See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/351334960 Métodos de pesquisa qualitativa para etnobiologia Book · May 2021 CITATIONS READS 0 1,106 4 authors: Ulysses Paulino de Albuquerque Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha Federal University of Pernambuco Universidade Católica de Pernambuco (UniCaP) 582 PUBLICATIONS 17,844 CITATIONS 14 PUBLICATIONS 5 CITATIONS SEE PROFILE SEE PROFILE Reinaldo Farias Paiva de Lucena Rômulo Alves Universidade Federal da Paraíba Universidade Estadual da Paraíba 260 PUBLICATIONS 3,878 CITATIONS 372 PUBLICATIONS 12,156 CITATIONS SEE PROFILE Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Evolution of Local medical systems View project Uso e Conhecimento de Cactos por moradores do semiárido da Paraíba Brasil View project All content following this page was uploaded by Ulysses Paulino de Albuquerque on 04 May 2021. The user has requested enhancement of the downloaded file. SEE PROFILE Ulysses Paulino de Albuquerque Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha Reinaldo Farias Paiva de Lucena Rômulo Romeu da Nóbrega Alves (Editores) MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNO BIO LO GIA 1ª edição - 2021 Recife/PE Primeira edição publicada em 2021 por NUPEEA www.nupeea.com Copyright© 2021 Impresso no Brasil/Printed in Brazil Editor-chefe: Ulysses Paulino de Albuquerque Diagramação Erika Woelke | www.canal6.com.br Revisão de normas técnicas Os autores Imagens da capa Alexander Sinn e Michail Dementiev/Unsplash Esta obra contém capítulos traduzidos do inglês previamente publicados no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (Springer, 2019), sendo aqui reproduzidos com a autorização da editora. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (BENITEZ Catalogação Ass. Editorial, MS, Brasil) M552 1.ed. Métodos de pesquisa qualitativa para etnobiologia / [editores] Ulysses Paulino de Albuquerque...[et al.]. – 1.ed. – Recife, PE: Nupeea, 2021. 184 p. ; 21 cm. Outros editores : Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha, Reinaldo Farias Paiva de Lucena, Rômulo Romeu da Nóbrega Alves. Bibliografia. ISBN 978-65-88020-08-1 (e-book) ISBN 978-65-88020-07-4 (impresso) 04-2021/88 1. Etnobiologia. 2. Graduação. 3. Método de pesquisa. 4. Pesquisa qualitativa. I. Cunha, Luiz Vital Fernandes Cruz da. II. Lucena, Reinaldo Farias Paiva de. III. Alves, Rômulo Romeu da Nóbrega. CDD 304.2 Índice para catálogo sistemático: 1. Etnobiologia : Pesquisa de campo 304.2 Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa do editor. NUPEEA Recife – Pernambuco – Brasil APRESENTAÇÃO E m 2004 surgiu a primeira edição do livro Métodos e Técnicas na Pesquisa Etnobiológica e Etnoecológica, que tinha a intenção de preencher uma lacuna de materiais de referência e acessíveis em língua portuguesa. Nesse período existia uma carência muito grande de literatura que desse suporte teórico e metodológico para os novos alunos e investigadores que estavam se aventurando na etnobiologia. Diante do sucesso da edição de 2004, nós resolvemos publicar novas edições, sempre aprimorando e aumentando o conteúdo a cada nova edição. Nesse sentido, foram publicadas mais duas edições nos anos de 2008 e 2010, sempre incorporando novos capítulos e atualizando os anteriores. Passados 17 anos, o material ainda continua relevante, em face da cada vez maior comunidade de profissionais e estudantes de etnobiologia no Brasil. Como consequência disso, e a partir da terceira edição no ano de 2010, surgiu a versão em língua inglesa publicada pela Springer no ano de 2014. Essa edição trouxe também colaborações de pesquisadores de outros países, ampliando cada vez mais o escopo do material. Em 2019, um novo volume é publicado pela Springer com capítulos inéditos que complementaram as abordagens do volume anterior. Essa edição, sem versão equivalente em português, gerou vários pedidos para um texto contendo os capítulos em língua portuguesa. APRESENTAÇÃO 3 Esta obra atende a essa demanda, trazendo novas contribuições, em especial as que tratam de métodos qualitativos, visando contribuir com o ensino e a pesquisa no Brasil e em outros países de língua portuguesa, servindo como referência para pesquisas que investigam as relações dos seres humanos com a biodiversidade. Ao longo dos anos a etnobiologia foi se fortalecendo no Brasil e, como resultado disso, temos a presença cada vez maior como disciplina acadêmica nos cursos de graduação e pós-graduação de diferentes universidades nas mais distintas regiões brasileiras. Assim, esperamos que este pequeno livro siga sendo útil para todas as pessoas que se fascinam com as complexas interações entre humanos e biodiversidade. Recife, 10 de abril de 2021. Os editores 4 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Sumário 7 CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Sofia Zank Rafaela Helena Ludwinsky Graziela Dias Blanco Natalia Hanazaki 45 PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA Joelson Moreno Brito Moura Risoneide Henriques da Silva Nylber Augusto da Silva Daniel Carvalho Pires de Sousa Ulysses Paulino de Albuquerque 63 EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO Temóteo Luiz Lima da Silva Joelson Moreno Brito de Moura Juliane Souza Luiz Hora Edwine Soares de Oliveira André dos Santos Souza Nylber Augusto da Silva Ulysses Paulino de Albuquerque 77 ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS Daniel Carvalho Pires de Sousa Henrique Fernandes de Magalhães Edwine Soares de Oliveira Ulysses Paulino de Albuquerque 95 OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR? Juliana Loureiro Almeida Campos Taline Cristina da Silva Ulysses Paulino de Albuquerque 113 DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS Izabel Cristina Santiago Lemos de Beltrão Gyllyandeson de Araújo Delmondes Diógenes de Queiroz Dias Irwin Rose Alencar de Menezes George Pimentel Fernandes Marta Regina Kerntopf 135 COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL Henrique Fernandes Magalhães Regina Célia da Silva Oliveira Ivanilda Soares Feitosa Ulysses Paulino de Albuquerque 153 MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES Michelle Cristine Medeiros Jacob Ivanilda Soares Feitosa (in memoriam) Joana Yasmin Melo de Araújo Natalia Araújo do Nascimento Batista Temóteo Luiz Lima da Silva Virgínia Williane de Lima Motta Dirce Maria Lobo Marchioni Ulysses Paulino de Albuquerque 179 EDITORES 181 AUTORES CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA Sofia Zank, Rafaela Helena Ludwinsky, Graziela Dias Blanco, Natalia Hanazaki A pós anos de discussões sobre direitos humanos, ética na ciência, acesso ao conhecimento e direitos dos povos indígenas e tradicionais, precisamos analisar as ferramentas que temos e como as usamos para garantir um compromisso ético na pesquisa (CBD 1992;ISE 2006; Albuquerque et al. 2013). O desenvolvimento de pesquisas etnobiológicas e etnoecológicas deve respeitar as leis nacionais, os acordos internacionais e os preceitos éticos relacionados ao respeito ao ser humano, ao meio ambiente e aos direitos dos povos indígenas e comunidades locais (PICL) e agricultores familiares em relação aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e aos recursos genéticos que administram e inovam. Antes de abordar as questões éticas e legais, será apresentada uma visão geral do contexto que deu origem à legislação relacionada à proteção ambiental e ao patrimônio genético, aos direitos dos PICL e aos direitos humanos em geral. Assim, primeiro abordamos um breve histórico da regulamentação dos aspectos éticos e legais da pesquisa etnobiológica por meio de marcos internacionais CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 7 e nacionais (Fig. 1). Posteriormente, apresentamos os procedimentos que devem ser seguidos pelos pesquisadores de acordo com as diretrizes éticas da Sociedade Internacional de Etnobiologia (International Society of Ethnobiology - ISE) e de outros documentos relacionados à legislação brasileira. É comum os pesquisadores que nunca trabalharam com seres humanos se sentirem confusos e até desestimulados pela quantidade de informações, procedimentos e dispositivos legais levados em consideração na pesquisa. Neste capítulo, apresentamos diretrizes práticas sobre esses procedimentos para pesquisa etnobiológica e forneceremos o passo a passo dos procedimentos com algumas observações no final. Figura 1. Linha do tempo com os principais marcos legais internacionais e nacionais sobre procedimentos éticos e legais na pesquisa etnobiológica. 8 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Marcos internacionais O tripé formado pelo Código de Nuremberg (1947), a Declaração de Helsinque (1964) e as Diretrizes para Pesquisa em Seres Humanos do Conselho Internacional de Organizações de Ciências Médicas (International Council of Medical Sciences Organizations - ICMSO) (1993) dirige as discussões sobre liberdade e consentimento popular na pesquisa. A atenção ética e as preocupações com o consentimento da participação na pesquisa vieram em primeiro lugar nos estudos de saúde. O julgamento de crimes cometidos por médicos nazistas na segunda guerra mundial suscitou discussões sobre a posição e a voz do paciente, uma vez que o juramento de Hipócrates havia sido quebrado em benefício de um Estado. Essas discussões resultaram no Código de Nuremberg em 1947, no qual o primeiro tópico manifesta o livre-arbítrio em participar da pesquisa (Shuster 1997; Sardenberg et al. 1999). Para garantir este consentimento essencial, a declaração de Helsinki (1964) implementa os seguintes itens na rotina médica: uma explicação clara dos objetivos dos tratamentos aplicados, os riscos e benefícios, e o livre arbítrio para participar e retirar-se da pesquisa a qualquer momento. Em 1993, o Conselho Internacional de Organizações de Ciências Médicas em colaboração com a Organização Mundial da Saúde, criou comitês de ética para revisar projetos e protocolos de pesquisa (CIOMS 1993). Em uma convergência em relação aos preceitos éticos, o avanço das discussões sobre o acesso ao conhecimento tradicional e à repartição de benefícios veio mais tarde com a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), o Tratado Internacional (TI) da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Protocolo CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 9 de Nagoya. Os direitos dos povos indígenas são especificamente abordados na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), na Declaração Americana dos Povos Indígenas e na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. A partir desses marcos internacionais, cada país signatário vem desenvolvendo sua legislação e procedimentos específicos para abordar essas questões. A CDB é um instrumento de direito internacional que foi acordado na reunião das Nações Unidas em 1992. A CDB aborda todas as questões que se relacionam direta ou indiretamente com a biodiversidade, servindo como uma estrutura legal e política para outras convenções e acordos ambientais específicos. Na CDB, pela primeira vez, foi reconhecida a importância dos PICL na conservação da biodiversidade e dos direitos destes em relação aos conhecimentos que produzem sobre a biodiversidade e sobre o patrimônio genético que conservam e inovam. Além de instituir a noção de que os países têm direitos soberanos sobre seus próprios recursos genéticos, esse marco também menciona a distribuição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos e do conhecimento associado (CBD 1992). O Tratado Internacional sobre Recursos Genéticos de Plantas para Alimentação e Agricultura (TI) da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) foi assinado em Roma em 2001. Hoje, está intrinsecamente ligado à CDB. Enquanto a CDB lida com a biodiversidade nativa, a TI lida com a biodiversidade agrícola (FAO 2001). O objetivo do TI é a conservação e uso sustentável dos recursos genéticos, de plantas para alimentação e agricultura, e a partilha justa e equitativa dos benefícios derivados do seu uso para agricultura sustentável e segurança alimentar (FAO 2001). O Protocolo de Nagoya de 2010, 10 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA que está em vigor desde 2014, é um acordo suplementar para a CDB e busca alcançar os objetivos da CBD e do TI. O consentimento prévio informado e os acordos sobre a repartição justa e eqüitativa dos benefícios são elementos fundamentais, além do reconhecimento de leis e procedimentos consuetudinários e o uso e troca tradicionais de recursos genéticos (Gross 2013). O Protocolo de Nagoya foi assinado pelo Brasil, e ratificado apenas em agosto de 2020 e, desta forma, ainda não está em pleno vigor em nosso país. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinada em 1989, é o mais importante documento de política internacional que trata especificamente dos direitos dos povos indígenas e tribais. A Convenção 169 afirma os direitos relativos à identidade, aos territórios tradicionalmente ocupados e aos direitos de participação dos povos indígenas no uso, gestão e conservação de seus territórios, incluindo consultas livres, prévias e informadas. O Brasil ratificou a convenção em 2002 pelo Decreto 5051 de 2004. A declaração das Nações Unidas de 20 de dezembro de 2006 foi outro marco importante para os direitos dos povos indígenas na América Latina. Desde então, os direitos individuais de cada indígena são reconhecidos como iguais aos de todos os outros cidadãos de cada nação. Além disso, destacou a importância de salvaguardar e reconhecer as distinções culturais das comunidades indígenas como únicas. Entre os deveres que os estados têm com seus povos indígenas estão a provisão de acesso a uma educação pública e saúde de qualidade e a proteção e incentivo de práticas culturais. Também relativa aos povos indígenas, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DADPI), da Organização dos Estados Americanos (OEA), promove e protege os direitos dos povos indígenas nas Américas. Aprovada em 2016, essa declaração demorou CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 11 17 anos para ser escrita e aprovada. O DADPI aborda quatro novos temas: 1) reconhecimento e respeito pela natureza multicultural e multilingue dos povos indígenas; 2) reconhecimento das diferentes formas de organização comunitária; 3) o reconhecimento e direito dos povos indígenas de manter e promover seus próprios sistemas familiares; e 4) liberdade de escolha para crianças indígenas, o que garante que cada criança tenha o direito de desfrutar de sua própria cultura, religião ou idioma (ISA 2018a). Outro ponto importante está relacionado às comunidades indígenas que estão isoladas ou em estado de contato inicial e que têm o direito de permanecer nesta condição e viver livremente e de acordo com suas culturas. No âmbito dos estudos etnobiológicos, a Declaração de Belém (1988) é reconhecida como o principal marco internacional que norteia o código de ética da Sociedade Internacional de Etnobiologia (ISE). Essa declaração também influenciou outros documentos, como o Código de Ética da Sociedade Latino Americana de Etnobiologia (SOLAE) (Contreras et al. 2015) e o Código de Conduta Ética Tkarihwaié: ri (CBD 1992). Marcos Nacionais: O contexto brasileiro Apoiado pelas discussões do cenário internacional, o Conselho Nacional de Saúde (vinculado ao Ministério da Saúde) padronizou as diretrizes de pesquisa no campo da saúde e estabeleceu comitês de ética em pesquisa humana desde 1988. Mais recentemente, as diretrizes para pesquisa com os seres humanos na área da saúde foram estendidas à pesquisa com seres humanos em outras áreas, especialmente por meio das Resoluções do Conselho 12 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Nacional de Saúde 466/2012 e 510/2016. Esta última resolução, por exemplo, definiu regras aplicáveis à pesquisa em ciências sociais e humanas nas quais os procedimentos metodológicos envolvem o uso de dados obtidos diretamente dos participantes. No entanto, é comum encontrar artigos científicos em que o consentimento para participar da pesquisa não seja mencionado (Liporacci et al. 2015). Em relação ao meio ambiente, o marco legal da Constituição Federal de 1988 assegura um capítulo específico (artigo 225) que impõe o dever de defender e preservar o meio ambiente pelo poder público e pela sociedade. As responsabilidades das autoridades públicas incluem a preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético do país, a supervisão de entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético e a definição de espaços territoriais e seus componentes para serem especialmente protegidos. Parte dessas responsabilidades foram regulamentadas pela Lei 13.123/2015 e pelo Decreto 8.772 / 2016, que dizem respeito ao acesso ao patrimônio genético, proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade, e à repartição de benefícios pela conservação e uso sustentável da biodiversidade. Estes dois regulamentos exigem a realização de procedimentos legais por parte dos pesquisadores, que serão detalhados mais a frente. Essas responsabilidades da autoridade pública também resultaram na Lei 9.985/2000, que estabeleceu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). O estabelecimento do SNUC definiu critérios e padrões para a criação, implementação e gestão de áreas protegidas, ou unidades de conservação, incluindo também áreas de uso sustentável. Entre as questões abordadas por esta lei, a comunidade científica é incentivada a articular o valor dos conhecimentos tradicionais no CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 13 desenvolvimento de pesquisas sobre a biodiversidade de áreas protegidas e sobre o uso sustentável. A pesquisa científica dentro de áreas protegidas depende de aprovação prévia e está sujeita à supervisão da instituição responsável pela sua administração. No nível federal, a instrução normativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) número 03/2014 estabeleceu e regulamentou o Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (SISBIO). Através do SISBIO, os pesquisadores devem solicitar as autorizações e licenças do ICMBio para atividades científicas ou didáticas que envolvam o uso da biodiversidade ou o acesso às unidades de conservação federais. Outro importante avanço da Constituição Federal de 1988 foi a inclusão de artigos voltados para os direitos indígenas. Os artigos 231 e 232, juntos, são ferramentas importantes que reconhecem e protegem os direitos e conhecimentos culturais dos povos indígenas do Brasil. Esses artigos asseguram o reconhecimento das práticas culturais e linguísticas dos povos indígenas; o reconhecimento e a legitimidade da presença multicultural dos povos indígenas no Brasil; a proteção e os direitos à terra, água e recursos naturais; e a legitimação dos povos indígenas como organizações independentes, podendo atuar em defesa de seus próprios direitos e interesses. No Brasil, consideramos povos indígenas como de origem ameríndia (ou descendentes de habitantes pré-colombianos). O órgão público responsável pela permissão de pesquisa com indígenas é chamado de Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A FUNAI foi criada em 1967, durante o período da ditadura militar no Brasil (1964-1985). Este período inicial de operação da FUNAI foi marcado por duas situações: por um lado, foram criadas estratégias para atrair indígenas para áreas de interesse, como batalhões de defesa, 14 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA e; por outro, foram afastadas de outras áreas estratégicas (por exemplo, menor liberdade no autogerenciamento de suas terras) (Cunha 1987; ISA 2018b). Essa situação foi alcançada devido ao monopólio das relações tutelares, no qual atividades como o acesso à educação e à saúde foram centralizadas na FUNAI. Essa situação deixou os indígenas com pouca ou nenhuma liberdade de ação, tornando-se extremamente dependentes da FUNAI para qualquer tipo de ação. Estruturalmente, a FUNAI foi dividida (e continua até hoje) em três níveis espaciais: nacional, regional e local. A partir das décadas de 1970 e 1980, movimentos sociais e indígenas começaram a surgir com mais força no Brasil e no mundo. Esses movimentos fomentaram o surgimento de instituições e de legislações em favor das comunidades indígenas, o que influenciou algumas mudanças na FUNAI (Santilli 1991; ISA 2018b). A Funai, a partir do Decreto Presidencial nº 7.056, passou por uma grande reestruturação administrativa em 2009. A partir deste momento, técnicos qualificados começaram a desenvolver atividades e planos, com a participação e atuação dos povos indígenas. No entanto, o grande desafio da FUNAI hoje é, com pouco recurso e falta de profissionais, poder lidar com uma grande diversidade de povos indígenas com demandas diversas. Além disso, a Política Nacional para o Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT), instituída pelo Decreto 6040/2007, reconheceu formalmente as comunidades tradicionais brasileiras e estendeu a esses grupos os direitos que antes eram reservados aos indígenas e quilombolas, segundo a Constituição Federal de 1988. Os Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) são definidos neste decreto como segue: “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 15 ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição.” Entre os povos e comunidades tradicionais do Brasil estão quilombolas, ciganos, matriz africana, pescadores artesanais, seringueiros, quebradeiras de coco-de-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, ribeirinhos, caiçaras, sertanejos, açorianos, campeiros, pantaneiros, entre outros (veja também o Decreto 8.750/2016, o qual estabelece o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais). O PNDSPCT visa reconhecer, fortalecer e garantir os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais dos povos e comunidades tradicionais, com respeito e valorização por sua identidade, suas formas de organização e suas instituições. Entre esses direitos estão aqueles relacionados ao reconhecimento e proteção de conhecimentos, práticas e usos tradicionais, que são o foco da pesquisa etnobiológica e etnoecológica. Lei 13.123 e Decreto 8.772 A Lei 13.123 e o Decreto 8.772 (em vigor desde 2015 e 2016, respectivamente) fixam o marco legal atual relacionado à CDB, determinando o acesso ao patrimônio genético, proporcionando proteção e acesso ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade e estabelecendo a repartição de benefícios para a conservação e uso sustentável da biodiversidade (Brasil 2015; 2016). O Brasil ratificou a CDB em 1994, que se tornou lei, mas não se tornou operativa sem regulamentação. 16 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA O primeiro regulamento para operacionalizá-lo foi a Medida Provisória (MP) 2.186-16, aprovada em 2001. Esta MP criou o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) e determinou que o acesso e a remessa de patrimônio genético e acesso ao conhecimento tradicional associado no país dependia da autorização deste conselho. Esta MP foi controversa (Liporacci et al. 2015) e criticada devido à sua excessiva burocracia (Pedrollo & Kinupp 2015); no entanto, ao longo do tempo, as resoluções e deliberações do CGEN criaram condições para que o sistema funcionasse de maneira um pouco mais ágil, visando adequar a regulamentação à realidade da pesquisa científica e do desenvolvimento tecnológico (Besunsan 2017). A MP esteve em vigor por quase 15 anos, quando foi substituída pela Lei 13.123/15. Esta lei trouxe avanços e retrocessos em relação aos direitos dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e dos agricultores tradicionais. De acordo com a Lei 13.123/15, em relação à pesquisa científica, o acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado realizado exclusivamente para esse fim, não requer autorização prévia. No entanto, os pesquisadores precisam se registrar eletronicamente no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado – SISGEN, que está em operação desde 2017. A lei trata do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético de populações indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais, ocorrendo uma adaptação do termo PICL utilizado na CDB para manter a coerência com as demais normativas brasileiras. Cabe ressaltar que os segmentos afetados pela lei criticaram estas denominações, pois eles se reconhecem como povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares. Desde a promulgação da Lei 13.123/15, CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 17 é necessário o registro ou autorização para acesso ao conhecimento tradicional, mesmo que obtido de fontes secundárias (por exemplo, feiras, publicações, inventários, filmes, artigos científicos, registros e outras formas de sistematização e registro desse conhecimento). Além disso, as pesquisas que não envolvem o acesso ao conhecimento tradicional, mas acessam o patrimônio genético, ou “informação de origem genética de espécies vegetais, animais, microbianas ou espécies de outra natureza, incluindo substâncias oriundas do metabolismo destes seres vivo”, também precisam ser cadastradas no SISGEN. A Lei divide o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético em duas categorias: 1) origem identificável; e 2) origem não identificável. O conhecimento de origem identificável é aquele ao qual é possível identificar pelo menos um povo ou comunidade que o detém. O de origem não identificável seria aquele que não é possível identificar um povo ou comunidade que o detém. Segundo o decreto nº 8.772/16, “Qualquer população indígena, comunidade tradicional ou agricultor tradicional que cria, desenvolve, detém ou conserva determinado conhecimento tradicional associado é considerado origem identificável desse conhecimento”. Este conceito corrobora com o consenso existente entre os povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores tradicionais sobre o fato de que todo conhecimento tradicional é de “origem identificada”(Miranda 2017) (Quadro 1). 18 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Quadro 1. Qual a consequência de considerar um conhecimento como de origem não identificável? De acordo com a Lei 13123, para este tipo de conhecimento, o consentimento prévio informado não é obrigatório. Em outras palavras, uma empresa ou pesquisador pode acessá-lo sem o consentimento prévio informado. Além disso, o compartilhamento de benefícios decorrentes do acesso a esse tipo de conhecimento seria destinado ao Fundo Nacional de Repartição de Benefícios. Em que outros casos há isenção de consentimento prévio? Isso ocorre em casos de acesso ao patrimônio genético da variedade tradicional local ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula para atividades agrícolas. ...mas a ausência de consentimento prévio do PICL ou agricultor familiar que cria, desenvolve, mantém ou preserva variedade ou raça é considerada uma violação dos direitos humanos! Uma das inovações da lei foi a criação do Fundo Nacional de Repartição de Benefícios (FNRB), que visa valorizar o patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado e promover seu uso de forma sustentável. No entanto, um dos pontos controversos da repartição de benefícios é a existência de várias isenções que levaram a distorções nos fundamentos da CDB e no marco legal internacional. De acordo com a Lei da 13.123/15, a repartição de benefícios ocorre somente quando há exploração econômica de um produto acabado ou material reprodutivo decorrente do acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado. A lei isenta os fabricantes de produtos intermediários, microempresas, pequenas empresas e microempreendedores individuais de compartilhar benefícios. A Lei garante os direitos dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores tradicionais de ter: 1) reconhecida sua CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 19 contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, em qualquer forma de publicação, utilização, exploração e divulgação; 2) ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações; perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, nos termos desta Lei; 3) participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento; 4) usar ou vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado; 5) conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado. Procedimentos éticos e legais na pesquisa etnobiológica Procedimentos éticos Antes das preocupações com procedimentos legais, é essencial que os pesquisadores sejam esclarecidos e orientados sobre procedimentos éticos na pesquisa etnobiológica. Usamos aqui como referência o código de ética ISE, desenvolvido ao longo de mais de uma década e produto de uma série de fóruns de discussão baseados em consenso envolvendo membros do ISE (ISE 2006). Escolhemos este documento por sua importância histórica, mas enfatizamos as convergências com o Código de Ética da SOLAE e o Código de Conduta Ética Tkarihwaié: ri. 20 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Um conceito importante é o de “atenção plena”, ou mindfulness, chamando a atenção para a obrigação de estar “plenamente consciente do conhecimento e da omissão, do fazer e do não fazer, da ação e da inação” (ISE 2006). Os 17 princípios, alinhados com o cumprimento da legislação nacional e internacional e práticas consuetudinárias (Quadro 2), descrevem a condução da pesquisa ou a organização de coleções, publicações, bases de dados e gravações de áudio ou vídeo, entre outros produtos de pesquisa e atividades relacionadas. Apesar de uma direção política bem marcada, sabemos que a absorção de tais princípios pelos pesquisadores etnobiológicos ainda é tímida. Quadro 2. Princípios para a pesquisa etnobiológica com povos indígenas, sociedades tradicionais e comunidades locais (PICL) (Adaptado de ISE 2006). 1. Direitos e responsabilidades prévios PICL possuem interesses, responsabilidades e direitos de propriedade prévios sobre todos os recursos naturais que se encontram dentro de locais tradicionalmente habitados ou utilizados por tais povos, como também sobre todo o conhecimento e propriedade intelectual associado a esses recursos. 2. Princípio de autodeterminação O PICL tem o direito à autodeterminação (ou determinação local para comunidades tradicionais e locais), e os pesquisadores e organizações devem reconhecer e respeitar esses direitos em suas relações com esses povos e comunidades. 3. Princípio da Inalienabilidade Os direitos dos PICL em relação aos seus territórios tradicionais e aos recursos naturais dentro deles e aos conhecimentos tradicionais associados são inalienáveis. Esses direitos são coletivos por natureza, CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 21 mas podem incluir direitos individuais; e a natureza, escopo e alienabilidade de seus respectivos regimes de direitos de recursos devem ser determinados por eles mesmos. 4. Princípio da Custódia tradicional A humanidade tem uma interconexão holística com os ecossistemas de nossa Sagrada Terra e a obrigação e responsabilidade do PICL de preservar e manter seu papel como guardiões tradicionais desses ecossistemas, através da manutenção de suas culturas, identidades, línguas, mitologias, crenças espirituais e leis e práticas consuetudinárias. 5. Princípio da Participação Ativa É crucial que os PICL participem ativamente de todas as fases da pesquisa e atividades relacionadas, desde o início até a conclusão, bem como na aplicação dos resultados da pesquisa. A participação ativa inclui a colaboração em projetos de pesquisa para atender às necessidades e prioridades locais e a análise prévia dos resultados antes da publicação ou divulgação. 6. Divulgação integral Os PICL têm o direito de serem plenamente informados sobre a natureza, o escopo e o objetivo final da pesquisa proposta (incluindo objetivo, metodologia, coleta de dados e disseminação e aplicação dos resultados). Esta informação deve ser dada em formas que são entendidas e úteis a nível local, considerando as preferências culturais e modos de transmissão desses povos e comunidades. 