PRIMEIRO ARTIGO – AURY LOPES JR

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HABEAS CORPUS: CONSIDERAÇÕES PARA USO TÓPICO1
Aury Lopes Jr.2
Cristina di Gesu3
I. Uma (Re)leitura Histórica doHabeas Corpus: os antecedentes do Direito Aragonês.II.
Antecedentes Históricos no Brasil e Considerações Prévias. III. Natureza Jurídica. IV.
Objeto. V. A coação ilegal: Excesso de prazo da prisão cautelar à luz do direito de ser
julgado em um prazo razoável. a) Sumárias considerações sobre a dilação indevida.b)
(De)Mora Jurisdicional e Prisão Cautelar. VI. Prisão em Flagrante como Medida PréCautelar: Habeas Corpus contra a Manutenção da Prisão. VII. Habeas Corpus contra
Prisão Preventiva para Garantia da Ordem Pública e/ou Econômica. Ausência de
Cautelaridade da Prisão. VIII. O Habeas Corpus como Instrumento de Collateral
Attack. IX. O Habeas Corpus contra ato de um particular. X. Considerações Finais.
I. UMA (RE)LEITURA HISTÓRICA DO
ANTECEDENTES DO DIREITO ARAGONÊS
HABEAS
CORPUS:
OS
Para introduzir o estudo do habeas corpus, é importante fazer uma breve
análise do aspecto histórico, mas desde outra perspectiva, diversa daquela
costumeiramente apontada pelo senso comum teórico, pois pensamos que a origem do
writ não está restrita ao Habeas Corpus Act de 1679 na Inglaterra. Existe um outro
antecedente, ainda mais antigo, e praticamente ignorado pela doutrina brasileira: la
manifestación de personas de la corona de aragón na Espanha.
Como explica FAIREN GUILLEN4 em numerosos trabalhos que dedicou ao
tema, bem como na própria Exposição de Motivos da LO 6/1984 espanhola, o habeas
corpus é uma instituição própria do Direito anglo-saxão, mas não se pode ocultar, sem
embargo, sua raiz no Direito histórico espanhol, onde conta com antecedentes remotos
como o denominado recurso de manifestación de personas do Reino de Aragão e as
referências sobre os pressupostos das prisões ilegais contidas no Distrito de Vizcaya e
outros ordenamentos distritais, assim como com os antecedentes mais próximos nas
Constituições de 1869 e 1876, que regulavam o procedimento, ainda que não adotando
nenhuma denominação específica.
Inclusive, em relação a recepção do habeas corpus pela Constituição espanhola
de 1978, FAIREN GUILLEN afirma que “el legislador hubiera hecho mucho mejor en
O presente trabalho é resultado parcial das pesquisas desenvolvidas no Projeto “Processo Penal e Estado
Democrático de Direito: a instrumentalidade constitucional como limitação ao poder punitivo”,
desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, com Bolsa
Produtividade em Pesquisa do CNPq.
2
Advogado. Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid. Professor do
Programa de Pós-Graduação – Mestrado - em Ciências Criminais da PUCRS. Coordenador do Curso de
Especialização em Ciências Penais da PUCRS. Pesquisador do CNPq. www.aurylopes.com.br
3
Assessora de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Especialista em
Ciências Penais pela PUCRS. Mestranda em Ciências Criminais na Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul – PUCRS.
4
Fazemos especial referência aos artigos publicados na obra “La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”.
In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, pp. 473 e ss.
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1
reinstituir la vieja manifestación criminal de personas que en importar el habeas corpus
y nada menos que con rango constitucional. Error gravísimo”5.
Para GIMENO SENDRA6 a Lei Orgânica (espanhola) 06/1984 é uma
inovação, mas não uma novidade, pois muito anterior a ela, e inclusive ao habeas
corpus inglês – instaurado mediante o Habeas Corpus Act de 1679 - já existia na Coroa
de Aragão, durante o período de 1428-1592, o procedimento de manifestación de
personas. Era na realidade um procedimento rápido, submetido ao regime da ação
popular, que transcorria ante uma jurisdição muito próxima a atual constitucional: a da
Justiça de Aragão.
Esse instrumento servia para7:
a) Possibilitar que o detido fosse trasladado do cárcere para a “casa de los
manifestados” de Zaragoza ou outro domicílio, mediante um regime similar a atual
liberdade provisória.
b) Prevenir ou reprimir as detenções ilegais cometidas por qualquer autoridade posto
que, sobre todas elas, inclusive do próprio Rei, se alçava a jurisdição da Justiça de
Aragão.
Para RAMÓN SORIANO8, a manifestación de personas era um processo com
uma dupla função. Na primeira etapa, tratava-se de um procedimento cautelar para
assegurar a dignidade da pessoa detida dos possíveis maus tratos e sevícias perpetradas
pelas autoridades. Na segunda fase, se convertia em um procedimento de cognição
plenária, onde o caso penal era inteiramente discutido.
De todos os recursos distritais aragoneses, apresenta uma maior afinidade com
a manifestación de personas a chamada firma de derecho, que consistia em um
mandamento de inibição ditado pela Justiça Maior de Aragão, ou seus funcionários,
contra a atuação dos juízes, funcionários ou pessoas privadas. A firma de derecho podia
ordenar a inibição de uma atuação futura possível – recebia então o nome de agravios
futuros – ou bem de uma atuação já consumada, e neste caso se chamava firma de
agravios hechos. Existiam, ademais, outros tipos de firmas de derecho: comuns ou
casuais, possessórias ou titulares, de apelação, etc. dando lugar a um enorme casuísmo
jurídico para suprir as lacunas surgidas no confronto entre direito à liberdade e a
“segurança social”.
A firma de derechos de agravios futuros o temidos era um importante
instrumento de proteção que existia na justiça de Aragão e que sem motivo não foi mais
consagrado nas sucessivas modificações legislativas. Poderia ser utilizado em um
momento anterior à manifestación de las personas, provocando a inibição de uma
autoridade ou juiz na possível prisão arbitrária de uma pessoa9 (tipicamente preventivo).
Não resta dúvida que os instrumentos da justiça de Aragão eram de alcance e
eficácia muito superiores ao atual habeas corpus espanhol. A firma de derechos y
agravios futuros o temidos era um instrumento de proteção que poderia ser utilizado
antes que ocorresse a prisão arbitrária (como o salvo-conduto do habeas corpus
brasileiro) e principalmente, poderia ser interposto contra uma decisão judicial
(incrivelmente, o atual habeas corpus espanhol não permite que seja interposto contra
ato judicial!). Ademais, a própria manifestación de personas, utilizada na restrição de
liberdade arbitrária já perpetrada, poderia ser utilizada contra qualquer pessoa, pública –
“La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y
Constitucional, p. 610.
6
El Proceso de Habeas Hábeas, p. 39.
7
SORIANO, Ramon. El Derecho de Habeas Corpus, p. 39.
8
Op. cit., p. 33.
9
SORIANO, Ramón. Op. cit., p. 38.
5
2
inclusive o Rei como assinala FAIREN GUILLEN10 - ou privada que tivessem sob seu
poder outra ou outras, ameaçadas de tortura ou já esta em prática, para que a
apresentasse, las pusiesen de manifiesto ante a Justicia o Lugarteniente.
Em sentido contrário, outra parte da doutrina sustenta que a verdadeira
existência e consagração do habeas corpus foi alcançada no Direito anglo-saxão que
inspirou os demais países. Afirmam que o legislador espanhol não manteve uma
unidade temporal do instrumento, posto que se extinguiu em 1592 e não regressou
nunca mais ao ordenamento espanhol. Por fim, seu regresso não foi como merecia, pois
não se deu uma natural evolução, mas sim um retrocesso.
A apontada instituição aragonesa, que possuía duplo caráter, civil e penal e
cujos precedentes romanos vinham separados e sem unidade temporal, não é
historicamente precedente direto do habeas corpus inglês, posto que não há entre eles
relações imediatas11. A natureza jurídica do habeas corpus hoje concebida é distinta da
manifestación de personas. O Direito aragonês possuía um interdito de homine libero
exhibiendo distinto do habeas corpus, que é uma ação constitucional.
No século XVII, a luta pela liberdade inicia de novo na Inglaterra com a
Petition of rights, pois as ordens de habeas corpus eram denegadas a todo momento, até
que surgiu o Habeas Corpus Act em 167912, no reinado de Carlos II, sendo considerado
pelos ingleses como uma nova Carta Magna. Assim foi obtida a eficácia do writ of
habeas corpus para a liberação de pessoas ilegalmente detidas e fazer cessar toda
restrição ilegal da liberdade pessoal13.
Todavia este writ of habeas corpus somente era expedido quando a pessoa era
acusada de praticar um crime, não tendo aplicação nos demais casos de prisões ilegais.
Em 1816 surgiu outro Habeas Corpus Act alargando o anterior, possibilitando
que sua atuação fosse mais ampla na defesa imediata da liberdade pessoal. Como aponta
FAIREN GUILLEN14, o mais importante do Act de 1816 foi a extensão do habeas
corpus à esfera penal.
No Brasil o habeas corpus foi introduzido em 1832, como meio para cessar a
restrição ilegal da liberdade. Em 1871 se deu uma importante alteração no Código de
Processo Criminal ampliando o campo de atuação do habeas corpus para garantir as
pessoas que estivessem simplesmente ameaçadas em sua liberdade de locomoção
(ambulatoria). Era a consagração do habeas corpus preventivo que sequer existia na
Inglaterra.
Em definitivo, entendemos que os principais antecedentes históricos do habeas
corpus estão inicialmente no Direito aragonês, um importantíssimo marco histórico; e
posteriormente no Direito inglês, no qual alcançou sua consagração. Cumpre assinalar
“La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y
Constitucional, p. 568.
11
TEJERA, Diego Vicente. El Habeas Hábeas. Apud LOPEZ-MUÑOZ Y LARRAZ na obra citada, p. 25.
12
Esse seria o marco histórico por excelência. Com anterioridade a ele, FAIREN GUILLEN (“La reforma
Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y Constitucional, p. 561)
explica que na primeira parte do século XIII, a expressão habeas corpus constituía uma fórmula
processual civil, uma ordem de trazer fisicamente alguém a um Tribunal. A finalidade era de assegurar a
presença física dessa pessoa perante um Tribunal, possivelmente mediante uma ordem do Tribunal a um
sheriff, não estava ligada com uma recuperação da liberdade de movimentos. Como explica o autor,
existiram três writs medievais mais vinculados a idéia de recuperar a liberdade que essas formas de
habeas corpus: os de homine replegiando e de mainprize, para assegurar uma liberdade sob fiança durante
o processo e o de odio et atia, para obter uma liberdade na fase de pré-trial, e em determinadas
circunstâncias, de um preso acusadode homicídio.
