EDIÇÃO 08 | MARÇO DE 2014 | FASE II 2 00 | EDITORIAL | Breves anotações sobre livros & livros | Pg 04 01 | ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO | André Breton libertário e automatista | Pg 11 02 | CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo e filosofia | Pg 19 03 | DAVID CORTÉS CABÁN | Conocerse es el relámpago: Caballo de palo, de Clemente Soto Vélez | Pg 31 04 | EDUARDO DALL’ALBA | As poéticas do grupo Matrícula | Pg 42 05 | FEDERICO RIVERO SCARANI | El simbolismo en la obra de Julio Inverso | Pg 52 06 | GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Tropicalismo y Europeismo en la literatura venezolana: Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll vistos por Miguel de Unamuno | Pg 56 07 | HAROLD ALVARADO TENORIO | Hace 145 años nació Rubén Dario | Pg 62 08 | HÉCTOR ROSALES | María Meleck Vivanco, iluminada por el fuego | Pg 67 09 | JOSÉ ALCÁNTARA ALMÁNZAR | Reencuentro con Héctor Incháustegui Cabral | Pg 70 3 10 | JULIO MENDONÇA | Qorpo-Santo: o poeta que escreveu o contrário do que pensava | Pg 76 11 | LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA | A origem da escrita | Pg 81 12 | MARLISE BASSFELD-MUHME | A arte de Ana Luisa Kaminski | Pg 90 13 | NICOLAU SAIÃO | A face oculta do planeta | Pg 93 14 | OMAR CASTILLO | Lo subversivo en La valija de fuego de Aldo Pellegrini | Pg 103 15 | PAULO SPOSATI ORTIZ: Thomas Rain Crowe e os Postais do Peru | Pg 106 16 | RICARDO MATTOS | Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva | Pg 115 17| RICARDO ROQUE BALDOVINOS | Piedra y Siglo: breve historia de un colectivo poético | Pg 125 18 | RODRIGO BARBOSA DA SILVA: A voz & o silêncio: a geometria do espírito em A origem Diágora, de Jota Medeiros | Pg 132 19 | RUBÉN SICILIA | Entre Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski: Fascinación, Desafío y Éxtasis | Pg 142 20 | TERESA SÁ COUTO | Poesia de José Emílio-Nelson: a lanterna do feio | Pg 164 ARTISTA CONVIDADO | ENRIQUE GRANELL - JUAN-EDUARDO CIRLOT - RICARDO SENABRE | Tres veces Antonio Beneyto y las voces de la crítica | Pg 168 4 EDITORIAL | breves anotações sobre livros & livros Em geral o espaço de discussão sobre mercado de livro deve agrupar categorias como pequeno e grande mercado, assim como mercado local, nacional e internacional. Uma vez observado como mercadoria, o livro se iguala a qualquer outro objeto de consumo. Dentre outras coisas, portanto, desaparece a lógica que enlaça autor e leitor, assumindo o comando das ações uma outra lógica que rege as relações entre produtor e consumidor. O autor de livro passa a importar unicamente pelo resultado de vendas ou sua perspectiva mais imediata. Este mercado, igual a qualquer outro, tem suas próprias leis e a cultura, entendida como um princípio de conteúdos que expressam a grandeza de um povo, não tem poder de voto em suas estatísticas, não influencia as diretrizes comerciais. Evidentemente que muitos aspectos podem ser evidenciados de maneira distinta ao tratamento que se tem da mercadoria em outros mercados. Mas nada define melhor uma mesa de reuniões quanto estimativas de venda e eficácia de seus mecanismos. E como em todo mercado, uma das estratégias de grande eficiência é a homogeneização do produto. Não se diz aqui nada de novo, mas é bom lembrar porque em geral escritores, sobretudo escritores que não vendem ou simplesmente não conseguem editoras para seus livros, reclamam acerca da voracidade mercantil de editores. Estes, caso passassem a ser editores, seguramente atuariam da mesma maneira que hoje recriminam. Dois outros aspectos curiosos dizem respeito às categorias que acima mencionei. Em primeiro lugar há um abismo quase intransponível entre pequeno e grande mercado de livros. Por uma série de fatores, que envolve temas como impostos, marketing, distribuição, pequenas editoras estão como que condenadas a manter esta situação, quando muito chegando à categoria de média editora. Por outro lado, internacionalização de mercado de livros não atua em favor de seu correspondente local. Exemplo disto é que as grandes editoras internacionais não costumam internacionalizar seu catálogo, limitando à praça local aqueles autores que são por elas editados em cada país. Assim é que um autor brasileiro editado no Brasil pela Planeta ou um argentino editado na Argentina pela Alfaguara raramente alcança uma distribuição internacional de seu livro. Os livros verdadeiramente internacionalizados o são obedecendo a outra lógica, e uma lógica que hoje prima cada vez mais pela homogeneização. Como certa vez afirmou um editor brasileiro, o futuro (hoje já um presente avassalador) do mercado de livros não contempla a edição do livro de qualidade. Mas o que vem a ser o livro de qualidade? Em primeiro lugar, o termo tem que ser entendido como um princípio. Não se trata de dizer que não há livros de qualidade nas livrarias atualmente. Tampouco se pode pensar que todos aqueles autores que não encontram lugar no mercado de livros são vítimas de uma circunstância impiedosa. Não esquecer, por último, que estamos falando aqui de literatura, não cabendo em nossa pauta discutir outras ofertas deste mercado, tais como livros didáticos e religiosos. O livro de qualidade atende a um princípio de sensibilidade estética, de avaliar suas características literárias, inclusive aquelas que exijam um pouco mais de investimento em sua aclimatação ao mercado. Evidente que isto foge da zona de interesse de qualquer mercado, onde impera a estratégia de redução de custos visando obter maior rendimento. Tudo que contradiga tal lógica é inaceitável. Assim que o autor de qualidade, por princípio, não terá jamais oportunidade alguma. Outro aspecto que o grande mercado descarta por completo é a perspectiva de patamares de venda distintos de acordo com a natureza da oferta. Podemos pensar rapidamente aqui em termos de gêneros literários, onde a poesia venderá sempre menos que o romance e este mais do que o teatro, o que não significa dizer que sejam irrisórias as estatísticas no teatro e na poesia. O que se passa é que já se estabeleceu um círculo vicioso, de preconceitos e incompetência empresarial – neste 5 caso da parte dos pequenos editores que não fazem senão sonhar com o dia em que serão grandes editores, estupidamente adotando, desde já, a mesma lógica do grande mercado. Pequenos editores poderiam ser os notáveis responsáveis pela edição do livro de qualidade, investindo em difusão, buscando parceria institucional (incluindo rádio e televisão), inclusive desenvolvendo projetos internacionais a médio custo. Mas infelizmente são raros os que atuam nesta direção. E o grande mercado agradece que sua concorrência seja tão insignificante. Acrescente-se a tudo isto um outro fator: o comportamento do autor frente aos aspectos aqui anotados. Sigo falando em termos de princípio, o que significa dizer que as exceções não se ausentam de minha perspectiva. Ao contrário, fazem o que sempre fizeram: confirmam a regra. Em geral escritores estão perdidos, buscando a todo custo agradar a este mercado que o suga de todas as maneiras. Conheço bons poetas que deixaram de lado a sua poesia e passaram a escrever uma narrativa inconseqüente, quase sempre medíocre, na expectativa de assim encontrar editora. E não esqueçamos ainda, ao montar este cubo mágico das relações entre componentes do mercado editorial, a presença da mídia, que astutamente soube erradicar o que antes conhecíamos como crítica literária, deixando o livro a mercê de breves comentários que em muitos casos não passam de uma linguagem de release. Evidente que trato de desenhar este quadro não como desestímulo à discussão, mas sim como um alerta de que terá que ser outra a estratégia de enfrentamento do tema. Antes de avançar em alguns aspectos que considero pertinentes evocar, queria deixar aqui o depoimento de um editor brasileiro, dado em 2007 e que permanece atual: Quero fazer livro. Posso até ter prejuízo, mas preciso estar no mercado. E o que é que eu, pequenininho, faço para chegar até uma pessoa numa grande rede? Primeiro, o cara vai me deixar quatro horas sentado, esperando. Depois, vai me olhar, ver meus livros e dizer: “Esse eu quero”. Eu pergunto a ele: “Ah, por que você quer esse?” E ele: “Porque gostei da capa”. Pergunto se ele não quer ouvir algo sobre aquele livro. “Não.” Ele não tem tempo para me ouvir. Isso é decepcionante, me frustra muito. Não acompanho mais meu gerente na hora de vender um livro. Porque meu gerente me dizia: “Vamos comigo, para você falar do livro, você fala melhor do que eu”. É um desastre. Porque eu falo melhor do que ele, sim, mas o cara que está do outro lado não quer me ouvir. Ele não tem tempo. […] Então você tem que ter uma capa vendedora. E uma orelha vendedora com poucas palavras – porque ele também não tem tempo para ler a orelha. E tem que ter uma quarta capa com aquela frase: “Pá!” E não pode ter só um título: tem que ter título e subtítulo. […] Outra coisa: reunião de conselho editorial de uma grande editora. Você está lá, entusiasmado com um livro: “Ele tem uma alta qualidade literária”. Ih, alta qualidade literária? O diretor financeiro, com a calculadora na mão, fala: “Opa, isso aí foi bem lá fora? Entrou na lista do New York Times?” Não, e que diferença faz? A biografia de Darwin que eu editei nunca entrou em listas lá fora e vendeu 50 mil exemplares no Brasil. A menina que roubava livros [1] é um fenômeno brasileiro. O monge e o executivo [2] só vende no Brasil. O seu autor, nos Estados Unidos, é um palhaço. Ninguém o leva a sério. No Brasil, ele é fantástico. Ele deve pensar: “Rapaz, esses brasileiros são ótimos”. Porque lá, nos Estados Unidos, ele não é nada. Faz palestras por dois mil dólares. Mas pagam 150 mil para ele vir para cá. O Brasil é realmente um país fantástico. [3] Note que em 2007 ainda não havíamos entrado com essa voracidade hoje existente na relação entre cinema e romance, a rigor uma eficiente parceria comercial que tem sido responsável por essa homogeneização tanto da literatura quanto do cinema. De qualquer maneira, vale aqui observar que o depoimento acima não é de um autor e sim de um editor. Ou seja, dentro do próprio mercado é possível encontrar uma leitura correta de suas falhas, justamente da parte de alguém que se sente indignado ante a degradação intelectual, o empobrecimento da literatura e o profundo desrespeito com relação ao leitor. Portanto, se 6 estamos interessados em discutir sobre livro de qualidade na América Latina ou abordar o nível de integração cultural, a partir da literatura, entre nossos países, terá necessariamente que ser outro o ângulo de observação. Como bem sabemos não há sistemática naquilo que se poderia chamar de integração cultural em nosso continente. As poucas ações registradas nessa direção são casuais e raramente encontram apoio ou são frutos de iniciativa do meio institucional. Recordo que ainda nos anos 1980, quando eu começava a preparar as entrevistas que iriam compor o livro Escritura Conquistada, na correspondência que mantive com vários poetas em toda a América Hispânica, sempre que tocávamos neste hiato existente entre nós, a observação se repetia, da omissão das missões diplomáticas de nossos países no sentido de se proporcionar um intercâmbio de bens culturais. Poetas como Javier Sologuren, Juan Liscano, Fernando Charry Lara, tinham sempre a mesma crítica em relação ao abismo cultural que se verificava entre Peru, Venezuela, Colômbia e Brasil. O mesmo acontecia em relação aos demais países. Alguém possivelmente deve apontar uma exceção, a de Hilda Scarabótolo de Codina e as edições tão bem cuidadas, de autores brasileiros, publicadas em Lima através do Centro de Estudos Brasileiros. Outro exemplo, absolutamente isolado, até pelo seu gigantismo e amplo raio de ação, é o da Fundación Biblioteca Ayacucho, na Venezuela. Algo mais? Vamos ao mercado privado. Há algum caso de coleções específicas de literatura argentina, literatura chilena, literatura paraguaia? Autores nossos são publicados em nossos países apenas esporadicamente. Quase sempre como reflexo de um prestígio internacional alcançado por suas obras. Tragicamente concluímos que não estamos interessados em nós mesmos. Agora, imenso e sem fundo é o mapa das oportunidades perdidas. Um desses casos curiosos é o da revista Poesia Sempre, da Fundação Biblioteca Nacional, no Brasil. Publicação de luxo, esta revista circula semestralmente há 20 anos, sempre dirigida por destacados poetas brasileiros. É sua característica editorial dedicar cada número a um país. No entanto, em seus mais de 30 números publicados até aqui, apenas duas tradições líricas latinoamericanas foram contempladas: México e Peru. Na edição dedicada ao Peru, o então editor Marco Lucchesi observa, em suas palavras iniciais: Algumas pontes desafiam a distância Brasil-Peru, como as edições de Ciro Alegria, Scorza, Llosa, Mariátegui, além da antologia El río hablador, de Everardo Norões, marco recente nesse diálogo que se mantém vivo, e há muitos anos, graças também à inspiração de Floriano Martins, com seu passaporte poético latino, que não teme aduanas de fundo ideológico. A ele coube a tarefa de preparar uma seleção da poesia contemporânea do Peru. A escolha demonstra ao mesmo tempo a mestria do recorte e a fineza da tradução. A começar pelo diálogo instigante entre Carlos Germán Belli, Hildebrando Pérez Grande, Pedro Granados e Rossella di Paolo, que prepara o leitor para a antologia. [4] No diálogo a que se refere Marco Lucchesi, tratei de indagar a respeito da ausência de um estreitamento de relações entre as literaturas brasileira e peruana, ocasião em que Carlos Germán Belli mencionou “uma efêmera aproximação, como foi o programa editorial que, graças aos esforços da escritora Vera Pedrosa, adida cultural brasileira nos anos 1970, e da escritora Hilda Scarabótolo de Codina, residente em Lima e funcionária da embaixada brasileira, foi levado a cabo com grande brilho e rigor acadêmico até superar uma centena de títulos.” Germán Belli observa ainda que “na maior parte dos casos eram mostras antológicas de poetas brasileiros de todos os tempos, traduzidos por autores peruanos”. [5] Todo um projeto de grande e indiscutível excelência, porém isolado no tempo. O que persiste é o descuido ante o que deveria ser uma preocupação permanente de conhecimento mútuo e correspondência entre essas literaturas. Quero aqui reproduzir as palavras do Hildebrando Pérez Grande com que finaliza sua participação neste mesmo diálogo. Diz ele: 7 Penso que devemos estimular os encontros, os estudos, as traduções. Há que fomentar uma política editorial que nos permita difundir de maneira massiva nossas melhores obras e aprofundar o conhecimento de nós mesmos. Academicamente, posso dizer que na Universidad Nacional Mayor de San Marcos são ditados, pois estão em nosso plano de estudos, dois cursos de literatura brasileira a cada ano acadêmico. Os jovens estudantes de nossa universidade conhecem tanto a poesia quanto a narrativa brasileira. E nas Oficinas Literárias de San Marcos e na Ruiz de Montoya, nossos jovens criadores se familiarizam com a melhor porção da literatura brasileira. Há que estimular a leitura e a tradução e a difusão de nossas literaturas em cada um de nossos países. [6] Em 2007, estive à frente de um projeto-piloto a que intitulamos “I Encontro de Agentes Culturais – América Hispânica”, promovido pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará. A ideia era criar um fórum de discussão sobre estrutura e conteúdo da próxima edição da Bienal Internacional do Livro do Ceará, evento cuja curadoria então caberia a mim. Por uma semana reunimos em um teatro em Fortaleza representantes eleitos por nós em países como Colômbia, Peru, México, Venezuela, Chile e República Dominicana. Um segundo encontro teria lugar, já em 2008, dentro do próprio espaço da Bienal. O tema central de nossas conversas girou em torno do comportamento das feiras internacionais de livros, em nossos países, no tocante ao livro e ao escritor. Os depoimentos apontavam todos em uma mesma direção. A convidada colombiana, Amparo Osorio, diretora da Editorial Común Presencia, observou que: É lamentável que as feiras do livro não estejam orientadas para uma difusão da literatura propriamente dita. São empresas com interesse econômico, o que as torna excludentes de valiosas literaturas e cúmplices econômicas das grandes editoras agora dedicadas à publicação de obras banais. […] Isto nos leva a pensar na urgência de adiantar negociações entre escritores, editores e feiras a fim de pactuar uma cota importante de leitura e formação, que precisamente afaste essa cultura do espetáculo em que se converteram estes eventos. [7] A partir deste fórum, ampliando a rede de representantes para todos os países hispanoamericanos, assim como incluindo a Espanha e os países de língua portuguesa em todo o mundo, em 2008 foi montada, no Ceará, nordeste do Brasil, uma primeira feira do livro que buscava equilibrar as forças até aqui referidas, não descuidando da área comercial, porém sem levar prejuízo à exposição de livros de qualidade, assim como objetivando um espaço mais amplo de reflexão em torno da literatura e seus mecanismos, não convertendo o ambiente da feira em mero palco de espetáculos. O próprio anúncio da Bienal já deixava bem clara a sua pauta de novas propostas: O tema da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará é A aventura cultural da mestiçagem, o qual abrange duas comunidades lingüísticas: a portuguesa e a espanhola e, ainda, suas manifestações artísticas e culturais, totalizando 30 países situados em quatro continentes: África, América, Ásia e Europa. A ousadia de tal abrangência desloca o foco habitual das programações literárias de outros eventos similares, concentrando-se aqui em evocar a multiplicidade de culturas e a condição mestiça de suas raízes. […] Motivada pelo tema central, a programação da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará estará comprometida com a integração das culturas envolvidas, reconhecendo seus hábitos, costumes e literatura, e com a democratização e a mobilização do acesso universal ao livro, à leitura e à produção literária. Serão realizadas atividades baseadas na promoção e geração de conhecimentos destinados ao público. […] As sessões literárias incluem palestras, debates, leituras de poemas, encontros especiais, lançamentos de livros. Esta agenda foi configurada, por sua vez, a partir do tema central. Os debates contemplarão assuntos como produção e circulação de revistas e suplementos literários, casas de cultura, política 8 cultural dos centros de estudos brasileiros na América Hispânica, movimentos contraculturais, circuito editorial universitário, encontros internacionais de escritores, dentre outros. Já as palestras tratarão de aspectos ligados aos fundamentos da mestiçagem, jornalismo cultural e obras literárias, considerando particularidades regionais e continentais dos países envolvidos. […] Haverá ainda uma integração entre segmentos da criação artística, produção cultural e mídia, envolvendo uma série de salas permanentes que, no decorrer dos 10 dias de realização da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará, por meio das quais será permitido um convívio entre público, escritores, artistas e produtores culturais. Ao todo haverá um conjunto de 9 salas, assim distribuídas: Arena Jovem, Arte Postal & Poesia Visual, Artes e Ofícios, Cordel, Gravuras, Música, Rádio, Revistas e Vídeos. Outro diferencial é a criação de um espaço intitulado “Ilha dos Continentes”, cuja área de 234m² destina-se a receber editoras estrangeiras que, em geral, não dispõem de condições de participar de eventos internacionais. Coube ao jornalista Lira Neto – hoje um destacado nome no ambiente cultural no Brasil, graças às biografias que vem escrevendo de nomes fundamentais de nossa cultura – fazer a entrevista que funcionaria como carta de princípios da Bienal. Conversamos abertamente sobre as novas propostas e sobre o que eu considerava uma série de desgastes no formato das feiras de livro no país. Em certo momento, Lira Neto indagou a respeito do esgotamento das sessões literárias, oportunidade em que fiz a seguinte aclaração: Acho que há um desequilíbrio nas razões culturais e de mercado que atuam em eventos desta natureza. Maior acento na área de mercado implica em demasiada dependência de suas cotações e exposições de mídia. Estes aspectos podem, em geral, assumir uma conotação negativa em um ambiente cultural fragilizado como o que temos hoje no Brasil. Posso ser acusado de eufemismo, porém tento aqui apenas evitar cair em seu revés, o sentido catastrófico derrotista. O fato é que é preciso evitar simplificações e reiterações temáticas na formatação das sessões literárias, inclusive qualificando o mediador das mesas de maneira a não permitir que as explanações dos convidados caiam no vazio, sem que os encontros produzam tanto um enriquecimento crítico no público quanto perspectivas de parcerias entre as partes envolvidas. Posso dar aqui dois exemplos, referentes a mesas de debate: uma delas reúne diretores dos mais atuantes Centros de Estudos Brasileiros existentes na América Hispânica, o que nos permitirá uma avaliação do comportamento do Itamaraty e sua política cultural no tocante à integração continental; uma outra mesa, com dupla jornada, reúne algumas das principais editoras universitárias do país, ocasião em que evocará aspectos como planejamento editorial e distribuição. As próprias sessões de leitura de poemas serão mais abrangentes, permitindo aos poetas comentarem sobre sua poesia e responder a perguntas do mediador e do público. Enfim, trata-se de dar mais substância ao evento. [8] Estatísticas de presença de público e acompanhamento de registro de imprensa atestam em favor de um êxito na realização desta Bienal, embora algumas das propostas de mudança não tenham obtido o resultado desejado. Hoje me parece que é natural que assim tenha ocorrido, considerando a alta aposta de revitalização do modelo em curso. No entanto, observo com curiosidade que certos vícios são mais persistentes do que outros. Neste caso a grande contrariedade, sobretudo pro parte da imprensa – o que torna o aspecto ainda mais curioso – era a de que estávamos fazendo uma Bienal sem nomes conhecidos. Questiona-se aí a função do Estado ao promover um evento desta natureza, que não deve ser a de acomodar-se ao terreno estabelecido e sim tratar de inovar em ofertas de qualidade. Evidencia-se também a preocupação única da imprensa com a veiculação fácil de material já amplamente identificado por seu cliente, o público consumidor de mídia. Não há como sair do imobilismo cultural desta maneira. Muito pelo contrário, agindo assim a tendência será – e já vemos isto de forma assustadora – tornar-se cada vez mais refém desse mecanismo, 9 fazendo concessões na direção de uma homogeneização e conseqüente empobrecimento dos bens culturais. Como era ideia da curadoria da Bienal, o Governo do Estado deveria avançar em outras atividades, sobretudo no intervalo existente entre esses eventos, seja através da realização de pequenos eventos ou da criação de um selo editorial. Em 2009 houve a oportunidade de levar a Fortaleza parte substanciosa da diretoria da Fundación Casa de las Américas, por ocasião dos 50 anos de existência da mesma. Também foi criada uma coleção de livros, por onde se editou livros do nicaragüense Pablo Antonio Cuadra, do argentino Juan Gelman e uma antologia de poesia mexicana – o que apontava na direção de uma grande e substanciosa novidade, a de que o Estado poderia criar uma política cultural de aproximação concreta com a América Hispânica. Nova Bienal é projetada para 2010 e uma vez mais fui convidado para ser o seu curador. Durante sua preparação, no entanto, repetiase a insistência, agora já internamente, no próprio ambiente institucional, de que a Bienal deveria promover aqueles nomes mais destacados em termos de mídia, voltando a prevalecer uma política de espetáculo. Lamentando que não fosse possível mais dar seqüência ao projeto original, achei por bem me afastar da curadoria. Trato de persistir de outras maneiras nesta obsessão por um diálogo aberto entre nossas culturas. Vale aqui mencionar que historicamente a grande vanguarda neste sentido de integração sempre esteve nas mãos dos diretores de revistas, sobretudo aquelas não institucionais. Em geral poetas, eles mesmo que também se encontram à frente na coordenação dos festivais internacionais de poesia que hoje são parte da agenda cultural de vários países, exceto no Brasil, onde o modelo foi preterido pelo que se chama de Festa Literária, a rigor mais um palco de espetáculos realizados em função do mercado de livros. Esta estranha relação entre livro e autor no Brasil tem uma singularidade impressionante. Em meu país o lançamento de livros é um evento unicamente comercial, do qual o autor participa tão-somente para autografar os livros vendidos. Esta prioridade comercial assume tal proporção que o espaço comum ao lançamento de um livro, que seria uma livraria, pode ser substituído facilmente por bares ou clubes sociais. Já se pode falar hoje em adesão de um novo instrumental de difusão de bens culturais que é a Internet, pela criação de bancos de consulta e de revistas com pauta expressiva. De qualquer modo, estamos ainda tratando de aspectos isolados, que exigem sistematização e ampliação constante. É nesta direção, no entanto, que parece ser possível rever perspectivas para o livro de qualidade em nosso continente. Particularmente não tenho talento para otimismos aleatórios, assim que me mantenho na feição de um pessimista produtivo. Uma olhada geral para o que se chama mercado de livros na América do Sul nos últimos tempos já nos deixa bastante de sobreaviso sobre os caminhos que devem ser evitados. Um grande centro editor como é a Venezuela, por exemplo, incorre num erro brutal que é o da politização de mercado. Assim que há um abismo impressionante entre autores, editores, livreiros, propiciados por um cisma ideológico, que opera no sentido mais amplo de desperdício de oportunidade e mesmo de depredação de um patrimônio cultural adquirido e inclusive respeitado internacionalmente. Nos demais países sul-americanos, o que pude constatar graças a consultas que fiz a amigos escritores, a situação remete aos obstáculos habituais do mercado de livros, fatores estruturais pertinentes a cada sociedade, os baixos níveis de educação pública, falência ou inexistência de programas de leitura etc. Todos estes fatores hoje enormemente piorados pela invasão do mercado espanhol. A este respeito quero mencionar um segundo depoimento do mesmo editor brasileiro já aqui citado: Os espanhóis têm um projeto estratégico. Quando acabou a ditadura de Franco, a Espanha começou a crescer, se redemocratizou. Ainda está crescendo. Enquanto isso, na Itália, houve a “Operação Mãos Limpas”. Muita gente presa: políticos, empresários, sindicalistas. A Máfia, então, saiu da Itália e foi para a Espanha. A Espanha recebeu dinheiro criminoso, que foi lavado e ficou “sério”. Lá, os antigos mafiosos se tornaram empresários engravatados. A Espanha, hoje, é um país rico. E o seu projeto estratégico é nada mais, 10 nada menos que reconquistar a América. Antes, eles nunca haviam dado atenção ao Brasil porque, aqui, se fala outra língua. Mas agora descobriram que dá para ganhar muito dinheiro entre os brasileiros. E estão chegando. […] Já compraram praticamente todas as editoras de livros didáticos do Brasil. […] Tudo está à venda. Se não foi vendido é porque ainda não apareceu aquela proposta irrecusável. A Editora Objetiva já vendeu 75%. Então, os espanhóis compram. Têm um projeto estratégico. Estão entrando na telefonia celular. No jornalismo, nas revistas, nas gráficas, nos livros didáticos, nas editoras. Estão chegando com fome e com dinheiro. Quem vai resistir? E o que pode acontecer conosco, os editores supostamente independentes, editores por acidente ou por gosto? [9] Creio que temos aqui um conjunto de aspectos que exige reflexão sistemática. De qualquer forma, entendamos este editorial como um sinal de alerta, o de que agravamos ainda mais o quadro, já bastante complexo e assustador, se persistimos em embaralhar seus componentes como se o desdobramento do tema fosse alheio à ordem interna deles mesmos. Em geral, há um descompasso entre a gravidade do problema e sua percepção. Autores, sobretudo, têm um compromisso de denúncia, de combate na forma de depoimento de suas experiências, de voz a ser aberta na busca de uma honestidade intelectual. Mas naturalmente não recrimino aqueles que querem apenas o espetáculo fácil de seus dotes literários. Apenas saibamos que se trata de outra gente. Ou que sou eu a outra gente. Abraxas. OS EDITORES NOTAS 1. A menina que roubava livros (The book thief). Markus Zusak (australiano). Editora Intrínseca. 2007. 2. O monge e o executivo. Uma história sobre a essência da liderança. James Hunter. Rio de Janeiro. Editora Sextante. 2004. 3. Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial. Jornal Rascunho. Paraná, dezembro de 2007. 4. Marco Lucchesi. “Palavras iniciais”. Poesia Sempre # 28. Rio de Janeiro, 2008. 5. Carlos Germán Belli. “Poesia peruana no século XX”. Poesia Sempre # 28. Rio de Janeiro, 2008. 6. Hildebrando Pérez Grande. “Poesia peruana no século XX”. Poesia Sempre # 28. Rio de Janeiro, 2008. 7. Amparo Osorio. Depoimento dado quando de sua presença no “I Encontro de Agentes Culturais – América Hispânica”. Teatro José de Alencar. Fortaleza, novembro de 2007. 8. Lira Neto. “Uma conversa com o curador da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará – Floriano Martins”. Material de imprensa. Fortaleza, junho de 2008. 9. Luiz Fernando Emediato, da Geração Editorial. Jornal Rascunho. Paraná, dezembro de 2007. 11 A. CÂNDIDO FRANCO | André Breton libertário e automatista[1] No Verão de 1944, já depois da ruptura com Jacqueline Lam, na companhia de Elisa Claro, com quem casará no ano seguinte, em Reno, André Breton, exilado na América desde 1941, por via de Vichy, abandona Nova Iorque e parte à descoberta do Quebeque, atraído pelas costas solitárias da península da Gaspésia, por onde vagueia durante semanas, só regressando ao ponto de partida no final de Outubro. Durante a viagem inicia a escrita dum novo livro, Arcane 17, que fechará nos primeiros dias do ano seguinte, dedicando-o a Elisa, modelo do mais benévolo influxo, e que terá uma primeira edição, em exclusivo bibliófila, na nova-iorquina casa Brentano’s, ficando a edição francesa, definitiva e corrente, Arcane 17 enté d’Ajours, para Junho de 1947, ano da reinstalação definitiva em Paris. O livro abre cruzando Elisa e a ilha de Bonaventure, um dos maiores santuários de pássaros de mar que existem no mundo, tudo por certo, do nome da ilha à emanação da mulher, mais que bastante para levar Breton a tomar para título do livro o mais auspicioso dos arcanos do velho Tarot, que fora de resto a sua derradeira consolação, com André Masson e Max Ernest, no curro de Marselha, quando tentava em Março de 1941 escapar de Vichy. Aberta a cortina, eis que de repente no livro, nas páginas iniciais, irrompe, viva e serpenteante, uma recordação de adolescência relativa ao ano de 1913, um desfile operário em Paris, no PréSaint-Gervais, em que as bandeiras negras anarquistas, flores carbonizadas – exclama ele, o haviam electrizado. E de seguida vem uma perturbante recordação de infância: Nunca esquecerei o choque, a exaltação e a euforia que me causou, numa das primeiras vezes em que, ainda criança, me levaram a um cemitério – entre tantos monumentos funerários deprimentes ou ridículos – a descoberta duma lápide simples de granito gravada em maiúsculas vermelhas com a estupenda insígnia: NI DIEU NI MAÎTRE. O livro de Breton cogitado nas vastas solidões da Gaspésia conhecerá edição francesa (Sagittaire) no mesmo momento em que o grupo surrealista de Paris dá à luz o manifesto “Rupture Inaugurale”. O livro aparece no princípio de Junho e o panfleto é distribuído a 21. Que se diz neste? Que o surrealismo se emancipa em definitivo de qualquer ligação partidária, seja ela qual for, e se dedicará em exclusivo a promover a criação dum novo mito capaz de empurrar a humanidade para uma etapa mais adiantada do seu destino. Não é pouco para um movimento que em 1929 se mostrara na disposição de trocar a sua publicação própria, La Révolution Surréaliste, por uma outra, Le Surréalisme au service de la Révolution (SASDLR), que significava a sua capitulação diante do partido comunista francês, de resto efectiva desde 8 de Novembro de 1925, altura em que o grupo declarou no órgão do partido, L’Humanité, não haver uma concepção surrealista da revolução. Mesmo depois da ruptura com este partido em 1935, antecedida pouco antes pela expulsão de Breton da A.É.A.R. (association des écrivains et artistes révolutionaires), as ilusões partidárias de Breton, em ligação com o marxismo-leninismo, não esmoreceram. Aproxima-se do trotskismo e em Dezembro de 1936, como tribuno, intervém num comício do P.O.I. (parti ouvrier internationaliste) contra os processos de Moscovo que acabavam de ter lugar (Setembro). Dois anos depois, no Verão de 1938, Breton vai ao México, onde redige com Trotsky o texto por uma arte revolucionário e independente, que não terá porém a assinatura do russo mas a do pintor Diego Rivera e será o manifesto de fundação da F.I.A.R.I. (federação internacional da arte revolucionária independente), cujo boletim, Clé, surge em Janeiro do ano seguinte, a do início da guerra, com Breton na redacção, se não à testa. Em Março de 1941, já depois do homicídio de Trotsky (Agosto, 1940), Breton abandona a França ocupada e instala-se em Nova Iorque. É aí que se separará de Jacqueline Lam (1942), o fulgurante amor que lhe inspirara L’Amour Fou (1937) e de quem tivera Aube Breton (n. 1935), que nesse livro trata por Écurette de Noireuil, e encontrará a jovem chilena Elisa Claro (1944), 12 que lhe restitui a alegria e a excitação do amor, levando-o a conceber a escrita dum livro sobre o mais benéfico dos arcanos do Tarot, “A Estrela”, o 17. É ao iniciar a escrita desse livro, no final do Verão, vagabundeando pelas soidões da Gaspésia quebequiana, na companhia da sua estrela inspiradora, que Breton é apanhado pelas duas recordações atrás reportadas, a primeira relativa a uma manifestação operária em Paris, antes da revolução bolchevique, quando os pendões negros do anarco-sindicalismo enchiam o imaginário da emancipação, e depois uma lembrança mais antiga, vinda das terras virgens da infância, cruzando uma primeira ida ao cemitério e uma lápide libertária, o todo levando pouco depois, no regresso à Europa, ao manifesto de 1947, “Rupture Inaugurale”, que parece ter sido a carta de alforria com que o surrealismo iniciou a terceira fase de vida, a meu ver a mais emancipada, e por isso a mais larga e a mais dinâmica, se não a mais rica, aquela em que pôde surgir a torre gelada dum António Maria Lisboa ou a poesia, a prosa e os sinais mistéricos e pictóricos dum Mário Cesariny, cuja importância e lugar no quadro do surrealismo internacional está ainda por perceber. São “inocentes” e nuas as duas lembranças de 1944 ou estão antes providas de associações secundárias que o texto circunstancial a um amor encantatório mal deixa perceber? Não tenho qualquer dúvida em escolher a segunda hipótese. Trotsky acabara de ser assassinado no verão de 1940 por um assassino a soldo de Estaline, transformado em “herói” de Estado, e, porventura mais importante, Wolfgang Paalen (1905-1959) acabara de escrever no primeiro número da revista Dyn (Abril, 1942), por ele fundada, um farewell ao surrelismo, em que se tomam por inadequadas, e até por caducas, as referências maiores com que o movimento atravessara a década anterior e das quais tirara conclusões próprias – o acaso objectivo, devedor de Engels, a noção de objecto, cujo crédito vem da filosofia de Hegel, e sobretudo a necessidade de acertar o passo com os partidos revolucionários de origem marxista-leninista e que levara aos episódios da SASDLR e do partido comunista francês, e depois, quando a manápula do estalinismo se fez intratável, da travessia por dentro do trotskismo, com o nascimento da F.I.A.R.I. e a elaboração do manifesto desta em colaboração com o próprio Trostky. Austríaco, mas a viver no México, Paalen não era qualquer um; era tão-só uma das mais recentes e promissoras aquisições do surrealismo. Fora ele, com César Moro, o peruano que aderira ao surrealismo em Paris ainda na década de 20, na cidade do México, que organizara em Janeiro de 1940 a quarta Exposição Internacional do Surrealismo. Já se viu na publicação de Prolegómenos a um Terceiro Manifesto ou Não, no primeiro número de VVV (Junho, 1942), onde se questiona qualquer pensamento sistemático e se liquida o antropomorfismo, outro dos motivos do texto de Paalen, a resposta de Breton às pouco esperadas mas pertinentes impugnações do organizador da exposição surrealista de 1940, que de resto regressará ao surrealismo na década de cinquenta, o que deixa em aberto que por aí ou por outro lado se deixou convencer de que o movimento superara os limites que lhe apontara no início da década anterior. Prefiro, pelo meu lado, eleger para resposta as duas recordações que abrem o livro do Outono de 1944, e onde o marxismo está de vez enterrado – nos Prolegómenos ainda há uma alusão a Engels (mas ao lado de Abelardo, de Heraclito, de Arnim, de Rousseau, de Jarry, de Eckart e outros assim desalinhados). Inumado o marxismo-leninismo, o que em seu lugar irrompe e com a força basilar daquilo que vem da infância é o movimento libertário, que de resto depois do corte com o partido comunista francês, em 1935, parecia andar cada vez mais nas vizinhanças do itinerário de Breton. No Verão de 1936, Benjamin Péret, um dos próximos e tão próximo que por causa dele Breton entrara nesse mesmo ano em rota de colisão com Paul Eluard, com quem nunca mais se conseguirá reconciliar, vai para Espanha para lutar ao lado da República contra o golpe militar. A princípio integra-se no P.O.U.M., o partido trotskista que mais afinidade mostrava com o itinerário político do grupo surrealista, mas pouco depois passa-se para a coluna Durruti, da C.N.T., onde fará parte da guerra – regressou em Abril de 1937 (o corte de Péret com a IVª Internacional só acontecerá porém em 1948). Isto não terá escapado a Breton, que no manifesto redigido no Verão de 1938, quando ainda se esperava algo da ofensiva 13 republicana no Ebro, chega a escrever o seguinte (é um dos parágrafos cruciais do texto): A finalidade do presente apelo é o de procurar encontrar um terreno para reunir os paladinos revolucionários da arte, de modo a servir a revolução pelos métodos da arte e a defender a liberdade da arte contra os usurpadores da revolução. Estamos profundamente convencidos que o encontro neste campo é possível entre os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas adiantadamente diferentes. Os marxistas podem aqui caminhar mão na mão com os anarquistas.” De resto, já antes, se podia ler: Se, para o desenvolvimento das forças produtivas materiais, a revolução necessita de construir um regime socialista de plano centralizado, para a criação intelectual ela deve desde o momento inicial estabelecer e assegurar um plano anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coacção, o mínimo vestígio de comando. A ligação ao anarquismo acentua-se com o regresso a França no pós-guerra. O manifesto de 1947, limpando o terreno de qualquer tentação partidária, e o de 1948, “À la Niche les Glapisseurs de Dieu”, denunciando os milionários da fé, ambos catalisadores segundo Cesariny da formação do surrealismo português, exercitam e põem em prática a linha de força de Arcano 17. Entre 1948 e 1949 o grupo de Paris edita a revista Néon, de que saem 5 números. Em 1949, já sem porta-voz, o grupo socorre-se dum jornal para publicar as suas notas de imprensa, dando a conhecer as suas posições. Que jornal é esse? O velho Le Libertaire, porventura um dos primeiros jornais anarquistas do mundo, fundado em Nova Iorque em 1858 por um francês e que em 1895 Sébastien Faure e Louise Michel transformam, lado a lado com a memorável revista Temps Nouveaux, no principal título da imprensa libertária francesa. Depois da Ocupação, 1944, o jornal reaparece como órgão da Federação Anarquista, resultante da fusão de estruturas anteriores. A colaboração dos surrealistas no semanário será longa, regular e activa – o jornal em 1954 é substituído por um outro título, Le Monde Libertaire, que ainda hoje se publica como hebdomadário. Entre 1951 e 1953 o jornal dá à estampa cerca de trinta bilhetes surrealistas. O primeiro, uma “declaração prévia” (12-10-51), com dezoito assinaturas, uma delas de Breton, abre assim: Surrealistas, nunca deixámos de consagrar à tríade Estado-Trabalho-Religião um repúdio que frequentemente nos levou a encontrar os companheiros da Federação Anarquista. Essa aproximação conduz-nos hoje a exprimirmo-nos em Le Libertaire. Entre as entregas do grupo surrealista figura um texto maior de André Breton, “La Claire Tour”, estampado no jornal a 11 de Fevereiro de 1952 e que pela sua importância para aquilo que aqui nos move, e até pelo que desfia do fio que abriu no livro escrito na Gaspésia, comentamos no final deste texto dele dando, em língua portuguesa, com autorização expressa de sua filha Aube BretonElléouët, alguns extractos meramente ilustrativos. Nele se vê como o ADN do surrealismo comportava no momento do seu nascimento um cromossoma libertário que só os sucessos relativos à revolução soviética puderam por momentos deixar de lado. A história desse recalcamento é a triste linha de sucessos que vão da adesão de Breton ao partido comunista, em 1925-6, até à sua expulsão em 1935. A libertação do trauma começa a partir desse momento, a medo primeiro, com aquilo que podemos chamar o anarco-trostkismo desse segundo lustro da década de 30, tocado pelo itinerário de Péret e pelo manifesto escrito a duas mãos com Trotsky, e depois mais espraiado, sem receios de espécie alguma, naquilo que se pode tomar por puro impulso libertário, desligado já do materialismo dialéctico, por via das críticas inesperadas de Paalen, que obrigam Breton a um salto muito mais alto, com o cruzamento feliz entre o encontro com Elisa e o passeio desafogado pela Gaspésia estival. A colaboração de Breton e do seu grupo com o velho jornal de Sébastien Faure não começou com a “declaração prévia” de Outubro de 1951. Já antes disso o nome de Breton aparecera com alguma frequência nas páginas da publicação. Registemos alguns momentos. O primeiro, o discurso que fez num comício na sala “Mutualité” em 14 de Outubro de 1949 a favor da objecção de consciência ao serviço militar e que mereceu reprodução nas páginas do jornal (21-10-49). Assinale-se no discurso a alusão sempre exaltante à mobilização de 1913, dita do Pré-Saint-Gervais, contra o recrutamento e o serviço militar obrigatório, e que fora já objecto de exposição, mais vaga ou mais poética, na abertura inicial do livro de 1944, 14 Arcano 17. Nesta nova alusão ao momento, Breton fala da manifestação como tendo sido o espectáculo que mais me marcou na minha juventude. Aqui se encontra no parecer de todos o primeiro gérmen político do jovem Breton, leitor reconhecido da imprensa libertária francesa da época, onde se topa com uma curiosa publicação L´Action d’Art, de inspiração stirnerniana, que lhe encheu por certo as medidas, e que só os sucessos ulteriores de 1917 vieram recalcar, com o fio subsequente que se sabe. Voltando às relações de Breton com Le Libertaire, que de resto era um dos títulos que ele lia em 1913, deparamos com novo texto de Breton no jornal em Janeiro do ano seguinte (20-1-1950), desta vez sobre Céline, resposta a um inquérito do jornal, aberto por Maurice Lemaître, a propósito da reabertura do processo contra o escritor refugiado na Dinamarca. Fora dos bilhetes surrealistas vale ainda reportar outro momento de Breton nas páginas do jornal. A 14 de Dezembro de 1951, no seguimento duma onda grevista que alastrou a toda a Espanha, os tribunais espanhóis condenaram à morte, em Sevilha, dois sindicalistas da C.N.T., clandestina então, e a 6 de Fevereiro do ano seguinte, desta vez em Barcelona, mais onze militantes da confederação sofrem a mesma sorte. Diante desta vaga repressiva, foi convocada uma acção de solidariedade em Paris, sala Wagram, onde Breton discursou. A peça será publicada em Le Libertaire a 7 de Março de 1952. É um dos raros momentos – o único mesmo de que dou nota, mas admito falhas – em que Breton se pronuncia sobre a mítica central sindical ibérica. É texto que por todos os motivos merecia inclusão neste número da revista. A dimensão do texto – vinte e seis parágrafos, alguns com quase duas dezenas de linhas – dissuadiu-nos porém do propósito, adiando a sua publicação integral para o público português para ocasião futura. Ainda assim deixamos, a título ilustrativo, abertura e fecho do texto: Camaradas: se em alguma parte do mundo o coração da liberdade continua a bater, se há um lugar em que essas pulsações nos chegam mais ritmadas do que em qualquer outro ponto, todos sabemos que esse lugar é a Espanha. É exaltante pensar que quinze anos de ditadura não o enfraqueceram. / Quando das greves de Barcelona de Março de 1951, pudemos constatar que não somente a combatividade dos meios operários e também dos universitários em nada havia diminuído, como ainda um contágio magnífico se estendeu ao conjunto da população, isolando num só golpe os paladinos e os carreiristas do regime e ficando em posição de expulsá-los como um corpo estranho. / Todos os que se deram conta destas greves, mesmo sem simpatia funda pelo longo sofrimento do povo espanhol, foram surpreendidos pela sua inclinação em alastrar como mancha de óleo. /…/ Há aqui um facto novo que não precisa de muita cogitação. Não é difícil interpretá-lo como uma serpe que afecta no seu conjunto toda a estrutura ditatorial. Pode-se matar, pode-se empenhar tudo a envilecer o que pode ser envilecido, pode-se agitar à direita e à esquerda o crucifixo e descarregar a metralha, pode-se esfomear um povo e separá-lo da restante comunidade humana, que não é por isso que se acaba com a alma desse povo tal como ela incarnou na minha infância na pessoa de Francisco Ferrer e depois se fortaleceu na bravura lendária da C.N.T. e da F.A.I. / (…) / Antes que seja tarde, já que de acordo com as últimas notícias os falsos advogados dos nossos companheiros foram adverti-los de que seriam fuzilados em breve, falemos a uma única voz para exigir a revisão à luz do dia dos julgamentos de Sevilha e de Barcelona, com advogados isentos e conhecedores dos processos e sob a garantia de observadores internacionais. A todo o preço, e com toda a urgência, encontremos meio outrossim de fazer chegar aos nossos camaradas uma mensagem do tipo: “Em nome de todos os homens livres e de todos os que só anseiam por se libertar, obrigado! Não perdei a esperança, que nós estamos de todo o coração em pensamento com vocês! Vida e glória à heróica C.N.T. espanhola.” Em 14 de Março, sete dias depois do texto de Breton vir a lume, cinco dos condenados foram fuzilados nos arredores de Barcelona. Pelo menos Albert Camus e Albert Béguin, o autor de L’Âme Romantique et le Rêve (1937), intervieram ao lado de Breton para salvar a vida aos sindicalistas libertários espanhóis. Depois da tranformação de Le Libertaire em Le Monde Libertaire, a colaboração de Breton com a imprensa libertária diminui, se bem que ainda na década de 50 alguns outros momentos – a invasão soviética da Hungria, a guerra da Indochina, a guerra argelina – 15 voltem a fazer cruzar o itinerário de Breton com o dos anarquistas franceses. Para essa diminuição muito contribuiu a publicação de duas revistas surrealistas novas, duas das muitas que o surrealismo francês criou, Médium (53-54) e Le Surréalisme Même (56-57), e nas quais Breton empenhou muita da sua energia. A colaboração de Breton com a imprensa libertária conhecerá ainda porém um episódio digno de registo. Em 1957, o velho anarquista francês Louis Lecoin, então com sessenta e nove anos, decide mobilizar-se para obter um estatuto para os objectores de consciência. Desde o comício de 1949, em que Breton estivera presente, que a situação se mantinha. Nenhum estatuto, nenhuma protecção, nenhum cuidado. Em caso de objecção, a única alternativa era o cárcere. Havia então uma centena de encarcerados, grande parte Testemunhas de Jeová. Lecoin vendeu os bens e reuniu donativos para fundar um hebdomadário, chamado Liberté, que foi lançado no princípio de 1958, cuja finalidade era tirar da prisão os objectores e obter um estatuto legal que os defendesse. Com o jornal, Lecoin criou um comité de socorro aos objectores de consciência, em que Breton colaborou. A campanha teve peripécias, imaginação e vitórias estimulantes, como a libertação ainda em 1958 de nove encarcerados. Conseguiu por fim obter o estatuto, mas só ao fim de cinco anos, em 1963 e depois duma greve da fome que durou mais de vinte dias e que deixou Lecoin, aos setenta e cinco anos em estado de coma. Conhecem-se duas intervenções de Breton no processo: primeiro, a alocução que fez num dos comícios a favor dos presos, a 5 de Dezembro de 1958, sala Mutualité, Paris, e que foi dado à estampa no jornal de Lecoin; segundo, o curto texto que escreveu, durante a greve da fome do anarquista, que ficou inédito durante muitos anos – só foi dado à estampa em 2008 – e de que ficaram duas versões manuscritas. Também estes dois textos merecem tradução integral em português, que aqui, pela sua dimensão, não podemos restituir. Em seu lugar deixamos extractos ilustrativos. Do primeiro, um longo texto, no género da alocução em favor dos sindicalistas da C.N.T., escolhemos um período, em que Breton discorre sobre a consciência. Assim: A consciência, essa força individualista, sim, por excelência libertária, que em presença de tal ou tal situação nos introduz, isto se o caminho não estiver impedido por nossa culpa, no mais secreto de nós mesmos e nos impõe de nos empenharmos contra aquilo que temos por escândalo; a consciência, é aquilo que nos une à vocação do homem, a única que em última visão podemos tomar por sagrada: a de nos opormos, sem olharmos às consequências para a nossa pessoa, a tudo o que atenta à mais profunda dignidade da vida. Do segundo – que serviu talvez a Breton para prestar, junto da imprensa, apoio ao jejum de Lecoin, e inédito ficou até à publicação das obras completas (Gallimard, 1988-2008) – tiram-se alguns períodos. Estes: Que o maior erro (…) dum revolucionário seja o de ultrapassar a idade de cinquenta anos, eis o que (…) Lenine confiou a Trotsky (…). / (…) / Foi todavia além desses limites que Louis Lecoin, mais exigente do que nunca, tomou em mãos o triunfo da causa que fez sua. Sacrificara já doze anos de liberdade. Muito abalado (…) pelo desaparecimento da sua companheira, o seu primeiro gesto (…) foi o de se dar por inteiro a esta causa. Data desse momento a fundação de Liberté, jornal “social, pacifista, libertário”, no qual os seus amigos bem sabiam que ele iria empatar todos os seus magros haveres. Mas ali estava um imperativo absoluto: agir de tal modo que o caso dos objectores de consciência pudesse ser reconsiderado, arrancando-os de vez às enxovias e dando-lhes um estatuto que os livrasse da obrigação militar em troca dum serviço civil./ No curso dos cinco anos de existência do jornal sabe-se que muitas promessas apareceram. Seriam para cumprir? Para duvidar era preciso não ser Louis Lecoin, quer dizer, o desinteresse e a generosidade em pessoa. (…) / De decepção em decepção, chegou porém o dia em que a fé na palavra dada deixou de ser suficiente. Foi quando a amnistia ousou dizer o seu nome (…) que Lecoin compreendeu que o mais verosímil era os objectores ficarem de fora, pese embora a amnistia se estender aos piores criminosos. Diante duma tal negação da justiça, não lhe restou senão escutar a voz interior que lhe ordenava que se empenhasse na prossecução do seu fim sem olhar a custos. / (…) /. Não quero fechar sem referir um derradeiro episódio sobre as relações de Breton com o anarquismo francês. Tem lugar em 1923, dez anos depois da manifestação do Pré-de-Saint- 16 Gervais, cujos lábaros negros serão mais tarde recordados na Gaspésia, lado a lado com a impressiva leitura na brancura da infância duma lápide libertária (por certo dalgum velho communard ali enterrado). O ano de 1923, se não é o do parto do surrealismo, faz ao menos parte da época que marcou o seu nascimento. Em 22 de Janeiro desse ano a anarquista Germaine Berton assassinou o monárquico Marius Plateau, secretário da Action Française, o que levou de imediato à sua prisão. O evento agitou o grupo que se reunia em volta da revista Littérature (1919-24), no seio da qual se desenvolveu o surrealismo, provocando nele vivas discussões. Por fim, no momento do processo, em Dezembro, o grupo, picado por Breton, toma posição clara a favor da incriminada, levando-lhe à saída do tribunal um cesto de rosas e cravos vermelhos, acompanhados dum cartão com os seguintes dizeres: A Germaine Breton, que fez aquilo que nós não soubemos fazer. Um ano mais tarde, a 1 de Dezembro, no primeiro número da revista La Révolution Surréaliste, que substitui Littérature, cujo derradeiro número aparecera em Junho, Germaine Berton será um dos motivos fortes de celebração do imaginário surrealista inicial, que nela verá a encarnação da revolução e do amor. O episódio de Germaine Berton é significativo por duas razões. Primeiro põe à mostra o cromossoma libertário do surrealismo, em época de oiro, aquela em que Breton estampa o primeiro manifesto (Outubro de 24) e o grupo abre o bureau de recherches surréalistes e dá à estampa o primeiro número da sua revista específica. O que reforça este cromossoma é o facto do partido comunista existir desde 1921, ano em que Dádá em Paris fez, por meio do grupo Littérature, o processo de Maurice Barrès, inculpado de crime contra a segurança do espírito. No episódio Berton desenha-se a encruzilhada do surrealismo nas suas relações com as forças políticas exteriores. Para bem dizer, no momento do seu nascimento ele tanto podia ter continuado fiel ao anarquismo inicial, que não estava só afinal confinado à primeira juventude de Breton (lápide libertária e manifestação operária anti-belicista do Préde-Saint-Gervais), como inclinar-se para o recém-nascido partido comunista francês, o que na verdade veio a acontecer, e por longo período, mais duma década, ao que parece pela leitura que Breton tomou por empolgante no Verão de 1925 da biografia de Lenine por Trotsky. Em segundo plano o caso de Germaine Berton, ausente da história das acções mais conhecidas do grupo surrealista francês, é ainda representativo da personalidade política de Breton – tão patente por exemplo no caso da agressão a Ilya Ehrenbourg, que levará à sua expulsão do partido comunista em 1935. Breton mostrou sempre adesão apaixonada à revolução, tal como a entendiam os herdeiros das convulsões sociais do século XIX, e ao que nelas havia de violento, de altercador, de chocante, de catártico. Coevo de Gandhi, nunca citou com simpatia, que eu saiba, a actividade política deste grande lutador, não obstante o apoio incondicional que deu aos objectores e (até) ao pacifismo não violento de Lecoin. Ao que dou nota, Breton nunca regressou à figura de Berton, como se a leitura da Vida de Lenine de Trotsky a tivesse enterrado para sempre, ao contrário do que faz com a manifestação do Pré-de-Saint-Gervais, com a ida ao cemitério da sua infância, ambas citadas com verdadeiro fervor em Arcano 17, e com a figura de Violette de Nozières, acusada de parricídio em 1933 e que mereceu a Breton a inclusão nas efemérides surrealistas de 1955. Ainda assim talvez nenhum episódio, nenhuma figura, nenhum momento nos situe melhor a alma política de Breton do que esse cesto de rosas vermelhas enviada a uma pantera anarquista que acabara de se envolver num atentado à mão armada. E não é tanto o Breton revolucionário ao velho estilo da acção directa que eu vejo aqui, o mesmo que como tantos outros acabaria por uma questão de eficácia (duvidosa) por aderir ao partido comunista em 1925, e que para bem dizer é o mesmo que intervirá a favor do sindicalismo libertário espanhol ou dos objectores de consciência, mas o Breton inflamado, escaldante, vulcânico, poético, que no momento da sua ruptura com o estalinismo, e depois com o abandono do marxismo-leninismo em geral (e dele não sobreviveu qualquer alusão nas efemérides de 1955), percebeu que transformar o mundo não era suficiente; era preciso, na senda da grande poesia, na via de Rimbaud, mudar de vida e de mente. 17 E por aqui se chega e retoma o estupendo texto de André Breton, “La Claire Tour”, dado a lume no jornal Le Libertaire a 11 de Fevereiro de 1952, e que pela sua textura representa uma condensação riquíssima, até do ponto de vista simbólico, dos nós que se encontram no percurso político de Breton e do surrealismo. É uma chave interior, talhada na recordação dum poema de Laurent Tailhade, a balada Solness, datada de 1900, cuja estrofe final invoca a anarquia, portadora de lume e construtora da clara torre que domina as torrentes. A canção, composta sobre epígrafe de Ibsen, teve larga popularidade, tocando o jovem Breton da manifestação de 1913, que quarenta anos depois a retoma para com ela baptizar a mais densa e soberba reflexão sobre o itinerário político do surrealismo e de que aqui deixo dois ou três trechos representativos: Onde o surrealismo pela primeira vez se reconheceu, bem antes de se revelar a si próprio e quando não passava duma associação livre entre indivíduos rejeitando espontaneamente e em bloco as coacções sociais e morais do seu tempo, foi no espelho negro do anarquismo. (…) / Nesse momento a recusa surrealista era total, absolutamente incapaz de se deixar canalizar sobre o plano político. Todas as instituições sobre as quais repousava o mundo moderno e que acabavam de dar por fruto a primeira guerra mundial eram tidas por aberrantes e escandalosas. Todo o aparelho de defesa da sociedade (…) estava em causa: exército, justiça, polícia, religião, medicina mental e legal, ensino escolar. (…) / Porque não se operou nesse momento uma fusão orgânica entre elementos anarquistas propriamente ditos e elementos surrealistas? Ainda hoje, vinte e cinco anos depois, me continuo a interrogar. Não há dúvida que a ideia de eficácia (…) ajudou a decidir doutro modo. Aquilo que se pode tomar como o triunfo da revolução russa (…) contribuiu para uma grande mudança de modelo. O único borrão na pintura – que depois se fará nódoa indelével – residia no esmagamento da insurreição de Cronstadt a 18 de Março de 1921. (…) Podíamos porém acreditar que os sinais de degenerescência a Leste eram regeneráveis. Os surrealistas viveram então na convicção que a revolução social alargada a todos os países não podia deixar de promover um mundo libertário (alguns dizem um mundo surrealista, mas é o mesmo). (…) / Conhecemos hoje o impiedoso saque que foi feito a estas ilusões durante o derradeiro quarto de século. Por uma horrível ironia, em lugar do mundo libertário sonhado surgiu um mundo onde a mais servil obediência é de lei, onde os mais elementares direitos são negados ao homem, onde qualquer espaço social gira em torno do polícia e do carrasco. (…) É no termo deste processo que reencontramos o anarquismo e ele apenas (…). / Liberta das brumas da morte deste tempo, os surrealistas tomam-na [a concepção libertária] pela única capaz de fazer ressurgir a clara torre que sobre as torrentes domina. Que torre é esta? Já se sabe, a torre da balada de Tailhade, que correu na juventude de Breton. Podemos também chamar-lhe a anti-torre, pois os seus desígnios parecem contrariar os de Babel. Mais do que aspirar ao céu, esta clara torre põe mão nos caudais revolutivos da Terra, harmonizando-os, de acordo com a teoria fourrierista da satisfação integral das paixões e fora de qualquer noção de obrigação, mesmo revolucionária. O criador do surrealismo pôde assim construir com a clara torre do poema de Tailhade um símbolo imperecível das suas aspirações mais vastas. E em Fourier, o do falanstério ou o do contrato social renovado pela felicidade, encontramos outra das linhas fortes que cerzem o Breton desta nota, que procura a arqueologia libertária do surrealismo. Depois de dar a lume Arcano 17, Breton descobre as obras completas de Charles Fourrier (edição de 1846), de que só conhecia extractos, e numa viagem a Reno, Nevada, na companhia de Elisa, com quem então casa, e no meio duma reserva de índios Hopi, no Verão de 45, inicia e conclui a escrita celebrativa de Ode a Charles Fourrier, que funciona assim como o poderoso elo que estabelece a ligação entre as recordações da Gaspésia e a colaboração dada ao jornal Le Libertaire em passo ulterior do regresso a Paris. Também esse texto, publicado em 1948 e que Ernesto Sampaio verterá para português em 1963, trará segundo Cesariny uma nota ao modo próprio com que o surrealismo português nasce na segunda metade da década de 40. Eis o momento em que a emancipação social deixa de ser dever moral ou obrigação política para passar a ser 18 celebração do espírito e ponto onde a libertação dos conteúdos recalcados cruza o desvio mágico. Dito doutro modo, Freud encontra por fim em Fourrier a sua lente de refracção e Marx pode passar de mito a mimo. NOTA [1] Esta nota não podia existir sem contributos bibliográficos exteriores – isto para além dos textos de Breton nela citados. Refira-se o trabalho de Marguerite Bonnet sobre dois textos recolhidos em La Clé des Champs (1953), “Pour un Art Révolutionnaire Indépendant” e “La Claire Tour”, este dado a lume inicialmente no jornal Le Libertaire (11-2-1951), trabalho esse publicado no terceiro tomo de Oeuvres Complètes (Gallimard, 1999). De resto é ainda a Marguerite Bonnet que se recorre para historiar parte dos eventos relativos a Breton entre 1913 e 1924, com especial enfoque no caso de Germaine Berton, aqui no primeiro tomo das mesmas obras (1988). Também o trabalho de Étienne-Alain Hubert, comentando as intervenções de Breton a favor da C.N.T., no terceiro tomo das obras, dos objectores de consciência encarcerados e de Louis Lecoin, no quarto tomo (2008), nos deu elementos valiosos para o comentário. Tirando estes contributos, que foram de socorro, cite-se ainda um trabalho (que não conhecemos): Surréalisme et Anarchie (1983) de José Pierre. E um outro, que também desconhecemos, mas que pode ser de valor para o pesquisador, Surrealismo e Anarquismo (Editora Imaginário, São Paulo, 2001) onde Plínio Augusto Coelho recolhe, traduz e comenta a colaboração dos surrealistas franceses no jornal Le Libertaire. O itinerário político de Benjamin Péret merecia, só ele, um texto à parte. Registem-se porém as relações amorosas com Remedios Varo, anarquista espanhola, no tempo da guerra civil, e com quem se exilou depois no México, e as ulteriores colaborações que deu ao jornal Le Libertaire, algumas delas de invulgar alcance teórico (v. B. Péret, Oeuvres Complètes, Textes Politiques, vol 5, 1989). As traduções que se apresentam de A. Breton foram autorizadas por sua filha, e actual herdeira, Aube Breton-Elléouët (referida em L’Amour Fou), animadora da colecção Phares – que, a seu pedido, se publicita na contracapa deste número. A. Cândido Franco (Portugal, 1956). Dirige desde 2013 a revista A Ideia, à qual está ligado desde há 35 anos (1979) e acaba de publicar um livro no Brasil: O Surrealismo Português e Teixeira de Pascoaes (2013). Contato: mailto:[email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 19 CLAUDIO WILLER | Sobre surrealismo e filosofia Não sou filósofo e falo como poeta ao comentar alguns tópicos da filosofia que podem ser destacados no surrealismo. Começo por aquele do sujeito. E por esta frase de André Breton, de seu prefácio de 1962 para Nadja, sua narrativa de maior repercussão e circulação, de 1928: “Subjetividade e objetividade travam, ao longo de uma vida humana, uma série de combates, nos quais a primeira costuma sair-se inteiramente mal”. [1] A frase me persegue: ultimamente; lembro-me dela a toda hora e já iniciei outro texto (um comentário sobre Raymond Roussel) citando-a. Relaciono-a a uma passagem de Baudelaire em um texto de 1859, inacabado e publicado postumamente, A Arte Filosófica: “O que é a arte pura segundo a concepção moderna? É criar a magia sugestiva que contenha ao mesmo tempo o objeto e o sujeito, o mundo exterior ao artista e o próprio artista”. [2] Vê-se, nesse e em outros de seus enunciados, o leitor de Hegel e da filosofia romântica. Há um equívoco a propósito do poeta, atribuindo-lhe ignorância de filosofia. Ao tratar da superação da contradição de sujeito e objeto, sabia do que estava falando. Sujeito e subjetividade são, me parece, categorias filosóficas modernas, historicamente recentes. Nos clássicos e antigos, encontramos o “eu”; em neo-platônicos, gnósticos e místicos, um “eu” falso, circunstancial, lugar de percepções ilusórias, contraposto a outro verdadeiro, de natureza divina. O sujeito ganha vulto com a crítica filosófica dos séculos XVII a XVIII; mais precisamente, a crítica a Descartes empreendida por Locke, em seguida por Berkeley e Hume; nesses, mostrando como a relação entre o percebido e o real, o “esse” e “percipi”, nada tem de pacífico. E com o “eu” absoluto de Fichte; ou seja, o real exterior como função do sujeito. Foi o que Novalis sintetizou, em um de seus fragmentos: “O que é a natureza? Um índice enciclopédico sistemático ou plano do nosso espírito”. E, ainda: “O mundo é um tropo universal do espírito – seu retrato simbólico”. Repetindo os místicos, proclamou que conhecer o “eu” é conhecer o universo: “Uma pessoa conseguiu – levantou o véu da deusa de Saïs – Mas o que viu? viu – milagre dos milagres – a si mesmo”. [3] Novalis tratou do “espírito”; não do sujeito. Contudo, justifica a observação de Margaret Mahony Stoljar, organizadora de Philosophical Writings, sobre a “rejeição de uma noção de verdade extrínseca”, exterior ao sujeito. O poeta-filósofo “propõe um modelo auto-referente para a filosofia, que não procura explicar o mundo, porém, antes, explicar-se a si mesma”. Breton foi um continuador da geração romântica alemã, dos poetas-filósofos, incluindo Schelling, Novalis, os irmãos Schlegel, Tiek, acrescidos de Achim Von Arnim, pelo qual manifestou especial admiração. A observar, como um dos componentes da sua contribuição, o elogio à atração daqueles românticos por uma paraciência ou pseudociência, incluindo os postulados da origem aquática do planeta e do magnetismo animal, e assim incorporando esoterismo e magia. Justamente, algo tão criticado no romantismo por outros autores. Breton tomou partido no confronto entre filosofia da natureza e ciências naturais; na verdade, como detalharei a seguir, entre logos e mythos. O que lhe parecesse restauração do mundo mítico, era a favor. Já se falou em poetas-filósofos a propósito do romantismo alemão; em poetas-pensadores e poetas-críticos a propósito de Baudelaire, T. S. Eliot e Ezra Pound. Essas designações se aplicam a Breton, especialmente, e a outros surrealistas. Dimensão importante da produção surrealista, o debate político: um debate passional e pendular, de aproximações e afastamentos, adesões e rupturas. Tal politização, marcada pela adesão ao pensamento de Marx, é, não obstante, conseqüência de um projeto fundamentalmente romântico, de confundir poesia e vida; e mais, de romper barreiras entre a esfera simbólica e das coisas; de superar a contradição entre sujeito e o objeto. É o programa político resumido nesta frase de Novalis: “O mundo deve ser tornado romântico”. Ou por Friedrich Schlegel, seu companheiro no grupo de Jena: 20 “A poesia romântica não é só uma filosofia universal, progressista. Seu fim não consiste apenas em reunir todas as formas de poesia e restabelecer a comunicação entre poesia, filosofia e retórica. Também deve misturar e fundir poesia e prosa, inspiração e crítica, poesia natural e poesia artificial, vivificar e socializar a poesia, tornar poética a vida e a sociedade, poetizar o espírito, encher e saturar as formas artísticas de uma substância própria e diversa, e animar o todo com a ironia.” [4] Nenhuma dessas sínteses seria rejeitada por um surrealista. Por isso, concordo com a caracterização, por Jacqueline Chénieux-Gendron, do surrealismo como “pensamento totalizante” [5] – e até, permito-me afirmar, de um holismo, assim como aquele dos românticos, dos polímatas renascentistas e iluministas que tiveram a ambição de alcançar o conhecimento total. É o que diz Sarane Alexandrian, em um livro sobremodo recomendável, Le Surréalisme et Le Rêve: “O surrealismo não é uma escola, como o romantismo ou o simbolismo, mas um método sempre viável, como a psicanálise”. [6] Caracterizá-lo como método necessariamente acrescenta um debate epistemológico àquele de uma poética. A continuidade de surrealismo e romantismo foi proclamada por Breton; de modo enfático, no Segundo Manifesto do Surrealismo: “Mas, no momento em que os poderes constituídos em França grotescamente se preparam para celebrar com festas o centenário do romantismo, nós, pelo que nos respeita, dizemos que esse romantismo, do qual estamos prontos a passar, hoje em dia, por causa, desde que causa em alto grau preênsil, [7] por sua própria essência, em 1930, reside inteiramente na negação desses poderes e dessas festas; que, para ele, cem anos de existência equivalem à sua juventude, que a sua chamada época heróica já não pode ser honestamente considerada mais que o vagido de um ser que mal começou, por nosso intermédio, a dar a conhecer seu desejo; e que, a admitirmos que o que antes dele foi pensado “classicamente” - era o bem, quer, sem sombra de dúvida, todo o mal.” [8] Como se vê, dialetizou o romantismo: interpretou-o como manifestação ou expressão da negatividade, da destruição criadora, antecipando o que Octavio Paz, em Os filhos do barro, designaria como “tradição da ruptura”. Nessa perspectiva, deixa de ser mais um período da história da literatura e artes, do final do século XVIII até meados do XIX. Passa a ser uma rebelião que se renova ao prosseguir, da qual o surrealista se declarou porta-voz e continuador. Há retomada de programas românticos em Breton, como ao final de Arcano 17, [9] em favor da “única revolta criadora de luz” – com a referência explícita a Lúcifer, atualizando o satanismo romântico – que “só pode passar por três vias: a poesia, a liberdade e o amor”. As três vias, prossegue, “devem inspirar o mesmo zelo e convergir para traçar o próprio perfil da eterna juventude, no ponto menos descoberto e mais iluminante do coração humano”. O mesmo vale para outra de suas frases famosas: “’Transformar o mundo’, disse Marx; ‘mudar a vida’, disse Rimbaud: para nós, estas duas palavras de ordem não são mais que uma só.” [10] É a busca da unidade proclamada no Segundo Manifesto do Surrealismo, ao denunciar “as velhas antinomias destinadas hipocritamente a prevenir toda agitação insólita por parte do homem” e afirmar que: “Tudo indica a existência de um certo ponto do espírito, onde vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo, cessem de ser percebidos como contraditórios”. Muito já foi escrito sobre esse “ponto do espírito”; inclusive as interpretações esotéricas em André Breton et les données fondamentales du surréalisme, de Michel Carrouges. [11] Mas penso que, em acréscimo, pode ser feita a identificação à “arte filosófica” de Baudelaire, bem como ao “espírito”, tal como aparece em Hegel – diga-se de passagem, contrariando o 21 marxismo tão enfaticamente afirmado nesse manifesto, ao introduzir uma categoria tipicamente metafísica. Breton foi um romântico que incorporou contribuições subseqüentes. A de Hegel, refinando a categoria “sujeito” e incorporando a negação, entendida como destruição criadora; de Marx; e de Freud, que promoveu um novo ataque ao “cogito” cartesiano. Minha intenção é mostrar respostas de Breton à questão do sujeito; do antagonismo ou contradição de subjetividade e objetividade; e sua tentativa de superar essa contradição através de uma poética do delírio e da alucinação. Para tal, citarei algumas de suas obras. Em primeiro lugar, em uma série não-cronológica, O amor louco, de 1937. [12] Como etapa de uma viagem a lugares onde havia manifestações surrealistas, Breton e Jacqueline Lamba, por quem se apaixonara e com quem se havia casado, chegam às Ilhas Canárias em abril de 1935. Lá, “em plena natureza reconciliada”, possuído pelo “delírio da presença absoluta”, vê no Pico de Teide, ponto culminante da ilha de Orotava, seu Jardim do Éden. Tem uma experiência de encontro do macrocosmo e microcosmo: “o contato involuntário com um só ramo de sensitiva é o bastante para agitar, tanto fora quanto dentro de nós, o prado inteiro”. Transcreve a “música sobreposta aos nossos passos” sobre praias de areia branca e de areia negra, passando por matizes e gradações da água do mar, por uma vegetação de figueiras de raízes que mergulham na pré-história, sempre-vivas com folhas refletindo a Unidade, eufórbias e pitangas, cactos de muitas formas. Aparentemente, abdicava de sua postura antirealista, contrária à descrição. Mas o lugar é concretização do sonho, surrealidade realizada. As flores de Orotava ocupam tudo, até que os amantes se confundam com elas: “A um sinal, que, por maravilha, tarda a aparecer, irei juntar-me a ti no seio da flor fascinante e fatal”. No interior da flor, “no seio da oblíqua claridade”, experimenta a plenitude: “a suficiência total que, naturalmente, reina entre dois seres que se amam, deixa de enfrentar, neste momento, o mínimo obstáculo”. Dentro da flor e dentro da nuvem: “do puro informe: quando Orotava desapareceu, foi-se perdendo pouco a pouco sobre nossas cabeças, até acabar por ser tragada; ou então fomos nós que, a esses mil e quinhentos metros de altitude, fomos de repente sorvidos por alguma nuvem”. Nuvens são o lugar do encontro do desejo e da realidade: “levantar os olhos daqui de baixo, da terra, para uma nuvem, é a melhor forma de interrogar nossos mais íntimos desejos”. Assim –e aqui grifo – “toda a questão da passagem da subjetividade à objetividade se encontra aqui implicitamente solucionada”. Comenta que Leonardo da Vinci pedia a seus alunos que olhassem as manchas em uma parede e copiassem as formas que viam desenharse nelas. Nuvens de Orotava ou manchas na parede são telas em que se projetam imagens: “O homem só poderá ser senhor dos seus atos no dia em que, como o pintor, aceitar reproduzir, com a máxima fidelidade, aquilo que uma tela apropriada tiver sabido mostrar antecipadamente a esses mesmos atos. Ora, essa tela existe. Qualquer existência comporta um todo homogêneo de fatos aparentemente escalavrados e nebulosos, que bastaria encararmos mais fixamente para que eles nos desvendassem o futuro.” Ainda cita Baudelaire, que, no poema “A Viagem”, final da primeira versão de As Flores do Mal, também associou nuvens ao desejo e ao acaso: “As maiores regiões, a mais pujante aldeia,/ Não continham jamais os encantos secretos/ Dessas que o acaso com as nuvens delineia./ E eis que o desejo nos fazia mais inquietos!” [13] Traz para o relato o acaso objetivo, categoria que havia criado em um livro precedente, Les vases communicants: “Uma vez vencidos todos os princípios lógicos, virão então a nosso encontro – se tiver valido a pena interrogá-las – as forças do acaso objetivo, que nada querem saber de verossimilhanças. Tudo o que o homem pretende saber se encontra escrito nessa tela em letras fosforescentes, em letras de desejo. [14] […] Onde poderei eu estar melhor que no seio de uma nuvem, para adorar o desejo, único impulsionador do mundo, o desejo, único rigor que o homem deve se impor?” Às categorias do sujeito e objeto é acrescentado um terceiro termo: o desejo. Freud e a psicanálise, portanto, adicionados à reflexão filosófica. 