7. Princípio do Consentimento Prévio Informado e Esclarecido O consentimento prévio informado e esclarecido é obrigatório antes que qualquer pesquisa seja realizada nos níveis individual e coletivo, conforme determinado pelas estruturas de governança da comunidade. O consentimento prévio informado é um processo contínuo baseado em um relacionamento e mantido em todas as fases da pesquisa. Os PICL possuem o direito de dizer não. 22 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA 8. Princípio da Confidencialidade Os PICL, a seu exclusivo critério, têm o direito de excluir da publicação e / ou manter confidencialidade qualquer informação relativa à sua cultura, identidade, idioma, tradições, mitologias, crenças espirituais ou genômica. 9. Princípio do Respeito Este princípio reconhece a necessidade dos pesquisadores respeitarem a integridade, moralidade e espiritualidade da cultura, tradições e relações do PICL com seus mundos. 10. Princípio da Proteção ativa Os pesquisadores devem tomar medidas ativas para proteger e melhorar as relações dos PICL com o seu ambiente e, assim, promover a manutenção da diversidade cultural e biológica. 11. Princípio da Precaução Ações proativas e antecipatórias são necessárias para identificar e prevenir danos biológicos ou culturais resultantes de atividades ou resultados de pesquisa, incluindo a responsabilidade de evitar a imposição de conceitos e padrões externos ou estrangeiros. 12. Princípio da Reciprocidade, Benefício Mútuo e Compartilhamento Equitativo Os PICL possuem o direito de participar e se beneficiar dos processos e dos resultados que se obtêm, direta ou indiretamente e a curto e a longo prazo, da pesquisa etnobiológica e das atividades relacionadas que envolvem seus conhecimentos e seus recursos. 13. Princípio de Apoio à Pesquisa Indígena Este princípio reconhece e apoia os esforços dos PICL em empreender suas próprias pesquisas com base em suas próprias epistemologias e metodologias. Para tanto, a capacitação, o intercâmbio de treinamento e a transferência de tecnologia para os PICL devem ser incluídos na pesquisa sempre que possível. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 23 14. Princípio do Ciclo interativo dinâmico A pesquisa e as atividades relacionadas não devem ser iniciadas, a menos que todas as etapas possam ser concluídas: (a) preparação e avaliação; (b) implementação total; (c) avaliação, divulgação e retorno dos resultados; e (d) treinamento e educação como parte integral do projeto. Todos os projetos devem ser vistos como ciclos de comunicação e interação continuada. 15. Princípio de Ação de remediação Todos os esforços serão feitos para evitar quaisquer consequências adversas para os PICL dos resultados de pesquisa e de atividades relacionadas. Qualquer ação corretiva pode incluir restituição, quando acordada e apropriada. 16. Princípio de devido reconhecimento e mérito Os PICL devem ser reconhecidos de acordo com sua preferência e dado o devido crédito em todas as publicações acordadas e outras formas de divulgação de suas contribuições tangíveis e intangíveis para atividades de pesquisa. A coautoria deve ser considerada quando apropriado. Isso se estende a usos e aplicações secundárias ou posteriores. 17. Princípio da Diligência Espera-se que os pesquisadores tenham uma compreensão ativa do contexto local antes de entrar em relações de pesquisa com uma comunidade e conduzir pesquisas no idioma local na medida do possível. Procedimentos legais Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos Atualmente, organizações internacionais e agências de fomento à pesquisa em todo o mundo desenvolveram seus próprios protocolos de submissão de projetos (Vandebroek 2017). Recomendamos estudar a legislação e os protocolos atuais específicos para o país 24 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA no qual a coleta de dados ocorrerá. Lembramos que os protocolos podem mudar, mas as informações prévias e o consentimento para participação na pesquisa permanecem como uma base sólida. No Brasil, de acordo com os marcos legais da área de saúde para pesquisa com seres humanos, que também se aplicam à pesquisa fora da área da saúde, os projetos de pesquisa devem ser previamente aprovados por um comitê de ética em pesquisa de uma universidade ou instituição de pesquisa (Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, CEPSH) e ser consentida pelos colaboradores da pesquisa. O CEP é um órgão institucional que tem o papel de revisar projetos de pesquisa científica, além de possuir um papel consultivo e educacional (Freita & Hossne 2002; Brasil 2004). Um ponto crucial nesta aprovação por um CEP é a preparação de um documento chamado “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido” (TCLE). O TCLE, também conhecido como consentimento prévio, tem o papel de esclarecer e proteger o colaborador da pesquisa, bem como o pesquisador (Brasil 2012). Esses procedimentos convergem com alguns dos requisitos da Lei 13.123/15, os quais são tratados no item seguinte deste texto. Em seguida, no quadro 3, resumimos uma lista de verificação com diretrizes para as etapas anteriores à condução da pesquisa e para a elaboração de um TCLE, de modo a garantir os preceitos éticos que norteiam os estudos com seres humanos. No caso do acesso ao conhecimento dos PICL e dos agricultores familiares, que devem seguir a Lei 13.123/15, é necessário incluir os impactos resultantes da realização da pesquisa, os direitos e responsabilidades de cada parte, o direito de negar acesso, e no caso de pesquisas com viés econômico, informações sobre a repartição de de benefícios (artigos 16 do Decreto 8.772/2016). CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 25 Quadro 3. Diretrizes e checklist das etapas obrigatórias na preparação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) no Brasil. 1. Convite para participar da pesquisa A participação em um projeto de pesquisa não é obrigatória. Nesse momento, o pesquisador deve tentar estabelecer uma relação de confiança entre o pesquisador e o colaborador da pesquisa. Assim, o convite para participar é essencial. 2. Identificação da pesquisa Título da pesquisa, objetivos, justificativa e procedimentos devem ser identificados, sempre escritos de forma clara e objetiva. 3. Métodos de Pesquisa Como os dados serão coletados? Quem vai fazer as entrevistas? O que será incluído na entrevista? Como esses dados serão gravados ou registrados? 4. Direito de não participar O documento deve deixar claro o direito de recusa da participação na pesquisa em qualquer momento ou etapa da pesquisa. 5. Acompanhamento de pesquisa Além do pesquisador, quem mais fará a pesquisa? O pesquisador deve fornecer o nome do seu orientador e das pessoas que ajudarão na coleta de dados e suas respectivas instituições. 6. Sigilo O pesquisador precisa explicar como os dados serão armazenados e garantir o anonimato do entrevistado. 7. Publicações e uso da informação Forneça uma breve explicação de como os dados serão usados (publicações de artigos, desenvolvimento de drogas, cosméticos, etc.). Encorajamos uma menção sobre o compartilhamento de benefícios e 26 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA o retorno dos dados aos colaboradores da pesquisa e como isso deve acontecer. 8. Riscos e Benefícios Riscos da pesquisa são comumente negligenciados na formulação do TCLE. Mesmo que sua coleta de dados envolva uma entrevista, é necessário considerar o cansaço e o tédio durante a participação na pesquisa, bem como constrangimento, desconforto e até mesmo quebra de confidencialidade. Este último, mesmo que involuntário, deve ser incluído no TCLE. Reembolso e indenização também devem ser garantidos no caso de qualquer dano resultante da pesquisa. Quanto aos benefícios, espera-se que toda a pesquisa científica traga algum benefício para a sociedade. Podemos então explicar o que esperamos alcançar em relação a benefícios tangíveis e intangíveis a curto e longo prazo. Além disso, dependendo do tipo de benefício, como aqueles que resultam em resultados monetários da pesquisa, você precisará descrever em detalhes como isso será assegurado ao colaborador. 9. Consentimento / acordo O TCLE deve conter um campo para registro da aceitação para colaborar com a pesquisa. Quando o colaborador for menor de idade, analfabeto ou apresentar alguma deficiência intelectual, o documento deverá solicitar o consentimento dos pais ou responsável legal. O TCLE não precisa necessariamente ser obtido por escrito: outras mídias são permitidas (ver CNS 510/16). 10. Assinatura do pesquisador A assinatura do pesquisador é uma forma de demonstrar legalmente o compromisso de cumprir os termos do código etnobiológico de ética e a atual resolução relacionada à pesquisa com seres humanos utilizados no país (p. Ex., CNS 466/12 no Brasil; lembre-se sempre de citar estes documentos). 11. Como contatar o pesquisador ou o comitê de ética? Inclua informações sobre como entrar em contato com o pesquisador, grupo de pesquisa ou laboratório e o comitê de ética que aprovou o projeto (endereço, telefone do pesquisador e supervisor e endereços de e-mail). CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 27 No Brasil, a submissão de um projeto de pesquisa é feita através de um portal online chamado Plataforma Brasil (http://plataformabrasil.saude.gov.br). Através deste portal, todos os documentos relacionados à pesquisa devem ser enviados, e as avaliações podem ser monitoradas (Quadro 4). Quando o projeto é aprovado, relatórios anuais ou finais (dependendo da duração do projeto) devem ser enviados para a plataforma como forma de acompanhamento da pesquisa. No caso de não aprovação do projeto pela indicação de questões pendentes, é necessário ler atentamente a avaliação para fazer uma nova submissão. O projeto deve ser aprovado antes do início da coleta de dados. Quadro 4. Checklist para inserção de documentos na Plataforma Brasil. 1. Projeto de pesquisa. 2. Modelo do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE); veja as diretrizes no Quadro 3. 3. Autorizações de organismos competentes no caso de coleta da flora e fauna. 4. Autorização de líderes comunitários (se aplicável). 5. Declaração de autorização da(s) instituição(ões) participante(s): declaração da(s) instituição(ões) envolvida(s) autorizando a pesquisa assinada pelo responsável da(s) instituição(ões). 6. Preenchimento do formulário com detalhes da pesquisa na Plataforma Brasil. 7. Folha de rosto gerada dentro da Plataforma Brasil: ao final do preenchimento do formulário, será disponibilizada uma folha de rosto, que deverá ser assinada pelo coordenador da pesquisa e pela pessoa responsável pela instituição proponente. 28 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Acesso ao conhecimento tradicional associado, aos recursos genéticos e a repartição equitativa de benefícios: Para o cumprimento da Lei 13.123 e Decreto 8.772, nós apresentamos as etapas para o desenvolvimento de uma pesquisa que não visa a exploração econômica de um produto pelo usuário (pesquisador, empresa, governo etc.), que é a realidade da maioria das pesquisas etnobiológicas. No entanto, no caso de pesquisas com exploração econômica, é necessário que o leitor busque informações detalhadas sobre o processo de autorização da pesquisa e sobre a repartição equitativa dos benefícios (Brasil 2015, Brasil 2016). O primeiro passo no desenvolvimento da pesquisa é a obtenção do consentimento prévio e informado da comunidade a ser investigada, o que, como mencionado anteriormente, é convergente com os objetivos da obtenção do consentimento livre e esclarecido (TCLE) (Quadro 3). De acordo com a lei, o consentimento prévio e informado pode ocorrer mediante assinatura de termo de consentimento prévio, obtenção de registro audiovisual do consentimento, averiguação de opinião do órgão oficial competente ou reconhecimento através do protocolo da comunidade. Os protocolos comunitários são regras internas criadas pelas próprias comunidades que dizem como o governo, empresas, pesquisadores e outros interessados em acessar seu conhecimento tradicional associado devem proceder de maneira que respeite os costumes, usos e tradições. O instrumento de comprovação do consentimento deve ser preparado em linguagem acessível, contendo a descrição do processo de consentimento, a organização e representação da comunidade estudada, as informações sobre a pesquisa (objetivo, duração, orçamento, financiamento, etc.), o uso que se pretende dar ao conhecimento CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 29 associado, a área de cobertura do projeto e as comunidades estudadas, e se a comunidade recebeu assessoria técnica e jurídica no processo (Artigos 17 do Decreto 8.772/2016). Embora seja possível na legislação brasileira comprovar o consentimento prévio e informado por meio da opinião de um órgão oficial competente, é imperativo que ocorra uma consulta prévia e informada com as pessoas ou comunidades a serem estudadas, sem violar os preceitos éticos e os direitos humanos internacionalmente reconhecidos (ISE 2006; OIT 2011). Acreditamos que toda pesquisa etnobiológica e etnoecológica deve seguir os preceitos éticos do Código de Ética do ISE (ver seção Procedimentos éticos) e os instrumentos legais internacionalmente reconhecidos sobre os direitos do PICL (ver seção Marcos internacionais), mesmo nos casos em que a Lei 13.123/15 sugere que o acesso ao conhecimento de origem não identificada não requer consentimento prévio informado. Em outras palavras, toda pesquisa deve solicitar o consentimento prévio e informado da comunidade e respeitar a organização coletiva (por exemplo, mesmo que a pesquisa trabalhe com especialistas locais, é importante obter uma autorização coletiva para a pesquisa através de sua organização comunitária). É importante também que no consentimento já seja acordado com a comunidade o prazo para a realização do cadastro no SISGEN, respeitando a regra geral da legislação vigente. O pesquisador deve estar ciente de que a comunidade tem o direito de negar acesso ao conhecimento tradicional associado, e essa decisão deve ser respeitada. Depois de obter o consentimento prévio informado da comunidade a ser estudada, o pesquisador pode realizar o registro no SISGEN (ver lista de verificação no Quadro 5). Por mais que a 30 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA legislação brasileira só exija o cadastro de pesquisas com povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, nós sugerimos que as pesquisas com comunidades locais também sejam registradas, como uma forma de salvaguardar os conhecimentos destes grupos que no futuro podem vir a ter exploração econômica. Deve-se notar que a pesquisa com dados secundários também deve ser registrada no SISGEN. De acordo com a lei, o registro deve ser feito antes da divulgação de resultados (finais ou parciais) em meios científicos; do envio de amostras para terceiros; do pedido de direito de propriedade intelectual sobre um processo, produto ou cultivar desenvolvido a partir do acesso; da notificação ao CGEN do produto acabado ou material reprodutivo desenvolvido como resultado do acesso; e da comercialização do produto intermediário. No caso de pesquisas que não acessem o conhecimento tradicional dos povos e comunidades citados na lei, mas acessem patrimônio genético, também precisam realizar o cadastro no SISGEN. Quadro 5. Checklist para o registro no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado, SISGEN. 1. Informações básicas sobre a atividade de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico, incluindo: • Resumo da atividade e seus objetivos. • Setor de aplicação, no caso do desenvolvimento tecnológico. • Resultados esperados ou obtidos, dependendo do tempo de registro. • Equipe de pesquisa, incluindo informação sobre estudantes ou bolsistas. • Outras instituições nacionais que participam na realização da pesquisa, quando aplicável, incluindo instituições internacionais. • Quando a atividade aconteceu ou vai acontecer. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 31 • Qual foi o patrimônio genético acessado (identificação no nível taxonômico mais estrito possível). • declaração se o patrimônio genético é variedade tradicional local ou crioula ou raça localmente adaptada ou crioula, ou se a espécie consta em lista oficial de espécies ameaçadas de extinção. • Quem forneceu o conhecimento tradicional associado e uma descrição das fontes desse conhecimento (incluindo fontes secundárias). • Onde o estudo foi feito (coordenadas geo-referenciadas), exceto para conhecimento de origem não identificável. • Registro prévio ou número de autorização no caso de pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado após 30 de junho de 2000. 2. Testemunho para obter o consentimento prévio informado do provedor de conhecimento tradicional associado de origem identificável. 3. Se necessário, solicite a confidencialidade das informações apresentando a fundamentação legal relevante e um resumo não confidencial. 4. Quando aplicável, declarar o enquadramento em hipótese de isenção legal ou de não incidência de repartição de benefícios. Se as informações fornecidas ao SISGEN forem alteradas, o pesquisador deve atualizar os dados relevantes pelo menos uma vez por ano. Os pesquisadores devem indicar a fonte do conhecimento tradicional associado em divulgações e publicações. Esta é uma maneira de reconhecer o conhecimento tradicional e, mais importante, é um direito dos PICL que deve ser respeitado. O sistema ainda precisa ser melhorado, pois atualmente alguns pontos dificultam a legalização das pesquisas pelos pesquisadores, como a inserção no CPF ou no CNPJ de informantes de pesquisa realizados desde 2000 ou a necessidade de inserir manualmente as informações de conhecimento tradicional para cada recurso genético acessado. Assim, o pesquisador deve estar ciente de que 32 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA muitos ajustes no sistema ainda são esperados, mas dependem dos gestores do SISGEN. A legislação determina multas por infrações, tais como: a) acesso ao conhecimento tradicional de origem identificável sem obter consentimento prévio e informado, ou em desacordo com ele; b) divulgar resultados, finais ou parciais, em meios científicos ou de comunicação sem registro prévio; c) deixar de indicar a origem do conhecimento tradicional associado de origem identificável em publicações, usos, acervos e divulgações resultantes do acesso; e d) apresentar informação total ou parcialmente falsa ou enganosa, seja nos sistemas oficiais ou em qualquer outro procedimento administrativo relacionado ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado. Pesquisa com Povos Indígenas No Brasil, as instituições responsáveis por autorizar a pesquisa com povos indígenas são aquelas já mencionadas neste texto (CEP, CGEN, SISGEN, SISBIO e FUNAI). Para obter autorização, o pesquisador pode iniciar os procedimentos com um CEP e a FUNAI, ao mesmo tempo. Os projetos com povos indígenas submetidos aos comitês locais de ética (CEP) através da Plataforma Brasil serão encaminhados à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). Para iniciar o processo de autorização pela FUNAI, o pesquisador deve enviar uma série de documentos por correio convencional, sendo que o passo-a-passo dos documentos a serem encaminhados estão listados no Quadro 6 (a lista de verificação dos documentos necessários para enviar à FUNAI) (FUNAI 2018). Após CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 33 o registro do projeto na Plataforma Brasil e a aceitação dos documentos fornecidos, o pesquisador poderá enviar o parecer técnico da CONEP para a FUNAI. Em seguida, a FUNAI é responsável por coletar as assinaturas da comunidade indígena e por apresentá-los o projeto. No entanto, é importante notar que essa estrutura de aquisição de autorizações para trabalhar com povos indígenas muitas vezes se torna impraticável dentro da realidade do pesquisador, que tem tempo limitado para realizar sua pesquisa. A FUNAI é dividida estruturalmente em nacional, regional e local, todavia, devido ao grande número de aldeias no Brasil, esta prática de coleta de assinaturas é muito complexa, o que dificulta a obtenção formal da autorização. Por esta razão, a coleta de autorizações é frequentemente passada e realizada pelo próprio investigador (a), mesmo que, em teoria, não seja permitido entrar na aldeia antes da obtenção da autorização. Além disso, a falta de comunicação entre instituições como a FUNAI e os comitês de ética locais torna o processo ainda mais lento e difícil. Além dessas autorizações, no caso de coleta de material botânico, animal, microbiológico ou fúngico, bem como quando a aldeia está localizada dentro de uma área protegida, o pesquisador deve se registrar no SISBIO e, no caso de realizar acesso ao conhecimento tradicional associado ou recursos genéticos, o pesquisador também deve registrar a pesquisa no SISGEN (ver seção Acesso ao conhecimento tradicional associado, aos recursos genéticos e a repartição equitativa de benefícios). 34 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Quadro 6. Checklist dos documentos que devem ser enviados à FUNAI 1- Carta do pesquisador solicitando permissão para entrar no território indígena, dirigida à Presidência da FUNAI, especificando a terra e a aldeia indígena, o povo indígena, o período de entrada, informações de contato do pesquisador e uma lista de membros da equipe, se houver. 2 - Carta do orientador da pesquisa, apresentando o pesquisador. 3 - Declaração de vínculo formal com a instituição de pesquisa. 4 - Projeto de pesquisa. 5 - Currículo do pesquisador. 6 - Cópia dos documentos de identificação pessoal do pesquisador e da equipe. No caso de um pesquisador estrangeiro, uma cópia do passaporte com identificação e vistos de entrada no país. 7 - Autorização publicada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) quando é pesquisador estrangeiro. Coleta de material biológico e pesquisa em áreas protegidas Muitos pesquisadores etnobiológicos também precisam cumprir as normas relacionadas à coleta de material biológico (animais ou plantas) em áreas protegidas como unidades de conservação. A autorização para coleta de material biológico e para pesquisa em áreas protegidas e cavernas federais é realizada através do SISBIO (http://ibama.gov.br/sisbio/sistema/). Os pesquisadores devem cadastrar e atualizar continuamente seus dados pessoais, a identificação da instituição científica relevante e seu currículo na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Para registro no SISBIO, além do projeto, o pesquisador deve fornecer outros detalhes, como os táxons que serão coletados, capturados, marcados CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 35 ou transportados; o destino pretendido para o material coletado; quando a coleta vai acontecer; e se haverá acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado. No caso de coleta de materiais botânicos, fúngicos ou microbiológicos que não estejam em unidades de conservação e espécies que não estejam ameaçadas de extinção, não é necessário solicitar autorização via SISBIO. Conclusão: Passo a Passo para a Pesquisa Etnobiológica Cumprindo as Questões Éticas e Legais Para ajudar o leitor na compreensão da complexidade das questões legais, apresentamos um resumo das etapas que os pesquisadores da área de etnobiologia e etnoecologia devem realizar para conduzir suas pesquisas de acordo com a legislação brasileira (Fig. 2). Para o uso deste fluxograma, estamos assumindo que as pesquisas acessam conhecimento e que todas as instituições e sistemas envolvidos estão em pleno funcionamento. 36 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Figura 2. Resumo dos passos para o cumprimento dos procedimentos legais na pesquisa etnobiológica. CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 37 Entendendo a realidade local Antes de iniciar qualquer atividade de pesquisa, deve haver uma boa compreensão do contexto local, das instituições representativas da comunidade e do seu interesse pela pesquisa, bem como do conhecimento dos protocolos comunitários da comunidade. Consentimento prévio e informado O consentimento prévio e informado deve ser estabelecido antes de realizar qualquer atividade de pesquisa. Este consentimento deve ser desenvolvido com as pessoas ou instituições deliberativas identificadas como as autoridades mais representativas de cada comunidade potencialmente afetada. Além disso, no caso de projetos envolvendo mais de uma comunidade, este processo deve ser realizado com cada comunidade em estudo. É essencial enfatizar que, antes de qualquer obrigação legal, existe um dever ético de solicitar o consentimento prévio informado. Processo de autorizações legais O pesquisador precisa solicitar autorização do CEP ou da CONEP (por meio da Plataforma Brasil). Após a aprovação, o processo de consentimento prévio informado pode ser iniciado. Se a comunidade autorizar o projeto, os próximos passos podem ser seguidos: a) Se a pesquisa acessar patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado de povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares sem interesse econômico, deve ser 38 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA registrado no SISGEN. Nós recomendamos que todas as pesquisas etnobiológicas sejam cadastradas, como uma forma de salvaguardar o conhecimento de comunidades locais, por mais que não exista essa exigência na lei brasileira. No caso de pesquisa com interesse econômico, isso deve ser notificado no SISGEN, e o procedimento de repartição de benefícios deve ser realizado. b) Se material zoológico for coletado ou material botânico, fúngico e microbiológico ameaçado de extinção ou dentro de área protegida for coletado, o pesquisador precisará da autorização do SISBIO. Após o projeto ter sido autorizado pelo CEP ou pelo CONEP e pelo SISBIO e estar registrado no SISGEN, os pesquisadores devem estar atentos aos prazos dos relatórios e atualizar as informações quando necessário. No caso de pesquisas com povos indígenas, as autorizações devem ser enviadas para a FUNAI e CONEP concomitantemente. Conduzindo a pesquisa usando de boa-fé A pesquisa deve ser conduzida usando boa fé, respeitando e agindo de acordo com as normas culturais e a dignidade de todas as comunidades potencialmente afetadas, e respeitando as normas e os sistemas de crença relevantes das comunidades seguindo um contexto holístico. Divulgação e publicação de resultados Nesse estágio, é importante especificar a atribuição, o crédito, a autoria, a coautoria e o devido reconhecimento a todos os CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 39 colaboradores dos processos de pesquisa e seus resultados, reconhecendo e valorizando especialistas locais e também especialistas acadêmicos. Além disso, todos os usos educacionais dos materiais de pesquisa devem ser consistentes com boa fé e respeito à integridade cultural e desenvolvidos em colaboração com tais comunidades para uso mútuo. Os pesquisadores devem estar atentos a outros acordos necessários antes das publicações e divulgação dos resultados, tais como o uso de fotos e partes de entrevistas ou mesmo dados sobre espécies e usos baseados em conhecimentos tradicionais. Compartilhando resultados As formas de compartilhar os resultados, mesmo quando não enquadradas nas estipulações legais para a repartição de benefícios, devem ser acordadas com as comunidades. Esse processo deve definir o formato, as informações e os resultados que serão compartilhados com cada comunidade afetada. É importante oferecer suporte a sistemas de gerenciamento de informações da comunidade, como registros locais e bancos de dados locais. Às vezes, produzir materiais que possam ser usados nas escolas locais pode ser uma maneira de colocar o conhecimento tradicional em primeiro plano, ou produzir materiais impressos usando linguagem acessível, curtas-metragens ou outras formas de disseminar os resultados entre os sujeitos da pesquisa. Os pesquisadores devem ser criativos e se preocupar com a realidade local. *** No momento do fechamento do texto deste capítulo, é importante enfatizar que o sistema legal ainda apresenta problemas 40 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA operacionais que podem minar o propósito inicial por trás dessas discussões, que são os direitos dos PICL. Resolver esses problemas é um desafio para as instituições governamentais envolvidas, e também requer o posicionamento e opiniões informadas de pesquisadores de etnobiologia. Finalmente, enfatizamos a importância de etnobiólogos e etnoecólogos, sejam ou não membros de sociedades científicas, de assegurar que as propostas de projetos, planejamento e orçamento sejam apropriados para a colaboração de pesquisa interdisciplinar e multicultural e que estejam de acordo com os princípios éticos que orientam as pesquisas etnobiológica. Desta forma, devemos também sensibilizar agências de financiamento e instituições acadêmicas sobre o aumento de tempo e custos que podem estar envolvidos na adesão a esses princípios éticos. A pesquisa etnobiológica deve envolver não apenas as etapas convencionais de racionalidade teórica / coleta de dados / discussão de resultados / publicação, mas também a incorporação adequada de elementos essenciais anteriores, tais como consentimento prévio informado e autorizações legais, e elementos subsequentes, como a disseminação de resultados. e compartilhamento de benefícios. Não se trata apenas de seguir as normas legais; trata-se principalmente de respeitar os direitos humanos fundamentais dos povos indígenas e das comunidades tradicionais e locais. Agradecimentos Somos gratas à toda equipe do Laboratório de Ecologia Humana e Etnobotânica da UFSC por discussões criteriosas sobre os tópicos deste capítulo. RHL e GDB agradecem à CAPES para CONSIDERAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS PARA A PESQUISA ETNOBIOLÓGICA 41 bolsas de doutorado. NH agradece ao CNPq por uma bolsa de pesquisa (309613 / 2015-9). Agradecemos ainda a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032130275897). Referências Albuquerque UP, Hanazaki N, Santilli J. 2013. Acess and benefit-sharing in Brazil: towards the appropriation of the commons. In: Boef WS, Subedi A, Peroni N, Thijssen M, O’Keeffe MTE. (eds.) Community Biodiversity Management: Promoting resilience and the conservation of plant genetic resources. New York, Routledge. p. 328-333. Besunsan N. 2017. À guisa de conclusão: a Lei 13.123/15 como um espelho do tempo e da erosão de direitos. In: Moreira ECP, Porro NM, Da Silva LA (eds.) 