13
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. IV, p. 402.
14
“La reforma Procesal Penal – 1988 – 1992”. In: Estudios de Derecho Procesal Civil, Penal y
Constitucional, p. 567.
10
3
que o antecedente inglês somente logrou tal importância porque a manifestación de
personas se extinguiu em 1592, e a falta de continuidade gerou uma lacuna histórica
que posteriormente beneficiaria o instrumento inglês. Não obstante, sem dúvida, ambos
são marcos históricos que foram decisivos para o desenvolvimento do Estado
Democrático de Direito e na proteção da liberdade individual frente à prisão ilegal.
II - ANTECEDENTES HISTÓRICOS NO BRASIL E CONSIDERAÇÕES
PRÉVIAS
Desde o ponto de vista da ciência do direito, como explica PONTES DE
MIRANDA15, o remédio jurídico processual – como direito constitucional – havia
chegado depois, quando já existia a pretensão e o direito a liberdade física. No Brasil,
antes do habeas corpus existia o interdito de libero homine exhibiendo que alcançava a
reparação do constrangimento ilegal da liberdade física.
O habeas corpus foi introduzido no sistema jurídico brasileiro16, a partir do
modelo inglês, em 183217, no “Código de Processo Criminal” que em seu art. 340
previa que: “Todo cidadão que considere que ele ou outra pessoa sofre uma prisão ou
constrangimento ilegal em sua liberdade, tem o direito a solicitar uma ordem de habeas
corpus em seu favor”. Na Constituição de 1891 o habeas corpus foi consagrado como
um instrumento processual de fundamental importância para a proteção da liberdade de
locomoção ambulatória. Desde então, vem sendo mantido em todas as Constituições.
Inicialmente no Brasil existia o habeas corpus “liberatório” para proteger a
liberdade de locomoção (jus manendi, ambulandi, eundi, viniendi ultro citroque). Em
1871 (Lei 2033/1871) foi alterada a Lei Processual de 1832 e introduzido o habeas
corpus preventivo para os casos em que o cidadão estivesse ameaçado (na iminência)
de sofrer uma restrição ilegal em sua liberdade. Era a consagração do habeas corpus
preventivo (sequer consagrado na Inglaterra).18.
Como explica PONTES DE MIRANDA19 habeas corpus eram as palavras
iniciais da fórmula do mandado que o Tribunal concedia, dirigido aos que tivessem em
seu poder a guarda do corpo do detido. O mandamento era: Toma (habeas vem de
habeo, habere, que significa exibir, trazer, tomar, etc.) o corpo do detido e venha
submeter o homem e o caso ao Tribunal.
Tal é a importância do instrumento, não só no plano jurídico-processual, como
também no campo social, que PONTES DE MIRANDA20 afirmava já em 1916 que o
writ possuía uma extraordinária função coordenadora e legalizante, que contribuía de
forma decisiva para o desenvolvimento social e político do país, impedindo inclusive a
exploração da classe social baixa pelo coronelismo, que para isso contavam com o
auxílio da polícia e das autoridades políticas.
Atualmente, o habeas corpus está previsto no art. 5o, LXVIII da CB:
“conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de
poder”. Também está contemplado no Código de Processo Penal, arts. 647 e seguintes.
15
História e Prática do Habeas Corpus, p. 23.
Sobre a história do hábeas corpus, não só no Brasil mas também na Inglaterra e Estados Unidos,
consulte-se magistral obra de PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas-Corpus.
17
Explica PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas-Corpus, p. 128, que o hábeas corpus é
uma pretensão, ação e remédio. A pretensão existe desde n1830 (prevista no Código Criminal, arts. 183188). A ação e o remédio, desde 1832, no “Código de Processo Criminal”.
18
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, Vol. IV, p. 403.
19
História e Prática do Habeas-Corpus, p. 21.
20
História e Prática do Habeas-Corpus, p. 176.
16
4
III – NATUREZA JURÍDICA
O habeas corpus brasileiro está previsto no CPP no “Livro III” destinado às
nulidades e aos recursos em geral. Sua posição na estrutura da Lei – como recurso – está
equivocada, e tendo em conta o erro do legislador, consideramos o habeas corpus como
uma verdadeira ação autônoma de impugnação.
Deve-se defini-la como uma ação e não como um recurso, e mais
especificamente, como uma ação mandamental, ou um remédio processual
mandamental (remedial mandatory writ) como prefere PONTES DE MIRANDA21. Tal
ação está potenciada pela Constituição, e se encaminha a obter um mandado dirigido a
outro órgão do Estado, por meio da sentença judicial22. Convém salientar que, quando
dizemos que tem “força mandamental” predominante, não estamos excluindo as demais
“cargas” da sentença (declaratória, constitutiva, condenatória e executiva), senão que
evidenciamos o predomínio do mandamento sobre todas as demais.
Trata-se de uma ação de procedimento sumário, pois a cognição é limitada.
Existe a possibilidade de uma “medida liminar” (in limine litis), construída
jurisprudencialmente, com natureza cautelar e que possibilita ao juiz uma intervenção
imediata, baseada na verossimilhança da ilegalidade do ato e no perigo derivado do
dano inerente a demora da prestação jurisdicional ordinária. A medida liminar, tanto no
habeas corpus preventivo como no liberatório ou sucessivo, está incluída entre as
tutelas (provvedimento) cautelares que CALAMANDREI23 classificou como
antecipatórias da decisão final (anticipazioni di provvedimento definitivo). Para isso,
poder-se-á utilizar os modernos meios de comunicação, como o telefone, fax e email.
O writ – e a expressão inglesa significa exatamente um mandamento judicial24
- pode ser interposto contra ato de um particular, autoridade pública, policial, Ministério
Público, Juiz, Tribunal e inclusive contra sentença transitada em julgado em que não é
possível utilizar-se qualquer recurso. Para isso, é imprescindível que se ofenda
ilegalmente o direito de liberdade. Em definitivo, o habeas corpus no Brasil pode ser
utilizado como instrumento de collateral attack.
Atendido seu objeto e especiais características, a doutrina costuma denominá-lo
de “remédio heróico”, destinado a garantir o direito fundamental a liberdade individual.
Quando se destina a atacar uma ilegalidade já consumada, um constrangimento ilegal já
praticado, denomina-se habeas corpus liberatório (sua função é de liberar). Também é
possível utilizar-se ainda que a detenção ou constrangimento não haja sido praticado,
em uma situação de iminência ou ameaça. Nesse caso, denomina-se habeas corpus
preventivo.
IV. OBJETO
O art. 647 demonstra o alcance da medida, ao determinar que será concedido
habeas corpus sempre que alguém sofra ou se encontre na iminência de sofrer violência
ou coação ilegal em sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar
(militar).
21
História e Prática do Hábeas-Corpus, págs. 328 e ss.
Como explica J. GOLDSCHMIDT ao definir a ação mandamental em sua obra Derecho Procesal Civil,
p. 113.
23
Introduzione allo studio sistematico dei provedimenti cautelari, p. 38. Também PELLEGRINI
GRINOVER, “A tutela preventiva das liberdades: Habeas-Corpus e mandado de Segurança”. In: Revista
AJURIS, no 22, p. 114.
24
Como explica PONTES DE MIRANDA (História e Prática do Habeas-Corpus, p. 329), evidente que os
juristas ingleses não conheciam a classificação quinária de constante quinze das ações e sentenças, mas
sua terminologia e precisão em falar em mandatory remedies demonstra que já lhes chamava a atenção a
força mandamental de certas sentenças.
22
5
A única restrição da Lei é com relação as punições disciplinares impostas pelas forças
armadas, entretanto isso atualmente já vem sofrendo uma nova leitura frente a nova
Constituição que não fez tal previsão. O Supremo Tribunal Federal e o Superior
Tribunal de Justiça já vem decidindo em diversos casos que é possível o uso do writ
contra punições disciplinares. Neste caso o juiz deverá analisar todos os aspectos
formais da medida, pois se trata de um ato administrativo sujeito ao controle judicial.
Em definitivo, o habeas corpus brasileiro é uma ação de natureza
mandamental com status constitucional, e que cumpre com plena eficácia sua função
de proteção da liberdade de locomoção dos cidadãos frente aos atos abusivos do Estado,
em suas mais diversas formas, inclusive contra atos jurisdicionais e coisa julgada. A
efetiva defesa dos direitos individuais é um dos pilares para a existência do Estado de
Direito, e para isso, é imprescindível que existam instrumentos processuais de fácil
acesso, realmente céleres e eficazes.
Vejamos a continuação algumas coações ilegais amparáveis pelo habeas
corpus.
V. A COAÇÃO ILEGAL: EXCESSO DE PRAZO DA PRISÃO CAUTELAR À
LUZ DO DIREITO DE SER JULGADO EM UM PRAZO RAZOÁVEL
a) Sumárias considerações sobre a dilação indevida
O excesso de prazo das prisões cautelares sempre foi um tema recorrente em
matéria de habeas corpus. Pensamos, contudo, que a questão assume uma nova
dimensão com a inovação introduzida no art. 5o, LXXVIII da Constituição.
A concepção de poder passa hoje pela temporalidade, na medida em que o
verdadeiro detentor do poder é aquele que está em condições de impor aos demais o seu
ritmo, a sua dinâmica, a sua própria temporalidade.
BECCARIA25, a seu tempo, já afirmava com acerto que o processo deve ser
conduzido sem protelações, até porque, quanto mais rápida for a aplicação da pena e
mais perto estiver do delito, mais justa e útil ela será.
Cunhamos a expressão “(de)mora jurisdicional” porque ela nos remete ao
próprio conceito (em sentido amplo) da “mora”, na medida em que existe uma
injustificada procrastinação do dever de adimplemento da obrigação de prestação
jurisdicional. Daí porque, nos parece adequada a construção (de)mora judicial no
sentido de não-cumprimento de uma obrigação claramente definida, que é a da própria
prestação da tutela (jurisdicional) devida.
Cumpre agora analisar os contornos e os problemas que rodeiam o direito de
ser julgado num prazo razoável ou a um processo sem dilações indevidas26.
A (de)mora na prestação jurisdicional constitui um dos mais antigos problemas
da administração da justiça. Contudo, como aponta PASTOR27, somente após a
Segunda Guerra Mundial é que esse direito fundamental foi objeto de uma preocupação
mais intensa. Isso coincidiu com a promulgação da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, em 10/12/1948, especialmente no art. 10, que foi fonte direta tanto do art.
