EDIÇÃO 08 | MARÇO DE 2014 | FASE II

Anuncio
EDIÇÃO 08 | MARÇO DE 2014 | FASE II
2
00 | EDITORIAL | Breves anotações sobre livros & livros | Pg 04
01 | ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | André Breton libertário e automatista | Pg 11
02 | CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo e filosofia | Pg 19
03 | DAVID CORTÉS CABÁN | Conocerse es el relámpago: Caballo de palo, de Clemente Soto
Vélez | Pg 31
04 | EDUARDO DALL’ALBA | As poéticas do grupo Matrícula | Pg 42
05 | FEDERICO RIVERO SCARANI | El simbolismo en la obra de Julio Inverso | Pg 52
06 | GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Tropicalismo y Europeismo en la literatura venezolana:
Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll vistos por Miguel de Unamuno | Pg 56
07 | HAROLD ALVARADO TENORIO | Hace 145 años nació Rubén Dario | Pg 62
08 | HÉCTOR ROSALES | María Meleck Vivanco, iluminada por el fuego | Pg 67
09 | JOSÉ ALCÁNTARA ALMÁNZAR | Reencuentro con Héctor Incháustegui Cabral | Pg 70
3
10 | JULIO MENDONÇA | Qorpo-Santo: o poeta que escreveu o contrário do que pensava | Pg
76
11 | LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA | A origem da escrita | Pg 81
12 | MARLISE BASSFELD-MUHME | A arte de Ana Luisa Kaminski | Pg 90
13 | NICOLAU SAIÃO | A face oculta do planeta | Pg 93
14 | OMAR CASTILLO | Lo subversivo en La valija de fuego de Aldo Pellegrini | Pg 103
15 | PAULO SPOSATI ORTIZ: Thomas Rain Crowe e os Postais do Peru | Pg 106
16 | RICARDO MATTOS | Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva | Pg 115
17| RICARDO ROQUE BALDOVINOS | Piedra y Siglo: breve historia de un colectivo poético |
Pg 125
18 | RODRIGO BARBOSA DA SILVA: A voz & o silêncio: a geometria do espírito em A origem
Diágora, de Jota Medeiros | Pg 132
19 | RUBÉN SICILIA | Entre Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski: Fascinación, Desafío y Éxtasis
| Pg 142
20 | TERESA SÁ COUTO | Poesia de José Emílio-Nelson: a lanterna do feio | Pg 164
ARTISTA CONVIDADO | ENRIQUE GRANELL - JUAN-EDUARDO CIRLOT - RICARDO
SENABRE | Tres veces Antonio Beneyto y las voces de la crítica | Pg 168
4
EDITORIAL | breves anotações sobre livros &
livros
Em geral o espaço de discussão sobre mercado de livro deve agrupar categorias como
pequeno e grande mercado, assim como mercado local, nacional e internacional. Uma vez
observado como mercadoria, o livro se iguala a qualquer outro objeto de consumo. Dentre
outras coisas, portanto, desaparece a lógica que enlaça autor e leitor, assumindo o comando
das ações uma outra lógica que rege as relações entre produtor e consumidor. O autor de
livro passa a importar unicamente pelo resultado de vendas ou sua perspectiva mais
imediata. Este mercado, igual a qualquer outro, tem suas próprias leis e a cultura, entendida
como um princípio de conteúdos que expressam a grandeza de um povo, não tem poder de
voto em suas estatísticas, não influencia as diretrizes comerciais. Evidentemente que muitos
aspectos podem ser evidenciados de maneira distinta ao tratamento que se tem da
mercadoria em outros mercados. Mas nada define melhor uma mesa de reuniões quanto
estimativas de venda e eficácia de seus mecanismos. E como em todo mercado, uma das
estratégias de grande eficiência é a homogeneização do produto.
Não se diz aqui nada de novo, mas é bom lembrar porque em geral escritores, sobretudo
escritores que não vendem ou simplesmente não conseguem editoras para seus livros,
reclamam acerca da voracidade mercantil de editores. Estes, caso passassem a ser editores,
seguramente atuariam da mesma maneira que hoje recriminam. Dois outros aspectos
curiosos dizem respeito às categorias que acima mencionei. Em primeiro lugar há um
abismo quase intransponível entre pequeno e grande mercado de livros. Por uma série de
fatores, que envolve temas como impostos, marketing, distribuição, pequenas editoras estão
como que condenadas a manter esta situação, quando muito chegando à categoria de média
editora. Por outro lado, internacionalização de mercado de livros não atua em favor de seu
correspondente local. Exemplo disto é que as grandes editoras internacionais não costumam
internacionalizar seu catálogo, limitando à praça local aqueles autores que são por elas
editados em cada país. Assim é que um autor brasileiro editado no Brasil pela Planeta ou um
argentino editado na Argentina pela Alfaguara raramente alcança uma distribuição
internacional de seu livro. Os livros verdadeiramente internacionalizados o são obedecendo
a outra lógica, e uma lógica que hoje prima cada vez mais pela homogeneização. Como certa
vez afirmou um editor brasileiro, o futuro (hoje já um presente avassalador) do mercado de
livros não contempla a edição do livro de qualidade. Mas o que vem a ser o livro de
qualidade?
Em primeiro lugar, o termo tem que ser entendido como um princípio. Não se trata de
dizer que não há livros de qualidade nas livrarias atualmente. Tampouco se pode pensar que
todos aqueles autores que não encontram lugar no mercado de livros são vítimas de uma
circunstância impiedosa. Não esquecer, por último, que estamos falando aqui de literatura,
não cabendo em nossa pauta discutir outras ofertas deste mercado, tais como livros
didáticos e religiosos. O livro de qualidade atende a um princípio de sensibilidade estética,
de avaliar suas características literárias, inclusive aquelas que exijam um pouco mais de
investimento em sua aclimatação ao mercado. Evidente que isto foge da zona de interesse de
qualquer mercado, onde impera a estratégia de redução de custos visando obter maior
rendimento. Tudo que contradiga tal lógica é inaceitável. Assim que o autor de qualidade,
por princípio, não terá jamais oportunidade alguma. Outro aspecto que o grande mercado
descarta por completo é a perspectiva de patamares de venda distintos de acordo com a
natureza da oferta. Podemos pensar rapidamente aqui em termos de gêneros literários, onde
a poesia venderá sempre menos que o romance e este mais do que o teatro, o que não
significa dizer que sejam irrisórias as estatísticas no teatro e na poesia. O que se passa é que
já se estabeleceu um círculo vicioso, de preconceitos e incompetência empresarial – neste
5
caso da parte dos pequenos editores que não fazem senão sonhar com o dia em que serão
grandes editores, estupidamente adotando, desde já, a mesma lógica do grande mercado.
Pequenos editores poderiam ser os notáveis responsáveis pela edição do livro de qualidade,
investindo em difusão, buscando parceria institucional (incluindo rádio e televisão), inclusive
desenvolvendo projetos internacionais a médio custo. Mas infelizmente são raros os que
atuam nesta direção. E o grande mercado agradece que sua concorrência seja tão
insignificante.
Acrescente-se a tudo isto um outro fator: o comportamento do autor frente aos aspectos
aqui anotados. Sigo falando em termos de princípio, o que significa dizer que as exceções
não se ausentam de minha perspectiva. Ao contrário, fazem o que sempre fizeram:
confirmam a regra. Em geral escritores estão perdidos, buscando a todo custo agradar a este
mercado que o suga de todas as maneiras. Conheço bons poetas que deixaram de lado a sua
poesia e passaram a escrever uma narrativa inconseqüente, quase sempre medíocre, na
expectativa de assim encontrar editora. E não esqueçamos ainda, ao montar este cubo
mágico das relações entre componentes do mercado editorial, a presença da mídia, que
astutamente soube erradicar o que antes conhecíamos como crítica literária, deixando o livro
a mercê de breves comentários que em muitos casos não passam de uma linguagem de
release. Evidente que trato de desenhar este quadro não como desestímulo à discussão, mas
sim como um alerta de que terá que ser outra a estratégia de enfrentamento do tema. Antes
de avançar em alguns aspectos que considero pertinentes evocar, queria deixar aqui o
depoimento de um editor brasileiro, dado em 2007 e que permanece atual:
Quero fazer livro. Posso até ter prejuízo, mas preciso estar no mercado. E o que é que eu,
pequenininho, faço para chegar até uma pessoa numa grande rede? Primeiro, o cara vai
me deixar quatro horas sentado, esperando. Depois, vai me olhar, ver meus livros e dizer:
“Esse eu quero”. Eu pergunto a ele: “Ah, por que você quer esse?” E ele: “Porque gostei da
capa”. Pergunto se ele não quer ouvir algo sobre aquele livro. “Não.” Ele não tem tempo
para me ouvir. Isso é decepcionante, me frustra muito. Não acompanho mais meu gerente
na hora de vender um livro. Porque meu gerente me dizia: “Vamos comigo, para você falar
do livro, você fala melhor do que eu”. É um desastre. Porque eu falo melhor do que ele, sim,
mas o cara que está do outro lado não quer me ouvir. Ele não tem tempo. […] Então você
tem que ter uma capa vendedora. E uma orelha vendedora com poucas palavras – porque
ele também não tem tempo para ler a orelha. E tem que ter uma quarta capa com aquela
frase: “Pá!” E não pode ter só um título: tem que ter título e subtítulo.
[…]
Outra coisa: reunião de conselho editorial de uma grande editora. Você está lá,
entusiasmado com um livro: “Ele tem uma alta qualidade literária”. Ih, alta qualidade
literária? O diretor financeiro, com a calculadora na mão, fala: “Opa, isso aí foi bem lá
fora? Entrou na lista do New York Times?” Não, e que diferença faz? A biografia de
Darwin que eu editei nunca entrou em listas lá fora e vendeu 50 mil exemplares no Brasil.
A menina que roubava livros [1] é um fenômeno brasileiro. O monge e o executivo [2] só
vende no Brasil. O seu autor, nos Estados Unidos, é um palhaço. Ninguém o leva a sério. No
Brasil, ele é fantástico. Ele deve pensar: “Rapaz, esses brasileiros são ótimos”. Porque lá, nos
Estados Unidos, ele não é nada. Faz palestras por dois mil dólares. Mas pagam 150 mil
para ele vir para cá. O Brasil é realmente um país fantástico. [3]
Note que em 2007 ainda não havíamos entrado com essa voracidade hoje existente na
relação entre cinema e romance, a rigor uma eficiente parceria comercial que tem sido
responsável por essa homogeneização tanto da literatura quanto do cinema. De qualquer
maneira, vale aqui observar que o depoimento acima não é de um autor e sim de um editor.
Ou seja, dentro do próprio mercado é possível encontrar uma leitura correta de suas falhas,
justamente da parte de alguém que se sente indignado ante a degradação intelectual, o
empobrecimento da literatura e o profundo desrespeito com relação ao leitor. Portanto, se
6
estamos interessados em discutir sobre livro de qualidade na América Latina ou abordar o
nível de integração cultural, a partir da literatura, entre nossos países, terá necessariamente
que ser outro o ângulo de observação.
Como bem sabemos não há sistemática naquilo que se poderia chamar de integração
cultural em nosso continente. As poucas ações registradas nessa direção são casuais e
raramente encontram apoio ou são frutos de iniciativa do meio institucional. Recordo que
ainda nos anos 1980, quando eu começava a preparar as entrevistas que iriam compor o
livro Escritura Conquistada, na correspondência que mantive com vários poetas em toda a
América Hispânica, sempre que tocávamos neste hiato existente entre nós, a observação se
repetia, da omissão das missões diplomáticas de nossos países no sentido de se
proporcionar um intercâmbio de bens culturais. Poetas como Javier Sologuren, Juan Liscano,
Fernando Charry Lara, tinham sempre a mesma crítica em relação ao abismo cultural que se
verificava entre Peru, Venezuela, Colômbia e Brasil. O mesmo acontecia em relação aos
demais países. Alguém possivelmente deve apontar uma exceção, a de Hilda Scarabótolo de
Codina e as edições tão bem cuidadas, de autores brasileiros, publicadas em Lima através do
Centro de Estudos Brasileiros. Outro exemplo, absolutamente isolado, até pelo seu
gigantismo e amplo raio de ação, é o da Fundación Biblioteca Ayacucho, na Venezuela. Algo
mais? Vamos ao mercado privado. Há algum caso de coleções específicas de literatura
argentina, literatura chilena, literatura paraguaia? Autores nossos são publicados em nossos
países apenas esporadicamente. Quase sempre como reflexo de um prestígio internacional
alcançado por suas obras. Tragicamente concluímos que não estamos interessados em nós
mesmos. Agora, imenso e sem fundo é o mapa das oportunidades perdidas. Um desses casos
curiosos é o da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, no Brasil. Publicação
de luxo, esta revista circula semestralmente há 20 anos, sempre dirigida por destacados
poetas brasileiros. É sua característica editorial dedicar cada número a um país. No entanto,
em seus mais de 30 números publicados até aqui, apenas duas tradições líricas latinoamericanas foram contempladas: México e Peru. Na edição dedicada ao Peru, o então editor
Marco Lucchesi observa, em suas palavras iniciais:
Algumas pontes desafiam a distância Brasil-Peru, como as edições de Ciro Alegria, Scorza,
Llosa, Mariátegui, além da antologia El río hablador, de Everardo Norões, marco recente
nesse diálogo que se mantém vivo, e há muitos anos, graças também à inspiração de
Floriano Martins, com seu passaporte poético latino, que não teme aduanas de fundo
ideológico.
A ele coube a tarefa de preparar uma seleção da poesia contemporânea do Peru. A escolha
demonstra ao mesmo tempo a mestria do recorte e a fineza da tradução. A começar pelo
diálogo instigante entre Carlos Germán Belli, Hildebrando Pérez Grande, Pedro Granados e
Rossella di Paolo, que prepara o leitor para a antologia. [4]
No diálogo a que se refere Marco Lucchesi, tratei de indagar a respeito da ausência de um
estreitamento de relações entre as literaturas brasileira e peruana, ocasião em que Carlos
Germán Belli mencionou “uma efêmera aproximação, como foi o programa editorial que,
graças aos esforços da escritora Vera Pedrosa, adida cultural brasileira nos anos 1970, e da
escritora Hilda Scarabótolo de Codina, residente em Lima e funcionária da embaixada
brasileira, foi levado a cabo com grande brilho e rigor acadêmico até superar uma centena de
títulos.” Germán Belli observa ainda que “na maior parte dos casos eram mostras antológicas
de poetas brasileiros de todos os tempos, traduzidos por autores peruanos”. [5] Todo um
projeto de grande e indiscutível excelência, porém isolado no tempo. O que persiste é o
descuido ante o que deveria ser uma preocupação permanente de conhecimento mútuo e
correspondência entre essas literaturas. Quero aqui reproduzir as palavras do Hildebrando
Pérez Grande com que finaliza sua participação neste mesmo diálogo. Diz ele:
7
Penso que devemos estimular os encontros, os estudos, as traduções. Há que fomentar uma
política editorial que nos permita difundir de maneira massiva nossas melhores obras e
aprofundar o conhecimento de nós mesmos. Academicamente, posso dizer que na
Universidad Nacional Mayor de San Marcos são ditados, pois estão em nosso plano de
estudos, dois cursos de literatura brasileira a cada ano acadêmico. Os jovens estudantes de
nossa universidade conhecem tanto a poesia quanto a narrativa brasileira. E nas Oficinas
Literárias de San Marcos e na Ruiz de Montoya, nossos jovens criadores se familiarizam
com a melhor porção da literatura brasileira. Há que estimular a leitura e a tradução e a
difusão de nossas literaturas em cada um de nossos países. [6]
Em 2007, estive à frente de um projeto-piloto a que intitulamos “I Encontro de Agentes
Culturais – América Hispânica”, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. A
ideia era criar um fórum de discussão sobre estrutura e conteúdo da próxima edição da
Bienal Internacional do Livro do Ceará, evento cuja curadoria então caberia a mim. Por uma
semana reunimos em um teatro em Fortaleza representantes eleitos por nós em países como
Colômbia, Peru, México, Venezuela, Chile e República Dominicana. Um segundo encontro
teria lugar, já em 2008, dentro do próprio espaço da Bienal. O tema central de nossas
conversas girou em torno do comportamento das feiras internacionais de livros, em nossos
países, no tocante ao livro e ao escritor. Os depoimentos apontavam todos em uma mesma
direção. A convidada colombiana, Amparo Osorio, diretora da Editorial Común Presencia,
observou que:
É lamentável que as feiras do livro não estejam orientadas para uma difusão da literatura
propriamente dita. São empresas com interesse econômico, o que as torna excludentes de
valiosas literaturas e cúmplices econômicas das grandes editoras agora dedicadas à
publicação de obras banais. […] Isto nos leva a pensar na urgência de adiantar
negociações entre escritores, editores e feiras a fim de pactuar uma cota importante de
leitura e formação, que precisamente afaste essa cultura do espetáculo em que se
converteram estes eventos. [7]
A partir deste fórum, ampliando a rede de representantes para todos os países hispanoamericanos, assim como incluindo a Espanha e os países de língua portuguesa em todo o
mundo, em 2008 foi montada, no Ceará, nordeste do Brasil, uma primeira feira do livro que
buscava equilibrar as forças até aqui referidas, não descuidando da área comercial, porém
sem levar prejuízo à exposição de livros de qualidade, assim como objetivando um espaço
mais amplo de reflexão em torno da literatura e seus mecanismos, não convertendo o
ambiente da feira em mero palco de espetáculos. O próprio anúncio da Bienal já deixava bem
clara a sua pauta de novas propostas:
O tema da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará é A aventura cultural da mestiçagem,
o qual abrange duas comunidades lingüísticas: a portuguesa e a espanhola e, ainda, suas
manifestações artísticas e culturais, totalizando 30 países situados em quatro continentes:
África, América, Ásia e Europa. A ousadia de tal abrangência desloca o foco habitual das
programações literárias de outros eventos similares, concentrando-se aqui em evocar a
multiplicidade de culturas e a condição mestiça de suas raízes. […] Motivada pelo tema
central, a programação da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará estará comprometida
com a integração das culturas envolvidas, reconhecendo seus hábitos, costumes e
literatura, e com a democratização e a mobilização do acesso universal ao livro, à leitura e
à produção literária. Serão realizadas atividades baseadas na promoção e geração de
conhecimentos destinados ao público. […] As sessões literárias incluem palestras, debates,
leituras de poemas, encontros especiais, lançamentos de livros. Esta agenda foi
configurada, por sua vez, a partir do tema central. Os debates contemplarão assuntos
como produção e circulação de revistas e suplementos literários, casas de cultura, política
8
cultural dos centros de estudos brasileiros na América Hispânica, movimentos
contraculturais, circuito editorial universitário, encontros internacionais de escritores,
dentre outros. Já as palestras tratarão de aspectos ligados aos fundamentos da
mestiçagem, jornalismo cultural e obras literárias, considerando particularidades regionais
e continentais dos países envolvidos. […] Haverá ainda uma integração entre segmentos da
criação artística, produção cultural e mídia, envolvendo uma série de salas permanentes
que, no decorrer dos 10 dias de realização da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará,
por meio das quais será permitido um convívio entre público, escritores, artistas e
produtores culturais. Ao todo haverá um conjunto de 9 salas, assim distribuídas: Arena
Jovem, Arte Postal & Poesia Visual, Artes e Ofícios, Cordel, Gravuras, Música, Rádio,
Revistas e Vídeos. Outro diferencial é a criação de um espaço intitulado “Ilha dos
Continentes”, cuja área de 234m² destina-se a receber editoras estrangeiras que, em geral,
não dispõem de condições de participar de eventos internacionais.
Coube ao jornalista Lira Neto – hoje um destacado nome no ambiente cultural no Brasil,
graças às biografias que vem escrevendo de nomes fundamentais de nossa cultura – fazer a
entrevista que funcionaria como carta de princípios da Bienal. Conversamos abertamente
sobre as novas propostas e sobre o que eu considerava uma série de desgastes no formato
das feiras de livro no país. Em certo momento, Lira Neto indagou a respeito do esgotamento
das sessões literárias, oportunidade em que fiz a seguinte aclaração:
Acho que há um desequilíbrio nas razões culturais e de mercado que atuam em eventos
desta natureza. Maior acento na área de mercado implica em demasiada dependência de
suas cotações e exposições de mídia. Estes aspectos podem, em geral, assumir uma
conotação negativa em um ambiente cultural fragilizado como o que temos hoje no Brasil.
Posso ser acusado de eufemismo, porém tento aqui apenas evitar cair em seu revés, o
sentido catastrófico derrotista. O fato é que é preciso evitar simplificações e reiterações
temáticas na formatação das sessões literárias, inclusive qualificando o mediador das
mesas de maneira a não permitir que as explanações dos convidados caiam no vazio, sem
que os encontros produzam tanto um enriquecimento crítico no público quanto
perspectivas de parcerias entre as partes envolvidas. Posso dar aqui dois exemplos,
referentes a mesas de debate: uma delas reúne diretores dos mais atuantes Centros de
Estudos Brasileiros existentes na América Hispânica, o que nos permitirá uma avaliação do
comportamento do Itamaraty e sua política cultural no tocante à integração continental;
uma outra mesa, com dupla jornada, reúne algumas das principais editoras universitárias
do país, ocasião em que evocará aspectos como planejamento editorial e distribuição. As
próprias sessões de leitura de poemas serão mais abrangentes, permitindo aos poetas
comentarem sobre sua poesia e responder a perguntas do mediador e do público. Enfim,
trata-se de dar mais substância ao evento. [8]
Estatísticas de presença de público e acompanhamento de registro de imprensa atestam
em favor de um êxito na realização desta Bienal, embora algumas das propostas de mudança
não tenham obtido o resultado desejado. Hoje me parece que é natural que assim tenha
ocorrido, considerando a alta aposta de revitalização do modelo em curso. No entanto,
observo com curiosidade que certos vícios são mais persistentes do que outros. Neste caso a
grande contrariedade, sobretudo pro parte da imprensa – o que torna o aspecto ainda mais
curioso – era a de que estávamos fazendo uma Bienal sem nomes conhecidos. Questiona-se
aí a função do Estado ao promover um evento desta natureza, que não deve ser a de
acomodar-se ao terreno estabelecido e sim tratar de inovar em ofertas de qualidade.
Evidencia-se também a preocupação única da imprensa com a veiculação fácil de material já
amplamente identificado por seu cliente, o público consumidor de mídia. Não há como sair
do imobilismo cultural desta maneira. Muito pelo contrário, agindo assim a tendência será –
e já vemos isto de forma assustadora – tornar-se cada vez mais refém desse mecanismo,
9
fazendo concessões na direção de uma homogeneização e conseqüente empobrecimento dos
bens culturais. Como era ideia da curadoria da Bienal, o Governo do Estado deveria avançar
em outras atividades, sobretudo no intervalo existente entre esses eventos, seja através da
realização de pequenos eventos ou da criação de um selo editorial. Em 2009 houve a
oportunidade de levar a Fortaleza parte substanciosa da diretoria da Fundación Casa de las
Américas, por ocasião dos 50 anos de existência da mesma. Também foi criada uma coleção
de livros, por onde se editou livros do nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, do argentino
Juan Gelman e uma antologia de poesia mexicana – o que apontava na direção de uma
grande e substanciosa novidade, a de que o Estado poderia criar uma política cultural de
aproximação concreta com a América Hispânica. Nova Bienal é projetada para 2010 e uma
vez mais fui convidado para ser o seu curador. Durante sua preparação, no entanto, repetiase a insistência, agora já internamente, no próprio ambiente institucional, de que a Bienal
deveria promover aqueles nomes mais destacados em termos de mídia, voltando a
prevalecer uma política de espetáculo. Lamentando que não fosse possível mais dar
seqüência ao projeto original, achei por bem me afastar da curadoria.
Trato de persistir de outras maneiras nesta obsessão por um diálogo aberto entre nossas
culturas. Vale aqui mencionar que historicamente a grande vanguarda neste sentido de
integração sempre esteve nas mãos dos diretores de revistas, sobretudo aquelas não
institucionais. Em geral poetas, eles mesmo que também se encontram à frente na
coordenação dos festivais internacionais de poesia que hoje são parte da agenda cultural de
vários países, exceto no Brasil, onde o modelo foi preterido pelo que se chama de Festa
Literária, a rigor mais um palco de espetáculos realizados em função do mercado de livros.
Esta estranha relação entre livro e autor no Brasil tem uma singularidade impressionante.
Em meu país o lançamento de livros é um evento unicamente comercial, do qual o autor
participa tão-somente para autografar os livros vendidos. Esta prioridade comercial assume
tal proporção que o espaço comum ao lançamento de um livro, que seria uma livraria, pode
ser substituído facilmente por bares ou clubes sociais. Já se pode falar hoje em adesão de
um novo instrumental de difusão de bens culturais que é a Internet, pela criação de bancos
de consulta e de revistas com pauta expressiva. De qualquer modo, estamos ainda tratando
de aspectos isolados, que exigem sistematização e ampliação constante. É nesta direção, no
entanto, que parece ser possível rever perspectivas para o livro de qualidade em nosso
continente. Particularmente não tenho talento para otimismos aleatórios, assim que me
mantenho na feição de um pessimista produtivo. Uma olhada geral para o que se chama
mercado de livros na América do Sul nos últimos tempos já nos deixa bastante de sobreaviso
sobre os caminhos que devem ser evitados. Um grande centro editor como é a Venezuela,
por exemplo, incorre num erro brutal que é o da politização de mercado. Assim que há um
abismo impressionante entre autores, editores, livreiros, propiciados por um cisma
ideológico, que opera no sentido mais amplo de desperdício de oportunidade e mesmo de
depredação de um patrimônio cultural adquirido e inclusive respeitado internacionalmente.
Nos demais países sul-americanos, o que pude constatar graças a consultas que fiz a amigos
escritores, a situação remete aos obstáculos habituais do mercado de livros, fatores
estruturais pertinentes a cada sociedade, os baixos níveis de educação pública, falência ou
inexistência de programas de leitura etc. Todos estes fatores hoje enormemente piorados
pela invasão do mercado espanhol. A este respeito quero mencionar um segundo
depoimento do mesmo editor brasileiro já aqui citado:
Os espanhóis têm um projeto estratégico. Quando acabou a ditadura de Franco, a Espanha
começou a crescer, se redemocratizou. Ainda está crescendo. Enquanto isso, na Itália,
houve a “Operação Mãos Limpas”. Muita gente presa: políticos, empresários, sindicalistas.
A Máfia, então, saiu da Itália e foi para a Espanha. A Espanha recebeu dinheiro criminoso,
que foi lavado e ficou “sério”. Lá, os antigos mafiosos se tornaram empresários
engravatados. A Espanha, hoje, é um país rico. E o seu projeto estratégico é nada mais,
10
nada menos que reconquistar a América. Antes, eles nunca haviam dado atenção ao Brasil
porque, aqui, se fala outra língua. Mas agora descobriram que dá para ganhar muito
dinheiro entre os brasileiros. E estão chegando. […] Já compraram praticamente todas as
editoras de livros didáticos do Brasil. […] Tudo está à venda. Se não foi vendido é porque
ainda não apareceu aquela proposta irrecusável. A Editora Objetiva já vendeu 75%. Então,
os espanhóis compram. Têm um projeto estratégico. Estão entrando na telefonia celular.
No jornalismo, nas revistas, nas gráficas, nos livros didáticos, nas editoras. Estão chegando
com fome e com dinheiro. Quem vai resistir? E o que pode acontecer conosco, os editores
supostamente independentes, editores por acidente ou por gosto? [9]
Creio que temos aqui um conjunto de aspectos que exige reflexão sistemática. De
qualquer forma, entendamos este editorial como um sinal de alerta, o de que agravamos
ainda mais o quadro, já bastante complexo e assustador, se persistimos em embaralhar seus
componentes como se o desdobramento do tema fosse alheio à ordem interna deles
mesmos. Em geral, há um descompasso entre a gravidade do problema e sua percepção.
Autores, sobretudo, têm um compromisso de denúncia, de combate na forma de depoimento
de suas experiências, de voz a ser aberta na busca de uma honestidade intelectual. Mas
naturalmente não recrimino aqueles que querem apenas o espetáculo fácil de seus dotes
literários. Apenas saibamos que se trata de outra gente. Ou que sou eu a outra gente.
Abraxas.
OS EDITORES
NOTAS
1. A menina que roubava livros (The book thief). Markus Zusak (australiano). Editora
Intrínseca. 2007.
2. O monge e o executivo. Uma história sobre a essência da liderança. James Hunter. Rio de
Janeiro. Editora Sextante. 2004.
3. Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial. Jornal Rascunho. Paraná, dezembro de
2007.
4. Marco Lucchesi. “Palavras iniciais”. Poesia Sempre # 28. Rio de Janeiro, 2008.
5. Carlos Germán Belli. “Poesia peruana no século XX”. Poesia Sempre # 28. Rio de Janeiro,
2008.
6. Hildebrando Pérez Grande. “Poesia peruana no século XX”. Poesia Sempre # 28. Rio de
Janeiro, 2008.
7. Amparo Osorio. Depoimento dado quando de sua presença no “I Encontro de Agentes
Culturais – América Hispânica”. Teatro José de Alencar. Fortaleza, novembro de 2007.
8. Lira Neto. “Uma conversa com o curador da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará –
Floriano Martins”. Material de imprensa. Fortaleza, junho de 2008.
9. Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial. Jornal Rascunho. Paraná, dezembro de
2007.
11
A. CÂNDIDO FRANCO | André Breton libertário e
automatista[1]
No Verão de 1944, já depois da ruptura com Jacqueline Lam, na companhia de Elisa Claro,
com quem casará no ano seguinte, em Reno, André Breton, exilado na América desde 1941,
por via de Vichy, abandona Nova Iorque e parte à descoberta do Quebeque, atraído pelas
costas solitárias da península da Gaspésia, por onde vagueia durante semanas, só
regressando ao ponto de partida no final de Outubro. Durante a viagem inicia a escrita dum
novo livro, Arcane 17, que fechará nos primeiros dias do ano seguinte, dedicando-o a Elisa,
modelo do mais benévolo influxo, e que terá uma primeira edição, em exclusivo bibliófila, na
nova-iorquina casa Brentano’s, ficando a edição francesa, definitiva e corrente, Arcane 17
enté d’Ajours, para Junho de 1947, ano da reinstalação definitiva em Paris. O livro abre
cruzando Elisa e a ilha de Bonaventure, um dos maiores santuários de pássaros de mar que
existem no mundo, tudo por certo, do nome da ilha à emanação da mulher, mais que
bastante para levar Breton a tomar para título do livro o mais auspicioso dos arcanos do
velho Tarot, que fora de resto a sua derradeira consolação, com André Masson e Max Ernest,
no curro de Marselha, quando tentava em Março de 1941 escapar de Vichy. Aberta a cortina,
eis que de repente no livro, nas páginas iniciais, irrompe, viva e serpenteante, uma
recordação de adolescência relativa ao ano de 1913, um desfile operário em Paris, no PréSaint-Gervais, em que as bandeiras negras anarquistas, flores carbonizadas – exclama ele, o
haviam electrizado. E de seguida vem uma perturbante recordação de infância: Nunca
esquecerei o choque, a exaltação e a euforia que me causou, numa das primeiras vezes em
que, ainda criança, me levaram a um cemitério – entre tantos monumentos funerários
deprimentes ou ridículos – a descoberta duma lápide simples de granito gravada em
maiúsculas vermelhas com a estupenda insígnia: NI DIEU NI MAÎTRE.
O livro de Breton cogitado nas vastas solidões da Gaspésia conhecerá edição francesa
(Sagittaire) no mesmo momento em que o grupo surrealista de Paris dá à luz o manifesto
“Rupture Inaugurale”. O livro aparece no princípio de Junho e o panfleto é distribuído a 21.
Que se diz neste? Que o surrealismo se emancipa em definitivo de qualquer ligação
partidária, seja ela qual for, e se dedicará em exclusivo a promover a criação dum novo mito
capaz de empurrar a humanidade para uma etapa mais adiantada do seu destino. Não é
pouco para um movimento que em 1929 se mostrara na disposição de trocar a sua
publicação própria, La Révolution Surréaliste, por uma outra, Le Surréalisme au service de la
Révolution (SASDLR), que significava a sua capitulação diante do partido comunista francês,
de resto efectiva desde 8 de Novembro de 1925, altura em que o grupo declarou no órgão do
partido, L’Humanité, não haver uma concepção surrealista da revolução. Mesmo depois da
ruptura com este partido em 1935, antecedida pouco antes pela expulsão de Breton da
A.É.A.R. (association des écrivains et artistes révolutionaires), as ilusões partidárias de
Breton, em ligação com o marxismo-leninismo, não esmoreceram. Aproxima-se do
trotskismo e em Dezembro de 1936, como tribuno, intervém num comício do P.O.I. (parti
ouvrier internationaliste) contra os processos de Moscovo que acabavam de ter lugar
(Setembro). Dois anos depois, no Verão de 1938, Breton vai ao México, onde redige com
Trotsky o texto por uma arte revolucionário e independente, que não terá porém a assinatura
do russo mas a do pintor Diego Rivera e será o manifesto de fundação da F.I.A.R.I. (federação
internacional da arte revolucionária independente), cujo boletim, Clé, surge em Janeiro do
ano seguinte, a do início da guerra, com Breton na redacção, se não à testa. Em Março de
1941, já depois do homicídio de Trotsky (Agosto, 1940), Breton abandona a França ocupada
e instala-se em Nova Iorque. É aí que se separará de Jacqueline Lam (1942), o fulgurante
amor que lhe inspirara L’Amour Fou (1937) e de quem tivera Aube Breton (n. 1935), que
nesse livro trata por Écurette de Noireuil, e encontrará a jovem chilena Elisa Claro (1944),
12
que lhe restitui a alegria e a excitação do amor, levando-o a conceber a escrita dum livro
sobre o mais benéfico dos arcanos do Tarot, “A Estrela”, o 17. É ao iniciar a escrita desse
livro, no final do Verão, vagabundeando pelas soidões da Gaspésia quebequiana, na
companhia da sua estrela inspiradora, que Breton é apanhado pelas duas recordações atrás
reportadas, a primeira relativa a uma manifestação operária em Paris, antes da revolução
bolchevique, quando os pendões negros do anarco-sindicalismo enchiam o imaginário da
emancipação, e depois uma lembrança mais antiga, vinda das terras virgens da infância,
cruzando uma primeira ida ao cemitério e uma lápide libertária, o todo levando pouco
depois, no regresso à Europa, ao manifesto de 1947, “Rupture Inaugurale”, que parece ter
sido a carta de alforria com que o surrealismo iniciou a terceira fase de vida, a meu ver a
mais emancipada, e por isso a mais larga e a mais dinâmica, se não a mais rica, aquela em
que pôde surgir a torre gelada dum António Maria Lisboa ou a poesia, a prosa e os sinais
mistéricos e pictóricos dum Mário Cesariny, cuja importância e lugar no quadro do
surrealismo internacional está ainda por perceber.
São “inocentes” e nuas as duas lembranças de 1944 ou estão antes providas de
associações secundárias que o texto circunstancial a um amor encantatório mal deixa
perceber? Não tenho qualquer dúvida em escolher a segunda hipótese. Trotsky acabara de
ser assassinado no verão de 1940 por um assassino a soldo de Estaline, transformado em
“herói” de Estado, e, porventura mais importante, Wolfgang Paalen (1905-1959) acabara de
escrever no primeiro número da revista Dyn (Abril, 1942), por ele fundada, um farewell ao
surrelismo, em que se tomam por inadequadas, e até por caducas, as referências maiores
com que o movimento atravessara a década anterior e das quais tirara conclusões próprias –
o acaso objectivo, devedor de Engels, a noção de objecto, cujo crédito vem da filosofia de
Hegel, e sobretudo a necessidade de acertar o passo com os partidos revolucionários de
origem marxista-leninista e que levara aos episódios da SASDLR e do partido comunista
francês, e depois, quando a manápula do estalinismo se fez intratável, da travessia por
dentro do trotskismo, com o nascimento da F.I.A.R.I. e a elaboração do manifesto desta em
colaboração com o próprio Trostky. Austríaco, mas a viver no México, Paalen não era
qualquer um; era tão-só uma das mais recentes e promissoras aquisições do surrealismo.
Fora ele, com César Moro, o peruano que aderira ao surrealismo em Paris ainda na década de
20, na cidade do México, que organizara em Janeiro de 1940 a quarta Exposição
Internacional do Surrealismo.
Já se viu na publicação de Prolegómenos a um Terceiro Manifesto ou Não, no primeiro
número de VVV (Junho, 1942), onde se questiona qualquer pensamento sistemático e se
liquida o antropomorfismo, outro dos motivos do texto de Paalen, a resposta de Breton às
pouco esperadas mas pertinentes impugnações do organizador da exposição surrealista de
1940, que de resto regressará ao surrealismo na década de cinquenta, o que deixa em aberto
que por aí ou por outro lado se deixou convencer de que o movimento superara os limites
que lhe apontara no início da década anterior. Prefiro, pelo meu lado, eleger para resposta as
duas recordações que abrem o livro do Outono de 1944, e onde o marxismo está de vez
enterrado – nos Prolegómenos ainda há uma alusão a Engels (mas ao lado de Abelardo, de
Heraclito, de Arnim, de Rousseau, de Jarry, de Eckart e outros assim desalinhados). Inumado
o marxismo-leninismo, o que em seu lugar irrompe e com a força basilar daquilo que vem da
infância é o movimento libertário, que de resto depois do corte com o partido comunista
francês, em 1935, parecia andar cada vez mais nas vizinhanças do itinerário de Breton. No
Verão de 1936, Benjamin Péret, um dos próximos e tão próximo que por causa dele Breton
entrara nesse mesmo ano em rota de colisão com Paul Eluard, com quem nunca mais se
conseguirá reconciliar, vai para Espanha para lutar ao lado da República contra o golpe
militar. A princípio integra-se no P.O.U.M., o partido trotskista que mais afinidade mostrava
com o itinerário político do grupo surrealista, mas pouco depois passa-se para a coluna
Durruti, da C.N.T., onde fará parte da guerra – regressou em Abril de 1937 (o corte de Péret
com a IVª Internacional só acontecerá porém em 1948). Isto não terá escapado a Breton, que
no manifesto redigido no Verão de 1938, quando ainda se esperava algo da ofensiva
13
republicana no Ebro, chega a escrever o seguinte (é um dos parágrafos cruciais do texto): A
finalidade do presente apelo é o de procurar encontrar um terreno para reunir os paladinos
revolucionários da arte, de modo a servir a revolução pelos métodos da arte e a defender a
liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos
que o encontro neste campo é possível entre os representantes de tendências estéticas,
filosóficas e políticas adiantadamente diferentes. Os marxistas podem aqui caminhar mão na
mão com os anarquistas.” De resto, já antes, se podia ler: Se, para o desenvolvimento das
forças produtivas materiais, a revolução necessita de construir um regime socialista de plano
centralizado, para a criação intelectual ela deve desde o momento inicial estabelecer e
assegurar um plano anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma
coacção, o mínimo vestígio de comando.
A ligação ao anarquismo acentua-se com o regresso a França no pós-guerra. O manifesto
de 1947, limpando o terreno de qualquer tentação partidária, e o de 1948, “À la Niche les
Glapisseurs de Dieu”, denunciando os milionários da fé, ambos catalisadores segundo
Cesariny da formação do surrealismo português, exercitam e põem em prática a linha de
força de Arcano 17. Entre 1948 e 1949 o grupo de Paris edita a revista Néon, de que saem 5
números. Em 1949, já sem porta-voz, o grupo socorre-se dum jornal para publicar as suas
notas de imprensa, dando a conhecer as suas posições. Que jornal é esse? O velho Le
Libertaire, porventura um dos primeiros jornais anarquistas do mundo, fundado em Nova
Iorque em 1858 por um francês e que em 1895 Sébastien Faure e Louise Michel
transformam, lado a lado com a memorável revista Temps Nouveaux, no principal título da
imprensa libertária francesa. Depois da Ocupação, 1944, o jornal reaparece como órgão da
Federação Anarquista, resultante da fusão de estruturas anteriores. A colaboração dos
surrealistas no semanário será longa, regular e activa – o jornal em 1954 é substituído por
um outro título, Le Monde Libertaire, que ainda hoje se publica como hebdomadário. Entre
1951 e 1953 o jornal dá à estampa cerca de trinta bilhetes surrealistas. O primeiro, uma
“declaração prévia” (12-10-51), com dezoito assinaturas, uma delas de Breton, abre assim:
Surrealistas, nunca deixámos de consagrar à tríade Estado-Trabalho-Religião um repúdio que
frequentemente nos levou a encontrar os companheiros da Federação Anarquista. Essa
aproximação conduz-nos hoje a exprimirmo-nos em Le Libertaire. Entre as entregas do grupo
surrealista figura um texto maior de André Breton, “La Claire Tour”, estampado no jornal a
11 de Fevereiro de 1952 e que pela sua importância para aquilo que aqui nos move, e até
pelo que desfia do fio que abriu no livro escrito na Gaspésia, comentamos no final deste
texto dele dando, em língua portuguesa, com autorização expressa de sua filha Aube BretonElléouët, alguns extractos meramente ilustrativos. Nele se vê como o ADN do surrealismo
comportava no momento do seu nascimento um cromossoma libertário que só os sucessos
relativos à revolução soviética puderam por momentos deixar de lado. A história desse
recalcamento é a triste linha de sucessos que vão da adesão de Breton ao partido comunista,
em 1925-6, até à sua expulsão em 1935. A libertação do trauma começa a partir desse
momento, a medo primeiro, com aquilo que podemos chamar o anarco-trostkismo desse
segundo lustro da década de 30, tocado pelo itinerário de Péret e pelo manifesto escrito a
duas mãos com Trotsky, e depois mais espraiado, sem receios de espécie alguma, naquilo
que se pode tomar por puro impulso libertário, desligado já do materialismo dialéctico, por
via das críticas inesperadas de Paalen, que obrigam Breton a um salto muito mais alto, com o
cruzamento feliz entre o encontro com Elisa e o passeio desafogado pela Gaspésia estival.
A colaboração de Breton e do seu grupo com o velho jornal de Sébastien Faure não
começou com a “declaração prévia” de Outubro de 1951. Já antes disso o nome de Breton
aparecera com alguma frequência nas páginas da publicação. Registemos alguns momentos.
O primeiro, o discurso que fez num comício na sala “Mutualité” em 14 de Outubro de 1949 a
favor da objecção de consciência ao serviço militar e que mereceu reprodução nas páginas
do jornal (21-10-49). Assinale-se no discurso a alusão sempre exaltante à mobilização de
1913, dita do Pré-Saint-Gervais, contra o recrutamento e o serviço militar obrigatório, e que
fora já objecto de exposição, mais vaga ou mais poética, na abertura inicial do livro de 1944,
14
Arcano 17. Nesta nova alusão ao momento, Breton fala da manifestação como tendo sido o
espectáculo que mais me marcou na minha juventude. Aqui se encontra no parecer de todos
o primeiro gérmen político do jovem Breton, leitor reconhecido da imprensa libertária
francesa da época, onde se topa com uma curiosa publicação L´Action d’Art, de inspiração
stirnerniana, que lhe encheu por certo as medidas, e que só os sucessos ulteriores de 1917
vieram recalcar, com o fio subsequente que se sabe. Voltando às relações de Breton com Le
Libertaire, que de resto era um dos títulos que ele lia em 1913, deparamos com novo texto
de Breton no jornal em Janeiro do ano seguinte (20-1-1950), desta vez sobre Céline, resposta
a um inquérito do jornal, aberto por Maurice Lemaître, a propósito da reabertura do
processo contra o escritor refugiado na Dinamarca. Fora dos bilhetes surrealistas vale ainda
reportar outro momento de Breton nas páginas do jornal. A 14 de Dezembro de 1951, no
seguimento duma onda grevista que alastrou a toda a Espanha, os tribunais espanhóis
condenaram à morte, em Sevilha, dois sindicalistas da C.N.T., clandestina então, e a 6 de
Fevereiro do ano seguinte, desta vez em Barcelona, mais onze militantes da confederação
sofrem a mesma sorte. Diante desta vaga repressiva, foi convocada uma acção de
solidariedade em Paris, sala Wagram, onde Breton discursou. A peça será publicada em Le
Libertaire a 7 de Março de 1952. É um dos raros momentos – o único mesmo de que dou
nota, mas admito falhas – em que Breton se pronuncia sobre a mítica central sindical ibérica.
É texto que por todos os motivos merecia inclusão neste número da revista. A dimensão do
texto – vinte e seis parágrafos, alguns com quase duas dezenas de linhas – dissuadiu-nos
porém do propósito, adiando a sua publicação integral para o público português para
ocasião futura. Ainda assim deixamos, a título ilustrativo, abertura e fecho do texto:
Camaradas: se em alguma parte do mundo o coração da liberdade continua a bater, se há
um lugar em que essas pulsações nos chegam mais ritmadas do que em qualquer outro ponto,
todos sabemos que esse lugar é a Espanha. É exaltante pensar que quinze anos de ditadura
não o enfraqueceram. / Quando das greves de Barcelona de Março de 1951, pudemos
constatar que não somente a combatividade dos meios operários e também dos universitários
em nada havia diminuído, como ainda um contágio magnífico se estendeu ao conjunto da
população, isolando num só golpe os paladinos e os carreiristas do regime e ficando em
posição de expulsá-los como um corpo estranho. / Todos os que se deram conta destas greves,
mesmo sem simpatia funda pelo longo sofrimento do povo espanhol, foram surpreendidos
pela sua inclinação em alastrar como mancha de óleo. /…/ Há aqui um facto novo que não
precisa de muita cogitação. Não é difícil interpretá-lo como uma serpe que afecta no seu
conjunto toda a estrutura ditatorial. Pode-se matar, pode-se empenhar tudo a envilecer o que
pode ser envilecido, pode-se agitar à direita e à esquerda o crucifixo e descarregar a metralha,
pode-se esfomear um povo e separá-lo da restante comunidade humana, que não é por isso
que se acaba com a alma desse povo tal como ela incarnou na minha infância na pessoa de
Francisco Ferrer e depois se fortaleceu na bravura lendária da C.N.T. e da F.A.I. / (…) / Antes
que seja tarde, já que de acordo com as últimas notícias os falsos advogados dos nossos
companheiros foram adverti-los de que seriam fuzilados em breve, falemos a uma única voz
para exigir a revisão à luz do dia dos julgamentos de Sevilha e de Barcelona, com advogados
isentos e conhecedores dos processos e sob a garantia de observadores internacionais. A todo
o preço, e com toda a urgência, encontremos meio outrossim de fazer chegar aos nossos
camaradas uma mensagem do tipo: “Em nome de todos os homens livres e de todos os que só
anseiam por se libertar, obrigado! Não perdei a esperança, que nós estamos de todo o coração
em pensamento com vocês! Vida e glória à heróica C.N.T. espanhola.” Em 14 de Março, sete
dias depois do texto de Breton vir a lume, cinco dos condenados foram fuzilados nos
arredores de Barcelona. Pelo menos Albert Camus e Albert Béguin, o autor de L’Âme
Romantique et le Rêve (1937), intervieram ao lado de Breton para salvar a vida aos
sindicalistas libertários espanhóis.
Depois da tranformação de Le Libertaire em Le Monde Libertaire, a colaboração de Breton
com a imprensa libertária diminui, se bem que ainda na década de 50 alguns outros
momentos – a invasão soviética da Hungria, a guerra da Indochina, a guerra argelina –
15
voltem a fazer cruzar o itinerário de Breton com o dos anarquistas franceses. Para essa
diminuição muito contribuiu a publicação de duas revistas surrealistas novas, duas das
muitas que o surrealismo francês criou, Médium (53-54) e Le Surréalisme Même (56-57), e nas
quais Breton empenhou muita da sua energia. A colaboração de Breton com a imprensa
libertária conhecerá ainda porém um episódio digno de registo. Em 1957, o velho anarquista
francês Louis Lecoin, então com sessenta e nove anos, decide mobilizar-se para obter um
estatuto para os objectores de consciência. Desde o comício de 1949, em que Breton estivera
presente, que a situação se mantinha. Nenhum estatuto, nenhuma protecção, nenhum
cuidado. Em caso de objecção, a única alternativa era o cárcere. Havia então uma centena de
encarcerados, grande parte Testemunhas de Jeová. Lecoin vendeu os bens e reuniu donativos
para fundar um hebdomadário, chamado Liberté, que foi lançado no princípio de 1958, cuja
finalidade era tirar da prisão os objectores e obter um estatuto legal que os defendesse. Com
o jornal, Lecoin criou um comité de socorro aos objectores de consciência, em que Breton
colaborou. A campanha teve peripécias, imaginação e vitórias estimulantes, como a
libertação ainda em 1958 de nove encarcerados. Conseguiu por fim obter o estatuto, mas só
ao fim de cinco anos, em 1963 e depois duma greve da fome que durou mais de vinte dias e
que deixou Lecoin, aos setenta e cinco anos em estado de coma. Conhecem-se duas
intervenções de Breton no processo: primeiro, a alocução que fez num dos comícios a favor
dos presos, a 5 de Dezembro de 1958, sala Mutualité, Paris, e que foi dado à estampa no
jornal de Lecoin; segundo, o curto texto que escreveu, durante a greve da fome do
anarquista, que ficou inédito durante muitos anos – só foi dado à estampa em 2008 – e de
que ficaram duas versões manuscritas. Também estes dois textos merecem tradução integral
em português, que aqui, pela sua dimensão, não podemos restituir. Em seu lugar deixamos
extractos ilustrativos.
Do primeiro, um longo texto, no género da alocução em favor dos sindicalistas da C.N.T.,
escolhemos um período, em que Breton discorre sobre a consciência. Assim: A consciência,
essa força individualista, sim, por excelência libertária, que em presença de tal ou tal situação
nos introduz, isto se o caminho não estiver impedido por nossa culpa, no mais secreto de nós
mesmos e nos impõe de nos empenharmos contra aquilo que temos por escândalo; a
consciência, é aquilo que nos une à vocação do homem, a única que em última visão podemos
tomar por sagrada: a de nos opormos, sem olharmos às consequências para a nossa pessoa, a
tudo o que atenta à mais profunda dignidade da vida. Do segundo – que serviu talvez a
Breton para prestar, junto da imprensa, apoio ao jejum de Lecoin, e inédito ficou até à
publicação das obras completas (Gallimard, 1988-2008) – tiram-se alguns períodos. Estes:
Que o maior erro (…) dum revolucionário seja o de ultrapassar a idade de cinquenta anos, eis
o que (…) Lenine confiou a Trotsky (…). / (…) / Foi todavia além desses limites que Louis
Lecoin, mais exigente do que nunca, tomou em mãos o triunfo da causa que fez sua.
Sacrificara já doze anos de liberdade. Muito abalado (…) pelo desaparecimento da sua
companheira, o seu primeiro gesto (…) foi o de se dar por inteiro a esta causa. Data desse
momento a fundação de Liberté, jornal “social, pacifista, libertário”, no qual os seus amigos
bem sabiam que ele iria empatar todos os seus magros haveres. Mas ali estava um imperativo
absoluto: agir de tal modo que o caso dos objectores de consciência pudesse ser reconsiderado,
arrancando-os de vez às enxovias e dando-lhes um estatuto que os livrasse da obrigação
militar em troca dum serviço civil./ No curso dos cinco anos de existência do jornal sabe-se
que muitas promessas apareceram. Seriam para cumprir? Para duvidar era preciso não ser
Louis Lecoin, quer dizer, o desinteresse e a generosidade em pessoa. (…) / De decepção em
decepção, chegou porém o dia em que a fé na palavra dada deixou de ser suficiente. Foi
quando a amnistia ousou dizer o seu nome (…) que Lecoin compreendeu que o mais verosímil
era os objectores ficarem de fora, pese embora a amnistia se estender aos piores criminosos.
Diante duma tal negação da justiça, não lhe restou senão escutar a voz interior que lhe
ordenava que se empenhasse na prossecução do seu fim sem olhar a custos. / (…) /.
Não quero fechar sem referir um derradeiro episódio sobre as relações de Breton com o
anarquismo francês. Tem lugar em 1923, dez anos depois da manifestação do Pré-de-Saint-
16
Gervais, cujos lábaros negros serão mais tarde recordados na Gaspésia, lado a lado com a
impressiva leitura na brancura da infância duma lápide libertária (por certo dalgum velho
communard ali enterrado). O ano de 1923, se não é o do parto do surrealismo, faz ao menos
parte da época que marcou o seu nascimento. Em 22 de Janeiro desse ano a anarquista
Germaine Berton assassinou o monárquico Marius Plateau, secretário da Action Française, o
que levou de imediato à sua prisão. O evento agitou o grupo que se reunia em volta da
revista Littérature (1919-24), no seio da qual se desenvolveu o surrealismo, provocando nele
vivas discussões. Por fim, no momento do processo, em Dezembro, o grupo, picado por
Breton, toma posição clara a favor da incriminada, levando-lhe à saída do tribunal um cesto
de rosas e cravos vermelhos, acompanhados dum cartão com os seguintes dizeres: A
Germaine Breton, que fez aquilo que nós não soubemos fazer. Um ano mais tarde, a 1 de
Dezembro, no primeiro número da revista La Révolution Surréaliste, que substitui
Littérature, cujo derradeiro número aparecera em Junho, Germaine Berton será um dos
motivos fortes de celebração do imaginário surrealista inicial, que nela verá a encarnação da
revolução e do amor.
O episódio de Germaine Berton é significativo por duas razões. Primeiro põe à mostra o
cromossoma libertário do surrealismo, em época de oiro, aquela em que Breton estampa o
primeiro manifesto (Outubro de 24) e o grupo abre o bureau de recherches surréalistes e dá à
estampa o primeiro número da sua revista específica. O que reforça este cromossoma é o
facto do partido comunista existir desde 1921, ano em que Dádá em Paris fez, por meio do
grupo Littérature, o processo de Maurice Barrès, inculpado de crime contra a segurança do
espírito. No episódio Berton desenha-se a encruzilhada do surrealismo nas suas relações com
as forças políticas exteriores. Para bem dizer, no momento do seu nascimento ele tanto
podia ter continuado fiel ao anarquismo inicial, que não estava só afinal confinado à
primeira juventude de Breton (lápide libertária e manifestação operária anti-belicista do Préde-Saint-Gervais), como inclinar-se para o recém-nascido partido comunista francês, o que na
verdade veio a acontecer, e por longo período, mais duma década, ao que parece pela leitura
que Breton tomou por empolgante no Verão de 1925 da biografia de Lenine por Trotsky.
Em segundo plano o caso de Germaine Berton, ausente da história das acções mais
conhecidas do grupo surrealista francês, é ainda representativo da personalidade política de
Breton – tão patente por exemplo no caso da agressão a Ilya Ehrenbourg, que levará à sua
expulsão do partido comunista em 1935. Breton mostrou sempre adesão apaixonada à
revolução, tal como a entendiam os herdeiros das convulsões sociais do século XIX, e ao que
nelas havia de violento, de altercador, de chocante, de catártico. Coevo de Gandhi, nunca
citou com simpatia, que eu saiba, a actividade política deste grande lutador, não obstante o
apoio incondicional que deu aos objectores e (até) ao pacifismo não violento de Lecoin. Ao
que dou nota, Breton nunca regressou à figura de Berton, como se a leitura da Vida de Lenine
de Trotsky a tivesse enterrado para sempre, ao contrário do que faz com a manifestação do
Pré-de-Saint-Gervais, com a ida ao cemitério da sua infância, ambas citadas com verdadeiro
fervor em Arcano 17, e com a figura de Violette de Nozières, acusada de parricídio em 1933
e que mereceu a Breton a inclusão nas efemérides surrealistas de 1955. Ainda assim talvez
nenhum episódio, nenhuma figura, nenhum momento nos situe melhor a alma política de
Breton do que esse cesto de rosas vermelhas enviada a uma pantera anarquista que acabara
de se envolver num atentado à mão armada. E não é tanto o Breton revolucionário ao velho
estilo da acção directa que eu vejo aqui, o mesmo que como tantos outros acabaria por uma
questão de eficácia (duvidosa) por aderir ao partido comunista em 1925, e que para bem
dizer é o mesmo que intervirá a favor do sindicalismo libertário espanhol ou dos objectores
de consciência, mas o Breton inflamado, escaldante, vulcânico, poético, que no momento da
sua ruptura com o estalinismo, e depois com o abandono do marxismo-leninismo em geral (e
dele não sobreviveu qualquer alusão nas efemérides de 1955), percebeu que transformar o
mundo não era suficiente; era preciso, na senda da grande poesia, na via de Rimbaud, mudar
de vida e de mente.
17
E por aqui se chega e retoma o estupendo texto de André Breton, “La Claire Tour”, dado a
lume no jornal Le Libertaire a 11 de Fevereiro de 1952, e que pela sua textura representa
uma condensação riquíssima, até do ponto de vista simbólico, dos nós que se encontram no
percurso político de Breton e do surrealismo. É uma chave interior, talhada na recordação
dum poema de Laurent Tailhade, a balada Solness, datada de 1900, cuja estrofe final invoca
a anarquia, portadora de lume e construtora da clara torre que domina as torrentes. A
canção, composta sobre epígrafe de Ibsen, teve larga popularidade, tocando o jovem Breton
da manifestação de 1913, que quarenta anos depois a retoma para com ela baptizar a mais
densa e soberba reflexão sobre o itinerário político do surrealismo e de que aqui deixo dois
ou três trechos representativos: Onde o surrealismo pela primeira vez se reconheceu, bem
antes de se revelar a si próprio e quando não passava duma associação livre entre indivíduos
rejeitando espontaneamente e em bloco as coacções sociais e morais do seu tempo, foi no
espelho negro do anarquismo. (…) / Nesse momento a recusa surrealista era total,
absolutamente incapaz de se deixar canalizar sobre o plano político. Todas as instituições
sobre as quais repousava o mundo moderno e que acabavam de dar por fruto a primeira
guerra mundial eram tidas por aberrantes e escandalosas. Todo o aparelho de defesa da
sociedade (…) estava em causa: exército, justiça, polícia, religião, medicina mental e legal,
ensino escolar. (…) / Porque não se operou nesse momento uma fusão orgânica entre
elementos anarquistas propriamente ditos e elementos surrealistas? Ainda hoje, vinte e cinco
anos depois, me continuo a interrogar. Não há dúvida que a ideia de eficácia (…) ajudou a
decidir doutro modo. Aquilo que se pode tomar como o triunfo da revolução russa (…)
contribuiu para uma grande mudança de modelo. O único borrão na pintura – que depois se
fará nódoa indelével – residia no esmagamento da insurreição de Cronstadt a 18 de Março de
1921. (…) Podíamos porém acreditar que os sinais de degenerescência a Leste eram
regeneráveis. Os surrealistas viveram então na convicção que a revolução social alargada a
todos os países não podia deixar de promover um mundo libertário (alguns dizem um mundo
surrealista, mas é o mesmo). (…) / Conhecemos hoje o impiedoso saque que foi feito a estas
ilusões durante o derradeiro quarto de século. Por uma horrível ironia, em lugar do mundo
libertário sonhado surgiu um mundo onde a mais servil obediência é de lei, onde os mais
elementares direitos são negados ao homem, onde qualquer espaço social gira em torno do
polícia e do carrasco. (…) É no termo deste processo que reencontramos o anarquismo e ele
apenas (…). / Liberta das brumas da morte deste tempo, os surrealistas tomam-na [a
concepção libertária] pela única capaz de fazer ressurgir a clara torre que sobre as torrentes
domina.
Que torre é esta? Já se sabe, a torre da balada de Tailhade, que correu na juventude de
Breton. Podemos também chamar-lhe a anti-torre, pois os seus desígnios parecem contrariar
os de Babel. Mais do que aspirar ao céu, esta clara torre põe mão nos caudais revolutivos da
Terra, harmonizando-os, de acordo com a teoria fourrierista da satisfação integral das
paixões e fora de qualquer noção de obrigação, mesmo revolucionária. O criador do
surrealismo pôde assim construir com a clara torre do poema de Tailhade um símbolo
imperecível das suas aspirações mais vastas.
E em Fourier, o do falanstério ou o do contrato social renovado pela felicidade,
encontramos outra das linhas fortes que cerzem o Breton desta nota, que procura a
arqueologia libertária do surrealismo. Depois de dar a lume Arcano 17, Breton descobre as
obras completas de Charles Fourrier (edição de 1846), de que só conhecia extractos, e numa
viagem a Reno, Nevada, na companhia de Elisa, com quem então casa, e no meio duma
reserva de índios Hopi, no Verão de 45, inicia e conclui a escrita celebrativa de Ode a Charles
Fourrier, que funciona assim como o poderoso elo que estabelece a ligação entre as
recordações da Gaspésia e a colaboração dada ao jornal Le Libertaire em passo ulterior do
regresso a Paris. Também esse texto, publicado em 1948 e que Ernesto Sampaio verterá para
português em 1963, trará segundo Cesariny uma nota ao modo próprio com que o
surrealismo português nasce na segunda metade da década de 40. Eis o momento em que a
emancipação social deixa de ser dever moral ou obrigação política para passar a ser
18
celebração do espírito e ponto onde a libertação dos conteúdos recalcados cruza o desvio
mágico. Dito doutro modo, Freud encontra por fim em Fourrier a sua lente de refracção e
Marx pode passar de mito a mimo.
NOTA
[1] Esta nota não podia existir sem contributos bibliográficos exteriores – isto para além dos
textos de Breton nela citados. Refira-se o trabalho de Marguerite Bonnet sobre dois textos
recolhidos em La Clé des Champs (1953), “Pour un Art Révolutionnaire Indépendant” e “La
Claire Tour”, este dado a lume inicialmente no jornal Le Libertaire (11-2-1951), trabalho esse
publicado no terceiro tomo de Oeuvres Complètes (Gallimard, 1999). De resto é ainda a
Marguerite Bonnet que se recorre para historiar parte dos eventos relativos a Breton entre
1913 e 1924, com especial enfoque no caso de Germaine Berton, aqui no primeiro tomo das
mesmas obras (1988). Também o trabalho de Étienne-Alain Hubert, comentando as
intervenções de Breton a favor da C.N.T., no terceiro tomo das obras, dos objectores de
consciência encarcerados e de Louis Lecoin, no quarto tomo (2008), nos deu elementos
valiosos para o comentário. Tirando estes contributos, que foram de socorro, cite-se ainda
um trabalho (que não conhecemos): Surréalisme et Anarchie (1983) de José Pierre. E um
outro, que também desconhecemos, mas que pode ser de valor para o pesquisador,
Surrealismo e Anarquismo (Editora Imaginário, São Paulo, 2001) onde Plínio Augusto Coelho
recolhe, traduz e comenta a colaboração dos surrealistas franceses no jornal Le Libertaire. O
itinerário político de Benjamin Péret merecia, só ele, um texto à parte. Registem-se porém as
relações amorosas com Remedios Varo, anarquista espanhola, no tempo da guerra civil, e
com quem se exilou depois no México, e as ulteriores colaborações que deu ao jornal Le
Libertaire, algumas delas de invulgar alcance teórico (v. B. Péret, Oeuvres Complètes, Textes
Politiques, vol 5, 1989). As traduções que se apresentam de A. Breton foram autorizadas por
sua filha, e actual herdeira, Aube Breton-Elléouët (referida em L’Amour Fou), animadora da
colecção Phares – que, a seu pedido, se publicita na contracapa deste número.
A. Cândido Franco (Portugal, 1956). Dirige desde 2013 a revista A Ideia, à qual está ligado
desde há 35 anos (1979) e acaba de publicar um livro no Brasil: O Surrealismo Português e
Teixeira de Pascoaes (2013). Contato: mailto:[email protected]. Página ilustrada com obras de
Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
19
CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo e filosofia
Não sou filósofo e falo como poeta ao comentar alguns tópicos da filosofia que podem ser
destacados no surrealismo. Começo por aquele do sujeito. E por esta frase de André Breton,
de seu prefácio de 1962 para Nadja, sua narrativa de maior repercussão e circulação, de
1928: “Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de
combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal”. [1] A frase me persegue:
ultimamente; lembro-me dela a toda hora e já iniciei outro texto (um comentário sobre
Raymond Roussel) citando-a.
Relaciono-a a uma passagem de Baudelaire em um texto de 1859, inacabado e publicado
postumamente, A Arte Filosófica: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar
a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao
artista e o próprio artista”. [2] Vê-se, nesse e em outros de seus enunciados, o leitor de Hegel
e da filosofia romântica. Há um equívoco a propósito do poeta, atribuindo-lhe ignorância de
filosofia. Ao tratar da superação da contradição de sujeito e objeto, sabia do que estava
falando.
Sujeito e subjetividade são, me parece, categorias filosóficas modernas, historicamente
recentes. Nos clássicos e antigos, encontramos o “eu”; em neo-platônicos, gnósticos e
místicos, um “eu” falso, circunstancial, lugar de percepções ilusórias, contraposto a outro
verdadeiro, de natureza divina. O sujeito ganha vulto com a crítica filosófica dos séculos
XVII a XVIII; mais precisamente, a crítica a Descartes empreendida por Locke, em seguida por
Berkeley e Hume; nesses, mostrando como a relação entre o percebido e o real, o “esse” e
“percipi”, nada tem de pacífico. E com o “eu” absoluto de Fichte; ou seja, o real exterior
como função do sujeito. Foi o que Novalis sintetizou, em um de seus fragmentos: “O que é a
natureza? Um índice enciclopédico sistemático ou plano do nosso espírito”. E, ainda: “O
mundo é um tropo universal do espírito – seu retrato simbólico”. Repetindo os místicos,
proclamou que conhecer o “eu” é conhecer o universo: “Uma pessoa conseguiu – levantou o
véu da deusa de Saïs – Mas o que viu? viu – milagre dos milagres – a si mesmo”. [3]
Novalis tratou do “espírito”; não do sujeito. Contudo, justifica a observação de Margaret
Mahony Stoljar, organizadora de Philosophical Writings, sobre a “rejeição de uma noção de
verdade extrínseca”, exterior ao sujeito. O poeta-filósofo “propõe um modelo auto-referente
para a filosofia, que não procura explicar o mundo, porém, antes, explicar-se a si mesma”.
Breton foi um continuador da geração romântica alemã, dos poetas-filósofos, incluindo
Schelling, Novalis, os irmãos Schlegel, Tiek, acrescidos de Achim Von Arnim, pelo qual
manifestou especial admiração. A observar, como um dos componentes da sua contribuição,
o elogio à atração daqueles românticos por uma paraciência ou pseudociência, incluindo os
postulados da origem aquática do planeta e do magnetismo animal, e assim incorporando
esoterismo e magia. Justamente, algo tão criticado no romantismo por outros autores.
Breton tomou partido no confronto entre filosofia da natureza e ciências naturais; na
verdade, como detalharei a seguir, entre logos e mythos. O que lhe parecesse restauração do
mundo mítico, era a favor.
Já se falou em poetas-filósofos a propósito do romantismo alemão; em poetas-pensadores
e poetas-críticos a propósito de Baudelaire, T. S. Eliot e Ezra Pound. Essas designações se
aplicam a Breton, especialmente, e a outros surrealistas. Dimensão importante da produção
surrealista, o debate político: um debate passional e pendular, de aproximações e
afastamentos, adesões e rupturas. Tal politização, marcada pela adesão ao pensamento de
Marx, é, não obstante, conseqüência de um projeto fundamentalmente romântico, de
confundir poesia e vida; e mais, de romper barreiras entre a esfera simbólica e das coisas; de
superar a contradição entre sujeito e o objeto.
É o programa político resumido nesta frase de Novalis: “O mundo deve ser tornado
romântico”. Ou por Friedrich Schlegel, seu companheiro no grupo de Jena:
20
“A poesia romântica não é só uma filosofia universal, progressista. Seu fim não consiste
apenas em reunir todas as formas de poesia e restabelecer a comunicação entre poesia,
filosofia e retórica. Também deve misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica,
poesia natural e poesia artificial, vivificar e socializar a poesia, tornar poética a vida e a
sociedade, poetizar o espírito, encher e saturar as formas artísticas de uma substância
própria e diversa, e animar o todo com a ironia.” [4]
Nenhuma dessas sínteses seria rejeitada por um surrealista. Por isso, concordo com a
caracterização, por Jacqueline Chénieux-Gendron, do surrealismo como “pensamento
totalizante” [5] – e até, permito-me afirmar, de um holismo, assim como aquele dos
românticos, dos polímatas renascentistas e iluministas que tiveram a ambição de alcançar o
conhecimento total. É o que diz Sarane Alexandrian, em um livro sobremodo recomendável,
Le Surréalisme et Le Rêve: “O surrealismo não é uma escola, como o romantismo ou o
simbolismo, mas um método sempre viável, como a psicanálise”. [6] Caracterizá-lo como
método necessariamente acrescenta um debate epistemológico àquele de uma poética.
A continuidade de surrealismo e romantismo foi proclamada por Breton; de modo
enfático, no Segundo Manifesto do Surrealismo:
“Mas, no momento em que os poderes constituídos em França grotescamente se preparam
para celebrar com festas o centenário do romantismo, nós, pelo que nos respeita, dizemos
que esse romantismo, do qual estamos prontos a passar, hoje em dia, por causa, desde que
causa em alto grau preênsil, [7] por sua própria essência, em 1930, reside inteiramente na
negação desses poderes e dessas festas; que, para ele, cem anos de existência equivalem à
sua juventude, que a sua chamada época heróica já não pode ser honestamente
considerada mais que o vagido de um ser que mal começou, por nosso intermédio, a dar a
conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que o que antes dele foi pensado “classicamente” - era o bem, quer, sem sombra de dúvida, todo o mal.” [8]
Como se vê, dialetizou o romantismo: interpretou-o como manifestação ou expressão da
negatividade, da destruição criadora, antecipando o que Octavio Paz, em Os filhos do barro,
designaria como “tradição da ruptura”. Nessa perspectiva, deixa de ser mais um período da
história da literatura e artes, do final do século XVIII até meados do XIX. Passa a ser uma
rebelião que se renova ao prosseguir, da qual o surrealista se declarou porta-voz e
continuador.
Há retomada de programas românticos em Breton, como ao final de Arcano 17, [9] em
favor da “única revolta criadora de luz” – com a referência explícita a Lúcifer, atualizando o
satanismo romântico – que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor”. As
três vias, prossegue, “devem inspirar o mesmo zelo e convergir para traçar o próprio perfil
da eterna juventude, no ponto menos descoberto e mais iluminante do coração humano”.
O mesmo vale para outra de suas frases famosas: “’Transformar o mundo’, disse Marx;
‘mudar a vida’, disse Rimbaud: para nós, estas duas palavras de ordem não são mais que
uma só.” [10] É a busca da unidade proclamada no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao
denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita
por parte do homem” e afirmar que: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito,
onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o
alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios”.
Muito já foi escrito sobre esse “ponto do espírito”; inclusive as interpretações esotéricas
em André Breton et les données fondamentales du surréalisme, de Michel Carrouges. [11] Mas
penso que, em acréscimo, pode ser feita a identificação à “arte filosófica” de Baudelaire, bem
como ao “espírito”, tal como aparece em Hegel – diga-se de passagem, contrariando o
21
marxismo tão enfaticamente afirmado nesse manifesto, ao introduzir uma categoria
tipicamente metafísica.
Breton foi um romântico que incorporou contribuições subseqüentes. A de Hegel,
refinando a categoria “sujeito” e incorporando a negação, entendida como destruição
criadora; de Marx; e de Freud, que promoveu um novo ataque ao “cogito” cartesiano.
Minha intenção é mostrar respostas de Breton à questão do sujeito; do antagonismo ou
contradição de subjetividade e objetividade; e sua tentativa de superar essa contradição
através de uma poética do delírio e da alucinação. Para tal, citarei algumas de suas obras. Em
primeiro lugar, em uma série não-cronológica, O amor louco, de 1937. [12] Como etapa de
uma viagem a lugares onde havia manifestações surrealistas, Breton e Jacqueline Lamba, por
quem se apaixonara e com quem se havia casado, chegam às Ilhas Canárias em abril de
1935. Lá, “em plena natureza reconciliada”, possuído pelo “delírio da presença absoluta”, vê
no Pico de Teide, ponto culminante da ilha de Orotava, seu Jardim do Éden. Tem uma
experiência de encontro do macrocosmo e microcosmo: “o contato involuntário com um só
ramo de sensitiva é o bastante para agitar, tanto fora quanto dentro de nós, o prado inteiro”.
Transcreve a “música sobreposta aos nossos passos” sobre praias de areia branca e de areia
negra, passando por matizes e gradações da água do mar, por uma vegetação de figueiras de
raízes que mergulham na pré-história, sempre-vivas com folhas refletindo a Unidade,
eufórbias e pitangas, cactos de muitas formas. Aparentemente, abdicava de sua postura antirealista, contrária à descrição. Mas o lugar é concretização do sonho, surrealidade realizada.
As flores de Orotava ocupam tudo, até que os amantes se confundam com elas: “A um
sinal, que, por maravilha, tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor fascinante e
fatal”. No interior da flor, “no seio da oblíqua claridade”, experimenta a plenitude: “a
suficiência total que, naturalmente, reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar,
neste momento, o mínimo obstáculo”. Dentro da flor e dentro da nuvem: “do puro informe:
quando Orotava desapareceu, foi-se perdendo pouco a pouco sobre nossas cabeças, até
acabar por ser tragada; ou então fomos nós que, a esses mil e quinhentos metros de altitude,
fomos de repente sorvidos por alguma nuvem”.
Nuvens são o lugar do encontro do desejo e da realidade: “levantar os olhos daqui de
baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos
desejos”. Assim –e aqui grifo – “toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade
se encontra aqui implicitamente solucionada”. Comenta que Leonardo da Vinci pedia a seus
alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que viam desenharse nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na parede são telas em que se projetam imagens:
“O homem só poderá ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor, aceitar
reproduzir, com a máxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada tiver sabido mostrar
antecipadamente a esses mesmos atos. Ora, essa tela existe. Qualquer existência comporta
um todo homogêneo de fatos aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria
encararmos mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.”
Ainda cita Baudelaire, que, no poema “A Viagem”, final da primeira versão de As Flores do
Mal, também associou nuvens ao desejo e ao acaso: “As maiores regiões, a mais pujante
aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com as nuvens
delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!” [13]
Traz para o relato o acaso objetivo, categoria que havia criado em um livro precedente,
Les vases communicants: “Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso
encontro – se tiver valido a pena interrogá-las – as forças do acaso objetivo, que nada querem
saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito nessa
tela em letras fosforescentes, em letras de desejo. [14] […] Onde poderei eu estar melhor que
no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo,
único rigor que o homem deve se impor?” Às categorias do sujeito e objeto é acrescentado
um terceiro termo: o desejo. Freud e a psicanálise, portanto, adicionados à reflexão
filosófica.
22
Vejam como é simples resolver dialeticamente a contradição de subjetividade e
objetividade, mantendo os dois termos. Basta olhar para as nuvens, realizando essa
metáfora imemorial da poesia. Mas com o apoio de uma experiência do sublime, de
encantamento amoroso, e em um lugar como o topo do Pico de Teide. Não obstante, essa
experiência, a projeção da subjetividade nos objetos, tenho-a recomendado em cursos de
surrealismo. Veremos sempre a nuvem, algo fisicamente objetivo, exterior– e montanhas,
animais, fisionomias, corpos, assombrações, astronaves; tudo aquilo que se enxerga ao
contemplar nuvens.
Mas quem vê formas em nuvens? O desocupado, que não tiver outras coisas para fazer.
Quem não rumar apressadamente para algum compromisso ou estiver mergulhado no
trabalho; quem se encontrar em estado de disponibilidade. Essa é outra categoria
fundamental no surrealismo, erigida em valor desde “La conféssion dédaigneuse”, protomanifesto de 1921, texto de abertura de Les pas perdus, sua primeira coletânea de textos.
[15] Um dos modos da disponibilidade: a flânerie baudelairiana, a errância, a caminhada ao
acaso, tão bem interpretada por Walter Benjamin – em outra ocasião, cheguei a comentar que
Benjamin, a meu ver, entendeu mais de surrealismo que o próprio Breton; e a lamentar que
surrealistas não o houvessem achado naquela época – o movimento teria ganho em
substância.
Familiarizados com psicologia observarão que ver coisas nas nuvens se assemelha a um
teste projetivo conhecidíssimo, o Teste de Rorschach. E não só. Pierre Mabille, importante
pensador do surrealismo, autor de Le Miroir du Merveilleux, [16] também criou um teste
projetivo, o “Test du village”, reconhecido e que continua a ser aplicado. Mabille foi
tipicamente holista, da espécie mais consistente; um polímata, realizando o ideal do
conhecimento total, e não só de conhecer tudo: médico, antropólogo, psicólogo, esoterista,
historiador, artista plástico, chegou a estudar a língua suméria para avançar em seus
estudos. Empreendeu “uma longa viagem orientada rumo à conquista de um reino
maravilhoso”, afirmou Breton.
Le Miroir du Merveilleux, coletânea de relatos tribais, livros sagrados de diversos povos,
lendas de várias épocas, trechos de literatura desde os clássicos aos contemporâneos,
mostra a transversalidade ou trans-historicidade do maravilhoso. Retoma e refina essa
categoria surrealista, proclamada por Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: “Digamolo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de
maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Isso foi reiterado por Breton no prefácio
para o livro de Mabille e no artigo intitulado “Le merveilleux contre le mysthère”. [17]
Para os românticos, o lugar da solução das antinomias e superação da contradição de
subjetividade e objetividade seria o espírito; e também para Breton no trecho já citado, sobre
o “ponto do espírito”. Para Hegel, o absoluto. Para o surrealismo, o maravilhoso – e assim
esse termo da linguagem corrente adquire peso filosófico.
