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PABLO NERUDA E O OLHAR POÉTICO SOBRE AS CIDADES CHILENAS:
TEMUCO, SANTIAGO E VALPARAÍSO
Ximena Antonia Díaz Merino
Tese de Doutorado submetida ao Programa de
Pós-Graduação
em
Letras
Neolatinas
da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requesito necessário para a obtenção do Título
de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas
Hispânicas)
Orientadora: Profa. Doutora Mariluci da Cunha
Guberman
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
Pablo Neruda e o olhar poético sobre as cidades chilenas:
Temuco, Santiago e Valparaíso
Ximena Antonia Díaz Merino
Orientadora: Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras
Neolatinas.
Examinada por:
______________________________________________________
Presidente, Profa. Doutora Mariluci da Cunha Guberman
______________________________________________________
Profa. Doutora Lívia Maria de Freitas Reis - UFF
______________________________________________________
Profa. Doutora Edna Maria dos Santos – UERJ
______________________________________________________
Prof. Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ
______________________________________________________
Prof. Doutor Luiz Edmundo Bouças Coutinho - UFRJ
______________________________________________________
Profa. Doutora Maria Aparecida da Silva – UFRJ, Suplente
______________________________________________________
Profa. Doutora Adja Balbino de Amorim Barbieri Durão - UEL, Suplente
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
2
Díaz Merino, Ximena Antonia.
Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas,
Temuco, Santiago e Valparaíso / Ximena Antonia Díaz Merino.
– Rio de Janeiro: UFRJ, 2008.
xiv, 243 f.: il.; 30 cm.
Orientadora: Mariluci da Cunha Guberman
Tese (doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras / Programa
de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2008.
Referências Bibliográficas: f. 226-243.
1. Imagem poética. 2. Cidade. 3. Identidade. I.Guberman,
Mariluci da Cunha. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas. III. Título. Pablo Neruda e o olhar poético dobre as
cidades chilenas, Santiago e Valparaíso.
3
DEDICATÓRIA
Em primeiro lugar, dedico esta Tese a meu esposo
Marcos e a minhas filhas Thaís Lorena e Mariana Luiza.
De forma especial, dedico o fruto de meus estudos a
minha querida mãe, exemplo de dedicação total aos
filhos.
Ás preciosas amizades cultivadas no transcurso deste
estudo.
4
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, agradeço à Pró-Reitoria da UFRJ pela Bolsa
concedida para a realização deste Doutorado, assim como à CAPES pela
Bolsa de Doutorado que possibilitou ampliar minhas pesquisas e reflexões.
Ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da FL – UFRJ,
pelo incentivo e apoio dado ao avaliar o meu trabalho de pesquisa, viabilizando
a concessão de Bolsa CAPES.
Agradeço, de forma muito especial, a participação fundamental da
Professora Doutora Mariluci da Cunha Guberman, minha querida e respeitada
orientadora, pelo valioso apoio teórico e bibliográfico, assim como pela
dedicação
incondicional
demonstrada
durante
todo
o
processo
de
desenvolvimento desta Tese. Faço questão de registrar ainda a luminosa,
firme, rara, incansável e terna presença de Mariluci nos diferentes estágios de
elaboração deste estudo.
Aos professores do Curso de Doutorado, Profª Drª. Maria Aparecida da
Silva, Profª Drª Silvia Cárcamo, Profª Drª Angélica Soares, Profº Drº Marcelo
Jacques e Profº Drº Luiz Edmundo Bouças, que com seus ensinamentos e
questionamentos forneceram subsídios importantes para a elaboração desta
Tese.
Agradeço de forma especial à Professora Doutora Lívia de Freitas Reis
da Universidade Federal Fluminense e ao Professor Doutor Luiz Edmundo
Bouças
Coutinho
pelos
valiosos
comentários,
críticas
e
sugestões
apresentados na etapa de qualificação desta pesquisa.
5
À minha querida e respeitada Juçara, figura importantíssima na minha
caminhada de aperfeiçoamento, cujo incentivo e apoio me possibilitaram
intensa dedicação à vida acadêmica.
Não poderia esquecer neste momento da minha grande amiga Joana,
sempre disposta a oferecer seu tempo e ajuda incondicional, exemplo de ser
humano inigualável.
Finalmente agradeço a meu marido Marcos o apoio, o interesse e a
dedicação demonstrada nesta minha caminhada, mas, sobretudo, pelo amor e
compreensão, sem os quais não teria sido possível a conclusão desta etapa.
6
SINOPSE
Estudo do imaginário poético das cidades chilenas – Temuco, Santiago
e Valparaíso – na obra de Pablo Neruda. Temática desencadeada a
partir do choque cultural sofrido pelo autor na passagem da província
para a cidade grande (1921), um “rito de passagem” modificador da
figura e da lírica do poeta chileno, um observador do espaço urbano.
Abordagem do sistema do poeta: “poesía impura”, ruptura dos moldes
pré-estabelecidos. Revelação do encontro de dois olhares: o olhar da
memória e o olhar do estrangeiro, aguçados pelos sentidos nerudianos.
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Resumo
Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas:
Temuco, Santiago e Valparaíso
Ximena Antonia Díaz Merino
Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas
(Literaturas Hispânicas).
A construção citadina abrange mais do que um espaço geográfico
habitado e seus patrimônios visíveis. Há também um patrimônio constituído
pela palavra escrita, que permite a reconstrução da paisagem e do cotidiano
urbano através dos ecos do passado e remete às origens do espaço urbano.
No decorrer da história esses registros têm-se cristalizado tanto na prosa
quanto na poesia, configurando um espaço simbólico que faz possível sua
interpretação num tempo histórico distante e alheio ao do autor.
Dentro desse contexto se desenvolveu a analise das passagens do texto
nerudiano – prosa e poesia – dedicadas às cidades chilenas em que o poeta
morou: Temuco, Santiago e Valparaíso, tendo como base de estudo os
espaços habitados, a memória primordial, a identidade nacional, a imagem
poética e o olhar citadino.
O desenvolvimento deste estudo se encaminhou para a confirmação da
hipótese de que o fio condutor da poesia citadina nerudiana está constituído
pela reincidência de determinados signos sensíveis ou arquétipos primigênios.
Assim também, os processos migratórios nerudianos revelaram um corpo
viajante que concebe a existência de um sujeito fronteiriço situado entre o
universo provinciano e o urbano, revelando o corpus da escritura poética
nerudiana.
Palavras chave: imagem poética, cidade, identidade, memória.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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Resumen
Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas:
Temuco, Santiago e Valparaíso
Ximena Antonia Díaz Merino
Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman
Resumen da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas
(Literaturas Hispânicas).
La construcción citadina abarca más que un espacio geográfico habitado
y sus patrimonios culturales visibles. Existe también un patrimonio constituido
por la palabra escrita, que permite la reconstrucción del paisaje y del cotidiano
urbano a través de los ecos del pasado y remite a los orígenes del espacio
urbano. En el transcurso de la historia esos registros se han cristalizado tanto
en la prosa como en la poesia, configurando un espacio simbólico que posibilita
su interpretación en un tiempo histórico distante y ajeno al del autor.
A partir de ese contexto se desenvolvió el análisis de los recortes textuales –
prosa y poesía – dedicados a las ciudades chilenas en que el poeta vivió:
Temuco, Santiago y Valparaíso, teniendo como base de estudio los espacios
habitados, la memoria primordial, la identidad nacional, la imagen poética y la
mirada citadina.
El desenvolvimiento de este estudio se encaminó para la confirmación de la
hipótesis de que el hilo conductor de la poesía citadina nerudiana se constituye
en la reincidencia de determinados signos sensíbles o arquetipos primigenios.
De la misma forma, el proceso migratorio nerudiano reveló un cuerpo viajero
que concibe la existencia de un sujeto fronterizo localizado entre el universo
provinciano y el universo urbano, revelando el corpus de la escritura poética
nerudiana.
Palabras clave: imagen poética, ciudad, identidad, memoria.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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Résumé
Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas:
Temuco, Santiago e Valparaíso
Ximena Antonia Díaz Merino
Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman
Résumé da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas
(Literaturas Hispânicas).
La constitution d’une ville ne se réduit pas à un espace géographique
habité et à ses patrimoines visibles. On y trouve également un patrimoine formé
aussi du mot écrit, qui permet de reconstruire le paysage et le quotidien urbain
à travers les échos du passé tout en renvoyant aux origines de l’espace urbain.
Tout le long de l'histoire, ces registres se sont cristallisés aussi bien dans la
prose que dans la poésie ; ils configurent un espace symbolique qui rend
possible son interprétation dans un temps historique lointain, différent de celui
de l'auteur.
Dans ce contexte, et à partir de l'étude des espaces habités, de la mémoire
primordiale, de l'identité nationale, de l'image poétique et du regard citadin,
s'est developpée l'analyse des passages du texte nerudien - prose et poésie consacrés aux villes chiliennes où le poète a vécu: Temuco, Santiago et
Valparaíso.
Le développement de cette étude a conduit à la confirmation de l'hypothèse
selon laquelle le fil conducteur de la poésie citadine nerudienne est constitué
par la récurrence de certains signes sensibles ou archétypes.
Ainsi, les processus migratoires nerudiens ont-ils révélé un corps voyageur
concevant l'existence d'un sujet qui se trouve à la frontière de l'univers
provincial et de l'univers urbain, en révélant le corpus de l’écriture poétique
nerudiana.
Mots clés: image poétique, ville, identité, mémoire.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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Abstract
Pablo Neruda e o olhar poético dobre as cidades chilenas:
Temuco, Santiago e Valparaíso
Ximena Antonia Díaz Merino
Orientadora: Profª. Drª. Mariluci da Cunha Guberman
Abstract da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas
Hispânicas).
The city construction covers more than one geographical area inhabited
and its assets visible. There is also an assets consist including the written word,
which allows the reconstruction of the countryside and the urban daily life
through the echoes of the past and refers to the origins of urban space. In the
course of history these records have been crystallized in both prose and in
poetry, setting a symbolic space that makes possible its interpretation in a
historical time and distant alien to the author.
Within that context has developed to analyze the passages of the text
nerudiano - prose and poetry - dedicated to Chilean cities where the poet lived:
Temuco, Santiago and Valparaíso, based on study of the inhabited areas, the
0essential memory, national identity, the poetic image and look city.
The development of this study was sent to confirm the hypothesis that
the main theme of poetry is made by the city nerudiana recurrence of certain
sensitive or signs archetypes. Also, the migration processes nerudianos body
revealed a traveller who designs the existence of a subject located between the
universe provincial and urban universe, disclosing the corpus of the nerudiana
poetical writing.
Key words: poetic image, city, identity, memory.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
15
1ª PARTE
PABLO NERUDA E A HARMONIA ENTRE VIDA E OBRA
1. Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto e o Álbum de Temuco
21
2. Ruptura e permanência: marcas da criação nerudiana
28
2.1 Da tradição à inovação
35
2.2 Proclamação da poesia sem pureza
41
2.3 “Verdadismo”: a poesia popular da justiça social
47
2.4 O poeta americanista
60
2.5 O ciclo das odes
69
3. As marcas autobiográficas na obra de Pablo Neruda
73
4. De Búffallo Bill aos clássicos
87
2ª PARTE
O DISCURSO FUNDADOR DAS CIDADES CHILENAS
1. Da cidade letrada aos imaginários urbanos
94
2. A cidade como um todo
98
3. Configuração do espaço citadino
103
4. Fundação das cidades chilenas
106
5. Caracterização do povo chileno
111
5.1 Os chilenos: um povo novo
115
5.2 Agua de temu: território de pioneiros
121
5.3 A conquista do mítico Valle de Chile
124
5.4 Valle del Paraíso: um assentamento à beira do Pacífico
127
12
3ª PARTE
O OLHAR E A MEMÓRIA NO PROCESSO IMAGÉTICO NERUDIANO
1. A palavra poética e a imagem citadina em Neruda
136
2. O Tempo: ponte entre a memória e o espaço
139
3. As imagens primordiais e sua relação com o espaço habitado
146
3.1 Temuco: a paisagem primigênia
148
3.2 Santiago de Chile: um mar desconhecido
154
3.3 Valparaíso: a cidade mais amada
169
4ª PARTE
PARA UMA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL CHILENA
1. Identidade cultural e consciência nacional
179
2. Formação das nacionalidades na América Hispânica
183
3. O sentimento nativista na configuração da identidade nacional chilena
188
4. O processo migratório como “rito de passagem”
195
4.1 O corpo viajante do poeta peregrino
201
4.2 A migração de Temuco para Santiago
210
4.2 O caráter fronteiriço do sujeito citadino
219
Conclusão
221
Bibliografía
226
Anexo
13
[...] La primera edad de un poeta debe recoger con atención apasionada
las esencias de su patria, y luego debe devolverlas. Debe reintegrarlas,
debe donarlas. Su canto y su acción deben contribuir a la madurez y al
crecimiento de su pueblo.
El poeta no puede ser desarraigado, sino por la fuerza. Aún en esas
circunstancias sus raices deben cruzar el fondo del mar, sus semillas
seguir el vuelo del viento, para encarnarse una vez más, en su tierra.
Debe
ser
deliberadamente
nacional,
reflexivamente
nacional,
maduramente patrio.
El poeta no es una piedra perdida. Tiene dos obligaciones: partir y
regresar.
El poeta que parte y no vuelve es un cosmopolita. Un cosmopolita es
apenas un hombre, es apenas un reflejo de la luz moribunda. Sobre todo
en estas patrias solitarias, aisladas entre las arrugas del planeta, testigos
integrales de los primeros signos de nuestros pueblos, todos, todos desde
los más humildes hasta los más orgullosos, tenemos la fortuna de ir
creando nuestra patria, de ser todos un poco padres de ella [...]
Pablo Neruda, 1954*.
*
Discurso de Neruda em 20 de junho de 1954 com motivo da doação de sua biblioteca
particular à Universidad de Chile. In: NERUDA (2001) p.945-946.
14
INTRODUÇÃO
Escrever sobre a literatura de Pablo Neruda pode parecer uma tarefa
fácil se considerados o tempo decorrido após sua morte e a abundância de
estudos sobre sua obra. Contudo, o imenso aporte humano, literário e,
cultural legado pelo poeta chileno ao longo de sua vida permanece uma
inesgotável fonte de estudos literários.
A presente pesquisa versará de forma pontual sobre os textos que
Neruda dedicou às cidades chilenas onde morou: Temuco, Santiago e
Valparaíso. Estas cidades surgem reiteradas vezes e nas mais diferentes
etapas da obra do poeta chileno; assim sendo, optou-se pelo estudo da tríade
campo/cidade/porto por ser significativa a presença das imagens do espaço
rural, urbano e portuário em sua criação poética.
A concentração demográfica nas grandes cidades é uma das
características do século XX, entre outros fatores. Transtornos urbanos,
avanços tecnológicos, velocidade, descobertas, expansão das indústrias são
alguns dos problemas das grandes cidades.
A configuração do imaginário das cidades enquanto espaço geográfico
tornar-se-á símbolo das reflexões e experiências do homem moderno,
possibilitando, com isto, estabelecer correspondências entre os ambientes
rural, urbano e portuário com a literatura. O espaço urbano representa para o
homem moderno uma parte fundamental de sua vida. Uma série de sensações
provocadas pela vida agitada e de rápidas mudanças são experimentadas.
Para o indivíduo procedente da província, o ritmo desenfreado dos grandes
centros urbanos se opõe ao ritmo tranqüilo da vida no campo.
15
Ano após ano, geração após geração, os jovens migram para as cidades
grandes em busca de trabalho, estudos ou melhores condições de vida. Cabe
destacar que o próprio Neruda viveu a experiência de fugir do seu destino
provinciano quando, em 1921, aos dezessete anos de idade, partiu da
província de Temuco para Santiago, capital política e cultural do Chile, com o
objetivo de fazer carreira literária, transformando-se em mais um interiorano na
conturbada vida da capital. Sua inadaptação e seu desejo de uma vida simples
ficaram registrados em sua poesia. Da mesma forma também transpareceu o
sonho de retorno ao mundo longínquo da infância e da adolescência.
Este estudo comparativo entre as cidades onde Neruda viveu focaliza
dois grandes centros urbanos, Santiago e Valparaíso, que se opõem à
província de Temuco. Analisar-se-á de que forma Neruda aborda o tema da
cidade, do campo e do porto, assim como a importância que estes ambientes
representaram para o desenvolvimento de sua própria vida e obra. Os conflitos
resultantes dessas experiências foram manifestados, por exemplo, nos versos
de “Crepúsculos de Maruri” (1923) onde a paisagem urbana do presente se
opõe ao passado, vivenciado no meio rural de Temuco. A questão entre o
espaço do presente ou imediato da cidade e a do espaço do passado ou
provinciano mediado pela memória, atravessa boa parte da obra nerudiana,
ressaltando sempre as diferenças entre estes territórios.
Em Neruda, a relação entre espaço, memória e identidade é
apresentada em termos binários de oposição ou de integração. Às vezes
alguns de seus poemas fazem emergir a impressão de que é a noção de
simples oposição que vigora, porém, à medida que se estuda sua obra, a
16
integração, por exemplo, entre a visão do espaço portuário e a do espaço
provinciano, se faz patente.
A estratégia desta pesquisa ocorre através da tríade espaço, tempo e
identidade. O levantamento de dados biográficos e a análise da obra nerudiana
permitiram observar uma complementariedade entre os três elementos dessa
tríade e a presença de um multifacetado sujeito lírico, que manifesta
sentimentos ora de nostalgia, ora de rejeição, ou ainda, de identificação em
relação às cidades de Temuco, Santiago e Valparaíso.
Se por um lado, a relevância deste estudo está no fato de levantar a
discussão sobre as “cidades chilenas na poesia nerudiana” e, por conseguinte,
o papel do poeta na sociedade, acompanhado do valor estético; por outro lado,
a relevância está na possibilidade de encontrar uma articulação precisa, que
relacione os resultados das criações-pensamentos do poeta com a realidade
citadina, tendo como foco os seguintes tópicos: o espaço urbano, a memória, a
imagem poética, o olhar citadino e a identidade cultural.
A metodologia a ser aplicada surge do âmbito exploratório da produção
poética de Pablo Neruda. Primeiramente observar-se-á a inserção do poeta em
questão na literatura vanguardista hispano-americana, principalmente na
chilena, a sua visão de mundo e de sociedade. Para este fim, se tem como
apoio teórico os significativos intelectuais: Emir Rodríguez Monegal (1977),
Hugo Verani (1990), Saúl Yurkievich (1984, 1988, 1997) e Octavio Paz (1975,
1984, 2006).
Pode-se considerar a cidade como um centro de concretude das ações
humanas sem, ao mesmo tempo, deixar de ser ela própria uma das formas de
expressão do homem. O espaço urbano é visto como um lugar em constante
17
transformação, que concentra os diferentes elementos que fazem parte da
cultura. De forma que, para o aprofundamento sobre a relação do homem
moderno com seus espaços urbanos serão relevantes os textos teórico-críticos
de Otávio G. Velho (1967); Walter Benjamin (1989); Ítalo Calvino (1990), Kevin
Lynch (1997), Néstor García Canclini (1999, 2000); Ángel Rama (1985) e
Benjamín Subercaseaux (2005).
Este estudo abordará também a questão da memória, aspecto que se
justifica pelo fato de a poesia nerudiana apresentar um caráter intimista no
sentido de se tratar de territórios geográficos da terra natal do poeta, os quais
sem
dúvida
reportaram
ao
seu
cotidiano.
Desta
maneira,
para
o
desenvolvimento desta parte da pesquisa são de fundamental importância os
seguintes teóricos: Gaston Bachelard (1988 a-b, 1993), Pierre Achard (1999),
Ecléa Bosi (1994, 2003) e Gilles Deleuze (2003).
A seguir, o estudo abordará reflexões sobre a imagem poética e sobre o
sentido lírico do espaço urbano. Para tratar desses aspectos, encontrou-se
sustentação em pesquisas bibliográficas sobre a imagem artística de Octavio
Paz (1975, 2006); Gilbert Durand (1998) e Justo Villafañe (2002).
Também será analisada a contribuição do olhar citadino do autor em sua
poesia, isto é, como Neruda percebe a cidade e de que maneira ele expressa
essa percepção. Assim sendo, serão relevantes os estudos reunidos por
Adauto Novaes na obra O olhar (1988).
Outro tópico a ser abordado está relacionado com a questão da
identidade. Tópico que se justifica partindo da idéia de cidade como construção
organizada que implica na identidade formada por seus cidadãos. Conta-se
para isto, com os seguintes estudiosos: Bernardo Subercaseaux (1999), Luis
18
Mizón (2001), Pedro Gómez García (1998), Rosalba Campra (1987), Jorge
Larrain (2003), Zigmung Bauman (2005), Benedict Anderson (2008) e Darcy
Ribeiro (1986,2007).
Após as reflexões enunciadas sobre o espaço urbano, a memória, a
imagem, o olhar e a identidade, remeter-se-ão às próprias declarações
nerudianas contidas nas suas memórias. Declarações que servirão de guia
para o acompanhamento da sua produção poética, por serem reflexões
abrangentes sobre sua poesia e sobre sua vida, que se tornaram
imprescindíveis para a compreensão de seu mundo poético. Em suas
Memórias, Confieso que he vivido, bem como no texto complementar Para
nacer he nacido, o autor tece comentários sobre sua vida e sua produção
literária, apresentando um nível de autoconsciência, que presupõem uma
definição de seu gênesis poético. Esses textos por serem posteriores à sua
poesia, podem ser considerados como uma glosa desta. Assim sendo,
pretende-se verificar em que medida esses comentários contribuem para o
entendimento do contexto, das influências e do próprio significado de sua
criação poética, focalizando, especificamente, o ambiente citadino, de forma a
possibilitar a identificação das influências por ele absorvidas.
A partir do fio condutor da poesia citadina nerudiana, constituído pelas
imagens primordiais e amparado pelo resgate da memória e pela experiência
de vida do autor, poder-se-ão estabelecer parâmetros, às vezes comparativos,
às vezes associativos, que permitirão elucidar os questionamentos do sujeito
citadino. Um sujeito plural que reflete os conflitos íntimos do indivíduo e está à
procura do grande mistério da vida: criar e viver intensamente.
19
1ª PARTE
PABLO NERUDA E A HARMONIA ENTRE VIDA E OBRA
Entre Michoacán y Punitaqui
[…] la nueva capital de la frontera poblada por los chilenos. Ésta se
llamó Temuco y ella es la historia de mi familia y de mi poesía. Mis
padres vieron la primera locomotora, los primeros ganados, las primeras
legumbres en aquella región virginal de frío y tempestad.
Yo nací el año 1904, y antes de 1914 comencé a escribir allí mis primeras
poesías. Los largos inviernos del sur se metieron hasta en las médulas de
mi alma, y me han acompañado por la tierra. Para escribir me hacía falta
el vuelo de la lluvia sobre los techos, las alas huracanadas que vienen de
la costa y golpean los pueblos y montañas, y ese renacer de cada mañana
[...] Para escribir también me hicieron falta por el mundo las goteras. Las
goteras son el piano de mi infancia [...] Así, pues, yo soy un poeta natural
de la guerra y de las ciudades, de las máquinas y de las habitaciones, del
amor, del vino, de la muerte y de la libertad. Pero soy también un poeta
natural de aquellos bosques sombríos, que recuerdo ahora con empapada
fuerza. Yo he empezado a escribir por un impulso vegetal y mi primer
contacto con lo grandioso de la existencia han sido mis sueños con el
musgo, mis largos desvelos sobre el humus [...].
Viajes 2
Pablo Neruda,1942 -1943*
*
NERUDA (2001) p. 522.
20
1. Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto e o Álbum de Temuco
Laurita, a irmã caçula de Pablo Neruda, sempre atribuiu um valor
especial às fotografias familiares. Sigilosamente, ela recolhia e
guardava os retratos como se fossem tesouros. Graças a Laurita é
possivel hoje acompanhar imagens dos primeiros anos de Eliecer
Neftalí. O Álbum de Temuco (2003) é a compilação fotográfica
organizada por Bernardo Reyes, sobrinho neto de Pablo Neruda, que
apresenta fotografias valiosíssimas guardadas por Laura Reyes.
Estes documentos configuram um arquivo pessoais revelador de
imagens, às vezes embaçadas, às vezes nítidas, que permitem uma
aproximação mais íntima do Nobel chileno.
Ricardo Eliecer Neftalí Reyes Basoalto,
mais tarde Pablo Neruda, nasceu na
cidade de Parral em 12 de julho de
1904. Sua mãe, Rosa Basoalto, uma
professora, morreu dois meses após
seu nascimento, motivo pelo qual o
pequeno Neftalí morou até os dois anos
de idade com seus avós. Da cidade de
nascimento, assim como da figura da
mãe,
Neruda
não
guardou
recordações fato que deixou registrado
Pablo Neruda, 19051
décadas mais tarde em Memorial de Isla Negra (1964), no poema “Nacimiento”
(NERUDA,1993a:1021-1022):
Nació un hombre
entre muchos
que nacieron [...]
1
REYES (2003) p.18.
21
Parral se llamaba el sitio
del que nació
en invierno.
Yo no tengo memoria
del paisaje, ni tiempo,
ni rostros, ni figuras,
sólo polvo impalpable,
la cola del verano
y el cementerio en donde
me llevaron
a ver entre las tumbas
el sueño de mi madre.
Y como nunca vi
su cara
la llamé entre los muertos, para verla,
pero como los otros enterrados,
no sabe, no oye, no contestó nada,
y allí se quedó sola, sin su hijo,
huraña y evasiva
entre las sombras [...]
No ano de 1906, seu pai, José del
Carmen Reyes Morales, um ferroviário,
o levou a morar a Temuco, na “ciudad
maderera”. No novo lar, Neftalí foi
criado por Trinidad Candia Marverde,
segunda esposa de seu pai e com a
qual já tinha um filho, Rodolfo. O
chamado feito por Neftalí a sua falecida
mãe — “la llamé entre los muertos,
para verla” — encontrou resposta na
ternura e carinho com que Trinidad o
Pablo Neruda, 19062
recebeu. A forte união surgida entre o
pequeno orfão e a “mamadre”, nome com o qual Neflalí se dirigia a Trinidad,
2
REYES (2003) p.19.
22
ficou estampado no poema “La Mamadre” (NERUDA,1993a:1025-1026), um
testemunho comovente de amor e gratidão que vale a pena ser admirado:
La mamadre viene por ahí,
con zuecos de madera
[...]
y ahora, en la mañana
de sol helado, llega
mi mamadre, doña
Trinidad Marverde,
dulce como la tímida frescura
del sol en las regiones tempestuosas,
lamparita
menuda y apagándose,
encendiéndose
para que todos vean el camino.
Oh dulce mamadre
— nunca pude
decir madrastra —,
ahora
mi boca tiembla para definirte,
porque apenas
abrí el entendimiento
vi la bondad vestida de pobre trapo oscuro,
la santidad más útil:
la del agua y la harina,
y eso fuiste: la vida te hizo pan
y allí te consumimos
[...]
Ay, mamá, como pude
vivir sin recordarte
cada minuto mío?
No es posible posible. Yo llevo
tu Marverde en mi sangre,
el apellido
del pan que se reparte,
de aquellas
dulces manos
[…]
y cuando todo estuvo hecho,
y ya podía
yo sostenerme con los pies seguros,
se fue, cumplida, oscura,
al pequeño ataúd
donde por vez primera estuvo ociosa
bajo la dura lluvia de Temuco.
No poema supracitado, Neruda exaltou a importância da figura materna tanto
em sua infância quanto na idade adulta e a chamou de “mamá”, nome
carinhoso e muito significativo para os chilenos.
23
Rosa Neftalí Opazo Basoalto3
mãe de Pablo Neruda
Trinidad Candia Marverde, 19274
a “mamadre”
Quando o futuro poeta contava com aproximadamente dez anos de
idade chegou ao lar sua meia-irmã Laurita, fruto de outro relacionamento
clandestino de José del Carmen. A pequena Laura, um pouco mais nova que
Neftalí, se converteu em sua companhia inseparável e elo de comunicação
entre o poeta e a família.
O jovem Neftalí realizou seus estudos no Liceo de Hombres de Temuco.
Mais tarde o jornal regional La Mañana publicou seus primeiros versos. Em
1919 obteve, com seu poema "Nocturno ideal", o terceiro prêmio nos Juegos
Florales de Maule e no ano seguinte colaborou com a revista literária Selva
Austral. O jovem intelectual adotou cedo o pseudônimo Pablo Neruda por medo
das reprimendas do pai que não aceitava manifestações de arte dentro de
casa. O jovem Neftalí pensou nesse pseudônimo como uma solução provisória
3
4
REYES (2003) p.19.
REYES (2003) p.20.
24
que duraria uns poucos meses, porém, em 1946 ditou-se a sentença judicial
que declarava que o nome legal de Neftalí passava a ser Pablo Neruda.
Neruda, um homem que fez sua história. Cresceu num acampamento
militar onde se derrubavam bosques e matas para se construir cidades de
madeira. Uma vida que tinha tudo para ser condenada ao anonimato, mas o
jovem provinciano mudou seu destino quando descobriu a leitura e com ela o
poder da palavra.
Em março de 1921 Neruda viajou a Santiago para estudar francês no
Instituto Pedagógico. Mas o jovem de dezessete anos descobriu na cidade
grande o mundo da boemia literária e começou a dedicar-se mais à poesia que
aos estudos, como relatado por ele próprio:
Hacíamos los poetas estudiantiles una vida extravagante […] fuera
de mi habitación y de mi calle, la turbulencia de la vida de los
escritores de la época tenía una especial fascinación. Estos no
concurrían al café, sino a las cervecerías y a las tabernas. Las
conversaciones y los versos iban y venían hasta la madrugada. Mis
estudios iban resistiendo (NERUDA.In: AGUIRRE, 1967:119).
Na capital chilena dos anos vinte se realizavam inolvidáveis festas que
concentravam a alegría coletiva, foi numa das muitas festas da Primavera que
Pablo Neruda ganhou um concurso literário com o poema “La canción de la
fiesta”. O poema premiado foi publicado em 14 de outubro de 1921 por
“Ediciones Juventud” e, no dia seguinte, foi reproducido na revista Claridad.
Aos dezenove anos Neruda escreveu Crepusculario e aos vinte Veinte
poemas de Amor y una canción desesperada. Rapidamente o jovem poeta
ficou conhecido na capital de seu país e, entre os anos de 1924 e 1926,
publicou vários livros, dirigiu a revista Caballo de bastos e colaborou em várias
25
outras. Em 1926, a veia modernista do vate apontava em direção ao
vanguardismo e resultou nos seguintes livros: Tentativa del hombre infinito
(1924), El habitante y su esperanza (1926) e Anillos (1926). Mas a fama não o
tirou da pobreza em que vivia e, na necessidade de sobreviver, tornou-se
diplomata.
No ano de 1927, viajou ao Oriente onde desempenhou o cargo de
cônsul honorário em Rangum, Ceilão, Java e Singapura. Durante os cinco anos
em que permaneceu no Oriente, Neruda mergulhou na mais profunda solidão,
apesar dos amores, das viagens e das novidades que lhe oferecia a nova
cultura, muitas vezes chegou ao desespero. Em suas Memórias Neruda relata
o cotidiano do trabalho consular:
Mi vida oficial funcionaba una sola vez cada tres meses, cuando
arribaba un barco de Calcuta que transportaba parafina sólida y
grandes cajas de té para Chile. Afiebradamente debía timbrar y
firmar documentos. Luego vendrían otros tres meses de inacción, de
contemplación ermitaña de mercados y templos Ésta es la época
más dolorosa de mi poesía (NERUDA, 2000:115).
A profunda solidão em que se encontrava submerso ficou estampada
em seus versos, assim como as experiências vividas, algumas delas
ameaçadoras e perigosas. Surgiu, assim, nas páginas de Residencia en la
tierra (1925-1931), uma poesia que rompiu com os moldes estabelecidos e que
constituiu sua própria vanguarda.
Em 1930, ainda no Oriente, Neruda casa-se com María Antonieta
Hagenaar, uma jovem holandesa que vivia em Java. Seis anos depois o casal
se divorcia. Do relacionamento entre Neruda e Maria Antonieta nasceu Malva
26
Marina. Filha única de Neruda, a pequena Malva Marina morreu muito cedo
vítima de uma doença rara.
Pablo Neruda também foi Cônsul do Chile em Buenos Aires em 1933,
cidade em que conheceu Federico García Lorca. No ano seguinte viajou para
Espanha como cônsul e em 1936, eclodiu a Guerra Civil Espanhola.
Profundamente afetado com a guerra e com o assassinato do amigo García
Lorca, o poeta chileno comprometeu-se com o movimento republicano. Na
França, em 1937, escreveu España en el corazón e retornou para o Chile onde
começou a produzir textos com temáticas políticas e sociais. No ano de 1939
foi designado cônsul para a imigração espanhola em Paris e, em 1940, Cônsul
Geral no México.
Em 4 de março de 1945 Neruda foi eleito Senador da República do
Chile. Incomodado com o tratamento repressivo que era dado aos
trabalhadores das minas chilenas, começou a fazer vários discursos com
críticas ao presidente González Videla. Passou a ser perseguido pelo governo
do Chile e se exilou na Europa.
Em 1952, de volta do exílio, publicou no Chile Los versos del capitán e,
dois anos depois, Las uvas y el viento e Odas elementales. Recebeu o Prêmio
Stalin da Paz em 1953. No ano de 1955, se divorciou de sua segunda esposa,
Delia del Carril, com quem havia-se casado em 1943.
Em 1965, recebeu o título Doutor Honoris Causa em Filosofia e Letras
da Universidade de Oxford (Inglaterra), título pela primeira vez concedido a um
sulamericano. Em 1966, legalizou sua união com Matilde Urrutia. Em outubro
de 1971 ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, enquanto exercia o cargo
embaixador na França, e em 10 de dezembro desse mesmo ano recebeu o
27
galardão em Estocolmo das mãos do rei Gustavo Adolfo convertendo-se no
terceiro latino-americano a receber essa distição e no segundo chileno, depois
de Gabriela Mistral. Um ano mais tarde recebeu o Prêmio Lênin da Paz, pouco
tempo depois regresou definitivamenta ao Chile.
Em 11 de setembro de 1973 um golpe militar derrubou o governo de
Salvador Allende. Doze dias após o golpe militar, em 23 de setembro, faleceu
aos 69 anos de idade o poeta Pablo Neruda. A opinião pública internacional se
enterou, com profundo estupor, de que as casas de Valparaíso e de Santiago
tinham sido saqueadas e destruídas pelos militares. Ao morrer Neruda deixou
oito livros sem publicar, eles estavam destinados à comemoração de seus
setenta anos de vida.
2. Ruptura e permanência: marcas da criação nerudiana
Yo cambié tantas veces de sol y de arte poética que aún estaba
sirviendo de ejemplo en cuadernos de melancolía cuando ya me
inscribieron en los nuevos catálogos de los optimistas, y apenas me
habían declarado oscuro como boca de lobo o de perro denunciaron
a la policía la simplicidad de mi canto y más de uno encontró
profesión y salió a combatir mi destino en chileno, en francés, en
inglés, en veneno, en ladrido, en susurro.
La Barcarola,1967.
Pablo Neruda*.
*
NERUDA (1993b) p. 113.
28
Ao observar o conjunto da obra nerudiana pode-se constatar uma
literatura em permanente metamorfose, um processo criativo em reformulação
constante, registradas pelo poeta ao longo de sua vida na prosa, na lírica e em
artigos. Mudanças freqüentes delatam uma exigência criadora, que constitui
um dos fatores da originalidade deste autor, característica reconhecida por
Rodríguez Monegal (2003:38), quando afirma que as mudanças em Neruda,
[…] têm um sentido unívoco: permitir ao poeta desenvolver-se ao
longo de sua obra e de uma vida de constante exigência criadora;
manter o poeta em seu movimento central sem paralisar a
possibilidade da aventura. Por isso Neruda se transforma sem
descaracterizar-se, assume novas máscaras para expressar melhor
a pessoa única, foge para ficar cravado em seu mesmo centro.
[Trad. da autora]
Para fazer um croqui da obra nerudiana é oportuno refletir sobre os
escritos em que o autor expõe seu pensamento estético. Todavia, antes da
leitura de sua obra, cabe fazer uma reflexão a respeito do período das
vanguardas como estratégia para entender o processo criativo desenvolvido
pelo poeta chileno e, com isto, fornecer os elementos para a realização da
análise da estética nerudiana.
O século XX foi marcado pela crescente industrialização, avanços
tecnológicos, científicos e mudanças nas artes e na literatura. Desde 1914,
início da Primeira Guerra Mundial, as tendências artísticas inovadoras se
generalizaram configurando o período vanguardista. Como espaço de agitação
e transformação, as vanguardas foram formadoras de realidades paralelas
através da linguagem e representaram a procura por outras verdades e pela
inovação. Contudo, os poetas vanguardistas desejavam transferir para o texto
literário todas as experimentações técnico-científicas e filosóficas surgidas no
29
final do século XIX, originando uma proliferação de movimentos estéticos. Com
isto, as vanguardas literárias expressaram em vários momentos uma
desarticulação das linguagens tradicionais. É a denominada época dos –ismos,
que representou o surgimento de uma série de movimentos como cubismo,
futurismo, expressionismo, dadaísmo e surrealismo.
Neste período histórico conturbado os intelectuais direcionaram sua
atenção para a Europa, sendo Paris o centro de convergência,
O encontro de artistas das mais diferentes áreas fez com que o
período inicial das vanguardas fosse caracterizado pela interação
entre pintores, poetas, escritores e escultores, dentre outros,
movidos pela vontade de abolir as fronteiras entre as diversas
expressões artísticas e, ao mesmo tempo, provocando influências
mútuas (Díaz Merino, 2004:28).
Na procura por essa renovação, a figura do poeta teve um papel
importantíssimo. Por meio da poesia, o homem pôde visitar lugares
inexplorados: o universo mágico do poema. A revolução vanguardista européia
ocorreu num momento em que o homem americano estava à procura da sua
inserção na modernidade, na sociedade industrial. Nesse momento histórico,
as idéias revolucionárias originadas na Europa foram trazidas ao contexto
latino-americano pelas vozes de jovens poetas, adquirindo a cor local: os
vanguardistas hispano-americanos lutaram pela valorização da arte nacional e
pela consagração de sua excelência, revelando uma arte nova, rítmica e vital.
A vanguarda na América Hispânica desenvolveu-se com toda força
criativa entre os anos de 1916 e 1935, tendo como figuras representativas de
desse período dois destacados poetas chilenos: Vicente Huidobro e Pablo
Neruda. Sobre a representatividade desses poetas para a vanguarda Latino-
30
americana, Hugo Verani (2006:138), no texto A vanguardia y sus implicaciones,
declarou:
Antes da publicação de El espejo de agua (1916) de Vicente
Huidobro, havia somente precursores influentes e antecipações
isoladas dos últimos remanescentes do Modernismo; no momento
em que Pablo Neruda publicou sua segunda Residencia en la Tierra
(1935), a Vanguarda já tinha cumprido seu propósito histórico.
Depois disso houve um deslocamento de sensibilidades, uma
notável diminuição do humor experimental e um aumento drástico no
papel social do autor; em particular, consolidaram-se os logros
estéticos do período. [Trad. da autora]
Vicente Huidobro, precursor e propagador do primeiro movimento de
vanguarda na América Hispânica, o criacionismo (1916), promoveu uma
experimentação poética que desencadeou uma onda vanguardista que
provocou a proliferação de uma série de –ismos: ultraísmo, estridentismo,
martinfierrismo, runrunismo e nadaismo, dentre outros. Movimentos estéticos
surgidos quase que simultaneamente, enquanto seus idealizadores alçavam
voz contra a arte dominante que não se adequava ao novo contexto histórico
de “la sociedad urbana tecnológica” (Verani, 2006:140), um mundo em plena
transformação, que clamava por formas inovadoras.
Cabe destacar a influência causada pela palavra huidobriana em jovens
escritores espanhóis na época em que o poeta chileno divulgou sua estética
criacionista na Espanha. Como decorrência das idéias de Vicente Huidobro, o
escritor espanhol Rafael Cansinos-Asséns escreveu o Manifesto Ultra (1918)
no qual sintetizou a conformação oficial da vanguarda de seu país. A
importância da passagem de Huidobro pela Espanha foi registrada pelo próprio
Cansinos-Asséns com as seguintes palavras:
31
Huidobro trazia primícias completamente novas, nomes novos, obras
novas; um ultramodernismo. Desdenhando os doutores do tempo. O
autor de Horizon carré limitou-se a difundir a boa nova entre os
poucos e os mais jovens [...] Desses colóquios familiares, uma
virtude de renovação transcendeu a nossa lírica [...] (Poesía,
1989:72). [Trad. da autora]
Na segunda década do século XX, a grande maioria dos países
americanos
apresentava
diversos
movimentos
vanguardistas
e
consecutivamente grupos proclamavam a ruptura com a arte tradicional, assim
como a fundação de novos –ismos. Contudo, a vanguarda não se desenvolveu
homogeneamente em todo o continente americano, sendo que “[...] as
primeiras e mais sofisticadas manifestações floresceram nos principais centros
da cultura urbana (Buenos Aires, Lima, Santiago, Ciudad de México)”
(Verani,2006:148). Os principais –ismos hispano-americanos, que surgiram
após o criacionismo, foram, primeiramente o Ultraísmo (1921), movimento
divulgado por Jorge Luis Borges na Argentina e, no ano seguinte, surgiu no
México o Estridentismo (1922), fundado por Manuel Maples Arce e Los
Contemporáneos (1928).
Essa proliferação de movimentos estéticos estava em sintonia com o
momento histórico de rápidas transformações e proclamava a ruptura com o
passado, visando somente o presente e o futuro. Surgem neste contexto
grupos de jovens literatos que propõem mudanças radicais na literatura:
abolição da mímesis, da descrição e da expressão sentimental em prol da
liberdade inventiva e da experimentação, sem os limites impostos pelas formas
tradicionais. Os jovens vanguardistas, conscientes de que para alcançar as
drásticas mudanças propostas era necessário assumir uma posição combativa
e enfática que chamasse a atenção do mundo, divulgaram suas idéias através
de documentos com mensagens diretas e objetivas que tinham uma rápida
32
chegada ao público: manifestos, cartas e proclamas eram publicados em
jornais e revistas de forma intensa. Assim, esses documentos foram o principal
meio de divulgação e consolidação dos movimentos vanguardistas que,
conforme Hugo Verani (2006:139), transformaram-se em verdadeiros símbolos
da época, porque,
Os manifestos, as proclamações, as funções públicas, as cartas
abertas, as polêmicas e as pequenas revistas converteram-se nos
símbolos típicos do período, geralmente mais interessantes que as
obras literárias escritas [...] Escrever sobre literatura equivalia a fazêla [...].[Trad. da autora]
As revistas literárias que acolheram as novas vozes não abraçavam
nenhuma tendência em particular. Sendo seu objetivo principal a divulgação de
idéias vanguardistas. Na América Hispânica, segundo o crítico mexicano José
Luis Martínez (1979:76), cabe destaque para as seguintes revistas:
[...] as argentinas Prisma (1921-1922), Proa (1922-1923) e Martín
Fierro (1924-1927); as mexicanas Horizonte (1926-1927), Ulises
(1927-1928) e Contemporáneos (1928-1931); a cubana Revista de
Avance (1927-1930); a peruana Amanauta (1926-1932) e as
uruguaias Los Nuevos (1920) e Alfar (1921-1955).
No Chile, as revistas literárias nos anos vinte também tiveram uma
considerável produção. Algumas dessas revistas foram: Claridad (1920-1924),
Elipse (1922), Ngulltún (1924), Mandrágora (1938), Caballo de fuego e Orfeo.
Pablo Neruda, que a partir de 1921 vivia na capital chilena, publicou
seus textos em várias revistas vanguardistas. O jovem poeta, imerso na solidão
da multidão, se entregou a uma escritura existencialista e dexou patente seu
desejo de registrar a realidade, observada num afã de conciliar a vivência e sua
representação. Neruda revelou o mundo em que vivia através de sua poesia.