6.1 da Convenção Européia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais (CEDH) como também dos arts.7.5 e 8.1 da Convenção Americana de
Direitos Humanos.
25
Dos Delitos e das Penas, p. 59.
Sobre o tema, consultar: LOPES JUNIOR, Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal. Fundamentos
da Instrumentalidade Garantista. 3a Edição. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2005.
27
PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 103.
26
6
O núcleo do problema da (de)mora, como bem identificou o Tribunal Supremo
da Espanha na STS 451928, está em que, quando se julga além do prazo razoável,
independentemente da causa da demora, se está julgando um homem completamente
distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e
sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de
prevenção específica e retribuição (muito menos da falaciosa “reinserção social”). Sem
falar no imensurável custo de uma prisão cautelar indevida ou excessivamente longa.
Trata-se de um paradoxo temporal ínsito ao ritual judiciário: um juiz
julgando no presente (hoje), um homem e seu fato ocorrido num passado distante
(anteontem), com base na prova colhida num passado próximo (ontem) e projetando
efeitos (pena) para o futuro (amanhã). Assim como o fato jamais será real, pois
histórico, o homem que praticou o fato não é o mesmo que está em julgamento e, com
certeza, não será o mesmo que cumprirá essa pena e, seu presente no futuro, será um
constante reviver o passado29.
O Estado resulta, como sintetiza PEDRAZ PENALVA30, no principal obrigado
por esse direito fundamental, na medida em que cria deveres para o juiz (impulso
oficial), bem como para o Estado-legislador (promulgação de um sistema normativo
material, processual e mesmo orgânico) para uma efetiva administração da justiça, sem
esquecer os meios materiais e pessoais31. Tampouco se pode exigir “cooperação” do
imputado, na medida em que protegido pelo nemo tenetur se detegere.
“Es indudable y resulta obvio que cuando se juzga más allá de un plazo razonable (cualquiera que sea
la causa de la demora) se está juzgando a un hombre distinto en sus circunstancias personales, familiares
y sociales, por .lo que la pena no cumple, ni puede cumplir con exactitud las funciones de ejemplaridad y
de reinserción social del culpable, que son fines justificantes de la sanción, como con fina sensibilidad
dice la Sentencia de 26.6.1992”. APUD: PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin
dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de la Justicia Penal, p. 387.
29
Pois uma função inerente à pena de prisão é obrigar a um constante reviver o passado no presente,
levando ao que denomino de “patologias de natureza temporal”. Isso significa, em apertada síntese, que o
tempo de prisão é tempo de involução, que a prisão gera uma total perda do referencial social de tempo,
pois a dinâmica intra-muros é completamente desvinculada da vivida extra-muros, onde a sociedade
atinge um nível absurdo de aceleração, em total contraste com a inércia do apenado. Existe uma clara
defasagem entre o tempo social e o tempo do cárcere, pois a prisão possui um “tempo mumificado pela
instituição” em contraste com a dinâmica e complexidade do exterior. Isso exige um repensar a
proporcionalidade e adequação da pena a partir de outro paradigma temporal, aliado à velocidade do
tempo externo e o congelamento do tempo interno. Não há dúvida de que 10 anos de prisão hoje
representam muito mais em termos de caráter aflitivo e involução do que 10 anos de pena há 10 ou 20
anos atrás.
30
PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de
la Justicia Penal, p.401.
31
Interessante a argumentação que o Estado alemão invocou no caso Bock, STEDH 29/03/1984,
conforme aponta PEDRAZ PENALVA (op. cit. p.402) de que “nenhum Estado pode garantir a
infalibilidade de seus Tribunais, pois o erro judicial cometido por um juiz pode provocar um recurso e,
por conseguinte, prolongar o procedimento. Se isso significa uma violação do direito a um prazo
razoável, se estará reconhecendo o direito a decisões judiciais impecáveis’ (tradução livre). Tal
argumento, ainda que sedutor, carece de qualquer fundamento legítimo, pois como bem respondeu o
TEDH, “um erro imputável a um Tribunal, entranhado de um atraso oriundo da necessidade de atacá-lo
pode, quando combinado com outros fatores, ser considerado para a apreciação do caráter razoável do
prazo do art. 6.1 (da CEDH).” Não se trata de buscar decisões judiciais impecáveis, obviamente
impossíveis, senão de reconhecer a responsabilidade do Estado pelo erro crasso, ou a excessiva demora
por parte do Tribunal em remediar um equivoco evidente, quando forem causadores de longa demora,
estamos diante e uma dilação indevida. O que não se pode admitir é que, além do erro, seja ele
qualificado pela demora em remediar seus efeitos.
28
7
Esse direito fundamental já estava expressamente assegurado nos arts. 7.5 e 8.1
da CADH32, recepcionados pelo art. 5º, § 2º da Constituição. Assim, a Emenda
Constitucional n. 45 de 08 de dezembro de 2004, não inovou em nada com a inclusão
do inciso LXXVIII no art. 5° da Constituição, apenas seguiu a mesma diretriz protetora
da CADH, com a seguinte redação:
LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável
duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Dessarte, o sistema jurídico vigente deve adequar-se a essa nova exigência,
revisando seus procedimentos, duração do processo e das prisões cautelares. Ademais,
além de firmatário da CADH, o Brasil é passível de ser demandado junto à Corte
Americana de Direitos Humanos, que previsivelmente “importa” muitos dos
entendimentos do TEDH. Não tardará para que o STF comece também a lançar mão
desse artifício doutrinário, para adequação do sistema jurídico interno à nova diretriz
ditada pelo direito internacional dos direitos humanos. Daí a necessidade de constante
remissão às decisões do TEDH e da doutrina européia, com muito mais tradição no trato
da questão.
Nessa linha, já antecipamos uma crítica muito importante: tanto a Convenção
Americana de Direitos Humanos como a Constituição, não fixaram prazos máximos
para a duração dos processos e tampouco delegaram para que lei ordinária
regulamentasse a matéria.
Adotou o sistema brasileiro a chamada “doutrina do não-prazo”, persistindo
numa sistemática ultrapassada e que a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos
Humanos vem há décadas debatendo-se. Dessa forma, a indeterminação conceitual do
art. 5°, LXXVIII, da Constituição, nos conduzirá pelo mesmo (tortuoso) caminho da
jurisprudência do TEDH (e também da CADH), que desde o caso “Wemhoff”33
(STEDH de 27/6/1968) vem debatendo-se em torno da definição de critérios para a
valoração da “duração indevida”. Inicialmente, adotou-se a chamada “doutrina dos sete
critérios”. Para valorar a situação, a Comissão sugeriu que a razoabilidade da prisão
cautelar (e conseqüente dilação indevida do processo) fosse aferida considerando-se: a)
a duração da prisão cautelar; b) a duração da prisão cautelar em relação a natureza do
delito, a pena fixada e a provável pena a ser aplicada em caso de condenação; c) os
efeitos pessoais que o imputado sofreu, tanto de ordem material como moral ou outros;
d) a influência da conduta do imputado em relação à demora do processo; e) as
dificuldades para a investigação do caso (complexidade dos fatos, quantidade de
testemunhas e réus, dificuldades probatórias, etc.); f) a maneira como a investigação foi
conduzida; g) a conduta das autoridades judiciais.
Tratava-se de critérios que deveriam ser apreciados em conjunto, com valor e
importância relativas, admitindo-se, inclusive, que um deles fosse decisivo na aferição
do excesso de prazo.
A doutrina dos sete critérios não foi expressamente acolhida pelo TEDH como
referencial decisivo, mas tampouco foi completamente descartada, tendo sido utilizada
pela Comissão em diversos casos posteriores e servido de inspiração para um referencial
mais enxuto: a teoria dos três critérios básicos (complexidade do caso; a atividade
processual do interessado (imputado); a conduta das autoridades judiciárias).
Esses três critérios têm sido sistematicamente invocados, tanto pelo TEDH,
como também pela Corte Americana de Direitos Humanos. Ainda que mais delimitados,
não são menos discricionários.
32
O Brasil aderiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de
22 de novembro de 1969) através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.
33
Cf. PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, pp. 111 e seguintes.
8
Como tratar do direito de ser julgado num “prazo” razoável, se o TEDH (e
também a Corte Americana de Direitos Humanos) jamais fixou um limite temporal?
Que prazo é esse que nunca foi quantificado? Se não há um limite temporal claro (ainda
que admita certa flexibilidade diante das especificidades), o critério para definir se a
dilação é “indevida” ou está justificada, é totalmente discricionário, com um amplo e
impróprio espaço para a (des)valoração, sem qualquer possibilidade de refutação.
Nessa indefinição e vagueza de conceitos foi consolidada a (criticada) doutrina
do “não-prazo”, pois deixa amplo espaço discricionário para avaliação segundo as
circunstâncias do caso e o “sentir” do julgador.
Para falar-se em dilação “indevida” é necessário que o ordenamento jurídico
interno defina limites ordinários para os processos, um referencial do que seja a “dilação
devida”, ou o “estándar medio admisible para proscribir dialaciones más allá de él”34.
Uma vez definido um parâmetro, a discussão desviará seu rumo para outras questões,
como por exemplo: se o limite abstratamente fixado é substancialmente constitucional
(à luz dos diversos princípios em torno da qual gira a questão); em que situações a
superação desse limite poderá ser considerada como “justificada”35; possibilidade de
reconhecer-se como indevida uma dilação, ainda que não se tenha alcançado o prazo
fixado, mas as circunstâncias específicas do caso indicarem uma conduta danosa e
negligente por parte dos órgãos que integram a administração da justiça, etc.
Fundamental ainda, é a leitura da questão à luz do princípio da
proporcionalidade36, critério inafastável na ponderação dos bens jurídicos em questão.
Em síntese, o art. 5°, LXXVIII, da Constituição – incluindo pela Emenda
Constitucional n. 45 - adotou a doutrina do não-prazo, fazendo como que exista uma
indefinição de critérios e conceitos. Nessa vagueza, cremos que quatro deverão ser os
referenciais adotados pelos Tribunais brasileiros, a exemplo do que já acontece nos
TEDH e na CADH:
- complexidade do caso;
- atividade processual do interessado (imputado), que obviamente não poderá se
beneficiar de sua própria demora;
- a conduta das autoridades judiciárias como um todo (polícia, Ministério Público,
juízes, servidores, etc.);
- princípio da proporcionalidade.
Com relação às prisões cautelares, imprescindível ponderar-se a duração da
prisão cautelar em relação a natureza do delito, a pena fixada e a provável pena a ser
aplicada em caso de condenação.
