Mário S. Ming Kong Arquitecto, Professor Auxiliar da F.A.U.T.L [email protected] O processo de concepção arquitectónica e o desenho “Projectar é fácil quando se sabe o que se quer fazer” Bruno Munari, Das coisas nascem coisas, Lisboa, Edições 70, Lda., p. 12. Todo o processo de concepção, seja em que área for, assenta na busca da “melhor” solução para um problema, 1 de acordo com as condições e condicionantes previamente existentes. Estas condicionantes podem ser de ordem funcional ou material, mas também podem reflectir um propósito de tipo social, económico, político, simbólico ou até do reino da fantasia. Em todo o caso, o primeiro passo no acto da concepção é a definição criteriosa do problema no seu todo, permitindo assim definir os limites dentro dos quais o interveniente deverá trabalhar. PROBLEMA Nesta perspectiva, qualquer processo conceptivo parte do reconhecimento de uma situação problemática e da decisão de a solucionar. O processo de concepção é então sobretudo um acto evolutivo, um empenho intencional em tomar conhecimento da situação do problema, definir o seu contexto e reunir todos os dados necessários que mereçam ser tidos em conta. Esta é a fase mais sensível do processo de concepção, porque a natureza das soluções está inevitavelmente condicionada ao modo de captar, definir e articular o problema. Já o poeta e cientista Pit Hein se expressou da 1 O problema resulta de uma necessidade, mas ele não se resolve por si só. No entanto, contém já todos os elementos para a sua solução, é, pois necessário conhecê-los e utilizá-los no projecto de solução. SOLUÇÃO Fig. 1 Esquema I seguinte forma: “A arte é resolver os problemas que não se podem formular antes de solucioná-los. A definição de um problema faz parte da resposta.” 2 Faz parte, mas não é a resposta, já que esta só muito raramente aparece por si só. 3 Há um percurso a fazer que implica pesquisa, experimentação, 4 aferição, avaliação e, por vezes, reformulação do problema, o que obriga a PROBLEMA DEFINIÇÃO DO PROBLEMA reiniciar todo o percurso até à obtenção de uma solução válida e viável. A este processo, Bruno Munari (1907-1988) chama método projectual. 5 O método projectual não é mais que uma sucessão de operações RECOLHA DE DADOS necessárias, dispostas por uma ordem lógica ditada pela experiência. Este método não é absoluto ou definitivo, mas aberto a novos valores que possam assumir importância ao longo do acima referido percurso. 6 À capacidade de reconhecer e interligar novos valores, de tomar decisões de orientação ao longo do percurso, podemos chamar criatividade. A criatividade revela-se, de acordo com Bruno Munari, na “utilização, com um dado objectivo, da fantasia, 2 7 ou melhor, da fantasia e da invenção em Francis D. K. Ching, Arquitectura: Forma, Espacio y Orden, Barcelona, Gustavo Gilli, 1982. 3 Definido o problema é necessário desmontá-lo nas suas componentes para melhor o conhecer, isto é, qualquer que seja o problema pode-se dividi-lo nas suas componentes. Esta operação facilita o projecto porque tende em pôr em evidência os pequenos problemas singulares que se ocultam nos subproblemas. Uma vez resolvidos os pequenos problemas, um de cada vez, entra em acção o processo da criatividade. 4 Segundo o Kant todo o conhecimento começa com a experiência, mas não significa que tudo dela se deriva. Kant citado por Alexandre Kojève, A Eternidade o Tempo e o Conceito, Paris, Farândola, 1996, p. 24. 5 Bruno Munari, Das coisas nascem coisas, Lisboa, Edições 70, 1981. 6 A análise de todos os dados recolhidos pode fornecer sugestões acerca do que se não deve fazer para projectar e também orientar o projecto. 7 Bruno Munari definio que “A fantasia é uma capacidade produtiva onde fantasia e razão estão associadas e cujos resultados são sempre realizáveis na prática.” Bruno Munari, Artista e designer, Lisboa, Editorial Presença, Lda, 1979, p. 69 ANÁLISE DE DADOS SOLUÇÃO Fig. 2 Esquema II conjunto. 8 A criatividade é uma capacidade produtiva, onde fantasia e razão estão associadas, e cujos resultados são sempre realizáveis na prática. Assim, e seguindo este raciocínio, podemos definir o acto de criar como sendo um percurso metódico ao longo do qual se pretende solucionar um problema, utilizando, entre outras ferramentas, a imaginação. 9 Estabelecendo uma ponte com o passado, sobre o mesmo assunto escreveu Vitrúvio, arquitecto/engenheiro, investigador e autor da época do imperador romano Augusto (63 a.c. - 14 d.c.),: “[...] estas coisas obtêm-se através da meditação e da invenção; a meditação é o esforço que o espírito faz, convidado pelo prazer de ser bem sucedido na pesquisa de alguma coisa; a Fig. 3 invenção é o efeito deste esforço de espírito em dar uma nova explicação aos assuntos mais obscuros.” 10 Desta forma, quando falamos em metodologia de projecto, não estamos a falar de um receituário, mas de um processo imaginativo e sistemático que organiza e orienta o acto de criar, de forma a tornar o objecto arquitectónico mais harmonioso e proporcional. Este acto exige dos intervenientes do conhecimento uma grande variedade de disciplinas, de forma a dar resposta aos mais diversos níveis de exigência, nomeadamente, estéticas, formais e funcionais, e ainda a capacidade para articular esses vários aspectos e saberes.11 8 Bruno Munari, Fantasia, invenção, criatividade e imaginação na comunicação visual, Lisboa, Colecções Dimensões, 1987, p. 24. 9 O mundo exterior ao indivíduo é explorado pela inteligência mediante manipulações e operações lógicas, com o objectivo de procurar compreender as coisas e os fenómenos que nos rodeiam. A vista, o ouvido, o tacto e todos os outros receptores sensoriais põem-se em acção simultaneamente e a inteligência procura coordenar todos os tipos de sensações para apreender o que se passa. Podemos dizer que o pensamento pensa e a imaginação vê. A imaginação é o meio para visualizar, para tormar visível aquilo que pensam a fantasia, a invenção e a criatividade. 