33
Revelou também o desejo de articular poesia e vida. No ano de 1922, com
apenas dezoito anos, o vate já procurava uma expressão simples para sua
arte, desejo divulgado através da Revista Claridad5. Na edição nº 122, datada
em junho de 1924, Neruda (2001:398) declarou:
A veces me alcanza el deseo de hablar poco, sin poema, con las
frases mediocres en que existe esta realidad, del rincón de calle,
horizonte y cielo que avizoro al atardecer, desde la alta ventana
donde siempre estoy pensando […] Decir, por ejemplo, que la calle
polvorienta me parece un canal de tierra inmóvil, sin poder de reflejo,
definitivamente taciturno […]
As novas idéias e questionamentos estéticos que invadem Neruda a
partir da experiência citadina não implicaram somente em uma mudança de
conceitos, mas também em uma transformação interna que resultou em novas
formas de percepção, de pensar e, conseqüentemente, de representar, criando
uma voz comprometida com o homem, com o mundo e com a memória, “[...]
seus poemas vão nadando à deriva, levando consigo uma incubação de
desejos e recordações” (Anderson-Imbert,1988:205) [Trad. da autora].
Mas, é na denominada “segunda fase vanguardista” (VERANI,2006:151)
que a voz do jovem Pablo Neruda se faz ouvir com mais força. A segunda fase
vanguardista se inicia com a publicação da antologia Índice de la nueva poesía
hispanoamericana (1926) editada por Jorge Luis Borges, Alberto Hidalgo e
Vicente Huidobro, fato que marca a consolidação da vanguarda hispanoamericana. As palavras de Verani sobre o assunto são as seguintes:
Claridad foi a revista da Federación de Estudiantes de Chile editada, numa primeira etapa,
entre 1920 e 1932. Os textos de Pablo Neruda publicados na revista vanguardista e citados
neste estudo foram extraidos do livro Pablo Neruda. Obras completas IV: Nerudiana dispersa I
(1915-1964), publicado em 2001.
5
34
Apesar de não haver uma linha de separação entre a primeira e a
segunda onda vanguardista, essa antologia demarcou um momento
de câmbio [...] a arte como valor de choque e como explosão
incendiária tinha completado seu ciclo e a consolidação da
Vanguarda começava a adquirir o valor de uma alternativa
institucional. [Trad. da autora]
Contudo, a consagração de Pablo Neruda aconteceu somente a partir de 1935,
ano em que começou a publicar suas obras fora do Chile: Espanha, México,
França e Itália. O êxito internacional de Neruda confirmou a presença da
poesia chilena, após Gabriela Mistral e Vicente Huidobro, nos círculos mais
importantes do mundo intelectual da época.
2.1 Da tradição à inovação
El poeta no debe ejercitarse, hay un mandato para él y es penetrar la
vida y hacerla profética [...] La inteligencia de los poetas, desde hace
tiempo ha apartado toda relación humana de lo que dicen, y toda
cordialidad y amistad para el mensaje poético han huido del mundo,
cuando en verdad, ¿qué otro objeto el de la poesía que el de
consolar y el de hacer soñar? [...] la poesía debe cargarse de
sustancia universal, de pasiones y de cosas. Eso quiero hacer yo:
una poesía poética.
Pablo Neruda, 1931*.
Conforme mencionado anteriormente, Neruda chegou pela primeira vez
à capital chilena no ano de 1921. Na bagagem o jovem levava os versos
escritos entre 1918 e 1920, aproximadamente duzentos poemas. Esses
poemas estavam divididos em três cadernos, sendo que um deles tinha sido
especialmente preparado por Neruda para ser publicado na capital, mas o
projeto do livro intitulado Helios não se concretizou. Somente dois anos após
sua chegada a Santiago do Chile, Neruda publicou sua primeira obra,
*
NERUDA. In: RODRIGUEZ MONEGAL (1977) p. 83
35
Crepusculario (1923), que além dos novos poemas escritos em Santiago
continha oito pertencentes ao caderno Helios. Ainda que Crepusculario revele
uma forte influência do pós-modernismo6 e do romantismo, como o afirma
Sáinz de Medrano (1996:105), a obra já apresentava claros elementos
vanguardistas.
No ano seguinte, 1924, Pablo Neruda publicou Veinte poemas de amor y
una canción desesperada. Poemário que segundo o próprio vate não atingiu
seu “[...] secreto y ambicioso deseo de llegar a una poesía aglomerativa en que
todas las fuerzas del mundo se juntaran y se derribaran” (Neruda,1964:181).
Nos anos seguintes, Neruda continuou a incansável procura pela expressão
desejada, exercício que o levou a desenvolver uma autonomia estética
registrada nos versos de Tentativa del hombre infinito, livro impresso em 1925
e editado em 1926. Nessa obra o vate iniciou sua incursão num mundo poético
capaz de traduzir as experiências e as percepções humanas, uma poesia autoreflexiva que rompeu com os cânones da lírica vigente.
Mas, apesar de ter dado os primeiros passos em direção à configuração
de uma nova estética, Neruda ficou insatisfeito com o resultado de seus
esforços, porque não conseguiu realizar a “poesía aglomerativa” tão desejada.
Sobre seu terceiro livro Neruda (1964:182) declarou:
Empecé una segunda tentativa frustrada y ésta se llamó
verdaderamente Tentativa... En el título presuntuoso de ese libro se
puede ver cómo esta motivación vino a poseerme desde muy
temprano. Tentativa del hombre infinito fue un livro que no alcanzó a
ser lo que quería [...] Sin embargo, dentro de su pequeñez y de su
6
O termo modernismo refere-se ao “movimento literário de grande riqueza lingüística e
inovação formal que se iniciou na América Hispânica em finais dos anos setenta do século XIX
e perdurou até a segunda década do XX” (JRADE, 2006:37), já com o nome de pósmodernismo designa-se o momento de câmbio cultural que ainda não está bem definido, entre
as glórias do Modernismo e a violência da Vanguarda [...]” (QUIROGA, 2006:339). [Trad. da
autora]
36
mínima expresión, aseguró más que otras obras mías el camino que
yo debía seguir. Yo he mirado siempre la Tentativa del hombre
infinito como uno de los verdaderos núcleos de mi poesía [...] y si en
alguna parte están medidas las expresiones, la claridad o el misterio,
es en este pequeño livro, extraordinariamente personal.
Nas palavras do próprio Neruda (In: AGUIRRE, 1967:150), Tentativa del
hombre infinito “[...] es el libro menos leído y estudiado de mi obra y sin
embargo es uno de los libros más importantes de mi poesía, enteramente
distinto a los demás”. A mudança formal apresentada no poemário, ausência
de maiúsculas e falta de pontuação, provocaram opiniões negativas, já que
segundo os críticos da época, a ausência de pontuação dificultava a
expressividade do autor. Apresenta-se a seguir um fragmento do livro em que
se podem identificar algumas características inovadoras: introspecção, livre
associação verbal, justaposição de frases incompletas, impressões sensoriais
(NERUDA,1999: 208),
Esta es mi casa
aún la perfuman los bosques
de donde la acarreaban
allí tricé mi corazón como el espejo para andar a través de mi mismo
esa es la alta ventana y ahí quedan las puertas
de quien fue el hacha que rompió los troncos
tal vez el viento colgó las vigas
su peso profundo olvidándolo entonces
era cuando la noche bailaba entre sus redes
cuando el niño despertó sollozando.
Constata-se com a leitura do poema supracitado um processo criativo
que se aproxima da estética surrealista nas visões oníricas e na seqüência
ininterrupta de imagens, deixando que os sentimentos emanem livremente sem
abandonar por isto a paisagem da infância. Sobre Tentativa del hombre infinito,
Hugo Verani (2006:157) escreveu:
37
Tentativa del hombre infinito, um vôo noturno ao subconsciente e ao
onírico em busca do ‘homem superior’ em paralelo a André Bretón
de que se pode conseguir uma ‘realidade superior’ através do uso
livre das associações verbais. [Trad. da autora]
Tentativa del Hombre Infinito é considerado a transição para a estética
de Residencia en la Tierra obra que, de acordo com Hugo Verani (2006:158),
constitui “a melhor contribuição de Neruda para a literatura de Vanguarda”.
[Trad. da autora]
Entre os anos de 1927 e 1932 Neruda viveu no Oriente desempenhando
o cargo de cônsul do Chile. Parte das Residencias foram escritas em terras
orientais pelo que muito se especulou sobre os efeitos que a cultura oriental
possa ter provocado em sua obra. Sobre tais especulações Neruda (2000:113)
escreveu:
He leído en algunos ensayos sobre mi poesía que mi permanencia
en Extremo Oriente influye en determinados aspectos de mi obra,
especialmente en Residencia en la tierra. En verdad mis únicos
versos de aquél tiempo fueron los de Residencia en la tierra [...] el
Oriente me impresionó como una gran e desventurada familia
humana, sin destinar sitio en mi conciencia para sus ritos ni para sus
dioses. No creo, pues, que mi poesía de entonces haya reflejado otra
cosa que la soledad de un forastero trasplantado a un mundo
violento y extraño.
O primeiro volume de Residencia en la tierra começou a ser escrito no
Chile em 1925 e foi terminado em 1931 na cidade de Colombo. Este livro foi
publicado em abril de 1933, no Chile, após a volta de Neruda do Oriente. A
experiência de viver num mundo tão diferente dificultou o andamento dos
escritos nerudianos e modificou profundamente seu estilo. De acordo com
Neruda as mudanças na forma de escrever e de criar têm uma relação direta
com o estado emocional e com o ambiente em que o escritor se encontra
inserido no momento da criação literária. Cita-se a seguir o depoimento do
38
próprio Neruda (2000:130) sobre os motivos que provocaram mudanças em
seu fazer poético:
Había casi terminado de escribir el primer volumen de Residencia en
la tierra. Sin embargo, mi trabajo había adelantado con lentitud.
Estaba separado del mundo mío por la distancia y por el silencio, y
era incapaz de entrar de verdad en el extraño mundo que me
rodeaba.
Mi libro recogía como episodios naturales los resultados de mi vida
suspendida en el vacío; ‘Mas cerca de la sangre que de la tinta’.
Pero mi estilo se hizo más acentuado y me di alas en la repetición de
una melancolía frenética. Insistí por verdad y por retórica en un estilo
amargo que porfió sistematicamente en mi propia destrucción. El
estilo no es sólo el hombre. Es también lo que lo rodea, y si la
atmósfera no entra dentro del poema, el poema está muerto: muerto
porque no ha podido respirar.
Como se observará a seguir, há uma clara mudança de tom e de estilo
entre os poemas de Residencia en la tierra (1925-1931), produzidos no Chile e
os produzidos no Oriente. A título de exemplo citam-se dois poemas
residenciários, “Galope muerto” escrito no Chile e “Débil del alba” escrito no
Oriente:
“Galope muerto”
Como cenizas, como mares poblándose,
en la sumergida lentitud, en lo informe,
o como se oyen desde lo alto de los caminos
cruzar las campanadas en cruz,
teniendo ese sonido ya aparte del metal,
confuso, pesando, haciéndose polvo
en el mismo molino de las formas demasiado
lejos,
o recordadas o no vistas,
y el perfume de las ciruelas que rodando a
tierra
se pudren en el tiempo, infinitamente verdes.
Aquello todo tan rápido, tan viviente
inmóvil sin embargo, como la polea loca en sí
misma,
esa rueda de los motores, en fin.
[...]
(NERUDA, 1999:257)
“Débil del alba”
El día de los desventurados, el día pálido se
asoma
con un desgarrador olor frío, con sus fuerzas en
gris,
sin cascabeles, goteando el alba por todas partes:
es un naufragio en el vacío, con un alrededor de
llanto.
[...]
Yo lloro en medio de lo invadido, entre lo
confuso
entre el sabor creciente, poniendo el oído
en la pura circulación, en el aumento
cediendo sin rumbo el paso a lo que arriba,
a lo que surge vestido de cadenas y claveles,
yo sueño, sobrellevando mis vestigios morales
[...]
Estoy solo entre las materias desvencijadas,
la lluvia cae sobre mí, y se me parece,
se me parece con su desvarío, solitaria en el
mundo muerto,
rechazada al caer, y sin forma obstinada.
(NERUDA,1999: 260-261)
39
O poema “Galope muerto” segue o processo poético iniciado em
Tentativa del hombre infinito, uma poesia que se afasta totalmente da
representação tradicional do real e se fundamenta na livre associação de
elementos e de ações. Os versos lidos apresentam associações incongruentes,
opostas e ilógicas e delas fluem imagens enigmáticas e descontínuas, que vão
configurando um mundo aparentemente caótico. De acordo com Neruda, o
ambiente que envolve o escritor é um fator determinante na maneira como
este, o escritor, executa sua obra “El estilo no es sólo el hombre. Es también lo
que lo rodea [...]”. A partir dessa declaração, pode-se afirmar que o ambiente
caótico revelado em “Galope muerto” emana da particular visão de Neruda
sobre a cidade de Santiago do Chile, urbe que nas primeiras décadas do
século XX se encontrava em pleno crescimento industrial.
De acordo com o poema “Galope muerto”, pode-se verificar que a cena
revelada na composição poética se constitui da soma das imagens que fluem
dos versos onde as cinzas flutuando nos mares simbolizam a multidão urbana
que circula sem parar pelas ruas da cidade. Cenário alcançado pelo som dos
sinos do passado, desintegrando-se como pó nas lembranças que trazem o
perfume das ameixas que apodrecem ainda verdes. Tudo acontece num tempo
rápido e imóvel como a polia louca das máquinas que marca o ritmo citadino.
Imagens que bem poderiam compor uma tela surrealista.
Já “Débil del alba” revela que o sentimento de solidão e angústia
presentes no canto a Santiago fica mais acentuado no Oriente. A melancolia
extrema, produto do afastamento de suas raízes dá forma a uma poesia autoreflexiva que se manifesta na presença de um eu lírico imerso numa atmosfera
cinzenta, fria e triste, que mergulha nas lágrimas do sujeito poético. O efeito
40
corrosivo do tempo se faz patente na imagem das matérias que se
desintegram: “Estoy solo entre las materias desvencijadas”. Segundo Hugo
Verani (2006:157), Neruda, ao “liberar-se da representação objetiva e das
barreiras retóricas”, dá expressão à desolação e à profunda introspecção em
que se encontrava submerso.
2.2 Proclamação da poesia sem pureza
Cuando el tiempo nos va comiendo con su cotidiano decisivo
relámpago, y las actitudes fundadas, las confianzas, la fe ciega se
precipitan y la elevación del poeta tiende a caer como el más triste
nácar escupido, nos preguntamos si ha llegado la hora de
envilecernos [...]
Y entonces, qué queda de las pequeñas podredumbres, de las
pequeñas conspiraciones del silencio, de los pequeños fríos sucios
de la hostilidad? Nada, y en la casa de la poesía no permanece nada
sino lo que fue escrito con sangre para ser escuchado por la sangre.
Conducta y poesía, 1935∗.
Diferente dos escritores de seu tempo, Neruda não teorizou sobre
poesia, mas desenvolveu uma poesia reflexiva, um aprofundamento crítico que
faz do leitor um cúmplice de seus questionamentos e de sua estratégia criativa.
No poema “Arte poética”, parte constitutiva de Residencia en la tierra (19251931), Neruda revelou os sinais de um estranhamento com o real, uma
maneira metonímica de expressar a concretização de seu mundo imagético. O
poema, apresentado a seguir, constitui um verdadeiro tratado de estética no
∗
Texto publicado na Revista Caballo Verde para la Poesía, nº 3, Madrid, dezembro de 1935.
In: NERUDA (2001) p.383-384. A revista Caballo Verde para la poesía foi editada por Neruda
em Madrid entre os anos de 1935 e 136, ao todo foram editados quatro números. Os textos de
Pablo Neruda publicados na revista e citados neste trabalho foram extraídos da obra Pablo
Neruda. Obras completas IV: Nerudiana dispersa I (1915-1964), publicado em 2001.
41
qual Neruda (1999:274) dá a conhecer os fundamentos de seu processo
criativo:
Arte poética
Entre sombra y espacio, entre guarniciones y doncellas,
dotado de corazón singular y sueños funestos,
precipitadamente pálido, marchito en la frente
y con luto de viudo furioso por cada día de vida,
ay, para cada agua invisible que bebo soñolientamente
…..
y de todo sonido que acojo temblando,
tengo la misma sed ausente y la misma fiebre fría,
un oído que nace, una angustia indirecta,
como si llegaran ladrones o fantasmas,
y en una cáscara de extensión fija y profunda,
como un camarero humillado, como una campana un poco ronca,
…..
como un espejo viejo, como un olor de casa sola
en la que los huéspedes entran de noche perdidamente ebrios,
y hay un olor de ropa tirada al suelo, y una ausencia de flores,
- posiblemente de otro modo aún menos melancólico -,
pero, la verdad, de pronto el viento azota mi pecho,
las noches de substancia infinita, caídas en mi dormitorio,
el ruido de un día que arde con sacrificio
me piden lo profético que hay en mí, con melancolía
y un golpe de objetos que llaman sin ser respondidos
hay, y un movimiento sin tregua, y un nombre confuso.
“Arte poética” sintetiza o processo de gestação e nascimento de uma
nova poesia que resultou da aproximação do poeta à matéria. O poema
descreve o surgimento de um sujeito lírico perceptivo que se configura a partir
do aprimoramento dos sentidos e da observação dos objetos cotidianos. Um
poeta que foi capaz de captar a essência das coisas e das experiências
terrenas.
Nos primeiros cinco versos de “Arte poética” observa-se a configuração
de um cenário aparentemente contraditório: “entre sombra y espacio”, “entre
guarniciones y doncellas”. Um ambiente silencioso, triste e até fúnebre,
revelado através de palavras como “sombra”, “pálido”, “marchito”, “luto”,
“viudo”. Cenário observado por um sujeito lírico que surge veladamente nesse
42
ambiente funesto. Já nos seis versos seguintes o sujeito apresenta-se
angustiado ao experimentar sensações, sobretudo auditivas, reveladas através
dos vocábulos “sonido”, “oído”, “campana”, “sed”, “fiebre”.
Nos últimos versos o sujeito lírico se encontra inserido num ambiente
doméstico que apresenta elementos cotidianos revelados, principalmente, pelo
sentido do olfato: “olor a casa sola”, “olor a ropa tirada”. O poema finaliza
destacando a intromissão brusca do “viento”, que de um golpe imprime o dom
da criação no sujeito-poeta. Mas, esse sujeito-poeta ainda está à procura do
entendimento que o tornará capaz de ouvir o clamor da matéria em busca de
um lugar nas “flores ausentes” e no “nombre confuso”, imagens de uma poesia
ainda irrealizada que, à semelhança da “rosa huidobriana”7, florescerá
configurando uma nova poesia.
Nesse mesmo ano, 1933, Neruda reinicia seu trabalho consular.
Primeiramente viaja até Buenos Aires, cidade em que inicia sua amizade com
Federico García Lorca. No ano seguinte, 1934, é nomeado cônsul na Espanha.
Estabelece-se primeiro em Barcelona e em 1935 se translada a Madrid onde é
recebido por seu amigo Federico García Lorca. Foi a través de Lorca que
Neruda entrou em contato com a Geração de 27, o que possibilitou sua
inserção no circulo literário espanhol e a divulgação de seus ideais estéticos.
Após a triste experiência dos consulados no Oriente, Neruda encontra
na Espanha um ambiente de amizade, de alegrias e de reconhecimento. Em
relação a sua permanência na Espanha, Neruda (1966:100) declarou:
7
O poema “Arte poética” (1916) de Vicente Huidobro contém as bases concretas de sua
estética criacionista. O poema termina com os seguintes versos: Por qué cantáis a rosa, ¡oh,
poetas!/ hacedla florecer en el poema [...], proclamando assim a necessidade do artista de criar
realidades novas, únicas e auto-sufientes. In: Díaz Merino (2004b) p. 51-52.
43
Cuando bajé del tren, estaba esperándome una sola persona con un
ramo de flores en la mano: era Federico. Pocos poetas han sido
tratados como yo en España [...] Encontré una brillante fraternidad
de talentos y un conocimiento pleno de mi obra. Y yo que había sido
durante muchos años martirizado por la incomprensión de las
gentes, por los insultos y la indiferencia maliciosa, drama de todo
poeta auténtico en nuestros países me sentí feliz.
Em setembro de 1935 o poeta chileno publicou na Espanha o segundo
volume de Residencia en la Tierra (1931-1935), obra que rompeu com os
cânones da “Poesia pura”. Neruda decidiu publicar seu livro nesse país talvez
porque, como afirma Rodríguez Monegal (1977:94), “Demasiado consciente do
valor revolucionário de sua nova obra, Neruda quis lançá-la na Espanha para
que de lá se projetasse sobre todo o mundo de língua espanhola”8.
No lugar da “Poesia pura”, que, de acordo com David Lagmanovich (2004),
contava com renomados seguidores “[...]nas letras de Ocidente de Poe até
Valery, com picos de atenção crítica nas décadas de 20 e 30 [...]” e que
aspirava “[…] a constituir-se num valor absoluto, onde a estruturação dos sons
adquire importância fundamental”9, Neruda propõe uma poesia que não
procura a forma nem o ritmo, mas o contato com a matéria e o aprimoramento
dos sentidos: o olfato, o gosto, o tato, o ouvido e a visão. Exercício que
permitirá captar a essência que emana do contato diário dos objetos com o
homem, para logo recriar poeticamente o universo cotidiano cheio de emoções
e sensações.
Em outubro de 1935, após o lançamento do segundo volume de
Residencia en la Tierra (1931-1935), Neruda publicou o texto Sobre una poesía
sin pureza, prólogo do primeiro número da revista Caballo Verde para la
poesía. Nesse prólogo Neruda apresentou e definiu sua poesia “impura”. Uma
8
9
Trad. da autora.
Trad. da autora.
44
poesia que, nas palavras de Lagmanovich (2004), “[...] postula a um tipo
específico de experiências poéticas, próximas das substâncias elementares da
terra […] uma recuperação do sentimento que elimina toda possível
contaminação com uma poesia ‘intelectual’”. [Trad. da autora]
A seguir destacam-se fragmentos representativos de Sobre una poesía
sin pureza. Através de uma linguagem simples, Neruda (2001:381-382) dá a
conhecer sua concepção do fazer poético:
Es muy conveniente, en ciertas horas del día o de la noche, observar
profundamente los objetos en descanso […] De ellos se desprende
el contacto del hombre y de la tierra como una lección para el
torturado poeta lírico […] Así sea la poesía que buscamos, gastada
como un ácido por los deberes de la mano, penetrada por el sudor y
el humo […] Una poesía impura como un traje, como un cuerpo […]
La sagrada ley del madrigal y los decretos del tacto, olfato, gusto,
vista, oído, el deseo de justicia, el deseo sexual, el ruido del océano,
sin excluir deliberadamente nada, sin aceptar deliberadamente nada,
la entrada en la profundidad de las cosas en un acto de arrebatado
amor […] Hasta alcanzar esa dulce superficie del instrumento tocado
sin descanso […] Y no olvidemos nunca la melancolía, el gastado
sentimentalismo, perfectos frutos impuros de maravillosa calidad
olvidada, dejados atrás por el frenético libresco: la luz de la luna, el
cisne en el anochecer, “corazón mío”, son sin duda lo poético
elemental e imprescindible. Quien huye del mal gusto cae en el hielo.
No texto, que pode ser considerado um manifesto, Neruda desmitificou a
poesia tradicional ao elaborar uma poesia que nada exclui. O poeta enumera
uma série de elementos heterogêneos que não fazem parte do “bom gosto”
característico
dos
versos
tradicionais.
Nem
a
melancolia
nem
o
sentimentalismo ficam fora da nova expressão poética proporcionando um
lugar literário aos elementos considerados de “mau gosto”, que não tinham
direito de entrar na casa da poesia. Mas, a crítica à lírica vigente fica ainda
mais patente quando Neruda denomina de “impura” sua poesia: ”Una poesía
45
impura como un traje, como un cuerpo”, porque segundo o próprio autor,
“Quien huye del mal gusto cae en el hielo”.
Para Luis Rosales o manifesto Sobre una poesía sin pureza é de grande
importância porque estabelece mudanças pontuais na poesia dos anos trinta.
As palavras de Rosales (1974:61) foram as seguintes:
[...] o manifesto de Neruda foi capital na renovação da poesia no que
se refere a quatro aspectos fundamentais: a substituição da poética
da beleza pela poética da existência, o encontro de novos esquemas
formais, a criação de uma nova sintaxe e, finalmente, a ampliação
ilimitada e planetária do mundo poético. [Trad. da autora]
A poética nerudiana propunha a revelação da existência em todos seus
aspectos, uma expressão totalizadora que pudesse fundir todos os recursos
expressivos: cantar, contar e dizer. Expressão totalizadora que o vate alcançou
no desenvolver de sua poesia e que foi reconhecida por um dos escritores mais
representativos da América Latina, Miguel Ángel Asturias (1973:15):
Pablo Neruda, poeta habitado, ou poderia se dizer planeta habitado.
No universo da poesia giram poetas que foram como planetas
mortos e os que são como planetas vivos. Neruda, mais que nenhum
outro, é por excelência o poeta habitado. Sua poesia, por isso
mesmo, é um mundo aberto, a poesia que mais objetos contêm, que
mais coisas canta, e se não canta, conta, e se não conta, diz. Diz e
diz. [Trad. da autora]
As críticas contidas no manifesto nerudiano tinham por alvo o poeta
espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958) para quem a poesia pura era a
única poesia possível. Ramón Jiménez era considerado, tanto por espanhóis
quanto por hispano-americanos, o “epítome del esteta” (Quiroga,2006:342),
mas seu temperamento difícil provocou desentendimentos com seus
46
seguidores, especialmente com os jovens da Geração de 27. Sobre as
desavenças com Juan Ramón Jiménez, Neruda (2000:158) esclareceu:
Juan Ramón Jiménez, poeta de gran esplendor fue el encargado de
hacerme conocer la legendaria envidia española. Este poeta que no
necesitaba envidiar a nadie puesto que su obra es un gran
resplandor que comienza con la oscuridad del siglo, vivía como un
falso ermitaño, zahiriendo desde su escondite a cuanto creía que le
daba sombra.
Los jóvenes García Lorca, Alberti, así como Jorge Guillén y Pedro
Salinas – eran perseguidos tenazmente por Juan Ramón [...] Contra
mí escribía todas las semanas en unos acaracolados comentarios
que publicaba domingo a domingo en el diario El Sol. Pero yo opté
por vivir y dejarlo vivir. Nunca respondí nada, no respondí - ni
respondo - las agresiones literarias.
Enquanto todos na Espanha celebravam a Neruda, Ramón Jiménez
acrescentava a nota discordante no momento em que “nega-se a seguir o carro
do novo poeta triunfador e se mantém obstinadamente à margem”
(RODRÍGUEZ MONEGAL, 1977:107).
Mas o vate não se deixou abater e
começou a escrever os versos da Tercera Residencia (1935-1945), obra que
registrou uma nova fase na criação nerudiana.
2.3 “Verdadismo”, a poesia popular da justiça social
España es para mí una gran herida y un gran amor [...] Pero los
españoles deben saber que yo viví mucho tiempo — los españoles
de esta generación que han olvidado ya muchas cosas — y que
tomé parte, dentro de una generación extraordinaria, en las
preocupaciones, en los deberes y en la poesía de una época. Esa
época es para mí fundamental en mi vida. Por lo tanto, casi todo lo
que he hecho después, casi todo lo que hecho en mi poesía y en mi
vida, tiene la gravitación de mi tiempo de España... Al recordar
aquella época, a mí se me confunden las cosas en un gran afecto
[...].
Barcelona, junho de 1970*
Pablo Neruda.
*
In GÁLVEZ BARRAZA (2003) p.15.
47
A experiência de viver na Espanha foi inesquecível para Neruda. Além
das grandes amizades cultivadas, presenciou a destruição que desolou a terra
que tão bem o acolheu. Os fatos vivenciados pelo poeta chileno em terra
espanhola
decorrentes
da
Guerra
Civil
(1936)
constituem
um
dos
acontecimentos mais comoventes do século XX. Muito escreveu Neruda sobre
Espanha, mas há uma declaração que ilustra claramente a forte ligação entre o
poeta chileno e a terra espanhola: “A mí me hizo la vida recorrer los más
lejanos sitios del mundo antes de llegar al que debió ser mi punto de partida:
España” (NERUDA 2001:454), palavras que adquirem um peso maior quando
emanam de quem conheceu quase que o mundo inteiro.
Pablo Neruda chegou à Espanha em maio de 1934 para ocupar o cargo
de Cônsul em Barcelona. No mês de agosto desse mesmo ano se transladou à
capital espanhola e em inícios de 1935 foi nomeado Adido Cultural na
Embaixada do Chile em Madrid, sem perder sua categoria de cônsul, como o
próprio poeta confidenciou em uma carta a seu amigo Héctor Eandi:
[...] Por otra parte resulta que al principio anduve tan mal de ánimo,
inestable, errante entre Barcelona y Madrid, y un poco desesperado
por mi destino. Al fin haciendo un esfuerzo supremo he logrado que
me destinen a Madrid, como agregado a la embajada ( In: AGUIRRE,
1980:134).
Em Madrid, centro nevrálgico da Península Ibérica, Neruda se
transformou na figura chave da nova poesia e estabeleceu contato com os
representantes das letras e das artes espanholas do momento: Federico
García Lorca, Miguel Hernández, Rafael Alberti, Manuel Altolaguirre, os
pintores Miguel Prieto e José Caballero, dentre outros jovens poetas e artistas
aos quais Neruda fez cálidas referências ao longo de sua obra.
48
Em seu discurso “España no ha muerto”, pronunciado em 24 de março
de 1939, no Congreso Internacional de las Democracias, realizado em
Montevidéu, Neruda (2001:422) lembrou com nostalgia de sua primeira visita a
Madrid, quando só viu um rosto conhecido esperando-o na estação ferroviária,
suas palavras foram as seguintes:
En una noche sobre la cual ha caído el tiempo, un tiempo duro como
un látigo, una noche ya envejecida y arrugada por tantas ausencias y
quemada con pólvora, bajé del tren para pisar Madrid por primera
vez. Y entre la multitud que rodeaba y llenaba la estación, multitud
increíblemente remota y desconocida, sólo un rostro era para mí,
sólo una cara pálida y morena, sólo una máscara de España venía a
encontrarme. Le divisé de pronto, entre el humo, entre toda la
soledad que llegaba hacia mí, divisé un hombre en los andenes ya
casi desiertos, un hombre que levantando unas flores me esperaba,
él solo en la estación de invierno. Pero ese hombre era España y se
llamaba Federico.
Mas, no dia seguinte, num almoço oferecido em sua homenagem na casa do
diplomata Carlos Morla Lynch10, Neruda era esperado por uma multidão de
artistas e literatos madrilenhos que queriam conhecer o autor de Residencia en
la Tierra. O acontecimento foi registrado no diário de Morla Lynch (In: GÁLVEZ
BARRAZA, 2003:53), com as seguintes palavras:
Pode se dizer que todos os intelectuais têm acudido para conhecer
Pablo Neruda [...] quando o clima de efervescência, apaziguado,
cedeu lugar a um período de calmaria, se anunciou a leitura de obras
de Neruda. E Pablo sentou-se no centro do salão. Sua voz lenta, de
uma doçura envolvente, elevou-se como os eflúvios de um
incensário e infundiu a sensação inefável de uma coisa muito bela
que não se parece a outras sentidas antes.
O poeta chileno foi apresentado oficialmente na Espanha por Federico
García Lorca em 6 de dezembro de 1934, na Facultad de Filosofía y Letras de
10
A representação diplomática chilena em Madrid estaba constituida por Aurelio Núñez
Morgado, Embaixador; por Carlos Morla Lynch, Encarregado de Negócios; por Gabriela Mistral,
Cônsul do Chile em Madrid e por Luis Enrique Délano, Chanceler Consular.
49
la Universidad Central de Madrid. Parte do discurso de García Lorca
(1977:1220) foi o seguinte:
A América espanhola nos envia constantemente poetas de diferente
nume, de várias capacidades e técnicas. Suaves poetas de trópicos,
de meseta, de montanha; ritmos e tons diferentes, que dão ao idioma
espanhol uma riqueza única [...] Porém nem todos esses poetas têm
o tom da América. Muitos parecem peninsulares e outros acentuam
em sua voz marcas estranhas, sobretudo francesas. Mas nos
grandes não. Nos grandes range a luz ampla, romântica, cruel,
desorbitada, misteriosa da América. [Trad. da autora]
Na capital espanhola Neruda alugou um apartamento no prédio
chamado Casa de las Flores, residência que passou a ser o ponto de encontro
de
poetas,
músicos,
pintores
e
cineastas,
destacadas
figuras
da
intelectualidade madrilenha e hispano-americana da época. O ambiente
fraternal vivenciado na Casa de las Flores se estendia às ruas: passeios pelo
Rastro, por livrarias, por feiras de antiguidades e encontros em bares e cafés
eram um compromisso quase que diário para Neruda e seus amigos. Hábitos
que o vate deixou registrados em suas Memórias:
Con Federico y Alberti, que vivía cerca de mi casa en un ático sobre
una arboleda, la arboleda perdida, con el escultor Alberto panadero
de Toledo que por entonces ya era maestro de la escultura
abstracta, con Altolaguirre y Bergamín, con el gran poeta Luis
Cernuda, con Vicente Aleixandre, poeta de dimensiones ilimitadas,
con el arquitecto Luis Lacasa, con todos ellos en un solo grupo, o en
varios, nos veíamos diáriamente en casas y en cafés.
De la Castellana o de la cervacería de Correos viajábamos hasta mi
casa, la casa de las flores, en el barrio de Argüelles. Desde el
segundo piso de uno de los grandes autobuses que mi compatriota,
el gran Cotapos, llamaba “bombardones”, descendíamos en grupos
bulliciosos, a comer, beber y cantar [...] (NERUDA, 2000: 156).
Para o poeta chileno, Madrid se apresentava como um lugar mágico,
cheio de encantos por descobrir, fato reconhecido por Neruda ao declarar: “[...]
Toda esa época de antes de la guerra tiene para mí un recuerdo como de
50
racimo cuya dulzura ya se va a desprender, tiene una luz como la del rayo
verde cuando el sol cae en el horizonte marino y se despide con un destello
inolvidable [...]” (AGUIRRE,1967:196).
Em 1935, é publicado na Espanha Residencia en la Tierra, o livro teve
uma repercussão enorme, um triunfo literário emoldurado pelas declarações de
dez importantes escritores espanhóis que na ocasião da publicação
homenagearam Neruda com as seguintes palavras:
Chile enviou para Espanha o grande poeta Pablo Neruda, cuja
evidente força criadora, em plena possessão de seu destino poético,
produz obras personalíssimas, para a honra do idioma castelhano.
Nós, poetas e admiradores do jovem e insigne escritor americano, ao
publicar esses poemas inéditos - últimos testemunhos de sua
magnífica criação - não fazemos outra coisa que exaltar sua
extraordinária personalidade e sua indiscutível altura literária.
Ao reiterar neste momento uma cordial recepção, esse grupo de
poetas espanhóis prazeroizamente manifesta uma vez mais e
publicamente sua admiração por uma obra que sem dúvida constitui
uma das mais autênticas realidades da poesia de língua espanhola.
Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Manuel Altolaguirre, Luis
Cernuda, Gerardo Diego, León Felipe, Federico García Lorca, Jorge
Guillén, Pedro Salinas, Miguel Hernrández, José A. Muñoz Rojas,
Leopoldo e Juan Panero, Luis Rosales, Arturo Serrano Plaja, Luis
Felipe Vivanco (In: AGUIRRE, 1967:197-198). [Trad. da autora]
Mas, os dias na Espanha tornaram-se sombrios e as tertúlias literárias
realizadas quase que diariamente na Casa de las Flores começaram a
contrastar com a realidade do povo espanhol. Era uma época de sofrimento e
conflitos políticos resultado do chamado “bienio negro”: repressão a sangre e
fogo sofrida pelos mineiros de Asturias.
Neruda por diversas ocasiões fez referência, tanto em prosa quanto em
verso, à repercussão que teve o episódio da Guerra Civil Espanhola em sua
obra, assim em Confieso que he vivido escreveu o seguinte:
51
Las primeras balas que atravesaron las guitarras de España, cuando
en vez de sonidos salieron de ellas borbotones de sangre, mi poesía
se detiene como un fantasma en medio de las calles de la angustia
humana y comienza a subir por ella una corriente de raíces y de
sangre. Desde entonces mi camino se junta con el camino de todos.
Y de pronto veo que desde el sur de la soledad he ido hacia el norte
que es pueblo, el pueblo al cual mi humilde poesía quisiera servir de
espada y de pañuelo, para secar el sudor de sus grandes dolores y
para darle un arma en la lucha del pan (NERUDA:2000, 197-198).
Sem dúvida, a viagem à Espanha em 1934 foi determinante para o
câmbio de poesia e de compromisso político experimentado pelo vate, mas não
há que esquecer que no ano anterior a sua chegada a terra espanhola Neruda
foi Cônsul na Argentina, onde entrou em contato com personalidades como
Federico García Lorca e Raúl González Tuñón, figuras de espírito
revolucionário que nutriram o poeta de novas idéias. Mais tarde, a Espanha
revolucionária provocou a mudança na concepção poética do escritor chileno,
processo que pode ser acompanhado a partir de Residencia en la Tierra, obra
que na primeira etapa apresentou uma poesia metafísica e angustiante
provocada pela experiência de ter passado cinco anos de sua vida isolado na
Ásia. Pouco a pouco Neruda abandonou a poesia introspectiva e auto-reflexiva
que apresentava um eu lírico confuso produto de um mundo caótico. Depois,
na Espanha, Neruda voltou os olhos para os outros homens, para o mundo que
o rodeava e viu uma realidade que continuava sendo caótica, porém percebeu
que não era somente ele quem sofria. Neruda se fez partícipe e cúmplice do
mundo e anunciou esse novo olhar nos versos do poema “Reunión bajo las
nuevas banderas” (NERUDA, 1999:364-365),
[…] Yo de los hombres tengo la misma mano herida,
yo sostengo la misma copa roja
e igual asombro enfurecido:
[...]
52
Juntos, frente al sollozo!
Es la hora
alta de tierra y de perfume, mirad este rostro
recién salido de la sal terrible, mirad esta boca amarga que sonríe,
mirad este nuevo corazón que os saluda
con su flor desbordante, determinada y áurea.
Nos versos supracitados o sujeito lírico se reconhece igual a todos os
homens, se apresenta e se compromete com eles. O poema marca a
introdução de Neruda na contingência histórica. Da poesia metafísica, afastada
da realidade, passa à “poesía sin pureza”, à poesia manchada pelo acontecer
humano.
A atmosfera que envolvia a Espanha em inícios de 1936 estava saturada
de dor e traição, um país dividido pelo ódio e pelo antagonismo político e
social. Francisco Franco, nacionalista, não aceitava o triunfo político da
esquerda e iniciou um levante militar contra o regime republicano democrático.
Nesse contexto o poeta chileno acordou para realidade política e social o que
provocou uma transformação radical em seu fazer poético. A revolta militar
incentivada por Franco se iniciou em julho de 1936. Frente à destruição Neruda
não ficou indiferente, reproduziu os acontecimentos e tomou partido. O poeta
revelou seu inconformismo, sua dor e sua ira através de poemas como “Canto
sobre las ruinas” (1936), “Almería” (1937), ou “Canto a las madres de milicianos
muertos” (1936), este último publicado por Rafael Alberti em 24 de setembro de
1936 na revista “Mono Azul”
11
, publicação semanal de la Alianza de
Intelectuales Antifascistas. De acordo com Margarita Aguirre12 (1967:198), esse
pode ter sido o primeiro poema “abertamente político” escrito por Neruda. Mais
11
Com a palavra “mono” se designava na Espanha à roupa usada pelos guerrilheiros, um
macacão de cor azul.
12
Margarita Aguirre (1925-2003), escritora e crítica chilena foi amiga e primeira biógrafa de
Pablo Neruda.
53
tarde esses mesmos versos passaram a formar parte da Tercera Residencia
(1947):
[...]
Madres ellos están de pie en el trigo,
altos como el profundo mediodía,
dominando las grandes llanuras!
Son una campana de voz negra
que a través de los cuerpos de acero asesinado
repica la victoria [...]
Y como en vuestros corazones, madres,
hay en mi corazón tanto luto y tanta muerte
que parece una selva
mojada por la sangre que mató sus sonrisas,
y entran en él la rabiosas nieblas del desvelo
con la desgarradora soledad de los días [...] 13
Em 19 de julho Neruda e Lorca iriam juntos ao circo de um empresário
chileno, mas o poeta granadino nunca chegou: “Federico faltó a la cita. Ya iba
camino de su muerte. Ya nunca más nos vimos. Su cita era con otros
estranguladores. Y de ese modo la guerra de España, que cambió mi poesía,
comenzó para mí con la desaparición de un poeta” (NERUDA, 2000:161). A
partir desse momento já nada seria igual, a guerra rompeu o coração do poeta
chileno e este se revelou disparando versos abertamente a favor dos
republicanos, atitude que lhe custou o cargo consular. O governo do Chile, ao
constatar que Neruda não mantinha uma posição neutra perante os
acontecimentos que assolavam a Espanha, o afastou de seu cargo diplomático.
Sem condições de permanecer em terras espanholas Neruda se dirigiu a Paris,
onde foi acolhido por seus amigos.
Na cidade luz, o ex-cônsul realizou um árduo trabalho em defesa do
povo espanhol: editou a revista Los Poetas del Mundo Defienden al Pueblo
Español, depois, ao lado de Cesar Vallejo, fundou o Grupo Hispanoamericano
de Ayuda a España. Cabe destacar que Vallejo, em seu artigo “Apuntes para
13
NERUDA (2001) p. 371-373.
54
un estudio” criou um novo –ismo para ser aplicado a ele e a Neruda: o
“verdadismo”. O novo –ismo tinha por objetivo chamar a atenção “da
necessidade de reconhecer os valores humanos, de acordo com a ênfase do
nome Verdadismo e oposto à poesia como compromisso intelectual” (VERANI,
2006:159) [Trad. da autora]. Tanto para Neruda quanto para Vallejo o impacto
da guerra teve eco instantâneo em suas obras com seus respectivos frutos
amargos.
Neruda voltou ao Chile em outubro de 1937 e de lá continuou
intercedendo pela Espanha com sua única arma de combate, sua poesia. Em
novembro do mesmo ano foi publicado em Santiago seu livro España en el
corazón: Himno a las glorias del pueblo en la guerra (1936-1937), e no ano
seguinte em Barcelona em pleno campo de batalha. Em 1947 o temário da
guerra é incluído na Tercera Residencia (1935-1945), um livro que, de acordo
com Rodríguez Monegal (1977:119), se converteu no
[...] protótipo da poesia combatente desses anos de ferro, que será
traduzida em muitas línguas européias e dará uma pauta poética aos
resistentes franceses, aos italianos, aos russos na grande contenda
que está por vir [...] Um livro de poesia cheio de cólera e de
admiração, poesias não de um espectador, mas de um soldado [...].
[Trad. da autora]
España en el corazón alcançou um grau de expressividade e
emotividade extremas, em versos como os do poema “Explico algunas cosas”
(NERUDA,1999:369-371) que dispensam comentários:
[...] Preguntaréis, por qué su poesía,
no nos habla del suelo, de las hojas
de los grandes volcanes de su país natal?
Venid a ver la sangre por las calles,
Venid a ver
55
la sangre por las calles,
Venid a ver
la sangre por las calles! […]
Mi casa era llamada
la casa de las flores, porque por todas partes
estallaban geranios: era
una bella casa
con perros y chiquillos.
Raúl, ¿te acuerdas?
¿Rafael te acuerdas?
¿Federico, te acuerdas
debajo de la tierra,
te acuerdas de mi casa con balcones en donde
la luz de Junio ahogaba flores en tu boca?
¡Hermano, hermano! […]
Y una mañana todo estaba ardiendo
y una mañana las hogueras
salían de la tierra
devorando seres,
y desde entonces fuego,
pólvora desde entonces,
y desde entonces sangre.
