- Livros Grátis

Anuncio
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
AURINETE ZANELATO DE SOUZA PEREIRA
ESPANHA DIVIDIDA, MUNDOS SEPARADOS – UMA LEITURA DO
ROMANCE EL PRÍNCIPE DESTRONADO, DE MIGUEL DELIBES.
NITERÓI
2008
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
AURINETE ZANELATO DE SOUZA PEREIRA
ESPANHA DIVIDIDA, MUNDOS SEPARADOS – UMA LEITURA
DO ROMANCE EL PRÍNCIPE DESTRONADO
DE MIGUEL DELIBES.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Literaturas Hispânicas.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento
Niterói
2008
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
P436 Pereira, Aurinete Zanelato de Souza.
Espanha dividida, mundos separados – uma leitura do romance
El Príncipe Destronado de Miguel Delibes / Aurinete Zanelato
de Souza Pereira. – 2008.
110 f.
Orientador: Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Letras, 2008.
Bibliografia: f. 89-94.
1. Literatura espanhola – História e crítica. 2. Delibes, Miguel.
El Príncipe Destronado. I. Nascimento, Magnólia Brasil Barbosa
do. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III.
Título.
CDD 860.9
AURINETE ZANELATO DE SOUZA PEREIRA
ESPANHA DIVIDIDA, MUNDOS SEPARADOS – UMA LEITURA
DO ROMANCE EL PRÍNCIPE DESTRONADO
DE MIGUEL DELIBES.
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre. Área de
concentração: Literaturas Hispânicas.
Aprovada em
de 2008.
BANCA EXAMINADORA
Membros Titulares:
Prof.ª Dr.ª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento — Orientadora
Universidade Federal Fluminense
Prof.ª Dr.ª Ana Isabel Borges
Universidade Federal Fluminense
Prof.ª Dr.ª Eline Marques Rezende
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Membros Suplentes:
Prof.ª Dr.ª Suely Reis
Universidade Federal Fluminense
Prof.ª Dr.ª Silvia Ignez Cárcamo
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Niterói
2008
À minha mãe, a quem tenho que agradecer por
tudo que fez e faz por mim. À memória de meu
pai, que se sentiria orgulhoso nesse momento.
Ao meu marido, Paulino, pelo amor e
companheirismo de todas as horas.
AGRADECIMENTOS
À minha família, pelo apoio dado em todos os momentos de minha vida.
À Prof.ª Dr.ª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento, pela força dada desde o início
do curso e ao longo destes anos de trabalho, pela orientação oferecida, pela
sabedoria emprestada a esta dissertação e pelo carinho.
A todos os Professores dos Cursos de Pós Graduação da Universidade Federal
Fluminense, pelo saber compartilhado.
À amiga e companheira de percurso Andréia Paraquette , por sua amizade e apoio
que tornaram mais suaves os momentos difíceis e pelo tempo dispensado nas
discussões sobre temas e idéias a serem desenvolvidos nesta dissertação.
Aos amigos verdadeiros que torceram por mim e a todos aqueles que
compartilharam comigo os prazeres e as dificuldades da vida acadêmica.
La arquitectura exige que la piedra se labre; la literatura,
que la palabra se recupere de la erosión del uso y
parezca brotada, como dicha por vez primera y sin perder
una sola de sus posibles irradiaciones.
Santiago de los Mozos
RESUMO
A presente dissertação tem como objeto principal a obra El príncipe destronado
do escritor espanhol contemporâneo Miguel Delibes. Escrita no período do
governo ditatorial do General Francisco Franco, o romance narra um dia na vida
de uma família de classe média alta, na qual a personagem Quico, um menino
prestes a completar quatro anos de idade, passa pela complicada fase em que
deixa de ser o filho caçula e passa a ter que dividir a atenção de todos com a irmã
mais jovem.
Em meio às atividades diárias dessa família e de seu grupo de empregados, vai
sendo mostrado o perfil de uma parcela da sociedade espanhola do período de
pós-guerra civil, seu modo de viver e de pensar, as mazelas existentes dentro
dela, as diferenças entre classes, a dificuldade de diálogo entre membros de
grupos opostos e as marcas deixadas por uma guerra fratricida que tanto marcou
Espanha.
As relações existentes entre as personagens dessa obra revelam que este grupo
de pessoas acaba sendo o espelho da atmosfera de repressão que as rodeava, o
microcosmo da Espanha franquista. Delibes traz para o seu texto e para seu
leitor, não só as diferentes posições políticas existentes na década de 1960, como
também a linguagem falada por seu povo, que transferida para os diálogos entre
seus personagens, através de um árduo trabalho de composição do autor, revela
as diferenças e riquezas culturais da Espanha. Sendo assim, sua literatura se
converte em uma importante fonte de informações sobre uma sociedade e um
instrumento capaz de contar a história quando outros meios de comunicação
estavam impossibilitados de fazê -lo. É também uma maneira de resgatar e
preservar características de um povo ameaçadas de desaparecer se seguirmos
pelo caminho, aparentemente sem retorno, da massificação da cultura e da
conseqüente padronização dos modos de ser e de viver.
Palavras-chave:
Miguel Delibes, Espanha; literatura; guerra; intolerância;
sociedade; comportamento; linguagem.
RESUMEN
Esta disertación tiene como objeto principal la obra El príncipe destronado del
escritor español contemporáneo Miguel Delibes. Escrita en un periodo del
gobierno dictatorial del General Francisco Franco, la novela narra un día en la
vida de una familia de clase media alta, en la que el personaje Quico, un niño que
está a punto de cumplir cuatro años de edad, vive la compleja fase en que deja de
ser el benjamín y tiene que dividir la atención de todos con su hermana menor.
Entre las actividades diarias de esa familia y de su grupo de empleados, se va
enseñando el perfil de una parcela de la sociedad española del periodo de
postguerra civil, su modo de vivir y de pensar, los infortunios existentes dentro de
ella, las diferencias entre clases, la dificultad de diálogo entre miembros de grupos
opuestos y las huellas dejadas por una guerra fratricida que tanto marcó España.
Las relaciones entre los personajes de esa obra, revelan que este grupo de
personas acaba siendo el espejo de la atmósfera de represión que había a su
alrededor, el microcosmo de la España franquista. Delibes trae a su texto y a su
lector, no sólo las distintas posiciones políticas existentes en la década de 1960,
sino también el lenguaje hablado por su pueblo, que trasladado a los diálogos
entre sus personajes, a través de una ardua labor de composición del autor,
revela las diferencias y riquezas culturales de España. Así que su literatura se
convierte en una importante fuente de informaciones acerca de una sociedad y un
instrumento capaz de contar la historia cuando otros medios de comunicación
estaban imposibilitados de hacerlo. Es también una manera de rescatar y
preservar características de un pueblo amenazadas de desaparecer si seguimos
por el camino, aparentemente sin vuelta, de la masificación de la cultura y del
consecuente ajuste de los modos de ser y de vivir.
Palabras-clave: Miguel Delibes, España; literatura; guerra; intolerancia; sociedad;
comportamiento; lenguaje.
ABSTRACT
The object of this study is El príncipe destronado, by the contemporary Spanish
author Miguel Delibes. Having been written during General Francisco Franco's
dictatorial government, the novel narrates a day in the life of a middle class family.
The character Quico, a boy to be four years old, is in the complicated phase in
which he is no longer the youngest of the family and has to share people's
attention with his youngest sister.
Having as scenario the family and employees' daily activities, the profile of a
Spanish social layer of the post-civil war is shown, as well as its way of living and
thinking, its problems, its social differences, the difficulties in communication
among members from opposite groups, and the wounds left by a civil war among
brothers that deeply affected Spain.
The relationships between the characters of this novel show that this group of
people mirrors the atmosphere of repression that surrounded them and the
microcosm of Spain during Franco's rule. In Delibes' narration, the 60's different
political positions can be seen as well as the language spoken by the people,
which was transferred to the characters' dialogues through an arduous articulation
of words. This process reveals Spain's cultural differences and richness. As a
consequence, his writing becomes an important source of information about.
Moreover, it is also a way to tell a story when other means of communication could
not do it besides being a manner to preserve the characteristics of a people
threatened to disappear if we'd follow the path of cultural massing and patterning
of the ways of being and living, apparently with no come back.
Key Words: Miguel Delibes; Spain; literature; war; intolerance; society; behavior;
language.
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO……………………................................................................
10
1. MIGUEL DELIBES - HOMEM E AUTOR...................................................
16
1.1 A NARRATIVA DELIBIANA..................................................................
17
1.2 DIÁLOGOS DE DELIBES.....................................................................
23
2. CONTEXTO HISTÓRICO.....…………........................................................
28
2.1 A CAMINHO DA GUERRA...................................................................
28
2.2 O GOVERNO DE FRANCO.................................................................
31
3. EL PRÍNCIPE DESTRONADO: O MICROCOSMO DE ESPANHA...........
36
3.1 A CENA FAMILIAR E SEUS ATORES................................................
40
3.2 NUANCES DA VIOLÊNCIA E DO MEDO EM EL PRÍNCIPE
DESTRONADO....................................................................................
3.2.1 A violência...................................................................................
46
47
3.2.2 O medo........................................................................................
53
3.3 AS PERSONAGENS E SUA LINGUAGEM.........................................
60
3.3.1 As personagens adultas.............................................................
61
3.3.2 As personagens infantis.............................................................
70
3.4 NO COMPASSO DA CANÇÃO............................................................
77
CONCLUSÃO...................................................................................................
85
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................
89
ANEXOS ..........................................................................................................
95
10
APRESENTAÇÃO
O ato de narrar, tão antigo quanto o de falar, está diretamente relacionado ao
ser humano, a ponto de não haver aquele que, de uma forma ou de outra, não
recorra a ele. Ora somos “contadores de histórias”, ora apenas nos colocamos como
ouvintes, a fim de nos enriquecermos com a experiência do outro. Por vezes,
contamos com o intuito de que algo seja perpetuado, seja uma tradição, um modo
de viver, de pensar, valores, fatos importantes para uma sociedade ou para um
determinado grupo. Em outros momentos, nos utilizamos da narrativa para fazer
com que um fato não se repita, como uma forma de denúncia ou como crítica.
Os romances também possuem razões para existir. Quem escreve tem suas
motivações que o levam por determinados caminhos. Cada um, em função de sua
história de vida, época ou lugar, “escolhe” sua paisagem predileta, seus tipos
preferidos, enfim, o universo sobre o qual vai elaborar páginas e mais páginas que
irão seduzir o leitor, em maior ou menor grau, conforme seja a sua capacidade de
reunir elementos que façam seu texto envolvente.
Quando buscamos conhecer mais a obra de um determinado autor, surge a
necessidade de identificarmos as principais idéias que fazem parte de seu universo
como escritor, os lugares, as temáticas e os personagens de seu interesse. Também
podemos levantar as principais virtudes desse escritor que o tornaram tão conhecido
e renomado. Ao decidirmos aprofundar nosso estudo acerca da literatura espanhola
do período de pós-guerra civil, temos como uma das principais razões dessa
escolha o fato de tratar-se de uma literatura produzida em um período histórico
conturbado e, ao mesmo tempo, crucial para a Espanha. Que tipo de literatura foi
possível escrever em meio à censura? O que produziram os escritores em tal
situação? Mesmo em nossos dias, ainda é muito pouco o material publicado em
nosso país sobre esse período. Essa carência não existe somente nas editoras, mas
também nas ementas e programas dos cursos de Letras, sejam eles de graduação
ou de pós-graduação. Foi somente nos últimos anos que se começou a ampliar o
foco para além da Geração de 27, de forma que o estudo das literaturas abrangesse
autores do meio e do final do século XX.
Propomos com esta dissertação trazer uma colaboração ao universo das
pesquisas feitas aqui no Brasil sobre a produção literária de um período ainda pouco
11
estudado. Esse quadro tende a reverter, graças à relevância que teve e tem o longo
período de incomunicabilidade da Espanha com outros países e dentro dela própria
e à fértil produção intelectual de uma geração que, apesar das dificuldades, não
optou pelo caminho mais fácil, embora compreensível, do silêncio.
Dentro deste recorte da literatura espanhola, o autor que escolhemos como
objeto de nossos estudos foi Miguel Delibes, nascido em Valladolid, em outubro de
1921. Considerado um dos principais escritores espanhóis contemporâneos, Delibes
põe em destaque em seus romances personagens que representam seres humanos
comuns, com suas fraquezas, defeitos e virtudes. Delibes retrata realidades duras
de seu país e põe em foco os menos favorecidos, aqueles tidos como fracos, os
silenciados e faz com que seu leitor perceba o mundo sob a ótica de quem não
possui poderes dentro de uma sociedade discriminadora e desigual. Através de seus
personagens, Delibes nos abre o universo espanhol e nos permite compreender os
valores, o modo de ser e de viver de seu povo ao tratar de questões universais como
o desamor, a violência e o direito à liberdade. A obra de Delibes é, como o
historiador Raymond Carr afirmou, “una fuente inagotable y riquísima de
documentación histórica para reconstruir el pasado inmediato de este país.” (CARR,
1993, p.69)
O romance que privilegiamos chama-se El príncipe destronado, escrito em
1964. Sua primeira publicação, no entanto, data do ano de 1973. Esta demora devese à forte censura existente durante a ditadura do General Francisco Franco, que
perdurou de 1939 a 1975: o livro ficou guardado por alguns anos até que
“soprassem ventos mais amenos” que permitissem sua publicação. A obra já foi
traduzida para línguas como alemão, russo e inglês e adaptada ao cinema por
Antonio Mercero com o título La guerra de papá, em 1977. Para esta dissertação
baseamo-nos na edição de 1988, da editora Destino.
Na obra é narrado um dia na vida de uma família burguesa espanhola
composta pelo pai, a mãe, seis filhos e duas empregadas. Uma leitura ingênua
dessa narrativa pode levar à compreensão de que se trata de uma história infantil,
pois todos os fatos são contados sob a perspectiva de Quico, um dos filhos do casal,
de três anos de idade, que perde a posição de caçula para sua irmã Cristina, e por
isto tenta conseguir a atenção de todos. Porém, a partir de uma análise mais
criteriosa percebe-se que o modo como os perfis dos membros daquela família e de
seus empregados foram traçados pelo autor não é nada ingênuo. Tampouco é
12
ingênuo o modo como os seus personagens se relacionam e falam. Temas como a
educação dada às crianças, a estrutura das relações familiares e as marcas da
guerra deixadas nesta família estão presentes no romance que possui diálogos tão
bem elaborados que parecem simples, mas que na verdade, são fruto de uma
extenuada busca do escritor por deixar bem caracterizada a forma como a
linguagem oral apresenta-se nos diferentes grupos sociais. Disto resulta a coerência
existente entre personagem e linguagem, um dos pontos altos de seu texto.
Miguel Delibes ressalta uma realidade do povo espanhol que vai além do
alegre e festivo, do sensual e exótico cuja imagem, durante o franquismo, foi tantas
vezes vendida como a legítima alma espanhola , com a finalidade de “camuflar” a
difícil situação pela qual passava o país, quando, na verdade, existiam tantos temas
a serem debatidos, tanta realidade escondida que não podia ser anunciada nos
jornais e tantos outros aspectos importantes da cultura desse povo que foi vítima de
um silêncio imposto, de preconceitos, de violência e solidão.
A obra delibiana denuncia o processo de padronização de comportamentos e
de idéias pelo qual o povo espanhol vinha passando devido ao governo totalitário
que durou quase quatro décadas e que tinha como trunfo a intensa propaganda
difusora de seus valores. Todos tinham que falar espanhol e ser católicos e, acima
de tudo, nacionalistas. A liberdade estava permanentemente ameaçada por um
regime que acabava por dividir a nação: de um lado estavam aqueles que aceitavam
o regime e vestiam-se com os ideais promovidos pelo governo ; de outro, os que
ansiavam por ter um outro caminho a seguir, não acreditavam no sistema, e por isso
transformavam-se nas principais vítimas de um governo opressor.
Porém, não era apenas o país que se dividia: famílias, como a de Quico,
encontravam-se separadas em um mesmo lar pela falta de compreensão, de
liberdade, do direito de escolha e pela ausência de diálogo que, simplesmente, não
podia existir. Não havia lugar para contestações, o discurso já estava pronto.
Bastava repeti-lo ou calar-se. Em meio a este “silêncio” situado por Delibes como um
dos fatores externos que influenciam na convivência daquela família (ou na de
qualquer outra), a violência, o autoritarismo e a intolerância fazem-se presentes,
ganham forma e voz e transformam aquele espaço doméstico no microcosmo da
Espanha franquista.
A escolha de El príncipe destronado deve-se ao fato de ser um texto corajoso
que aborda o tema da família estruturada a partir do modelo de família patriarcal que
13
vigorava naquele período. Essa obra é um retrato da sociedade burguesa do pósguerra e de seus valores e nos proporciona um painel da realidade sócio-cultural da
Espanha dos anos sessenta , o que nos auxilia a perceber quais foram os reflexos e
as implicações da guerra e da ideologia de Franco na sociedade e, particularmente,
na família espanhola.
Em uma época em que a imprensa não possuía liberdade de expressão e
estava totalmente controlada pelos censores do governo, a lite ratura muitas vezes
constituía uma possibilidade de expressão de idéias e de crítica, ainda que fosse
necessário “disfarçar” os objetivos do texto. Apesar de aparentar ser uma simples
narrativa acerca do cotidiano de uma família, a obra encerra uma grande carga
crítica sobre a estrutura daquela sociedade, sobre os papéis que deveriam jogar os
diferentes elementos da família, o tipo de educação dada às crianças, a falta de
comunicação, a opressão, a intolerância e a falta de liberdade.
No primeiro capítulo desta dissertação, faremos um apanhado dos principais
fatos de sua vida do escritor Miguel Delibes, onde nasceu, como foi sua infância e
adolescência, onde estudou, seu casamento e sua carreira. Traçaremos seu perfil
como escritor, suas principais características e indicaremos suas maiores obras e
prêmios recebidos. Para tanto, apoiamo-nos nas informações colhidas em
Conversaciones con Miguel Delibes, de César Alonso de los Rios, Miguel Delibes:
homenaje académico y literario, de María Pilar Celma, La conciencia social de
Miguel Delibes, de F. Ramona Valle Spinka e em La novela social española, de Gil
Casado, além de documentos eletrônicos.
No capítulo 2, contextualizaremos a Espanha no período histórico do qual faz
parte o escritor e a obra aqui analisada. Focalizaremos o período anterior à guerra,
ainda na Segunda República e seguiremos de forma cronológica, passando pelos
primeiros anos da década de 1930 até a eclosão da Guerra Civil Espanhola, em
1936. Destacaremos as principais características do governo do General Francisco
Franco, iniciado com o término da guerra, em 1939 e encerrado em 1975, quando de
sua morte, bem como aspectos da sociedade espanhola que se foi formando ao
longo desses quase quarenta anos de governo totalitário. Neste capítulo, nosso
apoio teórico encontra-se, principalmente, em La España del siglo XX , de J. C. Gay
Armenteros e Historia de España contada para escépticos, de Juan Eslava Galán,
entre outros, alé m do próprio Miguel Delibes em La censura de prensa en los años
40 (y otros ensayos).
14
Passaremos a analisar o romance El príncipe destronado no terceiro capítulo,
no qual serão traçados os perfis dos personagens , o tipo de relação existente entre
os componentes daquela família entre si e com seus empregados e as
conseqüências do regime totalitário daquele período na estrutura e nas relações
familiares. Discutiremos também, neste capítulo, a questão da violência e do medo.
Esses dois temas, recorrentes na obra de Miguel Delibes, ocupam, em El príncipe
destronado, um importante espaço na narrativa, permeando todo o relato. Como a
violência se faz presente e quais personagens podem ser consideradas violentas ou
vítimas da(s) forma(s) de violência encontrada(s) na obra são questões a serem
respondidas, bem como o que ocasiona tais medos. Neste capítulo, as principais
referências são Violência e literatura, de Ronaldo Lima Lins, A Violência, de Yves
Michaud e El sentimiento de miedo en la obra de Miguel Delibes, de Jesús
Rodríguez.
Faremos, ainda, um estudo da linguagem das personagens mais importantes
da obra e os principais recursos lingüísticos utilizados pelo escritor para enfatizar as
diferenças entre pessoas de grupos sociais e de faixas etárias distintas.
Destacaremos, também, o uso de expressões idiomáticas e os elementos típicos da
linguagem oral e coloquial. Usos amorosos de la postguerra, de Carmen Martín
Gaite, Las voces de la novela, de Oscar Tacca, Consideraciones lingüísticas sobre
Miguel Delibes, de Santiago de lo Mozos, são algumas das principais referências
para o estudo dos aspectos até aqui apresentados deste capítulo. Por fim,
destacaremos a presença da música no lar de Quico, sua importância dentro da
obra e o que ela pode nos revelar a respeito da sociedade espanhola de pós-guerra.
Apoiamo-nos, principalmente, em Manuel Vázquez Montalbán, na obra Crónica
sentimental de España.
Há muitos outros autores nos quais nos apoiamos para a elaboração desta
dissertação, fundamentais para o esclarecimento de questões sobre a obra de
Delibes e de outras questões que se entrecruzam com os temas aqui abordados;
eles muito contribuíram para o amadurecimento da pesquisa e por esse motivo
estão indicados nas referências bibliográficas.
Analisando os aspectos relacionados, esperamos esclarecer nosso leitor
sobre como a sociedade espanhola, com seus homens e mulheres, ricos e pobres,
adultos e crianças, pode ser retratada, sem que seja necessário um grande número
de personagens ou uma grande diversidade de paisagens. Queremos chamar a
15
atenção para a originalidade de um romance construído sobre um curto marco
temporal – um dia na vida de uma família – e o fato da “fábula” estar centrada sobre
uma criança de três anos de idade, sendo possível a observação das relações entre
os membros dessa família, integrada por dois adultos e cinco filhos, com a presença
de um pequeno grupo de empregados, criando um microcosmo que corresponde a
um universo de espanhóis, de origem diversa, com crenças e valores distintos, que,
apesar de se encontrarem em um mesmo espaço, permanecem separados.
16
1. MIGUEL DELIBES – HOMEM E AUTOR
O escritor castellano de Valladolid, Miguel Delibes Setién, cuja obra cobre a
segunda metade do século XX, já afirmou que “debemos escribir como somos. Entre
el hombre que vive y el escritor que escribe no debe abrirse un abismo” (DELIBES,
1993, p. 17). Por isso mesmo, o conhecimento de alguns aspectos de sua vida se
faz imprescindível para aquele que deseja aprofundar-se na compreensão de sua
obra e na percepção de seu projeto criador e de suas constantes, em função da
coerência existente entre vida e obra, tal como afirma Pilar Celma.
[…] por la asumida interrelación de literatura y vida, su obra se ofrece, a la
vez, en una doble dimensión, estética y ética. Si la primera de estas
dimensiones nos aproxima al escritor, consciente de su trabajo, la segunda
nos desvela también el pensamiento de quien ha encontrado en su oficio su
manera de estar en el mundo, de tomar posición ante los problemas que
inquietan al hombre actual (CELMA, 1993, p. 17)
Castilla y Valladolid, onde nasceu em 17 de outubro de 1920, estão
vinculadas à obra de Miguel Delibes, cenário de quase toda sua narrativa. Filho do
Adolfo Delibes Cortés e de María Setién Echanove, é o terceiro de oito irmãos.
Cursou a escola primária e secundária em colégios católicos, conclui u o segundo
grau no colégio La Salle em 1936, justamente no ano em que se iniciou a guerra civil
espanhola que impediu seus estudos universitários. Resolve u continuar seus
estudos na área de comércio, seguindo os passos do pai que, além de advogado,
era professor e diretor da Escuela de Comercio de Valladolid. Por suas claras
tendências para o desenho, matriculou-se na Escuela de Artes y Oficios. Durante a
guerra, temendo que o convocassem para a infantaria, alistou-se na Marinha, pois,
segundo informa García Domínguez (2003, p.32), a guerra no mar era menos
personalizada, o alvo era o navio, um avião, nunca um ser humano, o que Delibes
via, em seus 18 anos, como um mal menor. Essa experiência traumática na Marinha
de Franco será recuperada, literariamente, em Madera de héroe, obra de 1987.
Após a guerra, Delibes continuou seus estudos de Comércio e graduou-se em
Direito. Em 1943 ingressou no doutorado, ao mesmo tempo em que estudou
jornalismo.
17
Sua trajetória no jornal El Norte de Castilla iniciou-se quando estava para
completar 21 anos, como caricaturista. Em 1944, aos 24 anos, passou a redator do
jornal. Em sua vida acadêmica deu aulas de Direito Mercantil e História da Cultura.
Em 1946 Delibes casou-se com Angeles de Castro. O fato de estar casado e
necessitando de dinheiro fez com que escrevesse, no ano de 1947, o seu primeiro
romance La sombra del ciprés es alargada, com o qual obteve o prêmio Nadal1. A
partir desse momento dedica-se mais intensamente à literatura. Mais tarde recebeu
outros prêmios, como El Premio Nacional de Literatura, em 1955, por seu livro Diario
de un cazador e El Premio de La Crítica, por Las ratas (1963). Em 1972 foi eleito
membro da Real Academia Española de las Letras, em 1982 ganhou o prêmio
Príncipe de Asturias de las Letras, em 1984, o Premio de las Letras de Castilla y
León, e ainda o Premio Nacional de las Letras Españolas (1991), Premio Cervantes
(1993), Premio Nacional de Narrativa, por El hereje (1999), entre outros. Viajou por
países da América como Chile, Argentina, Brasil e Estados Unidos além de países
como Itália, França, Alemanha, onde pôde apresentar conferências em várias
universidades.
Ainda na década de 70, Delibes foi acometido por um duro golpe. Sua esposa
e mãe de seus sete filhos, considerada por ele mesmo como seu ponto de equilíbrio,
veio a falecer em novembro de 1974, após quase três décadas de um casamento
feliz. Apesar de todo o sofrimento, Delibes segui u com sua trajetória brilhante,
publicando livros e ganhando prêmios.
A maior parte da obra do escritor de Valladolid ficou conhecida através da
editora Destino, que vem publicando desde 1964 sucessivos volumes de sua Obra
Completa. Delibes é considerado um dos principais romancistas surgidos na
Espanha após 1939 e entre romances, livros de viagem, obras relacionadas com a
caça, além de contos e artigos sua obra alcançou vários países de todo o mundo.
1.1 A NARRATIVA DELIB IANA
Aprofundar-se na alma humana, conhecer suas paixões, suas fraquezas e
seus medos são, sem sombra de dúvida, alguns dos principais objetivos de Delibes
ao escrever uma obra. Sua preocupação com o homem é constante, ainda que esse
1
Os 60 anos de publicação desta primeira obra de Miguel Delibes foram celebrados em outubro de 2007, em um
congresso internacional, em Valladolid.
18
homem pertença a um extrato da sociedade menos prestigiado como o dos
proletários ou o dos homens do campo, por exemplo. Podem também pertencer à
burguesia.
Não
importa.
Seus
personagens
não
possuem
nenhum
traço
extraordinário em sua personalidade, tampouco existem eventos fantásticos em
suas vidas. São vidas comuns, de seres comuns.
