Depósito judicial e prisão civil do depositário infiel

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Depósito judicial e prisão civil do depositário infiel: análise do
julgamento do RE 466343/SP
Elpídio Donizetti∗
Resumo: Este trabalho pretende analisar, criticamente, o recente julgamento do STF
acerca da inconstitucionalidade da prisão civil do depositário infiel e, ao mesmo tempo,
traçar, com base na orientação dessa Corte, as balizas que deverão nortear a conduta dos
magistrados, advogados e credores quando constatada a infidelidade do depositário judicial.
Palavras-chaves: Depositário judicial infiel. Constitucionalidade.
Sumário: 1 Introdução. 2 Da (in)constitucionalidade da prisão civil do depositário
judicial infiel. 3 Conclusão: breve roteiro a ser seguido quando constada a infidelidade do
depositário judicial.
∗
Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Presidente da Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES)
e autor, entre outras obras, do Curso Didático de Direito Processual Civil, 11ªed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009; O Novo Processo
de Execução. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; Redigindo a Sentença Cível, 5ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008; Para
passar em Concursos Jurídicos – questões objetivas com gabarito e justificação. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009 e A Última
Onda Reformadora do Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
1 INTRODUÇÃO
Questão que sempre gerou polêmica na doutrina e principalmente na jurisprudência
pátria é a possibilidade de prisão civil do depositário infiel.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal parece ter pacificado a questão. Trata-se
do julgamento do RE 466343/SP, finalizado em 03/12/2008.
Ao longo desta exposição, faremos uma análise crítica acerca desse julgado e
proporemos um roteiro que, a partir da decisão do STF, deverá balizar a conduta dos juízes,
advogados e credores quando constatada a infidelidade do depositário judicial e mesmo
antes da nomeação do depositário, com vistas a evitar a infidelidade.
2
DA
(IN)CONSTITUCIONALIDADE
DA
PRISÃO
CIVIL
DO
DEPOSITÁRIO JUDICIAL INFIEL.
O art. 5º, LXVII, da CF/88 admite a prisão civil em duas hipóteses: a do responsável
pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário
infiel.
Ocorre que o Brasil, por via do Decreto 678/1992, ratificou, em 25/09/1992, o Pacto de
São José da Costa Rica, com início de vigência no território nacional em 06/11/1992, o qual
admite a prisão por dívidas apenas do devedor inescusável de alimentos (art. 7º).
A divergência entre o disposto no Pacto São da Costa Rica e o art. 5º, LXVII, da
CF/88, acirrou a discussão acerca de qual seria a hierarquia das normas internacionais
quando integradas ao ordenamento jurídico interno – se assumiriam status de normas constitucionais ou infraconstitucionais – e, via de consequência, se ainda permanecia válida a
prisão civil do depositário infiel.
Com o julgamento do RE 466343/SP, finalizado em 03/12/2008, o STF parece ter
pacificado a questão.
Inicialmente, deve-se observar que o objeto do mencionado recurso extraordinário era
a constitucionalidade da prisão civil nos casos de alienação fiduciária, que se equipararia à
figura do depósito contratual. Não obstante, a decisão proferida repercute em todas as
espécies de depósito.
Segundo o Min. Gilmar Mendes, os tratados e convenções internacionais sobre direitos
humanos integrados ao ordenamento jurídico interno sem o quorum qualificado do §3º do
art. 5º da CF teriam caráter supralegal, ou seja, não alterariam o texto constitucional, mas se
sobreporiam às normas infraconstitucionais. Dessa forma, a subscrição pelo Brasil dos
tratados
internacionais
sobre
direitos
humanos
torna
inaplicável
a
legislação
infraconstitucional com eles conflitante, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação.
É o que teria ocorrido com o art. 1.287 do Código Civil de 1916 e com o Decreto-lei nº
911/69, assim como em relação ao art. 652 do Novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
A manifestação do Min. Gilmar Mendes foi acompanhada pelos ministros Ricardo
Lewandowski, Cármen Lúcia e Menezes Direito.
