HABEAS CORPUS: CONSIDERAÇÕES PARA USO TÓPICO1 Aury Lopes Jr.2 Cristina di Gesu3 I. Uma (Re)leitura Histórica doHabeas Corpus: os antecedentes do Direito Aragonês.II. Antecedentes Históricos no Brasil e Considerações Prévias. III. Natureza Jurídica. IV. Objeto. V. A coação ilegal: Excesso de prazo da prisão cautelar à luz do direito de ser julgado em um prazo razoável. a) Sumárias considerações sobre a dilação indevida.b) (De)Mora Jurisdicional e Prisão Cautelar. VI. Prisão em Flagrante como Medida PréCautelar: Habeas Corpus contra a Manutenção da Prisão. VII. Habeas Corpus contra Prisão Preventiva para Garantia da Ordem Pública e/ou Econômica. Ausência de Cautelaridade da Prisão. VIII. O Habeas Corpus como Instrumento de Collateral Attack. IX. O Habeas Corpus contra ato de um particular. X. Considerações Finais. I. UMA (RE)LEITURA HISTÓRICA DO ANTECEDENTES DO DIREITO ARAGONÊS HABEAS CORPUS: OS Para introduzir o estudo do habeas corpus, é importante fazer uma breve análise do aspecto histórico, mas desde outra perspectiva, diversa daquela costumeiramente apontada pelo senso comum teórico, pois pensamos que a origem do writ não está restrita ao Habeas Corpus Act de 1679 na Inglaterra. Existe um outro antecedente, ainda mais antigo, e praticamente ignorado pela doutrina brasileira: la manifestación de personas de la corona de aragón na Espanha. Como explica FAIREN GUILLEN4 em numerosos trabalhos que dedicou ao tema, bem como na própria Exposição de Motivos da LO 6/1984 espanhola, o habeas corpus é uma instituição própria do Direito anglo-saxão, mas não se pode ocultar, sem embargo, sua raiz no Direito histórico espanhol, onde conta com antecedentes remotos como o denominado recurso de manifestación de personas do Reino de Aragão e as referências sobre os pressupostos das prisões ilegais contidas no Distrito de Vizcaya e outros ordenamentos distritais, assim como com os antecedentes mais próximos nas Constituições de 1869 e 1876, que regulavam o procedimento, ainda que não adotando nenhuma denominação específica. Inclusive, em relação a recepção do habeas corpus pela Constituição espanhola de 1978, FAIREN GUILLEN afirma que “el legislador hubiera hecho mucho mejor en O presente trabalho é resultado parcial das pesquisas desenvolvidas no Projeto “Processo Penal e Estado Democrático de Direito: a instrumentalidade constitucional como limitação ao poder punitivo”, desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, com Bolsa Produtividade em Pesquisa do CNPq. 2 Advogado. Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor do Programa de Pós-Graduação – Mestrado - em Ciências Criminais da PUCRS. Coordenador do Curso de Especialização em Ciências Penais da PUCRS. Pesquisador do CNPq. www.aurylopes.com.br 3 Assessora de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS. Mestranda em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. 4 Fazemos especial referência aos artigos publicados na obra “La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, pp. 473 e ss. 1 1 reinstituir la vieja manifestación criminal de personas que en importar el habeas corpus y nada menos que con rango constitucional. Error gravísimo”5. Para GIMENO SENDRA6 a Lei Orgânica (espanhola) 06/1984 é uma inovação, mas não uma novidade, pois muito anterior a ela, e inclusive ao habeas corpus inglês – instaurado mediante o Habeas Corpus Act de 1679 - já existia na Coroa de Aragão, durante o período de 1428-1592, o procedimento de manifestación de personas. Era na realidade um procedimento rápido, submetido ao regime da ação popular, que transcorria ante uma jurisdição muito próxima a atual constitucional: a da Justiça de Aragão. Esse instrumento servia para7: a) Possibilitar que o detido fosse trasladado do cárcere para a “casa de los manifestados” de Zaragoza ou outro domicílio, mediante um regime similar a atual liberdade provisória. b) Prevenir ou reprimir as detenções ilegais cometidas por qualquer autoridade posto que, sobre todas elas, inclusive do próprio Rei, se alçava a jurisdição da Justiça de Aragão. Para RAMÓN SORIANO8, a manifestación de personas era um processo com uma dupla função. Na primeira etapa, tratava-se de um procedimento cautelar para assegurar a dignidade da pessoa detida dos possíveis maus tratos e sevícias perpetradas pelas autoridades. Na segunda fase, se convertia em um procedimento de cognição plenária, onde o caso penal era inteiramente discutido. De todos os recursos distritais aragoneses, apresenta uma maior afinidade com a manifestación de personas a chamada firma de derecho, que consistia em um mandamento de inibição ditado pela Justiça Maior de Aragão, ou seus funcionários, contra a atuação dos juízes, funcionários ou pessoas privadas. A firma de derecho podia ordenar a inibição de uma atuação futura possível – recebia então o nome de agravios futuros – ou bem de uma atuação já consumada, e neste caso se chamava firma de agravios hechos. Existiam, ademais, outros tipos de firmas de derecho: comuns ou casuais, possessórias ou titulares, de apelação, etc. dando lugar a um enorme casuísmo jurídico para suprir as lacunas surgidas no confronto entre direito à liberdade e a “segurança social”. A firma de derechos de agravios futuros o temidos era um importante instrumento de proteção que existia na justiça de Aragão e que sem motivo não foi mais consagrado nas sucessivas modificações legislativas. Poderia ser utilizado em um momento anterior à manifestación de las personas, provocando a inibição de uma autoridade ou juiz na possível prisão arbitrária de uma pessoa9 (tipicamente preventivo). Não resta dúvida que os instrumentos da justiça de Aragão eram de alcance e eficácia muito superiores ao atual habeas corpus espanhol. A firma de derechos y agravios futuros o temidos era um instrumento de proteção que poderia ser utilizado antes que ocorresse a prisão arbitrária (como o salvo-conduto do habeas corpus brasileiro) e principalmente, poderia ser interposto contra uma decisão judicial (incrivelmente, o atual habeas corpus espanhol não permite que seja interposto contra ato judicial!). Ademais, a própria manifestación de personas, utilizada na restrição de liberdade arbitrária já perpetrada, poderia ser utilizada contra qualquer pessoa, pública – “La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, p. 610. 6 El Proceso de Habeas Hábeas, p. 39. 7 SORIANO, Ramon. El Derecho de Habeas Corpus, p. 39. 8 Op. cit., p. 33. 9 SORIANO, Ramón. Op. cit., p. 38. 5 2 inclusive o Rei como assinala FAIREN GUILLEN10 - ou privada que tivessem sob seu poder outra ou outras, ameaçadas de tortura ou já esta em prática, para que a apresentasse, las pusiesen de manifiesto ante a Justicia o Lugarteniente. Em sentido contrário, outra parte da doutrina sustenta que a verdadeira existência e consagração do habeas corpus foi alcançada no Direito anglo-saxão que inspirou os demais países. Afirmam que o legislador espanhol não manteve uma unidade temporal do instrumento, posto que se extinguiu em 1592 e não regressou nunca mais ao ordenamento espanhol. Por fim, seu regresso não foi como merecia, pois não se deu uma natural evolução, mas sim um retrocesso. A apontada instituição aragonesa, que possuía duplo caráter, civil e penal e cujos precedentes romanos vinham separados e sem unidade temporal, não é historicamente precedente direto do habeas corpus inglês, posto que não há entre eles relações imediatas11. A natureza jurídica do habeas corpus hoje concebida é distinta da manifestación de personas. O Direito aragonês possuía um interdito de homine libero exhibiendo distinto do habeas corpus, que é uma ação constitucional. No século XVII, a luta pela liberdade inicia de novo na Inglaterra com a Petition of rights, pois as ordens de habeas corpus eram denegadas a todo momento, até que surgiu o Habeas Corpus Act em 167912, no reinado de Carlos II, sendo considerado pelos ingleses como uma nova Carta Magna. Assim foi obtida a eficácia do writ of habeas corpus para a liberação de pessoas ilegalmente detidas e fazer cessar toda restrição ilegal da liberdade pessoal13. Todavia este writ of habeas corpus somente era expedido quando a pessoa era acusada de praticar um crime, não tendo aplicação nos demais casos de prisões ilegais. Em 1816 surgiu outro Habeas Corpus Act alargando o anterior, possibilitando que sua atuação fosse mais ampla na defesa imediata da liberdade pessoal. Como aponta FAIREN GUILLEN14, o mais importante do Act de 1816 foi a extensão do habeas corpus à esfera penal. No Brasil o habeas corpus foi introduzido em 1832, como meio para cessar a restrição ilegal da liberdade. Em 1871 se deu uma importante alteração no Código de Processo Criminal ampliando o campo de atuação do habeas corpus para garantir as pessoas que estivessem simplesmente ameaçadas em sua liberdade de locomoção (ambulatoria). Era a consagração do habeas corpus preventivo que sequer existia na Inglaterra. Em definitivo, entendemos que os principais antecedentes históricos do habeas corpus estão inicialmente no Direito aragonês, um importantíssimo marco histórico; e posteriormente no Direito inglês, no qual alcançou sua consagração. Cumpre assinalar “La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, p. 568. 11 TEJERA, Diego Vicente. El Habeas Hábeas. Apud LOPEZ-MUÑOZ Y LARRAZ na obra citada, p. 25. 12 Esse seria o marco histórico por excelência. Com anterioridade a ele, FAIREN GUILLEN (“La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, p. 561) explica que na primeira parte do século XIII, a expressão habeas corpus constituía uma fórmula processual civil, uma ordem de trazer fisicamente alguém a um Tribunal. A finalidade era de assegurar a presença física dessa pessoa perante um Tribunal, possivelmente mediante uma ordem do Tribunal a um sheriff, não estava ligada com uma recuperação da liberdade de movimentos. Como explica o autor, existiram três writs medievais mais vinculados a idéia de recuperar a liberdade que essas formas de habeas corpus: os de homine replegiando e de mainprize, para assegurar uma liberdade sob fiança durante o processo e o de odio et atia, para obter uma liberdade na fase de pré-trial, e em determinadas circunstâncias, de um preso acusadode homicídio. 13 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. IV, p. 402. 14 “La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, p. 567. 