III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA TECNOLOGIAS DE SUBJETIVAÇÃO DA PROSTITUTA: TECENDO IDENTIDADES NAS LETRAS AUTOBIOGRÁFICAS Manuela Cunha de Souza 1 “Por que a prostituta desperta interesse? Uma coisa que percebo é que as pessoas querem muito saber a respeito da vida sexual da prostituta para entender a sua própria sexualidade” 2. Essa frase, das últimas páginas de Eu, mulher da vida (EMV), da paulista Gabriela Silva Leite, prostituta3, fundadora da ONG David 4 e da grife Daspu5, esboça uma possível resposta da razão de ter havido, ou melhor, estar acontecendo um boom de autobiografias publicadas por prostitutas, não apenas no Brasil, mas em todo o globo. Somente nessa última década, facilmente encontramos livros brasileiros como: O doce veneno do escorpião, conhecida autobiografia de Bruna Surfistinha; O diário de Marise de Vanessa de Oliveira, que relata suas trajetórias no meretrício, essa mesma já participou de diversos programas televisivos falando de sua obra e hoje está em seu quarto escrito. Ainda sobre essa lista, podemos citar: Alugo meu corpo da brasileira Paula Lee, sendo que a primeira edição de sua autobiografia é portuguesa; Fui prostituta na terra dos Samurais de Bianca Aguillara, Filha, mãe, avó e puta também de Gabriela Leite dentre outros. Pelo mundo, destacamos Diario de una prostituta argentina de Claudia Minolitti; Prostituta de Jesus da americana Annie Lobért; na Espanha, foi escrito A agenda de Vírginia de Alejandra Duque; Diario de Uma Ninfomaniaca da francesa Valerie Tasso, que foi parar na tela dos cinemas, e até na Indonésia teve publicação: A aliciadora feliz de Xaviera Hollander. Claro que estas são apenas algumas das obras, mas encontramos escritas de si de prostitutas até em 1942 com Tenho Vergonha de Mendigar da inglesa Sheila Cousins. 1 Doutoranda em Literatura e Cultura (UFBA); Mestre em Estudo de Linguagens (UNEB); orientanda de Profª. Drª Nancy Rita Ferreira Vieira. [email protected] 2 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. 3 Apesar de não estar mais na prostituição, Gabriela Leite afirma não há ex-prostituta, “assim como um médico nunca deixa de ser um médico, mesmo trabalhando em outra atividade sempre vou ser uma prostituta” (LEITE, 1992, p.19). 4 Organização não-governamental, fundada no Rio de Janeiro, voltada para a defesa dos diretos e cidadania das prostitutas. 5 Grife de roupas destinadas às profissionais do sexo. A maior polêmica da grife foi referente ao seu nome, que faz alusão à grife de luxo Daslu. 1 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Enfim, mais que fetiche para realização de prazeres carnais, hoje, a meretriz seduz para as delícias da leitura de sua trajetória. Saber a razão de ter escolhido (ou não) essa ocupação, como ela consegue agenciar suas identidades, se elas são felizes – são muitas as razões para a leitura de autobiografia de prostitutas, variados ainda são os motivos pelos quais elas decidem escrever suas vivências, expondo-se e impondo-se em meio ao preconceito. Múltiplas são as estratégias utilizadas por elas para a escrita de si, logo, esse artigo aborda alguns aspectos relacionados a essas estratégias de escritura, perpassando sobre o processo formativo atravessado por Gabriela Leite em Eu, mulher da vida, publicado em 1992, pela editora Rosa dos Tempos e sua outra autobiografia Filha, mãe, avó e puta6 publicada pela Objetiva. Mulher da vida, garota de programa, meretriz, mulher-pública, puta, profissional do sexo, rapariga, cocote são apenas alguns nomes que designam essas mulheres, e cada expressão traz consigo uma carga imagética de sua figura. Quando falamos em “profissional do sexo”, por exemplo, diminuímos a carga depreciativa que, por outro lado, “mulher de vida fácil” traz. Na primeira, há um foco em sua atividade como uma profissão, um trabalho, enquanto a segunda expressão, paradoxalmente, carrega ideia de que essas mulheres têm (ou no mínimo querem) “vida fácil”. Entretanto, é importante ressaltar que utilizamos, nesse trabalho, esses vários termos designando indistintamente a prostituta, apenas para não haver excesso de repetição de palavra. “Ao falar de si, ao pensar sobre si, ao escrever sobre si, o sujeito está se multiplicando, está colocando em xeque sua unidade” 7. Logo, em autobiografia o “eu” se fragmenta em agente da narrativa (narrador) e paciente (personagem). O que se conta em uma autobiografia não é o que realmente aconteceu, até por que o que “realmente aconteceu” não existe, o que há são interpretações para o fato acontecido. Sendo assim, a autobiografia é uma versão resumida e ressignificada da vida. Ela é resumida, pois há uma seleção de fatos que importam para o autornarrador-personagem. Observaremos, então, alguns pontos estruturais e estratégicos das autobiografias, em especial, os livros objetos de estudo deste artigo. É importante compreender como se comporta o tempo nesta perspectiva de rememoração. O momento da narração autobiográfica é considerado tridimensional, pois, existem três tempos ligados ao narrador: o presente, que é o tempo narrado; o tempo passado, que é rememorado e o futuro que será a consequência da soma dos dois tempos anteriores. Assim, conta-se o passado com 6 LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. 