UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS AURINETE ZANELATO DE SOUZA PEREIRA ESPANHA DIVIDIDA, MUNDOS SEPARADOS – UMA LEITURA DO ROMANCE EL PRÍNCIPE DESTRONADO, DE MIGUEL DELIBES. NITERÓI 2008 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. AURINETE ZANELATO DE SOUZA PEREIRA ESPANHA DIVIDIDA, MUNDOS SEPARADOS – UMA LEITURA DO ROMANCE EL PRÍNCIPE DESTRONADO DE MIGUEL DELIBES. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: Literaturas Hispânicas. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento Niterói 2008 Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá P436 Pereira, Aurinete Zanelato de Souza. Espanha dividida, mundos separados – uma leitura do romance El Príncipe Destronado de Miguel Delibes / Aurinete Zanelato de Souza Pereira. – 2008. 110 f. Orientador: Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2008. Bibliografia: f. 89-94. 1. Literatura espanhola – História e crítica. 2. Delibes, Miguel. El Príncipe Destronado. I. Nascimento, Magnólia Brasil Barbosa do. II. Universidade Federal Fluminense. Instituto de Letras. III. Título. CDD 860.9 AURINETE ZANELATO DE SOUZA PEREIRA ESPANHA DIVIDIDA, MUNDOS SEPARADOS – UMA LEITURA DO ROMANCE EL PRÍNCIPE DESTRONADO DE MIGUEL DELIBES. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre. Área de concentração: Literaturas Hispânicas. Aprovada em de 2008. BANCA EXAMINADORA Membros Titulares: Prof.ª Dr.ª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento — Orientadora Universidade Federal Fluminense Prof.ª Dr.ª Ana Isabel Borges Universidade Federal Fluminense Prof.ª Dr.ª Eline Marques Rezende Universidade Federal do Rio de Janeiro Membros Suplentes: Prof.ª Dr.ª Suely Reis Universidade Federal Fluminense Prof.ª Dr.ª Silvia Ignez Cárcamo Universidade Federal do Rio de Janeiro Niterói 2008 À minha mãe, a quem tenho que agradecer por tudo que fez e faz por mim. À memória de meu pai, que se sentiria orgulhoso nesse momento. Ao meu marido, Paulino, pelo amor e companheirismo de todas as horas. AGRADECIMENTOS À minha família, pelo apoio dado em todos os momentos de minha vida. À Prof.ª Dr.ª Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento, pela força dada desde o início do curso e ao longo destes anos de trabalho, pela orientação oferecida, pela sabedoria emprestada a esta dissertação e pelo carinho. A todos os Professores dos Cursos de Pós Graduação da Universidade Federal Fluminense, pelo saber compartilhado. À amiga e companheira de percurso Andréia Paraquette , por sua amizade e apoio que tornaram mais suaves os momentos difíceis e pelo tempo dispensado nas discussões sobre temas e idéias a serem desenvolvidos nesta dissertação. Aos amigos verdadeiros que torceram por mim e a todos aqueles que compartilharam comigo os prazeres e as dificuldades da vida acadêmica. La arquitectura exige que la piedra se labre; la literatura, que la palabra se recupere de la erosión del uso y parezca brotada, como dicha por vez primera y sin perder una sola de sus posibles irradiaciones. Santiago de los Mozos RESUMO A presente dissertação tem como objeto principal a obra El príncipe destronado do escritor espanhol contemporâneo Miguel Delibes. Escrita no período do governo ditatorial do General Francisco Franco, o romance narra um dia na vida de uma família de classe média alta, na qual a personagem Quico, um menino prestes a completar quatro anos de idade, passa pela complicada fase em que deixa de ser o filho caçula e passa a ter que dividir a atenção de todos com a irmã mais jovem. Em meio às atividades diárias dessa família e de seu grupo de empregados, vai sendo mostrado o perfil de uma parcela da sociedade espanhola do período de pós-guerra civil, seu modo de viver e de pensar, as mazelas existentes dentro dela, as diferenças entre classes, a dificuldade de diálogo entre membros de grupos opostos e as marcas deixadas por uma guerra fratricida que tanto marcou Espanha. As relações existentes entre as personagens dessa obra revelam que este grupo de pessoas acaba sendo o espelho da atmosfera de repressão que as rodeava, o microcosmo da Espanha franquista. Delibes traz para o seu texto e para seu leitor, não só as diferentes posições políticas existentes na década de 1960, como também a linguagem falada por seu povo, que transferida para os diálogos entre seus personagens, através de um árduo trabalho de composição do autor, revela as diferenças e riquezas culturais da Espanha. Sendo assim, sua literatura se converte em uma importante fonte de informações sobre uma sociedade e um instrumento capaz de contar a história quando outros meios de comunicação estavam impossibilitados de fazê -lo. É também uma maneira de resgatar e preservar características de um povo ameaçadas de desaparecer se seguirmos pelo caminho, aparentemente sem retorno, da massificação da cultura e da conseqüente padronização dos modos de ser e de viver. Palavras-chave: Miguel Delibes, Espanha; literatura; guerra; intolerância; sociedade; comportamento; linguagem. RESUMEN Esta disertación tiene como objeto principal la obra El príncipe destronado del escritor español contemporáneo Miguel Delibes. Escrita en un periodo del gobierno dictatorial del General Francisco Franco, la novela narra un día en la vida de una familia de clase media alta, en la que el personaje Quico, un niño que está a punto de cumplir cuatro años de edad, vive la compleja fase en que deja de ser el benjamín y tiene que dividir la atención de todos con su hermana menor. Entre las actividades diarias de esa familia y de su grupo de empleados, se va enseñando el perfil de una parcela de la sociedad española del periodo de postguerra civil, su modo de vivir y de pensar, los infortunios existentes dentro de ella, las diferencias entre clases, la dificultad de diálogo entre miembros de grupos opuestos y las huellas dejadas por una guerra fratricida que tanto marcó España. Las relaciones entre los personajes de esa obra, revelan que este grupo de personas acaba siendo el espejo de la atmósfera de represión que había a su alrededor, el microcosmo de la España franquista. Delibes trae a su texto y a su lector, no sólo las distintas posiciones políticas existentes en la década de 1960, sino también el lenguaje hablado por su pueblo, que trasladado a los diálogos entre sus personajes, a través de una ardua labor de composición del autor, revela las diferencias y riquezas culturales de España. Así que su literatura se convierte en una importante fuente de informaciones acerca de una sociedad y un instrumento capaz de contar la historia cuando otros medios de comunicación estaban imposibilitados de hacerlo. Es también una manera de rescatar y preservar características de un pueblo amenazadas de desaparecer si seguimos por el camino, aparentemente sin vuelta, de la masificación de la cultura y del consecuente ajuste de los modos de ser y de vivir. Palabras-clave: Miguel Delibes, España; literatura; guerra; intolerancia; sociedad; comportamiento; lenguaje. ABSTRACT The object of this study is El príncipe destronado, by the contemporary Spanish author Miguel Delibes. Having been written during General Francisco Franco's dictatorial government, the novel narrates a day in the life of a middle class family. The character Quico, a boy to be four years old, is in the complicated phase in which he is no longer the youngest of the family and has to share people's attention with his youngest sister. Having as scenario the family and employees' daily activities, the profile of a Spanish social layer of the post-civil war is shown, as well as its way of living and thinking, its problems, its social differences, the difficulties in communication among members from opposite groups, and the wounds left by a civil war among brothers that deeply affected Spain. The relationships between the characters of this novel show that this group of people mirrors the atmosphere of repression that surrounded them and the microcosm of Spain during Franco's rule. In Delibes' narration, the 60's different political positions can be seen as well as the language spoken by the people, which was transferred to the characters' dialogues through an arduous articulation of words. This process reveals Spain's cultural differences and richness. As a consequence, his writing becomes an important source of information about. Moreover, it is also a way to tell a story when other means of communication could not do it besides being a manner to preserve the characteristics of a people threatened to disappear if we'd follow the path of cultural massing and patterning of the ways of being and living, apparently with no come back. Key Words: Miguel Delibes; Spain; literature; war; intolerance; society; behavior; language. SUMÁRIO APRESENTAÇÃO……………………................................................................ 10 1. MIGUEL DELIBES - HOMEM E AUTOR................................................... 16 1.1 A NARRATIVA DELIBIANA.................................................................. 17 1.2 DIÁLOGOS DE DELIBES..................................................................... 23 2. CONTEXTO HISTÓRICO.....…………........................................................ 28 2.1 A CAMINHO DA GUERRA................................................................... 28 2.2 O GOVERNO DE FRANCO................................................................. 31 3. EL PRÍNCIPE DESTRONADO: O MICROCOSMO DE ESPANHA........... 36 3.1 A CENA FAMILIAR E SEUS ATORES................................................ 40 3.2 NUANCES DA VIOLÊNCIA E DO MEDO EM EL PRÍNCIPE DESTRONADO.................................................................................... 3.2.1 A violência................................................................................... 46 47 3.2.2 O medo........................................................................................ 53 3.3 AS PERSONAGENS E SUA LINGUAGEM......................................... 60 3.3.1 As personagens adultas............................................................. 61 3.3.2 As personagens infantis............................................................. 70 3.4 NO COMPASSO DA CANÇÃO............................................................ 77 CONCLUSÃO................................................................................................... 85 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 89 ANEXOS .......................................................................................................... 95 10 APRESENTAÇÃO O ato de narrar, tão antigo quanto o de falar, está diretamente relacionado ao ser humano, a ponto de não haver aquele que, de uma forma ou de outra, não recorra a ele. Ora somos “contadores de histórias”, ora apenas nos colocamos como ouvintes, a fim de nos enriquecermos com a experiência do outro. Por vezes, contamos com o intuito de que algo seja perpetuado, seja uma tradição, um modo de viver, de pensar, valores, fatos importantes para uma sociedade ou para um determinado grupo. Em outros momentos, nos utilizamos da narrativa para fazer com que um fato não se repita, como uma forma de denúncia ou como crítica. Os romances também possuem razões para existir. Quem escreve tem suas motivações que o levam por determinados caminhos. Cada um, em função de sua história de vida, época ou lugar, “escolhe” sua paisagem predileta, seus tipos preferidos, enfim, o universo sobre o qual vai elaborar páginas e mais páginas que irão seduzir o leitor, em maior ou menor grau, conforme seja a sua capacidade de reunir elementos que façam seu texto envolvente. Quando buscamos conhecer mais a obra de um determinado autor, surge a necessidade de identificarmos as principais idéias que fazem parte de seu universo como escritor, os lugares, as temáticas e os personagens de seu interesse. Também podemos levantar as principais virtudes desse escritor que o tornaram tão conhecido e renomado. Ao decidirmos aprofundar nosso estudo acerca da literatura espanhola do período de pós-guerra civil, temos como uma das principais razões dessa escolha o fato de tratar-se de uma literatura produzida em um período histórico conturbado e, ao mesmo tempo, crucial para a Espanha. Que tipo de literatura foi possível escrever em meio à censura? O que produziram os escritores em tal situação? Mesmo em nossos dias, ainda é muito pouco o material publicado em nosso país sobre esse período. Essa carência não existe somente nas editoras, mas também nas ementas e programas dos cursos de Letras, sejam eles de graduação ou de pós-graduação. Foi somente nos últimos anos que se começou a ampliar o foco para além da Geração de 27, de forma que o estudo das literaturas abrangesse autores do meio e do final do século XX. Propomos com esta dissertação trazer uma colaboração ao universo das pesquisas feitas aqui no Brasil sobre a produção literária de um período ainda pouco 11 estudado. Esse quadro tende a reverter, graças à relevância que teve e tem o longo período de incomunicabilidade da Espanha com outros países e dentro dela própria e à fértil produção intelectual de uma geração que, apesar das dificuldades, não optou pelo caminho mais fácil, embora compreensível, do silêncio. Dentro deste recorte da literatura espanhola, o autor que escolhemos como objeto de nossos estudos foi Miguel Delibes, nascido em Valladolid, em outubro de 1921. Considerado um dos principais escritores espanhóis contemporâneos, Delibes põe em destaque em seus romances personagens que representam seres humanos comuns, com suas fraquezas, defeitos e virtudes. Delibes retrata realidades duras de seu país e põe em foco os menos favorecidos, aqueles tidos como fracos, os silenciados e faz com que seu leitor perceba o mundo sob a ótica de quem não possui poderes dentro de uma sociedade discriminadora e desigual. Através de seus personagens, Delibes nos abre o universo espanhol e nos permite compreender os valores, o modo de ser e de viver de seu povo ao tratar de questões universais como o desamor, a violência e o direito à liberdade. A obra de Delibes é, como o historiador Raymond Carr afirmou, “una fuente inagotable y riquísima de documentación histórica para reconstruir el pasado inmediato de este país.” (CARR, 1993, p.69) O romance que privilegiamos chama-se El príncipe destronado, escrito em 1964. Sua primeira publicação, no entanto, data do ano de 1973. Esta demora devese à forte censura existente durante a ditadura do General Francisco Franco, que perdurou de 1939 a 1975: o livro ficou guardado por alguns anos até que “soprassem ventos mais amenos” que permitissem sua publicação. A obra já foi traduzida para línguas como alemão, russo e inglês e adaptada ao cinema por Antonio Mercero com o título La guerra de papá, em 1977. Para esta dissertação baseamo-nos na edição de 1988, da editora Destino. Na obra é narrado um dia na vida de uma família burguesa espanhola composta pelo pai, a mãe, seis filhos e duas empregadas. Uma leitura ingênua dessa narrativa pode levar à compreensão de que se trata de uma história infantil, pois todos os fatos são contados sob a perspectiva de Quico, um dos filhos do casal, de três anos de idade, que perde a posição de caçula para sua irmã Cristina, e