10 3 que o antecedente inglês somente logrou tal importância porque a manifestación de personas se extinguiu em 1592, e a falta de continuidade gerou uma lacuna histórica que posteriormente beneficiaria o instrumento inglês. Não obstante, sem dúvida, ambos são marcos históricos que foram decisivos para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito e na proteção da liberdade individual frente à prisão ilegal. II - ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO BRASIL E CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS Desde o ponto de vista da ciência do direito, como explica PONTES DE MIRANDA15, o remédio jurídico processual – como direito constitucional – havia chegado depois, quando já existia a pretensão e o direito a liberdade física. No Brasil, antes do habeas corpus existia o interdito de libero homine exhibiendo que alcançava a reparação do constrangimento ilegal da liberdade física. O habeas corpus foi introduzido no sistema jurídico brasileiro16, a partir do modelo inglês, em 183217, no “Código de Processo Criminal” que em seu art. 340 previa que: “Todo cidadão que considere que ele ou outra pessoa sofre uma prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade, tem o direito a solicitar uma ordem de habeas corpus em seu favor”. Na Constituição de 1891 o habeas corpus foi consagrado como um instrumento processual de fundamental importância para a proteção da liberdade de locomoção ambulatória. Desde então, vem sendo mantido em todas as Constituições. Inicialmente no Brasil existia o habeas corpus “liberatório” para proteger a liberdade de locomoção (jus manendi, ambulandi, eundi, viniendi ultro citroque). Em 1871 (Lei 2033/1871) foi alterada a Lei Processual de 1832 e introduzido o habeas corpus preventivo para os casos em que o cidadão estivesse ameaçado (na iminência) de sofrer uma restrição ilegal em sua liberdade. Era a consagração do habeas corpus preventivo (sequer consagrado na Inglaterra).18. Como explica PONTES DE MIRANDA19 habeas corpus eram as palavras iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia, dirigido aos que tivessem em seu poder a guarda do corpo do detido. O mandamento era: Toma (habeas vem de habeo, habere, que significa exibir, trazer, tomar, etc.) o corpo do detido e venha submeter o homem e o caso ao Tribunal. Tal é a importância do instrumento, não só no plano jurídico-processual, como também no campo social, que PONTES DE MIRANDA20 afirmava já em 1916 que o writ possuía uma extraordinária função coordenadora e legalizante, que contribuía de forma decisiva para o desenvolvimento social e político do país, impedindo inclusive a exploração da classe social baixa pelo coronelismo, que para isso contavam com o auxílio da polícia e das autoridades políticas. Atualmente, o habeas corpus está previsto no art. 5o, LXVIII da CB: “conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”. Também está contemplado no Código de Processo Penal, arts. 647 e seguintes. 15 História e Prática do Habeas Corpus, p. 23. Sobre a história do hábeas corpus, não só no Brasil mas também na Inglaterra e Estados Unidos, consulte-se magistral obra de PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas-Corpus. 17 Explica PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas-Corpus, p. 128, que o hábeas corpus é uma pretensão, ação e remédio. A pretensão existe desde n1830 (prevista no Código Criminal, arts. 183188). A ação e o remédio, desde 1832, no “Código de Processo Criminal”. 18 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. IV, p. 403. 19 História e Prática do Habeas-Corpus, p. 21. 20 História e Prática do Habeas-Corpus, p. 176. 16 4 III – NATUREZA JURÍDICA O habeas corpus brasileiro está previsto no CPP no “Livro III” destinado às nulidades e aos recursos em geral. Sua posição na estrutura da Lei – como recurso – está equivocada, e tendo em conta o erro do legislador, consideramos o habeas corpus como uma verdadeira ação autônoma de impugnação. Deve-se defini-la como uma ação e não como um recurso, e mais especificamente, como uma ação mandamental, ou um remédio processual mandamental (remedial mandatory writ) como prefere PONTES DE MIRANDA21. Tal ação está potenciada pela Constituição, e se encaminha a obter um mandado dirigido a outro órgão do Estado, por meio da sentença judicial22. Convém salientar que, quando dizemos que tem “força mandamental” predominante, não estamos excluindo as demais “cargas” da sentença (declaratória, constitutiva, condenatória e executiva), senão que evidenciamos o predomínio do mandamento sobre todas as demais. Trata-se de uma ação de procedimento sumário, pois a cognição é limitada. Existe a possibilidade de uma “medida liminar” (in limine litis), construída jurisprudencialmente, com natureza cautelar e que possibilita ao juiz uma intervenção imediata, baseada na verossimilhança da ilegalidade do ato e no perigo derivado do dano inerente a demora da prestação jurisdicional ordinária. A medida liminar, tanto no habeas corpus preventivo como no liberatório ou sucessivo, está incluída entre as tutelas (provvedimento) cautelares que CALAMANDREI23 classificou como antecipatórias da decisão final (anticipazioni di provvedimento definitivo). Para isso, poder-se-á utilizar os modernos meios de comunicação, como o telefone, fax e email. O writ – e a expressão inglesa significa exatamente um mandamento judicial24 - pode ser interposto contra ato de um particular, autoridade pública, policial, Ministério Público, Juiz, Tribunal e inclusive contra sentença transitada em julgado em que não é possível utilizar-se qualquer recurso. Para isso, é imprescindível que se ofenda ilegalmente o direito de liberdade. Em definitivo, o habeas corpus no Brasil pode ser utilizado como instrumento de collateral attack. Atendido seu objeto e especiais características, a doutrina costuma denominá-lo de “remédio heróico”, destinado a garantir o direito fundamental a liberdade individual. Quando se destina a atacar uma ilegalidade já consumada, um constrangimento ilegal já praticado, denomina-se habeas corpus liberatório (sua função é de liberar). Também é possível utilizar-se ainda que a detenção ou constrangimento não haja sido praticado, em uma situação de iminência ou ameaça. Nesse caso, denomina-se habeas corpus preventivo. IV. OBJETO O art. 647 demonstra o alcance da medida, ao determinar que será concedido habeas corpus sempre que alguém sofra ou se encontre na iminência de sofrer violência ou coação ilegal em sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar (militar). 21 História e Prática do Hábeas-Corpus, págs. 328 e ss. Como explica J. GOLDSCHMIDT ao definir a ação mandamental em sua obra Derecho Procesal Civil, p. 113. 23 Introduzione allo studio sistematico dei provedimenti cautelari, p. 38. Também PELLEGRINI GRINOVER, “A tutela preventiva das liberdades: Habeas-Corpus e mandado de Segurança”. In: Revista AJURIS, no 22, p. 114. 24 Como explica PONTES DE MIRANDA (História e Prática do Habeas-Corpus, p. 329), evidente que os juristas ingleses não conheciam a classificação quinária de constante quinze das ações e sentenças, mas sua terminologia e precisão em falar em mandatory remedies demonstra que já lhes chamava a atenção a força mandamental de certas sentenças. 22 5 A única restrição da Lei é com relação as punições disciplinares impostas pelas forças armadas, entretanto isso atualmente já vem sofrendo uma nova leitura frente a nova Constituição que não fez tal previsão. O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça já vem decidindo em diversos casos que é possível o uso do writ contra punições disciplinares. Neste caso o juiz deverá analisar todos os aspectos formais da medida, pois se trata de um ato administrativo sujeito ao controle judicial. Em definitivo, o habeas corpus brasileiro é uma ação de natureza mandamental com status constitucional, e que cumpre com plena eficácia sua função de proteção da liberdade de locomoção dos cidadãos frente aos atos abusivos do Estado, em suas mais diversas formas, inclusive contra atos jurisdicionais e coisa julgada. A efetiva defesa dos direitos individuais é um dos pilares para a existência do Estado de Direito, e para isso, é imprescindível que existam instrumentos processuais de fácil acesso, realmente céleres e eficazes. Vejamos a continuação algumas coações ilegais amparáveis pelo habeas corpus. V. A COAÇÃO ILEGAL: EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO CAUTELAR À LUZ DO DIREITO DE SER JULGADO EM UM PRAZO RAZOÁVEL a) Sumárias considerações sobre a dilação indevida O excesso de prazo das prisões cautelares sempre foi um tema recorrente em matéria de habeas corpus. Pensamos, contudo, que a questão assume uma nova dimensão com a inovação introduzida no art. 5o, LXXVIII da Constituição. A concepção de poder passa hoje pela temporalidade, na medida em que o verdadeiro detentor do poder é aquele que está em condições de impor aos demais o seu ritmo, a sua dinâmica, a sua própria temporalidade. BECCARIA25, a seu tempo, já afirmava com acerto que o processo deve ser conduzido sem protelações, até porque, quanto mais rápida for a aplicação da pena e mais perto estiver do delito, mais justa e útil ela será. Cunhamos a expressão “(de)mora jurisdicional” porque ela nos remete ao próprio conceito (em sentido amplo) da “mora”, na medida em que existe uma injustificada procrastinação do dever de adimplemento da obrigação de prestação jurisdicional. Daí porque, nos parece adequada a construção (de)mora judicial no sentido de não-cumprimento de uma obrigação claramente definida, que é a da própria prestação da tutela (jurisdicional) devida. Cumpre agora analisar os contornos e os problemas que rodeiam o direito de ser julgado num prazo razoável ou a um processo sem dilações indevidas26. A (de)mora na prestação jurisdicional constitui um dos mais antigos problemas da administração da justiça. Contudo, como aponta PASTOR27, somente após a Segunda Guerra Mundial é que esse direito fundamental foi objeto de uma preocupação mais intensa. Isso coincidiu com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 10/12/1948, especialmente no art. 10, que foi fonte direta tanto do art. 6.1 da Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais (CEDH) como também dos arts.7.5 e 8.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos. 25 Dos Delitos e das Penas, p. 59. Sobre o tema, consultar: LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Fundamentos da Instrumentalidade Garantista. 3a Edição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005. 27 PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 103. 