Delibes é um autor que narra o quotidiano. Tudo o que faz parte do dia a dia
pode ser narrado: uma briga entre irmãos, um trabalho doméstico ou rural, uma
brincadeira, uma conversa. Observamos em suas narrativas problemas, costumes,
crenças e ambientes próprios do seu povo. Sobre isso, Delibes confessa:
[...] yo creo que el lector busca en cada novela antes que la originalidad de
un argumento los nuevos reflejos que el novelista es capaz de arrancar de
un tema viejo o, lo que viene a ser lo mismo, la huella de otra personalidad,
con cuyas ideas a veces coincide y otras discrepa. (DELIBES, 1993, p. 16).
Temas como a morte, a guerra, a infância, a violência são constantes em sua
obra. Delibes parece ter certo fascínio por personagens “puros”, simples, não
contaminados pela influência de um mundo cada vez mais artificial, em que o
homem deve seguir determinados padrões. Por vezes seus personagens são
crianças ou mesmo adultos que acabam assemelhando-se a crianças por sua
pureza e falta de autonomia, como o caso de Azarías, do romance Los santos
inocentes, publicado no ano de 1981. Azarías é um homem adulto que tem
problemas mentais e leva uma vida simples no campo. Vive em uma propriedade
próxima à do “señorito Iván”, dono das terras onde trabalha a família de sua irmã.
Azarías, apesar de sua ingenuidade, torna-se também uma vítima do tratamento
desumano que senhor Ivá n dispensa a seus empregados e sobrevive à dura vida
cotidiana que possuem todos aqueles que como ele, têm que se submeter ao dono
das terras.
O ambiente familiar onde as crianças crescem também é de grande
relevância na narrativa de Miguel Delibes. Em El príncipe destronado, por exemplo,
essa questão é uma dos pontos centrais. Sobre esse aspecto das obras do autor,
Valle Spinka esclarece:
19
El autor parece indicar que el ambiente donde crecen los niños ejerce gran
influencia en su desarrollo, y más tarde, en su vida. Es importante que la
educación se organice de una manera adecuada y que proporcione al niño
un ambiente propicio para su desarrollo. Se reitera su interés por novelar la
infancia, cuando Delibes dice: ‘Los problemas humanos planteados en una
escala infantil cobran un patético relieve, un patético acento dramático que
imprimen a la novela una mayor fuerza y eficacia que si fueran planteados
en el mundo de los mayores’. (VALLE SPINKA, 1975, p.23-24)
Além de tocar na questão da educação e da família suas personagens infantis
ainda podem servir para criticar o mundo adulto. É o que acontece em El príncipe
destronado. Quico é a personagem prinicipal da narrativa, porém o foco central do
romance não é o mundo infantil e, sim, a difícil relação entre os membros adultos
daquela família.
Quanto aos principais ambientes onde se passam suas histórias podemos
destacar o ambiente rural. Delibes escreve muito sobre o campo castelhano e
apesar de nutrir uma intensa paixão pelo ambiente rural, não esconde os aspectos
conflituosos e problemáticos do campo como as deficientes condições de vida
daqueles que moram ali, a miséria, a difícil convivência entre patrões e empregados,
entre outros males.
A experiência pessoal do escritor tem uma forte influência em sua produção
literária, pois desde criança teve contato com o campo e com a caça. O ambiente
rural aparece na maioria de suas obras, pondo em destaque as virtudes e os
problemas que castigam Castilha , sem idealizações. O primeiro romance a tratar do
universo rural foi El camino, publicado em 1950, onde tenta retratar, através da
perspectiva de um menino de onze anos, a vida do povo do campo e defender a
idéia de que é possível ser feliz, mesmo tendo uma vida simples. Para ele, cada ser
humano pode e deve escolher seu caminho de acordo com suas aptidões. Para
Sanz Villanueva (1993) a incorporação ao romance do século XX da imagem do
quotidiano dos povos e aldeias de Castilha é considerada uma grande contribuição à
literatura espanhola das últimas décadas, e Delibes é, sem sombra de dúvida, um
dos principais responsáveis pela difusão desse tipo de narrativa.
Mesmo tendo a predileção pelo mundo rural, Delibes também utiliza o cenário
da cidade para compor suas histórias. Neste caso, Delibes narra o cotidiano e os
costumes da burguesia provinciana de Valladolid, criticando seus valores e sua
forma de vida.
20
Este é o quadro no qual se encaixa o enredo do romance El príncipe
destronado. O dia da família burguesa à qual pertence Quico é capaz de mostrar os
anseios e frustrações de pessoas que, mesmo não passando por necessidades
materiais, têm carências afetivas que lhes trazem inseguranças e medos.
As histórias que transcorrem dentro do ambiente familiar destacam vários
tipos de famílias, grandes e pequenas, unidas ou não. Porém o mais importante é a
idéia de que esse ambiente é o principal fator que influenciará no modo de ser do
indivíduo que cresce ali. As crianças serão “produtos” do ambiente onde se
desenvolvem.
[...] Delibes cree que un ambiente sano es un factor sumamente importante
en el desarrollo del individuo. La familia es una entidad básica y esencial
donde debe existir el cariño, además de cierta responsabilidad mutua de
parte de todos los miembros del grupo familiar. (VALLE SPINKA, 1975,
p.124)
Após o ano de 1969, Delibes escreve sobre temas universais. Ganha
destaque a partir de então a questão dos fracos, dos desprestigiados dentro de uma
sociedade que vive em estado de miséria, submissão e abandono. São seus seres
“inocentes” em um mundo violento e materialista. Como Delibes, por um longo
período, escreve u durante o vigor da ditadura de Franco é comum encontrarmos em
suas histórias questões relacionadas com as conseqüências de um governo fechado
que visava à manutenção de uma ordem social já estabelecida, em que o cidadão
não tinha direito à liberdade de expressão. Seja no campo ou na cidade, essas
histórias trazem em si pontos cruciais do pós-guerra espanhol, relacionados à
família, à desigualdade, à falta de liberdade e à violência. Essa violência deve-se à
intransigência, ao despotismo, à discriminação, à crise dos direitos humanos, à falta
de amor ao próximo e à ditadura. Delibes mostra a deficiência de uma organização
social que precisa de uma urgente revisão.
Vários romances de Delibes abordam a questão da violência e da guerra,
mais especificamente. El príncipe destronado é uma dessas obras que tratam dessa
temática. Mesmo não se passando durante a guerra civil, a presença da guerra e de
suas conseqüências é bastante forte. As brincadeiras das crianças, sempre
reproduzindo cenas de guerra e os diálogos tensos entre a mãe e o pai de Quico,
representando claramente os ideais dos dois bandos adversários são exemplos de
21
que, naquela família, o conflito ainda está muito presente.
A falta de amor aparece em sua obra repetidas vezes. Falta de amor ao
próximo, filial ou mesmo conjugal. Conflitos domésticos, falta de comunicação e
isolamento são algumas conseqüências dessa ausência de amor, cujo exemplo
podemos citar em Cinco horas con Mario. Nessa obra, Mario e Carmen são marido e
mulher que durante o matrimônio não conseguem se entender por terem diferentes
visões de mundo e valores. Só quando Mario morre, sua esposa decide “dialogar”
com ele e lhe confessa o que até então era totalmente silenciado: seus anseios
como mulher, seus sonhos de consumo e suas frustrações. Por outro lado, Carmen
sente-se culpada por não ter aceitado seu marido, um homem simples, um professor
sem grandes ambições materiais.
Para Delibes, a ausência de amor faz com que muitos problemas de ordem
familiar e social existam. Essa é uma questão que o preocupa e que está totalmente
vinculada a um outro tema fundamental para Delibes - a educação. No romance Los
santos inocentes, temos uma passagem em que ficam claras as diferenças sociais
que dividem a sociedade entre aqueles que têm o poder e os desprovidos de
qualquer papel decisivo.
[…] el señorito Lucas les dibujó con primor un H mayúscula en el encerado
y, después de dar fuertes palmadas para recabar su atención e imponer
silencio, advirtió,
Mucho cuidado con esta letra; esta letra es un caso insólito, no tiene
precedentes, amigos; esta letra es muda,
y Paco, el Bajo, pensó para sus adentros, mira, como la Charito, que la
Charito, la Niña Chica, nunca decía esta boca es mía, que no se hablaba la
Charito, que únicamente, de vez en cuando, emitía un gemido lastimero que
conmovía la casa hasta sus cimientos, pero ante la manifestación del
señorito Lucas, Facundo, el Porquero, cruzó sus manazas sobre su
estómago prominente y dijo,
¿qué se quiere decir con eso de que es muda?, te pones a ver y tampoco
las otras hablan si nosotros no las prestamos la voz, y el señorito Lucas, el
alto, el de las entradas,
que no suena, vaya, que es como si no estuviera, no pinta nada, […]
(DELIBES, 1984, p .37)
Nesse trecho, Delibes mostra a diferença social existente no meio rural e a
falta de acesso, não só à informação, mas também aos direitos de cidadão, através
dos diálogos entre as personagens . Na linguagem empregada pelas personagens
existem traços que revelam a personalidade e características específicas de cada
uma, como seu estrato social e suas origens. Delibes busca preservar em suas
22
obras a ling uagem típica de Castilha e por isso a registra de forma a tornar possível
que as gerações futuras a conheçam. Trata-se de um desejo de que a história e as
tradições de seu povo permaneçam vivas, uma contribuição sua no sentido de
recuperar e manter a memória de sua gente.
O fato de afirmarmos que Delibes se preocupa com a memória e a tradição
não significa dizer que ele seja um homem que pregue a manutenção de
determinadas idéias ou costumes retrógrados. Muito pelo contrário, o direito à
liberdade é uma das principais preocupações do autor. Para Delibes, cada um, a
partir de sua visão de mundo, deve optar quanto à forma como quer viver. O escritor
não segue a mentalidade machista que vigorava na Espanha que insistia em
enxergar a mulher como um ser dependente de seu marido, que devia estar voltada
unicamente para o lar e os filhos. Sobre o tema, Delibes afirma em entrevista a
Alonso de los Ríos: “La discriminación, la tendencia de relegar a la mujer a la cocina,
el convertirla en un relicario de virtudes domésticas, es un error que ha esterilizado a
muchas y ha castrado, en todo caso, su iniciativa, inteligencia e imaginación”
(ALONSO DE LOS RÍOS, 1971, p.90-91).
As diferentes vocações, para Delibes, devem ter o seu lugar e ser
respeitadas. Aos filhos também deve ser garantido o direito de escolha, de forma
que possam seguir a profissão que desejarem e viver onde e como quiserem. A
personagem Daniel, de El camino, é um exemplo de como o autor aborda os temas
da educação e da liberdade. Nesse romance, a personagem principal, Daniel, é
obrigado pelo pai a sair do seu povoado e ir estudar na cidade, porém o seu maior
sonho é viver onde nasceu e levar uma vida simples, trabalhando ali mesmo, sendo
queijeiro como seu pai. Já em El príncipe destronado o irmão mais velho de Quico,
Pablo, passa por uma situação bastante difícil, quando é chegada a hora de decidir
sobre o seu futuro. Seu pai o pressiona para que vá para o Exército e devido à falta
de diálogo e de liberdade em casa, o jovem não tem coragem para contar ao pai que
gostaria de escolher outro caminho em lugar de seguir a profissão das armas. É
notória em seus romances uma forte crítica à rígida educação que os pais dão a
seus filhos. Nesse aspecto duas palavras são cruciais: liberdade e individualidade.
Delibes, em suas obras, não propõe diretamente mudanças ideológicas, mas
oferece ao leitor a oportunidade de avaliar e refletir a respeito de distintas questões,
importantes e delicadas, principalmente em função da época em que foram escritas;
por isso mesmo deixa um legado que amplia horizontes e inquieta, pondo, por
23
vezes, o seu leitor em uma situação desconfortável, ao tocar em questões que são
como feridas abertas.
1.2 DIÁLOGOS DE DELIBES
A Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial levaram o mundo a
viver em um estado de incertezas e de miséria. Esse panorama contribuiu para que
uma série de características surgisse no mundo literário e artístico em geral. Tal
como afirma Sobejano (1993), na Espanha, não demorou a surgir uma literatura
comprometida com o destino coletivo, reveladora da incerteza e da falta de
comunicação existente na época.
Entre o grupo de escritores surgidos após a guerra civil espanhola, não
podemos falar em homogeneidade, porém existem pontos comuns conseqüentes da
fase pela qual passava a Espanha:
Estos escritores, muy distintos entre sí, pueden estimarse sin embargo
como portavoces, en lo fundamental concordes, de un mismo clima histórico
de postguerra. Notas compartidas serían: la escisión entre dos épocas y dos
Españas; la angustia ante el destino incierto y ante la difícil comunicación de
los hombres; la preocupación por la guerra en su origen, transcurso y
resultados; la violencia, opresión e indecisión humanas, patentes en
personajes que protagonizan situaciones de extrema t ensión: vacío,
náusea, culpa, sufrimiento, combate, locura, necesidad
de decidir,
inminencia del morir, miedo. (SOBEJANO, 1993, p.44)
É impossível deixar de perceber qua ntas coisas há em comum entre o grupo
de escritores tidos por alguns estudiosos como pertencentes ao realismo social, ou
neo-realistas. Luis Miguel Fernández (1991), pesquisador da literatura espanhola de
pós-guerra, concorda com estudiosos como Darío Villanueva, Esteban Soler e
Martinez Cachero e associa determinados escritores da geração de pós-guerra
espanhola com as idéias advindas do neo-realismo italiano 2, ao dizer que “los
2
O termo neo-realismo refere-se habitualmente ao período artístico que se iniciou na Itália a partir de 1945 com
a derrota dos alemães. Os acontecimentos de pós-guerra, bem como os imediatamente anteriores ao fascismo e à
resistência foram objetos de análise por parte de cineastas e escritores, porém foi o cinema que ganhou força e
tornou-se o principal porta-voz do que havia acontecido e o que estava acontecendo no país. Destaca-se nesse
meio o roteirista Cesare Zavattini, quem penetra na realidade cotidiana da Itália, com sua corrente humanitária.
Toda sua temática, desde a solidão até a indiferença dos demais em relação à dor humana e à pobreza, está
guiada por sua idéia de amor ao próximo .
24
‘neorrealistas’ [...] dicho muy brevemente, serían aquéllos que, dentro de la
generación, se diferencian de los demás por la combinación de un tono más
humanista que político [...]. (FERNANDEZ, 1991, p.225).
Em Espanha o neo-realismo italiano chega na primeira metade dos anos
cinqüenta. De 15 a 21 de novembro de 1951 ocorre a primeira semana de cinema
italiano organizada em Madri pelo Instituto de Cultura, e nos dias 2 a 8 de março de
1953, ocorre a segunda. Já em 1955, entre os dias 14 e 19 de maio ocorrem as
Primeras
Conversaciones
Cinematográficas
Nacionales
de
Salamanca
que
significam a primeira resposta organizada dos intelectuais espanhóis contra o
franquismo e representa, também, a ascensão do neo-realismo italiano como ponto
de partida para uma arte realista espanhola.
Obviamente, não podemos limitar a literatura de Delibes às características do
neo-realismo, inclusive pelo fato de que antes mesmo dessas idéias difundirem-se
pela Espanha, Delibes já era um escritor renomado. Vale lembrar que em 1947 ele
já ganhava o Prêmio Nadal. Porém, é difícil não relacioná-lo às idéias dos neorealistas italianos, e conseqüentemente ao grupo de escritores espanhóis, tidos
como neo-realistas. Idéias como a importância do amor autêntico, contra a falsa
caridade dos poderosos, a busca por uma transformação social a partir de uma
posição humanitária, baseada no amor e na bondade, tratamento humano dos
problemas dos mais humildes, luta contra o egoísmo, e principalmente a temática da
solidão, a indiferença dos outros em relação ao sofrimento humano e a idéia de
amor ao próximo parecem sair diretamente das páginas dos romances de Delibes.
No entanto, mais que sofrer a influência das correntes neo-realistas, Delibes
contribuiu para enriquecê-las e afirmá-las no panorama da literatura espanhola e
mundial.
A narrativa de Delibes também guarda muito do que se convencionou chamar
“novela social”, a que tem o intuito de mostrar a imobilização da sociedade pela
injustiça e desigualdade existente, com o propósito de criticá-la (GIL CASADO,
1968). As narrativas sociais tratam de problemas fundamentais do relacionamento
dos seres humanos e expõem a forma como diferentes grupos se comportam para
que seja alvo de críticas, para que o leitor se dê conta do que ocorre a seu redor e
forme sua opinião acerca da questão apresentada. Denunciam as condições de vida
de determinada classe, tomando implícita ou explicitamente sua defesa.
Das características da narrativa social, facilmente identificáveis na obra de
25
Delibes, podemos destacar outras além da intenção crítica, que é, notadamente,
uma das mais fortes de sua obra. Destacamos, ainda, a apresentação da realidade
de forma concentrada, a narração da rotina diária e a narração de acontecimentos
corriqueiros. Do mundo externo muito pouca coisa é esclarecida, somente algumas
informações que sejam indispensáveis para o entendimento do contexto da obra:
La realidad así descrita tiene carácter simbólico y sus aspectos concretos
sirven para interpretar los generales. Esta concepción clásica del arte hace
posible que el escritor pueda novelar la existencia de sus personajes
durante un período muy limitado de tiempo, un verano, una semana, uno o
dos días, una noche, pues lo cotidiano deja ver a través, como cristal de
aumento, el significado total de sus vidas. (GIL CASADO, 1968, p.25)
Outro aspecto a ser destacado: a narração apresenta uma aparente
simplicidade, deixando de lado expressões rebuscadas, formas prolixas, excessos
de descrições e o diálogo se apresenta breve, porém com grande significado e
importância, pois através deles serão expostas situações que se quer criticar. Muitos
escritores, com é o caso de Delibes, procuram refletir a forma popular da ling uagem
oral, incorporando palavras e expressões próprias da classe a que pertencem seus
personagens.
As primeiras manifestações da “novela social” aparecem entre os anos de
1923 a 1930. Essa tendência vai ganhando força e importância até que chega a
guerra civil e interrompe sua continuidade. Porém, esse tipo de narrativa volta a
fortalecer-se graças a mudanças ocorridas na década de 1950, quando Espanha
começa a sair de seu isolamento e certas tendências artísticas externas passam a
influenciar os intelectuais espanhóis já que a censura começa, lentamente, a
afrouxar sua vigilância e algumas “liberdades”, impensáveis na década anterior
começam a ser possíveis.
A geração conhecida como “los niños de la guerra” está integrada por
escritores espanhóis pertencentes à segunda metade do século XX que, por terem
vivenciado a guerra civil espanhola quando crianças, ganharam esse título. A
influência da guerra em suas obras é sem dúvida alguma um ponto marcante.
Podemos encontrar questões como a violência, a fome, a falta de amor ao próximo,
entre outras que dialogam com a temática de Delibes, que pertence a uma geração
anterior. Não se trata, neste caso, de escritores que escrevem durante a ditadura do
26
pós-guerra, e sim de pessoas que, tendo vivido a guerra e os primeiros duros anos
da ditadura, lançam o olhar sobre o passado e constroem uma interessante literatura
que recupera o clima de tensão e escassez daquele período. Trata-se de uma
geração profícua que conta com uma grande e rica produção de romances e contos
que tenta fazer com que a guerra, o que se perdeu e o que se sofreu em função
desse confronto não sejam esquecidos, em uma espécie de prevenção contra
qualquer possibilidade de algo semelhante ocorrer novamente.
Para o próprio Miguel Delibes, é difícil determinar a qual grupo sua literatura
pertence. A chamada literatura de pós-guerra não forma um único grupo homogêneo
de escritores, apesar de haver semelhanças entre os escritores que surgem após o
término da guerra civil espanhola.
Delibes, em Conversaciones con Miguel Delibes (Alonso de los Rios, 1971)
subdivide em quatro os diferentes grupos de escritores que compõem esta fase da
literatura espanhola. O primeiro, ele denomina de “autodidatas”, e explica que essa
denominação se deve ao fato de que, até o início da década de 1950, Espanha
estava muito fechada, de forma que sua literatura não sofria influência de escritores
estrangeiros. Neste grupo estariam nomes como José Camilo Cela, Ignacio Agustí e
Carmen Laforet.
Um segundo grupo de narradores foi por ele chamado de “los universitarios”,
aparecem por volta dos anos 50, são todos universitários e sofreram maior influência
estrangeira. Demonstram objetividade e preocupação pela forma e pelo estilo. Neste
grupo estão Ignácio Aldecoa, Fernández Santos e Ana María Matute, entre outros.
Há ainda os “social-realistas” que formam o terceiro grupo de escritores.
Surgem nos anos sessenta, em um período de maior tolerância da censura e
buscam dizer em seus livros o que a imprensa não diz. Há uma grande preocupação
moral e sociológica de denunciar os problemas do país. Já no início dos anos
setenta, surge o que Delibes chama de “vanguardia”, um grupo que visa inovar a
narrativa espanhola . Segundo Delibes, sua literatura tem características de todos os
grupos, do primeiro ao último, como se percebe pelas declarações abaixo :
- Pues si a mí me preguntas: ‘¿En cuál de los cuatro grupos señalados
estás tú?’, tengo que decirte que, por la edad y por la forma intuitiva de mis
primeros libros, en el primero; por la preocupación formal y la tendencia
objetiva, a partir de El Camino, en el segundo, y por la preocupación social,
también muy acusada, en el tercero. Ahora bien, si me apuras te diré que
participo también del cuarto en cuanto que la inquietud estilística y
27
constructiva no diré que haya informado Parábola del náufrago, pero sí
existen en esta obra una mezcla de tiempos, unos cambios narrativos, una
utilización literaria de la onomatopeya…que, a mi modo de hacer, pueden
parecer revolucionarios.”(ALONSO DE LOS RÍOS, 1971, p.130)
Ao longo de sua trajetória, Delibes vai apresentando diferentes formas de
narrar e dialoga com as tendências de cada momento. A inovação e o propósito
ético de fomentar a reflexão a fim de contribuir no preparo da sociedade para futuras
transformações são os dois pilares de sua obra que o transformaram em um dos
nomes de maior expressão da literatura espanhola do pós-guerra.
Delibes, juntamente com outros escritores de sua época, brinda seu leitor com
um grande presente: sua interpretação da forma como se vivia na Espanha na
segunda metade do século XX, o que resulta na reconstrução da história de seu
país, como salienta o historiador Raymond Carr (1993), quando afirma que a história
autêntica está em como vive o povo e não em números, por isso Delibes, além de
fazer boa literatura mostra a esquizofrenia moral e a conduta imitativa e esnobe da
classe média do franquismo.
28
2. CONTEXTO HISTÓRICO
Tratar dos aspectos históricos e sociais relacionados à época em que Miguel
Delibes escreveu El príncipe destronado é fundamental para que se possa
compreender melhor essa obra e toda a riqueza de informações que podemos obter
a partir de sua leitura. Compreendendo o que o povo espanhol viveu e quais foram
as conseqüências dessas experiências, entenderemos por que essa família que o
autor tão bem retrata na obra vive do modo que vive e por que suas personagens
são como são.
Antes de destacar os principais momentos que antecederam a guerra civil
espanhola e os motivos que a geraram, é necessário deixar claro que como esta
dissertação não tem como principal objetivo a reconstrução da história recente da
Espanha, nem o estudo minucioso do período de pós guerra civil espanhola,
escolhemos algumas obras de referência para que pudéssemos, de forma breve,
contextualizar a época da obra que estamos analisando. Desse modo, apoiamo-nos,
principalmente, nos historiadores J. C. Gay Armenteros e Juan Eslava Galán, o que
não significa que excluímos a possibilidade de existirem outras versões ou
interpretações dos fatos aqui comentados.
2.1 A CAMINHO DA GUERRA
Na Espanha de 1930, o General Miguel Primo de Rivera 3, que comandava o
país ditatorialmente, pediu sua demissão ao rei Alfonso XIII 4, por encontrar-se sem
apoio em seu governo. A figura do rei, então, encontrava-se totalmente vinculada ao
fracasso da ditadura militar em seu país e após uma forte campanha nos anos de
1930 e 1931, a queda da monarquia de Alfonso XIII, que começara em 1902,
finalmente ocorreu através de eleições, em abril de 1931, cujos resultados nas
principais cidades espanholas foram contrários aos partidos monárquicos. A
mudança do regime monárquico para o republicano aconteceu de forma pacífica.
3
Miguel Primo de Rivera foi presidente da Espanha entre os anos de 1923 e 1930, quando pediu demissão do
governo, por sentir-se desautorizado pelos altos comandos militares e pelo próprio rei Alfonso XIII. Autoexilou-se em Paris e morreu dois meses mais tarde, a 16 de março de 1930.
4
Alfonso XIII de Borbón nasceu em 17 de maio de 1886 e foi o filho póstumo de Alfonso XII e María Cristina
de Habsburgo-Lorena. Assumiu as funções constitucionais de Chefe de Estado a partir de 1902, quando cumpriu
16 anos e foi declarado maior de idade, reinando até o ano de 1931. Morreu em Roma em 1941.
29
De 1931 a 1933, houve o biênico esquerdista, cuja figura central foi o chefe
de governo Manuel Aza ña. Considerados como os anos mais frutíferos da II
República, neles houve avanços na área de ensino e entrou em vigor o Estatuto de
Autonomia para Catalunha. Porém a Coalizão de Republicanos de Esquerda e
Socialistas, com Azaña à frente , com suas idéias reformistas radicais fomentou
resistências e críticas de seus opositores e, por outro lado, a frustração de
socialistas que consideraram insuficientes as reformas realizadas. Devido à
formação de uma oposição política forte, nas eleições de novembro de 1933 a direita
sai vencedora.
Durante os anos de 1933 a 1935, a direita não conseguiu implantar mudanças
significativas na República e acabou desacreditada por sucessivos casos de
corrupção. A partir de então, a descrença no regime republicano começou a ser
maior e Portela Valladares, que estava no governo após a renúncia de Alcalá
Zamora, acabou abandonando o poder devido às agitações daquele momento e
manifestações da população.
Azaña assumiu o governo, porém em 07 de abril de 1936 ele foi afastado
devido a acusações de ter agido à margem da Constituição. No entanto, um mês
depois deste episódio, Manuel Azaña, da Frente Popular, foi eleito Presidente da
República, com uma vitória apertada nas urnas. Casares Quiroga tornou-se o chefe
de governo, um político considerado de menor expressão e que não conseguiu
organizar o país.
Diante de toda essa situação o general Mola encabeçou a conspiração contra
o governo e contou com o apoio de outros generais como Francisco Franco,
conforme o relato de Gay Armenteros:
Mola [...] contó con el apoyo de los tradicionalistas para sublevarse, pero no
estaba de acuerdo con las tesis políticas de este grupo conservador. [...]
Las dudas del general Franco en sumarse a la conspiración, pues lo hizo
tardíamente, son muestras de la confusión y desconfianza de los fines
últimos de la misma. Lo más probable es que Mola y sus seguidores quieran
realizar un pronunciamiento, que no significara necesariamente el final de la
República, sino de su manifestación revolucionaria. Tal vez esto explique
que generales considerados republicanos, como Cabanellas y Queipo de
Llano, se sumasen a la sublevación, y que los primeros manifiestos de los
sublevados acabasen con un ¡Viva la República! (GAY ARMENTEROS,
1986, p.71)
30
Casares Quiroga acabou deixando o governo . O general Franco comandou as
tropas na zona espanhola de Marrocos, onde os primeiros registros do golpe
aconteceram no dia 17 de julho de 1936. Em 18 de julho, houve as primeiras
agitações na península. O Exército estava dividido e isso dificultou a tomada das
cidades por parte dos militares. Na verdade, a sociedade espanhola como um todo
encontrava -se dividida em dois grupos intransigentes. Cada um considerava o outro
como uma ameaça e por isso queriam catequizar uns aos outros. De um lado os
republicanos, com suas idéias liberais, de outro, os nacionalistas, direitistas e
conservadores.
