra, começa a viajar ao exterior e a entrar em contato com a cultura européia da época. A 5 In.: Pido la palabra, pp. 342-358 14 experiência na França confirmou sua convicção de que era necessário sair da cidade natal para buscar um ambiente mais favorável ao desenvolvimento acadêmico e literário. Assim, em novembro de 1948, deixa Salamanca rumo a Madri para dar prosseguimento aos estudos com um projeto de doutorado. Em Madri, começou a publicar contos e artigos em revistas literárias. Trabalhou confeccionando fichas para um dicionário da ―Real Academia Española‖. Nesse período, contraiu tifo e teve que regressar a Salamanca para receber os cuidados de sua mãe. Foram mais de quarenta dias de cama e febre. A escritora transformou a experiência da enfermidade em uma obra que poderíamos situar entre o relato autobiográfico, a narrativa fantástica e a metaliteratura. O livro escrito no período em que a doença durou relata os delírios febris da autora e toda sua fragilidade humana em uma situação de total dependência. Entre os delírios causados pela febre, revelam-se seus pensamentos sobre a vida e a literatura, sendo esta representada pelo próprio ato de escrever que se mostra como um elemento vital para a autora/personagem da obra. Estamos falando de El libro de la fiebre (2007), publicado postmortem. Embora estilisticamente o livro esteja muito mais relacionado à primeira fase da escritora, onde predominou a poesia, marca o início de sua criação narrativa, apresentando procedimentos literários que reaparecerão algumas vezes em sua obra, como a alternância entre sonho e realidade. A introdução de María Victoria Calvi à primeira edição desse livro pela Editora Cátedra afirma a conexão deste relato com a obra posterior da escritora. No estudo, Victoria Calvi cita a própria Carmen Martín Gaite, em ―Bosquejo autobiográfico‖6 e Cuadernos de todo. A autora de ―El libro de la fiebre‖ apresenta sua visão sobre este primeiro intento narrativo fantástico. 6 In.: Agua pasada, pp. 17-19. 15 En el ―Bosquejo‖, Por lo tanto, se ostenta el rechazo por el texto juvenil; Carmen Martín Gaite hace suya la opinión negativa de Sánchez Ferlosio, distanciándose de su visión de entonces, distorcionada por la exaltación de neófito. Por otra parte, los dos fragmentos no salieron en ―La hora‖, sino en la revista universitaria ―Alcalá‖, pero la autora no manifiesta gran interés por averiguar los datos de su publicación. (VICTORIA CALVI, 2007, p.12) A citação acima se refere ao relato em que Carmen Martín Gaite conta como foi desestimulada por Sánchez Ferlosio (com quem viria a casar-se posteriormente) quando lhe mostrou o livro. O escritor lhe disse que aquela narrativa ―no valía nada, que resultaba vago y caótico‖. Ainda que Carmen Martín Gaite estivesse muito entusiasmada com seu livro e este lhe parecesse ―muy bonito‖, a opinião negativa de Sánchez Ferlosio prevaleceu e a escritora não se animou a publicá-lo, salvo alguns fragmentos na revista La hora. Por outro lado, como assinala Victoria Calvi, a escritora apresentará comentários mais pessoais sobre El libro de la fiebre em Cuadernos de todo: En los Cuadernos de todo, en cambio, se encuentran referencias más personales que nos permiten enfocar la relación entre la obra primeriza y el conjunto de su producción. Si por un lado, se confirma el ―rechazo excitado y pirado del Libro de la fiebre, por el otro, se reconoce la importancia de este texto, como revelación de una incipiente llamada hacia lo fantástico: ―La llamada de lo fantástico la sentí por primera vez en 1949, en mis intentos fallidos del Libro de la fiebre. Pero está incorrupta, aunque me haya alejado por los caminos de un realismo acomodaticio. Ahondar en el estilo del Balneario, sería ahora que sé muchas más cosas y tengo mejor gusto y pulso más seguro, mi salida de los infiernos. Aquello me ha dada la identidad, dormida en mí, que estaba empezando a olvidar, a enterrar. Ahora desafiaré genialmente. Me tengo, al fin, que atrever. Con aparente ingenuidad y prudencia. Despistando. Se van a quedar fríos. Dinamita pura y – hasta ahora – no la había disparado. Ya es hora. […] En el Balneario no debía haber terminado diciendo que era un sueño. La segunda parte se carga todo. Es un pegote cobarde, acomodaticio‖. (CT, págs.. 391-392). (Apud VICTORIA CALVI, 2007, pp. 12-13) 16 Neste fragmento da introdução de Victoria Calvi, onde ela cita o Cuadernos de todo, destaca-se a autocrítica de Carmen Martín Gaite, que revisa sua obra inicial e a conecta com suas convicções literárias mais perenes, as quais poderão ser percebidas décadas mais tarde em El cuarto de atrás. O gosto pelo fantástico já se apresentava de forma germinal, talvez sem muito conhecimento teórico, mas que será buscado e aperfeiçoado posteriormente. Em 1950, Carmen Martín Gaite se mudou definitivamente para Madri. Lá reencontrou o amigo de Universidade, Ignacio Aldecoa, figura importante na trajetória da escritora desde a época da Faculdade de Filologia, em Salamanca. Foi através dele que a escritora ingressou no círculo literário madrilenho da época. A admiração de Carmen Martín Gaite por Ignacio Aldecoa se prolonga ao longo de toda a sua vida e carreira literária, posto que, após a fase poética da universidade, o escritor destacou-se como uma das figuras mais influentes do neorrealismo espanhol, que reuniu nomes como Jesús Fernández Santos, José María de Quino, Alfonso Sastre e Rafael Sánchez Ferlosio, que viria a casar-se com Carmen Martín Gaite em 1953. Estes jovens fizeram parte de uma geração que colaborou para reconstruir a literatura espanhola, também devastada pela guerra, assim como todos os setores da vida cultural da Espanha. Liderados por Aldecoa, estes jovens, também chamados ―niños de la guerra‖, foram os primeiros a tentar reconstruir o panorama cultural destruído pela guerra. A professora doutora Valéria De Marco refere-se a este grupo no artigo ―Tira y afloja: metáfora de construção da obra de Carmen Martín Gaite‖. : Carmen Martín Gaite integra o grupo de ―los niños de la guerra‖, expressão usada por Josefina Aldecoa para designar um certo conjunto de escritores cujas vidas foram submetidas a experiências sociais marcantes, profundas e coletivas. Tendo nascido em torno do período de 1925 a 1930, estes jovens atravessaram a infância e a adolescência cercados pela situação de guerra – a guerra civil espanhola e a II Guerra Mundial – e, à diferença de muitos intelectuais mais velhos que se envolveram diretamente na luta e se exilaram, 17 eles ficaram na Espanha. Sob o signo da guerra, perderam a inocência e amadureceram sob os longos trinta e seis anos da ditadura de Franco. Os historiadores da literatura destacam as especificidades do grupo e consideram que ele configura uma geração – ―la generación del medio siglo‖. Seus integrantes, além de terem começado a publicar nos anos cinquenta, dedicaram-se à literatura, desenvolvendo obras empenhadas em falar do contexto social em que viviam. (DE MARCO, 1993, 289) Valéria De Marco acrescenta ainda que esta geração não vivenciou os avanços culturais e sociais promovidos pela República. Neste período que antecedeu a Guerra Civil, foram instaurados centros radiadores de cultura – os ―Institutos de Libre Enseñanza‖, as ―Residencias de Estudiantes‖ e as ―Casas del Pueblo‖. Todos com projetos de arte e cultura que eram levados a todas as cidade e aldeias. Pela ação do governo republicano, as fronteiras haviam sido abolidas, as províncias tiveram sua autonomia reconhecida e houve uma ―rica convivência entre regionalismos, aspirações nacionais e ritmo cosmopolita‖. Todos esses avanços foram interrompidos pela Guerra e o longo pós-guerra que se seguiu. É preciso recordar que o pós-guerra civil foi um momento sombrio na vida do povo espanhol. Os anos imediatos ao término da Guerra Civil representaram, para uma grande parte da população, miséria e fome, num país praticamente devastado. A vida intelectual sofreu graves danos devido ao ambiente de cerceamento ideológico que se implantou com a vitória do general Francisco Franco Bahamonde. A guerra dispersou os intelectuais e escritores. Vários deles tiveram que exilar-se, continuando a escrever no exterior. Foi o caso de Max Aub, Ramón J. Sender, entre outros. Os escritores que permaneceram no país tiveram que conviver com a censura rígida de obras estrangeiras e, obviamente, lhes era quase impossível saber o que seus companheiros das letras estavam escrevendo no exterior. 18 Se produjo por lo tanto una brusca interrupción en la continuidad literaria. Unamuno, Valle Inclán, Antonio Machado y Lorca habían muerto, la gran mayoría de los mejores escritores se había ido, y los que quedaron o los que volvían eran meros fantasmas de los que fueron. En un ambiente tenso y generalmente hostil, preocupados por cuanto los rodeaba, tenían que empezar de nuevo entre vacilaciones bajo la atenta mirada de una censura todopoderosa. Los años cuarenta fueron, como era de presumir, años muy flojos para la literatura española. (BROWN, 1998, p. 235) Os escritores espanhóis estavam, portanto, obrigados a viver em um isolamento cultural e político. Este quadro perdurou até a década de 50, quando, motivados pela Guerra Fria, o ocidente democrático viu com bons olhos o anticomunismo espanhol. Segundo Manuel Vázquez Montalbán, a ―ciudad franquista‖ começa a se desconstruir já em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial: En cierto sentido, el franquismo empezó a desconstruirse en 1945, en el momento en que, perdido el impulso inicial imperial arropado y respaldado por la prepotencia nazi-fascista, la ciudad franquista tiene que resituarse en un mundo marcado por la redivisión de la segunda guerra mundial y el inmediato desafío de la guerra fría. (VÁZQUEZ MONTALBÁN, 1998, p.60) Para Vázquez Montalbán, o início da guerra fria fez com que os condutores do regime franquista percebessem que poderiam vender algo às potências vencedoras da Segunda Guerra Mundial, ―por el simple hecho de que en el fin de la segunda está ya el nacimiento de la tercera, la trinchera de esa contradicción fundamental a nivel universal que significa la guerra fría: un frente de lucha de clases internacional encarnado en una política de bloques ya latente dentro de la segunda guerra mundial. El régimen franquista es consciente de que puede vender esa fortaleza inexpuganable en la que ha convertido a la sociedad española, arrasada cualquier vanguardia crítica y en la que sólo permanecieron focos latentes de resistencia en condiciones muy precarias. (VÁZQUEZ MONTABÁN, 1998, p. 63) 19 Os Estados Unidos apoiaram economicamente a Espanha em troca da viabilização da construção de bases militares no país. A ajuda estrangeira e o investimento no turismo facilitaram o crescimento econômico da Espanha. Ao mesmo tempo, o isolamento em que a Espanha se encontrava deu lugar a uma tímida abertura com o Plano de Desenvolvimento que começou a ser implantado por Franco, em 1959. Alguns fatores como o aumento do número de estudantes universitários, a expansão da classe média e a conscientização do proletariado modificam o quadro sócio-cultural da Espanha, trazendo como consequência uma literatura direcionada ao realismo social, com obras representativas como La colmena, de Camilo José Cela e Nada, de Carmen Laforet. Después de La colmena se produjo un súbito florecimiento (a pesar de las enérgicas podas de la censura) de jóvenes talentos consagrados a la causa de exponer, o al menos de dar testimonio, de las calamidades de la vida española (...). El consciente testimonio de estos escritores, muchos de los cuales eran todavía niños durante la Guerra Civil, pero que ahora habían llegado a una edad en que podían denunciar sus consecuencias, fue como una bocanada de aire fresco para las letras españolas. (BROWN, 1998, p. 241) Para que acontecesse este ressurgimento da literatura espanhola, foi de fundamental importância a existência desse grupo de jovens escritores que, principalmente, em seus romances, assumiam um papel informativo em uma sociedade onde qualquer informação era filtrada pelos meios oficiais de censura. O romance foi, durante a década de 50, uma espécie de substituto de outros meios de informação. Mortos ou exilados os grandes ícones da cultura espanhola, parte dos narradores de ―medio siglo‖ encontraram no cinema neorrealista italiano uma linguagem estética que ia ao encontro as suas inquietações e necessidades expressivas. O neo-realismo 20 italiano configura-se como uma corrente artística que tem suas primeiras manifestações a partir de 1945, com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial e a liberação do país. Os acontecimentos históricos de pós-guerra, bem como os imediatamente anteriores ao fascismo e a resistência, foram o foco de análise dos escritores e cineastas, proporcionando, assim, um clima de resgate de valores morais e civis adulterados sob o fascismo. O neorrealismo italiano entrou na Espanha na primeira metade dos anos 50, através de três eventos cinematográficos: as Semanas de Cinema Italiano, realizadas em Madri pelo Instituto Italiano de Cultura, em novembro de 1951 e maio de 1953, e as Primeiras Conversas Cinematográficas de Salamanca, em maio de 1955. As Semanas de Cinema Italiano marcaram os primeiros contatos dos escritores e intelectuais espanhóis com o neorrealismo e as Conversas Cinematográficas foram os primeiros eventos organizados por esses intelectuais contra o franquismo. Nesse momento assumiram o neorrealismo italiano como ponto de partida para uma nova arte realista espanhola. A narrativa neorrealista caracterizava-se pela busca da transformação social através de um posicionamento humanitário, baseado no amor e na bondade. A inclusão de uma temática que chama a atenção para a dor alheia era fruto tanto para os cineastas italianos quanto para os narradores espanhóis de uma realidade pós-guerra (Segunda Guerra para os italianos e Guerra Civil para os espanhóis) em que a miséria e as desigualdades eram a expressão maior do sofrimento humano. Na narrativa de pós-guerra de Carmen Martín Gaite, em especial, vemos a aproximação terna aos que se sentem sozinhos e desamparados, como a senhorita 21 Matilde de sua primeira narrativa longa, El Balneario (1953)7 e os injustiçados, como a empregada doméstica doconto ―Los informes‖8. O romance Entre visillos, também apresenta uma preocupação humanitária, visível na angústia de personagens como a jovem Natália que, por ser mulher, sofre pela falta de liberdade para realizar suas aspirações profissionais. A geração de escritores neorrealistas espanhóis, também chamada de geração de ―medio siglo‖, manifestou seu compromisso de renovar as letras e a cultura do país em diversas revistas literárias. Primeiramente, nas revistas promovidas pelo Sindicato Espanhol Universitário como La Hora, Alcalá, ou em publicações independentes como Índice, Correo Literario. Mas foi com a Revista Española, nos seus seis números bimestrais, publicados a partir de maio de 1953, que o movimento ganhou coesão. José Carlos Mainer comenta a importância da revista no estudo introdutório ao romance Ritmo lento: Y no es nada casual que en el primer número Ignacio Aldecoa reseñara con entusiasmo el estreno de Escuadra hacia la muerte, de Alfonso Sastre y que apareciera el bellísimo relato de Jesús Fernández Santo, ―Cabeza rapada‖; no es un tacto de codos entre buenos amigos sino el reconocimiento de dos signos de alerta a propósito de la primera tragedia existencial del teatro español de posguerra y de un primer cuento de clara vocación neorrealista (Martín Gaite se estrenó en la segunda entrega con la narración Un día de 9 libertad). Neste comentário que se refere aos dois primeiros números da Revista Española, estão quatro dos principais nomes do neorrealismo espanhol. Mais adiante, José Carlos 7 El balneario foi, conforme a própria Carmen Martín Gaite revelou, a primeira tentativa de passar do conto ao romance. Escrito em 1953, ganhou o prêmio Café Gijón de 1954. Utilizamos aqui o texto incluído na coletânea Todos los cuentos, pp. 15 a 81. 8 Neste conto, também recolhido em Todos los cuentos, uma jovem empregada doméstica é acusada injustamente de roubo sendo desumanamente humilhada. 9 Mainer, José Carlos. “Meterse a novelista”. In: Ritmo lento. p.XVII 22 Mainer descreve como o cinema neorrealista italiano formou a base do movimento literário na Espanha. Pero en su corto año de vida Revista Española ofreció más cosas. En sus páginas, los filmes del neorrealismo se transformaron en una suerte de sacramento general para quienes ya habían asistido con unción a las semanas de cine italiano celebradas en Madrid en junio de 1950 y en marzo de 1953. Aquellas imágenes límpidas y directas, donde la trama estaba subordinada a la eficacia de las escenas sueltas, hechas con la cámara en la calle y con actores no profesionales, les mostraron el camino de una posible estrategia artística para una posguerra y, sobretodo, la recuperación de la objetividad 10 (casi tienta escribir ―de la inocencia‖) del observador. Anna Mateu, na monografia Carmen Martín Gaite y el periodismo. La visión de los medios de comunicación en los artículos de prensa (1949-2000), organiza e analisa diacronicamente os artigos de Carmen Martín Gaite publicados na imprensa, desde os anos 40, até a década de 90. A pesquisadora lembra a importância das revistas literárias como meios aglutinadores daquela geração de escritores cujo traço comum era mais político do que, necessariamente, literário. Este grupo de amigos será la llamada ―generación del cincuenta‖ o ―del medio siglo‖. También se la ha llamado ―generación perdida‖, ―generación puente‖, ―generación silenciosa‖, ―generación olvidada‖ o ―generación oscura‖. Josefina Rodríguez, miembro del grupo y esposa de Ignacio Aldecoa, preferirá nombrarlos ―los niños de la guerra‖, y Ana María Matute, ―la generación de los niños asombrados‖. Martín Gaite escribirá, cuarenta años más tarde, un artículo – con una inusual actitud de distanciamiento, a pesar de incluirse como primera persona – analizando lo que unió a los escritores de su generación. (MATEU, 2009, 21) E mais adiante: Estos jóvenes escritores, nascidos entre 1925 e 1930 se agruparon en sus años universitarios en Madrid en torno a la Revista Española, auspiciada por 10 Idem. p.XVIII. 23 Rodríguez Moñino – de la que hablaremos más abajo –, y en Barcelona en torno a la revista Laye, alentada por José María Castellet y Manuel Sacristán. Desde Catalunya, Carme Riera también dejará de lado las discusiones teóricas sobre si se puede considerar una generación o sencillamente un grupo de amigos dedicado a autopromocionarse a la ―Escuela de Barcelona‖, de la que forman parte Carlos Barral, Jaime Gil de Biedma y José Agustín Goytisolo (Mateo Gambarte, 1996: 211). Aunque entre los estudiosos hay una gran dispersión en el concepto y la forma de nombrar esta generación, parece que Martín Gaite acepta esta etiqueta. Lo que comparten todos estos escritores, para Mateo Gambarte, es ―una actitud cívica de antifranquismo‖. Esta actitud – más como personas que como escritores – sumada ―a lo de una escuela común (la educación bajo la dictadura uniformada y uniformante) son los elementos que en una primera época pueden dar un cierto aire de familia a la foto, efecto muy parecido a ese parecido que sufren las amigas adolescentes…‖ (Mateo Gambarte, 1996: 207-208). (MATEU, 2009, p. 22) A década de 50 marcou, portanto, a primeira fase literária de Carmen Martín Gaite, cujos relatos apresentaram muitos aspectos neorrealistas. A própria autora analisará, anos mais tarde, essa vertente da literatura espanhola de pós-guerra, assinalando que suas histórias se caracterizam por não ter um final feliz nem uma moral da história. Para Carmen Martín Gaite, eram relatos que mostravam algumas visões da realidade circundante e onde o autor não dava nenhuma solução aos problemas apresentados, limitava-se a ser apenas uma mera testemunha de uma realidade pósguerra civil. Nesse período veio à luz o romance Entre visillos (1958) e, um pouco depois, Ritmo lento (1963). Em ambos, os personagens e conflitos apresentados são determinados pelo franquismo. Nesse período também publicou diversos contos nas revistas literárias há pouco mencionadas. Entre 1963 e 1974, Carmen Martín Gaite não publicou nenhum romance. O silêncio narrativo foi rompido em 1974, com Retahílas. Em 1975, com a morte de Franco, iniciou-se o período de transição democrática na Espanha. Dom Juan Carlos I de Borbón foi proclamado Rei da Espanha e teve um papel fundamental no 24 processo de recuperação das liberdades democráticas na Espanha. Este processo se desenvolveu de forma pacífica com a colaboração da maioria do povo espanhol, da monarquia e de políticos reformistas. Em dezembro de 1976, um referendo aprovou a Lei da Reforma Política que legalizou os partidos políticos e, em 1977, realizaram-se as primeiras eleições por sufrágio universal desde 1936. Em 1978, com o consenso de todos os partidos políticos, a nova Constituição foi aprovada por votação popular em novo referendo. Foi neste clima de abertura política que Carmen Martín Gaite publicou mais dois romances: Fragmentos de interior (1976) e El cuarto de atrás (1978). Nos três romances da década de setenta, observa-se um posicionamento analítico do passado histórico recente, a defesa da comunicação entre as pessoas e o desejo de renovar os procedimentos narrativos. A abertura democrática permitiu que o franquismo e a própria figura do ―generalísimo‖ se tornassem matéria narrativa e fossem tratados de maneira crítica. Após a publicação de El cuarto de atrás, deu-se mais um intervalo de doze anos sem a publicação de romances. Somente em 1990, a escritora publica novo romance que inicia seu período mais produtivo no tocante à sua obra narrativa. Na década de 90, nos brinda com Caperucita en Manhatan (1990), Nubosidad variable (1992), Lo raro es vivir (1996), La reina de las nieves (1998), Irse de casa (1998). Seu último romance, Los parentescos, foi publicado inacabado post mortem, no ano de 2001. Ao lado de sua obra narrativa, a autora escreveu uma obra ensaística composta de estudos literários e históricos. Devemos destacar, entre outros, as seguintes obras: El proceso de Macanaz. Historia de un empapelamiento (1970), Usos amorosos del dieciocho en España, (1972), La búsqueda de interlocutor y otras búsquedas (1973), El cuento de nunca acabar (1983), Usos amorosos de la postguerra 25 española (1987), Desde la ventana (1987), Agua pasada (1993), Esperando el porvenir: Homenaje a Ignacio Aldecoa (1994). Merece destaque especial o livro Tirando del hilo, (2006). Trata-se de uma recopilação de artigos da escritora publicados em periódicos entre os anos de 1949 e 2000. Por abranger praticamente toda a carreira da escritora, esta coletânea é uma referência no estudo da evolução do pensamento críticoliterário de Carmen Martín Gaite. Em nossa pesquisa, verificamos uma estreita relação entre a obra narrativa de Carmen Martín Gaite e seus ensaios, em que a escritora elabora de forma crítica alguns temas abordados artisticamente em suas narrativas. Nas próximas páginas, verificaremos que temas são estes e o como seu posicionamento teórico se articula de maneira coerente com sua prática narrativa e ensaística. A carreira de Carmen Martín Gaite foi coroada com mais de dez prêmios literários, dos quais destacamos: Prêmio ―Café Gijón‖, em 1954, pelo romance El balneario; Prêmio ―Nadal‖, em 1957, pelo romance Entre visillos; Prêmio ―Nacional de Literatura‖, em 1978, pelo romance El cuarto de atrás; Prêmio ―Nacional de literatura infantil y juvenil‖, em 1984; Prêmio ―Anagrama‖ e ―Libro de Oro de los libreros españoles‖, em 1987, pelo ensaio histórico Usos amorosos de la postguerra española; Prêmios ―Príncipe de Asturias de las Letras Españolas‖ e ―Acebo de Honor‖, em 1988, e ―Castilla y León de las Letras‖, em 1992, em reconhecimento ao conjunto de sua obra; Prêmio "Nacional de las Letras", em 1994, em reconhecimento a sua trajetória literária e pelo romance ―La reina de las nieves‖; Prêmio ―Miguel Delibes‖, em 1994 e ―Medalla de oro de la Villa de Madrid‖, no ano 2000. A carreira de Carmen Martín Gaite somente encerrou-se com sua morte, em 23 de julho de 2000, vítima de câncer. Seu falecimento causou grande comoção no mundo 26 das letras e da cultura. Renomados escritores destacaram, na ocasião, a importância e a qualidade de sua obra. O escritor português José Saramago escreveu para o jornal ABC na ocasião: Del mundo literario de Carmen Martín Gaite me interesó mucho esa sensibilidad que ella tenía para los entresijos del espíritu femenino. Esa capacidad increíble de fabulación que ella poseía y que se acentuó en el dominio de lo fantástico de los últimos tiempos. La muerte de Carmen Martín Gaite es una pérdida irreparable para la literatura, para sus amigos y para sus innumerables y muchísimos lectores que en esa hora nos sentimos 11 muy afectados. Da mesma forma, o escritor uruguaio Mario Benedetti declarou para Europa Express que Carmen Martín Gaite era muito apreciada por escritores e críticos. O secretário de Estado de Cultura da Espanha na ocasião, Luis Alberto Cuenca, também deixou seu registro sobre a escritora: Foi-se ―una maravillosa narradora, una estupenda dramaturga y una ensayísta formidable‖. Pretendemos com nossa pesquisa colaborar com o estudo da obra desta versátil e querida escritora que foi membro de uma geração que colaborou para a renovação da literatura espanhola no decorrer da segunda metade do século XX. 11 Do artigo “Sensibilidad femenina”, publicado no jornal ABC, em 24 de julho de 2000. 27 1.2– Para uma poética literária na ficção. As considerações sobre a obra de Carmen Martín Gaite que nortearão nossas reflexões ao longo desta tese resultam da identificação de temas que permeiam muitos textos da escritora. Tanto sua obra narrativa quanto a crítica literária, apresentam seu pensamento sobre o fazer literário. Personagens que escrevem impulsionados por alguma necessidade estão presentes em seus romances, como em Nubosidad variable, onde duas amigas que se reencontram após um longo período e passam a trocar correspondências contando a suas histórias de vida, inquietações e angústias. Já em El cuarto de atrás, a narradora/protagonista é uma escritora que, em determinado momento da narrativa, compartilha com um misterioso interlocutor (e também com o leitor) que foi após a leitura de ―Introdução à literatura fantástica‖, de Todorov, que decidiu escrever um romance fantástico (que é o próprio livro que o leitor está lendo). Nota-se, portanto, a identificação dessas personagens com a própria autora. Aliar o prazer e a necessidade de escrever ao estudo e à reflexão sobre o processo criativo é uma das propostas do projeto literário de Carmen Martín Gaite. Entendemos que esta combinação de criação com reflexão e explicação do próprio processo de invenção literária, em especial do processo narrativo, é um fator determinante na criação da escritora e sua preocupação com esta questão ficou registrada nos artigos que publicou em jornais e revistas literárias, sendo recopilados em Agua pasada (1993), La búsqueda de interlocutor e Tirando del hilo (2006). Este último, prologado por José Teruel, organiza cronológicamente 194 artigos publicados entre os anos de 1949 e 2000. No prólogo, José Teruel ressalta a colaboração semanal de Carmen Martín Gaite no Diario 16 entre os anos de 1975 e 1979, no mesmo período em que El cuarto de atrás, El cuento de nunca acabar e La reina de las nieves estavam 28 em pleno processo de elaboração. Devemos recordar que 1975 foi o ano em que Franco morreu. O fim da ditatura marcou o início de um processo de mudanças políticas, sociais e culturais, em que escritores que viveram mais da metade de suas vidas sob o regime implantado em 1939 – los niños de la guerra –, viram ampliadas suas possibilidades de expressão literária. Além disso, desde os primeiros anos da década anterior, os pressupostos teóricos do realismo literário já vinham sendo desestabilizados por acontecimentos e estudos que propunham uma nova estética literária mais condizente com os novos tempos. Joan Oleza, no artigo ―La poética antirrealista de los años 70 en la literatura española‖ (1995), faz um breve histórico da mudança da sensibilidade estética na Espanha dos anos anos 70. Acaeció en los primeros 60 un vertiginoso asalto al poder de la norma realista, hegemónica desde los años 30. Los hitos de este vértigo los evoca Santos Sanz Villanueva: la eclosión del boom latinoamericano con la colaboración del Premio Biblioteca Breve de 1962 para La ciudad y los perros ; el cambio de actitud de los dirigentes literarios de la generación del medio siglo, en especial de su editor más representativo, Carlos Barral, de su más celebrado crítico, Josep Mª Castellet, o de su novelista más avizor, Juan Goytisolo; la irrupción de una nueva generación poética con algarada de manifiesto, que culminó en la ruidosa antología novísima de 1970, prologada por el citado crítico y editada por el no menos citado editor. En el prólogo de ésta su autor explicaba que alrededor de 1962 "los postulados teóricos del 'realismo' empiezan a convertirse en pesadilla para muchos" y que esa "pesadilla estética" desembocó en un doble movimiento de evolución y de ruptura: evolución por parte de la propia generación del medio siglo, ruptura por parte, en cambio, de gente muy joven, representativa de una nueva sensibilidad, y que se había formado más que en contra, de espaldas a sus mayores. La nueva norma dominante habría de resultar de una triple alianza. De un lado el impulso evolutivo de algunos de los más representativos escritores novelistas, sobre todo- de los 50, que encontró en Juan Goytisolo su modulación más radical, en conexión con la vanguardia parisina de los 60. Del otro la práctica creativa -poética, sobre todo- de los novísimos, audaz, agresiva, brillante, y mucho más plural de lo que acertó a ver su antólogo, pero que entonces concitó si no entre los lectores sí entre los críticos adhesiones de conjunto. Finalmente la referencia estatuaria, de oráculo, de Juan Benet, el más puro heredero del simbolismo internacional. 29 Nos artigos de Carmen Martín Gaite referidos anteriormente podemos analisar como são tratados os temas literários. Em 1975, por exemplo, a escritora publicou o artigo ―El futuro de la novela. Henry James, especialista de lo inefable‖12, a propósito da publicação da Editora Taurus de uma seleção de ensaios do escritor americano. Nesse artigo, a escritora analisa o ensaio de que dá nome ao livro. Convocando leitores, críticos e escritores, ela inicia esse ensaio crítico que trata justamente de um de seus temas prediletos: a narração. Con este sugerente título, tomado de uno de los ensayos que integran el volumen, acaba de aparecer en la editorial Taurus una selección de escritos de Henry James, acerca de los problemas de la narración, obra que no vacilo en calificar de fundamental para cuantos lectores, críticos y escritores se hayan preguntado alguna vez por las cuestiones que plantea el quehacer novelístico y que atañen a su propia esencia. El libro consta de una selección de prólogos a sus propias obras – que constituye, a mi entender, la parte más original y estimulante – y de varias reseñas y ensayos críticos sobre la labor de otros escritores contemporáneos suyos (Balzac, Zola, Faubert, Tolstoi, Conrad), cuya lectura le ha dado pie para extenderse en consideraciones sobre el mismo tema de la narración, sus implicaciones y su alcance. (MARTÍN GAITE, 2007, p. 62) Obviamente, esta pesquisa estabelece um corte na criação de Carmen Martín Gaite e trabalharemos de maneira mais aprofundada com alguns ensaios e com o romance El cuarto de atrás, onde a narrativa se debruça sobre a história, a memória e a literatura. Nesta obra, aspectos como a ―autocrítica de la escritura, memoria, fantasía y diálogo‖ são considerados prototípicos por Mélanie Valle Collado (2008), pois, juntamente com a metaficção, expressam uma tendência formal da literatura do novo romance espanhol. Em El cuarto de atrás, a protagonista/narradora recorda fatos da história recente da Espanha e que, por ser recente, constitui parte de sua própria história, 12 Texto publicado originalmente em Informaciones de las Artes y las Letras, suplemento n. 354, 24 de abril de 1975. Recopilado em Tirando del hilo. 30 posto que a obra retrata um período que a escritora viveu – o período pós-guerra civil espanhola. No capítulo seguinte, veremos com detalhes os ensaios em que Carmen Martín Gaite estabelece o elo com a sua criação literária e no capítulo final verificaremos como o romance supracitado transita entre alguns gêneros literários e constrói, através da combinação deles, uma narrativa autoficcional. Ao ler a obra de Carmen Martín Gaite, o leitor se verá convidado a participar de suas reflexões sobre o fazer literário e, em especial, com a questão da narração. Segundo Carmen Martín Gaite, o ato de narrar expressa uma necessidade intrínseca ao ser humano de recuperar as vivências, o passado, a história. Ao mesmo tempo, esta necessidade vai ao encontro de outra necessidade, a de se ter um interlocutor que esteja disponível para ―ouvir‖ suas narrações e, a partir de uma atitude receptiva, participar de um diálogo com o escritor. Mas quando se fala em necessidades de um escritor, nos remetemos um questionamento sobre a razão pela qual se escreve. Pensemos um pouco: por quê e para quê se escreve? De onde vem a necessidade de escrever? Que prazer há implícito no ato de transpor para o papel os acontecimentos, as lembranças, as idéias, os pensamentos, as invenções, os sentimentos, etc.? A história da literatura comprova que muitos escritores, em algum momento, pensam sobre essa necessidade, e escrevem sobre a questão, já que se trata de uma necessidade que lhe é tão imperativa. Possivelmente, foi num desses momentos que Roland Barthes escreveu, em 1969, o artigo ―Dez razões para escrever‖13 onde, embora faça uma pequena introdução dizendo que não pode dizer por quê nem para quê se escreve, acaba enumerando dez razões pelas quais imagina escrever, das quais destacamos algumas. 13 Publicado no Corrieri della sera, em 29 de maio de 1969. Título original: “Dieci ragioni per scrivere”; inédito em francês. Artigo recopilado na série Inéditos conforme referencia. 31 Como estão numeradas de um a dez, transcrevo algumas acompanhadas de sua respectiva numeração: 1. por necessidade de prazer que, como se sabe, não deixa de ter alguma relação com o encantamento erótico; (...) 3. para pôr em prática um ―dom‖, satisfazer uma atividade instintiva, marcar uma diferença; 4. para ser reconhecido, gratificado, amado, contestado;(...) 7. para satisfazer amigos, irritar inimigos. (BARTHES, 2004, pp.101-102) Das dez razões para escrever, selecionamos estas quatro por serem as que mais podem estar relacionadas às concepções de Carmen Martín Gaite sobre a narração. Barthes se refere a escrever e em nosso estudo relacionamos diretamente este ato ao de narrar. Se observarmos detalhadamente cada uma dessas quatro razões para escrever, veremos que todas estão relacionadas ao prazer e das quatro, as três últimas a algum tipo de interação com o outro. Se na primeira, o ato de escrever pode ser visto como um prazer solitário, nas seguintes este ato se realiza em duas direções: uma de afirmação de uma subjetividade e outra que vai ao encontro do leitor. O prazer da escrita reside, em certa parte, na busca por um leitor, que, na poética de Carmen Matín Gaite, será o seu interlocutor. Podendo até mesmo ser um ―interlocutor sonhado‖, como acontece em El cuarto de atrás. No romance, o homem com quem conversa é um leitor e crítico de sua obra. Das dez razões citadas pelo crítico francês, destacamos estas quatro, porque também refletem o pensamento de Carmen Martín Gaite sobre a questão da escrita, como veremos adiante, sendo que para ela tudo passará antes pela necessidade da narração, principalmente a narração oral. Também Jorge Luis Borges associa a escrita 32 ao prazer e à necessidade. Para o escritor argentino, ler e escrever são formas acessíveis da felicidade e o escritor deve sentir alegria em escrever14. A leitura da obra de Carmen Martín Gaite nos coloca diante dessas duas necessidades: a de narrar e a de escrever. Benjamin, em ―O narrador‖, afirma que a questão da narração está diretamente relacionada à experiência. Um dos princípios básicos da narração é a faculdade de intercambiar experiências, logo, concluímos que o escritor que elege a narrativa como forma de expressão literária é impulsionado pelo desejo de compartilhar com os outros suas experiências. E nisto consiste o seu prazer. A busca pelo prazer é um dos aspectos inerentes ao ser humano, sendo assim, o prazer estético da escrita é uma necessidade do escritor. Em Carmen Martín Gaite, este prazer se reflete no alívio que a atividade de narrar pode representar para o indivíduo. Em entrevista dada a Joaquín Soler Serrano no programa de televisão A fondo15 de TVE, em 6 de abril de 1991, Carmen Martín Gaite afirma que a causa de todas as neuroses humanas é a falta de diálogo entre as pessoas. Entendendo diálogo como uma conversa em que ambos os interlocutores estão profundamente interessados e envolvidos pelo que o outro diz, em um processo de verdadeira interação. O diálogo resulta da necessidade de um narrador em contar ou falar sobre algo e um ouvinte que apresenta uma atitude receptiva. Daí surge a interação de idéias. 14 Informações retiradas de O dicionário de Borges, de Carlos Storni. “A fondo” foi um famoso programa de entrevistas dirigido e apresentado pelo jornalista Joaquín Soler Serrano e transmitido pela televisão pública espanhola (TVE) entre 1976 e 1981. Os entrevistados eram sempre personalidades do âmbito artístico, literário e científico da época. Entre os entrevistados por Soler podemos citar Juan Rulfo, Salvador Dalí, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Rafael Alberti. A entrevista a Carmen Martín Gaite encontra-se na internet no arquivo de vídeo disponível em: http://video.google.com.br/videoplay?docid=8932946931150749996&ei=3CdSS9TWGpmqQLe5JjyAg&q=Carmen+Mart%C3%ADn+Gaite&hl=pt-BR# 15 33 A vocação narrativa de Carmen Martín Gaite resulta de sua necessidade de dialogar tanto com seus leitores quanto com a própria literatura. O diálogo com a literatura se insere na obra narrativa da escritora através das relações intertextuais que se apresentam revelando suas leituras e afinidades literárias. Neste ponto, sua obra narrativa se encontra com sua obra ensaística que se concretiza em centenas de ensaios publicados ao longo de uma prolífica carreira literária. Desta maneira, estabelece-se a relação entre duas formas literárias cultivadas por Carmen Martín Gaite: a narrativa e o ensaio. Ambos são terrenos férteis para a discussão de temas como a memória, a história, a filosofia, a sociedade, a literatura, enfim, a vida. Alberto Giordano, dá o seguinte título a uma das seções do artigo ―Del ensayo‖: ―Del ensayo como único modo de dialogar con la literatura‖. Em um primeiro momento este subtítulo nos parece um pouco limitador, tendo em vista que há diversas formas de se estabelecer um diálogo com a literatura, inclusive a partir da própria literatura, como ocorre em tantos escritores que, em suas obras, buscam construir uma rede de relações intertextuais, onde as referências a outras obras constituem a matéria prima para suas próprias obras. Para compreender o posicionamento de Alberto Giordano com relação ao ensaio, consideramos necessário ampliar seu significado. Entendemos que aqui não se trata somente do ensaio como gênero literário. Vemos que o autor discorre sobre a atitude ensaística que consiste exatamente numa busca de dialogo com a literatura que leva ao questionamento e à reflexão. O autor explica que ―diálogo‖ aqui deve ser compreendido num sentido próximo ao da ―conversação‖ heideggeriana, ou seja, ao de uma interpelação que não vem de fora, mas sim do interior do campo interpelado. Desta forma: La búsqueda del ensayo, en la que el diálogo se instituye, ―acompaña‖ al movimiento de la literatura, lo duplica, y encuentra en esa estrategia 34 mimética la ocasión de dar testimonio de lo que está en juego – parafraseo a Blanchot – por el hecho de que una palabra como la literaria se anuncie. ¿Qué se ensaya en un ensayo? ¿Cuál es la forma que adopta esa interpelación que es, ella misma, literatura? Un sintagma hoy ya cristalizado, ―ensayo de lectura‖, anticipa la respuesta. El ensayo como diálogo es un ensayo de lectura. (GIORDANO, 1991, p.110) O artigo de Alberto Giordano assinala alguns aspectos relevantes sobre a natureza do ensaio literário, principalmente quando afirma que ―o ensaio como diálogo é um ensaio de leitura‖. Embora a afirmação seja totalmente pertinente em nossa pesquisa, fazemos uma ressalva quanto à exclusividade do ensaio para dialogar com a literatura, já que em nosso objeto de estudo – a obra de Carmen Martín Gaite – verificamos que este diálogo acontece dentro da própria narrativa. Mas se ampliarmos nossa concepção de ensaio para atitude ensaística, vemos que a linha de pensamento que o crítico segue apresenta questões teóricas que, além de servirem de mais um meio para a compreensão de ensaio enquanto gênero literário, explicam a inserção do discurso ensaístico em textos narrativos de Carmen Martín Gaite. Quando o autor pergunta o que ―se ensaia em um ensaio‖, lança uma proposta de investigação sobre o que pode tornar-se tema de um ensaio. Como ele mesmo limita seu estudo ao ensaio literário (o que também é um dos nossos propósitos), conclui-se que o ensaio literário tratará de aspectos relacionados à literatura. Mais que isto, o ensaio literário encerra uma forma de aproximação ao saber que possui uma literariedade, independentemente do tema que possa vir a ser tratado. E quando indaga ―qual a forma que esta interpelação‖ pode tomar, veremos que o ensaio não tem uma forma definida. Justamente por não ter esta forma definida, ele pode apresentar uma forma narrativa, como acontece em Carmen Martín Gaite, que se utiliza seus textos narrativos para ―ensaiar‖ tantos temas literários e 35 filosóficos, sociológicos, etc., fruto de suas leituras. Será o que Alberto Giordano chamará de ―ensaio de leitura‖. Nos ensaios de Carmen Martín Gaite, a narração foi um recurso frequente e sempre muito bem empregado. A autora exercitou de forma magistral esta mescla de gêneros, realizando seus ―ensaios de leitura‖, convidando o leitor a participar e conhecer suas opiniões e considerações teóricas sobre a literatura. Um bom exemplo da utilização da narração em um texto ensaístico de Carmen Martín Gaite é o artigo ―Los malos espejos‖, de 1972. Num híbrido de crítica literária, relato memorialístico e de reflexão sobre a vida e as relações interpessoais, a autora se baseia em lembranças de infância para analisar recursos literários comuns nas chamadas ―novelas rosa‖16. Cuando yo era niña, recuerdo haberme sentido muy fascinada por un recurso literario común a varias de las historias de amor primeras que leí, bien procedentes del campo de la novela rosa (aquella colección en rústica desde cuya portada solía mirarnos, por una cincuenta, cierta extraña mujer de boquita pequeña, ojos perdidos en la lejanía y sombrero calado hasta las cejas), bien de unos folletines decimonónicos con olor a humedad que habían alimentado también sueños juveniles de mi madre y se guardaban en los armarios de una casa donde veraneábamos, en Galicia. (MARTÍN GAITE, 2000, p.15) O recurso literário ao qual a autora se refere diz respeito à criação de uma ambientação especial para o primeiro encontro do par romântico desses romances. Um pouco mais adiante, chamando a atenção para o caráter descritivo das cenas em que ocorreria a primeira troca de olhares entre o mocinho e a mocinha daquelas histórias de 16 Herdeiros dos folhetins decimonônicos, os romances rosa diferenciavam-se destes basicamente por serem publicados em volume único. O argumento girava em torno de um casal romântico que poderia ser composto de uma mulher liberal que entrava em conflito com um homem ou uma moça pobre que, desprezada por seu entorno social, se apaixona por um rapaz rico e atraente. Em ambos os casos, o final sempre era feliz, ou seja, terminava em casamento. Dedicados ao público feminino, o romance rosa alimentou o imaginário das mulheres nos anos quarenta e cinquenta – período mais difícil do pós-guerra civil espanhola. 36 amor, Carmen Martín Gaite descreve como esses momentos usualmente eram retratados nos romances rosa: A solas, casi siempre de noche o al atardecer y mediante irrupción inesperada o violenta, cuya justificación no siempre era satisfactoria, el autor colocaba frente a frente por vez primera a aquellos jóvenes desconocidos en el seno de un decorado natural cuyas tintas de grandiosidad solían cargarse recurriendo a una gama de imágenes tópicas que tocaban a veces lo grotesco. Y, sin embargo, yo pienso que aquel ritual tenía cierto sentido: el de enmarcar el encuentro, acentuándolo como acontecimiento en sí y, por supuesto, el primordial de toda la novela. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 16) Seguindo a leitura do artigo, observaremos que a escritora utiliza-se da recordação de suas leituras para, além de fazer comentários de cunho exclusivamente literário, questionar o comportamento humano transportando aspectos dos personagens dos romances para a realidade. A escritora, motivada pelas lembranças do impacto de suas leituras dos romances rosa, passará em um segundo momento do artigo, a fazer uma crítica à falta de autenticidade das pessoas na sociedade em que vive. Yo siempre cerraba aquellos libros, a los que tan ávidamente me había asomado, con la certeza de que, a despecho de las caricias de aquellos jóvenes, algo les había impedido de ser ellos mismos, relacionarse de un modo autónomo y original, y pensaba que si yo no había logrado conocerlos – es decir, diferenciar en algo a aquella María Victoria y a aquel Raúl de la Esmeralda y el Jorge de otra novela – era porque ni uno ni otro habían sabido darse nada de lo que prometían y pedían sus miradas primeras, o, dicho con otras palabras, porque tampoco ellos se habían conocido en absoluto por mucho velo blanco o flor de azahar que cerraba el relato. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 17) Este fragmento começa a inserir outro tema no ensaio. A lembrança de que sentia que algo impedia os personagens desses romances de serem eles mesmos leva a escritora a pensar que, também na vida real, as pessoas são levadas a estabelecer relações em que algo lhes impede de serem verdadeiras. Sendo assim, vemos, no 37 fragmento a seguir, a transposição do tema fundamentado em personagens literários para a vida real: Y, al revivir ahora el repetido rastro de decepción que me dejaron aquellas novelas, tan lejano que se trata posiblemente de mis primeras decepciones, me parece percibir en su sabor, entonces inexplicable, una analogía con la amargura derivada después en tantas ocasiones del trato con personas a quienes defraudé o me defraudaron con referencia a las esperanzas concebidas para aquella amistad cuando se inició, o sea, en el momento del encuentro. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 17) E num movimento de ir e vir da literatura para a vida e da vida para a literatura, o ensaio prossegue: Así que, a este respecto, se trataba de una retórica significativa (y a eso atribuyo su huella en mi recuerdo), la que se desplegaba en las novelas a que me vengo refiriendo para escenificar el encuentro de los protagonistas. La eficacia de aquellos relámpagos, bosques, huracanes, cumbres, playas solitarias, parques, barrancos o pueblecitos perdidos que servían de decorado no estaba tanto en el acierto de su evocación como en su misión simbólica de subrayar y enfatizar las posibilidades del encuentro como tal; las mismas – desaprovechadas o no – que siguen y seguirán latiendo en la raíz de todo nuevo conocimiento, de por sí excepcional e irrepetible. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 17) Na verdade, a escritora utiliza a literatura para falar da vida. E num tom confessional, revela, através de uma analogia com as impressões que os romances rosa lhe causaram, que muitas vezes se decepcionou em suas relações de amizade, tendo em vista que nem sempre as expectativas do ―primeiro encontro‖ se concretizaram com o decorrer do tempo. O artigo introduzirá nas páginas seguintes a questão da necessidade do ser humano de relacionar-se deforma autêntica com o outro, o que nem sempre é possível, dadas as imposições comportamentais que lhe são atribuídas por papéis que fatalmente todos exercem na sociedade. No entanto, essa busca de autenticidade existe de forma latente (mesmo que em maior ou menor grau) em todo ser humano. A isto Carmen Martín Gaite denomina necessidade de espelho, ou seja, a necessidade de ser 38 refletido no olhar do outro da forma exatamente como se é. Isto somente é possível quando se está despojado do ―eu criado‖ – aquele que cada um cria para si mesmo e que não corresponde ao que cada um é na verdade. O artigo termina enfatizando o anseio da escritora por relações que sejam mais verdadeiras e profundas. Y solamente aquellos ojos que se aventuran a mirarnos partiendo de cero, sin leernos por el resumen de nuestro anecdotario personal, nos podrían inventar y recompensar a cada instante, nos librarían de la cadena de la representación habitual, nos otorgarían esa posibilidad de ser por la que suspiramos. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 17) Carmen Martín Gaite elabora, ao mesmo tempo em que exercita, uma poética literáriaem que propõe uma literatura sem limites, em que a fusão de gêneros é a base estruturante seja de seus relatos ou de seus ensaios. Do mesmo modo que seus ensaios são repletos de trechos narrativos, suas narrativas são repletas de procedimentos ensaísticos. Em Lo raro es vivir (1996), um dos últimos romances da escritora, a protagonista/narradora apresenta, em uma espécie de monólogo interior, em meio a narração de um encontro com um amigo em um bar, idéias de filósofos existencialistas. Frente a las corrientes de estirpe platónica que culminan en Hegel, se inicia una atención hacia el propio existir como núcleo de la especulación filosófica. Yo le escuchaba a medias, tamborileando con los dedos sobre la mesa, y cuando nuestros ojos se encontraban se acentuaba la lejanía. El primero en plantearse la extrañeza ante el vivir fue Kierkegaard, se anticipó a Sartre y Heidegger, pero es que ahora la gente ve todo eso como una antigualla, ¿te das cuenta? (MARTÍN GAITE, 2002, p. 75) O que temos aqui é exatamente o que Giordano chamou de ensaio de leitura em que a autora estabelece um diálogo com a filosofia existencialista, já que os questionamentos existencialistas permeiam todo o romance. E como é usual no ensaio, 39 neste fragmento da narração, a autora convida o leitor a refletir sobre as afirmações que faz. A pergunta ―¿te das cuenta?‖ é o convite ao leitor para participar do diálogo. Pode-se dizer que a narrativa é intercalada de fragmentos de ensaio filosófico, no mesmo movimento de ir e vir que observamos no artigo citado anteriormente, comprovando que a proposta da autora de fundir os gêneros literários concretiza-se em vários tipos de textos que escreveu. Sua criação constrói-se sobre os pilares da leitura, da escritura de crítica literária (e filosófica), e da memória que confere a sua obra uma perspectiva autobiográfica. Ou seja, tanto a obra narrativa quanto a obra ensaística de Carmen Martín Gaite são testemunhos de suas experiências. El cuarto de atrás plasma as concepções literárias da escritora num exercício experimentalista que busca a integração da rememoração histórica com a construção de uma teoria que, simultaneamente, se realiza na prática da escrita de uma narrativa autoficcional. Em grande parte dos textos de Carmen Martín Gaite, encontraremos os fragmentos de memória de uma ávida leitora que os utiliza como matéria prima de seus romances e artigos de crítica literária. Percebe-se um ir e vir em que se transita com naturalidade entre um gênero e outro. Para Carmen Martín Gaite, o narrar e o ensaiar são as formas utilizadas ao longo de sua carreira para refletir sobre uma teoria literária que tem como tônica principal a ruptura das fronteiras literárias existentes entre a autobiografia e a ficção. Como veremos, ao final desta pesquisa, esta teoria alcançará, no âmbito da obra da escritora, seu máximo expoente no livro El cuarto de atrás, onde são plasmados os conceitos, as idéias, e os temas sobre os quais já havia escrito em sua obra anterior e viria a escrever em sua obra posterior. 40 1.3 – Narrativa e interlocução: uma questão vital. A partir da leitura dos textos narrativos e ensaísticos de Carmen Martín Gaite, é possível perceber que sua obra gira em torno da questão da busca de interlocução, a qual a escritora propõe como parte essencial do processo narrativo. Para trazer ao debate a questão da narração e da interlocução como uma questão vital, é preciso relembrar algumas idéias de Benjamin em ―O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov‖. Aliás, este é um pensador com quem Carmen Martín Gaite dialoga constantemente ao desenvolver questionamentos acerca da interlocução como requisito vital para a narrativa. Em 1936, Benjamin dizia que a arte de narrar estava em vias de extinção. O texto de Benjamin apresentava as inquietudes pertinentes àquele momento de expansão industrial e de desenvolvimento da técnica e mostrava que o declínio da narrativa era fruto de um fenômeno da época: a redução da faculdade de intercambiar experiências. Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior, mas também do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca em boca. (BENJAMIN, 1994, p.198) Neste fragmento, percebe-se a importância que Benjamin atribui à tradição da narração oral e mais adiante o autor enfatiza que toda narração nasce da experiência que passa ―de pessoa a pessoa‖. Vemos aqui que há em suas reflexões a consideração da 41 existência de dois elementos fundamentais na narração: a experiência e a necessidade de haver um interlocutor. Não há narração sem um ouvinte. Tradicionalmente, a figura do narrador para Benjamin se revela em dois grupos. Seus representantes arcaicos seriam o camponês sedentário e o marinheiro comerciante. O primeiro representa o narrador que permanece na terra e é o elemento que conhece profundamente sua cultura e transmite as histórias e tradições de sua comunidade. Já o segundo, o marinheiro comerciante, traz consigo, as histórias que conheceu em suas viagens. Para Benjamin, os dois são protótipos representantes das duas grandes famílias de narradores e sempre interagiram entre si, enriquecendo o que denomina de reino narrativo. A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode ser compreendida se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes de fixar em sua própria pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os marujos foram primeiros mestres na arte de narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras distantes, trazidos para casa pelos migrantes com saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário. (BENJAMIN, 1994, p. 199) A vida comunitária, as relações interpessoais e a troca de experiências são condições essenciais para o desenvolvimento da narrativa. Nessas relações e trocas de experiências, é possível identificar um caráter utilitário da narrativa que pode ser um meio de ensinamento. Benjamin se refere a alguns narradores que utilizam suas narrativas para dar conselhos aplicáveis à vida prática. Neste procedimento, o filósofo encontra o que denomina de ―natureza da verdadeira narrativa‖. 42 Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1994, p. 200) Mais uma vez, vemos a importância da experiência para o narrador. Dar conselhos é fruto da experiência. O conselho é uma opinião, um ensinamento ou um aviso quanto ao que cabe fazer. É preciso relacionar este ato à sabedoria, ―o conselho tecido na substância viva da existência tem nome: sabedoria‖. Benjamin afirma que ―a arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção‖. Segundo Marcelo de Andrade Pereira17 será esta noção de sabedoria que leva Benjamin a ―reconsiderar na era moderna alguns gêneros literários arcaicos como forma de compreender a experiência – e o saber nela contido – dos antepassados‖. O pesquisador explica: No ensaio O Narrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov, escrito em 1936, Benjamin investigará os fatores socioculturais que teriam ocasionado o enfraquecimento de um gênero literário em particular, a narração, e que viriam, segundo o autor, a acentuar ainda mais o declínio da experiência (Erfahrung) na sociedade moderna. O declínio da experiência decorre, em termos gerais, da perda do sentido de uma espécie de sabedoria ancestral, antiga. Esse é, certamente, um dos fatores que Benjamin aponta como responsável pelo processo de degradação da experiência, em outras palavras, a crescente desvalorização da tradição – leia-se a despersonalização da cultura e o afundamento de valores éticos e morais –, a desubstancialização do tempo e da história – por força dos novos meios de produção capitalista e de comunicação –, como também o surgimento de gêneros narrativos de antemão conservadores, entre eles, o romance burguês e a informação jornalística. Tais condições socioculturais consistem para Benjamin no golpe da vida moderna sobre a tradição, vida em que reina o interesse pelo próximo, pelo mais fácil e pelo imediato. (PEREIRA, 2006, p.64). 17 Saber do Tempo: tradição, experiência e narração em Walter Benjamin. Revista Educação e realidade. V. 32, n.2, Jun-Dez 2006, pp. 61-78. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6845/4116. Acesso em: 16 nov. 2010. 43 Os fatores da modernidade aqui apontados como responsáveis pelo declínio da narração, em especial os novos meios de produção capitalista e de comunicação, tornaram o individuo mais solitário. As atividades de produção artesanal, que eram coletivas e obedeciam a um ritmo de vida mais lento, possibilitavam a troca de experiências e a transmissão da tradição através da narração. O contexto sócio- econômico-cultural a partir do final do século XIX e no século XX, nas sociedades ocidentais e capitalistas, desenvolveu-se com base na mudança do paradigma da produção de bens de consumo, bem como na própria mudança da relação das pessoas com estes bens que passaram a ser a maior busca do homem. Parte inseparável da vida do homem atual a busca pelo consumo tornou-se um símbolo da pós-modernidade. O que antes estava relacionado à sobrevivência, agora, relaciona-se, cada vez mais, com o prazer hedonista tão típico de nossos tempos. Junto a isto, os meios de comunicação, aqui se inserem o romance burguês e a informação jornalística como lemos há pouco, responsabilizaram-se por propagar os modelos da nova sociedade emergente. Porém o mais importante é que essas manifestações culturais, como formas de escrever e de ver o mundo, mudaram, definitivamente, a relação do homem com a narração e o papel desta para a humanidade. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele. Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência. Ela é estranha à narrativa como o romance, mas é mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa nova forma de comunicação é a informação. (BENJAMIN, 1994, p. 202) 44 Entende-se, pois, que a informação, que tem no jornalismo um de seus meios de difusão mais poderosos, passou a influenciar a narração. Antes o conteúdo desta remetia à tradição e à sabedoria dos antepassados, assumindo, portanto, um matiz atemporal. Nesse novo contexto, a narração passa a servir a uma nova forma de conhecimento: a informação. É curioso observar que, sendo o meio (material) através do qual a informação é transmitida ao mesmo tempo um bem de consumo (o jornal, a revista), ela passa também a ser ―consumida‖. A narração, portanto, por força dessa circunstância teve que deixar de ser atemporal para tornar-se totalmente temporal, inclusive, com prazo de validade. A informação que vale é a de hoje. A de ontem já pode ser chamada de ―notícia velha‖. A fugacidade da informação é retratada no texto de Benjamim: Villemassant, o fundador de Figaro, caracterizou a essência da informação com uma fórmula famosa. ―Para meus leitores‖, costumava dizer, ―o incêndio num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em Madri.‖ Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber, que vinha de longe – do longe espacial das terras estranhas, ou do longe temporal contido na tradição – , dispunha de uma autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência, mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela precisa ser compreensível ―em si e para si‖. Muitas vezes não é mais exata que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam frequentemente ao miraculoso, é indispensável com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio. (BENJAMIN, 1994, p. 203) A experiência literária para Carmen Martín Gaite não pode ser entendida como um proceso estanque à experiência humana. A escritora entende como um dos aspectos mais importantes da experiência humana a capacidade narrativa. Esta se dá primeiramente na oralidade e a necessidade de realizá-la é inerente a todo se humano, pois intercambiar experiências é um ato sempre desejado (como já vimos em 45 Benjamin). Em La búsqueda de interlocutor, Carmen Martín Gaite tratará da questão da narração como atividade humana, relacionando-a essencialmente a uma necessidade de preservação da memória das experiências vividas - o desejo de ―salvar de la muerte nuestras visiones más dilectas, nuestras más fugaces e intensas impresiones...‖18 – o que acontece no momento em que se consegue fazer com que o outro tome conhecimento destas experiências. A narração, segundo Carmen Martín Gaite, é dos meios de buscar o interlocutor. No entanto, a capacidade narrativa do ser humano nem sempre encontra uma realização satisfatória na conversa com os outros, já que assim como a narração está extinguindo-se, também os bons interlocutores (aqueles que sabem ouvir e partilhar experiências em uma conversação) são raros. Para Carmen Martín Gaite, esta é uma das grandes motivações do escritor. Se os interlocutores para as narrações orais estão cada vez mais escassos, haverá de existir ainda para a narração escrita, este será o leitor. Ela vai mais além. Se quiser, pode inventar seu interlocutor dentro da própria narrativa, como faz em El cuarto de atrás19. O escritor tem esse poder através da ficção e a escrita passa a ser uma forma de conversa com o seu interlocutor, seja ele real – ainda que desconhecido – o leitor, seja ele inventado, ou sonhado, como o homem misterioso que entrevista a protagonista daquele romance. A noção de que escrever é conversar é uma idéia que faz parte dos posicionamentos literários da escritora. Na entrevista que concedeu a Joaquin Soler Serrano, mencionada anteriormente, é possível confirmar o que a escritora pensa sobre este tema: 18 Artigo publicado na Revista de Occidente em setembro de 1966 e recopilado no livro La búsqueda de interlocutor, pp.25-32. 19 Ver PALLEY, Julián. El interlocutor soñado de El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite. Ínsula – Revista Bibliográfica de Ciencias y Letras. n. 404-405, p 30, 1980. 46 S.Serrano: ―Una vez dijiste, Carmen, que escribir es conversar, lo cual parece una definición hasta científica del acto literario. M. Gaite: ―Bueno, es un sucedáneo de la conversación. Yo creo que si siempre pudiéramos hablar bien con toda la gente tal como queremos y tuviéramos un tiempo, un plazo narrativo, una pausa para hablar y ser escuchados y escuchar, quizá no escribiríamos. Es como un sucedáneo, en vista de que no encuentras ese interlocutor y pues te pones a escribir. S.Serrano: Hay, sin duda, conversaciones que son sin duda mucho más enriquecedoras que un libro. ¿No? M. Gaite: Sí, por supuesto. Este es un tema completamente clave de mis escritos, incluso tengo un libro que se llama La búsqueda de interlocutor, es un librito de ensayos y trata de este tema, exactamente, es decir que en el momento en que hay alguien con quien puedes hablar, para mí que se quite el cine, el teatro, los viajes y hasta incluso placeres más fuertes. S.Serrano: ¿No es esa acaso la obsesión fundamental del ser humano, la de encontrar el interlocutor? M. Gaite: Por cierto que lo es, pero no se dan cuenta. Entonces si no se dan cuenta de que ahí está la clave de todo. Pues es como si no lo supieran, como si no operaran de fondo en el deseo de buscarlo. Si uno supiera que lo que realmente le hace falta, lo que realmente motiva todas las neurosis es lo mal que habla con sus semejantes, buscaría con más ahinco la forma de encontrar 20 una pasarela entre tú y los demás. Entende-se, portanto, a necessidade de interlocução na obra de Carmen Martín Gaite como um desejo de buscar ser entendido pelo outro, e, assim, entender a si mesmo. Daí recorrer insistentemente à memória, onde estão guardadas as leituras e as experiências vividas, na tentativa de reconstruir e questionar o passado, construir a própria identidade e buscar o sentido da própria existência. 20 Transcrição do trecho da entrevista a Joaquin Soler Serrano. Entrevista disponível em arquivo de vídeo em: http://video.google.com.br/videoplay?docid=8932946931150749996&ei=3CdSS9TWGpmqQLe5JjyAg&q=Carmen+Mart%C3%ADn+Gaite&hl=pt-BR# . Siglas: JSS – Joaquín Soler Solano; CMG – Carmen Martín Gaite. 47 Capítulo 2 – As fronteiras fluídas da pós-modernidade: ensaio, autobiografia e autoficção. Este capítulo tem como objetivo fazer uma exploração teórica dos gêneros literários presentes no livro El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite. Parte-se inicialmente de uma aproximação aos conceitos teóricos do pós-modernismo nos estudos literários, com o intuito de situar a obra da escritora espanhola em sua época, dentro da cultura ocidental. Após esta contextualização inicial, seguimos com o estudo do ensaio, da autobiografia e da autoficção. Temos como ponto de partida autores que elaboram teorias que delimitan esses gêneros literários e, em seguida, apresentaremos algumas discussões sobre as formulações teóricas sobre esses gêneros. Assim, para o estudo do ensaio, teremos como ponto de partida o estudo do hispanista José Luis Gómez Martínez e a tese de doutorado da Professora María Elena Arenas Cruz. Para o estudo da autobiografia, iniciamos nossas observações com a compilação das idéias constantes nas clássicas definições de Georges Gusdorf e Phillipe Lejeune. Para a autoficção, nosso principal teórico é Manuel Alberca que possui diversos estudos sobre este gênero híbrido que pode ser considerado um símbolo da narrativa pós-moderna. Os pressupostos teóricos que serão apresentados neste capítulo serão a base para a análise do livro El cuarto de atrás, que, como já adiantamos, é uma narrativa híbrida que reúne e articula de forma magistral o ensaio, a autobiografia e a autoficção. 48 2.1 – O pós-modernismo nos estudos literários: uma aproximação teórica. O estudo da obra de Carmen Martín Gaite nesta pesquisa terá como base teórica conceitos relacionados aos gêneros literários (ou discursivos, como veremos um pouco adiante a partir de uma perspectiva bakhtiniana) presentes em El cuarto de atrás. Também é relevante uma contextualização da referida obra no ambiente cultural propiciado pelo advento do pós-modernismo, levando-se em consideração, principalmente, o conceito de Metaficção Historiográfica, conforme a definição de Linda Hutcheon21. A escolha desta linha de análise crítica deve-se ao fato de que a obra que se pretende investigar é constituída de aspectos discursivos que a inserem no campo da Metaficção Historiográfica, devido a seus componentes históricos e metaliterários, fusão tão caracterizadora das obras literárias pós-modernistas. Por outro lado, a análise se desenvolve no campo da autoficção, que, a nosso ver, pode se inserir na área de abrangência da Metaficção Historiográfica, já que escritora Carmen Martín Gaite se insere em sua própria obra ficcional como um indivíduo crítico da história vivida e como crítica literária. Portanto, a obra se escreve com um alto grau de autorreflexividade, outro aspecto predominante no pós-modernismo. Primeiramente, pensemos na questão dos gêneros do discurso. Analisar as relações entre a literatura e outras construções narrativas, como a história, por exemplo, pressupõe o enquadramento de ambos os campos do fazer humano em diferentes áreas de criação cultural. Ou seja, textos que possuem características formais e temáticas específicas. Caracterizar textos que possuem seus aspectos específicos, ou que obedecem a uma tipologia nos leva a pensar na questão dos gêneros. Podemos pensar 21 Com base em Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. 49 em gêneros literários, já que a pesquisa se desenvolve na área de estudos literários. No entanto, nos interessa a ampliar a extensão das noções que trabalharemos, justamente porque a noção de gênero literário pode estabelecer limites que não nos proporcionam o suporte teórico que nos ofereça uma perspectiva de análise atual. Sendo assim, analisar a questão de uma tipologia textual baseada em gêneros literários, pode fazer-nos incorrer no equívoco de observar as criações textuais como objetos fechados e incomunicáveis que devem estar compostos de estruturas rígidas, com conteúdos determinados e adequados às suas características e funções préestabelecidas. Sem descartarmos totalmente a idéia de gêneros literários, é preciso considerar a noção de gêneros discursivos. Para isto, tomamos como base os pressupostos teóricos de Bakhtin (2002). Em ―Os gêneros do discurso‖22, o teórico ressalta que os gêneros literários, tanto na antiguidade quanto na contemporaneidade, foram estudados pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade, observando-se sempre as diferenças intergenéricas, nos limites da literatura. Bakhtin apresenta a questão dos gêneros vinculada mais especificamente aos tipos de enunciados, tendo em vista a sua natureza linguística. Desta forma, haverá os gêneros de discurso primários, ou da comunicação cotidiana, e os gêneros de discurso secundários, ou da comunicação produzida a partir de códigos elaborados como a escrita. Cada um desses gêneros apresentará variadas formas discursivas com elaborações que atenderão às diversas necessidades de comunicação, contendo enunciados elaborados com possibilidades distintas de estilização. Para Todorov, a classificação das obras literárias segundo os gêneros é uma herança das ciências naturais. No texto de abertura de seu livro ―Introdução à literatura 22 Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 2002. 50 fantástica‖, o autor discorre sobre a noção de gênero e sua função e necessidade na literatura, questionando até mesmo a sua existência na literatura contemporânea. Mesmo que o texto de Todorov seja de 1939, ainda hoje, percebe-se sua atualidade, posto que a discussão sobre parâmetros de classificação para as obras literárias não deixou de existir nem mesmo na pós-modernidade. Tanto que o foco atual da teoria e da crítica literária é, justamente, a quebra dos limites entre os gêneros. Todorov apóia-se em Genette para afirmar a importância dos gêneros nos estudos literários: ―O discurso literário se produz e se desenvolve segundo estruturas, ainda hoje, no campo de sua linguagem e de sua estrutura‖. Desta forma, Todorov reconhece os gêneros, pois considera que é através deles que uma obra literária estabelece uma relação com as obras já existentes: ―Os gêneros são precisamente essas escalas através das quais a obra se relaciona com o universo da literatura‖ (TODOROV, 2004, p. 12). O estudo também se refere a Northrop Frye, em Anatomy of critcism, para explicar a questão dos gêneros na literatura. A partir da perspectiva do estudo dos gêneros literários, conforme estabelecida por Frye, é possível traçar as especificidades do discurso literário apresentadas no texto que ora comentamos. Primeiramente, observa-se que o texto literário não estabelece uma relação referencial com o mundo, como se faz normalmente no discurso cotidiano. A literatura é elaborada a partir da própria literatura. Contraditoriamente, porém, a classificação que o estudo mostra dos textos literários, a nosso ver, desmente o pressuposto acima. ―A primeira classificação define os ―modos de ficção‖. Eles se constituem a partir da relação entre o herói do livro e nós mesmos ou as leis da natureza‖ (TODOROV, 2004, p. 15). 51 Se há algum tipo de relação estabelecida entre o herói e o leitor da obra (―nós mesmos‖), a idéia de que a literatura se constitui somente a partir dela mesma, como se sugere inicialmente, é questionável. As possíveis relações estabelecidas entre herói e leitor são um componente básico da configuração do próprio gênero. Se há uma relação de superioridade do herói, da natureza, sobre o leitor e sobre as leis da natureza, estaremos diante do mito; se a relação é de superioridade, de grau, sobre o leitor e sobre as leis da natureza, poderemos ter a lenda ou o conto de fadas, etc. A verossimilhança também é uma categoria fundamental. A partir dela, as narrativas poderão dividir-se me dois grandes grupos: o das narrativas verossímeis e o das narrativas onde tudo é permitido. Outra categoria surge do efeito que a obra pode provocar no leitor, de um lado, as obras que podem provocar o riso, efeito peculiar aos gêneros cômicos; de outro, a emoção, é o caso dos gêneros trágicos. Para uma sistematização dos gêneros literários, Todorov recorre às análises de Frye, apresentando a seguinte divisão dos gêneros literários: Vem em seguida a divisão em gêneros propriamente dita, que se fundamenta no tipo de audiência que as obras deveriam ter. Os gêneros são: do drama (obras representadas), a poesia lírica (obras cantadas), a poesia épica (obras recitadas), a prosa (obras lidas) (...) A esta se junta a seguinte especificação: ‗a distinção mais importante, está ligada ao fato de que a poesia épica é episódica, enquanto que a prosa é contínua‘. (TODOROV, 2004, p.16) Mas, em seguida, Todorov questiona essa mesma sistematização alegando que há diversas teorias do gênero e que, na verdade, todas elas podem ser falhas, partindo-se da idéia de que essas teorias são construções discursivas que partem de algo abstrato, e que suas ―regras‖ nem sempre se constatam nas obras literárias. 52 Simplificando muito, poder-se-ia dizer que, aos olhos de Frye, a floresta e o mar formam uma estrutura elementar; para um estruturalista, ao contrário, esses fenômenos manifestam uma estrutura abstrata, produto de uma elaboração, e que se articula alhures, digamos, entre o estático e o dinâmico. (TODOROV, 2004, p.21) A verdade é que Todorov tenta nos mostrar a insuficiência de qualquer teoria dos gêneros ao questioná-las. Classificar textos segundo seus aspectos sejam eles sintáticos, semânticos, ou quanto à natureza de seus personagens ou conteúdo, como sempre fizeram o críticos e os teóricos, pode servir ao estudo sistemático da literatura, até mesmo com fins didáticos, mas torna impossível verificar o seu alcance e a sua função em qualquer contexto social, na modernidade, e principalmente na pósmodernidade, onde falar em limites é praticamente um anacronismo. Em consonância com o pensamento pós-moderno, Todorov apresenta o traço fundamental do discurso literário, independentemente de qualquer noção de gênero: Ora, a literatura, sabemos, existe precisamente enquanto esforço de dizer o que a linguagem comum diz e não pode dizer. Por esta razão a crítica (a melhor) tende sempre a se tornar ela mesma literatura: só se pode falar do que faz a literatura fazendo literatura. É apenas a partir desta diferença relativamente à linguagem corrente que a literatura pode constituir e subsistir. A literatura enuncia o que apenas ela pode enunciar. (TODOROV, 2004, p. 27) Daí que chegamos ao ponto que caracterizará a especificidade do discurso literário. Se a literatura é fruto de um esforço em dizer o que a linguagem corrente não é capaz de expressar, é porque temos como princípio fundamental a questão da elaboração. O texto literário é aquele em que a elaboração constitui um dos seus traços mais importantes. Basta então questionar em que consiste a elaboração neste tipo de 53 discurso. Alceu Amoroso Lima, no livro O Jornalismo como gênero literário (LIMA, 1990, p. 51), aponta como componentes do discurso literário a criação, a invenção, a originalidade e a introdução de novas formas. Podemos concordar em parte com o pesquisador, já que para uma análise da literatura na atualidade, a questão da originalidade é bastante questionável. Os textos pós-modernos primam justamente pelo reaproveitamento de formas antigas, pela paródia, num diálogo constante com a tradição literária. ―A arte dentro do arquivo‖, conforme a visão de Linda Hutcheon, ou o que veremos como intertextualidade declarada, presente na metaficção historiográfica. A possibilidade artística de ultrapassar os limites genéricos é praticamente uma premissa básica de qualquer manifestação cultural na atualidade. A mescla de gêneros ou tipos de discursos na literatura é ressaltada pela interação do discurso histórico com o literário, em uma conjunção de vozes discursivas que se entrecruzam. Este aspecto da literatura pós-moderna nos remete novamente à teoria de Bakhtin, que, já na década de 30 do século XX, antecipou vários conceitos empregados nos estudos linguísticos e literários atuais. A obra que analisaremos nesta pesquisa é um exemplo de narrativa em que o discurso literário, o discurso histórico e o discurso memorialista se fundem, dando origem a uma autoficção. Ao verificar a presença de diferentes tipos de construções narrativas em um romance como El cuarto de atrás, podemos questionar até mesmo sua classificação como romance, porém, como assinala Lukács (1962), ―A composição romanesca é uma fusão paradoxal de elementos heterogêneos e descontínuos chamados a constituir-se numa unidade orgânica permanentemente em causa‖ (LUKÁCS, 1962, p.95). 54 Vemos então que é peculiar ao romance a presença de elementos heterogêneos. No livro El cuarto de atrás, esses elementos podem pertencer a distintos gêneros, construindo-se, assim, um diálogo entre essas diferentes formas discursivas. A palavra diálogo nos remete ao termo ―dialogismo‖, conceito fundamental da teoria bakhtiniana, ampliando o sentido da discussão apresentada. A partir de sua concepção e gênero, Bakhtin considera o romance um gênero essencialmente dialógico. Um dos nossos objetivos na pesquisa que realizamos é verificar como o dialogismo se instaura no texto de Carmen Martín Gaite e como este aspecto contribui para a sua aproximação a um pacto literário intermediário, ou seja, entre o autobiográfico e o romanesco, contando ainda com diversos elementos ensaísticos. O Dialogismo é um conceito aplicado à análise linguística que Bakhtin aplica também à teoria e análise literárias. Segundo este conceito, o discurso é atravessado por outros discursos que trazem em si as vozes dos outros. Aplicando o conceito à literatura, temos que todo texto se reporta a outros textos. A questão é discutida por J. L. Fiorin, quando reflete que ―Um universo discursivo é constituído de muitos campos: o político, o religioso, o filosófico, etc. Cada campo é formado de vários espaços que são os interdiscursos‖ (FIORIN, 2005, p.221). O conceito do dialogismo em Bakhtin leva a outro conceito, a polifonia. Muitas vezes usado como sinônimos, estes conceitos distinguem-se por ser o segundo uma manifestação do primeiro. O dialogismo é um traço inerente a todo tipo de discurso, como define Bakhtin: A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o 55 discurso de outrem e não pode deixar de participar com ele de uma interação viva e tensa. (BAKHTIN, 2002, p. 88) O conceito de dialogismo guarda uma intrínseca relação com o de intertextualidade. Ambos abordam a orientação de um texto para outros textos. A formulação do conceito de dialogismo é mais antiga. Definido por Bakhtin em ―O discurso no romance‖23, escrito entre 1934 e 1935. Este ensaio está voltado principalmente para o estudo do romance, mas traz também algumas idéias aplicáveis a outros tipos de texto literário. O termo dialogismo aparece como uma maneira de explicar a presença de ―vozes de outrem‖ em cada texto. Para Bakhtin, o dialogismo é um aspecto presente em todo e qualquer discurso, mas é no romance que esta característica se evidencia de uma maneira mais exacerbada: A orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem (em todos os graus e de diversas maneiras) criou novas e substanciais possibilidades literárias para o discurso, deu-lhe a artisticidade em prosa que encontra sua expressão mais completa no romance. (BAKHTIN, 1993, p. 85) As duas últimas citações se alinham com a nossa perspectiva de análise da obra de Carmen Martín Gaite. Criada em uma época propícia à revisão da literatura e da história, a obra em estudo é elaborada a partir de elementos diversos, apresentando um caráter híbrido, em cuja constituição veremos tanto o aproveitamento das concepções de teóricos da literatura, como o conceito do fantástico de Todorov, quanto uma relação direta com a tradição literária hispânica como a metáfora vida/sonho presente nas obras de escritores clássicos das literaturas hispânicas como Miguel de Cervantes, Calderón de la Barca, Rosalía de Castro e Jorge Luis Borges, para citar somente alguns. 23 Questões de literatura e de estética, São Paulo, 1993, pp. 71-163. 56 A presença de discursos de outros autores na obra em estudo nos faz constatar a estreita ligação da escritora com uma tradição literária. Como lemos no primeiro fragmento, o direcionamento de um discurso para outro (ou outros) propicia uma interação viva. O leitor ou o ouvinte participa desta interação à medida que consegue estabelecer as relações existentes entre os dois (ou mais) discursos envolvidos. A noção de dialogismo de Bakhtin volta-se especificamente para o romance, pois este gênero literário, por sua estrutura e possibilidades de abordagens temáticas, torna-se um campo aberto para a inserção de vozes alheias à voz do narrador ou dos personagens da obra. Para Bakhtin, é impossível que qualquer enunciado existente deixe de ―tocar‖ outros discursos presentes na realidade de um determinado momento histórico em uma determinada sociedade. Este enunciado é sempre um participante ativo do diálogo social. O discurso é sempre um enunciado vivo e ao observá-lo é necessário levar em consideração que ele ocasionará uma resposta, ou ―discurso resposta futuro‖. No entanto, este discurso também se baseia no que já foi dito. O dialogismo se constitui, portanto, numa espécie de dinâmica em que qualquer discurso estabelece elos com outros. Bakhtin chama a atenção para o fato de que só há diálogo à medida que se estabelece uma ―compreensão ativa‖ do discurso, por meio da qual será gerada uma resposta. Esta idéia está intimamente relacionada à Estética da Recepção, como vemos no fragmento a seguir: O diálogo corrente e a retórica provêem uma atuação aberta e expressa composicionalmente pelo ouvinte e por sua resposta, mas qualquer outro discurso é também determinado em vista da compreensão da possível resposta, sendo que esta orientação não se isola num ato independente e não se destaca da composição. A resposta compreensível é a força essencial que participa da formação do discurso e, principalmente, da compreensão ativa, 57 percebendo o discurso como oposição ou reforço e enriquecendo-o. (BAKHTIN, 1993, p. 89) Neste fragmento vemos o papel do receptor do discurso. Na verdade, ao falarmos no termo discurso, não nos voltamos somente para a literatura como objeto de estudo. Discurso abrange também as manifestações orais da linguagem. Podemos pensar também em intertextualidade, talvez até com mais propriedade, já que esta consiste nas diversas relações possíveis entre os mais variados textos. O trabalho intertextual é inerente a toda obra literária. Segundo Laurent Jenny, em ―A estratégia da forma‖24, a intertextualidade faz parte da própria condição de legibilidade da obra de arte e não é meramente um eco ou uma repetição de outros textos. Para o escritor, o trabalho de assimilação e transformação que caracteriza qualquer processo intertextual é a própria essência da intertextualidade. A obra literária se constrói com uma rede dupla de relações, primeiro com os textos literários preexistentes, segundo, com os sistemas de significação não literários. Estas relações podem ocorrer de diversas maneiras – por plágio, citação, reminiscências, alusão, paródia, etc. – podendo ser percebidas em maior ou menor grau, dependendo do leitor. Linda Hutcheon assinala que a discussão a respeito do diálogo entre os textos adquiriu espaço na construção das teorias pós-modernistas a partir da reelaboração que Julia Kristeva faz dos conceitos bakhtinianos. A investigação teórica do ―amplo diálogo‖ (Calinescu 1980, 169) entre as literaturas e as histórias – e entre os componentes de cada uma das categorias – , diálogo esse que constitui o pós-modernismo, foi parcialmente possibilitada pela reelaboração que Julia Kristeva (1969) fez com as noções bakhtinianas de polifonia, dialogismo e heteroglossia – as múltiplas vozes de um texto. A partir dessas idéias, ela desenvolveu uma teoria mais 24 Intertextualidades. Poetique, n.27. 58 rigidamente formalista sobre a irredutível pluralidade de textos dentro e por tras de qualquer texto específico, desviando assim o foco crítico, da noção do sujeito (o autor) para a idéia de produtividade textual. No final dos anos 60 e início dos anos 70, Kristeva e seus colegas da Tel Quel organizaram um ataque coletivo contra o ―sujeito fundamentador‖ (ou seja, a noção humanista do autor) como fonte original e originadora do sentido fixo e fetichizado do texto. E, naturalmente, isso também questionou toda a noção de ―texto‖ como entidade autônoma, com um sentido imanente. (HUTCHEON, 1991, p. 165) Hutcheon observa que depois Kristeva, Barthes e Riffaterre definem que a intertextualidade substitui o relacionamento autor-texto, por uma relação entre o leitor e o texto. Ao tomar consciência do processo intertextual, o leitor se depara com duas possibilidades, pois cada referência o coloca diante de duas alternativas: ou prossegue a leitura, percebendo no texto apenas um fragmento como qualquer outro, ou retorna mentalmente ao texto de origem, extraindo da síntese entre os dois textos um novo significado. Carrillo Romero, debatendo a questão da intertextualidade, reconhece a relação do fenômeno intertextual com a recepção do texto, como vemos no fragmento abaixo: Muy relacionadas con el debate acerca del alcance del término, están las aportaciones llegadas a la noción de ―Intertextualidad‖ desde la Teoría de la Recepción. Riffaterre aportó a la definición de ―intertexto‖ y de ―Intertextualidad‖ un elemento más: la teoría de la recepción, de manera que considera que estas relaciones entre los textos son la esencia de la lectura literaria. La cantidad de interrelaciones que se dan en un texto literario no tiene sentido sin un lector; por lo tanto, más que proceso de producción, es un fenómeno de recepción, fundamental en la decodificación o interpretación del texto. Riffaterre considera así la ―Intertextualidad‖ como ―la percepción por parte del lector de las relaciones entre una obra y otras que la preceden, componente esencial de la literariedad por cuanto que la función estética de un texto reposa sobre la posibilidad de integrar un texto en una tradición o en un género‖ (Sanz Cabrerizo, 1995: 346) (CARRILLO ROMERO, 2008, p. 22) A Estética da Recepção que surgiu na década de 60 como uma resposta às tendências de crítica literária desenvolvidas a partir do início do século XX que estavam 59 voltadas somente para o texto e sua criação, como o formalismo russo (salvo Tynianov e Bakhtin), o ―new critcism‖ e o estruturalismo francês. Em tais tendências predominava sempre o estudo da textualidade, das características e estruturas do texto. A estética da recepção, embora não tenha sido uma corrente homogênea, apresenta, nos estudos de todos os seus representantes um novo modo de se deparar a um texto, pois passa a admitir as diversas possibilidades de leitura, atribuindo ao leitor um papel mais significativo no processo literário. As bases desta corrente de estudos literários foram lançadas por Hans Robert Jauss, em uma aula inaugural no ano de 1967, em Konztanz. Era uma tentativa de deslocar o alvo dos estudos literários para o leitor. As reflexões apresentadas por Jauss serviram de ponto de partida para muitos estudos e a Estética da Recepção proporcionou um grande desenvolvimento da pesquisa literária na Alemanha. A partir daí, segundo Jauss25, a Estética da Recepção obteve um êxito inesperado. Mas deve-se observar que os estudiosos que seguiram esta corrente, ainda que tivessem uma idéia central em comum, não constituíram um grupo homogêneo, pois havia algumas diferenças na nomenclatura por eles utilizada e nos pontos a que davam relevo. Deste modo, enquanto Wolfgang Iser fala dos ―vazios‖ no texto, Roman Ingarden usa ―pontos de indeterminação‖. Ambos os termos se referem àqueles pontos do texto em que leitor poderá usar sua imaginação, completando, assim, o que não foi dito explicitamente pelo autor. Portanto, quanto maior o número de vazios, maior será a quantidade de imagens formadas pelo leitor. Daí a possibilidade de existirem várias possiblidades de leitura para cada texto, posto que o leitor assimila, interpreta e compreende o texto de acordo com as experiências vividas anteriormente, bem como suas leituras prévias, trazendo-as muitas vezes para a leitura que está realizando. 25 LIMA, Luis Costa. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção, pp. 43-61. 60 Sendo assim, o leitor não pode ser considerado um ser passivo diante do texto. Paul de Man, em Alegorías de la lectura26 diz que o processo mental da leitura estende a função da consciência além da mera percepção passiva e deve adquirir uma dimensão mais ampla e converter-se em ação. O conceito de leitor ativo é base da Estética da Recepção e a partir daí, vários conceitos são lançados. Roman Ingarden27 trabalha com o conceito de concreção, que é a compreensão da obra por parte do leitor aliada a ―co-criação‖ da mesma que se dá pelo preenchimento dos pontos de indeterminação presentes no texto. Dizemos que há indeterminação quando é impossível afirmar se certo objeto ou situação objetiva possui certo atributo. Segundo Ingarden, o leitor lê nas entrelinhas e completa ativamente diversos aspectos que estavam indeterminados no texto. Sendo assim, o leitor é considerado um co-criador da obra que lê. Certamente co-criação implica também numa transformação do texto lido, pois, como Ingarden afirma, a obra literária de arte é diferente das concreções que surgem das leituras que se fazem dela, por isso, não se pode desprezar de maneira alguma o caráter modificador da leitura de cada indivíduo. O papel crescente da importância do leitor no século XX é um dos aspectos determinantes do pós-modernismo. A literatura se volta para o questionamento da história, da arte, da cultura em geral e da literatura, demandando um leitor mais crítico e com um conhecimento maior de sua cultura e sua época. O texto literário passará a abranger uma multiplicidade de discursos, desafiando a capacidade do leitor de moverse por esses discursos e estabelecer as devidas relações destes com outros discursos, estabelecendo o que Bakhtin chamou de compreensão ativa do discurso. 26 MAN, Paul de. Alegorías de la lectura. Barcelona: Lumen, 1990. INGARDEN, Roman. Concreción y reconstrucción. In.: Estética de la recepción. Madri: Visor, 1989, pp. 35-53. 27 61 Para que se possa compreender a significação de uma obra híbrida como El cuarto de atrás, será necessário ter em mente que sua publicação no final dos anos 70 é resultado do projeto literário levado a termo ao longo de décadas na segunda metade do século XX pela escritora. O romance em questão é uma obra característica do pós- modernismo tanto por seus aspectos formais, quanto temáticos. Para nosso estudo do pós-modernismo tomamos como base os conceitos apresentados por Linda Hutcheon (1991). O estudo tem como objetivo elaborar uma poética do que convencionou-se chamar de pós-modernismo o período que historicamente abrange as últimas décadas do século XX. A preocupação mais importante do estudo de Linda Hutcheon é a problematização da História pelo pós-modernismo. Hutcheon afirma que o pós- modernismo constitui-se num empreendimento cultural que abrange a maioria das formas de arte e diversas correntes de pensamento atuais. O ponto de partida para a poética do pós-modernismo que Linda Hutcheon se propõe a elaborar é a afirmação de que este ―empreendimento cultural‖ é essenciamente contraditório. Os termos que normalmente as teorias culturais relacionam ao pósmodernismo apontam para o caráter contraditório das manifestações culturais do período. É o que Linda Hutcheon chama de retórica negativizada, pois estas teoria utilizam vocábulos como descontinuidade, desmembramento, deslocamento, descentralização, indeterminação e antitotalização. Na verdade, essas palavras, diz a autora, mostram, através de sua formação prefixal (des, in e ant), que os conceitos expressos por elas incorporam aquilo que pretendem contestar. Da mesma forma, o termo pós-modernismo, não deixa de incorporar o modernismo. Tão contraditório quanto o termo que designa este vasto empreendimento cultural é também o conjunto das teorias que tentam defini-lo. Na tentativa de dar à teoria pós-modernista uma 62 contribuição que ajude a construir uma poética, Linda Hutcheon encaminha seu estudo pela questão da contradição e dos paradoxos pós-modernos. Mas alerta que, por ser contraditório e atuar dentro dos próprios sistemas que tenta subverter, o pósmodernismo não pode ser considerado um novo paradigma. Além disso, a arte pósmoderna tem como traço fundamental a autorreflexividade, que será um dos caminhos mais explorados por artistas em geral e, o que mais nos interessa, por escritores que também se dedicam à crítica, incorporando a reflexão sobre a criação literária à própria construção do discurso literário. Entre as formas artísticas pós-modernas, Linda Hutcheon escolhe o romance para elaborar sua poética do pós-modernismo: Embora todas as formas da arte e do pensamento contemporâneos apresentem exemplos desse tipo de contradição pós-modernista, este livro (como muitos outros sobre o assunto) vai privilegiar o gênero romance, especialmente uma de suas formas, que quero chamar de ―metaficção historiográfica‖. Com esse termo, refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, são intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos... (HUTCHEON, 1991, p.21) Este posicionamento teórico coaduna-se com nossa pesquisa de forma bastante oportuna, tendo em vista que a obra que analisaremos pode ser considerada uma metaficção historiográfica, à medida que Carmen Martín Gaite revela o claro propósito de revisar o passado histórico recente, questionando não somente a história, mas também sua própria criação literária, como veremos adiante. Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a narrativa – seja na literatura, na história ou na teoria – que tem constituído o principal foco de atenção. A metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios, ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como citações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para seu repensar e sua reeaboração das formas e dos conteúdos do passado. (HUTCHEON, 1991, p. 22) 63 O pós-modernismo desafia o que conhecemos como cultura hegemônica dominante determinada pela burguesia por ação do capitalismo recente e pelo desenvolvimento da cultura de massas. Estes fatores possibilitaram a partir da década de 60, e mais intensamente nos anos 70 do século XX, o questionamento dos conceitos dominantes de arte, literatura, história. Linda Hutcheon observa que a crença de que o desafio e o questionamento são valores positivos seja mais uma herança dos anos 60 e relembra Roland Barthes que, no final dos anos 50, prefigurava em ―Mitologias‖ que o conhecimento proveniente das indagações poderia ser a única condição para mudança. Roland Barthes prefigurou esse tipo de pensamento em seus brechtianos desafios a tudo o que é ―natural‖ ou ―óbvio‖ em nossa cultura – ou seja, tudo o que é considerado como universal e eterno, e, portanto, imutável. Ele sugeriu a necessidade de questionar e desmistificar primeiro, e depois trabalhar pela mudança. Os anos 60 foram a época de formação ideológica para muitos dos pensadores e artistas pós-modernistas dos anos 80, e é hoje que podemos verificar os resultados dessa formação. (HUTCHEON, 1991, p.25) Sendo assim, todos os questionamentos acerca da arte e da cultura em geral propiciados pelos movimentos culturais dos anos 60 desembocaram no próprio questionamento sobre os limites das manifestações artísticas e, mais especificamente no caso da literatura, nos limites dos gêneros. Segundo Linda Hutcheon, a experiência política, social e intelectual dos anos 60 ajudou a permitir que o pós-modernismo fosse considerado como ―aquilo que Kristeva chama de ‗escrita-como-experiência-doslimites‘: os limites da linguagem, da subjetividade e da identidade sexual, bem como da sistematização e da uniformização‖. Desta forma, a partir daquela década, qualquer teorização relativa a gêneros poderia cair por terra, já que as fronteiras entre eles tornaram-se cada vez mais fluidas. As artes passaram a relacionar-se com uma proximidade crescente, com grande interação temática e teórica. 64 Nos anos que se seguiram, essa percepção só se confirmou e intensificou. As fronteiras entre os gêneros literários tornaram-se fluidas: quem pode continuar dizendo quais são os limites entre o romance e a coletânea de contos (Lives of Girls and Women I [Vidas de Meninas e Mulheres], de Alice Munro), romance e o poema longo (Coming Trhough Slaughter [Vindo através da Matança], de Michael Ondaatje), o romance e a autobiografia (China Men [Homens da China], de Maxine Hong Kingston) o romance e a história (Shame [Vergonha], de Salman Rushdie), o romance e a biografia (Kepler, de John Banville)? Porém, em qualquer desses exemplos, as convenções dos dois gêneros se opõem entre si: não existe nenhuma fusão simples, não problemática. (HUTCHEON, 1991, p.27) Devemos observar que esta ruptura de limites genéricos não se observa somente em uma relação binária, como os exemplos acima destacados por Linda Hutcheon. El cuarto de atrás, apresenta uma estrutura mais complexa, ou problemática, apropriandonos do termo utilizado pela teórica na citação. O romance de Carmen Martín Gaite joga com mais de dois gêneros, sendo impossível classificá-lo como autobiografia, romance ou ensaio (ao mesmo tempo histórico e literário). Estes gêneros aparecem na obra estabelecendo um discurso híbrido, característico do pós-modernismo, embora a época em que foi escrito (de 1975 a 1978) ainda não possa ser chamada de pós-moderna, mas, certamente inicia o que podemos chamar de uma nova tendência literária espanhola, a qual proliferará nos anos 90 e, principalmente, na primeira década do século XXI. Estamos nos referindo à vertente autoficcional, que terá um grande desenvolvimento na literatura espanhola na última década do século XX e no primeiro decênio de nosso século. Sendo assim, passemos agora ao estudo teórico dos gêneros que mais nos interessam na obra que analisamos: o ensaio, a autobiografia e a autoficção. 65 2.2 – O ensaio: um gênero para pensar e fazer pensar. Iniciamos nossas reflexões sobre o ensaio, buscando compilar abordagens teóricas que visam caracterizar este tipo de discurso definindo suas características de modo que possamos configurá-lo como uma forma discursiva que apresenta aspectos específicos. Desta forma, discutiremos seus aspectos discursivos e literários. Sendo assim, as duas abordagens principais que nos levam a conceber o ensaio como um gênero literário, no caso do primeiro teórico que abordaremos, José Luis Gómez Martínez, ou entenderemos o ensaio como uma classe de textos pertencente ao gênero argumentativo, noção defendida por María Elena Arenas Cruz. Também discutiremos uma abordagem teórica direcionada especificamente para o ensaio escrito por escritores, já que em nossa pesquisa, esta questão ganha especial relevo, pois um dos nossos objetivos é verificar a incidência e as particularidades do uso do discurso ensaístico em uma obra narrativa de Carmen Martín Gaite. Partiremos das idéias de Gómez Martínez, em Teoría del ensayo28. Neste livro dedicado exclusivamente à construção de uma teoria geral do ensaio, o especialista espanhol em literatura e pensamento hispânico remonta a Miguel de Montaigne, o primeiro a utilizar o termo ―ensaio‖ com a acepção moderna para caracterizar seus escritos. A primeira edição de Essais de Montaigne é de 1580. A obra inaugura o que chamamos hoje de ensaio moderno. Consciente da inovação que seu trabalho representava, Montaigne escreveu, no século XVI, uma definição que ainda hoje tem valor nos estudos do gênero. Para Montaigne, um dos componentes mais importantes do ensaio é o juízo, ―Es el juicio um instrumento necesario en el examen de toda clase de asuntos, por eso yo lo ejercito en toda ocasión en estos ensayos‖ (Apud. GÓMEZ 28 Este livro encontra-se disponível na íntegra na Internet, conforme referência bibliográfica. 66 MARTÍNEZ, 1992, p.18). Montaigne sabia que sua obra era única e expressou sua visão da própria criação em seus escritos, introduzindo a figura do ―eu‖ nos ensaios dotando de caráter subjetivo o conteúdo ali estudado. Marca-se assim, outro traço significativo do gênero: a presença do autor na obra, expressando seus juízos, opiniões e visão da matéria analisada. Ao lado de Montaigne, no século XVI, está Francis Bacon, outro pioneiro do ensaio moderno. Seus primeiros ensaios foram publicados em 1597. Gómez Martínez compara as obras dos dois autores, destacando que eles representam os pilares do ensaio atual e em suas obras encontram-se as origens de duas possíveis vertentes do gênero. Si comparamos un ensayo cualquiera de Montaigne —"Des menteurs", por ejemplo— con otro semejante de Bacon —"Of Truth"—, se observa que mientras Montaigne lo basa en "vivencias", Bacon lo hace en "abstracciones". El ensayo de Montaigne gana en "intensidad", el de Bacon en "ordem". El primero es más "natural", el segundo más "artístico". El primero intensifica lo "individual", el segundo lo "prototípico". En Montaigne, enfín, domina la intuición "poética", en Bacon la "retórica". Así, desde sus comienzos, Montaigne y Bacon representan dos opuestas posibilidades de ensayo, que profetizan el futuro individualista del género: el ser de Montaigne está en sus ensayos, tanto como el de Bacon en los suyos. Unos y otros son exponentes de sus personalidades y preocupaciones. (GÓMEZ-MARTÍNEZ, 1992, pp. 23-24) Como vemos, Gómez Martínez, além de identificar as diferenças entre esses pioneiros do ensaio, verifica que ambos colocam-se de forma pessoal em seus trabalhos, determinando a presença da individualidade no ensaio. Também destaca que Bacon, embora tenha reconhecido a novidade do termo ―ensaio‖ empregado pela primeira vez por Montaigne no sentido que estamos estudando, assinalou que a utilização de procedimentos ditos ensaísticos não era novidade, já que no período clássico já era 67 possível reconhecer alguns aspectos característicos do ensaio em textos como os Diálogos de Platão, por exemplo. Já na Espanha, o ensaio surgiu no século XV, com obras de Fernando de la Torre, Fernando de Pulgar e de Monsén Diego de Valera. O crítico identifica esses autores como iniciadores do ensaio hispânico por visualizar em sua obra o que chama de ―atitudes ensaísticas‖ como, por exemplo, uma tendência individualizadora, traço fundamental do ensaio. É importante observar que, para Gómez Martínez, o verdadeiro ensaísta não mostra somente seu pensamento, mas expõe o próprio processo de pensar. Por isso, somente com Frei Antonio de Guevara pode-se considerar inaugurado de fato o gênero na Espanha, já que este autor conseguiu introduzir suas próprias preocupações em seus escritos. Sólo con Fray Antonio de Guevara podemos dar comienzo, sin reservas, a la tradición ensayística española. Guevara, en un estilo personalísimo, consigue inyectar sus propias preocupaciones a sus escritos. Sus obras consiguen establecer, todavía en la actualidad, a pesar de lo retórico de su prosa, un íntimo diálogo con el lector en una comunión de pensamientos. Las Epístolas familiares (1542), su obra más representativa, son verdaderos ensayos donde se tratan los más diversos temas: desde valores permanentes, en las epístolas que reflexionan sobre la "envidia" o la "libertad", hasta asuntos de inmediata actualidad política, consejos sobre el amor o burlas llenas de gracia contra el mal escribir. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 24) Depois de Guevara, a Espanha teve, nos séculos seguintes, uma gama de escritores que se dedicaram ao ensaio. No século XVI, a religiosidade dominou a prosa ensaística apresentando ícones como Santa Teresa de Jesus, que juntamente com Frei Luis de Granada e Frei Luis de León, iniciou uma nova etapa do ensaísmo espanhol, com textos de conteúdo mais íntimo, sereno e pessoal. O século XVII trouxe outros 68 nomes também de grande relevância não só para o ensaio, mas também para a cultura hispânica, como Quevedo e Gracián. O grande impulso ao gênero ensaístico se deu realmente no século XVIII, com uma maior possibilidade de difusão da produção escrita. Surgiram diversas revistas e jornais onde os ensaios passaram a ser publicados. Nesse momento, o diálogo com o leitor adquiriu mais expressão e este passou, definitivamente, a fazer parte do ensaio. Por outro lado, houve, nesse período, uma limitação acadêmica imposta aos escritores, como afirma Gómez Martínez: La actitud artística del siglo neoclásico no era, sin embargo, tan propicia como la de los siglos XVI y XVII. La personalidad creativa de los escritores se encontraba refrenada por las reglas de un academicismo riguroso. Aun siendo abundantes los ensayos escritos, sólo podemos hablar de dos verdaderos ensayístas: Fray Benito Jerónimo Feijoo y José Cadalso, y de un reducido grupo de escritores con fuerte personalidad y frecuentes rasgos ensayísticos: Gregorio Mayáns e Siscar, Martín Sarmiento, Gaspar Melchor de Jovellanos, entre otros de menor repercusión.(GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 25) O ambiente literário do romantismo, caracterizado pelo individualismo, foi um campo propício à produção do ensaio. Este constituiu uma forma de expressão adequada para que os escritores expressassem suas reações contra a sociedade, bem como combatessem àqueles com os quais não concordavam. Mas, para Gómez Martínez a presença do leitor no ensaio do século XIX aparece como algo mais importante. O ensaísta pensa em seu público frequentemente e trata de fazer-lhe sugestões, levando-o a meditar. Gómez Martínez termina seu breve histórico sobre a origem e desenvolvimento do ensaio tendo já como foco não somente a Espanha, mas também a América, onde 69 também se observou, no século XX, um grande desenvolvimento do gênero. Fato que era de se esperar, já que foi notório o desenvolvimento literário da América Hispânica nesse século. Outra autora que escreve sobre a questão do ensaio como gênero é Maria Elena Arenas Cruz. Em sua tese de doutorado Hacia una teoría general del ensayo. Construcción del texto ensayístico. No primeiro capítulo desta obra, intitulado ―Bases teóricas para la definición del ensayo como clase de textos del género argumentativo‖, a pesquisadora delimita como objetivo a tentativa de coordenar e integrar, dentro de uma teoria geral dos gêneros e das classes de texto, a descrição particular dos diversos aspectos do texto ensaístico. Para isto, seu passo inicial é esclarecer, através de definições específicas, a diferença entre os gêneros históricos e os gêneros naturais. Los primeros constituyen agrupaciones de textos directamente observables en la historia literaria, sometidos a factores de cambio y de convención propios de los ámbitos culturales donde funcionan como tipos de acciones comunicativas más o menos institucionalizadas; son géneros históricos el cuento, la oda, el ensayo, la comedia la epopeya, etc. Por su parte, los géneros naturales son categorías abstractas de raíz antropológica, universales y transhistóricas, que funcionan, en palabras de A. García Berrio, como ‗condiciones-marco‘ u ‗opciones de entrada‘ relativas a ―los aspectos expresivos o comunicativos de la enunciación y los referenciales del enunciado‖; son géneros naturales el lírico, el dramático y el épico-narrativo, sistema económico que da cuenta de las capacidades expresivas y modos de representación básicos de la conciencia humana. (ARENAS CRUZ, 1997, p. 18) Para Arenas Cruz, esta distinção encerra uma ambiguidade terminológica que, ao longo do tempo, vem causado certa confusão teórica fazendo com que alguns autores denominem ―gênero‖ tanto às manifestações históricas quanto as naturais. Sendo também frequente chamar simplesmente de gênero as manifestações históricas propor outras expressões para os modelos abstratos como: ―formas naturais da literatura‖, 70 ―atitudes fundamentais e universais do escritor perante o mundo e a vida‖, ―modos literários‖, ―radicais de representação‖, ―modos de enunciação‖, ―modos de representação ou de comunicação‖, ―formas simples‖29, etc. Arenas Cruz observa que a maioria dos pesquisadores contemporâneos escolhem a perspectiva histórica, preferindo a observação direta da manifestação direta dos sistemas literários em cada época, chegando, inclusive, a negar as categorias naturais. A autora afirma que nestes estudos também se generalizou o uso da palavra ―gênero‖ como designação das classes históricas de textos. No entanto, Arenas Cruz nos explica que sua postura teórica será conciliadora entre as duas posturas: Nuestra postura teórica en este trabajo intenta ser conciliadora de las dos perspectivas, es decir, partimos del carácter flexible y orientador – no normativo – de las entidades ideales respecto a las históricas, tal como plantea A. García Berrio30. Por esta razón, proponemos reservar el término tradicional género para designar el modelo natural teórico, del carácter esencial y transhistórico, y adoptar, desde la linguística textual y la semiótica, la noción de clase de textos. (ARENAS CRUZ, 1991, p19) Desta forma, Arenas Cruz estabelecerá sua teoría do ensaio partindo do conceito de classe de textos. A classe de texto constutui-se quando dois ou mais textos possuem uma ou mais característica petinentes em comum, devendo haver, portanto, um conjunto de regras de diversos tipos (semânticas, sintáticas, pragmáticas...) que regem esse conjunto de textos, dentro do qual cada texto possui sua personalidade e individualidade. Desta maneira, ―la clase de texto no es más que la codificación de unas 29 Termos utilizados, respectivamente, por W. Goethe, K. Viëtor, P. Hernandi, N. Frye, G. Genette, C. Guillén e A. Jolles. Para ver referencia completa, consultar ARENAS CRUZ, 1991, pp. 18-19. 30 Para Garcia Berrio, conforme explica Arenas Cruz, “la investigación genológica debe procurar aunar los estúdios históricos de carácter empírico con la especulación teórica, de manera que sea posible integrar el sistema natural de factores universales con la variedad de sus realizaciones históricas, pues sólo así se podrán conocer, en las estructuras reales de los textos históricos, las propiedades esenciales de género y los rasgos secundarios de clase”. 71 reglas básicas, sin carácter normativo, a partir de las que es posible relacionar unos textos con otros‖. Arenas Cruz justifica a opção pela utilização do conceito da classe de textos por considerá-lo de grande funcionalidade teórica porque é aplicável tanto a textos literários quanto a textos não literários, tanto a textos orais quanto a textos escritos, desaparecendo, assim, as hierarquias institucionalizadas a partir das convenções críticas. A autora apresenta como características básicas de todas as classes de textos, segundo a maioria dos teóricos contemporâneos, sua constituição histórica e seu funcionamento pragmático. A constituição histórica se apresenta como resultado dos processos de permanência e mudança que a articulação de suas regras sofre diacronicamente devido às marcas que os fenômenos de produção e recepção textual imprimem na história literária. Portanto toda classe de textos é fruto da convenção no âmbito institucional da literatura de uma determinada comunidade social e cultural. Estas condiciones históricas determinan, por tanto, la condición pragmática de la clase de textos, que ha de concebirse como un tipo particular de acción comunicativa, cuya articulación de reglas expresivas y referenciales, determinada y avalada por la tradición literaria, permite concebir la obra, comunicarla y que sea adecuadamente leída; así, la clase de textos no es tanto un conjunto de textos cuanto un modelo o esquema cognitivo que sirve para la producción y para la recepción de un determinado tipo de productos textuales en el marco convencional de la comunicación literaria. (ARENAS CRUZ, 1991, 22) Considerando os gêneros literários em suas chamadas categorias naturais, estabelecidas na sua divisão tripartida em lírico, épico e dramático, Arenas Cruz afirma que os estudos do ensaio requerem uma redivisão em quatro categorias, acrescentandose o gênero argumentativo, no qual o ensaio se enquadraria, situando-o assim em um campo teórico adequado. 72 Desde nuestro punto de vista y con el fin de situar el ensayo el un marco genérico adecuado, resulta actualmente impostergable la necesidad de ampliar el paradigma genérico a cuatro categorías, con el fin de poder perfilar una completa teoría de los géneros literarios que dé cuenta de ese conjunto de clases no miméticos y de carácter argumentativo pero de esencial vocación artística que tradicionalmente han estado ausentes de la Poética. (ARENAS CRUZ, 1991, p. 23) A proposta de Arenas Cruz é, portanto, propor uma quarta categoria genérica, a argumentativa que abrangeria manifestações textuais literárias y não literárias, em prosa ou em verso. Com base no estudo de A. García Berrio e M. T. Hernández 31 a autora segue uma divisão genérica que acrescenta o gênero argumentativo literário que engloba outros gêneros de prosa: a argumentação ensaística, a prosa doutrinal e a oratória. Definindo as duas características fundamentais do gênero argumentativo, Arenas Cruz assinala sua estrutura pragmática e sua ―manifiesta y cuidada voluntad de estilo‖ que dão ênfase aos aspectos formais, inclusive sobre a intrincada profundidade dos conteúdos específicos. Desta forma, os textos que primam pela exposição do pensamento e pela reflexão filosófica, científica (mas nunca estritamente técnica) reunidos sob a classificação de gêneros ensaísticos, serão tratados por Arenas Cruz como gêneros argumentativos, afim de que se possa incluir não só o ensaio, mas também, o discurso ou o tratado, o diálogo, a glosa ou a miscelânea que foram durante séculos meios utilizados para a expressão de uma reflexão crítica da cultura. El género argumentativo, por tanto, como modelo general de orientación para la producción autorial y para la recepción lectora, aparece con un referente adecuado a la hora de clasificar toda una producción textual de carácter eminentemente reflexivo y que, de ninguna manera, se puede vincular con las otras categorías genéricas, fundamentalmente ficcionales. La única matización que se impone es la necesidad de establecer una gradación de literariedad, que sirva para delimitar dentro de cada clase los textos más 31 “La poética: tradición y modernidad”, op.cit, 157-158. 73 artísticos de los más didácticos o informativos. (ARENAS CRUZ, 1991, p. 28) Arenas Cruz designa como classes de textos pertencentes ao gênero argumentativo o diálogo, a epístola, a miscelânea, a glossa, o ensaio, o artigo, a oratória o prólogo e o tratado. Cada uma dessas classes de textos argumentativos constitui um conjunto de normas internas e específicas de caráter histórico-literário, convencionalizadas em uma sociedade. No entanto há normas universais do gênero argumentativo. Para a descrição destas normas universais Arenas Cruz lança mão de quatro parâmetros: o âmbito do referente (base semântica e relação texto-realidade), o âmbito sintático-semântico (tipo de superestrutura e modo de representação lingüística), o âmbito da comunicação, no qual veremos o plano da enunciação autorial (intenção do enunciador e posição perante o que apresenta) e o plano da atitude recepcional. Vejamos resumidamente a que se refere cada um desses parâmetros. O âmbito do referente: Lo específico de la construcción referencial o base semántica de los textos argumentativos es que no constituye una elaboración imaginaria de estados, procesos y acciones, como sucede en las obras de ficción, sino que sus elementos proceden directamente de la realidad efectiva, por tanto, dependen de un modelo de mundo de lo verdadero. Lo que se representa en el texto argumentativo no es un mundo posible e imaginario en el que quedan suspendidos los criterios de verdad o falsedad, sino una sección de la realidad, cuyos contenidos semánticos se refieren a lo verdaderamente existente o sucedido, de manera que cualquier discordancia con dicha realidad ha de ser considerada como falsedad. Esto es así porque lo peculiar de los textos argumentativos es que el sujeto inmanente del enunciado textual está subordinado al autor real y éste está comprometido con aquél, de manera que el enunciador emitirá las frases reales del autor desde un punto de vista lingüístico, es decir, referidas a una situación o contexto de enunciación también real (el cual puede ser tenido en cuenta para una mejor comprensión e interpretación de los contenidos). (ARENAS CRUZ, 1991, p. 31) 74 Neste âmbito, a instancia da realidade é considerada como base para análise dos textos. É de suma importância a relação que se estabelece entre o autor e a realidade, que transparece nas ações, objetos e personagens referidos na construção textual. Sendo assim, pode-se concluir que o os textos do gênero argumentativo podem ser lidos sob a perspectiva de um pacto de leitura em que o receptor identifica o sujeito do enunciado com o autor do texto. A partir daí, torna-se possível ao leitor buscar a confirmação na realidade de fatos ou quaisquer questões abordadas no texto. O âmbito semântico-sintático: Todas las clases de textos que se orientan bajo el marco de opciones del género argumentativo sirven para la producción de textos cuya macroestructura está organizada según las reglas y categorías de una superestructura específicamente argumentativa. Este es por tanto un rasgo genérico, pues se puede hablar igualmente de superestructuras narrativas, dramáticas o líricas. La superestructuras argumentativas constan de dos categorías fundamentales, la tesis o presentación del asunto y su justificación argumentada mediante pruebas no demostrativas (esto es, de carácter más efectivo y valorativo que lógico racional, pues están basadas, sobre todo, en premisas verosímiles) La segunda categoría es la más importante, pues de ella depende la credibilidad del asunto y, por tanto, la persuasión del receptor. No obstante el número de categorías se puede aumentar en función de necesidades comunicativas, argumentativas o estéticas, incorporando un exordio o una peroración, ampliando la presentación del asunto a través de una exposición o una narración pormenorizada, etc. (ARENAS CRUZ, 1991, p. 33) Este âmbito também comprova que os textos que pertencem ao gênero argumentativo estão estruturados de maneira a levar em consideração a recepção do texto. O leitor é o alvo dos argumentos explicitados e isto fica claro no texto, posto que a persuasão é um dos aspectos mais importantes deste tipo de texto. O plano da enunciação autorial: Este parámetro se refiere tanto al modo de presentación lingüística de los textos argumentativos como a las peculiaridades de la situación enunciativa que en ellos predomina. (…) Este modo (de presentación) habrá de ser entendido no desde el punto de vista de la prescripción, sino del predominio, como modo de enunciación básico que enmarca a los demás cuando 75 aparecen, que por ello le quedan subordinados. Además, la asociación tradicional de cada género con un modo lingüístico de enunciación ha de entenderse como un criterio flexible, adecuado a las limitaciones, variaciones y transgresiones que imponen los textos históricos de la realidad literaria. Teniendo esto en cuenta, el modo de presentación lingüística predominante en el género argumentativo es el equivalente al modo retórico-gramatical que Diomedes llamara enarrativum o exegematicum, aquél a través del cual el sujeto de la enunciación informa, comenta, interpreta tomando él sólo la palabra.(…) (ARENAS CRUZ, 1991, p. 37) la exposición argumentada seria el (modo de presentación) predominante en el género argumentativo. Desde el punto de vista de la situación enunciativa, la enunciación propia del género argumentativo es principalmente monológica, o sea que el monopolio del discurso lo tiene casi siempre el sujeto de la enunciación. Según Benveniste, todo texto monológico, en la medida en que constituye un acto de comunicación, deviene implícitamente dialógico. Es decir, es un monólogo que adquiere la forma de un diálogo entre el sujeto de la enunciación, que es el único que tiene la palabra, y el destinatario, que está siempre presente para hacer significativa la enunciación del sujeto locutor. (ARENAS CRUZ, 1991, p.40) Como se pode observar, este parâmetro de classificação, embora esteja voltado para aspectos relacionados a produção textual, assim como os anteriores, tem em vista a figura do receptor do texto, com o qual se estabelece um diálogo. Podemos ampliar esta questão para a característica dialógica (a partir de uma perspectiva bakhtiniana) de todo discurso. Ou seja, a presença do discurso de outrem em cada discurso. Isto sempre nos leva a colocar em evidência a questão da recepção do texto. Fecha-se um ciclo escritura – leitura – escritura, que já nos conecta com o ponto seguinte. Finalmente, vejamos o plano da atitude recepcional: Es el relativo al comportamiento y participación del receptor en los textos literarios. Debido a la organización superestructural argumentativa de la macroestructura y al tono textual apelativo-persuasivo, las clases de textos del género argumentativo están especialmente encaminar a buscar una respuesta perlocutiva por parte del receptor, ya sea una modificación de su conducta, de sus ideas o de sus conocimientos. (ARENAS CRUZ, 1991, p.42) Arenas Cruz esclarece que para que esta resposta esperada do receptor seja eficaz, deve ser precedida por uma atitude de curiosidade prévia do leitor seja ela de 76 caráter intelectual, moral, política, etc. O impulso inicial que busca alcançar algum tipo de saber ou de certeza é que garante qualquer tipo de modificação com relação ao estado anterior à leitura. Ou seja, somente os leitores animados por uma atitude inicial de curiosidade completam o processo comunicativo de base perlocutiva com uma resposta relacionada com suas vidas ou suas idéias. Estes princípios internos gerais que caracterizam o gênero argumentativo que acabamos de resumir, segundo a visão de María Elena Arenas Cruz, constituem-se em normas, intuídas ou aprendidas pelos leitores e escritores. Estas normas não atuam como preceitos, mas sim como uma orientação para produzir, entender e classificar sob um princípio comum as diferentes classes de textos que, no âmbito institucional da comunicação literária, se estabelecem como atos comunicativos mais ou menos afins. Considerando que cada classe de textos tem uma origem e uma evolução interna particular que se materializam em textos artísticos concretos em que se articulam os princípios básicos (semânticos, sintáticos, pragmáticos...) que constituem o referente cognitivo da classe, veremos que: Una clase histórica de textos es un tipo de acción comunicativa, es decir, un modelo que sirve a un productor a la hora de crear una obra literaria y a un receptor a la hora de descodificarla, situado ambos en un momento de la historia y en el espacio creado por la institución propia de la comunicación literaria en el seno de una sociedad y una cultura concretas. Por tanto, una clase de textos es una noción abstracta de carácter analítico que funciona pragmáticamente, es decir, permite la comunicación dentro de una institución literaria determinada. (ARENAS CRUZ, 1991, p. 45) Como referentes do ensaio, Arenas Cruz aponta os objetos físicos, tanto animados quanto inanimados; as atitudes e opiniões pontuais que podem corresponder ora às normas estabelecidas da sociedade sob um sistema de valores, ora ao que a sociologia e a política chamam de correntes de opinião; comportamentos; 77 acontecimentos e os fragmentos de outros textos. O ensaísta, ou autor, seleciona dentre estes aspectos assinalados o seu objeto de estudo, o qual será comentado a partir de sua perspectiva pessoal. Destacamos que os elementos que conformam o referente do ensaio são oriundos do mundo externo ao autor, ou seja, não são fruto de sua imaginação. Também cabe especial destaque aos fragmentos de outros textos, que também fazem parte do mundo externo e estabelecem uma relação com a tradição literária através da construção de uma rede dialógica ou intertextual. No capítulo que aborda a ―Constituição histórica do ensaio‖, a autora traz à luz a polêmica sobre a origem do ensaio. Para estabelecer a constituição histórica do ensaio, Arenas Cruz parte de duas perspectivas, estabelecidas por J.M.Shaeffer: (...) la autorial, o conjunto de relaciones a través de las que el autor va construyendo su obra en el marco de un sistema literario determinado históricamente; y la lectorial o conjunto de interpretaciones que desde la recepción son responsables por la consolidación institucional da clase. (ARENAS CRUZ, 1997, p. 49) Considerando o que se entende por regime autorial, vemos que os críticos da literatura, como Gómez Martínez e Arenas Cruz, ao reconhecerem em Montaigne e Bacon os iniciadores do ensaio moderno estão construindo uma tradição literária ensaística. Esta, como toda tradição literária, se reafirma através da criação de padrões reproduzidos por ensaístas e corroborados pela crítica. Vejamos que padrões têm sido considerados parte da construção desse gênero, seja no campo formal, seja no campo das idéias. Voltemos a José Luis Gómez Martínez, que, em sua ―Teoria del ensayo‖, aborda seus aspectos peculiares, mapeando uma série de características que, em conjunto, 78 podem auxiliar na definição desse tipo de produção como um gênero literário. Não pretendemos esgotar todos os aspectos tratados pelo crítico em sua teoria, mas sim selecionar aqueles que nos servem de suporte à análise de alguns ensaios de Carmen Martín Gaite. Gómez Martínez, após fazer um breve histórico do gênero, aborda em cada capítulo de seu livro um aspecto do ensaio. Observa que o ensaio sempre tem como objeto de análise algo oportuno, devendo tratar de temas que apresentem certo grau de relevância em seu campo estudo, não pretendendo, porém, ser exaustivo, até porque, muitas vezes, o ensaio deve ser um texto breve, posto que seus principais meios de difusão são periódicos que, é obvio, impõe uma limitação de espaço. Talvez até por essa limitação o ensaio traz implícitamente um tema a ser desenvolvido. Sendo assim, vemos aqui a maior diferença entre o ensaísta e o especialista. O ensaísta escolhe seu tema, discorre sobre ele, porém sem ter o compromisso acadêmico de tratá-lo de forma exaustiva ou de comprovar alguma tese. Assim como Gómez Martínez, Alberto Giordano em ―Modos del ensayo‖, estabelece as diferenças entre o ensaísta e o especialista ressaltando que o ensaísta é um leitor ―bricoleur‖ e o especialista, um leitor profissional. Ora, os adjetivos atribuídos a um e outro colocam em evidência a vocação do ensaísta de abertura para escrever sobre temas diversos e a do especialista de concentrar-se em um campo específico do saber. Por outro lado, o ensaísta tem em comum com o especialista o fato de que ambos tratam de assuntos já estudados por outros, mas um dos aspectos que os difere é o tratamento dado aos textos sobre os quais escrevem. Enquanto nos trabalhos de especialistas (autores de teses, cientistas, por exemplo) é obrigatória, por força do rigor acadêmico que exige a padronização, a comprovação da procedência das citações por 79 meio de detalhadas referências bibliográficas, o ensaísta está dispensado desse procedimento, devido à natureza do gênero ensaístico. A utilização de citações em ensaios não tem como objetivo a comprovação dos aspectos tratados no texto, mas sim apoiar e dar continuidade à exposição do pensamento do autor. Aberto Giordano assinala o uso das citações como um importante traço distintivo entre o ensaísta e o especialista: El modo diverso en que cada uno de ellos se vale de las citas y las referencias confirma la distinción. Para el especialista las citas y las referencias son fundamental, es decir, funcionan como fundamentos: lugares inmóviles, por incuestionados, que sostienen el supuesto movimiento de su lectura. Citas de autoridad, en las que el especialista se autoriza (sin esa autorización nada se atrevería a decir), delimitan, incluso antes de que se inicie, el recorrido de la lectura. Todo posible desborde (―lo que se lea…‖) es, quiere ser, obturado por lo escolar de esas remisiones. Para el ensayista, en cambio, citar es escribir. Lo ya dicho es menos una coartada que un pretexto para su decir. Cualquier ensayo de Borges vale aquí como ejemplo: la puesta en escena de las referencias, el modo dramático en que se las hace jugar (el ―saludo al paso‖ barthesiano), testimonia que para el ensayísta lo esencial es siempre, por sobre lo tratado, el movimiento de la escritura, movimiento que quiere que nada, ningún fundamento, quede en su lugar. (GIORDANO, 1991, p. 119) Tradicionalmente, o gênero tem apresentado o que Gómez Martínez chama de ―imprecisão das citações‖. Este autor assinala que, historicamente, houve uma evolução no uso das citações, seja em seu conteúdo, seja no nome do autor. Antonio de Guevara, por exemplo, utilizava citações fictícias, para dar um tom erudito a sua obra, atribuindo a nomes inventados as idéias criadas por ele mesmo. Com Montaigne, as citações deixaram de ser fictícias, mas continuaram a dar um tom erudito ao texto. Para Ortega y Gasset e Unamuno, as citações são incorporadas ao texto, sem quebra do ritmo da prosa. O uso impreciso de uma citação no ensaio não acarreta a perda de eficácia do texto citado, posto que, a omissão do nome do autor, ou transcrição inexata de algum 80 fragmento de texto para o ensaio, traduz a intenção do ensaísta de valorizar somente a idéia do conteúdo transcrito, ilustrando o pensamento que deseja desenvolver. Há no ensaio três aspectos essenciais que estão claramente relacionados entre si: o subjetivismo, o caráter autobiográfico e o tom confessional. Podendo aparecer em maior ou menor grau, esses traços nos mostram que o texto ensaístico representa a própria essência da individualidade do seu autor, à medida que este escreve para manifestar suas impressões pessoais sobre o assunto escolhido. E este subjetivismo manifesta-se também no estilo do ensaísta, pois cada um, ao expressar suas idéias, dota seu texto de uma singularidade manifesta tanto na maneira de tratar os temas quanto na própria eleição destes. Si como hemos indicado el ensayista se expresa a través de sus sentimientos, sólo lo basado en la propia experiencia tiene valor ensayístico. De ahí que en el ensayo no tenga cabida el pensamiento filosófico sistemático ni el objetivismo científico, en cuanto pretenden una comunicación depositaria. La verdad del ensayista no es un conocimiento científico ni filosófico, sino que se presenta bajo la perspectiva subjetivista del autor y el carácter circunstancial de la época. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 54) Aqui, vemos que, para Gómez Martínez, o ensaísta, ao valer-se de seus sentimentos ao escrever um ensaio, deve basear-se em sua própria experiência e não em conhecimentos sistemáticos estabelecidos como ocorre na filosofia ou na ciência, já que estes campos do saber, normalmente, se fundamentam em um princípio de comunicação depositária, ou seja, aquela que tem como característica somente a transmissão do conhecimento pronto, como verdade científica ou filosófica, sem que o receptor possa interferir na construção desse saber em elaboração. Um ensaio vale mais pela maneira 81 que o ensaísta apresenta suas idéias sobre um determinado assunto, expondo seu ponto de vista pessoal, colocando o leitor em contato com sua personalidade, do que pela comprovação científica de um conhecimento. Aliás, nem é este o objetivo do ensaísta. Ao estabelecer que o ensaio baseia-se na experiência do autor, também fica estabelecido o seu caráter autobiográfico. Este caráter deriva do fato de que o ensaísta não só expressa seus sentimentos, mas também revela ao leitor como os adquiriu. Não é raro que um ensaísta faça referência a passagens de sua vida em seus ensaios. Dentro de la individualidad peculiar de cada ensayista, las notas autobiográficas son frecuentes en todos los ensayos, con independencia del tema de estos. Antonio de Guevara, engreído en su persona, nos comunica desde su genealogía —"Mi abuelo se llamó don Beltrán de Guevara, y mi padre también se llamaba don Beltrán de Guevara, y mi tío se llamaba don Ladrón de Guevara, y que yo me llamo agora don Antonio de Guevara" (Epístolas, I: 73)— hasta sus características físicas —"Soy en el cuerpo largo, alto, seco y muy derecho, de las cuales propiedades no tengo y de qué me quexar, sino de qué me preciar" (I: 75). Más distante en sus escritos, Ortega y Gasset evita a veces proyectar su crecimiento emocional, para entregársenos en el intelectual: "Durante diez años he vivido dentro del pensamiento kantiano: lo he respirado como una atmósfera y ha sido a la vez mi casa y mi prisión" (Tríptico, 65). El carácter autobiográfico es tan antiguo como el ensayo mismo y es precisamente en Montaigne donde llega a su más alto grado: "Estas son mis fantasías, en las cuales yo no trato de dar a conocer las cosas, sino a mí mismo" (387). Por lo que podemos decir que el ensayo en la prosa corresponde a la lírica en la poesía. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 65) Quanto ao tom confessional do ensaio, devemos considerar que o ensaísta escreve a partir de um desejo ou necessidade de comunicar algo a respeito de um tema escolhido, seja para posicionar-se a favor ou contra, bem como acrescentar novas idéias sobre o tema. Sempre em consonância com seus sentimentos e sua personalidade. El tono confesional de los ensayos no es nada más que una manifestación del egotismo connatural del ensayista. El escribe sobre el mundo que le rodea y su reacción ante él. El "yo" parece ser el centro sobre el que giran las ideas del ensayo, y sin embargo su egotismo no es desagradable, porque sólo ofende quien adopta una posición de superioridad, y el ensayista es nuestro 82 igual, dispuesto a considerar nuestras opiniones. Se nos entrega con pensamientos y reflexiones en voz alta, como el amigo en busca de confidente. Así, por ejemplo, el tono de Alfonso Reyes cuando nos dice: "A este propósito, voy a contaros una modesta experiencia personal". Debemos tener también en cuenta, como señala Alexander Smith, "que el valor del egotismo depende enteramente del egotista. Si el egotista es débil, su egotismo es despreciable. Si el egotista es fuerte, agudo, lleno de personalidad, su egotismo es valioso, y se convierte en una posesión de la humanidad" (Dreamthorp, 36). (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 57) O tom confessional é um dos aspectos que mais destacam a subjetividade do ensaio. O ensaísta revela ao leitor o íntimo de seus pensamentos, a origem deles, seus sentimentos diante dos assuntos que se propõe avaliar. E, como toda confissão supõe a existência de um confessor, para o ensaísta, está claro que seu confessor é o leitor. Sendo assim, é inevitável que o ensaio apresente um caráter dialogal, ou conversacional. Como explica Gómez Martínez: Si hay alguna expresión común a los ensayistas de todos los tiempos, es aquella que hace referencia al carácter dialogal del género. El ensayista conversa con el lector, le pregunta sus opiniones e incluso finge las respuestas que éste le da. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p.60) Entendemos que o aspecto dialogal do ensaio é uma das maneiras de inserir o leitor no texto. Mas para Gómez Martínez, esse leitor, sempre presente no ensaio não é considerado como uma pessoa determinada, mas sim como um membro da ―generalidade dos cultos‖. Esse leitor é convidado a participar das reflexões do autor através de perguntas que o incitam a pensar junto com ele. No entanto, Gómez Martínez alerta para o perigo da utilização da forma dialogal no ensaio, já que esta o descaracterizaria como tal, posto que o leitor poderia sentir-se excluído da discussão 83 proposta, tendo em vista que para utilizar a forma dialogal propriamente dita é necessária a criação de personagens, transformando o leitor em espectador da discussão. Por fim, destacamos um último aspecto do gênero ensaístico que nos interessa neste trabalho: trata-se da inexistência de uma estrutura rígida no ensaio. Para Gómez Martínez, ao contrário dos escritos destinados à comunicação depositária, o ensaio não tem que obedecer a uma estrutura determinada. Entende-se como comunicação depositária, aquela que pretende reproduzir e transmitir um conhecimento inquestionável. O autor apresenta como exemplo desse tipo de texto, o tratado, o artigo de revista especializada ou a monografia. É o que Gómez Martínez chama de prosa didática. Mas, aparentemente, pode não haver diferenças entre este tipo de texto e o ensaio. A diferença está na maneira que se desenvolve o seu conteúdo. Acrescentamos as reflexões de Pedro Aullón de Haro sobre o Ensaio. Em seu artigo ―El género ensayo, los géneros ensayísticos y el sistema de géneros‖32, o teórico aborda a dificuldade de definição do ensaio enquanto gênero. Coincide com María Elena Arenas Cruz, observando que a tríplice distinção aristotélica dos gêneros literários (lírico, épico e dramático) não dá conta dos textos cujas características não se enquadram nesse esquema. No artigo, o autor faz referência à carência teórica sobre o assunto, informando que somente no século XX veio à luz uma grande poética sobre o gênero com Theodor Adorno. Para Aullón de Haro, o gênero ensaio é o grande protótipo moderno, a grande criação literária da modernidade, já que é o tipo de construção discursiva em que se pode expressar uma perspectiva histórico-intelectual de ―nosso mundo‖ (do Ocidente), de sua cultura da reflexão especulativa e a reflexão crítica. 32 El ensayo como género literario. p. 13-23. 