26 6 O núcleo do problema da (de)mora, como bem identificou o Tribunal Supremo da Espanha na STS 451928, está em que, quando se julga além do prazo razoável, independentemente da causa da demora, se está julgando um homem completamente distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de prevenção específica e retribuição (muito menos da falaciosa “reinserção social”). Sem falar no imensurável custo de uma prisão cautelar indevida ou excessivamente longa. Trata-se de um paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário: um juiz julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante (anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena e, seu presente no futuro, será um constante reviver o passado29. O Estado resulta, como sintetiza PEDRAZ PENALVA30, no principal obrigado por esse direito fundamental, na medida em que cria deveres para o juiz (impulso oficial), bem como para o Estado-legislador (promulgação de um sistema normativo material, processual e mesmo orgânico) para uma efetiva administração da justiça, sem esquecer os meios materiais e pessoais31. Tampouco se pode exigir “cooperação” do imputado, na medida em que protegido pelo nemo tenetur se detegere. “Es indudable y resulta obvio que cuando se juzga más allá de un plazo razonable (cualquiera que sea la causa de la demora) se está juzgando a un hombre distinto en sus circunstancias personales, familiares y sociales, por .lo que la pena no cumple, ni puede cumplir con exactitud las funciones de ejemplaridad y de reinserción social del culpable, que son fines justificantes de la sanción, como con fina sensibilidad dice la Sentencia de 26.6.1992”. APUD: PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de la Justicia Penal, p. 387. 29 Pois uma função inerente à pena de prisão é obrigar a um constante reviver o passado no presente, levando ao que denomino de “patologias de natureza temporal”. Isso significa, em apertada síntese, que o tempo de prisão é tempo de involução, que a prisão gera uma total perda do referencial social de tempo, pois a dinâmica intra-muros é completamente desvinculada da vivida extra-muros, onde a sociedade atinge um nível absurdo de aceleração, em total contraste com a inércia do apenado. Existe uma clara defasagem entre o tempo social e o tempo do cárcere, pois a prisão possui um “tempo mumificado pela instituição” em contraste com a dinâmica e complexidade do exterior. Isso exige um repensar a proporcionalidade e adequação da pena a partir de outro paradigma temporal, aliado à velocidade do tempo externo e o congelamento do tempo interno. Não há dúvida de que 10 anos de prisão hoje representam muito mais em termos de caráter aflitivo e involução do que 10 anos de pena há 10 ou 20 anos atrás. 30 PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de la Justicia Penal, p.401. 31 Interessante a argumentação que o Estado alemão invocou no caso Bock, STEDH 29/03/1984, conforme aponta PEDRAZ PENALVA (op. cit. p.402) de que “nenhum Estado pode garantir a infalibilidade de seus Tribunais, pois o erro judicial cometido por um juiz pode provocar um recurso e, por conseguinte, prolongar o procedimento. Se isso significa uma violação do direito a um prazo razoável, se estará reconhecendo o direito a decisões judiciais impecáveis’ (tradução livre). Tal argumento, ainda que sedutor, carece de qualquer fundamento legítimo, pois como bem respondeu o TEDH, “um erro imputável a um Tribunal, entranhado de um atraso oriundo da necessidade de atacá-lo pode, quando combinado com outros fatores, ser considerado para a apreciação do caráter razoável do prazo do art. 6.1 (da CEDH).” Não se trata de buscar decisões judiciais impecáveis, obviamente impossíveis, senão de reconhecer a responsabilidade do Estado pelo erro crasso, ou a excessiva demora por parte do Tribunal em remediar um equivoco evidente, quando forem causadores de longa demora, estamos diante e uma dilação indevida. O que não se pode admitir é que, além do erro, seja ele qualificado pela demora em remediar seus efeitos. 28 7 Esse direito fundamental já estava expressamente assegurado nos arts. 7.5 e 8.1 da CADH32, recepcionados pelo art. 5º, § 2º da Constituição. Assim, a Emenda Constitucional n. 45 de 08 de dezembro de 2004, não inovou em nada com a inclusão do inciso LXXVIII no art. 5° da Constituição, apenas seguiu a mesma diretriz protetora da CADH, com a seguinte redação: LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Dessarte, o sistema jurídico vigente deve adequar-se a essa nova exigência, revisando seus procedimentos, duração do processo e das prisões cautelares. Ademais, além de firmatário da CADH, o Brasil é passível de ser demandado junto à Corte Americana de Direitos Humanos, que previsivelmente “importa” muitos dos entendimentos do TEDH. Não tardará para que o STF comece também a lançar mão desse artifício doutrinário, para adequação do sistema jurídico interno à nova diretriz ditada pelo direito internacional dos direitos humanos. Daí a necessidade de constante remissão às decisões do TEDH e da doutrina européia, com muito mais tradição no trato da questão. Nessa linha, já antecipamos uma crítica muito importante: tanto a Convenção Americana de Direitos Humanos como a Constituição, não fixaram prazos máximos para a duração dos processos e tampouco delegaram para que lei ordinária regulamentasse a matéria. Adotou o sistema brasileiro a chamada “doutrina do não-prazo”, persistindo numa sistemática ultrapassada e que a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos vem há décadas debatendo-se. Dessa forma, a indeterminação conceitual do art. 5°, LXXVIII, da Constituição, nos conduzirá pelo mesmo (tortuoso) caminho da jurisprudência do TEDH (e também da CADH), que desde o caso “Wemhoff”33 (STEDH de 27/6/1968) vem debatendo-se em torno da definição de critérios para a valoração da “duração indevida”. Inicialmente, adotou-se a chamada “doutrina dos sete critérios”. Para valorar a situação, a Comissão sugeriu que a razoabilidade da prisão cautelar (e conseqüente dilação indevida do processo) fosse aferida considerando-se: a) a duração da prisão cautelar; b) a duração da prisão cautelar em relação a natureza do delito, a pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de condenação; c) os efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem material como moral ou outros; d) a influência da conduta do imputado em relação à demora do processo; e) as dificuldades para a investigação do caso (complexidade dos fatos, quantidade de testemunhas e réus, dificuldades probatórias, etc.); f) a maneira como a investigação foi conduzida; g) a conduta das autoridades judiciais. Tratava-se de critérios que deveriam ser apreciados em conjunto, com valor e importância relativas, admitindo-se, inclusive, que um deles fosse decisivo na aferição do excesso de prazo. A doutrina dos sete critérios não foi expressamente acolhida pelo TEDH como referencial decisivo, mas tampouco foi completamente descartada, tendo sido utilizada pela Comissão em diversos casos posteriores e servido de inspiração para um referencial mais enxuto: a teoria dos três critérios básicos (complexidade do caso; a atividade processual do interessado (imputado); a conduta das autoridades judiciárias). Esses três critérios têm sido sistematicamente invocados, tanto pelo TEDH, como também pela Corte Americana de Direitos Humanos. Ainda que mais delimitados, não são menos discricionários. 32 O Brasil aderiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969) através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. 33 Cf. PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, pp. 111 e seguintes. 8 Como tratar do direito de ser julgado num “prazo” razoável, se o TEDH (e também a Corte Americana de Direitos Humanos) jamais fixou um limite temporal? Que prazo é esse que nunca foi quantificado? Se não há um limite temporal claro (ainda que admita certa flexibilidade diante das especificidades), o critério para definir se a dilação é “indevida” ou está justificada, é totalmente discricionário, com um amplo e impróprio espaço para a (des)valoração, sem qualquer possibilidade de refutação. Nessa indefinição e vagueza de conceitos foi consolidada a (criticada) doutrina do “não-prazo”, pois deixa amplo espaço discricionário para avaliação segundo as circunstâncias do caso e o “sentir” do julgador. Para falar-se em dilação “indevida” é necessário que o ordenamento jurídico interno defina limites ordinários para os processos, um referencial do que seja a “dilação devida”, ou o “estándar medio admisible para proscribir dialaciones más allá de él”34. Uma vez definido um parâmetro, a discussão desviará seu rumo para outras questões, como por exemplo: se o limite abstratamente fixado é substancialmente constitucional (à luz dos diversos princípios em torno da qual gira a questão); em que situações a superação desse limite poderá ser considerada como “justificada”35; possibilidade de reconhecer-se como indevida uma dilação, ainda que não se tenha alcançado o prazo fixado, mas as circunstâncias específicas do caso indicarem uma conduta danosa e negligente por parte dos órgãos que integram a administração da justiça, etc. Fundamental ainda, é a leitura da questão à luz do princípio da proporcionalidade36, critério inafastável na ponderação dos bens jurídicos em questão. Em síntese, o art. 5°, LXXVIII, da Constituição – incluindo pela Emenda Constitucional n. 45 - adotou a doutrina do não-prazo, fazendo como que exista uma indefinição de critérios e conceitos. Nessa vagueza, cremos que quatro deverão ser os referenciais adotados pelos Tribunais brasileiros, a exemplo do que já acontece nos TEDH e na CADH: - complexidade do caso; - atividade processual do interessado (imputado), que obviamente não poderá se beneficiar de sua própria demora; - a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia, Ministério Público, juízes, servidores, etc.); - princípio da proporcionalidade. Com relação às prisões cautelares, imprescindível ponderar-se a duração da prisão cautelar em relação a natureza do delito, a pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de condenação. Situação bastante comum (infelizmente) são prisões cautelares aplicadas a acusados de delitos cometidos sem violência ou grave ameaça e com pena inferior a PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de la Justicia Penal, p.395. 35 Obviamente que o “acúmulo de serviço” ou argumento similar, não pode ser admitido, como não o é pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, na medida em que incumbe ao Estado organizar-se de modo a fazer frente a demanda de tutela e jamais legitimar o “anormal” funcionamento do Poder Judiciário (quase que um “beneficiar-se de sua própria torpeza”). Por outro lado, é perfeitamente admissível o argumento de que se a demora ocorreu por atos de natureza manifestamente procrastinatória por parte do imputado, não há que se falar em dilação indevida, senão em atraso gerado e imputável à parte. Em última análise, como bem definiu o TEDH no Caso Ciricosta e Viola versus Itália, 4/12/1995, “sólo las dilaciones imputables al Estado puedem llevar a concluir la inobservância del plazo razonable”. 