. . . revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 editorial Carta ao Papa [*] O Confessionário não é você, oh Papa, somos nós; entenda-nos e que os católicos nos entendam. Em nome da Pátria, em nome da Família, você promove a venda das almas, a livre trituração dos corpos. Temos, entre nós e nossas almas, suficientes caminhos para percorrer, suficientes distâncias para que neles se interponham os seus sacerdotes e esse amontoado de doutrinas afoitas das quais se nutrem todos os castrados do liberalismo mundial. Teu Deus católico e cristão que, como todos os demais deuses, concebeu todo o mal: 1°. Você o enfiou no bolso. 2°. Nada temos a fazer com teus cânones, índex, pecado, confessionário, padralhada, nós pensamos em outra guerra, guerra contra você, Papa, cachorro. Aqui o espírito se confessa para o espírito. De ponta a ponta do teu carnaval romano, o que triunfa é o ódio sobre as verdades imediatas da alma, sobre essas chamas que chegam a consumir o espírito. Não existem deus, Bíblia, Evangelho; não existem palavras que possam deter o espírito. Nós não estamos no mundo; ó Papa confinado no mundo; nem a terra nem Deus falam de você. O mundo é o abismo da alma, Papa caquético, Papa alheio à alma; deixe-nos nadar em nossos corpos, deixe nossas almas, não precisamos do teu facão de claridades. Os editores Antonin Artaud. Publicado pela primeira vez em La Révolution Surréaliste, em 1925; tradução de Claudio Willer publicada em Escritos de Antonin Artaud, L&PM Editores, Porto Alegre, 1983 e reedições. [*] sumário 1 a importância da arte na construção de uma nova sociabilidade. joão garção 2 andré breton y la utopía surrealista. carlos m. luis 3 beatriz doria: a arte como forma natural. jacob klintowitz 4 césar moro en la mesa con sus pares. floriano martins 5 encontro textual com maria esther maciel: a poesia "por um triz". rodrigo guimarães 6 ghérasim luca em dois retratos: floriano martins & krzysztof fijalkowski 7 guimarães rosa: novas leituras. claudio willer 8 jack kerouac: el poeta bop espontáneo. josé vicente anaya 9 josé ángel leyva: sin que las dudas se agoten [entrevista]. floriano martins 10 las constelaciones poéticas de joan miró en parís. miguel ángel muñoz 11 ni santo, ni mártir: jacques prévert (1900-1977). rodolfo alonso 12 nicolau saião: os encontros falhados - o triálogo em 2007. augusto josé & manuel caldeira artista convidada florencia urbina [pintura, entrevista a alfonso peña] resenhas livros da agulha silvia favaretto [por martha canfield] ● jacob klintowitz [por leila kiyomura] ● betty milan [por claudio willer] ● colección los conjurados: luis alejandro contreras / jorge nájar / hernando guerra ● poesía contemporánea venezolana [por luis alberto angulo] ● carlos calero [por adriano corrales arias] ● fazil hüsnü daglarca [por camilo prado] ● lílian gattaz [por eliana de freitas] ● antologia 2007 [por nicolau saião] ● michel houellebecq [por wilson coêlho] música discos da agulha erico baymma ● chico chagas ● rodrigo lessa ● orquestra petrobrás sinfônica ● putumayo world party ● animal playground ● quaternaglia ● the beatles poesia banda hispânica galeria de revistas cumplicidade 2 galeria de manifestos cumplicidade 3 galeria de arte cumplicidade 1 expediente editores floriano martins & claudio willer projeto gráfico & logomarca floriano martins jornalista responsável soares feitosa jornalista - drt/ce, reg nº 364, 15.05.1964 correspondentes alfonso peña (costa rica) belkys arredondo (venezuela) eduardo mosches (méxico) edwin madrid (equador) franklin fernández (venezuela) gary daher canedo (bolívia) josé ángel leyva (méxico) leo lobos (chile) margaret randall (estados unidos) maria estela guedes (portugal) nicolau saião (portugal) susana giraudo (argentina) artista plástico convidado (pintura) cícero dias apoio cultural jornal de poesia traduções éclair antonio almeida filho [inglês, francês ð português] marta spagnuolo [português ð espanhol] floriano martins [espanhol ð português] banco de imagens acervo edições resto do mundo os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista agulha não se responsabiliza pela devolução de material não solicitado todos os direitos reservados © edições resto do mundo escreva para a agulha floriano martins ([email protected]) Caixa Postal 52874 - Ag. Aldeota Fortaleza CE 60150-970 Brasil claudio willer ([email protected]) Rua Peixoto Gomide 326/124 São Paulo SP 01409-000 Brasil revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 A importância da Arte na construção de uma nova sociabilidade João Garção . 1. No dia 25 de Abril de 1874, o jornal francês Le Charivari publicou um texto do crítico Louis Leroy intitulado “A Exposição dos Impressionistas”, o qual começava da seguinte forma: “Oh, que dia terrível aquele em que me arrisquei a ir visitar a exposição do Boulevard des Capucines, para fazer companhia ao senhor Joseph Vincent, paisagista, aluno de Bertin, pessoa homenageada e condecorada por vários governos. Coitado dele, que ia com as melhores intenções; julgava ir ver pintura como se vê por toda a parte, boa ou má, mais má que boa talvez, mas não atentatória dos bons costumes artísticos, do culto da forma e do respeito dos velhos mestres.” Este artigo - uma das mais célebres páginas, se bem que pelas piores razões, da História da Crítica da Arte Contemporânea - tornou-se famoso pelo facto de nele o seu autor ter destacado uma obra do pintor Claude Monet intitulada Impressão. Sol Nascente e por, em consequência e com objectivos de troça, ter qualificado de “Impressionistas” os trinta pintores que então expuseram no atelier do fotógrafo Nadar, à margem da mostra oficial. É bem conhecido o misto de hilaridade e de escândalo com que esta exposição dos Impressionistas foi geralmente recebida tanto pela imprensa como pelo público - que eram consequência da mentalidade incrementada e difundida ainda durante o Império de Luís Napoleão e que se manteve, com ligeiras variações, até ao fim do século XIX. Ora, além de Monet, contavam-se nessa exposição nomes como os de Sisley, Renoir, Cèzanne, Pissarro, Degas e inclusivamente uma senhora, Berthe Morisot… Se faço referência ao texto de Leroy ao iniciar esta breve comunicação não é evidentemente pelo que de curioso, anedótico e burlesco este episódio da História da Arte em si mesmo encerra. A ele recorro, isso sim, porque o considero exemplar no que diz respeito à exibição de uma atitude critica espartilhante, dogmática e espiritualmente confrangedora ao evidenciar a incapacidade de este jornalista ver, compreender e sentir as obras-primas da pintura que se estendiam ante os seus olhos estupefactos. Aparentemente limitada à consideração de uma pintura de grandiloquente e medalhado estilo académico, a capacidade analítica e estética de Leroy, se acaso existia, não conseguiu ganhar asas e, perante a novidade, o inesperado e o diferente, não procurou voar e tentar saber “o que está para além da montanha”, para utilizar a feliz expressão do escritor Rudyard Kipling. Se este tipo de atitude tem sido habitual na História da Arte, a verdade é que facilmente o detectamos também noutros aspectos da nossa sociabilidade. Longe de ser um fenómeno especifico da História da Arte, este enfoque contrário à inovação, à diferença, à singularidade e à liberdade expressiva é uma constante na história da Humanidade. A sua incidência no campo artístico, no entanto, tem sido frequente devido precisamente, ao facto de a Arte ser um veículo privilegiado de comunicação entre os indivíduos. Recorrendo a uma analogia como forma de melhor fazer compreender esta minha afirmação, diria que a violência física e verbal que verificamos rodear hoje em dia o mundo do futebol - em certa medida uma verdadeira arte coreográfica a que André Maurois, numa frase hoje famosa, chamou “a inteligência em movimento” - esta violência, dizia, mais não traduzirá, afinal, que a própria violência social, expressa num domínio - o Futebol - para o qual se têm virado cada vez mais atenções e que, portanto, é alvo de crescentes lutas, intrigas e jogos de interesses. Referi-me atrás à Arte como sendo um veículo privilegiado de comunicação, o que levanta, de imediato, dois problemas essenciais: o primeiro, procurar saber o que é a Arte; o segundo, verificar como é que a Arte se relaciona com o quotidiano societário. Ora, no que diz respeito ao primeiro ponto, como não é possível compartimentar a Arte dentro de um conjunto de regras passíveis de aplicação generalizada, poderá não ser fácil definir as qualidades absolutas que um determinado objecto deve possuir para poder ser considerado como Arte. Efectivamente, não é mais Arte a Torre de Pisa do que uma pintura de Giotto, nem é mais artística uma escultura de Rodin do que uma outra realizada em Çatal Höyoük nos finais do VII milénio A.C., por exemplo. E isto porque os níveis e os contextos mentais e civilizacionais são bem diferentes, como diferentes foram as visões e a concepções do Universo circundante. Independentemente desta dificuldade, artistas, críticos e filósofos têm dedicado atenção a este assunto, suscitando reflexões que deram origem ao nascimento de uma ciência, a Estética, necessariamente subordinada às variações ditadas pela evolução e subsequentes flutuações analíticas e conceptuais da Filosofia, da História, da Sociologia e da Psicologia. Contudo, paralelamente às diferenças evidenciadas pelas diversas realizações artísticas, é também detectável a permanência do mesmo impulso criador, o que deverá ser salientado. Isto é, verificamos que nenhuma Civilização existiu sem produzir a sua própria Arte. Este parece ser um facto inerente à condição humana. Mas, sendo assim, que necessidade pretenderá, então, satisfazer? A meu ver, busca a satisfação de uma função mental e espiritual que assenta na necessidade de se terem respostas ao nível da comunicação qualificada. Já o pintor Delacroix o disse a respeito da pintura, referindo-se a esta como “uma ponte lançada entre as almas”. Beethoven, na música, e Rimbaud, na poesia, exprimiram-se em termos semelhantes. Cito um antigo ministro francês da Cultura, de seu nome André Malraux: “A Arte e a Civilização uniram a Humanidade num laço apertado, se não eterno, e contribuíram para fazer do Homem algo mais do que um sobrecarregado habitante de um Universo absurdo”. Podemos dizer que, sob esta perspectiva e em certa medida, a Arte acaba por ser a respiração da mente. Disse mais atrás, se estão recordados, que pode não ser fácil definir as qualidades absolutas que um determinado objecto deve possuir para poder ser considerado como Arte. Contudo, tal será possível, se dispusermos dos instrumentos culturais que nos permitam uma análise adequada. Através da sua utilização, poderemos chegar a conclusões tendencialmente seguras. Assim, verifica-se que uma efectiva “obra de Arte” apresenta sempre as seguintes condições reais: 1º - qualidade formal - ou seja, grande qualidade na inter-relação dos elementos formais que constituem essa obra; 2º - originalidade conceptual - ou seja, essa obra tende a estar concebida de forma original; 3º - profundidade filosófica específica - por outras palavras, as mensagens que transmite estão longe de serem superficiais. Pelo contrário, expressam um sistema de ideias estruturado com uma certa robustez. Estas três condições são alicerçadas nas seguintes características do autor: 1º - bom conhecimento dos meios que utiliza; 2º - espírito criativo inovador; 3º - persistência na expressão das suas propostas. Nesta conformidade, a “obra de Arte” fica investida de uma especial durabilidade que lhe confere uma reconhecível permanência no Tempo. 2. Afirmar que a essência da Arte é ser comunicação qualificada implica também referenciar o Artista como um comunicador qualificado. Assim sendo, que pretende o Artista comunicar? Ele deseja revelar a sua verdade mais íntima, afirmar a sua interpretação da realidade circundante e, simultaneamente, interrogar-se a si mesmo, descobrindo-se e enriquecendo-se humana e espiritualmente. Pretende, em suma, partilhar as suas concepções e as suas descobertas com o seu semelhante, desta forma elevado a espectador privilegiado do fenómeno criador. O Artista é pois, no seu âmbito de acção, um verdadeiro demiurgo, ou seja, um construtor de mundos até então ignorados - e isto tanto para a Pintura como para o Teatro, tanto para a Arquitectura como para a Música, ou para qualquer outra disciplina. A afirmação de si mesmo e da sua individualidade criadora, o seu desejo de permanência expressando a luta eterna entre a Vida e a Morte; a sua vontade de partilha (pois a Arte também combate a solidão); o seu espírito inovador em maior ou menor grau; e, finalmente, as suas próprias interrogações e reflexões, conferem à “obra de Arte” um cunho profundamente pessoal e imbuído de uma linguagem simbólica específica. Treinando-se para compreender mais de si mesmo e do quotidiano que o rodeia, por forma a poder expressar cada vez melhor e mais fielmente a sua ‘Verdade’, o Artista expande não apenas os seus horizontes próprios mas possibilita-nos também a nós espectadores, observadores, leitores ou ouvintes - que expandamos também os nossos, o que levou o escritor Marcel Proust a dizer, com justeza, que “o prazer que o artista nos dá é fazer-nos conhecer um universo mais”. Estes criadores de Arte, exprimindo as suas vidas e as suas experiências pessoais nas obras que executam, possibilitam-nos, assim, o acesso a vários mundos, proporcionando, numa certa medida, que possamos transcender a própria condição humana no que à limitação cronológica da vida diz respeito. Ou seja: tanto o historiador profissional quanto o amante da Arte ou mesmo, apenas, o honesto observador atento e interessado, apoderam-se de diversos e multifacetados mundos interiores, de variadas expressões de vivências, experiências, trajectórias e concepções da Existência. É-lhes conferida, desta forma, a faculdade de contactar com mais universos do que aqueles que, por si sós, poderiam conhecer e, em consequência, élhes possível também enriquecerem o seu particular universo interior, ampliando-o através da obtenção de uma maior soma de elementos que, conjugando-se, contribuem para uma melhor compreensão no que se refere ao percurso da aventura humana. 3. Pelo que atrás afirmei, lógico é concluir que a Arte é uma necessidade e não um luxo ou uma frivolidade de salão mundano como tantas vezes se tenta fazer crer; e que não deverá, portanto, ser algo exclusivo de uma minoria de iniciados, de estudiosos e de privilegiados, habitualmente inacessível ao comummente denominado “grande público”. Contudo, apesar desta constatação, verificamos que, para este último, a Arte aparece-lhe frequentemente como uma realidade na qual, pelo menos, dificilmente pode penetrar, ficando assim estabelecida uma separação entre o seu quotidiano e a Arte. É lícito e inevitável que nos questionemos então: que factores contribuirão para este divórcio entre o artista criador e a obra de arte enquanto seu veículo de comunicação, por um lado, e o Público, por outro? E quais as características que o mesmo reveste? Busquemos a resposta a estas duas perguntas. Consideremos primeiramente o Artista. Já acerca dele teci algumas considerações, mas impõe-se agora que recordemos e sobretudo reafirmemos o que atrás em parte já foi referido: que ele deve ter um correcto ( e tão perfeito quanto possível ) conhecimento dos meios e da sua aplicação; que deve ser persistente na expressão das suas propostas, ou seja, das suas criações; e que - questão fundamental - deve possuir um espírito criativo inovador. Significa isto que o criador que possua estas características pode imediatamente incorporar excelência e qualidade no seu trabalho? Respondo que em princípio sim, naturalmente - se isso corresponder a uma autenticidade assumida. É que não será um Artista verdadeiro aquele que constranger o seu talento para agradar a facções, a grupos ou a modas ou que forneça produções artificiosas tendo em vista conseguir vastos proventos à custa de ingénuos ou de novos-ricos ou que busque apenas o reconhecimento de largos sectores populacionais frequentemente alienados por manipulações sociais. Ou seja, o Artista autêntico deverá ser dotado de corajosa persistência de molde a poder resistir a ambientes habitualmente adversos. Como exemplo daquilo que agora afirmei, reparemos no que se passou com algumas personalidades: comecemos pela denominada Escola de Barbizon que reuniu, entre outros, os pintores Rousseau, Millet e Corot. Sendo sobretudo um grupo de amigos, sem uma unidade teórica e conceptual, estiveram colocados sob a suspeita de serem perigosos anarquistas e a polícia tentou várias vezes prendê-los e difamá-los, ainda que sem êxito. Millet, por exemplo, sofreu diversas tentativas de agressão a que só escapou por ser um homem forte e decidido. Quanto aos Impressionistas a que no início aludimos, foram continuamente caluniados pela imprensa do regime de então que chegou mesmo a tentar dá-los como loucos. Cézanne foi caracterizado como “uma criança de mama que faz borradelas”; a Monet criaram problemas tais, impedindo-o de ganhar o sustento quotidiano, que a sua primeira mulher faleceu, tanto por não poder comprar os remédios de que necessitava como por subalimentação. E os exemplos poderiam multiplicarse. Só com a chegada de uma nova mentalidade diminuiu esse franco ambiente de hostilidade. Poderemos perguntar-nos: porquê tanta animosidade contra simples pinturas de gente pacífica? A resposta residirá no facto de estes, ao proporem uma nova visão das coisas, autêntica e liricamente salubre, porem em causa muitas das estruturas mentais e de comportamento em que assentava a sociedade da época - e isso era evidentemente inquietante para quem detinha o poder político. Quanto aos pintores ditos oficiais - muitos dos quais já desapareceram das salas de exposição dos museus, tendo sido remetidos para as suas caves ou depósitos - viviam no conforto económico e social, muito respeitados, pintando aplicadamente e sem faísca de originalidade retratos de importantes personalidades da chamada “boa sociedade” e enviando aos Salons oficiais medíocres exemplares da sua “arte” lambida e artisticamente morta. Alguns deles tinham capacidades técnicoartísticas, mas não tinham ética, autenticidade e independência de espírito; pelo que, passado o período em que estiveram na moda, foram colocados pelo Tempo - que alguém já disse ser o maior dos críticos no justo limbo do esquecimento. No que diz respeito a determinados artistas nossos contemporâneos promovidos pela publicidade - ou são Artistas autênticos (e nesse caso não há jogadas de interesses económicos que os aniquilem, porque a sua obra resistirá), ou não passam de episódicas vedetas que a breve trecho os conhecedores sérios e informados desmascararão como simples bluffs. Tenho vindo a fazer assentar os exemplos mais no campo da Pintura. Mas se passássemos para outra disciplina, ou o panorama seria afim (caso da Música) ou, até, mais marcado (caso da Literatura, uma vez que o seu universo é, devido à especificidade de comunicação da palavra escrita, mais “interveniente” ou aparentemente mais perceptível). Passemos agora, de forma breve, a considerar a Obra de Arte. Em função daquilo que já disse, tornar-se-á evidente que aquilo que nela o Artista deseja explanar é, prioritariamente, a sua Ideia, isto é, elementos (ou mesmo a totalidade, aí sintetizada) das suas concepções existenciais. Os meios expressivos são uma consequência, evoluindo a partir dessa mundividência. A inexistência, no Artista, de uma profundidade filosófica específica a que já aludi, traduz-se inevitavelmente na pura reprodução mecânica de uma linguagem plástica adoptada de outrem, a qual foi aprendida e mesmo, eventualmente, compreendida, mas que lhe não é própria. Uma obra nestas condições não é uma obra “viva”, mas sim “morta”. Nesta altura, já tereis compreendido que não sou partidário das teorias puramente formalistas da análise da obra de arte, que não buscam o que subjaz às formas evidenciadas pelo quadro. É que um trabalho artístico põe-nos o problema da necessidade da sua decifração, como se depreende do que atrás referi. Ora, esta tentativa de obtermos uma correcta compreensão implica sempre a necessidade de se proceder à sua leitura completa, pelo que não pode limitar-se à análise plástica e histórica da obra, como tantas vezes ainda se faz, mas necessita de ir mais longe, dirigindo-se tanto ao consciente do artista como ao seu inconsciente. Estudiosos como Emile Mâle, Elie Faure, André Malraux e Ernst Gombrich, entre outros, perceberam-no perfeitamente, tendo aberto, com os seus trabalhos ligados à Psicologia da Arte, novas e mais proveitosas perspectivas no que se refere à possibilidade de decifração dos artistas e das suas obras. Ou seja, não basta “sentir” a obra de Arte. Há também que compreendê-la, procurando simultaneamente compreender o artista. Só com esta disponibilidade e abertura de espírito é possível que entre em acção a magia comunicativa que a Arte constitui. Isto conduz-nos ao terceiro ponto que há que considerar: aquilo a que habitualmente se chama “o público”. Esta denominação, talvez cómoda, é, afirmemo-lo desde já, profundamente incorrecta pois, na verdade, não existe “o público”: existem “públicos”. “Isto é óbvio”, podereis dizer-me com razão. Contudo, tal perspectiva generalizadora e unitarista é inúmeras vezes afirmada para salientar um acentuado divórcio entre os Artistas, a Arte e os seus possíveis receptores, o que tem contribuído para, paulatinamente, se radicar nos espíritos a ideia de que a Arte é um produto de difícil acesso apenas destinado a uma elite, mais ou menos endinheirada, a qual, tendo satisfeitas as suas elementares necessidades materiais, dispõe então da oportunidade de se deleitar na ociosa contemplação de tais criações. Urge que repudiemos este equívoco tão divulgado com intuitos que provêm de uma certa má-fé. Evidentemente que a satisfação das necessidades materiais pode assegurar a disponibilidade espiritual necessária ao estímulo da compreensão da obra de arte e ao crescente refinamento do gosto, da sensibilidade e da inteligência cultivada. No entanto, verdadeiramente fundamental na adesão ao prazer superior que a boa obra de arte proporciona é a disponibilidade interior de base que o eventual receptor pode cultivar, no sentido de aprofundar, com maior ou menor dificuldade da sua parte, as condições mentais que lhe permitam fruir as propostas artísticas. E estas coordenadas interiores têm menos a ver com condições sócio-económicas do que com uma adequada atitude perante a Arte. Aliás, diria mesmo que a boa situação económica dos indivíduos conta menos do que se pensa, na medida em que, muitos destes, quando se interessam pelo fenómeno artístico, são geralmente muito mais atraídos por modas e por outros ditames propiciados pela sociedade, ligados à superficialidade do culto das aparências e da publicidade, do que propriamente por um apelo interior derivado da sua condição humana de sujeitos detentores de capacidade estética ligada à sensibilidade e ao intelecto. Dito isto, deve ser salientado que todo o descobridor e inovador é a princípio pouco compreendido. Consideremos alguns exemplos: El Greco foi considerado louco e autor de borrões; Ingres foi acusado de fazer retrogradar a pintura francesa; Renoir foi tido por um “verdadeiro malfeitor que corrompeu a juventude”; Géricault foi violentamente atacado devido ao seu conhecido quadro A Jangada do ‘Medusa’ - isto para nos mantermos no campo da pintura. Daí que com razão tenha dito o grande poeta espanhol Federico Garcia Lorca, em carta dirigida a Carlos Morla, que “na vida, aquele que caminha à frente, revestido de esplendor, é aquele que leva consigo um pequeno vaso de lágrimas, e não aquele que aperta na mão um punhado de diamantes”. Todos os pintores atrás referidos nos parecem agora clássicos, na medida em que fazem parte do que de mais rico possui o património artístico da Humanidade. Actualmente, só um espírito verdadeiramente tacanho ou apenas insensível e ignorante - é que ainda pode achar ridículas as figuras femininas de Renoir, distorcidas as naturezas-mortas de Cézanne ou absurdos os retratos pintados por Picasso. Quero com isto dizer que a incompreensão a que o artista inovador tem sido votado decorre inúmeras vezes do facto de as pessoas não terem ainda aprendido a ler os seus trabalhos, condenando imediatamente aquilo que, para elas, é invulgar, porque apenas diferente do que lhes é habitual. E esta rejeição tanto pode derivar do facto de o espectador se sentir inferiorizado ante aquilo que é diferente e que ainda não consegue decifrar, como pode ser consequência de um néscio sentimento de altaneira e vaidosa superioridade perante o inesperado, optando a pessoa, neste caso, por - de forma deliberada - não procurar compreender a novidade. Existe um tipo de público para quem a sua experiência no contacto com a Arte fossilizou a dada altura, impossibilitando a análise e a interpretação da obra que ainda não faz parte - e poderá nunca fazer - do seu espaço mental e das suas vivências, razão porque aquela criação é rejeitada ou, na melhor das hipóteses, olhada com desconfiança. Mas desde que se faculte, através da instrução e da educação, a iniciação nas concepções do artista reveladas pela forma de expressão por que este opte, a breve trecho estaremos na posse dos instrumentos culturais que poderão possibilitar o entendimento das suas propostas. O consequente gostar, gostar menos ou não gostar já dependerá, então, da inclinação esclarecida e não somente da inculta impressão imediata, a qual em geral determina aceitações ou rejeições irracionais e levianas. Aquilo que pode ser, à partida, uma proposta confusa e enigmática, através da conjugação de esforços da educação, da inteligência e da sensibilidade é passível de tornar-se um todo ordenado e profundamente enriquecedor, que o espectador poderá entender caso, não é demais repetilo, se deixe absorver na contemplação da obra e se fizer um esforço verdadeiro para a compreender. Olhar é diferente de ver; ouvir não é o mesmo que escutar. Ver e escutar exigem simultaneamente tempo, concentração e reflexão. A Arte necessita de ser lida, de maneira a não captarmos apenas a sua forma mas também a sua ideia, isto é, toda a estrutura ideativa subjacente à forma por nós imediatamente perceptível. Saber ver é muito diferente do apenas limitarmo-nos a olhar, exige mais esforço mas é, igualmente, bem mais gratificante. Da mesma maneira que uma criança, através da leitura continuada, mais facilmente aprenderá a ler e, especialmente, a compreender aquilo que lê, assim o observador terá que treinar a visão, a sensibilidade e a inteligência para poder, de forma profícua, aceder à magnificência transmitida por uma excelsa obra de arte. Como referiu o escritor Mário Dionísio, “uma obra dificilmente acessível não tem que ser necessariamente detestável”. O importante é aceitar ou rejeitar com conhecimento de causa e não por mero capricho ou provincianismo. E, de acordo com esta perspectiva, facilmente se compreenderá que o papel desempenhado pelos educadores poderá ser absolutamente decisivo na formação artística dos sujeitos e, logo, na construção de uma cidadania completa que, por isso mesmo, rejeite preconceitos e acredite na possibilidade do aperfeiçoamento dos indivíduos e das sociedades. 4. O nosso tempo já foi referenciado como sendo o “tempo das imagens”, tão imensa e rápida é a sua difusão e tão grande é a sua influência. Julgo que a denominação “tempo das publi-imagens” (ou “imagens de substituição” ou, ainda, “sucedâneos da Imagem”) será mais correcta porque mais consentânea com este facto, uma vez que frequentemente se procura promover, por razões económicas e de marketing, uma recepção passiva, rápida e quase irreflectida desse tipo de “imagens”, quando não mesmo a anulação da margem reflexiva do receptor, o qual é desta forma mergulhado - e logo diluído - numa massa anónima. Ora, a verdadeira imagem é sempre artística e, nesta conformidade, libertadora. E é libertadora porque expressa a Realidade traduzida em sentimentos e ideias tornados significativos da plenitude da Existência. Por isso mesmo é que uma das características da obra de Arte é a permanência no Tempo, como já referi. Aponta, pois, para a Eternidade - que é a Vida no seu máximo grau. E assim entende-se porque é que uma obra de propaganda ou de publicidade não será Arte autêntica, visto que o seu objectivo tem a ver com o efémero da difusão de uma ideologia ou de um produto. Assinale-se que determinadas mensagens publicitárias entram por vezes no campo da arte; e isto porque os seus autores, na circunstância, não se ficaram pelo utilitarismo estrito da mensagem encomendada. No que diz respeito ao artista, a verdadeira imagem expressa o seu poder de criação de mundos; quanto ao espectador, há a considerar que ela necessita, para ser descodificada, de tempo, cultivo da sensibilidade e da inteligência, reflexão autónoma e tolerância, como se depreende daquilo que atrás disse. Verifique-se que o bombardeamento dessas tais imagens de substituição a que hoje em dia se submetem os indivíduos, longe de propiciar a capacidade de leitura das Imagens, provoca exactamente o efeito contrário, inibindo-a e distorcendoa. Potenciais receptores passivos logo desde a infância, o nosso contacto com a Arte é frequentemente dificultado. Há que responder, pois, com um maior dinamismo na criação de instrumentos educacionais e culturais que possibilitem o contrariar desta tendência. As escolas e os educadores desempenham, repito, uma função indispensável no aprofundamento de um válido cenário de salutar sociabilidade, que a Arte incrementa e estimula - tal como o exprimi no decorrer da exposição que efectuei. João Garção (Portugal, 1968). Poeta, pintor e ensaísta. Licenciado em História da Arte e mestre em História Contemporânea de Portugal pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Autarca, desempenha o cargo de vereador dos pelouros da Cultura e da Educação na Câmara Municipal de Felgueiras. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 André Breton y la utopía surrealista Carlos M. Luis . En Mayo del año 2000, la revista Magazine Litteraire publicó un dossier bajo el título de “La renaissance de l’utopie” donde diferentes autores discutieron si era o no viable la utopía en el siglo XXI. Mucho de lo ocurrido desde entonces, nos lleva a creer que el renacimiento del pensamiento utópico no es un hecho descaminado. Mientras que las rebeldías de la década de los sesenta y setenta cedieron a un conformismo manipulado por los medios de comunicación, el totalitarismo capitalista iba perfeccionando su naturaleza represiva. Después de los aplausos conque el mundo saludó en general la caída del régimen soviético, ha sucedido la constatación del peligro que significa una sociedad dominada por la visión estadounidense de la felicidad. Esta visión que no es utópica sino real, está siendo impuesta por una potencia que parece abrogarse la misión de “transformar el mundo y “cambiar la vida” de acuerdo con sus escalas de valores. Por otra parte el ideal socialista ha cesado de tener la misma fuerza libertaria de antaño. En vez de reflexionar acerca de sus fallas y promover la reforma de sus estructuras de pensamiento, el socialismo ha pasado a ser una especie de cómplice estratégico de los poderes establecidos. Es frente a ese panorama nada prometedor que la utopía parece adquirir su actualidad. Si esto es así, entonces tendremos que concluir que André Breton no se equivocó cuando desilusionado por una izquierda que había renunciado a sus ideales, escogió el único camino que le quedaba: el de la utopía. Pasemos a explicar los pormenores de esa elección suya. Era inevitable que el poeta cuyo epitafio podemos leer en su tumba: “busco el oro del tiempo”, dirigiera su pensamiento hacia la utopía. Esa frase suya que fue publicada en 1934 en su libro Point du Jour, encierra dos principios fundamentales que habrían de convertirse en el norte del autor de Nadja. El primero, relacionado con la utopía, refleja su intención de hacer del surrealismo una búsqueda poética y no un mecanismo de acción política. El segundo principio basado en el significado simbólico del “oro”, revela la inclinación de André Breton hacia la tradición hermética y hacia la alquimia en particular. Ambos pues quedan indisolublemente unidos en el destino que Breton quiso imprimirle al surrealismo. Pero ese destino no anduvo por líneas rectas sino que experimentó durante su proceso, una serie de encuentros laberínticos con el marxismo y el anarquismo. El encuentro con ambos tuvo consecuencias profundas en la formación del pensamiento surrealista, y eventualmente en su decisión de abandonar una militancia política de corte pragmático para refugiarse en los pensadores utópicos y en Fourier en particular. Primer encuentro: el marxismo En el número uno de la revista Médium (Noviembre, 1953), apareció una de las tantas encuestas que los surrealistas gustaban de hacer. El tema de la encuesta se basaba en la siguiente pregunta: “¿Le abriría usted la puerta a:”? Entre los personajes a quienes los surrealistas deberían abrirle la puerta o no, se encontraba Carlos Marx. Al tocarle el turno a Breton este repondió: “No, por cansancio”. Antes de continuar tengamos en cuenta el año cuando esa pregunta fue respondida: 1953, o sea, ya en plena década de los cincuenta. Esa década presenció la consolidación del “American way of life” y las primeras reacciones “poéticas” en contra de la misma por sus voceros: los “beatnicks”. Howl de Allen Ginsberg se publicó en 1956. En 1951 Albert Camus publicó “El Hombre Rebelde” lo que le valió su ruptura con Sartre y críticas acérrimas de los surrealistas. En el plano de las ideas, el existencialismo sartriano continuó jugando con el marxismo y la potencia que decía representarlo, La Unión Soviética, a pesar de que ya había mostrado su rostro totalitario décadas atrás. El famoso informe de Nikita Kruschev, y el alzamiento de los húngaros en 1956, abrió los ojos para muchos acerca de lo que los soviéticos eran capaces de hacer. La guerra de Algeria que habría de dejar una huella duradera en la intelectualidad francesa, comenzó en 1954. Mientras, el teatro del absurdo hizo su entrada triunfal con la Soprano Calva de Ionesco (1950) y Esperando a Godot de Beckett (1952). El estructuralismo se erigió como un método de investigación con la publicación de La Antropología Estructural (1958) de Claude Levi-Strauss. Dos obras que habrían de influir en el pensamiento surrealista también aparecieron en esa década: Eros and Civilization de Herbert Marcuse (1955) y Life Against Death (1959) de Norman O. Brown. Los años cincuenta terminaron con el comienzo de la revolución cubana y de la famosa década de los sesenta. Es dentro de ese contexto aún influído por Marx, que Andre Breton decidió no abrirle la puerta y dejarlo pasar. Habría que añadir que Benjamín Peret su fiel compañero, respondió a la pregunta con un “Sí, saludos camarada”, marcando una diferencia con la actitud de Breton. Otros miembros del grupo se mostraron en su mayoría indecisos, aunque algunos como Wolfang Paalen fueron tajantes en sus respuestas: “No, porque su doctrina ha engendrado la religión más opresiva”. A pesar de que se trataba de un juego, lo cierto es que esas respuestas fueron reveladoras de una actitud que se remontaba a los comienzos mismos de la formación del grupo cuando aún el nihilismo de los dadaístas continuaba haciéndose sentir. Pero tanto Breton como otros miembros del grupo, decidieron a la larga entrar en el Partido Comunista sin renunciar a sus actividades de carácter puramente poéticas. Ni el pasado de los surrealistas ni sus experimentos con el automatismo y los sueños bajo el influjo del psicoanálisis, se avenían con los estrechos marcos dogmáticos impuestos por las tácticas de un partido que obedecía a las estrategias de la URSS. No cabían dudas de que el atractivo de la revolución rusa poseía también su peso. Ya desde temprana fecha los surrealistas se agruparon en torno a una serie de publicaciones de tendencia marxista como Clarté (1926). En esa revista la rebeldía de los surrealistas se hizo sentir en contra de algunos de los dómines del partido comunista como Henri Barbusse, al mismo tiempo que L’Humanité órgano oficial del partido, no tenía reparos en atacar la poesía surrealista representada en libros como Capitale de la Doleur de Paul Eluard. Pierre Naville uno de los surrealistas de primera hora identificado con Clarté, publicó en 1926, un libro titulado La Revolution et les Intellectuelles: Que peuvent faire les surrealistes? donde planteó las contradicciones internas que existían entre los comunistas y los surrealistas. La respuesta de Breton fue inmediata: en ese mismo año publicó su panfleto Legitime Defense donde entre otras cosas declaró: “La llama revolucionaria arde donde quiere y no le incumbe a un pequeño número de hombres, en el período de espera en que vivimos, de decidir si es aquí o allá donde debe arder” (1). Sin embargo la tentación de adherirse a un partido que de acuerdo con la izquierda estaba a la vanguardia de las luchas revolucionarias, no se hizo esperar. A principios de 1927 los surrealistas pidieron su adhesión al partido no sin antes provocar una seria disensión dentro del grupo: Jacques Baron, Robert Desnos, Max Morise, y Artaud entre otros, se negaron a hacerlo, mientras que Breton, Paul Eluard, Louis Aragon, Jacques Prevert, Ives Tanguy, Pierre Unik, Michel Leiris etc. recibieron su carnet del partido. A pesar de ello esa adhesión no significó una suspensión de las actividades surrealistas, por lo cual nunca se ganaron la confianza de un organización que seguía los lineamientos de Moscú, llamada despectivamente por Aragon “la gateuse” (la cocha). Entre sus directivas se encontraba la nueva política cultural que iba aceleradamente hacia una ruptura radical contra la creación artística independiente a favor de un sometimiento al llamado “realismo socialista”. Más por el momento, “Para ayudar a transformar el mundo, era preciso pensarlo de modo distinto a como habíamos hecho hasta entonces, y, particularmente, suscribir sin reservas la famosa primacía de la materia sobre el espíritu. Esta era una necesidad a la que nos resignábamos pero que implicaba apreciables sacrificios por parte de muchos de nosotros” (2). Esa confesión de Breton, dicha por él durante las entrevistas que André Parinaud le hiciera para la radio francesa, aclara la encrucijada en que los surrealistas se encontraban durante la época de su militancia comunista. En otra de las respuestas que le diera a las preguntas de Parinaud, Breton añadió: “…aún cuando la actividad surrealista propiamente dicha continuaba desarrollándose en su propio plano -el de la experiencia y la aventura interiores- no por ello dejaba de hallarse mediatizada por la preocupación de evitar un conflicto a fondo con el marxismo… en materia de transformación social del mundo, las consideraciones urgentes prevalecían por encima de todas las demás. El instrumento requerido para esta transformación existía y ya había dado pruebas de ello: se llamaba marxismo-leninismo. No teníamos aún ninguna razón para suponer que su punta estuviera envenenada (3). Dadas las precarias condiciones en que los surrealistas se encontraban dentro del partido y las concesiones ideológicas que tuvieron que hacer, se hacía inevitable la ruptura, la cual ocurrió tras numerosas crisis en 1932. La historia detallada de todo ese proceso puede leerse en libros como los de Maurice Nadeau, Gerard Durozoi o Helena Lewis. (4). La ruptura entre Breton y otros surrealistas arrastró eventualmente a Aragon, Eluard y Sadoul del lado stalinista mientras que se sumaban nuevos nombres en las filas del grupo. Una vez que esa ruptura se hizo oficial, Breton y Peret gravitaron hacia el trotskismo naciente encarnado en la figura de Leon Trotsky que a la sazón había encontrado refugio en Mexico en 1937. Pero antes de entrar en el período trotsquista, valdría la pena citar a algunos autores que han reflexionado sobre el tema de la relación entre el marxismo ortodoxo y el surrealismo. Para Martin Jay la aproximación de los surrealistas a la dialéctica hegeliana comenzaba “con un rechazo del racionalismo logocentrista que estaba en el centro del pensamiento de Hegel. La síntesis que (los surrealistas) esperaban alcanzar tenía que incluir lo racional y lo irracional, cordura y locura, conciencia despierta y sueños” (5) Ferdinand Alquié en su conferencia sobre “El Humanismo Existencialista y Humanismo Surrealista” nos dice algo semejante: “…¿a qué filosofía se identificaban los surrealistas? Era al hegelianismo y al marxismo… pero es poéticamente cómo los surrealistas interpretan esta filosofía de la síntesis” (6). La reciente publicación de un libro acerca de Hegel (7) que trata a fondo sobre la influencia que ejerciera sobre su pensamiento la tradición hermética, hubiese aclarado aún más para estos autores la naturaleza de la aproximación de Breton al autor de “La Fenomenología del Espíritu”. ¿Cómo era posible entonces que éstos pudieran haber militado dentro de una organización como la del Partido Comunista cuyos fines eran totalmente opuestos a los suyos? Quizás porque como observara Maurice Blanchot “el servicio que los surrealistas esperaban del marxismo era que le preparara para ellos una sociedad en la cual todos fueran surrealistas (8). Es decir en una sociedad donde de acuerdo con Clifford Browder “la actitud materialista no pusiera en peligro la esencia de la experiencia surrealista: la intuición de lo maravilloso” (9). El paso siguiente a seguir para Breton transitaba pues por otros caminos, como quedó demostrado en lo que expuso en su “Segundo Manifiesto del Surrealismo” y en sus “Prolegómenos a un Tercer Manifiesto”. Cualquier lector de ambos encontrará en sus páginas una tendencia a tratar temas que destacan la creciente afición de Breton hacia las doctrinas esotéricas, como veremos durante el transcurso de este trabajo. La independencia de pensamiento que Breton defendía celosamente tenía que llevarlo a conclusiones ajenas a los principios materialistas del marxismo. En el Segundo Manifiesto Breton expresó lo siguiente: “Verdaderamente no comprendo por qué razón, aunque ello desagrade a revolucionarios de limitados horizontes, debemos de abstenernos de propugnar la revolución, de aplicarnos a los problemas del amor, del sueño, de la locura, del arte y de la religión, siempre y cuando lo enfoquemos desde el mismo punto de vista de aquellos -y también nosotros- lo enfocan. (10). Años más tarde, en 1973, en el Bulletin de Liason Surrealiste, Vincent Bounoure afirmó: “Lo que está en causa es una poetización radical del mundo o más precisamente una transvaluación sin retorno de las relaciones sensibles que el espíritu mantiene” (11) O sea, que más de treinta años después que Breton formulara sus puntos de vista la cuestión continuaba planteándose dentro del seno del movimiento. Y era que no podía haber un compromiso con una doctrina cuya finalidad era esencialmente política mientras que la política surrealista (de tener alguna) se basaba en el rechazo o “Le Ecart Absolu”. Jacques Abeille otro surrealista que surgiera en tiempos postbretonianos, expuso en el mismo Bulletin que “no podía haber una politica surrealista posible, pues ningún poder podría darle satisfacción al Surrealismo” (12) Un autor que viera a ese movimiento con mirada favorable nos aclara en el prefacio a su libro Reason and Revolution que “la dialéctica y el lenguaje poético se encuentran en un terreno común…el elemento común es la búsqueda de un lenguaje auténtico, el lenguaje de la negación como el gran rechazo para aceptar las reglas de un juego donde los dados están cargados …la poesía es entonces el poder de negar las cosas, el poder que Hegel paradójicamente reclama para todo pensamiento auténtico” (13) La revelación de lo maravilloso, que sólo puede ser obtenida conjurando la poesía que se encuentra latente en el mismo, posee sus propias reglas de juego, que nada tiene que ver con un proceso dialéctico encaminado a la toma del poder. Es por eso que la negación o el no compromiso surrealista se vio afectado durante el tiempo en que militaron en las filas del Partido Comunista. Pero la tendencia de los surrealistas a ver en el rebelde o supuesto rebelde la encarnación del verdadero revolucionario, los incitó a percibir en la figura de León Trotsky el héroe de una revolución que para ellos no había perdido su atractivo. El encuentro entre Trotsky y Breton se produjo en México en 1938. Para esa época los procesos de Moscú y la Guerra Civil Española habían marcado decisivamente la conciencia revolucionaria mundial. Los surrealistas no fueron ajenos a las conmociones que ambos hechos provocaron, denunciando los primeros y apoyando los movimientos de izquierda que luchaban contra el fascismo en España. Benjamín Peret pasó a formar parte primero de las filas del POUM (trotsquista) y de los anarquistas después, mientras que Breton con una hija recién nacida, se quedó en Paris. Cuando Breton llegó a Mexico fue recibido por Diego Rivera quien le proporcionara albergue. Pocos días después fue recibido por Leon Trotsky entablándose entre ambos una relación que no siempre fue cordial. Mientras que Trotsky desconfiaba en el fondo de las ideas de Breton (y no sin razón desde su perspectiva) creyendo que éstas “abrian una ventana que iba a dar al más allá”, Breton se sintió conmovido ante la presencia del viejo militante revolucionario convertido en el gran disidente del stalinismo. La historia de ese momento ha sido relatada en numerosos libros y bajo distintos puntos de vista, pero lo que quedó de tangible de la misma fue la redacción entre Trotsky y Breton de un manifiesto: “Por Un Arte Revolucionario Independiente”. Aunque Trotsky no lo firmó (Diego Rivera lo hizo como substituto), la esencia del mismo se debe a su mano. La conclusión de ese manifiesto condujo a la fundación de una Federación Internacional del Arte Revolucionario Independiente (FIARI) que tuvo corta vida. Una lectura del manifiesto nos sitúa de nuevo en la coyuntura en que los surrealistas se encontraron a raíz de su adhesión al Partido Comunista. Existen en el manifiesto concesiones evidentes de una parte y la otra, sino ¿cómo es posible explicar sus referencias al anarquismo o al psicoanálisis? En ambas la mano de Breton se pone de manifiesto cuando habla de los “mecanismos de sublimación…que el psicoanálisis ha puesto de manifiesto y que tienen por objeto restablecer el equilibrio roto entre el “yo” coherente y los elementos reprimidos” o cuando afirma que “para el desarrollo de las fuerzas productivas materiales, la revolución está en la obligación de erigir un régimen socialista de plan centralizado, para la creación intelectual debe desde el principio mismo establecer y asegurar un régimen anarquista de libertad individual” (14) Escrito bajo el espíritu de la época, hoy mucho de lo que este manifiesto dice nos parece anacrónico. Pero lo que sí revela es una tensión entre el proyecto de Breton de alcanzar la libertad por otras vías (abriendo como Trotsky sospechaba, una ventana hacia el más allá) y la estrategia política de éste para conseguir la misma mediante los métodos clásicos expuestos en el marxismo-leninismo. Por otra parte no podemos olvidar que los anarquistas siempre condenaron al organizador del ejército rojo como uno de los responsables de la masacre perpetrada contra los marinos que se rebelaron en Cronstadt en 1922. Los escritos de Emma Goodman no dejan lugar a dudas al respecto. A pesar de ello Breton siempre mantuvo en vivo su espíritu de solidaridad con Trotsky aún cuando expresara sus dudas sobre el contenido de su panfleto Su Moral y la Nuestra. Peret por su parte compartió con Breton su admiración continuando su militancia trotsquista al mismo tiempo que su naturaleza rebelde lo conducía hacia el anarquismo. Segundo encuentro: el anarquismo Oficialmente los Surrealistas no se acercaron a los anarquistas hasta los años cincuenta cuando ya Breton había formulado su inclinación hacia el Socialismo Utópico representado sobre todo por Fourier. Prefiero sin embargo, continuar con el proceso de alejamiento de Breton del materialismo dialéctico, para cerrar este trabajo con la utopía como respuesta final que hiciera al mismo. En un escrito suyo incluido en La Llave de los Campos titulado “La Clara Torre” Breton confesó que “Donde el surrealismo reconoció por primera vez, mucho antes de definirse a sí mismo y cuando no era sino asociación libre entre individuos que rechazaban espontáneamente y en bloque las coacciones sociales y morales de su tiempo, fue en el anarquismo” a continuación en ese mismo escrito se pregunta “Por qué no pudo operarse en aquel momento una fusión orgánica entre elementos anarquistas propiamente dichos y elementos surrealistas? Yo aún me lo pregunto veinticinco años después” (15) A guisa de justificación la respuesta que de inmediato da Breton refleja las contradicciones internas a que hemos venido aludiendo: “No es dudoso que la idea de la eficacia, que había de ser el señuelo de toda esa época, lo decidiera de modo muy distinto” (16). La idea de la eficacia no fue sólo el señuelo de aquella época, continuaba siéndolo en la década cuando Breton escribió su ensayo, como sigue teniendo hoy toda su fuerza manipuladora. Pero la eficacia consistía en la militancia dentro de un partido específico: el comunista. Sartre cayó dentro de sus hechizos cuando coqueteara con el mismo mientras rechazaba la posición utópica de los surrealistas. Pero la cuestión se planteaba también en otro plano: aquel del espíritu que era donde los surrealistas podían responder con otra “eficacia” dada la naturaleza de sus ideales. De ahí que entre el 12 de Octubre de 1951 y el 8 de Enero de 1953 los surrealistas participaran con unos llamados “billets” en la publicación anarquista “Libertaire”. La sensibilidad que guiaba a los surrealistas a acercarse al movimiento anarquista se encontraba plenamente justificada por la conciencia del fracaso que significó para ellos el Comunismo soviético. Breton, después de ese fracaso, no podía abrirle las puertas a Marx sin dejar pasar con él unas estructuras de pensamiento que habían facilitado la tiranía stalinista. En ese sentido las acusaciones de Proudhon a Marx que seguramente Breton conocía, conservaban toda su vigencia. Existía desde luego el Marx anterior, el de los manuscritos y los “Grundrisse” que expresaban unos imperativos éticos que los surrealistas podían aún adoptar, como de hecho lo hicieron alentados en parte por los escritos de Herbert Marcuse. Pero en el fondo un poema o un collage surrealista respondía más a lo que Breton había subrayado en el manifiesto que escribiera con Trotsky acerca de la creación como un fenómeno anárquico. El anarquismo entonces pudo ofrecerle a los surrealistas un puente entre su visión utópica y la necesidad que alimentaban de “cambiar al mundo” y “transformar la vida” al revés de lo que pidieron Marx y Rimbaud. Un escritor anarquista Murray Bookchin que conocía el surrealismo aunque no tengo datos si los surrealistas había oído hablar de él, expuso en su libro Post Scarcity Anarchism “que los medios existen para el desarrollo del hombre total, liberado de la culpa y las manipulaciones de los modos autoritarios del entrenamiento, entregándose al deseo y a la aprehensión sensual de lo maravilloso” (17). Estas palabras revelan que dentro de la corriente anarquista existen puntos de contacto con la búsqueda surrealista de lo maravilloso a través del deseo. Para Bookchin el elemento surreal en el proceso revolucionario formaba parte de su dinámica interior, lo cual lo conecta con lo que otros autores citados en este trabajo habían dicho. La confianza en la creación que se produce espontáneamente, fuera del control de la razón, como había pedido Breton en su Primer Manifiesto, se traduce en el automatismo. Tanto la escritura automática como los diversos juegos a que los surrealistas se entregaron, reflejan esa necesidad de construir una realidad a partir de un acto libre por excelencia. La libertad pues, es la llama que enciende el proceso creativo, proceso que pone de manifiesto la importancia de la espontaneidad anarquista: “la creencia en la acción espontánea es parte de una creencia más amplia, la creencia en el desarrollo espontáneo” (18) Un mismo puente une el acto automatismo puro de los surrealistas y el desarrollo social espontáneo de los anarquistas. Ese puente va a ser construido en parte por otras dos tradiciones caras al pensamiento de Breton: la utópica y la hermética. Tercer encuentro: la utopia André Breton en un discurso que pronunció en “La Mutualité” a raíz del revuelo que causara Garry Davis con su movimiento mundialista en la década de los cincuenta, planteó claramente su posición: “Para quienes consideran -y yo me encuentro entre ellos- que en cada época hay algo de esencial que hay que rescatar de la herencia cultural y que ese algo puede ayudar a la emancipación del hombre, nosotros reivindicamos a Fourier y Proudhon, y con reservas a Marx y Lenin, y reivindicamos a Sade y Freud y también a Rimbaud y Lautreamont” (19) Por su parte Murray Bookchin escribió: “El gnosticismo comparte con los cultos mistéricos de la antiguedad así con la cristiandad, la necesidad de alcanzar un desarreglo de los sentidos. Ahí yace el gran poder de la imaginación que ha revitalizado a los movimientos radicales por siglos… El sueño de Schiller de un mundo estéticamente encantado o el de Breton de la hipostatación de lo maravilloso… es limítrofe con la experiencia gnóstica de la Iluminación extática” (20) De manera que la relación entre una tradición libertaria que piensa en términos políticos-sociales, y la tradición hermética que busca en lo espiritual una dimensión donde se pueda producir la epifanía de lo maravilloso, es posible como Breton pensara. El proceso evolutivo de Breton hacia la utopía como un “lugar” donde pudieran resolverse las contradicciones que afectan al hombre, fue la consecuencia obvia de su doctrina surrealista. Desde la lectura de las páginas del Primer Manifiesto Surrealista hasta las últimas que Breton escribiera, todo conduce a un desenlace final: la adopción de la utopía. El surrealismo es, pues, básicamente utópico en sus directrices principales. A través de múltiples desengaños con las llamadas izquierdas revolucionarias a Breton no le quedó otro camino que volver a la raíz del surrealismo. Si durante la época del Segundo Manifiesto pidió la ocultación profunda de éste (prácticamente con la idea de convertirlo en una especie de sociedad secreta), situó la última exposición surrealista que presidiera, bajo el lema de “L’Ecart Absolu” siguiendo el pensamiento de Fourier. El colapso progresivo de las ideologías totalitarias y el afianzamiento del totalitarismo capitalista bajo el velo de la democracia, no dejaba espacio para otra elección a no ser que estuvieran dispuestos a “pactar” bajo la noción del compromiso, con el cual Sartre justificaba sus acciones. Fourier En una de las tesis que Herbert Marcuse expuso en su libro Counter-Revolution and Revolt (21) éste afirmaba utópicamente que la realización del sueño mediante la revolución era posible y que en ese sentido el programa surrealista continuaba siendo válido. Quien le abriera esa dimensión a Andre Breton fue, sobre todo, Charles Fourier. El descubrimiento de la obra del autor del Nuevo Mundo Amoroso por Breton se produjo durante su exilio en los Estados Unidos en los momentos en que se aprestaba a visitar el Oeste y especialmente a las naciones Hopi y Navajo. Esos encuentros produjeron una eclosión final en el pensamiento de Breton con respecto a las ideologías de corte marxista, que aunque con reservas, había hecho suyas. El resultado fue su Oda a Charles Fourier. Poema temático, único en su obra, fue escrito después que Breton tomara conocimiento de la poesía de Aimé Cesaire durante su estancia en la Martinica. Fue en esa isla donde Andre Masson, Wifredo Lam y Breton llegaron a raíz de su salida de Francia, que Breton descubrió la revista Tropiques dirigida por Cesaire y donde éste publicara su Cahier d’un Retour au Pays Natal poema programático de la negritud y que tanto Breton como Peret saludaron con entusiasmo. La Oda a Fourier continúa esa línea usando varias narrativas, entre las cuales se encuentra la presencia de los Hopis como reconocimiento del parentesco entre el utopista francés y el pensamiento de los indios Pueblo: “Fourier te saludo desde el Gran Cañón del Colorado/veo el águila que se escapa de tu cabeza/…Te saludo desde el instante en que acaban de llegar a su término las danzas indígenas…Te saludo desde lo bajo de la escala que se hunde con gran misterio en la kiwa hopi la cámara subterránea y sagrada hoy 22 de agosto de 1945 en Miishongnovi a la hora en que las serpientes con un gran nudo último señalan que están listas a operar su conjunción con la boca humana”… (22) Es ahí, en ese poema, donde la tradición del socialismo francés muy mezclada a un idealismo romántico, vuelve a encontrar su camino. Por debajo de esa Oda corre un río que arrastra bajo sus aguas a nombres como Saint Simon, Enfantin, Fabre D’Olivet, Saint Martin, Martínez de Pasqually, y tantos otros que ingresaron en el mundo de Breton. De esa manera hermetismo, socialismo utópico y primitivismo se unen en una de esas síntesis a la cual el pensamiento surrealista se encaminaba desde que hicieron del ‘punto supremo’ su única meta. Se trataba para Breton de lanzar una mirada retrospectiva hacia otras fuentes intocadas por la tentación totalitaria verificando a su vez, como había apuntado Gerard Schaefer, “la validez del mundo de Fourier (al mismo tiempo que) el nuevo mundo americano aportaba una confirmación por el antiguo en la ideología india, a las promesas de Fourier” (23). Jean Gaulmier en esa misma obra cita a Claude Levi Strauss donde expone: “Que Breton incline sus propias convicciones metafísicas a la visión de Fourier como a la de los indios es evidente, ¿toda la gestión surrealista no consiste precisamente en una lectura apasionada y subjetiva de las obras del espíritu como la de cosmos? …discípulo de un eterno y viviente romanticismo, el poeta saca del pasado y de lo real la imagen brillante, deseable del futuro” (24). Para los Hopis, de acuerdo con Levi Strauss, todo está unido entre sí pues los niveles del universo se encuentran enlazados por múltiples correspondencias, de ahí que en la vida de estos pueblos se produzca un fenómeno semejante al que Fourier soñara para sus falansterios. La teoría de las correspondencias que aparece en Swendenborg, le anuncia a Fourier su visión de las analogías y su creencia en la “atracción apasionada”, y ambas van a estimular la concepción que Breton desarrollara del surrealismo. En la oda a Fourier se verificó entonces la convergencia “surrealista” entre el arte y mitología de los indios, y el pensamiento del utopista francés influido por el hermetismo. El error de numerosos exégetas de Fourier, como pensaba Jean Gaulmier en sus comentarios a la Oda de Breton, consiste en considerarlo meramente como un filósofo, mientras que en tanto que detector de la ‘atracción apasionada”, estuvo más cerca de la poesía en el sentido surrealista del término. Octavio Paz fue de los que percibió con claridad todas las ramificaciones poéticas de la obra de Fourier: “…La creencia en la analogía universal está teñida de erotismo: los cuerpos y las almas se unen y separan regidos por las mismas leyes de atracción y repulsión que gobiernan las conjunciones y disyunciones de los astros y de las sustancias materiales. Un erotismo astrológico y un erotismo alquímico…la alquimia erótica unión de los principios contrarios, lo masculino y femenino, y su transformación en otro cuerpo- es una metáfora de los cambios, separaciones, uniones y conversiones de las sustancias sociales (las clases) durante una revolución…” (25) Lo que Octavio Paz nos dice aquí forma parte de la sustancia misma del surrealismo tal y como lo concibiera André Breton. Cualquier lector podrá entonces concluir que la utopía tenía que encontrar su sitio dentro de una visión como la suya. Pero una utopía, hay que añadir, muy lejana a las estrictas regulaciones que a la larga malogran todo proyecto utópico convirtiéndolo en un ensayo coreográfíco para alcanzar la felicidad. Lo que salva a Fourier es que su mundo amoroso esta regido por un erotismo cuyas raíces -según lo viera Octavio Paz- se nutren del hermetismo del siglo XVIII, como puede en las novelas de Restiff de la Bretonne: “Del misticismo erótico de un Restiff de la Bretonne a la concepción de una sociedad por el sol de la atracción apasionada no había sino un paso. Ese paso se llama Fourier” (26). Posiblemente Octavio Paz tomó esa idea de un libro revelador: Fire in the Minds of Man de James H. Billington, libro que traza las conexiones que hubo entre la imaginación y los movimientos revolucionarios entre los siglos XVIII y XIX. En su obra Billington señala que: “La etiqueta revolucionaria en el mundo contemporáneo surgió de la imaginación erótica de un escritor excéntrico, Restiff de la Bretonne… (este autor) condujo (su investigación) a oscuros corredores de la imaginación que los positivistas y los marxistas han preferido ignorar..” (27). Esa ignorancia es precisamente la que Breton y los surrealistas lograron superar a través de Fourier y junto a él toda una pléyade de autores tenidos a menos por otros como Sartre y sus seguidores. Breton por su parte obedeció a lo que Marx había dicho de Fourier calificándolo como “uno de los patriarcas del Socialismo” al mismo tiempo que Engels afirmaba que Fourier manejaba la dialéctica con la misma destreza que Hegel. El mundo armónico de Fourier, mundo donde el elemento lúdico se encontraba presente, ofrecía para Breton una alternativa de carácter utópica, es cierto, pero con más posibilidades de humanizar el socialismo. Pues de eso se trataba en última instancia: de rescatar a un socialismo secuestrado por sistemas opresivos, reivindicando su naturaleza humanista. Conclusion: ¿el oro del tiempo? ¿Es viable la utopía surrealista? y, ¿En qué consiste su viabilidad? Paradójicamente consiste en su no viabilidad, es decir, en continuar siendo una utopía sobre la utopía. En su perpetua búsqueda de lo maravilloso, el Surrealismo no se propuso encontrar soluciones que estuvieran fuera del alcance de la poesía. De ahí que Breton haya acogido a un número de pensadores situados marginados del contexto oficial, de la misma manera que siempre encontró en el arte de los locos o de los primitivos la confirmación de sus ideas. En las páginas de su Arcane 17, Breton saludó a Sade y a Paracelso, a Flora Tristán, Fourier y a Pere Enfantin con el mismo entusiasmo. Como el hermetismo no es ajeno a esas corrientes, también la tradición de los heterodoxos y heréticos le resultó favorable, en cuanto abrían una ventana al más allá que Breton vio como posible de obtener durante el transcurso de nuestras vidas. La clave se encuentra precisamente en esa especie de “utopía cotidiana” que los surrealistas intentaron lograr mediante sus excursiones poéticas en los diversos dominios de la imaginación. Durante las revueltas en Francia, en la década de los sesenta, si los estudiantes exigieron que la “la imaginación tomase el poder”, fue porque reivindicando a Breton, pensaron que lo imaginario es lo que tiende a devenir real. Los sesudos análisis que se hicieron en aquella época de las condiciones materiales que sirvieron como estructuras de las rebeldías, no tomaron en cuenta que la desvalorización de la sociedad provenía de otras fuentes. En todo el mundo contrariamente al pensamiento meramente materialista, era la valorización del juego, del deseo y de lo maravilloso lo que se encontraba en el centro de las esperanzas revolucionarias, o sea, su costado utópico. El fracaso del comunismo y de sus variantes socialistas, ¿no llevaba acaso como temía Trotsky citado por Breton, a una nueva utopía? Si el marxismo como apuntara Maximilian Rubel en su antología sobre los escritos de Marx, perece a la larga por la rigidez de su lógica, el socialismo concebido por él en sus primeras etapas, continuaba siendo una llamada a la emancipación de la persona. Pero esa emancipación, como lo creyera Breton, no era un monopolio exclusivo del marxismo, sino que le pertenecía a una nutrida línea de pensadores aparentemente dispares, que encontraron en el Surrealismo un espacio común. El collage como espacio utopico La concepción del collage vino precisamente a brindarle su habitáculo a ese espacio. Es en el collage donde tanto mental como visualmente se verifica la unión de elementos contrarios en una nueva realidad. Esa (re)unión rompe con un orden establecido alterando la percepción normal que la sociedad impone sobre las cosas. De esa manera el significado “fijo” de las cosas se desestabiliza al ser integrado con otros significados opuestos, creando de esa manera un escenario utópico de la realidad o mejor dicho, de la surrealidad. El collage como uno de los grandes inventos poéticos de la modernidad, rebasa su mera función estética para formar parte de un mecanismo de “atracción magnética” (no es por casualidad que la primera obra surrealista se titulara Los Campos Magnéticos) entre realidades desiguales, creando una escala de valores transgresora La sociedad donde vivimos funciona como un collage en lo que posee de cotidiano. Basta con salir a la calle para que nos sintamos “dentro” de un collage de objetos impuestos “desde fuera” por un sistema económico basado en el consumo. ¿Qué es “Disney World” sino la puesta en escena de una realidad virtual manejada por la utopía capitalista? Alcanzar “desde el interior” ese “más allá” (opuesto al escenario de Disney World) era la finalidad utópica del surrealismo, que el collage logra hacer visible. Para ello se valieron de distintos métodos lúdicos pero también del azar objetivo, del análisis de los sueños o del “amor sublime”. Los surrealistas pusieron todas sus esperanzas en esas vías (¿acaso no es la esperanza la sustancia de la utopía?) en unos tiempos conjurados para impedirlas. De ahí que su rebeldía llevara a veces el sello de la vehemencia y no del razonamiento. Pero en el fondo los surrealistas fueron unos optimistas tenaces que frente al pesimismo que Camus expuso en su obra “El Mito de Sísifo”, creyeron como lo confesara Breton en sus entrevistas, que al final el hombre superaría los escollos. Si toda gestión libertaria actual apunta hacia un porvenir lejano, nos parece entonces que la utopía surrealista es viable en tanto que limite su campo de acción a lo imaginario. El Surrealismo no es un partido político, ni un culto religioso, cuyo destino sea la toma del poder. Es y continuará siendo una lectura apasionada de lo real para revelar su “surrealidad”. Dentro de ese proceso el Surrealismo que de acuerdo con Breton “es lo que será”, mantiene su dinámica creadora y puede aún abrir caminos exploratorios. En la apertura de esos caminos se encuentra el espíritu innovador de la utopía que siempre vislumbra el horizonte a sabiendas que nunca podrá alcanzarlo. NOTAS 1. Andre Breton: “Point Du Jour”, Editions NRF, 1934. 