84 Com o intuito de mapear os princípios constitutivos deste gênero, o autor encontra em três grande pensadores da modernidade algumas reflexões que o orientam na caracterização do gênero. Assim, Aullón de Haro resume alguns aspectos das teorias de Lukács, Bense e Adorno sobre o ensaio. El joven Lukács compuso en 1910 Sobre la esencia y forma del ensayo, un escrito que constituye la primera reflexión de gran relieve acerca del género. Para Lukács, en el ensayo la forma se hace destino o principio de destino, pues el ensayista se instala en ―la eterna pequeñez del más profundo trabajo mental respecto de la vida, y la subraya con modestia irónica‖, el ensayista ha de meditar sobre sí mismo, ha de encontrarse y ―construir algo propio con lo propio‖. A su juicio, el ensayo toma por objeto privilegiado las piezas de la literatura y el arte, por ello es el género de la crítica; ―habla siempre de algo que tiene ya forma, o a lo sumo de algo ya sido; le es, pues, esencial el no sacar cosas nuevas de una nada vacía, sino sólo ordenar de modo nuevo cosas que ya en algún momento han sido vivas. Y como sólo las ordena de nuevo, como no forma nada nuevo de lo informe, está vinculado a esas cosas, ha de enunciar siempre ‗la verdad‘ sobre ellas, hallar la expresión para su esencia. Se llega así a lo que el pensador húngaro considera la paradoja del ensayo: mientras que la poesía toma sus motivos de la vida (y del arte), para el ensayo el arte (y la vida) sirve como modelo. En contraste a lo que sucede con la poesía, la forma del ensayo todavía no ha concluido su proceso de independencia, y mientras la poesía recibe la forma del destino, en el ensayo la forma se convierte en destino. (AULLÓN DE HARO, 2005, p.20) Neste fragmento, Aullón de Haro explicita o pensamento de Lukács sobre o ensaio. Destacamos aqui a questão do referente do ensaio. Conforme abordamos anteriormente, a partir de Arenas Cruz, os fragmentos de outros textos fazem parte desses referentes. Aqui são mencionadas as ―piezas de literatura‖ que serão o motivo de diversos ensaios. Também se destaca a opinião de Lukács sobre a utilidade do ensaio para a elaboração crítica, devido a suas características. Outro aspecto a ser observado é a idéia de que o ensaísta escreve a partir de uma meditação sobre si mesmo. Isto coloca em relevo novamente o caráter autobiográfico deste tipo de escritos. O segundo teórico estudado por Aullón de Haro, Max Bense. 85 En el artículo Sobre el ensayo y su prosa, Max Bense, a partir de la consideración de la primitiva e indiferenciada unidad con la ciencia, la moral y el arte, entiende el ensayo como expresión de un método de experimentación; en él se trataría de un escribir experimental y ha de hablarse de él en el mismo sentido en que se hace de la física experimental, delimitable con bastante claridad de la física teórica. En la física experimental se formula una pregunta a la naturaleza, se espera la respuesta y ésta prueba o desecha; la física teórica describe la naturaleza, demostrando regularidades desde necesidades matemáticas, analíticamente, axiomáticamente, deductivamente. Así se diferencia un Ensayo de un Tratado. Escribe ensayísticamente quien compone experimentando, quien de este modo de vueltas de aquí para allá, cuestiona, manosea, prueba, reflexiona; quien se desprende de diferentes páginas y de un vistazo resume lo que ve, de tal modo que el objeto es visto bajo las condiciones creadas y la escritura. Por tanto, según Bense, el ensayo es la forma de la categoría crítica de nuestro espíritu y representa la forma literaria más difícil tanto de dominar como de juzgar; por ello se engañan absolutamente quienes creen que el ensayo tiene algo que ver con divulgación. (AULLÓN DE HARO, 2005, p.21) Aqui, como no fragmento anterior, fica clara a vocação do ensaio para o exercício da crítica. Primeiro por seu caráter experimental e investigativo, segundo por ―desprenderse de diferentes páginas‖. O ensaio supõe a leitura e a reflexão sobre outros textos, sendo um meio adequado à reflexão literária. Por último, o mais importante teórico do ensaio, segundo Aullón de Haro: Theodor Adorno. Es Adorno quien más penetrantemente ha reflexionado sobre el ensayo, sobre todo en El ensayo como forma. Adorno destaca la autonomía formal, la espontaneidad subjetiva y la forma crítica del ensayo. A su juicio, el ensayo, a un tiempo más abierto y más cerrado que la ciencia, ―es lo que fue desde el principio: la forma crítica par excellence, y precisamente como crítica inmanente de las formaciones espirituales, como confrontación de lo que son con su concepto, el ensayo es crítica de la ideología‖. Y cuando al ensayo se le reprocha carencia de punto de vista y de relativismo, porque en su actuación no reconoce punto de vista alguno externo de sí mismo, de nuevo se está en presencia de ―esa noción de la verdad como cosa ‗listo y a punto‘, como jerarquía de conceptos, la noción destruida por Hegel, tan poco amigo de puntos de vista: y en esto se tocan el ensayo y su extremo: la filosofía del saber absoluto. El ensayo querría salvar el pensamiento de su arbitrariedad reasumiéndolo reflexivamente en el propio proceder, en vez de enmascarar aquella arbitrariedad disfrazándola de inmediatez‖. El ensayo, ni comienza por el principio ni acaba cuando se alcanza el final de las cosas sino cuando cree que nada tiene que decir. A partir de ahí se puede concebir el ensayismo 86 de Adorno como crítica del concepto filosófico de sistema u orden de la totalidad y del antes y el después. (AULLÓN DE HARO, 2005, p.21) Na visão de Adorno, o ensaio também é o discurso próprio da crítica, mas a peculiaridade que se destaca no fragmento é a crítica ao conceito filosófico de sistema e de totalidade. O ensaio não se presta a esgotar os assuntos abordados, nem determinação de ordem nas questões que trata. O ensaio é o discurso do questionamento, da interrogação e por isso mesmo, do inacabado. Mas se o ensaio é o discurso da crítica, devemos ter especial atenção à crítica escrita por aqueles que também são escritores. E esta é uma modalidade especial a qual devemos estar atentos nesta pesquisa, pois nossa escritora, Carmen Martín Gaite, foi uma excelente e muito produtiva crítica literária. Basta verificar seus inúmeros artigos escritos para jornais e revistas literárias por mais de quarenta anos, onde apresentou sua visão pessoal sobre escritores espanhóis e estrangeiros. O artigo de Ana Cecília Olmos, ―Discurso de la subjetividad: La crítica de los escritores‖33, trata justamente das peculiaridades de ensaios escritos por escritores. Partindo de Montaine, Lukács e Adorno, a autora afirma que o ensaio se caracteriza pela enunciação subjetiva de um pensamento cuja configuração se define pela abertura, a fragmentação, o dinamismo e, inclusive, por certa arbitrariedade que evoca a disponibilidade infantil diante do lúdico. En efecto, la espontaneidad, ese gesto que reproduce la ―esencial y definitiva improvisación‖ de la vida, es una de las marcas fundamentales del ensayo e la medida en que, al negarse a adoptar una vía metodológica y un régimen de certezas, transforma en escritura un pensamiento que, dinámico y provisional, cuestiona la idea de verdad absoluta, como saber ya sancionado sobre lo real, para sostener la posibilidad de una verdad relativa. Por cierto, estos rasgos del ensayo, la improvisación, el dinamismo conceptual y la ausencia de certezas categóricas, están directamente ligados al predominio de esa enunciación subjetiva que permite cuestionar la figura del autor como origen 33 Em: OLMOS e CASARÍN. Ensayo[s] de narradores. Córdoba: Alción Editora, 2007, pp. 41-52. 87 positivo y exterior al texto y sostener la idea de una subjetividad que se construye en el proceso de escritura. (OLMOS, 2007, p.41-42) O ensaio é, portanto, uma forma de enunciação que serve de meio de afirmação da própria subjetividade, a qual vai se delineando no próprio construir do discurso. Sendo assim, o ensaio renuncia a procedimentos definitivos e a evidências conclusivas para fazer com que o ato de escrever, ou seja, essa instância de enunciação em que se configura a subjetividade, seja seu momento inicial e último. No caso específico dos escritores, para Ana Cecília Olmos, seus discursos ensaísticos transitam, com freqüência, no âmbito da ficção. Isto se dá porque nos ensaios literários dos escritores há uma enunciação direta de uma subjetividade que normalmente se esconde nas instâncias mediadoras do narrador e do personagem quando se trata de escrever ficção. Es exactamente en estos términos que Aira (2001: 12-13)34 describe el pasaje de la ficción al ensayo: como el acto que exige realizar un delicado gesto quirúrgico que elimine esas mediaciones para permitir la inscripción de una subjetividad directa inherente a la escritura ensayística. Muchos autores han desarrollado su proyecto estético a partir de ese juego de posiciones de enunciación discursiva que asumen o enmascaran la subjetividad y, desplazándose de la ficción al ensayo, han ejercido la crítica literaria, no con un sentido normativo ni aleccionador, sino con el claro propósito de diseñar caminos que remiten a la experiencia de la lectura y, también, de su propia escritura (Perrone Moisés, 1998: 11)35. (OLMOS, 2007, p. 42) Esta opção que muitos escritores contemporâneos têm escolhido como forma de expressão e reflexão sobre seu ofício coloca o ensaio como meio para discussão da própria experiência como escritor e leitor, onde a enunciação ensaística se apresenta como um gesto onde os escritores expandem sua escritura em uma atitude autoreflexiva. Ana Celina Olmos exemplifica esta questão com os escritores argentinos das 34 Refere-se a: AIRA, César. “El ensayo y su tema”. Boletín 9 del Centro de Estudios de Teoría y Crítica literaria. Rosario: Universidad Nacional de Rosario, 2001, pp. 9-15. 35 Refere-se a: PERRONE MOISÉS, Leyla. Atlas literaturas. São Paulo: Cia das letras, 1998. 88 últimas décadas que traçam um caminho de ―doble mano‖ entre o ensaio literário e a narrativa ficcional: Saer, Piglia, Gusmán, Aira, Libertella, entre otros, adoptaron la forma del ensayo para exponer sus reflexiones literarias que, indiscretas, revelan sus filiaciones, sus rechazos, sus habitos y, a veces, como dice Saer, ―sus prejuicios disfrazados de conceptos‖ (1991: 11)36. Pero, sobretodo, con estos ensayos, los autores afirman que los actos de leer y de escribir son inseparables y que, en el reverso de la escritura, se oculta la escena de la lectura como un acto que conmociona; un acto que, como afirma González, agita la conciencia y ―pone a luz ciertos temblores de la subjetividad‖37. (OLMOS, 2007, p.43) A autora esclarece que essas comoções da subjetividade provocadas pela leitura podem assumir várias formas e que uma delas é descrita por Barthes quando ele afirma que, no ato da leitura, o escritor enfrenta um objeto que não é a obra literária, mas sim a própria linguagem. Para Barthes, ler é ―desejar a obra no sentido de rejeitar a idéia de duplicá-la além de outra fala que não seja a própria fala da obra‖. A passagem da leitura para a escrita está relacionada à mudança de desejo, em não desejar mais a obra, mas sim a linguagem. Ana Cecilia Olmos também relembra que a formulação de noções como a de escritura de Barthes apagou as distinções discursivas destas práticas ao desmantelar a pretendida objetividade dos métodos de análise estruturais e reinscrever a subjetividade do crítico no trabalho de escrita que explora seus próprios procedimentos de significação. En otras palabras, el concepto de escritura de Barthes explicitó la conciencia de que los actos de leer y de escribir son inseparables y, por lo tanto, permite pensar la crítica como una modalidad discursiva que fundada en el acto de lectura, transita por los imprecisos límites de lo literario. Todo indica que la fisura epistemológica que se abre en el pasaje del estructuralismo al postestructuralismo diseña un espacio apropiado para pensar estos 36 Refere-se a: SAER, Juan José. La narración objeto. Buenos Aires: Seix Barral, 1999. Refere-se a: GONZÁLEZ,Horacio. “El ensayo como lectura de curación”. In.: PERCIA, Marcelo (org) Ensayo y subjetividad. Buenos Aires: Eudeba, 1998, pp. 65-71. 37 89 desplazamientos discursivos; no porque la práctica de la crítica haya sido desconocida por los escritores que, sabemos, la ejercen por lo menos desde el romanticismo, sino porque ese concepto de escritura que borró las jerarquías discursivas colocó al ensayo literario en las fronteras y, en algunos casos, en el centro mismo de las ficciones. (OLMOS, 2007, p. 44) As reflexões apresentadas neste fragmento podem constituir-se basicamente em uma chave para a análise da obra de Carmen Martín Gaite. A interdependência dos atos de ler e escrever, presente na vida de todo escritor, faz-se claramente observável nos ensaios de escritores contemporâneos onde, certamente, observam-se zonas de indefinição genéricas que aproximam esta escrita da ficção. Sendo assim, será possível a inserção da ficção no ensaio, e, como observaremos em El cuarto de atrás, do ensaio na ficção. Vejamos agora, alguns exemplos do ensaio de Carmen Martín Gaite. 2.2.1 – O ensaio de Carmen Martín Gaite. Carmen Martín Gaite, célebre por seus romances e relatos que cativaram um público fiel na Espanha em quase quarenta anos de produção literária, também se destaca no cenário da cultura hispânica como ensaísta. Aqui estudaremos duas obras que, ao nosso ver, constituem uma referência para conhecer tanto os procedimentos ensaísticos, bem como o pensamento da escritora a respeito da literatura, do mundo e da vida. Trata-se de Desde la ventana: enfoque femenino de la literatura española, de 1987 e La búsqueda de interlocutor, de 1973. O primeiro trata de questões relativas à escritura feminina. O livro traz algumas reflexões sobre o processo de composição do texto de autoria feminina, bem como comentários sobre grandes escritoras da literatura 90 espanhola. O segundo, um ensaio breve, publicado em La búsqueda de interlocutor, leva o leitor a pensar sobre uma questão essencial para a escritora: a necessidade de narrar e de que esta narração tenha um narratário. Um dos temas recorrentes da obra de Camen Martín Gaite. Analisaremos estes dois ensaios, tendo em vista alguns aspectos teóricos aqui apresentados e verificaremos os traços do gênero ensaístico que se confirmam nos textos de Martín Gaite. Desde la ventana: enfoque femenino de la literatura española foi publicado em 1987. O livro reúne quatro conferências da autora realizadas na Fundação Juan March38, em 1986. Este ciclo de conferências, intitulado O ponto de vista feminino na literatura espanhola39, apresentou uma série de reflexões sobre autoras espanholas clássicas e contemporâneas. Carmen Martín Gaite, na introdução, assinala que as peculiaridades da escritura feminina nunca haviam sido objeto de sua curiosidade até que leu o ensaio de Virginia Woolf, A room of one´s own (Um teto todo seu), em 1980, quando morava em Nova York. Podemos observar, já na introdução do livro, vários aspectos que caracterizam o seus estudos apresentados como ensaios. Primeiramente, observa-se que Carmen Martín Gaite revela ao leitor como um determinado tema passou a fazer parte de suas reflexões. Ao revelar ao leitor a primeira vez que começou a pensar no tema que desenvolverá ao longo das quatro conferências, Carmen Martín Gaite também ressalta o aspecto autobiográfico de seu estudo, traço característico do ensaio. A leitura que a escritora espanhola faz de Virginia Woolf, no livro mencionado, mostra a importância de que a mulher escritora possua um espaço próprio, com privacidade e liberdade para 38 A Fundação Juan March é uma Instituição familiar, patrimonial e operativa que desenvolve atividades no campo da cultura humanística e científica. 39 Estão disponíveis no site da Fundação Juan March os arquivos de áudio dessas conferências de Carmen Martín Gaite. 91 escrever. Para a escritora inglesa, este foi um dos motivos pelos quais durante muito tempo a mulher permaneceu excluída dos processos literários ao longo da história. Carmen Martín Gaite, ao introduzir seus estudos sobre a literatura de autoria feminina na Espanha, não só faz menção ao clássico de Virginia Woolf, como destaca que identificou-se com a obra, não somente pelo tema tratado, mas também pelas circunstâncias em que se encontrava quando a leu. Tal vez mi identificación con el discurso sobre mujer y literatura que Virginia Woolf tituló de A room of one’s own, y que llevaba esperando cincuenta años (desde 1929) a que yo lo leyera aquel otoño neoyorquino, requiere una explicación de las circunstancias en que lo leí. Había ido a dar un curso en Bernard College y por primera vez vivia completamente sola en un apartamento muy agradable de la calle 119, sin tener que dar cuenta a nadie de mi tiempo libre, que era mucho, ni sentirme interferida por requerimientos o problemas de seres humanos vinculados a mí. (MARTÍN GAITE, 1999, p.26) É importante observar que o livro de Virginia Woolf também era uma coletânea de conferências. Carmen Martín Gaite se inspira na escritora inglesa e, seguindo seu exemplo, reúne suas conferências sobre a literatura feminina. O que, a nosso ver, parece ser um dos ecos da obra da escritora inglesa em Carmen Martín Gaite. Também a maneira como a inglesa fazia o leitor inteirar-se do processo de elaboração de suas reflexões encontra a admiração da escritora espanhola. Isto se observa no seguinte fragmento: Virginia Woolf nos va dando a cada momento referencias del camino concreto que va recorriendo al filo de su viaje intelectual. Nos enteramos de diferentes asuntos, pero sobre todo, cuándo y donde ha ido Ella pensando en esos asuntos. (MARTÍN GAITE, 1999, p. 28) 92 Carmen Martín Gaite utiliza o mesmo artifício de Virgínia Woolf, mostrando ao leitor os fatos de sua vida que estimularam as reflexões sobre a literatura feminina. A experiência de morar sozinha em Nova York e participar de um ciclo de conferências assemelha-se um pouco da experiência de Virginia Woolf que também em A room of one’s own recolhe conferências suas sobre literatura feminina. Embora na introdução do livro se evidencie o caráter autobiográfico no texto de Carmen Martín Gaite, este se manifesta sempre com fatos relativos a sua atividade profissional ou as suas experiências de leitura, nunca a fatos relativos a suas vivências particulares, como podemos verificar no fragmento a seguir: Cuando, dos años más tarde, Televisión Española me requirió para elaborar un guión de varios episodios sobre la vida de Teresa de Jesús, y me vi obligada a leer atentamente toda su obra (tarea que nunca se me habría ocurrido emprender sin tal estímulo), la cuestión de si existe o no un particular modo de escritura femenina se me volvió a plantear y me llevó a simultanear mi elaboración de los diálogos para aquella serie televisiva con algunos comentarios que iba anotando en cuadernos... (MARTÍN GAITE, 1999, p. 28) Com essas informações, o leitor toma conhecimento praticamente de um histórico da criação do ensaio que está lendo. Carmen Martín Gaite também deixa claro que seu processo de escritura está baseado em um processo de leitura, que neste caso surgiu de uma necessidade profissional. Outras leituras citadas também são motivadas pela necessidade de conhecer o tema, como, por exemplo, a especialista em literatura feminina Elaine Showalter40 que estabelece dois campos do estudo da literatura feminina: o da mulher como leitora e o da mulher escritora. Outras críticas norte40 Elaine Showalter é uma das mais destacadas críticas literárias feministas. Um de seus trabalhos estabelece duas linhas básicas da crítica literária feminista: uma que trata da mulher como leitora de textos escritos por homens (crítica feminista) e outra que trata da mulher como escritora (ginocrítica). 93 americana são citadas a fim de enriquecer as reflexões sobre o tema, como Judith Fetterley, Sandra Gilbert e Susan Gubar41 (autoras do famoso ―The madwoman in the attic‖), Adrienne Rich. A apresentação dessas críticas feministas se dá pelas diversas citações que são feitas ao longo da introdução e apontam para a relevância do tema a ser tratado nas conferências apresentadas. As citações são outro aspecto característico do ensaio a ser destacado, pois, como é característico do gênero, vão aparecendo de maneira imprecisa. Sem a pretensão de comprovar as idéias apresentadas, há nesta série de conferências uma variação na utilização das citações dos autores que iluminam o texto de Carmen Martín Gaite. Não há uma preocupação da autora em registrar de forma precisa a origem dos textos que destaca. A maneira de citar os textos aos quais a autora recorre varia no desenvolvimento do assunto tratado. Devemos lembrar que a obra é a transcrição das conferências que Carmen Martín Gaite apresentou na Fundação March. E como numa conferência detalhes da referência bibliográfica tornariam a apresentação maçante, além de interromper a fluidez da leitura do texto. Sendo assim, a autora opta por mencionar, na maioria das vezes, o nome do autor, a obra e o ano. No capítulo introdutório, segue este padrão, como podemos ver nos exemplos a seguir: Eso es lo que viene a decir Adrienne Rich diz em seu trabalho de 1979 Reading as a Revision: Una crítica literaria radical, de impronta feminista, tendería a considerar la obra antes que nada como una clave para entender como vivimos... (MARTÍN GAITE, 1999, p. 31) Ou: 41 Juntamente com Elaine Showalter, Sandra Gilber e Susan Gubar estabeleceram um marco teórico importante no estudo da literatura de autoria feminina. Em The Madwoman in the attic, Gilber e Gubar, conforme análise de Liliana Gallo em sua tese de doutorado (p.40) (ver bibliografia), apresentam um estudo das principais escritoras do século XIX, que em meio a uma cultura masculina dominante, conseguiram se expor, embora de forma indireta, assaltando e revisando, destruindo e reconstruindo as imagens da mulher herdadas da literatura masculina. 94 Elaine Showalter en su reciente estudio de 1985, Feminist criticism in the wilderness, hace una salvedad muy interesante (...). Showalter observa que: No puede existir literatura ni crítica totalmente al margen de la escritura dominante... (MARTÍN GAITE, 1999, p. 31) No capítulo 1, de Desde la ventana, intitulado ―Mirando a través de la ventana‖, Carmen Martín Gaite aborda a questão da literatura feminina a partir das grandes escritoras do mundo hispânico dos séculos XVI ao século XIX. A partir desse capítulo, a autora passa a prescindir do ano de publicação das obras citadas. Já no início do capítulo, a referência se limita ao nome da obra e do autor, como podemos constatar: Repasando los Apuntes para una biblioteca de escritoras españolas, de Manuel Serrano Sanz, que abarca de 1404 a 1833, llaman la atención dos particularidades comunes a la gran mayoría de estas mujeres, que podrían ayudar como punto de partida para el examen de su trabajo. (MARTÍN GAITE, 1999, p. 35) Este capítulo se inicia tendo como foco o autodidatismo e a satisfação pela leitura que as mulheres escritoras de séculos passados tinham. São comentadas as obras de Santa Teresa de Jesus e Soror Juana Inés de la Cruz entre outras. Seguindo um esquema de citações sem ano de publicação da obra, como acabamos de dizer, a primeira a ser citada é Santa Teresa: Mi madre – nos cuenta en el Libro de su vida -, era muy aficionada a los libros de caballerías; de esto pesaba tanto a mi padre que se había de tener aviso a que no la viese. Yo me acostumbré también a leerlos; ... y parecía no era malo gastar muchas horas del día y de la noche en tan vano ejercicio, a escondidas de mi padre. Era tan en extremo lo que en esto me embebía que si no tenía libro, no me parecía tener contento. (MARTÍN GAITE, 1999, p. 36) 95 Há também citações em que nem mesmo o nome da obra citada aparece, servindo como referência somente o nome da autora, é o que acontece nos exemplos a seguir: Pero incluso para dar un paso tan Elemental como salir del analfabetismo, no siempre encontraban estímulo o ayuda. Emilia Pardo Bazán nos aporta el siguiente testimonio: De cierta bisabuela mía – dice – procediendo de una casa gallega muy ilustre, he oído contar que tuvo que aprender a escribir sola, copiando as letras de un libro impreso, sirviéndole de pluma un palo aguzado y de tinta un poco de sumo de moras… Todavía en mi niñez me enseñaba mi madre, como trabajo de mérito, unas almohadas zurcidas por mi bisabuela, donde casi los zurcidos formaban un tejido nuevo. (MARTÍN GAITE, 1999, p. 37) De Sor Juana Inés de la Cruz, destaca-se uma famosa redondilha, que também aparece sem ano de publicação. ―La monja mexicana sor Juana Inés de la Cruz, en las Redondillas contra las injusticias de los hombres al hablar mal de las mujeres se expresa así: Hombres necios que acusáis/ a la mujer sin razón‖. ( MARTÍN GAITE, 1999, p. 43) Também no segundo capítulo, cujo tema é o a maneira como as mulheres falam do amor em seus escritos, e no terceiro capítulo que faz uma reflexão sobre o modelo de mulher propagado pelo romantismo, segue-se o mesmo esquema de citações, ou seja, na maioria das vezes se menciona somente o autor do fragmento citado. Referências mais completas só voltarão a aparecer no último capítulo: ―Con la publicación en 1944 de ‗Nada‘, la primera novela ganadora del recién creado premio Eugenio Nadal, (...) Carmen Laforet, la autora de ‗Nada‘, era una muchachita de veintitrés años‖... (MARTÍN GAITE, 1999, p.101) 96 E em: ―En una encuesta realizada por la Estafeta literaria, en 5 de marzo de 1944, Julia Maura declaró que la novela rosa era un ―pomo de veneno en manos femeninas...‖ (MARTÍN GAITE, 1999, pp. 101-102) A respeito da forma como o texto de Carmen Martín Gaite apresenta as citações, devemos destacar que este traço faz parte da natureza ensaística da obra. Como vimos, na teoria de Gómez Martínez, as citações no ensaio tem a função de colaborar para a exposição do pensamento do autor sobre determinado assunto e não apresentar provas para uma argumentação. Assim, ao expor em seu ensaio que, do século XVI ao século XIX, as mulheres estavam condenadas ao analfabetismo e aquelas que quisessem fugir desse destino tinham que aprender a ler e escrever sozinhas e, muitas vezes, ler às escondidas, utiliza os depoimentos de Santa Teresa ou de Cecília Bohl de Faber. A referência aos textos dessas escritoras vale pela idéia que acrescenta ao pensamento desenvolvido pela autora. Quanto à temática do livro, vemos que está intrinsecamente relacionada à própria carreira literária de Carmen Martín Gaite. Ao falar de escritoras hispânicas que tiveram que lutar para conseguir expressar-se no contexto de uma literatura dominada pelo gênero masculino, observa-se que Carmen Martín Gaite fala de si mesma. O referido capítulo que se inicia com uma menção à Carmen Laforet é o que mais traz referências que podem ser relacionadas à obra da própria Martín Gaite, pois se refere à literatura de autoria feminina da Espanha do pós-guerra, abordando um grupo de escritoras no qual podemos incluí-la. O tema da ―chica rara‖ que, segundo Martín Gaite, foi iniciado na literatura espanhola por Carmen Laforet, é um tema presente na sua obra de pós-guerra, como vemos no romance Entre visillos. As reflexões apresentadas neste capítulo encontram ecos na obra de Carmen Martín Gaite, não só em 97 sua ficção, mas também em estudos como Usos amorosos de la postguerra española (1999), em que a autora analisa vários aspectos da vida das mulheres nos anos que se seguiram ao fim da guerra civil espanhola. A chamada ―novela rosa‖ reproduzia esquemas literários em que a mulher sempre aparecia à espera de um príncipe encantado com que se casaria e viveria feliz para sempre. Com o surgimento da ―chica rara‖ nas páginas dos romances, a literatura começou a representar um tipo de moça existente na sociedade, que não se contentava com o mundo doméstico e de contos de fadas que lhe era permitido almejar. A ―chica rara‖ recusa-se a seguir os padrões de comportamento feminino impostos pela sociedade. Carmen Martín Gaite considera a protagonista Andrea de ―Nada‖ uma precursora da ―chica rara‖, que começa a configurar-se na década de quarenta. Este paradigma de mujer, que de una manera o de otra pone en cuestión la ―normalidad‖ de la conducta amorosa y doméstica que la sociedad mandaba acatar, va a verse repetido con algunas variantes en otros textos de mujeres como Ana María Matute, Dolores Medio y yo misma. E por ser Andrea el precedente literario de la ―chica rara‖, en abierta ruptura con el comportamiento femenino habitual en otras novelas anteriores escritas por mujeres, es por lo que interesa analizar los componentes de su rareza, relacionándolos con la época en que este tipo de mujer empieza a tomar cuerpo. (MARTÍN GAITE, 1999, pp. 111-112) Aqui vemos que Carmen Martín Gaite se coloca como escritora, revelando fazer parte de um grupo de mulheres que inovaram a literatura espanhola de autoria feminina, inovando na maneira como os personagens femininos eram tratados nos romances. O ensaio é, pois, uma forma de explicação de sua própria obra literária. Também a metáfora da janela, observada no título do livro, é frequentemente utilizada nos livros de Carmen Martín Gaite como símbolo de liberação feminina. Era 98 através da janela que a mulher sonhava com mundos que lhe eram proibidos, já que seu papel na sociedade lhe restringia ao espaço doméstico. A janela, em quase todos os seus romances, aparece como símbolo de busca ou necessidade de liberdade. Seu ensaio está, pois, em consonância com sua própria obra de ficção além de revelar suas precursoras e seus referenciais teóricos. O livro La búsqueda de interlocutor, publicado em 1974, reúne diversos artigos publicados anteriormente em periódicos. O artigo de mesmo nome, objeto de nossa análise foi publicado no ano de 1966 na Revista de Occidente e faz parte dessa compilação na qual os artigos, em sua grande maioria, abordam superficial ou profundamente o tema da necessidade de interlocução. Este tema é um dos mais recorrentes na obra de Carmen Matín Gaite e está presente tanto em sua obra ensaística quanto em sua obra ficcional. O artigo ―La búsqueda de interlocutor‖ é um ensaio breve. Em suas dez páginas, a autora tece diversas considerações sobre a necessidade de narrar e de que essa narração seja destinada a um interlocutor. A capacidade narrativa é intrínseca a todo ser humano e, segundo Carmen Martín Gaite, nem sempre encontra uma realização satisfatória na conversação com os outros. Em um primeiro momento, esse impulso narrativo se realiza interiormente. Ou seja, antes de contar aos outros qualquer acontecimento, este já é narrado para si mesmo, em seguida vem a necessidade de narrar aos outros. Desta necessidade deriva a busca de interlocutor. A busca desse interlocutor, para a escritora, é uma constante na vida das pessoas. Carmen Martín Gaite diferencia a narração oral da escrita. Na primeira, a existência de um interlocutor é uma condição para a realização da própria narração. Já na narração escrita a existência de um interlocutor é necessária, mas não imprescindível, já que ele 99 pode até ser inventado pelo escritor e inserido na própria narração. Este procedimento é um recurso tradicional na literatura como vemos no fragmento a seguir: La narración dentro de la narración es un recurso que se repite desde la más remota literatura hasta nuestros días. No sé resistirme a traer como ejemplo, al respecto de la implicación del interlocutor en la órbita del narrador, un caso extremo de sabiduría literaria: el de la sultana de las Mil y una noches, quien dejando pendiente para el otro día un fragmento de narración comenzada, cautivó a su señor mucho más profundamente que con el mayor refinamiento de lascivia.(MARTÍN GAITE, 2000, p. 27-28) Para Carmen Martín Gaite, a recorrência desta técnica na literatura não é somente um recurso herdado de gerações anteriores de escritores, mas sim, corresponde a própria necessidade da existência de um interlocutor dentro do relato. Este é um artifício que, muitas vezes, serve para dar suporte ao relato. Bien o mal empleado, este recurso, cada vez que aparece, es reflejo de una intrínseca necesidad del relato, y, aunque no niego que puede pesar la herencia literaria, me inclino a suponer que si no estuviera inventado, se inventaría espontáneamente siempre que el escritor, al considerar su soledad, en esos momentos que la narración parece no tener soporte y amenazar con venirse abajo, necesitara apuntarla nuevamente contra algo, o mejor dicho, contra alguien. (MARTÍN GAITE, 2000, p.28) A busca de interlocutor é também, para Carmen Martín Gaite, a concretização de um desejo de acabar com a solidão, com a incomunicabilidade. É a experiência da incomunicabilidade que leva o escritor a buscar sempre a quem possa destinar seus relatos. Y con esto creo llegado el momento de aventurar una suposición que para mi tiene muchos visos de evidencia: la de que nunca habría existido invención literaria alguna si los hombres, saciados totalmente en su sed de 100 comunicación, no hubieran llegado a conocer, con la soledad, el acuciante deseo de romperla. (MARTÍN GAITE, 2000, p.28) A autora também chama atenção para o aspecto lúdico da narração. Entenda-se como lúdico algo que dá prazer e diverte. Certamente, ao empreender um processo narrativo, o escritor o faz tanto para atender aquela necessidade já abordada anteriormente de buscar um interlocutor rompendo com sua solidão, quanto para realizar algo que lhe dê prazer, satisfação e divertimento. Nisto consiste o caráter lúdico da literatura. Para Carmen Martín Gaite, este aspecto lúdico revela um exercício de liberdade individual pleno do prazer de opinar e de intervir na conjuntura da vida. A autora também explica que não há originalidade na literatura. Não é possível escrever nada novo, pois tudo já foi criado. No entanto, a esperança de criar obras novas, ou seja, o anseio de originalidade motiva os escritores a continuar criando. E mesmo diante da impossibilidade de produzir algo totalmente novo, o desejo de consegui-lo o move. Além disso, a certeza de que seus escritos encontrarão, em algum momento, com o público que irá lê-los, é o estímulo necessário para sua criação literária. Em ―La búsqueda de interlocutor‖, também é possível aplicar a teoria sobre o gênero ensaístico desenvolvida por Gómez Martínez, conforme vimos no início deste trabalho, já que há vários aspectos do gênero assinalados pelo teórico que se concretizam no texto de Carmen Martín Gaite. A primeira característica que nos chama a atenção é o uso da primeira pessoa ao longo do ensaio, o qual pode nos remeter ao subjetivismo do gênero o qual se manifesta de várias maneiras em obras que são consideradas ensaios. Este subjetivismo marca a posição que a autora ocupa no próprio 101 trabalho, apresentando suas opiniões sobre o tema tratado. Mais que isto, a autora revela suas concepções a respeito do processo de criação literária, mais especificamente, a narração. Sendo Carmen Martín Gaite uma escritora que, fundamentalmente, constrói seu percurso literário na composição de obras narrativas, vemos que este subjetivismo presente em ―La búsqueda de interlocutor‖ remete-nos diretamente ao caráter autobiográfico do ensaio, o qual se manifesta de duas maneiras diferentes, neste ensaio. Primeiramente, vemos a autora colocar-se como escritora dentro do próprio ensaio, expressando sua necessidade de criar e de narrar, revelando os sentimentos que acometem um escritor em seu processo de elaboração de uma obra narrativa. Pero el escritor, aunque haya pensado esto42 muchas veces, aunque haya vislumbrado la vanidad de su aportación personal e incluso el aumento de caos que supone, escribe, a pesar de todo. No le basta con consumir, quiere crear, decir lo suyo, nuevo o viejo. Y cuanto más suyo lo haya hecho antes de decirlo, cuanto más lo grite desde su limitación y soledad, desde su objetividad insatisfecha, más fuerza tendrá para atravesar un día esa muralla opresora que le sofoca. (MARTÍN GAITE, 2000, pp. 31-32) Percebe-se pela intensidade sentimental deste fragmento que a autora descreve as emoções que o processo de criação desperta nela mesma. Palavras ou expressões como ―limitação‖, ―solidão‖, ―subjetividade insatisfeita‖, ―muralha opressora‖, ―sufoca‖, utilizadas neste contexto, são dotadas de uma carga semântica emocional e psicológica que demonstra que a autora fala de si mesma, pois não poderia estar falando de outro escritor, a menos que ele lhe houvesse confessado tais sentimentos. Aliás, são justamente esses termos que assinalam o caráter confessional presente em ―La búsqueda de interlocutor‖. A autora revela que o ato de escrever constitui para ela um momento de liberação onde encontra alívio para a solidão e a insatisfação. 42 Refere-se à questão da busca da originalidade na criação literária. 102 Outra manifestação do caráter autobiográfico refere-se ao posicionamento da escritora como leitora. O ensaio apresenta várias leituras que a autora realizou. Carmen Martín Gaite inclui em seu texto o pensamento de outros escritores, ao mesmo tempo que constrói um discurso em primeira pessoa. Com isso, ela coloca diante do leitor de seu ensaio uma seleção de leituras que, além de corroborar seu pensamento, revelam preferências literárias, já que utiliza na composição de seu ensaio referências a autores que enriquecem e ilustram suas próprias idéias a respeito da elaboração do texto narrativo. Deve-se salientar que o texto de Carmen Martín Gaite faz transparecer suas leituras, o que faz parte do processo de construção de seu próprio pensamento sobre o tema tratado. Alberto Giordano, inicia o capítulo ―Del ensayo‖43, apresentando como epígrafe um fragmento de texto de Eduardo Grüner que ressalta o aspecto autobiográfico do ensaio, relacionando-o à leitura: ... permita-se-me sugerir – y es una idea que tomo en préstamo de Roland Barthes – que si me siento a escribir el relato de todas las veces que ―he levantado la cabeza‖ provocado por la lectura, eso es un ensayo. Y esto transformaría al ensayo en una especie de autobiografía de lecturas: no tanto en el sentido de los ―libros en mi mi vida‖, sino más bien en el de los libros que han apartado al ensayísta de ―su‖ vida: que lo hicieron escribir, derramar su lecturas sobre el mundo...- Eduardo Grüner (GIORDANO, 1991, p. 109) Refletindo sobre este fragmento, vemos que em ―La búsqueda de interlocutor‖, Carmen Martín Gaite concretiza parte de sua autobiografia literária, realizando um diálogo entre suas concepções a respeito da criação de seus relatos e as leituras em que são retratadas um pouco dessas idéias. Nota-se, no entanto, que, em ―La búsqueda de interlocutor‖, o aproveitamento das leituras se dá através de citações indiretas, onde as 43 Em: GIORDANO, Alberto. Modos del ensayo. Rosario: Beatriz Viterbo, 1991. 103 referências aos textos lidos não são completas. Normalmente, há alusão ao nome do autor e a incorporação das idéias desse autor no próprio corpo do texto. Portanto, na maioria das vezes a autora prescinde da citação. Certamente, este procedimento vem determinado pelo tipo de ensaio que temos. ―La búsqueda de interlocutor‖ é um ensaio breve que foi publicado na Revista de Occidente. Deve-se, pois, considerar que a limitação espacial de uma revista literária também é uma condicionante da forma do ensaio. Para concluir, ressaltamos que a importância do ensaio para Carmen Martín Gaite revela-se no jogo intertextual estabelecido entre as reflexões elaboradas nesse tipo de texto e sua prática ficcional. A análise de um corpus ensaístico e ficcional da escritora comprova a coerência de seu pensamento teórico com o exercício de criações fictícias como El cuarto de atrás, para citar somente uma obra. Porém, sabemos que esta obra sintetizou o pensamento expresso em toda sua criação anterior e antecipou aspectos que viriam a ser tratados posteriormente, como vimos em Usos amorosos de la postguerra española. Não podemos deixar de mencionar a relação de seus ensaios com sua própria biografia, que, como vimos no capítulo inicial, é uma biografia literária de uma escritora que dedicou mais de quarenta anos de vida à literatura, seja escrevendo ou lendo. Uma leitura que certamente se converteu em escritura. 104 2.3 – Definições e redefinições do gênero autobiográfico. Nossa reflexão inicial sobre o gênero autobiográfico terá como ponto de partida os estudos de Georges Gusdorf em ―Condiciones y límites de la autobiografia‖44 e Philippe Lejeune em ―El pacto autobiográfico‖45. O primeiro autor que vamos estudar estrutura seu texto a partir da tentativa de definição da autobiografia. Gusdorf afirma que a autobiografia é um gênero literário firmemente estabelecido cuja história apresenta uma série de obras mestras. Segundo ele, o gênero serviu a muitos homens para contar seus feitos e glorias, desde chefes militares, ministros e exploradores, até homens de negócios. Já no início do texto, Gusdorf apresenta como objetivo o estabelecimento das condições que cercam a criação de obras autobiográficas. A primeira condição apontada no texto é que este gênero está limitado no tempo e no espaço, prova disto é que não existiu sempre e nem em todos os lugares. A autobiografia é uma manifestação cultural típica do homem ocidental e, segundo Gusdorf, somente pode ocorrer em um meio cultural em que exista a consciência de si. Nas sociedades primitivas a autobiografia seria um produto inviável visto que nelas não havia consciência da personalidade individual, já que a coletividade se sobrepunha à individualidade. A necessidade de se contar a vida de um indivíduo veio com a saída do quadro mítico das sabedorias tradicionais e entrada no ―reino perigoso da história‖. A partir de uma consciência histórica, a memória passa a ser a forma de preservação do passado para as gerações futuras. 44 GUSDORF, Georges. Condiciones y limites de la autobiografía. Anthropos Suplemento, 29. La autobiografía y sus problemas teóricos. Dez, 1991, pp. 9-18. 45 LEJEUNE, Phillipe. “El pacto autobiográfico”. Idem., pp. 47-61. 105 La historia quiere ser la memoria de una humanidad que marcha hacia destinos imprevisibles, lucha contra la descomposición de las formas de los seres. Cada hombre es importante para el mundo, cada vida y cada muerte; el testimonio que cada uno da de sí mismo enriquece el patrimonio común de la cultura. (GUSDORF, 1991, p.10) Gusdorf associa o interesse (e o assombro) do homem pelo seu próprio destino à revolução copernicana da entrada na história. Se antes a humanidade subordinava o seu futuro aos grandes ciclos cósmicos, a partir desse momento se percebe dona do seu próprio destino e do domínio das ciências. O homem se conscientiza de seu poder criador, construtor de reinos, inventor de um código de sabedoria. Nesse contexto surge o personagem histórico cuja trajetória é digna de ser registrada e preservada para o futuro. ...la biografía representa, junto a los monumentos, las inscripciones, las estatuas, una manifestación de su deseo de permanencia en la memoria de los hombres. Las vidas ejemplares de los hombres ilustres, de los héroes y de los príncipes, les conceden una especie de inmortalidad literaria y pedagógica para la edificación de los siglos futuros. (GUSDORF, 1991, p.10) A autobiografia, fruto do mesmo desejo de permanência que inspirava a biografia, tem como impulso uma nova revolução espiritual, ―o artista e o modelo coincidem, o historiador torna a si mesmo como objeto. Gusdorf ressalta a importância de questões psicanalíticas referentes ao ―duplo‖ (doble) na evolução da autobiografia e toma o mito de Narciso e a imagem do espelho como base para sua teoria da autobiografia. A imagem no espelho passa a fazer parte da vida cotidiana a partir do final da Idade Média. Os psicanalistas puseram em evidência o papel dessa imagem na consciência progressiva que a criança vai tomando de sua personalidade. Este é um fator importante na descoberta de sua própria identidade. O olhar sobre si mesmo é um ato 106 revelador da própria identidade. A autobiografia, para Gusdorf, também constitui uma espécie de espelho. O teórico situa o surgimento da autobiografia no início da idade Moderna e o associa à ascésis do exame de consciência, dando-nos como exemplo as Confissões de Santo Agostinho. El cristianismo hizo prevalecer una antropología nueva, cada destino, por más humilde que sea, supone una suerte de apuesta sobrenatural. Tal destino se desarrolla como un diálogo con Dios, en el que, y hasta el final, cada gesto, cada pensamiento o cada acto pueden ponerlo todo en entredicho. (GUSDORF, 1991, p.11) A confissão dos pecados, regra da doutrina católica, dá ao exame de consciência um aspecto sistemático e obrigatório. Santo Agostinho, em seu livro, responde a esta exigência dogmática. O olhar cristão sobre si mesmo, presente na obra do santo, é um olhar determinado pela relação espiritual com Deus, é um olhar permeado pela noção de pecado e culpa, trazendo certa angústia no ato da autocontemplação. Da Idade Média, Gusdorf parte para o Renascimento, destacando que a desintegração de dogmas trazida pelo renascimento e pela reforma faz com que o homem passe a ver-se como é, longe de qualquer premissa transcendental. Como exemplo de texto autobiográfico desta época, Gusdorf aponta os Ensaios de Montaigne, fruto de uma época em que se cultiva a individualidade. E é nesse tipo de autobiografia que vemos a origem da autobiografia tal qual a concebemos hoje em dia. Gusdorf parte, então, para uma caracterização do gênero, visando explorar basicamente as intenções de seus autores e seus traços predominantes. Primeiramente, vemos que o autor de uma autobiografia tem como objetivo contar a sua própria história, reunindo os elementos dispersos de sua via pessoal, 107 agrupando-os num esquema conjunto. Para tal feito, é preciso que o autor se situe a uma certa distância de si mesmo, a fim de reconstituir-se em sua unidade e em sua identidade através do tempo. La intención consubstancial a la autobiografía y su privilegio antropológico en tanto género literario, se muestran así con claridad: es uno de los medios del conocimiento de uno mismo, gracias a la reconstitución y al desciframiento de una vida en su conjunto. Un examen de consciencia limitado al momento presente no me dará más que un trozo fragmentario de mi ser personal. Al contar mi historia, tomo el camino más largo, pero ese camino que constituye la ruta de mi vida me lleva con más seguridad a mí mismo. (GUSDORF, 1991, p.13) Mas é importante perceber que a autobiografia não é uma simples recuperação do passado, já que esta corresponde a um mundo que se foi para sempre. O simples fato de que o ser que busca essa recuperação já não é o mesmo do tempo que se foi, torna impossível tal recuperação absoluta. O mais importante do processo é a própria busca de si mesmo, já que ―El paso de la experiencia inmediata a la consciencia en el recuerdo, la cual lleva a cabo uma especie de recapitulación de esa experiencia, basta para modificar el significado de esta última‖ (GUSDORF, 1991, p.14). A modificação do significado da experiência vivida passa também por um processo de seleção dos fatos que deverão compor a narrativa. O autor, em sua transposição da experiência vivida para a experiência narrada, fará uso de procedimentos voluntários ou não, que deformarão aquele passado que pretende recuperar. Los olvidos, las lagunas y las deformaciones de la memoria se originan ahí: no son la consecuencia de una necesidad puramente material resultante del azar, por el contrario, provienen de una opción del escritor, que recuerda y quiere hacer prevalecer determinada versión revisada y corregida de su pasado, de su realidad personal (GUSDORF, 1991, p.15) 108 Gusdorf aponta para a necessidade de se buscar o significado da autobiografia. Nessa busca de significação, nos deparamos com a questão da verdade no texto autobiográfico. Sendo a autobiografia um documento sobre uma vida, o historiador pode comprovar a veracidade dos fatos narrados. Mas além de testemunho de uma vida, a autobiografia também é uma obra literária, cujo valor artístico é inquestionável. Para Gusdorf a função literária tem mais importância que a função história. Por outro lado, sua significação antropológica é mais importante ainda que a significação literária. Este tipo de produção é a expressão de uma necessidade humana de contar o que se viveu, revelar o passado, guardar a memória testemunhando fatos que poderiam ser perdidos para sempre, além disso, autobiografar-se é uma experiência de autodescobrimento, de autoanálise e de reconstrução de si mesmo. Toda autobiografía es una obra de arte, y al mismo tiempo, una obra de edificación; no nos presenta al personaje visto desde fuera, en su comportamiento visible, sino a la a persona en su intimidad, no tal como fue, o tal como es, como cree y quiere ser y haber sido. Se trata de una especie de recomposición realzada del destino personal; el autor, quien es al mismo tiempo el héroe de la historia, quiere elucidar su pasado a fin de discernir la estructura de su ser en el tiempo. (GUSDORF, 1991, p. 16) Gusdorf reflete sobre a autobiografia destacando que nela o autor se esforça para dotar de sentido a sua própria vida. Se no texto de Gusdorf vimos, algumas questões filosóficas que permeiam a criação autobiográfica, no texto de Philippe Lejeune, ―El pacto autobiográfico‖, estudaremos mais detalhadamente seus aspectos teóricos. O crítico francês inicia seu estudo questionando se é possível definir a autobiografia. A partir de uma perspectiva de leitor, como ele mesmo afirma, apresenta sua definição: ―Relato retrospectivo em prosa que uma pessoa faz de sua própria existência, 109 enfatizando sua vida individual e, em particular, a historia de sua personalidade‖ (LEJEUNE, 1991, p. 48). De maneira esquemática, Lejeune verifica que esta definição coloca em jogo elementos de quatro categorias diferentes. A primeira categoria é a forma de linguagem (narração em prosa); a segunda, o tema tratado (história de uma personalidade); a terceira, a situação do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador; por último, a posição do narrador (identidade narrador/ personagem principal, perspectiva retrospectiva do narrador). Todo o estudo de Lejeune se desenvolverá a partir dessas categorias identificáveis nos textos autobiográficos. A questão da identidade do autor que coincide com a do personagem principal e com o narrador, apresenta-se como a principal condição para que o texto se configure como uma autobiografia. Como se manifesta essa identidade no texto? Basicamente pelo uso da primeira pessoa (EU), no entanto, Lejeune assinala a existência de textos considerados autobiográficos, mas com o uso da terceira pessoa. Este procedimiento ha sido empleado por razones muy diversas y ha producido efectos muy diferentes. El hablar de uno mismo en tercera persona puede implicar un inmenso orgullo (caso dos Comentarios de César, o de algunos textos del General De Gaule), o de cierta forma de humildad (caso de ciertas autobiografías religiosas antiguas, en las que el autobiógrafo llama a sí mismo ―siervo del señor‖). (LEJEUNE, 1991, p.49) Através desse procedimento, o narrador estabelece uma distância entre a pessoa que é no presente e a pessoa que foi no passado. Com relação ao uso da primeira pessoa, nota-se que se define pela articulação de dois níveis, o da referência e o do 110 enunciado. No primeiro, o pronome pessoal só tem referência real no interior do discurso, no segundo, os pronomes pessoais de primeira pessoa assinalam a identidade do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado. Outra questão tratada por Lejeune é a do nome próprio. O nome próprio remete a uma identidade. Para o autor a pessoa e o discurso se articulam através do nome próprio, antes mesmo de articular-se com a primeira pessoa. ―Todas as identificações (fáceis, difíceis ou indeterminadas) sugeridas antes a partir de situações orais, levam fatalmente a converter a primeira pessoa em um nome próprio.