7 2 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA os olhos de hoje, visando os acontecimentos futuros8. Em qualquer narrativa, um mesmo sujeito é ator e autor de sua própria história. Ator, pois ele é quem vivencia os fatos relatados e autor por ser quem organiza e conta seus relatos. Narrar é um ato que vai além da contação de episódios. Ele pressupõe reflexão, organização, sequência dos acontecimentos e avaliação de suas ações. Assim, recorta-se um espaço de tempo já ocorrido através da lembrança, busca-se uma ressignificação de sua história a partir da recriação e da justificação desta. A narrativa biográfica não retrata a verdade, e sim, uma leitura da verdade. Isto acontece por vários fatores, como a seleção, intencionalidade e o imaginário. A seleção sobre “o que contar”, o que seria conveniente, o que o narrador quer esconder, ou o que ele realmente esqueceu, o que ele quer focalizar, tudo isso faz parte da memória reconstrutiva. As pessoas são o que construíram de si mesmas. Os homens são o que viveram e planejam seu futuro através das experiências passadas. Mas existem muitas memórias que são “perdidas” ao longo da vida. No livro A arte de esquecer, Ivan Izquierdo afirma que: Se alguém nos pede que relatemos tudo o que recordamos de nossa infância, nem McGaugh nem eu, especialistas no estudo da Memória e cultores das memórias infantis, usaríamos mais de uma hora. Com interrupções, perguntas e dicas para evocar as lembranças mais ocultas, e com muito esforço, pode ser que consigamos recordar algo mais (...)9 Desta forma, podemos concluir que, ao narrar uma história, não se conta exatamente como se deram os acontecimentos, pois existem os lapsos e as intenções. No caso de Eu, mulher da vida (1992) e de Filha, mãe, avó e puta (2009), como os próprios títulos sugerem, o foco da escrita foi no processo de momentos antes e durante a prostituição. É o que Klinger10 chama de extramamente transcendente. Até o que a autora aborda sobre sua infância servirá para justificar algum ato da vida adulta. A primeira obra de Gabriela Leite é dividida em prefácio, 34 capítulos e um posfácio. No prefácio, ela inicia com o encontro entre Otília e Gabriela. O primeiro é seu nome de batismo e o 8 ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Pesquisa (auto)biográfica- tempo, memória e narrativas. In:______ ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org). A aventura (auto) biográfica: teoria e empíria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 9 IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer - cérebro, memória e esquecimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2005. 10 KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea. Tese de doutorado em Letras. Literatura Comparada. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. 3 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA segundo seu “nome de guerra”, usado na zona. A ficcionalização de si, em um duplo, é um recurso interessante ao se falar em identidade. Esta não é indivisível, homogênea e imutável. Uma pessoa pode assumir diversas identidades a depender do contexto em que está inserida. É isso que acontece no prefácio, é como se fosse um encontro do passado (Otília) com o presente (Gabriela). Essa relação dos variados “eus” ora se dá pacificamente, ora em tensões, como podemos observar em: No relato desses porões, percebo que meus dedos, dançando pelo teclado da máquina de escrever, ora obedecem Otília, ora escutam Gabriela. Otília descreve dias de loucura, inquietude. Gabriela conta dias de amor, esperança e luta11. É interessante destacar o uso de codinomes no meretrício. Em sua autobiografia, Gabriela Leite¹¹ revela que, na prostituição, a meretriz é uma personagem, e não cabe ser chamada pelo seu próprio nome. Ela conta que retirou dos escritos do baiano Jorge Amado o prenome Gabriela, pois como afirmou a dona da primeira pensão a qual trabalhou, há nomes reais e há nomes para “batalhar” e ser chamada de Otília não seria bem visto no mercado do prazer. Os capítulos são curtos, como mini-contos ordenados não-linearmente, com em média três páginas. Há uma grande recorrência de digressões e reflexões em que passado e presente se