De volta em sua pátria Neruda fundou a Alianza de Intelectuales de
Chile para la Defensa de la Cultura, também sentiu a necessidade de resgatar
suas raízes e de escrever sobre o Chile e seus compatriotas. Muitas são as
inquietações que invadiram o poeta após a experiência da guerra:
¿Puede la poesía servir a nuestros semejantes? ¿Puede acompañar
las luchas de los hombres? Ya había caminado bastante por el
terreno de lo irracional y de lo negativo. Debía detenerme a buscar el
camino del humanismo, desterrado de la literatura contemporánea,
pero enraizado profundamente a las aspiraciones del ser humano.
Comencé a trabajar en mi Canto General […] La idea de un poema
central que agrupara las incidencias históricas, las condiciones
geográficas, la vida y las luchas de nuestros pueblos, se me
presentaban como una tarea urgente (NERUDA, 2000b:185)
Quando em 1939 cai o frente militar de Barcelona, quinhentos mil civis
fogem para França pelos Pirineus. Na fronteira a maioria dos espanhóis teve
problemas para ingressar na França e foram enviados a centros de detenção.
56
Nessa data Pablo Neruda se encontrava em sua casa de Isla Negra dedicado à
escrita de seu Canto a Chile, um canto que se estenderia à geografia, aos
homens, aos produtos e à natureza de seu país. Mas seu desejo de dedicação
total ao labor literário ficou adiado pelo pedido feito por seu amigo Rafael
Alberti. Numa carta Alberti lhe pede a Neruda que interceda pelos civis
espanhóis partidários da República que, na tentativa de escapar de Franco,
enfrentavam severas dificuldades. Imediatamente Neruda pede uma audiência
com Pedro Aguire Cerda, presidente chileno na época, e lhe explica a
necessidade de ajudar a Espanha. Aguirre Cerda deixa o poeta chileno
responsável pelos trâmites imigratórios e o nomeia cônsul especial para a
imigração espanhola com sede em Paris. A missão de Neruda era retirar das
prisões o maior número possível de espanhóis e levá-los para o Chile. As
difíceis gestões realizadas por Neruda em favor dos prisioneiros espanhóis
culminaram com a retirada de dois mil refugiados que chegaram ao Chile a
bordo do navio Winnipeg em finais de 1939. Em Para nacer he nacido, Neruda
(2003:253) lembra do episódio:
[...] el navío debía llenarse con dos mil hombres y mujeres. Venían
de campos de concentración, de inhóspitas regiones, del desierto,
del África. Venían de la angustia de la derrota, y este barco debía
llenarse con ellos para llevarlos a las costas de Chile, a mi propio
mundo que los acogía.
Neruda termina o texto supracitado com as seguintes palavras: "Que la crítica
borre toda mi poesía, si le parece. Pero este poema, que hoy recuerdo, no
podrá borrarlo nadie" (NERUDA, 2003:255).
Nos primeiros dias de 1940, após concluir satisfatoriamente sua missão
como cônsul para a imigração espanhola, Neruda voltou ao Chile e se instalou
57
num apartamento em Santiago, na nova residência cobriu as paredes com
quadros, cartazes e mapas da Espanha sinalizando as diferentes linhas de
ataque, de maneira que na decoração do imóvel tudo estava relacionado com a
Guerra Civil Espanhola. Muitos eram os artistas, poetas, escritores e jornalistas
que acudiam a visitá-lo. Neruda tinha novamente uma casa onde receber seus
amigos.
Uma das primeiras entrevistas concedidas por Neruda após seu
regresso ao Chile foi para o jornalista peruano Manuel Saoane, nela o poeta
descarregou todo seu conhecimento da situação espanhola. Neruda não
regressava a descansar, nem a esquecer o barulho das bombas e dos aviões,
sentia a necessidade de fazer algo mais por sua América. O vate assume que
mudou e o comunica nos versos de “Tal vez cambié desde entonces”
(NERUDA, 1993a:1092-1093):
A mi patria llegué con otros ojos
que la guerra me puso
debajo de los míos.
Otros ojos quemados
en la hoguera,
salpicados
por llanto mío y sangre de los otros,
y comencé a mirar y a ver más abajo,
más al fondo inclemente
de las asociaciones.
[...]De pronto
las banderas de América,
amarillas, azules, plateadas,
con sol, estrella y amaranto y oro
dejaron a mi vista
territorios desnudos,
pobres gentes de campos y caminos,
labriegos asustados, indios muertos [...]
Da dura experiência da guerra Neruda tirou uma lição de vida que se
cristalizou no seguinte compromisso: devia transmitir para América a verdade
58
do ocorrido na Espanha a partir de um posicionamento firme e claro. Sua
ferramenta de trabalho seria a poesia, uma poesia comprometida com o povo e
para o povo.
Como resposta às muitas cartas amistosas que pediam que ficasse
imparcial frente à situação espanhola e que se limitasse a cumprir sua missão
de poeta, Neruda declarou as razões de seu posicionamento, tanto literário
quanto humano, com valentia e determinação no texto “A mis amigos de
América” (2001:387-388), publicado em Nueva España, París 9 de março de
1937:
[...] Quiero responder de una vez por todas que, al situarme en la
guerra civil al lado del pueblo español, lo he hecho en la conciencia
de que el provenir del espíritu y de la cultura de nuestra raza
dependen directamente del resultado de esta lucha [...] No olvidemos
que después del asesinato de Federico García Lorca, en la Plaza de
Granada se hizo una hoguera y se quemaron miles de ejemplares
del Romancero Gitano y todos los papeles inéditos del poeta [...] Y
los rifleros del pueblo al defender su vida defienden las bibliotecas y
los museos, y nos defienden a nosotros, escritores de lengua
española. Al defender sus ciudades defienden el intelecto de nuestra
raza madre [...] estoy y estaré con el pueblo español masacrado por
el bandidaje y el celestinaje internacional. Y a todos mis múltiples
amigos de América latina quiero decir: no me sentiría digno de vivir si
así no fuera.
Constata-se, então, que a relação de Pablo Neruda com a Espanha, mais
especificamente com os fatos que vivenciou e presenciou nessa terra, resultou
numa grande influência tanto para sua vida quanto para sua obra. Talvez seja a
Espanha, depois de sua pátria, o país que mais o marcou.
59
2.4 O poeta americanista
Yo no puedo vivir sino en mi propia tierra; no puedo vivir sin poner
los pies, las manos y el oído en ella, sin sentir la circulación de sus
aguas y de sus sombras, sin sentir cómo sus raíces buscan e su
légamo las substancias maternas.
Pero antes de llegar a Chile hice otro descubrimiento que agregaría
un nuevo estrato al desarrollo de mi poesía.
Me detuve en el Perú y subí hasta las ruinas de Macchu Picchu […]
Me sentí infinitamente pequeño en el centro de aquel ombligo de
piedra; ombligo de un mundo deshabitado, orgulloso y eminente, al
que de algún modo yo pertenecía […] Me sentí chileno, peruano,
americano. Había encontrado en aquellas alturas difíciles, en
aquellas ruinas gloriosas y dispersas, una profesión de fe para la
continuación de mi canto.
“La patria en tinieblas”
Pablo Neruda∗.
No ano de 1940, aos 36 anos de idade, Neruda se encontrava no auge
de sua produção intelectual. Com uma trajetória diplomática bem sucedida,
podia escolher o país de sua preferência na hora de cumprir suas funções
consulares. Como a Europa estava submersa no caos da Segunda Guerra
Mundial, Neruda optou por um país latino-americano que há muito ansiava
conhecer: o México. Na década de 40 o México vivia o ápice do grande
fenômeno artístico denominado “muralismo mexicano”, um tipo de arte plástica
de caráter social que procurava representar e celebrar os ideais da Revolução
Mexicana. Por meio do muralismo os artistas mexicanos exaltavam as classes
oprimidas e transmitiam uma mensagem de compromisso com a história, a
cultura, a arte e o sentir. Entre os principais precursores dessa manifestação
estavam: José Clemente Orozco, Diego Rivera e David Alfaro Siqueiros. Em
Confieso que he vivido Neruda (2000:203) escreveu sobre a época em que
∗
NERUDA (2000) p. 219-220
60
chegou à capital maia: “La vida intelectual de México estaba dominada por la
pintura. Estos pintores de México cubrían la ciudad con historia y geografía,
con incursiones civiles, con polémicas ferruginosas”. Neruda se identificou
profundamente com a arte do muralismo, tanto que anos mais tarde pediria a
seus amigos mexicanos que ilustrassem a primeira edição de Canto General.
Com o falecimento de Orozco, somente Rivera e Siqueiros colaboraram com o
poeta.
Neruda conheceu a David Alfaro Siqueiros na cadeia. O muralista
mexicano tinha sido preso pelo governo de seu país sob a acusação de ter
organizado um assalto armado à casa de León Trotski, exiliado no México.
Siqueiros foi preso e meses depois, sob risco de vida, solicitou a ajuda de
Neruda para conseguir um visto consular que lhe permitisse ingressar ao Chile,
na condição de exiliado político. Neruda não hesitou em acatar a solicitação do
amigo e, sem pedir autorização ao Ministério de Relações Exteriores do Chile,
autorizou o visto. Concessão que lhe custou o afastamento do cargo consular
por dois meses, sem remuneração. O episódio foi relatado por Neruda (2000:
2905) assim:
Entre salidas clandestinas de la cárcel y conversaciones sobre cuanto
existe, tramamos Siqueiros y yo su liberación definitiva. Provisto de
una visa que yo mismo estampe en su pasaporte, se dirigió a Chile
con su mujer, Angélica Arenales.
México había construído una escuela en la ciudad de Chillán, que
había sido destruída por los terremotos, y en esa “Escuela México”
Siqueiros pintó uno de sus murales más extraordinarios. El gobierno
de Chile me pago este servicio a la cultura nacional, suspendiéndome
de mis funciones de cónsul por dos meses.
No ano de 1961 Siqueiros é preso novamente, mas dessa vez Neruda
se encontrava em Cuba e de lá se levantou em defesa de seu amigo e lhe
61
enviou o poema intitulado “A Siqueiros, al partir”, onde declara: “MÉXICO está
contigo PRISIONERO” (NERUDA, 2001:1058). Um cartaz de protesto pela
prisão de Siqueiros contendo o poema de Neruda circulou pelo México. Na
parte superior o cartaz apresentava uma foto do pintor atrás das grades e ao
lado desta podia-se ler o local e a data da prisão. Mais abaixo constava o
poema “A siqueiros, al partir” escrito por Neruda e uma nota assinada pelo
próprio Siqueiros.
Neruda revelou que dentro das atividades consulares a serem cumpridas
havia alguns processos que não resultavam nada fáceis e com os quais não
concordava. Sobre o assunto Neruda (2000:214) escreveu: “El ministerio me
imponía que averiguara los orígenes raciales de las gentes, africanos, asiáticos
o israelitas. Ninguno de estos grupos humanos podía entrar en mi patria”.
Decepcionado e contrário às tarefas consulares a ele designadas,
Neruda se dá conta de que a figura de cônsul era meramente decorativa, uma
realidade que foi, segundo o próprio Neruda (2000:214): “[...] haciendo de cada
cónsul un autómata sin personalidad, que nada puede decidir y cuya labor se
aproxima sospechosamente a la de la policía”.
Além das atividades burocráticas, o cônsul chileno desenvolveu intensa
atividade cultural durante os três anos de sua permanência no México. Dentre
elas, pode-se citar a organização de uma exposição do livro chileno, assim
como a publicação da revista Araucanía que, além de literatura nacional,
informação turística e comercial, apresentava muitas fotografias da paisagem
chilena. Neruda (2000:214-215) escreveu:
La titulé Araucanía y puse en la portada el retrato de una bella
araucana, riéndose con todos sus dientes. Esto bastó para que el
62
Ministerio de Relaciones Exteriores de entonces me llamara
severamente la atención por lo que estimaba un desacato [...].
O governo chileno considerou uma provocação à dignidade nacional colocar a
imagem de um indígena mapuche na capa da revista. Fatigado por não ter voz,
Neruda decide renunciar para sempre ao cargo de cônsul geral. Em setembro
de 1943, o ex-cônsul deixou o México com destino a sua terra natal. Na viagem
de volta visitou vários países da costa do Pacífico como Panamá, Colômbia e
Peru. Em Cuzco conheceu as ruínas de Macchu Picchu, peregrinação que o
fez perceber que as raízes históricas de todos os povos americanos são as
mesmas, fato que modificou significativamente a concepção inicial da obra em
que trabalhava desde 1938, o Canto de Chile. A mudança na concepção dessa
obra aconteceu, de acordo com Neruda (2000a:21-22), da seguinte maneira:
Pensé muchas cosas a partir de mi visita al Cuzco. Pensé en el
antiguo hombre americano. Vi sus antiguas luchas enlazadas con las
luchas actuales. Allí comenzó a germinar mi idea de un Canto
general americano, antes había persistido en mi idea de un canto
general de Chile, a manera de crónica. Aquella visita cambió la
perspectiva. Ahora veía a América entera desde las alturas de
Macchu Picchu […] El verso debía tomar todos los contornos de la
tierra enmarañada, romperse en archipiélagos, elevarse y caer en las
llanuras.
As ambições literárias do poeta se ampliaram e, a partir desse momento,
decide escrever um canto universal, um canto totalizador da realidade histórica
da América, mas o poema será também uma reverência à natureza, ao
patrimônio cultural latino-americano e aos melhores valores que a humanidade
conseguiu cultivar em toda a sua história. Se em España en el corazón
prevaleceu a voz do poeta social, agora, em Canto General, Neruda é o poeta
63
épico que denuncia o ultraje coletivo que a América Latina sofreu ao longo de
sua história. Mas é, sobretudo, como o afirma Ramón Xirau (1979:187),
[...] o escritor comprometido, o escritor de ação e palavra, o poeta
cívico. Revela, sobretudo, o poeta da Terra – poeta da terra hispanoamericana – que não comunga com a natureza, mas que a
contempla para pintar vastos e esplêndidos afrescos.
Cabe destaque neste momento para as palavras da pesquisadora
Mariluci Guberman (2006:103) que logra apresentar de forma sintética o canto
nerudiano,
A epopéia de Neruda nos apresenta, inicialmente, o homem
americano como o herói que necessita deixar suas pegadas
impressas no solo do plano real em busca de uma existência
histórica, para legitimizar sua heroicidade. Desta maneira o autor
traz, para o cenário da obra não só a exuberância da natureza
americana, mas também os seguintes personagens: conquistadores,
libertadores, mártires e homens ilustres da história de América.
Há que lembrar que Neruda terminou de escrever Canto General quando
estava clandestino em seu próprio país. O poeta chileno, eleito senador da
República em 1945 e descontente com o rumo que tinha tomado o governo de
González Videla, presidente que ajudou a eleger, começou a declamar
calorosos discursos no Senado denunciando injustiças. Considerado traidor,
Neruda foi perseguido pela polícia a partir de fevereiro de 1948, motivo pelo
qual teve que permanecer escondido em diversas cidades chilenas até que, um
ano depois, em fevereiro de 1949, conseguiu cruzar clandestinamente a
cordilheira dos Andes. Quinze anos depois, na Revista Mapocho de 1964,
Neruda (2001:1205) fez declarações sobre a elaboração de Canto General:
En la soledad y aislamiento en que vivía y asistido por el propósito
de dar una gran unidad al mundo que yo quería expresar, escribí mi
libro más ferviente y más vasto: el Canto General. Este libro fue la
coronación de mi tentativa ambiciosa. Es extenso como un buen
64
fragmento del tiempo y en él hay sombra y luz a la vez, porque yo
me proponía que abarcara el espacio mayor en que se mueven,
crean, trabajan y perecen las vidas y los pueblos.
Na qualidade de perseguido político, Neruda voltou ao México em 1948
e, no ano seguinte, para o Congreso Latinoamericano de Partidarios de la Paz.
O hino à América Latina foi publicado pela primeira vez no México, em 1950.
Os muralistas Siqueiros e Rivera contribuíram para a edição de Canto General
com imagens de sua pintura ilustrando as folhas que normalmente aparecem
em branco, no início e no final de um livro, estabelecendo dessa maneira sua
comunhão de ideais com o poeta chileno.
“América Prehispánica” 14 (1950)
Diego Rivera
14
Disponível em: http://www.epdlp.com/fotos/rivera3.jpg
65
A pintura da primeira folha de Canto General é obra de Diego Rivera e foi
intitulada América prehispánica. A ilustração, dividida em dois, faz referência a
maias e incas, exaltando as imagens dos indígenas e da cultura anterior à
chegada do conquistador, em cenas ordenadas verticalmente. Um grande
Deus Sol dá origem às duas culturas irmãs – maia e inca. A fauna e a flora
típicas, assim como os animais que chegaram com os estrangeiros também
estão presentes na tela. Esta interpretação em imagens corresponde ao poema
"La lámpara de la tierra".
A ilustração que conclui o Canto General corresponde a David Alfaro
Siqueiros e ilustra o poema “La tierra traicionada” da série “Las tierra y los
hombres”. A obra apresenta uma figura humana com os braços estendidos e
emergindo da lava de um vulcão, representando o nascimento simbólico do
homem americano.
“La arena traicionada”15 (1950). David Alfaro Siqueiros
15
Disponível em: http://www.siqueiros.inba.gob.mx/anim_epico.swf
66
Dos quinhentos volumes assinados por Rivera, Siqueiros e Neruda,
numa ceremônia simbólica celebrada em 3 de abril de 1950, trezentos foram os
subcriptores da Rússia, Itália, Hungria, Inglaterra, Espanha, Estados Unidos,
França, Checoslováquia e, claro, da América Latina. O fundo obtido serviu para
que Neruda continuasse com seu trabalho.
Como Neruda (1999a:629) profetizou nos últimos versos do poemário, o
hino da América se mantém atual apesar do tempo decorrido:
[...]
Y nacerá de nuevo esta palabra,
talvez en otro tiempo sin dolores,
sin las impuras hebras que adhirieron
negras vegetaciones en mi canto,
y otra vez en la altura estará ardiendo
mi corazón quemante y estrellado.
Neruda em sua epopéia logrou resgatar o autêntico valor do homem
latino-americano, suas raízes e a memória de seus libertadores. Nos anos de
exílio, de 1949 até 1952, Neruda viajou pelos países da Europa e da Ásia até
se estabelecer em Capri, na Itália (NERUDA,2000:277):
De rumbo en rumbo, en estas andanzas de desterrado, llegué a un
país que no conocía entonces y que aprendí a amar intensamente,
Italia. En ese país todo me pareció fabuloso. Especialmente la
simplicidad italiana: el aceite, el pan y el vino de la naturalidad. Hasta
aquella policía que nunca me maltrató, pero que me persiguió
incansablemente. Era una policía que encontré en todas partes,
hasta en el sueño y en la sopa.
Depois de cantar o homem americano, Neruda escreveu, no exílio, Las
uvas y el viento, canto dedicado aos países da Europa e da Ásia, um mundo
67
ferido que ressurgia da guerra. No prólogo, intitulado “Tenéis que oírme”,
Neruda (1999:911) apresentou seu novo canto:
Yo fui cantando errante
entre las uvas
de Europa
y bajo el viento,
bajo el viento en el Asia.
[…]
Lo mejor de una tierra
y de otra tierra
yo levanté en mi boca
con mi canto:
la libertad del viento,
la paz entre las uvas.
[…]
Las uvas y el viento na opinião de Eulógio Suárez (2004:133), é “[…] um
livro de inegável importância na poética nerudiana. Segue sua pretendida
epopéia iniciada com España en el corazón e desenvolvida em Canto General”
O livro é um extenso e intenso volume que conta com vinte e um cantos,
prólogo e epílogo. Contudo, ainda que as cidades conhecidas no exílio e os
amigos queridos sejam os temas principais de sua nova obra, a nostalgia por
sua
pátria
se
faz
presente
em
poemas
como
“Cuándo
de
Chile”
(NERUDA,1999:1037-1041):
Oh! Chile, largo pétalo
de mar y vino y nieve,
ay cuándo
ay cuándo y cuándo
ay cuándo
me encontraré contigo,
[…]
Ay Patria sin harapos,
ay primavera mía,
ay cuándo
ay cuándo y cuándo
despertaré en tus brazos
empapado de mar y de rocío.
Ay cuando yo esté cerca
de ti, te tomaré de la cintura,
68
nadie podrá tocarte,
yo podré defenderte
cantando,
cuando
vaya contigo, cuando
vayas conmigo, cuándo
ay cuándo.
Sobre Las uvas y el viento, Neruda (2000:384) confessou:
La verdad es que tengo cierta predilección por Las uvas y el viento,
tal vez por ser mi libro más incomprendido, o porque a través de sus
páginas yo me eché a andar por el mundo. Tiene polvo de caminos y
agua de ríos; tiene seres, continuidades y ultramar de otros sitios
que yo no conocía y que me fueron revelados de tanto andar. Es uno
de los libros que más quiero, repito.
Finalmente, em 1952, é revogada a ordem de detenção e, em 12 de
agosto o poeta pôde voltar a seu país. Os cinco anos que se seguiram à volta
do exílio foram de grande tranqüilidade para Neruda, é a época em que
começa a escrever Odas elementales. O livro Las uvas y el viento foi publicado
no Chile dois anos após sua volta do exílio.
2.5 O ciclo das odes
En las Odas Elementales me propuse un basamento originario,
nacedor. Quise redescribir muchas cosas ya cantadas, dichas y
redichas […] Ningún tema podía quedar fuera de mi órbita; todo
debía tocarlo yo andando o volando, sometiendo mi expresión a la
máxima transparencia y virginidad.
Confieso que he vivido.
Pablo Neruda∗
∗
NERUDA (2000) p. 384.
69
O livro Odas elementales foi publicado em julho de 1954, data em que
Neruda completava cinqüenta anos de idade. Ao primeiro livro de odes se
somaram as Nuevas odas elementales (1956) e, em seguida, o Tercer libro de
odas (1957). Há um quarto livro de odes intitulado “Navegaciones y regresos”
publicado em 1959. Os poemas que deram forma aos livros do denominado
“ciclo de las odas” começaram a ser escritos em 1951 e eram destinados à
publicação semanal do jornal El Nacional de Caracas. Por exigência de Neruda
os versos eram publicados na seção de crônicas e não no Suplemento Literário
do jornal, com a finalidade de que pudessem ser lidos por todo tipo de leitores.
Anos depois na conferência “Algunas reflexiones improvisadas sobre mis
trabajos” (1964), Neruda explicou como foram concebidas as Odas:
Así logré publicar una larga historia de este tiempo, de las cosas, de
los oficios, de las gentes, de las frutas, de las flores, de la vida, de mi
visión, de la lucha, en fin, de todo lo que podía englobar de nuevo en
un vasto impulso cíclico mi creación.
As Odas representam um câmbio na lírica nerudiana, mas não uma
ruptura já que nestes livros o poeta retoma interesses estéticos antigos, como
os revelados em “Para una poesia sin pureza” (1935), onde propunha uma
aproximação entre o fazer poético e os objetos que rodeiam o homem. Nesta
nova etapa, Neruda não canta a intimidade dele mesmo, nem a dos homens,
como o tinha feito até então, no novo canto Neruda revela a essência do
cotidiano humano.
Em Odas Neruda procura a essência das coisas, uma penetração na
matéria através de uma linguagem simples, pela qual os objetos deixam de ser
simples figurantes e se transformam em personagens. Dessa maneira, os
70
temas prosaicos que não tinham valor artístico, passam a ter um valor poético,
como
pode
ser
observado
nos
versos
de
“Oda
a
la
cebolla”
(NERUDA,1993a:39-41), destacados a seguir:
Cebolla,
luminosa redoma,
pétalo a pétalo
se formó tu hermosura,
escamas de cristal te acrecentaron
y en el secreto de la tierra oscura
se redondeó tu vientre de rocio.
[…]
Generosa
deshaces
tu globo de frescura
en la consumación
ferviente de la olla,
y el jirón de cristal
al calor encendido del aceite
se transforma en rizada pluma de oro […]
Nada ficou fora da casa das odes, Neruda escreveu odes aos objetos,
às sensações, aos sentimentos, aos alimentos, à natureza, ao tempo, etc., uma
nova concepção do fazer poético que significou a renovação da poesia.
Mas um novo rumo na poesia nerudiana levou o poeta ao reencontro
com sua própria vida, suas dúvidas e questionamentos transcendentais,
característica marcante de sua obra. Este reencontro com ele mesmo se iniciou
em Estravagario (1958), poemário em que Neruda se definiu como “[...] un
hombre claro y confundido, / um hombre lluvioso y alegre, / enérgico y
otoñabundo”. Os versos deste poema, “Testamento de otoño”, revelam um eu
lírico que assume e aceita sua personalidade contraditória, reconhece suas
constantes transformações e sua fé na poesia, como pode ser observado nos
versos a seguir destacados (NERUDA,1993a:707-708):
71
Y así me muevo sin saber
a que mundo voy a volver
o si voy a seguir viviendo.
Mientras se resuelven las cosas
aquí dejé mi testimonio,
mi navegante estravagario
para que leyéndolo mucho
nadie pudiera aprender nada,
sino el movimiento perpetuo
de un hombre claro y confundido,
de un hombre lluvioso y alegre,
enérgico y otoñabundo.
Mais tarde surge Memorial de Isla Negra (1964), um memorial
constituído por cinco livros que foram sendo publicados ao longo de 1964. A
obra em seu conjunto é considerada uma autobiografia lírica. Como constatado
até agora, o elemento autobiográfico está disperso em toda ou quase toda a
obra nerudiana, mas a diferença apresentada em Memorial é que o poeta
escreve sua vida de forma ordenada. Neruda dá prosseguimento à linha
autobiográfica em Confieso que he vivido (1974), livro em prosa que
complementa Memorial de Isla Negra.
Na década de sessenta, Neruda continuou viajando pelo mundo,
recebendo homenagens e, dentro do possível, permanece em sua casa de Isla
Negra, localidade próxima a Valparaíso. Nessa casa, considerada o seu
refúgio, o poeta continuou a escrever até os últimos dias de sua vida rodeado
dos objetos queridos, coleções feitas ao longo de sua existência, de seus livros
e da vista maravilhosa do imenso oceano Pacífico.
Após a leitura de algumas obras de Pablo Neruda constatou-se que as
mudanças
ou
ciclos
nerudianos
não
são
fruto
de
idéias
estéticas
preconcebidas, mas de um impulso natural provocado pelos diferentes
ambientes e acontecimentos que envolveram o poeta ao longo de sua
72
existência. Acontecimentos que o fizeram reavaliar seus valores e prioridades
redefinindo constantemente sua arte.
3. Marcas autobiográficas na obra de Pablo Neruda
De tanto amar y andar salen los libros.
Y si no tienen besos o regiones
y si no tienen hombre y manos llenas,
si no tienen mujer en cada gota,
hombre, deseo, cólera, caminos:
no sirven para escudo ni campana:
están sin ojos y no podrán abrirlos,
tendrán la boca muerta del precepto.
Memorial de Isla Negra*
A leitura da obra de Pablo Neruda, nos postulados da autobiografia, faz
possível situá-lo historicamente, posto que a escrita autobiográfica se cinge ao
tempo recordado que, na obra nerudiana, abarca aproximadamente de 1920
até 1973. Dessa maneira, a leitura dos textos nerudianos implica um retorno a
momentos desse tempo histórico.
Para melhor abordar a escrita da auto-representação é necessária uma
reflexão prévia sobre os conceitos atribuídos à autobiografia, bem como sobre
seus desdobramentos. Por se tratar de um texto de natureza híbrida – mescla
de verdade e ficção – o gênero autobiográfico apresenta uma estrutura dupla.
Para a compreensão dessa duplicidade pode-se recorrer ao denominado
*
NERUDA (1999a) p.1162.
73
“pacto autobiográfico”, termo apresentado por Philippe Lejeune (1975) para se
referir à posição do leitor diante de um texto autobiográfico. Para o teórico
francês, o leitor de uma autobiografia deve confiar na sinceridade do autor a
ponto de acreditar que não inventa nada do narrado, estabelecendo-se assim
uma identidade entre autor e leitor. O “pacto autobiográfico” se realiza,
portanto, mediante um contrato implícito entre autor e leitor, de tal maneira que
o primeiro se compromete com a veracidade e o segundo garante acreditar nas
revelações. Com relação à participação do leitor na caracterização do texto
autobiográfico, cabe destacar as palavras de Javier del Prado Biezma
(1994:215), no estudo Autobiografía y modernidad literaria:
Efetivamente, a intencionalidade de um texto possibilita sua
identificação, mas devemos ser conscientes de que isso não é senão
um ponto de início virtual; ou seja, que a intencionalidade em si
mesma tampouco permite a diferenciação de uma escritura. Por
todos é conhecida a proliferação de textos que negam seus próprios
propósitos. Portanto, é a materialização textual dessa intenção, isto é,
uma vez mais, a funcionalidade desses signos significantes antes
mencionados, o que realmente permitirá identificar o texto,
estabelecendo, em conseqüência, uma estreita rede de conexões
estruturais, de cuja incidência funcional depende a natureza, a
essência da escritura que as informa. [Trad. da autora]
No texto supracitado, Del Prado Biezma destaca a existência e uma
série de textos que se propõem como pertencentes a um determinado gênero
sem, contudo, enquadrar-se nele.
A autobiografia strictu sensun caracteriza-se por ser uma narrativa cujo
assunto é a retrospectiva da própria vida, com destaque para os fatos
relevantes da história do autor. Caracteriza-se ainda pela representação dos
três elementos constitutivos, autor/personagem/narrador, através de uma só
pessoa. Dois exemplos clássicos do que vem a ser a autobiografia são
74
Confissões (400), de Santo Agostinho (358-430), e Confissões (1764), de JeanJacques Rousseau (1712-1778). Nessas obras o motivo central é a procura ou
a descoberta do eu.
Em sua autobiografia Santo Agostinho apresenta a
história dos eventos que o levaram à sua conversão religiosa, suas
inquietações e questionamentos frente à vida, que de acordo com José
Américo Motta Pessanha (In: Os pensadores, 1999:10), Agostinho:
[...] conseguiu redigir uma obra imensa, a maior parte da qual
inspirada em problemas concretos que preocupavam a Igreja da
época. Excetuaram-se alguns poucos livros, como as Confissões,
onde Agostinho se revela admirável analista de problemas
psicológicos íntimos, tanto quanto de questões puramente filosóficas
[...].
Rousseau, assim como Agostinho, registrou em Confissões suas tentativas de
encontrar respostas para seus problemas existenciais. Marilena Chauí (In: Os
Pensadores, 1978: XII), ao fazer referência à autobiografia de Rousseau,
afirmou: “[...] em quase mil páginas, procura explicar toda sua vida e seu
pensamento. Com isto o livro tornou-se uma síntese completa do autor como
homem, romancista, filósofo e educador”. Mais tarde com o avanço e as
transformações da modernidade surgiram no indivíduo novos questionamentos,
intensificando sua procura pela razão de existir, fato que refletiu na busca da
identidade e fez com que o relato autobiográfico adquirisse força maior.
As mudanças provocadas pela vida moderna, de acordo com Stuart Hall
(2003:10), “[...] representam um processo de transformação tão fundamental e
abrangente que somos compelidos a perguntar se não é a própria modernidade
que está sendo transformada”. O sociólogo aponta para o câmbio de
perspectiva que emergiu com a modernidade tardia e fez com que se perdesse
75
o parâmetro, já assentado, do que era o indivíduo. Em seu estudo Identidade
Cultural na pós-modernidade (2003:11-13), Hall aponta três concepções de
identidade ao longo da história: o “sujeito do Iluminismo”, acepção individualista
que concebia um sujeito que já nascia com uma identidade, a qual crescia e se
desenvolvia junto com ele; o “sujeito sociológico”, possuidor de uma identidade
originada na interação do eu e seu entorno, mas fortemente vinculada aos
valores e significados desse entorno cultural; e o “sujeito pós-moderno”,
indivíduo possuidor de uma identidade em constante transformação, ou de
múltiplas identidades, que lança mão de uma identidade dependendo da
situação em que se encontre.
Do raciocínio anterior depreende-se que a concepção de identidade, que
por longo tempo estabilizou a sociedade, tem-se modificado fazendo surgir
novas identidades resultantes da fragmentação do sujeito que, até então, era
concebido como um ser unificado. Portanto, chega-se à conclusão de que não
há uma única identidade fixa e imutável, posto que atualmente ela [a
identidade] encontra-se em crise, ou na denominação de Hall (2003:7) em
“deslocamento”, transformação da qual surge o conceito de sujeito pósmoderno. A reflexão sobre as noções de identidade é muito conveniente na
abordagem do processo autobiográfico, visto que é nesse tipo de texto que o
eu
se
apresenta
sem
máscaras,
tal
como
ele
é,
ou
como
seu
autor/escritor/narrador se enxerga a si mesmo.
De acordo com o próprio Lejeune, há o que se convencionou chamar de
“autobiografia strictu sensu” e a “escritura autobiográfica”. Nessa última estão
contidos os diferentes relatos autobiográficos, que não se prendem a modelos
formais, mas se caracterizam por ser relatos da auto-representação. Lejeune
76
(1994:50) definiu a autobiografia como: “Relato retrospectivo em prosa que
uma pessoa real faz de sua própria existência, colocando ênfase em sua vida
individual e, em particular, na história de sua personalidade”16, e acrescentou
que pode ser considerado autobiográfico todo texto que contenha os elementos
pertencentes a quatro categorias diferentes, a saber: forma de linguagem,
narração ou prosa; tema tratado, vida individual, história de uma personalidade;
situação do autor, identidade do autor e do narrador; posição do narrador,
identidade do narrador e da personagem principal, perspectiva retrospectiva da
narração.
Lejeune (1994:51) também chamou a atenção para a existência dos
“gêneros vizinhos da autobiografia”: Memórias, biografia, novela pessoal,
poema autobiográfico, diário íntimo e auto-retrato ou ensaio, relatos que não
cumprem todas as condições da autobiografia. Entende-se, então, que o pacto
autobiográfico aponta as diretrizes para classificar ou não um texto como
autobiografia, mas há que se levar em consideração a existência de inúmeros
relatos em que a emergência do eu fica estabelecida. Partindo dessa
constatação cabe refletir sobre a tipologia e os diferentes níveis de emergência
do eu nesses relatos.
Conforme Lejeune, as Memórias não podem ser consideradas
autobiografias strictu sensu porque o tema nelas tratado não aborda somente a
vida individual do personagem/autor/narrador, mas o entorno dessa vida.
Portanto, as Memórias vêm a ser a recuperação de um tempo que pertence
tanto ao passado privado do autor quanto ao passado coletivo da sociedade
em que esteve inserido, de maneira a resgatar em maior grau a história da
16
Trad. da autora.
77
coletividade da qual o eu fez parte, do que a história individual do autor.
Ao abordar o espaço autobiográfico nerudiano devem ser considerados
em primeiro lugar os dez textos publicados em 1962 na revista brasileira O
Cruzeiro Internacional sob o título “Las vidas del poeta”; a autobiografia lírica
intitulada Memorial de Isla Negra (1964) e as Memórias Confieso que he vivido
(1974).
O histórico dos escritos autobiográficos nerudianos pode ser rastreado a
partir de janeiro de 1954 na conferência intitulada “Infancia y poesía” no Salón
de Honor de la Universidad de Chile, texto que posteriormente se transformou
no primeiro capítulo de Confieso que he vivido. Os artigos publicados em O
Cruzeiro Internacional tratam desde sua infância na província até seu exílio na
Itália. Textos estes que se transformaram em material de conferências
divulgados pelo mundo na voz do próprio poeta ou em publicações diversas.
Pouco a pouco a vida do Nobel chileno ganhou divulgação e despertou o
interesse de editores internacionais por uma obra que concentre toda a história
do poeta, que vivenciou importantes acontecimentos na primeira metade do
século XX. Neruda não demonstrou interesse nas propostas desses editores,
mas entre os anos de 1958 e 1973 seus escritos apresentaram uma marcada
necessidade de revisão e reflexão sobre seu passado. Esta reflexão consiste
na tendência à organização sistemática de suas lembranças. Contudo é
possível encontrar, de forma esporádica, já em seus primeiros escritos, quando
ainda era um escritor anônimo, versos que apresentam uma clara inclinação à
escrita autobiográfica. A título de ilustração apresenta-se a seguir o poema
“Sensación autobiográfica” (NERUDA, 2001:158), datado em 12 de julho de
1920:
78
Hace dieciséis años que nací en un polvoroso
pueblo blanco y lejano que no conozco aún,
y como esto es un poco vulgar y candoroso,
hermano errante vamos hacia mi juventud.
Eres muy pocas cosas en la vida. La vida
No me ha entregado todo lo que yo le entregue [...]
Nada más. Ah! Me acuerdo que teniendo diez años
dibujé mi camino contra todos los daños
que en el largo sendero me pudieran vencer:
haber amado a uma mujer y haber escrito
un libro. No he vencido, porque está manuscrito
el libro y no amé a una, sino que a cinco o seis...
Mais tarde esse processo de reorganização das lembranças pode ser
observado em Estravagario (1958), poemas em que Neruda, num tom
confessional, tenta reordenar sua vida a partir de questionamentos existenciais.
Um reencontro com o passado que pode ser observado nos versos de
“Regreso a una ciudad” (NERUDA, 1993:607-608):
A qué he venido? les pregunto.
Quién soy en esta ciudad muerta?
No encuentro la calle ni el techo
de la loca que me quería.
[...]
Ahora me doy cuenta que he sido
no sólo un hombre sino varios
y que cuantas veces he muerto,
sin saber cómo he revivido,
como si cambiara de traje
me puse a vivir otra vida
y aquí me tienen sin que sepa
por qué no reconozco a nadie,
por qué nadie me reconoce,
si todos fallecieron aquí
y yo soy entre tanto olvido
un pájaro sobreviviente
o al revés la ciudad me mira
y sabe que soy un muerto.
[...]
A cidade assinalada pelo sujeito lírico é sem dúvida Colombo, no Ceilão.
O episódio que inspirou esses versos foi narrado pelo próprio poeta anos
79
depois em Confieso que he vivido. Neruda conta que nos primeiros meses de
1957 foi convidado a participar de um Congresso em favor da paz em
Colombo, evento que o fez voltar ao Oriente após décadas. O reencontro com
a cultura oriental o fez reviver os anos de juventude em que esteve isolado
nessa afastada terra e que provocaram no poeta novas motivações líricas.
Sobre sua peregrinação pelo mundo asiático, Neruda escreveu (2000:299):
“[...] A los 22 años de edad viví en Ceilán una existencia solitaria y escribí allí
mi poesía más amarga rodeado por la naturaleza del paraíso” e acrescentou:
Me fui al tanteo por las callejuelas en busca de la casa en que viví,
en el suburbio de Wellawatha. Me costó dar con ella. Los árboles
habían crecido; el rostro de la calle había cambiado [...] No encontré
a ninguno de mis viejos amigos. Sin embargo la isla volvió a llamar
en mi corazón, con su constante sonido, con su destello inmenso.
Como constatado até agora, a autobiografia é uma escrita pessoal e
íntima, associada a um território determinado: uma região, um povoado, uma
casa, uma cidade; um lugar conhecido e vivenciado pelo autor. Desta
constatação se depreende que paralelamente ao processo autobiográfico vaise desenhando a identidade desse autor. Sobre este aspecto pode-se trazer o
referencial teórico proposto por Sylvia Molloy em Acto de presencia (1996).
Nesse estudo Molloy apontou uma série de características apresentadas nos
escritos autobiográficos hispano-americanos. A autora argentina afirma que a
casa, assim como os lugares físicos onde o escritor viveu, formam e
configuram seu mundo. Destaca também que a memória familiar se faz
presente na maior parte desses escritos, notadamente a relação com a mãe.
Sylvia Molloy constatou também que a maioria dos escritores autobiográficos
80
hispano-americanos recorrem à “primeira lembrança” para iniciar seus relatos.
Segundo a autora:
Situada precisamente no inicio, o muito perto do começo do relato, a
primeira lembrança constitui uma espécie de epígrafe, uma autocitação e ainda que não resuma a essência do que continuará,
aponta numa direção [...] em todo caso é obvio que, assim como
nenhuma recordação é inocente, tampouco é inocente nenhum uso
que se faça dela. Ao resgatar uma “primeira lembrança” das muitas
que a memória tem armazenado, o autobiógrafo escolhe um início
que, de alguma maneira harmoniza, com a imagem que o adulto, no
presente da escritura tem de si mesmo (MOLLOY, 1996:257). [Trad.
da autora]
O parágrafo citado deixa claro que a eleição das lembranças não é
arbitrária; pelo contrário, estas são selecionadas dentre as inúmeras
alternativas guardadas na memória. Selecionar a primeira recordação é um ato
muito significativo, posto que, aponta o verdadeiro nascimento do indivíduo. Ao
lançar um olhar sobre os escritos memorialísticos de Pablo Neruda, constatase que as características apontadas por Molloy estão presentes no texto
nerudiano. Observa-se, por exemplo, que o primeiro capítulo de Memorial de
Isla Negra (1964), intitulado “Donde nace la lluvia”, Neruda (1993:1021-1022)
dedica o primeiro poema ao seu nascimento:
Nació un hombre
entre muchos
que nacieron,
vivió entre muchos hombres que vivieron,
[...]
Parral se llamaba el sitio
del que nació
en invierno.
[...]
Yo no tengo memoria
del paisaje ni tiempo,
ni rostros, ni figuras,
sólo polvo impalpable[...]
81
Da mesma maneira, em Confieso que he vivido Neruda (2000:11) inicia o
primeiro capítulo “Infancia y poesía” com as seguintes palavras:
Comenzaré por decir, sobre los días y los años de mi infancia, que
mi único personaje inolvidable fue la lluvia. La gran lluvia austral que
cae como uma catarata del Polo, desde los cielos del Cabo de
Hornos hasta la frontera. En esta frontera, el Far West de mi patria,
nací a la vida, a la tierra, a la poesía y a la lluvia.
Sylvia Molloy (1996:146), ao abordar a recriação da infância na
autobiografia, faz referência à escrita de Pablo Neruda com as seguintes
palavras:
[...] quando se recria a infância, geralmente é colocada num contexto
mais amplo, como primeira entrega da história de uma vida inteira. É
o caso de [...] Neruda dentre outros muitos: todos eles dedicam a
parte inicial, quando não o volume inicial de sua autobiografia, aos
anos da infância. [Trad. da autora]
Mas, a rememoração da infância não representa em Neruda a simples
nostalgia dessa tenra idade, ele a rememora objetivando ser o ponto de partida
para chegar à idade adulta. Ao iniciar suas autobiografias com os episódios da
infância, Neruda selecionou o período mais significativo de sua existência
dando a ele um destaque proposital, posto que conforme Molloy (1996:257):
“nenhuma lembrança é inocente, tampouco é inocente nenhum uso que se faça
dela”, o que quer dizer que a eleição da lembrança é o resultado de uma
seleção prévia feita de acordo com o peso simbólico que ela representa para o
autor. No caso nerudiano, iniciar suas autobiografias com o resgate da primeira
idade ratifica a forte identificação com suas raízes sulistas, constituintes
marcantes de sua identidade.
82
Hernán Loyola denominou a produção literária nerudiana a partir de
finais da década de cinqüenta como uma escrita reveladora de uma “nova
lingüagem biográfica” (In: NERUDA, 2001:1079). Para tal declaração se baseia
na escrita fragmentada utilizada por Neruda, uma espécie de collage onde a
lembrança não se cinge exatamente a um tempo linear e sua emergência se dá
em meio às lacunas da memória, retratando assim, a fragmentação da vida.
Em Memorial de Isla Negra, autobiografia lírica, Neruda percorre num
tom nostálgico seus primeiros sessenta anos de vida. Uma peregrinação que
se inicia no sul chuvoso e culmina na Chascona junto de Matilde Urrutia, sua
última esposa. O título homenageia a cidade de pescadores próxima a
Valparaíso, local onde em 1939 comprou a residência que compartiu com
Matilde. Conforme Hernán Loyola, Memorial teve como preâmbulo a série de
artigos publicados em O Cruzeiro Internacional. O crítico chileno afirma que
“[...] foram ante-sala do projeto Memorial de Isla Negra que Neruda começou a
escrever nesse mesmo 1962 [...]” (In: NERUDA, 2001:36) [Trad. da autora].