‖ (LEJEUNE, 1991, p.51) A questão do nome próprio na autobiografia é essencial, visto que nesse tipo de texto o nome próprio que aparece na capa do livro remete ao autor, personagem da narrativa apresentada. O nome é também o indício de uma realidade extratextual (verídica), que remete a uma pessoa real. Esta relação com o mundo real também indica a responsabilidade do autor com a verdade dos fatos narrados e, por conseguinte, a verificabilidade desses fatos por parte do leitor. Para Lejeune, isto caracteriza uma espécie de contrato social. O autor não será somente uma pessoa, mas uma pessoa que escreve e publica, no caso do autor de autobiografia, é preciso que ele tenha escrito e publicado outros textos anteriormente, tornando-se conhecido dos leitores e criando o Lejeune chama de ―espaço autobiográfico‖. El autor es, por lo tanto, un nombre de persona, idéntico, que asume una serie de textos publicados diferentes. Obtiene su realidad de la lista de esas otras obras que suelen encabezar el libro ―Del mismo autor‖. La autobiografía (narración que cuenta la vida del autor) supone que existe una identidad de nombre entre el autor (tal como figura, por su nombre, en la cubierta), el narrador y el personaje de quien se habla. Este es un criterio muy simple, que define, al mismo tiempo que a la autobiografía e, todos los demás géneros de literatura íntima (diario, autorretrato, ensayo). (LEJEUNE, 1991, p.52) 111 Associada à questão do nome próprio está a do uso de pseudônimos ou nomes fictícios. Um texto que apresenta o nome próprio dessa forma seria uma autobiografia? Para Lejeune esse texto se enquadraria em outro tipo de gênero: o romance autobiográfico. A autobiografia supõe, portanto, uma identidade assumida através do nome próprio do autor e é a partir dessa identidade que Lejeune estabelece sua formulação de ―pacto autobiográfico‖. Comparando um romance autobiográfico com uma autobiografia propriamente dita, pode-se notar que não há diferença entre um tipo de texto e outro, se os analisarmos somente internamente. O que caracteriza um ou outro gênero é justamente o pacto de leitura que se firma com o leitor. O pacto autobiográfico se estabelece a partir da identidade entre autor, narrador e personagem e o conhecimento do leitor sobre essa identidade. Este conhecimento é transmitido ao leitor de maneira implícita ou explícita. Implicitamente, esta identidade pode tornar-se evidente através de títulos (Historia de mi vida); através da parte inicial do texto onde o narrador se comporta como autor do texto, deixando claro que a primeira pessoa remete ao nome do autor expresso na capa. Paralelamente ao pacto autobiográfico teremos o pacto romanesco ou fictício, onde ocorre exatamente o contrário; a afirmação da não identidade entre autor e personagem. Lejeune esquematiza um quadro teórico referente a esses pactos de leitura, articulando os elementos da narrativa envolvidos, ou seja, autor, narrador e protagonista. Através deste quadro, pode-se observar as possíveis combinações que geram os diferentes pactos de leitura. Observemos o quadro de Lejeune: 112 Nome do personagem ≠ nome do autor =0 1a 2ª Romance Romance 1b 2b 3ª Romance indeterminado Autobiografia 2c 2b autobiografia Autobiografia = nome do autor Pacto Romanesco =0 Autobiográfico Explorando o quadro acima, confirmamos algumas idéias já expostas anteriormente, como a identidade entre o nome do personagem e o nome do autor no pacto autobiográfico e a não identidade entre esse elementos da narrativa no pacto romanesco. Os textos Gusdorf e Lejeune comentados acima, têm servido como ponto de partida para a elaboração de uma teoria da autobiografia nas últimas décadas. Como vimos, ambos os teóricos, a partir de perspectivas diferentes, tem o propósito de delimitar este gênero literário. No entanto, estudos mais recentes caminham na direção de uma teoria que contempla justamente a indefinição dos limites entre a autobiografia e a ficção. Para Darío Villanueva, em ―Realidad y ficción: la paradoja de la autobiografía‖46, a autobiografía é ficção quando a consideramos a partir de uma perspectiva genética, pois com ela o autor não pretende reproduzir, mas sim criar seu 46 Em: Escritura autobiográfica. Actas del II seminário Internacional del Instituto de Semiótica Literaria y Teatral. Madrid: Visor Libros, 1993, pp. 16-29. 113 eu; mas a autobiografia é verdade para o leitor, que faz dela, com maior facilidade que o do que com qualquer outro texto narrativo, uma leitura intencionalmente realista. Villanueva considera que a autobiografia, enquanto gênero literário, possui uma virtualidade criativa, mais que referencial, sendo, portanto instrumento mais propício para construção de identidade do ―eu‖ que para a reprodução. Citando Carlos Castilla del Pino47, Villanueva acrescenta que a autobiografia é, antes de tudo, auto-engano. Pois o autor se autocensura, e, para os leitores é simplesmente mentira, ou talvez, uma meia verdade. E a partir de Paul de Man, afirma que o que a autobiografia apresenta é uma ―ilusão de referência‖, e, enquanto fenômeno literário, está submetida pragmaticamente a um determinado modo de leitura e compreensão. ―Su identidad es, pues, no solo representacional y cognitiva sino contractual, basada no en tropos sino en actos de habla‖. A citação reforça o aspecto pragmático do texto autobiográfico, já que, por estabelecer uma relação de confiança com o leitor, no chamado contrato de leitura, realiza-se como ato de comunicação. Mas o que se comunica na autobiografia? Vimos em Lejeune que se trata de um relato retrospectivo de uma vida, contado pela própria pessoa que a viveu. Entretanto, o que estamos questionando aqui, é o estatuto de ―verdade‖ ou ―realidade‖ defendido pelos iniciadores da teoria autobiográfica, em especial Lejeune, ou seja a questão da verificabilidade dos fatos narrados. Na verdade, neste relato retrospectivo é evidente que há uma seleção, bem como os esquecimentos, como já comentamos aqui. Estes são os primeiros passos para a possibilidade de ficcionalização na autobiografia. À medida que o autobiógrafo, com a autoridade de autor, determina que fatos de sua vida merecem ser recordados em uma autobiografia, há o que se pode chamar de construção da identidade do autor. Este processo de 47 Comenta a partir de CASTILLA DEL PINO, Carlos. Autobiografías. Temas. Hombre, cultura, sociedad. Barcelona: Península, 1989. 114 construção também é, em certa medida, um processo de descoberta, onde o escritor, além de se descobrir a si mesmo, deve perceber o quanto suas vivências se conectam com as alheias, bem como deve prever o impacto dessas vivências no outro, já que deve levar em consideração a recepção de seu texto. Em ―Figuras de autobiografia‖, Anna Caballé retrata bem esta questão, referindo-se à literatura do ―eu‖, a qual abrange a autobiografia: Pero muy pocos, decíamos, emprenden un acto de escritura encaminado a descubrir la mismidad (concepto que surge a la medida en que el yo se ha ce a sí mismo) convirtiéndola en sujeto de la acción, en argumento de la obra. Y la literatura del yo, o del mí, atiende precisamente al conjunto de esos actos de escritura en los que el autor se enfrenta explícitamente con experiencias para descubrir después en qué medida sus vivencias conectan con las de otros y, en definitiva, con el lector. Claro que la necesidad de tener en cuenta a quienes han de recibir la obra obliga al autobiógrafo, en general, a seleccionar su material en una determinada dirección; a no enfrentarse demasiado, por ejemplo, con los sentimientos y las opiniones imperantes; a respetar en lo posible convicciones y tradiciones culturales; a reprimir, en fin, la libre reflexión sobre uno mismo y reducirla a cauces aceptables por temor a ser penetrado, descifrado, desposeído de todos sus secretos, juzgado. (CABALLÉ,1987, p.105) Aquí está em evidência a recepção do texto autobiográfico. Esta certamente exerce influência na construção do texto, posto que, como acabamos de ler, sempre estará presente a possibilidade do julgamento, o qual o autobiógrafo possivelmente não deseje enfrentar com todos os detalhes de sua vida à mostra. Aliás, Villanueva, no artigo que já comentamos, afirma que escrever autobiografia implica em um certo tom irônico, do qual o leitor, por sua vez, não deixará de participar. Ou seja, a autobiografia pode instituir-se em um jogo de verdades e mentiras (talvez omissões), realidade e ficção Vemos, então, a possibilidade de ultrapassar limites genéricos, já que há uma desestabilização do gênero autobiográfico pela ficcionalização. 115 Neste ponto, vale a pena trazer a revisão e os questionamentos que Manuel Alberca faz da teoria de Lejeune em um artigo que trata da autobiografia e da autoficção intitulado ―Es peligroso asomarse (al interior). Autobiografía vs. Autoficción‖. Para o crítico espanhol, a teoria da autobiografia escrita pelo estudioso francês tem o mérito de sistematizar e desfazer confusões em torno ao tema da autobiografia. A la teoría de Lejeune se le han hecho a veces oportunamente observaciones y matizaciones, pero no se le podrá negar la virtud de haber fijado unas pautas precisas de lectura y escritura que consiguieron sacar del confusionismo las erróneas ideas por las que se igualaban novela y autobiografía, las cuales no solían distinguir el autobiografismo difuso o intencional del autor del verdadero compromiso autobiográfico, de tal modo que nunca clarificaban cuándo el lector estaba legitimado para tomar un indicio textual como signo autobiográfico y cuando como confesión del autor. (ALBERCA, 2009, p.2) A contribuição da noção de pacto autobiográfico pode ser considerada um avanço no estudo do gênero. Inicialmente, Alberca enfatiza a relação que se estabelece entre o autobiógrafo e o leitor. Repetindo as palavras de Lejeune, o autobiógrafo pede ao leitor que confie nele, que acredite nele, porque se compromete a contar-lhe a verdade de sua vida. Alberca também relembra a contribuição de Gerard Genette que ―batizou‖ de paratexto o conjunto de informações que cercam o texto, mas que não são o texto propriamente dito. No caso da autobiografia, são elementos fundamentais, como o título, o nome do autor, a classificação genérica, os elementos gráficos e icônicos, etc. Estes elementos conectam a texto autobiográfico com o mundo real, ou seja, são elementos de referencialidade externa. O que fica em evidência no pacto autobiográfico, e que provoca a grande discussão sobre o gênero literário em questão, são os princípios ou as aspirações do autor: o princípio de identidade e princípio de veracidade. El primero es el compromiso o el esfuerzo del autor para convencer al lector de que quien dice ―yo‖ en un texto autobiográfico es la misma persona que firma en la portada y, por lo tanto, se responsabiliza de lo que es ―yo‖ dice. 116 El llamado ―principio de identidad‖ consagra o establece que autor, narrador y protagonista son la misma persona, puesto que compartem y responden al mismo nombre propio, que cobra el valor de signo textual y paratextual y de clave de lectura. (ALBERCA, 2009, p.3) Por ser este um princípio controvertido, o nome próprio torna-se um recurso indispensável na distinção entre autobiografia e romance. O nome próprio, com seu referente preciso (o autor do texto), é o primeiro indício de veracidade do texto. Além disso, como acrescenta Alberca, o nome não é uma simples etiqueta, mas sim está intimamente ligado à construção da própria personalidade, individual, familiar e social. A importância da identidade nominal tanto na autobiografia quanto na vida cotidiana é mais do que uma questão de registro civil, pois as pessoas não existem socialmente até que se lhe seja dado um nome. A identidade se firma em torno de um nome. O segundo compromisso assumido pelo autobiógrafo constitui o princípio de veracidade: La otra promesa o compromiso del autor con el lector alude a la referencialidad externa de la realidad que el texto enuncia, es decir, su veracidad. Lo que se cuenta en el texto se hace como un expediente de realidad, de algo realmente acaecido y comprobable a veces por el lector, que espera o exige el máximo de correspondencia entre el texto y la realidad nombrada por éste. El autor puede equivocarse o confundirse, pero lo cuenta convencido o persuadido de su veracidad, además, como dije antes, de anunciarlo y prometerlo al lector. A este principio Lejeune le llama ―pacto de referencialidad‖. (ALBERCA, 2009, p. 4) Alberca explica que a referencialidade do gênero autobiográfico, ao contrário do que se possa pensar, não está ameaçada pela possível desconfiança que o leitor possa ter com relação à verdade dos fatos narrados. Ao contrário, este sentimento reafirma o pacto, já que aumenta a exigência e a expectativa a respeito da veracidade do texto que o leitor acumula diante de uma autobiografia. 117 Mas esta questão da veracidade é muito discutida, já que é impossível alcançar a verdade absoluta, em particular de uma vida humana, mas a busca e o desejo de alcançá-la definem, a partir de uma perspectiva do autobiógrafo e do leitor uma expectativa que não é ilusória, mas bastante real e humana. É importante ressaltar que a autobiografia, por pretender contar a vida de uma pessoa, acaba por abranger também a vida das pessoas que compõe a rede de relações pessoais, familiares ou amorosas, bem como profissionais do autor, logo a violação do princípio de veracidade pode ter consequências reais fora do texto, inclusive de caráter judicial, como ressalta Alberca. ―El pacto autobiográfico produce consecuencias reales fuera del texto, e incluso de carácter judicial, si éste incurre en la mentira, en el perjurio o en la difamación y también cuando se entromete en la vida privada de otros‖. Para encerrar nossas reflexões sobre o gênero autobiográfico, pensemos um pouco sobre a evolução de gênero, já que no contexto pós-moderno, não se pode falar em gêneros estáveis como o que parece ser configurado a partir da teoria de Lejeune. Há certamente uma desestabilização da autobiografia, a qual se faz evidente no pósmodernismo, pois, como afirma Villanueva, ao pretender articular mundo, texto e o ―eu‖, a autobiografia não deveria ignorar o asédio crescente a que estão sendo submetidos conceitos como história, poder, sujeito, temporalidade, memória, imaginação, representação ou retórica. No artigo ―Filiações e rupturas do modelo autobiográfico na pós-modernidade‖, de Christine Delory-Momberger, faz-se uma reflexão a respeito de como, atualmente, ou seja, no contexto pós-moderno, os indivíduos representam suas vidas. O artigo tem como objetivo identificar as formas, ou modelos que impregnam as construções biográficas nas sociedades ditas pós-modernas. Para isto, a autora lança mão de uma 118 revisão de alguns pressupostos relacionados à própria natureza da representação biográfica. O primeiro pressuposto é o da representação biográfica em si mesma. A autora afirma que os homens não têm uma relação direta com o vivido. Eles apreendem as experiências vividas a partir de esquemas, de figuras, que tomam formas narrativas. Enfim, os homens representam sua vida na linguagem, na sintaxe das narrativas, fazendo de suas vidas uma ou várias histórias... E isso não apenas quando a contam em atos de narrar deliberados, dirigidos a outros ou a si mesmos, mas de forma incessante; na atividade mental de representação e de construção de se, pela qual cada indivíduo verifica, mantém, elabora a figura interior e exterior que ele reconhece, ou sente Omo sendo si mesmo. Essas figuras da vida representada, que não devem ser confundidas com a realidade, a facticidade do vivido, é que eu chamo de biografia (etimologicamente escritura da vida, e chamo biografização o trabalho psico-cognitivo de configuração temporal e narrativa, pelo qual os homens dão uma forma própria ao desenrolar e às experiências de suas vidas. (DELORY-MOMBERGER, 2009, p.99) O segundo pressuposto que a autora aborda relaciona-se com a dimensão histórica e cultural construída, portanto, dos modelos biográficos e com sua variabilidade histórica. O relato, e em particular o relato biográfico ou autobiográfico que nos interessa aqui, antes de tudo, não é um sistema rígido em uma estrutura imutável. As formas às quais os indivíduos recorre para biografar sua vida não são apenas seus feitos, elas não lhes pertencem propriamente e eles não podem decidir, eles mesmos, integralmente sobre elas: são formas coletivas que pertencem à história, à cultura, ao social e que obedecem às variações e às evoluções sócio-históricas. Particularmente, os modelos narrativos que constituem, de algum modo, os padrões das construções biográficas varia com os tipos e os modos de relação que os indivíduos mantêm com a coletividade segundo as épocas e as culturas. (DELORY-MOMBERGER, 2009, p.99) Neste sentido a autora apresenta como uma das formas narrativas consideradas como um modelo biográfico o ―Bildungsroman‖ ou ―romance de formação‖. O 119 ―romance de formação‖ tem como característica estar estruturado a partir das etapas de desenvolvimento do herói, desde a juventude até a idade madura. A narrativa se abre com a entrada do personagem no mundo, e, em seguida vão se sucedendo as etapas marcantes de sua aprendizagem da vida, encerrando-se no momento em que ele atinge o autoconhecimento e a consciência de seu lugar no mundo. Conforme Christine DeloryMomberger, o percurso de formação da personagem do ―Bildungsroman‖ inscreve-se em um horizonte finalista ou teleológico. O trajeto da aprendizagem do personagem tem uma linha de evolução com ―errâncias‖ e ―retornos‖, onde há uma progressão na intensidade desta aprendizagem de maneira que cada fase de desenvolvimento traz uma lição qualitativamente superior a anterior. A dinâmica da narrativa, entre uma situação inicial de inocência e de inexperiência e uma situação terminal de maturidade ou maestria, encadeia os acontecimentos segundo uma causalidade final. Que convida a uma leitura retrospectiva: é a partir do fim, do objetivo atingido (ou não atingido) que se articulam as relações de causa e efeito e que o movimento da aprendizagem ganha sentido para o leitor, ou seja, encontra, ao mesmo tempo, sua orientação e sua significação Ora, essa construção acabada, que no romance de formação é, simultaneamente, um efeito da arte (não nos esqueçamos de que se trata de obras literárias, obras de ficção), e que responde a uma intenção didática (trata-se de instruir o leitor e relação a sua própria vida), vai se transportar, não obstante, a curva ideal que ele desenha, para o modelo de narrativa biográfica da modernidade. (DELORYMOMBERGER, 2009, p.102) Segundo Christine Delory-Momberger, o modelo narrativo inaugurado pelo ―Bildungsroman‖ ou narrativa de formação está relacionado a um estágio sóciohistórico da relação entre indivíduo e sociedade correspondente ao período histórico vivenciado pela sociedade européia do final do século XVIII. Um período marcado pelo aumento do poder e pela dominação progressiva da burguesia. Christine DeloryMomberger acrescenta que a sociedade burguesa, que estabeleceu suas bases no capital e na transformação do mundo pelo capital, definiu-se não só pelas relações de produção 120 e poder, mas também, ―por um conjunto de representações que dizem respeito à relação do indivíduo com a sociedade e que determinam uma estrutura da consciência de si‖. A ―concepção de indivíduo‖ gerada por esta nova configuração social é a de um ser responsável e autônomo, que agente de seu próprio caminho, um ser que se faz por si mesmo e deve encontrar seu lugar na sociedade. Essa representação de um devir individual portador de trans-formação integra as noções de concorrência, de risco, de luta pela vida, mas também de amostragem de possíveis, de alternativas, de escolha. Não é de se espantar que a noção filosófica e moral de Bildung seja elaborada nesse contexto sócio-histórico e que encontre um terreno favorável nas representações do indivíduo a ela vinculadas. É nesse modelo de projeção biográfica, nascido da inscrição particular do indivíduo nas sociedades burguesas liberais, que marcará por muito tempo e continuará a marcar, amplamente, as representações e as práticas biográficas. (DELORY-MOMBERGER, 2009, p.102) A investigação de Christine Delory-Momberger pretende responder ao questionamento sobre a que modelos de construção biográfica e a que tipos de narrativas os indivíduos das sociedades pós-modernas recorrem. Recorrendo à pesquisa do sociólogo americano Richard Senett, que no final dos anos setenta observou que os operários e os funcionários contavam a história de suas vidas de maneira linear e contínua, tendo como eixo estruturador e integrador a sua vida profissional, vinte anos mais tarde, o sociólogo pode verificar que a capacidade de produzir uma narrativa unificada da vida havia sido consideravelmente reduzida. No lugar daquelas narrativas lineares, o sociólogo pode coletar de seus informantes histórias fragmentadas relatadas com dificuldades para estabeldecer a continuidade e a permanência. O modelo narrativo ao qual apelam os primeiros informantes de Richard Senett é ainda herança do relato de formação, que faz do curso da vida, como já foi visto, um princípio dinâmico e prospectivo de desenvolvimento interno, contando as etapas de desenvolvimento de uma individualidade. E transforma as experiências da existência em ocasiões de aprendizagem de formação do ser individual. Banalizado, vulgarizado, este modelo de narrativa permanece na época moderna mais recente, ou seja, até os anos 70 – 121 como padrão biográfico de base. Ele responde à concepção de um indivíduo que tem um lugar na sociedade e que deve encontrá-lo através da experiência: corresponde ao mesmo tempo a uma estratificação econômica e social, em que as posições são claramente identificadas em termos de categorias sócioprofissionais, e onde os indivíduos desenvolvem um sentimento de identidade pessoal em relação ao seu percurso e sua atividade profissional. (DELORYMOMBERGER, 2009, p.104) Em contraposição a estas narrativas lineares que o sociólogo verificou em pesquisa até os anos setenta, as narrativas colhidas nos anos noventa já não eram dotadas da mesma unificação e integração. A vida profissional já não era o motivo organizador da narrativa dos informantes da pesquisa. Suas narrativas, por não estarem mais baseadas na atividade profissional, acabaram recorrendo ao que DeloryMomberger chama de ―superestimulação de seus recursos biográficos‖. As diferenças constatadas levam a pesquisadora a interrogar sobre as modificações sociais e sua influência no modo de narração biográfica. As transformações estruturais ocorridas nas sociedades ocidentais, a partir da década de setenta, tornaram muito mais complexas as relações sociais e de pertencimento dos indivíduos, potencializando os modelos biográficos correspondentes. A diversificação dos mundos sociais, as descontinuidades dos percursos pessoais e profissionais, a coexistência na vida dos indivíduos de múltiplas redes de socialização multiplicam as biografias típicas, mas ao mesmo tempo diluem sua importância: as antigas programações biográficas perdem sua centralidade e sua rigidez e os indivíduos são levados a ―escolher‖ entre opções biográficas múltiplas e a forjar, por si próprios, o desenrolar de suas vidas. Mais que por relações de integração e identificação, a atividade social do indivíduo pós-moderno é conduzida por relações temporárias e reversíveis de inclusão em subsistemas aos quais ele acede conforme é conduzido por setores de sua vida... (DELORY-MOMBERGUER, 2009, p.105) Sendo assim, em uma sociedade complexa e profusa como a que temos na era pós-moderna multiplicam-se os modelos biográficos. Temos então uma ―oferta biográfica‖ muito mais aberta e diversificada. Por outro lado, menos hierarquizada e coerente como nas sociedades mais estáveis e mais centralizadas do passado. Tudo isto 122 quer dizer que, como vimos no início deste capítulo, se a pós-modernidade trouxe o questionamento dos conceitos dominantes de arte, literatura, história, as possibilidades da narrativa biográfica também foram questionadas e consequentemente as da narrativa autobiográfica. Certemente, esta nova ―existência múltipla‖, com o indivíduo exercendo múltiplos papéis sociais, favoreceu que os discursos (e aqui incluímos os literários – ficcionais ou autobiográficos, ensaísticos, não-ficcionais) se tornassem também múltiplos. Acreditamos ser este o novo modelo narrativo da pós-modernidade: o discurso da multiplicidade. Como veremos, na análise de El cuarto de atrás, estas questões se manifestam claramente. Não é por acaso que esta obra tornou-se um ícone e um modelo de uma nova forma narrativa na Espanha das últimas décadas: a autoficcional. 123 2.4 – A autoficção: uma teoria em construção. Nas últimas décadas do século XX e na primeira do século XXI, observou-se um considerável aumento da produção literária caracterizada pela ―escrita do eu‖, bem como uma consequente abundância de teorias que estudam este tipo de escritos. Também chamados ―escrita íntima‖, ―gêneros íntimos‖, ou ―escrita de si‖, essas denominações denotam um corpus de textos que abrangem diversos gêneros como as autobiografias, os diários, relatos de viagens, memórias, etc. Os estudos literários acerca desses gêneros, invariavelmente, tendem a associar essas formas literárias à categoria de verdade. Assim como o gênero romanesco pode vir a reclamar a ausência da contaminação pela vida do autor. A verdade é que para alcançar uma compreensão plena desses gêneros, especialmente na contemporaneidade, é preciso flexibilizar essas relações tão estanques e buscar um suporte teórico que viabilize análises mais acertadas de obras que ultrapassam os limites genéricos entre os ―escritos de si‖ e a ficção. Na busca de uma proposta teórica que nos auxilie na análise e El cuarto de atrás, recorremos à teoria da autoficção, tendo em vista que este romance é reconhecidamente uma narrativa autoficcional. O olhar sobre este texto deverá vir permeado pela consciência e o reconhecimento da novidade que Carmen Martín Gaite apresentou naquele momento, final da década de setenta do século XX. Hoje, mais de 30 anos depois, vemos que a teoria literária, definitivamente, determinou a produção dos textos. Tanto que, observou-se um ―boom‖ autoficcional após a criação e caracterização do gênero. É certo que esta caracterização vem sendo construída à medida que as obras vão sendo escritas. Sendo assim, percebe-se o ciclo teoria – criação – teoria. Mas o verdadeiro desafio que se nos apresenta, a esta altura do século XXI, é ler a autoficção 124 de Carmen Martín Gaite, após mais de 30 anos, depois de tantas transformações, tanto do gênero quanto da teoria em si, com o olhar crítico, isento do preconceito e da repulsa que os críticos atualmente já começam a ter pelo gênero, fruto da banalização de seus recursos literários característicos e do uso indiscriminado do termo ―autoficção‖. No Brasil, por exemplo, Luís Antônio Girón, crítico de cinema e literatura da revista Época, escreveu em julho de 2009, um artigo bem humorado intitulado ―A onda (e a praga) da autoficção‖ em que esclarece a origem do termo (como fazem todos que escrevem sobre este tipo de produção literária. Também não escaparemos a isto, como veremos adiante), mas antes mostra como a palavra autoficção banalizou-se nas rodas literárias e hoje representa claramente um produto comercial bastante rentável. Para Girón, a evolução no uso do termo autoficção seguiu o mesmo caminho que tantos outros termos que saem do meio universitário e ganham popularidade até que seu significado se esvazie. Nas mesas de bar dos literatos brasileiros não se fala em outra coisa. E essa outra coisa atende pelo nome de autoficção. Seja por causa do ano da França no Brasil ou da incurável congestão de blogueiros na internet, todo mundo quer falar ou praticar a tal da autoficção. Surgem autoficcionistas instantâneos no mundo inteiro, e com eles a eleição dos antepassados. Sem que a pessoa saiba, um autoficcionista pode estar operando diante de seus olhos, num site de relacionamento, em e-mails ou mesmo na redação escolar. Sim, prezado leitor, os autoficcionistas estão em toda parte. Cuidado para não tropeçar em um sem se dar conta. Mas o que é de fato autoficção? Vou tentar explicar, embora o termo seja mesmo traiçoeiro. Prometo evitar a moda e não mentir... É o eterno retorno do mesmo fenômeno: um conceito teórico discutido em círculos acadêmicos de repente transborda para as mesas de bar e cai na boca do povo. Eu me lembro que isso aconteceu com termos como "signo", "desconstrução", "paradigma" e "pós-modernidade", para citar quatro. Cada um deles tem uma origem nobre, universitária, e fazia parte do vocabulário dos iniciados. (Revista Época on-line, 14 de julho de 2009 ) Girón afirma que o termo autoficção, assim como os outros citados acima, com o tempo, deixou de ser um conceito discutido somente em meios acadêmicos para fazer 125 parte do vocabulário do dia a dia. Certamente, a Internet teve grande influência nisto. Mas o que nos chama a atenção nos comentários do crítico é a relação que ele estabelece entre a autoficção e a mentira. Cabe perguntar: como pensar em mentiras ou verdades se falamos de ficção? Girón finaliza seus comentários sobre a autoficção, ou melhor, as impressões que ele tem sobre o gênero: O escritor em especial parece ter a necessidade de criar uma personagem que lhe dê um sentido, uma envergadura metafísica, um toque de tragédia que ele não possui na sua vida medíocre neste mundo real e sem graça. Antigamente, esse tipo de coisa era chamada de armação. Agora ganhou um novo nome e virou bacaninha. A autoficção parece um sucedâneo do teatro. É a máscara descartável que os escritores precisam exibir para não ser descobertos. Não importa se o método é bom ou mal. O que é interessante no surgimento da autoficção é que o conceito ilumina a história da literatura. Ora, todos os escritores, ficcionistas ou não, de Platão ao mais anônimo dos twitteiros, jamais deixaram de fazer ficção consigo próprios. (Revista Época on-line, 14 de julho de 2009) Apesar de considerar seu julgamento ligeiramente radical, ao referir-se aos procedimentos autoficcionais como ―armação‖, vemos que Girón sinaliza para algumas questões éticas, pois fica claro que, atualmente, a proliferação da autoficção como uma moda literária, cinematográfica ou ―blogueira‖, atende a interesses puramente comerciais, deixando de ser uma autêntica expressão artística para transformar-se num mero produto comercial. Ora, isto nada tem de novo, pois, desde os velhos folhetins, o mercado editorial alimenta-se de obras literárias produzidas em série visando lucro. Também não é uma invenção da pós-modernidade a veiculação da imagem do autor como personagem de si mesmo. Mas há que se separar a verdadeira expressão literária da produção autoficcional em série, a qual alcança vários meios, sejam eles impressos, audiovisuais ou eletrônicos. De qualquer forma, a autoficção é mais uma das inúmeras possibilidades de expressão do ―eu‖. 126 No campo da literatura brasileira, vemos em Silviano Santiago, escritor e crítico, uma interessante relação com a autoficção. Em seu artigo, ―Meditação sobre o ofício de criar‖, o escritor explica como encontrou na autoficcção a possibilidade de expressão literária após passar por um processo de diferenciação, preferência e contaminação. Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso autobiográfico per se – na sua pureza – é tão proteiforme quanto camaleão e tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na literatura brasileira e na ocidental. Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o consequente rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia. Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro movimento, o da contaminação. (SANTIAGO, 2007)48 O fragmento destaca os primeiros passos do processo de escolha da autoficcção como opção de criação literária de um escritor. Como se observa, a autobiografia não faz parte do repertório de Silviano Santiago. O autor afirma não ter escrito uma autobiografia, mas como veremos no fragmento seguinte, o ―discurso autobiográfico‖ está presente em sua obra, através do que ele denomina processo de ―contaminação‖. Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto 48 Artigo disponível em: http://www.pacc.ufrj.br/z/ano5/1/z_silviano.php 127 "atento, concentrado e imaginativo" do discurso ficcional da tradição ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos. Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia pela ficção – e da ficção pela autobiografia –, marca a inserção do tosco e requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a relativização por esta de seu anárquico potencial criativo. Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e de resolução dos problemas da escrita criativa. (SANTIAGO, 2007) Deve-se observar que Silviano Santiago considera a autobiografia como um gênero cambiante e embora afirme não ter escrito uma autobiografia, reconhece a força que o discurso autobiográfico tem como matéria prima para a criação literária. Sendo assim, apresenta sua relação com a autoficção, quando relata fazer uso da hibridização do autobiográfico com o ficcional tendo como resultado a autoficcção. A este processo Silviano Santiago chama de ―contaminação‖. Esta contaminação acaba por tornar incertas as margens que delimitariam um e outro campo da criação. Para o escritor, não é mais o produto - autobiografia ou ficção – o mais importante, mas sim o processo de hibridização que torna possível a escritura de obras em que os limites entre um e outro campo já não podem mais ser definidos. Aprofundaremos estas idéias com as reflexões do teórico espanhol que estudaremos a seguir. Manuel Alberca, não utilizará o termo ―margens‖ como Silviano Santiago, mas sim ―fronteiras‖. No entanto, perceberemos que o conceito apresentado será bastante similar. O campo das literaturas hispânicas, e aqui destacamos a Espanha pós-franquista, tem acompanhado o desenvolvimento, o auge e um possível declínio (ou transformação) 128 da autobiografia. Estudos de Manuel Alberca (1999, 2007 e 2009) mostram que este fenômeno está diretamente relacionado à proliferação de um gênero literário em que a invenção literária une-se à narração de fatos biográficos do autor, resultando em textos híbridos que se encontram entre a autobiografia e a ficção. Trata-se da autoficção. Para realizar um estudo deste gênero literário, primeiramente é preciso observar que sua existência, como observa Alberca (2007) é anterior à criação do neologismo que lhe deu nome. O termo autoficção é uma criação do escritor francês Serge Doubrovsky em resposta ao questionamento de Philippe Lejeune em ―O Pacto autobiográfico‖ (1975), onde este levantava a possibilidade de existir um romance em que o protagonista tivesse o mesmo nome do autor. Sem lembrar-se de nenhuma obra que exemplificasse o caso, Lejeune não aprofunda a questão. Como vimos anteriormente, o ensaio de Lejeune propõe um quadro onde cada célula estabelece a relação entre o nome do autor, o nome do personagem e o pacto que se configura (autobiográfico ou romanesco). Sendo assim, de acordo com a proposta de Lejeune, o pacto autobiográfico se estabelece quando há identificação entre autor, narrador e personagem e o pacto romanesco se configura quando o nome do autor não corresponde ao nome do personagem da obra. Em 1977, Doubrovsky, explorando as possibilidades literárias da célula superior direita do quadro de Lejeune (que havia sido deixada vazia), a que estaria relacionada ao romance em que o nome do personagem seria igual ao nome do autor, decide explorar as possibilidades literárias de um terceiro pacto e ―cria‖ em seu romance Fills o novo gênero. Ou melhor, cria um neologismo que viria a batizar este tipo de criação literária. O texto da contracapa do livro expressa a intenção do escritor francês: 129 Al despertar, la memoria del narrador, que rápidamente toma el nombre del autor, cuenta una historia en la que aparecen y se entremezclan recuerdos recientes (nostalgia de un amor loco), lejanos (su infancia, antes de la guerra y durante la guerra), y también problemas cotidianos, avatares de la profesión (…) ¿Autobiografía? No. Es un privilegio reservado a las personas importantes de este mundo, en el ocaso de su vida, y con un estilo grandilocuente. Ficción, de acontecimientos y de hechos estrictamente reales; si se quiere, autoficción, haber confiado el lenguaje de una aventura a la aventura del lenguaje. Reencuentro, hilo de las palabras, aliteraciones, asonancias, disonancias, escritura del antes y del después de la literatura, concreto, como se dice en música. O todavía, autofricción, pacientemente onanista, que espera ahora compartir su placer. (Apud ALBERCA, 2007, p.146) O texto marca a abertura de um campo teórico, que, ao mesmo tempo em que foi sendo (e ainda está) construído, alimentou a profusão da criação de obras que se manifestam como realizações do gênero em questão. Como um vasto campo de experimentação literária desde a década de setenta do século passado até a atualidade, a autoficção estendeu seus domínios para outras artes, além da literatura. Hoje, fala-se em autoficção no cinema, nos quadrinhos, e até mesmo nos blogs de escritores na internet. No artigo ―El las fronteras de la autobiografía‖ (1999), Manuel Alberca apresenta sua proposta de pesquisa no campo da autoficção, a qual tem três propósitos: primeiramente, caracterizar um conjunto de relatos da literatura espanhola que, apresentando-se ou não como romances, possuem conteúdos autobiográficos que seus autores tentam de disfarçar; o segundo propósito é situar esses relatos que se encontram entre a autobiografia e o romance; por último, Alberca pretende verificar até que ponto esses relatos superam as limitações do ―pacto autobiográfico‖, rompendo, portanto, suas fronteiras. A principal motivação para o estudo de Alberca está no auge autobiográfico da literatura espanhola verificado nas últimas décadas do século XX. O artigo é de 1999 e 130 busca nos 25 anos anteriores o campus de análise para sua pesquisa. A pesquisa foi ampliada e desenvolvida no livro El pacto ambíguo: de la novela autobiográfica a la autoficción (2007). Vários aspectos elaborados no artigo de 1997 foram incluídos no livro como parte do terceiro capítulo em que Alberca relata as origens e o desenvolvimento da autoficção focalizando seu estudo nos trinta anos de história do gênero. Alberca começa traçando um breve histórico da autoficção. Destrinchando o debate teórico sobre o novo gênero, o autor constata um desenvolvimento da questão no período compreendido entre 1982 a 1997, apresentando o posicionamento de alguns estudiosos. Alberca inicia o debate sobre a autoficção com Jacques Lecarme49, que, em alguns trabalhos nas décadas de 80 e 90, mostrou que, antes de Doubrosvsky, outros escritores realizaram experimentos narrativos na área da autoficção, mesmo sem a utilização do termo. Lecarme também define a autoficção como relato onde autor, narrador e protagonista compartilham a mesma identidade nominal. O debate é alimentado por idéias de Vincent Colonna50, que, em sua tese de doutorado, dirigida por Gerard Genette, amplia o valor conceitual do termo com sua definição, onde afirma que a autoficção é um tipo de relato caracterizado pela invenção literária de uma personalidade ou de uma existência, ou seja, uma espécie de ficcionalização da própria experiência vivida. Segundo Alberca, a maior contribuição de Colonna para o estudo da autoficção foi ampliar o âmbito da prática textual da autoficção. 49 Alberca debate as idéias de Jacques Lecarme em “Autofiction un mauvais genre”, Autofictions & Cie, Paris, Ritm, 6. 50 A obra de Vincent Colona pode ser consultado na Internet em http://tel.archivesouvertes.fr/docs/00/04/70/04/PDF/tel-00006609.pdf 131 Su mayor aportación, con respecto a Doubrovsky y Lecarme, es la de ampliar el marco de la práctica textual de la autoficción, no solo en el tiempo (cita la Comedia de Dante o El Quijote de Cervantes entre los precedentes más ilustres) sino también conceptualmente, al sacarla de su relación exclusiva con la autobiografía, en la que los críticos anteriores la habían situado, para entroncarla con la ficción literaria en su sentido más amplio, pues allí se defendía que la ―ficcionalización del yo‖ tenía un carácter universal ancestral‖. (ALBERCA, 2007, p. 151) Outro crítico que contribuiu para a discussão foi Gerard Genette. Para este, a identidade de autor e narrador em um texto de ficção é inviável. Para o teórico, defender a identidade entre autor e narrador em um texto ficcional é algo insustentável. No entanto, para Alberca, esta aparente incoerência é o que o gênero traz de mais interessante já que as possibilidades narrativas através da simultaneidade de dissociação e identidade de autor, narrador e protagonista se ampliam. Es decir, (Genette) encuentra insostenible defender la identidad Autor y Narrador (A = N) en un texto que se reclama la ficción. Sin embargo, ésta es justamente la apuesta y el riesgo de la autoficción: mostrar al mismo tiempo tanto la disociación de autor y narrador (A ≠ N) como su identidad (A = N), en una alternacia o incertidumbre por la que un autor vendría a significar que A es + N (Soy yo y no soy yo). (ALBERCA, 2007, p.153) É perceptível que a autoficção constituirá, portanto, num ocultamento ou embaralhamento da figura do autor, ao mesmo tempo em que este se coloca na ficção como parte dela. Alguns estudiosos vem neste procedimento uma estratégia da literatura contemporânea de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção, tornando híbridas as fronteiras entre o real e o fictício. Outra abordagem sobre a autoficção trazida por Alberca é a da escritora Marie Darrieussecq que a considera uma variante subversiva do romance em primeira pessoa, e não da autobiografia, já que transgride diretamente o ―último reduto do realismo: o nome próprio‖. Na opinião da escritora, o uso do nome próprio do autor para identificar 132 um personagem de romance subverte a regra romanesca que estabelece o princípio de distanciamento ou de não-identificação através do qual o há um apagamento do autor no texto. Diz a escritora: Hay aquí por supuesto una suerte de fraude; pero, realmente, subversivo. ¿Por qué no tomar la autoficción al pie de la letra y relacionarla, como ella misma reclama, con ―la novela en primera persona‖ antes que con la autobiografía? Nada impide imaginar, y escribir, una novela en primera persona donde el nombre del narrador sea el mismo que el de la portada. Nada prohíbe - ¿qué ley literaria? – inventarse una vida apoyándose en los códigos autobiográficos. Es entonces cuando la autoficción, se hace vertiginosa: la identidad, última muralla de lo real, último ‗criterio legal‘ del pacto autobiográfico, la identidad se convierte en ficción. (Apud ALBERCA, 2007, p. 154) É interesante observar o posicionamento da Marie Darrieussecq, que enquanto escritora percebe o estatuto fictício da autoficção como algo que prevalece sobre o estatuto autobigráfico. No entanto, poderemos verificar um pouco mais adiante que há diferentes graus de ambigüidade nas autoficções que podem aproximá-las mais da autobiografia ou da autoficção, gerando o que Alberca chamará de ―clases de autoficción‖. Mas antes de chegarmos a este ponto de nossa pesquisa, gostaríamos de concluir o breve histórico dos estudos que tem tentado definir a autoficção, mencionando o que Alberca define como última etapa da autoficção que é justamente o da sua ―explosão‖ e da normalização dentro da crítica literária. Parodiando a literatura hispanoamericana, Alberca refere-se ao ―boom‖ autofictício como um auge no desenvolvimento tanto da criação quanto da crítica sobre o tema. Já na primeira década do século XXI, os estudos de Philippe Gasparini51, Vicente Colonna52 e Philippe Vilain53 revelam os diferentes posicionamentos e diferentes maneiras de compreender este fenômeno literário, 51 Refere-se a: Est-il jê? Roman autobiographique et autofiction. Paris: Seuil, 2004. Refere-se a: Autofiction & autres mythomanies litteraires. Auch: Tristan, 2004. 