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Desde a década de 1920, o campo da Psicologia e Ciências Sociais já utilizavam métodos qualitativos (Flick 2014). Na sociologia aplicada nos Estados Unidos, por exemplo, métodos biográficos, estudos de caso e métodos descritivos — todos empregados na pesquisa qualitativa — foram centrais durante toda a década de 1940, mas a medida em que a complexidade dos fenômenos estudados por essa ciência aumentou, o uso da abordagem qualitativa diminuiu e houve uma maior procura por métodos quantitativos (Flick 2014). Foi somente a partir década de 1960 que houve uma forte crítica à utilização de métodos quantitativos, devido a sua falta de subjetividade para entender os seres humanos, o que fez ressurgir a relevância dos métodos qualitativos (ver Flick 2014). Algumas das características mais marcantes da pesquisa qualitativa são a utilização de diferentes métodos e perspectivas teóricas, além da importância dada ao ponto de vista subjetivo do pesquisador PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 45 e das pessoas que estão sendo estudadas (Flick 2014). A abordagem qualitativa é frequentemente utilizada em estudos descritivos que investigam as populações humanas de determinada região. Essas descrições podem estar relacionadas aos costumes, as crenças e linguagem de algum grupo social. Além disso, a pesquisa qualitativa pode ajudar na descrição de como as pessoas estão lidando com eventos e circunstâncias em que estão envolvidas, tal como falta de alimento devido a alguma catástrofe (ver Paley 2014; Kelly 2016). Uma vez que se decide realizar uma pesquisa qualitativa, o pesquisador iniciante deve ter uma compreensão considerável das abordagens existentes para identificar qual delas se aplica melhor ao seu questionamento. Ao fazer isso, o erro comum de não saber por onde começar ou não saber que dados coletar pode ser evitado. Nesse sentido, iremos mostrar os principais métodos e os passos necessários para a realização de uma pesquisa qualitativa robusta e de qualidade. Preparação e execução da pesquisa qualitativa A preparação e execução de uma pesquisa qualitativa requer que alguns passos sejam seguidos, para evitar dificuldades durante sua realização. Assim, mostramos abaixo duas importantes etapas para executar uma pesquisa de qualidade. Revisão bibliográfica e Pergunta de Investigação Antes de iniciar uma pesquisa qualitativa, uma etapa imprescindível é a realização de uma revisão bibliográfica robusta para 46 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA entender o estado da arte do fenômeno a ser estudado. De acordo com Flick (2014), um erro comum nos livros didáticos sobre pesquisa qualitativa é não abordar em seus capítulos a relevância de utilizar a literatura existente para direcionar os questionamentos do pesquisador. Isso é reflexo de uma compreensão antiga da pesquisa qualitativa, mais especificamente no seu surgimento, em que qualquer aspecto estudado de uma população humana era novidade. É um equívoco pensar que existem áreas do conhecimento completamente novas para explorar, em que nada foi publicado anteriormente, e mesmo levando em conta que nem tudo foi pesquisado, quase tudo o que se quer pesquisar provavelmente vai estar interligado com um campo científico existente (Flick 2014). Fazer uma revisão de literatura é imprescindível, pois ajuda o pesquisador a compreender: os conceitos utilizados e discutidos; os debates teóricos e metodológicos ou controvérsias existentes na abordagem utilizada; o que ainda não foi investigado; a situação social da população de se pretende entrevistar ou observar entre outras vantagens (Flick 2014). Entender o estado da arte possibilita a identificação de lacunas — questões em aberto —, e com isso é possível formular uma pergunta de investigação relevante e pertinente para o avanço do seu campo de interesse. Essa é uma etapa fundamental que vai determinar o sucesso e guiar todo seu estudo (Flick 2014). Em toda pesquisa, para se obter êxito, a questão de investigação deve determinar qual a melhor abordagem a ser utilizada — se qualitativa ou quantitativa, por exemplo, pois o método escolhido deve se ajustar a questão que pretendemos abordar como cientistas (Leppink 2017). PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 47 Escolha do local da pesquisa e Questões Éticas Trabalhar com seres humanos demanda uma atenção especial para as questões éticas. O pesquisador deve, antes de iniciar seu estudo, obter todas as autorizações legais necessárias para a realização da pesquisa em determinado local. As autorizações podem variar de acordo com a região ou país, mas na esfera da ética, algo que o pesquisador não pode deixar de obter é o consentimento das pessoas que aceitarem participar do seu estudo, sendo esse um requisito universal (Hammersley 2013). No Brasil, por exemplo, para realizar pesquisa envolvendo seres humanos é necessário: elaboração de um protocolo de pesquisa; aprovação do protocolo por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP); obtenção do consentimento do participante por meio de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) que esclareça o objetivo da pesquisa, riscos, benefícios, permissão para divulgação os resultados entre outros esclarecimentos. Tendo em vista as diferentes exigências para obter certas autorizações, além do tempo necessário, ao escolher um local de pesquisa deve-se levar em conta a viabilidade de conseguir as autorizações pertinentes. Certas populações humanas, como as indígenas, possuem particularidades que exigem autorizações específicas diferentes das exigidas para se estudar uma população e pescadores tradicionais, por exemplo, e isso pode vir a inviabilizar toda a pesquisa. Assim, a questão de como obter acesso ao campo — ou seja, ao local de pesquisa — e às pessoas é crucial em um estudo qualitativo (Flick 2014). 48 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Métodos para desenvolver pesquisa qualitativa Método pesquisa-ação Pesquisa-ação é um método das ciências sociais que utiliza uma maneira cíclica ao refletir sobre os aprimoramentos e/ou soluções à problemas práticos que ocorrem durante uma atividade de pesquisa (Hannigan 1997). Assim, por possuir características intervencionistas, geralmente é utilizada por professores que buscam entender e superar as dificuldades que surgem no processo de aprendizado (Bath 2009; Wilson 2013; Laudonia et al. 2017). Essa ferramenta envolve a participação de vários tipos de atores sociais, e pode ser considerado bastante útil na solução dos problemas “imediatos” que necessitem de soluções “urgentes” (Engel 2000). Os objetivos desse método podem ser caracterizados em duas diferentes perspectivas: i) auxiliando o pesquisador na organização de um conjunto de etapas para guiar o aprimoramento de suas práticas de campo (Tripp 2005) — por exemplo, adaptar a forma de conduzir as entrevistas para melhorar a coleta de dados sobre determinado domínio de conhecimento —; e ii) como ferramenta de mudança social do grupo humano pesquisado, analisando criticamente suas estruturas de poder e investigando as melhores maneiras de empoderamento e transformação social (Oliveira e Oliveira 1990). Após a identificação de um “problema”, o praticante1, utilizando ou não técnicas de pesquisa já estabelecidas na literatura, planeja as melhores alternativas de ação que devem ser realizadas, 1 Nesse texto, os “praticantes” são os atores envolvidos na realização de qualquer prática de pesquisa, ensino ou extensão. PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 49 monitora os resultados obtidos dessas ações e então avalia quais foram os mais eficientes e porquê. Assim, após refletir sobre quais mudanças foram as melhores ou não, utilizam ou recomendam uma “solução” (Tripp 2005; Bath 2009; Beal 2011). Esse processo envolve a utilização de abordagens sistemáticas na identificação de informações para tomadas de decisão e pode, assim, auxiliar alguns estudos etnobiológicos na construção de soluções práticas que podem surgir durante o exercício das atividades de pesquisa. Segundo Tripp (2005), são três os principais tipos de pesquisa-ação: i) técnica, em que a solução é testada tomando emprestado outra ferramenta metodológica, aplicando-a diretamente na própria esfera prática em que se busca efetuar a melhora; ii) prática, que utiliza-se do ciclo da pesquisa-ação no desenvolvimento das mudanças realizadas para alcançar o determinado objetivo, sendo o praticante estimulado a questionar o quê, como e quando realizar e aplicar essas mudanças, buscando sempre incluir todos os atores sociais envolvidos; e iii) política, quando o objetivo é ter a intenção de transformar o conhecimento ou crenças do grupo em relação a mudanças de seus sistemas culturais — como, por exemplo, a ressignificação de preconceitos sociais. A escolha da melhor abordagem depende da situação da qual a pesquisa está inserida e de como os pesquisadores articulam os questionamentos cooperativamente entre si ou entre o objeto de estudo (Wilson 2013). Etnografia A etnografia pode ser entendida como um método para coleta de dados baseado no contato direto do pesquisador com os 50 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA indivíduos ou grupos de pessoas que se deseja estudar, durante um determinado período, em que a observação participante e/ou as entrevistas são utilizadas para investigar e descrever fenômenos em determinado contexto (Almagor e Skinner 2013; Creswell 2013). O termo, originário da fusão das palavras “pessoas” — ethnos — e “representação escrita” — graphe —, surgiu no final do século XIX e início do século XX, a partir da necessidade dos pesquisadores da época de investigar o hábito e costumes de populações tidas como exóticas (Jones 2010). A etnografia é um método que requer muito tempo para ser realizado de forma adequada, geralmente um ano ou mais de trabalho de campo e um período igual para o processo de amadurecimento junto às pessoas que estão sendo estudadas (Humphreys e Watson 2009; Waal 2009). Nesse período, espera-se que os pesquisadores envolvidos no estudo se aproximem do fenômeno analisado num esforço de obter uma visão mais rica, tal qual a experenciada pelos indivíduos no contexto investigado (Sandberg e Tsoukas 2011; Bass e Milosevic 2016). Durante esse período, as informações desejadas podem ser obtidas por meio da integração de outros métodos — como observação participante e entrevistas —, sendo esses direcionados pelos objetivos da pesquisa e pelo posicionamento metodológico do pesquisador, no que se refere à forma como as questões de pesquisa podem ser respondidas (Whitehead 2004). Dentro das outras técnicas utilizadas para obter dados com o método etnográfico, os pesquisadores também podem utilizar simultaneamente métodos como: grupos focais, histórias de vida, registros fotográficos, gravações de vídeo, mapeamento entre outros (Adams 2012). Por meio da triangulação destes métodos, o PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 51 pesquisador pode oferecer uma representação e interpretar de forma confiável o que os participantes dizem em suas próprias palavras e nas formas em que se comportam (Taylor e Bogdan 2010). Fenomenologia Fenomenologia é uma palavra de origem grega composta pelas palavras phainomenon, que significa o que se manifesta, o que aparece, e logos, que tem como significado o que reúne, unifica, dentre outras (Silva et al. 2012). O termo tem ampla utilização e pode assumir diferentes significados conforme o contexto que se encontre. Por exemplo, na perspectiva filosófica, a fenomenologia está associada a um movimento filosófico sobre como olhar para o mundo, já no sentido metodológico o termo fornece aspectos de como realizar pesquisas qualitativas (Dowling 2007). A abordagem fenomenológica na pesquisa qualitativa é destinada à descrição do significado de um conceito ou fenômeno a partir da experiência vivida por vários indivíduos (Anthea 2015). Assim, a adoção dessa abordagem oferece subsídios para o pesquisador reduzir as experiências individuais de pessoas sobre um fenômeno “X” para uma descrição de sua essência universal (Creswell 2007). Para atingir esse objetivo, o pesquisador conduzirá a pesquisa obedecendo as seguintes etapas: i) identificação de um fenômeno para estudo; ii) coleta das informações sobre como as pessoas experimentam esse fenômeno; e iii) descrição do que há em comum nessas experiências, que é considerada a essência do fenômeno estudado (Shi 2011). O acesso a essas informações pode ser obtido a partir de outros métodos incluindo entrevistas, conversas, observação participante, 52 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA pesquisa-ação, reuniões de foco, análise de diários e outros textos pessoais (Mayoh e Onwuegbuzie 2015). No geral, o método fenomenológico é projetado para ser menos estruturado e mais aberto, para incentivar o participante a compartilhar detalhes sobre sua experiência. Em outras palavras, a fenomenologia enfatiza a subjetividade. O objetivo desse método é maximizar a profundidade da informação coletada e, portanto, as entrevistas menos estruturadas são mais eficazes (Mayoh e Onwuegbuzie 2015). Um exemplo da adoção do método fenomenológico pode ser encontrado no estudo realizado por Anggerainy et al. (2017). Esse método foi utilizado com o propósito de compreender os fenômenos relacionados ao uso da medicina tradicional pelas pessoas da tribo Davak, em Bornéu, na Indonésia. Para atingir seus objetivos, os referidos autores desenvolveram sua pesquisa obedecendo às seguintes etapas: i) Identificação de um fenômeno para estudo Buscaram identificar os fatores que levam pessoas da tribo Davak a adotarem a medicina tradicional para tratar crianças doentes em casa ao invés de procurar assistência médica convencional. ii) Coleta das informações sobre como as pessoas experimentam esse fenômeno Os pesquisadores selecionaram intencionalmente e entrevistaram cuidadores de Dayak que trataram crianças doentes em casa usando medicina tradicional antes de decidirem procurar por atendimento em unidades de saúde modernas. Informações a respeito dessa prática foram obtidas por meio de entrevistas abrangentes e PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 53 gravação de voz, sendo esses dados analisados por meio da análise do conteúdo — trata-se de uma análise que quantifica a frequência de ocorrência de determinado termo em um texto. iii) Descrição das semelhanças entre essas experiências (essência do fenômeno) A partir do relato de dez informantes selecionados, os autores identificaram seis temas principais no uso da medicina tradicional pela tribo Dayak para tratar crianças doentes, sendo eles: 1) medicina tradicional como primeiros socorros; 2) facilidade de acesso e custo-efetividade; 3) a medicina tradicional nem sempre foi eficaz; 4) uma combinação de ingredientes naturais e crenças; 5) a importância de se “comunicar” com as plantas; e 6) envolvimento com forças metafísicas. Assim, os autores concluem que os temas recorrentes identificados na medicina tradicional dos Davak para o tratamento de crianças podem ajudar a conciliar o seu uso junto a assistência médica convencional quando necessário. Teoria fundamentada nos dados/grounded theory Teoria fundamentada (TF) é um método de análise e coleta de comparação constante entre categorias de estudo, que permite que o pesquisador conheça antecipadamente as “propriedades emergentes” de um fenômeno, antes de iniciar o processo indutivo de formulação de suas perguntas de investigação (Lingard et al. 2008). Essas propriedades são as primeiras relações verificadas entre os diferentes níveis de experiência entre atores e os ambientes sociais, 54 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA orientando sistematicamente as pesquisas qualitativas no processo de criação de teorias (Urquhart et al. 2010; Kenny e Fourie 2014; Markey et al. 2014). Na TF, após a coleta do material relacionado às visões de mundo, experiências, sentimentos e intenções dos atores sociais estudados — por meio de entrevistas, gravações de áudio e vídeo, observação participante, etc. —, as etapas para se desenvolver uma teoria fundamentada nos dados pode tomar vários caminhos que dependem dos objetivos da pesquisa, mas sempre se iniciam após as primeiras categorizações. O final do processo ocorre na identificação dos códigos e das estruturas sociais e a possibilidade de teorizar sobre as relações entre eles. Por exemplo, no estudo de D’Avigdor et al. (2014), os autores buscaram entender o estado atual do conhecimento sobre plantas e ervas medicinais de uma comunidade de Etiópia. Para isso, realizaram 15 entrevistas integrando métodos de história de vida, grupos focais, questionários abertos e semiestruturados. As perguntas abertas buscavam entender, por exemplo, “como você usa essa planta?”, “com quem você aprendeu a preparar esses remédios?”, “como você chama essa planta?”. Após transcrição e análise dos dados através da lógica da TF, foi identificado alguns temas principais que eram semelhantes entre os entrevistados. Dentre os temas identificados pelos autores estão: a “consciência da diminuição da vegetação”, a “necessidade de conservação das ervas e plantas medicinais” e a “segurança na forma de preparar os remédios”. No quadro 1 mostramos as etapas que devem ser seguidas para desenvolver a TF. PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 55 Quadro 1. Etapas para desenvolver a Teoria Fundamentada Imagine que você queira estudar os fatores que influenciam o compartilhamento de informação entre os coletores de lenha de determinado local utilizando a TF. As etapas necessárias seriam: 1- Etapa exploratória Após definição dos questionamentos do estudo, o primeiro passo da TF é exploratório, realizando entrevistas piloto com os primeiros informantes do estudo para coletar os relatos das experiências pessoais sobre o uso de lenha — a seleção dos participantes é intencional e direcionada ao contexto e à pergunta investigativa do trabalho — (Charmaz 2006). As entrevistas podem ser individuais ou em grupo focais. As perguntas devem ser abertas, do tipo: “fale um pouco sobre como você coleta lenha”, “a quanto tempo você coleta?”, “quais as maiores dificuldades na coleta?”, “como você resolve essas dificuldades?”, “quais os locais que têm maior quantidade de lenha?”. O uso de gravadores de áudio e escrita de memorandos, notas de campo e relatórios das observações participantes são fortemente recomendados para enriquecer a análise dos códigos (Flick 2014). 2- Etapa de codificação Após transcrição das informações obtidas, a segunda etapa da TF é a codificação inicial e focada linha-por-linha (ver Seidel and Recker 2009). As informações passam por um processo de codificação e comparação de categorias que vai indicando possíveis discursos sobre temas principais que são semelhantes entre os participantes. Por exemplo, pode-se identificar os seguintes temas: como o conhecimento sobre lenha é adquirido da geração anterior, consciência sobre a diminuição da disponibilidade de lenha, segurança na coleta dentre outros temas (ver o trabalho de D’Avigdor et al. 2014). 3- Etapa de amostragem teórica Na etapa da amostragem teórica, as informações codificadas agora são analisadas e as relações entre os discursos começam a indicar as primeiras relações categóricas, auxiliando o pesquisador na construção 56 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA de possíveis explicação dos dados (Charmaz 2008). Por exemplo, “as habilidades dos coletores de lenha” estariam influenciando na “forma que o conhecimento está sendo transmitido” pois “quem tem mais habilidade não gosta de compartilhar informação”? Essas poderiam ser as primeiras perguntas de pesquisa e a amostragem teórica que direcionaria novas coletas à fim de saturar essas categorias e concretizar as relações nesse grupo social. 4- Etapa de teorização Nessa última etapa, o pesquisador chega a uma possível explicação das relações encontradas entre as categorias. Essa etapa é resultado de um minucioso processo de coleta e análise do fenômeno e apresenta um conjunto estruturado das relações sobre o ambiente e permite que os pesquisadores discutam suas características ou proponha melhorias para problemas identificados nos dados. Ao fim de nossa pesquisa com os coletores de lenha, poderíamos concluir, por exemplo, que a habilidade e o tempo de experiência são os principais fatores que influenciam a pouca interação entre os coletores. Estudo de caso O estudo de caso permite a exploração e a compreensão de questões complexas, especialmente quando é necessária uma investigação profunda, consistindo em uma investigação detalhada de grupos ou organizações, com o objetivo de fornecer uma análise do contexto e dos processos envolvidos no fenômeno em estudo (Meyer 2001; Zainal 2007; Baxter e Jack 2008). Esse método permite ao pesquisador ir além dos resultados quantitativos e compreender, por exemplo, condições comportamentais (Zainal 2007). O estudo de caso pode apresentar quatro etapas, representadas na Fig. 1 conforme Hancock e Algozzine (2006). PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 57 Figura 1. Etapas do estudo de caso, adaptado de Hancock e Algozzine (2006). Dentro do contexto etnobiológico, por exemplo, o pesquisador pode representar o conhecimento e as práticas culturais associadas à saúde e à cura de doenças em um sistema médico, fornecendo um guia abrangente do comportamento adotado pelos membros da sociedade estudada (Berlin e Berlin 2005). De acordo com Zainal (2007), existem três categorias para o estudo de caso: exploratório, descritivo e explicativo. a) Estudo de caso exploratório Explora qualquer fenômeno que serve como um ponto de interesse para o pesquisador. Por exemplo, um pesquisador que realiza um estudo de caso exploratório sobre o uso de um determinado recurso natural pode fazer as seguintes perguntas gerais: “existe alguma estratégia para o uso desse recurso pela população?” E em caso afirmativo, “com que frequência?” Questões gerais como essas devem ser o ponto de partida para a realização de um exame mais profundo do fenômeno a ser estudado. 58 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA b) Estudo de caso descritivo São utilizados para descrever os fenômenos observados durante o estudo. Por exemplo, descrever quais estratégias diferentes são utilizadas por uma determinada população no uso de um determinado recurso natural. O objetivo estabelecido pelo pesquisador é descrever os dados à medida que eles ocorrem. No entanto, o desafio do estudo de caso descritivo é que o pesquisador deve começar com uma teoria descritiva para apoiar a descrição do fenômeno ou história, e se isso não for feito a descrição pode não ser rigorosa. c) Estudo de caso explicativo Examinam os dados de perto, tanto a nível superficial como em profundidade, para explicação dos fenômenos. Por exemplo, um pesquisador pode explicar o motivo de uma população utilizar uma determinada estratégia para a coleta de um recurso. Além disso, pode ser utilizado para explicar fenômenos mais complexos que possam surgir durante o estudo de caso. Agradecimentos Agradecemos a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032011498352). PREPARACÃO DA PESQUISA QUALITATIVA 59 Referências Adams KM. 2012. Ethnographic Methods. 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No entanto, antes de iniciar a coleta de dados, os pesquisadores precisam se certificar de que os seus protocolos de coleta de dados (formulários e/ou questionários) servirão bem aos seus propósitos, fornecendo dados de qualidade, replicáveis e que responderão às suas perguntas de investigação. Nesse sentido, a validade e replicabilidade dos protocolos são importantes principalmente quando os mesmos serão utilizados por diferentes pesquisadores simultaneamente ou quando se pretende utilizar um protocolo já validado para um novo contexto. EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 63 Dessa forma, focaremos em etapas que não podem ser negligenciadas nas pesquisas etnobiológicas que são: os estudos pilotos, os pré-testes e as avaliações de confiabilidade e validade de protocolos. O estudo piloto envolve a simulação do processo formal de coleta de dados em pequena escala, visando identificar problemas práticos em relação aos instrumentos, etapas e métodos do estudo (Hurst et al. 2015). São nesses estudos que ocorrem os pré-testes dos protocolos, momento em que podemos analisar se nossos instrumentos de pesquisa estão ajustados à realidade local e aos objetivos do estudo. Desenhando o protocolo de pesquisa A elaboração do protocolo é o momento ideal para garantir a sua qualidade e replicabilidade. Aaker et al. (2001) consideram que o processo de construção de um protocolo corresponde a uma “arte imperfeita”, justamente pelo fato de não existirem procedimentos específicos que garantam a qualidade dos instrumentos. No entanto, existem algumas recomendações que, quando seguidas, podem facilitar esse processo e diminuir o tempo e esforço dedicados às etapas futuras de avaliação de validade e confiabilidade dos instrumentos de pesquisa. Para elaborar a perguntas que vão compor os protocolos, além da consulta a literatura e a pesquisadores especialistas na área temática (Rattray & Jones 2007), é recomendado a visita as comunidades onde o estudo será desenvolvido para conversar com lideranças e especialistas locais. Isso pode contribuir para que a redação e conteúdo das perguntas se tornem mais adequadas a realidade local. 64 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Deve-se usar linguagem clara e compreensível e uma estrutura curta e simples para que o pesquisador consiga conduzir a sua pesquisa com fluidez, simplicidade e, principalmente, não confundir o participante. Outras recomendações relevantes para a elaboração e tipos de perguntas podem ser encontradas em Albuquerque et al. (2014). Além de pensar na formulação das perguntas, o pesquisador precisa atentar para a ordem em que elas serão organizadas, principalmente para questionários auto administrados. As perguntas iniciais devem ser fechadas, simples e precisam prender a atenção do participante do estudo (Slattery et al. 2011). Evite começar com perguntas emotivas ou controversas pois podem causar desconforto no participante (Rattray & Jones 2007). Perguntas relacionadas ao perfil socioeconômico (e.g. renda mensal, idade, etc) podem ser colocadas no final para não dar uma impressão inicial de intromissão e porque elas são geralmente mais fáceis de responder (Slattery et al. 2011). Questões mais gerais devem preceder questões mais específicas e perguntas que sugerem uma ordem cronológica devem ser apresentadas seguindo essa ordem (Slattery et al. 2011). Evite também incluir perguntas que não estão diretamente relacionadas com os seus objetivos de pesquisa, pois isso pode aumentar o tempo da entrevista e cansar o participante, fazendo com que ele passe a responder sem fidedignidade. Execução de Estudo Piloto e Pré-testes Por definição, um estudo piloto pode ser considerado como um estudo em pequena escala dos procedimentos propostos, bem como das técnicas escolhidas (Mackey & Gass 2015) e são realizados EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 65 principalmente para descobrir falhas e/ou pontos fracos nos métodos e instrumentos da pesquisa, bem como examinar a sua validade e replicabilidade (Slattery et al. 2011). Embora muitos pesquisadores considerem que a preparação e o planejamento prévio sejam suficientes para que a pesquisa tenha sucesso, a execução de um estudo piloto é decisiva, pois consegue revelar falhas sutis na estruturação do projeto, que dificilmente seriam reveladas durante a etapa de planejamento da pesquisa. Podemos nos perguntar, qual é o universo amostral que devemos incorporar para um estudo piloto? Levando em consideração que cada estudo possui suas peculiaridades, cabe ao pesquisador definir a quantidade de pessoas e quanto tempo disporá para a sua realização. Para Canhota (2008) a quantidade de participantes no estudo piloto não precisa ser superior a 10% da amostra almejada para o estudo completo. Esse recorte seria suficiente para garantir resultados capazes de responder as perguntas de pesquisa e testar os instrumentos. São nos estudos piloto que realizamos os pré-testes dos protocolos de pesquisa, que consistem na testagem e aplicação destes para verificar a precisão e fidedignidade das informações que serão obtidas. Na pesquisa etnobiológica, os principais instrumentos que são testados em estudos piloto são os questionários e/ou formulários utilizados nas entrevistas. De maneira geral, a intenção é apenas uma: testar a validade dos instrumentos que serão utilizados para levantar informações. Dependendo do tipo de entrevista utilizada na pesquisa (estruturada, não estruturada ou semiestruturada), existem recomendações a serem seguidas, como formas de avaliar se as perguntas utilizadas no pré-teste são compreendidas e interpretadas corretamente pelas pessoas. No caso das entrevistas 66 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA semiestruturadas – a mais utilizada no levantamento de dados etnobiológicos - recomenda-se a utilização de um guia de entrevista, contendo pontos principais que não podem passar despercebidos no momento da entrevista (Combessie 2004). Por fim, fornecer os protocolos de pesquisa para que outros profissionais do mesmo campo de pesquisa analisem é uma boa recomendação que pode favorecer a qualidade dos mesmos (Slattery et al. 2011). Assim, muitos dos problemas com a elaboração das perguntas podem ser descobertas antes mesmo do pré-teste. A principal vantagem é que as informações obtidas no pré-teste poderão ser utilizadas para o estudo principal se os protocolos de pesquisa elaborados não apresentarem problemas durante os estudos-piloto, desde que sejam coletados exatamente da mesma maneira. Controle de qualidade de protocolos Os protocolos de pesquisa precisam ser analisados quanto a sua confiabilidade e validade para garantir a qualidade das informações que serão obtidas. A confiabilidade está relacionada a replicabilidade do instrumento de pesquisa, ou seja, a capacidade de o mesmo obter resultados consistentes ou estáveis ao longo do tempo ou se for usado por dois ou mais pesquisadores diferentes (Salmond 2008). A validade é o grau no qual o instrumento de pesquisa mede o que ele se propõe a medir, ou seja, a capacidade de o mesmo obter informações confiáveis e acuradas sobre o fenômeno estudado (Long & Johnson 2000). Esses dois conceitos são distintos e independentes. Assim, os protocolos de pesquisa podem ter confiabilidade, mas não serem validos e vice-versa. EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 67 A confiabilidade dos protocolos pode ser testada por meio de sua estabilidade e equivalência, a depender de características especificas de cada pesquisa. A estabilidade mede o quão estável o protocolo é ao longo do tempo (assumindo que o que está sendo medido deveria permanecer constante) (Brink 1991; Salmond 2008) e pode ser verificado por meio da técnica test-retest (Mackey & Gass 2015). A técnica consiste na aplicação do protocolo com os mesmos indivíduos em dois momentos distintos (Mackey & Gass 2015), podendo ser realizada com todo o n amostral inicial ou com um grupo representativo escolhido por meio de aleatorização. A aplicação do retest permite que os pesquisadores observem a consistência das respostas que foram obtidas na primeira aplicação do protocolo (test), verificando se são similares ou comparáveis (Sousa et al. 2017). O tempo entre o test e o retest deve ser bem pensado, especialmente para protocolos que buscam mensurar informações que podem mudar devido a mudanças no desempenho e/ou aprendizagem ao longo do tempo. No entanto, a técnica possui como limitação o fato de as experiências anteriores dos participantes da pesquisa no primeiro test influenciarem as respostas retest. A equivalência está mais diretamente relacionada com a replicabilidade dos protocolos e pode ser testada pelo uso de formas alternativas de uma pergunta com o mesmo significado durante uma única entrevista (Brink 1991), ou pela aplicação simultânea de dois ou mais pesquisadores diferentes utilizando o mesmo protocolo (Salmond 2008). Um protocolo confiável deverá fornecer as mesmas informações mesmo se executado por pessoas diferentes. Existem dois tipos de validade que podem ser testados nos protocolos de pesquisa. A validade de conteúdo é a mais básica delas e está relacionada a capacidade do protocolo de medir o fenômeno 68 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA estudado. A mesma pode ser alcançada convidando “juízes competentes” na área temática para revisar o conteúdo dos itens dos protocolos e determinar se o instrumento mede o fenômeno de interesse (Salmond 2008). Os juízes podem ser pesquisadores especialistas na área temática bem como integrantes da população humana que será estudada. Considerando as sugestões desses juízes, podem ser realizadas alterações nos protocolos que vão aumentar a sua validade de conteúdo. A validade relacionada ao critério é estabelecida quando um protocolo de pesquisa pode ser comparado com outras medidas validadas do mesmo fenômeno (Roberts et al. 2006) ou com um padrão estabelecido na literatura (Long & Johnson 2000). No entanto nem sempre esse tipo de comparação é possível pela falta de medidas válidas para comparação. É importante destacar que um instrumento é válido para um determinado grupo de pessoas, sendo necessário estabelecer novamente a validade quando o protocolo for usado em diferentes grupos. Revisão de protocolos A revisão do protocolo é uma importante etapa que deve ser realizada antes de se iniciar a pesquisa, pois auxilia o pesquisador a perceber se o seu protocolo é apropriado para abranger todo o fenômeno que se pretende estudar. Devido às peculiaridades que determinadas populações humanas podem possuir, a estruturação e vocabulário dos protocolos podem não ser adequados, comprometendo a qualidade das informações coletadas. EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 69 Nesse sentido, uma ferramenta que pode ajudar na adequação de um protocolo para a realidade de determinada população é a aplicação da técnica conhecida como entrevista cognitiva (Gray et al. 2014). Essa técnica é caracterizada principalmente pelo uso de questões de sondagem verbal para observar as respostas dos participantes de forma mais completa, o que ajuda a avaliar a qualidade da resposta ou determinar se a questão está gerando a informação desejada pelo pesquisador (ver Beaty &Willis 2007 e Willis 2006). No quadro 1, descrevemos um exemplo de como diagnosticar problemas em um protocolo utilizando a entrevista cognitiva. Quadro 1. Exemplo do uso da entrevista cognitiva para revisar protocolos, adaptado de Willis (2006). 