Há mais exemplos de encontros de subjetividade e objetividade em Breton. Em “Le
méssage automatique”, [18] de 1933, examina, como anuncia no título, um dos tópicos mais
controversos associados ao surrealismo, a escrita automática. É, por ser desenfreadamente
visionário, um de seus artigos que mais aprecio. Trata de alucinações, visões e fenômenos
correlatos. Começa por mencionar cientistas: Herschel, o astrônomo, e seu relato de
“produção involuntária de imagens visuais”. Watt, inventor da máquina a vapor, que, “em um
quarto escuro, contempla a futura, a próxima máquina a vapor”. Para Breton, “O que ainda
não é, será”; pois, “No interior de uma simples bola de cristal, como aquela que utilizam os
videntes”, alguns, desde que “se mantenham em um estado de passividade mental”, ou seja,
de disponibilidade, enxergarão objetos perturbadores, cenas a se desenrolar etc. A lágrima,
para o surrealista, é “essa obra-prima da cristaloscopia” – justamente por embaçar a visão.
Na página em branco, “tudo já está escrito”. A criação literária equivale à revelação
fotográfica, mostrando o que já está na página. Comenta, antecipando O amor louco,
Leonardo da Vinci e as manchas na parede. Celebra Charcot, por haver originado “esse
magnífico debate sobre a histeria”, e Schrenck-Notzing por haver chamado a atenção em
23
1889 para “o valor artístico dos movimentos de expressão da histeria e da hipnose”. Chega
ao que William James denominou “psicologia gótica”, a propósito de Myers e Flournoy,
iniciadores da parapsicologia.
Mostra a diferença entre as manifestações de mediunidade, estudadas por Myers e
Flournoy, e a escrita automática: “Ao contrário do que propõe o espiritismo, dissociar a
personalidade psicológica do médium, o surrealismo se propõe a nada menos que unificar
essa personalidade”. Há mais relatos e observações em “Le méssage automatique”; um
desfile de paranormalidades, alucinações visuais e auditivas, até chegar á questão
propriamente filosófica: “Não posso, aqui, e lamento por isso, fazer outra coisa a não ser
esboçar a história da crise que, nessas condições, a atitude surrealista, no que concerne ao
grau de realidade a ser conferido a um objeto, não pode deixar de fazer que a sofra o
pensamento puramente especulativo”. Isso, “pela impossibilidade de uma demarcação
válida, que permita isolar o objeto imaginário do objeto real”. Volta a Myers, por sua
pesquisa das imagens eidéticas, os pós-efeitos visuais: por exemplo, quando olhamos
fixamente para uma fonte de luz, e essa, alterada, permanece ao fecharmos os olhos. Conclui
com uma afirmação ousada: “Toda a experimentação em curso seria de natureza a
demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem oporse de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de
uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram
traços entre os primitivos e as crianças”. Em Platão e nos mitos que o precederam, havia um
andrógino, dividido pelos deuses; em Breton, unidade de percepção e representação; de
sujeito e objeto, em um mundo evidentemente mágico.
Por isso eu havia falado em poética da alucinação, como solução da contradição de sujeito
e objeto. Visões e alucinações ganham o estatuto de percepções íntegras: o visionário
alucinado efetivamente vê; no automatismo verbal, de fato ouve. Breton termina
exemplificando com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em
crucifixo de pedras preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial.
O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu ver injusta: “Tereza d’Ávila pode passar
como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas.
Infelizmente, ainda não passa de uma santa”.
Aprecio “Le méssage automatique” pelo desfile de fenômenos, mais extenso do que os
citados aqui; pelos desafios ao senso comum. Gostaria que fosse traduzido. Temos,
traduzido, outro texto, reafirmando-o; porém, desta vez, sob uma perspectiva propriamente
filosófica. É “Situação surrealista do objeto”, parte da série Posição política do surrealismo de
1935, [19] que anuncia “uma crise fundamental do objeto”. Comenta a Estética de Hegel ao
longo de algumas páginas: “Declaro que, ainda hoje, é a Hegel que se há de interrogar sobre
os bons e os maus fundamentos da atividade surrealista nas artes”. Esse texto poderia
substituir minha palestra. Cito-o para que fique evidente de onde vêm as categorias “objeto”,
“sujeito” e “espírito” em Breton. O que chamei de poética da alucinação é, desta vez,
exemplificada por poemas de Benjamin Péret, Paul Éluard e Apollinaire; no campo visual, por
relógios moles de Salvador Dalí; pelas frottages de Max Ernst, ao esfregar um lápis sobre um
papel, por sua vez sobre um assoalho com ranhuras: equivalem às manchas na parede de
Leonardo da Vinci, também citadas. E trata de objetos encontrados, tema forte em O amor
louco, e, descontextualizados ou ressignificados, nos famosos procedimentos de Marcel
Duchamp.
Dos médiuns aos artistas invocados por Breton, todos esses casos mostram a projeção do
sujeito sobre o objeto, colocando-o em situação de crise. Há, porém, uma recíproca; outro
modo de relação, mostrado, de modo insistente, em Nadja, de 1928: o sujeito atacado pelo
objeto. Deixando de lado um exame mais atento dessa narrativa, observo a relação sensorial
de Breton com lugares de Paris. Por exemplo, a estátua de Étienne Dolet, situada na Praça
Maubert (Dolet, personagem respeitável, editor estrangulado e queimado naquela praça em
1546, acusado de ateísmo), que ao mesmo tempo o atrai e lhe provoca mal-estar. E a Praça
Dauphine, na Ilha da Cité, cenário de um episódio especialmente importante do relato, que o
24
faz sentir langor e opressão. Nadja começa pela lembrança de episódios significativos, dos
quais sua protagonista poderia ter sido participante; avisos de que o maravilhoso iria
manifestar-se. Entre outros, a busca de lojas que vendiam carvão de lenha, bois-charbon, par
de palavras, símbolo da destruição ou consumação, que encerram, isoladas e emolduradas
como um letreiro, o livro de escrita automática de Breton e Philippe Soupault, Les champs
magnétiques: seus autores, perambulando pela cidade, atingiram o nível de alucinação que
lhes permitia dizer antecipadamente em qual trecho de rua apareceria a loja ostentando o
letreiro, bois-charbon.
Principalmente, o episódio da Praça Dauphine, na Ilha da Cité, onde ficam a Catedral de
Notre-Dame e outras edificações históricas. Ao chegarem lá e se instalarem em um café,
inicia-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos
circulando pela vizinhança, com o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia –
transformado em vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios.
Afirma que lá, vindo do Palácio da Justiça, passava um túnel secreto que se comunicava com
outro palácio: segundo Henri Béhar em sua biografia de Breton, [20] escavações
arqueológicas de 1963 revelaram que o subterrâneo existe. Apontando para a janela de uma
das casas da praça, negra na escuridão, Nadja afirmou que em um minuto se iluminaria e
sua cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu, exibindo cortinas
vermelhas. Em seguida, alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu que
havia estado lá em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta. Prosseguindo a
caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cité à margem direita do Sena, a Pont Neuf, ela
enxerga uma mão em chamas, “mão que arde sobre as águas”, pairando no rio. Perguntou:
“O que isso significa para você: o fogo sobre a água, a mão de fogo sobre a água?” A mão, a
“main de gloire” e pentagrama dos magos, é um símbolo recorrente em Nadja. A noite
culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz.
Nadja observou que suas águas, elevando-se, separando-se em dois jorros, desfazendo-se ao
cair, retornando com a mesma força, e assim indefinidamente, simbolizavam os
pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o comentário, pois citava, sem saber, um
trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três Diálogos
entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem
flectit que deorsum, ilustrada por um chafariz idêntico ao das Tuileries.
Fazem parte de um maravilhoso imanente que surpreende os registros de diálogos,
objetos encontrados, textos, desenhos, esboços a traço e colagens feitos por Nadja, a
torrente de símbolos citados ou graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e
vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo,
torres e subterrâneos de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores
do ar. Invasão de símbolos, levando Breton a vê-los, “nos curtos intervalos que o nosso
maravilhoso estupor permitia”, a contemplar “os escombros fumegantes do velho
pensamento e da vida sempiterna”; e a perguntar: “Em que latitude nós poderíamos estar
bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos
víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?” Breton e
Nadja foram, naqueles episódios, sujeitos de uma narrativa, protagonistas; e, ao mesmo
tempo, objeto dos símbolos.
Nadja é o relato de una catástrofe, justificando a observação no prefácio, já citada, sobre
as derrotas do sujeito frente à implacável objetividade. Após separarem-se, Breton é
informado que havia sido internada, em surto, em um hospício do qual nunca mais sairia.
As respostas de Breton são o alheamento, a abstração do real objetivo, o isolamento.
Prosseguindo o elogio da distração no Manifesto do Surrealismo, relata o caso do hóspede de
um hotel que, toda vez, tem que perguntar ao atendente quem ele é. E, nas passagens finais
do livro, contra psiquiatras e manicômios, afirma que, se fosse internado, mataria alguém,
de preferência um de seus médicos, para que o deixassem em paz, confinado no isolamento.
Sair do impasse moveu-o a escrever o complexo Les vases communicants. [21] Seguindo
Freud em A Interpretação dos Sonhos, tenta dar um passo além, através do que chama de
25
“psicanálise da realidade”. Sonhos, afirma, não apenas reaproveitam o que Freud denominou
“restos do cotidiano”, mas se projetam na vigília. Faz, portanto, não apenas de interpretação
do sonho, mas do real no sentido mais amplo, compreendendo vigília e sonho, defendendo o
mesmo estatuto para ambos.
É o livro sobre a perda, de uma intensa racionalização; elaboração do luto, diriam
psicanalistas. Enfrentava dificuldades financeiras, e um drama amoroso. Nesse livro da
busca para não chegar a lugar algum, de encontros que não se realizam, multiplica o
encontro com Nadja. Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade, do mundo da
desigualdade e exploração, só havia uma saída: a equiparação de vigília e sonho. Vê o sonho
como crítica do real: “assim fazendo, por meio do sonho, o processo do conhecimento
materialista, […] sendo, penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade não
fazem senão um, ou, dito de outro modo, que o segundo não faz outra coisa, para constituirse, que verter-se na ‘torrente do dado’”. Indaga se a distinção entre realidade e sonho “é
fundamentada em todos os pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a faculdade
de discriminação que permite seu comportamento social normal”.
Critica Freud pelo dualismo, a seu ver um platonismo, ao separar dois mundos, sonho e
realidade, que, sob o ponto de vista materialista, deveriam ser um só. E questiona o criador
da psicanálise por considerar o sonho exclusivamente a satisfação de um desejo. Isso
equivaleria “à falta quase completa de concepção dialética”, pois o “real” da vigília está
submetido à censura, enquanto o sonho não; por isso, é o território da liberdade, do
possível: “uma parte do sonho, considerada eminentemente não-sonhável, tem por objeto
fazer de uma coisa que não foi – mas que foi sentida violentamente como podendo ter sido,
em seguida como podendo e devendo ser - uma coisa que foi, que é portanto em todos os
pontos possível e que deve passar, sem choque, à vida real como toda-possibilidade.” [22] Daí
que “Freud ainda se engana, muito certamente, ao concluir pela não-existência do sonho
profético”.
Argumenta que acontecimentos do dia-a-dia obedecem aos mecanismos do sonho. Por
exemplo, na série de mulheres que vai encontrando, para depois perdê-las. Trata-se de
deslocamentos: “Um personagem, assim que é dado, é abandonado por um outro, - e, quem
sabe, esse mesmo, por um outro? Para quê, então, esse trabalho de expor? Mas o autor, que
parecia haver-se disposto a nos apresentar algo de sua vida, fala em um sonho! – Como em
um sonho.”
Há uma interpretação do Omega do poema As Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala
fonética a uma atraente Olga que acabara de conhecer. O autor de uma carta com
observações sobre o Segundo Manifesto do Surrealismo é Sanson, Sansão (Georges Sanson,
pacifista a quem conhecera durante a guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o
remete à moça com quem havia marcado encontro aquele dia, cujo olhar lhe havia lembrado
a Dalila de Gustave Moureau, um de seus pintores prediletos. Ainda por associação, lembra
um episódio burlesco ocorrido no mesmo dia, no cabeleireiro. Admite: “Que isso possa, para
alguns, frisar o delírio de interpretação, não vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como
o fiz, sobre as razões do meu pouco equilíbrio de então.”
Mais que delírio interpretativo, há pensamento analógico, associação de coisas e símbolos
distintos por contigüidade ou afinidade. O mecanismo do sonho pode não ter tomado conta
da realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: “Deve ser impossível, considerando o que
precede, não se chocar com a analogia entre o estado que acabo de descrever como tendo
sido o meu naquela época e o estado de sonho, tal como concebido geralmente”. Como
observa J. B. Pontalis, “a percepção onírica, o estado de sonho e suas equivalentes vigílias
têm, antes, função de paradigma”. [23]
A carta de Sanson podia ser um comentário à discussão da noite anterior sobre
misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e uma religiosidade disfarçada no
surrealismo: “repito que entre nós essa discussão havia acontecido na véspera, à noite. Vê-se
como os fatos dessa ordem podiam encadear-se em meu espírito. E é isso que é taxado de
misticismo em mim. A relação causal, vêm me dizer, não poderia se estabelecer nesse
26
sentido. Não há nenhuma relação sensível entre aquela carta que lhe chega da Suíça e tal
preocupação que poderia ser a sua nas vizinhanças do momento em que essa carta foi
escrita. Mas isso não é, pergunto, absolutizar de uma maneira lamentável a noção de
causalidade? Não é deixar passar a palavra de Engels: ‘A causalidade não deve ser
compreendida senão em ligação com a categoria do acaso objetivo, forma de manifestação
da necessidade’?”
Assim aparece na obra bretoniana a expressão acaso objetivo, associada a um Sansão, seu
duplo, mas atribuída a Engels. No entanto, mostrou Marguerite Bonnet, [24] ela não se
encontra em lugar algum na obra de Engels. Em “Situação surrealista do objeto”, Breton
voltaria a falar do acaso objetivo, mas sem remetê-lo a Engels, porém apenas ao “humor
objetivo” de Hegel.
Mas o que faz que realidade e consciência se subordinem ao sonho? É o desejo, responde
Breton em Les vases communicants: “Muito mais significativo é observar como a exigência do
desejo em busca do objeto de sua realização dispõe estranhamente dos dados exteriores,
tendendo egoisticamente a só reter deles aquilo que pode servir a sua causa. A vã agitação
da rua tornou-se pouco mais incômoda que o movimento das cortinas. O desejo está lá,
cortando o tecido que não muda com rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio
seguro e frágil entre os pedaços. Ele não cederá a nenhum regulador objetivo da conduta
humana”.
Breton faz crítica marxista à psicanálise freudiana, ao questionar seu dualismo? Ou
procede à freudização do marxismo, ao colocar não só o comportamento humano mas o
mundo todo sob a regência de Eros? Introduzir o acaso objetivo, por mais que essa categoria
receba fundamentação, marxista inclusive, e freudiana, é apresentar uma solução mágica
para a contradição de sujeito e objeto; ou resolvê-la magicamente. Algo que não é
contraditório com as ligações de Breton com esoterismo, alquimia e demais disciplinas
herméticas, a ponto de alternar, no Segundo Manifesto do Surrealismo, páginas de discussão
política, de orientação marxista, e extensas notas de rodapé sobre astrologia e alquimia; ou,
em Les Vases Communicants, de propor astrologia como ciência marxista, “desde que aquilo
que é postulado seja tomado como postulado” – afirmação estranhamente circular. E com
sua atração por médiuns e videntes, levando-o a freqüentá-las. Uma delas, Madame Sacco,
com sua foto, paramentada como cigana, em Nadja. Em um texto de 1925, “Carta às
videntes”, depois agregado aos Manifestos do Surrealismo, comenta uma previsão de
Madame Sacco: “Ao que parece, devo ir à China por volta de 1931, e lá correr, durante vinte
anos, grandes perigos. Duas vezes em duas ocasiões diferentes deixei que me dissessem
isso, o que é bastante perturbador”.
Seu interesse não decorre da “realidade” da profecia, da objetividade como realização
empírica. Está na China: “Indiretamente, soube também que, antes disso, haveria de morrer.
Mas eu não penso que ‘das duas, uma’. Tenho fé em tudo o que me disseram. Por nada nesse
mundo resistiria à tentação que provocaram em mim, digamos: de aguardar-me na China.
Tanto mais que, graças a vós, já estou lá.” O valor não está na exatidão das profecias, mas no
efeito sobre a imaginação; sobre o sujeito: esse está na China.
O acaso objetivo passaria a realizar-se e multiplicar-se, uma vez formulado. O amor louco
é uma sucessão de episódios propiciatórios: poemas anteriores que são lembrados,
conversas entreouvidas em um restaurante, encontros improváveis.
Tudo isso – conferir estatuto de realidade ao acaso objetivo, valor às alucinações e ilusões
de ótica, defender o alheamento – daria razão a críticas ao surrealismo como aquela de
Sartre, em Situations, pelo afastamento do real e, conseqüentemente, de um compromisso.
Cabe citar a observação de Ferdinand Alquié, em Philosophie du Surréalisme: “O surreal não
é, portanto, o sobrenatural, e por isso, apesar da inquietude metafísica da consciência
surrealista, não deve ser considerado como o correlato de uma consciência religiosa, ou de
uma consciência mística, mas apenas de uma consciência artística. E sem dúvida a
concepção que os surrealistas têm da arte, cujo poder emancipador nunca é esquecido, torna
essa consciência indissoluvelmente estética e moral.” [25] Ademais, como observou
27
Carrouges, a percepção da objetividade nunca é neutra, porém, inclusive para Marx, função
de quem percebe. Exemplifico: quando, ao visitar o parque do Xingu, caminhei alguns
quilômetros em companhia de Tacumã, chefe Camaiurá, ele via outras coisas na mata, e
muito mais coisas que eu.
Mas a melhor interpretação filosófica, penso, da relação surrealista de sujeito e objeto é
aquela de Octavio Paz em La búsqueda del comienzo:
“Para nós, o mundo real é um conjunto de objetos ou entes. Antes da idade moderna, esse
mundo estava dotado de uma certa intencionalidade, atravessado, por assim dizê-lo, pela
vontade de Deus. Os homens, a natureza e as próprias coisas estavam impregnadas de
algo que as transcendia; possuíam valor; era boas ou más. A idéia de utilidade – que nada
mais é senão a degradação moderna da noção de bem – impregnou depois nossa idéia de
realidade. Os entes e objetos que constituem a realidade se tornaram, para nós, coisas
úteis, inaproveitáveis ou nocivas. Nada escapa a essa idéia do mundo como um vasto
utensílio: nem a natureza, nem os homens, nem a própria mulher; tudo é um para… todos
somos instrumentos. E aqueles que, do alto da pirâmide social, manejam essa enorme e
ruidosa maquinaria, também são utensílios, também são ferramentas que se movem
maquinalmente. O mundo se converteu em uma gigantesca máquina que gira no vazio,
alimentando-se sem cessar de seus detritos. Pois bem: o surrealismo se recusa a ver o
mundo como um conjunto de coisas boas e más, umas preenchidas pelo ser divino, outras
roídas pelo nada; daí seu anticristianismo. Igualmente, nega-se a ver o mundo como um
conglomerado de coisas úteis ou nocivas; daí seu anticapitalismo. As idéias de moral e
utilidade lhe são estrangeiras. Finalmente, tampouco considera o mundo à maneira do
homem de ciência puro, ou seja, como um objeto ou grupo de objetos desnudados de todo
valor, desprendido do observador. Nunca é possível o objeto em si; sempre está iluminado
pelo olho que o mira, sempre está moldado pela mão que o acaricia, o oprime ou empunha.
O objeto, instalado em sua realidade irrisória como um rei em um vulcão, prontamente
muda de forma e se transforma em outra coisa. O olho que o mira o amacia como cera; a
mão que o toca o modela como argila. O objeto se subjetiviza. [26] Ou, como diz um herói
de Arnim: “Posso discernir com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade do que
vejo com os olhos da imaginação.” Evidentemente, trata-se dos mesmos olhos, porém
servindo a poderes distintos. E assim se inicia uma vasta transformação da realidade. Filho
do desejo, nasce o objeto surrealista: a reunião de montanhas é outra vez cena de gigantes,
as manchas na parede ganham vida, põem-se a voar e são um exército de aves que, com
seus bicos terríveis rasgam o ventre da formosa acorrentada.” [27]
Deslocamentos de objetos, o método paranóico-crítico, registros de sonhos, escrita
automática, segue Paz, não são “exercícios gratuitos de caráter estético”, pois “Seu propósito
é subversivo: abolir esta realidade que uma civilização vacilante nos impôs como a só e única
verdadeira”. A destruição da falsa realidade revela outra, que “se levanta de sua tumba de
lugares comuns e coincide com o homem”, na qual “somos de verdade”. Nela, “o mundo já
não se apresenta como um ‘horizonte de utensílios’, mas como um campo magnético.” Mas,
“se o objeto se subjetiviza, o eu se desagrega”, realizando a máxima de Rimbaud, “Eu é um
outro”. Assim ocorre a “sistemática destruição do eu – ou, melhor dizendo: a objetivização
do sujeito”.
O par de categorias proposto por Paz, subjetivização do objeto e objetivização do sujeito,
dá conta, filosoficamente, do debate sobre a questão do sujeito – e correlatamente do objeto
– no âmbito do surrealismo. O que havia exposto, citando Breton, é uma justificativa desses
termos.
Ainda teria outros tópicos e questões da filosofia a examinar, marginalmente. Um deles,
clássico, aquele da natureza da linguagem e sua relação com a realidade, importante desde
Platão e Aristóteles; e, especialmente, no confronto medieval de realistas e nominalistas. O
surrealismo parece adotar a posição realista; por exemplo, quando Breton, em um texto
28
contemporâneo do primeiro Manifesto, intitulado “Discours sur le peu de realité”, [28]
afirma que “enunciados medíocres produzem uma realidade medíocre”; e, reciprocamente,
que a poesia instaura o maravilhoso. O realismo será adotado por Mabille, em Le miroir du
Merveilleux: “Para mim, como para os realistas da Idade Média, nenhuma diferença
fundamental existe entre os elementos do pensamento e os fenômenos do mundo, entre o
visível e o compreensível, entre o perceptível e o imaginável”. Isso porque, parafraseando
Hermes (e Novalis e os demais românticos de Jena), “tudo está em nós assim como aquilo
que está fora de nós, para constituir uma só realidade”. De modo conseqüente, “o
conhecimento do signo leva ao conhecimento da coisa” e “a ciência da linguagem resume
todas as outras ciências”; deixando claro, porém, que essa “ciência” não é aquela da
“deplorável atmosfera de secura abstrata na qual os gramáticos e os intelectuais
especializados situaram o estudo das palavras” (“gramáticos”… – Mabille não chegou a
presenciar os empreendimentos formalistas). Para alcançar o Verbo, um caminho: “Nas
iniciações antigas, o primeiro e mais longo trabalho consistia em aprender a ler”.
Mais que retorno a um debate arcaico, são afirmações precursoras de um debate
contemporâneo: aquele suscitado pelo relativismo lingüístico, as teses de Whorf-Sapir.
Fundadas em estudos antropológicos, mostram que a percepção do mundo é função da
organização da linguagem. Nesse sentido, a linguagem produz realidade. “Pouca realidade”,
no dizer de Breton, quando prosaica; “mais realidade”, surrealidade, quando poética. Como
sintetizado por Octavio Paz: “as línguas são mais inteligentes do que os homens que as
falam”. A citação é de seu ensaio sobre haicais. [29] Em outro ensaio, “Leitura e
contemplação”, examinaria questões suscitadas por Whorf e Sapir: “Cada idioma é uma
interpretação do universo, um prisma através do qual vemos o universo não-linguístico.
Cassirer o disse de maneira ao mesmo tempo sucinta e clara: ‘O homem não somente pensa
o mundo por meio da linguagem: sua visão de mundo já está determinada por sua
linguagem.’ A origem dessas idéias, na Idade Moderna, remonta provavelmente a Vico e a
Herder, os dois primeiros a oferecer de modo coerente uma visão pluralista da história.” [30]
Esse é o sentido da caracterização do surrealismo por Breton, no último de seus
manifestos, Do surrealismo em suas obras vivas, de 1953, como “operação que tendia a
restituir a linguagem à sua verdadeira vida” e movimento que “nasceu numa operação de
grande envergadura que tinha por objeto a linguagem”, para “descobrir o segredo de uma
linguagem cujos elementos deixassem de se comportar como restos do naufrágio à flor das
águas de um mar morto”. Para tal, importava “subtraí-las a seu uso cada vez mais utilitário”.
Tais afirmações devem ser lidas como completando do que havia afirmado sobre a “crise do
objeto”.
O alvo dos ataques surrealistas é, evidentemente, a ordem estabelecida; em filosofia,
especialmente, o “cogito” cartesiano. De modo mais explícito, por Louis Aragon na abertura
de O camponês de Paris, de 1928, intitulada “Prefácio para uma mitologia moderna”. [31]
Sobre o “certo”, a “certeza” e a “verdade”, diz: “A certeza é realidade. Dessa crença
fundamental procede o sucesso da famosa doutrina cartesiana da evidência. Ainda não
terminamos de descobrir os estragos dessa ilusão”. Não apenas contrapõe-lhe o erro, mas
afirma que ambos, certeza e erro, constituem-se em unidade, em uma relação semelhante
àquela de luz e sombra. Interdependentes, uma não existe sem a outra: “Essa sombra, da
qual ele pretende se abster para descrever a luz, é o erro com seus caracteres desconhecidos,
o erro que, sozinho, poderia revelar, àquele que o tivesse encarado de frente, a fugitiva
realidade. Mas quem não compreende que a imagem do erro e a imagem da verdade não
poderiam ter traços diferentes?” Dialetiza. E contrapõe o pensamento analógico à lógica
cartesiana. Nesse livro, a passagem da Ópera e o parque das Buttes Chaumont são pórticos
para “iluminações profanas”, como as designou Benjamin, através do “erro” e da errância em
lugares eleitos. Conforme a tradutora Flávia Nascimento, “Errar pelo jardim em plena noite
funciona como técnica alucinógena cujo objetivo é fazer aflorar o que há de mais primitivo
no homem; e percorrer esta topografia equivale a percorrer os caminhos sinuosos do
29
inconsciente”. Por isso,Aragon anuncia o retorno de divindades arcaicas e novos mitos
urbanos.
O retorno ao mito foi reivindicado por surrealistas em geral e Breton em especial.
“Flagrant délit, [32] o ensaio em que denunciou a publicação de uma falsificação de Rimbaud
intitulada La chasse spirituelle, é aberto com a defesa da alegada mitificação surrealista de
Rimbaud (e de Lautréamont, entre outros). A propósito de uma mostra sobre a civilização
maia no Louvre, argumenta que, assim como as obras dos maias são a expressão de mitos, a
de Rimbaud propunha novos mitos. Citando, de Apollinaire, “Você nunca conhecerá bem/
os/ Maias”, advertiu: “Você nunca conhecerá bem Rimbaud”. O cerne de sua argumentação,
repetindo Schelling: o surrealismo situa-se no campo do mito; e o mito é meio de
conhecimento, mais efetivo que a lógica.
Um passo adiante é sua crítica ao antropocentrismo, à idéia do homem como centro do
universo, passando a pensá-lo como parte de um todo. De fato, uma vez admitida a unidade,
não se sustenta a atribuição de um estatuto ontológico à separação do homem – ou o
espírito, ou a alma – e do mundo das coisas, como nas teologias judaico-cristãs e em
sistemas como o de Descartes. Na mesma medida, passam a valer panteísmos, vitalismos,
idéias da alma universal. Por isso, nos dois últimos manifestos – Prolegômenos a um terceiro
manifesto do Surrealismo ou não de 1942, e Do Surrealismo e de suas obras vivas de 1953 – é
proposto um novo mito, dos “grandes transparentes”. Nem é preciso observar que, com tais
proposições, Breton toma distância do pensamento marxista.
A gênese da filosofia já foi interpretada como revolta do logos contra o mito. Por
exemplo, por Mircea Eliade: “a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e
penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente ‘desmitificado’. A ascensão do racionalismo
jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’, tal como é
expressa nos obras de Homero e de Hesíodo. Se em todas as línguas européias o vocábulo
‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos.” [33]
Ou por E. R. Curtius: “O pensamento de Hesíodo era mítico. Opôs-se-lhe, desde o século VI, o
pensamento da filosofia natural jônica. É um espetáculo maravilhoso a irrupção da filosofia
no espírito grego, tomando de assalto todas as posições do inimigo. É a revolta do logos
contra o mito… e também contra a poesia.” [34]
A resposta do mito ao ataque do logos tem um nome, conforme Paz. Chama-se rebelião:
“O rebelde, anjo caído ou titã, é o eterno inconformado. Sua ação não se inscreve no tempo
retilíneo da história, domínio do revolucionário ou do reformista, mas no tempo circular do
mito: Júpiter será destronado. Quetzalcoatl voltará, Luzbel regressará ao céu. Durante todo o
século XIX o rebelde viveu à margem. Os revolucionários e os reformistas o vêem com a
mesma desconfiança com que Platão vira o poeta, e pela mesma razão: o rebelde prolonga os
prestígios nefastos do mito.” [35]
O surrealismo, sendo rebelião em favor do mito e contra o logos, promoveu-a, a exemplo
dos românticos aqui citados, sem descartar a reflexão filosófica. Sendo um pensar
totalizante, em busca da unidade, incorporou-a e reinterpretou-a. E o fez de modo instigante
e produtivo, como sugerido, espero, através deste exame.
NOTAS
1. Breton, André, Nadja, collection Folio, Gallimard, Paris, 1964; Nadja, tradução de Ivo
Barroso, Cosac Naify, Rio de Janeiro, 2006.
2. Baudelaire, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso,
diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pg. 789.
3. As citações são de Novalis, Philosophical Writings, organizado e traduzido por Margaret
Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997. Sempre que o
tradutor não estiver indicado, a tradução é minha.
4. Citado por Octavio Paz em Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite, São
Paulo, Perspectiva, 1972.
30
5. Chénieux-Gendron, Jacqueline, O Surrealismo, tradução de Mário Laranjeira, São Paulo,
Martins Fontes, 1992
6. Alexandrian, Sarane, Le Surréalisme et le réve, Paris, Gallimard, 1974.
7. Em itálico no original.
8. Breton, André, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau Editora, Rio de
Janeiro, 2001.
9. Breton, André, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria Boaventura,
São Paulo, Brasiliense, 1985.
10. É o final de Discurso no Congresso de Escritores, em Posição Política do Surrealismo,
conjunto de textos agregado às edições dos Manifestos do Surrealismo.
11. Carrouges, Michel, André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, Paris,
Gallimard, 1971.
12. Breton, André, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Lisboa, Editorial Estampa,
1971. Nos comentários sobre essa e outras obras de Breton, retomo o que havia publicado
em “Magia, Poesia e Realidade: O Acaso Objetivo em André Breton” em O Surrealismo,
organizado por J. Guinsburg e Sheila Leirner, São Paulo, Perspectiva, coleção Signos, 2008
13. Na tradução de Ivan Junqueira no já citado Charles Baudelaire: poesia e prosa.
14. Os grifos são do próprio Breton.
15. Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard – Idées, 1974.
16. Mabille, Pierre, Le miroir du merveilleux, Paris, Les Éditions du Minuit, 1962.
17. Breton, La clé des champs, Paris, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de
Poche, 1979
18. Breton, Point du jour, Paris, Gallimard - Folio, 1970
19. Também na edição já citada de Manifestos do Surrealismo.
20. Béhar, Henry, André Breton, Le grand indésirable, Paris, Calmann-Lévy, 1990.
21. Breton, André, Les vases communicants, Idées, Gallimard, Paris, 1985.
22. Grifo de Breton, assim como na citação seguinte.
23. No prefácio do já citado Le Surréalisme et le Réve de Alexandrian.
24. Em Oeuvres complètes de Breton, organizadas por Marguerite Bonnet, Éditions Gallimard,
Bibliothèque de la Pléiade, vol. II, 1992, nas notas para Les vases communicants.
25. Alquié, Ferdinand, Philosophie du surréalisme, Paris, Flammarion, 1977
26. Grifo meu.
27. Paz, La búsqueda del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974
28. Breton, Point du Jour, Paris, Gallimard – Folio, 1970.
29. Integra o já citado Signos em Rotação.
30. Está na coletânea Convergências – Ensaios sobre arte e literatura, tradução de Moacyr
Werneck de Castro, Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
31. Aragon, Louis, O Camponês de Paris, tradução de Flavia Nascimento, São Paulo: Imago,
1998.
32. Publicado na coletânea La clé des champs, já citada aqui.
33. Eliade, Mircea, Mito e realidade, tradução de Pola Civelli, São Paulo, Perspectiva, 1972
34. Curtius, Ernst Robert, Literatura Européia e Idade Média Latina, tradução de Teodoro
Cabral e Paulo Rónai, Hucitec – EDUSP, São Paulo, 1996.
35. “Revolta, revolução e rebelião”, também na coletânea Signos em rotação.
Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta, tradutor. Foi co-editor da Agulha Revista de
Cultura em seus 10 primeiros anos de atividade. O texto que aqui publicamos é uma
atualização ampliada da palestra A crítica filosófica e a questão do sujeito no surrealismo (II
Jornada de Filosofia e Literatura do Depto. de Filosofia da Unifesp, 09/12/2013. Contato:
[email protected]. Visite também seu blog: http://claudiowiller.wordpress.com/. Página
ilustrada com obras de Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
31
DAVID CORTÉS CABÁN | Conocerse es el
relámpago[1]: Caballo de palo, de Clemente Soto
Vélez
La década de 1950 fue sumamente productiva para el poeta Clemente Soto Vélez (19051993). En un periodo de cinco años fueron publicados en Nueva York Abrazo interno (1954),
Árboles (1955) y Caballo de palo (1959). [2] Su primer libro, Escalio (1937), [3] ya había sido
publicado en Puerto Rico por un grupo de amigos mientras el poeta permanecía encarcelado
por sus ideales de una patria libre y soberana, en la penitenciaría federal de Atlanta, Georgia
(1936-1940); y luego, por haber violado su libertad condicional al viajar a la Isla, dos años
más en la prisión de Lewisburg, Pennsylvania (1040-1942). Después de salir de la prisión
Soto Vélez se radica en la ciudad de Nueva York donde irá produciendo la mayor parte de su
obra poética. [4]
Los amigos, con quienes a través de los años he conversado sobre la poesía
puertorriqueña escrita tanto en Nueva York como en Puerto Rico, solemos coincidir en que
Caballo de palo es uno de los libros más representativos de nuestra vanguardia literaria
publicado en la década del 50. [5] Esto por razones sustentables en la naturaleza de su
estructura poética y la esencia de un lenguaje que conserva siempre una profunda vitalidad
por el sentido y riqueza de sus imágenes. En el momento de su primera aparición Caballo de
palo no tuvo la acogida ni el reconocimiento que ameritaba tener y creo poco probable que la
segunda edición que manejo, publicada por el Instituto de Cultura Puertorriqueña en 1976,
con un excelente prólogo de Jorge Señeriz, haya tenido mejor suerte. Hasta el momento nada
he visto que señale la importancia de aquella primera edición de 1959. No ha sido sino hasta
1980 y años subsiguientes que se han venido realizando estudios significativos sobre la
importancia y proyección de su obra. Y es que los tiempos y el ambiente cambian y lo que
había sido lejano y extraño para algunos, hoy comienza a adquirir una luz más perceptible
en la mirada. Volvemos a los poetas que demarcaron en su tiempo el camino de nuestra
vanguardia literaria no para justificar nuestra dejadez u olvido, sino para reconocer la
importancia de sus textos como símbolos emblemáticos de nuestra modernidad. Este es el
caso de Caballo de palo; indudablemente un símbolo representativo de esa modernidad. Un
poema que conlleva una concepción ética y solidaria de la vida y una visión que reacciona
contra la percepción tradicional de su tiempo. Un poema que busca anular las fronteras
geográficas del mundo a través de una intuición lírica que sólo puede fundarse en el
conocimiento de la libertad. No una libertad falsificada por los valores que refleja la vida
moderna, sino por otros más acordes con un mundo libre de prejuicios y de una libertad que
excluya de sí la soberbia y alabanza del yo.
Ya en Escalio el poeta concebía la libertad como el foco iluminador de una conciencia
que postulaba un sentido de la vida en continua comunión con el universo. Buscaba la
esperanza de una perfección apoyada por completo en una conciencia que fundara un
balance entre lo que sentía el hablante lírico y lo que percibía su mirada. Justamente frente
al materialismo y las fuerzas del mal (el imperialismo), buscaba una sabiduría fundada en la
plenitud del ser estableciendo así un diálogo entre el conocimiento y la creación. Había
hallado en “la imaginación creadora” y el “conocimiento” las fuerzas liberadoras para logra,
ese ideal: “El conocimiento va a sostener que la humanidad es un sistema radicalmente
distinto de los otros sistemas de universos que forman la creación sin límites” (Escalio, p.17).
Puesta su fe en el conocimiento, lo veía como la expresión más intensa del ser y como el
resultado de la fuerza creadora de la imaginación. En Caballo de palo esta forma de
conocimiento y de relaciones entre el poeta y su realidad histórica se convertirá en el eje
central del libro. Ese “conocimiento”, diseminado en acciones reiterativas a través del texto,
irá proyectando al sujeto lírico mediante las experiencias reveladoras de su ser en las cosas
32
que nombra. Un conocer que proyecta su relación con el mundo no ya como una abstracción
filosófica u onírica, sino como una experiencia liberadora ante lo que implica el sentido
mismo de esa libertad. Por eso, cada escenario del poema representa una especie de energía
liberadora que parte de la estructura del texto para encarnar una imagen del “yo” en
continua trasformación del proceso que ordena ese conocimiento. Esto en virtud de un
lenguaje cuyos elementos se caracterizan no sólo por el “tono confesional” que apoya esa
experiencia, sino por un pensamiento sustentado también en la riqueza y novedad de sus
imágenes.
Desde el punto de vista formal Caballo de palo parece un poema sencillo. Posee una
estructura unitaria montada sobre escasos recursos literarios: [6] el gerundio desata la
fuerza y dinamismo del verso, mientras la anáfora enfatiza el efecto sonoro y el paralelismo
de las estrofas. Por otra parte, la conjunción o usada para crear un sentido de valores entre
un concepto u otro, representa en este caso un sentido de igualdad como notamos en la
confección de las estrofas. Los 1, 724 versos que componen la arquitectura física del texto
van distribuidos en secciones marcadas con números arábigos. Estas secciones, veintiuna en
total, están compuestas de versos libres que varían en extensión métrica y reiteran un
mismo modo de construcción gramatical: lo conocí… acentuando así el tono y la continuidad
expresiva de los versos a través de múltiples y variadas acciones. Las experiencias de ese
conocer contienen un sentido más profundo y significativo de lo que el verbo encierra.
Expresan un pensamiento que se proyecta como un triunfo sobre las fuerzas que dominan la
conciencia sometiéndola a un mundo dominado por ideologías contrarias al verdadero
sentido de la libertad.
En los primeros versos del poema se menciona el nombre y nacimiento del poeta en un
marco de referencias que trascienden su existencia. Su nacimiento se convierte así en una
expresión jubilosa que descarta todo aislamiento físico y geográfico que limite la plenitud de
la vida. La estrofa que va del verso 1 al 197 trata de este nacimiento. En él, y desde esta
perspectiva, se enfatiza también la imagen de la Isla que asciende en una proyección
equitativa entre los países mencionados en el texto. De este modo se presenta la grandeza de
la patria trascendida en una visión más significativa del universo y no reducida a un simple
concepto territorial:
Clemente Soto Vélez
nació
un mes de enero
en Puerto Rico
como si hubiese visto
en Madrid
el aire primero de la vida,
como si hubiera tocado
en París la primavera,
como si su infancia auroral
hubiera florecido
en Atenas o en Roma,
como si su grito inicial
se hubiese oído
en Berlín o en Ejipto [7]
o en la India,
en Libia o en Liberia
en Lisboa o en Marruecos,
en Río de Janeiro o en Etiopía
en Túnez o en Londres,
en Buenos Aires o en México, (p. 23)
(…)
33
La visión que acompaña ese nacimiento se ve transformada por una que erosiona las
fronteras humanas creando así un vínculo más solidario del mundo. Se proyecta no el
nacimiento de una criatura aislada, sino la de una que reconoce la plenitud de la libertad en
la vasta geografía del planeta. En este sentido el poeta trasciende su realidad biográfica en
territorios que igualmente podrían constituirse como su lugar de nacimiento:
[…]
O como
si el porvenir con su melena negra
le hubiera enriquecido
con el recio marfil
de un amanecer de dientes africanos,
o
con el verdor herido
del caminar de Irlanda,
o en Indonesia que abre
sus brazos de archipiélago erguido,
señalando
la fe tropical de sus islas,
o
como si hubiese sido
concebido en Peiping
alzada en sus poblados hasta la incandescencia
de mediodías urjentes,
persiguiendo la órbita de su ser planetario,
o en la Checoeslovaquia poetizada en la sangre
de sus hijos hermosos con espaldas de roble,
[…] (p. 24)
Ese primer plano poético establece una relación sólida con el mundo. Pero esa relación no
se define simplemente por el lugar geográfico, sino por el conocimiento que implica esa
realidad. De ahí que la insistencia en conocerse a sí mismo tenga siempre como referencia el
testimonio de un hablante que explora la condición de su estar en el mundo, ya sea en el
sentido existencial o ético de la palabra. Caballo de palo, una imagen fundada prácticamente
en un juego infantil, hace de ese conocimiento una vía transformadora. Es decir, de esa
vivencia personal se pasa a explorar las situaciones y circunstancias que determinan su
actitud frente al mundo. Estas relaciones girarán sobre experiencias vinculadas con el
pasado, pero también con la realidad más inmediata del hablante. Se proyectan desde
situaciones que han marcado su vida y ahora nos permiten acercarnos a su mundo. Por eso,
los que hemos leído el poema podemos intuir la intención de estas acciones respecto a la
posición ideológica y estética del poeta:
Lo conocí
cuidando
caballos de palo y vacas de piedra,
dándoles de comer
la infancia de su ensueño
ansioso de servir
a los hombres. (p. 29)
Presentado como una realidad que alude a múltiples experiencias ese “conocer”,
trasciende hasta intensificarse en un vuelo vertiginoso a través de todo texto. Pero en el
34
primer plano [8] el nacimiento del protagonista (“Clemente Soto Vélez / nació / un mes de
enero / en Puerto Rico…) va asociando a una visión más vasta y humana del mundo; y, en el
segundo, ese “conocimiento” será también la vía que revele el proceso de transformación del
hablante lírico mediante el compromiso de esa acción liberadora. En la acción de ese conocer
está la fuerza y expansión del texto, expresada también en la fugacidad del pasado y en el
inmediato acontecer de las cosas. En efecto, desde el punto de vista de la construcción, el
discurso poético no hubiera sido posible técnicamente utilizando los tiempos gramaticales
del presente o el futuro (lo conozco / lo conoceré). Esto por la dureza de la expresión y por
la condición misma del proceso reiterativo, extensión y disposición de las estrofas. Por otro
lado, este conocer dado en el modo indefinido y apoyado seguidamente en el gerundio,
contiene la base fundacional del poema: la visión del hablante hasta el proceso mismo de su
total transformación. Todo esto anunciado a un tiempo que ha quedado suspendido entre el
pasado y el presente y visto siempre a través de una tercera persona gramatical:
Lo conocí
jugando
con su edad
entre las flores,
cargando
agua para bocas sedientas
en las copas de los árboles.
Lo conocí
conversando
entre sueños con el sufrimiento universal
de los obreros
o la pluralidad del corazón
abriendo
las mordeduras de sus pájinas
ante el tribunal de los dolores.
(p. 29)
La niñez es una referencia evocadora de esa etapa de la vida, una imagen representativa
del sentido transformador de esa experiencia. En más de una ocasión el hablante se referirá
a ella no para idealizarla, sino para establecer lazos de referencias que contrasten con las
consciencias subyugadas y la dureza del mundo. Repetidas veces se mencionará la niñez
como una etapa superior de la existencia marcada por el amor y la calidez de la infancia:
O como si
su sonrisa orijinal
hubiera jugado
con los niños de Moscú, adulta en porvenir
presente de clarines
que anuncian
su infancia sonora cantando
a la paz, como cantan
los niños de todos los países,
los niños que no tienen
sino su corazón para cantar
la música viviente del color de sus almas,
los niños que no tienen
sino su corazón para unir
sus juguetes y conversar
con ellos
35
como luz que juega
convertida en rocío,
los niños que no tienen
sino su corazón saltando
de alborozo como un juguete nuevo
cuando llega
el huésped en forma inesperada,
paloma acariciada, caricia mensajera,
arrullo de emoción desplegando
sus alas,
los niños que no saben
sino formar
fronteras con música de besos,
los niños de la tierra
los niños de la tierra que, peleándose,
se quieren y se adoran, se unen
y se aman.(pp. 27-28)
Esta imagen de la niñez contiene una vía exploratoria de su condición humana. En este
contexto se reproducirá una variedad de acciones en las que percibimos al yo poético en el
paisaje de esa infancia no contaminada por el materialismo y la dureza del mundo:
Lo conocí
echando
a correr
su voz sobre las aguas
para cultivar
el alfabeto del pueblo
o niño que arrulla
en los brazos todo el llanto del mundo.
(p. 30)
Y, en otra estrofa: Lo conocí
encendiendo
lámparas como diáfanos niños
que ansían beber
agua de luz que limpia
con sus cálidas manos,
la frente del arrullo que vuela
como el manantial sediento de palomas.
(p. 33)
o, por ejemplo:
Lo conocí
internándose
por la claridad
de su palabra oscura,
como el niño que no encuentra
la luna
en el agua dormida.
(p. 42)
Como señalara Pedro Salinas en uno de sus poemas: “Yo no necesito tiempo / para saber
cómo eres: conocerse es el relámpago”, hablando ya desde una posición fundada en un ideal
amoroso; en Clemente Soto Vélez este ideal nace de su relación y compromiso con la
independencia de Puerto Rico. Este “conocerse” encarna una visión existencial que nos
descubre además la dinámica que impulsa su escritura. Y lo que ética y estéticamente ésta
36
representa en la vida del poeta. Sabemos que Clemente Soto Vélez fue un poeta
profundamente comprometido con las luchas por la independencia, pero en rigor también
fue un poeta comprometido con el lenguaje. Notamos en su obra poética la continua
búsqueda de esa concepción novedosa del lenguaje para “remover la fronda de la poesía
puertorriqueña” como quería su compañero de generación y del Movimiento Atalayista, el
Mistagogo en Ayunas como solía llamarse a sí mismo el poeta Graciany Miranda Archilla
(1910-1993).
Lo conocí
aprendiendo
a hacer
con palabas morenas de tuatúa,
ensoñación de tártago, vijilia
de grosellas, idilios de limón,
contajio de azucenas, azúcar de acritud,
joyas de cabañuelas, juí de nostaljia
entre agüeros agrios, asilos de quebradas
entre amargos saludos de jazmines,
verdolaga de inmunidad
para nutrir
de piedra pronósticos de barro, de tierra
malherida en su sien
por sus frutos menguantes;
idealidad de acero fundida en Juan Cuchilla
y en Juan Bobo: adalides de niñez hechizante,
cordilleras que llevan
en sus ancas por el aire a los niños
iniciados en los cuentos heroicos, donde aparecen
tigres que entienden
sus palabras, lobos que aúllan
de amor por sus vecinos, encantadoras novias que andan
sobre el agua, lagos con ojos de leones
cazando
nubes con melenas de nácar,
truenos como panteras paseando
a los niños preguntones en las alas,
batallones con cabezas de luceros
peleando en lo interior de una naranja
por la muchacha que sale de bañarse
de un río muerto a la orilla de un grano de mostaza… (pp. 59-60)
(…)
En Soto Vélez los recuerdos se convertirán en una simbología del conocimiento que
proveerá a sus versos una dimensión de profundos efectos sensoriales: “vacas de piedra”, “la
muerte de un cadáver rociado de luna”, “frontera de rosas con cinturas de espigas”, “su
infancia sonora cantando”, “la mañana de ojos pardos”, “lagos con ojos de leones, espuma
de soledad que hierve”. Todas estas imágenes reflejan la influencia del surrealismo.[9] El
paisaje surrealista que exploraron algunos de nuestros escritores en la década del ’20 y años
subsiguientes, en su afán de exorcizar la poesía de los temas y matices postmodernistas. Por
eso Caballo de palo es mucho más que un texto de ideología política; aunque ésta conlleve la
mayor fuerza de esa expresión poética, no podemos pasar por alto el enfrentamiento del
poeta con el lenguaje y la profunda intuición innovadora de su poesía. Esta actitud
innovadora del grupo atalayista buscaba, como juntamente los hacían otros movimientos de
37
vanguardia en Puerto Rico, renovar el ambiente literario creando una literatura más afín con
los movimientos estéticos y renovadores que se dieron en Europa y Latinoamérica.
Desde el punto de vista cultural y lingüístico, hay en Caballo de palo palabras que exigen
una interpretación mucho más abarcadora respecto al sentido que usualmente les damos.
Por ejemplo: “caimito”, “mamey”, “ausubo”, “roble” y “cedro”, parecen fijar una connotación
que implica una simbiosis representativa de la patria. ¿Qué características y qué sentido
encarnan en relación a otros elementos del texto? ¿Por qué el hablante elige éstas y no otras
para revestirlas de un sentido cuyo significado no depende ya de una interpretación común,
sino de otra más profundamente relacionada con nuestro espíritu de pueblo? El mamey, el
cedro, el ausubo son símbolos representativos de esa concepción dialéctica del conocimiento
en la imagen de la naturaleza: “El mamey no es / caballo de noria, / el mamey determina / su
historia / con su lengua de gloria, / en la liberación universal / del sufrimiento” (p. 65); “el
ausubo su voluntad de pueblo jenital / contra la voluntad atlántica / y pacífica del mar que
lo acorrala…” (p. 66); “el cedro su tronco de vocales / perfectas y precisas / como el cuerpo
perfecto que brilla / en la respiración de la palabra…” (p. 67). Sobre estas frutas y esos
árboles recae el sentido de lo que permanece por la esencia misma de su organismo vegetal.
Contienen la plenitud y las fuerzas integradoras de una naturaleza que el poeta celebra en el
juego dialéctico de esas imágenes: “Como mamey de tronco amanecido / en su carne de
delicia aborijen, / alza la admiración sencilla y casta / su cuello hermoso…” Y luego: “El
mamey no es / vacío de miel de incertidumbre, / no es / vacío de estambre de vislumbre, /
no es / vacío de piel de dulcedumbre / no es / artífice de la prosodia / oscura…” (pp. 62-54).
El cedro también revelará sus atributos en la majestuosidad de una imagen representativa de
lo más noble y humano del ser:
Lo conocí,
ratificando
el cedro su tronco de vocales
perfectas y precisas
como el cuerpo perfecto que brilla
en la respiración de la palabra,
ratificando
el cedro
su nudación semántica de intensidad anjélica
como lengua que crea
la aurora de su estirpe con rosicler
de hígado y jugo de invención,
ratificando
el cedro
su vuelo enmaderado de letras vejetales,
ratificando
el cedro su signo de animal creador
y transparente como la disonancia que se encanta
en su ritmo,
ratificando
el cedro
minerales de sílabas que se inventan
su encanto con sintagmas de metales de aroma (…)
(pp. 66-67)
En esa “ratificación” majestuosa del cedro hay un sentido de persistencia. Sus atributos
y origen milenario reafirman su grandeza inconmensurable como sinónimo emblemático de
la libertad y “como actitud robusta de pueblo floreciente / en su lengua corpórea hasta la
efervescencia…” (p. 68). El cedro también personifica esa voluntad de lucha que permanece
viva a través del tiempo. Pero su presencia envuelve, además, la imagen de una niñez
38
transfigurada en la simbología de su naturaleza: “ratificando / el cedro sus hojas
suspendidas / como niños de toda la tierra / de un lenguaje de rosa que los une jugando /
en sus juegos bellísimos y en sus almas purísimas”. Esta imagen de la niñez es significativa
porque influye en la relación del poeta con su entorno y en su visión de un mundo libre de
toda influencia materialista: “Mi amistad / es pura como el niño que acaba de nacer”,
enfatiza en este verso. En este sentido, los árboles y frutos condicionan la revelación de ese
conocimiento que se extiende por todo el poema proyectando, a su vez, diferentes enfoques
de un conocer cuyo proceso concluirá, de manera directa, con el nombre del poeta. Es decir,
uniendo principio y fin en la culminación simbólica de un conocimiento que trasciende la
vida del sujeto poético para generar en el lector una toma de conciencia, un cambio de
actitud hacia nuestra realidad colonial. Un conocer que elimine todo rasgo de sometimiento,
y se convierta en una fuerza liberadora plenamente consciente del valor y el sacrificio que
exige la lucha por la independencia y la libertad de un pueblo:
Lo conocí
mudando
la esperanza de imájenes amarillas
de sufrimiento alzado
a población de rara complacencia,
donde el prodijio no goza
del recurso insigne del medio transparente,
donde lo padecido
es el manjar intenso del viajero
sublime que produce
la gracia que contiene
su espíritu frugal de refuljencia,
donde la eternidad colinda
con su cuerpo
como la colindancia de su tierra y su cielo,
donde lo esperanzado
es carne de sí mismo que se acerca,
solícita,
como animal indócil llorando
de ternura. (pp. 76, 77)
La relación del hablante con su entorno expone la concepción dialéctica de ese
conocimiento como el fundamento esencial del poema. Caballo de palo representa, en cierto
modo, la trascendencia misma de ese conocer. Encarna una imagen del yo expresado en un
lenguaje que afirma el deseo de una patria soberana. Insiste en ofrecer al lector la visión de
un conocimiento del ser justificado en un ideal patriótico. Un “conocer” que en la vida del
poeta implicó ─como algunos sabemos─ riegos, enfrentamientos, persecuciones, cárceles y
aislamiento. Por eso, su lenguaje y su vida, su vida marcada por el profundo anhelo de
libertad que lo consumía lo identificó siempre con el ideal de independencia y de justicia
para la Isla asediada. Creó, en este poema ejemplar, un luminoso paisaje de reflexiones y de
posibilidades interpretativas, pero siempre partiendo de los motivos que constituyen la
verdadera esencia de con ese conocer:
Lo conocí
cosiendo
con su nombre el traje de su amada,
midiendo
con su sombra las curvas de su espejo,
sacando de su frente
39
la cualidad del alma,
cuidando
el padecer el puerto encarcelado
donde ella ve
a su amante despertando
a la niebla,
bebiendo
cada hoja de rocío de su patria
comiendo
cada sueño la carne de su tierra,
prendiendo
cada fruto su lámpara de pueblo. (p. 79)
Ciertamente se está hablando aquí de la libertad revelada en el lenguaje de la patria
amada. Una invención sublimada de las múltiples experiencias por las que pasa el yo
poético: “Lo conocí / siendo / la libertad su encantadora amante, / lirio de sol de dalia
enamorada, / doncella apalabrada del doncel que la mira / derecho en sus pupilas hasta
beber / su encanto…” Y luego, en el vuelo inventivo de esas imágenes: “Lo conocí /
partiendo / su amada entre relámpagos de palabra inoída” (p. 79). Así, porque en el instante
prodigioso de esa revelación llegamos a comprender que la libertad no es una utopía o un
sueño, sino el sentido pleno y sagrado que sostiene la vida en su milagroso acontecer. Esto
lo conoce muy bien el poeta como también conoce su dolor, su destino, su existencia en la
entrega total de su amor a la patria: “Y / siendo / así que aquellos que han burlado / el reino
de la libertad / o su sustancia, / sufren / de excelsitud con ella sola…” (p. 80), dice
rechazando la actitud de los que creen amar la patria condicionando su libertad a otros
intereses. No obstante, hacia el “reino de la libertad” galopa Caballo de palo en esplendorosa
transformación del ser que vislumbra otro futuro. Y en la serena contemplación de sí mismo
trasciende las limitaciones de la vida elevando su espíritu hacia la más alta cumbre del
sacrificio total:
Y
viniendo
su amada relampagueando
como relámpago en cuerpo de doncella,
aquellos que violan
su sustancia,
aquellos que la violan
en su cuerpo,
son
como piedra entorpecida quemándose
la lengua,
y
no pudiendo
deglutir su fuego
y
no pudiendo
saborear su llama,
su palabra se esparce,
derretida como la sangre nueva
del alma libertada. (p. 81)
Pero queda un último pasaje de sorprendente lucidez, un reflejo de mística y reveladora
trascendencia; un plano mágico donde se detiene el movimiento del poema para que el
sujeto reconozca por última vez la certera vocación de su destino: “Clemente, / déjame
40
llamarte / por tu nombre, aunque no se / quién eres / ni intento / descubrirlo, / tus
enemigos / guardan el retrato de tu nombre, / como la novia apasionada que porta / en su
cartera la prenda del peligro…” (p. 85). Divina naturaleza de este lenguaje, iluminadora
intuición que sugiere una cosa por otra porque en la dimensión temporal del poema el poeta
sí sabe quién es, ha ido como el fluir de un río por los diferentes meandros de ese conocer.
Su voz nos lo ha revelado una y otra vez en el profundo sentido de ese conocer. Lo
percibimos ahora detenido en la reflexión contemplativa de ese lenguaje que libera su vida
en la contemplación de su muerte:
Clemente,
por la sed que bebe
de tu estrella,
te digo
que yo moriré
antes que tú, porque muriendo
tengo que vivir
por tu vida, sin que tú me conozcas
y sin yo conocerte,
pero es más importante saber
que no nos conocemos siendo
tan entrañables amigos. (p. 86)
Lo vemos en la imagen totalizadora que devela su último pensamiento en el ámbito de
esa libertad que lo identifica con la imagen de la amada:
Y por eso tú no temes
a tu amada,
y por eso tú no temes
a los ojos de tu amada,
y por eso tú no temes
a los pasos de tu amada,
porque tu amada
es como río crecido creciendo
en la lengua de su amante.
Yo sé que tú tienes
muchísimos amigos,
pero yo nunca te dejaré
a deshora.
A la hora del relámpago,
muchas son
las flores que cuando azota
el huracán,
no dejan libar
a la abeja perseguida,
pero yo guardo
con la mía la espalda tuya,
y esto lo puedes escribir
con la K de Clemente.
Así, en la entrega total de esa “hora del relámpago” de la vida y la muerte, va el poeta
ascendiendo a través de la experiencia liberadora del ser. En el plano de ese conocimiento de
41
sí mismo que fluye como la conciencia liberadora de su universo poético. Allí mismo, frente
a un conocer que le devela todo el sentido de la vida en la plenitud de esa infinita libertad. Sí,
allí mismo, en el ámbito de esas imágenes relampagueantes discurre su alma; así tan leve,
sostenida por el inapelable signo de la amada que guarda su nombre “y esto lo puedes
escribir / con la K de Clemente”.
NOTAS:
1. Verso de poeta español Pedro Salinas.
2. Estos libros fueron publicados por Las Américas Publishing Co., ya desaparecida, y en aquel
tiempo ubicada en el 249 West de la 13th Street en Nueva York. En esta misma colección literaria
se publicaron, además, libros de los puertorriqueños: Jorge Luis Morales (Decir del propio ser),
Carmen Puigdollers (Dominio entre alas), María Teresa Babín (Fantasía Boricua), Emilio Delgado
(Tiempos de amor breve) y Pedro Carrasquillo (Requinto).
3. En la última página del libro se da el lugar y fecha de publicación en números romanos: “Se
acabó de imprimir ESCALIO en los talleres de la Imprenta Puerto Rico, Inc., a los dieciséis días del
mes de junio del año MCMXXXVII en la ciudad de San Juan Bautista de Puerto Rico”.
4. Sus últimos libros: La tierra prometida (1979) y Mujer u ombre u ombre o mujer (2004) fueron
publicados por el Instituto de Cultura Puertorriqueña que también publicó en 1976 la segunda
edición de Caballo de palo, que es la que utilizo para esta reseña.
5. En esta década ocurren hechos fundamentales en el ámbito político y literario puertorriqueño:
fallecen en la Isla Juan Ramón Jiménez (1881-1958) y su esposa Zenobia Camprubí Aymar (18871956). Fallece también Luis Palés Matos (1898-1959). Se crea el Instituto de Cultura
Puertorriqueña en 1955. Ocurre el Levantamiento Nacionalista del 1950; se proclama la
Constitución del Estado Libre Asociado, 1952; en 1954 ocurre el ataque al Congreso
Norteamericano cuyo objetivo era llamar la atención mundial sobre la situación colonial de la Isla
y la lucha por la independencia. Se crea también en 1956 la Federación Universitaria Pro
Independencia de Puerto Rico (FUPI).
6. Sobre este aspecto del poema, señala Jorge Señeriz: “Todas las estrofas empiezan con “lo
conocí”, es decir, se conoció a sí mismo en uno de esos estados posibles de su existencia en
movimiento y en seguida un gerundio: excitando, saliendo, soñando, meciendo, y así hasta el final
de la obra”. p. 16.
7. El uso del fonema j por la g corresponde a una particularidad de estilo del poeta. Esta
estructura gramatical la veremos a través de todo el texto. Recordemos que el poeta español Juan
Ramón Jiménez usaba la j y no la g en su escritura para enfatizar el sentido del habla y no el que
dicta la ortografía. Como conocemos los lectores de Clemente, el poeta también omite la grafía h
en su libro mujer u ombre u ombre o mujer, por carecer de representación fonética. Al final de
este poema la “C” de Clemente pasa a convertirse en “K” aludiendo así al sentido y
transformación en la vida del hablante poético.
8. No sé si otros lectores se han detenido en esta particularidad. Al menos para mí, existen dos
planos que se complementan. El primero revela al protagonista lirico desdoblado en la figura del
poeta (que se presenta con nombre y apellido en la estrofa que abre el poema); y, la segunda
parte ubica al lector en un contexto más abarcador del discurso poético.
9. La influencia del surrealismo en la obra de Clemente Soto Vélez y de los poetas que formaron
el movimiento Atalayista, especialmente las voces más innovadoras de este grupo: Graciany
Miranda Archilla, Alfredo Margenat y Fernando González Alberty, debería ser material de estudio
para quien desee adentrarse en este movimiento tan significativo de nuestra vanguardia.
DAVID CORTÉS CABÁN (Puerto Rico, 1952). Poeta, ensayista. Ha publicado los siguientes
libros: Poemas y otros silencios (1981), Al final de las palabras (1985), Una hora
antes (1990), El libro de los regresos (1999), y Ritual de pájaros: Antología personal 19812002 (2004). Fue cofundador de la revista Tercer Milenio. Contacto: [email protected].
Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (España), artista invitado de esta edición de
ARC.
42
EDUARDO DALL’ALBA | As poéticas do grupo
Matrícula
INTRODUÇÃO | A poesia contida no grupo Matrícula trazia, ao seu tempo, poetas de
diferente dicção, embora estivessem reunidos ali por formação do gosto, pelo senso estético
e estilístico comuns e por isso, pelas afinidades eletivas compostas na formação escolar de
cada um deles, o que, no livro Matrícula se entrevê como construção estética de um projeto
que se confirmaria mais tarde, na trajetória de sua poesia.
Apesar de apresentarem características estilísticas comuns entre si, vistas aqui e ali, a
dicção de cada poeta que no Matrícula se estabeleceu, daria mostras de vir como uma
vigorosa força, apesar da limitação histórico-geográfica brecar o excesso de produção, que se
mostra esparsa, mas contínua, ao longo das três décadas seguintes. A par das semelhanças
registradas na temática e na estilística, desponta a voz individual que marcaria a trajetória
de cada um deles.
Apontados como uma revelação da poesia na revista Civilização Brasileira, após o
lançamento do Matrícula, este grupo de poetas continuou a pesquisa do universo ainda
desconhecido da literatura Sul-rio-grandense, que se fundamentava em uma cultura recente
e que, ao momento de publicação, ainda sentia os efeitos da disseminação cultural das
capitais e a de anteriores injunções político-governamentais, que sitiou a língua dos colonos,
ao tempo de Getúlio Vargas, isolando ainda mais uma região que já era isolada, desde a
colonização, pela sua geografia.
Daí que a pesquisa, vista sob o códice da língua portuguesa, irá revelar o conteúdo da
cultura da região, e a manifestação em poesia, irá fundamentar o elemento humano de um
lugar e não somente a paisagem registrada anteriormente na poesia como em Olmiro de
Azevedo e outros exemplos, que, com o olhar estranho à terra, não concebiam o elemento
colonizador como agregador de valor à cultura, não ao momento de do registro poético ou
de qualquer outro registro, na escrita, que intentasse a leitura do lugar. Sobravam apenas, a
paisagem como possibilidade descritiva, como texto fotográfico, e o penumbrismo do
recorte individual da poesia de Vivita Cartier, a um tempo em que a cultura começava a ser
pesquisada no país, pelos modernistas.
Em um momento em que a região da serra gaúcha mal assimilava o discurso do centro do
país, com suas regras militares que eram determinadas pelo império americano, o
surgimento do livro Matrícula se punha a pesquisar, mapear e dar voz a uma cultura antes
silenciada quer pela dificuldade do estabelecimento de uma cultura expulsa da Itália, quer
pelo isolamento geográfico a que estavam submetidos os colonos. A publicação era já um
pequeno grito, em um momento difícil da cena brasileira, que apontava para a luta por um
espaço para a literatura em um lugar inóspito para a poesia.
A poesia de Matrícula surgiu como um pequeno projeto de poetas que, vistos mais como
poetas e menos como grupo que tinha, no entanto, um projeto político esboçado aqui e ali
pelas brechas culturais que se ofereciam à época e que, desta forma, faziam lembrar, de
modo pictórico ou alegórico, que em face à tirania, a poesia poderia ser um caminho para a
liberdade de expressão individual primeiro e depois, coletiva.
Em uma época em que os militares governavam por atos institucionais, realizar a
publicação de poemas não era só um ato subversivo, no sentido de ser transgressivo, era a
própria transgressão e apontava para uma alegórica forma de crítica, ainda que não
tocassem exatamente em problemas sociais e políticos e cuidassem de mapear o universo da
aldeia ainda desconhecido do país.
Realizando uma poesia que deu/dá uma dicção à região da serra gaúcha, fugindo da
dicção dialetal, a poesia do Matrícula se estabeleceu na linha da tradição da poesia ocidental,
inserida na cultura cristã, ou seja, na linha da tradição da língua portuguesa, sem deixar de
43
beber na tradição da poesia neolatina, em especial a francesa, e a anglo-saxônica, e na linha
do racionalismo cartesiano, o que, até então, não fora registrado na literatura do sul do país.
A dicção individual, a partir daí, insere a poesia da serra no sistema da poesia brasileira de
modo simbólico e discreto, como apontavam os meios e a época.
Uma vez feita a escolha pela dicção da poesia na língua portuguesa, cumpria aos poetas
estabelecerem a tradução de suas pesquisas do universo cultural que se manifestava, o mais
das vezes, no universo da formação de uma comunidade formada por portugueses, italianos
e alemães. A escolha estética do modus operandi viria da leitura dos poetas modernistas, que
propunham, entre outras coisas, a renovação da linguagem e uma aproximação de uma
leitura mais universal do homem brasileiro e da poesia posterior de João Cabral e dos
irmãos Campos, Haroldo e Augusto, Décio Pignatari e, posteriormente, Mário Chamie e
Ferreira Gullar, que propunham, de um lado, o rigor estético feito de depurações e
depurações da linguagem, quando não da sintaxe, e de outro, o esgotamento da linguagem
pela forma, lição aprendida de Mallarmé.
Se era possível o esgotamento da taça da linguagem, caminho in verso rumo ao Cubismo
de Picasso ou ao Surrealismo de Dalí e Artaud, era também possível fixar a tradição em um
território mais pleno de significação da palavra, caminho escolhido não por todos os poetas
de Matrícula, mas de sua maioria. A tarefa seria então de, uma vez feita a escolha,
estabelecer-se como poetas sem fazer com que o peso da tradição abafasse as vozes, ao
mesmo tempo em que se renovava a linguagem, e não cair na armadilha do Concretismo,
que punha a palavra fracionada e dividia os semas e sememas em sentidos outros que não o
do verso escandido, metrificado ou livre para o qual haviam apontado os modernistas e a
vizinhança próxima.
À época do Matrícula, varriam-se os estudos com a aplicação dos métodos estruturalistas
que permitiram as ideias da Semiótica e de suas análises, postas em prática por um sem
número de professores das áreas das letras e que limitavam e transformavam a
interpretação da poesia e do romance a uma linguagem técnico-científica, o que traria
problemas insolúveis à decifração da linguagem hermética da crítica, que erguia ali, um
muro intransponível entre a obra e o público e que deixaria marcas, mas não saudades, de
seus métodos analíticos e não seriam mais ensinados às gerações posteriores como baliza de
análise da produção literária, mas como parte da teoria da literatura.
A própria tradição poderia abafar as origens e as escolhas deveriam ser, senão as
melhores, as justas. Feito isso, o que sobrasse dessa querela formal, estilística e estética,
seria a poesia do Matrícula.
AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE ARY NICODEMUS TRENTIN |
a. Fábula I
O homem plantou a rosa/ e nasceu o canto./ O canto mordeu o lábio/ e floriu o sangue.// O
sangue (…)//e alvoroçou o celeiro.// O celeiro viu a claridão/ e recompôs o anel./ O anel
subjugou a voz/ e imaginou a estrela.
b. Fábula II
A estrela construiu o cavalo/ e aqueceu o vento./ O vento diluiu o abismo/ e aprisionou o
rei.// O rei cristalizou a mulher/ e fotografou a canção./ A canção despiu o sentimento//
(…)// e despiu a forma.// A forma lançou a flor e murmurou a palavra./ A palavra santificou
a surpresa/ emudeceu o poeta.
A poesia de Trentin aponta para um fazer particularíssimo. Os poucos críticos que o
estudaram não conseguiram lhe decifrar o enigma, afirmando que sua poesia é hermética, do
que eventualmente, discordaremos. Há uma poiesis que estabelece um jogo entre o rigor e a
paisagem alternada. O jogo estabelece a relação como nos poemas Fábula um e II. Executa-se
a técnica ou o recurso do cavalgamento dos versos, ou seja, a repetição de uma palavra no
final de um verso que serve de mote para o início do verso seguinte. O jogo se estabelece na
44
surpresa da palavra usada aqui, como em toda a poesia de Trentin, com um rigor que
confunde o leitor. Rigor e precisão como medida da poiesis:
Na verdade, a poiesis é uma função lúdica,. Ela se exerce na região lúdica do espírito, num
mundo próprio criado para ela pelo espírito, na qual as coisas possuem uma fisionomia
inteiramente diferente da que apresentam, das da lógica e da causalidade.
Ao rigor acrescente-se o ludismo verbal com que tem de se haver o poeta, quando em
imagens afirma a verdade de um espaço interior feito de metáforas e de uma linguagem
habitualmente utilizada na poesia para as crianças. Mas não nos enganemos. A noção de
jogo para as crianças, como afirma Huizinga, é séria, no sentido de que quando a criança
joga, não está brincando, mas estabelecendo relações de conhecimento com o móbile da
invenção e do ludismo, uma vez que estes dois elementos formulam a imaginação, desde que
o mundo é mundo e desde que o homem é homem.
Desfiando o carretel da Fábula, agora pode-se pensar nas imagens metafóricas dirigidas
ao homem adulto e voltadas para a imaginação ou para a surpresa do real, na forma da
imagem supra-real e por isso surpreendente. O poeta diz a palavra e cria a imagem que
retoma a palavra anterior e cria outra imagem. A técnica nos poemas fabulares, que levam
sempre a um mundo encantador, novo, como Alice no país das Maravilhas Estilhaça-se a
lógica, no sentido apenas de desfiar o carretel até que a história termine ou até que o fio do
carretel acabe.
Os dois poemas fabulares de Matrícula contam a história de um rei medieval , pois a
medida fabular, depois da antiguidade, é medieva. O vento diluiu o abismo/ e aprisionou o
rei.// O rei cristalizou a mulher/ e fotografou a canção. A sintaxe aqui destrói a lógica que se
dá por repetidas imagens pelo recurso estilístico já apontado como construção do verso. São
imagens surreais dentro da lógica surreal que afirma ao mesmo tempo em que desconstrói a
linearidade da narrativa. O rei que depois de se apaixonar, vai rumo à batalha, o que está nos
versos anteriores aos citados: A estrela construiu o cavalo/ e aqueceu o vento. Este exemplo
de desconstrução da lógica racional cartesiana exige do leitor que não se prenda senão na
circularidade do poema:
O poema apresenta-se como um círculo ou uma esfera, algo que se fecha sobre si mesmo,
universo autossuficiente no qual o poema também é um princípio que volta, se repete e se
recria. E essa constante repetição não é senão o ritmo.
A fábula conta sempre uma história, de cunho narrativo e, geralmente aparece em prosa.
Torná-la verso e o trabalho do poeta que tem de juntar as várias acepções de seu tempo para
poder dar à tradição algo novo. O poema circular eivado de um ritmo constante e exato, e
com o rigor da palavra metafórica, e com o requinte do elemento surreal que desloca as
imagens, quebrando a sintaxe ortodoxa da língua, não só e novo como sugere ao leitor que
esteja atento ao movimento do poema. Isso faz a diferença entre os experimentalismos
contemporâneos a poesia de Trentin, pois a canção despiu a forma. A forma é exercida com
rigor, precisão, ritmo, imagens e com a palavra exata. Essa forma constitui o poema e o
poeta Trentin em Matrícula e irá acompanhar o poeta nos livros subsequentes.
AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE OSCAR BERTHOLDO |
a. Poema de minha verdade
Aqui o poeta faz/ a transfusão meticulosa/ das coisas secretas./ Aqui nascem os
mal/traçados poemas./ Surda gestação /das cousas usuais. /Aqui, o direito/ de ser/ áspero e
ignorar/ a sintaxe da usança/ à mercê da lembrança./ Aqui, o úmido espaço/ paciente de se
reatar/ o sabor dos frutos./ Aqui, a solidão côncava/ em tudo, só a condição/ de estar ciente.
E mais/ que a fonte, sem medo/ algum ser a casa/ que buscávamos. Aqui/ os poemas de
frágil/idade/ emprestam a palavra/ que em mim existe./ Neste vale de urgências/ é absoluto
o sentimento/ de se haver chegado.
Afeito às regras, reivindicando o direito de ser áspero e ignorar a sintaxe de usança,
45
Bertholdo utiliza a linguagem elevada juntamente á linguagem padrão, usual da escrita
poética. A erudição presente em seus poemas faz aqui e ali a concessão às expressões do
latim e de expressões da literatura da Baixa Idade Média, ao tempo em que se colmavam as
línguas neolatinas e, com exceção do grego clássico e do latim, as línguas cultas modernas
ainda não existiam. Isso posto, o idioma que o poeta apascenta é feito sob o fluxo
psicológico que, ao início se mostra contido, caminha nas obras posteriores para um fluxo
verbal sem igual na poesia do Matrícula.
A poesia Bertholdo se estabelece entre uma poiesis que busca a liberdade de expressão
pelo ritmo e pelo verbo que, flexionado pelo primeiro, se tornará vertente caudalosa,
contrária à contenção e exatidão e do rigor encontrados na poesia dos outros poetas de
Matrícula. Há uma revelação “das coisas secretas”, do mundo interior do poeta, do que nele é
expressão e se dá pela urgência da palavra, no poema. A consciência de ser, baixada à
condição da simples constatação do saber-se só, basta ao poeta como um ponto de auto
referência e localização de si para si mesmo. É o que se dá no Poema de minha verdade.
Bertholdo tem urgência de dizer e pressa de chegar à casa da palavra, do poema, da
expressão, em uma voracidade produtiva, rastreando os poemas entre uma certa erudição e
uma necessidade de mapear o vale da paisagem ao mesmo tempo em que mapeia o vale
interior por onde seu espírito carreia sua fome de respostas.
b. Pastoral
Nada tenho, tenho tudo, meu reino/ e a terra, trago pão e vinho/ tímido sou e oprimido
venho.//(…)// Aqui a planície, aqui/ o rastro dos pássaros estercando o pouco/ descanso
entre as cercas dos vales.//(…)// Tenho nada, tudo tenho, recém-parido me vou, idoso
mental/ apascentando cálido idioma.
Evocando repetidamente o Belo belo de Manuel Bandeira modernista, ao início e ao fim do
poema Pastoral: Nada tenho, tenho tudo (…) Tenho nada, tudo tenho, o poeta localiza suas
posses, sua condição e sua circunstância: (…) tenho(…) meu reino e a terra, trago pão e
vinho,/ tímido sou e oprimido venho. Seu primeiro vale tem cercas e o espaço é limitado e
opressivo, montanhoso, mas é plural. Ao evocar a linha modernista, o poeta dá mostras da
filiação de sua poesia à tradição da poesia brasileira.
O vale do poeta é para além da imagem de si mesmo; o vale àquele onde o poeta tem de
se haver consigo mesmo e com as circunstâncias que o limitam e o impelem para a rebeldia
libertária do espírito. O vale de dentro, além do vale paisagístico, o de fora, também se torna
matéria de poesia. Eis o verbo de Bertholdo, que se presentifica na alma da aldeia e se
personifica em suas palavras, alargando o espaço da linguagem e aumentando a
possibilidade de entendimento e esclarecimento do leitor. Como poeta “recém-parido”, fruto
do trabalho árduo com a palavra, já demonstra a sapiência dos mais velhos da aldeia,
“apascentando o cálido idioma” da língua portuguesa em suas matizes de formação e
referência.