Situação bastante comum (infelizmente) são prisões cautelares aplicadas a
acusados de delitos cometidos sem violência ou grave ameaça e com pena inferior a
PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”. IN: La Reforma de
la Justicia Penal, p.395.
35
Obviamente que o “acúmulo de serviço” ou argumento similar, não pode ser admitido, como não o é
pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, na medida em que incumbe ao Estado organizar-se de modo
a fazer frente a demanda de tutela e jamais legitimar o “anormal” funcionamento do Poder Judiciário
(quase que um “beneficiar-se de sua própria torpeza”). Por outro lado, é perfeitamente admissível o
argumento de que se a demora ocorreu por atos de natureza manifestamente procrastinatória por parte do
imputado, não há que se falar em dilação indevida, senão em atraso gerado e imputável à parte. Em última
análise, como bem definiu o TEDH no Caso Ciricosta e Viola versus Itália, 4/12/1995, “sólo las
dilaciones imputables al Estado puedem llevar a concluir la inobservância del plazo razonable”.
36
Com base na proporcionalidade, já decidiu o TEDH e a Corte Americana, que uma prisão cautelar
supere o prazo fixado no ordenamento jurídico interno e, ainda assim, esteja justificada (a partir da
complexidade, da conduta do imputado, da proporcionalidade, etc.). No “Caso Firmenich versus
Argentina”, a Corte Americana de Direitos Humanos entendeu que uma prisão cautelar, que havia durado
mais de 4 anos, estava justificada, ainda que superasse o prazo fixado pelo ordenamento interno (2 anos).
34
9
quatro anos. Trata-se de uma teratologia judicial, pois o acusado, ainda que condenado,
terá sua pena substituída por pena restritiva de direitos! Como manter alguém preso se,
ao final do processo, ainda que condenado, não se lhe aplicará pena privativa de
liberdade? Um absurdo. No mesmo campo da patologia judicial, igualmente amparável
pela via do habeas corpus, está a prisão cautelar aplicada em relação a delitos cujo
regime inicial de cumprimento é aberto (e até mesmo, em certos casos, semi-aberto).
A falta de um limite normativo que discipline o prazo máximo de duração das
prisões cautelares é uma porta aberta para esse tipo de patologia. PASTOR 37 critica o
entendimento dominante do não-prazo (como o adotado pela Constituição brasileira),
pois se, inteligentemente, não confiamos nos juízes a ponto de delegar-lhes o poder de
determinar o conteúdo das condutas puníveis, nem o tipo de pena a aplicar, ou sua
duração sem limites mínimos e máximos, nem as regras de natureza procedimental, não
há motivo algum para confiar a eles a determinação do prazo máximo razoável de
duração do processo penal, na medida em que o processo penal em si mesmo constitui
um exercício de poder estatal, e, igual a pena, as buscas domiciliares, a interceptação
das comunicações e todas as demais formas de intervenção do Estado, deve estar
metajudicialmente regulado, com precisão e detalhe.
Assim como o direito penal está estritamente limitado pelo principio da
legalidade e o procedimento pelas diversas normas que o regulam, também a duração
dos processos e das prisões cautelares deve ser objeto de regulamentação normativa
clara e bem definida.
Na falta de bom senso por parte dos responsáveis em reconduzir o tempo ao
sujeito, devemos partir para uma definição normativa38 do tempo máximo de duração do
processo e das prisões cautelares, a exemplo da pena de prisão. O Princípio da
Legalidade, muito bem explicado por BRANDÃO39, surge para romper com esse terror
e dar, como conseqüência, uma outra feição ao Direito Penal. A partir dele o Direito
Penal se prestará a proteger o homem, não se coadunando com aquela realidade
pretérita.
b) (De)Mora Jurisdicional e Prisão Cautelar
No Brasil, a situação é gravíssima. Não existe limite algum para duração do
processo penal (não se confunda isso com prescrição)40 e, o que é mais grave, sequer
existe limite de duração das prisões cautelares, especialmente a prisão preventiva, mais
abrangente de todas.
A questão da dilação indevida do processo penal nasce tendo como núcleo a
excessiva duração da prisão preventiva e assim permanece até hoje, na imensa maioria
dos casos em discussão (inclusive no TEDH). No Brasil a história não é diferente.
37
PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho, p. 60.
Não somos adeptos do dogma da completude lógica e, ainda que a lei defina limites, atendendo a certos
critérios, é elementar que o reconduzir o tempo ao sujeito exige uma significativa carga de sentire por
parte do julgador. Mas essa operação deve realizar-se a partir de certos parâmetros, para não cair numa tal
abertura conceitual que conduza a ineficácia do direito fundamental.
39
BRANDÃO, Cláudio. Introdução ao Direito Penal, p. 10.
40
No Brasil, os prazos previstos para a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva (pela pena aplicada
ou in abstrato) são inadequados para o objeto em questão, pois excessivos (principalmente pela pena em
abstrato). Ainda que se cogite de prescrição pela pena aplicada, tal prazo, em regra, está muito além do
que seria uma duração razoável do processo penal. Devemos considerar ainda, diante da imensa
resistência dos tribunais em reconhecer a prescrição antecipada, que o imputado terá de suportar toda a
longa duração do processo, para só após o trânsito em julgado, buscar o reconhecimento da prescrição
pela pena concretizada.
38
10
Trava-se uma histórica discussão em torno dos já lendários 81 dias, construídos a partir
da soma dos diversos prazos que compõem o procedimento ordinário quando o
imputado encontra-se submetido à prisão preventiva.
No processo penal brasileiro campeia a absoluta indeterminação acerca da
duração da prisão cautelar, pois em momento algum foi disciplinada essa questão.
Excetuando-se a prisão temporária, cujo prazo máximo de duração está previsto em lei,
as demais prisões cautelares (preventiva, decorrente da pronúncia ou da sentença penal
condenatória recorrível) são absolutamente indeterminadas.
Diante da imensa lacuna legislativa, a jurisprudência tentou, sem grande
sucesso, construir limites globais, a partir da soma dos prazos que compõem o
procedimento aplicável ao caso. Assim, resumidamente, se superados os tais 81 dias o
imputado continuasse preso, e o procedimento não estivesse concluído (leia-se: sentença
de 1º grau) haveria “excesso de prazo”, remediável pela via do habeas corpus (art. 648,
II). A liberdade, em tese, poderia ser restabelecida, permitindo-se a continuação do
processo.
Até mesmo algumas bem intencionadas tentativas de considerar que, superado
o limite para realização de algum dos atos que compõem o procedimento, sem a sua
realização (por ex. denúncia, interrogatório, instrução, etc.), haveria constrangimento
ilegal, devendo o imputado ser solto. Mas esse tipo de construção, excessivamente
“benevolente” (ou perniciosamente garantista....), obviamente não caiu no agrado do
senso comum, adorador do simbólico fracassado do law and order.
Mas, concretamente, não existe nada em termos de limite temporal das prisões
cautelares. Infelizmente, a cada dia, alastra-se mais no processo penal uma praga
civilista, chamada de relativismo das garantias processuais. Isso vai da relativização da
teoria das nulidades41, passando pelas garantias processuais e fulminando até mesmo
direitos fundamentais. O mais interessante é a alquimia de “relativizar” o que deveria
ser radicalizado, no viés da intagibilidade, e manter a lógica newtoniana naquilo que
sim deveria ser relativo (tempo, verdades, etc.).
Inexiste um referencial de duração temporal máxima e, cada vez mais, os
Tribunais avalizam a (de)mora judicial a partir dos mais frágeis argumentos, do estilo:
complexidade (apriorística?) do fato, gravidade (in abstrato?), clamor público (ou seria
opinião publicada?), ou a simples rotulação de “crime hediondo”, como se essa infeliz
definição legal se bastasse, auto-legitimando qualquer ato repressivo.
É óbvio que o legislador deve sim estabelecer de forma clara os limites
temporais das prisões cautelares (e do processo penal, como um todo), a partir dos quais
a segregação é ilegal, bem como deveria consagrar expressamente um “dever de revisar
periodicamente” a medida adotada.
A duração da prisão provisória é pautada pela necessidade e manutenção dos
pressupostos que a originaram. Na Espanha, o Tribunal Constitucional - STC 178/1985
– definiu que a duração deve ser tão somente a que se considere indispensável para
conseguir a finalidade pela qual foi decretada. No mesmo sentido também já tem
decidido o Tribunal Europeu de Direitos Humanos nos casos Weinhoff (junho/68),
Neumeister (junho/68), Bezicheri (out/85) entre outros. Para evitar abusos, o art. 17.4.
da Constituição da Espanha dispõe que por lei irá se determinar o prazo máximo de
duração da prisão provisória. O regramento do dispositivo constitucional encontra-se no
art. 504 da LECrim, que disciplina o prazo máximo de duração dessa medida cautelar,
Os tribunais chegam ao absurdo de reconhecer que uma nulidade é absoluta e, “civilisticamente”, exigir
a demonstração de prejuízo (!!) e inatingimento do fim (!!) para sua decretação. Isso quando não se
invoca o pomposo (mas inadequado ao processo penal) pas nullité sans grief, desprezando-se que a
violação é de norma constitucional !
41
11
levando-se em consideração a pena abstratamente cominada no tipo penal incriminador.
Assim, a prisão cautelar poderá durar, no máximo até 3 meses, quando a pena cominada
for de 7 a 15 fins de semana; até 1 ano, quando a pena cominada for de 6 meses a 3
anos; até 2 anos, quando a pena cominada for superior a 3 anos. É possível a
prorrogação em casos expressos em lei.
Na Alemanha - StPO § 121 - a regra geral é a de que a prisão provisória não
possa durar mais de 6 meses, salvo quando a especial dificuldade, a extensão da
investigação ou outro motivo importante não permita prolatar a sentença e justifique a
manutenção da prisão. Em caso de prorrogação, se poderá encomendar ao Tribunal
Superior do “Land” que faça um exame sobre a necessidade de manutenção da prisão no
máximo a cada 3 meses (dever de revisar periodicamente).
Em Portugal o juiz tem a obrigação de revisar a cada 3 meses a medida cautelar
decretada, verificando se ainda permanecem os motivos e pressupostos que a
autorizaram - art. 213.1. Além disso, se passados 6 meses da prisão ainda não tiver sido
iniciado o processo, com efetiva acusação, o imputado deverá ser colocado em
liberdade, salvo situação de excepcional complexidade. Também como regra geral, o
CPP português prevê que se passados 18 meses sem sentença ou 2 anos sem trânsito em
julgado, deve o acusado ser posto em liberdade, salvo se a gravidade do delito ou sua
complexidade justificar a ampliação do prazo.