Memorial de Isla Negra consta de cinco capítulos, sendo o primeiro
deles “Donde nace la lluvia”. Houve uma edição prévia desse primeiro capítulo
em 1963, que contava como um texto inicial intulado “Prefacio a Pablo Neruda”,
no qual o vate declara sua intenção autobiográfica. As palavras escritas pelo
poeta foram as seguintes (NERUDA (2001:1101-1102):
Es éste el primer paso hacia atrás hacia mi propia distancia, hacia mi
infancia. Es el primer volver en la selva hacia la fuente de la vida. Ya
se olvidó el camino, no dejamos huellas para caminar y si temblaron
las hojas cuando pasamos entonces, ahora ya no tiemblan ni silba el
rayo agorero que cayó a destruirnos. Andar hacia el recuerdo cuando
éstos se hicieron humo es navegar en el humo. Y mi infancia vista en
el año 1962, desde Valpaparaíso, después de haber andado tanto,
es sólo lluvia y humareda. Vayan por ella los que me amen: su única
llave es el amor [...]
Valparaíso, 1962
83
Em cinco capítulos Neruda expõe a essência de sua caminhada
existencial até a década de sessenta, etapa que mais tarde foi complementada
com suas Memórias publicadas sob o título Confieso que he vivido (1974),
autorretrato em prosa, que revela aspectos desconhecidos da personalidade do
poeta dispersos em doze capítulos, uma visão totalizadora do que foi sua vida
e sua obra. Neruda (2000:7) inicia suas Memórias com as seguintes palavras:
Estas memorias o recuerdos son intermitentes y a ratos olvidadizos
porque así precisamente es la vida [...] Muchos de mis recuerdos se
han desdibujado al evocarlos, han devenido en polvo como un cristal
irremediablemente herido [...]
Tal vez no viví en mi mismo; tal vez viví la vida de los otros.
De cuanto he dejado escrito en estas páginas se desprenderán
siempre – como en las viñas – las hojas amarillas que van a morir y
las uvas que revivirán en el vino sagrado .
Mi vida es una vida hecha de todas las vidas: las vidas del poeta.
No texto supracitado, o autor/personagem/narrador reconhece que é
impossível lembrar de tudo e constata que nem tudo o que for registrado pela
escrita perdurará no tempo transformando-se em “las hojas amarillas que van a
morir”, mas confia na permanência de algumas passagens como “las uvas que
revivirán en el vino sagrado”, e assim sua existência passará a formar parte da
história da humanidade.
Entre 1970 e 1972 Neruda residiu na França ocupando o cargo de
embaixador. Em 1972, ainda na França, o poeta decidiu reiniciar a redação
final de seu projeto autobográfico iniciado com os artigos Las vidas del poeta,
para tal emprendimento reuniu as crônicas já publicadas e chamou o poeta
chileno Homero Arce, seu amigo e secretário, quem junto com Matilde
trancreveu os textos ditados por Neruda e que mais tarde serviram de enlace
84
do material pré-existente. Em novembro desse mesmo ano, já de volta ao Chile
por problemas de saúde, Neruda trabalhou incansavelmente em suas
Memórias, talvez prevendo o fim. Após sua morte em setembro de 1973, o
manuscrito foi enviado à Venezuela onde Matilde Urrutia e Miguel Otero Silva,
escritor venezuelano e amigo do falecido poeta, organizaram e publicaram o
manuscrito. A esse primeiro lançamento se seguiram inúmeras traduções e
publicações no mundo inteiro.
Muitas
polémicas
rondaram
as
Memórias
do
Nobel
chileno.
Questionava-se a autoria das últimas quatro páginas de Confieso que he
vivido, posto que o poeta encontrava-se gravemente doente na data dos
episódios relatados e que tinham acontecido na semana de sua morte. Mas há
varias testemunhas que viram o poeta nas últimas horas de vida, como a
advogada Aída Figueroa (In. SOÁREZ, 2004:367) que numa entrevista à
Revista Araucaria relatou:
A verdade é que Pablo não perdeu nunca o ânimo. Quando fui visitálo na clínica no sábado, um dia antes de sua morte, foi a primeira vez
que reclamou das dores [...] Estava lendo um livro, que tinha
despedaçado para poder ler. Não era capaz de sustentar um livro
nas mãos. Tinham desfeito o livro e Pablo tomava umas quatro
folhas para ler. Era uma novela francesa. Enquanto isso, Homero
Arce estava no quarto ao lado passando a limpo uns poemas, seus
últimos poemas. Homero levava os poemas e Pablo os revisava...
[Trad. da autora]
Matilde Urrutia numa carta dirigida ao professor chileno Juan Loveluck,
residente nos estados Unidos, insistiu que Neruda escreveu até a última linha
de suas Memórias:
85
Em setembro, Pablo tinha-me avisado que trabalharia dois meses
mais em suas Memórias. Em sua caderneta de notas há vários
capítulos anotados que não alcançou a fazer, mas as memórias
estavam prontas do começo ao fim, e o último capítulo, que o
escreveu depois do dia 11, era o final definitivo decidido por ele (IN:
SOÁREZ, 2004:366) [Trad. da autora]
Apoiado em declarações como as supracitadas, Eulógio Soárez (2004:366)
explicou: “Não pode existir dúvida alguma de que o poeta escreveu realmente
cada uma das linhas de suas Memórias”, e acrescentou, “As últimas páginas
do livro o retratam de corpo inteiro. Resistem todas as provas. Seus juízos
políticos são claros em cada um de seus textos; sua linguagem é a mesma;
seu estilo, inimitável” [Trad. da autora].
De acordo com Matías Barchino (12): “Confieso que he vivido tem sido
um dos livros mais lidos da literatura autobiográfica hispano-americana do
século XX [...] tem sido reeditado continuamente desde sua primeira edição
argentina e espanhola de 1974”17. Essas Memórias constituem um verdadeiro
autorretrato nerudiano. Uma viagem literária que leva o leitor pelas paragens
selvagens do sul chileno, para peregrinar mais tarde pela cidade grande e
seguir nas travessias ao Oriente, a Europa e a Ásia. Através dessa viagem
literária o leitor vai aprofundando nas principais obras, vivências, encontros e
desencontros experimentados pelo vate. No final da viagem, personagem e
leitor chegam a Isla Negra, onde o poeta viveu seus últimos dias em meio à
turbulência política que assolou seu país.
17
Trad. da autora
86
4. De Búffallo Bill aos clássicos
El mundo de las artes es un taller en el que todos trabajan y se
ayudan, aunque no lo sepan ni lo crean. Y en primer lugar, estamos
ayudados por el trabajo de los que precedieron y ya se sabe que no
hay Rubén Darío sin Góngora, ni Apollinarie sin Rimbaud, ni
Baudelaire sin Lamartine, ni Pablo Neruda sin todos ellos juntos. Y es
por orgullo y no por modestia que proclamo a todos los poetas mis
maestros, pues, que sería de mí sin las largas lecturas de cuanto se
escribió en mi patria y en todos los universos de la poesia.
Neruda, 1962*
Pablo Neruda foi um poeta universal, lido no mundo todo e traduzido a
inúmeras línguas. Mas, de quem Neruda era leitor? Que obras compunham seu
universo literário? Que autores ele reverenciava? Responder a essas
perguntas de forma abrangente implicaria numa extensa pesquisa merecedora
de um estudo particular. Portanto, neste momento, se propõe apenas uma
aproximação às relações literárias estabelecidas pelo poeta. Aproximações que
serão feitas a partir do próprio texto nerudiano, objetivando uma visão
panorâmica do que foi o seu universo literário.
A leitura da obra nerudiana revela um autor que lia incansavelmente. De
muito jovem foi um ávido leitor e na idade adulta um bibliófilo conhecedor e
colecionador de obras valiosas e de edições raras. Na infância e adolescência
Neruda leu de tudo e de forma desordenada. Em suas memórias lembra: “Fui
creciendo. Me comezaron a interesar los libros. En las hazañas de Buffalo Bill,
en los viajes de Salgari, se fue extendiendo mi espíritu por las regiones del
sueño” (NERUDA: 2000:17). Cada livro era um mundo novo, as leituras o
transportavam a lugares desconhecidos e maravilhosos. Neruda foi uma
criança retraída que encontrou refúgio nos livros, à medida que foi crescendo:
*
NERUDA (2001) p.1095.
87
[...] avanzaba en el mundo del conocimiento, en el desordenado río
de los libros como un navegante solitario. Mi avidez de lectura no
descansaba ni de día ni de noche. En la costa, en el pequeno Puerto
Saavedra encontré una biblioteca municipal y un viejo poeta, don
Augusto Winter, que se admiraba de mi voracidad literaria. “¿Las
leyó?”, me decía, pasándome un nuevo Vargas Vila, un Ibsen, un
Rocambole, como um avestruz yo tragaba sin discriminar (NERUDA,
2000:29).
Suas leituras ganharam novo rumo na época em que cursava o ensino
médio. De acordo com o próprio Neruda, foi seu professor de francês, o senhor
Ernesto Torrealba, admirador dos poetas simbolistas Rimbaud, Verlaine e
Baudelaire, quem o iniciou na poesia francesa. Sobre outra personalidade que
o encaminhou para novos horizontes literários, Neruda comentou: “Llegó a
Temuco uma señora muy alta, con vestidos muy largos y zapatos de taco bajo”
Referia-se a Gabriela Mistral, recém chegada à cidade do poeta para ocupar o
posto de diretora do Liceo de niñas. Por esse tempo Neruda teve pouco
contato com a poetisa, mas foi o suficiente para despertar o interesse por uma
leitura mais sofisticada, especialmente pela literatura russa. Sobre os primeiros
contatos com Mistral, Neruda (2000:29), escreveu:
Yo era demasiado joven para ser su amigo, y demasiado tímido y
ensimismado. La vi muy pocas veces. Lo bastante para que cada vez
saliera con algunos libros que me regalaba. Eran siempre novelas
rusas que ella consideraba como lo más extraordinario de la literatura
mundial. Puedo decir que Gabriela me embarcó en esa seria y terrible
visión de los novelistas rusos y que Tolstoi, Dostoievski, Chejov,
entraron en mi más profunda predilección. Siguen acompañándome.
Neruda foi muito grato com as perssoas que o incentivaram no mundo
literário. Uma gratidão que repetiu inúmeras vezes ao se referir a outros
88
autores que foram marcantes no transcurso de sua vida e de sua obra. Emir
Rodríguez Monegal (1977:64) detectou essa característica refletida na obra do
vate chileno:
Como todo grande poeta Neruda se apóia na poesia alheia. Si Darío,
Sabat Ercasty, Huidobro, a Mistral, Tagore ou Whitman, marcam seus
primeiros versos, outros nomes e outros poemas seguirão [...] Como
Shakespeare, como Molière, como Goethe, como Hugo, Neruda se
alimenta da poesia de seu tempo com a mesma naturalidade com
que aproveita a poesia do fabuloso passado. [Trad. da autora]
Em suas Memórias Neruda conta que tardou trinta anos em reunir a
maioria dos livros que conformaram sua primeira bilblioteca. Dentre as obras
mais apreciadas por ele encontram-se valiosos incunábulos18 e peças originais.
Orgulhoso, Neruda (2000:356), dizia:
[...] Mis anaqueles guardavam incunables y otros volúmenes que me
conmovían; Quevedo, Cervantes, Góngora, en ediciones originales,
así como Laforgue, Rimbaud, Lautréamont. Estas páginas me
parecia que conservaban el tacto de los poetas amados.
Em suas andanças pelo mundo Neruda foi garimpando textos de valor
incalculável. Chegou a ter cinco mil exemplares, dentre os quais havia
incontáveis obras raras e manuscritos de valor inestimável. Em finais de 1953
Neruda decidiu doar sua valiosa biblioteca à Universidad de Chile cumprindo a
promessa feita anos antes no poema “Testamento II” de Canto Genral
(NERUDA,1999:832-833), transcrito a seguir:
Dejo mis viejos libros, recogidos,
en rincones del mundo, venerados
en su tipografía majestuosa,
18
Livros impressos antes do 1500.
89
a los nuevos poetas de América,
a los que un día
hilarán em el ronco telar interrumpido
las significaciones del mañana
[...]
Que amen como yo amé mi Manrique, mi Góngora,
mi Garcilaso, mi Quevedo:
fueron
titánicos guardianes, armaduras
de platino y nevada transparencia,
que me enseñaron el rigor, y busquen
en mi Lautréamont viejos lamentos
entre pestilenciales agonías.
Que en Mayakovski vean como ascendió la estrella
y como de sus rayos nacieron las espigas.
O discurso proferido por Neruda em 20 de junho de 1954, na ocasião da
doação de sua biblioteca, revela claramente suas preferências de leitura ao
enumerar algumas das obras de seu acervo. Para cada uma das obras
mencionadas, o poeta tinha uma história pessoal, relatava o caminho e as
anedotas que o levaram até elas. Falou, por exemplo, de Alejandro Pushkin, de
Victor Hugo, de Rimbaud, de Quevedo, de Darío, de Whitman, dentre outros, e
lembrou com emoção dos poetas amigos que lhe dedicaram suas obras: “Aqui
está el Romancero gitano dedicado por outro poeta asesinado. Federico
escribió delante de mí esa magnánima dedicatoria y Paul Éluard, que también
se había ido, también en la primera página de su libro me dejó su firma”.
Neruda (2001:949) terminou o discurso com as seguintes palavras:
[...] Aquí está reunida la belleza que me deslumbró y el trabajo
subterráneo de la consciencia que me condujo a la razón, pero
también he amado estos libros como objetos preciosos, espuma
sagrada del tiempo en su camino, frutos esenciales del hombre.
Pertenecen desde ahora a innumerables ojos nuevos.
Así cumplen su destino de dar y recibir luz.
Os livros acompanharam Neruda desde seus primeiros anos em
Temuco. Na primeira conferência do ciclo “Mi poesía” em 20 de janeiro de
90
1954, no Salón de Honor de la Universidad de Chile, Neruda confirma essa
afirnativa:
Qué soledad la de un pequeño niño poeta vestido de negro, en la
frontera espaciosa y terrible. La vida y los libros poco a poco me van
dejando entrever mistérios abrumadores [...]
Por entonces comienzo a leer vorazmente, saltándome de Julio
Verne a Vargas Vila, a Strindberg, a Gork, a Felipe Trigo, a Diderot.
Me enfermo de sufrimiento y de piedad con Los Miserables y lloro de
amor com Bernardino de Saint-Pierre.
El saco de sabiduría humana se había roto y se desgranaba en la
noche de Temuco. No dormía ni comía leyendo. No voy a decir a
nadie que leía sin método. Quién lee con método? Sólo las estatuas
(NERUDA, 2001:925).
Walt Whitman foi o escritor mais admirado por Neruda, seu pai literário,
como ele mesmo dizia. A admiração de Neruda por Witman se perde entre as
lembranças nerudianas como ele próprio cantou em “Oda a Whitman”
(NERUDA,1993a:363-367):
Yo no recuerdo
a qué edad,
ni dónde,
si en el gran Sur mojado
o en la costa
temible, bajo el breve
grito de las gaviotas,
toqué una mano y era
la mano de Walt Whitman:
pisé la tierra
con los pies desnudos,
anduve sobre el pasto,
sobre el firme rocío
de Walt Whitman.
Durante
mi juventud
toda
me acompañó esa mano,
ese rocío,
su firmeza de pino patriarca, su extensión de pradera,
y su misión de paz circulatoria [...]
A primeira alusão feita por Neruda sobre Whitman foi numa breve nota
na revista Claridad em 5 de maio de 1923. Nessa nota Neruda comentou a
91
tradução feita por Arturo Torres Rioseco. Na ocasião o jovem Neruda
(2001:310) escreveu: “Trae este libro animación de parte de este araucano
reclamista que es A. Torres Rioseco, y bellas palabras del varón de Camdem,
vertidas por primeira vez en un castellano digno del que las escribiera en
inglés”. Em sua casa de Valparaíso, La Sebastiana, o escritório de Neruda
exibe uma fotografia de corpo inteiro de Whitman.
O artigo “Figuras en la noche silenciosa: la infancia de los poetas”,
publicado na revista Zig-Zag de 20 de outubro de 1923, revela conhecimento
tanto da vida quanto da obra dos autores que lia. No texto acima mencionado e
destacado a seguir, Neruda (2001:318-319) escreveu sobre a infância de
Papini, Baudelaire, Mirbeau, Valdelomar e Romero Murga:
[...] A través de los campos; junto a las ventanas donde cantan y
sollozan las lluvias australes; abandonados en la seca campina
florentina; olvidados en la Bretaña acre, en el Perú soñoliento, en
Chile. En todas partes el niño entristecido que no habla, el hombre
que ha de decirnos más tarde, con la mano en la frente, recordando:
no, io vi ripeto, non hoavuto fanciulleza...
Os destaques e comentários aqui apresentados são suficientes para
elucidar um universo literário diversificado e amplo. A bagagem literária de
Pablo Neruda ia de Búffallo Bill aos clássicos, revelando com isto um leitor que
soube dialogar tanto com autores de seu tempo quanto com autores do
passado.
92
2ª PARTE
O DISCURSO FUNDADOR DAS CIDADES
CHILENAS
Los rasgos esenciales comunes del conquistador son muy acusados, en
todos late un impulso de proyección fuera de lo ordinario, hay un sentido
desmesurado, muy español, por cierto, de realizar empresas inauditas e
inverosímiles, todos tienen una ciega fe en sí mismos, desprecio por el
peligro, audacia ante lo desconocido. El vértigo colectivo de expansión
que anima a la España del siglo XVI se expresa idóneo en la mentalidad
del conquistador. En este sentido, la atracción de la aventura americana
construyó una verdadera criba, especialmente en Chile.
Encina & Castedo*.
*
ENCINA&CASTEDO (2004) p.9.
93
1. Da cidade letrada aos imaginários urbanos
Para levar a diante o sistema ordenado da monarquia absoluta,
para facilitar a hierarquização e concentração do poder, para
cumprir sua missão civilizadora, acabou sendo indispensável que as
cidades, que eram a sede da delegação dos poderes, dispusessem
de um grupo social especializado ao qual encomendar esses
encargos. Foi também indispensável que esse grupo estivesse
embuído da consciência de exercer um alto ministério que o
equiparava a uma classe sacerdotal.
Ángel Rama*.
A noção de cidade letrada foi cunhada por Ángel Rama no estudo
intitulado La ciudad letrada (1984). Para analisar as relações entre os
intelectuais e o poder na América Latina, Rama apresentou um croqui dos
sucessivos modelos culturais distribuídos ao longo do processo históricocultural da América Latina. Esta abordagem abrange da conquista e
colonização até a segunda metade do século XX.
Conforme o crítico uruguaio, o grupo que dominava as letras
estabeleceu desde a colônia uma divisão em relação à sociedade e tomou para
si um papel estratégico frente ao poder perpetuando-se concomitantemente às
mudanças históricas. Os escritores e a produção literária ocupam um lugar
central no relato de Rama. Para Rama o corpo letrado das cidades concentra
os construtores, os distribuidores, os administradores e os guardiões da
linguagem.
Ao longo do estudo, Rama desenha e define o papel dos letrados no
âmbito político, econômico e social, além do desenvolvimento urbano. De
acordo com o autor, cada período do processo histórico-cultural corresponde a
*
RAMA (1985) p.41
94
um tipo de cidade: ordenada, letrada, escriturária, modernizada, politizada e
revolucionada. No primeiro capítulo intitulado “A cidade ordenada”, Rama
afirma que o funcionamento e a manutenção de um modelo cultural somente
serão satisfatórios se forem embasados numa organização espacial ordenada
desde o início, ou seja:
A ordem deve ficar estabelecida antes de que a cidade exista, para
impedir assim toda futura desordem, o que alude à peculiar virtude
dos signos de permanecerem inalteráveis no tempo e seguir regendo
a mutante vida das coisas dentro de rígidos marcos (RAMA,1985:29).
Rama enfatiza que as cidades antes de existirem na realidade, eram
pensadas e representadas simbolicamente através das palavras que
expressavam o desejo de construi-las, assim como as normas que regiriam sua
diagramação. A importância da palavra escrita para garantir a posse do solo
era fundamental:
A escritura possuía rigidez e permanência, um modo autônomo que
arremedava a eternidade. Estava livre das vicissitudes e
metamorfoses da história, mas sobre tudo, consolidava a ordem por
sua capacidade de expressá-la rigurosamente ao nível cultural
(RAMA,1985:30).
Dessa maneira, o discurso ordenado pela língua proporcionava as diretrizes de
um segundo discurso em forma de desenho gráfico ou plano, sendo este último
“o melhor exemplo de modelo cultural operativo” (RAMA,1985:30). Vista desta
perspectiva, a cidade, além de constituir um cenário, constitui um texto que se
expressa numa linguagem silenciosa revelada pelas ruas, escritórios, janelas,
habitações, etc. As cidades falam de diferentes maneiras através de suas
construções, um corpo de cimento capaz de estabelecer com os corpos
95
humanos uma relação singular onde o corpo leitor, além de constituir a
personagem principal, é também o narrador. Logo, cada cidade, enquanto texto
veicula e armazena uma cultura, uma memória, um saber, uma narração
própria, fatores que passam a ser visíveis por meio do relato.
Rama
chama
de
cidade
letrada
o
conjunto
de
religiosos,
administradores, estudiosos, escritores, em suma, o conjunto dos servidores
intelectuais que configuravam o centro de toda cidade. O autor explica que
dentro da cidade material visível existia uma cidade letrada que conduzia e
regia a primeira. A parte material da cidade, constituída ao longo do tempo,
passou por inúmeras modificações: “A cidade bastião, a cidade porto, a cidade
pioneira das fronteiras civilizadoras [...]. Mas dentro delas sempre houve outra
cidade não menos amuralhada, porém mais agressiva e redentorista, que a
regeu e conduziu” (RAMA, 1985:42).
Rama lembra a importância representada pelo corpo letrado no período
colonial, grupo reduzido que participava da empresa fundadora, administrativa
e modernizadora da cidade. Era o corpo letrado o encarregado da
comunicação entre a metrópole, e a sociedade colonial, portanto, constituía a
“delegação do Rei”. Esses grupos de poder alcançaram a supremacia, posto
que “[...] seus membros foram os únicos exercitantes da letra num meio
desguarnecido de letras, os donos da escritura numa sociedade analfabeta [...]”
(RAMA,1985:44). Identifica-se em Rama que a cidade real corresponde à
sociedade como um todo e a cidade letrada ao grupo de intelectuais que as
dirigiam.
O grupo letrado adquiriu um poder que o tornou autônomo dentro das
instituições, o que levou ao estabelecimento de um abismo entre esse grupo e
96
o restante da população. A distância entre esses dois grupos é análoga à
existente entre a palavra escrita e a falada onde a primeira fica reservada a
uma minoria que domina a linguagem oficial e, por isso, está mais apta para
criar e interpretar as leis que regem a sociedade. A partir desse momento
começaram a coexistir duas línguas separadas hierarquicamente: a norma
culta e fala popular, fenômeno explicado por Rama (1985:54) da seguinte
maneira: “Foi a distância entre a letra rígida e a fluida palavra falada, que fez
da cidade letrada uma cidade escriturária, reservada a uma estrita minoria”.
Porém, surgiu um novo grupo letrado que se organizou na procura de outros
espaços onde puderam se expressar, emergindo assim, os profissionais
liberais, os jornalistas e os humanistas, fundando a cidade modernizada. Desta
maneira, no fim do século XIX, a cidade letrada se amplia com a incorporação
de novos intelectuais, os quais encontraram no jornalismo seu veículo de
ingresso na cidade das letras. A incorporação do novo corpo letrado trouxe um
conflito originado pelo pensamento crítico que procurou no pensamento popular
a base para a formação de projetos nacionais instituindo a literatura nacional
como identidade, fato que contribuiu para a formação de uma cultura urbana.
Finalmente, Rama aborda a era das revoluções que gerou a cidade
revolucionada. O autor observa como em meio às revoluções latino-americanas
sempre se concedeu grande importância à presença dos intelectuais nos
campos de luta, “[...] quer se trate de conselheiros privados ou de secretários
que dominam a pena, quer dos burocratas sobreviventes de todas as
administrações possíveis que esperam o momento em que se reclame deles os
inevitáveis serviços" (RAMA, 1985:155). Assim, surgiram as ditaduras que
assolaram a América Latina a partir da segunda metade do século XX.
97
O percurso pelo ensaio de Ángel Rama permitiu acompanhar de forma
clara a função desempenhada pela classe letrada no planejamento, evolução e
desenvolvimento dos centros urbanos na América Latina.
A final do século XX, o pesquisador argentino Néstor García Canclini
publicou Imaginarios urbanos. Nesse estudo, García Canclini reflete sobre o
processo de hibridação cultural, sobre a regionalização, a globalização e,
especialmente, sobre o espaço urbano da cultura latino-americana no final do
século. Seguindo as acepções de Rama, ao querer compreender o
emaranhado da cidade, García Canclini enfrenta o desafio de desvelar a
superposição de escrituras que configuram as cidades a partir do seguinte
questionamento: é possível pensar a cidade como um todo?
2. A cidade como um todo.
Antes de tudo, devemos pensar na cidade como um lugar para
habitar e para ser imaginado. As cidades se constroem com casas e
parques, ruas, auto-estradas e sinais de trânsito. Mas as cidades se
configuram também com imagens. Podem ser as dos planos que as
inventam e as ordenam. Mas também imaginam o sentido da vida
urbana, as novelas, as canções e os filmes, os relatos de imprensa, o
rádio e a televisão. A urbe programada para funcionar, desdenhada
em quadrícula, se desborda e se multiplica em ficções individuais e
coletivas.
Néstor García Canclini*.
De acordo com Néstor García Canclini é muito difícil estabelecer a
noção de cidade como um todo, abordando os diversos aspectos que esse
*
GARCÍA CANCLINI (1999) p. 107. Todas as citações do livro Imaginarios Urbanos
apresentadas neste subcapítulo foram traduzidas pela autora desta Tese.
98
conceito envolve. O pesquisador argentino, em seu livro Imaginarios urbanos
(1999), fez uma retrospectiva temporal enunciando as diversas explicações
através das quais se tentou responder à questão do significado de cidade.
Explicações que não passam de simples aproximações, pois pretendem
estruturar uma noção do que é urbano a partir de alguns aspectos isolados e
não da cidade como um todo,
Primeiramente, García Canclini (1999:69) cita o enfoque adotado no
início do século XX o qual sustentava a noção de cidade a partir da oposição
urbano/rural, ou seja, “conceber a cidade como o que não é campo”. De acordo
com esse raciocínio, o espaço rural estaria vinculado às relações comunitárias
primárias19 e o espaço urbano às secundárias, o que configura no entender de
García Canclini, uma abordagem insuficiente para responder à questão, já que
aborda só um aspecto do fenômeno citadino. Além disso, não questiona, por
exemplo, o que ocorre quando as duas realidades, rural e urbana, se
encontram dentro do mesmo espaço geográfico. Situações denominadas por
García Canclini (1999:70) como “[...] interseções, entrelaçamentos entre o rural
e o urbano”, acontecimentos que registram uma invasão de elementos rurais
na cidade ou vice-versa. Cenas fáceis de serem vistas, por exemplo, na cidade
de Santiago do Chile, nas primeiras décadas do século vinte, como se observa
na seguinte gravura:
19
De acordo com Canclini entendem-se como relações comunitárias primárias os contatos
intensos de tipo pessoal, familiar e social próprios dos povoados, já as relações secundarias
são as desenvolvidas nos centros urbanos que fazem referência a uma maior segmentação de
róis.
99
Rua Arturo Prat (1920) - Santiago do Chile.
Archivo Fotográfico Chilectra*.
A fotografia apresenta o contraste entre dois meios de transporte numa
rua do centro de Santiago: o bonde, símbolo do desenvolvimento urbano da
época, ao lado de uma carreta puxada por cavalos. Também poderia acontecer
o contrário, no que se refere à penetração da cidade no campo, o que deixa
claro que a simples noção de oposição não é suficiente para explicar a cidade.
Outra abordagem, desenvolvida por García Canclini (1999:70), explica o
urbano a partir do critério geográfico-espacial que define a cidade como “[…] a
localização permanente relativamente extensa e densa de indivíduos
socialmente heterogêneos”. Critério também insuficiente, segundo o ensaísta
argentino, porque não se aprofunda nos processos históricos e sociais que
estabeleceram a estrutura urbana. Há outros posicionamentos que se referem
aos aspectos econômicos, olhando a cidade como o espaço resultante do
desenvolvimento industrial e capitalista, tentativas de conceituar o fenômeno
urbano, seja a partir da experiência cotidiana, da representação dos habitantes,
*
Disponível em: http://www.nuestro.cl/chilectra/capitulo2.htm
100
da densidade de interação ou da aceleração das mensagens emitidas nesse
espaço físico. Essas aproximações respondem a alguns aspectos, mas não a
todos.
Talvez a junção desses critérios poderia desvelar a noção de cidade,
ainda assim, segundo García Canclini, a resposta obtida seria insuficiente. O
pesquisador se baseia no fato de que, ao longo dos tempos, as cidades têm
surgido umas sobre as outras, de forma que para explicar a cidade num
determinado espaço de tempo seria necessário primeiramente identificar as
cidades que existem sob a cidade do tempo presente. Sendo assim, o que
deveria interessar para definir o urbano seria explicar “[...] como se dá a
multiculturalidade, a coexistência de múltiples culturas num espaço que ainda é
denominado urbano” (GARCÍA CANCLINI,1999:77).
Para o ensaísta García Canclini, além da multiculturalidade que
caracteriza as cidades hispano-americanas, há também a multietnicidade que
surge da coexistência de grupos étnicos diferentes, decorrência das migrações
internas direcionadas às cidades e das externas, como as eurpéias e as
africanas. Para ilustrar a multiculturalidade urbana, García Canclini (1999:87)
cita o caso da Cidade do México, onde identifica três cidades pré-existentes
sob a capital mexicana da atualidade: “a histórico territorial, a cidade industrial
e a cidade informacional ou comunicacional”.
A pluriculturalidade de que nos fala García Canclini pode ser resumida
na tensão que existe entre as tradições que ainda persistem, somadas a uma
modernidade que não acaba de chegar. Este conjunto de variantes que
compõem a cidade moderna é a denominada “cidade videoclipe”, ou seja, “a
101
cidade que faz coexistir em ritmo acelerado uma montagem efervescente de
culturas de distintas épocas” (García Canclini, 1999:88).
O ensaísta argentino enfatiza que a interação do homem com a cidade
não se resume a uma simples experiência física, mas à relação imaginária que
resulta da passagem deste pelo espaço urbano. De maneira que, ao transitar
pela cidade, o indivíduo vai tecendo suposições sobre as coisas e os seres que
o rodeiam, uma vez que de acordo com García Canclini (1999:89) “Grande
parte do que nos ocorre é imaginário, porque não surge de uma interação real.
Toda interação tem uma cota de imaginário [...]”, sobretudo as interações
propostas pelo espaço urbano.
Observa-se que García Canclini enuncia um novo elemento para se
entender a cidade como um todo: o imaginário. Acrescenta também que as
cidades possuem um patrimônio visível - elementos materiais - e um patrimônio
invisível – lendas, mitos, imagens [...]. O patrimônio invisível ou intangível, de
acordo com García Canclini (1999:93):
[...] tem configurado um imaginário múltiplo, que não todos
compartilhamos da mesma maneira, do qual selecionamos
fragmentos de relatos, e os combinamos em nosso grupo, em nossa
própria pessoa, para construir uma visão que nos deixe um pouco
mais tranqüilos e localizados na cidade.
A preservação desses patrimônios é de grande importância porque
configuram signos de identidade e de memória para cada grupo social.
A
significação desses patrimônios será diferente para cada habitante e sua
interpretação dependerá das relações sociais em que esteja inserido,
proporcionando um sentido à vida urbana. Considerando que esses
patrimônios têm sido produzidos pela sociedade através da história, cabe neste
102
momento refletir sobre como a ação do homem tem modificado o meio
ambiente que possibilitou o surgimento das cidades.
3. Configuração do espaço citadino
O mundo se cria e se recria a partir das relações que o homem
mantém com a natureza e da maneira como ele se constrói enquanto
indivíduo. Nesse processo ele não só constrói o mundo, mas
também um modo de entendê-lo e explicá-lo enquanto possibilidade
aberta de transformação.
Ana Fani A. Carlos∗
Através da história da humanidade constata-se que o homem sempre
interagiu com o meio ambiente em que esteve inserido. No início, o homem
usufruía da terra extraindo dela somente o necessário para sua sobrevivência,
uma atitude passiva e dependente que foi mudando conforme suas
necessidades. Quando o homem deixa de ser um simples coletor e passa a
desenvolver a agricultura, deixa de ser nômade e começa a mudar sua relação
com o meio ambiente. As modificações experimentadas pelo homem influem
diretamente no meio que habita, modificando-o também. A professora Ana
Fanni Carlos (2003:32) aborda esse tema da seguinte maneira:
[...] o espaço geográfico é o produto, num dado momento, do estado
da sociedade, portanto, um produto histórico; é resultado da
atividade de uma série de gerações que através de seu trabalho
acumulado tem agido sobre ele, modificando-o, transformando-o,
humanizando-o, tornando-o um produto cada vez mais distanciado
do meio natural.
∗
CARLOS (2003) p.28.
103
O espaço urbano, então, é o resultado da ação da sociedade sobre o
meio ambiente e este, ao ser modificado pela mão do homem, passa a
constituir o espaço como produto social, um espaço que se caracteriza por
permanecer em constante processo de transformação. Dessa forma, a cidade
pode ser considerada um espaço humano, não somente porque o homem o
habita, mas principalmente por que é ele quem o produz.
A definição de cidade, contida no dicionário Houaiss (2001:714), pelo
seu teor merece ser discutida:
Aglomeração humana de certa importância, localizada numa área
geográfica circunscrita e que tem numerosas casas, próximas entre
si, destinadas à moradia e/ou atividades culturais, mercantis,
industriais, financeiras e a outras não relacionadas com a exploração
direta do solo.
Conforme o referente, o espaço urbano está constituído por elementos
materiais destinados à moradia e ao desenvolvimento de diversas atividades.
Deve-se acrescentar a essa definição que esses elementos materiais são
produzidos pela ação do homem sobre uma determinada área geográfica. De
maneira que a observação da paisagem de uma cidade revelar-nos-á a ação
do homem ao longo da história e, através do olhar, poder-se-á enxergar o
patrimônio que nos proporcionará informações sobre o passado, sobre o
presente e até sobre o futuro, se considerarmos as modificações em
andamento do espaço observado.
A vida humana se desenvolve num espaço determinado: seu país, sua
cidade, seu bairro, sua casa ou seu quarto, dentre outros espaços, nos quais o
indivíduo se reafirma ou se nega. Assim também, os elementos que configuram
esses espaços podem variar de momento a momento, numa oscilação que
104
pode levar o indivíduo à perda da estabilidade ou, ao contrário, ao encontro
desta.
Neruda apresenta em sua obra espaços variados no que se refere à
representação das cidades estudadas. Há espaços abertos: paisagens rurais e
portuárias onde encontramos imagens do mar, do horizonte, de bosques, das
colinas de Valparaíso ou das montanhas do sul. Há também espaços fechados,
denominação aqui empregada para referir-se às imagens que traduzem o olhar
do poeta para a cidade de Santiago: ruas cravadas de casas e prédios.
Observa-se
em
Neruda
a
preferência
pelos
espaços
abertos,
característica que revela sua admiração pelas belezas naturais do mundo das
quais ele quer ser porta-voz. Desta admiração resulta uma oscilação
permanente entre os amplos cenários das cidades de Temuco e Valparaíso e
do labirinto da cidade de Santiago.
Outra característica manifestada na obra nerudiana é o culto a
fenômenos naturais próprios do espaço primigênio, como por exemplo, a chuva
austral. Percebe-se uma intensa conexão do poeta com esse fenômeno
atmosférico, conexão que o afastamento não anulou. A necessidade de reviver
certas visões e sensações levou o poeta chileno a recriar, em suas moradas
urbanas e portuárias, os espaços, os materiais e as sensações experimentadas
na infância. Para este fim, construiu suas residências em ambientes com
características similares às da paisagem austral. Contudo, a ausência da
paisagem do sul, juntamente com seus elementos materiais e fenômenos
naturais, não representaram uma perda ou inexistência para o poeta, mas o
afastamento momentâneo de um grande e desejado reencontro. Esse desejo
de reviver o ambiente primigênio é, segundo Simone Weil (1979:353), um
105
sentimento inerente ao ser humano, pois “[...] não temos outra vida, outra seiva
a não ser os tesouros herdados do passado e digeridos, assimilados, recriados
por nós. De todas as necessidades da alma humana não há outra mais vital
que o passado”.
Pode-se deduzir que os espaços abertos, ricos em visões, odores e
cores, são para Neruda símbolos de felicidade, segurança e plenitude,
enquanto que os espaços limitados, de concreto, carentes de odores e cores
naturais, remetem ao espaço urbano de Santiago. Neruda através de sua
poesia nos apresenta sua particular concepção da urbe e do campo, uma
aglomeração de imagens antagônicas que dialogam nos versos de seus
poemas.
4. Fundação das cidades chilenas
A maior empresa de criação de cidades desenvolvida por um
povoado, uma nação ou um império em toda a história, foi a
realizada pela Espanha na América a partir de 1492, que ‘encheu um
continente de cidades traçadas reticularmente, com uma concepção
não igualada pela metrópole’∗.
As primeiras cidades da América Latina de que se tem testemunho
datam da época pre-hispânica. Cidades construídas em meio da natureza sem
representar uma ameaça para o sistema ambiental que as circundava,
organizações sociais que já apresentavam um espaço público organizado e
uma estrutura urbana muito desenvolvida. Exemplos representativos dessas
∗
Catálogo de exposición Madrid, CEHOPU, 1989, p.13. [Trad. da autora]
106
construções citadinas são as cidades pré-colombianas que constituíam os
impérios maia, inca e asteca. O desenvolvimento tecnológico apresentado
pelas cidades pré-hispânicas, assim como o cotidiano de seus habitantes,
foram registrados pelo pesquisador Luis Vitale (1983:41) com as seguintes
palavras:
Em cada cidade aborígine havia muitas árvores, plantas, pastos,
lagoas, riachos e outros componentes autótrofos que
proporcionavam energia própria. A cidade indígena tinha entrada e
saída próprias de energia. Esse tipo de cidade constituía uma
unidade indissolúvel com o campo. A maioria dos habitantes da urbe
se dedicava às tarefas agrícolas. Os indígenas se auto-abasteciam;
não tinham necessidade de importar os alimentos essenciais, como
se faz hoje em dia nas cidades modernas [...] O fato de que as
cidades fossem o lugar de depósito da produção agrária mostra a
íntima conexão entre a cidade e campo. [Trad. da autora]
Os europeus que chegaram à América do Sul entre os séculos XVI e
XVII organizaram, em sucessivas expedições por terra, a repartição de reinos e
encomendas, assim como a fundação de cidades sob o controle da Espanha. A
força expansiva da ocupação espanhola nos territórios americanos respondeu
a um processo paralelo de colonização e implantação de uma rede urbana. Na
intenção de povoar o território americano, numerosas fundações espanholas
aproveitaram os assentamentos indígenas pré-existentes implantando um
plano de desenvolvimento que não considerava as condições culturais desses
povos pré-hispânicos. A ocupação e o domínio europeus revelados no ato
fundador do território latino-americano são considerados por José Luis Romero
(2004:93) como um ato político, pois,
Os fatos repetiram-se muitas vezes de maneira semelhante. Um
pequeno exército de espanhóis ou portugueses mandado por alguém
que possuía uma autoridade formalmente inquestionável, e em geral
acompanhado de um certo número de indígenas, chegava a
107
determinado lugar e, por escolha prévia mais ou menos cuidadosa
do terreno, instalava-se nele com a intenção de que um grupo
permanecesse definitivamente ali. Era um ato político que significava
ao propósito – apoiado na força – de ocupar a terra e afirmar o
direito dos conquistadores.
A fundação das cidades na América Latina era regida por normas
específicas ditadas nas Ordenanzas de Felipe II e de Carlos V. Dessa maneira,
o modelo clássico da cidade hispano-americana responde ao traçado em forma
de tabuleiro de xadrez tipicamente européia estruturada da seguinte maneira:
uma praça central da qual se originavam as ruas na forma de rede ortogonal.
Ao redor da praça eram construídos os prédios mais importantes e, finalmente
eram distribuídos os casarões, como pode ser observado até hoje na maioria
das cidades latino-americanas. A modo de ilustração se reproduz a Ordenanza
de Carlos V datada em 1523:
E quando fizerem a planta do lugar, dividam-na por suas praças,
ruas e solares a cordel e régua, começando da praça maior, e
tirando a partir dela as ruas até as portas e caminhos principais, e
deixando tanto espaço aberto que ainda que a população aumente
consideravelmente, se possa sempre prosseguir e dilatar da mesma
maneira. (In: CEHOPU, 1989) [Trad. da autora]
As primeiras fundações citadinas ocorridas em terras americanas foram
as chamadas “cidades-fortalezas” (Romero, 2004:80), as quais tinham a função
de fortes. Nelas os colonizadores se protegiam dos ataques indígenas e dos
próprios europeus na disputa de terras. Portanto até finais do século XVI os
fortes foram as primeiras fundações erguidas em território americano, como
pode ser constatado no registro feito por Don Pedro de Valdivia20 no ano de
20
Pedro de Valdivia fundador de cinco importantes cidades chilenas: Santiago, Concepción, La
Imperial, Valdivia e Villarica.
108
1545 e reproduzido por José Luis Romero (2004:80) em América Latina: as
cidades e as idéias,
Ordenei que se fizesse um muro de um estado e meio de altura,
formando um quadrilátero de mil seiscentos pés, que levou duzentos
mil tijolos e uma vara de cumprimento por um palmo de altura, feitos
pelas próprias mãos dos vassalos V.M., e eu com eles e com nossas
armas às costas, trabalhamos desde o começo até que se acabou,
sem hora de descanso, e quando havia ataque de índios nele se
abrigavam as crianças e os equipamentos, e ali estava a provisão
que tínhamos armazenado, e os peões ficavam na defesa, e os que
estavam a cavalo saíamos a percorrer os campos e lutar com os
índios, e defender nossos plantios.
Mais tarde, na luta contra os índios surgem as “cidades de fronteira”
(Romero, 2004:81), que serviam para delimitar os territórios pertencentes aos
indígenas. Nesse processo de conquista, quando os espanhóis faziam esforços
para se estabelecer no território latino-americano, a fundação de cidades
cumpriu um papel fundamental, pois eram o centro do domínio espanhol numa
determinada região e constituíam locais de concentração de onde partiam
grupos de conquistadores para dominar outros territórios. As cidades
transformaram-se, então, no símbolo da estabilidade e da permanência
espanhola em território americano.
Além da cidade-fortaleza e das cidades de fronteira, surgiu também a
chamada “cidade-porto” (Romero, 2004:81), território que inicialmente tinha
como única função ser ponto de escala para o abastecimento de embarcações.
Com o tempo estes redutos foram ganhando importância, chegando a
desenvolver um papel fundamental no comércio marítimo com a metrópole. A
crescente concentração de serviços oferecidos nesses portos estimulou o
desenvolvimento de uma estrutura citadina que foi fortalecendo-se com o
progressivo estabelecimento de instituições como:
109
[...] o contingente militar de defesa, as indústrias navais de
recuperação, os grupos mercantis, os escritórios administrativos
governamentais e, naturalmente, toda a população subsidiária que
um centro dessa natureza sempre atrai (Romero, 2004:81).
As cidades-portos devido a sua localização e prosperidade alcançada
desenvolveram uma infra-estrutura diferenciada: edificação de castelos ou
fortalezas e muralhas de proteção contra os ataques de piratas que viam
nessas cidades fontes de riqueza.