A Guerra Civil Espanhola eclodiu no verão de 1936, devido a ideais políticos e
ideológicos extremamente heterogêneos existentes no país. Os Republicanos, com
idéias liberais, como escolas laicas e mistas, o reconhecimento da autonomia das
Províncias e a liberação do uso de suas línguas foram considerados anti-clericais e
comunistas pela direita composta pelos nacionalistas e membros da direita
tradicional e católica.
Assim que foi iniciada a guerra civil, o Governo republicano solicitou ajuda à
França e os militares nacionalistas à Alemanha e Itália. Franco contou com aviões,
mais de mil carros de combate , canhões, submarinos, soldados e pessoal técnico,
principalmente no campo da aviação e material bélico. A ajuda da França e da
Inglaterra aos Republicanos foi mais discreta, pois esses dois países acabaram
respeitando o que havia sido estabelecido por um comitê de países, entre eles
Alemanha e Itália, que propôs a não intervenção internacional na guerra espanhola,
para que se evitasse uma possível guerra mundial.
A Guerra Civil Espanhola, que perdurou durantes os anos de 1936 a 1939, é
considerada um dos maiores conflitos do século XX.
Nela foram utilizados
armamentos e táticas da Primeira Grande Guerra e introduzidos instrumentos e
métodos que seriam empregados na Segunda Guerra Mundial. Contou também
com a presença de voluntários internacionais, como os alemães, italianos e
portugueses que apoiavam os nacionalistas, e russos, franceses, tchecoslovacos,
finlandeses, mexicanos, entre outros, que apoiavam os Republicanos, alé m de
Brigadas Internacionais. Serviu como um formidável laboratório de testes,
principalmente no campo da aviação e uma das principais modernidades da guerra
da Espanha reside no ressurgimento das guerras urbanas. Ou seja, nessa guerra
os combates ocorriam também nas cidades e não somente no campo.
Os
31
combatentes utilizavam granadas, facas e metralhadores e os combates em meio
urbano aconteceram em Teruel, Barcelona, Toledo e, principalmente em Madri.
Em 1939 termina a guerra, com a vitória dos nacionalistas e com mais de
meio milhão de mortos. A partir daí, inicia-se a ditadura de Franco, que governaria a
Espanha por quase q uatro décadas.
2.2 O GOVERNO DE FRANCO
Francisco Franco, “el Generalísimo”, como ele mesmo se auto-titulou e ficou
conhecido, nasceu em 4 de dezembro de 1892, numa família de militares. Cursou a
Academia de Infantaria de Toledo e de 1912 a 1929 serviu no Marrocos. Com a
vitória da direita nas eleições de 1933, voltou à Espanha. No ano seguinte, foi
indicado para a chefia do Estado-Maior do Exército, posto do qual se afastou após a
vitória Republicana nas eleições de fevereiro de 1936. Em julho do mesmo ano
juntou-se à rebelião comandada pelo general Sanjurjo no Marrocos e, com a sua
morte, assumiu a chefia do movimento. A vitória dos nacionalistas depois de três
anos de sangrenta Guerra Civil, levou o General Franco ao poder. Assim iniciou-se
um longo período de um governo ditatorial que tinha como propósito a
"Reconstrução Nacional" nos campos da política, economia e cultura.
Casado com Carmen Pólo, Franco era conhecido por ser um homem
ambicioso, cuja verdadeira paixão era comandar e sua principal qualidade era a
obstinação que o fez superar possíveis debilidades.
[...] hay una imagen del Franquiño adolescente, alegre, parlanchín y bailón
completamente distinta a la del Franco adulto, soso, serio y distante como
un jefe apache, aquel hombre que dejaba helados a sus interlocutores por
su frialdad y falta de cordialidad, pero luego iba de pesca con su dentista y
amigo, y cuando estaban a solas, le contaba chistes verdes. Fue un hombre
voluntarioso y ambicioso. Sus compañeros de academia lo superaban en
prestancia y estatura, Franquito los superó en estudio y aplicación […]
(ESLAVA GALÁN, 2004, p.408)
Durante os primeiros anos de seu governo, o país estava arrasado e
necessitava de alimentos e remédios. Essa fase de extrema escassez perdurou por
um longo período. Com o início da 2ª Guerra Mundial nenhum país pôde ajudar à
32
Espanha que enfrentava fome e doenças como a tuberculose. Para que seu governo
se firmasse e para evitar qualquer tipo de oposição, o Regime contou com o apoio
da Igreja Católica. A partir de 1945 a Igreja vinculou-se to talmente ao governo,
dando início ao chamado nacional-catolicismo. O Exército, a Igreja e a Falange
(então, o único partido da Espanha, fundado em 1933, por José Antonio Primo de
Rivera) formavam os três pilares sobre os quais o poder de Franco se constituiu.
Com o aumento da fome e da escassez de praticamente tudo, muitos
espanhóis acabaram fugindo do campo para as cidades em busca de uma melhor
forma de vida. Porém, a situação das cidades não era diferente nesse aspecto e
como faltava quase tudo a única opção que a população tinha era buscar os
produtos no mercado negro. Segundo o relato de Eslava Galán (2004), a fome e o
mercado negro foram o acompanhamento de uma década de miséria e sofrimento,
epidemias, sarna, piolhos. Um grande número de indigentes fazia filas diante dos
quartéis em busca de sobras de alimentos. Enfim, era a época do racionamento.
No entanto, não era só a fome que afetava os espanhóis. Havia também a
censura, que lhes tirava o direito à informação e à cultura. O afã moralizador do
Regime era tão grande que quase tudo era proibido e vigiado. Nos cinemas, havia a
fiscalização pelo "lanterninha" e caso um casal fosse pego cometendo "atos
imorais", era multado e ganhava uma nota no jornal, onde teriam seus nomes
expostos por terem sido flagrados em tal situação.
O controle era tanto que
prostitutas e homossexuais eram levados a campos de concentração.
A moral eclesiástica marcou uma moral sexual extrema. As mulheres não
podiam ir à Igreja no verão sem meia ou com mangas curtas. Os namorados tinham
que passear sempre com um acompanhante e os bailes "agarrados" foram
proibidos. Em algumas cidades, existia até uma divisão nas praias.
As praias
católicas possuíam divisão entre os sexos e havia guardas que multavam e proibiam
roupas de banho sem saia ou decotadas.
Diante dessa difícil realidade seria inevitável que o governo acabasse tendo
opositores, e para combatê-los, havia a censura. Este instrumento de repressão
visava impedir qualquer manifestação social, política ou cultural contrária. Já os
serviços de imprensa e propaganda do Regime Franquista eram utilizados para
inculcar valores e doutrinar a sociedade, impondo-lhe modos de expressão, gostos,
valores e condutas sociais. Para tanto, foram considerados ilícitos a produção, o
comércio e a circulação de livros, jornais e demais materiais impressos tidos como
33
pornográficos, socialistas e comunistas. Aqueles que não se enquadrava m nessas
regras eram considerados inimigos do governo e por isso muitos foram presos,
exilados ou executados.
No ano de 1941 foi criada a Delegação Nacional de Imprensa que exercia um
rigoroso controle sobre a imprensa nacional. Tanto no aspecto político, como no
econômico, cultural e esportivo o referido órgão intervinha estabelecendo critérios,
impondo os temas a serem comentados, matérias que deveriam ganhar destaque e
até mesmo a disposição dessas matérias nas páginas dos jornais. Os diretores de
jornais nesta época tinham autonomia praticamente nula e eram relegados a uma
condição servil. O Estado utilizou a imprensa para expor de forma maquiada as
situações desfa voráveis que o país enfrentava e foi veículo de propaganda do
governo. A Delegação Nacional de Imprensa ficou conhecida na época como o
quarto poder. Miguel Delibes afirma em sua obra intitulada La Censura de prensa de
los años 40 que a imprensa converteu-se no mais eficaz instrumento de propaganda
do novo Estado, devido a esse controle inflexível existente nesse período.
Outro órgão criado foi a Delegação Nacional de Propaganda, que tinha a seu
cargo a vigilância e controle de livros, teatro, cinema e espetáculos em geral, além
da produção musical.
Essa delegação tinha em mãos meios técnicos e
orçamentários para realizar um trabalho de levar uma conveniente ideologia política
à população, bem como tinha como atribuição a aniquilação de qualquer produto
intelectual ou artístico que pudesse oferecer risco à sociedade espanhola:
Un nutrido equipo de intelectuales de talla […] revisó toda la producción
libresca española anterior a 1936 – autores clásicos incluidos – en los casos
de reedición, adoptó a los valores que debían imperar en la nueva sociedad
la avalancha de obras traducidas y ejerció un control previo a la importación
de cualquier libro impreso en el extranjero. Además […] expurgó bibliotecas,
levantó listados de libros prohibidos o autorizados, destruyó archivos [...]
convirtió en pasta de pastel cuantos libros le fue dado hallar escritos en
otros idiomas peninsulares – catalán, gallego o vasco – e impuso como
único idioma el castellano. (ABELLÁN, 1995, p. 64)
O objetivo do governo franquista de reconstrução da Espanha era a busca da
recuperação de valores e condutas que, segundo o Regime, representavam a
verdadeira Espanha.
Para popularizar-se, o regime passou a ser associado ao
conceito de "españolidad", o qual, segundo os nacionalistas, havia sido traído pelos
34
republicanos, com suas idéias liberais e ateístas.
Certo de sua missão redentora, Franco não mediu esforços para alcançar
seus objetivos, porém além da Igreja e da censura havia outra peça-chave para o
sucesso de seu propósito: a mulher. O papel da mulher na manutenção dos "bons
costumes" era fundamental, pois era ela que deveria manter a união de sua família e
educar seus filhos de acordo com a moral cristã. Isso significa que dentro de uma
sociedade intensamente machista e repressora cabia à mulher o papel de
mantenedora dos laços familiares. Independente de qualquer coisa, a esposa
deveria manter seu casamento, e atender às vontades de seu marido, em nome do
bem-estar do seu lar e, acima de tudo, seguir a Igreja.
O governo pregava que tudo o que era relativo ao passado recente da
Espanha era negativo e ruim. O bom, o correto e desejável era a volta de valores
presentes em um passado mais remoto.
Sendo assim, a figura da mulher
emancipada e moderna era atacada. A finalidade era desacreditar a emancipação
feminina. O ideal de mulher que a propaganda da época impôs era o da mulher
tradicional, recatada, católica, mãe, submissa e com espírito de sacrifício, pois elas
seriam o espelho das futuras gerações.
Com o objetivo de redesenhar o paradigma da mulher espanhola foi criada a
"Sección Femenina de la Falange", por Pilar Primo de Rivera, que oferecia à mulher
uma educação de acordo com seu futuro papel social, secundário e dependente do
homem, voltada para as atividades domésticas. Era preciso transmitir às mulheres o
conhecimento necessário para o cumprimento de sua missão. Para tal, havia a
Escola Municipal do Lar, núcleo principal da Seção Feminina da Falange. Nesta
escola as mulheres tinham aula de religião, cozinha, formação familiar e social, corte
e costura, canto e economia doméstica. O treinamento físico, que também fazia
parte do grupo de disciplinas da escola, tinha como objetivo central tornar a mulher
saudável para que exercesse o seu principal papel que era ser mãe. O poder desse
órgão era exercido através do Serviço Social, requisito obrigatório para obter
trabalho (os que eram permitidos às mulheres), passaporte, carteira de habilitação,
bem como para pertencer a centros ou associações artísticas, esportivas e culturais.
A mulher espanhola deveria ter uma conduta irrepreensível e seu destino seria,
inevitavelmente , o casamento ou a vida religiosa.
Somente após o ano de 1948, com a Guerra Fria, Franco começou a ganhar
simpatia no mundo por sua posição anticomunista e a partir do ano de 1952 o
35
regime teve respaldo internacional com acordos feitos com os Estados Unidos. No
final dos anos de 1950 e na década de 1960, a economia voltou a crescer. Contanos Eslava Galán (2004) que por volta de 1957 os espanhóis que até então tinham
acreditado que a essência da vida consistia em “apertar o cinto”, contemplaram com
surpresa o aumento do consumo e crescimento econômico com a chegada de turista
e imigrantes. Em apenas dez anos, entre 1960 e 1970, a renda per capita do país
havia crescido 82%.
O governo de Franco estendeu-se durante os primeiros anos da década de
1970, acompanhado de suaves aberturas no campo político e econômico. Seu
governo terminou com sua morte, no dia 20 de novembro de 1975 e seu corpo foi
sepultado no Valle de los Caídos, entre manifestações contrastantes de tristeza e de
alegria.
36
3. EL PRÍNCIPE DESTRONADO, O MICROCOSMO DE ESPANHA
Miguel Delibes é um escritor interessado pelo ser humano e retrata em suas
obras a sociedade que tão bem conhece.
Vários são os tipos humanos que
podemos encontrar em seus livros, pertencentes às mais variadas camadas da
sociedade. Na introdução ao primeiro volume de suas Obras Completas, o diretor
da edição, Ramón García Rodríguez recorda e reproduz a afirmação de Miguel
Delibes no livro España 1936-1950: muerte y resurrección de la novela (2004), em
que Delibes assim se expressa:
Considero la erección de tipos vivos como un fundamental deber del
novelista […]. Poner en pie unos personajes de carne y hueso e infundirles
aliento a lo largo de doscientas páginas es una de las operaciones más
delicadas, de cuantas el novelista realiza. (In: GARCÍA RODRÍGUEZ, 2007,
p.23)
Recontar a história de seu país, retratar e denunciar as mazelas de seu povo
era o que Miguel Delibes buscava. Obviamente, nem tudo poderia ser dito de
maneira direta, pois era preciso fugir da censura em uma época em que aquilo que
aparecia nos jornais era imposto e controlado. Porém, apesar de toda a dificuldade,
em geral, a partir da leitura de muitas das obras de Delibes podemos conhecer
bastante a sociedade espanhola da ditadura franquista.
As dificuldades de se escrever em um período tão fechado, talvez tenham
contribuído para que Delibes desenvolvesse sua criatividade e a utilizasse em prol
da literatura. Em seus livros estão presentes, apesar da censura, temas delicados e
cruciais para sua época e sociedade. Mas para percebê-los, temos que ser leitores
atentos. E falando em criatividade, cada romance seu apresenta inovações quanto à
forma. No romance Cinco horas con Mario (1966), por exemplo, o autor lança mão
de uma narrativa emoldurada. No início do relato, aparece a nota de falecimento de
Mário em um jornal. É o tema a partir do qual começa a fábula. A voz de Carmen,
viúva de Mario, expõe ao marido morto tudo o que sentiu ao longo de sua vida
matrimonial, suas frustrações, seus desejos e suas angústias. Os capítulos sempre
partem de citações bíblicas sublinhadas por Mario em sua Bíblia e que são
encontradas e interpretadas a sua maneira por Carmen.
37
Já Cartas de amor de un sexagenário voluptuoso (1983) é um romance
epistolar. O relato vai sendo narrado através de cartas escritas pela personagem
Eugenio à sua amada Rocío. Cada uma das cartas configura-se como um capítulo
da obra. Esse tipo de narrativa trata-se de um verdadeiro diálogo, em que se escuta
apenas uma voz, já que só temos conhecimento das cartas escritas por uma das
partes que se correspondem, com bem nos explica Oscar Tacca:
La otra forma de ser monólogo para ser verdadero diálogo: pero diálogo del
que sólo escuchamos una voz. Como en el caso de una conversación
telefónica, en que sólo oímos a uno de los interlocutores, el lector aventura,
recompone mentalmente los estados de ánimo, las réplicas del ausente: los
silencios se pueblan de conjeturas. (TACCA, 1989, p. 41)
Outra estrutura narrativa que nos chama a atenção por sua originalidade é a
de La guerra de nuestros antepasados (1975), em que, entre a moldura constituída
pelo documento em que o médico de uma prisão informa sobre o prisioneiro, seu
estado de saúde e sua morte, a narrativa se desenvolve em forma de um diálogo
gravado ao longo de sete noites entre o médico e o prisioneiro. Como se vê, são
várias as formas narrativas de que Miguel Delibes se vale para seu exercício de
narrar.
Já o romance El príncipe destronado está estruturado em doze capítulos.
Cada um deles se refere a uma hora do dia. A trama inicia-se às dez da manhã e
termina às nove da noite de 03 de dezembro de 1963, uma terça-feira. Em cada
capítulo , ou hora, há uma sucessão de situações vividas pelo menino Quico e sua
família. A limitação temporal, além de ser uma característica importante da narrativa
da segunda metade do século XX, pode ser compreendida pela ausência de
recordações em um personagem tão jovem, ainda sem noção do tempo que passa e
que vive o seu presente, sem muitas referências do passado.
Outra redução existente é a de espaço. A ação se desenvolve quase que
exclusivamente no interior da casa, no espaço doméstico, salvo em uma ocasião em
que Quico e a empregada Vito saem para comprar leite e em outra quando o menino
e sua mãe vão ao médico, por causa de um pequeno objeto que Quico,
supostamente, havia engolido.
O fato de o autor ter escolhido fazer esse recorte na vida da família de Quico
é característico de seu estilo. Existe uma tendência a não desenvolver por completo
38
a história de suas personagens , ou seja, Delibes não oferece uma ampla
panorâmica de suas vidas. Em geral não há referências a quando e onde nasceram,
nem exposição de dados importantes do decorrer de suas existências antes de se
chegar ao fato ou momento central da narrativa e ao desfecho da história. Outros
romances também apresentam essa característica, como nos explica Francisco
Javier Higuero, em Indagación intertextual de 377 A, madera de héroe:
En 377 A, madera de héroe, el autor emplea una estructura narrativa
selectiva que ya aparecía, aunque con caracteres más concentrados, en El
príncipe destronado, Las guerras de nuestros antepasados y Cinco Horas
con Mario, en donde se reduce intensamente la contextualización interna
del relato, sobre todo el espacio, el tiempo y la interacción dinámica de los
personajes. Por estructura narrativa selectiva se entiende, tal como ha sido
explicado por Esther Bartolomé Pons en Miguel Delibes en su guerra
constante, la elección de sucesos y silencios que convierte a lo relatado en
paradigma de un tiempo más extenso. (HIGUERO, 1993, p.139)
Isso quer dizer que podemos considerar que os fatos narrados nesse dia da
vida de Quico e de sua família dão a dimensão das circunstâncias em que este
grupo de pessoas está inserido. Este dia é a representação de suas vidas, não um
dia qualquer. Outro ponto a ser destacado na obra em tela é que ela se constrói com
os elementos do cotidiano, pela narração fatos corriqueiros, típicos da rotina de uma
família. Aliás, o interesse literário de Delibes pelo que é cotidiano é uma
característica marcante de sua narrativa.
Delibes parece haber ido más lejos que ningún novelista español de su
época en la convicción de que todas las vidas, incluso las más anodinas,
son susceptibles de interés literario. Esto se vuelve a manifestar en la
elección de varios aspectos que atañen a la técnica narrativa. No sólo los
personajes son humildes y lo que les sucede es trivial. Es que, además, el
relato de sus vidas está hecho de modo que se evite lo sobresaliente y se
insista en lo cotidiano. (REY, 1993, p.105)
Em El príncipe destronado, o relato é feito em terceira pessoa por um
narrador que está “fora da história”, ou seja, o narrador não “penetra na consciência
dos personagens” (Tacca, 1989), e sim vai contando a partir de uma percepção de
quem estaria apenas observando os acontecimentos dentro daquela casa. O leitor
não tem, portanto, grandes explicações dos aspectos psicológicos do personagem,
39
nem da forma de ser e de pensar de seus personagens. Esse tipo de narrativa exige
um trabalho de interpretação e de busca de informação a partir daquilo que se lê. É
um exercício individual do leitor, um trabalho subjetivo de construção da imagem de
cada personagem e de interpretação de cada fato narrado:
El narrador no decreta, sino que muestra el mundo como lo ven sus héroes.
Distribuye, pues, un caudal de información equivalente al de éstos.
Renuncia a lo que James llamaba la ‘majestad encubierta de la
irresponsable cualidad de autor. Esta forma exige, naturalmente, mayor
participación del lector, que debe estar alerta: lo que se dice no es lo que
es, según Dios o un veedor imparcial, sino lo que los personajes creen que
es. (TACCA, 1989, p. 77-78)
A obra analisada nesta dissertação trata das relações e conflitos existentes na
casa de Quico a partir da perspectiva desse menino que perde a posição de caçula
da família para sua irmã Cristina e, por isso, tenta conseguir a atenção de todos. A
história que, aparentemente, é apenas um dia na vida de uma criança de três anos,
deixa claro o pensamento delibiano com relação àqueles dois bandos, a Espanha
dividida pela guerra civil, entre “buenos” e “malos”, segundo as circunstâncias.
A obra expõe o cotidiano de uma família composta por pessoas comuns que
representam uma ampla parcela da sociedade burguesa existente nas grandes
cidades da Espanha dos anos 60. Através desse núcleo familiar e doméstico, nos
encontramos com os valores morais e a conduta da classe média alta naquele
período. Desse modo, Delibes confirma o comentário que fez a Alonso de los Rios:
“Siempre que ha aflorado la guerra civil en alguno de mis libros he tratado de
presentarlo como la típica guerra fratricida: el drama de Caín y Abel” (Alonso de los
Rios, 1971, p.51).
É oportuno recordar que a criança é uma das constantes literárias de Miguel
Delibes, como personagem central ou não. Assim a encontramos em El camino
(1950), Mi idolatrado hijo Sisí (1953), Las ratas (1962), El príncipe destronado
(1975), por exemplo. Sobre a presença freqüente de crianças em sua obra, Delibes
já afirmou mais de uma vez que a criança é um ser que encerra toda a graça do
mundo e tem abertas todas as possibilidades, quer dizer, pode ser tudo. Enquanto o
homem é uma criança que perdeu a graça e reduziu suas possibilidades apenas ao
ofício que desempenha. E esclarece: “para mí, el niño, precisamente por la carga de
misterio que encierra, tiene mayor interés humano que el adulto, incluso para ser el
40
protagonista de una novela o de una película” (GARCÍA RODRÍGUEZ, 2007, p. 34).
3.1 A CENA FAMILIAR E SEUS ATORES
A trama do romance El príncipe destronado quase que totalmente se
desenvolve dentro do ambiente familiar, em uma casa de classe média alta, onde
podemos observar alguns luxos possíveis após Espanha ter conseguido melhorar
sua economia, a partir da década de 1950. Talheres e objetos finos como colheres
de prata e cigarreiras de ouro, eletrodomésticos modernos para a época, bem como
carros e um número razoáveis de empregados são alguns símbolos de riqueza e
prosperidade apresentados na obra.
Na casa dessa família encontraremos crianças, homens e mulheres de
diferentes classes sociais e níveis culturais. Personagens muitos diferentes entre si,
dentre os quais destacamos os seguintes:
1- Quico, o criativo protagonista infantil que está para completar quatro anos.
2- Carmen, a mãe de Quico, que a cada instante o corrige, devido a suas
travessuras. Vive para a casa e para a família, mas sente-se em conflito por não
aceitar a opressão e a intolerância de seu esposo.
3- O pai de Quico, que apesar de aparecer uma única vez na história, tem
uma marcante presença, com sua intolerância, sua maneira opressora de ser e
suas histórias sobre a guerra.
4- Juan, o irmão imediatamente mais velho que Quico. O companheiro mais
constante de Quico em suas brincadeiras, cujas principais características são o
hábito de ler histórias em quadrinhos e a atração pelas armas;
5- Pablo, Merche e Marcos, os filhos mais velhos do casal;
6- Cristina, a caçula e a causa dos ciúmes de Quico, pois é a nova
“princesa” da casa.
7- Domi, uma senhora que é empregada da casa e que se encarrega de
cuidar dos três filhos pequenos do casal (Juan, Quico e Cristina);
41
8- Vítora, também empregada da família, que cuida da casa e auxilia no
cuidado com as crianças;
Uma das características mais marcantes dessa família é a ausência quase
total de diálogo e de manifestações de afeto. A mãe está sempre atarefada e os
filhos menores estão sempre acompanhados pelas empregadas da casa.
Praticamente não existe relação entre pais e filhos, salvo as que se expressam pela
censura e pela ameaça. O pai, quando aparece, preocupa-se mais em falar da
guerra do que em dar atenção à sua família.
A mãe de Quico tem, no início da narrativa, um papel totalmente esperado e
desejado para uma mulher de sua época, a “rainha do lar”: é a mãe, a esposa, a
dona de casa, aquela que zela para manter, segundo as normas vigentes, uma
família modelar, ao menos “aparentemente” bem formada. No entanto, durante a
narrativa, ela vai, aos poucos, deixando de ser uma “bata de flores rojas y verdes”,
ou seja, uma mulher que não tem uma personalidade própria, que apenas roda pela
casa arrumando e cuidando, quase como um utensílio doméstico a mais no
cotidiano daquela família, para se mostrar como uma pessoa que possui espírito
crítico e não está de acordo com as regras que ditavam as formas de viver em
sociedade, nem com as atitudes machistas e autoritárias de seu marido.
No desenvolvimento da narrativa, vamos percebendo que Carmen é na
realidade uma “transgressora”, pois não segue uma de principais regras que deveria
ser cumprida por uma mulher em sua época - a de submeter-se ao seu esposo.
Carmen deixa entrever que tem idéias liberais, totalmente discordantes da
mentalidade de seu marido. Mesmo vivendo com um homem extremante
conservador e em uma sociedade fechada a mudanças, ela deixa transparecer, em
uma conversa com sua cunhada cha mada Cuqui, a insatisfação com a situação em
que se encontra e chega a assumir que seu casamento já não existe.
Lo nuestro hace años que ha terminado – señaló a Quico con la barbilla –
Pero están éstos y hay que fingir. Mi vida es una comedia.
La tía Cuqui se encampanó:
_ Eso no – dijo. El matrimonio se hace y se deshace entre dos. Tuvisteis
unas relaciones lo suficientemente prolongadas para conoceros. El
matrimonio no se rompe si uno no quiere. Y puesta a hacer comedia, ¿por
qué no lo tomas más arriba y finges con tu marido? (DELIBES, 1988, p.147148)
42
Como o mais importante para aquela sociedade não era tanto ser, mas
parecer, Carmen revela sua infelicidade conjugal, porém, em nome do bem comum
de sua família, segue com o seu casamento. A atitude de Carmen vai ao encontro
da mentalidade vigente na sociedade espanhola do início da segunda metade do
século XX, em que o principal papel da mulher era a de manter o seu casamento e
educar seus filhos. O conselho de Cuqui também indica que as aparências tinham
enorme relevância naquela sociedade e, então, para mantê-las bastava fingir. E
assim se resguardava a imagem da família, como uma instituição intocável.
