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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES,
DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ
Diogo de Hollanda Cavalcanti
Rio de Janeiro
2012
DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES,
DE JUAN GABRIEL VÁSQUEZ
Por
Diogo de Hollanda Cavalcanti
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos –
Literaturas Hispânicas).
Orientadora: Professora Doutora Elena C. Palmero
González
Rio de Janeiro
Janeiro de 2012
A Bella Jozef
(1926-2010)
Agradecimentos:
A minha orientadora, Elena Palmero González, pela enérgica parceria e a presença
inarredável.
Às professoras e professores que aceitaram, gentilmente, fazer parte da banca: Eurídice
Figueiredo (UFF) e Silvia Cárcamo (UFRJ), como titulares; Arnaldo Neto (UFF) e Miguel
Ángel Zamorano (UFRJ), como suplentes.
Aos demais professores – além de Elena e Silvia – que me deram aula no mestrado: Bella
Jozef (in memorian), Cláudia Luna, Consuelo Alfaro, Ellen Spielmann, Marco Lucchesi,
Maria Lizete dos Santos e Vera Lins.
Às professoras Ângela Correa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas, e Sonia Cristina Reis, chefe do Departamento de Letras Neolatinas.
À secretária do Departamento, Maria Denise P. P. Genovese.
Aos amigos, professores e colegas que me ajudaram na obtenção de livros e outras fontes de
pesquisa: Carlos Alberto Della Paschoa (Instituto Cervantes do Rio de Janeiro), Daniel
Rittner, Elena Palmero, Fátima Belchior, Flavia Lago, Guarani Cavalcanti, Gustavo Abumrad,
Juliana Rangel, Laura Janina Hosiasson, María Rosa Lojo, Rafael Gutiérrez Giraldo e Silvia
Cárcamo.
A meus interlocutores e incentivadores pessoais: André Garcia, Cátia Martins, Diana de
Hollanda, Miguel Conde, Pedro Rocha, Pura Martínez, Sylvia Moretzsohn e Yipsy Ramírez.
A meus pais: Ana Maria de Hollanda Cavalcanti e Pedro Cavalcanti.
A Débora Guterman, pelo amor indispensável em todos os momentos.
RESUMO
CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória em Los informantes,
de Juan Gabriel Vásquez. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2012. Dissertação de
mestrado em Literaturas Hispânicas.
Esta dissertação tem como objetivo analisar o papel dos sujeitos deslocados na reconstrução
memorialística feita pelo romance Los informantes (2004), do colombiano radicado na
Espanha Juan Gabriel Vásquez. Inspirado em um episódio pouco conhecido da história latinoamericana – a criação de listas negras e campos de concentração para imigrantes dos países do
Eixo durante a Segunda Guerra Mundial –, Los informantes é narrado por um jornalista que,
para compor a história do livro, se vale de um emaranhado de testemunhos que têm como
característica comum a condição de deslocamento em que vivem seus emissores: imigrantes
estrangeiros, migrantes domésticos e indivíduos que, mesmo indiretamente, experimentam
alguma forma de diáspora. Considerando essa particularidade, o trabalho propõe mostrar
como a condição deslocada influencia a memória dos sujeitos textuais do romance e contribui,
de maneira determinante, para a reconstrução memorial empreendida pelo livro. Como
referencial teórico, recorro aos estudos sobre deslocamento e diáspora de James Clifford
(1999), Arjun Appadurai (2001), Stuart Hall (2003) e Abril Trigo (2003); os textos sobre
memória de Paul Ricoeur (2007), Jeanne Marie Gagnebin (2006), Abril Trigo (2003) e
Beatriz Sarlo (2005); e os trabalhos sobre testemunho de Mabel Moraña (1995) e Márcio
Seligmann-Silva (2003).
Palavras-chave: Juan Gabriel Vásquez; literatura hispano-americana; literaturas em
deslocamento; deslocamento; memória.
RESUMEN
CAVALCANTI, Diogo de Hollanda. Deslocamento e memória em Los informantes,
de Juan Gabriel Vásquez. Rio de Janeiro, UFRJ, Faculdade de Letras, 2012. Tesis de maestría
en Literaturas Hispánicas.
Esta disertación tiene como objetivo analizar el rol de los sujetos desplazados en la
reconstrucción memorialística llevada a cabo por la novela Los informantes (2004), del
colombiano radicado en España Juan Gabriel Vásquez. Inspirado en un episodio poco
conocido de la historia latinoamericana – la creación de listas negras y campos de
concentración para inmigrantes de los países del Eje durante la Segunda Guerra Mundial –,
Los informantes está narrado por un periodista que, para componer la historia del libro, echa
mano de un entramado de testimonios que tienen por característica común la condición de
desplazamiento en que viven sus emisores: inmigrantes extranjeros, migrantes domésticos o
individuos que, aunque indirectamente, experimentan alguna forma de diáspora.
Considerando esta particularidad, este trabajo propone señalar como la condición desplazada
influye en la memoria de los sujetos textuales de la novela y contribuye, de modo
determinante, a la reconstrucción memorial desarrollada por el libro. Como referencial
teórico, utilizo estudios sobre desplazamiento y diáspora de James Clifford (1999), Arjun
Appadurai (2001), Stuart Hall (2003) y Abril Trigo (2003); textos sobre memoria de Paul
Ricoeur (2007), Jeanne Marie Gagnebin (2006), Abril Trigo (2003) y Beatriz Sarlo (2005);
además de trabajos sobre testimonio de Mabel Moraña (1995) y Márcio Seligmann-Silva
(2003).
Palabras-clave: Juan Gabriel Vásquez;
desplazamiento; desplazamiento; memoria.
literatura
hispanoamericana;
literaturas
en
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 8
I – LITERATURAS EM DESLOCAMENTO ................................................................. 18
1.1 – Deslocamentos na literatura hispano-americana: coordenadas históricas ................ 18
1.2 – O deslocamento na literatura hispano-americana contemporânea ............................ 30
1.3 – Dimensões do deslocamento ..................................................................................... 40
II – MEMÓRIAS DESLOCADAS ................................................................................... 49
2.1 – Desconstruindo a ‘história oficial’: as memórias em deslocamento ........................ 49
2.2 – Entre a lembrança e o esquecimento ......................................................................... 57
2.3 – A memória testemunhal ............................................................................................. 64
III – DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES ............................ 70
3.1 – O deslocamento em Los informantes ........................................................................ 70
3.2 – A memória em Los informantes ................................................................................ 77
3.3 – As testemunhas e o jornalista ............................................................................
85
CONCLUSÕES ................................................................................................................. 90
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 93
INTRODUÇÃO
Este trabalho pretende contribuir para um esforço de refundação da historiografia
literária latino-americana. Da defesa da heterogeneidade feita pelo peruano Antonio Cornejo
Polar (1994) à proposta das áreas culturais transnacionais da chilena Ana Pizarro (2004) –
sem esquecer as fundamentais reuniões de Caracas e Campinas, em 1982 e 1983, com a
participação do brasileiro Antonio Candido e do uruguaio Ángel Rama, entre outros
intelectuais –, a discussão de novos parâmetros para historiar a literatura tem ocupado, nos
últimos trinta anos, lugar de destaque nos debates acadêmicos da região. Confrontando-se à
história de viés positivista que listava autores, países e gerações numa perspectiva evolutiva e
etnocêntrica, um trabalho de “reconsideração do cânon e reelaboração do corpus” (PIZARRO,
2004, p.73) passou a incluir no universo historiográfico diversos elementos anteriormente
alijados, como as expressões culturais indígenas, as tradições orais, a música popular, a
iconografia e – o que nos interessa particularmente nesta dissertação – a literatura hispanoamericana produzida fora dos limites geográficos da América Latina.
Estabelecidos principalmente nos Estados Unidos, no Canadá e na Europa, escritores
de várias partes da América Latina, que emigraram por razões diversas ao longo das últimas
décadas, têm produzido uma literatura que, ao mesmo tempo em que dialoga com as tradições
de língua espanhola, reflete as particularidades de um dos fenômenos mais marcantes da
contemporaneidade: a condição de deslocamento em que vive boa parte da população
mundial. Embora tão antigos quanto a própria humanidade, os movimentos migratórios
assumiram, depois das grandes guerras e da globalização, proporções inéditas na história e,
segundo o antropólogo Arjun Appadurai (2001, p.6), constituem uma das perspectivas
fundamentais para entender a subjetividade moderna.
8
Isso ressalta ainda mais a necessidade de investigar a obra de escritores
extraterritoriais 1 , numa aproximação que busque identificar, entre outros aspectos, como a
mobilidade cultural influencia a identidade da escrita desses escritores, como o deslocamento
poderia definir uma poética escritural e como essas escritas se articulam no sistema literário
hispano-americano.
Esta pesquisa começou a ser gestada no segundo semestre de 2010, durante as aulas da
disciplina “Poéticas do deslocamento nas letras contemporâneas de língua espanhola”,
ministrada pela professora Elena Palmero González dentro do Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas da UFRJ. Ao analisar textos de escritores que, longe de sua terra natal,
conciliavam universos culturais diferentes, muitas vezes manejando duas línguas e em
constante negociação identitária, norteávamos nossas leituras por várias perguntas, dentre as
quais uma me capturou de maneira particular: como o deslocamento e a memória se articulam
nos escritos desses autores? Ou seja: de que forma a distância do país de origem e a imersão
em outra cultura influenciam a reconstrução memorial que aparece, não com pouca
frequência, na matéria ficcional desses textos?
A questão me remeteu à obra do colombiano Juan Gabriel Vásquez – frequentemente
relacionada pela critica com a chamada literatura transatlântica (CORRAL, 2004) por ser
produzida no âmbito geográfico e editorial europeu – e, em particular, ao romance Los
informantes (2004), que havia lido e resenhado poucos meses antes para o jornal O Globo 2 .
Com 38 anos e importante reconhecimento crítico 3 , Vásquez só publicou o livro oito anos
1
Uso o conceito de George Steiner (1990) para referir‐me não só à condição deslocada do indivíduo, mas também ao paradigma estético criado em condições de deslocamento cultural. 2
HOLLANDA, Diogo de. “Romance do colombiano Gabriel Vásquez mostra vícios do continente”. Rio de Janeiro: O Globo, suplemento Prosa & Verso, 22/05/2010. 3
Além do elogio de escritores consagrados, como Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, recebeu prêmios na Espanha (Qwerty, da Barcelona TV) e na Colômbia (Fundación Libros & Letras), e teve resenhas amplas e favoráveis em alguns dos maiores jornais do mundo, como The New York Times e The Guardian. 9
depois de se mudar da Colômbia. Longe de me parecer fortuita, essa circunstância se
apresenta a mim como determinante para o olhar contido na obra. Inspirado em um episódio
pouco conhecido da história latino-americana – a criação de listas negras e campos de
concentração para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial –, Los
informantes é narrado em primeira pessoa predominantemente pelo jornalista Gabriel Santoro,
que conta de maneira metaficcional e autorreflexiva seus dois esforços consecutivos de
reconstrução memorial do período: o primeiro, a biografia da judia alemã Sara Guterman,
amiga do pai que chega à Colômbia em 1938 escapando do nazismo com a família; e o
segundo, desempenhado ao longo do romance, uma espécie de ampliação e revisão do relato
anterior, na qual o pai de Gabriel, que havia escondido um segredo por toda a vida, passa a ter
participação ativa nos eventos narrados.
Além de Sara, todos os demais “informantes” da narrativa vivem alguma forma de
deslocamento: a fisioterapeuta Angelina, que saiu de Medellín para Bogotá e diz que “se
mudar é desagradável” (VÁSQUEZ, 2004, p.233); o descendente de alemães Enrique
Deresser, que, declarando ódio a Bogotá, faz o caminho contrário e leva no sangue a marca do
exílio paterno; e, de certo modo, o próprio pai do narrador, amigo íntimo de imigrantes que,
culpado por haver cometido uma traição, tenta sepultar o passado, mas no fim empreende uma
simbólica viagem de regresso, sem encontrar o que esperava.
Partindo dessa constatação, ampliei as anotações que havia feito para o trabalho final
da disciplina e estruturei o projeto de pesquisa que agora, pouco mais de um ano depois,
traduz-se nesta dissertação de mestrado. O problema central da investigação se resume nas
seguintes perguntas. Como a condição deslocada influencia a memória dos sujeitos textuais de
Los informantes? E de que forma, ativando recordações em uns e estimulando o esquecimento
em outros, a experiência do deslocamento contribui, de maneira geral, para a reconstrução
memorial empreendida pelo romance?
10
A hipótese que tentarei demonstrar é a de que os deslocamentos, por estabelecerem
não apenas uma demarcação espacial – um “aqui” e um “lá”–, mas também cronológica na
vida dos sujeitos – um “antes” e um “depois”–, produzem uma disposição particular à
reconstrução memorial, derivada primordialmente dos anseios de autorreflexão e busca
identitária (PALMERO 2010a). Quando o deslocamento está associado ao trauma e à
violência, como é o caso tematizado no livro (o exílio forçado de Sara, o suicídio do pai de
Enrique ou as diversas perdas de Angelina), a reação dos sujeitos oscila entre lembrar e
esquecer.
Definido o objeto, os problemas e as principais hipóteses da pesquisa, os objetivos
gerais do trabalho articulam-se em torno da necessidade de: desenvolver fontes teóricas e
criticas que contribuam para estudos mais abrangentes das literaturas produzidas em
condições de deslocamento; aprofundar os estudos contemporâneos sobre as relações
memória/deslocamento; e contribuir para estudos de historiografia literária no âmbito
hispano-americano, especialmente para o projeto de pesquisa “Poéticas do deslocamento nas
letras hispânicas contemporâneas: mobilidades culturais e historiografia literária”4 , ao qual a
dissertação está vinculada.
Já os objetivos específicos consistem em estudar o universo das subjetividades em
Los informantes, nos níveis do narrador, do personagem e da construção ficcional da instância
autoral; analisar os processos de construção da memória na narrativa, considerando a
influência dos deslocamentos, o papel das testemunhas e o jogo de forças entre lembranças e
esquecimento; e caracterizar o sujeito deslocado como fonte de reconstrução memorial no
romance.
4
Coordenado pela professora Elena Palmero González e inscrito no Programa de Pós‐Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ. 11
Para o desenvolvimento da pesquisa, conjuguei procedimentos de análise textual e
hermenêutica literária com procedimentos provenientes da critica cultural e da historiografia
literária.
Embora não tenha encontrado no Brasil trabalhos acadêmicos específicos sobre Los
informantes nem sobre nenhum outro livro de Juan Gabriel Vásquez 5 – apesar de fartas
resenhas jornalísticas sobre o romance –, as questões teóricas que abordo na dissertação têm
motivado interesse crescente no meio universitário. A memória em situações de trauma, por
exemplo, foi um dos eixos do projeto temático “Escritas da Violência”, que reuniu, de 2006 a
2010, 17 pesquisadores de nove universidades brasileiras e estrangeiras, sob a coordenação de
Márcio Seligmann-Silva, da Universidade de Campinas (Unicamp). Problemas ligados às
mobilidades culturais e às poéticas da memória, por sua vez, tiveram destaque nos últimos
anos no grupo de trabalho (GT) “Relações literárias interamericanas” da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Linguísticas (Anpoll). Com a participação de quase
30 pesquisadores ligados às literaturas das quatro principais línguas das Américas (inglês,
espanhol, francês e português), o GT tem como princípio básico romper com os conceitos
mais rígidos de literaturas nacionais e estabelecer um necessário comparativismo entre os
estudos literários de todo o continente. Esta visão tem sido disseminada em eventos,
orientações de trabalhos de pós-graduação e nas diversas publicações produzidas até agora
pelo grupo, como o livro Conceitos de literatura e cultura (2005, 1ª edição), organizado por
Eurídice Figueiredo; o Dicionário de figuras e mitos literários das Américas (2007) e o
Dicionário das mobilidades culturais: percursos americanos (2010), organizados por Zilá
Bernd.
5
Em nível internacional, identifiquei uma pesquisa de doutorado sobre a influência do cânon na literatura de Vásquez. O trabalho, em fase de desenvolvimento, é conduzido por Jasper Vervaeke, da Universidade de Antuérpia (Bélgica). 12
Entretanto, ainda há um vasto campo a ser explorado. A consulta ao banco de teses e
dissertações de sete universidades brasileiras (UFRJ, UFF, USP, Unicamp, UFMG, UFRGS e
PUC-Rio) mostra um número ainda acanhado de trabalhos que abordam os deslocamentos
contemporâneos em suas singularidades, ou seja, ressaltando o enfraquecimento de conceitos
como Estado-nação e identidade nacional, matizando a questão do trauma (por mais que ele
continue a existir) e focalizando, acima de tudo, as especificidades das escritas nascidas do
intenso encontro de culturas, línguas e lugares. Aproximações com esse prisma – atentas às
hibridações, mais do que às rupturas – parecem mais frequentes nos departamentos de
literaturas francófonas ou de língua inglesa, nutrindo-se muitas vezes de um sugestivo corpus
de autores de países pós-coloniais. Nos estudos literários hispano-americanos, continua a
haver uma clara predominância de trabalhos sobre escritores que produziram no exílio
político, o que suscita, inevitavelmente, questões diferentes das que vou tratar nesta
dissertação.
Para transcender as especificidades das inúmeras formas de mobilidade que marcam a
história da literatura hispano-americana – viagens, imigrações, exílios, diásporas,
nomadismos, entre outras –, optei por um conceito abrangente de deslocamento (PALMERO,
2010a), que abarca todas essas variedades e inclui acepções que independem mesmo da
movimentação física, como a mobilidade linguística, o deslocamento discursivo (ou seja,
como lócus de enunciação) e o deslocamento como paradigma crítico e historiográfico para a
abordagem da literatura hispano-americana. Meu interesse central, contudo, está nos
deslocamentos contemporâneos – e, especialmente, nos movimentos definitivos ou mais
duradouros, como o dos escritores que, por opção própria, decidem se instalar fora de seus
países, como Juan Gabriel Vásquez.
Meu principal referencial teórico para tratar do tema do deslocamento se encontra na
antropologia e na crítica cultural contemporânea. Para dimensionar o fenômeno na atualidade
13
e elucidar suas características, tomei como base os estudos de James Clifford (1999), Arjun
Appadurai (2001), Stuart Hall (2003) e Abril Trigo (2003). Complementarmente, para referirme ao deslocamento como postura discursiva, recorro aos ensaios de Ricardo Piglia (2001) e
Julia Kristeva (1977); e, ao descrever o intenso e multifacetado histórico de mobilidade dos
escritores hispano-americanos, utilizo o trabalho de críticos como Ángel Rama (1984) e Jorge
Volpi (2009).
No tocante ao tema da memória, as articulações com o deslocamento terão respaldo,
novamente, em Abril Trigo (2003); as reflexões sobre esquecimento, lembrança e perdão
tomarão como base a filosofia de Paul Ricoeur (2007), com aportes de Jeanne Marie
Gagnebin (2006), cujos ensaios dialogam com Walter Benjamin, Adorno e outros pensadores;
e, finalmente, as discussões sobre a memória testemunhal serão referenciadas em Beatriz
Sarlo (2005), Mabel Moraña (1995) e Márcio Seligmann-Silva (2003).
Embora tenha me concentrado na análise de um único romance, optei por uma
abordagem mais ampla, dedicando os dois primeiros capítulos da dissertação não apenas à
necessária fundamentação teórica, mas também à menção de outras obras literárias que, ao
longo da pesquisa, mostraram-se valiosas para a discussão. No capítulo inicial, minhas
principais preocupações foram dimensionar a importância dos deslocamentos na história da
literatura hispano-americana, evidenciando suas especificidades hoje. Começo fazendo um
retrospecto em que – do Inca Garcilaso de la Vega, no século XVII, às novas gerações de
escritores do século XXI – o deslocamento aparece como um dos elementos de maior
permanência na produção literária da América Latina. Muitas das obras mais representativas
do subcontinente, inclusive algumas das chamadas “ficções de fundação” (SOMMER, 2004),
nasceram com os autores fora de seus países, tanto por iniciativa própria como, em alguns
momentos, por imposição de governos autoritários.
14
Examinando com mais detalhe o panorama literário dos últimos 20 anos, observo que,
independentemente de conhecermos as movimentações dos escritores, o deslocamento se
mostra com intensidade nos textos, seja como tema, fenômeno linguístico ou perspectiva
narrativa. Um dos exemplos que aponto é o de Roberto Bolaño, que, além de carregar suas
tramas de situações de mobilidade (personagens deslocados, viagens frequentes, andanças
ininterruptas), eleva ao extremo o uso literário das variações idiomáticas do espanhol,
adotando diferentes modalidades do idioma de acordo com a “nacionalidade” (e as intenções
políticas) que quer fazer prevalecer em cada obra (HOSIASSON, 2011). Concluo o capítulo
com um conjunto de reflexões teóricas em torno da própria noção de deslocamento. Entre
outros pontos, discuto as diferenças entre os deslocamentos paradigmáticos da modernidade e
os de uma contemporaneidade pós-moderna e transnacional, assinalando a permeabilidade do
sujeito deslocado de hoje nas negociações identitárias que a mobilidade cultural sempre
suscita. Improvável em outros momentos, a definição de Stuart Hall para a experiência
diaspórica – a sensação de estar dentro e fora ao mesmo tempo (2003, p.415) – é assumida
com naturalidade em um mundo em que as tecnologias de comunicações e transportes
produzem relações de fronteira entre cidades separadas por milhares de quilômetros.
O segundo capítulo, dedicado ao tema da memória, é animado por dois propósitos. O
primeiro é compreender como costuma se comportar, de maneira geral, a memória de sujeitos
em deslocamento, e como funcionam as políticas da memória no processo de construir lares
fora do lar. Citado por muitos escritores como um dos maiores ganhos da extraterritorialidade,
o olhar mais lúcido em relação à pátria distante é confirmado, em boa medida, pelo crítico
uruguaio Abril Trigo (2003) em seu estudo sobre a comunidade de uruguaios em Fitchburg,
Massachusetts (EUA). De acordo com o acadêmico, ao mudar de país, os sujeitos sofrem uma
fratura identitária que os leva a empreender, de maneira quase imperceptível, um movimento
de resgate e reciclagem de memórias culturais até então soterradas na memória histórica e no
15
imaginário social da nação deixada. O principal efeito deste processo, ou pelo menos o mais
profícuo, é o surgimento de novas formas de olhar a comunidade nacional – formas
alternativas que, com o “esquecimento criativo” produzido pela distância, conseguem se
desvencilhar da ação homogeinizadora da memória histórica, incorporar diferenças antes
esmagadas e colocar em xeque alguns pilares do imaginário nacional.
O segundo propósito desse capítulo é estabelecer um quadro teórico que permita a
análise subsequente de outros tópicos fundamentais na trama de Los informantes,
especialmente dois: a tensão entre lembrar e esquecer que marca países com traumas não
superados, e a figura crucial da testemunha, que enseja, em sua dupla condição – ao mesmo
tempo essencial e insuficiente –, um oportuno debate sobre os limites da memória.