Na Itália, o CPP utiliza o critério de quantidade da pena em abstrato para
determinar o tempo máximo de duração da prisão cautelar e para isso existe uma grande
variedade de prazos, conforme a gravidade do delito e a fase em que se encontra o
processo. É importante ressalvar que o legislador italiano determinou que os prazos
devem ser considerados independentes e autônomos para cada fase do processo.
É óbvio que a duração fixada pode ser considerada, dependendo do caso,
excessiva, mas ao menos existe uma referencial normativo para orientar a questão e, até
mesmo, definir o objeto da discussão. O que é inadmissível é a inexistência total de
limites normativos, como sucede no sistema brasileiro.
Outra questão muito relevante é que, em observância a provisionalidade da
prisão cautelar (são situacionais), existe em alguns países europeus um dever de
revisar a medida adotada após determinado lapso de tempo. Na Itália, art. 294.3 do
Codice de Procedura Penale, o juiz deverá revisar a decisão que determinou a prisão
em no máximo 5 dias desde que se iniciou seu cumprimento. Na Alemanha, StPO §
122, o exame sobre se a prisão deve ser mantida ou não, deverá ser revisada no máximo
a cada 3 meses. Em Portugal, art. 213,1 do CPP, também a cada 3 meses, no máximo,
deverá o juiz revisar a medida e decidir sobre a necessidade de sua manutenção.
Esse é um exemplo que deveria ser seguido no Brasil, para evitar a triste
realidade daqueles juízes que simplesmente “esquecem” do réu preso, recordando o
suplício narrado por BECCARIA42: “¿ Cuál contraste más cruel que la indolencia de
un juez y las angustias de un reo ? ¿ Las comodidades y placeres de un magistrado
insensible, de una parte, y, de otra las lágrimas y la suciedad de un encarcelado ?”
Então, as pessoas têm o direito de saber, de antemão e com precisão, qual é o
tempo máximo que poderá durar um processo concreto. Essa afirmação com certeza
causará espanto e até um profundo rechaço por algum setor atrelado ainda ao
paleopositivismo e, principalmente, cegos pelo autismo jurídico. Basta um mínimo de
capacidade de abstração, para ver que isso está presente – o tempo todo - no direito e
fora dele. É inerente às regras do jogo. Por que não se pode saber, previamente, quanto
tempo poderá durar, no máximo, um processo ou uma prisão cautelar? Porque a
42
De los delitos y de las penas, p.61.
12
arrogância jurídica não quer esse limite, não quer reconhecer esse direito do cidadão e
não quer enfrentar esse problema.
Além disso, dar ao réu o direito de saber previamente o prazo máximo de
duração do processo ou de uma prisão cautelar, é uma questão de reconhecimento de
uma dimensão democrática da qual não podemos abrir mão.
O “direito a jurisdição”, como bem recorda o Tribunal Constitucional
espanhol43, no puede entederse como algo desligado del tiempo en que debe prestarse
por los órganos del Poder Judicial, sino que ha de ser comprendido en el sentido de
que se otorgue por éstos dentro de los razonables términos temporales en que las
personas lo reclaman en el ejercicio de sus derechos e intereses legítimos”.
Em suma, pensamos que a questão do excesso de prazo da prisão cautelar deve,
em sede de habeas corpus, inserir-se na perspectiva da violação do direito de ser
julgado em um prazo razoável a partir dos aspectos anteriormente analisados. Ademais,
ainda que não esteja cautelarmente preso o réu (ou já tenha sido solto), pensamos que o
habeas corpus44 possa ser utilizado como instrumento processual capaz de dar eficácia
ao direito fundamental previsto no art. 5o, LXXVIII da Constituição, buscando, através
dele, um mandamento expedido pelo Tribunal para que o julgador originário cesse
imediatamente a dilação indevida (ou estabelecendo um prazo exíguo para que assim
proceda diante da inexistência, no sistema brasileiro, de uma solução processual
extintiva).
Dessa forma, fica evidente que a dilação indevida, nas suas diferentes
dimensões, constitui um constrangimento ilegal atacável pela via do writ.
VI. PRISÃO EM FLAGRANTE COMO MEDIDA PRÉ-CAUTELAR: HABEAS
CORPUS CONTRA A MANUTENÇÃO DA PRISÃO.
A doutrina costuma classificar a prisão em flagrante, prevista no art. 301 e
seguintes do CPP, como medida cautelar. Trata-se de um equivoco, a nosso ver, que
vem sendo repetido sem maior reflexão ao longo dos anos e que agora queremos
(des)velar apontando o habeas corpus como instrumento processual adequado para essa
discussão.
Como explica CARNELUTTI45 a noção de flagrância está diretamente
relacionada a “la llama, que denota con certeza la combustión; cuando se ve la llama, es
indudable que alguna cosa arde”. Essa chama, que denota com certeza a existência de
uma combustão, coincide com a possibilidade para uma pessoa de comprová-lo
mediante a prova direta. Como sintetiza o mestre italiano: a flagrância não é outra coisa
que a visibilidade do delito46.
Esta certeza visual da prática do crime gera a obrigação para os órgãos
públicos, e a faculdade para os particulares, de evitar a continuidade da ação delitiva,
podendo, para tanto, deter o autor.
E, porque é dada essa permissão?
Exatamente porque existe a visibilidade do delito, o fumus commissi delicti é
patente e inequívoco e, principalmente, porque essa detenção deverá ser submetida ao
crivo judicial no prazo máximo de 24h47. Precisamente porque o flagrante é uma medida
STC 24/81. APUD: PEDRAZ PENALVA, Ernesto. “El derecho a un proceso sin dilaciones indebidas”.
IN: La Reforma de la Justicia Penal, p.404.
44
Como ocorre em diversas situações reais, a separação entre o HC e o Mandado de Segurança é tênue e,
dependendo do discurso construído para legitimá-lo, não descartamos o uso do Mandado de Segurança
para esse caso.
45
Lecciones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Sentis Melendo. Tomo II. Buenos Aires, 1950, p. 77.
46
Idem, p. 78.
47
Esse prazo é obtido a partir da análise do art. 306 do CPP.
43
13
precária, que não está dirigida a garantir o resultado final do processo, é que pode ser
praticado por um particular ou pela autoridade policial.
Com este sistema, o legislador consagrou o caráter pré-cautelar da prisão
em flagrante. Como explica BANACLOCHE PALAO48 o flagrante – ou la detención
imputativa - não é uma medida cautelar pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que
não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas destina-se a colocar o
detido a disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar. Por
isso, o autor afirma que é uma medida independente, frisando o caráter instrumental e
ao mesmo tempo autônomo do flagrante.
A instrumentalidade manifesta-se no fato de a prisão em flagrante ser um
strumenti dello strumento 49 da prisão preventiva; ao passo que a autonomia, explica as
situações em que o flagrante não gera a prisão preventiva ou, nos demais casos, em que
a prisão preventiva existe sem prévio flagrante.
Destaca o autor que a prisão em flagrante en ningún caso se dirige a asegurar
ni la eventual ejecución de la pena, ni tampoco la presencia del imputado en la fase
decisoria del proceso.
Não é diversa a lição de FERRAIOLI e DALIA50: l’arresto in flagranza é uma
Misure Pre-Cautelari Personali.
A prisão em flagrante é, para CORDERO51, uma “subcautela”, na medida em
que serve de prelúdio (preludio subcautelar) para eventuais medidas coativas pessoais,
garantindo sua execução. Na essência, coaduna-se com nossa posição de medida précautelar, visto que não é um fim em si mesma e tampouco legitima a manutenção da
prisão (somente possível através de uma medida verdadeiramente cautelar e que observe
seus requisitos).
A prisão em flagrante está justificada nos casos excepcionais, de necessidade e
urgência, indicados taxativamente no art. 302 do CPP e constitui uma forma de medida
pré-cautelar pessoal que se distingue da verdadeira medida cautelar pela sua absoluta
precariedade. Neste mesmo sentido, FERRAIOLI e DALIA afirmam que as medidas
pré-cautelares são excepcionais, de assoluta precarietà, che le connota come iniziative
di brevissima durata52.
Tratando especificamente da prisão em flagrante a cargo da polícia judiciária,
apontam que essa extensão do poder de iniciativa pré-cautelar significou a aceitação do
risco de privação, temporária, da liberdade pessoal do cidadão por razão de ordem
política. O instituto fermo di polizia marcou um pesado desequilíbrio na relação
48
La libertad personal y sus limitaciones. Madrid, Mc Graw Hill, 1996, p.292.
Invocando aqui o consagrado conceito de “strumentalità qualificata”, tão bem explicado por
CALAMANDREI na obra Introduzione allo Studio Sistematico dei Provvedimenti Cautelari, Padova,
Cedam, 1936, p. 22.
50
FERRAIOLI, Marzia e DALIA, Andrea Antonio. Manuale di Diritto Processuale Penale, Milão,
Cedam, 1997, p. 228 e ss.
51
CORDERO, Franco. Procedimiento Penal, vol. 1, p. 408.
52
A titulo de ilustração, vejamos a duração da prisão em flagrante em alguns outros países:
Na Espanha o detido em flagrante deverá ser apresentado ao juiz no prazo máximo de 24h (art. 496 da
LECrim), momento em que será convertida em prisión provisional ou será concedida a liberdade
provisória. A lei processual alemã - StPO § 128 - determina que o detido deverá ser conduzido ao juiz do
“Amtsgericht” em cuja jurisdição tenha ocorrido a detenção, de imediato ou quando muito no dia seguinte
a detenção. Já o Codice de Procedura Penal italiano, art. 386.3, determina que a polícia deverá colocar o
detido à disposição do Ministério Público o mais rápido possível ou no máximo em 24h, entregando junto
o correspondente “atestado” policial. Por fim, em Portugal, o art. 254, “a” do CPP determina que no prazo
máximo de 48h deverá ser efetivada a apresentação ao juiz que decidirá sobre a prisão cautelar aplicável,
após interrogar o detido e dar-lhe oportunidade de defesa (art. 28.1 da Constituição).
49
14
autoridade-liberdade e por isso deve ser analisado com sumo cuidado em um Estado
Democrático de Direito, como o nosso.
A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, de natureza pessoal, cuja
precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou
autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o
imperioso dever de análise judicial em até 24h, onde cumprirá ao juiz analisar sua
legalidade e decidir sobre a manutenção da prisão (agora como preventiva) ou não.