Cidades-portos como Buenos Aires, La Habana, Valparaíso ou Rio de
Janeiro, atingiram uma intensa vida cosmopolita graças ao desenvolvimento
comercial que beneficiou tanto o mercado interno quanto o mercado externo de
seus respectivos países. A intensa atividade portuária e marítima dessas
cidades propiciou também um processo modernizador mais intenso e rápido se
comparadas com outras cidades latino-americanas. Contudo, o povoamento
dos centros urbanos, na maior parte das cidades na América Hispânica, foi um
processo lento, razão pela qual até meados do século XX a maior
concentração de habitantes estava na área rural e não na urbana, como afirma
Alan Gilbert (1997:43) em La ciudad latinoamericana:
Até pouco tempo atrás uma alta porcentagem de pessoas vivia no
campo. Somente a Argentina, o Chile, Cuba e o Uruguai tinham uma
maioria de população urbana em 1950 e, em 1960 menos da metade
dos latino-americanos viviam nas cidades. [Trad. da autora]
As cidades latino-americanas através dos tempos têm vivenciado
processos de desenvolvimento díspares a pesar de pertencer a um mesmo
continente e de compartilhar experiências históricas semelhantes.
110
5. Caracterização do povo chileno
Ao desprender-se América da Monarquia Espanhola, tem-se
encontrado semelhante o Império Romano, quando aquela enorme
massa caiu espalhada em meio do antigo mundo. Cada fragmento
formou então uma nação independente segundo sua situação ou
seus interesses; mas com a diferença de que aqueles membros
voltavam a restabelecer suas primeiras associações. Nós nem
sequer conservamos os vestígios do que foi noutro tempo, não
somos europeus, nem indianos, mas uma espécie média entre os
aborígens e os espanhóis. Americanos por nascimento e europeus
por direito, encontramo-nos no conflito de disputar aos naturais os
títulos de posse e de nos manter no país que nos viu nascer, contra
a oposição dos invasores, deste jeito, nosso caso é o mais
extraordinário e complicado [...]
Discurso de Angostura, 1819.
Simón Bolivar*.
Simón Bolívar no discurso de Angostura21 proferido em 15 de fevereiro
de 1819 e publicado no Correo del Orinoco22, fez pública suas inquietações e
as dos povos americanos que passavam pelo processo de luta pela
independência: Somos índios ou europeus? Que povos eram aqueles que se
libertavam?
De acordo com Bolivar o povo americano não é nem europeu nem índio,
senão uma nova cultura, resultado da união das duas anteriores: “[...] não
somos europeus, nem indianos, mas uma espécie média entre os aborígens e
os espanhóis”. Mistura difícil de definir, já que os europeus que chegaram à
América eram também o resultado da miscigenação com outros povos como
enfatizou o libertador da América em seu discurso:
BOLIVAR (1819).
Capital da província de Guyana, Venezuela.
22
O Correo del Orinoco foi um periódico criado por Simón Bolivar para defender a causa da
independência, circulou na Venezuela durante a Guerra da independência. O Discurso de
Angostura foi publicado nos números 19, 20, 21 y 22 del 20 de fevereiro ao 13 de março de
1819.
*
21
111
[...] Tenhamos presente que nosso povo não é o europeu, nem o
americano do norte, mas um composto da África e da América, que
uma emanação da Europa, posto que até a Espanha, deixa de ser
Europa por seu sangue africano, por suas instituições e por seu
caráter. É impossível afirmar com propriedade a que família humana
nós pertencemos. A maior parte do indígena tem-se aniquilado, o
europeu é uma mistura do americano com o africano, e esse a
mescla do índio com o europeu. Nascidos todos de seio de uma
mesma mãe, nossos pais, diferentes na origem e no sangue, são
estrangeiros, e todos deferem visivelmente na epiderme [...] [Trad. da
autora].
Após trezentos anos de domínio europeu (1500-1800), os povos que
começaram a conquistar suas independências ficaram perplexos ao se deparar
com a pergunta para a qual não encontravam uma resposta conclusiva: Quem
somos?
Em busca de uma resposta que defina o povo americano, o sociólogo,
antropólogo e etnólogo brasileiro Darcy Ribeiro (2007:77), em seu estudo As
Américas e a civilização (1969), parte do raciocínio bolivariano e postula o
seguinte:
Diante de milhões de indígenas e de outros tantos milhões de negros,
novamente se transfigurou [o europeu], mais se amorenando e mais
se aculturando, e desse modo, enriquecendo seu patrimônio biológico
e cultural, mas resistindo à desintegração para impor sua língua e seu
perfil cultural básico às novas etnias que faria nascer.
Para Darcy Ribeiro, os latino-americanos são hoje resultado das
múltiplas culturas concentradas na figura do europeu que somadas à cultura
própria constituem um povo que se configurou sob a forte imposição de uma
civilização que resitindo à sua própria desintegração quis perpetuar-se pela
força.
No esforço de compreender a realidade americana Ribeiro faz uma
extensa e intensa análise antropológica sobre o período de formação das
112
etnias nacionais analisando cuidadosamente desde suas origens na Europa até
o produto miscigenado da colonização das Américas. Para tal emprendimento
Ribeiro apresentou três grandes matrizes para a formação étnica e cultural da
América Latina, a saber: os povos-testemunho, os povos novos, os povos
transplantados e os povos emergentes.
De acordo com o antropólogo brasileiro os povos-testemunho ou indoamericanos, estão constituídos por grupos humanos que mantêm a herança
pré-colombiana dos astecas, maias e incas (sul do México, Guatemala,
Equador, Peru e Bolívia). Civilizações que resistiram ao impacto invasor
permanecendo num estado de subjugação que resultou numa forte
europeização cultural. Já os povos-testemunho, nas palavras de Ribeiro
(2007:79), são:
[...] resultantes modernos da ação traumatizadora daquela expansão
[européia] e de seus esforços de reconstituição étnica como
sociedades
nacionais
modernas.
Reintegradas
em
sua
independência, não voltaram a ser o que eram, porque se haviam
transfigurado profundamente [...]
Os povos novos ou neo-americanos nos que se incluem habitantes da
Venezuela, da Colômbia, das Guianas, do Brasil, do Chile, da América Central,
do Caribe e do Paraguai, constituem um grupo formado por matrizes culturais,
raciais e lingüísticas muito diferentes entre si. Foram estruturados sob a
escravatura e a geração de produtos tropicais ou para o mercado mineiro
visando somente o lucro para a metrópole. Esse grupo está representado
“pelos povos americanos plasmados nos últimos séculos como subproduto da
expansão européia pela fusão de matrizes indígenas, negras e européias”
(RIBEIRO, 2007:78).
113
Por sua vez, os povos transplantados ou euro-americanos são aqueles
nos que predomina a incorporação de elementos europeios cosmopolitas sobre
os originários, através das migrações transcontinentais (Uruguai, Argentina na
América do sul, Canadá e os Estados Unidos na América do Norte) que
submergiram os anteriores núcleos indígenas e mestiços. A caracterização de
Darcy Ribeiro (2007:85) para este grupo foi a seguinte:
[...] surgiram como colônias de povoamento dedicadas a atividades
granjeiras, artesanais e de pequeno comércio. Todos eles
enfrentaram longos períodos de penúria enquanto se ocupavam em
implantar bases sobre o deserto [...] Não puderam ter universidades,
nem templos, nem palácios suntuosos; mas alfabetizaram toda sua
população [...].
Finalmente, a denominação povos emergentes faz referência às nações
novas da África e da Ásia que ascendem da condição tribal à nacional,
categoria, que conforme Ribeiro, não se deu na América.
Segundo a caracterização anterior, os chilenos pertencem ao grupo dos
povos neo-americanos que resultaram dos denominados “processos de
sucessão ecológica” apontados por Ribeiro no estudo América Latina: a pátria
grande (1986). No entender do autor podem-se identificar três fases prévias à
formação desses povos novos. Primeiramente a população indígena originária
da América teria sido substituída no decorrer da dominação colonial pelo
contingente branco, negro e mestiço. Num segundo momento a economia
original comunitária teria dado lugar a “uma economia traslocada de
comunidades famélicas que produzem eficientissimamente o que não comem,
nem
usam,
para
(RIBEIRO,1986:90).
enriquecer
A
terceira
seus
etapa
amos
ibéricos
aconteceu
após
ou
o
crioulos”
período
de
independência quando o molde colonial se fragmentou dividindo-se em
114
nacionalidades diferentes. Ribeiro (1986:90) explica o resultado final desse
processo da seguinte maneira:
Os crioulos mais abonados que sempre se quiseram identificar, em
vão, com os metropolitanos ibéricos, de repente se aperceberam que
eram outra coisa, talvez até coisa melhor. Rapidamente se
diferenciaram, assumindo novas identidades étnicas, orgulhosos
delas. Uns passaram a ser e a chamar-se brasileiros (cortadores de
pau-tinta), outros argentinos (gente prateada), cubanos (das cubas de
açúcar), outros ainda quiseram ser, elegantemente equatorianos
(pelo paralelo solar); quando não onomasticamente, bolivianos (de
Bolívar); colombianos (de Colombo); mas todos americanos (de
Vespucio, o usurpador), e neolatinos.
O conjunto dos povos novos, dentre os quais se inclui o Chile, no desejo
de se impor e de mostrar suas diferenças com os outros povos irmãos
iniciaram um conflito que se extende até os dias de hoje, mas sem deixar de
sentir-se latino-americanos.
5.1 Os chilenos: um povo novo
España entró hasta el Sur del Mundo. Agobiados
Exploraron la nieve los altos españoles.
El Bío-Bío, grave río,
Le dijo a España:”Detente”.
El bosque de maitenes
cuyos hilos verdes cuelgan como temblor de lluvia
dijo a España: “No sigas". El alerce,
titán de las fronteras silenciosas,
dijo en trueno su palabra.
Pero hasta el fondo de la patria mía,
puno y puñal, el invasor llegaba [...]
Canto Genral, 1950*.
O primeiro europeu a pisar, por acaso, em terra chilena foi Fernão de
Magalhães, navegador português que a serviço da coroa espanhola explorava
os mares do sul à procura de uma passagem que, de acordo com Américo
Vespucio, levaria às Índias. Falava-se de “uma passagem no sul que permitia
*
NERUDA (1999) p.485.
115
chegar ‘até a outra parte do mundo’ sem virar o Cabo de Buena Esperanza”
(SUBERCASEAUX, 2005:39) [Trad. da autora]. A passagem tão procurada foi
encontrada pelo navegador português em 22 de novembro de 1520 e foi
batizada com o nome de seu descobridor, Estrecho de Magallanes.
Em sua passagem pelo Estreito do extremo sul do continente
americano, Magalhães encontrou terras ignoradas que, apesar do clima frio e
da localização nos confins do mundo, estavam habitadas. Devido às grandes
pegadas deixadas pelos indígenas locais, o navegador português batizou essa
região com o nome de Patagonia:
Por causa de sua estatura, aumentada por suas longas túnicas de
couro de guanaco e suas cabeleiras despenteadas, assim como as
grandes pegadas que deixavam seus pés calçados com rústicas
sandálias, foram chamados de patagones (FRÍAS VALENZUELA,
2000:7). [Trad. da autora]
Como o objetivo era chegar à terra das especiarias, Magalhães seguiu
caminho. Na travessia, em direção ao sul do Estreito, os navegadores
observaram uma ilha com grande quantidade de fogueiras, e deram-lhe o nome
de Tierra del Fuego. Ao consumar a passagem do Estreito, os exploradores se
depararam com um oceano imenso que chamaram de Pacífico. Sem querer,
Magallanes havia chegado ao território que mais tarde seria Chile.
Somente quinze anos depois, em 1535, duas expedições tentaram a
conquista do Valle de Chile. A primeira, liderada pelo espanhol Diego de
116
Almagro, fracassou. Almagro e seus homens alcançaram o território chileno
descendo pela cordilheira dos Andes onde encontraram “[...] vales fecundos e
amplos, aptos para estabelecer-se em trabalhos agrícolas e levar uma vida
tranqüila”23 (Encina & Castedo, 2004:109), contrariando a expectativa dos
exploradores que esperavam encontrar grandes quantidades de ouro.
“Descubrimiento de Chile por Diego de Almagro”24
Pedro Subercaseaux
Salón de Honor do antigo Congreso Nacional de Chile
23
Os textos de ENCINA&CASTEDO e de BENAVIDEZ, citados neste capítulo, foram
traduzidos pela autora desta tese.
24
Disponível em: www.redchilena.com/Pintura/PedroSubercaseaux
117
Os espanhóis não contavam com a severa travessia que teriam que
enfrentar na cordilheira dos Andes, fato lembrado por Neruda no poema “La
tierra combatiente” (NERUDA, 1999:467), versos que cantam à força da
natureza que caiu sobre a comitiva de Almagro impedindo-os de continuar a
profanação da terra chilena:
Primero resistió la tierra.
La nieve araucana quemó
como una hoguera la blacura
y el paso de los invasores.
Caían de frío los dedos,
las manos, los pies de Almagro
y las garras que devoraron
y sepultaron monarquías
eran en la nieve un punto
de carne helada, eran silencio
[..]
Y la muerte del Sur desgranó
el galope de los Almagros,
hasta que volvió su caballo
hacia el Perú donde esperaba
el descubridor rechazado,
en el camino, con un hacha.
Os espanhóis que conseguiram atravessar a cordilheira tiveram que
enfrentar a resistência do povo araucano25 com o qual se confrontaram numa
árdua luta. Foi assim, que os exploradores “Intimidados pela ferocidade de
seus novos inimigos e pelas penalidades de uma expedição empreendida em
pleno inverno [...] não tardaram em convencer Almagro da necessidade de
voltar rapidamente” (Encina&Castedo, 2004:21), deixando definitivamente o
território chileno em 1536.
O termo araucano, denominação dada pelos espanhóis aos picunches, vem do vocábulo
auca, voz quíchua que quer dizer inimigo. In: MILLAR (1972) p. 49.
25
118
Para Neruda a derrota da expedição de Almagro foi a ação resultante da
somatória de duas forças: a da terra e a do homem, unidas para proteger a
pátria invadida (NERUDA, 1999:469):
[…]
Patria, nave de nieve,
follaje endurecido:
allí naciste, cuando el hombre tuyo
pidió a la tierra su estandarte
y cuando tierra y aire y piedra y lluvia,
hoja , raíz, perfume, aullido,
cubrieron como un manto al hijo,
lo amaron y lo defendieron.
Así nació la patria unánime:
la unidad antes del combate.
A segunda tentativa de conquista do território chileno foi liderada por
Pedro de Valdivia, militar espanhol que, em 1540, ao comando de duzentos
espanhóis e de um numeroso exército peruano, decidiu ingressar no território
chileno e fundou vários assentamentos. Primeiramente, Valdivia fundou o
centro urbano do Reino de Chile, Santiago de Nueva Extremadura, em 12 de
fevereiro de 1541. Posteriormente, em 1550, Valdivia inicia uma expedição ao
sul do Chile confrontando-se com os indígenas mapuches, fato que originaria a
denominada Guerra de Arauco, enfrentamento bélico que se estenderia por
três séculos. Somente em 1641 foi estabelecido um limite entre o governo
colonial e as tribos indígenas às margens do rio Bío-bío, região que passaria a
ser conhecida como La Frontera. Apesar da dificuldade imposta pelo grupo
araucano, Valdivia conseguiu fundar, nesse território austral, as cidades de
Concepción em 1550, La Imperial, Valdivia e Villarrica em 1552, e Arauco em
1553.
119
“Fundación de Santiago”26
Óleo de Pedro Lira, 1898
As imagens emanadas da epopéia nerudiana traduzem a força
destruidora com que o conquistador voltou para dilacerar o território austral
(NERUDA, 1999:470):
Pero volvieron.
(Pedro se llamaba)
Valdivia, el capitán intruso,
cortó mi tierra con la espada
entre ladrones: “Esto es tuyo,
esto es tuyo, Valdés, Montero
esto es tuyo, Inés, este sitio
es el cabildo”.
[...]
Entonces Valdivia, el verdugo,
atacó a fuego y a muerte,
así empezó la sangre,
la sangre de tres siglos, la sangre océano,
la sangre atmósfera que cubrió mi tierra
y el tiempo inmenso, como ninguna guerra.
26
Disponível em: www.igm.cl
120
Os versos nerudianos, em tom de protesto, apresentam um sujeito lírico
que denuncia a crueldade do invasor movido pela ganância de dominação da
terra americana.
5.2 Agua de temu: um território de pioneiros
Temuco, corazón de agua,
patrimonio
del digital: antaño
tu casa arbórea
fueron cuna y campana
de mi canto
y fortaleza
de mi soledad.
Neruda, 1969*
Á chegada dos espanhóis ao Chile, as populações indígenas que
falavam a língua mapuche se distribuíam geograficamente da seguinte
maneira: “os picunches, entre o Aconcagua e o el Bío-bío; os mapuches, entre
o Bío-bío e o Toltén, e os huilliches, entre o Toltén e a região de Chiloé”
(Encina&Castedo, 2004:14). Dos três grupos indígenas citados, os picunches
ou araucanos, que constituíam o grupo mais numeroso e mais vigoroso,
enfrentaram ferozmente os espanhóis escapando do destino trágico das outras
duas agrupações indígenas, as quais sucumbiram ao domínio espanhol.
Como
conseqüência
da
longa
resistência
indígena
nasceu
a
denominada região de La Frontera: faixa de terra localizada entre os rios
Bío-bío e Toltén, entre a VIII e a IX região do Chile. Este território foi chamado
*
NERUDA (1993b) p.344.
121
la Frontera por ser a última linha de defesa da Capitanía General de Chile27 nas
terras do povo Mapuche28.
Em fins do século XIX surgiu uma pequena cidade que foi batizada
como Temuco, capital da IX região da Araucanía. A nova cidade era um
conjunto de casas de madeira e ruas de barro que ficavam a maior parte do
ano sob as incessantes chuvas austrais. Constituíam a paisagem de Temuco
grandes florestas, vulcões, rios e mares. Eram freqüentes as inundações, os
tremores e os incêndios que devastavam a nova cidade, mas num piscar de
olhos surgiam novas casas de madeira fresca e cheirosa. Temuco, em idioma
Mapuche (mapudungun), quer dizer agua de temu. O temu é uma planta
medicinal usada pelos nativos para curar suas doenças. Esta cidade foi
fundada em 24 de fevereiro de 1881 como cidade-fortaleza:
Nascida como conseqüência de uma tarefa militar, Temuco teve em
seus inícios as características de um acampamento e um ano após
seu nascimento, já se insinuaram as ruas que hoje configuvam o
agitado centro da capital regional. O variado e forte grupo de homens
e mulheres que teve a tarefa de levantar essa cidade, nunca
imaginou o vertiginoso crescimento de Temuco, o que já era possível
visualizar nos primeiros anos (In: http://es.wikipedia.org/wiki/Temuco).
[Trad. da autora]
A população que habitava a cidade de Temuco, nas primeiras décadas
do século XX, estava constituída na sua maioria por colonos e comunidades
indígenas. Neruda (2000:12) descreve sua cidade com as seguintes palavras:
27
Capitanía General de Chile também conhecido como El Reino de Chile, foi um território
pertencente ao Império Espanhol entre 1541 e 1818, ano em que obteve sua independência.
Sua capital era a cidade de Santiago de Nueva Extremadura hoje Santiago do Chile.
28
Com o nome Mapuche se denominam as agrupações indígenas que habitavam o território
chileno à chegada dos européus. Estes grupos se localizavam entre o Aconcagua e a região de
Chiloé, ocupando a maior parte do território chileno.
122
Temuco es una ciudad pionera, de esas ciudades sin pasado, pero
con ferreterías. Como los indios no saben leer, las ferreterías
ostentan sus notables emblemas en las calles: un inmenso serrucho,
una olla gigantesca, un candado ciclópeo, una cuchara antártica.
Más allá las zapaterías, una bota colosal […] Al empuje de los
conquistadores españoles, después de trescientos años de lucha, los
araucanos se replegaron hacia esas regiones frías […] La naturaleza
allí me daba una especie de embriaguez. Me atraían los pájaros, los
escarabajos, los huevos de perdiz.
Temuco é a localidade onde se encontra o coração do grupo étnico
chileno: os araucanos, guerreiros, que ao se relacionarem com os espanhóis
deram origem a um novo povo, como enfatizado pelo pesquisador e professor
Darcy Ribeiro (2007:334):
[...] um Povo-Novo, fruto da mestiçagem do espanhol com os
indígenas. Sua matriz é a índia araucana, apresada e prenhada pelo
espanhol. Os mestiços originados destes cruzamentos, absorvendo
por sua vez, mais sangue indígena pelo casamento mestiçoindígena, é que plasmaram o patrimônio genético fundamental do
povo chileno. [...].
Conforme Ribeiro a resistência do povo araucano à dominação européia
foi a mais persistente e violenta das acontecidadas na América, uma atuação
bárbara tanto por parte dos indígenas quanto dos espanhóis.
Hoje a cidade de Temuco é um importante centro administrativo,
comercial, universitário e cultural. Uma das características deste território é a
forte presença da cultura mapuche, estima-se que vinte e cinco por cento da
população descende desse povo indígena. Há também nessa região uma
numerosa colônia de imigrantes alemães.
A cidade de Temuco é considerada atualmente uma das cidades
chilenas mais importantes e progressistas. Sua moderna infra-estrutura com
interessante arquitetura contemporânea e grandes centros comerciais a
123
definem como a região mais importante do setor centro-sul, que com o tempo
tem-se transformado numa cidade moderna.
Fatos importantes ocorridos nessa cidade são significativos: a chegada
da primeira Linha de Telégrafos em 1866; a primeira Locomotiva em 1875; a
inauguração do primeiro hospital em 22 de novembro de 1885; o primeiro jornal
Iris em 17 de setembro de 1865, que foi muito difundido, mas como poucas
pessoas sabiam ler, sua circulação acabou em 28 de dezembro de 1872. No
início de 1894 surgem dois jornais, El Comercio e El Liberal, posteriormente é
criado o jornal La Prensa.
Por fim, cabe destacar que em Temuco se encontra o Liceu em que
Neruda cursou todo o Ensino Fundamental e Médio, atualmente chamado
Liceo Pablo Neruda.
5.3 A conquista do mítico Valle de Chile
Nuestro territorio es una espada de piedra y nieve abandonado en la
costa más lejana del planeta. Los chilenos hemos sentido, no el
sonido del aire en las palmeras, ni hemos oído caer las frutas
pesadas y maduras en la siesta del trópico; hemos vivido
conquistando nuestra propia extensión, limpiando la costa
endurecida que nos tocó habitar, y levantando en nuestras manos el
fulgor de nuestra dura patria.
Discurso proferido no Anfiteatro Bolívar
Pablo Neruda, 1941∗.
A cidade Santiago del Nuevo Extremo foi fundada em 12 de fevereiro de
1541 no vale do rio Mapocho aos pés do Cerro Santa Lucía: pequeno morro
localizado no coração da nova cidade. Os povos aborígines chamavam o morro
∗
Tierra Nueva, nº 9-10, México D.F. mayo-agosto de 1941. In: NERUDA (2001) p. 472.
124
de Huelén, que em mapudungún significa dor ou tristeza, seu nome atual
provem do dia em que Pedro de Valdivia se apoderou do morro, 13 de
dezembro, dia de Santa Luzia. A cidade recebeu o nome Santiago del Nuevo
Extremo em homenagem ao apóstolo Santiago, padroeiro da Espanha, e à
região de Extremadura, terra de Pedro de Valdivia.
O traçado que a cidade de Santiago apresenta hoje foi realizado pelo
alarife Pedro de Gamboa quem desenhou a planta da futura cidade em
quarteirões e ruas traçadas por cordel. O alarife designou o quarteirão do
centro para a Plaza de Armas e destinou lugares para a casa do governador e
para a igreja. Distribuiu também os solares entre seu pessoal e deu inicio à
edificação.
Cumpridos os primeiros dez anos de sua fundação o aspecto de
Santiago não configurava ainda uma cidade:
A urbe era um pouco maior que a Praça de Armas. A praça era um
terreno quadrado, cortado por um canal. No lado norte estavam as
casas do rei, prédio de adobe e palha, com o Cabildo, a fundição
real, a tesouraria e o cárcere (ENCINA&CASTEDO,2004:37).
A fundação de Santiago foi o primeiro fato importante no processo de
colonização do Chile, já que foi o local de onde saíram as expedições que
iniciaram o reconhecimento e ocupação de novos territórios.
125
Plano da fundação de Santiago del Nuevo Extremo, 154129
Arquivo Fotográfico da Biblioteca Nacional de Chile
Ao longo de sua existência, Santiago tem sido destruída e reconstruída
várias vezes: a seis meses de sua fundação foi arrasada pelos mapuches e os
terremotos de 1647 e de 1730 somente deixaram em pé um par de prédios.
Foram
estes
desastrosos
acontecimentos
que,
em
conjunto
com
a
consolidação da cidade como capital do país, contribuíram para sua
remodelação. A partir do período da Colônia (1600) até nossos dias, os
governantes têm-se preocupado em realizar obras urbanas de importância
como: A Casa Colorada (1769), o Puente de Calicanto (1780), a Casa de la
Moneda (1805), a Alameda de Las Delicias (1820), o Cementerio General, a
transformação do Cerro Santa Lucía num passeio (1872), o prédio do
Congreso Nacional (1875) e a canalização do rio Mapocho, as quais têm
29
Disponível em: www.memoriachilena.cl
126
contribuído para transformar Santiago numa cidade com um rico passado e um
futuro promissor.
Santiago do Chile, a maior urbe do país, formou-se a partir da expansão
dos diferentes bairros satélites que antigamente eram núcleos periféricos, os
quais pouco a pouco foram expandindo-se e configurando a grande Santiago.
Dessa maneira, esta metrópole se converteu no centro nevrálgico do país,
concentrando a maior atividade econômica, administrativa, cultural, comercial,
industrial e política do Chile.
5.4 Valle del Paraíso: um assentamento à beira do Pacífico
A história do porto de Valparaíso começou em 1536, com a chegada
dos primeiros europeus ao mando de Juan de Saavedra, capitão espanhol
auxiliar de Diego de Almagro. À bordo da nave Santiaguillo o capitão Saavedra
atracou na enseada de Quintil. Foi esse marinheiro espanhol quem batizou o
porto chileno com o nome de “Valle del Paraíso ou Valparaíso” (Nuño, 2003:
119). Os primeiros habitantes de Quintil, que significa paus queimados, eram
indígenas changos30. No ano de 1544, Pedro de Valdivia proclamou Valparaíso
30
O termo Chango aparece documentado por primeira vez em 1659, segundo alguns cronistas
e viajantes do século XVII. Com esse nome são denominadas as sociedades pescadoras do
extremo norte do Chile, (Bittman, 1977-1984; Hidalgo, 1981). A categoria de Chango com o
passar do tempo foi compreendida num sentido étnico, geo-espacial e produtivo.
127
porto oficial do Reino de Chile e principal porto de abastecimento.
Curiosamente, esta cidade-porto que se transformou no pólo comercial mais
importante do país nunca foi fundada.
Grande parte dos assentamentos pré-hispânicos estabeleceram-se no
interior do território americano, já os recursos marítimos foram foco de
interesse
de
pequenas
colônias
de
pescadores
aborígenes
que
se
estabeleceram ao longo do litoral chileno. Esta primeira etapa do povoamento
litorâneo chileno não constituiu uma ocupação significativa posto que “Os
grupos litorâneos não construíram aldeias nem vivendas definitivas limitaramse a levantar estruturas com ossos de baleias e cachalotes, que costumavam
revestir com peles de lobo marinho” (BENAVIDES,1988:15).
A visão que se tem ao observar a cidade de Valparaíso desde o mar é
um conjunto de pitorescas construções superpostas umas às outras, moradas
incrustradas nos morros sobre um litoral qua apresenta a forma de ferradura, e
configurando um verdadeiro anfiteatro defronte ao mar.
A cidade de Valparaíso constitui uma exceção no contexto dos portos. É
uma cidade que cresceu muito rapidamente e sem planejamento pelo que não
apresenta o rigor geométrico de tabuleiro em seu desenho espacial. Acreditase, de acordo com Benavides (1988:59), que a falta de planejamento urbano se
deve a “sua dinâmica de crescimento, que não podia se deter para fazer uma
ordem urbana general” ou à “incapacidade das possibilidades do desenho
urbano da época [...]”.
128
Cidade e porto de Valparaíso31
Plano realizado pelo Tenente Coronel D. Carlos Wood em 1854.
Nos primeiros meses do ano de 1802 Valpararaíso obteve seu Brasão
de Armas e o título de “A muito leal e ilustre cidade de San Antonio de Puerto
Claro” (BENAVIDES, 1988:26), nomeação indicada pela Coroa Espanhola.
Contudo, os assentamentos litorâneos somente receberam um respaldo
institucional a partir da Independência, em 1810, diferente do povoamento das
zonas interiores do território chileno que vinham crescendo rapidamente a partir
da época da ocupação espanhola, constituindo: ”[...] um emaranhado de
cidades, casebres e fazendas” (BENAVIDES, 1988:26).
Em 1817 o porto de Valparaíso recebeu um grande número de navios
estrangeiros, houve maior intercâmbio comercial internacional e uma
significativa mudança no ritmo de vida de seus habitantes, até então
acostumados à parsimônia colonial. Em poucos meses a populacão portuária
se viu inserida no agitado dia-a-dia do embarque e desembarque de
31
BENAVIDES (1988) p.61
129
mercadorias. A intensificação do movimento comercial não trouxe somente
mudanças no ritmo de vida, trouxe também significativas transformações na
estrutura urbana da cidade.
Entre os anos de 1832 e 1833 foi edificado o prédio da Aduana,
destinado às transações alfandegárias. Era uma construção de estilo colonial
com um grande terreno em sua frente, a denominada Plaza de la Intendencia.
Depois do terremoto de 1906 se construiu no mesmo terreno do prédio
da alfândega, um edifício de estilo neoclássico que se transformou em bem
público da Intendência e residencia presidêncial. A antiga Plaza de la Aduana
passou a chamar-se Plaza Sotomayor, nome que se mantém até hoje.
Plaza de la Intendencia (1900)
32
28
Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso.
130
Até 1848 existia uma única rua entre a praia e os morros de Valparaíso.
Nesse ano se construiu a praça municipal Francisco de Echaurren, nome de
um dos mais importantes intendentes de Valparaíso. Nesse mesmo ano foi
construída, com pranchas de madeira, a chamada rua de La Planchada, atual
rua Teniente Serrano Montaner, onde se desenvolveu o centro comercial mais
importante de Valparaíso. Para a implementação das modificações citadas foi
necessário cavar os morros e remover a terra para abrir passagem e dessa
maneira nivelar a cidade e criar o centro urbano ou plan, como é chamado até
hoje. Escavações, nivelamentos e construções ocuparam o setor que
compreendia a beira do mar frente à primitiva enseada natural da baía, surgia
assim “[...] em metade do século XIX o grande espaço portuário de Valparaíso”
(BENAVIDES, 1988:60). Somente nas primeiras décadas do século XX, após
cem anos de governo independente, o Chile assegurou a construção orgânica
de seu território marítimo, dando início à etapa fundacional das cidades-portos,
da mesma forma que o século XIX o foi para as cidades do interior.
Plaza Francisco Echaurren (1900)33
33
Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso.
131
Entre os anos 1810 e 1854 a população de Valparaíso aumentou de
5.000 para 55.000 pessoas, transformando-a numa cidade portuária, ainda que
“[...] sem instalações técnicas adequadas, com embarcadouros e cais
insuficientes, estava bem provida de depósitos e de armazéns privados
regulamentados, para as mercadorias em trânsito” (BENAVIDES, 1988:26),
contudo Valparaíso era uma cidade cosmopolita com mais de 35.000
residentes estrangeiros.
Há que se destacar também a presença decisiva das ferrovias no
crescimento das cidades-porto no que se refere a sua ocupação e povoamento
litorâneo, além de sua influência urbanística e arquitetônica, como consta no
estudo Ciudades y arquitectura portuaria (1998):
Na segunda metade do
instalações ferroviárias
portuária, com belas
destruídas na maioria
(BENAVIDES, 1988:29).
século XIX, junto às instalações navais, as
formavam parte da elite da arquitetura
e originais estações, lamentavelmente
das vezes por causa dos terremotos
No século XIX, o porto de Valparaíso era a escala obrigatória para a
navegação entre os oceanos Pacífico e Atlântico, fato que possibilitou a
chegada de importantes grupos de imigrantes chilenos e estrangeiros,
principalmente europeus, que viram em Valparaíso a possibilidade de
progresso
e
de
uma
vida
tranqüila,
condições
que
permitiram
o
desenvolvimento harmônico da cidade.
132
Malecón de Valparaíso, março de 190034
Com um comércio atrativo, Valparaíso nutriu-se das principais correntes
culturais da época. Em poucos anos passou de uma humilde aldeia de
pescadores para uma importante cidade, cheia de casas comerciais, bancos,
importadoras, agências alfandegárias, hotéis, teatros e importantes bairros
residenciais.
Cabe destacar também a realização de obras significativas: a
construção ferroviária, a instalação de telégrafos, iluminação pública, água
potável e tratamento de esgoto. Foi a cidade onde se criou o jornal El Mercurio
de Valparaíso (1827), sendo atualmente o jornal de língua espanhola mais
antigo do mundo. Em 1848 criou-se a Bolsa de Valores de Valparaíso, a mais
antiga da América Latina, e fundou-se também o Cuerpo de Bomberos de
Valparaíso, o mais antigo do Chile.
34
Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso
133
Rua Esmeralda, centro de Valparaíso, março de 190035
A abertura do Canal de Panamá, em 1914, trouxe uma significativa
decadência.
Contudo,
Valparaíso
soube
crescer
em
outros
âmbitos,
destacando-se por sua peculiar arquitetura que inspira artistas de diversas
tendências Atualmente Valparaíso é sede de quatro universidades tradicionais.
De uma delas, Universidade Católica de Valparaíso, nasceu a UCV Televisão,
primeira emissora da televisão chilena e, no mês de julho do ano 2004, a
cidade de Valparaíso foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela
UNESCO.
35
Coleção fotográfica do jornal El Mercurio de Valparaíso.
134
3ª PARTE
O OLHAR E A MEMÓRIA NO PROCESSO IMAGÉTICO
NERUDIANO
“La morada siguiente”
[...]
La verdad tiene rostro:
de agua y madera son sus ojos,
de nieve son sus dientes:
sonrie al sol celeste y a la lluvia:
hay que buscarla:
el cuerpo de la tierra se desliza
entre un amanecer de infancia, lejos [...]
y entre ir y venir se va la vida
escondiendo los pies y la mirada.
Por eso hay que pararse, de repente,
oler la piedra, tocar la madera
atravesar la escarcha:
establecer por fin nuestra evidencia:
existir sin razones ni sentido
en esta desnudez de la mañana
que ya la tarde vestirá de negro.
Geografía Infructuosa (1972)*
*
NERUDA (1977) p.112-113.
135
1. A palavra poética e a imagem citadina em Neruda
A poesia pode nos fazer ver o mundo sob um novo aspecto, ou fazer
descobrir aspectos até então desconhecidos desse mundo; pode
chamar nossa atenção sobre os sentimentos sem nome e mais
profundos em que raramente penetramos.
T.S. Eliot*
O processo imagético na obra de Pablo Neruda se constrói através da
criação de imagens forjadas do resgate das experiências de vida e guardadas
na memória. Trata-se também de um questionamento existencial do poeta com
base no olhar crítico sobre o momento histórico e pessoal. Neste processo
criativo o mundo imagético de Neruda tem uma forte referência aos elementos
da natureza de Temuco, cenário cotidiano de sua infância e adolescência,
constituintes da paisagem que permaneceu em sua memória e se cristalizou
em sua obra como, na denominação de Saúl Yurkievich (1997:178), “viveiro de
suas associações”, conforme se destacada a seguir:
A natureza do sul do Chile se fixa indelevelmente na imaginação do
poeta para construir seu embasamento primordial; [...] viveiro de
suas associações, a orientadora e alimentadora de suas visões.
[Trad. da autora]
Se no poema as palavras abandonam seu sentido denotativo e lógico,
sugerindo elementos imaginários, então, pode-se afirmar que a essência da
imagem poética é conotativa. Logo, a imagem poética implica em riqueza e
multiplicidade, significados onde o poema cria sua própria lógica e revela uma
*
Elliot, T.S. In: Antônio, Severino (2002) p.31.
136
verdade estética, que se aproxima do real. Conforme observou Octavio Paz
(1996:38), “O poema não diz o que é e sim o que poderia ser”, já que a imagem
poética tem uma maneira própria de expressar pensamentos e de traduzir em
palavras o mundo sensível.
Portanto, para desvelar a mensagem poética deve-se estar receptivo à
multiplicidade de significados captados pelo olhar do poeta. A imagem que
resulta desse olhar não será a realidade propriamente dita, mas a
representação simbólica dessa realidade. De forma que, quando se fala de
uma poesia existencialista, como no caso da poesia nerudiana, o mundo
imagético do poeta carrega as marcas das vivências, experiências e
lembranças do autor. Nesse caso o poema abordará, por meio do sujeito lírico,
o mundo que o rodeia e expressará de modo simbólico como esse mundo é
visto poeticamente.
Neruda em sua obra estabelece relações entre imagens do cotidiano
rural, urbano e portuário. Essas relações revelam identidades regionais
pertencentes ao povo chileno das que o próprio Neruda participou
intensamente em diversos momentos de sua vida.
As imagens armazenadas na mente do indivíduo, ao longo de sua
existência, são responsáveis pela configuração da memória individual. Neruda,
ao se encontrar num espaço desconhecido – Santiago – projeta seu olhar para
o passado na procura de referenciais familiares, estabelecendo assim
conexões temporais, que explicam o presente. Desta interação temporal –
presente/passado
–
surgem
sentimentos
de
rejeição,
identificação
e
assimilação entre o sujeito lírico e os diferentes territórios por ele habitados,
que se manifestarão no mundo imagético do poema. Octavio Paz (2003:154)
137
sintetiza em poucas linhas essas constatações quando escreve: “A experiência
poética é revelação de nossa condição original. E essa criação se resume
sempre numa criação: a de nós mesmos”. [Trad. da autora]
Pode-se afirmar, então, que a revelação que flui do poema nerudiano é a
visão particular do observador-poeta que ao se transformar em re-criador do
real dará vida à imagem simbólica dessa realidade no momento em que o
sujeito lírico se revele ao leitor através da palavra. É oportuno neste momento
citar a pesquisadora Mariluci Guberman (2006:101) que faz referência à
construção da palavra poética e do mundo imagético nerudiano,
[...] Neruda é um mago da linguagem, utiliza-se dos vocábulos do
dicionário e lhes imprime outras cores: a linguagem simbólica
arrebata a linguagem referencial. Este processo se efetua devido à
atuação das imagens poéticas em suas composições: os elementos
da realidade adquirem um novo tom no fazer literário de Neruda.
A criação nerudiana pode ser entendida como uma poesia diáfana e
objetiva que a partir de poucas palavras tem a capacidade de aproximar
ambientes e situações através da condensação imagética. Em Neruda
encontramos um poeta, um leitor do mundo, com um olhar sensível, que capta
as pequenas grandes coisas do cotidiano e logra transformar em poesia as
coisas mais simples. Neruda, um poeta observador e meticuloso, cantou e
encantou com a sua linguagem simples: representou, refletiu, recriou o mundo
com a palavra, mas não leu apenas o mundo à sua volta, leu também dentro
dele, o mundo interior que existe em cada um de nós, e através de imagens
traduziu esse universo maravilhoso de lembranças guardadas na alma. Esses
dois mundos, o interior e o exterior, encontram-se na poesia nerudiana, fonte
138
das palavras que brotam do poema configurando uma nova realidade. Neruda
(2000:71), sobre a palavra, ferramenta da sua obra, dizia:
[...] Amo tanto las palabras... Las inesperadas… Vocablos amados…
Brillan como piedras de colores, saltan como platinados peces, son
espuma, hilo, metal, rocío… Persigo algunas palabras… Son tan
hermosas que las quiero poner todas en mi poema….
De acordo com Volodia Teiltemboim, “Neruda tinha o critério do rei
Midas, convertia em oro o que tocava fazendo poesia dos temas prosaicos, os
temas indignos que não tinham direito de entrar na casa das musas, ele fazia
entrar tudo” (VERA, 2004) [Trad. da autora]. O poeta chileno não tinha limites
em seu fazer poético.
2. O Tempo: ponte entre a memória e o espaço habitado
Ayer es un árbol de largas ramazones, y a su sombra estoy tendido,
recordando.
De pronto contemplo largas caravanas de caminantes que, llegados
como yo a este sendero, con los ojos dormidos en el recuerdo, se
cantan canciones y recuerdan. Y algo me dice que han cambiado
para detenerse, que han hablado para callarse, que han abierto los
atónitos ojos ante la fiesta de las estrellas para cerrarlos y recordar…
Tendido en este nuevo camino, con los ávidos ojos florecidos de
lejanía, trato en vano de atajar el río del tiempo que tremola sobre
mis actitudes. Pero el agua que logro recoger queda aprisionada en
los ocultos estanques de mi corazón en que mañana habrán de
sumergirse mis viejas manos solitarias….
La lucha por el recuerdo
Pablo Neruda∗.
∗
NERUDA (2003) p.20.
139
Neste estudo serão abordados questionamentos relativos à influência do
tempo sobre o indivíduo nas diversas manifestações de seu ciclo vital. Abordarse-á o conceito de tempo como construção pessoal e coletiva. Portanto, os
questionamentos serão enunciados a partir do tempo vivenciado e do espaço
habitado, onde a construção temporal terá referência na experiência e nos
afetos inerentes ao homem.
Na obra de Pablo Neruda, aqui estudada, podem-se identificar duas
fases temporais. A primeira fase é caracterizada pela marcante integração
homem-natureza configurando o cotidiano do ‘tempo passado’, seu mundo
primigênio e harmônico. Já a segunda fase fica estabelecida no momento em
que deixa a província de Temuco para morar em Santiago e logo em
Valparaíso. Ao se afastar dos elementos que compunham seu espaço
primigênio, o jovem poeta perde sua unidade com o mundo e dentro de si
mesmo: “Tendido en este nuevo camino, con los ávidos ojos florecidos de
lejanía, trato en vano de atajar el río del tiempo que tremola sobre mis
actitudes”, palavras que revelam um esforço por parar o tempo presente e
recobrar o tempo passado, “Ayer es un árbol de largas ramazones, y a su
sombra estoy tendido, recordando”. Nessa segunda fase, a vida urbana
santiaguina, Neruda passa a viver em estado de alerta num mundo sem
referências. Experimenta também, vivências na cidade portuária de Valparaíso,
espaço que o faz voltar a sentir-se um pouco mais próximo do solo materno.
O binômio espaço-tempo em que se desenvolve a vida de cada
indivíduo é uma equação particular e intransferível, ainda que rodeado por uma
multidão, a vivência espaço-temporal é única a cada ser. A dimensão temporal
que opera a memória está intimamente relacionada com as etapas da vida do
140
indivíduo: infância, juventude, maturidade. Assim também, a memória se fixa
nos fatos significativos destas idades: mudanças de casa, de país, de cidade,
mortes, nascimentos, etc. Este tempo biográfico limitado pelos marcos das
experiências pessoais é mais rico em lembranças na primeira idade. Em
paralelo ao tempo biográfico atua o tempo cronológico ou social. Neste os
eventos se sucedem uns após os outros, sem repetição nem retorno, de
maneira que, na medida em que o tempo cronológico avança, o tempo
biográfico vai ficando mais pobre. De acordo com Ecléa Bosi (1994:415), “[...] a
infância é larga, quase sem margens“, logo vem o tempo da juventude que
proporciona ao indivíduo “uma riquíssima gama de marcas afetivas”, enquanto
que a idade madura “se transforma numa sucessão monótona de atividades,
empobrecendo o número de acontecimentos novos”.
Dessa maneira, a temporalidade pode ser abordada a partir de uma
perspectiva objetiva (tempo cronológico) ou de uma perspectiva subjetiva
(tempo da memória). Este último concede à dimensão temporal um caráter
pessoal, ou seja, uma construção embasada nas experiências e nos afetos de
cada indivíduo.