10 Livro I, Cap. II. 11 Os métodos utilizados em arquitectura recordam muitas vezes aqueles que a ciência aplica, o tipo de pesquisa usada na ciência pode também ser utilizado em arquitectura. A pesquisa em arquitectura é sem dúvida mais metódica do que dantes, mas a sua Esquema III Contudo, conhecimentos teóricos apenas não são suficientes. Para uma articulação criativa e inventiva das várias áreas de conhecimento intervenientes, são, sem qualquer dúvida, também indispensáveis a experiência e a prática. Ambas as visões – a teórica e a prática – complementam-se e suportam-se. Este conceito já se teorizava na Antiguidade. Segundo Vitrúvio, a Arquitectura “é uma ciência que deve ser apoiada por uma grande diversidade de estudos e de conhecimentos através dos quais ela julga as obras das outras artes que lhe pertence. Esta ciência adquire-se pela Prática e pela Teoria. A Prática consiste numa contínua aplicação à execução de projectos, segundo os quais a forma conveniente é atribuída à matéria de que todos os tipos de obras são feitas. A Teoria explica e demonstra a conveniência das proporções que as coisas que se querem fabricar devem ter: isto faz com que os arquitectos que se esforçaram para obter a perfeição da sua arte através unicamente de exercício da mão, não obtivessem quase nenhum avanço, por muito grande que tenha sido o seu trabalho, de igual modo aqueles que acreditam ser apenas através do conhecimento das letras o único caminho para obter o êxito; pois não obtiveram mais do que a escuridão: mas aqueles que juntaram a Prática e a Teoria, foram os únicos a terem sucesso no seu empreendimento, porque estavam munidos de tudo o que era necessário para chegar a bom fim” . 12 O processo metodológico conceptivo em arquitectura pode, assim ser definido como uma disciplina de vasto alcance, cuja intenção é enriquecer o vocabulário específico do desenho através da exploração teórica, orientada pela experiência, que em seguida é posta em prática. Surge desta forma o desenho do projecto arquitectónico. essência nunca pode ser simplesmente analítica. A pesquisa em arquitectura será sempre uma arte e um instinto. Fundação Calouste Gulbenkian, Alvaro Alto (1898-1978), Lisboa, 1983, p.113. 12 Livro I, Cap. I. Cf. Maria Helena Rua, Os dez livros de Arquitectura de Vitrúvio, Lisboa, 1998, pp. 2-3. Fig. 4 Esquema IV Os meios que permitem comunicar a terceiros o acto conceptivo são, entre outros, o desenho, 13 a pintura, a escultura, a modelagem, o cinema, a arte cinética, etc. O processo de concepção de objectos arquitectónicos expressa-se, habitualmente, através do desenho. Uma expressão adaptada a descrever este tipo de pesquisa é “o desenho como suporte do pensamento gráfico”.14 Ao longo das várias etapas do desenvolvimento de um projecto arquitectónico, o arquitecto recorre a vários tipos de desenho como auxiliares do seu processo conceptual,15 nomeadamente: o esboço,16 o desenho rigoroso, as projecções, as perspectivas, 17 as axonometrias, 18 os desenhos construtivos, explodidos, sobre fotografias, maquetas ... 13 Na consulta de dicionários e enciclopédias; o desenho aparece definido como arte de representar numa superfície quaisquer seres ou coisas com a linha ou traços e sombras, por qualquer meio (lápis, pena, pincel, etc.). 14 Ver o trabalho de Ana Leonor Magalhães Madeira Rodrigues. O Desenho, ordem estruturante e universalizante do pensamento arquitectónico, Lisboa, Estampa, 2000. 15 Eduardo Alberto Vieira de Meireles Côrte-Real estuda O triunfo da verdade. As origens do desenho arquitectónico. Lisboa, Livros Horizontes, 2001. 16 O esboço rápido feito a lápis ou caneta ou com qualquer instrumento, até às vezes com pincel, serve para comunicar uma forma ou uma função ou para dar instruções acessórias durante os trabalhos dos modelos ou os pormenores construtivos, como também serve para anotar como pró-memória algo que tenha em mente, que descobriu, que quer modificar. 16 Geoffrey H. Baker, Análise de la forma, Barcelona, Ediciones G. Gili, S.A., 1991. 17 A perspectiva, como descoberta e definição das regras, está adaptada para ilustrar a qualidade de qualquer objecto singular no espaço e na relação recíproca entre diversos objectos dispostos a diferentes profundidades e regulada pelas relações que reúnem grandeza e distância, forma e inclinação, luminosidade e profundidade. As regras perspécticas reproduzem, exteriormente ao observador (no plano do desenho), o que passa na retina. Sobre este assunto ver ainda a Dissertação de Doutoramento de Manuel J. R. Couceiro da Costa. Perspectiva e Arquitectura. Uma expressão da inteligência no trabalho de concepção. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura, na especialidade de Comunicação Visual. Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 1992. Para dar uma ilustração prática ao que acertámos até agora, vamos observar duas obras: na primeira, reportamo-nos ao passado, especificamente à história da arquitectura Ocidental, mais propriamente ao Renascimento entre os séculos XIV e XVI; a segunda obra inclui-se no Movimento Moderno, na arquitectura do século XX. Porém, neste estudo não pretendemos tratar da evolução da arquitectura ao longo da história. A história da arquitectura foi escrita inúmeras vezes e, provavelmente, será reescrita muitas outras. A escolha do primeiro período deve-se, ao culminar de um conjunto de movimentos culturais e artísticos, que tiveram como motivação o imitar e reviver os modelos estéticos dos mestres de Antiguidade Clássica. Todavia, à inspiração clássica dos temas e das formas, o artista imprimiu quase sempre um tratamento pessoal, que impulsionou a evolução das artes até à época actual. O segundo período foi escolhido porque, durante a primeira metade do século XX, a imagem arquitectónica do mundo mudou completamente. Ao longo do período Renascentista, relativamente ao processo de representação do método de projecto, podemos encontrar várias personalidades de grande importância que se destacaram, como foi o caso do escultor e arquitecto Filippo Brunelleschi (1377-1446), humanista Leon Batista Alberti (1404-72), 18 20 19 o arquitecto e o arquitecto e pintor Donato A axonometria é um método de transcrição espacial dos objectos muito usado no desenho técnico. 