2. Ver Andre Breton, “Puntos de Vista y Manifestaciones”. Barral Ediciones, Barcelona, 1972. 3. Ibid. Pag. 137-38. El subrayado es mío. 4. Helen Lewis, “Politics of Surrealism” Paragon House, NY 1988, Gerard Durozoi, “Histoire Du Mouvement Surrealiste”, Hazan Editeurs, Paris 1997, Maurice Nadeau, “Histoire Du Surrealisme”, Points, Editions du Seuil, 1964. 5. Martin Jay, “Marxism and Totality”, University of California Press, 1984. 6. Ferdinand Alquie “Humanisme Existencialiste et Humanisme Surrealiste” Cahiers du Collage Philosophique, Arthaud, Paris, 1948. 7. Citado por Bruce Baugh en “French Hegel” Routledge University Press, N. Y 2003. 8. Clifford Browder: “Andre Breton, Arbiter of Surrealism”, Librairie Droz, Geneve, 1967. 9. Andre Breton “Manifiestos del Surrealismo”, Guadarrama, Madrid, 1969. Traducción de Andrés Bosch. 10. Vincent Bounoure: “L’Autre Rime”, BLS #6, Abril 1973. 11. Jacques Abeille: “Reponse a Herbert Marcuse” BLS # 7. 12. Herbert Marcuse, “Reason and Revolution”, Beacon Press, Boston, 1969. 13. “Por un Arte Revolucionario Independiente” en Andre Breton: “An-tología”, Traducción Tomás Segovia, Edit. Siglo XXI, Mexico, 1973. 14. Andre Breton “La Clara Torre”, en “La Llave de los Campos”, Libros Hiparión, Madrid. Traducción Ramón Cuesta y Ramón García Fernández. 15. Ibid. 16. Ibid. 17. Murray Bookchin: “Post Scarcity Anarchism” Rampart Press, Berkley, Calif. 1971. 18. Ibid. 19. Reproducido en Maurice Joyeux: “El Anarquismo y la Rebelión de la Juventud” Edit. Freeland, Buenos Aires, 1972. 20. Murray Bookchin “The Ecology of Freedom” Chesire Books, California, 1982. 21. Ver Herbert Marcuse “Counter-revolution and Revolt” Beacon Press, Boston 1972. 22. Andre Breton “Oda a Charles Fourier”, en A.B. “Antologia”, Siglo XXI, Mexico, traducida por Tomás Segovia. 23. Gerard Schaefer: “Andre Breton” Editions La Bacconiere, Neuchatel. 24. Ibid. 25. Octavio Paz: “Fourier y la Analogía” en “Aproximaciones al Pensamiento de Fourier, Miguel Castellote Ed. Madrid, 1973. 26. Ibid. 27. James H. Billington: “Fire in the Minds of Men”, Basic Books, Harper, 1980. 28. Glenn Alexander Magee: “Hegel and the Hermetic Tradition” Cornell University Press, 2001. Carlos M. Luis (Cuba, 1932). Poeta e artista plástico. Dirigiu em seu país o Museo Cubano. Como ensaísta, publicou Tránsito de la mirada (1991) e El oficio de la mirada (1998). Nos anos 90, já residindo em Paris, publica juntamente com Jorge Camacho Le Bulletin de Liason Surrealiste. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Beatriz Doria: a arte como forma natural Jacob Klintowitz . 1. A principal inspiração de Beatriz Dória é a sua intuição da harmonia universal e o estímulo externo para a concretização de sua obra é o convívio com a variedade de formas da natureza. O seu trabalho incorpora a experiência atual da arte com o objeto como representação autônoma e a preocupação da cultura contemporânea com o entendimento holístico da realidade. A sua obra, ainda que uma criação individual de formas, é uma glorificação da vida e do sentimento amoroso da harmonia com o planeta. A convivência com o escultor Frans Krajcberg consolidou na artista este caminho em direção à uma arte atenta a necessidade de evolução do homem. É uma escultura sensível que busca a expansão da consciência. Uma invenção espacial a partir das formas da natureza. Beatriz Doria, em um demorado processo de elaboração, recria o que a sua imaginação identifica como as formas ideais. A convicção do século XXI é que o homem é um ser em sistema. Ele não se diferencia essencialmente de seu meio e é dependente dele. O ar que guarda em seus pulmões é o próprio homem e é o entorno. Existe um forte movimento da arte contemporânea em favor da natureza, na análise da harmonia entre o homem e o planeta, e no resgate de imagens e formas naturais. Esta corrente – a arte como consciência total – é marcante no Brasil, onde estão presentes artistas, entre tantos, como Frans Krajcberg, José Zanine, Ernestina Karman, Shirley Paes Leme, Lourdes Cedran, Tereza D’Amico, Berenice Gorini, Otávio Roth, Elvio Benito Damo, Marlene de Almeida, Zorávia Bettiol, Manfredo de Souzaneto, Alcindo Moreira Jr., Edson Luz, Ione Saldanha, Claudio Tozzi, Carybé, João Rossi, Mario Cravo Jr., Bené Fonteles, Juarez Paraíso, José Patrício, Gilberto Salvador, José Bento. A escultura de Beatriz Doria é uma elaboração espacial a partir das formas da natureza. A escultura da artista, como queria Aristóteles, não copia a natureza, mas trabalha a partir da identificação com o seu processo de criação. Desta maneira, Beatriz Doria pesquisa há muitos anos as formas e as características da vegetação brasileira. Com estes elementos – formatos e qualidades especificas da natureza – Beatriz constrói esculturas que se apropriam do espaço e nos remetem ao universo que imaginamos ser o das formas originais, no qual gostaríamos de sermos capazes de reconhecer a memória do Paraíso. 2. A escultora Beatriz Doria nasceu em Pinhalzinho, Santa Catarina, em 8.5.1960, segunda filha de nove, de uma família de imigrantes italianos. Criada no Rio Grande do Sul, onde a família se instalou posteriormente e o pai transformou uma muda trazida da Itália em uma vinícola. Nesta época de menina, Beatriz Doria, durante a colheita da uva, pintava os caules da vinha com a casca da uva madura e contemplava o seu jardim de esculturas vivas que se apagaria com a primeira chuva. Em 1985 retorna de Milão, Itália, onde estudou Design de Moda e, associada ao estilista Gregório Faganello, abre uma loja em São Paulo onde, por 12 anos, dedicase a criação e comercialização de moda. Em 1997 estuda e dedica-se a ourivesaria, com a criação de jóias com pedras brasileiras. A partir de 2002, dedica-se ao estudo das formas naturais e da flora brasileira, criando um conjunto expressivo de esculturas a partir de árvores nativas resgatadas da destruição natural ou de queimadas. No dia 16 de maio de 2007 abre a sua primeira exposição de esculturas no Museu Brasileiro da Escultura, com a presença de seu mestre, o escultor Frans Krajcberg. Jacob Klintowitz (Brasil, 1941). Jornalista, crítico de arte, escritor, editor de arte, designer editorial. É autor de 90 livros sobre teoria de arte, arte brasileira, ficção e livros de artista. Fotos de Celine Germer. Agradecimentos a Eduardo Guimarães. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras de Beatriz Doria (Brasil). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 César Moro en la mesa con sus pares Floriano Martins . Durante mucho tiempo estuve buscando este encuentro. Siempre había uno u otro poeta que no podía sentarse a la mesa. Libros que no llegaban de distintos lugares del mundo. Cartas que esperaban respuesta. El tiempo comprometido en viajes, la agenda de impurezas de cada día, las señales simultáneamente tiránicas y amables de la existencia. El hecho es que solamente ahora pudimos reunirnos. Martín Adán (1908-1985) fue el primero en preguntar sobre las razones del encuentro. Hacía mucho que el peruano estaba recogido en su exilio interior. Además, no identificaba a ninguna de aquellas personas allí sentadas. Se acuerda algo de César Moro (1903-1958), ya que ambos fueron colaboradores de José Carlos Mariátegui en las páginas de la revista Amauta, en la Lima de los años 20. A pesar de ciertos vínculos con el ultraísmo rastreados por algunos exégetas en su primer libro, La casa de cartón (1928), Adán jamás se sometió a los avatares de las vanguardias. Al contrario del panameño Rogelio Sinán (1902-1994), sentado junto a él, que recorrió varias tierras, Adán nunca se ausentó de su país natal. El estreno de Sinán, por medio de la publicación de Onda (1929), se dio en Roma, donde residía entonces y de donde saldría camino a México, quedándose allí durante casi diez años. Su llegada a México coincide con el tramo final de la revista Contemporáneos, del grupo homónimo al cual pertenecen dos de los otros poetas presentes en nuestro encuentro: José Gorostiza (1901-1973) y Xavier Villaurrutia (1903-1950). Pero dejemos que Sinán nos hable un poco: SINÁN El poeta mexicano Enrique González Rojo, que fungía como Secretario de la Embajada de su país en Roma, y que, a su vez, era hijo del gran poeta mexicano Enrique González Martínez, me familiarizó con la poesía mexicana, sobre todo con el famoso grupo de “Los contemporáneos”, que encabezaban Carlos Pellicer, Salvador Novo, Xavier Villaurrutia, Gilberto Owen y otros, que figuraban en la famosa Antología, de Cuesta, que me obsequió González Rojo. También pude informarme, a través de él, del belicoso movimiento “estridentista” capitaneado por Manuel Maples Arce y German List Arzubide. (1) Antes de su estadía en Roma, cuando pasó por Chile, conoció a Pablo Neruda (1904-1973); sin embargo, no se sabe si estuvo con Rosamel del Valle (1901-1965) o Humberto Díaz-Casanueva (1907-1992). Estos dos poetas, que se sientan también con nosotros a la mesa, estuvieron siempre unidos por una fuerte amistad, iniciada en 1925, cuando colaboraban en la revista Caballo de Bastos, que entonces dirigía Pablo Neruda. Más tarde, Díaz-Casanueva ayudaría a costear la edición de algunos libros de Rosamel. En cuanto a su libro inicial, El aventurero de Saba (1926), fue publicado a los 19 años. Tiempo después, confesaría que el “adjetivo metaforizado” era lo que le daba alguna afinidad estética con Neruda, y lo mismo valía para su posible identificación con Pablo de Rokha (1894-1968), poeta que continúa enteramente merecedor de una lectura que corresponda al valor inaugural de su obra. En 1928, Díaz-Casanueva estuvo en Uruguay y Argentina, donde conoció, respectivamente, a Juana de Ibarbourou y Jorge Luis Borges. En declaración posterior, dijo que “en aquellos días los escritores argentinos se preocupaban febrilmente por la política”, y que por tal razón “no conversó sobre poesía” (2). Algo interesante nos dirá acerca de la escritura de su segundo libro, Vigilia por dentro (1929), cuando todavía residía en Montevideo: DÍAZ-CASANUEVA Me veo en aquel entonces con una mano sosteniendo el aluvión surrealista que se precipitaba sobre mí; y con la otra esgrimiendo El origen de la tragedia de Nietzsche. Su lectura me produjo una profunda impresión y amplió mi visión de la existencia. (3) Mas, no obstante, hay entre nosotros algunos poetas que no fueron presentados y que empiezan a impacientarse en sus sillas. El argentino Enrique Molina (1910-1997) aprovecha para decir que fue sólo hasta 1983 que conoció a Díaz-Casanueva, cuando estuvieron juntos en Caracas, en un recital de poesía. Dos viajeros notables, aunque Molina fuera más afecto a los mares y los ríos. En uno de sus viajes a Lima conoció a César Moro, de quien acabaría editando Trafalgar Square, en 1954. El peruano, que se vinculara al surrealismo desde 1925, ya para entonces se había apartado del movimiento. Después de una larga residencia en México, entre 1938 y 1948, retorna a su país. Obsérvese que Moro no conoció a Alfredo Gangotena (1904-1944), el ecuatoriano que se sienta allá, más a la derecha, en la esquina. Era un año más joven que el peruano y ambos residieron en París durante un periodo considerable de sus vidas: Moro entre 1925 y 1938, Gangotena entre 1920-1928, regresando en 1936 por más de un año. Entre ellos, un puente invisible que jamás se mostró: pese a la gran amistad de Gangotena con Henri Michaux, que también conocía a Moro. Asimismo, aquí están otros dos poetas que jamás se encontraron: Manuel del Cabral (1907-1998) y José Lezama Lima (1910-1976). Tanto el dominicano como el cubano tuvieron complicadas relaciones son sus países: CABRAL Veo que hablan de escritores mediocres, que no son nadie fuera de aquí y a mí, que he puesto el nombre del país muy en alto, me ignoran. / Yo nací aquí, pero no estoy muy con el trato que me dispensan, porque para el nombre que tengo ahora mismo en el mundo, que no lo tiene ningún otro poeta, ni político, no me lo reconocen. (4) LEZAMA Mi vida ha sido toda un hilo continuo, ha seguido siempre la misma línea. No creo haber hecho nada que pueda traer odio de resentimiento que nadie puede evitar. En mi tierra he sufrido hasta el desgarramiento, he trabajado, he hecho poesía. En los dominios de la expresión y del intelecto he trabajado en una zona donde no hay dualismo, donde los hombres no se separan. No he oficiado nunca en los altares del odio, he creído siempre que Dios, lo bello y el amanecer pueden unir a los hombres. Por eso trabajé en mi patria, por eso hice poesía. (5) No habiendo salido nunca de Cuba, Lezama raramente estuvo con algún poeta de otro país. Un hecho destacado sería su larga amistad con Juan Ramón Jiménez, iniciada en 1936, cuando el poeta español visitó La Habana. A su vez, Manuel del Cabral residió tanto en Madrid como en Buenos Aires. En su permanencia en Argentina -final de los años 30 y comienzo de los años 40-, escribió y publicó uno de sus libros más importantes: Biografía de un silencio (1940), aunque la crítica lo haya consagrado por Compadre Mon (1943), donde es más nítida la presencia de una búsqueda de la expresión nacional en su poética. Pero ahora me gustaría hablar sobre los demás invitados. De Ecuador se sienta también con nosotros Jorge Carrera Andrade (19021978), con ese libro fundamental que escribió: Biografía para uno de los pájaros (1937). A su lado están sentados Luis Cardoza y Aragón (1904-1992), Aldo Pellegrini (1903-1973) y César Moro. Pellegrini es hoy un nombre injustamente olvidado. Urge que se recupere su obra y su pensamiento tan claro y tan lúcido. PELLEGRINI La creación de una poesía pura no tiene sentido. Si realmente es poesía, siempre es impura, pues arrastra lo vital del hombre. El proceso de cristalización de lo poético al que pretenden llegar los defensores de la poesía pura, para obtener un producto tan acendrado como el más puro cuerpo químico, sólo logra eliminar, junto con las impurezas, a la verdadera poesía. No hay otra explicación para lo poético que la creencia en un estado superior de vida para el hombre, pero no en una vida más allá o más acá de la real, sino en esta vida concreta que vivimos, aquí, con los pies en la tierra. (6) Seguramente, esta creencia en un estado superior de la existencia se enraíza en la necesidad del hombre de descubrirse a sí mismo, lo que no hará mientras no comprenda -y no simplemente anule- al otro que trae consigo. Es en el diálogo con su doble donde se funda su propia existencia. MORO El hombre está solo con el mar en medio de los hombres. / Impotencia del deseo. Mientras el hombre no realice su deseo el mundo desaparece como realidad para transformarse en una pesadilla de la cuna al sepulcro. / Acaso ¿no hay un ritmo que no es el nuestro? De pronto mis venas se ramifican, crecen y vivo el latido del mundo. / Soñé que un coche me llevaba hacia la eternidad. Pude despertar mas no quise saber la hora. / Escorpiones vigilan el horrible subsuelo de la eternidad. / Me despierto en medio de la noche y espero la llamada discreta. Pero es el viento y nada más. (7) Al igual que Pellegrini, el peruano cree en un poder secreto de la poesía, que pueda abarcar todas las formas de disidencia en un mismo núcleo, con la naturalidad de los elementos constitutivos de una única fuerza. LEZAMA ¿Lo que más admiro en un escritor? Que maneje fuerzas que lo arrebaten, que parezcan que van a destruirlo. Que se apodere de ese reto y disuelva la resistencia. Que destruya el lenguaje y que cree el lenguaje. Que durante el día no tenga pasado y por la noche sea milenario. Que le guste la granada, que nunca ha probado, y que le guste la guayaba que prueba todos los días. Que se acerque a las cosas por apetito y que se aleje por repugnancia. (8) La grandeza de esas voces, desplegadas en revelador encantamiento a lo largo de este nuestro encuentro imaginario, continuaría en una cadencia tan asombrosa que acabaríamos indagando los motivos por los que esos poetas han encontrado tan mínima repercusión internacional. Hasta en el ámbito del propio idioma, es inquietante observar que no hay un diálogo sistemático entre poetas españoles e hispanoamericanos. ¿Sería oportuno preguntar aquí sobre las razones de ese ojo ciego de España en relación con la América hispánica, por ejemplo? CARRERA ANDRADE En cuanto al interés reducido que existe en ese país con relación a las letras hispanoamericanas, es un fenómeno de la España franquista. Casi todos los escritores de nuestra América tomaron posición en favor de la República, motivo por el cual no tienen entrada sus obras ahora. (9) Tal vez estaba acertado Jorge Carrera Andrade al escribir desde París, en 1969, a su amigo Rodrigo Pesántez Rodas, otro bravo poeta ecuatoriano que se encontraba entonces en Madrid, buscando ediciones para poetas de su país. Con todo, me parece que la ausencia de relación crítica de los poetas españoles en lo tocante a la poesía hispanoamericana, se da con respecto a Franco apenas tangencialmente. La no relación, que implica un obstáculo inmenso en la lectura de los valores intrínsecos de esa poesía dentro y fuera de un ámbito geográfico, tiene su raíz principal en la indigestión por parte del conquistador - si cabe hablar de conquista - frente a un hecho incontenible: la explosión imaginética de la poesía hispanoamericana frente a la atrofia estética española, replegada en una circularidad retórica. Hasta los vanguardismos allí propuestos fueron redimensionados en la otra margen del Atlántico. No por el establecimiento de una discordia, sino antes por el simple hecho de la colisión entre dos eras. Lo que se presentaba como último suspiro en un continente, en el otro eran sus más valiosas señales de vitalidad. Tanto es cierto, que hasta el surrealismo -con la pasión ocultista con que lo desentrañara André Breton- amplió su acervo de maravillas gracias a su entrada en el nuevo continente. Basta pensar en cuánto deben al enriquecimiento de su obra las residencias de Breton, Péret, Artaud, Michaux y tantos otros en América. Si ya sabemos de las acentuadas relaciones entre Moro, Pellegrini y el surrealismo, creo interesante preguntar a nuestros invitados sobre el asunto. Algunos fueron siempre muy retraídos. Manuel del Cabral no gustaba de entrevistas. Martín Adán llevó una vida vertiginosa, en la que el desarreglo era la única regla posible. Cuando en 1960 lo conoció el poeta estadunidense Allen Ginsberg, dijo después en un poema que se había engañado al pensar que él estuviera melancólico (10). Adán propuso con voracidad desquiciadora la relación entre el poeta y su tiempo. Javier Sologuren nos habla de una “escritura de por sí compleja y desconcertante” (11), al comentar la poética de Adán. Tan desconcertante, además, que se inicia proponiendo una confluencia entre verso y prosa, desorientando a los amantes de la clasificación genérica con su La casa de cartón. En sus provocaciones formales se mostró como un notable guardián del lenguaje poético, procurando afirmar lo que Pellegrini llamaría “el verdadero sentido de la destrucción”. PELLEGRINI El impulso que mueve al hombre hacia la destrucción tiene un sentido y toca al artista revelar ese sentido. Cualquiera que sea la motivación del acto destructivo: el furor, el aburrimiento, la repugnancia por el objeto, la protesta, ese acto debe tener un sentido estético y ese sentido evita que la destrucción -acto procreador- se transforme en aniquilamiento. Destrucción y aniquilamiento desde el punto de vista del artista son términos antagónicos. La destrucción de un objeto no lo aniquila, nos enfrenta con una nueva realidad del objeto, la carga de un sentido que antes no tenía. (12) De la insumisión de Adán, la contundencia de su identidad: cuerpo y alma inconfundibles de una consistente poética. Claro, La casa de cartón no puede ser vista como una propuesta aislada, pero sí como parte de una ventura que buscaba el canto además del cuento. En la que la narrativa osara despojarse de su hilo retórico, redimensionada a partir de un reconocimiento de sus raíces. Así, tenemos antes el contar rehecho en el cantar en José Antonio Ramos Sucre, en José María Eguren, en Jorge Luis Borges, en el poco recordado Vicente Huidobro de Temblor de cielo (1931), tanto como enseguida en Lezama Lima, en Humberto Díaz-Casanueva, en César Moro. Pero digo antes y temo que se establezca una confusión. Si invité a los poetas aquí presentes, no lo hice sino basado en una (¿desatinada?) condición: todos nacieron en la primera década del menguante siglo y concentran marcadamente en los años 30 la publicación de los libros que definirían sus poéticas. Esta es la década en que surgen Vigilia por dentro (Humberto Díaz-Casanueva), Biografía para uso de los pájaros (Jorge Carrera Andrade), Muerte de Narciso (José Lezama Lima), El sonámbulo (Luis Cardoza y Aragón), Nostalgia de la muerte (Xavier Villaurrutia), Muerte sin fin (José Gorostiza), Poesía (Rosamel del Valle), Biografía de un silencio (Manuel del Cabral) y Tempestad secreta (Alfredo Gangotena). De esta misma década data la escritura de los poemas de César Moro, que sólo serían recogidos en libro en 1987 (13). Los años 30, en verdad, sugieren una admirable confluencia de voces de dos generaciones, pues allí también se da la publicación de Espantapájaros (Oliverio Girondo), Altazor (Vicente Huidobro), Poemas humanos (César Vallejo), entre otros. Se produce entonces una mezcla, tanto cronológica como estética. DÍAZ-CASANUEVA Creo que el problema generacional -de cuya importancia no prescindo- nos puede llevar a clasificaciones arbitrarias, a confundir lo coetáneo con lo generacional, y a sobreestimar lo cronológico en el surgimiento o en la terminación de un grupo de poetas en el tiempo o en el espacio. Otros, le dan importancia al factor geográfico: poetas del sur, del norte. Lo peor es que la perspectiva generacional lleva implícita la idea de que existe un progreso en las artes y en la literatura, en línea recta, y que cada generación es una etapa que supera a la anterior, tiene que rebelarse contra ésta y aportar algo fresco, nuevo. (14) Concluyamos la ambientación en que se ubican los invitados, anotando que aquellos que extrapolan los límites de los años 30 lo hacen por muy poco, por ejemplo: Onda (1929) de Rogelio Sinán; Las cosas y el delirio (1941), de Enrique Molina, y Le chateau de grisou (1943), de César Moro. Más distanciado en términos de publicaciones, se halla el argentino Aldo Pellegrini, que sólo en 1949 se estrenaría con El muro secreto, aunque no debemos olvidar su actividad en los años 30 como principal difusor en su país del ideario surrealista. Además de ellos, otros poetas podrían ser mencionados; por ejemplo, los mexicanos Salvador Novo y Gilberto Owen, el ecuatoriano Hugo Mayo, los colombianos Luis Vidales y Aurelio Arturo, el peruano Carlos Oquendo de Amat, el costarricense Isaac Felipe Azofeifa, los cubanos Eugenio Florit y Emilio Ballagas, el uruguayo Juan Cunha, el chileno Pablo Neruda y el nicaragüense José Coronel Urtecho, todos vinculados de una o de otra forma a aquella estación de la vanguardia. Dos son los aspectos que saltan a la vista cuando nos encontramos delante de todos esos nombres: no constituyen una generación en cualesquiera que sean los moldes requeridos, al mismo tiempo que nos asusta que sean, si no del todo desconocidos, sólo o al menos ligeramente comentados. Se puede afirmar el paso y mencionar una cierta desatención en la lectura de esos poetas. Desatención descripta por un torcer la nariz en lo que respecta a la dificultad de situarlos conjuntamente como una generación, un grupo, un concentración estilística, etc. Pero una desatención igualmente propiciada por una cierta fanfarronería de parte de Octavio Paz, al desvirtuar el radio de acción de esa lista de poetas -anulando la presencia de unos, confundiendo la importancia de otros-, de modo de favorecer intereses personales que lo llevarían a establecer un puente entre la vanguardia desatada por Huidobro, Vallejo, etc., y su reconfiguración definitiva a partir de la generación del propio poeta mexicano, aunque no recuerde nunca la real dimensión de ese nuevo ciclo generacional, que incluiría a poetas tan esenciales como el peruano Emilio Adolfo Westphalen (1911), el venezolano Vicente Gerbassi (1913-1992), el chileno Gonzalo Rojas (1917) y el argentino Alberto Girri (1919-1991). Por medio de libros que alcanzaron gran repercusión -Las peras del olmo (1971), Puertas al campo (1972) y Los hijos del limo (1974)-, Octavio Paz se esmera en presentar, a lo sumo en la índole de una dispersión, lo que antes se desenvolvía -a despecho de su opinióncomo la afirmación de un carácter privilegiado de la poesía hispanoamericana: su fructífera insubordinación ante los dictámenes escolásticos, su enriquecimiento a partir de los errores del modernismo, la liberación de todos los preconceptos; en fin, la búsqueda de la fundación de un mapa que se caracterizara por la multiplicidad de huellas que no tenían necesariamente que conducir a un lugar común. Para eso, aun habría que recurrir a las más variadas estrategias, una aventura que no eludiese el riesgo de ser tomada como dispersión, base -insisto- del ardid de Octavio Paz. Me referí también a otras desorientaciones críticas, y aquí cabría mencionar una idea defendida por el argentino Saúl Yurkievich al restringir a siete poetas de distintas promociones generacionales la condición siempre cuestionable, cuando menos por precipitación catalogadorade “fundadores de la nueva poesía latinoamericana”, llegando al máximo de excluir de su entendimiento de lo que sea América Latina, a los poetas brasileños (15). Al embarullamiento de ideas de Yurkievich, se suman duros compendios académicos que tantean en lo oscuro a la búsqueda de una definición en torno al elástico periodo de las vanguardias, olvidándose siempre de que no se podría jamás entenderlo si está subordinado al escenario de articulaciones estéticas de la vanguardia europea. No se trataba de una complicidad, sino primeramente de un desdoblamiento, en muchos casos de una ruptura. Así es que Paz se mantiene intencionalmente ciego al orfeísmo rebosante en Rosamel del Valle, al fulgor romántico redimensionado en Alfredo Gangotena y al corrosivo humor en Martín Adán, valiendo lo mismo para la dimensión onírica y desgarradora en César Moro, el fervor metafísico en Humberto Díaz-Casanueva y la laboriosa tesitura metafórica en Luis Cardoza y Aragón. Al considerar los años 30 como un lapso entre lo que él denomina una “vanguardia académica” y “una vanguardia otra, crítica de sí misma y rebelión solitaria”, Paz recurre a una grosera simplificación que no permite otro entendimiento que el de su voluntaria deformación de un paisaje histórico. No creo que constituya una impertinencia mía agregar a este nuestro encuentro un lúcido abordaje del crítico español Jorge Rodríguez Padrón, al referirse a la defensa de Paz en lo concerniente a su propia generación: Octavio Paz dice: no invención, exploración en “esa zona donde confluyen lo interior y lo exterior: la zona del lenguaje”. Quienes hacia 1945 regresan a la vanguardia, pero a “una vanguardia silenciosa, secreta, desengañada”, en un salto injustificable, no se hallan movidos -sigue Octavio Paz- por una preocupación estética; para ellos, “el lenguaje era contradictoriamente, un destino y una elección. Algo dado y algo que hacemos. Algo que nos hace.” Bien. Pero los poetas de ese otro período que él elude, no sólo se adelantaron a ese cambio, afirman y despliegan también una actitud estética que no hace abstracción, en modo alguno, de la evidencia del lenguaje como hombre, del lenguaje como mundo. Porque, se no, cómo explicar que el reto, para casi todos, sea la asunción de una prosa que penetra al espacio de la poesía, agitándola con sus ritmos (una prosa que nada cuenta, que prolonga y desarrolla el misterio propio de la poesía) e, en paralelo sentido, el cultivo del poema largo como forma de abordar, desde la configuración temporal del verso, la dimensión de ese espacio inédito: canto, sin duda, pero desplegado como visión, como población espacial. (16) También se podría añadir la opinión del poeta costarricense Carlos Francisco Monge, lúcido e igualmente objetivo observador de los desarrollos poéticos en América hispánica, al moderarse la presencia del surrealismo en tal ámbito: La experiencia surrealista fue lo mejor que nos dejaron los movimientos históricos de vanguardia. Sus raíces culturales son tan extensas, y sus fundamentos estético-ideológicos tan vigorosos, que no podía haber sido de otro modo. Pero, además, el surrealismo superó con mucho los años de la moda vanguardista. Por eso, no me parece exacto (y creo que ni justo) hablar de una herencia tardía en la poesía hispanoamericana. Todo lo contrario: constituyó un verdadero caldo nutricio que transformó y renovó el panorama poético, desde la década misma de 1930; basta releer las Residencias de Neruda, o a Lezama Lima, la poesía de los mexicanos Gorostiza o Villaurrutia, las novelas de Asturias o Carpentier. (17) Si recurro a estas dos declaraciones, lo hago por lo que concentran en sí en términos de características esenciales de esa poesía que aquí nos interesa desentrañar; o sea, su opción -acentuada, aunque no única- por la prosa poética, el redimensionamiento del epos; y el diálogo enriquecedor con el surrealismo, identificación y no sumisión, enlace donde es imprescindible mantener la identidad. Ahí se verifica lo que Lezama Lima sitúa como la creación de “una nueva causalidad de la resurrección”. (18) Y justamente en función de eso es que Rodríguez Padrón destaca todavía la relación con la muerte, aquí entendida dentro de un concepto defendido por el filósofo Eugenio Trías; es decir, como “la gran prueba de la ética fronteriza”. (19) Esa relación fronteriza, como destaca Rodríguez Padrón, la encontramos en Xavier Villaurrutia (Nostalgia de la muerte) y en Lezama Lima (Muerte de Narciso), aunque la seguimos encontrando también en autores menos difundidos; por ejemplo, el ecuatoriano Alfredo Gangotena y el chileno Rosamel del Valle. En ambos impera una desbordante lírica órfica, con osado acento trágico en Gangotena. Pasión desmedida por la ruptura; sin embargo, nunca desaparecida de su fe en la revelación de un cuerpo otro, una forma otra rehecha y vibrante. “Las puertas devoradoras” que Orfeo busca cruzar en su viaje por las tinieblas (“el descenso por vertientes de fuego”), (20) definen la metáfora asombrosa e inquietante de Rosamel del Valle. El espíritu torrencial fermenta asimismo en las imágenes de la poesía de Gangotena: Mi canto se unifica en la abrupta de las piedras que miden el abismo; canto de una luminosa madrugada a los bordes pomposos del ramaje … […] Toda mi gracia reside en el adiós. (21) Obra densa, en ambos casos, con su aturdidora fluidez metafórica. Si hay una “fértil alegoría esencial del onirismo” (22) en Rosamel, en Gangotena se verifica la expresión radical de un tormento interior. Tal vez provenga de ahí el epíteto de “enigmática” dado a la poesía del ecuatoriano. Importa, no obstante, no apartarse de una razón: en la obra de los dos radica el mismo sentido de ruptura que seguimos rastreando. En 1924, Luis Cardoza y Aragón publica en París Luna Park, libro escrito en Berlín en la misma época. Aunque la crítica lo sitúe con excesiva comodidad en un cosmopolitismo que identificaba a muchos autores europeos en aquel escenario de entre guerras, no veo en esta poesía señales de deslumbramiento frente al fulgor tecnológico o aun de derrota de la humanidad delante del conflicto bélico. El poema está acompañado por un hilo de vida, una defensa crítica de las posibilidades reales del hombre, una fe incorruptible en la existencia humana. La “desconstrucción irónica” (23) a que se refiere Rodríguez Padrón acerca de La casa de cartón, de Adán, también se aplica al siguiente libro de Cardoza y Aragón, Mäelstrom (1926), en el que pone a bailar prosa y verso en un ritual de mutua masticación. Postura crítica en relación con una limitación genérica. Expansión, no de espectáculo de la creación, pero sí de sus posibilidades de desentrañar la esencia poética de cada situación. Busca no exactamente anular o acentuar los contrastes; por el contrario, afirmar un posible diálogo entre fuerzas complementarias. Relación intrínseca entre vida y muerte, como en El sonámbulo. ¡ Oh! Frío, lúcido fuego, llama de agua, flamígero insomnio de la vida, integras tú conmigo un dos impar en esa sed de muerte tan continua. (24) O aun en una imagen más adelante: “la noche diurna, cerrada y sin tinieblas”. O todavía: “por la muerte voy, voy perteneciéndome” (25). No la noción usual de la figura del conquistador, al contrario, una idea de la conquista basada en el diálogo. No se trata de cortar el nudo gordiano, pero sí de desatarlo. He aquí el punto clave en la desvirtuada o incomprendida lectura de la poesía hispanoamericana: supo desatar el nudo. Riesgo innombrable, necesario. Allá atrás hay fundamentos ingeniosos, tanto en la creación de personae en el colombiano León de Greiff (1895-1976), cuanto en la anulación del verso en la poética del venezolano José Antonio Ramos Sucre (18901930). Bajo este aspecto me parecen más fundadores de la modernidad que los argumentos resbalosos de Saúl Yurkievich en relación con Neruda o Girondo. El chileno siempre fue un cazador de modas literarias, mientras que el argentino radicalizó su aventura con el lenguaje ya muy posteriormente a otras incidencias poéticas. Si no lo vuelve menor, tampoco lo ubica en condición fundacional. Era tan consciente de la importancia de una actividad publicitaria en cuanto a León de Greiff, con la diferencia de que Buenos Aires disponía de un canal de comunicación con el mundo, mientras que Bogotá mal dialogaba consigo misma. La indefectible acción de los polos culturales sobre la importancia estética de una obra literaria es siempre un generador de traumas, de pesadillas históricas. Otro libro visto como inaugural en la vanguardia de su país es Onda, del panameño Rogelio Sinán. El poeta hablaba allí de un “sueño no apercibido / pero siempre constante / como el mar, como el río…” Se trataba del tránsito entre la sumisión a lo meramente casual y la conciencia exigida por un rumbo a desentrañar. Sinán no es tan claro en su metáfora como Cardoza y Aragón, aunque nos permite comprender la sustancia de su perplejidad frente a la vida. No dejan de ser profundamente irónicos los versos con que inicia su poema “Transparencia del hombre”: “Porque olvido mis sueños y mi sombra / soy un hombre desnudo, transparente.” (26) La abstracción carece de asombro, de un magma congestionado que irradie imágenes turbias que deberán ser definidas a partir de un estremecimiento de fuerzas. El automatismo psíquico defendido por Breton posee un vínculo indisoluble con ese vislumbre de lo insólito que deberá propiciar un conocimiento más amplio de las fuerzas dispares y complementarias que rigen la existencia. Abordarlo como interruptor de lo caótico o de lo hermético es, por lo menos, irresponsable. Basta pensar en la voracidad de imágenes reveladoras que encontramos en la poesía de César Moro. No hay allí propiamente caos o hermetismo, a menos como entendidos en una limitación terminológica. Sus “serpientes de reloj” nunca pierden contacto con el “retrato de mi madre”; confluyen antes -“vestigios de alta arqueología”- en el camino de “un equilibrio pasajero de dos trenes que chocan” (27). Un descarrilamiento de conceptos, un choque entre dos mundos. No un desafío, por el contrario: la sutil carpintería de una mesa que permitiese el diálogo. La expresión del contraste está en el origen del asombro, el vértigo; o sea, es la raíz del desarrollo de cualquier actividad humana. Claro que no se trata de una ascendencia dionisiaca sobre un circunscrito reinado de Apolo. Díaz-Casanueva ya se refirió a una acción ofuscadora de los “poderes dionisiacos”. No hay cómo oscurecer la explosión de las fuerzas conjuntivas y disyuntivas que rigen la poesía. En el chileno hallamos la misma corriente obsesión: la poesía en debate con el poema. La margen derecha del verso empieza a perder terreno, superada por un caudal voluptuoso, una “vigilia por dentro” que busca ubicar su “realidad” entre dos mundos. Países violentos: prosa y verso. Cultivan sombras sin cuerpo, espejos ciegos. El acento metafísico siempre se mueve en el camino de un brillo conquistado a partir de las disimilitudes aparentes de la vida. Es lo que su poesía nos revela. Avanzar de una margen a otra del curso de la existencia, revelando sus arraigadas confluencias, fue también norma existencial en la poesía de los argentinos Aldo Pellegrini y Enrique Molina, naturalmente que con las peculiaridades que dan sentido a una obra poética. Guillermo Sucre llama la atención sobre el hecho de que “el viaje de Molina es exilio y rebelión simultánea” (28). Se acrecienta aquí el testimonio de Pellegrini: PELLEGRINI La poesía es una mística de la realidad. El poeta busca en la palabra no un modo de expresarse sino un modo de participar en la realidad misma. Recurre a la palabra, pero busca en ella su valor originario, la magia del momento de la creación del verbo, momento en que no era un signo, sino parte de la realidad misma. El poeta mediante el verbo no expresa la realidad, sino que participa de ella. (29) Aunque la poesía moderna haya puesto en escena la discusión sobre sí misma -en algunos momentos sin ir más allá de una admiradora trastornada por sus propios actos verbales-, el hombre sigue siendo su gran tema, por el simple hecho de que la “relojería intelectual” (30) seduce apenas al vanidoso ego, no permitiendo el despliegue de las innumerables posibilidades de expresión y participación del potens poético en nuestra vida. La arquitectura verbal es exigencia mínima de toda gran poesía. Molina y Pellegrini defendieron eso durante su vida entera. La misma idea encontramos en César Moro, aunque tomemos en cuenta los juegos lingüísticos que lo sedujeran en sus últimos poemas. Desde los textos iniciales, Moro invocó la presencia del amor, encarnando su “sombra cantante”, el “parpadeante esplendor”, así como las imágenes sangrientas, extasiadas, de su celebración y caída. La voracidad de sus abordajes ocasiona, según Emilio Adolfo Westphalen, la sospecha de “que para Moro lo ideal sería que los amantes se devorasen mutuamente” (31). El conflicto amoroso es -no hay cómo soslayar que toda relación humana es conflictiva de raíz, independiente de aquello en que se convierta-, por lo tanto, el aspecto central de la poesía de César Moro. Y lo trataba con notable vehemencia, con un fervor que no disfrazaba siquiera la exageración. Estremecimiento surrealista alcanzado en sus vivencias de París, aunque no un surrealismo canónico con el que se sintió identificado inicialmente. Potencia surrealista latente en su propio ser, desatada en París, confirmada en su regreso al Nuevo Mundo (México y Perú), retorno a los orígenes. Surrealismo esencial que encontramos también en la poesía de Xavier Villaurrutia o de José Gorostiza, al igual que en Manuel del Cabral o en Jorge Carrera Andrade. De la irreductible y desbordante melancolía en Villaurrutia a los temblores metafísicos de Cabral -donde se entrevé una severa ironía-, o del lirismo arrebatador en Carrera Andrade a la investigación luminosa de los gemidos del lenguaje poético en Gorostiza: una múltiple huella afirmada en la diferencia. Entrelazamiento de experiencias, trazos perceptibles de confluencia ya anotados aquí -, algunos raros encuentros para una charla feliz en torno a la poesía. A contramano, en las relaciones extraviadas entre una margen y otra del Atlántico, el vicio académico de clasificación de la historia, la charlatanería de Octavio Paz: mezcla de redundante provincianismo y ausencia de visión crítica en la apreciación de aspectos más ligados a la vida -sea el homosexualismo o la filiación surrealista- que a su propia obra, entre otros aspectos menores. La condición que ahora se presenta ante una lectura crítica de la obra de César Moro, permite finalmente que no se deje escapar lo imprescindible: traer a la mesa los mapas secretos de la aventura poética de la América hispana en los años 30. Que el azar nos haya traído a esta mesa imaginaria justamente a partir de Moro, no es sino una señal de su inconfundible pasión por la verdad. Intencionalmente, traté menos de él que de sus coetáneos, y lo hice por evidentes necesidades. En un momento cercano, cuando se ensanche el filamento de luz aquí lanzado, ciertamente se percibirá que la importancia de esa poesía no se limita a un rastrillo de la vanguardia; así como se comprenderá que en su aparente dispersión se ocultaba la carta fundacional de una aventura límite en la poesía hispanoamericana, basada en un principio de diferencia que encontraba en el mestizaje - se encuentra todavía, aunque bastante disimulado - su raíz sagrada: magma hirviente y selva vertiginosa que buscan puntos de convergencia sin erradicar la pasión por su contradicción igualmente reveladora. NOTAS 1. Sinán, Rogelio. Conferencia pronunciada el 16 de julio de 1969, con ocasión de las conmemoraciones, en Panamá, de la publicación de su primer libro, Onda (1929). El texto sufrió posteriormente una adaptación para su inclusión en la edición especial de la revista Maga # 5-6 (Panamá, junio de 1985), dedicada por completo al poeta panameño. 2. Díaz-Casanueva, Humberto. Manuscrito recogido por Ana María del Re, forma parte de la edición de su Obra poética, Biblioteca Ayacucho, Caracas, 1988. 3. Díaz-Casanueva, Humberto. Conferencia pronunciada el 24 de enero de 1985, en el Ateneo de Madrid. 4. Caminero, Alberto. “Manuel del Cabral dice que morirá con pesar de ser ignorado en su patria”, El Nacional, Santo Domingo, 02/08/94. 5. Lezama Lima, José. Carta a su hermana Elisa, fechada en febrero de 1962. 6. Pellegrini, Aldo. Conferencia pronunciada el 18 de mayo de 1952 en el Institut Français d'Etudes Supérieures; incluida posteriormente en Para contribuir a la confusión general, Editorial Leviatán, Buenos Aires, 1987. 7. Moro, César. Fragmento fechado en “Enero 1953”, de Alfabeto de las actitudes. 8. Lezama Lima, José. Fragmento de la introducción a su Esferaimagen, Tusquets Editor, Barcelona, 1970. 9. Carrera Andrade, Jorge. Carta a Rodrigo Pesántez Rodas, fechada el 28 de junio de 1969. Documento cedido por el destinatario. 10. Ginsberg le dedicó un poema en su Reality Sandwiches, City Lights Books, San Francisco, 1963. 11. Sologuren, Javier. “Martín Adán. La primacía de un signo”, La imagen, Lima, 09/01/77. 12. Pellegrini, Aldo. Catálogo de una exposición de Arte destructiva, realizada en la Galería Lirolay, Buenos Aires, noviembre de 1961. Post. op. cit.. 13. Moro, César. Ces poémes… Ediciones La Misma, Libros Maina, Madrid, 1987. 14. Espinoza, Blanca. “Un riesgo, una fuerza, un sueño decisivo”, entrevista a Humberto Díaz-Casanueva, Lar # 8-9, Concepción, mayo de 1986. 15. Yurkievich, Saúl. Fundadores de la nueva poesía latinoamericana, Editorial Ariel, Barcelona, 1984. El epíteto fundador se aplica a los poetas elegidos -Vallejo, Huidobro, Borges, Girondo, Neruda, Paz, Lezama Lima- por tratarse, según el autor, de “centros radiantes”. 16. Rodríguez Padrón, Jorge. Fragmento de “Octavio Paz: lectura de la poesía hispanoamericana de los años treinta”, versión actualizada de la conferencia pronunciada en Sevilla en abril de 1999. Documento inédito, cedido por el autor. 17. Monge, Carlos Francisco. “Diálogo sobre algunas huellas esenciales”, entrevista concedida a Floriano Martins, mayo de 1999. Texto inédito. 18. Bianchi Ross, Ciro. Entrevista a José Lezama Lima, revista Quimera, s/f. 19. Rodríguez Padrón, Jorge,. Op.. cit.. 20. Pasajes del poema-libro Orfeo (1944). 21. Pasaje del poema “A la sombra de las secoyas”, del libro Tempestad secreta. 22. Orellana Espinoza, Manuel. “Presencia de Rosamel del Valle”, La época # 214, Santiago, 17/05/92. 23. Rodríguez Padrón, Jorge. Op. cit. 24. Pasaje del poema-libro El sonámbulo (1937), dedicado a Xavier Villaurrutia. 25. Pasajes del poema “Nocturno del sonámbulo”, de Venus y tumba (1940). 26. Poema incluido en Saloma sin salomar (1969). 27. Pasajes del poema “Visión de pianos apolillados cayendo en ruinas”, de La tortuga ecuestre 1955). 28. Sucre, Guillermo. La máscara, la transparencia, Monte Avila, Caracas, 1975. 29. Pellegrini, Aldo. “Se llama poesía todo aquello que cierra la puerta a los imbéciles”, Poesía=Poesía # 9, Buenos Aires, agosto de 1961, post. op. cit. 30. “Personalmente, pese a Poe, no me seduce la imagen del poeta en su taller de relojería intelectual. El azar también toma parte en el poema.” Fragmento de la entrevista de Oscar Hermes Villordo a Enrique Molina, La Nación, Buenos Aires, 1980. 31. Westphalen, Emilio Adolfo. “Digresión sobre surrealismo y sobre César Moro entre los surrealistas”, conferencia pronunciada el 5 de julio de 1990 en la Pontificia Universidad Católica del Perú. revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Encontro textual com Maria Esther Maciel: a poesia "por um Triz" Rodrigo Guimarães . A poesia que vem se destacando nas últimas décadas no território latino-americano aloja-se sob o traço da diversidade. No Brasil, com seu vasto território e diversificadas paisagens literárias, a pluralização dos possíveis na esfera da criação evoca centros escriturais e zonas de indeterminação extremamente amplos e de difícil circunscrição. Escrituras da memória, do corpo, da indeterminação, do sujeito cindido são apenas algumas das etiquetas repertoriadas por muitos críticos que já não conseguem mais aferir seus instrumentos quando esses se encontram diante de escrituras híbridas que desbordam os sistemas categoriais. Os procedimentos conceituais de especificação do poético devem ser construídos com dispositivos que não envelopam o texto, preservando a pulsação e a volubilidade da respiração que singulariza a escritura de cada poeta. É a partir desse não-lugar, de um domínio escritural único que o poético se dar a ver, principalmente, como nos lembra Gautier, ao utilizar a paleta provida das cores necessárias para pintar o “instante” em que nos encontramos. São essas pinceladas “enraizadas em sombras” que a poesia de Maria Esther Maciel nos proporciona ao conceder as “horas da vida que a gente se sente vivendo melhor”. A escrita de Esther Maciel é ampla, reflexiva e concisa. Deambula entre a vertigem e a lucidez, entre a emoção (e não evocação sentimental) e a disciplina com a linguagem. É sobre esse “equilíbrio instável”, como diz a poeta, que sua voz escreve as linhas de fuga. Maria Esther Maciel é professora de Teoria da Literária e Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nos campos da poesia, do ensaio e da ficção, publicou: Dos Haveres do Corpo (poesia, 1985), As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Octavio Paz (ensaio, 1995); Borges em dez textos (ensaios, 1998); A dupla chama: amor e erotismo em Octavio Paz (ensaio, 1998); Triz (poesia, 1999); Vôo Transverso: poesia, modernidade e fim do século XX (coletânea de ensaios, 1999); A palavra inquieta: homenagem a Octavio Paz (organizadora, 1999); Laís Corrêa de Araújo (ensaio, 2002); O livro de Zenóbia (ficção, 2004); A memória das coisas (ensaios, 2004). Tem artigos veiculados em revistas do Brasil, Argentina, Chile, Dinamarca, Estados Unidos, Inglaterra, Escócia, México e Espanha. A “conversa” que se segue deu-se por e-mail, no ano da “serpente” de fogo. [RG] RG Lembro-me de Derrida quando ele dizia que “todo mundo escreve com duas mãos”. O filósofo francês fazia referência, nessa passagem, à psicanálise. Se, em um dos pólos do sistema binário há uma instância que censura, reduz ou tenta controlar o que deve ser escrito e seus efeitos de legibilidade, no outro pólo há aquilo que vaza, que foge ao controle do escritor e aparece em cena, sobretudo mediante uma leitura capaz de desfazer o que foi anulado ou recalcado. Particularmente, penso que todo escritor escreve com muitas mãos e a escrita poética é uma máquina produtiva que sobrevive ao seu “autor”, age independentemente do Pai, ou, ainda, assassina o pai e abre uma ferida na unicidade do discurso monológico. Essa condição de bastardia da escrita desnaturaliza a esfera de enunciação. Diferentemente da fala, circunscrita por um sujeito-lugar-data historicamente demarcável (mesmo que parcialmente, por contextos insuficientes), a escrita, sobretudo a “poética”, não tem lugar; ela se sustenta rasurando a si mesma, promove seu próprio apagamento, pois não se submete a certos domínios do saber que mobíliam fendas e intervalos com fórmulas interpretatvas e vertebração do sentido. É diante desse campo de difícil demarcação que faço a minha indagação: Quando o seu primeiro livro de poesia foi editado, Dos Haveres do Corpo, você estava com apenas 21 anos. É surpreendente o efeito estético que você alcançou com esses poemas de juventude, em que comparecem imagens poéticas cuidadosamente trabalhadas. No entanto, observo, em alguns poemas dessa obra, uma concepção pouco dinâmica ao lidar com o objeto poético. É o caso, a meu ver, da abertura do poema intitulado “Conceito”, que diz: “Teu corpo: / um porto / que eterniza / meus navios ”. Já em seu segundo livro, Triz, que você publicou após um intervalo de quatorze anos, deparo com poemas de habilidade consumada, não só no manejo com a linguagem e no esmero da construção textual, mas também na forma extremamente concentrada e na densidade das reflexões. Você considera que houve um salto inquestionável do primeiro para o segundo livro ou foi apenas um desdobramento do que já se anunciava em Dos Haveres do Corpo? MEM Creio que, com Dos Haveres do Corpo, inaugurei uma dicção que, ao longo dos anos, foi adquirindo contornos mais definidos. A concisão, o apreço ao ritmo, o exercício de uma subjetividade transversa, que ora se expõe em demasia, ora se oculta nas dobras da linguagem, tudo isso já se dá a ver - de certa forma - nos poemas de meu primeiro livro. Mas o que neles se impõe mais explicitamente é a inquietude própria de uma jovem entre seus 18 e 21 anos, com seus assombros e perplexidades diante de tudo. O objeto poético, para mim, naquele momento, ainda era algo sem nome, impreciso. Talvez, por isso, eu tinha algumas hesitações quanto à melhor maneira de dizer o que eu queria. Dos haveres do corpo tende ao erótico e ao elegíaco; nele busco figurar (ou transfigurar) minhas primeiras experiências nos campos do amor, da morte e da perda. Na época em que o publiquei, eu estava deslumbrada com a obra de Roland Barthes e tomei alguns excertos dos Fragmentos do discursos amoroso como referências medulares para a organização de meu livro. Mas sei que o que mais atravessava aquela minha escrita de juventude era um impulso, uma espontaneidade ainda não lapidada. Com o Triz, desvencilhei-me um pouco desses arroubos, passei a buscar uma maior lucidez no trato das palavras. RG Não poucas vezes, leio com a tesoura na mão, como o guardaflorestal do qual fala Céline. Corto o que me desagrada, desmonto as peças, desfiguro os poemas. Outras vezes, faço colagens, reaproprio imagens poéticas e sintaxes incomuns. Mas diante de Triz e da “lucidez” que você alcançou “no trato das palavras”, coloquei a tesoura de lado. Como fragmentar um texto que diz e mostra “a desordem exata de um dizer sem sobras?” Como deslocar as margens do poema “Ofício” que escreve “a água da palavra mar [...] o oco da palavra nada”? Como mutilar uma escritura que desliza para fora da página? Os poemas de Triz não buscam persuadir ou dissuadir o leitor; não há artifício retórico nessa escritura que se enuncia, com freqüência, do lugar do desvio. Daí os posicionamentos acertados de muitos críticos que observaram em Triz a construção de um sentido que “se desloca para o limite, de onde o abismo do absurdo contempla o leitor” (Fábio Lucas), ou ainda, um ritmo que flui “entre as ruínas e o possível” (Donaldo Schüler). Já Lúcia Castelo Branco identificou um movimento textual que “busca, na graça do esquecimento, a felicidade da desmemória”. Quer a absurdidade de um olhar que atinge o leitor, quer o ritmo descarrilado que desloca melodias rímicas rotinizadas e previsíveis, quer a dessacralização da memória como instância legitimadora do eu e do conhecimento, o que todos os autores sinalizaram, com precisão, é que na poética de Maria Esther Maciel a “palavra” se encontra por um triz. Mas não se trata, como teoriza Deleuze, de um conjunto de singularidades soltas, pequenos acontecimentos descarnados do eu ou de qualquer ponta circunstânciada na história. Parafraseando Proust, eu diria que os poemas de Triz compõem um grande cemitério em que sobre muitos túmulos não se podem ler mais os nomes apagados. Mas há nomes legíveis, eus que você confecciona, ou ficciona, como artifícios de construção textual, assim como fizeram Fernando Pessoa e Jorge Luiz Borges, cada qual à sua maneira. Você poderia dizer um pouco sobre o exercício de subjetividade e de pluralidade em sua poética e como essas diferentes vozes comparecem em seus poemas? Ou ainda, como você “hospeda” os fantasmas, as recorrências que insistem em assombrar os “pequenos viventes” ao mesmo tempo em que participam da “heresia” em criar vida? MEM Como diz João Cabral, “tanta lucidez dá vertigem”. Talvez, por isso, o absurdo, a sedução do abismo e o “ritmo descarrilado” acabam por vir à superfície de meus poemas, mas contidos por uma palavra, um mínimo gesto do dizer que, por sua vez, está sempre por um triz. Bastaria um sismo, um pequeno tremor da lingugem, para que essa poesia entrasse na ordem (ou desordem) da vertigem. Quanto ao exercício da subjetividade, creio que o “eu” que se encena em meus textos define-se, sobretudo, pelo paradoxo. Ele está e não está ao mesmo tempo. E, quando está, afirma-se em estado de “outridade”, numa oblíqua remissão aos outros (ou às outras) que me constituem. Nesse sentido, sinto-me muito pessoana. Aliás, Fernando Pessoa ensinou-me que dizer “eu” é inventar uma persona que pode coincidir ou não com a imagem que crio de mim mesma. Jorge Luis Borges, por sua vez, faz-se presente mais na minha prosa ensaística e ficcional do que propriamente na minha poesia, embora seus jogos de identidades postiças se façam ver em alguns de meus poemas, como os da última parte do livro Triz ou, mais especificamente, no poema “A princesa Ateh no espelho”. Um outro “vivente” (ou fantasma, como você diz) que habita minha poesia é Octavio Paz: a dicção paradoxal do isto e aquilo, o exercício de um erotismo pautado na sinestesia da linguagem, o tom elegíaco atravessado por uma contenção do trágico, tudo isso remete, de alguma maneira, à poética paziana. Essas vozes outras, porém, aparecem transversalmente em minha escrita, compondo um concerto (ou um mosaico) por subtração das referências óbvias ou explícitas. RG Como imagem “inversa” do dizer cabralino, eu diria que “tanta vertigem dá lucidez”. Não uma vertigem qualquer, mas aquela decorrente de um pensar em estado de dor (Nietzsche), ou a vertigem advinda de uma causalidade “mínima”, qual seja, a de escrever diante da ausência ou escrever a ausência. É justamente esse “nada para dizer”, ou o gesto de criar suas “próprias impossibilidades”, que impulsiona a atividade escritural de muitos pensadores, tais como Artaud, Blanchot e Deleuze, apenas para citar os mais conhecidos e que refletiram de maneira profícua sobre esse fazer poético que confere à escritura um relevo mais vivo. Um dos aspectos que me chamou a atenção em Triz é a maneira como comparece o nome do Pai que ocorre em um processo de subtração (ou suplementação) das “referências óbvias”. Diferentemente de Mallarmé, que escreveu sobre a morte de seu filho de forma quase acética, ou de Jacques Roubaud, que se refere à perda de sua esposa em um tom de elevada abstração, observo que alguns poemas de Triz, ao lidarem com a temática da ausência, retiram parte de sua força do solo fecundo em que o afeto se presentifica sem, contudo, ficar refém dos movimentos de catarse ou da emoção derramada. No poema “Do pai”, por exemplo, o leitor depara com “instantâneos” extraídos dos escritos de autores variados, seqüenciados em um fluxo caudaloso de imagens intensas e prismadas por diferentes matizes afetivos, mas refratários à urdidura de uma narrativa psicologizante ou às marcas mobilizadoras dos existencialismos de primeira hora. No entanto, há nesse poema uma sutil sondagem da existência que dignifica as investigações do humano, marco importante na literatura da atualidade, principalmente se considerarmos a abundância de textos desvitalizados produzidos nas últimas décadas pelos epígonos da psicanálise, e de Clarice Lispector (considerando as melhores hipóteses). O poema “Do coração do pai” é outro exemplo notável de uma resposta eficiente da escritura de Maria Esther Maciel, em que se vê um fazer criterioso sem que, para tanto, seja necessário exilar do texto poético a afetividade e os traços biográficos: DO CORAÇÃO DO PAI O coração do pai fala O coração do pai falha O coração do pai cala O coração do pai pára O coração do pai passa a limpo o coração da filha que fala por um fio. Deve-se ressaltar que esse poema é acompanhado por uma sessão visual em que são dispostas várias páginas de registros de eletrocardiogramas do pai da poeta antes de sua morte. Em uma entrevista concedida à revista Et cetera, Maria Esther Maciel relata: “Ao encontrar aquelas tiras de papel quadriculado, cheias de linhas sinuosas, vi que ali havia uma escrita, um ritmo.” Há, em alguns momentos de Triz, uma referência direta à imagem do pai ou ao “calar súbito”, ao “susto do coração”, como no poema “Réquiem para João”. Imagens que evocam elipses e eclipses também comparecem em alguns poemas: “a lua desliza / sob as sombras / do sol / que não há”. O próprio título do livro elide parte da locução adverbial de uso corrente “por um triz” que, segundo o verbete dicionarizado, quer dizer “por pouco, por um tudo-nada, por um fio”. E aqui me aproximo de uma questão fundamental: Como se encena, no percurso (des)contínuo de Triz, “o coração da filha” que, desvencilhado dos adereços existenciais, “fala por um fio” e constrói uma poética que valoriza “o silêncio dos chinelos sob a cama” ou a palavra “em que não estás”? MEM Você toca num ponto, a meu ver, medular de minha poesia: a encenação de um eclipse da linguagem na própria superfície do dizer. Tudo é um jogo de luz e sombras, em que o fulgor se insinua, mas é parcialmente obscurecido pela irrupção da elipse. Daí que tudo fique por um fio, inclusive “o coração da filha”, rarefeito pela dor da perda. O silêncio, as pausas súbitas, a suspensão do fôlego, tudo incide nessa rarefação. Mas algo, bastante concentrado (um lume, eu diria) permanece nesse fio, dando-lhe uma certa resistência intrínseca. E é isso, creio eu, que sustenta a voz, o coração, o verso e o poema, impedindo-os de sucumbir ao abismo. A linha do cardiograma tornase, assim, uma representação gráfica (ou mesmo uma metáfora) desse fio que, se no meu pai não resistiu, em mim resiste por intermédio da poesia. Escrever torna-se, assim, pôr-se no lugar da perda. Por outro lado, essa rarefação não prescinde, necessariamente, do apelo ao excesso. O poema-colagem em que reúno várias citações de poetas sobre o pai funciona como uma espécie de contraponto polifônico ao meu “dizer solo”. É um amparo e um eco (de certa forma, excessivos) à minha experiência. E é assim que busco exercitar o que você chama de sondagem da existência, do humano. Aliás, algo quase que totalmente obliterado na poesia contemporânea. RG Em um exercício de ludicidade associativa, evoco “a mesa” de Henri Michaux, suspensa por fios que possuem “certa resistência intrínseca”. São esses fios que sustentam o ajuntamento das coisas sobre a mesa, a primazia do “amontoado” sobre o ordenamento da luz do dia, o movimento transfigurador do “cada vez menos mesa” que a torna cada vez mais inapropriada para suas funções utilitárias. Eis a mesa. “Como segurá-la mentalmente?”, pergunta Deleuze. O leitor, com um pendor para perdas e sobreposições, pode identificar nesse fio tênue uma distribuição nomádica de doação de sentido, que nomeadamente responde ao “apelo do excesso”, como diz Esther Maciel. Pode-se assinalar também, em alguns poemas de Triz, o paroxismo que tensiona esse fio ao colocar em ação a conservação aliada à despesa, o “excesso” da perda e a proliferação do excesso: o que se diz está sempre por dizer, “por um triz”, porém, algo se diz. Embora compareçam elementos como o excesso, o desvio e o “acaso” na poética de Maria Esther, o artifício do “contrasenso” não responde ao propósito de violação das normas preexistentes, visão ainda comprometida com uma leitura estrutural (Raul Antelo). Existe, sim, uma sobredeterminação em que o “lúcido, o lúdico, o lírico, o úrico” obsedam o campo textual. No entanto, há em Triz uma linha de irredutível singularidade que parece sinalizar as zonas de fronteira, como se vê no poema “Noturnos para uma tarde de abril”: “ já que tudo, em seus limites / não é mais que um convite / ao absurdo.” O “convite ao absurdo” na escritura de Esther Maciel é sempre reiterado em novas bases. Na epígrafe de abertura de seu livro de ensaios A memória das coisas (2004), lê-se “Toda ordem é precisamente uma situação oscilante à beira do precipício” (Walter Benjamin). É como se o fluxo poético ficasse imantado quando se aproxima do abismo do não-sentido que, por sua vez, lhe possibilita flutuar sobre a palavra “do mundo”. Esse tipo muito peculiar de “levitação” permite às poéticas da desconstrução lerem o abismo e o mundo sem, contudo, correrem o risco de se abismarem ou mundificarem, assim como aconteceu com os textos dadaístas no começo do século XX ou com os poemas de temática “social” excessivamente referencializados no cenário sociopolítico brasileiro nas décadas de 1960 e 1970. Após o descolamento da escritura em relação a um tipo de compromisso milenar, evidenciado nos poemas épicos que tinham como função, dentre outras, “recolher o que não se deve esquecer”, percebe-se, como assinala Foucault, que a literatura “é extremamente jovem em uma linguagem bastante velha.” Essa linguagem incipiente recebeu importantes aportes de escritores como Jorge Luis Borges, James Joyce, João Guimarães Rosa e de pensadores como Jacques Derrida, Ludwig Wittgenstein, Gilles Deleuze, Maurice Blanchot e tantos outros que contribuíram de maneira ímpar para oxigenar as escrituras que ampliaram os acontecimentos literários das últimas décadas. Por isso, a importância de sustentar esse fio-gume que põe em ação outras texturas da palavra poética, alargando o inusual e os intinerários disponíveis, bem como amplificando as vozes desencorpadas de um dizer literário repisado, o que possibilita a dessacralização dos lugares culturais hierarquizados e o realinhamento constante da linguagem e da subjetividade. É a respeito desse fio à beira do sem-fundo do sentido que surge meu questionamento: Parece-me que você insinua ou segere ao leitor que considere o absurdo como uma das dimensões inalienáveis da palavra poética e da existência humana. Portanto, não identifico em seus poemas um convite a uma experiência “anartística”, ao desregramento absoluto em que a palavra de ordem é a transgressão irrestrita aos códigos estabelecidos, assim como se viu na “estética da ruptura”, típica dos programas vanguardistas que atravessaram a primeira metade do século XX. Em outras palavras, nunca se rompe o fio que sustenta a mesa de Henri Michaux, ou seja, o caos não se instala em sua escritura. Os momentos de dissonância “lógica”, com maior freqüência em Triz e menos presente em O livro de Zenóbia, transmitem a impressão de um cálculo meticuloso, fruto de uma “estratégia” para alcançar efeitos estéticos. No caso da voz da personagem Zenóbia, por exemplo, que transcorre em uma dicção narrativa e prosaica, há momentos que eclodem falas com tonalidades poético-filosóficas: “em cada ave vejo o teu vôo sumindo para fora da asa”, “quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas”. Ou, ainda, quando a narradora fala de seu gato: “Quando Bepo cruzou a rua, em frente à loja de queijos, a única coisa que ele não viu foi a bicicleta que o lançou para fora de seu próprio pêlo.” Fale um pouco sobre esses delírios. Se é que eles existem, como você constrói esse fio tanto em Triz quanto em O livro de Zenóbia? MEM A minha atração pela idéia do absurdo condiz com o apreço que sempre tive pelo que se desvia do lógico e do sensato. Mas também gosto da palavra “absurdo”, de seu som meio noturno, meio mudo (ou surdo?). Tanto, que ela é muito recorrente em meus escritos. Isso, porém, não coloca minha poesia nesse registro. Ou seja, o “absurdo”, para mim, está mais na ordem do que desejo ou oculto do que no que, efetivamente, realizo. Sabemos que a “tradição do absurdo” inscrevese principalmente no teatro, tendo em Beckett e Ionesco seus repreentantes mais ilustres e criativos. A escrita absurda seria uma não-escrita, um não-dizer, portanto encontra sua maior expressão no gesto, na desconstrução radical do logos, no poder desestabilizador do que não tem sentido. Meus textos não pertencem a essa tradição. Eles tampouco pertencem à chamada tradição da ruptura, de feição vanguardista. São outra coisa. Creio que, intrinsecamente, eles revelam sua potência absurda nas dobras e nos mínimos desvios da linguagem. Mas uma potência que não se materializa nunca na superfície. Como você bem observou, meus momentos de “dissonância lógica” advêm de um trabalho lúcido com a palavra, com as estruturas do dizer. Deflagram uma espécie de delírio consciente, mas que se coloca sempre por um triz. Em O livro de Zenóbia, por eu ter optado por contar histórias, ainda que incursionando no registro poético, a atenção ao narrativo, à ordenação sintática e ao elemento referencial foi necessária. Daí que as dissonâncias, nesse livro, não sejam tão intensas quanto as do Triz. Mas nas frestas, nas margens e nas dobras desse ato de narrar emerge sempre uma frase, uma cadeia sonora, um devaneio, o que acaba por desestabilizar o fluxo narrativo. Em O livro de Zenóbia busquei exercitar a poesia às margens do poema ou ao revés do poema. Colocá-la também na ordem do “por um triz”. Rodrigo Guimarães (Brasil, 1965). Poeta e ensaísta. Publicou Olhares (1998), Vestindo águas (2001), e Celacanto (2003). Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Ghérasim Luca em dois retratos Floriano Martins & Krzysztof Fijalkowski . 1. Caminhando com o espírito de Ghérasim Luca [Floriano Martins] O Suplemento Literário de Minas Gerais, em sua edição # 1.301 (Belo Horizonte, abril de 2007) publicou um artigo de Augusto de Campos intitulado “Ghérasim Luca, dessurrealista”. Sempre me causa boa impressão essa obsessão por negar o surrealismo, não por seus argumentos, quase que invariavelmente falsos, mas pelo que eles creditam de atuante incômodo que parece causar a muitos a persistência do surrealismo sobre todos os tradicionais ismos das vanguardas que caracterizaram o ambiente artístico no século XX. Persistência não no sentido ortodoxo de fidelidade doutrinária, mas em sua renovação, pois não deve interessar senão como objeto de crítica tomar o pulso das repetições e diluições de qualquer tendência artística. No caso particular deste artigo, mais do que a pressa em referir-se a Ghérasim Luca como “um ex- ou extrasurrealista”, o que se destaca como ato falho é a observação de que este poeta “parece melhor situado num contexto mais amplo, de Gertrude Stein e Joyce à poesia concreta”. Ora, mas desde quando, exceto por meia dúzia de slogans que se repetiram à exaustão, a poesia concreta pode ser entendida como exemplo de amplitude de algum contexto ou horizonte estético? Isto me recorda um outro artigo do mesmo autor quando, ao comentar sobre a Revista de Antropofagia, se apressa a dizer que seu correspondente em Paris era o “mau poeta” Benjamin Péret. Não me parece que se possa estabelecer um exemplo de antípodas de valor intrinsecamente estético entre a poesia de Péret e a de seu crítico. O texto de Campos possui outras tonalidades que lhe são comuns, como a auto-referência e o desconhecimento daquilo que critica, aspectos psicologicamente bem interligados. No entanto, o que se destaca é a maneira como intencionalmente recorta um componente da poética de Ghérasim Luca, eliminando tudo à volta, estabelecendo assim um novo contexto. Já havia feito isto anteriormente em relação ao estadunidense e. e. cummings. No quesito “autoreferência”, impossível não mencionar que a terça parte – e parte inicial – do artigo em questão trata de aspectos pessoais (sua magnanimidade no encontro com “um adversário figadal”: Oswaldino Marques, a indispensável referência aos amigos famosos, sempre um suporte eficaz em terra de cego), absolutamente dispensáveis para qualquer leitor minimamente culto. Quando enfim se decide a comentar algo acerca do poeta romeno, o crítico brasileiro dá algumas apressadas pinceladas em seu artigo que merecem aqui uma mínima correção. Antes, porém, trato de informar alguns dados básicos sobre Ghérasim Luca (Bucareste, 1913-Paris, 1994). Graças ao amigo Dolfi Trost (19161966), toma conhecimento da Psicanálise logo na adolescência. Em uma de suas primeiras viagens a Paris, em 1938, através do artista Víctor Brauner (19031966), conhece André Breton, com quem se identifica de imediato. De volta a Bucarest, ao lado de seus amigos poetas, Gellu Naum (1915-2001), Virgil Teodorescu (1909-1987) e Trost, funda o Grupo Surrealista da Romênia, em 1944 – nas palavras de Sarane Alexandrian, “o mais exuberante, mais empreendedor e inclusive o mais delirante do surrealismo internacional” (Le surréalisme et le rêve, 1974). O ensaísta Krzysztof Fijalkowski, um dos principais estudiosos da obra de Ghérasim Luca, chama a atenção para o ano seguinte, e sintetiza seu entendimento: Em 1945, o novo grupo aproveitou sem vacilação toda oportunidade para iniciar, de uma maneira frenética, sua atividade pública, editando uma extraordinária quantidade de textos e livros de conteúdo incendiário. Se iniciou, assim, um debate provocativo e em ocasiões violento sobre o sonho, o delírio, o amor, a morte e o acaso objetivo, tudo isto configurado dentro de um firme compromisso com o materialismo dialético, o fim da divisão de classes e a afirmação da liberdade fundamental do homem. É certo que muitos destes livros foram escritos durante os anos prévios de silêncio forçado, porém o fato de que o grupo não perdeu nem um ápice de seu ímpeto no que se refere a publicações, debates teóricos e exposições durante 1946 e 1947 (até que o regime stalinista tomou finalmente o poder, em dezembro de 1947), põe em evidência que o grupo se achava em pleno ardor. Em 1952, Ghérasim Luca se muda em definitivo para Paris, adotando o francês como idioma de criação, onde mantém firmemente sua relação com o surrealismo. Ali desenvolve investigações sobre a língua, experimentando seus inconfundíveis efeitos de gagueira, sem perder de vista o que seu tradutor espanhol, Eugenio de Castro, situa como “a exaltação do amor e do desejo mediante a superação do complexo de Édipo, pela via sacrílega”, e uma particularíssima leitura e prática do humor negro. No primeiro caso, a respeito do livro L’inventeur de l’amour, o próprio Luca menciona, em carta a Sarane Alexandrian: A invisível vida Edípica, ferozmente, porém exatamente descrita pelos sistemas (marxismo, freudismo, existencialismo, naturalismo…) deve ser loucamente superada por um salto formidável em uma espécie de vida na vida, de amor no amor, indescritível, indiscernível e irredutível à linguagem dos sistemas. Falo da vida e da morte não-edípicas, ou seja, da negação absoluta do cordão umbilical nostálgico e regressivo, fonte distante de nossa ambivalência e nossa infelicidade. (29/06/1947) Quanto ao segundo caso, a presença do humor negro se verifica em sua máxima voltagem e de forma jamais encontrada em outro poeta, no livro La mort morte, em que o poeta romeno relata cinco tentativas de suicídio, detalhadamente descritas em uma sucessão ininterrupta de cinco dias. Os métodos empregados são por estrangulamento, arma de fogo, arma branca, envenenamento e contenção da respiração. Seus críticos mais consistentes coincidem em que os relatos de Luca não se restringiam ao ambiente ficcional, considerando esta confrontação constante com a morte como uma experiência autêntica, ainda que mesclada com esta forma incisiva e refinada de humor negro. Este livro foi escrito em 1945. Em fevereiro de 1994, Luca escreve à sua mulher comunicando-lhe a decisão de atirar-se no rio Sena. Tudo leva a crer que esta foi sua última – e então bem sucedida – tentativa de suicídio. Não se sabe ao certo o dia de sua morte, pois o corpo somente foi localizado um mês depois do comunicado à esposa. Ghérasim Luca estréia em 1933, com um livro intitulado Roman de dragoste. Logo viriam outros, como Quantitativement aimée (1944), La vampir passif, avec une introduction sur l’objet objectivement offert (1945), Un lup v•zut printr-o lup•, Inventatorul iubirii (incluindo Parcurg imposibilul •i de Marea Moart•) – todos de 1945, ano em que também seriam publicados trabalhos em colaboração com o psicanalista Dolfi Trost: Dialectique de la Dialectique. Message adresee au movement surréaliste international, e Présentation de graphie colorée de cubomanie et d’objets, exposition, 7 janvier-28 janvier. Estes livros seriam posteriormente publicados em francês, e a esta bibliografia se acrescentam vários outros, dentre eles, Héros-Limite (1953), La Lettre (1960), Poésie élémentaire (1966), La Fin du monde (1969), Théâtre de Bouche (1984), Satyres et Satrape (1987), a uma edição póstuma, Le cri (1995). Em 2001 é editado um CD duplo, Ghérasim Luca par Ghérasim Luca, onde se escuta a voz deste poeta através de seus inúmeros recitais, cabendo aqui destacar o de 1969 (Museu de Arte Moderna, em Paris), 1973 (Instituto Franska, em Estocolmo), e 1984 (MOMA, em Nova York). Dentre seus principais críticos se encontram Petre Raileanu, Sarane Alexandrian e Krzysztof Fijalkowski. Augusto de Campos não desconhece os desdobramentos da poesia de Ghérasim Luca. O que faz é tomar proveito de uma de suas particularidades. Ao contrário do que ele define, Héros-limite (1953) não é seu “turning point”. A intensidade da experiência poética de Luca, que em momento algum dissociou vida e obra, se encontra em seus dois livros finais, L’inventeur de l’amour e La mort morte. Além disto, aspectos biográficos, como a mudança de nome, adoção do francês como novo idioma e as seguidas tentativas de suicídio, tudo isto estava intrinsecamente ambientado com sua defesa poética de um anti-édipo. É preciso entender sem restrição o mergulho de Ghérasim Luca no lamaçal dialético da linguagem, em seus dois planos que ele corretamente entendia como inseparáveis: ser e tempo. Krzysztof Fijalkowski situa L’inventeur de l’amour “não somente como o manifesto definitivo de Luca, aquele que reconcilia a intuição e a forma poética com um ardor revolucionário e desesperado, mas também como parte de uma nova cadeia de progressão e resolução dialética”. E o próprio Luca se manifestou empenhado no que ele chamava de “confrontação dialética”, buscando sempre levá-la “à mais delirante das verificações”. Ora, é exatamente esta confrontação dialética que o conduz à exaltação da sonoridade, a partir da qual, na palavra, “ressurgem segredos sussurrados, que se escutam bem metidos em um mundo de vibração que pressupõe uma participação física simultânea à adesão mental”. Não isolava a palavra, o signo, mas antes estimulava uma verdadeira orgia de sentidos, sempre à procura, como ele próprio afirmou, de “desvelar uma ressonância do ser”, e tendo “como objetivo a transmutação do real”. Em Dialectique de la dialectique (1945), livro que escreveu em colaboração com o psicanalista Dolfi Trost, expõe: “Este estado constantemente revolucionário só pode se manter e desenvolver mediante uma posição dialética de permanente negação e de uma postura de negação da negação que poderia ser capaz do maior alcance imaginável a tudo e todos”. Esta “dialética da dialética” tem naturalmente um sentido bem mais amplo do que percebe Campos, ao situar a poética de Luca como “uma espécie de des-surrealismo concretante”. Desconcertante presunção a do concretista brasileiro, não há outra coisa a ser dita. Exaltação do acaso e humor negro são duas vertentes máximas da poética de Ghérasim Luca. Recorria ao jogo do “palavra-puxapalavra”, mas sem deixar de fora o sentido vertiginoso do automatismo. E o fazia mesclando neologismos, palavras-valises, onomatopéias, rupturas sintáticas, longe de limitar-se, por exemplo, ao furor trocadilhesco que acabou por dar um nó cego na lírica brasileira. Leiamos aqui duas passagens do poema “Hermeticamente aberta”, do livro Héros-limite: Seu coração trespassado pelas balas transparentes de minhas carícias angustiadas sua suave metavulva sua negra metaboca o transplante inocente da flor de sua boca nas terras aéreas de minhas coxas [...] a transmutação gigantesca perpétua e triunfante do leite materno em lava meteórica no metavazio substancial em esperma em esperma e em metaesperma universal em esperma do diamante em esperma de teu coração em esperma negro da metaluxúria absoluta absolutamente luxuriosa e absolutamente absoluta É impossível não reconhecer que a “associação intervocabular” levada a termo por Ghérasim Luca se desenvolvia, em grande parte, por livre associação – jogo de similitudes fonéticas, sim, porém intensamente pautado por aquela busca de uma poesia ao mesmo tempo “delirante e lúcida”, como pretendia outro surrealista, Roberto Desnos. O próprio Luca se recusava a limitar o entendimento de sua poesia a uma “operação formal”. Desconhecer a presença do surrealismo neste ambiente equivale a não reconhecer surrealismo na cabala fonética de Desnos, por exemplo. E certamente aspectos como ruptura sintática, jogos fonéticos e o bailado das palavras na página, encontrados na poesia de Mario Cesariny de Vasconcelos, seriam argumentos, dentro da ótica do concretista brasileiro, que restringiriam ou mesmo anulariam a influência do surrealismo no poeta português. O poema acima mostra que mesmo naquela passagem da poética de Luca que destaca Campos o poeta romeno em nada se aproxima da poesia concreta, e menos ainda seus versos, postos na página “como as letras de música, ou como os textos de Gertrude Stein, parecem descuidados”, como afirma o brasileiro. Não farei aqui a defesa da Gertrude Stein, por mais que seja devida. Que outro se habilite. Reitero apenas que este livro, Héros-limite, não possui igual que L’inventeur de l’amour, que inclusive confirma as idéias defendidas pelo grupo surrealista romeno de uma ampla erotização do indivíduo e da sociedade. É suficiente lembrar o que bem anotou Fijalkowski, que os surrealistas romenos “conceberam os conceitos de objetivação do amor e erotização do proletariado como objetivos concretos, mais do que puramente imaginativos”. Mesmo neste poema já se pode sentir a intensa vibração de um ouvido para os sussurros dos grandes abismos da existência humana. Uma intensidade que leva ao limite em toda a extensão de sua obra, envolvendo amor, erotismo, sonho, humor negro, todos estes inegáveis componentes do surrealismo, em uma orgia de imagens que se enriquecem na medida em que afirmam o quanto estão vivas, atuantes, dentro do mundo, dentro de nós. Luca é um poeta sempre vertiginoso, e se comunica com um sentido extraordinário de velocidade, utilizando-se de todos os vícios da linguagem, suas gafes, cortes, gagueiras, ruídos e a partir dali fazendo ecoar sua indignação, o esplendor de sua crítica a toda uma sociedade, marcada por visível estímulo subversivo. E em momento algum se distancia de uma voz intensamente sensual, como vemos na parte conclusiva de seu belo poema “Sonho em ação”: …teus pés sobre meu peito meu peito em teus olhos teus olhos no bosque o bosque líquido líquido e de osso os ossos de meu grito eu arranho e grito minha linguagem inquietante eu desmembro teus braços teus braços delirantes eu desejo e desmembro teus braços e tuas médias abaixo e acima de teu corpo estremecido estremecido e puro puro como a ducha como a ducha de teu pescoço pescoço de tuas pálpebras as pálpebras de teu sangue teu sangue acariciando palpitando estremecendo-se estremecida e pura pura como a flor flor de teus joelhos de teus cotovelos de tua respiração de teu estômago eu digo estômago porém estou pensando na escuridão da escuridão da sombra sombra do segredo o maravilhoso segredo maravilhoso como tu tu caminhando adormecida sob o guarda-chuva e sombra sombra e diamante é um diamante que nada que nada esplendidamente tu nadas esplendidamente na água de matéria da matéria de meu espírito no espírito de meu corpo no corpo de meus sonhos de meus sonhos em ação Curiosamente o poeta brasileiro não percebe a visão de mundo de Ghérasim Luca, nem que este ambientou alguns de seus poemas no que Gilles Deleuze definiu como “efeitos da gagueira”, no sentido de alertar o quanto que as sociedades modernas se tornaram vítimas de seu próprio fascínio basbaque pelos efeitos de linguagem. O Concretismo é parte deste fascínio desassistido de uma crítica essencial, a exemplo dos pontos altos das vanguardas no século XX, no que diz respeito à sociedade burguesa. Com grande acerto o poeta português Nicolau Saião o aproxima daquele ritmo encantatório de certa oralidade ambientada nos Estados Unidos a partir da Beat Generation, especialmente no caso de Allen Ginsberg. Em minhas conversas com Saião ele acentuou este “modo de recitação”, de Ghérasim Luca, relacionando-o com as vociferações mântricas de Ginsberg: Creio que é nestes dois pontos, assim epigrafados, que reside alguma confusão, ou o equívoco, em o quererem aproximar da corrente concreta, se não mesmo letrista. Porque Ghérasim Luca, surrealista absoluto posto que viajando nas diversas direções que os pontos cardeais contêm, tem é a ver com a recitação que numa ampla linha reta, mesmo que quebrada pela raiz dos tempos, vem da Grécia e dos coros dos seus mestres teatrólogos. Também conversei com o tradutor espanhol de Ghérasim Luca, o poeta Eugenio de Castro, que assim se referiu ao tema: O argumento de que Luca era “ex-surrealista” ou “extra-surrealista” somente cabe entendê-lo como a expressão de uma dinâmica hoje mundialmente estendida de revisar a história e falseá-la com palavras que são as dos amos, sempre dispostas a sepultar as palavras da liberdade com a total retificação do sentido original das coisas, dos homens e mulheres e sua verdade. É uma insensatez dirigir-se assim a Luca e apresentá-lo nesses termos, e uma indignidade, além do que, se este senhor não avança em seu argumento demonstra tanto ignorância quanto má fé. A julgar pela obra, depoimentos e pela fortuna crítica a seu respeito, seria correto afirmar que Ghérasim Luca jamais concordaria com uma única palavra do concretista brasileiro e seguramente o consideraria um maquinador de pouca eficácia. Este, ainda no texto em questão, insiste que a poesia do surrealista romeno “materializa o sonho e des-surrealiza a mecânica do surrealismo discursivo”. Ou seja, limita-se a leitura preconceituosa do surrealismo, além de paralisá-lo no tempo, sem atentar para sua renovação. Para onde nos levou a mecânica frígida do Concretismo? Augusto de Campos entrou na poesia brasileira pela porta do Parnasianismo e será por ela que sairá, a seu devido tempo sem fatura consistente. Fez meia dúzia de seguidores que se enquadram em um circuito afeito à barbárie intelectual. Pela ausência de obra de relevo, sobrevive graças a recriminações, como esta que faço, toda vez que surge a exercitar sua política discricionária. Augusto de Campos não se manifesta em nenhum momento em relação ao desastre político a que parece estar condenado o Brasil, porque ele é parte disto. É parte de nossa barbárie intelectual que condena qualquer ação, por covardia de enfrentar a realidade, e a restringe a um plano falsamente estético. A beleza não se dissocia do caráter. Uma imagem se mostra de várias maneiras. Posso tocá-la na voz, na letra, no muro, não importa. O essencial é que reflita uma existência ali por trás, nos bastidores. A linguagem é essencialmente o reflexo do homem. Inventar um mundo onde a poética se restrinja a um efeito de linguagem, a seu malabarismo formal, isto é coisa tipicamente de quem teme ser confundido com um de nós. 2. Ghérasim Luca: Reinventar todo [Krzysztof Fijalkowski] Todo deber ser reinventado en el mundo ya no hay nada G. Luca Para la historia del surrealismo 1945 es, por muchas razones, un año tan sombrío como los precedentes. Lejos de anunciar el comienzo de un período de paz y estabilidad, encuentra en una situación de colapso o confusión total a los grupos surrealistas diseminados por Europa: el grupo parisino, pendiente de reorganizarse, esperaba la vuelta del exilio de muchos de sus miembros cruciales y percibía que su posición había sido socavada gravemente por el ascenso al poder de intelectuales adscritos al comunismo; en Londres, el movimiento había sido calificado con demasiada ligereza de “curiosa novedad prebélica” y de hallarse desfasado de la nueva realidad, lo que contribuyó a que pronto creciera el desánimo entre los surrealistas ingleses; en Praga, los surrealistas checos se dieron cuenta rápidamente de que toda actividad abierta y expresa constituiría una imposibilidad en el clima posbélico de la Europa del Este. Es significativo entonces, que el período que transcurre de 1945 a 1947 fuera también el de la aparición pública de uno de los grupos surrealistas más vigorosos formados hasta entonces, cuyos tres años de actividad fueron de una gran intensidad, quizá ante la creciente certeza de que su silenciamiento sería inevitable: me refiero al grupo surrealista rumano, constituido por los escritores Ghérasim Luca, Dolfi Trost, Gellu Naum, Paul Paun y Virgil Teodorescu. Todos ellos habían participado en la vanguardia de Bucarest de los años 30, sintiéndose cada vez más atraídos por el surrealismo, a lo que contribuyó en parte el ejemplo de los pintores rumanos Victor Brauner y Jacques Hérold, que pasaron largas estancias en París formando parte del grupo surrealista parisino. En 1938, Luca y Naum les siguieron a París y, aunque su estancia allí fue interrumpida por el estallido de la guerra, creyeron verse en condiciones de tomar la decisión - no en París, sino de manera apropiada en el Orient Express rumbo hacia el Este desde Trieste (1)- de fundar un grupo surrealista rumano. El nuevo grupo vivió una existencia secreta muy activa, a pesar de la imposibilidad de publicar o exponer durante los años de la guerra y de que todo contacto con los surrealistas del exterior del país quedara suprimido de manera inmediata, desarrollando una serie de directrices teóricas y formales de gran originalidad que ampliaron y radicalizaron el surrealismo europeo de los años 30. En 1945 los surrealistas rumanos aprovecharon sin vacilación toda oportunidad para iniciar de una manera frenética su actividad pública, editando una extraordinaria cantidad de textos y libros de contenido incendiario. Se inició así, un debate provocador y virulento sobre el sueño, el delirio, el amor, la muerte y el azar objetivo, todo ello configurado dentro de un firme compromiso con el materialismo dialéctico, el fin de la división de clases y la afirmación de la libertad fundamental del hombre. Es cierto que muchos de estos libros fueron escritos durante los años previos de silencio forzado, pero el hecho de que el grupo, durante 1946 y 1947, no perdiera ni un ápice de su ímpetu en lo que a publicaciones, debates teóricos y exposiciones se refiere (hasta que el régimen socialista tomó finalmente el poder en diciembre de 1947, poniendo fin de manera efectiva a toda posible actividad posterior: Luca, Naum y Trost eligieron con el tiempo abandonar Rumania y Luca se trasladó de manera definitiva a París en 1952) pone en evidencia que se hallaba en pleno ardor. Precisamente cuando en todas partes el surrealismo afrontaba su crisis de confianza más grave, el grupo de Bucarest, en palabras de Sarane Alexandrian “el más exuberante, más emprendedor e incluso el más delirante del surrealismo internacional” (2), dedicado a un actividad incesante y determinado a impulsar sus deseos hacia una conclusión lógica, enviaba sus misivas al vacío como bengalas de socorro. Para el propio Luca, 1945 vio la publicación de tres textos cruciales (todos, en cierto modo, hasta hace poco “olvidados”): el monólogo poético Inventatorul iubirii (El Inventor del Amor, que estaba acompañado de Moartea moarta (La Muerte muerta), ambos objeto de este estudio), la documentación de azar objetivo Le vampire passif y, junto con Trost, la declaración principal de la posición teórica del grupo, Dialectique de la dialectique (3). Es quizá esta última obra la que nos ofrece la mejor perspectiva del contexto en que fue realizado El Inventor del Amor. Escrita en un momento en que sus autores llevaban cinco años sin recibir noticia alguna sobre la supervivencia del surrealismo en otras partes del mundo, Dialectique de la dialectique fue, a un tiempo, la señal de alarma de un grupo de poetas aislados en Europa del Este, una reafirmación de fidelidad inquebrantable a Breton, al materialismo dialéctico y al azar objetivo y un desafío a la existencia del surrealismo como línea de acción revolucionaria y no como la rebelión artística acomodada (y recuperable) con que había amenazado en convertirse durante los años 30. Luca y Trost se atrevieron a prevenir al movimiento internacional del peligro de convertirse en otro estilo artístico más, y propusieron métodos nuevos y radicales para reincendiar la imaginación surrealista: la aproximación crítica a los sueños, el rechazo de los procedimientos artísticos existentes, el fomento del erotismo como solución concreta a la división de clases, el fin de la servidumbre a los impulsos edípicos (con la teoría de Luca sobre el ser no edípico), la apropiación poética de la ciencia cuántica y la perpetua reevaluación y reinvención del surrealismo, “en continua oposición al mundo y a sí mismo”. Implícito en el título del texto, cuyos métodos propuestos serían ensayados en las obras de Luca durante el resto de su vida, se hallaba una dialéctica llevada a su conclusión lógica, tal como tenían que ser llevados hasta su propio límite todos los deseos y cuestiones antes de encontrar una solución: venciendo finalmente el desamparo del hombre ante la tiranía de su condición social, emocional e intelectual y ante la abrumadora inevitabilidad de la muerte, a través de la negación de la negación. Tengo la sensación de que los escasos y recientes exegetas de éste y otros escritos de los surrealistas rumanos caen en la tentación de presentar los hallazgos de aquellos como retóricas peculiares y delirantes o como provocaciones exuberantes o histéricas (4). Pero todo lo que sabemos sobre el grupo de Bucarest, y sobre Luca en particular, invita a entender dichos textos por sus significados absolutamente serios, deliberados y muchas veces literales, y no sólo como resultado de un debate sino como anteproyectos de acciones concretas que la desaparición inminente del grupo restringió; de hecho, como insiste El Inventor del Amor, ninguna acción que no arriesgue también la propia vida merece en el fondo ser tenida en cuenta (5). Dialectique de la dialectique rechaza todo error que “pudiera distraernos de nuestro deseo fundamental cuyo primer estadio conocido es la transformación del deseo en la realidad del deseo”, y dos años más tarde Le secret du vide et du plein de Luca reclamaba: “Sustituir lo Real por lo Posible y anticipar su confusión. Confusión total en la ámbito mental, confusión total en la ámbito de la acción” (6). La aparición el mismo año del libro de Luca El Inventor del Amor, publicado junto con Parcung imposibilul (Vagabundeo por lo imposible) y La Muerte muerta, puede considerarse tanto una furiosa prolongación poética como una respuesta a la polémica suscitada por Dialectique de la dialectique (aunque por supuesto, como hemos visto, parece haber sido escrito algunos años antes y desde luego precede a Dialectique de la dialectique ya que esta obra le menciona). Ambos constituyen lo que es incuestionablemente uno de los textos más extraordinarios escritos por un grupo surrealista durante aquel período, pero también fue (y quizá no de modo fortuito) uno de los últimos textos en los que Luca siguió trabajando, puesto que preparó una nueva versión para su publicación por Jose Corti, en francés, muy poco antes de su muerte; es probable que fuera esta edición la que gozase de una circulación y una atención más amplias (7). El Inventor del Amor es, además de un texto teórico, una obra polémica, que alterna consideraciones conceptuales con el ensueño delirante que incitan y (en La Muerte muerte) con relatos de acciones concretas subsiguientes. La edición francesa publicada por Corti presenta los tres textos (El Inventor del Amor, La Muerte muerta y el Apéndice) en versos poéticos, sin puntuación. La edición original en rumano, en cambio, presentaba estos textos como piezas en prosa (tal como ocurría con otros escritos de Luca de los años 40), que se podrían leer, de esta manera, como una obra teórica más que puramente poética (de hecho, en un punto El Inventor del Amor señala burlonamente que “el poeta más iluminado me parece una excrescencia tan purulenta como el banquero más codicioso”) (8). Este cambio deliberado de formato hecho por Luca tiene el efecto de ayudar a rescatar y reintegrar uno de sus escritos “perdidos” en prosa, realizados en Bucarest durante los años 40, al corpus de la obra poética elaborada en París desde los años 50 en adelante (ya que éstos también comparten la misma forma poética dispersa y carente de puntuación) al mismo tiempo que subraya una dialéctica entre poema y texto teórico, aunque igualmente sugiere de modo provocador que podríamos leer sus últimos poemas como manifiestos en prosa (9). De hecho, se podría ver la edición francesa de El Inventor del Amor no sólo como el manifiesto definitivo de Luca, aquel que reconcilia la intuición y la forma poética con un ardor revolucionario y desesperado, sino como parte de una cadena de progresión y resolución dialéctica. Como integrante de la trilogía de sus textos más significativos publicados en 1945, la obra reconcilia el ensueño concreto/imaginativo de Le vampire passif con las duras afirmaciones de Dialectique de la dialectique, pero, lo que es más sorprendente, la edición francesa propone una obra en tres partes que sugiere una compleja estructura dialéctica. Los textos presentan, por este orden, el problema intelectual de cómo escapar de la prisión de las relaciones edípicas a través de la destrucción cataclísmica del yo a través del amor; una confrontación física con la muerte que defrauda nuestra libertad a pesar de la promesa de liberación erótica que supone; y una recapitulación que reflexiona de manera crítica sobre esas experiencias y reclama la necesidad de impulsar la desesperación y la repulsa hasta sus propios límites, “en una postura pesimista ilimitada pero perpetuamente voluptuosa ante el amor” como la única manera de denunciar y transformar el mundo. Los dos primeros textos, aunque bastante diferentes en su forma, pueden entenderse en muchos sentidos como reflejo uno del otro: así por ejemplo, El Inventor del Amor es un discurso sobre la reinvención del amor, pero comienza con una sombría nota de suicidio, mientras que La Muerte muerta, que trata precisamente sobre el suicidio, comienza con un momento extático de placer erótico mental y físico. El sucinto Apéndice final (que habla de la “desgarradora confrontación de dos dialécticas contrarias” y que podríamos interpretar como las del amor y la muerte) intenta de modo indirecto llegar a la resolución de las anteriores y de evaluar la posibilidad verdadera de vivir fuera de una realidad no edípica. Pero El Inventor del Amor no es un manifiesto convencional. Violento y lúcido, es además absolutamente desesperado y desasosegante, amenazando su propio colapso a cada momento con un desprendimiento de imágenes, como una galería de espejos de negaciones: “En efecto”, escribe en el Apéndice, “una solución favorable no puede surgir más que del interior de una posición extrema, allí donde la confrontación dialéctica es incitada hasta la manía, hasta la más inverosímil, la más delirante de las verificaciones”. Su valor estriba en que es un libro que está extraordinariamente fuera de su tiempo, décadas por delante de escritos mucho más celebrados (especialmente el Anti-edipo de Deleuze y Guattari, prefigurado veintisiete años antes por la teoría noedípica de Luca, aunque también se puede pensar en la obra de Reich y Marcuse), con una forma delirante que anticipa y hace trizas al mismo tiempo toda la teoría crítica “esquizofrénica” postmoderna tan en boga hoy en las universidades de todo el mundo. Supuestamente, Luca pensó que el texto clave de los tres era El Inventor del Amor, puesto que su nombre da título al libro. La “invención” aquí, como Luca aclara, no es en absoluto la pretensión de haber hecho o descubierto el amor, como algunos comentaristas han presupuesto, sino la insistencia en la interminable reinvención del deseo, de su objeto en la persona amada, y de ese modo, del yo y del mundo. Pero esta reinvención del amor, su asunción no como un pálido placer burgués, sino como un paroxismo llevado hasta los límites de lo posible, es al mismo tiempo real y espectral, en cambio constante. En él, todas las promiscuidades y perversiones están justificadas (ceñirse al ritual patético de “esos ejercicios amorosos donde un hombre y una mujer se aferran uno al otro para reflejar mutuamente la nada” es lo que se muestra como la única perversión real), pero son sólo el comienzo de las reinvenciones que están por venir, si bien Luca está lejos de hacer simplemente el consabido llamamiento a una revisión de la moralidad. Y en el proceso, el objeto del deseo toma una forma ambigua: ora una mujer actual, ora un cuerpo hechizado y hecho estallar en pedazos, para ser ensamblado de nuevo, ora sólo un eco del objeto real del deseo, “una mujer no nacida”, una mujer ideal pero siempre elusiva “cuya razón de ser es no ser jamás encontrada”. Pero sobre todo, es en la liberación del individuo de la tiranía de las relaciones edípicas -la sombra castradora del padre tanto como el recuerdo paralizante del trauma del nacimiento- donde el “deseo por el deseo” puede realizarse finalmente. La naturaleza (biología) y el recuerdo son los motores que conducen hacia esta parálisis edípica y deben ser rechazados a toda costa. Dialectique de la dialectique aclaraba estas demandas: “La necesidad de descubrir el amor que pudiera derrocar los obstáculos sociales y naturales, una vez libre nos encamina a una posición no edípica. La existencia del trauma del nacimiento y de los complejos edípicos, como descubrió la teoría freudiana, constituyen los límites naturales y mnemotécnicos, los conceptos desfavorables e inconscientes que sin que lo sepamos controlan nuestra actitud hacia el mundo exterior. Hemos formulado el problema de la completa liberación del hombre (Ghérasim Luca: El Inventor del Amor) añadiendo como condición para la misma la destrucción de nuestra posición edípica inicial”. Pero este desencadenamiento del deseo aspiraba no solamente a la autorrealización individual, sino que era además una parte esencial de la actualización de la revolución (incluso los líderes revolucionarios más auténticos, explican Luca y Trost, son derrotados por sus relaciones edípicas, una observación repetida en el Apéndice): “Este amor dialectizado y materializado constituye el método revolucionario relativo/absoluto que el surrealismo nos ha revelado, y descubriendo nuevas posibilidades eróticas que superen el amor social, médico o psicológico, podremos alcanzar una comprensión de las primeras formas de amor objetivo. Creemos que, incluso en estas formas más inmediatas, la erotización ilimitada del proletariado constituye la promesa más valiosa a desarrollar que garantice a éste, en la miserable época que estamos atravesando, un verdadero desarrollo revolucionario (Dialectique de la dialectique). Sin el avance radical hacia una posición no edípica, aclara Dialectique de la dialectique, el proletariado nunca se liberará de los complejos profundamente enraizados que harán siempre sus victorias ilusorias. El Inventor del Amor comienza por encaminar la manera de alcanzar esta liberación a un nivel individual, y aunque no quede claro de que forma propusieron determinar tal liberación a nivel social, es obvio que los surrealistas rumanos concibieron los conceptos de objetivación del amor y erotización del proletariado como objetivos surrealistas concretos (más que puramente imaginativos) (10). Como hemos visto, El Inventor del Amor fue escrito en el curso de los primeros años 40, y el contexto del debate que propone podría entenderse como el mismo que se dio en el seno del surrealismo parisino de la década anterior, el grupo al que Luca se había aproximado y que después perdió de vista hacia 1938-40. En muchos sentidos, El Inventor del Amor podría interpretarse, por su atrevido maridaje dialéctico entre un delirio violentamente erótico, poético y una mordaz teoría revolucionaria, como un intento de reconciliar y hacer progresar algunos de los desacuerdos y debates internos más importantes que el grupo de París tuvo tantas dificultades en resolver durante los años 30, debates de cuyo curso natural se apropió la guerra (11). En comparación con el paroxismo de El Inventor del Amor, La Muerte muerta ofrece un género de reinvención del yo bastante diferente. Donde el primero es social, transformador, ilimitado, el segundo es intensamente individual, reducido (el autor rechaza todo contacto con el mundo fuera de su habitación), abierto al abismo: una confrontación con la muerte. Tras una parte introductoria, Luca nos obsequia con cinco tentativas de suicidio llevadas a cabo en cinco días sucesivos: mediante estrangulamiento, arma de fuego, arma blanca, envenenamiento y conteniendo la respiración. Cada breve relato consta de una nota de suicidio, junto con un enigmático mensaje manuscrito redactado con la mano izquierda durante cada intento, mientras se mira a sí mismo en un espejo, y con notas tomadas inmediatamente después de que el intento fracasara. Una vez más, todo lo que sabemos sobre Luca sugiere que no estamos ante una colección de ficciones, y hemos de convenir con Saranne Alexandrian en que éstas son experiencias auténticas y auténticamente peligrosas- (12). Esto no quiere decir que el experimento esté exento de humor (aunque es difícil imaginar una clase de humor más negro), y ciertamente el texto introductorio indica que es en el humor donde podría encontrarse cualquier victoria sobre el trauma de la muerte. El texto no es sólo implacablemente autocrítico, está además atormentado por una disposición hacia la angustia y la desesperación más extremas, deliberadamente llevadas al límite; más explícitamente, se halla agitado por la “desolaciónpánica” y la “catalepsia moral” en presencia del “vacío teórico”, por el fracaso aparente de las tentativas previas de suicidio de Luca ante una resolución dialéctica del ser y la desesperación en presencia del amor. La muerte, escribe Luca (y a pesar de la liberación extática del deseo prometida por El Inventor del Amor), es el impedimento final que atormenta nuestros deseos y todo lo que nos rodea, es el espacio de magia negra y de terror, “opresión, tiranía, límite, angustia universal, en tanto que enemigo real, cotidiano, insoportable, inadmisible e inteligible” y el problema que plantea no es de índole intelectual, el mero misterio de su “dimensión filosófica”, sino su existencia real y física: el problema de la propia desaparición de uno mismo. Es la muerte prometida a todos por el nacimiento, más terrible incluso que el propio nacimiento y los complejos que nos paralizan, lo que hace ya fatal todo amor bajo el signo de Edipo: “La muerte que yo acojo como una necesidad, como la válvula de la desesperación, como una réplica del amor y del odio, como una prolongación de mi ser en el interior de sus propias contradicciones”. Sólo mediante la prolongación de esta muerte necesaria, no por medio de su denegación sino mediante su negación dialéctica puede lograrse una primera victoria sobre este “Paralítica General Absoluta”. Como el título del texto deja claro, e incluso el nombre de su editora, Editura Nagatia Negatiei, la solución de la negación de la negación es el único medio no tanto de engañar a la muerte como de transformarla en un lugar de libertad y deseo sin fin. Como Dialectique de la dialectique reclamaría: “Este estado constantemente revolucionario sólo puede mantenerse y desarrollarse mediante una posición dialéctica de permanente negación y de una postura de negación de la negación que podría ser capaz del mayor alcance imaginable hacia todo y hacia todos”. Y finalizaría:”Atravesad noche y día por infinitas sucesiones de negaciones cada vez más provocativas, más valiosas y más absorbentes, el inigualado instrumento de conquista que es el materialismo dialéctico exalta de manera perturbadora nuestro insaciable hambre de realidad, y roe ferozmente la negra y cautiva carne del hombre. Cubierto de sangre, sus huesos palpitantes semejan ahora ser largos cristales colgantes” (13). El quinto y último intento de suicidio de La Muerte muerta, es en cierto modo el más simbólico, ya que mediante él Luca intenta matarse conteniendo la respiración. “Si no doy señales de “vida” en un mes”, dice la nota de suicidio, “has de saber que uno muere como se pudre una cebolla, una silla, un sombrero”. Pero es precisamente esta tentativa “hasta lo imposible” la que tiene “un valor teórico colosal a causa de mis tentativas continuas de trastocar hasta lo imposible el trauma natal cuya absoluta fatalidad me parece inadmisible por no dialéctica”. Este intento final, caracterizado por un estado de euforia mental, triunfó, de modo imposible, al llenar el “vacío teórico”, al abrirse hacia una muerte que es al fin dialéctica, capaz de una resolución. Quizá podrían interpretarse las acciones finales de Luca, en 1994, como una última resolución dialéctica. No mucho antes, había estado trabajando en la nueva edición francesa de El Inventor del Amor, una verdadera obra de deseo, desesperación y de reconciliación desesperada de ambos, un conjunto de textos incendiarios escritos en Bucarest durante los años 40 que ahora podrían ser rescatados y reinventados dentro de la obra de un poeta parisino. En el mes de febrero de 1994, Luca escribió a su compañera para decirle que iba a arrojarse al Sena; su cuerpo no fue encontrado hasta exactamente un mes después. Si es verdad, como se pretende que después de la muerte el hombre continúa una existencia fantasmagórica te lo haré saber. (La Mort morte) NOTAS 1. Rémy Laville, citado en Petre Raileanu, “L’Avantgarde roumaine”, Le Rameau d’or, no. 2, 1995, p. 66. Información sobre la historia del surrealismo en Rumanía puede encontrarse en este extenso artículo, en Luc Mercier, “Le surréalisme en Roumanie”, Iztok, no. 11 (septiembre 1985), pp.3-11, y en Ion Pop, “Surréalisme roumain et dialogue européen”, Mélusine, no.14 (1994), pp.209-20. 2. Sarane Alexandrian, Le surréalisme et le rêve (París : Gallimard, 1974), p.221. 3. El texto Inventatorul iubirii está fechado el 24 de octubre de 1942, y Le vampire passif describe hechos de 1940 pero bien pudiera haber sido escrito con posterioridad. Dialectique de la dialectique parece haber sido escrito en 1945. El grupo de Bucarest publicó inicialmente en rumano, sin embargo el hecho de que muchas obras desde 1945 fueran escritas en francés (sin sacrificar nada de la ferocidad de su prosa), como ocurrió con casi todos los textos desde entonces, sugiere que hubo una decisión deliberada que pudo contribuir tanto a distanciar al grupo de otros movimientos de vanguardia rumanos como a apelar de manera explícita a la audiencia francesa -los surrealistas parisinos. No obstante todas estas publicaciones se hallaban en pequeñas ediciones que ellos mismos publicaban, y en el supuesto de que los camaradas de París hubieran estado abiertos a las posiciones deliberadamente extremas o críticas de un texto como Dialectique de la dialectique, el grupo parisino (al que Breton no regresaría hasta mayo de 1946) no estaría en situación de responder hasta más adelante. 4. Así Ion Pop (op.cit., p.218) califica las revisiones de Trost de los modelos freudianos del inconsciente de “excesivas” y llama la atención, enfatizando con aire de superioridad mediante signos de exclamación, sobre las propuestas de Dialectique de la dialectique acerca del amor objetivo y la erotización del proletariado. 5. Petre Raileanu señala (“La dialectique demoniaque: Le parcours roumain de Ghérasim Luca”, Mélusine, no.15 (1995), pp. 299-308) que hacia los años 40 Luca escribe sólo literalmente, nunca en sentido figurado. Personalmente propondría que todos los textos poéticos escritos por Luca desde entonces se entendieran de esta manera. 6. Colección Infra-Noir, Bucarest 1947, p.2; reimpresión facsímil, La maison de verre, París, 1996. 7. Esta segunda edición francesa omite el segundo de los tres textos originales en rumano, Parcung imposibilul, una exploración del amor como fuerza mediúmnica. La traducción inglesa del rumano de El Inventor del Amor realizada por Julian Semilian, de próxima aparición (Green Integer Press), incluirá los tres textos. 8. En una carta enviada a Sarane Alexandrian fechada en junio de 1947, Luca calificaría este libro de radical reconciliación entre amor y revolución, que contendría “el esbozo del plan teórico y práctico de una liberación TOTALITARIA a través del amor” (citado en Petre Raileanu, Ghérasim Luca (París: Oxus, 2004), p. 143). Correspondencia electrónica con Julian Semilian, noviembre de 2005. 9. Esto plantea además la cuestión del Premier manifeste non-oedipien de Luca, citado en Dialectique de la dialectique, pero que no figura en sus bibliografías y es considerado como perdido en la edición de Corti de El Inventor del Amor (interior de la contraportada). Sarane Alexandrian sugiere que Luca consideraba El Inventor del Amor como su primer manifiesto no-edipíco ( “Le poète parti sans repartir”, Supérieur inconnu, no. 5 (octubre-diciembre 1996), pp.71-78 (pp.73-74)), pero Dialectique de la dialectique los distingue claramente. ¿Podría ser que, como parece posible después de compararlo con la breve descripción que el último ofrece del Premier manifeste, el Apéndice no fuera otro, en parte o en su totalidad, que este texto perdido? 10. El panfleto que acompañaba la exposición L’infraNoir (Bucarest, septiembre 1946, reimpreso en La maison de verre, París 1996) lanzó una encuesta (“Une question”) sobre las posibilidades de “conquistar los medios para hacer el amor al mundo”, reafirmando que “Poesía, amor y revolución son todos uno”. Se podría imaginar que en 1946 las respuestas a este desafío serían pocas, pero una carta de 1947 de Luca a Georges Henein (reimpresa en Le puits de l’ermite, no.29/30/31 (1978), p.164) deja claro que el grupo esperaba respuestas constructivas procedentes de los surrealistas internacionales a esta cuestión crucial. 11. Simplificando enormemente, muchos de los inconvenientes más serios del grupo de París durante los años 30 surgieron por una parte de la necesidad de afirmar una postura revolucionaria coherente a la luz del ascenso del estalinismo (y las consiguientes deserciones de Aragon y Eluard), y por otra del deseo de canalizar y explotar la imaginación “histérica” de individuos como Dalí (quien, lejos de aceptar la necesidad de asumir una actitud revolucionaria, fue manifestando de modo creciente simpatías reaccionarias). Los escritos de Luca de los años 40 podrían ser interpretados precisamente como un intento de reconciliar la lucidez poética revolucionaria de Breton con el delirio de los textos de Dalí. 12. S. Alexandrian, Surréalisme et rêve, op. cit., p.228. 13. Dialectique de la dialectique no se refiere a La Muerte muerta ni cuestiona su razonamiento de modo directo, como si la muerte que confronta hubiera de quedar como esa cosa “innombrable” dentro de la teoría surrealista o como si el grupo hubiera, entretanto, retrocedido ante la idea de hacerla un principio central de sus ideas. Los temas de El Inventor del Amor y de La Muerte muerta, sus motivos de amor sacrílego y violento, sus evocaciones de cementerios y terremotos, muestran fuertes reminiscencias de los escritos de Georges Bataille. Mientras que parece ser que Bataille nunca estuvo al corriente del libro de Luca (y, si lo estaba, sería sorprendente que no se refiriera a él), desconocemos el alcance del conocimiento de Luca de los escritos de Bataille hacia 1940, si es que llegó a conocerlos. Floriano Martins (Brasil, 1957) es uno de los directores de Agulha. Contato: [email protected]. Krzysztof Fijalkowski (Inglaterra, 1962). Ensayista y traductor. Ha traducido Le Vampire passif (Twisted Spoon Press, England, 2007), de Ghérasim Luca. Además ha publicado artículos diversos acerca del surrealismo. Aquí publicamos un ensayo, en la traducción de Lurdes Martínez, que es una versión ampliada del mismo que fue incluido como prólogo de El inventor del amor / La muerte muerta (La Poesía, Señor Hidalgo, Barcelona, 2007), edición española de dos libros fundamentales de Ghérasim Luca traducidos por Eugenio Castro, a quien damos las gracias por la reproducción del mismo y el contacto con Fijalkowski, que también nos recibió con valioso cariño. Contato: [email protected]. Página ilustrada con obras de la artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Guimarães Rosa: novas leituras Claudio Willer . Em 1987, tive a ocasião de escrever o posfácio da edição do Círculo do Livro de Sagarana (reproduzida aqui com algumas atualizações: Releituras de Guimarães Rosa, www.revista.agulha.nom.br/ag42rosa.htm). Desde então, dei palestras sobre Guimarães Rosa e, melhor ainda, coordenei rodas de leitura, uma modalidade de oficina literária na qual é examinado algum autor, lido e discutido por todos os participantes. A mais recente, iniciada em março de 2007, no Paulistano (Club Athlético Paulistano, CAP), onde eu já havia coordenado uma oficina de criação poética em 2005; desta vez, examinando Sagarana e Primeiras Estórias (e algo mais, como verão a seguir). Aprende-se coordenando oficinas literárias. Por serem coletivas, não tão centralizadas como as palestras e cursos, o coordenador vai recendo retornos, o feedback, mostrando novas possibilidades de interpretação. Como resultado, avancei em minhas interpretações de Guimarães Rosa. Por isso, havia decidido escrever um novo ensaio sobre o autor de Grande Sertão: Veredas. Mas resolvi fazer algo diferente: publicar (com mínimas adaptações) os hands of, resumos de cada sessão, acrescidos de alguns textos complementares que enviei aos vinte animados e interessados sócios do clube Paulistano que participaram da oficina. Disso resulta o registro de algo vivo, de um processo de produção do conhecimento. Com a colaboração dos participantes, talvez tenha chegado a novidades em matéria de leitura de Guimarães Rosa. Por exemplo, o modo como, a partir da citação do upanishada Chandogya em uma nota de rodapé de “Cara-deBronze”, de No Urubuquaquá, no Pinhém, passando pela menção ao mesmo upanishada em Octavio Paz, chegamos à caracterização de Partida do audaz navegante, de Primeiras Estórias, como hipertexto. A dificuldade do que vem a seguir é que o leitor teria que ter, pelo menos, Sagarana e Primeiras Estórias à sua frente, ou gravado em seu cérebro. Mas essa dificuldade não é própria de todo ensaio literário? Faz sentido ler ensaios sobre obras literárias sem conhecer bem a obra examinada pelo ensaio? Este Guimarães Rosa: Novas Leituras tornou-se um hipertexto, nãolinear, remetendo a uma diversidade de idéias e de outras referências bibliográficas. Mas não será essa a estrutura, a forma implícita de todo ensaio um pouco mais ousado ou complexo? Reciprocamente, se o leitor acompanhar este conjunto de resumos e citações com Sagarana e Primeiras Estórias à mão, estará refazendo a oficina, participando dos mesmos insights. As edições citadas de Sagarana e Primeiras Estórias são aquelas da Nova Fronteira. Idem, as duas edições de cartas de Guimarães Rosa a seus tradutores, Correspondência com seu Tradutor Alemão e Correspondência com seu Tradutor Italiano. A OFICINA DE LEITURA DE GUIMARÃES ROSA Caros oficineiros, Para esta oficina, quero fazer 'hands of', resumos de cada sessão, para nunca perdermos o fio da meada. E, para isso funcionar bem, queria que alguém, dentre vocês, organizasse um grupo. É assim: registra-se o grupo em www.grupos.com.br ou outro provedor que ofereça esse serviço (yahoo também tem, mas esse do grupos é o que me pareceu funcionar melhor); tem-se então um endereço eletrônico único, através do qual todos os inscritos no grupo recebem mensagens. Tem que haver um coordenador. Em outras oficinas, isso funcionou bastante. Na próxima sessão, quero voltar à pergunta que Paulo fez, depois da intepretação daquela frase do Major de Sagarana, Galinha tem de muita cor, mas todo ovo é branco: será que essa interpretação estava nas intenções de Guimarães Rosa? (lembrando: relacionei à questão do universal e do particular, da unidade e da diversidade, e às mitologias nas quais o ovo é a origem do cosmos ou um símbolo da perfeição). A seguir, ainda, dois trechos de Guimarães Rosa, da correspondência dele para Meyer-Clason, seu tradutor para o alemão. Abraços, Claudio Willer [email protected] www.secrel.com.br/jpoesia/cw.html ADENDO I: DA CORRESPONDÊNCIA DE GUIMARÃES ROSA PARA MEYER-CLASON: Naturalmente, nela [na tradução de Corpo de Baile por Edoardo Bizzarri] há trechos e passagens “obscuros”. Mas o Corpo de Baile tem que ter passagens obscuras! Isso é indispensável. A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose da inevitável verdade. Precisamos também do obscuro. [...] Observo, também, que quase sempre as dúvidas decorrem do “vício” sintático, da servidão à sintaxe vulgar e rígida, doença de que todos sofremos. Duas coisas convém ter sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar-comum deve ter proibida a entrada, estamos é descobrindo novos territórios de sentir, do pensar, e da expressividade; as palavras valem “sozinhas”. Cada uma por si, com sua carga própria, independentes, e às combinações delas permitem-se todas as variantes e variedades. RESUMOS DAS TRÊS PRIMEIRAS OFICINAS GUIMARÃES ROSA – CAP, DE 07, 14 E 21 DE MARÇO 1. Metodologia: a de sempre (‘a oficina são vocês’, etc). 2. Bibliografia – minha recomendação de que só examinem peças da extensa ensaística sobre GR depois de lerem suas obras: em caso contrário, acabarão por ver na obra o que está no ensaio, deixando de lado outras dimensões do significado; idem com relação aos dicionários e glossários de GR: o sentido não é dado pela soma dos significados das palavras. 3. Bibliografia, II: Minha principal fonte é o que o próprio Guimarães Rosa tinha a dizer sobre sua obra, especialmente em João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967), Nova Fronteira, editora da UFMG e ABL, e João Guimarães Rosa – Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri, também pela Nova Fronteira; complementando, a recente edição dos Cadernos de Literatura Brasileira do Instituto Moreira Salles dedicada a Guimarães Rosa, com ensaios importantes, biografia detalhada, bibliografia, dossiê sobre GR na Alemanha etc. 4. O regionalismo e o vocabulário de Guimarães Rosa: além das expressões regionais, tradicionais, há aquelas do repertório erudito; há palavras inventadas, os neologismos (na terceira oficina li trechos da sua defesa dos neologismos e da invenção de palavras em um dos ‘prefácios’ de Tutaméia, o Hipotrélico), as adaptações de expressões e modos do árabe, grego, latim, até do húngaro, além de construções como o Moimeichego, personagem de Cara de Bronze (Moimeichego: moi + me + ich + ego, ou seja, quatro vezes eu...): a compreensão de alguns termos tem que ser intuitiva, por conta da imaginação do leitor; além disso, invenções de GR estão no plano da sintaxe e não apenas lexical. 5. Regionalismo e universalismo em Guimarães Rosa: por exemplo, as listas de transcrições de trechos da Divina Comédia de Dante, conforme suas cartas a Bizarri, mais os trechos de Plotino, etc; intertextualidade, leitura e criação literária. 6. A propósito, a obra de GR como literatura de síntese, superando a antinomia entre os beletristas (beletrismo como elitismo, signo de separação de classes) e os regionalistas; o modo como GR virou o beletrismo ao avesso. 7. O tempo em GR: histórias escritas e a serem lidas ‘sem pressa’: Tempo rural, ‘no ritmo da boiada’? (observado por MH) ‘Tempo mineiro’? (conforme JC) Outro tempo? Qual tempo? Pausas e silêncios nas narrativas de GR (AR)? (assuntos para voltarmos a discutir) 8. Língua falada e transmissão oral em GR, com suas narrativas na primeira pessoa (inclusive Grande Sertão: Veredas) ou quase que totalmente de diálogos (inclusive O Burrinho Pedrês); a poesia e a fala (qualidades poéticas como ritmo e prosódia são do registro oral, e não escrito); a escrita poética: exemplos de prosa poética, inclusive em O Burrinho Pedrês e Sarapalha; o significado da inserção de poemas do cancioneiro popular (que são transmitidos oralmente); o nome Sagarana – de saga, sage em alemão, do verbo sagen, dizer, falar. 9. Um exemplo de valorização do oral: o Major analfabeto de O Burrinho Pedrês, porém um sábio, capaz de filosofar – mostrei algumas das conseqüências da afirmação sobre ovos da mesma cor e galinhas de todas as cores. 