22 Vejam como é simples resolver dialeticamente a contradição de subjetividade e objetividade, mantendo os dois termos. Basta olhar para as nuvens, realizando essa metáfora imemorial da poesia. Mas com o apoio de uma experiência do sublime, de encantamento amoroso, e em um lugar como o topo do Pico de Teide. Não obstante, essa experiência, a projeção da subjetividade nos objetos, tenho-a recomendado em cursos de surrealismo. Veremos sempre a nuvem, algo fisicamente objetivo, exterior– e montanhas, animais, fisionomias, corpos, assombrações, astronaves; tudo aquilo que se enxerga ao contemplar nuvens. Mas quem vê formas em nuvens? O desocupado, que não tiver outras coisas para fazer. Quem não rumar apressadamente para algum compromisso ou estiver mergulhado no trabalho; quem se encontrar em estado de disponibilidade. Essa é outra categoria fundamental no surrealismo, erigida em valor desde “La conféssion dédaigneuse”, protomanifesto de 1921, texto de abertura de Les pas perdus, sua primeira coletânea de textos. [15] Um dos modos da disponibilidade: a flânerie baudelairiana, a errância, a caminhada ao acaso, tão bem interpretada por Walter Benjamin – em outra ocasião, cheguei a comentar que Benjamin, a meu ver, entendeu mais de surrealismo que o próprio Breton; e a lamentar que surrealistas não o houvessem achado naquela época – o movimento teria ganho em substância. Familiarizados com psicologia observarão que ver coisas nas nuvens se assemelha a um teste projetivo conhecidíssimo, o Teste de Rorschach. E não só. Pierre Mabille, importante pensador do surrealismo, autor de Le Miroir du Merveilleux, [16] também criou um teste projetivo, o “Test du village”, reconhecido e que continua a ser aplicado. Mabille foi tipicamente holista, da espécie mais consistente; um polímata, realizando o ideal do conhecimento total, e não só de conhecer tudo: médico, antropólogo, psicólogo, esoterista, historiador, artista plástico, chegou a estudar a língua suméria para avançar em seus estudos. Empreendeu “uma longa viagem orientada rumo à conquista de um reino maravilhoso”, afirmou Breton. Le Miroir du Merveilleux, coletânea de relatos tribais, livros sagrados de diversos povos, lendas de várias épocas, trechos de literatura desde os clássicos aos contemporâneos, mostra a transversalidade ou trans-historicidade do maravilhoso. Retoma e refina essa categoria surrealista, proclamada por Breton no primeiro Manifesto do Surrealismo: “Digamolo claramente, e de uma vez por todas: o maravilhoso é sempre belo, qualquer tipo de maravilhoso é belo, somente o maravilhoso é belo”. Isso foi reiterado por Breton no prefácio para o livro de Mabille e no artigo intitulado “Le merveilleux contre le mysthère”. [17] Para os românticos, o lugar da solução das antinomias e superação da contradição de subjetividade e objetividade seria o espírito; e também para Breton no trecho já citado, sobre o “ponto do espírito”. Para Hegel, o absoluto. Para o surrealismo, o maravilhoso – e assim esse termo da linguagem corrente adquire peso filosófico. Há mais exemplos de encontros de subjetividade e objetividade em Breton. Em “Le méssage automatique”, [18] de 1933, examina, como anuncia no título, um dos tópicos mais controversos associados ao surrealismo, a escrita automática. É, por ser desenfreadamente visionário, um de seus artigos que mais aprecio. Trata de alucinações, visões e fenômenos correlatos. Começa por mencionar cientistas: Herschel, o astrônomo, e seu relato de “produção involuntária de imagens visuais”. Watt, inventor da máquina a vapor, que, “em um quarto escuro, contempla a futura, a próxima máquina a vapor”. Para Breton, “O que ainda não é, será”; pois, “No interior de uma simples bola de cristal, como aquela que utilizam os videntes”, alguns, desde que “se mantenham em um estado de passividade mental”, ou seja, de disponibilidade, enxergarão objetos perturbadores, cenas a se desenrolar etc. A lágrima, para o surrealista, é “essa obra-prima da cristaloscopia” – justamente por embaçar a visão. Na página em branco, “tudo já está escrito”. A criação literária equivale à revelação fotográfica, mostrando o que já está na página. Comenta, antecipando O amor louco, Leonardo da Vinci e as manchas na parede. Celebra Charcot, por haver originado “esse magnífico debate sobre a histeria”, e Schrenck-Notzing por haver chamado a atenção em 23 1889 para “o valor artístico dos movimentos de expressão da histeria e da hipnose”. Chega ao que William James denominou “psicologia gótica”, a propósito de Myers e Flournoy, iniciadores da parapsicologia. Mostra a diferença entre as manifestações de mediunidade, estudadas por Myers e Flournoy, e a escrita automática: “Ao contrário do que propõe o espiritismo, dissociar a personalidade psicológica do médium, o surrealismo se propõe a nada menos que unificar essa personalidade”. Há mais relatos e observações em “Le méssage automatique”; um desfile de paranormalidades, alucinações visuais e auditivas, até chegar á questão propriamente filosófica: “Não posso, aqui, e lamento por isso, fazer outra coisa a não ser esboçar a história da crise que, nessas condições, a atitude surrealista, no que concerne ao grau de realidade a ser conferido a um objeto, não pode deixar de fazer que a sofra o pensamento puramente especulativo”. Isso, “pela impossibilidade de uma demarcação válida, que permita isolar o objeto imaginário do objeto real”. Volta a Myers, por sua pesquisa das imagens eidéticas, os pós-efeitos visuais: por exemplo, quando olhamos fixamente para uma fonte de luz, e essa, alterada, permanece ao fecharmos os olhos. Conclui com uma afirmação ousada: “Toda a experimentação em curso seria de natureza a demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário parecem oporse de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as crianças”. Em Platão e nos mitos que o precederam, havia um andrógino, dividido pelos deuses; em Breton, unidade de percepção e representação; de sujeito e objeto, em um mundo evidentemente mágico. Por isso eu havia falado em poética da alucinação, como solução da contradição de sujeito e objeto. Visões e alucinações ganham o estatuto de percepções íntegras: o visionário alucinado efetivamente vê; no automatismo verbal, de fato ouve. Breton termina exemplificando com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira transformar-se em crucifixo de pedras preciosas. Considera essa visão ao mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o leva a uma tirada de humor, a meu ver injusta: “Tereza d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa”. Aprecio “Le méssage automatique” pelo desfile de fenômenos, mais extenso do que os citados aqui; pelos desafios ao senso comum. Gostaria que fosse traduzido. Temos, traduzido, outro texto, reafirmando-o; porém, desta vez, sob uma perspectiva propriamente filosófica. É “Situação surrealista do objeto”, parte da série Posição política do surrealismo de 1935, [19] que anuncia “uma crise fundamental do objeto”. Comenta a Estética de Hegel ao longo de algumas páginas: “Declaro que, ainda hoje, é a Hegel que se há de interrogar sobre os bons e os maus fundamentos da atividade surrealista nas artes”. Esse texto poderia substituir minha palestra. Cito-o para que fique evidente de onde vêm as categorias “objeto”, “sujeito” e “espírito” em Breton. O que chamei de poética da alucinação é, desta vez, exemplificada por poemas de Benjamin Péret, Paul Éluard e Apollinaire; no campo visual, por relógios moles de Salvador Dalí; pelas frottages de Max Ernst, ao esfregar um lápis sobre um papel, por sua vez sobre um assoalho com ranhuras: equivalem às manchas na parede de Leonardo da Vinci, também citadas. E trata de objetos encontrados, tema forte em O amor louco, e, descontextualizados ou ressignificados, nos famosos procedimentos de Marcel Duchamp. Dos médiuns aos artistas invocados por Breton, todos esses casos mostram a projeção do sujeito sobre o objeto, colocando-o em situação de crise. Há, porém, uma recíproca; outro modo de relação, mostrado, de modo insistente, em Nadja, de 1928: o sujeito atacado pelo objeto. Deixando de lado um exame mais atento dessa narrativa, observo a relação sensorial de Breton com lugares de Paris. Por exemplo, a estátua de Étienne Dolet, situada na Praça Maubert (Dolet, personagem respeitável, editor estrangulado e queimado naquela praça em 1546, acusado de ateísmo), que ao mesmo tempo o atrai e lhe provoca mal-estar. E a Praça Dauphine, na Ilha da Cité, cenário de um episódio especialmente importante do relato, que o 24 faz sentir langor e opressão. Nadja começa pela lembrança de episódios significativos, dos quais sua protagonista poderia ter sido participante; avisos de que o maravilhoso iria manifestar-se. Entre outros, a busca de lojas que vendiam carvão de lenha, bois-charbon, par de palavras, símbolo da destruição ou consumação, que encerram, isoladas e emolduradas como um letreiro, o livro de escrita automática de Breton e Philippe Soupault, Les champs magnétiques: seus autores, perambulando pela cidade, atingiram o nível de alucinação que lhes permitia dizer antecipadamente em qual trecho de rua apareceria a loja ostentando o letreiro, bois-charbon. Principalmente, o episódio da Praça Dauphine, na Ilha da Cité, onde ficam a Catedral de Notre-Dame e outras edificações históricas. Ao chegarem lá e se instalarem em um café, inicia-se a noite marcada por qualquer coisa de mal-assombrado, Nadja a ver mortos circulando pela vizinhança, com o rumor do vento – “o vento e o azul, o vento azul”, dizia – transformado em vozes anunciando a morte, enquanto um bêbado os cobria de impropérios. Afirma que lá, vindo do Palácio da Justiça, passava um túnel secreto que se comunicava com outro palácio: segundo Henri Béhar em sua biografia de Breton, [20] escavações arqueológicas de 1963 revelaram que o subterrâneo existe. Apontando para a janela de uma das casas da praça, negra na escuridão, Nadja afirmou que em um minuto se iluminaria e sua cor seria vermelha: em um minuto, a luz do quarto da janela acendeu, exibindo cortinas vermelhas. Em seguida, alucinada, agarrou-se à grade do Palácio da Justiça e insistiu que havia estado lá em outra vida, como acompanhante de Maria Antonieta. Prosseguindo a caminhada, na ponte que liga a Ilha da Cité à margem direita do Sena, a Pont Neuf, ela enxerga uma mão em chamas, “mão que arde sobre as águas”, pairando no rio. Perguntou: “O que isso significa para você: o fogo sobre a água, a mão de fogo sobre a água?” A mão, a “main de gloire” e pentagrama dos magos, é um símbolo recorrente em Nadja. A noite culminou com a chegada deles ao Jardim das Tuileries, onde pararam diante de um chafariz. Nadja observou que suas águas, elevando-se, separando-se em dois jorros, desfazendo-se ao cair, retornando com a mesma força, e assim indefinidamente, simbolizavam os pensamentos de ambos. Breton espantou-se com o comentário, pois citava, sem saber, um trecho do que lia naqueles dias, uma vinheta da edição de 1750 do terceiro dos Três Diálogos entre Hilas e Filônio de Berkeley, com a seguinte legenda: Urget aquas vis sursum eadem flectit que deorsum, ilustrada por um chafariz idêntico ao das Tuileries. Fazem parte de um maravilhoso imanente que surpreende os registros de diálogos, objetos encontrados, textos, desenhos, esboços a traço e colagens feitos por Nadja, a torrente de símbolos citados ou graficamente reproduzidos no livro – mãos negras e vermelhas, serpentes, máscaras, estrelas, cometas, flores, sereias, esfinges, duendes, o diabo, torres e subterrâneos de castelos, lâmpadas, amuletos, as chamas de uma fogueira, as cores do ar. Invasão de símbolos, levando Breton a vê-los, “nos curtos intervalos que o nosso maravilhoso estupor permitia”, a contemplar “os escombros fumegantes do velho pensamento e da vida sempiterna”; e a perguntar: “Em que latitude nós poderíamos estar bem, assim entregues ao furor dos símbolos, presas do demônio da analogia, nós que nos víamos como objetos de instâncias últimas, de atenções singulares, especiais?” Breton e Nadja foram, naqueles episódios, sujeitos de uma narrativa, protagonistas; e, ao mesmo tempo, objeto dos símbolos. Nadja é o relato de una catástrofe, justificando a observação no prefácio, já citada, sobre as derrotas do sujeito frente à implacável objetividade. Após separarem-se, Breton é informado que havia sido internada, em surto, em um hospício do qual nunca mais sairia. As respostas de Breton são o alheamento, a abstração do real objetivo, o isolamento. Prosseguindo o elogio da distração no Manifesto do Surrealismo, relata o caso do hóspede de um hotel que, toda vez, tem que perguntar ao atendente quem ele é. E, nas passagens finais do livro, contra psiquiatras e manicômios, afirma que, se fosse internado, mataria alguém, de preferência um de seus médicos, para que o deixassem em paz, confinado no isolamento. Sair do impasse moveu-o a escrever o complexo Les vases communicants. [21] Seguindo Freud em A Interpretação dos Sonhos, tenta dar um passo além, através do que chama de 25 “psicanálise da realidade”. Sonhos, afirma, não apenas reaproveitam o que Freud denominou “restos do cotidiano”, mas se projetam na vigília. Faz, portanto, não apenas de interpretação do sonho, mas do real no sentido mais amplo, compreendendo vigília e sonho, defendendo o mesmo estatuto para ambos. É o livro sobre a perda, de uma intensa racionalização; elaboração do luto, diriam psicanalistas. Enfrentava dificuldades financeiras, e um drama amoroso. Nesse livro da busca para não chegar a lugar algum, de encontros que não se realizam, multiplica o encontro com Nadja. Para sua crise, microcosmo de uma crise da sociedade, do mundo da desigualdade e exploração, só havia uma saída: a equiparação de vigília e sonho. Vê o sonho como crítica do real: “assim fazendo, por meio do sonho, o processo do conhecimento materialista, […] sendo, penso, admitido que o mundo do sonho e o mundo da realidade não fazem senão um, ou, dito de outro modo, que o segundo não faz outra coisa, para constituirse, que verter-se na ‘torrente do dado’”. Indaga se a distinção entre realidade e sonho “é fundamentada em todos os pontos, e de onde vem ao homem, a esse respeito, a faculdade de discriminação que permite seu comportamento social normal”. Critica Freud pelo dualismo, a seu ver um platonismo, ao separar dois mundos, sonho e realidade, que, sob o ponto de vista materialista, deveriam ser um só. E questiona o criador da psicanálise por considerar o sonho exclusivamente a satisfação de um desejo. Isso equivaleria “à falta quase completa de concepção dialética”, pois o “real” da vigília está submetido à censura, enquanto o sonho não; por isso, é o território da liberdade, do possível: “uma parte do sonho, considerada eminentemente não-sonhável, tem por objeto fazer de uma coisa que não foi – mas que foi sentida violentamente como podendo ter sido, em seguida como podendo e devendo ser - uma coisa que foi, que é portanto em todos os pontos possível e que deve passar, sem choque, à vida real como toda-possibilidade.” [22] Daí que “Freud ainda se engana, muito certamente, ao concluir pela não-existência do sonho profético”. Argumenta que acontecimentos do dia-a-dia obedecem aos mecanismos do sonho. Por exemplo, na série de mulheres que vai encontrando, para depois perdê-las. Trata-se de deslocamentos: “Um personagem, assim que é dado, é abandonado por um outro, - e, quem sabe, esse mesmo, por um outro? Para quê, então, esse trabalho de expor? Mas o autor, que parecia haver-se disposto a nos apresentar algo de sua vida, fala em um sonho! – Como em um sonho.” Há uma interpretação do Omega do poema As Vogais de Rimbaud, remetendo por cabala fonética a uma atraente Olga que acabara de conhecer. O autor de uma carta com observações sobre o Segundo Manifesto do Surrealismo é Sanson, Sansão (Georges Sanson, pacifista a quem conhecera durante a guerra e que reaparecia, enviando-lhe a carta), e isso o remete à moça com quem havia marcado encontro aquele dia, cujo olhar lhe havia lembrado a Dalila de Gustave Moureau, um de seus pintores prediletos. Ainda por associação, lembra um episódio burlesco ocorrido no mesmo dia, no cabeleireiro. Admite: “Que isso possa, para alguns, frisar o delírio de interpretação, não vejo inconveniente nisso, tendo insistido, como o fiz, sobre as razões do meu pouco equilíbrio de então.” Mais que delírio interpretativo, há pensamento analógico, associação de coisas e símbolos distintos por contigüidade ou afinidade. O mecanismo do sonho pode não ter tomado conta da realidade, mas dirigiu seu modo de pensar: “Deve ser impossível, considerando o que precede, não se chocar com a analogia entre o estado que acabo de descrever como tendo sido o meu naquela época e o estado de sonho, tal como concebido geralmente”. Como observa J. B. Pontalis, “a percepção onírica, o estado de sonho e suas equivalentes vigílias têm, antes, função de paradigma”. [23] A carta de Sanson podia ser um comentário à discussão da noite anterior sobre misticismo no Segundo Manifesto do Surrealismo e uma religiosidade disfarçada no surrealismo: “repito que entre nós essa discussão havia acontecido na véspera, à noite. Vê-se como os fatos dessa ordem podiam encadear-se em meu espírito. E é isso que é taxado de misticismo em mim. A relação causal, vêm me dizer, não poderia se estabelecer nesse 26 sentido. Não há nenhuma relação sensível entre aquela carta que lhe chega da Suíça e tal preocupação que poderia ser a sua nas vizinhanças do momento em que essa carta foi escrita. Mas isso não é, pergunto, absolutizar de uma maneira lamentável a noção de causalidade? Não é deixar passar a palavra de Engels: ‘A causalidade não deve ser compreendida senão em ligação com a categoria do acaso objetivo, forma de manifestação da necessidade’?” Assim aparece na obra bretoniana a expressão acaso objetivo, associada a um Sansão, seu duplo, mas atribuída a Engels. No entanto, mostrou Marguerite Bonnet, [24] ela não se encontra em lugar algum na obra de Engels. Em “Situação surrealista do objeto”, Breton voltaria a falar do acaso objetivo, mas sem remetê-lo a Engels, porém apenas ao “humor objetivo” de Hegel. Mas o que faz que realidade e consciência se subordinem ao sonho? É o desejo, responde Breton em Les vases communicants: “Muito mais significativo é observar como a exigência do desejo em busca do objeto de sua realização dispõe estranhamente dos dados exteriores, tendendo egoisticamente a só reter deles aquilo que pode servir a sua causa. A vã agitação da rua tornou-se pouco mais incômoda que o movimento das cortinas. O desejo está lá, cortando o tecido que não muda com rapidez suficiente, depois deixando correr seu fio seguro e frágil entre os pedaços. Ele não cederá a nenhum regulador objetivo da conduta humana”. Breton faz crítica marxista à psicanálise freudiana, ao questionar seu dualismo? Ou procede à freudização do marxismo, ao colocar não só o comportamento humano mas o mundo todo sob a regência de Eros? Introduzir o acaso objetivo, por mais que essa categoria receba fundamentação, marxista inclusive, e freudiana, é apresentar uma solução mágica para a contradição de sujeito e objeto; ou resolvê-la magicamente. Algo que não é contraditório com as ligações de Breton com esoterismo, alquimia e demais disciplinas herméticas, a ponto de alternar, no Segundo Manifesto do Surrealismo, páginas de discussão política, de orientação marxista, e extensas notas de rodapé sobre astrologia e alquimia; ou, em Les Vases Communicants, de propor astrologia como ciência marxista, “desde que aquilo que é postulado seja tomado como postulado” – afirmação estranhamente circular. E com sua atração por médiuns e videntes, levando-o a freqüentá-las. Uma delas, Madame Sacco, com sua foto, paramentada como cigana, em Nadja. Em um texto de 1925, “Carta às videntes”, depois agregado aos Manifestos do Surrealismo, comenta uma previsão de Madame Sacco: “Ao que parece, devo ir à China por volta de 1931, e lá correr, durante vinte anos, grandes perigos. Duas vezes em duas ocasiões diferentes deixei que me dissessem isso, o que é bastante perturbador”. Seu interesse não decorre da “realidade” da profecia, da objetividade como realização empírica. Está na China: “Indiretamente, soube também que, antes disso, haveria de morrer. Mas eu não penso que ‘das duas, uma’. Tenho fé em tudo o que me disseram. Por nada nesse mundo resistiria à tentação que provocaram em mim, digamos: de aguardar-me na China. Tanto mais que, graças a vós, já estou lá.” O valor não está na exatidão das profecias, mas no efeito sobre a imaginação; sobre o sujeito: esse está na China. O acaso objetivo passaria a realizar-se e multiplicar-se, uma vez formulado. O amor louco é uma sucessão de episódios propiciatórios: poemas anteriores que são lembrados, conversas entreouvidas em um restaurante, encontros improváveis. Tudo isso – conferir estatuto de realidade ao acaso objetivo, valor às alucinações e ilusões de ótica, defender o alheamento – daria razão a críticas ao surrealismo como aquela de Sartre, em Situations, pelo afastamento do real e, conseqüentemente, de um compromisso. Cabe citar a observação de Ferdinand Alquié, em Philosophie du Surréalisme: “O surreal não é, portanto, o sobrenatural, e por isso, apesar da inquietude metafísica da consciência surrealista, não deve ser considerado como o correlato de uma consciência religiosa, ou de uma consciência mística, mas apenas de uma consciência artística. E sem dúvida a concepção que os surrealistas têm da arte, cujo poder emancipador nunca é esquecido, torna essa consciência indissoluvelmente estética e moral.” [25] Ademais, como observou 27 Carrouges, a percepção da objetividade nunca é neutra, porém, inclusive para Marx, função de quem percebe. Exemplifico: quando, ao visitar o parque do Xingu, caminhei alguns quilômetros em companhia de Tacumã, chefe Camaiurá, ele via outras coisas na mata, e muito mais coisas que eu. Mas a melhor interpretação filosófica, penso, da relação surrealista de sujeito e objeto é aquela de Octavio Paz em La búsqueda del comienzo: “Para nós, o mundo real é um conjunto de objetos ou entes. Antes da idade moderna, esse mundo estava dotado de uma certa intencionalidade, atravessado, por assim dizê-lo, pela vontade de Deus. Os homens, a natureza e as próprias coisas estavam impregnadas de algo que as transcendia; possuíam valor; era boas ou más. A idéia de utilidade – que nada mais é senão a degradação moderna da noção de bem – impregnou depois nossa idéia de realidade. Os entes e objetos que constituem a realidade se tornaram, para nós, coisas úteis, inaproveitáveis ou nocivas. Nada escapa a essa idéia do mundo como um vasto utensílio: nem a natureza, nem os homens, nem a própria mulher; tudo é um para… todos somos instrumentos. E aqueles que, do alto da pirâmide social, manejam essa enorme e ruidosa maquinaria, também são utensílios, também são ferramentas que se movem maquinalmente. O mundo se converteu em uma gigantesca máquina que gira no vazio, alimentando-se sem cessar de seus detritos. Pois bem: o surrealismo se recusa a ver o mundo como um conjunto de coisas boas e más, umas preenchidas pelo ser divino, outras roídas pelo nada; daí seu anticristianismo. Igualmente, nega-se a ver o mundo como um conglomerado de coisas úteis ou nocivas; daí seu anticapitalismo. As idéias de moral e utilidade lhe são estrangeiras. Finalmente, tampouco considera o mundo à maneira do homem de ciência puro, ou seja, como um objeto ou grupo de objetos desnudados de todo valor, desprendido do observador. Nunca é possível o objeto em si; sempre está iluminado pelo olho que o mira, sempre está moldado pela mão que o acaricia, o oprime ou empunha. O objeto, instalado em sua realidade irrisória como um rei em um vulcão, prontamente muda de forma e se transforma em outra coisa. O olho que o mira o amacia como cera; a mão que o toca o modela como argila. O objeto se subjetiviza. [26] Ou, como diz um herói de Arnim: “Posso discernir com dificuldade o que vejo com os olhos da realidade do que vejo com os olhos da imaginação.” Evidentemente, trata-se dos mesmos olhos, porém servindo a poderes distintos. E assim se inicia uma vasta transformação da realidade. Filho do desejo, nasce o objeto surrealista: a reunião de montanhas é outra vez cena de gigantes, as manchas na parede ganham vida, põem-se a voar e são um exército de aves que, com seus bicos terríveis rasgam o ventre da formosa acorrentada.” [27] Deslocamentos de objetos, o método paranóico-crítico, registros de sonhos, escrita automática, segue Paz, não são “exercícios gratuitos de caráter estético”, pois “Seu propósito é subversivo: abolir esta realidade que uma civilização vacilante nos impôs como a só e única verdadeira”. A destruição da falsa realidade revela outra, que “se levanta de sua tumba de lugares comuns e coincide com o homem”, na qual “somos de verdade”. Nela, “o mundo já não se apresenta como um ‘horizonte de utensílios’, mas como um campo magnético.” Mas, “se o objeto se subjetiviza, o eu se desagrega”, realizando a máxima de Rimbaud, “Eu é um outro”. Assim ocorre a “sistemática destruição do eu – ou, melhor dizendo: a objetivização do sujeito”. O par de categorias proposto por Paz, subjetivização do objeto e objetivização do sujeito, dá conta, filosoficamente, do debate sobre a questão do sujeito – e correlatamente do objeto – no âmbito do surrealismo. O que havia exposto, citando Breton, é uma justificativa desses termos. Ainda teria outros tópicos e questões da filosofia a examinar, marginalmente. Um deles, clássico, aquele da natureza da linguagem e sua relação com a realidade, importante desde Platão e Aristóteles; e, especialmente, no confronto medieval de realistas e nominalistas. O surrealismo parece adotar a posição realista; por exemplo, quando Breton, em um texto 28 contemporâneo do primeiro Manifesto, intitulado “Discours sur le peu de realité”, [28] afirma que “enunciados medíocres produzem uma realidade medíocre”; e, reciprocamente, que a poesia instaura o maravilhoso. O realismo será adotado por Mabille, em Le miroir du Merveilleux: “Para mim, como para os realistas da Idade Média, nenhuma diferença fundamental existe entre os elementos do pensamento e os fenômenos do mundo, entre o visível e o compreensível, entre o perceptível e o imaginável”. Isso porque, parafraseando Hermes (e Novalis e os demais românticos de Jena), “tudo está em nós assim como aquilo que está fora de nós, para constituir uma só realidade”. De modo conseqüente, “o conhecimento do signo leva ao conhecimento da coisa” e “a ciência da linguagem resume todas as outras ciências”; deixando claro, porém, que essa “ciência” não é aquela da “deplorável atmosfera de secura abstrata na qual os gramáticos e os intelectuais especializados situaram o estudo das palavras” (“gramáticos”… – Mabille não chegou a presenciar os empreendimentos formalistas). Para alcançar o Verbo, um caminho: “Nas iniciações antigas, o primeiro e mais longo trabalho consistia em aprender a ler”. Mais que retorno a um debate arcaico, são afirmações precursoras de um debate contemporâneo: aquele suscitado pelo relativismo lingüístico, as teses de Whorf-Sapir. Fundadas em estudos antropológicos, mostram que a percepção do mundo é função da organização da linguagem. Nesse sentido, a linguagem produz realidade. “Pouca realidade”, no dizer de Breton, quando prosaica; “mais realidade”, surrealidade, quando poética. Como sintetizado por Octavio Paz: “as línguas são mais inteligentes do que os homens que as falam”. A citação é de seu ensaio sobre haicais. [29] Em outro ensaio, “Leitura e contemplação”, examinaria questões suscitadas por Whorf e Sapir: “Cada idioma é uma interpretação do universo, um prisma através do qual vemos o universo não-linguístico. Cassirer o disse de maneira ao mesmo tempo sucinta e clara: ‘O homem não somente pensa o mundo por meio da linguagem: sua visão de mundo já está determinada por sua linguagem.’ A origem dessas idéias, na Idade Moderna, remonta provavelmente a Vico e a Herder, os dois primeiros a oferecer de modo coerente uma visão pluralista da história.” [30] Esse é o sentido da caracterização do surrealismo por Breton, no último de seus manifestos, Do surrealismo em suas obras vivas, de 1953, como “operação que tendia a restituir a linguagem à sua verdadeira vida” e movimento que “nasceu numa operação de grande envergadura que tinha por objeto a linguagem”, para “descobrir o segredo de uma linguagem cujos elementos deixassem de se comportar como restos do naufrágio à flor das águas de um mar morto”. Para tal, importava “subtraí-las a seu uso cada vez mais utilitário”. Tais afirmações devem ser lidas como completando do que havia afirmado sobre a “crise do objeto”. O alvo dos ataques surrealistas é, evidentemente, a ordem estabelecida; em filosofia, especialmente, o “cogito” cartesiano. De modo mais explícito, por Louis Aragon na abertura de O camponês de Paris, de 1928, intitulada “Prefácio para uma mitologia moderna”. [31] Sobre o “certo”, a “certeza” e a “verdade”, diz: “A certeza é realidade. Dessa crença fundamental procede o sucesso da famosa doutrina cartesiana da evidência. Ainda não terminamos de descobrir os estragos dessa ilusão”. Não apenas contrapõe-lhe o erro, mas afirma que ambos, certeza e erro, constituem-se em unidade, em uma relação semelhante àquela de luz e sombra. Interdependentes, uma não existe sem a outra: “Essa sombra, da qual ele pretende se abster para descrever a luz, é o erro com seus caracteres desconhecidos, o erro que, sozinho, poderia revelar, àquele que o tivesse encarado de frente, a fugitiva realidade. Mas quem não compreende que a imagem do erro e a imagem da verdade não poderiam ter traços diferentes?” Dialetiza. E contrapõe o pensamento analógico à lógica cartesiana. Nesse livro, a passagem da Ópera e o parque das Buttes Chaumont são pórticos para “iluminações profanas”, como as designou Benjamin, através do “erro” e da errância em lugares eleitos. Conforme a tradutora Flávia Nascimento, “Errar pelo jardim em plena noite funciona como técnica alucinógena cujo objetivo é fazer aflorar o que há de mais primitivo no homem; e percorrer esta topografia equivale a percorrer os caminhos sinuosos do 29 inconsciente”. Por isso,Aragon anuncia o retorno de divindades arcaicas e novos mitos urbanos. O retorno ao mito foi reivindicado por surrealistas em geral e Breton em especial. “Flagrant délit, [32] o ensaio em que denunciou a publicação de uma falsificação de Rimbaud intitulada La chasse spirituelle, é aberto com a defesa da alegada mitificação surrealista de Rimbaud (e de Lautréamont, entre outros). A propósito de uma mostra sobre a civilização maia no Louvre, argumenta que, assim como as obras dos maias são a expressão de mitos, a de Rimbaud propunha novos mitos. Citando, de Apollinaire, “Você nunca conhecerá bem/ os/ Maias”, advertiu: “Você nunca conhecerá bem Rimbaud”. O cerne de sua argumentação, repetindo Schelling: o surrealismo situa-se no campo do mito; e o mito é meio de conhecimento, mais efetivo que a lógica. Um passo adiante é sua crítica ao antropocentrismo, à idéia do homem como centro do universo, passando a pensá-lo como parte de um todo. De fato, uma vez admitida a unidade, não se sustenta a atribuição de um estatuto ontológico à separação do homem – ou o espírito, ou a alma – e do mundo das coisas, como nas teologias judaico-cristãs e em sistemas como o de Descartes. Na mesma medida, passam a valer panteísmos, vitalismos, idéias da alma universal. Por isso, nos dois últimos manifestos – Prolegômenos a um terceiro manifesto do Surrealismo ou não de 1942, e Do Surrealismo e de suas obras vivas de 1953 – é proposto um novo mito, dos “grandes transparentes”. Nem é preciso observar que, com tais proposições, Breton toma distância do pensamento marxista. A gênese da filosofia já foi interpretada como revolta do logos contra o mito. Por exemplo, por Mircea Eliade: “a cultura grega foi a única a submeter o mito a uma longa e penetrante análise, da qual ele saiu radicalmente ‘desmitificado’. A ascensão do racionalismo jônico coincide com uma crítica cada vez mais corrosiva da mitologia ‘clássica’, tal como é expressa nos obras de Homero e de Hesíodo. Se em todas as línguas européias o vocábulo ‘mito’ denota uma ‘ficção’, é porque os gregos o proclamaram há vinte e cinco séculos.” [33] Ou por E. R. Curtius: “O pensamento de Hesíodo era mítico. Opôs-se-lhe, desde o século VI, o pensamento da filosofia natural jônica. É um espetáculo maravilhoso a irrupção da filosofia no espírito grego, tomando de assalto todas as posições do inimigo. É a revolta do logos contra o mito… e também contra a poesia.” [34] A resposta do mito ao ataque do logos tem um nome, conforme Paz. Chama-se rebelião: “O rebelde, anjo caído ou titã, é o eterno inconformado. Sua ação não se inscreve no tempo retilíneo da história, domínio do revolucionário ou do reformista, mas no tempo circular do mito: Júpiter será destronado. Quetzalcoatl voltará, Luzbel regressará ao céu. Durante todo o século XIX o rebelde viveu à margem. Os revolucionários e os reformistas o vêem com a mesma desconfiança com que Platão vira o poeta, e pela mesma razão: o rebelde prolonga os prestígios nefastos do mito.” [35] O surrealismo, sendo rebelião em favor do mito e contra o logos, promoveu-a, a exemplo dos românticos aqui citados, sem descartar a reflexão filosófica. Sendo um pensar totalizante, em busca da unidade, incorporou-a e reinterpretou-a. E o fez de modo instigante e produtivo, como sugerido, espero, através deste exame. NOTAS 1. Breton, André, Nadja, collection Folio, Gallimard, Paris, 1964; Nadja, tradução de Ivo Barroso, Cosac Naify, Rio de Janeiro, 2006. 2. Baudelaire, Charles, Charles Baudelaire, Poesia e Prosa, organizada por Ivo Barroso, diversos tradutores, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1995, pg. 789. 3. As citações são de Novalis, Philosophical Writings, organizado e traduzido por Margaret Mahony Stoljar, State University of New York Press, Albany, NY, 1997. Sempre que o tradutor não estiver indicado, a tradução é minha. 4. Citado por Octavio Paz em Signos em Rotação, tradução de Sebastião Uchoa Leite, São Paulo, Perspectiva, 1972. 30 5. Chénieux-Gendron, Jacqueline, O Surrealismo, tradução de Mário Laranjeira, São Paulo, Martins Fontes, 1992 6. Alexandrian, Sarane, Le Surréalisme et le réve, Paris, Gallimard, 1974. 7. Em itálico no original. 8. Breton, André, Manifestos do Surrealismo, tradução de Sérgio Pachá, Nau Editora, Rio de Janeiro, 2001. 9. Breton, André, Arcano 17, tradução de Maria Teresa de Freitas e Rosa Maria Boaventura, São Paulo, Brasiliense, 1985. 10. É o final de Discurso no Congresso de Escritores, em Posição Política do Surrealismo, conjunto de textos agregado às edições dos Manifestos do Surrealismo. 11. Carrouges, Michel, André Breton et les données fondamentales du Surréalisme, Paris, Gallimard, 1971. 12. Breton, André, O Amor Louco, tradução de Luiza Neto Jorge, Lisboa, Editorial Estampa, 1971. Nos comentários sobre essa e outras obras de Breton, retomo o que havia publicado em “Magia, Poesia e Realidade: O Acaso Objetivo em André Breton” em O Surrealismo, organizado por J. Guinsburg e Sheila Leirner, São Paulo, Perspectiva, coleção Signos, 2008 13. Na tradução de Ivan Junqueira no já citado Charles Baudelaire: poesia e prosa. 14. Os grifos são do próprio Breton. 15. Breton, Les pas perdus, Paris, Gallimard – Idées, 1974. 16. Mabille, Pierre, Le miroir du merveilleux, Paris, Les Éditions du Minuit, 1962. 17. Breton, La clé des champs, Paris, Societé Nouvelle des Éditions Pauvert – Le livre de Poche, 1979 18. Breton, Point du jour, Paris, Gallimard - Folio, 1970 19. Também na edição já citada de Manifestos do Surrealismo. 20. Béhar, Henry, André Breton, Le grand indésirable, Paris, Calmann-Lévy, 1990. 21. Breton, André, Les vases communicants, Idées, Gallimard, Paris, 1985. 22. Grifo de Breton, assim como na citação seguinte. 23. No prefácio do já citado Le Surréalisme et le Réve de Alexandrian. 24. Em Oeuvres complètes de Breton, organizadas por Marguerite Bonnet, Éditions Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, vol. II, 1992, nas notas para Les vases communicants. 25. Alquié, Ferdinand, Philosophie du surréalisme, Paris, Flammarion, 1977 26. Grifo meu. 27. Paz, La búsqueda del comienzo, Madri, Editorial Fundamentos/ Espiral, 1974 28. Breton, Point du Jour, Paris, Gallimard – Folio, 1970. 29. Integra o já citado Signos em Rotação. 30. Está na coletânea Convergências – Ensaios sobre arte e literatura, tradução de Moacyr Werneck de Castro, Rio de Janeiro, Rocco, 1991. 31. Aragon, Louis, O Camponês de Paris, tradução de Flavia Nascimento, São Paulo: Imago, 1998. 32. Publicado na coletânea La clé des champs, já citada aqui. 33. Eliade, Mircea, Mito e realidade, tradução de Pola Civelli, São Paulo, Perspectiva, 1972 34. Curtius, Ernst Robert, Literatura Européia e Idade Média Latina, tradução de Teodoro Cabral e Paulo Rónai, Hucitec – EDUSP, São Paulo, 1996. 35. “Revolta, revolução e rebelião”, também na coletânea Signos em rotação. Claudio Willer (Brasil, 1940). Poeta, ensaísta, tradutor. Foi co-editor da Agulha Revista de Cultura em seus 10 primeiros anos de atividade. O texto que aqui publicamos é uma atualização ampliada da palestra A crítica filosófica e a questão do sujeito no surrealismo (II Jornada de Filosofia e Literatura do Depto. de Filosofia da Unifesp, 09/12/2013. Contato: [email protected]. Visite também seu blog: http://claudiowiller.wordpress.com/. Página ilustrada com obras de Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 31 DAVID CORTÉS CABÁN | Conocerse es el relámpago[1]: Caballo de palo, de Clemente Soto Vélez La década de 1950 fue sumamente productiva para el poeta Clemente Soto Vélez (19051993). En un periodo de cinco años fueron publicados en Nueva York Abrazo interno (1954), Árboles (1955) y Caballo de palo (1959). [2] Su primer libro, Escalio (1937), [3] ya había sido publicado en Puerto Rico por un grupo de amigos mientras el poeta permanecía encarcelado por sus ideales de una patria libre y soberana, en la penitenciaría federal de Atlanta, Georgia (1936-1940); y luego, por haber violado su libertad condicional al viajar a la Isla, dos años más en la prisión de Lewisburg, Pennsylvania (1040-1942). Después de salir de la prisión Soto Vélez se radica en la ciudad de Nueva York donde irá produciendo la mayor parte de su obra poética. [4] Los amigos, con quienes a través de los años he conversado sobre la poesía puertorriqueña escrita tanto en Nueva York como en Puerto Rico, solemos coincidir en que Caballo de palo es uno de los libros más representativos de nuestra vanguardia literaria publicado en la década del 50. [5] Esto por razones sustentables en la naturaleza de su estructura poética y la esencia de un lenguaje que conserva siempre una profunda vitalidad por el sentido y riqueza de sus imágenes. En el momento de su primera aparición Caballo de palo no tuvo la acogida ni el reconocimiento que ameritaba tener y creo poco probable que la segunda edición que manejo, publicada por el Instituto de Cultura Puertorriqueña en 1976, con un excelente prólogo de Jorge Señeriz, haya tenido mejor suerte. Hasta el momento nada he visto que señale la importancia de aquella primera edición de 1959. No ha sido sino hasta 1980 y años subsiguientes que se han venido realizando estudios significativos sobre la importancia y proyección de su obra. Y es que los tiempos y el ambiente cambian y lo que había sido lejano y extraño para algunos, hoy comienza a adquirir una luz más perceptible en la mirada. Volvemos a los poetas que demarcaron en su tiempo el camino de nuestra vanguardia literaria no para justificar nuestra dejadez u olvido, sino para reconocer la importancia de sus textos como símbolos emblemáticos de nuestra modernidad. Este es el caso de Caballo de palo; indudablemente un símbolo representativo de esa modernidad. Un poema que conlleva una concepción ética y solidaria de la vida y una visión que reacciona contra la percepción tradicional de su tiempo. Un poema que busca anular las fronteras geográficas del mundo a través de una intuición lírica que sólo puede fundarse en el conocimiento de la libertad. No una libertad falsificada por los valores que refleja la vida moderna, sino por otros más acordes con un mundo libre de prejuicios y de una libertad que excluya de sí la soberbia y alabanza del yo. Ya en Escalio el poeta concebía la libertad como el foco iluminador de una conciencia que postulaba un sentido de la vida en continua comunión con el universo. Buscaba la esperanza de una perfección apoyada por completo en una conciencia que fundara un balance entre lo que sentía el hablante lírico y lo que percibía su mirada. Justamente frente al materialismo y las fuerzas del mal (el imperialismo), buscaba una sabiduría fundada en la plenitud del ser estableciendo así un diálogo entre el conocimiento y la creación. Había hallado en “la imaginación creadora” y el “conocimiento” las fuerzas liberadoras para logra, ese ideal: “El conocimiento va a sostener que la humanidad es un sistema radicalmente distinto de los otros sistemas de universos que forman la creación sin límites” (Escalio, p.17). Puesta su fe en el conocimiento, lo veía como la expresión más intensa del ser y como el resultado de la fuerza creadora de la imaginación. En Caballo de palo esta forma de conocimiento y de relaciones entre el poeta y su realidad histórica se convertirá en el eje central del libro. Ese “conocimiento”, diseminado en acciones reiterativas a través del texto, irá proyectando al sujeto lírico mediante las experiencias reveladoras de su ser en las cosas 32 que nombra. Un conocer que proyecta su relación con el mundo no ya como una abstracción filosófica u onírica, sino como una experiencia liberadora ante lo que implica el sentido mismo de esa libertad. Por eso, cada escenario del poema representa una especie de energía liberadora que parte de la estructura del texto para encarnar una imagen del “yo” en continua trasformación del proceso que ordena ese conocimiento. Esto en virtud de un lenguaje cuyos elementos se caracterizan no sólo por el “tono confesional” que apoya esa experiencia, sino por un pensamiento sustentado también en la riqueza y novedad de sus imágenes. Desde el punto de vista formal Caballo de palo parece un poema sencillo. Posee una estructura unitaria montada sobre escasos recursos literarios: [6] el gerundio desata la fuerza y dinamismo del verso, mientras la anáfora enfatiza el efecto sonoro y el paralelismo de las estrofas. Por otra parte, la conjunción o usada para crear un sentido de valores entre un concepto u otro, representa en este caso un sentido de igualdad como notamos en la confección de las estrofas. Los 1, 724 versos que componen la arquitectura física del texto van distribuidos en secciones marcadas con números arábigos. Estas secciones, veintiuna en total, están compuestas de versos libres que varían en extensión métrica y reiteran un mismo modo de construcción gramatical: lo conocí… acentuando así el tono y la continuidad expresiva de los versos a través de múltiples y variadas acciones. Las experiencias de ese conocer contienen un sentido más profundo y significativo de lo que el verbo encierra. Expresan un pensamiento que se proyecta como un triunfo sobre las fuerzas que dominan la conciencia sometiéndola a un mundo dominado por ideologías contrarias al verdadero sentido de la libertad. En los primeros versos del poema se menciona el nombre y nacimiento del poeta en un marco de referencias que trascienden su existencia. Su nacimiento se convierte así en una expresión jubilosa que descarta todo aislamiento físico y geográfico que limite la plenitud de la vida. La estrofa que va del verso 1 al 197 trata de este nacimiento. En él, y desde esta perspectiva, se enfatiza también la imagen de la Isla que asciende en una proyección equitativa entre los países mencionados en el texto. De este modo se presenta la grandeza de la patria trascendida en una visión más significativa del universo y no reducida a un simple concepto territorial: Clemente Soto Vélez nació un mes de enero en Puerto Rico como si hubiese visto en Madrid el aire primero de la vida, como si hubiera tocado en París la primavera, como si su infancia auroral hubiera florecido en Atenas o en Roma, como si su grito inicial se hubiese oído en Berlín o en Ejipto [7] o en la India, en Libia o en Liberia en Lisboa o en Marruecos, en Río de Janeiro o en Etiopía en Túnez o en Londres, en Buenos Aires o en México, (p. 23) (…) 33 La visión que acompaña ese nacimiento se ve transformada por una que erosiona las fronteras humanas creando así un vínculo más solidario del mundo. Se proyecta no el nacimiento de una criatura aislada, sino la de una que reconoce la plenitud de la libertad en la vasta geografía del planeta. En este sentido el poeta trasciende su realidad biográfica en territorios que igualmente podrían constituirse como su lugar de nacimiento: […] O como si el porvenir con su melena negra le hubiera enriquecido con el recio marfil de un amanecer de dientes africanos, o con el verdor herido del caminar de Irlanda, o en Indonesia que abre sus brazos de archipiélago erguido, señalando la fe tropical de sus islas, o como si hubiese sido concebido en Peiping alzada en sus poblados hasta la incandescencia de mediodías urjentes, persiguiendo la órbita de su ser planetario, o en la Checoeslovaquia poetizada en la sangre de sus hijos hermosos con espaldas de roble, […] (p. 24) Ese primer plano poético establece una relación sólida con el mundo. Pero esa relación no se define simplemente por el lugar geográfico, sino por el conocimiento que implica esa realidad. De ahí que la insistencia en conocerse a sí mismo tenga siempre como referencia el testimonio de un hablante que explora la condición de su estar en el mundo, ya sea en el sentido existencial o ético de la palabra. Caballo de palo, una imagen fundada prácticamente en un juego infantil, hace de ese conocimiento una vía transformadora. Es decir, de esa vivencia personal se pasa a explorar las situaciones y circunstancias que determinan su actitud frente al mundo. Estas relaciones girarán sobre experiencias vinculadas con el pasado, pero también con la realidad más inmediata del hablante. Se proyectan desde situaciones que han marcado su vida y ahora nos permiten acercarnos a su mundo. Por eso, los que hemos leído el poema podemos intuir la intención de estas acciones respecto a la posición ideológica y estética del poeta: Lo conocí cuidando caballos de palo y vacas de piedra, dándoles de comer la infancia de su ensueño ansioso de servir a los hombres. (p. 29) Presentado como una realidad que alude a múltiples experiencias ese “conocer”, trasciende hasta intensificarse en un vuelo vertiginoso a través de todo texto. Pero en el 34 primer plano [8] el nacimiento del protagonista (“Clemente Soto Vélez / nació / un mes de enero / en Puerto Rico…) va asociando a una visión más vasta y humana del mundo; y, en el segundo, ese “conocimiento” será también la vía que revele el proceso de transformación del hablante lírico mediante el compromiso de esa acción liberadora. En la acción de ese conocer está la fuerza y expansión del texto, expresada también en la fugacidad del pasado y en el inmediato acontecer de las cosas. En efecto, desde el punto de vista de la construcción, el discurso poético no hubiera sido posible técnicamente utilizando los tiempos gramaticales del presente o el futuro (lo conozco / lo conoceré). Esto por la dureza de la expresión y por la condición misma del proceso reiterativo, extensión y disposición de las estrofas. Por otro lado, este conocer dado en el modo indefinido y apoyado seguidamente en el gerundio, contiene la base fundacional del poema: la visión del hablante hasta el proceso mismo de su total transformación. Todo esto anunciado a un tiempo que ha quedado suspendido entre el pasado y el presente y visto siempre a través de una tercera persona gramatical: Lo conocí jugando con su edad entre las flores, cargando agua para bocas sedientas en las copas de los árboles. Lo conocí conversando entre sueños con el sufrimiento universal de los obreros o la pluralidad del corazón abriendo las mordeduras de sus pájinas ante el tribunal de los dolores. (p. 29) La niñez es una referencia evocadora de esa etapa de la vida, una imagen representativa del sentido transformador de esa experiencia. En más de una ocasión el hablante se referirá a ella no para idealizarla, sino para establecer lazos de referencias que contrasten con las consciencias subyugadas y la dureza del mundo. Repetidas veces se mencionará la niñez como una etapa superior de la existencia marcada por el amor y la calidez de la infancia: O como si su sonrisa orijinal hubiera jugado con los niños de Moscú, adulta en porvenir presente de clarines que anuncian su infancia sonora cantando a la paz, como cantan los niños de todos los países, los niños que no tienen sino su corazón para cantar la música viviente del color de sus almas, los niños que no tienen sino su corazón para unir sus juguetes y conversar con ellos 35 como luz que juega convertida en rocío, los niños que no tienen sino su corazón saltando de alborozo como un juguete nuevo cuando llega el huésped en forma inesperada, paloma acariciada, caricia mensajera, arrullo de emoción desplegando sus alas, los niños que no saben sino formar fronteras con música de besos, los niños de la tierra los niños de la tierra que, peleándose, se quieren y se adoran, se unen y se aman.(pp. 27-28) Esta imagen de la niñez contiene una vía exploratoria de su condición humana. En este contexto se reproducirá una variedad de acciones en las que percibimos al yo poético en el paisaje de esa infancia no contaminada por el materialismo y la dureza del mundo: Lo conocí echando a correr su voz sobre las aguas para cultivar el alfabeto del pueblo o niño que arrulla en los brazos todo el llanto del mundo. (p. 30) Y, en otra estrofa: Lo conocí encendiendo lámparas como diáfanos niños que ansían beber agua de luz que limpia con sus cálidas manos, la frente del arrullo que vuela como el manantial sediento de palomas. (p. 33) o, por ejemplo: Lo conocí internándose por la claridad de su palabra oscura, como el niño que no encuentra la luna en el agua dormida. (p. 42) Como señalara Pedro Salinas en uno de sus poemas: “Yo no necesito tiempo / para saber cómo eres: conocerse es el relámpago”, hablando ya desde una posición fundada en un ideal amoroso; en Clemente Soto Vélez este ideal nace de su relación y compromiso con la independencia de Puerto Rico. Este “conocerse” encarna una visión existencial que nos descubre además la dinámica que impulsa su escritura. Y lo que ética y estéticamente ésta 36 representa en la vida del poeta. Sabemos que Clemente Soto Vélez fue un poeta profundamente comprometido con las luchas por la independencia, pero en rigor también fue un poeta comprometido con el lenguaje. Notamos en su obra poética la continua búsqueda de esa concepción novedosa del lenguaje para “remover la fronda de la poesía puertorriqueña” como quería su compañero de generación y del Movimiento Atalayista, el Mistagogo en Ayunas como solía llamarse a sí mismo el poeta Graciany Miranda Archilla (1910-1993). Lo conocí aprendiendo a hacer con palabas morenas de tuatúa, ensoñación de tártago, vijilia de grosellas, idilios de limón, contajio de azucenas, azúcar de acritud, joyas de cabañuelas, juí de nostaljia entre agüeros agrios, asilos de quebradas entre amargos saludos de jazmines, verdolaga de inmunidad para nutrir de piedra pronósticos de barro, de tierra malherida en su sien por sus frutos menguantes; idealidad de acero fundida en Juan Cuchilla y en Juan Bobo: adalides de niñez hechizante, cordilleras que llevan en sus ancas por el aire a los niños iniciados en los cuentos heroicos, donde aparecen tigres que entienden sus palabras, lobos que aúllan de amor por sus vecinos, encantadoras novias que andan sobre el agua, lagos con ojos de leones cazando nubes con melenas de nácar, truenos como panteras paseando a los niños preguntones en las alas, batallones con cabezas de luceros peleando en lo interior de una naranja por la muchacha que sale de bañarse de un río muerto a la orilla de un grano de mostaza… (pp. 59-60) (…) En Soto Vélez los recuerdos se convertirán en una simbología del conocimiento que proveerá a sus versos una dimensión de profundos efectos sensoriales: “vacas de piedra”, “la muerte de un cadáver rociado de luna”, “frontera de rosas con cinturas de espigas”, “su infancia sonora cantando”, “la mañana de ojos pardos”, “lagos con ojos de leones, espuma de soledad que hierve”. Todas estas imágenes reflejan la influencia del surrealismo.[9] El paisaje surrealista que exploraron algunos de nuestros escritores en la década del ’20 y años subsiguientes, en su afán de exorcizar la poesía de los temas y matices postmodernistas. Por eso Caballo de palo es mucho más que un texto de ideología política; aunque ésta conlleve la mayor fuerza de esa expresión poética, no podemos pasar por alto el enfrentamiento del poeta con el lenguaje y la profunda intuición innovadora de su poesía. Esta actitud innovadora del grupo atalayista buscaba, como juntamente los hacían otros movimientos de 37 vanguardia en Puerto Rico, renovar el ambiente literario creando una literatura más afín con los movimientos estéticos y renovadores que se dieron en Europa y Latinoamérica. Desde el punto de vista cultural y lingüístico, hay en Caballo de palo palabras que exigen una interpretación mucho más abarcadora respecto al sentido que usualmente les damos. Por ejemplo: “caimito”, “mamey”, “ausubo”, “roble” y “cedro”, parecen fijar una connotación que implica una simbiosis representativa de la patria. ¿Qué características y qué sentido encarnan en relación a otros elementos del texto? ¿Por qué el hablante elige éstas y no otras para revestirlas de un sentido cuyo significado no depende ya de una interpretación común, sino de otra más profundamente relacionada con nuestro espíritu de pueblo? El mamey, el cedro, el ausubo son símbolos representativos de esa concepción dialéctica del conocimiento en la imagen de la naturaleza: “El mamey no es / caballo de noria, / el mamey determina / su historia / con su lengua de gloria, / en la liberación universal / del sufrimiento” (p. 65); “el ausubo su voluntad de pueblo jenital / contra la voluntad atlántica / y pacífica del mar que lo acorrala…” (p. 66); “el cedro su tronco de vocales / perfectas y precisas / como el cuerpo perfecto que brilla / en la respiración de la palabra…” (p. 67). Sobre estas frutas y esos árboles recae el sentido de lo que permanece por la esencia misma de su organismo vegetal. Contienen la plenitud y las fuerzas integradoras de una naturaleza que el poeta celebra en el juego dialéctico de esas imágenes: “Como mamey de tronco amanecido / en su carne de delicia aborijen, / alza la admiración sencilla y casta / su cuello hermoso…” Y luego: “El mamey no es / vacío de miel de incertidumbre, / no es / vacío de estambre de vislumbre, / no es / vacío de piel de dulcedumbre / no es / artífice de la prosodia / oscura…” (pp. 62-54). El cedro también revelará sus atributos en la majestuosidad de una imagen representativa de lo más noble y humano del ser: Lo conocí, ratificando el cedro su tronco de vocales perfectas y precisas como el cuerpo perfecto que brilla en la respiración de la palabra, ratificando el cedro su nudación semántica de intensidad anjélica como lengua que crea la aurora de su estirpe con rosicler de hígado y jugo de invención, ratificando el cedro su vuelo enmaderado de letras vejetales, ratificando el cedro su signo de animal creador y transparente como la disonancia que se encanta en su ritmo, ratificando el cedro minerales de sílabas que se inventan su encanto con sintagmas de metales de aroma (…) (pp. 66-67) En esa “ratificación” majestuosa del cedro hay un sentido de persistencia. Sus atributos y origen milenario reafirman su grandeza inconmensurable como sinónimo emblemático de la libertad y “como actitud robusta de pueblo floreciente / en su lengua corpórea hasta la efervescencia…” (p. 68). El cedro también personifica esa voluntad de lucha que permanece viva a través del tiempo. Pero su presencia envuelve, además, la imagen de una niñez 38 transfigurada en la simbología de su naturaleza: “ratificando / el cedro sus hojas suspendidas / como niños de toda la tierra / de un lenguaje de rosa que los une jugando / en sus juegos bellísimos y en sus almas purísimas”. Esta imagen de la niñez es significativa porque influye en la relación del poeta con su entorno y en su visión de un mundo libre de toda influencia materialista: “Mi amistad / es pura como el niño que acaba de nacer”, enfatiza en este verso. En este sentido, los árboles y frutos condicionan la revelación de ese conocimiento que se extiende por todo el poema proyectando, a su vez, diferentes enfoques de un conocer cuyo proceso concluirá, de manera directa, con el nombre del poeta. Es decir, uniendo principio y fin en la culminación simbólica de un conocimiento que trasciende la vida del sujeto poético para generar en el lector una toma de conciencia, un cambio de actitud hacia nuestra realidad colonial. Un conocer que elimine todo rasgo de sometimiento, y se convierta en una fuerza liberadora plenamente consciente del valor y el sacrificio que exige la lucha por la independencia y la libertad de un pueblo: Lo conocí mudando la esperanza de imájenes amarillas de sufrimiento alzado a población de rara complacencia, donde el prodijio no goza del recurso insigne del medio transparente, donde lo padecido es el manjar intenso del viajero sublime que produce la gracia que contiene su espíritu frugal de refuljencia, donde la eternidad colinda con su cuerpo como la colindancia de su tierra y su cielo, donde lo esperanzado es carne de sí mismo que se acerca, solícita, como animal indócil llorando de ternura. (pp. 76, 77) La relación del hablante con su entorno expone la concepción dialéctica de ese conocimiento como el fundamento esencial del poema. Caballo de palo representa, en cierto modo, la trascendencia misma de ese conocer. Encarna una imagen del yo expresado en un lenguaje que afirma el deseo de una patria soberana. Insiste en ofrecer al lector la visión de un conocimiento del ser justificado en un ideal patriótico. Un “conocer” que en la vida del poeta implicó ─como algunos sabemos─ riegos, enfrentamientos, persecuciones, cárceles y aislamiento. Por eso, su lenguaje y su vida, su vida marcada por el profundo anhelo de libertad que lo consumía lo identificó siempre con el ideal de independencia y de justicia para la Isla asediada. Creó, en este poema ejemplar, un luminoso paisaje de reflexiones y de posibilidades interpretativas, pero siempre partiendo de los motivos que constituyen la verdadera esencia de con ese conocer: Lo conocí cosiendo con su nombre el traje de su amada, midiendo con su sombra las curvas de su espejo, sacando de su frente 39 la cualidad del alma, cuidando el padecer el puerto encarcelado donde ella ve a su amante despertando a la niebla, bebiendo cada hoja de rocío de su patria comiendo cada sueño la carne de su tierra, prendiendo cada fruto su lámpara de pueblo. (p. 79) Ciertamente se está hablando aquí de la libertad revelada en el lenguaje de la patria amada. Una invención sublimada de las múltiples experiencias por las que pasa el yo poético: “Lo conocí / siendo / la libertad su encantadora amante, / lirio de sol de dalia enamorada, / doncella apalabrada del doncel que la mira / derecho en sus pupilas hasta beber / su encanto…” Y luego, en el vuelo inventivo de esas imágenes: “Lo conocí / partiendo / su amada entre relámpagos de palabra inoída” (p. 79). Así, porque en el instante prodigioso de esa revelación llegamos a comprender que la libertad no es una utopía o un sueño, sino el sentido pleno y sagrado que sostiene la vida en su milagroso acontecer. Esto lo conoce muy bien el poeta como también conoce su dolor, su destino, su existencia en la entrega total de su amor a la patria: “Y / siendo / así que aquellos que han burlado / el reino de la libertad / o su sustancia, / sufren / de excelsitud con ella sola…” (p. 80), dice rechazando la actitud de los que creen amar la patria condicionando su libertad a otros intereses. No obstante, hacia el “reino de la libertad” galopa Caballo de palo en esplendorosa transformación del ser que vislumbra otro futuro. Y en la serena contemplación de sí mismo trasciende las limitaciones de la vida elevando su espíritu hacia la más alta cumbre del sacrificio total: Y viniendo su amada relampagueando como relámpago en cuerpo de doncella, aquellos que violan su sustancia, aquellos que la violan en su cuerpo, son como piedra entorpecida quemándose la lengua, y no pudiendo deglutir su fuego y no pudiendo saborear su llama, su palabra se esparce, derretida como la sangre nueva del alma libertada. (p. 81) Pero queda un último pasaje de sorprendente lucidez, un reflejo de mística y reveladora trascendencia; un plano mágico donde se detiene el movimiento del poema para que el sujeto reconozca por última vez la certera vocación de su destino: “Clemente, / déjame 40 llamarte / por tu nombre, aunque no se / quién eres / ni intento / descubrirlo, / tus enemigos / guardan el retrato de tu nombre, / como la novia apasionada que porta / en su cartera la prenda del peligro…” (p. 85). Divina naturaleza de este lenguaje, iluminadora intuición que sugiere una cosa por otra porque en la dimensión temporal del poema el poeta sí sabe quién es, ha ido como el fluir de un río por los diferentes meandros de ese conocer. Su voz nos lo ha revelado una y otra vez en el profundo sentido de ese conocer. Lo percibimos ahora detenido en la reflexión contemplativa de ese lenguaje que libera su vida en la contemplación de su muerte: Clemente, por la sed que bebe de tu estrella, te digo que yo moriré antes que tú, porque muriendo tengo que vivir por tu vida, sin que tú me conozcas y sin yo conocerte, pero es más importante saber que no nos conocemos siendo tan entrañables amigos. (p. 86) Lo vemos en la imagen totalizadora que devela su último pensamiento en el ámbito de esa libertad que lo identifica con la imagen de la amada: Y por eso tú no temes a tu amada, y por eso tú no temes a los ojos de tu amada, y por eso tú no temes a los pasos de tu amada, porque tu amada es como río crecido creciendo en la lengua de su amante. Yo sé que tú tienes muchísimos amigos, pero yo nunca te dejaré a deshora. A la hora del relámpago, muchas son las flores que cuando azota el huracán, no dejan libar a la abeja perseguida, pero yo guardo con la mía la espalda tuya, y esto lo puedes escribir con la K de Clemente. Así, en la entrega total de esa “hora del relámpago” de la vida y la muerte, va el poeta ascendiendo a través de la experiencia liberadora del ser. En el plano de ese conocimiento de 41 sí mismo que fluye como la conciencia liberadora de su universo poético. Allí mismo, frente a un conocer que le devela todo el sentido de la vida en la plenitud de esa infinita libertad. Sí, allí mismo, en el ámbito de esas imágenes relampagueantes discurre su alma; así tan leve, sostenida por el inapelable signo de la amada que guarda su nombre “y esto lo puedes escribir / con la K de Clemente”. NOTAS: 1. Verso de poeta español Pedro Salinas. 2. Estos libros fueron publicados por Las Américas Publishing Co., ya desaparecida, y en aquel tiempo ubicada en el 249 West de la 13th Street en Nueva York. En esta misma colección literaria se publicaron, además, libros de los puertorriqueños: Jorge Luis Morales (Decir del propio ser), Carmen Puigdollers (Dominio entre alas), María Teresa Babín (Fantasía Boricua), Emilio Delgado (Tiempos de amor breve) y Pedro Carrasquillo (Requinto). 3. En la última página del libro se da el lugar y fecha de publicación en números romanos: “Se acabó de imprimir ESCALIO en los talleres de la Imprenta Puerto Rico, Inc., a los dieciséis días del mes de junio del año MCMXXXVII en la ciudad de San Juan Bautista de Puerto Rico”. 4. Sus últimos libros: La tierra prometida (1979) y Mujer u ombre u ombre o mujer (2004) fueron publicados por el Instituto de Cultura Puertorriqueña que también publicó en 1976 la segunda edición de Caballo de palo, que es la que utilizo para esta reseña. 5. En esta década ocurren hechos fundamentales en el ámbito político y literario puertorriqueño: fallecen en la Isla Juan Ramón Jiménez (1881-1958) y su esposa Zenobia Camprubí Aymar (18871956). Fallece también Luis Palés Matos (1898-1959). Se crea el Instituto de Cultura Puertorriqueña en 1955. Ocurre el Levantamiento Nacionalista del 1950; se proclama la Constitución del Estado Libre Asociado, 1952; en 1954 ocurre el ataque al Congreso Norteamericano cuyo objetivo era llamar la atención mundial sobre la situación colonial de la Isla y la lucha por la independencia. Se crea también en 1956 la Federación Universitaria Pro Independencia de Puerto Rico (FUPI). 6. Sobre este aspecto del poema, señala Jorge Señeriz: “Todas las estrofas empiezan con “lo conocí”, es decir, se conoció a sí mismo en uno de esos estados posibles de su existencia en movimiento y en seguida un gerundio: excitando, saliendo, soñando, meciendo, y así hasta el final de la obra”. p. 16. 7. El uso del fonema j por la g corresponde a una particularidad de estilo del poeta. Esta estructura gramatical la veremos a través de todo el texto. Recordemos que el poeta español Juan Ramón Jiménez usaba la j y no la g en su escritura para enfatizar el sentido del habla y no el que dicta la ortografía. Como conocemos los lectores de Clemente, el poeta también omite la grafía h en su libro mujer u ombre u ombre o mujer, por carecer de representación fonética. Al final de este poema la “C” de Clemente pasa a convertirse en “K” aludiendo así al sentido y transformación en la vida del hablante poético. 8. No sé si otros lectores se han detenido en esta particularidad. Al menos para mí, existen dos planos que se complementan. El primero revela al protagonista lirico desdoblado en la figura del poeta (que se presenta con nombre y apellido en la estrofa que abre el poema); y, la segunda parte ubica al lector en un contexto más abarcador del discurso poético. 9. La influencia del surrealismo en la obra de Clemente Soto Vélez y de los poetas que formaron el movimiento Atalayista, especialmente las voces más innovadoras de este grupo: Graciany Miranda Archilla, Alfredo Margenat y Fernando González Alberty, debería ser material de estudio para quien desee adentrarse en este movimiento tan significativo de nuestra vanguardia. DAVID CORTÉS CABÁN (Puerto Rico, 1952). Poeta, ensayista. Ha publicado los siguientes libros: Poemas y otros silencios (1981), Al final de las palabras (1985), Una hora antes (1990), El libro de los regresos (1999), y Ritual de pájaros: Antología personal 19812002 (2004). Fue cofundador de la revista Tercer Milenio. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (España), artista invitado de esta edición de ARC. 42 EDUARDO DALL’ALBA | As poéticas do grupo Matrícula INTRODUÇÃO | A poesia contida no grupo Matrícula trazia, ao seu tempo, poetas de diferente dicção, embora estivessem reunidos ali por formação do gosto, pelo senso estético e estilístico comuns e por isso, pelas afinidades eletivas compostas na formação escolar de cada um deles, o que, no livro Matrícula se entrevê como construção estética de um projeto que se confirmaria mais tarde, na trajetória de sua poesia. Apesar de apresentarem características estilísticas comuns entre si, vistas aqui e ali, a dicção de cada poeta que no Matrícula se estabeleceu, daria mostras de vir como uma vigorosa força, apesar da limitação histórico-geográfica brecar o excesso de produção, que se mostra esparsa, mas contínua, ao longo das três décadas seguintes. A par das semelhanças registradas na temática e na estilística, desponta a voz individual que marcaria a trajetória de cada um deles. Apontados como uma revelação da poesia na revista Civilização Brasileira, após o lançamento do Matrícula, este grupo de poetas continuou a pesquisa do universo ainda desconhecido da literatura Sul-rio-grandense, que se fundamentava em uma cultura recente e que, ao momento de publicação, ainda sentia os efeitos da disseminação cultural das capitais e a de anteriores injunções político-governamentais, que sitiou a língua dos colonos, ao tempo de Getúlio Vargas, isolando ainda mais uma região que já era isolada, desde a colonização, pela sua geografia. Daí que a pesquisa, vista sob o códice da língua portuguesa, irá revelar o conteúdo da cultura da região, e a manifestação em poesia, irá fundamentar o elemento humano de um lugar e não somente a paisagem registrada anteriormente na poesia como em Olmiro de Azevedo e outros exemplos, que, com o olhar estranho à terra, não concebiam o elemento colonizador como agregador de valor à cultura, não ao momento de do registro poético ou de qualquer outro registro, na escrita, que intentasse a leitura do lugar. Sobravam apenas, a paisagem como possibilidade descritiva, como texto fotográfico, e o penumbrismo do recorte individual da poesia de Vivita Cartier, a um tempo em que a cultura começava a ser pesquisada no país, pelos modernistas. Em um momento em que a região da serra gaúcha mal assimilava o discurso do centro do país, com suas regras militares que eram determinadas pelo império americano, o surgimento do livro Matrícula se punha a pesquisar, mapear e dar voz a uma cultura antes silenciada quer pela dificuldade do estabelecimento de uma cultura expulsa da Itália, quer pelo isolamento geográfico a que estavam submetidos os colonos. A publicação era já um pequeno grito, em um momento difícil da cena brasileira, que apontava para a luta por um espaço para a literatura em um lugar inóspito para a poesia. A poesia de Matrícula surgiu como um pequeno projeto de poetas que, vistos mais como poetas e menos como grupo que tinha, no entanto, um projeto político esboçado aqui e ali pelas brechas culturais que se ofereciam à época e que, desta forma, faziam lembrar, de modo pictórico ou alegórico, que em face à tirania, a poesia poderia ser um caminho para a liberdade de expressão individual primeiro e depois, coletiva. Em uma época em que os militares governavam por atos institucionais, realizar a publicação de poemas não era só um ato subversivo, no sentido de ser transgressivo, era a própria transgressão e apontava para uma alegórica forma de crítica, ainda que não tocassem exatamente em problemas sociais e políticos e cuidassem de mapear o universo da aldeia ainda desconhecido do país. Realizando uma poesia que deu/dá uma dicção à região da serra gaúcha, fugindo da dicção dialetal, a poesia do Matrícula se estabeleceu na linha da tradição da poesia ocidental, inserida na cultura cristã, ou seja, na linha da tradição da língua portuguesa, sem deixar de 43 beber na tradição da poesia neolatina, em especial a francesa, e a anglo-saxônica, e na linha do racionalismo cartesiano, o que, até então, não fora registrado na literatura do sul do país. A dicção individual, a partir daí, insere a poesia da serra no sistema da poesia brasileira de modo simbólico e discreto, como apontavam os meios e a época. Uma vez feita a escolha pela dicção da poesia na língua portuguesa, cumpria aos poetas estabelecerem a tradução de suas pesquisas do universo cultural que se manifestava, o mais das vezes, no universo da formação de uma comunidade formada por portugueses, italianos e alemães. A escolha estética do modus operandi viria da leitura dos poetas modernistas, que propunham, entre outras coisas, a renovação da linguagem e uma aproximação de uma leitura mais universal do homem brasileiro e da poesia posterior de João Cabral e dos irmãos Campos, Haroldo e Augusto, Décio Pignatari e, posteriormente, Mário Chamie e Ferreira Gullar, que propunham, de um lado, o rigor estético feito de depurações e depurações da linguagem, quando não da sintaxe, e de outro, o esgotamento da linguagem pela forma, lição aprendida de Mallarmé. Se era possível o esgotamento da taça da linguagem, caminho in verso rumo ao Cubismo de Picasso ou ao Surrealismo de Dalí e Artaud, era também possível fixar a tradição em um território mais pleno de significação da palavra, caminho escolhido não por todos os poetas de Matrícula, mas de sua maioria. A tarefa seria então de, uma vez feita a escolha, estabelecer-se como poetas sem fazer com que o peso da tradição abafasse as vozes, ao mesmo tempo em que se renovava a linguagem, e não cair na armadilha do Concretismo, que punha a palavra fracionada e dividia os semas e sememas em sentidos outros que não o do verso escandido, metrificado ou livre para o qual haviam apontado os modernistas e a vizinhança próxima. À época do Matrícula, varriam-se os estudos com a aplicação dos métodos estruturalistas que permitiram as ideias da Semiótica e de suas análises, postas em prática por um sem número de professores das áreas das letras e que limitavam e transformavam a interpretação da poesia e do romance a uma linguagem técnico-científica, o que traria problemas insolúveis à decifração da linguagem hermética da crítica, que erguia ali, um muro intransponível entre a obra e o público e que deixaria marcas, mas não saudades, de seus métodos analíticos e não seriam mais ensinados às gerações posteriores como baliza de análise da produção literária, mas como parte da teoria da literatura. A própria tradição poderia abafar as origens e as escolhas deveriam ser, senão as melhores, as justas. Feito isso, o que sobrasse dessa querela formal, estilística e estética, seria a poesia do Matrícula. AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE ARY NICODEMUS TRENTIN | a. Fábula I O homem plantou a rosa/ e nasceu o canto./ O canto mordeu o lábio/ e floriu o sangue.// O sangue (…)//e alvoroçou o celeiro.// O celeiro viu a claridão/ e recompôs o anel./ O anel subjugou a voz/ e imaginou a estrela. b. Fábula II A estrela construiu o cavalo/ e aqueceu o vento./ O vento diluiu o abismo/ e aprisionou o rei.// O rei cristalizou a mulher/ e fotografou a canção./ A canção despiu o sentimento// (…)// e despiu a forma.// A forma lançou a flor e murmurou a palavra./ A palavra santificou a surpresa/ emudeceu o poeta. A poesia de Trentin aponta para um fazer particularíssimo. Os poucos críticos que o estudaram não conseguiram lhe decifrar o enigma, afirmando que sua poesia é hermética, do que eventualmente, discordaremos. Há uma poiesis que estabelece um jogo entre o rigor e a paisagem alternada. O jogo estabelece a relação como nos poemas Fábula um e II. Executa-se a técnica ou o recurso do cavalgamento dos versos, ou seja, a repetição de uma palavra no final de um verso que serve de mote para o início do verso seguinte. O jogo se estabelece na 44 surpresa da palavra usada aqui, como em toda a poesia de Trentin, com um rigor que confunde o leitor. Rigor e precisão como medida da poiesis: Na verdade, a poiesis é uma função lúdica,. Ela se exerce na região lúdica do espírito, num mundo próprio criado para ela pelo espírito, na qual as coisas possuem uma fisionomia inteiramente diferente da que apresentam, das da lógica e da causalidade. Ao rigor acrescente-se o ludismo verbal com que tem de se haver o poeta, quando em imagens afirma a verdade de um espaço interior feito de metáforas e de uma linguagem habitualmente utilizada na poesia para as crianças. Mas não nos enganemos. A noção de jogo para as crianças, como afirma Huizinga, é séria, no sentido de que quando a criança joga, não está brincando, mas estabelecendo relações de conhecimento com o móbile da invenção e do ludismo, uma vez que estes dois elementos formulam a imaginação, desde que o mundo é mundo e desde que o homem é homem. Desfiando o carretel da Fábula, agora pode-se pensar nas imagens metafóricas dirigidas ao homem adulto e voltadas para a imaginação ou para a surpresa do real, na forma da imagem supra-real e por isso surpreendente. O poeta diz a palavra e cria a imagem que retoma a palavra anterior e cria outra imagem. A técnica nos poemas fabulares, que levam sempre a um mundo encantador, novo, como Alice no país das Maravilhas Estilhaça-se a lógica, no sentido apenas de desfiar o carretel até que a história termine ou até que o fio do carretel acabe. Os dois poemas fabulares de Matrícula contam a história de um rei medieval , pois a medida fabular, depois da antiguidade, é medieva. O vento diluiu o abismo/ e aprisionou o rei.