19 Fig. 5 Planta e corte da Catedral de Frorença, 1420-36, por Filippo Brunelleschi, Foto retirado, David Watkin, A History of Western Architectue, Great Britain, Laurence King, 1992, imagem nº 239, p.179. Brunelleschi estudou monumentos da arquitectura antiga, e ao procurar um método preciso de transpor as medidas para o papel, presume-se ter descoberto os princípios da sua perspectiva científica. 20 Alberti não era arquitecto de formação e menos ainda canteiro ou marceneiro, mas simplesmente um humanista. Oriundo de uma família rica da nobreza florentina, cresceu em Veneza. Recebeu a sua formação humanista em Latim, Retórica Antiga, Filosofia e Arte Poética, como aluno de Gasparino Barzizza (cerca de 1360 - cerca de 1431), um dos maiores conhecedores de Cícero da sua época. Estudou depois na célebre universidade de Bolonha, onde teve primeiro aulas de Filologia, Retórica e Filosofia, Direito Canónico e Direito Civil, às matemáticas e à Fisica. Facto interessante, a actividade do escritor Alberti diminui na medida em que ele é considerado cada vez mais como conselheiro em matéria de arquitectura e, finalmente como arquitecto de tempo Fig. 6 São Francisco de Rimini, projecto de Leon Baptista Alberti. Gravura representando a construção da igreja. Gravura retirada; Domingos Tavares, Leon Baptista Alberti. Teoria da arquitectura, s. l., Dafne Editora, 2004, p. 80. Bramante (1444-1514), 21 e o pintor, arquitecto e inventor, Leonardo da Vinci (1452-1519), 22 ver Figs. 5, 6, 7, 8. Qualquer destas personalidades reúne condições para servir como exemplo ao que anteriormente expusemos. No entanto, há ainda outra personalidade da Baixa Renascença, para ser mais específico, do Maneirismo, que, a nosso ver, se destaca pela originalidade que imprimiu a todos os seus trabalhos, tanto no campo da pintura e da escultura como da arquitectura – Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564). inteiro. A paixão de Alberti pela arquitectura deve ter-se manifestado muito cedo, como demostra a dedicatória do Della pintura, de 1436 ao arquitecto Brunelleschi. Em 1447, Fig. 7 São Pietro in Montorio, o Tempieto, 1502, Roma, executado por Donato Bramante, Foto retirado H. W. Janson, História da Arte, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, imagem nº 547, p. 423. quando trabalhava já no “De re aedificatoria”, o seu colega de estudos e amigo Tommaso Parentucelli de Sarzana, foi eleito Papa (Nicolau V, pontificado 1447-1455). Este terá convidado Alberti a participar desde o princípio nas reflexões, complexas sobre a restauração de São Pedro, que ameaçava ruína, assim como nos projectos de arranjo de toda a área do Vaticano. É sem dúvida também por iniciativa do Papa que Alberti é encarregado em 1450 de transformar a igreja sepulcral dos Malatesta em Rimini em novo “templo”. Petra Lamers-Schütze (coord.), Teoria de Arquitectura. Do Renascimento aos nossos dias, Lisboa, Taschen, 2003, p. 22. 21 Na sua fase de formação notam-se as influências de Pietro della Francesca e dos tratados teóricos de Alberti. Segundo o que Sebastião Serlio (1475-1554) nos diz, foi Bramante, mais do que nenhum outro, quem restabeleceu a gramática esquecida da Antiguidade. Ver John Summerson, A linguagem Clássica da arquitectura, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 39 22 O Leomardo di ser Piero da Vinci , para além de ser pintor, inventor, teórico da arte, naturalista, é considerado como um dos artistas mais representativos do Renascimento. A obra de Leornado representa o auge da prespectiva sistemática, descoberta por Brunelleschi. O artista, em seu entender, não só devia conhecer as regras da perspectiva, mas também todas as leis da Natureza, sendo os olhos o instrumento perfeito para adquirir tal conhecimento. O alcance extraordinário das suas invenções pessoais está presente nas centenas de desenhos e notas. Os testemunhos dos contemporâneos mostram que Leornado gozava a reputação como arquitecto. No entanto, a construção parece tê-lo interessado menos que os problemas básicos do traçado e da estrutura. Os numerosos projectos arquitectónicos entre os seus desenhos destinavam-se, tal como os das suas invenções na maioria, a ficar no papel. Fig. 8 Projecto para uma Igreja (Ms. B.), executado por Leornardo da Vinci 1490. Desenho à pena. Bibliothèque de l’Arsenal, Paris. Imagem retirada, H. W. Janson, História da Arte, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, imagem nº 546, p. 422. Apesar da sua insistência no facto de ser, antes de mais nada, um escultor, nenhum arquitecto de profissão teve um impacto tão surpreendente na arquitectura quanto Miguel Ângelo. Ele apontou uma nova direcção na arquitectura clássica. Tomemos como exemplo o projecto para a fachada exterior da Igreja de São Lourenço em Florença, (1521-34) executado por Miguel Ângelo. A Igreja existente (1421-69) era obra de Brunelleschi. O projecto da fachada de São Lourenço foi confiado a Miguel Ângelo, quando tinha já ele nessa altura quarenta e um anos. Tratando-se do seu primeiro projecto arquitectónico, efectuou de imediato e com muito agrado, a elaboração dos estudos do desenho do alçado. No entanto, apesar da total dedicação de Miguel Ângelo à concepção da fachada durante algum tempo, através de vários estudos, o projecto nunca chegou a ser construído, por decisão dos patronos da obra – os Medici. 