imbricam. Predominantemente não há um uso excessivo de termos considerados chulos, entretanto, quando a autora achou necessário enfatizar um despudor, ela usa expressões de baixo calão. Isso acontece também na escrita de sua segunda autobiografia. Sem sumário, a autora subdivide seus textos em uma espécie de contos, com direito a títulos instigantes como Portas fechadas, Um absurdo tentador, A exclusão da diferença etc. Pode-se destacar também como diferença entre os dois textos a intensidade dada ao falar de seus projetos políticos-sociais. No primeiro, são reservadas inúmeras páginas para descrever seu processo de inserção em Ongs, a dificuldade e preconceito enfrentado nesse período, enquanto o segundo aborda mais elementos cotidianos e bastante reflexão sobre a prostituição, ressignificando suas vivências pessoas, Em autobiografias, o narrador propõe um pacto referencial e relacional com o leitor, a fim de que ele compartilhe de suas recordações, creia e aprove não só seu texto, mas também a sua pessoa, sua vida12. Assim, ao contar suas vivências, o leitor sente-se envolvido com a personagem central, por ler a narrativa que é escrita a partir de um ponto de vista definido. Em EMV, perguntas 11 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. LOPES, Eliane Marta Teixeira. Memória e estudos autobiográficos. In:______ ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org). A aventura (auto) biográfica: teoria e empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. 12 4 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA retóricas são feitas como estímulo ao leitor, causando uma sensação de diálogo entre a autora e quem a lê. No capítulo 12 – Bota coca-cola, mexe... nem pisca – ela conta como entrou no mundo das drogas, mas para dar uma sequência à sua trajetória, ela usa dessas perguntas, como: “E aí? Qual a próxima fase?”13; “Sabe quando eu parei?” ¹³. Podemos perceber que a escrita é para um público-alvo feminino em algumas discretas passagens, como no capítulo 2 – Beijo na boca não tem preço – ela diz “Ainda outro exemplo: você está apaixonada por alguém, com quem transa o dia todo”¹³. Não se sabe, e não é objetivo desse trabalho, mas é um instigante assunto de investigação, qual o perfil do leitor de autobiografia de prostitutas, entretanto, Gabriela pressupõe uma leitora. Abriremos um parêntese para abordar outro aspecto desse capítulo, o qual trata de um tema muito recorrente relacionado à história de prostitutas: a ausência de beijo na boca do cliente. O “[...] beijo na boca torna-se um divisor simbólico entre sexo e sentimento. Há uma espécie de consenso entre as mulheres que se prostituem em não beijarem e nem se deixarem beijar [...]”14. O beijo é mais um ato de carinho, carícia, logo, evita fazê-lo com os clientes e beija somente quem a meretriz tem algum sentimento para além do profissional. Assim, ela guarda “[...] para o amante do coração o beijo na boca, expressão de uma livre ternura e que não estabelece nenhuma comparação entre as carícias amorosas e as profissionais”15. Gabriela Leite¹³ conclui, dessa forma, que na “prostituição tem tabela para tudo [referente às performances], menos para beijo na boca, que não tem preço. E não é por preconceito, é por ética profissional”. Dissemos que ao escrever nossas memórias, olhamos para o passado com os olhos do presente, logo, ressignificamos nossas vivências, a partir de nossos pensamentos mais atuais. Com Leite¹³ não seria diferente. Ao narrar suas trajetórias, ela reflete sobre o que aconteceu a partir de um olhar amadurecido de quem já vivenciou o que está contando, intercambiando entre o passado e o presente. Quando ela diz no capítulo 11 de EMV – Cafetão na zona é marido - “Ele não chegou como freguês. Eles nunca chegam como fregueses e até hoje acho que ele não tinha cara de cafetão”¹³, podemos perceber que enquanto ela conta o que passou “ele não chegou como freguês”, ela sente a necessidade de contextualizar com o que aprendeu após esse momento “eles nunca chegam como fregueses”. Agora ela sabe disso, mas no momento ocorrido ela não sabia. Ela 13 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. (grifo nosso) SILVA, Rogério Araújo da. Prostituição: artes e manhas do ofício. Goiânia: Cânone Editorial, Ed UCG, 2006. 