53 Refere-se a: Defense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005 52 133 comprovando realmente que a teoria deste gênero ainda está em construção. Alberca resume as teorias desenvolvidas pelos três críticos, identificando suas contribuições ao desenvolvimento da teoria da autoficção, mas sem deixar de apontar o que considera como deficiências nesses estudos. Mostra também os antagonismos dessas propostas teóricas. Sendo assim, para Alberca, a tese de Phillipe Gasparini tem o mérito de recuperar o conceito de romance autobiográfico, (noção menosprezada pela poética narrativa) e relacioná-lo com a autoficção, porém, nesta aproximação, não estabelece critérios claros para distinguir esses dois tipos de narrativa. Quanto ao livro de Vicent Colonna, que é resultado de sua tese de doutorado, Alberca aponta que o autor, a partir de uma tríplice classificação tipológica da autoficção (que veremos mais adiante), assinala a superioridade da autoficção do tipo ―imaginária‖, rebatizada como ―fantástica‖. Collona atribui à obra de Luciano Samosata54 o papel de ―protótipo‖ prestigioso da autoficção, mas Alberca considera a análise equivocada, como vemos a seguir: Collona se remonta a la obra del escritor latino Luciano de Samosata (siglo II), llena de elementos mitológicos, legendarios y fantásticos, que resultan parodiados y desmitificados, y en la que Collona encuentra el ―prototipo‖ prestigioso de la autoficción y un ejemplo pintiparado para defender que autofabulación está en los orígenes de la novela y en la misma expresión del concepto de autoría literaria, es decir, desde que e escritor firma su obra y por tanto comienza a instituirse el mito del autor. Collona hace una apuesta arriesgada para fijar y ennoblecer el origen de la autoficción en la obra de Luciano, pero incurre consciente o inconscientemente en el ilusionismo histórico, que supone revisar el pasado, en este caso literario, con conceptos actuales, realmente anacrónicos. Al no existir en el siglo II el sentido 54 Luciano de Samosata(125-? - 192) Filósofo grego. De origem humilde, foi escultor e advogado. Dedicou-se a percorrer o mundo dando conferências. Estableceu-se em Atenas (163-185) e acabou novamente como sofista ambulante. Além de exercícios de retórica, “Elogio da mosca”, e do escrito autobiográfico “O sonho e o galo”, é autor de um “Tratado sobre como escribir a história”, de numerosos escritos mais ou menos filosóficos como “A pantomima” e “O pecador”, de diálogos satíricos e morais “Diálogos dos deuses”, “Diálogos dos mortos”, “Diálogos das cortesãs, “Caronte o cínico”, “Prometeu”, “A assembléia dos deuses”, de diálogos literários “O parasita”, de libelos “O mestre da retórica”, de relatos satíricos “Historia verdadera, “O asno” e de paródias trágicas “O pé leve”, “La tragédia da gota”). Imitado por Erasmo e por Quevedo e muito lido pelos renascentistas, Luciano de Samosata é um grande crítico e o criador do diálogo satírico. (Biografías y vidas, 2004 -11- Disponível em: http://www.biografiasyvidas.com/biografia/l/luciano_de_samosata.htm - Tradução nossa) 134 moderno de individuo ni el concepto de vida privada actual, con respecto a los que entendemos hoy la autoficción, no se puede comparar ni comprender con respecto a que se establece la deriva ficticia del yo, es decir, es prácticamente imposible delimitar dónde comienza la impronta personal de Luciano y dónde la tradición y la retórica literarias. (ALBERCA, 2007, p. 156) Embora Alberca reconheça que o ―eu‖ fictício presente na obra de Luciano seja formalmente semelhante ao da autoficção que tenta definir em suas pesquisas sobre o tema, afirma que Collona comete um ―flagrante ahistoricismo‖ ao tentar analisar uma obra do século II com preceitos literários da atualidade. Por fim, Alberca faz referência ao livro do escritor Philippe Vilain. Com elaborações teóricas inferiores às dos críticos anteriores, Vilain, escreve um texto dotado de uma exposição amena, mas que carece de precisão em diversas ocasiões. Trata-se de uma apologia do valor literário do gênero autobiográfico em que pretende desfazer o estigma de ―escritura vergonzosa‖ e narcisista. Assim, Vilain defende sua própria literatura, muito próxima da autobiografia. Para isso, acaba estabelcendo uma equivalência entre a autobiografia e a autoficção, neutralizando a diferença entre os dois gêneros. Sin embargo, el reconocimiento literario de la autobiografía, que exige Vilain, se basa equívocamente e los mismos presupuestos que, desde las posiciones aristotélicas de todas las épocas, han considerado la ficción como el territorio exclusivo de la literatura y han desterrado de este reino de lo artístico cualquier forma de relato histórico. Al defender el carácter ficticio de la autobiografía le hace un flaco favor a ésta, pues se esfuerza en demostrar que la literatura autobiográfica, tal como él la concibe, puede competir en lo imaginario con la escritura novelesca. (ALBERCA, 2007, 157) Alberca acredita que esta assimilação da autobiografía e do romance proposta por Vilain tem o grave inconveniente de ocultar a questão central do pacto autobiográfico e sua proposta de leitura que diferencia a autobiografia do romance. E conclui categoricamente: ―Desde luego no es haciendo pasar por fictícia la autobiografía 135 como ésta podrá alcanzar su reconocimiento y especificidad literarias, sino el desafío de la veracidad‖ (p.157). Com esses exemplos de explorações teóricas da questão da autoficção, Alberca demonstra as incertezas que rodeiam este tipo de relato. Pensamos que estas tentativas de definição, às vezes tão díspares, revelam a própria indefinição do gênero que, por caracterizar-se pela ruptura dos limites literários, abre possibilidades múltiplas de realização e de propostas teóricas de estudo. A verdade é que, em nosso entender, não deveríamos falar de ―autoficção‖, como um gênero com suas características definidas, mas sim de ―autoficções‖, como um gênero multifacetado que pode aproximar-se mais da ficção ou da autobiografia, numa espécie de gradação. E nessa gradação, multiplicam-se as possibilidades de combinação dos materiais autobiográficos e fictícios. Em consequência, devem ser considerados as diversas formas e graus da ambiguidade na autoficção. O escritor de autoficção, ao realizar uma transação entre o seu ―eu‖ que realmente existiu o que gostaria que houvesse existido, pode imaginar o que nunca lhe aconteceu, mas como se realmente houvesse acontecido. Esta é uma premissa básica da autoficção. Este procedimento gera uma mescla de materiais narrativos diferentes que poderiam, em princípio, parecer antagônicos, mas que podem ser fundidos de forma harmoniosa e ambígua na autoficção. A maneira como isto ocorre, ou seja, privilegiando mais ou menos os materiais biográficos ou os fictícios é que determina os graus de ambigüidade a partir dos quais se estabelecerão as ―classes de autoficção‖, conforme classifica Alberca. Sendo assim, Alberca aponta dois tipos de ambiguidade, que não são exclusivas da autoficção, mas, neste tipo de relato adquirem relevância e intensidade definitórias. 136 Trata-se da ambiguidade paratextual e da ambigüidade textual. Vejamos como Alberca define cada um desses tipos de ambigüidade. Primeiramente a paratextual: Esta clase de ambiguedad se produce al clasificar como ―novela‖ un relato autobiográfico, por lo general sin elementos ficticios, en alguno de los espacios del paratexto (portada, contraportada, solapa, prólogo, epílogo, entrevistas promocionales, etc). Esto no llega, por si solo, a suponer una propuesta contradictoria de géneros, pues el lector la resuelve enseguida decantándose hacia una interpretación autobiográfica. En este caso, la mezcla resulta sólo superficial, y por tanto la vacilación se desvanece inmediatamente, si el texto no viene a refrendar lo que era sólo un efecto del paratexto. Si la contradicción de pactos se produce en ese nivel, la ambigüedad es de carácter efímero, pues el lector, una vez que comienza a leer el texto, se inclina hacia a autobiografía, al disiparse sus dudas enseguida. (ALBERCA, 2007, p. 175) Neste tipo de relato a invenção é praticamente nula e a ambiguidade é somente um recurso a entrada de uma obra autobiográfica no prestigiado lugar da ficção. Para Alberca, este recurso responde ao desejo do autor e do editor de prestigiar o relato literariamente. O segundo tipo de ambiguidade é a textual. Segundo Alberca, este tipo de ambigüidade caracteriza as autoficções cuja indeteminação está presente em toda a sua construção narrativa, sendo projetadas não só no paratexto, mas também no texto, prolongando e acentuando as possíveis dúvidas criadas pela instância enunciativa. Valendo-se da descrição de Tomás Abaladejo55 que utiliza proposta de Thomas Pavel em Mundos de ficción para estabelecer três tipos de acontecimentos, personagens ou infrmações que conformam a ambigüidade textual: 1. Uno hechos, personajes y datos, que son inequívocamente autobiográficos y reales, como el nombre propio de autor, de familiares y amigos, la fecha y el lugar de nacimiento o cualquier referencia personal, como puede ser el título de una obra literaria, perteneciente al autor, etc, que se puedan refrendar de manera efectiva fuera del texto. 55 Refere-se a: ABALADEJO, Tomás. Semántica de la narración: la ficción realista. Madri: TaurusUniversitaria, 1991, pp. 49-62. 137 2. Otros, que parecen inventado o reales, pseudo-autobiográficos o autobiográficos y, puesto que lo parecen, podrían serlo, pero su clarificación resulta prácticamente insoluble. 3. Por último, una clase de hechos o personajes inequívocamente ficticios e incluso fuertemente irreales, que, mezclados o superpuestos a los comprobados biográficamente, el lector reconoce como imposibles de atribuir al autor. Para que un lector considere un relato autoficción como una obra de ficción, éste tiene que percibir la historia como imposible o incompatible con la información que de antemano ya tiene del autor, para lo qual es imprescindible conocer los datos biográficos necesarios. (ALBERCA, 2007, p. 178) Nota-se que o papel do leitor é fundamental na decodificação do texto autoficcional. Devemos observar que há inúmeras possibilidades de leituras, pois haverá os leitores que desconhecem totalmente a vida do autor. Sua leitura será limitada, pois não poderá reconhecer os materiais narrativos biográficos que compõem a obra. Desta forma poderá incorrer no erro de interpretar uma autoficção em que haja a ambigüidade paratextual como um verdadeiro romance, já que carece de ferramentas para identificar seus componentes autobiográficos. Por outro lado, haverá os leitores que conhecem dados biográficos do autor, bem como seus outros textos, podendo estabelecer muitas relações. Estes vivenciarão uma leitura realmente mais rica e perceberão as possíveis ambigüidades. Estas idéias nos fazem retornar à primeira parte deste capítulo onde falávamos sobre a Estética da Recepção, a qual preconiza o papel do leitor na obra literária. No que diz respeito à estrutura dos relatos autofictícios, nota-se que a assimilação dos elementos autobiográficos e ficcionais pode ocorrer de duas maneiras distintas resultando, portanto, dois tipos de estrutura narrativa: a) Los que mezclan los pactos de manera más o menos inconsútil, hasta hacer con los diferentes elementos arriba enumerados un texto más o menos uniforme, y b) los relatos que se construyen o desarrollan por la alternativa de diferentes registros narrativos o por la yuxtaposición en paralelo de una serie autobiográfica a otra novelesca, que permite reconocer con cierta facilidad los diferentes registros, ficticios y factuales que componen el relato. (ALBERCA, 2007, p. 180) 138 Para exemplificar esses dois tipos de estrutura, Alberca cita para o primeiro os romances El hijo de Greta Garbo, de Francisco Umbral e La velocidad de la luz de Javier Cercas, em que os elementos narrativos se sobrepõem de maneira a compor uma síntese do real com o fictício. Já o segundo tipo de estrutura é verificado no livro de Unamuno , Cómo se hace uma novela em que os variados registros narrativos se sucedem sem que haja exatamente uma mescla, assim se perceberá uma autobiografia, um metarromance autofictício, um ensaio e um diário. Quanto às classes de autoficção, utilizando-se da análise de obras da literatura espanhola para respaldar suas definições56, Alberca nos apresenta três tipos de narrativa autoficcional: as autoficções biográficas, as autoficções fantásticas e as autobioficções. Aqui, vamos ater-nos somente a suas definições, as quais nos auxiliarão na análise de El cuarto de atrás. Assim teremos: As autofições biográficas: En este tipo de relato autofoctición, el punto de partida es la vida del escritor que resulta ligeramente transformada al insertar-se en una estructura novelesca, pero sin perderse la evidencia biográfica en ningún momento. El autor es el héroe de su historia, el pivote en torno al cual se ordena la materia narrativa, en la que fabula su existencia real a partir de datos que le identifican. En muchos casos de estos relatos la invención tan débil que la ambigüedad se desvanece prácticamente (…) lo ficticio reside en la denominación novelesca del relato y en la voz narrativa que cuenta. La ficcionalización es mínima y se hace evidente por la inclusión en la trama de algún episodio o aspecto aislado inventado, que en la práctica resulta una declaración de autobiografismo apenas encubierto (…) (ALBERCA, 2007, p183) 56 Alberca analisa obras de Sonia García Soubriet, Julio Llamazares (autoficções biográficas); de César Aira, Justo Navarro e Francisco Umbral (autoficções fantásticas); de Mário Vargas Llosa e Javier Cercas (autobioficções). Consultar 139 Alberca explica que este tipo de autoficção está muito próximo da autobiografia, sendo possível saber tratar-se de ficções somente pela indicação paratextual de romance e por um ou outro signo similar. Para o crítico espanhol, um dos objetivos deste tipo de autoficções é fazer com que o leitor acredite que está diante de um verdadeiro texto autobiográfico designado como romance, o que realmente pode acontecer mediante ―a ilusión novelesca‖. A estrutura de relato autobiográfico ou memorialístico, com a utilização de referências à documentação gráfica ou escrita, como cartas, fotos, jornais, reforça uma verossimilhança que lhe aproximaria, se isto no fosse um contrasenso, à veracidade. O segundo tipo abrange as autoficções fantásticas, definidas por Alberca, a partir de Vicente Colonna, no trabalho referido há pouco: El narrador, bajo el mismo nombre del autor, se convierte em protagonista de aventura que el lector percibe enseguida como novelescas, pues el más elemental cotejo con la biografía del autor o con el sentido común hace que se rechacen como verdaderas, a veces incluso como posibles desde una óptica realista, las acciones de la historia que se levanta. Es decir, este tipo de autoficciones se caracteriza por la manera fuertemente ficticia con que se desrealizan los datos autobiográficos de los que arranca el autor o por la manera en que éste se inventa una personalidad y una historia radicalmente distinta a la suya, y que sin embargo, a la manera de sosias grotescos o un doble imperfecto de sí mismo, también le representa. (…) (ALBERCA, 2007, p183) O terceiro tipo autoficções é denominado por Alberca autobioficções: A diferencia de las autoficciones biográficas y fantásticas que basculan respectivamente hacia el pacto autobiográfico y hacia el novelesco, las autobioficciones se caracterizan por su equidistancia con respecto a ambos pactos y por forzar al máximo el fingimiento de los géneros, su hibridación y mezcla. No son novelas ni autobiografías, o son ambas cosas a la vez, sin que el lector pueda estar seguro (mientras las lee) en qué registro se mueve, ni tampoco está facultado en ciertos pasajes para determinar dónde empieza la ficción y hasta dónde llega lo autobiográfico. (…) (ALBERCA, 2007, p194-195) 140 Resumindo, portanto as três categorias segundo as quais poderemos, objetifivamente, chegar a classificar uma autoficção, temos os ―tipos de ambigüidade‖ (paratextual e textual), os tipos de estrutura narrativa (mescla de pactos com texto uniforme e mescla de pacto com alternância de registros narrativos) e os tipos de autoficção (autoficção biográfica, autoficção fantástica e autobioficção). Esperamos, ao final da pesquisa, analisar o romance El cuarto de atrás dentro desses parâmetros. Com a consciência que, por ser o campo a da utoficção tão avesso aos limites, possamos talvez, chegar a outra ou outras categoria(s) de relatos autoficcionais. Esta afirmação não é uma ambição nossa, mas uma possibilidade, tendo em vista as peculiaridades de El cuarto de atrás. De todo modo, o olhar sobre esta obra deve, necessariamente, vir perpassado pela idéia de que na contemporaneidade a literatura é um meio de construção de identidade, reforçado pelos meios de comunicação de massas que favorecem a exacerbação do ―eu‖. Neste sentido, a professora Luciene Azevedo colabora com a discussão ao apresentar suas reflexões em artigo intitulado ―Autoficção e literatura contemporânea‖ (2008)57. Para a estudiosa, a autoficção está permeada por dispositivos que permitem a invenção de si. Embora seja um procedimento literário em voga na contemporaneidade, o recurso de (re)inventar-se em outros é muito antigo: (Re)inventar-se em outros é uma estratégia ficcional tão antiga que levou Platão a expulsar os poetas da Cidade Real, mas mesmo um procedimento tão antigo pode ter renovado seu estatuto, uma vez consideradas as circunstâncias de seu (re) aparecimento. (AZEVEDO, 2008, p. 33) 57 Luciene Almeida Azevedo é Professora Doutora de Teoria Literária da Universidade Federal de Uberlânida (MG). 141 O fragmento ilustra a questão do reaparecimento do autor, em diálogo com a pós-moderna ―morte do autor‖, pois, para a autora do artigo, na autoficção ocorre a incorporação do autobiográfico como uma estratégia para eludir a própria autobiografia tornando híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional. Desta forma as discussões se voltam para o novo papel do autor que retorna não como uma instância capaz de controlar o que se diz, mas como uma entidade que deseja ―performar a própria imagem de si‖. Entendemos, pois, que a matéria autobiográfica será a base para o relato de autoficcção, mas perde substancialmente sua referencialidade, posto que se mescla com a ficção. A figura do autor (eu que escreve ou ego scriptor?) é ao mesmo tempo evocada como referente do texto e ao mesmo tempo borrada pela indecibilidade que inquieta o leitor chamado a participar de um pacto em que as regras não estão dadas de antemão. (AZEVEDO, 2008, p. 35) Fica claro que, embora a figura do autor seja um elemento fundamental nas narrativas autoficcionais, esta figura sofre, de certa forma, uma apagamento como consequência do processo de construção desta personalidade que atuará em um contexto que será elaborado com base no real, porém, passará por um processo de ficcionalização. O ―eu‖ do autor será, na verdade, fruto de uma produção textual. A autoficção é entendida, então, como um apagamento do eu autobiográfico, capaz de constituir-se apenas nos deslizamentos de seu próprio esforço por contar-se como um eu, por meio da experiência de produzir-se textualmente. Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios do semi-oculto com as sinceridades forjadas que escreve. (AZEVEDO, 2008, p. 35) Esse apagamento do ―eu‖ autobiográfico será, pois, um dos traços mais evidentes das obras autoficcionais. Ocorrerá à medida que, no processo de escritura (e 142 também de leitura), as noções de realidade e de ficção se misturam a ponto de não se poder separar uma da outra. É o que ocorre na obra de um dos mais conhecidos autoficcionistas da literatura espanhola contemporânea, Enrique Vila-Matas. Sua obra tem sido lida pela crítica, sob a perspectiva autoficcional. No artigo ―La autoficción en París no se acaba nunca de Enrique Vila-Matas‖ (2009), Alba del Pozo García, professora da Universidade Autônoma de Madri, diz que o escritor espanhol coloca em jogo nesse relato várias ferramentas destinadas a romper com a mimese do real. Pozo García afirma que vários estudos críticos coincidem em assinalar a mescla de realidade e ficção na obra de Vila-Matas, bem como ―o protagonismo da escrita, convertida em tema principal de seu projeto literário‖. O artigo de Pozo García nos ajuda a delinear diversos aspectos desse gênero que vamos buscando caracterizar. Na análise que a autora empreende sobre o referido livro de Vila-Matas, constata-se o uso de procedimentos que ela qualifica como próprios dos textos autoficcionais. Veremos que, como assinalam outros estudos teóricos sobre obras autoficcionais, a autora estabelece como um dos pilares básicos da autoficção a identificação de autor e narrador. Sendo assim, é comum nesse tipo de modalidade narrativa que a própria literatura seja um dos temas da narrativa. No caso de París no se acaba nunca, o foco é o aprendizado literário de um escritor. Desta maneira, o jogo intertextual estabelecido com diversas obras literárias consta como um dos aspectos através dos quais o escritor se insere em seu próprio texto, compartilhando suas leituras com seus leitores. Outro aspecto recorrente nos textos autoficcionais presente na obra de Vila-Matas é o desdobramento da voz narrativa que se manifesta na presença dos ―dobles‖ na narração. Estes aparecem em vários momentos da narrativa onde o narrador ora encontra consigo mesmo, ora é incitado por outros personagens a fabricar 143 um ―doble‖ de si mesmo, o que realmente vem a fazer. Com isto, o autor consegue criar o efeito de tornar-se invisível por detrás de sua própria identidade, o que é um procedimento comum nos relatos de Vila-Matas, segundo Pozo García. Um item importante do trabalho de Pozo García que contribui com nossa exploração teórica é o que trata dos recursos formais da autoficção. Usando o exemplo de Vila-Matas, a autora busca uma caracterização do gênero. Veremos, que, ao aproximar as fronteiras entre o real e o fictício, a autoficção desestabiliza o processo realista da mimese. Na autoficção não se pretende reduplicar ou imitar a realidade, como nas narrativas realistas. Há, portanto, um afastamento do realismo. Este afastamento se concretiza através de alguns procedimentos formais que são identificados por Pozo García em París no se acaba nunca. Para poder llevar a cabo un alejamiento del realismo y, de paso, mostrar el artificio literario que supone cualquier autobiografía, la autoficción se sirve de varios recursos que entroncan con el modernismo y las vanguardias de principios de siglo. En París no se acaba nunca destacan de forma especial el hibridismo genérico, el manejo de las distintas temporalidades y el metadiscurso. (POZO GARCÍA, 2009, p.95) No fragmento acima, destaca-se o hibridismo genérico, outro aspecto levantado pela autora como elemento próprio da narrativa autoficcional. Assim como ocorre com a obra de Carmen Martín Gaite que analisaremos no último capítulo desta pesquisa, o livro de Enrique comprova, já nos elementos paratextuais, a ocorrência da mescla de gêneros, já que na contracapa do livro faz-se a alusão a fusão da autobiografia, da ficção e do ensaio. Como veremos mais adiante, o mesmo acontece na contracapa de El cuarto de atrás onde leremos que a obra participa do romance de mistério, do livro de memórias e da refelxão sobre o próprio fazer literário. 144 Neste marco de hibridismo literário, surge a intertextualidade através da qual integram-se diversas formas literárias inseridas no relato, as quais podem dar origem a outro recurso formal também aproveitado pelo escritor de autoficção. Sendo assim: Si a un lado del relato aparecen la conferencia y el ensayo, al otro lado la balanza se equilibra (y el pacto se hace más ambiguo) con los recursos de la novela y de la ficción. Uno de esos recursos es el de la estructura temporal. Comparado con otros textos del mismo autor, París no se acaba nunca presenta una temporalidad doble que corresponde al esquema de muchas autobiografías clásicas: un yo que responde en el presente que rememora sus años de aprendizaje en el pasado, procurando dotarlos de sentido. Sin embargo, esta estructura se ve alterada e interrumpida continuamente. (POZO GARCÍA, 2009, p.96) Além desses recursos formais identificados por Pozo García na autoficção vilamatiana, chama-nos a atenção a metatextualidade que se manifesta através do uso do mise en abyme, efeito também presente em El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite, onde a escritura do livro se insere como ação da personagem/autora na narrativa. A presença do autor como personagem da obra que escreve e como leitor de muitas obras também abre espaço para a intertextualidade com inúmeras obras literárias que fazem parte da ―biblioteca‖ do autor. As referências a essas obras, às idéias e concepções literárias de outros autores também compõem um traço peculiar às autoficções. Tanto Carmen Martín Gaite, nos anos setenta do século passado, como VilaMatas, já no século XXI, lançaram mão deste recurso, caracterizando a narrativa autoficcional como um espaço em que se insere a tradição literária. Ao mesmo tempo, assistimos, na literatura espanhola atual, à construção de uma tradição literária autoficcional, da qual Carmen Martín Gaite, é, sem dúvida, uma precursora. Obviamente, esta afirmação não ignora que, conforme Alberca (2009), a autoficção hispânica tem seus precursores muito anteriores à escritora salmantina. 145 Mas nosso entendimento é que a autoficção espanhola atual, que é fruto, em grande parte, das condicionantes histórico-culturais geradas pelas quatro décadas da ditadura franquista, tem na obra de Carmen Martín Gaite uma de suas primeiras manifestações literárias importantes. Independentemente do caminho que a autoficção espanhola percorreu ao longo das três últimas décadas do século XX, análises críticas de escritores atuais, como VilaMatas, que encontraram na autoficção sua forma de expressão, demonstram que os artifícios literários empregados nas criações neste início de século, já se encontravam-se bastante desenvolvidos em El cuarto de atrás de Carmen Martín Gaite. Vejamos o que Pozuelo Yvancos diz no artigo ―La tinta, la vida, la escritura‖ (2003), publicado em no ABC Cultural: Es formidable el modo como el lector queda atrapado en una trama donde parece que no la hay, y es genial la proverbial inventiva y fértil imaginación de Vila-Matas para mezclar cuentos, encuentros con escritores, reflexiones sobre citas leídas, situaciones chistosas o tragicómicas, alguna directamente patética. Todo ello en el marco de una reflexión que quiere ser realmente una poética de Cómo se hace una novela, convencido de que no puede ser hoy género que soporte recetas sobre armonía, unidades, estructuras y composiciones (cuyas pautas se descontruyen), sino en cierto modo la gama sutil de elementos narrativos entreverados de ensayo, autobiografía (ficción), citas reales, citas inventadas y un no saber el lector qué es experiencia y qué es literatura, qué es ficción y qué es real, o mejor, leyendo la novela para saber que la discusión sobre ese límite es un viejo cuento de los manuales, que ya nadie cree.58 Dois aspectos fundamentais podem ser explorados nesta citação. O primeiro refere-se ao que Pozuelo Yvancos chama de ―poética de Cómo se hace una novela‖. A referência direta a Unamuno, além de reiterar o que dissemos há pouco sobre a autoficção como um espaço da tradição literária, ressalta um de seus aspectos genéricos 58 Artigo disponível em: http://hemeroteca.abc.es/nav/Navigate.exe/hemeroteca/madrid/cultural/2003/10/25/009.html 146 essenciais: a metanarração. Neste diálogo que Pozuelo Yvancos percebe entre a obra de Vila-Matas a de Unamuno, fica evidente um dos antecedentes literários do gênero atualmente tão em voga na Espanha. Naquele ensaio de 1927, Unamuno ficcionalizou suas angústias de escritor em processo de criação de um romance. Uma obra única, texto inquietante para o período, onde os limites entre os gêneros estavam somente começando a ser quebrados pelas propostas vanguardistas. Alí já se encontravam alguns dos principais recursos literários frequentes nas autoficções contemporâneas, como a metanarração, caracterizada pelas reflexões acerca do fazer literário, mais especificamente, do processo de criação de uma obra, bem como inúmeras referências literárias. O segundo aspecto que podemos destacar da citação do texto de Pozuelo Yvancos acima nos remete imediatamente ao âmago das questões teóricas e da prática autoficcional. Trata-se da mescla de gêneros literários na autoficção. Já que esta se caracteriza exatamente por embaralhar os limites entre os gêneros literários através da escrita de uma narrativa que lança mão de variados tipos de discurso. Sendo assim, ao nos remeter a Cómo se hace una novela em sua análise de París no se acaba nunca, Pozuelo Yvancos indica uma filiação dos autoficcionistas espanhóis contemporâneos a Unamuno. Ou seja, a tradição autoficcional espanhola (que está sendo construída) passa necessariamente por Miguel de Unamuno. Carmen Martín Gaite, nascida e criada em Salamanca, cidade natal do escritor, o conheceu ainda menina, pois Unamuno era amigo de seu pai e frequentava sua casa. Unamuno era amigo de mi padre y a veces le venía a visitar. Aunque yo tenía ocho años, me acuerdo. Él fue el primer escritor que puso su mano, al descuido, sobre mi cabeza infantil. Ahora tiene una estatua delante de sus balcones, obra del escultor Pablo Serrano. Es como un aguilucho sacando la cabeza de una mole de pliegues 147 rígidos, venteando la nada con sus ojos de visionario sin poder alejar de sí, ni aun convertido en piedra, las obsesiones de muerte que presidieron su vida. (MARTÍN GAITE, 2000, p.195-196)59 Nas recordações de infância de Carmen Martín Gaite destacadas na citação acima, é significativa a lembrança de que Unamuno pôs a mão sobre sua cabeça. Interpretamos a recordação desde gesto como uma escolha de filiação literária de Carmen Martín Gaite com relação a Unamuno. Como realmente poderemos verificar em sua obra, principalmente em El cuarto de atrás, as relações estabelecidadas entre os textos de Carmen Martín Gaite e a obra de Unamuno são inúmeras. Basta recordar que Unamuno, em Cómo se hace uma novela teorizava sobre questões relativas à mescla da ficção com a autobiografia, o que Carmen Martín Gaite coloca em prática em vários de seus textos, em especial, em El cuarto de atrás. Voltando novamente nosso olhar aos estudos de Manuel Alberca, encontraremos no livro El pacto ambíguo: De la novela autobiográfica a la autoficción, um amplo estudo sobre este gênero literário que representa as inquietações do escritor de final do século XX e início do século XXI. Lembramos que nosso foco é especificamente a literatura espanhola. A produção autoficcional na Espanha aparece como um fenômeno estreitamente relacionado à extraordinária expansão da literatura autobiográfica que ocorre a partir dos anos setenta do século passado. Alberca vê no fenômeno uma das manifestações do processo de recuperação do autor, que se caracterizará justamente pela sua inclusão na obra literária como personagem. Alberca nos mostra que antes do século XVIII a presença do autor na obra de arte (e aqui não nos restringimos somente à literatura) era algo muito raro, certamente devido às inúmeras condicionantes políticas, sociais e religiosas. Mas ainda assim, é 59 Fragmento do artigo “La novia eterna” em Búsqueda de Interlocutor. 148 possível verificar na literatura espanhola origens essa presença já no século XVI, caracterizando-se assim as origens do gênero. Pero si quisiéramos ascender a la fuente del origen, con bastante propiedad podríamos remontarnos hasta Juan Ruiz, arcipreste de Hita, que, en el siglo XVI, con su magistral Libro de Buen Amor, puede ser considerado, sin espejismo alguno, pionero en la literatura española de la presencia del autor en su obra, bajo su nombre propio y con un calculado artificio de doblez moral, doctrinal y biográfica. Después de este origen se podría seguir a corriente cronológica histórica para considerar la presencia de la autoficción en El Quijote, en los Sueños de Quevedo, del Estebanillo González, etc., para llegar, de la sabia de Guy Mercadier, hasta uno de nuestros más cualificados autoficcionarios, mixtificador de su propia biografía en su obra que fue Diego de Torres Villarroel en libros como Correo de otro mundo (1725). Como vemos a autoficção não é uma invenção literária do século XX, embora o final desse século tenha registrado uma proliferação do gênero. O texto acima faz referência ao estudo de Guy Mercadier sobre o Correo del otro mundo. O artigo intitulado ―Los albores de la autobiografia moderna: el Correo del outro mundo (1725) de Diego Torres Villarroel‖ (1991) observa algumas características da obra de Torres Villarroel que a inserem no campo da autoficção, já que a mescla de ficção e autobiografia se faz presente. Um elemento que se destaca na obra é a questão do nome próprio do autor, item decisivo para considerarmos o livro um antecedente da autoficção espanhola. Como assinala Guy Mercadier: Sobre la pantalla del relato, un autor que se llama Torres proyecta la imagen de un personaje que se llama Torres; imagen desdibujada, cuya puesta a punto definitiva se rehúsa deliberadamente. Por momentos, tenemos la impresión de que se vuelve más nítida, que sus contornos gemelos se fusionan finalmente, pero es solamente para volverse a esfumarse al momento. En esas incesantes vibraciones visuales, en ese ir y venir entre el Torres de fuera del texto y el Torres del texto, reside la dinámica profunda de la obra. ¿Cómo distinguir en esta contaminación, lo ―real‖ de la ―ficción?(…) El pacto concertado con el lector es muy complejo: ¿ novelesco? ¿ autobiográfico? Bien mirado, ambos a la vez, con afirmada preeminencia del segundo. (MERCADIER, 1991, p.34)60 60 Revista Anthropos,n. 125, outubro de 1991. 149 Mercadier observa que em Correo del otro mundo o essencial não reside nos vestigios de uma ―verdade objetiva‖, mas sim no fato de que o ―eu‖ que se confessa através de um sonho não difere fundamentalmente daquele que se revela nos textos considerados explicitamente como autobiográficos. Nas páginas dessa espécie de confissão múltipla em que a obra de Villarroel se estrutura, os críticos da atualidade podem perceber o caminho aberto para os romancistas da introspecção moderna. Em outras palavras, Torres Villarroel é, de fato, um precursor da autoficção espanhola. A eclosão da subjetividade em manifestações artísticas foi algo que adquiriu visibilidade e relevância somente a partir do século XVIII. A partir deste período, começam a surgir grandes pintores que optam pelo autorretrato pictórico como forma de expressão artística. No entanto, ressalta Alberca, esses artistas tiveram que romper com padrões estabelecidos e preconceitos que dominavam a livre expressão do ―eu‖ artístico. El autorretrato pictórico es la demostración de la presencia inequívoca del artista en su obra, que está también sometido al mismo tipo de resistencia a la libre expresión del yo en la literatura, dejando aparte las específicas dificultades técnicas de este género pictórico. Los autorretratistas tuvieraon que vencer los prejuicios sociales y sin duda las propias reservas o temores personales por los que se asimilaba el hecho de representarse a sí mismo como una manifestación de fatuidad narcisista o aún peor, del pecado o la soberbia. (ALBERCA, 2007, pp. 20-21) Se até o século XVIII a exposição do artista como parte de sua obra era algo que desafiava preceitos de sociedades profundamente ancoradas na religião, em que a exaltação do ―eu‖ não era facilmente aceitável, pois, como lemos na citação, associavase a soberba e ao narcisismo, no século XIX, em pleno Romantismo, o sujeito passa a ser o foco principal das manifestações artísticas, abrindo espaço para a expansão da literatura de caráter autobiográfico. Ao ocupar um lugar de maior prestígio social, o artista e o escritor, encarnam como ninguém, segundo Alberca, o individualismo 150 burguês. Esse caráter mais individualista da sociedade permitiu que a arte assumisse nuances mais subjetivas, sendo assim, a personalidade e a vida do artista e do escritor passam a ser objeto de sua própria criação. Construirse una personalidad, única y extraordinaria, fue sinónimo de vivir intensamente y de dar sentido a la existencia personal. El artista y el escritor crearon sus propios códigos, pues para ser uno mismo era preciso distanciarse de los demás. Ser diferente y distanciarse del resto de los hombres se alzó como la máxima ética y estética de la creación moderna, pues la meta del artista moderno consistía en hacer de su vida y de sí mismo una obra de arte. Ahora bien, para eso, para elevar su figura y obra a categoría artística, el escritor y el creador en general se vieron emplazados a transgredir las barreras sociales, a traspasar los límites establecidos y a desafiar las instituciones sociales. En ese contexto estaba cantado que los artistas y los escritores se convertirían en héroes y, en consecuencia, en modelos de la rebeldía y de la insatisfacción. (ALBERCA, 2007, p.22) Alberca aponta que o processo de consolidação da figura do escritor/artista no cenário social completou-se com a valorização mercantil da subjetividade e da assinatura do artista, a qual estimulou uma exagerada ―afición por singularizarse‖. Nesse contexto, a vida do escritor/artista passa a ser mais uma obra de sua criação. Alberca explica que nos últimos dois séculos deu-se um incremento na necessidade de construção de um ―eu‖ público, a qual fazia parte da estratégia promocional da comunidade dos artistas. Paralelamente, o conceito de autoria, que já tinha séculos de existência, se ratificou e se reforçou. O certo é que sendo a autoficção um gênero que está incluído entre as chamadas ―novelas del yo‖ – romances do eu -, seu surgimento estará relacionado a esses aspectos. Para definir esta categoria de romances, Alberca elabora dois quadros semelhantes ao quadro de Lejeune. No primeiro quadro, dialogando com as noções de pacto autobiográfico e pacto romanesco propostas por Lejeune, Alberca introduz a idéia do pacto ambíguo, onde se inserem as ―novelas del yo‖. 151 Cuadro 1 PACTO AUTOBIOGRÁFICO Memorias Autobiográficas 1.A=N=P → (identidad) 2.Factualidad Veracidad (− invención) → PACTO AMBIGUO Novelas del yo PACTO NOVELESCO Novelas, cuentos 1.A+N+P/A ≠N−A≠P ← 1. A ≠N−A≠P (No identidad) 2.Ficción/Factualidad ← 2. Ficción Verosimilitud (+invención) A, Autor; N, Narrador; P, Personaje; =, idéntico; ≠, no idéntico;‒, menos; +, más; /, y-o (Alberca, 2007, p.65) Já o segundo quadro faz um detalhamento das ―novelas del yo‖, esclarecendo que estas se encontram entre o romance e a autobiografia, caracterizando-se por uma espécie de pacto ambíguo, entre o romanesco e o autobiográfico, existindo uma espécie de gradação, segundo o romance se aproxime mais da autobiografia ou do romance. Desta forma, a partir dos mesmos elementos – autor, narrador, personagem –, do princípio de identidade entre esses elementos e da proposta de leitura que se apresentam nas obras, Alberca caracteriza essas variantes de ―novelas del yo‖, sendo elas o Romance autobiográfico, a Autoficção e a Autobiografia fictícia, de forma que o primeiro está mais próximo da autobiografia e a última mais próxima do romance. A Autoficção fica justamente entre os dois, mantendo uma equidistância entre o pacto autobiográfico e o romanesco. Tendo com exemplo o quadro em que Lejeune lança alguns pressupostos teóricos sobre a autobiografia, o quadro que Alberca propõe a possibilidade de estabelecer limites entre gêneros literários. Vejamos o quadro proposto por Alberca: 152 Cuadro 2 PACTO AMBIGUO LAS NOVELAS DEL YO Novela autobiográfica Autoficción Autobiografía ficticia (+ prox. a la (equidistancia de (+prox. a la novela) autobiografia) ambos pactos) 1.Principio de 1.Principio de 1.Principio de identidad identidad identidad A≠N // A≠P A≠N // A≠P A=N=P Identificación nominal Identidad nominal Identidad nominal fictícia fictícia o anonimato Expresa N=P // A = editor N≠P // N≠P 2. Propuesta de lectura 2.Propuesta de Propuesta de lectura Ficción/Fatualidad lectura Ficción/Fatualidad Autobiografismo Ficción/Factualidad Autobiografismo escondido Autobiografismo simulado (falso/verdadero) transparente A, Autor; N, Narrador; P, Personaje; ‒, menos; +, más; =, idéntico; ≠, no idéntico; /, y-o (ALBERCA, 2007, p.92) O quadro resume e esclarece de maneira teórica porque as ―novelas del yo‖ correspondem a um pacto ambíguo. Para Alberca, os romances do eu são um tipo peculiar de autobiografias e/ou ficções. Na verdade, são romances que parecem autobiografias, mas também poderiam ser autobiografias com uma aparência de romances. Sendo assim, este teórico reconhece que a tanto a autoficção quanto suas formas narrativas vizinhas quebram as regras dos grandes pactos narrativos, mas não podem ser estudadas sem que, necessariamente se recorram a essas regras, a fim de verificar onde estão e como funcionam seus limites. É preciso conhecer as regras tanto do pacto autobiográfico quanto do pacto romanesco para observar a maneira como o pacto ambíguo subverte essas regras. Como es sabido, si se quiere comprender lo real o intentar explicarlo, no podemos conformarnos con estudiar sus leyes, sino también las excepciones a esas leyes, y en ese sentido los relatos novelescos que estudio constituyen un caso límite del protocolo y las reglas de funcionamiento de los dos grandes pactos narrativos.(ALBERCA, 2007, pp. 64-65) 153 Para Alberca, as formas narrativas autoficcionais, por estarem entre os principais estatutos narrativos, o autobiográfico e o ficcional, podem parecer confusas com relação às regras, inclusive, podem dar a impressão de que as apagam, neutralizando as marcas de oposição. No entanto, essas formas narrativas são uma verdadeira demonstração de que as regras e os limites existem. Por eso, para describir el estatuto de la autoficción y del resto de las formas novelescas vecinas, es preciso relacionarlo, en sus coincidencias y divergencias, con los dos pactos narrativos más importantes. Entre ambos y en su zona intermedia, entre los confines de uno y otro, se abre un territorio cada vez más extenso y variado, un amplio laboratorio de experimentación literaria (falta por saber si autobiográfica o novelesca), distante de las obligaciones de la autobiografía y equidistantemente separado de la libertad para imaginar que consagra el estatuto novelesco para el lector y novelista; en ese espacio liminar es donde hay que situar las novelas del yo. (Alberca, 2007, p. 65) Passados mais dez anos da publicação do artigo de Manuel Alberca que tratava das ―fronteiras da autobiografia‖, observa-se que, nesse período, pôde-se perceber tanto um elevado número de escritos ditos autoficcionais, bem como uma evolução do significado do termo ―autoficção‖. Teoria e prática autoficcionais sofreram modificações. Recentemente, e depois de muitas criações autoficcionais, observaremos novas reflexões em seu artigo e 2009, ―Es peligroso asomarse (ao interior). Autobiografía vs. Autoficción‖, referido anteriormente. O artigo tem como proposta levantar algumas questões que derivam da proliferação dos relatos autobiográficos e autoficcionais na Espanha das últimas décadas. Com relação à autoficção, autor relaciona o crescente número desse tipo de relato às trasnformações sofridas pelo sujeito no século passado, as quais determinaram novas formas de autorrepresentação. A dissolução do sujeito na pós-modernidade, juntamente com um procedimento crescente nas manifestações artísticas em nossos 154 tempos, a ficcionalização do real, facilitou sobremaneira a expansão da autoficção. Por outro lado, a permeabilidade do romance, gênero aberto a uma multiplicidade de discursos, como já apontava Bakhtin, facilitou e continua facilitando o surgimento de inúmeras autoficções em todas as suas variantes. Hay que reconocer, no obstante, que a la novela moderna, cuyo prototípico ejemplo español lo constituye Vida y andanza de Lazarillo de Tormes, la ha guiado el objetivo de parecer real (verosímil) desde sus orígenes. Así, cuando a novela utiliza materiales históricos, periodístico o sociológicos, lo hace con el fin de parecer más real y de disimular el artificio que supone proponer como verdadero algo que el autor y lector saben que no lo es. La permabilidad de la novela y su libertad de apertura a todos los discursos lo hace posible. Los materiales ―verdaderos‖ incrustados en una novela no atentan a su principio ficticio, dado que su estatuto narrativo radica precisamente en que el relato parezca lo más verosímil posible. La novela puede absorber todo, tomar prestado o robar cualquier material de la autobiografía o de la Historia, sin dejar de ser una novela ni de proponer una interpretación verosímil. (ALBERCA, 2009, p. 11-12) O mesmo não se pode dizer da autobiografía cuja assimilação de elementos fictícios a faz violar seu próprio protocolo de leitura, que prevê que o leitor tenha a possibilidade de comprovar a veracidade dos fatos biográficos narrados pelo autor. En cambio, si una autobiografia incorpora materiales ficticios, imposibles de documentar o que no se corresponden con la verdad del autobiógrafo, se produce una alteración, que atenta al principio báscico de la veracidad. (ALBERCA, 2009, pp. 11-12) Desta forma, Alberca assinala uma diferença fundamental entre a autobiografía e o romance. Este, ao incorporar dados autobiográficos se enriquece, enquanto aquela, quando assimila elementos de ficção, simplesmente se desvanece. Este enriquecimento do romance através de dados histórios ou autobiográficos é um elemento bastante utilizado nas autoficções e responsáveis pela sua hibridização, uma das suas características principais. 