23 Perante esta circunstância, pode-se questionar por que motivo ainda insistimos em eleger como exemplo este projecto não edificado. É verdade que se considerarmos a evolução da história da arquitectura até aos nossos dias, existem muitos outros autores que apresentam projectos acabados/inacabados ou mesmo que não passaram de utopia. 24 No entanto, mesmo assim, a nossa escolha prevalece no projecto de Miguel Ângelo: por um lado, pelo facto de ser na sua época um inovador na maneira como apresenta o processo criativo; e, por outro, pela originalidade como o autor apresenta o seu estudo metodológico projectual, o que contribuiu para uma nova forma de pensar e projectar a arquitectura clássica. Nas palavras de Vasari a respeito de Miguel Ãngelo: “ele rompeu as amarras e cadeias de uma maneira de trabalhar que se tornado habitual devido ao uso comum”.25 23 Cf. Nikolaus Pevsner, Panorama da Arquitectura Ocidental, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 223. 24 Cf. Anthony Viddler, Le Doux, Paris, Hazan, 1987. Cf. Leornardo Benevolo, História da Arquitectura moderna, São Paulo, Editora Perspectiva, 1994, pp. 173-205. 25 John Summerson, A Linguagem Clássica da Arquitectura, São Paulo, Martins Fontes, 2002, p. 47. Exposta a justificação, retomemos a nossa exposição central. Na fachada de São Lourenço, é de constatar que o artista, empreendeu a sua tarefa com entusiasmo, e afirmando: “ Farò la più bella opera che si sia mai fatta in Italia” (Farei a obra mais bela que jamais foi feito em toda a Itália); 26 elabora então de forma sucinta o programa da obra, que se propunha como “d’arquitettura e di scultura lo specchio de tutta Italia” (O espelho de arquitectura e escultura de toda a Itália). 27 Nesse projecto, ele pretendia criar um espaço onde as esculturas dos santos mais venerados de Itália estariam como que em diálogo com os patronos da obra – os Médici. A este diálogo chamou sacra conversazione.28 Fig. 9 Primeiro esboço do projecto para a fachada de São Lorenço, Florencia. Casa Buonarroti, Florencia, por Miguel Ângelo Foto. 318, Retirado, Charles de Tolnay, Miguel Angel. Escultor, Pintor y arquitecto, Madrid, Alianza Forma, p. 438. Podemos, por estas expressões, depreender que, posto perante um problema - a construção de um nova Igreja - a primeira coisa que Miguel Ângelo fez foi estabelecer um programa, isto é, definir o problema. Pondo, de imediato, a funcionar a fantasia como motor da sua criatividade. Para pôr em prática a criatividade, Miguel Angelo aplicou todos os conhecimentos que obtivera como escultor. Isto é, quando se iniciou na arquitectura já era escultor com um domínio de formas e materiais que transcendia o dos antigos mestres. Fig. 10 Projecto para a fachada de São Lourenço. Florencia. Casa Buonarroti, Florencia, projecto de Miguel Angelo. Foto. 319, Retirado, Charles de Tolnay, Miguel Angel. Escultor, Pintor y arquitecto, Madrid, Alianza Forma, p. 438. Contudo, no ponto de partida dos seus projectos, nomeadamente na fachada de São Lourenço, o autor recorreu a vários tipos de desenho como auxiliares do seu processo conceptual; 29 no entanto, antes de obter uma resolução final, recorreu a esboços, a desenhos mais elaborados e não tomou uma decisão final sem primeiro construir uma maqueta, ver Figs. 9 10, 11, 12 e 26 Cit. em Charles de Tolnay, Miguel Ângelo. Escultor, pintor y Arquitecto, Madrid, Alianza Forma, 1992, p.103. 27 Cit em Charles de Tolnay, Op. cit., 1992, p. 103. 28 Idem, 1882, p. 103. 29 Sobre este assunto Domingos Tavares, diz: “O desenho começa por ser um instrumento para pensar a forma e assume depois a função de informar a execução, de comunicar intensões, plasmar e confrontar alternativas no complexo sistema das relações entre pessoas, no trabalho e na decisão”. Domingos Tavares, Miguel Ângelo. A Aprendizagem da Arquitectura, Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 2002, p. 89. Fig. 11 Projecto para a fachada de São Lourenço, provávelmente a versão definitiva, Florencia. Casa Buonarroti, Florencia, projecto de Miguel Angelo. Foto. 319, Retirado, Charles de Tolnay, Miguel Angel. Escultor, Pintor y arquitecto, Madrid, Alianza Forma, p. 439. 13. Compreende-se a utilização da maqueta na execução dos seus projectos, se nos lembrarmos de que o artista, antes de ser arquitecto, considerava-se sempre e acima de tudo escultor. E esse mesmo poder de ver, completado pela observação prolongada das obras da Antiguidade Clássica, aliado à experiência, permitiu-lhe transcender a gramática baseada no estudo de Vitrúvio. Como foi dito por Vasari, segundo John Summerson: “em questão de proporção, composição e regras, procedeu de forma diferente dos outros que seguiram a prática comum”. 30 Isto é, criou uma nova harmonia para a sua época. Devemos aqui referir que o processo metodológico conceptivo criativo foi variando de acordo com o lugar, com a cultura vigente e, ainda, consoante a experiência e a prática de cada indivíduo, de forma a dar resposta aos mais diversos níveis de exigência, especialmente estéticos, formais e funcionais de cada sociedade. 31 Neste sentido, pode entender-se que a harmonia e a proporção, foram também exprimindo-se de forma diferente, mantendo, contudo, Fig. 12 Esboço de fórnice e estátua para a fachada de São Lourenço, Florencia, provavelmente a versão definitiva (detalhe), projecto de Miguel Angelo. Casa Buonarroti, Florencia. Retirado, Charles de Tolnay, Miguel Angel. Escultor, Pintor y arquitecto, Madrid, Alianza Forma, 1992, Foto. 321, p. 439. a mesma importância no seio da sociedade da qual brotaram e que reflectem. Para elucidar melhor, observemos agora um exemplo mais actual, que propusemos de início. Estamos agora no século XX, na corrente artística que se convencionou chamar o Movimento Moderno em arquitectura. Esse movimento teve início na década posterior à Primeira Grande Guerra (1914-18) e atingiu o ponto culminante da sua força inovadora no final da década de 1920. Após a Segunda Guerra Mundial os seus efeitos difundiram-se tanto, a ponto de não existir lugar algum no mundo industrializado no qual os blocos delgados, altos e reluzentes, as perspectivas de pilares de betão e as sequências de janelas recortadas não se tenham tornado típicos e familiares. 