Había que guardar las apariencias para no dar el traste con la estabilidad de
las instituciones intocables. Si el marido engañaba a la mujer, con tal de que
lo hiciera sin demasiado escándalo y de tapadillo, lo mejor era hacer como
si nada, que no se enterara nadie, para que los hijos pudieran seguir viendo
a sus padres aliados en lo esencial, en la tarea de sacarlos adelante a ellos,
de enseñarles a amar la España nueva, de prohibirles cosas. (MARTÍN
GAITE, 1987, p.21)
Carmen Martín Gaite nos mostra neste fragmento que a mulher deveria
relevar inclusive a traição do marido em nome da “felicidade” e da “união” da família.
Era à mulher que cabia zelar pela estabilidade do casamento. E para conseguir esse
intento, teria que estar disposta a fazer várias concessões e sacrifícios.
Na trama não temos indícios de que Papá traia sua esposa, porém fica mais
que notório que seu casamento só existe socialmente. Já a personagem Carmen,
se, por um lado enquadra-se no perfil esperado da mulher franquista, por ser
esposa, mãe e cuidar do lar em tempo integral, por outro, ela quebra esse
paradigma ao transgredir outra regra que ditava a forma de agir de uma mulher na
sociedade espanhola dos anos sessenta. Mesmo não havendo nada explícito, é
possível perceber que Carmen cultiva um relacionamento extraconjugal, ou, pelo
menos, desejos por outro homem. Ao falar ao telefone com Emilio, o médico de
Quico, deixa escapar algumas frases que indicam suas intenções e seus
sentimentos:
43
Quico y Juan esperaban anhelantes el fin de la conversación. Mamá reía
ahora nerviosamente, como suelen reír las colegialas de dieciséis años la
primera vez que se les acerca un muchacho:
-Sí…ya hablaremos… no me atrevo… cualquier otro sitio… sí… ya…
claro… sí… de acuerdo… de acuerdo… están aquí… no puedo ahora…
también yo tengo ganas… sí, ya lo sabes… lo sabes de requetesobra…
bueno… eres tonto… de acuerdo… adiós. (DELIBES, 1988, p.148)
Aos poucos essa mulher vai sendo desvendada para o leitor através de suas
próprias palavras. De esposa dedicada, ela passa à mulher que nutre desejos por
outro homem, vai revelando suas fraquezas e inseguranças, além de deixar evidente
que o que mais quer é proteger seus filhos das influências negativas de seu marido
e por isso não mede palavras ao defender seu ponto de vista.
Carmen é uma mulher insatisfeita com sua vida e com o papel que exerce
dentro de sua casa. Ela é questionadora e não aceita calada as atitudes e idéias
extremamente conservadoras e machistas de seu marido. Evidencia-se que Delibes
propõe, assim, uma reflexão crítica sobre a relação entre homens e mulheres, e
podemos dizer que esse tema é constante em toda sua obra, tal como afirma
Nascimento: “Nas dimensões representadas na obra delibesiana, destaca-se o
aspecto gerador de inúmeros conflitos, um jogo estabelecido pela sociedade: o das
relações entre homens e mulheres”. (NASCIMENTO, 2001, p. 31)
Os pais de Quico são a representação dos dois grupos em que estava
dividida a sociedade espanhola, da incompreensão entre grupos representativos de
“las dos Españas”: a liberal e a tradicional. O pai representa este último, os
conservadores ou nacionalistas. Ele tem uma postura totalmente de acordo com os
ideais franquistas e posiciona-se de forma explícita como parte integrante de “los
buenos”, como eram conhecidos aqueles que estavam a favor do governo.
Cuéntanos cosas de la guerra, papá.
_ ¿Ves? – dijo papá – éstos son otra cosa. ¿Y qué quieres que te diga de la
guerra? Fue una causa santa. – Miró profunda e inquisitivamente a Mamá y
agregó -: ¿O no?
_ Tú sabrás – respondió Mamá - . Esas cosas suelen ser lo que nosotros
queramos que sean.
[…]
Los ojos de Juan se habían hecho redondos:
_ ¿Tú ibas con los buenos? – apuntó.
_ Naturalmente. ¿Es que yo soy malo acaso? (DELIBES, 1988, p. 68 - 69)
44
Destaca-se na personagem de Papá uma postura totalmente conservadora
com relação à posição da mulher dentro da sociedade e da família. Para ele, a
família deve ser totalmente patriarcal. Mais que isso, não há lugar para o diálogo,
para o companheirismo. A esposa deve sempre concordar com o marido e deixar
que ele dite as regras dentro de sua casa. À mulher lhe caberia cuidar das crianças,
educá-las dentro dos preceitos desejáveis às famílias “de bem”.
O conflito entre Carmen e seu marido se dá pelo fato de que ele busca impor
os valores franquistas em sua casa e não aceita que sua mulher tenha posições
contrárias às suas, visto que para ele , ela “sequer pensa”.
Dijo Mamá, aureolada de humo, levantando levemente la cabeza:
_Nunca creas que tú eres la verdad, hijo.
Dijo Papá cada vez más exasperado:
_La mejor de todas las mujeres que creen que piensan, debería estar
ahorcada, ¿Oyes, Quico?
Las manos de Mamá temblaban ahora como las aletillas de la nariz de
Papá. Dijo Mamá:
_Quico, hijo, las bestias no deberían vivir en el asfalto. (DELIBES, 1988,
p.76)
A atitude desse marido vai ao encontro das idéias vigentes na época. Porém
Carmen não aceita calada e chega a discutir com seu esposo, explicitando seu
descontentamento e suas idéias. Carmen não usa meias palavras ao defender sua
posição totalmente oposta à do marido e deixa claro que é contra sua intolerância e
sua visão de mundo, como no momento em que, falando a Quico, dirige-se
indiretamente a seu marido:
[...] Lo primero que has de aprender en este mundo es a ser imparcial. Y lo
segundo, a ser comprensivo. Hay hombres que creen representar la virtud y
todo lo que se aparta de su juego de ideas supone un atentado contra unos
principios sagrados. Lo de los demás es circunstancial y tornadizo; lo de
ellos, intocable y permanente. Si te enrolas en su juego de ideas, tendrás
personalidad, de otro modo serás un botarate, ¿me comprendes?
(DELIBES, 1988, p.73)
Na casa de Quico, a figura paterna dita as ordens e a figura materna e seus
filhos devem segui-las, independentemente de suas vontades. Essa estrutura
familiar, com o tipo de “hierarquia” apresentada, faz recordar o governo ditatorial,
45
intolerante e manipulador que impõe ao povo uma única opção de modo de vida e
de pensamento. Essa imagem fica bastante clara na descrição feita por Carmen no
trecho citado acima, quando ela descreve um homem que representa a “virtude”,
que considera os seus princípios como os únicos “verdadeiros” e que crê que as
diferenças ideológicas não devem existir. Essa descrição pode servir tanto para o
marido de Carmen, quanto para Franco.
A divisão de posicionamentos e de ideais entre os pais de Quico que
representa a cisão da própria sociedade espanhola é posta em evidência no diálogo
entre Carmen e seu filho mais velho, quando Pablo diz estar decidido a ingressar no
Exército:
Mamá examinaba el rostro de Pablo con minuciosa atención:
_ No te agrada, ¿verdad?
_ Pablo se echó repentinamente hacia atrás.
_ No lo comprende, que es otra cosa – respondió, y apareció que iba a
continuar, pero se reprimió y, por último, tras una prolongada pausa, añadió
_ El padre Llanes dice que asociaciones de veteranos hay en todas partes,
pero, en nuestro caso, sólo serán eficaces si vamos unidos los de un lado
con los del otro. Juntos, ¿comprendes? Es la única manera de olvidar viejos
rencores. (DELIBES, 1988, p.154)
Outro ponto importante é a divisão de dois grupos dentro daquela casa. De
um lado, as personagens que fazem parte da classe burguesa, de outro, os
empregados. Fica bastante clara a desigualdade social, neste pequeno espaço
doméstico em que transcorre a obra. Carmen, seu marido e filhos têm uma bela
casa, contam com empregados e têm estudo. Já o grupo de empregados leva uma
vida sem luxos, nem ambições. Além disso, apresentam o mesmo estilo de vida e
características semelhantes entre si, como uma rotina de muito trabalho, pouco
estudo e expressam-se de forma simples.
Nesse quadro configura-se a imagem da própria Espanha dividida.
Nacionalistas e republicanos, conservadores e liberais, ricos e pobres que, apesar
de dividirem o mesmo espaço, não se reconhecem entre si, vivendo em mundos
separados.
46
3.2 NUANCES DA VIOLÊNCIA E DO MEDO EM EL PRÍNCIPE DESTRONADO
A obra de Miguel Delibes está marcada fortemente pela preocupação com o
ser humano, com seus direitos e com sua liberdade. A partir de sua obra é possível
compreender melhor a sociedade espanhola da segunda metade do século XX, pois
se encontram em seus romances questões como a desigualdade de direitos e o
desamor e personagens que retratam os menos favorecidos, muitas vezes
humilhados e destituídos de seus direitos como cidadão. Muito do que Delibes
escreveu e escreve surge a partir de experiências que marcaram sua vida. Muitos
estudiosos costumam afirmar que todas as suas obras têm algo de autobiográfico.
Sendo assim, temas como a violência e o medo surgem em sua narrativa. Será
exatamente sobre estas questões que passaremos a refletir nas próximas páginas.
Não é de admirar-se que Delibes tenha reservado um lugar especial em sua
obra para essas duas temáticas. Não nos esqueçamos que o autor é um grande
observador de seu tempo e que, nascido no ano de 1920, tocou-lhe viver em um
período de guerras, de grande violência e medo. Guerra civil espanhola, guerra
mundial, bomba atômica, a expansão dos governos totalitários e do nazismo. Todo
esse quadro atemorizante propõe questionamentos a respeito do futuro da
humanidade. Aonde a humanidade chegará se prosseguir pelos caminhos da
guerra, do desamor e desunião entre os povos? Como serão utilizados o progresso
e a tecnologia, dois elementos que podem servir tanto para libertar como para
destruir? O que se pode esperar do futuro, quando o que se enxerga é um cenário
amedrontador em que o homem se distancia do melhor de sua essência? Não são
respostas o que encontramos em Delibes, e sim questionamentos e dúvidas.
No romance aqui analisado há várias passagens com uma carga muito
grande de violência, explícita ou não, em suas variadas maneiras de manifestação.
Queremos, então, indicar quais são as formas de violência encontradas no livro e
que personagens são os agentes e quais são as principais vítimas dessas
violências.
Da mesma forma, a sensação de medo está presente durante praticamente
todos os momentos da trama e afeta o protagonista de várias formas distintas.
Considerando o medo como um aspecto encontrado em outras obras do autor e que
em El príncipe destronado, especificamente, é um elemento essencial no perfil do
47
protagonista, consideraremos como principal objeto de análise o medo infantil e
buscaremos explicitar os momentos e a forma como esse medo circula pelo
ambiente familiar de Quico e que papéis ele exerce sobre as crianças, bem como
que personagens o motivam.
3.2.1 A violência
A arte em geral e a literatura especificamente, no decorrer da história, e
principalmente em seus momentos mais difíceis e atrozes, buscaram expressar o
escândalo social dos variados tipos de violência que podemos encontrar em nossa
sociedade e cultura.
O fato de tantas obras, de forma direta ou indireta, abordarem essa questão,
diz muito sobre sua época e sua sociedade, pois a arte se associa às perguntas e
questões que são levantadas ao longo do tempo. Recriando situações, ela vai
tentando alcançar o seu intento de compreender o que acontece em nosso mundo.
Nessa linha de raciocínio estamos considerando que a literatura possui uma
relação com a realidade, e que ela tem uma função social provocadora, ao fazer o
leitor refletir sobre a vida.
Temos aí, em linhas gerais, uma posição que nos remete a Aristóteles que,
na Poética, defende o princípio da arte como imitação da realidade e da arte
como aprendizado. O espectador de uma obra teria prazer diante de um
espetáculo porque o mesmo o colocaria face à sua própria existência e faria
com que tirasse conclusões importantes e determinantes para a sua
evolução. (LINS, 1990, p.29)
Mais do que isso, a representação artística da atrocidade é um protesto
contra ela, na medida em que a simulação de um quadro de violência semelhante ao
da realidade pode contribuir para a não perpetuação dessa violência. A arte teria
então, o papel de transformar a consciência.
A literatura como qualquer outra forma de arte pode perseguir um ideal,
diferentemente dos veículos de comunicação de massa, porque não possui vínculos
com o poder. Ela contribui diretamente no processo de extinção de uma situação de
extrema violência, comum em tempos de censura, como na época em que se passa
o romance El príncipe destronado. Esse panorama de violência é explicado por Lins
48
(1990) como o esforço do sistema de causar entorpecimento e inação, de paralisar a
inteligência humana.
Considerando que o romance de Miguel Delibes, objeto de nossa reflexão, foi
escrito durante um período na Espanha de extrema violência, nos mais diversos
sentidos e recordando, também, o fato de que Delibes tinha como objetivo contar
sobre esta época e sua sociedade, surge uma outra questão: Será possível afirmar
que a obra El príncipe destronado discute a questão da violência? É possível
identificar a violência em uma história sobre o quotidiano de uma família
aparentemente bem estruturada? Antes de responder a essa questão, vamos refletir
um pouco sobre o significado de violência.
O que é tido como violência varia de acordo com a cultura e está diretamente
relacionado com o ponto de vista de quem fala, pois um ato pode ser considerado
por alguns, extremamente violento, enquanto para outros pode ser tido como uma
simples forma de manter a ordem. É o caso das sociedades totalitárias que só
conhecem a posição que ocupa o poder. Por isso mesmo, afirma Lima Lins: “É raro
[...] que o poder fale de si mesmo em termos de violência. De modo semelhante não
descreverá sua defesa como uma violência, ainda que legítima.” (LINS, 1990, p.14)
Yves Michaud em seu livro A violência, tenta chegar a uma definição que
revele a natureza da violência e identifica sentidos diversos nos usos correntes e na
etimologia da palavra.
[...] de um lado, o termo "violência" designa fatos e ações; de outro, designa
uma maneira de ser da força, do sentimento ou de um elemento natural violência de uma paixão ou da natureza. No primeiro caso, a violência opõese à paz, à ordem que ela perturba ou questiona. No outro, é a força brutal
ou desabrida que desrespeita as regras e passa da medida. (MICHAUD,
1989, p.7)
Mais adiante, complementa Michaud: ”Em direito civil, a violência caracteriza
a coação exercida sobre a vontade de uma pessoa para forçá-la a concordar."
(MICHAUD, 1989, p.9).
Michaud distingue dois tipos de violência, uma física, facilmente identificável
pelos seus efeitos e uma imaterial, de transgressão, de violação de uma norma
estabelecida.
A dificuldade de se definir a violência está no fato de que,
dependendo das normas vigentes, uma mesma ação em determinadas culturas
49
pode ou não ser considerada uma violência. Como nosso objetivo não é chegar a
uma definição mais abrangente e completa de violência, e sim refletir sobre ela
dentro de uma obra específica, tomaremos como base algumas formas de violência
tratadas por Michaud que são facilmente identificáveis em El príncipe destronado,
como a questão da violência política. Esse tipo de violência pode ser identificado na
obra, já que ela diz respeito às conseqüências da guerra civil. Essa forma de
combate faz parte da violência do poder ou violência de cima, que é aquela
empregada para estabelecer o poder político, mantê-lo e fazê-lo funcionar.
Apesar de a trama da obra analisada não se desenvolver durante o período
de guerra, e sim de pós-guerra, podemos identificar, além das conseqüências de um
período tão violento e marcante na história de Espanha, alguns personagens que
representam os dois lados dessa batalha sangrenta.
O pai de Quico é a personagem que está mais próxima do tipo de violência
chamada de “violência de cima”, pois ele é a figura que representa o poder, que para
a Espanha dos anos sessenta são os nacionalistas. Crê nos ideais franquistas e
tenta fazer com que sua família viva seguindo esses ideais.
Esse representante da violência do poder, diferentemente dos demais em sua
casa, tem uma relação muito próxima com a guerra, situação em que se instala o
grau máximo de violência, podendo ser suspensos os direitos individuais e
acontecer práticas como homicídios e torturas, tudo em defesa de um determinado
objetivo. Papá já passou por uma experiência de guerra e estando nela teve que
matar, o que não esconde nem mesmo aos seus filhos pequenos.
_ ¿Tú mataste muchos malos, papá?
[…]
_ Muchos – dijo Papá, sin mirarle.
_ ¿Más de ciento? – inquirió Juan.
_ Más – dijo Papá […] (DELIBES, 1988, p. 70)
Papá tem uma verdadeira veneração pela guerra. Orgulha-se tanto dela que
chega ao ponto de acreditar que ela exerce um papel fundamental na sua vida. Não
esconde sua admiração pelos que sabem empunhar uma arma, como um verdadeiro
homem deve saber, como se observa no fragmento abaixo, um diálogo entre Quico
e seu pai:
50
_ ¿Me comprarás un tanque el día de mi santo?
_ Claro que sí. Lo malo es si alguien piensa que al regalarte un tanque te
estoy inculcando sentimientos belicosos. Hay personas que prefieren hacer
de sus hijos unos entes afeminados antes que verles agarrados a una
metralleta como hombres. (DELIBES, 1988, p.75)
Existe na trama a presença da guerra de formas distintas. A primeira delas,
através de Papá, que já participou de uma guerra, estando do lado de “los buenos”,
ou seja, dos nacionalistas. Essa guerra, apesar de terminada há mais de vinte anos,
continua presente através de seu discurso e dos valores que busca passar para os
seus filhos. Para o pai, o ideal de vida são a guerra e os princípios nacionalistas.
Considera ser muito mais fácil viver estando em uma guerra do que em um período
de paz, valoriza a guerra e os valores dos homens que a fazem, e tenta viver e
transmitir esses valores no ambiente familiar. Como conseqüência disso, tudo o que
se refere ao universo bélico torna-se muito presente na vida de sua família,
principalmente na de seus filhos mais jovens que brincam de matar um ao outro,
demonstram curiosidade sobre o assunto e fascinação por objetos como
metralhadoras e canhões.
Outros conflitos aparecem na narrativa como se fossem uma extensão do
clima bélico familiar, como a guerra na África5 e também através de Femio que se
prepara para ir servir no Marrocos espanhol, o que é um motivo de tristeza para
Vítora, pois teme que seu namorado não volte mais ou que acabe traindo-a, devido
a distância. Há também, referência à Guerra do Congo, que entra na narrativa por
conta de um dever que Marcos deveria fazer sobre o Congo e a ONU no colégio.
Pablo, o irmão mais velho de Quico, chega a comparar o conflito com a relação
existente entre seus pais: “Pablo aclaró: - Lo del Congo es como papá y mamá; si
nos peleamos nosotros, nos separan, pero si se pelean ellos, hay que dejarles”
(DELIBES, 1988, p. 63).
O comentário de Pablo além de nos mostrar como o assunto referente à
guerra no Congo era muito comentado na época, tanto que acabava estando
presente na vida da família, nos indica também a existência de um terceiro conflito
dentro daquele lar: a guerra vivida entre os pais de Quico. Papá representa os ideais
nacionalistas enquanto que Mamá simpatiza com os republicanos. Ambos, assim
5
Quando há na obra uma referência à “Guerra de África”, trata-se da Primeira Guerra de Marrocos, conflito
bélico que enfrentou a Espanha com o sultanato do Marrocos entre os anos de 1859 e 1860, durante o reinado de
Isabel II.
51
como os rivais, protagonistas da guerra civil, crêem que suas opiniões estão certas e
não conseguem conservar um ambiente onde exista diálogo e tolerância. A relação
do casal se converte em um duelo, no qual ninguém ganha, todos perdem, inclusive
aqueles que somente assistem ao espetáculo.
A obra evidencia que as feridas da guerra civil continuam abertas através da
tensa conversa que mantém os pais de Quico. Aflora aí o risco existente no fato dos
adultos fazerem o possível para manter viva em seus filhos a recordação do
enfrentamento armado.
Quico gosta de ouvir falar da “guerra de papá” e de reproduzi-la em suas
brincadeiras, mas não sabemos quais serão as conseqüências da influência da
guerra em Quico e seus irmãos no futuro, não temos nenhuma indicação se Quico
se tornará um adulto violento ou com idéias belicistas por influência do que vivencia
enquanto criança. Não sabemos nada, nem sobre as crianças, nem sobre o futuro
do casal.
Já no romance Las guerras de nuestros antepasados (1975), temos uma
visão em longo prazo acerca das conseqüências da influência da guerra na vida das
personagens. Pacífico Pérez é vítima da violência que reina em seu meio rural, onde
está rodeado por pessoas obsessivas pela guerra. Cada membro de sua família
participou de uma guerra distinta e não param de falar sobre elas. O protagonista,
um jovem bondoso busca distanciar-se de possíveis inclinações agressivas. Porém,
em um momento crítico, acaba germinando nele os instintos violentos que foram
semeados durante toda a sua vida e não consegue escapar de cometer um grave
crime.
Dentro da violência do poder, destacamos, ainda, a questão da repressão.
Na família de Quico, que representa a sociedade espanhola, quem detém o poder é
a figura paterna. Para afirmar sua "supremacia" ele precisa fazer com que seus
integrantes tenham homogeneidade de pensamento e de ações. Em sua casa essa
repressão se dá por negar ao outro o direito de exercer o pensamento crítico e de ter
e manifestar opiniões diversas. A personagem Carmen, além de sofrer com as
atitudes de seu marido, representa o elemento discordante que pode trazer algum
tipo de prejuízo e desequilíbrio ao poder totalitário do marido, por isso é ela quem
mais sofre com suas atitudes repressoras, a fim de impor as suas "verdades".
52
Papá estalló:
_ La mujer en la cocina, Quico.
Dijo Mamá, aureolada de humo, levantando levemente la cabeza:
_ Nunca creas que tú eres la verdad, hijo.
Dijo Papá cada vez más exasperado:
_ La mejor de todas las mujeres que creen que piensan, debería estar
ahorcada, ¿oyes, Quico?
(DELIBES, 1988, p.p.75-76)
Papá não aceita que Carmen questione suas idéias e que sugira que ele não
é o dono da verdade. Intolerante a opiniões contrárias, afirma que nenhuma mulher
deveria ter, sequer, a pretensão de que pensa.
A ausência de violência física, não supõe a inexistência da violência. Pode
existir uma violência velada, aquela que limita as ações de quem está sob comando.
A violência que faz calar, que impõe uma organização social, que define papéis e
que aniquila com qualquer possibilidade de diálogo e de troca está presente no
cotidiano da família criada por Miguel Delibes. Nesse tipo de situação existe a figura
daquele que é o detentor da “verdade”.
Essa é a violência do poder, e pode
acontecer em qualquer grupo, seja em um país no qual o sujeito violento assume o
papel de seu mandatário, seja em um círculo familiar no qual quem detém esse
poder, normalmente é aquele que tem o poder econômico e/ou aquele a quem
culturalmente é dado o "privilégio" de ditar as regras e fazer com que outras pessoas
vivam de acordo com seus próprios interesses.
Apesar de a violência flutuar por muitas entrelinhas da narrativa, o único
momento do romance em que existe uma atitude violenta que se aproxima da
violência física ocorre durante o jantar, quando, após uma discussão do casal, Papá
lança um prato na direção de Carmen que, por pouco, não a atinge.
[...] el plato que arrojó Papá por encima de su cabeza planeaba ya hacia el
salón y se quebró de pronto, estrepitosamente, en mil pedazos al chocar
contra el suelo. El vozarrón de Papá prolongó el estruendo durante un rato:
_ ¡Coño, con la pava ésta! – voceó -. Esto no ocurriría si a tu padre le
hubiéramos cerrado la boca a tiempo, en lugar de andar con tantas
contemplaciones. (DELIBES, 1988, p.70)
Esta discussão ocorre na presença das crianças, o que torna esse trecho do
romance ainda mais tenso e significativo. Definitivamente, a violência fazia parte da
realidade daquela casa.
53
Partindo do princípio de que a literatura reflete a vida e reflete sobre a vida
(Lins, 1990), ela possui uma característica de grande valor, que é nos permitir
acompanhar os diferentes níveis e tipos de angústia que acompanham o homem no
decorrer da história, pois ela está associada às interrogações sobre a existência. Ao
se recriar situações, se viabiliza a compreensão do que passou, e a partir da
compreensão do aconteceu, aumenta-se a capacidade de intervenção sobre a
realidade. A representação da realidade artisticamente, seria uma forma de
denúncia, de protesto contra a violência, na expectativa de que a visão do horror
impeça a sua permanência ou a implantação futura de um tipo igual ou semelhante
de horror.
É interessante perceber que as palavras de Ronaldo Lima Lins vão ao
encontro da literatura de pós-guerra espanhol, na qual não existem mais heróis, e
sim um grupo marginalizado e/ou silenciado.
Na era da violência em escala de milhões já não se acredita em heróis.
Todos se reconhecem igualmente impotentes frente a uma máquina
científica de exterminação, só restando ao mundo uma imagem degradada
na qual as relações humanas passaram a ocupar um plano absolutamente
secundário ao lado da destruição sistemática. (LINS, 1990, p.35)
Essa destruição sistemática leva à aniquilação da própria vida, o ato de maior
violência, à destruição das relações humanas, afetivas, e de nossa sensibilidade,
que faz com que não enxerguemos as tantas formas de violência com as quais nos
deparamos dia a dia.
3.2.2 O medo
O sentimento do medo é algo que está presente em qualquer ser humano. De
forma descontrolada, o medo se transforma em um elemento que nos paralisa e que
impede o desenvolvimento de muitos atributos do ser humano. De forma
exacerbada, pode chegar a ser considerado uma enfermidade. Em menores doses,
o medo pode ser até algo positivo, pois esse sentimento evita que tomemos
determinadas atitudes potencialmente prejudiciais a nós mesmos.
Em muitas das obras de Delibes verifica-se a existência desse sentimento, o
que segundo Jesús Rodríguez (1979), deve-se ao fato de que o medo também era
54
algo presente na vida do próprio autor. Jesús Rodríguez, em um texto sobre Delibes,
chega a afirmar que:
[...] el miedo es probablemente el sentimiento predominante de su
personalidad. El sentimiento del miedo está ya presente en su infancia y se
intensificará en el transcurso de los años debido a los siguientes factores: si
obsesiva fascinación con la muerte, su hiperestesia y la numerosa serie de
desastres ocurridos en Europa en el siglo actual. (JESÚS RODRÍGUEZ,
1979, p.09)
É difícil precisar até que ponto a origem do sentimento do medo na obra de
Delibes deve-se ao fato dele ter vivenciado experiências que o marcaram quando
criança. Porém, Jesús Rodríguez atribui a fixação que Delibes tem pelo tema a três
fatores: à educação extremamente religiosa que recebeu de seus pais, ao caráter
sombrio que adota a morte na sociedade espanhola e a uma experiência
traumatizante na infância. Sobre esta experiência, o próprio escritor confessa a
Jesús Rodriguez que aos doze anos de idade, enquanto patinava com seus amigos,
presenciou quando o gelo rompeu-se e um de seus colegas afundou nas águas
geladas, tendo o seu corpo sido encontrado somente dias depois.
Se por um lado é complicado medir a real influência de fatos como o que foi
narrado anteriormente na obra delibiana, por outro está muito claro que o medo tem
uma presença marcante em sua narrativa e que é um dos seus principais objetos. A
morte, por sua vez, está presente na maioria de suas obras, como elemento
detonante de todo o processo narrativo, como no caso de Cinco horas con Mario,
como um desfecho inesperado e trágico de uma trama, como no caso de Los santos
inocentes ou como um fato, aparentemente sem importância, mas que permeia a
narrativa, como é o caso da obra aqui analisada.