36 Com base na proporcionalidade, já decidiu o TEDH e a Corte Americana, que uma prisão cautelar supere o prazo fixado no ordenamento jurídico interno e, ainda assim, esteja justificada (a partir da complexidade, da conduta do imputado, da proporcionalidade, etc.). No “Caso Firmenich versus Argentina”, a Corte Americana de Direitos Humanos entendeu que uma prisão cautelar, que havia durado mais de 4 anos, estava justificada, ainda que superasse o prazo fixado pelo ordenamento interno (2 anos). 34 9 quatro anos. Trata-se de uma teratologia judicial, pois o acusado, ainda que condenado, terá sua pena substituída por pena restritiva de direitos! Como manter alguém preso se, ao final do processo, ainda que condenado, não se lhe aplicará pena privativa de liberdade? Um absurdo. No mesmo campo da patologia judicial, igualmente amparável pela via do habeas corpus, está a prisão cautelar aplicada em relação a delitos cujo regime inicial de cumprimento é aberto (e até mesmo, em certos casos, semi-aberto). A falta de um limite normativo que discipline o prazo máximo de duração das prisões cautelares é uma porta aberta para esse tipo de patologia. PASTOR 37 critica o entendimento dominante do não-prazo (como o adotado pela Constituição brasileira), pois se, inteligentemente, não confiamos nos juízes a ponto de delegar-lhes o poder de determinar o conteúdo das condutas puníveis, nem o tipo de pena a aplicar, ou sua duração sem limites mínimos e máximos, nem as regras de natureza procedimental, não há motivo algum para confiar a eles a determinação do prazo máximo razoável de duração do processo penal, na medida em que o processo penal em si mesmo constitui um exercício de poder estatal, e, igual a pena, as buscas domiciliares, a interceptação das comunicações e todas as demais formas de intervenção do Estado, deve estar metajudicialmente regulado, com precisão e detalhe. Assim como o direito penal está estritamente limitado pelo principio da legalidade e o procedimento pelas diversas normas que o regulam, também a duração dos processos e das prisões cautelares deve ser objeto de regulamentação normativa clara e bem definida. Na falta de bom senso por parte dos responsáveis em reconduzir o tempo ao sujeito, devemos partir para uma definição normativa38 do tempo máximo de duração do processo e das prisões cautelares, a exemplo da pena de prisão. O Princípio da Legalidade, muito bem explicado por BRANDÃO39, surge para romper com esse terror e dar, como conseqüência, uma outra feição ao Direito Penal. A partir dele o Direito Penal se prestará a proteger o homem, não se coadunando com aquela realidade pretérita. b) (De)Mora Jurisdicional e Prisão Cautelar No Brasil, a situação é gravíssima. Não existe limite algum para duração do processo penal (não se confunda isso com prescrição)40 e, o que é mais grave, sequer existe limite de duração das prisões cautelares, especialmente a prisão preventiva, mais abrangente de todas. A questão da dilação indevida do processo penal nasce tendo como núcleo a excessiva duração da prisão preventiva e assim permanece até hoje, na imensa maioria dos casos em discussão (inclusive no TEDH). No Brasil a história não é diferente. 37 PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 60. Não somos adeptos do dogma da completude lógica e, ainda que a lei defina limites, atendendo a certos critérios, é elementar que o reconduzir o tempo ao sujeito exige uma significativa carga de sentire por parte do julgador. Mas essa operação deve realizar-se a partir de certos parâmetros, para não cair numa tal abertura conceitual que conduza a ineficácia do direito fundamental. 39 BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal, p. 10. 40 No Brasil, os prazos previstos para a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva (pela pena aplicada ou in abstrato) são inadequados para o objeto em questão, pois excessivos (principalmente pela pena em abstrato). Ainda que se cogite de prescrição pela pena aplicada, tal prazo, em regra, está muito além do que seria uma duração razoável do processo penal. Devemos considerar ainda, diante da imensa resistência dos tribunais em reconhecer a prescrição antecipada, que o imputado terá de suportar toda a longa duração do processo, para só após o trânsito em julgado, buscar o reconhecimento da prescrição pela pena concretizada. 38 10 Trava-se uma histórica discussão em torno dos já lendários 81 dias, construídos a partir da soma dos diversos prazos que compõem o procedimento ordinário quando o imputado encontra-se submetido à prisão preventiva. No processo penal brasileiro campeia a absoluta indeterminação acerca da duração da prisão cautelar, pois em momento algum foi disciplinada essa questão. Excetuando-se a prisão temporária, cujo prazo máximo de duração está previsto em lei, as demais prisões cautelares (preventiva, decorrente da pronúncia ou da sentença penal condenatória recorrível) são absolutamente indeterminadas. Diante da imensa lacuna legislativa, a jurisprudência tentou, sem grande sucesso, construir limites globais, a partir da soma dos prazos que compõem o procedimento aplicável ao caso. Assim, resumidamente, se superados os tais 81 dias o imputado continuasse preso, e o procedimento não estivesse concluído (leia-se: sentença de 1º grau) haveria “excesso de prazo”, remediável pela via do habeas corpus (art. 648, II). A liberdade, em tese, poderia ser restabelecida, permitindo-se a continuação do processo. Até mesmo algumas bem intencionadas tentativas de considerar que, superado o limite para realização de algum dos atos que compõem o procedimento, sem a sua realização (por ex. denúncia, interrogatório, instrução, etc.), haveria constrangimento ilegal, devendo o imputado ser solto. Mas esse tipo de construção, excessivamente “benevolente” (ou perniciosamente garantista....), obviamente não caiu no agrado do senso comum, adorador do simbólico fracassado do law and order. Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite temporal das prisões cautelares. Infelizmente, a cada dia, alastra-se mais no processo penal uma praga civilista, chamada de relativismo das garantias processuais. Isso vai da relativização da teoria das nulidades41, passando pelas garantias processuais e fulminando até mesmo direitos fundamentais. O mais interessante é a alquimia de “relativizar” o que deveria ser radicalizado, no viés da intagibilidade, e manter a lógica newtoniana naquilo que sim deveria ser relativo (tempo, verdades, etc.). Inexiste um referencial de duração temporal máxima e, cada vez mais, os Tribunais avalizam a (de)mora judicial a partir dos mais frágeis argumentos, do estilo: complexidade (apriorística?) do fato, gravidade (in abstrato?), clamor público (ou seria opinião publicada?), ou a simples rotulação de “crime hediondo”, como se essa infeliz definição legal se bastasse, auto-legitimando qualquer ato repressivo. É óbvio que o legislador deve sim estabelecer de forma clara os limites temporais das prisões cautelares (e do processo penal, como um todo), a partir dos quais a segregação é ilegal, bem como deveria consagrar expressamente um “dever de revisar periodicamente” a medida adotada. A duração da prisão provisória é pautada pela necessidade e manutenção dos pressupostos que a originaram. Na Espanha, o Tribunal Constitucional - STC 178/1985 – definiu que a duração deve ser tão somente a que se considere indispensável para conseguir a finalidade pela qual foi decretada. No mesmo sentido também já tem decidido o Tribunal Europeu de Direitos Humanos nos casos Weinhoff (junho/68), Neumeister (junho/68), Bezicheri (out/85) entre outros. Para evitar abusos, o art. 17.4. da Constituição da Espanha dispõe que por lei irá se determinar o prazo máximo de duração da prisão provisória. O regramento do dispositivo constitucional encontra-se no art. 504 da LECrim, que disciplina o prazo máximo de duração dessa medida cautelar, Os tribunais chegam ao absurdo de reconhecer que uma nulidade é absoluta e, “civilisticamente”, exigir a demonstração de prejuízo (!!) e inatingimento do fim (!!) para sua decretação. Isso quando não se invoca o pomposo (mas inadequado ao processo penal) pas nullité sans grief, desprezando-se que a violação é de norma constitucional ! 41 11 levando-se em consideração a pena abstratamente cominada no tipo penal incriminador. Assim, a prisão cautelar poderá durar, no máximo até 3 meses, quando a pena cominada for de 7 a 15 fins de semana; até 1 ano, quando a pena cominada for de 6 meses a 3 anos; até 2 anos, quando a pena cominada for superior a 3 anos. É possível a prorrogação em casos expressos em lei. Na Alemanha - StPO § 121 - a regra geral é a de que a prisão provisória não possa durar mais de 6 meses, salvo quando a especial dificuldade, a extensão da investigação ou outro motivo importante não permita prolatar a sentença e justifique a manutenção da prisão. Em caso de prorrogação, se poderá encomendar ao Tribunal Superior do “Land” que faça um exame sobre a necessidade de manutenção da prisão no máximo a cada 3 meses (dever de revisar periodicamente). Em Portugal o juiz tem a obrigação de revisar a cada 3 meses a medida cautelar decretada, verificando se ainda permanecem os motivos e pressupostos que a autorizaram - art. 213.1. Além disso, se passados 6 meses da prisão ainda não tiver sido iniciado o processo, com efetiva acusação, o imputado deverá ser colocado em liberdade, salvo situação de excepcional complexidade. Também como regra geral, o CPP português prevê que se passados 18 meses sem sentença ou 2 anos sem trânsito em julgado, deve o acusado ser posto em liberdade, salvo se a gravidade do delito ou sua complexidade justificar a ampliação do prazo. Na Itália, o CPP utiliza o critério de quantidade da pena em abstrato para determinar o tempo máximo de duração da prisão cautelar e para isso existe uma grande variedade de prazos, conforme a gravidade do delito e a fase em que se encontra o processo. É importante ressalvar que o legislador italiano determinou que os prazos devem ser considerados independentes e autônomos para cada fase do processo. É óbvio que a duração fixada pode ser considerada, dependendo do caso, excessiva, mas ao menos existe uma referencial normativo para orientar a questão e, até mesmo, definir o objeto da discussão. O que é inadmissível é a inexistência total de limites normativos, como sucede no sistema brasileiro. Outra questão muito relevante é que, em observância a provisionalidade da prisão cautelar (são situacionais), existe em alguns países europeus um dever de revisar a medida adotada após determinado lapso de tempo. Na Itália, art. 294.3 do Codice de Procedura Penale, o juiz deverá revisar a decisão que determinou a prisão em no máximo 5 dias desde que se iniciou seu cumprimento. Na Alemanha, StPO § 122, o exame sobre se a prisão deve ser mantida ou não, deverá ser revisada no máximo a cada 3 meses. Em Portugal, art. 213,1 do CPP, também a cada 3 meses, no máximo, deverá o juiz revisar a medida e decidir sobre a necessidade de sua manutenção. Esse é um exemplo que deveria ser seguido no Brasil, para evitar a triste realidade daqueles juízes que simplesmente “esquecem” do réu preso, recordando o suplício narrado por BECCARIA42: “¿ Cuál contraste más cruel que la indolencia de un juez y las angustias de un reo ? ¿ Las comodidades y placeres de un magistrado insensible, de una parte, y, de otra las lágrimas y la suciedad de un encarcelado ?” Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o tempo máximo que poderá durar um processo concreto. Essa afirmação com certeza causará espanto e até um profundo rechaço por algum setor atrelado ainda ao paleopositivismo e, principalmente, cegos pelo autismo jurídico. Basta um mínimo de capacidade de abstração, para ver que isso está presente – o tempo todo - no direito e fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, previamente, quanto tempo poderá durar, no máximo, um processo ou uma prisão cautelar? Porque a 42 De los delitos y de las penas, p.61. 12 arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer esse direito do cidadão e não quer enfrentar esse problema. Além disso, dar ao réu o direito de saber previamente o prazo máximo de duração do processo ou de uma prisão cautelar, é uma questão de reconhecimento de uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão. O “direito a jurisdição”, como bem recorda o Tribunal Constitucional espanhol43, no puede entederse como algo desligado del tiempo en que debe prestarse por los órganos del Poder Judicial, sino que ha de ser comprendido en el sentido de que se otorgue por éstos dentro de los razonables términos temporales en que las personas lo reclaman en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos”. Em suma, pensamos que a questão do excesso de prazo da prisão cautelar deve, em sede de habeas corpus, inserir-se na perspectiva da violação do direito de ser julgado em um prazo razoável a partir dos aspectos anteriormente analisados. Ademais, ainda que não esteja cautelarmente preso o réu (ou já tenha sido solto), pensamos que o habeas corpus44 possa ser utilizado como instrumento processual capaz de dar eficácia ao direito fundamental previsto no art. 5o, LXXVIII da Constituição, buscando, através dele, um mandamento expedido pelo Tribunal para que o julgador originário cesse imediatamente a dilação indevida (ou estabelecendo um prazo exíguo para que assim proceda diante da inexistência, no sistema brasileiro, de uma solução processual extintiva). Dessa forma, fica evidente que a dilação indevida, nas suas diferentes dimensões, constitui um constrangimento ilegal atacável pela via do writ. VI. PRISÃO EM FLAGRANTE COMO MEDIDA PRÉ-CAUTELAR: HABEAS CORPUS CONTRA A MANUTENÇÃO DA PRISÃO. A doutrina costuma classificar a prisão em flagrante, prevista no art. 301 e seguintes do CPP, como medida cautelar. Trata-se de um equivoco, a nosso ver, que vem sendo repetido sem maior reflexão ao longo dos anos e que agora queremos (des)velar apontando o habeas corpus como instrumento processual adequado para essa discussão. Como explica CARNELUTTI45 a noção de flagrância está diretamente relacionada a “la llama, que denota con certeza la combustión; cuando se ve la llama, es indudable que alguna cosa arde”. Essa chama, que denota com certeza a existência de uma combustão, coincide com a possibilidade para uma pessoa de comprová-lo mediante a prova direta. Como sintetiza o mestre italiano: a flagrância não é outra coisa que a visibilidade do delito46. Esta certeza visual da prática do crime gera a obrigação para os órgãos públicos, e a faculdade para os particulares, de evitar a continuidade da ação delitiva, podendo, para tanto, deter o autor. E, porque é dada essa permissão? Exatamente porque existe a visibilidade do delito, o fumus commissi delicti é patente e inequívoco e, principalmente, porque essa detenção deverá ser submetida ao crivo judicial no prazo máximo de 24h47. Precisamente porque o flagrante é uma medida STC 24/81. APUD: PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de la Justicia Penal, p.404. 44 Como ocorre em diversas situações reais, a separação entre o HC e o Mandado de Segurança é tênue e, dependendo do discurso construído para legitimá-lo, não descartamos o uso do Mandado de Segurança para esse caso. 45 Lecciones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Sentis Melendo. Tomo II. Buenos Aires, 1950, p. 77. 46 Idem, p. 78. 47 Esse prazo é obtido a partir da análise do art. 306 do CPP. 43 13 precária, que não está dirigida a garantir o resultado final do processo, é que pode ser praticado por um particular ou pela autoridade policial. Com este sistema, o legislador consagrou o caráter pré-cautelar da prisão em flagrante. Como explica BANACLOCHE PALAO48 o flagrante – ou la detención imputativa - não é uma medida cautelar pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas destina-se a colocar o detido a disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar. Por isso, o autor afirma que é uma medida independente, frisando o caráter instrumental e ao mesmo tempo autônomo do flagrante. A instrumentalidade manifesta-se no fato de a prisão em flagrante ser um strumenti dello strumento 49 da prisão preventiva; ao passo que a autonomia, explica as situações em que o flagrante não gera a prisão preventiva ou, nos demais casos, em que a prisão preventiva existe sem prévio flagrante. Destaca o autor que a prisão em flagrante en ningún caso se dirige a asegurar ni la eventual ejecución de la pena, ni tampoco la presencia del imputado en la fase decisoria del proceso. Não é diversa a lição de FERRAIOLI e DALIA50: l’arresto in flagranza é uma Misure Pre-Cautelari Personali. A prisão em flagrante é, para CORDERO51, uma “subcautela”, na medida em que serve de prelúdio (preludio subcautelar) para eventuais medidas coativas pessoais, garantindo sua execução. Na essência, coaduna-se com nossa posição de medida précautelar, visto que não é um fim em si mesma e tampouco legitima a manutenção da prisão (somente possível através de uma medida verdadeiramente cautelar e que observe seus requisitos). A prisão em flagrante está justificada nos casos excepcionais, de necessidade e urgência, indicados taxativamente no art. 302 do CPP e constitui uma forma de medida pré-cautelar pessoal que se distingue da verdadeira medida cautelar pela sua absoluta precariedade. Neste mesmo sentido, FERRAIOLI e DALIA afirmam que as medidas pré-cautelares são excepcionais, de assoluta precarietà, che le connota come iniziative di brevissima durata52. Tratando especificamente da prisão em flagrante a cargo da polícia judiciária, apontam que essa extensão do poder de iniciativa pré-cautelar significou a aceitação do risco de privação, temporária, da liberdade pessoal do cidadão por razão de ordem política. O instituto fermo di polizia marcou um pesado desequilíbrio na relação 48 La libertad personal y sus limitaciones. Madrid, Mc Graw Hill, 1996, p.292. Invocando aqui o consagrado conceito de “strumentalità qualificata”, tão bem explicado por CALAMANDREI na obra Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari, Padova, Cedam, 1936, p. 22. 50 FERRAIOLI, Marzia e DALIA, Andrea Antonio. Manuale di Diritto Processuale Penale, Milão, Cedam, 1997, p. 228 e ss. 51 CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, vol. 1, p. 408. 52 A titulo de ilustração, vejamos a duração da prisão em flagrante em alguns outros países: Na Espanha o detido em flagrante deverá ser apresentado ao juiz no prazo máximo de 24h (art. 496 da LECrim), momento em que será convertida em prisión provisional ou será concedida a liberdade provisória. A lei processual alemã - StPO § 128 - determina que o detido deverá ser conduzido ao juiz do “Amtsgericht” em cuja jurisdição tenha ocorrido a detenção, de imediato ou quando muito no dia seguinte a detenção. Já o Codice de Procedura Penal italiano, art. 386.3, determina que a polícia deverá colocar o detido à disposição do Ministério Público o mais rápido possível ou no máximo em 24h, entregando junto o correspondente “atestado” policial. Por fim, em Portugal, o art. 254, “a” do CPP determina que no prazo máximo de 48h deverá ser efetivada a apresentação ao juiz que decidirá sobre a prisão cautelar aplicável, após interrogar o detido e dar-lhe oportunidade de defesa (art. 28.1 da Constituição). 49 14 autoridade-liberdade e por isso deve ser analisado com sumo cuidado em um Estado Democrático de Direito, como o nosso. A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judicial em até 24h, onde cumprirá ao juiz analisar sua legalidade e decidir sobre a manutenção da prisão (agora como preventiva) ou não. Em síntese, o primeiro aspecto a ser destacado é que a prisão em flagrante não é uma prisão cautelar, mas sim uma medida pré-cautelar. Isto porque se destina a preparar, instrumentalizar uma futura medida cautelar. Por isso, é a única forma de detenção que a Constituição permite seja realizada por um particular ou pela autoridade policial sem ordem judicial. Uma vez efetivado a prisão em flagrante, com a conseqüente lavratura do auto respectivo, a peça policial será enviada ao juiz competente. Esse juiz, à luz do disposto no art. 310 do CPP, deverá decidir se homologa ou não a prisão em flagrante. Assim, o julgador atua de forma sucessiva, em dois momentos: 1º Momento: analisa o aspecto formal da prisão em flagrante, sua legalidade ou ilegalidade. Se legal, homologa; se ilegal, deverá relaxá-la. 2º Momento: homologando a prisão em flagrante deverá, sempre, enfrentar a necessidade ou não da prisão preventiva. Se necessária e cabível, poderá decretá-la (desde que tenha sido postulada sua decretação)53. Do contrário, deverá conceder a liberdade provisória, nos termos do art. 310 caput ou parágrafo único (conforme o caso). Em qualquer caso, a decisão deverá ser motivada. Com isso, se estiverem presentes os requisitos formais do flagrante, o juiz deverá homologá-lo, chancelando a legalidade do ato. Contudo, se o flagrante for ilegal (forjado, provocado, etc.), seja porque a situação fática de flagrância não estava presente, ou porque há alguma falha formal, o juiz não deverá homologá-lo. Como conseqüência, deverá relaxar a prisão. Homologando o flagrante, passa o juiz para um segundo momento, obedecendo ao art. 310 do CPP, especialmente no seu parágrafo único: deverá verificar a necessidade da prisão cautelar. O