Qualificando as discussões sobre memória como uma tarefa sensível mas indispensável na
América Latina redemocratizada, Beatriz Sarlo (2005) propõe um exame crítico da
transformação do testemunho no recurso mais importante para a reconstrução do passado –
uma espécie de “ícone da Verdade”, como define a ensaísta argentina (idem, p.23). “Só uma
confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia estabelecer uma
ordem presidida pelo testemunhal”, afirma Sarlo (idem, p. 63).
Finalmente, no terceiro e último capítulo, realizo a análise de Los informantes,
tomando como paradigma analítico o quadro teórico apresentado nos capítulos anteriores.
Minha leitura concentra-se, principalmente, nos sujeitos textuais do romance – personagens,
narrador e autor implícito – e, como os demais capítulos, divide-se em três tópicos: o primeiro
dedicado ao deslocamento; o segundo à memória (especialmente às tensões entre lembrar e
esquecer); e o terceiro às figuras das testemunhas e do jornalista. Minha visão é que, oito anos
depois de deixar a Colômbia, Vásquez fez do deslocamento não apenas um ingrediente
fundamental da trama, mas o inequívoco lócus de enunciação de seu primeiro romance sobre
o país. Ao resgatar na década de 1940 um episódio excluído da chamada história oficial, o
16
escritor manifestou uma clara opção pelo dever de memória, amparado no princípio, citado
por ele próprio, de que “recordar é um ato moral” (VÉLIZ, 2011). Porém, ao mesmo tempo
em que se lança com argúcia a essa tarefa, ele faz de sua própria matéria-prima – a memória –
um rico tema de reflexão. 17
I LITERATURAS EM DESLOCAMENTO
1.1 Deslocamentos na literatura hispano-americana: coordenadas históricas
Exílios políticos, missões diplomáticas, peregrinações culturais. Independentemente
do propósito, o deslocamento dos escritores é um dos elementos de maior permanência na
produção literária hispano-americana. Das crônicas do período colonial à literatura
contemporânea, um extenso conjunto de obras, entre as mais representativas da América
Latina, nasce com os autores fora de seus países de origem. Um inventário despretensioso, de
ambições meramente ilustrativas, poderia começar no século XVII, quando o Inca Garcilaso
de la Vega escreve um dos textos fundamentais sobre a Conquista, Los comentarios reales
(1606), 45 anos depois de mudar-se do Peru para a Espanha. Na obra, o filho de pai espanhol
e mãe indígena, que passou boa parte da vida dividido entre os dois universos culturais e
linguísticos, faz uso intenso de recordações pessoais – do ambiente familiar às ruas de Cuzco
– para compor um dos relatos mais importantes sobre a tomada do Peru pelos espanhóis.
Nos séculos XVIII e XIX, arrastados a uma vida de errância, militares e intelectuais
que lutaram pela independência produziram uma escrita em permanente movimento. Os
artigos, discursos e quase 3 mil cartas 6 de Simón Bolívar brotaram quase sempre de
circunstâncias transitórias: ditados às vezes de cima do cavalo, às vezes de madrugada, na
precariedade dos acampamentos de campanha. Seu professor de juventude, o também
venezuelano Andrés Bello, foi outro que experimentou constantes deslocamentos:
responsável, entre outros escritos, por uma importante obra poética, Bello nasceu em Caracas,
viveu duas décadas em Londres e passou os últimos 36 anos da vida no Chile, onde foi
sepultado e reconhecido como cidadão nacional.
6
Uso o número de Fabiana de Souza Fredrigo (2010, p.35): 2.815 cartas. Considerando também as extraviadas, Bolívar teria escrito mais de dez mil missivas. 18
Publicadas no século XIX e nas primeiras décadas do XX, várias obras consideradas
fundadoras das literaturas nacionais 7 foram escritas, integral ou parcialmente, fora dos países
dos autores. Entre elas o Facundo (1845), do argentino Domingos Faustino Sarmiento,
redigido inteiramente no Chile, o poema épico Tabaré (1887), do uruguaio Juan Zorrilla de
San Martín, concluído na Argentina, e o romance antiescravista Sab (1841), da cubana
Gertrudis Gómez de Avellaneda, escrito na Espanha 8 .
Da mesma forma, escritores que por muito tempo foram símbolos das literaturas de
seus países, como o chileno Alberto Blest Ganas, o venezuelano Rómulo Gallegos e o cubano
José María Heredia, viveram longas temporadas fora deles – Blest como diplomata, Gallegos
e Heredia como exilados políticos. Também no exílio viveu o poeta e ensaísta José Martí,
principal artífice da independência cubana, que escreveu boa parte de sua obra – inclusive o
célebre Nuestra América – nos mais de vinte anos em que esteve fora de Cuba.
Determinados até então principalmente por questões políticas – vários desses autores
transitaram por altas esferas do poder, como Sarmiento e Gallegos, que chegaram a ser
presidentes –, os deslocamentos passaram a ter, na virada para o século XX, um outro
componente para um grupo de escritores modernistas encabeçado pelo nicaraguense Rubén
Darío. Tendo Paris como principal destino, as viagens significavam para eles um ritual de
formação estética e cultural, um aggiornamento na modernidade que tinha a capital francesa
como sede e, naquele momento, parecia longe de chegar à América Latina. Esta convicção de
distância tornou-se generalizada ao longo do século XIX, quando a consolidação da burguesia
como classe hegemônica – fortemente conectada com interesses europeus – impulsionou a
7
Ver SOMMER, Doris. Ficções de fundação: os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2004. 8
Outros exemplos são Amalia , do argentino José Mármol, cuja primeira edição (1851) foi publicada em Montevidéu, e Memorias de la mamá blanca (1929), da venezuelana Teresa de la Parra, escrito integralmente na Suíça. 19
importação não apenas de novos produtos, como de discursos propagando a crença de que o
futuro esperado pelos latino-americanos já era o presente da Europa (FOMBONA, 2005, p.
13). Como sintetizou Octavio Paz (1990), “lo moderno estaba afuera y teníamos que
importarlo”.
Para os escritores modernistas, mais do que capital francesa, Paris era o “centro de
uma estética”, conforme definiu Paz (1974, p.48) 9 . Embora tenha tido uma relação de altos e
baixos com a cidade – queixando-se várias vezes do desprezo com que os hispano-americanos
eram tratados –, Rubén Darío conta em sua autobiografia que o desejo de conhecê-la já estava
em suas primeiras ambições: “Yo soñaba con París desde niño, a punto que, cuando hacía mis
oraciones, rogaba a Diós que no me dejase morir sin conocer París.” (DARÍO, 1991, p.71).
Mas os deslocamentos de Darío e outros escritores de sua geração – entre os quais o
guatemalteco Enrique Gómez Carrillo, o franco-argentino Paul Groussac e os uruguaios José
Enrique Rodó e Horacio Quiroga – não foram estimulados apenas pelos anseios
modernizadores e pelo magnetismo de Paris. Havia também o desejo de reconhecimento fora
da América Latina e a difusão cada vez maior da literatura de viagem, consumida com avidez
na Europa durante o século XVIII (FOMBONA, 2005, p.37) e bastante conhecida dos autores
hispano-americanos 10 . O próprio hábito de viajar era cada vez mais disseminado e
reconhecido como fértil para a literatura. Após forte propagação, os périplos didáticos
consagrados com o nome de grand tour haviam se transformado em viagens voltadas ao
prazer, e os diários disciplinados e científicos recomendados anteriormente cederam espaço a
livros em que o relato de sensações ocupava lugar prioritário, como os de Goethe e Sterne.
9
Jorge Schwartz (1983, p.5) usa o termo cosmópolis: “[...] axis mundi cultural sobre o qual gravitarão as ´mini´ ou ´subcosmópolis´: Madri, Moscou, Buenos Aires, Milão, Lisboa, etc. [...]”. Segundo Schwartz, Paris gozou dessa condição da segunda metade do século XIX às primeiras décadas do XX. 10
Em seu estudo sobre os deslocamentos dos escritores modernistas, Beatriz Colombi mostra como Gómez Carrillo cita, e chega a parodiar, o francês Pierre Loti, um dos mais célebres autores de relatos de viagem do século XIX. Ver COLOMBI, 2004, p.235‐240. 20
Com eles, a escrita passa a ser, muito mais do que decorrência, o motivo principal das
viagens 11 .
Nas primeiras décadas do século XX, os deslocamentos continuaram marcando desde
os primeiros poetas de vanguarda – como Vicente Huidobro, César Vallejo e Oliverio
Girondo – aos precursores da chamada nova narrativa hispano-americana, como Jorge Luis
Borges, Miguel Ángel Asturias e Alejo Carpentier. Aos 15 anos, por razões familiares,
Borges saiu de Buenos Aires rumo a Genebra e permaneceu sete anos na Europa (1914 a
1921), tendo contato com o Expressionismo alemão na Suíça e aderindo, em Madri, ao grupo
dos poetas ultraístas, movimento que ajudou a impulsionar a vanguarda argentina e foi
fundamental, segundo Irlemar Chiampi (1998, p.5), para reinserir o Barroco no cenário
literário da América Latina.
Também na Europa da Primeira Guerra Mundial (1914-1919) estava o mexicano
Alfonso Reyes, que, após o início do conflito, partiu de Paris para Madri, onde ficou mais de
uma década. Durante esse período, Reyes aprofundou o processo de revalorização da Espanha
iniciado pelos modernistas, que substituíram a imagem de “madrasta má” da época da
independência 12 pela de “mãe da cultura hispânica” (FOMBONA, 2005, p. 154), estimulando
uma tradição de textos memorialísticos que continuaria dando frutos até hoje. Segundo
observou Beatriz Colombi (2004, p.169), na temporada que passou em Madri, longe de se
“espanholizar”, Reyes acentuou sua consciência mexicana e hispano-americana, tendo escrito
um de seus mais importantes ensaios: Visión de Anáuac (1519), mergulho intenso e lírico no
México pré-hispânico, publicado em 1917.
11
Ver FOMBONA, Jacinto. La Europa necesaria: textos de viaje de la época modernista. Rosário: Beatriz Viterbo, 2005. 12
Na lista de detratores, merecem destaque Frey Servando de Mier e Sarmiento, que ridicularizam constantemente a Espanha. 21
Apesar dos abalos provocados pela Primeira Guerra, Paris continuou a ter posição
central no panorama cultural das primeiras décadas do século XX, abrigando a maioria dos
artistas responsáveis pelas grandes inovações do período. Considerado por Octavio Paz (1974,
p.184) como o fundador da vanguarda hispano-americana, o peruano Vicente Huidobro
publicou seu primeiro livro na França, e em francês: Horizon Carré, lançado em 1917, um
ano depois de se mudar para Paris. Asturias e Carpentier, por sua vez, foram colegas na
cidade durante a década de 1920, quando trabalharam para a revista Imán, dirigida por
Carpentier, e escreveram ou concluíram seus romances de estreia: respectivamente, Leyendas
de Guatemala (1930) e Ecué-Yamba-Ó! (1933). Uma das tônicas da obra de Asturias, o
resgate dos mitos maias foi aprofundado na interlocução com o meio acadêmico parisiense –
em especial com o professor Georges Raynaud, da Escola de Altos Estudos de Paris,
responsável pela versão francesa do Popol Vuh que Asturias traduziu em 1926. Uma
coletânea reunindo os artigos do guatemalteco em seus primeiros nove anos na França (1924 a
1933) revela, aliás, um aspecto curioso: de 440 artigos que enviou ao jornal El Imparcial, da
Guatemala, quase metade (168) trata exclusivamente de assuntos relacionados a seu país 13 .
Durante as décadas de 1960 e 1970, os principais escritores associados ao chamado
boom da literatura latino-americana – caracterizado principalmente pelo forte aumento no
consumo de obras do subcontinente, sobretudo romances (RAMA, 1984, p.64) – viveram na
Europa e lá produziram vários dos livros que engendraram e consolidaram o fenômeno, como
La ciudad y los perros (1962), de Mario Vargas Llosa, e Rayuela (1963), de Julio Cortazar,
ambos escritos em Paris 14 . Embora também tenham morado em outras cidades, os autores se
13
ASTURIAS, Miguel Ángel. París: 1924‐1933. Periodismo y creación literária. Edição crítica organizada por Amos Segala. Madri; Paris; Cidade do México; Buenos Aires; São Paulo; Lima; Cidade da Guatemala; San José; Santiago: ALLCA XX, 1997. 14
Ao vencer a primeira edição do prêmio Biblioteca Breve, da editora Seix Barral, La ciudad y los perros passou a ser considerado um dos inauguradores do boom. 22
concentraram entre a capital francesa e Barcelona, esta última ganhando mais importância no
final da década de 1960, à medida que as editoras hispano-americanas foram se
enfraquecendo e as espanholas ampliaram a participação na publicação das obras (RAMA,
idem, p.51-52). No início dos anos 1970, entre os autores estabelecidos em Barcelona estavam
Mario Vargas Llosa, José Donoso e Gabriel García Márquez, que desembarcou na cidade um
ano depois de ter lançado o maior êxito editorial de toda a história da literatura hispanoamericana: Cien años de soledad (1967). Para a transformação de Barcelona na “sede do
boom”, foi decisiva a atuação de uma agente literária, Carmen Balcells, que representava a
maior parte desses escritores e chegou a oferecer um salário para Vargas Llosa transferir-se de
Londres para a capital catalã.
Alvo de diversas críticas, os deslocamentos dos anos 1960 foram entendidos por
Ángel Rama (1984, p.93) como uma nova tentativa, desta vez mais frutífera, de
profissionalização dos escritores – isto é, de viverem exclusivamente de seus livros –, objetivo
que, com maior ou menor folga, conseguiu ser atingido pela primeira vez por autores
pertencentes ao boom. Afirma Rama:
A ida de escritores latino-americanos para outras regiões do mesmo
continente que mostravam maiores possibilidades de difusão por contar com
editoras, revistas, grandes jornais, ou para a Europa e os Estados Unidos
(censurada injustamente com estreiteza de visão) respondeu a este afã de
profissionalização dos autores, cumprindo cabalmente sua vocação e
atendendo simultaneamente a uma exigência interna da cultura latinoamericana: dispor de escritores que edificassem uma rica literatura própria.
Diante da impossibilidade de fazê-lo em suas próprias pátrias, a qual admite
uma pluralidade de causas (dificuldades econômicas ou políticas, dispersão
do esforço, falta de oportunidades, escassez de informação, assédio
provinciano) transferiram-se para melhores praças, dentro ou fora do
continente. Não outra coisa fizeram milhões de pessoas comuns da América
Latina, sem que sobre elas tenha recaído sanção moral (RAMA, 1984,
p.93). 15 15
Salvo quando sinalizado, as traduções são todas minhas. 23
Em Historia personal del boom (1972), testemunho centrado principalmente em
analisar as razões literárias que impulsionaram o fenômeno, José Donoso descreve o
deslocamento como uma circunstância mais propícia para a criação. O autor destaca que a
maioria dos “romances capitais do boom” foi escrita quando os autores estavam fora de suas
nações de origem e que, “evidentemente, não se trata de mera coincidência” o fato de tantos
escritores terem se mudado para outros países (DONOSO, 1972, p.75). Narrando sua própria
experiência, Donoso conta que se sentia asfixiado no Chile, onde o meio literário era
demasiado preso a padrões estéticos do passado, a sobrevivência dependia de inúmeros
trabalhos e a obtenção de livros importados se fazia apenas com a ajuda de amigos. O escritor
diz que, somente após sair do Chile, primeiro para o México, depois para Barcelona,
conseguiu se libertar do bloqueio criativo que vinha impedindo o término de seu romance El
obsceno pájaro de la noche (1970).
Paralelamente a este deslocamento voluntário, vários autores continuaram a ir para o
exterior por discordâncias políticas, como os dissidentes cubanos do regime de Fidel Castro
(Guillermo Cabrera Infante na década de 1960, Reinaldo Arenas em 1980, entre outros) e os
inúmeros escritores argentinos, chilenos, uruguaios e brasileiros que saíram de seus países
após os golpes militares dos anos 1960 e 1970. Em meio ao horror instaurado pelas ditaduras
– marcadas por torturas e execuções de milhares de pessoas –, os autores do Cone Sul
partiram para o exílio levando, principalmente, o sentimento de derrota dos projetos políticos
que mantinham desde a Revolução Cubana 16 . Nas narrativas do período, emerge com
frequência o trabalho de luto e reflexão sobre a memória que Idelber Avelar (2003, p.27)
16
Não por acaso, alguns críticos afirmam que os golpes daqueles anos representaram o fim do boom, uma vez que frustraram os ideais de emancipação cultural e econômica da América Latina que uniam os escritores e se refletiam em suas obras. Para John Beverly, o boom terminou precisamente em 11 de setembro de 1973, data do golpe de Augusto Pinochet contra o governo de Salvador Allende no Chile. Outros autores, como Donoso (1972, p. 115‐116), apontam como marco o chamado Caso Padilla, episódio de repressão ao poeta cubano Heberto Padilla que quebrou a unidade que prevalecia até então em torno da Revolução Cubana. 24
identificou como imperativo da ficção pós-ditatorial. Paloma Vidal (2004, p.35) aponta
também o estreitamento das fronteiras de ficção e testemunho como traço comum de várias
obras, entre elas En estado de memoria (1990), da argentina Tununa Mercado. Embora o
sentimento de perda prevaleça, alguns autores procuraram sinalizar as possibilidades de
criação propiciadas pelo deslocamento, como fez Cortázar no ensaio “América Latina: exilio
y literatura”, de 1978.
Na década de 1980, a questão do escritor deslocado passou a exigir novas leituras
diante das inovações no campo da historiografia literária e das diversas reflexões teóricas que
começaram a colocar em crise a ideia de nação e identidade nacional como essência 17 . Como
observa Claudia Ferman (1997), essa nova perspectiva evidenciou a insuficiência do termo
“exílio”, pois ele se baseia, justamente, numa suposta estabilidade dessas duas categorias. O
exilado, lembra Ferman, é aquele cuja identidade não varia nos processos de translado e que
não se mobiliza no movimento transnacional de que participa. “A categoria de ‘exílio’ dá
muito pouca conta da permanente instabilidade de nossas identidades”, resume a acadêmica.
Ao mesmo tempo, uma rejeição quase unânime aos critérios que regiam a historiografia
literária – que listava autores, países e gerações numa perspectiva evolutiva e etnocêntrica –
impulsionou um esforço de redefinição de parâmetros para historiar a literatura. Um dos
principais objetivos foi a busca de alternativas ao conceito de literaturas nacionais. Surgiram
propostas de categorias mais amplas, como a das áreas culturais transnacionais, da chilena
Ana Pizarro (2004), que além de fazer um recorte transversal, transgredindo fronteiras e
traçando novas delimitações, incorpora ao campo de estudo a literatura produzida fora da
América Latina – no caso sugerido por ela, a dos autores hispano-americanos estabelecidos
nos Estados Unidos. Outra visão inovadora e de perfil semelhante é a do espanhol Arturo
17
Dois trabalhos clássicos foram editados originalmente em 1983: Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo, de Benedict Anderson, e Nações e nacionalismo, de Ernest Gelnner. 25
Casas (2003), que aponta a necessidade de se considerar a literatura produzida em espanhol na
Europa, na América, na África e na Ásia, na definição de um grande sistema interliterário.
Estas novas concepções – o menor apego à nacionalidade, a consciência de uma
identidade móvel, entre outras – aparecem no discurso de muitos escritores contemporâneos
quando falam sobre a condição de deslocamento em que vivem. Quatro anos antes de morrer,
o chileno radicado em Barcelona Roberto Bolaño, que também morou vários anos no México,
fez o seguinte comentário ao receber o prêmio Rómulo Gallegos, em 1999:
Para mim dá no mesmo dizerem que sou chileno, embora alguns colegas
chilenos prefiram me ver como mexicano, ou dizerem que sou mexicano,
embora alguns colegas mexicanos prefiram me considerar espanhol, ou, já
de uma vez, desaparecido em combate, e inclusive dá no mesmo para mim se
me consideram espanhol, embora alguns colegas espanhóis façam um
escândalo e a partir de agora digam que sou venezuelano, nascido em
Caracas ou em Bogotá, coisa que tampouco me desagrada, muito pelo
contrário. O fato é que sou chileno e também sou muitas outras coisas
(BOLAÑO, 1999).
Outros escritores mantêm um repertório parecido de declarações. O argentino Rodrigo
Fresán, que se mudou para Barcelona em 1999, costuma dizer que sua pátria é sua
biblioteca 18 . O peruano Fernando Iwasaki, há 22 anos em Sevilha, afirma: “Para mim não
existe nem a ‘literatura espanhola’ nem a ‘literatura hispano-americana’. Só literatura em
espanhol (CORRAL, 2004, p.28).” E o mexicano Jorge Volpi, que se divide entre a Cidade do
México e Madri 19 , escreveu o seguinte sobre os jovens autores hispano-americanos: “Embora
nenhum deles renegue abertamente sua pátria, trata-se agora de um mero referente
autobiográfico e não de uma denominação de origem” (VOLPI, 2009, p.168).
Sem as críticas sofridas por seus antecessores, um contingente numeroso de jovens
escritores continua a se estabelecer fora da América Latina, como sinalizam os eventos e
coletâneas que procuram oferecer uma amostra da literatura produzida pelas novas gerações.
18
Clarin, Revista de nueva literatura, 07/01/2007. 19
Segundo o site da Alfaguara, sua editora. 26
Um dos eventos mais divulgados, o festival Bogotá 39, realizado em 2007, apresentou 39
autores com menos de 39 anos considerados promissores por um júri formado por três
escritores colombianos (Héctor Abad, Piedad Bonnet e Óscar Collazos). Da lista de “jovens
talentos”, quase metade (precisamente 17) vive hoje 20 fora de seus países: seis nos Estados
Unidos, dez na Europa e um no Oriente Médio. Entre os radicados na Europa, oito deles
vivem na Espanha, sendo metade em Barcelona. Da mesma forma, dos 16 autores hispanoamericanos incluídos na antologia Los mejores narradores jóvenes en español da revista
inglesa Granta (2010), oito estão radicados fora da América Latina – neste caso, igualmente
divididos entre Estados Unidos e Espanha 21 .