15 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v. 14 5 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA também dá uma prévia do que virá a acontecer: “Não nasci para ter dono, e logo iria constatar isso de forma definitiva”16. É comum também observar essa relação passado-presente a partir de adjetivos dados a si. Em “Eu era inocente nas coisas da prostituição e achava que ele era algum freguês com dinheiro” 16 (grifo nosso). A caracterização de inocente é explicitamente o olhar do presente sobre o do passado, pois na época a que ela se refere, Gabriela não se considerava inocente, mas hoje ela percebe que era, mas que o tempo a fez amadurecer nas “coisas da prostituição”. “Eu pensava que tinha ido muito à frente. Vejo agora que, no entanto, apenas ensaiava ainda os primeiros tímidos passos de uma longa marcha” 16. Em Filha, mãe, avó e puta, Gabriela Leite trata de sua sexualidade antes da decisão na entrada do meretrício: Queria fazer sexo e exercer minha sexualidade sem culpa. Queria abraçar, beijar, conhecer melhor o corpo masculino, seus desejos e suas fantasias. Queria ser desejável, usar calcinhas e sutiãs vermelhos, sentir os homens em meu corpo, transar muito e nunca me fartar [...] Por que nós, mulheres, tínhamos que nos contentar em ter um único homem ao longo de toda a vida? Eu queria ter liberdade sexual deles e não sabia por onde começar17. Vale destacar certa romantização do meretrício, sendo associado, nesta passagem, com a liberdade plena dos corpos. Os verbos do futuro do pretérito podem denotar que nem sempre o que queríamos é o que encontraríamos. Nesse sentido, a rememoração de sua vivência demonstra seu afã pela quebra dos padrões considerados normais para as mulheres. Obviamente, não se pode ignorar o local de fala da autora nascida em 1951 com uma vida um tanto conturbada, histórico de abuso na infância por um parente, vivenciando a revolução sexual com a criação de métodos contraceptivos e questionamentos quanto ao lugar da mulher na sociedade. Outra forma de refletir sobre as vivências é a partir das digressões. Exemplo disso é o capítulo 5 de EMV – Os homens são frágeis e lindos – em que a autora discute sobre a condição da mulher e do homem estabelecendo uma crítica ferrenha às feministas: O homem encontra o mundo prontinho para ele, enquanto a mulher tem que engendrar, conquistar. Aí vem as feministas, com seu racionalismo, querendo ver as mulheres competirem com os homens da mesma forma, quando há campos em que não dá para competir. [...] As feministas querem homogeneizar esses dois mundos, porque são incapazes de entender a diversidade16. 16 17 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 6 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Longe de aprofundar essa discussão nesse artigo, o qual tem outra finalidade, não poderíamos deixar de destacar essas reflexões acerca de sua condição de mulher, que por si só é desprivilegiada em várias esferas sociais, além de seu lugar enquanto prostituta, figura estigmatizada tanto pelos homens, quanto pelas mulheres. Essa dupla marginalidade revela possíveis motivos para a sua insatisfação e descrença das feministas, afinal, elas lutam apenas por algumas mulheres, ao menos, essa é a perspectiva de Gabriela Leite. Ao longo dos séculos, a mulher ocupou vários papéis: ora era vista como esposa, a dona-de-casa, a procriadora; ora ocupava o papel de trabalhadora, “independente”, que lutava pela “liberdade” feminina. Entretanto, hoje, muitas vezes, é ela uma das maiores “inquisidoras” das prostitutas - não considerando a liberdade que estas têm sobre seu corpo. A imagem polarizada da mulher (“a santa versus a puta”) serviu para delimitar umas para casar e outras para satisfação carnal. Até hoje, vê-se casos em que os homens justificam a busca pelas profissionais do sexo por terem uma maior liberdade em realizar seus fetiches, como revela Gabriela Leite, em sua autobiografia: Os homens vão à zona em busca da sua fantasia sexual. Quando perguntados por que não realizam essa fantasia com a mulher, muitos dizem que é por respeito a ela. Não querem se arriscar a ouvir da mulher um esporro do tipo “me respeite, que sou a mãe dos seus filhos”. É uma repressão só; o casal fica em rodízio nessa camisa-de-força: ora é um que veste e o outro aperta, ora é o outro, e vivem isso pelo resto das suas vidas 18. As prostitutas também são procuradas para a iniciação sexual do jovem. Essa é ainda uma prática comum, em especial em cidades do interior do país. Nasce assim um paradoxo, uma relação de “amor” e “ódio” da sociedade com as prostitutas. Essa dualidade gera outra dicotomia em relação a entrada no mundo do prazer, ora a meretriz é vista como vítima de uma sociedade desigual, ora como uma mulher que quer “vida fácil”. A rotina de uma meretriz, todavia, não é tão fácil como consideram alguns. Clientes dos mais variados, calmos, violentos, que muitas vezes não respeitam a prostituta como mulher, considerando que ela deve fazer tudo que eles querem já que estão pagando; clientes que não pagam o programa e ainda a ameaça com violência; cafetões que exploram são situações constantes na vida das profissionais do sexo. Esse conjunto de entraves na vivência no meretrício gera uma visão vitimizada da meretriz. Nesse sentido, Maria Encarna Sanahuja afirma que: 18 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. 