10. A propósito (de buscar ovos em Platão e em cosmogonias arcaicas): isso estava nas intenções de GR? Visão de mundo e criação literária; a importância que GR dava à visão de mundo, cf. a correspondência para Meyer-Clason; por outro lado, o sentido e interpretação do texto como relação entre leitor e obra: ou seja, o sentido não se reduz às intenções do autor (a propósito, a frase de Mallarmé, meu caro Degas, poesia não se faz com idéias, poesia se faz com palavras...). 11. Correlatamente, a questão da relação entre autor e obra; a complexidade dessas relações (citei exemplos). 12. Ainda sobre a questão do sentido e da interpretação (aqui, já estamos na terceira oficina): a teoria dos três níveis de interpretação ou significação: 1, o sentido literal, 2, a leitura alegórica, 3, o significado anagógico (Dante), ou seja, metafísico, transcendental; prefiro pensar em dois níveis, conteúdo manifesto e latente, como na psicanálise (e também para os cabalistas, o sentido evidente e aquele oculto da escritura sagrada: voltaremos ao tema da afinidade de GR com Cabala e disciplinas herméticas). 13. Magia em O Burrinho Pedrês e outras narrativas de GR: a relação entre a palavra e o mundo, ou entre o simbólico e o ‘real’ (voltaremos a esse assunto). 14. Possibilidades de interpretação simbólica, por exemplo, os nomes e o nome do burrinho ‘pedrês’, Sete de ouros. 15. A “lei” em O Burrinho Pedrês: o que significa isso? Como se projeta em outras narrativas de GR, inclusive Sarapalha e A volta do marido pródigo? (a complementaridade dessas duas narrativas, uma como avesso da outra) 16. O detalhamento geográfico (os 19 e 43 graus N e O de Duelo) e a nomeação detalhada: o que significa, como pode ser interpretado? 17. O que tudo isso – inclusive o que foi tocado nos dois últimos tópicos – nos esclarece sobre o ‘mundo’ de GR, incluindo suas dimensões propriamente sociológicas e políticas? ADENDO II: TRÊS CITAÇÕES: Octavio Paz, em Conjunções e Disjunções, Editora Perspectiva, São Paulo, 1979: As culturas chamadas primitivas criaram um sistema de metáforas e de símbolos que, como mostrou LéviStrauss, constituem um verdadeiro código de símbolos, ao mesmo tempo sensíveis e intelectuais: uma linguagem. A função da linguagem é significar e comunicar os significados, mas nós, homens modernos, reduzimos o signo à mera significação intelectual e a comunicação à transmissão da informação. Esquecemos que os signos são coisas sensíveis e que operam sobre os sentidos. O perfume transmite uma informação que é inseparável da sensação. O mesmo sucede com o sabor, o som e outras expressões e impressões sensoriais. O rigor da “lógica sensível” dos primitivos nos fascina por sua precisão intelectual: não é menos extraordinária a riqueza das percepções: onde um nariz moderno não distingue senão um cheiro vago, um selvagem percebe uma gama definida de aromas. O mais assombroso é o método, a maneira de associar todos esses signos até tecer com eles séries de objetos simbólicos: o mundo convertido numa linguagem sensível. Dupla maravilha: falar com o corpo e converter a linguagem em um corpo. Mircea Eliade, do Tratado de História das Religiões: Uma das principais diferenças que separa o homem das culturas arcaicas do homem moderno reside justamente na incapacidade deste último para viver sua vida orgânica (em primeiro lugar a sexualidade e a nutrição) como um sacramento. (...) Nada são senão atos fisiológicos para o moderno, embora sejam, para o homem das culturas arcaicas, sacramentos, cerimônias cuja mediação serve para comungar com a força que representa a própria vida. De A TÁBUA ESMERALDA, atribuída a Hermes Trismegisto (século II d.C.) É verdade, sem mentira, certo e muito autêntico. O que está em baixo é como o que está em cima, e o que está em cima é como o que está em baixo; por estas coisas se fazem os milagres de uma só coisa. E como todas as coisas são e provêm se UM, pela meditação de UM, assim todas as coisas nasceram desta coisa única, por adaptação. O Sol é seu pai, a Lua a mãe. O Vento trouxe no ventre. A Terra é sua alimentadora ama e o seu receptáculo. O Vento trouxe-a no ventre. O Pai de tudo, o TELESMA do mundo universal, está aqui. A sua força ou potência fica inteira, se for convertida em terra. Separarás a terra do fogo, o subtil do espesso, brandamente, com grande indústria. Ele sobe da terra ao céu e de novo baixará a terra, e recebe a força das coisas inferiores. Terás por esse meio a glória do mundo; e, por isto também, toda a obscuridade se afastará de ti. É a força, forte de toda a força, pois vencerá toda a coisa subtil e penetrará em toda a coisa sólida. Assim, o mundo foi criado. Daqui sairão admiráveis adaptações, cujo meio está aqui. Por isso fui chamado Hermes Trimegisto, porque possuo as três partes da filosofia universal. O que disse aqui da Obra solar está cumprido e acabado. OFICINA GUIMARÃES ROSA – CAP: RESUMO DA QUARTA SESSÃO, DE 28/03 1. De qual dos relatos de Sagarana eu gosto mais? MH respondeu, corretamente, que é São Marcos. Ao lerem esta narrativa, procurarão verificar os motivos da minha preferência. 2. A “lei” em Sagarana: corretamente, foi observada a diferença entre ordem do costume e lei civil. Associei essa dualidade – costume vs. lei civil formalmente codificada – a duas categorias sociológicas, sociedade e comunidade. Lei civil prevalece na sociedade; ordem do costume, na comunidade. Observem como, em todos os relatos de Sagarana, porém de modos diferentes em cada um deles, a ordem do costume, a tradição, sempre é afirmada e prevalece sobre a lei civil. (em dose dupla em Minha Gente) 3. A precisão topográfica e geográfica, o detalhamento em GR (inclusive os 19 e 43 graus N e O de Duelo), e minha recomendação de lerem esse conto acompanhado-o em um mapa. Mostrei como há um limite para esse detalhamento; passado o rio Pará de Minas, fora da mesopotâmia entre o Rio das Velhas e o Paraopeba, como ele diz, a especificação geográfica desaparece: é tudo “o” Guaxupé, “o” São Paulo, assim como “o” Divinópolis e “o” Rio de Janeiro em A Volta do Marido Pródigo: nada é descrito desses lugares. 4. Dimensões metafísicas desse mundo tradicional e do tradicionalismo de GR: a associação platônica da origem à perfeição (da qual os ovos do Major de O Burrinho Pedrês são um símbolo ou metáfora); li trechos de Frances Yates, de Giordano Bruno e a Tradição Hermética, sobre a valorização do passado entre os neo-platônicos da Renascença, de sua busca do ouro antigo, original e primitivo, do qual os metais menos nobres do presente e do passado imediato eram uma degenerescência ou uma corrupção; voltarei ao assunto. 5. A percepção do real, a relação entre realidade e símbolo, nesse mundo primitivo: confrontem trechos como aquele da descrição da boiada a partir do seu rastro em Minha Gente, e principalmente aquelas da natureza em São Marcos, com o trecho de Octavio Paz sobre linguagem sensível que eu já havia enviado em separado e que li na oficina. 6. A propósito de comentários sobre leitura em voz alta de GR: o importante não é ler GR em voz alta; é ouvir o texto, ao lê-lo. 7. Em Minha Gente, reparem nos choques de códigos: por exemplo, nos diálogos dos enxadristas, e como isso é metáfora ou sugestão das relações entre o universal e o particular. 8. Em São Marcos, localizem os parágrafos em que é justificado o uso de linguagem e vocabulário estranho, de modo até mesmo menos mistificador do que em Hipotrélico. 9. GR reconstitui um mundo mítico: mas o que é o mítico? o que é o mito? reflitamos e retornemos ao assunto na próxima sessão. OFICINA GUIMARÃES ROSA – CAP: RESUMO DA QUINTA SESSÃO, DE 11/04 1. Na abertura da sessão, li trechos do ensaio Leilão divino, tribunal jagunço, de Fábio de Souza Andrade (revista Literatura e Sociedade, USP-FFLCH-DTLLC, n. 6, 2001-2002), que fala do modo rosiano de ver o mundo, uma perspectiva informada por elementos de explicação mágico-mítica da realidade (de origem na filosofia neo-platônica e na sabedoria e religião populares). O que expus a seguir, e talvez tenha parecido uma espécie de viagem psicodélica ou exercício de extrapolação e furor pedagógico de minha parte – com as explanações sobre o mito do demiurgo no Timeu de Platão, o ‘pequeno deus’ criador do mundo, sobre o demiurgo gnóstico, mau e incompetente, e sobre Hermes-Toth do hermetismo, criador da linguagem (também comentado por Platão, no Fedro), sobre magia, o símbolo ativo e com poderes, e sobre a concepção cabalística da linguagem (inclusive contando a lenda do Golem) –, nada mais foi do que a tentativa de detalhar isso, trocar em miúdos, esclarecer o que vem a ser explicação mágico-mítica da realidade. Tudo o que foi exposto é perfeitamente compatível com o pensamento e as intenções de Guimarães Rosa – tanto é, que sua correspondência a Meyer-Clason, ele indica os trechos de Plotino (o grande filósofo e místico neo-platônico do séc. II d.C) que transcreveu no conto Cara de Bronze. 2. Também li, a propósito da jagunçada e dos confrontos em A Hora e Vez de Augusto Matraga e, em maior grau, em Grande Sertão: Veredas, esta citação de Eric Hobsbawn, do ensaio já citado de Fábio de Souza Andrade: Em política, os bandidos tendem a ser tradicionalistas revolucionários, convertidos em símbolo ou ponta de lança da resistência de toda ordem tradicional contra as forças que a desagregam e destroem. 3. Mito e logos: Li os trechos de Mito e Realidade de Mircea Eliade (Perspectiva, São Paulo, 1972) em que o estudioso de história das religiões distingue entre as histórias verdadeiras, os mitos de origem, cuja recitação é uma cerimônia, que pertencem à esfera do sagrado para as sociedades tribais e que conferem poder a quem os recita, e as histórias falsas, fábulas e contos. Falei algo também sobre os xamãs, feiticeiros ou sacerdotes tribais, objeto de estudos importantes de Eliade. 4. Comentei a justificativa da linguagem estranha e anacrônica em São Marcos – pg. 275, no trecho sobre os bambus. Chamei a atenção para esta frase de São Marcos: E não é sem assim que as palavras têm canto e plumagem – comparem com o trecho de Octavio Paz sobre linguagem sensível nas sociedades primitivas, que já havia enviado. Detive-me nas glossolalias, fonemas não-semantizados, em São Marcos: os nomes de reis assírios no bambuzal, o Pepp or pepp, epp or see... Pepe orpépe, heppe Orcy – falamos, a propósito, sobre mantras e outras modalidades de fonemas não-semantizados. Ao final deste resumo, algumas citações de Octavio Paz sobre glossolalias como linguagem mágica e como poesia. 5. Ficou claro (espero) que São Marcos serve como chave para a compreensão de aspectos da obra de Guimarães Rosa. Nele, entramos em pleno domínio da bruxaria: seu protagonista não acredita em feitiçarias, estabelece um confronto com um feiticeiro rural, salva-se através de uma prece mágica. Para um dos estudiosos de Guimarães Rosa, José Carlos Garbuglio (Guimarães Rosa, o pactário da língua, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 22, USP, São Paulo, 1980 – recentemente, Garbuglio publicou um livro sobre Guimarães Rosa: Rosa em 2 Tempos, ed. Nankin, 2005) esse relato conteria uma poética e uma metáfora da poesia, justamente por falar do poder da palavra, capaz de agir sobre o real. O aparente sem-sentido pode ter sentidos ocultos, insuspeitos, até para o seu enunciador, como é dito a propósito da enumeração cravada no bambuzal. O relato é todo metalingüístico, pois nele há uma relação entre dois textos, ou dois discursos. Um deles, mágico, ou sobre a magia, enunciado pelos protagonistas. Outro, que equivale à linguagem da própria natureza. Momentaneamente cego, o protagonista ouve um araçari que ensaia e reensaia discursos irônicos; ele escuta os cantos de outros pássaros e outros ruídos de animais; sente e reconhece a vegetação, identifica cada vegetal; reconhece o terreno; vai percebendo, cada vez com maior clareza, que está em um labirinto. Recitando uma fórmula mágica, consegue sair do labirinto e livrarse da cegueira. O que Guimarães Rosa descreve é a relação do homem primitivo com seu mundo, sensível e significativo, por isso mesmo possível de ser descrito e também subjugado pela linguagem mágica, cujos termos guardam relações analógicas, simpáticas, com as coisas, assim como, em um determinado momento, os bambus são os barbudos reis assírios. São Marcos é um conto hermético e iniciático sobre a percepção da linguagem sensível e do mundo (arcaico e natural) como sentido. Por isso, o relato termina com uma cena de selvageria, uma explosão de fúria: é o selvagem recuperado pelo protagonista, que agora tem o poder dado pela fórmula mágica (metaforicamente, pela poesia). 6. Próxima sessão: vamos repassar Sagarana, esclarecer, examinar dúvidas: releiam, tragam perguntas e comentários. E já podem iniciar a leitura de Primeiras Estórias, ao qual dedicaremos as duas últimas sessões desta oficina. ADENDO III: AS GLOSSOLALIAS Correspondem ao dom de “falar em línguas”, a manifestação pentecostal do Espírito relatada em Atos dos Apóstolos 2, guardando semelhança, no âmbito do cristianismo, com o que ocorre em cultos batistas ou pentecostais. A emissão de glossolalias é um ato coerente: nomear um deus oculto requer uma linguagem secreta, acessível e inteligível apenas ao iniciado. O conhecimento intransitivo, sem objeto, só pode ser expressado através de uma linguagem igualmente intransitiva. Corresponde a uma resposta a estas perguntas feitas por Scholem, a propósito de misticismo e sua relação com a linguagem, e do anseio dos místicos pela auto-expressão: Como é possível dar expressão verbal ao conhecimento místico, que por sua própria natureza está relacionado com uma esfera de onde linguagem e expressão se acham excluídas? Como é possível parafrasear adequadamente em meras palavras o mais íntimo de todos os atos, o contato do indivíduo com o Divino? (Scholem, As Grandes Correntes da Mística Judaica, ed. Perspectiva, ) Glossolalias, “falar em línguas”, são examinados por Octavio Paz. Comenta sua difusão e caráter esotérico: O “dom de línguas” não foi um fenômeno exclusivo das comunidades cristãs dos primeiros séculos. É anterior a elas e se encontra na multidão de cultos orientais mediterrâneos desde a alta Antiguidade. Aparece também em outros movimentos religiosos contemporâneos do cristianismo primitivo. Os gnósticos entremeavam seus hinos e discursos de sílabas e palavras sem sentido. Em seu tratado contra os gnósticos, Plotino os censura por pretenderem encantar as inteligências superiores com a emissão de gritos, exalações e assobios. Entre os textos descobertos em Nag Hammadi há vários que incluem essas silabas e interjeições a que se refere Plotino. Em O discurso do oito e do nove lêse: “O Perfeito, o Deus invisível ao qual se fala em silêncio (...) é o melhor entre os melhores. Zozhatzo oo ee ooo ee oooooo uuuuu oooooooooooo Zozazoth”. Extraordinária afirmação: ao pronunciar esses sons incoerentes o devoto diz o nome de Deus escondido em sua intimidade. Deus se revela num nome, mas esse nome é ininteligível: trata-se de uma sucessão de sílabas (Leitura e Contemplação, em Paz, Convergências – Ensaios sobre arte e literatura, Editora Rocco, Rio de Janeiro, 1991, assim como as citações seguintes) Manifestações da crença na analogia universal, glossolalias são uma tentativa de expressar-se através da linguagem total, duplo do universo. Uma linguagem, como iria dizer Paz a respeito dos mantras budistas e, especialmente, tântricos, que: [...] apaga a distinção entre a palavra e o ato, reduz o signo a mero significante, multiplica e troca os significados, concebe a linguagem como um jogo idêntico ao do universo, no qual o lado direito e o esquerdo, o feminino e o masculino, a plenitude e a vacuidade, são um e o mesmo – linguagem que tudo significa, e que, em suma, não significa nada. A tentativa de produzir duplos do universo através de fonemas é uma exacerbação do pensamento analógico. Por isso, reaparece na poesia: Assim, na história da poesia moderna, reaparece a mesma obsessão dos gnósticos e dos cristãos primitivos, dos montanistas e dos xamãs da Ásia e da América: a busca de uma linguagem anterior a todas as linguagens e que restabeleça a unidade do espírito. Embora intraduzível para tal ou qual significação, essa linguagem não carece de sentido. Mais exatamente: aquilo que enuncia não está antes, mas depois da significação. Não é um balbuciar pré-significativo: é uma realidade ao mesmo tempo física e espiritual, audível e mental, que transpôs o domínio dos significados e os incendiou. Não é mais o sentido, está além dele. O dizer deixa de significar: mostra realidades que são ininteligíveis e intraduzíveis, mas não incompreensíveis. Não significa, e ao mesmo tempo está impregnado de sentido. OFICINA GUIMARÃES ROSA – CAP, RESUMO DA SEXTA SESSÃO, DE 18/04 1. Prolongamento de oficina: fiquei contente com interesse, satisfação e participação ativa. Para uma futura oficina, ou até para irem trabalhando por conta própria, recomendaria Campos de Carvalho – Obra Reunida pela ed. José Olímpio, tem nas livrarias. Prosador extraordinário, não está sendo estudado (no pólo oposto de GR, que é hiperestudado). 2. Questões apresentadas pela oficina: Em quais contos de Sagarana o protagonista não é nomeado, não tem nome? (ou dos oficineiros atentos e bons leitores): Minha Gente e São Marcos – nos dois, os protagonistas são de fora, exteriores à sociedade arcaica. 3. Questões apresentadas pela oficina, II: Em quais contos de Sagarana não tem mulher? (ou dos oficineiros atentos e bons leitores, bis): igualmente, São Marcos – a propósito, li trechos de Gershom Scholem, As Grandes Correntes da Mística Judaica (ed. Perspectiva), sobre a exclusão da mulher na cabala e outras correntes do misticismo judaico, nisso contrastando com religiões pagãs, nas quais, em algumas, divindades femininas são centrais (Isis, Ishtar, p. ex). 4. O negro em São Marcos e outras passagens de GR (AR, MC e outros) – fica claro, neste e em outros aspectos, que ele registra o tipo de estratificação de sociedades tradicionais, hierarquizadas; 5. Tradicionalismo em GR: repeti que, para os hermetistas, esoteristas, neo-platônicos, gnósticos, etc, o mais antigo é valorizado por, sendo antigo, estar mais próximo da origem; portanto, da perfeição, da unidade perdida (segui a argumentação de Frances A. Yates em Giordano Bruno e a Tradição Hermética). 6. Com esse tradicionalismo todo, com essa valorização toda de sociedades arcaicas ou tradicionais, poderia, ainda assim, GR ser considerado rebelde ou revolucionário? Sobre o rebelde que aspira à restauração dos prestígios nefastos do mito, li os trechos de Octavio Paz em Revolta, Revolução e Rebelião (faz parte de Signos em Rotação, ed. Perspectiva), transcritos a seguir (reaproveitando algo da minha tese); também li trechos do já citado As Grandes Correntes da Mística Judaica de Gershom Scholem, sobre misticismo revolucionário e subversivo, igualmente transcritos a seguir. 7. Li e comentei trechos do importante ensaio de Paulo Rónai que abre Primeiras Estórias, sobre a criação de vocábulos e de formas sintáticas e sobre a produção do sentido em GR, como estratégias para inquietar o leitor, para ampliar sua percepção; citei os exemplos do vocábulo grego, sebastos, e dos trocadilhos húngaros sobre czardas. Fica claro que, em GR, a linguagem não é uma coisa, mas um processo; trata-se de linguagem em movimento, cujo sentido é algo em permanente criação: o rio de Heráclito, contraposto ao Ser fixo de Parmênides. 8. A epistemologia de GR: o contraste entre realismo e idealismo, ou, em literatura, entre realismos e subjetivismos, é resolvido ou superado pela adição de um terceiro termo: o outro – daí seus relatos feitos de falas, de vozes de personagens, de outros sujeitos. 9. Próxima sessão: leremos pelo menos até a metade de Primeiras Estórias. ADENDO V: O REBELDE E O MITO Octavio Paz termina Revolta, Revolução e Rebelião com observações sobre a mudança de significado dos termos revolução e revolta na modernidade, e como estão associados a diferentes concepções do tempo: Revolução é uma palavra que contém a idéia do tempo cíclico e, em conseqüência, a de regularidade e repetição das mudanças. Mas a acepção moderna não designa o eterno retorno, o movimento circular dos mundos e dos astros, e sim a mudança brusca e definitiva na direção dos assuntos públicos. Se essa mudança é definitiva, o tempo se rompe, e começa um novo tempo, retilíneo. A nova significação destrói a antiga: o passado não voltará e o arquétipo do suceder não é o que foi, e sim o que será. (Paz, Signos em Rotação, Perspectiva, São Paulo, 1972, assim como a citação seguinte) Semelhante mudança afeta, por sua vez, o sentido dos outros dois termos examinados por Paz, revolta e rebelião: [...] a palavra guerreira, rebelião, absorve os antigos significados de revolta e revolução. Como a primeira, é protesto espontâneo frente ao poder; como a segunda, encarna o tempo cíclico que põe acima o que estava abaixo, em um girar sem fim. O rebelde, anjo caído ou titã em desgraça, é o eterno inconformado. Sua ação não se inscreve no tempo retilíneo da história, domínio do revolucionário ou do reformista, mas no tempo circular do mito: Júpiter será destronado, Quetzacoatl voltará, Luzbel regressará ao céu. Durante todo o século XIX o rebelde vive à margem. Os revolucionários e os reformistas o vêem com a mesma desconfiança com que Platão vira o poeta e pela mesma razão: o rebelde prolonga os prestígios nefastos do mito. MISTICISMO REVOLUCIONÁRIO E SUBVERSIVO Conforme Scholem, misticismo aparece quando o abismo entre o humano e o divino, tornado um fato da consciência interior em um estágio do desenvolvimento das religiões, aquele que corresponde à sua forma clássica, como religião institucional, se torna objeto de [...] uma investigação do segredo capaz de fechá-lo [a esse abismo], do caminho oculto que permite transpô-lo. [o místico] Tenta reagrupar os fragmentos quebrados pelo cataclismo religioso, recuperar a antiga unidade que a religião destruiu, mas num novo plano, onde o mundo da mitologia e o da revelação se encontram na alma do homem. Destarte, a alma se transforma em seu cenário, e a trajetória da alma através da multiplicidade abismal das coisas em direção à realidade Divina, agora percebida como a unidade primordial de todas as coisas, se torna sua principal preocupação. (Scholem, Gershom G, As Grandes Correntes da Mística Judaica, Perspectiva, São Paulo, 1995, assim como a citação seguinte) Para Scholem, isso ocorre em um terceiro estágio da história das religiões: seu aparecimento [do misticismo] coincide com o que se poderia chamar de período romântico da religião. Corresponde a uma revivescência do pensamento mítico, ou seja, daquilo que caracteriza uma etapa inicial, precedendo as religiões institucionais ou normativas. Observou que os símbolos da Cabala se apresentam invariavelmente coloridos pelo mundo da mitologia, e associou esse retorno do mito – visto como vingança do mito sobre seu conquistador –ao gnosticismo. O gnosticismo, e os misticismos dele derivados ou a ele relacionados, têm, portanto, um caráter subversivo: [...] cumpre ter em mente que todo o significado e objetivos daqueles mitos e metáforas antigos, cujos restos os redatores do livro Bahir e portanto toda a Cabala herdaram dos gnósticos, era simplesmente a subversão da lei que, em sua origem, perturbara e rompera a unidade do mundo mítico. Destarte, através de amplas e disseminadas regiões do cabalismo, a vingança do mito sobre seu conquistador é clara aos olhos de todos [...] Scholem associa tais tentativas de subverter e revolucionar a doutrina estabelecida a um período romântico das religiões, uma espécie de terceira etapa, seguindo-se ao primitivo panteísmo e à afirmação e consolidação dos grandes monoteísmos, das religiões institucionais. Há um primeiro estágio, uma época mítica, característica da infância da humanidade; que reaparece no misticismo como revanche do mítico contra o racional. Naquele estágio inicial, diz Scholem, a Natureza é o cenário da relação entre o homem e Deus, que corresponde à: A imediata consciência da inter-relação e da interdependência das coisas, de sua unidade essencial, que precede a dualidade e nada sabe da separação, o universo verdadeiramente monístico da era mítica do homem [...] ----- Original Message ----From: HF To: Willer Sent: Monday, April 23, 2007 4:29 PM Subject: oficina CARO WILLER, QUANTO A A HORA E A VEZ DE AUGUSTO MATRAGA, ALGUNS COMENTÁRIOS QUE NÃO TIVE CORAGEM DE COLOCAR AO VIVO. ESTRANHEI QUE O NOME DOS CASAL DE PRETOS SÓ APARECE NO FIM, QUITÉRIA E SERAPÍÃO; E TAMBÉM QUE O FIM DESTE CONTO NÃO RE-ENCONTRA OS PERSONAGENS DONA DIONÓRA E MAJOR CONSILVA, COMO EU PENSAVA. COMO TÉM VÍRGULAS ESTE TEU G. ROSA, MUITOS ESPINHOS.... DESCULPE DISCORDAR DE TUA AFIRMATIVA QUE NO JUDAÍSMO, CRISTIANISMO E ISLAMISMI NÃO SE REZA DIRETAMENTE A DEUS. VEJA ESTE TRECHO DE MATEUS 6, 6: QUANTO A TI, QUANDO QUISERES ORAR, ENTRA EM TEU QUARTO MAIS RETIRADO, TRANCA A TUA PORTA, E DIRIGE A TUA ORAÇÃO A TEU PAI QUE ESTÁ ALI, NO SEGREDO. E TEU PAI, QUE VÊ NO SEGREDO, TE RETRIBUIRÁ. NO VELHO TESTAMENTO, MUITOS SE DIRIGEM A DEUS DIRETAMENTE, ORA PEDINDO, ORA REZANDO - NO LIVRO DE JÓ, POR EXEMPLO. E MOISÉS, ABRÃO, TODOS.... ENFIM, É UM DETALHE NA IMENSIDÃO CULTURAL DE SUAS OFICINAS. ABRAÇO, HF _____ H, Quanto à sua pergunta sobre os destinos dos personagens de Matraga, e de alguns desses personagens serem deixados de lado, você toparia um exercício avançadíssimo e bem ousado de comparação literária? Consiste no seguinte: comparar A Hora e Vez de Augusto Matraga com um conto de Borges - A Escrita de Deus, de O Aleph - e achar através dessas leituras a resposta à sua pergunta. Que tal? Outros oficineiros também podem tentar. Quanto a falar com Deus, tema interessantíssimo, eu posso tratar disso na oficina de amanhã. Desde já adianto que, nos grandes monoteísmos, isso de falar sobre Deus através de glossolalia, ou de Deus manifestar-se desse modo, é coisa de místicos, e de heréticos. Culpa dos filósofos, que sempre complicam tudo. Nas tradições canônicas, centrais, assim como na religião popular, a interlocução é direta, como você bem observa. abraço, Claudio Willer [email protected] www.secrel.com.br/jpoesia/cw.html OFICINA GR-CAP, RESUMO DA SÉTIMA SESSÃO, DE 25/04 1. As questões incendiárias levantadas por HF, I: Falar com Deus. Ficou claro, então, que proferir glossolalias, “falar em línguas”, no judaísmo e no cristianismo, é coisa de místicos, às margens da ortodoxia ou heréticos, e não da religião normativa, institucional (pode ser de seitas e grupos específicos, como os carismáticos, como bem lembrou MH). Citei Paulo em 1 Coríntios: 14: Dou graças a Deus por falar em línguas mais que todos vós. Mas, numa assembléia, prefiro dizer cinco palavras com a minha inteligência, para instruir também os outros, a dizer dez mil palavras em línguas. Sobre místicos, a observação de Gershom Scholem a propósito de misticismo e sua relação com a linguagem, e do anseio dos míticos pela auto-expressão: Como é possível dar expressão verbal ao conhecimento místico, que por sua própria natureza está relacionado com uma esfera de onde linguagem e expressão se acham excluídas? Como é possível parafrasear adequadamente em meras palavras o mais íntimo de todos os atos, o contato do indivíduo com o Divino? 2. As questões incendiárias levantadas por HF, II: o abandono de personagens em Matraga, a ex-mulher e filha que ficam para trás. Para entender isso, é preciso levar em conta a lógica do dualismo: se alguém teve a revelação, o contato com o Absoluto, então as coisas desse mundo não interessam mais. Ilustrei com um conto de Borges, de O Aleph, A escrita do deus. Ao final, um texto meu comentando A escrita do deus de Borges. 3. A propósito de Borges e GR: São autores bem diferentes. Borges me parece mais voltado para a mensagem (transmite com precisão enredos, mensagens, que são impossíveis, fantásticos), enquanto GR seria mais voltado para o código (as invenções vocabulares, contorções da sintaxe, etc). Convergem, contudo, na visão platônica do mundo (bem mais pessimista em Borges). Há um conto de GR, Desenredo, de Tutaméia, que me parece bastante borgeano (a história do marido que se reconcilia com a mulher que o traiu, e como isso faz com que o passado vá sendo transformado). 4. As questões incendiárias levantadas por HF, III (e por outros oficineiros): Deus e GR. Li trechos do ensaio de Günter Lorenz sobre Grande Sertão: Veredas incluído na correspondência GR – MeyerClason, inclusive este: Neste mundo trágico e cheio de tensão reinam deuses que só aparentemente recuaram ante o cristianismo, mas que, na realidade, são forças motrizes dele, em que ainda se fiam e aos quais obedecem um povo e um continente inteiro. GR gostou do ensaio, o que era raro (implicava com ensaístas). Paganismo, politeísmo em GR? Não haveria contradição com uma narrativa tão cristã como A hora e vez de Augusto Matraga? (com um padre indicando o caminho etc) Isso me leva a ver GR como autor de uma tentativa de síntese não só literária (de literatura regional e universal, do beletrismo e coloquialismo modernista, das narrativas regionalistas e narrativas de introspecção, conforme foi visto), mas metafísica e religiosa (do paganismo e cristianismo, monoteísmo e politeísmo, talvez). 5. Outras questões levantadas por HF, com a colaboração de MH, AR e outros oficineiros: o casal de negros que só recebe nomes ao final, sendo que nomes, em GR, são importantíssimos, pois constituem a realidade, têm peso mágico. Aparentemente, eles têm nomes só após o momento decisivo, quando Matraga tem a revelação e se encaminha para a realização de seu destino. 6. Reaparecem as glossolalias em Primeiras Estórias? Em qual dos contos? Em Sorôco, sua mãe, sua filha – o conto é especificamente sobre o “falar em línguas”. 7. Comparações entre Sagarana e Primeiras Estórias, I: metalinguagem. Quais relatos de Sagarana e de Primeiras Estórias são metalingüísticos, sobre a própria linguagem? Em Sagarana, metalingüístico é São Marcos, que contém uma poética. A digressão sobre a linguagem às pgs. 274-275 não é uma digressão, mas uma espécie de recado, avisando que o restante também é sobre a linguagem – como já havia observado, em GR nada é gratuito; tudo, inclusive as aparentes digressões, as perífrases, rodeios, tem peso, valor simbólico. Já em Sagarana há metalinguagem em Sorôco, sua mãe, sua filha; em Famigerado, um exercício de relativismo lingüístico; em Pirlimpsiquice, que é sobre a criação como entusiasmo, possessão – e há mais: procurem e acharão. 8. Comparações entre Sagarana e Primeiras Estórias, II: Primeiras Estórias não é mais exclusivamente regional: já o primeiro dos relatos, antes um poema em prosa, é sobre a construção de Brasília. A dimensão universal de GR como que se destaca. 9. Comparações entre Sagarana e Primeiras Estórias, III: A oficina achou Primeiras Estórias mais acessível, inclusive pela menor extensão dos relatos. Mas fiz duas observações. Uma, que a legibilidade de GR aumentou em função do estágio em Sagarana. Outra, que é preciso estar atento para a dimensão simbólica: tudo tem sentidos ocultos, latentes, segundas intenções. Exemplifiquei com a reclamação de GR a Meyer-Clason, sobre A terceira margem do rio ter sido traduzido como Das Dritte Flussufer e não como Das Dritte Ufer des Flusses. A palavra composta, Flussufer como margem do rio, embora correta em alemão, neutralizava o sentido simbólico: Porque o “rio”, ali, é individuado como símbolo, e deve ser destacado fortemente, observou GR. É o São Francisco e também o rio de Heráclito, a vida, o devir cósmico etc. O mesmo vale para o restante. Procurem símbolos e acharão. 10. Próxima sessão: a oficina dirá quais, dos relatos de Primeiras Estórias, são os meus preferidos (A terceira margem do rio não vale, é hors-concours). ADENDO VI: BORGES E O DUALISMO, POR WILLER (trecho de um ensaio) Em A Escrita de Deus, de O Aleph, a ação transcorre no México do século XVI e seu protagonista é um sacerdote asteca prisioneiro dos espanhóis; mas, dos relatos borgeanos, é aquele que oferece a melhor ilustração do mito do encontro com a centelha divina ou alma verdadeira associado à gnose. Tzinacan, o sacerdote encarcerado, reconstrói pela memória as manchas na pelagem de um jaguar, animal que é um dos atributos do deus. Nelas, discerne a escrita divina, uma fórmula de catorze palavras casuais. Dizê-la o tornaria todo-poderoso, capaz de destruir seu cárcere e restaurar o reino de Montezuma: Mas eu sei que nunca direi essas palavras, porque não me lembro de Tzinacan. [...] Quem entreviu o universo, quem entreviu os ardentes desígnios do universo não pode pensar num homem, em suas triviais venturas ou desventuras, mesmo que esse homem seja ele. Esse homem foi ele e agora não lhe importa. Que lhe importa a sorte daquele outro, que lhe importa a nação daquele outro, se ele agora é ninguém. Por isso não pronuncio a fórmula, por isso deixo que os dias me esqueçam, deitado na escuridão. (Borges, O Aleph, ed. Globo) Em outras palavras, “eu” é, ou foi, após a gnose, um outro; mas esse outro, tendo sido, não importa mais, deixou de interessar, já era. A Escrita de Deus é, portanto, um apólogo ou parábola que expõe a lógica do misticismo contemplativo e, ao mesmo tempo, do dualismo radical: a centelha divina, alma verdadeira, anula o “eu” adventício; a gnose neutraliza as categorias do mundo; por isso, tornam-se indiferentes a liberdade ou prisão, poder ou submissão, miséria ou prosperidade. OFICINA GUIMARÃES ROSA – CAP, RESUMO DA OITAVA SESSÃO, DE 02/05: 1. Algumas hipóteses sobre motivos da preferência de HF e outros oficineiros por Primeiras Estórias, se comparadas a Sagarana: 1.1. Universal vs. regional: Primeiras Estórias não é mais regional, exclusivamente: dos 21 contos, 7 ou são urbanos, ou poderiam ser em qualquer lugar, ou se desenrolam (o primeiro e o último) em Brasília; 1.2. Vocabulário: correlatamente, menos regionalismos, porém muito mais invenções – os trocadilhos de Darandina, os vocábulos do grego, anglicismos (o patrão ‘esmarte’ em Tarantão meu patrão) etc (a questão do universal aparece em Sagarana lateralmente, nos enxadristas de Minha gente, nas páginas sobre linguagem e vocabulário de São Marcos); 1.3. Amor, lirismo: a relação entre homens e mulheres, o amor, tema central de alguns contos, como Seqüência, Luas de Mel e Substância; 1.4. A criança – que em Sagarana mal aparece; já em Primeiras Estórias, dos 21 contos, 7 são sobre crianças ou protagonizados por crianças, inclusive o primeiro, As margens da alegria, e o último, Os cimos. Há bastante idosos, também. O que significam as crianças e os mais velhos, sob o ponto de vista esotérico e tradicionalista? Ambos estão mais próximos da origem, do princípio: o velho, porque vai chegar lá; a criança, porque ainda não se afastou dela. 1.5. A “lei”, a dura ordem do costume, reiterada e reafirmada em Sagarana, é quebrada, relativizada ou transgredida em Primeiras Estórias (como em Luas de mel ou Os irmãos Dagobé). 2. Meus contos preferidos em Primeiras Estórias (além de A terceira margem, que, como já disse, é hors concours): 2.1. O último, Os cimos, pela prosa poética ou poesia em prosa, 2.2. O espelho, que é central na paginação, pois está no meio (e que oficineiros acharam o mais estranho): é um conto esotérico, iniciático, sobre a dissolução do mundo ilusório, das aparências, e o encontro com o verdadeiro ‘eu’, que, coerentemente, corresponde a uma criança. Reparem na estrutura do livro, que começa e termina com uma criança, e cujo centro é a descoberta da criança. Para reforçar a importância de hermetismo, misticismo e neo-platonismo em GR, ainda li as epígrafes de Plotino e Ruysbroeck em Noites do Sertão e Manuelzão e Miguilim, e trechos da entrevista de GR a Günter Lorenz, onde argumenta que seu tradicionalismo equivale a uma renovação da linguagem. 3. Metalinguagem em Primeiras Estórias: além de Famigerado, Sorôco, Pirlimpsiquice, conforme já visto, também é metalingüístico, e sobre a poesia, Partida do audaz navegante, de especial interesse por várias razões; entre outras, as seguintes: 3.1. Reitera a associação entre crianças e poesia – reparem no anagrama de poesia, Ah! Pois é, é mesmo (pg. 173) – para não acharem que é delírio interpretativo, mostrei o outro anagrama de poesia, de “O Cara-de-Bronze”, comentado por GR em sua correspondência para Bizarri (pg. 93) e MeyerClason (pg. 207): Aí, Zé, opa! (lido de trás para diante é A poesia), assim mostrando que tudo, em GR, tem segundas intenções, sentido simbólico; 3.2. A poesia é associada (assim como em passagens da sua correspondência, já citadas) a um conhecimento não-discursivo, a uma superação da lógica do discurso em Partida do audaz navegante. A propósito, o ataque aos princípios lógicos da identidade e não-contradição, no trecho sobre a Ilhazinha dos Jacarés (pg. 171), que tem e não tem jacarés... 4. Próxima sessão – releiam tudo. Façam apostila dos meus ‘hands of’. Verifiquem dúvidas, perguntas, etc. ADENDO VII: 1. CRIPTOGRAMAS, ENIGMAS, DECIFRAÇÃO: A Escrita de Deus de Borges, que comentei na oficina retrasada, é uma das expressões da teoria das assinaturas divinas de Boehme e Paracelso, por sua vez caso particular da idéia das correspondências do macrocosmo e microcosmo dos hermetistas. Novalis, o poeta-filósofo do romantismo alemão, a expressou deste modo: Diversos são os caminhos do homem. Quando são seguidos e comparados, vê-se formarem estranhas figuras, que parecem fazer parte deste grande criptograma que se entrevê em todo lugar: sobre as asas dos pássaros, sobre as cascas do ovo, nas nuvens, nos cristais e nas petrificações, à superfície das águas que se congelam, no interior e no exterior das montanhas, das plantas e dos animais, nas constelações do céu, sobre as placas de vidro ou de piche que se faz vibrar batendo nelas ou acariciando-as com um arco, na limalha que se ordena ao redor do imã e nas estranhas conjunturas do acaso. (citado em Maurice Besset, Novalis et la pensée mystique) O mesmo seria dito, quase 130 anos depois, por André Breton em Nadja: É possível que a vida peça para ser decifrada como um criptograma. Escadas secretas, molduras de onde os quadros deslizam rapidamente e desaparecem para dar lugar a um arcanjo de espada em riste ou para dar passagem aos que devem avançar para sempre, botões que são premidos muito indiretamente e provocam o deslocamento em altura e comprimento de toda uma sala com a mais rápida mudança de ambiente: pode-se conceber a grande aventura do espírito como uma viagem desse gênero ao paraíso dos ardis. (Breton, Nadja, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1999) Isso vale para as decifrações, como aquela da reconstituição da boiada por seus rastros, em Minha Gente; para São Marcos; para Seqüência, em Primeiras Estórias; e para muito mais de GR. 2. O MITO E A LINGUAGEM: Octavio Paz, em seu ensaio sobre Lévi-Strauss (Claude Lévi-Strauss ou o Novo Festim de Esopo, Perspectiva, 1977), diz que: [...] o mito opera com a linguagem como se esta fosse um sistema pré-significativo: o que diz o mito não é o que dizem as palavras do mito. Portanto, há duas coisas diferentes: uma, falar sobre o mito, tarefa do antropólogo ou do filósofo. Outra, falar a partir do mito, ou de modo mito-poético. Isso esclarece algo sobre as características da escrita de GR? 3. ATAQUES AOS PRINCÍPIOS LÓGICOS DA IDENTIDADE E NÃO-CONTRADIÇÃO: A seguir, o trecho completo de Octavio Paz – está em O Arco e a Lira e também no capítulo sobre imagem poética de Signos em Rotação – sobre ataques aos princípios lógicos da identidade e não-contradição, dos “isto é aquilo” em vez de “isto ou aquilo” (como no episódio da ilha que tem e não tem jacarés de Partida do audaz navegante, em Primeiras Estórias) que LG muito apropriadamente citou do meu prefácio para Mar de Dentro: O pensamento oriental não sofreu desse horror ao “outro”, ao que é e não é ao mesmo tempo. O mundo ocidental é o do “isto ou aquilo”. Já no mais antigo upanishada se afirma sem reticências o princípio da identidade dos contrários: “Tu és mulher. Tu és homem. És o rapaz e também a donzela. Tu, como um velho, te apóias num cajado... Tu és o pássaro azul-escuro e o verde de olhos vermelhos... Tu és as estações e os mares.” E essas afirmações o upanishada Chadogya condensa-as na célebre fórmula: “Tu és aquilo”. Toda a história do pensamento oriental parte dessa antiqüíssima afirmação, do mesmo modo que a do Ocidente se origina da de Parmênides. Esse é o tema constante da especulação dos grandes filósofos budistas e dos exegetas do hinduísmo. O taoísmo revela as mesmas tendências. Todas essas doutrinas reiteram que a oposição entre isto e aquilo é, simultaneamente, relativa e necessária, mas que há um momento em que cessa a inimizade entre os termos que nos pareciam excludentes (Paz, O Arco e a Lira, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982) OFICINA GUIMARÃES ROSA – CAP, RESUMO DA NONA SESSÃO, DE 09/05 1. Iniciei citando um conhecido fragmento de Novalis, poeta-filósofo do romantismo alemão: Poesia é o real absolutamente verdadeiro. Esse é o cerne da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro. Comparei com as declarações de GR, mostradas no início destas oficinas, sobre a poesia em sua obra: o tudo para a poesia, sua crítica ao lugar-comum e sua defesa do mistério e da obscuridade. 2. Bobagens curriculares e a leitura literal de GR, como esta pérola dos PCNs, Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (objeto de fortes críticas minhas e felizmente em processo de revisão): A literatura é um bom exemplo do simbólico verbalizado. Guimarães Rosa procurou no interior de Minas Gerais a matéria-prima de sua obra: cenários, modos de pensar, sentir, agir, de ver o mundo, de falar sobre o mundo, uma bagagem brasileira que resgata a brasilidade. Indo às raízes, devastando imagens pré-conceituosas, legitimou acordos e condutas sociais, por meio da criação estética. Mostrei as conseqüências desastrosas dessa idéia de “legitimação” de acordos e condutas sociais: iríamos “legitimar” acertos de contas sangrentos, como no final de A hora e vez de Augusto Matraga; a solução de disputas políticas e grilagem de terras por bandos de jagunços como em Grande Sertão: Veredas e outras das narrativas roseanas; a execução de forasda-lei por policiais, como no conto Fatalidade de Primeiras Estórias etc. Dos modos de leitura já expostos – literal, alegórico ou simbólico – deve-se ler GR no modo alegórico e, principalmente, simbólico, levando em conta sua filosofia, sua visão de mundo. 3. Em No Urubuquaquá, no Pinhém, volume de Corpo de Baile: mais epígrafes de Plotino e Ruysbroeck (já comentei em outras ocasiões: quem leu Plotino foi GR, não os seus sertanejos...) – as chaves alquímicas e astrológicas em O recado do morro – o enigmático “Cara-de-Bronze” (onde tem o Moimeichego, quatro vezes “eu”, que é o próprio autor) – sua variação de gêneros, parte é como se fosse peça de teatro, parte é relato, parte com a forma de roteiro de cinema, sugerindo que se trata de uma reunião de todos os modos da escrita – as notas de rodapé: a extensa enumeração de nomes de vegetais, terminando por declarar que Falta muito. Falta quase tudo; os pássaros; os personagens; as citações de cantigas; os trechos de Dante, de Platão, do Fausto de Goethe, e finalmente as passagens do Chandogya-Upanishad – ou seja, o mesmo upanishada, o mais antigo deles, citado por Octavio Paz no trecho sobre o oriente não partilhar do horror ao outro ocidental e admitir a identidade dos contrários – lembrando, essa citação de Octavio Paz surgiu na sessão passada, mencionada por LG, a propósito dos ataques ao princípio lógico da identidade e não-contradição pelas crianças-poetas de Partida do audaz navegante de Primeiras Estórias – enfim, tudo isso serviu para ilustrar a noção de hipertexto, e para caracterizar a prosa de GR como hipertexto. Esse percurso todo, dos rodapés de “Cara-de-Bronze”, passando pelo trecho já citado de Octavio Paz, até chegar às crianças-poetas de Partida do audaz navegante, está dentro de Partida do audaz navegante e “Cara-de-Bronze”, faz parte de seu sentido, entre tantas outras possibilidades de leitura e interpretação. 4. Diante disso, como ler GR? O leitor teria que ter um conhecimento equivalente a toda a simbologia e tudo o mais que está subentendido em seus relatos? Citei os trechos de GR, no Cadernos do IMS, criticando a afetação de Machado de Assis e o cerebralismo de James Joyce (críticas a meu ver não inteiramente justas: Machado é ambivalente, e Joyce não foi tão construtivista assim, lembrando seu elogio ao romantismo em Os mortos) – sem querer transformar GR em surrealista, cabe lembrar seus apelos à imaginação e à intuição. A propósito, citei o trecho em que GR manifesta sua admiração por Freud. 5. A bibliografia sobre GR: o ensaio de Walnice Galvão nos Cadernos do IMS – onde a ensaísta coincide com minhas interpretações de Primeiras Estórias, e onde acrescenta – por exemplo ao ver, como característico dessa obra, não só a presença das crianças e os velhos, mas dos excêntricos e outsiders, os loucos de Darandina e Tarantão meu patrão, os mendigos de A benfazeja, o estrangeiro de O cavalo que bebia cerveja, etc – único aspecto que eu interpretaria de modo diferente: em O cavalo que bebia cerveja penso que não há uma passagem da rejeição do estrangeiro até sua aceitação, mas ambivalência, uma simultaneidade dos dois sentimentos. 6. A infância e a reconstituição da infância em GR, como observado pela oficina – sim, mas a obra de GR não é Em busca do tempo perdido de Proust – a recuperação da infância, volta às origens, a reconquista do tempo primordial, são mitos ou temas fundadores da literatura, algo universal: interessa em GR, não a idealização e tentativa de recuperação da infância, mas o modo pessoal e particular como fez isso, e como projetou sua visão de mundo (e sua enorme cultura literária e filosófica) nessa recuperação da infância. 7. Próxima sessão: será a última desta oficina, dia 23 de maio, e não 16, com a projeção do filme A Hora e a Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos (que GR apreciava muito) e uma rodada final de perguntas e comentários. Claudio Willer (Brasil, 1940). Um dos editores da Agulha. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Jack Kerouac el poeta bop espontáneo José Vicente Anaya . En la mayoría de las referencias literarias sobre Jack Kerouac se le clasifica (y queda congelado) como prosista, autor de novelas, además, esas referencias no escapan de contar con tan pobre información que sólo darán tres o a lo sumo cinco títulos, cuando sabemos que fue autor de más de veinte obras de prosa. Pero la verdad es que tenemos en Kerouac a un gran poeta, tan singular que en su tiempo los “expertos” en poesía no lo reconocieron, salvo algunas opiniones de sus compañeros de generación. Kerouac alcanza la categoría de poeta no sólo por la indiscutible presencia de sus poemarios publicados, sino por las atmósferas precisamente poéticas y las renovaciones del lenguaje literario tanto en sus libros de prosa como de poesía. Muchas intensidades se pueden recoger de su famosa novela En el camino, donde no parece que simplemente hable de jóvenes de la época sino de catervas de Rimbauds, de dadaístas o surrealistas, anarcoinventores; es decir, energías poéticas de vitalidad, por ejemplo cuando de él leemos: ...los únicos que me interesan son los locos, los locos por vivir, locos por hablar, locos por salvarse, deseosos de todo al mismo tiempo, los que nunca bostezan ni hablan de lugares comunes; sino que arden, arden, arden cual fabulosos cohetes pirotécnicos que estallan en el firmamento como arañas cruzando las estrellas... En el reconocimiento temprano a capacidad poética de nuestro autor, cuando éste aún vivía, otro polémico y crítico clarividente de profunda mirada, Hernry Miller, opinó: Jack Kerouac le ha hecho algo a nuestra prosa inmaculada, algo de lo cual ya nunca se recobrará. Kerouac es un amante apasionado del lenguaje, y sabe muy bien cómo utilizarlo; es un virtuoso de nacimiento que se complace en desafiar las leyes y convenciones de la expresión literaria que ahora está tullida; y rompe las trabas de la comunicación entre el lector y el escritor. En aquel ambiente literario de los Estados Unidos no fue ningún secreto que Jack Kerouac escribía poesías puesto que de 1945 en adelante en varias conocidas revistas aparecieron sus poemas. Ahora encontramos a Kerouac en por lo menos quince poemarios. Cito en español algunos títulos, aclarando que la mayoría no han sido traducidos a nuestra lengua: Ciudad de México, blues, Escritura de la eternidad dorada, Poemas dispersos, Paraíso y otros poemas, San Francisco blues, Richmond Hill blues, Bowery blues, Desolación blues, El libro de los blues (que reúne a todos los señalados con ese género musical), Trip trap (libro colectivo) y en una edición póstuma el Libro de los haikus (recopilación y prólogo de Regina Weinreich. Considerando que entre las décadas de 1940 y 1950 en los Estados Unidos predominaba una visión pesadamente ortodoxa sobre lo que debe ser poesía, con una serie de cánones encerrados (como suelen ser éstos) en los recintos académicos, los poemas de Kerouac (y en general de los demás beats) no eran reconocidos. Para muchos críticos, profesores universitarios y poetas del status quo en ese tiempo vigente, era inadmisible que en poesía apareciera el lenguaje, las personas y las cosas de la cotidianidad, se consideraban de mal gusto las palabras coloquiales en términos de caló, slang, modismos; y mucho menos se aceptaba que la poesía pudiera retratar lo ordinario. En ese ambiente de literatura elitista era mal visto el jazz (música de negros que se tocaba en los barrios obreros) aunque Igor Stravinsky ya lo estaba incluyendo en sus obras para música de cámara. El jazz (también conocido entonces como blues o be bop) era de los bares “bajos”, de los que habitaban las noches desoladas, estaba en los muladares de las grandes ciudades del progreso estadounidense. Incluso, uno de los pocos poetas con renombre y de más edad que vieron con buenos ojos a los jóvenes beats, Kenneth Rexroth, despreció la poesía de Kerouac, quien a propósito de la primera edición en 1959 del poemario Ciudad de México blues dijo que dicho libro constituía una “ingenua desfachatez” y que darle el crédito de poesía era algo “más lastimoso que ridículo”. Sin embargo, el poeta más divulgado de la generación beat, Allen Ginsberg, varias veces declaró haber aprendido poesía por Jack Kerouac, y ese reconocimiento lo hizo desde su poemario Aullido y otros poemas, desde la primera edición de 1956 declara dedicarlo: “A Jack Kerouac, nuevo Buda de la prosa estadounidense... De él he tomado algunas frases y el título Aullido.” Al principio de Ciudad de México blues Jack lanza la convicción de su poética diciendo: “Quiero que se me considere un poeta jazzista que sopla un largo blues durante una sesión de jam en la tarde de un domingo.” Una explicación más detallada la dio a conocer en el texto que tituló “La sustancia de la prosa espontánea” en 1951 en que dice: “Cuando el ser del tiempo de la esencia está en la pureza del discurso, entonces el lenguaje insinuado fluye desde la mente, sin perturbación, como un secreto personal de palabras-ideas, soplando (como lo hace el músico de jazz) en la subjetividad de la imagen.” CON BASE EN LAS IMPROVISACIONES DE LAS JAM-SESSIONS, EL POETA PROPONE PARA LA LITERATURA Y ESPECIALMENTE LA POESÍA: “No seleccionar la expresión sino seguir libremente las desviaciones (asociaciones) de la mente en los límites que soplan sobre el sujeto en los océanos del pensamiento, nadando en el mar del lenguaje sin más disciplina que el ritmo de la exhalación y del relato contendiente, como un puñetazo cayendo sobre una mesa con toda la expresión al detalle: ¡pum! (el espacio ataca) — Tú debes soplar tan profundo como quieras —, escribe tan profundo como quieras, lo principal es satisfacerse a uno mismo, es entonces cuando el lector no puede dejar de percibir la sacudida telepática ni la emoción principal que opera bajo las leyes de la mente humana”. En su libro Poemas dispersos (que reúne trabajos publicados en revistas de 1945 a 1969) bajo el título de “Los orígenes del gozo en la poesía” Kerouac hace una importante declaración de principios poéticos, y sobre todo, caracteriza a los nuevos poetas y a la poesía que se gesta en términos de su generación. Ahí dice: La nueva poesía estadounidense clasificada como Renacimiento de San Francisco (lo que incluye a Ginsberg, a mí, Rexroth, Ferlinghetti, McClure, Corso, Gary Snyder, Philip Lamantia, Philip Whalen, según creo) es una especie de nueva-antigua poesía Lunática Zen, escrita tal y como llegue a tu cabeza, poesía que retorna a su origen, en la infancia bárdica, verdaderamente ORAL (como dijo Ferlinghetti) y no con ese aspecto gris de subterfugios académicos. Desde hace mucho tiempo poesía y prosa han caído en las falsas manos de la falsedad. Estos nuevos poetas puros se confiesan abiertamente por el puro gozo de confesarse. Son NIÑOS. También son Homeros infantes con barbas grises que cantan en las calles. Ellos CANTAN y BAILAN. Lo que hacen está diametralmente opuesto al disparo de Eliot anunciando tan deplorablemente sus reglas negativas como una intención correlativa, etc., lo cual es exactamente mucho estreñimiento y una radical castración de la masculinidad pura que urge a cantar con libertad. A pesar de las reglas estériles que él estableció, su poesía es sublime por sí misma. Podría decir mucho más pero no tengo tiempo ni tiene caso. Pero la poesía de la ciudad de San Francisco es una nueva Sacralidad Lunática como la de los tiempos antiguos (Li Po, Hanshan, Tom O Bedlam, Kit Smart, Blake) que también tiene esa disciplina que señala las cosas directamente, con pureza, concretamente, sin abstracciones ni explicaciones, ¡bum! ¡bum! El verdadero canto blues del ser humano. Hasta aquí, las breves menciones al misticismo o poéticas de China y Japón (budismo, Zen, Li Po, Hanshan, Bachoo, Buzon) en la vida y obra de Kerouac fueron determinantes. El estudio de esos temas y formas de vida los llevó a lo profundo el poeta beat Gary Snyder, en cuya formación incluyó el aprendizaje de los idiomas chino y japonés para abrevar en los textos originales, y luego acudir a estudios e iniciaciones en un monasterio Zen de Japón. Para Kerouac, dicho poeta y amigo de generación fue tan importante guía que llegó a ser un verdadero maestro que recibiría el honor de ser personaje importante en sus novelas como Ángeles de desolación y Los vagabundos del Dharma (donde hay sucesos que tienen que ver con el budismo). Otra novela que expresa la formación orientalista de Kerouac es Satori en París. En esos libros encontramos las meditaciones que lo llevaron a sus interioridades y visiones irrenunciables, como las de la mirada poética espontánea. En la preparación para todos esos encuentros, Kerouac hizo detallados estudios que dejó manifiestos en uno de sus cuaderno de notas y reflexiones que tituló “Algo del Dharma”. Esas ocupaciones y preocupaciones de Jack las encontramos mencionadas en muchos de sus poemas, y constituyen puntos centrales de su estética escritural; sencillamente su convicción de lo espontáneo (en prosa y poesía) no es otra cosa que la experiencia del satori en cuanto que éste constituye una súbita iluminación. Además de las menciones hasta aquí dichas, Kerouac escribió poesía absolutamente inmersa en el budismo, como es el caso de su libro Escritura de la eternidad dorada, un verdadero mantra sagrado desde la perspectiva de un misticismo que situado en Occidente se comunica con su parte oriental para reunificarse con su origen. Otra gran carga oriental en la poesía de Kerouac es su profusa escritura del género poético de la brevedad por excelencia, que es el haiku japonés, inmerso en el budismo Zen y fuente del mismo. Aunque el haiku ya había sido visitado por poetas estadounidenses como Ezra Pound, William Carlos Williams, Amy Lowel y Wallace Stevens; fueron Kerouac y su generación quieness más lodivulgaron. Una interesante obra colectiva dehaikus es la titulada Trip trap, de 1959, realizada por Kerouac, Albert Seijo y Lew Welch. Haikus escritos por ellos durante varios días de un viaje por carretera. El Libro del haiku que al principio mencionamos, se debe a la investigación, estudio y recopilación que hizo Regina Weinreich en la obra dispersa de Kerouac, y maravilla que dicha investigadora haya encontrado nada menos que 651 haikus kerouaquianos, cantidad asombrosa que no sólo vuelve a atestiguar al poeta cabal sino también al gran experimentador convencido de sus visiones. En el prólogo, dicha estudiosa afirmó: “Jack Kerouac fue un poeta supremo que supo escribir de acuerdo con varias tradiciones poéticas, incluyendo sonetos, odas, salmos y blues (en lo que él se basó para crear idiomas de blues y jazz).” Respecto a los nueve poemarios que Kerouac clasificó con el termino de blues (San Francisco blues, Ciudad de México blues, Bowery blues, etc.) son varias las contribuciones a la poesía. Además de darle un lugar muy importante a la improvisación (lo espontáneo como satori, habíamos dicho) hay una serie de recursos que en ese momento eran impensables en la poesía estadounidense como incluir el ruido, el grito, sonidos de la calle, rugidos y notas musicales en síncopa; todo eso diluido con palabras que nos hacen ver lo que el poeta vio. Es así que Kerouac a su poética agrega la idea de que: “...en estos [libros de poesía] blues, como en el jazz, la forma está determinada por el tiempo y por el fraseo espontáneo de los músicos, armonizándose con el golpeo del tiempo como si se formaran olas y olas en coros medidos.” otro tiempo y espacio. Hasta aquí sólo tratamos una pequeña parte de la formación y características del poeta Jack Kerouac. Tanto en sus poemas como en su ideas es tema fuerte también su catolicismo del cual sustrae el salto a la trascendencia mística de, por ejemplo, san Juan de la Cruz o de santa Teresa, tema al que habría que dedicarle Existe un modo extraño en que Jack Kerouac se despidió del mundo después de su muerte. Y de este escrito así me voy a despedir ahora. Fue en un poema Alice Notley, también alcohólica como Jack. En ese poema Alice se declaró a sí misma como médium para que a través de ella Kerouac nos dijera algo desde el más allá, lo leemos: JACK HABLARÁ A TRAVÉS DE ESTA MÉDIUM IMPERFECTA QUE ES ALICE: …Las palabras son sólo una palabra, la palabra perfecta- Mi cuerpo mi alcohol mi dolor mi muerte son sólo la palabra perfecta mientras te lo estoy diciendo. Escuchen pobres categorizantes sosos: todo lo que he sido y escrito fue únicamente y todo (amable) esa palabra perfecta. José Vicente Anaya (México, 1947). Poeta, ensayista, traductor e editor. Es uno de los directores de la revista Alforja. Autor de libros como Los poetas que cayeron del cielo. La generación beat comentada y en su propia voz (1998), Cuento breve japonés (2002), y El rompimiento amoroso en la poesía (2006). Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 José Ángel Leyva: sin que las dudas se agoten [entrevista] Floriano Martins . José Ángel Leyva (México, 1958) Botellas de sed. Universidad Autónoma de Sinaloa. México. 1988. / Catulo en el Destierro. UNA. Colección El ala del tigre. México. 1993. / Entresueños. Conaculta/Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas. Colección Los Cincuenta. México. 1996. / El Espinazo del Diablo. Juan Pablos Editor/ Instituto Municipal del Arte y la Cultura de Durango. México. 1998. / Catulo en el Destierro. Verdehalago-CONACULTa. México. 2006 (2ª edición) / Duranguraños. IMACAlforja. México. 