Embora o ingresso cada vez mais frequente na vida acadêmica explique parte dos
deslocamentos – principalmente dos que vão para os Estados Unidos –, o desejo de se
aproximar das grandes editoras espanholas, tal qual os antecedentes do boom, parece motivar
boa parte dos escritores. No ensaio “América Latina, holograma”, incluído na coletânea El
insomnio de Bolívar (2009), Jorge Volpi – um dos 39 escolhidos em Bogotá – comenta que,
apesar do surgimento nos últimos anos de algumas editoras independentes (principalmente na
Argentina e no México), a indústria editorial continua fortemente dominada pelos
conglomerados espanhóis, situação que, segundo ele, ocorre desde o fim da década de 1970,
quando a crise econômica na América Latina ensejou uma onda de aquisições das editoras
locais por grandes grupos da Espanha. Na definição de Volpi (2009, p.158), publicar na
Espanha transformou-se então no objetivo mais desejado pelos escritores latino-americanos, o
equivalente a ascender a uma espécie de primeira classe literária, editada em Madri ou
Barcelona, distribuída em vários países e premiada com inúmeras vantagens, entre as quais a
possibilidade de colaborar em jornais e revistas, participar de feiras e congressos e obter
20
Em julho de 2011. 21
Idem. 27
reconhecimento público imediato. De acordo com o romancista e ensaísta mexicano, este
desejo parece longe de se extinguir: “[...] para um latino-americano, publicar nas editoras
espanholas não significa uma invasão bárbara ou um ato de traição, mas a única forma de
escapar de sua gaiola nacional e de ser lido nos demais países da região”. (VOLPI, 2009, p.
157-158).
Instalado em Barcelona desde 1999, Juan Gabriel Vásquez afirmou certa vez que a
decisão de se mudar para a cidade – após quase três anos em Paris e um no interior da Bélgica
– obedeceu em alguma medida a uma “noção mais prática da vida”, que o fez levar em
consideração a qualidade das editoras e da crítica literária sobre literatura latino-americana.22
Depois de publicar seus dois primeiros livros na Colômbia – os romances Persona (1997) e
Alina suplicante (1999) –, sua trajetória ganhou notoriedade, de fato, quando começou a ser
editado pela Alfaguara, do grupo espanhol Santillana, com o lançamento do volume de contos
Los amantes de todos los santos, em 2001. Nos anos seguintes, publicou pela editora um livro
de ensaios (El arte de la distorción, 2009) e três romances, todos com importante
reconhecimento crítico: Los informantes (2004), Historia secreta de Costaguana (2007) e El
ruido de las cosas al caer (2011), este último vencedor do prêmio Alfaguara de Romance,
que, além de uma relevante soma em dinheiro (175 mil dólares), garante forte divulgação para
o livro, com distribuição simultânea em 19 países e uma extensa agenda de lançamentos que
costuma durar um ano e abranger eventos nos Estados Unidos, América Latina e Espanha.
Mas seria redutor e equivocado atribuir o deslocamento de Vásquez e outros
escritores ao simples desejo de emancipação profissional – desejo, aliás, presente desde os
poetas modernistas, como mostra a crônica “Libreros y editores” em que Rubén Darío
menciona, na virada para o século XX, “el sueño rosado de um escritor hispanoamericano
tener un editor en España” (apud FOMBONA, 2005, p.199). Ao lado deste objetivo, há outros
22
“Entrevista a Juan Gabriel Vásquez”, in CiberLetras – Revista de crítica literaria y de cultura, n.23, jul 2010. 28
anseios menos conjunturais, mais perenes no fazer literário, como a busca de experiência e a
possibilidade, comum a todo relato de viagem, de intervir em um espaço textual já conhecido
– ou seja, reler e reescrever os “textos” que, geração após geração, se acumulam sobre esta ou
aquela cidade 23 . Chama atenção que, ao falar sobre sua ida a Paris, Vásquez mencione seus
antecessores do modernismo, do boom e da lost generation de americanos e europeus que se
mudaram para a cidade na década de 1920:
[...] Em parte, devo confessar com certo pudor, saí perseguindo essa ideia do
mito parisiense, um mito tremendamente latino-americano, o mito do
escritor que se instala em Paris para construir uma obra, como fizeram
muitos escritores latino-americanos de outras gerações que são importantes
para mim. Mais do que isso, creio que em grande medida minha vocação
literária ou minha paixão pela literatura remonta ao fato de ter descoberto e
lido aqueles romances latino-americanos que, de certa forma, foram gestados
em Paris ou, se não foram, estiveram vinculados à cidade-luz, como pode ser
Cien años de soledad, de Gabriel García Márquez, La ciudad y los perros,
de Mario Vargas Llosa, Rayuela, de Julio Cortázar. Mas também, e de
maneira talvez mais importante, livros como Ulisses, de James Joyce, ou os
contos de Ernest Hemingway, textos escritos na Paris de entre guerras,
acabaram por me convencer de que queria ser escritor (in VIGLIONE,
2011).
Da mesma forma, ao comentar sua posterior mudança para Barcelona, cita novamente
os hispano-americanos da geração anterior. “Provavelmente, se nos anos 1960 Vargas Llosa,
García Márquez, Donoso e [Alfredo] Bryce Echenique não tivessem escolhido Barcelona e
sim Madri, eu teria acabado na capital” (DE MAESENEER e VERVAEKE, 2010). E, ao
discorrer sobre a condição de deslocado, evoca um de seus escritores favoritos – o marinheiro
polonês Joseph Conrad, sobre quem escreveu uma biografia – e recorre a um termo utilizado
pelo também diaspórico V.S. Naipaul para expressar como se sente na Espanha: “um
inquilino”.
Entre suas definições alguns dicionários incluem uma que é muito simples:
“o animal que vive no lugar de outro”. É o que sou: alguém que por razões
23
Ver FOMBONA, Jacinto. La Europa necesaria: textos de viaje de la época modernista. Rosário: Beatriz Viterbo, 2005, p.94‐95. 29
de conveniência intelectual, emocional, moral, decidiu estabelecer uma
distância do lugar de onde vem, do lar, a única certeza, como diz o poema de
T.S. Eliot. Minha ideia era que, estando fora do meu país, a escrita se faria
realidade com menos resistências e maiores elementos de juízo, e
aproveitando uma maior contaminação. (DE MAESENEER e VERVAEKE,
2010).
Ou seja, para além de todos os fatores objetivos e subjetivos que estimulam as
movimentações dos escritores, há também o diálogo com a tradição. Diálogo que transcende a
esfera biográfica e se estende para o nível textual, considerando que o deslocamento,
assumido como uma maneira de estar no mundo e, consequentemente, como lócus de
enunciação, traduz-se também em uma poética escritural.
1.2 O deslocamento na literatura hispano-americana contemporânea
Seja como tema, fenômeno linguístico ou perspectiva narrativa, o deslocamento
aparece nos textos independentemente de conhecermos as movimentações dos escritores.
Deixando de lado um retrospecto mais amplo e nos centrando agora na produção literária dos
últimos vinte anos, principalmente na mais recente, identificamos um bom número de livros
em que a emigração, o exílio, as viagens e outros tipos de deslocamentos são parte central ou
relevante da trama. Entre os exemplos estão os romances de Roberto Bolaño – Monsieur Pain
(1982), La pista de hielo (1993), Los detectives salvajes (1998) e 2666 (2004), apenas para
citar alguns –; quase toda a obra de Santiago Gamboa, notadamente El síndrome de Ulises
(2005); os romances Los informantes (2004) e Historia secreta de Costaguana (2007), de
Juan Gabriel Vásquez; e El bailarín ruso de Montecarlo (2010), de Abilio Estévez.
As abordagens são as mais diversas. O romance de Estévez, um cubano que desde
2002 vive em Barcelona, é uma autoficção em que um especialista em José Martí sai de Cuba,
pela primeira vez na vida, para participar de um congresso acadêmico em Saragoça, mas tão
logo chega à Espanha decide mudar de rota e instalar-se clandestinamente na capital da
Catalunha. Desde a primeira parada da viagem – uma Madri festiva que lhe recorda a Havana
30
de outros tempos (2010, p.22) –, o percurso do protagonista é marcado por lembranças,
reflexões e o constante cruzamento de referências cubanas e espanholas: o negro que entoa
um bolero numa rua de Barcelona, a recepcionista do hotel que é neta de uma cubana... “A
cidade muda e o sonho é o mesmo, o de sempre”, diz o narrador em um momento” (idem,
p.154).
Em El síndrome de Ulises, por sua vez, o colombiano Gamboa retoma um tema já
tratado com humor por Alfredo Bryce Echenique 24 nos anos 1980: o do escritor que vai a
Paris e se depara com percalços e desventuras que contrastam duramente com o que havia
idealizado. O romance é uma autoficção com elementos de testemunho: a uma voz narrativa
principal, que identificamos com o próprio Gamboa, somam-se outros narradores, imigrantes
de diversas procedências, que relatam suas experiências geralmente penosas na capital da
França. Lavando pratos num restaurante oriental, dormindo numa pocilga, morrendo de frio e
comendo parcamente, o protagonista faz um contraponto contundente da Paris auspiciosa e
fascinante descrita por Rubén Darío e, em alguns momentos, pelo próprio Vargas Llosa.
Misérias parisienses também são descritas com hilaridade em algumas páginas de Los
detectives salvajes e aparecem, com abordagem menos patética, em Monsieur Pain, desta vez
vividas por César Vallejo, em seus dias de pobreza e enfermidade na capital francesa. Em La
pista de hielo, o cenário passa a ser um balneário da Catalunha, onde o chileno Remo Morán e
o mexicano Gaspar Heredia – escritores bissextos que ganham a vida com trabalhos braçais –
dão suas versões sobre o assassinato de uma patinadora. Tanto nesses livros como em outros
de Bolaño, como Amuleto (1999) e 2666 (2004), a temática do deslocamento transcende em
muito a questão do imigrante latino-americano marginalizado, abrangendo viagens (os poetas
de Los detectives salvajes, os críticos de 2666) e maneiras descentradas de estar no mundo.
2424
Especialmente em La vida exagerada de Martín Romaña (1981). 31
Alguns escritores tratam do deslocamento em outros contextos históricos e culturais,
como o equatoriano Leonardo Valencia em El desterrado (2000), que retorna à Roma de
Mussolini, e o argentino-andaluz Andrés Neuman, em El viajero del siglo (2009), ambientado
na Alemanha do século XIX. Em Una vez Argentina (2003), misto de memórias e obra de
ficção, Neuman refaz o caminho de sua genealogia e mostra que a experiência da emigração
já havia sido empreendida por seus bisavós, que trocaram a Rússia czarista por uma Argentina
jovem e cheia de promessas. A certa altura, o narrador comenta que “estar feito de margens,
ter a origem em dois lugares, pode ser uma maneira de viver mais tempo. Mudar-se de
hemisfério significa um rito de nascimento, que merece dor primeiro e depois ser celebrado”
(NEUMAN, 2003, p.111).
Em outros livros, migrações, viagens, exílios são elementos secundários, mas
significativos na trama, como em Abril rojo (2006), do peruano Santiago Roncagliolo, cujo
protagonista, Félix Chacalbana, mudara-se para Lima quando criança a fim de esquecer a
tragédia que matou os pais. Ou em El ruido de las cosas al caer (2011), romance mais recente
de Juan Gabriel Vásquez, em que uma das personagens centrais, Elaine Fritts, é uma
estrangeira que tem o nome trocado, compulsoriamente, ao chegar à Colômbia. O
deslocamento aparece também em inúmeros relatos de viagem, e em ensaios nos quais os
escritores refletem sobre a multiplicidade de sua identidade diaspórica, como o peruano
descendente de japoneses Fernando Isawaki, radicado em Sevilha há mais de vinte anos e
autor, entre outros livros, de Mi poncho es un quimono flamenco (2007).
Ao mesmo tempo, um bom número de narrativas transcorre em geografias totalmente
distintas das dos países de origem dos escritores. Em muitos casos, os textos não fornecem
nenhuma pista sobre a nacionalidade de quem os escreve e às vezes versam sobre lugares
nunca visitados pelos autores, como ocorre com o peruano radicado nos Estados Unidos
Carlos Yushimito, cujos contos reunidos em Las islas (2006) têm como cenário as favelas do
32
Rio e outros locais periféricos do Brasil, país em que nunca colocou os pés. Ao constatar o
nomadismo de vários autores e a diversidade de cenários que povoam suas histórias, o escritor
Luis Gusmán decidiu eleger a diáspora como eixo organizador de sua recente antologia da
narrativa argentina contemporânea. 25 Somente esta perspectiva foi capaz de viabilizar uma
seleção com ingredientes tão díspares dos anteriormente exigidos em amostras do tipo. Basta
citar a presença da nipo-americana Anna Kazumi Stahl, que nasceu e cresceu nos Estados
Unidos e se mudou para Buenos Aires aos 25 anos para aprender o idioma em que hoje
escreve, o castelhano. Ou o repertório temático rigorosamente desprendido de questões locais,
com assuntos que vão das lembranças de uma imigração armênia a um episódio na vida de
Stendhal na Letônia, passando por evocações da Calábria, o trajeto transoceânico de uma bala
de espingarda e o relato de um viajante nos Estados Unidos. A própria disposição das
narrativas foi organizada seguindo a lógica de movimento: começando em “Praça Miserere”,
de María Moreno, que além de uma praça é uma estação de trens (local de chegada e partida
de pessoas), e terminando nas reminiscências calabresas de Roberto Raschella em “Se
tivéssemos vivido aqui”. “O que há de representativo nesta antologia é seu caráter de
diáspora”, assinala Gusmán no prefácio (2011, p.11).
Apesar disso, um contingente expressivo de autores deslocados – talvez a maioria –
continua a escrever sobre os países em que nasceram, mantendo uma tradição antiga e que,
certa vez, foi ilustrada por James Joyce ao lhe perguntarem por que se mudara de Dublin.
“Para escrever sobre Dublin”, respondeu o autor de Ulisses. Em seu artigo sobre o boom,
Ángel Rama já observava que, mesmo quando deixaram a terra materna, “em sua imensa
maioria esses escritores continuaram servindo – esplendidamente – à cultura latino-americana
que os engendrou, sobre a qual continuaram gravitando obsessivamente, independentemente
da cidade ou país em que residissem.” (RAMA, 1984, p.93). Segundo muitos deles, a
25
Os outros: narrativa argentina contemporânea (São Paulo: Iluminas, 2011). 33
distância ajudou a dar-lhes uma visão mais nítida da realidade que deixaram, e a inspirar
sentimentos identitários que – assim como ocorrera com Alfonso Reyes em Madri e Manuel
Ugarte em Paris – geralmente se deslocam do nacional para o continental. “Descobri a
América Latina em Paris nos anos 1960”, disse Mario Vargas Llosa em uma conferência
pronunciada em 2005. 26 “Desde então, comecei a me sentir, antes de tudo, um latinoamericano”, continuou 27 , para em seguida completar:
Não se pode entender a América Latina sem sair dela e observá-la com os
olhos e, também, com os mitos e estereótipos que se elaboraram sobre ela no
estrangeiro [...] (VARGAS LLOSA, 2009, p.351.)
Entre os autores surgidos nos últimos vinte anos, muitos reafirmam esse possível
efeito de nitidez que o olhar à distância propicia. Juan Gabriel Vásquez disse em uma ocasião
que as viagens “limpavam seus olhos” (CORRAL, 2004, p.26), embora tenha declarado
outras tantas vezes que continuava sem entender a Colômbia e que, justamente por isso,
passara a escrever reiteradamente sobre o país (DE MAESENEER e VERVAEKE, 2010).
Suas primeiras obras ficcionais, produzidas predominantemente fora da América Latina, são
quase sempre ambientadas na Europa: o romance de estreia, Persona, é passado em Florença;
metade do segundo, Alina suplicante, transcorre em Paris; e todos os contos de Los amantes
de todos los santos têm como cenário a França e a Bélgica, países em que o escritor viveu. Foi
a partir de Los informantes – publicado, como disse antes, oito anos depois de se mudar para a
Europa – que Vásquez passou a tratar da Colômbia, voltando a fazê-lo em Historia secreta de
Costaguana e El ruído de las cosas al caer. Nestes três romances, os deslocamentos dos
personagens e o contato entre colombianos e estrangeiros têm papel de destaque na trama, que
abarca tanto a história recente como o passado mais remoto.
26
Apud VARGAS LLOSA, MARIO. Sables y utopias: visiones de América Latina. Buenos Aires: Aguilar, Altea, Taurus, Alfaguara, 2009, p.365. 27
Idem, p.346. 34
Em seu ensaio sobre a literatura latino-americana contemporânea, Jorge Volpi ressalva
que, diferentemente dos autores do boom, que empreendiam um projeto ideológico de
emancipação cultural e busca identitária da América Latina, os escritores nascidos a partir de
1960 abordam a história e os problemas atuais de seus países sem perspectiva militante nem
anseio de consolidar uma tradição (VOLPI, 2009, p.170).
Mais do que descobrir um continente, colocar no mapa uma região antes
esquecida, converter-se em seus porta-vozes ou posicionar-se à frente de
suas elites, os novos narradores falam de seus países sem ranços de
romantismo ou de compromisso político, sem esperanças nem planos de
futuro, talvez apenas com o orgulhoso desencanto de quem reconhece os
limites de sua responsabilidade frente à história. (VOLPI, idem)
Comentário parecido faz o peruano radicado em Madri Jorge Eduardo Benavides
(2008) ao referir-se à obra de escritores hispano-americanos que emigraram para a Espanha
nos anos 1990. Segundo ele, embora as narrativas continuem tratando, às vezes com
inevitável nostalgia, dos países de origem dos autores, já não o fazem “de uma maneira tão
entrópica como antes, nem tão solene nem tão enfaticamente vernácula”, como se o
importante agora fosse acentuar não mais o que diferencia, mas o que vincula o lugar que
deixaram e o que escolheram para viver.
Autor de vários ensaios sobre o tema, o espanhol-uruguaio Fernando Aínsa (2005)
também constata um expressivo conjunto de narrativas em que escritores deslocados
reconstroem, à distância, o país ou a cidade em que nasceram e geralmente foram criados.
Aínsa cita Fernando Vallejo com Bogotá (escrevendo do México), Juan Villoro com o
México (escrevendo de Barcelona), Abilio Estévez com Havana (também de Barcelona),
Carlos Franz com o Chile (escrevendo de Madri), entre outros numerosos exemplos. “Longe
da lamentação de uma literatura do exílio ou de toda ideologia patriótico nacionalista, se
respira sem artifícios o espaço natural de uma cidade intensamente vivida à distância”,
escreve Aínsa. O resultado, conclui, é que “um espaço nacional construído fora das fronteiras
35
não só é possível, como recomendável”. Segundo o ensaísta, as obras desses autores invertem
o sentido do exílio, seja forçado ou voluntário. “No exílio, se concentra a memória do
passado, formas ambíguas e contraditórias da nostalgia, mas, sobretudo, a alquimia dos
intercâmbios e a fecundação de significados que se geram a partir da distância”, afirma
(grifo meu).
Ele destaca ainda o papel central da memória nas narrativas, que abordarei com mais
minúcia no segundo capítulo. E observa a incidência de textos autobiográficos e
autoficcionais, também identificada, em diferentes corpi, por outros autores que estudam
literaturas em condições de extraterritorialidade, como Elena Palmero González no universo
hispano-canadense (2010b). Note-se, aliás, que a tendência à autorreflexão é vista como um
dos aspectos mais intensos da experiência da viagem. “Toda viagem conjuga exploração do
mundo com autoexploração”, comenta Beatriz Colombi (2004, p.198). Da mesma forma,
Jacinto Fombona (2005, p.48) assinala que o texto de viagem tem atributos que o aproximam
da autobiografia: “[...] podemos achar na escrita de viagens a atitude do viajante que busca
recuperar a paisagem, essa sensação de viagem, para realizar uma viagem interior, à sua
memória, a seu ser [...]” (FOMBONA, 2005, p.54).
Embora enfatize a impossibilidade de caracterizar uma única poética do deslocamento
– considerando as especificidades de cada movimento migratório –, Elena Palmero González
reconhece na literatura hispano-canadense um traço que constatamos com frequência em
outros âmbitos: a presença da própria criação literária como tema, o que os exemplos citados
anteriormente (Bolaño, Gamboa, Estévez e Juan Gabriel Vásquez) se encarregam de
respaldar.
O deslocamento, contudo, não se mostra apenas no enunciado – ou seja, naquilo que
está sendo dito – mas também na maneira de dizer, isto é, na enunciação. Explorando um
pouco mais o exemplo bastante fértil de Bolaño, vale citar um recente artigo de Laura Janina
36
Hosiasson (2011), em que a professora da Universidade de São Paulo analisa, entre outros
aspectos, a figura textual do narrador na obra do autor chileno. Hosiasson observa como os
narradores de Bolaño empregam diferentes modalidades do espanhol dependendo da
“nacionalidade” adotada na trama. Assim, seja nos localismos ou nos vocabulários
específicos, é evidente o uso do espanhol chileno em Estrella distante (1996) e Nocturno de
Chile (2000), por exemplo. Em Los detectives salvajes, por sua vez, ninguém duvida de que
se trata de uma voz mexicana, da mesma forma que nos contos El gaucho insufrible (2003) e
Dos cuentos católicos (2002) os narradores utilizam um castelhano argentino e um espanhol
peninsular, respectivamente. Hosiasson considera a obra de Bolaño um dos casos mais
extremos de uso literário das diferenças idiomáticas do espanhol. O escritor, segundo ela,
“brinca (para valer) com a ideia de que o espanhol tem muitas línguas, algumas das quais
estrangeiras entre si e outras, por sua vez, familiares e reconhecíveis” (HOSIASSON, 2011).
Para a professora, esta atitude encerra não apenas uma proposta estética, mas também uma
postura política e vital de Bolaño.
Língua e ética se confundem de maneira incontornável, em sua poética.
Carlos Wieder, o poeta aviador fascista chileno de Estrella distante, é
percebido por seus companheiros juvenis como um estrangeiro, apesar de ser
também um chileno: ‘Nós usávamos gíria ou um jargão marxistamandrakista [...] ele falava em espanhol. Esse espanhol de certos lugares do
Chile (lugares mais mentais do que físicos) em que o tempo não parece
correr. (HOSIASSON, 2011)
Enquanto Bolaño desafia os limites de um mesmo idioma (reflexo também de sua vida
peregrina), outros autores subvertem fronteiras ainda maiores e enveredam por línguas
híbridas, como o portunhol, o spanglish ou o frañol. Depois do impulso pioneiro do argentino
Néstor Perlongher e do brasileiro Wilson Bueno nas décadas de 1980 e 1990, o portunhol
voltou a ganhar evidência no início dos anos 2000 com o movimento Portunhol Selvagem,
capitaneado pelo brasileiro-paraguaio Douglas Diegues, autor do livro de sonetos Dá gusto
andar desnudo por estas selvas (2003). Tendo entre seus antecedentes remotos o pintor
37
argentino Alejandro Xul Solar (1887-1963) – que na década de 1920 inventou o neocriollo,
que tinha como base o português e o espanhol, mas também incorporava inglês, francês,
alemão, latim e grego –, o movimento vem organizando eventos, inspirando debates e
conquistando, com maior ou menor grau de envolvimento, a adesão de um variado grupo de
escritores brasileiros, uruguaios, paraguaios e argentinos.