Em El príncipe destronado, verificamos que a primeira experiência de Quico
que lhe desperta o medo tem relação com a morte no momento em que Quico
acorda pela manhã e recebe a notícia de que o gato de sua vizinha, chamado Moro,
morreu. A imagem do gato, já sem vida, lhe acompanha durante todo o seu dia e é
motivo de medo e de curiosidade por parte do menino. Quico conta sobre a morte de
Moro repetidas vezes a seus irmãos quando regressam da escola, ao seu pai
quando chega do trabalho, à sua tia Cuqui quando vem de visita à sua casa. Quico
mostra-se intrigado com a morte. O que vem depois da morte? Por que não houve o
55
enterro do gato? Essas são algumas questões que o angustiam.
A obsessão de Quico não se limita à morte de Moro. Ele também demonstra
curiosidade sobre o momento da morte na vida das pessoas, como quando retoma o
tema ao escutar uma conversa entre as empregadas da casa, na qual Vito
demonstra estar triste por seu namorado ter que ir à guerra, enquanto Domi acha
que sua situação de viúva é ainda pior.
_ Peor estoy yo, mira. El mío ya no vuelve.
La Vítora se excitó toda:
_ Ande, señora Domi, para eso es usted vieja.
_ ¿Vieja yo?
_ Ande, a ver.
[...] Dijo Quico:
_ ¿Eres vieja y te vas a morir pronto, Domi? (DELIBES, 1988, p.44)
O medo que a morte desperta em Quico e a curiosidade que lhe aflige se
manifestam em outras passagens e é possível perceber que aquilo que é causa de
medo também é detonante de uma grande atração e até de certo prazer. É o que
acontece nos momentos em que a criada Domi canta para distrair as crianças.
Essas histórias não fazem parte do universo infantil, pois são histórias cruéis, de
seqüestros e assassinatos, mas resultam muito sedutoras. As crianças sentem
medo, mas são envolvidas pelo clima de suspense criado por Domi. A história do
soldado que volta da guerra e mata a ex-namorada marca tanto o menino Quico
que, ao ver Femio fardado, relaciona rapidamente os dois soldados e pergunta ao
namorado de Vito se ele vai matar Rosita (DELIBES, 1988, p. 102).
A morte também está presente nas brincadeiras entre os irmãos Quico e
Juan.
_ Ya está – sonrió Quico -. Te he matado.
Juan se encontraba a gusto allí, soltó la escopeta y cruzó las manos sobre
el vientre. Dijo Quico:
_ Ya está, Juan, levántate.
Pero Juan no se movía. Puso los ojos en blanco y musitó como una letanía:
_ He fallecido en el día de ayer confortado con los Santos Sacramentos y la
Bendición de…
_ No, Juan – dijo Quico -. ¡Levántate!
Juan prosiguió:
_ Mi padre, mi madre y mis hermanos participan tan sensible pérdida y
ruegan una oración por el eterno descanso de mi alma.
_ Levánt ate, Juan – repitió Quico.
Juan entreabrió los ojos, miró hacia la pantalla de amplias alas y dijo con
56
voz de ultratumba:
_ Y el demonio con el rabo tieso y los cuernos afilados…
_ ¡No, Juan, levántate! – voceó Quico. (DELIBES, 1988, p. 82)
A falsa morte do irmão deixa Quico nervoso e apreensivo, a ponto de pedir
repetidas vezes para que seu irmão pare com a brincadeira. Ao final, Juan utiliza a
imagem do demônio para deixar Quico ainda mais angustiado. Seu medo é tanto
que o menino chega a gritar para fazer com que seu irmão se levante e termine com
aquele “teatro” que o está amedrontando.
O medo é também empregado como base da educação das crianças em El
príncipe destronado. Podemos perceber que não há diálogo, nem carinho na relação
entre pais e filhos, com exceção de alguns raros momentos. Por outro lado, o medo
e idéias sobre o castigo são empregados como forma de reprimir atitudes
inadequadas das crianças e até como meio de passar-lhes valores. A mãe de Quico
e as empregadas da família utilizam o medo para controlar as crianças e fazê-las
seguir suas determinações.
O medo tem um papel importante na educação infantil, que, neste caso,
relaciona-se diretamente com a religião e o pecado e a imagem do inferno. Apesar
de não haver nenhum personagem que seja notoriamente religioso, a religião, tão
importante para a sociedade espanhola , aparece como mais uma forma de controle
na educação das crianças. Através do medo de um castigo eterno se tenta moldar
as atitudes das crianças, dando-lhes uma educação baseada no temor, e não no
diálogo ou no carinho. Podemos perceber isso na forma como era explicado às
crianças por que determinadas atitudes não deveriam ser tomadas ou determinadas
palavras usadas. A razão era sempre a mesma: era pecado, e esse pecado poderia
levá-los ao inferno.
_ ¡Leche, me pillé!
La bata de flores rojas y verdes se inclinó implacable sobre él:
_ ¿Qué has dicho? – dijo; ¿no sabes que eso no se dice, que es un pecado
muy gordo?
La Vítora, acuclillada junto a la caldera, le miró entre compasiva y
socarrona. Dijo:
_ ¡Qué chico este! ¿Quién le enseñará esas cosas?
_ La bata de flores se había enderezado, mientras Quico se aplastaba
contra la mesa, junto a Juan.
Dijo la bata:
_ Eso digo yo. ¿Quién le enseñará esas cosas?
(DELIBES, 1988, p.38)
57
Neste fragmento, Carmen chama a atenção de Quico por ele ter empregado a
palavra leche. E como não está habituada a falar palavras consideradas impróprias
como esta, sugere com uma pergunta que a criança deve aprender este vocabulário
com a empregada, Vítora. A suspeita da mãe revela uma relação de desconfiança
entre empregados e patrões que está relacionada com as diferenças entre as
classes sociais. Na visão de Carmen, Vito poderia ter o costume, por ser pobre e
humilde, de usar palavras chulas e, assim, ela estaria ensinando a criança a falar de
maneira inadequada. Carmen sabe que as empregadas têm um papel importante na
educação de seus filhos. São elas que, na maior parte do tempo orientam e proíbem
as crianças de fazerem coisas que consideram erradas ou “pecaminosas”. Vito e
Domi constantemente falam para as crianças que usar determinadas palavras é
pecado e que se mentirem irão para o inferno e serão castigadas. Tal crença estava
entranhada no espírito das pessoas daquela época, características do “nacional
catolicismo”, uma religião que tentava moldar o caráter das pessoas pelo medo do
castigo eterno.
As idéias sobre pecado e demônios estão muito presentes para as crianças e
configuram-se como um dos principais temas nas conversas infantis e nas
brincadeiras. A curiosidade infantil é tanta que muitas perguntas são feitas pelos
meninos a esse respeito e, mesmo tendo medo de demônios, simulam ver essas
criaturas em suas brincadeiras.
_ ¿Tiene alas el demonio, Juan?
_ Claro.
_ ¿Y vuela muy de prisa, muy de prisa?
_ Claro.
_ Y si soy malo, ¿viene el demonio y me lleva al infierno?
_ Claro.
_ ¿Y el demonio tiene cuernos?
_ Sí.
_ ¿Y mocha?
Juan se levantó de hombros, sorprendido.
_ Eso no sé – confesó. (DELIBES, 1988, p.41)
O inferno e os seres que supostamente habitam nele fazem parte do
imaginário infantil naquela casa. Quico cria em sua mente imagens atemorizantes de
demônios e imagina serem monstros simples objetos de sua casa e sente medo.
Até mesmo o médico Emilio, a quem Quico é levado após afirmar que havia
58
engolido uma tachinha, acaba sendo visto como um fantasma. Tudo é motivo para
ativar a imaginação de Quico, até mesmo um simples jaleco branco.
Quico reparó en el fantasma blanco bajo la luz roja, alzó los ojos y todo lo
vio bajo un resplandor espectral. Inquirió:
_ ¿Es el infierno?
Agarró la mano de Mamá, de pie a su lado.
_ No, hijo.
_ ¿No estarán los demonios detrás de eso? – apuntó al extraño artefacto de
hierro y cristal.
_ Aquí no hay demonios – respondió Mamá.
El Fantasma observaba el niño atentamente. Dio una chupada al cigarrillo y,
conforme expulsaba el humo, dijo:
_ Este niño es imaginativo, ¿verdad? (DELIBES, 1988, p. 131)
O irmão de Quico, Juan, contribui para aumentar ainda mais os seus temores.
Em algumas ocasiões, ele é o responsável por provocar em seu irmão verdadeiro
estado de pânico durante suas brincadeiras. Porém, Quico não é somente “vítima”,
ele dá indícios que seguirá o exemplo de seu irmão ao tentar assustar a sua irmã
Cristina.
La casa estaba en silencio y apenas llegaba hasta ellos el murmullo de la
conversación de la Domi con la Vítora a través del tabisque. Dijo Quico,
ahuecando la voz:
_ Cris, el Coco.
_ A-ta-ta – hizo la niña, atemorizada. (DELIBES, 1988, p.118)
A educação pelo medo como um meio de se alcançar uma determinada
conduta é muito característica das sociedades opressoras. Na obra analisada, o
medo exerce um papel importante não só na educação das crianças, como também
na vida do filho mais velho do casal. Pablo, vítima direta da opressão do patriarca,
vive o conflito de entrar para a vida militar e assim atender às expectativas de seu
pai, ou seguir seu desejo pessoal de trilhar um caminho diferente e descobrir sua
vocação. Pablo não declara o que sente, mesmo tendo apoio de sua mãe, pois tem
medo da reação de seu pai.
59
Papá prosiguió, adoptando un gesto de hastío:
_ Lo malo es la paz: el teléfono, la Bolsa, los líos laborales, las visitas, la
responsabilidad del mando... - Su mirada, flotante, se concretó súbitamente,
implacablemente, sobre Pablo - : ¿Tú, qué piensas de todo esto?
Pablo volvió a sofocarse y a levantar de hombros.
Se inclinó aún más sobre el plato de postre. Papá se sulfuró:
_ ¿Es que no tienes lengua? ¿Es que no sabes decir sí o no, esto me gusta
o no me gusta? (DELIBES, 1988, p.69)
O rapaz, apesar de não ter nenhum desejo de seguir a vida militar, não tem
coragem de assumir uma posição contrária à do pai e se cala, pois foi educado para
isso, para obedecer à figura paterna, representante da opressão.
O medo que atinge Pablo também afeta Carmen que também vive um
conflito. Como lidar com o fato de seu casamento ter fracassado, sem que isso afete
seus filhos? Mesmo sabendo que seu relacionamento com o marido é muito ruim,
Carmen não tem coragem de pôr um ponto final nessa relação. Certamente, vários
fatores influenciam na decisão de manter a união familiar, como a dependência
econômica do marido, o preconceito contra uma mulher descasada, os valores de
uma sociedade em que importava mais o parecer que o ser. Mas, como conviver
com um homem sem compartilhar idéias, nem objetivos? Como enfrentar a solidão
dentro de seu próprio lar?
O medo perpassa todos os momentos do romance. Com ele o livro começa e
termina. O relato se inicia com o medo que sente Quico em função da morte do gato
Moro e no decorrer da narrativa vão surgindo outros medos, como o de demônios e
os fantasmas que afligem Quico e o medo de Pablo de enfrentar seu pai. Nas
últimas linhas dessa obra, o medo toma conta de seus principais personagens.
Quico não quer ficar sozinho em seu quarto, pois todos os seus medos se
encontram e entre eles o maior – o de ser preterido. Por isso, inventa vários motivos
para não ficar sozinho e só consegue acalmar-se quando Mamá entra em seu quarto
e segura sua mão. É exatamente nesse momento que Carmen manifesta sua
fraqueza , deixando de lado a força demonstrada durante todo o dia. Ao perceber
que seu filho necessitava de sua atenção, ela alivia os seus temores e o faz dormir,
mas acaba admitindo que, da mesma forma que seu filho, ela também tem medo.
60
3.3 AS PERSONAGENS E SUA LINGUAGEM
Devido à riqueza da linguagem apresentada nas obras de Delibes, e em
particular em El príncipe destronado e também pelo fato do próprio autor considerar
que a construção das personagens é ponto chave de uma obra, optamos por
reservar um subitem para analisar as personagens de sua obra, considerando,
principalmente seus aspectos lingüísticos.
Delibes busca construir suas personagens de modo complexo, utilizando
recursos lingüísticos variados. Buscaremos mostrar, então, como o autor consegue
sair do convencional e povoar suas histórias com seres que parecem de “carne e
osso”.
Vale observar que o escritor de Valladolid atribui a suas personagens
importância fundamental em sua obra e a linguagem é outro ponto que privilegia
quase que de maneira obsessiva. García Dominguez, a esse propósito, desenvolve
um comentário na introdução ao primeiro volume das Obras completas, lançadas em
outubro de 2007, durante as comemorações dos 60 anos da outorga do Prêmio
Nadal a Miguel Delibes. Na referida introdução, significativamente intitulada “Ellos
son en buena parte mi biografia”, afirma que o escritor presta atenção à gente de
sua terra e depois a recria e a converte em personagens. Prossegue dizendo: “Él
mismo lo proclamó, con idéntico enunciado, en las palabras inaugurales del curso de
verano que le dedicó la Universidad Complutense de Madrid, em 1991: ‘Yo he sido
siempre un novelista de personajes’” (GARCÍA DOMINGUEZ, 2007, p.23). Para
Delibes, construir tipos vivos é um dever fundamental do romancista:
Una novela es buena cuando, pasado el tiempo después de su lectura, los
tipos que la habitan permanecen vivos en nuestro interior; y es mala cuando
los personajes, transcurridos unos meses de su lectura, se difuminan para,
finalmente, olvidars e. El personaje es, para mí, el eje de la narración y, en
consecuencia, el resto de los elementos deben plegarse a sus exigencias.
(In: GARCÍA DOMÍNGUEZ, 2007, p.24)
Para García Domínguez, Miguel Delibes não apenas cria personagens, mas
também as faz falar. Mais de uma vez Delibes declarou que gostava de escutar falar
o povo de sua região, fosse no campo, fosse na cidade. Em conseqüência, afirmou
que escrevia de ouvido. O escritor ao agradecer por ter sido nomeado filho predileto
61
de Valladolid, reconheceu sua dívida de linguagem com o entorno em que sempre
viveu: “De Valladolid y Castilla he tomado no sólo los personajes, escenarios y
argumentos de mis novelas, sino también las palabras con que han sido escritas”
(In: GARCÍA DOMÍNGUEZ, 2007, p.24).
Nas obras de Delibes a realidade castelhana é exposta pelas personagens,
por conta da liberdade que o autor lhes dá de expressarem-se em sua própria voz,
em sua própria linguagem. É possível que o cuidado que Delibes dedica à
linguagem de suas personagens tenha levado Pilar Celma a fazer a seguinte
afirmação:
Más que leer, nos parece que vemos y oímos a los personajes; personajes
siempre entrañables en su sencillez, en sus limitaciones y contradicciones,
a veces hasta en su mezquindad. Los personajes son presentados, no
narrados, y así se construyen ante los ojos del lector que los ve crecer.
(PILAR CELMA, 2003, p. 21)
Em El príncipe destronado, dentro do microcosmo que é o lar de Quico,
encontram-se personagens de diferentes idades, sexos, classes sociais e culturais.
Optamos por fazer uma divisão ao analisar as principais características dos
personagens e sua linguagem, de forma que teremos em um primeiro momento o
enfoque nas personagens adultas e, a seguir, trataremos das personagens infantis.
3.3.1 As personagens adultas
As principais personagens adultas desta obra são: a mãe de Quico, Carmen,
Papá e as empregadas Domi e Vítora.
Focalizando primeiramente os donos da casa, podemos destacar que nas
primeiras horas do romance, Carmen fala pouco. Em meio a tantas tarefas da casa,
ela mal tem tempo para verificar o que as crianças estão fazendo. Em suas raras
falas, está sempre chamando a atenção de seus filhos, principalmente de Quico ou
perguntando às empregadas o que está acontecendo.
Vale destacar que da mesma forma que são raras demonstrações de carinho
e afeto entre pais e filhos naquela casa, também o são frases ou palavras amorosas.
Pelo contrário, podemos destacar várias passagens em que Mamá, furiosa com as
traquinagens de Quico, acaba perdendo a paciência e fala de forma bastante
62
agressiva com seu filho. “Mamá levantó la mano, pero no llegó a descargarla; se
contuvo ante la nuca encogida de Quico y dijo:- ¿No me has oído? ¡Calla o te doy un
coscorón!” (DELIBES, 1988, p. 64).
Apesar de dedicar-se exclusiva mente ao lar, ela não dá conta de todas as
tarefas sozinha. A “bata de flores rojas y verdes”, forma emblemática como Quico
enxerga sua mãe, avança pelos corredores com uma urgência permanente de cuidar
de tudo e inteirar-se do que acontece dentro de sua casa. Porém, em função de
tantas atribuições, não consegue estar perto de seus filhos e dar-lhes a atenção
devida. Para ajudá-la na criação deles, Carmen conta com a babá Domi e com a
empregada Vítora que, obviamente , não suprem todas as necessidades afetivas de
Quico. No transcorrer da narrativa, terminado o período da manhã, Carmen tira
literalmente a bata, aguardando a chegada do marido, que acontece em seguida:
Mamá ya no era una bata de flores rojas y verdes, sino un jers ey a rayas
blancas y azules y una falda gris y unas zapatillas de cuero en chancletas y
un cigarrillo, con una hebra de humo azul, entre los dedos delgados y
largos. Mas la voz era igual a la de la bata. (DELIBES, 1988, p.51)
Com a chegada do marido é possível perceber mais detalhes sobre a
personalidade de Carmen, principalmente a partir do diálogo durante o almoço em
família. Neste momento ambos, pai e mãe, começam a definir a extrema distância
ideológica que separa o casal:
[…] Mamá, que servía a Quico canalones de la fuente que sostenía la
Vítora, les dijo muy seriamente que si no podían cambiar de conversación y
para cooperar a ello le comunicó a Papá que Dora Diosdado se casaba y
Papá dijo: “¿Con ese pelagatos?” y Mamá que “por qué pelagatos” y Papá
“no tiene oficio, ni beneficio” y Mamá “se quieren y ya es bastante.
(DELIBES, 1988, p. 62)
Neste fragmento aparece uma expressão depreciativa usada pelo pai para
referir-se ao noivo de Dora, reveladora do preconceito do pai de Quico em relação
ao rapaz. A seguir, justifica seu preconceito por meio de uma frase feita, de acordo
com o modo impositivo de quem pretende ser o detentor da verdade. A mãe de
Quico, por outro lado, questiona a posição de seu marido, expõe opinião e afirma
que o fato dos dois se amarem, já é o suficiente para haver o casamento.
63
Papá emprega a expressão idiomática no tener oficio ni beneficio, que é
usada habitualmente para referir-se a aquelas pessoas que não têm trabalho, nem
patrimônio. Torna-se clara uma característica do pai de Quico, a de ser um homem
com tendências preconceituosas, neste caso especificamente com relação a
diferenças entre as classes sociais.
Delibes constrói os diálogos com o emprego de frases feitas e ditos populares
aproximando a linguagem do dia a dia ao contexto dessa família. Um dos trechos
mais ricos neste aspecto é o momento em que, após o almoço, Mamá e Papá
discutem de uma forma indireta, valendo-se de Quico para dizerem o que pensam
um do outro:
_ Papá – dijo- ¿Me pones un disco?
[…]
_ ¿Más discos? – dijo - ¿Te parecen pocos discos todavía? Mira, Quico, en
este mundo cada cual tiene su disco y si no lo toca revienta, ¿comprendes?
Pero eso no es lo malo, hijo. Lo malo es cuando uno no tiene disco que
tocar y se conforma con repetir como un papagayo el disco que estuvo
oyendo toda su vida. Eso es lo malo, ¿comprendes? No tener personalidad.
[…]
Quico abría mucho los ojos. Papá sacó una pitillera de oro, golpeó el pitillo
tres veces contra la superficie de la mesita enana, lo encendió y recostó la
nuca sobre el respaldo del sillón succionando golosamente. Al cabo, Quico,
miró a su madre. Mamá le dijo con rara suavidad:
_ Quico, hijo mío, si en esta vida ves antes la paja en el ojo ajeno que la
viga en el propio, serás un desgraciado. (DELIBES, 1988, p.73)
O pai de Quico utiliza a expressão repetir como un papagayo, ou seja, repetir
sem refletir, não possuir idéia própria. Porém Carmen, como resposta utiliza a
expressão No mirar primero la paja en el ojo ajeno que la viga en el propio que
significa não enxergar o seu próprio defeito, enqua nto aponta os defeitos dos outros.
A personagem Carmen faz uso desta expressão para apontar uma das principias
características da personalidade do seu marido que se considera detentor da
verdade e não admite ter falhas. Papá não percebe que repete conceitos sem
questionar, pois foi educado para isso e deseja que seus filhos repitam o modelo de
homem e de família que ele tem como conceitos corretos. Aí está uma crítica
indireta que Delibes faz aos governos totalitários.
Podemos destacar várias outras expressões, como a utilizada pela mãe de
Quico: “a palabras necias oídos sordos”, isto é: não se deve dar atenção a coisas
que não têm importância, ou seja, fazer-se de surdo quando aquilo que é dito, não
64
tem sabedoria alguma. Trata-se de uma crítica a mais, uma atitude de rebeldia da
mãe, aquela mesma “bata de flores rojas y verdes” do começo da narrativa, mas que
ao longo da obra vai crescendo em consciência e se opõe às palavras autoritárias
do marido.
[…] Hay personas que prefieren hacer de sus hijos unos entes afeminados
antes que verles agarrados a una metralleta como hombres.
Mamá carraspeó:
_ Quico – dijo -. A palabras necias oídos sordos.
Papá se inclinó hacia delante. Las aletillas de su nariz temblaban como un
pájaro sin plumas; sin embargo, no miraba a Mamá, sino al niño:
_ El día que te cases, Quico, lo único que has de mirar es que tu mujer no
tenga la pret ensión de que piensa (DELIBES, 1988, p.75)
A forma como o marido expressa sua opinião é absolutamente autoritária,
sem admissão de questionamento. Por isso mesmo, aquela voz dura e contundente
é comparada pelo narrador à voz de um general, quando afirma: ”su voz, en un
principio dura y reservadamente autorita ria, era ahora dura y contundente como la
de un general” (DELIBES. 1988, p.60). A forma verbal “has de mirar” aponta para o
que deverá ser feito, já delimitado e reduzido pela expressão “lo único”. Mais uma
vez o personagem de Papá demonstra sua visão preconceituosa e unitária,
extremamente machista. Sua visão de masculinidade está ligada à violência, à
belicosidade, na qual o homem só é reconhecido como tal se estiver com armas na
mão. Já a esposa, deve ser uma mulher que não tenha sequer a pretensão de
pensar.
Outra expressão utilizada por Carmen aparece quando ao procurar por Quico
e encontrá-lo escondido em um canto do quarto, pressente que ele deve ter feito
alguma de suas travessuras: “Pero Mamá era tan fina de olfato como un sabueso y,
tan pronto entró en la habitación con las meriendas – elogiando su comportamiento
– y divisó a Quico arrinconado, dijo a media voz: “Qué mala espina me da…”
(DELIBES, 1988, p.98). A expressão dar mala espina a alguien emprega-se quando
algo tem um mal aspecto ou quando em função de uma determinada situação, temse a impressão de que algo negativo está por acontecer. Carmen, ao ver seu filho
agachado em um canto da casa, pressente que deve haver um motivo para que
Quico se comporte assim. Chama por ele e manda que venha a seu encontro.
Percebe quando o menino se aproxima que, mais uma vez, urinou em suas calças e
65
por medo de repreensões tentava se esconder de todos e adiar o momento de
enfrentar o problema.
Vejamos, ainda, outra frase feita utilizada por Carmen:
_ ¡Levanta, anda, levanta! – chilló Mamá y Juan dejó el álbum sobre la
mesita enana y miró envidiosamente para su hermano, mientras mamá
buscaba por la mesa, y por el sillón, y por el suelo y decía: ‘¡Dios mío, Dios
mío, qué chico! Es de la piel de Barrabás. (DELIBES, 1988, p.126)
Neste momento da narrativa, Quico novamente é protagonista de mais uma
de suas travessuras e Mamá usa a expressão “ser de la piel de Barrabás”, ou seja,
ser uma pessoa má ou travessa. Em geral, é utilizada para referir-se a crianças, e
embora possa soar de maneira forte, segundo o Diccionario de dichos y frases
hechas, de Alberto Buitrago Jiménez (1995), ela se reveste de um tom carinhoso,
como na situação apresentada. Equivale a dizer que alguém é “de la piel del diablo”,
e em bom português seria como dizer “é um capetinha”.
Para ilustrar um pouco mais o que viemos desenvolvendo, relacionamos
ainda, outras significativas expressões da obra principal aqui analisada, como a que
foi utilizada quando o homem (Papá) expõe o que acredita ser o papel social ideal
da mulher (Carmen): “La mujer en la cocina, Quico” (p.76). Neste caso, é feita uma
possível alusão ao provérbio espanhol que diz: La mujer y la sartén en la cocina
están bien, um dito absolutamente machista e autoritário, bem ao estilo de “Papá”.
Ou ainda, quando não agüentando mais a “ousadia” de Carmen em seguir com a
discussão, Papá diz a Quico: “[...] ve y di a tu madre que se vaya a freír puñetas.
Hazme este favor, hijito.” (p. 76). Trata-se de uma expressão vulgar, com o mesmo
valor de mandar a alguien a freír espárragos, tipo de expressão utilizada, muitas
vezes, em discussões para dar a entender que a outra pessoa não tem razão e que
pretende encerrar com a polêmica de modo incisivo. É perceptível, ainda, a ironia
que acompanha a fala de Papá ao chamar de hijito a Quico, valendo-se do
diminutivo afetivo enquanto agride verbalmente sua mulher. Cabe ressaltar que esse
é o único momento em que Papá utiliza a palavra hijito para falar com seu filho. Em
nenhum outro momento da narrativa aparece na fala do pai de Quico qualquer forma
carinhosa para referir-se a seus filhos.
Através dessas expressões e dos diálogos que Papá tem com Carmen,
66
vamos aprofundando o conhecimento desse homem, com suas freqüentes frases
machistas e de tom vulgar:
Papá permaneció unos segundos como expectante y al cabo dijo:
_ Ya sabes lo que decía mi pobre padre.
_ ¿Qué? – dijo Mamá.