7 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Ainda que os nossos reformistas não queiram admitir, a inferioridade social e econômica da mulher é a única responsável pela prostituição. [...] Muitas mulheres que estão sem trabalho, sem meios econômicos, são vítimas da Máfia se estão obrigadas a prostituírem-se. (grifo nosso)19 Nessa visão, há a vitimização das meretrizes, como se elas não tivessem tido alternativa senão comercializar seu corpo. Acredita-se, então, que a prostituta mesmo não possuindo “[...] antecedentes hereditários e fisiológicos [acabam] desempenhando um papel importante em sua „vocação‟ de prostituta. A sociedade com suas distorções educativas e agressões é que produz essa „vocação‟”20. Há um jogo estabelecido entre os integrantes do “mundo do prazer”. A prostituta transveste-se na personagem que o cliente espera, encena diversos papeis. Algumas vezes, o que o cliente quer é apenas alguém para conversar, nesse sentido, “a prostituta tem muito de psicanalista de homem”21. Outras tantas querem realizar fantasias sexuais inenarráveis para suas esposas ou parceiras fixas. “Explorada sexualmente, a prostituta explora por sua vez o explorador, num jogo circular de dominação”22, em que o cliente é uma peça de fácil substituição. O que se desconsidera, nessa visão, é que a meretriz tem o livre arbítrio de escolher o seu cliente, podendo, quando lhe convir, recusar o programa. Nesse sentido, a prostituta é autônoma de seu corpo, pois, é ela quem decide com quem irá deitar-se. “De uma forma ou de outra, você gosta da pessoa ou não, vai com ela ou não. Se você não quer, não há nada no mundo que te convença do contrário”21. Destaco, todavia, que, especialmente na zona de baixo meretrício, o cliente, muitas vezes, não aceita a negativa de uma profissional do sexo, podendo reagir com violência a essa recusa. Rago acredita que para grande parte das prostitutas a entrada nesse labirinto, ora “[...] é meramente uma maneira de conseguir dinheiro [...] ora decorre do desejo de vingança contra a opressão masculina”22. No caso de Gabriela, ela afirma que sua entrada no território do prazer se deu “por rebeldia e desobediência à regra geral das coisas” 21. Uma visão um tanto utópica? Talvez, até porque ela passou por múltiplas dificuldades na zona de baixo meretrício, situações que vão da dependência química a exploração por terceiros (cafetinagem). Entretanto, não cabe aqui discutir 19 YII, Maria Encarna Sanahuja. O cruel negócio da prostituição. Disponível em: <<http://74.125.95.132/search?q=cache:mUPWtrGFI68J:www.sof.org.br/publia/pdf_ff/43.pdf+prostitui%C3%A7%C3 %A3o&cd=7&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>>. Acesso em: 22 mai. 2009. 20 RIBEIRO, Úrsula. Mulher mercadoria. São Paulo: Paulinas, 1980. 21 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. 22 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite- a prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (18901930). 2 ed.São Paulo: Paz e Terra, 2008. 8 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA sobre a veracidade da sua narrativa. O leitor assina o pacto com o autor e lê a obra a partir da “lente da verdade”, considerando que os escritos narram fatos23. Falar na prostituição como originada apenas pela pobreza, vitimizando a meretriz, “é passar ao largo da sexualidade. Essas pessoas que se dizem progressistas gostam de tratar as prostitutas como vítimas, e desta maneira elas perdem suas identidades e cidadanias para a „maldade intrínseca do sistema‟”24. Abrindo o leque de possibilidades da entrada da mulher no meretrício, alguns acreditam que a menos abastada “entregava-se à prostituição porque desejava o luxo e a riqueza; [a] rica, porque desejava dar vazão às fantasias menos nobres que o excesso de tempo permitia florescer”25. Nesse ponto, destacamos o paradoxo da ideia de que apenas a meretriz seria esse sujeito fragmentado, que separa o sexo do amor. Durante muito tempo, os casamentos foram “arranjados”. A família escolhia, por questões políticas e econômicas, com quem sua filha deveria casar. Sendo assim, uma das obrigações do matrimônio para a mulher era a procriação, logo, era necessário que mantivesse relações sexuais com seu marido, mesmo que ela não o amasse, mas o jogo matrimonial impunha certas regras. Assim, o marido relacionava-se com sua esposa visando a procriação e buscava nos bordeis, prostíbulos, “pensões alegres” sua satisfação sexual com as prostitutas. Dessa forma, percebemos que tanto a esposa prometida, quanto o marido sabiam, também, separar o sentimento do prazer. Entretanto, a representação