1. Em uma situação hipotética um cientista procurou conhecer melhor os critérios dos moradores de determinado local para coletar plantas para o uso medicinal. Vamos mostrar uma questão do protocolo desse cientista seguida com questões de sondagens verbais: Pergunta: Com que frequência você coleta plantas para tratar doenças? Sondas verbais usadas para testar a questão: a) Conte-me mais sobre isso... b) Com que frequência você coleta plantas no geral? c) O que é “doença” para você? d) Você procura plantas com características específicas ou escolhe plantas que alguém lhe disse que servem para tratar doenças? 2. Comentários do cientista baseado na entrevista cognitiva: a) Alguns participantes relatam que só coletam madeira; b) Alguns participantes relatam que só coletam frutos; c) Alguns participantes não sabem ao certo o que é “doença” e confundem com “fome” ou “fedor”; 70 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA d) Os participantes relataram selecionar plantas que sabiam servir para tratar doenças, ao invés de verificar características específicas; e) O período que o participante costuma coletar plantas não foi especificado na pergunta. Devido a isso, as interpretações entre entrevistados em relação a frequência das coletas variaram bastante; f) Perguntar sobre a frequência do comportamento de coletar plantas é inviável, porque as pessoas podem não reportar com confiança a frequência exata de tal comportamento. 3. Modificações sugeridas para melhorar essa questão do protocolo: a) Nos últimos 12 meses quantas vezes você coletou plantas? Nenhuma, cinco vezes ou mais de dez vezes? b) Se coletou: nos últimos 12 meses, quando coletou plantas, você a escolheu devido a alguma característica específica? c) Se sim: qual característica? d) Qual parte da planta você coleta? e) Em geral, com que frequência você coleta plantas com características específicas: frequentemente, uma vez por mês, duas ou três vezes por ano? A entrevista cognitiva fornece informações sobre como os participantes construíram suas respostas, explicações sobre como eles interpretaram as perguntas e relatos de alguma dificuldade que apresentaram para responde-las. Além disso, para utilizar essa técnica não é necessário amostras grandes — geralmente 8 a 12 indivíduos já é o suficiente —, pois ao testar a viabilidade de um protocolo pequenas amostras evidenciam rapidamente se a sua estrutura é falha (Willis 2006). Apesar de ser comumente utilizada como um método de pré-teste, o uso da entrevista cognitiva pode ocorrer em outros estágios EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 71 da pesquisa, podendo fornecer informações que permitam a adequação do protocolo para o fenômeno estudado. Podem existir outras situações em que a coleta de informações continue difícil ou os participantes não consigam responder às perguntas, mesmo que o pesquisador desenvolva um protocolo tomando todas as precauções necessárias. Nesses casos, o pesquisador pode recorrer ao recrutamento de terceiros que vivem no local estudado para auxiliar durante as entrevistas. De acordo com Quetulio-Navarra et al. (2015), em algumas fases da entrevista, outros membros da família dos entrevistados e também amigos ou vizinhos, podem ser autorizados a ajudar na recordação da informação solicitada. Essa abordagem possui a vantagem de favorecer a coleta informações em que os participantes têm dificuldades de relembrar, como nome de líderes comunitários ou datas específicas, ou em situações em que o idioma local inviabilize a realização da pesquisa. Por exemplo, em um estudo realizado por Zambrana et al. (2018) nas regiões bolivianas de Chácobo e Pacahuara, os autores recrutaram e treinaram 12 moradores que vivem na região para que realizassem as entrevistas com os participantes, devido a barreira do idioma local. Todavia, esse método possui limitações, uma vez que esses ajudantes podem não ser capazes de identificar informações importantes que os participantes podem fornecer durante a realização das entrevistas. Dessa forma, de acordo Quetulio-Navarra et al. (2015), algumas precauções devem ser tomadas para diminuir possíveis vieses que o método de recrutamento de terceiros possa vir a gerar: 1. Sondagem de verificação no campo para observar quem pode auxiliar nas entrevistas; 72 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA 2. Somente pessoas que compartilhem a informação alvo da pesquisa podem ser escolhidas para ajudar; 3. A participação de terceiros deve ser controlada e permitida apenas para perguntas não ameaçadoras, como no caso de datas reais em que se iniciou serviços básicos — por exemplo, serviços de fornecimento de eletricidade; 4. Terceiros podem ser autorizados a dar sugestões, mas somente o respondente/entrevistado pode fornecer a resposta definitiva; 5. O nome do ajudante e seu relacionamento com o entrevistado deve ser registrado e as seções onde a assistência foi fornecida devem ser marcadas; 6. Instruir os ajudantes para deixarem o local da entrevista quando a assistência não for mais necessária. Se o principal problema do protocolo estiver relacionado a coleta de informações para questões sensíveis — por exemplo, perguntas sobre detalhes da saúde da mulher/homem quando o entrevistador é do sexo oposto —, uma solução para evitar que os dados coletados sejam duvidosos ou inválidos, é a utilização de um questionário auto-administrado (SAQ). O SAQ refere-se a um questionário desenvolvido especificamente para ser preenchido por um entrevistado sem intervenção dos pesquisadores. Todavia, como o SAQ é preenchido sem o feedback de um entrevistador treinado, as questões devem ser redigidas com bastante atenção para evitar erros de medição (Rodriguez et al. 2015). A principal vantagem do SAQ é que essa ferramenta elimina a possível influência da presença do entrevistador sobre as respostas do entrevistado, pois essa privacidade anula a inclinação das pessoas para fornecer respostas socialmente desejáveis para questões EXECUTANDO A PESQUISA: PRÉ-TESTES, CONTROLE DE QUALIDADE E REVISÕES DE PROTOCOLO 73 delicadas (Rodriguez et al. 2015). Todavia, mesmo que esse método deixe o participante mais confortável, isso não assegura que as respostas serão sempre verdadeiras e honestas. Além disso, esse método exige que os participantes sejam alfabetizados, o que inviabiliza sua utilização em determinados contextos sociais. Considerações finais Ao longo desse capítulo apresentamos uma série de técnicas para que os pesquisadores possam garantir a qualidade de seus protocolos. O quadro 2 sintetiza as principais recomendações para os leitores e pode ser consultado sempre que um pesquisador for desenvolver um novo protocolo de pesquisa ou migrar para uma nova área de estudo. Quadro 2. Recomendações para verificar a validade e confiabilidade dos protocolos de pesquisa • • • • • • 74 Utilize 10% da amostra pretendida no trabalho final para executar o estudo piloto; Fique atento a ordem em que as perguntas estão organizadas nos protocolos; Elabore os protocolos em uma estrutura curta, simples, clara e compreensiva; Elabore e revise os protocolos com auxílio de pesquisadores que tenham conhecimento prévio e experiência com a área temática; Verifique a veracidade dos dados obtidos no estudo piloto por meio do test-retest; Realize uma entrevista cognitiva com 8 ou 10 pessoas antes de iniciar a pesquisa. MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Agradecimentos Agradecemos a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032020133864). Referências Albuquerque UP, Ramos MA, Lucena RFP, Alencar NL. 2014. Methods and techniques used to collect ethnobiological data. In: Methods and techniques in Ethnobiology and Ethnoecology. Human Press, New York, NY. p. 15-37. Aaker DA, Kumar V, Day GS. 2001. Marketing Research. Inc. New York. Beatty PC, Willis GB. 2007. Research synthesis: The practice of cognitive interviewing. Public Opinion Quarterly 71:287-311. Brink PJ. 1991. Issues of Reability and Validity. In: Morse JM (ed.) Qualitative Nursing Research: A Contemporary Dialogue. Sage Publications. p. 344. Canhota C. 2008. Qual a importância do estudo piloto. In: Silva EE (ed.) Investigação Passo a Passo: Perguntas e Respostas Para Investigação Clínica. 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Dessa forma, iremos descrever as principais ferramentas e etapas da análise qualitativa, desde como uma amostragem representativa deve ser realizada, quais as formas e diretrizes de transcrição dos dados coletados em campo, os métodos de codificação e categorização das informações coletadas (agrupando e relacionando discursos e comportamentos). Finalmente, mostramos as principais maneiras de realizar a triangulação dessas informações para evitar interpretações equivocadas da realidade ou explorar contradições percebidas no material. ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 77 Amostragem populacional O pesquisador, usualmente, não conhece a priori a quantidade e característica total das pessoas que fazem parte do contexto social observado, e a amostra ideal para os questionamentos das pesquisas são baseadas nos esgotamentos das informações sobre as categorias de análise, ou a chamada saturação teórica. Saturação teórica, conceito primeiramente discutido em 1967 por Glaser e Strauss (1967), é uma forma de “desenho amostral” da pesquisa qualitativa. Após o desenvolvimento da pergunta de trabalho, o pesquisador sai a campo e começa a entrevistar intencionalmente os informantes envolvidos no fenômeno, iniciando a coleta de dados do estudo (Charmaz 2006). Essa coleta vai enriquecendo os primeiros bancos de informações e permite a codificação dos primeiros discursos e respostas das pessoas envolvidas, sendo finalizada quando novas pessoas (novos discursos) não revelam novos ‘códigos’ sobre o fenômeno (Ando et al. 2014). Essa forma de seleção de participantes é comum nas pesquisas qualitativas, e mostra a importância da codificação como guia de amostragem. Porém, de maneira geral, quantas pessoas são necessárias para esgotar as informações temáticas? Essa pergunta é amplamente discutida pela literatura social. Atingir uma amostra representativa nos estudos qualitativos geralmente se concentra em três principais pressupostos: 1) o conhecimento do passado, que seria basicamente, olhar na literatura publicada e seguir a seleção de participantes utilizada por estudos anteriores; 2) experiencia do pesquisador, aqui o número de pessoas suficiente para saturar as categorias de análise é definida de acordo com a “complexidade” do contexto social, sendo o conhecimento 78 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA teórico e prático do pesquisador ou grupo de pesquisa a “palavra final” sobre os participantes do estudo; e a 3) base quase-empírica, onde o número de participantes local é determinado por uma série de métodos desenvolvidos por pesquisas sociais que estudaram diretamente as características da saturação teórica (ver Galvin 2015). As duas primeiras possuem críticas quanto a subjetividade da seleção amostral, enquanto a última seria uma alternativa mais objetiva, baseada em estudos que utilizaram a metodologia da análise qualitativa para investigar qual a amostragem populacional é ideal nos trabalhos. Vários estudos de amostragem qualitativa orientados pelo pressuposto três citado acima, vêm mostrando que a saturação teórica de diversos tópicos e temas de pesquisa é atingida com amostras relativamente pequenas, que variam praticamente entre 10-50 pessoas (Hagaman e Wutich 2017). Guest e colaboradores (Guest et al. 2006) buscando levantar dados para desenvolvimento de informativos sobre HIV e saúde sexual para comunidades da Nigéria e Gana, entrevistaram 60 mulheres, maiores de 18 anos e de vida sexual ativa, com questionários e entrevistas semiestruturadas padronizadas, sobre seus comportamentos, prevenção e conhecimento sobre temas relacionados a suas vidas íntimas. Após intensa codificação e análise, encontraram que somente 12 informantes foram necessários para saturar 100 códigos (92%) e 80 deles (73%) pelos seis primeiros informantes. Hagaman and Wutich (2017), investigando sobre a ordem do aparecimento das categorias de pesquisa de quatro populações de diferentes contextos sociais (relacionados a manejo de águas, renda e acesso a água potável), mostraram que 12-16 entrevistas eram necessárias para registrar os temas mais comuns dentro de cada cultura (escala populacional local) e 20 a 40 ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 79 entrevistas para registrar os temas compartilhados regionalmente por todas as pessoas da amostra (escala macro populacional). Esses autores defendem que esses números de entrevistas são suficientes quando os fenômenos estudados são locais e bem contextualizados, e grupos grandes e heterogêneos de pessoas precisam de maior esforço de coleta e seleção das unidades amostrais (Hagaman and Wutich 2017). Baseado nessa discussão, entendendo que métodos qualitativos são diferentes dos quantitativos, as investigações etnobiológicas que optarem em utilizar abordagens indutivas de investigação deveriam seguir os mesmos pressupostos da pesquisa qualitativa para a seleção amostral, i.e., delimitar bem o fenômeno a ser investigando, definir um limite mínimo entrevistas para pesquisas intraculturais e selecionar qualitativamente os informantes, assim como codificar sistematicamente as informações coletadas sempre focando em uma saturação teórica de conteúdo (para exemplo de análise qualitativa em sistemas socioecológicos, ver D’Avigdor et al. 2014). Transcrição de dados Após a finalização da coleta de dados (ver capítulo “Preparação da pesquisa qualitativa”), é necessário seguir para análise das informações. A transcrição vem a ser, então, uma pré-análise do material. Suas diretrizes auxiliam os pesquisadores a organizar sistematicamente as informações (independente das técnicas analíticas e ferramentas que serão utilizadas) para uma análise posterior (McLellan et al. 2003). Vale ressaltar que a transcrição dos dados é uma importante etapa da pesquisa e não apenas um detalhe 80 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA técnico que precede a análise. Portanto, é de suma importância definir quais serão as regras e critérios que irão conduzir as transcrições, de modo que contenham todos os elementos necessários para transformação das informações em dados utilizáveis. A depender do objetivo da pesquisa, é interessante que as transcrições sejam realizadas apenas do que é exigido pela questão de estudo. Dessa forma, o tempo e a energia que seriam investidos no processo de transcrever elementos desnecessários (como interrupções ou assuntos aleatórios que venham surgir na conversa com o entrevistado), passariam a ser investidos na interpretação dos dados. Existem casos, porém, em que é importante que todos os elementos sejam transcritos, permitindo um maior detalhamento da análise posterior (Flick 2009). Nesse sentido, a transcrição pode ser completa (de todo o contexto e discurso, inclusive pausas, interrupções, etc), parcial ou resumida (só de trechos relevantes para a pesquisa). Por não existir um padrão geral e por ser um processo que demanda bastante tempo por parte do pesquisador, é importante que se estabeleça um formato para que todas as transcrições possuam a mesma estrutura, como, por exemplo, o processador de texto que se utiliza, a fonte mais adequada, formatações específicas para determinadas situações, dentre outros elementos (exemplificados no quadro 1). Essa padronização na estrutura minimiza o tempo que será utilizado na localização dos elementos nas falas dos entrevistados. Durante todo o processo é fundamental que o pesquisador seja direcionado pela questão de pesquisa que a análise busca responder (McLellan et al. 2003). Deve-se ter sempre em mente que ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 81 tudo aquilo que é transcrito e a forma que essa transcrição é estruturada influenciará no processo de análise dos dados (McLellan et al. 2003). Quadro 1. Exemplo de elementos úteis para estruturação de uma transcrição (adaptado de Flick 2009). Estrutura Processador de texto Microsoft Word 2016 Fonte Times New Roman 12 Margem Esquerda 2cm, direta 5cm Espaçamento 1,5cm Numeração Acima e a direita de cada página Entrevistador Símbolo: PESQ Entrevistados Símbolo: INFn Convenções de transcrições utilizadas 82 Tipo de transcrição Completa PALAVRA Caixa-alta: indica aumento da amplitude do som Palavra Sublinhar: indicar stress (1, 2, etc.) Pausas: na fala do entrevistado ou em entre entrevistados, em segundos [...] Corte de texto: Falas consideradas desnecessárias para a pesquisa (palavras...) Palavras incompreensíveis: quebras de transcrição e “melhor chance” do transcritor MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Codificação A identificação e o refinamento de conceitos importantes são etapas fundamentais na pesquisa qualitativa. Esses processos começam, muitas vezes, com simples observações interpretadas separadamente e depois agrupadas e organizadas em categorias de pesquisa (Chambliss e Schutt 2013), o que pode resultar em um grande volume de material. Dessa forma, métodos que possibilitem a organização desses dados de forma prática e didática precisam ser adotados (Flick 2009). A codificação consiste no tratamento de dados qualitativos por meio da nomeação de passagens de texto, categorizando seus conteúdos (Creswell 2007). Dessa forma, o pesquisador poderá estabelecer uma estrutura de ideias temáticas próprias, direcionando o seu raciocínio no texto e, consequentemente, possibilitando as interpretações dos fenômenos sociais (Chambliss e Schutt 2013). Para ter um controle dos códigos criados, pode-se classificá-los, de acordo com Gibbsn (2008), com base em três critérios, exemplificados logo a seguir (quadro 2): a 1) classificação descritiva, na qual o pesquisador descreve um código segundo suas palavras e as palavras dos informantes para representar comportamentos culturais importantes para a pesquisa; a 2) classificação analítica, na qual busca-se representar códigos que retratam os discursos-chave utilizados para as análises diretas das questões de pesquisa; e a 3) classificação teórica, que pretende caracterizar os códigos relacionados a passagens nos discursos que abordem questões êmicas e éticas teóricas importantes. ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 83 Quadro 2. Exemplo de processo de caracterização de códigos, inspirado em Gibbs (2008), de um estudo etnobiológico hipotético sobre a percepção local de mudanças climáticas e respostas adaptativas. Dado qualitativo “Sempre que chove a gente planta: o pasto fica verde e bonito” “Quando o clima começa a ficar mais quente temos que ir atrás de água em locais distantes” “Na escassez, comemos plantas de gado” Codificação Qualidade do código Classificação do código ‘Mudança da paisagem’ Descrever passagens nos discursos que indicam a percepção da mudança das paisagens Descritiva ‘Resposta adaptativa’ Discursos relativos as questões principais do estudo Analítica ‘Famine foods’ Passagens do texto relativo a questões teóricas da literatura Teórica A forma como o pesquisador codifica um determinado dado qualitativo depende do tipo de filtro que ele vai utilizar. Em outras palavras: um mesmo dado pode ser codificado com base em diferentes critérios de classificação, a depender do olhar de quem interpreta e analisa a informação (Saldaña 2009). Por exemplo, uma pesquisa qualitativa sobre as práticas médicas de uma determinada comunidade local pode identificar relatos como na seguinte passagem: 84 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA “Normalmente eu rego minhas plantas toda manhã assim que levanto da cama (...), mas regar deve ser uma das primeiras coisas que penso quando acordo (...). Volto, confiro mais uma vez se as plantas que estavam muito murchas de manhã já tinham recuperado o vigor que eu sei que elas têm, que indica que a água foi bem aproveitada por elas (...). Dá uma alegria tão grande ver elas [as plantas do quintal] nessa época porque me sinto bem e sei que cuidando bem delas sempre vou ter sempre elas perto de mim”. O hábito de se preocupar com as plantas do quintal pode ser categorizado como “preocupações com a perda [de plantas do quintal]”, “atividades de lazer” ou até “terapias ocupacionais”. Depende, logicamente, do objetivo do estudo de quem investiga essa atividade social e por isso a importância da explicação detalhada de todo o processo de análise, classificação e categorização das informações textuais (Flick 2009). Dentre as principais técnicas de codificação utilizadas por pesquisadores de áreas diversas, duas merecem destaque por serem especialmente simples e úteis. A primeira delas é a 1) codificação linha-por-linha, na qual cada linha de texto é codificada, mesmo que não correspondam a orações completas, e a segunda é a 2) comparação caso-a-caso, na qual as partes do texto de um mesmo documento, ou trechos de documentos diferentes, são comparadas (exemplos desses dois tipos de codificação no quadro 3) (Gibbs 2008). ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 85 Quadro 3. Exemplo de codificação linha-por-linha e comparação caso-a-caso. Linha-por-linha Texto Codificação “Eu crio minhas cabras desde menino. (...) ‘Domesticação de animais’ Não gosto de depender dos outros, (...), ‘Padrões de personalidade’ o problema todo é quando o tempo muda muito, as secas são terríveis”. ‘Mudanças climáticas’ Comparação caso-a-caso Informante Biografia Atitude em relação ao código “Domesticação de animais’ Senhor x Cria cabras desde criança. Tem muita. Mora sozinho e não conta com a ajuda de ninguém. Dedicação integral Senhora y Cria galinhas em casa. É professora em tempo integral. Os animais ficam soltos o dia inteiro e presos a noite. Dedicação parcial Senhor x Não cria animais, apesar de ter pais agricultores. É motorista em tempo integral. Mora com os pais. Não há dedicação Após a realização da codificação, o pesquisador poderá acessar sistematicamente os textos codificados com informações importantes para o entendimento do fenômeno social investigado (Chambliss e Schutt 2013). 86 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA A codificação manual é ideal para coletas cujas amostras são relativamente pequenas. No entanto, se a pesquisa contém grandes amostras, a utilização de softwares especializados na análise de dados qualitativos (CAQDAS, do inglês Computer Assisted Qualitative Data Analysis Software) são indispensáveis (Saldaña 2009). Além do tamanho da amostra, o tempo disponível e a experiência do pesquisador devem ser avaliados para a escolha do tipo do método a ser utilizado na análise dos dados coletados (Basit 2003). As tabelas são um dos recursos mais utilizados, pois auxiliam na organização do pensamento durante a criação dos códigos, possibilitando a comparação entre eles (Gibbs 2008) (ver exemplo de codificação de uma passagem textual no quadro 4). Memorandos também são fontes de codificação manual bastante didáticas e difundidas, e correspondem a notas de campo usadas pelo pesquisador para registrar os nomes de cada código desenvolvido. Além disso, informações adicionais podem ser inseridas, como as datas em que cada codificação foi feita e uma descrição sobre da ideia remetida aos códigos (Saldaña 2009). O CAQDAS, por sua vez, oferece ao pesquisador uma série de recursos, ajudando-o a avaliar características e relações entre os textos (Saldaña 2009). No entanto, muitos especialistas recomendam a utilização desses softwares combinados com recursos manuais (textos impressos ou escritos à mão, por exemplo). Assim, o pesquisador poderá desenvolver uma maior familiaridade com os dados, ajudando na interpretação e na criação de códigos de análise. ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 87 Quadro 4. Exemplo hipotético de codificação de uma passagem de um informante sobre sua história de saúde referente à preferência por plantas no tratamento de doenças. Codificar permite resumir uma ideia dos textos analisados em um conceito que facilita a comparação com as outras desenvolvidas durante a pesquisa. “Aqui em casa quando ficamos doentes, a gente só usa remédio de planta mesmo1. (...) e remédio de farmácia é para esse povo novo, que já nasceu nesse tempo moderno, então não entende de remédio do mato, né?2 (...). E as plantas são muito boas, melhor do que os remédios de farmácia3. (...). Agora quando o tempo tá seco, muitas plantas somem, aí só sobram os remédios de farmácia, né?4 Às vezes a gente pega um pouco mais de folha e guarda, pra quando vim a seca a gente não ficar sem nossos remédios do mato4” Codificação 1. ‘Preferência [por plantas medicinais]’ 2. ‘Percepção individual [sobre o conhecimento dos outros]’ 3. ‘Percepção de eficácia/poder de cura’ 4. ‘Comportamento adaptativo’ Triangulação Triangular as informações para avaliar os dados coletados e analisados em campo, talvez seja uma das principais etapas da análise qualitativa. Aqui, o objetivo é confrontar resultados, buscando refletir sobre a confiabilidade e generalizações das informações interpretadas (e.g., verificar se o comportamento relatado condiz com a prática ou analisar diversos pontos de vista de um determinado fenômeno) (Gibbs 2008). Esse processo ocorre simultaneamente ao desenvolvimento do estudo e ajuda os pesquisadores na solução de conflitos e/ou busca de evidências sobre a validade dos dados 88 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA observados (Beal 2011). As práticas de triangulação de dados ocorrem por meio de ferramentas como análises de biografias, validação dos entrevistados, comparações constantes e revisão textual. Analisar as biografias, oferece ao pesquisador variadas informações sobre como as pessoas organizam suas compreensões de mundo (Flick 2009). “Fale um pouco da relação de ‘x’ com sua história de vida?”, e.g., sendo o ‘x’ o fenômeno a ser estudado, geralmente levam a narrativas cronológicas que refletem experiências individuais e compartilhadas das pessoas com seus contextos coletivos (e.g., institucional, político etc.) e socioeconômicos (e.g., infância, formação profissional, casamento, paternidade etc.) (Gibbs 2008). Esses textos narrativos são uma visão particular de mundo e constituem um conjunto de informações importantes para as análises qualitativas, retratando experiências de vida das pessoas com os fenômenos estudados. A validação do entrevistado é comparar as respostas e os comportamentos dos entrevistados em diferentes momentos de coleta, para validá-las em diferentes situações de pesquisa (Flick 2009). A validação verbal é uma ferramenta comum desse processo, consistindo em repetir entrevistas com os mesmos informantes, com seus discursos investigados e sistematizados, para conferir as informações através dos resultados das análises (Gibbs 2008). Segundo Flick (2009) para validar as informações dessa maneira é preciso seguir três considerações: a) validar se o discurso dito está correto, comparando respostas antigas e atuais, por exemplo; b) se seu conteúdo está relacionado com as informações socialmente compartilhadas; e c) se o conteúdo é sincero em termos de autorrepresentação do entrevistado. Esse processo auxilia na inspeção dos achados de pesquisa e para a análise qualitativa, essencial como método de ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 89 triangulação de dados (ver formas de validação de dados em quadro 5). As divergências dependem muito do contexto e devem sempre ser levadas em consideração para questionamento sobre quais fatores influenciaram essas mudanças de ideias e opiniões (e.g., como novos eventos culturais, pressões externas à entrevista, conflitos de interesse, etc.) (Beal 2011). Comparar constantemente os códigos de pesquisa para investigar as suas relações é uma maneira de triangulação de dados importante nas pesquisas qualitativas (Flick 2009). Após as primeiras entrevistas e a codificação de todas as informações textuais, desenvolvendo um livro com a lista de todos os códigos utilizados na análise e descrições de seus significados, auxiliando na identificação e ajuste das categorizações da pesquisa (MacQueen et al. 2008), o pesquisador inicia o processo de hierarquização dos códigos coletados, relacionando os discursos, práticas ou notas de campo para criar categorias, informações que serão relacionadas investigadas sobre um determinado fenômeno social estudado (Gibbs 2008). Nesse sentido, é importante estruturar os códigos e as passagens textuais relacionadas de uma maneira que permita uma comparação sistemática mais eficiente entre as informações apresentadas (Charmaz 2006). Utilizar tabelas ou fluxogramas pode ser uma boa estratégia, auxiliando na construção de matrizes que permitem relacionar diferentes categorias de análise com auxílio de softwares de computador que possibilitem organizar essa grande quantidade de dados, buscando por diferenças e semelhanças entre os relatos das pessoas no processo de categorização (Beal 2011). Estruturar as informações dessa maneira, impede erros e duplicações no livro de códigos e permite uma visualização geral dos pontos de vistas de todos os atores envolvidos no fenômeno 90 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA observado (Gibbs 2008). A pós análise, entrevistas e observações de campo podem ser pensadas para preencher lacunas explicativas ou realizar novos questionamentos que surgem da análise dessas categorias, e esse processo vai sendo retroalimentado até a saturação teórica do fenômeno. Por último, a revisão textual consiste, literalmente, em revisar os dados textuais em busca de irregularidades. Essa prática permite uma revisão de expressões dos informantes e atualizações no livro de códigos, além de revisitar as informações gerais dos dados coletados, estabelecendo oportunidades para uma análise densa das relações desde as primeiras perguntas de pesquisa (Gibbs 2008). Quadro 5. Checagem constante de validação (extraído de Bernand 2006, tradução livre) 1. Se você está entrevistando pessoas, procure consistências e inconsistências entre informantes bem informados e descubra por que esses informantes discordam sobre coisas importantes. 2. Sempre que possível, verifique os relatos de comportamento ou das condições ambientais das pessoas em comparação com evidências coletadas de maneira mais objetivas. Se você fosse um jornalista e enviasse uma história com base em relatórios de informantes sem verificar os fatos, você nunca iria passar pela mesa do seu editor. Por que não impor aos antropólogos o padrão que os jornalistas enfrentam todos os dias? ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 91 3. Esteja aberto a evidências negativas, em vez de ficar irritado quando elas surgirem. Quando você se depara com um caso que não se encaixa em sua teoria, pergunte-se se é o resultado de: (a) variação intracultural normal, (b) sua falta de conhecimento sobre a gama de comportamentos apropriados, ou (c) um caso de comportamento genuinamente incomum. 4. À medida que você entende como algo funciona, procure explicações alternativas de informantes-chave e/ou colegas de pesquisa e ouça-as com atenção. A cultura folclórica americana, por exemplo, sustenta que as mulheres saíram de casa pela força de trabalho por causa do que é amplamente chamado de “feminismo” e “liberação das mulheres”. Essa é uma explicação êmica popular. Uma explicação alternativa é que os valores e orientações feministas são apoiados, se não causados, por mulheres sendo expulsas de suas casas e para a força de trabalho pela hiperinflação durante a década de 1970, que reduziu o poder de compra da renda de seus maridos. Tanto a explicação êmica, popular e a explicação ética são interessantes por diferentes razões. 5. Tente encaixar casos extremos em sua teoria e, se os casos não se encaixarem, não se apresse em descartá-los. É sempre mais fácil descartar casos do que reexaminar suas próprias ideias, mas a saída mais fácil dificilmente é a maneira certa na pesquisa. Agradecimentos Agradecemos a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032020357811). 92 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Referências Ando H, Cousins R, Young C. 2014. Achieving Saturation in Thematic Analysis: Development and Refinement of a Codebook. Compr Psychol. 3:1-7. Basit TN. 2003. Manual or electronic? The role of coding in qualitative data analysis. Educ Res 45:143–54. Beal XV. 2011. ¿Cómo hacer investigación cualitativa? Una guía prática para saber qué es la investigación en general y cómo hacerla, con énfasis en las etapas de la investigación cualitativa. ETXETA, Jalisco, MX. Bernard HR. 2006. Research Methods in Anthropology. Qualitative and Quantitative Approaches. 4a edition. Oxford, UK: Altamira Press. Chambliss DF, Schutt RK. 2013. Making sense of the social world: methods of investigation. 4a Edition. Thousand Oaks, Sage. Charmaz K. 2006. Constructing grounded theory: a practical guide through qualitative analysis. London, UK. Sage Publications Ltd. Creswell JW. 2007. Projeto de pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. 2a Ed., Porto Alegre, RS, Artmed. D’Avigdor E, Wohlmuth H, Asfaw Z, Awas T. 2014. The current status of knowledge of herbal medicine and medicinal plants in Fiche, Ethiopia. J Ethnobiol Ethnomed 10:1–32. Flick U. 2009. An introduction to qualitative research. Sage Publ. London, UK. Galvin R. 2015. How many interviews are enough? Do qualitative interviews in building energy consumption research produce reliable knowledge? J Build Eng 1:2–12. Gibbs G. 2008. Analyzing Qualitative Data. The SAGE Qualitative Research Kit London, UK Glaser BG, Strauss AL. 1967. The Discovery of Grounded Theory: Strategies for Qualitative Research. Aldine Transaction Guest G, Bunce A, Johnson L (2006) How Many Interviews Are Enough? Field methods 18:59–82. http://journals.sagepub.com/doi/10.1177/1525822X05279903 Hagaman AK, Wutich A. 2017. How Many Interviews Are Enough to Identify Metathemes in Multisited and Cross-cultural Research? Another Perspective on Guest, Bunce, Johnson’s. 2006. Landmark Study. Field methods 29:23–41. http://journals.sagepub. com/doi/10.1177/1525822X16640447 ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS 93 McLellan E, MacQueen KM, Neidig JL. 2003. Beyond the Qualitative Interview: Data Preparation and Transcription. Field methods 15:63–84. MacQueen KM, McLellan-Lemal E, Bartholow K, Milstein B. 2008. Team-based codebook development: structure, process, and agreement. Handb team-based Qual Res. 119–35 Saldaña J. 2009. The coding manual for qualitative researches. Los Angeles, CA: Sage Publications Ltd. 94 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR? Juliana Loureiro Almeida Campos, Taline Cristina da Silva, Ulysses Paulino de Albuquerque A pesquisa qualitativa tem sua origem nas Ciências Sociais e constitui uma abordagem interpretativa que se preocupa em entender os significados que as pessoas dão a certos fenômenos que ocorrem dentro de seus contextos sociais (Snape & Spencer 2003). A tradição antropológica da pesquisa qualitativa fez com que esta seja conhecida muitas vezes como pesquisa etnográfica (Triviños 1987), a qual busca compreender e descrever algum grupo social, suas crenças e práticas culturais por meio da imersão do pesquisador no contexto social a ser investigado (Snape & Spencer 2003). Entretanto, outros autores preferem considerar a etnografia como parte da pesquisa qualitativa e não como sinônimo (Richardson et al. 2012; Krefting 1991). Na investigação qualitativa, a coleta e análise dos dados devem ser preferencialmente realizadas de maneira simultânea, de forma que a análise acompanhe o processo de coleta de informações desde o início, norteando assim o trabalho de campo (Pineda et al. OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 95 2011). É comum que os conceitos e hipóteses sejam desenvolvidos e revisados ao longo do processo de pesquisa. Os métodos qualitativos utilizados para coletar dados são diversos e envolvem entrevistas, métodos participativos, história oral, pesquisas em arquivos históricos, interpretação de fotografias e vídeos, entre outros. Nesse capítulo, iremos nos deter na abordagem de dois métodos muito utilizados nesse tipo de pesquisa: a observação participante e o diário de campo. Nós discutiremos quando esses métodos devem ser utilizados e como os dados coletados podem ser analisados e apresentados, bem como as vantagens e desvantagens do uso de cada um deles. A observação participante Antes de definirmos em que consiste a observação participante, consideramos pertinente introduzir brevemente o conceito de observação. Segundo Richardson et al. (2012) a observação é o exame minucioso sobre um fenômeno no seu todo ou em algumas de suas partes, é a captação precisa do objeto examinado. Existem duas maneiras de executar a observação dentro de uma abordagem qualitativa de pesquisa: a observação não participante e a observação participante. Também chamada de observação direta, na observação não participante o investigador não se insere em um grupo social como se fosse membro do grupo observado, apenas atua como espectador atento, procurando ver e registrar o máximo de ocorrências que interessa ao seu trabalho (Richardson et al. 2012). De forma contrária, na observação participante o observador não é apenas um espectador. O pesquisador se une a cultura 96 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA estudada para registrar ações, interações ou eventos que ocorrem, permitindo não só que os fenômenos sejam estudados à medida que surgem, mas também oferecendo ao pesquisador a oportunidade de obter informações por meio da experiência dos fenômenos por si mesmos (Ritchie 2003). O observador participante tem mais condições de compreender os hábitos, atitudes, interesses, relações pessoais e características da vida diária da comunidade do que o observador não participante (Richardson et al. 2012). Nesse sentido, Bernard (2006) destaca a importância de o pesquisador realizar uma imersão profunda no grupo estudado, estabelecendo, dessa forma, relações de confiança que podem facilitar o trabalho da observação participante. Para Minayo et al. (2002), a importância dessa técnica está no fato de permitir captar diversas situações ou fenômenos que não são obtidos por meio apenas de perguntas, uma vez que o pesquisador vivencia o dia a dia da cultura estudada. Uma questão importante com relação a observação participante é que muitos pesquisadores creem erronemanente na ideia de que, durante o trabalho de campo, existe a necessidade de que os mesmos ajam e se comportem da mesma forma que o grupo cultural estudado. Por exemplo, não é porque você está estudando um grupo indígena que você deve se comportar como um indígena. Pelo contrário, esse tipo de comportamento pode soar artificial e até causar um distanciamento por parte do grupo. O importante é ser aceito no ambiente de pesquisa e adquirir a confiança do grupo a ser estudado. Whyte (1943) traz um ótimo exemplo desse tipo de atitude. Tentando se ajustar ao comportamento do grupo urbano que estudava em Boston, Estados Unidos, o pesquisador entrou em uma roda de conversa na qual o grupo falava palavras obscenas e vulgares. O mesmo começou, então, a agir e falar da mesma forma com que o grupo falava. Whyte OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 97 (1943) relata que todos olharam para ele, surpreendidos, e um deles falou que não esperava que ele falasse desse jeito, insistindo que o grupo queria que ele continuasse a ser diferente deles. O pesquisador percebeu que não havia expectativa para que ele se tornasse alguém exatamente igual ao grupo cultural estudado, e que as pessoas estavam satisfeitas com ele porque o viam diferente. Em sua obra, Whyte (1943) argumenta que, na observação participante, é preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como deve-se saber que tipo de pergunta pode ser feita. Richardson et al. (2012) apontam que o fato de o pesquisador se sentir “tão participante” pode levar ao esquecimento, por parte do mesmo, sobre seus objetivos de pesquisa, negligenciando-os, involuntariamente, e perdendo a objetividade do trabalho científico. Não raro essa falta de objetividade leva ao pesquisador a observar os fenômenos não a partir da perspectiva do acadêmico (do pesquisador), mas do integrante da cultura com a qual interage, enviesando as suas interpretações. Coletando os dados por meio da observação participante Bernard (2006) acredita que o maior desafio da observação participante é o início dela, ou seja, a chegada e instalação do pesquisador dentro de uma cultura. O autor sugere que a escolha de um grupo que se mostre aberto e de fácil acesso irá facilitar o processo de coleta de dados. Além disso, Richardon et al. (2012) destacam a obrigatoriedade do pesquisador apresentar previamente os objetivos e a justificativa da pesquisa, para que não ocorram dúvidas sobre os objetivos do estudo e elevar o grau de aceitação do pesquisador pelo grupo. 98 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA O tempo de permanência necessário para realizar uma boa observação participante pode variar muito em função dos objetivos da pesquisa. Bernard (2006) argumenta que provavelmente será necessário um bom tempo até que o pesquisador se estabeleça dentro do grupo social, aprenda e domine a língua se for o caso, estabeleça uma boa relação de confiança, a ponto de poder fazer bons questionamentos e receber boas respostas. Por exemplo, Berreman (1962) precisou de seis meses para que os moradores da aldeia Sirkanda, na Índia, se sentissem confortáveis e realizassem sacrifícios animais na sua frente, uma prática comumente realizada pelo grupo. Por sua vez, Yu (1995) passou quatro meses como observador participante em um restaurante chinês para observar as diferenças nas percepções de empregados chineses e não-chineses com relação a um bom serviço, remuneração adequada e as funções administrativas. Para que a observação participante atinja rigorosamente os objetivos da pesquisa, é importante que o pesquisador elabore cuidadosamente suas anotações do fenômeno observado, descrevendo ao máximo todos os acontecimentos percebidos (Selltiz et al. 1987). Portanto, antes de iniciar a observação, o primeiro passo é escolher as formas de registro de tais observações. Mais adiante discutiremos o diário de campo e notas de campo como instrumentos bastante adequados para o registro dessas percepções, permitindo a organização dos dados da forma que parecer mais conveniente ao observador. A fotografia é um ótimo instrumento de registro e representa parte da experiência de mundo do fotógrafo a partir de sua percepção inicial, podendo assumir posteriormente novas interpretações do grupo social que é fotografado (Soilo 2012). Assim, as fotografias não só auxiliam o pesquisador a compreender a cultura estudada, OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 99 como também podem permitir que as pessoas estudadas interpretem o próprio comportamento ou fenômeno que é objeto de estudo do pesquisador (Harper 2002). Um ótimo exemplo do uso da fotografia para registrar dados e comportamentos sociais é a obra de Malinowski, “Os Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicada em 1922, que consiste no relato do trabalho de campo do antropólogo nas Ilhas Trobiand ao estudar os grupos humanos que lá habitavam (ver Malinowski 1922). Outra forma de registro inclui a utilização de gravadores de som e filmadoras, lembrando sempre de solicitar a permissão de uso por parte dos observados. Recomendamos a utilização de gravadores sempre que houver a necessidade de registrar uma conversa ou um diálogo, já que seu uso permite que a conversa flua livremente e sem interrupções. O vídeo, por sua vez, proporciona o registro de detalhes que não são capturados por meio de fotografias ou gravadores de som (Brigard 1995). Além disso, o vídeo permite que a prática estudada seja observada em outros momentos, podendo ser interpretada posteriormente ao trabalho de campo (Fuller 2007). No entanto, é necessário que o pesquisador disponha de recursos financeiros para a produção do vídeo, visto o alto custo dos equipamentos e a necessidade de contratação de pessoal. O diário de campo O diário de campo é um documento pessoal e consiste em uma forma de registro de observações, comentários e reflexões para uso individual do pesquisador (Falkembac 1987). Segundo Triviños (1987), no âmbito das ciências sociais, as anotações realizadas no 100 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA diário de campo podem ser entendidas como todo o processo de coleta e análise de informações, isto é, compreenderiam descrições de fenômenos sociais, explicações levantadas sobre os mesmos e a compreensão da totalidade da situação em estudo. É um documento que apresenta tanto um “caráter descritivo-analítico”, como também um caráter “investigativo e de sínteses cada vez mais provisórias e reflexivas”, ou seja, consiste em “uma fonte inesgotável de construção, desconstrução e reconstrução do conhecimento profissional e do agir através de registros quantitativos e qualitativos” (Lewgoy & Arruda 2004). Destacamos que o diário de campo pode ser empregado em diferentes tipos de investigações, com diferentes objetivos e formas de registro. Nas ciências humanas, por exemplo, essa ferramenta consiste no registro completo e preciso das observações dos fatos concretos, acontecimentos, sentimentos, relações verificadas, experiências pessoais do profissional/investigador, suas reflexões e comentários. Desse modo, deve ser usado diariamente para garantir uma maior sistematização e detalhamento possível de todas as situações ocorridas no dia e das entrelinhas nas falas dos sujeitos durante a investigação ou intervenções. O estudo etnográfico reside na construção de um diário de campo. É um exercício que se baseia na observação direta a respeito dos comportamentos culturais de um grupo social. É importante destacar que um etnógrafo pode deter, além do diário de campo, diversas notas de campo para anotações sobre as entrevistas e observações no desenrolar do cotidiano. Enquanto as observações registradas no diário de campo apresentam uma redação mais livre, nas notas de campo o pesquisador registra observações de forma a facilitar a análise dos dados (Arthur & Nazroo 2003). Spradley (2016) OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 101 sugere dois tipos de notas de campo: as condensadas e as extensas. As notas de campo condensadas envolvem frases pequenas e palavras, se tornando uma maneira prática e rápida de registro de dados. Por outro lado, as notas de campo extensas devem apresentar textos mais detalhados, nos quais o pesquisador deve destacar ao máximo as observações que não foram registradas nas notas de campo condensadas. Bernard (1988) recomenda que as notas de campo sejam codificadas, de modo a reduzir a informação complexa a um conjunto menor de ideias, tornando possível a localização de padrões dentro do conjunto de dados coletados. Nas ciências naturais, o diário de campo, cada vez menos usado, pode ser útil para fornecer um registro permanente do que está acontecendo no mundo natural. Como exemplo, temos os diários de naturalistas famosos que forneceram informações a respeito da biodiversidade, como Charles Darwin (ver Darwin 1989). Quando se refere as reflexões que a experiência do pesquisador em campo suscitou, esse será o diário de campo íntimo (Weber 2009). Uma visão do diário de campo como um material que retrata a intimidade do pesquisador pode ser vista na publicação do diário pessoal de Malinowski (1967), publicado por iniciativa de sua esposa Valetta Malinowska. Nesse livro encontramos um Malinowski muito humano e que muitas vezes não fez questão de esconder seus sentimentos de antipatia e até mesmo de agressividade pelos nativos com os quais trabalhou. Sem dúvida alguma, a publicação do material íntimo do antropólogo gerou muitas discussões sobre o trabalho de campo, mas que também levou a discussão da dimensão subjetiva do pesquisador que encara o desafio de estudar outras culturas carregando o “fardo” de sua humanidade, portanto, de suas fraquezas, desejos, vícios e virtudes. 102 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Como utilizar o diário de campo O diário de campo facilita criar o hábito de observar, descrever e refletir com atenção os acontecimentos do dia de trabalho, por essa condição ele é considerado um dos principais instrumentos científicos de observação e registro. Os fatos devem ser registrados no diário o quanto antes após o observado para garantir a fidedignidade do que se observa (Falkembach 1987). Recomenda-se que, para a boa estruturação do diário de campo, é preciso que o pesquisador saiba que tipo de informação será necessário registrar. Por exemplo, pode ser importante registrar informações que descrevam o local onde o trabalho de campo é desenvolvido, quais informações o ajudarão a entender o que se observa, e que outras informações o pesquisador gostaria de ter ao analisar suas anotações depois de uma semana, um mês ou um ano. Angrosino (2007) destaca a importância de registrar os dados de uma forma organizada e que contenha a maior quantidade de detalhes possíveis, como a descrição do cenário escolhido, o número de participantes da pesquisa e suas características socioeconômicas, a cronologia dos eventos (anotar data, local e hora de ocorrência do evento), descrições dos comportamentos e interações, registros de conversas e outras interações verbais. O diário de campo é importante para o processo etnográfico, para que vários componentes da pesquisa não sejam esquecidos. A escrita contínua no diário de campo também é importante porque as perspectivas e interpretações do etnógrafo frequentemente mudam ao longo da duração do processo de trabalho de campo. Isso ocorre porque interpretações precoces são muitas vezes norteadas por paradigmas que o pesquisador traz para o campo. À medida que ele OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 103 ou ela passa pelo processo de aprendizagem do sistema cultural em estudo, eles muitas vezes acham que interpretações posteriores dos mesmos fenômenos diferem daquelas interpretações anteriores. Por exemplo, Malinowski (1922) registrou em seu livro: “Imagine yourself then, making your first entry into the village, alone or in company with your white cicerone. Some natives flock round you, especially if they smell tobacco. Others, the more dignified and elderly, remain seated where they are. Your white companion has his routine way of treating the natives, and he neither understands, nor is very much concerned with the manner in which you, as an ethnographer, will have to approach them. The first visit leaves you with a hopeful feeling that when you return alone, things will be easier. Such was my hope at least.” (p.4). Analisando os dados coletados Após os dados devidamente coletados, é chegada a hora da análise. Minayo (2000) recomenda a reflexão sobre as finalidades da fase de análise, que são: estabelecer uma compreensão dos dados coletados, confirmar ou não os pressupostos da pesquisa e /ou responder às questões formuladas, e ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando-o ao contexto social do qual faz parte. Angrosino (2007) sugere duas formas principais de análise de dados: a análise descritiva que consiste em decompor os dados, verificando padrões e regularidades, e a análise teórica que é a explicação dos padrões e regularidades encontrados a partir de um cenário teórico adotado pelo pesquisador. 104 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Como primeiro passo, sugerimos que o pesquisador transfira suas notas de campo, gravações de áudio e qualquer outro registro para um computador. Isso permite que o pesquisador tenha uma cópia dos seus dados, além de facilitar a localização de qualquer palavra ou expressão que se deseje rever ou analisar. A seguir, apresentamos algumas formas de análise dos dados coletados, ficando a critério do pesquisador a escolha da forma que mais considerar adequada, seja em função dos objetivos da pesquisa, seja em função dos tipos de dados que foram coleados. Categorias Trabalhar com categorias implica em agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de um conceito que seja capaz de abranger tudo isso (Minayo et al. 2002). É a classificação das notas de campo, agrupando-as em temas (Angrosino 2007). As categorias podem ser estabelecidas antes do trabalho de campo ou no momento da coleta de dados. No entanto, Minayo et al. (2002) sugerem que a escolha das categorias seja feita antes do trabalho de campo, mas também logo após este, dessa forma as categorias poderão ser comparadas. As categorias estabelecidas antes da coleta de dados são conceitos mais gerais e abstratos, exigindo uma fundamentação teórica sólida por parte do pesquisador (Minayo et al. 2002). Por exemplo, imagine que você, leitor, está investigando a concepção de natureza dos membros de uma comunidade de pescadores. Antes da coleta de dados, a categoria estabelecida poderá ser “representação ambiental”, entendida como a forma com que os indivíduos externalizam o que é percebido, influenciada por aspectos biológicos OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 105 e culturais (Silva et al. 2016). Após o trabalho de campo, suponhamos que os seguintes trechos das falas dos pescadores tenham sido registrados: i) natureza é o rio e os animais que nele se encontram; ii) a natureza é linda, sem ela nós não existiríamos; iii) são as árvores com frutos como manga, abacate, mamão, banana...; iv) natureza é tudo que foi criado por Deus. Se fôssemos estabelecer categorias para as frases acima, poderíamos dizer que os trechos i e ii podem ser enquadrados na categoria “visão romântica”, o trecho iii pode pertencer a categoria “visão utilitarista” e o trecho iv pode pertencer a categoria “visão sagrada” de natureza. O próximo passo é relacionar essas categorias com aquelas definidas antes do trabalho de campo, que no nosso caso foi a categoria geral “representação ambiental”. Nesse sentido, o pesquisador pode se esforçar para compreender como os conceitos de natureza são determinados pelos filtros biológicos e culturais detidos pelos pescadores, procurando aprofundar as contradições entre as ideias apresentadas. Essa análise de categorias pode ser apresentada em tabelas ou quadros. Na primeira coluna podem ser inseridas as categorias, na segunda coluna serão inseridos os trechos de falas ou diálogos que abrangem tais categorias, e na terceira coluna podem ser inseridas as interpretações destes trechos relacionados às categorias elencadas, discutindo os achados com base em referenciais teóricos. Caso prefira, as informações da terceira coluna podem ser transpostas para um texto corrido logo abaixo da tabela ou quadro. 106 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Método hermenêutico-dialético Discutido por Rychlak (1986) e Stein (1987) e proposto por Minayo (2000) como um método de interpretação qualitativa de dados, o método hermenêutico-dialético sugere que a fala dos atores deve ser situada em seu contexto socioeconômico e político para que seja melhor compreendida, e que as categorias sejam formuladas a partir dessa contextualização. Minayo (2000) propõe três passos para a execução do método proposto: o primeiro passo é a ordenação dos dados, onde se faz um mapeamento dos dados coletados, envolvendo a transcrição do texto, releitura do material e a organização dos relatos; o segundo passo é a classificação dos dados por meio da releitura dos textos e a identificação de informações relevantes, que darão origem às categorias; o terceiro passo é a análise final, ou seja, o momento de articular os dados e os referenciais teóricos relacionados ao tema de pesquisa, respondendo as perguntas de pesquisa com base nos objetivos. Análise de Conteúdo A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por meio da descrição do conteúdo das informações, indicadores que permitam inferir conhecimentos relativos às condições de produção/recepção dessas mensagens (Bardin 1977). A técnica da análise de conteúdo pode ser resumida como um tratamento da informação contida em mensagens e textos, e podem ser aplicadas nos mais diversos tipos de conteúdo, como discursos, documentos, livros, textos de revistas e jornais. Diante da OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 107 diversidade de informações pelas quais essa análise pode ser aplicada, vamos nos deter às técnicas direcionadas a análise de conteúdos coletados por meio da observação participante e do diário de campo. Richardson et al. (2012) destacam a importância de atentar para características como objetividade, sistematização e inferência ao realizar a análise de conteúdo. Por exemplo, em uma análise de conteúdo em forma de categorias, apresentada anteriormente, os autores sugerem que, para alcançar a objetividade, devem ser atingidos a homogeneidade (não misturar critérios de classificação), a exaustividade (classificar a totalidade do texto), a exclusão (um mesmo elemento não deve ser classificado em mais de uma categoria) e a objetividade. A sistematização consiste em aplicar regras consistentes, e a inferência está relacionada com o ato de procurar esclarecer as causas da mensagem ou as consequências que ela pode provocar. Os critérios para a organização de uma análise são a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos dados, a inferência e a interpretação (Bardin 1977). Na fase de pré-análise, é feita a organização do material, a elaboração das hipóteses e objetivos e a definição do campo de pesquisa. Durante a descrição analítica, o material coletado e as informações registradas serão analisados tendo como base as hipóteses e referenciais teóricos. Essa fase envolve a codificação e categorização das unidades de registro, que podem ser um tema, uma palavra ou uma frase. É uma fase de exploração do material, que implica em leituras exaustivas, quando se aplica o que foi definido na fase anterior, inserindo o discurso em categorias de análise. Por fim, a fase de interpretação inferencial implica em desvendar o conteúdo, voltando-se para a busca de tendências comuns entre os dados. Os resultados são tratados de maneira 108 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA a serem significativos e válidos, podendo ser submetidos a testes estatísticos, o que não exclui a interpretação qualitativa (Richardson et al. 2012). As formas de tratamento são diversas, e envolvem o cálculo de frequências e porcentagens, análise fatorial, análise de contingência, entre outros (Richardson et al. 2012). Nesta fase são propostas inferências e interpretações dos resultados alcançados. Para um maior aprofundamento do método de análise de conteúdo, ver Bardin (1977), Triviños (1987) e Richardson et al. (2012). Considerações finais Como vimos neste capítulo, o uso do diário e notas de campo em associação com a observação participante são instrumentos de pesquisa importantes para etnobiologia, uma vez que essa lida diretamente com grupos humanos e fenômenos da natureza. Estes métodos permitem que o pesquisador observe e registre, com profundidade, informações úteis para sua pesquisa. É importante ressaltar que estas técnicas podem ser facilmente complementadas com outros métodos de coleta de dados de características qualitativas ou quantitativas, os quais podem ser encontrados em outros capítulos desta obra. Finalmente, recomendamos atenção, cautela e muita dedicação na utilização desses métodos por parte do pesquisador para que os resultados das pesquisas etnobiológicas sejam alcançados com sucesso. OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE E DIÁRIO DE CAMPO: QUANDO UTILIZAR E COMO ANALISAR 109 Agradecimentos Agradecemos a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032020240143). Referências Angrosino M. 2007. Doing Ethnographic and Observational Research. London, Sage Publications. Arthur S, Nazroo J. 2003. Designing Fieldwork Strategies and Materials. In: Ritchie J, Lewis J. (eds.) Qualitative Research Practice: A Guide for Social Science Students and Researchers. London, Sage Publications. p.109-137. Bardin L. 1977. Análise de conteúdo. Lisboa, Persona. Bernard HR. 1988. Research Methods in Cultural Anthropology. Newbury Park, Sage Publications. Bernard HR. 2006. 