2007. FM Estaba leyendo un poema de Armando Romero que pregunta, al final: “¿Dónde está el poema, entonces, /la mirada hacia adentro?”, y recuerdo que en una entrevista con él conversamos sobre la distinción entre acción y objeto, o sea, ese abismo que en muchos casos existe entre la poesía y el poema. No sé cómo ves el tema, y no quiero aquí limitarlo a una única pregunta, pero ésta es inevitable: ¿Qué buscas a través de la poesía? JAL Es una interrogante que me hago a menudo. El poema como producto escritural, como artefacto, se limita a la aplicación de diversas técnicas y a ciertos convencionalismos que acotan sus posibilidades expresivas. Octavio Paz reflexionó sobre el tema en el libro La otra voz, específicamente en su ensayo “Poesía y fin de siglo”, siendo ya un hombre de más de ochenta años con una gran curiosidad, con la misma inquietud de un joven que se inicia en un arte y en un oficio. La presencia de las nuevas herramientas electrónicas motivaba la sospecha de que algo nuevo estaba por ocurrir en los terrenos de la poesía. Yo he trabajado también este tema en mis ensayos sobre la realidad virtual y la poesía, el sueño y la sobrevivencia. Más allá de una retórica, de una disposición específica de las palabras, la poesía busca además su reconocimiento y significancia en otros signos y otros discursos. La palabra es la materia prima con que elaboramos los versos y los textos, pero no podemos desdeñar las búsquedas de los poetas en diversos lenguajes, en diversos planos de la realidad. Así tenemos la poesía visual, la prosa poética, y me atrevería a incluir los poemas que encierran obras plásticas, cinematográficas, musicales, dramáticas. Tarkovsky, Jim Jarmusch, Bergman, Buñuel, Herzog, Wenders, comparten con Hermann Broch (La muerte de Virgilio), en más de un sentido, el encuentro con la poesía en sus respectivos lenguajes. Cada día me convenzo más de que la poesía nos revela el sentido del tiempo, el significado individual de la historia, de las comunidades que nos pueblan, de lo imposible. Si busco mi voz a través de la poesía y del poema, de la escritura, es porque en realidad pretendo significar la nada, esa nada que soy yo, que somos. Resumiendo a través de los versos finales de mi Catulo en el destierro: “Un manojo de llaves /para abrir todas las puertas /que dan hacia ningún lado”, o mejor aún en versos previos: “Voy a lo inaudito /con el corazón arponeado por la duda.” FM Ahora es un verso tuyo el que me socorre, que dice: “Hay días feroces / en que nadie reconoce mis banderas”. Claro que el contexto al que se aplica en el poema (“Viento fuerte”, de El espinazo del diablo, 1998) tiene su enfoque particular. Lo que me interesa aquí es la expectativa creada en torno al reconocimiento. Uno de los conflictos más agudos que debe enfrentar hoy un artista -no sólo un poeta- es el de la convivencia con el reconocimiento de sus pares más inexpresivos, aquellos dispuestos a la cooptación a cualquier precio. ¿Con qué intensidad se verifica esa vorágine en México, y de qué manera has sobrevivido a ella? JAL Tengo una biografía que me hace sentir una existencia epigonal y un cierto escepticismo hacia las filiaciones ideológicas, las incondicionalidades políticas, las admiraciones lucrativas, los matrimonios resignados. Fui militante comunista en mi juventud, excesivamente liberal, según los camaradas de entonces, en los años terminales del Partido Comunista Mexicano; estuve en la Unión Soviética cuando se dio la invasión a Afganistán como anuncio del desmoronamiento imperial del realismo socialista; soy tránsfuga de la medicina y de la psiquiatría por no tener la capacidad de vacunarme contra el dolor y por una morbosa afición por recrearlo en la literatura; me reconozco con graves conflictos con la autoridad, con la simulación y la irracionalidad afectiva. No puedo contener mis juicios a cambio del bienestar y el confort, del sosiego. No me interesa comprar un espejo que me brinde una imagen en la que no me reconozco. Ser poeta no me hace mejor persona, ni superior a otros, no me garantiza la verdad ni me otorga un sitio en la historia. Creo ser poeta porque soy un animal de preguntas, un animal que se conmueve al despertar de mundos soñados que parecen imposibles, pero en su revelación manifiestan ya la posibilidad de ser. De este modo mis banderas cambian, se contradicen, se afirman y se niegan, combaten sin pertenecer a nadie, salvo a la misma causa que las sostiene en el tiempo. La enfermedad de los poetas no es la soberbia y la envidia que caracteriza al gremio, sino la conciencia del prestigio y las prestaciones que brinda el título con sus consecuentes cuotas de conformismo y sumisión. Nadie con este padecimiento banal puede reconocer la obra del compañero, está incapacitado para ver y sentir el pulso y la fuerza en el otro. En México, como en el resto de los países de América Latina, no estamos exentos de pandillas y predadores solitarios. Uno sobrevive entonces gracias al trabajo, a la determinación de resistir el desaliento, de reconocerse en esa indiferencia o ninguneo, con el propio entusiasmo de quien se ve nacer en la voluntad de llamar a las cosas por su nombre. FM Dice Evodio Escalante en un ensayo sobre tu poesía que “todo poeta tiene una forma de caer que es la suya y no puede ser copiada por nadie”. Lo que naturalmente me llamó la atención fue esa aplicación inusual del verbo “caer”. De alguna manera implica que toda afirmación del ser es una caída. ¿Estás de acuerdo con eso? JAL Absolutamente. Pienso en Cioran y en su Caída en el tiempo, que es de algún modo el descreimiento de lo que uno supone o suele ser. La duda es el principio de esa caída y de ese exilio que nos marca un destino, la lucidez del final. Alfredo Fressia también alude en un ensayo sobre mi poesía a la condición de escucha, del hombre que más que hablar está atento a los sonidos, a los efectos sonoros y emocionales, racionales, de las palabras. Esa connotación existencialista que da Evodio a mis poemas radica a mi parecer en la memoria, en la noción de los hechos acaecidos, en lo irrepetible y en la gravedad del tiempo. Caer es advertir la fuerza de atracción sobre el cuerpo, su inevitable decadencia. Al nombrar caemos en el conjuro, somos víctimas del vacío que representa y genera la muerte, lo pasado, lo futuro. Caer en la cuenta, tomar conciencia de lo que somos porque fuimos o porque no hemos sido. Caer de lleno o de plano en la novedad de lo que estamos siendo, diciendo, haciendo, escribiendo, de lo que no somos. FM Estableces una distinción entre el “desorden” en que fue concebido un libro como Botellas de sed (1988) y la “auténtica disciplina” que habría propiciado la creación de Catulo en el destierro (1993). Me gustaría conocer un poco más tu opinión respecto a estas dos circunstancias que aparentemente consideras como antípodas. JAL En Botellas de sed los poemas brotaron bajo una ausencia de convicción de la caída, del vacío, sin sumergirse en la oscuridad, hasta el fondo. Versos que aparecen por el impulso y la casualidad. Catulo en el destierro fue concluido en 1988, y después de casi cinco años a través de un accidentado camino editorial poblado de anécdotas, fue publicado en la Universidad Nacional Autónoma de México en la colección el Ala del tigre, que dirigía Vicente Quirarte, quien es apenas cuatro años mayor que yo, pero en ese momento daba la impresión de aventajarme un decenio por su vertiginosa carrera literaria y laboral. Catulo surge en la ruptura con la medicina y el compromiso con la escritura, bajo un sentimiento de orfandad y crisis de identidad, en medio de una megaurbe donde la ansiedad y el miedo torturaban mis sueños, mi timidez ante los deseos, ante las mujeres amadas. La inseguridad campeaba en mi universo, no podía aprehender algo sin asfixiarlo. Thornton Wilder con sus Idus de Marzo, Rubén Bonifaz Nuño con El amor y la cólera y sus traducciones de Carmenes del poeta romano, me empujaron a visualizarlo en la megalópolis, en ese tiempo de anuncios fatales que predicaban no sólo el fin del milenio, sino de las utopías, de la historia, de la poesía, de los libros. El poeta Catulo encarnaba en una de mis lecturas fundamentales, Palinuro de México de Fernando del Paso, sin dejar de lado el pesimismo y el escepticismo de Cioran. Un viejo amigo, Miguel Rubio Candela, que contaba ya con 70 años, leyó mis primeros intentos y alguna vez enojado los rayoneó y rompió en mis narices. “Esto no es lo que deseas y puedes escribir. Asume tu responsabilidad. Quieres hacer poesía, entonces reconócete poeta, responde a ese designio.” Me dijo con el ceño fruncido pero con enorme generosidad. Catulo no era un conjunto de versos, sino un poema extenso, un proyecto que exigía concentración y muchas lecturas, la disposición de mucha energía para construir los escenarios donde cobraba vida ese Catulo capaz de recorrer las entrañas de la ciudad y de remontarse hasta los orígenes del verbo, de abrirse el pecho y preguntar a la brújula de su corazón por las razones del cerebro, por las coordenadas de la incertidumbre. El amor como enfermedad del ser, urgencia del deseo, rabia, impotencia, insumisión e inconformidad son ingredientes de este personaje que se fue apoderando de mí. Yo, autor, estaba poseído por esa criatura virtual que me empujaba al delirio y el resentimiento con el mundo real, con mi cotidianidad. La disciplina, pues, la imponía Catulo, no José Ángel Leyva. Años más tarde el poema fue puesto en escena por Bernardo Galindo. Hasta la fecha, el actor que representó al protagonista está convencido de que él es Catulo. Nunca más ha vuelto a actuar. FM Al escribir sobre tu novela La noche del Jabalí (2002), Antonio Coronado evoca lo que él llama una técnica aparentemente simple: el desdoblamiento provocado de relatos comunes por parte de los integrantes de una comunidad. Dice él que “parece ser que la clave de nuestra existencia civilizada no está en el acto creativo como sugieren y aun afirman algunos, sino en el recuerdo y la memoria”. Al comentar justamente la relación entre memoria y acto creativo, Armando Romero observa: “La diferencia que yo establezco con García Márquez es que yo quiero ir hasta el final de la historia, mientras que él les pone a sus personajes alas o los llena de mariposas amarillas”. Dice además Romero: “Para mí lo fantástico está en la realidad imaginativa del personaje, para él en la realidad imaginativa del escritor”. ¿Qué me dices tú? JAL Coincido con Armando Romero, lo fantástico ocurre en la realidad imaginativa del personaje. Los autores solemos ser muy sosos, precarios en nuestra dimensión protagónica. Por eso el narrador, como el poeta, abrevan en la tradición oral, en la memoria y en la fabulación colectivas. Cuando se descubre a un personaje real o cuando se le escucha verter su caudal imaginativo, el escritor se lo apropia, o lo expropia, y le otorga la naturalización literaria. Sigo convencido de que la fuente principal de la narrativa es la tradición oral, el ojo de agua donde abrevamos la sed de contar y de escribir motivados por la realidad y el mito. Los personajes propios, que aparecen en el acto escritural, también exigen sus derechos y sus iniciativas, no obstante que el autor está obligado a conducirlos y a determinarlos, es inevitable el diálogo con ellos, la interacción con sus propias posibilidades de ficcionar. Ese maravilloso ejemplo que nos otorga Miguel de Unamuno en su famosa Niebla (la nivola) devela la condición rebelde del personaje que polemiza con el escritor sobre su destino y de algún modo le exige que se transforme en personaje para estar al nivel de la interlocución. Unamuno, como Borges, asumieron el riesgo de trasladarse a la escena donde el tiempo no se renueva sino que se repite en su realidad fantástica, mitológica. Dante lo hizo antes que ellos en La Divina Comedia. FM ¿Vamos a hablar un poco de tu genealogía? JAL Ahora descubro, tras la muerte reciente de mi padre, que fui en gran medida un terreno fértil para sus sueños. Lo demás es parte de ese magisterio donde los grandes poetas, los grandes escritores e intelectuales, los artistas, los revolucionarios, los personajes, las conversaciones nos hacen parte de su ADN o nosotros los incorporamos al nuestro. FM ¿Pero se puede pensar en algunas particularidades (nombres, circunstancias, inclusive fuera del ambiente literario), inclusive algo que funcione como una obsesión o un fantasma, algo que persigues, o algo de lo que no te consigues librar, etc.? JAL Sí, por supuesto, Floriano. Pienso que tiene mucho peso la presencia del ambiente familiar. Soy nieto e hijo de profesores de primaria. Mi padre por otro lado fue un activista en favor de los derechos de los campesinos y los trabajadores de la madera. Yo viví con él mi infancia, en medio de bosques y las montañas, de fiestas escolares y celebraciones populares que él organizaba para los habitantes de un pequeño poblado que se llama Los Bancos, en las inmediaciones de El Espinazo del Diablo. Desde muy niño tuve que memorizar poemas de los poetas románticos y modernistas mexicanos y algunos que no son de aquí, pero la costumbre nos hacía reconocerlos como mexicanos, como es el caso de José Santos Chocano, de origen peruano. Así pues mis lecturas escolares giraron en torno a Manuel Gutiérrez Nájera, Amado Nervo, Ramón López Velarde, Juan de Dios Peza, Salvador Díaz Mirón, y por supuesto, Sor Juana Inés de la Cruz. Nunca faltó José Martí para alimentar el nacionalismo paterno. No había muchas lecturas en casa, pero las pocas que había sirvieron para estimular mi curiosidad y gusto por la declamación. En particular recuerdo un disco de Manuel Bernal, que se autonombraba en la portada como “El declamador de América”, que mi madre ponía a menudo para derramar lágrimas al escuchar esos versos cargados de excesivo dramatismo. Fui quizás por ello y por el orgullo que le provocaba a mi padre, director de la escuela donde estudié mi primaria, un declamador con trofeos. Antes que de la poesía fui lector de narrativa, pues mi hermano mayor comenzaba a leer a los escritores rusos y a Hermann Hesse. Fui recogiendo cada uno de los libros que él compraba y los leí con avidez. Tenía entonces unos 12 o 13 años y estudiaba la secundaria en Durango con mi abuela paterna, quien fue también un ser muy importante en mi formación. Ella sobre todo era una cinéfila incurable. Había quedado viuda muy joven y cada tarde sin falta asistía a las salas de cine para ver funciones de tres películas. Con frecuencia lograba adivinar a qué cine iba a entrar y la esperaba, junto con un primo hermano, en la taquilla; no tenía más remedio que invitarnos a acompañarla. A lo largo de mi vida el cine ha sido una presencia ligada a mis sueños y a mi vigilia. Me leí casi todo Hermann Hesse en esa época de adolescencia, conocí a Tolstoi, Dostoievsky, Máximo Gorky, Flaubert, Balzac, Zola. Luego, junto a los libros de marxismo leninismo, y la infaltable influencia de Reportaje al pie de la horca, del checo Julius Fuzik, descubrí a Pablo Neruda, César Vallejo, Octavio Paz y Dylan Thomas. Quiero reconocer que en esa época leí por obligación en la escuela, no recuerdo si en partes o completas, las obras El Quijote de la Mancha y La Divina Comedia. Ambas vinieron más tarde, cuando la poesía comenzaba a ser parte de la incertidumbre y de mis inquietudes estéticas y no ideológicas. Ya era estudiante de medicina cuando me encontré por accidente con un ejemplar de La Divina Comedia. Me llamó la atención el objeto, sus ilustraciones y luego el prólogo de Borges y enseguida esas líneas inmortales con que Dante abre el camino del Infierno. Hasta ese momento ningún autor había sacudido mi ser con tanta fuerza como Dante. Luego vino Cervantes, Borges, Hermann Broch, Juan Rulfo, Juan José Arreola, los Contemporáneos mexicanos, Fernando del Paso, Fernando Pessoa, los simbolistas franceses, el boom latinoamericano. En fin, un descubrimiento intelectual y literario que me facilitaron dos amigos en Durango, la escritora Beatriz Quiñones y el historiador y pintor Carlos Maciel. Lo demás vino a consecuencia de este impulso adquirido en la adolescencia y los años previos a mis veinte de edad. Por cierto, en esa etapa estuvieron Guimarães Rosa y Jorge Amado. Soy tributario de cada una de las lecturas que sembraron mi horizonte local para exigirme reinventar mi árbol genealógico. FM Conversando con José Vicente Anaya, tu compañero en la consistente aventura editorial de Alforja, él me dijo que había tomado El Corno Emplumado como un referente esencial en relación con el proyecto de ustedes. ¿Qué viene a ser, exactamente, la “Fraternidad Universal de los Poetas”, y de qué manera se siente ligada a aquella fraternidad de los años 60 -de que son ejemplos no solamente El Corno sino también grupos desparramados por todo el continente, entre ellos el argentino Eco Contemporáneoy a la idea de una insurrección invisible defendida en aquel momento? JAL Más que una realidad, la Fraternidad Universal de los Poetas es un sentimiento o un anhelo que puede confundirse con un eslogan. Aunque difícil, uno puede hallar gente como tú, mi querido Floriano, a quien se puede querer como un verdadero hermano, como un compañero a quien se le reconoce en su amorosa labor divulgativa, en su resuelta lucha por ser y por hacer. No es común la fraternidad entre los poetas, y si la hay es del tipo de Caín y Abel. Pero estamos obligados a convocar a esa fraternidad para que inicie la revuelta de otros mundos posibles. FM Este es un aspecto que siempre me preocupó. ¿Habrá quizá una dosis acentuada de orgullo en los poetas, junto a la frivolidad que en buena medida nos caracteriza a todos, que nos hace creernos, a cada uno, el elegido? Fíjate que hay ahí un plano ambivalente, pues los malos poetas se organizan en torno a sus quejumbres, fundan cooperativas, “talleres”, periódicos de barrio, etc. Son aduladores de oficio, oportunistas disciplinados, asumen cargos políticos o académicos, coleccionan premios, en fin. ¿Y los buenos poetas? ¿Son felices así, buenos para sí, desconocidos, ajenos a todo, fieles a un reconocimiento post mortem? Es un escenario curioso. ¿Cómo se reacciona en México sobre todo entre los poetas- ante el trabajo editorial que ustedes vienen realizando? JAL Supongo que de una manera con mínimas diferencias a como se hace en otros países. La fraternidad entre José Vicente Anaya y yo no está libre de desavenencias y pleitos. Pero la realidad es que hemos mantenido una relación amistosa y editorial durante los diez años que Alforja ha permanecido. Nos salva con certeza una dosis de ética que aún impide caer en manos de la complacencia y el amiguismo, que nos obliga a responder a ciertos principios donde la calidad, la exigencia, la apertura, el respeto y el deseo de promover la lectura de poesía van en primer término. No hemos pretendido hacer la gran revista, la publicación concéntrica que gire sobre un grupo de poder ni alrededor de éste. Hemos sí trabajado de manera ardua y desinteresada. Hasta hoy ha dominado la gratuidad. Incluyo otro actor en este afán, María Luisa Martínez Passarge. Su presencia ha sido determinante para definir la personalidad y el diseño de la revista y de los libros que hemos venido publicando, además de ser un punto de equilibrio entre José Vicente y yo, pues su inteligencia y convicción por la poesía, aunque ella no sea poeta, fungen como árbitros y como animadores del proyecto. Esto nos obliga a salirnos de nosotros, a sacar los ojos del ombligo y a ponderar un trabajo editorial que nos exige profesionalismo y generosidad. Por otro lado, el camino de Alforja, como el de cada uno de nosotros como poetas, intelectuales y promotores culturales, editores no es fácil. México tiene una larga tradición donde las políticas de Estado consideran un maridaje entre sus críticos potenciales y sus burócratas, sus representantes populares. Los gobiernos priístas diseñaron políticas clientelares y corporativas no sólo hacia los obreros y los campesinos, también las elaboraron para los intelectuales y artistas. Octavio Paz describió muy bien este fenómeno en su Ogro Filantrópico, y él mismo fungió como un cacique intelectual amparado no sólo por el Estado sino además por el gigante mediático, por el monopolio, que fue y es la empresa TELEVISA. Hay pues una élite que puede autodenominarse por lo regular de izquierda que no hace gestos de repugnancia a los beneficios que el Estado le brinda. Sus críticas tienen cálculo. Nunca se exceden si ello les representa un riesgo para su bienestar, menos si la izquierda está en el poder. Sólo pegan cuando esperan recompensa y por lo general obtienen dádivas. La autocrítica está ausente en esa línea, la autocrítica no existe para la izquierda. México es de los escasísimos países en vías de desarrollo que otorga becas vitalicias a sus creadores, que tiene premios a la trayectoria, con tintes y criterios evidentemente más políticos que estéticos, y un Sistema Nacional de Creadores donde unos becan a los otros, es decir, los becarios en algún año que no gozan del apoyo pueden ser jurados y designar las becas a sus amigos, conocidos, alumnos. Son becas nada despreciables, durante tres años reciben aproximadamente dos mil dólares mensuales. Muchos por supuesto repiten una y otra vez. Hay el otro nivel, becas para Jóvenes Creadores, que comienzan una vida becaria desde pequeños, y continúan elaborando obras apegadas al designio de los apoyos, los numerosos concursos, premios de diversa índole, sin dejar de lado organizaciones y fundaciones para formar escritores y artistas. En fin, no quiero decir que está mal, lo que está mal son los mecanismos y los propósitos de estas políticas que buscan domesticar el espíritu creador, que abaten el ánimo crítico de los artistas y escritores, el mercadeo de los beneficios que representa ser escritor, en nuestro caso. Por supuesto, eso acarrea un ambiente carroñero que impide ver algo más que no sea el cadáver del compañero y no su obra ni sus capacidades. Sólo se vuela con los de la misma parvada. FM Aquí tenemos que tocar el asunto de cierta retórica del desconocimiento mutuo entre nuestros países. Es evidente que México conoce mucho más la cultura brasileña que al contrario. En primer lugar, en términos cuantitativos. Brasil conoce más el estereotipo mejicano, o incluso su falsificación vía Estados Unidos. Como no tenemos una política cultural que nos aproxime, nos reconocemos más en los folletos de las agencias de turismo y en distorsiones presentadas por las telenovelas de un lado y del otro. Además, he observado un aspecto referente a la falta de actualización de lo que pasa con la cultura brasileña, y esto no solamente en relación con México. Es bastante común la evocación de ciertos íconos de nuestra cultura que hoy tienen una lectura distinta en el Brasil. Un ejemplo clásico es el desconocimiento de los desdoblamientos de la música popular, donde muchos de los nombres antes tenidos por sagrados hoy son cuestionados aquí por el carácter decrépito y la dilución estética. Me gusta cuando sugieres en una entrevista que deberíamos cuestionarnos más sobre este nuestro desconocimiento mutuo. Pero, ¿qué hemos hecho en ese sentido? Claro que no hablo de nosotros dos. La falta de una alianza entre nuestros países -y no me refiero al ámbito comercial- ¿qué raíz tiene? JAL En México hay una tradición y un gusto muy fuerte por lo de fuera. El trauma de la Conquista nos dejó una secuela seguramente más profunda que en la mayoría de los países latinoamericanos. La fuerza cultural que emana de nuestro pasado y presente indígenas es enorme, pero lo es también la curiosidad por lo extraño, por lo externo. Digerimos con facilidad lo distinto, lo novedoso, sin perder el encantamiento por lo propio. Frida Kahlo seduce al mundo por su mexicanidad y por sus símbolos cosmopolitas, por su carga surrealista, su anticonvencionalismo, su imagen mestiza y por la tradición que rezuma su obra de apariencia agreste. Ambos países y sociedades perdemos mucho al no conocernos y reconocernos en esa energía creadora que nos deslumbra y nos cautiva como culturas vitales, bullentes, innovadoras, sorprendentes. Ya desde hace tiempo Alforja y Agulha hablan-falam el mismo idioma, son, sin pretenderlo, eslabones de esa fraternidad universal de los poetas destinada a cuestionar la validez y eficacia de las políticas culturales de nuestros respectivos países. Desde Alforja ya iniciamos el esfuerzo por dar a conocer entre los lectores mexicanos a los poetas brasileños a través de nuestra colección de libros Azor. Esperamos que ocurra algo semejante en Brasil con respecto a la poesía mexicana, que tiene mucho que dar a los lectores de tu país. FM Las diferencias son innumerables, Leyva. En primer lugar, no se puede hablar, en Brasil, de política cultural, sobre todo si lo comparamos con México. Claro que entiendo lo que dices sobre la carga de exotismo que internacionaliza la cultura mejicana, y también en el Brasil vivimos esto, en rigor, algo más afecto a lo turístico que a lo propiamente cultural. Se trata más de una política de mercado. Ahora, como la apariencia es todo -esta es la gran ilusión de nuestro tiempo-, todos los planes de construcción de una cultura están programados para mostrar las más vistosas y espectaculares evidencias, y nada más. Si comparamos la colección “Azor” de Ediciones Alforja, por ejemplo, con la colección “Ponte Velha”, de Escrituras Editora, brasileña, en seguida vemos una diferencia que interesa aquí comentar. En el caso mejicano, la creación de un sello editorial para divulgación de autores extranjeros en México se lleva a cabo gracias al apoyo del Fondo Nacional para la Cultura y las Artes. En el caso brasileño, la creación de un sello editorial para divulgación de autores portugueses en el Brasil, se lleva a cabo gracias al apoyo del Instituto Portugués del Libro y de las Bibliotecas, de Portugal. En un caso, es el gobierno mejicano apoyando la entrada de escritores extranjeros en su país. En el otro, es una expansión del gobierno portugués, una nueva carta de navegación, otra conquista. No hay correspondencias. Lo que esperas del Brasil en términos de diálogo es una utopía, querido. Yo declaradamente me avergüenzo de todo esto. Y no creo que esta situación se modifique con los esfuerzos comunes de Alforja y Agulha. JAL En nuestro caso estamos aprendiendo a desprendernos de la imagen paternalista del Estado y darle cauce a nuestras iniciativas culturales. Pero ojo, es utópico pensar que vamos a lograrlo sin apoyos institucionales, no al menos en la inmediatez histórica. No somos empresarios, pero sí tenemos un carácter emprendedor. La diferencia es notable, el empresario busca la ganancia, nosotros como poetas y promotores culturales pretendemos un efecto sustantivo en el público al que nos dirigimos. Aclaro, no satanizo a la empresa como generadora de plusvalía, pero reconozco que nuestras acciones se mueven por motivaciones más espirituales y ello nos obliga a pensar en escenarios diferentes donde lo determinante es la cultura. Cuando señalo el diseño de las políticas culturales del Estado no critico sus beneficios, sino sus orientaciones, la manera como selecciona y aloja a sus beneficiarios, los criterios que establece para generar una élite que al final será la misma que imponga reglas y normas para beneficio de unos cuantos privilegiados. Yo estoy porque se amplíen esos beneficios, porque los intelectuales asuman que es una responsabilidad, una obligación, no un acto de caridad, del gobierno, otorgar partidas suficientes para el fomento y desarrollo de la cultura, pero no a costa de la sumisión y el silencio. En países como México y Brasil el potencial económico que representan sus culturas es enorme, tenemos una historia rica, una diversidad biológica y humana extraordinaria, un bagaje literario y artístico de grandes proporciones, sin dejar de lado sus manifestaciones populares, artesanías y folclore. En fin, yo pienso que Alforja y Agulha son consecuencia de esa energía que nos reclama y empuja. En Alforja buscamos la complicidad con la Universidad Autónoma Metropolitana para sobrevivir y continuar con nuestra labor editorial, fue una iniciativa que cuajó, por lo menos hasta hoy. Tenemos además una colección de libros, “Poesía en el andén”, que son pequeñas antologías temáticas cuyo propósito es hacer lectores entre los pasajeros del Metro de la Ciudad de México. Esta alianza la hemos hecho con una empresaria, una librera, Nelly Achar, que apuesta por una iniciativa en la que de entrada sabe que las ganancias no son jugosas ni inmediatas, pero piensa en un mercado potencial de cuatro millones de pasajeros diarios que podrían en algún porcentaje, y en algún momento, convertirse en lectores de poesía, lectores que saldrían de los andenes del metro buscando en las librerías a los autores, a sus libros. Es utópico, sí, lo es, pero tiene ya un dedo del pie en la realidad. Eso anima. Agulha, por cierto, ha puesto también un granito de arena en ese terreno. Agulha es un referente no sólo de Ceará sino de Brasil y del mundo hispanoamericano. Creo que el reto y nuestra mentalidad como productos de estas culturas y estas sociedades abiertas es justamente trascender los límites de lo nacional, del patrioterismo ramplón, del regionalismo chabacano y provincial. Alforja y Agulha, como muchas otras publicaciones en Latinoamérica, debemos ser catalizadoras de inquietudes y propuestas, de corrientes de pensamiento, de posibilidades creativas más allá de las limitaciones que impone el medio y las políticas locales. FM En una entrevista que hiciste al poeta Juan Manuel Roca (1946) te refieres a la “emergencia tardía de ese movimiento de vanguardia colombiano que fue el nadaísmo”. ¿Tardía en relación con qué? ¿No hay ahí un error de interpretación? Si pensamos en varios focos de renovación de un ambiente poético -y político, en su espectro más amplio-, todos surgidos en los años 60, en países como Colombia, México, Argentina, Brasil, ¿no sería más acertado identificarlos como el nacimiento de una nueva vanguardia? JAL Sí, si lo quieres ver desde esa perspectiva. Pero al reconocerla como una nueva vanguardia se advierte como una nueva propuesta que surge 50 años después del creacionismo, el ultraísmo, el estridentismo mexicano, la Semana de Arte Moderno en Brasil (modernismo), la poesía de Oliverio Girondo, de Trilce, etcétera. Cuando digo tardío no lo califico como desfasado, sino pensando en estos otros acontecimientos tempranos que corrieron paralelamente a la agitación estética europea. He leído gracias al nadaísta Jotamario Arbeláez, el libro de reciente aparición, Cartas a Aguirre. Contiene la correspondencia del fundador del nadaísmo Gonzalo Arango con su amigo más cercano. Allí están las reflexiones más íntimas y la gestación misma de la plataforma de principios de ese movimiento o de esa propuesta estética-ideológica. Coincide más, por cierto, con el movimiento beatnick, cuya agitación estuvo más enfocada a lo social-cultural que a lo estético, sin negar el papel que éste tenga en lo primero y a la inversa. Me refiero al hecho como movimiento, no como técnica ni como bandera, mucho menos como actitud renovadora. Por principio me parece que el arte está obligado a buscar la experimentación y la vanguardia o resignarse a morir. FM En la misma entrevista a Manuel Roca señalas también, en el Surrealismo, “recurso retórico” y “sentimiento de vanguardia”. ¿No estaría allí expresada una condición refractaria de la lírica mejicana al Surrealismo, mucho más que una lectura crítica de su transposición a un ambiente latinoamericano? A ejemplo del poeta colombiano, ¿crees que la escritura automática no fue más que una “tontería”? JAL No, la escritura automática fue y sigue siendo una técnica útil para escribir poesía, las tonterías son responsabilidad de sus autores. Recuerda que el Surrealismo estuvo tan presente en México que fue uno de las grandes asentamientos del exilio, como lo atestiguó la exposición en el Museo Reina Sofía, en España, en 1999: Surrealistas en el exilio y los inicios de la Escuela de Nueva York. Entre ellos Benjamin Peret, como pareja de Remedios Varo, Luis Buñuel, Leonora Carrington, Wolfgang Paalen, también debemos considerar al extraordinario Gunther Gerszo; allí estuvieron en momentos cercanos también artistas plásticos como Isamu Noguchi, Jackson Pollock, de quien se dice tomó algunas técnicas de David Alfaro Siqueiros, el mismo André Bretón y Antonin Artaud. FM Insisto en esta cuestión del Surrealismo, sólo como una referencia para que podamos entender los desdoblamientos de la lírica en tu país. Por ejemplo, Marco Antonio Montes de Oca (1932) dice en una entrevista a Andréa Fuentes Silva: “Yo hice, en 1953, una escritura automática, mientras que Paz en 1951 hizo una escritura automática pero en la masa del Surrealismo, junto a Breton, junto al ambiente intelectual europeo. Lo mío fue simplemente una disponibilidad de sacar fuera lo onírico, el sueño, lo automático.” Montes de Oca se declara, por ascendencia, un romántico, y no exactamente un surrealista. Caramba, pero todos los surrealistas son, por ascendencia, románticos. Sin contar que es reduccionista concluir que el Surrealismo de define únicamente por el uso de la escritura automática. O hacer como los modernistas brasileños: adoptar un desvairismo y evitar a toda costa referirse al Surrealismo. Dame tu interpretación, Leyva, tu lectura de este momento. JAL No sólo Marco Antonio Montes de Oca, también los poetas Eduardo Lizalde y Vicente González Rojo tomaron en sus inicios ciertas tendencias surrealistas en algo que denominaron “poeticismo”. Los contemporáneos, en particular Villaurrrutia en varios de sus poemas más representativos, Gilberto Owen y José Gorostiza dejan al descubierto ciertas vetas surrealistas. Pero es cierto, ninguno de ellos se suscribió como surrealista o como vanguardista. Un ejemplo contrario fue German List Arzubide, quien hasta el final de su vida, a sus 99 años de edad, se proclamó estridentista, aun cuando su forma de vida nada tenía que ver ya con los manifiestos y la mitología que crearon en 1921 él y sus compañeros para una urbe llamada Estridentópolis. La presencia del Surrealismo en México fue tan representativa, tan contundente, que no dejó seguidores o militantes. Como prueba de lo que digo está la construcción que un millonario y surrealista inglés, Eduard James, hizo en un lugar llamado Xilitla. Absolutamente delirante, caprichosa, onírica, producto de esa dinámica cultural que se vivió en México, y ante la cual, quizás, los artistas y escritores locales fueron no refractarios, sino escépticos. Una agitación que los hizo volver la mirada a la tradición. Pero luego vendrían los infrarrealistas en los años sesenta y setenta, en donde estuvo José Vicente Anaya y de donde brotó la obra del chileno Roberto Bolaño, hoy tan reconocida. FM Recuerdo haberle preguntado al guatemalteco OttoRaúl González, en una entrevista, acerca de su renuencia a reconocer a Octavio Paz, y entonces me respondió en seco: “Él era un hombre de derecha y yo siempre fui y seré de izquierda. Muy simple, ¿no?” ¿De qué manera se evidencia en México, sobre todo entre las generaciones más recientes, esa disensión entre lo político y lo poético que tan bien se aplica a Octavio Paz? JAL No es que Octavio Paz como persona sea santo de mi devoción, pero debo decir en su beneficio que si bien terminó siendo un hombre de derecha, también lo fue de izquierda. Lo que no se le puede negar a Paz es que fue un hombre valiente que se enfrentó a sus contrincantes sin pelos en la lengua. Tampoco que fue un hombre de poder. Al margen de esas posiciones y calificaciones que parten de lo ideológico, la obra de Paz es deslumbrante. Las generaciones recientes de escritores me parece que no tienen muy claro ese esquema de izquierda y de derecha, la mayoría atiende más a la geometría de sus intereses personales y al momento que viven. Quisiera estar equivocado. Por cierto, la posición política de Fernando Pessoa y de Jorge Luis Borges no resta admiración a sus talentos en escritores de una izquierda radical, como lo fueron en su momento Juan Gelman y Ferreira Gullar. Ambos declaran un profundo reconocimiento a sus obras. En México, me parece, también hay una tendencia a poner cada cosa en su sitio. Floriano Martins (Brasil, 1957). Um dos editores da Agulha. Entrevista realizada em janeiro de 2007. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Las constelaciones poéticas de Joan Miró en Paris Miguel Ángel Muñoz . Realmente, cuesta mucho hablar de Joan Miró (Barcelona, 1893-1983, Palma de Mallorca), después de todo lo que se ha llegado a decir de él y de su pintura. Pocas obras como la de Miró han recibido tal atención, difusión, expoliación y exposiciones. Pero al mismo tiempo, es sorprendente la fuerza vigorosa que mantiene la obra. Es un verdadero milagro al igual que pasa con Picassoque las infinitas reproducciones no hayan agotado su realidad inédita y, que los originales aún se presenten con el aspecto sorprendente e inacabado que lo hacen aún hoy. Estas obras parecen haber derrotado al consumismo. Y esta de derrota es una fuente de salud para el imaginario, pues en aquello que se resiste es en lo que la obra de Miró es más generosa. Como tantos otros artistas de su tiempo, Miró se dedica a la pintura y el dibujo de forma ocasional. De 1901 son los primeros dibujos que se conservan, en 1907 estudia en la Escuela de Comerc; en 1912 es un año de gran importancia para él, pues entra en la Escuela de Arte de Francesc Galí, que dejará una fuerte impronta en el joven pintor. En estos años empieza a conocer la nueva pintura y escultura que se hace en Europa. Ese mismo año tiene lugar en las Galerías Dalmau una exposición de arte cubista y fauve en la que figuran Metzinger, Gleizes, Gris, Marie Laurencin, Duchamp -que expone su Desnudo bajando una escalera núm, 1- y Le Fauconnier. Barcelona es en este momento el centro artístico más importante y cosmopolita de la Península. La obra de Miró de estos años, nos permiten conocer la evolución del artista La mayor parte de los dibujos son bocetos y estudios del cuerpo humano, desnudos masculinos y femeninos en los que el artista “lucha” con la organización anatómica transformando los tópicos académicos: la relación entre las diversas partes del cuerpo, su articulación en volúmenes, también la línea que los une rítmicamente, que marca su tensión y movimiento. Un óleo de 1914 que conserva la Galería Maeght de París, El campesino, pone de manifiesto el horizonte neofauvista en que se mueve el pintor, pero otro óleo de la Fundación Joan Miró, Playa de Montroig (1916), evidencia la importancia de su evolución en muy pocos años: una temática paisajista pintada en clave ingenuista y poética, en la que se busca ya ese contacto directo con la naturaleza que será constante de toda su obra. A partir de 1917, la obra de Miró se aleja tanto de los restos del modernismo catalán como del noucentisme y, desde luego, de las formas todavía vigentes en algunos medios del naturalismo y el simbolismo. Su pintura es más directa que la de todas estas orientaciones. Hasta cierto punto cabe decir que la obra de Miró realizada en estos años marca el fin del protagonismo barcelonés: la modernidad empieza a ser, Miró lo pone de manifiesto. En 1920 viaja a París, atraído por la que era entonces metrópoli por excelencia de la modernidad Las sucesivas estancias en la capital francesa, propiciarán su contacto con los círculos de vanguardia, y entra en contacto con Masson, Ernst, Arp, Leiris, Artaud, lo que preludia su colaboración con el surrealismo. “Fue Kandinsky quien me descubrió que podía escuchar música mientras pintaba”, cuenta Miró en sus mágicos Carnets Catalans, editados por Skira en 1976, al tiempo que recuerda que “a diferencia de los surrealistas, siempre estuve interesado por la composición”. París fue un verdadero descubrimiento, el impacto que sufrió el artista fue muy grande, hasta el punto que dejó de pintar. Pero quizá estos años son la gran aventura de Miró, y desde luego, para mí donde realiza su mejor obra. Huerto con asno, marca la pauta de los cambios. A primera vista se trata de una pintura de carácter “ingenua” que recupera, en clave lírica, algunos aspectos de la temática que había preocupado a los artistas catalanes de principios de siglo, a la vez que contrasta con las posiciones de los noucentistas. Recuerdo con asombro la extraordinaria exposición Joan Miró: 19171934, que se presento en el Centro Georges Pompidou de París en marzo de 1994. Era sorprendente volver a ver los cuadros de 1917, año en que Miró logra realizar sus primeras obras en un cambio radical, que culmina de alguna forma en 1934, pues es en ese año cuando Miró, se lanza a la realización de una serie de cuadros que son el resumen, o síntesis de todo lo que ha experimentado y aprendido durante ese lapso. El Miró que llega a París, quiere chafarles la guitarra a los cubistas, pero también a los que propugnan una restauración del clasicismo. Para él, la pintura estaba en decadencia desde la prehistoria. Quería escapar al formalismo, a las convenciones pictóricas, y buscaba un lenguaje primario universal. Las enseñanzas de Galí son un referente obligado, dice Miró “tenía que hacer una naturaleza muerta con objetos incoloros: un vaso de agua, una patata…”. Fue entonces cuando Galí le aconsejó que tocase los objetos con los ojos cerrados, que descubriese los volúmenes palpando. Y si en 1924 el artista reconoce: “Cuando pinto acaricio lo que hago”, eso no impide que la caricia pueda ser muy ruda, llegar a frotar la tela, a rasgarla, a perforarla, a pegar en la superficie maderas o papeles mal recortados. Es una tentativa de asesinato de la pintura, que tiene su cénit entre 1929 y 1932 y que se prolonga hasta 1933. El aterrizaje de Miró en París no es fácil pero tampoco complicado. Su marchante Pierre Matisse, logro introducirle muy pronto en el mercado americano. Los primeros años le enfrentan a la especulación formal reinante puesto que a él, lo que le interesaba era el punto de partida, la energía y no el perfeccionismo. Los surrealistas lo adoptaron pero él no se dejó adoptar. Es una personalidad al margen de la historia del arte. André Breton, al hablar del carácter infantil de la pintura de Miró, ha perjudicado su comprensión, pues lo que él buscaba era la infancia de la pintura, sus orígenes, la pintura de antes de la pintura, que es otra cosa. La pintura de Miró somete al mundo a un proceso de metamorfosis, nos ofrece la oportunidad de asistir a ella y decidirnos por uno u otro de sus momentos: puede ser el realismo, el surrealismo, la abstracción o las constelaciones. La posibilidad de participar en una naturaleza común se ofrece en esa transformación y gracias a ella. El mundo en movimiento pasa -lo hace maravillosamente en Carnaval de Arlequín- de un estado a otro, y todos los objetos que se incorporan a ese fluir constante. Uno de estos estados de emoción, es el fondo mismo de sus cuadros, sobre todo los “azules”, en las que de nuevo el fondo es un espacio de resonancia en el que flotan las criaturas mironianas. Hay momentos en que los fondos de las telas de Miró son más potentes que las figuras, son la historia del cuadro. Eso impresionó mucho a artistas como Pollock. Los procedimientos del action painting están prefigurados en esos fondos. Una fantasía maravillosa, única, que demuestra que el arte contemporáneo no tenía límites, y Joan Miró mucho menos, pues como afirman Antoni Tàpies y Albert Ràfols-Casamada: Miró es el gran pintor del siglo XXI. Miguel Angel Muñoz (México, 1972). Poeta, historiador y crítico de arte. Es autor de los libros de ensayos: Yunque de sueños. Doce artistas contemporáneos; La imaginación del instante. Signos de José Luis Cuevas; Ricardo Martínez: una poética de la figura. Es director de la revista Tinta Seca. Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras del artista Joan Miró (España). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Ni santo, ni mártir: Jacques Prévert (1900-1977) Rodolfo Alonso . Hace treinta años, el 11 de abril de 1977, fallecía en Omonville-la-Petite nada menos que Jacques Prévert, sin duda el más difundido y el más desenfadado de los grandes poetas franceses del siglo XX. Y sin embargo, en su Introducción a la poesía francesa, Thierry Maulnier había podido afirmar, olímpicamente, que un poeta popular era imposible en Francia. ¿Qué había ocurrido? En 1931, en la exigente revista Commerce, dirigida por gente tan seria como Paul Valéry, Léon-Paul Fargue y Valéry Larbaud, se publica casi por primera vez un poema de Prévert: el ya a partir de entonces célebre Tentativa de descripción de un banquete de mascarones en París de Francia. Que, entre sorpresa y escándalo, entre asombro y maravilla, bastará para consagrarlo de inmediato, porque en él Prévert ya se muestra absolutamente personal, dueño de un estilo que no se preocupa del estilo, tan absolutamente desinhibido como orgánicamente ligado, a la vez, al unísono, con las espléndidas libertades de las grandes vanguardias y con la maravillosa inventiva del lenguaje popular y que, no obstante, quizá por ello mismo, va a volverlo a partir de entonces inconfundible, e indeleble. Con ese poema abrirá Gallimard, en 1949, la primera edición de su libro Palabras que, sin abandonar en ningún momento su exigente desenvoltura, su magnífico oído incluso musical, va a convertirse espontáneamente, sin premeditación alguna, en algo que si ya entonces era inusitado hoy nos parece casi increíble: un best-seller de poesía. Nacido en París casi con el siglo, el 4 de febrero de 1900, ya en 1926 se incorpora al movimiento surrealista en su etapa acaso más espléndida, pero del cual iba a separarse tres años después, con motivo de la crisis producida por el Segundo Manifiesto del Surrealismo de André Breton. De quien, junto con otros, iba a despedirse no poco irónicamente, también en 1929, con el violento panfleto Un cadáver. Como anota significativamente Aldo Pellegrini, quien no vacila en ubicarlo sin embargo en el apartado de los poetas militantes en el movimiento de su excelente Antología de la poesía surrealista (Fabril, 1961), que se volvería de algún modo canónica, durante su militancia surrealista Prevert no publicó nada. Según Pellegrini, su primer texto significativo aparece en la revista Brifur, en 1930. (Y bien pronto iba a ser descubierto entre nosotros: Juan José Ceselli traduce Palabras para Fabril en 1960. Y yo mismo, a comienzos de 1970, traduzco y edito Historias.) No es entonces un neófito, ni un ingenuo, quien va a seducir con su deslumbrante y contagioso espectáculo de libertad a tantos y tantos lectores de su país y del mundo. Pero no es casual que sus primeras armas, su bautismo digamos literario se haya producido, precisamente, en el más subversivo y en el menos académico de los movimientos poéticos de vanguardia que estaban por entonces cambiando la poesía del siglo: el surrealismo, un movimiento que hacía de la espontaneidad, incluso inconsciente, del libre fluir del pensamiento, el automatismo, su fuente y su bandera. Pero en nadie acaso como en Jacques Prévert esa levadura, ese fermento, iba a confundirse con otra gran riqueza no menos libre y espontánea: la poesía oral, la poesía popular, la poesía de la calle, del lenguaje y del universo de la calle. Muy pocos grandes poetas modernos hay que, como Jacques Prévert, resulten privilegiado testimonio de algo hoy casi dolorosamente evidente: nunca pudo haber una gran poesía, por elitista o culterana que aparentara ser, que no estuviera así fuera secretamente ligada, por ocultos meandros, con una gran lengua viva hablada por una comunidad, por un pueblo. Y algo de eso había entrevisto ya W. H. Auden, al afirmar tajantemente: “Hay un mal literario que nunca se debe dejar pasar en silencio, sino atacarse continuamente, y ese es la corrupción del lenguaje, ya que los escritores no pueden inventar su propio lenguaje y dependen de aquel que heredan, de donde se desprende que la corrupción de éste implica tácitamente la de aquellos”. La gran poesía elaboradísima y genuinamente popular de Jacques Prévert no es que usa o adopta términos y modismos inventados por el pueblo sino que (como bien sabía Pavese: no hay que ir hacia el pueblo, se es pueblo) ejerce esa fecundidad como protagonista, la ejerce tan orgánica y tan espontáneamente como los hombres primitivos, los padres originarios (incluso del lenguaje), y como lo hacían todos los pueblos del planeta antes de ser asolados en su fecunda espontaneidad creadora por la demagógicamente seductora masificación apabullante de la sociedad del espectáculo. Por eso, yo mismo, casi recién ahora atino a responderme por qué me gustó siempre Prévert. Lo que en un momento fue apenas intuido, hoy me lo confirma la experiencia. Para mi formación, ya desde la niñez más temprana, no sólo fueron esenciales los textos descubiertos sin premeditación alguna y los timbres, tonos y densidades de las voces percibidas aquí y allá, un poco por todas partes, sino también el cine, la canción popular o las revistas de historietas. Sin prevención, ni previsión alguna, a la deriva de mis descubrimientos personales, secretos, tal vez estaba ya ratificando sin saberlo aquella ambiciosa y fecunda ilusión de las bellas vanguardias: reunir arte y vida, que no hubiera distancias entre ellos. No siempre fue posible, y hubo buenos momentos y momentos felices. Y también hubo precio que pagar, por eso, precisamente en los mejores casos. Pero pocas veces se pudo encarnar todo aquello en la entera existencia de un solo hombre. En el resplandeciente marco de esa casi desmedida generación de grandes poetas franceses que, a comienzos del siglo pasado, fueron capaces de estar a la altura de su linaje deslumbrante, y de encolumnarse en movimientos y rebeliones victoriosas sin dejar de ser nunca fundamentalmente ellos mismos, sólo Jacques Prévert (1900-1977) pudo ser al mismo tiempo digno de Gavroche y de Rimbaud, cómplice y compañero, toda su vida auténtico niño de la calle y paje de las barricadas. Fiel al lenguaje vivo, que es de todos, y al mismo tiempo fiel igualmente a la dignidad esencial de la poesía, que es gloria de la lengua (Dante Alighieri), pudo entrar y salir del surrealismo con la misma valentía y dignidad con que supo siempre tomar partido por los humillados y ofendidos sin someterse a dogma, censura ni ortodoxia alguna. Único gran poeta moderno que llegó a vender más de dos millones de ejemplares de su libro Palabras (ya antes de su aparición en 1949 el más que lúcido Gaetan Picon supo calibrarlo certeramente como “el único poeta auténtico que, en la hora actual, haya sabido franquear los límites del público más o menos especializado”), vio a las mejores voces de su tiempo (de Juliette Greco a su hermano gemelo, Yves Montand) difundir universalmente sus bellísimas e imborrables canciones (¿alguien puede olvidar Las hojas muertas?) , escritas en colaboración con músicos de la talla de Joseph Kosma o Henri Crolla. Y, por si fuera poco, su nombre está ligado de fundamental manera con uno de los mejores y más altos momentos del cine francés, el realismo lírico de los años cuarenta, con obras maestras tan conmovedoras como El muelle de las brumas, Los visitantes de la noche, Los niños del Paraíso o Amanece, por citar sólo algunos de muchos filmes memorables de Marcel Carné. Tan enamorado del amor, y de mujeres bien concretas, como de la vida y del lenguaje, oral y escrito, es la luz misma del mundo terrestre (“Padre Nuestro que estás en los cielos / Quédate allí / Y nosotros nos quedaremos sobre la tierra / Que a veces es tan linda”) y, en consecuencia, el resplandor más auténtico de la condición humana, trágicamente bella, espléndidamente mortal, el que relumbra hecho lenguaje vivo en toda su escritura. Que tuvo la suerte de ser contagiosamente reconocida, como vimos en una medida poco usual, por sus contemporáneos (también él con “La verdadera mirada lúcida y loca / De los que entregan todo a la vida”, enfrentando a “las aterradoras semillas de la realidad”), y pervive aún ahora, en estos tiempos ácidos y áridos, masificados seductoramente como estamos por una enorme marea de banalidad globalizada, como un antídoto contra todo autoritarismo, así sea demagógico, contra toda ortodoxia, así sea lujosa, contra toda represión, así sea bienvenida. Porque todavía, por suerte, y pese a tantas teorías, a tantas órdenes: “la manzana / no se deja dibujar / tiene que decir lo suyo”. La gran poesía magníficamente popular de Jacques Prévert, su alto y personalísimo lirismo hecho de soberbios lugares comunes es, y por eso disponible, como el mismísimo lenguaje humano, voces de uno, voz de todos. Que él nos bendiga, como siempre lo hizo, con justa cólera y precisa ternura (o viceversa). Como lo sigue haciendo Chaplin, su consanguíneo más directo. Así sea. Rodolfo Alonso (Argentina, 1934). Poeta, traductor y ensayista. Fue el primer traductor de Fernando Pessoa en América Latina. Premio Nacional de Poesía (1997). Orden “Alejo Zuloaga” de la Universidad de Carabobo (Venezuela, 2002). Gran Premio de Honor de la Fundación Argentina para la Poesía (2004). Palmas Académicas de la Academia Brasileña de Letras (2005). Premio Único de Ensayo Inédito de la Ciudad de Buenos Aires (2005). Premio Festival Internacional de Poesía de Medellín (Colombia, 2006). Contacto: [email protected]. Página ilustrada con obras de la artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 Nicolau Saião: os encontros falhados - O triálogo em 2007) Augusto José & Manuel Caldeira . Em princípios de 1970 (onde isso já vai!) recebi uma carta de um amigo. Dentro dela, além de um texto abordando o tema das semelhanças entre os animais e os vegetais, vinha um poema que começava assim: “Ter prazer em falar/como quem fosse/ um simples animal, um ser da treva/ Ter prazer em nascer, como quem desse/ o nascimento à própria solidão”. A carta vinha da GuinéBissau, o amigo era o Nicolau Saião. O poema nascera, tal como o texto explosivo, no absurdo da guerra colonial em que então Portugal estava metido e propunha(m) o prazer contra a solidão e a morte envolvente, transfigurando o horror destas em vida e fruição futuras. Razões da vida profissional fizeram-me perder de vista o amigo, conquanto o poeta me aparecesse aqui e ali em breves fulgores e, de quando em vez, uma breve missiva me chegasse quer à região de Espanha onde então habitava, quer à cidade europeia (Londres) para onde o meu trabalho me transplantou. Reencontrámo-nos mais tarde numa rápida manhã alentejana de 1981 e, num desses acasos em que a existência é fértil, em Toronto, cidade do outro lado do mundo em que por feliz coincidência nos achávamos. Reencontro-me agora com ele, mais velhos os dois, mais questionados. Na sala modesta pejada de livros e de objectos mais apontando para a memória afectiva que para uma decoração estudada, centenas e centenas de livros que guardam para oferecer a quem os abrir tudo o que a imaginação pode dar-nos, conversamos. Sente-se que, aqui, os livros não são um álibi mas companhia e “paisagem” natural. E é por aí que o triálogo começa. LIVROS, LIVRINHOS… Manuel Caldeira (MC) Nicolau, porque tens tantos livros? O que é que os livros representam para ti? NS São uma espécie de Jardim Zoológico… sem prisioneiros. Ler é para mim uma forma de comunicar, de resistir à morte civil e à exaustão do quotidiano. É uma das minhas formas de brincar com a morte… Como sabes, cada livro põe-nos à prova, é preciso mantermos uma grande serenidade, um enorme sangue-frio! Os livros são também, digamo-lo assim, a minha sociedade secreta, uma espécie de mar com ilhas sempre novas. São também a negação duma determinada sociedade que quer é que a gente veja televisão e passeie de carro até ao fim da gasolina mental… Augusto José (AJ) Mas você vê televisão… NS Evidentemente! Mas quem é que não vê? Só os hotentotes, possivelmente. E mesmo esses… Mas só vejo o essencial, o indispensável. E posso garantir-lhe que não ouço os discursos nem assisto às telenovelas… MC Isso também já seria demasiado! NS … a não ser para renovar um certo nojo. Misturado com riso, aliás. A televisão como presença obsidiante, note, porque também por lá aparecem às vezes belas coisas, é o grande ser sagrado do nosso tempo. Nessa medida, é óbvio que está a acabar com a componente mística da religião, que é hoje um rito em aceleração… basta ver as missas televisivas, sem esquecer que neste país houve durante algum tempo uma emissora da Igreja que a breve trecho teve de ser vendida a um grupo menos “metafísico”… Conhecem, já agora, um conto do Bradbury em que ele descreve os EUA totalmente modificados por se terem estragado, devido a manchas solares, todas as cadeias de televisão? Pois leiam, que vão gostar. Quanto aos livros, eu não acredito como os chamados “situacionistas” que seja indispensável liquidar as artes e a cultura. Isso são teorias espúrias de intelectuais abastardados. O que é preciso é acabar-se com a ignorância, com a estupidez e isso passa também por amar a cultura mas recusar a kultura, a tal de colarinhos e gravata. AJ Então não crê que a verdadeira cultura ande na rua? NS Anda, assim como lá andam também os autómatos quotidianos, os polícias, os díscolos, toda a sorte de sacanagem… Ser livre não implica ser ignorante. Ser culto é precisamente o contrário de ser convencional ou atrofiado. O que é preciso é não se perder o nosso coração de criança, tal como Savater o descreve. Chevaucher le tigre, como dizia Raymond Abellio. Ter frescura e ser espontâneo, o que não é o mesmo que ser gostosa e brutalmente acéfalo. O mito do bom selvagem… Quem é que ainda acredita nisso? AJ Alguns acreditam… NS Ou fingem que acreditam. Como sabe este é o tempo das surpresas, surpresas de ordem mental e mesmo social. Num dos textos desses senhores um deles dizia em tom de programa (cito de memória): só haverá uma sociedade mentalmente aberta quando o artista, saindo à rua, correr o imediato risco de ficar com um olho deitado abaixo… Repare-se que diziam isto quando em certos países totalitários artistas eram encarcerados e até mortos. Não é estranho que fosse também nessa altura que estes cavalheiros despediam um violento ataque ao surrealismo! Desconfio muito e tenho razões para isso de certa gente benemérita. Assim que os ouço ou leio que estão a dar muitas palmas ao “popular”, ao “natural”, preparome para o pior. A meu ver é uma pura mistificação… questão de calabouços ou de votos e sandices semelhantes. A meu ver o povo não precisa de “graxa”, precisa é que o não aborreçam ou mistifiquem em ordem a ficar ainda mais afastado da plena cidadania. AJ Estes quadros são de sua autoria? Diverte-o pintar? Porque pinta? NS Se é que se pode chamar pintura ao que faço… Parece-me que a profissão de pintor implica uma estratégia, uma sistemática. Digamos que a minha “pintura”, ou a minha atitude enquanto “pintor”, é uma viagem no universo das cores e das formas, mais nada. Às vezes dou por mim a pintar figuras com alguma habilidade, noutras nem sou capaz de reproduzir aceitavelmente um cavalo, um rosto… Eu creio que assisto com gozo e certo sofrimento ao nascimento dos… quadros e, se esta resposta o satisfaz, então sim, divirto-me. É uma espécie de brincadeira, um jogo… Mas “a posteriori”! Antes é uma certa angústia, uma inquietação, uma febre enquanto dura a feitura. Acho – e não estou a ser solene nem, espero, demasiado dramático - que a pintura é um jogo algo mortal, em suma. Pode morrer-se por dentro e até já houve pintores que morreram por fora por se haver sumido, ou não ter aparecido, o universo que buscavam ou intuíam. Para além disto, a pintura como a sinto pode também ser uma coisa habitual, digamos calma e secreta, como a presença dos ruídos familiares numa tarde de Agosto… numa noite de Junho, como a presença de um gato, um sabor ou um cheiro, um acto quotidiano. Mas é sempre uma viagem sem bússolas, no meu caso. Vou confessar uma coisa: às vezes, principalmente quando estou deitado a descansar, ou sentado a meditar, ou a andar pelo campo, aparecemme na cabeça quadros belíssimos… Mas não sou capaz de os reproduzir, é um desespero! Se conseguisse (mas às vezes nem tenho materiais adequados) era um grande pintor. Assim sou, tenho consciência disso, apenas um curioso com alguma felicidade, digamos… MC Sem bússola… O homem no labirinto? És um homem em cólera? NS Apre, creio que não! Só excursão sem pontos marcados. Ná, definitivamente não. Pelo contrário, para além da normal indignação de um mais ou menos atento habitante do meu século, sou um indivíduo que apenas despreza, não odeia. Para odiar é preciso ainda suar… Já lá vai o tempo em que eu odiava. Odiei muito, assim como amei muito. Agora, sem eu querer conscientemente, apenas sinto capacidade para amar suavemente ou desprezar. Aqui há dias, ao ler um texto apontando para as semelhanças mentais entre o Hitler e o ben Laden, dei comigo a ter uma sensação de irrealidade, de desprezo e de pena repugnada. AJ E o que é que despreza, fundamentalmente? Quem é que despreza? NS Em primeiro lugar desprezo os oportunistas, tanto na vida quotidiana como nas letras & artes… Aqui na cidade de Portalegre e no Alentejo, para não sair da região, tenho conhecido vários. Pequenos oportunistas, porque isto é uma terra pequena. O que aliás não me descansa, às tantas uma pessoa gostava de encontrar canalhas em grande, como no Balzac… e apanha só canalhinhas à portuguesa! Bom… E desprezo também os enfatuados, os que se escondem por detrás do dinheiro ou do poder. A nível geral desprezo os politiqueiros, os raposões que fazem grandes frases e apenas querem enganar o povo, os – no caso da escrita – que constroem as suas lendas, grandes ou pequenas, sobre a desgraça dos povos, para acatitarem as respectivas produções. Mas os que desprezo acima de todos são os que se proclamam irmãos dos homens e nada mais têm para lhes dar que obtusidade, dureza e frieza. Pessoas por vezes com grande formação académica e intelectual, universitários e quejandos, mas que são uns perfeitos patifórios, usando o lugar de que dispõem para exterminar a dignidade com um evidente sentido de que o podem fazer impunemente. MC Podias citar algum nome? NS Nem por sombras! Não por sentido de decência, digamos, mas por sentido das realidades… Se o fizesse estava desgraçado! Não haja equívocos: tenho amor à pele e “os tais” cá no meigo país (Ribeiro Couto) são quem manda no dia-a-dia. Se eu falasse abertamente, “quilhavam-me” na certa. Esclareçamos de uma vez por todas que isto não é ilusão, podia contar estórias bem reais de manigâncias artilhadas por senhores que são mais nefandas que as de bandidos das ruelas… Guardo essa voz aberta, vocês desculpem, para um livreco de memórias… a sair quando já estiver a “fazer tijolo”… Mas os nomes abundam, da política à religião, da economia à saúde pública… às letras mais respeitáveis, infelizmente. AJ Como se define? Poeta surrealista, surrealista só, anarco-surrealista? Como, afinal? NS Ao contrário do que às vezes se usa fazer (“os outros que me definam” e tal… ) tenho muito gosto em me definir… até para poder epigrafar o que me parece legítimo: creio que sou um poeta surrealista pop. Nos meus textos, se bem notar, o universo onírico entra e sai (como uma bomba de pistão?) pela sociedade de consumo adentro, são constantes nos meus textos as referencias aos objectos e coisas característicos dos tempos que correm, comidas, lugares quotidianos, coisas vulgares em suma. Isso não é, evidentemente, premeditado, garanto-lhe que não tenho gosto pelo miserabilismo, não há tanto quanto me dou conta qualquer propósito preconcebido. Sinto a dada altura que os textos vivem vida própria, vivem por eles mesmos. Os mundos à Dali não me atraem nada enquanto hacedor, nada me dizem, os vastos painéis oníricos encaro-os como entidades… bem, falecidas. A meu ver o universo da poesia não é extático, há uma intrínseca vitalidade nas coisas. Sonho, sim, mas com cadeiras, janelas, motocicletas, roupas até. Que eu me lembre nunca sonhei com cavalos voadores ou homens espantados de olhos na ponta do nariz ou assim… O meu surrealismo é de situações inusitadas entre os factos e as personagens, o que me parece ser muito peculiar e ter muita força. Aliás, a “imagerie” surrealista à la page (ou pseudo-surrealista, se quiser) nunca foi cultivada com insistência senão por falsos surrealistas e explorada por publicistas pouco éticos ou propriamente tolos. MC Estás a sorrir largamente ao dizer isso… NS Indo além do humor subjacente, seria talvez curioso referir que o que mais me atrai e atraime intensamente nos quadros de Picasso, que é com Cézanne um dos meus pintores preferidos mas não em todos os momentos (noutras alturas sou mais sensível a Lee Krasner ou Cy Twombly) é a exemplar presença de objectos transfigurados mas sem deixarem de ser eles mesmos, reais como tudo (surreais?). Enche-me de admiração e prazer o partido que ele soube tirar de candeeiros bruxuleantes (como vi na infância, quando morava no campo), de palmatórias de velas, de caixas de bolachas, de pratos, de cântaros, de atavios, de garrafas, de coisas para o quotidiano urbano, de instrumentos para os trabalhos de quinta… Creio que os objectos deste tempo a consumir-se (a meu ver ainda não saímos verdadeiramente do século vinte) me atraem porque extraio deles um sentido vestibular de anti-catástrofe que me permite passar indemne para o universo saudável do sonho inserido na vida corrente. Digamos que os vejo de vários pontos de vista mas que estão sempre ligados à vida calma e fecunda, à felicidade simples. Tenho para mim que este mundo, agora sim à beira da destruição atómica – os soviéticos eram do nosso tempo, continham-se, ao passo que os islamitas vivem na idade média… com electricidade – não chegou a conhecer perfeitamente, leia-se estimar, na sua verdadeira dimensão os instrumentos e objectos sobre os quais erigiu o seu dia-a-dia. Com ressalvas pontuais, é claro. Em contrapartida, veja os índios. Os objectos eram para eles não entidades anónimas ou sagradas (no sentido em que pertenceriam a uma mística) mas entidades respeitáveis e poéticas. Tinham um lugar estimável no mundo. Por seu turno, a nossa sociedade usa os objectos, como usa as pessoas. É uma sociedade canibal, com ligeiras excepções. Os