O spanglish, por sua vez, mistura de inglês com espanhol, parece ser visto com maior
legitimidade e desperta interesse crescente na academia e no âmbito literário norteamericanos. Usada em programas de televisão, emissoras de rádio, revistas e outros meios –
inclusive em letras de música de vários ídolos da comunidade latina dos Estados Unidos –, a
língua ganhou em 2003 um dicionário com mais de 6 mil verbetes, organizado pelo professor
Ilan Stavans, do Amherst College de Massachusetts. No mesmo livro, Stavans investiga as
origens do fenômeno – que remonta, segundo ele, à metade do século XIX –, analisa sua forte
expansão nas últimas décadas e realiza uma experiência inédita: a tradução do primeiro
capítulo do Don Quijote para o idioma híbrido. Outro momento recente de notoriedade do
spanglish foi o reconhecimento do dominicano naturalizado norte-americano Junot Díaz com
o prêmio Pulitzer de 2008. O romance que lhe valeu a distinção, A fantástica vida breve de
Oscar Bao, tem vários trechos narrados no híbrido de inglês com espanhol.
Em seus estudos sobre Néstor Perlongher e outros autores argentinos em condições de
extraterritorialidade, Pablo Gasparini mostra que o uso dessas “línguas de entremeio” – como
as denominou Maite Celada (2000) – transcende em muito a condição fortuita de uma
mistura. Trata-se, segundo ele, de uma aposta “na impureza e na contaminação linguística”,
um movimento que aponta para “a falta ou a multiplicidade de origens e para a irrisão de
qualquer política identitária” (GASPARINI, 2008 e 2010). Na poética de Perlongher, por
exemplo, Gasparini vê tanto o gesto de desfiliação identitária (genérica e nacional), quanto
uma atitude de desterritorialização que já se notava antes mesmo de sua partida para o Brasil,
38
em 1982. O poeta e crítico Roberto Echevaren (1997) identificou ainda no escritor argentino
uma espécie de “transcontinentalidade”, característica que lhe permitiu, entre outras coisas,
falar do presente da Argentina ditatorial referindo-se ao passado europeu (apud GASPARINI,
2008).
Constata-se, portanto, para além da mobilidade linguística, um deslocamento
discursivo, semelhante ao assinalado por Ricardo Piglia (2001) na narrativa de Rodolfo Walsh
e apontado pelo crítico e escritor argentino como um dos valores a ser perseguidos pela
literatura no futuro. No ensaio Tres propuestas para el próximo milenio (y cinco dificultades),
em que reflete sobre os possíveis paradigmas para a literatura do século XXI, Piglia destaca
desde o começo a fecundidade de um olhar descentrado, um olhar de viés, que se situe à beira
das tradições centrais e que se lance sobre as coisas de uma perspectiva levemente marginal
(2001, p.13). Referindo-se inicialmente à própria condição de escritor latino-americano –
alguém que se pronuncia a partir de um “subúrbio do mundo” como Buenos Aires (idem,
p.12) –, Piglia amplia em seguida a noção de deslocamento, estendendo-a da mera localização
geopolítica para a maneira de se relacionar com a linguagem. As estratégias narrativas de
Rodolfo Walsh – que se vale de elipses e deslizamentos para viabilizar a expressão do
inominável, deixando que outro fale o que seria impossível numa enunciação pessoal –
servem de exemplo para o deslocamento defendido por Piglia: “Sair do centro, deixar que a
linguagem também fale na borda, no que se ouve, no que chega do outro” (idem, p.37).
Para a psicanalista e linguista Julia Kristeva, mais do que uma condição de
extraterritorialidade física ou geográfica, o exílio é o lugar próprio da literatura, uma prática
dissidente que desafia os discursos hegemônicos e se insurge contra os princípios políticos,
sexuais e linguísticos que os alicerçam. No ensaio “Un nouveau type d’intellectuel: le
dissident” (1977), Kristeva define o intelectual dissidente como um exilado, um estrangeiro
39
em relação a seu próprio país, sua linguagem, sua identidade. Uma das formas de dissidência,
segundo Kristeva, é a escrita literária, em sua perspectiva transgressora de uso da linguagem.
1.3 Dimensões do deslocamento
Além das motivações historiográficas – o esforço de “reconsiderar o cânon e
reelaborar o corpus”, defendido por Ana Pizarro (2004, p.73) –, pelo menos três fatores
ressaltam a importância de se estudar a literatura produzida por escritores em situação de
extraterritorialidade. O primeiro deles é a intensidade que, nas últimas décadas, os
deslocamentos assumiram no mundo, tornando-se ainda mais cruciais na definição de
subjetividades e na dinâmica dos processos culturais. O segundo são as especificidades do
fenômeno na contemporaneidade, quando o conceito de Estado-nação experimenta uma
profunda crise e a alta tecnologia de transportes e comunicações produz “relações de
fronteira” (CLIFFORD, 1999, p.301) entre cidades afastadas por milhares de quilômetros. E o
terceiro fator são as questões identitárias que a mobilidade sempre suscita – questões que, na
literatura, podem se manifestar de diversas maneiras: dos modos de representar (ou recriar) a
terra materna ao teor das lembranças que, com frequência, aparecem na ficção de autores
deslocados.
Mesmo sem apresentar estatísticas, estudiosos dos deslocamentos são taxativos em
afirmar que os movimentos migratórios – embora tão antigos quanto a própria humanidade –
jamais foram tão significativos como hoje. O aprofundamento da globalização, notadamente a
partir dos anos 1980, acirrou um crescimento iniciado no fim do século XIX com a corrida
imperialista, a modernização dos meios de transporte e os excedentes de mão de obra gerados
pelas diversas inovações industriais (TRIGO, 2003, p.41). Até a Segunda Guerra Mundial
(1939-1945) as rotas migratórias internacionais partiam, na maioria dos casos, de regiões
periféricas de países mais industrializados – por exemplo da Galícia, na Espanha, ou da
40
Calábria, na Itália – rumo a países menos desenvolvidos, porém com grande potencial de
crescimento, como o Brasil e a Argentina. Após o término do conflito, a nova configuração do
capitalismo – marcada, entre outros aspectos, pela hegemonia do capital financeiro
transnacional – inverteu a direção dos fluxos, que passaram a se caracterizar, principalmente,
pela saída de contingentes das nações pós-coloniais e neocoloniais em direção aos países mais
ricos (TRIGO, idem). “Os movimentos migratórios, sejam individuais ou coletivos, estão
intimamente ligados ao desenvolvimento socioeconômico desigual entre diferentes regiões do
mundo inseridas em regimes de expulsão e atração [...]”, afirma Abril Trigo (2003, p.27),
uruguaio radicado nos Estados Unidos, ponderando em seguida que, apesar da raiz geralmente
socioeconômica, as migrações obedecem a “múltiplas causas de índole social, cultural,
política ou econômica, cuja combinação determina as diversas modalidades de exílios,
diásporas, deslocamentos e migrações historicamente registráveis”.
James Clifford observa que os deslocamentos fazem parte dos mais remotos e
ancestrais grupamentos humanos. Em Itinerarios transculturales (1999), ele reproduz um
trecho do relato autobiográfico “The imam and the hindu”, de Amitav Ghosh, no qual o autor
indiano conta o surpreendente encontro de um etnógrafo com uma antiga aldeia egípcia
formada majoritariamente por viajantes de vasta experiência. “Todos os homens da aldeia
tinham o aspecto inquieto daqueles passageiros que costumamos ver nos saguões dos
aeroportos”, comenta o narrador de Ghosh (apud CLIFFORD, 1999, p.11). Partindo desta
citação, Clifford questiona a premissa segundo a qual a existência social autêntica estaria – ou
deveria estar – circunscrita a lugares fechados. Também põe em xeque a ideia de que a
residência é a base da vida coletiva e as viagens, seu mero suplemento.
Os centros culturais, as regiões e os territórios delimitados não são anteriores
aos contatos, mas se consolidam por seu intermédio e, neste processo,
apropriam-se dos movimentos incansáveis de pessoas e coisas e os
disciplinam (CLIFFORD, 1999, p.13-14).
41
Para o antropólogo norte-americano, as práticas de deslocamento devem ser vistas
como constitutivas de significados culturais em si, e não apenas como sua extensão ou
transferência. Contrariando a etnografia tradicional – que na maioria dos casos desprezou as
relações externas e os diversos deslocamentos das culturas estudadas –, Clifford defende uma
abordagem mais ampla, que considere tanto a mobilidade como o enraizamento (1999, p.12).
Não se trata de substituir a figura cultural do nativo pela do viajante, nem de dizer que todos
somos viajantes, mas de observar as mediações concretas entre as duas condições –
mediações que, segundo ele, vão constituir, em diferentes graus, o que chamamos de
experiência cultural. Ao pensar a cultura e a antropologia em termos de viagem, diz Clifford,
a tendência orgânica, naturalizante, do termo “cultura” – vista como um todo enraizado que
cresce, vive e morre – é questionada, e se tornam evidentes “as historicidades construídas e
disputadas, os lugares de deslocamento, interferência e interação” (CLIFFORD, 1999, p.38).
Já o indiano Arjun Appadurai explica o mundo contemporâneo a partir de uma teoria
da ruptura, que considera os meios de comunicação e os movimentos migratórios como os
dois principais ângulos por onde ver e problematizar as transformações ocorridas na
sociedade. Appadurai investiga, principalmente, as inter-relações entre os deslocamentos e os
meios de comunicação, duas forças que, somadas, fomentam o que ele chama de “trabalho da
imaginação” – definido, por sua vez, como um “elemento constitutivo principal da
subjetividade moderna” (APPADURAI, 2001, p.6). Para ilustrar o conceito, o antropólogo
comenta que, atualmente, poucos são os filmes importantes, os espetáculos de televisão e os
programas jornalísticos que não sejam pautados de alguma maneira pelos eventos midiáticos
de outros lugares. Da mesma forma, são poucas as pessoas que não têm um amigo, um
parente, um vizinho ou um colega de trabalho que tenha ido para outro lugar ou esteja de
volta, trazendo histórias de outros horizontes e outras possibilidades (APPADURAI, 2001,
p.8).
42
Por certo, as migrações em massa (voluntárias ou forçadas) não são um
fenômeno novo na história da humanidade. Mas, quando as analisamos em
conjunto com a velocidade do fluxo de imagens, roteiros e sensações
veiculadas por meios de comunicação de massa, temos como resultado uma
nova ordem de instabilidade na produção das subjetividades modernas.
(APPADURAI, 2001, p.7)
Mesmo que não se mudem, diz Appadurai, cada vez mais pessoas imaginam a
possibilidade de, mais cedo ou mais tarde, ir morar ou trabalhar em outros lugares, longe de
onde nasceram. E tanto a decisão de partir como a de permanecer são influenciadas de
maneira determinante pelos meios de comunicação de massa, o que marca, segundo ele, a
principal diferença entre as migrações atuais e as do passado (APPADURAI, 2001, p.9).
Televisão, jornais, cinema, música e outras mídias permeiam, igualmente, o cotidiano dos que
já emigraram, intensificando os vínculos com a comunidade de origem e criando uma espécie
de simultaneidade entre lá e cá, que caracteriza os deslocamentos na contemporaneidade.
Appadurai cita, por exemplo, os trabalhadores turcos que, de seus apartamentos em Berlim,
assistem a filmes rodados na Turquia. Ou os motoristas de táxis paquistaneses que, circulando
pelas ruas de Chicago, escutam sermões das mesquitas do Paquistão em cassetes enviados por
amigos e parentes que continuam no país asiático. Segundo o antropólogo indiano, situações
como essas proporcionam a criação de “esferas públicas em diáspora, fenômeno que faz
entrar em curto-circuito as teorias que dependem da continuidade da importância do Estadonação como o árbitro fundamental das grandes mudanças sociais” (APPADURAI, 2001, p.7).
Assim como outros intelectuais, Appadurai acredita que o Estado-nação, como forma
política moderna complexa, está com os dias contados (idem, p.21). Segundo ele, os Estadosnação só têm sentido como parte de um sistema, e este sistema (inclusive se pensado como
um sistema de diferenças) está muito mal equipado hoje para lidar com o fenômeno
interconectado de povos e imagens em deslocamento. Na mesma linha, o jamaicano Stuart
Hall aponta a criação de blocos supranacionais, como a União Europeia, como testemunho da
“erosão da soberania nacional” (HALL, 2003, p.36). Em sua análise, a fase transnacional do
43
capitalismo – configurada com mais vigor a partir da década de 1970 – tem seu centro cultural
“em todo lugar e em lugar nenhum” (idem), o que não significa que os Estados-nação não
tenham função nela, mas sim que essa função tornou-se, em muitos aspectos, subordinada a
operações globais mais amplas. De acordo com o teórico, assim como outros processos
globalizantes, a globalização cultural é desterritorializante. “Suas compressões espaçotemporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre a cultura e o
lugar”, diz (HALL, 2003, p.36).
Mesmo considerando prematuro anunciar a obsolescência dos Estados-nação, James
Clifford concorda que a estabilidade dessas unidades está longe de se ver assegurada
(CLIFFORD, 1999, p.21). Segundo ele, graças às idas e vindas proporcionadas pelas
tecnologias de transporte, pelos meios de comunicação e pelas migrações trabalhistas, povos
dispersos, separados da terra natal por vastos oceanos e, muitas vezes, por barreiras políticas,
encontram-se cada vez mais em relações de fronteira com seu antigo país (1999, p.302). A
contínua circulação de pessoas, dinheiro, mercadorias e informação faz com que lugares
afastados funcionem como uma mesma comunidade – o que ocorre, por exemplo, com os
municípios de Aguililla, na província mexicana de Michoacán, e Redwood City, na
Califórnia, que, apesar da distância de 2,9 mil quilômetros, mantêm práticas de cruzamento
semelhantes às de uma fronteira (idem, p.301).
Relações como essas reforçam as diferenças entre os deslocamentos contemporâneos e
outras formas de dispersão características de momentos anteriores, como as imigrações do
início do século XX e o exílio político que marcou a América Latina nas décadas de 1960 a
1980. Nos dois casos, por circunstâncias diversas, o apego a uma identidade nacional era
evidente: no primeiro, na disposição em se adaptar ao novo meio e integrar a nacionalidade do
país de acolhida (em fazer parte, apesar da dor da ruptura, de uma grande comunidade na
nova terra); no segundo, na resistência a experiências de hibridação e no desejo de manter
44
intacta uma identidade rigidamente atada ao país deixado. 28 Por impossíveis (e perigosas) que
sejam as generalizações, o sujeito deslocado de hoje costuma ser menos rígido em suas
negociações identitárias. Muitas vezes, elas subvertem as referências nacionais e aparecem
desvinculadas tanto da ideia de retorno como da de assimilação. 29
James Clifford (1999, p.306) diz que as conexões transnacionais estabelecidas pelas
diásporas não têm por que, necessariamente, articular-se por meio de uma terra natal real ou
simbólica. “As conexões descentradas, laterais, podem ser tão importantes como as que se
formam em torno de uma teleologia de origem/regresso”, afirma, citando como exemplo a
diáspora do sudeste asiático, que não se orienta tanto às raízes em um lugar específico ou a
um desejo de retornar, mas à aptidão de criar uma cultura em localizações diversas
(CLIFFORD, 1999, p.305). Stuart Hall, por sua vez, observa que: “Na situação da diáspora,
as identidades se tornam múltiplas. Junto com os elos que as ligam a uma ilha de origem
específica, há outras forças centrípetas” (HALL, 2003, p.27).
Referindo-se principalmente às diásporas caribenhas na Grã-Bretanha, mas sem
limitar-se a elas, Hall defende a ideia de impureza dos povos e culturas diaspóricas. “Nossos
povos têm suas raízes nos – ou, mais precisamente, podem traçar suas rotas a partir dos –
quatro cantos do globo [...]. Suas ‘rotas’ são tudo, menos ‘puras’”, afirma o teórico (idem,
p.31). Contra a ideia de fardo e perda frequentemente associada à impureza, Hall argumenta
que a mistura é uma condição necessária à modernidade. E cita o romancista Salman Rushdie,
28
No relato autobiográfico En estado de memoria (1990), considerado por alguns críticos como o texto fundamental do período pós‐ditaduras latino‐americanas (AVELAR, 2003, p.31), Tununa Mercado comenta essa resistência e cita “profissões de fé simplesmente patrioteiras” entre os exilados argentinos na Cidade do México, como manifestações com a bandeira do país durante a Copa do Mundo e a Guerra das Malvinas (MERCADO, 2011, p.38; edição brasileira com tradução de Idelber Avelar). 29
Para designar os deslocamentos contemporâneos, tem sido cada vez mais frequente a utilização genérica do termo diáspora, originalmente associado à dispersão judia, grega e armênia, mas hoje dotado de um conjunto mais amplo de significados, que, embora suscitem inúmeras divergências, também geram aproximações em torno de algumas características. Entre elas, a identidade híbrida do sujeito e seu usual desprendimento das tradicionais teleologias de regresso. 45
segundo quem “o hibridismo, a impureza, a mistura, a transformação que vem de novas e
inusitadas combinações dos seres humanos, culturas, ideias, políticas, filmes, canções” é
“como a novidade entra no mundo” (apud HALL, 2003, p.34).
Dialogando com Homi Bhabha, o teórico jamaicano pondera que as culturas têm seus
“locais”, mas que hoje não é tão fácil dizer de onde se originam. Segundo ele, o que se pode
mapear é mais um processo de “repetição-com-diferença” ou “reciprocidade-sem-começo”
(HALL, 2003, p.37), perspectiva pela qual as identidades diaspóricas não aparecem apenas
como um pálido reflexo de uma origem, e sim como o resultado de sua própria formação
relativamente autônoma. A cultura, diz Hall, não é uma arqueologia, e sim uma produção
(idem, p.44). Da mesma forma, ele define a identidade cultural como um “posicionamento”
(idem, p. 433), aproximando-se do conceito de “afiliação” proposto por Edward Said em
substituição ao de “filiação”. Segundo Said, enquanto “filiação” refere-se à pertença a uma
cultura local nos marcos colonialistas do século XIX, afiliação tem mais a ver com posse: é
um conceito optativo, não biológico ou essencialista, e aplicável às culturas em dispersão.
(apud BOLAÑOS, 2010).
Com o cuidado de frisar a infinidade de experiências possíveis – e a impropriedade de
estabelecer caracterizações mais rígidas –, Clifford afirma que as identidades produzidas
pelos deslocamentos podem ser tanto restritivas como liberadoras. “Unem idiomas, tradições
e lugares de maneira coerciva e criativa, articulando pátrias em combate, forças da memória,
estilos de transgressão, em ambígua relação com as estruturas nacionais e transnacionais”
(CLIFFORD, 1999, p.21-22). O antropólogo aponta nos migrantes internacionais uma “tensão
definitória” entre a perda e a esperança (idem, p.315), entre as experiências de separação e o
compromisso, entre o viver aqui e o desejar/recordar outro lugar (idem, p.312). Uma
ambivalência, portanto, que será mais ou menos positiva conforme inúmeras variáveis,
inclusive a sorte de cada indivíduo.
46
Comentando sua própria história – de quem aos 19 anos se mudou para a GrãBretanha e não voltou a viver na Jamaica –, Stuart Hall (2003, p.415) diz que, embora
conheça intimamente os dois lugares, não pertence completamente a nenhum deles. “E esta é
exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de
exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma ‘chegada’ sempre adiada”,
afirma (idem). Segundo Hall, desde que a migração se tornou o grande evento históricomundial da modernidade tardia, a experiência diaspórica converteu-se na experiência pósmoderna clássica. Trata-se de “estar dentro e fora ao mesmo tempo”, define.
Em seus ensaios inspirados nos depoimentos da comunidade de uruguaios em
Fitchburg, Massachusetts (EUA), Abril Trigo (2003) sustenta a ideia do retorno impossível,
também defendida em outros momentos por Stuart Hall. Segundo Trigo (2003, p.61), “todo
retorno é como voltar a partir, mas em sentido inverso, porque tudo mudou, começando pelo
próprio migrante”. 30 Regressar à terra deixada após um período de afastamento representa,
para quem mudou de país, uma das experiências máximas de estranhamento. “É nesse exato
instante que o então-lá longamente preservado na memória se torna irreconhecível no aquiagora do reencontro”, afirma (idem, p.58). Para o acadêmico uruguaio, os migrantes se
sentem sempre em trânsito, como se estivessem suspensos entre dois mundos:
Perdido em uma temporalidade homogênea e vazia, e alienado de um espaço
que sente sempre alheio, abstrato, neutro, ainda que nunca neutral, o
migrante desenvolve pouco a pouco uma sorte de bi-perspectivismo, a
capacidade de ver as coisas com dois pontos de vista simultâneos, necessária
para negociar cada ato, desenhar estratégias cotidianas e dar sentido a
práticas nas quais convergem o aqui-agora das experiências vividas
(Erlebnis) e o então-lá das memórias culturais (Erfahrung).[...] (TRIGO,
2003, p.56-57).
30
Sobre isto, o escritor italiano Leonardo Sciascia dizia que quando alguém cometeu o erro de partir, não deve cometer o erro de voltar. Devo a frase à argentina Sylvia Molloy, que, em recente entrevista ao La Nación de Buenos Aires (18/11/2011) contou estar preparando um livro sobre “o caráter ilusório de todo regresso”. 47
Trigo cita Cornejo Polar para manifestar a descrença na possibilidade de uma síntese
identitária com que o migrante harmonize o “então-lá” com o “aqui-agora”. De acordo com
Cornejo (2000, p.304), “o deslocamento migratório duplica (ou mais) o território do sujeito e
lhe oferece a oportunidade de falar a partir de mais de um lugar ou o condena a essa fala. É
um discurso duplo ou multiplamente situado”. Com isso, dividido entre o presente e a nova
terra e o passado e a terra deixada, o migrante vai configurando uma identidade fragmentada e
heterogênea. Sem conseguir, nem desejar, fazer uma síntese de suas experiências de vida,
instala-se em dois mundos de certa maneira antagônicos: o ontem e o lá, de um lado, e o hoje
e o aqui, de outro, embora as duas posições sejam sempre flutuantes (TRIGO, 2003, p.60).
Há, portanto, uma permanente disposição às lembranças nos sujeitos deslocados, como
provam os inúmeros relatos memorialísticos de autores que escrevem de fora de seus países.
Mas o que lembrar quando a terra natal é cada vez mais distante e, em certo sentido,
estrangeira? O que evocar? O que inventar? Como representar um país compatível com a
nova identidade do migrante? São algumas questões que a memória em deslocamento suscita
e que abordarei no próximo capítulo.