32 A arquitectura moderna 30 Cit. em John Summerson, Op. cit., 2002, p. 47. 31 Cf. Leornardo Benevolo, Op. cit., 1994, p.11. 32 Um dos principais factores que permitiu esse radicalismo na arquitectura foi a aplicação de novos materiais na construção dos edifícios, como o ferro, o betão e o vidro, em substituição da pedra. Sobre este assunto ver: Mário Say Ming Kong, Arquitectura Industrial. – Uma abordagem – Central Tejo, Dissertação de Mestrado em Reabilitação da Arquitectura e Núcleos Urbanos, Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Arquitectura, volume I,II, III, Lisboa, 2001. Fig. 13 Maqueta em madeira para a fachada de São Lourenço. Casa Buonarroti, Florencia. Foto. 258 e 258, Retirado, Charles de Tolnay, Miguel Angel. Escultor, Pintor y arquitecto, Madrid, Alianza Forma, p. 403. comporta não somente um novo reportório de formas, como também um novo pensar. Esta é a revolução arquitectónica do século passado e que continua a influenciar o princípio do nosso século - a mais radical e universal na história do mundo. Tal como toda a transformação histórica importante, o Movimento Moderno compreende um grande número de contribuições individuais e colectivas não sendo possível de fixar a sua origem num só lugar ou num único ambiente cultural. Fig. 14 Fallingwater, casa para Edgar J. Kaufmann, Bear Run, Pennsylvania, (19351939) do arq. Frank Lloyd Wright. Foto retirado livro de Bruce Brooks Pfeiffer, Frank Lloyd Wright in his renderings 1887-1959, Japan, A.D.A. EDITA Tokyo Co., Lda, 1990, capa. Dentro deste movimento destacam-se nomes como Frank Lloyd Wright (1867-1959),33 na América, e Walter Gropius (1883-1969), der Rohe (1887-1967), 33 34 Ludwig Mies van 35 Wright foi o primeiro a desafiar as leis de gravidade. As suas obras inspiradas nas grandes planícies americanas, com as suas linhas longas e horizontais, acentuadas por lajes em consola, só possíveis recorrendo aos novos materiais e de uma estreita colaboração com a “engenharia”, teve larga influência internacional. “Fallingwater” - Fig. 15 Bauhaus, Dessau, (1926), projectado por Walter Gropius. Imagem retirado AAVV, World Architecture, England, TheHamlyn Publishing Group Limited, 1963, p. 330, fig. 995. Casa da Cascata, executado por Wright para Edgar J. Kaufmam, em Bear Run, na Pensylvania (1935), é uma das obras melhor concebidas, em que tentou aproximar-se do limite das capacidades estruturais dos materiais, em estreito diálogo com a natureza e as memórias do lugar (ligação dos donos da obra ao local, anteriormente utilizado para passeios e piquenique), promovendo um novo conceito de harmonia e interacção das funções. Ver figs 14. 34 Gropius, filho de um abastado arquitecto e funcionário berlinense, trabalha no estúdio de Behrens, porém, logo começa a projectar por sua conta. É autor do mais complexo exemplo do «estilo internacional dos anos vinte o grupo de edifícios criados em 1925-26 para a Bauhaus destinado a albergar a nova sede da escola em Dessau. Dentro deste grupo o mais impressionante é o bloco de oficinas com paredes, que consistem numa superfície contínua de vidro, possível apenas pela introdução de uma estrutura em aço, libertando a parede de qualquer função de suporte. Apesar deste conceito já ter sido concebido algumas décadas antes, foi Gropius o primeiro a libertar-se completamente da Fig. 16 Casas de apartamentos do Lake Shore Drive, em Chicago (1950-52), projectada por Ludwig Mies Van Der Rohe. Foto retirado, H. W. Janson, História da Arte, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, foto. 884, p. 710. noção tradicional de janela como um «buraco na parede» - permitindo revolucionar o arquétipo de parede como algo estanque e opaco. Abriu-se, assim caminho para uma nova visão da harmonia na relação interior/ exterior, ver fig. 15. 35 Mies Van Der Rohe é filho de um mestre-carpinteiro. Trabalha primeiramente como desenhista no estúdio de B. Paul de 1901 a 1907; depois, em 1908, ao lado do alemão Peter Behrens (1868-1940), um arquitecto que tinha iniciado a sua carreira como pintor, foi um dos líderes do Movimento Artes e Ofícios no início do século XX; ao ser Fig. 17 A Casa Schroder, em Utrecht, desenhada por Rietvelt, em 1924. Foto retirado, H. W. Janson, História da Arte, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, foto. 878, p. 708. Gerrit Thomas Rietvelt (1888-1964), 36 na Europa, ver Figs. 14, 15, 16, 17. No entanto, um dos criativos que mais contribuiu para o desenvolvimento da arquitectura moderna foi Charles-Édouard Jeanneret, conhecido por Le Corbusier. 37 (1887-1965), 38 contratado como conselheiro artístico da firma de electricidade A.E.G., é encarregue em 1908, de projectar um pavilhão de turbinas para a fábrica de Berlim. Em 1913, Mies abre um estúdio de arquitectura em Berlim, mas seu trabalho é logo interrompido pela Guerra. Fixou-se em Chicago como arquitecto profissional. As casas de apartamentos do Lake Shore Drive, em Chicago (1950-52), dois blocos severamente elegantes, com formas puras, perpendiculares um ao outro, explicam o preceito de Van der Rohe de que o «menos equivale a mais». Entre os arquitectos contemporâneos, ele foi o que aprofundou mais o estudo dos elementos de construção, com o propósito de agir sobre as partes funcionais do edifício, transmutando-as em arquitectura em virtude unicamente de relações bem medidas. 