// O rei cristalizou a mulher/ e fotografou a canção. A sintaxe aqui destrói a lógica que se dá por repetidas imagens pelo recurso estilístico já apontado como construção do verso. São imagens surreais dentro da lógica surreal que afirma ao mesmo tempo em que desconstrói a linearidade da narrativa. O rei que depois de se apaixonar, vai rumo à batalha, o que está nos versos anteriores aos citados: A estrela construiu o cavalo/ e aqueceu o vento. Este exemplo de desconstrução da lógica racional cartesiana exige do leitor que não se prenda senão na circularidade do poema: O poema apresenta-se como um círculo ou uma esfera, algo que se fecha sobre si mesmo, universo autossuficiente no qual o poema também é um princípio que volta, se repete e se recria. E essa constante repetição não é senão o ritmo. A fábula conta sempre uma história, de cunho narrativo e, geralmente aparece em prosa. Torná-la verso e o trabalho do poeta que tem de juntar as várias acepções de seu tempo para poder dar à tradição algo novo. O poema circular eivado de um ritmo constante e exato, e com o rigor da palavra metafórica, e com o requinte do elemento surreal que desloca as imagens, quebrando a sintaxe ortodoxa da língua, não só e novo como sugere ao leitor que esteja atento ao movimento do poema. Isso faz a diferença entre os experimentalismos contemporâneos a poesia de Trentin, pois a canção despiu a forma. A forma é exercida com rigor, precisão, ritmo, imagens e com a palavra exata. Essa forma constitui o poema e o poeta Trentin em Matrícula e irá acompanhar o poeta nos livros subsequentes. AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE OSCAR BERTHOLDO | a. Poema de minha verdade Aqui o poeta faz/ a transfusão meticulosa/ das coisas secretas./ Aqui nascem os mal/traçados poemas./ Surda gestação /das cousas usuais. /Aqui, o direito/ de ser/ áspero e ignorar/ a sintaxe da usança/ à mercê da lembrança./ Aqui, o úmido espaço/ paciente de se reatar/ o sabor dos frutos./ Aqui, a solidão côncava/ em tudo, só a condição/ de estar ciente. E mais/ que a fonte, sem medo/ algum ser a casa/ que buscávamos. Aqui/ os poemas de frágil/idade/ emprestam a palavra/ que em mim existe./ Neste vale de urgências/ é absoluto o sentimento/ de se haver chegado. Afeito às regras, reivindicando o direito de ser áspero e ignorar a sintaxe de usança, 45 Bertholdo utiliza a linguagem elevada juntamente á linguagem padrão, usual da escrita poética. A erudição presente em seus poemas faz aqui e ali a concessão às expressões do latim e de expressões da literatura da Baixa Idade Média, ao tempo em que se colmavam as línguas neolatinas e, com exceção do grego clássico e do latim, as línguas cultas modernas ainda não existiam. Isso posto, o idioma que o poeta apascenta é feito sob o fluxo psicológico que, ao início se mostra contido, caminha nas obras posteriores para um fluxo verbal sem igual na poesia do Matrícula. A poesia Bertholdo se estabelece entre uma poiesis que busca a liberdade de expressão pelo ritmo e pelo verbo que, flexionado pelo primeiro, se tornará vertente caudalosa, contrária à contenção e exatidão e do rigor encontrados na poesia dos outros poetas de Matrícula. Há uma revelação “das coisas secretas”, do mundo interior do poeta, do que nele é expressão e se dá pela urgência da palavra, no poema. A consciência de ser, baixada à condição da simples constatação do saber-se só, basta ao poeta como um ponto de auto referência e localização de si para si mesmo. É o que se dá no Poema de minha verdade. Bertholdo tem urgência de dizer e pressa de chegar à casa da palavra, do poema, da expressão, em uma voracidade produtiva, rastreando os poemas entre uma certa erudição e uma necessidade de mapear o vale da paisagem ao mesmo tempo em que mapeia o vale interior por onde seu espírito carreia sua fome de respostas. b. Pastoral Nada tenho, tenho tudo, meu reino/ e a terra, trago pão e vinho/ tímido sou e oprimido venho.//(…)// Aqui a planície, aqui/ o rastro dos pássaros estercando o pouco/ descanso entre as cercas dos vales.//(…)// Tenho nada, tudo tenho, recém-parido me vou, idoso mental/ apascentando cálido idioma. Evocando repetidamente o Belo belo de Manuel Bandeira modernista, ao início e ao fim do poema Pastoral: Nada tenho, tenho tudo (…) Tenho nada, tudo tenho, o poeta localiza suas posses, sua condição e sua circunstância: (…) tenho(…) meu reino e a terra, trago pão e vinho,/ tímido sou e oprimido venho. Seu primeiro vale tem cercas e o espaço é limitado e opressivo, montanhoso, mas é plural. Ao evocar a linha modernista, o poeta dá mostras da filiação de sua poesia à tradição da poesia brasileira. O vale do poeta é para além da imagem de si mesmo; o vale àquele onde o poeta tem de se haver consigo mesmo e com as circunstâncias que o limitam e o impelem para a rebeldia libertária do espírito. O vale de dentro, além do vale paisagístico, o de fora, também se torna matéria de poesia. Eis o verbo de Bertholdo, que se presentifica na alma da aldeia e se personifica em suas palavras, alargando o espaço da linguagem e aumentando a possibilidade de entendimento e esclarecimento do leitor. Como poeta “recém-parido”, fruto do trabalho árduo com a palavra, já demonstra a sapiência dos mais velhos da aldeia, “apascentando o cálido idioma” da língua portuguesa em suas matizes de formação e referência. Porém, para ver o vale o poeta se estabelece na planície onde os pássaros estercam o “pouco descanso”, isso é, a “planície” da palavra vem acompanhada de sujeira, na língua, do eco de outros poetas, o que é preciso ver e eliminar, ao se romper, em posteriormente, as cercas e o cansaço, e fixar o vale como um processo interno de recuperação do vivido e do que se vive. Conquanto em Matrícula, o poeta apascenta as possibilidades de sua poesia e acrescenta o tema do vale universal, porque ao vale da paisagem equivale o vale interior do poeta, o qual é preciso, como ao outro, decifrar. 46 AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE JAYME PAVIANI | a. Ausência As árvores roubam a solidão./ As árvores na tarde fria./ Na sala já não arde a lareira/ ninguém abre a porta/ deixando entrar uma lufada fria./ Ninguém traz notícias/ se há casimira na venda/ se a Elisabete vai casar/ se a estrebaria ficou aberta. No poema Ausência há o sentido do vazio de uma solidão roubada ao homem que espera o próximo movimento. A sequência lógica do discurso da espera entre as possibilidades do acontecer, condicionadas pela solidão roubada: “se há casimira na venda/ se a Elisabete vai casar.” O apelo da solidão recai sobre a possibilidade de contemplação diante da Rosa,outro poema -, que passa a ser redefinida: “Rosa de carne e espírito// (…) branca, (…) aberta ao sol (..) única e amada.” b. Rosa Rosa de carne e de espírito (…)// Rosa branca// (…)//Rosa aberta ao sol. / Rosa única e amada.// Morrer é nada. Ali, a solidão de Ausência se adensa na saudade da Rosa como metáfora da mulher amada, de carne e espírito, única. A solidão ri da morte no verso que fecha o poema:” Morrer é nada.” A ausência que busca na infância a flor - rosa – mulher que nascia na soleira da porta encontra a impossibilidade de viver novamente o passado presentificado na memória e que o poema evoca: c. Infância A infância foi simples,/ uma flor nascia na soleira da porta.// (…)// Minha infância montou num cavalo de pau/ e nunca mais voltou. Não há dúvida, o poeta se utiliza da palavra precisa, contida, metafórica, no rigor da escrita. A constante repetição de palavras como: árvore e ninguém do poema Ausência e Rosa do poema de título homônimo, é utilizado aqui como recurso estilístico, mas não só: há uma tentativa do refazer o caminho, que o poeta procura, o que se pode ver nos livros seguintes, e sob variado aspecto, na reunião As palavras e os dias. Sua obra será marcada pela procura dessa “flor que nascia na soleira da porta”. Tanto, que o fazer e o constante refazer dos poemas, na busca da rosa perfeita, encontrará na obra o permanente conflito delineado nestes primeiros poemas de Matrícula. O tema ou o mote da Rosa é antigo, e remonta às lendas orientais e ao passado medievo ocidental. Em Paviani, como em Trentin, o uso de recursos trazidos da poesia Provençal como o motivo da Rosa mostra que os recursos estilísticos eram comuns à formação dos poetas de Matrícula. E o recurso do rigor, a contenção das palavras são comuns a estes poetas, mas na poesia de Paviani, ao contrário de Trentin, não há a possibilidade do surreal, mas da imaginação criadora, dentro da lógica metafórica da linguagem. A precisão ou justeza da palavra é levada ao extremo da procura e do rigor na poesia de Paviani. Poucos poetas enfrentaram a si mesmos, na procura eterna da rosa azul que é a linguagem, a metáfora e o poema em sua resolução como Paviani, porque a cada refazer, o grau de precisão e o sentido ganham em depuração e clareza. Essa poesia é feita do máximo de sentido e de um mínimo de palavras, mas não se trata de economia verbal, mas da procura da exatidão e do rigor estilístico do verso livre, já não tão livre quando trabalhado à luz da bigorna e do martelo do poeta. A poesia encontra o refluxo da angustiosa ausência da forma, o que, no entendimento do poeta, só pode ser buscado no refazer do poema, trazendo o exercício que, antes de reflexivo, é estético, pertencente à estética mínima presente nos poemas de Matrícula Em Paviani, a poesia passa a romper o discurso oficial da teoria e da filosofia, para se 47 transformar numa poesia limpa, dotada de um grau maior de percepção e intuição, o que nos devolve a questão à contrária: pode-se partir dos poemas de Paviani para encontrar substratos teóricos ou filosóficos? Não significa que o poeta desconheça a teoria e seus constantes desdobramentos e linhas a posteriori do discurso poético, mas que abandona o discurso teórico em detrimento de uma poesia que se pretende simples, justamente por frequentar a teoria como campo de conhecimento. O poeta sinaliza a partir desta ruptura uma construção própria de seu conjunto, com a característica da contenção. A contenção é fruto de uma ruptura com ensejo de guinada à contrária. Explico: se o abandono paulatino da teoria se faz no campo da criação, essa mesma atividade poética desconfia de todo o discurso como gerador de teoria, mas confia no discurso poético como produtor de conhecimento; daí a contenção da forma, contenção própria da poesia que se pretende clara, longe do discurso que não seja o da simplicidade, o da raiz mesma do poeta, e do seu vocabulário algo entre contido e aparentemente simples. Para se compreender a estética mínima da poesia de Paviani temos que atentar para a visão de mundo do poeta. Esta estética se compõe de temas que formam a base do mapeamento poético. Desse modo, encontramos na poesia de Paviani a recorrência de temas: a infância, o campo, a simplicidade, a nomeação das coisas e a presença do feminino. Em ritmo desconjunto, a estética pode ser nomeada como a estética mínima, porque está ligada a duas fundamentais ideias: a simplicidade conquistada e clareza quanto à escolha de temas, e no uso dos recursos técnicos, estilísticos e estéticos que o realizam como poeta. AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE JOSÉ CLEMENTE POZENATO | a. Esaú e Jacó Tenho dois poemas atravessados no ventre/ em litígios e tropelias, porfiando por nascer (…)// Dois poemas lutam dentro de mim/ tentando suplantar-se./ Não tenho poder de escolha. Deixar/ que entre eles se decidam, o mais forte/ ou o mais hábil vença (…)// (…) Limito-me a esperar a minha hora/ A hora difícil em que se deseja o filho e se teme o/ monstro. No poema Esaú e Jacó encontramos àquela escolha com que teria de se haver o poeta. No poema, dois poemas atravessam o ventre do poeta, lutando por sua predestinação, tentando suplantar um ao a outro, como em uma luta interna, vigorosa, da qual sairá vencedor o poema mais forte, ou o que levar a cabo, na linguagem, sua expressão. Aqui se trata da escolha da forma entre seguir a tradição ou optar pela poesia concreta. São dos poetas as palavras: “Quem ler estes poemas(…) vai perceber que fiquei ao lado da tradição. Monge renitente e teimoso, enveredei para a Biblioteca, sobretudo a da velha lírica desta belíssima língua portuguesa.” O poeta escolheu o poema à luz da lírica da língua portuguesa, enveredando para a Biblioteca, isto é, lendo os clássicos da literatura universal, e principalmente, a lírica portuguesa, da qual se filia e são herdeiras a prosa e a lírica da literatura brasileira. O poema Esaú e Jacó não evoca somente o mote bíblico, mas pertencente à prosa brasileira quando, em Machado de Assis, o lemos em romance. É, pois, na dúvida da escolha que resultará na forma do poema que se fundamenta o poema Esaú e Jacó, pois o poeta aflige-se na espera do poema que virá: A hora difícil em que se deseja o filho e se teme o/ monstro. Aqui a dúvida é movida pela angústia da hora da escrita do poema, feito a partir de mil pequena escolha, a qual pertence a decisão do poeta. O poema é um filho “porfiando por nascer.” Assim, quando da escolha do verso livre e do caminho da tradição, o que implica leitura e estudo constante, o poeta nasce, porque resolve a dúvida e acrescenta outros motes e temas à sua lírica posterior, como no exemplo de O poeta, que na linha da tradição antecede a um poema não conhecido de João Cabral de Melo Neto. Não se trata de uma comparação, mas é justo reconhecer que, uma vez na linha da tradição, o poeta chegou ao mesmo tema antes de João Cabral: 48 b. Poeta Mas foi de el-rei o mandado/ que fosse para a bigorna/ e em forja o malho fizesse/ a imagem que não deforma// Das calosas mãos surgiam/ bezerros e sementeiras// No fogo de suas mãos/ mil ferros amolecia/ e nesse trabalho intenso/ forjava um novo dia. Forjar o poema com a imagem que não deforma, fazendo surgir bezerros e sementeiras, forjando um novo dia é o trabalho do poeta, que define o caminho a partir daí; não só o novo dia como significado da poesia que fará, uma vez resolvida a dúvida, mas, o novo dia é o dia visto além do tempo da ditadura a que era submetido o país ao tempo do poema. Um novo dia que seria celebrado em outro poema: c. Convívio Eu os convido a todos para um banquete./ Não, não se trata da última ceia dos condenados,/ Embora os tempos assim permitam pensar. A forja de uma poesia libertadora presente nos versos acima aponta para uma poesia consciente e voltada à liberdade de expressão cerceada á época da publicação do Matrícula. Na poesia deste livro os únicos poemas que se voltam contra a linguagem oficial, de modo transgressivo, a par da busca da resolução da forma, são O Poeta e Convívio, o que, por si só, era um início da resistência -tímida - do intelecto, senão que do espírito do poeta, irmanado ao sentimento de liberdade aos que sofriam o degredo, a tortura e a morte baixo a um regime ditatorial militar. Daí que se o tempo não fosse dos mais princípios à poesia, ela cumpria, como no caso do poema, sua função social mais plena: a de dar voz, ou fazer coro, ainda que em surdina, à voz dos oprimidos, buscando-lhes a liberdade através da palavra. A poesia em tempos difíceis vem acompanhada do sentimento melancólico, que o poeta não evita, antes, o carrega como no poema Elegia: d. Elegia Era outono quando te levamos./ Pinhões caíam sobre os caminhos./ Tombavam as folhas dos parreirais./ Graves seguíamos, chapéu na mão, os pretos/ sapatos gemendo ao peso do teu corpo. Se o poema evoca a cena fúnebre de um enterro, não cita o morto. Sabemos que o morto é um membro da família, que, antes de o carregar, o leva, e o verbo dá a medida da leveza do levado ou a medida do sofrimento de quem o leva. Mas o que chama a atenção não é a morte, mas a evocação melancólica da atmosfera dada pela paisagem outonal que se apresenta, e por isso, mais triste, o que acrescenta à cena da lírica da poesia da serra o elemento humano, dado antes somente pela paisagem como a evocação dos pinheirais feita no início do século por Olmiro de Azevedo. Dois ganhos, pois, à poesia da serra gaúcha: o elemento da melancolia, traço do sentimento íntimo do autor e de boa parte da lírica portuguesa e brasileira, o que demonstra a maturidade do poeta já ao lançamento do Matrícula e sua visão de mundo, e o ganho estilístico e estético do elemento humano inserido na paisagem, como queria Machado de Assis quando afirmava que à cor local se devia acrescentar certo sentimento íntimo para compor uma estesia brasileira, diferente da portuguesa e das demais. Portanto, uma conquista esta em um poeta que, além de estrear consciente do caminho a ser percorrido, continuou escavando e escrevendo, sem abrir mão da exatidão da palavra, do rigor e da contenção, traços estilísticos que o farão, mais tarde, realizar a poesia buscando a forma antiga da redondilha, como aprendera na Cartilha Maternal de João de Deus e, empós, praticar a ironia da narrativa ou da prosa exata do romance. 49 AS POÉTICAS DO MATRÍCULA | A POESIA DE DELMINO GRITTI | Paisagem 1 Muro,/ vento,/ a menina,/ o mundo em gênese./ onde semear o silêncio? / Regresso apressadamente ao território humano. 2 Pousa em mim uma viagem./ Sou o próprio caminho./ Aceito todas as faces/ e continuo a cantar. 3 Nem o impossível poderá sobreviver em mim./ Onde estarei quando deixar de formular-me único? 4 È preciso parar o mar/ e criar uma estrela/ para o menino que chega./ Inútil sentimento/ mundo fabricado/ sem olhos e sem coração…/ Mundo sem terras/ sem horizontes/ para a possível viagem./ E andarei minha ansiedade/ à beira do mar. 5 Volto anjo sem força/ apenas a palavra/ que leva uma rosa./ Nas mãos/ a única manhã. 6 Não me perguntem por que não/ ontem e amanhã./ Hoje quero o mar./ Mar…/ Desarmarme e caminhar. No poema Paisagem, a evocação da viagem e do mar são os temas recorrentes que o ligam à tradição da lírica portuguesa, com inflexão da poesia camoniana e pessoana. O verso: (…) e criar uma estrela/ para o menino que chega, na primeira frase da parte quatro é uma evocação do mote natalino. Há um sentimento de depuração estrema onde a linguagem não adjetiva, não tem ornamentos. No verso primeiro da parte cinco “apenas a palavra/ que leva uma rosa” o poeta reforça o argumento da palavra que se torne uma flor, uma rosa. É possível que este poema realize a síntese dos temas do Matrícula, sob o ponto de vista do poeta, com a recorrência interna, no poema, de temas como a estrela e a rosa, temas trabalhados antes por Trentin e Paviani. Mas também é uma evocação indireta da poesia de Pozenato, quando afirma no verso segundo da parte quatro: “Inútil sentimento/ mundo fabricado/ sem olhos e sem coração”, o que o prende ao “Mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é meu coração”, de Carlos Drummond de Andrade, poeta brasileiro que orienta de viés a poética de Paviani e de Pozenato, tanto na evocação do mundo vasto quanto na fabricação de um mundo injusto, sem olhos e sem coração, mundo do capitalismo moderno do século XX. E, de forma indireta ainda, a escolha do mar como refração ao vale de Bertholdo, no sentido de sua expansão sem limites, sem cercas, sem opressão. Não por acaso o poema tem o título de Paisagem, pois ali há a conformidade e evocação da paisagem de Bertholdo vista à contrária. O que é de Delmino, não é só a síntese, mas a reflexão e a viagem. Senão vejamos: “Onde estarei quando deixar de formular-me único?” Este verso traz uma formulação filosófica sobre a morte, no sentido de que a dúvida do poeta formulada em sua pergunta encontra o limiar da finitude humana. Por isso, não há ornamento, no sentido verbal, em sua poesia. Na segunda parte do poema, o verso inicial “Pousa em mim uma viagem” se desdobra nos da quarta parte: (…) “Mundo sem terras/ sem horizontes/ para a possível viagem.” Estes versos acima indicam que se há o desejo da viagem que se há de fazer, ela não se dá no espaço geográfico, mas no espaço do imaginário, onde não há terras nem horizontes. A viagem é a de si a si mesmo, como um movimento circular do poeta que tem urgência da vida no momento em que escreve, - na parte seis: “Não me perguntem por que não/ ontem e amanhã./ Hoje quero o mar./ Mar…/ Desarmar-me e caminhar.” O caminho e a possibilidade do mar evoca o verso anterior da segunda parte do poema: “(…) Sou o próprio caminho.” Este verso indica a consciência reflexiva do centramento do eu do poeta como formulador da viagem impossível, pois que se dá no imaginário contido do caminho do poeta. Assim, a poesia de Delmino, além de operar a síntese do Matrícula, aponta para o rumo da reflexão, onde o poeta, como observador atento não é senão o guardador do que vê/lê pelo viés de sua imaginação criadora. 50 A participação de Delmino Gritti no Matrícula é breve. O rigor do crítico abafa a voz do poeta, sendo o mais literalmente contido dos poetas do volume. Delmino aparece na capa como um enigma nada claro, mas prenunciando o que há ou não há de vir no volume, pois seu nome está incompleto: DELMIN, e logo o espaço da capa acaba. O nome incompleto é coerente à brevidade de sua participação no volume. Seus poemas vão aparecer no fim do livro em número pequeno, mas evitem-se as comparações. Se os outros poetas de Matrícula trabalham a língua e buscam, aqui e ali, o rigor técnico e estilístico, na expressão de uma estesia que intente a decifração do homem e da paisagem, quer pela figura, ou pela fuga do real, quer pela poesia de Trentin que se apresenta como um ponto de fuga pela linguagem do jogo surreal, ou em Paviani, onde o rigor se estabelece no ato de refazer o poema, quer pela exatidão da poesia de Pozenato, ou pelo fluxo psicológico verbal da poesia de Bertholdo, em Delmino a poesia encontra todos esses elementos elevados ao grau máximo, valendo-se dos mesmos recursos dos seus pares de escrita: rigor técnico, rigor estilístico, rigor estético, rigor da forma, rigor, rigor, rigor., acrescido da extrema economia verbal, quase a formulação de um arabesco, sem ornamentos. O que o nome prenuncia, alude ou evoca desde a capa é que abertamente o poeta não se declarará poeta de publicações posteriores, embora tenha tido, guardadas as particularidades, mais do que todos os outros, a responsabilidade que se cobra dos poetas, no sentido da ação propriamente dita. Delmino buscava os livros proibidos pela censura e pelos militares aos estudantes de todo Estado, viajando sem trégua e cumprindo o papel de libertador de espíritos pela ação mesma do poeta. Por isso, talvez, depois de organizado e publicado o Matrícula, não publicou outros livros de poesia, deixando seus poemas inéditos, aqui e ali, e sendo discreto quando do falar de poesia, e dando mostras, em tempos difíceis, - tanto àqueles, à época da publicação do Matrícula, como os nossos, onde outras injustiças acontecem diante de nossos olhos - , do homem tímido e do poeta humílimo que foi e é, o que basta a uma geração como lição do ser abnegado em prol da poesia e da literatura. CONSIDERAÇÕES FINAIS | Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região, mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do seu país, ainda que trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. Conquanto os poetas de Matrícula se ocupem de se alimentar de assuntos que lhes oferece a sua região, e tendo o sentimento íntimo necessário para compor, com os elementos estilísticos, temáticos e estéticos uma poesia nova para a região, guardando, ao mesmo tempo, o sentimento íntimo da formação familiar e a leitura dos poetas da língua portuguesa, da francesa, sua irmã - ambas filhas do latim - e da língua inglesa, filha segunda do ramo proto-germânico. Nenhum deles se limitou, no entanto, a realizar uma poesia estritamente local, pois, inseridos no universo da leitura, souberam traduzir pela poesia, alguns temas universais, cada um a seu modo, é claro, mas a realização resultou em uma renovação dos parâmetros da poesia da Serra Gaúcha e influenciou a geração mais nova, onde se lê, aqui e ali, algum traço daquela poesia do Matrícula. Como afirmou Machado de Assis: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo tem os modernos, com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum.” O resultado da poética desta reunião é sentido na trajetória de cada poeta de Matrícula a posteriori, fazendo crer que as escolhas foram acertadas quando da publicação do pequeno volume de poemas, o que, por si só, era já um ganho para a poesia Sul - Rio-grandense e brasileira, o que viria a se confirmar pela trajetória de cada poeta da reunião, cada um a seu modo, circunscritos às circunstâncias particularíssimas, com suas leituras e idiossincrasias pessoais, inseridos como poetas e como homens de seu tempo, nos tempos difíceis do 51 Matrícula. O volume apresenta a poesia melhor de uma época diversa de parcela da poesia atual, superior ao que, atualmente, no baixio do mercado, intente passar por literatura. A poesia do Matrícula será para sempre uma referência para as gerações mais novas da Região, do Estado e do País, pelo conjunto, a um tempo áspero e renovador, realizado à luz do estudo e da pesquisa das formas poéticas, situando o homem da região para além da fronteira do tempo e do espaço. EDUARDO DALL’ALBA (1963-2013). Ensaísta e crítico literário. Autor de Vinhedo das vontades (1998), Lunário perpétuo (2008), e Os bens intangíveis (2013). Página ilustrada com obras de António Beneyto, artista convidado desta edição de ARC. 52 FEDERICO RIVERO SCARANI | El simbolismo en la obra de Julio Inverso La poesía es principalmente comunicación de un contenido psíquico sensóreo-afectivo conceptual, conceptual construyendo en el espíritu un todo. Es un placer producido en el alma del poeta en la creación misma y que de inmediato ese fluido anímico emigra hacia los lectores u oyentes del poema (Carlos Bousoño). Es de destacar que el principio que individualiza a cada poema está dado por el estilo. Es decir, su manera personal e intransferible que deja su huella en la obra. Hay poesía en muchas frases del habla cotidiana, en objetos, en situaciones existenciales, etc. Su particularidad consiste, entre tantas cosas, en servirse de una función poética (Jakobson) donde selecciona las palabras para que tengan un efecto estético, bello, de acuerdo a la época en la que surge. Si la poesía comunica estados psíquicos y emotivos deja su impronta en el sintagma poético, o sea, en el poema como constructo de versos, rimas, ritmo, y figuras retóricas. El “acto lírico” trasmite los contenidos arriba especificados, mientras que la lengua, como sistema de signo, tiene más bien un carácter analítico. En palabras del poeta Julio Inverso el concepto de poema es definido como: “Todo poema es una puerta hacia una nueva región del espíritu, antes inexplorada”; o bien, “El don de crearla depende de potencias superiores que atraviesan al poeta en el momento en que se reúnen dos condiciones: la predisposición y la fortuna. El poeta debe prodigarla, prodigarse a sí mismo, exponerse y realizar el sacrificio en virtud del cual caigan todas las máscaras ...”; “La poesía es una actividad liberadora, un acto genial de liberación de romper cadenas: prejuicios, convenciones, escamoteos, lugares comunes de la comunicación. El lenguaje nos fue dado para establecer un puente áureo fulgurante desde las cavernas de un ser a las de otro ser. La palabra será conmovedora o no será”; (Cielo Genital). Aquí el poeta refrenda en su poética parte de lo que debe ser la poesía, habla de “potencias superiores”, es decir, de entidades metafísicas como el daimón griego que inspiraba a poetas y filósofos; en el Sócrates platónico el daimón se presenta con frecuencia como una voz interior a la que escucha y obedece. Pero volviendo al campo de un acercamiento a la poesía, según Carlos Bousoño, los desplazamientos como la metáfora o la sinestecia, representarían una alteración del discurso analítico, esos desplazamientos son esencialmente irracionales. A partir del Romanticismo el lenguaje poético tradicional comienza a resquebrajarse, la imagen visionaria es propia de la elaboración onírica por la cual el poeta reproduce por medio de imágenes simbólicas y míticas que más tarde veremos. En el poema “Baile de soñadores”, Julio Inverso experimenta una visión por la cual es poseído por una “potencia superior”: “No me toques, estoy endemoniado. No puedo dormir porque los condenados incendian mi cama, noche tras noche. Tu infravida no podrá comprender mi éxtasis: un ángel que empuña un sueño un sueño que es un arma un arma que dispara a la tinieblas. No me toques, mi luz te enceguecerá. Soy un prestidigitador, un caballero antiguo de místicos sigilos, un alquimista con el corazón sobre la piel. Soy el que seré, ahora mismo viviré mi futuro, mi más allá y mi abismo. 53 No me toques, estoy endemoniado. Seré la bengala que rompe a llorar en tu cielo hecho añicos”. El leit-motiv “No me toques, estoy endemoniado”, expresa esa cualidad de estar poseído y que de alguna manera le haría “mal” a quien se acercara. El uso de metáforas encadenadas reproduce un cuadro caótico en el cual él será una “bengala”, o sea, una luz que enceguecerá a quien no esté iniciado en los misterios de la poesía. El concepto de símbolo (una palabra que deriva del latín simbŏlum) sirve para representar, de alguna manera, una idea que puede percibirse a partir de los sentidos y que presenta rasgos vinculados a una convención aceptada a nivel social. El símbolo no posee semejanzas ni un vínculo de contigüidad con su significado, sino que sólo entabla una relación convencional. Debido a eso el poema anteriormente citado reproduce en su contenido más que una serie de metáforas, un encadenamiento de símbolos. Por lo cual el poema se convierte en una Alegoría. Ésta podría definirse como: * Ficción en virtud de la cual una cosa representa o significa otra diferente: en un poema, la rosa puede ser una alegoría de la belleza efímera. * Obra o composición literaria o artística que se basa en este tipo de ficción: la "Divina Comedia" es una alegoría de la vida del hombre. desde la perspectiva medieval; Dante escribe la “Comedia”, inspirado por el amor a Laura, el cual no es correspondido, y de esa manera “sublima” ese sentimiento por medio de la Literatura. * En la escultura y pintura: representación simbólica de ideas abstractas por medio de figuras: un cuadro es una alegoría de la belleza. * Retórica: Figura que consiste en hacer patentes en el discurso, mediante una sucesión de metáforas, un sentido recto y otro figurado, a fin de dar a entender una cosa expresada por otra distinta: la alegoría se empleó mucho en la literatura del medievo. Una lectura literal es incapaz de interpretar los símbolos que nacen de la intuición, de la emoción y de la intelectualidad del poema. Se puede hablar de una poesía interior, que se ubica en una zona inaccesible al espíritu en la que se produce un abrirse a la realidad. Hay un estado de receptividad en la que la conciencia es capaz de leer el mundo o realidad histórica, y, a su vez, leerse a ella misma. El universo o la naturaleza se manifiestan de manera fluyente y unitaria, y por medio de la metáfora o el símbolo, muestran que esas unidades son intercambiables, constituyendo nuevos significados para interpretarlas. La poesía se caracteriza desde el Romanticismo como un medio de conocimiento y autorrevelación. Tanto el símbolo como la metáfora son imágenes que mantienen una relación de analogía entre su significado y su significante. De ahí que, Julio Inverso, haga hincapié en esto en el poemario “El asesino y las flores”: “Mis aventuras” “Mi intención es crear mis propias imágenes. No estoy hablando de nada estrafalario, sino de una experiencia compartida. No escondo nada. Ustedes tienen ojos y oídos: utilícenlos. No me dirijo a una elite ni tampoco a una multitud posesa. No me vas a ver coronado de laureles, no vas a ver mis sienes los estigmas del mártir, no me vas a ver prostituto de pañuelito al cuello; ni estatuas, ni sellos postales, ni condecoraciones. Hay oficinistas que entienden mis poemas más que los críticos hiperintelectualizados. Estoy abriendo puertas, no estoy pontificando. Soy poeta y los niños me saludan”. 54 Aquí el poeta es consciente de su producción y de su estilo, así como también a quienes se dirige. La hermenéutica de los textos de Inverso requiere de un trabajo arduo donde hay que consignar y esclarecer en su estilo el uso de metáforas, imágenes, símbolos, mitos. Esta hermenéutica (del griego hermeneuticos, constituido por tres partículas: hermeneuo, traducido como “yo descifro”, la palabra tekhné: arte, y el sufijo tikos, sinónimo “relacionado a”... De ahí que literalmente se puede exponer en este término que su traducción aproximada sería “el arte de explicar textos o escritos, obras de arte”). El “homo” sapiens se ha convertido en un “animal symbolicum”; sin embargo, siguiendo la idea de Theodor W. Adorno, “El arte tiene su concepto en la constelación de los momentos que va cambiando históricamente; se niega a ser definido”. Como conclusión podríamos asegurar que no toda obra es arte, es una alegoría...; y continúa Adorno: “Las obras de arte están vivas en tanto que hablan de una manera que está negada a los objetos naturales y a los sujetos que las hicieron. Hablan en virtud de la comunicación de todo lo individual en ellas”. Adorno sostiene que las obras de arte hablan, y esto nos remite al concepto de mito de acuerdo a Roland Barthes: “... el mito es un habla, es decir, es un sistema de comunicación, un mensaje, sujeto a unas condiciones lingüísticas que lo caracterizan. Según esto, cualquier objeto, concepto o idea, es susceptible de convertirse en mito” Por lo pronto, el signo (y el símbolo es una clase de signo, sólo que no está en un sistema como el signo lingüístico), se vaciaría de su contenido de una manera particular para albergar otro significado diferente y constituir un nuevo signo, el signo mítico. Éste en ocasiones se confunde con el símbolo, pero no es el caso aquí de hacer una diferenciación. El término símbolo viene de las voces griegas syn y ballo que implican la idea de algo simultáneo y dinámico; anuncia la conjunción semántica que se da en un solo significante. El símbolo posee una relación analógica con el significante, todo intento de explicar su concepto conduce a la creación de otro símbolo o sistema de símbolos para definirlo. En el siguiente poema en prosa de Julio Inverso podemos apreciar una alegoría que representa la opresión de un sistema despótico y esclavista en un estado “primitivo”, este texto simboliza de alguna manera el sistema capitalista que se extiende por el mundo: “OTROS PECES DE EXISTENCIAS ARÁCNIDAS” (“Más lecciones para caminar por Londres”). “Los esclavos giran alrededor de una piedra gigante, jeroglífica, pulida y pesada, como el sentido de la vida. No hay en esto nada misterioso excepto los salmos que trepan por el sudor de los hombres, una mujer de rosa pálido escapa lateralmente de la escena y corre a comprar pañolones que, como no revisten ningún color, no sirven para sonarse, los esclavos imprimen su energía sobre palancas y engranajes que hacen de la piedra objeto de sueños, la piedra ha vivido soterrada en su base de moneda y su cuerpo tan semejante a un alfil o a un obelisco. Ya se confunden los músculos exigidos en la dura y absurda tarea, los esclavos no son más que un oleaje de cartílagos y parénquimas fundidos como elementos en estado puro, el fuego, el océano o digamos, para no abundar en abstracciones, unidos de bellotas y su plumaje de metal negro carbonizado, todos los días la piedra debe girar y, sin descanso, los esclavos caerán en la fosa pulverulenta, siendo devorado por los cocodrilos, en una antigua Biblia que un dios ebrio dictó a un amanuense consta la suerte y la rutina de esta raza condenada y de la privación absoluta de todo ejercicio del espíritu y signos plenos de individualidad, dicen que una luna desfavorable hizo que aquel dios entregado al vicio se ahorcara acechado por la decadencia de su reino o víctima de las malas razones de un amor carnal, la piedra sangra bajo el rigor del látigo emitiendo un murmullo comparable a un plantío de sábanas primaverales, y nada más.¡Se estremecerán tal vez las ruecas baldías, las mejillas ajadas de las ancianas?¡Sucumbirán las miradas en los libros de la memoria cóncava con brillantes flancos de escualo? ¡Y qué destino esperará a los trenes, al aroma del pan, al barro escolástico? Bien, no daré más rodeos, todo es una charada, Dios no tiene sonrisa más que el filtro dorado del amanecer y la piedra lleva la cifra de luzbel, igual que las robustas espaldas de 55 los esclavos, esto lo estoy escribiendo mañana, esto lo estoy escribiendo mañana, rompo finalmente los espejos, ya no soy. Y vos, aquí convocado, no existís”.(Ver El lado gótico de la poesía de Julio Inverso, Anales de Literatura Hispanoamericana, 2005, Universidad Complutense, España). Es de destacar que el símbolo no es la representación sólo de un objeto sino la manera de manifestarse por medio de una realidad compleja asociando diferentes niveles de significado. No apunta como el signo a representar tan solo una cosa sino a convocar una multiplicidad semántica; desde esa perspectiva el símbolo en una cadena textual convierte a ésta en una alegoría. “La piedra” no es más que el símbolo del poder al cual los hombres, que son esclavos de su rutina, deben hacerla girar sin especificar su sentido; además encontramos aquí, un mito, el de luzbel, el ángel caído, el serafín que estaba a la diestra de Dios. Según Paul Ricoeur el símbolo se manifiesta en las dimensiones cósmicas, oníricas y poéticas, se caracteriza por su polisemia, en tanto que la imaginación simbólica es una actividad dialéctica propia del espíritu. En el siguiente poema en prosa se destaca la figura del poeta, quien, simbólicamente, es expuesto como un individuo que no se deja derrotar aun en las vicisitudes. No hay recursos literarios, (excepto una metáfora y dos comparaciones), es un texto casi expositivo pero de una carga simbólica que abre diversas interpretaciones: XXVI (“Diario de un agonizante”) “Hay belleza, estoy seguro, en los hombres cansados. Piénsese sino en un poeta que en la plenitud de sus medios libera lo más fresco que hay en él, lo que auténticamente estaba en él, como un mar vacilante que llevara dentro suyo y que así, de pronto, ha asomado como una lágrima. Véaselo después, habiendo dispersado sus fuerzas, desalentado tal vez, en la curva del descenso definitivo. Lo que escribe defrauda a quienes lo siguen, pero hay un verso, que se levanta, majestuoso, desde el centro de su experiencia, por amarga que esta sea, un verso que él ha dejado caer apenas, como quien arroja un guante y que brilla con toda la fuerza de un desafío; un hombre que lucha y se debate, aun, a pesar de todo, pequeño e inverosímil en el universo y contra el universo”. El mundo simbólico de Julio Inverso recorre todos sus textos; es un “poeta lírico”, según afirmó. Su herencia romántica, su gusto por el rock y por los paraísos artificiales han hecho de este poeta uno de los más prolíficos de la historia de la literatura uruguaya. OBRAS COMPLETAS: “Papeles de Juan Morgan” Narrativa y Otras Prosas, Tomo 1, Prólogo de Luis Bravo, Estuario Editora 2011, Montevideo-Uruguay. “Las islas invitadas”, Poesía completa, Tomo 2, Compilación y prólogo de Luis Bravo, Estuario Editora, 2013, Montevideo-Uruguay. Federico Rivero Scarani (Uruguay, 1969), docente egresado del Instituto de Profesores “Artigas”, docente en Secundaria y de la cátedra Lenguaje y comunicación del I.P.A. Escribió varios libros de poesía y cuentos, entre ellos el último “El agua de las estrellas” (2013), fue colaborador de revistas y diarios de Montevideo. Contacto: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 56 GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Tropicalismo y Europeismo en la literatura venezolana: Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll vistos por Miguel de Unamuno El diseño de un posible canon para la literatura hispanoamericana comienza con algunos escritores que tal vez nunca pensaron en ser sus fundadores: los peruanos el Inca Garcilaso de la Vega, Pedro de Oña y Juan Espinoza Medrano; los mexicanos Carlos de Sigüenza y Góngora, Sor Juana Inés de la Cruz, Joaquín Fernández Lizardi y Juan Ruiz de Alarcón, a quienes se entreveran la Madre Francisca Josefa del Castillo en Colombia, Manuel José Lavardén en Argentina, José Joaquín Olmedo en Ecuador y Rafael Landívar en Guatemala, autores que preparan el terreno a los ejercicios escriturales de Esteban Echeverría en Buenos Aires, Andrés Bello en Caracas y José de la Luz y Caballero en La Habana, para citar sólo algunos ejemplos. De ahí en adelante escritores como Domingo Faustino Sarmiento y José Hernández en Argentina, Juan Montalvo en Ecuador y Ricardo Palma en Perú configurarían, en sus países de origen y en diversas tradiciones, la que vendría a ser la naciente literatura hispanoamericana, con sus múltiples influjos europeos y criollos, indígenas y africanos. Comienza a producirse en América el simultáneo diálogo, --apareado a la fricción o al rechazo del legado europeo--, foráneo o vernáculo, que se advierte en poetas posteriores como César Vallejo, Vicente Huidobro, Pablo Neruda o José Antonio Ramos Sucre. Esta dicotomía –-o si se lo prefiere, este doble ramal nutriente— va a ser uno de los sellos distintivos de nuestros escritores cuando abordan la realidad a través de la poesía, la novela o el ensayo, el artículo o el cuento. Ya sea merced a la irradiación del clasicismo o el romanticismo europeos, o intentando regresar a las raíces criollas o precolombinas, asumiendo al paisaje de la propia tierra con sus dilemas y luchas sociales y en una tentativa por autenticar una expresión, nuestros escritores se inclinarían a atender los llamados, primero del romanticismo y luego del modernismo, movimiento éste que tomaba un impulso del primero para retomar los mitos grecolatinos y elaborar con ellos su discurso. Si en algún movimiento estas dobles resonancias se pusieron de manifiesto fue en el Modernismo, movimiento que por su sólido y diverso basamento cultural, hubo de absorber parte de la tradición clásica europea. Estamos hablando de la década final del siglo XIX, cuando se abona el terreno para una discusión entre Europa y América acerca de obras que tienden puentes unas, --o divergen otras— pero siempre acusan estas contradicciones o convulsiones internas. En esta ocasión quiero referirme a dos escritores venezolanos de la época modernista: Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll, y a la decisiva repercusión que tuvieron en el país y fuera de él, debido a la permanente actividad editorial y periodística que se estableció por entonces, entre cuyos adalides se cuenta el caraqueño Rufino Blanco Fombona, novelista y poeta que sufrió exilio en Europa por oponerse férreamente al régimen del dictador Juan Vicente Gómez, fundando en Madrid la Editorial América. Manuel Díaz Rodríguez es el primer novelista del modernismo venezolano, autor de las novelas Ídolos rotos (1901) y Sangre patricia (1902), que impresionaron a Miguel de Unamuno. Justamente, a los juicios de Unamuno sobre estas novelas deseo referirme, por pensar que trazan un diálogo entre Europa y América en términos tanto históricos como culturales; ambas tienen que ver con el tema de la tolerancia, la paz y la necesaria concordia entre nuestros pueblos, por encima de las intervenciones bélicas acordadas en organismos como el Consejo de Seguridad de la Organización de las Naciones Unidas (ONU). 57 En el caso de Portugal, el diálogo con este país ha sido fructífero, desde que estamos recibiendo en tierra venezolana un importante contingente de inmigrantes que vinieron a reforzar nuestra productividad en el agro, el comercio, la industria y ---por supuesto--- a ensanchar nuestro horizonte cultural con la presencia permanente en nuestra literatura de escritores como Juan de Camoes, Rosalía de Castro, Eca de Queiroz, Fernando Pessoa, ---el más influyente poeta portugués, epónimo de esta Universidad en Oporto---, y en años recientes, con la frecuente presencia en Venezuela del novelista José Saramago, fallecido hace poco, ---posiblemente el último gran novelista de Europa--- que, siendo él un convencido socialista, estrechó lazos de amistad con el gobierno revolucionario del Presidente Hugo Chávez Frías. Pero retomemos el hilo. Justo naciendo el siglo XX, en 1901 y 1903 respectivamente, Unamuno reseña ambas novelas de Díaz Rodríguez (1), introduciendo en sus comentarios varias consideraciones que estimo significativas, y me parecen válidas para varios contextos y épocas. Empieza Unamuno a glosar las Notas sobre la evolución literaria en Venezuela, de Pedro Emilio Coll, “notas tan juiciosas y sugestivas como cuanto Coll hace”, dice, y prosigue citando unas palabras de Coll: “…los libros de los enciclopedistas preparaban en Venezuela no sólo la revolución política, sino la literaria”, y como “después de la Independencia quedó casi roto el cordón umbilical que les unía a España. Desde entonces, la literatura francesa ha ejercido preponderancia en las letras venezolanas, y muy pocos serán los que, desde don Andrés Bello hasta hoy, no se hayan embriagado alguna vez, cuando no con puro vino de Champaña, con agua del Sena”. (…) Entre los nuevos de quienes Coll en sus Notas nos habla, está Manuel Díaz Rodríguez, de quien Rubén Darío, en una carta a “La Nación” de Buenos Aires, sobre La novela americana en España, publicada con las demás en el interesantísimo y reciente libro España contemporánea, había dicho: “Venezuela ha tenido novelistas locales cuya obra total se esfuma ante un solo cuento de Díaz Rodríguez. Este escritor podría darnos la novela venezolana, americana; pero se queda en su jardín de cuentos, de innegable filiación europea”, dice Darío. Prosigue Unamuno: “Y he aquí que Díaz Rodríguez, dejando su jardín de cuentos, nos ha dado una novela venezolana, americana: Ídolos rotos”, remata diciendo Miguel de Unamuno. De ahí en adelante no cesa el escritor vasco en elogiar al escritor venezolano y a su opera prima en el campo novelístico, de donde resaltan los apuntes acerca de la sensualidad. En un aparte, haciendo distingos entre españoles y americanos, anota: “la raíz de la diferencia entre nosotros, los españoles, por la mayor parte de altas mesetas de duro clima, y los hispanoamericanos de fértil suelo, y la raíz de la fascinación que sobre ellos el espíritu, profundamente sensual, ejerce. Porque nosotros, en nuestras montañas o en el duro suelo, y bajo bruscos extremos de calor y frío, nos hemos hecho austeros y graves, no tenemos la obsesión afrodisíaca- nada en el fondo menos erótico que la genuina literatura castellana; la joie de vivre no la conocemos como en las grasas llanuras, en las plaines plantureuses de Francia la conocen; nuestra vida es sueño y nuestra obsesión ha sido la muerte. Llega el español al misticismo, pero no es sensual; le ha costado mucho vivir, y vivir entre duelos y quebrantos y ayunando. El honor calderoniano no se nutre de celos carnales. No somos ni lógicos ni sensuales como el francés.” El personaje principal de Ídolos rotos, Alberto Soria, llega a París enviado por su padres a completar estudios de ingeniería, pero los abandona para dedicarse a la escultura; se posiciona de cierto prestigio con una pieza llamada “Fauno robador de ninfas”, con lo cual se vincula rápido a los temas del modernismo americano. Cuando se encuentra entusiasmado en París dedicado a su nuevo oficio y enamorado de una hermosa mujer, es requerido en Venezuela, y tiene que regresar a atender a su padre enfermo y a sus hermanos Pedro, que está medio loco, y a Rosa, desengañada de un fracasado matrimonio. En este regreso de Alberto Soria a su patria natal, se produce esa fricción cultural, donde no se puede eludir el comparar el ambiente de Europa con el ambiente criollo. Se encapricha Alberto con María, amiga de su hermana; a la que abandona también para luego entrar en brazos e Teresa Faría, mujer casada. Aquí, observa Unamuno, se producen “los inevitables 58 dulzuras del pecado, y donde alcanza su mayor tensión el cuento, en el relato de estos amores y en la presentación de Teresa Farías, la pagana de alma católica, la beata sensual que para su amor necesitaba de una atmósfera mística, porque sin ella no era ni bastante sensual ni bastante profundo, pues como observa Díaz Rodríguez en su novela, “cuando más blancas y numerosas sus plegarias, más numerosos y encendidos los deseos” hallando Teresa, “su más alto gozo en sentirse deslizar y caer en la culpa, después que la oración y las penitencias limpiaban su alma de inmundicias”. Todo esto lo ve Unamuno relacionado con la novela francesa, tanto en los temas como en el tratamiento; sólo que aquí, por primera vez en Venezuela, estamos frente a una obra cumplida, que coloca a su personaje en un contexto completamente verosímil en cuanto a religión, política, sociedad o arte. El argumento de la novela (al que Unamuno llama “cuento” a lo largo de todo su ensayo) se desarrolla para el escritor español “en una novela venezolana americana, porque lo importante aquí es el modo de contarlo, su desenvolvimiento, y sobre todo, la orquestación, o si se quiere el fondo del cuadro (…) un cuento parisiense, la protesta de un artista lleno de ansias de ideal y de patrióticos anhelos, contra un pobre pueblo entregado a la más baja de las políticas y a las concupiscencias de generalotes y aventureros.” Alberto Soria, ante este dilema, va modelando a su mujer en barro, poniéndola de Venus, con lo cual va matando, dice el novelista, “los audaces alientos del artista y los nobles alientos del patriota. La escena donde se justifica el título de la novela surge cuando estalla la Revolución en Venezuela y “Alberto tiene que huir, y en su ausencia entra María en su taller y en la alcoba del adulterio, y presa de furor lo rompe todo, y la revolución triunfa, y conviértese en cuartel la Escuela de Bellas Artes, y cuando al volver Alberto ve las profanaciones de la soldadesca, se enfurece y acaba vencido.” (…) --¡Y nosotros, que teníamos la candidez de pensar en el arte como en un medo de regeneración política! ¡Blasfemos! ¿Ves? ¿Ves? Por aquí pasó la bestia, la gran Bestia impura. ¿Ah, la Democracia! ¡Nuestra Democracia! ¡Nuestra Santísima Democracia!” Concluye Alberto Soria comprendiendo que “nadie tiene derecho a sacrificar su ideal.” Hay muchas otros pasajes de esta novela, donde Unamuno ve que Díaz Rodríguez ha logrado momentos de penetración sociológica. También están los fragmentos referidos a París, una Cosmópolis vista no sólo como “el acabado resumen de cuantas delicias y primores abarca el Universo”, sino también como una ciudad de mal, vicios y seducciones que sintetiza a todas las ciudades, en evidente contraste con lo que ocurre en las ciudades criollas. Dice Unamuno que “pocas veces se ha llegado tan hondo como aquí llega Díaz Rodríguez al señalar entre las causas de desamor a la patria “el perpetuo bochorno de los mediodías y el polvo de las calles.” Después pasa a examinar Miguel de Unamuno la naturaleza de los sentimientos americanos o venezolanos contenidos en Ídolos rotos, como los del llamado dios indígena, o el de la fiebre de la tierra, donde Alberto Soria “creyó ver la explicación de la vida alborotada de las gentes de su país, y creyó penetrar en el secreto del alma de aquella comarca triste, ardorosa y enferma. Pero aún más se entusiasma Unamuno con la segunda novela de Díaz Rodríguez, Sangre patricia, que le parece incluso más lograda que Ídolos rotos. Aquí ya no cabe en Unamuno el entusiasmo para celebrar dicha obra, a la cual considera “más cuidada de estilo, más concisa, más poética”. Me permito citar dos párrafos completos del comentario de Unamuno (con los debidos entrecomillados de Díaz Rodríguez) que puede compendiar mejor lo que intento subrayar: “El argumento de la novela es sencillísimo. Julio Arcos es un venezolano de pura raza española que vive en París, expatriado. Es un soñador. “Desde su origen, su familia había venido en hazañas múltiples despilfarrando su capacidad para la acción; y así como ésta disminuía, bien podría en grado igual, y de insensible modo, haber venido aumentando su capacidad para el sueño. Porque su estirpe guerrera, al través de muchas generaciones, apenas había consagrado al sueño breves pausas y raros individuos.” La historia de algunos 59 de sus antepasados llena de hermosas páginas. Julio se había casado por poder con una novia que tuvo en su patria, Belén Montenegro, a la que nos describe el autor con complacencia, y que viene de Caracas a París a unirse con su marido. Más en la travesía muere y va su cuerpo al mar y cuando el buque llega a Europa, se encuentra Julio viudo antes de haber sido marido. Hay que leer el relato, sobrio y sencillo, de su dolor, y como llega a su casa de París y arroja por el balcón a la calle las flores con que esperaba a su desposada. El resto de la novela es el dolor de Julio y cómo se le encalma y va a recorrer la Corniza, y en Niza se hace al mar en un bote repleto de flores para celebrar la fiesta del desagravio de éstas tendiéndolas sobre la tumba de Belén. Al cabo regresa a su patria, obsesionado por el recuerdo de su novia, y soñándola como sirena que vive en el seno del Océano, acaba por arrojarse al mar, a juntarse con ella antes de llegar a Caracas.” Insiste Unamuno en que, a partir de este solo argumento, Díaz Rodríguez construye una obra admirable con añadidos, episodios y argumentos adicionales, entre ellos el de Alejandro Martí, místico y músico lleno de ideales, cuya historia constituye por si misma “un admirable trozo literario.” El dibujo de este personaje ejerce una fascinación especial en Unamuno, llegándole a dedicar buena parte de su ensayo, y me parece de suprema importancia para entender nuestra filiación con España. Vale la pena volver a citar in extenso: “En una conversación entre Martí y sus amigos se hallan, en Boca de Borja y Ocampo, los hermosos pasajes en que el autor nos habla de España, que debe ser “la reserva de ilusión” para los americanos. Ocampo opina que todos loa americanos de lengua española deberían empezar por España su peregrinación en Europa, y que ganaría su patriotismo poniéndose en contacto con tierra española. “Y quizás no esté lejos el día –-dice— en que consideremos como nuestro deber más perentorio el ir en peregrinación, uno por uno, siquiera con el pensamiento, a robustecernos en las mismas fuentes de la raza.” Habla luego de las vestiduras que, a título de préstamo, pidieron de otras naciones, para ocultar sus vagos tanteos primerizos, refiriéndose a “ciertas influencias de pueblos extraños, que si un día pudieron servirnos de aguijón, --dice--, apenas pueden ya servirnos sino de rémora.” Y añade: “es un repugnante lugar común, cuando se habla de nuestras miserias, en particular de nuestras miserias políticas, valerse del socorrido argumento de nuestro origen español, como si este solo origen contuviese en germen todos nuestros males.” Vuelve Unamuno a hacer una reflexión sobre el predominio del espíritu francés en nuestra política, y del sentimentalismo francés, llevado a todas partes por la revolución, que nos ha causado más daño que bien, según él. Luego, más adelante insiste en que estas ideas, dichas en boca del personaje Ocampo, merecen reproducirse en las revistas españolas de su tiempo, insistiendo en que las páginas de Sangre patricia “encierran una robusta voz de ánimo y consuelo que de América nos viene; de aquella pobre Venezuela, patria del Libertador, de Simón Bolívar, que sufre ahora, con la corrosión de las disensiones interiores, el constreñimiento del bloqueo de algunas potencias europeas.” Insiste Unamuno en describir las virtudes narrativas de Díaz Rodríguez, llegando en un momento a afirmar que esta novela acusa algo de tropicalismo, noción donde me gustaría detenerme, pues ese “tropicalismo” se remarca precisamente con el afrancesamiento de la literatura americana, justamente porque muchos de nuestros literatos se han ido a vivir a París para recibir el influjo de ésta, pues “es indudable que la literatura francesa es una gran educadora de todo literato profesional, pero a condición de saber desligarse a tiempo de su fascinación y de no dejarla que tuerza nuestro natural, aunque lo corrija.”, pasando luego a señalar “cierto extraño hibridismo entre la expresión tropical y eso que llaman decadentismo francés”, poniendo algunos ejemplos, sobre todo uno, muy poético, con el cual termina el comentario del libro, donde Alejandro Martí ejecuta una música al piano; este constituye de veras un ejemplo elocuente del arte escritural de Díaz Rodríguez. Sólo citaré una pequeña frase de éste, referido al mar: “El mar no replicaba si no cantando su eterna antífona ronca, dilatando su eterna sonrisa, indiferente bajo el cárdeno suplicio del crepúsculo.” Como dijimos, Unamuno realiza estos comentarios, uno en 1901 y otro en 1903 en el diario “La Lectura” de Madrid. En otro artículo de 1902 (2) intercala varias aseveraciones 60 sobre la condición del ser europeo en América, que tienen que ver con ese decadentismo al que hace referencia Pedro Emilio Coll cuando hace observar que lo que llamamos decadentismo en América “no es quizás sino el romanticismo exacerbado por las imaginaciones americanas. La infancia de un arte que no ha abusado del análisis y que se complace en el color y en la novedad de las imágenes, en la gracia del ritmo, en la música de las frases, en el perfume de las palabras, y que como los niños ama las irisadas pompas de jabón”, encontrando en todo esto una razón poderosa para que la literatura francesa ejerza grande influjo sobre los pueblos que empiezan a hacerse tradición de cultura, y es que la literatura francesa es la que menos esfuerzo de comprensión exige, la más clara y diáfana, la más brillante, la que nos da en papilla el pensamiento universal, aunque sea debilitándolo”. Es de hacer notar el fino humorismo de que hace gala Unamuno, cuando apunta que “fueron los franceses los que me introdujeron el pensamiento europeo, sacándome de este camaranchón de España, pero hace ya tiempo que los tengo casi olvidados.” Se vale pues, Unamuno de este comentario que realiza a “Hojas en un diario”, ensayo del libro El castillo de Elsinor (Caracas, 1901) de nuestro Pedro Emilio Coll, para introducir sus ideas sobre la literatura americana, francesa y española, dando la razón a Coll al suponer que “las influencias extranjeras, lejos de ser un obstáculo para el americanismo, le favorecen.” Con la observación de estas ideas parece quedar claro que la mirada de los hispanoamericanos al resto del mundo supera con creces la mirada que el resto del mundo obtiene o arroja sobre nosotros: esos síndromes eurocentristas, egotistas o titanistas de EE.UU con que solemos toparnos a diario se han venido desvaneciendo en un mundo multipolar, que ha dejado lejos aquella época donde las superpotencias parecían destinadas a gobernarnos y a decidir nuestros gustos culturales, han venido cesando pese al acelerado peso de la globalización; han venido palideciendo las tendencias informativas donde se nos imponen a la fuerza modelos y formatos de crear o producir. Poco a poco los países nuestros van saliendo del marasmo al que los han querido conducir la mundialización de la información y la estandarización de los códigos culturales; nuestros nacionalismos ya no son vacíos ni retóricos, sino modos de emanciparnos y de otorgar dignidad a una idea más cabal de patria. Liberados de mesianismos y quintaesencias, tenemos la opción de ir educándonos desde adentro, desde las voces íntimas y hondas que nos lega la literatura, insertas en el norte de la emancipación cultural Si la paz es tolerancia, inclusión, participación, respeto a las diferencias y aceptación de la diversidad cultural; si éstas hacen posible la convivencia y el equilibrio social a través del ejercicio de la libertad individual para el bien colectivo, más allá de la limitación de las ideologías, superando la política de las invasiones bélicas a otros países, orquestadas la mayoría de ellas en los laboratorios del capitalismo “avanzado”; si la paz da origen a una cultura del diálogo entre estos conceptos para superar las carencias de un mundo donde aún se verifican genocidios y fratricidios, entonces es sensato apostar por un nuevo concepto de paz entre escritores de Europa y Venezuela, de Venezuela y el mundo, de España, Portugal y Venezuela tal como lo hicieron en su momento Miguel de Unamuno, Manuel Díaz Rodríguez y Pedro Emilio Coll, los cuales son, de hecho, puntos de referencia para continuar construyendo ese diálogo.. No quisiera concluir esta observación sin dejar de mencionar el efectivo vínculo que se ha venido produciendo entre Venezuela y Europa en el terreno de las humanidades y la literatura en los últimos años, en países como España, Portugal, Francia, Suiza, Holanda o Alemania, tanto en el plano de los estudios académicos, como en el diplomático y editorial, al llevarse a cabo en diversas instituciones numerosos congresos, simposios, ediciones y encuentros que se han propiciado desde Universidades en Neuchatel, La Sorbona y Salamanca, donde he estado, y ahora aquí en Oporto, donde se ha producido una acogida a las ideas y a la creación, publicando y divulgando material literario vertido en trabajos teóricos, libros y revistas monográficas sobre literatura venezolana (3), todos en la dirección de un dialogo humanístico donde la literatura es punto cenital de ese diálogo, siendo ella la que tiene la misión de reconstruir la memoria y el imaginario de una sociedad a través del 61 arte de la palabra, y ese arte ha favorecido el entendimiento entre nuestras instituciones, estudiantes, profesores y miembros de la comunidad de saberes en ambas tradiciones y continentes; diálogo que con seguridad va a ser alimentado a lo largo de los años venideros, para apostar por el tan esperado renacimiento de la paz en este, nuestro mundo de hoy, tan asediado aún por el absurdo de la guerra. © Copyright Gabriel Jiménez Emán NOTAS: (1) “Una novela venezolana”. Ídolos rotos. Novela por Manuel Díaz Rodríguez, Paris. Imprenta española de Garnier Hermanos, 1901. 3,50 francos. Crítica aparecida en: La Lectura, Madrid,, julio 1901. Pp63-72. “Otra novela venezolana”. Sangre Patricia. Por Manuel Díaz Rodríguez, Caracas, 1902. Crítica aparecida en La Lectura, Madrid, abril, 1903. Ambos artículos reproducidos en el libro: Miguel de Unamuno. Americanidad, Selección y prólogo de Nelson R. Orringer, Biblioteca Ayacucho, Colección La Expresión Americana, Carcas, 2002. (2) Miguel de Unamuno. Obras completas, Tomo IV, Madrid, Escelicer, 1968, pp. 783-786. (3) Nuestra América. Revista de Estudios sobre la Cultura Latinoamericana. Nº 4- Cultura Venezolana. Porto Agosto-diciembre 2007. GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN (Caracas, 1950). Poeta, narrador y ensayista. Ha publicado libros como El hombre de los pies perdidos (2005), Averno (2007), y Impreso en la retina. Crónicas de un adicto fílmico (2010). Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de António Beneyto (España), artista invitado de esta edición de ARC. 62 HAROLD ALVARADO TENORIO | Hace 146 años nació Rubén Darío Yo nunca aprendí a hacer versos —dice Rubén Darío (Metapa, 1867-1916) en su Autobiografía —. Ello fue en mí orgánico, natural, nacido. Niño precoz, versificó en una ciudad, León, donde se rimaba por cualquier acontecimiento: una boda, un deceso, un cumpleaños, una victoria o un fracaso político, la consagración de un obispo o la toma de empleo. Sus versos de entonces imitan a Zorrilla, Campoamor o a Nuñez de Arce, pero también a Víctor Hugo, el primer poeta francés que se advierte como influencia en su poesía. Son poemas unas veces piadosos otras profanos, nacidos de las contradicciones ideológicas que vivía un niño en una comunidad de fanáticos religiosos y una minoría de liberales y positivistas, artesanos e intelectuales lectores de Rousseau, Montesquieu y Juan Montalvo. Sus temas, los del civilismo latinoamericano: la fe en el progreso, en la democracia, el odio al clero y la iglesia, y los eternos de la poesía: el amor, el paisaje, las explicaciones de los mundos desconocidos, los otros mundos del alma. Durante su estancia en Chile Darío publicó Azul… Ni los cuentos ni los poemas escritos allí se parecen a los que había publicado en Nicaragua. La lectura de los parnasianos, con Leconte de Lisle a la cabeza, deslumbraron a Darío revelándole la forma escultórica de la estrofa, el colorido de la adjetivación y el brillo de las imágenes precisas. Sus poemas son breves y aun cuando en ellos impere todavía el formalismo clásico, en sus versos y estrofas se siente ya un nuevo espíritu. Ese es el caso de Anagke, la tragedia de una paloma contada en silvas, o de Estival, cuyo asunto es la crueldad del poderoso. Poemas donde Darío se va distanciando del dato concreto para ofrecernos parábolas que interpreten una sociedad o un país, mediante el desvelamiento de sus contradicciones. Sus otros poemas de esta época, los llamados artísticos, magnifican y distorsionan los asuntos, a fin de que sus significados se resuelvan sólo en la conciencia del lector. En invernales horas, mirad a Carolina. Medio apelotonada, descansa en el sillón, envuelta con su abrigo de marta cibelina y no lejos del fuego que brilla en el salón. El fino angora blanco junto a ella se reclina, rozando con su hocico la falda de Alençón, no lejos de las jarras de porcelana china que medio oculta un biombo de seda del Japón. Con sus sutiles filtros la invade un dulce sueño: entro, sin hacer ruido; dejo mi abrigo gris; voy a besar su rostro, rosado y halagüeño como una rosa roja que fuera flor de lis. Abre los ojos, mírame con su mirar risueño, y en tanto cae la nieve del cielo de París. (De invierno) Juan Valera acertó en sus juicios sobre Azul…, al señalar que uno de los rasgos maravillosos de la personalidad del autor era no ser ni clásico ni romántico, ni simbolista, ni decadente sino que lo había revuelto todo sacando de ello la quintaesencia que definía su estilo. Pero lo más importante de sus juicios fue decir que la originalidad aparecía en los 63 cuentos y no en los poemas. El cuento parisién, a lo Catulle Mendés, le había proporcionado un modelo ajustado a las visiones artísticas de su tiempo. El fardo, El rey burgués, o La muerte de la emperatriz de la China recuerdan ese estilo de conversación con la cual se trasmite un chisme; una escritura que reconoce la existencia de un mundo nuevo que requiere una nueva forma; un artificio que satisfaga la subjetividad de los nuevos lectores. En El fardo los personajes viven en hacinamientos humanos, entre paredes destartaladas, sobre callejuelas inmundas de mujeres perdidas que deambulan en noches sin luz. El rey burgués es símbolo de la inmensa riqueza, del gusto refinado; un mercader del arte que ignora al poeta y lo abandona a la muerte, en una noche de invierno, mientras él piensa en el Ideal y el día que viene. Un mundo pesimista y una necesidad de acercarse a los abismos de lo desconocido, para crear nuevas mitologías, son el retrato que hace de su tiempo quien creía que el dinero debe ser exclusivamente usado por los artistas. Un cambio vertiginoso en el crecimiento de las ciudades se produjo en el último cuarto de siglo del XIX. Según Richard Morse, [1] la población en Santiago pasó de los ciento treinta a los doscientos cincuenta mil habitantes, mientras la de Buenos Aires alcanzó los ochocientos cincuenta mil. En esta populosa ciudad desembarcó Darío el 13 de agosto de 1893. Un nuevo tipo de hombre de la calle y de negocios, de hogar y de burdel, habitaba la primera Cosmópolis hispanoamericana. Aventureros que buscaban, como afirma José Luis Romero, [2] el ascenso social y económico con apremio, casi con desesperación, generalmente de clase media y sin mucho dinero, pero con una singular capacidad para descubrir dónde estaba escondida, cada día, la gran oportunidad. "Buenos Aires modernísimo —escribiría Darío en 1896 [3]— cosmopolita y enorme, en grandeza creciente, lleno de fuerzas, vicios y virtudes, culto y polígloto, mitad trabajador, mitad muelle y sibarita, más europeo que americano, por no decir todo europeo". La Argentina de Darío, con su capital donde no habían cien personas que comprasen un libro, pero que editaba el periódico más importante del continente, era el resultado de una revolución en los medios de producción. Entre 1860 y 1913 se invirtieron allí 10.000 millones de dólares, el 33% de las inversiones extranjeras en el área. En ese mismo lapso ingresaron al país 3.300.000 personas que se enrolaron en la economía agropecuaria; en 1887 sus vías férreas alcanzaban los 6.200 kilómetros y en 1900 totalizaba los 16.600, mientras las exportaciones pasaron de los 260 millones de dólares en 1875 a los 460 millones en 1900. [4] 1896 es el año de la apoteosis de Darío: se publican Los raros y Prosas profanas y otros poemas. Los artículos recopilados en el primer libro habían sido publicados en La Nación, que desde 1888 contaba a Darío como uno de sus corresponsales. Están dedicados a figuras literarias que llamaban la atención de los modernistas o eran sus predilectos. Camile Mauclair, Edgar Allan Poe, Leconte de Lisle, Paul Verlaine, el conde Matías Augusto de Villiers de L'Isle Adam, León Bloy, Jean Ripechin, Jean Moreas, Rachilde, George D´Esparbés, Augusto de Armas, Laurent Tailhade, Fray Domenico Cavalca, Eduardo Dubus, Théodore Hannon, el conde Lautréamont, Paul Adam, Max Nordeau, Ibsen, José Martí y Eugenio de Castro forman esta galería y vademécum de la nueva literatura. Cada reseña de la vida y las obras de los autores es un canto de admiración, con juicios ciertos y valoraciones exactas sobre tan variado conjunto. Es una obra que resume la lucha de Darío por ventilar, con los aires de la nueva generación, el enrarecido ambiente romanticoide de América. Las frases escritas sobre Verlaine parecen un retrato de sí mismo: Verlaine fue un hijo desdichado de Adán, en el que la herencia paterna apareció con mayor fuerza que en los demás. De los tres Enemigos, quien menos mal le hizo fue el Mundo. El Demonio le atacaba; se defendía de él, como podía, con el escudo de la plegaria. La Carne sí, fue invencible e implacable. Raras veces ha mordido cerebro humano con más furia y ponzoña la serpiente del Sexo. Su cuerpo era la lira del pecado. Era un eterno prisionero del deseo. Al andar, hubiera podido buscarse en su huella, lo hendido del pie. Se extraña uno no ver sobre su frente los dos cuernecillos, puesto que en sus ojos podían verse aún pasar las 64 visiones de las blancas ninfas, y en sus labios, antiguos conocidos de la flauta, solía aparecer el rictus del egipán. Como el sátiro de Hugo, hubiera dicho a la desnuda Venus, en el resplandor del monte sagrado: Viens nous en!… Y ese carnal pagano aumentaba su lujuria primitiva y natural a medida que acrecía su concepción católica de la culpa. Prosas profanas, está precedido por un prólogo donde Darío proclama, entre otras preferencias, su amor por la novedad a condición de que sea inactual; exalta el yo desdeñando las mayorías; declara la supremacía del sueño sobre la vigilia y la del arte sobre la realidad, pregonando su horror por el progreso, la técnica, el presente y la democracia: … vereís en mis versos princesas, reyes, cosas imperiales, visiones de países lejanos o imposibles; ¡qué quereís!, yo detesto la vida y el tiempo en que me tocó nacer; y a un presidente de la República no podré saludarle en el idioma en que te cantara a ti, ¡oh Halagabal!, de cuya corte — oro, seda, mármol — me acuerdo en sueños…. (Si hay poesía en nuestra América, ella está en las cosas viejas: en Palenke y Utlatán, en el indio legendario, y en el inca sensual y fino, y en el gran Moctezuma de la silla de oro. Lo demás es tuyo, demócrata Walt Whitman.) Darío recoge en este volumen los motivos que más le dieron prestigio: la nostalgia de los parques del setecientos, los abates galantes, las marquesas crueles, las elegancias a lo Watteau, la princesa que aguarda al feliz caballero que la adora sin verla y viene a encenderle los labios con un beso de amor; los efebos criminales parecidos a los satanes verlenianos, los cisnes simbólicos y elegantes. La búsqueda de la expresión se hace en base a una musicalidad, que imprime a las palabras, más allá de su sentido lógico, grandes sugerencias. El helenismo, a lo parnasiano, está expresado en idilios de espléndido y artificioso virtuosismo donde lo pintoresco se funde con relieves escultóricos y las evocaciones, clasicistas, están unidas a imágenes españolas de gran colorido, precioso y refinado. Pero es también, sustancialmente, un prodigioso repertorio de ritmos, formas, colores y sensaciones. Sus innovaciones métricas y verbales son deslumbrantes. Pedro Henríquez Ureña, [5] en un comentario a la obra de Darío, en 1905, enumera, entre otras, las siguientes: resurrección del endecasílabo anapéstico y el provenzal; ruptura de la división rígida de los hemistiquios de alejandrino; auge del eneasílabo y el dodecasílabo; cambios de acentuación; invención de versos largos; mezcla de distintas medidas con una misma base silábica, ternaria o cuaternaria; versos amétricos y retorno a las formas tradicionales del verso hispánico. El placer, sostiene Octavio Paz, [6] es el tema central de Prosas profanas: La mujer lo fascina. Es colina, tigre, yedra, mar, paloma; está vestida de agua y de fuego y su desnudez misma es vestidura. Es un surtidor de imágenes: en el lecho se "vuelve gata que se encorva" y al desatar sus trenzas asoman, bajo la camisa, "dos cisnes de negros cuellos". Es la encarnación de la "otra" religión: "Sonámbula con alma de Eloísa, en ella hay la sagrada frecuencia del altar". Es la presencia sensible de esa totalidad única y plural en la que se funden la historia y la naturaleza: …fatal, cosmopolita, universal, inmensa, única, sola y todas; misteriosa y erudita; ámame mar y nube, espuma y ola. En abril de l900 y por encargo de La Nación Darío llegó a París para cubrir los eventos de la Exposición Universal. Allí viviría por algunos años. La Ciudad Luz arde en esplendor. Sus crónicas sobre el acontecimiento son juicios valorativos sobre los diferentes sectores y en especial del artístico, como los que emite sobre la muestra de Rodin, quien, para Darío, no es un solo creador sino dos: el inventor de la belleza, clásico y comprensible y el otro, surgido de las mismas fuentes de la naturaleza, el que ha esculpido el Pensador. Pero su entusiasmo por el mundo europeo va decayendo poco a poco, a medida que confirma la ruina de unas sociedades que realizarían las mas horrendas guerras del mundo moderno. El uno de enero de 1901, en Reflexiones sobre el Año Nuevo parisiense, aseguró: 65 No hay mayor contraste que el de esta riqueza y placer insolentes, y este frío en que tanto pobre muere y tanto crimen se comete, de manera que las bombas que de cuando en cuando suenan en el trágico y aislado sport de algunos pobres locos, vienen a resultar ridículas e inexplicables. Esto no se acabará sino con un enorme movimiento, con aquel movimiento que presentía Enrique Heine, ante el cual la Revolución Francesa será un dulce idilio. Son estos los años cuando Darío toma conciencia clara de ser latinoamericano. Junto a los hermanos Cuervo, Vargas Vila, Blanco Fombona, Díaz Rodriguez, Tamayo, Nervo o Ugarte y Estrada había descubierto que el París y la vida parisina que tanto amaron les ignoraba. Salutación del optimista, escrito para un acto en el Ateneo madrileño, organizado por la Unión Iberoamericana, es una premonición del caos que estaba a las puertas de la historia: Siéntense sordos ímpetus en las entrañas del mundo, la inminencia de algo fatal hoy conmueve la tierra; fuertes colosos caen, se desbandan bicéfalas águilas, y algo se inicia como vasto social cataclismo sobre la faz del orbe. Cantos de vida y esperanza es el más importante de sus libros. En el prólogo enfatiza en la continuidad de su tarea realizada e insiste en el carácter personal de sus hallazgos. Aparte de sus novedades formales, es un retorno a las preocupaciones y actitudes anteriores a Azul…: la política, el amor por lo hispano y el recelo ante los Estados Unidos. Cyrano en España, Retratos, Trébol, Un soneto a Cervantes, A Goya, y Letanía a Nuestro Señor Don Quijote intentan una revalidación de la cultura española. Su visión del pasado y el presente abarca las civilizaciones abolidas, los conquistadores y los héroes de las gestas independentistas. Ve el peligro que representan los Estados Unidos como un conflicto entre civilizaciones: la norteamericana es joven, agresiva, nórdica, pragmática, protestante; la nuestra, heredera de dos antiguas civilizaciones en descenso. En A Roosevelt, al optimismo yanqui, opone el alma de la América Hispana que sueña, vibra y ama. Son poemas que buscan las razones de una esperanza en nuestro futuro. Su otra preocupación es la religiosa. El nuevo Ideal está asociado a la fe, como en Los tres reyes magos o Canto de esperanza. Ante el poderío norteamericano y el apocalipsis inminente, fe y poesía son caminos para acercarse al misterio, a lo inefable del porvenir: ¡Torres de Dios! ¡Poetas! ¡Pararrayos celestes que resistís las duras tempestades, como crestas escuetas, como picos agrestes, rompeolas de las eternidades! La mágica esperanza anuncia un día en que sobre la roca de armonía expirará la pérfida sirena. ¡Esperad, esperemos todavía! (Cantos) En la obra y la vida de Darío se resume todo el proceso del Modernismo, y es uno de los más vivos testimonios de las preocupaciones del alma hispánica en una época cuando nuevas generaciones de latinoamericanos no se encontraban a gusto bajo el tutelaje de las culturas dominantes en Europa y América. Desde el repudio a la realidad y su inicial refugio en mundos mitológicos y exóticos, hasta el reencuentro con las preocupaciones sociales y la formulación de las eternas preguntas sobre el arte, el placer, el amor, el tiempo, la vida, la 66 muerte o la religión, hay en él un poeta que comprendió, a cabalidad y con la imaginación, la hora y el espacio que le tocó vivir. NOTAS 1. The Urban Development of Latin America 1750-1920, Stanford, 1971. 