48
II MEMÓRIAS DESLOCADAS
2.1 Desconstruindo a ‘história oficial’: as memórias em deslocamento
As implicações dos deslocamentos na memória são tão variáveis como as
circunstâncias em que eles se produzem. Abordar o tema sob uma única perspectiva, portanto,
seria condená-lo, de antemão, a uma análise estreita – mesmo sabendo que, em se tratando de
memória, toda análise terá sempre de priorizar uma ou outra concepção teórica, tamanha a
diversidade de aproximações possíveis para a questão. Este capítulo é guiado por dois
objetivos principais. O primeiro deles, perseguido neste tópico inicial, é compreender como
costuma se comportar, de maneira geral, a memória de sujeitos em deslocamento, e como
funcionam as políticas da memória no processo de construir lares fora do lar. O segundo
objetivo, que ocupará os tópicos 2.2 e 2.3, é construir um quadro teórico sobre os itens que,
no amplo escopo da memória, considero mais relevantes para a análise de Los informantes.
São eles: a tensão entre lembrar e esquecer que marca os países com traumas ainda não
superados (com o difícil perdão no horizonte de uma memória reconciliada, como dizia Paul
Ricoeur) e a figura crucial da testemunha, que se mostra essencial mas ao mesmo tempo
insuficiente para a construção do relato.
Apesar da vasta bibliografia existente sobre memória, o livro Memorias migrantes:
testimonios y ensayos sobre la diáspora uruguaya (2003), de Abril Trigo, é um dos poucos
que se dedicam especificamente a promover uma articulação teórica entre memória e
deslocamento. Baseando-se no trabalho etnográfico que realizou na comunidade de uruguaios
em Fitchburg, Massachusetts (EUA), o acadêmico afirma que, ao mudar de país, os sujeitos
sofrem uma fratura identitária que os leva a empreender, de maneira quase imperceptível, um
movimento de resgate e reciclagem de memórias culturais até então soterradas na memória
histórica e no imaginário social da nação deixada. O principal efeito deste processo, ou pelo
menos o mais fecundo, é o surgimento de novas formas de olhar a comunidade nacional –
49
formas alternativas que, com o “esquecimento criativo” acarretado pela distância, conseguem
se desvencilhar da ação homogeneizadora da memória histórica, incorporar diferenças antes
esmagadas e colocar em xeque alguns pilares do imaginário nacional.
Para entender as ideias de Trigo, vale a pena examinar os principais conceitos teóricos
manejados por ele. Proposta por Jesús Martín-Barbero (1997), a noção de memória cultural
refere-se à memória constituída nas experiências e acontecimentos cotidianos. Sua construção
se dá em práticas intersubjetivas, cuja significação é constantemente reelaborada entre a
consciência do presente e a experiência do passado. Diferentemente da memória instrumental
– seu contraponto, segundo Martín-Barbero –, a memória cultural não trabalha com base em
informações nem de forma acumulativa. Em vez de acumular, filtra e carrega. Portanto, não
tem a ver com a nostalgia e tampouco foi feita para usar, para resgatar o passado. Sua função
na vida comunitária é dar continuidade ao processo de construção permanente da identidade
compartilhada (TRIGO, 2003, p.88-89).
A memória instrumental, por sua vez, tem caráter disciplinar e homogeneizante, e
compreende, segundo Trigo, duas grandes vertentes: a memória histórica (ou histórica e
literária) e a memória pop (ou pop e midiática), que se configurou mais recentemente e
atingiu seu ápice durante a globalização. Baseando-se em Walter Benjamin, o acadêmico
uruguaio diz que a memória instrumental surgiu durante a crise da memória pré-moderna,
erguida sobre as ruínas da memória coletiva e com o explícito propósito de apagar seus
rastros, esvaziar a história do “tempo-do-agora” (o Jetztzeit, na terminologia benjaminiana)31
e substituí-la por uma temporalidade acumulativa, homogênea e vazia, cujo corolário seria o
Estado-nação moderno (TRIGO, idem, p.88). Sua expressão mais imediata foi a memória
histórica e literária, “montagem narrativa, literária e pedagógica manufaturada por equipes
letradas com o fim de legitimar as origens, geralmente espúrias, do Estado” (idem, p.14).
31
Utilizo a tradução de Márcio Seligmann‐Silva para o termo (2005, p.200). 50
Trata-se, em outras palavras, da memória transmitida pela chamada história oficial,
constantemente reforçada em eventos (comemorações cívicas, aniversários, festivais) e em
lugares como museus, cemitérios, santuários, entre outros 32 . Uma memória produzida pelos
aparatos ideológicos do Estado, guiada primordialmente por objetivos nacionalistas, e que
elimina tudo que é diferente, transgride a norma ou se desvia da eterna repetição do mesmo.
Através da moderna disciplina da História, esta memória promove, conforme Trigo, “o mais
brutal disciplinamento das sempre plurais memórias culturais” (idem, p.88).
Já a memória pop e midiática – também chamada de “memória internacional-popular”
por Renato Ortiz (2004, p.132) – é formada pelo conjunto mundial de referências forjadas no
interior da sociedade de consumo: estrelas de cinema, cantores de rock, marcas de cigarro,
refrigerantes, propagandas, filmes e uma extensa gama de outros elementos que transmitem
aos indivíduos contemporâneos a sensação de familiaridade onde quer que estejam,
transformando em lugares os não-lugares da pós-modernidade. Nesta memória, diz Ortiz,
“inscrevem-se as lembranças de todos”. Sua principal diferença em relação à memória
histórica é que, enquanto esta se move por teleologias nacionais, a memória pop segue a
lógica do capital e da mercadoria. Ambas, porém, ganham materialidade sob regimes de
produção, circulação e consumo, e precisam necessariamente do esquecimento para existir.
Embora seja parte de qualquer memória – “seu vago porão”, “a outra face da moeda”,
como escreveu Borges –, o esquecimento pode ser voluntário e produtivo, ou compulsório e
silenciador de diferenças, como no caso das memórias instrumentais. Detendo-me um pouco
na memória histórica – que nos interessa particularmente neste trabalho –, Ernest Renan já
apontava, em 1892, que o esquecimento e o erro histórico eram condições essenciais à
construção das nações, porque toda formação política nasce em meio à violência, e “a unidade
se faz sempre brutalmente” (RENAN, 2006, p.5-6). Nietzsche considerava esse tipo de
32
Sobre os lugares da memória histórica, ver NORA, Pierre (ed). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1984. 51
esquecimento um dos atributos negativos do que denominou “história monumental”, que
envolve um passado heroico, grandes homens, acontecimentos gloriosos e é – dos três
modelos historiográficos identificados por ele – o mais influente na construção de um
imaginário social. Segundo o filósofo alemão, se a vontade de esquecer é imprescindível para
a vida, para a ação e para a liberdade, a amnésia estabelecida pela história monumental produz
um êxtase absorto e estático frente a uma imponência que não pode ser repetida (TRIGO,
2003, p. 90).
Analisando a formação do Estado uruguaio e o processo de construção do imaginário
social do país, Trigo mostra o esquecimento coletivo imposto pelos aparatos ideológicos
estatais com o intuito de apagar as inúmeras diferenças na comunidade nacional e esconder o
processo de criação da memória histórica – sedimentando a crença na verdade absoluta da
história oficial e dotando a nação de um caráter atemporal. A escolha póstuma do general
Artigas como prócer do Uruguai é apenas um, entre os vários exemplos que dá no livro, da
confecção de um imaginário nacional enganoso, que, abrindo caminho entre inúmeras
contradições, respaldou o poder hegemônico distorcendo os fatos e aniquilando potenciais
adversários. Como assinala Trigo, muito depois de morrer, Artigas foi eleito fundador de um
Estado pelo qual jamais lutara: muito pelo contrário, havia sido o representante máximo de
uma categoria abominada – os caudilhos – que, só depois de aniquilada, foi incorporada
inofensivamente à história oficial. “O circuito é perfeito: eliminação social - neutralização
política - revisão histórica - apropriação ideológica: glorificação em bronze e praça pública e
efemérides de almanaque comercial”, descreve Trigo (idem, p.127).
O acadêmico explica também como foram sendo construídos, ao longo dos séculos
XIX e XX, alguns dos pilares do imaginário nacional uruguaio, como a ideia de uma
sociedade europeizada e superior à dos países vizinhos (a “Suíça da América”), a crença na
qualidade incomparável da educação pública e a confiança no espírito valente e perseverante
52
do uruguaio (a garra charrúa, consagrada após a vitória contra o Brasil na Copa de 1950, em
um Maracanã lotado). Embora alguns desses mitos 33 continuem vivos na diáspora, Trigo
mostra que, com o tempo, boa parte se diluiu ou, inclusive, desmoronou entre as pessoas
entrevistadas para seu trabalho. Aparentemente nenhuma delas acredita, por exemplo, que
itens como a mobilidade social e a democracia participativa – anteriormente associados à
imagem de um Estado protetor e equitativo – façam realmente parte dos atributos da nação
uruguaia. É claro que o perfil da comunidade de Fitchburg – que migrou quase sempre por
razões econômicas e hoje trabalha principalmente no chão de fábrica, com baixa qualificação
técnica e, no máximo, ensino médio – torna mais explicável a quebra de expectativas frente ao
país deixado (da mesma forma que a dificuldade com o idioma acentua o trauma que Trigo
aponta como característica marcante da experiência de migrar). Porém, o progressivo
desprendimento em relação à memória histórica e ao imaginário nacional ocorre, em maior ou
menor grau, independentemente da condição cultural ou econômica do sujeito que se desloca.
É o próprio ato do deslocamento que deflagra uma negociação identitária que tem na memória
um de seus principais campos de ação.
Em sua dupla condição psicológica e social, a memória não é a mera repetição e
recuperação das marcas do ontem, mas a construção de um passado posto a serviço de um
projeto de futuro a partir das circunstâncias do presente (TRIGO, 2003, p.93). Longe do país
de origem, com novas exigências imaginárias, os sujeitos reformulam suas lembranças
vivenciando um processo de “esquecimento criativo” que os distancia, cada vez mais, do
imaginário nacional e de sua desacreditada memória histórica. Trigo menciona, por exemplo,
que os migrantes de Fitchburg, com o passar dos anos, praticamente não celebram mais as
festas nacionais do Uruguai e raramente invocam seus símbolos pátrios. Ao mesmo tempo,
33
Uso a palavra em sua acepção mais ampla. Trigo prefere o termo imaginemas – “polos magnéticos de identificação simbólica que suturam o sujeito ao imaginário social”. (2003, p.82) 53
através de práticas intersubjetivas cotidianas, como as partidas de futebol entre amigos nos
fins de semana, conseguem resgatar memórias culturais até então esmagadas.
Esquecer de lembrar é outra forma de afirmar a vida dia a dia.
Diferentemente da amnésia social, que implementa o corte seletivo e
pedagógico de acontecimentos históricos, o esquecimento criativo promove
uma irônica historicização da história, colocando em relevo sua
materialidade discursiva e permitindo assim recuperar as marcas do diferente
na trama do discurso, revelar a reminiscência como representação, e
restabelecer a memória como lócus da alteridade. (TRIGO, 2003, p.90-91).
É neste momento de cisão identitária que irrompe a chamada imaginação radical,
“corrente coletiva de caráter centrífugo que se levanta sobre a hegemonia centrípeta e
pedagógica do imaginário social” (TRIGO, idem, p.14). Trata-se da força questionadora com
a qual o indivíduo, que o imaginário social/nacional quisera domesticar e reduzir a mero
sujeito-súdito, afirma-se como sujeito-agente e, através de práticas antagônicas, no
questionamento tenaz e persistente do imaginário social, conquista a autonomia (idem, p.8085). Trigo recorre ao conceito de interpelação ideológica formulado por Althusser (1971;
1972) para explicar o funcionamento do imaginário social. Para se sentir interpelado e se
tornar sujeito, o indivíduo precisa acreditar-se eleito pelo chamado da ideologia – quando, na
verdade, é ele que instaura, pelo ato da identificação, a precedência da ideologia. O carisma
do Rei, diz Trigo, não é inerente à pessoa do rei, mas fruto da posse dada por seus súditos e
do efeito ideológico dos rituais ao redor do trono. Da mesma forma, é o próprio sujeito, ao
comportar-se como súdito, que autoriza a autoridade do imaginário social, pois se compraz
com sua obediência. Assim como a ideologia, o imaginário social/nacional é sustentado pelo
prazer que provoca no indivíduo – o prazer do pertencimento, o prazer que une os membros
de uma comunidade em torno de uma fantasia coletiva. Quando essa corrente libidinal
começa a apresentar falhas, quando os indivíduos não se sentem mais interpelados pelos
antigos imaginemas (a “Suíça da América”, a garra charrúa, o generoso Estado uruguaio) e
se tornam cada vez mais alheios à memória histórica, os resíduos de prazer insatisfeito
54
estimulam o resgate das memórias culturais soterradas e convocam o ímpeto combativo da
imaginação radical, capaz de desconstruir a “história oficial” e sugerir novas formas de pensar
o nacional.
Por indevidas que sejam as generalizações, é impossível não identificar coincidências
entre o processo descrito por Trigo e o trabalho desenvolvido por inúmeros escritores em
deslocamento, que retornam ao passado de seus países com o olhar crítico e desmistificador.
A revisão da “história oficial” e o questionamento ao imaginário nacional são, talvez, as duas
marcas distintivas de Los informantes. Como mostrarei no terceiro capítulo, o romance
desfere, do início ao fim, reiterados ataques aos frágeis orgulhos colombianos, e tem em sua
própria base a efetiva exumação de um episódio excluído da memória histórica do país.
O indivíduo que permaneça toda a vida na mesma comarca, no mesmo
imaginário, na mesma cultura, mostrará, em regra geral, uma alta
identificação com tais coordenadas espaço-temporais; apresentará, em outras
palavras, uma identidade sólida, estável, conformada por e conforme com
uma realidade social com visos de imutável [...]. Mas quando esse indivíduo
viaja física, ideológica e imaginariamente para fora de sua comarca, de seu
imaginário ou de sua cultura, há de experimentar um duplo deslocamento no
tempo e no espaço que com certeza lhe demandará alguma forma de
negociação e agonia. Sua identificação com a totalidade espaço-temporal da
sociedade de origem se verá cindida entre o aqui-agora da nova realidade
cotidiana e o então-lá confinado à memória [...]. (TRIGO, 2003, p.101-102).
É como se a irremediável fissura identitária não admitisse mais nenhum tipo de
complacência com o imaginário nacional. Analisando um amplo corpus de hispanoamericanos deslocados – a maioria estabelecida na Europa –, Fernando Aínsa (2005) nota, em
todas as narrativas, o regresso impossível constatado, mais cedo ou mais tarde, pelos
escritores. Testemunhas de um “mundo paralelo” que conservam na memória, os autores
lembram com temor e nem sempre com nostalgia da terra que deixaram, diz Aínsa. Chamam
atenção os longos períodos que, após a mudança, vários tardam para escrever sobre a pátria
em que nasceram. Para Juan Gabriel Vásquez, foram oito anos entre sua saída da Colômbia e
a publicação de Los informantes, seu primeiro livro sobre o país. Estaria aí o esquecimento
55
criativo mencionado por Trigo? “Uma das consequências de emigrar é que, depois de um
tempo, desaparece a ilusão da compreensão: aquela ilusão apenas humana de que você
entende o lugar de onde vem”, comentou Vásquez (2009, p.187), em breve ensaio sobre a
condição de escritor deslocado.
Outros autores relatam situações parecidas, como o hispano-argentino Andrés
Neuman, que se mudou para a Espanha em 1991, aos 14 anos, e permanece vivendo no país:
Assim como o escritor consciente escreve a partir da estranheza de sua
língua materna, a memória literária precisa de certa distância para poder ser
fértil. Creio que uma distância relativa é indispensável para lembrar as coisas
com vigor e liberdade, ou seja, para inventar as lembranças. Durante os
primeiros seis anos de minha vida na Espanha, fui incapaz de escrever uma
mísera linha sobre minha cidade natal. Só depois de estabelecido em outro
país, outra cultura e outro dialeto, meio que por acaso, me veio à mente uma
história ambientada na Argentina. Na época, entre meu lugar de origem e
mim havia a distância justa: conhecia-o bem, mas tinha começado a
esquecê-lo e, portanto, a ser capaz de imaginá-lo. Sem memória profunda
não há ficção que valha. (CORRAL, 2004, p.43, grifo meu)
Frequentemente, é o próprio percurso da memória, com suas glórias e abismos, suas
veredas e encruzilhadas, que captura os escritores e se transforma no tema principal de suas
obras. Assim como Neuman em Bariloche (1998) – em que o quebra-cabeça do protagonista
representa o jogo de forças entre lembranças e esquecimento –, Vásquez faz em Los
informantes uma intensa e percuciente reflexão sobre a memória. Ao longo da narrativa,
encontram-se não apenas grandes questões para a filosofia como alguns dos principais
dilemas com que a América Latina se defronta na hora de trazer à tona o passado de horrores
cometidos no século XX. Em países marcados por traumas, o que deve ser lembrado e o que
pode ser esquecido? Como afrontar o futuro com o peso asfixiante do passado? É possível
perdoar? Até que ponto são confiáveis as reconstituições feitas pelas testemunhas? Nas
próximas seções, dialogando primeiro com a filosofia, depois com a crítica cultural e literária,
abordarei algumas dessas questões, abrindo o caminho para a análise de Los informantes no
capítulo três.
56
2.2 Entre a lembrança e o esquecimento
Retornar ao passado de um país é percorrer um território fraturado. É tocar em feridas
abertas, caminhar entre as tensões opostas e igualmente fortes da lembrança e do
esquecimento, da palavra e do silêncio, do desejo de perdão e da exigência de reparação.
Nesta geografia de correntes cruzadas, em que as fissuras não escolhem lugar para irromper
(uma mesma casa, uma mesma família), os dilemas são inúmeros e raramente corriqueiros. O
que lembrar? O que esquecer? Quando e como perdoar? As escolhas do escritor, bem longe
da imparcialidade, terão o duplo efeito de qualquer narrativa: o de iluminar alguns aspectos
mantendo, obrigatoriamente, outros na escuridão. “A narrativa comporta necessariamente
uma dimensão seletiva”, diz Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento (2007,
p.455).
Diante disso, e alertando para os riscos de abusos nos dois lados, Ricoeur propõe a
busca de uma “justa memória”, que resultaria do equilíbrio entre lembrar e esquecer. Neste
esforço de múltiplas e complexas variáveis, uma das premissas é a necessidade de não
esquecer episódios como o Holocausto (ou Shoah, no termo hebraico) e outros genocídios e
crimes contra a humanidade 34 . Como observa Jeanne Marie Gagnebin (2006), desde que
Adorno e Horkheimer publicaram a Dialética do esclarecimento, em 1947, a exigência de não
esquecimento tornou-se central nas reflexões sobre a memória, embora seu principal objetivo
– evitar que atrocidades semelhantes voltassem a ocorrer – não tenha sido atingido, pois a
lista de horrores “é longa e continua se alongando, de Srebrenica a Jenin” (GAGNEBIN,
2006, p.60 e p.100).
Ainda assim, diz ela, a luta é necessária, “porque não só a tendência a esquecer é forte,
mas também a vontade, o desejo de esquecer” (idem, p.101). Harald Weinrich (2001) ressalta
34
Entre eles, certamente, os assassinatos, torturas e outras violações promovidas pelas ditaduras latino‐
americanas. 57
a importância de não se confundir o esquecimento particular com o esquecimento público,
que, se em algumas situações extremas pode ser induzido e até mesmo decretado (por
mecanismos como as anistias e as prescrições), em outras deve ser infatigavelmente
combatido, como nas violações aos direitos humanos – consideradas, aliás, imprescritíveis
pela legislação internacional. Não por acaso, no elogio ao esquecimento que faz em sua obra
mais conhecida 35 , Weinrich introduz, como contraponto indispensável, um capítulo intitulado
“Auschwitz e nenhum esquecimento”.
Segundo Ricoeur, com exceção dos casos de danos cerebrais, nenhum acontecimento
que nos marcou desaparece definitivamente da memória. Baseando-se em Freud e Bergson
(“dois advogados do inesquecível”), o filósofo francês afirma que a impressão psíquica do
que vivemos (“os rastros psíquicos” ou “as imagens”, como dizia Bergson) permanecem em
um plano inconsciente, num estado de passividade que constitui um “esquecimento de
reserva”. Trata-se, em outras palavras, de um esquecimento reversível, que alimenta a crença
de que “esquecemos muito menos coisas do que acreditamos ou tememos” (RICOEUR, 2007,
p.448). Apesar disso, para que lembranças dadas por perdidas sejam reencontradas, para que
ocorra o “milagre do reconhecimento” – quando o enigma da memória nos depara com a
presença viva da coisa ausente –, é preciso vencer diversos obstáculos que, em nível
individual e coletivo, colocam-se no caminho da recordação. Ricoeur agrupa-os em três
categorias: a memória impedida, a memória manipulada e o esquecimento comandado.
A memória impedida se verifica no nível psicopatológico, principalmente após
situações dolorosas, quando os indivíduos desenvolvem mecanismos de defesa que
impossibilitam o trabalho de luto necessário para superar as perdas. Comportamentos como a
repetição compulsiva, o surgimento de lembranças encobridoras, o esquecimento de projetos e
outros sintomas frequentemente observados na terapia psicanalítica também emergem na cena
35
Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. 58
pública, assumindo, segundo Ricoeur, proporções gigantescas na memória coletiva (idem,
p.455). Ele cita por exemplo a historiografia francesa no tratamento esquivo dado, após 1945,
ao colaboracionismo da República de Vichy.
Já a memória manipulada deriva principalmente da chamada história oficial, que se
vale da inevitável seletividade da narrativa para suprimir episódios, deslocar ênfases,
modificar os protagonistas, entre outras imposturas. “Ver uma coisa é não ver outra. Narrar
um drama é esquecer outro”, diz Ricoeur (idem, p. 459), acrescentando que, por esse motivo,
os abusos da memória serão sempre abusos do esquecimento. Imposta, celebrada,
comemorada, a “história oficial” se faz por meio de intimidação, redução e outros artifícios,
mas também se respalda, em alguma medida, na cumplicidade secreta de indivíduos, que
manifestam uma obscura vontade de não se informar e não investigar o mal cometido pelo
meio que os cerca (idem, p.455). Neste caso, a falta de memória traduz não apenas um
esquecimento passivo, mas também ativo, uma vez que envolve esquiva, fuga e o desejo de
não saber. Como resume Ricoeur, “a responsabilidade da cegueira recai sobre cada um”.
(idem, p. 456).
Por último, o terceiro grande entrave à recordação é o esquecimento comandado,
instituído pelo poder público mediante instrumentos legais, como editos e decretos. A anistia
é sua principal medida. Embora admita sua utilidade em circunstâncias excepcionais, Ricoeur
é geralmente contrário ao recurso, que chama de “caricatura do perdão” (idem, p.495) e
compara com a imposição de uma amnésia. Segundo ele, ainda que determinados episódios
exijam um dever de memória (desde que não resultem em excessos), não se pode falar em um
dever de esquecimento, sob a pena de privar a memória individual e coletiva de “uma
reapropriação lúcida do passado e de sua carga traumática” (idem, p.462). A história
contabiliza exemplos extremos de esquecimento comandado, como o decreto baixado em
Atenas em 430 a.c., proibindo a evocação dos conflitos recém-terminados, e o Edito de
59
Nantes (1585), que tentava extinguir, após uma sangrenta guerra, as desavenças entre
católicos e protestantes franceses nos seguintes termos: “a memória dos fatos ocorridos
permanecerá apagada e adormecida como coisa não ocorrida; fica proibido renovar a memória
deste passado.”