por isto tenta conseguir a atenção de todos. Porém, a partir de uma análise mais criteriosa percebe-se que o modo como os perfis dos membros daquela família e de seus empregados foram traçados pelo autor não é nada ingênuo. Tampouco é 12 ingênuo o modo como os seus personagens se relacionam e falam. Temas como a educação dada às crianças, a estrutura das relações familiares e as marcas da guerra deixadas nesta família estão presentes no romance que possui diálogos tão bem elaborados que parecem simples, mas que na verdade, são fruto de uma extenuada busca do escritor por deixar bem caracterizada a forma como a linguagem oral apresenta-se nos diferentes grupos sociais. Disto resulta a coerência existente entre personagem e linguagem, um dos pontos altos de seu texto. Miguel Delibes ressalta uma realidade do povo espanhol que vai além do alegre e festivo, do sensual e exótico cuja imagem, durante o franquismo, foi tantas vezes vendida como a legítima alma espanhola , com a finalidade de “camuflar” a difícil situação pela qual passava o país, quando, na verdade, existiam tantos temas a serem debatidos, tanta realidade escondida que não podia ser anunciada nos jornais e tantos outros aspectos importantes da cultura desse povo que foi vítima de um silêncio imposto, de preconceitos, de violência e solidão. A obra delibiana denuncia o processo de padronização de comportamentos e de idéias pelo qual o povo espanhol vinha passando devido ao governo totalitário que durou quase quatro décadas e que tinha como trunfo a intensa propaganda difusora de seus valores. Todos tinham que falar espanhol e ser católicos e, acima de tudo, nacionalistas. A liberdade estava permanentemente ameaçada por um regime que acabava por dividir a nação: de um lado estavam aqueles que aceitavam o regime e vestiam-se com os ideais promovidos pelo governo ; de outro, os que ansiavam por ter um outro caminho a seguir, não acreditavam no sistema, e por isso transformavam-se nas principais vítimas de um governo opressor. Porém, não era apenas o país que se dividia: famílias, como a de Quico, encontravam-se separadas em um mesmo lar pela falta de compreensão, de liberdade, do direito de escolha e pela ausência de diálogo que, simplesmente, não podia existir. Não havia lugar para contestações, o discurso já estava pronto. Bastava repeti-lo ou calar-se. Em meio a este “silêncio” situado por Delibes como um dos fatores externos que influenciam na convivência daquela família (ou na de qualquer outra), a violência, o autoritarismo e a intolerância fazem-se presentes, ganham forma e voz e transformam aquele espaço doméstico no microcosmo da Espanha franquista. A escolha de El príncipe destronado deve-se ao fato de ser um texto corajoso que aborda o tema da família estruturada a partir do modelo de família patriarcal que 13 vigorava naquele período. Essa obra é um retrato da sociedade burguesa do pósguerra e de seus valores e nos proporciona um painel da realidade sócio-cultural da Espanha dos anos sessenta , o que nos auxilia a perceber quais foram os reflexos e as implicações da guerra e da ideologia de Franco na sociedade e, particularmente, na família espanhola. Em uma época em que a imprensa não possuía liberdade de expressão e estava totalmente controlada pelos censores do governo, a lite ratura muitas vezes constituía uma possibilidade de expressão de idéias e de crítica, ainda que fosse necessário “disfarçar” os objetivos do texto. Apesar de aparentar ser uma simples narrativa acerca do cotidiano de uma família, a obra encerra uma grande carga crítica sobre a estrutura daquela sociedade, sobre os papéis que deveriam jogar os diferentes elementos da família, o tipo de educação dada às crianças, a falta de comunicação, a opressão, a intolerância e a falta de liberdade. No primeiro capítulo desta dissertação, faremos um apanhado dos principais fatos de sua vida do escritor Miguel Delibes, onde nasceu, como foi sua infância e adolescência, onde estudou, seu casamento e sua carreira. Traçaremos seu perfil como escritor, suas principais características e indicaremos suas maiores obras e prêmios recebidos. Para tanto, apoiamo-nos nas informações colhidas em Conversaciones con Miguel Delibes, de César Alonso de los Rios, Miguel Delibes: homenaje académico y literario, de María Pilar Celma, La conciencia social de Miguel Delibes, de F. Ramona Valle Spinka e em La novela social española, de Gil Casado, além de documentos eletrônicos. No capítulo 2, contextualizaremos a Espanha no período histórico do qual faz parte o escritor e a obra aqui analisada. Focalizaremos o período anterior à guerra, ainda na Segunda República e seguiremos de forma cronológica, passando pelos primeiros anos da década de 1930 até a eclosão da Guerra Civil Espanhola, em 1936. Destacaremos as principais características do governo do General Francisco Franco, iniciado com o término da guerra, em 1939 e encerrado em 1975, quando de sua morte, bem como aspectos da sociedade espanhola que se foi formando ao longo desses quase quarenta anos de governo totalitário. Neste capítulo, nosso apoio teórico encontra-se, principalmente, em La España del siglo XX , de J. C. Gay Armenteros e Historia de España contada para escépticos, de Juan Eslava Galán, entre outros, alé m do próprio Miguel Delibes em La censura de prensa en los años 40 (y otros ensayos). 14 Passaremos a analisar o romance El príncipe destronado no terceiro capítulo, no qual serão traçados os perfis dos personagens , o tipo de relação existente entre os componentes daquela família entre si e com seus empregados e as conseqüências do regime totalitário daquele período na estrutura e nas relações familiares. Discutiremos também, neste capítulo, a questão da violência e do medo. Esses dois temas, recorrentes na obra de Miguel Delibes, ocupam, em El príncipe destronado, um importante espaço na narrativa, permeando todo o relato. Como a violência se faz presente e quais personagens podem ser consideradas violentas ou vítimas da(s) forma(s) de violência encontrada(s) na obra são questões a serem respondidas, bem como o que ocasiona tais medos. Neste capítulo, as principais referências são Violência e literatura, de Ronaldo Lima Lins, A Violência, de Yves Michaud e El sentimiento de miedo en la obra de Miguel Delibes, de Jesús Rodríguez. Faremos, ainda, um estudo da linguagem das personagens mais importantes da obra e os principais recursos lingüísticos utilizados pelo escritor para enfatizar as diferenças entre pessoas de grupos sociais e de faixas etárias distintas. Destacaremos, também, o uso de expressões idiomáticas e os elementos típicos da linguagem oral e coloquial. Usos amorosos de la postguerra, de Carmen Martín Gaite, Las voces de la novela, de Oscar Tacca, Consideraciones lingüísticas sobre Miguel Delibes, de Santiago de lo Mozos, são algumas das principais referências para o estudo dos aspectos até aqui apresentados deste capítulo. Por fim, destacaremos a presença da música no lar de Quico, sua importância dentro da obra e o que ela pode nos revelar a respeito da sociedade espanhola de pós-guerra. Apoiamo-nos, principalmente, em Manuel Vázquez Montalbán, na obra Crónica sentimental de España. Há muitos outros autores nos quais nos apoiamos para a elaboração desta dissertação, fundamentais para o esclarecimento de questões sobre a obra de Delibes e de outras questões que se entrecruzam com os temas aqui abordados; eles muito contribuíram para o amadurecimento da pesquisa e por esse motivo estão indicados nas referências bibliográficas. Analisando os aspectos relacionados, esperamos esclarecer nosso leitor sobre como a sociedade espanhola, com seus homens e mulheres, ricos e pobres, adultos e crianças, pode ser retratada, sem que seja necessário um grande número de personagens ou uma grande diversidade de paisagens. Queremos chamar a 15 atenção para a originalidade de um romance construído sobre um curto marco temporal – um dia na vida de uma família – e o fato da “fábula” estar centrada sobre uma criança de três anos de idade, sendo possível a observação das relações entre os membros dessa família, integrada por dois adultos e cinco filhos, com a presença de um pequeno grupo de empregados, criando um microcosmo que corresponde a um universo de espanhóis, de origem diversa, com crenças e valores distintos, que, apesar de se encontrarem em um mesmo espaço, permanecem separados. 16 1. MIGUEL DELIBES – HOMEM E AUTOR O escritor castellano de Valladolid, Miguel Delibes Setién, cuja obra cobre a segunda metade do século XX, já afirmou que “debemos escribir como somos. Entre el hombre que vive y el escritor que escribe no debe abrirse un abismo” (DELIBES, 1993, p. 17). Por isso mesmo, o conhecimento de alguns aspectos de sua vida se faz imprescindível para aquele que deseja aprofundar-se na compreensão de sua obra e na percepção de seu projeto criador e de suas constantes, em função da coerência existente entre vida e obra, tal como afirma Pilar Celma. […] por la asumida interrelación de literatura y vida, su obra se ofrece, a la vez, en una doble dimensión, estética y ética. Si la primera de estas dimensiones nos aproxima al escritor, consciente de su trabajo, la segunda nos desvela también el pensamiento de quien ha encontrado en su oficio su manera de estar en el mundo, de tomar posición ante los problemas que inquietan al hombre actual (CELMA, 1993, p. 17) Castilla y Valladolid, onde nasceu em 17 de outubro de 1920, estão vinculadas à obra de Miguel Delibes, cenário de quase toda sua narrativa. Filho do Adolfo Delibes Cortés e de María Setién Echanove, é o terceiro de oito irmãos. Cursou a escola primária e secundária em colégios católicos, conclui u o segundo grau no colégio La Salle em 1936, justamente no ano em que se iniciou a guerra civil espanhola que impediu seus estudos universitários. Resolve u continuar seus estudos na área de comércio, seguindo os passos do pai que, além de advogado, era professor e diretor da Escuela de Comercio de Valladolid. Por suas claras tendências para o desenho, matriculou-se na Escuela de Artes y Oficios. Durante a guerra, temendo que o convocassem para a infantaria, alistou-se na Marinha, pois, segundo informa García Domínguez (2003, p.32), a guerra no mar era menos personalizada, o alvo era o navio, um avião, nunca um ser humano, o que Delibes via, em seus 18 anos, como um mal menor. Essa experiência traumática na Marinha de Franco será recuperada, literariamente, em Madera de héroe, obra de 1987. Após a guerra, Delibes continuou seus estudos de Comércio e graduou-se em Direito. Em 1943 ingressou no doutorado, ao mesmo tempo em que estudou jornalismo. 17 Sua trajetória no jornal El Norte de Castilla iniciou-se quando estava para completar 21 anos, como caricaturista. Em 1944, aos 24 anos, passou a redator do jornal. Em sua vida acadêmica deu aulas de Direito Mercantil e História da Cultura. Em 1946 Delibes casou-se com Angeles de Castro. O fato de estar casado e necessitando de dinheiro fez com que escrevesse, no ano de 1947, o seu primeiro romance La sombra del ciprés es alargada, com o qual obteve o prêmio Nadal1. A partir desse momento dedica-se mais intensamente à literatura. Mais tarde recebeu outros prêmios, como El Premio Nacional de Literatura, em 1955, por seu livro Diario de un cazador e El Premio de La Crítica, por Las ratas (1963). Em 1972 foi eleito membro da Real Academia Española de las Letras, em 1982 ganhou o prêmio Príncipe de Asturias de las Letras, em 1984, o Premio de las Letras de Castilla y León, e ainda o Premio Nacional de las Letras Españolas (1991), Premio Cervantes (1993), Premio Nacional de Narrativa, por El hereje (1999), entre outros. Viajou por países da América como Chile, Argentina, Brasil e Estados Unidos além de países como Itália, França, Alemanha, onde pôde apresentar conferências em várias universidades. Ainda na década de 70, Delibes foi acometido por um duro golpe. Sua esposa e mãe de seus sete filhos, considerada por ele mesmo como seu ponto de equilíbrio, veio a falecer em novembro de 1974, após quase três décadas de um casamento feliz. Apesar de todo o sofrimento, Delibes segui u com sua trajetória brilhante, publicando livros e ganhando prêmios. A maior parte da obra do escritor de Valladolid ficou conhecida através da editora Destino, que vem publicando desde 1964 sucessivos volumes de sua Obra Completa. Delibes é considerado um dos principais romancistas surgidos na Espanha após 1939 e entre romances, livros de viagem, obras relacionadas com a caça, além de contos e artigos sua obra alcançou vários países de todo o mundo. 1.1 A NARRATIVA DELIB IANA Aprofundar-se na alma humana, conhecer suas paixões, suas fraquezas e seus medos são, sem sombra de dúvida, alguns dos principais objetivos de Delibes ao escrever uma obra. Sua preocupação com o homem é constante, ainda que esse 1 Os 60 anos de publicação desta primeira obra de Miguel Delibes foram celebrados em outubro de 2007, em um congresso internacional, em Valladolid. 