objectos motivam-me porquanto os transformo em signos, em símbolos, servem-me de trampolim para saltar para o meio do mundo, o verdadeiro mundo, onde até os objectos poderão ser felizes e repousar e ter alegria. Nós, quando estamos em estado de graça, formamos com tudo o que nos rodeia em singeleza um cosmos único, assombrado, o que significa que as coisas funcionam como espelhos de um dado real. AJ E não acha que esses sentimentos são comuns a muita gente que não vive alienada? NS Francamente não sei, estimaria bem que assim fosse! É muito possível que sim, quem sabe? Repare que não tenho gosto de proprietário, para usar este termo, em relação aos objectos caros que não recuso e até me agradam, pois têm uma qualidade estética a que sou sensível e que infelizmente não posso comprar a não ser com sacrifícios. Como constatou já, concerteza, a minha não é uma casa rica, as coisas custam dinheiro, de que nunca tive grande abundância… MC As coisas usam-se como escravos… NS Pois, também… A propósito, sabem decerto que em Roma os escravos eram chamados “utensílios falantes”… MC E na China os criados eram posse do patrão enquanto estavam dentro da casa dele… NS Em resumo, os objectos causam-me vertigens e pena: pobres deles, tão usados, tão explorados. São o lumpenproletariat do nosso sistema, candidatos à lixeira. E no entanto… Já repararam que têm tanta procura as feiras de objectos antigos? No programa inglês “People & Arts” vi um programa sobre feiras de leilões que era deslumbrante. Em episódios, gravei-os todos… Objectos que, sublinho, normalmente são guardados em sótãos, outro dos lugares mágicos do surrealismo, até que alguém os descubra, os reencontre… AJ Há uns anos morreu-me uma tia, uma senhora muito curiosa, um bocado à antiga. O sótão da sua casa era surpreendente, um verdadeiro cofre mágico! NS Não me fale nisso, que me cresce água na boca! Alguns objectos dos meus primeiros tempos, que são como companheiros de jornada, olho-os como se olha um dedo do pé, um detalhe do rosto… Daí em geral não renovar mobiliário pelos anos fora. Não dispenso a minha velha secretária, a minha velha cama, alguns candeeiros a petróleo, uma velha banca de cabeceira… Tenho um frigorífico, que comprei a umas senhoras adventistas que liquidaram os móveis antes de voltarem à América, que já faz parte da família… No fundo é a velha questão da antiga magia. Os utensílios ficam “carregados” de nós, mas a latitude aqui é a da magia branca. Claro que se trata do amor intenso à vida que se viveu… MC É uma espécie de passeio pelas diferentes idades. NS Outra coisa que me atrai inapelavelmente são as casas. As casas, quer sejam em claridade ou em sombra, são todas tão estranhas! Nem é necessário procurar muito, são a coisa mais estranha que há. São o símbolo localizado do cosmos, até se costuma utilizar a expressão “a casa do mundo”, mas um cosmos misterioso e secreto, apesar de luminoso. Fantástico e familiar. Efectivamente, foi o Homem que deu luz à casa, a casa é simultaneamente asilo e prisão. Defesa, fruição e inquietação. O universo das casas é muito mais inquietante e maravilhoso que os universos estelares, que aliás só alguns vêem na sua real corporalidade (estão muito longe). Esses podem ser conhecidos mediante o estudo científico, são objecto de ciência, a Casa é simplesmente hipótese, porque uma vez erguida pelos arquitectos deixa de ser apenas um local para se transformar em algo mais. Fica a pertencer ao universo que só é desvendável através da poesia, feita em verso ou em prosa. Aqui aponto para um livro excepcional, “A vida modo de usar” de Georges Pérec, no qual ele descreve um edifício de Paris e não só quem nele vive mas as coisas que o enchem ou ali são feitas. E quer coisa mais triste e perturbadora, até inquietante, que uma casa abandonada, em ruínas, no meio dum campo numa tarde quente de Julho? Quando de súbito, numa curva do caminho em que passeamos, nos aparece com toda a sua memória de coisas e pessoas idas? MC Não é por acaso que é nas casas que há fantasmas… NS E acima de tudo a recordação de gente viva! Lá pelo fim dos anos setenta fui com o Cesariny ver um filme policial intitulado “O gato e o canário” e apesar da película, como ele dizia e bem, ter alguns buracos, a casa onde decorria a acção era enfeitiçante, fascinadora. Dava corpo a um ambiente cheio de sugestões e de ambiguidades no qual a intriga dependia em grande parte da sua beleza e fascínio sensual e criminal. Num outro filme, também visto pelos dois (ambos partilhávamos o gosto pelo mistério), de novo o tema das moradias é tratado: é sobre uma casa que “toma o freio nos dentes” e se põe a viver angustiante vida própria. Nessa película – “Férias macabras”, dum especialista do fantástico, Dan Curtis – o realizador devolve à casa o seu poder de fantasmagoria, recoloca a casa no lugar mais perturbador: universo paralelo, sonho sobre o sonho, realidade inteira e inteira ausência, prazer e maldição… AJ Lembro-me desse filme, vi-o há uns dois anos em reposição na TV por cabo. Calculo o que teria sentido ao vê-lo no grande écran. Em certos trechos era de fazer saltar das cadeiras, mas não foi isso que mo conservou na memória. Funcionava como que em círculo… NS Lembra-se da cena da estufa? A cena em que o protagonista, um dos melhores actores ingleses da época (Oliver Reed, muito bem acompanhado por Burgess Meredith, Karen Black e Bette Davis) entra na estufa há anos abandonada e a encontra repleta de rosas, gladíolos, girassóis, orquídeas, tudo mergulhado num ambiente de sonho e de felicidade edénica… E as luzes, as luzes que de repente rodeiam a casa como que num verão interminável? A propósito, sabem que uma das coisas que mais perturba os neuróticos – simples particulares ou gente pública – são as cores brilhantes? É uma descoberta recente de psiquiatras de topo… AJ Desconhecia esse facto, mas não me admiro. Talvez se explique assim a hostilidade que alguns manifestam pela pintura… MC Pelo menos em público… Muitos têm as salas de jantar bem fornecidas de quadros. NS Talvez no lar sejam pessoas normais e guardem essas neuroses para nos atrapalharem a vida… Estou a brincar, é evidente que na maior parte dos casos certa gente tem quadros devido ao seu preço, como afirmação de status. Mas, falando a sério, sabes que num estudo de Francis Mayer ele assinala que nas residências de pessoal de topo se encontram sobretudo obras pouco coloridas? Aliás, o ataque que na época se movia aos impressionistas, mais do que por deformarem a perspectiva, era principalmente devido a haver nos seus trabalhos grande profusão de cores… AJ Passemos agora a outro tema. O que pensa da literatura portuguesa actual? E da literatura em si? NS Enquanto continente de percursos e prestígios, cá ou lá fora, não me interessa nada. No que respeita ao folclore do género, vejo-o de longe com certa aversão, pois me parece fazer parte de um ambiente geral de parlapatice. Não me diz nada enquanto literatice e creio mesmo que autores que se respeitam sofrem um pouco com esse cenário. Enquanto paixão interessa-me muito, é uma parte muito importante da minha vida. Aliás, numa palestra que fiz há uns dois anos em Espanha deixei isso bem claro. É uma grande aventura. Não posso esquecer o gosto com que defrontei – não apenas como simples leitor - livros como “Mau tempo no canal” de Nemésio, “Voltar atrás para quê?” de Irene Lisboa, “Apresentação do rosto” de Herberto Hélder, os livros de contos de Branquinho da Fonseca, prosa de Pascoaes e de Raul Brandão… O teatro do Ionesco, mesmo os seus contos, as reflexões memorialísticas em que se vasou às vezes, o “Margarita e o mestre” de Bulgakov, “A montanha mágica” de Thomas Mann… São experiências absolutas, só por isso valeu a pena ter vivido. Não falando em certos autores mais chegados, cuja escrita também sigo atentamente. No entanto o comboio literário em estilo Deve-Haver é frequentemente uma tristeza mas, como vivo fora desses meios onde as pugnas mais intensas acontecem, não sou muito tocado pela eventual peralvilhice. De vez em quando em fortuitos órgãos de informação topo com inquéritos género “ano passado nas letras” ou “para onde vai a literatura” que relanceio com certa má disposição porque aquilo tem mais o tom de treta mercantilista, o usual tique de coscuvilhice. Pacoviada. A literatura para onde vai? Para onde sempre foi, para o limbo dos séculos. O que interessa é a poesia e a escrita que se erguem altivamente para escarnecer as leis e ofender os deuses, como dizia Brassai. O resto é assim como que cocoricó para seis anos de imortalidade… AJ Mas não distingue aqui e ali sinais de inconformismo? NS Claro que sim. Mas não se trata apenas de apelar ao inconformismo, o caso é algo diferente. É preciso uma justificação um pouco mais séria, a vida é qualquer coisa de muito dramático. Trata-se do seguinte: nos últimos tempos têm tentado dar a poesia, a escrita, o “complexo literário”, como algo de supranumerário, talvez porque antes se tentava fazer dele uma arma de ascensão político-partidária. O que por vezes me parece que há é tácticas de sector onde o que se busca é fazer do autor uma espécie de padre sem sotaina, no mais acabado estilo de super-mercado ou de assanhada evangelização para primários. Aponto, como exemplo, para o neo-naturalismo (para empregar a expressão cunhada por Levi Condinho e posta a circular por Ruy Ventura) que entre nós quer agora ocupar totalmente, totalitariamente, a paisagem. De forma ainda mais nefanda que os antigos próceres e proponentes do “realismo-socialista”, pois esses ainda tinham uma justificação ideológica. Nestes lê-se, sem ser necessário binóculos, o simples nivelamento por baixo, para que a sua mediocridade, controlando por fora e em simultâneo “a praça”, seja legítima e imprescindível. No campo das escritas as mais diversas os surrealistas trabalham sem rede, a própria busca de continentes novos a que se votam é por vezes empatada e prejudicada por gente que, já sem sequer disfarçar, o que quer é prebendas mesmo que a sua falta de talento as não justifique. E há encenações para “inglês ver”: certos prosopoemadores, que se desunham em tragédias artilhadas em livro, quando na vida quotidiana tiram a mascarilha afinal são cidadãos cheios de calma, muito contentes com o lugar que ocupam na árvore dos níveis… MC E tu? És calmo? NS Calmíssimo… mas noutro espaço, noutro clima. Talvez seja um privilégio, afinal eu não ando na literatura… MC É possível estar-se fora da literatura e fazerem-se versos que andam publicados nas revistas da especialidade, em jornais, alguns bem destacados? Achas isso possível? NS Claro que é possível. Porque há o publicar-se versos como defesa contra as condições miseráveis em que nos obrigam a viver espiritualmente – e nem me refiro a certas condições materiais de parte da população, agora que no país se está a tentar instaurar uma nova ditadura – e o que se publica para uma carreira “técnico-social”… Afinal, pelo menos em Portugal, o que é reconhecivelmente andar-se na literatura? É sair em livros sempre que se estende um dedo, ter gente à volta a tirar-lhe o retrato, literário inclusive até à saciedade, opinar sobre tudo desde a bola à gastronomia, etc. Para isso é necessário um estado especial de espírito e até compreendo que como pequenos dalis certos autores deliberem servir-se dos malacuecos em torno. O que me desagrada e nisso nunca estaria é a jogada literata. O que é que isso tem a ver com poesia e verdade? Nada, a meu ver. AJ Você tem dedicado uma boa parte do seu tempo a ver cinema e a fazer parte de secções de cinema em colectividades locais. Já agora quais os seus encenadores preferidos. E como se articula cinema e surrealismo? NS O surrealismo foi um dos primeiros companheiros do cinema. No cinema, o surrealismo tal como o entendo interessa-se sobretudo pela realidade em todas as direcções. Daí que esteja bastante para além – aqui como na escrita ou na pintura – do automatismo ou do absurdo fantasista onde têm procurado encalhálo. Como referiu António Maria Lisboa, surrealismo não é sinónimo de fantasia, mas sim de realidade profunda e aumentada, surrealidade portanto. Não é pois de estranhar que quem se reclama dessa condição deteste os apatetados e pedantes filmes de análise, que na verdade tentam é desvirtuar as questões vitais com intuitos confusionistas. Bem como as películas que apelam para a justificação da moralidade burguesa mais grosseira, ainda que finjam revolucionarismo, ou as imbecis fitas para tornar os cretinos ainda mais cretinos com o pretexto que os estão a divertir, ou seja estupidificar. No plano técnico, ou artístico se preferir: os que não têm ponta de invenção, que repetem até à saciedade fórmulas estereotipadas porque junto de certos meios provaram que rendiam… A essa traquitana opomos a magnificência soberana de películas de Tati, Chaplin, Buñuel, Resnais, mas também de modernos ou desenquadrados que ainda não atingiram o Olimpo dos clássicos, encenadores que vão fazendo os seus filmes da maneira que podem ou que os deixam mas que criam obras de valor que por vezes nem são reconhecidas na altura em que os fazem. Ou seja, a imaginação além do poder. Tudo o que permite ao Homem ultrapassar a “condição humana” mas em termos não desfigurados. O meu realizador preferido talvez seja Manckievicz, o de “Autópsia de um crime”, de “O perfume do dinheiro”, de “Bruscamente no verão passado”. Os que já citei e também Polanski, Hitchcock, Roy Ward Baker, Orson Welles, fitas de Freddie Francis, Peter Sykes, o “Blade Runner” de Ridley Scott (a quem dediquei um poema), o Elias Merhige de “O suspeito zero”… MC E Antonioni, Pasolini, Fellini… NS Quanto a Antonioni, ressalvo que excepto quando começa às voltas e voltinhas racionalistas. Mas o “Deserto vermelho” é um filme consistente com certos pedaços soberbos, como a cena em que operários electricistas explicam à protagonista que estão a montar uma construção metálica para ouvir as estrelas, uma geringonça que faz parte de um observatório astronómico, ou outra em que um navio parece navegar por uma rua dum entreposto. Por outro lado, talvez seja mais correcto dizer que tenho filmes preferidos, ao invés de falar de encenadores. Gostei muito, por exemplo, do “Os trovadores malditos” de Carné, do “O vagabundo dos sonhos” de René Clair e não me posso lembrar sem um estremecimento do “Pândora” de Arthur Levin, triunfo do amor louco e da existência apaixonada. Mas garanto que a lista é infindável, tenho quase seis mil filmes e, desses, uma enorme parte é excepcional. MC Este é um tema que nos levaria longe… Ultimamente tem-se falado muito no reacender duma certa rivalidade ocidente-oriente, em termos de oposição como no tempo dos blocos. A Rússia volta a calçar as esporas, há o surgimento do fundamentalismo islâmico, mesmo o mais brando do novo nacionalismo árabe, a entrada peculiar no mercado da China… Preocupa-te o problema atómico? NS Até há uns anos não me preocupava em demasia, aliás verificou-se que tinha razões para pensar assim pois não houve a hecatombe leste-oeste que muitos profetizaram. Agora começo a estar preocupado. Se nos abstivermos de fazer a cena de membros da “agitprop”, como nalguns sectores se tornou aconselhável menos por moda que por inconsciência, verificaremos que certos grupos ou países tentam munir-se de força nuclear sem possuírem um equilíbrio interior clarificado. Nada de hipocrisias: certo ocidente é ávido e cínico, mas tem um certo grau de realismo que ao menos lhe diz que as bombas são para cair em cima dos outros e não sobre eles… Daí, pensando no ressalto, terem-se contido pelos tempos. Mas o que poderá impedir um prócere de Mafoma, que acredita que o seu deus depois refará o mundo em três tempos, de destroçar tudo em volta, inclusive o seu próprio habitat? Não deixemos que o politicamente correcto nos faça reféns de sectores fanatizados. Devemos levar a sério gente que acha mal que o catolicismo nos explore mas já acha bem que o islamismo nos oprima ou mande para o Além? Sim, levemo-los a sério mas só para lhes fazer saber que, como na anedota célebre, é tão nefasto levar-se com um cacete manejado com a mão direita como com uma cachaporra usada com a mão esquerda. Se conseguirmos que os fundamentalistas permaneçam desnuclearizados, podemos esperar que os outros preservem o globo terrestre. De que lhes serviria um mundo sem criados? A não ser que algum louco assuma ascendente, pareceme que o sentido é o da aproximação ao desarmamento progressivo, ou pelo menos uma certa dieta armamentista que transporta consigo, entretanto, problemas de estratégias, jogos de influencia e mercados demarcados. O que me preocupa verdadeiramente e aliás já se estava a desenhar no horizonte, é a aliança objectiva dos vários blocos contra o chamado homem comum: os bancos de dados e os computadores permanecem um enigma para o cidadão vulgar, as super-polícias secretas são já em parte indiscerníveis, os impérios dos mídia refinaram a sua capacidade para lavarem os cérebros, certos governos – como nos últimos tempos o governo português, liderado por um homem simultaneamente obstinado e frio, mas que se nota ter um tique de contida violência, com uma feição interior autoritária inquietante – tentam desenvolver capacidades que cada vez mais escapam ao nosso controle, transformando a sociedade aberta ocidental para pior. Por exemplo, a cultura popular apesar de em muitos casos ser residual, estãona a confundir deliberadamente (chegando a dar apoios para se auto-destruir mais depressa) cada vez mais com cultura de massas. Por outro lado, também é verdade que o poder, que infelizmente é sempre discricionário, já não controla bem os próprios organismos que criou. Talvez por isso, creio que precisamente por isso, é que o governo português está a tentar juntar numa só estrutura piramidal os organismos repressivos, as “forças da ordem” como se diz em democracia e que entre nós é um facto ilusório. O que também pode significar um caos a mais. Assistese à desagregação das alavancas do poder, a fera dos mídia já não se domina bem (já há casos de nítida inflexão fascista, como o célebre caso lusitano do “Envelope 9”, que mostrou que para o Estado português parece só haver direitos humanos se isso convier aos seus esteios) as polícias são cada vez mais permeáveis à corrupção – que elas mesmo denunciam sem que nada consigam (um caso que se passou em Portalegre com realce nacional) – ao amorfismo e ao desencanto. Digo com ironia magoada: talvez algum louco quebre este ritmo, mas antes do mundo à Aldous Huxley espreita-nos o mundo à Orwell. AJ Pois, o quotidiano difuso mas que constrange. O seu quotidiano constrange-o? NS Evidentemente, embora eu tenha mecanismos para lhe escapar. Independentemente do facto de que estou aposentado, o que facilita o dia-a-dia, eu tenho dois quotidianos, digamos assim: o de dentro e o de fora que me liga à vida em sociedade, a sociedade policiada e que tenta não nos deixar em paz mesmo que tenhamos uma quinta isolada e só saiamos dela de mês a mês (que não é o meu caso, falo simbolicamente). Viver em sociedade não é fácil para ninguém e muito menos para um poeta, temos de engolir muito em seco e sabe-se como os próceres do poder não estão para poesias, essas inanidades… O quotidiano certas vezes gratificante, por vezes penoso que tive nos tempos em que era preciso aturar canalhas para não perder o ganha-pão, já lá vai. Este de agora, que tem coisas pouco amáveis em muitos casos, ultrapasso-o sem problemas de maior, tanto mais que como se sabe o espírito pode mais do que a carne. Digo isto com perfeito à-vontade, porque nem sou crente, embora tenha um enorme sentido do sagrado, mas um sagrado não personalizado ou de obediência a um credo. A meu ver, posto que seja tolerante e tenha bons amigos praticantes, a religião é uma corruptela do sentimento poético, nascem do mesmo vaso (re-ligare, que significa devolver ao Homem a sua ligação ao cosmos) mas a religião fica-se em última análise pela vénia a um presumível ser supremo, extremamente equívoco aliás no que pretende ao nível do mito (há tantos como há religiões, todos eles ditos o único pelos sequazes), ao passo que a Poesia não precisa de álibis, fideístas ou outros quaisquer. Ia então dizendo que o que me perturba é o que sinto passar em volta: a fome do terceiro mundo, a miséria moral do ocidente, o fanatismo do oriente e a sua hipocrisia devastadora, a extinção deliberada ou o entravamento da sobrevivência de sociedades desenquadradas como os esquimós e os índios ainda existentes. Quanto à minha vida cidadã, não sou muito ambicioso e, se quisesse, podia perfeitamente abstrairme pois agora possuo meios materiais suficientes e, acho eu, não se poderia levar a mal que me “reformasse” mesmo! Mas não me aborrecem em demasia, os pulhas que por aqui há na cidade não me tocam – nem é uma cidade insuportável, apenas algo atrasada e onde a venalidade não assume extremos – e além do mais eu gosto das pessoas quotidianas e da região. Apesar de deliberadamente algo isolado não sou de forma alguma um afastado, trata-se de uma escolha livre pois tenho aquilo a que se chama um mundo muito meu. MC Tiveste uma infância feliz, já agora? NS Muito. Sempre que olho para trás, é um encantamento. Que maravilha foi aquilo! E a adolescência também me correu bem, mesmo bastante bem. Quando reparo nisso fico nostálgico… contente… admirado. O próprio afastamento da religiosidade, aí pelos doze anos, não me marcou, senti apenas uma certa mágoa por intuir que me andavam a enganar e que era tudo uma convenção. Lembro-me das antigas aulas de catequese, na Sé, um local de que sempre gostei, alternadamente com um indivíduo novo muito delicado e uma senhora já de certa idade que nos tratava com bondade. Não tinham perfil de carolas recalcados. Recordo-me é de um padre de meia-idade ser, uma vez, apanhado por mim numa mentira: naquela altura davam brinquedos aos garotos em troca de senhas de presença nas parlendas e eu tinha direito a uma camioneta de madeira colorida, um desses lindos objectos artesanais que dantes se faziam e foram modernamente substituídos por outros de plástico. O tal padre, não sei porquê, disse que lamentava mas já não havia e que me ia dar outra coisa qualquer… E eu tinha visto que havia. Lembro-me que só senti um certo espanto ao concluir que pessoas, que eu pensava acima de suspeita, podiam mentir ali mesmo nos claustros do templo. A partir daí inflecti o rumo, sem quaisquer amarguras, de forma natural, apenas com a certeza de que a prática religiosa era algo que deixara de me interessar. Mas nunca perdi o sentido do sagrado não fideísta. Em suma: a adolescência foi um mundo encantado que, infelizmente, já só pertence à recordação. Mas visito-o com frequência, pois uma das minhas melhores faculdades é a memória quase fotográfica. Como todos os poetas, sou um visual. AJ Um visual… como poeta? Não queria dizer como pintor? NS Não, como poeta. Os poetas são eminentemente visuais. Só que depois transformam tudo em palavras, tal como os pintores fazem o mesmo com traços e cores, creio eu. Evidentemente que um poeta é também um auditivo mas os ritmos, no poema, na feitura do poema, são mais interiores que outra coisa. MC Como uma música ao longe… NS Como uma música ao longe! Aliás, já reparaste que a poesia é sempre, penso, um misto de acção consciente e de nostalgia? Quando leio poesia tenho a impressão que algo musical soa ao longe… E curiosamente, quando faço poesia, quando algo me chega e me sento a escrever, apago de imediato qualquer aparelho que esteja a emitir música. Não sou capaz de escrever nem de ler com música de fundo… Ruídos ainda vá – o piriquito a pipilar ocasionalmente, carros que passam na rua, vozes de miúdos a brincar, a minha mulher a cozinhar… Música nem por sombras, ocupava-me a atenção e tirava-me o som das palavras e das frases que me soam na cabeça… MC Mas ainda sobre o quotidiano… NS Tudo se passa como numa fotografia a preto e branco que de repente fica cheia de cores. Claro, o quotidiano pode ser detestável pelo que nos chega de fora, em certas ocasiões temos de nos abespinhar. Mas nunca tenho conferido, com Sartre, que “o inferno são os outros”. Sartre era, na minha opinião, um intelectual com tiques de pequeno-burguês com a mania dos monstros, daí as suas oscilações conceptuais que durante um lapso de tempo até o levaram a apoiar Estaline. Incomodado, sim, mas pelas desgraças do tempo, os “disparates do mundo” como dizia Chesterton. Sigo rumo a Sírius, o humor negro é o princípio que ajuda tudo o resto. O gosto de viver… MC O que é para ti o surrealismo? Qual o papel do surrealismo no mundo actual? NS O surrealismo é e sempre foi, no meu caso, a forma mais eficaz e bela de amar a vida e de resistir. O surrealismo foi e é para mim a campina onde encontrei a cidade sonhada, o meu rio, o meu deserto e o meu veleiro. Há mares e praias na minha vida e até os fantasmas tomam a forma que lhes tira a penosidade, afastam-se cabisbaixos. Ou seja, não tenho fantasmas embora tenha muitas nostalgias… O surrealismo, sem que o programasse, é e foi a minha aposta na realidade inteira. No plano social, digo como disse um dos primeiros surrealistas: o mundo a vir ou será surrealista ou perecerá. E já há indícios seguros desta asserção. Significa isto que se os homens não conseguirem resistir e mesmo afastar a manipulação pretensamente racionalista que tenta transformá-los em máquinas produtoras de consumismos e fideísmos, terão de encarar gravíssimos cenários. Se o mundo não se encaminhar para a prática da poesia, ou seja viver sem fantasmas interiores e exteriores que nos cortam a realização pessoal, encaminhar-se-á para o holocausto. Não é mais possível continuar a assistir, sem perder a humanidade, aos massacres contra o espírito perpetrados por espúrias religiões reveladas e ideologias que já mostraram ser criminais, ou mesmo contra a matéria: têm de se enfrentar sem demora os problemas da super-população, do aquecimento global e da extinção de espécies ameaçadas, das técnicas em aceleração, dos novos produtos multiplicáveis pela genética e a engenharia de ponta. AJ E o surrealismo pode concorrer para catalizar, digamos, a contestação a tudo isso? NS Creio que o papel do surrealismo será determinante. Veja quais as fórmulas que os novos próceres têm oposto ao antigo racionalismo: o marxismo mostrou não ser mais que uma religião substituta, quando não um aparelho de desmiolação que tinha de acabar mal. Os chamados “filhos da natureza”, desde os hippies até aos actuais adeptos de uma ecologia “herbívora”, passando por grupos meioreligiosos meio-políticos, a aparelhagem do poder sabe como lidar com eles: exército emplumado, polícias estipendiadas, escolas públicas difundindo a técnica de se ser criado eficaz, o sistema judicial controlado por quadrilheiros legais de alto coturno – têm tudo para solapar os que em última instancia a prisão irá acantonar se necessário. Do outro lado, é a barbárie quase completa em acção… Sim, creio que a imanência surrealista tem muito a dizer e a classe dominante sabe disso. Cá como lá, acentuo. AJ Há pouco mostrou-me uns livros, “Documentos de Informação e combate do movimento surrealista mundial” de Cesariny, “Escritura conquistada” de Floriano Martins, mais umas revistas… Concluo que o surrealismo está activo e sei que segue fazendo coisas em diversos países. A acção surrealista é hoje mais fácil ou está, pelo contrário, mais dificultada? NS Depende… Em Portugal está mais dificultada. Não porque hoje em dia nos prendam, mas porque em “democracia” certos sectores refinam os seus métodos: jornais ditos de referencia que nos marginalizam quase totalmente ou nos entravam, entregando a “análise” crítica sobre as acções ou eventos surrealistas a observadores (não lhes chamo críticos) que opinam violentamente, no fundo difamando dessa forma quem tenha o atrevimento de se dizer surrealista. Sem qualquer possibilidade de revidarmos, eles dominam o aparelho… E isto é assim porque o poder, que em Portugal é muito reaccionário, já percebeu que a “féerie” surrealista é algo mais do que aquilo que tentavam fazer crer – sonho e fantasia. Nunca foi fantasia e, quanto ao sonho, relembro-lhe que há diversas formas de sonhar… O que o surrealismo busca, já o referiu António Maria Lisboa, não é dormir de maneira diferente mas sim estar bem acordado, no sentido lato, com a capacidade de sonho a funcionar no real que nos querem dar como fronteira. Sendo poesia viva, ele contém os germes de uma coisa muito perigosa, pois o poder tem medo que a poesia encarne e por isso é que nos casos limite prende os poetas. Nessa medida, o golpe que encenam agora é remeter o surrealismo para o passado histórico, prestigiado mas enfim, passado – utilizando os factos e mesmo as personagens mais famosas precisamente para calarem a voz surrealista de hoje. Assim como quem diz: surrealistas foram aqueles, ei-los gente graúda, vocês não são nada, calem-se lá, nós é que sabemos como é! Como não podem eliminar as nossas obras nem dizer que não prestam (desmascaravam-se!), recorrem então à censura discreta, impossibilitando-nos de publicar facilmente, de “aparecer”. Chegam a dar a entender que, se queremos falar alto e claro, reivindicando o direito que nos assiste de ter voz pública, é porque queremos “assumir protagonismo”, uma nova fórmula que inventaram para impor o silencio quando lhes convém, para amesquinhar. Mas como o surrealismo é imortal, já o dissera Breton – um dos surrealistas e não “o papa” dois surrealistas como diziam alguns videirinhos por maldade – irá sempre em frente, ripostando taco-a-taco a esses cabeçudos de Carnaval. surrealismo? MC Como se deu o teu primeiro contacto com o NS Deu-se quando eu tinha aí uns 15 anos. Fora acompanhar minha mãe a um médico local devido a uma ligeira indisposição dela e, na mesa da sala de espera, peguei numa revista (acho que a “Cruzeiro” ou a versão brasileira da “Scala”). Foi lá que vi pela primeira vez obras de Brauner, Chagall, Ernst, Dali, Matta e pequenos trechos de poemas de Éluard, Breton… Soube então, com emoção e alegria, que o que sentia dentro de mim, conforme ao meu instinto, afinal tinha nome público bem reconhecível pois até aí só ouvira vagas referencias. E daí em diante procurei informar-me, fora um deslumbramento. Li mais tarde textos mais consistentes no saudoso “A paleta e o mundo” de Mário Dionísio, um dos livros que mais me marcou a nível de felicidade. Tempos depois, um conhecido que se tornou amigo, funcionário da Gulbenkian, emprestou-me uma série de revistas e, por essa altura, adquiri o “A intervenção surrealista” de Cesariny. Pouco tempo antes começara a escrever no saudoso “Suplemento Juvenil” do “Diário de Lisboa” orientado pelo Mário Castrim. Em 69, na Guiné-Bissau onde cumpri “comissão militar por imposição” (era assim que constava na guia de marcha), li os “Manifestos” bretonianos prefaciados (?) pelo Jorge de Sena. Depois, já em Portalegre, os “Cantos de Maldoror” na tradução de Pedro Tamen. Tive contactos durante cerca de 2 anos com alguns dos autores que haviam feito sair o número único da revista “Grifo”, a seguir apreendida pela polícia política (Pide). Tempos depois, aquando duma viagem a Lisboa para que o meu filho mais velho tivesse consulta num ortopedista, conheci o Cesariny: estava com o João junto à estação do Rossio e, olhando em volta, eis que vi o Mário a comprar o jornal ali mesmo ao pé. Dirigi-me logo a ele e durante vários anos contactámos regularmente, nomeadamente efectuando textos para colaborações aqui e lá fora. Depois as voltas da vida fizeram-me seguir outro rumo, sem contudo nos perdermos de vista. Há um par de anos, algo aconteceu de muita importância para mim: conheci, numa sua vinda ao nosso país, Floriano Martins. Mas sobre isso não irei falar agora, deixem passar mais tempo… AJ Nos seus textos percebe-se um claro interesse pela espagíria. Há uns tempos, embora de forma discreta, disseram-me mesmo que você teria contacto com adeptos, pessoas ligadas à prática da alquimia ou membros da pouco conhecida Irmandade Rosacruz. Quer comentar? NS Não acredite nisso! O surrealismo, é facto, sempre se interessou pela Arte Magna, no fundo a arte e a imanência surrealistas são, como afirmou Michel Carrouges, uma operação alquímica no plano da linguagem, das formas e da existência. Quanto a estar eu em contacto com adeptos… claro que é “lenda”, não tenho categoria para isso, nem nunca conheci, cá ou lá fora, pessoas que praticassem essas artes, mas apenas alguns curiosos nesses assuntos. Bem gostava, mas infelizmente é um meio que me é estranho. Calculo que essa suposição se deva a durante algum tempo ter vivido perto de S.Julião um médico inglês aposentado, Lionel Crabowe, de quem por um acaso fortuito me tornei amigo. Como era pessoa de leituras, assinava – pelo menos recebia – umas revistas ligadas a esses temas, “Alchemy” (inglesa) e “La tour Saint Jacques” (francesa). Eu lia-as de empréstimo e é natural que algumas vezes certos amigos ou conhecidos eventualmente me vissem com elas. Tanto quanto sei, os adeptos não andam assim pela vida quotidiana… Ou talvez andem, sei lá, mas a verdade é que não conheço nenhum. Refiro-me aos verdadeiros adeptos, não aos curiosos que o serão como se pode ser pela escultura, pela geologia… Façome entender? É verdade que dum ponto de vista intelectual, de grande leitor, me tenho debruçado sobre a Santa Philosophia, que é um dos campos que como já disse o surrealismo também encara com aprazimento, mas é tudo no plano da poética aplicada ao mito. Além disso, como decerto sabe pelas regras de Geber, o adepto tinha de ser uma pessoa rica ou pelo menos com meios suficientes para aguentar as despesas das manipulações e matérias necessárias, que são caras. E tanto eu como os meus contactos somos o que se chama eufemisticamente “gente pouco abonada”. MC Pode sonhar-se com a possibilidade do Euromilhões… NS Bem metida… Mas se essa panaceia resolvesse visitar-me, creio que emigraria antes para uma ilha dos mares do Sul, não gastaria, confesso, as lecas em coisas que me ultrapassam! AJ Somos todos emigrantes internos… Bem, creio que nos ficaremos por aqui se concordarem. Uma última pergunta: que vai fazer depois de nós sairmos? NS Beber uma limonada para rebater o nosso almoço talvez um pouco demasiado substancial… E depois ler um texto sobre o Luther King que comprei recentemente. Ou rever um filme da Katherine Bigelow que me anda a suscitar. Ou, às tantas, não fazer nada disso e deixar-me ficar um bocado à janela, a olhar para a tarde deste dia que tivemos a sorte de estar tão belo apesar de um pouco frescote. E meditar… sei lá! revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 artista convidada Florencia Urbina: "Pinto lo que quiero que suceda" [entrevista] Alfonso Peña . El verano irrumpe, galopa, por los intersticios claro-oscuro perenne-, que destacan en el pórtico y las claraboyas distribuidas en los diversos niveles y terrazas de esa lánguida morada de principios del siglo XX. Está asentada en los alrededores de San José, en el barrio Lourdes de Montes de Oca. Fue diseñada y construida por don Ricardo Fernández Peralta, noble humanista costarricense: historiador, astrónomo, esoterista, geógrafo y escritor. De la hondura de sus sueños, o de alguna ficción prefigurada, germinó la idea de crear una “casa ideal” para sus diversos quehaceres; fiel a sus principios, lo logró. En los últimos tiempos la casa estuvo en riesgo de “derrumbe”; hace 4 años fue rescatada por el matrimonio Longrigg-Urbina; desde ese momento funciona en este mágico escenario el Hotel Arte Milvia. Florencia Urbina es una viajera impenitente. Ha vivido en Europa, Asia y EE.UU. También en la costa y la selva costarricense. Del mismo modo que su conversación, su pintura es desenfadada, irónica, explosiva, y muchas veces incide donde más duele, en la descomposición social y la corrupción imperante. Se le conoce desde varios biseles: por la pintura, el dibujo, la producción de obra gráfica, como organizadora de proyectos comunales, agitadora cultural, defensora de la biodiversidad centroamericana. Urbina, explora (y explota), la conjunción de los “signos” tradicionales y los contemporáneos. Su iconografía es un ejemplo lúcido del tiempo que le toca vivir: el encuentro del agua con el aceite; las bodas del cielo con el infierno; lo establecido y lo contestatario. Hace acopio de la técnica actual y los rudimentos usuales: el collage, la fotografía, lo multimediático, el dibujo, los polímeros, tintas fluorescentes y fosforescentes. Todo con una carga de sensibilidad, bien administrada, que apunta a la raíz de lo costarricense, lo centroamericano, lo universal. Su creación está llamada a convertirse en una brújula para las nuevas generaciones de artistas costarricenses: es gestual y cotidiana; popular y culta; conceptual y transgresora. Tiene a su haber la fe inquebrantable del artista que avizora el futuro. [AP] AP Es un tema recurrente; en otras oportunidades hemos llevado la conversación por los senderos de tu infancia. La incursión que tuviste desde tus inicios por los recodos del arte, los encuentros con libros, pinceles, la danza, la música. Todo eso definiría, con el transcurrir del tiempo tu vocación por la pintura. FU Me inicio desde muy pequeña en el arte. Soy tatarasobrina del artista Fadrique Gutiérrez; por los lados materno y paterno hubo diversas influencias muy positivas. Recuerdo que desde los cuatro años todos mis allegados me ponían a pintar, a leer, a bailar. Abundaban los libros, los cuadernos de dibujo, la música siempre estaba presente. Me daban papel y lápiz para que dibujara los muebles de la casa, las viviendas de los familiares. Pero hay algo que no puedo olvidar: lo que más hacía era ballet y danza. Incluso tenía clases de pintura, pero parecía que me inclinaba más por la danza. Hasta que un día tuve un infortunio en un viaje en avioneta y me lesioné una rodilla; por tal causa tuve que dejar la danza y opté por dedicarme de lleno a la pintura. AP De ahí se traduce la gestualidad que sobresale en tu pintura; está salpicada de símbolos, siluetas, danzarines. Tu figuración vibra acompasadamente, tiene movimientos dóciles y declinaciones vertiginosas. Me imagino que es una manera de “sacar los espíritus”. FU Tenés razón. Al principio de mi trabajo hago acopio de esa temática, los bailarines, la danza está presente en mi dibujo, en mi pintura. Son cuerpos en tensión, danzarines que se apropian del espacio. Y al no poder danzar, tenía que llevarlo a la tela de una manera consciente o inconsciente. Eso sucede mucho con mi pintura; pinto lo que quiero que suceda. AP Siempre me ha llamado la atención en un artista contemporáneo la escogencia de su temática. Me parece que en tu caso es muy amplia, pero a la vez parece que tiene una trama que la hace mantenerse firme. Encontramos las diversas disciplinas unidas por una gran sutileza. FU En esencia trata sobre el ser humano y su entorno. Depende de mi circunstancia; por momentos puede ser autobiográfica y muchas veces narrativa, sin caer en lo anecdótico. Podría decirte que es muy humana. Soy una creyente en la humanidad. Me apasiona la gente. Cada día aprendo y me sorprendo más. Y en la coexistencia te das cuenta del ser humano con toda su problemática: destruimos, contaminamos. Con el tiempo se colige que hay seres maravillosos y otros no tan maravillosos. De ahí que la selección que hago va desde las diferentes perspectivas del ser humano, muchas veces es un proceso casi automático: de repente estoy pintando a los políticos corruptos, a los personajes de la farándula; la doble moral, o a la afinidad que tengo con la protección del medio ambiente que cada vez está más amenazado irónicamente- por el ser humano. AP Sería oportuno que definieras y nos explicaras cómo has organizado esos dos universos tan distantes, pero a la vez tan cercanos, la animalística y el bestiario. FU El bestiario es muy diferente a la animalística, porque es esa parte del ser humano que no es digamos- adiestrable. La animalística es como un catálogo de la maravillosa armonía del mundo de los animales. Fijate que todo ese interés se despertó en mí desde el momento en que viví con ellos en la jungla. Era hermoso y a la vez increíble verlos pernoctar en mi estudio, caminando entre los muebles, avanzando entre mis lienzos, aquello era fantástico. Después de esas experiencias, traté de conformar dos series: la de los animales y la de las bestias, como una antítesis. Aunque muchas veces hay una especie de ósmosis. No deja de ser divertido. Estas series han sido expuestas en diferentes lugares y la verdad que la reacción de los espectadores me invita a seguir investigando cada vez más. AP Florencia, existe una anécdota en tu vida, cuando vivías en la playa Mal País de Puntarenas. Se cuenta que tuviste un encuentro mágico con una mona y su bebe. A mí me parece que tiene que ver con algún mito primigenio. Cuéntanos como sucedió. FU Mi hija era bebe y yo la estaba amamantando; nos encontrábamos en el corredor de mi casa y de pronto escuché un gran ruido en un árbol que estaba justo frente al corredor. Era una bandada de monos; entre ellos había una mona amamantando a su monito congo. Estábamos tan cerca que tuvimos una gran comunicación visual. Las dos nos miramos; nos estudiamos; nos entendimos tácitamente. Fue como una fascinación. Ella mirándome; yo observándola con detenimiento. Ella con su monito pegado al pecho; yo en la misma postura con mi hija. Pensé: “somos lo mismo”, “la misma cosa”. Todo en medio del trópico, con ese terrible calor: abundaban los mosquitos, era un paisaje exuberante. La mona y yo en esa maravilla; ese milagro. Era una especie de trance para las dos. Fue un instante catártico; una iluminación; un vórtice energético para comprender que tenía que pintarlos. A partir de ese episodio, digo: -aunque esto le suene mal a muchos petulantes- “Somos monos como ellos”. AP Con el tiempo vas configurando un anfiteatro personal de antropoides, con nombres, calidades piramidales, nomenclaturas. Todo esto tiene una carga de humor negro y es decididamente lúdico. FU La serie más reciente está conformada por 22 monos machos. Tiene nombres en inglés: Fred, Michael, Jonathan, etc. Son nombres de turistas que visitan el país. Son monos multicolores. Ahora llevo en proceso otros 22, que son las hembras. Estoy pensando los nombres. AP Los monos son una parte representativa de tu iconografía; incluso para muchos de tus seguidores, sos la pintora de los monos… FU No sé con exactitud hace cuanto tiempo los pinto, me parece que alrededor de una década. Al principio era un proceso inconsciente. En los últimos tiempos es más pensado. Yo los redescubro permanentemente en mi trabajo. Lo que sí es cierto es que siento un gran compromiso a la hora de llevar a cabo esta propuesta. La recepción y el acercamiento con los que ven este trabajo es de una gran correspondencia, eso es estimulante. AP El “anfiteatro” del que hablamos cada vez crece y crece más, es un matiz muy fascinante en tu quehacer, incluso se lo puede identificar por los trazos, por el color llamativo y equilibrado, por una mesurada sensibilidad para abordar la propuesta estética. FU Lo que decís es muy curioso, creo que todo se debe al encuentro con la mona. Ella me señaló el camino. Mucho tuvo que ver el primer encuentro en Mal País. AP No te parece que a veces esta temática es un poco “subversiva”, tomando en cuenta que en occidente los monos son vistos como un pecado… FU A veces percibo ese “tabú”. Yo me quedo con el rol protagónico que los monos tienen en la cultura maya: ellos son los mensajeros de los dioses… Los podés observar en la pintura, en la cerámica maya, en los maravillosos altares y monumentos… AP Florencia, me parece que en tu vida y en tu creación artística, el grupo Bocaracá tiene una vitalidad decisiva. Conversemos sobre eso. FU En el año 1987 alquilé una bodega enorme, en los alrededores de San José, más exactamente en lotes Volio. Como el alquiler era bastante alto, invité a algunos amigos pintores, colegas, para compartir ese espacio. El primero fue Luis Felipe Morais, escultor y pintor proveniente de Angola, que vivía en el país. A los días nos dimos cuenta de que todavía el pago del alquiler se nos hacía difícil. Decidimos buscar otro “socio”; emergió Luis Chacón, que en esa época era un funcionario del Museo de Arte Costarricense. Él se entusiasmó y nos apoyó en esa aventura. De repente, el espacio, que era muy amplio y con dos pisos se convirtió en algo muy llamativo. Muy pronto nos visitaba todo tipo de gente que estaba vinculada con el mundo del arte. Luis Chacón fue la persona que estaba conectada con el medio nacional y tenía relaciones en el extranjero. Muy pronto comenzaron a llegar pintores, curadores, periodistas, coleccionistas, etc. Entre otros visitantes, apareció un día invitado por Chacón -más o menos al año de fundado el espacio- el crítico cubano Ricardo Pau-Llosa. Vino a propósito de la primera bienal Francisco Amighetti (conocida como la “bienal del chunche”), como jurado. Era muy gracioso, la gente llegaba con mucha curiosidad, más que todo porque conocían a Luis Chacón. Hubo visitantes que se estacionaban a la par de uno y te preguntaban: “¿Puedo pintar?”, quizás porque el espacio tenía tal energía que invitaba a la creación. De ese modo conocí a Pedro Arrieta. En ese momento él trabajaba en papel y pintaba en blanco y negro; insistía en eso, muy convencido. En esos mismos días yo acaba de desechar la pintura en blanco y negro. Es una extraña coincidencia lo que me sucedió con Pedro. Más bien yo estaba inmersa con el color total. Recuerdo que utilizaba materiales industriales, polímeros, texturas, etc. Andaba por las ferreterías y depósitos a la caza de materiales no tradicionales. En una de las pláticas, PauLlosa, dijo: “He visitado varios talleres, me parece que hay artistas trabajando con propuestas novedosas, Ustedes deberían acercarse, unirse, transmitir e intercambiar conocimientos… Aprovechar todo ese desasosiego por el arte contemporáneo.” Después de escuchar las palabras del crítico cubano, tuvimos una larga conversación con Luis Felipe Morais y Luis Chacón. De pronto, coincidimos en que se podría hacer un “grupo”. Luis Chacón, quien conocía a la mayoría de los artistas, cursó las invitaciones. Nos encontramos en la Galería Nacional de Arte Contemporáneo. Recuerdo que ese día llegaron varios aspirantes. Luego algunos se retiraron y quedamos 11 artistas, que es el número con que se funda el grupo Bocaracá. AP El trabajo de Bocaracá, en estos casi 20 años, es de un desarrollo muy importante para el arte centroamericano. Es admirable que se hayan mantenido vigentes. ¿Cómo lo lograron? FU Por el mutuo respeto entre los integrantes, a pesar de los malentendidos. Creo que influyó demasiado el concepto de grupo sobre las individualidades, quizá por eso con el tiempo el grupo se fue desmembrando hasta quedar los 7 integrantes actuales. No encuentro otra justificación para entender toda la labor realizada: así fue como logramos llevar adelante viajes, exposiciones en muchos ámbitos, murales en sitios públicos, catálogos, videos, performances, carpetas de obra gráfica y un libro sobre el grupo. Algunos de sus integrantes despertaron el interés de coleccionistas internacionales; en todo caso me parece que Bocaracá sirvió de trampolín para el trabajo individual de sus integrantes. Ése era uno de los postulados. AP Cómo en todas las actividades de la vida, siempre existen liderazgos. Creo que es oportuno conocer quien o quienes han liderado a Bocaracá. FU Me parece que en Bocaracá, ha existido lo que podríamos llamar como “motores”, que en las diferentes instancias han sido respetados por los demás integrantes. En cuanto al liderazgo, es un asunto de actitud, de emprender proyectos. Eso lo sé. La experiencia de Bocaracá lo ha demostrado ampliamente. Hay otro asunto: en Bocaracá, hubo dos y hasta tres tendencias, eso sirvió para que se diera una pluralidad y una especie de democracia dentro de la estructura interna. AP Vayamos al grupo Bocaracá hoy. Cuéntanos de algún proyecto que estén trabajando en estos días. FU En el 2006 tuvimos una exposición muy importante en el Museo de Arte Contemporáneo de Puerto Rico. Fue una muestra que tuvo una cobertura masiva. La organización y la muestra fue muy profesional. Yo viajé con el compañero de Bocaracá, Roberto Lizano. Recuerdo que en más de una oportunidad el grupo ha viajado completo a alguna de las aperturas. Estar en las inauguraciones es muy beneficioso, pues se puede palpar con fidelidad el interés que despierta nuestro trabajo en los diferentes países. En San Juan conocimos a los artistas del Grupo Atelier 22, constituido por tres pintores puertorriqueños. De inmediato decidimos llevar a cambio un intercambio. Ellos se interesaron mucho por nuestro “itinerario de casi 20 años”, pues el Grupo Atelier 22 apenas están dando los primeros pasos. El proyecto consistió en una muestra conjunta en San José, que, por cierto, ya se llevó a cabo durante todo el mes de febrerodel 2007 en el Museo de los Niños y otra que se llevará a cabo en San Juan a partir del 1º de mayo en el Museo de las Américas. La muestra incluye catálogos de los grupos, visitas guiadas, etc. Sigo creyendo que éstos son los beneficios que se obtienen de trabajar en grupo, sin perder la dimensión individual. AP Florencia quienes conocemos de tu labor artísticosocial, sabemos que eres una trabajadora infatigable en proyectos comunitarios. De pronto estás con grupos de niños, comunidades costeñas, grupos feministas, personas dedicadas a la conservación de la naturaleza… Con esto quiero llegar a Punta Islita, una playa escondida en el litoral pacífico, por Nandayure. Para los lectores de Agulha será de sumo interés conocer sobre la génesis y desarrollo de este proyecto comunitario. FU Yo conocí a una señora que se llama Marcela Valdeavellano. Es una artista guatemalteca, que vino a Costa Rica a dar unos cursos sobre cómo “sacarle provecho al ser artista” para administrar el arte, promoverlo y mercadearlo. Llevé con ella todos los cursos. Casualmente ella estaba trabajando con el Proyecto Punta Islita (entre playa Coyote y playa Camaronal), en el diseño de la parte cultural. Ella me invitó y me dijo: “vamos a conocer Punta Islita para ver qué se te ocurre”. Y como suele suceder en esos lugares tan recónditos, tan alejados, tan abandonados, los pueblos crecen a la sombra de la iglesia y de la plaza, y allí está el Hotel Punta Islita, que fue el generador para que se desarrollara ese objetivo. Marcela Valdeavellano le propuso el proyecto a los dueños del Hotel Punta Islita, los señores Zurcher, que con gran visión aceptaron de inmediato. También estaba el antecedente de que Ronald Zurcher me conocía, pues desde mis primeros años él ha adquirido mis obras. Incluso -lo puedo afirmar sin vanagloria estaba muy alegre de que yo participara en el embrión de proyecto. Cuando llegué al pueblo de Islita, me pareció que era una colectividad sin identidad aparente. Se me ocurrió desarrollar una serie de símbolos que los habitantes del pueblo pudieran replicar, haciendo uso de su creatividad, aunque quizás lo mejor era proporcionarles los fundamentos de una iconografía que ellos pudieran repetir para sacarle provecho con los visitantes y turistas que visitaban el lugar. La idea era romper con los esquemas tradicionales que atraen turismo cultural. Mi primer aporte fue una instalación escultórica que abarca 15 kilómetros; va desde el aeropuerto hasta la playa de Punta Islita. Lo emocionante de esto es que la comunidad se integró totalmente y logramos convertir aquellas pocas casas en un pueblo atractivo, lleno de formas, colores, diseños. Con el tiempo, unos 12 artistas han presentado sus propuestas y se ha configurado lo que se llama Museo al Aire Libre Latinoamericano. AP Florencia, el 2006 fue un año lleno de actividad plástica. Cumpliste con tres exposiciones de tu obra, una en Londres y dos en Guatemala. Cuéntanos de esas experiencias. FU En el año 2006 se me cumplió el plazo que me había propuesto para exponer individualmente fuera de Costa Rica. Con Bocaracá hemos participado en muchos países, pero de un modo colectivo, además de otras muestras por invitación. Pude contactar una galería en Londres, de varias que me habían ofrecido. La galería se llama Art Spot y está ubicada en Highgate, en Londres. Titulé la muestra Trance in beanerland; está constituida por una serie de monos con un tratamiento desenfadado, ya que los monos “somos nosotros mismos” sumergidos, no en la selva, sino en la “jungla urbana”. La exposición incluyó entre 20 y 25 obras en diversas técnicas como el acrílico, óleo y collage. La mitad de las obras llevan un sello experimental, ya que esas obras fueron intervenidas con pinturas fluorescentes y fosforescentes. Así se logra una dualidad muy especial: de día tienen un mensaje diferente a la noche. Se transmutan increíblemente. Para mí esta muestra era muy importante, pues con ella inicié un capítulo de investigación en mi pintura, que va a culminar con una muestra que haré en la Galería Alternativa de San José (2007). En la galería Art Spot la puse a prueba y, en verdad, que tuvo mucho impacto. A pesar de que yo era la más escéptica, ya que me tenía que enfrentar a un público muy exigente, pues Londres quizá en este momento es la capital del arte global. Es que el Londres de estos primeros años del siglo XXI es algo extraordinario; hay bienestar, es como una eclosión multicultural, incluida la multiplicidad racial, bien integrada a esa sociedad. Y entonces uno llega ahí como artista latinoamericano en silencio, ya que la oferta artística es excelente. La muestra fue en el mes de junio, en pleno verano; la galería permanecía abierta hasta las diez y once de la noche… Había que ver esos monos iluminados, llenos de efectos cromáticos… Una maravilla… En el mes de julio estaba inaugurando dos muestras en Guatemala. Una en el Museo de Arte Contemporáneo “Carlos Mérida” y otra en la galería El Sitio, en Antigua. Fueron muestras consecutivas. En ciudad de Guatemala expuse la muestra “Plás-ticos” que es una serie dedicada a los arquetipos costarricenses: la doble moral, lo artificial, la ambigüedad, etc. Aspectos que siempre están en boca de los centroamericanos y por eso somos conocidos, y siempre nos critican. Entonces, antes de la exposición, me pregunté: ¿Por qué no llevar a Guatemala los plás-ticos? En las paredes del Museo de Arte contemporáneo “Carlos Mérida”, durante un mes se pudo apreciar a nuestros diferentes plás-ticos: “La artís-tica”; “El deportis-tico”; “El Teís-tico”; “La holís-tica”; y muchos otros arquetipos. En la galería El sitio, de Antigua, presenté la serie Animalarium. Lo interesante de este espacio es que se trata de un centro cultural comunitario. Es visitado por una nutrida cantidad de visitantes durante la semana. Ahí se expone por invitación. Se trata de hacer muestras de arte latinoamericano que tengan interés para toda la región. Yo me sentí muy bien, a pesar del acelere de exponer en Londres y Centroamérica de forma consecutiva. AP El concepto de “hotel-arte”, me parece una experiencia muy novedosa. Aquí, en este hermoso hotel Milvia, (en un punto estratégico de San José: Lourdes de Montes de Oca, detrás de la Universidad Latina) donde conversamos, durante 4 años has sostenido lo que llamamos “Arte espacio”. Cuéntanos de que se trata. FU La experiencia con “Arte espacio”, se inicia en la Playa Mal País, en medio de ese paisaje exuberante y propicio para la creación y la transmisión de conocimientos. Hace 4 años se fundó este proyecto de hotelería que es el hotel Milvia. La idea era hacer un hotel diferente, en el cual el huésped pudiera participar de los montajes artísticos. “Arte espacio” es frecuentado por niños y adolescentes que se interesan por la creación artística. Tratamos de darles rudimentos y enseñanzas para que inicien sus carreras artísticas. Es una labor muy intensa, interactiva, llena de trabajo grupal. En los últimos tiempos “Arte espacio”, también se ha convertido en una productora de eventos artísticos y culturales. Por ejemplo es la que produce los diversos espectáculos que se presentan en el hotel. Esto lo hacemos cada 3 o 4 meses. La producción más reciente fue en diciembre 06. Logramos configurar un espectáculo que incluyó un diálogo entre danzarines, músicos contemporáneos y una muestra de mi pintura. Debo decirte que en este diálogo, en este clima de complicidad entre las diversas disciplinas artísticas, Andrómeda ha ganado un amplio prestigio. Considero que es muy importante que los artistas trabajen en conjunto, el premio consiste en que un público cada vez mayor va a tener la oportunidad de conocer el trabajo de cada uno. AP Refirámonos ahora a lo amoroso, el elemento erótico en tu gráfica y en tu plástica. Recuerdo la serie de los besos, los amantes, los abrazos. Es una temática llena de búsqueda, de sensualidad; es como tener un diálogo pertinaz, una especie de confabulación con tus semejantes a través del eros. FU Yo vivo en un eterno retorno en la celebración de la vida del ser humano; lo hago y lo reafirmo con la presencia del kundaline. La energía sexual es la que rige nuestros destinos. Para mí lo erótico/sexual es energía creativa. De ahí que mi temática no estaría completa sin esas series de las que hablamos ahora. Me apasiona exaltar esos sentimientos, esas connotaciones sexuales fuertes. Es una manera de enaltecer la vida, lo fecundo, la reproducción. Lo resumo así: cuando pinto o dibujo el tema erótico, es como si lo estuviera viviendo y experimentando, es una celebración. Alfonso Peña (Costa Rica, 1950). Narrador, ensayista y editor. Autor de libros como Noches de celofán (1996), La novena generación (1991), y Labios pintados de azul (2004). Actualmente dirige las Ediciones Andrómeda y la revista Matérika (www.materika.com). Entrevista realizada em maio de 2006. Contato: [email protected]. Página ilustrada com obras da artista Florencia Urbina (Costa Rica). revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 livros da agulha 1. Parole d’acqua – Palabras de agua, de Silvia Favaretto. Ibiskos di Antonietta Risolo, 2007. Queste parole fatte di acqua – Palabras de agua – che ci offre Silvia Favaretto, mettono subito il lettore in contatto, e fin dalla significativa epigrafe, con il simbolismo di uno dei quattro elementi fondamentali, che è appunto l'acqua. Questo simbolismo rimanda a tre temi possibili, isolati o combinati: l'acqua come sorgente di vita, come mezzo di purificazione o come centro di rigenerazione. In questa raccolta intensa e originale, i tre temi sono presenti, ma soprattutto il primo: l'acqua è il mare e il mare è la madre. E questo mare delle origini acquista via via forme e dimensioni diverse lungo la raccolta, mentre disegna ad una ad una le molte varianti geografiche da cui emerge o acquista forma tangibile: dalla laguna di Venezia, ambito originario dell'autrice, al fiume sdoppiato nell'Arno e nel Rio de la Plata, alla pioggia associata al Guatemala, alle cascate, nello specifico quelle dell'Iguazù, ai ghiacciai che evocano la Patagonia, e infine all'Oceano che è senz'altro l'Atlantico. Esso, in effetti, unisce i due mondi dell'autrice, l'Europa e l'America, ma anche le sue due lingue, l'italiano e lo spagnolo-argentino, ed è anche – e perché no – il mare dei Caraibi, quindi Cuba. Dopo la sezione dell'oceano ci sono altre due sezioni, quella sul Cenote (Messico) e quella sullo Ionio (Sicilia). L'impressione è che queste due sezioni finali siano, precisamente, una nuova partenza. Forse dietro questi testi – come è normale che sia – c'è una vicenda personale, e sicuramente una vicenda di intenso dolore, una dura prova iniziatica. Ma l'autrice non si lascia mai andare alla scrittura confessionale: il dolore rimane legato a un "segreto", a un mistero che potenzia il dolore stesso e trasforma l'individuale in essenziale, l'esperienza in formula esistenziale. Ecco: forse il segno più caratteristico di questa poesia si trova proprio in questa congiunzione fra astratto e familiare, racconto e mistero, spagnolo e italiano, madre e non-madre (madre biologica, madre cosmica, madre lingua, madre vita, madre morte). Il libro, in effetti, può essere letto attraverso l'immagine chiave della madre, oppure attraverso il simbolo portante dell'acqua, che la racchiude e la moltiplica. La poesia di Silvia Favaretto – contrariamente a quello che io stessa ho affermato più volte rispetto a una tendenza generale nella poesia giovane attuale – non è espressione di una voce androgina, anzi in lei l'elemento femminile emerge costantemente e in modo indubbio. Ma la sua femminilità è carica di un vigore e di una rabbia altrettanto eccezionali. Lei ha visto la violenza del mondo, non quella contingente, storica, "attuale"; ma quella originaria, determinante, sostanziale e quindi inevitabile. E ha la forza di non mascherarla. E il coraggio di denunciarla, di contestarla, di rivoltarsi contro, anche nella certezza dell'inutilità di tale contestazione: “Nacqui viva e furiosa / mordendo il latte avvelenato / di seni che non volli / mai / lasciare”. La poesia di Silvia Favaretto nasce da una profonda lacerazione; e la sua voce non si propone di lenire le ferite, anzi. Essa graffia e colpisce. Ci costringe ad aprire gli occhi e a sopportare. Ma proprio per questo la sua poesia, non soltanto non potrebbe mai risultare indifferente, ma alla fine ci trasmette quell'incredibile energia che l'ha fatta nascere e che la sostiene, ci rende più lucidi e più forti”. [Martha Canfield] 2. Histórias brasileiras de arte e artistas, de Jacob Klintowitz. Editora LaserPrint. São Paulo. 2007. E lá estava o rapaz, orgulhoso do conto que acabara de escrever, na redação do Correio do Povo, em Porto Alegre. Chegara com a convicção própria da juventude, ao menos a daquela época (início dos anos 60), a de que era incrivelmente brilhante. Queria publicar o escrito, uma história macabra sobre a mãe louca que estrangula a filha. O editor olhou o jovem e orientou: “Está vendo aquele velho magrinho ali? Se ele disser que é bom, eu publico”. O rapaz olhou o senhor, que nem era tão velho assim, entre a pilha de papéis, e pensou com certo menosprezo: “Mas será que ele vai entender o meu conto maravilhoso?”. O senhor ajeitou os óculos, juntou as folhas, leu, pegou um lápis, enquanto o garoto pensava: “Será que ele vai ter a ousadia suprema de pretender corrigir alguma coisa?”. Com uma voz cantante, um pouco esganiçada e alta, ele finalmente opinou: “Que visão a tua!”. E convidou: “Vamos tomar um café”. O garoto com ar de quem sabe tudo, ao olhar o balcão alto, sem cadeiras, aproveitou para usar uma expressão de Mário Quintana: “Ah, um café de ribanceira”. O senhor ouviu, mas não disse nada. Enquanto tomavam o café, o velhinho era cumprimentado com deferência aqui e ali. “Olá, Quintana.” O garoto ficou surpreso, mudo e envergonhado. “Quintana de Mário Quintana?”