Considerando o caráter pessoal do tempo subjetivo, observa-se que ao
contrário do tempo cronológico, não poderá ser linear, pois estará sujeito às
experiências de vida, característica que dará ao tempo subjetivo um tom
intempestivo, revertendo, dessa forma, o tempo entendido como sucessão
horizontal de fatos. Um tempo reversível constatado nas palavras do próprio
Neruda ao questionar e ratificar sua constante volta às lembranças da infância
e adolescência vivenciadas na terra de nascimento,
141
[…] quiero expresar y abarcar movimiento, circunstancias, caminos
indefinibles, talvez lo inevitable que me hace volver sin cesar en mi
vida y en mi poesía hasta estas fronteras de sur lluvioso, a estos
grandes ríos natales, al generoso silencio de estas tierras y de estos
hombres (NERUDA, 2003:350).
ou quando escreve: “Mi vida es uma eterna peregrinación que siempre da
vueltas, que siempre retorna al bosque austral, a la selva perdida”
(NERUDA,2000:251). Desta ação circular de eterno retorno surge o que Alfredo
Bosi (1992:27) denomina tempo reversível:
[...] a reiteração dos movimentos, feita dentro do sujeito, faz com que
este perceba que o que foi pode voltar; com esta percepção e o
sentimento da simultaneidade que a memória produz, nasce a idéia
de tempo reversível.
Esse tempo reversível encontrado na lírica e na prosa memorialista de
Pablo Neruda oferece reflexões tão amplas sobre sua poesia e sua biografia
que se tornou imprescindível para a compreensão do seu mundo poético. Em
Memorial de Isla Negra (1964), por exemplo, o autor tece poemas sobre sua
vida e sua criação literária, uma autobiografia em verso que segue a veta
proustiana: uma busca pelo tempo perdido, um tempo que será reencontrado
na arte, um auto-retrato feito com palavras. Neruda recria através da memória
o universo de sua terra de nascimento impulsionado pela lembrança da
paisagem e da atmosfera provinciana que inspiraram seus poemas. Assim, a
visão da Araucanía é cristalizada no poema por um sujeito poético que rompe
os limites da fronteira espaço-temporal, um poder que só lhe pode ser
conferido pela memória.
A obra nerudiana construída a partir de um fio autobiográfico pode ser
considerada uma crônica de sua vida, recriação embasada na transmutação
142
continua de experiências de vida em substancia literária. Em Memorial de Isla
Negra o autor se reinventa afirmando sua identidade de forma implícita, uma
correspondência evidente entre autor e sujeito poético. Neste processo criativo
o autor direciona o espelho a si mesmo, de maneira a observar no seu reflexo
sua existência passada e presente, construindo o texto ao redor de um sujeito
introspectivo que contempla os fatos existenciais que serão desvelados através
da imagem e materializados na palavra.
Ao
entender
o
tempo
como
“uma
série
de
rupturas”
(BACHELARD,1988a:39) pode estabelecer-se que a escrita memorialista
nerudiana revela um tempo lacunar e descontinuo, apresenta um sujeito
fragmentado que se vai configurando através da soma dos signos da sua
memória que superpostos vão reconstruindo o passado a partir do presente.
De Memorial de Isla Negra selecionou-se o poema “El niño perdido”
(NERUDA, 2004:31-33) onde, através da evocação autobiográfica o autor
questiona o presente e as diferentes fases de sua vida, ou como ele mesmo
afirmou “... una vida hecha de todas las vidas: las vidas del poeta”
(NERUDA,2000:7). O poema apresenta um panorama do que foi sua vida até
os sessenta anos de idade, uma seqüência das diferentes encarnações ou
“máscaras” que assumiu para repetir, sempre, a felicidade de viver e criar:
La lenta infancia de donde
como un pasto largo
crece el puro pistilo,
la madera del hombre.
Quién fui? Qué fui? Qué fuimos?
[...]
La máscara del niño fue cambiando.
O poema apresenta um eu múltiplo “Quién fui? Qué fui? Qué fuimos?”,
uma memória que busca a identidade ou as identidades que existem dentro do
143
sujeito concebendo o homem como um ser plural. Neruda apresenta um
indivíduo polifacético através de uma memória individual que revela diversas
“máscaras” que o caracterizam num intento de apresentar-se de forma íntegra:
“La máscara del niño fue cambiando [...]”. Cada máscaras representa uma
idade ou etapa de vida, através delas o poeta apresenta a multiplicidade de eus
que foram configurando sua pessoa. O vate reconstroi sua vida na soma de
instantes, ou seja de ações isoladas e não de uma seqüência ininterrupta, logo
se pode afirmar que o homem é um ser composto de fragmentos, a partir dos
quais pode-se reconstroir a história de cada um.
Día a día las horas se amarraron,
pero tú ya no fuiste, vino el outro,
y el otro tú, y el otro hasta que fuiste,
hasta que te sacaste
del propio pasajero,
del tren, de los vagones de la vida,
de la sustitución del caminante.
Em “El niño perdido”, Neruda faz uma retrospectiva com o objetivo de
explicar o presente, cria uma imagem global a partir dos instantes que
configuraram sua existência, instantes que são interpretados à distancia dos
fatos com um olhar maduro que dará a essas vivência um tom renovado, já
que,
[...] a memória não tira o poeta do mundo atual, mas o aprofunda
mais enraizadamente nele; a recordação do que foi não é evasão
senão
uma maneira, mais rica, mais dramática, mais
essencialmente luminosa, de penetrar nas dimensões mais
profundas da atualidade. O passado se atualiza: se faz hoje, mas
sem abolir o hoje. (RODRÍGUEZ MONEGAL,1977:418). [Trad. da
autora]
Em Memorial Neruda realizou uma caminhada desde suas origens até o
seu presente, uma crónica atualizadora e revitalizadora do que tinha sido sua
passagem pela terra até esse momento.
144
.
3. As imagens primordiais e sua relação com o espaço citadino
Que tensão de infâncias deve estar de reserva no fundo do nosso
ser para que a imagem de um poeta nos faça reviver subitamente as
nossas lembranças, reimaginar nossas imagens a partir de palavras
bem reunidas! Porque a imagem de um poeta é uma imagem falada,
e não uma imagem que os nossos olhos vêem. Um traço de imagem
falada basta para nos fazer ler o poema como eco de um passado
dasaparecido.
Gaston Bachelard*.
A identificação das imagens primordiais nerudianas será realizada à luz
de Gilles Deleuze, que em sua obra Proust e os signos identificou quatro tipos
de signos: os mundanos, os amorosos, os materiais e os signos da arte. Neste
estudo serão abordados os signos materiais ou essenciais que remetem ao
mundo das impressões ou das qualidades visíveis. Estes signos, também
chamados de sensíveis, de acordo com Deleuze, uma vez experimentados
proporcionam uma estranha alegria.
Em Neruda podemos identificar elementos materiais que aparecem
reiteradas vezes nos seus escritos dedicados às cidades estudadas: madeira,
chuva, vento, terra, árvores, sinos, casa, raízes, rios, dentre outros. Elementos
relacionados com sua origem, arquétipos que o remetem ao espaço sulista de
sua infância e adolescência de Temuco, e que voltam a surgir no presente
urbano e portuário do poeta. A constante reincidência das imagens primordiais
na obra Pablo Neruda se deve, como explica Bachelard (1988b:119), a que
“Cada arquétipo é uma abertura para o mundo, um convite ao mundo [...] A
*
BACHELARD (1988b) p. 110.
145
água da criança, o fogo da criança, as árvores da criança, as flores primaveris
da criança [...]” permanecem vivos e sempre estão a reclamar um poema.
A obra nerudiana abordada neste estudo remete a três cidades chilenas:
Temuco, cidade rural que na época do poeta ainda estava em processo de
colonização; Santiago, capital de Chile em plena expansão urbana na segunda
década do século XX e Valparaíso, um dos portos mais importantes do Chile.
As relações estabelecidas entre o sujeito poético e os espaços mencionados
revelam uma identificação total com o território do sul, uma rejeição à capital e
uma aceitação imediata com a região portuária, resultando desta interação um
diálogo ou sua negação entre o espaço observado e o sujeito poético.
Serão objeto de reflexão as imagens que surgem das vivências diretas
do poeta ao habitar esses espaços, assim como suas experiências primigênias
resgatadas pela memória. O tempo histórico abordado abrange as primeiras
sete décadas do século XX. O questionamento sobre estes espaços será feito
a partir da análise da palavra e da imagem poética que revelará as
modificações e experiências do ser provinciano de Temuco nos novos
territórios por ele habitados, tendo sempre como referência a região sul para
com Santiago e Valparaíso.
3.1 Temuco: a paisagem primigênia
[...] se há algo que inevitavelmente se foi, há, entretanto, alguma
coisa que fica. O que fica das pegadas no chão da memória?
Fica o que significa [...] ou o que significa passa a ficar?
146
Guilles Deleuze∗.
Ao compreender o significado dos arquétipos segundo o raciocínio
desenvolvido por Gastón Bachelard (1988b:120) como,
[...] reservas de entusiasmo que nos ajudam a acreditar no mundo, a
amar o mundo, a criar o nosso mundo [...] O arquétipo está ali,
imutável, imóvel sob a memória, imóvel sob os sonhos. E, quando se
faz reviver, pelos sonhos, o poder do arquétipo da infância, todos os
grandes arquétipos das potências paternas, das potencias maternas
retomam a sua ação [...] Tudo o que acolhe a infância tem uma
virtude de origem. E os arquétipos permaneceram sempre como
origens de imagens poderosas.
e uma vez que o olhar retrospectivo é uma constante na obra de Pablo Neruda,
é possível interpretar, através da identificação de suas imagens primordiais ou
arquétipos, o mundo imagético manifestadao no canto às cidades que
configuram a tríade citadina aqui abordada – Temuco, Santiago, Valparaíso.
Em Neruda a rememoração pode ser compreendida como o desejo de
preservar as vivências que constituem a base de sua identidade, uma tentativa
de “encontrar o tempo perdido e fixá-lo para sempre, penetrando mais
profundamente na atualidade” (JOZEF, 1993:38). Chegar-se-á dessa maneira,
à dedução de Deleuze de que das experiências da vida somente “Fica o que
significa”, ou seja, os fatos e elementos que causaram uma impressão no
indivíduo. Em Neruda isto se constata através de uma escrita reincidente nos
motivos e paisagens primigênias, já que, como afirma Gaston Bachelard em A
poética do devaneio (1988b:119),
Nos nossos devaneios voltados para a infância, todos os arquétipos
que ligam o homem ao mundo, que estabelecem um acordo poético
∗
Guilles Delleze. In: BRANCO (1994) p.11-12.
147
entre o homem e o universo, todos esses arquétipos são, de certa
forma, revivificados.
Pode-se deduzir, então, que o “acordo poético” dos arquétipos é a força
de síntese que possui a poesia para expressar a existência humana.
Num primeiro estágio, o olhar retrospectivo acontece em Neruda como
mecanismo de defesa para amenizar o presente adverso na capital chilena,
como registrado no poema “Aromos rubios en los campos de Loncoche” de
Crepusculario (1977:46-47):
Yo soy una palabra de este paisaje muerto,
soy el corazón de este cielo vacío;
cuando voy por los campos, con el alma en el
viento,
mis venas continúan el rumor de los ríos.
A dónde vas ahora? — Sobre el cielo la greda
del crepúsculo, para los dedos de la noche.
No alumbrarán estrellas… A mis ojos se enredan
aromos rubios en los campos de Loncoche36.
Desses versos emerge a imagem de uma paisagem estática e sem vida
coroada por um céu sem estrelas, ambiente que faz com que o eu lírico volte
automaticamente à paisagem viva e cheia de movimento da região da
Araucanía, “cuando voy por los campos, con el alma en el / viento, / mis venas
continúan el rumor de los ríos”. O sujeito lírico experimenta através do olhar
retrospectivo a cor, o cheiro e a textura dos milenares “aromos37 rubios en los
campos de Loncoche”, uma maneira de respirar o passado, a melancolia de
uma infância habituada ao cheiro da chuva, dos bosques, enfim, da natureza.
36
Loncoche em mapuche significa “cabeça de homem importante”, é uma cidade do sul do
Chile localizada na região da Araucanía.
37
Árvore de galhos espinhosos e flores amarelas muito cheirosas, que podem chegar a medir
até dezessete metros de altura. In: LAROUSSE (1997) p.95.
148
Este mecanismo de defesa é explicado por Bachelard (1988b:97,112), da
seguinte maneira:
Nossa adesão à beleza primeira foi tão forte que, se o devaneio nos
transporta às nossas mais caras lembranças, o mundo atual parece
totalmente descolorido [...].
A Infância vê o Mundo ilustrado, o Mundo com suas cores primeiras,
suas cores verdadeiras. O grande outrora que revivemos ao sonhar
nossas lembranças de infância é o mundo da primeira vez. Todos os
verões de nossa infância testemunham o ‘eterno verão’.
Num segundo momento, o resgate da memória serve de referência para
explicar o sentimento de identificação e complementação que significou para
Neruda (2000:73) interagir com o espaço portuário de Valparaíso,
En el punto más desordenado de nuestra juventud nos metíamos de
pronto, siempre de madrugada, siempre sin haber dormido, siempre
sin un centavo en los bolsillos, en un vagón de tercera clase. Éramos
poetas o pintores de poco más o poco menos de veinte años,
provistos de una valiosa carga de locura irreflexiva que quería
emplearse, extenderse, estallar. La estrella de Valparaíso nos
llamaba con su pulso magnético.
Constata-se então, que em Neruda as vivências significativas da infância
e da adolescência constituem o “poço de seu ser”38, ou seja, o reservatório que
contém suas raízes identitárias, suas referências culturais e pessoais. Portanto,
é a identificação das imagens primordiais presentes nos textos citadinos o que
possibilitará a interpretação do mundo imagético resultante da rememoração.
Um dos signos materiais que surgem com freqüência nos versos
nerudianos revela-se na imagem da ferrovia, meio de transporte que sirviu de
nexo entre as diferentes cidades que o poeta percorreu nas primeiras décadas
38
Termo empregado por Bachelard para referir-se ao reservatório da memória que vai
registrando as experiências e os elementos da primeira idade. Estas lembranças ficam
armazenadas no fundo do ser prontas para ser resgatadas e revividas. In: BACHELARD
(1988b) p.110.
149
do século XX. Meio de transporte que desde o século XIX foi o símbolo do
progresso e da prosperidade que a revolução industrial trouxe ao mundo. No
Chile a ferrovia como idéia coletiva se desenvolveu historicamente como a
coluna vertebral da nação produto da industrialização. Este meio de transporte
teve grande importância tanto nas cidades quanto nas províncias, onde a
população se organizava ao redor de suas estações ferroviárias sem
diferenciar classes sociais. Na cidade as famílias privilegiadas viam na estação
um lugar de encontro e distração e as mães de proles numerosas levavam
seus filhos à estação para passear. Na província era um acontecimento a
chegada dos familiares vindos de Santiago, as despedidas depois de um verão
de férias no campo. Hoje ramais ferroviários sem uso constituem peças de
museu com seus trilhos enferrujados misturados à grama, são ruínas de um
passado de intensa atividade.
Em seu auge as linhas ferroviárias foram símbolos das viagens, época
em que o itinerário era tão importante quanto o destino, já que a prazerosa
viagem de trem permitia ao passageiro admirar através das janelas a sucessão
interminável de paisagens, como o confirma Neruda (2000b:39-40) ao relatar
sua primeira viagem de Temuco a Santiago:
Provisto de un baúl de hojalata, con el indispensable traje de poeta,
delgadísimo y afilado como un cuchillo, entré en la tercera clase del
tren nocturno que tardaba un día y una noche interminables en llegar
a santiago […] Entre tanto el tren pasaba, de los campos con robles
y araucarias y las casas de madera mojada, a los álamos del centro
de Chile, a las polvorientas construcciones de adobe. Muchas veces
hice aquel viaje de ida y vuelta entre la capital y la provincia, pero
siempre me sentí ahogar cuando salía de los grandes bosques, de la
madera maternal […].
150
Em seu relato o jovem poeta registra o significado afetivo do sul,
observa-se também a presença de alguns dos elementos que configuram seu
mundo primigênio: as árvores e a casa materna, ao tempo que declara a
dificuldade de deixar para trás seu universo de “campos con robles y
araucarias y las casas de madera mojada” e ter que penetrar nas “polvorientas
construcciones de adobe” da capital.
As ferrovias faziam parte da paisagem cotidiana do jovem Neftali desde
sua infância. Seu pai era ferroviário e dirigia um trem lastrero em Temuco, às
vezes Neftalí tinha a sorte de poder acompanhar seu pai nas viagens até os
povoados vizinhos, ocasiões em que o jovem poeta entrava em contato direto
com a natureza e aproveitava para fazer suas explorações: “La naturaleza allí
me daba una especie de embriaguez. Me atraían los pájaros, los escarabajos,
los huevos de perdiz” (NERUDA,2000:13), foi assim, que a natureza do sul do
Chile entrou para sempre na vida e obra de Pablo Neruda. O trem, que sempre
foi uma imagem significativa na infância de Neruda, se tornou também o elo
entre as cidades de Temuco, Santiago e Valparaíso.
Cabe destacar também que a casa ocupa na obra de Neruda um lugar
de destaque porque nela o poeta materializou as imagens que constituem sua
identidade primigênia. Se nos versos nerudianos os signos sensíveis que
configuram seu mundo primeiro são revelados pela palavra poética, em suas
casas essas imagens se materializam configurando uma poesia que se revela
nas formas e nos objetos amados. Dessa maneira, as casas nerudianas se
apresentam como espaços reveladores de formas caprichosas cujos cômodos
decorados com objetos de estimação são verdadeiros poemas geradores de
151
felicidade ao seu morador-reconstrutor. Conforme Gaston Bachelard (2003: 3435):
[...] existe para cada um de nós uma casa onírica, uma casa de
lembrança-sonho, perdida na sombra de um além do passado
verdadeiro [...] Habitar oniricamente a casa natal é mais que habitála pela lembrança; é viver na casa desaparecida tal como ali
sonhamos um dia.
Ao observar as moradas de Neruda percebe-se que a casa não é um
espaço imutável nem estático, pelo contrário, as propriedades adquiridas e
reconstruídas
pelo
poeta
permaneceram
em
constante
crescimento,
tranformação e aperfeiçoamento. O fato de que o poeta chileno nunca tenha
dado por terminadas suas casas, aprimorando-as eternamente, criando novas
habitações ou acrescentando detalhes caprichosos, reflete, talvez, a imagem
fixada em sua memória das casas temucanas. Construções sempre
incompletas e em constante transformação, cena lembrada por Neruda
(2000:15) em suas Memórias:
Las casas nuestras tenían, pues, algo de campamento. O de
empresas descubridoras. Al entrar se veían barrica, aperos,
monturas, y objetos indescriptibles.
Quedan siempre habitaciones sin terminar, escaleras inconclusas.
Se hablaba toda la vida de de continuar la construcción.
Da casa materna localizada no centro da cidade de Parral onde os pais
de Neruda viveram até seu nascimento ou do lar dos avós no sítio Belén onde
viveu até os dois anos de idade, nada ficou na memória do poeta chileno. A
descrição feita no texto supracitado corresponde à segunda morada de Neruda
localizada na rua Lautaro nº 146 a poucos metros da Estación de Ferrocarriles
de Temuco, e foi nessa morada onde escreveu seus primeiros poemas.
152
Foi o próprio Neruda que se encarregou de procurar os materiais para a
reconstrução de suas casas. Participou dos projetos arquitectônicos e foi uma
preocupação constante a seleção e aquisição de objetos para compor os
interiores de suas moradas.
No Chile Neruda adquiriu cinco propriedades: Michoacán, La chascona e
La Manquel, em Santiago; la casa de Isla Negra e La Sebastiana em
Valparaíso. Todas elas propriedades com construções simples ou sem acabar
que foram sendo reconstruídas pouco-a-pouco até tomar as formas e o estilo
que as caracterizaria. Das cinco propriedades, três foram conservadas como
museus: La chascona, La Sebastiana e Isla Negra, testemunhos da criatividade
e da maneira de habitar de Pablo Neruda. Casas que foram objeto de poemas
e nomes muito representativos, que revelam o profundo amor que Neruda
depositou nelas.
Nas casas de Pablo Neruda persiste uma constante incansável: o
empenho de recriar nelas – tanto interior quanto exteriormente – as moradas e
a natureza sulista que o cercaram na infância e na adolescência. Podem-se
destacar de Michoacán e de La Chascona os grandes pátios interiores que
comunicavam os inúmeros comodos das casas. Os pátios interiores das casas
temucanas intercomunicavam várias casas familiares. Neruda (2000:14)
descreveu sua casa provinciana com as seguintes palavras:
Es difícil dar una idea de una casa como la mía, casa típica de la
frontera, hace sesenta años.
En primer lugar los domicilios familiares se intercomunicaban. Por el
fondo de los patios, Los Reyes y los Ortegas, los Candia y los Moson
se intercambiaban herramientas o libros, tortas de cumpleaños,
ungüentos para fricciones, paraguas, mesas, sillas.
153
Neruda revelou seu apego às casas onde morou, assim como dos
objetos que as decoravam: restos de naufragios, objetos trazidos do mundo
todo e especialmente do saudoso Temuco. As residências de Neruda revelam
o modo de ser e de habitar, elas contêm a imagem do mundo nerudiano, a
alma do poeta.
3.2 Santiago de Chile: um mar desconhecido
De la pensión de la calle Maruri me retiré como un molusco que sale
de su concha. Me despedí de aquel caparazón para conocer el mar,
es decir, el mundo. El mar desconocido eran las calles de Santiago,
apenas entrevistas mientras caminaba entre la vieja escuela
universitaria y la despoblada habitación de la pensión de familia.
Pablo Neruda*.
Neste momento se procederá à apresentação de alguns textos
nerudianos – lírica e prosa – que fazem patente a crítica à vida que assume o
homem citadino, assim como a presença da paisagem provinciana na urbe
santiaguina. Sabendo que as ruas de Santiago eram, de acordo com o próprio
Neruda, “un mar desconocido”, cheio de mistérios e perigos ao qual se
aventurou desprovido de qualquer proteção, “Me despedí de aquel caparazón
para conocer el mar”, para enfrentar as adversidades com seu único
instrumento de defesa, as palavras. Foi valendo-se delas que escreveu, sob
um olhar crítico, um discurso poético que retrata a vida urbana através do qual
faz possível uma aproximação à realidade citadina chilena do 1900.
*
NERUDA (2000) p. 41.
154
Começar-se-á com a leitura de dois textos nerudianos publicados na
revista Claridad sob o título de “Glosas de la Ciudad I”. Textos que saíram à luz
em agosto de 1921, somente três meses após a chegada de Neruda à capital.
No primeiro texto o poeta registra sua visão da massa urbana,
Ciudad.
Los brazos caen a los lados, como aspas cansadas. Son muchos.
Van juntos, las anchas espaldas, las miradas humildes, los trajes
deshechos, todo es común, todo es carne de un solo cuerpo, todo es
energía rota de un solo cuerpo miserable que parece llevan la tierra
entera. ¿Por qué estos hombres que van juntos, tocándose las
espaldas robustas, no llevan los vigorosos brazos levantados, no
levantan hacia el sol la cabeza? ¿Por qué, si van juntos y tienen
hambre, no hacen temblar los pavimentos de piedra de la ciudad, las
gradas blancas de las iglesias, con el peso sombrío de sus pisadas
hambrientas, hasta que la ciudad se quede inmóvil, escuchando el
rumor enorme de las pisadas que treparían hasta cegar el fuego de
las fábricas, hasta encender el fuego de los incendios? ¿Por qué
estos hombres no levantan los brazos siquiera? (NERUDA,
2001:252).
No texto supracitado, o poeta apresenta uma multidão de seres que
avança com o olhar fixo no chão, sem ouvir nem sentir o que se passa ao seu
redor. Não há diferença entre os indivíduos, todos parecem iguais: “miradas
humildes, los trajes deshechos, todo es común, todo es carne de un solo
cuerpo”. Seres fortes e vigorosos, mas tristes e passivos, homens sem
expressão que não lutam por seus direitos e se submetem à exploração
trabalhista. Ante esta cena o jovem poeta interroga: “¿Por qué, si van juntos y
tienen hambre, no hacen temblar los pavimentos de piedra de la ciudad [...]
¿Por qué estos hombres no levantan los brazos siquiera?”, um sujeito poético
que expressa sua inconformidade ante a atitude alienada do homem urbano.
Se no primeiro texto Neruda (2001:254), apresenta sua visão da massa
urbana, já no seguinte, dirige seu inconformismo a um individuo em particular,
um “tú” que lhe é familiar, e lhe diz:
155
Empleado
Es claro no lo sabes, pero conozco tu vida, entera. Así, sin que me
oculten las alegrías raras o los disgustos de todos los días. Sé tu
vida febril: de la cama a la calle, de ahí al trabajo. El trabajo es
oscuro, torpe matador. Después el almuerzo, rápido. Y al trabajo otra
vez. Después la comida, el cuerpo extenuado y la noche que te hace
dormir. Ayer, mañana, pasado, sucedió y sucederá lo mismo. La
misma vida, es decir, lo que tú llamas vida […] Nosotros lo llamamos
explotación, capital, abuso. Los diarios que tú lees, en el tranvía,
apurado lo llaman orden, derecho, patria, etc. Tal vez te halles débil.
No. Aquí estamos nosotros, nosotros que ya no estamos solos, que
somos iguales a ti; y como tú explotados y doloridos pero rebeldes
[…] Hay que decirlo. Por que no sólo el que no obra como piensa,
piensa incompletamente. También el que no lo dice…
No escrito lido, a crítica ao comportamento do sujeito citadino submisso
é clara e direta. Neruda chama à atenção para que este homem acorde do
comportamento mecânico e proteste contra a rotina do trabalho exploratório ao
que está submetido, “Ayer, mañana, pasado, sucedió y sucederá lo mismo. La
misma vida, es decir, lo que tú llamas vida”. Termina incentivando-o a alçar a
voz e o lembra de que não está sozinho nessa luta, “Aquí estamos nosotros,
nosotros que ya no estamos solos”.
Um fato importante a destacar é que a denuncia feita à vida citadina é
realizada em tempo presente, ou seja, o poeta forma parte da vida desses
indivíduos e ciente disso aproveita a oportunidade de fazer públicas suas
reflexões através da revista possibilitando, com isto, que seus leitores tomem
consciência da realidade social em que vivem.
Mas, não é somente na prosa que Neruda registra suas inquietudes, em
poemas como “Caballero solo” (NERUDA,1958:69-70) de Residencia en la
Tierra, também deixa constancia seus questionamentos,
Los jóvenes homosexuales y las muchachas amorosas,
y las largas viudas que sufren el delirante insomnio,
y las jóvenes señoras preñadas hace treinta horas,
y los roncos gatos que cruzan mi jardín en tinieblas,
156
como un collar de palpitantes ostras sexuales
rodean mi residencia solitaria,
como enemigos establecidos contra mi alma,
como conspiradores en traje de dormitorio
que cambiaran largos besos espesos por consigna. […]
seguramente, eternamente me rodea
este gran bosque respiratorio y enredado
con grandes flores como bocas y dentaduras
y negras raíces en forma de uñas y zapatos.
Nos versos citados, observa-se um sujeito lírico sufocado por
comportamentos vazios que não fazem parte de seu universo, tipos humanos
que o aprisionam, uma aglomeração de elementos e situações que o sufocam.
O poeta associa a massa humana a um grande bosque, mas não se trata dos
bosques do sul, cheios de árvores de folhas verdes, madeira fresca e cheirosa,
nem das raízes que testemunham o passo do tempo. O bosque urbano é
composto de “bocas y dentaduras y negras raíces en forma de uñas y zapatos”,
uma representação metonímica do homem moderno que se encontra
fragmentado, cuja cena bem poderia compor uma tela cubista. Além de remeter
ao cubismo, a imagem que emerge destes versos faz lembrar da célebre frase
popularizada por Marshall Berman “tudo que é sólido desmancha no ar”, frase
que sintetiza o conceito de modernidade como o “turbilhão” que engole o
homem mantendo-o num permanente estado de desintegração.
O cotidiano dos bairros santiaguinos sob o olhar nerudiano
[...] a cidade não conta seu passado, ela o contém como as linhas da
mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos
corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros
das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas,
entalhes, esfoladuras.
*
CALVINO (1990) p.14-15
157
Ítalo Calvino*
As cidades não existem somente como espaço físico, há uma
construção citadina edificada com palavras, uma construção que dá forma ao
cotidiano urbano através da literatura, possibilitando novas perspectivas para a
interpretação da cultura e da identidade do habitante urbano. As cidades têm
sido registradas pela escrita desde sua fundação, como no caso da cidade de
Santiago do Chile, que permite o rastreamento de uma escrita que remonta à
época de sua fundação, no tempo em que ainda era Santiago de Nueva
Extremadura, época em que seu fundador, Pedro de Valdivia, escrevia ao
Imperador Carlos V dizendo:
[…] No mês de abril do ano de mil e quinhentos e trinta e nove me
deu o Marquês os suprimentos e cheguei a este vale do Mapocho
em finais do ano de 1540. Logo procurei falar com os caciques da
terra [...] acreditando ser-mos quantidade de cristãos, vieram os mais
pacíficos e nos serviram bem por cinco ou seis meses e fizeram isso
para não perder seus alimentos que tinham no campo, e nesse
tempo fizeram nossas casas de madeira e palha com o traçado que
lhes entreguei, no lugar onde fundei esta cidade de Santiago del
Nuevo Extremo, em nome de V. M., no dito vale, como cheguei em
24 de fevereiro de 1541. [Trad. da autora]
La Serena, 4 de setembro de 1545.
As inúmeras cartas escritas por Valdivia deixaram testemunho do
processo fundador da cidade de Santiago, assim como do cotidiano de seus
habitantes “[...] e todos cavávamos, arávamos e semeávamos ao mesmo
tempo, e estávamos sempre armados e os cavalos com sela [...]”
(Valdivia,1545), documentos que demarcam o início da reconstrução do espaço
e do cotidiano citadino através da linguagem.
158
Ao reconhecer que a existência da urbe pode ser reconstruída pelas
vozes do passado, considerar-se-ão também a prosa e poesia citadina de
Pablo Neruda como signos culturais possíveis de serem reinterpretados hoje,
um tempo histórico distante e alheio ao poeta. Com isto afirma-se que as
respostas estão dentro dos muros da cidade, saber olhar é saber ler os signos
que ela nos oferece, já que o sentido da cidade está dentro dela mesma como
o enfatiza Ítalo Calvino (1990:18),
O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade
diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso [...]
Como é realmente a cidade sobre esse carregado invólucro de
símbolos, o que contém e o que esconde, ao se sair de Tamara é
impossível saber.
Neruda não apresenta em seus poemas uma visão total das coisas ou
situações, ele lança mão de particularidades, de fragmentos que, no seu
conjunto, constituirão o seu espaço imagético. O lírico chileno, ao transferir
para o poema a sua vivência pessoal, está, ao mesmo tempo, transferindo as
tendências de uma época e de um momento histórico. Seu eu poético tem um
valor representativo da realidade de que faz parte, suas vivências têm uma
significação social, ou seja, representam a coletividade de seu tempo. Neruda,
através dos poemas dedicados à cidade de Santiago, apresenta sua particular
visão da paisagem e do cotidiano urbano. As imagens citadinas que fluem
desses poemas revelam, a partir de fragmentos, um mundo imagético
construído metonimicamente, isto é, o todo pela parte.
Cada um dos bairros que constituem a capital chilena são como
pequenas aldeias, mundos independentes onde seus habitantes parecem ter
esquecido que formam parte de um conjunto maior. Dos inúmeros bairros que
159
configuram a cidade de Santiago cinco destacam-se por sua importância e
peculiaridade: San Diego, Estación Mapocho, Estación Central, San Pablo e
Recoleta, todos eles com características próprias, como observado por
Benjamín Subercaseaux (2005:121) na obra Chile o una loca geografía:
San Diego é o bairro dos que ganham a vida no pequeno comércio.
San Pablo é o bairro onde se arruína o comércio numa vida
pequena. A Estación Central é a mescla de transações de primeira
mão dos produtos que chegam do sul e da exploração do
provinciano que vem para o norte. [Trad. da autora]
Em “Oda a la calle San Diego” Neruda (1993a:415-419) canta a rua
principal do bairro, San Diego, um dos bairros mais característicos e populares
da capital chilena. Nesse poema Pablo Neruda retoma os questionamentos
estéticos apresentados anos antes reafirmando seu interesse pelas coisas
terrenas, pelo cotidiano do ser humano, mantendo um enfoque existencialista.
Nessa nova etapa iniciada com Odas Elementales (1954), o poeta chileno
procurou na realidade a essência das coisas.
A partir desse momento, ao dar uma maior atenção à cidade, o espaço
urbano passou a ser o palco onde se desenvolvia o dia-a-dia observado e
vivenciado pelo escritor. O vate transformou em discurso poético os sinais
emitidos pelo mundo santiaguino onde o flanêur nerudiano “lê o espaço
público, metonimicamente representado pela rua, como realidade vivida e
dinâmica” (GOMES,1994:112).
Observa-se na ode citada, um sujeito lírico atento, revelador da
dicotomia campo/cidade onde os elementos do campo vão aflorando a partir
160
dos elementos urbanos. Já na primeira estrofe fica claro que a temática do
poema abordará esses dois ambientes antagônicos:
Por la calle
San Diego
el aire de Santiago
viaja ao Sur majestuoso [...]
Cabe destacar que a poesia nerudiana dedicada ao espaço rural
apresenta um bucolismo renovado que não se atém a uma simples descrição
do entorno natural, mas uma forma de bucólico que remete às condições
sociais e cotidianas da vida rural. De acordo com Raymond Williams o
significado original de bucólico sofreu uma grande transformação, já que não
apresenta somente uma atenção “voltada para a beleza natural, porém trata-se
agora da natureza da observação, e não a do simples camponês que trabalha”
(WILLIAMS,1989:36).
Na ode estudada Neruda se define como “el cronista errante de la calle
San Diego”, cronista que lê a cidade metonimicamente a partir de um
segmento de Santiago como registrado nos versos a seguir destacados:
No viaja en tren el aire.
Va paso a paso
mirando
primero las ventanas,
luego los ríos,
más tarde los volcanes.
Pero,
largamente,
en la esquina
de la calle Alameda
mira un café pequeño
que parece
un autobús
cargado de viajeros[...]
161
Soy el cronista errante
de la calle San Diego […]
Do poema surgem imagens de elementos cotidianos da paisagem de
Santiago, elementos que o vate chileno encontra numa só rua. O poetacronista, que à semelhança do flanêur baudelairiano perambula pela cidade de
forma dinâmica, observa cada detalhe, cada pedaço desse labirinto de cimento
em que se encontra inserido criando imagens quase aéreas da cidade.
Contudo, esta poesia que se completa através da soma de fragmentos pode
ser considerada a expressão do traço desintegrador da época vivenciada. Uma
aglomeração de objetos isolados e desvinculados de seu todo, uma maneira de
traduzir em imagens o espírito fragmentado do homem moderno. No poema
analisado, Neruda nos apresenta janelas, rios, vulcões, ônibus, selos,
utensílios, pernas, braços, etc. Elementos arrancados de lugares diversos e
que navegam por um tumultuado rio de versos. Esses versos traduzem o modo
de ser da realidade santiaguenha na particular visão do poeta chileno,
[…]
Más lejos
venden
lo imaginario, lo inimaginable,
útiles espantosos,
incógnitos bragueros,
endurecidas
flores de ortopedia,
piernas
que piden cuerpos,
gomas enlazadoras
como brazos
de bestias submarinas.
[…]
De noche, la calle
San Diego
sigue por la ciudad, la luz la llena.
Luego,
el silencio
desliza con ella su navio.
162
Nesta ode a vida cotidiana é identificada com o rio que corre sem parar, um
constante desfazer e refazer, o eterno renascer de cada dia. Um tempo circular
presente não somente no mundo físico, mas também na experiência psíquica
do homem urbano. Observa-se também que o ritmo santiaguino varia de
acordo com as diversas fases do dia e da noite. Embora o ambiente urbano
seja o grande motivo da ode, o espaço e as características do mundo rural,
estão presentes. Na cidade grande o novo dia é anunciado pelo som do sino:
Algunos pasos más: una campana
que despierta,
Es el día que llega
ruidoso, en autobús desvencijado,
cobrando su tarifa matutina
por ver el cielo azul
solo un minuto, apenas un minuto
antes de que las tiendas,
los sonidos,
nos traguen y trituren
en el largo intestino
de la calle.
Mas, não é o doce som dos sinos que tocavam diariamente no sul, como
lembrado por Eulogio Suárez (2004:327): “Aqueles povoados de fundação
recente, suas ruas apenas desenhadas, levantadas suas casas, estalavam
seus radiantes sinos. Tudo se comunicava naquelas aldeias do Sul do Chile
aos golpes do doce metal”39. Na cidade grande o novo dia é anunciado pelo
sino barulhento do "autobús desvencijado, cobrando su tarifa matutina”.
Neruda em seu canto à cidade nos apresenta um ambiente ameaçador e
monstruoso. Para ele a rua é um “largo intestino triturador” que aprisiona. A
angústia que atormenta o eu lírico é amenizada pelo resgate das sensações e
39
Trad. da autora
163
das lembranças da terra de nascimento. O cheiro, o rio, o vento e o frio de
outrora tornam mais amena sua permanência no labirinto de concreto:
La calle
corre ahora
hacia arriba,
hacia mañana:
una ola
venida
del fondo
de mi pueblo
en este río
popular
recibió sus afluentes
de toda la extensión del
territorio.
A estratégia utilizada por Neruda para integrar de forma harmônica os
dois ambientes antagônicos [campo e cidade] foi a superposição de campos
semânticos, ou seja, o vocabulário que procede da natureza é empregado para
expressar de forma metafórica a paisagem urbana, onde o movimento citadino
é comparado com “una ola” e com um “río”, referindo-se assim à massa
humana que circula pelas ruas. O mar e os rios, assim como os sinos, são
elementos da paisagem primigênia de Neruda que simbolizam suas raízes
sulistas.
Contudo, não só os espaços hostis são destacados pelo lírico em “Oda a
la calle San Diego”, há também ambientes citadinos que parecem dar-lhe
conforto, como uma livraria que é comparada com uma “bodega verde” o com
“una nación lluviosa”. Livraria que contém obras com imagens de “luna llena,
jazmines de archipiélagos: / reinos de nieve” um espaço que remete o
ambiente fresco e acolhedor do sul:
[…]
164
En el número 134,
la librería Araya.
El antiguo librero
es una piedra,
parece el presidente
de una república
desmantelada,
de una bodega verde,
de una nación lluviosa.
Los libros
se acumulan. Terribles
páginas que amedrontan
al cazador de leones.
Hay geografías
de cuatrocientos tomos:
en los primeros
hay luna llena, jazmines de archipiélagos:
los últimos volúmenes
son sólo soledades:
reinos de nieve, susurrantes renos [...]
Assim, diante da ausência do espaço rural, Neruda acudirá à sua
memória primigênia para textualizar seu vínculo com a terra de nascimento, um
vínculo verbal que lhe permite reencontrar-se num território metaforicamente
recuperado.
Definir Neruda como um “observador urbano” é apropriado por sua
capacidade de penetrar nas realidades física e simbólica da cidade e traduzir
em palavras as imagens e vivências do mundo real para o mundo poético.
Neruda consegue ouvir o som da cidade, sentir suas dores, suas alegrias e
transporta esses sentimentos para o poema, posto que (RAMA,1985:53):
As cidades desenvolveram uma linguagem mediante duas redes
superpostas: a física, que o visitante comum percorre até perder-se
na sua multiplicidade e fragmentação, a simbólica que a ordena e
interpreta [...] Há um labirinto das ruas que só a aventura pessoal
pode penetrar e um labirinto dos signos que só a inteligência
raciocinante pode decifrar, encontrando sua ordem.
A representação poética da realidade nerudiana não surge do nada ou
de uma inspiração celeste, pelo contrário, é o resultado da soma de
165
experiências do passado e do presente do poeta. Assim, o poema pode ser um
caminho que leva a um tipo de conhecimento sobre a realidade, já que o
próprio Neruda (2000b:72) declarou:
[…] Nos vemos indefectiblemente condenados a la realidad y al
realismo, es decir, a tomar una conciencia directa de lo que nos
rodea y de los caminos de la transformación […] si suprimimos la
realidad nos vemos de pronto rodeados de un terreno imposible, de
un tembladeral de hojas, de barro, de nubes, en que se hunden
nuestros pies y se ahoga una incomunicación opresiva.
Conforme as palabras de Benjamín Subercaseaux (2005:121), San
Diego é “o bairro dos que ganhan a vida no pequeno comércio” característica
que não escapou à observação do poeta:
[…]
En el siguiente número
de la calle
venden pobres juguetes,
y desde puertas próximas
la carne asada
inunda las narices
[…]
Más allá venden catres
de bronce deslumbrante,
camas descomunales [...]
O realismo apresentado em “Oda a la calle San Diego” pode ser
observado na maneira como o eu lírico se integra ao cotidiano que o rodeia,
um observador sensível que capta e recebe as mensagens externas e não
como um ser que nela se busca. O sujeito lírico se deixa absorver pela rua e
tudo o que ele sonha ou imagina é proporcionado por essa realidade. Seu
sentimento é coletivo quando escreve:
[…]
166
una ola
venida
del fondo
de mi pueblo
en este río
popular
recibió sus afluentes
de roda la extensión del
territorio.
[…]
sólo un minuto, apenas un minuto
antes de que las tiendas,
los sonidos,
nos traguen y trituren
en el largo intestino
de la calle.
Os versos acima citados revelam um sujeito inserido na multidão quando
diz “nos traguen y trituren”, não há distanciamento com os habitantes da
cidade. O poeta chileno apresenta uma nova maneira de enxergar a realidade
urbana se comparado com o flanêure baudelairiano que circulava pela cidade
sem se misturar à massa humana, como o afirmou Walter Benjamin (1989:50)
no texto Paris do Segundo Império:
Na Paris de Baudelaire [...] havia o transeunte, que se enfiava na
multidão, mas havia também o flanêure, que precisa de espaço livre
e não quer perder sua privacidade. Ocioso, caminha como uma
personalidade [...].
Enquanto que do convívio diário do cronista nerudiano com o homem citadino
surge um sentimento de fraternidade e cumplicidade, o poeta sente a cidade e
se inclui nela sem privilégios. Porque como o mesmo Neruda (2003:390)
registrou: “El poeta no es un ‘pequeño dios’”, o poeta não é um ser superior
aos outros, ao contrário, é um homem comum e somente consciente disso é
que sua voz chegará a ser universal.
De acordo com o anteriormente exposto, entende-se que a temática da
cidade em Neruda representa uma proposta de redescobrimento das
167
realidades visíveis, um fazer poeticamente conseqüente com a maneira de ser
e pensar do poeta chileno, uma busca pelo entendimento humano. Para
Neruda a labor do poeta não se limita a cantar a rosa, a exaltar o amor ou a
nostalgia: fazer poesia é isso e muito mais. Neruda (2003:392-393) cantou
também “las ásperas tareas humanas”, a impureza da realidade, porque
somente dessa maneira “[…] la poesía no habrá cantado en vano”.
Rua San Diego, maio de 192040
Arquivo Fotográfico Chilectra
40
Disponível em: http://www.nuestro.cl/chilectra/capitulo3.htm#
168
3.3 Valparaíso: a cidade mais amada
¡La noche de Valparaíso!... Un punto del planeta se iluminó,
diminuto, en el vacío. Palpitaron las luciérnagas y comenzó a arder
entre las montañas una herradura de oro.
La verdad es luego la inmensa noche despoblada desplegó
colosales figuras que multiplicaban la luz. Aldebarán tembló con su
pulso remoto, Casiopea colgó su vestidura en las puertas del cielo,
mientras sobre la esperma nocturna de la Vía Láctea rodaba el
silencioso carro de la Cruz Austral.
Entonces, Sagitario, enarbolante y peludo, dejó caer algo, un
diamante de sus patas perdidas, una pulga de su pellejo distante.
Había nacido Valparaíso, encendido y rumoroso, espumoso y
meretricio.
El vagabundo de Valparaíso∗
Pablo Neruda.