18 homem pertença a um extrato da sociedade menos prestigiado como o dos proletários ou o dos homens do campo, por exemplo. Podem também pertencer à burguesia. Não importa. Seus personagens não possuem nenhum traço extraordinário em sua personalidade, tampouco existem eventos fantásticos em suas vidas. São vidas comuns, de seres comuns. Delibes é um autor que narra o quotidiano. Tudo o que faz parte do dia a dia pode ser narrado: uma briga entre irmãos, um trabalho doméstico ou rural, uma brincadeira, uma conversa. Observamos em suas narrativas problemas, costumes, crenças e ambientes próprios do seu povo. Sobre isso, Delibes confessa: [...] yo creo que el lector busca en cada novela antes que la originalidad de un argumento los nuevos reflejos que el novelista es capaz de arrancar de un tema viejo o, lo que viene a ser lo mismo, la huella de otra personalidad, con cuyas ideas a veces coincide y otras discrepa. (DELIBES, 1993, p. 16). Temas como a morte, a guerra, a infância, a violência são constantes em sua obra. Delibes parece ter certo fascínio por personagens “puros”, simples, não contaminados pela influência de um mundo cada vez mais artificial, em que o homem deve seguir determinados padrões. Por vezes seus personagens são crianças ou mesmo adultos que acabam assemelhando-se a crianças por sua pureza e falta de autonomia, como o caso de Azarías, do romance Los santos inocentes, publicado no ano de 1981. Azarías é um homem adulto que tem problemas mentais e leva uma vida simples no campo. Vive em uma propriedade próxima à do “señorito Iván”, dono das terras onde trabalha a família de sua irmã. Azarías, apesar de sua ingenuidade, torna-se também uma vítima do tratamento desumano que senhor Ivá n dispensa a seus empregados e sobrevive à dura vida cotidiana que possuem todos aqueles que como ele, têm que se submeter ao dono das terras. O ambiente familiar onde as crianças crescem também é de grande relevância na narrativa de Miguel Delibes. Em El príncipe destronado, por exemplo, essa questão é uma dos pontos centrais. Sobre esse aspecto das obras do autor, Valle Spinka esclarece: 19 El autor parece indicar que el ambiente donde crecen los niños ejerce gran influencia en su desarrollo, y más tarde, en su vida. Es importante que la educación se organice de una manera adecuada y que proporcione al niño un ambiente propicio para su desarrollo. Se reitera su interés por novelar la infancia, cuando Delibes dice: ‘Los problemas humanos planteados en una escala infantil cobran un patético relieve, un patético acento dramático que imprimen a la novela una mayor fuerza y eficacia que si fueran planteados en el mundo de los mayores’. (VALLE SPINKA, 1975, p.23-24) Além de tocar na questão da educação e da família suas personagens infantis ainda podem servir para criticar o mundo adulto. É o que acontece em El príncipe destronado. Quico é a personagem prinicipal da narrativa, porém o foco central do romance não é o mundo infantil e, sim, a difícil relação entre os membros adultos daquela família. Quanto aos principais ambientes onde se passam suas histórias podemos destacar o ambiente rural. Delibes escreve muito sobre o campo castelhano e apesar de nutrir uma intensa paixão pelo ambiente rural, não esconde os aspectos conflituosos e problemáticos do campo como as deficientes condições de vida daqueles que moram ali, a miséria, a difícil convivência entre patrões e empregados, entre outros males. A experiência pessoal do escritor tem uma forte influência em sua produção literária, pois desde criança teve contato com o campo e com a caça. O ambiente rural aparece na maioria de suas obras, pondo em destaque as virtudes e os problemas que castigam Castilha , sem idealizações. O primeiro romance a tratar do universo rural foi El camino, publicado em 1950, onde tenta retratar, através da perspectiva de um menino de onze anos, a vida do povo do campo e defender a idéia de que é possível ser feliz, mesmo tendo uma vida simples. Para ele, cada ser humano pode e deve escolher seu caminho de acordo com suas aptidões. Para Sanz Villanueva (1993) a incorporação ao romance do século XX da imagem do quotidiano dos povos e aldeias de Castilha é considerada uma grande contribuição à literatura espanhola das últimas décadas, e Delibes é, sem sombra de dúvida, um dos principais responsáveis pela difusão desse tipo de narrativa. Mesmo tendo a predileção pelo mundo rural, Delibes também utiliza o cenário da cidade para compor suas histórias. Neste caso, Delibes narra o cotidiano e os costumes da burguesia provinciana de Valladolid, criticando seus valores e sua forma de vida. 20 Este é o quadro no qual se encaixa o enredo do romance El príncipe destronado. O dia da família burguesa à qual pertence Quico é capaz de mostrar os anseios e frustrações de pessoas que, mesmo não passando por necessidades materiais, têm carências afetivas que lhes trazem inseguranças e medos. As histórias que transcorrem dentro do ambiente familiar destacam vários tipos de famílias, grandes e pequenas, unidas ou não. Porém o mais importante é a idéia de que esse ambiente é o principal fator que influenciará no modo de ser do indivíduo que cresce ali. As crianças serão “produtos” do ambiente onde se desenvolvem. [...] Delibes cree que un ambiente sano es un factor sumamente importante en el desarrollo del individuo. La familia es una entidad básica y esencial donde debe existir el cariño, además de cierta responsabilidad mutua de parte de todos los miembros del grupo familiar. (VALLE SPINKA, 1975, p.124) Após o ano de 1969, Delibes escreve sobre temas universais. Ganha destaque a partir de então a questão dos fracos, dos desprestigiados dentro de uma sociedade que vive em estado de miséria, submissão e abandono. São seus seres “inocentes” em um mundo violento e materialista. Como Delibes, por um longo período, escreve u durante o vigor da ditadura de Franco é comum encontrarmos em suas histórias questões relacionadas com as conseqüências de um governo fechado que visava à manutenção de uma ordem social já estabelecida, em que o cidadão não tinha direito à liberdade de expressão. Seja no campo ou na cidade, essas histórias trazem em si pontos cruciais do pós-guerra espanhol, relacionados à família, à desigualdade, à falta de liberdade e à violência. Essa violência deve-se à intransigência, ao despotismo, à discriminação, à crise dos direitos humanos, à falta de amor ao próximo e à ditadura. Delibes mostra a deficiência de uma organização social que precisa de uma urgente revisão. Vários romances de Delibes abordam a questão da violência e da guerra, mais especificamente. El príncipe destronado é uma dessas obras que tratam dessa temática. Mesmo não se passando durante a guerra civil, a presença da guerra e de suas conseqüências é bastante forte. As brincadeiras das crianças, sempre reproduzindo cenas de guerra e os diálogos tensos entre a mãe e o pai de Quico, representando claramente os ideais dos dois bandos adversários são exemplos de 21 que, naquela família, o conflito ainda está muito presente. A falta de amor aparece em sua obra repetidas vezes. Falta de amor ao próximo, filial ou mesmo conjugal. Conflitos domésticos, falta de comunicação e isolamento são algumas conseqüências dessa ausência de amor, cujo exemplo podemos citar em Cinco horas con Mario. Nessa obra, Mario e Carmen são marido e mulher que durante o matrimônio não conseguem se entender por terem diferentes visões de mundo e valores. Só quando Mario morre, sua esposa decide “dialogar” com ele e lhe confessa o que até então era totalmente silenciado: seus anseios como mulher, seus sonhos de consumo e suas frustrações. Por outro lado, Carmen sente-se culpada por não ter aceitado seu marido, um homem simples, um professor sem grandes ambições materiais. Para Delibes, a ausência de amor faz com que muitos problemas de ordem familiar e social existam. Essa é uma questão que o preocupa e que está totalmente vinculada a um outro tema fundamental para Delibes - a educação. No romance Los santos inocentes, temos uma passagem em que ficam claras as diferenças sociais que dividem a sociedade entre aqueles que têm o poder e os desprovidos de qualquer papel decisivo. […] el señorito Lucas les dibujó con primor un H mayúscula en el encerado y, después de dar fuertes palmadas para recabar su atención e imponer silencio, advirtió, Mucho cuidado con esta letra; esta letra es un caso insólito, no tiene precedentes, amigos; esta letra es muda, y Paco, el Bajo, pensó para sus adentros, mira, como la Charito, que la Charito, la Niña Chica, nunca decía esta boca es mía, que no se hablaba la Charito, que únicamente, de vez en cuando, emitía un gemido lastimero que conmovía la casa hasta sus cimientos, pero ante la manifestación del señorito Lucas, Facundo, el Porquero, cruzó sus manazas sobre su estómago prominente y dijo, ¿qué se quiere decir con eso de que es muda?, te pones a ver y tampoco las otras hablan si nosotros no las prestamos la voz, y el señorito Lucas, el alto, el de las entradas, que no suena, vaya, que es como si no estuviera, no pinta nada, […] (DELIBES, 1984, p .37) Nesse trecho, Delibes mostra a diferença social existente no meio rural e a falta de acesso, não só à informação, mas também aos direitos de cidadão, através dos diálogos entre as personagens . Na linguagem empregada pelas personagens existem traços que revelam a personalidade e características específicas de cada uma, como seu estrato social e suas origens. Delibes busca preservar em suas 22 obras a ling uagem típica de Castilha e por isso a registra de forma a tornar possível que as gerações futuras a conheçam. Trata-se de um desejo de que a história e as tradições de seu povo permaneçam vivas, uma contribuição sua no sentido de recuperar e manter a memória de sua gente. O fato de afirmarmos que Delibes se preocupa com a memória e a tradição não significa dizer que ele seja um homem que pregue a manutenção de determinadas idéias ou costumes retrógrados. Muito pelo contrário, o direito à liberdade é uma das principais preocupações do autor. Para Delibes, cada um, a partir de sua visão de mundo, deve optar quanto à forma como quer viver. O escritor não segue a mentalidade machista que vigorava na Espanha que insistia em enxergar a mulher como um ser dependente de seu marido, que devia estar voltada unicamente para o lar e os filhos. Sobre o tema, Delibes afirma em entrevista a Alonso de los Ríos: “La discriminación, la tendencia de relegar a la mujer a la cocina, el convertirla en un relicario de virtudes domésticas, es un error que ha esterilizado a muchas y ha castrado, en todo caso, su iniciativa, inteligencia e imaginación” (ALONSO DE LOS RÍOS, 1971, p.90-91). As diferentes vocações, para Delibes, devem ter o seu lugar e ser respeitadas. Aos filhos também deve ser garantido o direito de escolha, de forma que possam seguir a profissão que desejarem e viver onde e como quiserem. A personagem Daniel, de El camino, é um exemplo de como o autor aborda os temas da educação e da liberdade. Nesse romance, a personagem principal, Daniel, é obrigado pelo pai a sair do seu povoado e ir estudar na cidade, porém o seu maior sonho é viver onde nasceu e levar uma vida simples, trabalhando ali mesmo, sendo queijeiro como seu pai. Já em El príncipe destronado o irmão mais velho de Quico, Pablo, passa por uma situação bastante difícil, quando é chegada a hora de decidir sobre o seu futuro. Seu pai o pressiona para que vá para o Exército e devido à falta de diálogo e de liberdade em casa, o jovem não tem coragem para contar ao pai que gostaria de escolher outro caminho em lugar de seguir a profissão das armas. É notória em seus romances uma forte crítica à rígida educação que os pais dão a seus filhos. Nesse aspecto duas palavras são cruciais: liberdade e individualidade. Delibes, em suas obras, não propõe diretamente mudanças ideológicas, mas oferece ao leitor a oportunidade de avaliar e refletir a respeito de distintas questões, importantes e delicadas, principalmente em função da época em que foram escritas; por isso mesmo deixa um legado que amplia horizontes e inquieta, pondo, por 23 vezes, o seu leitor em uma situação desconfortável, ao tocar em questões que são como feridas abertas. 1.2 DIÁLOGOS DE DELIBES A Guerra Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial levaram o mundo a viver em um estado de incertezas e de miséria. Esse panorama contribuiu para que uma série de características surgisse no mundo literário e artístico em geral. Tal como afirma Sobejano (1993), na Espanha, não demorou a surgir uma literatura comprometida com o destino coletivo, reveladora da incerteza e da falta de comunicação existente na época. Entre o grupo de escritores surgidos após a guerra civil espanhola, não podemos falar em homogeneidade, porém existem pontos comuns conseqüentes da fase pela qual passava a Espanha: Estos escritores, muy distintos entre sí, pueden estimarse sin embargo como portavoces, en lo fundamental concordes, de un mismo clima histórico de postguerra. Notas compartidas serían: la escisión entre dos épocas y dos Españas; la angustia ante el destino incierto y ante la difícil comunicación de los hombres; la preocupación por la guerra en su origen, transcurso y resultados; la violencia, opresión e indecisión humanas, patentes en personajes que protagonizan situaciones de extrema t ensión: vacío, náusea, culpa, sufrimiento, combate, locura, necesidad de decidir, inminencia del morir, miedo. (SOBEJANO, 1993, p.44) É impossível deixar de perceber qua ntas coisas há em comum entre o grupo de escritores tidos por alguns estudiosos como pertencentes ao realismo social, ou neo-realistas. Luis Miguel Fernández (1991), pesquisador da literatura espanhola de pós-guerra, concorda com estudiosos como Darío Villanueva, Esteban Soler e Martinez Cachero e associa determinados escritores da geração de pós-guerra espanhola com as idéias advindas do neo-realismo italiano 2, ao dizer que “los 2 O termo neo-realismo refere-se habitualmente ao período artístico que se iniciou na Itália a partir de 1945 com a derrota dos alemães. Os acontecimentos de pós-guerra, bem como os imediatamente anteriores ao fascismo e à resistência foram objetos de análise por parte de cineastas e escritores, porém foi o cinema que ganhou força e tornou-se o principal porta-voz do que havia acontecido e o que estava acontecendo no país. Destaca-se nesse meio o roteirista Cesare Zavattini, quem penetra na realidade cotidiana da Itália, com sua corrente humanitária. Toda sua temática, desde a solidão até a indiferença dos demais em relação à dor humana e à pobreza, está guiada por sua idéia de amor ao próximo . 24 ‘neorrealistas’ [...] dicho muy brevemente, serían aquéllos que, dentro de la generación, se diferencian de los demás por la combinación de un tono más humanista que político [...]. (FERNANDEZ, 1991, p.225). Em Espanha o neo-realismo italiano chega na primeira metade dos anos cinqüenta. De 15 a 21 de novembro de 1951 ocorre a primeira semana de cinema italiano organizada em Madri pelo Instituto de Cultura, e nos dias 2 a 8 de março de 1953, ocorre a segunda. Já em 1955, entre os dias 14 e 19 de maio ocorrem as Primeras Conversaciones Cinematográficas Nacionales de Salamanca que significam a primeira resposta organizada dos intelectuais espanhóis contra o franquismo e representa, também, a ascensão do neo-realismo italiano como ponto de partida para uma arte realista espanhola. Obviamente, não podemos limitar a literatura de Delibes às características do neo-realismo, inclusive pelo fato de que antes mesmo dessas idéias difundirem-se pela Espanha, Delibes já era um escritor renomado. Vale lembrar que em 1947 ele já ganhava o Prêmio Nadal. Porém, é difícil não relacioná-lo às idéias dos neorealistas italianos, e conseqüentemente ao grupo de escritores espanhóis, tidos como neo-realistas. Idéias como a importância do amor autêntico, contra a falsa caridade dos poderosos, a busca por uma transformação social a partir de uma posição humanitária, baseada no amor e na bondade, tratamento humano dos problemas dos mais humildes, luta contra o egoísmo, e principalmente a temática da solidão, a indiferença dos outros em relação ao sofrimento humano e a idéia de amor ao próximo parecem sair diretamente das páginas dos romances de Delibes. No entanto, mais que sofrer a influência das correntes neo-realistas, Delibes contribuiu para enriquecê-las e afirmá-las no panorama da literatura espanhola e mundial. A narrativa de Delibes também guarda muito do que se convencionou chamar “novela social”, a que tem o intuito de mostrar a imobilização da sociedade pela injustiça e desigualdade existente, com o propósito de criticá-la (GIL CASADO, 1968). As narrativas sociais tratam de problemas fundamentais do relacionamento dos seres humanos e expõem a forma como diferentes grupos se comportam para que seja alvo de críticas, para que o leitor se dê conta do que ocorre a seu redor e forme sua opinião acerca da questão apresentada. Denunciam as condições de vida de determinada classe, tomando implícita ou explicitamente sua defesa. Das características da narrativa social, facilmente identificáveis na obra de 25 Delibes, podemos destacar outras além da intenção crítica, que é, notadamente, uma das mais fortes de sua obra. Destacamos, ainda, a apresentação da realidade de forma concentrada, a narração da rotina diária e a narração