Porém, para ver o vale o poeta se estabelece na planície onde os pássaros estercam o
“pouco descanso”, isso é, a “planície” da palavra vem acompanhada de sujeira, na língua, do
eco de outros poetas, o que é preciso ver e eliminar, ao se romper, em posteriormente, as
cercas e o cansaço, e fixar o vale como um processo interno de recuperação do vivido e do
que se vive. Conquanto em Matrícula, o poeta apascenta as possibilidades de sua poesia e
acrescenta o tema do vale universal, porque ao vale da paisagem equivale o vale interior do
poeta, o qual é preciso, como ao outro, decifrar.
46
AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE JAYME PAVIANI |
a. Ausência
As árvores roubam a solidão./ As árvores na tarde fria./ Na sala já não arde a lareira/
ninguém abre a porta/ deixando entrar uma lufada fria./ Ninguém traz notícias/ se há
casimira na venda/ se a Elisabete vai casar/ se a estrebaria ficou aberta.
No poema Ausência há o sentido do vazio de uma solidão roubada ao homem que espera
o próximo movimento. A sequência lógica do discurso da espera entre as possibilidades do
acontecer, condicionadas pela solidão roubada: “se há casimira na venda/ se a Elisabete vai
casar.” O apelo da solidão recai sobre a possibilidade de contemplação diante da Rosa,outro poema -, que passa a ser redefinida: “Rosa de carne e espírito// (…) branca, (…) aberta
ao sol (..) única e amada.”
b. Rosa
Rosa de carne e de espírito (…)// Rosa branca// (…)//Rosa aberta ao sol. / Rosa única e
amada.// Morrer é nada.
Ali, a solidão de Ausência se adensa na saudade da Rosa como metáfora da mulher
amada, de carne e espírito, única. A solidão ri da morte no verso que fecha o poema:” Morrer
é nada.” A ausência que busca na infância a flor - rosa – mulher que nascia na soleira da
porta encontra a impossibilidade de viver novamente o passado presentificado na memória e
que o poema evoca:
c. Infância
A infância foi simples,/ uma flor nascia na soleira da porta.// (…)//
Minha infância montou num cavalo de pau/ e nunca mais voltou.
Não há dúvida, o poeta se utiliza da palavra precisa, contida, metafórica, no rigor da
escrita. A constante repetição de palavras como: árvore e ninguém do poema Ausência e
Rosa do poema de título homônimo, é utilizado aqui como recurso estilístico, mas não só: há
uma tentativa do refazer o caminho, que o poeta procura, o que se pode ver nos livros
seguintes, e sob variado aspecto, na reunião As palavras e os dias. Sua obra será marcada
pela procura dessa “flor que nascia na soleira da porta”. Tanto, que o fazer e o constante
refazer dos poemas, na busca da rosa perfeita, encontrará na obra o permanente conflito
delineado nestes primeiros poemas de Matrícula.
O tema ou o mote da Rosa é antigo, e remonta às lendas orientais e ao passado medievo
ocidental. Em Paviani, como em Trentin, o uso de recursos trazidos da poesia Provençal
como o motivo da Rosa mostra que os recursos estilísticos eram comuns à formação dos
poetas de Matrícula. E o recurso do rigor, a contenção das palavras são comuns a estes
poetas, mas na poesia de Paviani, ao contrário de Trentin, não há a possibilidade do surreal,
mas da imaginação criadora, dentro da lógica metafórica da linguagem.
A precisão ou justeza da palavra é levada ao extremo da procura e do rigor na poesia de
Paviani. Poucos poetas enfrentaram a si mesmos, na procura eterna da rosa azul que é a
linguagem, a metáfora e o poema em sua resolução como Paviani, porque a cada refazer, o
grau de precisão e o sentido ganham em depuração e clareza.
Essa poesia é feita do máximo de sentido e de um mínimo de palavras, mas não se trata
de economia verbal, mas da procura da exatidão e do rigor estilístico do verso livre, já não
tão livre quando trabalhado à luz da bigorna e do martelo do poeta. A poesia encontra o
refluxo da angustiosa ausência da forma, o que, no entendimento do poeta, só pode ser
buscado no refazer do poema, trazendo o exercício que, antes de reflexivo, é estético,
pertencente à estética mínima presente nos poemas de Matrícula
Em Paviani, a poesia passa a romper o discurso oficial da teoria e da filosofia, para se
47
transformar numa poesia limpa, dotada de um grau maior de percepção e intuição, o que
nos devolve a questão à contrária: pode-se partir dos poemas de Paviani para encontrar
substratos teóricos ou filosóficos? Não significa que o poeta desconheça a teoria e seus
constantes desdobramentos e linhas a posteriori do discurso poético, mas que abandona o
discurso teórico em detrimento de uma poesia que se pretende simples, justamente por
frequentar a teoria como campo de conhecimento.
O poeta sinaliza a partir desta ruptura uma construção própria de seu conjunto, com a
característica da contenção. A contenção é fruto de uma ruptura com ensejo de guinada à
contrária. Explico: se o abandono paulatino da teoria se faz no campo da criação, essa
mesma atividade poética desconfia de todo o discurso como gerador de teoria, mas confia
no discurso poético como produtor de conhecimento; daí a contenção da forma, contenção
própria da poesia que se pretende clara, longe do discurso que não seja o da simplicidade, o
da raiz mesma do poeta, e do seu vocabulário algo entre contido e aparentemente simples.
Para se compreender a estética mínima da poesia de Paviani temos que atentar para a
visão de mundo do poeta. Esta estética se compõe de temas que formam a base do
mapeamento poético. Desse modo, encontramos na poesia de Paviani a recorrência de temas:
a infância, o campo, a simplicidade, a nomeação das coisas e a presença do feminino. Em
ritmo desconjunto, a estética pode ser nomeada como a estética mínima, porque está ligada
a duas fundamentais ideias: a simplicidade conquistada e clareza quanto à escolha de temas,
e no uso dos recursos técnicos, estilísticos e estéticos que o realizam como poeta.
AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE JOSÉ CLEMENTE POZENATO |
a. Esaú e Jacó
Tenho dois poemas atravessados no ventre/ em litígios e tropelias, porfiando por nascer
(…)// Dois poemas lutam dentro de mim/ tentando suplantar-se./ Não tenho poder de
escolha. Deixar/ que entre eles se decidam, o mais forte/ ou o mais hábil vença (…)// (…)
Limito-me a esperar a minha hora/ A hora difícil em que se deseja o filho e se teme o/
monstro.
No poema Esaú e Jacó encontramos àquela escolha com que teria de se haver o poeta. No
poema, dois poemas atravessam o ventre do poeta, lutando por sua predestinação, tentando
suplantar um ao a outro, como em uma luta interna, vigorosa, da qual sairá vencedor o
poema mais forte, ou o que levar a cabo, na linguagem, sua expressão. Aqui se trata da
escolha da forma entre seguir a tradição ou optar pela poesia concreta. São dos poetas as
palavras: “Quem ler estes poemas(…) vai perceber que fiquei ao lado da tradição. Monge
renitente e teimoso, enveredei para a Biblioteca, sobretudo a da velha lírica desta belíssima
língua portuguesa.”
O poeta escolheu o poema à luz da lírica da língua portuguesa, enveredando para a
Biblioteca, isto é, lendo os clássicos da literatura universal, e principalmente, a lírica
portuguesa, da qual se filia e são herdeiras a prosa e a lírica da literatura brasileira. O poema
Esaú e Jacó não evoca somente o mote bíblico, mas pertencente à prosa brasileira quando,
em Machado de Assis, o lemos em romance. É, pois, na dúvida da escolha que resultará na
forma do poema que se fundamenta o poema Esaú e Jacó, pois o poeta aflige-se na espera do
poema que virá: A hora difícil em que se deseja o filho e se teme o/ monstro. Aqui a dúvida é
movida pela angústia da hora da escrita do poema, feito a partir de mil pequena escolha, a
qual pertence a decisão do poeta. O poema é um filho “porfiando por nascer.”
Assim, quando da escolha do verso livre e do caminho da tradição, o que implica leitura e
estudo constante, o poeta nasce, porque resolve a dúvida e acrescenta outros motes e temas
à sua lírica posterior, como no exemplo de O poeta, que na linha da tradição antecede a um
poema não conhecido de João Cabral de Melo Neto. Não se trata de uma comparação, mas é
justo reconhecer que, uma vez na linha da tradição, o poeta chegou ao mesmo tema antes de
João Cabral:
48
b. Poeta
Mas foi de el-rei o mandado/ que fosse para a bigorna/ e em forja o malho fizesse/ a
imagem que não deforma// Das calosas mãos surgiam/ bezerros e sementeiras// No fogo de
suas mãos/ mil ferros amolecia/ e nesse trabalho intenso/ forjava um novo dia.
Forjar o poema com a imagem que não deforma, fazendo surgir bezerros e sementeiras,
forjando um novo dia é o trabalho do poeta, que define o caminho a partir daí; não só o novo
dia como significado da poesia que fará, uma vez resolvida a dúvida, mas, o novo dia é o dia
visto além do tempo da ditadura a que era submetido o país ao tempo do poema. Um novo
dia que seria celebrado em outro poema:
c. Convívio
Eu os convido a todos para um banquete./ Não, não se trata da última ceia dos condenados,/
Embora os tempos assim permitam pensar.
A forja de uma poesia libertadora presente nos versos acima aponta para uma poesia
consciente e voltada à liberdade de expressão cerceada á época da publicação do Matrícula.
Na poesia deste livro os únicos poemas que se voltam contra a linguagem oficial, de modo
transgressivo, a par da busca da resolução da forma, são O Poeta e Convívio, o que, por si só,
era um início da resistência -tímida - do intelecto, senão que do espírito do poeta, irmanado
ao sentimento de liberdade aos que sofriam o degredo, a tortura e a morte baixo a um
regime ditatorial militar.
Daí que se o tempo não fosse dos mais princípios à poesia, ela cumpria, como no caso do
poema, sua função social mais plena: a de dar voz, ou fazer coro, ainda que em surdina, à
voz dos oprimidos, buscando-lhes a liberdade através da palavra. A poesia em tempos
difíceis vem acompanhada do sentimento melancólico, que o poeta não evita, antes, o
carrega como no poema Elegia:
d. Elegia
Era outono quando te levamos./ Pinhões caíam sobre os caminhos./ Tombavam as folhas
dos parreirais./ Graves seguíamos, chapéu na mão, os pretos/ sapatos gemendo ao peso do
teu corpo.
Se o poema evoca a cena fúnebre de um enterro, não cita o morto. Sabemos que o morto é
um membro da família, que, antes de o carregar, o leva, e o verbo dá a medida da leveza do
levado ou a medida do sofrimento de quem o leva. Mas o que chama a atenção não é a
morte, mas a evocação melancólica da atmosfera dada pela paisagem outonal que se
apresenta, e por isso, mais triste, o que acrescenta à cena da lírica da poesia da serra o
elemento humano, dado antes somente pela paisagem como a evocação dos pinheirais feita
no início do século por Olmiro de Azevedo.
Dois ganhos, pois, à poesia da serra gaúcha: o elemento da melancolia, traço do
sentimento íntimo do autor e de boa parte da lírica portuguesa e brasileira, o que demonstra
a maturidade do poeta já ao lançamento do Matrícula e sua visão de mundo, e o ganho
estilístico e estético do elemento humano inserido na paisagem, como queria Machado de
Assis quando afirmava que à cor local se devia acrescentar certo sentimento íntimo para
compor uma estesia brasileira, diferente da portuguesa e das demais.
Portanto, uma conquista esta em um poeta que, além de estrear consciente do caminho a
ser percorrido, continuou escavando e escrevendo, sem abrir mão da exatidão da palavra, do
rigor e da contenção, traços estilísticos que o farão, mais tarde, realizar a poesia buscando a
forma antiga da redondilha, como aprendera na Cartilha Maternal de João de Deus e, empós,
praticar a ironia da narrativa ou da prosa exata do romance.
49
AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE DELMINO GRITTI |
Paisagem
1 Muro,/ vento,/ a menina,/ o mundo em gênese./ onde semear o silêncio? / Regresso
apressadamente ao território humano.
2 Pousa em mim uma viagem./ Sou o próprio caminho./ Aceito todas as faces/ e continuo a
cantar.
3 Nem o impossível poderá sobreviver em mim./ Onde estarei quando deixar de formular-me
único?
4 È preciso parar o mar/ e criar uma estrela/ para o menino que chega./ Inútil sentimento/
mundo fabricado/ sem olhos e sem coração…/ Mundo sem terras/ sem horizontes/ para a
possível viagem./ E andarei minha ansiedade/ à beira do mar.
5 Volto anjo sem força/ apenas a palavra/ que leva uma rosa./ Nas mãos/ a única manhã.
6 Não me perguntem por que não/ ontem e amanhã./ Hoje quero o mar./ Mar…/ Desarmarme e caminhar.
No poema Paisagem, a evocação da viagem e do mar são os temas recorrentes que o ligam
à tradição da lírica portuguesa, com inflexão da poesia camoniana e pessoana. O verso: (…) e
criar uma estrela/ para o menino que chega, na primeira frase da parte quatro é uma
evocação do mote natalino. Há um sentimento de depuração estrema onde a linguagem não
adjetiva, não tem ornamentos. No verso primeiro da parte cinco “apenas a palavra/ que leva
uma rosa” o poeta reforça o argumento da palavra que se torne uma flor, uma rosa.
É possível que este poema realize a síntese dos temas do Matrícula, sob o ponto de vista
do poeta, com a recorrência interna, no poema, de temas como a estrela e a rosa, temas
trabalhados antes por Trentin e Paviani. Mas também é uma evocação indireta da poesia de
Pozenato, quando afirma no verso segundo da parte quatro: “Inútil sentimento/ mundo
fabricado/ sem olhos e sem coração”, o que o prende ao “Mundo mundo vasto mundo/ mais
vasto é meu coração”, de Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro que orienta de viés
a poética de Paviani e de Pozenato, tanto na evocação do mundo vasto quanto na fabricação
de um mundo injusto, sem olhos e sem coração, mundo do capitalismo moderno do século
XX.
E, de forma indireta ainda, a escolha do mar como refração ao vale de Bertholdo, no
sentido de sua expansão sem limites, sem cercas, sem opressão. Não por acaso o poema tem
o título de Paisagem, pois ali há a conformidade e evocação da paisagem de Bertholdo vista à
contrária.
O que é de Delmino, não é só a síntese, mas a reflexão e a viagem. Senão vejamos: “Onde
estarei quando deixar de formular-me único?” Este verso traz uma formulação filosófica
sobre a morte, no sentido de que a dúvida do poeta formulada em sua pergunta encontra o
limiar da finitude humana. Por isso, não há ornamento, no sentido verbal, em sua poesia. Na
segunda parte do poema, o verso inicial “Pousa em mim uma viagem” se desdobra nos da
quarta parte: (…) “Mundo sem terras/ sem horizontes/ para a possível viagem.”
Estes versos acima indicam que se há o desejo da viagem que se há de fazer, ela não se dá
no espaço geográfico, mas no espaço do imaginário, onde não há terras nem horizontes. A
viagem é a de si a si mesmo, como um movimento circular do poeta que tem urgência da
vida no momento em que escreve, - na parte seis: “Não me perguntem por que não/ ontem e
amanhã./ Hoje quero o mar./ Mar…/ Desarmar-me e caminhar.”
O caminho e a possibilidade do mar evoca o verso anterior da segunda parte do poema:
“(…) Sou o próprio caminho.” Este verso indica a consciência reflexiva do centramento do eu
do poeta como formulador da viagem impossível, pois que se dá no imaginário contido do
caminho do poeta. Assim, a poesia de Delmino, além de operar a síntese do Matrícula,
aponta para o rumo da reflexão, onde o poeta, como observador atento não é senão o
guardador do que vê/lê pelo viés de sua imaginação criadora.
50
A participação de Delmino Gritti no Matrícula é breve. O rigor do crítico abafa a voz do
poeta, sendo o mais literalmente contido dos poetas do volume. Delmino aparece na capa
como um enigma nada claro, mas prenunciando o que há ou não há de vir no volume, pois
seu nome está incompleto: DELMIN, e logo o espaço da capa acaba. O nome incompleto é
coerente à brevidade de sua participação no volume.
Seus poemas vão aparecer no fim do livro em número pequeno, mas evitem-se as
comparações. Se os outros poetas de Matrícula trabalham a língua e buscam, aqui e ali, o
rigor técnico e estilístico, na expressão de uma estesia que intente a decifração do homem e
da paisagem, quer pela figura, ou pela fuga do real, quer pela poesia de Trentin que se
apresenta como um ponto de fuga pela linguagem do jogo surreal, ou em Paviani, onde o
rigor se estabelece no ato de refazer o poema, quer pela exatidão da poesia de Pozenato, ou
pelo fluxo psicológico verbal da poesia de Bertholdo, em Delmino a poesia encontra todos
esses elementos elevados ao grau máximo, valendo-se dos mesmos recursos dos seus pares
de escrita: rigor técnico, rigor estilístico, rigor estético, rigor da forma, rigor, rigor, rigor.,
acrescido da extrema economia verbal, quase a formulação de um arabesco, sem
ornamentos.
O que o nome prenuncia, alude ou evoca desde a capa é que abertamente o poeta não se
declarará poeta de publicações posteriores, embora tenha tido, guardadas as
particularidades, mais do que todos os outros, a responsabilidade que se cobra dos poetas,
no sentido da ação propriamente dita. Delmino buscava os livros proibidos pela censura e
pelos militares aos estudantes de todo Estado, viajando sem trégua e cumprindo o papel de
libertador de espíritos pela ação mesma do poeta.
Por isso, talvez, depois de organizado e publicado o Matrícula, não publicou outros livros
de poesia, deixando seus poemas inéditos, aqui e ali, e sendo discreto quando do falar de
poesia, e dando mostras, em tempos difíceis, - tanto àqueles, à época da publicação do
Matrícula, como os nossos, onde outras injustiças acontecem diante de nossos olhos - , do
homem tímido e do poeta humílimo que foi e é, o que basta a uma geração como lição do ser
abnegado em prol da poesia e da literatura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS | Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura
nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas
não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu
país, ainda que trate de assuntos remotos no tempo e no espaço.
Conquanto os poetas de Matrícula se ocupem de se alimentar de assuntos que lhes
oferece a sua região, e tendo o sentimento íntimo necessário para compor, com os elementos
estilísticos, temáticos e estéticos uma poesia nova para a região, guardando, ao mesmo
tempo, o sentimento íntimo da formação familiar e a leitura dos poetas da língua
portuguesa, da francesa, sua irmã - ambas filhas do latim - e da língua inglesa, filha segunda
do ramo proto-germânico.
Nenhum deles se limitou, no entanto, a realizar uma poesia estritamente local, pois,
inseridos no universo da leitura, souberam traduzir pela poesia, alguns temas universais,
cada um a seu modo, é claro, mas a realização resultou em uma renovação dos parâmetros
da poesia da Serra Gaúcha e influenciou a geração mais nova, onde se lê, aqui e ali, algum
traço daquela poesia do Matrícula. Como afirmou Machado de Assis: “Nem tudo tinham os
antigos, nem tudo tem os modernos, com os haveres de uns e outros é que se enriquece o
pecúlio comum.”
O resultado da poética desta reunião é sentido na trajetória de cada poeta de Matrícula a
posteriori, fazendo crer que as escolhas foram acertadas quando da publicação do pequeno
volume de poemas, o que, por si só, era já um ganho para a poesia Sul - Rio-grandense e
brasileira, o que viria a se confirmar pela trajetória de cada poeta da reunião, cada um a seu
modo, circunscritos às circunstâncias particularíssimas, com suas leituras e idiossincrasias
pessoais, inseridos como poetas e como homens de seu tempo, nos tempos difíceis do
51
Matrícula. O volume apresenta a poesia melhor de uma época diversa de parcela da poesia
atual, superior ao que, atualmente, no baixio do mercado, intente passar por literatura. A
poesia do Matrícula será para sempre uma referência para as gerações mais novas da Região,
do Estado e do País, pelo conjunto, a um tempo áspero e renovador, realizado à luz do
estudo e da pesquisa das formas poéticas, situando o homem da região para além da
fronteira do tempo e do espaço.
EDUARDO DALL’ALBA (1963-2013). Ensaísta e crítico literário. Autor de Vinhedo das
vontades (1998), Lunário perpétuo (2008), e Os bens intangíveis (2013). Página ilustrada com
obras de António Beneyto, artista convidado desta edição de ARC.
52
FEDERICO RIVERO SCARANI | El simbolismo en
la obra de Julio Inverso
La poesía es principalmente comunicación de un contenido psíquico sensóreo-afectivo
conceptual, conceptual construyendo en el espíritu un todo. Es un placer producido en el
alma del poeta en la creación misma y que de inmediato ese fluido anímico emigra hacia los
lectores u oyentes del poema (Carlos Bousoño). Es de destacar que el principio que
individualiza a cada poema está dado por el estilo. Es decir, su manera personal e
intransferible que deja su huella en la obra. Hay poesía en muchas frases del habla cotidiana,
en objetos, en situaciones existenciales, etc. Su particularidad consiste, entre tantas cosas, en
servirse de una función poética (Jakobson) donde selecciona las palabras para que tengan un
efecto estético, bello, de acuerdo a la época en la que surge. Si la poesía comunica estados
psíquicos y emotivos deja su impronta en el sintagma poético, o sea, en el poema como
constructo de versos, rimas, ritmo, y figuras retóricas. El “acto lírico” trasmite los contenidos
arriba especificados, mientras que la lengua, como sistema de signo, tiene más bien un
carácter analítico. En palabras del poeta Julio Inverso el concepto de poema es definido
como: “Todo poema es una puerta hacia una nueva región del espíritu, antes inexplorada”; o
bien, “El don de crearla depende de potencias superiores que atraviesan al poeta en el
momento en que se reúnen dos condiciones: la predisposición y la fortuna. El poeta debe
prodigarla, prodigarse a sí mismo, exponerse y realizar el sacrificio en virtud del cual caigan
todas las máscaras ...”; “La poesía es una actividad liberadora, un acto genial de liberación de
romper cadenas: prejuicios, convenciones, escamoteos, lugares comunes de la comunicación.
El lenguaje nos fue dado para establecer un puente áureo fulgurante desde las cavernas de un
ser a las de otro ser. La palabra será conmovedora o no será”; (Cielo Genital). Aquí el poeta
refrenda en su poética parte de lo que debe ser la poesía, habla de “potencias superiores”, es
decir, de entidades metafísicas como el daimón griego que inspiraba a poetas y filósofos; en
el Sócrates platónico el daimón se presenta con frecuencia como una voz interior a la que
escucha y obedece.
Pero volviendo al campo de un acercamiento a la poesía, según Carlos Bousoño, los
desplazamientos como la metáfora o la sinestecia, representarían una alteración del discurso
analítico, esos desplazamientos son esencialmente irracionales. A partir del Romanticismo el
lenguaje poético tradicional comienza a resquebrajarse, la imagen visionaria es propia de la
elaboración onírica por la cual el poeta reproduce por medio de imágenes simbólicas y
míticas que más tarde veremos.
En el poema “Baile de soñadores”, Julio Inverso experimenta una visión por la cual es
poseído por una “potencia superior”:
“No me toques, estoy endemoniado. No puedo
dormir porque los condenados incendian mi cama,
noche tras noche. Tu infravida no podrá comprender
mi éxtasis:
un ángel que empuña un sueño
un sueño que es un arma
un arma que dispara a la tinieblas.
No me toques, mi luz te enceguecerá.
Soy un prestidigitador,
un caballero antiguo de místicos sigilos, un alquimista
con el corazón sobre la piel. Soy el que seré, ahora
mismo viviré mi futuro, mi más allá y mi abismo.
53
No me toques, estoy endemoniado. Seré la bengala
que rompe a llorar en tu cielo hecho añicos”.
El leit-motiv “No me toques, estoy endemoniado”, expresa esa cualidad de estar poseído y que
de alguna manera le haría “mal” a quien se acercara. El uso de metáforas encadenadas
reproduce un cuadro caótico en el cual él será una “bengala”, o sea, una luz que enceguecerá
a quien no esté iniciado en los misterios de la poesía. El concepto de símbolo (una palabra
que deriva del latín simbŏlum) sirve para representar, de alguna manera, una idea que puede
percibirse a partir de los sentidos y que presenta rasgos vinculados a una convención
aceptada a nivel social. El símbolo no posee semejanzas ni un vínculo de contigüidad con su
significado, sino que sólo entabla una relación convencional. Debido a eso el poema
anteriormente citado reproduce en su contenido más que una serie de metáforas, un
encadenamiento de símbolos. Por lo cual el poema se convierte en una Alegoría. Ésta podría
definirse como:
* Ficción en virtud de la cual una cosa representa o significa otra diferente:
en un poema, la rosa puede ser una alegoría de la belleza efímera.
* Obra o composición literaria o artística que se basa en este tipo de ficción:
la "Divina Comedia" es una alegoría de la vida del hombre. desde la perspectiva medieval;
Dante escribe la “Comedia”, inspirado por el amor a Laura, el cual no es correspondido, y de
esa manera “sublima” ese sentimiento por medio de la Literatura.
* En la escultura y pintura: representación simbólica de ideas abstractas por medio de
figuras:
un cuadro es una alegoría de la belleza.
* Retórica: Figura que consiste en hacer patentes en el discurso, mediante una sucesión de
metáforas, un sentido recto y otro figurado, a fin de dar a entender una cosa expresada por
otra distinta:
la alegoría se empleó mucho en la literatura del medievo.
Una lectura literal es incapaz de interpretar los símbolos que nacen de la intuición, de la
emoción y de la intelectualidad del poema. Se puede hablar de una poesía interior, que se
ubica en una zona inaccesible al espíritu en la que se produce un abrirse a la realidad. Hay
un estado de receptividad en la que la conciencia es capaz de leer el mundo o realidad
histórica, y, a su vez, leerse a ella misma. El universo o la naturaleza se manifiestan de
manera fluyente y unitaria, y por medio de la metáfora o el símbolo, muestran que esas
unidades son intercambiables, constituyendo nuevos significados para interpretarlas. La
poesía se caracteriza desde el Romanticismo como un medio de conocimiento y
autorrevelación.
Tanto el símbolo como la metáfora son imágenes que mantienen una relación de analogía
entre su significado y su significante. De ahí que, Julio Inverso, haga hincapié en esto en el
poemario “El asesino y las flores”:
“Mis aventuras”
“Mi intención es crear mis propias imágenes. No estoy hablando de nada estrafalario, sino de
una experiencia compartida. No escondo nada. Ustedes tienen ojos y oídos: utilícenlos. No me
dirijo a una elite ni tampoco a una multitud posesa. No me vas a ver coronado de laureles, no
vas a ver mis sienes los estigmas del mártir, no me vas a ver prostituto de pañuelito al cuello;
ni estatuas, ni sellos postales, ni condecoraciones. Hay oficinistas que entienden mis poemas
más que los críticos hiperintelectualizados. Estoy abriendo puertas, no estoy pontificando. Soy
poeta y los niños me saludan”.
54
Aquí el poeta es consciente de su producción y de su estilo, así como también a quienes
se dirige. La hermenéutica de los textos de Inverso requiere de un trabajo arduo donde hay
que consignar y esclarecer en su estilo el uso de metáforas, imágenes, símbolos, mitos. Esta
hermenéutica (del griego hermeneuticos, constituido por tres partículas: hermeneuo,
traducido como “yo descifro”, la palabra tekhné: arte, y el sufijo tikos, sinónimo “relacionado
a”... De ahí que literalmente se puede exponer en este término que su traducción aproximada
sería “el arte de explicar textos o escritos, obras de arte”). El “homo” sapiens se ha
convertido en un “animal symbolicum”; sin embargo, siguiendo la idea de Theodor W.
Adorno, “El arte tiene su concepto en la constelación de los momentos que va cambiando
históricamente; se niega a ser definido”. Como conclusión podríamos asegurar que no toda
obra es arte, es una alegoría...; y continúa Adorno: “Las obras de arte están vivas en tanto
que hablan de una manera que está negada a los objetos naturales y a los sujetos que las
hicieron. Hablan en virtud de la comunicación de todo lo individual en ellas”.
Adorno sostiene que las obras de arte hablan, y esto nos remite al concepto de mito de
acuerdo a Roland Barthes: “... el mito es un habla, es decir, es un sistema de comunicación,
un mensaje, sujeto a unas condiciones lingüísticas que lo caracterizan. Según esto, cualquier
objeto, concepto o idea, es susceptible de convertirse en mito” Por lo pronto, el signo (y el
símbolo es una clase de signo, sólo que no está en un sistema como el signo lingüístico), se
vaciaría de su contenido de una manera particular para albergar otro significado diferente y
constituir un nuevo signo, el signo mítico. Éste en ocasiones se confunde con el símbolo,
pero no es el caso aquí de hacer una diferenciación.
El término símbolo viene de las voces griegas syn y ballo que implican la idea de algo
simultáneo y dinámico; anuncia la conjunción semántica que se da en un solo significante. El
símbolo posee una relación analógica con el significante, todo intento de explicar su
concepto conduce a la creación de otro símbolo o sistema de símbolos para definirlo.
En el siguiente poema en prosa de Julio Inverso podemos apreciar una alegoría que
representa la opresión de un sistema despótico y esclavista en un estado “primitivo”, este
texto simboliza de alguna manera el sistema capitalista que se extiende por el mundo:
“OTROS PECES DE EXISTENCIAS ARÁCNIDAS” (“Más lecciones para caminar por Londres”).
“Los esclavos giran alrededor de una piedra gigante, jeroglífica, pulida y pesada, como el
sentido de la vida. No hay en esto nada misterioso excepto los salmos que trepan por el sudor
de los hombres, una mujer de rosa pálido escapa lateralmente de la escena y corre a comprar
pañolones que, como no revisten ningún color, no sirven para sonarse, los esclavos imprimen
su energía sobre palancas y engranajes que hacen de la piedra objeto de sueños, la piedra ha
vivido soterrada en su base de moneda y su cuerpo tan semejante a un alfil o a un obelisco.
Ya se confunden los músculos exigidos en la dura y absurda tarea, los esclavos no son más
que un oleaje de cartílagos y parénquimas fundidos como elementos en estado puro, el fuego,
el océano o digamos, para no abundar en abstracciones, unidos de bellotas y su plumaje de
metal negro carbonizado, todos los días la piedra debe girar y, sin descanso, los esclavos
caerán en la fosa pulverulenta, siendo devorado por los cocodrilos, en una antigua Biblia que
un dios ebrio dictó a un amanuense consta la suerte y la rutina de esta raza condenada y de
la privación absoluta de todo ejercicio del espíritu y signos plenos de individualidad, dicen
que una luna desfavorable hizo que aquel dios entregado al vicio se ahorcara acechado por la
decadencia de su reino o víctima de las malas razones de un amor carnal, la piedra sangra
bajo el rigor del látigo emitiendo un murmullo comparable a un plantío de sábanas
primaverales, y nada más.¡Se estremecerán tal vez las ruecas baldías, las mejillas ajadas de
las ancianas?¡Sucumbirán las miradas en los libros de la memoria cóncava con brillantes
flancos de escualo? ¡Y qué destino esperará a los trenes, al aroma del pan, al barro
escolástico?
Bien, no daré más rodeos, todo es una charada, Dios no tiene sonrisa más que el filtro
dorado del amanecer y la piedra lleva la cifra de luzbel, igual que las robustas espaldas de
55
los esclavos, esto lo estoy escribiendo mañana, esto lo estoy escribiendo mañana, rompo
finalmente los espejos, ya no soy. Y vos, aquí convocado, no existís”.(Ver El lado gótico de la
poesía de Julio Inverso,
Anales de Literatura Hispanoamericana, 2005, Universidad Complutense, España).
Es de destacar que el símbolo no es la representación sólo de un objeto sino la manera de
manifestarse por medio de una realidad compleja asociando diferentes niveles de
significado. No apunta como el signo a representar tan solo una cosa sino a convocar una
multiplicidad semántica; desde esa perspectiva el símbolo en una cadena textual convierte a
ésta en una alegoría. “La piedra” no es más que el símbolo del poder al cual los hombres,
que son esclavos de su rutina, deben hacerla girar sin especificar su sentido; además
encontramos aquí, un mito, el de luzbel, el ángel caído, el serafín que estaba a la diestra de
Dios. Según Paul Ricoeur el símbolo se manifiesta en las dimensiones cósmicas, oníricas y
poéticas, se caracteriza por su polisemia, en tanto que la imaginación simbólica es una
actividad dialéctica propia del espíritu. En el siguiente poema en prosa se destaca la figura
del poeta, quien, simbólicamente, es expuesto como un individuo que no se deja derrotar
aun en las vicisitudes. No hay recursos literarios, (excepto una metáfora y dos
comparaciones), es un texto casi expositivo pero de una carga simbólica que abre diversas
interpretaciones:
XXVI (“Diario de un agonizante”)
“Hay belleza, estoy seguro, en los hombres cansados. Piénsese sino en un poeta que en la
plenitud de sus medios libera lo más fresco que hay en él, lo que auténticamente estaba en él,
como un mar vacilante que llevara dentro suyo y que así, de pronto, ha asomado como una
lágrima. Véaselo después, habiendo dispersado sus fuerzas, desalentado tal vez, en la curva
del descenso definitivo. Lo que escribe defrauda a quienes lo siguen, pero hay un verso, que se
levanta, majestuoso, desde el centro de su experiencia, por amarga que esta sea, un verso que
él ha dejado caer apenas, como quien arroja un guante y que brilla con toda la fuerza de un
desafío; un hombre que lucha y se debate, aun, a pesar de todo, pequeño e inverosímil en el
universo y contra el universo”.
El mundo simbólico de Julio Inverso recorre todos sus textos; es un “poeta lírico”, según
afirmó. Su herencia romántica, su gusto por el rock y por los paraísos artificiales han hecho
de este poeta uno de los más prolíficos de la historia de la literatura uruguaya.
OBRAS COMPLETAS:
“Papeles de Juan Morgan” Narrativa y Otras Prosas, Tomo 1, Prólogo de Luis Bravo, Estuario
Editora 2011, Montevideo-Uruguay.
“Las islas invitadas”, Poesía completa, Tomo 2, Compilación y prólogo de Luis Bravo,
Estuario Editora, 2013, Montevideo-Uruguay.
Federico Rivero Scarani (Uruguay, 1969), docente egresado del Instituto de Profesores
“Artigas”, docente en Secundaria y de la cátedra Lenguaje y comunicación del I.P.A. Escribió
varios libros de poesía y cuentos, entre ellos el último “El agua de las estrellas” (2013), fue
colaborador de revistas y diarios de Montevideo. Contacto: [email protected]. Página
ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
56
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Tropicalismo y
Europeismo en la literatura venezolana: Manuel
Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll vistos por
Miguel de Unamuno
El diseño de un posible canon para la literatura hispanoamericana comienza con algunos
escritores que tal vez nunca pensaron en ser sus fundadores: los peruanos el Inca Garcilaso
de la Vega, Pedro de Oña y Juan Espinoza Medrano; los mexicanos Carlos de Sigüenza y
Góngora, Sor Juana Inés de la Cruz, Joaquín Fernández Lizardi y Juan Ruiz de Alarcón, a
quienes se entreveran la Madre Francisca Josefa del Castillo en Colombia, Manuel José
Lavardén en Argentina, José Joaquín Olmedo en Ecuador y Rafael Landívar en Guatemala,
autores que preparan el terreno a los ejercicios escriturales de Esteban Echeverría en Buenos
Aires, Andrés Bello en Caracas y José de la Luz y Caballero en La Habana, para citar sólo
algunos ejemplos. De ahí en adelante escritores como Domingo Faustino Sarmiento y José
Hernández en Argentina, Juan Montalvo en Ecuador y Ricardo Palma en Perú configurarían,
en sus países de origen y en diversas tradiciones, la que vendría a ser la naciente literatura
hispanoamericana, con sus múltiples influjos europeos y criollos, indígenas y africanos.
Comienza a producirse en América el simultáneo diálogo, --apareado a la fricción o al
rechazo del legado europeo--, foráneo o vernáculo, que se advierte en poetas posteriores
como César Vallejo, Vicente Huidobro, Pablo Neruda o José Antonio Ramos Sucre.
Esta dicotomía –-o si se lo prefiere, este doble ramal nutriente— va a ser uno de los sellos
distintivos de nuestros escritores cuando abordan la realidad a través de la poesía, la novela
o el ensayo, el artículo o el cuento. Ya sea merced a la irradiación del clasicismo o el
romanticismo europeos, o intentando regresar a las raíces criollas o precolombinas,
asumiendo al paisaje de la propia tierra con sus dilemas y luchas sociales y en una tentativa
por autenticar una expresión, nuestros escritores se inclinarían a atender los llamados,
primero del romanticismo y luego del modernismo, movimiento éste que tomaba un impulso
del primero para retomar los mitos grecolatinos y elaborar con ellos su discurso.
Si en algún movimiento estas dobles resonancias se pusieron de manifiesto fue en el
Modernismo, movimiento que por su sólido y diverso basamento cultural, hubo de absorber
parte de la tradición clásica europea. Estamos hablando de la década final del siglo XIX,
cuando se abona el terreno para una discusión entre Europa y América acerca de obras que
tienden puentes unas, --o divergen otras— pero siempre acusan estas contradicciones o
convulsiones internas.
En esta ocasión quiero referirme a dos escritores venezolanos de la época modernista:
Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll, y a la decisiva repercusión que tuvieron en el
país y fuera de él, debido a la permanente actividad editorial y periodística que se estableció
por entonces, entre cuyos adalides se cuenta el caraqueño Rufino Blanco Fombona, novelista
y poeta que sufrió exilio en Europa por oponerse férreamente al régimen del dictador Juan
Vicente Gómez, fundando en Madrid la Editorial América.
Manuel Díaz Rodríguez es el primer novelista del modernismo venezolano, autor de las
novelas Ídolos rotos (1901) y Sangre patricia (1902), que impresionaron a Miguel de
Unamuno. Justamente, a los juicios de Unamuno sobre estas novelas deseo referirme, por
pensar que trazan un diálogo entre Europa y América en términos tanto históricos como
culturales; ambas tienen que ver con el tema de la tolerancia, la paz y la necesaria concordia
entre nuestros pueblos, por encima de las intervenciones bélicas acordadas en organismos
como el Consejo de Seguridad de la Organización de las Naciones Unidas (ONU).
57
En el caso de Portugal, el diálogo con este país ha sido fructífero, desde que estamos
recibiendo en tierra venezolana un importante contingente de inmigrantes que vinieron a
reforzar nuestra productividad en el agro, el comercio, la industria y ---por supuesto--- a
ensanchar nuestro horizonte cultural con la presencia permanente en nuestra literatura de
escritores como Juan de Camoes, Rosalía de Castro, Eca de Queiroz, Fernando Pessoa, ---el
más influyente poeta portugués, epónimo de esta Universidad en Oporto---, y en años
recientes, con la frecuente presencia en Venezuela del novelista José Saramago, fallecido
hace poco, ---posiblemente el último gran novelista de Europa--- que, siendo él un
convencido socialista, estrechó lazos de amistad con el gobierno revolucionario del
Presidente Hugo Chávez Frías.
Pero retomemos el hilo. Justo naciendo el siglo XX, en 1901 y 1903 respectivamente,
Unamuno reseña ambas novelas de Díaz Rodríguez (1), introduciendo en sus comentarios
varias consideraciones que estimo significativas, y me parecen válidas para varios contextos
y épocas. Empieza Unamuno a glosar las Notas sobre la evolución literaria en Venezuela, de
Pedro Emilio Coll, “notas tan juiciosas y sugestivas como cuanto Coll hace”, dice, y prosigue
citando unas palabras de Coll: “…los libros de los enciclopedistas preparaban en Venezuela
no sólo la revolución política, sino la literaria”, y como “después de la Independencia quedó
casi roto el cordón umbilical que les unía a España. Desde entonces, la literatura francesa ha
ejercido preponderancia en las letras venezolanas, y muy pocos serán los que, desde don
Andrés Bello hasta hoy, no se hayan embriagado alguna vez, cuando no con puro vino de
Champaña, con agua del Sena”. (…) Entre los nuevos de quienes Coll en sus Notas nos habla,
está Manuel Díaz Rodríguez, de quien Rubén Darío, en una carta a “La Nación” de Buenos
Aires, sobre La novela americana en España, publicada con las demás en el interesantísimo y
reciente libro España contemporánea, había dicho: “Venezuela ha tenido novelistas locales
cuya obra total se esfuma ante un solo cuento de Díaz Rodríguez. Este escritor podría
darnos la novela venezolana, americana; pero se queda en su jardín de cuentos, de innegable
filiación europea”, dice Darío. Prosigue Unamuno: “Y he aquí que Díaz Rodríguez, dejando
su jardín de cuentos, nos ha dado una novela venezolana, americana: Ídolos rotos”, remata
diciendo Miguel de Unamuno.
De ahí en adelante no cesa el escritor vasco en elogiar al escritor venezolano y a su opera
prima en el campo novelístico, de donde resaltan los apuntes acerca de la sensualidad. En un
aparte, haciendo distingos entre españoles y americanos, anota: “la raíz de la diferencia
entre nosotros, los españoles, por la mayor parte de altas mesetas de duro clima, y los
hispanoamericanos de fértil suelo, y la raíz de la fascinación que sobre ellos el espíritu,
profundamente sensual, ejerce. Porque nosotros, en nuestras montañas o en el duro suelo, y
bajo bruscos extremos de calor y frío, nos hemos hecho austeros y graves, no tenemos la
obsesión afrodisíaca- nada en el fondo menos erótico que la genuina literatura castellana; la
joie de vivre no la conocemos como en las grasas llanuras, en las plaines plantureuses de
Francia la conocen; nuestra vida es sueño y nuestra obsesión ha sido la muerte. Llega el
español al misticismo, pero no es sensual; le ha costado mucho vivir, y vivir entre duelos y
quebrantos y ayunando. El honor calderoniano no se nutre de celos carnales. No somos ni
lógicos ni sensuales como el francés.”
El personaje principal de Ídolos rotos, Alberto Soria, llega a París enviado por su padres a
completar estudios de ingeniería, pero los abandona para dedicarse a la escultura; se
posiciona de cierto prestigio con una pieza llamada “Fauno robador de ninfas”, con lo cual
se vincula rápido a los temas del modernismo americano. Cuando se encuentra
entusiasmado en París dedicado a su nuevo oficio y enamorado de una hermosa mujer, es
requerido en Venezuela, y tiene que regresar a atender a su padre enfermo y a sus hermanos
Pedro, que está medio loco, y a Rosa, desengañada de un fracasado matrimonio. En este
regreso de Alberto Soria a su patria natal, se produce esa fricción cultural, donde no se
puede eludir el comparar el ambiente de Europa con el ambiente criollo. Se encapricha
Alberto con María, amiga de su hermana; a la que abandona también para luego entrar en
brazos e Teresa Faría, mujer casada. Aquí, observa Unamuno, se producen “los inevitables
58
dulzuras del pecado, y donde alcanza su mayor tensión el cuento, en el relato de estos
amores y en la presentación de Teresa Farías, la pagana de alma católica, la beata sensual
que para su amor necesitaba de una atmósfera mística, porque sin ella no era ni bastante
sensual ni bastante profundo, pues como observa Díaz Rodríguez en su novela, “cuando más
blancas y numerosas sus plegarias, más numerosos y encendidos los deseos” hallando
Teresa, “su más alto gozo en sentirse deslizar y caer en la culpa, después que la oración y las
penitencias limpiaban su alma de inmundicias”.
Todo esto lo ve Unamuno relacionado con la novela francesa, tanto en los temas como en
el tratamiento; sólo que aquí, por primera vez en Venezuela, estamos frente a una obra
cumplida, que coloca a su personaje en un contexto completamente verosímil en cuanto a
religión, política, sociedad o arte. El argumento de la novela (al que Unamuno llama “cuento”
a lo largo de todo su ensayo) se desarrolla para el escritor español “en una novela
venezolana americana, porque lo importante aquí es el modo de contarlo, su
desenvolvimiento, y sobre todo, la orquestación, o si se quiere el fondo del cuadro (…) un
cuento parisiense, la protesta de un artista lleno de ansias de ideal y de patrióticos anhelos,
contra un pobre pueblo entregado a la más baja de las políticas y a las concupiscencias de
generalotes y aventureros.”
Alberto Soria, ante este dilema, va modelando a su mujer en barro, poniéndola de Venus,
con lo cual va matando, dice el novelista, “los audaces alientos del artista y los nobles
alientos del patriota. La escena donde se justifica el título de la novela surge cuando estalla
la Revolución en Venezuela y “Alberto tiene que huir, y en su ausencia entra María en su
taller y en la alcoba del adulterio, y presa de furor lo rompe todo, y la revolución triunfa, y
conviértese en cuartel la Escuela de Bellas Artes, y cuando al volver Alberto ve las
profanaciones de la soldadesca, se enfurece y acaba vencido.” (…) --¡Y nosotros, que
teníamos la candidez de pensar en el arte como en un medo de regeneración política!
¡Blasfemos! ¿Ves? ¿Ves? Por aquí pasó la bestia, la gran Bestia impura. ¿Ah, la Democracia!
¡Nuestra Democracia! ¡Nuestra Santísima Democracia!”
Concluye Alberto Soria comprendiendo que “nadie tiene derecho a sacrificar su ideal.”
Hay muchas otros pasajes de esta novela, donde Unamuno ve que Díaz Rodríguez ha
logrado momentos de penetración sociológica. También están los fragmentos referidos a
París, una Cosmópolis vista no sólo como “el acabado resumen de cuantas delicias y
primores abarca el Universo”, sino también como una ciudad de mal, vicios y seducciones
que sintetiza a todas las ciudades, en evidente contraste con lo que ocurre en las ciudades
criollas. Dice Unamuno que “pocas veces se ha llegado tan hondo como aquí llega Díaz
Rodríguez al señalar entre las causas de desamor a la patria “el perpetuo bochorno de los
mediodías y el polvo de las calles.”
Después pasa a examinar Miguel de Unamuno la naturaleza de los sentimientos
americanos o venezolanos contenidos en Ídolos rotos, como los del llamado dios indígena, o
el de la fiebre de la tierra, donde Alberto Soria “creyó ver la explicación de la vida alborotada
de las gentes de su país, y creyó penetrar en el secreto del alma de aquella comarca triste,
ardorosa y enferma.
Pero aún más se entusiasma Unamuno con la segunda novela de Díaz Rodríguez, Sangre
patricia, que le parece incluso más lograda que Ídolos rotos. Aquí ya no cabe en Unamuno el
entusiasmo para celebrar dicha obra, a la cual considera “más cuidada de estilo, más concisa,
más poética”. Me permito citar dos párrafos completos del comentario de Unamuno (con los
debidos entrecomillados de Díaz Rodríguez) que puede compendiar mejor lo que intento
subrayar:
“El argumento de la novela es sencillísimo. Julio Arcos es un venezolano de pura raza
española que vive en París, expatriado. Es un soñador. “Desde su origen, su familia había
venido en hazañas múltiples despilfarrando su capacidad para la acción; y así como ésta
disminuía, bien podría en grado igual, y de insensible modo, haber venido aumentando su
capacidad para el sueño. Porque su estirpe guerrera, al través de muchas generaciones,
apenas había consagrado al sueño breves pausas y raros individuos.” La historia de algunos
59
de sus antepasados llena de hermosas páginas. Julio se había casado por poder con una
novia que tuvo en su patria, Belén Montenegro, a la que nos describe el autor con
complacencia, y que viene de Caracas a París a unirse con su marido. Más en la travesía
muere y va su cuerpo al mar y cuando el buque llega a Europa, se encuentra Julio viudo
antes de haber sido marido. Hay que leer el relato, sobrio y sencillo, de su dolor, y como
llega a su casa de París y arroja por el balcón a la calle las flores con que esperaba a su
desposada. El resto de la novela es el dolor de Julio y cómo se le encalma y va a recorrer la
Corniza, y en Niza se hace al mar en un bote repleto de flores para celebrar la fiesta del
desagravio de éstas tendiéndolas sobre la tumba de Belén. Al cabo regresa a su patria,
obsesionado por el recuerdo de su novia, y soñándola como sirena que vive en el seno del
Océano, acaba por arrojarse al mar, a juntarse con ella antes de llegar a Caracas.”
Insiste Unamuno en que, a partir de este solo argumento, Díaz Rodríguez construye una
obra admirable con añadidos, episodios y argumentos adicionales, entre ellos el de
Alejandro Martí, místico y músico lleno de ideales, cuya historia constituye por si misma “un
admirable trozo literario.” El dibujo de este personaje ejerce una fascinación especial en
Unamuno, llegándole a dedicar buena parte de su ensayo, y me parece de suprema
importancia para entender nuestra filiación con España. Vale la pena volver a citar in
extenso: “En una conversación entre Martí y sus amigos se hallan, en Boca de Borja y
Ocampo, los hermosos pasajes en que el autor nos habla de España, que debe ser “la reserva
de ilusión” para los americanos. Ocampo opina que todos loa americanos de lengua española
deberían empezar por España su peregrinación en Europa, y que ganaría su patriotismo
poniéndose en contacto con tierra española. “Y quizás no esté lejos el día
–-dice— en que
consideremos como nuestro deber más perentorio el ir en peregrinación, uno por uno,
siquiera con el pensamiento, a robustecernos en las mismas fuentes de la raza.” Habla luego
de las vestiduras que, a título de préstamo, pidieron de otras naciones, para ocultar sus
vagos tanteos primerizos, refiriéndose a “ciertas influencias de pueblos extraños, que si un
día pudieron servirnos de aguijón, --dice--, apenas pueden ya servirnos sino de rémora.” Y
añade: “es un repugnante lugar común, cuando se habla de nuestras miserias, en particular
de nuestras miserias políticas, valerse del socorrido argumento de nuestro origen español,
como si este solo origen contuviese en germen todos nuestros males.”
Vuelve Unamuno a hacer una reflexión sobre el predominio del espíritu francés en
nuestra política, y del sentimentalismo francés, llevado a todas partes por la revolución, que
nos ha causado más daño que bien, según él. Luego, más adelante insiste en que estas ideas,
dichas en boca del personaje Ocampo, merecen reproducirse en las revistas españolas de su
tiempo, insistiendo en que las páginas de Sangre patricia “encierran una robusta voz de
ánimo y consuelo que de América nos viene; de aquella pobre Venezuela, patria del
Libertador, de Simón Bolívar, que sufre ahora, con la corrosión de las disensiones interiores,
el constreñimiento del bloqueo de algunas potencias europeas.”
Insiste Unamuno en describir las virtudes narrativas de Díaz Rodríguez, llegando en un
momento a afirmar que esta novela acusa algo de tropicalismo, noción donde me gustaría
detenerme, pues ese “tropicalismo” se remarca precisamente con el afrancesamiento de la
literatura americana, justamente porque muchos de nuestros literatos se han ido a vivir a
París para recibir el influjo de ésta, pues “es indudable que la literatura francesa es una gran
educadora de todo literato profesional, pero a condición de saber desligarse a tiempo de su
fascinación y de no dejarla que tuerza nuestro natural, aunque lo corrija.”, pasando luego a
señalar “cierto extraño hibridismo entre la expresión tropical y eso que llaman decadentismo
francés”, poniendo algunos ejemplos, sobre todo uno, muy poético, con el cual termina el
comentario del libro, donde Alejandro Martí ejecuta una música al piano; este constituye de
veras un ejemplo elocuente del arte escritural de Díaz Rodríguez. Sólo citaré una pequeña
frase de éste, referido al mar: “El mar no replicaba si no cantando su eterna antífona ronca,
dilatando su eterna sonrisa, indiferente bajo el cárdeno suplicio del crepúsculo.”
Como dijimos, Unamuno realiza estos comentarios, uno en 1901 y otro en 1903 en el
diario “La Lectura” de Madrid. En otro artículo de 1902 (2) intercala varias aseveraciones
60
sobre la condición del ser europeo en América, que tienen que ver con ese decadentismo al
que hace referencia Pedro Emilio Coll cuando hace observar que lo que llamamos
decadentismo en América “no es quizás sino el romanticismo exacerbado por las
imaginaciones americanas. La infancia de un arte que no ha abusado del análisis y que se
complace en el color y en la novedad de las imágenes, en la gracia del ritmo, en la música de
las frases, en el perfume de las palabras, y que como los niños ama las irisadas pompas de
jabón”, encontrando en todo esto una razón poderosa para que la literatura francesa ejerza
grande influjo sobre los pueblos que empiezan a hacerse tradición de cultura, y es que la
literatura francesa es la que menos esfuerzo de comprensión exige, la más clara y diáfana, la
más brillante, la que nos da en papilla el pensamiento universal, aunque sea debilitándolo”.
Es de hacer notar el fino humorismo de que hace gala Unamuno, cuando apunta que
“fueron los franceses los que me introdujeron el pensamiento europeo, sacándome de este
camaranchón de España, pero hace ya tiempo que los tengo casi olvidados.”
Se vale pues, Unamuno de este comentario que realiza a “Hojas en un diario”, ensayo del
libro El castillo de Elsinor (Caracas, 1901) de nuestro Pedro Emilio Coll, para introducir sus
ideas sobre la literatura americana, francesa y española, dando la razón a Coll al suponer
que “las influencias extranjeras, lejos de ser un obstáculo para el americanismo, le
favorecen.”
Con la observación de estas ideas parece quedar claro que la mirada de los
hispanoamericanos al resto del mundo supera con creces la mirada que el resto del mundo
obtiene o arroja sobre nosotros: esos síndromes eurocentristas, egotistas o titanistas de
EE.UU con que solemos toparnos a diario se han venido desvaneciendo en un mundo
multipolar, que ha dejado lejos aquella época donde las superpotencias parecían destinadas
a gobernarnos y a decidir nuestros gustos culturales, han venido cesando pese al acelerado
peso de la globalización; han venido palideciendo las tendencias informativas donde se nos
imponen a la fuerza modelos y formatos de crear o producir. Poco a poco los países
nuestros van saliendo del marasmo al que los han querido conducir la mundialización de la
información y la estandarización de los códigos culturales; nuestros nacionalismos ya no
son vacíos ni retóricos, sino modos de emanciparnos y de otorgar dignidad a una idea más
cabal de patria. Liberados de mesianismos y quintaesencias, tenemos la opción de ir
educándonos desde adentro, desde las voces íntimas y hondas que nos lega la literatura,
insertas en el norte de la emancipación cultural Si la paz es tolerancia, inclusión,
participación, respeto a las diferencias y aceptación de la diversidad cultural; si éstas hacen
posible la convivencia y el equilibrio social a través del ejercicio de la libertad individual para
el bien colectivo, más allá de la limitación de las ideologías, superando la política de las
invasiones bélicas a otros países, orquestadas la mayoría de ellas en los laboratorios del
capitalismo “avanzado”; si la paz da origen a una cultura del diálogo entre estos conceptos
para superar las carencias de un mundo donde aún se verifican genocidios y fratricidios,
entonces es sensato apostar por un nuevo concepto de paz entre escritores de Europa y
Venezuela, de Venezuela y el mundo, de España, Portugal y Venezuela tal como lo hicieron
en su momento Miguel de Unamuno, Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll, los cuales
son, de hecho, puntos de referencia para continuar construyendo ese diálogo..
No quisiera concluir esta observación sin dejar de mencionar el efectivo vínculo que se ha
venido produciendo entre Venezuela y Europa en el terreno de las humanidades y la
literatura en los últimos años, en países como España, Portugal, Francia, Suiza, Holanda o
Alemania, tanto en el plano de los estudios académicos, como en el diplomático y editorial,
al llevarse a cabo en diversas instituciones numerosos congresos, simposios, ediciones y
encuentros que se han propiciado desde Universidades en Neuchatel, La Sorbona y
Salamanca, donde he estado, y ahora aquí en Oporto, donde se ha producido una acogida a
las ideas y a la creación, publicando y divulgando material literario vertido en trabajos
teóricos, libros y revistas monográficas sobre literatura venezolana (3), todos en la dirección
de un dialogo humanístico donde la literatura es punto cenital de ese diálogo, siendo ella la
que tiene la misión de reconstruir la memoria y el imaginario de una sociedad a través del
61
arte de la palabra, y ese arte ha favorecido el entendimiento entre nuestras instituciones,
estudiantes, profesores y miembros de la comunidad de saberes en ambas tradiciones y
continentes; diálogo que con seguridad va a ser alimentado a lo largo de los años venideros,
para apostar por el tan esperado renacimiento de la paz en este, nuestro mundo de hoy, tan
asediado aún por el absurdo de la guerra.
© Copyright Gabriel Jiménez Emán
NOTAS:
(1) “Una novela venezolana”. Ídolos rotos. Novela por Manuel Díaz Rodríguez, Paris. Imprenta
española de Garnier Hermanos, 1901. 3,50 francos. Crítica aparecida en: La Lectura,
Madrid,, julio 1901. Pp63-72.
“Otra novela venezolana”. Sangre Patricia. Por Manuel Díaz Rodríguez, Caracas, 1902.
Crítica aparecida en La Lectura, Madrid, abril, 1903.
Ambos artículos reproducidos en el libro: Miguel de Unamuno. Americanidad, Selección y
prólogo de Nelson R. Orringer, Biblioteca Ayacucho, Colección La Expresión Americana,
Carcas, 2002.
(2) Miguel de Unamuno. Obras completas, Tomo IV, Madrid, Escelicer, 1968, pp. 783-786.
(3) Nuestra América. Revista de Estudios sobre la Cultura Latinoamericana. Nº 4- Cultura
Venezolana. Porto Agosto-diciembre 2007.
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN (Caracas, 1950). Poeta, narrador y ensayista. Ha publicado libros
como El hombre de los pies perdidos (2005), Averno (2007), y Impreso en la retina. Crónicas
de un adicto fílmico (2010). Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras
de António Beneyto (España), artista invitado de esta edición de ARC.
62
HAROLD ALVARADO TENORIO | Hace 146 años
nació Rubén Darío
Yo nunca aprendí a hacer versos —dice Rubén Darío (Metapa, 1867-1916) en su
Autobiografía —. Ello fue en mí orgánico, natural, nacido. Niño precoz, versificó en una
ciudad, León, donde se rimaba por cualquier acontecimiento: una boda, un deceso, un
cumpleaños, una victoria o un fracaso político, la consagración de un obispo o la toma de
empleo. Sus versos de entonces imitan a Zorrilla, Campoamor o a Nuñez de Arce, pero
también a Víctor Hugo, el primer poeta francés que se advierte como influencia en su poesía.
Son poemas unas veces piadosos otras profanos, nacidos de las contradicciones ideológicas
que vivía un niño en una comunidad de fanáticos religiosos y una minoría de liberales y
positivistas, artesanos e intelectuales lectores de Rousseau, Montesquieu y Juan Montalvo.
Sus temas, los del civilismo latinoamericano: la fe en el progreso, en la democracia, el odio al
clero y la iglesia, y los eternos de la poesía: el amor, el paisaje, las explicaciones de los
mundos desconocidos, los otros mundos del alma.
Durante su estancia en Chile Darío publicó Azul… Ni los cuentos ni los poemas escritos
allí se parecen a los que había publicado en Nicaragua. La lectura de los parnasianos, con
Leconte de Lisle a la cabeza, deslumbraron a Darío revelándole la forma escultórica de la
estrofa, el colorido de la adjetivación y el brillo de las imágenes precisas. Sus poemas son
breves y aun cuando en ellos impere todavía el formalismo clásico, en sus versos y estrofas
se siente ya un nuevo espíritu. Ese es el caso de Anagke, la tragedia de una paloma contada
en silvas, o de Estival, cuyo asunto es la crueldad del poderoso. Poemas donde Darío se va
distanciando del dato concreto para ofrecernos parábolas que interpreten una sociedad o un
país, mediante el desvelamiento de sus contradicciones. Sus otros poemas de esta época, los
llamados artísticos, magnifican y distorsionan los asuntos, a fin de que sus significados se
resuelvan sólo en la conciencia del lector.
En invernales horas, mirad a Carolina.
Medio apelotonada, descansa en el sillón,
envuelta con su abrigo de marta cibelina
y no lejos del fuego que brilla en el salón.
El fino angora blanco junto a ella se reclina,
rozando con su hocico la falda de Alençón,
no lejos de las jarras de porcelana china
que medio oculta un biombo de seda del Japón.
Con sus sutiles filtros la invade un dulce sueño:
entro, sin hacer ruido; dejo mi abrigo gris;
voy a besar su rostro, rosado y halagüeño
como una rosa roja que fuera flor de lis.
Abre los ojos, mírame con su mirar risueño,
y en tanto cae la nieve del cielo de París.
(De invierno)
Juan Valera acertó en sus juicios sobre Azul…, al señalar que uno de los rasgos
maravillosos de la personalidad del autor era no ser ni clásico ni romántico, ni simbolista, ni
decadente sino que lo había revuelto todo sacando de ello la quintaesencia que definía su
estilo. Pero lo más importante de sus juicios fue decir que la originalidad aparecía en los
63
cuentos y no en los poemas. El cuento parisién, a lo Catulle Mendés, le había proporcionado
un modelo ajustado a las visiones artísticas de su tiempo. El fardo, El rey burgués, o La
muerte de la emperatriz de la China recuerdan ese estilo de conversación con la cual se
trasmite un chisme; una escritura que reconoce la existencia de un mundo nuevo que
requiere una nueva forma; un artificio que satisfaga la subjetividad de los nuevos lectores.
En El fardo los personajes viven en hacinamientos humanos, entre paredes destartaladas,
sobre callejuelas inmundas de mujeres perdidas que deambulan en noches sin luz. El rey
burgués es símbolo de la inmensa riqueza, del gusto refinado; un mercader del arte que
ignora al poeta y lo abandona a la muerte, en una noche de invierno, mientras él piensa en el
Ideal y el día que viene. Un mundo pesimista y una necesidad de acercarse a los abismos de
lo desconocido, para crear nuevas mitologías, son el retrato que hace de su tiempo quien
creía que el dinero debe ser exclusivamente usado por los artistas.
Un cambio vertiginoso en el crecimiento de las ciudades se produjo en el último cuarto de
siglo del XIX. Según Richard Morse, [1] la población en Santiago pasó de los ciento treinta a
los doscientos cincuenta mil habitantes, mientras la de Buenos Aires alcanzó los ochocientos
cincuenta mil. En esta populosa ciudad desembarcó Darío el 13 de agosto de 1893. Un nuevo
tipo de hombre de la calle y de negocios, de hogar y de burdel, habitaba la primera
Cosmópolis hispanoamericana. Aventureros que buscaban, como afirma José Luis Romero,
[2] el ascenso social y económico con apremio, casi con desesperación, generalmente de clase
media y sin mucho dinero, pero con una singular capacidad para descubrir dónde estaba
escondida, cada día, la gran oportunidad. "Buenos Aires modernísimo —escribiría Darío en
1896 [3]— cosmopolita y enorme, en grandeza creciente, lleno de fuerzas, vicios y virtudes,
culto y polígloto, mitad trabajador, mitad muelle y sibarita, más europeo que americano, por
no decir todo europeo".
La Argentina de Darío, con su capital donde no habían cien personas que comprasen un
libro, pero que editaba el periódico más importante del continente, era el resultado de una
revolución en los medios de producción. Entre 1860 y 1913 se invirtieron allí 10.000
millones de dólares, el 33% de las inversiones extranjeras en el área. En ese mismo lapso
ingresaron al país 3.300.000 personas que se enrolaron en la economía agropecuaria; en
1887 sus vías férreas alcanzaban los 6.200 kilómetros y en 1900 totalizaba los 16.600,
mientras las exportaciones pasaron de los 260 millones de dólares en 1875 a los 460
millones en 1900. [4]
1896 es el año de la apoteosis de Darío: se publican Los raros y Prosas profanas y otros
poemas. Los artículos recopilados en el primer libro habían sido publicados en La Nación,
que desde 1888 contaba a Darío como uno de sus corresponsales. Están dedicados a figuras
literarias que llamaban la atención de los modernistas o eran sus predilectos. Camile
Mauclair, Edgar Allan Poe, Leconte de Lisle, Paul Verlaine, el conde Matías Augusto de Villiers
de L'Isle Adam, León Bloy, Jean Ripechin, Jean Moreas, Rachilde, George D´Esparbés,
Augusto de Armas, Laurent Tailhade, Fray Domenico Cavalca, Eduardo Dubus, Théodore
Hannon, el conde Lautréamont, Paul Adam, Max Nordeau, Ibsen, José Martí y Eugenio de
Castro forman esta galería y vademécum de la nueva literatura. Cada reseña de la vida y las
obras de los autores es un canto de admiración, con juicios ciertos y valoraciones exactas
sobre tan variado conjunto. Es una obra que resume la lucha de Darío por ventilar, con los
aires de la nueva generación, el enrarecido ambiente romanticoide de América. Las frases
escritas sobre Verlaine parecen un retrato de sí mismo:
Verlaine fue un hijo desdichado de Adán, en el que la herencia paterna apareció con
mayor fuerza que en los demás. De los tres Enemigos, quien menos mal le hizo fue el Mundo.
El Demonio le atacaba; se defendía de él, como podía, con el escudo de la plegaria. La Carne
sí, fue invencible e implacable. Raras veces ha mordido cerebro humano con más furia y
ponzoña la serpiente del Sexo. Su cuerpo era la lira del pecado. Era un eterno prisionero del
deseo. Al andar, hubiera podido buscarse en su huella, lo hendido del pie. Se extraña uno no
ver sobre su frente los dos cuernecillos, puesto que en sus ojos podían verse aún pasar las
64
visiones de las blancas ninfas, y en sus labios, antiguos conocidos de la flauta, solía aparecer
el rictus del egipán. Como el sátiro de Hugo, hubiera dicho a la desnuda Venus, en el
resplandor del monte sagrado: Viens nous en!… Y ese carnal pagano aumentaba su lujuria
primitiva y natural a medida que acrecía su concepción católica de la culpa.
Prosas profanas, está precedido por un prólogo donde Darío proclama, entre otras
preferencias, su amor por la novedad a condición de que sea inactual; exalta el yo
desdeñando las mayorías; declara la supremacía del sueño sobre la vigilia y la del arte sobre
la realidad, pregonando su horror por el progreso, la técnica, el presente y la democracia: …
vereís en mis versos princesas, reyes, cosas imperiales, visiones de países lejanos o imposibles;
¡qué quereís!, yo detesto la vida y el tiempo en que me tocó nacer; y a un presidente de la
República no podré saludarle en el idioma en que te cantara a ti, ¡oh Halagabal!, de cuya
corte — oro, seda, mármol — me acuerdo en sueños…. (Si hay poesía en nuestra América, ella
está en las cosas viejas: en Palenke y Utlatán, en el indio legendario, y en el inca sensual y
fino, y en el gran Moctezuma de la silla de oro. Lo demás es tuyo, demócrata Walt Whitman.)
Darío recoge en este volumen los motivos que más le dieron prestigio: la nostalgia de los
parques del setecientos, los abates galantes, las marquesas crueles, las elegancias a lo
Watteau, la princesa que aguarda al feliz caballero que la adora sin verla y viene a encenderle
los labios con un beso de amor; los efebos criminales parecidos a los satanes verlenianos, los
cisnes simbólicos y elegantes. La búsqueda de la expresión se hace en base a una
musicalidad, que imprime a las palabras, más allá de su sentido lógico, grandes sugerencias.
El helenismo, a lo parnasiano, está expresado en idilios de espléndido y artificioso
virtuosismo donde lo pintoresco se funde con relieves escultóricos y las evocaciones,
clasicistas, están unidas a imágenes españolas de gran colorido, precioso y refinado. Pero es
también, sustancialmente, un prodigioso repertorio de ritmos, formas, colores y sensaciones.
Sus innovaciones métricas y verbales son deslumbrantes. Pedro Henríquez Ureña, [5] en un
comentario a la obra de Darío, en 1905, enumera, entre otras, las siguientes: resurrección del
endecasílabo anapéstico y el provenzal; ruptura de la división rígida de los hemistiquios de
alejandrino; auge del eneasílabo y el dodecasílabo; cambios de acentuación; invención de
versos largos; mezcla de distintas medidas con una misma base silábica, ternaria o
cuaternaria; versos amétricos y retorno a las formas tradicionales del verso hispánico.
El placer, sostiene Octavio Paz, [6] es el tema central de Prosas profanas:
La mujer lo fascina. Es colina, tigre, yedra, mar, paloma; está vestida de agua y de fuego y
su desnudez misma es vestidura. Es un surtidor de imágenes: en el lecho se "vuelve gata que
se encorva" y al desatar sus trenzas asoman, bajo la camisa, "dos cisnes de negros cuellos". Es
la encarnación de la "otra" religión: "Sonámbula con alma de Eloísa, en ella hay la sagrada
frecuencia del altar". Es la presencia sensible de esa totalidad única y plural en la que se
funden la historia y la naturaleza:
…fatal, cosmopolita,
universal, inmensa, única, sola
y todas; misteriosa y erudita; ámame mar y nube, espuma y ola.
En abril de l900 y por encargo de La Nación Darío llegó a París para cubrir los eventos de
la Exposición Universal. Allí viviría por algunos años. La Ciudad Luz arde en esplendor. Sus
crónicas sobre el acontecimiento son juicios valorativos sobre los diferentes sectores y en
especial del artístico, como los que emite sobre la muestra de Rodin, quien, para Darío, no es
un solo creador sino dos: el inventor de la belleza, clásico y comprensible y el otro, surgido
de las mismas fuentes de la naturaleza, el que ha esculpido el Pensador. Pero su entusiasmo
por el mundo europeo va decayendo poco a poco, a medida que confirma la ruina de unas
sociedades que realizarían las mas horrendas guerras del mundo moderno. El uno de enero
de 1901, en Reflexiones sobre el Año Nuevo parisiense, aseguró:
65
No hay mayor contraste que el de esta riqueza y placer insolentes, y este frío en que tanto
pobre muere y tanto crimen se comete, de manera que las bombas que de cuando en cuando
suenan en el trágico y aislado sport de algunos pobres locos, vienen a resultar ridículas e
inexplicables. Esto no se acabará sino con un enorme movimiento, con aquel movimiento que
presentía Enrique Heine, ante el cual la Revolución Francesa será un dulce idilio.
Son estos los años cuando Darío toma conciencia clara de ser latinoamericano. Junto a los
hermanos Cuervo, Vargas Vila, Blanco Fombona, Díaz Rodriguez, Tamayo, Nervo o Ugarte y
Estrada había descubierto que el París y la vida parisina que tanto amaron les ignoraba.
Salutación del optimista, escrito para un acto en el Ateneo madrileño, organizado por la
Unión Iberoamericana, es una premonición del caos que estaba a las puertas de la historia:
Siéntense sordos ímpetus en las entrañas del mundo,
la inminencia de algo fatal hoy conmueve la tierra;
fuertes colosos caen, se desbandan bicéfalas águilas,
y algo se inicia como vasto social cataclismo
sobre la faz del orbe.
Cantos de vida y esperanza es el más importante de sus libros. En el prólogo enfatiza en
la continuidad de su tarea realizada e insiste en el carácter personal de sus hallazgos. Aparte
de sus novedades formales, es un retorno a las preocupaciones y actitudes anteriores a
Azul…: la política, el amor por lo hispano y el recelo ante los Estados Unidos. Cyrano en
España, Retratos, Trébol, Un soneto a Cervantes, A Goya, y Letanía a Nuestro Señor Don
Quijote intentan una revalidación de la cultura española. Su visión del pasado y el presente
abarca las civilizaciones abolidas, los conquistadores y los héroes de las gestas
independentistas. Ve el peligro que representan los Estados Unidos como un conflicto entre
civilizaciones: la norteamericana es joven, agresiva, nórdica, pragmática, protestante; la
nuestra, heredera de dos antiguas civilizaciones en descenso. En A Roosevelt, al optimismo
yanqui, opone el alma de la América Hispana que sueña, vibra y ama. Son poemas que
buscan las razones de una esperanza en nuestro futuro. Su otra preocupación es la religiosa.
El nuevo Ideal está asociado a la fe, como en Los tres reyes magos o Canto de esperanza.
Ante el poderío norteamericano y el apocalipsis inminente, fe y poesía son caminos para
acercarse al misterio, a lo inefable del porvenir:
¡Torres de Dios! ¡Poetas!
¡Pararrayos celestes
que resistís las duras tempestades,
como crestas escuetas,
como picos agrestes,
rompeolas de las eternidades!
La mágica esperanza anuncia un día
en que sobre la roca de armonía
expirará la pérfida sirena.
¡Esperad, esperemos todavía!
(Cantos)
En la obra y la vida de Darío se resume todo el proceso del Modernismo, y es uno de los
más vivos testimonios de las preocupaciones del alma hispánica en una época cuando
nuevas generaciones de latinoamericanos no se encontraban a gusto bajo el tutelaje de las
culturas dominantes en Europa y América. Desde el repudio a la realidad y su inicial refugio
en mundos mitológicos y exóticos, hasta el reencuentro con las preocupaciones sociales y la
formulación de las eternas preguntas sobre el arte, el placer, el amor, el tiempo, la vida, la
66
muerte o la religión, hay en él un poeta que comprendió, a cabalidad y con la imaginación, la
hora y el espacio que le tocó vivir.
NOTAS
1. The Urban Development of Latin America 1750-1920, Stanford, 1971.
2. Latinoamérica: las ciudades y las ideas, México, 1976.
3. Introducción a Nosotros, de Roberto J. Payró, en Escritos inéditos de Rubén Darío, New
York, 1938.
4. Ver: El positivismo y el progreso material (1870-1890), en Historia General de América, de
Francisco Morales Padrón, tomo IV, Madrid, 1982.
5. Rubén Darío, en Obra crítica, México, 1960.
6. El caracol y la sirena, en Cuadrivio, México, 1972.
Harold Alvarado Tenorio (Colombia, 1945). Poeta, ensayista y traductor. Editor de los
Cuadernos de Poesía de España y América de la Editorial Tiempo Presente y de la Página
Ocho/Cultura de La Prensa, actualmente dirige Arquitrave, revista de poesía. Ha publicado
La poesía de T.S. Eliot (1988), Literaturas de América Latina (1995), y Summa del cuerpo
(2002). Contato: [email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio
Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC.
67
HÉCTOR ROSALES | María Meleck Vivanco,
iluminada por el fuego
María Meleck Vivanco nació en Valle de San Javier (Córdoba, Argentina) en 1921. Hay muy
pocas poetas contemporáneas de aquel país −o de cualquier otro− que hayan desarrollado
una obra tan personal y genuina como, al mismo tiempo, tan apartada del gran público y de
los cánones oficiales de las letras en castellano.
En los escasos textos sobre su obra se suele vincularla al primer grupo argentino de
poetas inspirados en el surrealismo, que Aldo Pellegrini reuniera en su Antología de la Poesía
Surrealista a mediados del siglo XX. Desde la perspectiva hispanoamericana, estos autores
fueron pioneros en adherirse al movimiento originado en Francia, destacándose nombres
como los de Francisco Madariaga, Juan Antonio Vasco, Enrique Molina, Oliverio Girondo,
Julio Llinás, Carlos Latorre o Juan José Ceselli. María Meleck Vivanco tuvo su sitio dentro de
aquel círculo, aunque, quizás por la personalidad independiente de la autora, su poesía no
cobró la difusión de algunos de sus compañeros.
Esta personalidad y la fidelidad a sus propias letras se mantuvieron intactas hasta el final,
ocurrido el 8 de noviembre de 2010 en Portezuelo (Maldonado, Uruguay), donde la escritora
se había refugiado en sus últimos años.
No recuerdo ahora con exactitud cuándo recibí por primera vez una carta de María
Meleck. Debió ser hacia 1995, me parece. Pero recuerdo con mucha claridad su impetuosa
caligrafía, torrencial, cercanísima. En algún rincón indicó como nexos para su iniciativa
epistolar dos fuentes muy valiosas. Por un lado nuestra común y querida amiga, la poeta
uruguaya Orfila Bardesio, una creadora de la misma raza mística, telúrica y visionaria que la
propia María, o de otras autoras como Marosa di Giorgio, Olga Orozco o Concepción Silva
Bélinzon, leídas entre sí, cada una dueña de su voz, y con diversos lazos de amistad
personal. Orfila aportó los datos de mi domicilio y comentarios sobre mis letras. La otra vía
de contacto también vino por la lectura, en este caso la de su amigo Enrique Molina, a quien
no traté en vida, y del que me honra su interés como lector.
Desde entonces cruzamos cartas y libros, poemas sueltos (impresos, fotocopiados,
inéditos), postales y algunas fotos. Siempre por correo tradicional. En aquellas cartas llegaba
la poeta entera, transparente, confesional, con esa fuerza tan característica en sus versos,
que en los papeles manuscritos se multiplicaba dando muestras de su vehemente manera de
vivir.
Directa o indirectamente, más adelante sumando la comunicación de su hija Juana
Guaraglia (periodista y escritora), el universo Meleck Vivanco ha seguido muy próximo a mis
días, pudiendo comprobar cómo se va revalorizando, felizmente, el caudal de una poesía que
trasciende las expectativas de su autora.
María Meleck solía justificar su proceso creativo como fruto del azar, del destino, de un
don de la naturaleza. En este aspecto su descripción coincide −en parte− con los testimonios
que escuché de Marosa di Giorgio (principalmente) y Orfila Bardesio para sus trayectorias
particulares.