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No entanto, não existia uma clareza metodológica no que concerne ao tratamento dos dados e a comparação massiva com os métodos quantitativos apregoados pelas ciências naturais deixavam os estudos qualitativos ofuscados no meio acadêmico, ficando restritos, quase que exclusivamente, à Antropologia – devido às influências de Malinowsky e Boas e seus estudos etnográficos. Pelo DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 113 menos, foi assim até a década de 60, com o surgimento de periódicos dedicados exclusivamente aos métodos qualitativos, bem como à defesa da abordagem qualitativa por expoentes dos estudos das ciências naturais e exatas (Godoy 1995). Além dos estudos etnográficos, notoriamente reconhecidos como qualitativos, tem-se ainda os estudos de caso (histórias de vida) e as pesquisas documentais (reportagens, filmes, fotos, desenhos) que podem ser consideradas apropriadamente como pesquisas qualitativas. Assim, na atualidade, a abordagem qualitativa é amplamente utilizada e reconhecida no meio acadêmico, tendo se consolidado gradativamente como uma forma lídima de produzir dados. No que concerne ao tratamento desses dados, há duas formas clássicas ou usuais – embora não sejam as únicas – de conceber a análise em pesquisas qualitativas: a análise de conteúdo e a análise de discurso (Bauer & Gaskell 2015). A análise de conteúdo (AC) surgiu antes mesmo da própria consolidação dos estudos qualitativos, sendo, portanto, tradicionalmente, um método quantitativo, ancorado em processos que norteiam sua aplicação de forma lógica e sequencial. Esse tipo de método foi utilizado originalmente para analisar matérias jornalísticas veiculadas durante períodos de conflitos armados, apontando variáveis e frequências de citação. Ou seja, era aplicado ao texto escrito. Na atualidade, alguns autores conferiram uma abordagem qualitativa à AC, reconhecendo a necessidade de ir além da palavra escrita e adotando concepções teóricas para fundamentar melhor as análises (Krippendorff & Bock 2009). Por sua vez, a análise de discurso (AD), fundamenta-se em três eixos históricos principais: a linguística, o marxismo e a psicanálise, tendo como seu principal expoente Michel Pêcheux, 114 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA representante máximo da tradicional AD francesa. Assim, a AD propôs-se uma análise mais cabal, associando elementos internos e externos na produção do discurso, e por essa razão, indissociáveis da realidade social que o criou, sustentados por uma ideologia. Segundo Pêcheux (1990), a ideologia é, portanto, as representações de uma determinada classe. Assim, uma vez que existem diversas classes, uma sociedade expressará diferenças ideológicas, capazes de expressar, de maneira concreta, diferentes formações discursivas, sendo as formações discursivas “o que se pode e se deve dizer em determinada época”. Dessa forma, pode-se inferir a máxima: “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia”. Assim, ancorados nos preceitos das pesquisas qualitativas – embora não restrito à essa abordagem, como veremos – e da AD surge a proposta do Discurso do Sujeito Coletivo – DSC de Lefèvre & Lefèvre (2005b) como método de organização e tabulação de dados qualitativos, aliando a busca pela essência do pensamento expresso em um dado contexto social e o rigor metodológico no tratamento dos dados da pesquisa, tornando possível “fazer a coletividade falar diretamente” (p.16). Portanto, nosso objetivo é evidenciar os princípios para operacionalização do DSC, destacando suas características principais e lançando luz à sua utilização no campo das pesquisas em etnobiologia, como importante recurso para análise de dados. O método Tem-se que o DSC consiste na busca pela representação do pensamento coletivo, a partir da construção de um discurso-síntese DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 115 originado de conteúdos discursivos de indivíduos distintos. Dito em termos simples, o DSC é a junção de discursos individuais, gerados por meio de uma pergunta aberta, que expressa eficazmente o pensamento de uma coletividade (Lefèvre & Lefèvre 2005b). Nesse sentido, através dessa proposta do DSC de tabulação de dados qualitativos oriundos de natureza verbal, torna-se possível que cada indivíduo entrevistado no estudo possa contribuir para a construção do pensamento coletivo. Esse procedimento metodológico está respaldado na perspectiva empírica de que o caráter coletivo do pensamento social pode ser mensurado pela quantidade de escolhas de um determinado grupo de pessoas que pertencem a uma dada comunidade, por isso pode ser considerado socialmente compartilhado, embora expresso de maneira individual (Lefèvre & Lefèvre 2012). De acordo com Lefèvre & Lefèvre (2005b), o DSC sustenta-se na hipótese de que os indivíduos, quando em sociedade, compartilham crenças, valores e representações sociais. Conseguintemente, elaborou-se um processo metodológico capaz de gerenciar uma organização das expressões verbais geradas pelas pesquisas sociais que utilizam instrumentos abertos para a coleta de dados. Esse processo metodológico orienta-se sistematicamente por meio de elementos específicos para o seu desenvolvimento, denominados de operadores, sendo eles a Ideia Central, as Ancoragens, as Expressões Chave e os DSC como produto final Lefèvre & Lefèvre 2005b). Segundo Lefèvre e Lefèvre (2005b, p. 17) “as expressões-chave (ECH) são transcrições literais do discurso que revelam a essência dos depoimentos, conduzindo até sua significação, propriamente dita, evidenciando a ideia central que permeia determinado 116 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA pensamento”. Por essa razão, também, os autores referem que não há como dissociar as ECH das ideias centrais (IC), sendo esses operadores indispensáveis para a formação do DSC. No caso das ideias centrais, define-se que elas são uma descrição do sentido dos depoimentos. Segundo os autores: “A ideia central tem [...] a importante função de individualizar um dado discurso, ou conjunto de discursos, descrevendo, positivamente suas especificidades semânticas” (Lefèvre & Lefèvre, 2005b, p. 25). Frisase ainda que um indivíduo pode apresentar, em seu discurso, para uma mesma questão, mais de uma IC. Por sua vez, as ancoragens (AC) são manifestações explícitas de uma crença que o autor do discurso professa e que é usada para enquadrar uma situação específica. Podem ser comentários generalistas, guiados por senso-comum, marcadamente notórios nos discursos e costumam ser de fácil identificação. Destaca-se que as AC, ao contrário do que ocorre com as ECH e IC, não são obrigatórias para compor o DSC. Portanto, identificando as figuras metodológicas citadas acima (ECH, IC e AC) ter-se-á a formação do DSC, considerado como a principal figura metodológica expressa a partir do método. De acordo com Lefèvre e Lefèvre (2005b, p. 18): “O Discurso do sujeito coletivo é um discurso-síntese [...] composto pelas ECH que têm a mesma IC ou AC”. Conforme exemplificado nos esquemas abaixo: Representação A: DSC1 = [ECH(n2) + ECH(n5) + ECH(n8) + ECH(nx)]IC1 Representação B: DSC 2 = [ECH(n3) + ECH(n7) + ECH(n9) + ECH(nx)]AC1 Fonte: Esquemas propostos pelos autores, Lemos et al. 2018 DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 117 Onde: DSC = Discurso do Sujeito Coletivo; ECH = Expressão-Chave; IC = Ideia Central; AC = Ancoragem; n = participante da pesquisa. Outra característica do DSC é o fato de ser evidenciado no modo discursivo. Os referidos autores defendem que a representação por meio de quadros, tabelas e categorias caracteriza-se como mais distante da realidade como os indivíduos concretos pensam, sendo, portanto mais adequado o uso do discurso, como uma forma de representação mais vívida e real do pensamento coletivo (Lefèvre & Lefèvre 2005a). Não obstante, frisa-se que a representação de dados adjuvantes – tais como número de informantes, sexo, profissão –, bem como das IC prevalentes, apresentam formas multivariadas de apresentação, podendo ser expressos quer utilizando a representação escrita descritiva simples, quer valendo-se de recursos auxiliares para organização e visualização geral dos referidos dados. Nesse âmbito, destaca-se que para chegar ao almejado pensamento coletivo, faz-se necessário uma amostra representativa de uma população considerada para o estudo. Apenas desse modo será possível ter no conjunto das individualidades opinantes a representação das ideias internalizadas, ou seja, o sujeito coletivo (Lefèvre & Lefèvre 2006). Contudo, para desencadear o pensamento coletivo é necessário a utilização de um objeto imprescindível: a questão aberta. A questão aberta será responsável por produzir o pensamento, sendo considerada ainda como o procedimento de pesquisa que estimula 118 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA de forma mais intensa a expressão dos pensamentos dos indivíduos em um discurso (Lefèvre & Lefèvre 2005a). Destaca-se que é importante deixar explícita a questão norteadora na apresentação dos resultados. Segue abaixo, na Tab. 1, um exemplo de organização e apresentação dos dados que pode ser utilizado em estudos etnobiológicos. Tabela 1. Relação entre ideia central da pergunta X, proporção das respostas de acordo com os participantes da pesquisa e DSC para a questão X. Pergunta X: Qual sua opinião sobre […]? Ideias Centrais Informantes N % A B C ... Total de informantes = * DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO DSC – Ideia Central A: […] CSD – Ideia Central B: […] CSD – Ideia Central C: […] * Um discurso pode apresentar mais de uma ideia central. Fonte: Modelo de organização de dados proposto pelos autores. Conseguintemente, cada DSC é confeccionado na primeira pessoa do singular, assim o pensamento de um grupo ou coletividade irá ser expresso como se fosse um discurso individual. Essa é a DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 119 variável qualitativa do DSC. Contudo, após a construção do discurso-síntese, torna-se possível identificar a variável quantitativa para cada DSC. Essa variável possui dois atributos, a saber: intensidade e amplitude (Lefèvre & Lefèvre 2006). Dessa forma, Lefèvre e Lefèvre (2006) caracterizam intensidade como o número ou percentual de indivíduos que contribuíram com ECH e IC que esboçaram semelhanças ou se complementaram em determinado momento para a confecção dos diferentes discursos-síntese. No que diz respeito à amplitude, pode ser compreendida como a medida da presença do DSC considerando o campo ou universo. Pode-se dizer, desse modo, que o DSC é apropriadamente uma técnica qualiquantitativa, pois a pesquisa de resgate de representações sociais é de natureza qualitativa no sentido do seu objeto de investigação, ou seja a busca pelo pensamento coletivo, que não pode, imediatamente, ser identificado por recursos meramente quantificáveis (Lefèvre & Lefèvre 2006). Todavia, após a identificação das ideias centrais, expressões-chaves, ancoragens e confecção do DSC, é possível aplicar um tratamento quantitativo. Uma vez que a dimensão quantitativa da opinião se faz a partir de uma integração indissociável com a dimensão qualitativa, tendo em vista que dizem respeito à quantidade de indivíduos ou de respostas que contribuíram para a confecção de cada discurso-síntese (Lefèvre & Lefèvre 2005a). Portanto, ao contrário do que alguns pesquisadores apregoam, quantidade e qualidade são conceitos complementares e não mutuamente excludentes. Na técnica do DSC, por exemplo, há uma fusão inerente entre qualidade e quantidade, conforme defendem os autores (Lefèvre & Lefèvre 2005b). 120 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Assim, o DSC emerge como uma proposta que insere uma significativa mudança no campo das pesquisas qualitativas, que através desse procedimento metodológico assumem o status de pesquisas qualiquantitativas, ou de abordagem mista, uma vez que se possibilita conhecer e mensurar as representações de discursos de coletividades a respeito dos mais diversificados temas que interajam no âmago de sua realidade social (Figueiredo et al. 2013). Assim, para a aplicação correta da técnica do DSC, faz-se necessário o resgate do sentido das opiniões coletivas de um dado grupo, no âmago dessas opiniões coletivas será originado inúmeros DSC, sendo esse um processo complexo, que deve ser subdividido em vários momentos, respeitando uma ordem hierárquica de etapas bem estabelecidas, efetuado mediante operações que serão realizadas sobre o material coletado (Lefèvre & Lefèvre 2005a). Softwares para a construção do DSC: Qualiquantisoft e DSCsoft Posteriormente, os dados coletados devem ser apropriadamente transcritos para análise. Nesse momento, o pesquisador pode optar por executar a técnica manualmente ou utilizar, como auxílio para análise, o Qualiquantisoft. O uso do software é incentivado, considerando os aspectos particulares de organização dos registros e valorização da abordagem mista. Dessa forma, destaca-se que a finalidade desse programa é possibilitar uma notável otimização do trabalho técnico para a análise dos dados da pesquisa. Além disso, o software permite relacionar de modo eficaz os aspectos qualitativos e quantitativos de DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 121 estudos que utilizem o DSC para a análise de dados (Lefèvre & Lefèvre 2014b). O software é composto por cadastros (possibilitando arquivar dados e bancos de dados relativos a entrevistados, pesquisas e perguntas, entre outros); análises (são quadros e processos que tornam possível a realização das etapas pertinentes à construção dos Discursos do Sujeito Coletivo); ferramentas (responsáveis pela exportação e importação de dados, bem como dos resultados de pesquisa) e relatórios (realizam a organização e permitem a impressão dos resultados da pesquisa) (Lefèvre & Lefèvre 2014b). Todavia, salienta-se, em especial pelo Instituto de Pesquisa do Discurso do Sujeito Coletivo (IPDSC), que o QualiQuantiSoft pode ser classificado corretamente como um facilitador e não substituto, em nenhuma instância, do trabalho que deve ser realizado pelo pesquisador. Sendo, de fato, o referido software um auxílio relevante para o investigador. Assim, o Qualiquantisoft permite produzir o DSC adotando procedimentos mais fidedignos, sistemáticos, explícitos e padronizados, construindo, por meio da fala dos indivíduos, a fala do social, almejada pelo pesquisador. Esse processo, realizado com o uso do software, representa uma maior eficácia da atividade investigativa, além da economia de tempo para o pesquisador. No mais, o uso do Qualiquantisoft torna possível realizar o trabalho de pesquisa com amostras relativamente numerosas – quando se considera a realidade de pesquisas qualitativas – além de cadastros de dados importantes e a aplicação de filtros de acordo com as diferentes variáveis consideradas. Destaca-se que, atualmente, está disponível outro software para pesquisas com o DSC, o DSCsoft, considerado o novo software 122 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA do Discurso do Sujeito Coletivo. Salienta-se que o DSCsoft foi idealizado pelos mesmos criadores do Qualiquantisoft e a tendência é que ele o substitua gradativamente, uma vez que se apresenta como um software aperfeiçoado em comparação ao seu predecessor e com novos recursos e amplitude de alcance da análise das amostras. Portanto, é útil pontuar que o DSCsoft, além das ferramentas do Qualiquantisoft, dos avanços operacionais e visuais, apresenta uma capacidade maior para o registro dos discursos, possibilitando análise com amostras numericamente mais representativas. Permite também associar de forma mais efetiva os aspectos qualitativos e quantitativos dos estudos, produzindo o cruzamento de variáveis subjetivas e objetivas, tais como “crenças” e “idade”, por exemplo (DSCsoft 2015). Não obstante, embora a transição do Qualiquantisoft para o DSCsoft seja uma tendência natural e esperada, o Qualiquantisoft ainda é largamente utilizado por diversas instituições de ensino superior (IES) portadoras da licença, sendo adotado como programa padrão em instituições públicas e privadas que utilizam o DSC, o que justifica sua relevância no que tange à aplicação do método. O DSC e as pesquisas com abordagens etnobiológicas Conforme exposto anteriormente, no DSC, o pensamento é coletado a partir do uso de questões abertas, o que permite ao pensamento internalizado expressar-se por meio de um comportamento discursivo, possibilitando externar um fato social de interesse para o pesquisador. Dessa forma, o DSC possibilita empregar uma análise de dados capaz de aliar as vozes dos indivíduos que participaram da DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 123 pesquisa em diferentes discursos representativos, não excluindo sua subjetividade, característica de pesquisas qualitativas, ao mesmo tempo em que torna viável uma avaliação fidedigna e quantitativa das ideias expressas, a partir de um método específico, claro e reprodutível. Logo, considerando todas as razões apresentadas, que partem da gênese da análise de discurso firmando-se como método, da fundamentação teórica do DSC, bem como da aplicabilidade da técnica, reforça-se que o DSC é apropriado para a análise de dados em pesquisas etnobiológicas. Vejamos apenas alguns exemplos nesse sentido. Em estudo conduzido no município de Igarassu, na Mata Atlântica, estado de Pernambuco, Brasil, Silva et al. (2010) buscaram identificar as percepções da paisagem local pela visão de alunos do quinto ao oitavo ano, sendo o discurso do sujeito coletivo utilizado como uma das abordagens metodológicas para a análise dos dados, provavelmente, essa foi a publicação pioneira na utilização do DSC no campo das pesquisas em etnobiologia. Assim, no referido estudo, foram identificadas doze ideias centrais, juntamente com as expressões-chave correspondentes, apresentadas em tabelas, sendo possível traçar um panorama do pensamento coletivo das crianças acerca da paisagem local. Alguma importantes IC foram: I love the forest; We are happy because we have forests, they have many types of life; We are killing the forests, we have to preserve; People are destroying the forests and that is bad. We have to have preservation. Essas IC foram expressas por alunos da quinta, sexta, sétima e oitava séries, respectivamente (Silva et al. 2010). 124 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Destacam-se ainda expressões-chaves sensíveis indicadas pelos autores, tais como: “We are destroying the green of our forest… trees cut down and animals hunted… deforestation is a crime against nature. We humans have to cut down trees and then plant others” (Silva et al. 2010, p. 204) and “I think of the riches that the forest gives us. I am afraid that the day will come when we won’t see these landscapes any more… People should take care of the forest” (Silva et al., 2010, p. 205). Algo que se tornou evidenciado mediante os DSC foi a visão conservacionista em todas as séries consideradas na pesquisa. Na dissertação de Lemos (2015), a técnica também foi utilizada. O objetivo do estudo foi conhecer saberes tradicionais acerca do uso de recursos naturais utilizados para o tratamento de infecções respiratórias agudas, diarreias e anemias em crianças residentes em uma comunidade tradicional localizada no nordeste do Brasil. O enfoque qualitativo do estudo deu-se mediante a busca da compreensão do significado atribuído ao uso desses recursos tradicionais pelas mães ou responsáveis das crianças, bem como o reflexo dessa prática para a medicina convencional. Na análise de dados com o DSC, foram identificas 46 ideias centrais para cinco perguntas, que revelaram uma valorização do uso de recursos naturais para tratar as doenças comuns na infância. Um aspecto relevante a ser pontuado foi a organização dos dados priorizando a abordagem mista permitida pelo DSC, expondo aspectos qualitativos e quantitativos dos discursos. Os dados foram organizados em tabelas e quadros, além da representação escrita (Lemos 2015). Uma das perguntas realizadas foi: em algum momento, chegou a conversar com um profissional de saúde sobre o uso que DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 125 faz de plantas ou de partes de animais no tratamento das doenças de seus filhos? Conte como foi. Apenas para essa pergunta, emergiram nove IC. Dentre elas destacam-se: Sim, mas fui repreendida (o) e não falei mais; Não, porque tive medo e/ou vergonha; Já tentei, mas eles não deram atenção; Não, porque eles não perguntam, não demonstram interesse e Não, porque eles não acreditam na eficácia desse tipo de tratamento (Lemos, 2015). Assim, de acordo com a autora, os resultados oriundos das análises pelo DSC tornaram possível evidenciar que considerar aspectos culturais na abordagem assistencial à saúde da criança é relevante, uma vez que são recursos largamente utilizados pelas famílias e encarados como opções terapêuticas eficazes para uma gama de sintomas e de situações de saúde no contexto das doenças prevalentes na infância (Lemos, 2015). No artigo de Sousa et al. (2017), conduzido em uma comunidade quilombola do nordeste do Brasil, o DSC também foi o método de escolha para organização e análise dos dados, o objetivo da pesquisa foi investigar as formas de uso e de armazenamento de plantas encontradas na comunidade. Diferentemente dos exemplos anteriores mencionados, para esse estudo os dados foram elencados dando ênfase apenas aos DSC como os principais operadores do método e focando, exclusivamente, na análise qualitativa dos discursos. Alguns trechos particularmente interessantes do estudo de Sousa et al. (2017) e que podem ser pontuados nos discursos representados são: “Eu aprendo com os mais velhos daqui [...] Minha avó foi uma benção, foi uma bênção para pessoas daqui e do Coqueiro. Minha tia orou aqui e minha mãe é [...] uma curandeira para as crianças” – sobre com quem aprendeu a utilizar as plantas (p. 233); “Eu planto aqui no quintal. Eu planto e cuido para que não morra 126 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA com a seca. Quando não há (plantas) aqui ao redor da casa, eu procuro na casa da minha mãe ou na casa de um vizinho.” – sobre como consegue as plantas mencionadas (p. 234) e “Faz o bem, não faz o mal. O remédio da planta é melhor que o remédio da farmácia. Faz a gente ficar melhor. Então, faz bem e não prejudica. Não faz mal algum” – sobre os efeitos adversos e contraindicações relacionadas ao uso das plantas (p. 235). Na pesquisa de mestrado de Alves (2017), o autor buscou analisar a relação entre o uso de plantas, suas significações, e o tratamento convencional e tradicional para pessoas diagnosticas com hipertensão arterial sistêmica (HAS) em uma comunidade quilombola do nordeste do Brasil. Nesse estudo foi possível evidenciar inúmeras IC, a partir da aplicação da técnica do DSC com a realização de seis perguntas subjetivas. Portanto, no estudo de Alves (2017), alguns pontos peculiares foram: a realização da análise em consonância com a teoria das representações sociais – o que possibilita uma visão mais crítica e ampla dos processos investigados –, a identificação de ancoragens para respaldar e validar um pensamento largamente difundido na comunidade e a abordagem interdisciplinar que permeou todo o estudo, aliando discussões relevantes no âmago das ciências biológicas e das ciências da saúde. Os dados foram apresentados mediante representação escrita dos discursos e organizados em quadros, priorizando o enfoque qualitativo do método. Nesse sentido, segundo o referido autor, através dos discursos foi possível compreender o significado atribuído à HAS e sua relação direta com a cultura e com os aspectos psicossociais, fatores que vão refletir diretamente nas formas de tratamento e no esquema terapêutico adotado por diferentes populações. No caso investigado, DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 127 isso ficou evidente através do uso de plantas em detrimento ao tratamento convencional, conforme reportado por alguns moradores (Alves 2017). Vale mencionar ainda a pesquisa de Brasil et al. (2017), que buscou avaliar a preferência entre fármacos ou plantas para o manejo da dor em uma comunidade quilombola. Nesse aspecto, o estudo adotou o DSC como método de análise das expressões verbais dos participantes, aliando variáveis qualitativas e quantitativas, com uma amostra expressiva – no contexto dos métodos qualitativos para análise – de cinquenta e dois residentes. Assim, a pesquisa de Brasil et al. (2017), concluiu que a maioria dos participantes do estudo utilizavam chás para o manejo da dor e, embora alguns utilizassem medicamentos convencionais, atribuíam às plantas uma maior eficácia no tratamento da dor. Um aspecto notório da pesquisa foi a utilização da representação clássica na expressão dos dados, com todas as IC elencadas para cada pergunta e todos os DSC expressos para uma visualização mais fidedigna dos pensamentos representados pela comunidade. Frisa-se que foram vinte e seis IC distribuídas para um corpo de quatro perguntas subjetivas. Por exemplo, para a questão que versava sobre a opinião dos moradores no que tange ao preparo caseiro com plantas para o tratamento da dor, as IC prevalentes foram: “É bom porque é eficaz/ funciona”, expressa por 61,54% e “É bom, mas depende do tipo de dor”, foi indicada por 21,15% dos participantes (Brasil et al., 2017). Para a pergunta que tratava acerca da visão dos moradores no que diz respeito aos fármacos convencionais, a IC mais pontuada foi: Eles são eficazes, mas o chá é melhor, para 38,46% da amostra. Sobre o uso em associação das plantas e dos fármacos, 88,46% 128 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA relataram que não utilizam porque pode causar envenenamento. No que concerne à substituição dos fármacos pelas plantas, 51,92% expressaram não substituir, mas não souberam identificar as razões para isso (Brasil et al. 2017). Vale pontuar ainda alguns importantes discursos na pesquisa de Brasil et al. (2017), tais como: “[...] o remédio da farmácia não funcionou, com fé em Deus eu fiquei bom, com remédios das plantas. Já tomei paracetamol uma vez e não deu certo [...] tomei chá e resolveu ”. (p. 777); “Não! “Deus!” Você não pode pegar os dois porque pode envenenar. Todos aqui sabem que você não pode pegar os dois juntos: a planta e a droga; é arriscar demais” (p. 776) e “eu não troco meu chá, eu bebo chá primeiro. Eu vejo as pessoas indo para os centros de saúde, para o hospital, eu não vou. Acho que é uma perda de tempo porque tenho tudo aqui [...]” (p. 775). Contudo, alguns aspectos devem ser discutidos no que diz respeito à utilização do DSC em pesquisas etnobiológicas, visando um aperfeiçoamento do emprego da técnica, possibilitando análises mais aprimoradas e, consequentemente, uma maior qualidade das pesquisas publicadas. Assim, pelo menos dois aspectos são dignos de nota: a forma de apresentação dos dados e o caso da teoria das representações sociais. Uma das grandes vantagens do DSC é possibilitar a representação de dados subjetivos, de forma precisa, traçando um quadro geral dos pensamentos expressos de uma dada população. Quando não evidenciamos alguns dos operadores básicos do método na apresentação dos nossos resultados, tais como ECH e IC, podemos distorcer ou tornar nebulosa a compreensão geral dos resultados alcançados. Sendo cabível uma organização meticulosa dos operadores DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 129 básicos, quer na forma textual escrita simples, ou utilizando tabelas e quadros. Em parte, esse problema deve-se à internalização das formas mais comuns de análise de dados qualitativos, bem como sua apresentação. No entanto, esse fato pode comprometer, como frisado, a compreensão dos resultados, assim como não evidenciar características próprias do método, o que seria lamentável. Atrela-se a essa problemática, também, a falta de domínio da operacionalização do DSC. Outro fato que contribui para uma organização e apresentação ineficaz dos dados é a não utilização dos softwares específicos para o DSC. Embora, frise-se, não seja um requisito, é largamente aconselhável a utilização do Qualiquantisoft e, mais recentemente, do DSCsoft, como ferramentas auxiliares no processo de análise pelo DSC, possibilitando uma melhor organização e tabulação dos resultados, aliando aspectos objetivos e subjetivos. Outro aspecto que precisa ser melhorado nas publicações que se valem do DSC é a consideração da fundamentação teórica do método, ancorada na Teoria das Representações Sociais (Lefèvre & Lefèvre 2014), quando alijada do contexto das análises, essas tornam-se superficiais e não elucidadoras, fornecendo apenas uma visão pragmática e descritiva dos achados. Assim, o DSC não pode ser dissociado das considerações teóricas que permeiam o método, caso contrário, estaríamos analisando somente conteúdos, numa perspectiva clássica, e não discursos. 130 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Considerações finais Desse modo, os estudos citados no decorrer do capítulo são apenas alguns exemplos práticos de como o DSC pode ser eficazmente aplicado no contexto das pesquisas etnobiológicas, independente da vertente etnobiológica considerada. Defende-se, portanto, que o DSC vai além da simples representação mecânica dos discursos ou representação escrita de expressões verbais alocadas em uma dada categoria de forma impessoal e aleatória, conforme observa-se em outros métodos largamente utilizados para as pesquisas qualitativas. Enquanto método de organização, tabulação e análise de dados fundamentado na teoria das representações sociais, o DSC constitui-se particularmente interessante pois possibilita aliar diferentes vozes representativas de um dado pensamento coletivo em sentenças claras e consonantes, traçando um panorama real e tangível dos discursos de diferentes indivíduos, auxiliando na análise mais cabal dos resultados obtidos em campo. Sua operacionalização sistemática – além do auxílio dos softwares desenvolvidos especificamente para análises pelo DSC – contribui na construção de sentenças bem delineadas e precisas, sem perder, contudo, a subjetividade inerente ao pensamento e possibilita-nos, mediante os discursos expressos, esquadrinhar o âmago das representações imbuídas em cada frase, o que repousa no cerne da AD. Outro aspecto vantajoso, é o fato do DSC ser aplicável em amostras de larga amplitude e isso deve-se ao processo metodológico adotado para ele, possibilitando, inclusive, o cruzamento posterior de variáveis objetivas e subjetivas. Conseguintemente, de acordo com os autores do método, o DSC não apenas permite esse DISCURSO DO SUJEITO COLETIVO COMO MÉTODO DE ANÁLISE DE DADOS EM PESQUISAS ETNOBIOLÓGICAS 131 tipo de associação qualitativa e quantitativa, como também evidencia a necessidade de um tratamento misto dos dados (Lefèvre & Lefèvre 2012). Dessa forma, diante de todas as características salientadas para o DSC e sua singularidade no âmbito das análises de dados dos estudos qualitativos, reforça-se que sua utilização em pesquisas etnobiológicas tem o potencial para enriquecer as análises subjetivas de pensamentos, de crenças e de conceitos. Assim, quando vamos ao campo, realizar nossos levantamentos, nossas anotações e registros, há sempre uma presença que perpassa por esses dados objetivos, quer seja antes da pesquisa, durante a condução do estudo ou após as impressões iniciais e as avaliações de impactos, essa presença é a presença humana, rica em relatos subjetivos, experiências e valores. Esses aspectos qualitativos, que se confundem historicamente com o próprio surgimento de estudos etnográficos com Boas e, mais notoriamente, Malinowski, podem ser explícitos ou implícitos e desconsiderá-los não nos aproxima de uma análise mais robusta e cientificista, mas afasta-nos de um dos aspectos centrais de nossos estudos etnobiológicos e que repousa no berço da Antropologia: as próprias relações e representações humanas. Agradecimentos Agradecemos a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5034390903877). 132 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Referências Alves DA. 2017. Utilização de plantas medicinais em pessoas com hipertensão arterial sistêmica: estudo etnobotânico em uma comunidade quilombola. Dissertação (mestrado em Enfermagem). Departamento de Enfermagem, Universidade Regional do Cariri, Crato, Brasil. Bauer MW, Gaskell G. 2015. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático (Pt.). Petrópolis: Editora Vozes. Brasil AX, Barbosa MO, Lemos ICS, Lima CNF, Delmondes GA, Lacerda GM, Monteiro AB, Dias DQ, Silva AA, Fernandes GP, Barbosa R, Menezes IRA, Coutinho HDM, Felipe CFB, Kerntopf MR. 2017. Preference analysis between the use of drugs and plants in pain management in a quilombola community of the state of Ceará, Brazil. 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A maneira como nós o percebemos, por sua vez, pode ser influenciada por filtros físicos, psicológicos (Bell 2001) e culturais (Okamoto 2002). Chegamos, assim, ao conceito de percepção ambiental que corresponde à representação que os indivíduos fazem do seu ambiente, o que possibilita que compreendam os cenários e mudanças ambientais que os cercam (García-Mira & Real 2005). Muitas das mudanças ambientais que as pessoas percebem podem ser interpretadas como circunstâncias potencialmente desfavoráveis ou prejudiciais, o que pode ser definido como risco (Smith et al. 2000). Outras definições apontam risco ambiental como a probabilidade de ocorrer efeitos adversos como consequência de um fenômeno ambiental (Sjöberg 2000a; b; United Nations Office for Disaster Risk Reduction 2009). Diante de variações e conotações para o mesmo termo, é importante que o pesquisador tenha COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 135 o cuidado de definir bem o que está considerando como risco ambiental em sua pesquisa. Em pesquisas etnobiológicas, a análise da percepção de risco pode ser uma ferramenta muito útil na busca de uma melhor compreensão e busca de soluções para problemas percebidos e enfrentados localmente (Smith et al. 2000; Quinn et al. 2003). Na coleta e na análise dos dados de percepção de risco ambiental, diferentes métodos podem ser utilizados, a depender dos objetivos da pesquisa. Nesse capítulo, detalharemos alguns desses métodos, conceituando-os e mostrando a sua aplicabilidade em diferentes tipos de estudos de percepção de risco ambiental. Métodos de coleta e análise de dados na pesquisa em percepção de risco ambiental Entrevistas Uma das técnicas mais comumente utilizadas para acessar a percepção local de riscos ambientais são as entrevistas (Campos et al. 2014; Wang & Cao 2015). Dentre as vastas opções de entrevistas, o que mais se observa nesses tipos de estudos são as semiestruturadas. Elas se baseiam em um roteiro contendo perguntas flexíveis, levando em consideração questões que possam surgir no decorrer da entrevista (Albuquerque et al. 2014). Essa técnica também possibilita que o informante fique a vontade para se expressar em seus próprios termos e de acordo com suas convicções próprias. No entanto, o pesquisador deve ficar atento para que o foco da pesquisa não seja perdido em função dessa flexibilidade (Albuquerque et al. 2014). 