_ Mi pobre padre decía que las mujeres son como las gallinas, que les
echas maíz y se van a picar a la mierda. DELIBES, 1988, p.62)
O pai de Quico adapta seu registro de acordo com a necessidade do
momento que vive e de seu interesse. Essa oscilação de registro vai desde a forma
mais culta que chega a aparentar um discurso solene : “Lo que a mí me molesta es
que siendo uno un hombre positivamente honrado, alguien venga a poner en duda la
honradez de sus ideas. Si yo soy honrado, mis ideas serán honradas” (DELIBES,
1988, p.74) até a mais vulgar, em momentos em que perde o controle da situação:
“Coño, con la pava ésta! – voceó -. Esto no ocurriría si a tu padre le hubiéramos
cerrado la boca a tiempo, en lugar de andar con tantas contemplaciones.”(DELIBES,
1988, p.70)
Quando o aparente equilíbrio da casa se rompe, nos momentos de tensão, é
o homem (Papá) quem muda de registro e o torna vulgar. Palavras e expressões
chulas ganham destaque em seu discurso. Esse fato tem um significado social, já
que a mulher não usa o mesmo registro do homem, mesmo nas situações mais
extremas. À figura feminina de seu nível social não é permitido fazer uso de uma
linguagem mais chula, já que se espera dela um constante exemplo de postura e o
papel de mante nedora da ordem do lar. Sobre esse tema e com relação à sociedade
española de pós-guerra civil, Martín Gaite afirma:
El significado de algunas palabrotas como ‘joder’, que se les podían escapar
al padre o al hermano en momentos de ira, se mantuvo impenetrable hasta
bastantes años más tarde para muchas jovencitas de la burguesía. Huelga,
pues decir que este tipo de expresiones no manchaban nunca su boca.
(MARTÍN GAITE, 2005, p. 194)
Pode-se, portanto, compreender que era aceitável que um homem utilizasse
expressões grosseiras e até mesmo palavrões. À mulher, no entanto, era desejável
que jamais fizesse uso de palavras ou expressões vulgares. Deveria ser sempre
67
cuidadosa em seu linguajar, em qualquer situação em que se encontrasse.
Outro exemplo de uma personagem masculina que utiliza a linguagem vulgar
é Femio, o soldado namorado de Víto:
_ Calma – dijo -, calma. Ante todo quiero que sepas que si yo me voy allá
no es por voluntario. Y otra cosa: que si tú tienes hoy mala leche, yo la
tengo peor.
La Vítora se dobló hacia él. Le hablaba a gritos:
_ No enseñes esas cosas a la criatura, ¿oyes? ¡No hables así que no estás
en la cantina!” (DELIBES, 1988, p. 103)
Nesse momento, Vito está nervosa porque seu namorado está prestes a ir
para a guerra na África, e acaba gritando com Femio por ter utilizado a expressão
“mala leche” na presença de Quico, a qual ela considera imprópria. Porém, Femio
demonstra com sua linguagem e também com atitudes seu comportamento
tipicamente masculino . É o que acontece no diálogo entre o casal, quando Vito
manifesta seus ciúmes por Femio estar de partida e por ter que permanecer tanto
tempo distante:
_ ¿Y las negras? – preguntó.
El Femio hizo una mueca displicente:
_ ¿Son mujeres las negras?
_ A la Vítora se le cortó el llanto de repente.
_ Mira – dijo -. Para lo que vosotros anda buscando, sobran.
_ El Femio le pasó el brazo por la espalda y deslizó la mano por el escote:
_ A mí me gusta lo blanco, ya lo sabes; cuanto más blanco, mejor.
(DELIBES, 1988, p. 107)
Podemos perceber com a fala de Femio, além do acentuado racismo ao
referir-se às mulheres africanas, o papel que deveria e/ou poderia exercer o homem.
Femio utiliza expressões vulgares e não demonstra empenho em manter uma
atitude “respeitosa” na casa dos patrões de sua namorada. Enquanto isso, Vito se
mostra permanentemente preocupada por fazer seu namorado comportar-se de
maneira adequada e controlar seu linguajar dentro da casa dos patrões, além de
saber que estando distante, dificilmente seu namorado evitará estar com outras
mulheres.
Domi e Vito, apesar de pertencerem ao mesmo grupo social de Femio,
68
seguem a mesma conduta de Carmen, no que diz respeito ao cuidado que têm de
evitar a utilização de vocabulário vulgar. Mesmo expressando-se de maneira mais
popular, palavrões e expressões chulas não fazem parte do repertório lingüístico das
empregadas da casa de Quico.
Domi e Vítora como são de uma classe social mais humilde têm uma
linguagem na qual abundam expressões idiomáticas, típicas da linguagem popular.
Um primeiro exemplo de expressão utilizada por esse universo de personagens
aparece no momento em que Domi se queixa ao saber que Seve, a empregada que
viria para substituí-la por ocasião de suas férias, ainda não havia chegado:“- Buenas
vacaciones – gruñó la vieja, contrariada, y agregó - : ¡Madre qué día más perro!”
(DELIBES, 1988, p.41)
Neste momento Domi utiliza a palavra perro para referir-se a como foi seu dia,
indicando que ele não foi nada bom. É comum na linguagem coloquial o uso da
palavra perro ou da expressão de perro como equivalente a muy mal ou muy malo.
Outro exemplo de expressão utilizada por Domi, no momento em que se
dirige a Quico:“- Vamos, quita – dijo la Domi de mal talante – ¡Qué chico éste! No la
deja a una ni a sol ni a sombra” (DELIBES, 1988, p.42). A expressão em negrito
significa incomodar, molestar alguém com insistência. Após Domi demonstrar sua
insatisfação por ter que ir trabalhar, quando na realidade deveria estar de férias,
Quico inicia uma série de perguntas à sua babá. Porém, Domi, naquele momento,
está impaciente e não quer dar atenção ao menino.
Já no diálogo entre Vítora e seu namorado, aparece na fala de Femio uma
outra expressão popular:
_Mírala – dijo Femio – Ya es espabilada la chavala, ya.
La Vítora parecía enfadada:
_ Es niño, cacho patoso – dijo - . Además, ¿qué sabe la criatura?, siéntate.
Femio se sentó en una de las sillas blancas; se justificó:
_ Estos chavales de casa fina, ya se sabe; ni carne ni pescado. (DELIBES,
1988, p.102)
A expressão em negrito significa que aparentemente não se pode distinguir o
gênero de uma pessoa, neste caso, especificamente, falam de Quico. Femio, que
também pertence ao grupo de personagens menos favorecidos, cultural e
economicamente, demonstra sua consciência em relação às diferenças entre as
69
classes, ao ponto de afirmar que as crianças mais ricas são tão diferentes das
demais que não consegue identificar sequer se são meninas ou meninos.
Ao compararmos a linguagem utilizada pelas empregadas da casa com a
maneira de se expressar dos pais de Quico, notamos que está bem marcada a
diferença do nível social e cultural desses dois grupos. As empregadas da casa,
com seu modo peculiar de expressar-se, denunciam continuamente sua origem:
“Colocó al niño de pie y le enjabonó las piernas y el trasero. Luego, le dijo: Siéntate. Si no lloras al lavarte la cara, te bajo conmigo a por la leche donde el
señor Avelino”. (DELIBES, 1988, p.13)
Ou ainda:
[…] Quico golpeaba rítmicamente el mármol blanco con la cuchara y la
Vítora le dijo:
_ Vamos, Quico, come. ¡Ay, qué criatura, madre!
Quico introdujo torpemente la cuchara en la papilla y la revolvió y los surcos
se marcaron profundos en el plato. Miró y tornó a revolver.
_ Te se va a quedar fría, come. (DELIBES, 1988, p. 27)
No primeiro trecho citado, temos exemplos de usos da oralidade. A expressão
a por, que aparece em negrito, significa dizer para buscar. Já o advérbio donde,
também em negrito na citação, possui o valor de donde trabaja. Ambas as formas
indicam a tendência popular de abreviar ou economizar palavras. Já na segunda
citação, aparece a construção “te se va a quedar fría” típica da fala popular, com
evidente alteração da ordem dos pronomes. No registro culto, o pronome se deve
aparecer antes do pronome te. Esta mesma frase seria apresentada da seguinte
forma, se seguisse a norma culta: Se te va a quedar fría.
Outro fenômeno lingüístico que é recorrente nas falas das empregadas da
casa é o laísmo, utilização equivocada do pronome la (pronome complemento direto)
no lugar do pronome le (pronome complemento indireto). Vejamos o exemplo:
_¿Quién, el Abelardo? ¡Huy, madre! Ése ha nacido de pie, como yo digo. Yo
no sé cómo se las arregla esa chica que todo le sale a derechas. Es sábado
va y la toca el cupón y, el lunes, sortean y el novio aquí, ¿qué la parece?
(DELIBES, 1988, p.p.25 e 26)
No exemplo, os pronomes que foram destacados em negrito, pela norma culta
70
da língua, deveriam ser substituídos pelo pronome le, pois não se trata de formas
diretas, e sim indiretas, não havendo neste caso a marcação de gênero como
acontece com as formas pronominais la e lo (pronomes complementos diretos).
Sendo assim, a frase seria apresentada da seguinte forma: Es sábado y le toca el
cupón y, el lunes, sortean y el novio aquí, ¿que le parece? O uso vulgar do pronome
la chama ainda mais atenção quando sabemos que a região de Castilha onde está
ambientado o romance é leísta, ou seja, é geral a opção pelo pronome complemento
le.
Por todas as nuances da linguagem dos personagens adultos do romance
aqui analisado, podemos afirmar que o que faz Delibes nesta obra é um trabalho
árduo para adequar seus personagens à realidade lingüística do grupo social a que
pertencem. Vale registrar que, como já declarou mais de uma vez, Miguel Delibes,
em suas obras, busca também resgatar traços da linguagem oral, as expressões, o
rico filão de uma linguagem que se via perdendo, contaminada e dissolvida pouco a
pouco pelo progresso que de tudo se apropria. Por isso, trata de preservar naquilo
que chama de “Libro vivo” não só a alma e o sentir castelhanos, mas as diferentes
formas pelas quais um grupo se expressa. Dessa maneira, preserva a cultura e a
história de Castilha.
3.3.2 As personagens infantis
Para Delibes, a criança tem abertas todas as possibilidades do mundo,
podendo ser tudo, enquanto o homem adulto é um menino que perdeu a graça e
reduziu a uma suas possibilidades - o ofício que desempenha. Daí a importância das
personagens infantis na obra delibiana. Para Delibes, elas despertam maior
interesse ao serem protagonistas de um romance ou de um filme, pela carga de
mistério que encerram, por suas múltiplas possibilidades. (GARCÍA DOMINGUEZ,
2007)
Na engenhosa construção de Quico, por cujo olhar infantil vai-se desnudando
a vida de uma família, e principalmente, o mundo adulto, tem grande importância o
tempo infantil, medida que aplicada ao referido mundo adulto revela, expõe e
denuncia. Nesta incursão de Miguel Delibes ao cotidiano, vem à tona a habilidade
com que o escritor maneja o estilo direto e a linguagem infantil. Quico vai ganhando
espaço desde a primeira página do romance, com o grito infantil com que avisa que
71
já acordou e requer afetividade do adulto que estiver mais próximo. A partir daí, vãose explicitando aspectos de sua personalidade, como a inocência e a ausência de
auto-censura, através das palavras que usa e de como as usa. Nesse sentido, um
dos pontos que mais chama a atenção é o fato de que Quico utiliza palavras
consideradas impróprias pelos adultos que o cercam sem o menor pudor.
_ Cris no tiene pito, ¿verdad, mamá?
_ No – respondió Mamá evasivamente.
_ ¿Y tú? ¿Tienes tú pito, mamá?
_ Tampoco; eso sólo lo tienen los niños.
A Quico se le redondearon los ojos azules y exclamó:
_ Entonces, papá ¿tampoco tiene pito?
(DELIBES, 1988, p.22)
Apesar dos adultos considerarem pecado a utili zação de determinadas
palavras e de constantemente orientarem para que Quico não as repita mais, o
menino não dá ouvidos aos constantes pedidos dos adultos, já que é uma criança
muito pequena e ainda não mede o que diz.
Como a intenção de Quico é chamar a atenção dos adultos, nem mesmo as
constantes frases ameaçadoras de Vítora surtem o efeito desejado sobre o menino:
[...] El niño levantó la cabeza para ampliar las perspectivas de los bajos de
la bata listada de azul de la Vítora.
_ ¿Y dónde te pincha, Vito? – dijo - . ¿En el culo?
_ Anda, a ver. Pero no digas eso; es pecado.
_ ¿Culo es pecado?
_ Eso; y si lo dices te llevan los demonios al infierno. (DELIBES, 1988, p.16)
Quico, apesar de fazer uso de tais palavras, percebe que não deveria dizê las, pois é orientado tanto por sua mãe, como pelas empregadas da casa para que
não as use. Sua consciência sobre esse fato é facilmente perceptível quando,
estando chateado por algum motivo, ele decide utilizar palavras proibidas como
“mierda”, “culo”, entre outras, como uma forma de protesto, ou simplesmente para
“experimentar” e perceber a reação dos adultos.
_ ¿No es ésta, por casualidad, la nena del señor Infante, el de Tapiosa?
_Sí, señorita, pero es nene.
La señora acentuó su sonrisa:
72
_Claro – dijo – a esta edad. Le ve una tan rubio y con esos ojos…
Quico se había puesto serio, casi furioso:
_ Soy un machote – dijo.
Ella rió, ya en alta voz, divertida.
_ ¿Así que eres un machote? – preguntó.
A Quico le dolía la nuca y la estatura de ella y su condescendencia y
experimentó uno de sus súbitos arrebatos. Chilló:
_ ¡Mierda, cacao, culo…! (DELIBES, 1988, p.20 e 21)
As criadas reprimem Quico no intuito de que deixe de empregar termos
vulgares. Porém, esse não é o único motivo pelo qual podemos afirmar que elas
influenciam na forma como Quico se expressa. Domi e Vito são os adultos que
permanecem mais tempo com o menino, o que o faz reproduzir os mesmos
“desvios” de linguagem das duas empregadas.
Como Delibes é um autor que se preocupa em reproduzir as diferentes
realidades lingüísticas de seu idioma, surgem na fala de suas personagens aspectos
da linguagem popular que nem sempre estão de acordo com a norma culta vigente,
como na fala de Quico, em que se destaca o recorrente emprego de “leísmos”, nome
dado ao uso do pronome complemento indireto le, no lugar das formas pronominais
lo ou la, que são pronomes complementos diretos. De acordo com a Real Academia
Española de las Letras, este uso só é permitido se for utilizado em substituição a um
complemento direto que seja uma pessoa, do sexo masculino e no singular.
Vamos tomar como exemplo a seguinte passagem do romance: “Mamá
entraba y salía de la cocina. El niño estiró el bracito con el tubo de dentífrico en la
mano y se lamentó: _ ¿Ves? Me se ha mojado el cañón. Sécamele” (DELIBES,
1988, p.15). Na forma verbal seguida dos pronomes me e le que no exemplo se
apresenta em negrito, observamos a ocorrência de leísmo. O pronome le foi
empregado como substituto da palavra cañón, quando deveria ter sido utilizado o
pronome lo, por ser o complemento direto, por ser uma palavra masculina e por
estar no singular. Vale observar que essa construção com o pronome le, embora soe
rara, corresponde a uma tendência leísta da região, que vai se tornando cada vez
mais geral na atualidade.
Analisando ainda o exemplo dado anteriormente verificamos que, além do
leísmo, há outra característica da fala de Quico que merece destaque. Na frase “Me
se ha mojado el cañón” houve a inversão da ordem usual dos pronomes postos em
negrito. Dentro da norma do registro culto espanhol, como já foi visto, o pronome se
73
tem precedência sobre o pronome me, o que determina que a frase gramaticalmente
correta fosse: “Se me ha mojado el cañó n”.
O uso de leísmo e a alteração na ordem dos pronomes sobre os quais
acabamos de nos referir documentam a reprodução feita por Quico do que escuta
dentro da casa, seguindo, portanto, como modelo a linguagem de suas babás. Sobre
o emprego do leísmo e do laísmo nas obras de Delibes, Manuel Alvar (1987)
esclarece:
[...] Delibes no es melindroso en el empleo de un lenguaje poco académico;
a veces diríamos descuidado. Para cualquier no castellano es una agresión
el uso del leísmo y del laísmo, tan del hablar de Valladolid y del occidente
peninsular. Pero casi siempre el uso de la lengua intenta crear un clima real;
así el vocabulario dialectal, que aflora […] más en las gentes populares o
rurales que en las burguesas; o en una lengua conversacional que trata de
colocarnos en el ambiente de los hablantes […]. (ALVAR, 1987, p. 27)
Além dos desvios das normas gramaticais, a linguagem dos mais jovens
apresenta outras semelhanças com a dos adultos. O autor também lança mão, nas
falas dos irmãos de Quico, de expressões e ditos típicos da linguagem popular:
“ ¡Ay!, Quiquín, cada día que pasa eres más pequeñazo y entiendes menos las
cosas; eso no es una escopeta, ¿sabes?, es la trompa de un gramófono del tiempo
de Maricastaña”. (DELIBES, 1988, p.148)
Merche fala a seu irmão Quico a respeito de um aparelho de som muito
antigo, que o irmão sequer reconhece como tal. Nesse momento ela utiliza a
expressão que aparece em negrito ser del tiempo de Maricastaña. Essa expressão é
utilizada quando queremos nos referir a alguma coisa que existiu ou algum fato que
ocorreu há muito tempo 6.
Como bem nos informa Manuel Alvar (1987), Delibes é no aspecto lingüístico,
um escritor bastante audacioso, principalmente pelo fato de fazer uso de vocabulário
6
Segundo o Diccionario de Dichos y Frases Hechas, de Buitrago (1995) a história não deixa claro quem foi essa
personagem chamada Maricastaña. Somente sabe-se que existiu, por volta do século XIV, uma mulher chamada
Mari Castaña, apelido que pode dever-se à cor de seu cabelo, ou ao fato de ser casada com alguém chamado
Castaño. O que se sabe ao certo é que esta mulher encabeçou uma rebelião contra o pagamento de tributos
impostos pelo bispo de Lugo, onde vivia. Esse parece ser o motivo pelo qual seu nome passou para a posteridade e
acabou em forma de dito popular. No entanto, falar da origem da maioria dessas expressões que o povo reproduz
há séculos, e cujo significado nem sempre pode ser deduzido interpretando-se as palavras que as formam, resulta
quase sempre arriscado, pois como toda forma de expressão tipicamente oral, o tempo cuida para que se torne
impreciso onde, por quem e por quê essas frases foram utilizadas pela primeira vez.
74
que, em geral, não tem lugar nas páginas de quem escreve literatura. Além disso,
ele trabalha a palavra para que ganhe vida e reflita vida. Em função dessa
característica, nos diálogos da obra, ganha destaque, também, a entonação da fala
de seus personagens, como no momento em que Quico, ainda nas primeiras
páginas do livro, acorda em seu quarto e se dá conta de que está só, e busca a
atenção das pessoas da casa gritando “_ Ya me he despertadooooo!” (DELIBES,
1988 p.10). Ou ainda os sons infantis, emitidos pela irmã caçula de Quico, que
sequer sabe falar:
La niña palmoteaba y decía:
_Atata, atata.
Quico se llegó a ella, le tomó las manos y la hizo palmotear con más fuerza
y la niña reía a carcajadas y el niño rompió a reír y la niña volvió a decir:
_ Atata. (Delibes, 1988, p.26)
Para recriar o universo infantil, as onomatopéias aparecem com freqüência no
romance de Delibes:
Quico se encaramó en el triciclo rojo e hizo con la boca: “Ferren-ferrenferren” y pedaleó hacia atrás con gran agilidad y, luego, salió disparado
pasillo adelante. Frente a la puerta de la cocina dio vuelta al manillar y así,
con él del revés, desanduvo el camino andado. De nuevo en el cuarto, tomó
el fuerte astillado, buscó un cordel, lo amarró al asiento, se subió al sillín y
pedaleó briosamente por el pasillo. El fuerte, al trompicar en el suelo, hacía
“boom, booombooom, boooom”, mientras la rueda delantera, al girar sobre
el eje reseco, hacía “güi-güiiiii-güi” […] (DELIBES, 1988, p.52)
A imaginação infantil e o aspecto lúdico permeiam a narrativa e o autor logra
uma vez mais, fazer com que o leitor se sinta no mesmo ambiente daquelas crianças
ainda tão inocentes, que brincam de bandido e mocinho e que vêem num simples
tubo de pasta de dente uma poderosa arma de guerra, sem imaginar os reais efeitos
de um canhão.
Para Quico, tudo é uma grande descoberta e cada experiência torna-se
extremamente importa nte. Fatos simples ocorridos dentro de sua casa são
supervalorizados pelo menino, a ponto de tornarem-se verdadeiras fixações.
Questões pessoais também ganham importância na vida e consequentemente nas
falas do menino. Daí a insistência em noticiar a todos que ele já não faz mais xixi na
75
cama, ao contrário de sua irmã Cristina e de contar a todos que chegam a sua casa
sobre a morte do gato de sua vizinha.
Basicamente são esses os dois únicos assuntos de Quico durante todo o seu
dia. Essa limitação no tema de suas conversas segue a mesma motivação pela qual
se deu a limitação do tempo na obra. Da mesma forma que, por sua pouca idade,
Quico ainda não tem uma memória de seu passado e, por isso, não temos
informações sobre a história da família, o universo de Quico limita-se à sua casa e
somente o que ocorre ali dentro tem significado para ele. Suas primeiras percepções
sobre a morte, seus pequenos avanços na direção de se tornar livre das fraldas,
enfim, suas primeiras experiências possuem para ele grande importância. O
momento de Quico é de descoberta sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia.
Entre as fixações como falar da morte do gato e falar palavrões, está a de
cantar um trecho de uma canção típica da oralidade:
´No es domingo’, se dijo con tenue voz adormilada y estiró los brazos y
entreabrió los dedos de la mano contra el haz de luz y los contrajo y los
estiró varias veces y sonrió y canturreó maquinalmente: ‘Están riquitas por
dentro, están bonitas por fuera’. (DELIBES, 1988, p.10)
Em outras passagens, Quico recordará a música e irá cantá-la, mesmo
quando o momento não é propício:
_ Vamos, Quico come. ¡Ay qué criatura, madre!
Quico introdujo torpemente la cuchara en la papilla y la revolvió y los surcos
se marcaron profundos en el plato. Miró y tornó a revolver
[…]
Quico canturreó: ‘Están riquitas por dentro; están bonitas por fuera’. La niña
concluía ya su desayuno y la Vítora se alborotó toda:
_ ¡Mira que llamo a tu mamá, Quico!” (DELIBES, 1988, p. 27)
Apesar de cantar somente um pequeno trecho de uma canção, essa música
se repete em várias horas do dia e é uma lembrança recorrente. Esses pequenos
detalhes quanto ao comportamento do menino contribuem para o desenho de sua
personalidade, do perfil dessa criança e para a própria construção da personagem.
Nesses momentos da narrativa em que o autor nos apresenta essas peculiaridades
de Quico vão aparecendo condutas típicas de um menino de sua idade que ajudam
76
a fazer com que seu leitor forme uma imagem, aquilo que Hortencia Viñes (1983)
chama de visualização lingüística da personagem.
Quanto à atitude de Delibes, de inserir, uma vez mais, traços da linguagem
oral em seu texto, diríamos que o faz por considerar que a tradição lingüística não
pode ser esquecida. Os jovens de hoje e as futuras gerações devem conhecer a
história e a riqueza de sua língua, que não pode ser “enterrada” por modismos. Não
é necessário padronizar a linguagem. Cada um se expressa de acordo com seu
conhecimento de mundo, de acordo com sua cultura.
77
3.4 NO COMPASSO DA CANÇÃO
Delibes, na tentativa de recuperar aspectos da época na qual transcorre a
narrativa e da vida desse grupo de pessoas que representam a sociedade
espanhola, incluindo a classe burguesa, os serviçais e gente de diferentes faixas
etárias, lança mão de um elemento muito importante: as canções. Elas aparecem na
obra de diferentes maneiras e vão marcando o espaço onde se concentram as
personagens que representam a classe mais simples com músicas que eram
sucesso na época.
A maioria das canções surge na narrativa através do rádio. Não devemos
esquecer que este veículo de comunicação de massa era muito importante, pois,
além de entreter os ouvintes com canções românticas e populares, era
inegavelmente , usado como instrumento de propaganda do governo franquista.
A História oficial narrada pelos modos retóricos dos historiadores partidários
de Franco coincide com o país e a sociedade sorridente que se reflete nos
poemas-canção difundidos pela Espanha e pelo mundo nas ondas do rádio,
um novíssimo instrumento de comunicação muito bem explorado pela
propaganda franquista. (NASCIMENTO, 2002, p.2)
O rádio chegava às casas de grande parte da população espanhola,
alcançando até mesmo a classe social mais humilde. Foram vários os fatores que
influenciaram na popularização do rádio, como nos informa Manuel Vázquez
Montalbán:
La radio tenía una envergadura considerable y estaba en condiciones de
dictar la sentimentalidad popular, y así lo hizo entre 1950 y 1960. La cosa
tuvo su prehistoria infraestructural: la intensa electrificación del país, la
definitiva comercialización de los receptores. Se llegó a estimular las más
variadas formas de comprar una radio. Por ejemplo: la de la radio hucha
que funcionaba a base de ir metiendo monedas por una ranura.
Periódicamente pasaba un empleado de la empresa vendedora y se llevaba
la recaudación del mes. (VÁZQUEZ MONTALBÁN, 2003, p.108)
Essa forte presença do rádio pode ser percebida através do hábito de Domi e
Vítora de escutarem canções durante praticamente todo o dia. Canções como La
78
Violetera7, cantada por Sara Montiel8, e ¡Ay, Jalisco no te rajes!9, música mexicana
que ficou conhecida na voz de Lola Beltrán10, são algumas das músicas ouvidas
pelas criadas.
Enquanto os mais velhos se conectam ao som do rádio para escutar canções
românticas, os mais jovens preferem o som do twist e fazem uso de aparelhagem de
som moderna para a época para poderem se divertir e dançar. É o que fazem os
irmãos mais velhos de Quico:
[...] Quico oyó la música en el cuarto del fondo y echó a correr por el pasillo
y, desde la puerta, divisó a Merche y a Teté braceando, culeando, siguiendo
el compás del tocadiscos a toda potencia, y a Marcos y Juan recostados en
la mesa, mirando, y Merche canturreaba:
Lo bailan las muchachas y la gente mayor,
Pues es el nuevo ritmo
Que ha nacido del rock;
La rubia, la morena, pelirroja, da igual.
Tan sólo es necesario
No perder el compás.
Twist, twist, baila el twist, mi amor.
Twist, twist, baila sin cesar
Y sentirás el ritmo en ti
Con una fuerza que te hará feliz… (DELIBES, 1988, p.p.138 e 139)
Assim como as canções tocadas no rádio ouvidas por Vito e Domi, esse twist
parece não ter muita relevância para a narrativa, porém reflete o momento em que o
ritmo estrangeiro começava a chegar à Espanha. Marca a abertura cultural que se
iniciava por fim e a diferença de valores e de comportamento entre as gerações.
O twist foi um ritmo de sucesso na década de 1960 e tomou conta da
Espanha e de tantas outras partes do mundo após o surgimento do rock, na década
anterior.
El twist, heredero del rock, significaba una dulcificación de su pariente
rítmico. Los padres se tranquilizaron ante aquella sustitución. El twist era
muy posible bailarlo con camisa blanca y corbata, indumentaria reñida
totalmente con el rock y su espíritu. (VÁZQUEZ MONTALBAN, 2003, p.
184)
7
Letra integral da canção La Violetera no Anexo A.
María Antonia Alejandro Abad Fernández foi atriz e cantora espanhola que obteve grande sucesso na década de
1950 e 1960, atuando em produções es panholas, mexicanas e americanas, entre outras.
9
Letra integral da canção ¡Ay, Jalisco no te rajes! no Anexo B.
10
Lucila Beltrán Ruiz foi a maior cantora mexicana de música “ranchera”. Ficou conhecida como “Lola la
Grande”. Gravou cerca de 80 discos e participou de mais de 60 filmes.