das garotas de programa, ora figura de liberdade, ora de escravidão, não precisa ser polariza da, há as nuances da identidade feminina na meretriz. Assim, elas podem possuir diversos matizes entre o sagrado e o profano 26. Fragmentar a prostituta é não considerar a totalidade de que ela é ao mesmo tempo vítima e algoz de sua condição, exceto quando forçada a prostituir-se27. Tentar homogeneizá-la é uma forma de desconsiderar a diversidade de sua situação. Não se pode perder de vista, que a escolha, assim consideramos, em tornar-se meretriz não apaga os outros lugares sociais que a protagonista assume nas outras instâncias de sua vida. Esse é 23 PINTO, Júlio Pimentel. O lugar do leitor: do texto aberto aos protocolos de leitura. In:______. A leitura e seus lugares. São Paulo Estação Liberdade, 2004. p.45-59. 24 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. 25 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite- a prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (18901930). 2 ed.São Paulo: Paz e Terra, 2008. 26 QUALLS-CORBETT, Nancy. A prostituta Sagrada. 5 ed. São Paulo: Paulus Editora, 2005. 27 Referimo-nos aos casos em que há a prostituição infantil, a exploração sexual por terceiros, com os cafetões ou com o tráfico internacional de mulheres, por exemplo. 9 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA um ponto polêmico quando se discute a prostituição. O limiar entre a vitimização e a representação de mulher fatal é a questão da escolha. Há na prostituição, segundo Susana Rostagnol, um “intercâmbio livre entre a prostituta e o cliente, portanto equipara o contrato da prostituição a um contrato empregatício”28. Esta é a sua ocupação, uma de suas identidades. Há uma dificuldade de se “escolher” ou assumir uma identidade definida, já que dentro de cada uma delas, podem-se encontrar grupos identitários menores. Dentro da categoria mulher, por exemplo, existem os grupos das mães, religiosas, professoras, taxistas, divorciadas etc, mas apesar de todas as diferenças, elas possuem em comum serem do sexo feminino. Não se pode ter consciência de sua identidade se não considera que há outras identidades que a diferem. Aproveitando-se disso, muitos buscam legitimar-se abafando ou depreciando a identidade do outro. O mundo líquido atual está cheio de possibilidades, fluidez e mudança – o sujeito pós-moderno deve apropriar-se de várias identidades ao tecer suas redes de conexões 29. Essa dicotomia entre a mulher “pecado” e a “sagrada” tem sido alterada gradativamente na sociedade. Com a luta pela liberdade, direto de trabalhar, busca por uma equiparação intelectual com o masculino, a mulher vem tentando ampliar seu espaço para além dos limites do lar. Contudo, muito preconceito ainda é visto na figura da prostituta, diferentemente de como era vista a sua imagem há séculos, referindo-se a união entre prazer e inteligência. A imagem de poder que a prostituição exerce para alguns é uma visão romantizada, como se a meretriz fosse a famme fatale, que fazia o instinto prevalecer a razão. Essa representação mexe com o imaginário tanto feminino, quanto masculino. Para não fomentar e reprimir a prática da prostituição em busca de uma liberdade financeira e sexual da mulher, foi necessário que a sociedade atrelasse a imagem da prostituta à escória social. Então, ela era (e ainda é) vista como mais uma mercadoria comercializada pelo capitalismo, representante da degradação humana, sua relação com o freguês era de objeto-cliente. Essa visão desconsidera que um mesmo sujeito pode participar de diversos grupos dependendo da situação. Os fenômenos culturais são multideterminados pelos agentes tradicionais e modernos. Assim, o indivíduo adquire diferentes identidades dependendo do seu momento e, por ser múltiplo, é considerado fragmentado. Observamos então o sentimento de ambiguidade entre 28 ROSTAGNOL, Susana. Regulamentação: controle social ou dignidade do/ no trabalho? In: FÁBREGASMARTÍNEZ; BENEDETTI, Marcos Renato (Org.). Na Batalha: sexualidade, identidade e poder no universo da prostituição. Porto Alegre: Dacasa; Palmarica, 2000. 29 BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2005. 