136 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Embora esse método seja feito “face a face” com o informante, e qualquer dúvida possa ser esclarecida na ocasião, dependendo de como a pergunta for feita, é possível que ocorram diferentes interpretações. Por exemplo, se perguntarmos ao informante “Como o senhor percebe e se ajusta as mudanças climáticas?”, pode ser que ele não entenda do que se trata, devido a forma como a pergunta foi elaborada. Nesse caso, ele pode tomar uma dessas duas atitudes: ele pode responder que não sabe, ou que não entendeu. Diante da situação relatada acima, o pesquisador deve reformular a pergunta de forma que fique mais claro para o informante. Em alguns casos, o mesmo pode agir diferente dessas duas situações, tentando responder com base no seu entendimento, o que muitas vezes não é pautada no pleno entendimento da questão de interesse do investigador. Geralmente, as entrevistas apresentam duas seções principais. A primeira consiste em informações socioeconômicas dos informantes como: nome, idade, gênero, profissão entre outros. A segunda parte se destina a identificar as questões especificas do estudo como: a percepção das pessoas sobre o risco ambiental, quais são os potenciais impactos gerados por esses riscos, como eles podem afetar suas atividades diárias, e quais medidas eles tomam para se adaptarem, ou prevenirem os riscos percebidos localmente (Wang & Cao 2015). Assim, as pessoas podem informar ao pesquisador sobre as suas formas de gerenciar os riscos de acordo com o clima atual, que pode ser feita, por exemplo, a partir da diversificação de culturas agrícolas, cultivando as espécies mais resistentes a seca em tempos de escassez de chuva, o uso de irrigação para suprir a demanda de água das plantações (Campos et al. 2014), entre outros. COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 137 Estímulo com desenhos O método de estímulo com desenhos é uma ferramenta que pode ser usada com pessoas de diferentes faixas etárias. No entanto, é mais comumente utilizado para integrar crianças em estudos de percepção de risco ambiental, visto que evidências apontam que diante de mudanças ambientais extremas como seca e inundações, as crianças estão mais expostas e vulneráveis a esses riscos (United Nations Children’s Fund 2008). Além disso, o desenho é considerado uma maneira de comunicação e expressão de sentimentos e uma forma de representar como o indivíduo vê os acontecimentos do mundo externo (Barraza 1999; Hume et al. 2005). Logo, por meio do desenho, as crianças podem representar sua compreensão do mundo natural, tornando-se uma maneira eficaz de aprender como os desastres afetam suas vidas, bem como os perigos podem ser minimizados (Pellier et al. 2014; Taylor & Peace 2015). No entanto, é importante alertar que esse método requer um maior tempo para execução, e uma eventual falta de habilidade do público infantil com desenho pode ser uma limitação que deve ser levada em consideração pelo pesquisador (Silva et al. 2016a). De fato, os desenhos são uma importante ferramenta para acessar a percepção e/ou conhecimento ambiental local, mas ainda são poucos os estudos que trabalham com essa perspectiva, e em se tratando do público infantil, os estudos ainda são mais escassos (Taylor & Peace 2015). Além disso, é importante destacar que em comparação com as gerações mais antigas, crianças podem ter uma visão mais atualizada sobre as condições ambientais locais e essas informações podem ser úteis para entender a realidade ambiental atual em comparação com a passada (Pellier et al. 2014). 138 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Como exemplo, apresentamos o estudo de Taylor & Peace (2015) na Indonésia. Entre métodos múltiplos, os autores usaram o desenho para avaliar a percepção de risco infantil e sua capacidade de responder aos impactos de inundações (Quadro 1, Fig. 1). Taylor & Peace (2015) observaram que as crianças apresentaram suas próprias ideias e perspectivas de ação diante dos riscos ambientais enfrentados, sugerindo que o desenho pode fornecer informações importantes sobre a resiliência infantil face catástrofes ambientais. Quadro 1. Etapas, com adaptações, usadas por Taylor & Peace (2015) para acessar a percepção ambiental de crianças e entender como elas agem diante de eventos inundações na comunidade local. Fase 1 Elaboração de perguntas-chaves para direcionar as crianças no momento da pesquisa que estejam diretamente relacionadas ao objetivo da pesquisa. Fase 2: Percepção de risco ambiental “Como você vê as enchentes aqui na comunidade (...)” “Desenhe sobre a enchente que ocorre aqui na comunidade (...)” Fase 3: percepção sobre adaptação diante risco percebido “O que sabem sobre prevenção das enchentes (...)” “O que você faz em momentos de enchentes (...)” “O que te impede de fazer essa ação (...)” Pellier et al. (2014) apontaram que, por meio de desenhos, as crianças foram capazes de transmitir suas percepções acerca das COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 139 condições ambientais atuais e futuras. As crianças podem ainda fazer associações sobre condições da fauna e flora local úteis em estudos que visem gestão sustentável dos recursos naturais face às mudanças ambientais globais (ver Pellier et al. 2014). Sendo assim, para uma melhor compreensão de como direcionar e analisar informações obtidas neste tipo de estudo, no quadro 2 apresentamos um caso hipotético, elaborado a partir de uma adaptação da metodologia usada por Silva et al. (2016a) em um estudo de percepção ambiental com crianças. Quadro 2. Etapas para analisar o conteúdo dos desenhos, adaptado de Silva et al. (2016a). Considere, como exemplo, a Fig. 1 e veja as etapas descritas abaixo: (a) Criar categorias para analisar as informações contidas nos desenhos, por exemplo, categoria para inserir componentes bióticos e abióticos; (b) Criar categoria para percepção de risco evidenciado pela criança, por exemplo, desmatamento oriundo do ser humano; (c) Contagem de cada elemento contido no desenho e posterior agrupamento em suas respectivas categorias; (d) O pesquisador poderá optar por ver a frequência de citação por gênero, idade, escolaridade e/ ou comparação de comunidades diferentes, essa etapa irá depender da pergunta norteadora do estudo. 140 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Figura 1. Ilustração da realidade ambiental relacionada a flora local, feita por uma criança de comunidade rural no entorno do Parque Nacional da Chapada Diamantina, Bahia, Brasil. Fonte: Oliveira et al. (2013). Incidência e gravidade do risco percebido Uma forma de avaliar quantitativamente os riscos é por meio de algumas técnicas proposta na literatura. Nesse tópico, discutiremos o Mapeamento de Risco Participativo (PRM, do inglês Participatory Risk Mapping), método desenvolvido originalmente por Smith et al. (2000) e depois adaptado por Baird et al. (2009), utilizado para acessar a percepção de riscos ambientais. Em relação a outros métodos usados com essa mesma finalidade, o PRM tem a vantagem de ser um método muito preciso na sua aplicação, o que facilita a identificação e classificação dos fatores que causam os riscos percebidos pelas pessoas (Silva et al. 2014). O PRM permite, também, que o pesquisador avalie o potencial que determinado COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 141 risco possui de impactar o modo de vida das pessoas (Quinn et al. 2003). Em primeiro lugar, o pesquisador deverá pedir, por meio de entrevistas, que as pessoas citem os riscos que elas percebem. Logo depois, as pessoas são convidadas a ordenar e classificar os riscos que elas citaram de acordo com o nível de impacto que eles causam em suas vidas, o que Smith et al. (2000; 2001) chama de gravidade. Uma grande vantagem do PRM é que ele permite que as próprias pessoas decidam quais os riscos mais comprometem a sua qualidade de vida (Baird et al. 2019; Smith et al. 2000; 2001), ou seja, o pesquisador não influencia nas respostas dos informantes. Como pesquisadores, devemos prestar atenção em duas situações que podem acontecer no momento em que as pessoas classificarem o risco: diferentes pessoas podem usar termos distintos para o mesmo risco (Smith et al. 2000; 2001); e a mesma pessoa pode citar mais de um fator causador de determinado risco (Silva et al. 2014; Silva et al. 2016b). Nesse caso, algumas perguntas, como “Em que situação pode ocorrer esse risco?” e “Como esse risco pode ser evitado?”, podem nos ajudar a obter respostas mais precisas, o que vai facilitar no processo de posterior classificação dos riscos. Posteriormente, o pesquisador deve medir a frequência com que o risco é percebido e identificado, e os riscos percebidos como mais graves, respectivamente: a Incidência do Risco (I) e o Índice de Gravidade (S). Caso resolva adotar o modelo de Smith et al. (2000) em seu estudo, o pesquisador deverá classificar os riscos de acordo com a gravidade atribuída pelo informante, representando-os por números em uma escala decrescente (o número 1 representará o risco mais grave; o número 2, o segundo risco mais grave; e assim por diante). Logo a seguir, as pessoas devem ser estimuladas 142 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA a apresentar maneiras de como resolver ou amenizar cada um dos riscos citados e classificados (estratégias adaptativas). A proporção de pessoas que identificaram uma fonte de risco corresponderá ao Índice de Incidência (Ij), que será calculado pela equação Ij = nr / nj, no qual nr representa o número de vezes que o risco foi citado, e nj representa o número total de informantes. Os valores de I representam a dimensão do risco no contexto da população em estudo, e podem variar de 0 (menor frequência de citações) a 1 (todos os entrevistados citaram). O Índice de Gravidade (S) representa o número e a classificação dos fatores de risco citados por cada pessoa, e seu valor pode variar de 1 (mais grave) à 2 (menos grave). Sj é calculado pela equação Sj = 1 + (r – 1) / (n – 1), na qual r representa a classificação do risco com base na ordem indicada pelo informante, e n representa a quantidade de fatores de riscos citados pelas pessoas. Após concluir o cálculo, teremos: o risco mais grave (r = 1) para Sj = 1; o risco menos grave (r = n > 1) para Sj = 2; e os riscos remanescentes para valores intermediários distribuídos igualmente. No quadro 3, apresentamos um exemplo hipotético de cálculo de Índice de Severidade (S) e Incidência do Risco (I). COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 143 Quadro 3. Exemplo hipotético de cálculo de Índice de Severidade (S) e de Incidência do Risco (I), conforme Smith et al. (2000). Classificação Fatores de risco (r) Número de fatores (n) I 1 2 3 4 Escassez de alimento Falta de água Pragas agrícolas Falta de saneamento 4 1 1,33 1,66 2 II 1 2 Falta de saneamento Falta de água 2 1 2 III 1 2 3 Escassez de alimento Falta de água Falta de saneamento 3 1 1,5 2 Informantes Sj Fatores de risco Índice de Severidade (S) Incidência do Risco (I) Escassez de alimento Falta de água Falta de saneamento Pragas agrícolas 1 1,61 1,66 1,66 0,66 1 1 0,33 Após o cálculo das duas medidas, elas podem ser combinadas para compor um terceiro índice: o Risco Total (R), representado pela equação Rαβ = αI / βS, na qual α representa o valor do Índice de Incidência, e β corresponde ao valor do Índice de Gravidade. É interessante notar que, caso α = 1 e β = 1, teremos a medida representada pela fórmula R11 = I / S, que representa uma variância de 0 (incidência nula) à 1 (risco mais grave). 144 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Caso opte pelo modelo de PRM modificado por Baird et al. (2009), o cálculo do Índice de Incidência (Ii) seguirá os mesmos passos do modelo original proposto por Smith et al. (2000), conforme vimos anteriormente. A diferença está no cálculo do Índice de Gravidade (Sj), que deverá ser calculado em duas etapas. Primeiramente, o pesquisador terá que obter o valor individual do índice de severidade do risco (R ij), cuja fórmula é R ij = 1 – rij - 1 / ni, na qual nj representa o número total de riscos (nj) mencionado por cada informante (i) e r representa a classificação de cada risco individualmente. Depois, todos os resultados encontrados individualmente para R ij deverão ser somados e divididos pelo número de vezes que o risco foi citado como o mais grave (Nj). Assim, obtemos o Índice de Gravidade, pela equação Sj = ∑ i - 1Nj = 1 - R ij / Nj. Nesse modelo, Sj tem valores entre 0 (riscos que não são considerados graves) e 1 (riscos graves). Os resultados encontrados podem ser representados por meio de um mapa de risco que é um gráfico que permite ao pesquisador determinar o espaço e a distribuição da incidência e da severidade do risco. Para essa finalidade, o PRM conforme Baird et al. (2009) é mais recomendado, uma vez que o tipo de classificação do Índice de Gravidade (Sj) utilizado nesse modelo, conforme vimos no parágrafo anterior, facilita tanto o processo de elaboração como de interpretação dos mapas de risco (Baird et al. 2009). Como exemplo prático, apresentamos abaixo (Fig. 2) um modelo de mapa de risco ambiental desenvolvido com dados obtidos em um estudo realizado em uma comunidade rural do nordeste brasileiro (Oliveira et al. 2017). COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 145 Figura 2. Modelo de mapa de risco ambiental percebido (Siglas: RL – Religiosidade, UE – Desemprego, DROUGHT – Seca/ inverno descontrolado/ falta de chuva/ pouca chuva, IVC – insegurança/ violência/ crime, YPW – Jovens não querem trabalhar, WR – Redução da fauna silvestre, WC – Clima quente, NFR – Redução da flora nativa, PLG e pragas, e PNS – solo pobre em nutrientes). Fonte: Oliveira et al. 2017). Na figura 2, observamos o seguinte: dois riscos considerados pela população como graves, mas não como incidentes (falta de religiosidade, desemprego); um risco percebido localmente como grave e incidente (seca); riscos que não são considerados graves nem incidentes (violência, redução da flora nativa, redução da vida selvagem, pragas agrícolas); e, por fim, um risco percebido como incidente, mas não como grave (pobreza de nutrientes do solo). Em estudos etnobiológicos, a elaboração de mapas de riscos pode ser muito útil, por exemplo, para avaliar os fatores de risco que podem impactar o modo de vida de pessoas residentes em áreas de conflitos socioambientais. Além disso, eles podem também auxiliar 146 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA na identificação de grupos ou estratos sociais que percebem determinados riscos ambientais como mais severos (Silva et al. 2014). Riqueza e compartilhamento de riscos percebidos Originalmente, o Índice de Riqueza do Conhecimento (KWI, do inglês Knowledge Wealth Index) e o Índice de Compartilhamento de Conhecimento (KSI, do inglês Knowledge Sharing Index) surgiram como uma proposta de nova medida quantitativa simples, focada nas pessoas e nos conhecimentos que elas possuem, e no compartilhamento e na singularidade das informações obtidas (Araújo et al. 2012). Dessa forma, essas medidas permitem que o pesquisador: tome decisões e teste hipóteses sobre a distribuição do conhecimento em uma comunidade, bem como estime a riqueza e o compartilhamento de informações entre as pessoas (Araújo et al. 2012), considerando a semelhança entre pessoas dentro de um mesmo grupo social (Oliveira et al. 2017). Abordaremos, nesse tópico, o uso dos índices de riqueza e de compartilhamento de riscos percebidos, adaptados por Oliveira et al. (2017) a partir do modelo proposto por Araújo et al. (2014). O KWI representa uma medida de distância, cujos valores variam entre 0 e infinito. Quanto menor for o valor de KWI, maior será a quantidade de riscos percebidos e de estratégias adaptativas correspondentes citadas pelos informantes (Oliveira et al. 2017). Essa relação é determinada pela equação KWIi = 1 / ∑Ji2, na qual Ji = Pi / Ci. Pi: Pi representa a quantidade de riscos e estratégias adaptativas citadas por cada participante; e Ci representa os riscos e estratégias adaptativas totais citadas pela comunidade local. Para simplificar COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 147 esses cálculos, recomendamos, conforme Araújo et al. (2014), que mais de um informante seja entrevistado por cada casa, levando em consideração que a família é a unidade amostral da pesquisa. O KSI também é uma medida de distância, e os seus valores podem variar entre 0 e 1. O índice é expresso pela equação KSI = KWIi / KWImax, na qual KWIi representa o grau de compartilhamento de informações entre cada participante, e KWImax representa o grau de compartilhamento de informações entre componentes da comunidade local em questão (Araújo et al. 2012). O menor grau de compartilhamento é representado pelo valor 1. Para facilitar a análise dos dados obtidos, recomendamos que eles sejam organizados em categorias. Como exemplo, apresentamos o estudo de Oliveira et al. (2017), que optaram por organizar seus dados em duas categorias: percepção de risco ambiental, que incluiu os riscos percebidos relacionados às mudanças ambientais; e percepção de risco sociocultural, que englobou os riscos percebidos relacionados aos impactos das mudanças ambientais no modo de vida das pessoas (Quadro 4). 148 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Quadro 4. Formas de categorização de riscos percebidos. Fonte: Oliveira et al. (2017) Riscos percebidos Categorias Subcategorias Número de citações Percepção de risco ambiental Fenômenos climáticos 54 Seca/ falta de chuva/ inverno descontrolado/ longo verão 27 Clima mais quente 2 (n = 7) 30 Abundância populacional (fauna/ flora) Redução da flora nativa Crescimento da flora nativa Redução da vida selvagem Qualidade do solo Solo pobre em nutrientes Agricultura Pragas Percepção de risco sociocultural Sociocultural (n = 5) Jovens desmotivados para trabalhar no campo 9 Insegurança/ violência/ crime Saúde debilitada Desemprego Religiosidade (falta de fé, falta de compromisso com a igreja) No estudo exemplificado acima, Oliveira et al. (2017) buscaram avaliar a relação entre o grau de religiosidade/ espiritualidade de uma população rural do Nordeste Brasileiro e a riqueza e o compartilhamento de riscos percebidos localmente, e as estratégias adaptativas desenvolvidas. Para testar essa relação, os autores utilizaram modelos lineares generalizados (GLM, do inglês Generalized COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 149 Linear Models) com distribuição gaussiana, onde os valores obtidos referentes aos graus de religiosidade/ espiritualidade foram utilizados como variáveis explicativas e as medidas do índice de riqueza e do índice de compartilhamento de risco percebido – e das estratégias adaptativas – foram utilizados como variáveis respostas. Como resultado, os autores não encontraram uma relação significativa entre o grau de religiosidade/ espiritualidade e a riqueza e o compartilhamento de risco, e com estratégias adaptativas (Oliveira et al. 2017). A mesma metodologia utilizada por Oliveira et al. (2017) pode ser aplicada em qualquer estudo etnobiológico no qual se busque avaliar a relação entre uma variável explicativa qualquer (grau de escolaridade, por exemplo) e a riqueza e o compartilhamento de riscos percebidos localmente. Dessa forma, o uso do KWI e do KSI em estudos etnobiológicos pode ser uma ferramenta bastante útil para se obter informações sobre como a riqueza e o compartilhamento de informações – no nosso caso, percepção de risco – surgem entre famílias, comunidades e/ ou grupos sociais diversos (Araújo et al. 2012). Agradecimentos Agradecemos a Springer pela permissão concedida para reprodução deste texto, publicado no livro Methods and Techniques in Ethnobiology and Ethnoecology (2019), (Número da Licença: 5032020472397). 150 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Referências Albuquerque UP, Ramos MA, Lucena RFP, Alencar NL. 2014. Methods and techniques used to collect ethnobiological data. In: Albuquerque UP, Cunha LVFC, Lucena RFP, Alves RRN (eds) Methods and techniques in ethnobiology and ethnoecology. Springer Protocols Handbooks, Humana Press. p. 15-37. Araújo TAS, Almeida ALS, Melo JG, Medeiros MFT, Ramos MA, Silva RRV, Almeida CFCBR, Albuquerque UP. 2012. 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COLETA E ANÁLISE DE DADOS EM PERCEPÇÃO DE RISCO AMBIENTAL 151 Silva TC, Chaves LS, Albuquerque UP. 2016a. What is environmental perception? In: Albuquerque UP, Alves RRN (eds) Introduction to ethnobiology. Springer International Publishing Switzerland. p. 93-97. Silva TC, Cruz MP, Araújo TAS, Schwarz ML, Albuquerque UP. 2014. Methods in research of environmental perception. In: Albuquerque UP, Cunha LVFC, Lucena RFP, Alves RRN (eds) Methods and techniques in ethnobiology and ethnoecology. Springer Protocols Handbooks, Humana Press. p. 99-109. Silva TC, Ferreira Jr WS, Santoro FR, Araújo TAS, Albuquerque UP. 2016b. Risk perception. In: Albuquerque UP, Alves RRN (eds) Introduction to ethnobiology. Springer International Publishing Switzerland. p. 111-116. Sjöberg L. 2000a. Factors in risk perception. Risk analysis 20: 1-11. Sjöberg L. 2000b. The methodology of risk perception research. Quality & Quantity 34: 407-418. Smith K, Barrett CB, Box PW. 2000. 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Climate change perspectives in an Alpine area, Southwest China: a case analysis of local residents’ views. Ecological Indicators 53: 211-219. 152 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES Michelle Cristine Medeiros Jacob, Ivanilda Soares Feitosa (in memoriam), Joana Yasmin Melo de Araújo, Natalia Araújo do Nascimento Batista, Temóteo Luiz Lima da Silva, Virgínia Williane de Lima Motta, Dirce Maria Lobo Marchioni e Ulysses Paulino de Albuquerque A té então, as avaliações do consumo alimentar abordam a cultura local e a biodiversidade de modo limitado, com implicações negativas para avaliações dietéticas (Fao 2017; Fao 2018). A imprecisão no mapeamento da biodiversidade alimentar durante levantamentos dietéticos, por exemplo, pode subestimar a adequação de micronutrientes na dieta de determinada população. No caso de plantas alimentícias não convencionais, que frequentemente são ignoradas em inquéritos dietéticos, Powell et al. (2013a) argumentam que, embora essas plantas contribuam pouco para a energia total da dieta, elas são fontes de vários grupos alimentícios, contendo MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 153 micronutrientes de interesse nutricional global, incluindo ferro, zinco, vitamina A e folato; veja também Powell et al. (2013b). De forma similar, as técnicas de processamento local podem afetar a composição nutricional da dieta, visto que alteram a biodisponibilidade de certos nutrientes. O processamento alcalino tradicional do milho (Zea mays L.), por exemplo, melhora a qualidade nutricional desse alimento, aumentando as quantidades de aminoácidos essenciais disponíveis e os precursores da niacina e da própria niacina (Katz et al. 1974; Dezendorf 2013). Esse processo culinário pode explicar a história da baixa incidência de pelagra entre populações nativas das Américas, conforme argumentado por Katz et al. (1974). Esses casos ilustram como contextos culturais e ambientais se refletem nas dietas, com implicações nutricionais concretas. Tais contextos, portanto, não devem ser desconsiderados em avaliações dietéticas. Visto que a etnografia nos ajuda a desenvolver uma compreensão contextual das pessoas e de sua cultura, ela também pode nos ajudar a levantar dados dietéticos mais robustos na pesquisa em alimentação e nutrição. Neste trabalho, nos referimos ao diagnóstico etnográfico com foco na alimentação e nutrição como Avaliação Etnonutricional Rápida (AER). A etnonutrição se refere ao estudo das dietas no contexto dos sistemas alimentares de diferentes povos e culturas; veja também Messer (1984), Contreras (2012) e Kuhnlein (2014). Esse campo de estudo abarca categorias nativas ou locais utilizadas para classificar alimentos (Shell-Duncan & McDade 2005), e também considera a disponibilidade de alimentos biodiversos (Kuhnlein 1991), técnicas culinárias locais (Luo et al. 2019), sazonalidade (Andrea et al. 2005) e percepções culturais (Douglas 1972) relacionadas à dieta que resultem em desfechos nutricionais. 154 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA A aplicação desse método, requer a colaboração de várias ciências, incluindo a nutrição, etnobiologia e antropologia (Nabhan 2014; Powell et al. 2015). Alguns manuais de avaliações dietéticas já destacam os limites transculturais dos métodos atuais disponíveis (Fao 2018), sobretudo para avaliação de alimentos biodiversos, dentre eles as plantas alimentícias biodiversas (PAB) (Fao 2017). Definimos tais plantas como a diversidade das espécies de uso extensivo (por exemplo, feijão, arroz e milho), bem como espécies não convencionais, geralmente nativas, muitas vezes negligenciadas e de uso cultural limitado. Ainda, consideramos as variedades nativas e crioulas de plantas convencionais cultivadas localmente como plantas alimentícias não convencionais. É crucial destacar que a biodiversidade engloba a diversidade cultural, pois a percepção, o reconhecimento e o uso dos recursos naturais variam com a cultura (Lévi-Strauss 2011). Portanto, há um nexo entre recursos biológicos e cultura que nossa ferramenta pretende identificar. A proposta de AER que apresentamos aqui é uma aplicação prática, de curto prazo, passo a passo, para abordar variáveis culturais e ambientais em avaliações dietéticas. A AER é inspirada na ideia de Avaliação Etnográfica Rápida de Bentley et al. (1988), um método proposto para reconhecer práticas culturais e variáveis ambientais previamente à implementação de programas de atenção primária à saúde nos países em desenvolvimento. O conceito de etnografia rápida também aparece na literatura sob o rótulo de etnografia focada, uma abordagem de curto prazo com foco em questões locais específicas; veja Knoblauch (2005).1 Utilizando a etnogra- 1 Caso o objetivo da pesquisa seja desenvolver uma análise minuciosa dos sistemas socioculturais locais, uma etnografia convencional de vários meses ou anos pode MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 155 fia focada, o curto período no campo é compensado pela intensa coleta de dados pré-campo. Neste artigo, descrevemos o método de AER, que aplica fatores etnonutricionais em avaliações dietéticas, considerando o bioma da Caatinga brasileira e sua biodiversidade alimentar. Como testamos nosso método em campo? Dividimos a AER em duas etapas principais: planejamento pré-campo e o trabalho de campo. Na primeira etapa, projetamos o protótipo da avaliação do consumo alimentar. Após revisão da literatura específica sobre inquéritos alimentares, escolhemos o método Recordatório 24 horas (R24h) para desenvolver nosso estudo porque ele tem o maior potencial de adaptabilidade na captura de dados sobre alimentos biodiversos em contextos transculturais (Fao 2017). O R24h é um método de avaliação direta (ou seja, avaliação feita diretamente com o indivíduo) e retrospectiva (i.e., pretende avaliar o consumo que já aconteceu), onde os entrevistados são solicitados por um avaliador para lembrar e relatar todos os alimentos e bebidas consumidas nas 24 horas anteriores à entrevista (Fao 2018). Para reduzir o viés de memória, realizamos as entrevistas com auxílio do método Multiple-Pass (Moshfegh et al. 2008), conforme recomendado pelos protocolos internacionais (Fao 2018). Para melhor registrar as PAB locais, adaptamos o R24h ao adicionar duas novas colunas: uma para identificar com precisão o alimento biodiverso mencionado ser necessária para a coleta dos dados necessários. 