Hay en esta clase de autoras una suerte de revelación, unas raíces inspiradoras que
suministran imágenes, secuencias, derivaciones, sentimientos y, tantas veces, interrogantes a
los poemas.
Si bien Breton ponderaba las virtudes de la escritura automática (que no niega para sí
nuestra poeta), no estoy tan convencido de que se aplicara sólo este recurso en la mayor
parte de los textos de Meleck Vivanco.
Se trata de una obra llena de pasión, de pulso romántico al estilo alemán, con una
vertiente humanística muy profunda, y la plena convicción de que vida y muerte (dos caras
68
de una misma moneda) ruedan con nosotros bajo leyes que no podemos comprender pero sí
aceptar, con gozo y con dolor, hasta sus más remotas consecuencias.
La poética de María Meleck mantiene una constancia formal que no es común en una
escritura automática, descuidada, inconsciente. Es una escritura vigilada en su expresividad,
hay un lenguaje al servicio de los hallazgos metafóricos, del ritmo, de las sensaciones que
deben llegar al lector. Aunque María afirmara lo contrario, posiblemente abrazada a la
explosividad de sus sentimientos y su obediencia a los designios de la tierra, el hilo de fuego
que cose la estructura de su obra está sostenido con firmeza y con indudable voluntad
literaria. De ahí parten sus iluminaciones, las búsquedas de su voz, lo que aparece en el
intenso tránsito de la mirada de sus versos.
“Me he quedado con las apariciones de mi corazón”, dice en uno de estos versos. Y sin
escapar a los golpes, añade en otro: “Peso y tamaño de ingratas piedras sobre mi corazón, /
marcado por la tempestad y los colmillos de la vida”. La suma de estas y otras heridas no
margina su apuesta por la sensualidad, la creencia en un Dios plenamente justo y ausente en
las religiones, el amor a todo ser vivo (empezando por las personas más necesitadas), el
culto a la libertad y, por supuesto, a la poesía, compañera de todos los viajes.
“Únicamente pido calidad, emoción y misterio”, declaraba Meleck Vivanco como lectora
en una entrevista de febrero 2007, publicada en internet (la recomendamos con un enlace al
final de este trabajo). Tres principios que certifican el gusto nada inocente (“ni automático”)
de una poeta que supo valorar con fino criterio los numerosos textos que llegaron a sus
manos.
Desde esos mismos principios partieron sus títulos editados: Taitacha Temblores (1956,
poemas quechuas), Hemisferio de la Rosa (1973), Rostros que nadie toca (1978), Los Infiernos
Solares (1988), Balanza de Ceremonias (1992), Canciones para Ruanda (1997), que se reeditó
póstumamente junto a Mar de Mármara / alucinaciones del azar (2011). En María Meleck
Vivanco / Antología poética (Fondo Nacional de las Artes, Buenos Aires 2008), volumen del
que seleccionamos varias piezas a continuación de estas líneas, también se incorporan
poemas de libros inéditos, que deseamos vean la luz en fechas tempranas.
Meleck Vivanco ha recibido las siguientes distinciones: Libro de Oro (Lima, 1956), Segundo
Premio de Poesía de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires (1978), Premio Fundación
Argentina para la Poesía (Colección de Poetas Contemporáneos, Buenos Aires, 1988), Premio
de Poesía del Fondo Nacional de las Artes (Buenos Aires, 1991), Premio UNICEF (Nueva York,
1996), Premio Universidad de las Letras (La Habana, 1997) y Premio Fundación Sociedad de
Los Poetas Vivos (Buenos Aires, 1998).
En 1978 fue invitada al Tercer Congreso Latinoamericano de Mujeres Escritoras
organizado por la Universidad de Ottawa. Y en 1999 al Congreso Internacional del
Surrealismo en el Tercer Milenio, efectuado en Roma.
Los últimos años en Portezuelo los pasó en una casita muy cercana –dentro del mismo
terreno− a la vivienda de su hija, quien me envió diversas fotos del entorno de la poeta. Una
cálida sencillez está presente en la mayoría de las imágenes, y la naturaleza, como en los
tramos más significativos de su vida, dominando el paisaje y ya tomando definitivamente las
riendas de su espíritu.
Fue una etapa muy difícil por los problemas de salud. Aun así los libros y la gente querida
le dieron fuerzas para mantener su comunicación y la llama de la poesía.
Con letra firme escribe en septiembre de 2009 una afectuosa dedicatoria en la citada
Antología. No supe de ella hasta un año y pico después, cuando Juana remitió el volumen
junto a otro título de su propia autoría, Cuentos de Frontera, aparecido en ese período y ya
fallecida su madre.
El sobre llegó a mi lugar de trabajo. No lo abrí de inmediato, sino al mediodía, después de
entrar en un bar del barrio a tomar un café. Minutos antes imaginaba una carta de Juana
contándome los últimos meses de María; lo que encontré fue una breve nota y las dos
ediciones.
69
La inefable impresión inicial fue que María Meleck me había escrito esas líneas en su libro
desde el más allá, un más allá a mi lado, tangible como el pocillo de café y el frío en la calle y
la emoción en los ojos. “… con el testimonio de mi admiración y mi permanente recuerdo.”
Leí varias veces esa línea como si yo la estuviera escribiendo para la poeta, y no al revés,
mientras reconocía su sincera y generosa afirmación.
No había azar en la dedicatoria y sí en mi gesto siguiente, el de leer un verso del libro
abriendo una página cualquiera. Como si un pequeño relámpago encendiera la hoja de papel,
aparecieron (lo juro) estas palabras: “Y trasponer la muerte / Sólo en tus ojos, intercambio
mi espejo.” El mensaje me envolvió hasta casa. Fui observando los detalles del panorama, las
calles, un parque, varios transeúntes. ¿Se asomaría en algún momento María Meleck bajo
otro signo? ¿Debería interpretar alguna señal más en la piel y en la memoria de ese invierno
barcelonés?
Tuvieron que pasar meses para releer la Antología, elegir varios fragmentos y evocar a la
poeta argentina en estas letras de agosto. Localicé su última imagen en mi haber, esa leve
silueta recortada sobre la puerta de su cabaña que, espero, los editores colocarán al
principio de esta reseña.
Creo que allí María Meleck Vivanco sonríe, transmite todavía su enérgica lección vital que
la traspone hasta aquí, cuando de nuevo, eternamente, nos intercambia su espejo iluminada
por el fuego.
Héctor Rosales nació en Montevideo en 1958, y está radicado en Barcelona desde 1979.
Incluido en antologías, catálogos, libros colectivos y publicaciones nacionales e
internacionales, algunos de sus textos se han traducido al francés, portugués, catalán,
gallego, polaco, italiano, inglés y alemán. Entre otros libros, ha publicado: Visiones y agonías
(Barcelona, 1979), Espejos de la noche (Madrid, 1981); Desvuelo (Montevideo-Barcelona, 1984),
Habitantes del grito incompleto (Montevideo, 1992) y Mientras la lluvia no borre las huellas
(Barcelona, 2002). Ha colaborado en numerosas revistas de arte y literatura de distintos
países y es autor de las antologías Voces en la piedra iluminada / Diez poetas uruguayos
(Toledo, 1988), Chapper, las espinas del verso (Montevideo, 2001) y Nadie dude el lucero /
Rolando Faget (México, 2009). Web oficial: www.hrosales.com. Página ilustrada com obras de
Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
.
70
JOSÉ ALCÁNTARA ALMÁNZAR | Reencuentro con
Héctor Incháustegui Cabral
I | Hace casi treinta y tres años tuvo lugar mi último encuentro personal con Héctor
Incháustegui Cabral, cuando él se hallaba hospitalizado en el Centro Médico UCE, luego de
sufrir un infarto que acabó con su vida a la edad de sesenta y siete años. Había ido a verlo a
instancias de su hijo, el doctor Sergio Incháustegui Salvador, recordado pediatra de mis
hijos, y aproveché el privilegio que se me confería en momentos cruciales, para decir adiós a
mi querido y respetado mentor, sin que él sospechara que se trataba de una despedida final,
la cual aproveché para mostrarle su biografía, aparecida en Caribbean Writers [1], la recién
salida Enciclopedia de Escritores del Caribe en la que yo había colaborado para la parte
dominicana, a petición del catedrático, investigador y editor norteamericano Donald E.
Herdeck [1924-2005], propietario de la editorial Three Continents Press, que publicó la obra.
Aquel triste y último encuentro ocurrió en los días posteriores al ciclón David, cuyo paso
por la ciudad de Santo Domingo y el resto de la isla, el 31 de agosto, había asolado la urbe y
paralizado la nación. Todo ese dantesco cuadro –la ruina de agricultura, la destrucción de
viviendas, el colapso de los servicios de electricidad y agua potable, el desplome de la
producción de alimentos– fue agravado poco después por la tormenta Federico, que anegó
nuestro territorio, desbordó las presas y dejó a la intemperie a muchos campesinos y
desheredados de siempre, aquellos hombres y mujeres que nuestro gran poeta había llevado
en su corazón, y a quienes había cantado en versos amargos contenidos en Poemas de una
sola angustia (1940), libro esencial de la poesía dominicana contemporánea, un auténtico
clásico moderno al que debemos acudir en busca de un panorama del país a mediados del
siglo XX, una radiografía del dolor humano y espiritual, y una noción desmitificada de la
patria, muy distante de la concepción heroica divulgada en los manuales de historia:
Patria,
jaula de bambúes,
para un pájaro mudo que no tiene alas,
Patria,
palabra hueca y torpe
para mí, mientras los hombres
miren con desprecio los pies sucios y arrugados
y maldigan las proles largas,
y en cada cruce de caminos claven una bandera
para lucir sus colores nada más…
(«Canto triste a la patria bien amada»).
En su desnudo lecho de cuidados intensivos en la clínica, don Héctor permanecía ajeno a
la tragedia del país. Debido a su grave estado de salud –que pocos conocían salvo sus
médicos y su hijo Sergio–, se le habían ocultado las proporciones del drama colectivo y la
crítica situación en que se encontraba la gente a raíz del huracán y la tormenta, una
ciudadanía aún inmersa en una pesadilla de proporciones incalculables. Recuerdo que ese
lluvioso día él hizo bromas, con un asomo de sonrisa en los labios, e incluso dijo que
después de salir, con fotografía y todo, en una enciclopedia literaria publicada en los Estados
Unidos, ya podía morirse tranquilo. Y así ocurrió, poco después, el 5 de septiembre de aquel
año, fecha difícil de olvidar, porque es también la del cumpleaños de mi hija Yelidá.
II | Ha pasado mucho tiempo desde la muerte de aquel roble en el que se apoyaron tantos
jóvenes con vocación literaria, inquietudes filosóficas y políticas y que buscaban
71
orientaciones y estímulos, encontrando en él a un sabio maestro, a un padre magnánimo. En
un emotivo artículo aparecido en el número de homenaje que la revista Eme-Eme le dedicó
en 1980, justo un año después de su partida, el poeta, ensayista y diplomático chileno
Alberto Baeza Flores –un amigo querido, un alma buena y noble que amó nuestro país
entrañablemente– afirmó que Incháustegui Cabral había sido, en su calidad de Director de la
Colección Contemporáneos de la Universidad Católica Madre y Maestra y de la mencionada
revista, una figura indispensable, «un promotor cultural, e impulsor del quehacer literario
entre sus contemporáneos»; y aseguraba también que su labor editorial en la década de los
años setenta del siglo pasado en la República Dominicana no tenía parangón en el país,[2]
cosa que a mí me consta, pues tuve el privilegio de trabajar con don Héctor como corrector
de pruebas de la revista y las publicaciones de la colección. Con él aprendí el oficio; a él le
debo, en gran parte, lo que sé en materia editorial.
Puedo decir, sin vacilaciones, que el recorrido por la vida de Héctor Incháustegui Cabral, y
el estudio permanente de su dilatada obra literaria, ha constituido para algunos una lección
conmovedora, no sólo al aquilatar su grandeza de espíritu, su bondad, su generoso
magisterio y su extraordinaria creación literaria en poesía, teatro, ensayo, crítica literaria,
periodismo y promoción cultural, sino también, y sobre todo, por sus dolorosas
contradicciones humanas, sus penas y renunciaciones, pues había sido un joven de ideas
socialistas –como un hosco «guaraguao» materialista se definió alguna vez[3]–, a las que
debió de haber claudicado para respaldar activamente al régimen de Trujillo, mediante una
brillante labor como funcionario y diplomático.
Pertenecía Incháustegui Cabral a una generación frustrada, llena de un profundo
desencanto ante el caos provocado por las asonadas y revueltas caudillistas de comienzos
del siglo XX, y luego la humillación a que nos sometió la primera ocupación norteamericana.
Era miembro de una generación desencantada que vio con optimismo el ascenso a la
presidencia de un hombre fuerte y ambicioso como Trujillo, una posibilidad de
transformación integral de la sociedad dominicana, sin calcular que éste trataría de
eternizarse en el poder a sangre y fuego. Fueron muchos los intelectuales de primera que
integraron la élite que apoyó al régimen, una intelligentsia en la que brilló un selecto grupo
de magníficos escritores –pienso ahora en Virgilio Díaz Ordóñez (1895-1968), Manuel Arturo
Peña Batlle (1902-1954), o Ramón Marrero Aristy (1913-1959), amigos de Incháustegui
Cabral–, ya que los disidentes notables, como Juan Isidro Jimenes Grullón (1903-1983), Juan
Bosch (1909-2001) y Pedro Mir (1913-2000), entre otros, habían tenido que irse al exilio, o
perdieron sus vidas a manos de esbirros de la dictadura, tales como Andrés Francisco
Requena (1908-1952), el propio Marrero y los españoles José Almoina Mateos (1903-1960) y
Jesús de Galíndez (1915-1956), entre otros.[4]
Ése es el gran estigma de Héctor Incháustegui Cabral: haber sido colaborador de Trujillo,
incluso su compadre, nexos de los que nunca renegó ni trató de ocultar. Muchos ignoran, en
sus lapidarios juicios, que ese mismo hombre, ese poeta social rebelde y contestatario es una
de las cumbres de nuestra literatura de todos los tiempos, juicio unánime entre sus
coetáneos. Don Manuel Valldeperes, recordado crítico de arte, afirmó en 1944 que
Incháustegui Cabral «era el más dominicano y el más universal de nuestros poetas
actuales»[5]. «Poeta filósofo»[6], lo denominó en 1951 don José Vasconcelos (1882-1959),
eximio pensador, escritor y humanista mexicano. Por último, Freddy Gatón Arce (1920-1994),
lo llamó «Poeta sustantivo»[7], frase elocuente, tratándose de otro creador fundamental,
miembro sobresaliente de la Poesía Sorprendida.
Pues bien, ese funcionario que desempeñó tantos cargos, ese diplomático de la dictadura
de Trujillo que fue Embajador en México dos veces, en Venezuela, en Ecuador, en El
Salvador, y luego, muerto Trujillo, en Brasil, durante el Triunvirato (1964); ese mismo
diplomático fue también capaz, sobreponiéndose a los riesgos que implicaban sus acciones,
de proteger a Pedro Mir, a raíz de la publicación de su emblemático poema Hay un país en el
mundo (1949), cuando Incháustegui Cabral fungía como Encargado de Negocios de la
72
República Dominicana en la hermana isla, según testimonio del historiador Bernardo Vega
(1938). [8]
Olvidan o ignoran también esos implacables críticos que incluso Juan Bosch admitió en
algún momento su deuda con Héctor Incháustegui Cabral, a quien decía «deberle la vida por
las advertencias que le hizo en Cuba», [9] en una confesión del autor de La mañosa a la
familia de Sixto Salvador Incháustegui Cabral, hermano del poeta. Olvidan, en fin, que en
1960, los hermanos Incháustegui «cayeron en desgracia», aparecieron en el temido Foro
Público y fueron cancelados de sus cargos a causa de la participación de Sergio Incháustegui
Salvador en una organización política antitrujillista en el exterior. [10] Quiere decir que aquel
funcionario que amaba el poder –falleció siendo Secretario de Estado sin Cartera, en
funciones de asistente particular del presidente Antonio Guzmán Fernández–; aquel
diplomático exitoso, aquel compadre de Trujillo que nunca fue perseguido, fue también,
toda su vida, un individuo fiel a sus convicciones cristianas y a una ética personal basada en
la justicia y el bien, y por tanto, incapaz de hacerle daño a nadie, lo cual no lo exculpa de
haber servido a la tiranía.
Sin embargo, como si todo eso fuera poco, su poesía social fue la mayor transgresión de
Héctor Incháustegui Cabral al régimen de Trujillo. Ese primer libro de 1940, tan citado como
una de las mayores expresiones de protesta en aquella ominosa era, lo escribió un poeta
auténtico que no podía traicionarse y que, grabados en versos de fuego, había dejado
constancia de su inconformidad con la realidad circundante, poemas que son especie de
instantáneas que hablan por sí solas sobre la pobreza rural, el desamparo de hombres y
mujeres inmersos en el olvido, la desolación de unos campos misérrimos donde campeaba la
explotación humana en todas sus manifestaciones, es decir, hechos de los que no se podía
hablar, y sin embargo él lo hizo, pero «no para llenar un programa», y porque «era sincero» y
nunca tuvo «la sensación de que hacía algo peligroso». [11]
III | Don Héctor había nacido en Baní, el 25 de julio de 1912, hijo del maestro y escritor
Joaquín Sergio Incháustegui Andújar y Marina Cabral Billini, ambos banilejos. Tuvo tres
hermanos: Joaquín Marino (1908-1967) –uno de los grandes historiadores dominicanos del
siglo pasado–, Sixto Salvador –prestigioso neumólogo y maestro de la medicina–, y Yolanda.
El ambiente de su casa era de estudio y de libros, pero fue su tía abuela Ramona Billini,
según confesión del propio poeta, quien le enseñó a «amar lo pequeño y a respetar lo noble
y lo bello», y le ayudó a escoger sus lecturas. [12]
Héctor Incháustegui Cabral hizo estudios primarios en Baní, y luego en Santo Domingo,
Azua, Barahona, y de nuevo en la capital, de manera que conocía bien la región sur del país,
que lo sacudió con su carga de miseria y desamparo. Siendo muy joven casó con Candita
Salvador, aquella muchacha hermosa y alegre, nacida en Cuba, a quien conoció en Baní
cuando ella tenía doce años. Contrajeron muy jóvenes matrimonio: ella con dieciséis años y
él con veinte. Héctor y Candita, su compañera de toda la vida hasta que la muerte de él los
separó, procrearon a Sergio (1934-1998), Héctor Joaquín (1940), ambos médicos, y Marino
(1947), economista; tres hijos que los colmaron de nietos.
Entre las primeras ocupaciones del poeta se encuentran las de Director y Profesor de la
Escuela Nocturna de Baní (1931), y la de periodista, pues escribió los editoriales del Listín
Diario entre 1938 y 1942, los de La Nación, de 1943 a 1945, y los de La Opinión (1946). Fue
colaborador de la revista Bahoruco y uno de los directores de los Cuadernos Dominicanos de
Cultura durante los nueve años de vida de esa publicación cultural oficial; y fungió como
director de Radio Caribe y Radio Televisión Dominicana. Aunque se ha hablado del posible
lastre que las tareas periodísticas dejaron en la poesía de Incháustegui Cabral, él siempre se
refirió a esa etapa como una de las más provechosas de su carrera. Aseguraba que el
ejercicio del periodismo le había dado instrumentos de incalculable valor en su oficio, un
sentido de las proporciones al redactar, y agilidad en la escritura.
En verdad, pocos prosistas dominicanos contemporáneos exhiben un dominio absoluto y
al mismo tiempo tan espontáneo del lenguaje, ya que escribía como si hablara con su
73
interlocutor. Sus escritos en prosa poseen un encanto y una fluidez que nos atrapan y nos
seducen desde el principio. Pienso en Casi de ayer (1952), o en El pozo muerto (1960), esbozo
de memorias publicadas en un momento difícil de su vida. Escribía una prosa de naturalidad
aparente, pero que es muy difícil de lograr, como la de Juan Bosch; una prosa que posee el
desenfado de un comunicador nato, hecha a base de frases salpicadas de aforismos propios
que estaban fundamentados en sus vastas lecturas. [13]
Pocos escritores dominicanos contemporáneos han exhibido la proverbial cultura de
Héctor Incháustegui Cabral, cuya obra se nutría de la Biblia, los clásicos españoles del Siglo
de Oro, los prosistas de la Generación del 98, los poetas la Generación del 27, los clásicos
griegos y latinos, el teatro español, Shakespeare, narradores franceses, ingleses, rusos, toda
la poesía latinoamericana, todo Walt Whitman (1819-1892), T. S. Eliot (1888-1965), Carl
Sandburg (1899-1961), Robert Frost (1875-1963), Saint-John Perse (1887-1975), que
influyeron en él, entre muchos otros. Conocía a fondo la literatura dominicana, tanto que así
que cuando Guillermo Piña Contreras (1952), mediante un cuestionario-entrevista fechado en
1975, le preguntó por los escritores que habían influido en su formación literaria, don
Héctor respondió: «Si hubiera que describir mi formación tendría que usar esta mala palabra:
enciclopédica, porque a los extranjeros hay que agregar los nacionales que son, Dios me
perdone, casi todos. Mientras tanto aprendí lo que enseñan en la escuela». [14]
Su labor de crítica fue decisiva en la formación de esa «tabla de valores» de que hablaba
Pedro Henríquez Ureña (1884-1946), tan necesaria para situar en su justo lugar a nuestros
creadores literarios y examinar las obras fundamentales de la literatura nacional. Sus
comentarios, fundados en lecturas abundantes y teorías actualizadas –como el enfoque
psicoanalítico de Otto Rank (1884-1939)– eran agudos, esclarecedores, generosos y muy
respetados por los escritores de mayor estatura del país. Puso en práctica un enfoque
actualizado, un decir novedoso que nada tenía que ver con las viejas interpretaciones, a
menudo caprichosas, de la crítica literaria local. Recuerdo que la lectura de su libro De
literatura dominicana siglo XX (1969), me impresionó vivamente y se convirtió en libro de
cabecera que me sirvió para mis clases de literatura en el Colegio Loyola. En esa obra abordó
muchos temas y se ocupó de poetas y narradores indispensables, como Gastón Fernando
Deligne (1861-1913), Domingo Moreno Jimenes (1894-1986), Juan Bosch, Ramón Marrero
Aristy, Manuel Rueda (1921-1999), Lupo Hernández Rueda (1930), Máximo Avilés Blonda
(1931-1988), Virgilio Díaz Grullón (1924-2001), entre otros, y lo hizo con una mirada inédita
hasta entonces.
En De escritores y artistas dominicanos (1979), su libro póstumo, asistimos al despliegue
de su incomparable trayectoria como animador cultural y promotor de las nuevas
generaciones, tanto en su condición de Subsecretario de Educación y Bellas Artes, como
director de Bellas Artes en dos ocasiones. Puso sus conocimientos al servicio de la
interpretación artística y literaria de la promoción emergente. Al mismo tiempo que
analizaba las obras de Federico Bermúdez (1884-1921), Tomás Hernández Franco (19041952), Manuel del Cabral (1907-2000), Aída Cartagena Portalatín (1918-1994), y Octavio
Guzmán Carretero (1915-1948), esbozaba certeros análisis de la obra de su entrañable amigo
Manuel Arturo Peña Batlle, o impulsaba a los jóvenes prometedores de entonces, como
Miguel Alfonseca (1942-1994), Jeannette Miller (1944), y Frank Moya Pons (1944). Los artistas
plásticos –los bisoños y los establecidos–, toda una pléyade de creadores visuales,
encontraron en él a un humanista de amplia visión que contribuyó a colocarlos en el vasto
mapa de la cultura continental.
Los últimos años de Héctor Incháustegui Cabral, a partir de 1966, cuando se fue a vivir a
Santiago de los Caballeros, junto a Candita, como escritor residente en la Universidad
Católica Madre y Maestra, los pasó como asesor del rector, monseñor Agripino Núñez
Collado. Allí desempeñó diversos cargos, fue profesor de literatura y llegó a ostentar el
rango de Vicerrector, pero lo más trascendente fue su presencia bienhechora en todas las
áreas del quehacer cultural y editorial de ese centro de estudios superiores, su contacto con
los jóvenes, su diálogo permanente con escritores e intelectuales, su respaldo a los artistas
74
de Santiago y el resto del Cibao, entre los cuales dejó discípulos notables, como Danilo de
los Santos (1943), el pintor y respetado crítico de arte, autor de una extensa y notable
memoria de las artes visuales en la República Dominicana.
IV | Héctor Incháustegui Cabral es un escritor medular de las letras dominicanas de todos los
tiempos. Su poesía, que es el punto dominante de su vasta y variada obra literaria, no se
reduce al desgarrado clamor de protesta e inconformismo de su primer libro, Poemas de una
sola angustia. Durante años, a partir de 1940, escribió poesía muy diversa, siempre con un
acento personal muy característico, en versos libérrimos de gran plasticidad. No se
equivocaba Manuel Rueda, que era un crítico tan exigente, cuando afirmó que: «Incháustegui
Cabral aborda más tarde los temas metafísicos, incluyendo el amor al que canta, no como
nuestros poetas románticos, sino con una grandeza existencial hasta entonces desconocida
en nuestra lírica». [15]
Esa afirmación de Rueda puede palparse en el siguiente fragmento del poema de
Incháustegui Cabral titulado «Secreto», del libro Rumbo a la otra vigilia (1942):
Eres algo más que un recuerdo que viene
por un camino trazado bajo aguas azules
con peces insomnes y algas tranquilas.
Eres algo más que lumbre de estrellas
madurada en el color de las hojas
que el viento despierta por las madrugadas,
porque estás hecha de la sustancia
con que el sueño fabrica sus figuras,
con que la fiebre expresa lo que halló
en el fondo tembloroso de la angustia que
no tiene nombre.
Incháustegui Cabral era poeta incluso cuando hacía teatro, pues su trilogía Miedo en un
puñado de polvo (1964), título tomado de un verso de Eliot, y que agrupa a Prometeo,
Filoctetes e Hipólito, es un admirable esfuerzo de volver a los símbolos del teatro griego para
plantearnos el drama existencial moderno. También es poesía su novela Muerte en «El Edén»
(1951), obra de largo aliento que considero única en la literatura dominicana contemporánea,
donde el escritor demostró que era, ante todo, poeta.
Varios años después de su muerte fue publicada La sombra del tamarindo (1984),
encontrada por doña Candita entre los papeles de su esposo. La obra, que me tocó revisar y
prologar, lleva una dedicatoria significativa: «A Baní, mi pueblo amado, de cuyos recuerdos
no he podido liberarme todavía». Esta novela trata, significativamente, como escribí
entonces, de «la revolución frustrada, el desperdicio de fuerzas y voluntades, expresan el
fracaso de quienes se oponen al gobierno sin contar con los medios necesarios para llevar a
cabo sus propósitos, y, en última instancia, la instauración de un poder político invencible.
En la novela también se evidencian las causas del descontento social: la corrupción
administrativa, la injusticia y la incapacidad del gobierno para producir cambios sociales
efectivos». [16]
V | El 25 de julio de 2012 se cumplió un siglo del nacimiento de Héctor Incháustegui Cabral,
el gran poeta, dramaturgo, ensayista, crítico y maestro banilejo fallecido hace más de tres
decenios, y cuya obra ha caído en un aparente olvido, excepto para quienes seguimos
buscando en sus libros explicaciones válidas de lo que se ha llamado la «dominicanidad»,
ese concepto tan complejo y vapuleado por las disciplinas sociales y los medios de
comunicación.
75
Creo que es un deber estudiar la obra conjunta de Incháustegui Cabral: estudiar sus ideas,
sus planteamientos, sus posiciones, y disfrutar de una auténtica poesía como la suya, una de
las cimas de la literatura dominicana de todos los tiempos.
Pero también, y sobre todo, debemos leer a Héctor Incháustegui Cabral para comprender
mejor la tragedia de su desgarrada condición de intelectual al servicio de un régimen de
oprobio. Por último, el estudio de su obra nos permitirá asomarnos con otros ojos a los
insondables misterios que encierra el ser humano, sus grandezas y miserias, y los temibles
abismos de las pasiones. Su obra ilumina, de una manera señera y con acento inconfundible,
los grandes dilemas filosóficos y existenciales de nuestro tiempo, y lo hace siempre con
hermosas palabras que resuenan en nuestro espíritu largo tiempo después y nos hacen
sentir las maravillas de la condición humana.
NOTAS:
1. Donald E. Herdeck (Editor), Caribbean Writers. A Bio-Bibliographical-Critical Encyclopedia.
Washington, D. C., Three Continents Press, 1979.
2. Alberto Baeza Flores, «Retrato humanístico de Héctor Incháustegui Cabral», en Eme-Eme IX(50),
septiembre-octubre, 1980, p. 14.
3. «Niña la de Paya», Poemas de una sola angustia. Obra poética completa 1940-1976, p. 64.
4. Trato el tema in extenso en mi ensayo «Los escritores dominicanos durante la dictadura de Trujillo»,
contenido en el libro Los escritores dominicanos y la cultura. Santo Domingo, Publicaciones del Instituto
Tecnológico de Santo Domingo, 1990, pp.183-197.
5. Manuel Valldeperes, «Dos poetas dominicanos». Cuadernos Dominicanos de Cultura No. 8, abril de
1944. Ver: Cuadernos Doinicanos de Cultura 1(1-9), Banco de Reservas de la República Dominicana, S.
D., 1997, pp. 619-633.
6. José Vasconcelos, «Un poeta filósofo», en Héctor Incháustegui Cabral, Poemas de una sola angustia.
Obra poética completa 1940-1976, pp. 551-555.
7. Freddy Gatón Arce, «Incháustegui Cabral, poeta sustantivo», En Héctor Incháustegui Cabral, Poemas
de una sola angustia. Obra poética completa 1940-1976, pp.558-562.
8. Bernardo Vega, «Pedro Mir/Incháustegui», en Héctor Incháustegui Cabral. Testimonios en el
centenario de su natalicio [1912-2012], Ediciones de la Fundación Corripio, Inc., Colección Prisma, 2012,
impreso en Santo Domingo, Editora Corripio, S. A. S., pp. 15-16.
9. María Isabel Incháustegui, «Tío Héctor visto desde mi caleidoscopio», en Héctor Incháustegui Cabral.
Testimonios en el centenario de su natalicio [1912-2012], Ediciones de la Fundación Corripio, Inc.,
Colección Prisma, impreso en Santo Domingo, Editora Corripio, S. A. S., 2012, pp. 57-60.
10. María Isabel Incháustegui, op. cit.
11. Guillermo Piña Contreras, «Entrevista a Héctor Incháustegui Cabral», Doce en la literatura
dominicana, Publicaciones de la Universidad Católica Madre y Maestra, impreso en Amigo del Hogar,
1982, pp. 113-135.
12. Héctor Incháustegui Cabral, «Notas autobiográficas», Eme-Eme, op. cit., p. 127.
13. Adriano Miguel Tejada, «Don Héctor a través de sus frases», Eme-Eme, op. cit., pp. 103-111.
14. Guillermo Piña Contreras, op. cit., p. 115.
15. Manuel Rueda, Antología mayor de la literatura Dominicana (siglos XIX-XX), Poesía II. Santo
Domingo, Ediciones de la Fundación Corripio, Inc., impreso en Editora Corripio, C. por A., 1999, p. 117.
16. Héctor Incháustegui Cabral, La sombra del tamarindo. Publicaciones de la Universidad Católica
Madre y Maestra, , Editora Corripio, C. por A., 1984, p. 13.
José Ancántara Almánzar (República Dominicana, 1946). Sociólogo, narrador, profesor y
uno de los principales críticos de la literatura dominicana. Ha sido profesor en la
Universidad Autónoma de Santo Domingo (UASD), en la Universidad Nacional Pedro
Henríquez Ureña (UNPHU) y en el Instituto Tecnológico de Santo Domingo (INTEC). Autor de
libros como Estudios de poesía dominicana (1979), Las máscaras de la seducción (1983), Los
escritores dominicanos y la cultura (1990), El sabor de lo prohibido. Antología personal de
cuentos (1993), y Panorama sociocultural de la República Dominicana (1996). Página ilustrada
con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC.
.
76
JULIO MENDONÇA | Qorpo-Santo: o poeta que
escreveu o contrário do que pensava[1]
Ponha-se o leitor – em trajes e ambientes tornados vintage por sua imaginação – na Porto
Alegre de 1862 a 1883 e calcule o estranhamento que, naquela cidade então provinciana de
um Brasil na periferia dos centros políticos e culturais, deveria ter causado nos
contemporâneos a seguinte fala de uma personagem, escrita para uma peça teatral:
“Ainda havia eu concebido um pensamento: o que havia de ser; o que sem ter na cabeça...
não; sem ser chafariz... e gotejar pelo nariz... tão bem não: sem se fazer de si – todo
inesgotável, forte; de sua cabeça sempre cheia – caixa; de seus lábios – forte bica onde tem
e por onde lança a mais cristalina linfa todas as vezes que quer em palavras, orações,
proposições e discursos!”
Este trecho da peça Lanterna de Fogo foi escrito por José Joaquim de Campos Leão, em
1866, então já assinando com o nome com que se rebatizou: Qorpo-Santo. Este poeta
paradoxal, dividido entre um desejo messiânico de purificação e o mergulho dilacerado no
borrão da escritura, após uma vida breve e atormentada deixou uma das obras mais
intrigantes da literatura brasileira.
O que se sabe de sua vida é pouco e pode ser resumido em algumas linhas que
transcrevo do livro de Eudinyr Fraga (FRAGA, 1988: 43):
“José Joaquim de Campos Leão, mais tarde Qorpo-Santo, nasceu em 19 de abril de 1829,
na Vila do Triunfo, Província de São Pedro do Rio Grande. Com a morte do pai, em 1839,
foi estudar em Porto Alegre, tornando-se, em 1851, professor público na Vila de Santo
Antônio da Patrulha e, posteriormente, em Alegrete e Porto Alegre. Casou-se com dona
Inácia Maria, com quem teve três filhas: Idalina Carlota, Lídia Marfisa e Plínia Manuela, e
um filho, Tales José. No seu próprio dizer, foi vítima de “atos violentos” em julho de 1862,
ou seja, começa o processo de sua interdição por moléstia mental. Entre 1864 e 1868 esteve
às voltas com a Justiça e ele próprio se encarregou de nos deixar cópias de documentos e
pareceres sobre a sua instabilidade mental. Já estava separado da família, quando, em
1868, o Juiz de Órfãos e Ausentes (o que corresponderia ao atual Juiz da Vara da Família
e Sucessões) declarou-o interdito, incapaz, portanto, de gerir a sua pessoa, os seus bens e a
sua família, condição em que morreu aos cinquenta e quatro anos de idade, em 1º de maio
de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose pulmonar. A maior parte da sua febril
atividade parece ter se desenvolvido após o aparecimento dos sintomas de perturbação
mental. Foi ele mesmo quem escolheu o seu apelido, conforme nos explica no volume II, p.
16, da sua Ensiqlopedia:
(...) se a palavra corpo santo (ainda com C) foi-me infiltrada em tempo que vivi
completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma
palavra hei sido impelido para esse mundo.”
Apesar da interdição de seus bens, abriu sua própria tipografia em Porto Alegre, em 1877,
na qual publicou os nove volumes da sua Ensiqlopedia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade
(obedecendo à ortografia criada pelo autor), dos quais conhecem-se, atualmente, apenas seis.
Na Ensiqlopedia, Qorpo-Santo deixou registrada – sem muita ordem – toda sua produção
literária, em diversos gêneros: peças teatrais, poemas, crônicas, pensamentos, cartas, etc.
Visto como louco pela família, interditado pela Justiça, a pobreza e a doença abreviaram a
vida de Campos Leão e sua obra ficou dispersa e esquecida por décadas. Nos anos 20 do
século passado, artigos na imprensa gaúcha associaram-na com o futurismo italiano e com o
77
nosso modernismo (cf. SANTO, 2000: 25), sem maior repercussão. Na década de 60, no
entanto, dá-se, de fato, a descoberta de Qorpo-Santo, cem anos após.
Em meio ao espírito renovador, contracultural e libertário que floresceu na década, Aníbal
Damasceno e Guilhermino Cesar chamaram a atenção para a originalidade de Qorpo-Santo. A
encenação pública de algumas de suas comédias, entre final dos anos 60 e começo dos 70,
rapidamente trouxe grande repercussão para o autor, projetou uma imagem de precursor
das vanguardas modernas (particularmente a do chamado teatro do absurdo) e iniciou um
debate sobre suas vinculações estéticas.
Baseados, inicialmente, nos seus textos para teatro, Guilhermino Cesar, Décio Pignatari e
Yan Michalski foram alguns dos autores que viram Qorpo-Santo como precursor do teatro do
absurdo. Flávio Aguiar considerou razoável associá-lo ao absurdo, mas chamou a atenção
para a diversidade de procedimentos teatrais na obra do autor gaúcho: teatro de costumes,
teatro de tese, trágico, grotesco, cômico. Preferiu apontar as hesitações, paradoxos e
impasses e chamou o teatro de Qorpo-Santo de “teatro da paralisia”. Eudinyr Fraga achou
mais legítimo associá-lo com a escrita automática surrealista, fazendo, no entanto, a ressalva
de que ele não se enquadra totalmente na estética daquele movimento artístico.
Nos primeiros anos da recepção crítica da obra de Qorpo-Santo, voltados
fundamentalmente para o estudo de seus textos teatrais, o debate sobre sua possível
vinculação com o absurdo ou o surrealismo procurava responder ao caráter anárquico e
intrigante dos textos. Um teatro multifacetado, não-linear, marcado pela ausência de
desenvolvimento lógico de enredo e que rompe constantemente com as convenções cênicas.
O comportamento imprevisível e anticonvencional de seus personagens promove uma
desnaturalização das relações sociais. Estes e outros aspectos – e, principalmente, a questão
relativa a quanto de involuntário há nas suas características que nos parecem mais originais
– têm desorientado sua interpretação.
No entanto, passada uma certa euforia que se seguiu à sua descoberta – uma empatia a
posteriori calcada em códigos de nosso tempo – , outro debate se interpôs a respeito da
influência da desrazão em sua obra. Se nos anos setenta e oitenta, sob a influência da
História da Loucura de Foucault e da antipsiquiatria, a loucura do autor foi valorizada como
libertária, em anos recentes diversos estudos retomaram sua patologização. Alguns estudos
têm procurado apontar excessos na revisão histórica de seu valor literário. Outros têm
reduzido seus escritos a sintomas de sua doença.
Sintoma interessante dessa fase de revisão da canonização, um artigo de Friedrich Frosch,
publicado em 2010, questiona o que considera excessiva valorização de Qorpo-Santo,
lembrando que outros autores, entre eles Flávio Aguiar em seu estudo pioneiro, apontaram
inconsistências em sua obra. Frosch questiona se a suspensão da “normalidade” da
linguagem por Qorpo-Santo, em meio às suas inconsistências, ausência dos “grandes
assuntos da humanidade” e idiossincrasias de mau gosto, se justificam diante da
necessidade de comunicabilidade da “literatura como sistema”. Sem prejuízo da necessária
liberdade de pesquisa em relação a juízos mais sedimentados, podemos perceber aqui as
forças do sistema literário reagindo para manter a ordem.
Menos importante do que seus textos teatrais, a meu ver, a poesia de Qorpo-Santo foi
descoberta e começou a ser estudada mais recentemente, a partir da publicação do livro de
Denise Espírito Santo (SANTO, 2000). Um aspecto importante da publicação de seus poemas
é o de que sua leitura nos permite relativizar o alcance do debate entre os que associam o
autor à literatura do absurdo e aqueles que o associam com o surrealismo.
Na introdução à edição dos poemas organizada por Denise Espírito Santo, Flora
Süssekind, lembrando que o diagnóstico de loucura contra Campos Leão falava em
“grafomania” – a compulsão de escrever –, analisa diversos aspectos da tendência a expor a
materialidade da escrita que se observa em sua poesia, análise que pode contribuir para a
leitura de seus textos teatrais. Essa constante exposição de aspectos materiais da escrita e da
impressão está associada, nos textos, ao terreno das condições contingentes, ao precário e
imprevisível, que Süssekind definiu como “uma espécie de princípio constitutivo de
78
interrupção”. A “rede de descontinuidades” que a autora identifica faz lembrar a definição
de Aguiar para os textos teatrais de Qorpo-Santo como “teatro da paralisia”:
“(...) uma sintaxe disjuntiva marcada graficamente por travessões, vírgulas e apóstrofes,
impondo, visualmente mesmo, rupturas discursivas e uma desestabilização continuada a
cada retrato diverso, a cada transformação da imagem autoral, a cada novo discurso (do
jurídico ao religioso, da moralidade familiar à referência literária, da retórica amorosa às
convenções dramáticas) de que os seus textos parecem se apropriar”. (QORPO-SANTO,
2000: 20)
Com relação às rupturas e às desestabilizações contínuas, Fraga observa que as unidades
aristotélicas de espaço e tempo não se aplicam nos textos teatrais de Qorpo-Santo; em suas
peças tempo e espaço são inconstantes e instáveis. A ocorrência dessa inconstância, da rede
de descontinuidades, também em sua poesia, sugere que o espaço-tempo do autor gaúcho é
o da escritura, numa espécie de metalinguagem dilacerada pela alienação.
O autoisolamento do autor na grafomania parece ser uma das razões para sua defesa de
um novo sistema ortográfico, como podemos encontrar, por exemplo, num de seus poemas:
Se querem que viva o C
Façam soar sempre C:
Nunca dêem-lhe o de Q
Não roube o C ao Q
Enfatizando a dicção satírica e o nonsense, Denise Espírito Santo, ao apresentar a edição
de poemas que organizou – trabalho de pesquisa de grande mérito –, faz, a meu ver, outra
importante contribuição ao apontar para a presença de elementos do grotesco da cultura
popular na obra de Qorpo-Santo.
Farsa, burlesco, obscenidade, desproporções risíveis, situações absurdas, agressões,
escatologia, rústicas transações entre cultura e natureza, são algumas das características do
grotesco que encontramos na obra do autor. Se tudo isto confirma desvios da norma estética
dominante e rebaixamento de valores socialmente aceitos, também é certo que, conforme
afirmam tanto críticos quanto defensores, encontram-se nas peças teatrais e nos poemas
reações conflituosas de Qorpo-Santo em relação a eles. São frequentes, mesmo,
manifestações ideológicas conservadoras que contradizem esses desvios. Contam-se
diversas situações de embate com as leis e desmoralização dos códigos (linguísticos, de
conduta social), bem como declarações de respeito às mesmas e aos mesmos, provavelmente
nos momentos em que era tomado de seu recorrente desejo de reconhecimento social.
De qualquer modo, em meio a contradições e paradoxos, são muitos os sinais do grotesco
que emergem nos poemas, como o antropomorfismo de que temos vários exemplos, como o
poema “Um queijo” ou o poema “Objetos de conversação”:
Fala-se
Fala-se
Fala-se
Fala-se
com as flores,
com os frutos,
com as cores,
com os brutos!
Fala-se
Fala-se
Fala-se
Fala-se
com a tinta,
com o papel,
com a pinta,
com o pincel!
Do corpo rebaixado, não-idealizado, estudado por Bakhtin na sua extensa pesquisa sobre
as características da cultura popular, temos exemplos vários, tanto nas peças teatrais como
79
em poemas como “Uma minha tripa”, “A minha barriga” e “Tripas”. Denise Espírito Santo
destaca a imagem da glutoneria recorrente na poesia e no teatro de Qorpo-Santo,
associando-a ao”tom triunfal e alegre” das imagens excessivas de banquete que Bakhtin
estudou na obra de François Rabelais. Outro elemento com origem na cultura popular que
Denise identifica na poesia do autor é o bestialógico; insetos e roedores assumem a condição
de protagonistas em vários textos: exemplos são os poemas “Uma aranha”, “Ratos”, “Que
formiga!”, entre outros.
Wolfgang Kaiser e Anatol Rosenfeld observaram que o grotesco marca profundamente a
nossa época de contrastes violentos e exprime “a desorientação em face de uma realidade
tornada estranha e imperscrutável” (ROSENFELD, 1993). Kaiser se refere a ele como “solo
nutritivo” da pintura e da literatura do século XX. Por este caminho podemos entender
porque Qorpo-Santo, descoberto depois do reconhecimento da arte moderna, foi associado a
alguns de seus procedimentos.
O autor de “O Grotesco – configuração na pintura e na literatura”, escreveu a respeito do
“grotesco linguístico”: trata-se de “forças intrínsecas da língua, que, uma vez desencadeadas,
se desdobram a seguir até o absurdo” (KAISER: 1986: 130). Podemos identificar esse grotesco
linguístico em Qorpo-Santo tanto na “dramatização do processo ficcional” (QORPO-SANTO,
2000: 18) – frequentemente hiperbólica –, quanto na alternância entre construção e
destruição, na criação de neologismos ou no uso do nonsense e da livre associação.
Não virá daí, dessas forças transmitidas ao longo dos tempos pela linguagem popular – o
caráter “estrutural” que Kaiser atribuiu ao grotesco –, a força dos momentos mais
inquietantes e vívidos dos textos de Qorpo-Santo? Considerando isto, será necessário
esperar consciência de ofício de um autor que escreveu uma obra como esta? Não é o estudo
de poemas, em vez da poesia como parte do sistema literário, que é capaz de nos educar,
conforme sugeriu T. S. Eliot?
Parece que, apesar dos problemas mentais, o autor gaúcho tinha razoável consciência das
suas inconstâncias e da sua precariedade, pois expressou isto em vários momentos e de
diferentes modos: por exemplo, em títulos – aliás, memoráveis – de algumas peças como
“Certa entidade em busca de outra” e “Hoje eu sou um; e amanhã outro”; em versos como
“Fui prensado!/hoje sou prensa!”; “Fui bigorna,/ e sou martelo!”; “Passo a rever minhas
obras;/passo a cortar-lhe as sobras./passo a examinar-lh’os erros,/a decepá-los passo a
ferros”. No magma de linguagem em que viveu seus últimos anos, Qorpo-Santo parece ter
abdicado da necessidade social de ter uma identidade:
“Quando terá esta cabeça um pensamento firme e invariável!? Por que razão hei-de eu sair
com a mais firme resolução agora, e passados alguns minutos tomar resolução contrária?
Eudinyr Fraga escreveu, com razão, que a seguinte frase de uma das personagens da peça
As Relações Naturais poderia ser uma epígrafe de sua obra: “É preciso dizer-lhe o contrário
do que penso”.
NOTA:
1. O presente texto é um capítulo do livro "Poesia (Im)Popular Brasileira", o qual foi
organizado pelo seu autor para a Editora Lamparina Luminosa, tendo sido lançado em maio
deste
ano.
O
livro
pode
ser
encomendado
pelo
site
da
editora
(http://www.lamparinaluminosa.com/index.php/os-livros).
Júlio Mendonça é poeta, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) – São Paulo, especialista em Gestão Pública (UFABC) e analista de cultura na
Secretaria de Cultura de São Bernardo do Campo. Foi diretor do Departamento de Ações
Culturais de São Bernardo do Campo e consultor do Pólis - Instituto de Estudos, Formação e
80
Assessoria em Políticas Sociais. Tem publicado poemas e outros textos em veículos como o
Suplemento Literário de Minas Gerais, o almanaque Atlas, o Jornal Dobrabil, a Folha de São
Paulo, e as revistas Artéria, A Cigarra, ARTEunesp e Celuzlose. Participou dos livros
“Cidades: Identidade e Gestão” e “Libro verde para la institucionalización del Sistema de
Fomento y Desarrollo Cultural de la Ciudad de México”. Organizou o livro “Poesia
(Im)Popular
Brasileira”
(Editora
Lamparina
Luminosa,
2013).
Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha),
artista convidado desta edição de ARC.
81
LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA | A origem da
escrita
Levantar el papel donde escribimos
y revisar mejor debajo
Levantar cada palabra que encontramos
y examinar mejor debajo
Levantar cada hombre
y observar mejor debajo
Levantar a la muerte
y escudriñar mejor debajo
Y si miramos bien
siempre hallaremos otra huella.
No
servirá
para
poner
el
pie
ni
para
aposentar
pero ella nos probará que alguien más ha pasado por aquí.
el
pensamiento
(ROBERTO JUARROZ. Levantar el papel donde escribimos.)
Todos sabem que falar das origens não é fácil. Ou não se estava lá, ou estávamos
inscientes. Desse modo, para falar das origens, só nos resta a via indireta. Precisamos nos
valer do que, por um meio, ou outro, ficou escrito.
Parece uma tautologia. Para saber das origens da escrita, examinar os escritos! Contudo, é
assim! Historicamente tem-se procurado encontrar essas origens nas pinturas rupestres.
Altamira, as vizinhanças de Lagoa Santa, por exemplo, são provas da necessidade pictórica
do homem. Acredita-se que um risco podia representar a morte de um animal, mesmo a de
um homem. Um risco. Essa há de ter sido a primeira marca inteligente do homem, sua
primeira escrita, talvez com uma mão um pouco trêmula.
Muitos se ocuparam do estudo desses sinais. Entre eles, quero destacar os estudos de
Denise Schamandt-Besserat. Sua coleção de pedras riscadas, marcadas por tokens, como ela
designa esses sinais, dizem desses tempos.
E, aqui, uma pergunta se impõe: por que nosso antepassado fez isso? Por que esse
primeiro risco? Saberia ele, desde sempre, que a vida é um risco?
Avancemos uma hipótese: para escrever, com intenção de registro, são necessárias pelo
menos duas conquistas anteriores, a da fala e a do instrumento, podendo a ordem ser
inversa. Não preciso lhes dizer que a capacidade de observação necessariamente deve ser
ainda anterior. Mas como essa aptidão está presente mesmo nos animais, muito não nos
preocupamos. A curiosidade, em todo o caso, como nos dias atuais, tem sido, desde sempre,
uma importante aliada da inteligência quando se trata de inventar soluções para as
necessidades.
Um antigo ditado reza que as palavras o vento leva, e a escrita fica, e outro, ainda, diz
assim: a palavra saída da boca e a pedra que sai da mão, não voltam. De um lado, o
aforismo indica uma grande proximidade da palavra com a pedra e, de outro, trata-se de
uma observação muito simples de compreender, pelo menos hoje. No tempo de sua
enunciação, não duvido tenha valido pelo ovo de Colombo. Elas não voltam, mas deixam
marcas! Para sermos mais exatos, como veremos adiante, não se trata de que as palavras e as
82
pedras não voltem. Na verdade, elas sempre voltam, mas como esse segundo movimento
aparece sob uma forma invertida, a conexão de um movimento com o outro não é óbvia, e
então dizemos que não voltam. Porque o alvo, não podemos esquecer, tanto das palavras,
como das pedras, é sempre o outro. Talvez com uma queiramos aproximá-lo e com a outra
afastá-lo!
Hegel introduziu na filosofia uma palavra muito interessante, a aufhebung. Com essa
palavrinha, ele diz de um movimento duplo; ao mesmo tempo em que uma coisa se supera,
ela se conserva. Na língua alemã, ela se refere, originalmente, à aufhebung de uma pedra:
quando se levanta uma pedra do chão, no chão fica uma marca. Essa observação inaugural
deve ter sido um fato surpreendente! As marcas dizem de um acontecido, de um passado.
Concomitante a isso tudo, séculos entremeando cada avanço, antes dos sumérios
inventarem a escrita cuneiforme, acredito devermos dar importância também à existência de
um grande quadro-negro. Deduzo sua importância do costume escolar de ensinar através
dele. Quando aprendíamos as primeiras palavras, em outras línguas, ele sempre estava entre
as primeiras expressões: le tableau noir, the blackboard, el quadro negro. Seu uso parecia
universal! Agora, quando eles começam a escassear nas escolas, depois de terem se tornado
esverdeados, como por uma espécie de mofo, voltam a aparecer nas telas dos computadores,
os quais funcionam – não deixemos de registrar –, quando brilham! Assim era a noite!
Pontilhada de estrelas brilhantes, sua constância devia dar certa segurança ao nosso
ancestral, refugiado em alguma toca, temeroso das intempéries e dos animais, surpreso, por
certo, quando cometas e meteoros e meteoritos riscavam a escuridão. Assim como aprendeu
a diferençar a noite do dia, aprendeu a diferença entre os riscos que cortavam a noite e os
que permaneciam fixos, possíveis de ler nos agrupamentos estelares, representantes
primeiros de suas mais importantes observações. À noite, podiam ver a Ursa com a qual
tinham lutado durante o dia. Tanto a Maior, como a Menor. O grande quadro-negro as
espelhava. Havia certa correspondência entre a terra e o céu. O que aqui acontecia, estava
escrito no céu. E as constelações, como o nosso Cruzeiro do Sul, em geral desenham-se com
cruzamentos. Acredito que a possibilidade de cruzamento tenha aberto ao homem as portas
da cultura. Um risco e outro a cruzá-lo. Mesmo antes de estabelecer uma relação entre coito
e nascimento, já se sabia que a gravidez se devia ao cruzamento da mulher, mesmo que
fosse apenas por um lugar sagrado, um rio, uma pedra. Embora a participação do pai não
estivesse clara, logo se soube que não havia vida sem cruzamento. O poeta César Leal
ressalta, na leitura de A Divina Comédia, a menor quantidade de estrelas no hemisfério
norte, com relação ao hemisfério sul. Um fato que talvez indique terem começado por lá as
leituras celestes. E como o homem sempre quis se comparar aos deuses, assim leu, quis
escrever também!
Minha intenção, com esses hipotéticos prolegômenos, é dizer que, de algum modo, a
escrita implica sempre em uma referência ao Outro. Escreve-se para dizer do Outro, e para o
outro. Para escrever, requer-se sempre a leitura de uma escrita anterior, escrita que pode
estar tanto nas estrelas, como nas pegadas de um animal, nos rastros de outros homens, nas
nuvens, nas entranhas dos animais, nas folhas de chá, nos sonhos ou nos livros.
Desses pequenos indícios devem ter surgido os símbolos. O símbolo (Σύμβολον)
representava, inicialmente, uma pessoa; era um sinal de reconhecimento. Uma pedra, ou
mesmo um tijolo, quebrado em dois, quando suas partes eram reunidas, sua juntura
(Συμβολή) permitia a identificação do portador. Suponho que essa tenha sido a origem do
nome próprio. Chesterton, ao escrever O homem que era Quinta-Feira, o qual leva por
subtítulo Um pesadelo, utiliza-se desse recurso: quando os anarquistas, aí descritos, vão
para uma reunião, utilizam como senha, para entrar em uma câmera secreta, o nome de Mr.
Joseph Chamberlain. Como seu autor busca dar ao romance um caráter onírico, deixando
todo o tempo o leitor sem saber exatamente em que mundo está, o uso do nome de uma dos
maiores políticos de todos os tempos tem grande serventia, justamente porque ajuda a
confundir: fazendo uma escansão na palavra chamberlain, veremos tratar-se do próprio
83
sonhador. Reconhecemos aí duas palavras, chamber, que se traduz por câmara, quarto, e
lain, o particípio passado do verbo to lie, o qual, com sua tradução de estar deitado, permite
identificar o sonhador como aquele que está deitado no quarto, sonhando, e, com a tradução
de mentira, lain ajuda o leitor a saber que está no campo do engano, da farsa. Devemos
registrar a inteligência de Chesterton na escolha dessa senha: em 1908, quando publicou
esse romance, Chamberlain, que havia estado ativo na vida política desde 1886, por vinte
anos, até 1906, era ainda um dos nomes mais presentes na lembrança dos leitores ingleses,
e, possivelmente, também de todo o mundo, constituindo-se assim em valioso antecedente
para o propósito do autor.
É a indícios assim que Jacques Lacan, com a ajuda da linguística, de Ferdinand de
Saussure, chama de significantes. São esses singelos traços que representam, agora, não uma
pessoa, mas sim o sujeito frente a outro significante. Quando encontramos uma Pedra de
Roseta, ou mesmo os calhaus de Schamandt-Besserat, imediatamente reconhecemos que por
trás daqueles tokens há um sujeito. Embora possamos não entender seu código, logo
percebemos que um dia alguém se ocupou em fazer aquela marca, na qual podemos
entender algo equivalente, talvez, a um e-mail contemporâneo ou a uma mensagem lançada
ao mar, em uma garrafa, na esperança de que possa vencer os pélagos e alcançar algum
leitor das vicissitudes de nossa solidão.
Mas voltemos um pouco.
Amadis de Gaula, considerado o primeiro romance de cavalaria, que hoje conhecemos na
versão de Garci Rodríguez de Montalvo, impresso em castelhano, em 1508, mas que
possivelmente é ainda do século XV, e escrito pelo português João Lobeira, conta, no
capítulo V, quando fala de D. Galaor, o ciumento de Amadis, que este, na sua educação, lia
livros de cavalaria. Em outra versão - a qual, infelizmente, não consegui encontrar para
indicar-lhes a referência -, lembro que, em um momento, um cavaleiro vem andando,
dormitando sobre seu rocim. Talvez se tratasse do próprio Amadis, que tendo nascido de
um amor proibido, fora lançado às águas, como Moisés. Guiava-o a orientação de sua
cavalgadura em busca de um manancial, e, chegando à beira de um rio, quando o flete baixa
a cabeça para se abeberar, o cavaleiro acorda, os olhos piscos, surpreendendo-se com um
velho cavaleiro, sentado às margens pedregosas, lendo um livro de cavalaria. Embora esse
tenha sido o primeiro romance de cavalaria da Península Ibérica, havia a necessidade de
mencionar antecedentes, e esses poderiam estar referidos na obra de Godofredo de
Monmouth, do século XII, abordando as lendas arturianas.
Cervantes, ao compor o seu Don Quijote de la Mancha, no século XVII, já está fazendo
uma paródia de todo esse ciclo de romances. Não bastasse toda essa antecedência, os
próprios narradores da história ocupam-se deste valor: tanto o presumido autor original das
aventuras do engenhoso fidalgo, Cide Hamete Benengeli, cujo texto nunca lemos
diretamente, porque está escrito em árabe, quanto o narrador anônimo, que se jacta de ser
tanto o transcritor, como o tradutor, mas que na verdade é seu editor, anotador e
comentarista, fazem-nos acreditar que a história se desenvolve – como se se tratasse de uma
caixa chinesa –, dentro de outra história, anterior e mais ampla, como uma vez disse Mario
Vargas Llosa.
Cervantes, diga-se de passagem, foi uma das primeiras influências sobre Freud. Ainda
adolescente, fundou, com seu amigo Eduard Silberstein, a Sociedade Castelhana. Seu
objetivo: aprender espanhol lendo as obras de Miguel de Cervantes! Em sua correspondência,
adotaram, como codinomes, o nome de dois cães, retirados de uma das Novelas Exemplares
do patrono do clube, intitulada O colóquio dos cães: Eduard era Berganza, um narrador
inveterado, e Freud, Cipião – o outro cão de Valadolid –, um filósofo cínico e amargo. Desde
aí seu gosto pela filosofia e pelos clássicos. Mas é verdade que depois de Don Quijote já não
houve lugar para outro romance do gênero. Como disse Kierkegaard, certa vez, toda fase
histórica termina com a paródia de si própria. Já não havia espaço para os grandes épicos. Os
Lusíadas, Orlando Furioso, a Divina Comédia, a Eneida, Os Anais, a Odisseia e a Ilíada tinham
84
ficado para trás, para sempre, embora os ensinamentos contidos em cada uma dessas obras
permaneçam também, para sempre.
Pelas obras posteriores, podemos entender algo das antecedentes. Os Lusíadas, de 1572, é
posterior ao Amadis de Gaula, mas o episódio dos amores de Inês de Castro com Don Pedro
parecem cumprir a mesma função de intermédio trágico dos amores de Amadis e Oriana. O
cânon da época exigia que nenhum poema de larga extensão o excluísse.
Em Orlando Furioso (1516), Ludovico Ariosto conta os amores de Orlando, o paladino de
Carlos Magno, e o da princesa oriental Angélica, e também os de Rogério, um jovem
guerreiro muçulmano, pela valorosa guerreira cristã Bradamante. Aproveitemos para dar
uma olhada na antecedência do Romance: ele se propunha como uma continuação de
Orlando Enamorado, de Boiardo, publicado em 1483, em Ferrara e evocado, entre outros, por
[Antônio Frederico de] Castro Alves, em Vozes d’África, quando verseja, na sexta estrofe:
Poetisa – tange os hinos de Ferrara. Trata-se de uma alusão à publicação, aí, em Ferrara, além
de Boiardo e Ariosto, também à Jerusalém libertada, de Tasso. Verdade que tanto o Orlando
de Ariosto como o de Boiardo tiveram por antecedente o mal sucedido Bramante, de Luigi
Pulci, escrito por encomenda de Lucrécia, mãe de Lourenço, o Magnífico, que queria
patrocinar uma epopeia cristã em homenagem a Carlos Magno e Orlando. Mas, em Orlando
Furioso, lemos também uma influência do Hercules Furens, de Sêneca, dos primeiros anos de
nossa era, e também as bases da História da loucura, publicada por Michel Foucault, em
1961, pela primeira vez, e depois, em 1972, com novo prefácio.
Mas o intermédio amoroso mais belo que existe, no gênero, em toda a poesia universal, na
opinião do poeta César Leal, está narrado, na Divina Comédia, no Canto V do Inferno, nos
amores de Paolo e Francesca. Este é o relato, recitado pela própria Francesca, nos versos 103
a 105:
Amor, ch’a nullo Amato amar perdona,
mi prese del costui piacer sí forte,
che, como vedi, ancor non m’abbandona.
Amor, que a amado algum amar perdoa,
tomou-me, pelo seu querer tão forte,
que como vês ainda me agrilhoa.
(Tradução de Eugênio Mauro)
E não podemos deixar de registrar que a inspiração desse amor, atravessando os séculos,
veio da leitura de um livro sobre a história de amor do cavaleiro Lancelote, apaixonado por
Guinevere, a esposa do rei Artur. Aí não mencionado, o livro aludido bem pode ser Lancelote
do lago, atribuído ao escritor suíço Ulrich von Zatzikhoven, do final do século XII. – Há
sempre um antecedente.
Na Eneida, Virgílio, com o mesmo escopo, ainda no primeiro século de nossa era, relata os
amores de Eneias e Dido, por certo um eco dos amores de Odisseu e Calipso, na ilha de
Ogígia, descritos por Homero no canto V da Odisseia.
Hoje, bem se sabe que o objetivo de Virgílio, com Eneida, era a busca de uma genealogia
tão grandiosa para o Império Romano que remontasse aos deuses. Era uma preocupação da
época.
Cerca de duzentos anos antes, Quinto Ênio também escrevera uma epopeia com o mesmo
objetivo, intitulada Os Anais. Chegou a ter algum sucesso e era ensinada nas escolas, tendo
sido suplantada, nesse mister, ainda que não rapidamente, por Virgílio, que nele se apoiou
para escrever sua Eneida. Escutem as palavras de Virgílio: Do esterco de Ênio retirei o meu
ouro.
O motivo do fracasso de Ênio reside no fato de ele não ter se dado conta, ao que tudo
indica, da mudança dos tempos. Como é fácil, hoje, dois mil anos depois, dizer algo assim!
Por duzentos anos ele brilha, é recitado e estudado, até que outro o ultrapassa, e passa a ser
esquecido! Ênio sonhou ser a reencarnação de Homero, e compôs Os Anais como se Homero
85
fosse. Temos de reconhecer que Homero foi mesmo um tipo apaixonante. Em primeiro lugar,
temos de registrar que ele não escrevia. Depois, ressalvada a hipótese de ter havido vários
homeros, seu valor está em ter recolhido os versos recitados há duzentos anos pelos aedos,
impregnando-os com força tal a lhes permitir continuarem a ser recitados por mais
trezentos anos, antes de serem escritos. O que Ênio não percebeu foi o fato de Homero
contar a história de homens que tinham por lei apenas sua própria consciência!
Quando Eneias está em pleno gozo amoroso com a rainha Dido, em Cartago, Zeus envialhe um mensageiro para lembrar-lhe que seu destino está mais adiante, na Itália. Eneias,
então, abandona Dido e obedece a Zeus! É bem diferente da atitude de Aquiles, quando se
recusa a combater os troianos. Agamenon, o grande comandante, é impotente frente à
vontade dos homens! Cada um luta apenas pelo que considera justo. Guia-o apenas sua
própria consciência! Aquiles só retorna à luta para vingar a morte de seu amante Pátroclo (é
quando, de eromenós, passa a erastés). Frente à sua própria consciência, ele não tem outra
coisa a fazer! O Eneias, de Virgílio, porém, já está sob as leis positivas do Império Romano, já
não pode decidir apenas por sua própria consciência. O homem - representado pelo homem
grego -, que até então não tinha vida interior, como nos conta o Prof. Donaldo Schüler, desse
momento em diante estará para sempre dividido entre o que é por dentro e o que é por fora.
Além de sua vida pública, terá uma vida íntima.
Antígona, a terceira peça do ciclo tebano, de Sófocles, já declarara este drama. A heroína,
seguindo ao imperativo de sua consciência, representada nas leis divinas, vai contra a lei do
Estado, representada por Creonte. E já sabemos do trágico resultado.
Em Os Lusíadas, Vasco da Gama segue o modelo de Homero: como na Odisseia, canta os
feitos de um homem e, como na Ilíada, canta o espírito de um povo. Porém, como Eneias,
Vasco da Gama deve obediência cega ao rei; não é súdito apenas de sua consciência.
Talvez por ter se dado conta da importância dessa mudança, Virgílio tenha sido tomado,
por tantos, como modelo. Dante não tem dúvidas: Virgílio é o seu guia. Tu se’ lo mio maestro
e ‘l mio autore, canta ele no verso 85 do primeiro canto do Inferno. Segue seus passos por
todo o Inferno e o acompanha pelo Purgatório, onde recebe ajuda de Sordello e também de
outros poetas. Mas ao Paraíso, onde lemos os versos da mais rara beleza, Virgílio já não o
acompanha.
O dilema entre a submissão à própria consciência ou à legislação positiva, uma das
marcas da divisão do homem, não ficou restrita a outros tempos. O herói de hoje continua
dividido. O recente filme de Roger Donaldson, Seeking Justice, de 2011, que apareceu por
aqui traduzido como O Pacto, mostra bem essa divisão: buscando provas para incriminar um
grupo de justiceiros, que resolveram tomar a lei com as próprias mãos, ele encontra, em um
livro de Edmund Burke, de 1757, a seguinte citação: Não é o que um advogado diz, que eu
posso fazer, mas o que a humanidade, a razão e a justiça dizem, que eu posso fazer. Eu diria
que sua alternativa à palavra do advogado, representante da lei positiva, está baseada no
julgamento de sua própria consciência que hoje já não pode desconsiderar todas as
conquistas sociais do homem. Esse filme aparece com o título simplificado em Uma
investigação filosófica, mas na verdade ele se especifica em sua continuação, Uma
investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo (An Inquiry into
the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful).
Os gregos, não reconhecendo sua vida interna, atribuíam-na ao exterior. É diferente de
quando Dante passeia pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, descrevendo cenas
acontecidas: o destino de cada um, depois da morte, é construído pelo feito em vida; mesmo
quando faz previsões, ele se vale de um retrocesso temporal para colocar no futuro fatos já
acontecidos. Os gregos, esses, além dos deuses, valiam-se das Musas! Hesíodo, um poeta
também oral, como Homero, descreve um encontro, havido por ele mesmo, com as Musas.
Elas viviam no seu quintal, por assim dizer. Seu pai havia comprado terras no sopé do Monte
Helicon, e elas viviam por aí. Abeberavam-se em uma fonte que fora aberta nesse Monte por
um coice de Pégaso, e, por certo, à sombra de bananeiras. Quando viram o poeta, que ali
apascentava suas ovelhas, presentearam-no com um ramo de louros, símbolo da autoridade
86
poética. Ironicamente, Enrique Vila-Matas, em Bartleby & Companhia, diz o seguinte: - quem
escreve o ditado das musas é apenas um copista!
Os sentimentos dos gregos estavam todos personificados nos deuses. Zeus é, antes de
tudo, a representação do céu e da luz. Sua raiz indo-europeia é dei, com o sentido de brilhar.
Lembram o que lhes dizia do fascínio pelas estrelas?! Atená, que nasceu de sua cabeça,
representa inteligência e é a guerreira que protege. Hera, sua esposa, representa o ciúme, a
vingança e a violência. Quando o homem sofre ou está feliz, é pela ação dos deuses que o
perseguem ou que o protegem. Então ele tem que fazer por agradar os deuses, tanto para
conquistar sua simpatia, como para evitar seu ódio. Hecatombes agradam os deuses! Caim
matou Abel porque, na sua imaginação, Deus preferia o sacrifício da ovelha do pastor à sua
messe. Os deuses adoram o aroma da carne assada! Mas quem não gosta? Prometeu foi o titã
que roubou o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens. Depois disso os homens
puderam queimar a carne em holocausto aos deuses, e também se aquecer no frio e forjar
metais para sua defesa e conforto. A etimologia de Prometeu começa com πρό, com o
sentido de antes de, por antecipação, continuando com μῆθος, ver, observar, pensar, saber, e
termina com ευς, um sufixo frequente nos antropônimos. As características de Prometeu
estão presentes no homo sapiens; a espécie se repete nos seus espécimes. Tomás Abraham,
um filósofo contemporâneo, em recente apresentação na Feira do Livro de Corrientes, na
Argentina, não deixou de ressaltar o ato de insubordinação, presente no gesto de Prometeu.
Sua infração acarretou-lhe uma dura punição, como nos contou Ésquilo. De certo modo, toda
inovação, ao romper com o passado, constitui-se em transgressão.
Sófocles, na tragédia Édipo Tirano, deixa clara essa falta de reconhecimento de uma vida
interior. Geir Campos, que adaptou a peça, para a Editora Vozes, ao descrever Édipo, o diz
com muita felicidade: O mesmo sol que, ao despontar sobre Tebas, o viu poderoso, ao
esconder-se no horizonte viu-o arruinado. Suas transformações interiores, que por certo as
haviam, são registradas apenas nesses movimentos. Foi Freud quem resgatou toda essa
mitologia relegada ao esquecimento pelo advento da ciência. Ele reconheceu na mitologia a
personificação da vida psíquica. Diferençando o que o homem podia considerar como seu,
daquilo que, não conseguindo assumir, projetava nos deuses, foi construindo seu desenho
das instâncias psíquicas que hoje tanto nos ajuda na direção da análise de nossos
analisantes. Quando começa a clinicar, e escutar os relatos das histéricas, aos poucos vai
associando com suas leituras dos clássicos. E o Édipo Tirano, de Sófocles, parece-lhe
universal: a importância dessa estrutura, que então percebeu como ternária, envolvendo o
pai, a mãe e o filho, não estava, por assim dizer, restrita apenas à Santíssima Trindade. Sua
conformação era decisiva na constituição de cada novo ser. Mais tarde, quando Lacan
retorna à leitura de Freud, ele dirá que essa estrutura edípica é, na verdade, constituída por
quatro elementos: além dos três já citados há que ajuntar também o próprio fenômeno em
questão, o Édipo. O Édipo, em si, para dizê-lo com Kant, desempenha também um papel
importante nessa estrutura, agora quaternária.
Nesse propósito, quando Italo Calvino, em 1991, pergunta: - Por que ler os clássicos?
depois de sua primeira resposta afirmando ser, antes de tudo, por um prazer extraordinário,
principalmente quando se os lê em uma idade madura, ele bem poderia ter dito que, por
essa leitura, Freud chegara à invenção da Psicanálise. Mas temos de considerar também a
hipótese de um livro se tornar um clássico por conseguir dizer coisas que tocam a um
grande número de pessoas. Mas isso, em absoluto quer dizer que toque a todas! Balzac, por
exemplo, entre os mais lidos na França, aparecerá em último lugar na Itália, e Dickens,
adorado por um fã-clube fiel, na Inglaterra, na pátria adotiva de Calvino encontra apenas um
restrito número de admiradores. Mas Homero, Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Virgílio, Dante,
Camões, Cervantes e Shakespeare são para sempre, para todos, em todas as partes.
Shakespeare, já mencionado, também tomou Virgílio como mestre. Citarei apenas sua
última peça, A Tempestade; aparecem aí os amores de Ferdinand e Miranda, em explícita
alusão aos de Eneias e Dido.
87
O movimento de retorno de Lacan a Freud se parece com o de Odisseu, de Homero: o
nóstos de Odisseu, não é uma volta para casa, para aí ficar; ele volta para casa, para daí ir a
outro lugar, para uma nova aventura. Sua volta não é apenas uma viagem a mais, como a do
Ulisses de Dante que, muito provavelmente por não conhecer a língua grega, descreve sua
morte: em uma viagem, na qual, depois de ter fundado a cidade de Lisboa, indo além da
Taprobana, afoga-se quase às margens da ilha onde se situa o Purgatório.
Lacan, aliás, cujo ensinamento foi essencialmente oral, proferindo seminários durante
vinte e sete anos seguidos, de 1953 a 1980, publicou, em 1966,um alentado livro de mais de
novecentas páginas, com o singelo título de Escritos. A origem desses Escritos, por certo está
em Freud, mas não só. Na abertura da coletânea, ele cita três autores, Hérault de Séchelles,
Poe e Pope. De Hérault de Séchelles, ele cita Viagem a Montbard (que, tanto na tradução
como na edição original, aparece sem a letra d final). Seu autor foi um jovem político que
lutou na derrubada da Bastilha, em 1789, e que foi guilhotinado, como seu amigo Danton,
em 1794. Em Viagem a Montbard ele menciona uma visita feita a Georges-Louis Leclerc, o
Conde de Buffon, na qual falam sobre o estilo: para configurar um estilo, a principal atenção
deve ser dada à precisão das ideias, dizia ele, depois vem a harmonia, que não deve ser
negligenciada. Lacan, contudo, destaca uma ideia, a qual, para entendê-la é preciso anotar
que Buffon não tinha os poetas em boa conta. Diz Buffon, na citação de Hérault de Séchelles:
- Le style est l’homme même, me répétoit-il souvent, les poètes n’ont pas de style, parce qu’ils
sont gênés par la mesure du vers, qui fait d’eux des esclaves ; aussi quand on vante devant
moi un homme, je dis toujours : Voyons ses papiers. (Eu traduzo assim: O estilo é o próprio
homem, repetia-me ele amiúde, os poetas não têm estilo, porque eles são constrangidos pela
métrica dos versos, que faz deles escravos; assim, quando elogiam um homem diante de mim,
eu digo sempre: vejamos seus papéis [no sentido, eu acredito, de vejamos seus escritos].)
Dessa frase, Lacan destaca sua primeira parte – O estilo é o próprio homem –, mas ele adere a
ela apenas para estendê-la na pergunta: o homem a quem nos dirigimos? Por aí podemos ver
não ser o homem sempre o mesmo, dependendo sempre seu estilo daquele a quem se dirige.
Um corolário desse teorema pode ser entendido na seguinte afirmativa: - Na linguagem, o
emissor recebe do receptor sua própria mensagem, em sentido invertido. Por isso, uma análise
iniciada com um analista jamais poderá ser continuada com outro. Com outro analista, será
outra análise.
Para mostrar que, mesmo assim, não é perda de tempo endereçar uma mensagem ao
outro, ele cita, de Edgar Allan Poe, A carta roubada. A mensagem que está dentro do
envelope da carta, roubada à rainha por um dos ministros do rei, jamais chega ao
conhecimento dos leitores, os quais, no entanto, seguem com atenção crescente tanto os
movimentos do Ministro para escondê-la dos sabujos da Rainha, como os do detetive Dupin,
para encontrá-la! Entre nós, não faz muito, Luiz Alfredo Garcia-Roza, um professor de
Psicanálise, do Rio de Janeiro, criou um personagem inspirado no detetive de Poe: trata-se do
detetive Espinosa, que fez sua estreia, na literatura, no romance intitulado O silêncio da
chuva. Embora ambos tenham o mesmo espírito, no conto de Poe, contudo, percebe-se, mais
claramente, o efeito de divisão propiciado pelo objeto faltante, objeto esse do qual somos
todos consequência, e que revela a grande invenção de Lacan conhecida como objeto
pequeno a. Quem gosta de filmes de ação, lembrará de Missão Impossível III, uma produção
de Tom Cruise e Paula Wagner, dirigida por J. J. Abrams, na qual o tal pé-de-coelho cumpre a
mesma função da carta roubada: os espectadores em nenhum momento ficam sabendo do
que se trata, enquanto os personagens se dividem pela sua posse! – A análise de A carta
roubada será o texto de abertura dos Escritos.
Alexander Pope aparece por seu poema The Rape of de Lock, composto em cinco cantos,
nos quais critica, ridicularizando, a extrema delicadeza da corte da Inglaterra. Mas o que
interessa a Lacan é a forma das madeixas de Belinda: seu feitio de bucle indica a
circularidade do discurso, possibilitando uma leitura topológica da palavra.
Como se vê, além de nos ensinar, os textos anteriores nos ensejam e também nos ajudam
a dizer o que pensamos. Oito anos atrás, em 2004, publiquei um livro que, embora modesto,
88
tinha algo de pretensioso. Batizei-o, em parte, por contraposição ao alentado Escritos, do Dr.