. Era o próprio. Talvez o poeta, na sua sabedoria e humor, tenha percebido que o rapaz atrevido tinha lá o seu talento. A publicação do conto incentivou o garoto a escrever. E ao longo dos anos ele escreveu sem parar, tornando-se o crítico da maior produção de livros de arte do mundo. Jacob Klintowitz lança o seu 102º livro pela LaserPrint Editorial, Histórias brasileiras de arte e artistas. Uma edição que difere de todas as outras que pontuam a trajetória do crítico. Ele se dá o direito de uma prosa poética. Conta a história de Ivald Granato, Cirton Genaro, José Roberto Aguilar, Henrique Léo Fuhro, César Romero, apresentando o jeito de ser e ver de cada um. Também destaca momentos importantes na história da arte brasileira em dois capítulos especiais: “Amici”, que lembra a contribuição dos artistas italianos, e “Uma relação tão delicada”, mostrando a importância da França na formação de artistas como Tarsila do Amaral, Vicente do Rego Monteiro, Candido Portinari, Anita Malfatti, Wilson Tibério, Antonio Bandeira e Cícero Dias, entre tantos outros. Depois de uma vida dedicada à crítica de arte, Jacob Klintowitz vê o seu trabalho sob outras luzes. “Crítica de arte é literatura”, define. “Uma forma ensaística, às vezes poética, às vezes prosa, mas forma literária que trata de obras ou obra de outros artistas. A crítica considera a sua significação no mundo, o que a obra representa, qual o seu papel, o que ela formula. É uma decifração. Um estudo. E um ato amoroso, uma maneira de conhecer e amar, o que é a mesma coisa.” O jornalista lembra o mestre Wassily Kandinsky: “Ele dizia que o crítico de arte ideal seria aquele que tentasse sentir como esta ou aquela forma age e que, em seguida, comunicasse ao público aquilo que ele experimentou. Para isso, o crítico deveria possuir alma de poeta, já que o poeta deve sentir as coisas de maneira objetiva para traduzir de maneira subjetiva o seu sentimento. O crítico, numa palavra, deveria ser dotado de uma força criadora”. Klintowitz elaborou seus livros na contra-corrente de muitos pesquisadores. “O conceito de que a crítica de arte tem um caráter técnico e científico é completamente estranho ao meu ser”, observa. “Senti prazer e felicidade em escrever estes textos. E acho que esses devem ser outros atributos da atividade crítica. Que outros sentimentos deve ter alguém que entra em contato com a energia da criação artística?” Desde o primeiro livro, lançado em 1973 pela Léo Christiano Editorial, Jacob Klintowitz procurou aliar a divulgação do trabalho dos artistas e a reflexão sobre a trajetória da arte contemporânea brasileira. “Na época, eu trabalhava em jornal, revista, agência de publicidade, e decidi elaborar um livro para esclarecer as minhas próprias dúvidas”, explica. “Era composto de três ensaios: ‘Arte e comunicação’, ‘Apontamentos sobre a estrutura da obra de arte’ e ‘Para uma política cultural’. Aproveitei uma licença e escrevi o livro em cinco dias, o prefácio foi do extraordinário Alberto Dines.” O ritmo agitado dos jornais – em São Paulo, Klintowitz foi o pioneiro das matérias especiais de arte no Jornal da Tarde, onde trabalhou durante 17 anos – acabou influenciando no tempo do pesquisador. Ele desenvolveu a capacidade de escrever um livro, com sensibilidade e síntese, em poucos dias. Daí ter feito, como lembrou o jornalista Maurício Kubrusly, o mapa do Brasil com seus 102 livros. Ou seja, já escreveu sobre a história e o trabalho de artistas de todo o País. “Quando releio os livros, fico muito inquieto. Há sempre coisas novas para observar e acrescentar. Eu gostaria de reescrever praticamente todos. A absoluta maioria mistura artistas famosos a outros quase desconhecidos.” Para o crítico, a condição essencial para escrever sobre um pintor é o que a sua obra tem a dizer, ensinar, emocionar. “Eu peço à obra de arte que me dê critérios para observá-la. Não chego diante dela inteiramente pronto. Observo com humildade, perguntando e faço uma revisão permanente dos meus juízos de valor. Só escrevo quando a obra me diz alguma coisa.” Klintowitz lamenta o fato de o Brasil ter poucos críticos na mídia. “Os meios de comunicação desistiram inteiramente de ter alguém que fale em arte e saiba do que está falando”, observa. “Tem crítico de comida, vida noturna, vinho, cinema, política, economia, vida social, vida sexual, mas sobre arte há poucos. E o crítico é fundamental para o desenvolvimento de uma grande arte.” Na avaliação do jornalista, o artista precisa da interlocução e a arte necessita ser dimensionada social e culturalmente. “Esse é o papel do crítico. E, no nosso país, ele se refugiou em instituições, com todas as suas óbvias restrições, porque foram expulsos dos meios de comunicação. Acho também que mais escritores deveriam escrever sobre arte. Sinto falta de textos de alta elaboração, requintados, como os de Geraldo Ferraz, Antonio Bento, Ferreira Gullar, Walmir Ayala, Antonio Callado, entre outros.” Klintowitz lembra que o Brasil, apesar da extrema fragilidade institucional, tem uma arte de alto nível. “Os museus são de dar pena, por absoluta falta de verbas. A política pública, nos vários níveis, é frágil em relação à cultura e o mercado de arte é pequeno em relação ao número de artistas e a potencialidade do País. E, mesmo com esse panorama, nós temos extraordinários artistas em todas as áreas.” Em Histórias brasileiras de arte e artistas, o jornalista Jacob Klintowitz revela as emoções do crítico diante da paisagem da arte contemporânea. Depois de quase cinco décadas dedicadas à pesquisa e à divulgação da arte brasileira, o crítico abre espaço para a observação do poeta. “Este livro é um passo em minha libertação individual”, explica. “Junto o meu aprendizado de literatura e a minha percepção de arte.” Sob a liberdade de ser e sentir do paulistano José Roberto Aguilar, o crítico/poeta se deixa envolver pelas cores da obra e pela luz do ateliê. E deixa o texto fluir em sensações. “O ar estava impregnado de palavras não ditas, pensamentos inconclusos, gestos contidos. Também a poeira suspensa que a luz filtrada nos vidros sujos da janela revelava era uma presença sonhadora e opressiva.” Faz uma comparação “não idêntica, mas irresistível”, do artista pop com os mestres chineses e japoneses. “A extraordinária gravura japonesa, que tanto influenciou na invenção do impressionismo, tratava do cotidiano, da vida das pessoas comuns, das pontes e das paisagens. A crônica do homem no planeta. Desde o cubismo a arte utiliza os objetos cotidianos como assunto e, com a pop art, chegamos numa espécie de entronização da banalidade. Não se pode esquecer que estamos tratando de manifestações estéticas diferentes, mas há em comum esse interesse pela simples existência.” Nesta observação do cotidiano, Klintowitz lembra o haiku de Bashô: Belo ainda na manhã o velho cavalo sobre a neve. No capítulo “O silêncio na arte”, Klintowitz se vê diante das figuras nítidas e precisas do gaúcho Henrique Léo Fuhro. “Essas figuras multiplicadas, desdobradas, refletidas em um universo de ocultos espelhos estratégicos e que habitam como superfícies referenciais no universo mental do artista. E, no entanto, desse contexto estridente da mídia contemporânea, desprende-se uma atmosfera de quietude, uma construção feita de silêncio.” Em “O encantador de pipas”, o crítico fala sobre a arte do baiano César Romero e a sua capacidade de incorporar os símbolos da religiosidade e da criatividade popular num sistema visual erudito. “Jamais saberemos se voavam mais altas as pipas do menino. Mas eram famosas naquele interior ensolarado da Bahia as faixas de cor, o gosto feérico das combinações, a delicadeza do acabamento. No ar, a pipa, amante do vento, obscurecida pelo sol intenso, já com vida própria, provocava orgulho e a oculta dor da separação. Memória rediviva do artista, emblema cromático a portar os signos e símbolos da vida baiana.” A inquietude de Ivald Granato é homenageada no capítulo “O gênio inventor do granatês”. Klintowitz afirma que através do trabalho desse pintor carioca é possível entender muito da história da arte e da cultura brasileira. “Ele cria situações, fatos e acontecimentos que se desmancham no ar. É um demiurgo ao tirar do nada uma cadeia de existências.” O universo pictórico de Cirton Genaro, paulista de Martinópolis, é apresentado por Klintowitz com cuidado e sensibilidade. “O pintor trabalha sob a égide da história da arte. A sua pintura tem citações dos artistas que admira: Leonardo da Vinci, Hieronymus Bosch, Candido Portinari, Milton Dacosta, Alfredo Volpi. E as homenagens são freqüentes”, observa. “O artista escolheu o seu ofício e foi possuído por seus temas. Trata-se de pintura e do mundo dos homens.” Quando se fala em histórias brasileiras da arte, o primeiro nome que surge é o de Pietro Maria Bardi. Com a admiração e respeito de crítico e amigo, Klintowitz dedica a ele um capítulo especial. “Conhecido como professor Bardi, ele foi fundamental na criação da Escola Superior de Propaganda e Marketing, na divulgação da moda, do desenho industrial, do desenho de humor, da comunicação em massa, edições de livros de arte, orquestras juvenis, do curso de museologia, entre tantas outras atividades culturais. Mas, apesar de tantos títulos recebidos, Bardi era um autodidata.” [Leila Kiyomura] 3. Fale com Ela, de Betty Milan, editora Record, Rio de Janeiro, 2007. Fale com Ela é um consultório sentimental, modalidade jornalística que já deu margem a pelo menos uma narrativa importante, Miss Lonelihearts de Nathanael West. No Brasil, tem um precursor notável, Nelson Rodrigues, como bem observa a autora no prefácio. É dividido em 75 pares de cartas – consultas de leitores da Revista da Folha, do jornal Folha de São Paulo, que compuseram a seção com esse nome, e que agora se transferiu para a versão on-line da revista Veja, em www.veja.com.br/bettymilan – e de respostas da autora, psicanalista e escritora com extensa obra publicada. Com uma edição rapidamente esgotada na época de seu lançamento, em abril de 2007, Fale com Ela talvez apareça em listas de mais vendidos. Nesse caso, em qual categoria vai figurar? De não-ficção? Desse ramo colateral da não-ficção, a auto-ajuda? Ou, hipótese menos provável, como literatura? A editora Record parece acreditar nessa terceira possibilidade, pois sugere a catalogação do livro como Crônicas Brasileiras; portanto, como gênero literário, embora não necessariamente ficcional. Classificar como auto-ajuda, por sua vez, não seria incorreto: afinal, os consulentes, aqueles que possibilitaram a existência dessa seção, enviam mensagens movidos pela inquietação, insatisfação, sofrimento: por necessitarem de respostas. No entanto, há uma diferença fundamental entre Fale com Ela e a caudalosa produção editorial de auto-ajuda: cada obra dessa modalidade pretende-se universal. Mesmo partindo de experiências pessoais do autor, e freqüentemente escrita no modo auto-biográfico, apresenta algum método ou conjunto de regras aplicáveis a todos os seus leitores – ou a alguma grande categoria de leitores: profissionais de alguma coisa (público-alvo aparentemente majoritário), os infelizes, os que anseiam pelo encontro com Deus... (haverá categoria mais universal, ou mais pretensamente universal que Deus?) Já em Fale com Ela temos o reino do particular: cada caso é um caso, embora se destaquem, do conjunto de consultas, aquelas de alguém perturbado por sua identidade sexual (como os hétero que se descobrem ou suspeitam homossexuais), dos que não alcançam o prazer sexual ou só o alcançam em condições especiais e atípicas, as uniões que, por alguma dentre muitas razões estão terminando ou se esvaziando; e, contribuindo para que o todo tenha uma tonalidade mais sombria, as traumatizadas por abusos sexuais. Esses consulentes, os leitores-interlocutores de Fale com Ela, encontram o que buscavam? O que recebem de volta? Em alguns casos, ganham uma interpretação ou hipótese de interpretação, sempre feita com cuidado, por uma especialista que sabe muito bem qual é a distância entre o consultório e o espaço na imprensa. Com freqüência, recebem a sugestão de fazerem uma terapia analítica. Ouvem, ou melhor, lêem variantes – e essa seria a regra mais geral que pode ser discernida em Fale com Ela – do conhece-te a ti mesmo socrático e freudiano. E, ainda, ganham implícitas recomendações de leitura, toda vez que Betty Milan faz o paralelo entre o que é exposto e algum personagem, tipo ou situação de obras literárias, ou ao tema de um bom ensaio. Tais remissões à literatura são amplas e diversificadas: vão dos clássicos aos contemporâneos, incluem poesia e prosa, e abrangem Platão, Sêneca, Camões, Wilde, Sartre, Saramago, Oswald, Octavio Paz, Caio Fernando de Abreu, Graciliano Ramos, Ginsberg... Se, através dessas recomendações e referências, Betty Milan contribuir para formar alguns leitores, estimulando buscas da própria identidade em obras literárias, então já terá dado uma grande ajuda. Haveria mais a comentar, a propósito da literariedade de Fale com Ela, inseparável da diversidade dos casos que são apresentados. Alguns, de modo evidente, dariam margem a um enredo e tanto de narrativa ficcional, pelo que têm de insólito. Ou, melhor ainda, a combinação e interação de vários dos casos poderia resultar em um só enredo, de maior fôlego. Ao mesmo tempo, esses casos reais remetem à literatura, têm espelhos ou correlatos ficcionais. A arte imita a vida, ou é a vida que imita a arte? Ambos, evidentemente: e essa implícita dialética entre os acontecimentos do dia-a-dia e a produção simbólica confere interesse adicional a Fale com Ela, tornando estimulante sua leitura. [Claudio Willer] 4. Colección Los Conjurados. Fundación Común Presencia. Tres Nuevos títulos. La Fundación Común Presencia, se ha dedicado desde 1989 a la difusión, apoyo y exaltación de la educación y de los valores universales de la cultura, a través de la edición de su revista que ha alcanzado ya su número 19 y de la publicación de diversos libros en los géneros de poesía, cuento, testimonio y ensayo, de los cuales han aparecido 42 títulos. Sus aportes a la cultura hispanoamericana van desde los tres tomos de los Discursos de los autores galardonados con los Premios Nobel de Literatura, cuyos derechos nos fueron cedidos exclusivamente por la Academia Sueca (Fundación Nobel) para su edición en español, hasta la publicación de poetas tan importantes como Adonis, Antonio Gamoneda, António Ramos Rosa, Arthur Rimbaud, Roberto Juarroz, Georg Trakl, Giuseppe Ungaretti, Rodolfo Alonso, Calude Miche Cluny... y de algunas antologías universales de literatura de gran reconocimiento. Es notorio el cuidadoso nivel gráfico asumido por el enriquecedor vínculo con prestigiosos pintores del continente que ilustran estas ediciones. Sus directores han efectuado además en forma personal cuarenta reportajes a importantes escritores y artistas plásticos de nuestro tiempo –algunos reproducidos en diversos países e idiomas– entre quienes se encuentran: E.M. Cioran, Octavio Paz, José Saramago, Lawrence Durrell, Mario Vargas Llosa, Antonio Gamoneda, Juan Goytisolo, António Ramos Rosa, Jean Baudrillard, André Chedid, José Ángel Valente, Juan García Ponce, Roberto Juarroz, Antonio Gamoneda, Carlos Fuentes, Roberto Matta, Eugenio Montejo, Olga Orozco, Omar Rayo, Oswaldo Guayasamín, Pedro Alcánta Herrán, Edgar Negret, Fernando del Paso, Jacobo Borges... Creadores universales que se fueron constituyendo en colaboradores permanentes de sus publicaciones. La Fundación realiza además en alianza con la Unesco el Día Mundial de la Poesía versión Colombia (21 de marzo). La revista y los libros de la Colección Los Conjurados se distribuyen actualmente en cinco países (Puerto Rico, Perú, Ecuador, Venezuela y Colombia). Nuestros sitios web para visitación: http://comunpresencia.blogspot.com/ y http://coleccionlosconjurados.blogspot.com/. 4.1. Cuaternario, de Luis Alejandro Contreras. Colección Los Conjurados. Común Presencia Editores. Bogotá. 2007. Luis Alejandro Contreras (Venezuela, 1955). La mayor parte de su obra, una decena de libros, permanece inédita. Fue asistente de la Dirección de Literatura del Consejo Nacional de la Cultura (CONAC) y Jefe de la Unidad de Educación del Museo Alejandro Otero. Textos suyos fueron publicados en la revista Papel Abierto y en la antología de los talleres literarios del Centro de Estudios Latinoamericanos Rómulo Gallegos (CELARG, 2000). Colaborador de las revistas digitales Letralia, El Meollo y Remolinos. Igualmente, tuvo a su cargo la sección “Letras contra Letras” en el quincenario Letras. Contracorrientes, Sentencias en incertidumbre, cuaderno de memorias que entrevera muy al propósito vivencias, sueños y meditaciones literarias ha sido recientemente publicado por la editorial Bid & Co. Y, aparte de esta edición de Cuadernario, se ocupa en la publicación de un poemario con el sello Editorial Memorias de Altagracia, colección Celacanto. 4.2. Allí donde brota la luz, de Jorge Nájar. Colección Los Conjurados. Común Presencia Editores. Bogotá. 2007. Jorge Nájar (Perú, 1946). Estudió en Lima Educación y Ciencias Humanas en la Universidad Nacional “Federico Villarreal”. Trabajó de profesor en su ciudad natal. Ejerció en Lima el periodismo hasta 1976, cuando viajó a Francia donde prosiguió sus estudios de antropología en el Institut de Hautes Etudes de l’Amerique Latine, París III. En 1972 publicó su primer poemario Malas maneras. Obtuvo el Primer premio de la Bienal del Poesía del Perú (1984), Premio Copé de Oro; y el Premio Juan Rulfo de Poesía (Radio France Internationale, 2001). En 2002, la Editorial de la Unesco publicó su antología Poesía contemporánea de expresión francesa y, en 2003, la U. Católica de Lima lo reeditó. Toda su obra poética ha sido reunida en Formas del delirio (Ediciones San Marcos, Lima, 1999). Gran parte de su obra narrativa y poética ha sido traducida al francés: Le dire du malappris (Correcaminos, 1988); Pérou, contes populaires (SyrosAlternatives, 1989); Le diables rient (Syros-Alternatives, 1990); Toile Écrite (La Différence, 1992); Gravures sur maté (Folle Avoine, 1999); Figure de proue (Folle Avoine, 2006). Vive en París desde 1977 donde enseña y traduce poesía. 4.3. Sombra embestida, de Hernando Guerra. Colección Los Conjurados. Común Presencia Editores. Bogotá. 2007. Hernando Guerra (Colombia, 1954). Poeta y abogado. Fue presidente por varios años de una organización de trabajadores del sector financiero. Es autor de los poemarios Pájaro azul (Linotipia Bolívar 1994); La noche del árbol (Sociedad de la Imaginación 1998); Ciega luz (Común Presencia 2004). Hace parte de la Colección Internacional Los Conjurados, de la Muestra Siglo XXI de Poesía en Español y de la antología arquetípica de Poesía en Español de la Asociación Prometeo, Madrid. Aparece en Portales y antologías de literatura del país y del exterior. Su poesía se publica en periódicos y revistas de Colombia e Hispanoamérica. 5. Poesía contemporánea venezolana. Monte Ávila Editores Latinoamericana – Editorial Arte y Literatura, Instituto Cubano del Libro. La Habana, Cuba, 2005. Veintinueve escritores vivos de Venezuela de diferentes vertientes literarias y corrientes poéticas, confluyen en un libro de pequeño formato organizado por Monte Ávila Editores Latinoamericana y publicado en La Habana por el Instituto Cubano del Libro (2005). Presentada con timidez hace dos años en la Feria Internacional de la capital caribeña, la antología Poesía contemporánea venezolana fue lacerada desde un principio por la opinión “bien pensante” de una minoría que, no obstante, se ha ido imponiendo en contra del libro y sin que en apariencia nadie objete nada. Al silencio tutelar de ese ambiente y, a la hasta el momento ninguna distribución del ejemplar en Venezuela, habría que agregar ahora, la interpretación impugnante publicada por la Internet del escritor Virgilio López Lemus, sobre la cual me referiré con poco ánimo de polemizar a ciegas, pero sí con el de exponer un punto de vista diferente. En vez de tratar de entender y leer sin prejuicio la selección propuesta por Monte Ávila, el articulista impone sus propias razones calificadoras para oponerse por un lado a la supuesta carencia de poesía política de la muestra y por otra a la ausencia de algunos nombres, la mayoría de poetas fallecidos, en una selección de poetas vivos para el momento, como señala concluyente, la breve nota de contraportada. Lizcano (sic), Juan Liscano, Andrés Eloy Blanco, Caupolicán Ovalles, Arnaldo Acosta Bello, Gilberto Ríos, por razones obvias, no entran en el grupo escogido. Por otra parte y, desde una perspectiva en la que la obra poética sea lo único vivo, existen a mi entender, 50 nombres más que van desde Enriqueta Arvelo Larriva, María Calcaño, Rafael José Muñoz, Vicente Garbasi, Juan Sánchez Peláez, Teófilo Tortolero, Gelindo Casasola, Víctor Valera Mora, Villarroél París, Lydda Franco Farías, Pepe Barroeta, hasta otros como, Elmer Zsabo, Rafael José Álvarez, Hanny Ossott, o Hugo Fernández Oviol, para sólo nombrar algunos, que pudieran integrar esa otra antología. Los poetas Rafael Cadenas y Eugenio Montejo, sobre los que reclama López Lemus deberían aparecer poemas suyos, hasta donde tengo entendido, rechazaron personalmente la posibilidad de ser incluidos. En cuanto a otros importantes creadores a los que hace mención como Francisco Pérez Perdomo, Márgara Russoto, Teódulo López Menéndez, Javier Lasarte, ¿por qué no pueden pertenecer al enorme grupo olvidado siempre justa o injustamente en cualquier antología? ¿Es que, por ejemplo, en la amplísima muestra que el autor del artículo tiene en la Internet (100 Poetas Cubanos), no se omiten nombres que para muchos pudieran ser ineludibles tales como los de Raúl Rivero, Heberto Padilla, Jorge Iglesia, Norberto Codina, o Mercedes García Ferrer? Tengo la sospecha que esta humilde pero vigorosa antología venezolana hecha con las mejores intenciones y logros por Monte Ávila para Cuba (es la primera que allí se edita una de estas características), continuará recibiendo muestras de los comunes prejuicios de los inconmovibles de la isla caribeña martiana y el de los de la patria bolivariana. Poesía contemporánea venezolana, continuará dando de qué hablar allá y aquí, precisamente, porque pese a su brevedad y sencillez, testimonia un aliento, una determinación de la que carecen muchas obras más amplias. Pienso con firme convicción que la labor creadora de Ramón Palomares, Ana Enriqueta Terán, Juan Calzadilla, Gustavo Pereira, Enrique Mujica, Alfredo Silva Estrada, Enrique Hernández D´Jesús, Beverly Pérez Rego, Reynaldo Pérez Só, Ely Galindo, Armando Rojas Guardia, Luis Alberto Crespo, William Osuna, Miguel Márquez, Santos López, Luis Enrique Belmonte, Ángel Eduardo Acevedo, Cecilia Ortiz, Luis Camilo Guevara, Elizabeth Shön, Eleazar León, María Auxiliadora Álvarez, Leonardo Ruiz, Adhely Rivero, Carmen Verde, Tarek William Saab, Gabriela Kizer, Farruco Sesto, Luis Alberto Angulo, merecen un tratamiento crítico no sometido a la presión circunstancial y a los criterios libérrimos de las antologías, inevitablemente examinadas por sus omisiones injustas para tantos. El conjunto de estos nombres, en el que aparecen grandes figuras consagradas y otras de creadores menos conocidos, es una apuesta crítica respetable y digna. No puede juzgar la obra de un autor y menos la de un país a partir de una antología que por muy aguda sea, sólo refleja una mirada y una perspectiva. Mucho menos la opinión fundamentada de quien ensaya evaluar para otros, que es la función básica del crítico, puede dejarse llevar por sus gustos y afinidades personales. En todo caso, se sabe, una lectura de este tipo exige asumir el texto sin subestimar el contexto, pero aceptando ante todo que su función es aferente al de la creación. Tenemos aquí, sin embargo, una muestra de la poesía venezolana hecha con amplitud y conocimiento del hecho literario nacional del momento y que a nuestro parecer, es inobjetable en el propósito de promocionar la excelencia de una producción que desafía tradiciones mejor conocidas y promocionadas, pero nunca más importantes, hermosas o actuales. Es recomendable en definitiva, la edición nacional de este libro con un formato más amplio y con todas las correcciones posibles. En todo caso, la excelencia y riqueza de la poesía venezolana permite cualquier número de compilaciones desde diferentes enfoques. Particularmente yo agregaría otros nombres a ésta de Monte Ávila, pero agradezco altamente y sin reservas me hayan incluido en ella y defiendo irrebatiblemente mi derecho a esa inclusión. En cuanto a lo verdaderamente rescatable y trascendente que surge a partir de la opinión del articulista, más allá de concebir la existencia o no de una poesía política, es la posibilidad de estudiar con absoluta franqueza si es verdad que la poesía venezolana o la misma que se hace en este momento en Cuba, están de espaldas a la realidades profundas de ellas mismas, de su propio gran decir en el tiempo y el espacio que le corresponde. Nada, en este sentido, sustituirá la poderosa energía de la poesía que está viva toda en la multiplicidad de formas como logra expresarse. De lo contrario, lo que se pretende presentar como tal, sólo es una cáscara que hace aguas por cuenta propia y sin ayuda alguna para redimirla. [Luis Alberto Angulo] 6. Paradojas de la mandíbula, de Carlos Calero. Ediciones Andrómeda. Costa Rica. 2007. La dentellada del mastín; la mordiente del gato con la paloma en sus fauces; el tránsito del autobús suburbano de la barriada popular al downtown de la capital; el amanecer entre anturios, azucenas, claveles y la fragancia escarlata de una piel femenina; la responsabilidad del poeta sin protocolo y con audacia; todo eso y más acarrea el último libro del poeta tico-nica Carlos Calero, Paradojas de la mandíbula. Y la memoria, mejor dicho, la cabanga, ese hilo conductor de la conciencia del poeta desde la infancia hasta el exilio voluntario donde acecha el mercado de la muerte. Sobreviviente de los talleres literarios de la otrora revolución sandinista, hoy acartonada en el gobierno nicaragüense como una perífrasis tragicómica, Calero rehusó la forma que perseguía su estilo, para refugiarse en el estudio y la lectura de los clásicos y las poéticas renovadoras, sin borrar, claro está, la valiosa experiencia de aquéllos balbuceos exterioristas. Por eso nos entrega una poesía trascendente pero con garra, lírica más cotidiana, intimista pero conversacional, culta y sin embargo popular. Como profesor que es, en el sentido más amplio y pedagógico del término, el poeta evita la grandilocuencia, no pontifica sino que busca, describe, interpela, opone y propone. Tributario de su doble vertiente sociocultural y lingüística, su poesía es fronteriza: desde el ceremonial de Monimbó hasta la acidez urbana de una metrópoli que se muerde la cola como San José (la ciudad más grande de Nicaragua, según la percibe el poeta Alfonso Chase), surca esos montes, esas llanuras, ese río donde asoma la boina de su mayor prestidigitador y mediador (JCU), pero sin perder la frescura que nos convoca a todos a un territorio compartido y, como el poeta, el otro, el mayor, el paisano, inevitable. Porque la división, en esta época, es asunto de cínicos, oportunistas y politicastros. Paradojas de la mandíbula es testimonio lúcido del oficio. Por eso Calero convoca a sus poetas precursores y predilectos, los reúne alrededor de su buró de trabajo y les platica. Conversa largamente con ellos, les narra sus imágenes, los reclama en sus reflexiones. Y se interna en ese monologo profundo con la voz ajena, que no es más que la bullaranga de las plazas, parques, mercados y ferias de su pueblo, ese de la Nicaragua natal, éste de su Costa Rica neoliberal. O se ensimisma en su voz interior para retrotraer a sus antepasados, a su amante esposa difunta, a sus camaradas de viaje, quienes hacen posible la construcción de un mundo que se nos cae, como en la guerra de todas las cosas, en un caos y una anomia que amenazan al planeta entero. Carlos Calero nos entrega una obra largamente meditada, elaborada, digerida, distribuida en su argamasa originaria. Todo ello en el silencio de la labor del orfebre, silencio que, sin las poses y aspavientos de muchos vates posmodernos, es condición sine qua nom de todo verdadero artista. Así es su postura vertical de hombre comprometido con la vida, de ciudadano oficiante de la poesía. Por eso el poemario mastica, masculla, aúlla, susurra, acaricia y supura, con la lucidez del artesano que pule las palabras y las imágenes, tal vez en exceso a veces, pero con la convicción barroca de los hechiceros y los amanuenses de la palabra historiada, es decir, amasada colectivamente, multiplicada, compartida. [Adriano Corrales Arias] 7. Poemas do Mediterrâneo, de Faz•l Hüsnü Da•larca [tradução: Miguel Sulis e Marcelo Jolkesky]. Edições Nephelibata. Desterro, Sta. Catarina. 2006. No que tange a Literatura o idioma turco é uma raridade em nosso país. Se perguntássemos aos poucos leitores deste país qual seu autor preferido da Turquia? isso pareceria piada. A que devemos isso? Desconhecimento dos idiomas mais distantes do nosso? Vício do mercado capitalista livresco? Ou mera falta de cultura? Difícil saber. De todo modo, exceções há. Uma dessas é a tradução, pela primeira vez no Brasil, do poeta Faz•l Hüsnü Da•larca. Nascido em Istambul, em 1914, Da•larca é um dos mais traduzidos poetas turcos contemporâneos de expressiva consideração nacional (e, diga-se de passagem, antiditatorial). Sua poesia há décadas já entrou no coração da velha Europa, mas só agora nos chega aqui, e numa antiga forma, a de uma plaqueta. A forma gráfica da plaqueta é a de um pequeno volume cujo conteúdo é algo que se assemelha a uma amostra; comparada com o cinema, é como se fosse um curta. No presente caso, a plaqueta apresenta um conjunto completo de poemas, bilíngües, chamado Poemas do Mediterrâneo, pertencente ao livro A Agonia do Ocidente, de 1958. A tradução, ao cargo de Miguel Sulis e Marcelo Jolkesky, contou com o contato direto com o autor, desde Istambul, de sua velha e conhecida livraria (pois Da•larca, com mais de noventa anos, segue sendo livreiro). Bir kocaman ye•il bir kocaman boz Yellerde Çarpar birbirine çarpar enginlere dek. Dalgalar•n ucunda y•ld•zlar•n ucu Her köpük bir f•rt•na Her köpük bir evren. •u deniz •u gök gizlenebilir Seni sevdi•im Gizlenemez. ................................................................................ Um verde colossal, um cinza colossal Nos ventos Colidem, defrontam-se até o mar aberto. Nas cristas das ondas a ponta das estrelas Cada espuma uma tempestade Cada espuma um universo. Esse mar, esse céu podem esconder-se Que te amo Não podem esconder. [Camilo Prado] 8. Mar de dentro, de Lílian Gattaz. Editora Limiar. São Paulo. 2007. Vai louca vai, / desentranha, / ato penúltimo, / santo seio, / cacos, / que se guarde aqui as penas, / eu te compreendo. Os versos destacados são algumas das poesias da psicanalista Lílian Gattaz no seu primeiro livro, mar de dentro, lançado pela Editora Limiar, com o apoio da Secretaria da Cultura do Governo do Estado de São Paulo, premiado como revelação de autor inédito. Mar de dentro é uma teia que lhe consome e devora, sua leitura provoca uma busca incessante no ponderável claroobscuro que habita cada um de nós. Posto que é mar é infinito, quanto mais se lê, menos se sabe, a busca já é o fim. A releitura, um novo começo e assim essa viagem que nunca termina nos põe a gozar por alegria ou sofrimento. Lílian não põe antagônicos nenhum sentimento ou situação, tudo celebra a vida numa ilha submersa que de tão improvável e discutível existência, torna-se real, exata, cópia fiel do que vai na alma humana. Além da beleza e da harmonia contida em cada verso e em todo o livro, há um brilhante prefácio de Claudio Willer e considerações sobre a autora e sua obra por Renata Pallottini. No poema abaixo, bem… por si só ele já mostra do que é capaz captar a inteligência e a sutileza do olhar, que Lílian põe sobre cada momento. TRISTEZA sobre a mancha da camisa o ferro quente desfazia rugas e o meu pranto provocava outras [Eliana de Freitas] 9. Poetas na surrealidade em Estremoz – antologia. Organização e introdução: Nicolau Saião. Traduções: António Simões, Éclair António Almeida Filho, Floriano Martins, Nicolau Saião. Edição Câmara Municipal de Estremoz. Portugal. 2007. Há livros que não se organizam. Ou antes, não carecem de organização. Organização? Antes lhe chamaria simples arrolamento, simples juntura – como se os textos tivessem caído da cauda de um cometa, a nós chegassem projectados por um impulso tão natural como um aceno, um relancear de cabeça, uma expressão do rosto. Assim sendo, apenas me coube o papel de receptor. De receptor após mínima sugestão de companhia. E, pronunciando esta palavra, chega até mim como eco dum vento salutar a frase de António Maria Lisboa “Aqui já ninguém procura um séquito; quer-se companhia”. Companhia feita de um simples assentimento – que é o que melhor quadra nesta antologia que agora se deixa aqui proposta a uma viagem sem fronteiras. Um puro lugar de afectos? Também, claramente. Mas afectos cifrados numa qualidade sem jaça – diria da sua alma própria, que é o espírito absoluto de quem os articulou em palavras, em frases, em poemas criados mediante o apelo do sonho, da realidade que intimamente a ele se liga e que já não é norte, nem sul, nem inverno, nem verão – mas a figura absoluta de quem através deles nega a morte que tantos desejam para a Poesia, aquela entidade que visa a plenitude. “Sobre os telhados da casa cresce uma excrescência carnosa”… A frase contém ainda a sua verdade amaldiçoada, mas cabe aos poetas iluminar a cena e, dessa maneira, possibilitar moradias mais livres, mais salubres, um ambiente de logradouro, de jardim ou de palácio encantado onde os monstros não tenham efectivo poder. Estes poemas, esta junção de poemas na surrealidade, vindos de autores vogando expressa ou impressamente na imanência surrealista, não são uma celebração. Apenas propõem um íntimo, um pequeno fulgor. Uma pequena pedra brilhando na escuridão de um tempo a que alguns, sem que jamais o consigam, querem retirar a dignidade que lhe é própria, que lhes é íntegra pertença – e que de algum modo será o seu seguro perfil nos anos que pelos tempos irão chegar. [Nicolau Saião] 10. A possibilidade de uma ilha, de Michel Houellebecq [tradução de André Telles]. Ed. Record. Rio de Janeiro. 2006. Chega um momento na vida em que o ato de ler é alimentar-se de si mesmo e a si mesmo. Assim, alguns se alimentam de idiotices (nenhuma referência a O idiota de Dostoievski) e, quando muito, de dogmas que são a base e a fundamentação dos medíocres. Outros se alimentam da inquietude. Num certo sentido, incluo-me entre esses outros. Daí conheci Michel Houellebecq que, diga-se de passagem, a mim me foi elogiosamente apresentado por Fernando Arrabal, quando de sua recente e honrosa visita ao Brasil, como palestrante convidado no II Festival Nacional de Teatro “Cidade de Vitória”, no Espírito Santo. A idéia de entender se resume naquilo que convencionalmente tem-se aceito em nossa subjetividade cultural como um entendimento que se basta a si mesmo, engessado pelo nosso paideuma. Decidir por algo que não se entende é uma possibilidade de romper com as camisas-de-força da lógica clássica, novas tentativas de emprestar significado ao mundo ou, pelo menos, transitar pelo nãosentido como um exercício do devir, pois – de certa maneira – essa herança colonizadora do pensamento ocidental se divide em princípios e finalidades. De um lado, afirma-se uma espécie de essência originária que a tudo sustenta como garantia daquilo a que se tem acordado como o significado da existência e, por outro, tudo se justifica pelas finalidades ou, conforme Voltaire, “tudo vai da melhor forma para um determinado fim”. Michel Houellebecq, em sua obra A possibilidade de uma ilha, estabelece um divisor de águas, ou seja, tanto o princípio quanto o fim são determinados pelo meio que – na medida em que se movimenta – instala os valores do início e do fim que somente são início e fim em detrimento daquilo a que até então se tem compreendido como mundo no momento mesmo em que vivemos o meio e no meio, não como mero mediador de dois pólos, mas como condição sine qua non para se ratificar a opinião (doxa) de que apenas podemos dizer de alguma coisa a partir do lugar de onde dizemos. Se, em A possibilidade de uma ilha, Houellebecq propõe a sobrevivência como a única forma de engajamento para o homem, implica dizer que sobreviver não passa de uma possibilidade de dizermos sobre o viver. Aqui se assevera que a ficção e a realidade não passam de aspectos diferentes do mesmo e, do ponto de vista literário, não é por acaso que Houllebecq – na obra em questão – apesar de ter optado pelo gênero romance como estrutura da obra, transita como cronista do tempo através da filosofia, da poesia e do ensaio. Uma mirada fenomenológica que coloca sob várias perspectivas uma reflexão sobre o homem e suas tentativas utilitaristas para se inserir no mundo das paixões inúteis. Com um pé na ficção científica e outro traçando rastros numa realidade repleta de buscas de soluções mitificadoras, o autor revela seus personagens marcados pela necessidade de inventar atalhos para amenizar o sentimento de paraíso perdido. Reina a nostalgia de um mundo que foi sem nunca ter sido através de uma história que se passa ao mesmo tempo no passado e no futuro, uma espécie de eterno retorno ou, quem sabe, como afirmou Raul Seixas, “o hoje é apenas um furo no futuro por onde o passado começa a jorrar”. Numa ciranda de variações sobre o tema da existência e, com fina e bem humorada ironia, o autor destila suas doses de depressão, monotonia e tédio, numa crítica à mediocridade e o reconhecimento de toda a gama de acontecimentos que conferem ao homem a sua dor de estar no mundo (Weltschmerz). Não a dor meramente psicológica, mas a dor que perpassa o próprio significado do ser, uma questão ontológica. É dizer que o fato de estar no mundo já é terrível, pois é um estado de ser no oceano das cotidianidades, um lugar onde não há entradas ou saídas, embora a possibilidade de uma ilha seja a manifestação de que algo venha a acontecer para alterar o destino. Mas o destino como a consciência existencial e niilista da finitude. Uma consciência que corta o espírito com a afiada lâmina da carne que se destrói na própria tentativa de se superar. Uma consciência de que ser humano é ser vítima dessa condição, um corpo que se vê pouco a pouco deteriorado de si mesmo pelo envelhecimento. Nesse processo de envelhecimento ou experimentação do mundo, entra em cena o amor, na pele do personagem humorista que vive duas desastrosas paixões. A primeira dessas paixões é Isabelle, uma mulher cujo casamento se nutre de um amor mumificado e sem apetite sexual e, por isso mesmo, se exaure na tentativa mesma de se manter. A segunda é Esther que, assim como a outra, se assemelha no desastrado desfecho, embora se diferencie por ser daquelas em que o sexo está completamente dissociado do amor e, ainda, por ser uma dessas figuras que se recusaram a crescer, como os personagens do filme Kids, de Larry Clark, uma hóspede infantilizada do mundo em ruínas, “paralisada em uma bolha asséptica”, experimentando um alheamento e quase como privilégio a iludida sensação de estar fora ou não ter nenhum compromisso com o mundo. Se Nicolau Maquiavel escreve O Príncipe para demonstrar as peripécias que se fazem necessárias para que este se mantenha no poder e, ainda, Baldassari Castiglione, em O Cortesão, revela as estratégias da dissimulação para que a monarquia e a plebe se completem como uma unidade do sistema, Houellebecq coloca em xeque o próprio sentido do humano, a partir da idéia do neo-humano que se dá num processo de desumanização, onde os valores são travestidos na tentativa de garantir uma espécie de “ordem” para a sobrevivência. Como indagava Torquato Neto, “aqui é o fim do mundo, aqui é o fim do mundo... ou lá?” Sim, para Houllebecq, aqui é o fim do mundo. Aqui é o início e o fim deste mundo da forma como até então tem sido sustentado, mas também o início e o fim estão lá... na possibilidade de uma ilha inventada para este fim. Em A possibilidade de uma ilha, autor e personagem se confundem. Talvez, como em Rimbaud o “eu é um outro” pode-se dizer que Houellebecq, mais que um autor, além de um outro, é vários autores, considerando que o autor se reveza com seus personagens, cada um por sua vez, ou seja, há tantos autores quanto personagens atuando como sujeitos e objetos que de tanto inverterem seus papéis já se torna impossível distinguir quem é um e quem é o outro. E por falar em personagens, ninguém melhor para ironizar o mundo que um popular e bem sucedido humorista, um bufão especialista em piadas sujas. Não somente ironizar, como é perceptível em um de seus espetáculos cujo título é Chupe minha Faixa de Gaza, meu colono judeu gorducho, mas também colocar em questão a vida de um artista corroído pelo próprio gesto de analisar seu papel numa sociedade como a atual que, conforme ele mesmo diz, o “fez” construir a carreira e fortuna “em cima da exploração comercial dos maus instintos...” Ainda dos personagens, Daniel 24 e Daniel 25 são separados por dois milênios (seria o tempo de duração da era cristã?) e que, para se protegerem dos humanos, se isolam em condomínios tipo bunkers. Estes, por intermédio de cortantes monólogos, estabelecem uma espécie de diálogo sobre a vida de Daniel – ou Daniel 1 – um espécime da sociedade contemporânea. Daniel 1, como representante deste vazio de dois milênios que separam Daniel 24 de Daniel 25, é o retrato de um modelo de sociedade falida. A princípio, diante de todos os fracassos do mundo contemporâneo, mostra-se incrédulo, mas aos poucos acaba por compartilhar com a idéia de que o ser humano não passa de um resultado da visita de extraterrestres. Numa mescla de ciência e misticismo e, talvez, como o último estágio dos suicídios em massa e a liberalidade sexual, os seguidores de uma nova seita com pretensões redentoras, os Elohim, que acreditam na passagem para a vida eterna a partir da clonagem. Para os que têm consciência da vida num oceano, A possibilidade de uma ilha está em potência, abrindo as fronteiras como uma afirmação de que o limite da possibilidade é a impossibilidade frente ao mundo, pronto e acabado, onde tudo está por fazer e que não há mais como sustentar na mera esperança construída de velhos conceitos náufragos de humanidade. Desumanizemo-nos. Se, para alguns críticos, A possibilidade de uma ilha está fora de lugar ou, para outros, pelo seu caráter anedótico (sic) teria ficado no meio entre ficção e realidade, cabenos ressaltar que não existe um absoluto como o lugar dos lugares (nem no espaço nem no literário) e que o não-lugar é também um lugar, ou seja, reforçando a idéia anterior entre o início e o fim, é no meio que a realidade se realiza. Parafraseando o dito popular, Houellebecq parece nos afirmar que há males que vêm para pior e, ao mesmo tempo, coloca um dedo na ferida deste modelo de civilização em que se aposta em hecatombes e fracassos. Há um grito contra esse amontoado de códigos e signos e siglas que não passam de mentiras inventadas como saídas miraculosas para o nada, como um cachorro querendo morder o próprio rabo. Enfim, em A possibilidade de uma ilha, Houellebecq abre as portas do século XXI com um novo romance cuja linguagem é capaz de abrir crateras para preencher o vazio cavado pela pós-modernidade. [Wilson Coêlho] parceiros da agulha nesta seção Livros para Agulha deverão ser enviados aos editores, nos endereços a seguir: Floriano Martins - Caixa Postal 52874 Ag. Aldeota - Fortaleza CE 60150-970 Brasil Claudio Willer - Rua Peixoto Gomide 326/124 - São Paulo SP 01409-000 revista de cultura # 57 fortaleza, são paulo - maio/junho de 2007 discos da agulha Música popular no Brasil: A luxúria do tédio Um fenômeno constrangedor assola com pés de gigante a terra musical brasileira: a mesmice dos que se auto-profetizam renovadores e a restrição do acesso do público aos artistas que se poderia considerá-los “novos”. Infelizmente, com grande e massacrante constância a indústria vem exaurindo sua própria “chama” de funcionamento e não está notando o fogo que a destrói. Está muito bem alocada a ausência de criatividade e sensibilidade como fórmula mágica de vendas, a espetacularização do fútil e de si própria (é redundante mesmo!), fazendo com que a música brasileira popular se agarre em um viés cancerígeno que já mostra sérios sinais de falência de órgãos. Nestes termos, o que Fayga Ostrower define como grande característica da cultura e arte brasileiros, a sensualidade, naufraga completamente, entre garrafinhas e outras coisas que não vale a pena citar, em uma óbvia dificuldade de traduzir-se no que melhor tem. O maior problema não é a falta do “novo” - apesar do “novo” ser um dos pilares “filosóficos” na música popular do século XX -, pois podemos vê-lo em qualquer lugar, sem grandes esforços, também em releituras de obras. O que vemos é uma estrutura formada nos anos 60, dando os primeiros passos em sua “ingenuidade”, em que a indústria musical brasileira começou a se conscientizar da grande possibilidade da indústria do espetáculo e suas derivações, em mais uma importação de usos e costumes, ou pelo natural encaminhamento na troca de conhecimentos. Este caminho ainda foi bem tratado, inicialmente, mesmo que notemos uma grave falha, em cujo hiato vemos o detrimento do instrumental como parte da música - a música contendo músicos e não estes servindo de cama para solistas. O início da música comercial, com introdução no máximo de 30 segundos - quando muito - no que a música, propriamente, sofreu imensamente em sua essência. É esta estrutura que vem “desenvolvida”, barra o tal “novo” e se insere no caos onde se ausenta o bom senso, principalmente administrativo. A cobra começa a se engolir em uma emblemática ganância apropriada dos que criam, não de sua atividade “fim”: manter uma estrutura funcionando. Vende-se fumaça como nuvem. Os nãocriadores não podem se dar ao luxo de se engolirem, pois não saberão se recriar, logo após. Em sua primeira fase, a época de ouro da MPB (onde estão Elis Regina, Maria Bethania, Gal Costa, Roberto Carlos, Caetano Veloso, João Bosco, Milton Nascimento e outros a mais) sobreviveu tentando romper sutilmente com a ditadura militar, propagando-se em herméticos símbolos líteromusicais, projetando conotações de resistência política, trazendo para a cultura musical os símbolos diversos da vida ideal, da esperança, da felicidade - coisas que se demarcam como único prato degustável a um público carente de ser, como ainda é. Desta forma se compõe a grande mesa de “medalhões” que fura tempo e espaço afora. E a demanda atendida é somente o pó, lixo musical, não um pedaço de bolo. Pulando alguns anos, a partir dos anos 80, vimos consolidar a indústria da superficialidade, em contramão à rigidez com que se produzia na década anterior, de modo a que essa superficialidade se derivasse nas novas ditaduras que correspondem aos “novos” apelos mercadológicos - um impingir de novas necessidades que chega ao absurdo de negar os próprios “discursos”. Isso, na área musical, reproduz-se em música cada vez mais pobre, argumentos cada vez mais frágeis fazendo da música a indústria de entretenimento e não mais como indústria cultural ou musical. Força-se facilmente a que se tapem os ouvidos da sensibilidade para que, quem escute, se pense “rei”, mantenha-se pleno - todo mundo começou a gostar do quase nada que era e é oferecido. E ainda mantém o status de arte. Distorções são claras. Quando se diz que a MPB acabou e que esta não é “popular”, lembro-me de milhares de pessoas de todas as classes cantando “O bêbado e a equilibrista”, pérola sintética de uma época tão complexa, não menos que agora, enquanto vivemos a inflamação da complexidade, a vida líquida. Não retiro valores, mas é clara a inadequação da música comercial como representação da cultura popular (esta no sentido mais amplo, popular de raiz e das cidades e metrópoles - o folclore de todas as raças e províncias espalhadas no mapa-múndi). O entendimento de que esta coisa oferecida seja a expressão popular através da música que reina é uma imbecilização do povo, que só come o que tem, mesmo! Uma indignidade clara que chega ao seu limite. E a indústria, coitada!, reclama dos direitos autorais, pela existência dos formatos de áudio digital sendo transferidos pela internet. Quase que eu acredito que o problema é mesmo de direitos autorais! No entanto, tudo foi “tão bem construído” que essa indústria antes fincada em estética e ideologia - pelo drible à ditadura aprendeu a sobreviver durante todos estes anos com as mesmas máscaras usadas em uma ditadura, aparentemente “ao inverso”, praticando nepotismo, um doentio hedonismo pós-industrial, fazendo que o interesse pelas fofocas sejam mais merecedores de atenção do que o próprio “produto”. O espetáculo do espetáculo do espetáculo - cada dia mais longe da criação em si, a criação reduzida a uma vista origem medíocre. Procuramos, então, os legitimadores de uma forma de atuação do artista no mercado e poderíamos pensar, por exemplo, que o Prêmio TIM, 2007, viesse a ser um bom referencial do que há de melhor da produção musical brasileira. O que sabemos a respeito? Fala-se mais nas polêmicas de Roberto Carlos não aprovando sua biografia, brigas entre Caetano e Luana Piovani (ora, vejam só os personagens!) e outras coisas que não trazem nada, mesmo, ou contribuam a quaisquer dos interesses sociais, culturais, artísticos etc. do que em música. Não há tempo para se repensar. Cifras, cifras, cifras (não notações musicais) versus piratas. Quem é mais pirata? A foto tirada nos anos 70, em larga ceia, é preenchida por caquéticos caducos que se auto-conclamam reis, ainda, depois de toda a estrada sem santos, sem caracóis, sem música, sem o mínimo aroma de poesia. Claro, o Prêmio TIM não se faz entender somente desses aspectos fúteis, no que vale ressaltar os talentos de artistas como Marcos Tardelli (violonista, participante-arranjador do Grupo Maogani, que fez um belíssimo álbum com parte da obra do Guinga), Hamilton de Holanda (com o trabalho “Brasilianos”), Nelson Freire (por “Brahms - the piano concerts”), Zé Renato (cantor, compositor e produtor pelo “Forró para crianças”), sem deixar de lado a premiação dupla da “industrial” Marisa Monte (“Infinito Particular” e “Universo ao meu redor”) que, particularmente, conseguiu um aprimoramento como cantora e compositora, como também Maria Bethânia (“Mar de Sophia”), que ainda reina soberana, com alguma sensibilidade especial, mesmo que seus trabalhos tenham a mesma linha de condução há tantos anos. Considerando a maioria dos prêmios temos uma articulação em torno das vendas, não se fala em música, não se ouve música. É estranho que um prêmio direcionado à música ganhe esta conotação tanto mais mercadológica. E isto é obviamente lamentável. Em um apanhado geral constatamos a presença maciça do selo Biscoito Fino, que carrega uma contramão do superficial, com lançamento de grandes obras e artistas e a relevância dada a produções instrumentais, que inclusive justificam determinados prêmios dados a artistas “solo”. Ótimos projetos têm sido jogados no mercado e os artistas anteriormente alocados nas multinacionais estão correndo para comer uma fatia do Biscoito. Afora critérios de bom-senso, temos Caetano Veloso como melhor CD de rock. Melhor mesmo acaba sendo entrar no mundo dos “independentes” (do quê?) e tentar ter acesso a grandes talentos que estão no “sub-mercado”, como os cantos de Fabiana Cozza, Ná Ozzetti, Rosa Passos, Teca Calazans, Rubi, Zé Renato, Sérgio Santos, Ceumar e Mônica Salmaso, (e tantos trabalhos instrumentais) entre outras pessoas que “não aparecem na TV” e tanta gente que está fazendo arte, de verdade. Fofoca não soa bem e eu não desculpo (se me permitem a licença). [Erico Baymma] 1. …E por falar em acordeon, de Chico Chagas. Rob Digital. www.robdigital.com.br. Contato através de Marília Motta: [email protected]. “...E por Falar em Acordeon”, produzido por Luiz Avellar, conta com 13 faixas, sendo uma de composição própria, e traz um naipe de instrumentistas da maior qualidade: nos pianos, Leandro Braga, Itamar Assiére e Luiz Avellar; nos violões, João Lyra, Luís Brasil, Leonardo Amoedo e Nando Duarte; nos sopros, Carlos Malta, Paulo Sérgio Santos e Roberto Marques; nos baixos, Jorge Helder, Nei Conceição e Arthur Maia; nas baterias, Jurim Moreira e Kiko Freitas; nas percussões, João Hermeto e Fábio Luna, e no violino Nicolas Krassik. O repertório traz releituras variadas: de Djavan e Jair Amorim a Nando Reis e Marisa Monte; de Pixinguinha e Jacob do Bandolim a Valdir Azevedo e Luiz Gonzaga. A música autoral “Rio Branco” é uma homenagem de Chico à capital do Acre, seu estado natal. Em “Day Tripper”, dos Beatles, o acordeonista mescla rock com xote, em arranjo sofisticado com belos solos de sax. Assim como nas demais faixas, o artista demonstra personalidade e estilo próprio, seja nos arranjos ou na interpretação. O instrumentista descobriu sua vocação para a música aos seis anos de idade. Incentivado por seu pai, ainda jovem começou a estudar piano e teclado. O reconhecimento veio como pianista, mas assim que Chico se aprofundou na musicalidade do acordeon, percebeu uma maior identificação com o instrumento. O músico mudou-se para o Rio de Janeiro, onde tocava na noite e fazia cursos de harmonia, improvisação e piano erudito. Foi convidado a fazer trabalhos com o cantor Zeca Pagodinho, o que abriu as portas para sua entrada na indústria musical. Tocou com nomes ilustres como Cássia Eller, Nando Reis e Elza Soares, de quem também foi diretor musical. 2. Das ilhas mestiças, de Rodrigo Lessa. Rob Digital. www.robdigital.com.br. Contato através de Marília Motta: [email protected]. No Cabo Verde - arquipélago que o Brasil conheceu no século XVI, pois era entreposto dos escravos que os portugueses traziam para cá - Rodrigo Lessa calcou sua pesquisa musical. A intuição falou alto e as 12 faixas inéditas já haviam sido compostas antes da viagem realizada para aquele país em 2006. Para lá ele levou quatro bases gravadas e foi colher participações. Entre mornas, batuks e coladeiras, o CD contemplado pelo Programa Petrobras Cultural ganhou corpo, convidados e a certeza de que tudo é mesmo uma só coisa. As composições e os arranjos de Lessa souberam sublinhar o singular e único de cada um desses lugares. Nelas, com espaço para improvisações dos convidados, as baixarias do violão brasileiro, o pontilhado das coladeiras caboverdianas e a técnica particular dos congueiros cubanos se aproximam a ponto de fundir-se em uma só composição-síntese, transatlântica. O disco foi gravado entre Lisboa e Rio, com participações internacionais dos cubanos Julio Padrón (cantor e trompetista) e Jose Izquierdo (congas), dos caboverdianos Toi Vieira (piano) e Vaiss (guitarra), dos cantores portugueses Janita e Vitorino Salomé, dos pianos de Tomás Improta e João Donato. Rodrigo Lessa (bandolim, bandarra, cavaquinho), Xande Figueiredo (bateria), Luis Louchard (baixo), Rogério Souza (violão) e Jaguara (percussão) formam a base, que conta ainda com luxuoso instrumental de Eduardo Neves (sax e flauta) Zé Carlos Bigorna (saxes), Nailson Simões e Jessé Sadok (trompetes), Celsinho Silva, Jorginho do Pandeiro, Bernardo Aguiar e Marcos Esguleba (percussões). Colaboram também Gabriel Improta (violão) e Chico Chagas (acordeon). Calango Mindelo, a faixa de abertura, traduz o clima do disco. Mindelo é o nome da cidade mais conhecida do arquipélago de doze ilhas (fica em São Vicente, terra de Cesaria Évora). A primeira levada é de coladeira; logo após, um fraseado lembra o choro de Honorino Lopes Língua de Preto; enquanto os baixos inspiram-se no sucesso Sodade, de Cesaria. Julio Padrón dá sabor cubano no fraseado super agudo no trompete. De mão cheia é choro rasgado, carioca. Destaque para o diálogo entre bandolim de Lessa e o violão de Gabriel Improta. Suave Dengo é delicada, feminina, pontuada pelo improviso do meio-chileno meio-cubano Jose Izquierdo. Porque que tem que ser assim é samba/sambalanço, prato cheio para Donato. Lessa conta: “Adorei essa faixa, ele tocando minha melodia e o arranjo tocando a melodia dele, já que na volta da introdução eu cito a Rã em outra harmonia.” A alegre Burrito brinca com o duplo significado da palavra em espanhol. Julio Padrón brilha e conduz o rico instrumental. A melódica Sonhos foge ao padrão do disco, e tem solo antológico de Tomás Improta. Sem Vergonha retoma o projeto de verdadeira fusão atlântica. Coladeira, salsa, maxixe e choro se alternam e se superpõem em vários discursos. Equador fica fronteiriça entre o choro e o ijexa. Já Ponto de bala é samba-choro como manda as regras da arte. A faixa Ilhas Mestiças é uma viagem musical. “Uma introdução que eu gostava ganhou na seqüência o piano do Toi Vieira, que arrasa em bom gosto e economia”. Cabe acrescentar que Toi Vieira é um dos principais compositores e arranjadores caboverdianos. Foi uma música dele, Falso Testemunho o despertar de Rodrigo Lessa para o país. Aresta América surgiu a partir de uma base destinada a um solo de percussão. Os cantores Janita e Vitorino Salomé dão um clima mouro. A faixa-bônus Rala Coxa se justifica. Composta em 2003 e já em dois discos de Paulo Moura e Rodrigo Lessa, preconizava a paixão do compositor pela música de Cabo Verde. Das ilhas mestiças é, na prática e no dialeto crioulo, “morabeza” - que significa “gozar a vida, bem estar, boa conversa”. Não é à toa que dá nome à única música que seu autor toca solo, em tons pastéis. É assim que o CD deve ser ouvido: uma boa conversa entre lugares que se afirmam e se reconhecem nos elos musicais e que, apesar da distância continental, têm muito a trocar. 3. Centenário Radamés Gnatalli, de Orquestra Petrobrás Sinfônica. Rob Digital. www.robdigital.com.br. Contato através de Marília Motta: [email protected]. Ponte entre o erudito e o popular. Assim Radamés Gnatalli uniu o que para muitos era inconciliável. O cenário do Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi auspicioso por representar o local em que o pianista, compositor e maestro iniciou como solista o seu primeiro Concerto para Piano e Orquestra. A preciosidade de sua música é resgatada neste concerto ao vivo, lançado em álbum duplo, uma homenagem ao seu centenário completado dia 27 de janeiro de 2006. Em 60 anos de carreira, o maestro rompeu barreiras ao inventar novas formas de orquestrar o ritmo brasileiro. Utilizou instrumentos até então negligenciados por outros músicos, como o bandolim, a harmônica e o saxofone, por exemplo. A liberdade de viajar em diversos estilos, fruto da convivência com mestres como Ernesto Nazareth e Pixinguinha, estimulou sua criação nos arranjos para gravações e programas de televisão e Rádio. Mesmo sem ter nunca sido funcionário da Rádio MEC, era comum encontrá-lo nos estúdios participando como convidado de inúmeros programas ou como regente da Orquestra de Sopros da Rádio MEC, e assim deixou à emissora material de valor inestimável. 4. Putumayo World Party. Varios. Presentando algunos de los ritmos más populares del mundo, esta colección de canciones que te hacen sentir bien garantiza la animación de cualquier fiesta. Putumayo World Music. Visite: www.putumayo.com. En todo el mundo es sabido que la clave para que una celebración sea inolvidable es la buena música. Ya sea que vivas en Islandia o Italia, Tahití o Timbuktu, la música hará que la fiesta empiece y se mantenga en movimiento. Putumayo World Party,con fecha de lanzamiento el 24 de abril, es una colección de canciones que te hacen sentir bien y que presentan algunos de los ritmos bailables más conocidos del mundo, garantizándote la animación de cualquier reunión. Parte de las ganancias de Putumayo por Putumayo World Party será donada a Action Against Hunger (Acción contra el Hambre), una organización internacional de ayuda y desarrollo destinada a resguardar la vida de niños y familias desnutridas facilitándoles acceso sostenible al agua potable y soluciones de largo plazo contra el hambre. 5. Animal Playground. Varios. Putumayo World Music. Visite: www.putumayo.com. Animal Playground es el próximo lanzamiento de la multipremiada serie Playground de Putumayo Kids. Este nuevo álbum presenta una colección multilingüe de canciones con temáticas sobre animales de todo el mundo. El CD también incluye un video musical original como adicional producido por Putumayo en Trinidad con la canción No More Monkeys del artista trinitense Asheba. El lanzamiento se acompañará con un zoo temático “Animal Playground” y una gira de conciertos para todo público en Estados Unidos a desarrollarse a finales de esta primavera. Como los niños de todas las nacionalidades sienten fascinación por los animales, Putumayo creyó natural crear una colección de canciones excepcionales presentando temáticas animales y folclore de todo el planeta. Las 13 canciones del álbum llevarán a los oyentes a un viaje que comienza en América del Norte y finaliza en África sin saltearse ningún ritmo entre ambos extremos. Los fanáticos de la música de todas las edades querrán saltar, brincar y cantar junto a las divertidas y rítmicas melodías de Animal Playground. 6. Presença, de Quaternaglia. CD: Paulus. 2006. / DVD: Eldorado. 