É obviamente útil – é a palavra justa – lembrar que todo mundo cometeu
crimes, pôr um limite à revanche dos vencedores e evitar acrescentar os
excessos da justiça aos de combate. [...] Mas o defeito dessa unidade
imaginária não seria o de apagar da memória oficial os exemplos de crimes
suscetíveis de proteger o futuro das faltas do passado e, ao privar a opinião
pública dos benefícios do dissensus, de condenar as memórias concorrentes a
uma vida subterrânea malsã? (RICOEUR, 2007, p.462).
Ao defender uma política da justa memória, Ricoeur deixa claro que, além do
esquecimento imposto, também se opõe aos chamados “abusos da memória”, como
denominou Tzvetan Todorov no título de um livro 36 . Na obra, o linguista e ensaísta francobúlgaro critica as evocações, a seu ver excessivas, dos episódios traumáticos do passado.
Além de questionar os reais benefícios de tais lembranças, afirma que o “culto à memória”
pode limitar – como disse Nietzsche – o poder de ação sobre o presente.
Recordar agora com minúcia os sofrimentos passados talvez nos torne mais
vigilantes em relação a Hitler e Petain, mas também nos permite ignorar as
ameaças atuais – já que estas não contam com os mesmos atores nem
assumem as mesmas formas (TODOROV, 2000, p.52).
Para Ricouer, mesmo a noção de “dever de memória” – surgida nos anos 1990 e hoje
um lugar-comum na França (HEYMANN, 2006) – requer uma visão ponderada, pois pode
representar, ao mesmo tempo, “o cúmulo do bom uso e o do abuso no exercício da memória
(2007, p.99). Segundo ele, além de expressar um imperativo – o que é problemático, pois
contraria o surgimento espontâneo da lembrança –, o conceito acaba servindo de justificativa
para a “obsessão comemorativa” descrita por Pierre Nora (1984, p.110) e duramente criticada
36
Les abus de la mémoire. Paris: Arlea, 1995. Utilizo a edição espanhola (Los abusos de la memoria), publicada em 2000 pela editora Paidós, de Barcelona. 60
por Todorov. Por isso mesmo, em diferentes momentos, Ricoeur esclarece que sua concepção
de “dever de memória” não envolve um apelo às comemorações, mas sim um chamado ao não
esquecimento público, como disse em entrevista a Vladmir Safatle, publicada em maio de
2005 pela Folha de S. Paulo.
Para mim, o dever de memória é indubitável enquanto obrigação em relação
às vítimas. Mas a questão é saber no que consiste tal dever. Certamente ele
não consiste em repetirmos, todas as manhãs: ‘Eu fui um assassino, eu fui
um cúmplice’. Na verdade, o dever de memória significa que, em todas as
minhas reflexões sobre minhas relações com os outros, eu sempre levarei em
conta o que aconteceu. Eu nunca perderei de vista que, na Europa, no meio
do século XX, houve o crime monstruoso da Shoah, isto independentemente
da sua semelhança ou não com o Gulag, com os massacres em Ruanda. Mas
eu não vou me deplorar durante toda a vida (RICOEUR apud SAFATLE,
2005).
Jeanne Marie Gagnebin aponta que a diferenciação entre não esquecer e lembrar já
aparece com clareza nos ensaios de Adorno sobre Auschwitz, escritos nas décadas de 1950 e
1960, quando “o peso do passado era tão forte que não se podia mais viver no presente”
(2006, p.101). Nesses ensaios, a exigência de não esquecimento tem dois significados
principais: não deixar que horrores semelhantes voltem a ocorrer e realizar um esforço
permanente de esclarecimento para obter uma melhor compreensão do presente. (2006, p.
100-103). Neste sentido, baseando-se em Walter Benjamin, a autora propõe a distinção entre a
atividade de comemoração (“que desliza perigosamente para o religioso ou, então, para as
celebrações do Estado, com paradas e bandeiras”) e o conceito de rememoração, que, “em vez
de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao
recalcado, para dizer [...] aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem à palavra”
(idem, p.55). A rememoração, em suma, envolve uma atenção maior ao presente,
especialmente às ressurgências do passado no presente. “A fidelidade ao passado, não sendo
um fim em si, visa à transformação do presente”, diz Gagnebin (idem, p.55).
Segundo ela, outro perigo dos abusos da memória é “a identificação, muitas vezes
patológica, por indivíduos, que não são necessariamente nem os herdeiros diretos de um
61
massacre, a um dos papéis da díade mortífera do algoz e da vítima” (2006, p.56). Referindo-se
às fraturas deixadas pela Segunda Guerra Mundial – tema de destaque em Los informantes –,
a ensaísta afirma que, mesmo que quisessem, as vítimas não poderiam se livrar das
lembranças, e que o maior desejo de esquecer sempre foi dos apoiadores do nazismo, os
algozes, que padeceram desde o término do conflito um enorme sentimento de culpa, a Schuld
alemã (GAGNEBIN, 2006, p. 101). Sentimento semelhante irrompeu após numerosos outros
eventos e Gagnebin reforça a necessidade de superá-lo:
Como já o ressaltou Nietzsche (que Adorno leu muito bem), quando há um
enclausuramento fatal no círculo vicioso da culpabilidade, da acusação a
propósito do passado, não é mais possível nenhuma abertura em direção ao
presente: o culpado continua preso na justificação, ou na denegação, e quer
amenizar as culpas passadas; e o acusador, que sempre pode gabar-se de não
ser o culpado, contenta-se em parecer honesto, já que denuncia a culpa do
outro (GAGNEBIN, 2006, p.102).
Recorrendo à teoria freudiana, Ricoeur propõe um “trabalho de memória”, capaz de
levar, se bem-sucedido, a uma memória feliz, apaziguada e reconciliada. O principal
ingrediente consiste em um esforço de rememoração, cujo objetivo é superar a repetição
compulsiva (a queixa incessante, a evocação infeliz dos mesmos acontecimentos) e, com isso,
afrontar o trauma por meio das lembranças. Freud chamou o processo de “perlaboração”. No
ensaio “Recordar, repetir, elaborar” (1914), ele observou que, ao invés de se lembrar, os
pacientes repetiam, estabelecendo um claro antagonismo entre as duas ações (grifo meu). A
transposição desta barreira, segundo Freud (apud Ricoeur 2007, p.84), exige coragem do
paciente, que deve olhar sua doença como um adversário digno de estima, uma parte de si
mesmo, na qual poderá colher recursos preciosos para a vida posterior. Mas, para que isso
ocorra, diz Ricoeur, é indispensável o trabalho complementar do luto, pelo qual o sujeito
consegue se desprender dos objetos de amor e de ódio até que possa, num segundo momento,
interiorizá-los novamente, num movimento de reconciliação semelhante ao proporcionado
62
pelo trabalho de memória. No campo oposto ao luto está a melancolia, que se caracteriza pela
perpetuação da queixa e a complacência para com a tristeza.
Segundo o filósofo francês, é no cruzamento entre os trabalhos de memória e de luto
que se abre o caminho para o perdão, pois os dois dotam o passado de um novo sentido que,
inevitavelmente, influencia as nossas disposições futuras (RICOEUR, 2005, p.35-40). Embora
o passado não possa ser apagado, está aberto a novas interpretações, que podem provocar uma
reviravolta em nossos projetos. Uma das possibilidades de mudança está em sua carga moral,
no peso da dívida que incide sobre o presente e o futuro.
É exatamente deste modo que o trabalho de lembrança nos impele para a via
do perdão, na medida em que este abre a perspectiva de uma libertação da
dívida, por conversão do próprio sentido de passado (idem).
Ricoeur afirma que o perdão constitui o horizonte comum da memória, da história e do
esquecimento (2007, p.465), e por isso dedica a ele o epílogo de sua obra sobre a tríade.
Desde o título do epílogo (“o perdão difícil”), o filósofo ressalta sua complexidade e chega a
dizer que alguns atos são imperdoáveis, entre eles os crimes como a Shoah e outros em que
também se enunciam noções como o irreparável e o imprescritível (RICOEUR, 2007, p.471).
A alternativa, segundo ele, é “desligar o agente de seu ato”: enxergá-lo como um culpado que
se tornou capaz de recomeçar (idem, p.498). “Sob o signo do perdão, o culpado seria
considerado como capaz de outra coisa além de seus delitos e faltas. Ele seria devolvido à sua
capacidade de agir, e a ação, à de continuar” (idem, p.501).
Diante disso, Ricoeur considera que o perdão acrescenta o elemento da generosidade
aos trabalhos de memória e luto, e destaca sua relação, inclusive etimológica, com o dom
(2007, p.486). O filósofo diz que, antes de exercê-lo – ou seja, antes de perdoarmos –, nossa
primeira relação com o perdão está no pedido, o que estabelece um regime de troca (de
demanda e oferta) capaz de “esfarelar” a noção de imperdoável (idem, p. 484).
63
O perdão é primeiro o que se pede a outrem, e antes de mais à vítima. Ora,
quem se mete pelo caminho do pedido de perdão deve estar pronto para
escutar uma palavra de recusa. Entrar na atmosfera do perdão é aceitar
medir-se com a possibilidade sempre aberta do imperdoável. Perdão pedido
não é perdão a que se tem direito [devido]. É com o preço destas reservas
que a grandeza do perdão se manifesta (RICOEUR, 2005, p.35-40).
Pressuposto existencial do perdão, a falta (ou a culpabilidade) é uma experiência
“fundamentalmente solitária”, diz Ricouer. (2007, p. 470). Assim, ele indaga “a que poder, a
que coragem pode-se apelar para simplesmente pedir perdão”. Uma possível resposta é dada
por Hannah Arendt, para quem essa força reside na nossa capacidade de regrar o curso do
tempo (RICOEUR, 2007, p.492). Seja como for, o perdão é o caminho, segundo o filósofo,
para uma memória apaziguada e reconciliada. Uma memória que, como toda memória,
implica um esquecimento – mas não o esquecimento de fuga da repetição compulsiva, e sim
um esquecimento ativo e libertador (RICOEUR, 2005).
2.3 A memória testemunhal
A testemunha é a figura-chave no relato das atrocidades que marcaram a Era das
catástrofes – como Eric Hobsbawn (1995) denominou o período de horrores inaugurado pela
Primeira Guerra Mundial (1914-1919) e intensificado, vinte anos depois, com a Segunda
Guerra (1939-1945) e o Holocausto. Em Os afogados e os sobreviventes (1990), Primo Levi
conta que, quando a Batalha de Stalingrado deixou claro que o Reich alemão não poderia
mais vencer, os nazistas se mobilizaram para apagar os rastros do massacre. Nos campos de
concentração, dias antes da chegada dos aliados, a maioria dos arquivos havia sido destruída.
Os prisioneiros ainda vivos foram obrigados a desenterrar os mortos e queimá-los em estado
de decomposição (apud GAGNEBIN, 2006, p.116). Não fossem os livros de Levi e outros
sobreviventes, essas e outras iniquidades teriam, de fato, caído no esquecimento.
Na América Latina, como nota Beatriz Sarlo (2005, p.63), os testemunhos continuam a
ser a principal fonte sobre os crimes cometidos pelas ditaduras militares – que, somente na
64
Argentina, resultaram no desaparecimento de mais de 30 mil pessoas, segundo estimativas
oficiais. Sem o depoimento de vítimas e testemunhas, até hoje ninguém teria sido condenado
(idem, p.24). “Desde antes das transições democráticas, mas acentuadamente a partir delas, a
reconstrução desses atos de violência estatal por vítimas-testemunhas é uma dimensão jurídica
indispensável para a democracia”, afirma a ensaísta (idem, p.13).
Na literatura, o testemunhal passou a ser estudado como um gênero à parte, fortemente
associado a situações de trauma, mas não restrito a elas. No contexto latino-americano, o
testimonio desenvolveu uma vertente particular, de cunho social, servindo no mais das vezes
de veículo para setores excluídos, como indígenas, trabalhadores pobres, ex-escravos, entre
outros. Mabel Moraña (1995, p.488) definiu-o como uma “literatura de resistência”, que tende
a “lançar luz sobre as contradições do sistema reinante, a rebelar-se contra o status quo e a
solidarizar-se com reivindicações ou lutas populares que questionam a ‘ordem’ de sociedades
autoritárias, discriminatórias e excludentes”. Numa outra tentativa de síntese, René Jara disse
que: “o testemunho é uma narração de urgência que nasce naqueles espaços em que as
estruturas de normalidade social começam a desmoronar por uma razão ou outra” (apud
PRADA OROPEZA, 2001, p.14).
Mas, apesar de sua relevância, o testemunho nem sempre é suficiente, como mostra
Los informantes. Em determinados casos, deixa inclusive de ser possível, conforme observou
Berta Waldman em recente artigo (2009). De acordo com a professora, 66 anos depois do fim
da Segunda Guerra Mundial, tornou-se cada vez mais raro o relato direito das testemunhas,
quase todas mortas. Com isso, segundo ela, a memória do Holocausto está saindo da alçada
dos sobreviventes para consolidar-se na ficção, sem afetar em nada, em sua análise, a
permanência do tema. Desta inevitável transição, emerge, no lugar da memória testemunhal,
uma memória que o professor norte-americano James Young (2000) denominou de “vicária”
– ou seja, exercida por quem não viveu diretamente as experiências recordadas. Outra
65
categoria surgida para designar praticamente o mesmo é a de “pós-memória”, proposta por
Marianne Hirsch (1997). Refere-se, em linhas gerais, à memória dos filhos sobre a memória
dos pais. 37
Waldman encarrega-se de exemplificar:
Sabe-se que fatos não experimentados podem ser lembrados se fizerem parte
de um cânone de memória familiar, escolar, individual, política (lembro que
meu pai lembrava..., lembro que na escola ensinavam..., lembro que aquele
monumento lembrava... etc.), e se traduzem num discurso distante de quem
exerce a memória a partir da experiência vivida. (WALDMAN, 2009).
Embora Young e Hirsch não façam essa restrição, Waldman insere essa memória
essencialmente no plano ficcional (chama-a de “memória ficcionalizada”), mas pondera que,
mesmo no testemunho, ocorre a interferência de “um grão da memória vicária” (idem), pois
ele acaba extrapolando a experiência pessoal. Primo Levi, por exemplo, lembra que, após o
fim da Segunda Guerra Mundial, os dados sobre as deportações e o massacre nazista não
estavam disponíveis e tampouco era fácil determinar seu alcance e sua especificidade.
Segundo o escritor italiano (1990, p.6, apud WALDMAN), a maioria das testemunhas, tanto
de defesa como de acusação, desapareceu, e as que concordaram em testemunhar dispunham
de lembranças “cada vez mais desfocadas e estilizadas frequentemente, [...] lembranças
influenciadas por notícias havidas mais tarde, por leituras e narrações alheias”.
Diante disso, Paul Ricoeur se pergunta até que ponto o testemunho é confiável (2007,
p.171-172). Um primeiro fator de dúvida são as experiências feitas pela psicologia judiciária
em que várias pessoas assistem à mesma cena (gravada por uma câmera) e depois, instadas a
narrar o que viram, produzem versões não apenas divergentes entre si, mas discrepantes, em
vários aspectos, do capturado pela câmera. Além da má percepção, da má retenção e da má
reconstituição apontadas frequentemente por esses experimentos, há outras fontes de
37
Não entrarei aqui nas críticas, bastante severas, que Beatriz Sarlo (2005) faz aos dois acadêmicos e suas conceituações teóricas. 66
incerteza, como o tempo decorrido entre o acontecimento vivido e o ato de testemunhar, que
pode levar ao que Freud chamou, na Interpretação dos sonhos, de “elaboração secundária”,
ou seja, uma remodelação do sonho (neste caso da lembrança), a fim de torná-lo, entre outras
coisas, mais coerente e compreensível. Ricoeur também questiona um dos pilares da
credibilidade do testemunho: a ideia de que estabelece uma fronteira supostamente bem
marcada entre realidade e ficção. “A fenomenologia da memória confrontou-nos muito cedo
com o caráter sempre problemático dessa fronteira”, alerta o filósofo (idem, p.172).
Qualificando as discussões sobre memória como uma tarefa sensível mas ao mesmo
tempo indispensável na América Latina redemocratizada, Beatriz Sarlo propõe uma análise
crítica sobre a transformação do testemunho no recurso mais importante para a reconstrução
do passado. A ascendência, neste caso, não tem a ver com inexistência de outras fontes, mas
se refere à confiança quase irrestrita nos discursos em primeira pessoa, “no imediatismo da
voz e do corpo” (2005, p.23). Graças a isso, o testemunho se tornou um “ícone da Verdade”,
como descreve Sarlo, situando o fenômeno no âmbito da revalorização da subjetividade
promovida nas últimas décadas pelas ciências humanas – as mesmas que, nos anos 1960,
haviam decretado “a morte do sujeito”.
“Só uma confiança ingênua na primeira pessoa e na lembrança do vivido pretenderia
estabelecer uma ordem presidida pelo testemunhal. E só uma caracterização ingênua da
experiência reclamaria para ela uma verdade mais alta”, afirma Sarlo (2005, p. 63).
A ensaísta ressalva, contudo, que alguns momentos históricos exigem a abstenção – ou
o diferimento – da aplicação de dúvidas metodológicas nos testemunhos, como nos
depoimentos prestados após as ditaduras militares na Argentina, quando as declarações das
vítimas diziam respeito não apenas a elas, mas constituíam “a matéria-prima da indignação e
o impulso para as transições democráticas” (idem, p.61). Sarlo adverte, no entanto, que o
imperativo da crença se verifica hoje não apenas em situações-limite – como a de ex-presos
67
políticos e sobreviventes do Holocausto – mas em testemunhos corriqueiros e completamente
banais. “Todo testemunho quer ser acreditado e, no entanto, não carrega em si mesmo as
provas pelas quais sua veracidade pode ser comprovada” (idem, p.47).
Sobre este ponto, Ricoeur observa que, por se manifestar sempre diante de alguém, a
testemunha estabelece uma relação de diálogo que tem na confiança um dos requisitos
imediatos. Segundo o filósofo,
[...] a testemunha pede que lhe deem crédito. Ela não se limita a dizer: ‘Eu
estava lá’, ela acrescenta: ‘Acreditem em mim.’ A autenticação do
testemunho só será então completa após a resposta em eco daquele que
recebe o testemunho e o aceita [...] (RICOEUR, 2007, p. 173).38
Ricoeur afirma haver em nível social uma “confiabilidade presumida” nos
testemunhos, advinda, em primeiro lugar, da asserção da realidade factual do acontecimento
(isto é, da garantia de que ele realmente ocorreu) e, em segundo, do fato de a declaração ser
autenticada pela própria experiência do autor (atesta-se ao mesmo tempo a veracidade da
ocorrência e a presença do narrador no local). Essa confiabilidade torna-se maior com a
disponibilidade de a testemunha reiterar seu depoimento, disponibilidade com a qual o
testemunho se aproxima da promessa – “mais precisamente, da promessa anterior a todas as
promessas, a de manter sua promessa, de manter a palavra” (idem, p. 174).
Segundo Ricoeur (idem), a estrutura estável da disposição a testemunhar faz do
testemunho um fator de segurança no conjunto das relações constitutivas do vínculo social.
Da mesma forma, a confiabilidade de uma proporção importante dos agentes sociais o torna
uma instituição. O filósofo considera “uma regra de prudência” começar a confiar na palavra
de outrem e só depois duvidar, caso fortes razões inclinem a isso (idem, p.174-175). Sendo o
38
Sobre a necessidade de um ouvinte atento que dê crédito às declarações da testemunha, o maior exemplo é o sonho recorrente de Primo Levi no campo de concentração, sonho que, ele descobriu, era sonhado por quase todos os outros prisioneiros. Nele, o escritor voltava para casa com a felicidade imensa de contar aos outros o horror passado e o fato de estar vivo; mas, no meio da narrativa, percebe com desespero que ninguém o está escutando, que todos se levantam e vão embora, indiferentes. 68
“ato fundador do discurso histórico” (idem, p.504) – ou seja, o momento de transposição da
memória para a história, da oralidade para a escrita – é natural que o testemunho possa ser
posteriormente questionado e confrontado com outros depoimentos. “A história pode ampliar,
completar, corrigir, e até mesmo refutar o testemunho da memória sobre o passado, mas não
pode aboli-lo”, salienta Ricoeur (idem, p. 505).
Valendo-se principalmente da memória alheia, mas adotando procedimentos
historiográficos, como o amparo em documentos, a confrontação de dados e a transposição do
discurso oral para o regime escrito, o personagem narrador de Los informantes depara-se, no
curso de suas investigações, com a dupla condição da testemunha – ao mesmo tempo
essencial e insuficiente – e aproveita essa e outras inquietações para refletir sobre as
sinuosidades da memória, conforme veremos no próximo capítulo.
Após um longo percurso dedicado a considerações de ordem teórica, passo agora à
tarefa principal deste trabalho: a análise de Los informantes sob a ótica do deslocamento e da
memória.
69
III DESLOCAMENTO E MEMÓRIA EM LOS INFORMANTES
3.1 O deslocamento em Los informantes
Há um dado marcante em Los informantes (2004). No emaranhado de vozes que o
narrador jornalista ordena para construir a história do livro, misturam-se tempos, lugares e
sujeitos, mas uma mesma característica une todos os testemunhos: a condição de
deslocamento em que vivem os seus emissores – imigrantes estrangeiros, migrantes
domésticos e indivíduos que, mesmo indiretamente, experimentam alguma forma de diáspora.
Estabelecido na Europa desde 1996 – nos últimos 11 anos em Barcelona –, Juan
Gabriel Vásquez mostra o sujeito deslocado nas mais diversas situações: do indivíduo que se
adapta e consegue prosperar na terra de acolhida ao que sucumbe, financeira e
emocionalmente, chegando às últimas raias da decadência. O exílio forçado – como o dos
judeus que fogem do nazismo – tem papel de destaque no livro, mas a presença e relevância
de personagens que se mudam por opção própria garantem uma abordagem mais ampla do
deslocamento.
Inspirado em um episódio pouco conhecido da história latino-americana – a criação de
listas negras e campos de concentração para imigrantes dos países do Eixo durante a Segunda
Guerra Mundial 39 –, Los informantes é narrado em primeira pessoa, predominantemente pelo
jornalista Gabriel Santoro. Instaurando com seu relato uma estrutura metaficcional e
autorreflexiva no romance, esse personagem narrador conta seus dois esforços de
reconstrução memorial do período: o primeiro, a biografia da judia alemã Sara Guterman,
amiga do pai que chega à Colômbia em 1938 escapando do nazismo com a família; e o
segundo, desempenhado ao longo da narrativa, uma espécie de ampliação e revisão do relato
39
No Brasil, foram criados 11 campos de concentração e chegou a ser proibido falar o idioma dos três países do bloco (FÁVERI, 2005). 70
anterior, na qual o pai de Gabriel, que havia escondido um segredo por toda a vida, passa a ter
participação ativa nos eventos narrados.