Em síntese, o primeiro aspecto a ser destacado é que a prisão em flagrante não
é uma prisão cautelar, mas sim uma medida pré-cautelar. Isto porque se destina a
preparar, instrumentalizar uma futura medida cautelar. Por isso, é a única forma de
detenção que a Constituição permite seja realizada por um particular ou pela autoridade
policial sem ordem judicial.
Uma vez efetivado a prisão em flagrante, com a conseqüente lavratura do auto
respectivo, a peça policial será enviada ao juiz competente. Esse juiz, à luz do disposto
no art. 310 do CPP, deverá decidir se homologa ou não a prisão em flagrante. Assim, o
julgador atua de forma sucessiva, em dois momentos:
1º Momento: analisa o aspecto formal da prisão em flagrante, sua legalidade ou
ilegalidade. Se legal, homologa; se ilegal, deverá relaxá-la.
2º Momento: homologando a prisão em flagrante deverá, sempre, enfrentar a
necessidade ou não da prisão preventiva. Se necessária e cabível, poderá decretá-la
(desde que tenha sido postulada sua decretação)53. Do contrário, deverá conceder a
liberdade provisória, nos termos do art. 310 caput ou parágrafo único (conforme o caso).
Em qualquer caso, a decisão deverá ser motivada.
Com isso, se estiverem presentes os requisitos formais do flagrante, o juiz
deverá homologá-lo, chancelando a legalidade do ato. Contudo, se o flagrante for ilegal
(forjado, provocado, etc.), seja porque a situação fática de flagrância não estava
presente, ou porque há alguma falha formal, o juiz não deverá homologá-lo. Como
conseqüência, deverá relaxar a prisão.
Homologando o flagrante, passa o juiz para um segundo momento, obedecendo
ao art. 310 do CPP, especialmente no seu parágrafo único: deverá verificar a
necessidade da prisão cautelar. O próprio art. 310 remete para os arts. 311 e 312 do
CPP, que disciplinam a prisão preventiva. É como se o legislador dissesse: em que pese
o flagrante, a prisão somente poderá ser mantida se estiverem presentes o fumus
commissi delicti e o periculum libertatis, podendo então ser decretada a prisão
preventiva.
Do contrário, se não houver a necessidade da prisão preventiva, deverá ser
concedida a liberdade provisória sem fiança (pois o art. 310 não a exige), mas com a
obrigação de comparecer a todos os atos do processo, sob pena de revogação.
O que desde logo deve ser rechaçado, é qualquer argumento cujo núcleo seja a
existência de uma “conversão automática”. Não existe conversão automática ou
"sobrevida" para a prisão em flagrante e, descartada a liberdade provisória, a única
medida cautelar pessoal que pode ser adotada é a prisão preventiva.
O principio da reserva legal impõe que a restrição da liberdade individual esteja
estritamente controlada, de modo que somente está constitucionalmente legitimada
quando ajustada aos estritos limites da legalidade. Por isso, o rigor é fundamental ao
tratar de temas como pressupostos, requisitos, princípios, modalidades e prazos.
Ainda que o art. 311 preveja a possibilidade de decretação “de ofício” pelo juiz, entendemos ser
substancialmente inconstitucional, por flagrante violação do sistema acusatório e da própria garantia da
imparcialidade, principio supremo do processo e, por conseqüência, do due process of law.
53
15
O próprio sistema de prisão cautelar é incompatível com a presunção de
inocência. Contudo, sobrevive, graças aos princípios da (cruel)necessidade e da
excepcionalidade, verdadeiras tábuas de salvação do pensamento liberal clássico. É um
sistema fragilmente legitimado e que não permite, jamais, qualquer espécie de
ampliação do seu campo de intervenção. Todo o oposto: sua incidência deve ser
limitada ao máximo.
Por não ser cautelar nem decorrente de sentença condenatória transitada em
julgado, a manutenção da prisão a titulo de “flagrante” é manifestamente ilegal e,
portanto, remediável pela via do habeas corpus.
Ademais, o legislador foi claríssimo ao dispor que a manutenção da prisão
somente se dará quando estiverem presentes os requisitos que autorizam a prisão
preventiva. Basta verificar o disposto no art. 310 do CPP:
Ainda que o art. 2º da “hedionda” Lei 8072/90 preveja que os crimes
hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o
terrorismo são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória, a prisão em flagrante não é
uma nova modalidade de prisão cautelar e tampouco poderá ser automaticamente
convertida em prisão preventiva, dispensando-se o juiz de motivar esse decreto. Para
manutenção da prisão é imprescindível recorrer ao instituto da prisão preventiva
fundamentando a existência de seus requisitos. E, sem não existir o periculum libertatis,
não há situação fática tutelável pela prisão preventiva. Deverá o juiz conceder liberdade
plena ao imputado. Sequer se trata de liberdade provisória, até porque, poderiam
invocar a vedação constitucional. É liberdade plena porque não há nenhuma causa
legitimante da prisão preventiva. E, novamente, o habeas corpus é o instrumento que
deve ser utilizado para estabelecer-se, processualmente, essa discussão.
Em qualquer caso, o juiz deve enfrentar a questão e justificar a necessidade do
encarceramento com base no art. 312 do CPP, fundamentando sua decisão. O que é
inadmissível é a manutenção da prisão exclusivamente com base no flagrante ou ainda,
entender que existe uma conversão automática. Pior ainda é o argumento daqueles que
pretendem ressuscitar a prisão preventiva obrigatória.
Mas a “fundamentação” não pode ser formularia, padronizada, ou esgotar-se
em uma linha, simplesmente afirmando que “foram atendidos os requisitos legais”.
Nada além disso. Considerando que o ato judicial somente encontra legitimidade
enquanto amparado pela razão e fundado na proteção dos direitos fundamentais, não
seria excesso dizer que estamos frente a um “nada jurídico”
A fundamentação da decisão judicial é imprescindível, tendo em vista a
gravidade de uma prisão cautelar. Ademais, é um imperativo constitucional, art. 93, IX
da CB.
Em qualquer país, com um processo penal medianamente evoluído, não há
lugar para uma prisão cautelar sustentada por decisões do estilo: “atendidos os
requisitos legais, homologo a prisão em flagrante. Determino a prisão preventiva para
garantia da ordem pública.”
Em definitivo, a prisão em flagrante, como medida pré-cautelar, não pode ter
vida e realidade após o prazo legal de sua duração. Deve ser prévia ao processo penal e
submetida ao crivo judicial em prazo exíguo, não existindo fundamento legal para
defender a sua “conversão automática” em prisão preventiva. Neste momento
procedimental, a única medida cautelar de natureza pessoal que pode ser adotada para
manutenção da segregação é a prisão preventiva. Para tanto, é imprescindível uma
fundamentação séria e condizente com a gravidade da medida adotada, que aponte
racionalmente a probabilidade do fumus commissi delicti e do periculum libertatis. Do
contrário, a liberdade é imperativa e tutelável pela via do writ.
16
VII. HABEAS CORPUS CONTRA PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA
DA
ORDEM
PÚBLICA
E/OU
ECONÔMICA:
AUSÊNCIA
DE
CAUTELARIDADE DA PRISÃO.
O periculum libertatis no sistema cautelar brasileiro está previsto no art. 312 do
CPP, traduzindo uma das seguintes situações tuteláveis:
- ordem pública
- ordem econômica
- instrução criminal
- aplicação da lei penal
Analisaremos agora, os dois primeiros fundamentos, para demonstrar que são
substancialmente inconstitucionais e, portanto, remediáveis pela via do habeas corpus.
Os demais (tutela da instrução e da lei penal), ainda que cautelares, estão limitados
pelos princípios da excepcionalidade, provisoriedade, provisionalidade e
proporcionalidade.
A primeira questão a ser enfrentada é: qual é o objeto da prisão cautelar? A
resposta nos conduz ainda a sua finalidade e delimita, naturalmente, seu campo de
incidência, pois a prisão cautelar é ilegítima quando afastada de seu objeto e finalidade,
deixando de ser cautelar. Nesse ponto podemos recorrer a CALAMANDREI54, segundo
o qual, nos procedimentos cautelares, mais do que o objetivo de aplicar o direito
material, a finalidade imediata é assegurar a eficácia do procedimento definitivo (esse
sim, tornará efetivo o direito material). Isso porque “la tutela cautelare è, nei confronti
del diritto sostanziale, una tutela mediata: più che a far giustizia, serve a garantire
l”efficace funzionamento della giustizia. Se tutti i provvedimenti giurisdizionali sono
uno strumento del diritto sostanziale che attraverso essi si attua, nei provvedimenti
cautelari si riscontra una strumentalità qualificata, ossi elevata, per così dire, al
quadrato: essi sono infatti, immancabilmente, un mezzo predisposto per la miglior
riuscita del provvedimento definitivo, che a sua volta è mezzo per l”attuazione del
diritto; sono cioè, in relazione alla finalità ultima della funzione giurisdizionale,
strumenti dello strumento.”55
Fica evidenciado assim, que as medidas cautelares não se destinam a “fazer
justiça”, mas sim garantir o normal funcionamento da justiça através do respectivo
processo (penal) de conhecimento. Logo, são instrumentos a serviço do instrumento
processo, por isso, sua característica básica é a instrumentalidade qualificada ou ao
quadrado.
É importante fixar esse conceito de instrumentalidade qualificada, pois só é
cautelar aquela medida que se destinar a esse fim (servir ao processo de
conhecimento). E, somente o que for verdadeiramente cautelar, é constitucional.
Com DELMANTO JUNIOR56, “acreditamos, igualmente, que a característica
da instrumentalidade é ínsita à prisão cautelar na medida em que, para não se
confundir com pena, só se justifica em função do bom andamento do processo penal e
54
Introduzione allo studio sistematico dei provvedimenti cautelari, p. 21 e 22.
“A tutela cautelar é, quando comparada com o direito material, uma tutela mediata: mais que fazer
justiça, serve para garantir o eficaz funcionamento da justiça. Se todos os provimentos jurisdicionais são
instrumentos do direito material que através deles se atua, nos provimentos cautelares encontra-se uma
instrumentalidade qualificada, ou seja, elevada, por assim dizer, ao quadrado: esses são de fato,
infalivelmente, um meio predisposto para melhor resultado do provimento definitivo, que por sua vez, é
um meio para a atuação do direito (material); são portanto, em relação a finalidade última da atividade
jurisdicional, instrumentos do instrumento.” (Tradução livre)
56
DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 83.
55
17
do resguardo da eficácia de eventual decreto condenatório.”