156 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA pela entrevistada e outra para associar a planta com seu código no guia fotográfico2 com imagens das plantas locais. Para garantir a documentação de padrões alimentares (ex.:, consideração da sazonalidade), combinamos a aplicação do R24h com o Questionário de Propensão Alimentar (QPA). O QPA é um questionário de frequência, bem como um método direto retrospectivo, que serve para avaliar a frequência com que os alimentos são consumidos durante determinado período (Fao 2018). O questionário inclui uma lista fechada de alimentos e uma seção de categorias de frequência. Elaboramos ainda um guia básico para grupo focal considerando cinco fatores de etnonutrição3: disponibilidade de alimentos biodiversos, usos culinários, classificação de alimentos, percepção sobre os alimentos e sazonalidade. Treinamos nossa equipe para usar esses questionários e o guia fotográfico. Fizemos nossa seleção de informantes com apoio prévio do líder comunitário local. Nosso critério para seleção de informantes foi que essas pessoas deveriam ser (1) mulheres; (2) reconhecidas na comunidade por sua experiência com plantas alimentares biodiversas. Trabalhamos com mulheres conscientes do fato de que, nesta comunidade, elas são responsáveis pela coleta ou cultivo da maioria das plantas alimentícias consumidas por suas famílias, 2 Elaboramos o guia considerando o documento da FAO Guidelines on Assessing Biodiverse Foods in Dietary Intake Survey. Numa publicação futura, pretendemos detalhar o processo de desenvolvimento do guia, incluindo a elaboração da lista de plantas alimentícias biodiversas. A versão final do nosso material está disponível aqui: https://bit.ly/34D9n10 3 Para identificar tais fatores, realizamos uma ampla revisão de literatura em bases de dados de pesquisa acadêmica (Web of Science, Scopus e Google Scholar). Você pode verificar os artigos que revisamos no arquivo suplementar 1 de Jacob et al. (2020b). MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 157 além de terem um papel predominante nas tarefas de armazenamento e processamento das espécies no domicílio. Na segunda etapa, nosso objetivo foi testar todo o nosso protótipo de avaliação dietética no campo, calibrando os instrumentos e nossos pressupostos. Testamos nosso AER na comunidade rural Sítio Carão (Fig. 1). Figura 1. Localização da área da pesquisa em campo, Estado de Pernambuco, nordeste do Brasil. O Carão está localizado no município de Altinho, na região Agreste Central do estado de Pernambuco, parte do semiárido da Caatinga no nordeste do Brasil. Essa comunidade está localizada no planalto da Borborema brasileira, com altitudes que variam de 650 a 1000 metros. Vários estudos etnobotânicos mencionam a 158 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA comunidade Sítio Carão por seu amplo conhecimento da biodiversidade na Caatinga (ex.: Santos et al. 2009; Nascimento et al. 2011; Nascimento et al. 2012; Cruz et al. 2013). Agricultura de subsistência, pecuária e extração de recursos vegetais são as principais atividades econômicas da região (Nascimento et al. 2013). A vegetação da Caatinga (floresta sazonal seca) é dominante na área. O clima é classificado como semiárido quente. A região apresenta um inverno curto entre fevereiro e abril, caracterizado por chuvas e uma longa estação seca entre maio e janeiro (Lins Neto et al. 2013). Segundo dados da Unidade Básica de Saúde da comunidade, a população estimada do Carão, em fevereiro de 2020, era de 140 pessoas, sendo 105 adultos, distribuídos entre 55 domicílios. Durante a seleção de informantes, na etapa anterior, o líder comunitário nos forneceu os nomes de seis mulheres, com idades entre 57 e 82 anos. Com a ajuda delas, nosso objetivo era de pré-avaliar nossas ferramentas de pesquisa, sendo a recomendação para o pré-teste a de usar 10% da amostra (Silva et al. 2019). Com um universo de pesquisa de 46 mulheres, ao entrevistar seis conseguimos abranger 13% do total. Obtivemos consentimento informado dos participantes com base em diretrizes éticas para pesquisas envolvendo seres humanos. Obtivemos aprovação para realizar a pesquisa junto ao do Comitê de Ética em Pesquisa e, ainda, registramos o estudo no Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado. Formamos uma equipe de trabalho de campo com um etnobiólogo com relacionamento prévio com a comunidade (TLLS, masculino), uma estudante de Nutrição (JYAM, feminino), uma nutricionista com mestrado em ciências sociais (NANB, feminino) e outra nutricionista com doutorado em ciências sociais (MCMJ, MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 159 feminino). Realizamos a etapa de trabalho de campo em fevereiro de 2020. Aplicamos uma combinação de técnicas de coleta de dados para enriquecer as informações obtidas: observação direta, grupo focal e avaliações do consumo alimentar individuais. Ficamos alojados na casa de uma família na comunidade para melhor entender as dinâmicas locais, prática que é um aspecto importante da observação etnográfica (Campos et al. 2019). Para executar o grupo focal, utilizamos um guia que desenvolvemos considerando fatores etnonutricionais que surgiram na revisão da literatura e, ainda, por considerar as dimensões do “espaço social alimentar” delineadas por Poulain & Proença (2003). Quatro pessoas conduziram esse grupo focal. MCMJ codificou manualmente os dados da observação direta e do grupo focal utilizando a análise de conteúdo (Ritchie & Spencer 2002), considerando as principais categorias a priori: disponibilidade do alimento biodiverso, usos culinários, classificação (ex.: alimento, medicamento, ornamental), percepção alimentar e sazonalidade. Aplicamos os Critérios Consolidados para Relatos de Pesquisa Qualitativa (COREQ, em inglês) (Tong et al. 2007) para compor um relato de pesquisa abrangente. Ao final do grupo focal, agendamos uma entrevista individual com cada mulher da comunidade. Durante a entrevista nos domicílios, aplicamos o Recordatório 24h e o Questionário de Propensão Alimentar (QPA) (Subar et al. 2006). Cada entrevista durou em média 30 minutos. Tínhamos alguns objetivos durante essas sessões: testar a adaptação do R24h; avaliar o uso do QPA; testar a qualidade do nosso guia fotográfico, considerando o reconhecimento das imagens, o uso dos nomes vernaculares e a identificação de espécies ausentes. Quando necessário, fizemos novas fotos para incluir no guia. 160 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Ao final do estudo de campo, realizamos uma reunião com nossa equipe para analisar os principais ajustes necessários no protótipo. Para informações mais detalhadas sobre os estágios do AER ver Jacob et al. (2020b). Síntese do método de avaliação etnonutricional rápida A Figura 2 resume as atividades das duas principais etapas da AER. Figura 2. Delineamento da Avaliação Etnonutricional Rápida (AER). Devido ao curto período em campo (etapa 2), esse método é adequado em contextos em que as restrições de tempo e orçamento exigem abordagem metodológica rápida. Fonte: autoria própria. Na Tab. 1, dispomos uma proposta de roteiro para grupo focal que abrange aspectos etnonutricionais. Como tivemos acesso a uma quantidade substancial de informações publicadas sobre a comunidade do Carão antes da fase de campo, incluímos em nosso guia MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 161 questões específicas sobre leguminosas (família botânica Fabaceae) porque percebemos que tais espécies alimentícias eram centrais nas dietas desta região (por exemplo, alimentos emergenciais). Por isso, dentre as perguntas fundamentais, incluímos questões específicas sobre essas espécies. Tabela 1. Proposta de roteiro para grupos focais. Em nosso estudo, as plantas alimentícias biodiversas foram o foco, conforme apresentado na questão número dois, a seguir. Este guia pode ser adaptado ao propósito específico de cada pesquisa (por exemplo, sobre animais silvestres, fungos comestíveis etc.). As informações entre colchetes são fornecidas para orientar quem está entrevistando. Tipo de pergunta Abertura Questões 1. Apresente-se dizendo seu nome e qualquer informação sobre você que considere importante. 2. Vocês conhecem alguma dessas plantas? Introdução [Entrevistador cita nomes vernaculares ou ilustra, com auxílio de imagens, plantas alimentícias locais mencionadas na revisão de literatura ou pela comunidade na observação direta.] O motivo que nos leva a fazer este estudo é o fato de acreditarmos que essas plantas podem contribuir muito para a qualidade da sua alimentação. Para isso, queremos saber melhor como vocês se alimentam nesta região. Esperamos contar com o apoio de vocês! 162 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Tipo de pergunta Questões 3. Gostaria de começar conhecendo a alimentação de um dia completo aqui na comunidade. Por exemplo, qual é a primeira refeição do dia? [Perguntar qual o nome, horário, local e os principais alimentos consumidos. Prosseguir com o questionamento até que cada refeição do dia tenha sido descrita.] 4. Quem é responsável pela preparação da comida da família? 5. Na opinião de vocês, quais são as plantas comestíveis mais importantes da comunidade? Chave 6. De onde vêm essas plantas? Elas são cultivadas por você, coletadas ou compradas? 7. Há algum prato típico aqui na comunidade? Caso haja, qual? 8. Há algum prato que só é produzido em uma época ou festival específico? Caso haja, qual? 9. Comparando as diferentes estações [seca e chuvosa, no caso desta comunidade], qual é a principal mudança na sua alimentação de uma estação para outra? Final 10. Estamos apenas começando esta pesquisa em sua comunidade. Você tem algum conselho ou sugestão para nos oferecer? Detalhamos os ajustes que fizemos em nosso protótipo e seus prováveis impactos na Fig. 3. MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 163 Figura 3. Cinco fatores etnonutricionais para serem analisados na AER. A figura também justifica porque esses fatores podem melhorar a AER, os prováveis impactos de desconsiderá-los na avaliação dietética. A análise de tais fatores pode revelar pressupostos dietéticos, arraigados em nossas experiências pessoais ou culturais, que podem conduzir a conclusões erradas em inquéritos alimentares, como mostra a terceira seção da figura. Fonte: autoria própria. A análise dos fatores bioculturais relacionados à dieta nos permite produzir uma avaliação dietética mais precisa. Assim, o primeiro fator que analisamos foi a disponibilidade de alimentos biodiversos. Ao mapear os alimentos biodiversos disponíveis em nosso cenário de estudo, partimos de uma lista de 135 plantas no Carão e finalizamos com uma nova lista de 156 plantas. As novas plantas adicionadas foram principalmente variedades agrícolas 164 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA locais de plantas convencionais (por exemplo, feijão, mandioca, laranja, manga e milho). Novas espécies de plantas não convencionais não foram mencionadas em campo.4 Ademais, com base no retorno recebido durante a pesquisa em campo, alteramos algumas fotos para destacar as partes utilizadas pelas informantes para identificação, como flores e frutas. Atualizamos os nomes vernaculares para nomes utilizados na comunidade. Por exemplo, quando perguntamos se as pessoas consumiam cumaru (Amburana cearensis (Allemão) A.C.Sm.), as mulheres nos disseram que não, pois reconheceram localmente esta espécie como amburana-açu. Esses ajustes nas nomenclaturas vernaculares foram mais significativos em variedades agrícolas do que em espécies de plantas. Por exemplo, a banana-da-terra (Musa acuminata Colla x Musa balbisiana Colla “terra” (AAB)), uma espécie de banana relatada na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), é conhecida localmente não como banana-da-terra, mas como banana-comprida. Após a AER, o guia fotográfico ficou mais preciso (i.e., qualidade das fotos, variedades de alimentos e etnotaxonomia adequada) para proceder à avaliação dietética. Assim, concluímos que a ausência de identificação e análise adequada da biodiversidade local pode conduzir à imprecisão das espécies e, consequentemente, pode levar a avaliações dietéticas errôneas. O segundo fator que analisamos foram os usos culinários, que nos permitem reconhecer as técnicas de processamento locais aplicadas aos alimentos. Percebemos em campo que a comunidade 4 Na verdade, com base em experiências prévias de campo, tivemos a impressão que a comunidade pode estar diminuindo o consumo de plantas silvestres e aumentando o consumo de alimentos processados industrialmente. MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 165 consome uma planta considerada tóxica em estudos de composição química, a mucunã (Dioclea grandiflora Mart. Ex Benth). As sementes de mucunã contêm componentes de baixo peso molecular que potencialmente causam sua toxicidade e que podem ser eliminados pelo procedimento de diálise exaustiva (Grant et al. 1986; Jacob et al. 2020a). Assim, no Carão, após realizar o processo culinário específico, lavando várias vezes a farinha obtida das sementes da planta (os moradores usam a expressão lavar em várias águas), prepara-se uma espécie de cuscuz. É pertinente observar ainda que plantas que aparentemente poderiam fornecer uma contribuição nutricional limitada, como algumas espécies de cactos, após processamento viram iguarias locais. Por exemplo, com o facheiro (Pilosocereus pachycladus sub. pernambucoensis (Ritter) Zappi), açúcar bruto e uma variedade de especiarias, prepara-se no Carão um doce muito apreciado, o doce de facheiro. Neste caso, temos uma planta que inicialmente é vista como um alimento emergencial, mas que se transforma em um alimento festivo, feito em ocasiões especiais, com sofisticadas técnicas de colheita e cozimento (o tempo de cozimento chega até 48 horas). Portanto, concluímos que ignorar técnicas culinárias locais devido ao foco limitado no alimento, pode nos levar a desconsiderar fatores que podem modificar a matriz alimentar, a biodisponibilidade de certos nutrientes e toxinas e até mesmo a apreciação de um alimento local. Nesse sentido, é fundamental que o levantamento dietético observe as partes consumidas e as receitas vinculadas aos alimentos. No nosso caso, adicionamos um campo específico ao nosso R24h para coletar receitas de pratos locais (consideramos como receitas aquelas preparações com três ou mais ingredientes). Nessa seção do R24h, reunimos os ingredientes utilizados (com a parte específica consumida), a quantidade utilizada e 166 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA as técnicas de processamento aplicadas na receita (aquecer, torrar, moer etc.). O terceiro fator que analisamos foi a classificação das espécies, ou seja, a maneira como as pessoas selecionam as plantas utilizáveis (por exemplo, para fins alimentícios, medicinais, ornamentais). Para as pessoas do Carão, plantas como capim-santo (Cymbopogon citratus (DC.) Stapf), jatobá (Hymenaea courbaril L.) e quixaba (Sideroxylon obtusifolium (Roem. & Schult.) T.D.Penn.) funcionam simultaneamente como alimento e medicamento. Podemos dizer que existe um continuum alimento-medicamento. As pessoas da comunidade consomem o chá dessas plantas no café da manhã e no jantar, mesmo que não estejam doentes. Esse sistema de classificação, que não funciona com base em vieses cognitivos binários, não é exclusivo da comunidade Carão; veja, por exemplo, o trabalho de Ferreira-Júnior et al. (2018). Em campo, nosso primeiro instinto foi excluir essas espécies da lista de plantas alimentícias devido ao nosso background cultural. Todavia, confrontando esse sistema êmico cognitivo não binário, reconhecemos nossas premissas como equivocadas e decidimos adaptar o QPA para abordar o continuum. Mantivemos as plantas e adicionamos uma nova coluna para registrar todas as plantas com essa particularidade (uso medicinal, sim ou não). Esse parâmetro nos permitirá identificar plantas que atuam simultaneamente como alimento e medicamento. Além disso, evitará interpretações dietéticas indesejáveis que resultam da exclusão de plantas que podem ter um impacto nutricional significativo na dieta. O quarto aspecto que analisamos foi a percepção alimentar, que pode nos ajudar a entender os fatores culturais que têm potencial de modificar os alimentos relatados durante inquéritos MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 167 dietéticos. Em nosso trabalho de campo, vimos que perguntas de sondagem sobre plantas alimentícias não convencionais eram necessárias para que o tópico surgisse. As pessoas tendiam a não mencionar essas plantas caso não fossem provocadas. Quando o assunto vinha à tona, a tendência era a de minimizar o papel dessas espécies nas dietas, dizendo que elas são “comida de criança”, “comida do passado” e “comida de quando éramos pobres”. É significativo mencionar que essas plantas e os alimentos industrializados tinham conotações opostas. Os últimos eram descritos como sinal de modernidade e praticidade. Uma das entrevistadas, por exemplo, disse: “Sempre gosto de ter [em casa], porque tem hora que chega uma pessoa e [...] o refrigerante fica mais bonito”. Em quase todas as residências que visitamos, recebíamos um copo de refrigerante como sinal de hospitalidade, mesmo que houvesse comidas locais (como frutas frescas). Concluímos que tais qualidades simbólicas atribuídas aos alimentos podem levar, consciente ou inconscientemente, à omissão ou a um relato insuficiente ou excessivo de alguns alimentos consumidos em avaliações dietéticas. Reconhecer essas percepções locais sobre os alimentos pode nos ajudar a elaborar questões de sondagem mais específicas para calibrar nossas pesquisas. O quinto aspecto é a sazonalidade. A análise desse fator nos permite reconhecer os elementos ambientais que podem levar a variações na dieta. Na pesquisa em campo, por exemplo, encontramos uma variação considerável entre os recursos alimentares consumidos nas estações seca e chuvosa. A comunidade consome quiabo, alface, abóbora e milho apenas na estação chuvosa. Nesse período, essas espécies aparecem quase que diariamente nos cardápios. Além disso, como em muitas sociedades agrícolas, os ciclos sazonais são marcados por festividades culturais. É o caso das festas de São João 168 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA e São Pedro no Brasil, que marcam a época da colheita do milho. Na época dessas festividades, o milho e seus ingredientes derivados são consumidos em bolos, mingaus e cozidos. Uma investigação dietética desenvolvida em determinado período do ano e sem ferramentas adequadas que ampliem a visão do pesquisador, fornecerá uma perspectiva reduzida dos padrões alimentares locais. Durante a AER, utilizamos o QPA para capturar essa variação. Decidimos adicionar outra coluna extra no QPA (uso sazonal, sim ou não), para rapidamente identificar o consumo sazonal durante as entrevistas e calcular o consumo proporcional com precisão durante a avaliação dietética a posteriori. Assim, a AER pode revelar pressuposições dietéticas que se enraízam em nossa experiência pessoal e cultural e que podem levar em síntese a dois grandes erros em inquéritos alimentares: primeiro, super ou subestimar o consumo energético, macro e micronutrientes, compostos bioativos e fatores antinutricionais; segundo, ignorar sub ou super-relato de alguns alimentos. A capacidade de identificar pontos cegos relacionados à cultura local nesses inquéritos é a principal característica do AER. A vantagem primordial desse método é o desenvolvimento de um diagnóstico etnonutricional em curto prazo e com baixo orçamento. Já sua principal desvantagem é o desafio de reunir todas as informações necessárias em um curto período em campo. Descobrimos que combinar técnicas de coleta de dados (i.e., triangulação de dados) nos permitiu enriquecer a profundidade e a qualidade das informações obtidas em campo. Além disso, foi fundamental formar uma equipe multidisciplinar para projetar e desenvolver um AER coerente. MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 169 Outras considerações sobre o método rápido Até onde sabemos, este é o primeiro estudo a propor um método para reunir dados úteis sobre etnonutrição, considerando as limitações de tempo e orçamento. A AER é uma técnica de prototipagem valiosa para calibrar intervenções nutricionais e pesquisas de consumo alimentar a partir de uma perspectiva biocultural. Na maioria dos casos, a pesquisa completa de avaliação rápida leva entre dois e seis meses (Bentley et al. 1988). Como referimos, trabalhamos por seis meses na AER. Nesse intervalo, a pesquisa em campo abrangeu somente uma semana. O tempo gasto exato irá variar conforme as respostas às seguintes questões: Quão distantes estamos culturalmente do grupo que estamos estudando (Creswell 1998)? Existe uma relação anterior construída com a comunidade (Flick 2007)? Que dados temos disponíveis sobre essa comunidade no estágio de pré-campo (Bentley et al. 1988)? Em nosso caso, passamos pouco tempo no estágio de campo por três motivos principais. Primeiro, a comunidade que estudamos é uma comunidade rural pertencente à mesma região brasileira onde vivemos. Segundo, nossa equipe de pesquisa tinha um relacionamento prévio com ela. Terceiro, tínhamos uma boa fonte de informações sobre a comunidade antes de ir a campo: seis estudos de etnobiologia com foco em plantas alimentícias foram realizados anteriormente. Os estudos de etnobiologia podem ser uma fonte de dados valiosa sobre diversos recursos alimentares em culturas locais e ambientes ecológicos específicos (Nabhan 2014). No nosso caso, em termos de custo, a utilização deste método teve um impacto positivo e significativo no nosso orçamento. Considerando que manter uma equipe de quatro pessoas em campo nos custaria cerca de 2 USD por pessoa/hora 170 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA (fevereiro de 2020), a pesquisa teria sido impraticável se precisássemos passar muito tempo em campo. Outro fator é o tempo: manter uma equipe com o perfil multidisciplinar específico desejável por um longo período em campo é um verdadeiro desafio. Os produtos de uma AER incluem novos pressupostos sobre as dietas locais e a calibração de ferramentas de inquérito alimentar com base na cultura local. Nos resultados, mostramos como esses produtos podem prevenir erros durante a avaliação dietética quantitativa. Aqui, ressaltamos e discutimos as duas classes principais de erros. Primeiro tipo de erro: a avaliação incorreta de nutrientes ou fatores antinutricionais consumidos ao desconsiderar alimentos locais e seus usos culinários. Para incluir tais alimentos em nossa avaliação dietética, foi necessário realizar uma identificação alimentar precisa e confiável das espécies e variedades disponíveis localmente. A zona agroecológica, a sazonalidade e a diversidade genética produzem diferenças significativas na composição dos alimentos, um fato frequentemente ignorado nos inquéritos dietéticos (Hunter et al. 2019). Para realizar uma análise nutricional confiável, os pesquisadores têm a responsabilidade de identificar e nomear as plantas de acordo com os padrões botânicos definidos - veja Nesbitt et al. (2010) que resumem boas práticas de identificação de plantas. Além disso, desconsiderar as técnicas de processamento de alimentos também pode ter um efeito semelhante, por exemplo, levando a superestimação de fatores antinutricionais ou compostos tóxicos. Luo et al. (2019), estudando dietas tradicionais do povo Hakka na região de Fujian, China, relataram que informantes Hakka consumiram algumas plantas consideradas venenosas na análise de composição, como a Hemerocallis citrina Baroni. A flor fresca dessa MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 171 planta contém colchicina, um composto venenoso. Durante a avaliação etnográfica, os pesquisadores descobriram que o povo Hakka usa uma técnica culinária específica que torna a planta comestível. Tal exemplo serve para nos lembrar de que as técnicas de processamento têm efeitos biofísicos e bioquímicos nos alimentos. Esses fatores não podem ser ignorados em pesquisas de avaliação dietética. Assim, não podemos avaliar os recursos alimentares se não sabemos como as pessoas os consomem em contextos locais - um bom exemplo que considera como o processamento térmico de alimentos afeta a composição energética é relatado por Carmody et al. (2011). Outra forma de superestimar ou subestimar o consumo é desconsiderar que os pratos e utensílios também influenciam a quantidade de comida ingerida. Por exemplo, em algumas sociedades tradicionais, os pratos individuais são raros. As pessoas geralmente comem de um prato comum, e gênero, idade e prestígio ditam a ordem e a quantidade de comida ingerida por cada comensal (Garine 1972). Segundo tipo de erro: a avaliação equivocada dos alimentos reportados no inquérito, por desconsiderar principalmente as percepções culturais sobre os alimentos e a sazonalidade. Os protocolos devem levar em conta que comunidades diferentes percebem os recursos alimentares de forma distinta. As plantas alimentícias não convencionais, por exemplo, são às vezes desvalorizadas culturalmente, estigmatizadas como símbolos de pobreza e “tribalidade” ou “atraso”, utilizando expressões de Garcia (2006). Por exemplo, Cruz et al. (2014) identificaram uma perda de conhecimento sobre plantas silvestres nas gerações mais jovens da comunidade do Carão. Eles sugeriram a estigmatização dos recursos tradicionais como uma das causas da erosão desses saberes. Portanto, mesmo quando as pessoas comem plantas alimentícias não convencionais, a subnotificação 172 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA por motivos de constrangimento é um cenário provável. Além disso, em nosso estudo identificamos outro efeito relacionado à percepção alimentar. Alimentos industrializados gozam de prestígio entre os informantes. Arnaiz defende que a narrativa da modernidade como símbolo de sucesso e prestígio é um dos discursos utilizados na publicidade de alimentos pela indústria (Gracia-Arnáiz 1996). O apelo “ser moderno” influenciam as percepções sobre alimentos, como mostram Chopra et al. (2002), ao relatar que os residentes das áreas urbanas de Johanesburgo em sua pesquisa consideravam o consumo de alimentos fritos industrializados como um sinal de vida moderna e riqueza. Portanto, esse valor simbólico dos alimentos em estudos do consumo pode levar a super-notificação. O segundo ponto que os protocolos devem considerar é que as dietas precisam ser avaliadas dentro de uma estrutura ecológica, uma vez que a sazonalidade e, consequentemente, os festivais de colheita afetam a disponibilidade de alimentos (Messer 1984; Powell et al. 2015). Por isso, estudos baseados em uma aplicação isolada do R24h podem induzir ao não registro do consumo de vegetais e refeições tradicionais disponíveis fora do período do recordatório, resultando em conclusões errôneas (Lachat et al. 2017; Dop et al. 2020). Assim, a percepção cultural quanto aos alimentos e à disponibilidade sazonal molda a decisão sobre os usos alimentícios. A AER nos dá uma perspectiva clara de como adaptar nossas ferramentas e metodologias, aumentando a acurácia de nossas pesquisas nutricionais. Assim, ao utilizar a AER, podemos revelar pressupostos sobre dietas, enraizados em nossa experiência pessoal e cultural. As pressuposições são elementos essenciais do método científico. Eles constituem a base de uma hipótese e de questões de pesquisa que precisam ser válidas para serem respondidas (Gauch 2015). Na pesquisa MÉTODO DE AVALIAÇÃO ETNONUTRICIONAL RÁPIDA PARA AVALIAR A BIODIVERSIDADE DE PLANTAS ALIMENTÍCIAS EM INQUÉRITOS ALIMENTARES 173 em nutrição, verificar se algum pressuposto pode ser considerado válido e torná-lo explícito é um passo crítico. Em pesquisas sobre inquéritos alimentares, precisamos ter certeza da precisão das informações sobre os recursos alimentares disponíveis, a qualidade dos relatórios dietéticos, as classificações locais dos alimentos etc. Devemos compreender a cultura e o ambiente como potenciais modificadores das pressuposições da investigação. A AER é uma ferramenta útil para essa tarefa. Conclusões A ciência da nutrição tem suas raízes na Europa e sua prática continua sendo uma expressão cultural eurocêntrica. Esses fatos podem produzir leituras reducionistas sobre a dieta e a cultura alimentar. As análises de etnonutrição são valiosas porque revelam pressupostos sobre as dietas, enraizados em nossa experiência profissional, pessoal e cultural. A AER é uma ferramenta que oferece à pesquisa em alimentação e nutrição uma visão biocultural ampla das dietas, por meio do aprimoramento da prototipagem de pesquisas de consumo alimentar, considerando o nível do sistema alimentar e com alta eficiência. Este método pode nos auxiliar na prevenção de interpretações errôneas que induzem a conclusões equivocadas nas avaliações nutricionais. Este estudo lança luz sobre como futuras avaliações dietéticas nacionais podem considerar apropriadamente os recursos alimentares biodiversos e os fatores culturais e ambientais associados a eles. 174 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Agradecimentos Agradecemos a Aníbal Silva Cantalice, que nos ajudou com a figura 1. Também somos muito agradecidos a todos os membros da comunidade do Carão pela calorosa recepção, pelo conhecimento compartilhado e pelo tempo que passaram conosco. Agradecemos ainda à Taylor & Francis pela permissão concedida para reprodução deste texto, originalmente publicado na revista “Ecology of Food and Nutrition”, 2020, DOI: 10.1080/03670244.2020.1852227. Referências Andrea P, Nebel S, Santoro RF, Heinrich M. 2005. 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Tong A, Sainsbury P, Craig J. 2007. Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ): A 32-Item Checklist for Interviews and Focus Groups. International Journal for Quality in Health Care 19(6), 349-357. 178 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA EDITORES Luiz Vital Fernandes Cruz da Cunha Biólogo, Mestre em Biologia Vegetal (UFPE) e Doutor em Ciências Florestais (UFRPE). Atualmente é professor da Universidade Católica de Pernambuco. Tem como linha de pesquisa a Etnobotânica. Rômulo Romeu da Nóbrega Alves Biólogo, Doutor em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade Federal da Paraíba em 2006. Atualmente é professor da Universidade Estadual da Paraíba, atuando no ensino de graduação e pós-graduação. Tem como linha de pesquisa principal a Etnozoologia e suas publicações abordam temas como uso, comércio e conservação de animais. Reinaldo Farias Paiva de Lucena Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas (UEPB). Mestre e Doutor em Botânica (UFRPE). Pós-Doutorado em Manejo e Domesticação de Cactáceas (UNAM - México). Entre 2009 e 2020 foi professor da Universidade Federal da Paraíba, e atualmente é professor na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua no ensino e pesquisa na graduação e pós-graduação. Linhas de pesquisas principais: manejo e domesticação de recursos genéticos; mudanças climáticas e sua relação com a etnobiologia; uso e conservação da biodiversidade; métodos e técnicas na etnobiologia e etnoecologia. EDITORES 179 Ulysses Paulino de Albuquerque Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas. Mestre e Doutor em Biologia Vegetal. Atualmente é professor titular do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco. 180 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA AUTORES André dos Santos Souza – Doutor em Botânica, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Daniel Carvalho Pires de Sousa – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Diógenes de Queiroz Dias – Professor da Faculdade de Tecnologia do Nordeste. Dirce Maria Lobo Marchioni – Professora associada da Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo. Edwine Soares de Oliveira – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Graziela Dias Blanco – Doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em Ecologia, Universidade Federal de Santa Catarina. George Pimentel Fernandes – Professor Adjunto do Departamento de Educação, Universidade Regional do Cariri. Gyllyandeson de Araújo Delmondes – Doutorando pelo Programa de Química Biológica, Universidade Regional do Cariri. AUTORES 181 Irwin Rose Alencar de Menezes – Professor Adjunto do Departamento de Química Biológica, Universidade Regional do Cariri. Ivanilda Soares Feitosa – Pós-Doutoranda pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Etnobiologia, Bioprospecção e Conservação da Natureza, Universidade Federal de Pernambuco (in memoriam). Izabel Cristina Santiago Lemos de Beltrão – Professora Assistente do Departamento de Enfermagem, Universidade Regional do Cariri. Joana Yasmin Melo de Araujo – Graduanda em Nutrição, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Joelson Moreno Brito de Moura – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Juliana Loureiro de Almeida Campos – Doutora em Botânica, Laboratório de Ecologia e Evolução de Sistemas Socioecológicos, Universidade Federal de Pernambuco. Juliane Souza Luiz Hora – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Henrique Fernandes Magalhães – Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. 182 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA Marta Regina Kerntopf – Professora Adjunta do Departamento de Química Biológica, Universidade Regional do Cariri. Michelle Cristine Medeiros Jacob – Professora adjunta do Departamento de Nutrição, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natalia Araújo do Nascimento Batista – Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Natalia Hanazaki – Professora titular do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Nylber Augusto da Silva – Doutor em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Rafaela Helena Ludwinsky – Doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em Ecologia, Universidade Federal de Santa Catarina. Regina Célia da Silva Oliveira – Professora substituta do Instituto Federal do Piauí, Campus Paulistana. Risoneide Henriques da Silva – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural de Pernambuco. Sofia Zank – Doutora em Ecologia, Professora da Faculdade Municipal de Palhoça. AUTORES 183 Taline Cristina da Silva – Professora da Universidade Estadual de Alagoas. Temóteo Luiz Lima da Silva – Doutor em Etnobiologia e Conservação da Natureza, Universidade Federal Rural do Pernambuco. Ulysses Paulino de Albuquerque – Professor titular do Departamento de Botânica da Universidade Federal de Pernambuco. Virgínia Williane de Lima Motta – Mestre pelo Programa de Pósgraduação em Nutrição, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 184 MÉTODOS DE PESQUISA QUALITATIVA PARA ETNOBIOLOGIA OUTRAS OBRAS DE INTERESSE https://www.springer.com/gp/ book/9781461486350 https://www.springer.com/gp/ book/9781493989188 https://www.springer.com/gp/ book/9783319281537 https://www.springer.com/gp/ book/9783319199160 https://www.springer.com/gp/ book/9783319528717 https://www.elsevier.com/ books/ethnozoology/alves/ 978-0-12-809913-1 https://www.amazon.com.br/ Métodos-Técnicas-PesquisaEtnobiológica-Etnoecológica-ebook/ dp/B01BCPXDYG https://www.amazon.com.br/ Introdução-à-Etnobiologia2a-Edição-ebook/dp/ B08FXRL6FH https://www.amazon.com.br/ ETNOBIOLOGIA-Bases-ecológicasevolutivas-Edição-ebook/dp/ B08FXR2SR5 Sobre o livro Formato 15 x 21 cm Tipologia Minion Pro (texto) Conduit (títulos) Papel Pólen 80g/m2 (miolo) Supremo 250g/m2 (capa) View publication stats