8
79
Não importava o significado das letras das canções e, sim, seu ritmo alegre,
frenético, uma espécie de rebeldia frente ao autoritarismo de uma época. No
entanto, mesmo tendo esse caráter rebelde, o twist era visto com bons olhos pelos
pais desses jovens, pois seus filhos, ao dançarem aquele ritmo, o faziam de forma
mais comedida e conservavam uma maneira de vestir “adequada”, como nos afirma
Vázquez Montalbán.
Percebemos dois comportamentos diante da música no contexto da obra que
podem nos indicar e/ou exemplificar duas posturas distintas frente à realidade
político-cultural dos anos 60 na Espanha. Primeiramente, um proletariado sem
muitas expectativas, nem planos para o futuro, que encontrava nas canções
românticas ou de ritmos alegres a evasão para seus problemas e desesperanças. E
por outro lado, jovens pertencentes a uma pequena burguesia começavam a
consumir ritmos que, vindos dos Estados Unidos e da Inglaterra, estavam na moda e
eram a preferência da juventude de países onde não havia a mão pesada do poder
a indicar o que era boa fonte ou não de diversão popular.
Se até pouco tempo atrás certos temas relativos à Espanha do franquismo
eram obscuros, desconhecidos, hoje eles vêm à tona, na tentativa de um
conhecimento maior sobre um longo período em que se manteve todo o país sob
mão férrea do poder hegemônico de Franco. E o que poderia parecer sem
importância, contribuiu para um melhor conhecimento daquele período. É o que
mostra estudos recentes sobre a canção ligeira no período franquista que começam
a surgir aqui no Brasil. Em agosto de 2007, no XII Congresso de Professores de
Espanhol, organizado pela AMPLE (Associação Mato-grossense de Professores de
Espanhol) em Cuiabá, chamou-nos a atenção uma mesa coordenada cuja proposta
era a de pensar a música como testemunha de um momento histórico, como
elemento relevante, protagonista até, pois para os membros da mesa a música
também é capaz de contar história, fazer parte de sua dinâmica social e não só de
ilustrá-la.
Em meio a músicas românticas e ingênuas e ao twist com seu ritmo alegre,
uma canção chama a atenção por tratar de questões políticas, mais especificamente
do exílio, algo tão delicado para a época.
80
La Vito suspiró. La asaltó repentinamente una idea, se volvió al armario
blanco, abrió una de las puertas, tomó un transistor, envuelto en una
desgastada funda, color tabaco, y lo conectó. La voz salió un poco áspera,
un poco gangosa, un poco rutinaria: ‘A Genuino Álvarez – dijo - , por haberle
tocado a África, de quien él sabe, oirán ustedes Cuando salí de mi tierra’.
(DELIBES, 1988, p.43)
El Emigrante 11 foi escrita e cantada por Juanito Valderrama, um dos principais
cantores do flamenco espanhol que durante a guerra civil espanhola alistou-se em
um batalhão republicano. Essa canção, diferentemente do que seu nome sugere,
trata, de forma velada, dos exilados que tiveram que deixar Espanha por motivos
políticos durante o governo de Franco. O sucesso dessa música foi tão grande que o
próprio ditador espanhol aplaudiu e pediu bis em uma apresentação de Valderrama,
e ainda elogiou a canção que foi compreendida por ele como muito “patriótica”, sem
perceber que se cantava a triste partida de um exilado político que , ao deixar sua
terra, deixa para trás o que tem de mais precioso - sua pátria e seu amor 12.
A música está presente na casa de Quico não só por causa do rádio ou da
vitrola, símbolos de mudança de hábitos e de certa modernização da sociedade, ela
também se faz presente pela recuperação de uma tradição, mais especificamente a
poesia de tradição oral espanhola , através da personagem Domi.
Domi é uma senhora que apresenta em alguns momentos um caráter
bastante falho , por tentar demonstrar perante Carmen sua paciência e carinho pelas
crianças, o que nem sempre condiz com seus verdadeiros sentimentos, como na
passagem em que, na ausência da mãe de Quico, Domi mostra-se impaciente e
chega a ser dura com as crianças; porém, ao perceber a presença de Carmen, a
babá passa a mostrar-se como uma pessoa frágil e com sentimentos:
Quico terció, mirando a los altos, girando la cabecita rubia hacia todas
partes:
_ ¿Dónde está la mosca, Domi?
_ ¡Vamos, calla la boca tú!
_ Entró súbitamente la bata de flores rojas y verdes. La Domi adoptó una
actitud compungida; apretó fuertemente los párpados hasta que en uno de
los ángulos de los ojos surgió una lágrima. La bata se aplacó:
_ ¿Ocurre algo, Domi? (DELIBES, 1988, p. 42)
11
12
Letra completa da canção El Emigrante no Anexo C.
Entrevista de Juanito Valderrama no Anexo D.
81
Percebemos nesse momento da narrativa que Domi dissimula diante de
Carmen. No entanto, depois que se ausenta da cozinha, muda de expressão
repenti namente e volta a ser a mesma pessoa rude de antes.
Apesar de tudo isso, ela consegue a admiração de Quico, cativando-o através
das histórias antigas e trágicas que conta. Em função disso, Quico faz questão da
presença da empregada em sua casa, mesmo quando sua mãe, insatisfeita com
algumas atitudes da babá ameaça demiti-la.
_ Mamá, yo no quiero que se marche Domi.
_ Que lo diga – dijo Mamá.
Quico aguardó un rato antes de hablar:
_ Si se va Domi – dijo – ¿Ya no vuelve nunca, nunca?
_ Otra vendrá – dijo Mamá.
_ Yo no quiero que venga otra. (DELIBES, 1988, p.125)
Domi, na tentativa de dominar os ânimos das crianças da casa, traz ao
cenário familiar a poesia popular, canções pertencentes à tradição oral. É ela quem
detém o conhecimento da literatura oral, que vive na boca do povo e se transmite de
geração em geração.
As cantigas cantadas por Domi assemelham-se à “literatura de cordel” ou
“romances de ciego”, literatura popularizada através de “pliegos de cordel”, ou seja,
pequenos cadernos que continham os te xtos literários e eram vendidos atados a
uma corda enquanto cegos cantores entoavam as histórias. De autores anônimos,
essas canções relatam histórias dramáticas, com um desenlace trágico. Segundo
Lorenzo Vélez (1982), a literatura de cordel foi até o início do século XX um
importante meio de transmissão de poesia, um excelente instrumento de informação
e um eficaz sistema de propaganda política até a ascensão do jornalismo, iniciada
no século XIX.
Aparecem na obra duas canções de tradição oral, nas quais os temas tão a
gosto dos tradicionais “pliegos de cordel” são desenvolvidos. A primeira delas, Domi
canta a pedido de Quico que a chama de “lo del niño que comía con las vacas”.
Nela, a situação se constrói a partir de uma seleção vocabular altamente dramática
e uma adjetivação inteiramente negativa que remetem ao medo e à desgraça:
82
Quico arrastró la butaquita de mimbre a los pies de la mujer y se sentó.
Juan y Quico levantaban sus caritas expectantes. La Domi carraspeó;
entonó al fin:
_ Prestad mucha atención
al hecho criminal de un padre ingrato, degenerado,
hombre sin corazón,
sin ninguna piedad,
que en Valdepeñas ha secuestrado
a un hijo suyo
este hombre infame
en un establo y sin comer,
La Domi imprimía a la copla unas inflexiones, unos trémolos que
subrayaban el patetismo de la letra. Quico le miraba el hueco negro en la
fila de dientes de abajo, aquel vano oscuro que acentuaba la gustosa
sensación de terror que le recorría la espalda como un escalofrío […]
(DELIBES, 1988, p.92-93)
Além de palavras como “criminal”, “ingrato”, “degenerado”, “sin piedad”, “sin
corazón”, corrobora para a criação de um ambiente ameaçador a interpretação de
Domi que consegue fazer com que seus expectadores se envolvam na história a
ponto de sentirem arrepios. Porém, o medo que toma conta das crianças é
justamente o elemento que as seduz e prende sua atenção.
Quico se encanta tanto com as canções que não se satisfaz em escutar
somente uma e suplica a sua babá para que siga cantando. Domi, então, entoa
“Rosita Encarnada”. Nesta canção, conta-se a história de um soldado que ao
regressar da guerra vai ao encontro do seu antigo amor. Porém, acaba descobrindo
que ela está casada e por isso deseja matar sua amada:
La Domi oscureció la voz. Siempre que hablaba el Soldado bajaba la voz
tanto que parecía que cantaba dentro de una caja de muerto:
Me juraste Rosita Encarnada
Que con otro hombre no te casabas,
Ahora vengo a casarme contigo
Y me encuentro que ya estás casada.
La Domi hizo un alto estudiado y miró a los dos pequeños, inmóviles, como
hipnotizados. Su voz se aflautó, se hizo implorante y desgarrada, de pronto:
¡No me mates, por Dios, no me mates!
No me mates, tenme compasión;
Ese beso que tú a mí me pides
Ahora y siempre te lo he de dar yo.
Juan denegó con la cabeza. Sabía que el Soldado no la besaría. Siempre
temía, sin embargo, que cediera y terminara besándola. Quico le miró con el
rabillo del ojo y denegó también sin saber bien a qué. La voz de la Domi se
tensó y, aunque brumosa, se hizo vivaz y dramática:
Yo no quiero besos de tus labios,
Lo que quiero es lograr mi intención,
Y sacando un puñal de dos filos
En su pecho se lo atravesó.
(DELIBES, 1988, p.p. 95 e 96)
83
Novamente a representação por parte da babá cria um ambiente propício à
canção: “Domi oscureció la voz”, “hizo un alto estudiado”, “Su voz se aflautó, se hizo
implorante y desgarrada”. Essas mudanças no tom de voz de Domi são necessárias
para dar a dramaticidade necessária à canção. Toda essa “encenação” desperta a
imaginação das crianças, aumentando o interesse delas pelas canções, a ponto de
pedirem à Domi que cante outras mais.
Domi canta cada história valendo-se de sua memória, utilizando uma versão
recebida possivelmente de pessoas mais velhas, pais ou avós que lhe entregaram
retalhos de uma tradição oral que ora ela reproduz. Por pertencerem à tradição oral,
essas canções estão permanentemente sujeitas a transformações, perdas ou
acréscimos de elementos, como se observa por meio de outras versões 13. Elas
fazem parte de um sistema aberto que se mantém em contínua adaptação ao
ambiente, ao sistema lingüístico e cultural do grupo humano que as produzem ou as
cantam.
Tanto a figura do pai ingrato que seqüestra o próprio filho, como a do soldado
que retorna da guerra e mata sua namorada, nos remete à observação de Lorenzo
Vélez (1982) quando afirma que a literatura de cordel oferece una visão vitalista da
realidade, na qual entram em jogo crimes passionais, terríveis vinganças e
arrependimentos de pecadores incorrigíveis. Verificamos, assim, que embora as
canções de Domi não integrem o repertório do cordel, contém os mesmos
ingredientes.
Domi também resgata as canções infantis, que tal como os “romances de
ciego” não possuem autor conhecido e também fazem parte da tradição oral. Porém,
essas canções não têm elementos dramáticos ou que causem espanto, e sim
servem como entretenimento, para brincadeiras e para adormecer as crianças.
Cristina empezó a lloriquear y la Domi movió acompasadamente las piernas
y canturreó: ‘Arre, borriquito, vamos a Belén…’ y la niña se recostó en su
pecho y cerró los ojos. Dijo:
- Esta criatura está muerta de sueño. (DELIBES, 1988, P.45)
É oportuno observar que como o romance em questão se passa no mês de
dezembro, mais especificamente no dia 03, Domi, ao cantar, diz “vamos a Belén”, já
13
Outras versões de Rosita Encarnada no Anexo E.
84
que se aproxima o Natal. No entanto, no lugar de “Belén”, há destinos como Jeréz e
Sanlúcar, encontradas em outras versões dessa canção, utilizadas fora da época do
Natal14.
Por se tratar de formas tradicionais de expressão popular espanhola, Miguel
Delibes reserva às cantigas, sejam elas infantis como as cantada para Cristina, ou
trágicas como as que desejavam escutar Quico e Juan, um lugar especial em sua
obra. Como
incansável
defensor
das
diferentes
formas
de
linguagem
e
manifestações culturais, Delibes oferece uma contribuição no sentido de preservar
as manifestações culturais de seu povo, de modo a fazer com que gerações futuras
possam conhecer e desfrutar do imenso caudal cultural guardado na memória de
sua gente . As canções populares correm o risco de desaparecer, se não forem
passadas para as gerações futuras através da própria oralidade ou através do texto
escrito, como faz Delibes, ao registrá-las em suas obras.
14
Outras versões da cantiga Arre borriquito no Anexo F.
85
CONCLUSÃO
Ao debruçarmo-nos sobre a obra de Miguel Delibes, parece-nos que seu
propósito era o de estimular seu leitor à reflexão sobre os problemas que afligem o
homem em sua contemporaneidade, pois acredita que no futuro o mundo pode e
deve ser melhor. Um mundo em que todos possam reconhecer-se como seres
humanos dependentes uns dos outros para viver melhor e em harmonia. Nesse
futuro deveria figurar um ser humano mais livre em pensamentos e ações, que não
estivesse subjugado pela fome, pela pobreza ou por qualquer tipo de exploração.
Por outro lado, os homens teriam que desenvolver toda a sua capacidade de aceitar
o outro como é, tolerando as diferenças, que são tão poucas se comparamos com o
que existe em comum entre os seres humanos que habitam qualquer parte desse
nosso planeta.
Porém essa mudança só seria possível com comunicação, solidariedade
entre os setores da sociedade e compaixão entre os homens. A educação configurase nesse quadro como um dos principais pilares para a mudança. Através dela
poderia haver uma alteração de valores da sociedade que, já na segunda metade do
século XX e também em nossos dias atuais, estão voltados para a aparência e para
a obtenção de bens materiais. Assim, o homem, o que há dentro dele, vai ficando
cada vez mais preterido e sua essência escamoteada sua essência durante a cíclica
substituição do ser pelo parecer.
Nem tudo o que Delibes queria escrever era lícito. Suas obras escritas
durante o período franquista, principalmente aquelas escritas até a década de 1960,
período a partir do qual iniciou-se uma lenta abertura, não alcança tocar em todas as
questões cruciais da época, mas atingem o seu propósito se não acreditarmos na
ingenuidade de sua trama, mesmo aquela que pareça não tratar de nenhum tema
relacionado à política ou a problemas sociais.
A preocupação social de Delibes está presente em suas obras, não para
identificar os “bons” e os “maus” e separá-los em dois bandos, pois isso já havia sido
feito, mas mostrar os dois lados como vítimas e culpados ao mesmo tempo. A
preocupação social não consiste em fazer um mundo maniqueísta, e sim em
aproximar-se dos problemas do homem para, então, compreendê-los e, a partir
deles, justificar sua conduta (ALVAR, 1987).
Delibes narra a partir de sua observação dos fatos, e sente piedade daqueles
86
que não possuem força para lutar em igualdade de condições e por isso estão no
grupo dos mais fracos, daqueles que, em geral, saem perdendo.
Não podemos nos esquecer que as décadas que se seguiram após o término
da guerra civil espanhola foram tempos marcados por guerras que levaram ao
mundo ocidental problemas graves em sua economia, culminando, muitas vezes, no
desamparo de sua população que se viu imersa na fome, na incerteza, na
insegurança quanto ao futuro. A diferença entre as classes sociais, fortemente
marcada, dividia a sociedade entre os que tinha m poder aquisitivo para manter um
bom padrão de vida, de educação e social e os que viviam um dia de cada vez,
tentando manter-se de pé no sutil limite entre a pobreza e a miséria.
Para Delibes, a principal causa desse quadro desolador era o desamor e a
crença cega na existência de uma verdade única e absoluta, capaz de traçar
destinos, responsáveis por atitudes egoístas que abriam passo ao abandono, à
insensibilidade e a tantos outros males que geram mais malefícios à sociedade,
como a falta de comunicação, que por sua vez é responsável pela solidão existente
até mesmo dentro de um pequeno espaço social, devido à completa falta de
destreza para conviver com as diferenças.
Todas essas questões estão em El príncipe destronado e uma a mais: a
guerra. Apesar de não haver um período de guerra dentro da Espanha nos anos
1960, existe ainda um clima de guerra perceptível através das relações conflituosas
entre Papá e Mamá, que estão constantemente se enfrentando numa espécie de
guerra verbal em que ambos os lados não se compreendem, nem se toleram e pelas
constantes lembranças de Papá com relação ao conflito bélico e de sua crença nos
homens que lutaram pelos ideais nacionalistas e nos seus valores.
Delibes se atreve a entrar no mundo infantil, cheio de descobertas, medos e
desejos em apenas uma jornada, que encerra um mundo completo. Traça-nos um
retrato da infância que alude ao regime político de Franco, à difícil relação entre
homens e mulheres, aos conflitos familiares e domésticos. A casa de Quico é o
microcosmo de Espanha sob vários prismas pois nos mostra as relações humanas,
as guerras, além de estarem retratados ali costumes e tradições, formas de
expressão do povo espanhol, através da música e da oralidade.
São apresentados na obra diferentes níveis da fala do povo espanhol: desde
o modo de se expressar de imigrantes rurais, com sua linguagem simples, com seu
vocabulário limitado, mas que guardam uma grande riqueza, pois são conhecedores
87
de uma cultura popular que sobrevive através de canções transmitidas oralmente de
geração em geração, capazes de recontar uma parte da história do povo espanhol,
até o dos ricos, com seu vocabulário requintado, com forte influência da cultura
norte-americana.
Trata-se de extremos que se encontram em um mesmo espaço, que
convivem e trocam experiências. Certa mistura entre os grupos acontece,
principalmente entre crianças e empregados, pois vários registros coexistem e
motivam a heterogeneidade da linguagem do romance. O romancista, criador e
testemunha dessa realidade plural segue o estilo de cada um de suas personagens
ao narrar a história. Um modo “popular“ de escrever, segundo afirma Valle Spinka
(1975), que com o uso de gírias, apelidos, repetição do uso de gestos por parte do
falante, entonações diferenciadas, reprodução da fala das crianças, onomatopéias,
artigos com nomes próprios, entre outros recursos, dá individualidade a cada
personagem.
Além de seu desejo de preservar as tradições, ou seja, de valorizar o
passado, há também em Delibes, como vimos, o interesse de registrar o está
acontecendo no momento em que escreve . Daí a presença do rádio, o principal
veículo de informação na década de 1960, e de novidades do mundo musical que
faziam sucesso entre adolescentes e jovens, como o twist e de temas como a guerra
e a violência, questões centrais para a Espanha e para todo o mundo, já que ainda
estava muito presente o horror vivido pela Guerra Civil e pela Segunda Grande
Guerra.
El príncipe destronado é uma das muitas incursões de Miguel Delibes no
mundo cotidiano. Por observar a normalidade da vida, Delibes é capaz de trazê -la
para sua narrativa usando um estilo direto e aparentemente fácil, como se estivesse
falando ao seu leitor, o que é um de seus maiores desafios e grande mérito.
Por tudo o que foi exposto e discutido nesta dissertação, pensamos ter
encaminhado, com nossa leitura, uma reflexão sobre a questão da Espanha dividida,
ainda que isso tenha sido feito a partir de uma obra que tematiza um dia na vida de
uma criança de pouco mais de três anos de idade. Cremos também ter sido possível
mostrar Miguel Delibes como um escritor audacioso pela temática que aborda em
suas obras, pela linguagem utilizada, pelo uso de palavras muito mais ouvidas do
que lidas, pela constante inovação da forma como são narradas suas histórias ou
estruturados os seus romances. Esperamos, por fim, ter comprovado que a leitura
88
dos romances de Delibes, e especificamente de El príncipe destronado, oferece ao
leitor a oportunidade de dialogar com um escritor que se vale de seu ofício para
expressar seu pensamento, sempre voltado para o ser humano e seu direito à
liberdade, já que sua obra é uma prolongação de sua pessoa, de suas inquietações,
obsessões e esperanças.
89
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABELLÁN, Manuel L. “Censura y franquismo: ensayo de interpretación”. In: Temas
para el Debate, Madrid, nº 12, 1995.
ALARCOS LLORACH, Emilio. La novela de Miguel Delibes. Barcelona: Destino,
1960.
ALONSO DE LOS RIOS, César. Conversaciones con Miguel Delibes. Madrid:
E.M.E.S.A., 1971.
ALVAR, Manuel. El mundo novelesco de Miguel Delibes. Madrid: Gredos, 1987.
BROWN, G.G. Historia de la literatura española – el siglo XX. Barcelona: Ed. Ariel,
1998.
BUITRAGO JIMÉNEZ, Alberto. Diccionario de dichos y frases hechas. Madrid:
Espasa Calpe, 1995.
CÂNDIDO, Antônio et al. A personagem de ficção. 11ª ed. São Paulo: Perspectiva,
2005.
CARR, Raymond. España 1808 – 1975. Barcelona: Ed. Ariel, 1982.
_____. “La sociedad española de posguerra en la novelística de Delibes”. In: El autor
y su obra: Miguel Delibes. Madrid: Actas, 1993.
DELIBES, Miguel. Cinco horas con Mario.1ª ed. Barcelona: Ediciones Destino, 1981.
_____. El camino. Barcelona: Ediciones Destino, 1986.
_____ Miguel. El príncipe destronado. Barcelona: Ed. Destino, 1988.
_____. La censura de prensa en los años 40 (y otros ensayos). Valladolid: Âmbito
Ediciones, 1985.
_____. Las guerras de nuestros antepasados. Barcelona: Ediciones Destino, 1990.
_____. Las ratas. Barcelona: Ediciones Destino, 2003.
90
_____. Los santos inocentes. Barcelona: Editorial Planeta, 1984.
_____. Miguel Delibes. Obras completas I. Edição de GARCÍA DOMÍNGUEZ,
Ramón. Barcelona: Destino/Círculo de Lectores, 2007.
_____. Mi idolatrado hijo Sisí. Barcelona: Ediciones Destino, 2003.
_____. Palabras inaugurales. In: El escritor y su obra: Miguel Delibes. José Jiménez
Lozano. Madrid, Universidad Complutense, 1993.
_____. Parábola del náufrago. Barcelona: Ediciones Destino, 1969.
_____. Señora de rojo sob fondo gris.17ª ed. Barcelona: Destino, 1992.
DWECK, Denise. “Ferramenta da Fé”. Revista Veja, Ano 40, nº 44, de 07 de
novembro de 2007. (p.102-104)
ESLAVA GALÁN, Juan. Una historia de la guerra civil que no va a gustar a nadie.
Barcelona: Editorial Planeta, S.A., 2006.
_____. Historia de España contada para escépticos. Barcelona: Editorial Planeta,
S.A., 2004.
FERNANDEZ, Luis Miguel. “El Acercamiento Humanitario a la Realidad: un aspecto
del neorrealismo literario español”. In: Anales de la literatura española
contemporánea. Vol.16, Issue 3, 1991.
GAY ARMENTEROS, J. C. La España del siglo XX. 6ª ed. Madrid: EDI-6, S.A.,
1986.
GARCÍA RODRÍGUEZ, Ramón. “Miguel Delibes: vida y obra al unísono”. In:PILAR
CELMA, Miguel Delibes: Homenaje académico y literario. Valladolid: Simancas,
2003, (p.31-42)
_____. “Ellos son en parte mi autobiografía ”. Introducción a Miguel Delibes: Obras
completas. Barcelona: Destino /Círculo de Lectores, 2007.
GARRIDO DOMÍNGUEZ, Antonio. “El Discurso del Tiempo en el Relato de Ficción”.
In: Revista de literatura, nº 107, Janeiro/Junho de 1992, Concejo Superior de
Investigaciones Científicas, Madrid, (p.5-45).
91
GIL CASADO, Pablo. La novela social española. Barcelona, Editorial Seix Barral,
1968.
HIGUERO, Francisco Javier. “Indagación intertextual de 377 A, madera de héroe”.
In: El autor y su obra: Miguel Delibes. Madrid: Actas, 1993.
JIMÉMEZ LOZANO, José. El autor y su obra: Miguel Delibes. Madrid: Actas, 1993.
JULIÁ, Santos. Historias de las dos Españas. Madrid: Santillana, 2004.
LINS, Ronaldo Lima. Violência e literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro 1990.
LOS MOZOS, Santiago. “Consideraciones lingüísticas sobre Miguel Delibes”. In: El
autor y su obra: Miguel Delibes, Ed. Actas, 1993.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo : Ed. 34, 2000.
MARTÍN GAITE, Carmen. Usos amorosos de la postguerra española. Barcelona: Ed.
Anagrama, 1994.
MICHAUD, Yves. A violência. São Paulo: Ática, 1989.
NASCIMENTO, Magnólia Brasil Barbosa. O diálogo impossível. Niterói: Ed. Eduff,
2001.
_____. “Da bata de flores rojas y verdes a Carmen: uma conquista de voz e vez na
Espanha de Franco”. In: Mulher e literatura (trabalhos apresentados no VII
Congresso Nacional) (org) Livia de Freitas Reis, Lucia Helena Vianna e Maria
Bernadette Porto. Niterói: EdUFF, 1999 (p.572-578).
PEDRERO, Maria Guadalupe & PIÑERO, Concha. (Coord.) Tejiendo recuerdos de la
España de ayer. Madrid: Nancea, S.A. de Ediciones, 2006.
PILAR CELMA, María. Introducción. In: Miguel Delibes: homenaje académico y
literário. Junta de Castilla y Leon: Simancas Ediciones, 2003.
R.A.E. Esbozo de una nueva gramática de la Lengua española. Madrid: Espasa
Calpe, 1981.
92
RAMÍREZ, Aybar. “Pedimos la palabra”. IN: PEDRERO & PIÑERO (coord.), Tejiendo
Recuerdos de la España de Ayer. Madrid: Nancea, 2006
REY, Alfonso. “Tradición y originalidad en Delibes”. In: El autor y su obra: Miguel
Delibes, Madrid: Ed. Actas, 1993.
RODRIGUEZ, Jesús. El sentimiento del miedo en la obra de Delibes. Madrid:
Editorial Pliegos, 1979.
SANS VILLANUEVA, Santos. Historia de la novela social española (1942-1945).
Madrid: Alhambra, 1986.
SOBEJANO, Gonzalo. “Del relato a la novela ”. In: El autor y su obra: Miguel Delibes.
Madrid: Actas, 1993.
STALLONI, Yves. Os gêneros literários. Trad. Flávia Nascimento. 2ª ed. Rio de
Janeiro: DIFEL, 2003.
TACCA, Óscar. Las voces de la novela. Madrid: Gredos, 1989.
TODOROV, Tzveta n. As estruturas narrativas. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
TORRES, Rafael. Víctimas de la victoria. Madrid: Oberon, 2006.
VALLE SPINKA, Ramona F. La conciencia social de Miguel Delibes. Nova Iorque:
Eliseo Torres & Sons, 1975.
VÁZQUEZ MONTALBÁN, Manuel. Crónica sentimental de España. Barcelona:
Debolsillo, 2003.
VIÑES, Hortênsia. “Visualizaciones ling üísticas de Cinco Horas con Mario”. In:
Estudios sobre Miguel Delibes. Madrid: Universidad Complutense, 1983, p.215-228.