2006. Quaternaglia é um grupo de violonistas paulistas que já atrai vasto público internacional, tanto pelo repertório popular relido a arranjos sofisticados, quanto pela maestria na execução de peças eruditas. Estão lançando no Brasil, oficialmente, o quarto trabalho nos formatos CD e DVD. Neste trabalho, “Presença”, encontramos pérolas inestimáveis tanto em peças populares como de compositores eruditos, que também atuaram no popular como Radamés Gnatalli (em sua primeira execução e registro mundial no Quarteto nº1, de 1939) e Tom Jobim, em sua maravilhosa peça composta para a trilha sonora de Crônica da Casa Assassinada (1971). Também são registradas composições dos componentes do quarteto Sidney Molina, Rodrigo Vitta, Paulo Tiné e Douglas Lora. No DVD há um registro da participação especial de Paulo Bellinatti, renomado violonista que entre as incursões na música brasileira está registrado no “Afro-Sambas”, dividido magistralmente com a cantora Mônica Salmaso. Espera-se que o quarteto lance no Brasil o ótimo “Forrobodó”, em que visitam as obras de Ernesto Nazareth e Egberto Gismonti, entre outros. [Erico Baymma] 7. Love, de The Beatles. DVD-Áudio. EMI. 2007. Formatado por George Martin, supervisionado por Yoko Ono, Ringo Star e Paul McCartney, apresentado primeiramente em formato cd simples, o trabalho “LOVE”, que faz a trilha sonora de mais um espetáculo do Cirque Du Soleil, vem a ser mostrado agora em um lançamento especial no DVD-Áudio de mesmo nome. A tecnologia do som surround nos formatos dolby digital, DTS, Mlp e SACD, ainda é novidade ou completamente desconhecida para qualquer brasileiro mesmo que já se tenha acostumado a assistir filmes em DVD e não entende, comumente, o que são aquelas opções de áudio contidas nos DVDs. Tem-se feito um grande esforço para que o consumo de formatos de áudio digital multicanal, contidos como opções de áudio na maioria dos DVDs, se popularize massivamente, através de ofertas de Home Theaters - que são os amplificadores que possibilitam a audição do som distribuído em 6 canais diferentes. O som multicanal já havia tentado se impor no final da década de 70, com alguns títulos em som quadrafônico em Lps. No entanto, a tecnologia não vingou. Chegando à era digital a tecnologia já atinge a possibilidade de 8 canais, o surround 7.1, que já está em funcionamento na maioria das salas de cinema. O DVD-Áudio do “Love” traz consigo a possibilidade de ser um instrumento definitivo na criação de uma “necessidade” de ouvir algo além do efeito estéreo dos sons e DVDs comuns, em mais uma tentativa para a popularização do sistema, apesar do preço do novo formato não ser tão popular assim. Os Beatles, com este produto e com fãs ardorosos distribuídos em diferentes faixas etárias, se tornam um ótimo condutor da necessidade. O que fica evidente neste formato específico, enfim, é o por quê do som dos Beatles tenha atravessado décadas e décadas. Ao ouvirmos a remontagem de músicas inteiras temos aparentemente um novo álbum, ou seja, “Love” confirma a grande importância que George Martin teve na construção sonora do “som dos Beatles”, no material original, como agora em sua transformação em áudio surround remixado e remasterizado. Como o “grande senhor dos sons”, ele maneja magistralmente os arranjos de cada instrumento das obras dos Beatles. É genial na reutilização de sons originais e a remixagem de músicas, das quais se retira ou adiciona melodias e instrumentos, trazendo o trabalho do grupo para um contexto contemporâneo. Há uma revalorização da obra através do magnífico trabalho de engenharia sonora, em que melodias e instrumentos de músicas diversas conversam entre si, traduzidos em um outro contexto completamente “psicodélico”, acionado pela divisão nos 6 canais diferentes. O resultado obtido neste trabalho, seja em estéreo ou surround, é inegavelmente uma nova grande obra de George Martin. [Erico Baymma] parceiros da agulha nesta seção Discos para Agulha deverão ser enviados aos editores, nos endereços a seguir: Floriano Martins - Caixa Postal 52874 Ag. Aldeota - Fortaleza CE 60150-970 Brasil Claudio Willer - Rua Peixoto Gomide 326/124 - São Paulo SP 01409-000 banda hispânica argentina Endereço postal, expediente e equipe bolívia chile honduras méxico nicarágua colômbia panamá costa rica paraguai cuba el salvador equador peru porto rico r. dominicana espanha uruguai guatemala venezuela dossiês antología de la literatura paraguaya (teresa méndezfaith) césar dávila andrade (equador) jorge luis borges (argentina) juan antonio vasco (argentina) . Editorial "Hay cosas mágicas!" Escutei isto da boca de um poeta, o argentino Horacio Salas, na abertura do I Encontro de Poesia Latino-americano, em Manaus (novembro de 2000), mas o encontro é história de que falo em outra oportunidade. Dou-me conta, sim, das coisas mágicas de que trata o poeta Salas. Inicialmente, num dia não muito distante, do fundo da revolta da orfandade à língua portuguesa, o surgimento do Jornal de Poesia. Em pouco tempo, mais de 2.000 poetas da lusofonia no ar. Depois, a constatação de que o mundo lusófono seria muito pouco. Ibéricos, pois! Navigate, Hiberia! Navigamus. Um dia, Hiberia, era mar, um mar de poente, e me arribei de ti. Assim foi que escrevi em Salomão. Agora, a nova mágica: a ampla navegação ibérica, não apenas lusa, mas ibérica, este mundaréu de mar e chão de 1 bilhão de habitantes irmanados pela fala quase a mesma. E, quem sabe, um dia cheguemos à outra península, Latium, onde tudo, de nossa banda, principiou. O Jornal de Poesia não poderia ter feito escolha melhor para cuidar da Banda Hispânica: o poeta, crítico e tradutor brasileiro Floriano Martins, ele quem iniciou, ainda no papel e tinta, este trabalho que aqui faremos no virtual. Quando toda a intelectualidade brasileira virava as costas a este mundo novo, Floriano era um dos poucos que se correspondia com os poetas da América Latina. O projeto é fazermos a integração inicialmente com os hispânicos do Novo Mundo, tão próximos e inexplicavelmente tão distantes. Dentro de 1 ano queremos ter aqui pelo menos uns 30… 300… 3.000 poetas! Não há limites! Navigare necesse. Estamos apenas iniciando. Se vai crescer? E você tem dúvidas? A proposta inicial do JP era uma meia centena de poetas… Fechamos o 2000 com 2.007! E a Banda Hispânica é muito maior… aguardem. O projeto de Floriano Martins engloba tanto a reflexão crítica sobre os inúmeros poetas hispano-americanos quanto a mostra de sua poesia. A laboriosa equipe da Banda Hispânica é composta exclusivamente pelo tradutor, ensaísta, crítico de literatura, biógrafo e poeta, do Ceará para o mundo, o Floriano Martins. Nem o Jornal de Poesia, nem o seu editor, Soares Feitosa, interferem em nada na Banda Hispânica. Escreva para o Floriano. Soares Feitosa Revistas de cultura são o grande bálsamo propiciador de um diálogo imediato entre leitor e produção cultural. Em alguns momentos funcionam como verdadeiros manifestos de uma geração. Em outros, atuam como uma deusa de mil braços e mil olhos. Em sociedades definhadas por uma cultura monetária, firmam o único elo possível entre dois pólos indispensáveis. Na América Latina assumiram conotações diversas no decorrer do século XX, definindo posições tanto estéticas quanto políticas, segundo as circunstâncias de seu cultivo. A criação de um projeto como Banda Hispânica se aproxima desse universo, podendo ser visto como uma revista eletrônica, não no sentido periódico em que se costuma observar essa aventura editorial, mas no de difusão sistemática de focos de cultura que não habitualmente dialogam entre si. Importa-nos criar uma condição de conhecimento mútuo, saltando fora da corriqueira falácia em defesa de uma identidade cultural. Interessa, isto sim, acentuar a multiplicidade, dando voz às manifestações poéticas relevantes em todos os 19 países que constituem a América Hispânica, não sem incluir a própria Espanha, de radical importância para o desdobramento dessas culturas. Banda Hispânica compartilha a idéia de José Martí de que "conhecer diversas literaturas é a melhor maneira de livrar-se da tirania de algumas delas". O projeto define-se como a criação de um banco de dados permanente enfocando inúmeros aspectos ligados à poesia na América Hispânica e na Espanha. Seu desdobramento não está atrelado a um caráter periódico, mas sim à participação de todos aqueles que tenham contribuições relevantes a apresentar. É nossa idéia criar condições diversas de diálogo, para tanto recuperando textos críticos publicados na imprensa, ao longo de décadas, ao mesmo tempo em que abrigando depoimentos de poetas e críticos, entrevistas, tudo quanto se relacione com a abrangência proposta. Desde já conclamamos a todos os editores de revistas de cultura que nos enviem, por meio eletrônico, textos vinculados ao tema, matérias circuladas em suas publicações, dignas de um acesso permanente, para que somemos esforços no sentido de burilarmos uma grande mesa de diálogo em torno da poesia hispano-americana. Banda Hispânica será sua permanente revista eletrônica, lugar de encontro com a diversidade cultural de todo um continente. Sendo projeto original do Jornal de Poesia, encontra-se também vinculada à revista Agulha, em um enlace que reforça a idéia de que temos que concentrar forças em torno de projetos que possam contribuir para o enriquecimento e difusão de nossas culturas. Floriano Martins projeto editorial do jornal de poesia editor geral e jornalista responsável soares feitosa coordenação editorial da banda hispânica floriano martins a banda hispânica conta com a ajuda valiosa dos correspondentes alfonso peña (costa rica), alfredo fressia (uruguai), américo ferrari (peru), bernardo reyes (chile), carlos m. luis (uruguai), carlos véjar (méxico), eduardo mosches (méxico), edwin madrid (equador), francisco morales santos (guatemala), harold alvarado tenorio (colômbia), jorge ariel madrazo (argentina), jorge enrique gonzález pacheco (cuba), josé ángel leyva (méxico), josé luis vega (porto rico), david cortés cabán (porto rico) e maría antonieta flores (venezuela) os dados curriculares de todos os poetas constantes da banda hispânica são de responsabilidade dos autores, cabendo unicamente aos mesmos quaisquer solicitações de alterações e atualizações. os poetas hispano-americanos que desejem participar da banda hispânica devem enviar, por meio eletrônico, seus dados curriculares atualizados, seleção de 5 poemas e resposta ao questionário abaixo: 1. ¿Cuáles son tus afinidades estéticas con otros poetas hispanoamericanos? 2. ¿Cuáles son las contribuciones esenciales que existen en la poesía que se hace en tu país que deberían tener repercusión o reconocimiento internacional? 3. ¿Qué impide una existencia de relaciones más estrechas entre los diversos países que conforman Hispanoamérica? . galeria de revistas . ÍNDICE GERAL exégesis (Porto Rico) [Floriano Martins] três revistas hispano-americanas: Archipiélago (México), Maga (Panamá), Matérika (Costa Rica) [F.M.] revistas hispano-americanas, I: um olho no passado recente [F.M.] RETORNO PORTAL revistas hispano-americanas, II: um encontro de duas linguagens [F.M.] triplov (Portugal): diálogo com Maria Estela Guedes [F.M.] rascunho (Brasil): diálogo com Rogério Pereira [Claudio Willer] jornal de poesia (Brasil): diálogo com Soares Feitosa [F.M.] BANDA HISPÂNICA digestivo cultural (Brasil): diálogo com Julio Daio Borges [C.W.] el artefacto literario (Suécia): diálogo com Mónica Saldías [F.M.] Jornal da ABCA (Brasil): diálogo com Alberto Beuttenmüller [F.M.] Fokus in Arte (Brasil): diálogo com André Lamounier [F.M.] Storm (Portugal): diálogo com Helena Vasconcelos [Maria João Cantinho] Babel (Brasil): diálogo com Ademir Damarchi [C.W.] Corner (Estados Unidos): diálogo com Carlota Caulfield [Maria Esther Maciel] Arquitrave (Colombia): diálogo com Harold Alvarado Tenorio [F.M.] Fronteras (Costa Rica): depoimento de Adriano Corrales Arias Salamandra (Espanha): apresentação de Lurdes Martínez Tropel de Luces (Venezuela): diálogo entre Pedro Salima & amigos (Antonio Guerra, Luis Aníbal Velasquez, Mirimarit Parada, Jesús Cedeño y Eduardo Gasca) Iararana (Brasil): diálogo com Aleilton Fonseca [F.M.] Amauta (Peru): ensaio de Carlos Arroyo Reyes Portal de Poesía Contemporánea (Espanha): depoimento de maría martín arévalo Alforja (México): diálogo com José Vicente Anaya & José Ángel Leyva [F.M.] Capitu (Brasil): diálogo com Edson Cruz [F.M.] Común Presencia (Colombia): diálogo com Gonzalo Márquez Cristo & Amparo Osorio [F.M.] Cult (Brasil): diálogo com marcelo rezende [C.W.] Malabia (Espanha): diálogo com Federico Nogara [F.M.] Vaso Comunicante (México): diálogo com Ludwig Zeller & Susana Wald [F.M.] Matérika (Costa Rica): diálogo com Alfonso Peña & Tomás Saraví [F.M.] Palavreiros (Brasil): diálogo com José Geraldo Neres [C.W.] Piel de Leopardo (Argentina): diálogo com Jorje Lagos Nilsson [F.M.] Blanco Móvil (México) 1. Diálogo com Eduardo Mosches [F.M.] 2. Diálogo com Eduardo Mosches [F.M.] Literatura on line (Brasil): diálogo com Laudemir Guedes Fragoso [Edson Cruz] Suplemento Literário Minas Gerais (Brasil): artigo de José Aloyse Bahia Telescópio (Brasil): diálogo com Everi Rudinei Carrara [C.W.] Alpha (Chile): depoimento de Eduardo Barraza Agulha (Brasil): diálogo entre os editores Decir del agua (Estados Unidos): diálogo entre Reinaldo García-Ramos & Jesús J. Barquet Tsé-tsé (Argentina): diálogo entre Reynaldo Jiménez & Pedro Favaron O Escritor (Brasil) 1. Jornal: diálogo com Erorci Santana [F.M.] 2. Revista: diálogo com Izacyl Guimarães Ferreira [C.W.] Punto Seguido (Colombia) 1. Depoimento de Oscar Jairo González 2. Pacto con la lujuria de la palabra [diálogo com os editores], por Eugenia Sánchez Nieto 3. La revista entrevista [diálogo com os editores], por Lucila Nogueira editores da agulha . .. . galeria de manifestos Parte significativa da cultura, no que diz respeito a defesas estéticas e de comportamento, tem sido prenunciada, evocada, combatida, polemizada, através de manifestos, textos volantes que despertam interesse, sobretudo, pela clareza e contundência com que as idéias ali são expressas. Manifestos foram, por exemplo, arma valiosa na exposição de temas e conflitos que marcaram o buliçoso período das vanguardas na primeira metade do Século XX. Ao longo da história há certas circunstâncias que alcançaram justamente em seus manifestos uma temperatura bem mais envolvente e reveladora do que as próprias obras ou renovações estéticas neles anunciadas. A Agulha inclui agora em sua agenda uma Galeria de Manifestos, a exemplo de nossa Galeria de Revistas, através da qual tanto apresentaremos manifestos atuais quanto faremos registro, para gozo e consulta de eventuais interessados, de manifestos de épocas anteriores. Leitores interessados darão contribuição imensa se nos revelarem novos textos, que nos dispomos desde já a publicar. Abraxas Primer Manifiesto Nadaísta 1958 Apartes [Bogotá, 1958] Surrealismo, Frida Kahlo & Eugenio Granell [Lisboa, 2006] Arte livre, imagética, espontânea [São Paulo, 1965] Manifesto 2006. Arte, Poesia e Vida [Paris, 2006] Manifiesto de los manifiestos, de Vicente Huidobro [Paris, 1925] Manifestos del Movimiento Lúdico [Chile, 2006] . .. hélio rôla & floriano martins acesso às obras óleo de trevas últimas pistas teatro de sombras afrescos do inferno quimeras as tintas negras do jardim catálogo secreto altares do caos provas finais retratos falados erografias sobre os artistas Nasci Francisco Hélio Rola, em 1936 em Fortaleza, onde ainda vivo com minha esposa Efímia, 4 cães péduro (Rocinha, Canela, Trocim e Manchito) e uma gata, a Hortência, que já tem mais de 10 anos. Tenho dois filhos, André e Sylvia e uma neta, a Bárbara, todos vivem no Rio de Janeiro. Cresci filho de uma modesta família na periferia da cidade de Fortaleza. Minha mãe cuidava da casa como todas as mães, enquanto meu pai, garçom, mantinha-se ganhando uma miséria de trocados dos clientes em um atraente barrestaurante no centro da cidade, chamado Magestic, e que, na época, era ponto de encontro de personalidades importantes da cidade, como políticos, policiais, intelectuais e artistas. Alguns deles, de algum modo, contribuiriam para o meu envolvimento com a arte e com a ciência. Despertei, criança ainda, para o desenho ao grafitar calçadas e muros da vizinhança com troços de carvão – o gás de cozinha da época -, cacos de telha e pedaços de tijolo branco. Assim, fui alfabetizado e introduzido ao desenho e aos trabalhos manuais Averiguar pistas que nos levem ao nosso próprio passado, à infância, aos abismos familiares, sempre foi algo que me interessou mais no plano poético do que mesmo em termos de anotação cronológica: o mergulho nas zonas obscuras ou pouco visitadas de uma biografia como aventura poética. Ir ao encontro de personagens fundamentais, não somente parentes, que de alguma maneira contribuíram, quase sempre sem que jamais o tenham percebido, para a minha formação. Ao trazer tais figuras para a cena de um livro, por exemplo, onde naturalmente são mescladas com as artimanhas do desejo e as perversões da memória, elas ganham uma vida em grande parte distinta daquilo que realmente foram. Este humor alquímico tem sido um componente substancioso em minha poesia desde o momento em que passo a me situar em cena, ou seja, desde quando percebo a mim mesmo como personagem daquilo que escrevo. De alguma maneira, nos primeiros livros eu não participava da criação senão como um narrador, distanciado. Esta mudança de perspectiva não se deu apenas por efeito de leitura, mas antes por um acidente familiar, o coma que apanhou minha avó materna quando eu estava com pouco mais de 30 anos. Vê-la ali inerte no leito me provocou uma comoção interna, cujas fagulhas naturalmente foram despertando toda a experiência até então adormecida, misturando as tintas do vivido, existencial e intelectualmente. Foi quando perderam o sentido as demarcações entre arte e vida, e também as delimitações de gênero na criação artística. É o momento em que escrevo um livro intitulado Cinzas do Sol (1992), que excita toda uma nova maneira de encarar tanto a criação nessa e por essa vizinhança. Criança ainda, aconselhado por artistas, amigos e clientes de meu pai, freqüentei, por pouco tempo, a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (SCAP), até o dia em que adotaram aulas com modelo feminino nu… Eu era menor, 9-10 anos. Com uma bolsa de estudos de um político amigo da família estudei em um bom colégio da cidade, conhecido pelo valor de seus professores, onde despertei para as ciências, notadamente a química, que passei a ensinar, além de tomar gosto pela filosofia por conta da excelência das aulas do professor Fernando Maia que também ensinava história. Após o curso médico fiz pós-graduação na USP e desde então me dedico à pesquisa na área biológica. Até então, nada fazia de arte quando em uma missão científica, em Nova York (67-70), por conta da influência de um amigo pintor americano, Joe Tobin e de sua mulher Margaret, escritora, voltei a pintar, desenhar. Nesta ocasião freqüentei, entre 6869, a Liga do Estudante de Arte de Nova York. Mais tarde, durante outra missão científica, em Paris (79-81), ao lado da ciência, dei seguimento ao meu fazer artístico e acabei realizando uma exposição, “L’artisanat du quotidien”, em um centro cultural da região parisiense, em Meudon La Forêt. Desde então me envolvo com arte e ciência e, ao lado de várias tentativas artísticas, fotografia, pintura, desenho, gravura etc., no poética quanto a própria existência. O humor acima referido me levaria a dizer que a arte é fruto de uma avaria, de um desastre. A rigor, é isto mesmo, desde que não pensemos em tais fatos com os olhos de um desses catastrofistas de plantão que percebem os acidentes unicamente pela lente do fracasso. Sendo ininterrupta a existência – a morte não nos leva assim tão fácil como se imagina –, tudo aquilo que se desfaz essencialmente se refaz. Assim é que a cena da avó materna prostrada ao leito refaz em mim todo um cenário múltiplo de figuras com as quais convivi e a memória de alguma maneira havia apagado, e o faz não como uma recordação, mas antes trazendo tais personagens para um tablado de confronto com o presente, atualizando o convívio entre passado e futuro, bagunçando mesmo o coreto da existência. É o que faz a arte em seu sentido mais vertiginoso e essencial: pôr em confronto as coisas. Provocação, estímulo, investida, tudo isto passa a ser ambiente procriador de uma outra linguagem que define a poesia para mim. E tudo isto chama para o palco, para o fundo de cena, porque o convívio humano é mesmo teatral, somos sempre a representação de algo. Dentre as figuras inúmeras que conheci antes do coma de minha avó, destaco aqui a do artista Hélio Rola, pois estive em sua casa algumas vezes ali por volta de meus 17 anos. Ele não era propriamente um guru entre a clandestinidade artística dos anos 70, por mais que a provinciana Fortaleza então se organizasse espiritualmente como uma maquete mágica de Paris, porém sua casa, na Praia de Iracema, bairro underground à beira-mar, era visitada por todo o frenesi da época. Toda essa camarinha de hippies, desocupados, alienados, transeuntes do abismo, já sabemos no que deu: gente frustrada que se filiou ao poder de turno. Uns poucos enlouqueceram de abismo. Uma fatia ainda menor resiste, porém refeita pelo desfazimento de um sonho. E foi exatamente momento me dedico a “montar” e enviar para uma expressiva lista de endereços eletrônicos, de uma ampla gama de interesses, que vai da arte à ciência, da política ao trivial, um e-mail - que chamo de rolanet -, que é uma imagem minha, foto, desenho, pintura, gravura etc. junto a um texto reflexivo, seja do neurobiólogo chileno Humberto Maturana ou do filósofo francês Michel Serres, ou de poemas dos poetas amigos Floriano Martins e do mexicano José Ángel Leyva. Às vezes me lanço solo, e digo algo. Para que serve tal arte? Me perguntam. Um amigo me disse que, a partir de sua própria experiência, ela poderia ser vista, lida e pensada como podendo alterar o tom reflexivo e estético do cotidiano daqueles que a recebem… (mas, como?) Haveria arte nisso? movido por esta confluência acidental que me reencontrei com Hélio Rola 20 anos depois. Enumerar coisas que fizemos, como as viagens ao México, minha curadoria de uma exposição dele, parcerias em revistas e livros, enfim, tudo isto tem aquele sabor bibliográfico que pode ser enumerado em outro momento. Importa essencialmente referir-se à nossa parceria como uma afinidade existencial, este nosso jeito distinto de encarar o mesmo abismo, a aceitação do outro, a maneira como descarnamos a experiência de vida. Somos o outro, o mesmo um do outro. E nos descarnamos a nós mesmos em tudo o que fazemos. hélio rôla & floriano martins ÓLEOS DE TREVAS Sumário vôo de pequenas formas dentro do vazio, miséria visível. Áspera fortuna da luz que há de nos tocar enquanto formos os despojos de tantas sombras. Pele enrugada da idêntica pergunta que tece há milênios em sua rota: que gosto mantemos pela imagem do homem cruzando seu abismo? Que ouro do ser lapida em tal vôo? Poetas duelam com o instante. Sangram a memória enfurecida em secretos golpes de agonia. Não invocam senão quedas ardendo em golpes giratórios. Paisagem trêmula em meio a gritos oscilados em tristes vozes artificiais como a dor do tempo. Duram o que dura a zelosa estampa da glória mais alta dos acidentes. Algo nos torna mais que forma dissolvida ou transfigurada na matéria de nossos deslizes. Respiro uma esquiva semelhança, abres tua casa ao sigilo do nada. Um grito imóvel, uma noite fixa em seus próprios olhos, a terra ilusória por trás de toda imagem. O que refletimos não sabemos se mera justiça ou dura asfixia. Wei Yin Wu temia que as trevas fossem o desenho do coração, que fosse a dor a casa do homem e sangue a duração de seu êxodo. Novos nomes doava a formas já desfeitas em sua memória. O próprio rosto não reconhecia, nem mesmo o fulgor desse olhar. Indagava atônito sobre a luz do dia, certo de seus racimos ainda visíveis. Havia um poeta ali, bem ao lado de uma górgona em lábios carmins, dizendo-se entre o objeto e a palavra. Traduzia o clamor da catástrofe, agarrado às letras que havia salvo. Por toda a parte, das cinzas às cinzas, sussurros de areias e grifos na recolha do mais óbvio da cena. Sou a semente de todo o visível, sua voz. E ecoava: seremos ainda feitos de letras? Algumas fotografias sobre a mesa, irrestituíveis dejetos do instante. Ao limpar a casa o poeta se indaga: Só nos resta a raiz do cantar? Dilui-se em dura duração de datas, dopado pelo rigor da noite. Pedra de luz que o capta em ocioso deslize ao redor das sombras que tramam para que não amanheça o cantor. Visíveis os vestígios de todo limite. A caminho do abismo a palavra indaga a suas letras: o que busca aquela que cai sobre si mesma? Somos o centro do olho, a página que muda à lei de sua consumição. Dispersa-nos a pompa, a fraude de imagens que não descarnam a arquitetura que nos decompõe. Espelho de cicatrizes solitárias, buscamos a alma desfeita em corpo. À luz das palavras de René Char saímos a recolher versos: somente as marcas fazem sonhar. Não se sabe como um deus entra em repouso ao toque de dois corpos. O que invade a memória é o centro de sua desolação. Devoro as sombras. Crio tuas carnes abertas ao vazio. Tudo em ti me retrai e nega-me. Meu ser é tua matéria caída em si. Há muito planejamos tais cenas, o incêndio não passa de um batismo de cinzas, o ventre de um eterno cair em si. Fulgor viscoso a cumpliciar sombras das formas adquiridas na leitura a caminho do abismo. Descuido de corpos avulsos que se julgavam imortais: pétalas caindo além da vertigem. Linguagem às cegas, fala ao nosso alcance. Ouro simulado em discurso acerca do deus de algum lugar. Lei mais antiga suja nossas mãos. Somos aquilo que vemos, a ordem de toda miséria que nos desfaz em cânticos à permanência do ser. Limites estourados em limites, espíritos lacerados em troca de ecos que refaçam o homem em suas dores. hélio rôla & floriano martins ÚLTIMAS PISTAS Náufrago desperto em números Detido no jogo do vento Em suas artérias de presságios Ossos de um mesmo e exposto cadáver Longe canta a eternidade sua desprezada justiça Canções de trevas Relâmpagos ridentes Náufrago iluminado pelo contágio Contando lágrimas sob a língua Longe longe a pretensa história de seus mortos Quem por terra cai ali se esvai Em súbito monumento de chamas Ardiam os dias sepulcros à deriva Horror delicado das súplicas Paisagem com seus planos de histeria Um lampejo de traumas Arrastam-se os lábios por toda a fala Tenebrosa estrela És o equívoco silencioso Náufrago à borda de teu miserável destino Tempo contemplado em despojos Por onde o fogo a desfolhar-se começa? Como o abismo reconhecer gotejando suas aves? Pondo as coisas para andar Para cantar a selva sua paciente tragédia Fantasmas a cada passo Absoluto absurdo Para cantar as formas que são a vertigem do tempo A intimidade disforme de tudo quanto sonhas Náufrago desfeito em um sistema de perdas Quantas refletem tua queda? Qual a irreparável vocação? Será tua a vez de assumir o desastre Das formas perderem a fala Do espaço evadir-se de si Quem és? Oh náufrago com o homem às costas Como eletrificastes as circunstâncias? Visionários guias Rumores cristalizados Destinos em série De que se ri a imóvel paisagem? Foram-se os outros todos náufragos Um precioso talho de árvores em fuga Caos contra o infortúnio Ânima contestada Formas resumidas a um breve bosque de catástrofes Que vida prolonga o poema? Que célebre demência ancora na esfera fulminada? Para mudar tua vida o canto Nominar o silêncio o verbo o esquecimento Riscar os fósforos de todos os domicílios da beleza Uma última onda até morrer o sentido Linguagem arenosa Monastério da dúvida Comporta-se o náufrago como um farol caído A tudo vê passar sem utilidade alguma Escombros da própria agonia Interminável a conta das lágrimas seus estudos de silêncio Terra insolente sobre os prodígios de sua queda Fronteira onde não floresce uma ave uma luz vulgar uma voz Náufrago o náufrago de si mesmo Soberbo ataúde Nenhuma treva lhe cai tão bem Recordará um dia sua fortuna recusando-se ao enterro Caminhos os temos em silêncio aos berros Vozes recuperam-se de crimes da cortina de delitos do alimento de lamentos da convulsão de sons São como ases Um poema repleto de vozes Um templo contra a morte Ávida beleza infernal de aves corroendo o céu com seus véus Naufrague a pedra o homem a árvore Ali onde sabemos a eternidade magnético equívoco Místico pavor quando tudo pode esperar Não há um triunfo da forma As honras são todas da dor Náufrago o náufrago caído em números Perfeito o veneno sobre seu dorso abandonado Quem o toque em naufrágio iguala-se Lúbricas as transfigurações do ser O monumento do náufrago a si mesmo Uma história de angústias em rostos desfigurados Ali soam suas vértebras a seiva a solidez Sombras que se urdem acumuladas em gozo Ressurgem o mito as vozes migratórias a árvore que canta Dá-se que tudo é naufrágio – trema um sentido decaia uma dor retire-se um abismo O corpo detido em destino Despedaçado em sombras Náufrago de que lei? Febre de areias sobre seu dorso Imagens circulares refazendo-se sob o sol Sobre a morte interroga-se É sua língua desmedida Deserto é afeto desfeito o ermo do medo da solidão Aproxima-se de si o náufrago Sem mais temer sua fábula Dá-se a cicatrizar a memória O rio do náufrago o sal sem pressa o sonho o barco desvirado a imagem sangrenta delirante agulha o infinito a montanha o mar a pesca de anseios o engulho de algas a dor do céu a rosa molhada os lábios comidos de areia o milagre do esquecimento Não há tempo a perder no náufrago Gramática é a sua do rumor desperto em êxtase Loucura a linguagem recriar-se soberba ambígua Incalculável farol nos lábios do náufrago Dorso de sal Inclemência do verbo Alegoria do ser Parábola do verso sobre a agonia humana Areia areia areia Diante do próprio naufrágio o náufrago mal consegue respirar suas aves retorno à galeria hélio rôla & floriano martins tEATRO DE SOMBRAS Muito longe como estás, erguido já o reino de tua ausência, o pranto pelos ermos arrastados da memória. Tua sombra arde na fria noite, uma queda a cada nome provocado: Devo deixar uma canção – doce voz em seu mantra – para que esta terra me encontre quando tudo houver perdido. Pouco agora de cinzas o que se entrega ao vento, palavras gastas, voz queimada. Antes que a dor trace outro círculo de giz a caminho de tua ausência, uns lábios tristes ressoam (meus, teus, de quem seriam então?): poucos versos me desafiam. Sob a língua da ausente descanso um último segredo, que lhe possa evocar tais zelos: o que vai tornando teus dias um precipício, um domínio de ínsulas na própria carne, a túnica de trevas do errante amor. Como alcançar a origem das palavras, o esboço glorioso da fuga na trama de sua incógnita instância? Que mundo aceitar em nome de seus ardis? De silêncio é feita a chaga da palavra, a obscura cela em que se aguarda o ensaio de toda ausência. Retorço-me na quebra de tais dons, o que vai tornando meus dias um precipício guardado em si. Lágrima tua, a primeira em meu sonho. Um pouco a dor repousa em sua taça de silêncio. Todos os escritos contidos no inferno da memória – cantavas a todo instante a morte que me tecia –, no delito cruel do tempo, na insólita trama de nossas vidas. Lágrima escura do mundo, onde pressente o destino culminar sua fortuna. Lamento oculto da noite preparada em teu sonho. Amor de presságios, lágrima impura. Que cena me alcança agora? Palco de sombras ao golpe de tua ausência: um último verso preparo, antes de ti. Dentro da memória se guarda o amor silencioso das cinzas. Um mar secreto que nos invade em insistentes dobras do tempo. Provo de tua imortalidade, um cinema tecido entregue a orações: dá-me teu amor, oh dá-me teu amor. Lembra-me o poeta que a dor não passa de um minuto. Nada se iguala ao vento de tua voz, festa de sombras. Outro corpo que se esboça em plena dor. Capela severa do mar dentro da qual escrevemos e os versos nunca retornam. Secreto vínculo com o destino – oh dá-me – que não se encontra nunca em casa. Domínio inconstante de febres, um sinal misterioso da alma urdindo tua ausência para tornar a invadir-me. Toma-me o sangue e nada se altera: o futuro não se guarda no amor? – Tarde caindo no restaurante. Contive teu corpo muito além da solidão. Uma dor de ecos tecia seus mananciais. Quanto de silêncio voa diante de nós e não conhecemos sua voz! Aquário de raízes. Dentro de uma lâmpada se projeta radiante a memória do amor, incêndio que é um rio dentro do fogo que nos banha uma única vez. Devolve-nos o bosque a dor do pássaro, o altar desfeito, a insidiosa luz na cela vazia. Invisíveis se arrastam os volumes de tua ausência por entre os dias com insustentável equilíbrio, lenta caravana de objetos por entre as ruínas de uma dor imóvel. Linhas de ossos, elétricas em seus sinais, fervores agudos em sombras de mármore ou sílex. Paisagem dilatada pela frase ressoante: o que escreves é pedra convertida em secreta agonia. Dor da pedra em soneto cinzelada. Flor do amor caído em trapos. Firma-te gesso na ausência de outra carne. Modelo em ti minha própria queda. Mãos de nada. Branco ideograma. Sombra saturada de outras sombras, ferida de memória na última pele do canto. Perigo de letras caindo em outras mãos, entre assombros escritos em pleno vácuo. Tábuas cobertas de limo enquanto a alma entregue aos tecidos ondulantes da dor, ausência lavrada em tremores, vísceras que são esboços de outro verbo. Versão do sonho rompido em tréguas: rio que sangra em mim, tudo em ti deságua. Tais cenas roídas no espelho não retornam com as páginas. São partes da vida os rostos que não lembramos e o limo de outra alma que retemos em plena queda. retorno à galeria hélio rôla & floriano martins AFRESCOS DO INFERNO Dentro do que vemos, prefiguradas pedras em suas cavidades ígneas, quais pastores se revelam no monólogo das súplicas? Que seiva cessa na imitação do que lemos? Pródiga a imagem que as envolve, lúbrico o rastejo da língua, imensa a evidência. Do paradoxo, o que saberemos? Das roídas gravuras de seus corpos, cuja exaustão derrama-se em desígnio de frêmitos, seios, devassados papiros, proclama de ancas, agulhas de sons e crivadas faces da angústia de um tempo incomum, saberemos o quê? Ao nome apega-se a voraz criatura, tomada pelo livro das lamúrias, lido fora do leito. Fundo do ser, qual será? Que nobre entulho orgulha-se da soalheira de seus derrames? Engendra quais cicatrizes o delírio no espelho? O que for, o que somos, temos aceito, corpos caindo em círculos, miséria desencontrada, rios de mármore, parágrafos em soluços, batismo daquilo que vemos, o que nos cabe? Nódoa que afirma o crime na oculta criatura que nos persegue, deforma, ímpeto da forma que a pedra respira em canto, a repetir-se não sendo mais que lágrima, urina, orfandade da areia guardada no verso, torpe memória, quais sombras roem, ao caírem do espelho, a memória em soluços do que ainda vemos? retorno à galeria hélio rôla & floriano martins QUIMERAS A PERCEPÇÃO O que nos esclarece o sentido de um encantamento fortuito quando se ausentam, diversas as razões, os motivos instáveis de uma presença da realidade... Por vezes me ponho a pensar na supressora regra da virtude, se não estaria ali uma estável rejeição do impuro, uma réplica da mais comum atitude humana. A REPRESENTAÇÃO Haverá uma maneira madura de ver o mundo?, era a curiosidade do visitante ao sair de um Museu de Arte Contemporânea, e talvez o dissesse pensando no assédio do catálogo ao impor uma madurez de estilo a obras em curso, falaz etiqueta, não pela arte vendida, mas pelo recurso da incerteza eliminada no artista e no visitante. A CAUTELA O que eliminas quando falamos em tomar consciência dos fatos, quando buscamos, talvez cegos, um lugar físico para a verdade? costumas chamar de correções ou zelos afeitos à vida eterna, e justificas no gesto um estado prolongado da salvação humana, de não rendição aos caprichos mais indesejáveis do destino? A SEMELHANÇA É comum a troca de amabilidade entre a realidade e a imagem, de maneira que quase ninguém mais sabe a distinção entre Deus e o homem, e quando um se diz o outro legitima a impossibilidade de sê-lo, pois nada é semelhante, ou o parecido nunca é o mesmo, e quando assim o quer, se desfaz, aberração entregue à própria sorte. A ORIGINALIDADE Sempre me pergunto se o artista diz para si, em algum momento, que o ídolo não existe. Inevitável indagar, a quem atende tal idéia, o que haverá abaixo da terra ou acima do céu. Pouco define a imagem de si que faz um artista. A passagem de uma obra a outra, sustenta-se enfim como devoção ou será apenas o que parece? A MÁSCARA Rostos tragados, perfis mesclados, confundidos olhares, manchas, súbitas manchas, gritos desfeitos, palavras vagando no espanto, um aleijão no absurdo, alegoria decaída, falhas de toda sorte, sim, tremor de mitos, abutres cegos, sinos queimantes, disfarces, talvez seja apenas isso, a contagem dos dias e um zurro de disfarces. A PERSPECTIVA A beleza não recorre à deformidade, torna-se ambiente aceito, conflito algum considerado, apenas o feio refaz bagagens, de uma ponte a outra, sempre referência ao que é perdido. Eis aí a questão: o que se ganha ou perde é quase sempre um malogro, simetria cognitiva viciada em espelhos, e a beleza será servil, durável apenas o que é cabível à realidade do códex. A DETERMINAÇÃO O lugar de ser de qualquer vontade é um atropelo onde a tolerância não encontra sossego, castigada sempre pelo dúbio assédio da razão, que não para de provocar o choque entre a presunção e o valor intrínseco. O charmoso o que é melhor para mim atende a todos, alegoria eclesiástica, ritualismo de exceção, socava, remói, teologia da soberba, olho d’água. A TOTALIDADE Por que todos esses olhos, que estranham a tudo o que vêem: o mínimo, o inconstante, o que está a ponto de sumir, olhos fixos em um ponto inexato do viver, persuadidos pela forma aplicada do desejo, do devir, da exceção, por que todos, extremos e nus, olham-nos sem objetivo algum e sequer dão conta do que somos? A PRECARIDADE Uma pequena fraude embaraça a visão do corpo de quem se ama, alheia ao mesmo como um roubo de citações, talvez ingênuo golpe da natureza, soberbo artifício ou evidência precária do desamor, não se comenta muito a respeito, vestidos perdem o uso, desejos mudam de lugar e todos os livros são dados (carne triste) como lidos. A DISTINÇÃO Algumas guerras são silenciosas, confrontos, abalos, explosões, mudanças de ponto de vista, céus desabando sobre expectativas, a maneira espúria de eliminar-se em fantasias sem tormento. Diz um enfado: a morte não olha para os lados. E não deixando de lado morte alguma, a inércia revela-se uma sagrada instituição. A VERTIGEM O livro diz: este corpo é meu, e se põe a lê-lo, descobrindo-se no passar de páginas, memória e ansiedade desmembradas, reescritos tormentos, e ao ler-se percebe o quanto é incerto em afirmativas, por onde andei, e inutilmente quer insurgir-se, um outro livro, talvez, assim pensando: um livro dá em outro. retorno à galeria hélio rôla & floriano martins AS TINTAS NEGRAS DO JARDIM I’ll shoot the moon right out of the sky for you baby Tom Waits (“The Black Rider”, 1993) O que vejo é teu olho dançando no jardim: descreve a si mesmo com tamanha paixão o olho pintor de seus quadros em movimento – confessa-se uma máscara de Lucebert, três vezes estivera com seu espírito maligno, quase um pária, quase um duende, o olho. Sua áspera voz correspondia às imagens com que seguia redimensionando o jardim. Fotos de combate, estatuetas corroídas, papéis amassados, bosta de rato, explosão de desordem por todos os ângulos, no atelier, ainda legível um recorte amassado ao chão: “um poeta que pinte não pode dar grande coisa”. Segue o universo caindo de si, quase um olho, tomado de imagens como janelas a descascar. O que vejo no jardim são detalhes do horror que ainda comove pequenas histórias ilustradas – o poeta alimentando o caos, os santos óleos, pequenas salas de costura onde o mundo se refaz, olhar inquieto em seu infortúnio: resplendor dos signos decaídos, guaches de abismos em chamas, dançávamos e ele não parava de cantar, o olho: I’ll shoot the moon right out of the sky for you baby – mostra-me, criatura, as evidências de tua máscara, não somente o irrefutável, mas sua lástima de si. O olho excelso no caminho ilumina meu espanto. Seu bailado acentua-se por toda a pele do jardim: afeito a dissonâncias, rende-se à dor a criatura. Uivam figuras patéticas à distância, dança mítica, legado de antigos filósofos que viam deuses em toda parte. O olho no jardim é um grande oceano que sangra, pouco entende do tempo que ocupa com suas serpentes e letras que segue traçando em tintas negras e árvores-pincéis as imagens que nada têm em comum com a eternidade a simples representação do momento em que as coisas são menos e menos o despojo de sua própria agonia quando o desejo confunde-se com o impossível e instaura-se a multa por transgressão e não somente Hölderlin mas todos os poetas viveram algum momento como se fossem deuses. O olho é a proteção do ardor mais secreto da beleza, embora o jardim contaminado por imagens, luz que já não se derrama sobre Goethe, a última rosa do verão, o filme que se esvai com a noite que atravessa de um encanto a outro. A semente que cai (novamente a voz de Lucebert), cai sobre o olho que assimila aquilo que vê. Pintura e poesia. Mais do que o bailado dos signos no atônito jardim tomado por seus dramas, o compasso de nosso corpo negro firmado no horizonte, sinuosa orquestra de timbres, os traços caindo inspirados em arabescos e flautas, bambus refletidos contra o sol, amuletos-linces, rajas de opala do rio da linguagem, o olho do amante engana, com seu lápis-trenó, não existe apenas para a salvação dos cegos. É grave como a página escrita e o bailado de Mondrian. O olho é o jardim, mesmo que tomado de paixão. Projeta-se sobre a idéia (sua) da imagem, um signo branco. E segue a dançar, vôo de luas em um céu de pincéis. retorno à galeria hélio rôla & floriano martins CATÁLOGO SECRETO Algum dia poderei recordar o que houve aqui. De alguma maneira serei Olívia, seu corpo fluindo as múltiplas formas que assumem diante de mim as esculturas de Antonio. Talvez apenas suponha tratar-se dela, que seja ela a reconhecer-se em um breve gesto meu. Algo como a simples menção de um sonho, do que nos desperta. Importa que sejamos tão reais agora, se não vamos nunca além de nossa memória? Tê-la esculpido alguma vez faz com que eu me sinta hoje tomada por suas mãos. Antonio com meu íntimo em bronze. Não desejo mais do que ser Olívia: o que supunha fosse e o que lhe desvelou Antonio. Sou-lhe então completamente a matéria sonhada que se refaz a cada olhar. Decerto soubera bem antes: o que hoje se revela, já o somos há muito. Era seu destino converter-se nas formas que ocorriam ao escultor. Reconheço-me então em tudo o que vivera. Ao tocar em mim Antonio sinto que não requer senão outras linhas, outro movimento. Quem serei nesta noite entre sombras tão íntimas, erguidas diante de mim como um canto? Sei que busquei seus traços, o apuro do bronze em sua pele. Por mais de uma vez Olívia dissera que o que nos unia era o espanto. Nada lhe afligia. Creio que dava a todas as coisas um melhor sabor. Encomendarlhe o espírito ao bronze não terá sido inconcebível. Comigo conheceu apenas alguns crepúsculos gastos pela amargura. Eu a amei com fatalidade, antevendo cada espectro de nosso rompimento. Sei agora o quanto mudou as formas de meu canto. Não será tarde, já que a reencontro aqui tantas vezes à minha volta. Partes suas: braços vultos ancas. Não de todo fragmentos. Olívia infinita recuperando-se em cada mínima agonia do bronze, ansioso por contá-la. Mesmo que a tenha perdido, guardou para esta noite um último encontro. Interrogome então o que posso desatar senão um outro labirinto da memória. Olívia reunida em trinta esculturas. Eu perdido de mim infinitas vezes. Então haverá uma porta e outra e muitas mais, inumerável a extensão de sua secular investida. O passado composto por estranhas partituras que emaranham seus átrios e seus porões. Então uma vez fui Olívia sem que esperasse sêlo. Esquecida dos rostos incertos que poderia ter, com rigor desfiava sua métrica e sem pressa alguma. Pareciam heréticas as pessoas do verbo, infames na luta para que não lhes escarne o esquecimento. Temiam ser apenas uma agonia de espelhos no corredor imaginado como uma vasta justificação de tudo o que fomos, sempre ali com seus motivos. Inúmeras as portas e as vezes em que pude ser Olívia, tendo sido apenas uma sem que conseguisse evitá-lo. Vejo a mim em todas que se sentem transidas pelo evangelho de suas formas. Felizes as que se sentem amadas por seus esmeros táteis. Afortunadas aquelas que se deixam acender por um truque hábil. Bem-aventuradas as que encontram no bronze um cúmplice de suas ênfases desterradas. O mundo segue dividido entre o espírito e a letra. Não importa o que pensemos, impera a angústia e o orgulho. Somos ambicionados pelas formas. Amei Antonio em meio a seus cinzéis. Fomos sua imprescindível possessão, linguagem sem a qual seu declínio sequer seria misericordioso. O medo de perder-me lhe impôs uma disciplina assombrosa. Deformava tudo à sua volta, para que delineasse apenas o que supunha ser meus traços. Não pude seguir vivendo indecifravelmente. Antonio me amava a cinzeladas. Felizes as que se edificam diante do quanto me desfiz de mim. Decerto que sou todas elas. Procuro não ser devastado pelo passado. O que fui não revela senão o tempo vivido, não mais necessita ser um teorema. As formas que tracei sentem-se já reveladas. Os dias se vão incorrigíveis, sem que lhes evitem as reminiscências. Sei que sou o dia, mas sou também o que resiste a sê-lo. Somos sempre a imagem e os aforismos de seu declínio. Tenho em minhas mãos as cinzas de Olívia, a glória de tudo o que foi. Não espero que a beleza propicie algo menos terrível. Talvez devesse dizer que também o sofrimento é uma dádiva. Detenho-me na busca de sombras. Tanto as que se erguem para buscar em mim o perdido, quanto as que despertam iletradas ante o assombro de incalculáveis ermos. Defendo-me com o bronze inquieto que reconhece todas as formas. Defendo-me do passado, da curiosa esfera caída de tudo o que fomos. Cinzelo a alma indecifrável do que deixamos de ser, certo de que um dia ainda o seremos. Algum dia terei dito que me tenho sem aflição. Outra não era sua pirâmide necessária. As formas buscavam serenidade e fui o vértice predestinado. Devorava-me minuciosamente com seu ódio pelo pão. Sempre estive pousando para ele. Despia-me de todas as formas, com seus inúmeros cuidados. Como fui jamais lhe importou. Creio que nada afligia a execução de sua obra. Tormento e insensatez não eram senão estilhas de seu canto. Decerto que fui sua Olívia precisa. Um pouco ou mais estaria perdida, de volta às perambulações pelos corredores da memória. Tudo o que queria eram formas, e que o seguissem submissas. Agora sou trinta delas. Não sei do que me queixo, se passo a desafiar o tempo. Algo em mim deve supor haver ainda aflição maior. Sonho com tudo o que somos. Sou um ignorante dos hábitos do tempo. Jamais poderei ser feliz. Aqui esta noite reúno trinta esculturas. A princípio diria que são a mescla feliz de meu ocaso e minha aurora, mas sei que se tratam apenas do que resta de mim. Sou uma matéria amorosa dos deuses. Estou em suas mãos. Sou o seu segredo infatigável e a injúria dos seus artifícios. Decerto ainda me chamo Antonio e alguma vez amei Olívia. Jamais me desvencilhei de seu amor. Não me importa onde andará, que recordações amontoa de mim. Não serei intolerável com essas trinta figuras que assumem perfis inomináveis. A todo instante somos exaltados pela memória. Quero apenas ser melodioso em meu êxtase. E que esta noite inaugure mais uma de suas dores sonhadas. retorno à galeria hélio rôla & floriano martins ALTARES DO CAOS Corpos, todos eles iluminados pelo ouro de sua imagem insone, pequenos fantasmas devorados pela luz da inércia, contágio de quedas a flor de uma atormentada utopia. Quem nos abandona desperto em si mesmo? Largados os largos planos urdidos no alarde enquanto o tempo se alargava em silêncio? Quem me segue quando sigo rumo ao visível? Corpos de não se sabe qual dor, figuras do abismo, sombras de nossa própria sombra. Corpos inteiros em fogo, de zelosos curupiras que assombram a dúvida sagaz das cinzas nos embolorados escritos de um deus, todos. Quantos éramos? A soma de invocadas quedas, um lar de entregas, pensões da solidão. Correndo o mito ouvimos o lamento, tantos, o coração coberto de dores em cada habitante: tudo aqui criamos à imagem do desejo, dizia a placa à entrada. Não se exige do fogo senão que queime ou ilumine, o que for, tudo. O que fizemos contra a dor? Quais os planos? Soluções químicas, de rápido transporte, euforia de demônios cada vez mais raros de si. Continue a cair, até que a queda desapareça. Para onde nos movemos se nada se move em nós? O que buscamos além da queda não passa do retorno da prodigiosa sombra do que mais tememos: simplesmente pensar. Por que escrevo? Por que assim morre muito melhor em mim o assassino que sou. Regressar de onde? Terá sido longo o trajeto se ainda não saímos da cobiça, do remorso ou do esquecimento? Se havia algo em mim agachado era o destino, decerto zombando das queixas e julgamentos, o nobre empório de valores de nosso tempo, trapos de memória, mercado de encantadoras criaturas que adoram e injuriam e matam e carpem e encobrem os corpos cortados em fogo para que se anime o dia da palavra que não falte a mais ninguém. À sombra do que se passa, um cego nos redime. Que horas tem? Talvez haja um crepúsculo lá fora. Algo que possa atestar a imobilidade de tantos corpos, afundar-me em seus motivos. Seremos só uma mesma dor ardente, capricho de alguma sombra que nos ausculta e define enquanto sondamos repouso e agonia, nossos? Corpos restados do nada, reescritos no vazio. Tornam-se inumerável patrimônio de seus dias, uma gente de negócios que não parecem humanos. Duplo de minha própria morte anunciada, a visagem do que represento, agonia íntima. Antes discutíamos: há um conselho de homens ou de deuses? Apenas um toque da carência. Carícia dos pontos mágicos que agem, surdos amuletos, somados ao que deles há em mim, toda a terra despencada sobre o verbo, o som de cintilâncias que urdem a imagem que crava o sentido na pedra – seja o desejo a loucura, a poesia a surrada instância do equilíbrio. Que esperam de si corpos que somente agora deram de sangrar? Uma morte na terceira pessoa? Tudo nos leva a crer que somos parte daquilo que fomos. Se nos falta ar e ainda dançamos, logo seremos o ar e a dança esquecidos em si. Nunca estamos a caminho de nada, nada, nada em nós se anuncia uma trilha a ser perseguida. Sombras que sangram à noite ao som da dúvida. Uma sucata de hábitos, luares de agonia, verbo trocado com o inferno, rigores sem alarde. Iluminados os corpos, a lê-los convidado fui. Trouxe comigo um rabino e a dúvida acerca da origem da queda. A dor nos abandona na medida da glória de seu capinzal solene. Estamos aqui para o inferno e não há medidas de seu vaticínio. Quando muito acentuamos o próprio fim, desejado com oculta precisão. Não nos libera o desejo de algo que sabemos. Corpos sangram e luzem e gozam e somem. Nada pode a dor de um contra o altar de todos. Perder-se não é mais com o corpo, não houve como combinar os erros com seus acertos. Fídias ainda esculpirá sombras? Quantos crimes acobertará em tal preciosa argila? Não importa que nome lhe demos, uma vez aceita sua arte. Explicou-me um dia que elas significam por si mesmas e que apenas lhes dá um corpo. Cafute, Azufrado e El Malo, mesma e múltipla figura a dançar com a linguagem do assombro tombada, esplêndida, significando quase nada. Em que tempo ocorre o verso? De onde provém todo o mal da poesia? Olha a velha dor, a sombra, vê que nos assombra seu ardor. Furtivas serpentes da imagem, o milharal de suas luas. Se não tiramos do nada não é criação, disse-me a disforme criatura que há semanas pousava aos fundos de uma taberna, nu ardendo em frio. Não passa de débil visagem a arte hoje aceita, vertigem do duplo, delírio do outro anunciado. Para livrar-se de tal letargia há apenas que criar. retorno à galeria hélio rôla & floriano martins PROVAS FINAIS Eis teu inferno: uma condenação de espelhos. Recolheu o poeta os pergaminhos de seu processo, consternado com o severo desterro da poesia. Brevíssimo fora o júri em seu fastio de imagens. Sequer vimos os truques banais tão comuns em julgamentos. Saltara a sentença com ávida indiferença, gravitando displicente ao redor de Orfeu desamparado. Silêncio tomado de cinismo. “Poetas são timoneiros do abismo. Sua glória é sua ruína.” Retira-se o juiz e recolhe consigo a invisível mesura do tribunal. Ao réu conforta o mistério perene. Como chegar ao inferno? Fogo de rogos, música roída em ira, trova de rogos das desprezíveis vítimas de Deus, número secreto do rito que só se desvela no último círculo, dinastia danada de frias máscaras, dores lentas, dores cegas, dores enfermas da raiz das dores, verbos cortantes que decepam a alegria no mundo, fulgores de pausas no acesso de nós, rasgos de almas, brusca metade da sombra que me guia, como chegar à terra de minha condenação? Noites cadentes em cálidas areias. Ao longe se vê: alguém escreve sobre o nada em seu corpo de nada. Enquanto aguardava a pena, garantiram-me que os números já estão traçados, que não somos senão vestígios da eternidade e que nada no mundo se desfaz com nossa ausência. Antes de sua execução na cadeira elétrica um vizinho de cela me dissera: “As coisas não voltam ao que são se não são nada”. Logo em seguida fora condenado Renan, por haver morto o assassino de sua filha. Estamos aqui bem transparentes. A lei é a obscuridade reinante. “Dá-me uma moeda a recolher minhas visões”, beliscava a voz do bêbado a arguta apatia dos passantes. Agulha de condenações, fio livre de dores, júbilo de atos que estraçalham o préstimo de tocar o homem em suas dádivas, dá-nos as credenciais de tua missão, desgraçado. Cobiças talhar a matéria ao bico de tua pena, ser a representação divina na terra, o golpe de imagens que te rendam glórias de sal. Não és nada, andarilho tragado pelo assombro de tuas próprias misérias transfiguradas. Do nada ao nada, este júri te condena a cair. Mas como chegar ao nada? Enlouquece o homem de não saber-se enraizar. Dívidas cobrimos com nossas entranhas. Tudo o que somos já fomos. Cai o corpo, os dedos se mantêm sobre a máquina, o verbo permanece impresso. Só tocamos aquilo que somos. Perdemos a unidade quando desprezamos os fragmentos. Somos o bosque e seu reflexo, o crime e a fuga. Antes que Orfeu partisse a caminho do inferno, a voz mínima do meirinho lembrara ao juiz que o réu desconhecia o périplo de sua pena. “Infortúnio comum a todos eles”, argumentou a criatura togada que menosprezava a justiça metafórica a que se referira Lezama Lima. Aqui cumprimos qual pena? O verbo que faz o homem tocar a si mesmo como uma serpente emplumada? O adjetivo que nos torna a todos inatingíveis? O substantivo que não concentra em si essência alguma? “Traço comum a todos os desprezíveis.” Sem que se tenha jamais indicado o norte da pena. retorno à galeria hélio rôla & floriano martins RETRATOS FALADOS Escuta os rumores da escritura, transcreve as versões do silêncio. Escuta o que dizem os ramos da oração. Não se tece a história em súplicas. Antes em massacres. Vozerio de sombras, ontologia de retalhos. Ama as trevas com júbilo e busca sua face perdida. Nada alcançarás senão o cadáver obeso de tuas próprias dúvidas. Fareja os despojos violados da memória. Odores obscuros do oráculo. Nada. Não lerás a mesma página que o fogo. De que mais se fez teu canto, intumescido de espelhos? Consagra-se a que agonia o homem devolvido à sua imagem primeva? Como chegar a ser um livro? De algum ouro impreciso nascem as páginas? Gnomos cultuam o fôlego ressequido das imagens? Por onde jorram beatrizes? Tenebrosa será sempre a jornada do verbo? Os que nos damos ao mar, ao inferno de árvores, ao ramo de horrores, ao mar de sarças estelares, ao batismo de selvas, ao mar ao mar, ao sudário da estrada, os que nos damos em círculos, trememos de que felicidade? Escuta então os giros da existência e não somente o respiro de máscaras. Não busca senão o aturdimento, o sustento selvagem do ser. De que nasce a épica? Já estão ao mar todos os heróis, vendados ou entregues à rumba de sílfides? Símbolo o símbolo implacável do homem em suas derrotas. Funda o mundo com suas dores. Diviniza as pobres formas corroídas. Tudo no homem é mito, inflexível em sua queda. Contorna o rigor de tuas fúrias. Por vezes não passas de um cadáver esquisito. Em que ilha vão dar os livros? Rangidos, suspiros, gestos trocados sob tábuas, tremuras ocultas, crimes da virtude, virtudes do crime. Desapareces onde a fábula retoma seu curso. Escuta que já não se trata somente de teatro. Tudo em ti se retrai, e despenca. Retoma sem dificuldades o curso perdido, mesmo havendo uma falsa glorificação do instante que algema os demais sinais do tempo. Somos todos gotejos do fogo, insuspeitos em sua errância. E põe fogo agora no ermo do entendimento: lepra de delírios, prantos regados à esquizofrenia de seus hóspedes, ópera bufa de Deus, angústias vociferantes, revoando revoando, sempre a mesma letra assinalada, idêntico o curso assimilado pelo presépio do êxodo, o mar se desgastando em geometrias. Previsível sumo da árvore lançada ao espaço. Ogiva de cinzas que torna Dante de menos. Secreto pomar de vísceras de sombras não chamuscadas – transmuda tal acorde decomposto no milagre de tuas pálpebras refeitas. Não será tão tarde. Tuas igrejas futuras dependem disto. O homem só julga a si mesmo através da metáfora. Toda sua realidade é uma fantasia. Poetas não cabem mais em teu coração. Múltipla tua orfandade. Reacendeme em teu exercício. De que morreremos? Pequeno jardim de comédias – nos rimos. Diversas as sombras peregrinando – convocadas. Quedas por toda a noite – ressonante espetáculo. Ainda buscamos por que morrer – espectros fugazes. Não dá-se a sensualidade sem quebra. De comparsa do paradoxo não passa toda a essência da convicção. Dias serão os dias com suas trevas e as noites concebidas estreladas, estrofes consoladas por uma poética vulgar. Verbo é o símbolo da agonia: quanto custa ao homem converter-se em evidência. Imensa a dor e sua ressonância, venha do grito ou de seu revés. Dias de queda, barrocos, exaustivos, adegas que não ressuscitam a alegria do vinho. Suportará berenices, mas nunca um espelho sem imagem. Refeito um dia de quantas gotas, todas de melancolia? Tudo em si é pesar, a refletir a névoa de seu próprio entendimento. Já não percebe os sussurros do silêncio. Queda a queda disfarçada em poema. Que epifania buscas ainda na ruína de teu esplendor? hélio rôla & floriano martins erografias 1. Teu leito me elege por palavras que li. Entendo sua lei e seu golpe me captura. Livro em que capto o jogo do ser, sempre mortal como vozes indo e vindo. Contigo estou em todas as partes. Trevas atravesso, confundo coisas, ao fogo entrego a matéria de tudo quanto sei. Um entre todos no golpe de teu desejo. Rosto que somente na escuridão percebes. Intenso o veneno do que li em teu corpo. 2. Rimos carne por toda noite. Animal na sagrada sede de sua hora, espírito que rasga o enigma e ainda mais intenso outro lhe surge. Me tocas, mármore que baila, fogo que petrifica o mundo, carne convertida em riso, na fúria que se desnuda oh deusa. Em ti a louca loca do absoluto, fenda que me traga mares estrelas, lâmpada no abismo de meu canto. Ali gozamos dançando quanto dure o fogo, o mundo, ritmos de risos que se tocam. Ainda te ouço morrendo no turbulento abraço do ser, e rio desamparado. 3. Vem: Mãe de abismo. Relva de sigilos. Letras sobre a carne. Ira de signos. Vem: Sombras sobre o falo, lado sem fim das vogais que vibram loucas em ti. Vem: Raio que devo comer para que o mundo me sirva. Implacável visão que me dilata. Vem: Com teus frutos de morte – peitos lábios línguas – que só o fogo decifra. Vem: Urros da origem. Olho nascendo no vazio. Boca que guarda o enigma do sol. Vem: Flor mortal. Reino da poesia. Pêndulo sobre o mundo. Corda cega do ser. Vem: Vibrante vento. Fúria do amor. Fulgor de nada. 4. Ilumina teu corpo dentro. Um labirinto tua mão me estende. Peso do mundo, tudo cai. Aonde vai dar a queda fulgurante, fragmentos de teu vulto, labirinto descarnado, luz de uma coluna que cai, pobre luz de túneis derruídos em mortes tão iguais? Indícios de que nova vida? Nada. Rugas de uma eternidade brutal. Duro em teu corpo enquanto o procuro. Pequeno fogo ao fundo, jogo delirante: a origem é o efêmero. 5. O que vejo através de ti: tuas formas multiplicadas. Me arrasta até o fim da jornada, pulso da pedra nos lábios da areia, espelho com que aras minha peregrinação, casca que ousa tocar o fundo. Trouxe consigo toda a memória do abismo erguido em seu dorso. Retoma teu lugar no mundo. Sob teus pés, a sombra do que está por vir. 6. Tua voz dissipada entre taças de rumores em que dizer é precisamente ocultar. Banquete de deuses no espelho de teu corpo. Música de pedras, olhos do obscuro, as sombras que iluminam tua ausência. Vens às palavras, jaulas de cristal da noite que te recria. O poema, uma lanterna cega. Vens. O que dominas o fogo rapta: o silêncio, a posse de teus bens, as carnes de uma escritura que se desmancha no ar. Máscaras de um feitiço interrompido, lacre violado de tua lição do oculto. Uma sílaba nos persegue até a morte. Lâminas de gestos, um movimento, o poema se retrai. Não sobrará nada de ti para a revelação do amor. 7. Pequeno bosque de imitações. Mordes o cofre de minha alma profana, tua paixão pelos mortos. Queimas a última carne do jogo. Corpos saindo do fogo. Os abismos bebem em ti: rostos & fontes. Fúria de tuas folhas ocultas. Sujas os lugares suspeitos onde o crime se banha. Árvore nas coxas, a beleza em sangue. Tua sala de quartzo. Invertes o cosmos de teus ritos. Variações de Yausa. Tu és vitae locus: todas as mulheres. Altares do caos. Fendas nas trevas. Ódio em ti, feito hinos na terra incógnita. Rasgas a pedra escrita na colina que se move. Um vadio na noite, aprendo a ser teu. 8. O enigma é tua fonte. Poço imenso cujo fundo não se toca. Astúcia que rói o tempo. Perigo de espíritos que se imolam espelho adentro. Faca infecta de palavras na podridão do vazio. Fezes de sombras. Mapas de vozes mutiladas. Coração do mundo, hora de ruir novamente, hora do enigma chafurdar uma vez mais na lama de sua atormentada convulsão. Sátiros e insetos em obscuros salmos: reino da beleza dificultada. Meu corpo nu permanece aqui, a alma sobe ao inferno. Tempo feito de pedra. 9. Mar de amores em sobressaltos. Planetas em transe. Toda a origem dentro do olho, o olho marfim do tempo dentro de mim seu veneno e em torno fantasmas deuses peixes, pequenos lagartos ali ruminando selvas, risos de rochas. Fúria de folhas contra o ventre: o abismo bebe o sumo de ignotas eras abandonadas em tua sombra. Simulas pistas dentro e fora, gotejante céu. Corpos nus sob a laje do sonho, as palavras derramadas na carne, o amor em fragmentos. Coro de músculos, tua pele é minha ira. Cintilâncias de uma só e oculta fonte. Meu amor pelo homem, pedra arremessada à distância, parábola de si própria. Meu amor ainda canta na voz de cinzas da floresta. 10. Rostos tocados pela escuridão. Certos corpos nus e sujos. Palavras que gemem, tremor de costelas, ossos de luz, ossos mínimos estraçalhados, o pó da noite em suas cavidades. Máscaras de ruínas, fome da fome. Pequenas aldeias por todo o corpo. Em cada gesto: amuletos. A morte é uma porta silenciosa em que o homem se percebe incriado. Sua alma ainda cega, fogo do riso. O mundo ficou sem resposta. 11. Enseio-me em ti, imanente ovo de faróis. Fomes elementares de uma via de óleos. Tu: figura total à deriva entre clãs selvagens. Garras de fúrias no abrigo de abismos de tuas negras gemas. Enterra-me no inferno dessas cidades em fuga. Que belo crime decepar teus sentidos. Anjo: lábios, delitos. Os miseráveis infames ocultados em tuas infinitas manobras. Foco de almas rasuradas, ser de mitos, flor de fugas. Anjo fascinando pelas marcas que em mim se escondem: retiro-me de tuas ruínas. 12. Sou eu de joelhos. Tu a imagem. Gotas do desejo ilhando minha fronte. Sendo o tempo a água que me anuncia. Quem sou eu? Tempo; tu que a tudo desvelas. Que máscara certo prazer tem em mim insistido seu dom? que ritmo, que elo, que rastro nu guarda em mim seu pó? Em ti: salto no que não se imita, talhos de espelho. Eu mesmo te abrindo em rosas. Todas as sombras, todos os restos. Migalhas refazem o mundo. retorno à galeria