155 Por fim, Alberca lança, como questionamento a idéia de que a autoficção pode funcionar como um ―refúgio‖ para o escritor que, ao mesmo tempo que deseja contar sua vida, quer escapar do compromisso autobiográfico e suas possíveis condicionantes sociais. El fenómeno de la autoficción se presta a dos explicaciones que en principio pueden parecer irreconciliables, pero que no lo son en absoluto. En fin, lo diré de manera interrogativa: 1) ¿es la autoficción una forma narrativa avanzada de hablar de sí mismo fuera de las constricciones de las autobiografías y de las memorias? o 2) ¿representa una manera de escapar, una vez más, al compromiso y al control del lector, refugiándose en la ficción, como un desconfiado lector autobiográfico podría barruntar? Ambas preguntas plantean, a manera de dilema, la interpretación de la autoficción, según se considere prioritaria la relación de ésta con la vertiente novelística o con la autobiografía, pero es evidente que caben las dos opciones, que no son excluyentes, y ambas se mezclan en algunos relatos. (ALBERCA, 2009, p. 16) As interrogações do texto acima resumen as posibilidades de interpretação e de leitura do texto autoficcional, levando em consideração a intenção do autor. Consideramos o questionamento válido, mas devemos ressaltar que a interpretação da autoficção, a partir desses dois pontos de vista propostos acima, necessita de outras informações fora do texto, já que a simples análise textual não permite desvendar, ou melhor, esclarecer a dúvida. Esta somente pode ser elucidada apartir da identificação dos variados materiais narrativos que compõem a obra, aproximando-a mais da autobiografia ou do romance. Nosso intuito, a partir de agora, é justamente este: identificar em El cuarto de atrás os materiais narrativos que a compõem, delimitando nosso foco nos elementos autobiográficos e ensaísticos, verificando como ambos participam a elaboração do relato e qual papel estes tipos e discurso exercem na tessitura do texto. Passemos, então, à análise da obra. 156 Capítulo 3 – El cuarto de atrás: que obra é esta? Chegamos ao capítulo final desta tese onde analisaremos o romance El cuarto de atrás a partir das perspectivas teóricas abordadas no capítulo anterior. Antes de passarmos a nossa análise do referido livro consideramos relevante apresentar alguns estudos críticos sobre o romance, já que vários deles também compõem a base para nossa análise. Esta revisão crítica nos serve também como pretexto para apresentar de forma diluída o contexto histórico que a narrativa estudada representa. Vimos no capítulo inicial que Carmen Martín Gaite é uma escritora que começou a escrever no período pós-guerra e que teve alguns anos de sua infância entrecortados pelos anos da Guerra Civil, cujos vencedores implantaram um regime autoritário que submeteu a Espanha a décadas de uma sombria e falseada realidade. Os estudos críticos aqui apresentados fazem, invariavelmente, uma referência ao perído pós-guerra, cujas limitações e imposições sócioculturais determinaram de maneira definitiva a criação literária de Carmen Martín Gaite. Portanto, esta parte incial do capítulo, além apresentar algumas perspectivas críticas sobre El cuarto de atrás, elucida pontos relativos ao contexto político e cultural em que a obra se insere. Mais do que isto: o contexto do qual El cuarto de atrás deriva. 3.1 – Revisão crítica. Antes de empreender nossa análise sobre El cuarto de atrás, faremos uma aproximação a alguns estudos sobre a obra narrativa da escritora e, especialmente, sobre o livro em questão, através de uma revisão crítica através de alguns estudos realizados por especialistas em literatura espanhola. Esta revisão consistirá em breves sínteses de 157 trabalhos que analisam os aspectos da obra de Carmen Martín Gaite que mais nos chamaram a atenção ao longo de nossa pesquisa. Inciamos nossos comentários com o livro de José Jurado Morales sobre a escritora. Em La trayectoria narrativa de Carmen Martín Gaite (2003), um dos estudos mais completos sobre a obra narrativa de Carmen Martín Gaite, o autor faz uma revisão completa de todos os romances da autora, levando em consideração os seguintes aspectos: o contexto histórico, o contexto literário, a perspectiva do leitor, o mundo ficcional e os aspectos narratológicos de cada um dos romances estudados. Levando em consideração que a obra narrativa de Carmen Martín Gaite abrange um período de mais de quarenta anos, propõe-se identificar os períodos produtivos, relacionando a criação da escritora a cada uma das etapas históricas da Espanha da qual Carmen Martín Gaite foi testemunha. A partir desta perspectiva, verifica-se também o amadurecimento pessoal e intelectual da escritora que se refletiu em sua obra. Jurado Morales justifica a importância de sua pesquisa, repassando alguns estudos sobre Carmen Martín Gaite, e advertindo que, embora esses estudos sejam de grande valia, não abrangem a totalidade de sua obra narrativa, ou quando o fazem, têm uma perspectiva única, analisando a obra a partir de uma visão feminista. Sendo assim, o objetivo principal do estudo de Jurado Morales é integrar as perspectivas histórica, literária e biográfica. Essa perspectiva ampla gira sobre um dos eixos que une a trajetória humana e literária da autora: a busca da identidade pessoal a partir da constatação de uma série de carências. Uma busca obsessiva se estabelece como verdadeira estrutura básica sobre a qual a escritora constrói seus mundos de ficção. A busca da identidade, presente na maioria dos personagens de Carmen Martín Gaite, revela-se como meio de realização 158 pessoal. O mundo ficcional representa o desejo e a luta desses personagens para sanar suas carências, em geral de ordem afetiva, para assim optar pela afirmação da identidade. Essa luta será maior ou menor de acordo com o panorama social com o qual se deparam os personagens, seja a sociedade homogeneizadora dos anos cinquenta e sessenta, a sociedade do período de transição dos anos setenta ou a sociedade individualista dos anos noventa. São estes justamente os períodos assinalados na obra narrativa de Carmen Martín Gaite. É desse eixo central que surgirão os temas recorrentes em toda a sua obra: a falta de comunicação, a liberdade, a revisão do passado, a memória, os sonhos, a fantasia, o amor, a amizade, a reivindicação dos sentimentos, etc. Além disso, esses temas repercutem na escolha dos personagens e nos modos narrativos selecionados para cada ocasião, ou seja, realista, fantástico, metaliterário, intimista, autobiográfico, experimental, tradicional. Já vimos até aqui que a obra que analisaremos é um pouco de tudo isso ao mesmo tempo. Certamente como marco do término do período relativo ao regime ditatorial de Franco, El cuarto de atrás reflete toda a ânsia de liberação após quatro décadas de repressão e censura. Com sua visão histórica particular, Carmen Martín Gaite rememora o período pós-guerra Civil, especialmente as décadas de 40 e 50, fase em que começou sua carreira literária integrando o grupo de escritores neorealistas espanhóis. O artigo ―El acercamiento humanitario a la realidad: um aspecto del neorrealismo español‖(1991), de Luis Miguel Fernández, contribui para o estudo da literatura da época ao ressaltar a preocupação humanitária da literatura neo-realista espanhola. No período pós-guerra Civil, a literatura manifestou um caráter realista em que se procurava mostrar a sociedade deteriorada pela guerra. A partir da década de 50, 159 um grupo de escritores começa a escrever obras com um aspecto em comum: os traços neo-realistas influenciados pelo cinema italiano da época. Os neo-realistas destacaramse por sua preocupação humanitária, diferenciando-se dos outros companheiros de geração cuja criação era essencialmente realista. O autor do artigo ressalta que o neo-realismo entrou na Espanha a partir de 1951, com a Semana de Cinema Italiano. Outros dois eventos, em 1953, a Segunda Semana, e em 1955, as Primeiras Conversações Cinematográficas Nacionais de Salamanca, propiciaram a aproximação de intelectuais com os cineastas italianos, destacando-se De Sica e Savatini. Carmen Martín Gaite, Sáchez Ferlosio, Ignacio Aldecoa, Jesús Fernando Santos, Ana María Matute e Juan Goitisolo eram os escritores que se destacaram na literatura neorrealista espanhola. Carmen Martín Gaite, em especial, foi considerada participante deste grupo pela preocupação humanitária em sua obra, traços reconhecidos pela crítica em geral. Assim, verifica-se, em seus contos e, especialmente, no romance Entre visillos, o procedimento de mostrar os personagens desvinculados de seu contexto, sofrendo impotentes as agressões do meio. Também através da rebeldia e dos sonhos dos personagens, nota-se a tendência humanitária em mostrar um mundo de insatisfações, onde a realização só é possível nos sonhos. A importância deste artigo na pesquisa deve ser ressaltada por focalizar o período inicial da criação literária de Carmen Martín Gaite, posto que, ao nosso entender, alguns aspectos, como a falta de comunicação e a solidão do ser humano, que já naquela época se verificavam na obra da escritora, serão recorrentes ao longo de sua carreira literária, e aparecem de forma destacada em El cuarto de atrás. Ambos os 160 aspectos se resolvem, nas narrativas martingaiteanas, pela busca do interlocutor, pelo sonho e pela escritura. Estabelecendo uma ponte entre a literatura e as artes plásticas, no artigo ―Carmen Martín Gaite y Remedios Varo: trayecto hacia el interior a través de la literatura‖ (2002), María Alejandra Zanetta, realiza um estudo comparativo entre a literatura de Carmen Martín Gaite e a pintura de Remedios Varo. Artistas contemporâneas, ambas sofreram com o isolamento imposto pela ditadura franquista. A primeira viveu o que pode ser chamado de exílio interior, no isolamento intelectual, sem sair da Espanha. A segunda, exilada efetivamente e definitivamente no México com o estalar da Segunda Guerra Mundial, logo após o término da Guerra Civil Espanhola. Através de uma perspectiva de análise baseada na crítica feminista de orientação psicanalítica, autora encontra vários paralelismos entre o livro El cuarto de atrás e os quadros da pintora Remedios Varo. María Zanetta considera que as duas artistas utilizaram a arte como um processo de transformação espiritual que as direciona a uma profunda reavaliação da situação pessoal e histórica experimentada por elas. Para analisar esse processo, utiliza os conceitos desenvolvidos por Annis Pratt sobre os chamados romances de renascimento e transformação espiritual e o estudo de Bárbara Frey Waxman sobre o romance de maturação. Também pretende com o ensaio demonstrar de que maneira a experiência do exílio, que coincide com a etapa de maturação em ambas, motiva a superação dos aspectos negativos da marginalização, transformando a situação marginal em uma experiência de criação subversiva e liberada. Ao iniciar-se a Guerra Civil, Remedios Varo apoiou a causa republicana, mas a violência da Guerra bem como seu envolvimento amoroso com o revolucionário francês 161 Benjamin Perét levaram-na a refugiar-se em Paris, onde passa a fazer parte do grupo surrealista de André Breton e faz alguns trabalhos com eles. A perseguição aos intelectuais dissidentes, iniciada com a Segunda Guerra Mundial, leva-a ao exílio definitivo no México. A partir daí, começa a desenvolver uma arte mais pessoal, de caráter autobiográfico. Da mesma forma, Carmen Martín Gaite sentirá os efeitos da sociedade opressora e especialmente restritiva para as mulheres na Espanha durante e, principalmente, após a Guerra Civil. Zanetta assinala que, no romance El cuarto de atrás, a narradora transmite a asfixiante presença da Seção Feminina, do Serviço Social e da figura de Isabel, a Católica, como modelo para as mulheres, assim como os slogans destinados a determinar o comportamento feminino. A arte será nesse contexto um instrumento de liberação. A ensaísta afirma que esta função liberadora que a mulher artista atribui ao processo criativo se relaciona diretamente à situação política e social à qual foram submetidas durante décadas de ditadura franquista. O exílio não é somente o afastamento espacial do lugar de origem, mas, antes de tudo, uma condição mental de isolamento. Neste sentido, pode-se dizer que Martín Gaite compartilhou as mesmas condições psicológicas que Remédios Varo para criar em docorrência do franquismo. A intensificação de uma ordem patriarcal durante o pós-guerra civil foi sofrida especialmente pelas mulheres. A partir de uma visão embasada na crítica literária feminista, o estudo de María Zanetta mostra que, diante da pressão de todos os setores sociais que apoiavam o governo franquista, as mulheres intelectuais se viam obrigadas a voltar-se para dentro de si mesmas, já que explorar criativamente o mundo exterior resultaria na própria anulação. En España, como ya hemos señalado anteriormente dicha intensificación del orden patriarcal es lógicamente, especialmente sufrida por las mujeres. No es 162 extraño pues. Que, ante la presión del gobierno y de todos aquellos sectores sociales que apoyaban la ideología franquista, la mujer intelectual se viese obligada a explorar hacia a dentro, pues el afuera equivalía a la propia anulación. Los textos de todas aquellas autoras que escriben bajo un sistema patriarcal intensificado por la existencia simultánea de un sistema dictatorial constituyen no sólo actos de resistencia o de transgresión de la autoridad sino intentos activos de transformación simbólica. (ZANETTA, 2002, p.281) Citando a tese de doutorado de Josefa Lago Graña 61, María Zanetta destaca que o impacto da repressão franquista foi desatrosa para as mulheres, mas que elas encontraram um caminho de liberação através da arte. En El cuarto de atrás la represión franquista inspira el trabajo de la protagonista C., que decide reivindicar la posición de la mujer durante la dictadura de Franco. La liberación de ese espacio interior se hace de forma no consciente ya que las páginas de denuncia de este sistema autoritario se escriben por si solas, técnica que libera a la protagonista de toda responsabilidad sobre el texto. De igual manera, la decisión de escribir esta denuncia sólo se produce una vez desaparecido el dictador. (LAGO GRAÑA, 1997 apud ZANETTA, 2002, p. 279) Os textos das escritoras que mesmo naquele contexto conseguiram expressar-se literariamente constituem atos de resistência e de transformação simbólica. Um dos símbolos mais utilizados, a metáfora do espelho, presente na obra das duas artistas, é a representação de busca de recostrução da identidade feminina que resiste à aniquilação imposta pelo regime político, sendo, portanto, esta matáfora, um símbolo de subversão na obra. Pensando no caráter subversivo de El cuarto de atrás, a especialista em literatura espanhola de autoria feminina, Estrella Cibreiro (1995), escreve o artigo ―Transgridiendo la realidad histórica y literária: el discurso fantástico em El cuarto de atrás. O ensaio identifica nos temas e nos procedimentos narrativos do livro de 61 Refere-se a: LAGO GRAÑA, Josefa. Más allá de la esfera privada: Escritura como espacio de autoafirmación en Martín Gaite, Esquivel y Cisneros. Tese de doutorado. Lincoln, Nebraska: Universdade de Nebraska, 1997. 163 Carmen Martín Gaite uma transgressão política e literária. Segundo a autora, a obra revisa um período específico da história espanhola – o pós-guerra – através da combinação de dois discursos literários radicalmente diferentes: o romance de memórias e o romance fantástico. Para a autora, essa mescla de fantasia e história transgride simultaneamente as normas e os esquemas da política e da literatura, criando um texto contestador tanto no nível conceitual quanto formal. La combinación de dichos discursos antitéticos y su interacción dentro de la obra hacen de ésta un ejemplo de hibridez literaria inusitado en la narrativa española contemporánea y único dentro de la producción novelística de la autora. Este ensayo examina los componentes históricos y fantásticos presentes en El cuarto de atrás, enfocándose específicamente en las conexiones que se desarrollan en el texto entre forma narrativa y propósito ideológico. (CIBREIRO, 1995, pp.29-30) O ensaio examina os componentes históricos e fantásticos de El cuarto de atrás, detendo-se especificamente nas conexões que se desenvolvem no texto entre a forma narrativa e o propósito ideológico. Para Estrella Cibreiro, a Guerra Civil Espanhola tem um papel crucial dentro da obra, não pela sua importância política, mas sim pelas suas consequências no âmbito pessoal. Carmen Martín Gaite rememora em seu livro o que foi a Guerra que transformou o quarto dos fundos, utilizado para jogos infantis, em despensa. Também a morte de Franco tem sua consequência no âmbito pessoal. É o que a impulsiona e, ao mesmo tempo, lhe permite escrever um livro em que trata de maneira crítica o período do pós-guerra e da ditadura franquista. El acontcer histórico-político se infiltra progresivamente a lo largo de la obra en el mundo interior de la narradora poniendo al descubierto la relación entre la circunstancia exterior y la evolución psicológica interior. Los conceptos de historia, por una parte, e individualidad o mismidad, por otra, aparecen vinculados y se manifiestan en la novela como procesos entrelazados y en continua revisión. Identidad e historia devienen realidades inseparables coexistiendo en una relación de sibiosis dentro de la obra. (CIBREIRO, 1995, p 30). 164 Estrella Cibreiro afirma que o impacto do tempo histórico sobre o tempo subjetivo remonta à Guerra Civil, trazendo à memória da narradora a infância. O conflito irrompe na ilusão ou espelhismo de atemporalidade que caracteriza esta etapa da vida. El papel de la guerra civil es crucial dentro de la obra pero no específicamente por la importancia política y social del acontecimiento en la esfera nacional sino por las consecuencias e implicaciones que de ella derivaron en el ámbito personal. (…) De igual manera, la muerte de Franco – acontecimiento histórico concreto que da ímpetu a la creación de la obra – supone la posibilidad para la narradora de adentrar-se en la maraña del pasado y enfrentar-se a la totalidad de su existencia por medio de la exploración rememorativa de la época franquista. (CIBREIRO, 1995, p. 31) Quanto à utilização de elementos fantásticos (o homem vestido de negro, o aparecimento de uma barata, a figura do diabo, todos relacionados à cor negra) nesta obra que propõe a revisão crítica de um período histórico é, para a autora do ensaio, um sinal de rebelião intelectual contra o discurso tradicional, demonstrando com seu ecletismo narrativo a condenação ao discurso mítico e unívoco do pós-guerra. Carmen Martín Gaite incorpora de maneira ágil e sem solução de continuidade os elementos fantásticos que se integram aos elementos históricos de maneira excepcional ao longo de toda a narrativa. La incorporación de figuras y elementos pertenecientes al mundo de lo fantástico contribuye a su función como marco temático y estructural, de manera idéntica a la función del componente histórico. La autora sostiene este paralelismo durante toda la novela, manipulando con gran exactitud y acierto la coexistencia equilibrada de discursos por naturaleza antitéticos y manteniendo dicho equilibiro hasta el final. (CIBREIRO, 1995, p. 31) Em nossa pesquisa este ensaio ganha relevância ao apresentar alguns aspectos autoficcionais da obra de Carmen Martín Gaite, mesmo que não utilize o termo autoficção, além de apresentar vários aspectos dialógicos e polifônicos narrativa, 165 revelados pela sua relação com a narrativa fantástica, que surge não somente como uma prática narrativa, mas também como um campo de estudo, a partir das considerações que a narradora faz sobre este tipo de literatura, baseando-se no livro Introdução à literatura fantástica que surge na obra como um dos elementos de referencialidade do texto, dando-lhe um caráter, ao mesmo tempo, autobiográfico e ensaístico. A inserção de elementos fantásticos na narrativa também é um dos temas destacados no artigo ―Elementos de la narración – El cuarto de atrás: estructura y punto de vista‖ (2009), no qual o crítico Agustín Faro Forteza observa que, assim como o narrador (no caso a narradora) é homodiegético, o narratário, o misterioso homem de negro, também o é. Fazendo uma análise capítulo a capítulo, Faro Forteza assinala os aspectos mais relevantes da obra no tocante a sua estrutura e pontos de vista apresentados, passando pela temática da narrativa. Assim, destaca-se que Carmen Martín Gaite escreveu suas memórias de forma indireta, utilizando o recurso da narrativa dialogada. Observa-se que há uma identificação entre a narradora, a autora e a protagonista e que a estrutura dialogada já havia sido utilizada pela escritora em Retahílas‖, romance anterior a El cuarto de atrás. A aproximação da obra à literatura fantástica, para Faro Forteza, se apresenta primeiramente pela referênia ao livro de Todorov, mencionado pela narradora/protagonista para reafirmar seu propósito de escrever um relato fantástico; outra referência é a alusão feita a El balneario, primeiro relato longo de Carmen Martín Gaite, cuja primeira parte é um relato de ficção e mistério. O artigo também mostra como o livro concilia estruturas diferentes, desde uma biografia segundo os padrões canônicos, no primeiro capítulo, ao monólogo interior, no terceiro capítulo, ou uma conversação telefônica no quinto. 166 Há a vários aspectos que vêm sendo observados nesta pesquisa, principalmente, a variedade dos discursos presentes em El cuarto de atrás, em sua junção de discursos heterogêneos, onde os limites são apagados, traço bastante presente nas narrativas pósmodernas, como as metaficçoes historiográficas, conforme o estudo de Linda Hutcheon, que vimos anteriormente. A menção à obra de Todorov, como uma autoexplicação da narrativa fantástica que Carmen Martín Gaite elabora em El cuarto de atrás é um dos aspectos autorreflexivos da narrativa, caracterizando sua metaliterariedade. Outros aspectos da narrativa em El cuarto de atrás são observados por Dunia Grãs no artigo ―El cuarto de atrás: Intertextualidad, juego y tiempo‖ (2007). O artigo inicia-se sinalizando a vocação eclética na obra de Carmen Martín Gaite, observando que a autora cultivou uma gama variada de gêneros literários ao longo de sua carreira. Dunia Grãs menciona as incursões poéticas, os artigos publicados na imprensa, os ensaios sobre literatura e história, as traduções, as edições críticas, as adaptações teatrais, os roteiros para cinema e televisão e os contos infantis. Para a autora do artigo, essas são variantes de uma mesma obra literária, mais conhecida, como sabemos, em sua vertente romanesca, onde se ressalta o aspecto narrativo, construído a partir da mescla de história – pessoal ou social – com literatura, fundindo as recordações com a imaginação. O resultado será o surgimento de textos híbridos, onde, mais que ficção, encontramos a metaficção. Como exemplo do tratamento dado por Carmen Martín Gaite aos ―materiais da memória‖, Dunia Grãs seleciona uma passagem em El cuarto de atrás localizada no capítulo IV. O capítulo intitula-se ―El escondite inglés‖, nome de uma brincadeira infantil correspondente ao nosso esconde-esconde. Também há referências a La búsqueda de interlocutor y otras búsquedas e El cuento de nunca acabar, ambos livros 167 de ensaios em que Carmen Martín Gaite reflete sobre temas relacionados à criação literária, especialmente sobre a narração. Interpretando ao início o título da obra, Dunia Grãs explica o que representa o ―cuarto de atrás‖: Ese ―cuarto de atrás‖ al que hace referencia el título de la novela es el cuarto de jugar que tenía la autora con su hermana Anitirrín en Salamanca. Es el espacio de su infancia, donde descubrió a Elena Fortún y a Antoniorrobles y donde, felizmente, reinaba el caos, lo dionisíaco… en fin, su paraído perdido. Ese espacio idealizado y mítico del juego desaparecerá durante la guerra, cuando la necesidad hace que se convierta en despensa: paso de lo lúdico a lo útil, en cierta forma, de la infancia a la madurez, de lo ideal a lo real. No obstante, en su obra narrativa, Carmen Martín Gaite ha logrado revisitar ese espacio del pasado, como si – tomándole prestado ese ―como si‖ tan suyo – fuera Peter Pan y volviera periódicamente a su particular país de Nunca Jamás, recuperando así ese pasado idílico que les es tan querido y haciéndole recuperar, con su memoria, a otros Niños Perdidos, compañeros de viaje. (GRÃS, 1998) Em sua análise de El cuarto de atrás, Dunia Grãs observa que há um desdobramento da autora/narradora com ―voz em off‖ ou narradora/observadora e narradora/personagem, dialogante, que participa da conversação. A narradora/observadora, a partir de uma suposta realidade, a do momento da escritura, transcreve a obra de ficção, o diálogo fictício como realidade que ocorreu de fato, dessa forma o ―eu‖ autobiográfico aparece no plano da ficção. Vemos nesta linha de análise uma sinalização ao aspecto autoficcional da obra, cujo estudo constitui um dos objetivos desta pesquisa. No livro há uma referência constante ao jogo do ―escondite inglés‖. O jogo infantil é a metáfora de uma vida inteira onde a verdadeira ralidade era negada à protagonista da obra, que ao refletir sobre a morte de Franco, relembra que sentiu durante toda a sua vida como se estivesse ―jugando al escondite inglés‖, com toda a 168 realidade acontecendo as suas costas sem que ela pudesse ver o que realmente se passava. O artigo nos interessa especialmente por apresentar aspectos que estamos desenvolvendo nesta pesquisa. Primeiramente, apresenta, mesmo sem assim denominar, a questão da autoficção, reconhecendo a identidade entre narradora, protagonista e autora. Outro aspecto que nos interessa é o da intertextualidade que se verifica através da relação entre El cuarto de atrás com textos da própria Carmen Martín Gaite e com outros textos literários e ensaísticos. Este traço está relacionado ao aspecto dialógico do romance, caracterizando a autora como leitora, cujas leituras são reelaboradas em uma nova forma literária: a autoficção. Outro artigo cuja análise de El cuarto de atrás também nos leva a ler esse livro sob o protocolo autofictício, também sem o uso do termo, é ―El interlocutor soñado de El cuarto de atrás‖ (1980), de Julián Palley. A metáfora vida/sonho presente na obra de diversos autores clássicos da literatura hispânica como Miguel de Cervantes, Calderón de La Barca, Adolfo Bécquer, Rosalía de Castro, Antonio Machado e Jorge Luis Borges, é utilizada também por Carmen Martín Gaite. Julián Palley observa que a escritora espanhola criou relatos fantásticos baseados nos sonhos de suas protagonistas, como ocorre em El balneario, seu primeiro romance e El cuarto de atrás. El cuarto de atrás es um libro sobre libros. Martín Gaite, o la narradora quizá recordando a Cervantes, comenta, durante su diálogo, sus propios libros anteriores: Ritmo lento y, sobre todo El balneario. Su primer relato tiene una estrecha relación con El cuarto de atrás, ya que los dos son, o parecen ser, sueños. (PALLEY, 1980, p. 30) Mas o artigo propõe questionamentos que nos interessam desde o início da pesquisa sobre El cuarto de atrás. O autor procura verificar a que gênero pertence essa 169 obra e verifica o que denomina ―mescla surpreendente de gêneros‖: romance fantástico, confissão autobiográfica, ensaio, crítica social, romance dentro de romance onírico. Nesse sentido, consideramos a proposta metaliterária de Carman Martín Gaite um dos aspectos mais interessantes do relato. Denotando seu caráter experimental, a escritora expõe, através da voz da narradora, a motivação para a construção do romance híbrido. La narradora tuvo la ocurrencia el mismo día del entierro de Franco, de escribir una novela con el título de Usos amorosos de la postguerra. El hombre de negro critica – con razón – ese título provisional. La narradora antes había anunciado la intención de hacer tal libro, y ―precisamente el libro se me ocurrió la mañana que enterraron (al padre de Carmencita Franco)… cuando la vi a ella en la televisión‖. Sucede que Carmen Martín Gaite también empezó a escribir El cuarto de atrás en noviembre de 1975, el mes de la muerte del dictador. Después la narradora rechaza la idea por la proliferación de libros de memoria en la época posfranquista, pero ―espera a ver si me ocurre una forma divertida de enhebrar los recuerdos. Pensado en Todorov, se pregunta: ―Y si mezclara las dos promesas en una?‖. Claro está que el libro que tenemos en lasmanos es esa mezcla de ―las dos promesas, el libro de memorias y la novela fantástica, que se va escribiendo en el trasfondo de El cuarto de atrás. (PALLEY, 1980, p. 30) Julián Palley explica que a ambiguidade gerada pelo sonho da protagonista no romance, que ao final do relato não sabemos se foi sonho ou realidade, não se resolve e por isso o texto se enquadra na definição de Todorov de narrativa fantástica. O autor também lembra que o artifício do romance que se escreve durante o transcurso de uma obra de ficção não é novo. Cervantes e Unamuno já haviam utilizado o recurso no Quijote e em Niebla. Para Julián Palley, a novidade do texto de Carmen Martín Gaite reside no fato de que a narradora é a autora. Ou seja, uma característica autobiográfica em uma obra de ficção, configurando-se a autoficção. A obra é, em parte, uma autobiografia, e o livro que ela escreveu está sendo escrito durante a própria narração. 170 Observa-se que, neste artigo, o autor, sem utilizar o termo autoficção, assinala aspectos que inserem o livro nesse tipo de relato, corroborando a idéia que estamos desenvolvendo nesta pesquisa. 171 3.2 – Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional em El cuarto de atrás. O desenvolvimento de nossa pesquisa nos trouxe a este ponto em que nosso objetivo final é o estudo da presença do discurso ensaístico e do discurso autobiográfico no romance El cuarto de atrás e a análise da articulação desses dois discursos na construção desta narrativa autoficcional. Como pudemos observar nos estudos mencionados há pouco (3.1), trata-se de uma obra com múltiplas facetas e que pode ter diversas possibilidades de abordagem. Escolhemos estudar suas características autoficcionais por considerar a obra pioneira desta prolífica vertente literária na Espanha contemporânea. A metodologia que seguiremos nesta fase da pesquisa será a de identificar traços ensaísticos e traços autobiográficos na obra, verificando seu papel na conjuntura autoficcional do texto. Para isto, seguiremos as definições teóricas apresentadas a respeito desses gêneros (Gómez Martínez, Arenas Cruz, Gusdorf, Lejeune e outros, em 2.2) A partir dos aspectos teóricos que vimos sobre os gêneros em questão, desenvolveremos nossa análise com a consciência de que adentrar nos aspectos biográficos de Carmen Martín Gaite não é tarefa fácil, já que as informações sobre a vida da escritora encontram-se dispersas em muitos textos, seja em seus artigos, seja em seus ensaios mais longos, seja em sua obra ficcional ou em entrevistas que a escritora concedeu. Nosso trabalho também consistiu em fazer este levantamento. Mas, como vimos no início desta pesquisa, a biografia que mais nos ocupará, será a biografia literária da escritora (1.1), a qual, obviamente, está mais acessível pelos testemunhos que ela mesma deixou em sua obra e em entrevistas e palestras. Aliás, vida e obra são inseparáveis no labor desta narradora/ensaísta. 172 No campo da autobiografia, podemos perceber os dados biográficos de caráter mais pessoal e os que estão mais relacionados à história da Espanha testemunhada pela escritora, com a alusão aos efeitos dos fatos históricos no âmbito pessoal. A biografia estritamente pessoal estará relacionada aos fatos da sua vida e da sua carreira literária. Já a biografia inserida na história, ou a história inserida na biografia, poderá ser percebida pela inclusão dos aspectos histórico-sociais que causaram impacto na sociedade, na família e na própria rotina da escritora, especialmente, durante o pósguerra civil, período criticamente revisado no romance. Retomaremos Alberca (2007) para relembrar as três categorias segundo as quais poderemos, objetifivamente, classificar uma autoficção (2.4). Trata-se dos ―tipos de ambiguidade‖ (paratextual e textual), os ―tipos de estrutura narrativa‖ (mescla de pactos com texto uniforme e mescla de pacto com alternância de registros narrativos) e os ―tipos de autoficção‖ (autoficção biográfica, autoficção fantástica e autobioficção). Analisaremos o romance El cuarto de atrás a partir desses parâmetros com a consciência de que, por ser o campo a da autoficção tão avesso aos limites, possamos talvez, chegar à conclusão de que El cuarto de atrás participa de outra, ou outras categoria(s) de relatos autoficcionais. Esta afirmação não é uma ambição nossa, mas uma possibilidade, tendo em vista as peculiaridades de El cuarto de atrás e da própria autoficção. Iniciemos nossa análise de El cuarto de atrás tomando como ponto de partida a apresentação na contracapa do livro62 tendo em vista a importância dos elementos paratextuais na construção das narrativas autoficcionais, os quais, segundo Alberca, se apresentam como elementos que inserem a ambiguidade no texto autoficcional. 62 a Utilizamos a 5 ed, de 2002, de Destino Libros. A partir de agora, indicaremos nas citações somente o número das páginas desta edição. 173 En ―El cuarto de atrás – Premio Nacional Literatura 1978 – Carmen Martín Gaite, sin abandonar sus temas esenciales, inaugura un nuevo género absolutamente original que participa de la novela de misterio, el libro de memorias y la reflexión sobre el propio quehacer literario. En una noche de insomnio y de tormenta, la escritora, inopinadamente, recibe la visita de un desconocido vestido de negro, cuya identidad permanece ambigua a lo longo de todo el relato. La extraña relación que se va creando entre ella y ese interlocutor desconcertante, que en nada se parece a los entrevistadores de oficio, mantiene en suspenso el ánimo del lector, pendiente de las pistas del enigma y de su desenlace. La autora se sirve de este esquema argumental para romper el hilo de una serie de recuerdos de infancia y de juventud, que se desgranan confundidos con sus reflexiones sobre los sueños, el amor y la memoria. (contracapa) Este elemento paratextual já se apresenta como uma indicação da ambiguidade paratextual (conforme definida por Alberca anteriormente, 2.4) que verificaremos no relato. O Editor apresenta o livro como participante de gêneros diferentes: o romance de mistério que o associa ao romance fantástico; o livro de memórias que conecta a obra com a autobiografia; a metranarraliteratura onde há a reflexão sobre o próprio fazer literário associando a obra ao discurso ensaístico, base da autorreflexividade, no sentido de que traz a metadiscursividade que perceberemos na obra. O texto volta sobre si mesmo para explicar o seu próprio processo de criação. A apresentação do livro nos chama a atenção por tentar mostrar a novidade da obra (lembremos que a obra foi escrita na década de 70 do século passado), tratada como ―gênero absolutamente original‖. Vemos que esta originalidade resulta de uma mescla de procedimentos narrativos que ora nos remetem à autobiografia – quando a autora relata fatos ocorridos em sua infância e juventude -, ora nos remetem à ficção – quando opta por procedimentos típicos da literatura fantástica, como a indefinição entre sonho e realidade. A presença do interlocutor inventado também se apresenta como um aspecto inovador devido a sua ambiguidade. O homem de preto não só é um narratário que escuta os relatos e reflexões da escritora, mas também contribui com comentários e perguntas. Além disso, este homem misterioso se converte, em certo ponto do relato, 174 em um personagem independente com sua própria história. A história desse personagem é introduzida pela narradora/protagonista no relato com alta dose de mistério, já que ela mesma desconhece a vida de seu interlocutor, posto que não é uma narradora onisciente. Toda a narrativa se constrói a partir da conversa da narradora/protagonista com esse interlocutor misterioso. A forma de diálogo utilizada por Carmen Martín Gaite no relato funciona como um eixo argumental na narrativa. A conversa com o homem de preto é um recurso literário utilizado para tecer as recordações da narradora/protagonista, que aparecem através de vários tipos de estruturas narrativas ao longo da obra. No artigo ―Elementos de la narración en El cuarto de atrás: estructura y punto de vista‖, Agustín Faro Forteza apresenta uma análise do livro em que observa as diferentes estruturas narrativas utilizadas por Carmen Martín Gaite nos sete capítulos da obra. Tomaremos alguns aspectos de sua análise como ponto de partida para desenvolver algumas questões referentes à autobiografia e à autoficção presentes no relato. Os sete capítulos de El cuarto de atrás funcionam de forma mais ou menos independente e com estruturas e recursos narrativos distintos. Segundo Faro Forteza, o primeiro capítulo é uma biografia narrada segundo os cânones estabelecidos. Diríamos que, em vez de biografia, temos uma autobiografia, já que é possível perceber que a narradora e a autora têm a mesma identidade, o que pode ser confirmado quando a narradora revela pela primeira vez na narrativa o seu nome, como observamos no fragmento: ―Pinto, pinto ¿qué pinto? ¿con qué color y con que letrita? Con la C de mi nombre..‖ (p.15). Este e outros indícios de ambiguidade textual comprovarão que se trata do nome próprio da escritora. E como, para a escritora (personagem e autora), 175 assim como para todos os escritores, a criação literária está sempre relacionada às leituras que realiza, observaremos que, no capítulo 1 do livro (p.22), a narradora/protagonista remete-nos à sua relação com a literatura e teoria literária. Primeiramente, nota-se um cômodo em desordem e repleto de livros. Sigo bajando los ojos. Más libros, formando dos paredes encima del radiador, y entre ellas, sujetándolas, la cesta de costura que fue de la abuela Rosario. Casi no cierra de puro llena, no puedo imaginar cómo caben dentro tantas cosas; siempre acudo a ella en casos de perpejidad, aquí acaba viniendo a parar todo, seguro que, al abrirla, me acordaré de lo que venía a buscar. Tiro de una de sus asas, las paredes que estaba sujetando pierden apoyo y varios libros se desploman en cascada aparatosa; cuando voy a agacharme a recogerlos, con la cesta en la mano, tropiezo con uno y también yo ruedo por el suelo. (pp.21-22) Este episódio relata um pequeno acidente doméstico causado pelo excesso de livros em desordem na casa e revela que a personagem/narradora é uma leitora ávida. Na sequencia narrativa também poderemos observar que a personagem/narradora, assim como a autora do livro, é escritora e assinala o impacto da leitura de um livro de Todorov, em seus conhecimentos literários: Ahí está el libro que me hizo perder pie: Introducción a la literatura fantástica, vaya, a buenas horas, lo estuve buscando antes no sé cuánto rato, habla de los desdoblamientos de personalidad, de la ruptura de límites entre tiempo y espacio, de la ambiguedad y la incertidumbre; es de esos libros que te espabilan y te disparan a tomar notas, cuando lo acabé, escribí en un cuaderno: ―Palabra que voy a escribir una novela fantástica‖, supongo que se lo prometía a Todorov, era a mediados de enero, cinco meses han pasado, son proyectos que se encienden como los fuegos fatuos, al calor de ciertas lecturas, pero luego, cuando falla el entusiasmo, de poco sirve volver a la fuente que lo provocó, por que lo que se añora, como siempre, es la chispa del encuentro primero.( p.22) O fragmento apresenta um elemento da ambiguidade textual, ao fazer referência a uma obra clássica da teoria literária moderna. Uma personagem fictícia se apresenta 176 como leitora de uma obra real. Ou seja, o livro de Todorov se mostra como o primeiro exemplo claro e inquestionável de que podemos estar diante de um relato autobiográfico, pois dá uma referencialidade inequívoca no texto. Também perceberemos a afinidade literária que a narradora/protagonista/escritora tem com as propostas literárias de Todorov. Ao mesmo tempo, insere-se por meio desta referência o discurso ensaístico, pois a personagem/narradora analisa a obra e, a maneira de ensaio, transmite ao leitor suas impressões sobre o texto lido, bem como os sentimentos que a obra lhe despertou. Da mesma forma a intenção revelada de escrever um romance fantástico nos coloca diante da informação de que a narradora é a própria escritora de El cuarto de atrás. No fragmento lido observamos vários aspectos típicos do discurso ensaístico além do diálogo com outra obra literária. Vemos que a personagem/narradora faz um comentário crítico sobre um texto, mas de maneira bastante subjetiva, ressaltanto seus sentimentos com relação à leitura, revelando o íntimo dos seus pensamentos. Também o exercício de crítica literária que se revela ao tratar de um assunto elaborado por outro escritor, é um elemento que configura a inclusão do ensaio na ficção, já que, como vimos em nossa abordagem teórica sobre o gênero ensaístico (2.2), este é o discurso próprio da crítica literária. A relação da personagem/narradora com a leitura também se evidencia no fragmento abaixo: ¡Qué aglomeración de letreros, de fotografías, de cachivaches, de libros…!; libros que, para enredar más la cosa, guardan dentro fechas, papelitos, telegramas, dibujos, texto sobre texto: docenas de libros que podría abrir y volver a cerrar, y que luego quedarían descolocados, apilados unos sobre otros, proliferando como la mala hierba. Decía una señora, que en paz esté, y que vivió en lucha contra la anarquía de los objetos, que en cuanto dejas un libro encima de un radiador, en seguida cría. (p. 19-20) 177 Novamente a relação com outros textos é assinalada. As relações intertextuais são representadas pela expressão ―texto sobre texto‖. A consciência de que cada livro está impregnado de textos de outros escritores e dela própria que, com ―papelitos‖ e ―dibujos‖, marca suas anotações e impressões sobre o texto lido. Procedimento muito comum no exercício da leitura crítica de um livro. Todo o capítulo 1 é um longo monólogo onde a escritora evoca a sua infância, numa atmosfera de sonho e realidade. Nas recordações aparecem, por exemplo, um quarto da casa da infância e o universo feminino da década de quarenta. Esta evocação da memória é entrecortada por diversas passagens em que a personagem/narradora pensa sobre a atividade de criação literária. As recordações de experiências vividas se entrelaçam com a própria atividade literária da escritora, que é, ao mesmo tempo, narradora e personagem do livro. Neste capítulo, inicia-se um monólogo interior que pode ser compreendido como um convite ao leitor para uma ―conversa‖ sobre as múltiplas possibilidades de uma narrativa, antecipando o que se encontrará nos capítulos seguintes. Na sequência narrativa que encontramos entre as páginas 23 e 25, a personagem/narradora encontra uma carta de um remetente misterioso, pois sua identidade só pode ser decifrada com poucos indícios, já que a assinatura está apagada (parece que por lágrimas). Sabe-se que se trata de um homem com que teve uma relação amorosa – es un hombre porque los adjetivos que se refieren a él vienen en masculino ―mutilado, anulado sin ti‖ – (p.24). Em meio a sugestões do conteúdo amoroso da carta, a personagem/narradora divaga sobre o que entendemos como bases fundamentais da poética literária de Carmen Martín Gaite – a narração e a interlocução. Me da pena que se pierda a lo lejos sin conseguir reconocer su figura, ¿será alto?, ¿qué edad tendrá?, la playa es más fácil de imaginar porque todas se parecen un poco, podría ser la misma donde yo me entretenía en hacer dibujos hace un rato, si el tiempo real y el de los sueños coincidieran, cabría la posibilidad de que se encontrara conmigo un poco más allá, antes de llegar 178 a las últimas rocas, se detendría, me preguntaría que por qué estaba dibujando una casa, un cuarto y una cama y yo le diría: ―si quieres que te lo diga, siéntate, porque es largo de contar‖ y, al contarlas en voz alta, salvaría del olvido todas las cosas que he estado recordando y sabe Dios cuántas más, es incalculable lo que puede remificarse un relato cuando se descubre una luz de atención en otros ojos, él seguramente también tendría ganas de contarme cosas, se sentaría a mi lado, nos pondríamos a cambiar recuerdos como los niños se cambian cromos y la tarde caería sin sentir, saldría un cuento fresco e irregular, tejido de verdades y mentiras como todos los cuentos. (pp.24-25) A questão da interlocução de que tratamos no início desta pesquisa (1.3), começa a delinear-se como tema fundamental da obra. O fragmento que acabamos de ler é um dos momentos em que este tema é apresentado, pois narradora imagina um possível interlocutor com quem partilharia suas recordações. Este fragmento, como tantos outros que encotraremos no livro, reúne vários aspectos das concepções literárias de Carmen Martín Gaite, ressaltando ao mesmo tempo o caráter ensaístico e autobiográfico da obra. Podemos perceber a importância da memória para a narração. No tocante a sua relação com aspectos formais da autobiografia, vemos que a escritora acredita na necessidade de um narratário inserido na própria narração e aponta para o conteúdo autoficcional do relato onde a mescla de realidade e ficção (verdades e mentiras) sugerem uma atmosfera ambígua. O tema da interlocução, recorrente em grande parte da obra ensaística e ficcional de Carmen Martín Gaite, é expresso no desejo da personagem/narradora que, ao encontrar-se sozinha, imagina alguém com quem possa conversar sobre suas recordações. A importância deste tema é destacada pela própria escritora Carmen Martín Gaite em seus ensaios e também em entrevista concedida a Marie-Lise Gazarian Gautier, em 1981, na cidade de Nova York. Questionada sobre a importância do interlocutor, Carmen Martín Gaite revela sua identificação com a personagem/narradra de El cuarto de atrás. 