Nesse momento evidencia-se que as prisões preventivas para garantia da
ordem pública ou da ordem econômica não são cautelares e, portanto, são
substancialmente inconstitucionais podendo esse controle ser feito através do writ.
Trata-se de grave degeneração transformar uma medida processual, em
atividade tipicamente de polícia, utilizando-as indevidamente como medidas de
segurança pública.
Quando se mantém uma pessoa presa em nome da ordem pública, diante da
reiteração de delitos e o risco de novas práticas, está se atendendo não ao processo
penal, mas sim a uma função de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e
fundamento do processo penal.
Inadmissível, portanto, a prisão preventiva sob o argumento de “perigo de
reiteração” de condutas criminosas. Trata-se de (absurdo) exercício de vidência por
parte de julgadores, que até onde temos conhecimento, ainda não possuem um
periculosômetro (diria ZAFFARONI) a disposição.
Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para
os casos de vidência e bola de cristal) é flagrantemente inconstitucional, pois a única
presunção que a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em
relação a fatos futuros.
Recorda SALO DE CARVALHO57 que uma das principais distinções entre o
sistema inquisitivo e o acusatório-garantista se manifesta no que diz respeito à
existência de possibilidades de concreta refutação das hipóteses probatórias.
Como refutar esse exercício de vidência por parte do magistrado? Como provar
(como se o imputado tivesse que provar algo...) que no futuro não irei cometer nenhum
crime?
Ora, com a máxima vênia, esse tipo de decisão é dotada de um elevado grau de
charlatanismo e um altíssimo grau de prepotência. Ambos, completamente
inadmissíveis num processo minimamente democrático e constitucional. Nesse sentido,
cumpre trazer a colação os bem lançados argumentos da Quinta Câmara Criminal do
TJRS, no HC 70006140693, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, j. 23/04/2003:
HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS.
PRESUNÇÃO DE PERICULOSIDADE PELA PROBABILIDADE DE
REINCIDÊNCIA. INADMISSIBILIDADE.
- A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva
– que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de
regimes políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas
classes sociais (alvo do controle punitivo) – tem acarretado a proliferação de regras
e técnicas vagas e ilegítimas de conrole social no sistema punitivo, onde o sujeito –
considerado como portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se
– torna-se presa fácil ao aniquilante sistema de exclusão social. (grifamos)
- A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e carente de sólidos critérios de
constatação (fruto desta ideologia perigosista) – portanto antidemocrático - ,
facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e abstratamente
invocada – mera repetição da lei -, já que nenhum dado fático, objetivo e concreto,
há a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente,
portanto!
- A gravidade do delito, por si-só, também não sustenta o cárcer extermporâneo:
ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer espécie
57
Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen
Juris, 2001, p. 199.
18
-
delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime
70006140693, j. em 12/03/2003).
À unanimidade, concederam a ordem.
Completamente inaceitável, diante da absoluta inconstitucionalidade, a
“futurologia perigosista”, como denominou o Relator, comumente invocada para
decretar uma prisão preventiva com base na “possível” reiteração de delitos. A prisão
preventiva para garantia da ordem pública ou econômica nada tem a ver com os fins
puramente cautelares e processuais que marcam e legitimam esses provimentos, sendo o
habeas corpus o instrumento processual adequado para remediar essa ilegalidade.
Como aponta SANGUINÉ58, “quando se argumenta com razões de
exemplaridade, de eficácia da prisão preventiva na luta contra a delinqüência e para
restabelecer o sentimento de confiança dos cidadãos no ordenamento jurídico, aplacar o
clamor público criado pelo delito, etc. que evidentemente nada tem a ver com os fins
puramente cautelares e processuais que oficialmente se atribuem à instituição, na
realidade, se introduzem elementos estranhos à natureza cautelar e processual que
oficialmente se atribuem à instituição, questionáveis tanto desde o ponto de vista
jurídico-constitucional como da perspectiva político-criminal. Isso revela que a prisão
preventiva cumpre funções reais (preventivas gerais e especiais) de pena antecipada
incompatíveis com sua natureza.”
Grave problema encerra ainda a prisão para garantia da ordem pública, pois se
trata de um conceito vago, impreciso, indeterminado e despido de qualquer referencial
semântico. Sua origem remonta a Alemanha na década de 30, período em que o nazifascismo buscava exatamente isso: uma autorização geral e aberta para prender. Até
hoje, ainda que de forma mais dissimulada, tem servido a diferentes senhores, adeptos
dos discursos autoritários e utilitaristas, que tão “bem” sabem utilizar dessas cláusulas
genéricas e indeterminadas do direito para fazer valer seus atos prepotentes.
Assume contornos de verdadeira pena antecipada, violando o devido processo
legal e a presunção de inocência. SANGUINE59 explica que a prisão preventiva para
garantia da ordem pública (ou ainda, o clamor público) acaba sendo utilizada com uma
função de “prevenção geral, na medida em que o legislador pretende contribuir à
segurança da sociedade, porém deste modo se está desvirtuando por completo o
verdadeiro sentido e natureza da prisão provisória ao atribuir-lhe funções de prevenção
que de nenhuma maneira está chamada a cumprir”. As funções de prevenção geral e
especial e retribuição, são exclusivas de uma pena, que supõem um processo judicial
válido e uma sentença transitada em julgado. Jamais tais funções podem ser buscadas na
via cautelar.
No mesmo sentido, DELMANTO JUNIOR60 afirma que é indisfarçável que
nesses casos, “a prisão preventiva se distancia de seu caráter instrumental – de tutela do
bom andamento do processo e da eficácia de seu resultado – ínsito a toda e qualquer
medida cautelar, servindo de inaceitável instrumento de justiça sumária.”
Em outros casos, a prisão para garantia da ordem pública atende a uma dupla
natureza61: pena antecipada e medida de segurança, já que pretende isolar um sujeito
supostamente perigoso. È inconstitucional atribuir a prisão cautelar a função de
SANGUINÉ, Odone. “A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão
Preventiva”. In: Revista de Estudos Criminais, nº 10, p. 114.
59
SANGUINÉ, Odone. “A Inconstitucionalidade do Clamor Público como Fundamento da Prisão
Preventiva”. In: Revista de Estudos Criminais, nº 10, p. 115.
60
DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 183.
61
SANGUINÉ, Odone. Idem, ibidem.
58
19
controlar o alarma social, e por mais respeitáveis que sejam os sentimentos de vingança,
nem a prisão preventiva pode servir como pena antecipada e fins de prevenção, nem o
Estado, enquanto reserva ética, pode assumir esse papel vingativo.
Também a ordem pública, ao ser confundida com o tal “clamor público”, corre
o risco da manipulação pelos meios de comunicação de massas, fazendo com que a dita
opinião pública não passe de mera opinião publicada, com evidentes prejuízos para
todos.
Nesse sentido, destaque-se a acertada decisão da Quinta Câmara Criminal do
TJRS, no HC 70005916929, Relator Des. Amilton Bueno de Carvalho, em 12 de março
de 2003:
HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS DO
ART. 312, DO CPP. FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN
MORA. CLAMOR PÚBLICO. INADMISSIBILIDADE À PRISÃO.
- Toda espécie de prisão provisória, enquanto espetacular exceção ao
princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5°, LVII, da CF),
exige a satisfação dos requisitos gerais em matéria cautelar, quais sejam, o
fumus boni iuris e o periculum in mora. O primeiro encontra-se
consubstanciado nos indícios de autoria e prova da materialidade
(concomitantemente), ao passo que o segundo pode se manifestar na
necessidade de garantir a ordem pública (ou econômica), assegurar a
aplicação da lei penal ou, ainda, por conveniência da instrução criminal
(ao menos uma destas hipóteses deve estar presente).
- O “clamor público”, a “intranqüilidade social” e o “aumento da
criminalidade” não são suficientes à configuração do periculum in mora:
são dados genéricos, sem qualquer conexão com o fato delituoso praticado
pelo réu, logo não podem atingir as garantias processuais deste.
Outrossim, o aumento da criminalidade e o clamor público são frutos da
estrutura social vigente, que se encarrega de os multiplicar nas suas
próprias excrescências. Assim, não é razoável que tais elementos –
genéricos o suficiente para levar qualquer cidadão à cadeia – sejam
valorados para determinar o encarceramento prematuro.
- A gravidade do delito, por si só, também não justifica a imposição da
segregação cautelar, seja porque a lei penal não prevê prisão provisória
automática para nenhuma espécie delitiva (e nem o poderia porque a
Constituição não permite), seja porque não desobriga o atendimento dos
requisitos legais em caso algum.
- À unanimidade, concederam a ordem.
Obviamente que a prisão preventiva para garantia da ordem pública não é
cautelar, pois não tutela o processo, sendo, portanto, flagrantemente inconstitucional,
até porque, nessa matéria, é imprescindível a estrita observância do principio da
legalidade e da taxatividade. Considerando a natureza dos direitos limitados (liberdade e
presunção de inocência), é absolutamente inadmissível uma interpretação extensiva (in
malan partem) que amplie o conceito de “cautelar” até o ponto de transformá-la em
“medida de segurança pública”.
Por fim, a prisão para garantia da ordem econômica é resultado da
influência do modelo neo-liberal e seria risível se não fosse realidade. Num país pobre
como o nosso, ter uma prisão preventiva para tutelar o capital especulativo, envergonha
o processo penal. É elementar que se o objetivo é perseguir a especulação financeira, as
transações fraudulentas, e coisas do gênero, o caminho passa pelas sanções à pessoa
20
jurídica, o direito administrativo sancionador, as restrições comerciais, mas jamais pela
intervenção penal, muito menos de uma prisão preventiva.
Como acerto, DELMANTO JUNIOR62 aponta que “não resta dúvida de que
nessas hipóteses a prisão provisória afasta-se, por completo, de sua natureza cautelar
instrumental e/ou final, transformando-se em meio de prevenção especial e geral e,
portanto, em punição antecipada, uma vez que uma medida cautelar jamais pode ter
como finalidade a punição e a ressocialização do acusado para que não mais infrinja a
lei penal, bem como a conseqüente desestimulação de outras pessoas ao cometimento
de crimes semelhantes, fins exclusivos da sanção criminal.”
Novamente estamos diante de uma medida que não é cautelar, sendo
igualmente inconstitucional, conforme explicamos anteriormente ao tratar da prisão para
garantia da ordem pública, sendo desnecessário repetições.
Por fim, sublinhamos a importância do habeas corpus para controle dessas
ilegalidades e pronto restabelecimento da liberdade do paciente nesses casos.