2. Latinoamérica: las ciudades y las ideas, México, 1976. 3. Introducción a Nosotros, de Roberto J. Payró, en Escritos inéditos de Rubén Darío, New York, 1938. 4. Ver: El positivismo y el progreso material (1870-1890), en Historia General de América, de Francisco Morales Padrón, tomo IV, Madrid, 1982. 5. Rubén Darío, en Obra crítica, México, 1960. 6. El caracol y la sirena, en Cuadrivio, México, 1972. Harold Alvarado Tenorio (Colombia, 1945). Poeta, ensayista y traductor. Editor de los Cuadernos de Poesía de España y América de la Editorial Tiempo Presente y de la Página Ocho/Cultura de La Prensa, actualmente dirige Arquitrave, revista de poesía. Ha publicado La poesía de T.S. Eliot (1988), Literaturas de América Latina (1995), y Summa del cuerpo (2002). Contato: [email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC. 67 HÉCTOR ROSALES | María Meleck Vivanco, iluminada por el fuego María Meleck Vivanco nació en Valle de San Javier (Córdoba, Argentina) en 1921. Hay muy pocas poetas contemporáneas de aquel país −o de cualquier otro− que hayan desarrollado una obra tan personal y genuina como, al mismo tiempo, tan apartada del gran público y de los cánones oficiales de las letras en castellano. En los escasos textos sobre su obra se suele vincularla al primer grupo argentino de poetas inspirados en el surrealismo, que Aldo Pellegrini reuniera en su Antología de la Poesía Surrealista a mediados del siglo XX. Desde la perspectiva hispanoamericana, estos autores fueron pioneros en adherirse al movimiento originado en Francia, destacándose nombres como los de Francisco Madariaga, Juan Antonio Vasco, Enrique Molina, Oliverio Girondo, Julio Llinás, Carlos Latorre o Juan José Ceselli. María Meleck Vivanco tuvo su sitio dentro de aquel círculo, aunque, quizás por la personalidad independiente de la autora, su poesía no cobró la difusión de algunos de sus compañeros. Esta personalidad y la fidelidad a sus propias letras se mantuvieron intactas hasta el final, ocurrido el 8 de noviembre de 2010 en Portezuelo (Maldonado, Uruguay), donde la escritora se había refugiado en sus últimos años. No recuerdo ahora con exactitud cuándo recibí por primera vez una carta de María Meleck. Debió ser hacia 1995, me parece. Pero recuerdo con mucha claridad su impetuosa caligrafía, torrencial, cercanísima. En algún rincón indicó como nexos para su iniciativa epistolar dos fuentes muy valiosas. Por un lado nuestra común y querida amiga, la poeta uruguaya Orfila Bardesio, una creadora de la misma raza mística, telúrica y visionaria que la propia María, o de otras autoras como Marosa di Giorgio, Olga Orozco o Concepción Silva Bélinzon, leídas entre sí, cada una dueña de su voz, y con diversos lazos de amistad personal. Orfila aportó los datos de mi domicilio y comentarios sobre mis letras. La otra vía de contacto también vino por la lectura, en este caso la de su amigo Enrique Molina, a quien no traté en vida, y del que me honra su interés como lector. Desde entonces cruzamos cartas y libros, poemas sueltos (impresos, fotocopiados, inéditos), postales y algunas fotos. Siempre por correo tradicional. En aquellas cartas llegaba la poeta entera, transparente, confesional, con esa fuerza tan característica en sus versos, que en los papeles manuscritos se multiplicaba dando muestras de su vehemente manera de vivir. Directa o indirectamente, más adelante sumando la comunicación de su hija Juana Guaraglia (periodista y escritora), el universo Meleck Vivanco ha seguido muy próximo a mis días, pudiendo comprobar cómo se va revalorizando, felizmente, el caudal de una poesía que trasciende las expectativas de su autora. María Meleck solía justificar su proceso creativo como fruto del azar, del destino, de un don de la naturaleza. En este aspecto su descripción coincide −en parte− con los testimonios que escuché de Marosa di Giorgio (principalmente) y Orfila Bardesio para sus trayectorias particulares. Hay en esta clase de autoras una suerte de revelación, unas raíces inspiradoras que suministran imágenes, secuencias, derivaciones, sentimientos y, tantas veces, interrogantes a los poemas. Si bien Breton ponderaba las virtudes de la escritura automática (que no niega para sí nuestra poeta), no estoy tan convencido de que se aplicara sólo este recurso en la mayor parte de los textos de Meleck Vivanco. Se trata de una obra llena de pasión, de pulso romántico al estilo alemán, con una vertiente humanística muy profunda, y la plena convicción de que vida y muerte (dos caras 68 de una misma moneda) ruedan con nosotros bajo leyes que no podemos comprender pero sí aceptar, con gozo y con dolor, hasta sus más remotas consecuencias. La poética de María Meleck mantiene una constancia formal que no es común en una escritura automática, descuidada, inconsciente. Es una escritura vigilada en su expresividad, hay un lenguaje al servicio de los hallazgos metafóricos, del ritmo, de las sensaciones que deben llegar al lector. Aunque María afirmara lo contrario, posiblemente abrazada a la explosividad de sus sentimientos y su obediencia a los designios de la tierra, el hilo de fuego que cose la estructura de su obra está sostenido con firmeza y con indudable voluntad literaria. De ahí parten sus iluminaciones, las búsquedas de su voz, lo que aparece en el intenso tránsito de la mirada de sus versos. “Me he quedado con las apariciones de mi corazón”, dice en uno de estos versos. Y sin escapar a los golpes, añade en otro: “Peso y tamaño de ingratas piedras sobre mi corazón, / marcado por la tempestad y los colmillos de la vida”. La suma de estas y otras heridas no margina su apuesta por la sensualidad, la creencia en un Dios plenamente justo y ausente en las religiones, el amor a todo ser vivo (empezando por las personas más necesitadas), el culto a la libertad y, por supuesto, a la poesía, compañera de todos los viajes. “Únicamente pido calidad, emoción y misterio”, declaraba Meleck Vivanco como lectora en una entrevista de febrero 2007, publicada en internet (la recomendamos con un enlace al final de este trabajo). Tres principios que certifican el gusto nada inocente (“ni automático”) de una poeta que supo valorar con fino criterio los numerosos textos que llegaron a sus manos. Desde esos mismos principios partieron sus títulos editados: Taitacha Temblores (1956, poemas quechuas), Hemisferio de la Rosa (1973), Rostros que nadie toca (1978), Los Infiernos Solares (1988), Balanza de Ceremonias (1992), Canciones para Ruanda (1997), que se reeditó póstumamente junto a Mar de Mármara / alucinaciones del azar (2011). En María Meleck Vivanco / Antología poética (Fondo Nacional de las Artes, Buenos Aires 2008), volumen del que seleccionamos varias piezas a continuación de estas líneas, también se incorporan poemas de libros inéditos, que deseamos vean la luz en fechas tempranas. Meleck Vivanco ha recibido las siguientes distinciones: Libro de Oro (Lima, 1956), Segundo Premio de Poesía de la Municipalidad de la Ciudad de Buenos Aires (1978), Premio Fundación Argentina para la Poesía (Colección de Poetas Contemporáneos, Buenos Aires, 1988), Premio de Poesía del Fondo Nacional de las Artes (Buenos Aires, 1991), Premio UNICEF (Nueva York, 1996), Premio Universidad de las Letras (La Habana, 1997) y Premio Fundación Sociedad de Los Poetas Vivos (Buenos Aires, 1998). En 1978 fue invitada al Tercer Congreso Latinoamericano de Mujeres Escritoras organizado por la Universidad de Ottawa. Y en 1999 al Congreso Internacional del Surrealismo en el Tercer Milenio, efectuado en Roma. Los últimos años en Portezuelo los pasó en una casita muy cercana –dentro del mismo terreno− a la vivienda de su hija, quien me envió diversas fotos del entorno de la poeta. Una cálida sencillez está presente en la mayoría de las imágenes, y la naturaleza, como en los tramos más significativos de su vida, dominando el paisaje y ya tomando definitivamente las riendas de su espíritu. Fue una etapa muy difícil por los problemas de salud. Aun así los libros y la gente querida le dieron fuerzas para mantener su comunicación y la llama de la poesía. Con letra firme escribe en septiembre de 2009 una afectuosa dedicatoria en la citada Antología. No supe de ella hasta un año y pico después, cuando Juana remitió el volumen junto a otro título de su propia autoría, Cuentos de Frontera, aparecido en ese período y ya fallecida su madre. El sobre llegó a mi lugar de trabajo. No lo abrí de inmediato, sino al mediodía, después de entrar en un bar del barrio a tomar un café. Minutos antes imaginaba una carta de Juana contándome los últimos meses de María; lo que encontré fue una breve nota y las dos ediciones. 69 La inefable impresión inicial fue que María Meleck me había escrito esas líneas en su libro desde el más allá, un más allá a mi lado, tangible como el pocillo de café y el frío en la calle y la emoción en los ojos. “… con el testimonio de mi admiración y mi permanente recuerdo.” Leí varias veces esa línea como si yo la estuviera escribiendo para la poeta, y no al revés, mientras reconocía su sincera y generosa afirmación. No había azar en la dedicatoria y sí en mi gesto siguiente, el de leer un verso del libro abriendo una página cualquiera. Como si un pequeño relámpago encendiera la hoja de papel, aparecieron (lo juro) estas palabras: “Y trasponer la muerte / Sólo en tus ojos, intercambio mi espejo.” El mensaje me envolvió hasta casa. Fui observando los detalles del panorama, las calles, un parque, varios transeúntes. ¿Se asomaría en algún momento María Meleck bajo otro signo? ¿Debería interpretar alguna señal más en la piel y en la memoria de ese invierno barcelonés? Tuvieron que pasar meses para releer la Antología, elegir varios fragmentos y evocar a la poeta argentina en estas letras de agosto. Localicé su última imagen en mi haber, esa leve silueta recortada sobre la puerta de su cabaña que, espero, los editores colocarán al principio de esta reseña. Creo que allí María Meleck Vivanco sonríe, transmite todavía su enérgica lección vital que la traspone hasta aquí, cuando de nuevo, eternamente, nos intercambia su espejo iluminada por el fuego. Héctor Rosales nació en Montevideo en 1958, y está radicado en Barcelona desde 1979. Incluido en antologías, catálogos, libros colectivos y publicaciones nacionales e internacionales, algunos de sus textos se han traducido al francés, portugués, catalán, gallego, polaco, italiano, inglés y alemán. Entre otros libros, ha publicado: Visiones y agonías (Barcelona, 1979), Espejos de la noche (Madrid, 1981); Desvuelo (Montevideo-Barcelona, 1984), Habitantes del grito incompleto (Montevideo, 1992) y Mientras la lluvia no borre las huellas (Barcelona, 2002). Ha colaborado en numerosas revistas de arte y literatura de distintos países y es autor de las antologías Voces en la piedra iluminada / Diez poetas uruguayos (Toledo, 1988), Chapper, las espinas del verso (Montevideo, 2001) y Nadie dude el lucero / Rolando Faget (México, 2009). Web oficial: www.hrosales.com. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. . 70 JOSÉ ALCÁNTARA ALMÁNZAR | Reencuentro con Héctor Incháustegui Cabral I | Hace casi treinta y tres años tuvo lugar mi último encuentro personal con Héctor Incháustegui Cabral, cuando él se hallaba hospitalizado en el Centro Médico UCE, luego de sufrir un infarto que acabó con su vida a la edad de sesenta y siete años. Había ido a verlo a instancias de su hijo, el doctor Sergio Incháustegui Salvador, recordado pediatra de mis hijos, y aproveché el privilegio que se me confería en momentos cruciales, para decir adiós a mi querido y respetado mentor, sin que él sospechara que se trataba de una despedida final, la cual aproveché para mostrarle su biografía, aparecida en Caribbean Writers [1], la recién salida Enciclopedia de Escritores del Caribe en la que yo había colaborado para la parte dominicana, a petición del catedrático, investigador y editor norteamericano Donald E. Herdeck [1924-2005], propietario de la editorial Three Continents Press, que publicó la obra. Aquel triste y último encuentro ocurrió en los días posteriores al ciclón David, cuyo paso por la ciudad de Santo Domingo y el resto de la isla, el 31 de agosto, había asolado la urbe y paralizado la nación. Todo ese dantesco cuadro –la ruina de agricultura, la destrucción de viviendas, el colapso de los servicios de electricidad y agua potable, el desplome de la producción de alimentos– fue agravado poco después por la tormenta Federico, que anegó nuestro territorio, desbordó las presas y dejó a la intemperie a muchos campesinos y desheredados de siempre, aquellos hombres y mujeres que nuestro gran poeta había llevado en su corazón, y a quienes había cantado en versos amargos contenidos en Poemas de una sola angustia (1940), libro esencial de la poesía dominicana contemporánea, un auténtico clásico moderno al que debemos acudir en busca de un panorama del país a mediados del siglo XX, una radiografía del dolor humano y espiritual, y una noción desmitificada de la patria, muy distante de la concepción heroica divulgada en los manuales de historia: Patria, jaula de bambúes, para un pájaro mudo que no tiene alas, Patria, palabra hueca y torpe para mí, mientras los hombres miren con desprecio los pies sucios y arrugados y maldigan las proles largas, y en cada cruce de caminos claven una bandera para lucir sus colores nada más… («Canto triste a la patria bien amada»). En su desnudo lecho de cuidados intensivos en la clínica, don Héctor permanecía ajeno a la tragedia del país. Debido a su grave estado de salud –que pocos conocían salvo sus médicos y su hijo Sergio–, se le habían ocultado las proporciones del drama colectivo y la crítica situación en que se encontraba la gente a raíz del huracán y la tormenta, una ciudadanía aún inmersa en una pesadilla de proporciones incalculables. Recuerdo que ese lluvioso día él hizo bromas, con un asomo de sonrisa en los labios, e incluso dijo que después de salir, con fotografía y todo, en una enciclopedia literaria publicada en los Estados Unidos, ya podía morirse tranquilo. Y así ocurrió, poco después, el 5 de septiembre de aquel año, fecha difícil de olvidar, porque es también la del cumpleaños de mi hija Yelidá. II | Ha pasado mucho tiempo desde la muerte de aquel roble en el que se apoyaron tantos jóvenes con vocación literaria, inquietudes filosóficas y políticas y que buscaban 71 orientaciones y estímulos, encontrando en él a un sabio maestro, a un padre magnánimo. En un emotivo artículo aparecido en el número de homenaje que la revista Eme-Eme le dedicó en 1980, justo un año después de su partida, el poeta, ensayista y diplomático chileno Alberto Baeza Flores –un amigo querido, un alma buena y noble que amó nuestro país entrañablemente– afirmó que Incháustegui Cabral había sido, en su calidad de Director de la Colección Contemporáneos de la Universidad Católica Madre y Maestra y de la mencionada revista, una figura indispensable, «un promotor cultural, e impulsor del quehacer literario entre sus contemporáneos»; y aseguraba también que su labor editorial en la década de los años setenta del siglo pasado en la República Dominicana no tenía parangón en el país,[2] cosa que a mí me consta, pues tuve el privilegio de trabajar con don Héctor como corrector de pruebas de la revista y las publicaciones de la colección. Con él aprendí el oficio; a él le debo, en gran parte, lo que sé en materia editorial. Puedo decir, sin vacilaciones, que el recorrido por la vida de Héctor Incháustegui Cabral, y el estudio permanente de su dilatada obra literaria, ha constituido para algunos una lección conmovedora, no sólo al aquilatar su grandeza de espíritu, su bondad, su generoso magisterio y su extraordinaria creación literaria en poesía, teatro, ensayo, crítica literaria, periodismo y promoción cultural, sino también, y sobre todo, por sus dolorosas contradicciones humanas, sus penas y renunciaciones, pues había sido un joven de ideas socialistas –como un hosco «guaraguao» materialista se definió alguna vez[3]–, a las que debió de haber claudicado para respaldar activamente al régimen de Trujillo, mediante una brillante labor como funcionario y diplomático. Pertenecía Incháustegui Cabral a una generación frustrada, llena de un profundo desencanto ante el caos provocado por las asonadas y revueltas caudillistas de comienzos del siglo XX, y luego la humillación a que nos sometió la primera ocupación norteamericana. Era miembro de una generación desencantada que vio con optimismo el ascenso a la presidencia de un hombre fuerte y ambicioso como Trujillo, una posibilidad de transformación integral de la sociedad dominicana, sin calcular que éste trataría de eternizarse en el poder a sangre y fuego. Fueron muchos los intelectuales de primera que integraron la élite que apoyó al régimen, una intelligentsia en la que brilló un selecto grupo de magníficos escritores –pienso ahora en Virgilio Díaz Ordóñez (1895-1968), Manuel Arturo Peña Batlle (1902-1954), o Ramón Marrero Aristy (1913-1959), amigos de Incháustegui Cabral–, ya que los disidentes notables, como Juan Isidro Jimenes Grullón (1903-1983), Juan Bosch (1909-2001) y Pedro Mir (1913-2000), entre otros, habían tenido que irse al exilio, o perdieron sus vidas a manos de esbirros de la dictadura, tales como Andrés Francisco Requena (1908-1952), el propio Marrero y los españoles José Almoina Mateos (1903-1960) y Jesús de Galíndez (1915-1956), entre otros.[4] Ése es el gran estigma de Héctor Incháustegui Cabral: haber sido colaborador de Trujillo, incluso su compadre, nexos de los que nunca renegó ni trató de ocultar. Muchos ignoran, en sus lapidarios juicios, que ese mismo hombre, ese poeta social rebelde y contestatario es una de las cumbres de nuestra literatura de todos los tiempos, juicio unánime entre sus coetáneos. Don Manuel Valldeperes, recordado crítico de arte, afirmó en 1944 que Incháustegui Cabral «era el más dominicano y el más universal de nuestros poetas actuales»[5]. «Poeta filósofo»[6], lo denominó en 1951 don José Vasconcelos (1882-1959), eximio pensador, escritor y humanista mexicano. Por último, Freddy Gatón Arce (1920-1994), lo llamó «Poeta sustantivo»[7], frase elocuente, tratándose de otro creador fundamental, miembro sobresaliente de la Poesía Sorprendida. Pues bien, ese funcionario que desempeñó tantos cargos, ese diplomático de la dictadura de Trujillo que fue Embajador en México dos veces, en Venezuela, en Ecuador, en El Salvador, y luego, muerto Trujillo, en Brasil, durante el Triunvirato (1964); ese mismo diplomático fue también capaz, sobreponiéndose a los riesgos que implicaban sus acciones, de proteger a Pedro Mir, a raíz de la publicación de su emblemático poema Hay un país en el mundo (1949), cuando Incháustegui Cabral fungía como Encargado de Negocios de la 72 República Dominicana en la hermana isla, según testimonio del historiador Bernardo Vega (1938). [8] Olvidan o ignoran también esos implacables críticos que incluso Juan Bosch admitió en algún momento su deuda con Héctor Incháustegui Cabral, a quien decía «deberle la vida por las advertencias que le hizo en Cuba», [9] en una confesión del autor de La mañosa a la familia de Sixto Salvador Incháustegui Cabral, hermano del poeta. Olvidan, en fin, que en 1960, los hermanos Incháustegui «cayeron en desgracia», aparecieron en el temido Foro Público y fueron cancelados de sus cargos a causa de la participación de Sergio Incháustegui Salvador en una organización política antitrujillista en el exterior. [10] Quiere decir que aquel funcionario que amaba el poder –falleció siendo Secretario de Estado sin Cartera, en funciones de asistente particular del presidente Antonio Guzmán Fernández–; aquel diplomático exitoso, aquel compadre de Trujillo que nunca fue perseguido, fue también, toda su vida, un individuo fiel a sus convicciones cristianas y a una ética personal basada en la justicia y el bien, y por tanto, incapaz de hacerle daño a nadie, lo cual no lo exculpa de haber servido a la tiranía. Sin embargo, como si todo eso fuera poco, su poesía social fue la mayor transgresión de Héctor Incháustegui Cabral al régimen de Trujillo. Ese primer libro de 1940, tan citado como una de las mayores expresiones de protesta en aquella ominosa era, lo escribió un poeta auténtico que no podía traicionarse y que, grabados en versos de fuego, había dejado constancia de su inconformidad con la realidad circundante, poemas que son especie de instantáneas que hablan por sí solas sobre la pobreza rural, el desamparo de hombres y mujeres inmersos en el olvido, la desolación de unos campos misérrimos donde campeaba la explotación humana en todas sus manifestaciones, es decir, hechos de los que no se podía hablar, y sin embargo él lo hizo, pero «no para llenar un programa», y porque «era sincero» y nunca tuvo «la sensación de que hacía algo peligroso». [11] III | Don Héctor había nacido en Baní, el 25 de julio de 1912, hijo del maestro y escritor Joaquín Sergio Incháustegui Andújar y Marina Cabral Billini, ambos banilejos. Tuvo tres hermanos: Joaquín Marino (1908-1967) –uno de los grandes historiadores dominicanos del siglo pasado–, Sixto Salvador –prestigioso neumólogo y maestro de la medicina–, y Yolanda. El ambiente de su casa era de estudio y de libros, pero fue su tía abuela Ramona Billini, según confesión del propio poeta, quien le enseñó a «amar lo pequeño y a respetar lo noble y lo bello», y le ayudó a escoger sus lecturas. [12] Héctor Incháustegui Cabral hizo estudios primarios en Baní, y luego en Santo Domingo, Azua, Barahona, y de nuevo en la capital, de manera que conocía bien la región sur del país, que lo sacudió con su carga de miseria y desamparo. Siendo muy joven casó con Candita Salvador, aquella muchacha hermosa y alegre, nacida en Cuba, a quien conoció en Baní cuando ella tenía doce años. Contrajeron muy jóvenes matrimonio: ella con dieciséis años y él con veinte. Héctor y Candita, su compañera de toda la vida hasta que la muerte de él los separó, procrearon a Sergio (1934-1998), Héctor Joaquín (1940), ambos médicos, y Marino (1947), economista; tres hijos que los colmaron de nietos. Entre las primeras ocupaciones del poeta se encuentran las de Director y Profesor de la Escuela Nocturna de Baní (1931), y la de periodista, pues escribió los editoriales del Listín Diario entre 1938 y 1942, los de La Nación, de 1943 a 1945, y los de La Opinión (1946). Fue colaborador de la revista Bahoruco y uno de los directores de los Cuadernos Dominicanos de Cultura durante los nueve años de vida de esa publicación cultural oficial; y fungió como director de Radio Caribe y Radio Televisión Dominicana. Aunque se ha hablado del posible lastre que las tareas periodísticas dejaron en la poesía de Incháustegui Cabral, él siempre se refirió a esa etapa como una de las más provechosas de su carrera. Aseguraba que el ejercicio del periodismo le había dado instrumentos de incalculable valor en su oficio, un sentido de las proporciones al redactar, y agilidad en la escritura. En verdad, pocos prosistas dominicanos contemporáneos exhiben un dominio absoluto y al mismo tiempo tan espontáneo del lenguaje, ya que escribía como si hablara con su 73 interlocutor. Sus escritos en prosa poseen un encanto y una fluidez que nos atrapan y nos seducen desde el principio. Pienso en Casi de ayer (1952), o en El pozo muerto (1960), esbozo de memorias publicadas en un momento difícil de su vida. Escribía una prosa de naturalidad aparente, pero que es muy difícil de lograr, como la de Juan Bosch; una prosa que posee el desenfado de un comunicador nato, hecha a base de frases salpicadas de aforismos propios que estaban fundamentados en sus vastas lecturas. [13] Pocos escritores dominicanos contemporáneos han exhibido la proverbial cultura de Héctor Incháustegui Cabral, cuya obra se nutría de la Biblia, los clásicos españoles del Siglo de Oro, los prosistas de la Generación del 98, los poetas la Generación del 27, los clásicos griegos y latinos, el teatro español, Shakespeare, narradores franceses, ingleses, rusos, toda la poesía latinoamericana, todo Walt Whitman (1819-1892), T. S. Eliot (1888-1965), Carl Sandburg (1899-1961), Robert Frost (1875-1963), Saint-John Perse (1887-1975), que influyeron en él, entre muchos otros. Conocía a fondo la literatura dominicana, tanto que así que cuando Guillermo Piña Contreras (1952), mediante un cuestionario-entrevista fechado en 1975, le preguntó por los escritores que habían influido en su formación literaria, don Héctor respondió: «Si hubiera que describir mi formación tendría que usar esta mala palabra: enciclopédica, porque a los extranjeros hay que agregar los nacionales que son, Dios me perdone, casi todos. Mientras tanto aprendí lo que enseñan en la escuela». [14] Su labor de crítica fue decisiva en la formación de esa «tabla de valores» de que hablaba Pedro Henríquez Ureña (1884-1946), tan necesaria para situar en su justo lugar a nuestros creadores literarios y examinar las obras fundamentales de la literatura nacional. Sus comentarios, fundados en lecturas abundantes y teorías actualizadas –como el enfoque psicoanalítico de Otto Rank (1884-1939)– eran agudos, esclarecedores, generosos y muy respetados por los escritores de mayor estatura del país. Puso en práctica un enfoque actualizado, un decir novedoso que nada tenía que ver con las viejas interpretaciones, a menudo caprichosas, de la crítica literaria local. Recuerdo que la lectura de su libro De literatura dominicana siglo XX (1969), me impresionó vivamente y se convirtió en libro de cabecera que me sirvió para mis clases de literatura en el Colegio Loyola. En esa obra abordó muchos temas y se ocupó de poetas y narradores indispensables, como Gastón Fernando Deligne (1861-1913), Domingo Moreno Jimenes (1894-1986), Juan Bosch, Ramón Marrero Aristy, Manuel Rueda (1921-1999), Lupo Hernández Rueda (1930), Máximo Avilés Blonda (1931-1988), Virgilio Díaz Grullón (1924-2001), entre otros, y lo hizo con una mirada inédita hasta entonces. En De escritores y artistas dominicanos (1979), su libro póstumo, asistimos al despliegue de su incomparable trayectoria como animador cultural y promotor de las nuevas generaciones, tanto en su condición de Subsecretario de Educación y Bellas Artes, como director de Bellas Artes en dos ocasiones. Puso sus conocimientos al servicio de la interpretación artística y literaria de la promoción emergente. Al mismo tiempo que analizaba las obras de Federico Bermúdez (1884-1921), Tomás Hernández Franco (19041952), Manuel del Cabral (1907-2000), Aída Cartagena Portalatín (1918-1994), y Octavio Guzmán Carretero (1915-1948), esbozaba certeros análisis de la obra de su entrañable amigo Manuel Arturo Peña Batlle, o impulsaba a los jóvenes prometedores de entonces, como Miguel Alfonseca (1942-1994), Jeannette Miller (1944), y Frank Moya Pons (1944). Los artistas plásticos –los bisoños y los establecidos–, toda una pléyade de creadores visuales, encontraron en él a un humanista de amplia visión que contribuyó a colocarlos en el vasto mapa de la cultura continental. Los últimos años de Héctor Incháustegui Cabral, a partir de 1966, cuando se fue a vivir a Santiago de los Caballeros, junto a Candita, como escritor residente en la Universidad Católica Madre y Maestra, los pasó como asesor del rector, monseñor Agripino Núñez Collado. Allí desempeñó diversos cargos, fue profesor de literatura y llegó a ostentar el rango de Vicerrector, pero lo más trascendente fue su presencia bienhechora en todas las áreas del quehacer cultural y editorial de ese centro de estudios superiores, su contacto con los jóvenes, su diálogo permanente con escritores e intelectuales, su respaldo a los artistas 74 de Santiago y el resto del Cibao, entre los cuales dejó discípulos notables, como Danilo de los Santos (1943), el pintor y respetado crítico de arte, autor de una extensa y notable memoria de las artes visuales en la República Dominicana. IV | Héctor Incháustegui Cabral es un escritor medular de las letras dominicanas de todos los tiempos. Su poesía, que es el punto dominante de su vasta y variada obra literaria, no se reduce al desgarrado clamor de protesta e inconformismo de su primer libro, Poemas de una sola angustia. Durante años, a partir de 1940, escribió poesía muy diversa, siempre con un acento personal muy característico, en versos libérrimos de gran plasticidad. No se equivocaba Manuel Rueda, que era un crítico tan exigente, cuando afirmó que: «Incháustegui Cabral aborda más tarde los temas metafísicos, incluyendo el amor al que canta, no como nuestros poetas románticos, sino con una grandeza existencial hasta entonces desconocida en nuestra lírica». [15] Esa afirmación de Rueda puede palparse en el siguiente fragmento del poema de Incháustegui Cabral titulado «Secreto», del libro Rumbo a la otra vigilia (1942): Eres algo más que un recuerdo que viene por un camino trazado bajo aguas azules con peces insomnes y algas tranquilas. Eres algo más que lumbre de estrellas madurada en el color de las hojas que el viento despierta por las madrugadas, porque estás hecha de la sustancia con que el sueño fabrica sus figuras, con que la fiebre expresa lo que halló en el fondo tembloroso de la angustia que no tiene nombre. Incháustegui Cabral era poeta incluso cuando hacía teatro, pues su trilogía Miedo en un puñado de polvo (1964), título tomado de un verso de Eliot, y que agrupa a Prometeo, Filoctetes e Hipólito, es un admirable esfuerzo de volver a los símbolos del teatro griego para plantearnos el drama existencial moderno. También es poesía su novela Muerte en «El Edén» (1951), obra de largo aliento que considero única en la literatura dominicana contemporánea, donde el escritor demostró que era, ante todo, poeta. Varios años después de su muerte fue publicada La sombra del tamarindo (1984), encontrada por doña Candita entre los papeles de su esposo. La obra, que me tocó revisar y prologar, lleva una dedicatoria significativa: «A Baní, mi pueblo amado, de cuyos recuerdos no he podido liberarme todavía». Esta novela trata, significativamente, como escribí entonces, de «la revolución frustrada, el desperdicio de fuerzas y voluntades, expresan el fracaso de quienes se oponen al gobierno sin contar con los medios necesarios para llevar a cabo sus propósitos, y, en última instancia, la instauración de un poder político invencible. En la novela también se evidencian las causas del descontento social: la corrupción administrativa, la injusticia y la incapacidad del gobierno para producir cambios sociales efectivos». [16] V | El 25 de julio de 2012 se cumplió un siglo del nacimiento de Héctor Incháustegui Cabral, el gran poeta, dramaturgo, ensayista, crítico y maestro banilejo fallecido hace más de tres decenios, y cuya obra ha caído en un aparente olvido, excepto para quienes seguimos buscando en sus libros explicaciones válidas de lo que se ha llamado la «dominicanidad», ese concepto tan complejo y vapuleado por las disciplinas sociales y los medios de comunicación. 75 Creo que es un deber estudiar la obra conjunta de Incháustegui Cabral: estudiar sus ideas, sus planteamientos, sus posiciones, y disfrutar de una auténtica poesía como la suya, una de las cimas de la literatura dominicana de todos los tiempos. Pero también, y sobre todo, debemos leer a Héctor Incháustegui Cabral para comprender mejor la tragedia de su desgarrada condición de intelectual al servicio de un régimen de oprobio. Por último, el estudio de su obra nos permitirá asomarnos con otros ojos a los insondables misterios que encierra el ser humano, sus grandezas y miserias, y los temibles abismos de las pasiones. Su obra ilumina, de una manera señera y con acento inconfundible, los grandes dilemas filosóficos y existenciales de nuestro tiempo, y lo hace siempre con hermosas palabras que resuenan en nuestro espíritu largo tiempo después y nos hacen sentir las maravillas de la condición humana. NOTAS: 1. Donald E. Herdeck (Editor), Caribbean Writers. A Bio-Bibliographical-Critical Encyclopedia. Washington, D. C., Three Continents Press, 1979. 2. Alberto Baeza Flores, «Retrato humanístico de Héctor Incháustegui Cabral», en Eme-Eme IX(50), septiembre-octubre, 1980, p. 14. 3. «Niña la de Paya», Poemas de una sola angustia. Obra poética completa 1940-1976, p. 64. 4. Trato el tema in extenso en mi ensayo «Los escritores dominicanos durante la dictadura de Trujillo», contenido en el libro Los escritores dominicanos y la cultura. Santo Domingo, Publicaciones del Instituto Tecnológico de Santo Domingo, 1990, pp.183-197. 5. Manuel Valldeperes, «Dos poetas dominicanos». Cuadernos Dominicanos de Cultura No. 8, abril de 1944. Ver: Cuadernos Doinicanos de Cultura 1(1-9), Banco de Reservas de la República Dominicana, S. D., 1997, pp. 619-633. 6. José Vasconcelos, «Un poeta filósofo», en Héctor Incháustegui Cabral, Poemas de una sola angustia. Obra poética completa 1940-1976, pp. 551-555. 7. Freddy Gatón Arce, «Incháustegui Cabral, poeta sustantivo», En Héctor Incháustegui Cabral, Poemas de una sola angustia. Obra poética completa 1940-1976, pp.558-562. 8. Bernardo Vega, «Pedro Mir/Incháustegui», en Héctor Incháustegui Cabral. Testimonios en el centenario de su natalicio [1912-2012], Ediciones de la Fundación Corripio, Inc., Colección Prisma, 2012, impreso en Santo Domingo, Editora Corripio, S. A. S., pp. 15-16. 9. María Isabel Incháustegui, «Tío Héctor visto desde mi caleidoscopio», en Héctor Incháustegui Cabral. Testimonios en el centenario de su natalicio [1912-2012], Ediciones de la Fundación Corripio, Inc., Colección Prisma, impreso en Santo Domingo, Editora Corripio, S. A. S., 2012, pp. 57-60. 10. María Isabel Incháustegui, op. cit. 11. Guillermo Piña Contreras, «Entrevista a Héctor Incháustegui Cabral», Doce en la literatura dominicana, Publicaciones de la Universidad Católica Madre y Maestra, impreso en Amigo del Hogar, 1982, pp. 113-135. 12. Héctor Incháustegui Cabral, «Notas autobiográficas», Eme-Eme, op. cit., p. 127. 13. Adriano Miguel Tejada, «Don Héctor a través de sus frases», Eme-Eme, op. cit., pp. 103-111. 14. Guillermo Piña Contreras, op. cit., p. 115. 15. Manuel Rueda, Antología mayor de la literatura Dominicana (siglos XIX-XX), Poesía II. Santo Domingo, Ediciones de la Fundación Corripio, Inc., impreso en Editora Corripio, C. por A., 1999, p. 117. 16. Héctor Incháustegui Cabral, La sombra del tamarindo. Publicaciones de la Universidad Católica Madre y Maestra, , Editora Corripio, C. por A., 1984, p. 13. José Ancántara Almánzar (República Dominicana, 1946). Sociólogo, narrador, profesor y uno de los principales críticos de la literatura dominicana. Ha sido profesor en la Universidad Autónoma de Santo Domingo (UASD), en la Universidad Nacional Pedro Henríquez Ureña (UNPHU) y en el Instituto Tecnológico de Santo Domingo (INTEC). Autor de libros como Estudios de poesía dominicana (1979), Las máscaras de la seducción (1983), Los escritores dominicanos y la cultura (1990), El sabor de lo prohibido. Antología personal de cuentos (1993), y Panorama sociocultural de la República Dominicana (1996). Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC. . 76 JULIO MENDONÇA | Qorpo-Santo: o poeta que escreveu o contrário do que pensava[1] Ponha-se o leitor – em trajes e ambientes tornados vintage por sua imaginação – na Porto Alegre de 1862 a 1883 e calcule o estranhamento que, naquela cidade então provinciana de um Brasil na periferia dos centros políticos e culturais, deveria ter causado nos contemporâneos a seguinte fala de uma personagem, escrita para uma peça teatral: “Ainda havia eu concebido um pensamento: o que havia de ser; o que sem ter na cabeça... não; sem ser chafariz... e gotejar pelo nariz... tão bem não: sem se fazer de si – todo inesgotável, forte; de sua cabeça sempre cheia – caixa; de seus lábios – forte bica onde tem e por onde lança a mais cristalina linfa todas as vezes que quer em palavras, orações, proposições e discursos!” Este trecho da peça Lanterna de Fogo foi escrito por José Joaquim de Campos Leão, em 1866, então já assinando com o nome com que se rebatizou: Qorpo-Santo. Este poeta paradoxal, dividido entre um desejo messiânico de purificação e o mergulho dilacerado no borrão da escritura, após uma vida breve e atormentada deixou uma das obras mais intrigantes da literatura brasileira. O que se sabe de sua vida é pouco e pode ser resumido em algumas linhas que transcrevo do livro de Eudinyr Fraga (FRAGA, 1988: 43): “José Joaquim de Campos Leão, mais tarde Qorpo-Santo, nasceu em 19 de abril de 1829, na Vila do Triunfo, Província de São Pedro do Rio Grande. Com a morte do pai, em 1839, foi estudar em Porto Alegre, tornando-se, em 1851, professor público na Vila de Santo Antônio da Patrulha e, posteriormente, em Alegrete e Porto Alegre. Casou-se com dona Inácia Maria, com quem teve três filhas: Idalina Carlota, Lídia Marfisa e Plínia Manuela, e um filho, Tales José. No seu próprio dizer, foi vítima de “atos violentos” em julho de 1862, ou seja, começa o processo de sua interdição por moléstia mental. Entre 1864 e 1868 esteve às voltas com a Justiça e ele próprio se encarregou de nos deixar cópias de documentos e pareceres sobre a sua instabilidade mental. Já estava separado da família, quando, em 1868, o Juiz de Órfãos e Ausentes (o que corresponderia ao atual Juiz da Vara da Família e Sucessões) declarou-o interdito, incapaz, portanto, de gerir a sua pessoa, os seus bens e a sua família, condição em que morreu aos cinquenta e quatro anos de idade, em 1º de maio de 1883, em Porto Alegre, vítima de tuberculose pulmonar. A maior parte da sua febril atividade parece ter se desenvolvido após o aparecimento dos sintomas de perturbação mental. Foi ele mesmo quem escolheu o seu apelido, conforme nos explica no volume II, p. 16, da sua Ensiqlopedia: (...) se a palavra corpo santo (ainda com C) foi-me infiltrada em tempo que vivi completamente separado do mundo das mulheres, posteriormente, pelo uso da mesma palavra hei sido impelido para esse mundo.” Apesar da interdição de seus bens, abriu sua própria tipografia em Porto Alegre, em 1877, na qual publicou os nove volumes da sua Ensiqlopedia ou Seis Mezes de Huma Enfermidade (obedecendo à ortografia criada pelo autor), dos quais conhecem-se, atualmente, apenas seis. Na Ensiqlopedia, Qorpo-Santo deixou registrada – sem muita ordem – toda sua produção literária, em diversos gêneros: peças teatrais, poemas, crônicas, pensamentos, cartas, etc. Visto como louco pela família, interditado pela Justiça, a pobreza e a doença abreviaram a vida de Campos Leão e sua obra ficou dispersa e esquecida por décadas. Nos anos 20 do século passado, artigos na imprensa gaúcha associaram-na com o futurismo italiano e com o 77 nosso modernismo (cf. SANTO, 2000: 25), sem maior repercussão. Na década de 60, no entanto, dá-se, de fato, a descoberta de Qorpo-Santo, cem anos após. Em meio ao espírito renovador, contracultural e libertário que floresceu na década, Aníbal Damasceno e Guilhermino Cesar chamaram a atenção para a originalidade de Qorpo-Santo. A encenação pública de algumas de suas comédias, entre final dos anos 60 e começo dos 70, rapidamente trouxe grande repercussão para o autor, projetou uma imagem de precursor das vanguardas modernas (particularmente a do chamado teatro do absurdo) e iniciou um debate sobre suas vinculações estéticas. Baseados, inicialmente, nos seus textos para teatro, Guilhermino Cesar, Décio Pignatari e Yan Michalski foram alguns dos autores que viram Qorpo-Santo como precursor do teatro do absurdo. Flávio Aguiar considerou razoável associá-lo ao absurdo, mas chamou a atenção para a diversidade de procedimentos teatrais na obra do autor gaúcho: teatro de costumes, teatro de tese, trágico, grotesco, cômico. Preferiu apontar as hesitações, paradoxos e impasses e chamou o teatro de Qorpo-Santo de “teatro da paralisia”. Eudinyr Fraga achou mais legítimo associá-lo com a escrita automática surrealista, fazendo, no entanto, a ressalva de que ele não se enquadra totalmente na estética daquele movimento artístico. Nos primeiros anos da recepção crítica da obra de Qorpo-Santo, voltados fundamentalmente para o estudo de seus textos teatrais, o debate sobre sua possível vinculação com o absurdo ou o surrealismo procurava responder ao caráter anárquico e intrigante dos textos. Um teatro multifacetado, não-linear, marcado pela ausência de desenvolvimento lógico de enredo e que rompe constantemente com as convenções cênicas. O comportamento imprevisível e anticonvencional de seus personagens promove uma desnaturalização das relações sociais. Estes e outros aspectos – e, principalmente, a questão relativa a quanto de involuntário há nas suas características que nos parecem mais originais – têm desorientado sua interpretação. No entanto, passada uma certa euforia que se seguiu à sua descoberta – uma empatia a posteriori calcada em códigos de nosso tempo – , outro debate se interpôs a respeito da influência da desrazão em sua obra. Se nos anos setenta e oitenta, sob a influência da História da Loucura de Foucault e da antipsiquiatria, a loucura do autor foi valorizada como libertária, em anos recentes diversos estudos retomaram sua patologização. Alguns estudos têm procurado apontar excessos na revisão histórica de seu valor literário. Outros têm reduzido seus escritos a sintomas de sua doença. Sintoma interessante dessa fase de revisão da canonização, um artigo de Friedrich Frosch, publicado em 2010, questiona o que considera excessiva valorização de Qorpo-Santo, lembrando que outros autores, entre eles Flávio Aguiar em seu estudo pioneiro, apontaram inconsistências em sua obra. Frosch questiona se a suspensão da “normalidade” da linguagem por Qorpo-Santo, em meio às suas inconsistências, ausência dos “grandes assuntos da humanidade” e idiossincrasias de mau gosto, se justificam diante da necessidade de comunicabilidade da “literatura como sistema”. Sem prejuízo da necessária liberdade de pesquisa em relação a juízos mais sedimentados, podemos perceber aqui as forças do sistema literário reagindo para manter a ordem. Menos importante do que seus textos teatrais, a meu ver, a poesia de Qorpo-Santo foi descoberta e começou a ser estudada mais recentemente, a partir da publicação do livro de Denise Espírito Santo (SANTO, 2000). Um aspecto importante da publicação de seus poemas é o de que sua leitura nos permite relativizar o alcance do debate entre os que associam o autor à literatura do absurdo e aqueles que o associam com o surrealismo. Na introdução à edição dos poemas organizada por Denise Espírito Santo, Flora Süssekind, lembrando que o diagnóstico de loucura contra Campos Leão falava em “grafomania” – a compulsão de escrever –, analisa diversos aspectos da tendência a expor a materialidade da escrita que se observa em sua poesia, análise que pode contribuir para a leitura de seus textos teatrais. Essa constante exposição de aspectos materiais da escrita e da impressão está associada, nos textos, ao terreno das condições contingentes, ao precário e imprevisível, que Süssekind definiu como “uma espécie de princípio constitutivo de 78 interrupção”. A “rede de descontinuidades” que a autora identifica faz lembrar a definição de Aguiar para os textos teatrais de Qorpo-Santo como “teatro da paralisia”: “(...) uma sintaxe disjuntiva marcada graficamente por travessões, vírgulas e apóstrofes, impondo, visualmente mesmo, rupturas discursivas e uma desestabilização continuada a cada retrato diverso, a cada transformação da imagem autoral, a cada novo discurso (do jurídico ao religioso, da moralidade familiar à referência literária, da retórica amorosa às convenções dramáticas) de que os seus textos parecem se apropriar”. (QORPO-SANTO, 2000: 20) Com relação às rupturas e às desestabilizações contínuas, Fraga observa que as unidades aristotélicas de espaço e tempo não se aplicam nos textos teatrais de Qorpo-Santo; em suas peças tempo e espaço são inconstantes e instáveis. A ocorrência dessa inconstância, da rede de descontinuidades, também em sua poesia, sugere que o espaço-tempo do autor gaúcho é o da escritura, numa espécie de metalinguagem dilacerada pela alienação. O autoisolamento do autor na grafomania parece ser uma das razões para sua defesa de um novo sistema ortográfico, como podemos encontrar, por exemplo, num de seus poemas: Se querem que viva o C Façam soar sempre C: Nunca dêem-lhe o de Q Não roube o C ao Q Enfatizando a dicção satírica e o nonsense, Denise Espírito Santo, ao apresentar a edição de poemas que organizou – trabalho de pesquisa de grande mérito –, faz, a meu ver, outra importante contribuição ao apontar para a presença de elementos do grotesco da cultura popular na obra de Qorpo-Santo. Farsa, burlesco, obscenidade, desproporções risíveis, situações absurdas, agressões, escatologia, rústicas transações entre cultura e natureza, são algumas das características do grotesco que encontramos na obra do autor. Se tudo isto confirma desvios da norma estética dominante e rebaixamento de valores socialmente aceitos, também é certo que, conforme afirmam tanto críticos quanto defensores, encontram-se nas peças teatrais e nos poemas reações conflituosas de Qorpo-Santo em relação a eles. São frequentes, mesmo, manifestações ideológicas conservadoras que contradizem esses desvios. Contam-se diversas situações de embate com as leis e desmoralização dos códigos (linguísticos, de conduta social), bem como declarações de respeito às mesmas e aos mesmos, provavelmente nos momentos em que era tomado de seu recorrente desejo de reconhecimento social. De qualquer modo, em meio a contradições e paradoxos, são muitos os sinais do grotesco que emergem nos poemas, como o antropomorfismo de que temos vários exemplos, como o poema “Um queijo” ou o poema “Objetos de conversação”: Fala-se Fala-se Fala-se Fala-se com as flores, com os frutos, com as cores, com os brutos! Fala-se Fala-se Fala-se Fala-se com a tinta, com o papel, com a pinta, com o pincel! Do corpo rebaixado, não-idealizado, estudado por Bakhtin na sua extensa pesquisa sobre as características da cultura popular, temos exemplos vários, tanto nas peças teatrais como 79 em poemas como “Uma minha tripa”, “A minha barriga” e “Tripas”. Denise Espírito Santo destaca a imagem da glutoneria recorrente na poesia e no teatro de Qorpo-Santo, associando-a ao”tom triunfal e alegre” das imagens excessivas de banquete que Bakhtin estudou na obra de François Rabelais. Outro elemento com origem na cultura popular que Denise identifica na poesia do autor é o bestialógico; insetos e roedores assumem a condição de protagonistas em vários textos: exemplos são os poemas “Uma aranha”, “Ratos”, “Que formiga!”, entre outros. Wolfgang Kaiser e Anatol Rosenfeld observaram que o grotesco marca profundamente a nossa época de contrastes violentos e exprime “a desorientação em face de uma realidade tornada estranha e imperscrutável” (ROSENFELD, 1993). Kaiser se refere a ele como “solo nutritivo” da pintura e da literatura do século XX. Por este caminho podemos entender porque Qorpo-Santo, descoberto depois do reconhecimento da arte moderna, foi associado a alguns de seus procedimentos. O autor de “O Grotesco – configuração na pintura e na literatura”, escreveu a respeito do “grotesco linguístico”: trata-se de “forças intrínsecas da língua, que, uma vez desencadeadas, se desdobram a seguir até o absurdo” (KAISER: 1986: 130). Podemos identificar esse grotesco linguístico em Qorpo-Santo tanto na “dramatização do processo ficcional” (QORPO-SANTO, 2000: 18) – frequentemente hiperbólica –, quanto na alternância entre construção e destruição, na criação de neologismos ou no uso do nonsense e da livre associação. Não virá daí, dessas forças transmitidas ao longo dos tempos pela linguagem popular – o caráter “estrutural” que Kaiser atribuiu ao grotesco –, a força dos momentos mais inquietantes e vívidos dos textos de Qorpo-Santo? Considerando isto, será necessário esperar consciência de ofício de um autor que escreveu uma obra como esta? Não é o estudo de poemas, em vez da poesia como parte do sistema literário, que é capaz de nos educar, conforme sugeriu T. S. Eliot? Parece que, apesar dos problemas mentais, o autor gaúcho tinha razoável consciência das suas inconstâncias e da sua precariedade, pois expressou isto em vários momentos e de diferentes modos: por exemplo, em títulos – aliás, memoráveis – de algumas peças como “Certa entidade em busca de outra” e “Hoje eu sou um; e amanhã outro”; em versos como “Fui prensado!/hoje sou prensa!”; “Fui bigorna,/ e sou martelo!”; “Passo a rever minhas obras;/passo a cortar-lhe as sobras./passo a examinar-lh’os erros,/a decepá-los passo a ferros”. No magma de linguagem em que viveu seus últimos anos, Qorpo-Santo parece ter abdicado da necessidade social de ter uma identidade: “Quando terá esta cabeça um pensamento firme e invariável!? Por que razão hei-de eu sair com a mais firme resolução agora, e passados alguns minutos tomar resolução contrária? Eudinyr Fraga escreveu, com razão, que a seguinte frase de uma das personagens da peça As Relações Naturais poderia ser uma epígrafe de sua obra: “É preciso dizer-lhe o contrário do que penso”. NOTA: 1. O presente texto é um capítulo do livro "Poesia (Im)Popular Brasileira", o qual foi organizado pelo seu autor para a Editora Lamparina Luminosa, tendo sido lançado em maio deste ano. O livro pode ser encomendado pelo site da editora (http://www.lamparinaluminosa.com/index.php/os-livros). Júlio Mendonça é poeta, doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) – São Paulo, especialista em Gestão Pública (UFABC) e analista de cultura na Secretaria de Cultura de São Bernardo do Campo. Foi diretor do Departamento de Ações Culturais de São Bernardo do Campo e consultor do Pólis - Instituto de Estudos, Formação e 80 Assessoria em Políticas Sociais. Tem publicado poemas e outros textos em veículos como o Suplemento Literário de Minas Gerais, o almanaque Atlas, o Jornal Dobrabil, a Folha de São Paulo, e as revistas Artéria, A Cigarra, ARTEunesp e Celuzlose. Participou dos livros “Cidades: Identidade e Gestão” e “Libro verde para la institucionalización del Sistema de Fomento y Desarrollo Cultural de la Ciudad de México”. Organizou o livro “Poesia (Im)Popular Brasileira” (Editora Lamparina Luminosa, 2013). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 81 LUIZ-OLYNTHO TELLES DA SILVA | A origem da escrita Levantar el papel donde escribimos y revisar mejor debajo Levantar cada palabra que encontramos y examinar mejor debajo Levantar cada hombre y observar mejor debajo Levantar a la muerte y escudriñar mejor debajo Y si miramos bien siempre hallaremos otra huella. No servirá para poner el pie ni para aposentar pero ella nos probará que alguien más ha pasado por aquí. el pensamiento (ROBERTO JUARROZ. Levantar el papel donde escribimos.) Todos sabem que falar das origens não é fácil. Ou não se estava lá, ou estávamos inscientes. Desse modo, para falar das origens, só nos resta a via indireta. Precisamos nos valer do que, por um meio, ou outro, ficou escrito. Parece uma tautologia. Para saber das origens da escrita, examinar os escritos! Contudo, é assim! Historicamente tem-se procurado encontrar essas origens nas pinturas rupestres. Altamira, as vizinhanças de Lagoa Santa, por exemplo, são provas da necessidade pictórica do homem. Acredita-se que um risco podia representar a morte de um animal, mesmo a de um homem. Um risco. Essa há de ter sido a primeira marca inteligente do homem, sua primeira escrita, talvez com uma mão um pouco trêmula. Muitos se ocuparam do estudo desses sinais. Entre eles, quero destacar os estudos de Denise Schamandt-Besserat. Sua coleção de pedras riscadas, marcadas por tokens, como ela designa esses sinais, dizem desses tempos. E, aqui, uma pergunta se impõe: por que nosso antepassado fez isso? Por que esse primeiro risco? Saberia ele, desde sempre, que a vida é um risco? Avancemos uma hipótese: para escrever, com intenção de registro, são necessárias pelo menos duas conquistas anteriores, a da fala e a do instrumento, podendo a ordem ser inversa. Não preciso lhes dizer que a capacidade de observação necessariamente deve ser ainda anterior. Mas como essa aptidão está presente mesmo nos animais, muito não nos preocupamos. A curiosidade, em todo o caso, como nos dias atuais, tem sido, desde sempre, uma importante aliada da inteligência quando se trata de inventar soluções para as necessidades. Um antigo ditado reza que as palavras o vento leva, e a escrita fica, e outro, ainda, diz assim: a palavra saída da boca e a pedra que sai da mão, não voltam. De um lado, o aforismo indica uma grande proximidade da palavra com a pedra e, de outro, trata-se de uma observação muito simples de compreender, pelo menos hoje. No tempo de sua enunciação, não duvido tenha valido pelo ovo de Colombo. Elas não voltam, mas deixam marcas! Para sermos mais exatos, como veremos adiante, não se trata de que as palavras e as 82 pedras não voltem. Na verdade, elas sempre voltam, mas como esse segundo movimento aparece sob uma forma invertida, a conexão de um movimento com o outro não é óbvia, e então dizemos que não voltam. Porque o alvo, não podemos esquecer, tanto das palavras, como das pedras, é sempre o outro. Talvez com uma queiramos aproximá-lo e com a outra afastá-lo! Hegel introduziu na filosofia uma palavra muito interessante, a aufhebung. Com essa palavrinha, ele diz de um movimento duplo; ao mesmo tempo em que uma coisa se supera, ela se conserva. Na língua alemã, ela se refere, originalmente, à aufhebung de uma pedra: quando se levanta uma pedra do chão, no chão fica uma marca. Essa observação inaugural deve ter sido um fato surpreendente! As marcas dizem de um acontecido, de um passado. Concomitante a isso tudo, séculos entremeando cada avanço, antes dos sumérios inventarem a escrita cuneiforme, acredito devermos dar importância também à existência de um grande quadro-negro. Deduzo sua importância do costume escolar de ensinar através dele. Quando aprendíamos as primeiras palavras, em outras línguas, ele sempre estava entre as primeiras expressões: le tableau noir, the blackboard, el quadro negro. Seu uso parecia universal! Agora, quando eles começam a escassear nas escolas, depois de terem se tornado esverdeados, como por uma espécie de mofo, voltam a aparecer nas telas dos computadores, os quais funcionam – não deixemos de registrar –, quando brilham! Assim era a noite! Pontilhada de estrelas brilhantes, sua constância devia dar certa segurança ao nosso ancestral, refugiado em alguma toca, temeroso das intempéries e dos animais, surpreso, por certo, quando cometas e meteoros e meteoritos riscavam a escuridão. Assim como aprendeu a diferençar a noite do dia, aprendeu a diferença entre os riscos que cortavam a noite e os que permaneciam fixos, possíveis de ler nos agrupamentos estelares, representantes primeiros de suas mais importantes observações. À noite, podiam ver a Ursa com a qual tinham lutado durante o dia. Tanto a Maior, como a Menor. O grande quadro-negro as espelhava. Havia certa correspondência entre a terra e o céu. O que aqui acontecia, estava escrito no céu. E as constelações, como o nosso Cruzeiro do Sul, em geral desenham-se com cruzamentos. Acredito que a possibilidade de cruzamento tenha aberto ao homem as portas da cultura. Um risco e outro a cruzá-lo. Mesmo antes de estabelecer uma relação entre coito e nascimento, já se sabia que a gravidez se devia ao cruzamento da mulher, mesmo que fosse apenas por um lugar sagrado, um rio, uma pedra. Embora a participação do pai não estivesse clara, logo se soube que não havia vida sem cruzamento. O poeta César Leal ressalta, na leitura de A Divina Comédia, a menor quantidade de estrelas no hemisfério norte, com relação ao hemisfério sul. Um fato que talvez indique terem começado por lá as leituras celestes. E como o homem sempre quis se comparar aos deuses, assim leu, quis escrever também! Minha intenção, com esses hipotéticos prolegômenos, é dizer que, de algum modo, a escrita implica sempre em uma referência ao Outro. Escreve-se para dizer do Outro, e para o outro. Para escrever, requer-se sempre a leitura de uma escrita anterior, escrita que pode estar tanto nas estrelas, como nas pegadas de um animal, nos rastros de outros homens, nas nuvens, nas entranhas dos animais, nas folhas de chá, nos sonhos ou nos livros. Desses pequenos indícios devem ter surgido os símbolos. O símbolo (Σύμβολον) representava, inicialmente, uma pessoa; era um sinal de reconhecimento. Uma pedra, ou mesmo um tijolo, quebrado em dois, quando suas partes eram reunidas, sua juntura (Συμβολή) permitia a identificação do portador. Suponho que essa tenha sido a origem do nome próprio. Chesterton, ao escrever O homem que era Quinta-Feira, o qual leva por subtítulo Um pesadelo, utiliza-se desse recurso: quando os anarquistas, aí descritos, vão para uma reunião, utilizam como senha, para entrar em uma câmera secreta, o nome de Mr. Joseph Chamberlain. Como seu autor busca dar ao romance um caráter onírico, deixando todo o tempo o leitor sem saber exatamente em que mundo está, o uso do nome de uma dos maiores políticos de todos os tempos tem grande serventia, justamente porque ajuda a confundir: fazendo uma escansão na palavra chamberlain, veremos tratar-se do próprio 83 sonhador. Reconhecemos aí duas palavras, chamber, que se traduz por câmara, quarto, e lain, o particípio passado do verbo to lie, o qual, com sua tradução de estar deitado, permite identificar o sonhador como aquele que está deitado no quarto, sonhando, e, com a tradução de mentira, lain ajuda o leitor a saber que está no campo do engano, da farsa. Devemos registrar a inteligência de Chesterton na escolha dessa senha: em 1908, quando publicou esse romance, Chamberlain, que havia estado ativo na vida política desde 1886, por vinte anos, até 1906, era ainda um dos nomes mais presentes na lembrança dos leitores ingleses, e, possivelmente, também de todo o mundo, constituindo-se assim em valioso antecedente para o propósito do autor. É a indícios assim que Jacques Lacan, com a ajuda da linguística, de Ferdinand de Saussure, chama de significantes. São esses singelos traços que representam, agora, não uma pessoa, mas sim o sujeito frente a outro significante. Quando encontramos uma Pedra de Roseta, ou mesmo os calhaus de Schamandt-Besserat, imediatamente reconhecemos que por trás daqueles tokens há um sujeito. Embora possamos não entender seu código, logo percebemos que um dia alguém se ocupou em fazer aquela marca, na qual podemos entender algo equivalente, talvez, a um e-mail contemporâneo ou a uma mensagem lançada ao mar, em uma garrafa, na esperança de que possa vencer os pélagos e alcançar algum leitor das vicissitudes de nossa solidão. Mas voltemos um pouco. Amadis de Gaula, considerado o primeiro romance de cavalaria, que hoje conhecemos na versão de Garci Rodríguez de Montalvo, impresso em castelhano, em 1508, mas que possivelmente é ainda do século XV, e escrito pelo português João Lobeira, conta, no capítulo V, quando fala de D. Galaor, o ciumento de Amadis, que este, na sua educação, lia livros de cavalaria. Em outra versão - a qual, infelizmente, não consegui encontrar para indicar-lhes a referência -, lembro que, em um momento, um cavaleiro vem andando, dormitando sobre seu rocim. Talvez se tratasse do próprio Amadis, que tendo nascido de um amor proibido, fora lançado às águas, como Moisés. Guiava-o a orientação de sua cavalgadura em busca de um manancial, e, chegando à beira de um rio, quando o flete baixa a cabeça para se abeberar, o cavaleiro acorda, os olhos piscos, surpreendendo-se com um velho cavaleiro, sentado às margens pedregosas, lendo um livro de cavalaria. Embora esse tenha sido o primeiro romance de cavalaria da Península Ibérica, havia a necessidade de mencionar antecedentes, e esses poderiam estar referidos na obra de Godofredo de Monmouth, do século XII, abordando as lendas arturianas. Cervantes, ao compor o seu Don Quijote de la Mancha, no século XVII, já está fazendo uma paródia de todo esse ciclo de romances. Não bastasse toda essa antecedência, os próprios narradores da história ocupam-se deste valor: tanto o presumido autor original das aventuras do engenhoso fidalgo, Cide Hamete Benengeli, cujo texto nunca lemos diretamente, porque está escrito em árabe, quanto o narrador anônimo, que se jacta de ser tanto o transcritor, como o tradutor, mas que na verdade é seu editor, anotador e comentarista, fazem-nos acreditar que a história se desenvolve – como se se tratasse de uma caixa chinesa –, dentro de outra história, anterior e mais ampla, como uma vez disse Mario Vargas Llosa. Cervantes, diga-se de passagem, foi uma das primeiras influências sobre Freud. Ainda adolescente, fundou, com seu amigo Eduard Silberstein, a Sociedade Castelhana. Seu objetivo: aprender espanhol lendo as obras de Miguel de Cervantes! Em sua correspondência, adotaram, como codinomes, o nome de dois cães, retirados de uma das Novelas Exemplares do patrono do clube, intitulada O colóquio dos cães: Eduard era Berganza, um narrador inveterado, e Freud, Cipião – o outro cão de Valadolid –, um filósofo cínico e amargo. Desde aí seu gosto pela filosofia e pelos clássicos. Mas é verdade que depois de Don Quijote já não houve lugar para outro romance do gênero. Como disse Kierkegaard, certa vez, toda fase histórica termina com a paródia de si própria. Já não havia espaço para os grandes épicos. Os Lusíadas, Orlando Furioso, a Divina Comédia, a Eneida, Os Anais, a Odisseia e a Ilíada tinham 84 ficado para trás, para sempre, embora os ensinamentos contidos em cada uma dessas obras permaneçam também, para sempre. Pelas obras posteriores, podemos entender algo das antecedentes. Os Lusíadas, de 1572, é posterior ao Amadis de Gaula, mas o episódio dos amores de Inês de Castro com Don Pedro parecem cumprir a mesma função de intermédio trágico dos amores de Amadis e Oriana. O cânon da época exigia que nenhum poema de larga extensão o excluísse. Em Orlando Furioso (1516), Ludovico Ariosto conta os amores de Orlando, o paladino de Carlos Magno, e o da princesa oriental Angélica, e também os de Rogério, um jovem guerreiro muçulmano, pela valorosa guerreira cristã Bradamante. Aproveitemos para dar uma olhada na antecedência do Romance: ele se propunha como uma continuação de Orlando Enamorado, de Boiardo, publicado em 1483, em Ferrara e evocado, entre outros, por [Antônio Frederico de] Castro Alves, em Vozes d’África, quando verseja, na sexta estrofe: Poetisa – tange os hinos de Ferrara. Trata-se de uma alusão à publicação, aí, em Ferrara, além de Boiardo e Ariosto, também à Jerusalém libertada, de Tasso. Verdade que tanto o Orlando de Ariosto como o de Boiardo tiveram por antecedente o mal sucedido Bramante, de Luigi Pulci, escrito por encomenda de Lucrécia, mãe de Lourenço, o Magnífico, que queria patrocinar uma epopeia cristã em homenagem a Carlos Magno e Orlando. Mas, em Orlando Furioso, lemos também uma influência do Hercules Furens, de Sêneca, dos primeiros anos de nossa era, e também as bases da História da loucura, publicada por Michel Foucault, em 1961, pela primeira vez, e depois, em 1972, com novo prefácio. Mas o intermédio amoroso mais belo que existe, no gênero, em toda a poesia universal, na opinião do poeta César Leal, está narrado, na Divina Comédia, no Canto V do Inferno, nos amores de Paolo e Francesca. Este é o relato, recitado pela própria Francesca, nos versos 103 a 105: Amor, ch’a nullo Amato amar perdona, mi prese del costui piacer sí forte, che, como vedi, ancor non m’abbandona. Amor, que a amado algum amar perdoa, tomou-me, pelo seu querer tão forte, que como vês ainda me agrilhoa. (Tradução de Eugênio Mauro) E não podemos deixar de registrar que a inspiração desse amor, atravessando os séculos, veio da leitura de um livro sobre a história de amor do cavaleiro Lancelote, apaixonado por Guinevere, a esposa do rei Artur. Aí não mencionado, o livro aludido bem pode ser Lancelote do lago, atribuído ao escritor suíço Ulrich von Zatzikhoven, do final do século XII. – Há sempre um antecedente. Na Eneida, Virgílio, com o mesmo escopo, ainda no primeiro século de nossa era, relata os amores de Eneias e Dido, por certo um eco dos amores de Odisseu e Calipso, na ilha de Ogígia, descritos por Homero no canto V da Odisseia. Hoje, bem se sabe que o objetivo de Virgílio, com Eneida, era a busca de uma genealogia tão grandiosa para o Império Romano que remontasse aos deuses. Era uma preocupação da época. Cerca de duzentos anos antes, Quinto Ênio também escrevera uma epopeia com o mesmo objetivo, intitulada Os Anais. Chegou a ter algum sucesso e era ensinada nas escolas, tendo sido suplantada, nesse mister, ainda que não rapidamente, por Virgílio, que nele se apoiou para escrever sua Eneida. Escutem as palavras de Virgílio: Do esterco de Ênio retirei o meu ouro. O motivo do fracasso de Ênio reside no fato de ele não ter se dado conta, ao que tudo indica, da mudança dos tempos. Como é fácil, hoje, dois mil anos depois, dizer algo assim! Por duzentos anos ele brilha, é recitado e estudado, até que outro o ultrapassa, e passa a ser esquecido! Ênio sonhou ser a reencarnação de Homero, e compôs Os Anais como se Homero 85 fosse. Temos de reconhecer que Homero foi mesmo um tipo apaixonante. Em primeiro lugar, temos de registrar que ele não escrevia. Depois, ressalvada a hipótese de ter havido vários homeros, seu valor está em ter recolhido os versos recitados há duzentos anos pelos aedos, impregnando-os com força tal a lhes permitir continuarem a ser recitados por mais trezentos anos, antes de serem escritos. O que Ênio não percebeu foi o fato de Homero contar a história de homens que tinham por lei apenas sua própria consciência! Quando Eneias está em pleno gozo amoroso com a rainha Dido, em Cartago, Zeus envialhe um mensageiro para lembrar-lhe que seu destino está mais adiante, na Itália. Eneias, então, abandona Dido e obedece a Zeus! É bem diferente da atitude de Aquiles, quando se recusa a combater os troianos. Agamenon, o grande comandante, é impotente frente à vontade dos homens! Cada um luta apenas pelo que considera justo. Guia-o apenas sua própria consciência! Aquiles só retorna à luta para vingar a morte de seu amante Pátroclo (é quando, de eromenós, passa a erastés). Frente à sua própria consciência, ele não tem outra coisa a fazer! O Eneias, de Virgílio, porém, já está sob as leis positivas do Império Romano, já não pode decidir apenas por sua própria consciência. O homem - representado pelo homem grego -, que até então não tinha vida interior, como nos conta o Prof. Donaldo Schüler, desse momento em diante estará para sempre dividido entre o que é por dentro e o que é por fora. Além de sua vida pública, terá uma vida íntima. Antígona, a terceira peça do ciclo tebano, de Sófocles, já declarara este drama. A heroína, seguindo ao imperativo de sua consciência, representada nas leis divinas, vai contra a lei do Estado, representada por Creonte. E já sabemos do trágico resultado. Em Os Lusíadas, Vasco da Gama segue o modelo de Homero: como na Odisseia, canta os feitos de um homem e, como na Ilíada, canta o espírito de um povo. Porém, como Eneias, Vasco da Gama deve obediência cega ao rei; não é súdito apenas de sua consciência. Talvez por ter se dado conta da importância dessa mudança, Virgílio tenha sido tomado, por tantos, como modelo. Dante não tem dúvidas: Virgílio é o seu guia. Tu se’ lo mio maestro e ‘l mio autore, canta ele no verso 85 do primeiro canto do Inferno. Segue seus passos por todo o Inferno e o acompanha pelo Purgatório, onde recebe ajuda de Sordello e também de outros poetas. Mas ao Paraíso, onde lemos os versos da mais rara beleza, Virgílio já não o acompanha. O dilema entre a submissão à própria consciência ou à legislação positiva, uma das marcas da divisão do homem, não ficou restrita a outros tempos. O herói de hoje continua dividido. O recente filme de Roger Donaldson, Seeking Justice, de 2011, que apareceu por aqui traduzido como O Pacto, mostra bem essa divisão: buscando provas para incriminar um grupo de justiceiros, que resolveram tomar a lei com as próprias mãos, ele encontra, em um livro de Edmund Burke, de 1757, a seguinte citação: Não é o que um advogado diz, que eu posso fazer, mas o que a humanidade, a razão e a justiça dizem, que eu posso fazer. Eu diria que sua alternativa à palavra do advogado, representante da lei positiva, está baseada no julgamento de sua própria consciência que hoje já não pode desconsiderar todas as conquistas sociais do homem. Esse filme aparece com o título simplificado em Uma investigação filosófica, mas na verdade ele se especifica em sua continuação, Uma investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do Sublime e do Belo (An Inquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and the Beautiful). Os gregos, não reconhecendo sua vida interna, atribuíam-na ao exterior. É diferente de quando Dante passeia pelo Inferno, pelo Purgatório e pelo Paraíso, descrevendo cenas acontecidas: o destino de cada um, depois da morte, é construído pelo feito em vida; mesmo quando faz previsões, ele se vale de um retrocesso temporal para colocar no futuro fatos já acontecidos. Os gregos, esses, além dos deuses, valiam-se das Musas! Hesíodo, um poeta também oral, como Homero, descreve um encontro, havido por ele mesmo, com as Musas. Elas viviam no seu quintal, por assim dizer. Seu pai havia comprado terras no sopé do Monte Helicon, e elas viviam por aí. Abeberavam-se em uma fonte que fora aberta nesse Monte por um coice de Pégaso, e, por certo, à sombra de bananeiras. Quando viram o poeta, que ali apascentava suas ovelhas, presentearam-no com um ramo de louros, símbolo da autoridade 86 poética. Ironicamente, Enrique Vila-Matas, em Bartleby & Companhia, diz o seguinte: - quem escreve o ditado das musas é apenas um copista! Os sentimentos dos gregos estavam todos personificados nos deuses. Zeus é, antes de tudo, a representação do céu e da luz. Sua raiz indo-europeia é dei, com o sentido de brilhar. Lembram o que lhes dizia do fascínio pelas estrelas?! Atená, que nasceu de sua cabeça, representa inteligência e é a guerreira que protege. Hera, sua esposa, representa o ciúme, a vingança e a violência. Quando o homem sofre ou está feliz, é pela ação dos deuses que o perseguem ou que o protegem. Então ele tem que fazer por agradar os deuses, tanto para conquistar sua simpatia, como para evitar seu ódio. Hecatombes agradam os deuses! Caim matou Abel porque, na sua imaginação, Deus preferia o sacrifício da ovelha do pastor à sua messe. Os deuses adoram o aroma da carne assada! Mas quem não gosta? Prometeu foi o titã que roubou o fogo dos deuses para entregá-lo aos homens. Depois disso os homens puderam queimar a carne em holocausto aos deuses, e também se aquecer no frio e forjar metais para sua defesa e conforto. A etimologia de Prometeu começa com πρό, com o sentido de antes de, por antecipação, continuando com μῆθος, ver, observar, pensar, saber, e termina com ευς, um sufixo frequente nos antropônimos. As características de Prometeu estão presentes no homo sapiens; a espécie se repete nos seus espécimes. Tomás Abraham, um filósofo contemporâneo, em recente apresentação na Feira do Livro de Corrientes, na Argentina, não deixou de ressaltar o ato de insubordinação, presente no gesto de Prometeu. Sua infração acarretou-lhe uma dura punição, como nos contou Ésquilo. De certo modo, toda inovação, ao romper com o passado, constitui-se em transgressão. Sófocles, na tragédia Édipo Tirano, deixa clara essa falta de reconhecimento de uma vida interior. Geir Campos, que adaptou a peça, para a Editora Vozes, ao descrever Édipo, o diz com muita felicidade: O mesmo sol que, ao despontar sobre Tebas, o viu poderoso, ao esconder-se no horizonte viu-o arruinado. Suas transformações interiores, que por certo as haviam, são registradas apenas nesses movimentos. Foi Freud quem resgatou toda essa mitologia relegada ao esquecimento pelo advento da ciência. Ele reconheceu na mitologia a personificação da vida psíquica. Diferençando o que o homem podia considerar como seu, daquilo que, não conseguindo assumir, projetava nos deuses, foi construindo seu desenho das instâncias psíquicas que hoje tanto nos ajuda na direção da análise de nossos analisantes. Quando começa a clinicar, e escutar os relatos das histéricas, aos poucos vai associando com suas leituras dos clássicos. E o Édipo Tirano, de Sófocles, parece-lhe universal: a importância dessa estrutura, que então percebeu como ternária, envolvendo o pai, a mãe e o filho, não estava, por assim dizer, restrita apenas à Santíssima Trindade. Sua conformação era decisiva na constituição de cada novo ser. Mais tarde, quando Lacan retorna à leitura de Freud, ele dirá que essa estrutura edípica é, na verdade, constituída por quatro elementos: além dos três já citados há que ajuntar também o próprio fenômeno em questão, o Édipo. O Édipo, em si, para dizê-lo com Kant, desempenha também um papel importante nessa estrutura, agora quaternária. Nesse propósito, quando Italo Calvino, em 1991, pergunta: - Por que ler os clássicos? depois de sua primeira resposta afirmando ser, antes de tudo, por um prazer extraordinário, principalmente quando se os lê em uma idade madura, ele bem poderia ter dito que, por essa leitura, Freud chegara à invenção da Psicanálise. Mas temos de considerar também a hipótese de um livro se tornar um clássico por conseguir dizer coisas que tocam a um grande número de pessoas. Mas isso, em absoluto quer dizer que toque a todas! Balzac, por exemplo, entre os mais lidos na França, aparecerá em último lugar na Itália, e Dickens, adorado por um fã-clube fiel, na Inglaterra, na pátria adotiva de Calvino encontra apenas um restrito número de admiradores. Mas Homero, Sófocles, Ésquilo, Eurípides, Virgílio, Dante, Camões, Cervantes e Shakespeare são para sempre, para todos, em todas as partes. Shakespeare, já mencionado, também tomou Virgílio como mestre. Citarei apenas sua última peça, A Tempestade; aparecem aí os amores de Ferdinand e Miranda, em explícita alusão aos de Eneias e Dido. 87 O movimento de retorno de Lacan a Freud se parece com o de Odisseu, de Homero: o nóstos de Odisseu, não é uma volta para casa, para aí ficar; ele volta para casa, para daí ir a outro lugar, para uma nova aventura. Sua volta não é apenas uma viagem a mais, como a do Ulisses de Dante que, muito provavelmente por não conhecer a língua grega, descreve sua morte: em uma viagem, na qual, depois de ter fundado a cidade de Lisboa, indo além da Taprobana, afoga-se quase às margens da ilha onde se situa o Purgatório. Lacan, aliás, cujo ensinamento foi essencialmente oral, proferindo seminários durante vinte e sete anos seguidos, de 1953 a 1980, publicou, em 1966,um alentado livro de mais de novecentas páginas, com o singelo título de Escritos. A origem desses Escritos, por certo está em Freud, mas não só. Na abertura da coletânea, ele cita três autores, Hérault de Séchelles, Poe e Pope. De Hérault de Séchelles, ele cita Viagem a Montbard (que, tanto na tradução como na edição original, aparece sem a letra d final). Seu autor foi um jovem político que lutou na derrubada da Bastilha, em 1789, e que foi guilhotinado, como seu amigo Danton, em 1794. Em Viagem a Montbard ele menciona uma visita feita a Georges-Louis Leclerc, o Conde de Buffon, na qual falam sobre o estilo: para configurar um estilo, a principal atenção deve ser dada à precisão das ideias, dizia ele, depois vem a harmonia, que não deve ser negligenciada. Lacan, contudo, destaca uma ideia, a qual, para entendê-la é preciso anotar que Buffon não tinha os poetas em boa conta. Diz Buffon, na citação de Hérault de Séchelles: - Le style est l’homme même, me répétoit-il souvent, les poètes n’ont pas de style, parce qu’ils sont gênés par la mesure du vers, qui fait d’eux des esclaves ; aussi quand on vante devant moi un homme, je dis toujours : Voyons ses papiers. (Eu traduzo assim: O estilo é o próprio homem, repetia-me ele amiúde, os poetas não têm estilo, porque eles são constrangidos pela métrica dos versos, que faz deles escravos; assim, quando elogiam um homem diante de mim, eu digo sempre: vejamos seus papéis [no sentido, eu acredito, de vejamos seus escritos].) Dessa frase, Lacan destaca sua primeira parte – O estilo é o próprio homem –, mas ele adere a ela apenas para estendê-la na pergunta: o homem a quem nos dirigimos? Por aí podemos ver não ser o homem sempre o mesmo, dependendo sempre seu estilo daquele a quem se dirige. Um corolário desse teorema pode ser entendido na seguinte afirmativa: - Na linguagem, o emissor recebe do receptor sua própria mensagem, em sentido invertido. Por isso, uma análise iniciada com um analista jamais poderá ser continuada com outro. Com outro analista, será outra análise. Para mostrar que, mesmo assim, não é perda de tempo endereçar uma mensagem ao outro, ele cita, de Edgar Allan Poe, A carta roubada. A mensagem que está dentro do envelope da carta, roubada à rainha por um dos ministros do rei, jamais chega ao conhecimento dos leitores, os quais, no entanto, seguem com atenção crescente tanto os movimentos do Ministro para escondê-la dos sabujos da Rainha, como os do detetive Dupin, para encontrá-la! Entre nós, não faz muito, Luiz Alfredo Garcia-Roza, um professor de Psicanálise, do Rio de Janeiro, criou um personagem inspirado no detetive de Poe: trata-se do detetive Espinosa, que fez sua estreia, na literatura, no romance intitulado O silêncio da chuva. Embora ambos tenham o mesmo espírito, no conto de Poe, contudo, percebe-se, mais claramente, o efeito de divisão propiciado pelo objeto faltante, objeto esse do qual somos todos consequência, e que revela a grande invenção de Lacan conhecida como objeto pequeno a. Quem gosta de filmes de ação, lembrará de Missão Impossível III, uma produção de Tom Cruise e Paula Wagner, dirigida por J. J. Abrams, na qual o tal pé-de-coelho cumpre a mesma função da carta roubada: os espectadores em nenhum momento ficam sabendo do que se trata, enquanto os personagens se dividem pela sua posse! – A análise de A carta roubada será o texto de abertura dos Escritos. Alexander Pope aparece por seu poema The Rape of de Lock, composto em cinco cantos, nos quais critica, ridicularizando, a extrema delicadeza da corte da Inglaterra. Mas o que interessa a Lacan é a forma das madeixas de Belinda: seu feitio de bucle indica a circularidade do discurso, possibilitando uma leitura topológica da palavra. Como se vê, além de nos ensinar, os textos anteriores nos ensejam e também nos ajudam a dizer o que pensamos. Oito anos atrás, em 2004, publiquei um livro que, embora modesto, 88 tinha algo de pretensioso. Batizei-o, em parte, por contraposição ao alentado Escritos, do Dr. Lacan, com o curto título de Leituras. Eu precisava dizer, na época, que nenhum escrito é sem uma enorme quantidade de leituras. Estava pasmado com as fotografias dos escritores, quando eles apareciam, nos livros, tendo por trás uma grande biblioteca, ou escondidos, como Calvino, atrás de uma montanha deles. Esses modelos fotográficos, que antes me pareciam uma simples exibição, representavam agora o escancaramento de um aviso: Por trás de cada livro há uma enorme quantidade de outros livros! E eu tentava dizer, no meu pequeno Leituras, o que acontecia, por exemplo, a Jorge Luis Borges ao ler Miguel de Cervantes. Na leitura de Borges, eu havia ficado tocado com a influência cervantina em alguns de seus contos, de modo especial em Pierre Menard, que tinha a pretensão de reescrever o Don Quijote, letra por letra, vírgula por vírgula, sem incorrer em plágio. Tentei dizer também o que acontecera a Donaldo Schüler ao ler a Carta do achamento, de Pero Vaz de Caminha, e também quando leu As metamorfoses, de Ovídio, e mesmo o Finnegans Wake, de James Joyce. Ao examinar a retórica da subordinação e da insubordinação, na carta de Caminha, O Prof. Schüler ilumina o dealbar de nossas origens, desde a ótica das construções hipotáxicas e paratáxicas, colocando-nos como herdeiros de uma prática epistolar. Eu estava então muito impressionado com o que Gerald Thomas havia feito com o Quartett, de Heiner Müller, assim como estava surpreso com o modo pelo qual o jovem diretor Marco Fronchetti havia adaptado Eurípides. E, claro, também estava maravilhado pelo modo como Freud e Lacan leram Platão! Platão, que viveu em um período muito próximo da cultura oral, acreditava, como os demais fundadores da filosofia, que o escrito desnaturalizava o conhecimento. Seu mestre, Sócrates, não havia escrito uma só palavra, e ele, utilizando-se da difícil arte do diálogo, bem soube o quão difícil é colocar em palavras o que se pensa. Não por nada, ele dizia: para Sócrates a palavra é o fio de ouro do pensamento. Se Platão estava preocupado com o efeito de conhecimentos parciais lido por pessoas despreparadas, o núcleo de verdade contido em sua preocupação era de que não se podia escrever tudo. O pensamento é sempre muito mais amplo do que se consegue escrever. Esse, aliás, é um dos motivos de dizer que não há relação sexual, entendendo-se em relação, entre outros sentidos, o de relato. Por não haver o relato sexual, ainda que se tenha sempre de intercalar um intermezzo amoroso, nunca se escreverá o romance definitivo. E, por andarmos sempre às voltas com um envelope cujo conteúdo desconhecemos, temos sempre de escrever. Se tanto o ato de ler como o de escrever são solitários, eles têm, contudo, a virtude de nos colocar na companhia de outros. Isso acontece tanto nos momentos em que se lê um escrito diante de uma plateia, quanto, por exemplo, ao acompanhar, digamos, Ishmael à Capela dos Baleeiros, em New Bedford. Eu, então, mal o conhecia. Ainda não lera um décimo das quinhentas e noventa e três páginas de Moby Dick, mas quando ele entra no silêncio abafado da igreja, para proteger-se do temporal, e começa a ler nas lápides o trágico fim dos marinheiros, cujos corpos nunca foram resgatados do mar, arrastados até nunca mais por uma baleia, ou a história do finado Capitão Ezekiel Hardy, morto à proa de seu navio, por um cachalote, na costa do Japão, em 3 de agosto de 1833, dizendo das saudades de sua viúva, eu me emociono profundamente, como se fora amigo de Ishmael, e de toda aquela gente, desde sempre. E fico grato a Herman Melville. Reconhecidos ou esquecidos, os autores antecedentes, dos mais famosos ao nosso mais remoto, anônimo e solitário ancestral que, desde o começo dos tempos, deixava sinais de sua ânsia por companhia, são sempre suporte e estímulo dos novos. A eles nosso reconhecimento. Luiz-Olyntho Telles da Silva (Brasil, 1943). Graduado em psicologia. Estudou Psicanálise e analizou-se em Porto Alegre e Buenos Aires. Trabalha como psicanalista, ensaísta, escritor, tradutor e professor. Em livros, publicou Da miséria neurótica à infelicidade comum (Movimento, 1989 e 2009[2ª ed., revista, corrigida e ampliada); Freud / Lacan: o desvelamento do sujeito (AGE, 1999); Leituras (AGE, 2004); Ponto Contraponto: significante e 89 discurso na Psicanálise (HCE, 2012) e Um elefante em Albany Street (HCE, 2012). Em 2009 estreou na literatura de ficção com o livro de contos Incidentes em um ano bissexto (EDA). Assinou as orelhas e a quarta capa do quarto volume de Finnicius Revém, a tradução brasileira do Finnegans Wake, de James Joyce, transcriada por Donaldo Schüler (Ateliê, 2002). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 90 MARLISE BASSFELD-MUHME | A arte de Ana Luisa Kaminski A REPRESENTAÇÃO DA SENSIBILIDADE COMO TRAÇO ESSENCIAL | Eis coragem marcante da pintora Ana Luisa Kaminski: simbolizar sentimentos, representar a subjetividade que lhe constitui, tanto quanto possa alcançar em luz, sombra, superfície. Uma lágrima escorre discretamente em azul numa andrógena face que remete a um universo onírico e cuja presença pode convocar a uma interrogação, a uma reticência, a algum ponto do qual o espectador não tenha como escapar. Será tristeza? Será emotividade? Será contentamento? Quem sabe… Trata-se de viagem íntima o olhar diante da obra. TÉCNICA E CRIAÇÃO A SERVIÇO DO BELO | É arriscado interpretar a um só lance o que possa estar no campo da expressão dessa pintora, cujo interesse pela arte surgiu ainda quando criança, na cidade gaúcha de Erechim, onde nasceu em 1966. Antes, pode-se permitir um singular prazer estético de se deixar tomar por seus tons lilases, por suas ninfas, em uma fragilidade que está mais para a delicadeza do que o que pudessem suscitar as reminiscências de uma mulher que também aprecia a cor da rosa. A desenvoltura da artista, ao estabelecer em sua obra uma temática onírica e, muitas vezes, quase mágica, agrega-se ao rigor acadêmico nascido de técnica apurada, em especial quando se dispõe ao desenho do humano. De fato, ao retratar com lápis, tinta e tela o rosto de uma pessoa, por sua peculiar entrega ao processo criativo, não é de se duvidar que, ao final do trabalho, já não tenham – pintora e personagem – estreitado algum vínculo para além do objetivo primeiro. MULTIDISCIPLINARIDADE PARA UMA PRÁXIS LIBERTÁRIA | Dificilmente Ana Luisa Kaminski deixaria de viver o que lhe é próprio enquanto está às voltas com seus pincéis e paleta: sua exuberância é traço que lhe advém de outras linguagens artísticas. Estudou flauta, piano, filosofia, faz formação em psicanálise. Graduou-se em letras e concluiu mestrado em literatura brasileira e teoria literária no ano de 2002 (UFSC), o que também lhe propicia privilegiada visão do mundo, colocando-se ela própria, tanto na obra quanto na vida pessoal, coerente com seus valores, libertária, interessada nas diversas manifestações de amorosidade, o que está manifesto em seus quadros. No campo pictórico, estudou desenho e pintura na Escola Municipal de Belas Artes, Erechim, RS, onde iniciou sua jornada de exposições. Também já expôs em cidades brasileiras, como: Florianópolis (SC), Curitiba (PR), São Paulo (SP), Campo Grande (MS) e outras do sul do país. Relativamente à palavra escrita, participou de congressos, nos quais apresentou trabalhos nas áreas de letras e artes, em Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Tem poemas e ensaios publicados em coletâneas. RECONHECIMENTO PÚBLICO E PREMIAÇÕES | Em outubro de 2011, a artista conquistou lugar em um dos mais cobiçados espaços artísticos do mundo, quando teve a oportunidade participar, com sua obra, da mostra coletiva intitulada Anap Carroussel du Louvre, no Museu do Louvre, em Paris, sob a curadoria de Edilson Barbosa, presidente da Academia Nacional de Artes Plásticas. Também na Itália sua obra foi bem recebida. Entre suas premiações, destacou-se na categoria pintura na IV Bienal de Roma, em 2004, com o quadro Nascimento da Ninfa Azul, que integra o acervo do Museu Ítalo-Brasileiro em Pomézia. Ainda na Itália, foi agraciada com o sexto lugar, categoria pintura, na Exposição Internacional de Artes na cidade de Anzio, em 2010, ao concorrer com dezenas de pintores de vários países. 91 No Brasil, teve o mérito do primeiro lugar na Exposição Coletiva de Artes Comemorativa ao Centenário da Academia Brasileira de Arte, Cultura e História, no Salão Villa Lobos, Brasília, também em 2010, com a obra Retrato de Staëll. No mesmo ano, obteve o segundo lugar na exposição coletiva Cristal de Talentos, na cidade de São Paulo. FAMÍLIA E AMIGOS PARA DIAS DE QUAISQUER CORES | Mãe de dois filhos – Daniel, 28 e Bernardo, 19 –, Ana Luisa Kaminski é casada há 30 anos com Osmar Kohn. Ao lado do pai da artista, Bernardo Kaminski, que a apoia desde sempre e foi o primeiro a lhe reconhecer o talento artístico, marido e filhos são seus grandes incentivadores. Assim, não fica difícil verificar que tanta jovialidade nos movimentos da artista nasça dentro de casa, onde a palavra circula sem que haja medo de transitarem nos diversos momentos do cotidiano, sejam eles revestidos de trabalho, desafios, festa, descanso. Importante fonte de seu amor pela vida talvez também advenha do interesse da artista pelo conhecimento, por sua prática de compartilhar o belo, seja por meio das redes sociais, onde tem incontáveis fãs, ou em conversas intimistas, em convívio mais próximo, com aqueles que admiram seu modo de estar no mundo. ENGAJAMENTO NAS QUESTÕES SOCIAIS E DESEJO DE UM MUNDO MELHOR | Entre as atividades didáticas, a artista plástica lecionou pintura para crianças carentes na comunidade do Morro Santa Vitória, Morro da Caixa e Morro do Pedregal, em Florianópolis, ao participar do projeto do Instituto Solidariedade e Cultura. Também atuou como formadora de arte-educadores no Movimento dos Trabalhadores sem Terra e no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária da Universidade Federal de Santa Catarina, sempre ligada à área da arte. ATELIER PRÓPRIO E AULAS DE DESENHO E PINTURA | Na capital catarinense, em seu atelier situado numa casa com quintal e jardim, cães e gatos, a três quilômetros de onde continente e Ilha de Santa Catarina se unem pela ponte Hercílio Luz, Ana Luisa Kaminski produz vibrante e continuamente, bem como leciona desenho e pintura desde o ano 2000. Antes, por três anos, (de 1987 a 1990) deu aula na oficina de Artes Porarte, na mesma cidade, e de 1990 a 2000, no seu atelier localizado num prédio comercial no centro da cidade. Com trabalhos expostos na Galeria Banco de Arte (SP), Galeria Spazio Surreale (SP) e Galeria Helena Fretta (SC), o atelier da artista é um espaço vívido e de generoso acolhimento a colecionadores, apreciadores de arte, bem como a alunos que participam atenta e dedicadamente de seus cursos. Por outro lado, no enfrentamento do real, – os dias em que as horas se tornam longas demais – a pintora não se recusa à ausência ou ao silêncio, quando passa a estar ainda mais presente num mergulho para a sublimação que a traz de volta, no círculo vital que é próprio dos valentes. Se, para todo mundo, viver às vezes dói, se é o que se apresenta como desafio inexorável, a artista plástica transforma de modo magistral seu quinhão de estranhamento nessa possibilidade de reconhecimento da falta, de modo que lhe é pacífico poder se deixar tomar pela tela vazia. Ao enfrentá-la, vira-lhe ao avesso, mostra a que vem, debruça-se, embrenha-se, esvai-se, alegra-se, brinca, brilha, resplandece. O efeito desse exercício que se repete no compasso de seu lírico estilo é o chão onde Ana Luisa Kaminski deixa brotar o belo de si em cada quadro que assina. EXPOSIÇÕES DE ANA LUISA KAMINSKI DESDE 2005 Releitura Artística: exposição coletiva no Espaço Cultural do BRDE | Florianópolis | SC | de 8 a 30 de dezembro/2005. 92 Entre Ânkoras & Asas: exposição individual | Erechim | RS | Espaço Cultural Castelinho | promoção: Prefeitura Municipal | 17 de julho a 4 de agosto/2006. Viajando nos Entrelugares: exposição individual | Florianópolis | Livraria Livros & Livros | setembro/2006. Têmpera do Tempo: exposição coletiva | Florianópolis | Café Veredicto | 13 a 30 de novembro/2006. Interstícios: exposição individual | Florianópolis | Café Veredicto | 1 a 15 de dezembro/2006. Asas da Alma: exposição individual | Florianópolis | Livraria Livros & Livros | 6 a 16 de fevereiro/2007. Nau da Alma: exposição individual | Florianópolis | Centro de Convenções da UFSC | 1 a 15 de julho/2007. A Dama do Sótão Azul: exposição individual | Curitiba | FIEP | 25 de junho a 30 de julho/2007. Retrospectiva Azul: exposição individual | Florianópolis | Atelier Sonho Meu | janeiro/2008. Afinação da Alma: exposição conjunta com Helen Ferreira e Malu Titon | em Florianópolis | Livros & Livros | agosto/2008. Matizes de Maio: exposição conjunta com Helen Ferreira | Florianópolis | Livros & Livros | maio/2009. Personas & Sonhos: exposição conjunta com a artista Staëll Di Lukka | Morada dos Baís (Pensão Pimentel) | Campo Grande | setembro/2009. Exposição Coletiva de Artes Cristal de Talentos: São Paulo | agosto/ 2010. Exposição Coletiva de Artes Comemorativa ao Centenário da Academia Brasileira de Artes, Cultura e História | Brasília | setembro/2010. Exposição Internacional de Artes em Pádova: Pádova | Itália | novembro/2010. Exposição Internacional de Artes: Anzio | Itália | dezembro/2010. Epifanias: exposição conjunta com a artista Staëll | Restaurante Piola | São Paulo | julho/2011. Lirismo Onírico: exposição conjunta com a artista Staëll | Galeria Spazio Surreale | São Paulo, setembro/2011. Salão Internacional de Arte no Carrousel do Louvre | Paris | França | outubro/2011. Salon Internacional Du Portrait: Château Du Beauregard | Loire ET Cher | França | abril/2012. Visões do Feminino: Espaço Cultural do BRDE | Florianópolis | junho/2013. Contato direto com a artista: [email protected]. Marlise Bassfeld-Muhme (Brasil). Jornalista e crítica de arte. Vive em Rheinfelden, Alemanha, na Tríplice Fronteira com França e Suíça, onde coordena um Projeto Europa em VerdeAmarelo. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 93 NICOLAU SAIÃO | A face oculta do planeta 1. MONSTROS NO ESPELHO SUBLUNAR DA ESCRITA E DO CINEMA a Fernando Guerreiro(FG), poeta de mérito e editor lúcido e capaz que possibilitou em Portugal a edição de “Os Fungos de Yuggoth”, de H.P.Lovecraft Há, no mundo da escrita, as chamadas “hipóteses levantinas” - que são as que ficam a jusante desse rio que pelos continentes da fábula corre lentamente e desagua no grande oceano das concepções que, mais ou menos ocultamente, se vislumbram, tacteiam e finalmente se agarram entre luz e sombra, entre sol e lua. Para tudo dizer: por detrás do monte, da colina onde se acoitam os mundos do imaginário. Não esquecer, também, que no “texto novelesco” por extenso (cf. J.B.Priestley, ”Os mágicos”; Eric Ambler, “A máscara de Dimitrios”) o levantino era por tradição habitante dúplice dum lugar híbrido, figuração de mistura (que é o sinal mais típico do monstro) receptáculo de obscuros conteúdos de baixo e de cima, de dentro e de fora. (“Desconfia dum egípcio; mas jamais, jamais confies num grego ou num turco” – Ambler, livro citado). A hipótese que FG nos propõe em dois textos que constituem o objecto deste pequeno ensaio, é a denominada “hipótese do fantasma”, plasmada num texto nascido tempos atrás e que se prolonga, com outra materialidade, se vela e se revela e, finalmente, se ergue e se põe a correr no texto posterior, “Os deuses estão entre nós”. Ambos notáveis pela informação que denotam, pela clareza do enunciado, pelo estilo sóbrio mas de bom recorte, pela inteligência que deixam adivinhar. Mas textos que partem do reflexo. Que são evidente sinal não diria de sedução vampírica mas de imersão num mundo que dialoga com os habitantes do país das trevas e dos nevoeiros. Sem ter considerado que os monstros, (na minha concepção), vivem todos deste lado e que, quando digo deste lado, digo que o que os move não é a magnífica revolta, muito menos a rebeldia, mas a assumpção do pavor e do domínio sobre os viventes. Mas eles camufladamente têm artes de enganar - que são as artes da sedução mefítica e despertam nos pensadores, quando calha, “solidariedades” algo impuras que são todavia filhas dessa boa-fé que eles arteiramente suscitam para melhor destroçarem os humanos. Ou seja: esses dois textos de FG partem de uma hipótese levantina, partem de préconcepções que, afinal, negam a própria existência da sua escrita enquanto lugar legítimo onde a maravilha acontece e onde a quimera finalmente cobra rosto, voz, figura e realidade. Que, em suma, negam a poesia (que é a vida das palavras na sua máxima força) enquanto espaço de liberdade. Se de facto fosse real a existência do “realismo absoluto dos simulacros”(sic), isso significaria que fora estabelecido o relativismo dos não-simulacros, ou seja: a proposta da assumpção da morte como valor de referência, de natureza naturante, logo de extinção da escrita como carne pulsante, nascente e nascida, reconvertida e podendo pôr-se a si mesma em causa mediante a desconstrução que a poesia é. Os monstros não podem criar porquanto são infecundos – um monstro-monstro não é nunca uma personagem trágica mas sim uma negação que produz tragédia – que, como se sabe, pressupõe o humano e é a sua melhor prova, o seu mais seguro sinal com toda a carga absoluta que isso arrasta. (E a escrita é a busca incessante do absoluto). O fantasma só existe enquanto criação dum cérebro (plasmado, quando muito, num aparelho, numa máquina de engendrar - paleta, livro, câmara de fotografar ou de filmar uma vez que o fantasma parte da indeterminação do espírito e nunca parte ou é parte da carne mas, quando muito, da sua cessação - logo da materialidade havida, materialidade que é a única substância que pode forjar “imaterialidades”: pensamentos, desejos, intuições fantasmas. Precisamente por isso é que as encenações engendradas por Lovecraft podem ser 94 classificadas por outrem, por diversos críticos (ou o foram por ele mesmo) como “absolutamente materialistas”. Porque ganharam corpo na escrita, tão simplesmente. Os fantasmas, a existirem mesmo, não seriam pois mais que realidade, logo matéria não ficcionada. Como canonicamente desaparecem assim que são trazidos à luz da Vida, só a escrita lhes serve de comprovação, de registo que nos assegura que efectivamente existiram. E é este o supremo paradoxo: só existem civilmente, reconhecidamente, se já não existirem (se tiverem passado para o mundo dos relatos que os certificam) só existem aos olhos dos mortais se forem matéria de memória – oral ou perpetuada em narrativa escrita, desenhada, filmada. Porque os fantasmas, de acordo com a tradição, não são espectáculo de multidões a não ser na Arte (pintada, escrita, filmada), são experiência de um ou alguns poucos. Leia-se: matéria de embuste, simulação, aparência intimidada que procura ser intimidatória. Vejamos agora o título proposto por FG para o seu texto, “Os deuses estão entre nós”. Não tomemos a frase pelo valor simbólico que poderá veicular. Tomemo-la à letra. Para efectuar o contraste - como se procede para aferir que algo é de ouro ou de prata – sujeitemo-lo a uma pedra-de-toque. Por exemplo – e uma vez que a única citação directa que o trecho transporta é a frase de Holderlin “os deuses já estão entre nós”. Então, teríamos como contraste “os deuses já não estão entre nós” e, a seguir, “os deuses sempre estiveram entre nós”, “os deuses nunca estiveram entre nós” e, adicionalmente, como matéria vinda do país do humor negro e da ironia sibilina, “os deuses estão e/ou não estão um bocadinho entre nós”. Consideremos, antes de passarmos adiante, que Holderlin, o grande poeta contemporâneo de Goethe, esteve são durante um período da sua vida e louco durante outro. Perguntemo-nos, então: a frase foi concebida no período de sanidade ou de loucura? No primeiro caso, perguntemos mais, ainda: quanto de loucura nela se misturou? No segundo caso, quanto de sanidade? E isto muito simplesmente porque a escrita pressupõe a possibilidade de contaminação (alguns diriam: implica-a) da vida, assim como a vida pressupõe a contaminação da escrita, tal como no resto do texto é sugerido, proposto, assumido mesmo. Continuando a usar a pedra-de-toque, ponhamos: os deuses sempre estiveram entre nós. Tal significaria que fazem parte tanto do mundo dos sonhos como do mundo da realidade que nos é apontado. (A primeira e mais poderosa característica dos deuses, de acordo com os cânones, é a sua ocupação total do mundo no qual os homens se movem apenas por concessão do alto. Os deuses são a totalidade, de acordo com os pensadores fideístas ou com os que os citam cabalmente). Mas neste caso não existe nem nunca existiu a soberania autónoma (mesmo que mitigada) do homem, logo não pode existir ou ter existido a escrita “absolutamente materialista” de Lovecraft ou outro. Na melhor das hipóteses não passaria de equívoco (visto o autor, como todos nós, não passar de “símio dos deuses”) quando muito mera função objectual, cobaia ou marioneta para indescerníveis andanças divinas, sujeito de obscuro propósito não desvelado/revelado, reflexo ou pretexto para actividades não susceptíveis de conhecimento humano. Porque a característica dos deuses é serem os seus manejos incompreensíveis para o homem, que de acordo com esta proposição se deve limitar ora à aceitação ora à expectativa. Nesta conformidade, o presuntivo materialismo absoluto da escrita lovecraftiana não passaria de imagem virtual, direita ou invertida, dos propósitos inconcebíveis, incompreensíveis, inscritos no livro dos deuses equacionados. Vejamos agora a outra premissa: os deuses nunca estiveram entre nós. Se assim é, porque são convocados/invocados? Isso corresponderá a um desejo de que o venham a estar? Ou por tal ser uma sensação/encenação que permite o engendrar duma escrita, de pensamento ou lucubração num continente onde um determinado tipo de imaginário não aparece como inverosímil, não só possível mas também credível? Porque, pertencendo pois a soberania ao homem, este pode entregar-se sem amarras à criação e a todas as suas contaminações? 95 Ou seja, poder ele inclusivamente erguer a frase positiva, a negativa e a irónica, uma vez que tem acesso ao lugar absoluto da liberdade. A todas as congeminações e criações, outorgadas ou inerentes, ou conquistadas. Passemos agora a outro ponto, vejamos os pressupostos em actuação: se não há, do ponto de vista da criação, verdadeiras diferenças entre escrita, cinema e vida (sic), porque é que há da sua forma própria vida, cinema e escrita? Poderia haver só escrita ou só vida ou só cinema… No entanto sempre houve vida, a dada altura passou a haver escrita e, muito mais tarde, passou a haver também cinema. Então, de duas uma: ou os sinais são o mesmo operativamente ou têm equivalência quando considerados. Se são o mesmo, tanto faz viver só no celulóide como só no quotidiano, viver só na folha de papel ou só na película – o que é uma inviabilidade provada pois é a vida quotidiana que vai ao cinema, que o faz, que produz escrita – sendo por seu turno contaminada por estes desde sempre a partir do surgimento deles. É necessário, para chegarmos a algo num continente não-fantasmal, que concluir: os sinais têm equivalência. Mas a equivalência (como e qual?) não é nem significa identidade, antes pressupõe a diferença. É porque estão separados absolutamente que há cinema, vida e escrita. É por isso que a escrita e o cinema – a Arte – multiplicam as vivências; se estivessem juntas, em identidade, estariam sempre mergulhadas num universo extático, num limbo gelado, infecundo, espectral e portanto proto-vampírico. Há um dado ponto, como os surrealistas antes e depois da letra descobriram ou constataram, em que várias realidades (sublinho, realidades) se unem. Por outras palavras: a poesia une-se à vida. Nalguns pensadores tal facto parece-lhes ser a existência de uma matéria contendo sinais contrários tendo o mesmo valor operativo. Em termos morais: o mal igual ao bem, o mal ser o bem ou o bem ser o mal. Ou seja: existir uma matéria una, múltipla, constituída pelos dois polos. Todavia, a prática alquímica ensina-nos que as coisas se passam de maneira bem diferente: existe a matéria afastada contendo em potência, desordenadamente, o mercúrio filosófico e o enxofre filosófico. Convenientemente excitados pelo sal tratado pelo duplo homem igneo, transfiguram-se. Depois de várias operações que não interessa trazer a capítulo e subidos vários degraus da Obra, acaba por se entrar na posse da matéria próxima que a seu tempo iluminará o vazio mediante a sua própria iluminação. Noutro plano: a palavra só tem poder transmutatório se se reconverter tornando-se outra coisa – palavra livre em conjunto, forjando uma frase livre ou seja, real e coerentemente ligada à sua figura com reflexo no espelho da existência (ao contrário do monstro, que não tem reflexo por não ter vida). E é por isso que não há incarnação doente, mutante, produtora de seres híbridos e impuros (sic). O que há, neste plano, são projectos de incarnação que só podem existir por terem seguido a “via mala” no meio-caminho entre a vida e a morte; seres de mistura e de desordenamento como o dragão escamoso dos sábios. Note-se, entretanto, que pode haver sobre eles uma luz, mas é a da falsa estrela que os alquimistas bem conhecem e que aparece pouco antes do derradeiro tour-de-main, armadilha colocada aos incautos pela Senhora da Luz para lhes testar a sabedoria, passo final antes da suprema iluminação que os levará aos confins do tempo e do espaço, à poesia das coisas e do que vive no seu interior, uma vez que o que está dentro é como o que está fora, atingido desta forma e só desta forma o milagre de uma coisa só. Se o operador (o poeta, o pensador, o alquimista) se deixar embalar nessa falsa certeza, pese às aparências mundanas irá dar a um lugar onde só há choro e ranger de dentes, onde só existe frio e escuridão. Reparemos num detalhe que convém recordar: de acordo com a tradição, o vampiro é o produto do esperma masturbatório que caíu num solo absolutamente infecundo, logo impuro. É por isso que ele é não mais que simulacro não criativo, aparência de vida, mentira absoluta e absoluta violência. Repare-se ainda que o Engendro de Victor Frankenstein, segundo Mary Shelley, é formado por fragmentos de mortos, juntos (e não unidos harmoniosamente) pelo poder da electricidade (de fora para dentro, enquanto na vida a 96 força vem de dentro para fora). Ou seja: pelo poder da tecnologia, que no Frankenstein moderno aparece - ainda mais reveladoramente - através das multiplicações produzidas pelos computadores. Dizendo de outro modo: pelo poder da nova diplomacia, que detém tanto o poder de criar monstros (ultimamente, os livros e filmes de vampiros para adolescentes) como de criar novos engendrados literários que só produzem uma escrita morta, deturpada e medíocre. No segundo texto de FG refere-se, citando Nodier, que o homem dum tempo a vir viveria simultaneamente duas vidas, a diurna e a dos sonhos. A primeira seria então permeabilizada pelo vampirismo existente no mundo onírico ou das imagens insubstanciais. Essa, real e material, onde se pode escolher, onde existe o espaço de liberdade (cf. Cesariny, que dizia lucidamente num poema que em vigília é possível optar mas se é sonho tem de se ir mesmo...) ficaria inteiramente preenchida pela fantasmagoria dos sonhos que se têm a dormir, dos sonhos que fornecem por vezes encantamento mas não têm poder criativo no seu próprio plano. (Aqui, recorde-se o ditame “Os que sonham de olhos abertos têm possibilidades de achar coisas que os que só sonham de olhos fechados nunca encontrarão”). Por outras palavras: a substituição da vida onde é possível criar objectos, relacionamentos, arte e o acesso à sabedoria, pela vida obrigatória dos sonhos - similar ao entorpecimento provocado pelo ópio, pelos diversos ópios, que parte de projecções que a dado passo são pesadelos. A vida do quotidiano, com a liberdade de criar a que se tem inteiro direito, deve pôr-se em guarda contra a contaminação de um pretenso sonho figurado que tenta ocupar o espaço real e que é constituído por todas as imagens dadas como uma realidade, mais, uma verdade actual e performante. A mais pura liberdade vive entre, por um lado, o espaço constituído pelo direito de o escritor ou o artista por extenso, o homem, criar encenações que finjam ser a verdadeira vida e, por outro lado, o direito de se recusar a ser ficção como se existisse apenas nelas. Porque, de facto, o homem não vive duas vidas – e sim uma, mas por mor da sua soberana imaginação pode visitar o outro planeta (a escrita, o cinema, toda a arte), sem que dele ou dos deuses que o habitam constitua mero símio ou mero reflexo. A não ser assim, corre o risco de - por obra da armadilha aludida atrás - se tornar carne para os monstros, quando não carne dos monstros. Tanto a arte como a vida – como a literatura – estão longe de ser mera encenação para acatitar monstros ou deuses. E muito menos são um sonho passivo ou enlouquecido – de simples mortos-vivos difundindo a epidemia dos que tentam aguardar nas trevas a figura impoluta do homem para eficazmente a devorarem, tal como se passa no mundo que os poderes discricionários buscam ainda hoje dominar inteiramente. Post Scriptum - A hipótese central e imaginativa argumentada/posta por Lovecraft em “O caso de Charles Dexter Ward” é clara por diferença na sua constatação: não são mortos que voltam numa condição mutante/mutada mas sim não-seres que tentam apoderar-se de vida mediante práticas de permanência espúrias; não uma outra espécie a vir presente futura, mas simulacros, tentativas de um reflexo condenados por isso ao inevitável desaparecimento. O livro, sublinhemos, chama-se por isso “The case of Charles Dexter Ward” (e não “Os mortos podem voltar”) ou seja: o caso de um vivo, de um indagador que, por armadilha de um simulacro, foi colhido no caminho para a sabedoria, para o conhecimento. Morreu porque tentava compreender ingenuamente (isto é, sem se precaver), porque não conseguiu escapar ao retrato em que se plasmava Joseph Curwen. A meu ver, por esta soma, o título dado nessa primeira edição portuguesa não é justo, porque o que tenta reflectir é uma acção postergadora dum direito evidente, existente, soberano e inscrito na espécie ela mesma: não voltar. Esse título acontece por mero detalhe editorial, eventualmente por pequeno sensacionalismo da época. Adicionalmente, diga-se que a morte (a calcinação, quarto degrau alquímico, negrume do corvo místico) é referida duma maneira cabal e esclarecedora por, entre outros, Bernard 97 Trevisan e Fulcanelli. No caso português, em José Anes e em textos avulsos de modernos alquimistas que têm difundido a sua obra através dos meios editoriais normais. 2. INCURSÃO PELO IMAGINÁRIO 1. Há um imaginário rural, assim como há um imaginário citadino. Esta diferenciação, que poderia parecer estranha a observadores menos precavidos, articula-se de forma própria. Com efeito, até há bem pouco tempo – e, em certos lugares, a situação dada é ainda manifesta – o meio rural estava bastante separado do acesso aos mass-media mais qualificados, que são os que com maior relevo difundem, controlam, sustentam e forjam um certo imaginário padronizado. É pacífico que o imaginário citadino é extremamente condicionado pela televisão, a rádio, os jornais e os espaços interactivos a que os meios rurais tinham e têm ainda um acesso relativamente precário ou flutuante. Posto isto, debrucemo-nos agora sobre o imaginário rural. Com uma carga muitíssimo específica e bem caracterizada, ele está profundamente ligado ao ritmo das Estações, ao perfume do solo, às reuniões de famílias, de vizinhos, de maiores ou menores fragmentos da comunidade para o qual frequentemente os ritmos citadinos existem mais como figurações alheias, como verdadeiras paisagens exteriores. Pode dizer-se, assim, que o imaginário tradicional se radica e está entranhado, na sua pureza, principalmente nas regiões campestres. E são os núcleos que se mudaram para as povoações maiores que, em geral, o levam consigo e o vão preservando como se uma vivaz nostalgia os acompanhasse. 2. No seu livro “A arte e a literatura fantásticas”, texto canónico a muitos títulos, diz-nos acertadamente Louis Vax a dada altura: “O arrepio que as narrativas fantásticas, a literatura de imaginação científica, os quadros surrealistas provocam no leitor moderno, já o povo o conhecia graças às lendas que se transmitiam de geração em geração. As histórias de almas do outro mundo, de lobisomens, de vampiros e de maus olhados, causaram outrora a angústia e as delícias dos aldeões reunidos à volta do lume”. Pelo que me diz parte, posso confirmá-lo. Na minha infância vivi algum tempo no campo, campo esse por onde continuo a jornadear e que, sob certos aspectos substanciais, muito pouco se modificou (não devemos esquecer-nos que a região a que aludo, a da Serra de São Mamede, é um dos lugares mais isolados do País, sendo de igual modo um dos mais atraentes para quem goste da ruralidade). E recordo com grande prazer, forte emoção e bastante saudade aquelas vezes em que, depois do jantar e antes da deita (que naqueles rincões alentejanos das Covas de Belém e do Chancrão costumava suceder cedo) um grupo de vizinhos chegavam para o serão. Para além das conversas sobre os respectivos animais das quintas, o sucesso do que se semeava e colhia (as novidades, como se lhes chamava) a certa altura era proverbial alguém puxar a parlenga noutra direcção: e eram contadas histórias, provindas da imaginação tradicional ou do quotidiano elaborado com certos requintes de invenção ou garantidamente reais. Estorietas de “medos” e de aventuras perturbantes, vivências transfiguradas e espantações onde não deixava de assomar o espectro da malina que punha tremores e suspensões na alma de pequenos e grandes... Aprendi na altura canções ligadas às Estações e aos seus eventos próprios e típicos. Se trovejava, sabia-se bem como esconjurar o mau-jeito: “Santa Bárbara bendita/ que no céu está escrita/ com papel e água benta/ livrai-nos desta tormenta./ Levai-a lá p'ra bem longe/ levai-a lá p'rá moirama/ onde não haja pão nem vinho/ nem flor de rosmaninho/ nem se oiça cantar o galo/ nem repenicar o sino”. 98 Como se verifica pelo simples enunciado, a tradição pagã, ou mesmo mágica, cruza-se com o assimilado da missionação cristã: a flor do rosmaninho e o galo são a caução arcaica do sino, do vinho e do pão. O próprio facto de o recitante se dirigir a Santa Bárbara – há outra versão, com ligeiras variantes, dirigida a São Jerónimo – indica uma forte implicação que tem a ver com a feição mágica. Com efeito, a santa aparece nela mais como interlocutora directa do que como intercessora. Esta pequena incursão à guisa de parêntesis permite-nos exemplificar, na verdade prática, o seguinte considerando: o rico imaginário rural, que sempre teve mais a ver com a poetização que com a sacralização, foi durante os séculos sempre fortemente pressionado pela presença obcecada da propaganda eclesial, com o seu cortejo de interdições, de recomendações imperativas, de histórias de proveito e moralidade geralmente mais retiradas ou vindas do preconceito do residente e da sua forma específica de encarar a mensagem de Roma, que da religião (religare) como factor de interligação entre os mundos de baixo e de cima, do espírito e da carne salutarmente postos em cena por uma harmonia cósmica. Não é, assim, de estranhar que em paralelo com a figuração fideísta muito se contasse com as capacidades das mulheres ou homens de virtude que, no plano da “possibilidade de manobra”, da “capacidade operativa” além do quotidiano simples, estavam naquele espaço ao nível do médico ou do sacerdote qualificados. É fácil verificar, pela análise das histórias tradicionais do Ocidente e que na contemporaneidade encontraram a sua mais ampla divulgação, que existe nelas, subjacente ou mais expressa, uma forte carga sentimental-sexual inerente ao ser humano, por vezes transparecendo sob o hábito ou o véu duma escamoteação cristã (como os templos sob as ermidas...). 3. O maravilhoso é a face feérica do fantástico. O fantástico, por seu turno, gere as dúvidas dum real subitamente colocado frente a factos que ultrapassam o entendimento linear. A sua pátria é o medo que de repente cobra existência saltando para os interstícios que vão do concebível ao possível. Como estranhar pois que o imaginário rural fervilhe de animais embruxados, seres vagueantes por pinheirais e por colinas onde, nos tempos idos, com frequência se ia colher a mandrágora, o heléboro e a camomila? Profundamente ligados à terra, é daí que os rurais retiram as suas melhores horas, ultrapassadas que foram pela modernidade e a contemporaneidade as dominações espúrias da opressão anciã. As quais se espelham em contarelos, recitações e cantares. O cancioneiro português popular tradicional – que nada tem a ver com o pacóvio ou pedante cançonetismo da massificação, pimba ou nem tanto – é extremamente valioso e, mesmo ao nível do que as canções ligeiras lhe foram buscar, muito rico e sugestivo. Há todo um sector que utiliza da melhor forma os temas rurais e campesinos: cantares sobre a macela, o cuco, os namoros junto à madressilva que ornava os logradouros, a ida às fontes vicinais, as desfolhadas e as ceifas, as manhãs de neve dos dias invernosos ou as longas tardes de calor no pino do Verão – tendo em alguns casos transbordado para a canção mais culta ou mesmo superiormente elaborada (trago ao de leve Schubert à colação, com o que no seu país ao tema diz parte). Os próprios factos e sucessos do imaginário citadino, científico ou apenas de relação quotidiana (a ida à Lua e a existência de casos que tais, mas também a realidade de comboios, de carros, de arranha-céus, os aprestos das casas e até os electrodomésticos) são transfigurados até com ironia, ficando então a pertencer ao imaginário rural enroupados embora com outro tipo de indumentária... Se me observarem que esse cancioneiro rural é muito mais rico em Espanha, França, Inglaterra, Europa Central ou do Sul, etc. - concordarei de imediato. Isso deve-se a dois factores principais: a maior qualificação cultural daqueles lugares e a sua esquiva, mais eficaz que neste pequeno país, ao caciquismo vivificado pela beatice e o atraso existencial. 99 4. Exemplifiquemos com uma pequena recitação que claramente aponta já para uma miscigenação de imaginários (o que pode aliás ser um firme progresso e um sinal de permanência salubre) e que me foi dada a conhecer numa região norte de Espanha: “Menina de olhos risonhos/ aqui lhe deixo uma papoila/ para prender no casaquinho/Se andar de carroça não a perca/ se andar de carro segure-a bem/ que o meu amor não a falseia/ E todos os anos renasce/ como a água dos ribeiros/de manhã ou ao sol-pôr”. Atente-se que em certas regiões da Europa Central as moçoilas são instadas a que não tragam flores vermelhas nos vestidos, pois isso podia acarretar-lhes as miradas voluptuosas e devoradoras de vampiros e assombrações semelhantes. Também é conhecido o facto de, nas noites de lua cheia, se dever fazer boas provisões de flores do alho – que são brancas com afloramentos amarelos – para manter afastados os fantasmas. A literatura recolheu muitas destas tradições, glosando-as mediante contos e novelas universalmente conhecidas. A poética, por seu turno, uma vez que lida intensamente com as funduras inconscientes do ser humano, realiza em múltiplas direcções o mistério e os enigmas do mundo, tanto nas cidades como nos meios rurais. Aí, dá-se com frequência uma interpenetração dos signos, utilizando o artista símbolos comuns ao rural e ao citadino. Deixemos agora, por alguns momentos, o nosso espírito vaguear um pouco pelos bosques e pelas ruas. Pelos campos abertos ou pelos bairros de apartamentos e vivendas. Aqui, encontramos os animais das quintas ou dos terrenos livres entregues à sua existência peculiar entre as árvores e os arbustos ou nos cercados dos casais, tendo contudo sempre, de longe ou de perto, a presença imanente do bicho-homem. Ali, vemos gente que de dia ou de noite, a pé ou em transportes próprios ou comuns, segue o seu destino entre casas ou, até, entre parques normalizados, rodeados pelo estridor dos automóveis e das outras presenças humanas. O imaginário é o que resulta de tudo isso e de tudo o que advém ou provém dos ritmos que esses universos conformam, materiais ou espirituais. O rural encontra a estranheza e a aventura nas luzes da cidade, para falarmos simbolicamente, enquanto o homem citadino se descomprime e recreia excursionando pelo lugar quotidiano do outro. (Não é por acaso que nos últimos tempos os operadores, sempre atentos, têm incrementado o turismo rural bem como o turismo de aventura, ainda que este tenha especificidades e decorrências que não iremos agora abordar). Se formos um pouco mais fundo, para além do óbvio, verificaremos que havendo pontos de contacto existem igualmente, e bem marcados, pontos de ruptura que podem inclusivamente transformar-se em pontos de transgressão de determinados limites lúdicos. Constitui, a nosso ver, um índice de má-consciência da parte de certos operadores públicos não se admitir que existem efectivas diferenças sensíveis entre os mundos do campo e da cidade que os obrigam a terem um lebensraum (na acepção de Friedrich Ratzel e não dos que depois viriam) que lhes determinam enfoque singularíssimo e que deve encarar-se seriamente. Giovanni Papini referiu mesmo, num dos seus textos teóricos/ensaísticos, que “A cidade é uma represália à natureza selvagem”, entendendo-se como tal a tentativa de separação que subjaz ao acto de concentrar em vastos aglomerados milhares senão milhões de seres, quantas vezes absurdamente desconhecedores do que sejam os reais ritmos do dia e da noite – para alguns citadinos mera passagem de luz a sombra e de sombra a luz – com todos os seus prestígios seculares. “E foi então, enquanto descia a colina com a bicicleta rodando serenamente debaixo do céu de Agosto, que me apercebi de quanto tinha esquecido as estrelas que o enchiam desde os meus tempos de rapazinho”, para citarmos um fragmento de um livro do escritor americano Ron McLarty. 5. Não estamos, é evidente, a propor uma opção que privilegie o campo em detrimento da cidade, mas a acentuar a necessidade de se ter a noção clara de que é nos campos que, como o Anteu da mitologia, podemos colher o que de mais salubre e plásmico vive em nós, no nosso relacionamento com os tempos e a natureza das coisas vivas. E, dado que nos mantemos apenas e só no plano da escrita, vejamos como um Almanaque – que durante 100 anos e anos foi a principal fonte de leituras do meio rural e ainda tem uma larga difusão – se refere aos meses. Em relação a Janeiro, que é o mês em que se semeia o agrião mastruço, a alface de cortar e os rabanetes de Inverno, reza assim: “Indo para Norte passam os bicos cruzados e os estorninhos. Floresce a maonia e o heléboro negro. Em Stº António os dias crescem a passo de monge. Dia de S.Mauro gelado, metade do Inverno está passado”. E em relação a Agosto, mês correspondendo na esfera astrológica ao tempo dos mistérios dos assírios e caldeus, quando no céu cintila a Vega inspiradora de magos e arquitectos, diz-nos assim: “Passam voando em direcção ao Sul a galinhola, a cegonha, o maçarico real, a poupa, o cartaxo, a narceja e a becoínha. Floresce o sol radioso. As avelãs estão boas. Quando chove em Agosto chove mel e mosto. Agosto amadurece os frutos, Setembro colhe-os”. Desnecessário é, creio, acentuar toda a beleza destas linhas simples e tão claras, verdadeiros poemas involuntários contendo toda a carga inerente à simbiose homem-terra da tradição, que vive em nós ainda que inconscientemente. A imaginação, seja no campo ou na cidade, refuta exemplarmente a rotina e o hábito que podem limitar a existência em plenitude. A poesia – que, não o percamos de vista – começou por ser um acto de incursão e de reflexão sobre o sagrado e a natureza naturante (desde o “Cântico de Gilgamesh” às “Geórgicas”, desde o códice maia do “Popul Vuh” quíchua ao “Os trabalhos e os dias” - na verdade transtorna os tempos ao acrescentar-se ao imaginário, pois mescla fórmulas de existência tanto no campo como na cidade. Os imaginários são uma resultante do espírito do lugar ou, como queria Marc de Boislevy, “O nosso ser interior depende não só da herança física dos nossos ancestros mas também do ar das moradias que eles habitaram, dos rios que transpuseram e dos caminhos por onde viajaram quer o quisessem ou não”. É a poesia das coisas que nos rodeiam, somada à que se põe em letra de forma, dispersa nos quotidianos, que constitui a ponte entre os dois mundos, fazendo a juntura tão cara, por exemplo, aos filósofos per ignem. A este propósito, convirá dizer – e ressaltar com a justa vivacidade – que muito do que nos é apresentado e proposto como poesia popular e poesia popular rural não é mais que produto delido e incaracterístico provocado por décadas de aculturação, de submissão induzida ardilosamente a estuários poluídos que nada têm a ver com a forte, poderosa, cintilante poesia das gentes não manipuladas. É frequente ver-se, em poetas pretensamente populares – muito acatitados por certos autarcas maganões e de olho-vivo... - inflexões espúrias provindas e incentivadas ou pelos moralismos de recurso (fideístas e outros de igual coturno) que nada nos dizem sobre a agilidade, a graça, o perfume da grande tradição cravada nas pautas campesinas e aldeãs. Nelas, frequentemente, se vê espalhada não a religação mas a beatice, não o lirismo mas o casca-grossismo pindérico de arrivistas de mau tom. Digamos, que não diremos mal, que é uma versejação visitada pelo piscar-de-olho reducionista de citadinos que episodicamente trocaram a calça de ganga pela de surrobeca dos caminhos secundários – até que de novo, enjoados da experiência, reentram na autoestrada. 6. Os provérbios populares, com tantas ligações ao solo campestre, também nos dizem muito sobre o como dos imaginários, sendo de notar que certos ditados com clara origem camponesa passaram posteriormente, com alguma velocidade, para o outro imaginário: “Ao homem farto até as cerejas amargam”, “Semeia-me na lama mas faz-me boa cama – diz o trigo”. E a viagem também pode ser inversa: “Em sua casa governa o carvoeiro como galo em seu poleiro”, “Redes no mar, moinhos de vento, benesses de padres, pomares de pessegueiros, bens de rendeiros – chegam a segundos mas não chegam a terceiros”. Repare-se que a denominada “sabedoria das nações” é simultaneamente constatação e proposta, pelo que o seu percurso tem a ver tanto com as conclusões a que os séculos chegaram como com aquelas a que alguns pretendiam fazê-los chegar imperativamente... Temos pois que há um fundo comum aos dois imaginários que, a dada altura, se separa. No espaço intestercial entre um e outro é que actua (quando não nasce mesmo) o imaginal, 101 assim encarado por Gilbert Durand. Este é, portanto, uma sequência mais profunda, aritmética para além dos limites, completamente estruturante e vivificadora. As vivências são diferentes bem como diferentes são os enfoques, logo os resultantes que deles partem. E se é verdade que em boa medida vivemos numa aldeia global, no fundo ainda persistem no Homem os ruídos nocturnos dos grandes espaços sob a Lua silenciosa. A assumpção da cidade não pode nem deve ser a recusa da Natureza sob o pretexto de que é nas cidades que reside a mais alta civilização. A proceder-se assim haverá cortes bruscos no imaginário, separado de si-mesmo por via dum recalcamento societário que tenta recusar a multiplicação dos signos legítimos a que só os grandes ritmos da Terra têm acesso. É desta autêntica supressão imaginal que provêm as disfunções, como sejam por exemplo os selvagens ritos de passagem que consistem ora no massacre sobre golfinhos, havida ciclicamente nas Ilhas Faroe da civilizada Dinamarca, ora de jericos da orla desértica efectuada por povos islâmicos barbarizados. Embora na hora actual as gentes do campo sejam, como maioritariamente as das cidades, atingidas pela protérvia primarizante dos mídias, a proximidade da terra e do ritmo bem marcado das Estações permitem-lhes raciocinar o mundo duma forma mais plástica, mais povoada de elementos reconhecíveis como estrelas e sóis. O que se lamenta, portanto, é que a cidade – tão gratificante a vários títulos - encarada como concentração abstrusa de seres e não como um agregado de humanizados, de pessoas unidas para um fim comum de maior capacidade intelectiva, criativa e imaginativa, integre e propague tão mal um imaginário crivado de sedimentos, fracturas, frustrações e, nos casos limites, criminosas infelicidades. Há um imaginário citadino de forte poder criativo (mas atente-se no que se passa em certas áreas de Madrid, de Paris, Sevilha ou Bruxelas, para citarmos apenas estas que conhecemos e que muito estimamos; não falando noutras como S. Paulo, Calcutá ou Teerão - nestas duas últimas, para tal concorrem coordenadas provindas do fanatismo extremo e de reclusão existencial e governativa). Claro que em tudo isto têm parte fundamental os desvigamentos sociais oriundos da modernidade mal articulada por uma economia egoísta e cínica ou pelo império das religiões (mal) reveladas Como exemplo mínimo, na área do desporto-espectáculo (haverá algum elemento mais citadino do que o futebol?) cada vez mais se acumulam - depois de despertados por um ambiente de inércia propositada do eticamente desqualificado sistema judicial - os tiques violentos expressos, que têm a ver com um ambiente cuidadosamente construído por operadores de tendência ideológica intrinsecamente totalitária, os quais repescam dados dum passado sinistro (como os grupos de ginástica e desporto do regime pré-nazista) para os aplicarem de maneira actual e contundente (as célebres pandilhas de hooligans ou das claques clubistas adeptas da brutalidade codificada). 7. Grosso modo, mas de forma adequada, poderíamos definir os imaginários como activos e reactivos. O imaginário rural é mais activo que reactivo, pois tem a ver principalmente com a maior proximidade da natureza da qual tudo parte basicamente. O imaginário citadino será reactivo na medida em que é, em grande parte, produzido pela opinião pública e as relações intrincadamente sociais. É isto que produz frequentemente a ideia, aliás errónea, de que as gentes do campo seriam incultas, uma vez que o imaginário corrente ou dominante, nos locais expressos das instituições, é genericamente de origem citadina. (Estamos a lembrar-nos de uma comédia australiana, muito famosa há uns anos, protagonizada por um bushman branco que, transplantado por uns tempos para a cidade, choca a sua sabedoria “primeva” mas eficaz com a sofisticada parolice dos metropolitanos). O imaginário rural depende de outros factores, o que não o torna mais nem menos valioso que o outro, a nível comparativo, sendo a inversa igualmente verdadeira. É curioso e muito instrutivo, salientemo-lo, verificar que os pintores impressionistas, vincadamente citadinos e com os quais nasce a modernidade nas artes plásticas e, mesmo, a tradição da 102 pintura como tal, como Jean-Dominique Rey assinalaria, conseguiram mesclar cidade e campo ao procurarem uma mais adequada solução para o problema posto pela evolução da pintura: lembremo-nos de Renoir com as suas telas fixando os bailes citadinos populares e, paralelamente, aquelas em que nos dava trechos de caminhos boscosos subindo entre ervas altas ou as florestas e parques vicinais nos limites de Paris. Ou de Van Gogh e os seus cafés e ruas de Arles ou Saint-Rémy, as herdades jucundas de Crau, as ceifas em Auvers-sur-Oise. Ou de Cézanne com a sua montanha de Sainte Victoire a par do casario de Aix-en-Provence. Um dado importante e significativo, que aqui deixamos ao leitor: as histórias fantásticas são em geral situadas no campo ou nos solares da periferia. Por seu turno, são raras as histórias policiais ou de terror ambientadas no campo. Evidentemente que há algumas excepções, que canonicamente confirmam a regra. Contudo, podemos afirmar sem exagero que os monstros sociais (serial-killers, endemoninhados e criminosos) pertencem ao imaginário e ao universo das cidades, ao passo que os monstros fantásticos pertencem ao campo ou têm nele a sua origem (Drácula, Frankenstein, Werewolf, os Vrucalacks). Serve dizer: o mundo rural excursiona primeiro pelo feérico e só depois pelo fantástico e o inquietante; o citadino pelo inquietante, o fantástico e finalmente pelo feérico (Walt Disney, citadino perfeito com os seus encantadores animais antropormofizados, até tem um enorme e significativo parque temático na cidade mais cidade conceptual que há – Paris). 8. Para finalizar convirá assinalar, ou recordar, que ultimamente se tem perfilado na grei uma certa movimentação de “regresso à natureza”. Evidentemente que é a nostalgia que fala e não procurarei agora saber se tal é bom ou mau ou se corresponde a sentimentos verdadeiros ou a simples moda. A tendência, corroborada por propostas de especialistas, é para os agregados humanos se tornarem mais fluidos, mais soltos e agilizados. Há muitos pensadores e publicistas, desde os tempos de Georges Simmel até ao mais chegado George Pérec, que contemplaram o facto de que se caminha para uma recuperação da existência campestre, através da análise exaustiva da vida na cidade. O que arrasta a construção de outras inflexões na estruturação do imaginário. No fundo, dentro dos de maior qualidade, ou exigência se se quiser, agita-se uma clara possibilidade de interpenetração dos dois imaginários, o que corresponde a uma interpenetração das duas vivências, cada um facultando novas possibilidades, fornecendo novas virtualidades que devem encarar-se com perspicácia. Dizia Fernando Batalha, nos tempos em que apoiou o célebre humorista Coluche que até efectivou uma sensacional candidatura à presidência da República francesa, que “Vivo no campo como se vivesse na cidade e vivo na cidade como se estivesse no campo”. Em todo o caso, ambos podem fornecer uma certa herança que seria estulto desperdiçar. Na forma de articular esses dados é que o caso fia mais fino, mas há ainda um vasto campo de afirmação que, esperamo-lo e desejamo-lo firmemente, não tornará invisível o que de melhor e mais salubre os dois imaginários possuem. Diferentes, com pontos de contacto que não anulam essa mesma sensível diferença, é preciso que se deixem vivificar pelo livre sinal da mão daqueles em quem a imaginação é uma chama que continua a tremular, ainda que com altos e baixos, no escuro da noite - no meio duma floresta ou entre casas que poderão até ser de renda económica... In: “Nigredo/Albedo, o livro das translações” Nicolau Saião (Portugal, 1946). Poeta, artista plástico e ensaísta. Autor de livros como Passagem de nível (1992), Flauta de Pan (1998) e Os olhares perdidos (2000). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 103 OMAR CASTILLO | Lo subversivo en La valija de fuego de Aldo Pellegrini I. Mínimo contexto literario | En la literatura escrita en Occidente en las primeras décadas del siglo XX, los poetas y novelistas, aprovechando las experiencias desarrolladas por distintos autores en el siglo XIX, buscaron penetrar el tejido del lenguaje hacia otras manifestaciones de aprehender la realidad. En sus búsquedas las palabras fueron sopesadas hasta la exasperación, al punto de llevarlas a relaciones y analogías al límite de lo arbitrario, consiguiendo con ellas rasguñar el ideario por donde el ser humano era, y es, conducto a la domesticidad de sus instintos y percepciones. En ese momento era necesario para los creadores descubrir las tramas que arman las nociones que sobre el mundo quieren prevalecer y lo hacen aberrante en sus principios e imaginarios, mundo signado en estímulos surtidos por el lastre del “pecado original” que terminó por imponer lo laboral como dogma de vida y, desde ese dogma, una ética y una estética. Entonces, escarbando en los abismos de la realidad, los poetas y los novelistas se dan a una escritura próxima al vértigo del abismo mismo, se dan a la tarea de encontrar imágenes y percepciones antes no concebidas para la literatura y para el ejercicio de la existencia humana. Tales experiencias entran a la literatura y hacen la expresión de un mundo casi inédito, un mundo no compacto en sus principios y en el cual no es posible determinar el destino de la condición humana, ni el de la naturaleza en cualquiera de sus manifestaciones. Es así como estos autores producen una escritura comportándose como el caos del universo que no se detiene en su constante creación. Experiencias que hoy resultan fundamentales para entender la realidad y sus contextos históricos e imaginarios. En Hispanoamérica, en las primeras décadas del siglo XX, estas experiencias fueron practicadas por los poetas y novelistas que fundaron sus escrituras en los logros conseguidos por los escritores que los anteceden y se agruparon bajo el signo del Modernismo. Las posturas vanguardistas que los caracterizarán, y desde las cuales buscaron perfilar sus obras, evidencian los contrastes, diálogos y rupturas que establecen con el movimiento Modernista y con el acontecer literario y cultural de Occidente y el mundo. II. Inicios de Aldo Pellegrini | En Buenos Aires, en noviembre de 1928 se edita el número 1 de la revista literaria Que, y en diciembre de 1930 se edita el número 2 y en ellos, como constancia de los inicios de una obra, quedan impresos los primeros textos y poemas de Aldo Pellegrini (Rosario 1903, Buenos Aires 1973), firmados bajo los seudónimos de Adolfo Este y Filidor Lagos. Esos únicos números de la revista Que fueron la expresión de las experiencias compartidas por un grupo de amigos reunidos alrededor de sus búsquedas vanguardistas, en particular la que los aproximó al grupo surrealista en cabeza de André Breton. En el “Pequeño esfuerzo de justificación colectiva” texto que abre el número 1, se lee: “justificación de esta revista: Buscar en la expresión la evidencia de nuestra propia y oculta estructura (palabra, espejo del hombre) y quizás también algo como una necesidad irresistible de pensar en voz alta”. Los otros integrantes de la revista fueron Marino Cassano, Elías Piterbarg, David J. Sussman e Ismael Piterbarg. Todos acudieron al uso de seudónimos para firmar sus textos y poemas. Así daba inicio Aldo Pellegrini a su amplia e íntima labor poética en la Argentina y en Hispanoamérica. En esta labor es apreciable su capacidad de difusor de la obra de poetas y artistas que con sus creaciones oxigenaron los ámbitos culturales de su momento. Además de su activa participación en la fundación y en la edición de varias publicaciones y revistas literarias, dirigió la colección Los Poetas, publicada por Fabril Editora y lanzada en 1961, colección con la que contribuyó al conocimiento de un amplio espectro de la moderna poesía escrita en Occidente, en ésta publicó su selección y traducción de la Antología de la poesía 104 surrealista de lengua francesa, libro que permitió a más lectores entrar en contacto con la escritura de los iniciadores del movimiento surrealista y de algunos de sus asociados. Otro de los característicos aportes de Aldo Pellegrini es la edición que hace, en 1963, de su traducción de las Obras completas del Conde de Lautréamont: los Cantos de Maldoror, Poesías y Cartas, con un estudio detallado sobre la existencia y la obra de Lautréamont, sus orígenes literarios y su contexto creador. También edita en 1971 su traducción del texto de Antonin Artaud: Van Gogh, el suicidado por la sociedad, con un prólogo: “Artaud el enemigo de la sociedad”, donde hace claridad sobre la condición del poeta en estos tiempos de intemperie y oscurantismo. En la escritura de sus estudios y ensayos Aldo Pellegrini es punzante, pues en ellos se da a desenmascarar las artimañas de quienes ofertan la poesía como un espectáculo huero. Al descubierto quedan los intereses de aquellos que pretenden empotrar la poesía como un producto más de la sociedad de consumo, buscando desactivar su impacto revelador y, también, deslegitimar los sentidos del acto poético cuando no se somete al servicio de las cuadrículas donde ellos imponen las condiciones y los impuestos para la existencia. III. Primera edición de la poesía completa de Aldo Pellegrini | En octubre de 2001 la Editorial Argonauta publica la primera edición de La valija de fuego (Poesía Completa) de Aldo Pellegrini. El libro se abre con una “Nota del editor” y precede la compilación un ensayo de Pellegrini: “La acción subversiva de la poesía” tomado de su libro Para contribuir a la confusión general (1965). La compilación y notas son hechas por Mario Pellegrini. En el apéndice se reproducen textos de Rodolfo Alonso, Edgar Bayley, Enrique Molina y Francisco Madariaga. La reunión de la obra del poeta se abre con Que (1928-1930), donde el compilador agrupa los poemas y textos que Pellegrini publicara en la revista arriba mencionada. En los poemas reunidos en Que es evidente el automatismo como fuerza que permite a las palabras alcanzar una noción de la realidad a través de imágenes que se exploran en el acto de la construcción y deconstrucción de sus significados y, por ende, de sus contenidos. Palabras en imágenes igual a un “Remolino inacabable de frases apasionadas”, tal como se puede leer en uno de los textos, el titulado “Preferencia por los signos de olvido”. Estos poemas son el resultado de una experiencia no sujeta a la lógica del discurso poético impuesto por las preceptivas del oficialismo literario de entonces, son ruptura e inicio, provocación y malestar, son los inicios y constantes en expansión que se podrán apreciar en la obra toda del poeta Aldo Pellegrini. Después de Que, el lector se encuentra con El muro secreto (1949), primer libro de poemas de Aldo Pellegrini, publicado inicialmente en edición de 250 ejemplares numerados. Son más de 19 años entre la publicación de los textos y poemas que el compilador reúne en Que y los que componen El muro secreto. Completan la edición: La valija de fuego (1952), que se abre con un epígrafe de Gracián: “Todo este universo se compone de contrarios / y se concierta de desconciertos”, versos que bien podrían abarcar la obsesión poética donde se funda la escritura de Pellegrini. Construcción de la destrucción (1957), Distribución del silencio (1966) y Otros poemas (1952-1972), donde se reúnen los poemas publicados por el poeta en distintas revistas a lo largo de esos años. El libro se cierra con: Escrito para nadie (1972-1973), del que se dice en nota del compilador: “Este libro no llegó a ser terminado. Se encontraba en proceso de elaboración al fallecer su autor, en 1973. Varios poemas esperaban la corrección definitiva; es probable dada la extrema exigencia que se imponía en su trabajo- que muchos textos hubieran sido excluidos…”. La primera edición de Escrito para nadie fue hecha por Editorial Argonauta en 1989 en Buenos Aires, ciudad donde fueron publicados todos los títulos aquí nombrados. El texto impreso como prólogo en Escrito para nadie revela la elíptica donde fue haciéndose la obra poética de Aldo Pellegrini. Allí el poeta nos dice: “La poesía es una gran aventura. // Cada poema es una nueva aventura y una exploración. Aventura en los continentes desconocidos del lenguaje, exploración en la selva virgen de los significados. La 105 poesía quiere expresar con palabras lo que no pueden decir las palabras. Cada palabra tiene un secreto mágico que es necesario extraer. Pero en definitiva, admiro sólo a los aventureros de la vida. En cuanto a mí, me resigno a ser un aventurero del espíritu”. ¿Qué sucede cuando se lee la escritura de una obra poética fundada en la aventura por habitar los contrarios que surten y hacen posible la realidad, la otredad de la conciencia humana? ¿Una obra en poemas cuya escritura persigue asumir las estructuras y ritmos constantes en los que se suceden y modifican las percepciones de tal realidad u otredad? ¿En una escritura así, cuál es su posible trama o cómo se establece su contenido? En los poemas de Aldo Pellegrini se asiste y participa de la aventura vuelta escritura explorando, ya lo prohibido, ya lo inconcebible en un mundo enrarecido por las doctrinas del lugar común. Sus poemas asechan detrás de los anuncios convencionales de lo nombrado sueño y vigilia. En ellos los versos deambulan por un dibujo en constante elaboración, generando imágenes que pueden ser vistas como desde la lente de un caleidoscopio, es decir, pueden ser leídos desde cualquier orden o disposición. Son poemas que crecen como un caudal de palabras explorando y abismándose en la formulación de sus interrogantes ante la existencia exuberante, al tiempo que atroz, donde cunde lo humano. Los extensos versos de los poemas de Pellegrini, o su establecimiento rayano con la prosa, inundan la página buscando imantar la atención del lector hacia una lectura de vértigo, asombro y malestar. Un malestar producido por el sacudimiento que las imágenes de tales versos consiguen causar en las realidades condicionadas del lector. Cabe anotar que en la escritura de sus poemas el poeta emplea la puntuación como si de pronto se acordara que esta existe, casi de manera caprichosa. Lo cual en ninguno de los casos amplifica o entorpece su ritmo. Tal puntuación queda gravitando en el total de su obra poética como los fragmentos de un silencio que se resisten al olvido. Para Aldo Pellegrini la poesía es subversiva. En la escritura de sus ensayos y ante todo en la de sus poemas, acude a esta significación arrancándola de las dotes que le han impuesto quienes pretenden ajustar las realidades subversivas a actos de violencia y terror. En su escritura ser subversivo es desobedecer cuanto somete y reprime la existencia humana hasta convertirla en una entidad mutilada, en un montón de retórica útil para la usura y la pornografía social. Su postura advierte sobre como es degradada la lucidez poética cuando lo subversivo es condicionado por ideologías redentoras cuyos eslóganes amparan formas de reprimir en nombre de la inclusión y bajo una ensoñación tramada como “libertad”. Para Pellegrini la poesía es “vivir hacia lo ilimitado”. Lo ilimitado como el vacío donde se fundamenta el acto creador. Acto absolutamente imposible para quienes existen sin ver las maniobras que encubren la realidad y perforan la libido de la vida. Pensar y comportarse así no produce simpatías, hace parecer que se está fuera de lugar y contexto, que no se es poético. Empero es un reto necesario, hoy, cuando a la poesía se la quiere disfrazar de muñeca lúdica para espectáculos donde es desactivada de su poder subversivo, es decir de su capacidad de producir pensamientos y comportamientos que confronten los estigmas catárticos de la obediencia. Ante un mundo pronosticado para la usura y el oscurantismo ilustrado, y unificado al amparo de tales pronósticos, la experiencia asumida por Aldo Pellegrini en su aventura poética, le permite a un lector próximo a la poesía reflexionar sobre las realidades expuestas desde la acción poética, es decir, reflexionar sobre la realidad de la existencia misma. Omar Castillo (Colombia, 1958). Poeta, ensayista y narrador. Ha publicado libros como Garra de gorrión (1980), Relatos de Axofalas (1991), y Leyendo a don Luis de Góngora (1995). De 1984 a 1988 dirigió la revista de poesía, cuento y ensayo Otras palabras, de la que se publicaron 12 números. Desde 1985 dirige Ediciones otras palabras y, desde 1991, la revista de poesía Interregno, de la que se han publicado 20 números. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC. 106 Paulo Sposati Ortiz | Thomas Rain Crowe e os Postais do Peru 1. A OBRA DAS CULTURAS ABERTAS Eles dizem: “urwarmaki.” O que significa: “mãos de sangue.” E que mãos estão limpas, sem sangue, entre os que tomam as terras dos outros? (pg. 16, ‘Querido Nate’, “Postais do Peru”) Quem sai de casa e deixa para trás tudo com o que conviveu, logo se lançando a uma terra diferente da sua, esse homem será um eterno aventureiro. Mesmo quando retornar, não será senão, entre conhecidos, o estranho, e um sabor de Ítaca a deixá-lo, para sempre, longe de seu doce lar. De agora em diante, talvez seu olhar somente sinta familiaridade em outro tão perdido quanto, turbulento espelho d’água no qual as origens, de repente, se tocam por estranhamento, por curiosidade. Thomas Rain Crowe e seu livro “Postais do Peru”, lançado pela Sol Negro Edições em 2013, com apurada tradução de Márcio Simões, pertencem a esse lugar, por excelência utópico. Livro composto por poemas e breves cartas, apolineamente intercalados, sugere uma ondulação entre os versos, muitas vezes narrativos, e as anotações de viagem para amigos também artistas, elas, quase sempre, poéticas. Assim, o lugar debaixo de nossos pés muda de lugar. E o hibridismo não para aí: não contente em questionar o gênero em literatura, nosso autor avança nessa empreitada, fazendo a língua, aos poucos, em frangalhos, na qual torna palpáveis aqueles relatos, pois mescla a sua àquela língua nativa, num jogo pueril, a princípio, mais complexo a cada página folheada. Uma pequena amostra disso, extraída apenas dos poemas, está na compilação a seguir: “An aurora borealis du Sud/ as we split distance”; “Red of cochinilla worm”; “I’m drinking chicha in the Cesar Vallejo Bar” e “on the chicheria wall”; “would be to grace the chicha with his name”; “In Spanish we have the spression ‘Yo no sé!’”/ In Quechua means ‘Imach Kampas!’; “Go slowly, slowly.../ Vámonos!”; “The big blue label on every bottle of water in Peru says: sin gas”; “and gallons of sin gas”; “CURANDERO”; “the mestizo medicine man prepare a low altar”; “fetus of llama, starfish, colored fleece, corn, wayuro seeds, algae, magnetic rock, sugar, kaniwa”; “Place on alpaca cloth”;“Papas, llama fat and silver stars”; “like/ a puma / prowls near/ Intihuatana/ in clouds”; “where alpaca graze/ beneath/ Torreón door”; “The town the Quechua call Ollantaytambo”; “Somewhere that was now here when native people danced for days drinking chicha along this figures of animals and”; “Very poor. Barrios: cities of shrapnel”; “our soles for Inca Kola and chirimoya shaded by umbrellas from the noonday sun”; “a mestizo medicine man/ had told me that in Chinchero”; “With the curandero’s words still in my ears,/ I put down my axe”. Repare que Crowe transtorna, com termos e expressões em espanhol, o fluxo da língua inglesa, confundindo a construção frasal com inserções, até sintáticas, desde a mera citação à inclusão selvagem de outro território em seu registro, e, distraído, recolhendo, da paisagem por que passa, objetos simbólicos deste lugar que não lhe pertence. No instante em que tais brincadeiras, bastante perigosas, se armam, o poeta remetente parece se transmutar no relatado, numa sutil vivacidade que exige de seus leitores uma cumplicidade de turistas literários, ou melhor, literalmente turistas no reino do símbolo, obrigados, cada vez mais, a se virar com o mínimo de familiaridade que lhe resta no subconsciente oral da linguagem. 107 O que deveria ser uma simples resenha ganha ares de pretensioso ensaio, sendo a questão por ele pressuposta maior que um simples relato. Voltemos um pouco no tempo, a fim de vislumbrarmos, de ombro a ombro, de que lugar, longe dos lugares familiares, vem esta proposta da palavra, alguns poderiam dizer, helenística. 2. CRIOULO É A RAIZ DA LIBERDADE Prossegui até a cidade de Sevilha e encontrei três navios preparados para uma viagem ao Rio da Prata, uma terra nas Américas. Essa região, o rico Peru, que tinha sido descoberto alguns anos antes, junto com o Brasil, formavam um só continente. (pg. 43, ‘Capítulo 5, Primeira Parte’, “Hans Staden”) O hoje conhecido spanglish, dialeto usado entre falantes de países latino-americanos residentes nos Estados Unidos, tem como vovô o pidgin, sistema linguístico rudimentar baseado na língua do colonizador, da Era das Grandes Navegações. Se desejarmos ser mais ousados, o Período Helênico seria o ancestral comum entre ambos, no qual a fusão de culturas distintas foi a forma encontrada para a manutenção de territórios conquistados. Porém, nossa embarcação não irá tão longe, capturada pelos descobrimentos portugueses. Quando os comerciantes quiseram fazer suas transações nas novas plagas aportadas, se viram perdidos entre dois códigos e nenhuma moeda de troca oral, além de mímicas e prováveis tradutores repentinos; então, a zona fronteiriça entra em ação, a gestar acordos de comunicação econômica, abreviadas pela urgência, pelo desejo de ser entendido, mesmo que no gelatinoso desentendimento geral. Línguas, ao trocarem suas peças de lugar, questionam a hierarquia, até quando a diglossia subjacente ainda pretende afirmar uma distância politicamente correta. Já era: quando nos confundimos com alguém, ainda mais a partir da língua, o plano da sedução instaura outro reino, sempre contrário aos desafetos. Mais ainda: a forma econômica da linguagem nesta barganha que os fatos nos impõem tem um fundo, por excelência, poético, de condensação criativa, nascida de um olhar em deslocamento. Seria essa a razão para Rimbaud, nos primórdios da literatura moderna & absoluta, inserir termos em alemão, em inglês, para o completo ódio dos franceses? No “Iluminations (Painted Plates)”, título já na língua de Crowe, há este desfile selvagem: ‘Being Beauteous’, “squares”, “wasserfall”, “confort”, “inquestionable” (criado por analogia à “unquestionable”, segundo Rodrigo Garcia Lopes), ‘Fairy’, “brick”, “embankments”, “pier”, ‘Bottom’, “strom”, “stock” e “spunk” até nos depararmos com “Voici le temps des Assassins” quando todos os sentidos são distorcidos, pois a origem árabe do vocábulo “Assassinos” tem a conotação de “fumadores de haxixe”, os “hashashin” (segundo interpretação de Claudio Willer). Se na lógica de Rimbaud o outro é eu, Thomas Rain Crowe toma partido de um spanglish às avessas, o inglañol, como cunhou Salvador Tió, linguista e humorista porto-riquenho, politizando poeticamente sua viagem, os relatos feitos a amigos e versos surgidos depois de sua temporada no Peru. Leiam, no poema a seguir, demonstrações do que foi afirmado: THE GUIDE O GUIA for David Machicao Oliveira para David Machicao Oliveira We are today in Ollantaytambo. 