O livro tem quatro personagens principais: Gabriel Santoro pai (um respeitado
professor de oratória), Gabriel Santoro filho, Sara Guterman e Enrique Deresser (filho de um
imigrante alemão e amigo de Sara e Gabriel pai na juventude). Entre os personagens
secundários, os mais importantes são Angelina Franco (fisioterapeuta e amante de Gabriel
pai) e os imigrantes alemães Peter Guterman e Konrad Deresser (pais de Sara e Enrique).
Menos relevantes, porém úteis para esta análise, são a prostituta Josefina Santamaría (última
companheira de Konrad) e Margarita (esposa do alemão) 40 . Dos nove personagens, sete
vivem em condições de deslocamento.
Os imigrantes de primeira geração, Peter e Konrad, chegam à Colômbia por razões
diferentes e têm destinos diametralmente opostos: o primeiro foge do nazismo e consegue
prosperar com um hotel no interior; o segundo emigra por razões econômicas e acaba se
suicidando, à beira da miséria, após um período preso em um hotel que virara campo de
concentração. Apesar disso, os dois se unem na nostalgia em relação à Alemanha e nas
dificuldades de adaptação ao novo país. O aprendizado do idioma – rapidamente conseguido
por Sara – se ergue como maior barreira para eles. Ao tentar se comunicar – envergonhado
com o sotaque, os erros gramaticais e o sentido incerto de suas frases –, Konrad sente-se um
“produtor de verrugas” 41 (VÁSQUEZ, 2004, p.142) e, por causa disso, torna-se cada vez mais
retraído e menos espontâneo.
Intimidados com a nova língua, sentindo-se no paraíso cada vez que encontram um
alemão (idem, p.144), Konrad e Peter personificam, por muitos momentos, a crença no poder
40
Restam ainda outros personagens secundários, como o filho de Enrique, Sergio, que mencionarei no próximo tópico. 41
Utilizo a tradução feita por Heloisa Jahn para a edição brasileira do romance (Os informantes. Porto Alegre: L&PM, 2010). 71
redentor da diáspora – como se a distância da Alemanha automaticamente dissolvesse as
diferenças que fraturavam o país internamente. A esperança nesta comunidade harmônica é
materializada, em escala micro, no hotel da família Guterman, batizado sugestivamente de
Nueva Europa. Ali, a pedido do dono, divergências políticas (e preconceitos étnicos) são
deixados na recepção e a diversidade se equilibra quase sempre de maneira pacífica. A
suposição de que esse bom convívio poderia estender-se para todo o país é taxada de ingênua
por Sara, que diz que muitos judeus incorreram no mesmo erro (idem, p.147). De forma
parecida, Konrad aceita receber nazistas – e suporta, inclusive, recriminações a seu casamento
– por acreditar que, acima da adesão a Hitler, importava o amor compartilhado pela
Alemanha. Em seu ensaio “Nacionalismo e exílio”, um dos maiores estudiosos da condição
diaspórica, Edward Said, adverte para esse risco: “Como, então, alguém supera a solidão do
exílio sem cair na linguagem abrangente e latejante do orgulho nacional, dos sentimentos
coletivos, das paixões grupais?” (SAID, 2003, p. 50).
Imigrantes de segunda geração, Sara e Enrique mostram menor apego às origens
germânicas, mas mantêm uma identidade ambígua, sem vínculos rígidos com nenhuma
nacionalidade. No caso de Enrique, nascido na Colômbia e filho de mãe colombiana, é a
problemática relação com o pai que determina, em última instância, sua atitude frente à
ascendência alemã. Quando jovem, ao ver o constrangimento de Konrad com os colombianos
– sua eterna dificuldade de se comunicar, sua postura retraída, frágil e pusilânime –, Enrique
se aplica na direção contrária: jamais fala alemão em público e rejeita toda a herança cultural
que o pai tenta transmitir-lhe (a ópera, os cristais boêmios, os antepassados prussianos). Nos
conturbados anos de sua juventude, pensa muitas vezes que preferiria ter sido “um homem
sem passado, sem nacionalidade fixa e de sangue mestiço” (idem, p.212).
Após a morte do pai, Enrique declara ódio a Bogotá e desaparece da cidade, disposto a
começar uma nova vida. Consegue emprego em Medellín, casa-se com a filha do chefe e,
72
mais tarde, impossibilitado de ter filhos, adota um menino moreno, sem a aparência
germânica que, apesar do espanhol perfeito, sempre ostentou. Mesmo com tantas esquivas,
Enrique chega à velhice mantendo laços afetuosos com o idioma alemão e é descrito pelo
narrador como um estrangeiro, “pelo sobrenome e pela natureza, embora não por território”
(idem, p.310). Seu outro grande deslocamento – a mudança de Bogotá para Medellín – reforça
ainda mais a ambivalência de sua identidade, refletida num espanhol “a meio caminho” entre
as duas cidades (idem, p.297).
A figura de Sara Guterman, da mesma forma, incorpora de forma nítida a posição
intermediária que, segundo Aimée Bolaños (2010), caracteriza o sujeito diaspórico. Sua
desenvoltura nesse entre-lugar é ilustrada nas diversas vezes em que, por dominar o espanhol,
aparece como mediadora, ou conciliadora, em situações de encontro entre colombianos e
alemães. Uma das mais relevantes ocorre pouco depois de chegar à Colômbia, aos 14 anos,
quando atua como intérprete na reunião de um empresário suíço com o então presidente do
país, Eduardo Santos. Graças ao seu desempenho, a família obtém o decisivo apoio de Santos
para a construção do hotel que lhe daria sustento pelo resto da vida.
Descrita como uma mulher “prudente, incrédula, reticente” (VÁSQUEZ, 2004, p. 56),
Sara traduz o sentimento de “estar dentro e fora” apontado por Stuart Hall (2003, p. 416)
como definidor da experiência diaspórica. A personagem não se identifica mais com a
Alemanha, mas tampouco deixa de considerar a Colômbia um país estranho, mantendo um
olhar permanentemente crítico. O distanciamento de seu país natal e da identidade que
carregava ao sair de lá aprofunda-se com o passar do tempo: Sara afasta-se da religião
judaica, monta árvore de Natal para a família e, por mais que quisesse, não conseguiria
explicar o trânsito entre sua própria infância alemã e a que vivem seus netos, “pessoas tão
distantes de Emmerich [sua cidade natal], e da sinagoga de Emmerich, como era possível”
(VÁSQUEZ, 2004, p.81). As transformações de sua identidade são motivo de reflexão. “As
73
outras pessoas olham seus filhos e se veem neles”, diz. “Comigo isso não vai acontecer,
somos diferentes. Não sei se isso tem alguma importância”.
No processo de descoberta de sua nova identidade, a primeira visita à Alemanha, trinta
anos depois de mudar-se para a Colômbia, confirma o que disse Abril Trigo sobre o retorno à
terra deixada após um período de afastamento – trata-se, segundo ele, de “umas das
experiências máximas de estranhamento”, quando “o então-lá longamente preservado na
memória se torna irreconhecível no aqui-agora do reencontro” (TRIGO, 2003, p.56-58). A
viagem é feita com toda a família, em 1968, a convite da prefeitura de Emmerich, que reúne
exilados em uma iniciativa de “expiação pública”, como muitas que vinham sendo realizadas
em municípios alemães. Ali, entre lembranças modificadas e episódios esquecidos, Sara
percebe que a Alemanha já não é seu país, “pelo menos no sentido em que um país pertence
às pessoas normais” (VÁSQUEZ, 2004, p.190). Até mesmo o medo de cair no choro – que
temia, por contrariar a determinação do pai de não chorar em público – mostrou-se infundado
quando chegou à cidade de sua infância. Nem o túmulo de sua irmã mais velha, de quem mal
se lembrava, conseguiu emocioná-la, e a antiga sinagoga de Emmerich não lhe pareceu muito
mais do que um bloco de concreto. Anos depois, Sara muda-se de Duitama – onde ficava o
hotel da família – para Bogotá, e já não se dispõe a sair da cidade, mesmo com a
recomendação contrária dos médicos, que devido a um aneurisma aconselham-na a viver em
um lugar com menos altitude.
Entre os personagens do livro, o desejo de voltar à terra de origem é manifestado
apenas por uma minoria. Com exceção de Margarita – a mulher de Konrad, que retorna a Cali
após o confinamento do marido –, a decisão de permanecer é mantida até mesmo pelos menos
confortáveis, como Konrad. Embora pragueje contra Bogotá – como fazem, aliás, todos os
personagens –, a fisioterapeuta Angelina Franco diz que não voltaria a viver em Medellín,
porque “se mudar é ruim, desagradável, e se mudar duas vezes na vida é coisa de gente
74
estranha” (idem, p. 233-234). A personagem mostra o peso do ambiente familiar e da vida
íntima no sentimento de pertença a uma cidade. 42 Sua saída de Medellín, aos 18 anos, ocorre
pouco depois de o irmão abandonar a família e se dá a convite de seu chefe e futuro amante –
um homem, também ele, “mais de viajar, de estar em outros lugares”, que havia vivido nos
Estados Unidos e termina morto em um tiroteio numa boate bogotana (idem, p.239). Mais
tarde, o romance com Gabriel lhe traz o impulso de rever sua cidade natal, a fim de mostrar ao
namorado a casa em que vivera a infância e onde seus pais permaneceram até morrer,
tragicamente, em um atentado de traficantes em um supermercado de Bogotá. Quando nota
que Gabriel não voltaria mais ao hotel, Angelina sente-se mais uma vez “estranha, deslocada,
uma estrangeira” em uma cidade amiga que, por culpa dos homens, torna-se hostil (idem,
p.207). Como vingança, divulga os segredos do namorado, escandalosamente, em um
programa de televisão.
Josefina Santamaría, por sua vez, aparece rapidamente na trama para narrar os
momentos finais da vida de Konrad: a última ronda pela cidade, a penhora do disco favorito, a
compra de comprimidos e a morte agonizante em uma rua lotada de Bogotá. Seis meses
depois de chegar de Rioacha, no Caribe colombiano, Josefina ganhava a vida indo para a
cama com os sócios do Jockey (idem, p.125) e morava com Konrad em uma pensão barata,
“sem se importar minimamente de onde vinha, para onde ia, por que estava naquela situação e
como pensava sair dela (idem, p.134)”. Sua passagem pelo romance não apenas a situa entre
os informantes/testemunhas da narrativa (ao lado de Sara, Angelina e Enrique), mas a
incumbe de denunciar a hipocrisia e os preconceitos da sociedade, encenados simbolicamente
no principal marco histórico de Bogotá, a Plaza de Bolívar, em frente à catedral da cidade.
Seguindo Konrad em seus últimos passos, buscando-o no aglomerado de uma procissão
42
Em outro momento, ao conjecturar sobre os prováveis rumos de Enrique, o narrador afirma que “apaixonar‐
se é a melhor maneira de se apropriar de uma cidade, que o sentido de pertença é uma das consequências mais abstrusas do sexo” (idem, p.218). 75
religiosa, Josefina cruza lugares que lhe eram “estranhos e até hostis” (idem, p. 129), onde
senhoras “muito decentes” a insultavam “como os de dentro costumam insultar os de fora”.
“Uma negra, uma negra”, diziam duas ou três bocas, e os tantos rostos que a olhavam com
horror (idem, p.131).
Nesta galeria de personagens andarilhos, mesmo os que permanecem onde nasceram –
Gabriel pai e Gabriel filho – mantêm uma postura em vários aspectos deslocada do país e da
cidade que habitam. Em Gabriel pai, esse traço é mais nítido na juventude, quando fugia da
melancolia de casa e ia para o hotel da família Guterman pedindo “asilo” nos fins de semana
(idem, p.122). Em meio ao intenso convívio com alemães, numa espécie de exílio em seu
próprio país, Gabriel aprende a falar o idioma com fluência e conquista a confiança
generalizada dos imigrantes – entre eles, Konrad Deresser, a quem mais tarde delatará por
manter supostas relações com nazistas.
Gabriel filho, por sua vez, diz que não conseguiria passar mais de duas semanas fora
de Bogotá. Mas ainda assim se insurge, do início ao fim do livro, contra os lugares-comuns
colombianos e bogotanos. A fatuidade dos letrados. A inconsistência dos patriotas. A
violência. A morbidez. A fome de escândalos. Uma postura, em suma, descentrada.
Em um breve ensaio sobre a condição de escritor deslocado43 , Juan Gabriel Vásquez
fez o seguinte comentário sobre Los informantes:
[...] quero pensar que todas as condições da minha experiência como
inquilino – as incertezas, as particularidades de uma vida mais ou menos
itinerante, a experiência fragmentada, a percepção, olhando de fora, de um
país instável e, sobretudo, o tratamento desse país como território
desconhecido – estão incluídas de maneira tácita no romance. (2009, p.188).
Não é preciso ler o ensaio para fazer essa constatação. Oito anos depois de sair da
Colômbia, Vásquez fez do deslocamento não apenas um ingrediente fundamental da trama,
43
“Literatura de inquilinos”, in El arte de la distorsión. Madri: Alfaguara, 2009. 76
mas uma postura discursiva para se pronunciar criticamente sobre seu país. Confirmando a
tese de Abril Trigo (2003) sobre o poder questionador da memória dos deslocados, o autor
resgata um episódio excluído da chamada história oficial e ataca duramente os pilares do
imaginário nacional colombiano. Seja a Colômbia dos anos 1940, em que imigrantes como
Konrad, inicialmente acolhidos, são espoliados e vilipendiados pelo governo; seja a dos anos
1990, arrasada pela violência que mata o amante e os pais de Angelina. O país em que o
assassinato de um líder popular é respondido com crueza redobrada que se alastra por uma
década. E onde até mesmo numa procissão religiosa uma mulher é marginalizada pelo fato de
ser negra. Um lugar, em suma, versado em expulsões (VÁSQUEZ, 2004, p.276), pátria que se
manifesta na morte e em situações dolorosas: nas cores do seguro de vida (idem, p.21), no
hematoma do pai com as formas de uma província do norte (idem), na camisa que o narrador
usa (Colombia nuestra), quando lhe contam que ficou órfão.
Relatores do nazismo, da violência e da exclusão, os informantes do livro são
testemunhas da experiência nacional fracassada. Dos desenganos de quem busca uma
comunidade que extrapole os limites da imaginação.
3.2 A memória em Los informantes
O romance de Juan Gabriel Vásquez mostra, numa esfera predominantemente privada,
a tensão entre lembrar e esquecer que marca países com traumas não superados. Se o
consenso buscado pelo Estado inclui políticas para apagar lembranças tidas por
inconvenientes, as desavenças do passado subsistem na memória dos que as viveram. Entre
estes, porém, há os que desejam desesperadamente vê-las esquecidas e os que aguardam a
vida inteira por uma oportunidade de evocá-las.
Os personagens Gabriel Santoro pai e Sara Guterman representam, respectivamente,
esses dois extremos. Renomado professor de retórica, repleto de condecorações dadas pelo
77
governo, Gabriel carrega em silêncio a culpa de ter traído Konrad, pai de seu amigo Enrique,
delatando-o, injustamente, por manter relações com nazistas. Sem jamais referir-se àqueles
tempos, cuidando até mesmo de afastar vestígios da juventude em seu apartamento, Gabriel se
refugia nos grandes oradores da antiguidade e demonstra permanente desprezo com o
jornalismo e outras atividades preocupadas com o contemporâneo (VÁSQUEZ, 2004, p.62).
Sara, ao contrário, empenha-se em preservar a memória desde a adolescência, quando
procurava reconstituir os dias de sua chegada à Colômbia com perguntas aos familiares.
Guarda documentos em diferentes pastas, organizadas por cores e outras distinções. Ao notar
que Gabriel faria de tudo para esquecer os episódios que levaram à morte de Konrad, assume
para si a responsabilidade de lembrá-los. “Quando ficou óbvio que ele ia esquecer tudo, [...]
ocorreu-me essa ideia tão idiota de ser a memória de uma outra pessoa, e a ideia ficou enfiada
em minha cabeça, não saiu mais” (idem, p.117). Seus anseios de rememoração, contudo, são
tolhidos pelos próprios filhos, que a impedem de contar aos netos os episódios
testemunhados. “Eu era e talvez ainda seja essa coisa tão terrível: uma memória que está
proibida de dizer que se lembra” (idem, p.118).
A Colômbia recriada no livro pende inegavelmente para o esquecimento. Apontadas
por Ricoeur (2007) como uma das práticas mais frequentes de manipulação da memória, as
comemorações nacionais – que muitas vezes não passam da evocação coletiva das glórias
pátrias – proliferam a ponto de constituir uma tradição (VÁSQUEZ, 2004, p.25). Os arquivos
públicos são tratados com desleixo, e importantes documentos históricos, como as cartas
familiares buscadas por Enrique, acabam se transformando em lixo. “O funcionário que me
deu a carta me confessou a verdade. Estes papéis eram cortados em tiras e postos ao lado da
mesa dos trâmites, para que as pessoas que tiravam as impressões digitais pudessem limpar os
dedos” (idem, p.316).
78
Neste ambiente avesso a recordações – em que a memória, tantas vezes, é apenas uma
mercadoria descartável 44 –, não é de se admirar que Gabriel pai figure quase como um herói,
objeto de culto da elite e cidadão modelo para o poder. Erigida sobre um discurso oco – em
que o manejo exímio das palavras contrasta com o veemente desprezo pelos significados –,
sua glória se sustenta, necessariamente, no desconhecimento de sua vida pregressa. Quando o
filho publica a biografia de Sara, Una vida en el exilio, remexendo no passado que o pai
gostaria de ver sepultado, sua reação beira o desespero. Desqualifica o livro publicamente, diz
que o tema já está superado e apregoa o esquecimento coletivo dos episódios relatados. “A
memória não é pública”, esbraveja (idem, p.74).
No antagonismo entre pai e filho, emerge a tensão entre oralidade e escrita que marca
todo o romance. Mestre do discurso falado, Gabriel pai tem como material “as palavras
pronunciadas e lidas, mas nunca escritas por sua mão” (VÁSQUEZ, 2004, p.24). Já Gabriel
filho, jornalista e escritor, acredita na capacidade ordenadora das palavras redigidas (idem,
p.34). Uma primeira leitura para este embate pode estar na noção de maior durabilidade da
escrita, em oposição à fugacidade da palavra oral (GAGNEBIN, 2006, p.11) 45 . Optar
exclusivamente pela palavra oral, como faz Gabriel pai, pode significar, em certa medida, a
opção pelo esquecimento 46 . Na retórica oficial, nos elogios públicos e até mesmo no sermão
de consolo do padre – que apura às pressas, com um bloquinho de repórter, informações sobre
44
O comentário de Sara exemplifica: “Hoje em dia podemos sair e comprar memória na esquina, não é mesmo? Meus netos, pelo menos, já fizeram isso. Tomam um táxi e vão até a loja de computadores e compram memória [...]” (idem, p.118). 45
Faço uma menção deliberadamente superficial a um debate amplo e imemorial para a filosofia. Matizes, ressalvas e contextualizações são dadas, exemplarmente, pela própria Gagnebin na obra citada. 46
Chama atenção que um mesmo episódio – o suicídio de Konrad e, especificamente, o ataque ordenado por Enrique – determine tanto seu desejo de esquecimento coletivo como sua virtual impossibilidade de escrever. Após a mutilação, Gabriel pai tem de aprender a redigir com a mão esquerda, mas jamais o faz de maneira satisfatória: “[...] escrever era um atestado de sua invalidez, de seu defeito, de sua vergonha” (idem, p.24). 79
o defunto que enaltecerá –, as palavras faladas são copiosas e tantas vezes gratuitas no
universo descrito por Vásquez.
Mas, para Gabriel pai, a impossibilidade de esquecer está inscrita em seu próprio
corpo, nos quatro dedos da mão arrancados a faca em um ataque ordenado por Enrique. Com
exceção de Sara – sua confidente na época, que o socorreu depois do incidente –, todos creem
numa versão fictícia que criou para explicar a mutilação. Porém, para ele, a ausência dos
dedos será sempre um memorando indelével de sua traição. “Eu matei o velho, Sara. Ferrei
com a vida deles. Sou o culpado de tudo”, confessa, após ser atacado pelos homens enviados
por Enrique (idem, p.181).
Ao castigo imposto pelo ex-amigo – mais que os dedos decepados: a impossibilidade
de esquecer –, Gabriel pai acrescenta um voluntário esforço de lembrança, mantendo sempre
ao alcance o mesmo disco que Konrad conservou até o último dia de vida e que penhorou,
justamente, para comprar o veneno que o matou. “‘Tem de adiantar, saber que carreguei esse
peso estes anos todos, que teria podido esquecer tudo mas que não esqueci. Lembrei-me,
Enrique, não saí do inferno que é lembrar-se’”, diz, tentando sensibilizar o amigo traído
(idem, p.306).
Enquanto o suicídio de Konrad, em 1946, representa para Gabriel pai o nascimento do
sentimento de culpa – essa experiência “fundamentalmente solitária”, como definiu Ricoeur
(2007, p.470) –, a operação cardíaca a que é submetido, em 1991, marca o início de sua busca
por uma memória feliz, apaziguada e reconciliada, para seguir nos termos do filósofo francês.
Bem-sucedida, a cirurgia lhe incute a crença na possibilidade de uma segunda vida, na qual os
erros cometidos no passado poderiam ser corrigidos. Reconcilia-se com Gabriel filho,
permite-se lembrar com júbilo de experiências há muito soterradas (pela primeira vez canta
em alemão na frente do filho) e, após algumas semanas, decide empreender a última e crucial
medida para se ver definitivamente livre do peso que o esmaga há décadas: pedir perdão a
80
Enrique. Mas o amigo de juventude não está disposto à reconciliação: “‘Foi nesta mesma vida
que tudo aconteceu, Gabriel, e você está querendo fingir que foi em outra diferente. Mas não,
não é possível. Olhe, vou lhe dizer a verdade: prefiro que a gente deixe tudo como está.’”
(VÁSQUEZ, 2004, p.308).
Enrique finge ter esquecido certos fatos (idem, p. 299), mas não convence Gabriel
filho. Sua relação com a memória situa-se num ponto intermediário entre o silêncio de Gabriel
pai e o anseio de rememoração de Sara. Enquanto Gabriel mantém em segredo suas
lembranças (além de Sara, contara-as apenas à mulher já falecida), Enrique divide as suas não
apenas com a esposa, mas também com o filho Sergio, a quem mostra documentos e dá os
dois livros de Gabriel filho. O objetivo, segundo ele, é que Sergio o entenda, que intua como
foram as coisas naquele período. “A gente quer que os outros vivam o que aconteceu há
cinquenta anos. E como se faz isso? Deve ser impossível. Mas a gente tenta, inventa
estratégias”, justifica Enrique (idem, p.297).