próprio art. 310 remete para os arts. 311 e 312 do CPP, que disciplinam a prisão preventiva. É como se o legislador dissesse: em que pese o flagrante, a prisão somente poderá ser mantida se estiverem presentes o fumus commissi delicti e o periculum libertatis, podendo então ser decretada a prisão preventiva. Do contrário, se não houver a necessidade da prisão preventiva, deverá ser concedida a liberdade provisória sem fiança (pois o art. 310 não a exige), mas com a obrigação de comparecer a todos os atos do processo, sob pena de revogação. O que desde logo deve ser rechaçado, é qualquer argumento cujo núcleo seja a existência de uma “conversão automática”. Não existe conversão automática ou "sobrevida" para a prisão em flagrante e, descartada a liberdade provisória, a única medida cautelar pessoal que pode ser adotada é a prisão preventiva. O principio da reserva legal impõe que a restrição da liberdade individual esteja estritamente controlada, de modo que somente está constitucionalmente legitimada quando ajustada aos estritos limites da legalidade. Por isso, o rigor é fundamental ao tratar de temas como pressupostos, requisitos, princípios, modalidades e prazos. Ainda que o art. 311 preveja a possibilidade de decretação “de ofício” pelo juiz, entendemos ser substancialmente inconstitucional, por flagrante violação do sistema acusatório e da própria garantia da imparcialidade, principio supremo do processo e, por conseqüência, do due process of law. 53 15 O próprio sistema de prisão cautelar é incompatível com a presunção de inocência. Contudo, sobrevive, graças aos princípios da (cruel)necessidade e da excepcionalidade, verdadeiras tábuas de salvação do pensamento liberal clássico. É um sistema fragilmente legitimado e que não permite, jamais, qualquer espécie de ampliação do seu campo de intervenção. Todo o oposto: sua incidência deve ser limitada ao máximo. Por não ser cautelar nem decorrente de sentença condenatória transitada em julgado, a manutenção da prisão a titulo de “flagrante” é manifestamente ilegal e, portanto, remediável pela via do habeas corpus. Ademais, o legislador foi claríssimo ao dispor que a manutenção da prisão somente se dará quando estiverem presentes os requisitos que autorizam a prisão preventiva. Basta verificar o disposto no art. 310 do CPP: Ainda que o art. 2º da “hedionda” Lei 8072/90 preveja que os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória, a prisão em flagrante não é uma nova modalidade de prisão cautelar e tampouco poderá ser automaticamente convertida em prisão preventiva, dispensando-se o juiz de motivar esse decreto. Para manutenção da prisão é imprescindível recorrer ao instituto da prisão preventiva fundamentando a existência de seus requisitos. E, sem não existir o periculum libertatis, não há situação fática tutelável pela prisão preventiva. Deverá o juiz conceder liberdade plena ao imputado. Sequer se trata de liberdade provisória, até porque, poderiam invocar a vedação constitucional. É liberdade plena porque não há nenhuma causa legitimante da prisão preventiva. E, novamente, o habeas corpus é o instrumento que deve ser utilizado para estabelecer-se, processualmente, essa discussão. Em qualquer caso, o juiz deve enfrentar a questão e justificar a necessidade do encarceramento com base no art. 312 do CPP, fundamentando sua decisão. O que é inadmissível é a manutenção da prisão exclusivamente com base no flagrante ou ainda, entender que existe uma conversão automática. Pior ainda é o argumento daqueles que pretendem ressuscitar a prisão preventiva obrigatória. Mas a “fundamentação” não pode ser formularia, padronizada, ou esgotar-se em uma linha, simplesmente afirmando que “foram atendidos os requisitos legais”. Nada além disso. Considerando que o ato judicial somente encontra legitimidade enquanto amparado pela razão e fundado na proteção dos direitos fundamentais, não seria excesso dizer que estamos frente a um “nada jurídico” A fundamentação da decisão judicial é imprescindível, tendo em vista a gravidade de uma prisão cautelar. Ademais, é um imperativo constitucional, art. 93, IX da CB. Em qualquer país, com um processo penal medianamente evoluído, não há lugar para uma prisão cautelar sustentada por decisões do estilo: “atendidos os requisitos legais, homologo a prisão em flagrante. Determino a prisão preventiva para garantia da ordem pública.” Em definitivo, a prisão em flagrante, como medida pré-cautelar, não pode ter vida e realidade após o prazo legal de sua duração. Deve ser prévia ao processo penal e submetida ao crivo judicial em prazo exíguo, não existindo fundamento legal para defender a sua “conversão automática” em prisão preventiva. Neste momento procedimental, a única medida cautelar de natureza pessoal que pode ser adotada para manutenção da segregação é a prisão preventiva. Para tanto, é imprescindível uma fundamentação séria e condizente com a gravidade da medida adotada, que aponte racionalmente a probabilidade do fumus commissi delicti e do periculum libertatis. Do contrário, a liberdade é imperativa e tutelável pela via do writ. 16 VII. HABEAS CORPUS CONTRA PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA E/OU ECONÔMICA: AUSÊNCIA DE CAUTELARIDADE DA PRISÃO. O periculum libertatis no sistema cautelar brasileiro está previsto no art. 312 do CPP, traduzindo uma das seguintes situações tuteláveis: - ordem pública - ordem econômica - instrução criminal - aplicação da lei penal Analisaremos agora, os dois primeiros fundamentos, para demonstrar que são substancialmente inconstitucionais e, portanto, remediáveis pela via do habeas corpus. Os demais (tutela da instrução e da lei penal), ainda que cautelares, estão limitados pelos princípios da excepcionalidade, provisoriedade, provisionalidade e proporcionalidade. A primeira questão a ser enfrentada é: qual é o objeto da prisão cautelar? A resposta nos conduz ainda a sua finalidade e delimita, naturalmente, seu campo de incidência, pois a prisão cautelar é ilegítima quando afastada de seu objeto e finalidade, deixando de ser cautelar. Nesse ponto podemos recorrer a CALAMANDREI54, segundo o qual, nos procedimentos cautelares, mais do que o objetivo de aplicar o direito material, a finalidade imediata é assegurar a eficácia do procedimento definitivo (esse sim, tornará efetivo o direito material). Isso porque “la tutela cautelare è, nei confronti del diritto sostanziale, una tutela mediata: più che a far giustizia, serve a garantire l”efficace funzionamento della giustizia. Se tutti i provvedimenti giurisdizionali sono uno strumento del diritto sostanziale che attraverso essi si attua, nei provvedimenti cautelari si riscontra una strumentalità qualificata, ossi elevata, per così dire, al quadrato: essi sono infatti, immancabilmente, un mezzo predisposto per la miglior riuscita del provvedimento definitivo, che a sua volta è mezzo per l”attuazione del diritto; sono cioè, in relazione alla finalità ultima della funzione giurisdizionale, strumenti dello strumento.”55 Fica evidenciado assim, que as medidas cautelares não se destinam a “fazer justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento processo, por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao quadrado. É importante fixar esse conceito de instrumentalidade qualificada, pois só é cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao processo de conhecimento). E, somente o que for verdadeiramente cautelar, é constitucional. Com DELMANTO JUNIOR56, “acreditamos, igualmente, que a característica da instrumentalidade é ínsita à prisão cautelar na medida em que, para não se confundir com pena, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e 54 Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, p. 21 e 22. “A tutela cautelar é, quando comparada com o direito material, uma tutela mediata: mais que fazer justiça, serve para garantir o eficaz funcionamento da justiça. Se todos os provimentos jurisdicionais são instrumentos do direito material que através deles se atua, nos provimentos cautelares encontra-se uma instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada, por assim dizer, ao quadrado: esses são de fato, infalivelmente, um meio predisposto para melhor resultado do provimento definitivo, que por sua vez, é um meio para a atuação do direito (material); são portanto, em relação a finalidade última da atividade jurisdicional, instrumentos do instrumento.” (Tradução livre) 56 DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 83. 55 17 do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório.” Nesse momento evidencia-se que as prisões preventivas para garantia da ordem pública ou da ordem econômica não são cautelares e, portanto, são substancialmente inconstitucionais podendo esse controle ser feito através do writ. Trata-se de grave degeneração transformar uma medida processual, em atividade tipicamente de polícia, utilizando-as indevidamente como medidas de segurança pública. Quando se mantém uma pessoa presa em nome da ordem pública, diante da reiteração de delitos e o risco de novas práticas, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal. Inadmissível, portanto, a prisão preventiva sob o argumento de “perigo de reiteração” de condutas criminosas. Trata-se de (absurdo) exercício de vidência por parte de julgadores, que até onde temos conhecimento, ainda não possuem um periculosômetro (diria ZAFFARONI) a disposição. Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casos de vidência e bola de cristal) é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatos futuros. Recorda SALO DE CARVALHO57 que uma das principais distinções entre o sistema inquisitivo e o acusatório-garantista se manifesta no que diz respeito à existência de possibilidades de concreta refutação das hipóteses probatórias. Como refutar esse exercício de vidência por parte do magistrado? Como provar (como se o imputado tivesse que provar algo...) que no futuro não irei cometer nenhum crime? Ora, com a máxima vênia, esse tipo de decisão é dotada de um elevado grau de charlatanismo e um altíssimo grau de prepotência. Ambos, completamente inadmissíveis num processo minimamente democrático e constitucional. Nesse sentido, cumpre trazer a colação os bem lançados argumentos da Quinta Câmara Criminal do TJRS, no HC 70006140693, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 23/04/2003: HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS. PRESUNÇÃO DE PERICULOSIDADE PELA PROBABILIDADE DE REINCIDÊNCIA. INADMISSIBILIDADE. - A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva – que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais (alvo do controle punitivo) – tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e ilegítimas de conrole social no sistema punitivo, onde o sujeito – considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se – torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social. (grifamos) - A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático - , facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente invocada – mera repetição da lei -, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto, há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente, portanto! - A gravidade do delito, por si-só, também não sustenta o cárcer extermporâneo: ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie 57 Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2001, p. 199. 