36 Gerrit Rietvelt, arquitecto holandês que se junta a Mondrian no movimento de Stijl. Ao terminar a Primeira Guerra Mundial, o grupo Stijl representava as ideias mais avançadas da arquitectura europeia. Os seus traços severamente geométricos, com base no princípio de Mondrian de um equilíbrio alcançado pela confrontação de opostos desiguais, mas equivalentes, tiveram uma influência decisiva em tantos arquitectos no estrangeiro, que o movimento cedo se tornou internacional. A casa Schroder, em Utrecht, desenhada por Rietvelt, em 1924, é o exemplo desta ideia. 37 Le Cobursier entre 1908 e 1909 trabalhou no escritório do arquitecto francês, Auguste Perret (1874-1954), em Paris, e entre 1910-11 passou alguns meses com Behrens na Alemanha. Perret era um projectista completamente diferente de Behrens. O primeiro, tinha preferência na utilização do betão armado, que é considerado um claro precedente da arquitectura em ferro e aço e do funcionalismo moderno; enquanto o Behrens, expoente máximo do racionalismo arquitectónico do século XX, uniu os espaços interior e exterior por meio de grandes superfícies envidraçados e aços. Desta forma, Le Corbusier mostra a influência desses mestres, em especial de Perrret no seu primeiro projecto de residência, construído na suíça durante a Primeira Guerra Mundial. Após a guerra dedicou-se à pintura e participou num movimento a que chamaram purismo. O purismo tinha como objectividade evitar o que consideravam a desintegração iminente do cubismo, através de uma disciplina matemática. Em 1920, Le Corbusier começou a escrever sobre arquitectura. Os seus artigos foram reunidos em um volume, publicado em 1923, o famoso Vers une Architecture (Por uma Arquitectura), provavelmente o livro de arquitectura mais lido e influente da nossa época. Fig. 17 A Casa Schroder, em Utrecht, desenhada por Rietvelt, em 1924. Foto retirado, H. W. Janson, História da Arte, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977, foto. 878, p. 708. Le Corbusier, ao conceber os seus projectos, inverteu completamente a arquitectura moderna que se fazia então. No seu processo de concepção, na busca da “melhor” solução para o problema, que nessa altura estava estreitamente ligada à introdução de novas tecnologias, à construção industrializada e a uma sociedade em mutação, aplica o que chamou de Tracés régulateurs, (os traçados reguladores). 39 Na base deste tipo de abordagem está a convicção de que relações harmoniosas em arquitectura podem ser alcançadas apenas quando todos os elementos de um edifício, desde a forma dos compartimentos até às aberturas nas paredes, estão em conformidade com todas as proporções do edifício e com a natureza. De acordo com esta filosofia, Le Corbusier procurou o seu caminho para dar resposta ao que considerava ser o desafio à arquitectura no seu tempo, ou seja, ao aparecimento de uma nova sociedade com novos valores culturais e costumes, adaptada a uma nova forma de vida provocada pela industrialização. Entre as obras primas da construção da nossa época, encomendadas a Corbusier, na qual se verifica este tipo de traçados nas diferentes fases da sua concepção, é a Casa Savoye, Poissy-sur-Seine, França, (1929-30), ver Figs. 18, 19 e 20. 38 Le Corbusier, deformação do nome de um antepassado do lado da mãe, Lecorbésier. Petra Lamers-Schütze, Teoria da arquitectura. Do renascimento aos nossos dias, Lisboa, Taschen, 2003, p. 704. 39 O discurso que Le Corbusier apresenta é “três lembretes aos senhores arquitectos”: volumes simples, superfícies definidas mediante as linhas directrizes dos volumes, a planta como princípio regulador; a arquitectura deve ser submetida ao controle dos traçados geométricos reguladores; os elementos da nova arquitectura já podem ser reconhecidos nos produtos industriais as naves, aeroplanos, os automóveis; os meios da nova arquitectura são as relações que enobrecem os materiais rudes, o exterior como projecção do interior, a moda natural como pura criação espiritual; a casa deve ser construída em série, como as máquinas; as transformações nos pressupostos económicos e técnicos comportam necessariamente uma revolução arquitectónica. Le Corbusier, Por uma Arquitectura, 6ª edição, São Paulo, Editora Perspectiva, 2002. pp. 11- 40. Fig. 18 Casa Savoye, Poissy-sur-Seine, França, (1929-30), Autour Le Corbusier, imagem retirada do livro W. Boesiger ; H. Girsberger, Le Corbusier 1910-65, 3ª edición, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, S. A., 1988, p. 59. Fig. 19 Estudo de um esquema simétrico para a Casa Savoye, finais de Novembro de 1928 (Fundação le Corbusier), Imagens retida no livro, William J. R. Curtis, Le Corbusier Ideas Y forma, Madrid, Hermann Blume, 1987, p. 96 Fig. 20 Casa Savoye Plantas: Piso 0; Piso 1; piso 2. Imagens retiradas no livro, William J. R. Curtis, Le Corbusier Ideas Y forma, Madrid, Hermann Blune, 1987, p. 95. Na Casa Savoye, le Corbusier principia com uma malha estrutural, um quadrado regularmente ritmado por pilares. Dentro de uma fórmula geométrico-racional encerra o espaço em quatro paredes de janelas contínuas. A forma dos pilares faz lembrar as colunas dóricas. As superfícies lisas e polidas, desmentindo toda a sensação de peso, acentuam a preocupação de Le Corbusier com os «blocos espaciais» abstractos. Para descobrir como a caixa está subdividida, temos de entrar nela. O que permite constatar que este simples «caixote» contém espaços habitáveis simultaneamente abertos e fechados, separados por paredes de vidro. Dentro da casa, estamos ainda em comunicação com o exterior. Todavia, permite uma total intimidade, visto que o observador da rua não pode ver o seu interior, a não ser que haja uma proximidade de uma janela. O funcionalismo da Casa Savoye está subordinado a um projecto para viver e não a uma razão de eficiência mecânica. Esta obra inovadora mostra claramente uma diferente atitude de projectar e uma nova estética resultante de um novo espirito. Todavia, o processo de concepção e compreensão arquitectónica continua muito semelhante à de Miguel Ângelo: apesar de os resultados serem estética e funcionalmente