VIII. O HABEAS CORPUS COMO INSTRUMENTO DE COLLATERAL
ATTACK
O alcance do writ não só se limita aos casos de prisão, pois também pode ser
utilizado como instrumento para o collateral attack, possibilitando que seja uma via
alternativa de ataque aos atos judiciais, e inclusive contra a sentença transitada em
julgado.
Tanto pode ser utilizado no inquérito policial como também na instrução. A
primeira decisão judicial que pode ser atacada pelo habeas corpus é a que recebe a ação
penal, seja ela denúncia (em caso de ação penal pública, cujo titular é o Mistério
Público) ou queixa-crime (delitos de ação penal privada em que o titular é o ofendido).
A acusação (denúncia ou queixa) poderá ser:
- Recebida e iniciado o processo penal com a posterior citação do acusado.
- Não se recebida, por falta dos pressupostos do art. 41 do CPP.
- Rejeitada, nos casos do art. 43 (atipicidade, prescrição, falta de legitimação ou de
outro requisito legal).
Na segunda situação poderá o sujeito ativo recorrer em sentido estrito. No
terceiro e último caso, poderá recorrer ou propor uma nova ação, sanado o defeito
formal. A primeira situação é, em regra, irrecorrível. A decisão que admite o trâmite da
ação penal é interlocutória e não está contemplada nos casos impugnados pelo recurso
em sentido estrito. Trata-se de uma decisão crucial, pois o início do processo penal
causa um sério gravame ao sujeito passivo. Em nossa opinião, é exatamente nesse
momento que se verifica uma das mais graves lacunas do processo penal brasileiro. Não
existe uma “fase intermediária”63 em que as partes se manifestam contraditoriamente
acerca das provas da investigação. Faz falta um juízo de pré-admissibilidade e
contraditório da acusação. Diversos processos absolutamente infundados poderiam ser
evitados se existisse esse “filtro”, e essa grave lacuna possibilita que eles tramitem até a
sentença, causando um sério prejuízo para o acusado, para a sociedade e para o Estado.
Para apaziguar um pouco esse grave problema, agravado pela irrecorribilidade
do ato, a jurisprudência tem entendido ser adequado o habeas corpus com a finalidade
62
DELMANTO JUNIOR, Roberto. As Modalidades de Prisão Provisória e seu Prazo de Duração, p. 192.
As previsões de uma defesa prévia existente nos ritos dos crimes praticados por servidores públicos e
na nova lei de tóxicos são minimalistas e imperfeitas, na medida em que não constituem uma autêntica
fase intermediária, oral e contraditória de admissibilidade da acusação.
63
21
de “trancar” o processo (e não a ação). Sem embargo, os tribunais têm considerado que
o writ só pode ser utilizado quando é inequívoca a atipicidade do ato, por falta de
indícios razoáveis da existência ou da autoria. Trata-se de medida excepcional posto que
o habeas corpus é uma ação sumária que não possibilita uma análise completa da prova.
A previsão legal de tal medida encontra-se no art. 648, I do CPP, pois não existe uma
“justa causa” para o processo nesses casos.
Sem embargo, existem no processo penal outros atos que inclusive sem
determinar a prisão do acusado, podem ser considerados como coação ilegal. É o
caso de uma decisão judicial de intervenção corporal em que se viola um direito
fundamental do acusado; quando se opera a prescrição em meio ao processo e o juiz não
determina sua extinção; quando não obstante a existência de uma nulidade absoluta, o
processo segue tramitando, etc.
Por fim, deve-se destacar que pela via do habeas corpus se pode inclusive r
ealizar o controle difuso da constitucionalidade64 de uma norma. Com o habeas
corpus pode ser exercido o controle indireto, é dizer, argüir e obter a declaração de
inconstitucionalidade de uma norma, ante qualquer juiz ou Tribunal. Todos os membros
do Poder Judiciário podem conhecer da alegação de inconstitucionalidade pela via de
exceção, através de uma alegação da defesa.
IX. O HABEAS CORPUS CONTRA ATO DE UM PARTICULAR
É possível a utilização do writ contra ato de particular, seja pessoa física ou
jurídica (evidente que eventual responsabilidade penal pela ilegalidade recairá sobre as
pessoas físicas, responsáveis pela empresa). O ponto nevrálgico está em definir os casos
em que se deve simplesmente chamar a polícia e quando deve ser interposto o habeas
corpus.
Situações assim podem ocorrer nos casos de restrições de liberdade realizadas
por seitas religiosas; estabelecimentos hospitalares (não concedendo “alta” do paciente
até que a conta seja paga); internações de doentes mentais ou de dependentes químicos
em clínicas contra sua vontade; internações de idosos, contra sua vontade, por parte da
família, em clínicas geriátricas, etc.
São situações em que a ilegalidade da detenção nem sempre é evidente, a ponto
de bastar a intervenção policial. Na explicação de ORTELLS RAMOS65: “si el acto de
privación o restricción de la libertad carece de toda apariencia de legalidad el medio de
protección indicado no es el habeas corpus, sino la autotutela y las actuaciones de los
poderes públicos en caso de delito (art. 13 LECrim: dar protección a los perjudicados).”
Nos casos em que não se pode fazer um juízo apriorístico sobre a ilegalidade
do ato, a ponto de a intervenção policial ser suficiente, o writ constitucional será o
instrumento adequado. São exemplos:
- Tribunal de Justiça de São Paulo (RT 577/329): “Constrangimento ilegal: filho que
interna seus pais de 80 anos de idade, contra suas vontades, em uma clínica geriátrica.
Pessoas não interditadas e com casa para viver. Decisão de habeas corpus (concedida
pelo juiz) e mantida”.
- Tribunal de Justiça de Minas Gerais (RT 574/400): “Caracteriza a coação ilegal
sanável pelo remédio heróico o ato da direção do hospital que impede a saída do
paciente até que sejam pagas as contas hospitalares”.
64
65
Também, sobre o tema, PONTES DE MIRANDA, História e Prática do Habeas-Corpus, p. 490.
ORTELLS RAMOS, Manuel, et alii. Derecho Jurisdiccional, p. 451.
22
Mas isso nos conduz a outro problema: o habeas corpus é uma ação de
cognição sumária. Existe uma limitação na cognição que exige o emprego das técnicas
de sumarização horizontal e vertical, impedindo o julgador de fazer uma ampla análise
da questão fática (plano horizontal – prova do fato) e jurídica (plano vertical).
Daí porque, em se tratando de internações compulsórias de incapazes,
dependentes químicos e situações similares, a discussão acerca da legalidade do ato
pode exigir uma ampla cognição e produção de prova, não sendo o habeas corpus o
instrumento processual adequado.
Sem embargo, obviamente não há mais espaço para regras absolutas e, em
situações extremas, pode-se admitir o writ, especialmente quando:
a) as condições em que estiver o detido sejam desumanas, colocando em risco sua
integridade (situação em que se poderá, inclusive, apurar eventual prática de outro
delito);
b) em que pese a sumariedade do habeas corpus, possa o juiz ou tribunal se convencer
da ilegalidade da detenção. Significa dizer que, não obstante a limitação probatória, a
prova produzida baste para o convencimento do julgador.
Nos demais casos, em que é exigida uma ampla discussão e análise da prova, o
writ não é a via adequada, cabendo ao interessado buscar na esfera cível alguma outra
medida (até mesmo cautelar, reservando a tutela exauriente para a ação principal)
processual.
X. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A importância processual e, acima de tudo, democrática, do habeas corpus
exige que se faça uma constante (re)leitura do seu cabimento e aplicação. Mas uma
leitura nessa linha, de democratização do processo penal. Uma democratização que
resgate a noção de fortalecimento do individuo e, por conseqüência, do valor liberdade.
Porque constantemente esquecido (ou desprezado) pelos paleopositivistas de
plantão, nunca é excesso sublinhar que o processo penal e o habeas corpus em especial,
são instrumentos a serviço da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais do
individuo submetido ao poder estatal. A forma aqui é garantia, mas garantia do
individuo.
Daí porque, assusta o formalismo às avessas apregoado por muitos juízes e
tribunais para cercear a eficácia e o alcance do habeas corpus, quando deveria ser todo
o oposto. Assusta a ignorância jurídica e o desprezo com que, muitas vezes, os tribunais
lidam com o tempo do outro, tardando semanas (quando não, meses) em decidir sobre a
liberdade alheia, como se o tempo intra-muros não fosse demasiado doloroso e cruel;
assusta quando nos deparamos com julgadores que afirmam “ter por princípio não
conceder liminares” (!!) ou ainda, que “sempre pede informações para estabelecer um
contraditório com o juiz da causa” (como se isso existisse!); assusta quando se opera
uma verdadeira inversão probatória, exigindo que o réu (preso!) faça prova (ou melhor,
alivie a carga probatória do Ministério Público, ao arrepio da presunção de inocência);
assusta quando nos deparamos com julgadores que, absorvidos pelo discurso de limpeza
social, passam a atuar como guardiões, não da liberdade, mas sim da (sua) lei e ordem,
abandonando o papel de garantidores, para assumirem as vestes (ou a toga, o simbólico
é o mesmo) de responsáveis pelos sistema imunológico social, (ab)usando e
banalizando as prisões cautelares e fazendo pouco caso dos apelos de quem está preso;
assusta quando lemos uma súmula 691 do STF e, pior ainda, quando verificamos sua
plena aplicação (por alguns que até vociferam contra ela, mas a aplicam, pois no fundo
(no inconsciente, se preferirem) gozam com o mandamento do pai-tribunal)...
23
Nesse cenário, e desde o nosso local, só nos resta seguir dando fala a quem
dispõe apenas da proto-palavra (DUSSEL), lutando para que não reduzam o habeas
corpus a um mero golpe de cena, um mero simulacro. Lutando para que ele volte a ter
sua dimensão de ação constitucional e, principalmente, instrumento emancipatório, a
serviço da democracia. Um lugar de onde nunca deveria ter sido retirado por aqueles
que JACINTO COUTINHO66 define como “mercadores de imagens; homens da ordem;
e da lei se lhes interessa; maniqueístas interesseiros porque, pensando-se do bem (são
sempre os donos da verdade, que imaginam existir, embora cada vez mais, mostre-se
como miragem) elegem o mal no diferente (em geral os excluídos) e pensam, no estilo
nazista, em coisas como um Direito Penal do Inimigo. Personalidades débeis, vendem a
alma ao diabo (ou a um deus qualquer como o mercado) para operar em um mundo de
ilusão, de aparência, e seduzir os incautos. Parecem pavões, com belas plumas
multicoloridas, mas com os pés cheios de craca.”
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