Os versos nerudianos dedicados á cidade de Valparaíso, surgem
reiteradas vezes e nas mais diferentes etapas da obra do lírico chileno. Neruda
possuía o dom de criar poesia das coisas mais simples e cotidianas. Cantou à
vida, à natureza, ao povo, ao amor, aos oceanos... Para ele tudo era poesia.
Chamado de poeta de América e de poeta del pueblo, sempre escreveu sobre
sua terra natal, mesmo estando em outros continentes, era sua terra americana
o principal motivo de sua inspiração.
Neruda dedica em suas memórias, Confieso que he vivido, um apartado
a Valparaíso. Nele relata sua juventude aventureira no transcurso da qual
sentiu por diversas vezes o “llamado inexplicable de La estrella de Valparaíso”
(Neruda, 2000:73). Para o jovem escritor essa cidade “abre sus puertas al
infinito mar, a los gritos de las calles, a los ojos de los niños” (Neruda,
2000:73). Confessa que sempre fez viagens fantásticas a esse porto ainda que
estivesse a quilômetros de distância de seu litoral. Valparaíso é a cidade na
∗
NERUDA (2000) p.81.
169
que se fundou o primeiro jornal chileno, o primeiro time de futebol, a primeira
bolsa de valores e o primeiro corpo de bombeiros. Valparaíso na poesia
nerudiana, assim, como outras cidades chilenas, adquire um significado
decisivo para o desenvolvimento de sua vida e sua obra. Neruda amou
profundamente a desordenada geografia chilena, amou suas cidades, as do
norte e as do sul, mas indiscutivelmente, uma de suas prediletas foi Valparaíso.
Para Neruda, Valparaíso não é somente sinônimo de belezas naturais,
história e aventuras juvenis. É também a lembrança do porto seguro que o
acolheu nos momentos difíceis. Valparaíso é a cidade de suas alegrias e de
suas dores, a cidade que constantemente se contorce como “una ballena
herida” (Neruda, 2000:79). Terra à que regressou inúmeras vezes por causa do
magnetismo inexplicável que esse porto possui.
Em Valparaíso Neruda construiu uma de suas três residências na terra
La Sebastiana: sua casa portuária, erguida na colina Florida desde onde se
pode admirar em todo seu esplendor o imenso e nostálgico Pacífico.
Em suas memórias o poeta narra o nascimento de Valparaíso, um
nascimento cósmico: “[...] Sagitario, enarbolante y peludo, dejó caer algo, un
diamante de sus patas perdidas […] Había nacido Valparaíso, encendido y
rumoroso, espumoso y meretricio” (Neruda, 2000b: 83). O vate fala também da
época em que de Valparaíso se partia para o mundo e ao mesmo tempo era o
porto pelo qual o mundo inteiro passava, assim a “oxidada herradura del
Centauro” (Neruda,2000:83) se encheu de vida e esplendor.
No ano do centenário do nascimento de Pablo Neruda, 2004, a cidade
de Valparaíso foi reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO.
170
Um reconhecimento que o poeta já tinha registrado fazia cinqüenta anos nos
versos que dedicou à Joya del Pacífico. O porto constituído por quarenta e uma
colinas, as que foram visitadas inumeráveis vezes pelo poeta. O porto de
Valparaíso não foi esquecido pelo poeta nem no dia em que recebeu o Premio
Nobel de Literatura. Em 21 de outubro de 1971 na Suécia, a milhares de
quilômetros do litoral chileno numa entrevista com motivo do Premio Nobel, o
poeta del pueblo disse: “Pienso aquí, con emoción, junto a Matilde, en las
escaleras de Valparaíso, que me han dicho, están embanderadas en este
instante” (Vial, 2003).
É difícil explicar o por qué dessa união de Neruda com Valparaíso, mas
é um fato que em várias épocas de sua vida esse porto esteve presente em
sua poesia. Fato que pode ser constatado nos versos de “El fugitivo” de Canto
General (1950); “Oda a Valparaíso” de Odas Elementales (1954); “Cuándo de
Chile” de Las uvas y el viento (1954), “Al mismo Puerto” de Plenos Poderes
(1962); “El puerto puerto…” de El mar y las campanas (1973), dentre outros
poemas.
Na poesia nerudiana predomina o autobiográfico, seus versos sempre
remetem à suas andanças pelo mundo, por sua terra natal, registram episódios
de sua vida, amores, tristezas, alegrias. Uma poesia que reflete uma forma de
ser, uma particular visão de mundo.
Para ilustrar a decorrência de Valparaíso nos versos nerudianos podem
citar-se, por exemplo, alguns poemas de Canto General, clássico da literatura
hispano-americana, obra que Neruda terminou de escrever quando ainda era
perseguido pela policia chilena em 1948. Durante o período em que Neruda
fora obrigado a viver como clandestino em seu próprio país destacam-se a
171
seguir alguns versos do poema X de “El fugitivo (1948)” (Neruda,1999:703704):
Otra vez, otra noche, fui más lejos.
toda la cordillera de la costa,
el ancho margen hacia el mar Pacífico,
y luego entre las calles torcidas,
calleja y callejón, Valparaíso.
Entré en una casa de marineros […]
En mi día solitario el mar
se alejaba: miraba entonces
la llama vital de los cerros,
cada casa colgando, el
latido de Valparaíso[…]
todo eso envolvía mi cuerpo
como un nuevo traje terrestre […]
A clandestinidade durou pouco mais de um ano, período em que o poeta
foi obrigado a ter de ir de cidade em cidade à procura de alguém que o acolhese, mudando de casa quase que diariamente. Muitas pessoas queriam ajudar
ao poeta del pueblo, pessoas desconhecidas e solidárias (NERUDA,1999:708709):
VI
Ventana de los cerros! Valparaíso, estaño frío,
roto en un grito y otro de piedras populares!
Mira conmigo desde mi escondite
el puerto gris tachonado de barcas,
agua lunar apenas movediza,
inmóviles, depósitos del hierro.
Sobre El fugitivo Neruda (2000:467) afirmou, “es la historia de la
persecución ordenada por González Videla”. O poeta não somente narrou a
decepção provocada pela mentira e a ganância, refere-se também de forma
especial a uma família portuária que o acolheu: “Entre los sitios conmovedores
que me albergaron, recuerdo una casa de dos habitaciones, perdida entre los
cerros pobres de Valparaíso” (NERUDA,2000:230). Somente no dia 24 de
172
fevereiro de 1949 conseguiu sair do país atravessando a cordilheira. Em “El
fugitivo” Neruda registrou, também, sua gratidão e seu amor pela cidade que o
protegeu num momento tão difícil, versos que refletem com grande emotividade
o sentir que esse pedaço de terra provocou no poeta (NERUDA,1999:711-712):
IX
[…]
Te declaro mi amor, Valparaíso,
y volveré a vivir tu encrucijada,
cuando tú y yo seamos libres
de nuevo, tú en tu trono
de mar y viento, yo en mis húmedas
tierras filosofales. Veremos cómo surge
la libertad entre el mar y la nieve.
[…] tus manos
de portuaria me dieron el abrazo
que mi alma te pidió en la hora nocturna
y te recuerdo reinando en el brillo
de fuego azul que tu reino salpica.
No hay otra como tú sobre la arena,
Albacora del Sur, reina del agua.
No ano de1952, período de seu desterro na Itália, Neruda começou a
escrever Las uvas y el viento, livro que tem como motivo central seus amigos,
os povoados e as cidades queridas, um livro em que predomina, como em
tantos outros, o autobiográfico.
Neruda declarou em suas Memórias sua especial preferência por esse
livro: “La verdad es que tengo predilección por Las uvas y el viento, tal vez por
ser mi libro más incomprendido, o porque a través de sus páginas yo eché a
andar por el mundo. Tiene polvo de caminos y agua de ríos” (2000:384).
No ano de 1954, publicou Odas Elementales. Em essa obra o poeta
apresenta versos curtos e independentes, frases soltas e sílabas isoladas,
onde cada verso pode entender-se como uma definição, um fato, objeto ou
173
pensamento determinado. Em “Oda a Valparaíso” (1993a:192-195) observa-se
a animação do inanimado, uma personificação latente em cada verso:
Valparaíso,
qué disparate
eres,
qué loco,
puerto loco,
qué cabeza
con cerros,
desgrenada,
no acabas de peinarte,
nunca
tuviste
tiempo de vestirte,
siempre
te sorprendió
la vida, […]
O poeta utiliza uma linguagem simples, uma poesia para todos através
da palavra clara. Versos breves e fracionados, espaços em branco, um
conjunto de grande expressividade porque, ao fracionar o verso, Neruda dá às
palavras seu valor verdadeiro. Cria um mundo novo com elementos cotidianos
onde as palavras e as imagens vão sendo sugeridas, desenhadas verso a
verso,
Pronto,
Valparaíso,
marinero,
te olvidas
de las lágrimas,
vuelves a colgar tus moradas,
a pintar puertas
verdes,
ventanas
amarillas
todo
lo transformas en nave,
eres
la remendada proa
de un pequeño
veleroso
navio.
174
Neruda iguala este porto a uma embarcação que aparenta ser fraca,
mas que possui a força da Fênix, renascendo uma e outra vez dos ataques da
natureza, das cinzas. Ao mesmo tempo, o poeta canta ao valor da população
portuária:
[…]el rocío
de los mares, el beso
del ancho mar colérico
que con toda su fuerza
golpeándose en tu piedra
no pudo
derribarte,
porque en tu pecho austral
están tatuadas
la lucha,
la esperanza,
la solidariedad
y la alegría
como anclas
que resisten
a las olas de la tierra.
Plenos Poderes (1962) é um livro breve em que são freqüentes as
lembranças e as indagações. Uma reflexão sobre a vida, a morte e o dever do
poeta. Uma vez mais, em suas divagações, surge a Joya del Pacífico. Os
versos de “Al mismo puerto” apresentam uma atmosfera renovadora,
brincalhona e alegre (NERUDA,1999a:1008-1010):
..olor a puerto loco
tiene Valparaíso
olor a sombra a estrella
a escama de la luna
y a cola de pescado…
Em El mar y las campanas (1973), o poeta que subiu e percorreu as
inúmeras colinas portuárias até chegar ao cume, no poema “El puerto puerto...”
cantou às colinas castigadas pelo vento e pelo mar, uma terra que se aferra ao
175
solo, terra domada pela ação da natureza, assim como sua Araucanía
(NERUDA, 2004:110),
El puerto, puerto de Valparaíso
mal vestido de tierra
me ha contado: no sabe navegar
vendaval, terremoto,
ola marina
todas las fuerzas le pegan
en sus narices rotas.
[…]
Puerto puerto que no puede salir a su destino abierto en la distancia
y aúlla
solo
como un tren de invierno
hacia la soledad,
hacia el mar implacable.
Neruda ao referir-se a esses morros registrou:
Yo no puedo andar en tantos sitios. Valparaíso necesita un nuevo
monstruo marino, un octopiernas, que alcance a recorrerlo. Yo
aprovecho su inmensidad, su íntima inmensidad, pero no logro
abarcarlo en su diestra multicolor, en su germinación siniestra, en su
altura o su abismo (Neruda, 2000:84).
Em 1970, Neruda foi condecorado filho Ilustre de Valparaíso. Um
reconhecimento das autoridades e do povo portenho para com o homem-poeta
que se preocupou em incentivar a preservação dessa cidade. Em discursos,
conferências, ou ao rememorá-la desde terras distantes, sempre expressou
seu desejo de protegê-la, tanto dos ataques da natureza quanto dos ataques
da
modernização.
Neruda
propunha
a
criação
de
organismos
que
preservassem sua arquitetura, suas belezas e riquezas.
Constata-se então o amor de Neruda por Valparaíso e sua particular
visão desse pedaço de terra. Mas não devemos esquecer que pela poesia de
Neruda passa Chile inteiro, com suas montanhas nevadas, mares e desertos.
Em segundo lugar, destaco ainda, que o elemento autobiográfico é um fator
176
fundamental em sua poesia porque, como ele mesmo afirmou, “de tanto amar y
andar salen los libros” (NERUDA,1999a:1162), talvez resida em esta afirmação
a compreensão para as seguintes palavras de Neruda (2000:84) sobre
Valparaíso:
[…] estos cerros tienen nombres profundos. Viajar entre estos
nombres es un viaje que no termina, porque el viaje de Valparaíso no
termina ni en la tierra, ni en la palabra.
Vistas dos morros de Valparaíso41
41
Disponíveis em: www.panoramio.com
177
4ª PARTE
PARA UMA CONSTRUÇÃO
DA
IDENTIDADE NACIONAL CHILENA
La expresión del hombre que marca la tierra y el pasado de los
demás hombres con su huella, está impregnada de una historia
común en que lo diverso se ha unido como una totalidad o bien se
ha actuado en conjunto o pensado y sufrido con un solo
sentimiento.
No puede comprenderse la formación de la identidad nacional sin
tomar en cuenta el lugar donde la experiencia surge y se desarrolla.
Es allí donde se produce la primera experiencia que le dará al
individuo características propias dentro de la mentalidad común.
Allí se determinará la base de su experiencia personal.
Cada lugar en sí es un conjunto de historia vivida y no es el mismo
resultado la identidad que deriva de nacer en un puerto como
Valparaíso e en una capital como Santiago, ni del hecho de ser
patrón de fundo o inquilino.
Luis Mizón*
*
MIZÓN (2001) p. 66
178
1. Identidade cultural e consciência nacional
O ‘identitário’ tem a ver com valorar conscientemente o pertencimento
a uma história comum, a uma mesma maneira de viver o mundo.
Definitivamente, refere-se a um patrimônio cultural compartilhado,
composto por elementos tangíveis e intangíveis. Exemplo desses
últimos são os valores, os ritos e as tradições.
Jorge Larrain*.
A palavra identidade automaticamente remete à capacidade de tornar
uma pessoa reconhecível, sem a possibilidade de ser confundida com outra,
mas, por outro lado, pode-se relacionar a identidade às características comuns
de um grupo humano em oposição a outros grupos humanos. Esta
ambivalência constitui um dos aspectos mais significativos do conceito de
identidade.
Para o sociólogo chileno Jorge Larraín (2003a:32), o conceito de
identidade é: “[...] um processo de construção em que os indivíduos definem a
si mesmos em estreita interação com outras pessoas [...] é a capacidade de
considerar-se como objeto e nesse processo ir construindo uma narrativa sobre
si mesmo”. Pode-se afirmar, então, que a identidade não é fixa e que está em
permanente transformação o que implica na afirmação de particularidades,
diferenças e relações do indivíduo para com os outros.
Conforme Larraín, o conceito de identidade está intimamente ligado ao
conceito de cultura: por um lado, a cultura é a criação e o intercâmbio de
expressões simbólicas e significativas decorrentes da comunicação entre os
LARRAÍN (2003b) Os textos de Jorge Larraín citados neste capítulo foram traduzidos pela
autora desta Tese.
*
179
indivíduos; por outro lado, a identidade é a maneira como essas formas
simbólicas são assimiladas na interação do indivíduo com os outros. A cultura
de acordo com Larraín é o
[...] padrão de significados incorporados em formas simbólicas,
incluindo ali expressões lingüísticas, ações e objetos significativos,
através dos quais os indivíduos se comunicam e compartem
experiências (LARRAÍN, 2003:31).
Constata-se, então, que tanto a cultura quanto a identidade são
construções simbólicas em que a primeira é uma estrutura de significados
através da qual os indivíduos se comunicam, e a segunda é um discurso sobre
si mesmo construído pela interação com o outro mediante esse padrão de
significados culturais. Entende-se com isto que a “identidade nacional”
consolida-se na existência da “identidade cultural”, a qual é resultado de fatores
históricos, científicos e religiosos, e que os fatores básicos da nacionalidade42
são provenientes das raízes evolutivas como origem, formação, ambiente,
situação geográfica, povo e cultura. Porém, para haver identidade nacional é
necessário que a sociedade assimile a idéia de ser um corpo étnico-político
diferenciado, isto é, a consciência de nação.
Dada à heterogeneidade regional e às diferenças inerentes a todo grupo
humano, o somatório dos valores culturais será caraterizável por um traço que
permitirá a definição de um perfil multidimensional hegemônico baseado no
homem, no território, nas instituições, na língua, nos costumes, nas religiões e
na história desse grupo entendido com nação.
42
Entende-se por nacionalidade o direito à utodeterminação de todo grupo social com uma
origem, uma história e um modo de vida e de pensamento comum, que habita um território
determinado.
180
Benedict Anderson (2008:32-34), em Comunidades Imaginadas define a
nação como: “uma comunidade política imaginada — e imaginada como sendo
intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana”, e esclarece a seguir:
Ela é imaginada [a nação] porque mesmo os membros das mais
minúsculas das nações jamais conhecerão, encontrarão, ou sequer
ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora tenham em
mente a imagem viva da comunhão entre eles [...] limitada porque
mesmo a maior delas, que agregue, digamos, um bilhão de
habitantes, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além
das quais existem outras nações [...] soberana porque o conceito
nasceu na época em que o Iluminismo e a Revolução estavam
destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico de ordem
divina [...] comunidade porque, independente da desigualdade e da
exploração efetivas que possam existir dentro dela, a nação sempre
é concebida como uma camaradagem horizontal.
Conforme a explanação de Benedict Anderson, cada cidadão concebe a
imagem de uma comunidade sobre a qual se criam fronteiras, ainda que estas
não existam, porque os indivíduos não se percebem como pertencentes a uma
nacionalidade única e massiva. Anderson, em seu estudo, aponta três bases
históricas para a concepção da nação imaginada, a saber: a comunidade
religiosa,
o reino dinástico e as percepções temporais. De acordo com o
professor britânico, a comunidade religiosa concentrava seu poder em poucas
pessoas bilíngües, que ao transmitir para a população textos escritos em
línguas sagradas, se tranformavam em mediadores entre o céu e a terra. Com
as Grandes Navegações, a Europa mudou sua visão de mundo e ampliou seu
universo cultural e geográfico, assim como a descoberta de outras crenças. O
declínio da dominação religiosa levou ao declínio das linguagens sagradas
devido em parte à vernacularização no século XVI, fenômeno que passou
dominar o Ocidente no século XVII, de tal maneira que as línguas sagradas
passaram a ter um papel secundário. Os reinos dinásticos, por sua vez, foram
181
perdendo sua legitimidade, acabando com a crença de que as sociedades
eram naturalmente organizadas ao redor de um monarca central que possuía o
poder divino, enquanto explica Benedict Anderson (2008:48):
Na concepção moderna, a soberania do estado opera de forma
integral, terminante e homogênea sobre cada centímetro quadrado de
um território legalmente demarcado. Mas, no imaginário mais antigo,
onde os Estados eram definidos por centros, as fronteiras eram
porosas e indistintas, e as soberanias se esvaeciam
imperceptivelmente uma dentro da outra.
Anderson chama a atenção para o fato de que não foi simplesmente o
esvaecimento das comunidades religiosas e dinásticas o que fez surgir as
“comunidades imaginadas das nações”, como se tivessem sido uma simples
substituição. O autor (ANDERSON, 2008:52) enfatiza que “Por sob o declínio
das comunidades, línguas e linguagens sagradas estava ocorrendo uma
transformação fundamental nos modos de apreender o mundo, a qual, mais do
que qualquer outra coisa, possibilitou ‘pensar’ a nação”. Benedict Anderson
propõe a observação das representações visuais desenvolvidas pelas
comunidades sagradas para chegar à compreensão da nova “percepção
temporal” experimentada pela sociedade. O autor acredita que grande parte
das motivações que provocaram a mudança na concepção temporal se deve
ao surgimento do romance e do jornal, formas de “criação imaginária” que
emergeram na Europa do século XVIII, já que no entendimento de Anderson
(2008:55), “[...] essas formas proporcionaram meios técnicos para ‘re-presentar’
o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação”. A intensa ação da
imprensa ampliou o mercado de livros e criou uma infinidade de campos de
182
comunicação, fato que permitiu a consciência da existência de outros povos,
outras linguagens e, consequentemente, de outras “nações”.
2. Formação das nacionalidades na América Hispânica
A formação da América Latina decorrente da expansão marítima e
comercial européia resultou num cruzamento de povos de origens e de raças
diferentes. A imposição da cultura européia fez com que se passasse a imitar o
modelo estrangeiro com tal intensidade, que se vivia em função da história e da
cultura estrangeira, como se o povo americano não tivesse uma própria. Mais
tarde a tensão entre o nacional e o internacional fez surgir a necessidade de
legitimar as culturas americanas, tarefa que os intelectiuais latino-americanos
têm desenvolvido com afinco, reafirmando as diferenças mediante enfoques
diversos.
Ao longo do século XIX a maior parte dos países da América Hispânica
travou as denominadas “guerras de la independencia”. Como decorrência
desses conflitos começou a forjar-se nas sociedades americanas o sentimento
de nação. Segundo o pesquisador André Trouche essa tomada de consciência
nacional estava intimanente ligada ao desenvolvimento literário hispanoamericano, uma vez que “[...] o fenômeno de substituição do modelo colonial
por uma nova experiência política de nações independentes causa impacto
formidable no desenvolvimento do processo literário” (TROUCHE, 2006:67).
183
Trouche acrescenta também que o século XIX deve ser considerado “um
momento decisivo para a construção do projeto criador hispano-americano”.
Nos primeiros vinte e cinco anos do século XIX, época em que se
desenvolveu o processo de independência hispano-americano, além de ser
decisivo para o projeto literário, foi de vital importância para o desenvolvimento
das cidades dessas nações emergentes. De acordo com o raciocínio de
Trouche, as cidades hispano-americanas entraram num processo de
“hiperurbanização”, o que exigiu a implantação de serviços financeiros e
comerciais, além da produção de bens primários, mas, sobretudo se viveu a
urgência de “[...] constituir um aparelho de Estado”, assim como de criar as
condições necessárias para que essas cidades suportassem as “[...] ondas
migratórias européias que se encaminharam para a zona temperada da
América (Chile, Argentina, Uruguai e Paraguai)” (TROUCHE, 2006:68).
No decorrer do século XX, os intelectuais da América Latina têm-se
dedicado à tarefa de compreender e explicar o país e os seus habitantes. Na
procura por uma suposta identidade nacional não basta afirmar as diferenças, é
preciso mostrar quais os traços identitários. Enfim, buscar no contexto cultural
o lugar próprio para se enfrentar o desafio de nos diferenciarmos do outro
histórico, e assim assinalarmos a nossa identidade diante das diversidades
internas.
Assim, tentar-se-á um esboço para a configuração da identidade
nacional através das cidades chilenas em que Neruda viveu. Abordar-se-á o
papel do território geográfico na formação e permanência da identidade de um
grupo de indivíduos. Destacar-se-á a importância do território físico
compartilhado, seja natural (paragens do sul do Chile) ou elaborado
184
(construções urbanas de Santiago e Valparaíso), que servirá de base para a
reflexão sobre identidade nacional. O ambiente cotidiano, o território físico,
aspectos ambientais – clima, localização, limites geográficos – conjuntamente
com o componente simbólico e algumas aproximações históricas às cidades
destacadas serão as diretrizes que guiarão o estudo aqui proposto.
Na procura por uma identidade nacional, o território físico terá um papel
fundamental, na medida em que o sentimento de “pertencer” a uma região
concreta determina o “destino” do indivíduo. O afastamento desse lugar de bem
querer vai significar a perda de seu passado físico, ou seja, perda de seus
referentes cotidianos, ambientais e seus vínculos emocionais de lugar tão
importantes quanto os vínculos que se estabelecem com os diferentes grupos
sociais com os que o indivíduo interage. A relação entre identidade e
pertencimento é abordada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2005:1718), quando escreve o seguinte:
[...] o ‘pertencimento’ e a ‘identidade’ não tem a solidez de uma
rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastante
negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio
indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a
determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais
tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’. Em outras
palavras, a idéia de ter ‘uma identidade’ não vai ocorrer às pessoas
enquanto o ‘pertencimento’ continuar sendo o seu destino, uma
condição sem alternativa’.
Esse depósito cognitivo fica armazenado no inconsciente do indivíduo e
só virá à tona no momento em que não encontre no novo espaço o seu
passado físico. Neruda, em sua chegada a Santiago não identifica mais as
imagens que constituíam sua identidade de lugar, adquirindo um olhar de
185
estrangeiro43 porque “[...] aquele que não é do lugar, que acabou de chegar, é
capaz de ver aquilo que os que lá estão não podem mais perceber”
(PEIXOTO,1988: 363). Enquanto percebe o que os outros não vêem, esse
estrangeiro procura em sua memória as imagens que lhe são familiares, ou
seja, seu passado físico.
Da mesma maneira será observada a experiência de Neruda em
Valparaíso, lugar que visitava constantemente junto a seus companheiros de
juventude, poetas e pintores de não mais de vinte anos. O ambiente portuário,
diferente de Santiago, inspirou no jovem escritor sentimentos de liberdade,
alegria e êxtase. Em “El vagabundo de Valparaíso”, Neruda (2000:73) registrou
sua visão sobre o porto:
Valparaíso está muy cerca de Santiago [...] Sin embargo, algo
infinitamente indefinible distancia Valparaíso de Santiago. Santiago
es una ciudad prisionera, cercada por sus muros de nieve.
Valparaíso, en cambio, abre sus puertas al infinito mar, a los gritos
de las calles, a los ojos de los niños.
Como constatado, Santiago e Valparaíso apesar de serem duas cidades
tão próximas não apresentam características comuns no que se refere à
paisagem, nem ao povo que as habita. Valparaíso representou para Neruda
(2000:75) uma re-aproximação a sua terra de nascimento, a Araucanía
desejada:
De repente sentí una influencia extraña y arrebatadora que me
invadía. Era una fragancia montañosa, un olor a pradera, a
vegetaciones que habían crecido con mi infancia y que yo había
olvidado en el fragor de mi vida ciudadana. Me sentí reconciliado con
43
Termo utilizado por Nelson Brissac Peixoto no texto “O olhar do estrangeiro”. In: NOVAES
(1988) p. 361-365.
186
el sueño, envuelto por el arrullo de la tierra maternal […] Yo he vivido
entre estos cerros aromáticos y heridos.
Ao partir da premissa de que existe uma diversidade da cultura regional,
que ultrapassa as fronteiras políticas entre países e até entre os limites internos
de cada nação, Jorge Larrain (1996:207), ao desenvolver seu estudo Identidad,
razón y modernidad en América Latina, constatou que:
A maioria das sociedades latino-americanas não está culturalmente
unificada e, apesar de algumas formas centrais de integração e
sínteses que sem dúvida existem, as diferenças culturais são ainda
muito importantes.
Desta forma, se propõe a observação das características culturais, históricas e
geográficas dos espaços abordados visando confirmar as possíveis diferenças
identitárias entre cada território, o que resultará numa autonomia regional. A
realização deste exame crítico objetiva detectar comportamentos, valores e
hábitos comuns aos habitantes de cada um desses espaços, para estabelecer
traços identitários compartidos ou não pelos habitantes de Temuco, Santiago e
Valparaíso.
187
3. O sentimento nativista na configuração da identidade nacional
chilena
Yo he tenido el sentimiento de la historia, que es un poco la
conciencia del pueblo. En Temuco se desarrolló la mayor batalla de
la Araucanía. Los conquistadores españoles buscaban oro, oro, oro.
Pero con los indios araucanos no pudieron lograrlo, no sólo porque
eran pobres sino porque ningún pueblo indio de América resistió tan
ferozmente a los españoles. Es un hecho que se ha olvidado
demasiado.
Pablo Neruda, 1971∗.
Toda nação tem seus mitos fundacionais. Os de Chile estão nas
epopéias da conquista de uma terra abrupta, movediça, isolada e povoada de
indígenas guerreiros. Na geografia literária, há um Chile imaginário, construído
por novelistas e poetas inspirados pela fascinação que emana das
singularidades desse país, localizado num espaço geográfico peculiar nos
confins do mundo, com climas e ecossistemas diversos, paragens, vulcões,
geleiras e, desertos.
A primeira incitação poderosa na procura das origens do Chile foi a
Guerra de Arauco, e a ressonância mundial que alcançou com La Araucana45,
obra publicada em três partes (1569,1578 e 1589), um dos ápices da poesia
épica universal. Temos também o Arauco Domado (1596), poema épico de
∗
NERUDA In: TEITELBOIM (2003) p. 25.
Poema épico de Alonso de Ercilla y Zúñiga (1534-1594) baseado no conflito da Guerra de
Arauco, publicado em 1569. Narra as lutas das tropas espanholas contra os indomáveis
indígenas araucanos do Chile, que defenderam sua liberdade e suas terras com grande
valentia oferecendo suas vidas. A obra deve seu título a uma donzela que intercedeu por Ercilla
para que não fosse executado. Em sua honra, o poeta teria intitulado o poema La Araucana,
em gênero feminino.
45
188
Pedro de Oña46 (1570-1643), primeiro livro em versos de autor americano. O
Chile, que os aventureiros espanhóis começaram a conquistar e a colonizar,
era um território de guerreiros, com terras virgens e inexploradas. Para chegar
até o vale central tinha-se que passar a prova de atravessar o deserto mais
árido do mundo, Atacama. Ao sul estavam os mapuches que resistiram aos
incas e, mais tarde, aos espanhóis. Ainda hoje o povo mapuche reivindica seus
direitos em defesa de sua cultura e idiossincrasia. O Chile então se
transformou em fronteira de guerra. O poema épico La Araucana tematizou o
mito da nacionalidade chilena que se forja no choque dos povos guerreiros,
como retratado nos seguintes versos do Canto I, estrofe 6 (ERCILLA y
ZÚÑIGA,1982:12),
Chile, fértil provincia y señalada
en la región Antártica famosa,
de remotas naciones respetada
por fuerte, principal y poderosa;
la gente que produce es tan granada,
tan soberbia, gallarda y belicosa,
que no ha sido por rey jamás regida
ni a extranjero dominio sometida [...]
Esta obra tem sido equiparada às épicas da Idade Média como o
confirmam as palavras do professor chileno Roque Esteban Scarpa (1982:5),
Prêmio Nacional de Literatura em 1980:
O Chile tem a honra, graças a Alonso de Ercilla y Zúñiga, de ser a
única nação posterior à Idade Média cujo nascimento é cantado num
poema épico como o foram na Espanha com o “Poema del Cid”, na
França com “La Chanson de Roland” ou na Alemanha com “Los
Nibelungos”. [Trad. da autora]
46
Pedro de Oña, chileno: ” escreveu no Peru (1596) o poema intitulado ‘Arauco Domado’ que
exalta a participação de Hurtado de Mendoza na conquista do Chile, pois Ercilla não o
menciona em sua obra”. In: MILLAR (1972) p. 96. [Trad. da autora]
189
A Guerra de Arauco, narrada por diferentes cronistas no período
colonial, refere-se à guerra entre espanhóis e araucanos que durou trezentos
anos. Com o passar do tempo esses enfrentamentos se tornaram esporádicos
predominando as relações fronteiriças entre os araucanos e os criollos47
hispânicos. Esse mito tem construído boa parte da identidade chilena que,
nessa região austral começou a forjar-se da mistura dos habitantes oriundos do
território, com os soldados, campesinos e comerciantes espanhóis, que
chegaram a conquistar o país a partir do século XVI. No período colonial a
maior parte dos espanhóis provinha das regiões de Castilla e Andalucía. No
século XVIII começou a chegar uma corrente de imigrantes vascos, também
espanhóis, que se dedicaram preferencialmente ao comércio. Ao interagir com
os latifundiários castellanos deram origem à chamada aristocracia castellanavasca, que teria grande importância na organização da República no decorrer
do século XIX. A cultura chilena, mestiça desde sua origem, fixou-se
principalmente no Norte Chico, Chile Central e Chiloé. Somente no século XIX
outras áreas do território começaram a ser ocupadas pela população chilena.
Nessa tarefa de povoar, colonizar e gerar riquezas nas áreas do território antes
despovoadas, incorporaram-se novos imigrantes vindos de variados pontos do
mundo.
Na segunda metade do século XIX, o governo do Chile organizou a
colonização da Región de los Lagos (atual X Região) com colonos alemães
que ocuparam as zonas rurais dedicando-se especialmente às atividades
agropecuárias e suas indústrias derivadas. Logo, se integrou à região da
Frontera (atual IX Região), a que foi povoada por colonos alemães, suíços,
47
Termo com que se denomina aos descendentes dos europeus nascidos no Novo Mundo. In:
FUENTES (1997) p. 246.
190
franceses e italianos. Cabe destacar também um significativo número de
ingleses instalados especialmente em Valparaíso, visto que estes grupos de
imigrantes ocuparam espaços muito pouco povoados anteriormente. Estes
mantiveram seus costumes e exerceram grande influência cultural nos
territórios que ocuparam. A partir de meados e fins do século XIX, várias levas
migratórias diversificaram a cultura e a população chilena. Destacam-se dentre
elas a chegada de chineses a Tarapacá e de croatas a Magallanes e
Antofagasta. Também a Punta Arenas chegam alguns imigrantes hindus.
No século XX, italianos do Piemonte, espanhóis e judeus da Rússia e
Europa Central se instalaram nas diversas cidades do Chile Central. Grupos de
imigrantes sírios, libaneses e palestinos chegaram a todos os centros urbanos
estabelecidos até então no Chile. Diferente da colonização das regiões do sul,
esses imigrantes integraram-se aos espaços urbanos e dedicaram-se
especialmente ao comércio e à industria. Como constatado, o Chile possui uma
diversidade cultural significativa. Compreender a cultura chilena envolve
compreender essas diversidades.
Conseqüentemente, no Chile, como em outros países americanos,
nasce uma nova sociedade da união dos povos que cruzaram oceanos com os
povos já estabelecidos na América. Assim, podemos dizer que a espécie
humana tem estado sempre em movimento, procurando novas terras e novos
espaços e que num desses espaços nasceu o Chile, que desde 1818 é um
país independente.
Na procura por uma concepção de identidade nacional do povo chileno
seguir-se-á a abordagem adotada pelo professor Bernardo Subercaseaux
(1999:153) que define o conceito de identidade como a:
191
[...] mescla de tradições, línguas, costumes, circunstâncias históricas
compartilhadas, enfim tudo aquilo que configura os modos de ser e
de caráter de um povo e que constituem uma realidade operante [...]
uma concepção de identidade que admite os dois componentes: uma
mediação imaginária e discursiva, mas também a mediação extradiscursiva, ou seja, um referente que pode ser constatado e
delineado empírica e historicamente. [Trad. da autora]
Entende-se, neste estudo, “mediação imaginária e discursiva” como um
processo permanente de construção e reconstrução da comunidade imaginada,
as alterações ocorridas não levariam a uma perda da identidade, mas, ao
contrário, a uma mudança e enriquecimento das culturas.
A investigação da complexa trama de eventos e idiossincrasias da
cultura hispano-americana, neste caso, a chilena, trata-se de uma tarefa da
qual se têm ocupado muitos escritores. Em Pablo Neruda, um poeta que se
propôs não somente se referir à peculiaridade física do continente latinoamericano, mas também a observar as consonâncias que caracterizam os seus
conterrâneos, pode-se verificar que ele concebe a literatura também como um
registro das inquietações humanas e das incertezas do amanhã: o ser humano
possui uma identidade que transcende o espaço geográfico e o tempo.
Algumas pessoas fazem de suas vidas uma trajetória inspiradora, cheia
de significados. Temos assim, em Pablo Neruda, um desses autores que
através de sua obra nos leva a um exercício de reflexão sobre a identidade não
só dos chilenos, como também acerca da identidade de qualquer ser humano,
quando olhamos para elementos comuns ao Homem ao longo da História. A
afirmação anterior pode ser corroborada nas palavras de Julio Cortázar
(1984:89) quando reconhece que:
Na obra de escritores como Neruda [...] o leitor encontrou mais do
que poemas [...]. Encontrou signos indicadores, perguntas mais do
que respostas, porém perguntas que colocavam o dedo no mais
192
desnudo de nossas realidades e de nossas debilidades; encontrou
marcas da identidade que procuramos [...]. [Trad. da autora]
Como já foi observado no transcurso deste estudo, o discurso poético
citadino do poeta chileno parte do processo de deslocamento de um território,
Temuco, para outros que o distanciam criticamente do primeiro, Santiago e
Valparaíso. Cada uma destas cidades é reinterpretada subjetivamente pelo
escritor a partir de dois ângulos, o do habitante e o do estrangeiro. O poeta
desenvolve um olhar crítico em movimento contínuo que relaciona, distancia ou
aproxima esses lugares. Neruda vê os territórios de Santiago e Valparaíso em
relação a Temuco, cidades que são confrontandas num primeiro momento,
mais depois passarão a ser suas cidades também. As cidades se atualizam no
momento em que o poeta as conhece e as confronta com as que já fazem
parte da sua memória, e desse encontro do presente com o passado se forjará
a imagem do futuro, por que como afirma Iliá Ehrenburg48 (1990:15),
O escritor não escreve um livro porque precisa ganhar a vida. Um
escritor escreve um livro porque se sente impelido a comunicar para
os outros alguma coisa muito sua, porque “lhe dói” por dentro seu
livro, porque tem visto seres, fatos, sentimentos que não pode deixar
de descrever. Assim é como nascem os livros, cheios de paixão e
ainda que esses livros tenham defeitos artísticos, invariavelmente
comovem seus leitores. [Trad. da autora]
De acordo com a afirmação de Ehrenburg toda obra de arte está ligada à
identidade, seja do indivíduo, seja do povo em que se insere. Dessa maneira,
ao tentar estabelecer uma identidade de manifestações santiaguenhas,
Iliá Ehrenburg (1891-1967) é um dos mais conhecidos escritores soviéticos. Muito jovem foi
preso por fazer propaganda bolchevique em Moscou. Em 1909 emigrou para Paris.
48
193
portuárias e temucanas através da literatura, especificamente nos versos
nerudianos, estaremos concordando com Fernando Aínsa (1976:33) quando
afirma: “São os livros os que fazem o povo e não o contrário [...]”. Assim, a
cidade em Neruda, é a cidade real, a dos mapas, do mundo, a cidade onde o
indivíduo viaja, trabalha, ama, morre. A cidade dos encontros e desencontros.
Por isto o espaço da escrita nerudiana será muito significativo já que não
apresenta lugares inventados, mas sim territórios geográficos reais e
vivenciados, a partir dos quais o escritor construirá o sujeito citadino. Um olhar
mais próximo da realidade concreta onde cada vivência faz desdobrar outra
vivência, de maneira a formar uma rede sem fronteiras que unirá a memória e o
hoje, ou seja, passado e presente num só instante, um tempo unitário e não
único que resgata o real cotidiano do indivíduo que habita esses lugares, de
acordo com Rosalba Campra (1987:66):
[...] a abolição das fronteiras entre o mundo visível e o mundo
invisível, entre a vigília e o sonho, a vida e sonho, a vida e a morte, o
desejo e seu objeto, a realidade e a palavra que a nomeia; e tudo
isso apresentado com as conotações de uma prazeiroza
recuperação da realidade. [Trad. da autora]
Dessa maneira, a partir dos binômios: província / urbe ou passado /
presente pôde-se constatar que o poeta, através da imagem resultante dessa
interseção constrói simbolicamente aquele homem que, ante a modernidade,
se choca perante as rápidas transformações, perde sua identidade cultural,
questiona sua existência, sentindo-se estranho em sua própria terra.
Começaremos por examinar a construção da identidade na região da
Araucanía a partir da história desse território e do imaginário poético nerudiano
nos versos dedicados ao sul chileno. Ao refletir sobre a identidade em nível
194
regional, levanta-se a premissa de que existem diferenças culturais entre as
diversas regiões ou territórios de um país, ou seja, que as características
identitárias compartidas por uma comunidade ocorrem dentro de um espaço
determinado, independentemente de classe, profissão ou grau de escolaridade.
Os poemas nerudianos dedicados à região sul do Chile constituem um aporte à
historia
regional
singularidade
chilena,
como
também
um
resgate
apaixonado
da
do sujeito sulista. Neruda aproxima seu olhar à realidade
concreta, não escreve somente desde a abstração que o passar do tempo
possa provocar, mas a partir de sua própria experiência de vida.
4. O processo migratório como “rito de passagem”
É o próprio fato de viver que exige as passagens sucessivas de uma
sociedade especial a outra e, de uma situação social a outra, de tal
modo que a vida individual consiste em uma sucessão de etapas,
tendo por término e começo conjuntos da mesma natureza, a saber,
nascimento, puberdade social, casamento [...].
Arnold van Gennep∗.
O etnólogo Arnold van Gennep (1873-1957) escreveu em 1909 o livro
Les Rites de Passage, no qual o indivíduo, ao longo da vida realiza a
passagem de inúmeras fronteiras que demarcam as idades ou eventos da
existência humana; por exemplo, ocorre a passagem da infância para a
juventude e desta para a vida adulta. Há também eventos na vida do indivíduo
que podem ser considerados como marcos a serem ultrapassados: batizados,
casamentos, formaturas, etc. O indivíduo ao superar estes marcos simbólicos
∗
GENNEP (1977) p. 26.
195
passa pelo que Gennep denominou “ritos de passagem”, e é através deles que
o homem toma consciência das mudanças em sua vida.
Para ilustrar em que consistem os denominados “ritos de passagem” o
autor comparou as sociedades indígenas a uma casa dividida em vários
corredores e quartos isolados uns dos outros. Dentro dessa casa pessoas e
grupos circulavam pelos quartos, mas para se passar de um quarto para outro,
eram necessárias certas formalidades ou cerimônias. Desta forma, percebe-se
que além de representar uma transição particular para o indivíduo, os “ritos de
passagem” representam igualmente a progressiva aceitação e participação em
determinado grupo social. Trata-se de um processo simultaneamente de cunho
particular e coletivo. O rito se define, como explica Roberto Da Matta (1977:11),
da seguinte maneira:
[...] aquilo que está aquém e além da repetição das coisas “reais” e
“concretas” do mundo rotineiro. Pois o rito igualmente sugere e
insinua a esperança de todos os homens na sua inesgotável vontade
de passar e ficar, de esconder e mostrar, de controlar e liberar, nesta
constante transformação do mundo e de si mesmo que está inscrita
no verbo viver em sociedade.
Através de exemplos recolhidos em civilizações muito diversas, Gennep
colocava em evidência a similaridade profunda das manifestações que se
referem aos ciclos de vida do indivíduo, ao ciclo familiar, à passagem do
tempo, aos ciclos das estações, dos dias, das tarefas. Segundo Gennep
(1977:26), em qualquer tipo de sociedade a vida individual
[...] consiste em passar sucessivamente de uma idade a outra e de
uma ocupação a outra. Nos lugares em que as idades são
separadas, e também as ocupações, estas idades, esta passagem é
acompanhada por atos especiais, que, por exemplo, constituem para
196
nossos ofícios a aprendizagem, e que entre os semicivilizados
consistem em cerimônias [...].
Os “ritos de passagem”, então, conferem sentido às transições entre
estágios sucessivos da vida dos indivíduos, demarcam um antes e um depois
configurando rupturas com o quotidiano. Portanto, para os indivíduos, como
para os grupos, afirma Gennep (1977:157-158),
[...] viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de
estado e de forma, morrer e renascer. É agir e depois parar, esperar
e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo
diferente. E sempre há novos limiares a atravessar [...].
O etnólogo identificou, na seqüência que compõe a passagem desses
ritos, três fases: separação, margem e agregação. De acordo com essas fases,
num primeiro estágio o indivíduo será ‘separado’ do curso normal da vida e do
grupo ao qual pertence e, conseqüentemente, perderá seu equilíbrio e passará
a levar uma existência à ‘margem’. Finalmente, uma vez consumada a
passagem, será reintegrado à vida normal da comunidade, ocorrendo a
‘agregação’ e recobrando com isto o equilíbrio que o leva a assumir sua nova
condição.
O referido autor designou também essas três fases pelos termos prélimiar, limiar49 e pós-limiar. Deste modo, conferiu uma posição central à
condição de ‘margem’ (limiar) deixando nas posições periféricas aquilo que a
antecede e que a sucede (pré-e pós-limiar). Assim, a fase da margem adquire
grande importância já que passa a ser a interseção entre os universos. De
49
O termo limiar indica o começo ou início de alguma coisa, fase que designa no estudo de
Gennep o momento anterior à passagem total dos ritos.