10 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA repulsa e atração que os homens sentem por essas mulheres. Elas faziam, e ainda fazem, parte da engrenagem social, ao passo que eram repudiadas pela mesma sociedade. A mulher pública era visualizada como a que vendia o corpo como mercadoria: como vendedora e mercadoria simultaneamente. E também a mulher que era capaz de sentir prazer, que era lugar de prazer, mesmo sem amar, ou sem ser amada. Ela simbolizava, assim, a fragmentação do sujeito pós-moderno e a separação radical entre o erótico e o amor30. Assim, para conter o afã da liberdade feminina espelhada nas imagens das meretrizes, diversos setores sociais uniram-se para propagar os perigos que o território do prazer trazia 31. Para moralizar costumes, “[...] médicos, juristas e criminologistas tentaram unificar seus esforços para definir a melhor forma de intervenção dos poderes públicos na organização do mundo do prazer [...].”32. Assim, criaram regulamentos da Polícia de Costumes em 1896, com regras comportamentais para as meretrizes: horários definidos que poderiam aparecer à janela, definindo as vestimentas que deveriam usar etc. Quem era pega, no início do século XX, descumprindo alguma lei, era presa, recebia banhos de água fria e tinham a cabeça raspada 30. A violência contra as prostitutas era (e ainda é) uma prática comum de repressão. A ONU, em 1949, incentivava a instrução de medidas profiláticas às DSTs (doenças sexualmente transmissíveis), por outro lado, a imprensa e a sociedade em geral compreendiam a sua figura como disseminadora de doenças venéreas. Na década de 80, com a proliferação da AIDS, essa profissão tornou-se fatal para a garota de programa e seus clientes, e mais uma vez sua imagem se reduziu ao submundo. Mesmo com a distribuição de preservativos, propagandas educacionais, muitas mulheres não se preveniam, principalmente porque nas regiões mais interioranas, com pouco acesso à informação, precária rede de saúde, há um grande número de prostitutas. Além disso, há casos em que o cliente paga a mais para consumar o ato sem preservativo. No imaginário social ainda é vigente a associação da mulher prostituta com uma pessoa que se presta aos serviços sexuais nas suas mais variadas formas, sendo criada uma dualidade de papéis femininos que se encontram em pólos bem opostos: de um lado, a figura imaculada da mulher da casa, esposa, mãe e, no outro extremo, a mulher da rua, permissiva, promíscua, que se presta às práticas sociais que jamais poderiam ser reproduzidas com as esposas33. 30 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite- a prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (18901930). 2 ed.São Paulo: Paz e Terra, 2008. 31 QUALLS-CORBETT, Nancy. A prostituta Sagrada. 5 ed. São Paulo: Paulus Editora, 2005. 32 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite- a prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (18901930). 2 ed.São Paulo: Paz e Terra, 2008. 33 SILVA, Rogério Araújo da. Prostituição: artes e manhas do ofício. Goiânia: Cânone Editorial, Ed UCG, 2006, p.88. 11 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA A sociedade de hoje é o reflexo do que construiu sócio-culturalmente. “As prostitutas têm sido consideradas demônios, às vezes redimidas, em outras ocasiões consideradas um mal necessário para manter a ordem moral da sociedade” 34. Até hoje a imagem da meretriz está associada às doenças e ao caótico. Podemos perceber também, na autobiografia de Gabriela, aspectos relacionados aos códigos da prostituição. Trabalhar no meretrício, por exemplo, tem um tempo útil relativamente pequeno, afinal, o corpo é sua principal ferramenta de trabalho e o tempo se encarrega de, como qualquer máquina, desgastá-lo. O “limite de idade para uma prostituta depende muito do lugar onde ela trabalha. Em Copacabana, por exemplo, com 30 anos já não dá mais para trabalhar, enquanto no Mangue você encontra mulheres de 60 anos”35. Essa diferença se dá, pois na zona de alto meretrício, há uma concorrência maior em relação às qualidades físicas da meretriz. É ainda pincelada críticas a cerca da legislação brasileira e a prostituição: “Ao invés de proteger a prostituta, a lei na realidade nos desprotege. Na clandestinidade se pode tudo, mas havendo algumas normas para assegurar direitos, o patrão e o empregado têm que se entender” 35. A obra desvela, por fim, o que realmente mexe com a dignidade da meretriz: “o que acaba com ela é a falta de condições de trabalho: não tem água para se lavar, o quarto não tem condições de higiene [...] Vira escrava da cafetina. Não tem lei que a ampare” 35. No posfácio da obra em questão, por fim, Gabriela revela a estratégia utilizada na escrita de seu texto: os ghost-writers. Ele funciona como elo mediador entre quem tem a história para contar e o texto. “A história é minha e a técnica é deles”, afirma Gabriela35. Mas ambas se imbricam no texto, o que faz emergir a questão, até onde o texto é uma (auto)biografia? Qual seria o limiar? Os dois ghost-writers são Gustavo Barbosa e Ricardo Costa. Eles mesmos pontuam a conturbada relação entre técnica e história, bem como seus prejuízos. É pontuada que a linguagem usada nas conversas com Gabriela Leite foram remodeladas para a finalidade da escrita (auto)biográfica. Nesse sentido, eles concluem, na última página, que “o resultado [o livro] não são verdades absolutas e sim a procura sincera, o constante questionamento e a opção incondicional pelo amor à vida”. Além disso, eles afirmam que o livro é de Gabriela Leite, apesar de eles terem o escrito. 