93
Documentos encontrados na internet:
Arre, borriquito – Literatura de tradición oral
Disponível em: <http://www.weblitoral.com/archivo%20de%20textos/palabras_
mayores/romances-e-historias-decordel/copy45_of_la-que-no-sabia-remendar>.
Acesso em 10/06/2007.
Ay, Jalisco no te rajes
Disponível em <http://ingeb.org/songs/jalisco.html>. Acesso em 11/07/2007.
CERRILLO TERREMOCHA, Pedro César – “Lírica Popular de Tradición Infantil – del
cancionero
popular
al
cancionero
infantil”.
Disponível
em:
<www.cervantesvirtual.com/portal/Platero/portal/lirica/cancionero.shtml> . Acesso em
17/07/2007. Não paginado
Cine mexicano
Disponível em : <http://www.cinemexicano.mty.itesm.mx/estrellas/sara_montiel.html>
Acesso em 01/11/2007.
Frases y palabras
Disponível em <http://www.1de3.com/1de3> . Acesso em 14/06/2007.
GARCÍA MATEOS, Ramón. “La Poesía de Tradición Oral”, en la “Novela Española
Contemporánea: Miguel Delibes”. Revista Folklore. Fundación Joaquín Díaz, nº 47,
1984, p.147-152. Disponível em < www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=413>.
Acesso em 10/07/2006.
GARCÍA TRABAJO, José Antonio & SAN JOSÉ HERNÁNDEZ, Jesús. “Los
romances de ciego”.
Disponível em: <http://users.servivios.retecal.es/jesussj/paginadiscos/ciego.htm>
Acesso em 20/01/2008.
Guía infantil - villancicos
Disponível em <http://www.guiainfantil.com/serviios/musica/villan/arre.htm>. Acesso
em 21/12/2007.
Juanito Valderrama (1916-2004): Cante y coplas
Disponível em <www.antonioburgos.com/enlaces/varios/valderrama.html>. Acesso
em 25/10/2007
La violetera
Disponível em <http://vagalume.uol.com.br/sarita -montiel/lavioletera.html>. Acesso
em 11/07/2007.
94
Lola Beltrán
Disponível em<http://redescolar.ilce.edu.mx/redescolar/publicaciones/publiquepaso/
lolabeltran.htm>. Acesso em 10/05/2007.
LORENZO VELEZ, Antonio. “Una Aproximación a la Literatura de Cordel”. Revista
de Folklore. Fundación Joaquín Díaz, nº 17, 1982, p.146-151. Disponível em:
<http:www.funjdiaz.net/folklore/07ficha.cfm?id=151>. Acesso em 19/07/2006.
Magazine
Disponível
em
<http://www.elmundo.es/magazine/2002/123/1012557363.html>
Acesso em 01/11/2007
Norte de Castilla
Disponível
em
<http://canales.nortecastilla.es/delibes/biblio/biblionovelas.htm>.
Acesso em 20/01/2008.
Nuestro Cine
Disponível em
20/01/2008.
<http://www.nuestrocine.com/grancartel/cartel...>.
Acesso
em
Rosita Encarnada
Disponível em: <http://www.aliste.info/cancionero.asp?título=Palazuelo&encabezado
=Rosita%20encarnada%20(cantada)>. Acesso em 05/05/2007
Rosita Encarnada – Literatura de tradición oral. Disponível em
<http://www.weblitoral.com/archivo%20de%20textos/palabras_mayores/romances-ehistorias-decordel/copy45_of_la-que-no-sabia-remendar>. Acesso em 10/06/2007.
Villancicos
Disponível em <http://webpages.ull.es/users/joramas/villancicos.htm#tres>. Acesso
em 21/12/2007.
95
ANEXO A
Esta é uma das canções que as empregadas Domi e Vítora escutam pelo rádio. Fez
sucesso na voz de Sara Montiel, cantora e atriz que também protagoniza o filme La
Violetera, produção de 1958, em que sua personagem Soledad é uma vendedora de
violetas na rua e, na véspera do Ano Novo, conhece o aristocrata Fernando (Raf
Vallone). O casal apaixona -se, mas a sua diferença social ameaça o romance.
LA VIOLETERA
Autores: E. Montesinos/ J. Padilla/ J. Saint-Granier/ A. Willemetz - 1956
Como aves precursoras de primavera
Em Madrid aparecen las violeteras
Que pregonando parecen golondrinas
Que van piando, que van piando.
Llévelo usted señorito que no vale más que un real
Cómpreme usted este ramito
Cómpreme usted este ramito
Pa’ lucirlo en el ojal
Son sus ojos alegres, su faz risueña
Lo que se dice un tipo de madrileña
Me trae castiza que siento horná los ojos
Que cauteriza, que cauteriza.
Llévelo usted señorito que no vale más que un real
Cómpreme usted este ramito
Cómpreme usted este ramito
Pa’ lucirlo en el ojal
Cómpreme usted este ramito
Cómpreme usted este ramito
Pa’ lucirlo en el ojal
Disponível em <http://vagalume.uol.com.br/sarita-montiel/lavioletera.html>. Acesso em 11/07/2007.
96
ANEXO B
Esta é mais uma canção que surge na narrativa através do rádio. Seus intérpretes
mais famosos são: Jorge Negrete e Lola Beltrán. Outro exemplo de canção que fazia
sucesso na década de 1960, do tipo romântica, que encantava jovens sonhadoras,
como Vítora.
¡Ay, Jalisco no te rajes!
Autores: M. Esperón/ E. Cortazar
¡Ay, Jalisco, Jalisco, Jalisco!
Tú tienes tu novia que es Guadalajara,
Muchacha bonita, la perla más rara
De todo Jalisco es mi Guadalajara.
Y me gusta escuchar los mariachis,
Cantar con el alma sus lindas canciones
Oír cómo suenan esos guitarrones
Y echarme un tequila con los valentones.
¡Ay, Jalisco no te rajes!
Me sale del alma gritar con calor,
Abrir todo el pecho palechar este grito:
¡Qué lindo es Jalisco, palabra de honor!
Pa’ mujeres, Jalisco primero,
Lo mismo en Los Altos, que allá en la Cañada,
Mujeres muy lindas rechulas de cara,
Así son las hembras de Guadalajara.
En Jalisco se quiere a la buena
Porque es peligrosos querer a la mala,
Por una morena echar mucha bala
Y bajo la luna cantar en Chapala.
¡Ay, Jalisco no te rajes!
Me sale del alma gritar con calor,
Abrir todo el pecho palechar este grito:
¡Qué lindo es Jalisco, palabra de honor!
Disponível em <http://ingen.org/songs/jalisco.html>. Acesso em 11/07/2007.
97
ANEXO C
EL EMIGRANTE
Autor e intérprete: Juanito Valderrama
Tengo que hacer un rosario
Con tus dientes de marfil
Para que pueda besarlo
Cuando esté lejos de ti,
Sobre sus cuentas divinas
Hechas de nardo y jazmín
Rezaré pá que me ampare
Aquella que está en San Gil
Y adiós mi España querida,
Dentro de mi alma
Te llevo metida,
Y aunque soy un emigrante
Jamás en la vida podré olvidarte.
Cuando salí de mi tierra
Volví la cara llorando
Porque lo que más quería
Atrás me lo iba dejando,
Llevaba por compañera
A mi Virgen de San Gil,
Un recuerdo y una pena
Y un rosario de marfil.
Y adiós mi España querida …
Yo soy un pobre emigrante
Y traigo a esta tierra extraña
Y en mi pecho un estandarte
Con los colores de España
Con mi patria y con mi novia
Y mi Virgen de San Gil
Y un rosario de cuentas
Yo me quisiera morir
Disponível em <www.antonioburgos.com/enlaces/varios/valderrama.html>. Acesso em 25/10/2007
98
ANEXO D
Aquella España, de Juanito Valderrama
Sinfonía de introducción: una copla para el Generalísimo
El decano de los “cantaores” reconstruye, a través del ingenio de Antonio Burgos, el
tiempo de esa España de la que fue protagonista y testigo en el libro “Juanito
Valderrama: mi España querida”, que se publicará el próximo martes. El capítulo que
reproducimos recoge el momento en el que Valderrama interpretó “El emigrante”
ante Franco, en una época en la que, según rememora el “cantaor”, “no había
emigrantes, sino exiliados”.
por Antonio Burgos
Yo me llamo Juan Valderrama Blanca y nací en 1916 en Torredelcampo, un
pueblecito muy cerca de Jaén, donde de chico aprendí a cantar mientras cogía
aceitunas en los hielos del invierno o cuando mi padre me llevaba al trato de las
mulas que compraba y vendía a los gitanos por las ferias de los pueblos, con las
calores del verano. Yo he cantado flamenco desde que tenía pantalón corto. Yo, que
empecé impresionando mis cantes en placas de pizarra que se escuchaban en un
gramófono al que había que darle cuerda con una manivela, que le decían “la
maquinilla cantaora”, he grabado tres grandes antologías con la historia del flamenco
que ahora se oyen en discos digitales. Mis cantes empezaron a sonar en radios de
galena y ahora se oyen en la televisión por satélite. Conozco todos los estilos del
flamenco, tengo grabados 700 cantes y he recorrido todos los teatros de España y
del mundo durante más de 70 años de artista. He dedicado mi vida entera a cantar y
a aprender de los grandes y creo que he conseguido en mi género lo máximo que se
puede lograr.
Pero como soy un cantaor que el público ha conocido por sus canciones propias a
orquesta, mi tarjeta de visita es El emigrante.
Con El emigrante yo fui el primer cantautor que hubo en España. El primero que
llegó al gran público con una letra que había escrito él mismo y donde se recogían
los sentimientos, las alegrías y las penas de todo un pueblo. Cómo será la fama de
El emigrante, que de esa canción hasta Franco me pidió un bis.
Yo creo que he sido el único artista al que Franco, que era tan serio, le ha tocado las
palmas y le ha pedido un bis.
Eso ocurrió en 1950, en una cacería de perdices en casa de don Francisco Aritio, en
una finca cerca de Madrid. Don Francisco Aritio era uno de los más ricos de España,
accionista de muchas empresas. Rico podrido, de aquellos capitales que se hicieron
después de la guerra nuestra. Yo creo que medio Banco de España era suyo. Y
cuando estábamos en el teatro Calderón de Madrid, en los ensayos de Pena y oro,
un espectáculo teatral que me habían escrito Quintero, León y Quiroga, este Aritio
organizó una fiesta en una finca con un caserío señorial que tenía por San Martín de
Valdeiglesias. La fiesta era con motivo de una cacería de perdices que daba para
Franco, a quien le gustaba mucho la escopeta y la caña de pescar.
99
Aquello era un palacio, con un salón que llegaba desde aquí a allí enfrente. El
maestro Quiroga nos llamó para que fuéramos a esta fiesta, donde la parte de
artistas la organizaba don Fernando Fuertes de Villavicencio, que era el jefe de la
casa civil del Generalísimo y la mano derecha de Franco para estas cosas; el que
llamaba también a los artistas para que fueran a actuar en los jardines del palacio de
La Granja todos los años, en vísperas del 18 de julio, una recepción muy grande que
daba allí el Caudillo a los diplomáticos y a todas las autoridades y donde siempre
había actuaciones.
Cuando me dijo Quiroga que Fuertes de Villavicencio nos llamaba para ir a esta
fiesta de la cacería de perdices yo estaba en los ensayos de Pena y oro, medio
malo, recién operado de apendicitis, que no me habían ni quitado los puntos todavía,
pero cualquiera se negaba a ir a una cosa de Franco, allí no se podía mandar parte
facultativo. Llevaron también a aquella fiesta a Carmen Sevilla y a Luis Mariano, el
cantante francés que estaban rodando en España aquellas películas de tanto éxito,
El sueño de Andalucía y Violetas imperiales. Nos llevaron a ellos dos y a mí, que fui
con el Niño Ricardo. Y como en España todavía había tanta carestía de tantas
cosas, que todavía duraban los efectos de nuestra guerra, se comentaba por allí que
el coche que traía Luis Mariano desde Francia, un Cadillac, era de un año más
nuevo, de un modelo más moderno que el que usaba el propio Franco. Pero en voz
baja, claro. Cualquiera era el guapo que se atrevía a comentar en voz alta que Luis
Mariano tenía un coche mejor que el de Franco.
En aquella fiesta de la cacería de perdices nos tuvieron allí en un cuarto de segunda
mesa, y cuando llegó la hora de cantar nos pasaron a aquel salón inmenso, muy
lujoso, con muchos cuadros y muchos muebles muy buenos, con alfombras, con
muchas lámparas, en el que habían montado una especie de escenario, con un
piano abajo y un tablado arriba para los artistas. Y allí sentado en ese salón, Franco,
con sus ministros, muchos uniformes de militares, muchos ayudantes con los
cordones dorados por el hombro, y mucha gente desplegada por allí, por la
carretera, por el camino y por los alrededores de la casa: la Guardia Mora y otros
que iban vestidos de requetés con la boina colorada guardando aquello, con las
metralletas en la mano y con los naranjeros. Como si fuera el palacio de El Pardo,
pero en una cacería de perdices en San Martín de Valdeiglesias.
Y cuando llegó la hora de cantar, nos subimos arriba al escenario de aquel salón tan
enorme el Niño Ricardo con la guitarra y yo. Y el maestro Quiroga abajo, al piano,
que como estaba más acostumbrado a aquel plan del Caudillo nos daba confianza.
Cada artista estaba cantando una canción solamente. Y yo, todo cortado delante de
tantos uniformes y con Franco allí delante vestido de paisano, muy serio, mirándome
muy fijo, le pregunté a Quiroga antes de subir:
–¿Qué cantamos, maestro?
Y aunque el maestro Quiroga no había escrito aquella canción, seguramente se la
pediría Fuertes de Villavicencio de parte de Franco, porque me dijo:
–El emigrante, Juan, por supuesto que El emigrante...
Hizo Ricardo una introducción a la guitarra, con el fondo del piano del maestro
100
Quiroga, y allí delante de Franco, por culpa de quien tantos españoles se habían
tenido que ir de España y no podían volver y tenían que vivir lejos de su tierra, me
puse a cantar la canción que precisamente hablaba de ellos, porque entonces no
había todavía emigrantes a Alemania con la maleta amarrada con guita, sino
exiliados de nuestra tragedia por todo el mundo:
Cuando salí de mi tierra/volví la cara llorando
porque lo que más quería/atrás me lo iba dejando,
llevaba por compañera/a mi Virgen de San Gil,
un recuerdo y una pena/y un rosario de marfil.
Adiós mi España querida,/dentro de mi alma
te llevo metía,/y aunque soy un emigrante
jamás en la vida/yo podré olvidarte.
Me tocaron las palmas los que estaban en el salón, los ministros, los militares, la
gente de la grandeza del dinero que estaba allí en la cacería. Y hasta Franco vi que
me tocaba las palmas como él las tocaba, con desgana, como por lo militar.
Y me bajé del tablado, y Fernando Fuertes de Villavicencio, que no se nos quitaba
del lado, me dio un empujón para donde Franco estaba:
–Cumplimenta a Su Excelencia, Juanito, venga, cumplimenta a Su Excelencia.
“Cumplimenta a Su Excelencia” era que lo saludara al hombre. Y me acerqué al
Caudillo, y Franco me tendió aquella mano que te ponía con tanta frialdad, la manita
así medio cerrada, sin sentimiento, y me dijo con aquella vocecita chillona suya:
–Valderrama, muy bonita esa canción, es muy patriótica...
–Muchas gracias, Su Excelencia, muchas gracias.
Y Franco se queda callado un buen rato, sin pronunciar palabra, mirándome sin
mover un músculo de la cara, y de pronto va y me suelta:
–Valderrama, ¿usted serían tan amable de cantarla otra vez?
Yo me quedé más cortado todavía de lo que estaba. Yo no sabía dónde meterme.
Yo pensé, muerto de miedo: “Esto es para enterarse bien de lo que digo en El
emigrante y meterme preso...”
Y Fuertes de Villavicencio, con muchas carreras y muchos aspavientos:
–Venga, Juanito, venga, y tú, Ricardo, arriba otra vez, que Su Excelencia quiere oír
esa canción otra vez...
Y le tuve que hacer un bis a Franco. Subió Ricardo otra vez al escenario con la
guitarra y se puso el maestro Quiroga otra vez al piano y canté otra vez El
emigrante.
Creo que muy pocos artistas le han tenido que hacer un bis a Franco.
101
Mientras la cantaba por segunda vez no se me quitaba el mosqueo. Seguía
pensando: “¿Qué va a pasar ahora como este tío se entere bien y ya no le parezca
tan patriótica? ¿Pensará de buenas o pensará meterme en la cárcel?
Y en mi miedo y en mi extrañeza me acordé de la noche en que terminé de escribir
El emigrante.
El estribillo se me había ocurrido en una gira por el norte, un día que estábamos
actuando en un teatro de Ponferrada y el Niño Ricardo me hizo a la guitarra una
falseta preciosa, acompañando unos versos que yo recitaba. Una falseta con una
melodía que me dio casi escrito el estribillo de la canción, de sentimiento que tenía:
Adiós, mi España querida,/dentro de mi alma te llevo metía...
Pero la letra de la canción entera la terminé de escribir mucho después, y de un
tirón, como si me la fuera dictando mi propio corazón, en la misma turné, después de
aquella noche moruna tan española en que vi las lágrimas de los exiliados
españoles en Tánger.
Disponível em <http://www.elmundo.es/magazine/2002/123/1012557363.html> Acesso em
01/11/ 2007
102
ANEXO E
Em El príncipe destronado são apresentadas somente algumas estrofes da canção
Rosita Encarnada. Trazemos, então, duas versões completas da canção, que
apresentam diferenças entre si, o que reafirma seu caráter oral.
Rosita encarnada
Ya venimos de la quema de África
porque todo lo trae el amor.
Ya venimos de la quema de África
porque todo lo trae la pasión.
Al marcharme, Rosita encarnada
me juraste que tú me amabas
y ahora vengo a casarme contigo
y te encuentro que ya estás casada.
Casada casadita estoy
que el amor me hubo de volver.
Me he casado en la flor de mi vida
con un hombre que yo nunca amé.
¿Te acuerdas del pañuelo de grana
que de novios yo te regalé?
Dámelo, que si tú no lo has roto
en tu nombre yo lo romperé.
Yo no sé del pañuelo de grana
ni de los regalos que me hiciste.
Sólo de un costurero de plata
donde tú mi retrato pusiste.
Dame un beso Rosita encarnada,
dame un beso de aquellos de amor
que en tu pecho ha tocado otro hombre
y en tus labios quiero tocar yo.
Ese beso que tú a mí me pides
ni ahora ni nunca te lo podré dar.
Ese beso se lo he dado a otro hombre
que con él me hicieron casar.
Ese beso que yo a ti te pido
ahora y siempre tú me lo has de dar
y si no con la mano derecha
en tu pecho clavaré un puña l.
Si tú tienes puñal de dos hilos
tú mi pecho podrás traspasar.
103
Matarás hermosa criatura
que dentro de mi pecho estará.
Yo no mato hermosa criatura
que no viva en un mundo inocente
pero el día que ella venga al mundo
a ti sola te daré la muerte.
A los cinco días tuvo una niña
más hermosa que la luz del sol
y de nombre le pusieron Rosa,
Rosa, como su madre mandó.
A los quince días salió a misa
y en la plaza con él se encontró.
Buenos días, Rosita encarnada.
Ahora vengo a lograr mi intención.
No me mates, por Dios, no me mates,
no me mates, tenme compasión
que ese beso que tú a mí me pides
ahora y siempre te lo daré yo.
Ya no quiero besos de tus labios,
lo que quiero es lograr mi intención.
Y sacando un puñal de dos hilos
en el pecho fue y se lo clavó.
A los pocos momentos del crimen
su marido llorando llegó.
Dime, dime Rosita encarnada,
dime, dime quién te asesinó.
Y Rosita encarnada llorando
a su esposo así le contestó:
Me ha quitado la vida aquel hombre
que yo en tiempos le juré el amor.
Al volver y encontrarme casada
él juró el quitarme la vida
por haber faltado a la palabra,
que mis padres a ello me obligan.
Y mis padres a mí me obligaron
a casarme sin ser gusto mío
y ahora tristemente lloran
el castigo que yo he merecido.
Pobrecita Rosita encarnada,
qué joven te han quitado la vida.
104
Hoy tus padres lloran tu muerte
y tu esposo, de noche y de día.
Yo te juro, Rosita encarnada
que tu muerte yo la vengaré
aunque vengan mañana y me lleven
y en la cárcel muera yo también.
Y dio cuenta a la autoridad
y la Guardia Civil enseguida
salió en busca de aquel asesino
que se había marchado a una finca.
Al momento de haber llegado
un revólver del bolso sacó
y arrimándolo sobre sus sienes
la cabeza se la traspasó.
Ha dejado una carta escrita
que causaba penita y dolor.
Adiós Rosita, que has muerto.
Por tu culpa también muero yo.
Esta carta que yo dejo escrita
es para las mocitas solteras.
Cuidadito cuando tengas novio,
no juréis un amor que no sintáis.
Una vez que el amor has jurado
en el pecho de aquel que bien quieres
imposible poderlo arrancar
y que antes la muerte prefiere.
Una vez que el amor has jurado
mucho alumbra pero poco quema.
Esto es causa de los atropellos
que en España pasan donde quiera.
Disponível em: <http://www.aliste.info/cancionero.asp?título=Palazuelo&encabezado
=Rosita%20encarnada%20(cantada)>. Acesso em 05/05/2007
105
Rosita encarnada
-Dios te guarde, carita de rosa,
que me han dicho que me has olvidado,
yo venía a casarme contigo
y ahora veo que ya te has casado.
-Soy casada y no puedo quererte
y otras leyes nos sirven de ver,
ante Dios y los hombres he jurado
que a un esposo sólo he de querer.
-Dame un beso, por Dios te lo pido,
no me niegues un beso de amor,
si ese hombre ha tocado en tu pecho
en tus labios quiero besar yo.
-Ese beso que tú me has pedido
ahora y nunca te lo puedo dar,
de mocita no bese a ningún hombre
y ahora menos que estoy casá.
-Ese beso que yo a ti te pido
ahora y siempre lo tienes que dar
y si no con mi mano derecha
en tu pecho clavaré un puñal.
-Si tú tienes puñal de dos filos
y con él me atraviesas el alma,
al morir en tus brazos queridos
muere el ángel que está en mis entrañas.
-Ese ángel no tiene la culpa,
que es un ángel bendito e inocente,
la que tiene la culpa eres tú
y por eso te voy a dar la muerte.
A los diez días ha nacido una niña
más hermosa que el rayo del Sol
y Rosita se llama la niña,
como quiso mamá se llamó.
Ha nacido el ángel del alma,
a matarte que ya vengo yo.
-Si me matas que yo no lo sienta
ni mi esposo querido se entere.
Si mi esposo querido se entera
en el alto te dará la muerte.
106
Y una mañana temprano
de sol que brilla en el cielo
he visto a una hermosa niña
tres veces en el cementerio.
Como era pequeña y sola
no me pude contener:
-¿Para quién son esas flores,
pequeña? -le pregunté.
-Son para mi amada madre,
para mi padre también,
que vivo sola en el mundo,
que huérfana me quedé.
Huérfana de madre y padre,
sin cariño y sin hogar,
yo vivo sola en el mundo,
voy buscando caridad.
La otra noche soñaba
que con mi madre dormía.
¡Ay, qué sueño tan feliz!
Tenía en el alma mía
las flores del campo santo,
con lágrimas las regué,
viendo que no las encontraba
de rodillas me hinqué:
Adiós, madre de mi alma,
madre de mi corazón,
adiós para siempre, madre
adiós para siempre, adiós.
Disponível em <http://www.weblitoral.com/archivo%20de%20textos/palabras_mayores/romances-ehistorias-decordel/copy45_of_la-que-no-sabia-remendar>. Acesso em 10/06/2007.
107
ANEXO F
A canção Arre borriquito apresenta a particularidade de que, ao cantar, o adulto
coloca o bebê sobre as pernas e o balança ao ritmo da música. Há variedades de
versões da canção, que podem ser natalinas ou não, o que deixa claro seu caráter
oral.
ARRE BORRIQUITO
Arre borriquito,
Arre burro, arre,
Are borriquito
que llegamos tarde.
Arre borriquito,
Vamos “pa” Jeréz,
A comer las peras que están como miel.
Arre borriquito,
Vamos “pa” Sanlúcar,
A comer las peras
Que están como azúcar.
Arre borriquito,
Vamos “pa” Jerez,
Que mañana es fiesta y al otro también.
Disponível em <http://www.weblitoral.com/archivo%20de%20textos/palabras_mayores/romances-ehistorias-decordel/copy45_of_la-que-no-sabia-remendar>. Acesso em 10/06/2007.
Arre borriquito
Venid, pastorcitos,
venid a adorar
al Rey de los cielos
que ha nacido ya.
Arre borriquito,
vamos a Belén
a ver a la Virgen
y al niño también.
Rústico techo
abrigo le da,
por cuna un pesebre
por templo un portal.
Arre borriquito,
vamos a Belén
que mañana es fiesta
108
y al otro también.
Esta noche con la luna
y mañana con el sol
a Belén caminaremos
a ver pronto al Niño Dios.
Vamos, pastores, vamos,
vamos a Belén,
a ver a ese Niño
las glorias del Edén.
Disponível em <http://www.guiainfantil.com/serviios/musica/villan/arre.htm>. Acesso em 21/12/2007.
ARRE BORRIQUITO
Arre, borriquito. Arre, burro, arre.
Vamos más deprisa que llegamos tarde.
Arre, borriquito. Vamos a Belén
que mañana es fiesta y al otro también.
Ha nacido el Niño Dios
en un portal miserable
para enseñar a los hombres
la humildad de su linaje.
Arre, borriquito.....
En el cielo hay una estrella
que a los Reyes Magos guía
hacia Belén para ver
al Dios hijo de María.
Arre, borriquito.....
Hacia el portal de Belén
se dirige un pastorcito
cantando de esta manera
para alegrar el camino.
Arre, borriquito.....
En la puerta de mi casa
voy a poner un petardo,
"pa" reírme del que venga
a pedir el aguinaldo,
pues si voy a dar a todos,
porque hoy es Nochebuena,
pronto tendría que estar
pidiendo de puerta en puerta.
Arre borriquito.....
Disponível em <http://webpages.ull.es/users/joramas/villancicos.htm#tres>. Acesso em 21/12/2007.
109
ANEXO G
Cartaz do filme La Guerra de Papá, de 1977. Uma adaptação para o cinema do
romance El príncipe destronado. Produção de José Frade e direção de Antonio
Mercero.
Disponível em <http://.nuestrocine.com/grancartel/carl....> Acesso em 20/01/2008.
110
ANEXO H
Capa da primeira publicação de El príncipe destronado, em dezembro de 1973, pela
Ediciones Destino S/A.
Publicação em outros países:
Dinamarca
Edit. ASCHENHOUG DANSK FORLAG (1984)
Edit. GRAFISK FORLAG (1992)
Rusia
Edit. LITERATURE MAGAZINE (1982)
Yugoslavia
Edit. NOLIT (1984)
Edit. JUGOSLOVENSKA AUTORSKA (1989)
Francia
Edit. EDITIONS VERDIER (1990)
Disponível em <http://canales.nortecastilla.es/delibes/biblio/biblionovelas.htm>. Acesso em
20/01/2008.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo
Descargar