de acontecimentos corriqueiros. Do mundo externo muito pouca coisa é esclarecida, somente algumas informações que sejam indispensáveis para o entendimento do contexto da obra: La realidad así descrita tiene carácter simbólico y sus aspectos concretos sirven para interpretar los generales. Esta concepción clásica del arte hace posible que el escritor pueda novelar la existencia de sus personajes durante un período muy limitado de tiempo, un verano, una semana, uno o dos días, una noche, pues lo cotidiano deja ver a través, como cristal de aumento, el significado total de sus vidas. (GIL CASADO, 1968, p.25) Outro aspecto a ser destacado: a narração apresenta uma aparente simplicidade, deixando de lado expressões rebuscadas, formas prolixas, excessos de descrições e o diálogo se apresenta breve, porém com grande significado e importância, pois através deles serão expostas situações que se quer criticar. Muitos escritores, com é o caso de Delibes, procuram refletir a forma popular da ling uagem oral, incorporando palavras e expressões próprias da classe a que pertencem seus personagens. As primeiras manifestações da “novela social” aparecem entre os anos de 1923 a 1930. Essa tendência vai ganhando força e importância até que chega a guerra civil e interrompe sua continuidade. Porém, esse tipo de narrativa volta a fortalecer-se graças a mudanças ocorridas na década de 1950, quando Espanha começa a sair de seu isolamento e certas tendências artísticas externas passam a influenciar os intelectuais espanhóis já que a censura começa, lentamente, a afrouxar sua vigilância e algumas “liberdades”, impensáveis na década anterior começam a ser possíveis. A geração conhecida como “los niños de la guerra” está integrada por escritores espanhóis pertencentes à segunda metade do século XX que, por terem vivenciado a guerra civil espanhola quando crianças, ganharam esse título. A influência da guerra em suas obras é sem dúvida alguma um ponto marcante. Podemos encontrar questões como a violência, a fome, a falta de amor ao próximo, entre outras que dialogam com a temática de Delibes, que pertence a uma geração anterior. Não se trata, neste caso, de escritores que escrevem durante a ditadura do 26 pós-guerra, e sim de pessoas que, tendo vivido a guerra e os primeiros duros anos da ditadura, lançam o olhar sobre o passado e constroem uma interessante literatura que recupera o clima de tensão e escassez daquele período. Trata-se de uma geração profícua que conta com uma grande e rica produção de romances e contos que tenta fazer com que a guerra, o que se perdeu e o que se sofreu em função desse confronto não sejam esquecidos, em uma espécie de prevenção contra qualquer possibilidade de algo semelhante ocorrer novamente. Para o próprio Miguel Delibes, é difícil determinar a qual grupo sua literatura pertence. A chamada literatura de pós-guerra não forma um único grupo homogêneo de escritores, apesar de haver semelhanças entre os escritores que surgem após o término da guerra civil espanhola. Delibes, em Conversaciones con Miguel Delibes (Alonso de los Rios, 1971) subdivide em quatro os diferentes grupos de escritores que compõem esta fase da literatura espanhola. O primeiro, ele denomina de “autodidatas”, e explica que essa denominação se deve ao fato de que, até o início da década de 1950, Espanha estava muito fechada, de forma que sua literatura não sofria influência de escritores estrangeiros. Neste grupo estariam nomes como José Camilo Cela, Ignacio Agustí e Carmen Laforet. Um segundo grupo de narradores foi por ele chamado de “los universitarios”, aparecem por volta dos anos 50, são todos universitários e sofreram maior influência estrangeira. Demonstram objetividade e preocupação pela forma e pelo estilo. Neste grupo estão Ignácio Aldecoa, Fernández Santos e Ana María Matute, entre outros. Há ainda os “social-realistas” que formam o terceiro grupo de escritores. Surgem nos anos sessenta, em um período de maior tolerância da censura e buscam dizer em seus livros o que a imprensa não diz. Há uma grande preocupação moral e sociológica de denunciar os problemas do país. Já no início dos anos setenta, surge o que Delibes chama de “vanguardia”, um grupo que visa inovar a narrativa espanhola . Segundo Delibes, sua literatura tem características de todos os grupos, do primeiro ao último, como se percebe pelas declarações abaixo : - Pues si a mí me preguntas: ‘¿En cuál de los cuatro grupos señalados estás tú?’, tengo que decirte que, por la edad y por la forma intuitiva de mis primeros libros, en el primero; por la preocupación formal y la tendencia objetiva, a partir de El Camino, en el segundo, y por la preocupación social, también muy acusada, en el tercero. Ahora bien, si me apuras te diré que participo también del cuarto en cuanto que la inquietud estilística y 27 constructiva no diré que haya informado Parábola del náufrago, pero sí existen en esta obra una mezcla de tiempos, unos cambios narrativos, una utilización literaria de la onomatopeya…que, a mi modo de hacer, pueden parecer revolucionarios.”(ALONSO DE LOS RÍOS, 1971, p.130) Ao longo de sua trajetória, Delibes vai apresentando diferentes formas de narrar e dialoga com as tendências de cada momento. A inovação e o propósito ético de fomentar a reflexão a fim de contribuir no preparo da sociedade para futuras transformações são os dois pilares de sua obra que o transformaram em um dos nomes de maior expressão da literatura espanhola do pós-guerra. Delibes, juntamente com outros escritores de sua época, brinda seu leitor com um grande presente: sua interpretação da forma como se vivia na Espanha na segunda metade do século XX, o que resulta na reconstrução da história de seu país, como salienta o historiador Raymond Carr (1993), quando afirma que a história autêntica está em como vive o povo e não em números, por isso Delibes, além de fazer boa literatura mostra a esquizofrenia moral e a conduta imitativa e esnobe da classe média do franquismo. 28 2. CONTEXTO HISTÓRICO Tratar dos aspectos históricos e sociais relacionados à época em que Miguel Delibes escreveu El príncipe destronado é fundamental para que se possa compreender melhor essa obra e toda a riqueza de informações que podemos obter a partir de sua leitura. Compreendendo o que o povo espanhol viveu e quais foram as conseqüências dessas experiências, entenderemos por que essa família que o autor tão bem retrata na obra vive do modo que vive e por que suas personagens são como são. Antes de destacar os principais momentos que antecederam a guerra civil espanhola e os motivos que a geraram, é necessário deixar claro que como esta dissertação não tem como principal objetivo a reconstrução da história recente da Espanha, nem o estudo minucioso do período de pós guerra civil espanhola, escolhemos algumas obras de referência para que pudéssemos, de forma breve, contextualizar a época da obra que estamos analisando. Desse modo, apoiamo-nos, principalmente, nos historiadores J. C. Gay Armenteros e Juan Eslava Galán, o que não significa que excluímos a possibilidade de existirem outras versões ou interpretações dos fatos aqui comentados. 2.1 A CAMINHO DA GUERRA Na Espanha de 1930, o General Miguel Primo de Rivera 3, que comandava o país ditatorialmente, pediu sua demissão ao rei Alfonso XIII 4, por encontrar-se sem apoio em seu governo. A figura do rei, então, encontrava-se totalmente vinculada ao fracasso da ditadura militar em seu país e após uma forte campanha nos anos de 1930 e 1931, a queda da monarquia de Alfonso XIII, que começara em 1902, finalmente ocorreu através de eleições, em abril de 1931, cujos resultados nas principais cidades espanholas foram contrários aos partidos monárquicos. A mudança do regime monárquico para o republicano aconteceu de forma pacífica. 3 Miguel Primo de Rivera foi presidente da Espanha entre os anos de 1923 e 1930, quando pediu demissão do governo, por sentir-se desautorizado pelos altos comandos militares e pelo próprio rei Alfonso XIII. Autoexilou-se em Paris e morreu dois meses mais tarde, a 16 de março de 1930. 4 Alfonso XIII de Borbón nasceu em 17 de maio de 1886 e foi o filho póstumo de Alfonso XII e María Cristina de Habsburgo-Lorena. Assumiu as funções constitucionais de Chefe de Estado a partir de 1902, quando cumpriu 16 anos e foi declarado maior de idade, reinando até o ano de 1931. Morreu em Roma em 1941. 29 De 1931 a 1933, houve o biênico esquerdista, cuja figura central foi o chefe de governo Manuel Aza ña. Considerados como os anos mais frutíferos da II República, neles houve avanços na área de ensino e entrou em vigor o Estatuto de Autonomia para Catalunha. Porém a Coalizão de Republicanos de Esquerda e Socialistas, com Azaña à frente , com suas idéias reformistas radicais fomentou resistências e críticas de seus opositores e, por outro lado, a frustração de socialistas que consideraram insuficientes as reformas realizadas. Devido à formação de uma oposição política forte, nas eleições de novembro de 1933 a direita sai vencedora. Durante os anos de 1933 a 1935, a direita não conseguiu implantar mudanças significativas na República e acabou desacreditada por sucessivos casos de corrupção. A partir de então, a descrença no regime republicano começou a ser maior e Portela Valladares, que estava no governo após a renúncia de Alcalá Zamora, acabou abandonando o poder devido às agitações daquele momento e manifestações da população. Azaña assumiu o governo, porém em 07 de abril de 1936 ele foi afastado devido a acusações de ter agido à margem da Constituição. No entanto, um mês depois deste episódio, Manuel Azaña, da Frente Popular, foi eleito Presidente da República, com uma vitória apertada nas urnas. Casares Quiroga tornou-se o chefe de governo, um político considerado de menor expressão e que não conseguiu organizar o país. Diante de toda essa situação o general Mola encabeçou a conspiração contra o governo e contou com o apoio de outros generais como Francisco Franco, conforme o relato de Gay Armenteros: Mola [...] contó con el apoyo de los tradicionalistas para sublevarse, pero no estaba de acuerdo con las tesis políticas de este grupo conservador. [...] Las dudas del general Franco en sumarse a la conspiración, pues lo hizo tardíamente, son muestras de la confusión y desconfianza de los fines últimos de la misma. Lo más probable es que Mola y sus seguidores quieran realizar un pronunciamiento, que no significara necesariamente el final de la República, sino de su manifestación revolucionaria. Tal vez esto explique que generales considerados republicanos, como Cabanellas y Queipo de Llano, se sumasen a la sublevación, y que los primeros manifiestos de los sublevados acabasen con un ¡Viva la República! (GAY ARMENTEROS, 1986, p.71) 30 Casares Quiroga acabou deixando o governo . O general Franco comandou as tropas na zona espanhola de Marrocos, onde os primeiros registros do golpe aconteceram no dia 17 de julho de 1936. Em 18 de julho, houve as primeiras agitações na península. O Exército estava dividido e isso dificultou a tomada das cidades por parte dos militares. Na verdade, a sociedade espanhola como um todo encontrava -se dividida em dois grupos intransigentes. Cada um considerava o outro como uma ameaça e por isso queriam catequizar uns aos outros. De um lado os republicanos, com suas idéias liberais, de outro, os nacionalistas, direitistas e conservadores. A Guerra Civil Espanhola eclodiu no verão de 1936, devido a ideais políticos e ideológicos extremamente heterogêneos existentes no país. Os Republicanos, com idéias liberais, como escolas laicas e mistas, o reconhecimento da autonomia das Províncias e a liberação do uso de suas línguas foram considerados anti-clericais e comunistas pela direita composta pelos nacionalistas e membros da direita tradicional e católica. Assim que foi iniciada a guerra civil, o Governo republicano solicitou ajuda à França e os militares nacionalistas à Alemanha e Itália. Franco contou com aviões, mais de mil carros de combate , canhões, submarinos, soldados e pessoal técnico, principalmente no campo da aviação e material bélico. A ajuda da França e da Inglaterra aos Republicanos foi mais discreta, pois esses dois países acabaram respeitando o que havia sido estabelecido por um comitê de países, entre eles Alemanha e Itália, que propôs a não intervenção internacional na guerra espanhola, para que se evitasse uma possível guerra mundial. A Guerra Civil Espanhola, que perdurou durantes os anos de 1936 a 1939, é considerada um dos maiores conflitos do século XX. Nela foram utilizados armamentos e táticas da Primeira Grande Guerra e introduzidos instrumentos e métodos que seriam empregados na Segunda Guerra Mundial. Contou também com a presença de voluntários internacionais, como os alemães, italianos e portugueses que apoiavam os nacionalistas, e russos, franceses, tchecoslovacos, finlandeses, mexicanos, entre outros, que apoiavam os Republicanos, alé m de Brigadas Internacionais. Serviu como um formidável laboratório de testes, principalmente no campo da aviação e uma das principais modernidades da guerra da Espanha reside no ressurgimento das guerras urbanas. Ou seja, nessa guerra os combates ocorriam também nas cidades e não somente no campo. Os 31 combatentes utilizavam granadas, facas e metralhadores e os combates em meio urbano aconteceram em Teruel, Barcelona, Toledo e, principalmente em Madri. Em 1939 termina a guerra, com a vitória dos nacionalistas e com mais de meio milhão de mortos. A partir daí, inicia-se a ditadura de Franco, que governaria a Espanha por quase q uatro décadas. 