Os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie, por sua vez,
reconheceram não a supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos, em
especial o Pacto São José da Costa Rica, mas o status constitucional de tais normas1.
Quer tenha status constitucional, quer tenha status supralegal, o fato é que, com base
no novo entendimento do STF, não mais há substrato legal para se decretar a prisão civil do
depositário infiel – quer seja contratual ou judicial o depósito.
Como desdobramento do entendimento acima esposado, a Suprema Corte deliberou
pela revogação da Súmula 619, que admitia o decreto da prisão civil do depositário judicial
infiel no mesmo processo em que constituído o encargo2.
Com relação à prisão civil decorrente do depósito contratual típico ou da alienação
fiduciária, não há qualquer discussão. Em se entendendo que o Pacto São José da Costa
Rica só admite prisão civil por dívida no caso de inadimplemento de prestação alimentícia,
e que o tratado se sobrepõe à legislação infraconstitucional – e isso ficou assentado no
julgamento do STF –, de fato não mais há amparo legal para a prisão decorrente de relação
material de cunho privado.
No entanto, com relação aos depósitos judiciais, a tese perfilhada pela Suprema Corte
brasileira não nos parece a mais adequada.
1
Conferir, a respeito, o Informativo de Jurisprudência nº 498 do STF.
Súmula 619: A prisão do depositário judicial pode ser decretada no próprio processo em que se constituiu o encargo,
independentemente da propositura de ação de depósito.
2
A bem da verdade, a recente decisão do STF está na contramão da linha adotada pela
última onda reformadora do Código de Processo Civil, cujo escopo foi conferir maior
celeridade e efetividade ao procedimento executivo e, para tanto, previu medidas
coercitivas até para condutas antes reputadas legítimas, como, por exemplo, para o caso de
o executado sonegar bens sujeitos à execução (arts. 652, §3º, 656, §1º, c/c art. 14, parágrafo
único, do CPC). Ora, a possibilidade de se aplicar pena de prisão constitui importante
instrumento para se coibir a má-fé daqueles depositários que, maliciosamente, poderiam se
desfazer de bens constritos, retardando ou até inviabilizando, com isso, a satisfação do
crédito.
Mas não é só. A meu juízo, os eminentes ministros laboraram em equívoco na exegese
do art. 7º da Carta de São José da Costa Rica, que, conforme já afirmado, veda a prisão
“por dívidas”, ou seja, por débito inadimplido, exceto a resultante de alimentos. Entretanto,
nem de longe o depósito judicial pode ser tido como “dívida”.
Ao contrário do depósito contratual ou equiparado, o depósito judicial é relação típica
de direito público e de caráter processual, estabelecida entre o juízo da execução e o
depositário judicial dos bens penhorados. Nessa modalidade de depósito, o juiz confia ao
depositário – que necessariamente não há que coincidir com a pessoa do devedor, portanto,
às vezes, sequer no plano subjacente se pode falar em débito – a guarda dos bens
apreendidos em decorrência de penhora, sequestro, arresto ou outro ato judicial constritivo,
com intuito de preservá-los, a fim de assegurar a efetividade do processo.
Diversamente do que ocorre no depósito contratual, inclusive o decorrente de alienação
fiduciária, assume o depositário judicial, na qualidade de auxiliar do juízo, um munus
público, e é exatamente esse vínculo funcional existente entre juízo e depositário que, desde
priscas eras, tem justificado o decreto de prisão, constada a infidelidade desse “servidor
público por equiparação”.
Repise-se, porquanto nisso reside o ponto fulcral desta breve análise, o art. 7º do Pacto
de São José de Costa Rica veda, tão-somente, a prisão de devedor, ou seja, daquele que tem
débito decorrente de relação material (de regra, contratual) –, o qual em nada se confunde
com a figura do depositário judicial, que, em virtude da assinatura do termo de depósito,
não assumiu qualquer dívida, mas o munus de conservar e restituir a coisa, sob pena de
infidelidade e, consequentemente, de prisão.
Aliás, o disposto no tratado internacional não impede sequer que o depositário judicial
infiel responda penalmente pelo crime de peculato, tipificado no art. 312 do Código Penal3,
uma vez que, para efeitos penais, considera-se funcionário público quem, embora
transitoriamente ou sem remuneração, exerça função pública (art. 327).