34 ROSTAGNOL, Susana. Regulamentação: controle social ou dignidade do/ no trabalho? In: FÁBREGASMARTÍNEZ; BENEDETTI, Marcos Renato (Org.). Na Batalha: sexualidade, identidade e poder no universo da prostituição. Porto Alegre: Dacasa; Palmarica, 2000, p. 101. 35 LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. 12 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA Na sua autobiografia publicada em 2009, na contracapa, em letras reduzidas, abaixo do nome da autora tem a inscrição “em depoimento a Marcia Zanelatto”, a qual trabalhou como sua ghost-writer também. Um leitor menos atento passará superficialmente por tal informação, considerado ser o texto escrito por quem a assina. O ghost-writer, ou autor-fantasma, é o profissional que presta serviços a terceiros que, por falta de tempo ou técnica, precisa que alguém ordene suas ideias e produza a redação final, seja de um livro, relatório, discurso ou qualquer outro texto escrito. A propriedade intelectual, todavia, fica para quem “encomenda” os serviços. A descrição é absoluta, podendo muitos textos que já lemos terem sido escritos (tecnicamente) por outros aquém do autor que conhecemos. Daí o nome que sugere que eles são fantasmas – eles produzem o texto, mas ninguém vê. No caso de Eu, Mulher da Vida (1992), por outro lado, Gabriela demarca que usou dessa estratégia para escrever suas memórias. Ainda permite que seus autores-fantasmas escrevessem algumas palavras em um breve posfácio. Diferentemente de Filha, mãe, avó e puta36. Sendo assim, pudemos abordar, neste artigo, de forma sucinta, alguns aspectos relativos à construção das suas autobiografias de Gabriela Leite, como o uso do duplo de si, estruturação dos capítulos, discutimos sobre a função da memória na escrita de si, como se comportam o passado e o presente em autobiografias, bem como o uso de ghost-writers. No meio dessas questões, destacamos algumas reflexões acerca do mundo da prostituição, a partir do olhar de quem a vivencia. Referências ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto. Pesquisa (auto)biográfica- tempo, memória e narrativas. In:______ ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org). A aventura (auto) biográfica: teoria e empíria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2005. BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v. IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer - cérebro, memória e esquecimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2005. 36 LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 13 III SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES 15 a 17 de Maio de 2013 Universidade do Estado da Bahia – Campus I Salvador - BA KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latinoamericana contemporânea. Tese de doutorado em Letras. Literatura Comparada. Rio de Janeiro: UERJ, 2006. LEITE, Gabriela. Eu, mulher da vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992. ______. Filha, mãe, avó e puta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. LOPES, Eliane Marta Teixeira. Memória e estudos autobiográficos. In:______ ABRAHÃO, Maria Helena Menna Barreto (org). A aventura (auto) biográfica: teoria e empiria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. PINTO, Júlio Pimentel. O lugar do leitor: do texto aberto aos protocolos de leitura. In:______. A leitura e seus lugares. São Paulo Estação Liberdade, 2004. p.45-59. QUALLS-CORBETT, Nancy. A prostituta Sagrada. 5 ed. São Paulo: Paulus Editora, 2005. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite- a prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). 2 ed.São Paulo: Paz e Terra, 2008. RIBEIRO, Úrsula. Mulher mercadoria. São Paulo: Paulinas, 1980. ROSTAGNOL, Susana. Regulamentação: controle social ou dignidade do/ no trabalho? In: FÁBREGAS-MARTÍNEZ; BENEDETTI, Marcos Renato (Org.). Na Batalha: sexualidade, identidade e poder no universo da prostituição. Porto Alegre: Dacasa; Palmarica, 2000. SANTOS, Luis Alberto Brandão; OLIVEIRA, Silvana Pessoa de. Sujeito, tempo e espaço ficcionais: Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2001. SILVA, Rogério Araújo da. Prostituição: artes e manhas do ofício. Goiânia: Cânone Editorial, Ed UCG, 2006 YII, Maria Encarna Sanahuja. O cruel negócio da prostituição. Disponível em: <<http://74.125.95.132/search?q=cache:mUPWtrGFI68J:www.sof.org.br/publia/pdf_ff/43.pdf+pros titui%C3%A7%C3%A3o&cd=7&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>>. Acesso em: 22 mai. 2009. 14