197
acordo com esse raciocínio, a ‘margem’ constitui uma zona fronteiriça ou
neutra uma vez que “flutua entre dois mundos” (GENNEP, 1977:36).
As fronteiras a serem transpostas podem estar definidas por marcos
naturais como rochedos, árvores, rios, ou por construções humanas,
especialmente implantadas com essa intenção: postes, pórticos ou muros. De
modo semelhante, a passagem a todas as escalas do espaço, ao país, a um
território, uma cidade, uma aldeia ou uma casa constituem obstáculos a serem
transpostos. A margem – a zona neutra definidora do limite, isto é, a zona limiar
– corresponderá então à porta dos muros da cidade, do bairro, da casa. De
maneira que o indivíduo imerso numa profunda e prolongada limiaridade ou
fronteira mudará o comportamento e se retemperará por meio do trabalho
árduo e extenuante que representa a busca da inserção no novo espaço ou
estado ao qual ingressa.
De acordo com o anterior, o indivíduo durante o processo de passagem,
experimentará a ‘separação’, a seguir, vivenciará a ‘margem’ para finalmente
concluir a passagem vivenciando a ‘agregação’ a esse novo universo, situação
ou condição. Deve-se ter em conta também que o grau de duração de cada
uma dessas três fases não é equivalente. Pode acontecer que uma delas seja
bem desenvolvida, chegando a constituir uma etapa autônoma.
O estudo da poesia citadina de Pablo Neruda possibilitou identificar na
literatura um processo análogo ao apontado por Gennep. Trata-se de uma
cartografia simbólica revelada através da palavra poética resultante dos
deslocamentos territoriais de Neruda, os quais eram constantes. O estudo até
agora desenvolvido permite afirmar que assim como ocorrem os ‘ritos de
passagem’ na existência humana, na obra literária se verifica o ‘rito de
198
passagem’ do real histórico para o real simbólico, processo no qual também é
possível observar as três fases anteriormente apontadas por Gennep: a
separação, a margem e a agregação.
O processo criativo nerudiano, no que se refere ao rito de pasagem,
permite identificar três elementos: o corpo que escreve, o corpo-viajante50 e o
corpus da escritura. No processo de escritura, o corpo que escreve materializa
um outro corpo que se afasta de seu criador e se transforma numa entidade
autônoma e diferente: o corpus da escritura. Mas esse novo corpus, enquanto
representação material da palavra fica sempre submetido à sistematização e à
organização do corpo que escreve.
Em Neruda a passagem do corpo que escreve para o corpus da
escritura está mediado pelo denominado corpo-viajante, o qual se desdobra
originando um corpo simbólico revelado em palavras e imagens que se
materializam no corpus da escritura51. Na referida fase da ‘separação’ o corpo
que escreve realiza a interação entre os aspectos emanados do real histórico e
do real simbólico, enquanto, o corpo-viajante situado na ‘margem’ se debate
entre o que vê, o que sente e o que imagina. A permanência na zona limiar
originará o surgimento de um sujeito lírico fronteiriço localizado entre o universo
rural e o universo urbano, processo que pode ser ilustrado da seguinte
maneira:
Corpo-viajante denominação empregada pelo professor Rogério Lima para fazer referência à
relação entre o texto literário e a leitura sobre a metáfora da viagem. Tema abordado em seu
ensaio “Corpos-letrados, corpos-viajantes, corpos-eléctricos”. In: COUTINHO (2007) pp.136142.
50
51
O trânsito do corpo no real histórico para o corpo no real simbólico foi desenvolvido pela
pesquisadora e professora Mariluci Guberman em sua obra, publicada no Brasil e na Espanha
(GUBERMAN, 1997: 97-101).
199
Corpo que escreve
Corpo-viajante
Corpus da escritura
Real histórico
Imaginação
Real simbólico
pré-limiar
limiar
pós-limiar
separação
margem
agregação
Espaço primigênio: rural
Espaço conflitante: urbano
Espaço simbólico:
Identidade cultural primeira
Perda das referências de
lugar
Incorporação de
novas
Olhar de estrangeiro
experiências
Sujeito fronteiriço
Sujeito integrado
Elementos telúricos
Sentimento de
pertencimento
O pesquisador Luiz Edmundo Bouças (2007:208), ao estudar o sentido
da viagem na obra do escritor brasileiro João do Rio constatou que o escritor
revela através de suas crônicas: “[...] um olhar que não procura apenas a
novidade, no sentido aventureiro da viagem, mas o olhar que pretende ratificar
no real o contorno do imaginário [...]”. Analogamente se cumpre o trânsito do
real histórico do corpo que escreve para o real simbólico do corpus da
escritura, processo criativo que permitirá ao leitor perceber a partir do texto
poético o sentido da viagem na obra nerudiana como será apresentado a
seguir.
4.1 O corpo-viajante do poeta peregrino
Hombre para la penumbra necesito,
Mujer para penumbra,
En esta media tierra
estoy vencido:
yo necesito la luz más oscura:
sé que otros pueblan
la sombra indeclinable,
200
que la extienden
como si fuera alfombra
y de otros es la luz, el alfabeto.
Yo no descanso
en esta
latitud:
acabo de llegar:
quiero seguir el viaje.
“El viajero"
Pablo Neruda, 1968*.
Na literatura hispano-americana a viagem esteve sempre presente,
conforme afirma a pesquisadora chilena Ana Pizarro (2006:45): “Os viajantes
foram nossos ‘descobridores’: portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses e
franceses, que deixaram suas cartas suas crônicas, seus relatórios, suas
memórias”, e acrescenta, “Os viajantes com destino à América dos séculos
XVII e XVIII inspiraram-se por sua vez, em outros viajantes: as leituras de
Marco Polo, Pigaffetta, Bougainville impulsionaram seus imaginários”.
A viagem é sem dúvida uma experiência transformadora. Depois dela o
viajante nunca volta a ser o mesmo. Portanto, cada viagem pode ser
compreendida como um processo iniciático em direção ao novo, ao
desconhecido, posto que, ainda que o indivíduo viaje a um lugar conhecido,
seu olhar nunca será o mesmo.
Neruda, por sua vez, realizou a primeira viagem com apenas dois anos de
idade, experiência rememorada tardiamente no poema “Primer Viaje” (Neruda
1993a:1023-1024), publicado em 1964:
No sé cuándo llegamos a Temuco.
Fue impreciso nacer y fue tardío
*
NERUDA (1993b) p.310-311.
201
nacer de veras, lento,
y palpar, conocer, odiar, amar,
todo esto tiene flor y tiene espinas.
Del pecho polvoriento de mi patria
me llevaron sin habla
hasta la lluvia de la Araucanía.
Las tablas de la casa
olían a bosque,
a selva pura.
Desde entonces mi amor
fue maderero
y lo que toco se convierte en bosque.
[...]
Del hacha y la lluvia fue creciendo
la ciudad maderera
recién cortada como
nueva estrella con gotas de resina,
y el serrucho y la sierra
se amaban noche y dia
cantando,
trabajando,
y ese sonido agudo de cigarra
levantando un lamento
en la obstinada soledad, regresa
al proprio canto mío:
mi corazón sigue cortando el bosque,
cantando con las sierras en la lluvia,
moliendo frío y aserrín y aroma.
Estes versos revelam o significado primordial que teve a primeira viagem
para Neruda. Relembrar a primeira travessia, do alto de seus sessenta52 anos
de idade, foi voltar às suas origens, à cidade primigênia, Temuco. Ir para essa
nova cidade significou um renascer53, porque a nova terra e a nova família
trouxeram uma nova vida, como o próprio Neruda escreveu, “Fue impreciso
nacer y fue tardío / nacer de veras”.
Renascer numa cidade que estava “nascendo”
54
foi também um fato
marcante, pois a cidade e o seu novo habitante [Neruda] foram crescendo
juntos, “Del hacha y la lluvia fue creciendo / la ciudad maderera / recién
cortada”. Do encontro desses dois corpos cheios de vida surgiu um elo que se
52
O poema “Primer viaje” faz parte da obra Memorial de Isla Negra publicada em 1964. Neruda
quiz publicar a obra nesse ano para comemorar seu aniversário de número sessenta.
53
A mãe de Neruda morreu dois meses após seu nascimento.
54
A cidade de Temuco foi fundada em 1881, por tanto, à chegada de Neruda no ano de 1906 a
cidade contava com apenas vinte e cinco anos.
202
fortaleceu com o passar do tempo e, apesar do afastamento decorrente das
viagens, permaneceu vivo na alma e nos versos do poeta: “Desde entonces mi
amor / fue maderero / y lo que toco se convierte en bosque [...] mi corazón
sigue cortando el bosque, / cantando con las sierras en la lluvia, / moliendo frío
y aserrín y aroma”.
Cabe chamar a atenção para a relação que se estabeleceu entre a cidade
da infância e a vida adulta do sujeito poético nerudiano. Este nexo fica evidente
pela ação de deslocamento, pela viagem, já que é através dela – seja no tempo
ou no espaço – que o sujeito lírico se transporta até sua terra de origem.
Constata-se também uma “memória de viagem” e uma identificação com o
retorno, fato que Neruda confirmou poeticamente quando escreveu “mi única
travesía es un regreso” (NERUDA, 2004b:34-35):
Yo soy el hombre de tantos regresos
que forman un racimo traicionado,
de nuevo, adiós, por un temible viaje
en que voy sin llegar a parte alguna:
mi única travesía es un regreso.
A viagem para Temuco pode ser considerada a “viagem iniciática
nerudiana”, a primeira de muitas realizadas ao longo de 69 anos de vida.
Enquanto morou em Temuco o jovem escritor realizou inúmeras peregrinações
pela região da Araucanía, sempre a bordo do trem dirigido por seu pai,
aventuras que ficaram registradas em suas Memórias:
[...] El tren recorría un trozo de aquella provincia fría desde Temuco
hasta Carahue. Cruzaba inmensas extensiones deshabitadas, sin
cultivos, cruzaba los bosques vírgenes, sonaba como un terremoto
por túneles y puentes [...] Cada estación tenía un nombre más
hermoso, casi todos heredados de las antiguas posesiones
araucanas [...] Labranza era la primera estación, Boroa y Ranquilco la
seguían. Nombres con aroma de plantas salvajes, y a mí me
203
cautivaban con sus sílabas [...] Y luego llegaba a la ciudad fluvial. El
tren daba sus pitasos más alegres, oscurecía el campo y la estación
ferroviaria con inmensos penachos de humo de carbón, y se olía ya el
curso ancho, celeste y tranquilo, del río Imperial que se acercaba al
océano [...] De esto hace ya muchos años, pero esa comunión, esa
revelación, ese pacto con el espacio han continuado existiendo en mi
vida (NERUDA, 2000:20-26).
O texto anterior confirma a forte ligação de Neruda com seu espaço
primigênio, elo forjado do perambular pelo próprio território, ação que lhe
proporcionou o sentimento de pertencer a uma determinada região, sentimento
que Neruda denominou no texto supracitado como “pacto con el espacio”.
Após a denominada viagem iniciática, Neruda realizou inúmeras
travessias pela região da Araucanía, aprofundando em cada percurso seu
conhecimento sobre a flora, a fauna e a geografia desse território. Uma dessas
travessias foi repetida ano após ano durante a infância e adolescência do
escritor. Trata-se dos verões em Bajo Imperial, também conhecido como
Puerto Saavedra. Foi nessa localidade que o poeta pela primeira vez viu e
ouviu o mar, “el trueno marino”, como o poeta denominou a imensidão azul.
Desse primeiro contato com o oceano o vate recorda:
[...] quedé sobrecogido. Allí, entre dos grandes cerros (el Huilque y el
Maule) se desarrollaba la furia del gran mar. No sólo eran las
inmensas olas nevadas que se levantaban a muchos metros sobre
nuestras cabezas, sino su estruendo de corazón colosal, la
palpitación del universo” (NERUDA, 2000:23).
Aquela era a paisagem que lhe oferecia Bajo Imperial, um pequeno
povoado com apenas uma fileira de casas defronte a um rio. Assim como
Temuco, Bajo Imperial exerceu um efeito nostálgico que acompanhou o poeta
ao longo de sua vida. As viagens da infância e adolescência realizadas pela
204
Araucanía ofereceram os componentes telúricos que marcaram a criação
literária de Pablo Neruda: elementos sentidos e admirados pelo pequeno
viajante, e valorizados pelo viajante adulto em suas peregrinações pelo mundo.
As saudosas viagens da primeira idade foram temas de inúmeras poesias
nerudianas. Podem-se citar, por exemplo, versos de “El tren nocturno”
(NERUDA, 1993a:1047) transcritos a seguir:
Oh largo Tren Nocturno,
muchas veces
desde el sur hacia el norte,
entre ponchos mojados,
cereales,
bolas tiesas de barro,
[...]
Tal vez comencé entonces
la página terrestre,
aprendí los kilómetros
del humo
la extensión del silencio.
Pasábamos Lautaro,
robles, trigales, tierra
de luz sonora y agua
victoriosa: [..]
Dentre as travessias nerudianas, sua saída de Temuco aos dezessete
anos para morar na capital, Santiago, representou um divisor de águas em sua
vida. Viagem feita também de trem e dada a conhecer pelo autor com as
seguintes palavras: “[...] entré en la tercera clase del tren nocturno que tardaba
un día y una noche interminables en llegar a Santiago” (NERUDA, 2000: 40).
Além de relatar o tempo que tardava o trem em chegar à capital, o poeta
acrescentou a visão e as sensações experimentadas nessa sua primeira
viagem para fora de Temuco, uma experiência de grande repercussão em sua
prosa e poesia. Textos nos quais se constata o contraponto entre o corpo da
cidade urbana e o corpo da cidade rural, oposição resultante da observação
205
feita através das janelas do trem, imagens que passavam diante dos olhos
desse corpo viajante como se fosse um filme: “Entre tanto el tren pasaba, de
los campos con robles y araucarias y las casas de madera mojada, a los
álamos del centro de Chile, a las polvorientas construcciones de adobe”.
Observa-se que a capital adquire uma conotação negativa, um cenário sem
vida, enquanto que a área rural proporcionava uma paisagem vigorosa.
Percebe-se também um Neruda perdido, sem referências, ao chegar à
cidade grande:
Muchas veces hice aquel viaje de ida y vuelta entre la capital y la
provincia, pero siempre me sentí ahogar cuando salía de los grandes
bosques, de la madera maternal. Las casa de adobe, las ciudades
con pasado, me parecían llenas de telarañas y silencio (NERUDA,
2000:40).
Já em seu discurso dedicado à província o vate termina reforçando
suas raízes sulistas quando escreve: “Hasta ahora sigo siendo un poeta de la
interperie, de la selva fría que perdí desde entonces” (NERUDA, 2000:40).
Após a primeira viagem à capital, Neruda realizou sucessivas peregrinações
entre Santiago a Valparaíso, alternando-as com regressos fugazes ao sul.
O doloroso afastamento de sua terra de crescimento pode ser
acompanhado nos versos de “El tren nocturno”, meio de transporte que tanto o
enraizou em seu território primigênio, quanto o afastou e o levou para a cidade
moderna, onde se deparou com uma paisagem austera:
[...]
Ay, pequeño estudiante,
ibas cambiando
de tren y de planeta,
entrabas
en poblaciones pálidas de adobes,
206
polvo amarillo y uvas.
A la llegada ferroviaria, caras
en el sitio de los centauros,
no amarraban caballos sino coches,
primeros automóviles.
Se suavizaba el mundo
y cuando
miré hacia atrás,
llovía,
se perdia mi infancia.
[...]
Do poema supracitado se depreende a dor do sujeito lírico ao perceber
que o meio de transporte que fortalecera os laços com sua terra primigênia
também cortava suas raízes sulistas. O poema segue assim:
Entró el tren fragoso en Santiago de Chile, capital,
y ya perdí los árboles,
bajaban las valijas
rostros pálidos, y vi por primera vez
las manos del cinismo:
entre en la multitud que ganaba o perdía,
me acosté en una cama que no aprendió a esperarme,
fatigado dormí como la leña,
y cuando desperté
sentí un dolor de lluvia:
algo me separaba de mi sangre
y al salir asustado por
la calle
supe, porque sangraba,
que me habían cortado las raíces
No ano de 1927, Neruda inicia suas viagens de navio ao exterior. A
primeira foi ao Oriente, uma expriência que trouxe muita solidão e sofrimento
como registrado nos versos de “El viajero” (NERUDA,1999:812) escrito no
mesmo ano da viagem:
Y salí por los mares a los puertos.
El mundo entre las grúas
y las bodegas de la orilla sórdida
mostró en su grieta chusmas y mendigos,
compañías de hambrientos espectrales
en el costado de los barcos.
Países
207
recostados, resecos, en la arena,
trajes talares, mantos fulgurantes
salían del desierto, armados
como escorpiones, guardando el agujero
del petróleo, en la polvorienta
red de los calcinados poderíos [...]
A partir de então o sujeito nerudiano experimenta sensações novas
provocadas pela visão de paisagens e situações nunca antes experimentadas,
a começar pelo tipo de viagem, não mais por terra e, sim, por mar. As estações
de belos nomes com perfume de flores selvagens deram lugar à paisagem suja
dos portos com “las grúas / y las bodegas de la orilla sórdida / mostró en su
grieta chusmas y mendigos”. Após a volta do Oriente em 1932, as viagens
tanto nacionais quanto internacionais continuaram a ser uma constante na vida
do poeta.
Através dos textos acima selecionados, o corpo viajante revelou que da
experiência da viagem resultaram duas vertentes muito significativas: por um
lado, percorrer regiões que fazem parte do cotidiano do indivíduo e interiorizarse no conhecimento do corpo da cidade que o acolheu na primeira idade
proporcionou um sentimento de pertencimento e identificação com o território e
por outro lado, perambular e se interiorizar em regiões desconhecidas
proporcionou ao corpo viajante a consciência da singularidade da sua região
primigênia. Conforme constatou-se, Pablo Neruda tinha predileção pelas
viagens, especialmente pelas longas travessias nas quais aproveitava o tempo
para escrever. Amava sua pátria, mas ao viajar pelo mundo ia se apaixonando
por outras culturas e outros povos. Dedicou poemas a cada um dos lugares
que conheceu, mas, às vezes, preferia viajar sem mover-se de sua casa, sem
abandonar o seu país, sem afastar-se das coisas que amava. Emir Rodríguez
208
Monegal percebeu essa característica nerudiana quando certeiramente o
batizou de “Viajero inmóvil”, porque sem dúvida, a maior viagem do poeta foi a
que realizou para dentro de si mesmo, às profundezas de sua infância, de sua
juventude, de suas paixões, de suas raízes.
Logo, a experiência da viagem apresentada nos escritos nerudianos
pode ser interpretada como uma forma de conhecimento do outro e de
reconhecimento de si mesmo. Pode-se dizer também que Neruda tinha a
vocação de viajante, pois como ele mesmo enfatizou: Yo no descanso / en esta
latitud:/ acabo de llegar:/ quiero seguir el viaje.
Partindo desta premissa, os significados da viagem no processo
migratório nerudiano serão analisados a seguir.
4.2 A migração de Temuco para Santiago
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e
desconhecida da alma humana. É uma das mais difíceis de definir. O
ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na
existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros
do passado e certos pressentimentos do futuro. Participação natural,
isto é, que vem automaticamente do lugar, do nascimento, da
profissão, do ambiente. Cada ser humano precisa ter múltiplas
raízes. Precisa receber quase que a totalidade de sua vida moral,
intelectual, espiritual, por intermédio dos meios de que faz parte
naturalmente.
Simone Weill, 1943.*
Como exposto anteriormente, à primeira viagem, involuntária, realizada
por Neruda aos dois anos de idade, entre Parral e Temuco, seguiram-se
*
WEILL (1979) p.347.
209
sucessivos deslocamentos dentro da região da Araucanía. Mas, a partir dos
dezessete anos de idade, a vida do poeta foi sendo marcada por viagens além
desses limites e provocaram mudanças e questionamentos existenciais no
jovem escritor. Afastar-se do ceio familiar, da paisagem rural, assim como da
cultura e dos costumes sulistas, que constituíam seu universo para penetrar na
capital política e econômica de seu país, significou uma experiência difícil e
conflituosa que se prolongou por vários anos.
O sentimento de perda experimentado por Neruda ao ver-se privado dos
elementos que constituíam sua identidade foi mais intenso por se tratar de uma
transição
entre
dois
espaços
totalmente
antagônicos.
Ainda
que
o
deslocamento tenha acontecido dentro do próprio país, as diferenças regionais
existentes no Chile atingiram nele um grau considerável devido a seu forte
“enraizamento” com sua cidade de origem, já que, como explica Benjamín
Subercaseaux (2005:125), “Una ciudad es un conjunto de modalidades propias,
intransferibles, que revisten al hombre en sus relaciones con los demás; es
algo sujeto al suelo y a su geografia”.
Da mesma forma, os fatores externos a uma determinada cultura
constituem elementos fundamentais nas relações humanas como o destaca
Simone Weill (1979:347), ao afirmar que, “As trocas de influências entre meios
muito diferentes não são menos indispensáveis das que o enraizamento no
ambiente natural”, mas as influências exteriores só poderão passar a formar
parte do indivíduo depois de serem “digeridas”, processo que não se dá
instantaneamente.
Em 1921, época em que Neruda partiu, a cidade de Temuco era ainda
um território sem marcas de urbanização, uma paisagem de florestas virgens
210
no meio da qual estava sua casa “[...] la casa sin ciudad, apenas protegida / por
reses y manzanos” como registrado pelo próprio poeta no poema “La frontera
(1904)” de Canto Genera (Neruda,1999:801-808),
[…]
Mi infancia recorrió las estaciones: entre
los rieles, los castillos de madera reciente,
la casa sin ciudad, apenas protegida
por reses y manzanos de perfume indecible,
fui yo, delgado niño cuya pálida forma
se impregnaba de bosques vacíos y bodegas.
Por outro lado, na cidade de Santiago já se vivia o denominado
“fenômeno urbano”
55
: característica compartida pelas cidades povoadas por
uma multidão de seres que vêm de todos os cantos de um país. Uma multidão
que tem por característica básica a individualidade, a experiência da destruição
dos laços comunitários e a vivência da dissolução das referências sócioculturais que orientavam o cotidiano dos indivíduos. Assim também, Santiago
nos últimos anos do século XIX já desenhava uma cultura metropolitana que
segundo Carlos Fuentes (1997:303),
[…] o melhor exemplo de êxito de uma sociedade burguesa na
América Latina se encontrava no Chile. O Chile, controlando o
comércio do Pacífico através de Valparaíso, viu o nascimento de
grandes fortunas e, junto com elas, a criação de instituições políticas
únicas no continente americano. [Trad. de autora]
No século XX as cidades manifestaram-se como o centro do poder e do
progresso no Chile atraindo uma enorme população. Contudo a procura por
melhores expectativas de trabalho mudou de forma drástica seus modos de
vida. Os que sairam da província com um forte apego à terra tiveram que
55
Emprega-se “fenômeno urbano” na acepção de Octavio Velho. VELHO (1987) p.7.
211
adaptar-se a um novo sistema de vida onde o indivíduo se vê forçado a
assumir um ritmo acelerado. Esses fatores determinaram contrastes profundos
entre a vida rural e a urbana, aspecto destacado por Neruda no texto “Glosas
de la ciudad I” publicado no nº 29 da revista Claridad datada em 13 de agosto
de 1921, somente três meses após sua chegada à capital:
[…] Sé tu vida febril: de la cama a la calle, de ahí al trabajo. El
trabajo es oscuro, torpe, matador. Después almuerzo rápido. Y al
trabajo otra vez. Después la comida, el cuerpo extenuado y la noche
que te hace dormir. Ayer, mañana, pasado, sucedió y sucederá lo
mismo (Neruda, 2001:353).
Dois meses depois, no nº 36 da revista citada, Neruda (2001:257) publicou
“Glosas de la provincia”:
La vida, la vida es cosa lenta. Por eso hay que pensar desde luego,
en dejar que pase sin saber que pasa […] Cuando comienza a caer
la lluvia hay que tener una casa y un tejado y un brasero. Después,
si llega el tiempo bueno, que haya una arboleda grande donde
descansar.
Nos textos selecionados observa-se o contraste entre os ritmos de vida da
província e da cidade grande, fenômeno que segundo Georg Simmel (1987:14)
decorre dos seguintes fatos:
A metrópole extrai do homem, enquanto a criatura que procede a
discriminações, uma quantidade de consciência diferente da que a
vida rural extrai. Nesta, o ritmo da vida e do conjunto sensorial de
imagens mentais flui mais lentamente, de modo mais habitual e mais
uniforme. é precisamente nesta conexão que o caráter sofisticado da
vida psíquica metropolitana se torna compreensível – enquanto
oposição à vida da pequena cidade, que descansa mais sobre
relacionamentos profundamente sentidos e emocionais.
O forte enraizamento demonstrado por Neruda com a província de
origem e as diferenças apontadas entre os territórios em questão são as
212
causas principais de seu conflito identitário. O fenômeno experimentado por
Neruda pode encontrar explicação no estudo realizado pelo professor chileno
Carlos Amtmann (1997:8-9) sobre a identidade regional:
O núcleo de cada cultura é sua identidade, entendido como a
maneira particular de ser, a própria e singular modulação das
variantes universais da cultura no eixo do tempo e na dimensão do
espaço […] A identidade supõe um sentimento de pertencer que é
anterior ao auto-reconhecimento do grupo e que expressa a
valorização dos elementos que configuram a própria cultura: hábitos,
costumes, crenças […]. [Trad. da autora]
Traçadas as principais características dos territórios abordados será
retomado o tema dos ‘ritos de passagem’, isto é, os processos de transição que
atingem o indivíduo na sua passagem de uma condição a outra, de um mundo
social a outro, ou de um território a outro. Sendo assim, pode-se estabelecer
que a fase de ‘separação’ se declarou iniciada no momento em que Neruda se
afastou da região da Araucanía e se dirigiu a Santiago, mas na transição o
poeta não atingiu emocionalmente seu destino final, ficando na interseção dos
dois universos, ou seja, na fase limiar. De maneira que enquanto se encontrou
no estágio de ‘trânsito’ sua permanência na fase limiar se prolongou, e
somente foi ultrapassada no momento em que ocorreu a ‘integração’ ao ‘outro
universo’, já que é preciso passar para permanecer.
Um transitante que
retorna à condição de origem não cumpre a passagem, correndo o risco,
portanto, de se ver eternamente mergulhado no limbo ou fronteira.
Ao chegar a Santiago Neruda se deparou com um mosaico de contrastes,
movimento e barulho, características das cidades em pleno desenvolvimento,
bondes de formas e cores variadas que transitavam num vai-vem interminável.
O centro de Santiago poderia ser qualquer cidade européia. Nela se
observavam prédios e casas velhas transformadas em elegantes lojas, mas ao
213
afastar-se do centro de luxo, surgiam construções menos elegantes
distribuídas aos lados do rio Mapocho: de um lado surgia um conglomerado de
casas, depósitos e sórdidos bares, do outro lado do rio, velhos bairros
residenciais que assombram por sua miséria. Também a capital chilena
albergava uma infinidade de parques que se conservam até hoje: Parque
Forestal, Cousiño e Quinta Normal, para nomear alguns.
Santiago, um caleidoscópio de paisagens e atrações diversas: o centro
com suas lojas e prédios, os velhos bairros residenciais, o arrabal à beira do
Mapocho e seus parques, juntamente com seus habitantes constituia um modo
único de ser. As experiências vividas por Neruda em Santiago foram
registradas pelo poeta assim que chegou à capital, prova disto é que em seu
primeiro livro, Crepusculario, datado de 1923, há uma série de poemas alusivos
a sua vida na capital chilena, conforme constatado em “Mi alma es un ‘carrucel’
vacío en el crepúsculo” (NERUDA,1999a:137-138) do capítulo “Los crepúsculos
de Maruri”:
AQUÍ ESTOY CON mi pobre cuerpo frente al crepúsculo
que entinta de oros rojos el cielo de la tarde:
mientras entre la niebla los árboles obscuros
se libertan y salen a danzar por las calles.
Yo no sé por qué estoy aquí, ni cuando vine
ni por qué la luz roja del Sol lo llena todo:
me basta con sentir frente a mi cuerpo triste
la inmensidad de un cielo de luz teñido de oro,
la inmensa rojedad de un sol que ya no existe,
el inmenso cadáver de una tierra ya muerta,
y frente a las astrales luminarias que tiñen el cielo,
la inmensidad de mi alma bajo la tarde inmensa.
Nesses versos Neruda apresenta a visão triste e confusa de sua rua
santiaguenha. Uma rua sem vida que não produz nada “el inmenso cadáver de
una tierra ya muerta”, onde as árvores são prisioneiras e aproveitam-se da
214
escuridão da noite para se libertar, “mientras entre la niebla los árboles
obscuros/se libertan y salen a danzar por las calles”. O sujeito poético com o
corpo estático, a alma vazia e um turbilhão de sentimentos agitando sua mente
contempla a cena, como “...un carrucel vacío en el crepúsculo”.
Maruri era o nome da rua em que ficava a pensão onde Neruda se
hospedou ao chegar a Santiago em março de 1921. Foi nessa rua que o poeta
se inspirou para escrever os poemas de Crepusculario. Em Confieso que he
vivido Neruda (2000:40 e 64) registrou esse momento:
Venía recomendado a una casa de pensión de la calle Maruri, 513
[...] En la calle nombrada me sentaba yo al balcón a mirar la agonía
de cada tarde, el cielo embanderado de verde y carmín, la
desolación de los techos suburbanos amenazados por el incendio
del cielo.
En la calle Maruri, 513, terminé de escribir mi primer libro […] El
capítulo central de mi libro se llama “Los crepúsculos de Maruri”.
Nadie me ha preguntado nunca qué es eso de Maruri. Talvez muy
pocos sepan que se trata apenas de la humilde calle visitada por los
más extraordinarios crepúsculos.
Enquanto na província o jovem enfrentava a força da natureza, o frio, as
chuvas, na cidade moderna teve de lutar contra os próprios homens, a solidão
e o anonimato, hostilidades que lhe provocaram uma profunda angústia,
“Barrio sin luz”.
¿Se va la poesía de las cosas
o no la puede condensar mi vida?
Ayer —mirando el último crepúsculo—
yo era un manchón de musgo entre unas ruinas.
Las ciudades -hollines y venganzas-,
la cochinada gris de los suburbios,
la oficina que encorva las espaldas, el jefe de ojos turbios.
[…]
Lejos... la bruma de las olvidanzas
—humos espesos, tajamares rotos—,
y el campo, ¡el campo verde!, en que jadean
los bueyes y los hombres sudorosos.
215
Y aquí estoy yo, brotando entre las ruinas,
mordiendo solo todas las tristezas,
como si el llanto fuera una semilla
y yo el único surco de la tierra.
No poema “Barrios sin luz” (NERUDA,1999:125-126) parte constitutiva da
primeira obra, o vate apresenta motivos do sul e da cidade em modernização.
Seus versos são fortes registros da diferença entre o espaço agreste e a urbe.
Enquanto a cidadezinha de Temuco oferece uma vida pacata, tranqüila e
belezas naturais, “y el campo, ¡el campo verde!, en que jadean / los bueyes
sudorosos”,
o ambiente moderno metropolitano adquire uma conotação
negativa, “Las ciudades -hollines y venganzas-,/ la cochinada gris de los
suburbios, / la oficina que encorva las espaldas…” contrapondo-se à visão
idílica da província. Fato que confirma a seguinte afirmativa de Kevin Lynch
(1997:149): “A criação da imagem ambiental é um processo bilateral entre
observador e observado. O que ele vê é baseado na forma exterior, mas o
modo como ele interpreta e organiza isso, e como dirige sua atenção, afeta por
sua vez aquilo que ele vê”.
Do distanciamento de sua terra de origem surge o desejo do reencontro
com a natureza que o albergou na sua vida anterior. Nos primeiros meses na
capital chilena, enquanto não volta às suas raízes temucanas a saudade do
ambiente da infância vai sendo registrada em seu fazer poético. Sentimentos
revelados através de imagens em confronto entre a vida simples e segura no
campo e as bruscas transformações urbanísticas acontecidas em Santiago a
partir de 1900.
Á margem da vida urbana, Neruda se recolhe em seu quarto de pensão
num processo de ensimesmamento marcado pela solidão e sobre tudo pelo
216
trabalho árduo, uma atitude que pode ser considerada como uma fuga da
realidade,
La vida de aquellos años en la pensión de estudiantes era de un
hambre completa. Escribí mucho más que hasta entonces, pero comí
mucho menos […] Yo defendí mis costumbres provincianas
trabajando en mi habitación, escribiendo varios poemas al día y
tomando interminables tazas de té, que me preparaba yo mismo
(NERUDA, 2000:42-43).
A experiência vivenciada pelo jovem poeta provinciano que chegou a
Santiago à procura de novos horizontes, foi lembrada anos mais tarde pelo
próprio Neruda, em 23 de abril de 1969, num encontro de poesia na Facultad
de Arquitectura y Urbanismo de la Universidad de Chile onde era o convidado
de honra,
[…] En 1921, por las calles aún circulaban tranvías tirados por
caballos y conductoras que cobraban los boletos e iban vestidas con
unas faldas inmensas, que les llegaban hasta los pies. Yo venía de
la provincia dispuesto no a conquistar la capital sino entregado de
pies y manos para que la capital me conquistara y me introdujera en
su inmenso vientre, en donde se digieren los presupuestos, las
ideas, las vidas y casi todas las luchas en nuestro país (NERUDA,
2004:7)
Desta citação constata-se que o tempo não apagou da memória do poeta
as imagens da época de adaptação (margem) à capital, visto que passados
quarenta e oito anos Neruda é capaz de recriar com detalhes as movimentadas
ruas santiaguinas, e, ainda, o motivo de sua migração.
Entre 1921 e 1927 a vida na cidade será, para Neruda, tema e contexto
da sua produção poética. O poeta escreveu sobre suas experiências imediatas
217
como constatado nos poemas de Residencia en la Tierra (1933), onde a
questão das cidades adquire grande força e passa a configurar a temática
central da sua criação literária.
218
4.3 O caráter fronteiriço do sujeito citadino
[…] pertenezco a un pedazo de pobre tierra austral hacia la
Araucanía, han venido mis actos desde los más distantes relojes,
como si aquella tierra boscosa y perpetuamente en lluvia tuviera un
secreto mío que no conozco, que no conozco y que debo saber, y
que busco perdidamente, ciegamente, examinando largos ríos,
vegetaciones inconcebibles, montones de madera, mares del Sur,
hundiéndome en la botánica y en la lluvia, sin llegar a esa
privilegiada espuma que las olas depositan y rompen, sin llegar a
ese metro de tierra especial, sin tocar mi verdadera arena […] mi
conexión interminable con una determinada vida, región y muerte.
La copa de sangre∗
Pablo Neruda,1943.
A constatação de que na passagem da província para a capital Neruda
não atinge emocionalmente seu destino final, permanecendo num longo estado
de transição (limiar), permite apontar para o surgimento de um ‘sujeito
fronteiriço’ situado entre o universo provinciano e o universo urbano.
Em Neruda, o conceito de fronteiriço não alude somente a uma
demarcação territorial entre duas regiões que são política e culturalmente
distintas, mas também a delimitações temporais, já que em sua permanência
na cidade o poeta se transforma num corpo que experimenta o lugar e
estabelece uma relação crítica frente a ele: descreve-o poeticamente e
desenvolve uma mobilidade temporal da cidade à província. Este estado
fronteiriço demonstra uma posição intermediária em indivíduos que ao se
deslocarem dentro do próprio país se sentem à margem de sua própria cultura.
Em Neruda a noção de fronteira é uma problemática recorrente na
temática das cidades, onde o fronteiriço tem relação com o espaço geográfico
∗
NERUDA (2003) p.149-150
219
(campo, metrópole e porto), com o espaço temporal (presente e passado) e
com o espaço cultural, no que se refere às diferenças identitárias regionais de
um mesmo país. Por isto, é importante abordar a análise da superação de
fronteiras no que diz respeito às questões de ordem geográfica e cultural, mas
sobre tudo às formulações subjetivas decorrentes dos processos interpessoais.
Como pôde observar-se ao longo deste estudo, o território, em quanto
suporte material e entorno ambiental, constitui una categoría fundante e
distintiva no processo de construção da identidade. Neruda destaca através de
seu discurso poético a importância da terra primigênia na construção da
identidade individual e coletiva do homem.
Constata-se também que o espaço físico, onde se desenvolve o
cotidiano do individuo é rico em significantes e sinais, elementos que penetram
no inconsciente de seus habitantes e determinam, com o passar do tempo, sua
forma de ser e de entender o mundo. A influência do território primigênio na
configuração da identidade foi abordada pelo doutor Fidel Sepúlveda (1996:45)
com as seguintes palavras:
O território se revela na imagem da mãe terra. Ela é um segundo
útero que nutre o habitante. Desde suas cores, linhas, ritmos,
formas, molda as paisagens interiores do homem. Desde os ruídos e
sons do entorno aguça seu ouvido para atender as vozes de seu ser.
Os odores, os sabores dos frutos e frutas transferem para ele a
energia de suas raízes. O contato da pele do homem com a pele da
terra modela sua natureza autóctone. [Trad. da autora]
Pode-se afirmar, então, que território que alberga o indivíduo na sua
primeira idade tem uma importância matrialcal e distintiva no processo de
construcción da identidad individual e cultural do homem.
220
CONCLUSÃO
A realização desta Tese possibilitou, num primeiro momento, evidenciar
aspectos importantes da obra de Pablo Neruda. Os diferentes ciclos
nerudianos delataram uma exigência criadora que constitui um dos fatores da
originalidade deste autor. Constatou-se também que os câmbios na estética
nerudiana não resultaram de idéias pré-concebidas, mas de um impulso natural
provocado pelos diferentes ambientes e acontecimentos que envolveram o
poeta ao longo de sua trajetória. Também foi possível desvelar, através da
leitura dos textos de Neruda, uma escrita autobiográfica que perpassa toda sua
obra, ora com a presença de lembranças isoladas, ora com uma clara
tendência à organização sistemática das vivências, em tom confessional. Ainda
na primeira etapa o estudo revelou um Neruda amante dos livros. O vate
cultivou um mundo literário diversificado e amplo, foi um leitor e colecionador
de clássicos e também um admirador das letras de seu tempo.
Num segundo momento, na necessidade de compreender a cidade
como um todo foram abordados os esclarecedores estudos de Ángel Rama e
Néstor García Canclini. Textos que levaram ao entendimento de que a
construção citadina abrange mais do que um espaço geográfico habitado e
seus patrimônios visíveis, posto que existe um patrimônio invisível constituído
inclusive pela palavra escrita, que permite a reconstrução da paisagem e do
cotidiano urbano através dos ecos do passado e remete às origens do espaço
urbano. No decorrer da história esses registros têm-se cristalizado tanto na
221
prosa quanto na poesia, configurando um espaço simbólico que torna possível
sua interpretação num tempo histórico distante e alheio ao do autor.
Dentro desse contexto se desenvolveu a análise das passagens do texto
nerudiano – prosa e poesia – dedicadas às cidades chilenas em que o poeta
morou: Temuco, Santiago e Valparaíso, tendo como base de estudo os
espaços habitados, a memória primordial, a identidade nacional, a imagem
poética e o olhar citadino.
Num terceiro momento o estudo abordou o processo imagético
nerudiano, análise reveladora da presença de espaços variados no que se
refere à representação das cidades estudadas. A escrita nerudiana revelou
espaços abertos: rurais e portuários. Foi possível o encontro com o mar, o
horizonte, o bosque austral, com as colinas de Valparaíso e com as montanhas
do sul do Chile, assim como a presença de espaços fechados que remetem à
paisagem de Santiago. Através dessas análises ficou constatada a preferência
do poeta pelos espaços abertos e reafirmaram, com isto, sua admiração pelas
belezas naturais, preferência que o levou a viver numa oscilação permanente
entre a província e a cidade grande.
Outra característica manifestada na obra nerudiana é o culto aos
fenômenos naturais próprios do espaço primigênio. A necessidade de reviver
certas visões e sensações levou o vate a recriar em suas moradas os espaços,
os materiais e as sensações experimentadas na infância, evidenciando um
forte enraizamento com a cidade de Temuco.
No quarto momento desta pesquisa observaram-se as características
culturais, históricas e geográficas dos espaços abordados com o objetivo de
confirmar as possíveis diferenças identitárias entre cada território, o que
222
resultou na configuração de uma autonomia regional. A realização desse
exame visou detectar comportamentos, hábitos e valores comuns aos
habitantes de cada um desses espaços, para com isso estabelecer traços
identitários compartilhados ou não pelos habitantes de Temuco, Santiago e
Valparaíso. Essa análise confirmou a premissa de que existem diferenças
culturais entre as diferentes regiões de um país, posto que as características
identitárias compartilhadas por uma comunidade ocorrem dentro de limites
determinados. Neste estágio foi fundamental o aporte teórico dos textos de
Benedict Anderson.
A seguir o estudo abordou a importância da viagem como experiência
desencadeadora do denominado “rito de passagem”. Reflexão que levou à
compreensão de que o território, enquanto suporte material e entorno
ambiental, constitui uma característica fundacional e distintiva no processo de
construção da identidade, de tal maneira que as análises se encaminharam
para a confirmação da hipótese de que o fio condutor da poesia citadina
nerudiana está constituído pela reincidência de determinados signos sensíveis
ou arquétipos primigênios. Os textos nerudianos revelaram também um espaço
literário marcado pelas referências recorrentes sobre o tempo, a memória, a
identidade e a história. Os lugares e objetos abordados pelo poeta traduziram
uma leitura do mundo, onde a permanência da natureza ajuda a manter a
noção de identidade com os lugares por ele habitados.
Assim também, os processos migratórios nerudianos revelaram um
corpo viajante que concebe a existência de um sujeito fronteiriço situado entre
o universo provinciano e o universo urbano, possibilitando a constatação de
que as experiências do autor apresentam duas linhas fundamentais: uma
223
afetiva e outra reflexiva onde a segunda se desenvolve a partir da primeira,
ficando a reflexão subordinada à emoção. Um exercício poético a partir das
experiências de vida, um passeio que vai desembocar num confronto de
imagens urbanas e rurais, onde o espaço urbano será o gerador do desejo dos
lugares de outrora, revelando um memorial de fatos e experiências.
O estudo sobre o processo criativo nerudiano, no que se refere ao rito de
pasagem, permitiu identificar três elementos: o corpo que escreve, o corpoviajante e o corpus da escritura. As reflexões desenvolvidas levaram ao
entendimento de que a passagem do corpo que escreve para o corpus da
escritura está mediado pelo denominado corpo-viajante, o qual se desdobra
originando um corpo simbólico revelado em palavras e imagens que se
materializam no corpus da escritura. Na referida fase da ‘separação’ o corpo
que escreve realiza a interação entre os aspectos emanados do real histórico e
do real simbólico, enquanto, o corpo-viajante situado na ‘margem’ se debate
entre o que vê, o que sente e o que imagina.
Conclui-se, então, que o espaço físico onde se desenvolve o cotidiano
do indivíduo é rico em significantes e sinais, elementos que penetram no
inconsciente de seus habitantes e determinam, com o passar do tempo, sua
forma de ser e de entender o mundo. Constatação que leva a afirmar que o
território que albergou o indivíduo em sua idade primeira tem uma importancia
matriarcal e distintiva no processo de construção da identidade cultural do
homem.
Como decorrência do explanado anteriormente destacou-se que tanto a
poesia quanto a prosa nerudiana seguem com fidelidade sua trajetória de vida,
suas vivências e seu olhar sobre o cotidiano expressam amor pelos lugares
224
onde viveu. Inúmeros são os testemunhos em que o poeta chileno expressou
seu enraizamento vital com a selva austral, território de chuvas, árvores, rios e
raízes, fato que permite estabelecer que a obra nerudiana é auto-referencial,
onde verso e prosa estão determinados por um fio autobiográfico constante.
No decorrer do estudo, percebeu-se que as novas idéias e
questionamentos estéticos, que invadiram Neruda a partir de sua residência na
cidade grande, não implicaram somente uma mudança de conceitos, mas uma
transformação interna, que resultou em novas formas de pensar e,
conseqüentemente, de representar, criando uma voz comprometida com o
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