Lacan, com o curto título de Leituras. Eu precisava dizer, na época, que nenhum escrito é
sem uma enorme quantidade de leituras. Estava pasmado com as fotografias dos escritores,
quando eles apareciam, nos livros, tendo por trás uma grande biblioteca, ou escondidos,
como Calvino, atrás de uma montanha deles. Esses modelos fotográficos, que antes me
pareciam uma simples exibição, representavam agora o escancaramento de um aviso: Por
trás de cada livro há uma enorme quantidade de outros livros! E eu tentava dizer, no meu
pequeno Leituras, o que acontecia, por exemplo, a Jorge Luis Borges ao ler Miguel de
Cervantes. Na leitura de Borges, eu havia ficado tocado com a influência cervantina em
alguns de seus contos, de modo especial em Pierre Menard, que tinha a pretensão de
reescrever o Don Quijote, letra por letra, vírgula por vírgula, sem incorrer em plágio. Tentei
dizer também o que acontecera a Donaldo Schüler ao ler a Carta do achamento, de Pero Vaz
de Caminha, e também quando leu As metamorfoses, de Ovídio, e mesmo o Finnegans Wake,
de James Joyce. Ao examinar a retórica da subordinação e da insubordinação, na carta de
Caminha, O Prof. Schüler ilumina o dealbar de nossas origens, desde a ótica das construções
hipotáxicas e paratáxicas, colocando-nos como herdeiros de uma prática epistolar. Eu estava
então muito impressionado com o que Gerald Thomas havia feito com o Quartett, de Heiner
Müller, assim como estava surpreso com o modo pelo qual o jovem diretor Marco Fronchetti
havia adaptado Eurípides. E, claro, também estava maravilhado pelo modo como Freud e
Lacan leram Platão!
Platão, que viveu em um período muito próximo da cultura oral, acreditava, como os
demais fundadores da filosofia, que o escrito desnaturalizava o conhecimento. Seu mestre,
Sócrates, não havia escrito uma só palavra, e ele, utilizando-se da difícil arte do diálogo, bem
soube o quão difícil é colocar em palavras o que se pensa. Não por nada, ele dizia: para
Sócrates a palavra é o fio de ouro do pensamento. Se Platão estava preocupado com o efeito
de conhecimentos parciais lido por pessoas despreparadas, o núcleo de verdade contido em
sua preocupação era de que não se podia escrever tudo. O pensamento é sempre muito mais
amplo do que se consegue escrever. Esse, aliás, é um dos motivos de dizer que não há
relação sexual, entendendo-se em relação, entre outros sentidos, o de relato. Por não haver o
relato sexual, ainda que se tenha sempre de intercalar um intermezzo amoroso, nunca se
escreverá o romance definitivo. E, por andarmos sempre às voltas com um envelope cujo
conteúdo desconhecemos, temos sempre de escrever.
Se tanto o ato de ler como o de escrever são solitários, eles têm, contudo, a virtude de nos
colocar na companhia de outros. Isso acontece tanto nos momentos em que se lê um escrito
diante de uma plateia, quanto, por exemplo, ao acompanhar, digamos, Ishmael à Capela dos
Baleeiros, em New Bedford. Eu, então, mal o conhecia. Ainda não lera um décimo das
quinhentas e noventa e três páginas de Moby Dick, mas quando ele entra no silêncio abafado
da igreja, para proteger-se do temporal, e começa a ler nas lápides o trágico fim dos
marinheiros, cujos corpos nunca foram resgatados do mar, arrastados até nunca mais por
uma baleia, ou a história do finado Capitão Ezekiel Hardy, morto à proa de seu navio, por
um cachalote, na costa do Japão, em 3 de agosto de 1833, dizendo das saudades de sua
viúva, eu me emociono profundamente, como se fora amigo de Ishmael, e de toda aquela
gente, desde sempre. E fico grato a Herman Melville.
Reconhecidos ou esquecidos, os autores antecedentes, dos mais famosos ao nosso mais
remoto, anônimo e solitário ancestral que, desde o começo dos tempos, deixava sinais de
sua ânsia por companhia, são sempre suporte e estímulo dos novos. A eles nosso
reconhecimento.
Luiz-Olyntho Telles da Silva (Brasil, 1943). Graduado em psicologia. Estudou Psicanálise e
analizou-se em Porto Alegre e Buenos Aires. Trabalha como psicanalista, ensaísta, escritor,
tradutor e professor. Em livros, publicou Da miséria neurótica à infelicidade comum
(Movimento, 1989 e 2009[2ª ed., revista, corrigida e ampliada); Freud / Lacan: o
desvelamento do sujeito (AGE, 1999); Leituras (AGE, 2004); Ponto Contraponto: significante e
89
discurso na Psicanálise (HCE, 2012) e Um elefante em Albany Street (HCE, 2012). Em 2009
estreou na literatura de ficção com o livro de contos Incidentes em um ano bissexto (EDA).
Assinou as orelhas e a quarta capa do quarto volume de Finnicius Revém, a tradução
brasileira do Finnegans Wake, de James Joyce, transcriada por Donaldo Schüler (Ateliê,
2002). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha),
artista convidado desta edição de ARC.
90
MARLISE BASSFELD-MUHME | A arte de Ana Luisa
Kaminski
A REPRESENTAÇÃO DA SENSIBILIDADE COMO TRAÇO ESSENCIAL | Eis coragem marcante
da pintora Ana Luisa Kaminski: simbolizar sentimentos, representar a subjetividade que lhe
constitui, tanto quanto possa alcançar em luz, sombra, superfície. Uma lágrima escorre
discretamente em azul numa andrógena face que remete a um universo onírico e cuja
presença pode convocar a uma interrogação, a uma reticência, a algum ponto do qual o
espectador não tenha como escapar. Será tristeza? Será emotividade? Será contentamento?
Quem sabe… Trata-se de viagem íntima o olhar diante da obra.
TÉCNICA E CRIAÇÃO A SERVIÇO DO BELO | É arriscado interpretar a um só lance o que
possa estar no campo da expressão dessa pintora, cujo interesse pela arte surgiu ainda
quando criança, na cidade gaúcha de Erechim, onde nasceu em 1966. Antes, pode-se permitir
um singular prazer estético de se deixar tomar por seus tons lilases, por suas ninfas, em
uma fragilidade que está mais para a delicadeza do que o que pudessem suscitar as
reminiscências de uma mulher que também aprecia a cor da rosa.
A desenvoltura da artista, ao estabelecer em sua obra uma temática onírica e, muitas
vezes, quase mágica, agrega-se ao rigor acadêmico nascido de técnica apurada, em especial
quando se dispõe ao desenho do humano. De fato, ao retratar com lápis, tinta e tela o rosto
de uma pessoa, por sua peculiar entrega ao processo criativo, não é de se duvidar que, ao
final do trabalho, já não tenham – pintora e personagem – estreitado algum vínculo para
além do objetivo primeiro.
MULTIDISCIPLINARIDADE PARA UMA PRÁXIS LIBERTÁRIA | Dificilmente Ana Luisa
Kaminski deixaria de viver o que lhe é próprio enquanto está às voltas com seus pincéis e
paleta: sua exuberância é traço que lhe advém de outras linguagens artísticas. Estudou
flauta, piano, filosofia, faz formação em psicanálise. Graduou-se em letras e concluiu
mestrado em literatura brasileira e teoria literária no ano de 2002 (UFSC), o que também lhe
propicia privilegiada visão do mundo, colocando-se ela própria, tanto na obra quanto na vida
pessoal, coerente com seus valores, libertária, interessada nas diversas manifestações de
amorosidade, o que está manifesto em seus quadros.
No campo pictórico, estudou desenho e pintura na Escola Municipal de Belas Artes,
Erechim, RS, onde iniciou sua jornada de exposições. Também já expôs em cidades
brasileiras, como: Florianópolis (SC), Curitiba (PR), São Paulo (SP), Campo Grande (MS) e
outras do sul do país.
Relativamente à palavra escrita, participou de congressos, nos quais apresentou trabalhos
nas áreas de letras e artes, em Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de
Janeiro. Tem poemas e ensaios publicados em coletâneas.
RECONHECIMENTO PÚBLICO E PREMIAÇÕES | Em outubro de 2011, a artista conquistou
lugar em um dos mais cobiçados espaços artísticos do mundo, quando teve a oportunidade
participar, com sua obra, da mostra coletiva intitulada Anap Carroussel du Louvre, no Museu
do Louvre, em Paris, sob a curadoria de Edilson Barbosa, presidente da Academia Nacional
de Artes Plásticas.
Também na Itália sua obra foi bem recebida. Entre suas premiações, destacou-se na
categoria pintura na IV Bienal de Roma, em 2004, com o quadro Nascimento da Ninfa Azul,
que integra o acervo do Museu Ítalo-Brasileiro em Pomézia. Ainda na Itália, foi agraciada com
o sexto lugar, categoria pintura, na Exposição Internacional de Artes na cidade de Anzio, em
2010, ao concorrer com dezenas de pintores de vários países.
91
No Brasil, teve o mérito do primeiro lugar na Exposição Coletiva de Artes Comemorativa
ao Centenário da Academia Brasileira de Arte, Cultura e História, no Salão Villa Lobos,
Brasília, também em 2010, com a obra Retrato de Staëll. No mesmo ano, obteve o segundo
lugar na exposição coletiva Cristal de Talentos, na cidade de São Paulo.
FAMÍLIA E AMIGOS PARA DIAS DE QUAISQUER CORES | Mãe de dois filhos – Daniel, 28 e
Bernardo, 19 –, Ana Luisa Kaminski é casada há 30 anos com Osmar Kohn. Ao lado do pai da
artista, Bernardo Kaminski, que a apoia desde sempre e foi o primeiro a lhe reconhecer o
talento artístico, marido e filhos são seus grandes incentivadores. Assim, não fica difícil
verificar que tanta jovialidade nos movimentos da artista nasça dentro de casa, onde a
palavra circula sem que haja medo de transitarem nos diversos momentos do cotidiano,
sejam eles revestidos de trabalho, desafios, festa, descanso.
Importante fonte de seu amor pela vida talvez também advenha do interesse da artista
pelo conhecimento, por sua prática de compartilhar o belo, seja por meio das redes sociais,
onde tem incontáveis fãs, ou em conversas intimistas, em convívio mais próximo, com
aqueles que admiram seu modo de estar no mundo.
ENGAJAMENTO NAS QUESTÕES SOCIAIS E DESEJO DE UM MUNDO MELHOR | Entre as
atividades didáticas, a artista plástica lecionou pintura para crianças carentes na
comunidade do Morro Santa Vitória, Morro da Caixa e Morro do Pedregal, em Florianópolis,
ao participar do projeto do Instituto Solidariedade e Cultura. Também atuou como
formadora de arte-educadores no Movimento dos Trabalhadores sem Terra e no Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária da Universidade Federal de Santa Catarina, sempre
ligada à área da arte.
ATELIER PRÓPRIO E AULAS DE DESENHO E PINTURA | Na capital catarinense, em seu
atelier situado numa casa com quintal e jardim, cães e gatos, a três quilômetros de onde
continente e Ilha de Santa Catarina se unem pela ponte Hercílio Luz, Ana Luisa Kaminski
produz vibrante e continuamente, bem como leciona desenho e pintura desde o ano 2000.
Antes, por três anos, (de 1987 a 1990) deu aula na oficina de Artes Porarte, na mesma
cidade, e de 1990 a 2000, no seu atelier localizado num prédio comercial no centro da
cidade.
Com trabalhos expostos na Galeria Banco de Arte (SP), Galeria Spazio Surreale (SP) e
Galeria Helena Fretta (SC), o atelier da artista é um espaço vívido e de generoso acolhimento
a colecionadores, apreciadores de arte, bem como a alunos que participam atenta e
dedicadamente de seus cursos.
Por outro lado, no enfrentamento do real, – os dias em que as horas se tornam longas
demais – a pintora não se recusa à ausência ou ao silêncio, quando passa a estar ainda mais
presente num mergulho para a sublimação que a traz de volta, no círculo vital que é próprio
dos valentes.
Se, para todo mundo, viver às vezes dói, se é o que se apresenta como desafio inexorável,
a artista plástica transforma de modo magistral seu quinhão de estranhamento nessa
possibilidade de reconhecimento da falta, de modo que lhe é pacífico poder se deixar tomar
pela tela vazia.
Ao enfrentá-la, vira-lhe ao avesso, mostra a que vem, debruça-se, embrenha-se, esvai-se,
alegra-se, brinca, brilha, resplandece. O efeito desse exercício que se repete no compasso de
seu lírico estilo é o chão onde Ana Luisa Kaminski deixa brotar o belo de si em cada quadro
que assina.
EXPOSIÇÕES DE ANA LUISA KAMINSKI DESDE 2005
Releitura Artística: exposição coletiva no Espaço Cultural do BRDE | Florianópolis | SC | de 8 a
30 de dezembro/2005.
92
Entre Ânkoras & Asas: exposição individual | Erechim | RS | Espaço Cultural Castelinho |
promoção: Prefeitura Municipal | 17 de julho a 4 de agosto/2006.
Viajando nos Entrelugares: exposição individual | Florianópolis | Livraria Livros & Livros |
setembro/2006.
Têmpera do Tempo: exposição coletiva | Florianópolis | Café Veredicto | 13 a 30 de
novembro/2006.
Interstícios: exposição individual | Florianópolis | Café Veredicto | 1 a 15 de dezembro/2006.
Asas da Alma: exposição individual | Florianópolis | Livraria Livros & Livros | 6 a 16 de
fevereiro/2007.
Nau da Alma: exposição individual | Florianópolis | Centro de Convenções da UFSC | 1 a 15
de julho/2007.
A Dama do Sótão Azul: exposição individual | Curitiba | FIEP | 25 de junho a 30 de
julho/2007.
Retrospectiva Azul: exposição individual | Florianópolis | Atelier Sonho Meu | janeiro/2008.
Afinação da Alma: exposição conjunta com Helen Ferreira e Malu Titon | em Florianópolis |
Livros & Livros | agosto/2008.
Matizes de Maio: exposição conjunta com Helen Ferreira | Florianópolis | Livros & Livros |
maio/2009.
Personas & Sonhos: exposição conjunta com a artista Staëll Di Lukka | Morada dos Baís
(Pensão Pimentel) | Campo Grande | setembro/2009.
Exposição Coletiva de Artes Cristal de Talentos: São Paulo | agosto/ 2010.
Exposição Coletiva de Artes Comemorativa ao Centenário da Academia Brasileira de Artes,
Cultura e História | Brasília | setembro/2010.
Exposição Internacional de Artes em Pádova: Pádova | Itália | novembro/2010.
Exposição Internacional de Artes: Anzio | Itália | dezembro/2010.
Epifanias: exposição conjunta com a artista Staëll | Restaurante Piola | São Paulo | julho/2011.
Lirismo Onírico: exposição conjunta com a artista Staëll | Galeria Spazio Surreale | São Paulo,
setembro/2011.
Salão Internacional de Arte no Carrousel do Louvre | Paris | França | outubro/2011.
Salon Internacional Du Portrait: Château Du Beauregard | Loire ET Cher | França | abril/2012.
Visões do Feminino: Espaço Cultural do BRDE | Florianópolis | junho/2013.
Contato direto com a artista: [email protected].
Marlise Bassfeld-Muhme (Brasil). Jornalista e crítica de arte. Vive em Rheinfelden, Alemanha,
na Tríplice Fronteira com França e Suíça, onde coordena um Projeto Europa em VerdeAmarelo. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio
Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
93
NICOLAU SAIÃO | A face oculta do planeta
1. MONSTROS NO ESPELHO SUBLUNAR DA ESCRITA E DO CINEMA
a Fernando Guerreiro(FG), poeta de mérito e editor lúcido e capaz que possibilitou em
Portugal a edição de “Os Fungos de Yuggoth”, de H.P.Lovecraft
Há, no mundo da escrita, as chamadas “hipóteses levantinas” - que são as que ficam a
jusante desse rio que pelos continentes da fábula corre lentamente e desagua no grande
oceano das concepções que, mais ou menos ocultamente, se vislumbram, tacteiam e
finalmente se agarram entre luz e sombra, entre sol e lua. Para tudo dizer: por detrás do
monte, da colina onde se acoitam os mundos do imaginário.
Não esquecer, também, que no “texto novelesco” por extenso (cf. J.B.Priestley, ”Os
mágicos”; Eric Ambler, “A máscara de Dimitrios”) o levantino era por tradição habitante
dúplice dum lugar híbrido, figuração de mistura (que é o sinal mais típico do monstro)
receptáculo de obscuros conteúdos de baixo e de cima, de dentro e de fora. (“Desconfia dum
egípcio; mas jamais, jamais confies num grego ou num turco” – Ambler, livro citado).
A hipótese que FG nos propõe em dois textos que constituem o objecto deste pequeno
ensaio, é a denominada “hipótese do fantasma”, plasmada num texto nascido tempos atrás e
que se prolonga, com outra materialidade, se vela e se revela e, finalmente, se ergue e se põe
a correr no texto posterior, “Os deuses estão entre nós”. Ambos notáveis pela informação
que denotam, pela clareza do enunciado, pelo estilo sóbrio mas de bom recorte, pela
inteligência que deixam adivinhar.
Mas textos que partem do reflexo. Que são evidente sinal não diria de sedução vampírica
mas de imersão num mundo que dialoga com os habitantes do país das trevas e dos
nevoeiros. Sem ter considerado que os monstros, (na minha concepção), vivem todos deste
lado e que, quando digo deste lado, digo que o que os move não é a magnífica revolta, muito
menos a rebeldia, mas a assumpção do pavor e do domínio sobre os viventes. Mas eles
camufladamente têm artes de enganar - que são as artes da sedução mefítica e despertam
nos pensadores, quando calha, “solidariedades” algo impuras que são todavia filhas dessa
boa-fé que eles arteiramente suscitam para melhor destroçarem os humanos.
Ou seja: esses dois textos de FG partem de uma hipótese levantina, partem de préconcepções que, afinal, negam a própria existência da sua escrita enquanto lugar legítimo
onde a maravilha acontece e onde a quimera finalmente cobra rosto, voz, figura e realidade.
Que, em suma, negam a poesia (que é a vida das palavras na sua máxima força) enquanto
espaço de liberdade.
Se de facto fosse real a existência do “realismo absoluto dos simulacros”(sic), isso
significaria que fora estabelecido o relativismo dos não-simulacros, ou seja: a proposta da
assumpção da morte como valor de referência, de natureza naturante, logo de extinção da
escrita como carne pulsante, nascente e nascida, reconvertida e podendo pôr-se a si mesma
em causa mediante a desconstrução que a poesia é.
Os monstros não podem criar porquanto são infecundos – um monstro-monstro não é
nunca uma personagem trágica mas sim uma negação que produz tragédia – que, como se
sabe, pressupõe o humano e é a sua melhor prova, o seu mais seguro sinal com toda a carga
absoluta que isso arrasta. (E a escrita é a busca incessante do absoluto).
O fantasma só existe enquanto criação dum cérebro (plasmado, quando muito, num
aparelho, numa máquina de engendrar - paleta, livro, câmara de fotografar ou de filmar uma vez que o fantasma parte da indeterminação do espírito e nunca parte ou é parte da
carne mas, quando muito, da sua cessação - logo da materialidade havida, materialidade que
é a única substância que pode forjar “imaterialidades”: pensamentos, desejos, intuições
fantasmas. Precisamente por isso é que as encenações engendradas por Lovecraft podem ser
94
classificadas por outrem, por diversos críticos (ou o foram por ele mesmo) como
“absolutamente materialistas”. Porque ganharam corpo na escrita, tão simplesmente. Os
fantasmas, a existirem mesmo, não seriam pois mais que realidade, logo matéria não
ficcionada. Como canonicamente desaparecem assim que são trazidos à luz da Vida, só a
escrita lhes serve de comprovação, de registo que nos assegura que efectivamente existiram.
E é este o supremo paradoxo: só existem civilmente, reconhecidamente, se já não existirem
(se tiverem passado para o mundo dos relatos que os certificam) só existem aos olhos dos
mortais se forem matéria de memória – oral ou perpetuada em narrativa escrita, desenhada,
filmada. Porque os fantasmas, de acordo com a tradição, não são espectáculo de multidões a
não ser na Arte (pintada, escrita, filmada), são experiência de um ou alguns poucos. Leia-se:
matéria de embuste, simulação, aparência intimidada que procura ser intimidatória.
Vejamos agora o título proposto por FG para o seu texto, “Os deuses estão entre nós”.
Não tomemos a frase pelo valor simbólico que poderá veicular. Tomemo-la à letra. Para
efectuar o contraste - como se procede para aferir que algo é de ouro ou de prata –
sujeitemo-lo a uma pedra-de-toque. Por exemplo – e uma vez que a única citação directa que
o trecho transporta é a frase de Holderlin “os deuses já estão entre nós”. Então, teríamos
como contraste “os deuses já não estão entre nós” e, a seguir, “os deuses sempre estiveram
entre nós”, “os deuses nunca estiveram entre nós” e, adicionalmente, como matéria vinda do
país do humor negro e da ironia sibilina, “os deuses estão e/ou não estão um bocadinho entre
nós”.
Consideremos, antes de passarmos adiante, que Holderlin, o grande poeta
contemporâneo de Goethe, esteve são durante um período da sua vida e louco durante outro.
Perguntemo-nos, então: a frase foi concebida no período de sanidade ou de loucura? No
primeiro caso, perguntemos mais, ainda: quanto de loucura nela se misturou? No segundo
caso, quanto de sanidade? E isto muito simplesmente porque a escrita pressupõe a
possibilidade de contaminação (alguns diriam: implica-a) da vida, assim como a vida
pressupõe a contaminação da escrita, tal como no resto do texto é sugerido, proposto,
assumido mesmo.
Continuando a usar a pedra-de-toque, ponhamos: os deuses sempre estiveram entre nós.
Tal significaria que fazem parte tanto do mundo dos sonhos como do mundo da realidade
que nos é apontado. (A primeira e mais poderosa característica dos deuses, de acordo com
os cânones, é a sua ocupação total do mundo no qual os homens se movem apenas por
concessão do alto. Os deuses são a totalidade, de acordo com os pensadores fideístas ou
com os que os citam cabalmente). Mas neste caso não existe nem nunca existiu a soberania
autónoma (mesmo que mitigada) do homem, logo não pode existir ou ter existido a escrita
“absolutamente materialista” de Lovecraft ou outro. Na melhor das hipóteses não passaria de
equívoco (visto o autor, como todos nós, não passar de “símio dos deuses”) quando muito
mera função objectual, cobaia ou marioneta para indescerníveis andanças divinas, sujeito de
obscuro propósito não desvelado/revelado, reflexo ou pretexto para actividades não
susceptíveis de conhecimento humano. Porque a característica dos deuses é serem os seus
manejos incompreensíveis para o homem, que de acordo com esta proposição se deve
limitar ora à aceitação ora à expectativa.
Nesta conformidade, o presuntivo materialismo absoluto da escrita lovecraftiana não
passaria de imagem virtual, direita ou invertida, dos propósitos inconcebíveis,
incompreensíveis, inscritos no livro dos deuses equacionados.
Vejamos agora a outra premissa: os deuses nunca estiveram entre nós. Se assim é, porque
são convocados/invocados? Isso corresponderá a um desejo de que o venham a estar? Ou
por tal ser uma sensação/encenação que permite o engendrar duma escrita, de pensamento
ou lucubração num continente onde um determinado tipo de imaginário não aparece como
inverosímil, não só possível mas também credível? Porque, pertencendo pois a soberania ao
homem, este pode entregar-se sem amarras à criação e a todas as suas contaminações?
95
Ou seja, poder ele inclusivamente erguer a frase positiva, a negativa e a irónica, uma vez
que tem acesso ao lugar absoluto da liberdade. A todas as congeminações e criações,
outorgadas ou inerentes, ou conquistadas.
Passemos agora a outro ponto, vejamos os pressupostos em actuação: se não há, do
ponto de vista da criação, verdadeiras diferenças entre escrita, cinema e vida (sic), porque é
que há da sua forma própria vida, cinema e escrita? Poderia haver só escrita ou só vida ou só
cinema… No entanto sempre houve vida, a dada altura passou a haver escrita e, muito mais
tarde, passou a haver também cinema. Então, de duas uma: ou os sinais são o mesmo
operativamente ou têm equivalência quando considerados. Se são o mesmo, tanto faz viver
só no celulóide como só no quotidiano, viver só na folha de papel ou só na película – o que é
uma inviabilidade provada pois é a vida quotidiana que vai ao cinema, que o faz, que produz
escrita – sendo por seu turno contaminada por estes desde sempre a partir do surgimento
deles.
É necessário, para chegarmos a algo num continente não-fantasmal, que concluir: os
sinais têm equivalência. Mas a equivalência (como e qual?) não é nem significa identidade,
antes pressupõe a diferença. É porque estão separados absolutamente que há cinema, vida e
escrita. É por isso que a escrita e o cinema – a Arte – multiplicam as vivências; se
estivessem juntas, em identidade, estariam sempre mergulhadas num universo extático,
num limbo gelado, infecundo, espectral e portanto proto-vampírico.
Há um dado ponto, como os surrealistas antes e depois da letra descobriram ou
constataram, em que várias realidades (sublinho, realidades) se unem. Por outras palavras: a
poesia une-se à vida. Nalguns pensadores tal facto parece-lhes ser a existência de uma
matéria contendo sinais contrários tendo o mesmo valor operativo. Em termos morais: o mal
igual ao bem, o mal ser o bem ou o bem ser o mal. Ou seja: existir uma matéria una,
múltipla, constituída pelos dois polos.
Todavia, a prática alquímica ensina-nos que as coisas se passam de maneira bem
diferente: existe a matéria afastada contendo em potência, desordenadamente, o mercúrio
filosófico e o enxofre filosófico. Convenientemente excitados pelo sal tratado pelo duplo
homem igneo, transfiguram-se. Depois de várias operações que não interessa trazer a
capítulo e subidos vários degraus da Obra, acaba por se entrar na posse da matéria próxima
que a seu tempo iluminará o vazio mediante a sua própria iluminação.
Noutro plano: a palavra só tem poder transmutatório se se reconverter tornando-se
outra coisa – palavra livre em conjunto, forjando uma frase livre ou seja, real e
coerentemente ligada à sua figura com reflexo no espelho da existência (ao contrário do
monstro, que não tem reflexo por não ter vida).
E é por isso que não há incarnação doente, mutante, produtora de seres híbridos e
impuros (sic). O que há, neste plano, são projectos de incarnação que só podem existir por
terem seguido a “via mala” no meio-caminho entre a vida e a morte; seres de mistura e de
desordenamento como o dragão escamoso dos sábios. Note-se, entretanto, que pode haver
sobre eles uma luz, mas é a da falsa estrela que os alquimistas bem conhecem e que aparece
pouco antes do derradeiro tour-de-main, armadilha colocada aos incautos pela Senhora da
Luz para lhes testar a sabedoria, passo final antes da suprema iluminação que os levará aos
confins do tempo e do espaço, à poesia das coisas e do que vive no seu interior, uma vez que
o que está dentro é como o que está fora, atingido desta forma e só desta forma o milagre
de uma coisa só. Se o operador (o poeta, o pensador, o alquimista) se deixar embalar nessa
falsa certeza, pese às aparências mundanas irá dar a um lugar onde só há choro e ranger de
dentes, onde só existe frio e escuridão.
Reparemos num detalhe que convém recordar: de acordo com a tradição, o vampiro é o
produto do esperma masturbatório que caíu num solo absolutamente infecundo, logo
impuro. É por isso que ele é não mais que simulacro não criativo, aparência de vida, mentira
absoluta e absoluta violência. Repare-se ainda que o Engendro de Victor Frankenstein,
segundo Mary Shelley, é formado por fragmentos de mortos, juntos (e não unidos
harmoniosamente) pelo poder da electricidade (de fora para dentro, enquanto na vida a
96
força vem de dentro para fora). Ou seja: pelo poder da tecnologia, que no Frankenstein
moderno aparece - ainda mais reveladoramente - através das multiplicações produzidas
pelos computadores. Dizendo de outro modo: pelo poder da nova diplomacia, que detém
tanto o poder de criar monstros (ultimamente, os livros e filmes de vampiros para
adolescentes) como de criar novos engendrados literários que só produzem uma escrita
morta, deturpada e medíocre.
No segundo texto de FG refere-se, citando Nodier, que o homem dum tempo a vir viveria
simultaneamente duas vidas, a diurna e a dos sonhos. A primeira seria então permeabilizada
pelo vampirismo existente no mundo onírico ou das imagens insubstanciais. Essa, real e
material, onde se pode escolher, onde existe o espaço de liberdade (cf. Cesariny, que dizia
lucidamente num poema que em vigília é possível optar mas se é sonho tem de se ir mesmo...)
ficaria inteiramente preenchida pela fantasmagoria dos sonhos que se têm a dormir, dos
sonhos que fornecem por vezes encantamento mas não têm poder criativo no seu próprio
plano. (Aqui, recorde-se o ditame “Os que sonham de olhos abertos têm possibilidades de
achar coisas que os que só sonham de olhos fechados nunca encontrarão”). Por outras
palavras: a substituição da vida onde é possível criar objectos, relacionamentos, arte e o
acesso à sabedoria, pela vida obrigatória dos sonhos - similar ao entorpecimento provocado
pelo ópio, pelos diversos ópios, que parte de projecções que a dado passo são pesadelos.
A vida do quotidiano, com a liberdade de criar a que se tem inteiro direito, deve pôr-se
em guarda contra a contaminação de um pretenso sonho figurado que tenta ocupar o
espaço real e que é constituído por todas as imagens dadas como uma realidade, mais, uma
verdade actual e performante. A mais pura liberdade vive entre, por um lado, o espaço
constituído pelo direito de o escritor ou o artista por extenso, o homem, criar encenações que
finjam ser a verdadeira vida e, por outro lado, o direito de se recusar a ser ficção como se
existisse apenas nelas.
Porque, de facto, o homem não vive duas vidas – e sim uma, mas por mor da sua
soberana imaginação pode visitar o outro planeta (a escrita, o cinema, toda a arte), sem que
dele ou dos deuses que o habitam constitua mero símio ou mero reflexo.
A não ser assim, corre o risco de - por obra da armadilha aludida atrás - se tornar carne
para os monstros, quando não carne dos monstros. Tanto a arte como a vida – como a
literatura – estão longe de ser mera encenação para acatitar monstros ou deuses. E muito
menos são um sonho passivo ou enlouquecido – de simples mortos-vivos difundindo a
epidemia dos que tentam aguardar nas trevas a figura impoluta do homem para eficazmente
a devorarem, tal como se passa no mundo que os poderes discricionários buscam ainda hoje
dominar inteiramente.
Post Scriptum - A hipótese central e imaginativa argumentada/posta por Lovecraft em “O
caso de Charles Dexter Ward” é clara por diferença na sua constatação: não são mortos que
voltam numa condição mutante/mutada mas sim não-seres que tentam apoderar-se de vida
mediante práticas de permanência espúrias; não uma outra espécie a vir presente futura, mas
simulacros, tentativas de um reflexo condenados por isso ao inevitável desaparecimento.
O livro, sublinhemos, chama-se por isso “The case of Charles Dexter Ward” (e não “Os mortos
podem voltar”) ou seja: o caso de um vivo, de um indagador que, por armadilha de um
simulacro, foi colhido no caminho para a sabedoria, para o conhecimento. Morreu porque
tentava compreender ingenuamente (isto é, sem se precaver), porque não conseguiu escapar
ao retrato em que se plasmava Joseph Curwen. A meu ver, por esta soma, o título dado nessa
primeira edição portuguesa não é justo, porque o que tenta reflectir é uma acção
postergadora dum direito evidente, existente, soberano e inscrito na espécie ela mesma: não
voltar. Esse título acontece por mero detalhe editorial, eventualmente por pequeno
sensacionalismo da época.
Adicionalmente, diga-se que a morte (a calcinação, quarto degrau alquímico, negrume do
corvo místico) é referida duma maneira cabal e esclarecedora por, entre outros, Bernard
97
Trevisan e Fulcanelli. No caso português, em José Anes e em textos avulsos de modernos
alquimistas que têm difundido a sua obra através dos meios editoriais normais.
2. INCURSÃO PELO IMAGINÁRIO
1. Há um imaginário rural, assim como há um imaginário citadino.
Esta diferenciação, que poderia parecer estranha a observadores menos precavidos,
articula-se de forma própria.
Com efeito, até há bem pouco tempo – e, em certos lugares, a situação dada é ainda
manifesta – o meio rural estava bastante separado do acesso aos mass-media mais
qualificados, que são os que com maior relevo difundem, controlam, sustentam e forjam um
certo imaginário padronizado.
É pacífico que o imaginário citadino é extremamente condicionado pela televisão, a
rádio, os jornais e os espaços interactivos a que os meios rurais tinham e têm ainda um
acesso relativamente precário ou flutuante.
Posto isto, debrucemo-nos agora sobre o imaginário rural.
Com uma carga muitíssimo específica e bem caracterizada, ele está profundamente
ligado ao ritmo das Estações, ao perfume do solo, às reuniões de famílias, de vizinhos, de
maiores ou menores fragmentos da comunidade para o qual frequentemente os ritmos
citadinos existem mais como figurações alheias, como verdadeiras paisagens exteriores.
Pode dizer-se, assim, que o imaginário tradicional se radica e está entranhado, na sua
pureza, principalmente nas regiões campestres. E são os núcleos que se mudaram para as
povoações maiores que, em geral, o levam consigo e o vão preservando como se uma vivaz
nostalgia os acompanhasse.
2. No seu livro “A arte e a literatura fantásticas”, texto canónico a muitos títulos, diz-nos
acertadamente Louis Vax a dada altura: “O arrepio que as narrativas fantásticas, a literatura
de imaginação científica, os quadros surrealistas provocam no leitor moderno, já o povo o
conhecia graças às lendas que se transmitiam de geração em geração. As histórias de almas
do outro mundo, de lobisomens, de vampiros e de maus olhados, causaram outrora a angústia
e as delícias dos aldeões reunidos à volta do lume”.
Pelo que me diz parte, posso confirmá-lo.
Na minha infância vivi algum tempo no campo, campo esse por onde continuo a
jornadear e que, sob certos aspectos substanciais, muito pouco se modificou (não devemos
esquecer-nos que a região a que aludo, a da Serra de São Mamede, é um dos lugares mais
isolados do País, sendo de igual modo um dos mais atraentes para quem goste da
ruralidade). E recordo com grande prazer, forte emoção e bastante saudade aquelas vezes
em que, depois do jantar e antes da deita (que naqueles rincões alentejanos das Covas de
Belém e do Chancrão costumava suceder cedo) um grupo de vizinhos chegavam para o
serão.
Para além das conversas sobre os respectivos animais das quintas, o sucesso do que se
semeava e colhia (as novidades, como se lhes chamava) a certa altura era proverbial alguém
puxar a parlenga noutra direcção: e eram contadas histórias, provindas da imaginação
tradicional ou do quotidiano elaborado com certos requintes de invenção ou garantidamente
reais. Estorietas de “medos” e de aventuras perturbantes, vivências transfiguradas e
espantações onde não deixava de assomar o espectro da malina que punha tremores e
suspensões na alma de pequenos e grandes...
Aprendi na altura canções ligadas às Estações e aos seus eventos próprios e típicos. Se
trovejava, sabia-se bem como esconjurar o mau-jeito: “Santa Bárbara bendita/ que no céu
está escrita/ com papel e água benta/ livrai-nos desta tormenta./ Levai-a lá p'ra bem longe/
levai-a lá p'rá moirama/ onde não haja pão nem vinho/ nem flor de rosmaninho/ nem se oiça
cantar o galo/ nem repenicar o sino”.
98
Como se verifica pelo simples enunciado, a tradição pagã, ou mesmo mágica, cruza-se
com o assimilado da missionação cristã: a flor do rosmaninho e o galo são a caução arcaica
do sino, do vinho e do pão.
O próprio facto de o recitante se dirigir a Santa Bárbara – há outra versão, com ligeiras
variantes, dirigida a São Jerónimo – indica uma forte implicação que tem a ver com a feição
mágica. Com efeito, a santa aparece nela mais como interlocutora directa do que como
intercessora.
Esta pequena incursão à guisa de parêntesis permite-nos exemplificar, na verdade
prática, o seguinte considerando: o rico imaginário rural, que sempre teve mais a ver com a
poetização que com a sacralização, foi durante os séculos sempre fortemente pressionado
pela presença obcecada da propaganda eclesial, com o seu cortejo de interdições, de
recomendações imperativas, de histórias de proveito e moralidade geralmente mais retiradas
ou vindas do preconceito do residente e da sua forma específica de encarar a mensagem de
Roma, que da religião (religare) como factor de interligação entre os mundos de baixo e de
cima, do espírito e da carne salutarmente postos em cena por uma harmonia cósmica. Não é,
assim, de estranhar que em paralelo com a figuração fideísta muito se contasse com as
capacidades das mulheres ou homens de virtude que, no plano da “possibilidade de
manobra”, da “capacidade operativa” além do quotidiano simples, estavam naquele espaço
ao nível do médico ou do sacerdote qualificados.
É fácil verificar, pela análise das histórias tradicionais do Ocidente e que na
contemporaneidade encontraram a sua mais ampla divulgação, que existe nelas, subjacente
ou mais expressa, uma forte carga sentimental-sexual inerente ao ser humano, por vezes
transparecendo sob o hábito ou o véu duma escamoteação cristã (como os templos sob as
ermidas...).
3. O maravilhoso é a face feérica do fantástico. O fantástico, por seu turno, gere as dúvidas
dum real subitamente colocado frente a factos que ultrapassam o entendimento linear. A
sua pátria é o medo que de repente cobra existência saltando para os interstícios que vão do
concebível ao possível. Como estranhar pois que o imaginário rural fervilhe de animais
embruxados, seres vagueantes por pinheirais e por colinas onde, nos tempos idos, com
frequência se ia colher a mandrágora, o heléboro e a camomila?
Profundamente ligados à terra, é daí que os rurais retiram as suas melhores horas,
ultrapassadas que foram pela modernidade e a contemporaneidade as dominações espúrias
da opressão anciã. As quais se espelham em contarelos, recitações e cantares. O cancioneiro
português popular tradicional – que nada tem a ver com o pacóvio ou pedante cançonetismo
da massificação, pimba ou nem tanto – é extremamente valioso e, mesmo ao nível do que as
canções ligeiras lhe foram buscar, muito rico e sugestivo. Há todo um sector que utiliza da
melhor forma os temas rurais e campesinos: cantares sobre a macela, o cuco, os namoros
junto à madressilva que ornava os logradouros, a ida às fontes vicinais, as desfolhadas e as
ceifas, as manhãs de neve dos dias invernosos ou as longas tardes de calor no pino do Verão
– tendo em alguns casos transbordado para a canção mais culta ou mesmo superiormente
elaborada (trago ao de leve Schubert à colação, com o que no seu país ao tema diz parte).
Os próprios factos e sucessos do imaginário citadino, científico ou apenas de relação
quotidiana (a ida à Lua e a existência de casos que tais, mas também a realidade de
comboios, de carros, de arranha-céus, os aprestos das casas e até os electrodomésticos) são
transfigurados até com ironia, ficando então a pertencer ao imaginário rural enroupados
embora com outro tipo de indumentária...
Se me observarem que esse cancioneiro rural é muito mais rico em Espanha, França,
Inglaterra, Europa Central ou do Sul, etc. - concordarei de imediato. Isso deve-se a dois
factores principais: a maior qualificação cultural daqueles lugares e a sua esquiva, mais
eficaz que neste pequeno país, ao caciquismo vivificado pela beatice e o atraso existencial.
99
4. Exemplifiquemos com uma pequena recitação que claramente aponta já para uma
miscigenação de imaginários (o que pode aliás ser um firme progresso e um sinal de
permanência salubre) e que me foi dada a conhecer numa região norte de Espanha: “Menina
de olhos risonhos/ aqui lhe deixo uma papoila/ para prender no casaquinho/Se andar de
carroça não a perca/ se andar de carro segure-a bem/ que o meu amor não a falseia/ E todos
os anos renasce/ como a água dos ribeiros/de manhã ou ao sol-pôr”.
Atente-se que em certas regiões da Europa Central as moçoilas são instadas a que não
tragam flores vermelhas nos vestidos, pois isso podia acarretar-lhes as miradas voluptuosas
e devoradoras de vampiros e assombrações semelhantes. Também é conhecido o facto de,
nas noites de lua cheia, se dever fazer boas provisões de flores do alho – que são brancas
com afloramentos amarelos – para manter afastados os fantasmas.
A literatura recolheu muitas destas tradições, glosando-as mediante contos e novelas
universalmente conhecidas. A poética, por seu turno, uma vez que lida intensamente com as
funduras inconscientes do ser humano, realiza em múltiplas direcções o mistério e os
enigmas do mundo, tanto nas cidades como nos meios rurais. Aí, dá-se com frequência uma
interpenetração dos signos, utilizando o artista símbolos comuns ao rural e ao citadino.
Deixemos agora, por alguns momentos, o nosso espírito vaguear um pouco pelos
bosques e pelas ruas. Pelos campos abertos ou pelos bairros de apartamentos e vivendas.
Aqui, encontramos os animais das quintas ou dos terrenos livres entregues à sua
existência peculiar entre as árvores e os arbustos ou nos cercados dos casais, tendo contudo
sempre, de longe ou de perto, a presença imanente do bicho-homem.
Ali, vemos gente que de dia ou de noite, a pé ou em transportes próprios ou comuns,
segue o seu destino entre casas ou, até, entre parques normalizados, rodeados pelo estridor
dos automóveis e das outras presenças humanas.
O imaginário é o que resulta de tudo isso e de tudo o que advém ou provém dos ritmos
que esses universos conformam, materiais ou espirituais. O rural encontra a estranheza e a
aventura nas luzes da cidade, para falarmos simbolicamente, enquanto o homem citadino se
descomprime e recreia excursionando pelo lugar quotidiano do outro. (Não é por acaso que
nos últimos tempos os operadores, sempre atentos, têm incrementado o turismo rural bem
como o turismo de aventura, ainda que este tenha especificidades e decorrências que não
iremos agora abordar). Se formos um pouco mais fundo, para além do óbvio, verificaremos
que havendo pontos de contacto existem igualmente, e bem marcados, pontos de ruptura
que podem inclusivamente transformar-se em pontos de transgressão de determinados
limites lúdicos. Constitui, a nosso ver, um índice de má-consciência da parte de certos
operadores públicos não se admitir que existem efectivas diferenças sensíveis entre os
mundos do campo e da cidade que os obrigam a terem um lebensraum (na acepção de
Friedrich Ratzel e não dos que depois viriam) que lhes determinam enfoque singularíssimo e
que deve encarar-se seriamente.
Giovanni Papini referiu mesmo, num dos seus textos teóricos/ensaísticos, que “A cidade
é uma represália à natureza selvagem”, entendendo-se como tal a tentativa de separação que
subjaz ao acto de concentrar em vastos aglomerados milhares senão milhões de seres,
quantas vezes absurdamente desconhecedores do que sejam os reais ritmos do dia e da
noite – para alguns citadinos mera passagem de luz a sombra e de sombra a luz – com todos
os seus prestígios seculares. “E foi então, enquanto descia a colina com a bicicleta rodando
serenamente debaixo do céu de Agosto, que me apercebi de quanto tinha esquecido as estrelas
que o enchiam desde os meus tempos de rapazinho”, para citarmos um fragmento de um
livro do escritor americano Ron McLarty.
5. Não estamos, é evidente, a propor uma opção que privilegie o campo em detrimento da
cidade, mas a acentuar a necessidade de se ter a noção clara de que é nos campos que, como
o Anteu da mitologia, podemos colher o que de mais salubre e plásmico vive em nós, no
nosso relacionamento com os tempos e a natureza das coisas vivas. E, dado que nos
mantemos apenas e só no plano da escrita, vejamos como um Almanaque – que durante
100
anos e anos foi a principal fonte de leituras do meio rural e ainda tem uma larga difusão – se
refere aos meses. Em relação a Janeiro, que é o mês em que se semeia o agrião mastruço, a
alface de cortar e os rabanetes de Inverno, reza assim: “Indo para Norte passam os bicos
cruzados e os estorninhos. Floresce a maonia e o heléboro negro. Em Stº António os dias
crescem a passo de monge. Dia de S.Mauro gelado, metade do Inverno está passado”. E em
relação a Agosto, mês correspondendo na esfera astrológica ao tempo dos mistérios dos
assírios e caldeus, quando no céu cintila a Vega inspiradora de magos e arquitectos, diz-nos
assim: “Passam voando em direcção ao Sul a galinhola, a cegonha, o maçarico real, a poupa,
o cartaxo, a narceja e a becoínha. Floresce o sol radioso. As avelãs estão boas. Quando chove
em Agosto chove mel e mosto. Agosto amadurece os frutos, Setembro colhe-os”.
Desnecessário é, creio, acentuar toda a beleza destas linhas simples e tão claras,
verdadeiros poemas involuntários contendo toda a carga inerente à simbiose homem-terra
da tradição, que vive em nós ainda que inconscientemente.
A imaginação, seja no campo ou na cidade, refuta exemplarmente a rotina e o hábito que
podem limitar a existência em plenitude. A poesia – que, não o percamos de vista – começou
por ser um acto de incursão e de reflexão sobre o sagrado e a natureza naturante (desde o
“Cântico de Gilgamesh” às “Geórgicas”, desde o códice maia do “Popul Vuh” quíchua ao “Os
trabalhos e os dias” - na verdade transtorna os tempos ao acrescentar-se ao imaginário, pois
mescla fórmulas de existência tanto no campo como na cidade. Os imaginários são uma
resultante do espírito do lugar ou, como queria Marc de Boislevy, “O nosso ser interior
depende não só da herança física dos nossos ancestros mas também do ar das moradias que
eles habitaram, dos rios que transpuseram e dos caminhos por onde viajaram quer o
quisessem ou não”.
É a poesia das coisas que nos rodeiam, somada à que se põe em letra de forma, dispersa
nos quotidianos, que constitui a ponte entre os dois mundos, fazendo a juntura tão cara, por
exemplo, aos filósofos per ignem.
A este propósito, convirá dizer – e ressaltar com a justa vivacidade – que muito do que
nos é apresentado e proposto como poesia popular e poesia popular rural não é mais que
produto delido e incaracterístico provocado por décadas de aculturação, de submissão
induzida ardilosamente a estuários poluídos que nada têm a ver com a forte, poderosa,
cintilante poesia das gentes não manipuladas. É frequente ver-se, em poetas pretensamente
populares – muito acatitados por certos autarcas maganões e de olho-vivo... - inflexões
espúrias provindas e incentivadas ou pelos moralismos de recurso (fideístas e outros de
igual coturno) que nada nos dizem sobre a agilidade, a graça, o perfume da grande tradição
cravada nas pautas campesinas e aldeãs. Nelas, frequentemente, se vê espalhada não a
religação mas a beatice, não o lirismo mas o casca-grossismo pindérico de arrivistas de mau
tom. Digamos, que não diremos mal, que é uma versejação visitada pelo piscar-de-olho
reducionista de citadinos que episodicamente trocaram a calça de ganga pela de surrobeca
dos caminhos secundários – até que de novo, enjoados da experiência, reentram na
autoestrada.
6. Os provérbios populares, com tantas ligações ao solo campestre, também nos dizem
muito sobre o como dos imaginários, sendo de notar que certos ditados com clara origem
camponesa passaram posteriormente, com alguma velocidade, para o outro imaginário: “Ao
homem farto até as cerejas amargam”, “Semeia-me na lama mas faz-me boa cama – diz o
trigo”. E a viagem também pode ser inversa: “Em sua casa governa o carvoeiro como galo em
seu poleiro”, “Redes no mar, moinhos de vento, benesses de padres, pomares de pessegueiros,
bens de rendeiros – chegam a segundos mas não chegam a terceiros”.
Repare-se que a denominada “sabedoria das nações” é simultaneamente constatação e
proposta, pelo que o seu percurso tem a ver tanto com as conclusões a que os séculos
chegaram como com aquelas a que alguns pretendiam fazê-los chegar imperativamente...
Temos pois que há um fundo comum aos dois imaginários que, a dada altura, se separa.
No espaço intestercial entre um e outro é que actua (quando não nasce mesmo) o imaginal,
101
assim encarado por Gilbert Durand. Este é, portanto, uma sequência mais profunda,
aritmética para além dos limites, completamente estruturante e vivificadora. As vivências
são diferentes bem como diferentes são os enfoques, logo os resultantes que deles partem. E
se é verdade que em boa medida vivemos numa aldeia global, no fundo ainda persistem no
Homem os ruídos nocturnos dos grandes espaços sob a Lua silenciosa. A assumpção da
cidade não pode nem deve ser a recusa da Natureza sob o pretexto de que é nas cidades que
reside a mais alta civilização. A proceder-se assim haverá cortes bruscos no imaginário,
separado de si-mesmo por via dum recalcamento societário que tenta recusar a
multiplicação dos signos legítimos a que só os grandes ritmos da Terra têm acesso. É desta
autêntica supressão imaginal que provêm as disfunções, como sejam por exemplo os
selvagens ritos de passagem que consistem ora no massacre sobre golfinhos, havida
ciclicamente nas Ilhas Faroe da civilizada Dinamarca, ora de jericos da orla desértica
efectuada por povos islâmicos barbarizados.
Embora na hora actual as gentes do campo sejam, como maioritariamente as das
cidades, atingidas pela protérvia primarizante dos mídias, a proximidade da terra e do ritmo
bem marcado das Estações permitem-lhes raciocinar o mundo duma forma mais plástica,
mais povoada de elementos reconhecíveis como estrelas e sóis.
O que se lamenta, portanto, é que a cidade – tão gratificante a vários títulos - encarada
como concentração abstrusa de seres e não como um agregado de humanizados, de pessoas
unidas para um fim comum de maior capacidade intelectiva, criativa e imaginativa, integre e
propague tão mal um imaginário crivado de sedimentos, fracturas, frustrações e, nos casos
limites, criminosas infelicidades. Há um imaginário citadino de forte poder criativo (mas
atente-se no que se passa em certas áreas de Madrid, de Paris, Sevilha ou Bruxelas, para
citarmos apenas estas que conhecemos e que muito estimamos; não falando noutras como S.
Paulo, Calcutá ou Teerão - nestas duas últimas, para tal concorrem coordenadas provindas
do fanatismo extremo e de reclusão existencial e governativa).
Claro que em tudo isto têm parte fundamental os desvigamentos sociais oriundos da
modernidade mal articulada por uma economia egoísta e cínica ou pelo império das religiões
(mal) reveladas
Como exemplo mínimo, na área do desporto-espectáculo (haverá algum elemento mais
citadino do que o futebol?) cada vez mais se acumulam - depois de despertados por um
ambiente de inércia propositada do eticamente desqualificado sistema judicial - os tiques
violentos expressos, que têm a ver com um ambiente cuidadosamente construído por
operadores de tendência ideológica intrinsecamente totalitária, os quais repescam dados
dum passado sinistro (como os grupos de ginástica e desporto do regime pré-nazista) para
os aplicarem de maneira actual e contundente (as célebres pandilhas de hooligans ou das
claques clubistas adeptas da brutalidade codificada).
7. Grosso modo, mas de forma adequada, poderíamos definir os imaginários como activos e
reactivos. O imaginário rural é mais activo que reactivo, pois tem a ver principalmente com a
maior proximidade da natureza da qual tudo parte basicamente. O imaginário citadino será
reactivo na medida em que é, em grande parte, produzido pela opinião pública e as relações
intrincadamente sociais.
É isto que produz frequentemente a ideia, aliás errónea, de que as gentes do campo
seriam incultas, uma vez que o imaginário corrente ou dominante, nos locais expressos das
instituições, é genericamente de origem citadina. (Estamos a lembrar-nos de uma comédia
australiana, muito famosa há uns anos, protagonizada por um bushman branco que,
transplantado por uns tempos para a cidade, choca a sua sabedoria “primeva” mas eficaz
com a sofisticada parolice dos metropolitanos).
O imaginário rural depende de outros factores, o que não o torna mais nem menos
valioso que o outro, a nível comparativo, sendo a inversa igualmente verdadeira. É curioso e
muito instrutivo, salientemo-lo, verificar que os pintores impressionistas, vincadamente
citadinos e com os quais nasce a modernidade nas artes plásticas e, mesmo, a tradição da
102
pintura como tal, como Jean-Dominique Rey assinalaria, conseguiram mesclar cidade e
campo ao procurarem uma mais adequada solução para o problema posto pela evolução da
pintura: lembremo-nos de Renoir com as suas telas fixando os bailes citadinos populares e,
paralelamente, aquelas em que nos dava trechos de caminhos boscosos subindo entre ervas
altas ou as florestas e parques vicinais nos limites de Paris. Ou de Van Gogh e os seus cafés e
ruas de Arles ou Saint-Rémy, as herdades jucundas de Crau, as ceifas em Auvers-sur-Oise.
Ou de Cézanne com a sua montanha de Sainte Victoire a par do casario de Aix-en-Provence.
Um dado importante e significativo, que aqui deixamos ao leitor: as histórias fantásticas
são em geral situadas no campo ou nos solares da periferia. Por seu turno, são raras as
histórias policiais ou de terror ambientadas no campo. Evidentemente que há algumas
excepções, que canonicamente confirmam a regra. Contudo, podemos afirmar sem exagero
que os monstros sociais (serial-killers, endemoninhados e criminosos) pertencem ao
imaginário e ao universo das cidades, ao passo que os monstros fantásticos pertencem ao
campo ou têm nele a sua origem (Drácula, Frankenstein, Werewolf, os Vrucalacks).
Serve dizer: o mundo rural excursiona primeiro pelo feérico e só depois pelo fantástico e
o inquietante; o citadino pelo inquietante, o fantástico e finalmente pelo feérico (Walt
Disney, citadino perfeito com os seus encantadores animais antropormofizados, até tem um
enorme e significativo parque temático na cidade mais cidade conceptual que há – Paris).
8. Para finalizar convirá assinalar, ou recordar, que ultimamente se tem perfilado na grei
uma certa movimentação de “regresso à natureza”. Evidentemente que é a nostalgia que fala
e não procurarei agora saber se tal é bom ou mau ou se corresponde a sentimentos
verdadeiros ou a simples moda. A tendência, corroborada por propostas de especialistas, é
para os agregados humanos se tornarem mais fluidos, mais soltos e agilizados. Há muitos
pensadores e publicistas, desde os tempos de Georges Simmel até ao mais chegado George
Pérec, que contemplaram o facto de que se caminha para uma recuperação da existência
campestre, através da análise exaustiva da vida na cidade.
O que arrasta a construção de outras inflexões na estruturação do imaginário.
No fundo, dentro dos de maior qualidade, ou exigência se se quiser, agita-se uma clara
possibilidade de interpenetração dos dois imaginários, o que corresponde a uma
interpenetração das duas vivências, cada um facultando novas possibilidades, fornecendo
novas virtualidades que devem encarar-se com perspicácia. Dizia Fernando Batalha, nos
tempos em que apoiou o célebre humorista Coluche que até efectivou uma sensacional
candidatura à presidência da República francesa, que “Vivo no campo como se vivesse na
cidade e vivo na cidade como se estivesse no campo”.
Em todo o caso, ambos podem fornecer uma certa herança que seria estulto desperdiçar.
Na forma de articular esses dados é que o caso fia mais fino, mas há ainda um vasto campo
de afirmação que, esperamo-lo e desejamo-lo firmemente, não tornará invisível o que de
melhor e mais salubre os dois imaginários possuem.
Diferentes, com pontos de contacto que não anulam essa mesma sensível diferença, é
preciso que se deixem vivificar pelo livre sinal da mão daqueles em quem a imaginação é
uma chama que continua a tremular, ainda que com altos e baixos, no escuro da noite - no
meio duma floresta ou entre casas que poderão até ser de renda económica...
In: “Nigredo/Albedo, o livro das translações”
Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como
Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000). Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista
convidado desta edição de ARC.
103
OMAR CASTILLO | Lo subversivo en La valija de
fuego de Aldo Pellegrini
I. Mínimo contexto literario | En la literatura escrita en Occidente en las primeras décadas
del siglo XX, los poetas y novelistas, aprovechando las experiencias desarrolladas por
distintos autores en el siglo XIX, buscaron penetrar el tejido del lenguaje hacia otras
manifestaciones de aprehender la realidad. En sus búsquedas las palabras fueron sopesadas
hasta la exasperación, al punto de llevarlas a relaciones y analogías al límite de lo arbitrario,
consiguiendo con ellas rasguñar el ideario por donde el ser humano era, y es, conducto a la
domesticidad de sus instintos y percepciones. En ese momento era necesario para los
creadores descubrir las tramas que arman las nociones que sobre el mundo quieren
prevalecer y lo hacen aberrante en sus principios e imaginarios, mundo signado en estímulos
surtidos por el lastre del “pecado original” que terminó por imponer lo laboral como dogma
de vida y, desde ese dogma, una ética y una estética.
Entonces, escarbando en los abismos de la realidad, los poetas y los novelistas se dan a
una escritura próxima al vértigo del abismo mismo, se dan a la tarea de encontrar imágenes
y percepciones antes no concebidas para la literatura y para el ejercicio de la existencia
humana. Tales experiencias entran a la literatura y hacen la expresión de un mundo casi
inédito, un mundo no compacto en sus principios y en el cual no es posible determinar el
destino de la condición humana, ni el de la naturaleza en cualquiera de sus manifestaciones.
Es así como estos autores producen una escritura comportándose como el caos del universo
que no se detiene en su constante creación. Experiencias que hoy resultan fundamentales
para entender la realidad y sus contextos históricos e imaginarios.
En Hispanoamérica, en las primeras décadas del siglo XX, estas experiencias fueron
practicadas por los poetas y novelistas que fundaron sus escrituras en los logros
conseguidos por los escritores que los anteceden y se agruparon bajo el signo del
Modernismo. Las posturas vanguardistas que los caracterizarán, y desde las cuales buscaron
perfilar sus obras, evidencian los contrastes, diálogos y rupturas que establecen con el
movimiento Modernista y con el acontecer literario y cultural de Occidente y el mundo.
II. Inicios de Aldo Pellegrini | En Buenos Aires, en noviembre de 1928 se edita el número 1
de la revista literaria Que, y en diciembre de 1930 se edita el número 2 y en ellos, como
constancia de los inicios de una obra, quedan impresos los primeros textos y poemas de
Aldo Pellegrini (Rosario 1903, Buenos Aires 1973), firmados bajo los seudónimos de Adolfo
Este y Filidor Lagos. Esos únicos números de la revista Que fueron la expresión de las
experiencias compartidas por un grupo de amigos reunidos alrededor de sus búsquedas
vanguardistas, en particular la que los aproximó al grupo surrealista en cabeza de André
Breton. En el “Pequeño esfuerzo de justificación colectiva” texto que abre el número 1, se
lee: “justificación de esta revista: Buscar en la expresión la evidencia de nuestra propia y
oculta estructura (palabra, espejo del hombre) y quizás también algo como una necesidad
irresistible de pensar en voz alta”. Los otros integrantes de la revista fueron Marino Cassano,
Elías Piterbarg, David J. Sussman e Ismael Piterbarg. Todos acudieron al uso de seudónimos
para firmar sus textos y poemas.
Así daba inicio Aldo Pellegrini a su amplia e íntima labor poética en la Argentina y en
Hispanoamérica. En esta labor es apreciable su capacidad de difusor de la obra de poetas y
artistas que con sus creaciones oxigenaron los ámbitos culturales de su momento. Además
de su activa participación en la fundación y en la edición de varias publicaciones y revistas
literarias, dirigió la colección Los Poetas, publicada por Fabril Editora y lanzada en 1961,
colección con la que contribuyó al conocimiento de un amplio espectro de la moderna poesía
escrita en Occidente, en ésta publicó su selección y traducción de la Antología de la poesía
104
surrealista de lengua francesa, libro que permitió a más lectores entrar en contacto con la
escritura de los iniciadores del movimiento surrealista y de algunos de sus asociados.
Otro de los característicos aportes de Aldo Pellegrini es la edición que hace, en 1963, de
su traducción de las Obras completas del Conde de Lautréamont: los Cantos de Maldoror,
Poesías y Cartas, con un estudio detallado sobre la existencia y la obra de Lautréamont, sus
orígenes literarios y su contexto creador. También edita en 1971 su traducción del texto de
Antonin Artaud: Van Gogh, el suicidado por la sociedad, con un prólogo: “Artaud el enemigo
de la sociedad”, donde hace claridad sobre la condición del poeta en estos tiempos de
intemperie y oscurantismo.
En la escritura de sus estudios y ensayos Aldo Pellegrini es punzante, pues en ellos se da
a desenmascarar las artimañas de quienes ofertan la poesía como un espectáculo huero. Al
descubierto quedan los intereses de aquellos que pretenden empotrar la poesía como un
producto más de la sociedad de consumo, buscando desactivar su impacto revelador y,
también, deslegitimar los sentidos del acto poético cuando no se somete al servicio de las
cuadrículas donde ellos imponen las condiciones y los impuestos para la existencia.
III. Primera edición de la poesía completa de Aldo Pellegrini | En octubre de 2001 la
Editorial Argonauta publica la primera edición de La valija de fuego (Poesía Completa) de
Aldo Pellegrini. El libro se abre con una “Nota del editor” y precede la compilación un ensayo
de Pellegrini: “La acción subversiva de la poesía” tomado de su libro Para contribuir a la
confusión general (1965). La compilación y notas son hechas por Mario Pellegrini. En el
apéndice se reproducen textos de Rodolfo Alonso, Edgar Bayley, Enrique Molina y Francisco
Madariaga.
La reunión de la obra del poeta se abre con Que (1928-1930), donde el compilador agrupa
los poemas y textos que Pellegrini publicara en la revista arriba mencionada. En los poemas
reunidos en Que es evidente el automatismo como fuerza que permite a las palabras
alcanzar una noción de la realidad a través de imágenes que se exploran en el acto de la
construcción y deconstrucción de sus significados y, por ende, de sus contenidos. Palabras
en imágenes igual a un “Remolino inacabable de frases apasionadas”, tal como se puede leer
en uno de los textos, el titulado “Preferencia por los signos de olvido”. Estos poemas son el
resultado de una experiencia no sujeta a la lógica del discurso poético impuesto por las
preceptivas del oficialismo literario de entonces, son ruptura e inicio, provocación y
malestar, son los inicios y constantes en expansión que se podrán apreciar en la obra toda
del poeta Aldo Pellegrini.
Después de Que, el lector se encuentra con El muro secreto (1949), primer libro de
poemas de Aldo Pellegrini, publicado inicialmente en edición de 250 ejemplares numerados.
Son más de 19 años entre la publicación de los textos y poemas que el compilador reúne en
Que y los que componen El muro secreto. Completan la edición: La valija de fuego (1952),
que se abre con un epígrafe de Gracián: “Todo este universo se compone de contrarios / y se
concierta de desconciertos”, versos que bien podrían abarcar la obsesión poética donde se
funda la escritura de Pellegrini. Construcción de la destrucción (1957), Distribución del
silencio (1966) y Otros poemas (1952-1972), donde se reúnen los poemas publicados por el
poeta en distintas revistas a lo largo de esos años.
El libro se cierra con: Escrito para nadie (1972-1973), del que se dice en nota del
compilador: “Este libro no llegó a ser terminado. Se encontraba en proceso de elaboración al
fallecer su autor, en 1973. Varios poemas esperaban la corrección definitiva; es probable dada la extrema exigencia que se imponía en su trabajo- que muchos textos hubieran sido
excluidos…”. La primera edición de Escrito para nadie fue hecha por Editorial Argonauta en
1989 en Buenos Aires, ciudad donde fueron publicados todos los títulos aquí nombrados.
El texto impreso como prólogo en Escrito para nadie revela la elíptica donde fue
haciéndose la obra poética de Aldo Pellegrini. Allí el poeta nos dice: “La poesía es una gran
aventura. // Cada poema es una nueva aventura y una exploración. Aventura en los
continentes desconocidos del lenguaje, exploración en la selva virgen de los significados. La
105
poesía quiere expresar con palabras lo que no pueden decir las palabras. Cada palabra tiene
un secreto mágico que es necesario extraer. Pero en definitiva, admiro sólo a los aventureros
de la vida. En cuanto a mí, me resigno a ser un aventurero del espíritu”.
¿Qué sucede cuando se lee la escritura de una obra poética fundada en la aventura por
habitar los contrarios que surten y hacen posible la realidad, la otredad de la conciencia
humana? ¿Una obra en poemas cuya escritura persigue asumir las estructuras y ritmos
constantes en los que se suceden y modifican las percepciones de tal realidad u otredad? ¿En
una escritura así, cuál es su posible trama o cómo se establece su contenido? En los poemas
de Aldo Pellegrini se asiste y participa de la aventura vuelta escritura explorando, ya lo
prohibido, ya lo inconcebible en un mundo enrarecido por las doctrinas del lugar común. Sus
poemas asechan detrás de los anuncios convencionales de lo nombrado sueño y vigilia. En
ellos los versos deambulan por un dibujo en constante elaboración, generando imágenes que
pueden ser vistas como desde la lente de un caleidoscopio, es decir, pueden ser leídos desde
cualquier orden o disposición. Son poemas que crecen como un caudal de palabras
explorando y abismándose en la formulación de sus interrogantes ante la existencia
exuberante, al tiempo que atroz, donde cunde lo humano.
Los extensos versos de los poemas de Pellegrini, o su establecimiento rayano con la prosa,
inundan la página buscando imantar la atención del lector hacia una lectura de vértigo,
asombro y malestar. Un malestar producido por el sacudimiento que las imágenes de tales
versos consiguen causar en las realidades condicionadas del lector. Cabe anotar que en la
escritura de sus poemas el poeta emplea la puntuación como si de pronto se acordara que
esta existe, casi de manera caprichosa. Lo cual en ninguno de los casos amplifica o entorpece
su ritmo. Tal puntuación queda gravitando en el total de su obra poética como los
fragmentos de un silencio que se resisten al olvido.
Para Aldo Pellegrini la poesía es subversiva. En la escritura de sus ensayos y ante todo en
la de sus poemas, acude a esta significación arrancándola de las dotes que le han impuesto
quienes pretenden ajustar las realidades subversivas a actos de violencia y terror. En su
escritura ser subversivo es desobedecer cuanto somete y reprime la existencia humana hasta
convertirla en una entidad mutilada, en un montón de retórica útil para la usura y la
pornografía social. Su postura advierte sobre como es degradada la lucidez poética cuando
lo subversivo es condicionado por ideologías redentoras cuyos eslóganes amparan formas de
reprimir en nombre de la inclusión y bajo una ensoñación tramada como “libertad”. Para
Pellegrini la poesía es “vivir hacia lo ilimitado”. Lo ilimitado como el vacío donde se
fundamenta el acto creador. Acto absolutamente imposible para quienes existen sin ver las
maniobras que encubren la realidad y perforan la libido de la vida.
Pensar y comportarse así no produce simpatías, hace parecer que se está fuera de lugar y
contexto, que no se es poético. Empero es un reto necesario, hoy, cuando a la poesía se la
quiere disfrazar de muñeca lúdica para espectáculos donde es desactivada de su poder
subversivo, es decir de su capacidad de producir pensamientos y comportamientos que
confronten los estigmas catárticos de la obediencia.
Ante un mundo pronosticado para la usura y el oscurantismo ilustrado, y unificado al
amparo de tales pronósticos, la experiencia asumida por Aldo Pellegrini en su aventura
poética, le permite a un lector próximo a la poesía reflexionar sobre las realidades expuestas
desde la acción poética, es decir, reflexionar sobre la realidad de la existencia misma.
Omar Castillo (Colombia, 1958). Poeta, ensayista y narrador. Ha publicado libros como
Garra de gorrión (1980), Relatos de Axofalas (1991), y Leyendo a don Luis de Góngora (1995).
De 1984 a 1988 dirigió la revista de poesía, cuento y ensayo Otras palabras, de la que se
publicaron 12 números. Desde 1985 dirige Ediciones otras palabras y, desde 1991, la revista
de poesía Interregno, de la que se han publicado 20 números. Contacto:
[email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista
invitado de esta edición de ARC.
106
Paulo Sposati Ortiz | Thomas Rain Crowe e os
Postais do Peru
1. A OBRA DAS CULTURAS ABERTAS
Eles dizem: “urwarmaki.” O que significa: “mãos de
sangue.” E que mãos estão limpas, sem sangue, entre
os que tomam as terras dos outros? (pg. 16, ‘Querido
Nate’, “Postais do Peru”)
Quem sai de casa e deixa para trás tudo com o que conviveu, logo se lançando a uma
terra diferente da sua, esse homem será um eterno aventureiro. Mesmo quando retornar, não
será senão, entre conhecidos, o estranho, e um sabor de Ítaca a deixá-lo, para sempre, longe
de seu doce lar. De agora em diante, talvez seu olhar somente sinta familiaridade em outro
tão perdido quanto, turbulento espelho d’água no qual as origens, de repente, se tocam por
estranhamento, por curiosidade.
Thomas Rain Crowe e seu livro “Postais do Peru”, lançado pela Sol Negro Edições em 2013,
com apurada tradução de Márcio Simões, pertencem a esse lugar, por excelência utópico.
Livro composto por poemas e breves cartas, apolineamente intercalados, sugere uma
ondulação entre os versos, muitas vezes narrativos, e as anotações de viagem para amigos
também artistas, elas, quase sempre, poéticas. Assim, o lugar debaixo de nossos pés muda
de lugar. E o hibridismo não para aí: não contente em questionar o gênero em literatura,
nosso autor avança nessa empreitada, fazendo a língua, aos poucos, em frangalhos, na qual
torna palpáveis aqueles relatos, pois mescla a sua àquela língua nativa, num jogo pueril, a
princípio, mais complexo a cada página folheada. Uma pequena amostra disso, extraída
apenas dos poemas, está na compilação a seguir:
“An aurora borealis du Sud/ as we split distance”; “Red of cochinilla worm”; “I’m drinking
chicha in the Cesar Vallejo Bar” e “on the chicheria wall”; “would be to grace the chicha
with his name”; “In Spanish we have the spression ‘Yo no sé!’”/ In Quechua means ‘Imach
Kampas!’; “Go slowly, slowly.../ Vámonos!”; “The big blue label on every bottle of water in
Peru says: sin gas”; “and gallons of sin gas”; “CURANDERO”; “the mestizo medicine man
prepare a low altar”; “fetus of llama, starfish, colored fleece, corn, wayuro seeds, algae,
magnetic rock, sugar, kaniwa”; “Place on alpaca cloth”;“Papas, llama fat and silver stars”;
“like/ a puma / prowls near/ Intihuatana/ in clouds”; “where alpaca graze/ beneath/
Torreón door”; “The town the Quechua call Ollantaytambo”; “Somewhere that was now
here when native people danced for days drinking chicha along this figures of animals
and”; “Very poor. Barrios: cities of shrapnel”; “our soles for Inca Kola and chirimoya
shaded by umbrellas from the noonday sun”; “a mestizo medicine man/ had told me that
in Chinchero”; “With the curandero’s words still in my ears,/ I put down my axe”.
Repare que Crowe transtorna, com termos e expressões em espanhol, o fluxo da língua
inglesa, confundindo a construção frasal com inserções, até sintáticas, desde a mera citação
à inclusão selvagem de outro território em seu registro, e, distraído, recolhendo, da
paisagem por que passa, objetos simbólicos deste lugar que não lhe pertence. No instante
em que tais brincadeiras, bastante perigosas, se armam, o poeta remetente parece se
transmutar no relatado, numa sutil vivacidade que exige de seus leitores uma cumplicidade
de turistas literários, ou melhor, literalmente turistas no reino do símbolo, obrigados, cada
vez mais, a se virar com o mínimo de familiaridade que lhe resta no subconsciente oral da
linguagem.
107
O que deveria ser uma simples resenha ganha ares de pretensioso ensaio, sendo a
questão por ele pressuposta maior que um simples relato. Voltemos um pouco no tempo, a
fim de vislumbrarmos, de ombro a ombro, de que lugar, longe dos lugares familiares, vem
esta proposta da palavra, alguns poderiam dizer, helenística.
2. CRIOULO É A RAIZ DA LIBERDADE
Prossegui até a cidade de Sevilha e encontrei três
navios preparados para uma viagem ao Rio da
Prata, uma terra nas Américas. Essa região, o rico
Peru, que tinha sido descoberto alguns anos antes,
junto com o Brasil, formavam um só continente. (pg.
43, ‘Capítulo 5, Primeira Parte’, “Hans Staden”)
O hoje conhecido spanglish, dialeto usado entre falantes de países latino-americanos
residentes nos Estados Unidos, tem como vovô o pidgin, sistema linguístico rudimentar
baseado na língua do colonizador, da Era das Grandes Navegações. Se desejarmos ser mais
ousados, o Período Helênico seria o ancestral comum entre ambos, no qual a fusão de
culturas distintas foi a forma encontrada para a manutenção de territórios conquistados.
Porém, nossa embarcação não irá tão longe, capturada pelos descobrimentos portugueses.
Quando os comerciantes quiseram fazer suas transações nas novas plagas aportadas, se
viram perdidos entre dois códigos e nenhuma moeda de troca oral, além de mímicas e
prováveis tradutores repentinos; então, a zona fronteiriça entra em ação, a gestar acordos de
comunicação econômica, abreviadas pela urgência, pelo desejo de ser entendido, mesmo que
no gelatinoso desentendimento geral. Línguas, ao trocarem suas peças de lugar, questionam
a hierarquia, até quando a diglossia subjacente ainda pretende afirmar uma distância
politicamente correta. Já era: quando nos confundimos com alguém, ainda mais a partir da
língua, o plano da sedução instaura outro reino, sempre contrário aos desafetos.
Mais ainda: a forma econômica da linguagem nesta barganha que os fatos nos impõem
tem um fundo, por excelência, poético, de condensação criativa, nascida de um olhar em
deslocamento. Seria essa a razão para Rimbaud, nos primórdios da literatura moderna &
absoluta, inserir termos em alemão, em inglês, para o completo ódio dos franceses? No
“Iluminations (Painted Plates)”, título já na língua de Crowe, há este desfile selvagem:
‘Being Beauteous’, “squares”, “wasserfall”, “confort”, “inquestionable” (criado por analogia
à “unquestionable”, segundo Rodrigo Garcia Lopes), ‘Fairy’, “brick”, “embankments”, “pier”,
‘Bottom’, “strom”, “stock” e “spunk”
até nos depararmos com “Voici le temps des Assassins” quando todos os sentidos são
distorcidos, pois a origem árabe do vocábulo “Assassinos” tem a conotação de “fumadores
de haxixe”, os “hashashin” (segundo interpretação de Claudio Willer).
Se na lógica de Rimbaud o outro é eu, Thomas Rain Crowe toma partido de um spanglish
às avessas, o inglañol, como cunhou Salvador Tió, linguista e humorista porto-riquenho,
politizando poeticamente sua viagem, os relatos feitos a amigos e versos surgidos depois de
sua temporada no Peru.
Leiam, no poema a seguir, demonstrações do que foi afirmado:
THE GUIDE
O GUIA
for David Machicao Oliveira
para David Machicao Oliveira
We are today in Ollantaytambo.
108
Hoje estamos en Ollantaytambo.
In this place was one Inca ruler.
Aqui tinha um soberano inca.
Whats happen?
O que houve?
I an going to tell you.
Voy contar a você.
Here, there are many walls.
Aqui, tinha muchos muros,
For szample… we are going to see
Por ejemplo… veremos
many big rocks. How they are made?
muchas piedras grandes. Como foram feitas?
No one can splain this. No one knows.
Ninguém puede explicar. Ninguém lo sabe.
These are not the same “muddy bricks”
Não são los mismos “tijolos de barro”
that are built the houses. No.
que se utilizan em las casas. Não.
These are especial rocks brought here
São piedras especiales trazidas aqui
from five or six kilometers away.
de más de cinco ou seis quilômetros de distância.
How these big rocks get here?
Como essas piedras grandes llegaron aqui?
No one knows…
Ninguém lo sabe.
In Spanish we have the spression “Yo no sé”
Em español decimos “Yo no sé”
In Quechua means “Imach Kanpas!”
Em quécua se dice “Imach Kanpas!”
No one knows…
Ninguém lo sabe...
What are know, is
Lo que se sabe, é
that the womens are never sleeping in this place.
que las mujeres nunca dormían aqui.
Only men, priests are living here.
Só los hombres, padres vivían aqui.
But you will see ˗̶ where this man sleepedd,
Mas verás ˗̶ donde dormían los hombres,
there was no bed.
Não había cama.
When I was a children, I
Quando era niño, eu
went to my grandmother’s farn.
ia a lo sítio de minha abuela.
And there, I was not sleeping on a bed.
E ahí, eu não dormia em la cama.
This is tradition, here.
É costume, aqui.
Sonetimes there are beds,
109
Às veces hay camas,
and sonetimes not.
às veces não.
Tomorrow, we can go to Cusco.
Amaña, vamos a Cuzco
In Cusco, there is this place: Sacsayhuaman.
Em Cuzco, tiene este lugar: Sacsayhuaman.
Some ’mericans call “sexy woman.”
Alguns americanos llaman “mujer sexy.”
Some rocks there, even bigger.
Hay piedras lá, incluso más grandes.
You will see. We are going to go there.
Ya lo verás. Vamos lá.
Is twelve thousand feet.
É cuatro mil metros.
No problem.
Não hay problema.
Is easy.
É muy fácil.
Today, we are climbing stairs.
Hoje, subindo escadas
Go slowly, slowly…
Lento, lento...
Vámonos!
Vámonos!