Um dos riscos da tarefa está na postura agressiva de Sergio, que transfere para Gabriel
filho a mesma cólera que, ao ler seus livros e inteirar-se da traição, sentira por Gabriel pai. “A
questão também é comigo, não é só com o meu pai”, vocifera o filho de Enrique, tão logo vê
o jornalista assomar-se à porta de sua casa (idem, p.292). Gabriel filho, por sua vez, tampouco
deixa de se considerar um herdeiro e observa a permanência, inelutável, dos episódios que
separaram seus pais.
Era possível afirmar, em nosso caso, que o tempo se mexera? Que diferença
fazia o momento exato em que o erro e a delação haviam ocorrido, o
momento exato em que certa mão fora amputada? Os fatos estavam
presentes; eram atuais, imediatos, viviam entre nós; os feitos de nossos pais
nos acompanhavam. (...) (idem, p.293-294).
Diante disso, não lhe passa despercebida a ironia de ser hospedado pelo homem que se
recusara a perdoar seu pai e que o impedira, inclusive, de entrar em sua casa: “[...] a mesma
vida que negara a meu pai a única redenção possível, e que consequentemente me negara o
81
direito de herdar a redenção, agora determinava que eu, o deserdado, fosse hóspede por uma
noite daquele que se negara a nos redimir” (idem, p.319).
Ao entrar na casa de Enrique, Gabriel filho descobre um zeloso colecionador de
documentos, que guarda em fichários as cartas escritas por Konrad, as cartas que a mãe
enviou pedindo ajuda a senadores (e que obteve, facilmente, em um arquivo público) e a
notícia de jornal sobre a inclusão do pai na lista negra dos imigrantes do Eixo. Ao contrário de
Sara, porém, Enrique descarta a possibilidade de divulgá-las.
Talvez seja por pudor, talvez por uma questão de privacidade, chame como
quiser. Eu tenho muito apreço por essas cartas, e parte do apreço é saber que
ninguém mais as tem, que elas são minhas, que ninguém mais as conhece. Se
fossem públicas, alguma coisa se perderia, Gabriel, uma coisa muito grande
se perderia para mim, não sei se isso faz sentido para você. (idem, p.321).
Mas Gabriel Filho se apropria das cartas, assim como transformara em livro episódios
da vida pessoal do pai. Cabe a ele, no romance, levar adiante o dever de memória,
vasculhando intimidades, garimpando documentos e – sobretudo – fixando no papel
lembranças que, do contrário, não venceriam as interdições privadas e tenderiam a
desaparecer com o passar do tempo. Sua principal testemunha, Sara, muitas vezes aparece
como coautora – e até mesmo idealizadora – de algumas empreitadas, como uma série de
conferências sobre os 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. O objetivo seria revelar
fatos excluídos de sua biografia cuja discussão, em meio às comemorações, tornava-se, “mais
do que permissível, pertinente e necessária” (idem, p.266). Entre eles, textos “injustamente
ignorados até agora” (idem), como os que comprovam o declarado antissemitismo do
chanceler colombiano durante a Segunda Guerra Mundial, Luis López de Mesa.
Na justificativa que apresenta para a escrita de Los informantes (idem, p.260-261),
Gabriel filho afirma que, com a morte do pai, herdou não apenas suas faltas (e sua
possibilidade de redenção), mas também a obrigação de descobri-lo, interpretá-lo e averiguar
82
quem foi na realidade. “Sou sucessor, sou executor e sou também fiscal, mas antes fui
arquivista, fui organizador”, define-se (idem, p.95).
Sem reduzir a uma alegoria, pode-se entender a figura paterna como uma extensão, em
certa medida, da própria nação colombiana – ambas familiares, mas desconhecidas ao mesmo
tempo 47 .
[...] depois de ter estado em lugares nos quais já estivera milhares de vezes e
mesmo assim ter a sensação de não os conhecer, de jamais tê-los visto,
lugares que me pareciam tão opacos e duvidosos quanto a vida do primeiro
Gabriel Santoro –, foi depois de tudo aquilo, repito, que a ideia deste
informe me ocorreu pela primeira vez. (idem, p.260).
Nesta dupla perspectiva – familiar e desconhecido, próximo e distante, dentro e fora –
nota-se ainda mais a presença do escritor deslocado, o colombiano radicado na Europa, que o
leitor já vinha pressentindo nos movimentos dos personagens e em várias observações nas
quais o narrador realça a percepção de que vem de fora o olhar que conduz a obra 48 . No
romance, tal como observa Abril Trigo em relação à memória em deslocamento (2003, p.93),
o passado ganha novo significado a partir das novas circunstâncias do presente – o que ocorre
tanto nas reminiscências de Sara (que, no “aqui-agora” da Colômbia, começa a ver o “entãolá” da Alemanha com outros olhos) como nas investigações de Gabriel filho, que passa a ler
seu primeiro livro de outra forma depois de saber da participação do pai entre os delatores das
listas negras. Nos dois casos, a releitura só é possível após um distanciamento de uma
referência de origem – para Sara, a Alemanha; para Gabriel, seu pai, de quem se afasta por
três anos depois de publicar Una vida en el exilio.
47
Longe de ser uma novidade, investigações sobre a figura paterna têm sido um caminho recorrente para escritores latino‐americanos interessados em examinar o passado de seus países. Entre os numerosos exemplos recentes, podemos acrescentar o romance “Bosque quemado” (2007), do chileno Roberto Brodsky, e as memórias “El olvido que seremos” (2006), do colombiano Héctor Abad. 48
Quando avança, por exemplo, nas conjecturas sobre os rumos de Enrique e se refere à “clareza dos desterrados”, à tristeza dos que ficam e à impossibilidade de regressar (idem, p.217). Ou quando fala que em seis meses Bogotá pode se tornar irreconhecível para quem deixou de viver na cidade (idem, p.251). 83
Além de resgatar, nas décadas de 1930 e 1940, um episódio excluído da “história
oficial” – conclamando, com isso, ao dever de memória –, Juan Gabriel Vásquez leva para o
romance o país convulsionado que viveu nos anos 1980 e 1990: a nação encurralada pelo
narcoterrorismo que chegou a gerar, entre numerosos frutos literários, um novo gênero da
ficção contemporânea: a chamada novela de sicarios, notabilizada, entre outras obras, pelos
romances La virgen de los sicarios (1994), de Fernando Vallejo, e Rosario Tijeras (1999), de
Jorge Franco. Curiosamente, a ação de Los informantes termina em 1995, um ano antes da
partida de Vásquez para a Europa – o que reforça, nos que atentarem a este detalhe, a crença
no caráter pessoal de boa parte das impressões deixadas sobre o país ao longo da obra 49 .
Referindo-se a uma cena de 1980, quando acabara de fazer 18 anos, Gabriel filho observa: “O
tempo das bombas e dos atentados, uma década inteira em que vivemos com plena
consciência de que voltar para casa à noite era questão de sorte, estava longe ainda”
(VÁSQUEZ, 2004, p.20). Mais adiante, quando recebe de Sara a notícia do acidente do pai, o
jornalista conta que “a escutava com uma certa distração e uma efêmera lástima altruísta, que
é como costumamos escutar a notícia de uma morte alheia na Colômbia” (idem, 97).
Violência, hipocrisia e esquecimento coletivo são alguns dos traços que, à distância,
Vásquez evoca do país que deixou há 15 anos. “Recordar”, disse ele recentemente, “é um ato
moral” (VÉLIZ, 2011). Ao mesmo tempo em que se lança a essa tarefa, ele faz de sua própria
matéria-prima – a memória – um rico tema de reflexão, como veremos a seguir.
49
Em seu romance mais recente, El ruido de las cosas al caer (2011), o protagonista é um jovem advogado atingido acidentalmente num ataque a um narcotraficante. Nas entrevistas de divulgação, Vásquez qualificou o livro como o seu mais autobiográfico, por tratar da insegurança que experimentou pessoalmente na Colômbia. 84
3.3 As testemunhas e o jornalista
Embora obra de ficção, Los informantes tem na literatura de testemunho um intertexto
evidente. O primeiro ponto de contato está na própria trama, que conta o processo de
composição de dois livros inequivocamente testemunhais. O segundo está na origem e na
elaboração do romance, que teve como ponto de partida o testemunho de uma mulher “muito
parecida com a Sara Guterman do livro”, conforme disse o autor (DE MAESENEER e
VERVAEKE, 2010). Em pelo menos uma ocasião, Vásquez contou também que entrevistou
outras pessoas, seguindo um procedimento que geralmente adota ao escrever um romance:
“Procuro fazer com que os primeiros meses de contato com um material que me parece
novelesco estejam bem ancorados na realidade e tomem como base os testemunhos de pessoas
que tenham vivido o fato.” (SALAZAR, 2004). Assim, mesmo sem enquadrá-lo em nenhuma
das categorias da literatura testemunhal, podemos associá-lo a registros correlatos que,
independentemente da classificação, promovem o entrecruzamento de narrativa e história,
realidade e ficção, e expressam, segundo Mabel Moraña (1995, p. 488), a vontade de
“canalizar uma denúncia, dar a conhecer ou manter viva a memória de fatos significativos
[...]”.
Testemunhas se debatem entre a necessidade urgente de expressão e a consciência do
indizível e inimaginável que, muitas vezes, assume a experiência que viveram
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p.46). Esta preocupação, que já aparece nos relatos de Primo
Levi, é manifestada pela personagem Sara Guterman no cuidado com que guarda documentos,
ciente de que é preciso mais do que a palavra (e a memória) para manter vivos os
acontecimentos passados. Ao mencionar a bateria de entrevistas que fez com Sara para
escrever Una vida en el exilio, Gabriel filho afirma que o que mais lhe chamou a atenção foi a
facilidade com que ela prestou o depoimento –
“sem parábolas nem rodeios, como se
houvesse esperado toda a vida para contar aquelas coisas” (VÁSQUEZ, 2004, p.28). Principal
85
fonte do jornalista – narradora de um capítulo inteiro –, Sara é duplamente testemunha no
romance: primeiro, da experiência do exílio, que viveu pessoalmente; segundo, dos episódios
que culminaram com a morte de Konrad, dos quais tomou conhecimento pela confissão de
Gabriel e pelo relato de Josefina. Com isso, Sara se encaixa nas duas acepções que – de
acordo com Hugo Achugar (1992, p.59) e Émile Benveniste (1969, apud Ricoeur, 2007,
p.173), respectivamente – estão na origem da palavra testemunha: aquele que sobrevive a
grandes provações e dá testemunho de sua fé (derivada do grego mártir) e aquele que atua
como um terceiro e atesta determinado fato (derivada da palavra testis – de tertius – que
designava, no direito romano, as pessoas encarregadas de assistir a um contrato oral e
autenticar essa transação).
Narrando em detalhes os dias que antecederam a morte de Konrad, Sara atribui a
nitidez de suas lembranças à constatação, nítida na época, de que sua vida estava mudando
para sempre (idem, p. 117). Impactados por acontecimentos marcantes, outros personagens
revelam o mesmo afã de se comunicar. Assistindo à entrevista de Angelina, Gabriel filho
observa que a fisioterapeuta fala “sem parar”, “como se sua vida dependesse daquilo” (idem,
p.195). Em outro momento – ao encontrarem Josefina na pensão em que viveu com Konrad –,
Sara e Gabriel pai a ouvem “falar e falar e falar durante toda uma tarde” (idem, p. 134). Mais
adiante, Sara comenta que o filho de alemães Hans Bethke, um nazista que se mudara de
Barranquilla com a mulher, “falava por vinte” (idem, p.149) durante um jantar na casa dos
Deresser. E, algumas páginas à frente, queixa-se dos excessos verbais de Konrad, que, ao ser
visitado no Hotel Sabaneta, “importunava a todos com sua cantilena, sem que houvesse jeito
de que se calasse nem um segundo” (idem, p.164-165).
Para o jornalista-narrador, estes personagens quase sempre loquazes representam, na
maioria das vezes, o único caminho possível para obter informações que – manipuladas ou
reprimidas – desapareceram da esfera pública ou sequer foram transmitidas. Observando Sara
86
ao lado de seu pai, Gabriel reflete sobre a experiência acumulada por aqueles dois
“receptáculos de memória”, e se angustia com a ameaça de esquecimento que sua futura
morte representa (idem, p.85).
Eu recordava as palavras gravadas, erguia a cabeça para ver os outros
comensais – minha família – e pensava isto que sempre é incrível: isso
aconteceu com vocês. Isso, ocorrido há meio século, aconteceu com vocês, e
aqui vocês estão, ainda vivos, funcionando como testemunho tangível de
fatos e circunstâncias que talvez morram quando vocês morrerem, como se
vocês fossem os últimos seres humanos capazes de executar uma dança
andina que ninguém conhece, ou como se soubessem de cor a letra de uma
música que nunca foi anotada e que se perderá para o mundo quando vocês a
esquecerem (idem, p.85-86, grifo do autor).
Frágil, efêmera e muitas vezes coibida, a memória dos outros deve então ser capturada
e preservada, acredita o jornalista, que, munido de gravador, desenvolve o “curioso fetichismo
de conservar a voz alheia” (idem, p.82). Ficar sozinho em outras casas também está entre as
suas “perversões” (idem), pois sabe que a memória nem sempre se oferece, ávida, como a de
Sara. Para acessar as lembranças de Enrique e de seu pai – resguardadas pela culpa e pelo
rancor –, é preciso escarafunchar na vida íntima de cada um: fotos, livros, correspondências
particulares. Seu método de trabalho, invariavelmente, supõe a quebra de fronteiras entre o
público e o privado. “Gosto das vidas alheias; gosto de examiná-las com vagar. É provável
que ao fazê-lo viole vários princípios da discrição, da confiança, das boas maneiras. É muito
provável” (idem, p.222).
Mas, embora seja sua principal matéria-prima, a memória se mostra insuficiente, com
suas frequentes omissões (deliberadas ou não), imprecisões, modificações e os contumazes
acréscimos e desvios produzidos pela imaginação. Um primeiro revés para o jornalista vem de
sua maior informante, Sara, que, nas entrevistas que concedeu para sua biografia, preferiu
ocultar a presença de Gabriel pai entre os delatores das listas negras. “‘Não se faça de boba.
Você sabia? E, se sabia, por que não está no livro? Por que não me contou durante as
87
entrevistas?’”, indaga Gabriel filho, sobressaltado, ao descobrir que o pai tivera participação
ativa em alguns episódios relatados em seu primeiro livro (idem, p.77).
As revelações sobre seu pai também mostram que a memória, muito longe de
imutável, pode ser totalmente reformulada a partir de informações colhidas no presente. Ao
saber da traição a Enrique, Gabriel filho constata, de súbito, a radical modificação das
lembranças que tinha do pai. Diversos elementos de sua biografia – como uma carta enviada a
Sara e o discurso para os 450 anos de Bogotá – começam a lhe parecer, antes de tudo, alusões
cifradas ao dano provocado no amigo.
Ocorreu-me a ideia de que muito a contragosto eu acabaria por dedicar-me a
isso, a rever recordações em busca das inconsistências, das contradições, das
mentiras descaradas com que meu pai protegeu – ou melhor, fingiu que não
existia – um fato mínimo, uma ação entre milhares de outras de sua vida
mais cheia de ideias que de ações (idem, p.186).
No decurso de suas investigações, Gabriel filho lamenta ainda que acontecimentos
cruciais, como a delação feita pelo pai, sequer disponham de testemunhas, o que condena os
interessados (sobretudo Enrique, neste caso) à angústia de tentar reconstituí-los unicamente
pela via imaginária. Inerente ao processo de recordar, a imaginação aparece a todo instante,
principalmente quando faltam documentos e dados sólidos. E, se por vezes consegue chegar
bem perto dos fatos concretos (como quando Sara imagina a carta enviada por Margarita aos
senadores), outras vezes passa distante do que realmente ocorreu (como nas conjecturas do
jornalista sobre os rumos tomados por Enrique).
Os liames surpreendentes da memória às vezes se notam em pequenos detalhes, como
no sonho que Gabriel pai tem na UTI do hospital e do qual desperta com o desejo de se
reconciliar com o passado (idem, p.48-49). No sonho, que pode simbolizar o renascimento da
esperança para o personagem, Gabriel se surpreende ao ver sua falecida mulher em uma
sessão de cinema. Ao falar com ela, ouve-a dizer que continua viva e que lhe avisará quando
de fato tiver de morrer. Não por acaso, o filme que estava sendo exibido, “Escravo de uma
88
paixão”, era o mesmo que – conforme nos diz Sara, muitas páginas à frente (idem, p.118-119)
– Gabriel e ela tinham ido ver uma semana antes de receber a notícia da morte de Konrad, e
que ficou, para ambos, como uma espécie de madeleine proustiana (uma madeleine amarga,
neste caso) dos episódios que culminaram no suicídio de Konrad. Ou seja, para Gabriel pai,
descobrir sua mulher ainda viva no filme significava a possibilidade de se reencontrar com o
passado que até então quisera ver sepultado.
Em diversos momentos do romance, o jornalista adverte o que há de escorregadio e
potencialmente traiçoeiro na memória, e por isso se ampara em documentos, confronta dados
e se permite a possibilidade de corrigir as informações obtidas em testemunhos.
Enquanto escrevo, verifico que no curso de vários meses acumularam-se
sobre minha escrivaninha, mais do que as coisas e os papéis de que necessito
para reconstruir a história, as coisas e os papéis que provam a existência da
história e que podem corrigir minha memória caso seja necessário. Não sou
cético por natureza, mas também não sou ingênuo, e sei muito bem a que
magias baratas a memória pode recorrer sempre que lhe convém [...] (idem,
p.94, grifo do autor).
Ponderações como esta se multiplicam ao longo do livro e mostram que, para
Vásquez, assim como para Beatriz Sarlo (2005), a valorização da memória não deve
significar, de nenhuma forma, uma renúncia à discussão crítica sobre ela. A estrutura
metaficcional do romance evidencia ainda mais esta dupla escolha. Até a última página, o
dever de memória caminha lado a lado com o imperativo da reflexão.
89
CONCLUSÕES
As observações feitas na análise do romance permitiram, em diálogo com o quadro
teórico apresentado nos capítulos anteriores, elucidar as principais questões que orientam este
trabalho. Chegado este momento, retorno ao problema identificado na introdução e às
perguntas norteadoras da pesquisa para ensaiar algumas conclusões.
Os deslocamentos, ao estabelecerem não apenas uma demarcação física – um “aqui” e
um “lá”–, mas também cronológica na vida dos sujeitos – um “antes” e um “depois”–,
produzem uma disposição particular à reconstrução memorial, derivada primordialmente dos
anseios de autorreflexão e busca identitária. Quando o deslocamento está associado ao trauma
e à violência, como é o caso tematizado no livro (o exílio forçado de Sara, o suicídio do pai de
Enrique ou as diversas perdas de Angelina), a reação dos sujeitos oscila entre lembrar e
esquecer.
O deslocamento gera uma propensão questionadora na memória, passível de romper
com os paradigmas anteriores e propor novas formas – mais críticas e inclusivas – de olhar a
comunidade nacional. Ao afastar-se do imaginário nacional e da memória histórica do país
deixado, o sujeito deslocado desenvolve frequentemente uma memória de inequívoca índole
crítica, capaz de desafiar a “história oficial” e desvelar as dissonâncias da suposta harmonia
nacional.
Publicado oito anos depois de Juan Gabriel Vásquez mudar-se da Colômbia, Los
informantes (2004) é um exemplo eloquente desta memória questionadora, resgatando um
passado de ignomínias silenciadas e escancarando um presente mais digno de vergonha do
que de orgulho pátrio.
Além de denunciar a violência, a hipocrisia e a superficialidade da Colômbia e,
principalmente, de Bogotá – cidade maldita para todos os personagens –, Vásquez promove
uma reflexão aguda sobre sua principal matéria-prima, a memória. Ao mesmo tempo em que
90
critica o esquecimento coletivo promovido pelo poder, o romance aponta as limitações da
memória e mostra as complexidades de se evocar acontecimentos traumáticos, optando,
duplamente, por uma memória desimpedida, mas jamais isenta de reflexão.
A tendência a uma memória questionadora – que se insurja contra o imaginário
nacional e a memória histórica do país deixado – é confirmada por outros autores deslocados,
que capitanearam nos últimos anos algumas das empreitadas mais arrojadas de retorno
literário ao passado latino-americano. Como mostro no primeiro capítulo, embora ocorra
desde as origens da literatura hispano-americana, o deslocamento dos escritores passou a
exigir novas leituras desde a década de 1980, considerando as inovações no campo da
historiografia literária e as diversas reflexões teóricas que colocaram em crise a ideia de nação
e identidade nacional como essência. Longe do projeto ideológico acalentado pela geração do
boom, os autores mais jovens assumem o deslocamento como uma maneira mais natural de
estar no mundo translocal de hoje, demonstrando menor apego à nacionalidade e ressaltando a
consciência de uma identidade múltipla e descentrada. Escrevem sobre seus países sem
nenhuma perspectiva militante nem o anseio de consolidar uma tradição.
Alargar o escopo da discussão – citando outras obras literárias sugestivas para o tema
– foi uma das minhas preocupações neste trabalho, com a esperança de contribuir para novas
investigações que continuem a avançar sobre o campo, ainda pouco explorado, das relações
entre memória e deslocamento. Conforme afirmei na introdução, a busca em bibliotecas e
bancos de teses de diversas universidades brasileiras indica uma considerável predominância,
no âmbito da literatura hispano-americana, de pesquisas sobre os deslocamentos da
modernidade – como as viagens modernistas do início do século XX e, principalmente, os
exílios políticos das décadas de 1960 e 1970. Há quem afirme, diante disso, que o assunto está
esgotado, como se todos os deslocamentos fizessem parte de um só fenômeno. Dizer isso é
ignorar a historicidade dos processos. É preciso estudar o sistema literário hispano-americano
91
nas condições atuais de cultura translocal, valorizando os deslocamentos e as práticas de
extraterritorialidade na hora de historiar seus processos literários.
Neste mundo transnacional – em que os deslocamentos assumem proporções inéditas
na história –, tornam-se ainda menos sustentáveis visões essencialistas da cultura; e ainda
mais imperioso compreender a experiência cultural como um conjunto de interações que
abrangem tanto o enraizamento quanto a mobilidade. Para a historiografia literária, é
imprescindível consolidar as revisões propostas há 30 anos por alguns dos mais iluminados
intelectuais latino-americanos, como Antonio Candido, Ángel Rama e Antonio Cornejo Polar.
De lá para cá, a busca de novos parâmetros para historiar a literatura encontrou novas e
variadas formulações. Mas ainda enfrenta a enorme resistência dos que insistem nos
paradigmas limitadores de território, Estado-nação e unidade linguística.
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