18 - delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime 70006140693, j. em 12/03/2003). À unanimidade, concederam a ordem. Completamente inaceitável, diante da absoluta inconstitucionalidade, a “futurologia perigosista”, como denominou o Relator, comumente invocada para decretar uma prisão preventiva com base na “possível” reiteração de delitos. A prisão preventiva para garantia da ordem pública ou econômica nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que marcam e legitimam esses provimentos, sendo o habeas corpus o instrumento processual adequado para remediar essa ilegalidade. Como aponta SANGUINÉ58, “quando se argumenta com razões de exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinqüência e para restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o clamor público criado pelo delito, etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na realidade, se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista jurídico-constitucional como da perspectiva político-criminal. Isso revela que a prisão preventiva cumpre funções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada incompatíveis com sua natureza.” Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois se trata de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas genéricas e indeterminadas do direito para fazer valer seus atos prepotentes. Assume contornos de verdadeira pena antecipada, violando o devido processo legal e a presunção de inocência. SANGUINE59 explica que a prisão preventiva para garantia da ordem pública (ou ainda, o clamor público) acaba sendo utilizada com uma função de “prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à segurança da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao atribuir-lhe funções de prevenção que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”. As funções de prevenção geral e especial e retribuição, são exclusivas de uma pena, que supõem um processo judicial válido e uma sentença transitada em julgado. Jamais tais funções podem ser buscadas na via cautelar. No mesmo sentido, DELMANTO JUNIOR60 afirma que é indisfarçável que nesses casos, “a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental – de tutela do bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado – ínsito a toda e qualquer medida cautelar, servindo de inaceitável instrumento de justiça sumária.” Em outros casos, a prisão para garantia da ordem pública atende a uma dupla natureza61: pena antecipada e medida de segurança, já que pretende isolar um sujeito supostamente perigoso. È inconstitucional atribuir a prisão cautelar a função de SANGUINÉ, Odone. “A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão Preventiva”. In: Revista de Estudos Criminais, nº 10, p. 114. 59 SANGUINÉ, Odone. “A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão Preventiva”. In: Revista de Estudos Criminais, nº 10, p. 115. 60 DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 183. 61 SANGUINÉ, Odone. Idem, ibidem. 58 19 controlar o alarma social, e por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança, nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo. Também a ordem pública, ao ser confundida com o tal “clamor público”, corre o risco da manipulação pelos meios de comunicação de massas, fazendo com que a dita opinião pública não passe de mera opinião publicada, com evidentes prejuízos para todos. Nesse sentido, destaque-se a acertada decisão da Quinta Câmara Criminal do TJRS, no HC 70005916929, Relator Des. Amilton Bueno de Carvalho, em 12 de março de 2003: HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS DO ART. 312, DO CPP. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA. CLAMOR PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE À PRISÃO. - Toda espécie de prisão provisória, enquanto espetacular exceção ao princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5°, LVII, da CF), exige a satisfação dos requisitos gerais em matéria cautelar, quais sejam, o fumus boni iuris e o periculum in mora. O primeiro encontra-se consubstanciado nos indícios de autoria e prova da materialidade (concomitantemente), ao passo que o segundo pode se manifestar na necessidade de garantir a ordem pública (ou econômica), assegurar a aplicação da lei penal ou, ainda, por conveniência da instrução criminal (ao menos uma destas hipóteses deve estar presente). - O “clamor público”, a “intranqüilidade social” e o “aumento da criminalidade” não são suficientes à configuração do periculum in mora: são dados genéricos, sem qualquer conexão com o fato delituoso praticado pelo réu, logo não podem atingir as garantias processuais deste. Outrossim, o aumento da criminalidade e o clamor público são frutos da estrutura social vigente, que se encarrega de os multiplicar nas suas próprias excrescências. Assim, não é razoável que tais elementos – genéricos o suficiente para levar qualquer cidadão à cadeia – sejam valorados para determinar o encarceramento prematuro. - A gravidade do delito, por si só, também não justifica a imposição da segregação cautelar, seja porque a lei penal não prevê prisão provisória automática para nenhuma espécie delitiva (e nem o poderia porque a Constituição não permite), seja porque não desobriga o atendimento dos requisitos legais em caso algum. - À unanimidade, concederam a ordem. Obviamente que a prisão preventiva para garantia da ordem pública não é cautelar, pois não tutela o processo, sendo, portanto, flagrantemente inconstitucional, até porque, nessa matéria, é imprescindível a estrita observância do principio da legalidade e da taxatividade. Considerando a natureza dos direitos limitados (liberdade e presunção de inocência), é absolutamente inadmissível uma interpretação extensiva (in malan partem) que amplie o conceito de “cautelar” até o ponto de transformá-la em “medida de segurança pública”. Por fim, a prisão para garantia da ordem econômica é resultado da influência do modelo neo-liberal e seria risível se não fosse realidade. Num país pobre como o nosso, ter uma prisão preventiva para tutelar o capital especulativo, envergonha o processo penal. É elementar que se o objetivo é perseguir a especulação financeira, as transações fraudulentas, e coisas do gênero, o caminho passa pelas sanções à pessoa 20 jurídica, o direito administrativo sancionador, as restrições comerciais, mas jamais pela intervenção penal, muito menos de uma prisão preventiva. Como acerto, DELMANTO JUNIOR62 aponta que “não resta dúvida de que nessas hipóteses a prisão provisória afasta-se, por completo, de sua natureza cautelar instrumental e/ou final, transformando-se em meio de prevenção especial e geral e, portanto, em punição antecipada, uma vez que uma medida cautelar jamais pode ter como finalidade a punição e a ressocialização do acusado para que não mais infrinja a lei penal, bem como a conseqüente desestimulação de outras pessoas ao cometimento de crimes semelhantes, fins exclusivos da sanção criminal.” Novamente estamos diante de uma medida que não é cautelar, sendo igualmente inconstitucional, conforme explicamos anteriormente ao tratar da prisão para garantia da ordem pública, sendo desnecessário repetições. Por fim, sublinhamos a importância do habeas corpus para controle dessas ilegalidades e pronto restabelecimento da liberdade do paciente nesses casos. VIII. O HABEAS CORPUS COMO INSTRUMENTO DE COLLATERAL ATTACK O alcance do writ não só se limita aos casos de prisão, pois também pode ser utilizado como instrumento para o collateral attack, possibilitando que seja uma via alternativa de ataque aos atos judiciais, e inclusive contra a sentença transitada em julgado. Tanto pode ser utilizado no inquérito policial como também na instrução. A primeira decisão judicial que pode ser atacada pelo habeas corpus é a que recebe a ação penal, seja ela denúncia (em caso de ação penal pública, cujo titular é o Mistério Público) ou queixa-crime (delitos de ação penal privada em que o titular é o ofendido). A acusação (denúncia ou queixa) poderá ser: - Recebida e iniciado o processo penal com a posterior citação do acusado. - Não se recebida, por falta dos pressupostos do art. 41 do CPP. - Rejeitada, nos casos do art. 43 (atipicidade, prescrição, falta de legitimação ou de outro requisito legal). Na segunda situação poderá o sujeito ativo recorrer em sentido estrito. No terceiro e último caso, poderá recorrer ou propor uma nova ação, sanado o defeito formal. A primeira situação é, em regra, irrecorrível. A decisão que admite o trâmite da ação penal é interlocutória e não está contemplada nos casos impugnados pelo recurso em sentido estrito. Trata-se de uma decisão crucial, pois o início do processo penal causa um sério gravame ao sujeito passivo. Em nossa opinião, é exatamente nesse momento que se verifica uma das mais graves lacunas do processo penal brasileiro. Não existe uma “fase intermediária”63 em que as partes se manifestam contraditoriamente acerca das provas da investigação. Faz falta um juízo de pré-admissibilidade e contraditório da acusação. Diversos processos absolutamente infundados poderiam ser evitados se existisse esse “filtro”, e essa grave lacuna possibilita que eles tramitem até a sentença, causando um sério prejuízo para o acusado, para a sociedade e para o Estado. Para apaziguar um pouco esse grave problema, agravado pela irrecorribilidade do ato, a jurisprudência tem entendido ser adequado o habeas corpus com a finalidade 62 DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 192. As previsões de uma defesa prévia existente nos ritos dos crimes praticados por servidores públicos e na nova lei de tóxicos são minimalistas e imperfeitas, na medida em que não constituem uma autêntica fase intermediária, oral e contraditória de admissibilidade da acusação. 