3. AH! COMO NOS SENTIMOS MAL NA MINHA PELE!
Nosso guia nos disse, hoje, que o verdadeiro nome do
idioma andino é: “juna simi.” Significa “saído da
boca do homem.”. (pg. 16, ‘Querido Nate’, “Postais
do Peru”)
Seguindo a radical tradição rimbaudiana, nosso autor deságua na crioulização da
literatura atual, em refinada conversa com o Henri Michaux de “Ecuador” (1929), exemplo a
ser ampliado num dos tópicos à frente. E o que seria isso, crioulizacón lapsus litteris? O
instante em que o eu-lírico decide abandonar os limites do próprio corpo e desafiar a
improvável travessia pelo Outro completamente diferente, possível apenas na poética da
possessão, distinta daquela que observa e reproduz uma cópia infiel.
Sabemos: o fundamento de qualquer representação é a imitação; se arte é fingir, com a
maior eficiência, que a realidade apresentada não é ficção, o princípio racional da arte é a
mentira, e a imitação é o instrumento mais perspicaz para confundir o receptor daquilo que
se mostra. Porém, a arte nunca será veículo de realidade, se não comungarmos, com ela, a
mesma mentira, fundidos na mesma crença, encantados pelo objeto, por que não, de
adoração.
Na entrevista dada a Floriano Martins, Thomas Rain Crowe discorre sobre a importância
que
o
sagrado
ganhou
ao
longo
dos
anos
(http://www.revista.agulha.nom.br/ag53crowe.htm):
FM Lamantia observa que no Surrealismo tudo começa com o sagrado, com a premissa de
que poeta individualmente procura o velocino de ouro em si mesmo. O que procura
Thomas?
110
TRC Eu penso que teria que concordar, amplamente, com ponto de vista de Lamantia,
aqui. Eu não comecei como poeta pensando que tudo começava com o sagrado, mas com
o decorrer do tempo eu passei a acreditar que, no fim, é o que é o mais importante. Que a
poesia é parte de um ato sagrado, e tem implicações sagradas. Eu diria que, embora eu
ame escrever poesia pelo puro prazer do ato, ao se levar em consideração o resultado, eu
esperaria que meus poemas contivessem, aos olhos de meus leitores, algo de sagrado. E,
sim, está tudo em torno da busca pelo “velocino” de ouro dentro de mim mesmo. Já que a
verdadeira busca do poeta é encontrar a si mesmo ou a si mesma e encontrar o “ouro”
(num sentido metafísico) na natureza de uma pessoa – para penetrar nesse veio e minerálo (escrever) em benefício de todos, não apenas para si mesmos.
Nesse estágio, a imitação não é apenas um instrumento adulto, leia-se domesticado, de
representar realidades, mas possessão, como nas crianças, ao serem atravessadas pelo
encantamento, quando não necessidade de se comunicar numa língua ainda desconhecida
para elas, e suas mãos e seus rostos são papel em branco no qual se apresenta o sensível.
Por isso, a primeira forma de reprodução foi nomeada de infiel, quando a finalidade é o que
importa; no segundo caso, o meio é soberano, e todos nós seremos possuídos se
experimentarmos, com ele, a impossível, mas provável, travessia real.
Se houvesse espaço e fosse lugar para isso, poderíamos dissertar sobre a diferença entre
o teatro brechtiano e o artaudiano quanto a essa questão, exemplares das duas vertentes
citadas, mas precisamos seguir em frente, voltando, novamente, alguns séculos.
Michel de Montaigne surpreende, em pleno século XVI, com sua visão do paraíso
selvagem, em “Sobre os Canibais”, a Europa, acostumada, desde a Grécia Antiga, a retirar a
alma de tudo o que lhe fosse estranho, dos negros às mulheres, escravos da concepção
fundada na imagem e semelhança daquele que observa. Os bárbaros são, segundo o ensaísta
francês, humanos como nós, e todos cruéis à sua maneira, diferente noutra chave àquela de
Rousseau, cristã demais para um verdadeiro atravessador.
A antropofagia manifesta por Oswald propõe que a História seja feita por esses bárbaros,
deglutindo a cultura estrangeira para a nossa própria interpretação, que o enredo de Hans
Staden fosse levado às últimas consequências; houve instigante espetáculo, “Regurgitofagia”
(Michel Melamed, 2004), numa tentativa de rever esta teoria hoje, saturada de informações e,
quem sabe, estranha à dialética da colonização.
Creio na aparição de um bem-aventurado, aquele cuja sina é a de parodiar a linha
evolutiva da História da Arte a partir do Paganismo literário, visão esta paralela à do cânone,
num ideal romântico da singularidade, mas também verdadeiros criadores de problemas
para o centro de domínio. Esses, sim, conhecedores da periferia da alma, não aquela
geográfica e desculpinha para mantermos o velho jogo hierárquico entre vítimas e algozes. O
Paganismo literário é, antes de tudo, libertação.
4. MINÚCIAS QUANTO À DESAPARIÇÃO
Com isso em mente, e inconscientemente, que seja feita a recepção, à porta de “Postais do
Peru” de Thomas Rain Crowe, em forma da, até agora, prorrogada resenha.
4.1
Para um povo que não tinha linguagem escrita, o
inca moderno é certamente apaixonado pela leitura!
(pg. 11, ‘Querido John’)
O livro começa por um poema e termina por outro, emoldurando os demais, e deles
separados. Entre eles, os cartões-postais são coligidos, logo em seguida complementados por
um poema. E aquele primeiro, ‘As Luzes do Sul’, anuncia a ida para o Peru e o que reserva a
111
travessia de avião, visão de cores de um “vão de arco-íris” também presente no “traçado dos
tecidos quéchuas”.
Em ‘Querido John’, parte da perspectiva literária (livrarias, nome de escolas, poemas de
Che escritos lá, pichações e escritor candidato à presidência) para fazer uma análise da
capital do país e como a vida, flechada pela escrita, implica outra dimensão política. O nome
do bar, em ‘Tomando Chicha...’, amplia a investigação da importância da literatura e a fama
dos escritores, no caso, o do poeta peruano Cesar Vallejo.
Ao vermos as primeiras linhas de ‘Querido Nate’, adentramos, com Crowe, no universo
histórico daquele país, e já percebemos como ele inverte os papéis, um norte-americano
criticando seu país de origem ao tomar partido dos seus queridos estranhos, “os
descendentes dos incas”, e o quanto o seu destinatário, também escritor e ativista, também é
uma voz singular, com “sua decisão de ficar do lado dos povos indígenas”.
Em ‘O Guia’ (já inserido aqui, ao final do Tópico 2), sua voz se une à personagem do título
da breve carta, a misturar uma língua com a outra, transferindo para a linguagem aquela
perspectiva política libertária, de fundo poético.
4.2
Assim,
suas
vidas
tornaram-se
a
ironia
esquizofrênica de ter que andar, simultaneamente,
em dois mundos. (pg. 20, ‘Querido Bobi’)
A religiosidade é o tema de ‘Querido Bobi’, o predomínio de igrejas católicas, monopólio
da invasão espanhola, em detrimento da cultura inca, e a luz em Cusco, “irmã mais escura”
da “italiana da Toscana”, “luz calvinista”; a “erosão de suas crenças espirituais indígenas”
não se faz completa, pois “o conceito de ‘graça comum’ não se perdeu entre essas pessoas”,
de “católicos pagãos, alheios à dor”.
‘Sin Gas’ disserta, feito crônica, sobre as águas engarrafadas, “um remédio católico”,
“elixir hispânico” e a purificação pela qual foi obrigado a passar. Está em Machu Picchu, a
“pequena cidade inca”, em ‘Querido Michael’ e fala das pedras sagradas e do calor que delas
emana, segredo para a sua construção. Já ‘Curandero’ relata “o médico mestizo” e a oferenda
feita “aos deuses do calor” por ele.
4.3
Um lugar para viver. Para se deslocar, lentamente.
Para ser. (pg. 27, ‘Querido Ken’)
‘Querido Ken’ é para falar das montanhas do Peru, Huayana Picchu, e sua magia, como
nas pinturas de Marc Chagall. ‘Machu Picchu’, precisa descrição do local, com a pena da
imaginação, e um dos poemas mais bonitos.
Em ‘Querido Joseph’, Crowe foca as “trilhas incas” para “os templos elevados”, “nas
colinas das cordilheiras e picos montanhosos”, e como “os quéchuas deixaram seu legado na
pedra. Blocos esculpidos em proporção sagrada”, até o Ocidente o invadir e o Sendero
Luminoso piorar mais ainda. ‘Um Caminho Iluminado’ é o primeiro acróstico do livro, feito
com o termo Sendero Luminoso.
‘Querido Jeff’, carta mais longa, estabelece uma ligação entre “os povos andinos” e “os
Kwakiutl”, com quem o destinatário viveu “como aprendiz de fabricante de máscaras e
entalhador” ̶ nos informa o ‘Apêndice’ ao final do livro ̶ , e o desejo por um futuro
primitivo; também, “os antigos costumes dos quéchuas”, com suas plantas em Urubamba
(gengibre, ají/pimenta vermelha, moonya/hortelã selvagem, cogumelos selvagens,
buganvílias, bromélias, eucaliptos, bambuzais, rododendros) e tecelagem em Chinchero, com
uma cor vermelha extraída da cochinilla no cacto palma, “sangue inca derramado nas mãos
dos espanhóis”. Segundo acróstico, ‘Ollantaytambo’ é sobre a cidade inca.
112
Em ‘Querida Barbara Ann’, se detém nos inúmeros animais da região (alpaca, lhama,
vicunha, puma, condor) e a força mítica deles. ‘Os Pássaros de Paracas’ prossegue na
coletânea de bichos, tópica cena de guia turístico se gabando das riquezas de sua região, a
nomeada península.
‘Querido Will’ avança mais um pouco ao arrolar as espécies, agora das Ilhas Balestas,
também falando de ‘A Praia Berçário’ (analisado no Tópico 5), próximo poema, no qual
descreve a relação entre mães e filhotes de leões-marinhos, com o ápice na belíssima
conversa que as focas, mãe e filho, travam, em afetuosas glossolalias.
4.4
Onde as linhas se encontram. Onde a noção de Eu se
torna Nós. (pg. 48, ‘Querido Chandler’)
Em ‘Querido Chandler’, relata as ‘Linhas de Nazca’, também, em seguida, poema e terceiro
acróstico, linhas estas que são “caricaturas estilizadas de animais encontrados,
curiosamente, nas selvas peruanas” e a aventura dentro um avião monomotor.
Última carta do livro, ‘Querido Jack’ volta a uma leitura simbólica, mas irônica, das
palavras, seja o nome do café ou do parque e as notícias que correm nos jornais no dia em
que retorna aos Estados Unidos, enquanto suas últimas horas no Parque del Amor, ao lado
de sua esposa, seja uma forma de voltar ao café onde se conheceram e se apaixonaram por
meio do gosto literário de ambos, e assim tentando reverter simbolicamente a guerra que se
iniciaria do outro lado do mundo.
Em ‘Pobreza’, quarto e último acróstico, Crowe descreve o aglomerado de corrupção e
subserviência que existe nas estradas peruanas, para fechar o livro com ‘Morchellas’, poema
de “volta ao lar”, torna a religar a sua Carolina do Norte com Cuzco e obedece ao
“curandeiro mestizo” ao sentenciar “quando os beija-flores chegam/ é dia de sair e procurar
morchellas”.
Mas você só saberá se ele o encontra lendo o tocante “Postais do Peru”.
5. PLANETAS SE ENCONTRAM EM EXPLOSÃO
Seu
amor
à
linguagem
guiando-o
mais
profundamente na luta. (pg. 15, ‘Querido Nate’)
“Saúdo-te apesar de tudo, país maldito do Equador” (‘Chegada a Quito’, como as demais),
assim se apresenta ao novo lugar Henri Michaux, em “Ecuador”, no relato de viagem poético
que recolhe. Diferente de Thomas Rain Crowe, o autor francês parte para a porrada,
enquanto o norte-americano é doce em sua percepção. “Mas és deveras selvagem”, e Michaux
concorda com Montaigne, selvagem também, e se indaga “Por que me bates com tanta força,
ó meu coração?”, pois o primeiro estranho familiar com o qual topamos é o inconsciente, o
outro em nós. Crowe, quando desce no Peru, desenvolve sua ligação a partir da escrita, e
nela se vê, parte ideal do que nem ao menos em seu país de origem ocorre, ou seja, o país
andino é seu lado inocente.
“A primeira impressão é terrível e raia o desespero” (‘La Cordillera de los Andes’, e as
demais), declara o escritor francês, diante da singularidade geográfica, ao passo que o outro
se deslumbra, como a cena dos “papagaios verdes luminosos”, que nunca viu “tal revoada
incandescente de aves, nem mesmo em meus sonhos (‘Querido Michael’). Mas quando
Michaux brinca que “Quem não gosta de nuvens,/ que não venha ao Equador./ São os cães
fiéis da montanha”, Crowe prossegue, “As nuvens cobrem Huayna Picchu como uma
mortalha ̶ então são suspensas, como a capa de um mágico” (‘Querido Ken’). Tudo bem, os
dois viram paisagens parecidas em locais próximos; mas estariam eles literalmente em
conversa? “A altitude do local é de 3.000 metros, dizem/ É perigosa, dizem, para o coração,
113
para o estômago, para a respiração/ E para o corpo inteiro do estrangeiro”, até poderia estar
em “Postais do Peru”, embora pertença a “Ecuador”.
Sãos dois olhares distintos, porém se cruzam no estranhamento, na curiosidade, pois
“Para entrar nesta cidade tivemos primeiro de pagar o tributo do rosto” (‘Miragem de uma
Cidade Índia’); carregam a poética da possessão, com a sutil ressalva: entrega irrestrita,
banhada posteriormente por uma desconfiança maior ainda. Enquanto um passa mal e crê
que isso lhe ajude na purificação, o outro deseja o ódio, existente apenas nas grandes
cidades.
E então chegamos a ‘Nasci Esburacado’, do Henri Michaux deste “Ecuador”, através do
qual carregarei ‘A Praia Berçário’, do Thomas Rain Crowe de nosso “Postais do Peru”, a fim
de que demos por finda esta mentirosa resenha, com cara de ensaio infinito, mas apenas
tentativa de literatura comparada. O autor francês dá o pontapé inicial com “Sopra um
vento terrível./ É apenas um pequeno buraco no meu peito”, como se estivesse morto; teria
sido baleado? A morte que o atravessa diz mais sobre a surpresa com que se depara, a de
outra forma de existência, ao mesmo tempo em que define o limite europeu que lhe dita as
regras culturais. Em Crowe, são “Centenas de leões-marinhos e filhotes recém-nascidos”, ou
seja, o “Sinfônico som de canto/ mais alto que/ as ondas agitadas do oceano contra a rocha”
é o da vida que se anuncia, não menos terrível que o sopro descrito naquele autor; note que
o mar tem “ondas agitadas”, também um sopro caracteriza a cena, sopros os quais se tocam,
ambivalentes bakhtinianos.
“Tu não és para mim, pequena cidade de Quito”, quando Michaux se descobre irredutível
estrangeiro nela, não comungando com sua falta de inveja; não haveria semelhante mal-estar
no condutor, ao notar “uma fêmea solitária e seu filhote”, a “assistir/ como a foca mais velha
ensina a mais nova/ a nadar”? Porque haverá sofrimento neste aprendizado, feito de solidão
e independência, como descrito por Crowe. “Ah! Como nos sentimos mal na minha pele!”, e o
escritor francês, referindo-se ao Rimbaud do outro eu, sugere a poética da possessão, mais
ainda, como se houvesse outro ser a nascer de si, mas sem sair, duas almas numa só, o que o
autor norte-americano aprofunda com a espécie de glossolalia animal entre o bebê foca e sua
mãe, onomatopéias do afeto, como o seriam a audição da língua indígena e tudo aquilo
impossível a nós, decifradores compulsivos.
Michaux tenta explicar, “É à esquerda, mas não digo que seja coração./ Digo buraco, não
digo mais, é a raiva e eu nada posso./ Tenho sete ou oito sentidos. Um deles o da falta./
Toco-o e tacteio-o como se tacteia madeira”. Eis o estrangeiro que se torna ao deixarmos o
familiar em casa, rumo ao desconhecido que, desde sempre, nos habita, mas o afastamos,
com trejeitos civilizatórios; afastamos o bárbaro com redobrada barbárie, a da língua
possível, sem faltas, lacunas ou espaços, os do deslocamento. “Construí-me sobre uma
coluna ausente”, e “O meu vazio é um grande devorador, grande esmagador, grande
aniquilador./ O meu vazio é algodão e silêncio./ Silêncio que tudo detém./ Um silêncio de
estrelas”, com o qual devemos arrematar, para inglês ver, Crowe sugerindo as palavras
invisíveis dos animais que deveríamos ter a coragem de ser:
“The baby’s eeaarrppp! A kind of begging/ to let it climb up on the mother’s back/ But
the mother dives, again, out of sight/ after a coaxing aarrpff./ The pup calls out a ‘come
back,’/ as it chokes on water from the choppy waves./ Eeaar... ggcc... rrppp!/ The mother:
aarrpff.../ The pup: eeaarr... ggugcc... rppp!/ The mother: aarrpff.../ The pup:
eeaarrrppp!/ As we pull away, turning east,/ and head for land.”
Paulo Sposati Ortiz (Brasil, 1982) é autor do livro de poemas A diferença do fogo, formou-se
em Letras/Linguística pela USP. Foi coordenador de grupos de leitura e produção de poesia
(Poenocine, 2008, e Facas na manga, 2011) e participou do Programa VAI da Prefeitura duas
vezes (“Do sarau às oficinas, das oficinas aos sararaus”, 2009; “Sarau: humildade, paixão e
poesia”, 2012). Deu a oficina A poesia brasileira hoje em CCSP (2011), sendo também
assistente de Claudio Willer na oficina A criação poética (2012), debatedor de ensaios do
114
Teatro do Incêndio na peça São Paulo surrealista: a poesia feita espuma (2012), assistente de
som dos programas de entrevista Tea for two (2012-2013) com Natália Barros e Zootropo
(2013) com Rafael Spaca, câmera de Encontros com autores com Mona Dorf (2013). Escreve
nos blogs C.I:P.A. (Centro Internacional: Poesia Amanhã) (coletivo) e A diferença do fogo
(pessoal), e publica ensaios e poemas em Cronópios, Mallarmargens, dEsEnrEdoS (virtuais),
Grito Cultural e Polichinello (impressos). Além de ter feito parte da 41ª e 54ª edições como
convidado, foi curador em 2013 das Quintas Poéticas da Editora Escrituras. Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha),
artista convidado desta edição de ARC.
115
RICARDO MATTOS | Poesia e pederastia: o Mário
de Andrade de Roberto Piva
Mário de Andrade é o poeta pederasta – quando encarnado na vida poética de Roberto Piva.
Lá está ele no Largo do Arouche paquerando colegiais que saem das escolas; ou nas
lassidões do Cambuci delirando na Alameda dos Beijos da Aventura. Na imaginação excitada
de Roberto Piva, ambos poetas transam adolescentes numa bacanal no Parque do Ibirapuera
e saem de mãos dadas noite afora. Juntos na poesia, juntos na orgia, juntos na pederastia.
É uma relação erótica com o autor de Girassol da Madrugada. Uma relação escandalosa.
No início dos anos ‘60 era comum uma retomada da fase heroica do modernismo. A verve de
Paulicéia Desvairada pulula aqui e ali, numa vivência da cidade cravada em seus locais mais
conhecidos. No entanto, ninguém ousava tocar nessa faceta homoerótica da poesia de Mário
de Andrade – muito menos da maneira visceral como faz Roberto Piva. Daí o estarrecimento.
Há dois motivos para o espanto. Por um lado, como aponta Eliane Robert de Moraes[1], a
tradição literária brasileira dava pouca vazão à expressão do erotismo tão presente nas
conversas populares – o que vai ocorrer especialmente a partir dos modernistas de 22. Por
outro lado, a questão da sexualidade em Mário de Andrade é uma polêmica. A mesma Eliane
Moraes observa o conflito moral que fez o autor de Macunaíma retirar alguns trechos
pornográficos na reedição do livro. Assim, apenas muito atualmente se fala na sexualidade
do poeta, pairando aí um clima proibitivo que certamente era ainda mais forte no início dos
anos ‘60.
Daí o escândalo do poeta pederasta tal como aparece em Roberto Piva. Essa retomada
enfrenta a repressão sexual de toda uma cultura justamente em um dos maiores autores
nacionais. Dessa forma, Piva consegue levar adiante a incorporação literária da sacanagem
popular, iniciada com os primeiros modernistas, com a ousadia que lhe é peculiar.
É desta retomada homoerótica da poesia de Mário de Andrade que irei tratar. Para tanto,
centrarei fogo nas primeiras publicações de Roberto Piva, nomeadamente os poemas San
Paulo’s Improvisation (1961), Ode a Fernando Pessoa (1961) e No Parque Ibirapuera (1963).
A estreia de Roberto Piva nas letras se dá na famosa Antologia dos Novíssimos (1961). Já
neste momento se estabelece interessante diálogo com Mário de Andrade. Vejamos o trecho
inicial do último poema:
SAN PAULO’S IMPROVISATION
“Ruas do meu São Paulo,
A culpa do insofrido,
Onde está?”
MARIO DE ANDRADE
De um bar qualquer
Do Largo do Arouche
assisto São Paulo passar dentro de mim
Imerso na paisagem cinza-úmida
pela “água-benta das garoas monótonas”
como disse Mário de Andrade.
Do bar recorto no asfalto umedecido
o olhar dos pederastas
mariscando colegiais farfalhantes nas esquinas[2].
[…]
116
A cidade atravessa o poeta imerso em sua “paisagem cinza-úmida”. Um cinza que opera
desde dentro, com a moral da “água-benta das garoas monótonas”. São características da
poesia de Mário de Andrade que Roberto Piva incorpora: a toponímia do Largo do Arouche, a
fusão entre poeta e cidade, e a crítica aos costumes conservadores. O poeta modernista
empresta ainda os versos da epígrafe, onde se pergunta: onde está o “amor vivo”, o “amigo”,
a “culpa do insofrido”, nas ruas de São Paulo? [3]
Essa busca do “amor vivo” colide com as convenções da cidade. É exatamente em Tristura,
poema de Paulicéia Desvairada, que Mário de Andrade descreve o matrimônio do poeta com
a cidade: a “água-benta” pode ser lida como símbolo de sua moral conservadora, tão
repetitiva quando a garoa que representa São Paulo. Se o poeta busca um amor vivo, a cidade
só lhe oferece a relação contratual do casamento – o amor encarcerado na moral patriarcal.
Como filha, poeta e cidade tem a “Solitude das Plebes” – uma pobre monja com os cabelos
cortados – aqui mais uma imagem de castração à sensualidade.
A filha monja é mencionada ainda no poema A Caçada, em que o poeta se queixa do
vento gelado da cidade que repeli “os poetas, os moços e os loucos”, reduzindo a vivência
arlequinal da poesia a um ideal ilusório. Aí surge uma caçada, numa “deliciosa mania” do
companheiro modernista: “- Abade Liszt da minha filha monja, / Na Cadilac mansa e glauca
da ilusão, / passa o Oswald de Andrade / mariscando gênios entre a multidão!…” [4]. O
músico abade, representando essa aliança da arte com a moral cristã, é contraposto ao
companheiro modernista. É esse último verso que aparece parafraseado no poema de
Roberto Piva. Talvez Oswald mariscasse “gênios” para uma renovação da arte nacional,
encharcada pela água-benta. Mas em Piva, são pederastas paquerando colegiais. A renovação
viria não pela genialidade, mas por um erotismo transgressor.
Roberto Piva vê aí outra mania deliciosa. De quem seria? Mário de Andrade, em seu
Prefácio Interessantíssimo, utiliza a seguinte imagem para abordar a desordem da lírica e
seus influxos do inconsciente:
Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois.
Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro
em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria
desencadeada dos elementos [5]
Seria exagerado dizer que Piva mescla ambas passagens de Paulicéia Desvairada, numa
junção do verso sobre Oswald mariscando gênios com a passagem de Mário observando
colegiais saindo de mãos dadas? No poema de Roberto Piva, estaria Mário de Andrade entre
os pederastas mariscando colegiais?
“Colegiais infantes” aqui, “colegiais farfalhantes” acolá – ambos os poetas parecem tê-los
observado bem. A imagem de Mário de Andrade os coloca de mãos dadas, num clima ao
mesmo tempo ingênuo e malicioso. Já Piva ambienta a cena no Largo do Arouche, local
conhecido pela frequentação de pederastas.
No ano de publicação de Paulicéia Desvairada corria o boato sobre a “pederastia” de
Mário de Andrade – como ele mesmo admitiu saber, em carta a Sergio Milliet. Se ainda hoje
causam escândalo essas manias deliciosas de nosso venerando modernista, o que dizer do
clima de 1960? Certamente as cartas de Mário de Andrade ainda não eram de conhecimento
público; e Roberto Piva era tido por maluco – muito embora tenha antecipado em muitos
anos a recente especulação em torno da biografia de Mário de Andrade.
Sexo e drogas no Cambuci
À luz do dia a cidade bate na cadência repetitiva de suas fábricas; na monotonia moral da
burguesia; no metro beletrista de seus poetas. São as sempiternas mesmices convencionais,
como pondera Mário de Andrade. A luz do dia e suas capturas pelo trabalho, escola e
família. É a cidade sem asas, sem poesia, sem alegria.
117
Em Ode a Fernando Pessoa (1961), Roberto Piva utiliza a mesma expressão das
“sempiternas mesmices” e atualiza a crítica do modernista à cidade. São Paulo surge como o
“convento do Brasil” e seu orgulho pela modernização crescente é ridicularizado: “Ó maior
parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?” [6]. Com tom ora satírico,
ora cáustico, Roberto Piva rechaça as reconhecidas instituições de ensino (Faculdade de
Direito do Largo São Francisco), as igrejas, o governo e até resistência dos comunistas.
Mas a madrugada oferece outras luzes, como aquelas do poema Noturno, de Paulicéia
Desvairada. Ali a cidade ganha asas:
[…]
Luzes do Cambuci pelas noites de crime…
Calor!… E as nuvens baixas muito grossas,
feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores…
Gingam os bondes como um fogo de artifício,
Sapateando nos trilhos,
Cuspindo um orifício na treva cor de cal…
Num perfume de heliotrópios e de poças
Gira uma flor-do-mal… Veio do Turquestan;
E traz olheiras que escurecem almas…
Fundiu esterlinas entre as unhas roxas
Nos oscilantes de Ribeirão Preto…
– Batat’assat’ô furnn!…
[…]
Calor!… Os diabos andam no ar
Corpos de nuas carregando…
As lassitudes dos sempres imprevistos!
E as almas acordando às mãos dos enlaçados!
Idílios sob os plátanos!…
E o ciume universal às fanfarras gloriosas
De sáias cor de rosa e gravatas cor de rosa!…
Balcões a cautela latejante, onde florem Iracemas
para os encontros dos guerreiros brancos… Brancos?
E que os cães latam nos jardins!
Ninguem, ninguem, ninguem se importa!
Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!
Mas eu… Estas minhas grades em girândolas de jasmins,
Enquanto as travessas do Cambuci nos livres
Da liberdade dos lábios entreabertos!…
Arlequinal! Arlequinal!
As nuvens baixas muito grossas,
Feitas de corpos de mariposas,
Rumorejando na epiderme das árvores…
Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins,
O estelário delira em carnagens de luz,
E meu céu é todo um rojão de lagrimas!… [7]
[…]
118
O poeta transpassado pelas sensações se multiplica nos versos simultâneos encharcados
de cores, cheiros e visões. O clima é inebriante e o teor é altamente sexual. Um mulato
cantarolando aqui, corpos de putas acolá e diabos numa fanfarra que inclui todos os sexos e
relações (“saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!”). Todos embarcam nessa orgia, mas o
poeta tem aí uma sensação ambígua de prazer e tristeza: a liberdade sexual do lugar
contrasta com as grades que o aprisionam. Diante dos delírios carnais o poeta experimenta a
tristeza das lágrimas. É nessa teia de contradições que a sexualidade em Mário de Andrade
fica explícita: o gozo ao lado do interdito. É um conflito sexual que não encontra
correspondência em Roberto Piva.
Na Ode a Fernando Pessoa, Piva retoma esse Mário de Andrade de Noturno. O poeta
caminha com Álvaro de Campos e os tenebrosos vagabundos de São Paulo numa vida
radicalmente subversiva. Bebedeiras, assaltos, violações e orgias. A loucura sensacionista de
experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Caminham pelos becos e encruzilhadas do lado
obscuro da cidade, recheado de putas e adolescentes que abandonaram o sono das famílias.
É nesse contexto que Roberto Piva se dirige a Álvaro de Campos: “veremos os bondes
gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ‘as luzes do Cambuci
pelas noites de crime’, onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio,
Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo de Mário de Andrade (aí de nós se
ele desperta!)” [8].
Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da
plena realização – sem grilhões e sem remorsos. Frequenta os mesmos inferninhos da
cidade, mas adiciona à sua vagabundagem um tom violento e mesmo criminoso. Se Mário de
Andrade mostra certa frustração e pudor, Roberto Piva é só furor: viola a menina-moça. O
poeta paranoico carrega em si toda o vigor dos piratas da Ode Marítima de Campos: “Ah, ser
tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes dos assaltos aos barcos e das
chacinas e das violações! […] Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres que
foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!” [9]
O entrelaçamento dos modernismos português e brasileiro via erotismo fica claro na
seguinte imagem: Álvaro de Campos andaria “de mãos dadas com Mário de Andrade no
Largo do Arouche” [10]
Na Ode, Roberto Piva novamente fala do sexo de Mário de Andrade, agora num tom
provocativo: “(aí de nós se ele desperta!)”. Remete aos verso do autor de Lira Paulistana nos
quais dizia que, quando morrer, “No Paissandu deixem meu sexo” [11]. Mas tudo o que Roberto
Piva faz é acordar o sexo de Mário de Andrade. E não só o sexo. É um Mário de Andrade em
meio a pederastas e maconheiros!
No poema de abertura de Paranóia (1963), Roberto Piva tem a seguinte visão: “na solidão
de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca no
meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas” [12]. É no mínimo
inusitado: Mário de Andrade em posição meditativa, recebendo uma iluminação num
comboio de maconha! O contraste da santidade do lótus com a criminalidade do tráfico. E
tudo em torno de Mário de Andrade! A princípio se pode pensar em exagero, impertinência
ou mero absurdo – e quantos críticos não caem nesse lugar-comum? Mas, vejamos de novo
os seguintes versos de Mário de Andrade no poema Noturno: “Num perfume de heliotrópios
e de poças / Gira uma flor-do-mal… Veio do Turquestan; / E traz olheiras que escurecem
almas…”. Heliotrópios, flor-do-mal, Tusquestan?! Mário de Andrade delira tanto quanto
Roberto Piva! Mas ambos com muita lucidez. Senão, vejamos.
Desde as famosas viagens de Marco Polo, a região do Turquestão é associada à origem da
utilização do cânhamo (cannabis). O autor de Flores do Mal, Charles Baudelaire, inicia seu
Paraísos Artificiais exatamente com menção a Marco Polo, discutindo a utilização do
cânhamo nesta região russa na qual camponeses ficavam com “crises de sonambulismo” ao
utilizar a erva na alimentação[13]. Na apresentação escrita por Théophile Gautier sobre
Baudelaire, exatamente nas edições de Flores do Mal a partir de 1868[14], fala-se dos paraísos
de “perfumes” acessados por “êxtases olfativos” após exalar o olor de um “heliotrópio”. São
119
os elementos do trecho de Mário de Andrade! Além de uma referência clara à grande obra do
poeta francês, seria a flor-do-mal uma referência à cannabis sativa originária do Turquestão?
Estas “olheiras” não seriam menção ao efeito do consumo de maconha, tal como as “crises
de sonambulismo” de que nos fala Baudelaire? Não me parece estranho pensar no consumo
dessa erva na região barra-pesada do Cambuci.
Se podemos colocar em dúvida essa interpretação dos versos de Mário de Andrade, os
versos de Piva são inequívocos. A imagem delirante de Piva se baseia em uma leitura ousada
da própria poesia de Mário de Andrade. Convém repetir: uma leitura feita no início dos anos
‘60, sem o conhecimento das memórias de viagens e cartas em que Mário de Andrade relata
suas experiências com alucinógenos.
Mário de Andrade surge como um “lótus”, uma iluminação espiritual simbolizada nessa
flor oriunda do mesmo Oriente que o Turquestão. E o poeta modernista tem essa iluminação
deitado, olhando as estrelas, com a boca colada no ouvido de Roberto Piva, ao seu lado.
Onde estariam os poetas deitados gozando essa intimidade?
NO PARQUE IBIRAPUERA
Nos gramados regulares do parque Ibirapuera
Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros
A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha imaginação
Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri
para a banalidade dos móveis
Teus versos rebentam na noite como um potente batuque
fermentado na rua Lopes Chaves
Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto
Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?
É noite. E tudo é noite.
É noite nos pára-lamas dos carros
É noite nas pedras
É noite nos teus poemas, Mário!
Onde anda agora a tua voz?
Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem
como numa lagoa
É impossível que não haja nenhum poema teu
escondido e adormecido no fundo deste parque
Olho para os adolescentes que enchem o gramado
de bicicletas e risos
Eu te imagino perguntando a eles:
onde fica o pavilhão da Bahia?
qual é o preço do amendoim?
é você meu girassol?
A noite é interminável e os barcos de aluguel
fundem-se no olhar tranqüilo dos peixes
Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo
seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noite de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
120
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
suspensa em teu ritmo. [15]
O poema é ambientado naquele parque inaugurado nas comemorações do IV Centenário
da cidade de São Paulo. A história é conhecida: entusiasmo diante da industrialização da
cidade; leitura de poesia modernista patriótica; monumentos históricos. São os “gramados
regulares”. Roberto Piva parece criticar a institucionalização do movimento modernista e sua
cooptação pelo Estado. Ao contrário dessa retomada oficial da tradição modernista, Piva
encontra naquele parque outra relação com Mário de Andrade.
São versos que rebentam na noite e estão imanentes em todos os movimentos do poeta
na cidade. Uma encarnação poética que se dá distante dos holofotes, distante das
comemorações diurnas. “É noite” – conclama Piva, mencionando versos de Mário de Andrade
em Meditação sôbre o Tietê. Sob a ponte, contemplando o rio, Mário de Andrade associa a
noite às paixões humanas, suas obscuridades, seus ímpetos inconscientes. Essa “noite insone
e humana” finda com o susto da aurora, que transfigura o poema. Com a luz do dia se vê os
“arranha-céus”, “trabalhos e fábricas”: “Luzes e glória. É a cidade… É a emaranhada forma /
Humana corrupta da vida que muge e se aplaude” [16]. Roberto Piva retoma esse poeta
noturno: o homem com suas paixões fluindo inconscientemente. Mais próximo do rio e do
ambiente natural; distante da civilização e sua vida corrupta.
É à noite que Roberto Piva imagina-se com o autor de Girassol da Madrugada paquerando
adolescentes, com Mário de Andrade perguntando a um deles se seria seu girassol. Piva
encontra um poema escondido de Mário de Andrade, anunciado já no início quando
menciona o retrato do modernista sorrindo para a “banalidade dos móveis”:
SONETO
(Dezembro de 1937)
Aceitarás o amor como eu o encaro ?…
…Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.
Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.
Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.
Que grandeza… a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas. [17]
Seria um daqueles adolescentes o jovem amante de Mário de Andrade, que o próprio
modernista nomeia como “girassol”? – se pergunta Piva. Com ou sem esse girassol, Mário de
Andrade e Roberto Piva passam uma “noite interminável” com os garotos. Após a orgia,
ambos poetas saem de mãos dadas noite afora. Roberto Piva, sem dúvida, aceita o amor do
modernista como este o encara!
É Piva de mãos dadas com a tradição modernista fortemente erótica. Em entrevista a
Fábio Weintraub[18], o poeta afirma: “…Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado
121
homoerótico”, ressaltado no modernista sua “forte sensibilidade homossexual”. Piva cita os
versos sobre “teu corpo nu de adolescente” para avalizar esta sua interpretação.
Exatamente na análise do poema No Parque do Ibirapuera, o crítico argentino Mario
Cámara afirma, num tom provocativo:
La de Piva puede considerarse como una primera lectura corporal y sexual del modernismo
brasileño. Y testimonia la búsqueda alternativas al discurso más técnico y, por lo tanto más
mental, del concretismo, a la modernidad desarrollista que está emergiendo de los
claustros de la Universidad de San Pablo, y a la poesía militante y “piadosa” de la izquierda
literaria brasileña [19]
Duma certa perspectiva, a Paulicéia Desvairada faz uma crítica da cidade atrelando os
aspectos político-econômicos, morais e estéticos. A moral conservadora é tão aprisionante
quanto a economia burguesa e o metro poético. As Enfibraturas do Ipiranga dão inúmeros
exemplos de crítica à regularidade do metro em poesia, colocado no mesmo patamar que o
trabalho assalariado e o matrimônio. O poeta bom moço, conservador na vida e na poesia, é
aquele do poema com ênfase formal. O antípoda do desvairado caminhando ao ar livre na
ruas mal afamadas da cidade, nas carnagens de luz e na maconha – na simultaneidade
desordenada de versos livres. Em sua época, a crítica de Mário de Andrade certamente
dirigia aos parnasianos. Mas, em plenos anos ‘50, ninguém menos que Sérgio Buarque de
Holanda já falava do “latente parnasianismo” e pendor formalista de nossa poesia[20]. Antônio
Cândido também denominou como “neoparnasianismo” a poesia formalista a partir da tal
Geração 45[21]. É exatamente o movimento concretista e a Geração 45 que Roberto Piva irá
criticar – já nos manifestos de 1962. O racionalismo e anti-lirismo de uns e a disciplina fabril
e formal de outros. Ambos expressões da ideologia da modernização: seja na administração
racional da poesia, ou na ingênua exaltação da modernização e da mercadoria. Ou seja,
Roberto Piva atualiza a crítica modernista também no que diz respeito à poesia nacional.
Exatamente essa atualização, distante da institucionalização estatal ou das escolinhas
literárias, permite a Roberto Piva a radicalidade erótica e livre.
Mais em termos de atualização, convém lembrar a opinião de Mário de Andrade sobre
uma das contribuições do movimento modernista: “a atualização da inteligência artística
brasileira”. Pois não apenas no erotismo Piva tem importância. O poeta atualiza a expressão
poética brasileira, especialmente com dicções da poesia norte-americana.
Como bem observou Claudio Willer[22], o poema “No Parque Ibirapuera” mantém forte
intertexto não apenas com Mário de Andrade, mas também com Garcia Lorca e Allen
Ginsberg. Acrescento a importância de Álvaro de Campos, que em sua Saudação a Walt
Whitman, conclama o “grande pederasta”:
De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma.
Quantas vezes eu beijo o teu retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus)
Sentes isso, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma.
Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso,
Mas perante o universo a tua atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo
[23]
Como em Álvaro de Campos, Piva também traz essa imagem do “retrato” de Mário de
Andrade em seu quarto – um símbolo forte de admiração juvenil. Mas Whitman era o poeta
122
da fusão com todo o universo, aquele que se tornava os outros homens e penetrava em
todos objetos. Seu próprio livro o trazia vivo e vibrante em cada página: “Camarada, isto não
é um livro / quem toca neste livro, toca num homem […] Eu salto de suas páginas em seus
braços” [24]. É assim que Álvaro de Campos encarna Whitman e, como o faz Piva com Mário,
caminha com ele de mãos dadas. É a poesia como força que flui para além do espaço e
tempo, como queria Whitman, impregnando a tudo com sua vibração imanente: em cada
pedra, em cada homem, etc – como surge em ambos poemas. Mas para além dessa imanência
poética, Piva, como Campos, se pergunta também onde estará agora, mesclando a sensação
da presença com a angústia da busca.
Piva retoma a Mário de Andrade tal como Álvaro de Campos a Walt Whitman. Mas não só.
Os fios das longas barbas do bardo foram vistos também em Um Supermercado da
Califórnia. Ali Allen Ginsberg inicia o poema pensando em Whitman enquanto caminhava
“olhando a lua cheia”. A partir daí também recompõe imagens nas quais encontra Whitman
“lançando olhares para os garotos da mercearia”: “Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles:
Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?” [25]. Os
poetas provam tudo sem nunca passar pelo caixa e, quando o supermercado fecha,
caminham juntos pela “noite”.
Supermercado aqui, Parque acolá, o encontro de Piva com Mário de Andrade é um
pilhagem de Ginsberg. Até detalhes da “lua”, da “noite”, da imaginação que recompõe os
versos, da caminhada de mãos dadas, etc. Mas se Ginsberg, após todas essas imaginações, se
sente “absurdo”, Piva não; se os dois poetas americanos ficam na paquera com os garotos
angélicos, os brasileiros vão além.
E os versos de Ginsberg, como bem sabia Roberto Piva, também são variações da seguinte
passagem de Garcia Lorca, em sua Ode a Walt Whitman: “¿Qué ángel llevas oculto en la
mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus
anémonas manchadas?” [26].
Eis a complexidade do intertexto em Roberto Piva. Em primeiro lugar: Piva vivencia os
versos alheios em sua visceral pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma
experimentação na carne. Antes de textual é sexual. E essa relação transparece nos versos
que, a um só tempo, fazem menção a Mário de Andrade (com o girassol), a Garcia Lorca (já
que o girassol dialoga com a anêmona: outra flor com forte teor erótico e mágico) e a Allen
Ginsberg (já que o girassol corresponde ao anjo).
Nessa retomada erótica de Mário de Andrade, Roberto Piva atualiza a inteligência artística
brasileira com versos surreais de Lorca e a beat de Ginsberg. Todos colocados numa espécie
de genealogia da poesia homoerótica que irradia de Whitman e passa por Álvaro de Campos.
Roberto Piva consegue mesclar uma escrita radicalmente delirante e espontânea com
cuidadosos estudos dos poetas que menciona. Pois Roberto Piva era um leitor bem atento. A
aproximação de Mário de Andrade com a pederastia e a drogadição não são meros exageros
delirantes, mas fruto de análise bem criteriosa. Se o delírio poético e a transgressão radical
são feições muito mencionadas para se referir à Piva, falta ainda dizer algo sobre sua argúcia
crítica.
Aqui chegados, concluímos uma parte da caminhada. Ainda resta fazer uma leitura atenta
das semelhanças entre Macunaíma e Coxas: sex fiction & delírios. Tal leitura ampliaria o tema
do erotismo para o debate sobre o “primitivismo”, numa pegada político-revolucionária que
inclui outros heróis sem caráter.
Eis o Mário de Andrade de Roberto Piva. Nem o bom moço dos cânones acadêmicos, nem
o capturado pelo Estado das comemorações oficiais, nem arauto venerado nas escolinhas
literárias. Poeta pederasta, vadiando nos inferninhos da cidade e experimentando drogas. É
com esse que Roberto Piva caminha de mãos dadas.
NOTAS:
[1] MORAES, Eliane Robert. Essa sacanagem. São Paulo, Ide, v. 1, pp. 75-79, 2005.
123
[2] PIVA, Roberto. San Paulo’s Iprovisation. Em: OHNO, Massao (org.) Antologia dos
Novíssimos (Coleção dos Novíssimos, vol.09). São Paulo: Massao Ohno, 1961. pp. 97.
[3] ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins;
Brasília; INL, 1946/1972. p. 283.
[4] ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo,
Martins; Brasília; INL, 1922/1972. p. 44
[5] Idem, p. 21
[6] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião –
obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 25.
[7] ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada, p. 44-5.
[8] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, p. 23
[9] PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (Teresa Rita Lopes, org.). São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117
[10] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, p. 22.
[11] ANDRADE, Mário de. Lira Paulistana, p. 300
[12] PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas
volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30.
[13] Baudelaire, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Baudinière, 1860, (Collection Les
chefs-d’oeuvre français). p. 14.
[14] GAUTIER, Théophile. Charles Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal.
Paris: Calmann Lévy Éditeur, 1896. p. 61. Passagem na íntegra: “Il en est de même pour les
extases olfactives qui vous transportent en des paradis de parfums où des fleurs
merveilleuses, balançant leurs urnes comme des encensoirs, vous envoient des senteurs
d'aromates, des odeurs innomées d'une subtilité pénétrante, rappelant le souvenir de vies
antérieures, de plages balsamiques et lointaines et d'amours primitives dans quelque O'Taïti
du rêve. Il n'est pas besoin de chercher bien loin pour trouver dans la chambre un pot
d'héliotrope ou de tubéreuse, un sachet de peau d'Espagne ou un châle de cachemire
imprégné de patchouli négligemment jeté sur un fauteuil”.
[15] PIVA, Roberto. Paranóia. pp.64-5.
[16] ANDRADE, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. Em: Poesias completas. 3. ed. São
Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 305.
[17] ANDRADE, Mário. A costela do Grã Cão. Em: Poesias completas. 3. ed. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1987. pp. 320-1.
[18] WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.).
Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. pp. 124-135.
[19] CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes,
Santa Rosa (Argentina), n. 14, dezembro 2010, p. 35.
[20] HOLLANDA, Sergio Buarque de. Retórica e Poesia. Em: O espírito e a letra. São Paulo:
Companhia das Letras, 1950/1996, pp. 165-9.
[21] CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira – III.
Modernismo. 5. ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1975. 374 p.
[22] WILLER, Claudio. Roberto Piva e a poesia. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências,
n.
2,
2010.
Disponível
em:
http://novaserie.revista.triplov.com/numero_02/claudio_willer/index.html
[23] PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, p. 149
[24]
WHITMAN,
Walt.
Leaves
of
Grass.
(2ª
ed.),
1860.
Disponível
em:
whitmanarchive.org/published/LG/1860/
Data da consulta: 12/05/2008.
[25] GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre:
L&PM, 2005. p. 49. (Coleção LP&M Pocket, vol. 188).
[26] LORCA, Frederico García. Poet in New York: a bilingual edition. Grove Press, 2008. p.
148.
124
Ricardo Mattos (Brasil, 1979). Poeta. Pesquisa em seu doutoramento a vida poética de
Roberto Piva, na área de Psicologia da Arte (Universidade de São Paulo). Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha),
artista convidado desta edição de ARC.
125
RICARDO ROQUE BALDOVINOS | Piedra y Siglo:
breve historia de un colectivo poético[1]
¿Qué es un colectivo poético? ¿Por qué es una práctica extendida que poetas jóvenes se
agrupen y se identifiquen con un nombre especial? En un sentido más inmediato pareciera
que deseen lograr visibilidad. Estaríamos así ante una estrategia de legitimación en la
competencia por sobresalir en el mundillo artístico, en el “campo literario”. Al menos eso
nos diría una perspectiva sociológica de la literatura. El problema con esta aproximación es
que pasa por alto lo fundamental: el objeto poético, una escritura y una manera en cómo esa
escritura interviene en el mundo.
El colectivo poético adquiere así un nuevo significado. Como nos lo hace ver Octavio Paz,
en Los hijos del limo, los colectivos poéticos son una manera de operar de “la tradición de la
ruptura”, esa necesidad insaciable del arte poético moderno de renovarse, de romper con lo
que le antecede, y de esa forma aparecer como la verdadera cifra del enigma de un tiempo
inasible, el perpetuo desgaste y renovación de los sentidos de la era moderna[2]. En
consecuencia, un colectivo poético se conecta con la promesa de la literatura desde el
romanticismo: la refundación utópica del mundo. La poesía se ofrece así como un atisbo de
nuevas formas de ser persona y de ser social, en las cuales la naturaleza humana se realiza
en su plenitud, donde se integran, a través de un lenguaje especial, el poético, sus facultades
sensibles y de pensamiento, escindidas en un mundo desgastado por la universalización del
principio de la utilidad.
Esta breve reflexión inicial, me permite presentar este esbozo de la historia del colectivo
poético de Piedra y Siglo en dos pasos. En un primer momento, reconstruyo el surgimiento y
evolución de este grupo en la escena literaria de El Salvador. Posteriormente, esbozo claves
para entender su aporte literario como expresión de la promesa de redención propia de la
literatura.
Historia de Piedra y Siglo | Piedra y Siglo se constituye en San Salvador en 1966 por
iniciativa de un grupo de jóvenes poetas que se congregan la Universidad de El Salvador. Sus
primeros manifiestos llevan nueve firmas: Ricardo Castro Rivas (que luego firmará
Castrorrivas), Jorge Campos, Jonathán Alvarado Saracay, Ovidio Villafuerte, José María
Cuéllar, Julio Iraheta Santos, Uriel Valencia, Luis Melgar Brizuela y Rafael Mendoza[3].
Aunque de esta lista, son siete los que posteriormente se consideran sus miembros
principales: Castrorrivas, Villafuerte, Cuéllar, Iraheta Santos, Valencia, Melgar y Mendoza[4].
Hay otros dos poetas identificados con otros colectivos anteriores, Ricardo Bogrand y
Alfonso Quijada Urías, con los que mantienen una relación cercana[5].
La mayor parte de los integrantes de Piedra y Siglo son estudiantes, los que no lo son
acuden al campus universitario atraídos porque este se ha convertido en un auténtico oasis
de cultura libre y pensamiento crítico en un país donde la esfera pública se encuentra
enrarecida por la política de silencios y adulaciones propias de los regímenes militares. Es
cierto que un movimiento de jóvenes oficiales creó expectativas de apertura y renovación en
los sectores democráticos cuando en 1948 derrocaron al General Castaneda Castro y, con
ello, pretendieron erradicar los vestigios de la prolongada dictadura del General Hernández
Martínez. Sin embargo, estas esperanzas se vieron paulatinamente disipadas a medida que
se entronizó un régimen autoritario de nuevo tipo que legitimaba su férreo control de las
libertades con algunas medidas sociales progresivas y la apertura de limitados espacios de
tolerancia al debate y la disidencia[6].
Una de esas válvulas de escape a las crecientes tensiones que se iban acumulando de las
demandas sociales insatisfechas era la universidad pública, la Universidad de El Salvador.
Las políticas de modernización de los regímenes militares reformistas la habían dotado de
126
importantes aumentos de presupuesto. Esto le había permitido aumentar exponencialmente
la población estudiantil en pocos años, mejorar considerablemente la planta docente y
construir un amplio campus universitario en el norte de la capital, que ostentaba incluso
varios edificios diseñados en el mejor estilo moderno. De hecho, la zona norponiente de la
capital donde se edificó el nuevo campus era una buena muestra de la euforia
modernizadora de los militares. En las proximidades se construían hospitales, edificios para
albergar oficinas públicas, así como proyectos residenciales unifamiliares y multifamiliares
destinados a alojar la creciente clase media. Para hacer esto posible el estado había
facilitado una red de instituciones técnicas y de financiamiento que acogían nuevas
generaciones de profesionales. El conjunto se completaba con edificaciones privadas que
buscaban poner la planta de la ciudad capital en sintonía con los nuevos tiempos[7].
En este nuevo campus universitario, se congrega entonces una población estudiantil
muchos más heterogénea que la que había sido la norma hasta ese entonces. Converge una
proporción cada vez más grande de jóvenes (de hecho, entre estos cada vez hay más
mujeres) provenientes de los segmentos medios y medios-bajos de la capital y del interior.
Es una juventud más educada, pero también más inconforme con el incumplimiento de
promesas de apertura política y disgustada por el carácter cada vez más visiblemente
excluyente del modelo de desarrollo implementado, que a la par de manifestaciones de
próspera modernidad genera la pobreza cada vez más visible de los tugurios y cinturones de
pobreza. Estos jóvenes le dan cauce a su inconformidad a través de un movimiento
estudiantil que cada vez es más activo y beligerante. Todo esto atrae la suspicacia oficial,
que pronto da muestra de los límites de su tolerancia al activar una estructura políticopolicial de control y persecución de la disidencia.
También esta conmoción afecta al claustro académico. Los sucesivos gobiernos han
posibilitado la llegada de académicos extranjeros y la especialización de algunos de los
nacionales en universidades del exterior. Muchos de estos nuevos profesionales encuentran
cabida en la implementación de un aparato estatal que se diversifica y expande, pero otros,
que o bien no tienen las conexiones familiares o bien no están dispuestos a someterse a los
ritos de pasaje del régimen, quedan a la deriva. El ambiente más abierto de la Universidad
permite que algunos de ellos se integren al claustro académico y desarrollen un actividad
intelectual crítica. Es importante notar que al interior de la Universidad opera de manera
más o menos abierta el Partido Comunista Salvadoreño, organización política legalmente
proscrita pero que en la práctica ha logrado reclutar a una parte importante de la
intelectualidad y el estudiantado así como el sector obrero organizado. El campus
universitario es un escenario importante de activismo político pero también de una actividad
artística y científica intensa y de mucha calidad.
En resumen, el campus universitario no es sólo una institución de enseñanza superior de
buen nivel sino también un centro de efervescencia cultural dinámico y estimulante. Es a la
vez, un espacio político que se sustrae de la norma de censura y del control político-policial
que impera en el resto de la sociedad. No es de sorprender entonces que la vida universitaria
exceda con mucho los “estudios profesionales” propiamente hablando y se convierta en una
suerte de contra-esfera pública.
Piedra y Siglo nace en este mundo universitario amplio y en medio de esa amalgama de
activismo político y mundo literario[8]. El cultivo de la poesía seguía siendo entonces una
actividad apreciada y de mucho prestigio porque se la vinculaba la palabra a la autoridad del
saber y era además un espacio de manifestación de un “genio nacional” que abarcaba a todo
los jóvenes con intereses artísticos independientemente de su origen social. Apropiarse de la
palabra literaria, posesionarse de la voz poética era un gesto simbólico de gran valor para
que los jóvenes estudiantes se autorizaran social y culturalmente, especialmente para
aquellos de origen social modesto[9].
Los fundadores de Piedra y Siglo reflejaban el perfil social heterogéneo de la nueva
población que accedía a la educación superior. Algunos eran estudiantes universitarios
ligados a carreras humanísticas como Derecho y Letras, por lo que su vinculación con la
127
palabra poética resultaba bastante lógica. Sin embargo, otros de sus miembros se habían
ligado al mundo literario por otras vías más inusuales. Ricardo Castrorrivas, de hecho, había
trabajado de linotipista en la Dirección de Publicaciones, un oficio obrero, pero que le abría
la posibilidad de encontrarse con el mundo de la literatura; también había ampliado su
horizonte de lecturas gracias a su militancia en el Partido Comunista. La militancia política
de ese entonces, implica apropiarse de un mundo de ideas y de palabra escrita[10]. Se puede
afirmar que para estos jóvenes estudiantes o militantes, reclamar el privilegio de la palabra
poética, erigirse en los voceros de su Generación, implicaba una forma de reivindicación
social. Convertirse en poeta era una forma de reclamo de igualdad en nombre de los
excluidos del país. Esto no era, por cierto, un gesto enteramente novedoso. Unos años antes
lo había protagonizado el Círculo Universitario, dentro de lo que después se conoció como
Generación Comprometida, que tenía un perfil social bastante similar.
Piedra y Siglo repite en su fundación la dramaturgia propia de los colectivos literarios de
vanguardia. Redacta manifiestos, hace su declaratoria polémica en contra de la generación
inmediatamente anterior y reivindica una figura tutelar relativamente ignorada en el canon
poético nacional. Publica dos manifiestos que fueron redactados colectivamente, que hacen
una declaración de propósitos y expresan de pasada algún malestar frente a una “Generación
Comprometida” que habría “copado todos los espacios”. La figura tutelar que eligen es
Vicente Rosales y Rosales. Según Rafael Mendoza, la admiración hacia Rosales era porque
reunía el rigor en la construcción poética, pero también porque expresaba a una sensibilidad
que conectaba con la experiencia popular, y lo distinguía de poetas como Hugo Lindo y Raúl
Contreras, a quienes respetaban por su solvencia constructiva, pero los consideraban
removidos de las grandes pasiones sociales[11]. De la admiración a Rosales quedan como
testimonio una serie de cartas que los distintos miembros de Piedra y Siglo publicaron a lo
largo de 1967, en una de ellas, José María Cuéllar lo caracteriza así: “Y tú, VIEJO MAESTRO.
Silencioso. Ausente de la vieja diatriba burocrática y de los largos manteles. Ausente porque
te deja el tiempo su palabra como una piedra dura”[12].
Los poetas de Piedra y Siglo viven también por esos años una intensa vida bohemia que
los lleva a frecuentar distintos bares y cafés principalmente del centro capitalino. Allí se
combina lo lúdico con la discusión apasionada de temas literarios y políticos[13]. La vida
bohemia más que una extravagancia es una forma de experimentar una vida donde ocio y
trabajo, placer y producción no se excluyan. Es también una forma de rebelarse contra la
disciplina social dominante pero también contra cierta rigidez de las organizaciones
políticas progresistas.
Las primeras publicaciones del colectivo poético se hacen en 1967 en el suplemento
literario Sábados de El Diario Latino. Dicho suplemento lo elaboraba Juan Felipe Toruño,
escritor de origen nicaragüense que siempre se había mostrado dispuesto a promover a los
escritores jóvenes. Un logro importante del grupo literario es la publicación en 1968 de una
sección especial de la revista La Universidad titulada “Piedra y siglo: 9 poetas jóvenes de El
Salvador”, que también se difundió como sobretiro[14]. Allí se recogían sus dos manifiestos
y se presentaba una breve antología de nueve de sus integrantes originales. La sección venía
encabezada por una introducción de Italo López Vallecillos, director de la Editorial
Universitaria, quien era además uno de los principales nombres asociados a la llamada
“Generación Comprometida”[15]. Este primer reconocimiento era importante ya que
significaba posicionarse ante el círculo literario de izquierdas que gravitaba alrededor de la
universidad.
A partir de allí el grupo se mantiene activo, reuniéndose con frecuencia para intercambiar
lecturas e intercambiar impresiones sobre su propio trabajo poético. Publican con frecuencia
en la revista literaria La pájara pinta, que depende también de la Editorial Universitaria y en
la revista La universidad. Dentro de sus publicaciones podemos encontrar obra poética,
algunas narraciones, pero también intervenciones críticas. De hecho, Luis Melgar Brizuela se
comienza a posicionar como estudioso de literatura con fundamentación académica, muy
marcado por las tendencias por entonces novedosas de la lingüística estructural y la
128
semiótica. José María Cuéllar quien ya trabajaba en la Imprenta Universitaria pasa a ser parte
del equipo redactor de La pájara pinta.
Para 1970, algunos integrantes de Piedra y Siglo hacen un viaje a Guatemala para
establecer una especie de hermandad con Nuevo Signo, colectivo poético afín de la
Universidad de San Carlos de aquel país. Una nota fechada el 19 de junio de El Gráfico
reporta la visita y menciona que ambos grupos realizaron un recital conjunto en el Salón
Mayor de Facultad de Derecho[16].
En 1971, tiene lugar un incidente que afianza el lugar de Piedra y Siglo en la escena
literaria nacional. El incidente ocurre en el Auditorio de Derecho de la Universidad de El
Salvador, donde José Roberto Cea, autor de la generación comprometida, presentaba su
Antología de la poesía salvadoreña. En su intervención, Cea trata de restar méritos a los
escritores más jóvenes y se ensaña en particular con Rafael Mendoza, quien por su poemario
Los muertos y otras confesiones acababa de recibir un primer premio de manos de la
Asociación de Estudiantes de Derecho. Se trataba de un certamen bastante prestigioso que
en ediciones anteriores había escogido a Roque Dalton y David Escobar Galindo. Mendoza
responde a la provocación y declama algunos de los poemas laureados que reciben la
ovación del público y palabras elogiosas de Claudia Lars, quien formaba parte de la mesa de
honor. Claudia Lars ofrece publicarle esos poemas en la revista Cultura, por entonces bajo
su dirección. Posteriormente, Los muertos y otras confesiones[17] se publica en la colección
Nueva Palabra que estaba formando David Escobar Galindo. De hecho, tres títulos de autores
de Piedra y Siglo van formar parte de los primeros títulos de esta colección. Aparte del ya
mencionado, el libro de narraciones Teoría para lograr la inmortalidad y otras teorías, de
Castro Rivas y el poemario Crónicas de infancia, de José María Cuéllar. Es de notar que la
primera parte de este último, “El espejo a lo largo del camino”, había recibido ese mismo año
el Primer Premio del Certamen Latinoamericano de Poesía de la revista Imagen de Caracas,
Venezuela.
La publicación de obras de los miembros de Piedra y Siglo en la editorial estatal, con el
aval de dos figuras escritores importantes, mejor vistos por la oficialidad, como Claudia Lars
y David Escobar Galindo, así como el premio internacional de Cuéllar significaron la
consagración del colectivo poético en el mundo literario nacional. Ya no era uno de tantos
grupos de existencia efímera, que expresan las veleidades de jóvenes inconformes que
después se integran a la sociedad convencional, sino un grupo de creadores literarios con
logros palpables y reconocidos más allá de los circuitos contestatarios habituales.
Los años que siguen, con los cierres de la universidad y la agudización de la violencia
política, forzaron la dispersión del grupo. Uriel Valencia se radica en México donde hace
carrera como lingüista y se especializa en el estudio de las culturas precolombinas. Muere en
2006. Mendoza pasa los años más difíciles de la guerra en Panamá, pero regresa al país y
animará en todo este período otras iniciativas de difusión culturales como algunas páginas
literarias del diario El Mundo, como La Cebolla Púrpura o Cinco Negritos en plena guerra
civil. Melgar Brizuela realiza estudios de doctorado en el Colegio de México con una
investigación sobre la poesía de Roque Dalton. Regresa al país al término de la guerra y sigue
su actividad de investigador combinada con el cultivo de la poesía. José María Cuéllar muere
en 1983 en circunstancias todavía confusas, existen serias sospechas que pudo tratarse de
un asesinato político. Julio Iraheta Santos sigue escribiendo poesía pero manteniéndose a
distancia del mundo literario. Ovidio Villafuerte también siguió escribiendo hasta su muerte
en 2008.
Pese a las circunstancias difíciles y las pérdidas, los sobrevivientes de Piedra y Siglo
siguen activos literariamente y se conservan su relación de amistad y de intercambio
artístico e intelectual. En 2006, celebraron el aniversario 40 de la fundación del grupo. En
2008, se les dedicó un número especial de la revista Cultura[18]. A partir de entonces
Mendoza, Castro Rivas y Melgar Brizuela han dado algunos recitales donde se presentan
como Piedra y Siglo. En 2009, los sobrevivientes del colectivo redactan otro documento
donde reafirman su opción por el compromiso social desde la peculiaridad creativa de cada
129
uno de los integrantes[19]. En 2010, la editorial La Cabuda Cartonera publicó poemarios de
estos poetas en una colección que denominó Piedra y Siglo.
La poética de Piedra y Siglo | Hemos visto que Piedra y Siglo nace con el gesto vanguardista
del manifiesto. Según lo confirma Mendoza, estos manifiestos fueron resultados de un
trabajo de redacción conjunta, muy en el espíritu vanguardista de los colectivos artísticos.
Este ideal utópico de constituir como grupo un sujeto poético que exprese la promesa de
una nueva forma de vida social estará presente en el imaginario de Piedra y Siglo. Esto se
evidencia en la entrevista que da Mendoza a la revista Abra, en 1976, donde relata sus
experiencias de viaje por Cuba[20]. La isla como avanzada utópica, donde el tiempo y el
espacio de la redención social ya se habrían instalado tiene una decidida fuerza.
Precisamente al referirse al fenómeno de los talleres literarios:
“En los talleres literarios que yo he observado en otras partes, siempre se percibe una
especie como de ‘paternalismo’ (cuando menos) o, más claramente, cierto ‘liderazgo’ ejercido
por ciertos motores que se auto-consideran ‘maestros’ […] Me parece que eso es un lastre
impuesto por el provincialismo secular que nos caracteriza […] allá [en Cuba] la cuestión es
más franca; no hay posibilidad de que alguien se quiera constituir en ‘campeón’ de las letras
u otro género artístico […] Allá se trabaja conscientemente o se truena […] Un taller literario
cubano es como una auténtica mesa de trabajo común, sobre la cual se debe abrir la
conciencia […] En aquellos talleres literarios, las cuestiones técnicas o científicas dentro de
lo literario, son discutidas abiertamente como se discutiría en un taller de textiles la
conveniencia de utilizar o no una fibra novedosa, o determinada textura en un tejido […] En
Cuba no es importante que surja un ‘gran poeta’, sino una poesía de calidad…” (III)
En esta larga cita, se transparentan dos temas que van a definir a Piedra y Siglo: el
colectivo estético y la poesía como trabajo. El principio de constituir un colectivo estético
democrático, donde rige la horizontalidad entre sus miembros lo expresan ya desde el
Segundo Manifiesto: “Sustentamos el principio de la creación a través del intercambio
intelectual, rompiendo así con los viejos cánones de la creación aislada y del trabajo
estrictamente individual. Esta es una época de intercomunicaciones y no un mundo de
soliloquios” (108). En este sentido realizan algunas prácticas de creación colectiva como la
redacción en conjunto de sonetos, pero estas no pasan de ser un ejercicio para ir
solidificando su solvencia constructiva[21]. La creencia en el colectivo creativo conlleva
además el rechazo a cualquier eventual reclamo de liderazgo de alguno de sus miembros y a
distanciarse a lo que implican que ha sido el ethos dominante en el mundo literario nacional.
Sobre este último punto se refieren al peligro de perder el norte artístico por las tentaciones
del poder: “los vicios que han doblegado a nuestros intelectuales, los que en su mayoría han
preferido la coquetería política a la defensa de sus convicciones” (108)
El otro tema importante de su declaración estética es la conciencia de la especificidad de
un “trabajo poético”: “el arte en primer término, una norma de trabajo que implica
conocimiento” (109). Ese trabajo tiene así una dimensión “técnica” y que en ello no se
diferencia de otras formas de trabajo, las cuales en el mundo redimido de la revolución
pasan todas a entenderse en el sentido clásico de tekhné o poiesis, formas de hacer que
implican la realización humana. Es así como hace entonces sentido la definición del “trabajo
poético” que hacen en el Primer Manifiesto: “captar de manera más fidedigna la realidad,
para volcarla luego en imágenes estéticas con el toque mágico de su individualidad” (107).
Piedra y Siglo nace, como lo hemos visto, con el gesto vanguardista de publicar manifiesto
y de polemizar con sus antecesores inmediatos; sin embargo, su concepción de poesía dista
de ser iconoclasta. De hecho, retoman el tema de compromiso literario que ya lo habían
expresado grupos poéticos anteriores y lo definen, al igual que estas, en un sentido amplio
de postura ética humanista, de atención a ciertas zonas de la experiencia social y la
asimilación de ciertas prácticas poéticas exterioristas y conversacionales ya bastante
aceptadas, las cuales sólo desde una perspectiva muy tradicional podrían considerarse
antipoéticas. No suscriben la idea de someter su práctica poética a las urgencias políticas o
130
los dictados de una determinada organización de avanzada. Antes bien, defienden la
autonomía del creador.
En una contribución de Mendoza a un número de Abra dedicado a reflexionar sobre el
compromiso del escritor, este defiende la necesidad de hacer del hecho estético una
experiencia compleja, indeterminada que estimule la inteligencia del lector y advierte del
peligro de caer en las trampas de la consigna y el panfleto[22]. Una novedad resaltable de
Piedra y Siglo es insistir en incorporar una conciencia reflexiva sobre lo poético. Y la
demanda de “conocimiento” que reclama el arte, la realizan al asimilar los aportes de las
ciencias del lenguaje, que recién estaban introduciéndose en los programas universitarios a
través de la lingüística estructural y la semiótica. Recordemos que Melgar Brizuela, Rafael
Mendoza, José María Cuéllar y Uriel Valencia eran estudiantes de la Licenciatura en Letras.
En años posteriores, tanto Melgar como Valencia realizarán carreras académicas distinguidas
en las Humanidades.
Como dijimos, la propuesta de Piedra y Siglo no es de ruptura total. Antes bien, sus
innovaciones se hacen siempre abriendo un espacio de diálogo con la tradición poética
nacional e universal. Asimismo, pese a la declaración de la importancia del ideal del
colectivo estético, de hecho, desde la publicación de la sección de La Universidad se perciben
individualidades poéticas bastante marcadas que se mantendrán a lo largo de sus
trayectorias. Mendoza, por ejemplo, confiesa que la poesía siempre se le manifestó como
música del lenguaje y que, por esa razón, nunca pudo divorciarse de la métrica clásica en la
que se inició, pese a que coetáneos y mayores proclamaban que el verso libre y la poética
conversacional era lo propio de la época. En los años posteriores, de hecho, tanto Mendoza
como Castro Rivas revisitarán con frecuencia las formas clásicas. Melgar Brizuela y Uriel
Valencia comienzan con una poesía más conversacional y llana, pero más adelante en sus
carreras profundizan la exploración del mundo cultural indígena que inspirará buena parte
de su trabajo tanto poético como ensayístico. Cuéllar e Iraheta Santos, por otra parte, tienen
más afinidad con el surrealismo y producen una poesía más hermética.
Además de la individualidad poética que cada uno de los integrantes de Piedra y Siglo
mantiene a lo largo de su vida, también es de notar que ninguno se conforma con
encasillarse en una manera particular de escritura literaria, de identificar su voz con un
estilo o género en particular. Todos muestran apertura a explorar con nuevos temas y
nuevos dispositivos, a reactualizar el compromiso literario de acuerdo a las exigencias
cambiantes de la historia.
NOTAS:
1. Este se publica por cortesía de la Fundación Accesarte, quien comisionó su redacción para
complementar el diagnóstico sobre la literatura en El Salvador, realizado por Tania Pleitez.
Agradezco la colaboración de Rafael Mendoza, Luis Melgar Brizuela, Julio Iraheta Santos y
Ricardo Castro Rivas por la amplia información proporcionada en las entrevistas que me
concedieron.
2. Paz, Octavio. Los hijos del limo. Barcelona: Seix Barral, 1974.
3. Campos, Jorge et al. “Piedra y siglo: 9 poetas jóvenes de El Salvador”, separata de la revista
La Universidad, No. 6, noviembre-diciembre de 1968.
4. Andreu, Tomás. “«Hay lecciones éticas y artísticas en nuestras culturas ancestrales».
Entrevista. Luis Melgar Brizuela, estudioso de la comunidad indígena”, El diario de hoy, 11 de
mayo
de
2012.
[disponible
en
http://www.elsalvador.com/mwedh/nota/nota_completa.asp?idCat=47868&idArt=6892404]
5. Entrevista aRafael Mendoza, 23 de octubre de 2012.
6. Turcios, Roberto. Autoritarismo y modernización. El Salvador 1950-1970. San Salvador:
Dirección de Publicaciones e Impresos, 2003.
7. Gutiérrez Poizat, Sandra. “Arquitectura moderna en El Salvador”, ponencia presentada en
el Congreso de Ingeniería y Arquitectura (CONIA), Universidad Centroamericana José Simeón
Cañas, 6 de noviembre de 2012.
131
8. Entrevista a Ricardo Castro Rivas, 24 de enero de 2013.
9. Roque Baldovinos, Ricardo. “Literatura y movimientos sociales”, en Antonio Martínez
Uribe (coord.), Compilación de estudios en ciencias sociales y humanidades: memoria 2010,
San Salvador: Centro Nacional de Investigaciones en Ciencias Sociales y Humanidades, 2011,
pp. 277-305.
10. Entrevista a Ricardo Castro Rivas.
11. Entrevista a Rafael Mendoza.
12. Recortes facilitados por Rafael Mendoza.
13. Entrevistas a Julio Iraheta Santos (22 de febrero de 2013) Luis Melgar Brizuela (20 de
octubre de 2010), Ricardo Castro Rivas y Rafael Mendoza.
14. Campos et al. Op. Cit.
15. La nota introductoria viene sin firma en la sección, pero en un recorte que hemos
obtenido de una publicación universitaria (probablemente vida universitaria) se reproduce el
mismo texto bajo la rúbrica de López Vallecillos.
16. Ver nota de El gráfico que se reproduce en el especial de la Revista Cultura, p. 20.
17. Entrevista a Rafael Mendoza.
18. V.V. A.A.“Especial [dedicado a Piedra y Siglo], en Cultura, revista del Consejo Nacional
para la Cultura y el Arte, No. 97-98. Septiembre 2007-Abril 2008, pp. 7-146.
19. Castro Rivas, Ricardo, Julio Iraheta Santos, Rafael Mendoza y Luis Melgar Brizuela, “El
grupo literario Piedra y Siglo: otro balance del compromiso”, manuscrito proporcionado por
Rafael Mendoza.
20. Anónimo, “Entrevista sobre Cuba con Rafael Mendoza” (Suplemento Enfoque 3), Abra,
revista del Departamento de Letras de la UCA, Año 2, No. 16, septiembre de 1976, pp. I-VIII.
21. Entrevista a Luis Melgar Brizuela, 20 de octubre de 2010.
22. Mendoza, Rafael. “Hacia una nueva definición del compromiso”, en Abra, revista del
Departamento de Letras de la UCA, Año 2, No. 16, septiembre de 1976, pp. 25-27. Esto
también lo recalcó Luis Melgar Brizuela en la entrevista realizada el 20 de enero de 2010.
Ricardo Roque-Baldovinos obtuvo su doctorado en Literaturas Hispánicas por la
Universidad de Minnesota. Profesor del Departamento de Comunicaciones y Cultura, de la
Universidad Centroamericana José Simeón Cañas, El Salvador e Investigador en la Dirección
Nacional de Investigación en Arte y Cultura de la Secretaría de Cultura. Es autor del libro de
ensayos Arte y Parte (2002), editor de la narrativa completa de Salarrué y, junto a Valeria
Grinberg, de Tensiones de la Modernidad, segundo tomo deHacia una historia de las
literaturas Centroamericanas (2010). Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto
(Espanha), artista invitado de esta edición de ARC.
132
RODRIGO BARBOSA DA SILVA | A voz & o
silêncio: a geometria do espírito em Aorigem
diágora
(fragmentos para um ensaio)
Escrito em 1987, Aorigem Diágora ficou vinte e cinco anos em silêncio, até ser publicada em
2012. Primeiro livro de poesia escrito por Jota Medeiros, corrobora a visão de uma poesia
mais próxima das artes plásticas e da música do que da literatura. No entanto, é importante
destacar que o poeta não se vale da proposição de uma poesia sem versos, como se poderia
esperar de um artista adepto da Poesia-Visual. Ao contrário, a concepção de uma estrutura
fragmentada que caracteriza esse livro/poema – mesmo valorizando uma organização
metamórfica da matéria poética –, não dispensará para sua realização o valor encantatório
das palavras.
Uma das primeiras questões importantes que saltam aos olhos do leitor é a relação íntima
e profunda entre forma e conteúdo, significante e significado, corpo e alma do poema. E se é
verdade que podemos dizer isso de todo e qualquer bom texto poético, é certo que com
maior ênfase dizemos de alguns. Também relevante é a dialética que percorre todo o poema,
colocando toda forma e todo sentido possível num movimento análogo ao da respiração.
Todo o poema revela um movimento de contração e expansão, imanência e transcendência.
Jota Medeiros cria uma sintaxe que extrapola o uso discursivo e avança pelo espaço das
páginas valorizando o vazio, atomizando o texto e, mais que isso, as próprias palavras,
criando imagens fragmentadas, ora dobradas, ora desdobradas. As palavras estão em
movimento contínuo: partem-se, misturam-se, multiplicam-se, cruzam-se em todo o poema,
e assim deixam de ser simples palavras para converterem-se em verdadeiras constelações
semânticas.
Indagar qual o sentido de Aorigem Diágora não será demais, caso o leitor não espere
encontrar uma resposta única e definitiva: a alta poesia é sempre plurissignificativa e
enigmática. Portanto, sua compreensão lógica é certamente o que menos importa. Assim, à
medida que indagamos seus sentidos, nos deparamos com múltiplos caminhos que podemos
traçar na(s) leitura(s). O poema em si não conduz o leitor a lugares definidos, mas sugere um
passeio pelo mar aberto da linguagem, com visitas a pequenas ilhas mágicas (ilhas de
palavras e de letras), nas quais nunca conseguimos dar a volta sem ter alcançado já outro
nível, como numa espiral.
Se é necessário dizer que na obra se desdobram as imagens em uma espécie de estado de
delírio poético (êxtase), mais importante é perceber que o poeta não se entrega passivamente
a essa inspiração, sobretudo por equacionar bem sua intuição com um labor artesanal de
altíssima consciência estética. Segundo o próprio Jota Medeiros, o texto foi-lhe ditado por
seu outro EU, num processo intuitivo e espontâneo, realizado através de uma matemática
inspirada, termo caro ao poeta Ezra Pound.
Na composição da obra, o poeta se utiliza dos recursos mais diversos, com isso
permitindo que o leitor tenha experiências também as mais diversas. Além dos efeitos
verbovocovisuais e das relações simbólicas que trataremos de maneira sucinta nesta leitura,
é interessante notar que o poeta faz uso das mais variadas ferramentas verbais da
linguagem poética, tais como: o ritmo dissonante, as figuras de efeito sonoro, o
enjambement, o paralelismo, etc. Tudo isso utilizado de maneira notadamente exemplar. O
poema dispõe ainda de um amplo diálogo intertextual com as mais diversas vozes poéticas
(Homero, a Bíblia, Mallarmé, Huidobro, Khlebnikov, Joyce, Drummond, entre outros). Sem
contar com as personalidades artísticas mencionadas ou lembradas (Martinu, Mishima,
Glauber Rocha, etc.).