2.2 O GOVERNO DE FRANCO Francisco Franco, “el Generalísimo”, como ele mesmo se auto-titulou e ficou conhecido, nasceu em 4 de dezembro de 1892, numa família de militares. Cursou a Academia de Infantaria de Toledo e de 1912 a 1929 serviu no Marrocos. Com a vitória da direita nas eleições de 1933, voltou à Espanha. No ano seguinte, foi indicado para a chefia do Estado-Maior do Exército, posto do qual se afastou após a vitória Republicana nas eleições de fevereiro de 1936. Em julho do mesmo ano juntou-se à rebelião comandada pelo general Sanjurjo no Marrocos e, com a sua morte, assumiu a chefia do movimento. A vitória dos nacionalistas depois de três anos de sangrenta Guerra Civil, levou o General Franco ao poder. Assim iniciou-se um longo período de um governo ditatorial que tinha como propósito a "Reconstrução Nacional" nos campos da política, economia e cultura. Casado com Carmen Pólo, Franco era conhecido por ser um homem ambicioso, cuja verdadeira paixão era comandar e sua principal qualidade era a obstinação que o fez superar possíveis debilidades. [...] hay una imagen del Franquiño adolescente, alegre, parlanchín y bailón completamente distinta a la del Franco adulto, soso, serio y distante como un jefe apache, aquel hombre que dejaba helados a sus interlocutores por su frialdad y falta de cordialidad, pero luego iba de pesca con su dentista y amigo, y cuando estaban a solas, le contaba chistes verdes. Fue un hombre voluntarioso y ambicioso. Sus compañeros de academia lo superaban en prestancia y estatura, Franquito los superó en estudio y aplicación […] (ESLAVA GALÁN, 2004, p.408) Durante os primeiros anos de seu governo, o país estava arrasado e necessitava de alimentos e remédios. Essa fase de extrema escassez perdurou por um longo período. Com o início da 2ª Guerra Mundial nenhum país pôde ajudar à 32 Espanha que enfrentava fome e doenças como a tuberculose. Para que seu governo se firmasse e para evitar qualquer tipo de oposição, o Regime contou com o apoio da Igreja Católica. A partir de 1945 a Igreja vinculou-se to talmente ao governo, dando início ao chamado nacional-catolicismo. O Exército, a Igreja e a Falange (então, o único partido da Espanha, fundado em 1933, por José Antonio Primo de Rivera) formavam os três pilares sobre os quais o poder de Franco se constituiu. Com o aumento da fome e da escassez de praticamente tudo, muitos espanhóis acabaram fugindo do campo para as cidades em busca de uma melhor forma de vida. Porém, a situação das cidades não era diferente nesse aspecto e como faltava quase tudo a única opção que a população tinha era buscar os produtos no mercado negro. Segundo o relato de Eslava Galán (2004), a fome e o mercado negro foram o acompanhamento de uma década de miséria e sofrimento, epidemias, sarna, piolhos. Um grande número de indigentes fazia filas diante dos quartéis em busca de sobras de alimentos. Enfim, era a época do racionamento. No entanto, não era só a fome que afetava os espanhóis. Havia também a censura, que lhes tirava o direito à informação e à cultura. O afã moralizador do Regime era tão grande que quase tudo era proibido e vigiado. Nos cinemas, havia a fiscalização pelo "lanterninha" e caso um casal fosse pego cometendo "atos imorais", era multado e ganhava uma nota no jornal, onde teriam seus nomes expostos por terem sido flagrados em tal situação. O controle era tanto que prostitutas e homossexuais eram levados a campos de concentração. A moral eclesiástica marcou uma moral sexual extrema. As mulheres não podiam ir à Igreja no verão sem meia ou com mangas curtas. Os namorados tinham que passear sempre com um acompanhante e os bailes "agarrados" foram proibidos. Em algumas cidades, existia até uma divisão nas praias. As praias católicas possuíam divisão entre os sexos e havia guardas que multavam e proibiam roupas de banho sem saia ou decotadas. Diante dessa difícil realidade seria inevitável que o governo acabasse tendo opositores, e para combatê-los, havia a censura. Este instrumento de repressão visava impedir qualquer manifestação social, política ou cultural contrária. Já os serviços de imprensa e propaganda do Regime Franquista eram utilizados para inculcar valores e doutrinar a sociedade, impondo-lhe modos de expressão, gostos, valores e condutas sociais. Para tanto, foram considerados ilícitos a produção, o comércio e a circulação de livros, jornais e demais materiais impressos tidos como 33 pornográficos, socialistas e comunistas. Aqueles que não se enquadrava m nessas regras eram considerados inimigos do governo e por isso muitos foram presos, exilados ou executados. No ano de 1941 foi criada a Delegação Nacional de Imprensa que exercia um rigoroso controle sobre a imprensa nacional. Tanto no aspecto político, como no econômico, cultural e esportivo o referido órgão intervinha estabelecendo critérios, impondo os temas a serem comentados, matérias que deveriam ganhar destaque e até mesmo a disposição dessas matérias nas páginas dos jornais. Os diretores de jornais nesta época tinham autonomia praticamente nula e eram relegados a uma condição servil. O Estado utilizou a imprensa para expor de forma maquiada as situações desfa voráveis que o país enfrentava e foi veículo de propaganda do governo. A Delegação Nacional de Imprensa ficou conhecida na época como o quarto poder. Miguel Delibes afirma em sua obra intitulada La Censura de prensa de los años 40 que a imprensa converteu-se no mais eficaz instrumento de propaganda do novo Estado, devido a esse controle inflexível existente nesse período. Outro órgão criado foi a Delegação Nacional de Propaganda, que tinha a seu cargo a vigilância e controle de livros, teatro, cinema e espetáculos em geral, além da produção musical. Essa delegação tinha em mãos meios técnicos e orçamentários para realizar um trabalho de levar uma conveniente ideologia política à população, bem como tinha como atribuição a aniquilação de qualquer produto intelectual ou artístico que pudesse oferecer risco à sociedade espanhola: Un nutrido equipo de intelectuales de talla […] revisó toda la producción libresca española anterior a 1936 – autores clásicos incluidos – en los casos de reedición, adoptó a los valores que debían imperar en la nueva sociedad la avalancha de obras traducidas y ejerció un control previo a la importación de cualquier libro impreso en el extranjero. Además […] expurgó bibliotecas, levantó listados de libros prohibidos o autorizados, destruyó archivos [...] convirtió en pasta de pastel cuantos libros le fue dado hallar escritos en otros idiomas peninsulares – catalán, gallego o vasco – e impuso como único idioma el castellano. (ABELLÁN, 1995, p. 64) O objetivo do governo franquista de reconstrução da Espanha era a busca da recuperação de valores e condutas que, segundo o Regime, representavam a verdadeira Espanha. Para popularizar-se, o regime passou a ser associado ao conceito de "españolidad", o qual, segundo os nacionalistas, havia sido traído pelos 34 republicanos, com suas idéias liberais e ateístas. Certo de sua missão redentora, Franco não mediu esforços para alcançar seus objetivos, porém além da Igreja e da censura havia outra peça-chave para o sucesso de seu propósito: a mulher. O papel da mulher na manutenção dos "bons costumes" era fundamental, pois era ela que deveria manter a união de sua família e educar seus filhos de acordo com a moral cristã. Isso significa que dentro de uma sociedade intensamente machista e repressora cabia à mulher o papel de mantenedora dos laços familiares. Independente de qualquer coisa, a esposa deveria manter seu casamento, e atender às vontades de seu marido, em nome do bem-estar do seu lar e, acima de tudo, seguir a Igreja. O governo pregava que tudo o que era relativo ao passado recente da Espanha era negativo e ruim. O bom, o correto e desejável era a volta de valores presentes em um passado mais remoto. Sendo assim, a figura da mulher emancipada e moderna era atacada. A finalidade era desacreditar a emancipação feminina. O ideal de mulher que a propaganda da época impôs era o da mulher tradicional, recatada, católica, mãe, submissa e com espírito de sacrifício, pois elas seriam o espelho das futuras gerações. Com o objetivo de redesenhar o paradigma da mulher espanhola foi criada a "Sección Femenina de la Falange", por Pilar Primo de Rivera, que oferecia à mulher uma educação de acordo com seu futuro papel social, secundário e dependente do homem, voltada para as atividades domésticas. Era preciso transmitir às mulheres o conhecimento necessário para o cumprimento de sua missão. Para tal, havia a Escola Municipal do Lar, núcleo principal da Seção Feminina da Falange. Nesta escola as mulheres tinham aula de religião, cozinha, formação familiar e social, corte e costura, canto e economia doméstica. O treinamento físico, que também fazia parte do grupo de disciplinas da escola, tinha como objetivo central tornar a mulher saudável para que exercesse o seu principal papel que era ser mãe. O poder desse órgão era exercido através do Serviço Social, requisito obrigatório para obter trabalho (os que eram permitidos às mulheres), passaporte, carteira de habilitação, bem como para pertencer a centros ou associações artísticas, esportivas e culturais. A mulher espanhola deveria ter uma conduta irrepreensível e seu destino seria, inevitavelmente , o casamento ou a vida religiosa. Somente após o ano de 1948, com a Guerra Fria, Franco começou a ganhar simpatia no mundo por sua posição anticomunista e a partir do ano de 1952 o 35 regime teve respaldo internacional com acordos feitos com os Estados Unidos. No final dos anos de 1950 e na década de 1960, a economia voltou a crescer. Contanos Eslava Galán (2004) que por volta de 1957 os espanhóis que até então tinham acreditado que a essência da vida consistia em “apertar o cinto”, contemplaram com surpresa o aumento do consumo e crescimento econômico com a chegada de turista e imigrantes. Em apenas dez anos, entre 1960 e 1970, a renda per capita do país havia crescido 82%. O governo de Franco estendeu-se durante os primeiros anos da década de 1970, acompanhado de suaves aberturas no campo político e econômico. Seu governo terminou com sua morte, no dia 20 de novembro de 1975 e seu corpo foi sepultado no Valle de los Caídos, entre manifestações contrastantes de tristeza e de alegria. 36 3. EL PRÍNCIPE DESTRONADO, O MICROCOSMO DE ESPANHA Miguel Delibes é um escritor interessado pelo ser humano e retrata em suas obras a sociedade que tão bem conhece. Vários são os tipos humanos que podemos encontrar em seus livros, pertencentes às mais variadas camadas da sociedade. Na introdução ao primeiro volume de suas Obras Completas, o diretor da edição, Ramón García Rodríguez recorda e reproduz a afirmação de Miguel Delibes no livro España 1936-1950: muerte y resurrección de la novela (2004), em que Delibes assim se expressa: Considero la erección de tipos vivos como un fundamental deber del novelista […]. Poner en pie unos personajes de carne y hueso e infundirles aliento a lo largo de doscientas páginas es una de las operaciones más delicadas, de cuantas el novelista realiza. (In: GARCÍA RODRÍGUEZ, 2007, p.23) Recontar a história de seu país, retratar e denunciar as mazelas de seu povo era o que Miguel Delibes buscava. Obviamente, nem tudo poderia ser dito de maneira direta, pois era preciso fugir da censura em uma época em que aquilo que aparecia nos jornais era imposto e controlado. Porém, apesar de toda a dificuldade, em geral, a partir da leitura de muitas das obras de Delibes podemos conhecer bastante a sociedade espanhola da ditadura franquista. As dificuldades de se escrever em um período tão fechado, talvez tenham contribuído para que Delibes desenvolvesse sua criatividade e a utilizasse em prol da literatura. Em seus livros estão presentes, apesar da censura, temas delicados e cruciais para sua época e sociedade. Mas para percebê-los, temos que ser leitores atentos. E falando em criatividade, cada romance seu apresenta inovações quanto à forma. No romance Cinco horas con Mario (1966), por exemplo, o autor lança mão de uma narrativa emoldurada. No início do relato, aparece a nota de falecimento de Mário em um jornal. É o tema a partir do qual começa a fábula. A voz de Carmen, viúva de Mario, expõe ao marido morto tudo o que sentiu ao longo de sua vida matrimonial, suas frustrações, seus desejos e suas angústias. Os capítulos sempre partem de citações bíblicas sublinhadas por Mario em sua Bíblia e que são encontradas e interpretadas a sua maneira por Carmen. 37 Já Cartas de amor de un sexagenário voluptuoso (1983) é um romance epistolar. O relato vai sendo narrado através de cartas escritas pela personagem Eugenio à sua amada Rocío. Cada uma das cartas configura-se como um capítulo da obra. Esse tipo de narrativa trata-se de um verdadeiro diálogo, em que se escuta apenas uma voz, já que só temos conhecimento das cartas escritas por uma das partes que se correspondem, com bem nos explica Oscar Tacca: La otra forma de ser monólogo para ser verdadero diálogo: pero diálogo del que sólo escuchamos una voz. Como en el caso de una conversación telefónica, en que sólo oímos a uno de los interlocutores, el lector aventura, recompone mentalmente los estados de ánimo, las réplicas del ausente: los silencios se pueblan de conjeturas. (TACCA, 1989, p. 41) Outra estrutura narrativa que nos chama a atenção por sua originalidade é a de La guerra de nuestros antepasados (1975), em que, entre a moldura constituída pelo documento em que o médico de uma prisão informa sobre o prisioneiro, seu estado de saúde e sua morte, a narrativa se desenvolve em forma de um diálogo gravado ao longo de sete noites entre o médico e o prisioneiro. Como se vê, são várias as formas narrativas de que Miguel Delibes se vale para seu exercício de narrar. Já o romance El príncipe destronado está estruturado em doze capítulos. Cada um deles se refere a uma hora do dia. A trama inicia-se às dez da manhã e termina às nove da noite de 03 de dezembro de 1963, uma terça-feira. Em cada capítulo , ou hora, há uma sucessão de situações vividas pelo menino Quico e sua família. A limitação temporal, além de ser uma característica importante da narrativa da segunda metade do século XX, pode ser compreendida pela ausência de recordações em um personagem tão jovem, ainda sem noção do tempo que passa e que vive o seu presente, sem muitas referências do passado. Outra redução existente é a de espaço. A ação se desenvolve quase que exclusivamente no interior da casa, no espaço doméstico, salvo em uma ocasião em que Quico e a empregada Vito saem para comprar leite e em outra quando o menino e sua mãe vão ao médico, por causa de um pequeno objeto que Quico, supostamente, havia engolido. O fato de o autor ter escolhido fazer esse recorte na vida da família de Quico é característico de seu estilo. Existe uma tendência a não desenvolver por completo 38 a história de suas personagens , ou seja, Delibes não oferece uma ampla panorâmica de suas vidas. Em geral não há referências a quando e onde nasceram, nem exposição de dados importantes do decorrer de suas existências antes de se chegar ao fato ou momento central da narrativa e ao desfecho da história. Outros romances também apresentam essa característica, como nos explica Francisco Javier Higuero, em Indagación intertextual de 377 A, madera de héroe: En 377 A, madera de héroe, el autor emplea una estructura narrativa selectiva que ya aparecía, aunque con caracteres más concentrados, en El príncipe destronado, Las guerras de nuestros antepasados y Cinco Horas con Mario, en donde se reduce intensamente la contextualización interna del relato, sobre todo el espacio, el tiempo y la interacción dinámica de los personajes. Por estructura narrativa selectiva se entiende, tal como ha sido explicado por Esther Bartolomé Pons en Miguel Delibes en su guerra constante, la elección de sucesos y silencios que convierte a lo relatado en paradigma de un tiempo más extenso. (HIGUERO, 1993, p.139) Isso quer dizer que podemos considerar que os fatos narrados nesse dia da vida de Quico e de sua família dão a dimensão das circunstâncias em que este grupo de pessoas está inserido. Este dia é a representação de suas vidas, não um dia qualquer. Outro ponto a ser destacado na obra em tela é que ela se constrói com os elementos do cotidiano, pela narração fatos corriqueiros, típicos da rotina de uma família. Aliás, o interesse literário de Delibes pelo que é cotidiano é uma característica marcante de sua narrativa. Delibes parece haber ido más lejos que ningún novelista español de su época en la convicción de que todas las vidas, incluso las más anodinas, son susceptibles de interés literario. Esto se vuelve a manifestar en la elección de varios aspectos que atañen a la técnica narrativa. No sólo los personajes