diferentes, ambos se distinguem pela plasticidade, razão pela qual recaiu sobre estes a nossa escolha. Ambos aplicam a metodologia a que Bruno Munari muito mais tarde virá a chamar de “Método de Projecto”. Efectivamente, pode ser observado ao longo da história da arquitectura uma profunda tradição que apresenta variadas formas de expressão gráfica. Assim, cada época tem a sua sensibilidade, sua beleza, sua harmonia e suas proporções. Ao analisarmos obras arquitectónicas de tempos distintos, torna-se evidente que a arquitectura é algo mais do que mera resposta a uma exigência puramente funcional inscrita num programa de construção, e de um exercício de desenho. Sendo assim, implica que se coloque de imediato a questão de como analisar a harmonia e a proporção existentes numa determinada obra arquitectónica? Os estudos e as investigações que efectuámos, levam-nos a constatar que, para compreender melhor a harmonia e a proporção na arquitectura, teremos de, em primeiro lugar, entender os desenhos que levaram até ela. Para que um edifício ser considerado equilibrado todos os elementos que o compõem devem ser estudados minuciosamente, tendo em conta as seguintes características: a planta seja abstractamente bela no papel; as quatro paredes, que são as fachadas, estejam previamente estudadas atendendo ao equilíbrio dos cheios e vazios, dos relevos e das reentrâncias; o conjunto de todos os elementos resulte proporcionado e harmonioso. Os dados sociais, isto é, da função, os dados construtivos, ou seja, da técnica, os dados volumétricos e decorativos, nomeadamente, plásticos e pictóricos, são decerto bastante úteis, mas ineficazes para fazer entender o valor da arquitectura se esquecer a sua essência, o substantivo que é o espaço. Já Bruno Zeví (1918-2000) foi levado a afirmar: “ Que o espaço não é só o protagonista da arquitectura, mas esgota a experiência arquitectónica, e que, por consequência, a interpretação espacial de um edifício é suficiente como instrumento crítico para julgar uma obra de arquitectura”. 40 Ou seja, tornarmo-nos senhores do saber ver constitui a chave que nos permitirá a compreensão da arquitectura. Mas seria absurdo pensar que o espaço é um objecto de estudo meramente estético, já que, fundamentalmente e funcionalmente, deve albergar as actividades humanas.41 Contudo, também seria absurdo desligar da preocupação funcional do espaço a sua vertente estética, pois ambas devem ser conjugadas para melhor satisfazer as necessidades de conforto e bem-estar dos utentes. Na obra arquitectónica, a disposição e a organização proporcionada e harmoniosa dos elementos da forma e do espaço transmite significados e faz brotar, nos seus utentes, respostas, vontades e intenções. Mas esses elementos da forma e do espaço apresentam- se, em consequência da necessidade de resolver um problema, como resposta às condições da funcionalidade, intencionalidade e contexto. 42 Se admitimos o que fica dito acima, (e admiti-lo parece questão de bom senso e de lógica), poderemos vislumbrar uma possível abordagem à questão que formulámos anteriormente. 40 Bruno Zevi, Saber ver Arquitectura, São Paulo, Martins Fontes, 1978, p. 25. 41 Bruno Zevi, na obra citada, “O que faz distinguir a arquitectura em relação às restantes actividades artísticas, está o facto de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem. A pintura funciona em duas dimensões, a despeito de poder sugerir três ou quatro. A escultura funciona em três dimensões, mas o homem fica de fora, desligado, olhando o exterior as três dimensões. Por sua vez a arquitectura é como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha.” Bruno Zevi, op cit., Lisboa, 1978, p. 17. 42 Segundo Herbert Read, no seu trabalho O significado da Arte, referiu: “o arquitecto tem de expressar-se por meio de edifícios com fim utilitário qualquer”. Herbert Read, O Significado da Arte, Viseu, Editora Ulisseia, s.d., p.11. Todos sabemos que o homem, na idealização das suas formas e espaços, se serve de vários meios para transmitir sentimentos, emoções, sensações, ideias. A isso se resume a necessidade fundamental de comunicar algo que implique expressão intencional e poder mobilizador. Eis, justamente, o que mais define o processo do pensamento artístico. Desta forma, todo o processo do pensamento artístico surge intimamente ligado ao processo visual, à capacidade de ver, à possibilidade de formular juízos sobre as coisas. Ou seja, o homem vive num mundo de inúmeras formas naturais e objectos de civilização, o que condiciona os comportamentos e a formação do seu modo de ver. Cada um de nós vê as coisas de modo diferente, isto porque existem vários tipos de códigos estéticos. Estes mudam consoante o tempo e a civilização. Podemos dizer que para cada momento, para cada problema, para cada caso, há um tipo de beleza e harmonia diferentes. Esta diferença vai determinar, na prática, uma variedade significativa do modo de fazer, isto é, uma variedade de soluções que cada um encontra para transmitir aos outros a experiência do mundo que o rodeia.43 A nosso ver, para compreender o processo de composição subjacente a um projecto arquitectónico, é necessário; analisar o percurso passo a passo, para descobrir os sentidos e ideias (evidentes e escondidos); encontrar esquemas, padrões, estruturas, influências e orientações históricas, sociais e filosóficas, nos desenhos e projectos - para que o todo resulta num conjunto lógico e harmonioso, em que as partes que formam esse todo tenham uma relação dinâmica, dimensional, material e estrutural. Isto torna-se ainda mais premente quando nos propomos estudar obras resultantes de culturas diferentes, mas que apresentam, aparentemente, linhas convergentes, podendo levar a crer que possam ter estado sujeitas a influências mútuas. 