133
Das várias experiências que a obra proporciona, comecemos pelo deleite visual. Um
simples passeio pelas folhas do livro, por exemplo, sem que se leia ainda o que está escrito,
proporciona a visualização de formas como colunas, retas, cruzes, círculos, triângulos,
linhas, pontos, tudo se erguendo, ora despencando. Essas formas se espelham e se redobram
no texto. Assim, a estrutura do poema lembra, em sua autossimilaridade e fragmentação,
formas fractais, que se caracterizam pela repetição de determinados padrões e se ordenam a
partir de procedimentos simples, desenvolvendo-se em formas mais complexas. Quando
partimos para a leitura, percebemos que os mesmos processos de fragmentação e
autossimilaridade acontecem no texto e seus múltiplos sentidos.
Tudo parece apontar para o caos, mas aponta para uma ordem anterior. Nesse sentido,
logo surgem imagens sutis de elementos familiares à linguagem esotérica, tais como: a
árvore da vida, a luz azul e a lilás, a rosa, o sol e a lua, o silêncio. Ainda nessa perspectiva,
parece haver como fundamento de tudo uma espécie de existência negativa, sugerida tanto
pela busca do silêncio, como, cabalisticamente falando, pelos reflexos da criação,
fragmentados como o poema. O poeta evoca um princípio, uma luz, um infinito movimento
primordial, o silêncio. E se os encontra, não é menos verdade que encontra também a
inquietude da mente, as inquietações do artista, de âmbito cósmico e espiritual. O poeta
mostra não como voltar ao centro, mas que não há centro, há uma elipse, um eterno retorno
– nunca o mesmo em sua essência.
O título do livro já nos põe em um oscilante ambiente semântico, pois se aorigem quer
dizer o obvio a origem, diz mais se lermos o a junto à palavra origem, não como artigo, mas
como prefixo de negação, ou seja: não-origem. Esta, ao remeter-nos a uma existência
negativa, curiosamente nos leva a pensar que, se o verbo é a origem, o princípio – ao menos
no imaginário ocidental cristão –, o silêncio deva ser, portanto, o estado anterior ao
princípio, ao verbo, à palavra. Nesse caso, paradoxalmente, pode-se pensar o silêncio como
princípio gerador: o silêncio é o ventre do verbo. E, ainda nas raízes do imaginário ocidental,
podemos nos aproximar da origem para os gregos, o caos – o vasto abismo insondável –, e
aplicando o mesmo raciocínio da negação prefixada ao substantivo, nos deparamos com o
não-caos, ou uma ordem anterior a tudo.
Completando o título do livro, Diágora remete à praça grega (ágora) – espaço público por
excelência, símbolo da polis e da democracia – ou simplesmente a preposição e o advérbio:
de agora. Levando a pensar tanto na origem, como na não-origem de agora ou de Ágora. O
ímpeto inicial do poema é a vogal aberta a, que aparece com tonalidade clara, porém,
crepuscular, azul, lilás. O Alfa, o princípio, mas também a negativa desse princípio, e a
negativa do caos, de onde tudo surgirá. O poema segue com o segmento aor isolado no
centro da página, fazendo lembrar aur, que na cabala é a “luz sem limites”, e ainda, segundo
Papus, em seu Tratado de Ciências Ocultas, é também a primeira sílaba de uma variante de
origem hebraica do nome de Orfeu - Aurofe (aur = luz / rofe = aquele que ensina).
Em seguida, o texto completa a palavra inicial [aorigem], uma das chaves do poema, com
as partes separadas, cada uma em uma página – i e gem. O poeta já indica ao leitor que o
movimento será em um ambiente fraturado, e que o silêncio e os espaços vazios são de
suma importância. No fragmento seguinte, surge uma ideia de infinito no movimento da luz
e na luz do movimento, e no eco da última letra da própria palavra infinito. Por outro lado, o
poema parece se dissolver e encerrar-se justamente como esse eco. Mas, segue pela luzazul
espelhada no palíndromo da página seguinte.
Interessante perceber que, assim como no título, em todo o poema se perfaz um
dinamismo de forças complementares, dialéticas, em disposições aparentemente caóticas,
como por exemplo, nas cores do xadrez fragmentado, equivalentes yin e yang, que são
mediados por rosas.
aordem
aor
dem
134
a
or
de
m
a
r
m
o
r e
x d
e
r
o
s
a
s
z
Mais ainda, percebemos no fragmento acima a relação entre o verbal, o visual e o sonoro.
Neste último aspecto, Aorigem Diágora não é para ser lida apenas em silêncio, e poderá
seguir o texto como uma partitura. Com a liberdade de interpretar, partindo de uma leitura
que reúna os segmentos, ou mantendo a fragmentação. No segundo caso – que preferimos e
reconhecemos a dificuldade –, ao final da leitura surge o fonema /S / sugerindo uma das
buscas desta Aorigem: o silêncio. Já a espacialização diagramática desse fragmento se
assemelha à imagem da árvore cabalística da vida. Enquanto os sentidos podem ser
buscados numa interpretação simbólica das palavras. Assim, o poema parece partir de um
estado anterior à ordem: uma não-ordem, em seguida aponta para uma luz (aur). Depois,
desorganiza os elementos e, como fora dito no parágrafo anterior, sugere forças
complementares mediadas por rosas que, simbolicamente falando, representam o coração e,
entre outras coisas, o renascimento místico. Em certos ritos de iniciação, o neófito passa por
uma espécie de portal, no qual cada lado representa uma das forças opostas da vida. O
poeta, iniciado, atravessa, abraça e concilia essas forças.
Salientando ainda as relações entre o que o poema diz e como diz, temos no excerto
transcrito abaixo, o sol em linha vertical e a luna no horizonte, lembrando uma cruz que,
entre outras coisas, é símbolo da forma.
o
sol
verti
cal
alunano
rizon
tis
Permeado por uma mística subjetiva e antropofágica, esse livro de Jota Medeiros
condensa conteúdos de diversas instâncias do conhecimento. O poeta cria um cosmo, e
como uma espécie de demiurgo, fá-lo dançar em movimentos inesperados, anunciando,
entre outras coisas, a noite na luz:
[…] night
sea
é ter blues
in the light
la lunadormecida
135
nasce,
sob o signo
do
tropos, [...]
Há mesmo um processo de justaposição e condensação no poema. Inclusive, ao misturar
diversos idiomas, Jota Medeiros instala em sua obra não uma Babel, porém um não-espaço
onde as línguas e culturas se comunicam.
Em Aorigem Diágora as palavras perdem o sentido comum, e junto dessa perda, dá-se um
novo contato com as coisas. Surge assim um sabor de relações desconhecidas, através de
uma linguagem-outra, capaz de também fazer surgir o silêncio que está no fundamento de
tudo. No poema há diversos temas e o leitor deve acompanhar os deslocamentos temáticos
como umbrevinauta, preparado para um caminho labiríntico. Dos temas mais relevantes,
um que se destaca, conforme viemos dizendo, é certamente o silêncio. Nesse sentido, é
importante perceber as relações que a obra estabelece com o pensamento da tradição
oriental (tais como Upanishads, Vedas, Zen) que tem a busca do silêncio como prática
essencial.
Sendo assim, com os ouvidos atentos escutaremos os movimentos de um canto ora
mântrico, ora dissonante, através do qual o poeta revela, ao mesmo tempo em que vela, algo
como esse estado anterior à linguagem: o silêncio. O antes das coisas, mas embrião do
mundo. Esse silêncio que não é o de quem nada tem a dizer, mas ao contrário, manifesta-se
com o desdobramento do artista que, inquieto, talha, esmerila, pule a tagarelice do seu
tempo, comunicando o incognoscível.
o
s‘l
^
n
s
‘
____________________
l
A apresentação do silêncio acontece em um lance mallarmeano. O jogo de dados que o
artista propõe é, ao menos em certa medida, não um lance de um prestidigitador, mas um
lance de bruxo ou de um mago das palavras. O lance sutil é o próprio silêncio, ou nele está
contido:
s
u
til
an ce
____________________
u
m
lance
136
subti
l
É também o silêncio profético das sibilas, metamorfoseadas em ilhas. Sibilhas que não são
apenas apolíneas, mas, sobretudo, são também aqui dionisíacas. A profecia sibilina é como
uma voz na América, esse novo mundo que nasceu com a chegada da morte, com o
crepúsculo dos índios. Um mundo de horror, um oásis de horror. Em Aorigem Diágora
transparecem nuances históricas que revelam a falência do projeto humano de civilização.
Uma humanidade amarga e amargurada, sórdida, que não vê Hermes – deus da fertilidade,
dos rebanhos, da magia, da divinação – pois ele foi roído pelos vermes:
[...]
carcomidos
por
vermis
ermi
s
´
O silêncio como busca do poeta – busca paradoxal por natureza –, em uma humanidade
fadada à tagarelice, que tem como histórico psicológico uma insondável diáspora interior.
Silêncio de poeta a ver que as pedras que atravessam nosso caminho, não estão nessa
existência, mas em uma anterior, e fez-nos perder a unidade, lançando-nos numa vida de
erros. Essa pedra era um fruto e estava no meio do caminho. Mas o poema não se entrega a
explicações tão evidentes e confunde o leitor ao apresentar tal pedra, tal fruto do erro e do
pecado como coisa sã, assim revelando a natureza dúbia do fruto da árvore do
conhecimento do bem e do mal:
[...]
uma
s
ã
num
eio
d
‘
cam
i
nho
Logo percebemos que tudo no poema está em metamorfose, não é diferente com o
silêncio que, em um novo lance, pode saltar do ambiente trágico ou obscuro e tornar-se o
silêncio de quem se lança em um jogo sutil, irônico, desconcertante:
[...]
si não dar mais pra rir
do
sil
do si
LANCE...
137
Conquistado o silêncio, ou degustado o silêncio, o poema caminha para o uso de ruídos
sutis. O silêncio é vertido em vertigem, devaneio aparentemente caótico, que mistura
contemplações de paisagens interiores densas e superpostas como esta:
a
névoa
voa
no
vór
ti
cís
mi
co
[...]
O poeta conduzirá o leitor, por todo o poema, nesse ambiente em perpétuo movimento. O
poema canta e dança simultaneamente:
[...]
pelo sismo,
ver
ti GEM
var GEM
vinACRE
ventosopram
os ares
[...]
Os versos acima parecem ter sido abalados por um sismo provocador de vertigens e
anunciador de dissabores. Confirma-se aqui que o corpo do texto poético revela seu espírito.
Corpoespírito, complementares, assim como o espaçotempo.
As paisagens vão mudando. E passam de paisagens contemplativas a momentos
fragmentados de amarguras e absurdos irremediáveis da existência. Abrem-se fissuras em
abismos para logo se juntarem em um movimento contínuo de ir e vir.
Há também passagens em que o indivíduo perde-se, e tende a evadir-se de si mesmo para
fundir-se com o outro: “temencontrei só”; “voceu”; “time perseguem”. Aqui lembramos a
experiência mística e poética de se reconhecer outro. Como o “Eu é um outro” de Rimbaud,
ou os outros de Pessoa, por exemplo.
Agora, se uma origem não é mais possível, ou nunca foi possível, para o poeta o não-lugar
e a não-origem são seu espaçotempo. Nesse espaçotempo a metamorfose é fenômeno
constante e princípio básico da existência. Exemplo disso no poema é o percurso cíclico da
ave que se transforma em árvore, representação da criação e da vida, e que em seguida passa
a ser ninho e o próprio ovo. Veja-se ainda que a força vital que perpassa ciclicamente a vida
ergue-se também em coluna, viril e ereta, representando a força erótica:
a
ave
vér
teb
r’a
ver
ă
rvo
138
re´
rót
ica
mi’
nhã
u
n
inh
o
A progressão estética de Aorigem Diágora se dá como o relâmpago cabalístico, que
visualmente falando, ora ziguezagueia, ora ergue-se como coluna, ora voa como alas abertas
num movimento em cruz. Aqui, Medeiros sonda o verso, a palavra, a letra. É assim que
parece buscar essências em tempos de superficialidade e simulacro. Mas essas essências
aparecem como feixes de luz que mudam suas cores, ou simplesmente como névoas. A
controversa origem do Ser dá-se em uma não-origem (aorigem), e não apenas em um lugar,
mas em lugares superpostos, simultâneos. A Ágora está na veloz cidade que é Ítaca, migmar,
Paris, El Doirado? Todas e nenhuma, mas certamente em outro lado.
Vale salientar que essa leitura é uma ponta do iceberg do poema que se desdobra e não
permite uma interpretação única. Porquanto, caso o leitor procure um entendimento
profundo e metafísico, e já não o tenha em si, provavelmente encontrará um efeito
metasísifo, a comprovar os versos – depois das mais astutas peripécias (até mesmo a de
enganar a morte?) – despencando por sobre si:
[...]
sede senlaçam sob/re
os luares metasísifos
destes
verbuns
Que o poeta seja um demiurgo em tempos sem deuses! Que execute com sua força e
criatividade um novo cosmo, anárquico e autêntico: eis o grande desafio, sempre antagônico
em relação ao mundo comum – tão carente que é de autonomia individual. Esse mundo
continua sendo hostil à poesia. Por isso, é também como resistência e provocação que o
poeta – locomotiva descarrilhada em direção à luz – pronuncia seu canto dissonante, seu
mantra polifônico, filtrando o ruído do mundo, desenhando sua busca do silêncio:
trem’
luz
plum’
argemmm
mmmmmmm
mmmmmmmmmm
mmmmmmmmmmmmm
mmmmmmmmmmmmmmmm
mmmmmmmmmmmmmmmmmmm
mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm
Primavera de 2013
139
ENTREVISTA COM JOTA MEDEIROS
Jota Medeiros é artista multimídia, poeta, compositor, crítico de arte, curador, editor e
coordenador do Museu Abraham Palatnik do NAC/UFRN. Nascido em João Pessoa-PB em
1958, reside em Natal-RN desde 1967. Figura emblemática da vanguarda potiguar, é um dos
poetas visuais mais importantes do Brasil e atuou intensamente no final da década de
setenta e durante a década de oitenta como um dos ícones da Arte-Postal. Autor dos livros
Progressão (Stempelplates, 1978), Geração Alternativa – Antilogia Poética Potiguar (Amarela
edições, 1997), Na tal Futurista – um breve panorama sincrônico das artes visuais norte-riograndenses (Sebo vermelho, 2011), Jota Medeiros também escreveu os livros de poemas
Aorigem Diágora (Sol Negro, 2012), MarAlter (inédito) e Iubilate Deo (Sol Negro, 2012). Na
entrevista que segue, o artista nos contará um pouco sobre seu livro Aorigem Diágora e sua
Poesia Visual. (R. B.)
R. B.: Aorigem Diágora foi escrito em 1987. Nesse mesmo ano, ganhou o 1º lugar no Prêmio
Auta de Souza. Por que esperou tanto tempo para publicá-lo?
J. M.: “Le silence est d’or” (Saint Jean Crysostome). Pela falta de recursos e/ou de um editor…
ou até de iniciativa própria...
R. B.: Qual era o clima poético do momento (em Natal-RN e fora)?
J. M.: O clima poético era efervescente. Havia “O Galo”, jornal literário da Fundação José
Augusto sob a editoria da poeta Marize Castro, do qual eu fui assessor especial. Lá fora,
publicações alternativas, suplementos literários, zines e afins.
R. B.: Que leituras você empreendia na época?
J. M.: As mais diversas: James Joyce, poetas como Corbière, os provençais, Maiakovski,
Mallarmé, Pound (re-leituras). Cummings & etc. Relia também os concretos e os antropófagos;
& Kilkerry, Sousândrade, entre outros...
R. B.: Há no livro relações com ocultismo? Em caso afirmativo, quais são elas?
J. M.: Há relações hieráticas, formais como a Cabala (intuitivamente), com os Vedas, os
Upanishads, o Tao e o Zen...
R. B. : Havia algum interesse especial ao conceber Aorigem? E ao publicá-lo?
J. M.: A concepção da cena d’aorigem foi automática em sua origem e/ou percurso. A meu
ver, foi ditada pelo meu OUTRO: EU, in(consciente) psíquico plasmado, uma espécie de
“matemática inspirada” no dizer de Pound.
R. B.: Aorigem Diágora é poesia visual?
J. M.: Toda poesia é visual! “Aorigem” está no limiar de uma perspectiva concreta-icônicosimbólica e/ou intersemiótica... “simplesmente poesia como eu necessito”, como disse Cage.
R. B.: No livro Uma história da poesia brasileira, Alexei Bueno não incluiu a poesia dos
concretistas, afirmando que esta não é arte verbal, mas arte visual. O que acha dessa
perspectiva dada à Poesia Visual?
140
J. M.: Acho a concepção de Alexei Bueno limitada, porém respeito como uma concepção
pessoal. Hoje vivenciamos uma poética intersemiótica, uma poesia “intersignos”.
R. B.: Podemos dizer que há em Natal uma tradição inscrita como Poesia Visual? Ela se
mantém?
J. M.: Há uma tradição no “Rio Noigandres do Norte”, no dizer do poeta Jarbas Martins, de
Poesia Visual em trânsito, por outro lado, uma vocação futurista, desde o discurso
premonitório de Manoel Dantas “Natal daqui há cinquenta anos” conferência realizada em 21
de março de 1909, marco zero, no mesmo ano de lançamento no Brasil do Manifesto Futurista
de Marinetti, em Natal, no Jornal “A República”. Em 1927, o performático poeta moderno
Jorge Fernandes lança o seu “Livro de Poemas”, onde a expressão “suspensa” configura
caligramaticamente uma rede no poema homônimo, perpassa o grupo Dés de poetas
concretos, em 1966, e o lançamento da Poesia concreta no RN, culminando com o movimento
de Poesia Visual e Factual, o Poema-Processo, destacando os nomes de Moacy Cirne, Falves
Silva, Anchieta Fernandes e Dailor Varela, entre outros, e nos anos 1970/1980 o movimento
internacional de Arte-Correio do qual fiz parte, juntamente com Falves Silva e Avelino Araújo.
R. B.: Na época da publicação de Aorigem Diágora, o que você estava produzindo nos outros
campos da arte?
J. M.: Poesia Visual, pintura, desenho, arte gráfica, textos...
R. B.: Como se deu o processo criativo de Aorigem Diágora?
J. M.: O processo criativo parte de uma automação psíquica e se desenvolve de forma
trans/racional, ou seja, “O lance de dados...” semiológicos“...jamais abolirá o acaso”.
R. B.: Diga-nos sobre sua identificação e envolvimento com o Poema/Processo e com a
Arte/Correio... sua arte sempre manteve uma relação estreita com as vanguardas? Como se
deu essa aproximação?
J. M. : Sempre na expectativa de realizar algo novo, na perspectiva do “pós-tudo” do “mais
novo novo”, como diria Augusto de Campos.
R. B.: Parece possível pensar na obra Aorigem Diágora como uma manifestação entusiasta do
acaso, como foi com os dadaístas e os surrealistas, por exemplo. Por outro lado, é
perceptivelmente significativa a preocupação com a forma e a sonoridade, como nos poetas
formalistas. Há uma síntese? Como vê essa questão?
J. M.: Como uma “síntese”, diáspora... formal & tematicamente.
R. B.: Diante de tudo que já foi feito no campo da arte poética, acha possível o surgimento de
vozes autênticas e inovadoras? Vivemos o tempo das infinitas combinações, e nisso consiste
o novo, ou o tempo das infinitas repetições, e com isso, há um desgaste do ‘fator surpresa’
da arte poética e talvez das artes em geral? Ou...?
J. M.: “Tudo está em tudo”, já dizia o filósofo grego Anaxágoras. Nos anos 1960 se falava de
“nem bom nem ruim”, hoje podemos afirmar bom ou ruim, porém “tudo está em tudo” &
“não há nada de novo sob o sol”, a cada segundo há uma revolução cibernético-anárquica do
hoje comunicacional informacional, ou como previra Andy Warhol, “no futuro todos serão
artistas por 15 minutos”.
141
Natal, 01 de outubro de 2013.
Rodrigo Barbosa da Silva (Brasil, 1979) é poeta e tradutor, mestrando em Literatura
Comparada pela UFRN. Publicou Flâmulas Hidras & Coquetéis (Sol Negro, 2011). Contato:
[email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista
convidado desta edição de ARC.
142
RUBÉN SICILIA | Entre Vicente Revuelta y Jerzy
Grotowski: Fascinación, Desafío y Éxtasis
El Performer con mayúscula, es el hombre de acción. No es el hombre que hace la parte de
otro. Es el danzante, el sacerdote, el guerrero: está fuera de los géneros estéticos. El ritual es
performance, una acción cumplida, un acto. El ritual degenerado es espectáculo. No quiero
descubrir algo nuevo, sino algo olvidado. Algo tan viejo que todas las distinciones entre los
géneros estéticos ya no son válidas.
Jerzy Grotowski
I. FASCINACIÓN | No hay dudas. Si en efecto resultara un hecho que el hombre desciende del
mono pudiera acotarse que el hombre de teatro occidental desciende de Stanislasvki. Este
silogismo seguramente habría hecho sonreír a algún que otro filósofo antiguo. O quizás a
algún que otro antropólogo actual. Si Stanislasvki es el centro de todo árbol genealógico
teatral, como apunta Eugenio Barba, Jerzy Grotowski, el otro, el anticristo, traza una huella
indeleble hacia casi todo el teatro contemporáneo. En el teatro cubano, especialmente, la
figura de Grotowski influyó de manera notable. Su irrupción, tras una larga etapa
“Stanislavskiana”, llega precisamente de la mano de Vicente Revuelta. Fue él quién
introdujera y cultivara en los años sesenta y setenta los ejercicios del “método”. Y también
otras corrientes y técnicas. No pocas veces se obvia, se minimiza, se olvida que a cierto nivel
Stanislasvki y Grotowski se superponen. Y ya va siendo imprescindible, aquí y ahora,
discurrir sobre esas madejas y esos entrecruzamientos.
1.1 DÍA DEL GÉNESIS. INTERIOR | Nadie desde Stanislasvki lleva tan lejos la investigación del
actor como Grotowski. Deliremos, deliremos aún más porque a veces del delirio se puede
llegar sorpresivamente al conocimiento. No hay tal ruptura entre Stanislasvki y Grotowski,
elemento este, benditas resulten las reincidencias, que no pocas ocasiones se desdeña en
Cuba. Si bien Grotowski defiende una estética entre lo ritual, la blasfemia y la irrisión, el
sentido ritual de su poética corresponde al hálito de los tiempos en que vivió. Nadie sabe si
Stanislasvki habría tomado el sendero de Grotowski de haber vivido bajo sus condiciones. El
juego de los vaticinios nunca es loable ni constituye en modo alguno una ciencia exacta.
Abandonémoslo, pues. No desdeñemos, sin embargo, que Stanislasvki, en la última fase de
su trabajo descubrió y sugirió las famosas asociaciones. Algo que realistas ortodoxos y
liberales convienen en considerar definitivamente lejos del “realismo”. Su investigación
sobre las acciones físicas es quizás el eslabón perdido entre los hilos de uno y las hebras del
otro. Más tarde Grotowski, desde las resonancias del teatro pobre, desarrolló una
metodología, creó un teatro basado en arquetipos, un teatro que superaba la expresión
realista. Dios, Madre, Nacimiento, Muerte, Conversión, etc.
AKRÓPOLIS/DIR. JERZY GROTOWSKI/ARCHIVO PERSONAL | Toda una simbología erigida
sobre las posibilidades del cuerpo. Todavía hoy se desconoce mucho acerca de la técnica
interior que propone Grotowski, al menos en Cuba. Se penetra en el inconsciente y se está
ante dos niveles bien delimitados en cuanto a la génesis de las asociaciones. Uno de
superficie, otro más profundo. Asociación elemental, básica, quizás: un actor trabaja a
Tartufo y toma como base los movimientos, la esencia y la energía de un ratón, por ejemplo.
Pero la metodología o proceso que se sigue para llevar estas “reacciones” a todo el cuerpo o
a todo el ser, se traducen en resultados perceptiblemente diferentes. Es decir “más externos
o más internos”. Más hacia un trance[1] consciente o hacia el uso de una imagen “solamente
corporal”. De igual manera, dos o más asociaciones pueden ser mixturadas y tal mixtura
llevar la concentración a niveles aún más intensos. Tómese, pongamos por caso, la siguiente
143
asociación: “Mi mano es la púa de un escorpión resuelto al ataque, mientras mis pies se
implican en el paso de un samurai que se protege”. He ahí una oposición subyacente,
oposición que de ser trabajada hasta donde las reacciones logren conducirnos, puede dar
lugar a una repercusión incalculable en proyección, impulsos y calidad de la energía.
En muchos de estos sentidos, tanto técnicos como metodológicos, Vicente Revuelta es, en
Cuba, una figura igualmente legendaria y singular. Una figura a la que muchos debemos hoy,
gran parte de nuestra comprensión. Una figura que por muchas razones asociamos a Artaud,
tanto como a Grotowski. Vicente Revuelta quizás no ha sido reconocido a escala
internacional tanto como debiera. Y no lo ha sido, seamos realistas, simplemente por vivir y
trabajar en una pequeña isla del Caribe. No lo ha sido, en la magnitud merecida, al no
laborar en los centros europeos de cultura. Aunque aparece –como pocos latinos- en varias
de las enciclopedias mundiales del arte del actor. Espíritu inquieto e investigador ha
explorado exhaustivamente en diversos períodos a Brecht, al Living Theatre, a Stanislasvki, a
Michael Chejov, a cuanto buen ejercicio para el actor existiera y pasara por sus manos.
Esa suerte de continuum le llevó a cristalizar una experiencia sui generis, un modo propio,
una forma y un método de transmitir sin dudas singular. Un método inductivo-deductivo.
Tal singularidad se hizo patente en actores de Teatro Estudio como José Antonio Rodríguez,
Aramís Delgado, Omar Valdés, Adolfo Llauradó, Carlos Pérez Peña, Miriam Acevedo, Alina
Rodríguez y muchos otros. Incluso de generaciones posteriores. Actores que han marcado
con el escorzo de un estilo y un relieve claramente visible a varias generaciones. Y algunos,
como Aramís, todavía lo hacen.
En entrevista reciente alude Vicente a la actualidad de la formación del actor en Cuba:
“Creo que ahora estamos en lo mismo. Hay mucha gente que si realmente se
desprejuiciara de muchas cosas y empezara a hacer los mismos ejercicios con la misma
ingenuidad que nosotros lo tomábamos, con la misma creencia, quién sabe qué podría
suceder. Porque de Stanislavski no queda nada en el teatro cubano, yo no lo veo por ningún
lado, ni un sentido ético, ni estético. Estamos como volviendo, estamos en la misma situación.
Quizás como que ya lo hemos hecho. Me acuerdo cuando en el ISA organicé un grupo de
muchachos que entraron nuevos, los dividí en grupitos. A uno le di Stanislavski, a otro Barba,
a otro Grotowski, se fajaron con los libros durante un tiempo, a ver qué salía. Empecé a tener
entrevistas con cada uno de ellos. Había un muchacho que venía de Santa Clara, que no sabía
nada de nada, y entró muy disgustado, le pregunté qué le pasaba, y me dijo que no le gustaba
el grupo de Stanislavski, porque le habían dicho que ya eso estaba pasado. La persona que se
lo dijo me contestó que ella era instructora de arte y no le habían enseñado nada de
Stanislavski, pero ya había metido la cizaña”.
Si llegamos armados del habitus taxonómico ante estas declaraciones se nos asomaría un
Vicente Revuelta inclasificable. Y puede que ello resulte evidente desde la relación simbiótica
(en modo alguno mimética) con los postulados de Grotowski. Puede que esa simbiosis haya
aportado lo determinante. Más allá del carisma y empuje de artista insatisfecho, del carácter
iconoclasta y del empuje de constante investigador, es esa suerte de voyeur, homo ludens y
homo faber que caracterizó siempre la labor de Vicente Revuelta, lo que lo define. No
obviemos su labor práctica de enseñanza, la dirección de actores y su particular concepción
en cuanto a la puesta en escena.
Vicente Revuelta, siendo él mismo un actor legendario, ha sido motivo de inspiración para
muchos tan solo al verlo actuar. Y deviene paradigma, tal vez el paradigma más alto de
“director de actores” que ha existido en Cuba en cuarenta años o más. En Cuba una gran
mayoría de los directores lo son de “puesta en escena”. En ese contexto Vicente aparece
como rara avis. Muchos lo consideran el padre del teatro cubano. Esforcémonos en dilucidar,
paso a paso, los reales fundamentos de ese titulo.
En ese empeño he de recorrer un itinerario en la memoria. No únicamente desde mi
recuerdo personal, he de auxiliarme de mis maestros y amigos, de las publicaciones –no viví
de primera mano todos esos tiempos-, es por ello esta una empresa harto trabajosa. Aunque
sin dudas de un enorme atractivo. Una empresa henchida del placer que significa
144
desentrañar los hilos y nexos, los espacios y las personas que en torno a Vicente, desde
Vicente o por Vicente singularizaron definitivamente el teatro cubano y latino de los últimos
treinta o cuarenta años. Un viaje de iniciación tal vez, comparable al viaje que emprendían
ciertos discípulos en la antigua China hacia islas fabulosas. Un viaje que, devenido texto,
hasta donde sé, no tiene antecedentes. Texto y viaje en los que los obstáculos innumerables
a superar radican en el entrecruzamiento de voces, conceptos, vivencias y personas. Un
entrecruzamiento cuya madeja me envuelve en hilos que llegan tanto desde Vicente Revuelta
como desde los postulados de Grotowski. Fui discípulo e interlocutor de Vicente en diversas
épocas, fui discípulo de María Jiménez, guatemalteca que había estado presente en el Centro
di Lavoro de Pontedera en la fase última de trabajo del maestro Grotowski. Hechos esos que
en lo que me atañe han estado estrechamente imbricados con la experiencia. Fui también
alumno de los talleres de Eugenio Barba. Cauces que me trascienden e inspiran en todo
momento, como dramaturgo, y, sin dudas, como director.
Este, por tanto, será quizá un texto personal. Sí se quiere confesional. Momentos y
eventos en ciertas ocasiones trascienden de lo personal a lo grupal. Esta es una de esas
ocasiones, no solo a mí atañe la experiencia: se trata de una experiencia que incide sobre
algunos de mi generación, en forma idéntica.
Será este viaje a la memoria un centro de discernimiento puede que intrincado mas cuya
vigencia llegara de la fusión de lo teatrólogico con lo vivencial, de lo técnico con lo
metodológico, de lo ritual con lo cotidiano, de lo serio con lo lúdicro. Puede se evoquen otras
muchas e inevitables paradojas. Intentará un texto con cierto soplo testimonial. Un viaje a la
memoria intenta siempre cierto trasvase inextricable y orgánico, trasvases ajenos a lo que no
pocas veces suelen mostrar los manuales de historia del arte. La ortodoxia ama lo
homogéneo y lo causal, no existen, sin embargo, procesos evolutivos que se desarrollen
desde lo homogéneo y causal. El arte, como la vida misma, traza círculos, zigzag, espirales,
vueltas y virajes sobre sí mismo. Vueltas excéntricas y concéntricas. Movimientos
brownianos. Como sostiene Julián Beck “la coherencia consiste de cola y espátula”.
Intentemos descubrir la madeja. El hilo invisible que tal vez nos ha de conducir fuera del
laberinto. O fuera de la caverna. ¿Quién puede aventurarlo? Platón recuerda a Sócrates y tal
vez nos sonríe desde el tiempo. Nos saca la lengua. Y seguimos intentando, persistimos en
develar la vía. Somos hombres de teatro. Otros nos han guiado, nos guían, provocan y
acompañan. Los nexos y relaciones que aquí intentaré evocar se relacionan no pocas veces
con la propia experiencia. Otras con experiencias que me fueron referidas, otras con
entrevistas que hube de leer o incluso de otras de las que fui testigo. He de confesarlo:
también yo, como otros que ya no residen en Cuba, fui contaminado con el virus
“Grotowski”. La contaminación se hizo dual, dúplice por la influencia del maestro Vicente.
Dos maestros, muchos discípulos. Ignoro sí él, Vicente, lo sabe, si apenas lo intuye. Por
instantes me ha asaltado la sensación de vivir en la piel de una suerte de “survivor”, justo en
el significado del término sobreviviente, como se maneja en cierta zona de la antropología
contemporánea. En este sentido este relato enlaza, orgánico, con mi propio recorrido y
relato. También con los relatos de maestros y amigos. Se es en la medida que somos. En el
arte toda observación personal relaciona cómo un plano y otro se superponen, se
complementan. Lo mismo sucede en ese viaje singular al que llamamos vida. ¿Que
significado tuvieron y adquieren hoy día los postulados de Grotowski, ya desaparecido, y la
presencia, aún palpable, del maestro Vicente Revuelta, en el contexto del teatro cubano
actual, donde ya no parece primordial, el camino de la investigación como en años
anteriores?
Intentaré este recorrido desde y para la memoria. A través de ella transita el legado del
conocimiento humano. En tanto existe la memoria se confiere al conocimiento espacio y
tiempo. No mas deja de existir la memoria y el conocimiento deja de tener espacio y se
desdibuja en el tiempo. El conocimiento define nuestra condición más trascendente. El
hombre tiene la soberana virtud de pensar y aprender. Homo sapiens, se dice. Dos veces
sapiens. En nuestros genes subyace el instinto de transmitir lo que pensamos y aprendemos.
145
Solo así la humanidad ha logrado evolucionar desde las edades más primarias. Pensando y
transmitiendo. Testificar. Legar. En el universo coexisten múltiples experiencias y ritmos. El
movimiento del péndulo hacia arriba será homólogo al del péndulo hacia abajo. Tal como
Heraclíto, el obscuro, apuntara: “Todo se esta convirtiendo”. A veces, lo uno en lo otro. Más
allá de la fascinación, uno siente la necesidad de vencer. Luego tal vez, nadie lo sabe, puede
llegar el éxtasis.
1.2 PRADERA A LA LUZ DEL DÍA | Saber y ser en ocasiones se miran desde las antípodas, tal
como ser y poseer a veces se oponen. Abundan los automatismos en el hombre. No obstante,
el hombre tiene siempre opciones. Puede trazar un camino. Alinear un recorrido como un
recurso para la comprensión. ¿Quiénes son Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski? ¿Qué
significado tienen para el teatro en Cuba? Asoman con estas interrogantes campos con
límites en extremo movedizos y una sucesión de zonas inciertas. Tal vez contradictorias.
Comencemos por Vicente Revuelta, el más entrañable, afortunadamente aún vivo, cercano
y tangible para nosotros. Los años donde Vicente alcanza el cenit de su producción son tal
vez los sesenta. Época aquella telúrica y luminosa, tanto para el arte y la cultura como para
la humanidad. Un torbellino utópico atraviesa la vida. La contracultura y todo el movimiento
que genera ejercen una influencia centrípeta. Nada escapa a ese eje. En Cuba, un cambio
violento y radical. Una revolución armada da al traste con un mundo y hace nacer otro.
Vicente Revuelta, es, sin dudas, un hijo incandescente de este torbellino. En entrevista
reciente alude Vicente a esos tiempos, etapa fundacional de Teatro Estudio:
“Yo no quería hacer televisión, porque me llevaba tiempo y era algo que consideraba que
no valía la pena, por tanto, no tenía dinero. Entonces, Olga Andreu me sugirió que me pusiera
a dar clases. En la calle 15 yo tenía un pequeño penthouse y aquello se convirtió en una
especie de agencia del Actor’s Studio en Cuba. Por allí pasó mucha gente. En el Hubert me
dieron la posibilidad de hacer “Viaje de un largo día hacia la noche”, de Eugene O’Neill. Por
otro lado, además de las clases que daba, organicé una especie de seminario con un pequeño
libro, que me prestó Adolfo de Luis. Hicimos los ejercicios aquellos y nos sentimos nuevos
actores. Ahora lo pienso y me digo qué fue lo que pasó. Evidentemente éramos ocho o nueve
personas que ya teníamos una práctica del teatro, además, tenían talento, unos más y otros
menos. Estaban Ernestina Linares, Sergio Corrieri, Pedro Álvarez, y había otro tipo de gente
que venía de otro lugar, y su calidad era diferente. Estaba también Héctor García Mesa, que
era una especie de organizador y fue quien hizo la traducción. Siempre me acuerdo de que el
día que hicimos las improvisaciones nosotros nos quedamos como bobos, yo no sé qué era lo
que pasaba antes de eso y qué pasó, pero sé que para nosotros fue una revelación. Me
acuerdo que Ernestina me dijo, vamos a ser unos actores maravillosos. Todavía no puedo
darme cuenta qué fue lo que pasó, pero evidentemente todos nos quedamos fascinados”
Luego comenta sobre un momento más avanzado del grupo, ya en plena ebullición social:
“Nosotros además de Stanislavski, estudiábamos marxismo. Y lo hicimos antes del triunfo
de la Revolución, y después con mucho cuidado, porque cuando triunfó la Revolución, cuidado
si se sabía que tú eras comunista. Pasó mucho tiempo para poder decir a mí me interesa el
marxismo. Eso también nos daba una cohesión en el grupo. No era solamente el teatro, sino la
función social del teatro, su sentido, el sentido de la historia. Por ejemplo, el hermano de Mirta
Aguirre nos daba clases de Historia de Cuba. También era pequeño el grupo que estrenó
“Viaje de un largo día hacia la noche”.
Viaje de un Largo Día hacia la Noche/Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE
Inmediatamente nosotros inauguramos en Neptuno, una academia de arte dramático.
Todo eso fue al mismo tiempo en que la Revolución estaba triunfando. Claro, cuando todo
cambió nosotros estábamos caminando con la historia. Todo se nos facilitó. Tenía un sentido
lo que hacíamos, empezamos a trabajar Brecht, hicimos el Segundo Manifiesto.
De repente, ocupamos un lugar que política y socialmente era muy importante, a pesar de
sus errores. Por ejemplo, una de las cosas que a mí me llama la atención es cómo es posible
146
que Teatro Estudio no estrenara “Aire frío”. Creo que es porque había distancias ideológicas.
Virgilio no era de la gente que iba a leer su obra a Teatro
Estudio, pero yo me pregunto cómo es posible que nosotros no la hiciéramos, con tantos
puntos de contacto con “Viaje...” Eso es un ejemplo. Pero después para que entrara otra gente
que no había estado tan sumergida en el proceso, que tenía sus temores, sus prejuicios, todo
eso nosotros quizás no fuimos lo suficientemente lúcidos para darnos cuenta. Estábamos
siempre de una cosa en otra. En esa etapa vino Asquini, un anarquista invitado por el Ché,
que evidentemente vino para eso, encontró el grupo que le convenía y ahí mismo se formó
tremendo rollo, eso sacudió el ambiente y se tomaron posiciones.”
En esa entrevista denominada “Monólogo” Vicente apunta al presente con una mirada
nada complaciente:
“Me interesa mucho vivir el resto de mi vida en este proceso, en lo que está pasando ahora.
A veces me harto, me parece que todo es una gran mierda, que la gente no vale la pena, pero
inmediatamente lo llevo a una medida de lo que he conocido afuera, y me siento mucho mejor
aquí. Este es un país, como ya se ha dicho, muy surrealista, muy loco, con una expectativa de
que pase lo que menos uno se imagina, pero nos arreglamos de alguna manera”
Esa línea de pensamiento creador resume y delata la línea de pensamiento, polémico y
paradójico, que han seguido los grandes artistas a lo largo del tiempo. El artista como
conciencia crítica de su tiempo. Quien critica, aventuraba el Apóstol, debe sembrar flores. No
olvidemos que la actividad de creación puede ser en sí misma una flor extraordinaria. Brecht
podría situarse como paradigma de crítico y horticultor, especialmente con Galileo, donde
alcanza un vuelo humanista de excepción.
Galileo Galilei. Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE
Y es que el pensamiento artístico más auténtico no puede evitar ser crítico si es
profundamente humanista. Esto es latente en casi todas las puestas en escena con este
sesgo. Vicente tal vez lo simboliza desde su apellido. La “Revuelta” en el teatro puede ser su
búsqueda de valores verdaderamente humanos. Pero también en su caso, un claro sentido de
pertenencia. Un sentido real para el contacto, para la verdad y la belleza. Tal vez ello le
permitió mantenerse buscando una nueva poética para cada puesta en escena, como solo
parecen hacerlo algunos grandes directores en la historia. Pienso en Peter Brook, aún muy
activo con cerca de 98 años; en el propio Stanislasvki, enfrentando a Stalin en una cena,
alzándose defensor de Meyerhold aún a riesgo personal, haciendo gala de valor y fuerza al
reformular sus principios de trabajo en la última etapa de su vida. ¿Acaso pueden separarse
vida y teatro? Una vez que se alcanzan ciertas cotas ética y vida se fusionan.
Se me antoja la búsqueda teatral de Vicente como el encuentro de un espacio de libertad.
A través del teatro. Teatro mediante. Un locus visible en toda su obra. Un locus al que la
utopía abrió puertas en sus inicios para cerrarlas más tarde en etapas de “recrudecimiento
ideológico”. Puertas que se cerraron en los setenta bajo las aldabas y cerrojos del
“quinquenio gris”, bajo los martillos de la censura no declarada y el instilar de conflictos
internos. Todo ello literalmente asfixió la experiencia del Grupo Los Doce, -al cual por fuerza
habrá que dedicar un momento en este texto.- ¿Quién puede hoy aventurar hasta dónde
hubiera trascendido este Grupo? ¿Cuáles habrían sido sus límites? Más, ¿en qué sitio de este
mundo nuestro se asiste al ejercicio de libertad completa? Las diferencias entre un contexto
y otro pudieran ser solo operativas. O mejor, solo verdaderamente perceptibles en cuanto a
la vida espiritual del hombre.
Jerzy Grotowski, en la Polonia de la sexta década, viaja también por rutas semejantes.
Habría que recordar sus cartas a Barba, letras que parecen ser, entre otras modalidades, un
curso práctico de táctica y estrategia. ¿Será que el teatro siempre estará en la línea de fuego,
frente al poder como una nota discordante? ¿Será que la verdad está cautiva en todas partes?
¿Será que es este un momento particularmente disonante en la historia del hombre, en todos
los pueblos y países? Tal vez sí, tal vez no. No creo que alguien alcance a responder
preguntas de tal magnitud. Lo cierto es que la actividad del teatro tiene un poder inmenso en
función de penetrar la conciencia colectiva. Las ondas de una piedra lanzada a un lago se
147
esparcen uniformemente desde el centro a la periferia. Las ondas: del centro a la periferia.
Vicente lo sabe. Aunque como todo humano a veces dude. Lo sabe y lo transmite.
Primer Flash Back en la Memoria.
Años ochenta. Ciudad de la Habana, muy cerca de la Avenida Paseo. Estamos en casa de
Aurelio Sánchez, trovador y actor negro, que en la actualidad reside en la Argentina. Un
pequeño cuarto con barbacoa, oasis mínimo en un apartamento donde convive toda una
familia. Transcurre una de nuestras habituales “descargas”, comúnmente se prolongaban
hasta la madrugada, un grupo de jóvenes artistas, inquietos, repletos de incandescencia y
ansias de saber discuten. Es “La Peña de Aurelio”. Teatristas, pintores, trovadores, bailarines
y otros pasaron por allí. Nuestro “invitado” de este día, Humberto (el coreógrafo) plantea el
tema de la ritualidad como base del trabajo interpretativo. Surge una discusión bien ardua.
Se plantean temas de implicación cosmogónica. Vibraciones. Observación de uno mismo[2].
Cuarto camino. Crecimiento. Training Corporal. Grotowski. Humberto refuta que el training
del Ritual del Mandala, ejercitado por Vicente Revuelta, ofrece respuestas a nuestras
interrogantes. Sostiene que se trata de un training que apunta hacia la noción de arte
objetivo de Gurdjieff. (En realidad esta idea del arte objetivo implica elementos muy
profundos que aluden a la transmisión de símbolos, elementos que han influido a muchos
creadores contemporáneos, probablemente también influyó a Grotowski). Alguien se opone
con mucho fervor, señala la ausencia de fundamento sólido en la tesis de Humberto. Este
propone llamar a Vicente, decide que la refutación a Vicente llegue… del mismo Vicente.
Improbable que a semejante hora Vicente no duerma, todavía mas improbable que venga
hacia nosotros desde su penthouse de Calzada.
No existe lo improbable tratándose de Vicente y he ahí que nos asombra con su llegada.
Se hace un silencio especial. Se apagan las luces. Vicente enciende unas varillas de incienso.
Insta a enfocar la atención en ellas. Todos los ojos en las varillas de incienso. Vicente
comienza a moverlas en una suerte de danza rítmica, silenciosa, una danza que de a poco
llena el espacio. Llega el instante en el que ha marcado un círculo perfectamente delimitado.
Camino. Trayectoria. ¿Refutación in progress? Nada de eso: todos estamos ya en el círculo,
todos en la trayectoria. En un reducido espacio con barbacoa tiene lugar un ritual. Un ritual
sui generis, cada uno va hallando en sí mismo y en el espacio que circunda y acecha
imágenes de fuerza y belleza impactantes. El movimiento no abandona la trayectoria
circular, brotan cadencias, ritmos, acciones, todos diversos. Respetando siempre el círculo
un Vicente extraverbal induce a tomar contactos. (Auto)reconocernos y (re)vincularnos. Las
hebras impolutas de una madeja comienzan a trenzarse. En la madeja hasta aquellos ajenos
al teatro. Se desata un vendaval de acciones / reacciones. Un vaso de agua en la piel. Una
caricia. Una palmada. Sonidos. Cantos. El “training”, en puridad el rito, se prolongó por dos
horas y media. A la postre un peculiar estado de conciencia. Una amplificación de
sensaciones que pocas veces me ha sido dado experimentar. La “magia”, el conocimiento de
Vicente, se hicieron patentes. La respuesta a todas las interrogantes está dada. No se había
llegado a la refutación, se había llegado al discernimiento. Aquel fue mi primer encuentro
con Vicente. Reconozcamos: no era aquel un training diseñado solo para el cuerpo. Al final,
como suele suceder, nadie se puso de acuerdo pero no importó. La conciencia puede ser
reluctante. Los sicólogos lo saben.
Continuemos pues armando retazos del puzzle. Ese puzzle subjetivo y veleidoso que es la
memoria. Hubo otros encuentros. Todos deambulamos aún en el círculo. El hilo aún se
construye, trozo a trozo, hebra a hebra. En mi experiencia.
1.3. EXTERIOR, NOCHE CERRADA | Mi segundo encuentro con Vicente y con su trabajo,
acaeció muchos años después. Logré penetrar, casi subrepticiamente, en una de las sesiones
de trabajo de “El Cuento del Zoológico”, una de las múltiples veces en que lo montó.
El Cuento del Zoologico/ Vicente Revuelta/Archivo del CNIAE
Ahí estaba yo y ahí estaba mi cabeza dando vueltas, así se mantuvo mi cabeza por horas.
Las variaciones de transición-improvisación casi permanentes que Vicente imprimía al
148
personaje de Jerry, escenas que giraban como una noria, a diferentes ritmos e intensidades.
Atisbábamos la escena a través de una tela metálica en la oscuridad. Resultaba fascinante
aprehender cómo inducía desde la interrelación el movimiento al otro actor, la memoria, lo
reconozco, es fragmentaria, es imposible recordar sí se trataba de Vergara o Llauradó. Mi
cabeza era la noria. Daba vueltas. En cada vuelta advertía que algo de esto deseaba
encontrar yo un día. No importaba cuando.
Por aquellos años me esforcé en presenciar varias puestas memorables de Vicente. Son
íconos que conservo. A saber: “La Duodécima Noche”, en Teatro Estudio.
Vicente interpretaba un bufón, todavía hoy inolvidable. Caminaba haciendo un balanceo
estrambótico de cadera y pelvis, se trataba de una marcha absolutamente
“extracotidiana[3]”, un equilibrio “de lujo”, todo eso en una época en la que no se hablaba
aún de antropología teatral.
La Duodecima Noche/Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE
El elenco en general, era de un nivel infortunadamente inexistente hoy. Asistí varias veces
a esa puesta. Deseaba absorberla. Después, arrobado y cabeza girante, logré asistir a una de
las versiones de “Galileo”. Ah, ¿cabeza?, ¿noria?, permítaseme la paráfrasis: ¿o es que son
una las dos? Más tarde fue “El Precio”, de Arthur Miller, puesta que recuerdo como el
paradigma de un elenco perfectamente equilibrado, de altísimo nivel actoral. Esta época de
Teatro Estudio fue escuela y fue taller. Todo eso aunque Vicente, inconforme, como todo
demiurgo, se quejaba a veces de la incomprensión de algunos actores. Aquello marcó un
nivel en la formación del actor en Cuba. Nivel que no ha vuelto a conseguirse. Y ese nivel se
alcanzó de la mano de Vicente. Se alcanzan años y con ellos se suele adorar al pasado. He
ponderado cuanto escribo. Juro que no es este el caso.
Eran los míticos 70. Cuanto he narrado ocurría en una pequeña isla del Caribe. En sentido
análogo, y en paralelo, transcurre la experiencia de Grotowski, primero allá en Europa, luego
en el mundo. Una experiencia que se extenderá desde los sesenta hasta su muerte en 1999.
Busquemos nexos, vínculos, relaciones. Antes un dato curioso. Del propio Vicente escuché
(y de Tomás González, fundador de Los Doce) acerca del encuentro, a todas luces mítico,
entre Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski. Resultó de un viaje a Europa de Vicente, en los
setenta, si la memoria no me es falaz. Al parecer, el encuentro no fue tan importante para
Vicente, tal vez lo fue menos para Grotowski. Todo había sido organizado por el Ministerio
de Cultura polaco ante la visita del “artista cubano”. Como suele suceder con lo que es
oficialmente dictado, Grotowski recibió a Vicente con cierta frialdad. Vicente me confió
aquella vez que Grotowski le había recomendado concentrarse en los rituales afrocubanos.
De acuerdo con el maestro polaco esa era la vía para entrar en nuestros arquetipos. Curioso
que el propio Grotowski adoptara después otros enfoques mucho más amplios que el
sustrato autóctono de su cultura. No creo necesario abundar demasiado en ese encuentro.
Otros puntos hay de mayor trascendencia y significado para la vía creativa de cada uno de
ellos.
II. – DESAFÍOS | Conectadas en estrecho e indescriptible vínculo se revelan las búsquedas de
Vicente Revuelta en Cuba y de Jerzy Grotowski en su itinerario universal, itinerario que
rebasa con creces las fuentes de su origen polaco. No voy a incurrir en comparaciones
directas, en materia de arte suelen ser caóticas, en la vida imprudentes. No puedo, sin
embargo, abstenerme de señalar los inevitables puntos de contacto. Cada uno, europeo y
caribeño, está revestido de las armas de todo investigador insatisfecho e insaciable, cada uno
recorre un itinerario personal que lo define y distingue. Estos son los desafíos. El trazado de
los escollos encontrados en cada ruta. Pues cada ruta es diferente. Trataré de observarlos, de
seguirlos, el hilo será más o menos cronológico, en el recuerdo o en el conocimiento. Que
ambos tienen su cronología.
149
Segundo flash Back
La primera vez que trabé contacto con el entrenamiento “grotowskiano” todavía estudiaba
como instructor de teatro. Mi profesora de dramaturgia, la desaparecida Gloria Parrado
(lamentablemente subestimada por algunos, pero sin dudas una mujer de extraordinario
conocimiento aunque sin mucha experiencia de dirección) crea un grupo de instructores de
teatro. El objetivo: experimentar con las posibilidades del cuerpo, la voz y la imagen.
Comenzamos a trabajar con el “método de creación colectiva”, de Enrique Buenaventura,
importante figura ya fallecida del teatro latinoamericano. Las famosas “analogías y
homologías” que hicieron fiebre en un período. No obstante, todo el entrenamiento de base
de los actores, lo fueron los “ejercicios de Grotowski”. Advertíamos que nuestros cuerpos,
nuestra plasticidad y nuestras voces, día a día, se expandían. Con el uso de los resonadores.
El training corporal: El ejercicio del gato, la marioneta, caminar agarrando los talones,
introversión-extroversión y otros muchos, fueron moldeando nuestra corporalidad
singularmente. Recuerdo en particular un ejercicio de voz muy inspirador. Lo llamábamos
“Diálogo con el espacio”. El actor comenzaba a liberar sus palabras y pensamientos hacia las
paredes, el piso, el techo del local, buscando respuesta sonora. En un modo deshilvanado, el
ejercicio recordaba a las sesiones de asociaciones libres del psicoanálisis freudiano. El actor
se movía hacia un estado de “delirio” cada vez más profundo, surgían elementos notables
para uno mismo. Además de sonidos increíbles. Se crearon fuertes relaciones de grupo,
antes desconocidas, inéditas, todo ello a pesar de que la mayoría compartíamos la misma
aula en la escuela. Según Gloria Parrado era necesario el autoconocimiento del intérprete.
Trabajábamos mucho sobre nuestros límites. Los ejercicios de Grotowski ella los articulaba
en “cadenas” peculiares, las que llamaba: Cadena del primer actor, Cadena del segundo
actor. Tal vez para indicar estadios de desarrollo. Durante tres años hicimos los ejercicios
del libro “Hacia un Teatro Pobre”. Fue un ritual constante. Pasamos de uno a otro,
justificándolos en una secuencia. Improvisando cada vez. Justo en una época en que aún
Grotowski era considerado con recelo en el medio teatral, clasificado como ente “místico”,
“raro”, puede no fuera un lugar común la frase: “vaya Dios a saber lo que hacíamos
encerrados en un local dando gritos”. Y seguimos dando gritos. Dios seguramente sabía. Y
Grotowsky. Y Gloria Parrado.
Hicimos dos obras “El Primer Soviet” y “Reunión de Muertos en Familia”. Todavía hoy
puedo advertir en qué forma estos ejercicios destilaron en mí (y en otros) la “segunda
naturaleza” a la que tanto alude Stanislasvki. Esa “segunda naturaleza” que hoy emerge
como algo a mano cuando me es necesario. Esta etapa sembró en mí la profunda convicción
de que la técnica del actor es siempre, y ante todo, psicofísica. Corpus et anima. Esta etapa
dejaría semillas. Germinarían en experiencias que vendrían después. Esas semillas serían
muy necesarias, imprescindibles, para encuentros como los ya citados con Vicente Revuelta.
Tercer Flash back
Resulta ineludible en esta indagación que se bosqueja en la memoria mencionar el grupo
Los Doce. Es tal vez el más remoto antecedente de la experimentación en Cuba.
Experimentación que, paradójicamente, siempre ha estado ligada a la institución y al mismo
tiempo escindido de ella. Se ha hablado bastante del grupo Los Doce. Se conoce un tanto su
historiografía y algo de lo que ha dicho Vicente. Pero mucho no es aún hoy visible.
La imagen más vívida que tengo del grupo Los Doce (y de la relación de Vicente con él) la
tengo de primera mano, mas no de Vicente. De Tomas González, fundador y miembro de Los
Doce, dramaturgo y director talentoso, fallecido recientemente.
A finales de los ochenta o principios de los noventa, Tomás y yo coincidíamos
frecuentemente en el “barrio”. Por aquel entonces residía yo en el Edificio Alaska, en la calle
23. Tomas vivía muy cerca, detrás del Habana Libre, en un apartamento que hube de visitar
un par de veces. Con su fastuoso don de “oratoria” Tomás fascinaba a todo interlocutor.
150
Nuestros temas favoritos: esoterismo, Gurdjieff, training psicofísico, El Grupo los Doce,
Grotowski. Cierto día el agobiante calor del trópico nos llevó a encontramos en Coppelia. En
un momento se detuvo como para hacerme una revelación:
“Sabes, Sicilia, tú que eres observador, Vicente encontró en Los Doce una forma de dirigir
muy particular. Sí, todo director se afana, busca, propone, dispone. Pero Vicente desde Los
Doce, comenzó a ser receptivo. Comenzó a ser “ying”. Y ha ido logrando una manera de decir
“no diciendo”. Una manera de llevarte o hacerte ir sin esfuerzo. Estás trabajando y Vicente te
dice frecuentemente: no sé, y te obliga a que tú busques. A que encuentres. ¿Lo ves?”.
Y Tomás se me quedó mirando, midiendo el impacto de lo dicho. Confieso que una y otra
vez, en diversos períodos de mi trabajo, esta conversación ha devenido meta personal.
Método. ¿Pero qué fue exactamente Los Doce como proyecto? ¿Por qué hoy abre un espacio
de referencia inobjetable para aquel que se propone investigar?
Aquel fue quizás el primer grupo que surge de un desacuerdo, más o menos consciente,
con la forma de producir y hacer teatro en la época. Con la “estructura” misma del teatro del
momento. Lo que Vicente denomina teatro de “proceso” en oposición al Teatro de
“repertorio”, que él quería dejar atrás. Se defendía la necesidad de investigación, la
demanda de hacer del proceso el primer punto del fenómeno teatral, justo bajo la influencia
de las ideas del Teatro Laboratorio de Wroclaw. La necesidad de un equipo en cuanto a tener
una profunda conexión artística y conceptual[4]. Se trata de un grupo que emprende un
trabajo de investigación e improvisación en torno a uno de los textos más importantes de la
dramaturgia universal. El Peer Gynt, de Ibsen. Tal vez el centro del canon dramático actual.
Un trabajo que hasta hoy forma parte de la memoria teatral que nuestros maestros
comentaron. Develemos este período a través de una de las entrevistas más claras del propio
Vicente, atisbos tan impactantes que me permitiré citar in extenso:
“Un día llegó la gente de Los Doce, a pedirme ayuda, porque Julio Gómez, estaba trabado
como director y no daba pie con bola. Fui a verlos y me conmovieron porque había una
disciplina y un deseo enorme de trabajar. Titón me había dado En Busca del Teatro Perdido, el
libro antológico de Barba, el primero que se escribió sobre Grotowski, que lo había traído de
un viaje, y ahora me dio el libro del propio Grotowski Hacia un Teatro Pobre. Ya me había
leído el libro de Barba y empecé a leerme el de Grotowski y acepté ser el director de Los Doce.
Eso fue en el mes de octubre de 1968. Ellos habían conseguido un salón de excelentes
condiciones en la instalación que ahora ocupa la Casa de Cultura de Plaza, en Calzada y 8, y
ahí estábamos todo el día. Durante los primeros meses se hizo una revisión rigurosa de los
trabajos más novedosos de que teníamos noticia: El Living Theatre, el Open Theatre, el teatro
Laboratorio de Grotowski. Se trabajaba sobre el folklor, con tambores, con percusión, se
hacían acrobacias, ejercicios de actuación y de todo tipo. Lo que pareció más sistematizado y
más asequible a nuestras posibilidades fue el libro de Grotowski, que estaba recién editado,
porque además se trataba de un manual. Entonces, me sucedió lo de otras veces. En realidad,
yo no acababa de entender bien aquello. Igual me había pasado con Brecht, no tanto con
Stanislasvki donde pude prepararme más y era más simple. Y, con respecto a Brecht se
trataba de ir a la práctica del trabajo y ya, pero aquí la circunstancia era otra. Aquí yo era el
guía y ya se trataba de otro tipo de responsabilidad. Barba era un estudioso de las religiones
comparadas y su recorrido por la India en esos años, me imagino que tuvo que ver con la
búsqueda de los principios rituales y religiosos comunes al teatro. Grotowski es un individuo
cristiano, en su trabajo están los elementos de la tradición. En aquellos tiempos yo era un
ignorante con respecto a todos estos asuntos, con unos prejuicios enormes con todo lo que
tuviera que ver con la religión y con la iglesia, entonces no acababa de entender bien aquello.
Empecé un proceso que recuerdo como muy doloroso y peligroso. Estaba nutriéndome de un
grupo de cosas nuevas para mí empezando por toda la aplicación de la filosofía oriental que
hay en Grotowski. En cuanto al entrenamiento que hacíamos allí, nosotros partíamos del
entrenamiento psicofísico de Grotowski y después yo inventaba ejercicios sobre la base de mis
conocimientos de psicología. Ese era uno de los problemas que había. Al no tener yo muy clara
la meta final del trabajo podía haber algunos ejercicios y algunas situaciones que resultaran
151
neurotizantes. La mayor parte de los ejercicios correspondían al trabajo del actor sobre sí
mismo. Algunos eran de exploración interior. En otros casos me inspiraba en el sociodrama, el
asunto del alter ego y todo eso. Según los problemas de cada cual yo ideaba determinadas
situaciones y se trabajaba como un sociodrama. Ahora yo pienso que ni siquiera Grotowski
tenía muy claros los ejercicios sicofísicos porque los estaba vinculando con un planteamiento
stanislasvkiano, que es la idea de justificar la pauta. Sin embargo, ya en Barba, hay un
sentido más técnico, más científico del asunto. El plano psíquico interviene de otra manera, en
el sentido de que cuando se trabaja el plano físico, en el calentamiento, uno está
intelectualmente pendiente de su cuerpo. Está analizando su resistencia, sus posibilidades,
pero no se trata de que haya que formarse una imagen, simplemente se está trabajando sobre
el centro físico para dominar ese centro. Allí también hicimos una sesión de desnudos, porque
en cierta ocasión sentí que todo aquello se nos había vuelto algo mecánico. Entonces le escribí
una nota al Pibe, en un papelito, en el que le indicaba que desnudara a alguien. El Pibe
desnudó a Ada de la cintura hacia arriba y la respuesta de Ada fue levantar los brazos y
crear así unas imágenes de prostitución o algo semejante. La reacción de algunos fue
asustarse y reprimirse, mientras que otros se emocionaron mucho, lloraban incluso”.
Esta primera parte de la entrevista sobre el tema de Los Doce clarifica todo cuanto atañe a
las búsquedas del actor, a los errores y aciertos que pudieron nutrir o no este universo. La
memoria puede ser falaz, regresemos a la seguridad de las citas. Añadamos algunos pasajes
en lo que concierne al abordaje del montaje, el mito del Peer Gynt:
“En el libro La Función del Orgasmo había un ejemplo con Peer Gynt, en función de cómo
el personaje enajenaba su sexualidad cuando raptaba a la muchacha que puede ser su amor,
pero como este es un acto contra la sociedad, entonces el acto sexual es un acto agresivo, y en
lugar de copular lo que hace es como clavar un cuchillo con su pene. Todo esto me pareció tan
interesante que decidí hacer el montaje de Peer Gynt a partir de esa tesis. Y comenzamos a
montar la obra a la par que hacíamos nuestro entrenamiento. Eso nos tomó cerca de un año”
Y todavía añado un tercer y último fragmento. Antes, sin embargo, permítaseme indicar,
de pasada, cuan perceptible es la filiación de Vicente con el Living Theatre, tanto como con
el propio Grotowski. Justo en ese tiempo Vicente hubo de presenciar en París dos puestas en
escena del grupo. El mismo al describir la estructura compositiva del Peer Gynt, evidencia su
deuda con el Living también, he aquí la cita:
“Como siempre sucede cuando uno va a buscar valores arquetípicos, el prologo funcionaba
como una cosmogonía. Yo partía de ejercicios de relación y valoración del espacio, del tiempo
transcurriendo en el espacio y la energía. Era una especie de análisis activo del actor, en
cuanto a él y su energía desplegado en un tiempo y un espacio. Eso crea todo un movimiento.
Los actores usaban un traje de lienzo que llevaba una larga tela enrollada a la cintura. En un
momento esa tela comenzaba a desenrollarse y los actores se comenzaban a unir en una
imagen que era como el símbolo de la sociedad. Luego se hacían improvisaciones, se unían se
separaban, hasta que todo el grupo empezaba a funcionar como un gran sexo y paría a Peer
Gynt. Era el nacimiento del individuo.”
Más adelante Vicente en esa misma entrevista, abunda en cuanto el significado estético de
esta experiencia. La televisión inglesa, sostiene, les filmó un documental, los situó en un
estrato superior al Living. De hecho la imagen central de la iconografía del Peer Gynt, que
hemos visto como primicia reciente, en la Casona de Línea, tras de años de estar guardadas
creo que en la Argentina -el momento del nacimiento- evoca una imagen de Paradise Now del
Living, pero en mi opinión la supera, como algo usado solo como referente. Un punto de
partida. Otras imágenes vistas aquí impactan sin dudas por su fuerza y originalidad con
atisbos únicos. Imágenes no meramente bellas sino cargadas de una perceptible energía
interna. Como algo realmente trascendente, queda el grupo Los Doce, para la memoria teatral
cubana. Fue el tiempo en el que su repercusión nacional e internacional se vio frenada y
Vicente deja entrever las causas ideológicas (que las hubo, además de las artísticas), causas
todas ellas suficientes para que experiencia tan significativa quedara trunca. La utopía debe,
152
en teoría, alimentar utopías. Pero nada de eso, funcionarios e instituciones miraron con
recelo la experiencia.
En otro sentido, podemos estar de acuerdo o no con ciertos postulados. Por ejemplo,
cuando se sostiene que Grotowski era cristiano. Grotowski es un místico. Un místico no
necesariamente de filiación cristiana. Mas lo importante, lo trascendente, es la sinceridad, el
ethos que instila el camino seguido por Vicente en todo momento. Igual que a Grotowski.
Los recelos institucionales (y personales) estaban muy extendidos en los difíciles años del
68-70. Esa es ya una historia otra, una historia que no voy a contar. Otros la han contado.
flash forward
La memoria, por fortuna, no resulta unidireccional, como el tiempo. Vayamos adelante,
pues. Finales de los ochenta. Años intensos de gran efervescencia en todas las artes.
Fundamos el “Taller de Creación Escénica”. Casa del Joven Creador, San Pedro y Sol, Habana
Vieja. Fast forward: en la unidireccionalidad del tiempo he allí hoy el Museo del Ron. Fue un
lugar inolvidable, mì(s)tico, para toda una generación. Seres que no temo calificar de valiosos,
pasaron por allí, a saber: Carmen Duarte, Orestes Pérez, Raúl Alfonso, José Camacho, Jorge
Luis Garrigan, Salvador Lemis, Joel Cano, Lira Campoamor, Alberto Curbelo, Roberto Poveda,
Jezabel Añon, Sandra Lorenzo, Alfredo Reyes, Manuel Oña, Eduardo Novoa, y muchos otros
cuyos nombres (ah, memoria falaz) ya no recuerdo. La mayoría reside hoy en otros sitios del
mundo. Un grupo de creación con una fuerza y talento incuestionables, que marcó pautas en
el teatro de los ochenta, con una respuesta otra, alternativa, al teatro del momento. Desde el
primer manifiesto hicimos patente nuestro desacuerdo profundo con la postura del teatro
“oficial”. No, se dice “oficial” y acuden otras connotaciones. Dígase “ortodoxo”. Desacuerdo
con el acto mismo de producir para un resultado. Con el resultado de ese desacuerdo
logramos captar la atención de la Habana teatral del momento, crear un público para
nuestros espectáculos. Aunque la discusión y decisión de qué y para qué se montaba una
obra era asumida colectivamente para cada estreno, tres directores asumíamos la
responsabilidad de las puestas en escena, tres directores a cargo de tres pequeños equipos
de trabajo: Orestes Pérez, actor-director llegado de Buen Día; Raúl Alfonso, dramaturgodirector, graduado del Instituto Superior de Arte y quién suscribe estas líneas, Rubén Sicilia,
activo tan solo como director en esa fecha. Fue aquella una etapa de formación muy intensa
para todos los miembros. Etapa en la que se lograron obras muy polémicas, como “Carolina
de Alto Songo” y “La Plaga” de Carmen Duarte; “El Grito” de Raúl Alfonso; “Punto de Partida”
y “Tocata para un hombre que se perdió”, ambas cuya dirección estuvo a mi cargo.
Se dice que la historia se repite dos veces, la primera como tragedia, la segunda como
comedia. Nada es absoluto, sin embargo. Otra vez fue la tragedia. Nietzche, adepto a ella,
imaginó el “eterno retorno”. A partir de la intervención de funcionarios (e instituciones) a los
que no agradaba, al parecer, el carácter iconoclasta del proyecto, el taller fue
progresivamente asfixiado, a sus miembros y fundadores no quedo otro recurso que la
dispersión, el movimiento hacia otros sitios y proyectos. Fue el retorno nietzcheano a la
tragedia otra vez dejando trunco (por incomprendido, por alternativo, por quién sabe qué)
un movimiento valioso.
No quedaron truncas, sin embargo, las muy especiales energías que aquel taller logró
aglutinar. El propio Vicente asistió varias veces. No bastó su asistencia: asesoró y apoyó
alguno de los procesos que allí se desarrollaron. Mantuvo, cierto que a distancia, contacto
periódico con algunos de nosotros. Asistió también a funciones. Y lógicamente esto ejerció
influencia. Víctor Varela –de alguna forma discípulo de Vicente para la fecha- hizo que sus
actores compartieran entrenamientos con los nuestros. Y Víctor, invitado a nuestro espacio
en La Casa del Joven Creador, llevó a escena uno de sus primeros montajes, “Los Gatos”,
interpretado por Alcibíades Zaldivar (devenido más tarde su actor fetiche) y Maria Elena
Espinosa, Graduada de el Teatro de Arte de Moscú, quien ahora reside en España. Esto creó
una fuerte ebullición en el punto de arranque de su trabajo, lo fue también para los procesos
153
que nosotros abordábamos. Y para nosotros constituyó un desafío más. Lo trunco solo lo es
por un rato. En apariencia.
Un punto decisivo, creo, lo fueron dos talleres que impartieron para nosotros dos
importantes visitantes. Talleres que por razones casi “mágicas” logramos conectar. El
primero impartido por Perla Stoppel, profesora de expresión corporal de la Argentina. El
segundo ofrecido por María Jiménez, guatemalteca. Más… alerta: María había sido discípula
de Grotowski en el Centro de Pontedera. Vicente la conoció y dialogó mucho con ella. El
entrenamiento impartido por María se prolongó unos meses, giraba alrededor del Body
Contact y del concepto de Acción. Aquello literalmente nos cambió tanto la vida como la
percepción creativa. María había recibido “el batón del relevo” directamente de la fuente. Esto
se hizo evidente para nosotros en su facilidad para ver y abrir bloqueos. Y sobre todo en su
capacidad para trabajar en silencio total y comunicarse con todos. Era el suyo, si lo hay, un
silencio locuaz. Fue aquel mi point of no return; desde entonces las ideas de Grotowski sobre
el actor formaron definitivamente parte intrínseca de mi camino.
Tiempo de esparcir las piedras y tiempo de allegar las piedras, se lee en las Sagradas
Escrituras. Toda aquella época de gran intensidad e incandescencia creativa
lamentablemente se disipó hacia finales de los ochenta. De todo aquel grupo de cerca de
cuarenta jóvenes tristemente para el país solo residen tres o cuatro en Cuba. Existen
correlatos con otras experiencias del período. Pienso en Teatro del Obstáculo; en Arte
Provisional; Arte Calle; Grupo Puré y otros muchos… Fue el tiempo de esparcir las piedras.
Sueño con tiempos capaces de allegarlas.
Segundo Flash Forward
A finales de los ochenta, casi a principios de los noventa, mientras se disolvía el Taller de
Creación antes citado, tal vez alzándose desde sus restos, surge el primero de los grupos
que me atrevo a fundar. Las piedras se allegan o se avientan pero siempre debe haber
piedras. Teatro Límite. Con el auspicio de Juglarezca Habana se logra una sede en 41 y 82,
Marianao, a un lado del Cine Lido. A aquella sala la llamamos “Teatro Cero”. El nombre
actuaba como retruécano irónico, siendo aquel un antiguo templo, local casi en ruinas, de
teatro tenía muy poco. Aquel sitio lo compartimos con Guillermo Horta[5], actor-bailarín,
muy talentoso, permeado también de las ideas de Grotowski y admirador de Vicente (hoy
reside y trabaja como intérprete de una compañía experimental en Austria). Ya dije que lo
trunco no lo es por mucho tiempo; realizamos aquí una tarea de investigación casi titánica,
en especial por las difíciles condiciones del espacio. Clareaban los albores de la crisis
económica llegada de la caída del campo socialista y trabajábamos nosotros en aquel
pequeño equipo, entrenábamos a una intensidad que hoy vislumbro desaforada. Era la
intensidad de una triada: Marco Llacobet (el único de los actores que hoy vive en Cuba);
Alejandro Benítez (reside en España) e Iliana María, (actualmente reside en Alemania).
Ofrecíamos funciones para la comunidad mientras intentábamos “acondicionar” el local. El
anhelo: hacer del templo abandonado un templo retomado. Y poblarlo de imágenes.
Entrenábamos, por supuesto, con los ejercicios de Grotowski. Se adicionaron los ejercicios
de “El Teatro Ambientalista”, de Richard Schecner, muy conectado también a los principios
de Grotowski. Nos afanamos en ejercicios de relaciones con el espacio y Mandalas. Training
psicofísico y vocal. Por vez primera enfocamos en el trance del actor. Grotowski era
definitivamente nuestro punto de referencia. Aquellos actores alcanzaron estados que pocas
veces he tenido oportunidad de presenciar. Trabajamos y estrenamos varios montajes.
Aquello se prolongó unos seis años, aproximadamente. Emergieron “Tocata para un hombre
que se perdió”, ya citada, “Ritual I”, “Ritual II”, “La Tierra Baldía”, “Estanco”. Este último
trabajo, unipersonal basado en el poema de Fernando Pessoa, tuvo la oportunidad de ser
presenciado por Vicente en el Festival del Monólogo. No lo olvido, era el año 1993 y acaeció
en el Bertolt Brecht. Aquel trabajo recibió Mención de Actuación. Recibimos, además, el
estímulo adicional de que a Vicente le causara muy grata impresión. En otra oportunidad,
154
haciendo gala de esas inesperadas y misteriosas “apariciones”, acudió Vicente a la sede de
Marianao a presenciar “Ritual II”. Allí estuvo aconsejándonos un rato. Nos habló del carácter
performativo de ciertas acciones, de cómo hilvanarlas. Fue un encuentro de vasto significado
para nosotros. Y comenzamos a elaborar nuestros propios ejercicios[6]. A hilvanar. Más he
aquí que una hepatitis viral de cierta intensidad desactiva mi trabajo. El cuerpo y sus
traiciones. A mi salida del hospital casi todo el equipo se había marchado al extranjero. Se
avecinaban los momentos más duros del llamado “período especial”. Pasaría mucho tiempo
antes de que fuera posible reconectar con las ideas de trabajo de Teatro Límite, con la
presencia viviente de las ideas de Grotowski, con lo aprendido de nuestros contactos con
Vicente. En los tristes y difíciles años que siguieron me dediqué a la enseñanza artística en
las escuelas. El hombre aprende, sabe y transmite. Dirigí muy esporádicamente.
III.- Éxtasis
Presente que mira al Pasado
Año 2009. Cienfuegos, Festival del Monólogo. Una ciudad se abre ante mí remembranza.
Nos afana la unidireccionalidad del tiempo, la supuesta tridimensionalidad del espacio.
Asisto con mi equipo Teatro del Silencio, grupo formado en el 2005. Con este grupo aventuro
retomar cierta estética una y otra vez trunca. El deber del tiempo es intentar las
mutilaciones, el de los hombres invalidarlas. En el intento de invalidarlas retomo una
estética que traza sus contornos desde Prisionero y Verdugo[7], nuestro primer trabajo que
tuvo éxito parcial,
Prisionero y Verdugo/Primera versión/Husmell Diaz y Annieye Cárdenas
hasta el unipersonal Juicio y Condena Pública de Charlotte Corday,
Juicio y Condena Pública de Charlotte Corday/ Mirtha Lilia Pedro Capó
Premio Terry, Premio Caricato, en donde afianzamos muchos años después del punto de
partida una serie de ideas sobre el trabajo del actor, sobre la presencia del cuerpo en el
espacio, que hemos acariciado y digerido largamente.
Lo trunco es solo el recuerdo. Y las muescas que dejó. Tengo el sentimiento de que otros
están ahí, junto a mí. No estoy, y nunca he estado solo, aún cuando en no pocas ocasiones
me haya sentido así. La psiquis tiene sus tomaduras de pelo. Aquí, en la otrora sede de
Teatro A Cuestas, grupo liderado por Ricardo Muñoz Caravaca allá en los ochenta, es la
apoteosis de este sentimiento. El sitio, el locus, es de alguna manera mítico: una pequeña
sala alternativa donde aquel grupo marcó un panorama decisivo para el teatro nacional del
período. Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski están presentes. Ese grupo tiene una historia y
significado que no pueden pasarse por alto. Ricardo Muñoz, amigo personal y colega, devino
interlocutor continuado en sus visitas a la Habana en los ochenta. El, como Víctor Varela,
tuvieron la extraordinaria posibilidad de viajar, ya en la década del 90, al Centro di Lavoro de
Pontedera. Allí lograron contacto directo con Jerzy Grotowski, justo en su etapa última de
trabajo. Evoquemos los montajes memorables tanto de Víctor como de Muñoz en la época,
montajes en los que eran perceptibles, por vías muy diversas, algunas de las ideas de
Grotowski, sin obviar la conexión con Vicente. Mencionemos, que mencionar, de alguna
manera, es testificar: “La Cuarta Pared”, “La Opera Ciega”, “Segismundo Ex Marques”, “El
Arca”, o “Malcom X”, “Asumdiasam”, “Las Rosas de Maria Fonseca”. Más importante que ver
el pulso de la estética de cada quién, es entrever, al menos por un instante, las fuentes del
pensamiento. Cogito, ergo sum, juraba Descartes.
Al comienzo de los noventa resido en plena calle 23, en el Vedado. Se trata de el edificio
Alaska, uno de los pocos sobrevivientes para la fecha del art noveau habanero (más tarde,
155
tristemente, como otros muchos, se derrumbó). Aquel sitio devino punto de encuentro y
trabajo para muchos amigos y colegas. Muñoz me visitó allí varias veces. Nos ocupaban
largas conversaciones, intercambios cuyas esencias parecen imposibles de reproducir hoy en
su totalidad. Con Víctor también tuve algún encuentro por esa misma época, no del mismo
significado y repercusión. He de evocar una noche de diálogo intenso. Muñoz hablaba de
Pontedera, de lo que había percibido allí. Otra vez burlo los diques del recuerdo, heme aquí
tratando de reconstruir cuanto se dijo:
Muñoz: Era notable el sentido musical del training, todo estaba articulado por un ritmo
perceptible. Todo cambiaba, cada vez que alguien cambiaba….