son humildes y lo que les sucede es trivial. Es que, además, el relato de sus vidas está hecho de modo que se evite lo sobresaliente y se insista en lo cotidiano. (REY, 1993, p.105) Em El príncipe destronado, o relato é feito em terceira pessoa por um narrador que está “fora da história”, ou seja, o narrador não “penetra na consciência dos personagens” (Tacca, 1989), e sim vai contando a partir de uma percepção de quem estaria apenas observando os acontecimentos dentro daquela casa. O leitor não tem, portanto, grandes explicações dos aspectos psicológicos do personagem, 39 nem da forma de ser e de pensar de seus personagens. Esse tipo de narrativa exige um trabalho de interpretação e de busca de informação a partir daquilo que se lê. É um exercício individual do leitor, um trabalho subjetivo de construção da imagem de cada personagem e de interpretação de cada fato narrado: El narrador no decreta, sino que muestra el mundo como lo ven sus héroes. Distribuye, pues, un caudal de información equivalente al de éstos. Renuncia a lo que James llamaba la ‘majestad encubierta de la irresponsable cualidad de autor. Esta forma exige, naturalmente, mayor participación del lector, que debe estar alerta: lo que se dice no es lo que es, según Dios o un veedor imparcial, sino lo que los personajes creen que es. (TACCA, 1989, p. 77-78) A obra analisada nesta dissertação trata das relações e conflitos existentes na casa de Quico a partir da perspectiva desse menino que perde a posição de caçula da família para sua irmã Cristina e, por isso, tenta conseguir a atenção de todos. A história que, aparentemente, é apenas um dia na vida de uma criança de três anos, deixa claro o pensamento delibiano com relação àqueles dois bandos, a Espanha dividida pela guerra civil, entre “buenos” e “malos”, segundo as circunstâncias. A obra expõe o cotidiano de uma família composta por pessoas comuns que representam uma ampla parcela da sociedade burguesa existente nas grandes cidades da Espanha dos anos 60. Através desse núcleo familiar e doméstico, nos encontramos com os valores morais e a conduta da classe média alta naquele período. Desse modo, Delibes confirma o comentário que fez a Alonso de los Rios: “Siempre que ha aflorado la guerra civil en alguno de mis libros he tratado de presentarlo como la típica guerra fratricida: el drama de Caín y Abel” (Alonso de los Rios, 1971, p.51). É oportuno recordar que a criança é uma das constantes literárias de Miguel Delibes, como personagem central ou não. Assim a encontramos em El camino (1950), Mi idolatrado hijo Sisí (1953), Las ratas (1962), El príncipe destronado (1975), por exemplo. Sobre a presença freqüente de crianças em sua obra, Delibes já afirmou mais de uma vez que a criança é um ser que encerra toda a graça do mundo e tem abertas todas as possibilidades, quer dizer, pode ser tudo. Enquanto o homem é uma criança que perdeu a graça e reduziu suas possibilidades apenas ao ofício que desempenha. E esclarece: “para mí, el niño, precisamente por la carga de misterio que encierra, tiene mayor interés humano que el adulto, incluso para ser el 40 protagonista de una novela o de una película” (GARCÍA RODRÍGUEZ, 2007, p. 34). 3.1 A CENA FAMILIAR E SEUS ATORES A trama do romance El príncipe destronado quase que totalmente se desenvolve dentro do ambiente familiar, em uma casa de classe média alta, onde podemos observar alguns luxos possíveis após Espanha ter conseguido melhorar sua economia, a partir da década de 1950. Talheres e objetos finos como colheres de prata e cigarreiras de ouro, eletrodomésticos modernos para a época, bem como carros e um número razoáveis de empregados são alguns símbolos de riqueza e prosperidade apresentados na obra. Na casa dessa família encontraremos crianças, homens e mulheres de diferentes classes sociais e níveis culturais. Personagens muitos diferentes entre si, dentre os quais destacamos os seguintes: 1- Quico, o criativo protagonista infantil que está para completar quatro anos. 2- Carmen, a mãe de Quico, que a cada instante o corrige, devido a suas travessuras. Vive para a casa e para a família, mas sente-se em conflito por não aceitar a opressão e a intolerância de seu esposo. 3- O pai de Quico, que apesar de aparecer uma única vez na história, tem uma marcante presença, com sua intolerância, sua maneira opressora de ser e suas histórias sobre a guerra. 4- Juan, o irmão imediatamente mais velho que Quico. O companheiro mais constante de Quico em suas brincadeiras, cujas principais características são o hábito de ler histórias em quadrinhos e a atração pelas armas; 5- Pablo, Merche e Marcos, os filhos mais velhos do casal; 6- Cristina, a caçula e a causa dos ciúmes de Quico, pois é a nova “princesa” da casa. 7- Domi, uma senhora que é empregada da casa e que se encarrega de cuidar dos três filhos pequenos do casal (Juan, Quico e Cristina); 41 8- Vítora, também empregada da família, que cuida da casa e auxilia no cuidado com as crianças; Uma das características mais marcantes dessa família é a ausência quase total de diálogo e de manifestações de afeto. A mãe está sempre atarefada e os filhos menores estão sempre acompanhados pelas empregadas da casa. Praticamente não existe relação entre pais e filhos, salvo as que se expressam pela censura e pela ameaça. O pai, quando aparece, preocupa-se mais em falar da guerra do que em dar atenção à sua família. A mãe de Quico tem, no início da narrativa, um papel totalmente esperado e desejado para uma mulher de sua época, a “rainha do lar”: é a mãe, a esposa, a dona de casa, aquela que zela para manter, segundo as normas vigentes, uma família modelar, ao menos “aparentemente” bem formada. No entanto, durante a narrativa, ela vai, aos poucos, deixando de ser uma “bata de flores rojas y verdes”, ou seja, uma mulher que não tem uma personalidade própria, que apenas roda pela casa arrumando e cuidando, quase como um utensílio doméstico a mais no cotidiano daquela família, para se mostrar como uma pessoa que possui espírito crítico e não está de acordo com as regras que ditavam as formas de viver em sociedade, nem com as atitudes machistas e autoritárias de seu marido. No desenvolvimento da narrativa, vamos percebendo que Carmen é na realidade uma “transgressora”, pois não segue uma de principais regras que deveria ser cumprida por uma mulher em sua época - a de submeter-se ao seu esposo. Carmen deixa entrever que tem idéias liberais, totalmente discordantes da mentalidade de seu marido. Mesmo vivendo com um homem extremante conservador e em uma sociedade fechada a mudanças, ela deixa transparecer, em uma conversa com sua cunhada cha mada Cuqui, a insatisfação com a situação em que se encontra e chega a assumir que seu casamento já não existe. Lo nuestro hace años que ha terminado – señaló a Quico con la barbilla – Pero están éstos y hay que fingir. Mi vida es una comedia. La tía Cuqui se encampanó: _ Eso no – dijo. El matrimonio se hace y se deshace entre dos. Tuvisteis unas relaciones lo suficientemente prolongadas para conoceros. El matrimonio no se rompe si uno no quiere. Y puesta a hacer comedia, ¿por qué no lo tomas más arriba y finges con tu marido? (DELIBES, 1988, p.147148) 42 Como o mais importante para aquela sociedade não era tanto ser, mas parecer, Carmen revela sua infelicidade conjugal, porém, em nome do bem comum de sua família, segue com o seu casamento. A atitude de Carmen vai ao encontro da mentalidade vigente na sociedade espanhola do início da segunda metade do século XX, em que o principal papel da mulher era a de manter o seu casamento e educar seus filhos. O conselho de Cuqui também indica que as aparências tinham enorme relevância naquela sociedade e, então, para mantê-las bastava fingir. E assim se resguardava a imagem da família, como uma instituição intocável. Había que guardar las apariencias para no dar el traste con la estabilidad de las instituciones intocables. Si el marido engañaba a la mujer, con tal de que lo hiciera sin demasiado escándalo y de tapadillo, lo mejor era hacer como si nada, que no se enterara nadie, para que los hijos pudieran seguir viendo a sus padres aliados en lo esencial, en la tarea de sacarlos adelante a ellos, de enseñarles a amar la España nueva, de prohibirles cosas. (MARTÍN GAITE, 1987, p.21) Carmen Martín Gaite nos mostra neste fragmento que a mulher deveria relevar inclusive a traição do marido em nome da “felicidade” e da “união” da família. Era à mulher que cabia zelar pela estabilidade do casamento. E para conseguir esse intento, teria que estar disposta a fazer várias concessões e sacrifícios. Na trama não temos indícios de que Papá traia sua esposa, porém fica mais que notório que seu casamento só existe socialmente. Já a personagem Carmen, se, por um lado enquadra-se no perfil esperado da mulher franquista, por ser esposa, mãe e cuidar do lar em tempo integral, por outro, ela quebra esse paradigma ao transgredir outra regra que ditava a forma de agir de uma mulher na sociedade espanhola dos anos sessenta. Mesmo não havendo nada explícito, é possível perceber que Carmen cultiva um relacionamento extraconjugal, ou, pelo menos, desejos por outro homem. Ao falar ao telefone com Emilio, o médico de Quico, deixa escapar algumas frases que indicam suas intenções e seus sentimentos: 43 Quico y Juan esperaban anhelantes el fin de la conversación. Mamá reía ahora nerviosamente, como suelen reír las colegialas de dieciséis años la primera vez que se les acerca un muchacho: -Sí…ya hablaremos… no me atrevo… cualquier otro sitio… sí… ya… claro… sí… de acuerdo… de acuerdo… están aquí… no puedo ahora… también yo tengo ganas… sí, ya lo sabes… lo sabes de requetesobra… bueno… eres tonto… de acuerdo… adiós. (DELIBES, 1988, p.148) Aos poucos essa mulher vai sendo desvendada para o leitor através de suas próprias palavras. De esposa dedicada, ela passa à mulher que nutre desejos por outro homem, vai revelando suas fraquezas e inseguranças, além de deixar evidente que o que mais quer é proteger seus filhos das influências negativas de seu marido e por isso não mede palavras ao defender seu ponto de vista. Carmen é uma mulher insatisfeita com sua vida e com o papel que exerce dentro de sua casa. Ela é questionadora e não aceita calada as atitudes e idéias extremamente conservadoras e machistas de seu marido. Evidencia-se que Delibes propõe, assim, uma reflexão crítica sobre a relação entre homens e mulheres, e podemos dizer que esse tema é constante em toda sua obra, tal como afirma Nascimento: “Nas dimensões representadas na obra delibesiana, destaca-se o aspecto gerador de inúmeros conflitos, um jogo estabelecido pela sociedade: o das relações entre homens e mulheres”. (NASCIMENTO, 2001, p. 31) Os pais de Quico são a representação dos dois grupos em que estava dividida a sociedade espanhola, da incompreensão entre grupos representativos de “las dos Españas”: a liberal e a tradicional. O pai representa este último, os conservadores ou nacionalistas. Ele tem uma postura totalmente de acordo com os ideais franquistas e posiciona-se de forma explícita como parte integrante de “los buenos”, como eram conhecidos aqueles que estavam a favor do governo. Cuéntanos cosas de la guerra, papá. _ ¿Ves? – dijo papá – éstos son otra cosa. ¿Y qué quieres que te diga de la guerra? Fue una causa santa. – Miró profunda e inquisitivamente a Mamá y agregó -: ¿O no? _ Tú sabrás – respondió Mamá - . Esas cosas suelen ser lo que nosotros queramos que sean. […] Los ojos de Juan se habían hecho redondos: _ ¿Tú ibas con los buenos? – apuntó. _ Naturalmente. ¿Es que yo soy malo acaso? (DELIBES, 1988, p. 68 - 69) 44 Destaca-se na personagem de Papá uma postura totalmente conservadora com relação à posição da mulher dentro da sociedade e da família. Para ele, a família deve ser totalmente patriarcal. Mais que isso, não há lugar para o diálogo, para o companheirismo. A esposa deve sempre concordar com o marido e deixar que ele dite as regras dentro de sua casa. À mulher lhe caberia cuidar das crianças, educá-las dentro dos preceitos desejáveis às famílias “de bem”. O conflito entre Carmen e seu marido se dá pelo fato de que ele busca impor os valores franquistas em sua casa e não aceita que sua mulher tenha posições contrárias às suas, visto que para ele , ela “sequer pensa”. Dijo Mamá, aureolada de humo, levantando levemente la cabeza: _Nunca creas que tú eres la verdad, hijo. Dijo Papá cada vez más exasperado: _La mejor de todas las mujeres que creen que piensan, debería estar ahorcada, ¿Oyes, Quico? Las manos de Mamá temblaban ahora como las aletillas de la nariz de Papá. Dijo Mamá: _Quico, hijo, las bestias no deberían vivir en el asfalto. (DELIBES, 1988, p.76) A atitude desse marido vai ao encontro das idéias vigentes na época. Porém Carmen não aceita calada e chega a discutir com seu esposo, explicitando seu descontentamento e suas idéias. Carmen não usa meias palavras ao defender sua posição totalmente oposta à do marido e deixa claro que é contra sua intolerância e sua visão de mundo, como no momento em que, falando a Quico, dirige-se indiretamente a seu marido: [...] Lo primero que has de aprender en este mundo es a ser imparcial. Y lo segundo, a ser comprensivo. Hay hombres que creen representar la virtud y todo lo que se aparta de su juego de ideas supone un atentado contra unos principios sagrados. Lo de los demás es circunstancial y tornadizo; lo de ellos, intocable y permanente. Si te enrolas en su juego de ideas, tendrás personalidad, de otro modo serás un botarate, ¿me comprendes? (DELIBES, 1988, p.73) Na casa de Quico, a figura paterna dita as ordens e a figura materna e seus filhos devem segui-las, independentemente de suas vontades. Essa estrutura familiar, com o tipo de “hierarquia” apresentada, faz recordar o governo ditatorial, 45 intolerante e manipulador que impõe ao povo uma única opção de modo de vida e de pensamento. Essa imagem fica bastante clara na descrição feita por Carmen no trecho citado acima, quando ela descreve um homem que representa a “virtude”, que considera os seus princípios como os únicos “verdadeiros” e que crê que as diferenças ideológicas não devem existir. Essa descrição pode servir tanto para o marido de Carmen, quanto para Franco. A divisão de posicionamentos e de ideais entre os pais de Quico que representa a cisão da própria sociedade espanhola é posta em evidência no diálogo entre Carmen e seu filho mais velho, quando Pablo diz estar decidido a ingressar no Exército: Mamá examinaba el rostro de Pablo con minuciosa atención: _ No te agrada, ¿verdad? _ Pablo se echó repentinamente hacia atrás. _ No lo comprende, que es otra cosa – respondió, y apareció que iba a continuar, pero se reprimió y, por último, tras una prolongada pausa, añadió _ El padre Llanes dice que asociaciones de veteranos hay en todas partes, pero, en nuestro caso, sólo serán eficaces si vamos unidos los de un lado con los del otro. Juntos, ¿comprendes? Es la única manera de olvidar viejos rencores. (DELIBES, 1988, p.154) Outro ponto importante é a divisão de dois grupos dentro daquela casa. De um lado, as personagens que fazem parte da classe burguesa, de outro, os empregados. Fica bastante clara a desigualdade social, neste pequeno espaço doméstico em que transcorre a obra. Carmen, seu marido e filhos têm uma bela casa, contam com empregados e têm estudo. Já o grupo de empregados leva uma vida sem luxos, nem ambições. Além disso, apresentam o mesmo estilo de vida e características semelhantes entre si, como uma rotina de muito trabalho, pouco estudo e expressam-se de forma simples. Nesse quadro configura-se a imagem da própria Espanha dividida. Nacionalistas e republicanos, conservadores e liberais, ricos e pobres que, apesar de dividirem o mesmo espaço, não se reconhecem entre si, vivendo em mundos separados. 