63 21 de “trancar” o processo (e não a ação). Sem embargo, os tribunais têm considerado que o writ só pode ser utilizado quando é inequívoca a atipicidade do ato, por falta de indícios razoáveis da existência ou da autoria. Trata-se de medida excepcional posto que o habeas corpus é uma ação sumária que não possibilita uma análise completa da prova. A previsão legal de tal medida encontra-se no art. 648, I do CPP, pois não existe uma “justa causa” para o processo nesses casos. Sem embargo, existem no processo penal outros atos que inclusive sem determinar a prisão do acusado, podem ser considerados como coação ilegal. É o caso de uma decisão judicial de intervenção corporal em que se viola um direito fundamental do acusado; quando se opera a prescrição em meio ao processo e o juiz não determina sua extinção; quando não obstante a existência de uma nulidade absoluta, o processo segue tramitando, etc. Por fim, deve-se destacar que pela via do habeas corpus se pode inclusive r ealizar o controle difuso da constitucionalidade64 de uma norma. Com o habeas corpus pode ser exercido o controle indireto, é dizer, argüir e obter a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, ante qualquer juiz ou Tribunal. Todos os membros do Poder Judiciário podem conhecer da alegação de inconstitucionalidade pela via de exceção, através de uma alegação da defesa. IX. O HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE UM PARTICULAR É possível a utilização do writ contra ato de particular, seja pessoa física ou jurídica (evidente que eventual responsabilidade penal pela ilegalidade recairá sobre as pessoas físicas, responsáveis pela empresa). O ponto nevrálgico está em definir os casos em que se deve simplesmente chamar a polícia e quando deve ser interposto o habeas corpus. Situações assim podem ocorrer nos casos de restrições de liberdade realizadas por seitas religiosas; estabelecimentos hospitalares (não concedendo “alta” do paciente até que a conta seja paga); internações de doentes mentais ou de dependentes químicos em clínicas contra sua vontade; internações de idosos, contra sua vontade, por parte da família, em clínicas geriátricas, etc. São situações em que a ilegalidade da detenção nem sempre é evidente, a ponto de bastar a intervenção policial. Na explicação de ORTELLS RAMOS65: “si el acto de privación o restricción de la libertad carece de toda apariencia de legalidad el medio de protección indicado no es el habeas corpus, sino la autotutela y las actuaciones de los poderes públicos en caso de delito (art. 13 LECrim: dar protección a los perjudicados).” Nos casos em que não se pode fazer um juízo apriorístico sobre a ilegalidade do ato, a ponto de a intervenção policial ser suficiente, o writ constitucional será o instrumento adequado. São exemplos: - Tribunal de Justiça de São Paulo (RT 577/329): “Constrangimento ilegal: filho que interna seus pais de 80 anos de idade, contra suas vontades, em uma clínica geriátrica. Pessoas não interditadas e com casa para viver. Decisão de habeas corpus (concedida pelo juiz) e mantida”. - Tribunal de Justiça de Minas Gerais (RT 574/400): “Caracteriza a coação ilegal sanável pelo remédio heróico o ato da direção do hospital que impede a saída do paciente até que sejam pagas as contas hospitalares”. 64 65 Também, sobre o tema, PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas-Corpus, p. 490. ORTELLS RAMOS, Manuel, et alii. Derecho Jurisdiccional, p. 451. 22 Mas isso nos conduz a outro problema: o habeas corpus é uma ação de cognição sumária. Existe uma limitação na cognição que exige o emprego das técnicas de sumarização horizontal e vertical, impedindo o julgador de fazer uma ampla análise da questão fática (plano horizontal – prova do fato) e jurídica (plano vertical). Daí porque, em se tratando de internações compulsórias de incapazes, dependentes químicos e situações similares, a discussão acerca da legalidade do ato pode exigir uma ampla cognição e produção de prova, não sendo o habeas corpus o instrumento processual adequado. Sem embargo, obviamente não há mais espaço para regras absolutas e, em situações extremas, pode-se admitir o writ, especialmente quando: a) as condições em que estiver o detido sejam desumanas, colocando em risco sua integridade (situação em que se poderá, inclusive, apurar eventual prática de outro delito); b) em que pese a sumariedade do habeas corpus, possa o juiz ou tribunal se convencer da ilegalidade da detenção. Significa dizer que, não obstante a limitação probatória, a prova produzida baste para o convencimento do julgador. Nos demais casos, em que é exigida uma ampla discussão e análise da prova, o writ não é a via adequada, cabendo ao interessado buscar na esfera cível alguma outra medida (até mesmo cautelar, reservando a tutela exauriente para a ação principal) processual. X. CONSIDERAÇÕES FINAIS A importância processual e, acima de tudo, democrática, do habeas corpus exige que se faça uma constante (re)leitura do seu cabimento e aplicação. Mas uma leitura nessa linha, de democratização do processo penal. Uma democratização que resgate a noção de fortalecimento do individuo e, por conseqüência, do valor liberdade. Porque constantemente esquecido (ou desprezado) pelos paleopositivistas de plantão, nunca é excesso sublinhar que o processo penal e o habeas corpus em especial, são instrumentos a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais do individuo submetido ao poder estatal. A forma aqui é garantia, mas garantia do individuo. Daí porque, assusta o formalismo às avessas apregoado por muitos juízes e tribunais para cercear a eficácia e o alcance do habeas corpus, quando deveria ser todo o oposto. Assusta a ignorância jurídica e o desprezo com que, muitas vezes, os tribunais lidam com o tempo do outro, tardando semanas (quando não, meses) em decidir sobre a liberdade alheia, como se o tempo intra-muros não fosse demasiado doloroso e cruel; assusta quando nos deparamos com julgadores que afirmam “ter por princípio não conceder liminares” (!!) ou ainda, que “sempre pede informações para estabelecer um contraditório com o juiz da causa” (como se isso existisse!); assusta quando se opera uma verdadeira inversão probatória, exigindo que o réu (preso!) faça prova (ou melhor, alivie a carga probatória do Ministério Público, ao arrepio da presunção de inocência); assusta quando nos deparamos com julgadores que, absorvidos pelo discurso de limpeza social, passam a atuar como guardiões, não da liberdade, mas sim da (sua) lei e ordem, abandonando o papel de garantidores, para assumirem as vestes (ou a toga, o simbólico é o mesmo) de responsáveis pelos sistema imunológico social, (ab)usando e banalizando as prisões cautelares e fazendo pouco caso dos apelos de quem está preso; assusta quando lemos uma súmula 691 do STF e, pior ainda, quando verificamos sua plena aplicação (por alguns que até vociferam contra ela, mas a aplicam, pois no fundo (no inconsciente, se preferirem) gozam com o mandamento do pai-tribunal)... 23 Nesse cenário, e desde o nosso local, só nos resta seguir dando fala a quem dispõe apenas da proto-palavra (DUSSEL), lutando para que não reduzam o habeas corpus a um mero golpe de cena, um mero simulacro. Lutando para que ele volte a ter sua dimensão de ação constitucional e, principalmente, instrumento emancipatório, a serviço da democracia. Um lugar de onde nunca deveria ter sido retirado por aqueles que JACINTO COUTINHO66 define como “mercadores de imagens; homens da ordem; e da lei se lhes interessa; maniqueístas interesseiros porque, pensando-se do bem (são sempre os donos da verdade, que imaginam existir, embora cada vez mais, mostre-se como miragem) elegem o mal no diferente (em geral os excluídos) e pensam, no estilo nazista, em coisas como um Direito Penal do Inimigo. Personalidades débeis, vendem a alma ao diabo (ou a um deus qualquer como o mercado) para operar em um mundo de ilusão, de aparência, e seduzir os incautos. Parecem pavões, com belas plumas multicoloridas, mas com os pés cheios de craca.” Bibliografia: BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal. Rio de Janeiro, Forense, 2002. ______________. Teoria Jurídica do Crime. Rio de Janeiro, Forense, 2002. CALAMANDREI, Piero. Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari. Padova, Cedam, 1936. CARVALHO, Salo. Pena e Garantias. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003. CORDERO, Franco. Procedimiento Penal. 2 vols. Trad. Jorge Guerrero. Bogotá, Temis, 2000. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Prefácio”. In: LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal.Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005. DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração. Rio de janeiro, Renovar, 2003. FAIREN GUILLEN, Victor. El Jurado — Cuestiones Prácticas, Doctrinales y Políticas de las Leyes Españolas de 1995. Madri: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y Sociales, 1997. __________. “La Reforma Procesal Penal – 1988/1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional. Madri: Edersa, 1992. FERRAIOLI, Marzia e DALIA, Andrea Antonio. Manuale di Diritto Processuale Penale. Milão, Cedam, 1997. GOLDSCHMIDT, James. Derecho Justicial Material. Trad. Catalina Grossman do original de 1905. Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1959. ______________. Derecho Procesal Civil. Trad. Prieto Castro. Barcelona, Labor, 1936. ______________.Principios Generales del Proceso. Barcelona, EJEA, 1936. ______________. Problemas Jurídicos y Políticos del Proceso Penal. Barcelona, Bosch, 1935. LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005. ORTELLS RAMOS, Manuel; MONTON REDONDO, Alberto; MONTERO AROCA, Juan & GOMEZ COLOMER, Juan-Luiz. Derecho Jurisdiccional — Proceso Penal, vol. III. Barcelona: Bosch Editor, 1996. PASTOR, Daniel R. El Plazo Razonable en el proceso del Estado de Derecho. Buenos Aires, Editorial Ad Hoc, 2002. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. “Prefácio”. In: LOPES Jr., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005. 66 24 PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. In: La Reforma de la Justicia Penal. Coordenadores Juan-Luis Gómez Colomer e José-Luis González Cussac. Publicações da Univesitat Jaume I, 1997. PELLEGRINI GRINOVER, “A tutela preventiva das liberdades: Habeas-Corpus e mandado de Segurança”. In: Revista AJURIS, no 22. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e Prática do Habeas-Corpus. 4a ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1961. SANGUINÉ, Odone. “A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão Preventiva”. In: Revista de Estudos Criminais, no 10, Porto Alegre, Nota Dez, 2003. SORIANO, Ramon. El Derecho de Habeas Corpus. Madri: Publicaciones del Congreso de los Diputados, 1986. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Vol. IV. São Paulo, Saraiva 1990. In LEITURAS COMPLEMENTARES DE PROCESSO PENAL. Obra Coletiva coordenada por Rômulo Moreira. Salvador: JusPodium. 2008. 25