Sicilia: ¿Cómo que cambiaba, en qué sentido?
Muñoz: Sí, era como si todos estuvieran conectados en un sentido muy especial. Cada
intérprete funcionaba como una pequeña pieza de un organismo…vinculado a una acción
esencial. A una asociación bien precisa.
Sicilia: ¿Y el dialogo con Grotowski, como funcionó? ¿Te aportó algo?
Muñoz: Las veces que me habló, bastaban sólo algunas indicaciones para comprender
perspectivas insospechadas. Era como si a través de él se condensara la experiencia de varias
personas…
Hicimos largo silencio. La experiencia continuaba condensándose. Y claro, la conversación
fue mucho más larga. Y tanto antes como después tuvo diversos derroteros. Más esas serían
otras historias. En cuanto a mí este diálogo no ha dejado de ser frecuente motivo de reflexión
a lo largo de todos estos años. Y la experiencia ha continuado ahí, condensándose.
En esa misma época cayó en mis manos, a instancias de Ricardo, un artículo muy revelador,
tal vez el texto más breve escrito por Grotowski. Y el pequeño texto fue debatido varias veces
por Ricardo y por mí. Enfoca uno de los temas esenciales del teatro del maestro: el tema de las
asociaciones. Seria baladí discurrir acerca de nuestras discusiones. Quien escribe y razona es
Jerzy Grotowsky. Insertemos pues el texto con la intención de redondear alguno de los puntos
sugeridos:
SINCERIDAD CORPORAL
Por Jerzy Grotowski.
"El actor que interpretaba al Príncipe Constante, Ryszard Cieslak, nunca trabajó sobre el
éxtasis místico o el sufrimiento, sino exactamente lo contrario, aquello sobre lo que trabajó
fueron las asociaciones del tiempo de la adolescencia, y más que asociaciones, fueron recuerdos
de una búsqueda física del juego, de un cumplimiento amoroso, de una alegría amorosa. De
ningún modo fue tocado el problema del sufrimiento, las asociaciones del actor eran tales que lo
condujeron a un proceso orgánico extremadamente puro; en el contexto de las palabras
pronunciadas en la puesta en escena, dio como resultado la historia del éxtasis religioso. Había
una cosa en común entre los dos fenómenos: el don que se puede caracterizar y la confesión a
través de la sinceridad corporal.
Principe Constante Archivo Personal. Dir. Jerzy Grotowsky
Desde otro punto de vista -esto fue un fenómeno común- aquello que vio el espectador y
aquello que vivió el actor fue algo completamente diverso. Todo esto junto dio un sistema de
signos interpretativos muy precisos que crearon el montaje en la mente del espectador."
Pasmosa brevedad. Con el breve artículo anterior, de claridad enceguecedora, sucede en
mi opinión algo semejante a lo que tiene lugar con el texto Stanislasvkiano de las Acciones
Físicas. Probablemente resulte la base inicial de la Investigación de Grotowski sobre el actor.
No soy traductor ni políglota pero las malas traducciones han derivado en una serie de
equívocos. Largo e ineficaz resultaría enumerarlas. Descreo, además, que mi conocimiento
alcance a ello. Por lo pronto esta es una de las traducciones menos malas. Y es siempre mejor
algo que nada.
156
Pasado que mira al Presente
La Casona de Línea. Años Noventa. Otra vuelta de tuerca. No se ha escrito lo suficiente – y
no con suficiente conocimiento- sobre este período, al parecer culminante de la actividad de
Vicente. Y aunque infortunadamente no tengo el conocimiento de todas las aristas no debo
abstenerme de abordar las conocidas. Se calla lo que se desconoce, se tiene el deber de alzar
la voz en cuanto a lo que se conoce. Se trata de una de las últimas aventuras de Vicente.
Vicente Revuelta siempre ha manifestado una inclinación muy personal hacia la
improvisación y el happening. El mismo lo sostiene en una entrevista:
Yo tuve la suerte de ver una puesta en Italia de Giorgio Strelher sobre LOS GIGANTES DE
LA MONTAÑA. Antes de ver ese espectáculo ya había tenido conocimiento de trabajos teóricos
de Strelher, de críticas, tenía una noción de lo que podía encontrar en él. Pero ver la puesta de
esa obra de Pirandello, me deslumbró porque me pareció perfecta, yo también estaba ahí
metido. En esa puesta vi algo que tiene que ver conmigo, con mis gustos por el teatro, que es
la mezcla del happening y eso que hoy se llama performance, que estaba en el uso que el
daba con el telón de hierro, que cae sobre la carreta que simboliza a los artistas. Y al final de
la puesta, cuando eso pasa, uno se dice: “la va a romper, no la puede romper”. Y el telón cae y
la destroza. Eso para mí fue impresionante y creo que me ha servido para crear imágenes en
mi propio trabajo”
Ese sentido “de estar ahí metido”, siempre buscado por Vicente, culmina con el montaje
en el patio de La Casona de Línea, a la caída de la tarde y bajo la extraña luz de las
antorchas, de “Medida por Medida”, de Shakespeare. Fue aquella la última vez que logré ver
actuar a Vicente en un gran rol. Quizás lo hizo evocando su montaje de “Las Tres
Hermanas”, que comenzara en el mismo espacio, montaje que se caracterizó también por la
improvisación.
El propio Vicente consideró siempre a “Las tres hermanas” su montaje insignia.
Las Tres Hermanas/Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE
Su tour de force. A contrapelo de alguna crítica que siempre valoró mucho “La Noche de
los Asesinos”.
Tuve la oportunidad de presenciar varias veces “Medida por Medida” (1993). Alcance a
ver cómo variaba ostensiblemente de función en función su cadena de acciones. “Para no
aburrirse”, habría dicho quizás Vicente. Gente de teatro, en general un público interesado y
participativo, asistió a La Casona durante esos años. Poco después monta Vicente “Ñaque o
de piojos y actores” (1994). Intuitivamente, como siempre sucedió a Vicente, es este, en mi
opinión, el último intento por fundar un GRUPO, valgan las mayúsculas, algo que deseó toda
su vida, que varias veces estuvo cerca de lograr, pero que para él fue un intento efímero.
En las ruinas de aquel patio, aún sin construir la ahora flamante Sala Llauradó, Vicente
lidera un grupo de jóvenes intérpretes, en su mayoría aficionados, apoyándose en Alexis
Díaz de Villegas y en el poeta Omar Pérez en la función de guías. El trabajo se prolonga
durante dos veranos (1997-1998). Se entrena muy seriamente. Dos o tres veces acudí y
entrené con ellos. Ejercicios “grotowskianos”. Ejercicios del Living. Y otros de varias fuentes.
Los actores crecieron a ojos vistas. Se vivía un laudable espíritu de Comuna. Vaticino que
debajo gravitaba fuertemente la impresión recibida por Vicente ante el Living, allá en Europa.
En no pocas ocasiones se cocina y se duerme allí. Se ofrecieron al público algunos
unipersonales, como “El Trac” de Piñera, interpretado por Alexis, “Jorge”, de Jorge Ferrera,
“Alas” de Luis Manuel Rodríguez y alguna que otra improvisación con público. Se monta “La
Zapatera Prodigiosa”. Se práctica meditación Zen, pues el espacio teatral se comparte con el
entonces incipiente dojo zen de la Habana. Se realizan talleres de música y danza, y se
improvisa una suerte de cabaret esporádico y nocturno que daría apoyatura a los
157
espectáculos. Se monta un espectáculo Brechtiano, basado en la breve pieza El emperador, el
mendigo y el perro muerto, el poema “Baal” y algunas canciones del repertorio brechtiano.
Algunos performances o happenings en paralelo, se mantiene el espacio vivo, en estrecha
relación con el público. Finalmente Vicente, victima de una crisis nerviosa, se aleja. Tiempo
de esparcir las piedras: el grupo se disuelve. Una historia que una vez y otra ha estremecido
nuestra historia teatral de las últimas décadas. Pudiera pensarse que la “cultura de grupo”
desaparece. Que lo hace de un plumazo. Sin dejar huellas visibles. Hoy día, no hay espacio
alguno que muestre esa naturaleza abierta a la improvisación, a la experimentación y la
descarga. Y hacen mucha falta. Lo sostengo.
El Penthouse de Calzada
El Penthouse de Calzada. Edificio frente a la SINA, la Sección de Intereses de Norte
América. Para algunos fue, desde los ochenta hasta hace muy poco, un punto de encuentro
rodeado de cierto misterio, una sensación tal vez deliberada por parte de Vicente. Un lugar
peculiar, apartamento casi sin muebles, un gran salón que permitía “entrenar”. Allí residió
Vicente largo tiempo, casi hasta el fallecimiento de Raquel. En ese sitio se daban cita gente
de teatro y gente que no era de teatro para experiencias más o menos conscientes de lo que
podríamos denominar, en función de darle algún nombre “parateatro”. Aquí, por vez
primera, conocí acerca de Gurdjieff y el Cuarto Camino. Luego tuve acceso, préstamo
mediante, a dos libros claves “Perspectivas desde el mundo Real” y “Fragmentos de una
Enseñanza Desconocida”. Ambos fueron impactantes. La vida nos cambia. Las lecturas
también. De alguna manera no pueden separarse las fronteras entre vida y lecturas. Durante
cerca de cuatro años me entrené en los ejercicios del Cuarto Camino. La primera vez fui al
Penthouse acompañado de Enrique Vilardel, estudiante del ISA en fecha. Luego acudí con
Frank D. Hernández (reside ahora en México), amigo de Vicente, muy cercano a las ideas de
Carlos Castaneda. Continué asistiendo, esporádicamente, un día dejé de ir. No creo esté en
condiciones de relatar la experiencia de lo que todo aquello significó (y significa) con
relación a mi experiencia personal. La conciencia debe hacerse consciente. Para ello esta el
tiempo, unidireccional como según dicen, es. Fue aquella una experiencia que se extendió (y
se extiende) más allá del teatro. Dígase que toda esa experiencia tiene mucho en común con
el sentido que intuyo en el teatro de hoy, y sobre todo en la concentración que aspiro
obtener en el actor. Algo tal vez cercano a lo que Grotowski definió con tres términos que
evocaban fases, a saber: Autopenetración, Receptividad, Acto Total de Entrega del Actor. Un
proceso fácil de escribir y repetir, difícil en cambio de lograr. Y todavía más difícil de
explicar. Por Dios, no seré yo quien lo explique, Grotowski lo explica en varios de sus libros,
yo, devoto lector, no ahondaré al respecto.
En honor a la verdad, me asalta la sensación de que Alexis Díaz de Villegas, actor notable,
o Roberto Salas, hoy líder de los zanqueros, pudieran valorar mucho mejor que yo, la
conexión de estos puntos con el llamado Cuarto Camino. Ambos han mantenido un vínculo
más sostenido con este conocimiento.
Y llegando al final se escucha… EL TRAC
Precisamente a través de ese actor siempre sorprendente que es Alexis Díaz de Villegas
nos llega, desde uno de los últimos espectáculos en los que intervino, más o menos explícita,
la mano de… Vicente Revuelta. No lo dirigió, aunque sí lo asesoró. Siempre he intuido que
mucho se involucró en la concepción. “El TRAC”, un texto monologado, de lo más
experimental y difícil del llamado dramaturgo mayor Virgilio Piñera. Un texto que había sido
evitado en su abordaje por muchos directores hasta este momento, entre otras razones por
su carácter fragmentario, inconexo aparentemente antidramático. No me detengo ante el
anhelo de citar un fragmento:
“Actor. (Antes de ponerse en movimiento)
158
Esta/es/la/historia/de/un/hombre/que/inventó/ un/ juego.
(Pausa)El/había/hecho/muchas/cosas/en/su/vida.
(Pausa)Pero/nunca/había/inventado/un/juego.(Pausa)Los/ conocía/ todos/y/todos
/los/había/jugado. (Pausa)Pero/nunca/había/jugado/su/propio/juego. (Inspiración
profunda)Esto/le/ preocupaba/mucho/y/se/pasaba/las/horas/pensando/pensando (Pausa)
Hasta/que/un/buen/
día/tomó/una/cuerda/en/sus/manos/y/empezó/a/jugar/su/propio/juego.
Fin de la cita. De esta aventura singular, esa performance que lamentablemente no gozó
de muchas funciones (se montó en “La Casa de las Américas”), guardo sensaciones muy
especiales. Y claro, uso el anglicismo con toda conciencia.
Alexis, asumió integrarse totalmente al espacio de la Galería de la Casa, evidenciando
desde el principio una renuncia radical a todo espacio teatral. Tendido en el suelo, como
emergiendo de un ataque cardíaco o de un shock, aguardaba a los espectadores. Luego nos
interpelaba, a cada uno, a todos, con aquel texto delirante y absurdo, y era como sí nos
cuestionara sobre el destino humano. Y viajaba (y nos obligaba a viajar) a diferentes ritmos e
intensidades por los mínimos (y al instante vastos) espacios de la Galería. Hasta que ya no
podía más. No podía más. Quién sabe sí él o el personaje.
Recuerdo ese trabajo con la sensación de haber sido testigo privilegiado de un evento
donde las leyes del teatro se tornaron obsoletas. No era el teatro, era el instante. Algo
siempre anhelado por Vicente se produjo allí. Algo con relación a la teatralidad. Algo entre el
performance y el happening, entre lo aleatorio y lo fragmentario. Algo que estableció en este
espectáculo una singular relación con el espectador. El público era obligado a desplazarse
con el actor (arrastrado por, llevado con, ¿quién sabe cuál resulte el termino exacto?) de una
estancia a otra. Y muchos recordamos aquel desplazarse como un desplazamiento
inequívoco en la vida teatral de la ciudad. Del país.
Ultimas Noticias
Sí se coloca el panorama actual del teatro en Cuba bajo una mirada imparcial varias
preguntas se hacen inevitables.
¿Tienen sentido para la generación actual el proceso y el camino de un teatro esencial, tal
como lo proponen en su trayectoria, figuras como Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski, dos
grandes maestros que nos hablan a través del tiempo?
¿Interesa a los jóvenes actores o directores, aquí y ahora, este saber profundo, este
sentido de la investigación y del autoconocimiento?
¿Se tienen ideas claras acerca del significado y trascendencia de un teatro de grupo
verdadero en las actuales circunstancias, aquí y ahora?
Se constata una reanimación teatral, ello es perceptible, innegable. De vez en vez se
suelen presenciar buenos estrenos y sin dudas hay talento. Más resulta lamentable la
existencia de tan pocas líneas de investigación consistente, consciente y sistemática. Se tiene
la impresión de que todo ocurre por azar o en buen cubano, por carambola. Quizás se ha
entronizado, convengamos que de forma incomprensible, la idea de que tanto celo no es
necesario. La filosofía hoy en boga es convertirse en un “ganador”. Y que ello tenga lugar
con un mínimo de esfuerzo y tiempo. Se persigue la lucidez instantánea sin el andamiaje que
la sostenga. No obviemos que resulta este un momento extraño y paradójico de la historia,
instante en el que ciertos elementos han retrogradado, mientras otros, justo ahora, parecen
asomarse en fase de despertar.
Recientemente escuché a un director amigo, Graduado en el Teatro de Arte de Moscú, me
decía: “el teatro, más que una técnica es una ética”. Y yo asentía, como si me recitara un
versículo familiar de los evangelios. Y pensaba: ética es mucho más que moral, esta última
suele responder a circunstancias temporales, sujetas a las lógicas mutaciones.
159
La ética, en cambio, al menos la ética de la que hablo, la que debe sostener todo arte,
deviene esencia cósmica. Primun non nuoncere. Primero no dañar. El juramento hipocrático.
O también la regla de oro del Cristo: “No hagas a los demás lo que no quieras te hagan”.
Confío en que aún aquellos que se concentran en los valores externos tendrán uno (o
muchos momentos) donde han de experimentar cierta sensación de vacío. Y el vacío,
precisamente el vacío, quizá resulte un elemento germinativo. El vacío como vaharada
genésica. Como elam vital. En momentos tales se perciben los derroteros plausibles, las
agujas imantadas suelen entonces señalar caminos que conducen a los centros espirituales
del hombre. Centros que se ubican más allá de toda contingencia, de cualquier espaciotiempo. De cualquier arte. De la vida misma. Y el teatro es arte y es, digámoslo sin sonrojos,
vida.
Vicente y Grotowski, representan esa búsqueda incesante del centro espiritual humano.
Los asocio a una imagen singular: las dos columnas del templo de Salomón, según el
simbolismo masónico, J y B. Dos pilares simbólicos que custodian la entrada al templo. Un
lugar donde el teatro transcurre y es en su más alta dimensión. Vicente se afano en esa
búsqueda toda su vida, aún en las condiciones singulares de una pequeña isla del caribe.
Que para esas búsquedas ni los espacios ni los tiempos cuentan. Solo el hombre. Grotowski
trazó el camino, primero en su Polonia natal, luego en su recorrido por el mundo. Las vidas
de ambos son un testimonio silencioso de espíritu y ética, de la más sacra poiesis, hasta
donde les es dable a los humanos.
Pueden advertirse los errores de ambos. Y aprender de ellos. Mas es imposible dejar de
percibir la honestidad a toda prueba que emerge del camino de ambos. ¿Debilidades
humanas? Hombres somos, no Dioses.
Ruego al querido lector excuse el carácter personal, y la aparente dureza de algunas
notas. Como apunté al inicio, ciertos elementos cobran verdadero valor desde y para la
experiencia personal. Siendo contribuimos a ser.
De vez en vez, miro a mí alrededor y hago un recuento. Pocos hoy caminan en una
dirección afín. Manuel Oña Trimiño, ya mencionado, actor de extraordinario relieve, que
mucho debe a su contacto con Vicente y con Tomás González. Alexis Díaz de Villegas, ya
mencionado también. Los tres actores de Nelda Castillo, a saber: Lorelys Amores, Eduardo
Martínez y Mariela Brito, todos ellos islotes en la búsqueda consistente y continuada hacia
la interioridad de la técnica psicofísica, en los últimos años. Ahí están también las búsquedas
del grupo camagüeyano Teatro del Espacio Interior, bajo la dirección de Mario Junquera.
Todos son hijos más o menos cercanos de Vicente. Todos de algún modo inspirados por las
ideas de Grotowski.
No defiendo ni aliento sectarismos. Defiendo y aliento la más amplia diversidad estética.
Diversidad es salud. Presente y especialmente futura. Y es que en el espíritu y la eticidad de
esa diversidad que señalo es evidente el carácter infortunadamente parcial del panorama
teatral cubano de hoy. La investigación siempre ha resultado un camino minoritario. Hoy, sin
embargo, lo minoritario amenaza con serlo cada vez más. Apenas se levantan islotes. Y la
marea ahí, en derredor, alcanzando nuevas cotas, amenazando con borrar esos islotes. Los
que fuimos un día formados desde y para un camino de investigación, los que hoy
guardamos ese arcano, advertimos el peligro cuando la diversidad, esa que define y
prefigura salud, minimiza su corpus.
Un anhelo se advierte necesario, sino imprescindible, lo he conversado con otros, salvar,
tanto la memoria, como el saber. Y transmitirlo. Puede sea ese el leitmotiv de este texto. Si el
legado es válido todo albacea debe cuidarlo, protegerlo, no permitir que se pierda. Este,
duele decirlo, puede perderse. Y entre los legados valederos para el teatro cubano ocupa un
lugar cimero. No me atrevo a llamarme albacea o protector de un legado de todos. No es este
legado de unos pocos, de sectores o grupos. Es legado del teatro cubano. Todos somos sus
albaceas. O deberíamos serlo. Lo que otros un día entregaron debe ser transferido. Y
continuado. Peldaño a peldaño. Toda obra es un hito, todo hito profesión y toda profesión
ética. Anima atemporal.
160
Ignoro si he logrado alcanzar los objetivos iniciales de esta reflexión. Sentir el camino es
siempre más fácil que recorrerlo. Tengo, sin embargo, la intuición de que estas palabras
pueden imantar, en la porción más ínfima quizá, en la menos desdeñable, lo genésico. Basta
con lo ínfimo. Lo genésico siempre es ínfimo. Si ello está logrado los objetivos lo están.
Vicente y Grotowski son los más sólidos guías en ese empeño. Son performer o más bien
teacher of performer. No cabe duda. Algo de lo aquí dicho debe evidenciarlo. Algo.
¿Acaso hay en el mundo cada vez más vertiginoso, del teatro de hoy, alguien dispuesto a
detenerse y percibir, LA BELLEZA DEL RITO? ¿Alguien? ¿Apenas un instante mínimo?
Notas:
1. Vicente F. Revuelta Planas nació en La Habana, el 5 de junio de 1929. Su niñez se
desarrolló en un medio social muy humilde, en unión de su padre español, su madre
cubana, y su única hermana, Raquel, también actriz.
Comenzó su carrera artística como cantante, a la edad de 7 años, en un concurso de
aficionados en el Teatro Principal de la Comedia. Luego en programas de radio. Como actor
realiza su primer papel en el grupo ADAD en la obra “Prohibido suicidarse en primavera”, de
Alejandro Casona, es el año 1946. Ingresó en la Escuela Municipal de Arte Dramático, lo que
no le impide seguir trabajando con el ADAD y más tarde en el Patronato de Teatro y en el
Teatro Universitario. Con este último grupo visita México y Guatemala. En 1950 formando
parte del Grupo Escénico Libre dirige su primera obra “El recuerdo de Berta” de Tennesee
Williams. En 1952 viaja a Europa a realizar estudios en la Escuela Anexa a la compañía de
Jean Louis Barralt, en París; en el Taller de Arte Dramático de Tania Balachova; recibe clases
de pantomima y expresión corporal con Etienne Decroux. Asiste a un Congreso por la Paz en
Viena y viaja por Italia integrándose a un curso de verano en la Escuela de Cinematografía de
Roma (Cinecitá).
A finales de 1954 regresa a Cuba incorporándose a la Sociedad Cultural Nuestro Tiempo,
brinda seminarios, conferencias, publica cuatro números de Cuadernos de Cultura Teatral. En
1958 funda, junto a su hermana Raquel el grupo Teatro Estudio. A partir de 1959 no ha
dejado de dirigir, actuando también en algunas de sus obras y en diversos filmes. Entre sus
trabajos más significativos puede citarse: “El viaje de un largo día hacia la noche”;
“Fuenteovejuna”; “El alma buena de Se-Chuan”; “Madre Coraje”; “El cuento del zoológico”; “El
perro del hortelano”; “Galileo Galilei”, “La duodécima noche”, y “Las Tres Hermanas”, entre
muchas otras. Ha realizado giras a Italia, al Festival de Avignon, Joven Teatro de Lieja,
Bulgaria, Yugoeslavia, España, Portugal, Festivales de Sitges y el FITEI, Colombia, Venezuela,
Nicaragua, México y Polonia. Su labor docente ha implicado clases de actuación en varios
grupos e instituciones culturales y en el Instituto Superior de Arte.
Reconocido como Doctor Honoris Causa en Arte por el Instituto Superior de Arte. Ha
brindado conferencias en más de 15 países de América Latina y Europa. Sus puestas en
escena han viajado a considerable número de escenarios de todo el mundo. Es considerado
uno de los más relevantes actores y directores artísticos de toda América Latina.
-PREMIOS Y DISTINCIONES1999 Premio Nacional de Teatro junto a su hermana Raquel
1988 Orden "Félix Varela"
1986 Premio Tinajón Camagüeyano por la dirección de En el parque
1982 Medalla "Alejo Carpentier"
1982 Premio del Festival de Teatro de La Habana por su actuación y dirección artística
de La duodécima noche
1980 Premio del 1er. Festival de Teatro de La Habana
-compartido con José A. Rodríguez- por su actuación en El precio
1979 Premio Espada de Oro, de Bulgaria, por la dirección de Santa Juana de América
1966 Gallo de La Habana por la dirección de La noche de los asesinos
161
2. Jerzy Grotowski nació en Rzeszow, una villa rural, el 11 de agosto de 1933. En cinta que
tuve la oportunidad de ver hace algunos años Grotowski avanza por un camino vecinal rumbo
a su casa natal, una modesta casa de madera y mampostería; al fondo pasta una vaca. El
ambiente (un bosque de abedules alrededor) sugiere una relación de cercanía a la naturaleza y
esto recuerda la vida de muchos místicos cristianos en Europa. ¿No habrá influido en Grotowski
este origen singular, en el seno de un país profundamente religioso como Polonia? No habrá
impactado todo ello en su búsqueda posterior de la santidad a través del teatro? ¿Qué guió a
este hombre sapiente en una búsqueda tan larga que nunca abandonara? Conocemos algunas
coordenadas de su itinerario, de ellas, quizás, logremos inferir motivos.
Antes de asumir la dirección del Teatro de las Trece Filas en Opole (primera fase del Teatro
Laboratorio), hubo de graduarse del Departamento de Actuación de la Escuela Superior de
Teatro de Cracovia (1951-1955). Más tarde estudió dirección en el Instituto Estatal Lunacharsky
del Teatro de Arte de Moscú, años 1955-1956. En Octubre de 1956 comenzó a laborar como
instructor asistente en el Departamento de Dirección de la Escuela Superior de Teatro Ludwik
Solski, en Cracovia, al instante que continuaba estudios. En el verano de ese mismo año viajó a
Asia Central. Al siguiente año recibe varios seminarios de teatro con el maestro Jean Vilar, en
1958 los recibe de Emil Frantisek Burian. En Moscú fue asistente de dirección de Yuri
Aleksandrovich Zawadsky, discípulo de Stanislavsky y Vakhtangov. Aproximadamente en el
verano de 1959 el entonces joven de 26 años Grotowski ya había dirigido cinco producciones
teatrales y algunos programas de radio, todos fueron exitosos. Tal vez por ello, toda su vida
mantuvo una preocupación esencial por la voz y la dicción del actor.
Hacia 1955 Grotowski publica sistemáticamente algunos ensayos. Reflexiona sobre el teatro
en la prensa de la época. En particular señala la relación arte-vida y las primeras bases para
una "purificación" del oficio del actor. Parece vaticinar sus búsquedas posteriores, la tesis de que
el teatro ha de rescatar para si mismo lo que le es esencial.
Desde esta época inicial del Teatro de las Trece Filas en Opole hasta su posterior traslado a
Wroclaw, Jerzy Grotowski encabeza el Laboratorio Teatral como director y Ludwik Flaszen como
asesor literario, recordando quizás la relación entre Stanislavski y Danchenko, relación que
diera origen e impulso al Teatro de Arte de Moscú.
Durante esos años realiza una actividad intensa y variada, desarrolla un sentido profundo
de experimentación y evidencia una constante insatisfacción con los resultados. Casi todos los
montajes de este largo periodo (Sakunthala, El Príncipe Constante, AKrópolis, Kordian, Doctor
Faustus y otros) eran en consecuencia sometidos a continuas y variadas versiones, a menudo
distantes de la original. Al mismo tiempo explora, de conjunto con los actores del Laboratorio,
las posibilidades de la técnica hasta un nivel nunca concebido desde Stanislasvki. Se trata de lo
que él llama en esta etapa “acto total de entrega del actor”. En esa época, ya es considerable su
influencia en infinidad de grupos de todo el mundo, tanto a través de las giras de sus
espectáculos, como talleres y seminarios mediante. El resto llega desde la publicación de su texto
"Hacia un teatro Pobre", obra que deviene suerte de "nuevo testamento" teatral. Los años 6O y
7O definen el trabajo de Jerzy Grotowski como la influencia más fuerte que ha recibido el
teatro contemporáneo. En casi todos los países surgen epígonos. Las velas, el uso de la
corporalidad, un sentido ritual de la partitura escénica, así como el sentido de la "pobreza"
invaden las puestas en escena de muchos países. Es esa etapa de apoteosis teatral del polaco,
habrían de llegar otras búsquedas. Las fronteras del teatro estaban comenzando a resultar
estrechas. Las vastas interrogantes del polaco parecen destinadas a expandirlas.
A mediados de 1970, en pleno período de giras y éxito rotundo del Laboratorio Teatral, Jerzy
Grotowski vaticina, en uno de sus textos, el abandono de la fase teatral y la necesidad inherente
a su investigación de reducir estas giras mundiales que desconcentran y le apartan de la
búsqueda. He ahí que nos dice: “… todo ser humano tiene armas adquiridas, conductas de
enmascaramiento y simulación para la vida en sociedad..., ¿Qué pasaría si encuentro por un
mínimo instante la posibilidad de comunicarnos sin estas mascaras?" La cita evidencia el
carácter orgánico de un proceso que tiene lugar en el marco de las funciones de "Apocalipsis
162
cum Figuris"; la puesta sufre sucesivas versiones, versiones que cada vez borran con mayor
fuerza la hasta entonces dicotomía actor / espectador, es probable que todo esto haya
agudizado el proceso de investigación…más allá del teatro. Ya no el actor derribando sus
máscaras a través de un proceso personal, sino mas bien actor y espectador de conjunto
situados en una coyuntura que los obliga a ello.
En l975, a tenor de estos cambios de perspectiva, Jerzy Grotowski y su grupo abandonan la
producción teatral de puestas en escena, las funciones y toda su actividad "comercial". El grupo
se reestructura, cambia de nombre y pasa a ser Instituto de Investigación del Arte del Actor. Se
inicia una nueva etapa de trabajo definida por un sentido parateatral. Y las repercusiones
serían incalculables para el pensamiento teatral contemporáneo. Esta etapa recuerda de
manera significativa los entrenamientos del ruso-armenio Gurdjieff, tal vez el gurú más extraño
que penetrara en Occidente a principios del siglo XX, entrenamientos en los que participaron
Katherine Mansfeld y otras figuras de la época. Gurdjieff parecía proponer una “técnica de la
conciencia” que llevara hasta las últimas consecuencias la idea de observarse a uno mismo, de
forma permanente y con el empleo de muy singulares herramientas. Todo ello influyó en las
ideas sobre el Cuarto Camino (un camino diferente al “devocional”) e impactó con fuerza en
ciertas zonas de la intelectualidad y la creación contemporáneas. Habría que preguntarse sí el
ejercicio Stanislasvkiano de la “recapitulación del día” tiene puntos de contacto con las ideas de
Gurdjieff en este mismo sentido. Los ortodoxos, mesándose cabellos, lo negaran. No soy ortodoxo
y me hago la pregunta. Lamentablemente no soy un genio y no sé como responderla. La
pregunta está en pie. Medito. Invito a meditar. Meditemos. Sin ortodoxias.
En la etapa transicional del 7O al 75, Grotowski ya había realizado el proyecto "Holiday", en
colaboración con estudiantes universitarios de los Estados Unidos. Este proyecto, que
evidentemente apunta hacia las ideas ya señaladas, resultará uno de los basamentos de las
muchas experiencias que asumirá el polaco.
Los primeros proyectos parateatrales se inician en el Laboratorio Teatral en esa época. Uno
de estos primeros experimentos lo constituyó el concepto de Special Project, que asumió en
diferentes momentos y países soluciones prácticas diferentes. Este proyecto surgió a partir de
una CARTA ABIERTA a los jóvenes: "aquellos que sin querer ser actores profesionales, quieran
correr el riesgo de una aventura común; trascender las fronteras de las relaciones
convencionalizadas entre la gente". Y es este el germen de posteriores exploraciones.
Resumiendo lo casi irresumible: Grotowski a lleva cabo durante estos años tres
modalidades fundamentales de experimentos parateatrales, a saber: Holiday, Meeting y
Special Project. La traducción de estos conceptos, aunque obvia, sugiere las intenciones que
cada uno persigue, los tres son "proyectos especiales" en el sentido de que exploran la
apertura de una persona a otra, las posibilidades de crecimiento de la consciencia. Estos
proyectos, probablemente agotan las preguntas que la investigación se propone en el marco
de las relaciones humanas, sobre todo en circunstancias desconvencionalizadas y preparan el
terreno para una exploración más audaz, "El Teatro de las Fuentes" que investiga ya sobre los
comportamientos en circunstancias de ritual y que tanto influyera en Nicolás Nuñez, Richard
Schechner, y otros teatristas.
Llegará la última etapa de trabajo, podríamos llamarla, tomando un concepto del propio
Grotowski, “Artes Rituales”. Una etapa que se desglosa en varias fases, a saber: Drama
Objetivo, Las Artes Rituales y El Arte Como Vehículo. Y he ahí que esta etapa evidencia no
pocas conexiones con las ideas expuestas por Gurdjieff. (Ver: “Fragmentos de una Enseñanza
Desconocida”). Sobre todo en cuanto al Arte como vehículo hay un enfoque que evidentemente
implica de una forma u otra el crecimiento personal. Esta etapa de trabajo deja muy atrás
cualquier inquietud por la teatralidad.
Falleció Grotowski en enero de 1999, en su casa de Pontedera, en la Toscana italiana,
victima de una enfermedad cardio respiratoria.
Para muchos, Grotowski excede el marco del teatro, sobre todo en su última etapa, para
sentar las bases de una consciente búsqueda espiritual.
163
*Las notas arriba enunciadas conciernen a las etapas de trabajo tanto de Vicente como de
Grotowski, el lector atento encontrará múltiples reincidencias. No hay que perder de vista,
que Grotowski es para el teatro lo que Picasso para la pintura contemporánea (transita por
muchas etapas). Razón por la que la proyección de trabajo durante toda su vida se
transforma, evoluciona notablemente. Cada una de estas etapas tiene sus principios, objetivos
y hay diferencias bien delimitadas a lo largo de esas líneas de investigación. En Vicente hay
una semejanza de esencia.
NOTAS DO TEXTO:
1. Ya explique exhaustivamente en mi libro Teatro Ontólogico, las diferencias entre trance
consciente y trance de posesión. Otros investigadores han abordado el tema. De cualquier
modo, para el actor, tiene importancia el primero de ellos.
2. La Técnica de observación de uno mismo se refiere a la escuela de Gurdjieff, también
llamada cuarto camino e implica un camino de auto desarrollo intrincado y difícil, hay
quienes se atreven a afirmar que Stanislasvki, tuvo contacto con Gurdjieff. Más adelante
insistiré en este punto desde otro ángulo.
3. En “El Arte Secreto del Actor” recientemente publicado en Cuba, Eugenio Barba, discípulo
de Grotowski, describe con claridad meridiana los principios de la antropología teatral, que
se basa en una técnica extracotidiana del cuerpo. A saber: Equilibrio de lujo, incoherencia
coherente y oposiciones.
4. La idea de los grupos como fuente y finalidad de desarrollo esotérico esta en Gurdieff. Por
más referencia ver los libros que en este artículo son citados. Esta claro que Vicente
desarrolló esta idea en Los Doce.
5. Hay que decir que Guillermo Horta fue uno de los dos únicos cubanos seleccionados para
ir a la Escuela Mudra de Maurice Bejart. Por lo burocracia consabida en la época nunca pudo
asistir.
6. Ejercicios a los que dedique un capítulo en mi libro, antes citado, pero que todavía hoy
están en estado de permanente reelaboración.
7. Una puesta por la que pasaron tres elencos y que sufrió sucesivas versiones. La última de
ellas fue tal vez, la más “grotowskiana” y tuvo un impacto considerable a pesar de que solo
estuvo en escena una temporada.
Ruben Sicilia (Cuba, 1963). Director, dramaturgo, actor y ensayista. Ha publicado tres libros:
Teatro Ontológico (2001), Tres Obras (2010), Tríptico (Monólogos, 2012). El texto presente fue
publicado en fecha reciente en la Revista Unión tras un largo tiempo a la espera. Durante
este tiempo sufrió modificaciones sustanciales que aclaran y añaden más luz a algunos
conceptos. Por lo cual su autor considera en aras de mayor precisión y por su aspecto
polémico, volverlo a publicar en esta versión, que añade unas cuartillas a la versión original.
Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha),
artista invitado de esta edición de ARC.
164
TERESA SÁ COUTO | Poesia de José Emílio-Nelson:
a lanterna do feio
«Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E vi que era amarga. – E injuriei-a.», escreveu
Arthur Rimbaud (1), nome da vertigem, do desregramento dos sentidos, da transgressão, da
procura de um verbo novo que as enfornasse, de uma estética que lhes servisse. Procurar a
transgressão na poesia portuguesa contemporânea é encontrar, obrigatoriamente, o nome de
José Emílio-Nelson para quem o verbo maldito vê na estética do feio o veículo da libertação.
PESA UM BOI NA MINHA LÍNGUA (2) é o título do seu mais recente livro de poesia e mais um
andamento dum projecto estético muito próprio, de uma invejável coerência, que desenvolve
há 34 anos. Com o título colhido numa expressão do Agamémnon, de Ésquilo, o poeta,
todavia, evidenciando o símbolo do boi enquanto animal terreno e sacrificado, imprime-lhe
um deslocamento de sentido.
No Agamémnon, o Vigia espera o momento de apertar na sua mão a mão do seu senhor
herói regressado de Troia, mas encobre o horror da traição da esposa durante a sua
ausência, cala-se, porque «pesa-lhe um boi» na sua língua, i.é., inibe-se, recalca o fardo
pesado que não o deixa dormir. O título, Pesa Um Boi Na Minha Língua, é uma engenhosa
subversão da expressão de Ésquilo, porquanto solta um boi negro que não é manso nem
amansado, que exulta a sua verdadeira natureza intensa e plena para depositar o fardo da
sua existência no branco luzente das páginas.
«Porque me amarga a verdade, /quero lançá-la da boca», escreveu Quevedo anunciando os
excessos que carregou de sátira e burlesco. José Emílio-Nelson liberta a poesia dos
compromissos morais e do estético asséptico para escavar a imperfeição, o inferno humano
e a divina comédia da vida, dando-nos a ideia de que os bons sentimentos inviabilizam a
inquietação imprescindível ao acto de criar. Já Gomes Leal, em Fim de um Mundo, se
arrogava «um cirurgião» que havia de retalhar a escalpelo a «carcaça linda e podre do
mundo». A poesia de José Emílio-Nelson «ocupa o território tenebroso do feio expressivo,
princípio estético da intensidade realista que organiza a experiência existencial», escreve
Luís Adriano Carlos na majestosa introdução à antologia A Alegria do Mal – Obra Poética I,
1979-2004, editada em 2004, pela Quasi Edições. «Esta é uma poesia que assume a agressão
ao velho e conformado bom gosto do leitor, levanta os véus, e o que se observa sob os véus
são as fibras moles e corrompidas da carne, sem disfarces ou unguentos que mascarem a
humana, demasiado humana condição do que decai, se degrada, se corrompe, se extingue»,
escreve Fernando de Castro Branco, no ensejo da publicação do segundo volume da obra
reunida de José Emílio-Nelson, a antologia Ameaçando Vivendo – Obra Poética II, 2005-2009,
editada em 2010 pela Edições Afrontamento. Consciente de que a fealdade é o que sobra
quando o belo se ausenta, a poesia de José Emílio-Nelson adorna a beleza de sarro, «cospe
mísero canto», faz do feio o espaço de exploração e, consequentemente, de conhecimento.
No laboratório poético, onde o gesto selvagem e grotesco esgrime liberdade artística,
dialoga-se com autores – quer explícita quer implicitamente – da literatura universal de
todos os tempos, e dialoga-se com outras artes, como a pintura, escultura, música e
fotografia, artes que emprestam o seu gesto à iluminação dos corredores escuros do ser
humano.
Na Conversão à luz, as palavras de José Emílio-Nelson surgem como aves «derramadas no
seu voo sobre a bruma inquinada», voam em «águas ermas», retêm-se no fundo das águas, e
desafiam o leitor com perguntas obscuras, carácter, ainda, de uma poesia de questionamento
de si mesma: porquê?, o «Que as retém lá fundo?»(p.10), «que mão desaparece e aparece por
dentro de nós? /É mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica? /Qual mão? /A que
mortifica muda e confusa e nos consome? / Ou a que evola Deus?» (p.9); ou, ainda,
intercetemos o desígnio desta poesia detendo as chaves do poema Lux Aeterna: «A mão que
165
faz de si um sopro enlaça os dedos e canta. /É a voz de quantos gestos? /Sobre ela se
enxerta uma e outra voz que escurece. /Num sítio ermo, bem fundo, /A sua magnificência na
vacuidade do Mundo. /E apodera-se dum silêncio que depois clamoroso se repete /E repete
belamente a sua escuridão. /Perde-se e relampeja em orlas escuras, /Sulca e assenta,
acalmada.» (p. 22).
A mão de uma poesia que liberta objectos e seres da aparência comum, que é a artífice da
denúncia da desventura terrena, e que enxertando-se de vozes evoca a procura da condição
humana, só pode imprimir o Deus humílimo que se liberta da sua condição inumana para
habitar o corpo desgraçado do Cristo agonizante da crucificação, o Deus escuro que ressuma
nestoutro poema de O Livro de Horas, de Rainer Maria Rilke: «o meu Deus é escuro e como
que um tecido /de cem raízes que bebem silenciosas. /Só sei que me levanto assim do seu
calor, /e mais não sei, pois todos os meus ramos /repousam lá no fundo e acenam só ao
vento» (3), escreveu o poeta alemão aludindo a um Deus que é a «Coisa das coisas», e o
poeta a sua «ânfora», o seu «hábito», o seu «ofício»; posto isto, em Pesa Um Boi Na Minha
Língua, não será Cristo a resina que se queima nas brasas?, ou dito assim no texto Naveta e
Colher: «Do meu escuro Deus cai a luz que O deixa morrer /E que O depõe e O apodrece com
roupa purpura, incensado. // <Eu oro. Que sei?> Cristo é a naveta? Deus é colher?» (p.11).
Iluminar o feio é pôr a nu a decadência e a miséria humanas. Sem nos falhar, o texto faz a
pergunta e dá a resposta clara: «Como aparece Deus velado ao que perde a nudez esbelta?
/Maravilhado.» (p.12). É por esta razão que a nudez de San Sebastián, de El Greco, é
profanadora, e é também por isso, e porque aquela dor nos identifica, nos é familiar, que a
sua beleza convulsiva nos maravilha e nos fascina: «A devoção encandeia, afadiga-se, alastra
até ao amortalhamento./ As flechas mortíferas escoram o corpo vazado. /Detenhamo-nos,
sem mais detalhes. /Escorre o óleo santo na nudez profanadora.» (p.54).
O Homem é carne, mas também é espírito, e só a sabedoria artística do espírito pode
harmonizar a fealdade do mundo em destroços. Acha-se o belo removendo escombros,
escreveu o poeta Antonio Porchia, cita-o José Emílio-Nelson. Cumprindo a ideia de que a
obra de arte deve devolver o homem a si mesmo, na inteireza vital, espiritual, material e
física, a sua poesia adopta um processo análogo ao da fotografia que adquire a sua força
deslocando o objecto do seu contexto para o imprimir num outro e novo contexto. O
resultado são imagens de espanto e inquietante estranheza. Para José Emílio-Nelson, o ar é
uma zona corporal do homem, o que vem ao encontro do defendido por Novalis, de que «O
ar é tanto órgão do Homem como o sangue», que «o exterior não é mais do que um interior
distribuído» (3). O ar é a casa da voz, onde se dá a luta teimosa entre a efemeridade do ser
humano e a infinitude do cosmos; veja-se o poema Cosmic Pulses: «Poisado cone num sopro
aspergido /Espirais que derramam /Luminosos teclados turbulentos,/Eixos suspensos num
horizonte de obscuridade profunda./Erguem em roldanas o Cosmos.» (p.21), estoutro:
Carrilhões riscam de sinos os mortos./A teimosia dos 6 percussionists de Strasbourg alumia
com luz fraca //O caminho que estreita./Acedemos à infinitude a cada momento/ <Tam
immensa> (p. 20), e ainda o poema, Circles Movements: «A Voz soletra o ar de pompa da
percussion. A um ermo /Abre e distorce. Cada som ‘perscruta os planaltos’ /Ao excedê-los.
Vislumbramos o exumar do Céu.» (pág. 17).
O ar do corpo interno também se liberta em burlesco sonoro, como no exemplo do texto
Dama Canhão: «A dama move-se, /Nada mal, as nádegas em tacão /Deixam rasto de lagartas
/Castrenses, só que a mulher usa pestana escarlate. /O cinto seca-lhe a cintura farta, é seca,
/A dama para quem em redor a faz de louca. /(Detona pó sem dó que nem canhão. /Ou
serão gases?)» (p.77).
Por outro lado, «Em divergência com as mitologias literárias, a cosmogonia de
Emílio-Nelson começa na urina, a água da vida segundo a tradição medicinal», diz Luís
Adriano Carlos. Com efeito, se o «verdete agonizante do metal da alma» se estende às
reveladoras «alvíssimas lágrimas», a (outra) água da vida irrompe purgadora no texto
Cães: «Vou ser asceta, piedade pela cadela./O chumaço das tetas, vou ser vulgar, lágrimas
rosas,/ A arrastar a matilha estouvada que a morde à vez, de joelhos./Cadela em fuga,
166
prostrada nas urinas,/A rezar, julgo eu, a rezar.» (p.51), ou em purificação apolínea, numa
viagem a Delfos: «Nas poucas horas que passei em Delfos, /Miniatura do folclore grego, uma
mulher rendada /Oferecia os seus olhos cegos poisados na mão com que me tocava. / (A
excursão inteira continua atenta ao guia que mal fala.) / Iludindo a mais amada, urinei para
os olhos da cega, / Que por isso implorava.» (p.72).
Falar do feio é falar do Tempo – tempus edax omnium rerum –, o feroz devorador de
todas as coisas até as tragar totalmente; o tempo é «Impiedade» apresentada, por exemplo
neste texto: «Com sapatinha de espalhar trampa, chagado. De capuz, carapinhoso. /Agitavase empoleirado no vinho drogado./ Desfalecido, as pestanas escurecem./ Repousará, tão
atroz, outra vez dentro de sua mãe. <Doía.>/ Ah, que importa. Jaz Morto.». (p.59). O regresso
ao útero materno indicia que, se «O decorrer do tempo ofende a Beleza», o texto também lhe
reconhece a capacidade de recomeço, ideia plasmada na Fénix que se regenera: «a fénix
aflitíssima mede o tempo justo para repetir as cinzas» (p.49). Nas Metamorfoses, Ovídio
apresenta a Fénix rediviva e também a Fénix do poeta latino «Não é de grãos ou de ervas/que
vive, mas de lágrimas de incenso e da seiva de amomo.» (4). Símbolo da morte e
renascimento, também a cobra é chamada ao texto; nela se conjugam metamorfose e
erotismo patentes na mulher que se contorce voluptuosamente, confundindo-se com a
serpente, metamorfoseando-se na própria serpente, do poema «Cobra, a Morbideza»: «A
mulher que trabalha na morgue vai vomitando. / Enrosca-se cerosa nas gavetas como se
fosse dormir /Demasiadas vezes na morte. / (Muda, a cobra escuta-a, /Suspira noutra muda
repentina.)» (p.70).
Com admirável rigor, o vasto bestiário está ao serviço do reconhecimento da dimensão
infernal da dita vida interior e de um programa poético que nomeia a penitência da lesma, a
pomba que martiriza o espírito, o pelicano que «obedece a Deus ao aspergir o seu sangue
redentor sobre as crias que mata», o asno com desejos de autoflagelação, a gralha cuja crista
é o «abanico de certas almas» ou o cisne, «a soberba que alegra os órgãos genitais de
suspiros». As pulsões sexuais, o sadismo e o masoquismo têm terreno fértil na palavra que
exprime o subterrâneo, a perversão, o licencioso, pelo que esta poesia não se coíbe na
utilização de vocabulário erótico e pornográfico, provocatório e agressor para o qual
concorre a atenção sobre os detalhes físicos da violência sexual que compõe a coreografia
dramática do discurso corrosivo e satírico; vejamos dois clips: «Assisti a um clip [bondage]
em que eram penetrados / Uns tantos pelo corpanzil dum latino que os cobria empenhado
/Untando com vaselina nas pálpebras doutro mais alheado. /Consumido nisso, pondo-se a
jeito, implora, e é enfiado. / (E sem óleo santo que o salvasse.)»; «O cão cobria-a como pele
de raposa, empertigara-se, /A pata rosa abusava, deixava mossa. <A cauda estranha>. / O
focinho mordia, ia avançando, encostou-se, / E ao bambolear ela gemia, devia ser mau, /Mais
do que no vídeo se ouvia.» (p.74).
Se na origem da beleza está unicamente a ferida, há pois que isolar as feridas para lhes
descobrir o significado, iluminá-las, pelo que cada texto é um espaço infinito e de luz
imensa. Neste sentido, a poesia de José Emílio-Nelson é um humanismo, e em muitos dos
seus textos ecoa o grito das figuras cruas, delicadas e terríveis, e por isso, de beleza
avassaladora, de Alberto Giacometti. Confira-se no texto Mina San José: «Rezo pelos
mineiros chilenos. /As almas soltando labaredas de El Greco./Ciclopes à espera de subirem
ao céu azul pelos tubos dum órgão de luzes que os ressuscita no sepulcro. //Estes mineiros
extraem Deus.» (p. 60).
Ainda, o jogo de acasos, imagens e metáforas e hipálages com que se liga o mundo
interior ao mundo exterior fazem lembrar a prática surrealista do cadavre-exquis. Veja-se o
poema Moeda com que esta poesia paga a experiência da realidade esmagadora: «Numa
viela, em cima de cartão prensado, /Senta-se mais engelhada que os trapos. /Raspa com as
unhas a cabeça do cão atormentado. /O fundo da garrafa serve de caçarola /E atira para aí as
moedas. / (Ferrugentas são peças de coleccionadores.)» (p.84).
A poesia de José Emílio-Nelson não é de fácil leitura. Independentemente de questões de
gosto, ela não é acessível ao leitor pouco experimentado. A sua «escrita em mosaico», assim
167
caracterizada por Luís Adriano Carlos, prenhe de deslocamentos de sentido, associações
insólitas, movimentos espiralados, vocabulário onde dialogam o erudito e o brejeiro, a dor e
a mofa, a inevitabilidade e o recomeço, fazem sacudir um outro novo nervo, outro latejar se
impõe, outra releitura se inicia, e a sua poesia nunca está lida. Mas não será este o privilégio
da melhor literatura?
NOTAS:
(1)
Arthur Rimbaud, Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, Assírio&Alvim, 2007, p.117.
(2)
José Emílio-Nelson, Pesa um boi na minha língua, Edições Afrontamento,2013.
(3)
Rainer Maria Rilke in Poemas, ed.Asa, Lisboa, 2001, tradução de Paulo Quintela, p.84.
(4)
Fragmentos de Novalis, Assírio&Alvim, tradução de Rui Chafes, 2000, p.95.
(5)
Ovídio, Metamorfoses, Livros Cotovia, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, 2007,
p.375.
Teresa Sá Couto (Portugal, 1965). Licenciada em Estudos Portugueses pela Universidade
Nova de Lisboa, Professora de Língua e Literatura Portuguesas, Editora de Cultura em
www.kaminhos.com onde artigo e entrevista foram originalmente publicados (Lisboa, Agosto
de 2005). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto
(Espanha), artista convidado desta edição de ARC.
168
ENRIQUE GRANELL - JUAN-EDUARDO CIRLOT RICARDO SENABRE | Tres veces Antonio Beneyto y
las voces de la crítica
1. Enrique Granell | EL SUEÑO ETERNO
Hace veinticinco años que Antonio Beneyto expuso en la galería Maeght de Barcelona El
dibujo más largo del mundo. Para poder colocarlo sin dobleces en la sala tuvo que
construirse un soporte curvado que dibujaba en el aire algo parecido a un baldaquino
soportado por dos delgados soportes. El dibujo medía entonces treinta metros y medio de
longitud por cuarenta centímetros de ancho.
Beneyto señaló entonces como referencia el manuscrito de Juan Benet para Una
Meditación. Este consistía en un rollo de papel continuo que no permitía volver sobre lo ya
escrito. De esta manera el escritor se veía obligado a una atención exacerbada para con las
repeticiones que pudiesen producirse en el texto.
El soporte de “El dibujo más largo del mundo” no era un soporte neutro, liso, blanco. En
una de sus incursiones por los encantes viejos de Barcelona Beneyto había encontrado unos
rollos de pianola ofrecidos por un extraño paradista. Estaban embalados en cajas de cartón
rotuladas con los nombres de las piezas de música que contenían. De vuelta al estudio y tras
examinar el cargamento decidió dibujar sobre esas partituras mecánicas. Las escogidas
fueron el pasodoble torero El gato montés de Manuel Penella y La tempestad del maestro
Chapí. La cinta de papel que hace sonar el falso piano presenta una serie rítmica de
perforaciones acompañadas de líneas grafiadas en varias direcciones pautadas con
notaciones musicales diversas. Su aspecto puede ser relacionado tanto con una partitura
musical convencional como con un largo fragmento de poesía concreta.
Sobre esta accidentada superficie va a trabajar Beneyto. Walter Pater en su ensayo sobre
la escuela de Giorgione había escrito algo que pudiéndose confundir con una maldición se
convertía aquí en profecía: Todo arte aspira constantemente a la condición de música. [1] Así,
El dibujo más largo del mundo podría volver a la pianola y hacerla sonar. Pero seguro que no
como antes, el piano mecánico leería, además de la serie de perforaciones que lo hacen
funcionar, las pestañas, las cejas, las punteras de las botas, el tacto de los vestidos, la
densidad de los colores y el gesto de esa variopinta saga de personajes con los que Beneyto
ha colonizado el papel. Sonaría, suena, diferente.
Hace siglos que los hombres han querido relatar con larguísimos dibujos sus hazañas
sobre la tierra. Dejando aparte los incontables jeroglíficos egipcios compuestos durante
siglos y que todavía no sabemos descifrar del todo, han llegado hasta nuestros días ejemplos
memorables. Alrededor de la cela del Partenón Fidias esculpió el friso de las Panateneas. A lo
largo de ciento sesenta metros vemos como van llegando desde la ciudad los carros, los
animales, el público participante y finalmente las vírgenes atenienses que han tejido el peplo
nuevo para Atenea. Sin ese friso tan largo pero tan insignificante en el conjunto general del
monumento no podríamos comprender casi nada de la Acrópolis de Atenas. [2]
Los emperadores romanos, además de las inscripciones y de los relieves de los arcos de
triunfo, inventaron las columnas rostrales, soportes de cintas continuas de relieves
envueltos helicoidalmente alrededor de su fuste. En ellas se relataban las victorias de los
emperadores. Hoy todavía conservamos dos, la columna trajana y la columna antonina.
Ambas, de dimensiones casi idénticas, desarrollan frisos de algo más de doscientos metros.
En la primera se narra la historia de las dos guerras dacias y de la victoria de Trajano. En la
segunda el relato nos explica las guerras marcomanas y sarmáticas y la victoria final de
Marco Aurelio. [3]
169
El tapiz de Bayeux nos relata la conquista de Inglaterra por los normandos. El dibujo se
acompaña con inscripciones que nos ayudan a seguir los prolegómenos y la batalla de
Hastings en 1066. La historia ocupa una pieza de lino bordada con lanas de ocho colores. Su
longitud actual es de setenta metros y treinta y cuatro centímetros. [4]
Tal vez la inconsciente y fantasmal presencia de estos ejemplos del pasado haya hecho
que Beneyto en estos últimos meses haya vuelto sobre ese formato queriendo alargar sus
anteriores tentativas. Ha montado sobre la mesa los rollos de Invitación al vals de Weber, Les
cloches de Corneville de Planquette, La favorita de Donizetti y Marina del maestro Arrieta.
Las diferentes piezas van a formar después de dibujadas una sola, habitada por monstruos,
seres humanos, vegetales e híbridos de todo lo anterior, realizados en gouache y tinta china.
[5] Los rollos provienen todavía de la compra antigua, son objetos del Rastro. Y es en esto en
lo que la nueva obra se va a diferenciar radicalmente de los ejemplos de la historia que
inevitablemente tienen el carácter de ruina. El mejor conocedor de los rastros, Ramón
Gómez de la Serna, alguien próximo a Beneyto, nos ha dejado en las notas prologales a su
mejor obra, la definición de la diferencia fundamental entre la gran historia y el sueño
cotidiano:
No son tampoco ruinas históricas y trascendentales estas cosas del Rastro, ¡eso sería
demasiado! Porque en las ruinas queda siempre algo que pervierte, un resto de su
jactancioso, de su supersticioso pasado, de su hipócrita dominación, por lo congregadas
que están, como persuadidas aún de su objeto común y tiránico, sin la suficiente
persuasión y rebeldía privada en cada una de las piedras. Las ruinas del Rastro, por el
contrario, disgregadas, abandonadas a su soledad y su última conciencia, entran en razón,
se llenan de sencillez, y como la sencillez es comparable con todo, resulta que con la
cultura del pequeño espacio corrigen las ideas extensas y soporíferas y vacuas de las
grandes imágenes, esas grandes imágenes que relajan el espíritu dándole la enfermedad
tremenda de las dilataciones, “la dilatación del dolor”, “la dilatación de la ansiedad”, “la
dilatación de la idea humana del tiempo convertida en inhumana y traspasadora de
dolores agudos y largos”, etcétera, etc. Las ruinas del Rastro muestran pegadas, enjutas,
inculcadas a sus añicos, las ideas más inauditas y curativas, resultando así en su pequeñez,
como restos mayores, pedazos de catedral, pedazos de trascendencia incalculable ante los
que se adquiere la seguridad de que entre esas piedrecitas menudas, está la piedra
filosafal, vulgar piedra de la calle. [6]
Ese espíritu es el que había impulsado a que la Comuna de París derribase la copia
napoleónica de la columna trajana en París. El decreto de la Comuna decía: “considerando
que la columna imperial de la plaza Vendôme es un monumento de barbarie, un símbolo de
la fuerza bruta y de la falsa gloria, una afirmación del militarismo, una negación del derecho
internacional, un insulto permanente de los vencedores hacia los vencidos, un atentado
perpetuo a uno de los tres grandes principios de la República francesa, la fraternidad,
DECRETA: Artículo único. La columna de la plaza Vendôme será demolida. Y así se hizo el 16
de mayo de 1871.[7]
Aquí comenzará el nuevo friso de Beneyto. No será un nuevo documento de barbarie, no
nos relatará la realidad histórica porque su registro está en el estrato surreal del mundo, un
lugar alejado de la gravedad de los tiempos presentes, habitado solamente por seres sin
cuerpo, definidos por líneas y por brillantes colores. Esos seres se moverán nuevamente
entre las signos musicales, entre las perforaciones del papel de música del piano mecánico.
Paralelamente al ritmo en el que la obra vaya avanzando Antonio Beneyto debería ir
pensando en cómo va a ser mostrada una vez la acabe ¿La acabará alguna vez? Ya hemos
visto como en los ejemplos históricos ese punto fue capital. Tal vez tendría que reconstruir
uno de esos viejos panoramas y colgar el dibujo alrededor de su plataforma para que la
imagen se cerrarse sobre sí misma iluminada por una luz de tienda de campaña. O tal vez
debería colgarse el dibujo de un globo cautivo que acercase e hiciese desaparecer a un
170
tiempo a estos personajes fantásticos en la inmensidad del espacio sideral. O tal vez debería
ser arrastrado por un zeppelin sobre el cielo artificial de la gran ciudad como el anuncio de
una vida futura. O tal vez debería ser enrollado en el monumento a Colón de Barcelona y
reconstruir el andamio metálico que permitió su construcción en 1888 dotándolo de
ascensores-mirador para poder ver sus formas y sus colores.
Pero seguramente Beneyto haya pensado ya en otras soluciones. Tal vez decida sumergir
su dibujo en la profundidad del océano y pedirle al capitán Nemo que su submarino
panorámico recorra sus veinte mil leguas de viaje mostrando su dibujo también de veinte
mil leguas. O tal vez haya decidido filmar el dibujo y convertirlo en una película
protagonizada por esa extraña fauna de animales y hombres pertenecientes a mundos
desconocidos en nuestra tierra vestidos con colores brillantes y peinados con melenas como
estelas. En se caso tendrá que pensar en la velocidad, tanto en la de la filmación como en la
de la proyección ¿Cuánto dura una ensoñación? También deberá pensar en si es una película
enteramente en color o si tiene, intercalados, fragmentos en blanco y negro ¿Soñamos en
blanco y negro o en color? Y también deberá requerir que su amiga Patti Smith le componga
una música –interpretada por ella misma– para que con su voz la proyección adquiera la
dimensión profunda. Esa película no debería, como la música que la acompañe, tener –como
Beneyto pretende con su obra– ni principio ni fin, debería ser una película infinita
acompañada por un infinito canto de sirena. Esa película, ese El dibujo más largo del mundo,
debería ser, como Las mil y una noches, el cuento de nunca acabar: un sueño eterno.
NOTAS
1. Walter Pater. El Renacimiento. Barcelona. Iberia-Joaquín Gil, editores. 1945.
2. Arnold von Salis. El arte de los griegos. Madrid. Revista de Occidente. 1926.
3. Antonio García Bellido. Arte Romano. Madrid. CSIC. 1972. Para la columna trajana pp.
364–372 y para la columna antonina.
4. AA.VV: La Tapisserie de Bayeux. Paris. Flammarion. 1957. Para la técnica y materiales
especialmente el capítulo de George Wingfield Digby.
5. Jacinto Antón “El pintor Beneyto presenta al libro Guinnes un dibujo de más de 30
metros”. El País. 15 de enero de 1987.
6. Ramón Gómez de la Serna. El Rastro. Valencia. Editorial Prometeo. S.f. (1915).
7. Sobre la columna: Achile Murat. La Colonne vendôme. Paris. Ëditions du Palais Royal. 1970.
Sobre su derribo: La chute de la colonne Vendôme. Paris. Éditions du Ravin Bleu, 1998. El
decreto está en la p. 9, la traducción es mía.
2. Juan-Eduardo Cirlot | EL IRREALISMO LÍRICO DE BENEYTO
El Pop art, que comenzó su auge en Estados Unidos e Inglaterra ya en 1958-1960, ha tenido
repercusiones amplias en el mundo. Pero como producto de una sociedad determinada,
mucho más influida que la nuestra por el realismo y la oferta de felicidad a poco precio de la
propaganda, en otras comarcas ha cambiado de signo, pudiendo incluso transformarse en
algo esencialmente distinto que, paradójicamente, se expresa a través de la imaginería Pop.
En España es donde las versiones de ese arte se han modificado más profundamente. Un
ejemplo perfecto de metamorfosis lo ofrece la obra actual de Antonio Beneyto, residente en
Barcelona, pintor y escritor que liga íntimamente ambas actividades (incluso en alguna obra
pictórica sugiere el mundo literario por inserción de signos gráficos y otros). Aficionado al
color y a la forma desde antes que a las letras, adquirió, en cambio, más rápida
profesionalidad en éstas y solamente en los tres años últimos su pintura, sobre tela y papel,
ha adquirido una densidad notable y un estilo auténticamente propio. Tras una fase (19671968) experimental intensa, con todos los medios y procedimientos, trabajando lo mismo en
amplios lienzos que en pequeños soportes de papel, acercándose a veces a formas
monumentales y haciendo proliferar en otras ocasiones mundos microcósmicos que pululan
171
como los gestos de un Michaux, Beneyto llegó a principios de 1969 a cristalizar dos
corrientes dominantes en su obra: la serie azul y la serie negra.
A nuestro juicio, ha conseguido más claridad de imagen en la primera. Trabajando por
reservas obtiene imágenes negativas que danzan en espacios celestes, dominados por el azul
claro, pero en los que se varía del azul oscuro al gris blancuzco. Círculos negros, discos,
trazos y triángulos, alternan con personajes espectrales, ingrávidos, que proceden del
mundo de la poesía tanto como del pictórico, y que se aparecen entre fulgores apagados y
destellos neutralizados en parte. En su versión tan sublimada del Pop art, que casi huye de la
clasificación, Beneyto no mantiene de dicha tendencia sino el sentimiento gráfico de la
imagen y la composición, junto con la plenitud de las neofiguraciones incorporadas en un
espacio que ha heredado del romanticismo informalista la vaguedad tonal y la fluctuación de
fondos imaginarios, sugerentes, nebulosos.
Si Beneyto partió de una libertad absoluta en su enfrentamiento con la realización
pictórica, la palabra serie significa que ha canalizado su fuerza en trayectorias disciplinadas,
no que trabaje con criterio de obra cuyo valor dimana de su pertenencia a un grupo. La serie
es constituida sólo por la persistencia de unas formas y colores, junto con la idea de variar
al máximo, en el interior de tal sistema, los ritmos y los elementos figurativos o dibujísticos.
Hay pinturas que representan filas de bustos de personajes que parecen tomados de un
catálogo, o que evocan el vaivén de los juegos circenses en la presentación especial de los
personajes, eso cuando éstos no adquieren un significado netamente correspondiente a la
época de los alunizajes y de las experiencias humanas del espacio exterior. Pero Beneyto no
busca el pavor del encuentro con. lo ignoto, ni siquiera parece interesarse gravemente por la
búsqueda de ese factor; desconocido que viene desde el futuro. Lúcidamente, hace que sus
imágenes desarrollen una teoría de variaciones no sometidas a otra constricción que la de la
técnica y la del concepto que dirige cada una de sus series. En la negra, que subtitula paisajes
humanos ni por el título se acerca a esa confusión de la tierra y los cuerpos que vimos hace
años en un Dubuffet.
Domina por entero en Beneyto un factor irrealizante (idealizante + nihilismo) que es lo
que delata en él al poeta, no al buscador de calidades ni al plasmador de texturas o de
formas por su cerrado valor téctónico y plástico. Un juego de vuelos y danzas que penetran
en laberintos de espacios abiertos al infinito. Un arte imaginativo, pero sometido a una
reflexíón estética que muestra una pureza innata mejor que adquirida en el crisol de la
ciencia artística. Esto es lo que vemos en Beneyto, junto a un anhelo de permitir que algunas
zonas de su iconografía se acerquen a la sátira social, con más ironía, apenas perceptible,
que acritud. No es esta ocasión para hablar de la vida del pintor-escritor, pero sí diremos que
está en plena consonancia con el impulso dominante en su obra: rechazo de las
contricciones objetivas, busca viajes, movimiento, capacidad para fijar las propias leyes.
Unido esto a un gozoso interés por lo que, algo paradójicamente, pudiéramos llamar
anecdótico-significativo: el encuentro inesperado, lo concentrado por breve, lo inventivo que
se diría gratuito y no lo es porque brota del fondo de una actitud de disponibilidad
auténtica, de entrega a lo inmediato.
Por eso las imágenes de su serie azul son únicas cada una de ellas, aunque hayan dado
realidad a una colección de apariciones que, por medio de una alquimia tan heterodoxa
como el Pop de este artista de hoy, transmutan la materia prima no en oro, sino en un humo
tintado de anilina, capaz de adensarse, aligerarse, fluir, derramarse, figurar, desfigurar,
fulgurar y silenciar a la postre cuanto en el hombre es desesperación y lucha estéril.
3. Ricardo Senabre | LOS LENGUAJES DE ANTONIO BENEYTO
Las exposiciones y catálogos de Antonio Beneyto dejan claro desde el primer momento que
nos hallamos ante un creador plural, cuya inquietud artística no se reduce a un solo ámbito,
sino que experimenta sin cesar con modalidades expresivas diferentes: dibujo, pintura,
escultura, cerámica, literatura narrativa, ilustración… Podría pensarse que se trata de una
172
obra dispersa, heterogénea, sometida exclusivamente al capricho libérrimo del artista. Sería,
sin embargo, una impresión engañosa, porque lo que da sentido a este variadísimo
conglomerado de productos artísticos es precisamente su profunda unidad; la misma que
tendría el individuo polígloto, capaz de expresarse en varias lenguas sin variar por ello sus
pensamientos o su espíritu. Pensemos, por ejemplo, en esos extraños personajes de muchos
dibujos de Beneyto –y no sólo de las llamadas pinturas negras– cuyos dedos de pies y manos
se prolongan, con un afán de ser más, en imposibles ramificaciones, en arborescencias y
transformaciones que desrealizan a los sujetos y los acercan al mundo vegetal. Y
recordemos el arranque de un texto literario del autor, titulado Algunos niños, empleos y
desempleos de Alcebate: Aquel niño que había nacido sin padres en vez de uñas tenía flores y
por eso se las comía. O bien, sin salir del mismo libro: De sus largos y gruesos dedos salían
por debajo de sus uñas como una especie de látigos que él usaba para domesticar a los
clientes que proferían palabrotas. Pero ya mucho antes, en el texto Las hormigas me hacen
cosquillas (1968) se leía: Me encuentro mejor […] En vez de extremidades tengo ramas de
naranjos con hojas violetas. También mi cuerpo está cubierto por una rugosa corteza por la
cual suben largas hileras de hormigas. ¿No estamos ante visiones semejantes? ¿No
responden las imágenes plásticas al mismo principio que gobierna retratos literarios como
estos? Dos lenguajes tan aparentemente dispares no logran ocultar la esencial unidad de la
mirada. Por si fuera poco, algunas exposiciones del autor –como la más reciente, que ha
recorrido varias poblaciones del sur de Francia entre 2010 y 2011– exhiben no sólo pinturas
o dibujos, sino también libros de la biblioteca personal del artista; obras de Stendhal, Pieyre
de Mandiargues, Gaudí, Arrabal, Corredor Matheos, Cela, Tadeusz Kantor, Robert Desnos,
Breton, Topor, Michaux, Cirlot, Jaime D. Parra y otros autores, en ejemplares cuyo
denominador común es la ilustración que Beneyto ha dibujado en la portada o portadilla de
su volumen. La verdadera lectura es un diálogo con la obra, como ha recordado Steiner, y las
intervenciones del lector en ese diálogo se manifiestan con frecuencia en anotaciones
marginales –a veces extensas e incluso prolijas, como las que practicaban los humanistas del
Renacimiento–, observaciones o marcas de naturaleza diversa que dejan constancia en el
ejemplar de las reacciones del lector, de sus acuerdos o discrepancias, de sus deseos de
colaborar con el texto mediante notas encaminadas a completar o rectificar algún pasaje.
Pues bien: esos dibujos únicos que ostentan muchos libros de la biblioteca de Beneyto
representan exactamente lo mismo: su reacción como lector, su impresión acerca de la obra,
su interpretación personal; constituyen, en suma, su parte del diálogo necesario entre autor
y lector, sólo que, en lugar de acudir a anotaciones verbales, este lector peculiar ha traducido
sus sensaciones a imágenes, lo que prueba asimismo que, para él, ambos lenguajes son
equivalentes o intercambiables. Es significativo que en la prosa titulada La habitación sin
espejos de la dama morada (1970), el sujeto se encuentre de pronto con que de las paredes
de su cuarto han desaparecido los cuadros, sustituidos por narraciones que se dedicaron a
vivir y andar por el techo, y dormían en los ángulos de la habitación, como telarañas, de
modo que la habitación aparecía forrada con un sentido muy digno y equilibrado de la
estética con textos un tanto disparatados, misteriosos y extraños en los que se entrecruzaban
lo fantástico y lo real tejiendo un mundo maravilloso, poético y auténticamente sorprendente,
palabras que parecen sintetizar muy bien la impresión de cualquier desprevenido
contemplador enfrentado a la obra pictórica de Beneyto. No será ocioso mencionar, a
propósito de este intercambio de percepciones, el pasaje del libro El otro viaje en que el
narrador contempla un paraje rural y se le antoja el fondo de una pintura o un anuncio
publicitario.
Bastará recordar un ejemplo más. Una multitud de obras de Beneyto presentan figuras de
cuyo cuello emergen lo que a simple vista podrían parecer dos cabezas, pero que son, en
realidad, los dos perfiles del rostro, siempre desiguales y disimétricos. El cuadro titulado
Nina Hagen (1982) funde dos figuras, masculina y femenina, una de las cuales surge de la
otra. Una tabla de 1983 lleva como título En el país de los hermafroditas, y Andrógino es un
óleo de 1982. Esta dualidad dispar, que es uno de los motivos más frecuentes en la pintura
173
del artista, no trata de sugerir la existencia de dos sujetos –de hecho, lo habitual es que sólo
haya dos piernas–, sino la duplicidad de espíritu del ser humano –una moderna visión del
Jano bifronte–, las dos caras de la realidad, y, apuntando por elevación, el intento de mostrar
que toda apariencia es sólo superficie, y que el deber del artista es sacar a la luz lo que esta
capa oculta. Pues bien: no es difícil tropezar con el traslado de esta idea y esta imagen al
lenguaje verbal. En el ya citado libro Algunos niños, empleos y desempleos de Alcebate se
describe así a un fantástico personaje designado como el muevecafé: Del perfil derecho era
chato y tenía un color whisky; del otro perfil, o sea del izquierdo, se le veía la punta de la
lengua y el color de su piel parecía una tijera pintada de rojo; y viéndolo de frente daba la
sensación de ser un ovario cualquiera recién intervenido. Este descoyuntamiento de la figura,
estos perfiles divergentes que acaban por reducirse a un ovario, a una forma primitiva y
genital, expresan perfectamente la raíz profunda del problema.
El motivo de la dualidad ofrece otras soluciones en los textos escritos. Por ejemplo, en las
alteraciones de topónimos y antropónimos. Albacete se convierte en Alcebate, y la Irene
destinataria de algunas cartas apócrifas será Eneri. En este mismo plano cabe añadir los usos
de palabras inexistentes –como inexistentes son muchos objetos y criaturas de cuadros y
dibujos– cuyo significado deberá dilucidar el lector apoyándose en el contexto. Sólo en unas
páginas de El otro viaje brotan repílforo, jundunare, popetas, grollar, trepetales, billota,
tamajosa, pizorrera, alugerado, quilochas, lluecura o circar(se), entre diversas formas. En
otros casos, los vocablos existen, pero se utilizan con un significado imaginario: autópsido,
cachumbo, pizote, cándalo. Naturalmente, estos desvíos son limitados, porque en la
narración se imponen las exigencias del lenguaje ya dado –con sus propios valores
significativos– y de su configuración de la realidad, y es preciso respetarlas mínimamente,
mientras que en las creaciones plásticas no existen condicionamientos previos y sí un campo
abierto para albergar las más libérrimas creaciones. Pero la actitud es análoga en unos casos
y otros. No hay que olvidar que en un pasaje de Algunos niños… se habla de uno que estaba
partido por la mitad, a pesar de lo cual aún tenía medios y formas de pensar. Y por esto se
entretenía en componer, en fundir algunas palabras. Palabras rotas, malolientes. Se trata
siempre de provocar la sorpresa ante lo inesperado, requisito indispensable para aspirar a la
creación de orbes autónomos, cuya existencia no reproduzca forzosamente un mundo real o
reconocible, sino que tengan vida y significado propios por sí mismos. Porque esto es lo
decisivo, independientemente de que algunos recursos desrealizadores puedan compararse
con los del surrealismo o el postismo. Y las marcas que subrayan este deliberado
alejamiento de lo consabido son múltiples. El libro El otro viaje se titula así porque, aun
amoldándose externamente a los cánones del género vivificado por Cela en su Viaje a la
Alcarria –sin duda el modelo del que Beneyto pretende ofrecer el envés–, se aparta
deliberadamente del dechado de relato itinerante –de igual modo que las figuras de los
cuadros se alejan de cualquier modelo real– al crear el personaje de un viajero que se
transmuta en gorgojo o larva según las ocasiones y que transita por un paisaje hosco sin
topónimos reconocibles.
En este mundo insólito, repleto de figuras monstruosas o grotescas, de personajes que se
retuercen, traspasan los objetos, vuelan, expanden sus extremidades con inesperados
alargamientos e incrustaciones que los liberan de la cárcel del cuerpo, se utilizan también,
sin excluir un ribete humorístico que rebaja la posible trascendencia y reivindica el papel
lúdico del arte, símbolos tradicionales (como la manzana que aparece en el ángulo inferior
derecho de Autorretrato, 1994-1998) que dejan entrever, por muy reelaboradas que
aparezcan, algunas de las raíces pictóricas y literarias de las que brota el arte de Antonio
Beneyto.
ENRIQUE GRANELL (Barcelona, 1955) es arquitecto y historiador de arte. JUAN-EDUARDO
CIRLOT (1916-1973) fue uno de los más importantes poetas y críticos de arte de su
generación. RICARDO SENABRE es otro nombre destacado de la crítica literaria en España.
174
Los tres firman aquí su visión acerca de la obra de António Beneyto, nuestro artista invitado
de esta edición de ARC. Contacto: [email protected].
175
Agulha Revista de Cultura
editor geral
FLORIANO MARTINS
editor assistente
MÁRCIO SIMÕES
logo & design
FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ÉCLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS | LUIZ LEITÃO DA
CUNHA | MÁRCIO SIMÕES
jornalista responsável
SOARES FEITOSA | DRT/CE, reg. nº 364, 15.05.1964
apoio cultural
JORNAL DE POESIA
contatos
FLORIANO MARTINS
Caixa Postal 52817 - Ag. Aldeota | Fortaleza CE 60150-970 BRASIL
[email protected] | [email protected] | [email protected]
MÁRCIO SIMÕES
Rua do Sobreiro, 7936 Cidade-satélite | Natal RN 59068-450 BRASIL
[email protected] | [email protected]
cartas
[email protected]
registro de domínios para a internet no Brasil
www.revista.agulha.nom.br
banco de imagens
acervo triunfo produções ltda
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores de Agulha Revista de Cultura não se responsabilizam pela devolução de
material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda
CNPJ 02.081.443/0001-80
Descargar