43 Um dos objectivos deste estudo é expor e descrever de que maneira a anotação gráfica toma forma, uma forma particular, para poder satisfazer uma função comunicativa. Para isso, é necessário analisar o processo do pensamento gráfico no desenho arquitectónico, procurando aprofundar todos os elementos e processos que intervêm na determinação do dado representado. No Oriente, por exemplo, ainda hoje é o pensamento filosófico que fundamenta todas as artes e ciências, dando a noção de estarmos perante um conjunto orgânico, tendo a maior parte em comum a procura da harmonia entre todos os elementos que compõem o universo. Há milénios que os chineses se dedicam ao estudo das energias que influenciam todos os aspectos da vida. É nesse principio que se fundamenta o Feng Shui. 44 Mais do que uma forma de abordar a arquitectura de uma casa, a sua decoração ou a paisagem que a envolve, o Feng Shui pretende trabalhar as energias existentes num lugar de modo a criar harmonia, 45 não apenas entre esse lugar e o que o rodeia, mas proporcionar um equilíbrio perfeito entre os indivíduos que venham a usufruir desse espaço e a sua relação com o universo no seu todo. 46 Este princípio está de tal forma enraízado na cultura chinesa, que até hoje faz parte da forma de estar na vida deste povo. Já no Ocidente este sentimento de universalidade tem vindo a perder-se. Actualmente, cada expressão artística ou científica é abordada como se de uma disciplina isolada se tratasse, com princípios e métodos específicos. Esta perda pode ser um dos aspectos que dificulta uma avaliação interpretada dos vários saberes e, consequentemente, a sua articulação funcional. 44 O Feng Shui, que se pronuncia «Fong Suei» ou «Fang Shuei», significa literalmente em chinês «Vento e Água», sendo a manifestação da energia vital da Terra. O Feng Shui teve origem na China há 4000 anos e a sua prática traduz-se numa longa história no Oriente. Sobre uma breve história do Feng Shui, c.f. Kwan Lau, Feng Shui. Reordene su entorno para la salud y el bienestar, Madrid, Editorial EDAF, 1998. 45 O vento e a água são, portanto, como a alimentação e a necessidade de respirar, imprescindíveis ao perfeito estado de saúde que a terra deve apresentar. Estas energias podem manifestar-se dos mais diversos modos, dependendo, então de uma perfeita avaliação de um especialista em Feng Shui que seja capaz de detectar os pontos de desequilíbrio e corrigi-los do modo mais adequado. 46 Estamos perante de um dos princípios do Feng Shui que significa “Vento e Água”. É a arte de projectar a casa de modo a obter o bem estar da vida humana. Simon Brown, Guia prático Feng Shui, Lisboa, Circulo de Leitores, 1999. Longe vai o tempo de Virtrúvio, que declara, no seu tratado “Os dez livros de Arquitectura”, dever o arquitecto, antes de conhecer a técnica da construção, possuir conhecimentos de Geologia, Geometria, 47 assim como não ignorar a Óptica, saber Aritmética e muito de História. É também necessário ter estudado bem a Filosofia, ter conhecimento da Música, inclusive compreender o ritmo da música, algumas luzes de Medicina, de Astrologia, e de Jurisprudência, para encontrar o máximo de harmonia com o universo. 48 Esta visão globalista ainda se encontra no Renascimento, mas vai-se perdendo progressivamente com a especialização das várias áreas do saber, 47 Na Geometria Descritiva podemos individualizar uma área que se baseia na necessidade de ter presente a propriedade métrica dos objectos representados, a fim de poder actuar sobre toda uma série de operações de relevo, construção, projecto, manipulação, montagem e ainda deslocações, indicações de percurso, localizações, que dizem respeito à relação operativa de transformação concreta em que se baseia a contínua interacção do homem com o ambiente. Os métodos que a Geometria tem criado englobam as projecções ortogonais, as projecções cotadas, a representação das sombras, transmitem operações rígidas codificadas de “projecções”, “cortes”, “rebaixamentos”, obtendo-se configurações altamente comunicativas, limitadas, porém, devido às qualidades tomadas em consideração, neste caso específico as dimensionais e construtivas. 48 Neste sentido, podemos ler na obra de Vitrúvio: “A razão é para que não se esqueça de nada do que tem a fazer, o arquitecto deverá executar boas memórias, e para esse efeito, é necessário saber bem Desenhar, para que possa com maior facilidade, sobre os desenhos que traçar, executar todas as obras do projecto. A Geometria também lhe é duma grande ajuda, particularmente para aprender a bem servir-se da régua e do compasso, e para tomar alinhamentos e executar todas as coisas com esquadria e com nível. A Óptica serve-lhe para saber dominar os dias e fazer aberturas apropriadas segundo a disposição do Céu. A Aritmética serve-lhe para o cálculo do dispêndio das obras que empreende, e para regrar as medidas e as proporções que se determinam por vezes melhor pelo cálculo que pela Geometria. A História fornecerá matéria para a maioria dos ornamentos da arquitectura, donde deverá saber o porquê da reprodução. Em relação à Música, ele deve estar inteirado de forma a conhecer a proporção. A Medicina serve para saber quais são os diferentes locais da terra, de forma a conhecer a qualidade do Ar, se é saudável ou nocivo, e quais são as diversas propriedades das Águas, pois não é possível construir uma habitação que seja sã, se não forem ponderados todos estes assuntos”. Maria Helena Rua, Os dez livros de Arquitectura de Vitrúvio, Lisboa, 1998, pp. 3-9. obrigando desta forma ao envolvimento de um número cada vez maior de técnicos. Podemos, no entanto, pressupor que em qualquer época, de qualquer cultura, o objectivo máximo será sempre proporcionar qualidade de vida aos que venham a usufruir dos espaços projectados. 49 49 Nos dez livros de Arquitectura de Vitrúvio, no capítulo IV é descrito como se pode conhecer se um local é saudável e o que o impede de o ser. Maria Helena Rua, Op. cit., pp.16-19.