Destarte, por originar-se de indevido exercício de munus público, e não de relação
contratual, a hipótese de prisão civil do depositário judicial infiel regulamentada pelo art.
666, §3º do CPC não foi derrogada pelo Pacto São José da Costa Rica.
Dessa forma, a orientação adotada no RE 466343/SP não pode prevalecer com relação
aos depósitos judiciais, sendo constitucional a decretação da prisão civil do depositário
judicial infiel, permanecendo, a nosso ver, válido o teor da Súmula 619 do STF4.
3 CONCLUSÃO: BREVE ROTEIRO A SER SEGUIDO QUANDO CONSTATADA A
INFIDELIDADE DO DEPOSITÁRIO JUDICIAL
Em que pesem as críticas apresentadas, sabemos todos nós que a lei é aquilo que os
tribunais – em especial o STF – dizem que o é. E o STF entendeu que, no Brasil, só cabe
prisão civil decorrente do não-pagamento de pensão alimentícia. Assim, ao menos por
enquanto, ao que tudo indica, Inês é morta. Nos autos do processo civil, não há
possibilidade de decretar a prisão do depositário judicial infiel. Nada impede evidentemente
que amanhã o Supremo ressuscite e reveja o entendimento assentado. Aliás, entre outras,
essa permanente possibilidade de revisão dos precedentes é que nos motiva a tecer críticas,
construtivas e respeitosas, às decisões da mais alta Corte de Justiça deste país.
À guisa de conclusão é de se indagar: e então, nós que estamos perto dos fatos e que,
por isso mesmo, enxergamos e sentimos os reflexos da má-fé de alguns depositários
judiciais, o que devemos fazer diante da inexorabilidade do mencionado precedente? Qual
seria, então, a postura a ser adotada pelos credores, advogados, juízes e promotores de
justiça quando constatada a infidelidade do depositário judicial?
3
Art. 312. Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse
em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio.
4
Embora tenha defendido a supralegalidade do Pacto São José da Costa Rica, o Min. Menezes Direito ressalvou seu particular
entendimento no sentido de que a vedação da prisão civil não se estenderia ao depositário judicial infiel. A respeito, conferir o
Informativo de Jurisprudência nº 531 do STF.
Adianto que a despeito da extensão que o STF emprestou à vedação da prisão por
dívidas, os depositários judiciais não estão à vontade para dissiparem bens cuja guarda foilhes confiada.
Ante o sumiço do bem depositado, e impossível o decreto prisional, que, como num
passe de mágica, comumente tinha o condão de fazê-lo aparecer, caberá ao credor, se for
houver interesse, optar por indicar outro bem do devedor à constrição ou prosseguir nos
próprios autos contra o depositário infiel, a fim de obter dele indenização pelo valor
equivalente ao bem antes constrito. Em qualquer das hipóteses, deverá o juiz remeter cópia
de peças dos autos ao Ministério Público, para oferecimento de denúncia contra o
depositário infiel, por peculato. É a forma de remediar, de correr atrás do prejuízo.
Antes, porém, que o leite derrame, com a nova orientação do STF, redobrada deve ser
a atenção dos juízes ao nomearem os depositários. Mais do que nunca, será imprescindível
a prévia certificação da idoneidade financeira do depositário, possibilitando o contraditório
principalmente pelo credor, que poderá se opor à nomeação. Dificilmente o bem ficará com
o devedor, a menos que preste caução. Isso porque, como não pagou a dívida reconhecida
no título executivo, a presunção – relativa, evidentemente – é de que não goza de
idoneidade financeira.
O tiro, portanto, acaba por sair pela culatra.
Aparentemente a decisão no RE
466343/SP beneficia o devedor, mas, na prática, irá prejudicá-lo, porquanto, a não ser
excepcionalmente, ficará na guarda do bem apreendido. O mais prejudicado, todavia, é o
credor, que verá postergada, quiçá inviabilizada, a satisfação de seu crédito.
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