108 Hoje estamos en Ollantaytambo. In this place was one Inca ruler. Aqui tinha um soberano inca. Whats happen? O que houve? I an going to tell you. Voy contar a você. Here, there are many walls. Aqui, tinha muchos muros, For szample… we are going to see Por ejemplo… veremos many big rocks. How they are made? muchas piedras grandes. Como foram feitas? No one can splain this. No one knows. Ninguém puede explicar. Ninguém lo sabe. These are not the same “muddy bricks” Não são los mismos “tijolos de barro” that are built the houses. No. que se utilizan em las casas. Não. These are especial rocks brought here São piedras especiales trazidas aqui from five or six kilometers away. de más de cinco ou seis quilômetros de distância. How these big rocks get here? Como essas piedras grandes llegaron aqui? No one knows… Ninguém lo sabe. In Spanish we have the spression “Yo no sé” Em español decimos “Yo no sé” In Quechua means “Imach Kanpas!” Em quécua se dice “Imach Kanpas!” No one knows… Ninguém lo sabe... What are know, is Lo que se sabe, é that the womens are never sleeping in this place. que las mujeres nunca dormían aqui. Only men, priests are living here. Só los hombres, padres vivían aqui. But you will see ˗̶ where this man sleepedd, Mas verás ˗̶ donde dormían los hombres, there was no bed. Não había cama. When I was a children, I Quando era niño, eu went to my grandmother’s farn. ia a lo sítio de minha abuela. And there, I was not sleeping on a bed. E ahí, eu não dormia em la cama. This is tradition, here. É costume, aqui. Sonetimes there are beds, 109 Às veces hay camas, and sonetimes not. às veces não. Tomorrow, we can go to Cusco. Amaña, vamos a Cuzco In Cusco, there is this place: Sacsayhuaman. Em Cuzco, tiene este lugar: Sacsayhuaman. Some ’mericans call “sexy woman.” Alguns americanos llaman “mujer sexy.” Some rocks there, even bigger. Hay piedras lá, incluso más grandes. You will see. We are going to go there. Ya lo verás. Vamos lá. Is twelve thousand feet. É cuatro mil metros. No problem. Não hay problema. Is easy. É muy fácil. Today, we are climbing stairs. Hoje, subindo escadas Go slowly, slowly… Lento, lento... Vámonos! Vámonos! 3. AH! COMO NOS SENTIMOS MAL NA MINHA PELE! Nosso guia nos disse, hoje, que o verdadeiro nome do idioma andino é: “juna simi.” Significa “saído da boca do homem.”. (pg. 16, ‘Querido Nate’, “Postais do Peru”) Seguindo a radical tradição rimbaudiana, nosso autor deságua na crioulização da literatura atual, em refinada conversa com o Henri Michaux de “Ecuador” (1929), exemplo a ser ampliado num dos tópicos à frente. E o que seria isso, crioulizacón lapsus litteris? O instante em que o eu-lírico decide abandonar os limites do próprio corpo e desafiar a improvável travessia pelo Outro completamente diferente, possível apenas na poética da possessão, distinta daquela que observa e reproduz uma cópia infiel. Sabemos: o fundamento de qualquer representação é a imitação; se arte é fingir, com a maior eficiência, que a realidade apresentada não é ficção, o princípio racional da arte é a mentira, e a imitação é o instrumento mais perspicaz para confundir o receptor daquilo que se mostra. Porém, a arte nunca será veículo de realidade, se não comungarmos, com ela, a mesma mentira, fundidos na mesma crença, encantados pelo objeto, por que não, de adoração. Na entrevista dada a Floriano Martins, Thomas Rain Crowe discorre sobre a importância que o sagrado ganhou ao longo dos anos (http://www.revista.agulha.nom.br/ag53crowe.htm): FM Lamantia observa que no Surrealismo tudo começa com o sagrado, com a premissa de que poeta individualmente procura o velocino de ouro em si mesmo. O que procura Thomas? 110 TRC Eu penso que teria que concordar, amplamente, com ponto de vista de Lamantia, aqui. Eu não comecei como poeta pensando que tudo começava com o sagrado, mas com o decorrer do tempo eu passei a acreditar que, no fim, é o que é o mais importante. Que a poesia é parte de um ato sagrado, e tem implicações sagradas. Eu diria que, embora eu ame escrever poesia pelo puro prazer do ato, ao se levar em consideração o resultado, eu esperaria que meus poemas contivessem, aos olhos de meus leitores, algo de sagrado. E, sim, está tudo em torno da busca pelo “velocino” de ouro dentro de mim mesmo. Já que a verdadeira busca do poeta é encontrar a si mesmo ou a si mesma e encontrar o “ouro” (num sentido metafísico) na natureza de uma pessoa – para penetrar nesse veio e minerálo (escrever) em benefício de todos, não apenas para si mesmos. Nesse estágio, a imitação não é apenas um instrumento adulto, leia-se domesticado, de representar realidades, mas possessão, como nas crianças, ao serem atravessadas pelo encantamento, quando não necessidade de se comunicar numa língua ainda desconhecida para elas, e suas mãos e seus rostos são papel em branco no qual se apresenta o sensível. Por isso, a primeira forma de reprodução foi nomeada de infiel, quando a finalidade é o que importa; no segundo caso, o meio é soberano, e todos nós seremos possuídos se experimentarmos, com ele, a impossível, mas provável, travessia real. Se houvesse espaço e fosse lugar para isso, poderíamos dissertar sobre a diferença entre o teatro brechtiano e o artaudiano quanto a essa questão, exemplares das duas vertentes citadas, mas precisamos seguir em frente, voltando, novamente, alguns séculos. Michel de Montaigne surpreende, em pleno século XVI, com sua visão do paraíso selvagem, em “Sobre os Canibais”, a Europa, acostumada, desde a Grécia Antiga, a retirar a alma de tudo o que lhe fosse estranho, dos negros às mulheres, escravos da concepção fundada na imagem e semelhança daquele que observa. Os bárbaros são, segundo o ensaísta francês, humanos como nós, e todos cruéis à sua maneira, diferente noutra chave àquela de Rousseau, cristã demais para um verdadeiro atravessador. A antropofagia manifesta por Oswald propõe que a História seja feita por esses bárbaros, deglutindo a cultura estrangeira para a nossa própria interpretação, que o enredo de Hans Staden fosse levado às últimas consequências; houve instigante espetáculo, “Regurgitofagia” (Michel Melamed, 2004), numa tentativa de rever esta teoria hoje, saturada de informações e, quem sabe, estranha à dialética da colonização. Creio na aparição de um bem-aventurado, aquele cuja sina é a de parodiar a linha evolutiva da História da Arte a partir do Paganismo literário, visão esta paralela à do cânone, num ideal romântico da singularidade, mas também verdadeiros criadores de problemas para o centro de domínio. Esses, sim, conhecedores da periferia da alma, não aquela geográfica e desculpinha para mantermos o velho jogo hierárquico entre vítimas e algozes. O Paganismo literário é, antes de tudo, libertação. 4. MINÚCIAS QUANTO À DESAPARIÇÃO Com isso em mente, e inconscientemente, que seja feita a recepção, à porta de “Postais do Peru” de Thomas Rain Crowe, em forma da, até agora, prorrogada resenha. 4.1 Para um povo que não tinha linguagem escrita, o inca moderno é certamente apaixonado pela leitura! (pg. 11, ‘Querido John’) O livro começa por um poema e termina por outro, emoldurando os demais, e deles separados. Entre eles, os cartões-postais são coligidos, logo em seguida complementados por um poema. E aquele primeiro, ‘As Luzes do Sul’, anuncia a ida para o Peru e o que reserva a 111 travessia de avião, visão de cores de um “vão de arco-íris” também presente no “traçado dos tecidos quéchuas”. Em ‘Querido John’, parte da perspectiva literária (livrarias, nome de escolas, poemas de Che escritos lá, pichações e escritor candidato à presidência) para fazer uma análise da capital do país e como a vida, flechada pela escrita, implica outra dimensão política. O nome do bar, em ‘Tomando Chicha...’, amplia a investigação da importância da literatura e a fama dos escritores, no caso, o do poeta peruano Cesar Vallejo. Ao vermos as primeiras linhas de ‘Querido Nate’, adentramos, com Crowe, no universo histórico daquele país, e já percebemos como ele inverte os papéis, um norte-americano criticando seu país de origem ao tomar partido dos seus queridos estranhos, “os descendentes dos incas”, e o quanto o seu destinatário, também escritor e ativista, também é uma voz singular, com “sua decisão de ficar do lado dos povos indígenas”. Em ‘O Guia’ (já inserido aqui, ao final do Tópico 2), sua voz se une à personagem do título da breve carta, a misturar uma língua com a outra, transferindo para a linguagem aquela perspectiva política libertária, de fundo poético. 4.2 Assim, suas vidas tornaram-se a ironia esquizofrênica de ter que andar, simultaneamente, em dois mundos. (pg. 20, ‘Querido Bobi’) A religiosidade é o tema de ‘Querido Bobi’, o predomínio de igrejas católicas, monopólio da invasão espanhola, em detrimento da cultura inca, e a luz em Cusco, “irmã mais escura” da “italiana da Toscana”, “luz calvinista”; a “erosão de suas crenças espirituais indígenas” não se faz completa, pois “o conceito de ‘graça comum’ não se perdeu entre essas pessoas”, de “católicos pagãos, alheios à dor”. ‘Sin Gas’ disserta, feito crônica, sobre as águas engarrafadas, “um remédio católico”, “elixir hispânico” e a purificação pela qual foi obrigado a passar. Está em Machu Picchu, a “pequena cidade inca”, em ‘Querido Michael’ e fala das pedras sagradas e do calor que delas emana, segredo para a sua construção. Já ‘Curandero’ relata “o médico mestizo” e a oferenda feita “aos deuses do calor” por ele. 4.3 Um lugar para viver. Para se deslocar, lentamente. Para ser. (pg. 27, ‘Querido Ken’) ‘Querido Ken’ é para falar das montanhas do Peru, Huayana Picchu, e sua magia, como nas pinturas de Marc Chagall. ‘Machu Picchu’, precisa descrição do local, com a pena da imaginação, e um dos poemas mais bonitos. Em ‘Querido Joseph’, Crowe foca as “trilhas incas” para “os templos elevados”, “nas colinas das cordilheiras e picos montanhosos”, e como “os quéchuas deixaram seu legado na pedra. Blocos esculpidos em proporção sagrada”, até o Ocidente o invadir e o Sendero Luminoso piorar mais ainda. ‘Um Caminho Iluminado’ é o primeiro acróstico do livro, feito com o termo Sendero Luminoso. ‘Querido Jeff’, carta mais longa, estabelece uma ligação entre “os povos andinos” e “os Kwakiutl”, com quem o destinatário viveu “como aprendiz de fabricante de máscaras e entalhador” ̶ nos informa o ‘Apêndice’ ao final do livro ̶ , e o desejo por um futuro primitivo; também, “os antigos costumes dos quéchuas”, com suas plantas em Urubamba (gengibre, ají/pimenta vermelha, moonya/hortelã selvagem, cogumelos selvagens, buganvílias, bromélias, eucaliptos, bambuzais, rododendros) e tecelagem em Chinchero, com uma cor vermelha extraída da cochinilla no cacto palma, “sangue inca derramado nas mãos dos espanhóis”. Segundo acróstico, ‘Ollantaytambo’ é sobre a cidade inca. 112 Em ‘Querida Barbara Ann’, se detém nos inúmeros animais da região (alpaca, lhama, vicunha, puma, condor) e a força mítica deles. ‘Os Pássaros de Paracas’ prossegue na coletânea de bichos, tópica cena de guia turístico se gabando das riquezas de sua região, a nomeada península. ‘Querido Will’ avança mais um pouco ao arrolar as espécies, agora das Ilhas Balestas, também falando de ‘A Praia Berçário’ (analisado no Tópico 5), próximo poema, no qual descreve a relação entre mães e filhotes de leões-marinhos, com o ápice na belíssima conversa que as focas, mãe e filho, travam, em afetuosas glossolalias. 4.4 Onde as linhas se encontram. Onde a noção de Eu se torna Nós. (pg. 48, ‘Querido Chandler’) Em ‘Querido Chandler’, relata as ‘Linhas de Nazca’, também, em seguida, poema e terceiro acróstico, linhas estas que são “caricaturas estilizadas de animais encontrados, curiosamente, nas selvas peruanas” e a aventura dentro um avião monomotor. Última carta do livro, ‘Querido Jack’ volta a uma leitura simbólica, mas irônica, das palavras, seja o nome do café ou do parque e as notícias que correm nos jornais no dia em que retorna aos Estados Unidos, enquanto suas últimas horas no Parque del Amor, ao lado de sua esposa, seja uma forma de voltar ao café onde se conheceram e se apaixonaram por meio do gosto literário de ambos, e assim tentando reverter simbolicamente a guerra que se iniciaria do outro lado do mundo. Em ‘Pobreza’, quarto e último acróstico, Crowe descreve o aglomerado de corrupção e subserviência que existe nas estradas peruanas, para fechar o livro com ‘Morchellas’, poema de “volta ao lar”, torna a religar a sua Carolina do Norte com Cuzco e obedece ao “curandeiro mestizo” ao sentenciar “quando os beija-flores chegam/ é dia de sair e procurar morchellas”. Mas você só saberá se ele o encontra lendo o tocante “Postais do Peru”. 5. PLANETAS SE ENCONTRAM EM EXPLOSÃO Seu amor à linguagem guiando-o mais profundamente na luta. (pg. 15, ‘Querido Nate’) “Saúdo-te apesar de tudo, país maldito do Equador” (‘Chegada a Quito’, como as demais), assim se apresenta ao novo lugar Henri Michaux, em “Ecuador”, no relato de viagem poético que recolhe. Diferente de Thomas Rain Crowe, o autor francês parte para a porrada, enquanto o norte-americano é doce em sua percepção. “Mas és deveras selvagem”, e Michaux concorda com Montaigne, selvagem também, e se indaga “Por que me bates com tanta força, ó meu coração?”, pois o primeiro estranho familiar com o qual topamos é o inconsciente, o outro em nós. Crowe, quando desce no Peru, desenvolve sua ligação a partir da escrita, e nela se vê, parte ideal do que nem ao menos em seu país de origem ocorre, ou seja, o país andino é seu lado inocente. “A primeira impressão é terrível e raia o desespero” (‘La Cordillera de los Andes’, e as demais), declara o escritor francês, diante da singularidade geográfica, ao passo que o outro se deslumbra, como a cena dos “papagaios verdes luminosos”, que nunca viu “tal revoada incandescente de aves, nem mesmo em meus sonhos (‘Querido Michael’). Mas quando Michaux brinca que “Quem não gosta de nuvens,/ que não venha ao Equador./ São os cães fiéis da montanha”, Crowe prossegue, “As nuvens cobrem Huayna Picchu como uma mortalha ̶ então são suspensas, como a capa de um mágico” (‘Querido Ken’). Tudo bem, os dois viram paisagens parecidas em locais próximos; mas estariam eles literalmente em conversa? “A altitude do local é de 3.000 metros, dizem/ É perigosa, dizem, para o coração, 113 para o estômago, para a respiração/ E para o corpo inteiro do estrangeiro”, até poderia estar em “Postais do Peru”, embora pertença a “Ecuador”. Sãos dois olhares distintos, porém se cruzam no estranhamento, na curiosidade, pois “Para entrar nesta cidade tivemos primeiro de pagar o tributo do rosto” (‘Miragem de uma Cidade Índia’); carregam a poética da possessão, com a sutil ressalva: entrega irrestrita, banhada posteriormente por uma desconfiança maior ainda. Enquanto um passa mal e crê que isso lhe ajude na purificação, o outro deseja o ódio, existente apenas nas grandes cidades. E então chegamos a ‘Nasci Esburacado’, do Henri Michaux deste “Ecuador”, através do qual carregarei ‘A Praia Berçário’, do Thomas Rain Crowe de nosso “Postais do Peru”, a fim de que demos por finda esta mentirosa resenha, com cara de ensaio infinito, mas apenas tentativa de literatura comparada. O autor francês dá o pontapé inicial com “Sopra um vento terrível./ É apenas um pequeno buraco no meu peito”, como se estivesse morto; teria sido baleado? A morte que o atravessa diz mais sobre a surpresa com que se depara, a de outra forma de existência, ao mesmo tempo em que define o limite europeu que lhe dita as regras culturais. Em Crowe, são “Centenas de leões-marinhos e filhotes recém-nascidos”, ou seja, o “Sinfônico som de canto/ mais alto que/ as ondas agitadas do oceano contra a rocha” é o da vida que se anuncia, não menos terrível que o sopro descrito naquele autor; note que o mar tem “ondas agitadas”, também um sopro caracteriza a cena, sopros os quais se tocam, ambivalentes bakhtinianos. “Tu não és para mim, pequena cidade de Quito”, quando Michaux se descobre irredutível estrangeiro nela, não comungando com sua falta de inveja; não haveria semelhante mal-estar no condutor, ao notar “uma fêmea solitária e seu filhote”, a “assistir/ como a foca mais velha ensina a mais nova/ a nadar”? Porque haverá sofrimento neste aprendizado, feito de solidão e independência, como descrito por Crowe. “Ah! Como nos sentimos mal na minha pele!”, e o escritor francês, referindo-se ao Rimbaud do outro eu, sugere a poética da possessão, mais ainda, como se houvesse outro ser a nascer de si, mas sem sair, duas almas numa só, o que o autor norte-americano aprofunda com a espécie de glossolalia animal entre o bebê foca e sua mãe, onomatopéias do afeto, como o seriam a audição da língua indígena e tudo aquilo impossível a nós, decifradores compulsivos. Michaux tenta explicar, “É à esquerda, mas não digo que seja coração./ Digo buraco, não digo mais, é a raiva e eu nada posso./ Tenho sete ou oito sentidos. Um deles o da falta./ Toco-o e tacteio-o como se tacteia madeira”. Eis o estrangeiro que se torna ao deixarmos o familiar em casa, rumo ao desconhecido que, desde sempre, nos habita, mas o afastamos, com trejeitos civilizatórios; afastamos o bárbaro com redobrada barbárie, a da língua possível, sem faltas, lacunas ou espaços, os do deslocamento. “Construí-me sobre uma coluna ausente”, e “O meu vazio é um grande devorador, grande esmagador, grande aniquilador./ O meu vazio é algodão e silêncio./ Silêncio que tudo detém./ Um silêncio de estrelas”, com o qual devemos arrematar, para inglês ver, Crowe sugerindo as palavras invisíveis dos animais que deveríamos ter a coragem de ser: “The baby’s eeaarrppp! A kind of begging/ to let it climb up on the mother’s back/ But the mother dives, again, out of sight/ after a coaxing aarrpff./ The pup calls out a ‘come back,’/ as it chokes on water from the choppy waves./ Eeaar... ggcc... rrppp!/ The mother: aarrpff.../ The pup: eeaarr... ggugcc... rppp!/ The mother: aarrpff.../ The pup: eeaarrrppp!/ As we pull away, turning east,/ and head for land.” Paulo Sposati Ortiz (Brasil, 1982) é autor do livro de poemas A diferença do fogo, formou-se em Letras/Linguística pela USP. Foi coordenador de grupos de leitura e produção de poesia (Poenocine, 2008, e Facas na manga, 2011) e participou do Programa VAI da Prefeitura duas vezes (“Do sarau às oficinas, das oficinas aos sararaus”, 2009; “Sarau: humildade, paixão e poesia”, 2012). Deu a oficina A poesia brasileira hoje em CCSP (2011), sendo também assistente de Claudio Willer na oficina A criação poética (2012), debatedor de ensaios do 114 Teatro do Incêndio na peça São Paulo surrealista: a poesia feita espuma (2012), assistente de som dos programas de entrevista Tea for two (2012-2013) com Natália Barros e Zootropo (2013) com Rafael Spaca, câmera de Encontros com autores com Mona Dorf (2013). Escreve nos blogs C.I:P.A. (Centro Internacional: Poesia Amanhã) (coletivo) e A diferença do fogo (pessoal), e publica ensaios e poemas em Cronópios, Mallarmargens, dEsEnrEdoS (virtuais), Grito Cultural e Polichinello (impressos). Além de ter feito parte da 41ª e 54ª edições como convidado, foi curador em 2013 das Quintas Poéticas da Editora Escrituras. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 115 RICARDO MATTOS | Poesia e pederastia: o Mário de Andrade de Roberto Piva Mário de Andrade é o poeta pederasta – quando encarnado na vida poética de Roberto Piva. Lá está ele no Largo do Arouche paquerando colegiais que saem das escolas; ou nas lassidões do Cambuci delirando na Alameda dos Beijos da Aventura. Na imaginação excitada de Roberto Piva, ambos poetas transam adolescentes numa bacanal no Parque do Ibirapuera e saem de mãos dadas noite afora. Juntos na poesia, juntos na orgia, juntos na pederastia. É uma relação erótica com o autor de Girassol da Madrugada. Uma relação escandalosa. No início dos anos ‘60 era comum uma retomada da fase heroica do modernismo. A verve de Paulicéia Desvairada pulula aqui e ali, numa vivência da cidade cravada em seus locais mais conhecidos. No entanto, ninguém ousava tocar nessa faceta homoerótica da poesia de Mário de Andrade – muito menos da maneira visceral como faz Roberto Piva. Daí o estarrecimento. Há dois motivos para o espanto. Por um lado, como aponta Eliane Robert de Moraes[1], a tradição literária brasileira dava pouca vazão à expressão do erotismo tão presente nas conversas populares – o que vai ocorrer especialmente a partir dos modernistas de 22. Por outro lado, a questão da sexualidade em Mário de Andrade é uma polêmica. A mesma Eliane Moraes observa o conflito moral que fez o autor de Macunaíma retirar alguns trechos pornográficos na reedição do livro. Assim, apenas muito atualmente se fala na sexualidade do poeta, pairando aí um clima proibitivo que certamente era ainda mais forte no início dos anos ‘60. Daí o escândalo do poeta pederasta tal como aparece em Roberto Piva. Essa retomada enfrenta a repressão sexual de toda uma cultura justamente em um dos maiores autores nacionais. Dessa forma, Piva consegue levar adiante a incorporação literária da sacanagem popular, iniciada com os primeiros modernistas, com a ousadia que lhe é peculiar. É desta retomada homoerótica da poesia de Mário de Andrade que irei tratar. Para tanto, centrarei fogo nas primeiras publicações de Roberto Piva, nomeadamente os poemas San Paulo’s Improvisation (1961), Ode a Fernando Pessoa (1961) e No Parque Ibirapuera (1963). A estreia de Roberto Piva nas letras se dá na famosa Antologia dos Novíssimos (1961). Já neste momento se estabelece interessante diálogo com Mário de Andrade. Vejamos o trecho inicial do último poema: SAN PAULO’S IMPROVISATION “Ruas do meu São Paulo, A culpa do insofrido, Onde está?” MARIO DE ANDRADE De um bar qualquer Do Largo do Arouche assisto São Paulo passar dentro de mim Imerso na paisagem cinza-úmida pela “água-benta das garoas monótonas” como disse Mário de Andrade. Do bar recorto no asfalto umedecido o olhar dos pederastas mariscando colegiais farfalhantes nas esquinas[2]. […] 116 A cidade atravessa o poeta imerso em sua “paisagem cinza-úmida”. Um cinza que opera desde dentro, com a moral da “água-benta das garoas monótonas”. São características da poesia de Mário de Andrade que Roberto Piva incorpora: a toponímia do Largo do Arouche, a fusão entre poeta e cidade, e a crítica aos costumes conservadores. O poeta modernista empresta ainda os versos da epígrafe, onde se pergunta: onde está o “amor vivo”, o “amigo”, a “culpa do insofrido”, nas ruas de São Paulo? [3] Essa busca do “amor vivo” colide com as convenções da cidade. É exatamente em Tristura, poema de Paulicéia Desvairada, que Mário de Andrade descreve o matrimônio do poeta com a cidade: a “água-benta” pode ser lida como símbolo de sua moral conservadora, tão repetitiva quando a garoa que representa São Paulo. Se o poeta busca um amor vivo, a cidade só lhe oferece a relação contratual do casamento – o amor encarcerado na moral patriarcal. Como filha, poeta e cidade tem a “Solitude das Plebes” – uma pobre monja com os cabelos cortados – aqui mais uma imagem de castração à sensualidade. A filha monja é mencionada ainda no poema A Caçada, em que o poeta se queixa do vento gelado da cidade que repeli “os poetas, os moços e os loucos”, reduzindo a vivência arlequinal da poesia a um ideal ilusório. Aí surge uma caçada, numa “deliciosa mania” do companheiro modernista: “- Abade Liszt da minha filha monja, / Na Cadilac mansa e glauca da ilusão, / passa o Oswald de Andrade / mariscando gênios entre a multidão!…” [4]. O músico abade, representando essa aliança da arte com a moral cristã, é contraposto ao companheiro modernista. É esse último verso que aparece parafraseado no poema de Roberto Piva. Talvez Oswald mariscasse “gênios” para uma renovação da arte nacional, encharcada pela água-benta. Mas em Piva, são pederastas paquerando colegiais. A renovação viria não pela genialidade, mas por um erotismo transgressor. Roberto Piva vê aí outra mania deliciosa. De quem seria? Mário de Andrade, em seu Prefácio Interessantíssimo, utiliza a seguinte imagem para abordar a desordem da lírica e seus influxos do inconsciente: Existe a ordem dos colegiais infantes que saem das escolas de mãos dadas, dois a dois. Existe uma ordem nos estudantes das escolas superiores que descem uma escada de quatro em quatro degraus, chocando-se lindamente. Existe uma ordem, inda mais alta, na fúria desencadeada dos elementos [5] Seria exagerado dizer que Piva mescla ambas passagens de Paulicéia Desvairada, numa junção do verso sobre Oswald mariscando gênios com a passagem de Mário observando colegiais saindo de mãos dadas? No poema de Roberto Piva, estaria Mário de Andrade entre os pederastas mariscando colegiais? “Colegiais infantes” aqui, “colegiais farfalhantes” acolá – ambos os poetas parecem tê-los observado bem. A imagem de Mário de Andrade os coloca de mãos dadas, num clima ao mesmo tempo ingênuo e malicioso. Já Piva ambienta a cena no Largo do Arouche, local conhecido pela frequentação de pederastas. No ano de publicação de Paulicéia Desvairada corria o boato sobre a “pederastia” de Mário de Andrade – como ele mesmo admitiu saber, em carta a Sergio Milliet. Se ainda hoje causam escândalo essas manias deliciosas de nosso venerando modernista, o que dizer do clima de 1960? Certamente as cartas de Mário de Andrade ainda não eram de conhecimento público; e Roberto Piva era tido por maluco – muito embora tenha antecipado em muitos anos a recente especulação em torno da biografia de Mário de Andrade. Sexo e drogas no Cambuci À luz do dia a cidade bate na cadência repetitiva de suas fábricas; na monotonia moral da burguesia; no metro beletrista de seus poetas. São as sempiternas mesmices convencionais, como pondera Mário de Andrade. A luz do dia e suas capturas pelo trabalho, escola e família. É a cidade sem asas, sem poesia, sem alegria. 117 Em Ode a Fernando Pessoa (1961), Roberto Piva utiliza a mesma expressão das “sempiternas mesmices” e atualiza a crítica do modernista à cidade. São Paulo surge como o “convento do Brasil” e seu orgulho pela modernização crescente é ridicularizado: “Ó maior parque industrial do Brasil, quando limparei minha bunda em ti?” [6]. Com tom ora satírico, ora cáustico, Roberto Piva rechaça as reconhecidas instituições de ensino (Faculdade de Direito do Largo São Francisco), as igrejas, o governo e até resistência dos comunistas. Mas a madrugada oferece outras luzes, como aquelas do poema Noturno, de Paulicéia Desvairada. Ali a cidade ganha asas: […] Luzes do Cambuci pelas noites de crime… Calor!… E as nuvens baixas muito grossas, feitas de corpos de mariposas, Rumorejando na epiderme das árvores… Gingam os bondes como um fogo de artifício, Sapateando nos trilhos, Cuspindo um orifício na treva cor de cal… Num perfume de heliotrópios e de poças Gira uma flor-do-mal… Veio do Turquestan; E traz olheiras que escurecem almas… Fundiu esterlinas entre as unhas roxas Nos oscilantes de Ribeirão Preto… – Batat’assat’ô furnn!… […] Calor!… Os diabos andam no ar Corpos de nuas carregando… As lassitudes dos sempres imprevistos! E as almas acordando às mãos dos enlaçados! Idílios sob os plátanos!… E o ciume universal às fanfarras gloriosas De sáias cor de rosa e gravatas cor de rosa!… Balcões a cautela latejante, onde florem Iracemas para os encontros dos guerreiros brancos… Brancos? E que os cães latam nos jardins! Ninguem, ninguem, ninguem se importa! Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura! Mas eu… Estas minhas grades em girândolas de jasmins, Enquanto as travessas do Cambuci nos livres Da liberdade dos lábios entreabertos!… Arlequinal! Arlequinal! As nuvens baixas muito grossas, Feitas de corpos de mariposas, Rumorejando na epiderme das árvores… Mas sobre estas minhas grades em girândolas de jasmins, O estelário delira em carnagens de luz, E meu céu é todo um rojão de lagrimas!… [7] […] 118 O poeta transpassado pelas sensações se multiplica nos versos simultâneos encharcados de cores, cheiros e visões. O clima é inebriante e o teor é altamente sexual. Um mulato cantarolando aqui, corpos de putas acolá e diabos numa fanfarra que inclui todos os sexos e relações (“saias cor de rosa e gravatas cor de rosa!”). Todos embarcam nessa orgia, mas o poeta tem aí uma sensação ambígua de prazer e tristeza: a liberdade sexual do lugar contrasta com as grades que o aprisionam. Diante dos delírios carnais o poeta experimenta a tristeza das lágrimas. É nessa teia de contradições que a sexualidade em Mário de Andrade fica explícita: o gozo ao lado do interdito. É um conflito sexual que não encontra correspondência em Roberto Piva. Na Ode a Fernando Pessoa, Piva retoma esse Mário de Andrade de Noturno. O poeta caminha com Álvaro de Campos e os tenebrosos vagabundos de São Paulo numa vida radicalmente subversiva. Bebedeiras, assaltos, violações e orgias. A loucura sensacionista de experimentar tudo ao mesmo tempo agora. Caminham pelos becos e encruzilhadas do lado obscuro da cidade, recheado de putas e adolescentes que abandonaram o sono das famílias. É nesse contexto que Roberto Piva se dirige a Álvaro de Campos: “veremos os bondes gingando nos trilhos da Avenida, assaltaremos o Fasano, iremos ver ‘as luzes do Cambuci pelas noites de crime’, onde está a menina-moça violada por nós num dia de Chuva e Tédio, Não te levarei ao Paissandu para não acordarmos o sexo de Mário de Andrade (aí de nós se ele desperta!)” [8]. Se Piva retoma o tema da sexualidade presente em Mário de Andrade, o faz por via da plena realização – sem grilhões e sem remorsos. Frequenta os mesmos inferninhos da cidade, mas adiciona à sua vagabundagem um tom violento e mesmo criminoso. Se Mário de Andrade mostra certa frustração e pudor, Roberto Piva é só furor: viola a menina-moça. O poeta paranoico carrega em si toda o vigor dos piratas da Ode Marítima de Campos: “Ah, ser tudo nos crimes! Ser todos os elementos componentes dos assaltos aos barcos e das chacinas e das violações! […] Ser no meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres que foram violadas, mortas, feridas, rasgadas plos piratas!” [9] O entrelaçamento dos modernismos português e brasileiro via erotismo fica claro na seguinte imagem: Álvaro de Campos andaria “de mãos dadas com Mário de Andrade no Largo do Arouche” [10] Na Ode, Roberto Piva novamente fala do sexo de Mário de Andrade, agora num tom provocativo: “(aí de nós se ele desperta!)”. Remete aos verso do autor de Lira Paulistana nos quais dizia que, quando morrer, “No Paissandu deixem meu sexo” [11]. Mas tudo o que Roberto Piva faz é acordar o sexo de Mário de Andrade. E não só o sexo. É um Mário de Andrade em meio a pederastas e maconheiros! No poema de abertura de Paranóia (1963), Roberto Piva tem a seguinte visão: “na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lótus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas” [12]. É no mínimo inusitado: Mário de Andrade em posição meditativa, recebendo uma iluminação num comboio de maconha! O contraste da santidade do lótus com a criminalidade do tráfico. E tudo em torno de Mário de Andrade! A princípio se pode pensar em exagero, impertinência ou mero absurdo – e quantos críticos não caem nesse lugar-comum? Mas, vejamos de novo os seguintes versos de Mário de Andrade no poema Noturno: “Num perfume de heliotrópios e de poças / Gira uma flor-do-mal… Veio do Turquestan; / E traz olheiras que escurecem almas…”. Heliotrópios, flor-do-mal, Tusquestan?! Mário de Andrade delira tanto quanto Roberto Piva! Mas ambos com muita lucidez. Senão, vejamos. Desde as famosas viagens de Marco Polo, a região do Turquestão é associada à origem da utilização do cânhamo (cannabis). O autor de Flores do Mal, Charles Baudelaire, inicia seu Paraísos Artificiais exatamente com menção a Marco Polo, discutindo a utilização do cânhamo nesta região russa na qual camponeses ficavam com “crises de sonambulismo” ao utilizar a erva na alimentação[13]. Na apresentação escrita por Théophile Gautier sobre Baudelaire, exatamente nas edições de Flores do Mal a partir de 1868[14], fala-se dos paraísos de “perfumes” acessados por “êxtases olfativos” após exalar o olor de um “heliotrópio”. São 119 os elementos do trecho de Mário de Andrade! Além de uma referência clara à grande obra do poeta francês, seria a flor-do-mal uma referência à cannabis sativa originária do Turquestão? Estas “olheiras” não seriam menção ao efeito do consumo de maconha, tal como as “crises de sonambulismo” de que nos fala Baudelaire? Não me parece estranho pensar no consumo dessa erva na região barra-pesada do Cambuci. Se podemos colocar em dúvida essa interpretação dos versos de Mário de Andrade, os versos de Piva são inequívocos. A imagem delirante de Piva se baseia em uma leitura ousada da própria poesia de Mário de Andrade. Convém repetir: uma leitura feita no início dos anos ‘60, sem o conhecimento das memórias de viagens e cartas em que Mário de Andrade relata suas experiências com alucinógenos. Mário de Andrade surge como um “lótus”, uma iluminação espiritual simbolizada nessa flor oriunda do mesmo Oriente que o Turquestão. E o poeta modernista tem essa iluminação deitado, olhando as estrelas, com a boca colada no ouvido de Roberto Piva, ao seu lado. Onde estariam os poetas deitados gozando essa intimidade? NO PARQUE IBIRAPUERA Nos gramados regulares do parque Ibirapuera Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade, regam minha imaginação Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri para a banalidade dos móveis Teus versos rebentam na noite como um potente batuque fermentado na rua Lopes Chaves Por detrás de cada pedra Por detrás de cada homem Por detrás de cada sombra O vento traz-me o teu rosto Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna? É noite. E tudo é noite. É noite nos pára-lamas dos carros É noite nas pedras É noite nos teus poemas, Mário! Onde anda agora a tua voz? Onde exercitas os músculos da tua alma, agora? Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem como numa lagoa É impossível que não haja nenhum poema teu escondido e adormecido no fundo deste parque Olho para os adolescentes que enchem o gramado de bicicletas e risos Eu te imagino perguntando a eles: onde fica o pavilhão da Bahia? qual é o preço do amendoim? é você meu girassol? A noite é interminável e os barcos de aluguel fundem-se no olhar tranqüilo dos peixes Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo seguir contigo de mãos dadas noite adiante Não só o desespero estrangula nossa impaciência Também nossos passos embebem as noite de calafrios Não pares nunca meu querido capitão-loucura 120 Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores suspensa em teu ritmo. [15] O poema é ambientado naquele parque inaugurado nas comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo. A história é conhecida: entusiasmo diante da industrialização da cidade; leitura de poesia modernista patriótica; monumentos históricos. São os “gramados regulares”. Roberto Piva parece criticar a institucionalização do movimento modernista e sua cooptação pelo Estado. Ao contrário dessa retomada oficial da tradição modernista, Piva encontra naquele parque outra relação com Mário de Andrade. São versos que rebentam na noite e estão imanentes em todos os movimentos do poeta na cidade. Uma encarnação poética que se dá distante dos holofotes, distante das comemorações diurnas. “É noite” – conclama Piva, mencionando versos de Mário de Andrade em Meditação sôbre o Tietê. Sob a ponte, contemplando o rio, Mário de Andrade associa a noite às paixões humanas, suas obscuridades, seus ímpetos inconscientes. Essa “noite insone e humana” finda com o susto da aurora, que transfigura o poema. Com a luz do dia se vê os “arranha-céus”, “trabalhos e fábricas”: “Luzes e glória. É a cidade… É a emaranhada forma / Humana corrupta da vida que muge e se aplaude” [16]. Roberto Piva retoma esse poeta noturno: o homem com suas paixões fluindo inconscientemente. Mais próximo do rio e do ambiente natural; distante da civilização e sua vida corrupta. É à noite que Roberto Piva imagina-se com o autor de Girassol da Madrugada paquerando adolescentes, com Mário de Andrade perguntando a um deles se seria seu girassol. Piva encontra um poema escondido de Mário de Andrade, anunciado já no início quando menciona o retrato do modernista sorrindo para a “banalidade dos móveis”: SONETO (Dezembro de 1937) Aceitarás o amor como eu o encaro ?… …Azul bem leve, um nimbo, suavemente Guarda-te a imagem, como um anteparo Contra estes móveis de banal presente. Tudo o que há de melhor e de mais raro Vive em teu corpo nu de adolescente, A perna assim jogada e o braço, o claro Olhar preso no meu, perdidamente. Não exijas mais nada. Não desejo Também mais nada, só te olhar, enquanto A realidade é simples, e isto apenas. Que grandeza… a evasão total do pejo Que nasce das imperfeições. O encanto Que nasce das adorações serenas. [17] Seria um daqueles adolescentes o jovem amante de Mário de Andrade, que o próprio modernista nomeia como “girassol”? – se pergunta Piva. Com ou sem esse girassol, Mário de Andrade e Roberto Piva passam uma “noite interminável” com os garotos. Após a orgia, ambos poetas saem de mãos dadas noite afora. Roberto Piva, sem dúvida, aceita o amor do modernista como este o encara! É Piva de mãos dadas com a tradição modernista fortemente erótica. Em entrevista a Fábio Weintraub[18], o poeta afirma: “…Mário foi uma descoberta que me interessou pelo lado 121 homoerótico”, ressaltado no modernista sua “forte sensibilidade homossexual”. Piva cita os versos sobre “teu corpo nu de adolescente” para avalizar esta sua interpretação. Exatamente na análise do poema No Parque do Ibirapuera, o crítico argentino Mario Cámara afirma, num tom provocativo: La de Piva puede considerarse como una primera lectura corporal y sexual del modernismo brasileño. Y testimonia la búsqueda alternativas al discurso más técnico y, por lo tanto más mental, del concretismo, a la modernidad desarrollista que está emergiendo de los claustros de la Universidad de San Pablo, y a la poesía militante y “piadosa” de la izquierda literaria brasileña [19] Duma certa perspectiva, a Paulicéia Desvairada faz uma crítica da cidade atrelando os aspectos político-econômicos, morais e estéticos. A moral conservadora é tão aprisionante quanto a economia burguesa e o metro poético. As Enfibraturas do Ipiranga dão inúmeros exemplos de crítica à regularidade do metro em poesia, colocado no mesmo patamar que o trabalho assalariado e o matrimônio. O poeta bom moço, conservador na vida e na poesia, é aquele do poema com ênfase formal. O antípoda do desvairado caminhando ao ar livre na ruas mal afamadas da cidade, nas carnagens de luz e na maconha – na simultaneidade desordenada de versos livres. Em sua época, a crítica de Mário de Andrade certamente dirigia aos parnasianos. Mas, em plenos anos ‘50, ninguém menos que Sérgio Buarque de Holanda já falava do “latente parnasianismo” e pendor formalista de nossa poesia[20]. Antônio Cândido também denominou como “neoparnasianismo” a poesia formalista a partir da tal Geração 45[21]. É exatamente o movimento concretista e a Geração 45 que Roberto Piva irá criticar – já nos manifestos de 1962. O racionalismo e anti-lirismo de uns e a disciplina fabril e formal de outros. Ambos expressões da ideologia da modernização: seja na administração racional da poesia, ou na ingênua exaltação da modernização e da mercadoria. Ou seja, Roberto Piva atualiza a crítica modernista também no que diz respeito à poesia nacional. Exatamente essa atualização, distante da institucionalização estatal ou das escolinhas literárias, permite a Roberto Piva a radicalidade erótica e livre. Mais em termos de atualização, convém lembrar a opinião de Mário de Andrade sobre uma das contribuições do movimento modernista: “a atualização da inteligência artística brasileira”. Pois não apenas no erotismo Piva tem importância. O poeta atualiza a expressão poética brasileira, especialmente com dicções da poesia norte-americana. Como bem observou Claudio Willer[22], o poema “No Parque Ibirapuera” mantém forte intertexto não apenas com Mário de Andrade, mas também com Garcia Lorca e Allen Ginsberg. Acrescento a importância de Álvaro de Campos, que em sua Saudação a Walt Whitman, conclama o “grande pederasta”: De mãos dadas, Walt, de mãos dadas, dançando o universo na alma. Quantas vezes eu beijo o teu retrato. Lá onde estás agora (não sei onde é mas é Deus) Sentes isso, sei que o sentes, e os meus beijos são mais quentes (em gente) E tu assim é que os queres, meu velho, e agradeces de lá, Sei-o bem, qualquer coisa mo diz, um agrado no meu espírito, Uma erecção abstracta e indirecta no fundo da minha alma. Nada do engageant em ti, mas ciclópico e musculoso, Mas perante o universo a tua atitude era de mulher, E cada erva, cada pedra, cada homem era para ti o Universo [23] Como em Álvaro de Campos, Piva também traz essa imagem do “retrato” de Mário de Andrade em seu quarto – um símbolo forte de admiração juvenil. Mas Whitman era o poeta 122 da fusão com todo o universo, aquele que se tornava os outros homens e penetrava em todos objetos. Seu próprio livro o trazia vivo e vibrante em cada página: “Camarada, isto não é um livro / quem toca neste livro, toca num homem […] Eu salto de suas páginas em seus braços” [24]. É assim que Álvaro de Campos encarna Whitman e, como o faz Piva com Mário, caminha com ele de mãos dadas. É a poesia como força que flui para além do espaço e tempo, como queria Whitman, impregnando a tudo com sua vibração imanente: em cada pedra, em cada homem, etc – como surge em ambos poemas. Mas para além dessa imanência poética, Piva, como Campos, se pergunta também onde estará agora, mesclando a sensação da presença com a angústia da busca. Piva retoma a Mário de Andrade tal como Álvaro de Campos a Walt Whitman. Mas não só. Os fios das longas barbas do bardo foram vistos também em Um Supermercado da Califórnia. Ali Allen Ginsberg inicia o poema pensando em Whitman enquanto caminhava “olhando a lua cheia”. A partir daí também recompõe imagens nas quais encontra Whitman “lançando olhares para os garotos da mercearia”: “Ouvi-o fazer perguntas a cada um deles: Quem matou as costeletas de porco? Qual o preço das bananas? Será você meu Anjo?” [25]. Os poetas provam tudo sem nunca passar pelo caixa e, quando o supermercado fecha, caminham juntos pela “noite”. Supermercado aqui, Parque acolá, o encontro de Piva com Mário de Andrade é um pilhagem de Ginsberg. Até detalhes da “lua”, da “noite”, da imaginação que recompõe os versos, da caminhada de mãos dadas, etc. Mas se Ginsberg, após todas essas imaginações, se sente “absurdo”, Piva não; se os dois poetas americanos ficam na paquera com os garotos angélicos, os brasileiros vão além. E os versos de Ginsberg, como bem sabia Roberto Piva, também são variações da seguinte passagem de Garcia Lorca, em sua Ode a Walt Whitman: “¿Qué ángel llevas oculto en la mejilla? / ¿Qué voz perfecta dirá las verdades del trigo? / ¿Quién el sueño terrible de tus anémonas manchadas?” [26]. Eis a complexidade do intertexto em Roberto Piva. Em primeiro lugar: Piva vivencia os versos alheios em sua visceral pederastia. Não é uma relação apenas com o poema, mas uma experimentação na carne. Antes de textual é sexual. E essa relação transparece nos versos que, a um só tempo, fazem menção a Mário de Andrade (com o girassol), a Garcia Lorca (já que o girassol dialoga com a anêmona: outra flor com forte teor erótico e mágico) e a Allen Ginsberg (já que o girassol corresponde ao anjo). Nessa retomada erótica de Mário de Andrade, Roberto Piva atualiza a inteligência artística brasileira com versos surreais de Lorca e a beat de Ginsberg. Todos colocados numa espécie de genealogia da poesia homoerótica que irradia de Whitman e passa por Álvaro de Campos. Roberto Piva consegue mesclar uma escrita radicalmente delirante e espontânea com cuidadosos estudos dos poetas que menciona. Pois Roberto Piva era um leitor bem atento. A aproximação de Mário de Andrade com a pederastia e a drogadição não são meros exageros delirantes, mas fruto de análise bem criteriosa. Se o delírio poético e a transgressão radical são feições muito mencionadas para se referir à Piva, falta ainda dizer algo sobre sua argúcia crítica. Aqui chegados, concluímos uma parte da caminhada. Ainda resta fazer uma leitura atenta das semelhanças entre Macunaíma e Coxas: sex fiction & delírios. Tal leitura ampliaria o tema do erotismo para o debate sobre o “primitivismo”, numa pegada político-revolucionária que inclui outros heróis sem caráter. Eis o Mário de Andrade de Roberto Piva. Nem o bom moço dos cânones acadêmicos, nem o capturado pelo Estado das comemorações oficiais, nem arauto venerado nas escolinhas literárias. Poeta pederasta, vadiando nos inferninhos da cidade e experimentando drogas. É com esse que Roberto Piva caminha de mãos dadas. NOTAS: [1] MORAES, Eliane Robert. Essa sacanagem. São Paulo, Ide, v. 1, pp. 75-79, 2005. 123 [2] PIVA, Roberto. San Paulo’s Iprovisation. Em: OHNO, Massao (org.) Antologia dos Novíssimos (Coleção dos Novíssimos, vol.09). São Paulo: Massao Ohno, 1961. pp. 97. [3] ANDRADE, Mário de. Lira paulistana. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 283. [4] ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1922/1972. p. 44 [5] Idem, p. 21 [6] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1961/2005. p. 25. [7] ANDRADE, Mário de. Paulicéia desvairada, p. 44-5. [8] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, p. 23 [9] PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos. (Teresa Rita Lopes, org.). São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 117 [10] PIVA, Roberto. Ode a Fernando Pessoa, p. 22. [11] ANDRADE, Mário de. Lira Paulistana, p. 300 [12] PIVA, Roberto. Paranóia. Em: PIVA, Roberto. Um estrangeiro na legião – obras reunidas volume I (organização Alcir Pécora). São Paulo: Globo, 1963/2005. p. 30. [13] Baudelaire, Charles. Les paradis artificiels. Paris: Baudinière, 1860, (Collection Les chefs-d’oeuvre français). p. 14. [14] GAUTIER, Théophile. Charles Baudelaire. In: BAUDELAIRE, Charles. Les Fleurs du Mal. Paris: Calmann Lévy Éditeur, 1896. p. 61. Passagem na íntegra: “Il en est de même pour les extases olfactives qui vous transportent en des paradis de parfums où des fleurs merveilleuses, balançant leurs urnes comme des encensoirs, vous envoient des senteurs d'aromates, des odeurs innomées d'une subtilité pénétrante, rappelant le souvenir de vies antérieures, de plages balsamiques et lointaines et d'amours primitives dans quelque O'Taïti du rêve. Il n'est pas besoin de chercher bien loin pour trouver dans la chambre un pot d'héliotrope ou de tubéreuse, un sachet de peau d'Espagne ou un châle de cachemire imprégné de patchouli négligemment jeté sur un fauteuil”. [15] PIVA, Roberto. Paranóia. pp.64-5. [16] ANDRADE, Mário de. A Meditação sobre o Tietê. Em: Poesias completas. 3. ed. São Paulo, Martins; Brasília; INL, 1946/1972. p. 305. [17] ANDRADE, Mário. A costela do Grã Cão. Em: Poesias completas. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da USP, 1987. pp. 320-1. [18] WEINTRAUB, Fabio. Conversa com Roberto Piva. (Entrevista). Em: COHN, Sérgio (org.). Roberto Piva (Coleção Encontros). Rio de Janeiro: Azougue, 2000/2009. pp. 124-135. [19] CÁMARA, Mario. Sexualidad y ciudad em la poesia de Roberto Piva. Revista Anclajes, Santa Rosa (Argentina), n. 14, dezembro 2010, p. 35. [20] HOLLANDA, Sergio Buarque de. Retórica e Poesia. Em: O espírito e a letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1950/1996, pp. 165-9. [21] CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira – III. Modernismo. 5. ed. São Paulo / Rio de Janeiro: Difel, 1975. 374 p. [22] WILLER, Claudio. Roberto Piva e a poesia. Revista Triplov de Artes, Religiões e Ciências, n. 2, 2010. Disponível em: http://novaserie.revista.triplov.com/numero_02/claudio_willer/index.html [23] PESSOA, Fernando. Poesia completa de Álvaro de Campos, p. 149 [24] WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. (2ª ed.), 1860. Disponível em: whitmanarchive.org/published/LG/1860/ Data da consulta: 12/05/2008. [25] GINSBERG, Allen. Uivo, Kaddish e outros poemas. (Claudio Willer, trad.). Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 49. (Coleção LP&M Pocket, vol. 188). [26] LORCA, Frederico García. Poet in New York: a bilingual edition. Grove Press, 2008. p. 148. 124 Ricardo Mattos (Brasil, 1979). Poeta. Pesquisa em seu doutoramento a vida poética de Roberto Piva, na área de Psicologia da Arte (Universidade de São Paulo). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 125 RICARDO ROQUE BALDOVINOS | Piedra y Siglo: breve historia de un colectivo poético[1] ¿Qué es un colectivo poético? ¿Por qué es una práctica extendida que poetas jóvenes se agrupen y se identifiquen con un nombre especial? En un sentido más inmediato pareciera que deseen lograr visibilidad. Estaríamos así ante una estrategia de legitimación en la competencia por sobresalir en el mundillo artístico, en el “campo literario”. Al menos eso nos diría una perspectiva sociológica de la literatura. El problema con esta aproximación es que pasa por alto lo fundamental: el objeto poético, una escritura y una manera en cómo esa escritura interviene en el mundo. El colectivo poético adquiere así un nuevo significado. Como nos lo hace ver Octavio Paz, en Los hijos del limo, los colectivos poéticos son una manera de operar de “la tradición de la ruptura”, esa necesidad insaciable del arte poético moderno de renovarse, de romper con lo que le antecede, y de esa forma aparecer como la verdadera cifra del enigma de un tiempo inasible, el perpetuo desgaste y renovación de los sentidos de la era moderna[2]. En consecuencia, un colectivo poético se conecta con la promesa de la literatura desde el romanticismo: la refundación utópica del mundo. La poesía se ofrece así como un atisbo de nuevas formas de ser persona y de ser social, en las cuales la naturaleza humana se realiza en su plenitud, donde se integran, a través de un lenguaje especial, el poético, sus facultades sensibles y de pensamiento, escindidas en un mundo desgastado por la universalización del principio de la utilidad. Esta breve reflexión inicial, me permite presentar este esbozo de la historia del colectivo poético de Piedra y Siglo en dos pasos. En un primer momento, reconstruyo el surgimiento y evolución de este grupo en la escena literaria de El Salvador. Posteriormente, esbozo claves para entender su aporte literario como expresión de la promesa de redención propia de la literatura. Historia de Piedra y Siglo | Piedra y Siglo se constituye en San Salvador en 1966 por iniciativa de un grupo de jóvenes poetas que se congregan la Universidad de El Salvador. Sus primeros manifiestos llevan nueve firmas: Ricardo Castro Rivas (que luego firmará Castrorrivas), Jorge Campos, Jonathán Alvarado Saracay, Ovidio Villafuerte, José María Cuéllar, Julio Iraheta Santos, Uriel Valencia, Luis Melgar Brizuela y Rafael Mendoza[3]. Aunque de esta lista, son siete los que posteriormente se consideran sus miembros principales: Castrorrivas, Villafuerte, Cuéllar, Iraheta Santos, Valencia, Melgar y Mendoza[4]. Hay otros dos poetas identificados con otros colectivos anteriores, Ricardo Bogrand y Alfonso Quijada Urías, con los que mantienen una relación cercana[5]. La mayor parte de los integrantes de Piedra y Siglo son estudiantes, los que no lo son acuden al campus universitario atraídos porque este se ha convertido en un auténtico oasis de cultura libre y pensamiento crítico en un país donde la esfera pública se encuentra enrarecida por la política de silencios y adulaciones propias de los regímenes militares. Es cierto que un movimiento de jóvenes oficiales creó expectativas de apertura y renovación en los sectores democráticos cuando en 1948 derrocaron al General Castaneda Castro y, con ello, pretendieron erradicar los vestigios de la prolongada dictadura del General Hernández Martínez. Sin embargo, estas esperanzas se vieron paulatinamente disipadas a medida que se entronizó un régimen autoritario de nuevo tipo que legitimaba su férreo control de las libertades con algunas medidas sociales progresivas y la apertura de limitados espacios de tolerancia al debate y la disidencia[6]. Una de esas válvulas de escape a las crecientes tensiones que se iban acumulando de las demandas sociales insatisfechas era la universidad pública, la Universidad de El Salvador. Las políticas de modernización de los regímenes militares reformistas la habían dotado de 126 importantes aumentos de presupuesto. Esto le había permitido aumentar exponencialmente la población estudiantil en pocos años, mejorar considerablemente la planta docente y construir un amplio campus universitario en el norte de la capital, que ostentaba incluso varios edificios diseñados en el mejor estilo moderno. De hecho, la zona norponiente de la capital donde se edificó el nuevo campus era una buena muestra de la euforia modernizadora de los militares. En las proximidades se construían hospitales, edificios para albergar oficinas públicas, así como proyectos residenciales unifamiliares y multifamiliares destinados a alojar la creciente clase media. Para hacer esto posible el estado había facilitado una red de instituciones técnicas y de financiamiento que acogían nuevas generaciones de profesionales. El conjunto se completaba con edificaciones privadas que buscaban poner la planta de la ciudad capital en sintonía con los nuevos tiempos[7]. En este nuevo campus universitario, se congrega entonces una población estudiantil muchos más heterogénea que la que había sido la norma hasta ese entonces. Converge una proporción cada vez más grande de jóvenes (de hecho, entre estos cada vez hay más mujeres) provenientes de los segmentos medios y medios-bajos de la capital y del interior. Es una juventud más educada, pero también más inconforme con el incumplimiento de promesas de apertura política y disgustada por el carácter cada vez más visiblemente excluyente del modelo de desarrollo implementado, que a la par de manifestaciones de próspera modernidad genera la pobreza cada vez más visible de los tugurios y cinturones de pobreza. Estos jóvenes le dan cauce a su inconformidad a través de un movimiento estudiantil que cada vez es más activo y beligerante. Todo esto atrae la suspicacia oficial, que pronto da muestra de los límites de su tolerancia al activar una estructura políticopolicial de control y persecución de la disidencia. También esta conmoción afecta al claustro académico. Los sucesivos gobiernos han posibilitado la llegada de académicos extranjeros y la especialización de algunos de los nacionales en universidades del exterior. Muchos de estos nuevos profesionales encuentran cabida en la implementación de un aparato estatal que se diversifica y expande, pero otros, que o bien no tienen las conexiones familiares o bien no están dispuestos a someterse a los ritos de pasaje del régimen, quedan a la deriva. El ambiente más abierto de la Universidad permite que algunos de ellos se integren al claustro académico y desarrollen un actividad intelectual crítica. Es importante notar que al interior de la Universidad opera de manera más o menos abierta el Partido Comunista Salvadoreño, organización política legalmente proscrita pero que en la práctica ha logrado reclutar a una parte importante de la intelectualidad y el estudiantado así como el sector obrero organizado. El campus universitario es un escenario importante de activismo político pero también de una actividad artística y científica intensa y de mucha calidad. En resumen, el campus universitario no es sólo una institución de enseñanza superior de buen nivel sino también un centro de efervescencia cultural dinámico y estimulante. Es a la vez, un espacio político que se sustrae de la norma de censura y del control político-policial que impera en el resto de la sociedad. No es de sorprender entonces que la vida universitaria exceda con mucho los “estudios profesionales” propiamente hablando y se convierta en una suerte de contra-esfera pública. Piedra y Siglo nace en este mundo universitario amplio y en medio de esa amalgama de activismo político y mundo literario[8]. El cultivo de la poesía seguía siendo entonces una actividad apreciada y de mucho prestigio porque se la vinculaba la palabra a la autoridad del saber y era además un espacio de manifestación de un “genio nacional” que abarcaba a todo los jóvenes con intereses artísticos independientemente de su origen social. Apropiarse de la palabra literaria, posesionarse de la voz poética era un gesto simbólico de gran valor para que los jóvenes estudiantes se autorizaran social y culturalmente, especialmente para aquellos de origen social modesto[9]. Los fundadores de Piedra y Siglo reflejaban el perfil social heterogéneo de la nueva población que accedía a la educación superior. Algunos eran estudiantes universitarios ligados a carreras humanísticas como Derecho y Letras, por lo que su vinculación con la 127 palabra poética resultaba bastante lógica. Sin embargo, otros de sus miembros se habían ligado al mundo literario por otras vías más inusuales. Ricardo Castrorrivas, de hecho, había trabajado de linotipista en la Dirección de Publicaciones, un oficio obrero, pero que le abría la posibilidad de encontrarse con el mundo de la literatura; también había ampliado su horizonte de lecturas gracias a su militancia en el Partido Comunista. La militancia política de ese entonces, implica apropiarse de un mundo de ideas y de palabra escrita[10]. Se puede afirmar que para estos jóvenes estudiantes o militantes, reclamar el privilegio de la palabra poética, erigirse en los voceros de su Generación, implicaba una forma de reivindicación social. Convertirse en poeta era una forma de reclamo de igualdad en nombre de los excluidos del país. Esto no era, por cierto, un gesto enteramente novedoso. Unos años antes lo había protagonizado el Círculo Universitario, dentro de lo que después se conoció como Generación Comprometida, que tenía un perfil social bastante similar. Piedra y Siglo repite en su fundación la dramaturgia propia de los colectivos literarios de vanguardia. Redacta manifiestos, hace su declaratoria polémica en contra de la generación inmediatamente anterior y reivindica una figura tutelar relativamente ignorada en el canon poético nacional. Publica dos manifiestos que fueron redactados colectivamente, que hacen una declaración de propósitos y expresan de pasada algún malestar frente a una “Generación Comprometida” que habría “copado todos los espacios”. La figura tutelar que eligen es Vicente Rosales y Rosales. Según Rafael Mendoza, la admiración hacia Rosales era porque reunía el rigor en la construcción poética, pero también porque expresaba a una sensibilidad que conectaba con la experiencia popular, y lo distinguía de poetas como Hugo Lindo y Raúl Contreras, a quienes respetaban por su solvencia constructiva, pero los consideraban removidos de las grandes pasiones sociales[11]. De la admiración a Rosales quedan como testimonio una serie de cartas que los distintos miembros de Piedra y Siglo publicaron a lo largo de 1967, en una de ellas, José María Cuéllar lo caracteriza así: “Y tú, VIEJO MAESTRO. Silencioso. Ausente de la vieja diatriba burocrática y de los largos manteles. Ausente porque te deja el tiempo su palabra como una piedra dura”[12]. Los poetas de Piedra y Siglo viven también por esos años una intensa vida bohemia que los lleva a frecuentar distintos bares y cafés principalmente del centro capitalino. Allí se combina lo lúdico con la discusión apasionada de temas literarios y políticos[13]. La vida bohemia más que una extravagancia es una forma de experimentar una vida donde ocio y trabajo, placer y producción no se excluyan. Es también una forma de rebelarse contra la disciplina social dominante pero también contra cierta rigidez de las organizaciones políticas progresistas. Las primeras publicaciones del colectivo poético se hacen en 1967 en el suplemento literario Sábados de El Diario Latino. Dicho suplemento lo elaboraba Juan Felipe Toruño, escritor de origen nicaragüense que siempre se había mostrado dispuesto a promover a los escritores jóvenes. Un logro importante del grupo literario es la publicación en 1968 de una sección especial de la revista La Universidad titulada “Piedra y siglo: 9 poetas jóvenes de El Salvador”, que también se difundió como sobretiro[14]. Allí se recogían sus dos manifiestos y se presentaba una breve antología de nueve de sus integrantes originales. La sección venía encabezada por una introducción de Italo López Vallecillos, director de la Editorial Universitaria, quien era además uno de los principales nombres asociados a la llamada “Generación Comprometida”[15]. Este primer reconocimiento era importante ya que significaba posicionarse ante el círculo literario de izquierdas que gravitaba alrededor de la universidad. A partir de allí el grupo se mantiene activo, reuniéndose con frecuencia para intercambiar lecturas e intercambiar impresiones sobre su propio trabajo poético. Publican con frecuencia en la revista literaria La pájara pinta, que depende también de la Editorial Universitaria y en la revista La universidad. Dentro de sus publicaciones podemos encontrar obra poética, algunas narraciones, pero también intervenciones críticas. De hecho, Luis Melgar Brizuela se comienza a posicionar como estudioso de literatura con fundamentación académica, muy marcado por las tendencias por entonces novedosas de la lingüística estructural y la 128 semiótica. José María Cuéllar quien ya trabajaba en la Imprenta Universitaria pasa a ser parte del equipo redactor de La pájara pinta. Para 1970, algunos integrantes de Piedra y Siglo hacen un viaje a Guatemala para establecer una especie de hermandad con Nuevo Signo, colectivo poético afín de la Universidad de San Carlos de aquel país. Una nota fechada el 19 de junio de El Gráfico reporta la visita y menciona que ambos grupos realizaron un recital conjunto en el Salón Mayor de Facultad de Derecho[16]. En 1971, tiene lugar un incidente que afianza el lugar de Piedra y Siglo en la escena literaria nacional. El incidente ocurre en el Auditorio de Derecho de la Universidad de El Salvador, donde José Roberto Cea, autor de la generación comprometida, presentaba su Antología de la poesía salvadoreña. En su intervención, Cea trata de restar méritos a los escritores más jóvenes y se ensaña en particular con Rafael Mendoza, quien por su poemario Los muertos y otras confesiones acababa de recibir un primer premio de manos de la Asociación de Estudiantes de Derecho. Se trataba de un certamen bastante prestigioso que en ediciones anteriores había escogido a Roque Dalton y David Escobar Galindo. Mendoza responde a la provocación y declama algunos de los poemas laureados que reciben la ovación del público y palabras elogiosas de Claudia Lars, quien formaba parte de la mesa de honor. Claudia Lars ofrece publicarle esos poemas en la revista Cultura, por entonces bajo su dirección. Posteriormente, Los muertos y otras confesiones[17] se publica en la colección Nueva Palabra que estaba formando David Escobar Galindo. De hecho, tres títulos de autores de Piedra y Siglo van formar parte de los primeros títulos de esta colección. Aparte del ya mencionado, el libro de narraciones Teoría para lograr la inmortalidad y otras teorías, de Castro Rivas y el poemario Crónicas de infancia, de José María Cuéllar. Es de notar que la primera parte de este último, “El espejo a lo largo del camino”, había recibido ese mismo año el Primer Premio del Certamen Latinoamericano de Poesía de la revista Imagen de Caracas, Venezuela. La publicación de obras de los miembros de Piedra y Siglo en la editorial estatal, con el aval de dos figuras escritores importantes, mejor vistos por la oficialidad, como Claudia Lars y David Escobar Galindo, así como el premio internacional de Cuéllar significaron la consagración del colectivo poético en el mundo literario nacional. Ya no era uno de tantos grupos de existencia efímera, que expresan las veleidades de jóvenes inconformes que después se integran a la sociedad convencional, sino un grupo de creadores literarios con logros palpables y reconocidos más allá de los circuitos contestatarios habituales. Los años que siguen, con los cierres de la universidad y la agudización de la violencia política, forzaron la dispersión del grupo. Uriel Valencia se radica en México donde hace carrera como lingüista y se especializa en el estudio de las culturas precolombinas. Muere en 2006. Mendoza pasa los años más difíciles de la guerra en Panamá, pero regresa al país y animará en todo este período otras iniciativas de difusión culturales como algunas páginas literarias del diario El Mundo, como La Cebolla Púrpura o Cinco Negritos en plena guerra civil. Melgar Brizuela realiza estudios de doctorado en el Colegio de México con una investigación sobre la poesía de Roque Dalton. Regresa al país al término de la guerra y sigue su actividad de investigador combinada con el cultivo de la poesía. José María Cuéllar muere en 1983 en circunstancias todavía confusas, existen serias sospechas que pudo tratarse de un asesinato político. Julio Iraheta Santos sigue escribiendo poesía pero manteniéndose a distancia del mundo literario. Ovidio Villafuerte también siguió escribiendo hasta su muerte en 2008. Pese a las circunstancias difíciles y las pérdidas, los sobrevivientes de Piedra y Siglo siguen activos literariamente y se conservan su relación de amistad y de intercambio artístico e intelectual. En 2006, celebraron el aniversario 40 de la fundación del grupo. En 2008, se les dedicó un número especial de la revista Cultura[18]. A partir de entonces Mendoza, Castro Rivas y Melgar Brizuela han dado algunos recitales donde se presentan como Piedra y Siglo. En 2009, los sobrevivientes del colectivo redactan otro documento donde reafirman su opción por el compromiso social desde la peculiaridad creativa de cada 129 uno de los integrantes[19]. En 2010, la editorial La Cabuda Cartonera publicó poemarios de estos poetas en una colección que denominó Piedra y Siglo. La poética de Piedra y Siglo | Hemos visto que Piedra y Siglo nace con el gesto vanguardista del manifiesto. Según lo confirma Mendoza, estos manifiestos fueron resultados de un trabajo de redacción conjunta, muy en el espíritu vanguardista de los colectivos artísticos. Este ideal utópico de constituir como grupo un sujeto poético que exprese la promesa de una nueva forma de vida social estará presente en el imaginario de Piedra y Siglo. Esto se evidencia en la entrevista que da Mendoza a la revista Abra, en 1976, donde relata sus experiencias de viaje por Cuba[20]. La isla como avanzada utópica, donde el tiempo y el espacio de la redención social ya se habrían instalado tiene una decidida fuerza. Precisamente al referirse al fenómeno de los talleres literarios: “En los talleres literarios que yo he observado en otras partes, siempre se percibe una especie como de ‘paternalismo’ (cuando menos) o, más claramente, cierto ‘liderazgo’ ejercido por ciertos motores que se auto-consideran ‘maestros’ […] Me parece que eso es un lastre impuesto por el provincialismo secular que nos caracteriza […] allá [en Cuba] la cuestión es más franca; no hay posibilidad de que alguien se quiera constituir en ‘campeón’ de las letras u otro género artístico […] Allá se trabaja conscientemente o se truena […] Un taller literario cubano es como una auténtica mesa de trabajo común, sobre la cual se debe abrir la conciencia […] En aquellos talleres literarios, las cuestiones técnicas o científicas dentro de lo literario, son discutidas abiertamente como se discutiría en un taller de textiles la conveniencia de utilizar o no una fibra novedosa, o determinada textura en un tejido […] En Cuba no es importante que surja un ‘gran poeta’, sino una poesía de calidad…” (III) En esta larga cita, se transparentan dos temas que van a definir a Piedra y Siglo: el colectivo estético y la poesía como trabajo. El principio de constituir un colectivo estético democrático, donde rige la horizontalidad entre sus miembros lo expresan ya desde el Segundo Manifiesto: “Sustentamos el principio de la creación a través del intercambio intelectual, rompiendo así con los viejos cánones de la creación aislada y del trabajo estrictamente individual. Esta es una época de intercomunicaciones y no un mundo de soliloquios” (108). En este sentido realizan algunas prácticas de creación colectiva como la redacción en conjunto de sonetos, pero estas no pasan de ser un ejercicio para ir solidificando su solvencia constructiva[21]. La creencia en el colectivo creativo conlleva además el rechazo a cualquier eventual reclamo de liderazgo de alguno de sus miembros y a distanciarse a lo que implican que ha sido el ethos dominante en el mundo literario nacional. Sobre este último punto se refieren al peligro de perder el norte artístico por las tentaciones del poder: “los vicios que han doblegado a nuestros intelectuales, los que en su mayoría han preferido la coquetería política a la defensa de sus convicciones” (108) El otro tema importante de su declaración estética es la conciencia de la especificidad de un “trabajo poético”: “el arte en primer término, una norma de trabajo que implica conocimiento” (109). Ese trabajo tiene así una dimensión “técnica” y que en ello no se diferencia de otras formas de trabajo, las cuales en el mundo redimido de la revolución pasan todas a entenderse en el sentido clásico de tekhné o poiesis, formas de hacer que implican la realización humana. Es así como hace entonces sentido la definición del “trabajo poético” que hacen en el Primer Manifiesto: “captar de manera más fidedigna la realidad, para volcarla luego en imágenes estéticas con el toque mágico de su individualidad” (107). Piedra y Siglo nace, como lo hemos visto, con el gesto vanguardista de publicar manifiesto y de polemizar con sus antecesores inmediatos; sin embargo, su concepción de poesía dista de ser iconoclasta. De hecho, retoman el tema de compromiso literario que ya lo habían expresado grupos poéticos anteriores y lo definen, al igual que estas, en un sentido amplio de postura ética humanista, de atención a ciertas zonas de la experiencia social y la asimilación de ciertas prácticas poéticas exterioristas y conversacionales ya bastante aceptadas, las cuales sólo desde una perspectiva muy tradicional podrían considerarse antipoéticas. No suscriben la idea de someter su práctica poética a las urgencias políticas o 130 los dictados de una determinada organización de avanzada. Antes bien, defienden la autonomía del creador. En una contribución de Mendoza a un número de Abra dedicado a reflexionar sobre el compromiso del escritor, este defiende la necesidad de hacer del hecho estético una experiencia compleja, indeterminada que estimule la inteligencia del lector y advierte del peligro de caer en las trampas de la consigna y el panfleto[22]. Una novedad resaltable de Piedra y Siglo es insistir en incorporar una conciencia reflexiva sobre lo poético. Y la demanda de “conocimiento” que reclama el arte, la realizan al asimilar los aportes de las ciencias del lenguaje, que recién estaban introduciéndose en los programas universitarios a través de la lingüística estructural y la semiótica. Recordemos que Melgar Brizuela, Rafael Mendoza, José María Cuéllar y Uriel Valencia eran estudiantes de la Licenciatura en Letras. En años posteriores, tanto Melgar como Valencia realizarán carreras académicas distinguidas en las Humanidades. Como dijimos, la propuesta de Piedra y Siglo no es de ruptura total. Antes bien, sus innovaciones se hacen siempre abriendo un espacio de diálogo con la tradición poética nacional e universal. Asimismo, pese a la declaración de la importancia del ideal del colectivo estético, de hecho, desde la publicación de la sección de La Universidad se perciben individualidades poéticas bastante marcadas que se mantendrán a lo largo de sus trayectorias. Mendoza, por ejemplo, confiesa que la poesía siempre se le manifestó como música del lenguaje y que, por esa razón, nunca pudo divorciarse de la métrica clásica en la que se inició, pese a que coetáneos y mayores proclamaban que el verso libre y la poética conversacional era lo propio de la época. En los años posteriores, de hecho, tanto Mendoza como Castro Rivas revisitarán con frecuencia las formas clásicas. Melgar Brizuela y Uriel Valencia comienzan con una poesía más conversacional y llana, pero más adelante en sus carreras profundizan la exploración del mundo cultural indígena que inspirará buena parte de su trabajo tanto poético como ensayístico. Cuéllar e Iraheta Santos, por otra parte, tienen más afinidad con el surrealismo y producen una poesía más hermética. Además de la individualidad poética que cada uno de los integrantes de Piedra y Siglo mantiene a lo largo de su vida, también es de notar que ninguno se conforma con encasillarse en una manera particular de escritura literaria, de identificar su voz con un estilo o género en particular. Todos muestran apertura a explorar con nuevos temas y nuevos dispositivos, a reactualizar el compromiso literario de acuerdo a las exigencias cambiantes de la historia. NOTAS: 1. Este se publica por cortesía de la Fundación Accesarte, quien comisionó su redacción para complementar el diagnóstico sobre la literatura en El Salvador, realizado por Tania Pleitez. Agradezco la colaboración de Rafael Mendoza, Luis Melgar Brizuela, Julio Iraheta Santos y Ricardo Castro Rivas por la amplia información proporcionada en las entrevistas que me concedieron. 2. Paz, Octavio. Los hijos del limo. Barcelona: Seix Barral, 1974. 3. Campos, Jorge et al. “Piedra y siglo: 9 poetas jóvenes de El Salvador”, separata de la revista La Universidad, No. 6, noviembre-diciembre de 1968. 4. Andreu, Tomás. “«Hay lecciones éticas y artísticas en nuestras culturas ancestrales». Entrevista. Luis Melgar Brizuela, estudioso de la comunidad indígena”, El diario de hoy, 11 de mayo de 2012. [disponible en http://www.elsalvador.com/mwedh/nota/nota_completa.asp?idCat=47868&idArt=6892404] 5. Entrevista aRafael Mendoza, 23 de octubre de 2012. 6. Turcios, Roberto. Autoritarismo y modernización. El Salvador 1950-1970. San Salvador: Dirección de Publicaciones e Impresos, 2003. 7. Gutiérrez Poizat, Sandra. “Arquitectura moderna en El Salvador”, ponencia presentada en el Congreso de Ingeniería y Arquitectura (CONIA), Universidad Centroamericana José Simeón Cañas, 6 de noviembre de 2012. 131 8. Entrevista a Ricardo Castro Rivas, 24 de enero de 2013. 9. Roque Baldovinos, Ricardo. “Literatura y movimientos sociales”, en Antonio Martínez Uribe (coord.), Compilación de estudios en ciencias sociales y humanidades: memoria 2010, San Salvador: Centro Nacional de Investigaciones en Ciencias Sociales y Humanidades, 2011, pp. 277-305. 10. Entrevista a Ricardo Castro Rivas. 11. Entrevista a Rafael Mendoza. 12. Recortes facilitados por Rafael Mendoza. 13. Entrevistas a Julio Iraheta Santos (22 de febrero de 2013) Luis Melgar Brizuela (20 de octubre de 2010), Ricardo Castro Rivas y Rafael Mendoza. 14. Campos et al. Op. Cit. 15. La nota introductoria viene sin firma en la sección, pero en un recorte que hemos obtenido de una publicación universitaria (probablemente vida universitaria) se reproduce el mismo texto bajo la rúbrica de López Vallecillos. 16. Ver nota de El gráfico que se reproduce en el especial de la Revista Cultura, p. 20. 17. Entrevista a Rafael Mendoza. 18. V.V. A.A.“Especial [dedicado a Piedra y Siglo], en Cultura, revista del Consejo Nacional para la Cultura y el Arte, No. 97-98. Septiembre 2007-Abril 2008, pp. 7-146. 19. Castro Rivas, Ricardo, Julio Iraheta Santos, Rafael Mendoza y Luis Melgar Brizuela, “El grupo literario Piedra y Siglo: otro balance del compromiso”, manuscrito proporcionado por Rafael Mendoza. 20. Anónimo, “Entrevista sobre Cuba con Rafael Mendoza” (Suplemento Enfoque 3), Abra, revista del Departamento de Letras de la UCA, Año 2, No. 16, septiembre de 1976, pp. I-VIII. 21. Entrevista a Luis Melgar Brizuela, 20 de octubre de 2010. 22. Mendoza, Rafael. “Hacia una nueva definición del compromiso”, en Abra, revista del Departamento de Letras de la UCA, Año 2, No. 16, septiembre de 1976, pp. 25-27. Esto también lo recalcó Luis Melgar Brizuela en la entrevista realizada el 20 de enero de 2010. Ricardo Roque-Baldovinos obtuvo su doctorado en Literaturas Hispánicas por la Universidad de Minnesota. Profesor del Departamento de Comunicaciones y Cultura, de la Universidad Centroamericana José Simeón Cañas, El Salvador e Investigador en la Dirección Nacional de Investigación en Arte y Cultura de la Secretaría de Cultura. Es autor del libro de ensayos Arte y Parte (2002), editor de la narrativa completa de Salarrué y, junto a Valeria Grinberg, de Tensiones de la Modernidad, segundo tomo deHacia una historia de las literaturas Centroamericanas (2010). Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC. 132 RODRIGO BARBOSA DA SILVA | A voz & o silêncio: a geometria do espírito em Aorigem diágora (fragmentos para um ensaio) Escrito em 1987, Aorigem Diágora ficou vinte e cinco anos em silêncio, até ser publicada em 2012. Primeiro livro de poesia escrito por Jota Medeiros, corrobora a visão de uma poesia mais próxima das artes plásticas e da música do que da literatura. No entanto, é importante destacar que o poeta não se vale da proposição de uma poesia sem versos, como se poderia esperar de um artista adepto da Poesia-Visual. Ao contrário, a concepção de uma estrutura fragmentada que caracteriza esse livro/poema – mesmo valorizando uma organização metamórfica da matéria poética –, não dispensará para sua realização o valor encantatório das palavras. Uma das primeiras questões importantes que saltam aos olhos do leitor é a relação íntima e profunda entre forma e conteúdo, significante e significado, corpo e alma do poema. E se é verdade que podemos dizer isso de todo e qualquer bom texto poético, é certo que com maior ênfase dizemos de alguns. Também relevante é a dialética que percorre todo o poema, colocando toda forma e todo sentido possível num movimento análogo ao da respiração. Todo o poema revela um movimento de contração e expansão, imanência e transcendência. Jota Medeiros cria uma sintaxe que extrapola o uso discursivo e avança pelo espaço das páginas valorizando o vazio, atomizando o texto e, mais que isso, as próprias palavras, criando imagens fragmentadas, ora dobradas, ora desdobradas. As palavras estão em movimento contínuo: partem-se, misturam-se, multiplicam-se, cruzam-se em todo o poema, e assim deixam de ser simples palavras para converterem-se em verdadeiras constelações semânticas. Indagar qual o sentido de Aorigem Diágora não será demais, caso o leitor não espere encontrar uma resposta única e definitiva: a alta poesia é sempre plurissignificativa e enigmática. Portanto, sua compreensão lógica é certamente o que menos importa. Assim, à medida que indagamos seus sentidos, nos deparamos com múltiplos caminhos que podemos traçar na(s) leitura(s). O poema em si não conduz o leitor a lugares definidos, mas sugere um passeio pelo mar aberto da linguagem, com visitas a pequenas ilhas mágicas (ilhas de palavras e de letras), nas quais nunca conseguimos dar a volta sem ter alcançado já outro nível, como numa espiral. Se é necessário dizer que na obra se desdobram as imagens em uma espécie de estado de delírio poético (êxtase), mais importante é perceber que o poeta não se entrega passivamente a essa inspiração, sobretudo por equacionar bem sua intuição com um labor artesanal de altíssima consciência estética. Segundo o próprio Jota Medeiros, o texto foi-lhe ditado por seu outro EU, num processo intuitivo e espontâneo, realizado através de uma matemática inspirada, termo caro ao poeta Ezra Pound. Na composição da obra, o poeta se utiliza dos recursos mais diversos, com isso permitindo que o leitor tenha experiências também as mais diversas. Além dos efeitos verbovocovisuais e das relações simbólicas que trataremos de maneira sucinta nesta leitura, é interessante notar que o poeta faz uso das mais variadas ferramentas verbais da linguagem poética, tais como: o ritmo dissonante, as figuras de efeito sonoro, o enjambement, o paralelismo, etc. Tudo isso utilizado de maneira notadamente exemplar. O poema dispõe ainda de um amplo diálogo intertextual com as mais diversas vozes poéticas (Homero, a Bíblia, Mallarmé, Huidobro, Khlebnikov, Joyce, Drummond, entre outros). Sem contar com as personalidades artísticas mencionadas ou lembradas (Martinu, Mishima, Glauber Rocha, etc.). 133 Das várias experiências que a obra proporciona, comecemos pelo deleite visual. Um simples passeio pelas folhas do livro, por exemplo, sem que se leia ainda o que está escrito, proporciona a visualização de formas como colunas, retas, cruzes, círculos, triângulos, linhas, pontos, tudo se erguendo, ora despencando. Essas formas se espelham e se redobram no texto. Assim, a estrutura do poema lembra, em sua autossimilaridade e fragmentação, formas fractais, que se caracterizam pela repetição de determinados padrões e se ordenam a partir de procedimentos simples, desenvolvendo-se em formas mais complexas. Quando partimos para a leitura, percebemos que os mesmos processos de fragmentação e autossimilaridade acontecem no texto e seus múltiplos sentidos. Tudo parece apontar para o caos, mas aponta para uma ordem anterior. Nesse sentido, logo surgem imagens sutis de elementos familiares à linguagem esotérica, tais como: a árvore da vida, a luz azul e a lilás, a rosa, o sol e a lua, o silêncio. Ainda nessa perspectiva, parece haver como fundamento de tudo uma espécie de existência negativa, sugerida tanto pela busca do silêncio, como, cabalisticamente falando, pelos reflexos da criação, fragmentados como o poema. O poeta evoca um princípio, uma luz, um infinito movimento primordial, o silêncio. E se os encontra, não é menos verdade que encontra também a inquietude da mente, as inquietações do artista, de âmbito cósmico e espiritual. O poeta mostra não como voltar ao centro, mas que não há centro, há uma elipse, um eterno retorno – nunca o mesmo em sua essência. O título do livro já nos põe em um oscilante ambiente semântico, pois se aorigem quer dizer o obvio a origem, diz mais se lermos o a junto à palavra origem, não como artigo, mas como prefixo de negação, ou seja: não-origem. Esta, ao remeter-nos a uma existência negativa, curiosamente nos leva a pensar que, se o verbo é a origem, o princípio – ao menos no imaginário ocidental cristão –, o silêncio deva ser, portanto, o estado anterior ao princípio, ao verbo, à palavra. Nesse caso, paradoxalmente, pode-se pensar o silêncio como princípio gerador: o silêncio é o ventre do verbo. E, ainda nas raízes do imaginário ocidental, podemos nos aproximar da origem para os gregos, o caos – o vasto abismo insondável –, e aplicando o mesmo raciocínio da negação prefixada ao substantivo, nos deparamos com o não-caos, ou uma ordem anterior a tudo. Completando o título do livro, Diágora remete à praça grega (ágora) – espaço público por excelência, símbolo da polis e da democracia – ou simplesmente a preposição e o advérbio: de agora. Levando a pensar tanto na origem, como na não-origem de agora ou de Ágora. O ímpeto inicial do poema é a vogal aberta a, que aparece com tonalidade clara, porém, crepuscular, azul, lilás. O Alfa, o princípio, mas também a negativa desse princípio, e a negativa do caos, de onde tudo surgirá. O poema segue com o segmento aor isolado no centro da página, fazendo lembrar aur, que na cabala é a “luz sem limites”, e ainda, segundo Papus, em seu Tratado de Ciências Ocultas, é também a primeira sílaba de uma variante de origem hebraica do nome de Orfeu - Aurofe (aur = luz / rofe = aquele que ensina). Em seguida, o texto completa a palavra inicial [aorigem], uma das chaves do poema, com as partes separadas, cada uma em uma página – i e gem. O poeta já indica ao leitor que o movimento será em um ambiente fraturado, e que o silêncio e os espaços vazios são de suma importância. No fragmento seguinte, surge uma ideia de infinito no movimento da luz e na luz do movimento, e no eco da última letra da própria palavra infinito. Por outro lado, o poema parece se dissolver e encerrar-se justamente como esse eco. Mas, segue pela luzazul espelhada no palíndromo da página seguinte. Interessante perceber que, assim como no título, em todo o poema se perfaz um dinamismo de forças complementares, dialéticas, em disposições aparentemente caóticas, como por exemplo, nas cores do xadrez fragmentado, equivalentes yin e yang, que são mediados por rosas. aordem aor dem 134 a or de m a r m o r e x d e r o s a s z Mais ainda, percebemos no fragmento acima a relação entre o verbal, o visual e o sonoro. Neste último aspecto, Aorigem Diágora não é para ser lida apenas em silêncio, e poderá seguir o texto como uma partitura. Com a liberdade de interpretar, partindo de uma leitura que reúna os segmentos, ou mantendo a fragmentação. No segundo caso – que preferimos e reconhecemos a dificuldade –, ao final da leitura surge o fonema /S / sugerindo uma das buscas desta Aorigem: o silêncio. Já a espacialização diagramática desse fragmento se assemelha à imagem da árvore cabalística da vida. Enquanto os sentidos podem ser buscados numa interpretação simbólica das palavras. Assim, o poema parece partir de um estado anterior à ordem: uma não-ordem, em seguida aponta para uma luz (aur). Depois, desorganiza os elementos e, como fora dito no parágrafo anterior, sugere forças complementares mediadas por rosas que, simbolicamente falando, representam o coração e, entre outras coisas, o renascimento místico. Em certos ritos de iniciação, o neófito passa por uma espécie de portal, no qual cada lado representa uma das forças opostas da vida. O poeta, iniciado, atravessa, abraça e concilia essas forças. Salientando ainda as relações entre o que o poema diz e como diz, temos no excerto transcrito abaixo, o sol em linha vertical e a luna no horizonte, lembrando uma cruz que, entre outras coisas, é símbolo da forma. o sol verti cal alunano rizon tis Permeado por uma mística subjetiva e antropofágica, esse livro de Jota Medeiros condensa conteúdos de diversas instâncias do conhecimento. O poeta cria um cosmo, e como uma espécie de demiurgo, fá-lo dançar em movimentos inesperados, anunciando, entre outras coisas, a noite na luz: […] night sea é ter blues in the light la lunadormecida 135 nasce, sob o signo do tropos, [...] Há mesmo um processo de justaposição e condensação no poema. Inclusive, ao misturar diversos idiomas, Jota Medeiros instala em sua obra não uma Babel, porém um não-espaço onde as línguas e culturas se comunicam. Em Aorigem Diágora as palavras perdem o sentido comum, e junto dessa perda, dá-se um novo contato com as coisas. Surge assim um sabor de relações desconhecidas, através de uma linguagem-outra, capaz de também fazer surgir o silêncio que está no fundamento de tudo. No poema há diversos temas e o leitor deve acompanhar os deslocamentos temáticos como umbrevinauta, preparado para um caminho labiríntico. Dos temas mais relevantes, um que se destaca, conforme viemos dizendo, é certamente o silêncio. Nesse sentido, é importante perceber as relações que a obra estabelece com o pensamento da tradição oriental (tais como Upanishads, Vedas, Zen) que tem a busca do silêncio como prática essencial. Sendo assim, com os ouvidos atentos escutaremos os movimentos de um canto ora mântrico, ora dissonante, através do qual o poeta revela, ao mesmo tempo em que vela, algo como esse estado anterior à linguagem: o silêncio. O antes das coisas, mas embrião do mundo. Esse silêncio que não é o de quem nada tem a dizer, mas ao contrário, manifesta-se com o desdobramento do artista que, inquieto, talha, esmerila, pule a tagarelice do seu tempo, comunicando o incognoscível. o s‘l ^ n s ‘ ____________________ l A apresentação do silêncio acontece em um lance mallarmeano. O jogo de dados que o artista propõe é, ao menos em certa medida, não um lance de um prestidigitador, mas um lance de bruxo ou de um mago das palavras. O lance sutil é o próprio silêncio, ou nele está contido: s u til an ce ____________________ u m lance 136 subti l É também o silêncio profético das sibilas, metamorfoseadas em ilhas. Sibilhas que não são apenas apolíneas, mas, sobretudo, são também aqui dionisíacas. A profecia sibilina é como uma voz na América, esse novo mundo que nasceu com a chegada da morte, com o crepúsculo dos índios. Um mundo de horror, um oásis de horror. Em Aorigem Diágora transparecem nuances históricas que revelam a falência do projeto humano de civilização. Uma humanidade amarga e amargurada, sórdida, que não vê Hermes – deus da fertilidade, dos rebanhos, da magia, da divinação – pois ele foi roído pelos vermes: [...] carcomidos por vermis ermi s ´ O silêncio como busca do poeta – busca paradoxal por natureza –, em uma humanidade fadada à tagarelice, que tem como histórico psicológico uma insondável diáspora interior. Silêncio de poeta a ver que as pedras que atravessam nosso caminho, não estão nessa existência, mas em uma anterior, e fez-nos perder a unidade, lançando-nos numa vida de erros. Essa pedra era um fruto e estava no meio do caminho. Mas o poema não se entrega a explicações tão evidentes e confunde o leitor ao apresentar tal pedra, tal fruto do erro e do pecado como coisa sã, assim revelando a natureza dúbia do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal: [...] uma s ã num eio d ‘ cam i nho Logo percebemos que tudo no poema está em metamorfose, não é diferente com o silêncio que, em um novo lance, pode saltar do ambiente trágico ou obscuro e tornar-se o silêncio de quem se lança em um jogo sutil, irônico, desconcertante: [...] si não dar mais pra rir do sil do si LANCE... 137 Conquistado o silêncio, ou degustado o silêncio, o poema caminha para o uso de ruídos sutis. O silêncio é vertido em vertigem, devaneio aparentemente caótico, que mistura contemplações de paisagens interiores densas e superpostas como esta: a névoa voa no vór ti cís mi co [...] O poeta conduzirá o leitor, por todo o poema, nesse ambiente em perpétuo movimento. O poema canta e dança simultaneamente: [...] pelo sismo, ver ti GEM var GEM vinACRE ventosopram os ares [...] Os versos acima parecem ter sido abalados por um sismo provocador de vertigens e anunciador de dissabores. Confirma-se aqui que o corpo do texto poético revela seu espírito. Corpoespírito, complementares, assim como o espaçotempo. As paisagens vão mudando. E passam de paisagens contemplativas a momentos fragmentados de amarguras e absurdos irremediáveis da existência. Abrem-se fissuras em abismos para logo se juntarem em um movimento contínuo de ir e vir. Há também passagens em que o indivíduo perde-se, e tende a evadir-se de si mesmo para fundir-se com o outro: “temencontrei só”; “voceu”; “time perseguem”. Aqui lembramos a experiência mística e poética de se reconhecer outro. Como o “Eu é um outro” de Rimbaud, ou os outros de Pessoa, por exemplo. Agora, se uma origem não é mais possível, ou nunca foi possível, para o poeta o não-lugar e a não-origem são seu espaçotempo. Nesse espaçotempo a metamorfose é fenômeno constante e princípio básico da existência. Exemplo disso no poema é o percurso cíclico da ave que se transforma em árvore, representação da criação e da vida, e que em seguida passa a ser ninho e o próprio ovo. Veja-se ainda que a força vital que perpassa ciclicamente a vida ergue-se também em coluna, viril e ereta, representando a força erótica: a ave vér teb r’a ver ă rvo 138 re´ rót ica mi’ nhã u n inh o A progressão estética de Aorigem Diágora se dá como o relâmpago cabalístico, que visualmente falando, ora ziguezagueia, ora ergue-se como coluna, ora voa como alas abertas num movimento em cruz. Aqui, Medeiros sonda o verso, a palavra, a letra. É assim que parece buscar essências em tempos de superficialidade e simulacro. Mas essas essências aparecem como feixes de luz que mudam suas cores, ou simplesmente como névoas. A controversa origem do Ser dá-se em uma não-origem (aorigem), e não apenas em um lugar, mas em lugares superpostos, simultâneos. A Ágora está na veloz cidade que é Ítaca, migmar, Paris, El Doirado? Todas e nenhuma, mas certamente em outro lado. Vale salientar que essa leitura é uma ponta do iceberg do poema que se desdobra e não permite uma interpretação única. Porquanto, caso o leitor procure um entendimento profundo e metafísico, e já não o tenha em si, provavelmente encontrará um efeito metasísifo, a comprovar os versos – depois das mais astutas peripécias (até mesmo a de enganar a morte?) – despencando por sobre si: [...] sede senlaçam sob/re os luares metasísifos destes verbuns Que o poeta seja um demiurgo em tempos sem deuses! Que execute com sua força e criatividade um novo cosmo, anárquico e autêntico: eis o grande desafio, sempre antagônico em relação ao mundo comum – tão carente que é de autonomia individual. Esse mundo continua sendo hostil à poesia. Por isso, é também como resistência e provocação que o poeta – locomotiva descarrilhada em direção à luz – pronuncia seu canto dissonante, seu mantra polifônico, filtrando o ruído do mundo, desenhando sua busca do silêncio: trem’ luz plum’ argemmm mmmmmmm mmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmmmmmmmmm mmmmmmmmmmmmmmmmmmmmmm Primavera de 2013 139 ENTREVISTA COM JOTA MEDEIROS Jota Medeiros é artista multimídia, poeta, compositor, crítico de arte, curador, editor e coordenador do Museu Abraham Palatnik do NAC/UFRN. Nascido em João Pessoa-PB em 1958, reside em Natal-RN desde 1967. Figura emblemática da vanguarda potiguar, é um dos poetas visuais mais importantes do Brasil e atuou intensamente no final da década de setenta e durante a década de oitenta como um dos ícones da Arte-Postal. Autor dos livros Progressão (Stempelplates, 1978), Geração Alternativa – Antilogia Poética Potiguar (Amarela edições, 1997), Na tal Futurista – um breve panorama sincrônico das artes visuais norte-riograndenses (Sebo vermelho, 2011), Jota Medeiros também escreveu os livros de poemas Aorigem Diágora (Sol Negro, 2012), MarAlter (inédito) e Iubilate Deo (Sol Negro, 2012). Na entrevista que segue, o artista nos contará um pouco sobre seu livro Aorigem Diágora e sua Poesia Visual. (R. B.) R. B.: Aorigem Diágora foi escrito em 1987. Nesse mesmo ano, ganhou o 1º lugar no Prêmio Auta de Souza. Por que esperou tanto tempo para publicá-lo? J. M.: “Le silence est d’or” (Saint Jean Crysostome). Pela falta de recursos e/ou de um editor… ou até de iniciativa própria... R. B.: Qual era o clima poético do momento (em Natal-RN e fora)? J. M.: O clima poético era efervescente. Havia “O Galo”, jornal literário da Fundação José Augusto sob a editoria da poeta Marize Castro, do qual eu fui assessor especial. Lá fora, publicações alternativas, suplementos literários, zines e afins. R. B.: Que leituras você empreendia na época? J. M.: As mais diversas: James Joyce, poetas como Corbière, os provençais, Maiakovski, Mallarmé, Pound (re-leituras). Cummings & etc. Relia também os concretos e os antropófagos; & Kilkerry, Sousândrade, entre outros... R. B.: Há no livro relações com ocultismo? Em caso afirmativo, quais são elas? J. M.: Há relações hieráticas, formais como a Cabala (intuitivamente), com os Vedas, os Upanishads, o Tao e o Zen... R. B. : Havia algum interesse especial ao conceber Aorigem? E ao publicá-lo? J. M.: A concepção da cena d’aorigem foi automática em sua origem e/ou percurso. A meu ver, foi ditada pelo meu OUTRO: EU, in(consciente) psíquico plasmado, uma espécie de “matemática inspirada” no dizer de Pound. R. B.: Aorigem Diágora é poesia visual? J. M.: Toda poesia é visual! “Aorigem” está no limiar de uma perspectiva concreta-icônicosimbólica e/ou intersemiótica... “simplesmente poesia como eu necessito”, como disse Cage. R. B.: No livro Uma história da poesia brasileira, Alexei Bueno não incluiu a poesia dos concretistas, afirmando que esta não é arte verbal, mas arte visual. O que acha dessa perspectiva dada à Poesia Visual? 140 J. M.: Acho a concepção de Alexei Bueno limitada, porém respeito como uma concepção pessoal. Hoje vivenciamos uma poética intersemiótica, uma poesia “intersignos”. R. B.: Podemos dizer que há em Natal uma tradição inscrita como Poesia Visual? Ela se mantém? J. M.: Há uma tradição no “Rio Noigandres do Norte”, no dizer do poeta Jarbas Martins, de Poesia Visual em trânsito, por outro lado, uma vocação futurista, desde o discurso premonitório de Manoel Dantas “Natal daqui há cinquenta anos” conferência realizada em 21 de março de 1909, marco zero, no mesmo ano de lançamento no Brasil do Manifesto Futurista de Marinetti, em Natal, no Jornal “A República”. Em 1927, o performático poeta moderno Jorge Fernandes lança o seu “Livro de Poemas”, onde a expressão “suspensa” configura caligramaticamente uma rede no poema homônimo, perpassa o grupo Dés de poetas concretos, em 1966, e o lançamento da Poesia concreta no RN, culminando com o movimento de Poesia Visual e Factual, o Poema-Processo, destacando os nomes de Moacy Cirne, Falves Silva, Anchieta Fernandes e Dailor Varela, entre outros, e nos anos 1970/1980 o movimento internacional de Arte-Correio do qual fiz parte, juntamente com Falves Silva e Avelino Araújo. R. B.: Na época da publicação de Aorigem Diágora, o que você estava produzindo nos outros campos da arte? J. M.: Poesia Visual, pintura, desenho, arte gráfica, textos... R. B.: Como se deu o processo criativo de Aorigem Diágora? J. M.: O processo criativo parte de uma automação psíquica e se desenvolve de forma trans/racional, ou seja, “O lance de dados...” semiológicos“...jamais abolirá o acaso”. R. B.: Diga-nos sobre sua identificação e envolvimento com o Poema/Processo e com a Arte/Correio... sua arte sempre manteve uma relação estreita com as vanguardas? Como se deu essa aproximação? J. M. : Sempre na expectativa de realizar algo novo, na perspectiva do “pós-tudo” do “mais novo novo”, como diria Augusto de Campos. R. B.: Parece possível pensar na obra Aorigem Diágora como uma manifestação entusiasta do acaso, como foi com os dadaístas e os surrealistas, por exemplo. Por outro lado, é perceptivelmente significativa a preocupação com a forma e a sonoridade, como nos poetas formalistas. Há uma síntese? Como vê essa questão? J. M.: Como uma “síntese”, diáspora... formal & tematicamente. R. B.: Diante de tudo que já foi feito no campo da arte poética, acha possível o surgimento de vozes autênticas e inovadoras? Vivemos o tempo das infinitas combinações, e nisso consiste o novo, ou o tempo das infinitas repetições, e com isso, há um desgaste do ‘fator surpresa’ da arte poética e talvez das artes em geral? Ou...? J. M.: “Tudo está em tudo”, já dizia o filósofo grego Anaxágoras. Nos anos 1960 se falava de “nem bom nem ruim”, hoje podemos afirmar bom ou ruim, porém “tudo está em tudo” & “não há nada de novo sob o sol”, a cada segundo há uma revolução cibernético-anárquica do hoje comunicacional informacional, ou como previra Andy Warhol, “no futuro todos serão artistas por 15 minutos”. 141 Natal, 01 de outubro de 2013. Rodrigo Barbosa da Silva (Brasil, 1979) é poeta e tradutor, mestrando em Literatura Comparada pela UFRN. Publicou Flâmulas Hidras & Coquetéis (Sol Negro, 2011). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 142 RUBÉN SICILIA | Entre Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski: Fascinación, Desafío y Éxtasis El Performer con mayúscula, es el hombre de acción. No es el hombre que hace la parte de otro. Es el danzante, el sacerdote, el guerrero: está fuera de los géneros estéticos. El ritual es performance, una acción cumplida, un acto. El ritual degenerado es espectáculo. No quiero descubrir algo nuevo, sino algo olvidado. Algo tan viejo que todas las distinciones entre los géneros estéticos ya no son válidas. Jerzy Grotowski I. FASCINACIÓN | No hay dudas. Si en efecto resultara un hecho que el hombre desciende del mono pudiera acotarse que el hombre de teatro occidental desciende de Stanislasvki. Este silogismo seguramente habría hecho sonreír a algún que otro filósofo antiguo. O quizás a algún que otro antropólogo actual. Si Stanislasvki es el centro de todo árbol genealógico teatral, como apunta Eugenio Barba, Jerzy Grotowski, el otro, el anticristo, traza una huella indeleble hacia casi todo el teatro contemporáneo. En el teatro cubano, especialmente, la figura de Grotowski influyó de manera notable. Su irrupción, tras una larga etapa “Stanislavskiana”, llega precisamente de la mano de Vicente Revuelta. Fue él quién introdujera y cultivara en los años sesenta y setenta los ejercicios del “método”. Y también otras corrientes y técnicas. No pocas veces se obvia, se minimiza, se olvida que a cierto nivel Stanislasvki y Grotowski se superponen. Y ya va siendo imprescindible, aquí y ahora, discurrir sobre esas madejas y esos entrecruzamientos. 1.1 DÍA DEL GÉNESIS. INTERIOR | Nadie desde Stanislasvki lleva tan lejos la investigación del actor como Grotowski. Deliremos, deliremos aún más porque a veces del delirio se puede llegar sorpresivamente al conocimiento. No hay tal ruptura entre Stanislasvki y Grotowski, elemento este, benditas resulten las reincidencias, que no pocas ocasiones se desdeña en Cuba. Si bien Grotowski defiende una estética entre lo ritual, la blasfemia y la irrisión, el sentido ritual de su poética corresponde al hálito de los tiempos en que vivió. Nadie sabe si Stanislasvki habría tomado el sendero de Grotowski de haber vivido bajo sus condiciones. El juego de los vaticinios nunca es loable ni constituye en modo alguno una ciencia exacta. Abandonémoslo, pues. No desdeñemos, sin embargo, que Stanislasvki, en la última fase de su trabajo descubrió y sugirió las famosas asociaciones. Algo que realistas ortodoxos y liberales convienen en considerar definitivamente lejos del “realismo”. Su investigación sobre las acciones físicas es quizás el eslabón perdido entre los hilos de uno y las hebras del otro. Más tarde Grotowski, desde las resonancias del teatro pobre, desarrolló una metodología, creó un teatro basado en arquetipos, un teatro que superaba la expresión realista. Dios, Madre, Nacimiento, Muerte, Conversión, etc. AKRÓPOLIS/DIR. JERZY GROTOWSKI/ARCHIVO PERSONAL | Toda una simbología erigida sobre las posibilidades del cuerpo. Todavía hoy se desconoce mucho acerca de la técnica interior que propone Grotowski, al menos en Cuba. Se penetra en el inconsciente y se está ante dos niveles bien delimitados en cuanto a la génesis de las asociaciones. Uno de superficie, otro más profundo. Asociación elemental, básica, quizás: un actor trabaja a Tartufo y toma como base los movimientos, la esencia y la energía de un ratón, por ejemplo. Pero la metodología o proceso que se sigue para llevar estas “reacciones” a todo el cuerpo o a todo el ser, se traducen en resultados perceptiblemente diferentes. Es decir “más externos o más internos”. Más hacia un trance[1] consciente o hacia el uso de una imagen “solamente corporal”. De igual manera, dos o más asociaciones pueden ser mixturadas y tal mixtura llevar la concentración a niveles aún más intensos. Tómese, pongamos por caso, la siguiente 143 asociación: “Mi mano es la púa de un escorpión resuelto al ataque, mientras mis pies se implican en el paso de un samurai que se protege”. He ahí una oposición subyacente, oposición que de ser trabajada hasta donde las reacciones logren conducirnos, puede dar lugar a una repercusión incalculable en proyección, impulsos y calidad de la energía. En muchos de estos sentidos, tanto técnicos como metodológicos, Vicente Revuelta es, en Cuba, una figura igualmente legendaria y singular. Una figura a la que muchos debemos hoy, gran parte de nuestra comprensión. Una figura que por muchas razones asociamos a Artaud, tanto como a Grotowski. Vicente Revuelta quizás no ha sido reconocido a escala internacional tanto como debiera. Y no lo ha sido, seamos realistas, simplemente por vivir y trabajar en una pequeña isla del Caribe. No lo ha sido, en la magnitud merecida, al no laborar en los centros europeos de cultura. Aunque aparece –como pocos latinos- en varias de las enciclopedias mundiales del arte del actor. Espíritu inquieto e investigador ha explorado exhaustivamente en diversos períodos a Brecht, al Living Theatre, a Stanislasvki, a Michael Chejov, a cuanto buen ejercicio para el actor existiera y pasara por sus manos. Esa suerte de continuum le llevó a cristalizar una experiencia sui generis, un modo propio, una forma y un método de transmitir sin dudas singular. Un método inductivo-deductivo. Tal singularidad se hizo patente en actores de Teatro Estudio como José Antonio Rodríguez, Aramís Delgado, Omar Valdés, Adolfo Llauradó, Carlos Pérez Peña, Miriam Acevedo, Alina Rodríguez y muchos otros. Incluso de generaciones posteriores. Actores que han marcado con el escorzo de un estilo y un relieve claramente visible a varias generaciones. Y algunos, como Aramís, todavía lo hacen. En entrevista reciente alude Vicente a la actualidad de la formación del actor en Cuba: “Creo que ahora estamos en lo mismo. Hay mucha gente que si realmente se desprejuiciara de muchas cosas y empezara a hacer los mismos ejercicios con la misma ingenuidad que nosotros lo tomábamos, con la misma creencia, quién sabe qué podría suceder. Porque de Stanislavski no queda nada en el teatro cubano, yo no lo veo por ningún lado, ni un sentido ético, ni estético. Estamos como volviendo, estamos en la misma situación. Quizás como que ya lo hemos hecho. Me acuerdo cuando en el ISA organicé un grupo de muchachos que entraron nuevos, los dividí en grupitos. A uno le di Stanislavski, a otro Barba, a otro Grotowski, se fajaron con los libros durante un tiempo, a ver qué salía. Empecé a tener entrevistas con cada uno de ellos. Había un muchacho que venía de Santa Clara, que no sabía nada de nada, y entró muy disgustado, le pregunté qué le pasaba, y me dijo que no le gustaba el grupo de Stanislavski, porque le habían dicho que ya eso estaba pasado. La persona que se lo dijo me contestó que ella era instructora de arte y no le habían enseñado nada de Stanislavski, pero ya había metido la cizaña”. Si llegamos armados del habitus taxonómico ante estas declaraciones se nos asomaría un Vicente Revuelta inclasificable. Y puede que ello resulte evidente desde la relación simbiótica (en modo alguno mimética) con los postulados de Grotowski. Puede que esa simbiosis haya aportado lo determinante. Más allá del carisma y empuje de artista insatisfecho, del carácter iconoclasta y del empuje de constante investigador, es esa suerte de voyeur, homo ludens y homo faber que caracterizó siempre la labor de Vicente Revuelta, lo que lo define. No obviemos su labor práctica de enseñanza, la dirección de actores y su particular concepción en cuanto a la puesta en escena. Vicente Revuelta, siendo él mismo un actor legendario, ha sido motivo de inspiración para muchos tan solo al verlo actuar. Y deviene paradigma, tal vez el paradigma más alto de “director de actores” que ha existido en Cuba en cuarenta años o más. En Cuba una gran mayoría de los directores lo son de “puesta en escena”. En ese contexto Vicente aparece como rara avis. Muchos lo consideran el padre del teatro cubano. Esforcémonos en dilucidar, paso a paso, los reales fundamentos de ese titulo. En ese empeño he de recorrer un itinerario en la memoria. No únicamente desde mi recuerdo personal, he de auxiliarme de mis maestros y amigos, de las publicaciones –no viví de primera mano todos esos tiempos-, es por ello esta una empresa harto trabajosa. Aunque sin dudas de un enorme atractivo. Una empresa henchida del placer que significa 144 desentrañar los hilos y nexos, los espacios y las personas que en torno a Vicente, desde Vicente o por Vicente singularizaron definitivamente el teatro cubano y latino de los últimos treinta o cuarenta años. Un viaje de iniciación tal vez, comparable al viaje que emprendían ciertos discípulos en la antigua China hacia islas fabulosas. Un viaje que, devenido texto, hasta donde sé, no tiene antecedentes. Texto y viaje en los que los obstáculos innumerables a superar radican en el entrecruzamiento de voces, conceptos, vivencias y personas. Un entrecruzamiento cuya madeja me envuelve en hilos que llegan tanto desde Vicente Revuelta como desde los postulados de Grotowski. Fui discípulo e interlocutor de Vicente en diversas épocas, fui discípulo de María Jiménez, guatemalteca que había estado presente en el Centro di Lavoro de Pontedera en la fase última de trabajo del maestro Grotowski. Hechos esos que en lo que me atañe han estado estrechamente imbricados con la experiencia. Fui también alumno de los talleres de Eugenio Barba. Cauces que me trascienden e inspiran en todo momento, como dramaturgo, y, sin dudas, como director. Este, por tanto, será quizá un texto personal. Sí se quiere confesional. Momentos y eventos en ciertas ocasiones trascienden de lo personal a lo grupal. Esta es una de esas ocasiones, no solo a mí atañe la experiencia: se trata de una experiencia que incide sobre algunos de mi generación, en forma idéntica. Será este viaje a la memoria un centro de discernimiento puede que intrincado mas cuya vigencia llegara de la fusión de lo teatrólogico con lo vivencial, de lo técnico con lo metodológico, de lo ritual con lo cotidiano, de lo serio con lo lúdicro. Puede se evoquen otras muchas e inevitables paradojas. Intentará un texto con cierto soplo testimonial. Un viaje a la memoria intenta siempre cierto trasvase inextricable y orgánico, trasvases ajenos a lo que no pocas veces suelen mostrar los manuales de historia del arte. La ortodoxia ama lo homogéneo y lo causal, no existen, sin embargo, procesos evolutivos que se desarrollen desde lo homogéneo y causal. El arte, como la vida misma, traza círculos, zigzag, espirales, vueltas y virajes sobre sí mismo. Vueltas excéntricas y concéntricas. Movimientos brownianos. Como sostiene Julián Beck “la coherencia consiste de cola y espátula”. Intentemos descubrir la madeja. El hilo invisible que tal vez nos ha de conducir fuera del laberinto. O fuera de la caverna. ¿Quién puede aventurarlo? Platón recuerda a Sócrates y tal vez nos sonríe desde el tiempo. Nos saca la lengua. Y seguimos intentando, persistimos en develar la vía. Somos hombres de teatro. Otros nos han guiado, nos guían, provocan y acompañan. Los nexos y relaciones que aquí intentaré evocar se relacionan no pocas veces con la propia experiencia. Otras con experiencias que me fueron referidas, otras con entrevistas que hube de leer o incluso de otras de las que fui testigo. He de confesarlo: también yo, como otros que ya no residen en Cuba, fui contaminado con el virus “Grotowski”. La contaminación se hizo dual, dúplice por la influencia del maestro Vicente. Dos maestros, muchos discípulos. Ignoro sí él, Vicente, lo sabe, si apenas lo intuye. Por instantes me ha asaltado la sensación de vivir en la piel de una suerte de “survivor”, justo en el significado del término sobreviviente, como se maneja en cierta zona de la antropología contemporánea. En este sentido este relato enlaza, orgánico, con mi propio recorrido y relato. También con los relatos de maestros y amigos. Se es en la medida que somos. En el arte toda observación personal relaciona cómo un plano y otro se superponen, se complementan. Lo mismo sucede en ese viaje singular al que llamamos vida. ¿Que significado tuvieron y adquieren hoy día los postulados de Grotowski, ya desaparecido, y la presencia, aún palpable, del maestro Vicente Revuelta, en el contexto del teatro cubano actual, donde ya no parece primordial, el camino de la investigación como en años anteriores? Intentaré este recorrido desde y para la memoria. A través de ella transita el legado del conocimiento humano. En tanto existe la memoria se confiere al conocimiento espacio y tiempo. No mas deja de existir la memoria y el conocimiento deja de tener espacio y se desdibuja en el tiempo. El conocimiento define nuestra condición más trascendente. El hombre tiene la soberana virtud de pensar y aprender. Homo sapiens, se dice. Dos veces sapiens. En nuestros genes subyace el instinto de transmitir lo que pensamos y aprendemos. 145 Solo así la humanidad ha logrado evolucionar desde las edades más primarias. Pensando y transmitiendo. Testificar. Legar. En el universo coexisten múltiples experiencias y ritmos. El movimiento del péndulo hacia arriba será homólogo al del péndulo hacia abajo. Tal como Heraclíto, el obscuro, apuntara: “Todo se esta convirtiendo”. A veces, lo uno en lo otro. Más allá de la fascinación, uno siente la necesidad de vencer. Luego tal vez, nadie lo sabe, puede llegar el éxtasis. 1.2 PRADERA A LA LUZ DEL DÍA | Saber y ser en ocasiones se miran desde las antípodas, tal como ser y poseer a veces se oponen. Abundan los automatismos en el hombre. No obstante, el hombre tiene siempre opciones. Puede trazar un camino. Alinear un recorrido como un recurso para la comprensión. ¿Quiénes son Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski? ¿Qué significado tienen para el teatro en Cuba? Asoman con estas interrogantes campos con límites en extremo movedizos y una sucesión de zonas inciertas. Tal vez contradictorias. Comencemos por Vicente Revuelta, el más entrañable, afortunadamente aún vivo, cercano y tangible para nosotros. Los años donde Vicente alcanza el cenit de su producción son tal vez los sesenta. Época aquella telúrica y luminosa, tanto para el arte y la cultura como para la humanidad. Un torbellino utópico atraviesa la vida. La contracultura y todo el movimiento que genera ejercen una influencia centrípeta. Nada escapa a ese eje. En Cuba, un cambio violento y radical. Una revolución armada da al traste con un mundo y hace nacer otro. Vicente Revuelta, es, sin dudas, un hijo incandescente de este torbellino. En entrevista reciente alude Vicente a esos tiempos, etapa fundacional de Teatro Estudio: “Yo no quería hacer televisión, porque me llevaba tiempo y era algo que consideraba que no valía la pena, por tanto, no tenía dinero. Entonces, Olga Andreu me sugirió que me pusiera a dar clases. En la calle 15 yo tenía un pequeño penthouse y aquello se convirtió en una especie de agencia del Actor’s Studio en Cuba. Por allí pasó mucha gente. En el Hubert me dieron la posibilidad de hacer “Viaje de un largo día hacia la noche”, de Eugene O’Neill. Por otro lado, además de las clases que daba, organicé una especie de seminario con un pequeño libro, que me prestó Adolfo de Luis. Hicimos los ejercicios aquellos y nos sentimos nuevos actores. Ahora lo pienso y me digo qué fue lo que pasó. Evidentemente éramos ocho o nueve personas que ya teníamos una práctica del teatro, además, tenían talento, unos más y otros menos. Estaban Ernestina Linares, Sergio Corrieri, Pedro Álvarez, y había otro tipo de gente que venía de otro lugar, y su calidad era diferente. Estaba también Héctor García Mesa, que era una especie de organizador y fue quien hizo la traducción. Siempre me acuerdo de que el día que hicimos las improvisaciones nosotros nos quedamos como bobos, yo no sé qué era lo que pasaba antes de eso y qué pasó, pero sé que para nosotros fue una revelación. Me acuerdo que Ernestina me dijo, vamos a ser unos actores maravillosos. Todavía no puedo darme cuenta qué fue lo que pasó, pero evidentemente todos nos quedamos fascinados” Luego comenta sobre un momento más avanzado del grupo, ya en plena ebullición social: “Nosotros además de Stanislavski, estudiábamos marxismo. Y lo hicimos antes del triunfo de la Revolución, y después con mucho cuidado, porque cuando triunfó la Revolución, cuidado si se sabía que tú eras comunista. Pasó mucho tiempo para poder decir a mí me interesa el marxismo. Eso también nos daba una cohesión en el grupo. No era solamente el teatro, sino la función social del teatro, su sentido, el sentido de la historia. Por ejemplo, el hermano de Mirta Aguirre nos daba clases de Historia de Cuba. También era pequeño el grupo que estrenó “Viaje de un largo día hacia la noche”. Viaje de un Largo Día hacia la Noche/Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE Inmediatamente nosotros inauguramos en Neptuno, una academia de arte dramático. Todo eso fue al mismo tiempo en que la Revolución estaba triunfando. Claro, cuando todo cambió nosotros estábamos caminando con la historia. Todo se nos facilitó. Tenía un sentido lo que hacíamos, empezamos a trabajar Brecht, hicimos el Segundo Manifiesto. De repente, ocupamos un lugar que política y socialmente era muy importante, a pesar de sus errores. Por ejemplo, una de las cosas que a mí me llama la atención es cómo es posible 146 que Teatro Estudio no estrenara “Aire frío”. Creo que es porque había distancias ideológicas. Virgilio no era de la gente que iba a leer su obra a Teatro Estudio, pero yo me pregunto cómo es posible que nosotros no la hiciéramos, con tantos puntos de contacto con “Viaje...” Eso es un ejemplo. Pero después para que entrara otra gente que no había estado tan sumergida en el proceso, que tenía sus temores, sus prejuicios, todo eso nosotros quizás no fuimos lo suficientemente lúcidos para darnos cuenta. Estábamos siempre de una cosa en otra. En esa etapa vino Asquini, un anarquista invitado por el Ché, que evidentemente vino para eso, encontró el grupo que le convenía y ahí mismo se formó tremendo rollo, eso sacudió el ambiente y se tomaron posiciones.” En esa entrevista denominada “Monólogo” Vicente apunta al presente con una mirada nada complaciente: “Me interesa mucho vivir el resto de mi vida en este proceso, en lo que está pasando ahora. A veces me harto, me parece que todo es una gran mierda, que la gente no vale la pena, pero inmediatamente lo llevo a una medida de lo que he conocido afuera, y me siento mucho mejor aquí. Este es un país, como ya se ha dicho, muy surrealista, muy loco, con una expectativa de que pase lo que menos uno se imagina, pero nos arreglamos de alguna manera” Esa línea de pensamiento creador resume y delata la línea de pensamiento, polémico y paradójico, que han seguido los grandes artistas a lo largo del tiempo. El artista como conciencia crítica de su tiempo. Quien critica, aventuraba el Apóstol, debe sembrar flores. No olvidemos que la actividad de creación puede ser en sí misma una flor extraordinaria. Brecht podría situarse como paradigma de crítico y horticultor, especialmente con Galileo, donde alcanza un vuelo humanista de excepción. Galileo Galilei. Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE Y es que el pensamiento artístico más auténtico no puede evitar ser crítico si es profundamente humanista. Esto es latente en casi todas las puestas en escena con este sesgo. Vicente tal vez lo simboliza desde su apellido. La “Revuelta” en el teatro puede ser su búsqueda de valores verdaderamente humanos. Pero también en su caso, un claro sentido de pertenencia. Un sentido real para el contacto, para la verdad y la belleza. Tal vez ello le permitió mantenerse buscando una nueva poética para cada puesta en escena, como solo parecen hacerlo algunos grandes directores en la historia. Pienso en Peter Brook, aún muy activo con cerca de 98 años; en el propio Stanislasvki, enfrentando a Stalin en una cena, alzándose defensor de Meyerhold aún a riesgo personal, haciendo gala de valor y fuerza al reformular sus principios de trabajo en la última etapa de su vida. ¿Acaso pueden separarse vida y teatro? Una vez que se alcanzan ciertas cotas ética y vida se fusionan. Se me antoja la búsqueda teatral de Vicente como el encuentro de un espacio de libertad. A través del teatro. Teatro mediante. Un locus visible en toda su obra. Un locus al que la utopía abrió puertas en sus inicios para cerrarlas más tarde en etapas de “recrudecimiento ideológico”. Puertas que se cerraron en los setenta bajo las aldabas y cerrojos del “quinquenio gris”, bajo los martillos de la censura no declarada y el instilar de conflictos internos. Todo ello literalmente asfixió la experiencia del Grupo Los Doce, -al cual por fuerza habrá que dedicar un momento en este texto.- ¿Quién puede hoy aventurar hasta dónde hubiera trascendido este Grupo? ¿Cuáles habrían sido sus límites? Más, ¿en qué sitio de este mundo nuestro se asiste al ejercicio de libertad completa? Las diferencias entre un contexto y otro pudieran ser solo operativas. O mejor, solo verdaderamente perceptibles en cuanto a la vida espiritual del hombre. Jerzy Grotowski, en la Polonia de la sexta década, viaja también por rutas semejantes. Habría que recordar sus cartas a Barba, letras que parecen ser, entre otras modalidades, un curso práctico de táctica y estrategia. ¿Será que el teatro siempre estará en la línea de fuego, frente al poder como una nota discordante? ¿Será que la verdad está cautiva en todas partes? ¿Será que es este un momento particularmente disonante en la historia del hombre, en todos los pueblos y países? Tal vez sí, tal vez no. No creo que alguien alcance a responder preguntas de tal magnitud. Lo cierto es que la actividad del teatro tiene un poder inmenso en función de penetrar la conciencia colectiva. Las ondas de una piedra lanzada a un lago se 147 esparcen uniformemente desde el centro a la periferia. Las ondas: del centro a la periferia. Vicente lo sabe. Aunque como todo humano a veces dude. Lo sabe y lo transmite. Primer Flash Back en la Memoria. Años ochenta. Ciudad de la Habana, muy cerca de la Avenida Paseo. Estamos en casa de Aurelio Sánchez, trovador y actor negro, que en la actualidad reside en la Argentina. Un pequeño cuarto con barbacoa, oasis mínimo en un apartamento donde convive toda una familia. Transcurre una de nuestras habituales “descargas”, comúnmente se prolongaban hasta la madrugada, un grupo de jóvenes artistas, inquietos, repletos de incandescencia y ansias de saber discuten. Es “La Peña de Aurelio”. Teatristas, pintores, trovadores, bailarines y otros pasaron por allí. Nuestro “invitado” de este día, Humberto (el coreógrafo) plantea el tema de la ritualidad como base del trabajo interpretativo. Surge una discusión bien ardua. Se plantean temas de implicación cosmogónica. Vibraciones. Observación de uno mismo[2]. Cuarto camino. Crecimiento. Training Corporal. Grotowski. Humberto refuta que el training del Ritual del Mandala, ejercitado por Vicente Revuelta, ofrece respuestas a nuestras interrogantes. Sostiene que se trata de un training que apunta hacia la noción de arte objetivo de Gurdjieff. (En realidad esta idea del arte objetivo implica elementos muy profundos que aluden a la transmisión de símbolos, elementos que han influido a muchos creadores contemporáneos, probablemente también influyó a Grotowski). Alguien se opone con mucho fervor, señala la ausencia de fundamento sólido en la tesis de Humberto. Este propone llamar a Vicente, decide que la refutación a Vicente llegue… del mismo Vicente. Improbable que a semejante hora Vicente no duerma, todavía mas improbable que venga hacia nosotros desde su penthouse de Calzada. No existe lo improbable tratándose de Vicente y he ahí que nos asombra con su llegada. Se hace un silencio especial. Se apagan las luces. Vicente enciende unas varillas de incienso. Insta a enfocar la atención en ellas. Todos los ojos en las varillas de incienso. Vicente comienza a moverlas en una suerte de danza rítmica, silenciosa, una danza que de a poco llena el espacio. Llega el instante en el que ha marcado un círculo perfectamente delimitado. Camino. Trayectoria. ¿Refutación in progress? Nada de eso: todos estamos ya en el círculo, todos en la trayectoria. En un reducido espacio con barbacoa tiene lugar un ritual. Un ritual sui generis, cada uno va hallando en sí mismo y en el espacio que circunda y acecha imágenes de fuerza y belleza impactantes. El movimiento no abandona la trayectoria circular, brotan cadencias, ritmos, acciones, todos diversos. Respetando siempre el círculo un Vicente extraverbal induce a tomar contactos. (Auto)reconocernos y (re)vincularnos. Las hebras impolutas de una madeja comienzan a trenzarse. En la madeja hasta aquellos ajenos al teatro. Se desata un vendaval de acciones / reacciones. Un vaso de agua en la piel. Una caricia. Una palmada. Sonidos. Cantos. El “training”, en puridad el rito, se prolongó por dos horas y media. A la postre un peculiar estado de conciencia. Una amplificación de sensaciones que pocas veces me ha sido dado experimentar. La “magia”, el conocimiento de Vicente, se hicieron patentes. La respuesta a todas las interrogantes está dada. No se había llegado a la refutación, se había llegado al discernimiento. Aquel fue mi primer encuentro con Vicente. Reconozcamos: no era aquel un training diseñado solo para el cuerpo. Al final, como suele suceder, nadie se puso de acuerdo pero no importó. La conciencia puede ser reluctante. Los sicólogos lo saben. Continuemos pues armando retazos del puzzle. Ese puzzle subjetivo y veleidoso que es la memoria. Hubo otros encuentros. Todos deambulamos aún en el círculo. El hilo aún se construye, trozo a trozo, hebra a hebra. En mi experiencia. 1.3. EXTERIOR, NOCHE CERRADA | Mi segundo encuentro con Vicente y con su trabajo, acaeció muchos años después. Logré penetrar, casi subrepticiamente, en una de las sesiones de trabajo de “El Cuento del Zoológico”, una de las múltiples veces en que lo montó. El Cuento del Zoologico/ Vicente Revuelta/Archivo del CNIAE Ahí estaba yo y ahí estaba mi cabeza dando vueltas, así se mantuvo mi cabeza por horas. Las variaciones de transición-improvisación casi permanentes que Vicente imprimía al 148 personaje de Jerry, escenas que giraban como una noria, a diferentes ritmos e intensidades. Atisbábamos la escena a través de una tela metálica en la oscuridad. Resultaba fascinante aprehender cómo inducía desde la interrelación el movimiento al otro actor, la memoria, lo reconozco, es fragmentaria, es imposible recordar sí se trataba de Vergara o Llauradó. Mi cabeza era la noria. Daba vueltas. En cada vuelta advertía que algo de esto deseaba encontrar yo un día. No importaba cuando. Por aquellos años me esforcé en presenciar varias puestas memorables de Vicente. Son íconos que conservo. A saber: “La Duodécima Noche”, en Teatro Estudio. Vicente interpretaba un bufón, todavía hoy inolvidable. Caminaba haciendo un balanceo estrambótico de cadera y pelvis, se trataba de una marcha absolutamente “extracotidiana[3]”, un equilibrio “de lujo”, todo eso en una época en la que no se hablaba aún de antropología teatral. La Duodecima Noche/Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE El elenco en general, era de un nivel infortunadamente inexistente hoy. Asistí varias veces a esa puesta. Deseaba absorberla. Después, arrobado y cabeza girante, logré asistir a una de las versiones de “Galileo”. Ah, ¿cabeza?, ¿noria?, permítaseme la paráfrasis: ¿o es que son una las dos? Más tarde fue “El Precio”, de Arthur Miller, puesta que recuerdo como el paradigma de un elenco perfectamente equilibrado, de altísimo nivel actoral. Esta época de Teatro Estudio fue escuela y fue taller. Todo eso aunque Vicente, inconforme, como todo demiurgo, se quejaba a veces de la incomprensión de algunos actores. Aquello marcó un nivel en la formación del actor en Cuba. Nivel que no ha vuelto a conseguirse. Y ese nivel se alcanzó de la mano de Vicente. Se alcanzan años y con ellos se suele adorar al pasado. He ponderado cuanto escribo. Juro que no es este el caso. Eran los míticos 70. Cuanto he narrado ocurría en una pequeña isla del Caribe. En sentido análogo, y en paralelo, transcurre la experiencia de Grotowski, primero allá en Europa, luego en el mundo. Una experiencia que se extenderá desde los sesenta hasta su muerte en 1999. Busquemos nexos, vínculos, relaciones. Antes un dato curioso. Del propio Vicente escuché (y de Tomás González, fundador de Los Doce) acerca del encuentro, a todas luces mítico, entre Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski. Resultó de un viaje a Europa de Vicente, en los setenta, si la memoria no me es falaz. Al parecer, el encuentro no fue tan importante para Vicente, tal vez lo fue menos para Grotowski. Todo había sido organizado por el Ministerio de Cultura polaco ante la visita del “artista cubano”. Como suele suceder con lo que es oficialmente dictado, Grotowski recibió a Vicente con cierta frialdad. Vicente me confió aquella vez que Grotowski le había recomendado concentrarse en los rituales afrocubanos. De acuerdo con el maestro polaco esa era la vía para entrar en nuestros arquetipos. Curioso que el propio Grotowski adoptara después otros enfoques mucho más amplios que el sustrato autóctono de su cultura. No creo necesario abundar demasiado en ese encuentro. Otros puntos hay de mayor trascendencia y significado para la vía creativa de cada uno de ellos. II. – DESAFÍOS | Conectadas en estrecho e indescriptible vínculo se revelan las búsquedas de Vicente Revuelta en Cuba y de Jerzy Grotowski en su itinerario universal, itinerario que rebasa con creces las fuentes de su origen polaco. No voy a incurrir en comparaciones directas, en materia de arte suelen ser caóticas, en la vida imprudentes. No puedo, sin embargo, abstenerme de señalar los inevitables puntos de contacto. Cada uno, europeo y caribeño, está revestido de las armas de todo investigador insatisfecho e insaciable, cada uno recorre un itinerario personal que lo define y distingue. Estos son los desafíos. El trazado de los escollos encontrados en cada ruta. Pues cada ruta es diferente. Trataré de observarlos, de seguirlos, el hilo será más o menos cronológico, en el recuerdo o en el conocimiento. Que ambos tienen su cronología. 149 Segundo flash Back La primera vez que trabé contacto con el entrenamiento “grotowskiano” todavía estudiaba como instructor de teatro. Mi profesora de dramaturgia, la desaparecida Gloria Parrado (lamentablemente subestimada por algunos, pero sin dudas una mujer de extraordinario conocimiento aunque sin mucha experiencia de dirección) crea un grupo de instructores de teatro. El objetivo: experimentar con las posibilidades del cuerpo, la voz y la imagen. Comenzamos a trabajar con el “método de creación colectiva”, de Enrique Buenaventura, importante figura ya fallecida del teatro latinoamericano. Las famosas “analogías y homologías” que hicieron fiebre en un período. No obstante, todo el entrenamiento de base de los actores, lo fueron los “ejercicios de Grotowski”. Advertíamos que nuestros cuerpos, nuestra plasticidad y nuestras voces, día a día, se expandían. Con el uso de los resonadores. El training corporal: El ejercicio del gato, la marioneta, caminar agarrando los talones, introversión-extroversión y otros muchos, fueron moldeando nuestra corporalidad singularmente. Recuerdo en particular un ejercicio de voz muy inspirador. Lo llamábamos “Diálogo con el espacio”. El actor comenzaba a liberar sus palabras y pensamientos hacia las paredes, el piso, el techo del local, buscando respuesta sonora. En un modo deshilvanado, el ejercicio recordaba a las sesiones de asociaciones libres del psicoanálisis freudiano. El actor se movía hacia un estado de “delirio” cada vez más profundo, surgían elementos notables para uno mismo. Además de sonidos increíbles. Se crearon fuertes relaciones de grupo, antes desconocidas, inéditas, todo ello a pesar de que la mayoría compartíamos la misma aula en la escuela. Según Gloria Parrado era necesario el autoconocimiento del intérprete. Trabajábamos mucho sobre nuestros límites. Los ejercicios de Grotowski ella los articulaba en “cadenas” peculiares, las que llamaba: Cadena del primer actor, Cadena del segundo actor. Tal vez para indicar estadios de desarrollo. Durante tres años hicimos los ejercicios del libro “Hacia un Teatro Pobre”. Fue un ritual constante. Pasamos de uno a otro, justificándolos en una secuencia. Improvisando cada vez. Justo en una época en que aún Grotowski era considerado con recelo en el medio teatral, clasificado como ente “místico”, “raro”, puede no fuera un lugar común la frase: “vaya Dios a saber lo que hacíamos encerrados en un local dando gritos”. Y seguimos dando gritos. Dios seguramente sabía. Y Grotowsky. Y Gloria Parrado. Hicimos dos obras “El Primer Soviet” y “Reunión de Muertos en Familia”. Todavía hoy puedo advertir en qué forma estos ejercicios destilaron en mí (y en otros) la “segunda naturaleza” a la que tanto alude Stanislasvki. Esa “segunda naturaleza” que hoy emerge como algo a mano cuando me es necesario. Esta etapa sembró en mí la profunda convicción de que la técnica del actor es siempre, y ante todo, psicofísica. Corpus et anima. Esta etapa dejaría semillas. Germinarían en experiencias que vendrían después. Esas semillas serían muy necesarias, imprescindibles, para encuentros como los ya citados con Vicente Revuelta. Tercer Flash back Resulta ineludible en esta indagación que se bosqueja en la memoria mencionar el grupo Los Doce. Es tal vez el más remoto antecedente de la experimentación en Cuba. Experimentación que, paradójicamente, siempre ha estado ligada a la institución y al mismo tiempo escindido de ella. Se ha hablado bastante del grupo Los Doce. Se conoce un tanto su historiografía y algo de lo que ha dicho Vicente. Pero mucho no es aún hoy visible. La imagen más vívida que tengo del grupo Los Doce (y de la relación de Vicente con él) la tengo de primera mano, mas no de Vicente. De Tomas González, fundador y miembro de Los Doce, dramaturgo y director talentoso, fallecido recientemente. A finales de los ochenta o principios de los noventa, Tomás y yo coincidíamos frecuentemente en el “barrio”. Por aquel entonces residía yo en el Edificio Alaska, en la calle 23. Tomas vivía muy cerca, detrás del Habana Libre, en un apartamento que hube de visitar un par de veces. Con su fastuoso don de “oratoria” Tomás fascinaba a todo interlocutor. 150 Nuestros temas favoritos: esoterismo, Gurdjieff, training psicofísico, El Grupo los Doce, Grotowski. Cierto día el agobiante calor del trópico nos llevó a encontramos en Coppelia. En un momento se detuvo como para hacerme una revelación: “Sabes, Sicilia, tú que eres observador, Vicente encontró en Los Doce una forma de dirigir muy particular. Sí, todo director se afana, busca, propone, dispone. Pero Vicente desde Los Doce, comenzó a ser receptivo. Comenzó a ser “ying”. Y ha ido logrando una manera de decir “no diciendo”. Una manera de llevarte o hacerte ir sin esfuerzo. Estás trabajando y Vicente te dice frecuentemente: no sé, y te obliga a que tú busques. A que encuentres. ¿Lo ves?”. Y Tomás se me quedó mirando, midiendo el impacto de lo dicho. Confieso que una y otra vez, en diversos períodos de mi trabajo, esta conversación ha devenido meta personal. Método. ¿Pero qué fue exactamente Los Doce como proyecto? ¿Por qué hoy abre un espacio de referencia inobjetable para aquel que se propone investigar? Aquel fue quizás el primer grupo que surge de un desacuerdo, más o menos consciente, con la forma de producir y hacer teatro en la época. Con la “estructura” misma del teatro del momento. Lo que Vicente denomina teatro de “proceso” en oposición al Teatro de “repertorio”, que él quería dejar atrás. Se defendía la necesidad de investigación, la demanda de hacer del proceso el primer punto del fenómeno teatral, justo bajo la influencia de las ideas del Teatro Laboratorio de Wroclaw. La necesidad de un equipo en cuanto a tener una profunda conexión artística y conceptual[4]. Se trata de un grupo que emprende un trabajo de investigación e improvisación en torno a uno de los textos más importantes de la dramaturgia universal. El Peer Gynt, de Ibsen. Tal vez el centro del canon dramático actual. Un trabajo que hasta hoy forma parte de la memoria teatral que nuestros maestros comentaron. Develemos este período a través de una de las entrevistas más claras del propio Vicente, atisbos tan impactantes que me permitiré citar in extenso: “Un día llegó la gente de Los Doce, a pedirme ayuda, porque Julio Gómez, estaba trabado como director y no daba pie con bola. Fui a verlos y me conmovieron porque había una disciplina y un deseo enorme de trabajar. Titón me había dado En Busca del Teatro Perdido, el libro antológico de Barba, el primero que se escribió sobre Grotowski, que lo había traído de un viaje, y ahora me dio el libro del propio Grotowski Hacia un Teatro Pobre. Ya me había leído el libro de Barba y empecé a leerme el de Grotowski y acepté ser el director de Los Doce. Eso fue en el mes de octubre de 1968. Ellos habían conseguido un salón de excelentes condiciones en la instalación que ahora ocupa la Casa de Cultura de Plaza, en Calzada y 8, y ahí estábamos todo el día. Durante los primeros meses se hizo una revisión rigurosa de los trabajos más novedosos de que teníamos noticia: El Living Theatre, el Open Theatre, el teatro Laboratorio de Grotowski. Se trabajaba sobre el folklor, con tambores, con percusión, se hacían acrobacias, ejercicios de actuación y de todo tipo. Lo que pareció más sistematizado y más asequible a nuestras posibilidades fue el libro de Grotowski, que estaba recién editado, porque además se trataba de un manual. Entonces, me sucedió lo de otras veces. En realidad, yo no acababa de entender bien aquello. Igual me había pasado con Brecht, no tanto con Stanislasvki donde pude prepararme más y era más simple. Y, con respecto a Brecht se trataba de ir a la práctica del trabajo y ya, pero aquí la circunstancia era otra. Aquí yo era el guía y ya se trataba de otro tipo de responsabilidad. Barba era un estudioso de las religiones comparadas y su recorrido por la India en esos años, me imagino que tuvo que ver con la búsqueda de los principios rituales y religiosos comunes al teatro. Grotowski es un individuo cristiano, en su trabajo están los elementos de la tradición. En aquellos tiempos yo era un ignorante con respecto a todos estos asuntos, con unos prejuicios enormes con todo lo que tuviera que ver con la religión y con la iglesia, entonces no acababa de entender bien aquello. Empecé un proceso que recuerdo como muy doloroso y peligroso. Estaba nutriéndome de un grupo de cosas nuevas para mí empezando por toda la aplicación de la filosofía oriental que hay en Grotowski. En cuanto al entrenamiento que hacíamos allí, nosotros partíamos del entrenamiento psicofísico de Grotowski y después yo inventaba ejercicios sobre la base de mis conocimientos de psicología. Ese era uno de los problemas que había. Al no tener yo muy clara la meta final del trabajo podía haber algunos ejercicios y algunas situaciones que resultaran 151 neurotizantes. La mayor parte de los ejercicios correspondían al trabajo del actor sobre sí mismo. Algunos eran de exploración interior. En otros casos me inspiraba en el sociodrama, el asunto del alter ego y todo eso. Según los problemas de cada cual yo ideaba determinadas situaciones y se trabajaba como un sociodrama. Ahora yo pienso que ni siquiera Grotowski tenía muy claros los ejercicios sicofísicos porque los estaba vinculando con un planteamiento stanislasvkiano, que es la idea de justificar la pauta. Sin embargo, ya en Barba, hay un sentido más técnico, más científico del asunto. El plano psíquico interviene de otra manera, en el sentido de que cuando se trabaja el plano físico, en el calentamiento, uno está intelectualmente pendiente de su cuerpo. Está analizando su resistencia, sus posibilidades, pero no se trata de que haya que formarse una imagen, simplemente se está trabajando sobre el centro físico para dominar ese centro. Allí también hicimos una sesión de desnudos, porque en cierta ocasión sentí que todo aquello se nos había vuelto algo mecánico. Entonces le escribí una nota al Pibe, en un papelito, en el que le indicaba que desnudara a alguien. El Pibe desnudó a Ada de la cintura hacia arriba y la respuesta de Ada fue levantar los brazos y crear así unas imágenes de prostitución o algo semejante. La reacción de algunos fue asustarse y reprimirse, mientras que otros se emocionaron mucho, lloraban incluso”. Esta primera parte de la entrevista sobre el tema de Los Doce clarifica todo cuanto atañe a las búsquedas del actor, a los errores y aciertos que pudieron nutrir o no este universo. La memoria puede ser falaz, regresemos a la seguridad de las citas. Añadamos algunos pasajes en lo que concierne al abordaje del montaje, el mito del Peer Gynt: “En el libro La Función del Orgasmo había un ejemplo con Peer Gynt, en función de cómo el personaje enajenaba su sexualidad cuando raptaba a la muchacha que puede ser su amor, pero como este es un acto contra la sociedad, entonces el acto sexual es un acto agresivo, y en lugar de copular lo que hace es como clavar un cuchillo con su pene. Todo esto me pareció tan interesante que decidí hacer el montaje de Peer Gynt a partir de esa tesis. Y comenzamos a montar la obra a la par que hacíamos nuestro entrenamiento. Eso nos tomó cerca de un año” Y todavía añado un tercer y último fragmento. Antes, sin embargo, permítaseme indicar, de pasada, cuan perceptible es la filiación de Vicente con el Living Theatre, tanto como con el propio Grotowski. Justo en ese tiempo Vicente hubo de presenciar en París dos puestas en escena del grupo. El mismo al describir la estructura compositiva del Peer Gynt, evidencia su deuda con el Living también, he aquí la cita: “Como siempre sucede cuando uno va a buscar valores arquetípicos, el prologo funcionaba como una cosmogonía. Yo partía de ejercicios de relación y valoración del espacio, del tiempo transcurriendo en el espacio y la energía. Era una especie de análisis activo del actor, en cuanto a él y su energía desplegado en un tiempo y un espacio. Eso crea todo un movimiento. Los actores usaban un traje de lienzo que llevaba una larga tela enrollada a la cintura. En un momento esa tela comenzaba a desenrollarse y los actores se comenzaban a unir en una imagen que era como el símbolo de la sociedad. Luego se hacían improvisaciones, se unían se separaban, hasta que todo el grupo empezaba a funcionar como un gran sexo y paría a Peer Gynt. Era el nacimiento del individuo.” Más adelante Vicente en esa misma entrevista, abunda en cuanto el significado estético de esta experiencia. La televisión inglesa, sostiene, les filmó un documental, los situó en un estrato superior al Living. De hecho la imagen central de la iconografía del Peer Gynt, que hemos visto como primicia reciente, en la Casona de Línea, tras de años de estar guardadas creo que en la Argentina -el momento del nacimiento- evoca una imagen de Paradise Now del Living, pero en mi opinión la supera, como algo usado solo como referente. Un punto de partida. Otras imágenes vistas aquí impactan sin dudas por su fuerza y originalidad con atisbos únicos. Imágenes no meramente bellas sino cargadas de una perceptible energía interna. Como algo realmente trascendente, queda el grupo Los Doce, para la memoria teatral cubana. Fue el tiempo en el que su repercusión nacional e internacional se vio frenada y Vicente deja entrever las causas ideológicas (que las hubo, además de las artísticas), causas todas ellas suficientes para que experiencia tan significativa quedara trunca. La utopía debe, 152 en teoría, alimentar utopías. Pero nada de eso, funcionarios e instituciones miraron con recelo la experiencia. En otro sentido, podemos estar de acuerdo o no con ciertos postulados. Por ejemplo, cuando se sostiene que Grotowski era cristiano. Grotowski es un místico. Un místico no necesariamente de filiación cristiana. Mas lo importante, lo trascendente, es la sinceridad, el ethos que instila el camino seguido por Vicente en todo momento. Igual que a Grotowski. Los recelos institucionales (y personales) estaban muy extendidos en los difíciles años del 68-70. Esa es ya una historia otra, una historia que no voy a contar. Otros la han contado. flash forward La memoria, por fortuna, no resulta unidireccional, como el tiempo. Vayamos adelante, pues. Finales de los ochenta. Años intensos de gran efervescencia en todas las artes. Fundamos el “Taller de Creación Escénica”. Casa del Joven Creador, San Pedro y Sol, Habana Vieja. Fast forward: en la unidireccionalidad del tiempo he allí hoy el Museo del Ron. Fue un lugar inolvidable, mì(s)tico, para toda una generación. Seres que no temo calificar de valiosos, pasaron por allí, a saber: Carmen Duarte, Orestes Pérez, Raúl Alfonso, José Camacho, Jorge Luis Garrigan, Salvador Lemis, Joel Cano, Lira Campoamor, Alberto Curbelo, Roberto Poveda, Jezabel Añon, Sandra Lorenzo, Alfredo Reyes, Manuel Oña, Eduardo Novoa, y muchos otros cuyos nombres (ah, memoria falaz) ya no recuerdo. La mayoría reside hoy en otros sitios del mundo. Un grupo de creación con una fuerza y talento incuestionables, que marcó pautas en el teatro de los ochenta, con una respuesta otra, alternativa, al teatro del momento. Desde el primer manifiesto hicimos patente nuestro desacuerdo profundo con la postura del teatro “oficial”. No, se dice “oficial” y acuden otras connotaciones. Dígase “ortodoxo”. Desacuerdo con el acto mismo de producir para un resultado. Con el resultado de ese desacuerdo logramos captar la atención de la Habana teatral del momento, crear un público para nuestros espectáculos. Aunque la discusión y decisión de qué y para qué se montaba una obra era asumida colectivamente para cada estreno, tres directores asumíamos la responsabilidad de las puestas en escena, tres directores a cargo de tres pequeños equipos de trabajo: Orestes Pérez, actor-director llegado de Buen Día; Raúl Alfonso, dramaturgodirector, graduado del Instituto Superior de Arte y quién suscribe estas líneas, Rubén Sicilia, activo tan solo como director en esa fecha. Fue aquella una etapa de formación muy intensa para todos los miembros. Etapa en la que se lograron obras muy polémicas, como “Carolina de Alto Songo” y “La Plaga” de Carmen Duarte; “El Grito” de Raúl Alfonso; “Punto de Partida” y “Tocata para un hombre que se perdió”, ambas cuya dirección estuvo a mi cargo. Se dice que la historia se repite dos veces, la primera como tragedia, la segunda como comedia. Nada es absoluto, sin embargo. Otra vez fue la tragedia. Nietzche, adepto a ella, imaginó el “eterno retorno”. A partir de la intervención de funcionarios (e instituciones) a los que no agradaba, al parecer, el carácter iconoclasta del proyecto, el taller fue progresivamente asfixiado, a sus miembros y fundadores no quedo otro recurso que la dispersión, el movimiento hacia otros sitios y proyectos. Fue el retorno nietzcheano a la tragedia otra vez dejando trunco (por incomprendido, por alternativo, por quién sabe qué) un movimiento valioso. No quedaron truncas, sin embargo, las muy especiales energías que aquel taller logró aglutinar. El propio Vicente asistió varias veces. No bastó su asistencia: asesoró y apoyó alguno de los procesos que allí se desarrollaron. Mantuvo, cierto que a distancia, contacto periódico con algunos de nosotros. Asistió también a funciones. Y lógicamente esto ejerció influencia. Víctor Varela –de alguna forma discípulo de Vicente para la fecha- hizo que sus actores compartieran entrenamientos con los nuestros. Y Víctor, invitado a nuestro espacio en La Casa del Joven Creador, llevó a escena uno de sus primeros montajes, “Los Gatos”, interpretado por Alcibíades Zaldivar (devenido más tarde su actor fetiche) y Maria Elena Espinosa, Graduada de el Teatro de Arte de Moscú, quien ahora reside en España. Esto creó una fuerte ebullición en el punto de arranque de su trabajo, lo fue también para los procesos 153 que nosotros abordábamos. Y para nosotros constituyó un desafío más. Lo trunco solo lo es por un rato. En apariencia. Un punto decisivo, creo, lo fueron dos talleres que impartieron para nosotros dos importantes visitantes. Talleres que por razones casi “mágicas” logramos conectar. El primero impartido por Perla Stoppel, profesora de expresión corporal de la Argentina. El segundo ofrecido por María Jiménez, guatemalteca. Más… alerta: María había sido discípula de Grotowski en el Centro de Pontedera. Vicente la conoció y dialogó mucho con ella. El entrenamiento impartido por María se prolongó unos meses, giraba alrededor del Body Contact y del concepto de Acción. Aquello literalmente nos cambió tanto la vida como la percepción creativa. María había recibido “el batón del relevo” directamente de la fuente. Esto se hizo evidente para nosotros en su facilidad para ver y abrir bloqueos. Y sobre todo en su capacidad para trabajar en silencio total y comunicarse con todos. Era el suyo, si lo hay, un silencio locuaz. Fue aquel mi point of no return; desde entonces las ideas de Grotowski sobre el actor formaron definitivamente parte intrínseca de mi camino. Tiempo de esparcir las piedras y tiempo de allegar las piedras, se lee en las Sagradas Escrituras. Toda aquella época de gran intensidad e incandescencia creativa lamentablemente se disipó hacia finales de los ochenta. De todo aquel grupo de cerca de cuarenta jóvenes tristemente para el país solo residen tres o cuatro en Cuba. Existen correlatos con otras experiencias del período. Pienso en Teatro del Obstáculo; en Arte Provisional; Arte Calle; Grupo Puré y otros muchos… Fue el tiempo de esparcir las piedras. Sueño con tiempos capaces de allegarlas. Segundo Flash Forward A finales de los ochenta, casi a principios de los noventa, mientras se disolvía el Taller de Creación antes citado, tal vez alzándose desde sus restos, surge el primero de los grupos que me atrevo a fundar. Las piedras se allegan o se avientan pero siempre debe haber piedras. Teatro Límite. Con el auspicio de Juglarezca Habana se logra una sede en 41 y 82, Marianao, a un lado del Cine Lido. A aquella sala la llamamos “Teatro Cero”. El nombre actuaba como retruécano irónico, siendo aquel un antiguo templo, local casi en ruinas, de teatro tenía muy poco. Aquel sitio lo compartimos con Guillermo Horta[5], actor-bailarín, muy talentoso, permeado también de las ideas de Grotowski y admirador de Vicente (hoy reside y trabaja como intérprete de una compañía experimental en Austria). Ya dije que lo trunco no lo es por mucho tiempo; realizamos aquí una tarea de investigación casi titánica, en especial por las difíciles condiciones del espacio. Clareaban los albores de la crisis económica llegada de la caída del campo socialista y trabajábamos nosotros en aquel pequeño equipo, entrenábamos a una intensidad que hoy vislumbro desaforada. Era la intensidad de una triada: Marco Llacobet (el único de los actores que hoy vive en Cuba); Alejandro Benítez (reside en España) e Iliana María, (actualmente reside en Alemania). Ofrecíamos funciones para la comunidad mientras intentábamos “acondicionar” el local. El anhelo: hacer del templo abandonado un templo retomado. Y poblarlo de imágenes. Entrenábamos, por supuesto, con los ejercicios de Grotowski. Se adicionaron los ejercicios de “El Teatro Ambientalista”, de Richard Schecner, muy conectado también a los principios de Grotowski. Nos afanamos en ejercicios de relaciones con el espacio y Mandalas. Training psicofísico y vocal. Por vez primera enfocamos en el trance del actor. Grotowski era definitivamente nuestro punto de referencia. Aquellos actores alcanzaron estados que pocas veces he tenido oportunidad de presenciar. Trabajamos y estrenamos varios montajes. Aquello se prolongó unos seis años, aproximadamente. Emergieron “Tocata para un hombre que se perdió”, ya citada, “Ritual I”, “Ritual II”, “La Tierra Baldía”, “Estanco”. Este último trabajo, unipersonal basado en el poema de Fernando Pessoa, tuvo la oportunidad de ser presenciado por Vicente en el Festival del Monólogo. No lo olvido, era el año 1993 y acaeció en el Bertolt Brecht. Aquel trabajo recibió Mención de Actuación. Recibimos, además, el estímulo adicional de que a Vicente le causara muy grata impresión. En otra oportunidad, 154 haciendo gala de esas inesperadas y misteriosas “apariciones”, acudió Vicente a la sede de Marianao a presenciar “Ritual II”. Allí estuvo aconsejándonos un rato. Nos habló del carácter performativo de ciertas acciones, de cómo hilvanarlas. Fue un encuentro de vasto significado para nosotros. Y comenzamos a elaborar nuestros propios ejercicios[6]. A hilvanar. Más he aquí que una hepatitis viral de cierta intensidad desactiva mi trabajo. El cuerpo y sus traiciones. A mi salida del hospital casi todo el equipo se había marchado al extranjero. Se avecinaban los momentos más duros del llamado “período especial”. Pasaría mucho tiempo antes de que fuera posible reconectar con las ideas de trabajo de Teatro Límite, con la presencia viviente de las ideas de Grotowski, con lo aprendido de nuestros contactos con Vicente. En los tristes y difíciles años que siguieron me dediqué a la enseñanza artística en las escuelas. El hombre aprende, sabe y transmite. Dirigí muy esporádicamente. III.- Éxtasis Presente que mira al Pasado Año 2009. Cienfuegos, Festival del Monólogo. Una ciudad se abre ante mí remembranza. Nos afana la unidireccionalidad del tiempo, la supuesta tridimensionalidad del espacio. Asisto con mi equipo Teatro del Silencio, grupo formado en el 2005. Con este grupo aventuro retomar cierta estética una y otra vez trunca. El deber del tiempo es intentar las mutilaciones, el de los hombres invalidarlas. En el intento de invalidarlas retomo una estética que traza sus contornos desde Prisionero y Verdugo[7], nuestro primer trabajo que tuvo éxito parcial, Prisionero y Verdugo/Primera versión/Husmell Diaz y Annieye Cárdenas hasta el unipersonal Juicio y Condena Pública de Charlotte Corday, Juicio y Condena Pública de Charlotte Corday/ Mirtha Lilia Pedro Capó Premio Terry, Premio Caricato, en donde afianzamos muchos años después del punto de partida una serie de ideas sobre el trabajo del actor, sobre la presencia del cuerpo en el espacio, que hemos acariciado y digerido largamente. Lo trunco es solo el recuerdo. Y las muescas que dejó. Tengo el sentimiento de que otros están ahí, junto a mí. No estoy, y nunca he estado solo, aún cuando en no pocas ocasiones me haya sentido así. La psiquis tiene sus tomaduras de pelo. Aquí, en la otrora sede de Teatro A Cuestas, grupo liderado por Ricardo Muñoz Caravaca allá en los ochenta, es la apoteosis de este sentimiento. El sitio, el locus, es de alguna manera mítico: una pequeña sala alternativa donde aquel grupo marcó un panorama decisivo para el teatro nacional del período. Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski están presentes. Ese grupo tiene una historia y significado que no pueden pasarse por alto. Ricardo Muñoz, amigo personal y colega, devino interlocutor continuado en sus visitas a la Habana en los ochenta. El, como Víctor Varela, tuvieron la extraordinaria posibilidad de viajar, ya en la década del 90, al Centro di Lavoro de Pontedera. Allí lograron contacto directo con Jerzy Grotowski, justo en su etapa última de trabajo. Evoquemos los montajes memorables tanto de Víctor como de Muñoz en la época, montajes en los que eran perceptibles, por vías muy diversas, algunas de las ideas de Grotowski, sin obviar la conexión con Vicente. Mencionemos, que mencionar, de alguna manera, es testificar: “La Cuarta Pared”, “La Opera Ciega”, “Segismundo Ex Marques”, “El Arca”, o “Malcom X”, “Asumdiasam”, “Las Rosas de Maria Fonseca”. Más importante que ver el pulso de la estética de cada quién, es entrever, al menos por un instante, las fuentes del pensamiento. Cogito, ergo sum, juraba Descartes. Al comienzo de los noventa resido en plena calle 23, en el Vedado. Se trata de el edificio Alaska, uno de los pocos sobrevivientes para la fecha del art noveau habanero (más tarde, 155 tristemente, como otros muchos, se derrumbó). Aquel sitio devino punto de encuentro y trabajo para muchos amigos y colegas. Muñoz me visitó allí varias veces. Nos ocupaban largas conversaciones, intercambios cuyas esencias parecen imposibles de reproducir hoy en su totalidad. Con Víctor también tuve algún encuentro por esa misma época, no del mismo significado y repercusión. He de evocar una noche de diálogo intenso. Muñoz hablaba de Pontedera, de lo que había percibido allí. Otra vez burlo los diques del recuerdo, heme aquí tratando de reconstruir cuanto se dijo: Muñoz: Era notable el sentido musical del training, todo estaba articulado por un ritmo perceptible. Todo cambiaba, cada vez que alguien cambiaba…. Sicilia: ¿Cómo que cambiaba, en qué sentido? Muñoz: Sí, era como si todos estuvieran conectados en un sentido muy especial. Cada intérprete funcionaba como una pequeña pieza de un organismo…vinculado a una acción esencial. A una asociación bien precisa. Sicilia: ¿Y el dialogo con Grotowski, como funcionó? ¿Te aportó algo? Muñoz: Las veces que me habló, bastaban sólo algunas indicaciones para comprender perspectivas insospechadas. Era como si a través de él se condensara la experiencia de varias personas… Hicimos largo silencio. La experiencia continuaba condensándose. Y claro, la conversación fue mucho más larga. Y tanto antes como después tuvo diversos derroteros. Más esas serían otras historias. En cuanto a mí este diálogo no ha dejado de ser frecuente motivo de reflexión a lo largo de todos estos años. Y la experiencia ha continuado ahí, condensándose. En esa misma época cayó en mis manos, a instancias de Ricardo, un artículo muy revelador, tal vez el texto más breve escrito por Grotowski. Y el pequeño texto fue debatido varias veces por Ricardo y por mí. Enfoca uno de los temas esenciales del teatro del maestro: el tema de las asociaciones. Seria baladí discurrir acerca de nuestras discusiones. Quien escribe y razona es Jerzy Grotowsky. Insertemos pues el texto con la intención de redondear alguno de los puntos sugeridos: SINCERIDAD CORPORAL Por Jerzy Grotowski. "El actor que interpretaba al Príncipe Constante, Ryszard Cieslak, nunca trabajó sobre el éxtasis místico o el sufrimiento, sino exactamente lo contrario, aquello sobre lo que trabajó fueron las asociaciones del tiempo de la adolescencia, y más que asociaciones, fueron recuerdos de una búsqueda física del juego, de un cumplimiento amoroso, de una alegría amorosa. De ningún modo fue tocado el problema del sufrimiento, las asociaciones del actor eran tales que lo condujeron a un proceso orgánico extremadamente puro; en el contexto de las palabras pronunciadas en la puesta en escena, dio como resultado la historia del éxtasis religioso. Había una cosa en común entre los dos fenómenos: el don que se puede caracterizar y la confesión a través de la sinceridad corporal. Principe Constante Archivo Personal. Dir. Jerzy Grotowsky Desde otro punto de vista -esto fue un fenómeno común- aquello que vio el espectador y aquello que vivió el actor fue algo completamente diverso. Todo esto junto dio un sistema de signos interpretativos muy precisos que crearon el montaje en la mente del espectador." Pasmosa brevedad. Con el breve artículo anterior, de claridad enceguecedora, sucede en mi opinión algo semejante a lo que tiene lugar con el texto Stanislasvkiano de las Acciones Físicas. Probablemente resulte la base inicial de la Investigación de Grotowski sobre el actor. No soy traductor ni políglota pero las malas traducciones han derivado en una serie de equívocos. Largo e ineficaz resultaría enumerarlas. Descreo, además, que mi conocimiento alcance a ello. Por lo pronto esta es una de las traducciones menos malas. Y es siempre mejor algo que nada. 156 Pasado que mira al Presente La Casona de Línea. Años Noventa. Otra vuelta de tuerca. No se ha escrito lo suficiente – y no con suficiente conocimiento- sobre este período, al parecer culminante de la actividad de Vicente. Y aunque infortunadamente no tengo el conocimiento de todas las aristas no debo abstenerme de abordar las conocidas. Se calla lo que se desconoce, se tiene el deber de alzar la voz en cuanto a lo que se conoce. Se trata de una de las últimas aventuras de Vicente. Vicente Revuelta siempre ha manifestado una inclinación muy personal hacia la improvisación y el happening. El mismo lo sostiene en una entrevista: Yo tuve la suerte de ver una puesta en Italia de Giorgio Strelher sobre LOS GIGANTES DE LA MONTAÑA. Antes de ver ese espectáculo ya había tenido conocimiento de trabajos teóricos de Strelher, de críticas, tenía una noción de lo que podía encontrar en él. Pero ver la puesta de esa obra de Pirandello, me deslumbró porque me pareció perfecta, yo también estaba ahí metido. En esa puesta vi algo que tiene que ver conmigo, con mis gustos por el teatro, que es la mezcla del happening y eso que hoy se llama performance, que estaba en el uso que el daba con el telón de hierro, que cae sobre la carreta que simboliza a los artistas. Y al final de la puesta, cuando eso pasa, uno se dice: “la va a romper, no la puede romper”. Y el telón cae y la destroza. Eso para mí fue impresionante y creo que me ha servido para crear imágenes en mi propio trabajo” Ese sentido “de estar ahí metido”, siempre buscado por Vicente, culmina con el montaje en el patio de La Casona de Línea, a la caída de la tarde y bajo la extraña luz de las antorchas, de “Medida por Medida”, de Shakespeare. Fue aquella la última vez que logré ver actuar a Vicente en un gran rol. Quizás lo hizo evocando su montaje de “Las Tres Hermanas”, que comenzara en el mismo espacio, montaje que se caracterizó también por la improvisación. El propio Vicente consideró siempre a “Las tres hermanas” su montaje insignia. Las Tres Hermanas/Dir. Vicente Revuelta/Archivo CNIAE Su tour de force. A contrapelo de alguna crítica que siempre valoró mucho “La Noche de los Asesinos”. Tuve la oportunidad de presenciar varias veces “Medida por Medida” (1993). Alcance a ver cómo variaba ostensiblemente de función en función su cadena de acciones. “Para no aburrirse”, habría dicho quizás Vicente. Gente de teatro, en general un público interesado y participativo, asistió a La Casona durante esos años. Poco después monta Vicente “Ñaque o de piojos y actores” (1994). Intuitivamente, como siempre sucedió a Vicente, es este, en mi opinión, el último intento por fundar un GRUPO, valgan las mayúsculas, algo que deseó toda su vida, que varias veces estuvo cerca de lograr, pero que para él fue un intento efímero. En las ruinas de aquel patio, aún sin construir la ahora flamante Sala Llauradó, Vicente lidera un grupo de jóvenes intérpretes, en su mayoría aficionados, apoyándose en Alexis Díaz de Villegas y en el poeta Omar Pérez en la función de guías. El trabajo se prolonga durante dos veranos (1997-1998). Se entrena muy seriamente. Dos o tres veces acudí y entrené con ellos. Ejercicios “grotowskianos”. Ejercicios del Living. Y otros de varias fuentes. Los actores crecieron a ojos vistas. Se vivía un laudable espíritu de Comuna. Vaticino que debajo gravitaba fuertemente la impresión recibida por Vicente ante el Living, allá en Europa. En no pocas ocasiones se cocina y se duerme allí. Se ofrecieron al público algunos unipersonales, como “El Trac” de Piñera, interpretado por Alexis, “Jorge”, de Jorge Ferrera, “Alas” de Luis Manuel Rodríguez y alguna que otra improvisación con público. Se monta “La Zapatera Prodigiosa”. Se práctica meditación Zen, pues el espacio teatral se comparte con el entonces incipiente dojo zen de la Habana. Se realizan talleres de música y danza, y se improvisa una suerte de cabaret esporádico y nocturno que daría apoyatura a los 157 espectáculos. Se monta un espectáculo Brechtiano, basado en la breve pieza El emperador, el mendigo y el perro muerto, el poema “Baal” y algunas canciones del repertorio brechtiano. Algunos performances o happenings en paralelo, se mantiene el espacio vivo, en estrecha relación con el público. Finalmente Vicente, victima de una crisis nerviosa, se aleja. Tiempo de esparcir las piedras: el grupo se disuelve. Una historia que una vez y otra ha estremecido nuestra historia teatral de las últimas décadas. Pudiera pensarse que la “cultura de grupo” desaparece. Que lo hace de un plumazo. Sin dejar huellas visibles. Hoy día, no hay espacio alguno que muestre esa naturaleza abierta a la improvisación, a la experimentación y la descarga. Y hacen mucha falta. Lo sostengo. El Penthouse de Calzada El Penthouse de Calzada. Edificio frente a la SINA, la Sección de Intereses de Norte América. Para algunos fue, desde los ochenta hasta hace muy poco, un punto de encuentro rodeado de cierto misterio, una sensación tal vez deliberada por parte de Vicente. Un lugar peculiar, apartamento casi sin muebles, un gran salón que permitía “entrenar”. Allí residió Vicente largo tiempo, casi hasta el fallecimiento de Raquel. En ese sitio se daban cita gente de teatro y gente que no era de teatro para experiencias más o menos conscientes de lo que podríamos denominar, en función de darle algún nombre “parateatro”. Aquí, por vez primera, conocí acerca de Gurdjieff y el Cuarto Camino. Luego tuve acceso, préstamo mediante, a dos libros claves “Perspectivas desde el mundo Real” y “Fragmentos de una Enseñanza Desconocida”. Ambos fueron impactantes. La vida nos cambia. Las lecturas también. De alguna manera no pueden separarse las fronteras entre vida y lecturas. Durante cerca de cuatro años me entrené en los ejercicios del Cuarto Camino. La primera vez fui al Penthouse acompañado de Enrique Vilardel, estudiante del ISA en fecha. Luego acudí con Frank D. Hernández (reside ahora en México), amigo de Vicente, muy cercano a las ideas de Carlos Castaneda. Continué asistiendo, esporádicamente, un día dejé de ir. No creo esté en condiciones de relatar la experiencia de lo que todo aquello significó (y significa) con relación a mi experiencia personal. La conciencia debe hacerse consciente. Para ello esta el tiempo, unidireccional como según dicen, es. Fue aquella una experiencia que se extendió (y se extiende) más allá del teatro. Dígase que toda esa experiencia tiene mucho en común con el sentido que intuyo en el teatro de hoy, y sobre todo en la concentración que aspiro obtener en el actor. Algo tal vez cercano a lo que Grotowski definió con tres términos que evocaban fases, a saber: Autopenetración, Receptividad, Acto Total de Entrega del Actor. Un proceso fácil de escribir y repetir, difícil en cambio de lograr. Y todavía más difícil de explicar. Por Dios, no seré yo quien lo explique, Grotowski lo explica en varios de sus libros, yo, devoto lector, no ahondaré al respecto. En honor a la verdad, me asalta la sensación de que Alexis Díaz de Villegas, actor notable, o Roberto Salas, hoy líder de los zanqueros, pudieran valorar mucho mejor que yo, la conexión de estos puntos con el llamado Cuarto Camino. Ambos han mantenido un vínculo más sostenido con este conocimiento. Y llegando al final se escucha… EL TRAC Precisamente a través de ese actor siempre sorprendente que es Alexis Díaz de Villegas nos llega, desde uno de los últimos espectáculos en los que intervino, más o menos explícita, la mano de… Vicente Revuelta. No lo dirigió, aunque sí lo asesoró. Siempre he intuido que mucho se involucró en la concepción. “El TRAC”, un texto monologado, de lo más experimental y difícil del llamado dramaturgo mayor Virgilio Piñera. Un texto que había sido evitado en su abordaje por muchos directores hasta este momento, entre otras razones por su carácter fragmentario, inconexo aparentemente antidramático. No me detengo ante el anhelo de citar un fragmento: “Actor. (Antes de ponerse en movimiento) 158 Esta/es/la/historia/de/un/hombre/que/inventó/ un/ juego. (Pausa)El/había/hecho/muchas/cosas/en/su/vida. (Pausa)Pero/nunca/había/inventado/un/juego.(Pausa)Los/ conocía/ todos/y/todos /los/había/jugado. (Pausa)Pero/nunca/había/jugado/su/propio/juego. (Inspiración profunda)Esto/le/ preocupaba/mucho/y/se/pasaba/las/horas/pensando/pensando (Pausa) Hasta/que/un/buen/ día/tomó/una/cuerda/en/sus/manos/y/empezó/a/jugar/su/propio/juego. Fin de la cita. De esta aventura singular, esa performance que lamentablemente no gozó de muchas funciones (se montó en “La Casa de las Américas”), guardo sensaciones muy especiales. Y claro, uso el anglicismo con toda conciencia. Alexis, asumió integrarse totalmente al espacio de la Galería de la Casa, evidenciando desde el principio una renuncia radical a todo espacio teatral. Tendido en el suelo, como emergiendo de un ataque cardíaco o de un shock, aguardaba a los espectadores. Luego nos interpelaba, a cada uno, a todos, con aquel texto delirante y absurdo, y era como sí nos cuestionara sobre el destino humano. Y viajaba (y nos obligaba a viajar) a diferentes ritmos e intensidades por los mínimos (y al instante vastos) espacios de la Galería. Hasta que ya no podía más. No podía más. Quién sabe sí él o el personaje. Recuerdo ese trabajo con la sensación de haber sido testigo privilegiado de un evento donde las leyes del teatro se tornaron obsoletas. No era el teatro, era el instante. Algo siempre anhelado por Vicente se produjo allí. Algo con relación a la teatralidad. Algo entre el performance y el happening, entre lo aleatorio y lo fragmentario. Algo que estableció en este espectáculo una singular relación con el espectador. El público era obligado a desplazarse con el actor (arrastrado por, llevado con, ¿quién sabe cuál resulte el termino exacto?) de una estancia a otra. Y muchos recordamos aquel desplazarse como un desplazamiento inequívoco en la vida teatral de la ciudad. Del país. Ultimas Noticias Sí se coloca el panorama actual del teatro en Cuba bajo una mirada imparcial varias preguntas se hacen inevitables. ¿Tienen sentido para la generación actual el proceso y el camino de un teatro esencial, tal como lo proponen en su trayectoria, figuras como Vicente Revuelta y Jerzy Grotowski, dos grandes maestros que nos hablan a través del tiempo? ¿Interesa a los jóvenes actores o directores, aquí y ahora, este saber profundo, este sentido de la investigación y del autoconocimiento? ¿Se tienen ideas claras acerca del significado y trascendencia de un teatro de grupo verdadero en las actuales circunstancias, aquí y ahora? Se constata una reanimación teatral, ello es perceptible, innegable. De vez en vez se suelen presenciar buenos estrenos y sin dudas hay talento. Más resulta lamentable la existencia de tan pocas líneas de investigación consistente, consciente y sistemática. Se tiene la impresión de que todo ocurre por azar o en buen cubano, por carambola. Quizás se ha entronizado, convengamos que de forma incomprensible, la idea de que tanto celo no es necesario. La filosofía hoy en boga es convertirse en un “ganador”. Y que ello tenga lugar con un mínimo de esfuerzo y tiempo. Se persigue la lucidez instantánea sin el andamiaje que la sostenga. No obviemos que resulta este un momento extraño y paradójico de la historia, instante en el que ciertos elementos han retrogradado, mientras otros, justo ahora, parecen asomarse en fase de despertar. Recientemente escuché a un director amigo, Graduado en el Teatro de Arte de Moscú, me decía: “el teatro, más que una técnica es una ética”. Y yo asentía, como si me recitara un versículo familiar de los evangelios. Y pensaba: ética es mucho más que moral, esta última suele responder a circunstancias temporales, sujetas a las lógicas mutaciones. 159 La ética, en cambio, al menos la ética de la que hablo, la que debe sostener todo arte, deviene esencia cósmica. Primun non nuoncere. Primero no dañar. El juramento hipocrático. O también la regla de oro del Cristo: “No hagas a los demás lo que no quieras te hagan”. Confío en que aún aquellos que se concentran en los valores externos tendrán uno (o muchos momentos) donde han de experimentar cierta sensación de vacío. Y el vacío, precisamente el vacío, quizá resulte un elemento germinativo. El vacío como vaharada genésica. Como elam vital. En momentos tales se perciben los derroteros plausibles, las agujas imantadas suelen entonces señalar caminos que conducen a los centros espirituales del hombre. Centros que se ubican más allá de toda contingencia, de cualquier espaciotiempo. De cualquier arte. De la vida misma. Y el teatro es arte y es, digámoslo sin sonrojos, vida. Vicente y Grotowski, representan esa búsqueda incesante del centro espiritual humano. Los asocio a una imagen singular: las dos columnas del templo de Salomón, según el simbolismo masónico, J y B. Dos pilares simbólicos que custodian la entrada al templo. Un lugar donde el teatro transcurre y es en su más alta dimensión. Vicente se afano en esa búsqueda toda su vida, aún en las condiciones singulares de una pequeña isla del caribe. Que para esas búsquedas ni los espacios ni los tiempos cuentan. Solo el hombre. Grotowski trazó el camino, primero en su Polonia natal, luego en su recorrido por el mundo. Las vidas de ambos son un testimonio silencioso de espíritu y ética, de la más sacra poiesis, hasta donde les es dable a los humanos. Pueden advertirse los errores de ambos. Y aprender de ellos. Mas es imposible dejar de percibir la honestidad a toda prueba que emerge del camino de ambos. ¿Debilidades humanas? Hombres somos, no Dioses. Ruego al querido lector excuse el carácter personal, y la aparente dureza de algunas notas. Como apunté al inicio, ciertos elementos cobran verdadero valor desde y para la experiencia personal. Siendo contribuimos a ser. De vez en vez, miro a mí alrededor y hago un recuento. Pocos hoy caminan en una dirección afín. Manuel Oña Trimiño, ya mencionado, actor de extraordinario relieve, que mucho debe a su contacto con Vicente y con Tomás González. Alexis Díaz de Villegas, ya mencionado también. Los tres actores de Nelda Castillo, a saber: Lorelys Amores, Eduardo Martínez y Mariela Brito, todos ellos islotes en la búsqueda consistente y continuada hacia la interioridad de la técnica psicofísica, en los últimos años. Ahí están también las búsquedas del grupo camagüeyano Teatro del Espacio Interior, bajo la dirección de Mario Junquera. Todos son hijos más o menos cercanos de Vicente. Todos de algún modo inspirados por las ideas de Grotowski. No defiendo ni aliento sectarismos. Defiendo y aliento la más amplia diversidad estética. Diversidad es salud. Presente y especialmente futura. Y es que en el espíritu y la eticidad de esa diversidad que señalo es evidente el carácter infortunadamente parcial del panorama teatral cubano de hoy. La investigación siempre ha resultado un camino minoritario. Hoy, sin embargo, lo minoritario amenaza con serlo cada vez más. Apenas se levantan islotes. Y la marea ahí, en derredor, alcanzando nuevas cotas, amenazando con borrar esos islotes. Los que fuimos un día formados desde y para un camino de investigación, los que hoy guardamos ese arcano, advertimos el peligro cuando la diversidad, esa que define y prefigura salud, minimiza su corpus. Un anhelo se advierte necesario, sino imprescindible, lo he conversado con otros, salvar, tanto la memoria, como el saber. Y transmitirlo. Puede sea ese el leitmotiv de este texto. Si el legado es válido todo albacea debe cuidarlo, protegerlo, no permitir que se pierda. Este, duele decirlo, puede perderse. Y entre los legados valederos para el teatro cubano ocupa un lugar cimero. No me atrevo a llamarme albacea o protector de un legado de todos. No es este legado de unos pocos, de sectores o grupos. Es legado del teatro cubano. Todos somos sus albaceas. O deberíamos serlo. Lo que otros un día entregaron debe ser transferido. Y continuado. Peldaño a peldaño. Toda obra es un hito, todo hito profesión y toda profesión ética. Anima atemporal. 160 Ignoro si he logrado alcanzar los objetivos iniciales de esta reflexión. Sentir el camino es siempre más fácil que recorrerlo. Tengo, sin embargo, la intuición de que estas palabras pueden imantar, en la porción más ínfima quizá, en la menos desdeñable, lo genésico. Basta con lo ínfimo. Lo genésico siempre es ínfimo. Si ello está logrado los objetivos lo están. Vicente y Grotowski son los más sólidos guías en ese empeño. Son performer o más bien teacher of performer. No cabe duda. Algo de lo aquí dicho debe evidenciarlo. Algo. ¿Acaso hay en el mundo cada vez más vertiginoso, del teatro de hoy, alguien dispuesto a detenerse y percibir, LA BELLEZA DEL RITO? ¿Alguien? ¿Apenas un instante mínimo? Notas: 1. Vicente F. Revuelta Planas nació en La Habana, el 5 de junio de 1929. Su niñez se desarrolló en un medio social muy humilde, en unión de su padre español, su madre cubana, y su única hermana, Raquel, también actriz. Comenzó su carrera artística como cantante, a la edad de 7 años, en un concurso de aficionados en el Teatro Principal de la Comedia. Luego en programas de radio. Como actor realiza su primer papel en el grupo ADAD en la obra “Prohibido suicidarse en primavera”, de Alejandro Casona, es el año 1946. Ingresó en la Escuela Municipal de Arte Dramático, lo que no le impide seguir trabajando con el ADAD y más tarde en el Patronato de Teatro y en el Teatro Universitario. Con este último grupo visita México y Guatemala. En 1950 formando parte del Grupo Escénico Libre dirige su primera obra “El recuerdo de Berta” de Tennesee Williams. En 1952 viaja a Europa a realizar estudios en la Escuela Anexa a la compañía de Jean Louis Barralt, en París; en el Taller de Arte Dramático de Tania Balachova; recibe clases de pantomima y expresión corporal con Etienne Decroux. Asiste a un Congreso por la Paz en Viena y viaja por Italia integrándose a un curso de verano en la Escuela de Cinematografía de Roma (Cinecitá). A finales de 1954 regresa a Cuba incorporándose a la Sociedad Cultural Nuestro Tiempo, brinda seminarios, conferencias, publica cuatro números de Cuadernos de Cultura Teatral. En 1958 funda, junto a su hermana Raquel el grupo Teatro Estudio. A partir de 1959 no ha dejado de dirigir, actuando también en algunas de sus obras y en diversos filmes. Entre sus trabajos más significativos puede citarse: “El viaje de un largo día hacia la noche”; “Fuenteovejuna”; “El alma buena de Se-Chuan”; “Madre Coraje”; “El cuento del zoológico”; “El perro del hortelano”; “Galileo Galilei”, “La duodécima noche”, y “Las Tres Hermanas”, entre muchas otras. Ha realizado giras a Italia, al Festival de Avignon, Joven Teatro de Lieja, Bulgaria, Yugoeslavia, España, Portugal, Festivales de Sitges y el FITEI, Colombia, Venezuela, Nicaragua, México y Polonia. Su labor docente ha implicado clases de actuación en varios grupos e instituciones culturales y en el Instituto Superior de Arte. Reconocido como Doctor Honoris Causa en Arte por el Instituto Superior de Arte. Ha brindado conferencias en más de 15 países de América Latina y Europa. Sus puestas en escena han viajado a considerable número de escenarios de todo el mundo. Es considerado uno de los más relevantes actores y directores artísticos de toda América Latina. -PREMIOS Y DISTINCIONES1999 Premio Nacional de Teatro junto a su hermana Raquel 1988 Orden "Félix Varela" 1986 Premio Tinajón Camagüeyano por la dirección de En el parque 1982 Medalla "Alejo Carpentier" 1982 Premio del Festival de Teatro de La Habana por su actuación y dirección artística de La duodécima noche 1980 Premio del 1er. Festival de Teatro de La Habana -compartido con José A. Rodríguez- por su actuación en El precio 1979 Premio Espada de Oro, de Bulgaria, por la dirección de Santa Juana de América 1966 Gallo de La Habana por la dirección de La noche de los asesinos 161 2. Jerzy Grotowski nació en Rzeszow, una villa rural, el 11 de agosto de 1933. En cinta que tuve la oportunidad de ver hace algunos años Grotowski avanza por un camino vecinal rumbo a su casa natal, una modesta casa de madera y mampostería; al fondo pasta una vaca. El ambiente (un bosque de abedules alrededor) sugiere una relación de cercanía a la naturaleza y esto recuerda la vida de muchos místicos cristianos en Europa. ¿No habrá influido en Grotowski este origen singular, en el seno de un país profundamente religioso como Polonia? No habrá impactado todo ello en su búsqueda posterior de la santidad a través del teatro? ¿Qué guió a este hombre sapiente en una búsqueda tan larga que nunca abandonara? Conocemos algunas coordenadas de su itinerario, de ellas, quizás, logremos inferir motivos. Antes de asumir la dirección del Teatro de las Trece Filas en Opole (primera fase del Teatro Laboratorio), hubo de graduarse del Departamento de Actuación de la Escuela Superior de Teatro de Cracovia (1951-1955). Más tarde estudió dirección en el Instituto Estatal Lunacharsky del Teatro de Arte de Moscú, años 1955-1956. En Octubre de 1956 comenzó a laborar como instructor asistente en el Departamento de Dirección de la Escuela Superior de Teatro Ludwik Solski, en Cracovia, al instante que continuaba estudios. En el verano de ese mismo año viajó a Asia Central. Al siguiente año recibe varios seminarios de teatro con el maestro Jean Vilar, en 1958 los recibe de Emil Frantisek Burian. En Moscú fue asistente de dirección de Yuri Aleksandrovich Zawadsky, discípulo de Stanislavsky y Vakhtangov. Aproximadamente en el verano de 1959 el entonces joven de 26 años Grotowski ya había dirigido cinco producciones teatrales y algunos programas de radio, todos fueron exitosos. Tal vez por ello, toda su vida mantuvo una preocupación esencial por la voz y la dicción del actor. Hacia 1955 Grotowski publica sistemáticamente algunos ensayos. Reflexiona sobre el teatro en la prensa de la época. En particular señala la relación arte-vida y las primeras bases para una "purificación" del oficio del actor. Parece vaticinar sus búsquedas posteriores, la tesis de que el teatro ha de rescatar para si mismo lo que le es esencial. Desde esta época inicial del Teatro de las Trece Filas en Opole hasta su posterior traslado a Wroclaw, Jerzy Grotowski encabeza el Laboratorio Teatral como director y Ludwik Flaszen como asesor literario, recordando quizás la relación entre Stanislavski y Danchenko, relación que diera origen e impulso al Teatro de Arte de Moscú. Durante esos años realiza una actividad intensa y variada, desarrolla un sentido profundo de experimentación y evidencia una constante insatisfacción con los resultados. Casi todos los montajes de este largo periodo (Sakunthala, El Príncipe Constante, AKrópolis, Kordian, Doctor Faustus y otros) eran en consecuencia sometidos a continuas y variadas versiones, a menudo distantes de la original. Al mismo tiempo explora, de conjunto con los actores del Laboratorio, las posibilidades de la técnica hasta un nivel nunca concebido desde Stanislasvki. Se trata de lo que él llama en esta etapa “acto total de entrega del actor”. En esa época, ya es considerable su influencia en infinidad de grupos de todo el mundo, tanto a través de las giras de sus espectáculos, como talleres y seminarios mediante. El resto llega desde la publicación de su texto "Hacia un teatro Pobre", obra que deviene suerte de "nuevo testamento" teatral. Los años 6O y 7O definen el trabajo de Jerzy Grotowski como la influencia más fuerte que ha recibido el teatro contemporáneo. En casi todos los países surgen epígonos. Las velas, el uso de la corporalidad, un sentido ritual de la partitura escénica, así como el sentido de la "pobreza" invaden las puestas en escena de muchos países. Es esa etapa de apoteosis teatral del polaco, habrían de llegar otras búsquedas. Las fronteras del teatro estaban comenzando a resultar estrechas. Las vastas interrogantes del polaco parecen destinadas a expandirlas. A mediados de 1970, en pleno período de giras y éxito rotundo del Laboratorio Teatral, Jerzy Grotowski vaticina, en uno de sus textos, el abandono de la fase teatral y la necesidad inherente a su investigación de reducir estas giras mundiales que desconcentran y le apartan de la búsqueda. He ahí que nos dice: “… todo ser humano tiene armas adquiridas, conductas de enmascaramiento y simulación para la vida en sociedad..., ¿Qué pasaría si encuentro por un mínimo instante la posibilidad de comunicarnos sin estas mascaras?" La cita evidencia el carácter orgánico de un proceso que tiene lugar en el marco de las funciones de "Apocalipsis 162 cum Figuris"; la puesta sufre sucesivas versiones, versiones que cada vez borran con mayor fuerza la hasta entonces dicotomía actor / espectador, es probable que todo esto haya agudizado el proceso de investigación…más allá del teatro. Ya no el actor derribando sus máscaras a través de un proceso personal, sino mas bien actor y espectador de conjunto situados en una coyuntura que los obliga a ello. En l975, a tenor de estos cambios de perspectiva, Jerzy Grotowski y su grupo abandonan la producción teatral de puestas en escena, las funciones y toda su actividad "comercial". El grupo se reestructura, cambia de nombre y pasa a ser Instituto de Investigación del Arte del Actor. Se inicia una nueva etapa de trabajo definida por un sentido parateatral. Y las repercusiones serían incalculables para el pensamiento teatral contemporáneo. Esta etapa recuerda de manera significativa los entrenamientos del ruso-armenio Gurdjieff, tal vez el gurú más extraño que penetrara en Occidente a principios del siglo XX, entrenamientos en los que participaron Katherine Mansfeld y otras figuras de la época. Gurdjieff parecía proponer una “técnica de la conciencia” que llevara hasta las últimas consecuencias la idea de observarse a uno mismo, de forma permanente y con el empleo de muy singulares herramientas. Todo ello influyó en las ideas sobre el Cuarto Camino (un camino diferente al “devocional”) e impactó con fuerza en ciertas zonas de la intelectualidad y la creación contemporáneas. Habría que preguntarse sí el ejercicio Stanislasvkiano de la “recapitulación del día” tiene puntos de contacto con las ideas de Gurdjieff en este mismo sentido. Los ortodoxos, mesándose cabellos, lo negaran. No soy ortodoxo y me hago la pregunta. Lamentablemente no soy un genio y no sé como responderla. La pregunta está en pie. Medito. Invito a meditar. Meditemos. Sin ortodoxias. En la etapa transicional del 7O al 75, Grotowski ya había realizado el proyecto "Holiday", en colaboración con estudiantes universitarios de los Estados Unidos. Este proyecto, que evidentemente apunta hacia las ideas ya señaladas, resultará uno de los basamentos de las muchas experiencias que asumirá el polaco. Los primeros proyectos parateatrales se inician en el Laboratorio Teatral en esa época. Uno de estos primeros experimentos lo constituyó el concepto de Special Project, que asumió en diferentes momentos y países soluciones prácticas diferentes. Este proyecto surgió a partir de una CARTA ABIERTA a los jóvenes: "aquellos que sin querer ser actores profesionales, quieran correr el riesgo de una aventura común; trascender las fronteras de las relaciones convencionalizadas entre la gente". Y es este el germen de posteriores exploraciones. Resumiendo lo casi irresumible: Grotowski a lleva cabo durante estos años tres modalidades fundamentales de experimentos parateatrales, a saber: Holiday, Meeting y Special Project. La traducción de estos conceptos, aunque obvia, sugiere las intenciones que cada uno persigue, los tres son "proyectos especiales" en el sentido de que exploran la apertura de una persona a otra, las posibilidades de crecimiento de la consciencia. Estos proyectos, probablemente agotan las preguntas que la investigación se propone en el marco de las relaciones humanas, sobre todo en circunstancias desconvencionalizadas y preparan el terreno para una exploración más audaz, "El Teatro de las Fuentes" que investiga ya sobre los comportamientos en circunstancias de ritual y que tanto influyera en Nicolás Nuñez, Richard Schechner, y otros teatristas. Llegará la última etapa de trabajo, podríamos llamarla, tomando un concepto del propio Grotowski, “Artes Rituales”. Una etapa que se desglosa en varias fases, a saber: Drama Objetivo, Las Artes Rituales y El Arte Como Vehículo. Y he ahí que esta etapa evidencia no pocas conexiones con las ideas expuestas por Gurdjieff. (Ver: “Fragmentos de una Enseñanza Desconocida”). Sobre todo en cuanto al Arte como vehículo hay un enfoque que evidentemente implica de una forma u otra el crecimiento personal. Esta etapa de trabajo deja muy atrás cualquier inquietud por la teatralidad. Falleció Grotowski en enero de 1999, en su casa de Pontedera, en la Toscana italiana, victima de una enfermedad cardio respiratoria. Para muchos, Grotowski excede el marco del teatro, sobre todo en su última etapa, para sentar las bases de una consciente búsqueda espiritual. 163 *Las notas arriba enunciadas conciernen a las etapas de trabajo tanto de Vicente como de Grotowski, el lector atento encontrará múltiples reincidencias. No hay que perder de vista, que Grotowski es para el teatro lo que Picasso para la pintura contemporánea (transita por muchas etapas). Razón por la que la proyección de trabajo durante toda su vida se transforma, evoluciona notablemente. Cada una de estas etapas tiene sus principios, objetivos y hay diferencias bien delimitadas a lo largo de esas líneas de investigación. En Vicente hay una semejanza de esencia. NOTAS DO TEXTO: 1. Ya explique exhaustivamente en mi libro Teatro Ontólogico, las diferencias entre trance consciente y trance de posesión. Otros investigadores han abordado el tema. De cualquier modo, para el actor, tiene importancia el primero de ellos. 2. La Técnica de observación de uno mismo se refiere a la escuela de Gurdjieff, también llamada cuarto camino e implica un camino de auto desarrollo intrincado y difícil, hay quienes se atreven a afirmar que Stanislasvki, tuvo contacto con Gurdjieff. Más adelante insistiré en este punto desde otro ángulo. 3. En “El Arte Secreto del Actor” recientemente publicado en Cuba, Eugenio Barba, discípulo de Grotowski, describe con claridad meridiana los principios de la antropología teatral, que se basa en una técnica extracotidiana del cuerpo. A saber: Equilibrio de lujo, incoherencia coherente y oposiciones. 4. La idea de los grupos como fuente y finalidad de desarrollo esotérico esta en Gurdieff. Por más referencia ver los libros que en este artículo son citados. Esta claro que Vicente desarrolló esta idea en Los Doce. 5. Hay que decir que Guillermo Horta fue uno de los dos únicos cubanos seleccionados para ir a la Escuela Mudra de Maurice Bejart. Por lo burocracia consabida en la época nunca pudo asistir. 6. Ejercicios a los que dedique un capítulo en mi libro, antes citado, pero que todavía hoy están en estado de permanente reelaboración. 7. Una puesta por la que pasaron tres elencos y que sufrió sucesivas versiones. La última de ellas fue tal vez, la más “grotowskiana” y tuvo un impacto considerable a pesar de que solo estuvo en escena una temporada. Ruben Sicilia (Cuba, 1963). Director, dramaturgo, actor y ensayista. Ha publicado tres libros: Teatro Ontológico (2001), Tres Obras (2010), Tríptico (Monólogos, 2012). El texto presente fue publicado en fecha reciente en la Revista Unión tras un largo tiempo a la espera. Durante este tiempo sufrió modificaciones sustanciales que aclaran y añaden más luz a algunos conceptos. Por lo cual su autor considera en aras de mayor precisión y por su aspecto polémico, volverlo a publicar en esta versión, que añade unas cuartillas a la versión original. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista invitado de esta edición de ARC. 164 TERESA SÁ COUTO | Poesia de José Emílio-Nelson: a lanterna do feio «Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. – E vi que era amarga. – E injuriei-a.», escreveu Arthur Rimbaud (1), nome da vertigem, do desregramento dos sentidos, da transgressão, da procura de um verbo novo que as enfornasse, de uma estética que lhes servisse. Procurar a transgressão na poesia portuguesa contemporânea é encontrar, obrigatoriamente, o nome de José Emílio-Nelson para quem o verbo maldito vê na estética do feio o veículo da libertação. PESA UM BOI NA MINHA LÍNGUA (2) é o título do seu mais recente livro de poesia e mais um andamento dum projecto estético muito próprio, de uma invejável coerência, que desenvolve há 34 anos. Com o título colhido numa expressão do Agamémnon, de Ésquilo, o poeta, todavia, evidenciando o símbolo do boi enquanto animal terreno e sacrificado, imprime-lhe um deslocamento de sentido. No Agamémnon, o Vigia espera o momento de apertar na sua mão a mão do seu senhor herói regressado de Troia, mas encobre o horror da traição da esposa durante a sua ausência, cala-se, porque «pesa-lhe um boi» na sua língua, i.é., inibe-se, recalca o fardo pesado que não o deixa dormir. O título, Pesa Um Boi Na Minha Língua, é uma engenhosa subversão da expressão de Ésquilo, porquanto solta um boi negro que não é manso nem amansado, que exulta a sua verdadeira natureza intensa e plena para depositar o fardo da sua existência no branco luzente das páginas. «Porque me amarga a verdade, /quero lançá-la da boca», escreveu Quevedo anunciando os excessos que carregou de sátira e burlesco. José Emílio-Nelson liberta a poesia dos compromissos morais e do estético asséptico para escavar a imperfeição, o inferno humano e a divina comédia da vida, dando-nos a ideia de que os bons sentimentos inviabilizam a inquietação imprescindível ao acto de criar. Já Gomes Leal, em Fim de um Mundo, se arrogava «um cirurgião» que havia de retalhar a escalpelo a «carcaça linda e podre do mundo». A poesia de José Emílio-Nelson «ocupa o território tenebroso do feio expressivo, princípio estético da intensidade realista que organiza a experiência existencial», escreve Luís Adriano Carlos na majestosa introdução à antologia A Alegria do Mal – Obra Poética I, 1979-2004, editada em 2004, pela Quasi Edições. «Esta é uma poesia que assume a agressão ao velho e conformado bom gosto do leitor, levanta os véus, e o que se observa sob os véus são as fibras moles e corrompidas da carne, sem disfarces ou unguentos que mascarem a humana, demasiado humana condição do que decai, se degrada, se corrompe, se extingue», escreve Fernando de Castro Branco, no ensejo da publicação do segundo volume da obra reunida de José Emílio-Nelson, a antologia Ameaçando Vivendo – Obra Poética II, 2005-2009, editada em 2010 pela Edições Afrontamento. Consciente de que a fealdade é o que sobra quando o belo se ausenta, a poesia de José Emílio-Nelson adorna a beleza de sarro, «cospe mísero canto», faz do feio o espaço de exploração e, consequentemente, de conhecimento. No laboratório poético, onde o gesto selvagem e grotesco esgrime liberdade artística, dialoga-se com autores – quer explícita quer implicitamente – da literatura universal de todos os tempos, e dialoga-se com outras artes, como a pintura, escultura, música e fotografia, artes que emprestam o seu gesto à iluminação dos corredores escuros do ser humano. Na Conversão à luz, as palavras de José Emílio-Nelson surgem como aves «derramadas no seu voo sobre a bruma inquinada», voam em «águas ermas», retêm-se no fundo das águas, e desafiam o leitor com perguntas obscuras, carácter, ainda, de uma poesia de questionamento de si mesma: porquê?, o «Que as retém lá fundo?»(p.10), «que mão desaparece e aparece por dentro de nós? /É mão ainda a que desce sobre os versos? Mão agónica? /Qual mão? /A que mortifica muda e confusa e nos consome? / Ou a que evola Deus?» (p.9); ou, ainda, intercetemos o desígnio desta poesia detendo as chaves do poema Lux Aeterna: «A mão que 165 faz de si um sopro enlaça os dedos e canta. /É a voz de quantos gestos? /Sobre ela se enxerta uma e outra voz que escurece. /Num sítio ermo, bem fundo, /A sua magnificência na vacuidade do Mundo. /E apodera-se dum silêncio que depois clamoroso se repete /E repete belamente a sua escuridão. /Perde-se e relampeja em orlas escuras, /Sulca e assenta, acalmada.» (p. 22). A mão de uma poesia que liberta objectos e seres da aparência comum, que é a artífice da denúncia da desventura terrena, e que enxertando-se de vozes evoca a procura da condição humana, só pode imprimir o Deus humílimo que se liberta da sua condição inumana para habitar o corpo desgraçado do Cristo agonizante da crucificação, o Deus escuro que ressuma nestoutro poema de O Livro de Horas, de Rainer Maria Rilke: «o meu Deus é escuro e como que um tecido /de cem raízes que bebem silenciosas. /Só sei que me levanto assim do seu calor, /e mais não sei, pois todos os meus ramos /repousam lá no fundo e acenam só ao vento» (3), escreveu o poeta alemão aludindo a um Deus que é a «Coisa das coisas», e o poeta a sua «ânfora», o seu «hábito», o seu «ofício»; posto isto, em Pesa Um Boi Na Minha Língua, não será Cristo a resina que se queima nas brasas?, ou dito assim no texto Naveta e Colher: «Do meu escuro Deus cai a luz que O deixa morrer /E que O depõe e O apodrece com roupa purpura, incensado. // <Eu oro. Que sei?> Cristo é a naveta? Deus é colher?» (p.11). Iluminar o feio é pôr a nu a decadência e a miséria humanas. Sem nos falhar, o texto faz a pergunta e dá a resposta clara: «Como aparece Deus velado ao que perde a nudez esbelta? /Maravilhado.» (p.12). É por esta razão que a nudez de San Sebastián, de El Greco, é profanadora, e é também por isso, e porque aquela dor nos identifica, nos é familiar, que a sua beleza convulsiva nos maravilha e nos fascina: «A devoção encandeia, afadiga-se, alastra até ao amortalhamento./ As flechas mortíferas escoram o corpo vazado. /Detenhamo-nos, sem mais detalhes. /Escorre o óleo santo na nudez profanadora.» (p.54). O Homem é carne, mas também é espírito, e só a sabedoria artística do espírito pode harmonizar a fealdade do mundo em destroços. Acha-se o belo removendo escombros, escreveu o poeta Antonio Porchia, cita-o José Emílio-Nelson. Cumprindo a ideia de que a obra de arte deve devolver o homem a si mesmo, na inteireza vital, espiritual, material e física, a sua poesia adopta um processo análogo ao da fotografia que adquire a sua força deslocando o objecto do seu contexto para o imprimir num outro e novo contexto. O resultado são imagens de espanto e inquietante estranheza. Para José Emílio-Nelson, o ar é uma zona corporal do homem, o que vem ao encontro do defendido por Novalis, de que «O ar é tanto órgão do Homem como o sangue», que «o exterior não é mais do que um interior distribuído» (3). O ar é a casa da voz, onde se dá a luta teimosa entre a efemeridade do ser humano e a infinitude do cosmos; veja-se o poema Cosmic Pulses: «Poisado cone num sopro aspergido /Espirais que derramam /Luminosos teclados turbulentos,/Eixos suspensos num horizonte de obscuridade profunda./Erguem em roldanas o Cosmos.» (p.21), estoutro: Carrilhões riscam de sinos os mortos./A teimosia dos 6 percussionists de Strasbourg alumia com luz fraca //O caminho que estreita./Acedemos à infinitude a cada momento/ <Tam immensa> (p. 20), e ainda o poema, Circles Movements: «A Voz soletra o ar de pompa da percussion. A um ermo /Abre e distorce. Cada som ‘perscruta os planaltos’ /Ao excedê-los. Vislumbramos o exumar do Céu.» (pág. 17). O ar do corpo interno também se liberta em burlesco sonoro, como no exemplo do texto Dama Canhão: «A dama move-se, /Nada mal, as nádegas em tacão /Deixam rasto de lagartas /Castrenses, só que a mulher usa pestana escarlate. /O cinto seca-lhe a cintura farta, é seca, /A dama para quem em redor a faz de louca. /(Detona pó sem dó que nem canhão. /Ou serão gases?)» (p.77). Por outro lado, «Em divergência com as mitologias literárias, a cosmogonia de Emílio-Nelson começa na urina, a água da vida segundo a tradição medicinal», diz Luís Adriano Carlos. Com efeito, se o «verdete agonizante do metal da alma» se estende às reveladoras «alvíssimas lágrimas», a (outra) água da vida irrompe purgadora no texto Cães: «Vou ser asceta, piedade pela cadela./O chumaço das tetas, vou ser vulgar, lágrimas rosas,/ A arrastar a matilha estouvada que a morde à vez, de joelhos./Cadela em fuga, 166 prostrada nas urinas,/A rezar, julgo eu, a rezar.» (p.51), ou em purificação apolínea, numa viagem a Delfos: «Nas poucas horas que passei em Delfos, /Miniatura do folclore grego, uma mulher rendada /Oferecia os seus olhos cegos poisados na mão com que me tocava. / (A excursão inteira continua atenta ao guia que mal fala.) / Iludindo a mais amada, urinei para os olhos da cega, / Que por isso implorava.» (p.72). Falar do feio é falar do Tempo – tempus edax omnium rerum –, o feroz devorador de todas as coisas até as tragar totalmente; o tempo é «Impiedade» apresentada, por exemplo neste texto: «Com sapatinha de espalhar trampa, chagado. De capuz, carapinhoso. /Agitavase empoleirado no vinho drogado./ Desfalecido, as pestanas escurecem./ Repousará, tão atroz, outra vez dentro de sua mãe. <Doía.>/ Ah, que importa. Jaz Morto.». (p.59). O regresso ao útero materno indicia que, se «O decorrer do tempo ofende a Beleza», o texto também lhe reconhece a capacidade de recomeço, ideia plasmada na Fénix que se regenera: «a fénix aflitíssima mede o tempo justo para repetir as cinzas» (p.49). Nas Metamorfoses, Ovídio apresenta a Fénix rediviva e também a Fénix do poeta latino «Não é de grãos ou de ervas/que vive, mas de lágrimas de incenso e da seiva de amomo.» (4). Símbolo da morte e renascimento, também a cobra é chamada ao texto; nela se conjugam metamorfose e erotismo patentes na mulher que se contorce voluptuosamente, confundindo-se com a serpente, metamorfoseando-se na própria serpente, do poema «Cobra, a Morbideza»: «A mulher que trabalha na morgue vai vomitando. / Enrosca-se cerosa nas gavetas como se fosse dormir /Demasiadas vezes na morte. / (Muda, a cobra escuta-a, /Suspira noutra muda repentina.)» (p.70). Com admirável rigor, o vasto bestiário está ao serviço do reconhecimento da dimensão infernal da dita vida interior e de um programa poético que nomeia a penitência da lesma, a pomba que martiriza o espírito, o pelicano que «obedece a Deus ao aspergir o seu sangue redentor sobre as crias que mata», o asno com desejos de autoflagelação, a gralha cuja crista é o «abanico de certas almas» ou o cisne, «a soberba que alegra os órgãos genitais de suspiros». As pulsões sexuais, o sadismo e o masoquismo têm terreno fértil na palavra que exprime o subterrâneo, a perversão, o licencioso, pelo que esta poesia não se coíbe na utilização de vocabulário erótico e pornográfico, provocatório e agressor para o qual concorre a atenção sobre os detalhes físicos da violência sexual que compõe a coreografia dramática do discurso corrosivo e satírico; vejamos dois clips: «Assisti a um clip [bondage] em que eram penetrados / Uns tantos pelo corpanzil dum latino que os cobria empenhado /Untando com vaselina nas pálpebras doutro mais alheado. /Consumido nisso, pondo-se a jeito, implora, e é enfiado. / (E sem óleo santo que o salvasse.)»; «O cão cobria-a como pele de raposa, empertigara-se, /A pata rosa abusava, deixava mossa. <A cauda estranha>. / O focinho mordia, ia avançando, encostou-se, / E ao bambolear ela gemia, devia ser mau, /Mais do que no vídeo se ouvia.» (p.74). Se na origem da beleza está unicamente a ferida, há pois que isolar as feridas para lhes descobrir o significado, iluminá-las, pelo que cada texto é um espaço infinito e de luz imensa. Neste sentido, a poesia de José Emílio-Nelson é um humanismo, e em muitos dos seus textos ecoa o grito das figuras cruas, delicadas e terríveis, e por isso, de beleza avassaladora, de Alberto Giacometti. Confira-se no texto Mina San José: «Rezo pelos mineiros chilenos. /As almas soltando labaredas de El Greco./Ciclopes à espera de subirem ao céu azul pelos tubos dum órgão de luzes que os ressuscita no sepulcro. //Estes mineiros extraem Deus.» (p. 60). Ainda, o jogo de acasos, imagens e metáforas e hipálages com que se liga o mundo interior ao mundo exterior fazem lembrar a prática surrealista do cadavre-exquis. Veja-se o poema Moeda com que esta poesia paga a experiência da realidade esmagadora: «Numa viela, em cima de cartão prensado, /Senta-se mais engelhada que os trapos. /Raspa com as unhas a cabeça do cão atormentado. /O fundo da garrafa serve de caçarola /E atira para aí as moedas. / (Ferrugentas são peças de coleccionadores.)» (p.84). A poesia de José Emílio-Nelson não é de fácil leitura. Independentemente de questões de gosto, ela não é acessível ao leitor pouco experimentado. A sua «escrita em mosaico», assim 167 caracterizada por Luís Adriano Carlos, prenhe de deslocamentos de sentido, associações insólitas, movimentos espiralados, vocabulário onde dialogam o erudito e o brejeiro, a dor e a mofa, a inevitabilidade e o recomeço, fazem sacudir um outro novo nervo, outro latejar se impõe, outra releitura se inicia, e a sua poesia nunca está lida. Mas não será este o privilégio da melhor literatura? NOTAS: (1) Arthur Rimbaud, Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, Assírio&Alvim, 2007, p.117. (2) José Emílio-Nelson, Pesa um boi na minha língua, Edições Afrontamento,2013. (3) Rainer Maria Rilke in Poemas, ed.Asa, Lisboa, 2001, tradução de Paulo Quintela, p.84. (4) Fragmentos de Novalis, Assírio&Alvim, tradução de Rui Chafes, 2000, p.95. (5) Ovídio, Metamorfoses, Livros Cotovia, tradução de Paulo Farmhouse Alberto, 2007, p.375. Teresa Sá Couto (Portugal, 1965). Licenciada em Estudos Portugueses pela Universidade Nova de Lisboa, Professora de Língua e Literatura Portuguesas, Editora de Cultura em www.kaminhos.com onde artigo e entrevista foram originalmente publicados (Lisboa, Agosto de 2005). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Antonio Beneyto (Espanha), artista convidado desta edição de ARC. 168 ENRIQUE GRANELL - JUAN-EDUARDO CIRLOT RICARDO SENABRE | Tres veces Antonio Beneyto y las voces de la crítica 1. Enrique Granell | EL SUEÑO ETERNO Hace veinticinco años que Antonio Beneyto expuso en la galería Maeght de Barcelona El dibujo más largo del mundo. Para poder colocarlo sin dobleces en la sala tuvo que construirse un soporte curvado que dibujaba en el aire algo parecido a un baldaquino soportado por dos delgados soportes. El dibujo medía entonces treinta metros y medio de longitud por cuarenta centímetros de ancho. Beneyto señaló entonces como referencia el manuscrito de Juan Benet para Una Meditación. Este consistía en un rollo de papel continuo que no permitía volver sobre lo ya escrito. De esta manera el escritor se veía obligado a una atención exacerbada para con las repeticiones que pudiesen producirse en el texto. El soporte de “El dibujo más largo del mundo” no era un soporte neutro, liso, blanco. En una de sus incursiones por los encantes viejos de Barcelona Beneyto había encontrado unos rollos de pianola ofrecidos por un extraño paradista. Estaban embalados en cajas de cartón rotuladas con los nombres de las piezas de música que contenían. De vuelta al estudio y tras examinar el cargamento decidió dibujar sobre esas partituras mecánicas. Las escogidas fueron el pasodoble torero El gato montés de Manuel Penella y La tempestad del maestro Chapí. La cinta de papel que hace sonar el falso piano presenta una serie rítmica de perforaciones acompañadas de líneas grafiadas en varias direcciones pautadas con notaciones musicales diversas. Su aspecto puede ser relacionado tanto con una partitura musical convencional como con un largo fragmento de poesía concreta. Sobre esta accidentada superficie va a trabajar Beneyto. Walter Pater en su ensayo sobre la escuela de Giorgione había escrito algo que pudiéndose confundir con una maldición se convertía aquí en profecía: Todo arte aspira constantemente a la condición de música. [1] Así, El dibujo más largo del mundo podría volver a la pianola y hacerla sonar. Pero seguro que no como antes, el piano mecánico leería, además de la serie de perforaciones que lo hacen funcionar, las pestañas, las cejas, las punteras de las botas, el tacto de los vestidos, la densidad de los colores y el gesto de esa variopinta saga de personajes con los que Beneyto ha colonizado el papel. Sonaría, suena, diferente. Hace siglos que los hombres han querido relatar con larguísimos dibujos sus hazañas sobre la tierra. Dejando aparte los incontables jeroglíficos egipcios compuestos durante siglos y que todavía no sabemos descifrar del todo, han llegado hasta nuestros días ejemplos memorables. Alrededor de la cela del Partenón Fidias esculpió el friso de las Panateneas. A lo largo de ciento sesenta metros vemos como van llegando desde la ciudad los carros, los animales, el público participante y finalmente las vírgenes atenienses que han tejido el peplo nuevo para Atenea. Sin ese friso tan largo pero tan insignificante en el conjunto general del monumento no podríamos comprender casi nada de la Acrópolis de Atenas. [2] Los emperadores romanos, además de las inscripciones y de los relieves de los arcos de triunfo, inventaron las columnas rostrales, soportes de cintas continuas de relieves envueltos helicoidalmente alrededor de su fuste. En ellas se relataban las victorias de los emperadores. Hoy todavía conservamos dos, la columna trajana y la columna antonina. Ambas, de dimensiones casi idénticas, desarrollan frisos de algo más de doscientos metros. En la primera se narra la historia de las dos guerras dacias y de la victoria de Trajano. En la segunda el relato nos explica las guerras marcomanas y sarmáticas y la victoria final de Marco Aurelio. [3] 169 El tapiz de Bayeux nos relata la conquista de Inglaterra por los normandos. El dibujo se acompaña con inscripciones que nos ayudan a seguir los prolegómenos y la batalla de Hastings en 1066. La historia ocupa una pieza de lino bordada con lanas de ocho colores. Su longitud actual es de setenta metros y treinta y cuatro centímetros. [4] Tal vez la inconsciente y fantasmal presencia de estos ejemplos del pasado haya hecho que Beneyto en estos últimos meses haya vuelto sobre ese formato queriendo alargar sus anteriores tentativas. Ha montado sobre la mesa los rollos de Invitación al vals de Weber, Les cloches de Corneville de Planquette, La favorita de Donizetti y Marina del maestro Arrieta. Las diferentes piezas van a formar después de dibujadas una sola, habitada por monstruos, seres humanos, vegetales e híbridos de todo lo anterior, realizados en gouache y tinta china. [5] Los rollos provienen todavía de la compra antigua, son objetos del Rastro. Y es en esto en lo que la nueva obra se va a diferenciar radicalmente de los ejemplos de la historia que inevitablemente tienen el carácter de ruina. El mejor conocedor de los rastros, Ramón Gómez de la Serna, alguien próximo a Beneyto, nos ha dejado en las notas prologales a su mejor obra, la definición de la diferencia fundamental entre la gran historia y el sueño cotidiano: No son tampoco ruinas históricas y trascendentales estas cosas del Rastro, ¡eso sería demasiado! Porque en las ruinas queda siempre algo que pervierte, un resto de su jactancioso, de su supersticioso pasado, de su hipócrita dominación, por lo congregadas que están, como persuadidas aún de su objeto común y tiránico, sin la suficiente persuasión y rebeldía privada en cada una de las piedras. Las ruinas del Rastro, por el contrario, disgregadas, abandonadas a su soledad y su última conciencia, entran en razón, se llenan de sencillez, y como la sencillez es comparable con todo, resulta que con la cultura del pequeño espacio corrigen las ideas extensas y soporíferas y vacuas de las grandes imágenes, esas grandes imágenes que relajan el espíritu dándole la enfermedad tremenda de las dilataciones, “la dilatación del dolor”, “la dilatación de la ansiedad”, “la dilatación de la idea humana del tiempo convertida en inhumana y traspasadora de dolores agudos y largos”, etcétera, etc. Las ruinas del Rastro muestran pegadas, enjutas, inculcadas a sus añicos, las ideas más inauditas y curativas, resultando así en su pequeñez, como restos mayores, pedazos de catedral, pedazos de trascendencia incalculable ante los que se adquiere la seguridad de que entre esas piedrecitas menudas, está la piedra filosafal, vulgar piedra de la calle. [6] Ese espíritu es el que había impulsado a que la Comuna de París derribase la copia napoleónica de la columna trajana en París. El decreto de la Comuna decía: “considerando que la columna imperial de la plaza Vendôme es un monumento de barbarie, un símbolo de la fuerza bruta y de la falsa gloria, una afirmación del militarismo, una negación del derecho internacional, un insulto permanente de los vencedores hacia los vencidos, un atentado perpetuo a uno de los tres grandes principios de la República francesa, la fraternidad, DECRETA: Artículo único. La columna de la plaza Vendôme será demolida. Y así se hizo el 16 de mayo de 1871.[7] Aquí comenzará el nuevo friso de Beneyto. No será un nuevo documento de barbarie, no nos relatará la realidad histórica porque su registro está en el estrato surreal del mundo, un lugar alejado de la gravedad de los tiempos presentes, habitado solamente por seres sin cuerpo, definidos por líneas y por brillantes colores. Esos seres se moverán nuevamente entre las signos musicales, entre las perforaciones del papel de música del piano mecánico. Paralelamente al ritmo en el que la obra vaya avanzando Antonio Beneyto debería ir pensando en cómo va a ser mostrada una vez la acabe ¿La acabará alguna vez? Ya hemos visto como en los ejemplos históricos ese punto fue capital. Tal vez tendría que reconstruir uno de esos viejos panoramas y colgar el dibujo alrededor de su plataforma para que la imagen se cerrarse sobre sí misma iluminada por una luz de tienda de campaña. O tal vez debería colgarse el dibujo de un globo cautivo que acercase e hiciese desaparecer a un 170 tiempo a estos personajes fantásticos en la inmensidad del espacio sideral. O tal vez debería ser arrastrado por un zeppelin sobre el cielo artificial de la gran ciudad como el anuncio de una vida futura. O tal vez debería ser enrollado en el monumento a Colón de Barcelona y reconstruir el andamio metálico que permitió su construcción en 1888 dotándolo de ascensores-mirador para poder ver sus formas y sus colores. Pero seguramente Beneyto haya pensado ya en otras soluciones. Tal vez decida sumergir su dibujo en la profundidad del océano y pedirle al capitán Nemo que su submarino panorámico recorra sus veinte mil leguas de viaje mostrando su dibujo también de veinte mil leguas. O tal vez haya decidido filmar el dibujo y convertirlo en una película protagonizada por esa extraña fauna de animales y hombres pertenecientes a mundos desconocidos en nuestra tierra vestidos con colores brillantes y peinados con melenas como estelas. En se caso tendrá que pensar en la velocidad, tanto en la de la filmación como en la de la proyección ¿Cuánto dura una ensoñación? También deberá pensar en si es una película enteramente en color o si tiene, intercalados, fragmentos en blanco y negro ¿Soñamos en blanco y negro o en color? Y también deberá requerir que su amiga Patti Smith le componga una música –interpretada por ella misma– para que con su voz la proyección adquiera la dimensión profunda. Esa película no debería, como la música que la acompañe, tener –como Beneyto pretende con su obra– ni principio ni fin, debería ser una película infinita acompañada por un infinito canto de sirena. Esa película, ese El dibujo más largo del mundo, debería ser, como Las mil y una noches, el cuento de nunca acabar: un sueño eterno. NOTAS 1. Walter Pater. El Renacimiento. Barcelona. Iberia-Joaquín Gil, editores. 1945. 2. Arnold von Salis. El arte de los griegos. Madrid. Revista de Occidente. 1926. 3. Antonio García Bellido. Arte Romano. Madrid. CSIC. 1972. Para la columna trajana pp. 364–372 y para la columna antonina. 4. AA.VV: La Tapisserie de Bayeux. Paris. Flammarion. 1957. Para la técnica y materiales especialmente el capítulo de George Wingfield Digby. 5. Jacinto Antón “El pintor Beneyto presenta al libro Guinnes un dibujo de más de 30 metros”. El País. 15 de enero de 1987. 6. Ramón Gómez de la Serna. El Rastro. Valencia. Editorial Prometeo. S.f. (1915). 7. Sobre la columna: Achile Murat. La Colonne vendôme. Paris. Ëditions du Palais Royal. 1970. Sobre su derribo: La chute de la colonne Vendôme. Paris. Éditions du Ravin Bleu, 1998. El decreto está en la p. 9, la traducción es mía. 2. Juan-Eduardo Cirlot | EL IRREALISMO LÍRICO DE BENEYTO El Pop art, que comenzó su auge en Estados Unidos e Inglaterra ya en 1958-1960, ha tenido repercusiones amplias en el mundo. Pero como producto de una sociedad determinada, mucho más influida que la nuestra por el realismo y la oferta de felicidad a poco precio de la propaganda, en otras comarcas ha cambiado de signo, pudiendo incluso transformarse en algo esencialmente distinto que, paradójicamente, se expresa a través de la imaginería Pop. En España es donde las versiones de ese arte se han modificado más profundamente. Un ejemplo perfecto de metamorfosis lo ofrece la obra actual de Antonio Beneyto, residente en Barcelona, pintor y escritor que liga íntimamente ambas actividades (incluso en alguna obra pictórica sugiere el mundo literario por inserción de signos gráficos y otros). Aficionado al color y a la forma desde antes que a las letras, adquirió, en cambio, más rápida profesionalidad en éstas y solamente en los tres años últimos su pintura, sobre tela y papel, ha adquirido una densidad notable y un estilo auténticamente propio. Tras una fase (19671968) experimental intensa, con todos los medios y procedimientos, trabajando lo mismo en amplios lienzos que en pequeños soportes de papel, acercándose a veces a formas monumentales y haciendo proliferar en otras ocasiones mundos microcósmicos que pululan 171 como los gestos de un Michaux, Beneyto llegó a principios de 1969 a cristalizar dos corrientes dominantes en su obra: la serie azul y la serie negra. A nuestro juicio, ha conseguido más claridad de imagen en la primera. Trabajando por reservas obtiene imágenes negativas que danzan en espacios celestes, dominados por el azul claro, pero en los que se varía del azul oscuro al gris blancuzco. Círculos negros, discos, trazos y triángulos, alternan con personajes espectrales, ingrávidos, que proceden del mundo de la poesía tanto como del pictórico, y que se aparecen entre fulgores apagados y destellos neutralizados en parte. En su versión tan sublimada del Pop art, que casi huye de la clasificación, Beneyto no mantiene de dicha tendencia sino el sentimiento gráfico de la imagen y la composición, junto con la plenitud de las neofiguraciones incorporadas en un espacio que ha heredado del romanticismo informalista la vaguedad tonal y la fluctuación de fondos imaginarios, sugerentes, nebulosos. Si Beneyto partió de una libertad absoluta en su enfrentamiento con la realización pictórica, la palabra serie significa que ha canalizado su fuerza en trayectorias disciplinadas, no que trabaje con criterio de obra cuyo valor dimana de su pertenencia a un grupo. La serie es constituida sólo por la persistencia de unas formas y colores, junto con la idea de variar al máximo, en el interior de tal sistema, los ritmos y los elementos figurativos o dibujísticos. Hay pinturas que representan filas de bustos de personajes que parecen tomados de un catálogo, o que evocan el vaivén de los juegos circenses en la presentación especial de los personajes, eso cuando éstos no adquieren un significado netamente correspondiente a la época de los alunizajes y de las experiencias humanas del espacio exterior. Pero Beneyto no busca el pavor del encuentro con. lo ignoto, ni siquiera parece interesarse gravemente por la búsqueda de ese factor; desconocido que viene desde el futuro. Lúcidamente, hace que sus imágenes desarrollen una teoría de variaciones no sometidas a otra constricción que la de la técnica y la del concepto que dirige cada una de sus series. En la negra, que subtitula paisajes humanos ni por el título se acerca a esa confusión de la tierra y los cuerpos que vimos hace años en un Dubuffet. Domina por entero en Beneyto un factor irrealizante (idealizante + nihilismo) que es lo que delata en él al poeta, no al buscador de calidades ni al plasmador de texturas o de formas por su cerrado valor téctónico y plástico. Un juego de vuelos y danzas que penetran en laberintos de espacios abiertos al infinito. Un arte imaginativo, pero sometido a una reflexíón estética que muestra una pureza innata mejor que adquirida en el crisol de la ciencia artística. Esto es lo que vemos en Beneyto, junto a un anhelo de permitir que algunas zonas de su iconografía se acerquen a la sátira social, con más ironía, apenas perceptible, que acritud. No es esta ocasión para hablar de la vida del pintor-escritor, pero sí diremos que está en plena consonancia con el impulso dominante en su obra: rechazo de las contricciones objetivas, busca viajes, movimiento, capacidad para fijar las propias leyes. Unido esto a un gozoso interés por lo que, algo paradójicamente, pudiéramos llamar anecdótico-significativo: el encuentro inesperado, lo concentrado por breve, lo inventivo que se diría gratuito y no lo es porque brota del fondo de una actitud de disponibilidad auténtica, de entrega a lo inmediato. Por eso las imágenes de su serie azul son únicas cada una de ellas, aunque hayan dado realidad a una colección de apariciones que, por medio de una alquimia tan heterodoxa como el Pop de este artista de hoy, transmutan la materia prima no en oro, sino en un humo tintado de anilina, capaz de adensarse, aligerarse, fluir, derramarse, figurar, desfigurar, fulgurar y silenciar a la postre cuanto en el hombre es desesperación y lucha estéril. 3. Ricardo Senabre | LOS LENGUAJES DE ANTONIO BENEYTO Las exposiciones y catálogos de Antonio Beneyto dejan claro desde el primer momento que nos hallamos ante un creador plural, cuya inquietud artística no se reduce a un solo ámbito, sino que experimenta sin cesar con modalidades expresivas diferentes: dibujo, pintura, escultura, cerámica, literatura narrativa, ilustración… Podría pensarse que se trata de una 172 obra dispersa, heterogénea, sometida exclusivamente al capricho libérrimo del artista. Sería, sin embargo, una impresión engañosa, porque lo que da sentido a este variadísimo conglomerado de productos artísticos es precisamente su profunda unidad; la misma que tendría el individuo polígloto, capaz de expresarse en varias lenguas sin variar por ello sus pensamientos o su espíritu. Pensemos, por ejemplo, en esos extraños personajes de muchos dibujos de Beneyto –y no sólo de las llamadas pinturas negras– cuyos dedos de pies y manos se prolongan, con un afán de ser más, en imposibles ramificaciones, en arborescencias y transformaciones que desrealizan a los sujetos y los acercan al mundo vegetal. Y recordemos el arranque de un texto literario del autor, titulado Algunos niños, empleos y desempleos de Alcebate: Aquel niño que había nacido sin padres en vez de uñas tenía flores y por eso se las comía. O bien, sin salir del mismo libro: De sus largos y gruesos dedos salían por debajo de sus uñas como una especie de látigos que él usaba para domesticar a los clientes que proferían palabrotas. Pero ya mucho antes, en el texto Las hormigas me hacen cosquillas (1968) se leía: Me encuentro mejor […] En vez de extremidades tengo ramas de naranjos con hojas violetas. También mi cuerpo está cubierto por una rugosa corteza por la cual suben largas hileras de hormigas. ¿No estamos ante visiones semejantes? ¿No responden las imágenes plásticas al mismo principio que gobierna retratos literarios como estos? Dos lenguajes tan aparentemente dispares no logran ocultar la esencial unidad de la mirada. Por si fuera poco, algunas exposiciones del autor –como la más reciente, que ha recorrido varias poblaciones del sur de Francia entre 2010 y 2011– exhiben no sólo pinturas o dibujos, sino también libros de la biblioteca personal del artista; obras de Stendhal, Pieyre de Mandiargues, Gaudí, Arrabal, Corredor Matheos, Cela, Tadeusz Kantor, Robert Desnos, Breton, Topor, Michaux, Cirlot, Jaime D. Parra y otros autores, en ejemplares cuyo denominador común es la ilustración que Beneyto ha dibujado en la portada o portadilla de su volumen. La verdadera lectura es un diálogo con la obra, como ha recordado Steiner, y las intervenciones del lector en ese diálogo se manifiestan con frecuencia en anotaciones marginales –a veces extensas e incluso prolijas, como las que practicaban los humanistas del Renacimiento–, observaciones o marcas de naturaleza diversa que dejan constancia en el ejemplar de las reacciones del lector, de sus acuerdos o discrepancias, de sus deseos de colaborar con el texto mediante notas encaminadas a completar o rectificar algún pasaje. Pues bien: esos dibujos únicos que ostentan muchos libros de la biblioteca de Beneyto representan exactamente lo mismo: su reacción como lector, su impresión acerca de la obra, su interpretación personal; constituyen, en suma, su parte del diálogo necesario entre autor y lector, sólo que, en lugar de acudir a anotaciones verbales, este lector peculiar ha traducido sus sensaciones a imágenes, lo que prueba asimismo que, para él, ambos lenguajes son equivalentes o intercambiables. Es significativo que en la prosa titulada La habitación sin espejos de la dama morada (1970), el sujeto se encuentre de pronto con que de las paredes de su cuarto han desaparecido los cuadros, sustituidos por narraciones que se dedicaron a vivir y andar por el techo, y dormían en los ángulos de la habitación, como telarañas, de modo que la habitación aparecía forrada con un sentido muy digno y equilibrado de la estética con textos un tanto disparatados, misteriosos y extraños en los que se entrecruzaban lo fantástico y lo real tejiendo un mundo maravilloso, poético y auténticamente sorprendente, palabras que parecen sintetizar muy bien la impresión de cualquier desprevenido contemplador enfrentado a la obra pictórica de Beneyto. No será ocioso mencionar, a propósito de este intercambio de percepciones, el pasaje del libro El otro viaje en que el narrador contempla un paraje rural y se le antoja el fondo de una pintura o un anuncio publicitario. Bastará recordar un ejemplo más. Una multitud de obras de Beneyto presentan figuras de cuyo cuello emergen lo que a simple vista podrían parecer dos cabezas, pero que son, en realidad, los dos perfiles del rostro, siempre desiguales y disimétricos. El cuadro titulado Nina Hagen (1982) funde dos figuras, masculina y femenina, una de las cuales surge de la otra. Una tabla de 1983 lleva como título En el país de los hermafroditas, y Andrógino es un óleo de 1982. Esta dualidad dispar, que es uno de los motivos más frecuentes en la pintura 173 del artista, no trata de sugerir la existencia de dos sujetos –de hecho, lo habitual es que sólo haya dos piernas–, sino la duplicidad de espíritu del ser humano –una moderna visión del Jano bifronte–, las dos caras de la realidad, y, apuntando por elevación, el intento de mostrar que toda apariencia es sólo superficie, y que el deber del artista es sacar a la luz lo que esta capa oculta. Pues bien: no es difícil tropezar con el traslado de esta idea y esta imagen al lenguaje verbal. En el ya citado libro Algunos niños, empleos y desempleos de Alcebate se describe así a un fantástico personaje designado como el muevecafé: Del perfil derecho era chato y tenía un color whisky; del otro perfil, o sea del izquierdo, se le veía la punta de la lengua y el color de su piel parecía una tijera pintada de rojo; y viéndolo de frente daba la sensación de ser un ovario cualquiera recién intervenido. Este descoyuntamiento de la figura, estos perfiles divergentes que acaban por reducirse a un ovario, a una forma primitiva y genital, expresan perfectamente la raíz profunda del problema. El motivo de la dualidad ofrece otras soluciones en los textos escritos. Por ejemplo, en las alteraciones de topónimos y antropónimos. Albacete se convierte en Alcebate, y la Irene destinataria de algunas cartas apócrifas será Eneri. En este mismo plano cabe añadir los usos de palabras inexistentes –como inexistentes son muchos objetos y criaturas de cuadros y dibujos– cuyo significado deberá dilucidar el lector apoyándose en el contexto. Sólo en unas páginas de El otro viaje brotan repílforo, jundunare, popetas, grollar, trepetales, billota, tamajosa, pizorrera, alugerado, quilochas, lluecura o circar(se), entre diversas formas. En otros casos, los vocablos existen, pero se utilizan con un significado imaginario: autópsido, cachumbo, pizote, cándalo. Naturalmente, estos desvíos son limitados, porque en la narración se imponen las exigencias del lenguaje ya dado –con sus propios valores significativos– y de su configuración de la realidad, y es preciso respetarlas mínimamente, mientras que en las creaciones plásticas no existen condicionamientos previos y sí un campo abierto para albergar las más libérrimas creaciones. Pero la actitud es análoga en unos casos y otros. No hay que olvidar que en un pasaje de Algunos niños… se habla de uno que estaba partido por la mitad, a pesar de lo cual aún tenía medios y formas de pensar. Y por esto se entretenía en componer, en fundir algunas palabras. Palabras rotas, malolientes. Se trata siempre de provocar la sorpresa ante lo inesperado, requisito indispensable para aspirar a la creación de orbes autónomos, cuya existencia no reproduzca forzosamente un mundo real o reconocible, sino que tengan vida y significado propios por sí mismos. Porque esto es lo decisivo, independientemente de que algunos recursos desrealizadores puedan compararse con los del surrealismo o el postismo. Y las marcas que subrayan este deliberado alejamiento de lo consabido son múltiples. El libro El otro viaje se titula así porque, aun amoldándose externamente a los cánones del género vivificado por Cela en su Viaje a la Alcarria –sin duda el modelo del que Beneyto pretende ofrecer el envés–, se aparta deliberadamente del dechado de relato itinerante –de igual modo que las figuras de los cuadros se alejan de cualquier modelo real– al crear el personaje de un viajero que se transmuta en gorgojo o larva según las ocasiones y que transita por un paisaje hosco sin topónimos reconocibles. En este mundo insólito, repleto de figuras monstruosas o grotescas, de personajes que se retuercen, traspasan los objetos, vuelan, expanden sus extremidades con inesperados alargamientos e incrustaciones que los liberan de la cárcel del cuerpo, se utilizan también, sin excluir un ribete humorístico que rebaja la posible trascendencia y reivindica el papel lúdico del arte, símbolos tradicionales (como la manzana que aparece en el ángulo inferior derecho de Autorretrato, 1994-1998) que dejan entrever, por muy reelaboradas que aparezcan, algunas de las raíces pictóricas y literarias de las que brota el arte de Antonio Beneyto. ENRIQUE GRANELL (Barcelona, 1955) es arquitecto y historiador de arte. JUAN-EDUARDO CIRLOT (1916-1973) fue uno de los más importantes poetas y críticos de arte de su generación. RICARDO SENABRE es otro nombre destacado de la crítica literaria en España. 174 Los tres firman aquí su visión acerca de la obra de António Beneyto, nuestro artista invitado de esta edición de ARC. Contacto: [email protected]. 175 Agulha Revista de Cultura editor geral FLORIANO MARTINS editor assistente MÁRCIO SIMÕES logo & design FLORIANO MARTINS revisão de textos & difusão FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES equipe de tradução ALLAN VIDIGAL | ÉCLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FLORIANO MARTINS | LUIZ LEITÃO DA CUNHA | MÁRCIO SIMÕES jornalista responsável SOARES FEITOSA | DRT/CE, reg. nº 364, 15.05.1964 apoio cultural JORNAL DE POESIA contatos FLORIANO MARTINS Caixa Postal 52817 - Ag. Aldeota | Fortaleza CE 60150-970 BRASIL [email protected] | [email protected] | [email protected] MÁRCIO SIMÕES Rua do Sobreiro, 7936 Cidade-satélite | Natal RN 59068-450 BRASIL [email protected] | [email protected] cartas [email protected] registro de domínios para a internet no Brasil www.revista.agulha.nom.br banco de imagens acervo triunfo produções ltda os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista os editores de Agulha Revista de Cultura não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © triunfo produções ltda CNPJ 02.081.443/0001-80