46 3.2 NUANCES DA VIOLÊNCIA E DO MEDO EM EL PRÍNCIPE DESTRONADO A obra de Miguel Delibes está marcada fortemente pela preocupação com o ser humano, com seus direitos e com sua liberdade. A partir de sua obra é possível compreender melhor a sociedade espanhola da segunda metade do século XX, pois se encontram em seus romances questões como a desigualdade de direitos e o desamor e personagens que retratam os menos favorecidos, muitas vezes humilhados e destituídos de seus direitos como cidadão. Muito do que Delibes escreveu e escreve surge a partir de experiências que marcaram sua vida. Muitos estudiosos costumam afirmar que todas as suas obras têm algo de autobiográfico. Sendo assim, temas como a violência e o medo surgem em sua narrativa. Será exatamente sobre estas questões que passaremos a refletir nas próximas páginas. Não é de admirar-se que Delibes tenha reservado um lugar especial em sua obra para essas duas temáticas. Não nos esqueçamos que o autor é um grande observador de seu tempo e que, nascido no ano de 1920, tocou-lhe viver em um período de guerras, de grande violência e medo. Guerra civil espanhola, guerra mundial, bomba atômica, a expansão dos governos totalitários e do nazismo. Todo esse quadro atemorizante propõe questionamentos a respeito do futuro da humanidade. Aonde a humanidade chegará se prosseguir pelos caminhos da guerra, do desamor e desunião entre os povos? Como serão utilizados o progresso e a tecnologia, dois elementos que podem servir tanto para libertar como para destruir? O que se pode esperar do futuro, quando o que se enxerga é um cenário amedrontador em que o homem se distancia do melhor de sua essência? Não são respostas o que encontramos em Delibes, e sim questionamentos e dúvidas. No romance aqui analisado há várias passagens com uma carga muito grande de violência, explícita ou não, em suas variadas maneiras de manifestação. Queremos, então, indicar quais são as formas de violência encontradas no livro e que personagens são os agentes e quais são as principais vítimas dessas violências. Da mesma forma, a sensação de medo está presente durante praticamente todos os momentos da trama e afeta o protagonista de várias formas distintas. Considerando o medo como um aspecto encontrado em outras obras do autor e que em El príncipe destronado, especificamente, é um elemento essencial no perfil do 47 protagonista, consideraremos como principal objeto de análise o medo infantil e buscaremos explicitar os momentos e a forma como esse medo circula pelo ambiente familiar de Quico e que papéis ele exerce sobre as crianças, bem como que personagens o motivam. 3.2.1 A violência A arte em geral e a literatura especificamente, no decorrer da história, e principalmente em seus momentos mais difíceis e atrozes, buscaram expressar o escândalo social dos variados tipos de violência que podemos encontrar em nossa sociedade e cultura. O fato de tantas obras, de forma direta ou indireta, abordarem essa questão, diz muito sobre sua época e sua sociedade, pois a arte se associa às perguntas e questões que são levantadas ao longo do tempo. Recriando situações, ela vai tentando alcançar o seu intento de compreender o que acontece em nosso mundo. Nessa linha de raciocínio estamos considerando que a literatura possui uma relação com a realidade, e que ela tem uma função social provocadora, ao fazer o leitor refletir sobre a vida. Temos aí, em linhas gerais, uma posição que nos remete a Aristóteles que, na Poética, defende o princípio da arte como imitação da realidade e da arte como aprendizado. O espectador de uma obra teria prazer diante de um espetáculo porque o mesmo o colocaria face à sua própria existência e faria com que tirasse conclusões importantes e determinantes para a sua evolução. (LINS, 1990, p.29) Mais do que isso, a representação artística da atrocidade é um protesto contra ela, na medida em que a simulação de um quadro de violência semelhante ao da realidade pode contribuir para a não perpetuação dessa violência. A arte teria então, o papel de transformar a consciência. A literatura como qualquer outra forma de arte pode perseguir um ideal, diferentemente dos veículos de comunicação de massa, porque não possui vínculos com o poder. Ela contribui diretamente no processo de extinção de uma situação de extrema violência, comum em tempos de censura, como na época em que se passa o romance El príncipe destronado. Esse panorama de violência é explicado por Lins 48 (1990) como o esforço do sistema de causar entorpecimento e inação, de paralisar a inteligência humana. Considerando que o romance de Miguel Delibes, objeto de nossa reflexão, foi escrito durante um período na Espanha de extrema violência, nos mais diversos sentidos e recordando, também, o fato de que Delibes tinha como objetivo contar sobre esta época e sua sociedade, surge uma outra questão: Será possível afirmar que a obra El príncipe destronado discute a questão da violência? É possível identificar a violência em uma história sobre o quotidiano de uma família aparentemente bem estruturada? Antes de responder a essa questão, vamos refletir um pouco sobre o significado de violência. O que é tido como violência varia de acordo com a cultura e está diretamente relacionado com o ponto de vista de quem fala, pois um ato pode ser considerado por alguns, extremamente violento, enquanto para outros pode ser tido como uma simples forma de manter a ordem. É o caso das sociedades totalitárias que só conhecem a posição que ocupa o poder. Por isso mesmo, afirma Lima Lins: “É raro [...] que o poder fale de si mesmo em termos de violência. De modo semelhante não descreverá sua defesa como uma violência, ainda que legítima.” (LINS, 1990, p.14) Yves Michaud em seu livro A violência, tenta chegar a uma definição que revele a natureza da violência e identifica sentidos diversos nos usos correntes e na etimologia da palavra. [...] de um lado, o termo "violência" designa fatos e ações; de outro, designa uma maneira de ser da força, do sentimento ou de um elemento natural violência de uma paixão ou da natureza. No primeiro caso, a violência opõese à paz, à ordem que ela perturba ou questiona. No outro, é a força brutal ou desabrida que desrespeita as regras e passa da medida. (MICHAUD, 1989, p.7) Mais adiante, complementa Michaud: ”Em direito civil, a violência caracteriza a coação exercida sobre a vontade de uma pessoa para forçá-la a concordar." (MICHAUD, 1989, p.9). Michaud distingue dois tipos de violência, uma física, facilmente identificável pelos seus efeitos e uma imaterial, de transgressão, de violação de uma norma estabelecida. A dificuldade de se definir a violência está no fato de que, dependendo das normas vigentes, uma mesma ação em determinadas culturas 49 pode ou não ser considerada uma violência. Como nosso objetivo não é chegar a uma definição mais abrangente e completa de violência, e sim refletir sobre ela dentro de uma obra específica, tomaremos como base algumas formas de violência tratadas por Michaud que são facilmente identificáveis em El príncipe destronado, como a questão da violência política. Esse tipo de violência pode ser identificado na obra, já que ela diz respeito às conseqüências da guerra civil. Essa forma de combate faz parte da violência do poder ou violência de cima, que é aquela empregada para estabelecer o poder político, mantê-lo e fazê-lo funcionar. Apesar de a trama da obra analisada não se desenvolver durante o período de guerra, e sim de pós-guerra, podemos identificar, além das conseqüências de um período tão violento e marcante na história de Espanha, alguns personagens que representam os dois lados dessa batalha sangrenta. O pai de Quico é a personagem que está mais próxima do tipo de violência chamada de “violência de cima”, pois ele é a figura que representa o poder, que para a Espanha dos anos sessenta são os nacionalistas. Crê nos ideais franquistas e tenta fazer com que sua família viva seguindo esses ideais. Esse representante da violência do poder, diferentemente dos demais em sua casa, tem uma relação muito próxima com a guerra, situação em que se instala o grau máximo de violência, podendo ser suspensos os direitos individuais e acontecer práticas como homicídios e torturas, tudo em defesa de um determinado objetivo. Papá já passou por uma experiência de guerra e estando nela teve que matar, o que não esconde nem mesmo aos seus filhos pequenos. _ ¿Tú mataste muchos malos, papá? […] _ Muchos – dijo Papá, sin mirarle. _ ¿Más de ciento? – inquirió Juan. _ Más – dijo Papá […] (DELIBES, 1988, p. 70) Papá tem uma verdadeira veneração pela guerra. Orgulha-se tanto dela que chega ao ponto de acreditar que ela exerce um papel fundamental na sua vida. Não esconde sua admiração pelos que sabem empunhar uma arma, como um verdadeiro homem deve saber, como se observa no fragmento abaixo, um diálogo entre Quico e seu pai: 50 _ ¿Me comprarás un tanque el día de mi santo? _ Claro que sí. Lo malo es si alguien piensa que al regalarte un tanque te estoy inculcando sentimientos belicosos. Hay personas que prefieren hacer de sus hijos unos entes afeminados antes que verles agarrados a una metralleta como hombres. (DELIBES, 1988, p.75) Existe na trama a presença da guerra de formas distintas. A primeira delas, através de Papá, que já participou de uma guerra, estando do lado de “los buenos”, ou seja, dos nacionalistas. Essa guerra, apesar de terminada há mais de vinte anos, continua presente através de seu discurso e dos valores que busca passar para os seus filhos. Para o pai, o ideal de vida são a guerra e os princípios nacionalistas. Considera ser muito mais fácil viver estando em uma guerra do que em um período de paz, valoriza a guerra e os valores dos homens que a fazem, e tenta viver e transmitir esses valores no ambiente familiar. Como conseqüência disso, tudo o que se refere ao universo bélico torna-se muito presente na vida de sua família, principalmente na de seus filhos mais jovens que brincam de matar um ao outro, demonstram curiosidade sobre o assunto e fascinação por objetos como metralhadoras e canhões. Outros conflitos aparecem na narrativa como se fossem uma extensão do clima bélico familiar, como a guerra na África5 e também através de Femio que se prepara para ir servir no Marrocos espanhol, o que é um motivo de tristeza para Vítora, pois teme que seu namorado não volte mais ou que acabe traindo-a, devido a distância. Há também, referência à Guerra do Congo, que entra na narrativa por conta de um dever que Marcos deveria fazer sobre o Congo e a ONU no colégio. Pablo, o irmão mais velho de Quico, chega a comparar o conflito com a relação existente entre seus pais: “Pablo aclaró: - Lo del Congo es como papá y mamá; si nos peleamos nosotros, nos separan, pero si se pelean ellos, hay que dejarles” (DELIBES, 1988, p. 63). O comentário de Pablo além de nos mostrar como o assunto referente à guerra no Congo era muito comentado na época, tanto que acabava estando presente na vida da família, nos indica também a existência de um terceiro conflito dentro daquele lar: a guerra vivida entre os pais de Quico. Papá representa os ideais nacionalistas enquanto que Mamá simpatiza com os republicanos. Ambos, assim 5 Quando há na obra uma referência à “Guerra de África”, trata-se da Primeira Guerra de Marrocos, conflito bélico que enfrentou a Espanha com o sultanato do Marrocos entre os anos de 1859 e 1860, durante o reinado de Isabel II. 51 como os rivais, protagonistas da guerra civil, crêem que suas opiniões estão certas e não conseguem conservar um ambiente onde exista diálogo e tolerância. A relação do casal se converte em um duelo, no qual ninguém ganha, todos perdem, inclusive aqueles que somente assistem ao espetáculo. A obra evidencia que as feridas da guerra civil continuam abertas através da tensa conversa que mantém os pais de Quico. Aflora aí o risco existente no fato dos adultos fazerem o possível para manter viva em seus filhos a recordação do enfrentamento armado. Quico gosta de ouvir falar da “guerra de papá” e de reproduzi-la em suas brincadeiras, mas não sabemos quais serão as conseqüências da influência da guerra em Quico e seus irmãos no futuro, não temos nenhuma indicação se Quico se tornará um adulto violento ou com idéias belicistas por influência do que vivencia enquanto criança. Não sabemos nada, nem sobre as crianças, nem sobre o futuro do casal. Já no romance Las guerras de nuestros antepasados (1975), temos uma visão em longo prazo acerca das conseqüências da influência da guerra na vida das personagens. Pacífico Pérez é vítima da violência que reina em seu meio rural, onde está rodeado por pessoas obsessivas pela guerra. Cada membro de sua família participou de uma guerra distinta e não param de falar sobre elas. O protagonista, um jovem bondoso busca distanciar-se de possíveis inclinações agressivas. Porém, em um momento crítico, acaba germinando nele os instintos violentos que foram semeados durante toda a sua vida e não consegue escapar de cometer um grave crime. Dentro da violência do poder, destacamos, ainda, a questão da repressão. Na família de Quico, que representa a sociedade espanhola, quem detém o poder é a figura paterna. Para afirmar sua "supremacia" ele precisa fazer com que seus integrantes tenham homogeneidade de pensamento e de ações. Em sua casa essa repressão se dá por negar ao outro o direito de exercer o pensamento crítico e de ter e manifestar opiniões diversas. A personagem Carmen, além de sofrer com as atitudes de seu marido, representa o elemento discordante que pode trazer algum tipo de prejuízo e desequilíbrio ao poder totalitário do marido, por isso é ela quem mais sofre com suas atitudes repressoras, a fim de impor as suas "verdades". 