179 G. Gautier: Tú tienes um libro de ensaios que que se llama la Búsqueda de interlocutor. ¿Tanto te importa encontrar interlocutor? M. Gaite: Bueno a mí y a todo el mundo, un interlocutor es lo que andamos buscando todos siempre. Piensa en toda esa gente que va a los psiquiatras para contarles su caso o que anda hablando sola por la calle. Si uno pudiera encontrar el interlocutor adecuado en el momento adecuado, talvez nunca cogiera la pluma. Se escribe por desencanto de ese anhelo, como a la deriva, en los momentos en que el interlocutor real no aparece, como para convocarlo. (GAZARIAN GAUTIER, 1981, p. 10) Em ambas as passagens, há uma relação muito próxima entre narração e interlocução (como vimos no capítulo 1.3) e destas com a literatura. Se de uma conversa com um interlocutor ideal pode surgir ―un cuento fresco e irregular, tejido de verdades y mentiras como todos los cuentos‖(p.25) e se ―Se escribe por desencanto de ese anhelo, como a la deriva, en los momentos en que el interlocutor real no aparece, como para convocarlo‖, a relação entre a criação literária e a conversação, para Carmen Martín Gaite intrínseca. Como vemos, o início da obra já marca um aspecto que estará presente nos capítulos seguintes: a reflexão sobre a arte de escrever. O segundo capítulo intruduzirá o interlocutor com quem C. partilhará suas lembranças de infância e juventude. Será o misterioso ―hombre vestido de negro‖ que facilitará à narradora/personagem a rememoração do passado e autocrítica literária, intensificando tanto o caráter autobiográfico quanto o caráter metaliterário da obra. Este aspecto metaliterário da narrativa, ao nosso ver, é um dos traços que constroem a sua autoficcionalidade, posto que, quando a personagem/narradora se coloca como escritora, apresentando suas concepções literárias, citando obras que leu e mais adiante, citando e comentando livros escritos pela própria autora do livro, constatamos a coincidência de identidades da autora, narradora e protagonista, aspecto fundamental do pacto autoficcional ou ambíguo como define Alberca. Aqui vale observar que a autocitação é um recurso também utilizado nos ensaios de Carmen Martín Gaite. Tanto em sua 180 ensaística quanto nesta narrativa, o recurso da autocitação, além de demonstrar a necessidade de reafirmar seus propósitos literários, como a valorização da memória como elemento da narrativa, a escritora dota ambos os tipos de disurso de um caráter dialógico, atualizando temas e conceitos literários a partir de pontos de vista diferentes e distantes no tempo e no espaço. Assim, Carmen Martín Gaite, C., faz uma revisão crítica de sua própria obra. Como exemplos de autocitação que aproximam sua ficção do ensaio, temos o diálogo entre C. dialoga e o homem de preto sobre seu primeiro romance, El balneario. A entrada desse interlocutor no relato modifica a estrutura narrativa, que a partir desse capítulo passa a alternar a forma de diálogo direto com o monólogo, com a prevalência do primeiro. Entendemos que as pistas autoficcionais deste capítulo encontram-se no seu tema que é a reflexão sobre a literatura, mais especificamente, sobre a criação literária. As poucas referências à identidade do interlocutor misterioso nos levam a crer que ele é um jornalista, já que chega a casa da escritora para uma entrevista que havia sido previamente marcada. A entrevista passa a ser o pretexto para uma longa conversação cujo centro temático será a própria criação literária de Carmen Martín Gaite. São várias as referências ao seu primeiro romance El balneario, mas as lembranças de sua infância e juventude também ajudam a construir este capítulo. As referências a El balneario iniciam-se com a pergunta do interlocutor sobre o gosto da escritora pela literatura de mistério. - ¿La literatura de misterio? Sí. Siempre me ha gustado mucho. ¿Por qué? - Como no la cultiva. Se ha sentado, sin que yo le invitara a hacerlo, en el rincón de la izquierda del sofá. (…) 181 Bueno, mi primera novela era bastante misteriosa. (p. 33) - ¿Hace mucho que vive en esta casa? - Desde el año cincuenta y tres. Suspiro. He vuelto a coger el hilo, como siempre que me acuerdo de una fecha. Las fechas son los hitos de la rutina. Precisamente ese año – reanudo – es cuando empecé a escribir mi primera novela, esa que le decía antes que es bastante misteriosa…, cuando no me oyó. Era esta misma casa, sí, recuerdo la luz gris que entraba por la ventana de una habitación pequeña que había, según se sale a la derecha, casi no tanía muebles, estaba la máquina de coser, abrí un cuaderno con tapas de hule y escribí: ―Hemos llegado esta tarde, después de varias horas de autobús…‖ No sabía muy bien como iba a seguir, pero el principio me gustó, me quedé con la pluma en alto, mirando por la ventana, amenazaba lluvia. (pp. 47-48) A autocitação ocorre neste fragmento de maneira direta com a primeira frase de El balneario entre aspas 63 . Como vemos, recordações pessoais como a lembrança do momento em que começou a escrever o livro começam a aparecer mescladas com a trajetória literária da romancista, que se inicia com El balneario. Segundo Carmen Martín Gaite, na nota preliminar à 3a edição desse livro, este romance foi a sua primeira tentativa de passar do conto ao romance64. O diálogo com o interlocutor misterioso prossegue: - ¿Qué novela? - dice - ¿Aquella que ocurría en un balneario? Me parece haber percibido cierta decepción en su voz. - Sí, esa. ¿No le parece que tiene misterio? - Hubiera podido ser una buena ser una buena novela de misterio, sí – dice lentamente – empezaba prometiendo mucho, pero luego tuvo usted miedo, un miedo que ya no ha perdido nunca, ¿qué le pasó? - No me acuerdo, ¿miedo?... no sé a qué se refiere. - ¿Se acuerda usted de la llegada?... La llegada al balneario, digo. (p. 48) 63 Cf. MARTÍN GAITE, 2004, p. 17. Diz a autora nesta nota preliminar: “Revisando ahora las pruebas de la tercera edición, me doy cuenta de lo que significó este relato en el arranque de mi trayectoria como novelista. A pesar de ciertas ingenuidades y de la clara influencia kafkiana – de la que ningún modo reniego – sigue gustándome bastante y creo que hubiera podido constituir, tratado el tema con mayor amplitud, una buena novela de misterio”. (Op.cit. p.13) 64 182 A voz do visitante misterioso, como num desdobramento da consciência da narradora/personagem, direciona o fluxo do pensamento e da memória de C. num exercício de memória e de autocrítica literária. A autobiografia e o ensaio começam a fundir-se de maneira inseparável na narrativa. Na sequência, a narradora/escritora esclarece a sua motivação para escrever o referido romance, lembrando-se das chegadas aos balnearios da vida real. Também deve ser destacada sua lembrança do medo quando escreveu El balneario, em 1953. Considerando, que a Espanha estava em pleno pós-guerra, e no período em que a repressão franquista contra os inimigos do regime implantado estava mais acirrada, este fragmento é uma alusão ao seu medo de uma escritora que não podia criar livremente. A censura oficial torna-se autocensura em El balneario. A escrita do primeiro romance e o medo a que se refere a narradora são importantes referências autobiográficas em sua obra de ficção. La llegada a los balnearios siempre me producía zozobra y exaltación. Y no entendía por qué, si era todo tan normal, un mundo inmerso en la costumbre, rodeado de seguridades, habitado por personas aquiescentes y educadas que se dirigían sonrisas y saludos, inmediatamente dispuestas a acogernos en su círculo, a cambiar con nosotros tarjetas de visita de cuyo intercambio nacerían amistades perennes y obligatorias, alimentadas por la inconsistencia de un banal encuentro en los pasillos, en las escaleras que bajaban al manantial o en la sala de juegos. (p. 48) A recordação dos balneários ―reais‖ se alternam com as observações do interlocutor e as suas sobre a escritura daquela narrativa. A narradora/protagonista explica que a sensação de estranheza que aqueles ambientes lhe causavam foi uma inspiração para a escritura do livro. Foi esta sensação que Carmen Martín Gaite reproduziu em El balneario. Para o interlocutor misterioso, o gérmen do fantástico está aí. Analisando a primeira parte do relato, o interlocutor observa o efeito que se causa no leitor. 183 ... y el lector siente que no puede creerse ni dejarse de creer lo que vaya a pasar en adelante, ésa es a base de la literatura de misterio, se trata de un rechazo a todo lo que luego, en aquel hotel, se empeña en manifestarse ante usted como normal y evidente, ¿no? (p. 50) Esse efeito no leitor que a literatura de fantástica causa também se sente ao longo de todo o relato. Não se sabe se a longa entrevista com o interlocutor aconteceu ou foi um sonho da protagonista. Aliás, este é um elemento de ambiguidade textual que é reforçado pela própria escritora na entrevista à Gazarián Gautier que mencionamos agora há pouco. Assim, a ambiguidade textual é reforçada por um elemento que gera a ambiguidade paratextual, a entrevista. Leiamos outro trecho da entrevista: G. Gautier: Alastair Reid, del New Yorker, me dijo hace poco que la ambiguedad es tal vez el tema más importante de la novela española de hoy. Y, en ese sentido, tu última novela está totalmente en esa onda, por la ambigua frontera que establece entre el sueño y la realidad. ¿Qué ocurrió, dime?, ¿vino a verte aquel hombre?, ¿lo soñaste despierta o lo soñaste dormida? M. Gaite: Bueno, para contestar a eso, que no sé si podré, lo primero que tendría que contar es cómo se me ocurrió el libro. G. Gaitier: Pues dímelo, ¿cómo se te ocurrió? M. Gaite: En fin, ya que te empeñas… La noche que se me ocurrió, porque se me ocurrió de noche, había tormenta con truenos y relámpagos, estaba yo sola en casa, porque mi hija había hecho una excursión a la Sierra y tardaba en volver, y me empezó a entrar un insomnio muy malo, no sé, pensaba en cosas angustiosas y tenía miedo, lo que se llama un insomnio malo, el cual está narrado en el primer capítulo de la novela, aunque transformado, claro, mediante un tratamiento literario especial. Y pensé si pudiera hablar con alguien, se me disiparía la angustia, pero como no tenía a nadie a mano, se me ocurrió levantarme de la cama y ponerme a escribir. Y estando allí sentada, con la tomenta fuera y ya muy tarde, más de la una de la madrugada sería, pensé de repente: ―¡Qué agradable sería que se presentara alguien a verme! Alguien que no tuviera prisa y que tuviera ganas de escuchar todo lo que necesitaría contar esta noche‖. Y en esto me dije: ―¿Y por qué no? En un libro mando yo y puedo hacer que pase lo que yo quiera, convoco a un visitante y ya está, lo invento, lo hago venir, y vino. Llamaron a la puerta y se me apareció. ¿Qué si es verdad o mentira? Ya te digo que no sé. Yo, por lo menos, me lo creí. (GAZARIAN GAUTIER, 1981, p.10) Como num jogo com o leitor, Carme Martín Gaite não desfaz a ambiguidade do relato, ao contrário, reforça indefinição entre sonho e realidade, tão peculiar ao romance fantástico. Desta forma a partir do efeito provocado no leitor por essa ambiguidade El 184 cuarto de atrás afirma-se como um romance fantástico. Outros elementos inusitados como veremos na cena da barata na cozinha e ―cajita dorada‖ deixada pelo ―interlocutor sonhado‖, introduzem o fantástico na obra. Segundo a classificação de Manuel Alberca, este tipo de relato possui alguns elementos que o enquadrariam no tipo ―autofições fantásticas‖, mas acreditamos, como poderemos comprovar mais adiante que El cuarto de atrás encontra-se numa zona intermediária entre a autoficção fantástica e a autobioficção. A primeira apresenta fatos que podem ser interpretados como impossíveis, a partir de uma perspectiva realista, tendendo mais para a ficção do que para a autobiografia. A segunda se caracteriza pela equidistância com relação aos pactos autobiográfico e romanesco e por forçar ao máximo o fingimento dos gêneros, sua hibridização e mescla. Juntamente à essas reflexões sobre a literatura fantástica, encontramos no segundo capítulo as recordações de infância e juventude de Carmen Martín Gaite, que tem como referência histórica o período da guerra e pós-guerra civil espanhola. Alternam-se, portanto, a biografia pessoal (memória individual) e a biografia relacionada ao momento histórico da Espanha com muitas referências sócio-culturais (memória coletiva). Desse período destacam-se referências culturais como a revista Lecturas e a ―novela rosa‖ e históricos como o próprio ditador Francisco Franco e sua filha Carmencita Franco. A revista Lecturas e as ―novelas rosa‖ tinham como alvo o público feminino e serviam como veículo ideológico que reforçava as normas de conduta, delimitando o papel da mulher na sociedade. Em Usos amorosos de la postguerra española, ensaio publicado pela autora em 1987, esses temas são revisados em forma de estudo histórico. 185 O diálogo entre El cuarto de atrás e este ensaio pode ser visto nos fragmentos abaixo. O segundo deles é reaproveitado integralmente no ensaio. Influida por la lectura de las novelas rosa, que solían poner un énfasis lacrimoso en las insatisfacciones de las ricas herederas, pensaba en la niña de Franco como en un ser prisionero y sujeto a maleficio, y me inspiraba tanta compasión que hasta hubiera querido conocerla para poderla consolar, se me venían a la mente los versos de Rubén Darío que aprendí de memoria: La princesa está triste, ¿Qué tendrá la princesa? (p. 62) Podría decirle que la felicidad en los años de guerra y posguerra era inconcebible, que vivíamos rodeados de ignorancia y represión, hablarle de aquellos deficientes libros de texto que bloquearon nuestra enseñanza, de los amigos de mis padres que morían fusilados o se exiliaban, de Unamuno, de la censura militar, superponer la amargura de mis opiniones actuales a las otras sensaciones que esta noche estoy recuperando, como un olor inesperado que irrumpiera en oleadas. (p. 67) O terceiro capítulo retoma a forma de monólogo e gira em torno da infância e juventude da escritora com inúmeras referências ao ambiente cultural do pós-guerra civil. Também observamos as relações intertextuais com a própria obra de Martín Gaite que trata os mesmos temas em um de seus primeiros romances, Entre visillos, e em Usos amorosos de la postguerra española. O mais interessante é que estas referências colocam El cuarto de atrás no meio do percurso literário entre aquele romance de pósguerra e o ensaio que viria a escrever somente na década de oitenta. La conversación con este hombre me ha estimulado y ha refrescado mi viejo tema de los usos amorosos de posguerra. Hace dos años empecé a tomar notas para un libro que pensé que podría llevar ese título, un poco el mundo de Entre visillos, pero explorando ahora, con mayor distancia, en plan de ensayo o de memorias, no sé bien, la forma que podría darles es lo que no se me ha ocurrido todavía; lo ordené todo por temas: modistas, peluquerías, canciones, bailes, novelas, costumbres, modismos de lenguaje, bares, cine, en un cuaderno de tapas verdes y azules, fue a raíz de la muerte de Franco. (p.69) 186 Este fragmento está repleto de elementos que reforçam a ambiguidade textual do livro: a referência a obra literária da própria escritora, tanto a anterior, quanto a futura, cujo tema coincide com o ambiente social do período pós-guerra; o fato histórico – a morte de Franco. Ao mesmo tempo, destaca-se a ausência de limite temático para ensaio e ficção na obra de Carmen Martín Gaite. Ambos os discursos alimentam-se da mesma matéria: a história e a literatura. O jogo intertextual, com a reflexão da narradora/personagem sobre uma obra escrita na década de 50 e outra que viria a ser escrita na década seguinte à publicação de El cuarto de atrás, realçam a autoficcionalidade da obra configurada nos capítulos anteriores e lhe conferem um caráter intertextual, o qual é próprio das metaficções. Neste sentido, também identificamos a presença do discurso ensaístico, caracterizado pela intertextualidade e pela autocrítica que a escritora realiza de sua própria obra. Mélanie Valle Collado (2008) refere-se a estas questões em seu estudo comparativo de El cuarto de atrás e Don Julián de Juan Goytisolo: Como último punto, es importante acordarnos de que las referencias intertextuales afectan directamente al lector. Se puede decir que El cuarto de atrás y Don Julián son dos telarañas más o menos enredadas con otras obras literarias. Por consiguiente, e toca al lector identificar éstas y desenhebrarlas, mas también entender cuál es el sentido que cogen al ser incluídas en un nuevo (con)texto. Así, los lectores no tenemos más remedio que leer activa, atenta y críticamente y éste es uno de los propósito de las metaficciones (VALLE COLLADO, 2008, p. 8) Aqui retornamos ao capítulo 2 (2.1), onde debatíamos a questão da intertextualidade e suas implicações na recepção do texto. O leitor de metaficções, e nesta análise já estamos vislumbrando que a obra estudada é uma metaficção historiográfica (conforme definido no em 2.1), é um leitor capaz de estabelecer as relações sugeridas pelo texto, indentificando as referências, os fragmentos de outros 187 textos, as idéias de outros escritores, em uma leitura ativa e curiosa. Em nossa opinião, a genialidade de Carmen Martín Gaite fica patente na capacidade que ela demonstra neste livro de estabelecer as relações intertextuais com sua própria obra, com a que já havia escrito e a que estava escrevendo, pois tudo indica que estava escrevendo Usos amorosos de la postguerra española simultaneamente com El cuarto de atrás. O caráter dialógico deste capítulo se constrói em dois sentidos. O primeiro é o que acabamos de ver com o diálogo com outros textos da autora. O segundo é o que se estabelecerá pela presença do discurso oficial da sociedade española de pós-guerra no discurso da narradora/personagem. Esse discurso se realiza pela descrição de hábitos e costumes da época, através da voz da própria narradora e pela voz de personagens como a mãe e a avó de C. Como exemplo temos o papel da mulher como mantenedora da ordem doméstica, já que o lar, segundo o discurso franquista, representava o pólo irradiador da desejada ordem social do seu sistema político autoritário. No primeiro caso, percebe-se a atitude irônica de C. com relação à obsessão pela limpeza e pela ordem. Mucho más que en mi casa de Salamanca, ni en la de verano de Galicia, fue en esa de Madrid, cuando veníamos en vacaciones de Semana Santa o Navidad, donde se fraguó mi desobediencia a las leyes del hogar y se encubaron mis primeras rebeldías frente al orden y la limpieza, dos nociones distintas y un solo dios verdadero al que había que rendir culto, entronizado invisiblemente junto a las imágenes de san José y la Virgen del Perpétuo Socorro, por todos los rincones de aquel piso tercero derecha del número catorce de la calle Mayor, convento que regentaba mi abuela con dos criadas antiguas – tía y sobrina – naturales de la provincia de Burgos. (p. 71) Aquí faz-se uma ironia com a relação que as mulheres tinham com a limpeza e arrumação da casa, uma atividade quase que sagrada e elogiada no discurso unívoco do pós-guerra. A idéia se completa na voz da ―abuela‖: 188 ―Esa niña, ¡qué mania de ponerse a leer com la cara pegada al balcón! – se quejaba la abuela -. ¿no ves que dejas la marca de los dedos y de las narices en el cristal? ¡Dios mío, los cristales recién limpios!‖ (p. 82) Em seguida a personagem/narradora ironiza: Pero ¿qué cosa no estaba recién limpia, recién doblada, recién guardada en su sitio? ¿Y por qué no podía ser el sitio de los objetos aquel en que, a cada momento, aparecían? ¿Y, sobre todo, por qué castigarlos con aquella continua y sañuda purga de quitarles el polvo, como se arrancan las costras de una enfermedad? El polvo se descolgaba en espirales por los rayos de sol, se posaba silenciosamente sobre los objetos, era algo tan natural y tan pacífico, yo lo miraba aterrizar con maligno deleite, me sentía cómplice del enemigo descarado, que con mayor terquedad reduplicaba sus minúsculos batallones cuánto más asediado se veía por las batidas implacables. (p.82) Com uma linguagem irónica e ambigua o relato adquire um tom subversivo, aludindo indiretamente às perseguições que o regime franquista imprimiu a seus inimigos não só durante o imediato pós-guerra, mas em todos os anos em que a ditadura durou. Assim, palavras que remetem ao campo semântico militar surgem nesta passagem e na continuação do texto. Teremos então a personificação da poeira, como perigoso inimigo da ordem. Palavras como: ―pacífico‖, ―enemigo‖, ―batallones‖, ―perseguido‖, ―implacable‖, ―diligencias‖, ―captura‖, etc, revelam não só a discordância da narradora com a obsessão pela limpeza, mas insinuam de forma velada sua revolta com o regime franquista. A volta aos anos cinquenta através da memória é portanto um exercício de revisão crítica da história e uma autocrítica da própria criação literária de Carmen Martín Gaite. Nota-se, neste capítulo, que a autora em seu percurso literário constrói sua obra utilizando temas recorrentes, em que o pós-guerra e as suas consequências no âmbito pessoal, familiar e na formação da cultura espanhola ocupam lugar privilegiado. 189 No quarto capítulo, a narrativa retoma a forma de diálogo. Intitulado com o nome de uma brincadeira infantil, ―El escondite inglês‖, o capítulo segue com muitas recordações de infância. A narrativa girará em torno de três pontos principais: a memória (sempre relacionada ao pós-guerra), a criação literária, e impossibilidade de afirmação da mulher. Neste sentido, a evasão, através da literatura surge como uma alternativa às normas rígidas estabelecidas, principalmente para as mulheres. O interlocutor faz sugestões sobre a escritura do livro que C. está escrevendo, e começa a vislumbrar a mescla de história e literatura que pretende fazer em seu livro : Y me quedo em suspenso, quería dejar apuntadas todas las sugerencias que se me agolpan, necesitaría un hilo para enhebrarlas; el libro sobre la posguerra tengo que empezarlo en un momento de iluminación como el de ahora, relacionando el paso de la historia con el ritmo de los sueños, es un panorama tan ancho y tan revuelto, como una habitación donde cada cosa está en su sitio precisamente al haberse salido de su sitio, todo parte de mis primeras perplejidades frente al concepto de historia, allí, en el cuarto de atrás, rodeada de juguetes y libros tirados por el suelo. (p.98) Aqui, ―el cuarto de atrás‖, usado como metáfora da memoria, pois guarda relação com o tempo pasado, tempo este representado pelos objetos que preenchiam sua infância – ―juguetes y libros‖. Mas o diálogo com o interlocutor misterioso apresentará mais discussões literárias sobre o processo de elaboração da própria narrativa que estamos lendo. Na verdade, percebece a escrita simultânea de duas obras baseadas na história – uma autoficção, El cuarto de atrás e um ensaio – Usos amorosos de la postguerra española, oriundas dos mesmos materiais históricos e autobiográficos da escritora. O ensaio e a autobiográfia participam ao mesmo tempo da construção desta narrativa autoficcional, tanto na própria obra realizada (pelos procedimentos formais, pela temática), como já vimos anteriormente, quanto na apresentação ao leitor do 190 processo de ―gestação‖65 de ambas, que, como as evidências nos mostram, situam-se em um mesmo espaço autobiográfico. Neste processo de ―gestação‖ literária, vemos que El cuarto de atrás ―nasceu‖ antes de Usos amorosos de la postguerra española, possivelmente pela necessidade da rigorosa pesquisa que este último exigiu de sua autora, pois esta obra, também repleta de referências da época, vem devidamente documentada com a indicação e citações de dezenas de revistas, jornais, obras literárias, documentação oficial. O interesse da narradora/protagonista em escrever um romance fantástico suscitado pela leitura de Todorov, novamente é mencionado neste capítulo. Chama-nos a atenção o fato de que nesse mesmo capítulo vermos a inserção de outro elemento fantástico na narrativa: a caixinha dourada. Essa caixinha contém pílulas que ativam a memória e induzem ao sonho, ou, podemos assim dizer, a uma viagem do imaginário, provocando um misto de recordações e fantasias. Outro aspecto que podemos destacar no capítulo é a questão do esgotamento da autobiografia constatado pela narradora. Ao relatar ao seu interlocutor seu projeto de escrever um livro de memórias, diz-se desestimulada pela quantidade de livros desse tipo. No fragmento a seguir, a protagonista/narradora se coloca como uma escritora/leitora que já havia sentido o desejo de escrever um ―libro de memorias‖, mas desanima-se com a proliferação deste tipo de relato desde a morte de Franco. Este fragmento mostra a opinião da autora sobre o esgotamento do gênero autobiográfico nos anos que seguiram a morte de Franco, daí, concluímos que a escritura de El cuarto de 65 Valle Collado (2008) escreve: “Autocrítica de la escritura: obra en gestación e intertextualidad: Por este término (“autocrítica de la escritura”) Sobejano no entiende sólo un proceso de crítica de la obra que se está elaborando desde ella misma, sino que, en opinió del crítico, se trata de “ir elaborando la novela misma ante el lector, entregarle a éste la novela en su proceso de gestación, autocriticarse y exigir al que lee el máximo de clarividencia y esfuerzo en la hechura y en la recoposición del texto como forma” (Sobejano, 1979, p. 22) En resumen, la novela autocrítica de Sobejano corresponde a lo que hemos llamdado “metaficción”.” 191 atrás foi uma tentativa, por sinal, muito exitosa de renovar a narrativa autobiográfica española, tendo como resultado uma narrativa autoficcional. - ¿Se me enfrió? Me lo enfriaron las memorias ajenas. Desde la muerte de Franco habrá notado cómo proliferan los libros de memorias, ya es una peste, en el fondo, eso es lo que me ha venido desanimando, pensar que, si a mí me aburren las memorias de los demás, por qué no le van a aburrir a los demás las mías. (p. 119) Sendo assim, o desejo de escrever um livro de memórias e um romance fantástico se unem, por sugestão de seu ―interlocutor sonhado‖. A narradora/autora chega à conclusão de que para isso necessitará da ―caixinha dourada‖ e decide que realmente escreverá o livro. - Gracias. Ahora si que voy a escribir el libro. En seguida de decirlo, pienso que eso mismo le prometí a Todorov en enero. Claro que entonces se trata de una novela fantástica. Se me acaba de ocurrir una idea. ¿Y si mezclara las dos promesas en una? (p. 120) O trecho contém toda a essência do livro que estamos lendo que, como podemos perceber que faz uma releitura do recurso utilizado no Quijote quando revela-se uma obra que se escreve durante o transcurso de uma obra de ficção. A junção das duas promessas da escritora em uma – escrever um livro de memórias e um romance fantástico – mostra-nos que Carmen Martín Gaite está teorizando sobre a autoficção, ao mesmo tempo que produz esse tipo de narrativa. Neste sentido, cabe observar que a criação de um romance com estas características, na década de setenta, conecta definitivamente a escritora com tendências que se haviam iniciado nos anos sessenta (como a metaliteratura, por exemplo) indica a passagem da literatura espanhola do experimentalismo para a literatura em que se incrementa a intertextualidade, a ironia, a 192 inserção da história na literatura, com apagamento dos limites entre uma e outra, aspectos que estarão no centro do ―empreendimento cultural‖ chamado pósmodernismo, como vimos em 2.1. O capítulo cinco segue com a questão da literatura fantástica, em que a protagonista e seu interlocutor discutem a obra de Todorov. Também é neste capítulo que a identidade do interlocutor é revelada, posto que a autora intercala uma conversa telefônica com uma mulher que teria uma relação amorosa com ele. A conversa intensifica o mistério, aumentando a curiosidade do leitor acerca do personagem, já que deixa de ser somente o interlocutor da personagem/narradora, para tornar-se um personagem com vida própria e uma também misteriosa e conturbada história de amor. No campo das memórias da narradora, destacam-se as referências à ―Sección Femenina‖, instituição franquista que tinha como objetivo formar as moças da sociedade espanhola, preparando-as para cumprir seu destino de esposa e mãe de família. En el mundo de anestesia de la posguerra, entre aquella compota de sones y palabras – manejados al alimón por los letristas de boleros y las camaradas de la Sección Femenina – para mecer noviazgos abocados a un matrimonio sin problemas, para apuntalar creencias y hacer brotar sonrisas, irrumpía a veces, inesperadamente, un viento sombrío en la voz de Conchita Piquer, en las historias que contaba. Historias de chicas que no se parecían en nada a las que conocíamos, que nunca iban a gustar las duzuras del hogar apacible con que nos hacían soñar a las señoritas, gente marginada, a la deriva, desprotegida por la ley. (p.141) Aqui nesta referência à ―Sección Femenina‖ e à cantora Concha Piquer vemos lado a lado o discurso oficial e seu contraponto. Muitas das canções populares no pósguerra, cantadas pelas mulheres, nada tinham a ver com a moral propagada pelo regime. Manuel Vázquez Montalbán (2003) afirma que as canções populares refletiam crenças que não estavam de acordo com a ―superestrutura moral‖ que pairava sobre a Espanha. 193 O escritor, em sua Crónica sentimental de España comenta a popularidade entre o público feminino de canções como ―Tatuaje‖, um dos maiores sucessos na voz de Concha Piquer: ¿Y qué tenía que ver com esa moral superestructura esa extraordinária canción llamada Tatuaje? La cantaban con toda el alma aquellas mujeres de los cuarenta. Aquellas pluriempleadas del hogar y de los turnos en trabajos fabriles afeminados. La cantaban para quien quisiera oírlas a través de sus ventanas de par en par. Era una canción de protesta no comercializada, su prostesta contra la condición humana, contra su propia condición de Cármenes de España a la espera de maridos demasiado condenados por la Historia, contra una vida ordenada como una cola ante el colmado, cartilla de Abastos en mano y así uno y otro día, sin poder esperar al marino que llegó en un barco, al que muy bien hubieran podido encontrar en el puerto al anochecer. Era alto y rubio como la cerveza ¡Señores! En un momento en que la talla media del homo hispánicus era 1,58 y la brillantina abastecía el pequeño derecho a ser Clark Gable todos los domingos. Y fascinada por el mítico, rubio, alto marino extranjero, la mujer de la canción cn voz emborrachada, va perguntando por él a todo navegante que llega al puerto… era más dulce que la miel… era gallardo y altanero. (VÁZQUEZ MONTALBÁN, 2003, p. 38-39) Como posibilidade de evasão para as mulheres de pós-guerra, as canções populares eram o espaço dos sonhos proibidos das mulheres, que paradoxalmente, podiam cantá-las livremente. Aqui, certamente, começa-se a perceber o poder da cultura de massas que começava a tomar forma na Espanha. No sexto capítulo o diálogo volta-se para o imaginário da autora na infância, pois a narradora traz à memória a recordação da ―Isla de Bergai‖, lugar imaginário compartilhado com uma amiga na infância. Bergai simboliza o sonho, a fantasia, a evasão de um mundo de restrições vivido no pós-guerra. A ―Isla de Bergai‖ se apresenta como uma metáfora da própria literatura, refúgio onde a escritora sempre encontrou abrigo. Outro espaço que permitia a evasão era El cuarto de atrás. Como já lemos anteriormente, este era o cômodo da casa da infância em Salamanca, que significava para a autora e sua irmã o local da desordem permitida, das brincadeiras, do sonho. 194 Com a guerra Civil, o quarto foi, paulatinamente, sendo transformado em despensa para que a família pudesse armazenar alimentos, já que a guerra provocou um longo período de escassez na Espanha. No sétimo capítulo último, fechando uma estrutura cíclica, há uma a volta à realidade e ao presente. O interlocutor desaparece e a narradora é despertada pela filha. A ambiguidade da cena deixa o leitor em dúvida se o que estava sendo narrado era sonho ou realidade para a narradora. O diálogo da narradora/protagonista com sua filha insere alguns elementos de ambigüidade no texto, potencializando a possibilidade tanto de que a noite de conversa com o homem de vestido de preto tenha sido real, tanto como a possibilidade de que tudo não tenha passado de um sonho ou uma alucinação. Ha cogido un libro que había encima de la colcha y se pone a hojearlo, mientras fuma, en silencio. - Todorov… - dice -. ¿Qué tal este libro? Me encojo de hombros sin contestar nada. - Pero ¿qué te pasa? - Nada, me duele la cabeza. - Será de la tormenta. ¿No has salido? - Me parece que no, no me acuerdo. - Pero ha venido a verte alguien, ¿verdad? Echo los pies fuera de la cama con un repentino sobresalto, me quedo inmóvil con los ojos fijos en la cortina roja, luego miro a ella. - ¿Por qué me miras con esa cara de susto? - Dices que ha venido alguien… ¿Por qué lo has dicho? - Porque he visto ahí fuera una bandeja con dos vasos. (p.187) Até este momento no capítulo a narradora/protagonista que acabara de acordar, parecia não se lembrar exatamente do que havia acontecido. A bandeja com os dois copos mencionada pela filha a faz lembrar de seu interlocutor da noite anterior, comprovando sua existência. No entanto, logo a seguir, o diálogo novamente nos coloca diante da ambiguidade do relato, quando a filha pergunta à mãe se esta havia tomado um medicamento: - No te preocupes, que no te fisgo nada. ¿Has estado escribiendo algo? - Sí, un poco. 195 Instintivamente finjo ordenar los otros objetos que hay sobre la mesa. Veo el grabado de Lutero y debajo de él, doblada, la carta azul. ¡Qué bien!, ¿no?, decías que no eras capaz de arrancar con nada estos días. Pues ya ves, hay insomnios que cunden. ¿Has tomado dexedrina? Me vuelvo, apoyándome ne la mesa y me encuentro con sus ojos intrigados. Antes de que apareciera la carta azul, fui a la cesta de costura en busca de algún fármac, sí, tal vez… - No me acuerdo – digo. (p.188) A possibilidade de que a narradora/protagonista tenha tomado ―dexedrina‖ nos remete novamente à possibilidade de que os acontecimentos narrados tenham sido fruto da imaginação de C., pois este medicamento é uma anfetamina, que, como se sabe, pode causar insônia (o que a narradora/protagonista acredita ter tido) e alucinações. Por outro lado, é um medicamento que provoca o aumento da atenção, o qual seria necessário para a escritura de um livro, como se sugere durante o relato. Esta ambiguidade textual se acentua quando, ao final do livro, a narradora encontra a ―caixinha dourada‖ que lhe teria sido dada de presente pelo interlocutor misterioso. Esses aspectos do capítulo final, aliados a menção a Todorov, em Introdução à literatura fantástica, texto com o qual a obra dialoga constantemente, indicam o traço fantástico do texto. O leitor fica suspenso entre o real e o imaginário, sendo impossível desfazer-se esta encruzilhada. O capítulo resume, portanto. a duas intenções da escritora ao construir esta narrativa: a primeira consiste em mesclar acontecimentos de sua vida com a ficção e a segunda de teorizar ao mesmo tempo em que coloca em prática aspectos da construção de uma narrativa fantástica. Ou seja, o ensaio e a autobiografia na construção de uma narrativa autoficcional. 196 Conclusões. A primeria conclusão a que podemos chegar ao terminar esta pesquisa sobre a obra de Carmen Martín Gaite, e mais especificamente, sobre seu instigante romance El cuarto de atrás, é que múltiplas são as leituras que se podem fazer deste liro. As inúmeras referências textuais e contextuais às quais esta obra nos remete impõem-nos a necessidade de buscar outros textos que possibilitam uma compreensão mais ampla da obra. Adotar a postura do leitor ativo é fundamental para empreender a viagem através do tempo e da memória, por meio da literatura, tornando-nos os interlocutores que a escritora sonhou. Interlocutores abertos, dedicados e sem pressa para partilhar com a personagem/narradora/autora o mesmo desejo de interlocução que se concretiza nesta narrativa híbrida feita de fragmentos de discurso autobiográfico, ensaístico e ficcional entrelaçados, os quais se sucedem em diferentes estruturas narrativas: ora monólogo interior, ora diálogo com um interlocutor misterioso, ora diálogo intercalado pelo monólogo interior da narradora. O hibridismo literário, tão presente nas tendências da literatura ocidental do século XXI, começava a ganhar força no contexto das profundas transformações sociais das décadas de 60 e 70. Na Espanha, especialmente, o fim do franquismo, marcado pela morte do ditador, permitiu que as transformações iniciadas desde a década de 50, como o plano de desenvolvimento e o desejo de mudanças realmente efetivas latente na sociedade, pudessem concretizar-se. Assim, as relações com os países vizinhos tiveram consequências importantes não só no âmbito político, quanto nos campos social e cultural. A literatura, como caldeirão de cultura em todas as épocas, reflete a necessidade de renovação estabelecendo, em primeiro lugar, uma ruptura com os pressupostos realistas, e, em segundo lugar, buscando a revisão crítica do passado 197 recente, naquele momento em que já era permitido escrever sobre os traumas, as angústias, frustrações e ressentimentos de um período caracterizado pelo mascaramento da dor e das verdadeiras emoções, num resgate nem sempre fácil da história. A pós-modernidade encontra-se com a abertura política na Espanha finissecular. Neste encontro, percebemos que a literatura busca novos caminhos, como as alternativas à linguagem unívoca do realismo social, expressão literária inevitavelmente associada ao período político anterior. Como testemunha de mais de meio século de história de seu país, Carmen Martín Gaite, busca, como muitos escritores, escrever a memória da Guerra Civil (bastante remota) e a memória do pós-guerra, com uma visão especiamente feminina, não necessariamente feminista, do período. El cuarto de atrás plasma o desejo da autora de resgatar o passado, mas de uma maneira inovadora, marcando definitvamente a ruptura com o realismo e com parte de sua própria literatura anterior. A inovação se faz com uma narrativa que alia a autobiografia ao ensaio. A obra resultante é a fusão desses dois gêneros de caráter personalístico, com a inclusão da literatura fantástica como tema de reflexões e como prática de experimentação literária, ao mesmo tempo. A narrativa configura-se como uma autoficção, gênero cuja definição tem sido buscada na teoria literária atual. A autobiografia é um gênero que apresenta um paradoxo, o de estar entre a realidade e a ficção. A realidade se constrói na narrativa autobiográfica à medida que há o compromisso do escritor em contar suas experiências da forma como aconteceram, devendo haver uma verificabilidade para o leitor. Como vimos no ―Pacto autobiográfico‖ de Philippe Lejeune, a identidade entre autor, narrador e protagonista é um dos aspectos essenciais deste gênero. Esta identidade supõe que, ao constituir-se narrador e contar as experiências vividas, o autor estabelece um pacto com o leitor que 198 crê que os fatos narrados fizeram parte da vida do escritor. Também é traço básico da autobiografia uma visão retrospectiva, através da qual o autor reconstrói sua existência. É nesta reconstrução que encontraremos a ficcionalidade do texto autobiográfico, já que, literariamente, esta reconstrução se fará mediante um processo de criação do próprio ―eu‖ por parte do escritor, visto que a reprodução do passado tal qual foi realmente é um feito impossível. A autobiografia é um gênero literário que obteve grande profusão na Espanha, após o término da ditadura franquista. Esse auge provocou, de certo modo, um esgotamento do gênero. Com o auge da autobiografia e seu consequente esgotamento, escritores como Carmen Martín Gaite uniram ao desejo de reconstrução da própria identidade (oprimida por décadas de liberdade cerceada) ao experimentalismo necessário à renovação do gênero, cujos recursos narrativos tradicionais já não atendiam às necessidades expressivas da nova ordem social e, em última instância, da pósmodernidade. Se esta propiciou o questionamento da própria história, do sujeito, da temporalidade, da imaginação, etc, de forma a provocar o descrédito dos grandes relatos legitimadores, como a autobiografia deixaria de ser afetada por essa onda de renovação e revisão da literatura e da cultura? Mas a autobiografia nas últimas décadas tem sido vista cada vez mais como um campo literário incerto, cujos limites não podem ser definidos a partir de teorias estáveis como a proposta por Lejeune, que consegue defini-la. Atualmente, ao contrário de teorias que buscavam estabelecer os limites entre os gêneros literários, ou as fronteiras literárias, busca-se desestabilizar as certezas sobre os gêneros, muitas vezes a partir da própria literatura. Na verdade, no contexto pós-moderno em que categorias, como sujeito, referencialidade, verdade e mentira, ficção e realidade são postos à prova, há uma 199 progressiva imbricação dos discursos que têm o ―eu‖ como referência com o discurso literário. Como consequência, a autobiografia tem sofrido um processo progressivo de literaturização, tendência acentuada a partir do último decêncio do século XX. O resultado tem sido a proliferação de relatos híbridos que mesclam a ficção e a história com a biografia do autor, apresentando como narrador/personagem/protagonista o próprio autor da obra. Por outro lado, o ensaio, gênero da crítica literária por excelência, não ficou imune à onda de hibridização dos discursos gerada, inicialmente, pela revolução cultural dos anos sessenta. Também esta forma discursiva, ou gênero, se abre para a inclusão de outros discursos, principalmente o autobiográfico. Nesse sentido, o conceito de classes de textos, defendido por María Elena Arenas Cruz, vem em nosso auxílio, posto que coloca em um mesmo campo – a classe de textos argumentativos – os gêneros ensaio e autbiografia. O que justifica, em grande parte, a sua proximidade e interpenetrabilidade. A autoficção, como vimos, responde a um tipo de pacto literário que se situa entre o autobiográfico e o romanesco. Igualmente ao que ocorre na autobiografia, na autoficção autor, narrador e protagonista compartilham a mesma identidade, só que, desta vez, em uma obra de ficção. Sendo assim, a mistura de realidade com ficção determina a ambiguidade do relato. O pacto autoficcional consiste exatamente no fato de que o leitor não identifica claramente o limite da realidade e da ficção, o que é autobiográfico e o que faz parte da invenção literária do autor. É o que acontece em El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite. Com inúmeras referências autobiográficas, a obra da escritora espanhola persegue o propósito de aliar a escritura de um livro de memórias à criação de um romance fantástico, como lemos em um dos fragmentos citados neste trabalho. Mas o trabalho da escritora vai além desse propósito. O livro que resulta é uma obra prima que reúne a autobiografia, a literatura fantástica, a teoria 200 literária e o ensaio histórico. Constitui-se, ao mesmo tempo, numa síntese de sua obra anterior, com diversas alusões aos romances El balneario, Entre visillos e Ritmo lento e gérmen de seu posterior ensaio histórico em que reelabora de forma científica temas relacionados aos efeitos dos acontecimentos históricos no âmbito pessoal. Ao ficcionalizar sua historia de vida, sua carreira, suas concepções literárias e a própria história da Espanha, Carmen Martín Gaite elabora uma narrativa autoficcional, onde o pacto com o leitor passa pelas inúmeras relações intertextuais que se estabelecem com os livros que a escritora leu e escreveu. Além disso, propõe uma renovação formal na literatura espanhola da década de setenta, em que o aumento considerável do número de relatos autobiográficos após a morte de Franco esgotaram o gênero, tornando-se necessária a busca de novos caminhos para a expressão do ―eu‖. Relembrando, Alberca define em sua teoria três tipos de autoficção: as autoficções biográficas, as autoficções fantásticas e as autobioficções, como vimos em 2.3. Dessas três classes de autoficção, as primeiras são as que possuem maior grau de aproximação com a autobiografia, possuindo pouca ficcionalização. As ―fantásticas‖ colocam o escritor no centro de uma autobiografia, mas com sua existência transfigurada por uma história irreal. O último tipo, as ―autobioficções‖ encontram-se exatamente entre o pacto autobiográfico e o romanesco. Nesse tipo de relato, que Alberca afirma não serem nem romances, nem autobiografia, força-se ao máximo o fingimento dos gêneros e a hibridização. Através da análise da incorporação do discurso autobiográfico e do discurso ensaístico na obra, concluímos que El cuarto de atrás constitui-se numa autobioficção, em que o discurso autobiográfico é reforçado pelo discurso ensaístico que exerce um papel de atestador de referencialidade. Juntamente com o discurso autobiográfico, o 201 discurso ensaístico colabora com a ilusão de realidade que a narrativa provoca, mesmo tendo fortes componentes de irrealidade: os elementos fantásticos. A ambiguidade textual é introduzida por elementos que: 1) nos remetem à vida ―real‖ da escritora (nome próprio, data de nascimento, nome dos pais, amigos, escritores que conheceu; 2) acontecimentos que parecem inventados ou reais (a entrevista com o ―hombre vestido de negro‖); 3) acontecimentos ou personagens indiscutívelmente fictícios e inclusive fortemente irreais (a entrevista com o ―hombre vestido de negro‖). Exatamente isto. Até o momento, não conseguimos desfazer a ambiguidade deste personagem, aliás, nem tentamos, pois esta é a essência da autoficção. Este é o argumento que nos leva a afirmar que El cuarto de atrás é uma autobioficção. Exatamente no meio do caminho entre a autobiografia e a ficção. Na incerta fronteira da autoficção. Como considerações finais, gostaríamos de compartilhar com nossos leitores a idéia de que Carmen Martín Gaite é uma das principais precursoras da tão bem sucedida autoficção espanhola atual que nas figuras de Enrique Vila-Matas, Javier Marías, Javier Cercas, Laura Freixas, alcança grande êxito editorial, com suas propostas de revisão contínua da literatura a partir da própria literatura. 202 Referências ABELLÁN, Manuel L. Censura y franquismo: ensayo de interpretación. Temas para el debate. n .12, pp. 62-65, nov. 1995. ALBERCA, Manuel. El pacto ambiguo. Madri: Biblioteca Nueva, 2007. _____. En las fronteras de la autobiografia. 1999. Disponível em: <http://www.uhb.fr/alc/cellan/soidisant/01Question/Analyse2/FRONTERA.htm>. Acesso em: 23 set. 2007. _____. Es peligroso asomarse (al interior). Autobiografía vs. Autoficción. Rapsoda. Revista de Literatura. n. 1, pp.1-24, 2009. Disponível em: <http://www.uc.e/info/rapsoda/num1/studia/alberca.pdf>. 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