52 Papá estalló: _ La mujer en la cocina, Quico. Dijo Mamá, aureolada de humo, levantando levemente la cabeza: _ Nunca creas que tú eres la verdad, hijo. Dijo Papá cada vez más exasperado: _ La mejor de todas las mujeres que creen que piensan, debería estar ahorcada, ¿oyes, Quico? (DELIBES, 1988, p.p.75-76) Papá não aceita que Carmen questione suas idéias e que sugira que ele não é o dono da verdade. Intolerante a opiniões contrárias, afirma que nenhuma mulher deveria ter, sequer, a pretensão de que pensa. A ausência de violência física, não supõe a inexistência da violência. Pode existir uma violência velada, aquela que limita as ações de quem está sob comando. A violência que faz calar, que impõe uma organização social, que define papéis e que aniquila com qualquer possibilidade de diálogo e de troca está presente no cotidiano da família criada por Miguel Delibes. Nesse tipo de situação existe a figura daquele que é o detentor da “verdade”. Essa é a violência do poder, e pode acontecer em qualquer grupo, seja em um país no qual o sujeito violento assume o papel de seu mandatário, seja em um círculo familiar no qual quem detém esse poder, normalmente é aquele que tem o poder econômico e/ou aquele a quem culturalmente é dado o "privilégio" de ditar as regras e fazer com que outras pessoas vivam de acordo com seus próprios interesses. Apesar de a violência flutuar por muitas entrelinhas da narrativa, o único momento do romance em que existe uma atitude violenta que se aproxima da violência física ocorre durante o jantar, quando, após uma discussão do casal, Papá lança um prato na direção de Carmen que, por pouco, não a atinge. [...] el plato que arrojó Papá por encima de su cabeza planeaba ya hacia el salón y se quebró de pronto, estrepitosamente, en mil pedazos al chocar contra el suelo. El vozarrón de Papá prolongó el estruendo durante un rato: _ ¡Coño, con la pava ésta! – voceó -. Esto no ocurriría si a tu padre le hubiéramos cerrado la boca a tiempo, en lugar de andar con tantas contemplaciones. (DELIBES, 1988, p.70) Esta discussão ocorre na presença das crianças, o que torna esse trecho do romance ainda mais tenso e significativo. Definitivamente, a violência fazia parte da realidade daquela casa. 53 Partindo do princípio de que a literatura reflete a vida e reflete sobre a vida (Lins, 1990), ela possui uma característica de grande valor, que é nos permitir acompanhar os diferentes níveis e tipos de angústia que acompanham o homem no decorrer da história, pois ela está associada às interrogações sobre a existência. Ao se recriar situações, se viabiliza a compreensão do que passou, e a partir da compreensão do aconteceu, aumenta-se a capacidade de intervenção sobre a realidade. A representação da realidade artisticamente, seria uma forma de denúncia, de protesto contra a violência, na expectativa de que a visão do horror impeça a sua permanência ou a implantação futura de um tipo igual ou semelhante de horror. É interessante perceber que as palavras de Ronaldo Lima Lins vão ao encontro da literatura de pós-guerra espanhol, na qual não existem mais heróis, e sim um grupo marginalizado e/ou silenciado. Na era da violência em escala de milhões já não se acredita em heróis. Todos se reconhecem igualmente impotentes frente a uma máquina científica de exterminação, só restando ao mundo uma imagem degradada na qual as relações humanas passaram a ocupar um plano absolutamente secundário ao lado da destruição sistemática. (LINS, 1990, p.35) Essa destruição sistemática leva à aniquilação da própria vida, o ato de maior violência, à destruição das relações humanas, afetivas, e de nossa sensibilidade, que faz com que não enxerguemos as tantas formas de violência com as quais nos deparamos dia a dia. 3.2.2 O medo O sentimento do medo é algo que está presente em qualquer ser humano. De forma descontrolada, o medo se transforma em um elemento que nos paralisa e que impede o desenvolvimento de muitos atributos do ser humano. De forma exacerbada, pode chegar a ser considerado uma enfermidade. Em menores doses, o medo pode ser até algo positivo, pois esse sentimento evita que tomemos determinadas atitudes potencialmente prejudiciais a nós mesmos. Em muitas das obras de Delibes verifica-se a existência desse sentimento, o que segundo Jesús Rodríguez (1979), deve-se ao fato de que o medo também era 54 algo presente na vida do próprio autor. Jesús Rodríguez, em um texto sobre Delibes, chega a afirmar que: [...] el miedo es probablemente el sentimiento predominante de su personalidad. El sentimiento del miedo está ya presente en su infancia y se intensificará en el transcurso de los años debido a los siguientes factores: si obsesiva fascinación con la muerte, su hiperestesia y la numerosa serie de desastres ocurridos en Europa en el siglo actual. (JESÚS RODRÍGUEZ, 1979, p.09) É difícil precisar até que ponto a origem do sentimento do medo na obra de Delibes deve-se ao fato dele ter vivenciado experiências que o marcaram quando criança. Porém, Jesús Rodríguez atribui a fixação que Delibes tem pelo tema a três fatores: à educação extremamente religiosa que recebeu de seus pais, ao caráter sombrio que adota a morte na sociedade espanhola e a uma experiência traumatizante na infância. Sobre esta experiência, o próprio escritor confessa a Jesús Rodriguez que aos doze anos de idade, enquanto patinava com seus amigos, presenciou quando o gelo rompeu-se e um de seus colegas afundou nas águas geladas, tendo o seu corpo sido encontrado somente dias depois. Se por um lado é complicado medir a real influência de fatos como o que foi narrado anteriormente na obra delibiana, por outro está muito claro que o medo tem uma presença marcante em sua narrativa e que é um dos seus principais objetos. A morte, por sua vez, está presente na maioria de suas obras, como elemento detonante de todo o processo narrativo, como no caso de Cinco horas con Mario, como um desfecho inesperado e trágico de uma trama, como no caso de Los santos inocentes ou como um fato, aparentemente sem importância, mas que permeia a narrativa, como é o caso da obra aqui analisada. Em El príncipe destronado, verificamos que a primeira experiência de Quico que lhe desperta o medo tem relação com a morte no momento em que Quico acorda pela manhã e recebe a notícia de que o gato de sua vizinha, chamado Moro, morreu. A imagem do gato, já sem vida, lhe acompanha durante todo o seu dia e é motivo de medo e de curiosidade por parte do menino. Quico conta sobre a morte de Moro repetidas vezes a seus irmãos quando regressam da escola, ao seu pai quando chega do trabalho, à sua tia Cuqui quando vem de visita à sua casa. Quico mostra-se intrigado com a morte. O que vem depois da morte? Por que não houve o 55 enterro do gato? Essas são algumas questões que o angustiam. A obsessão de Quico não se limita à morte de Moro. Ele também demonstra curiosidade sobre o momento da morte na vida das pessoas, como quando retoma o tema ao escutar uma conversa entre as empregadas da casa, na qual Vito demonstra estar triste por seu namorado ter que ir à guerra, enquanto Domi acha que sua situação de viúva é ainda pior. _ Peor estoy yo, mira. El mío ya no vuelve. La Vítora se excitó toda: _ Ande, señora Domi, para eso es usted vieja. _ ¿Vieja yo? _ Ande, a ver. [...] Dijo Quico: _ ¿Eres vieja y te vas a morir pronto, Domi? (DELIBES, 1988, p.44) O medo que a morte desperta em Quico e a curiosidade que lhe aflige se manifestam em outras passagens e é possível perceber que aquilo que é causa de medo também é detonante de uma grande atração e até de certo prazer. É o que acontece nos momentos em que a criada Domi canta para distrair as crianças. Essas histórias não fazem parte do universo infantil, pois são histórias cruéis, de seqüestros e assassinatos, mas resultam muito sedutoras. As crianças sentem medo, mas são envolvidas pelo clima de suspense criado por Domi. A história do soldado que volta da guerra e mata a ex-namorada marca tanto o menino Quico que, ao ver Femio fardado, relaciona rapidamente os dois soldados e pergunta ao namorado de Vito se ele vai matar Rosita (DELIBES, 1988, p. 102). A morte também está presente nas brincadeiras entre os irmãos Quico e Juan. _ Ya está – sonrió Quico -. Te he matado. Juan se encontraba a gusto allí, soltó la escopeta y cruzó las manos sobre el vientre. Dijo Quico: _ Ya está, Juan, levántate. Pero Juan no se movía. Puso los ojos en blanco y musitó como una letanía: _ He fallecido en el día de ayer confortado con los Santos Sacramentos y la Bendición de… _ No, Juan – dijo Quico -. ¡Levántate! Juan prosiguió: _ Mi padre, mi madre y mis hermanos participan tan sensible pérdida y ruegan una oración por el eterno descanso de mi alma. _ Levánt ate, Juan – repitió Quico. Juan entreabrió los ojos, miró hacia la pantalla de amplias alas y dijo con 56 voz de ultratumba: _ Y el demonio con el rabo tieso y los cuernos afilados… _ ¡No, Juan, levántate! – voceó Quico. (DELIBES, 1988, p. 82) A falsa morte do irmão deixa Quico nervoso e apreensivo, a ponto de pedir repetidas vezes para que seu irmão pare com a brincadeira. Ao final, Juan utiliza a imagem do demônio para deixar Quico ainda mais angustiado. Seu medo é tanto que o menino chega a gritar para fazer com que seu irmão se levante e termine com aquele “teatro” que o está amedrontando. O medo é também empregado como base da educação das crianças em El príncipe destronado. Podemos perceber que não há diálogo, nem carinho na relação entre pais e filhos, com exceção de alguns raros momentos. Por outro lado, o medo e idéias sobre o castigo são empregados como forma de reprimir atitudes inadequadas das crianças e até como meio de passar-lhes valores. A mãe de Quico e as empregadas da família utilizam o medo para controlar as crianças e fazê-las seguir suas determinações. O medo tem um papel importante na educação infantil, que, neste caso, relaciona-se diretamente com a religião e o pecado e a imagem do inferno. Apesar de não haver nenhum personagem que seja notoriamente religioso, a religião, tão importante para a sociedade espanhola , aparece como mais uma forma de controle na educação das crianças. Através do medo de um castigo eterno se tenta moldar as atitudes das crianças, dando-lhes uma educação baseada no temor, e não no diálogo ou no carinho. Podemos perceber isso na forma como era explicado às crianças por que determinadas atitudes não deveriam ser tomadas ou determinadas palavras usadas. A razão era sempre a mesma: era pecado, e esse pecado poderia levá-los ao inferno. _ ¡Leche, me pillé! La bata de flores rojas y verdes se inclinó implacable sobre él: _ ¿Qué has dicho? – dijo; ¿no sabes que eso no se dice, que es un pecado muy gordo? La Vítora, acuclillada junto a la caldera, le miró entre compasiva y socarrona. Dijo: _ ¡Qué chico este! ¿Quién le enseñará esas cosas? _ La bata de flores se había enderezado, mientras Quico se aplastaba contra la mesa, junto a Juan. Dijo la bata: _ Eso digo yo. ¿Quién le enseñará esas cosas? (DELIBES, 1988, p.38) 57 Neste fragmento, Carmen chama a atenção de Quico por ele ter empregado a palavra leche. E como não está habituada a falar palavras consideradas impróprias como esta, sugere com uma pergunta que a criança deve aprender este vocabulário com a empregada, Vítora. A suspeita da mãe revela uma relação de desconfiança entre empregados e patrões que está relacionada com as diferenças entre as classes sociais. Na visão de Carmen, Vito poderia ter o costume, por ser pobre e humilde, de usar palavras chulas e, assim, ela estaria ensinando a criança a falar de maneira inadequada. Carmen sabe que as empregadas têm um papel importante na educação de seus filhos. São elas que, na maior parte do tempo orientam e proíbem as crianças de fazerem coisas que consideram erradas ou “pecaminosas”. Vito e Domi constantemente falam para as crianças que usar determinadas palavras é pecado e que se mentirem irão para o inferno e serão castigadas. Tal crença estava entranhada no espírito das pessoas daquela época, características do “nacional catolicismo”, uma religião que tentava moldar o caráter das pessoas pelo medo do castigo eterno. As idéias sobre pecado e demônios estão muito presentes para as crianças e configuram-se como um dos principais temas nas conversas infantis e nas brincadeiras. A curiosidade infantil é tanta que muitas perguntas são feitas pelos meninos a esse respeito e, mesmo tendo medo de demônios, simulam ver essas criaturas em suas brincadeiras. _ ¿Tiene alas el demonio, Juan? _ Claro. _ ¿Y vuela muy de prisa, muy de prisa? _ Claro. _ Y si soy malo, ¿viene el demonio y me lleva al infierno? _ Claro. _ ¿Y el demonio tiene cuernos? _ Sí. _ ¿Y mocha? Juan se levantó de hombros, sorprendido. _ Eso no sé – confesó. (DELIBES, 1988, p.41) O inferno e os seres que supostamente habitam nele fazem parte do imaginário infantil naquela casa. Quico cria em sua mente imagens atemorizantes de demônios e imagina serem monstros simples objetos de sua casa e sente medo. Até mesmo o médico Emilio, a quem Quico é levado após afirmar que havia 58 engolido uma tachinha, acaba sendo visto como um fantasma. Tudo é motivo para ativar a imaginação de Quico, até mesmo um simples jaleco branco. Quico reparó en el fantasma blanco bajo la luz roja, alzó los ojos y todo lo vio bajo un resplandor espectral. Inquirió: _ ¿Es el infierno? Agarró la mano de Mamá, de pie a su lado. _ No, hijo. _ ¿No estarán los demonios detrás de eso? – apuntó al extraño artefacto de hierro y cristal. _ Aquí no hay demonios – respondió Mamá. El Fantasma observaba el niño atentamente. Dio una chupada al cigarrillo y, conforme expulsaba el humo, dijo: _ Este niño es imaginativo, ¿verdad? (DELIBES, 1988, p. 131) O irmão de Quico, Juan, contribui para aumentar ainda mais os seus temores. Em algumas ocasiões, ele é o responsável por provocar em seu irmão verdadeiro estado de pânico durante suas brincadeiras. Porém, Quico não é somente “vítima”, ele dá indícios que seguirá o exemplo de seu irmão ao tentar assustar a sua irmã Cristina. La casa estaba en silencio y apenas llegaba hasta ellos el murmullo de la conversación de la Domi con la Vítora a través del tabisque. Dijo Quico, ahuecando la voz: _ Cris, el Coco. _ A-ta-ta – hizo la niña, atemorizada. (DELIBES, 1988, p.118) A educação pelo medo como um meio de se alcançar uma determinada conduta é muito característica das sociedades opressoras. Na obra analisada, o medo exerce um papel importante não só na educação das crianças, como também na vida do filho mais velho do casal. Pablo, vítima direta da opressão do patriarca, vive o conflito de entrar para a vida militar e assim atender às expectativas de seu pai, ou seguir seu desejo pessoal de trilhar um caminho diferente e descobrir sua vocação. Pablo não declara o que sente, mesmo tendo apoio de sua mãe, pois tem medo da reação de seu pai. 59 Papá prosiguió, adoptando un gesto de hastío: _ Lo malo es la paz: el teléfono, la Bolsa, los líos laborales, las visitas, la responsabilidad del mando... - Su mirada, flotante, se concretó súbitamente, implacablemente, sobre Pablo - : ¿Tú, qué piensas de todo esto? Pablo volvió a sofocarse y a levantar de hombros. Se inclinó aún más sobre el plato de postre. Papá se sulfuró: _ ¿Es que no tienes lengua? ¿Es que no sabes decir sí o no, esto me gusta o no me gusta? (DELIBES, 1988, p.69) O rapaz, apesar de não ter nenhum desejo de seguir a vida militar, não tem coragem de assumir uma posição contrária à do pai e se cala, pois foi educado para isso, para obedecer à figura paterna, representante da opressão. O medo que atinge Pablo também afeta Carmen que também vive um conflito. Como lidar com o fato de seu casamento ter fracassado, sem que isso afete seus filhos? Mesmo sabendo que seu relacionamento com o marido é muito ruim, Carmen não tem coragem de pôr um ponto final nessa relação. Certamente, vários fatores influenciam na decisão de manter a união familiar, como a dependência econômica do marido, o preconceito contra uma mulher descasada, os valores de uma sociedade em que importava mais o parecer que o ser. Mas, como conviver com um homem sem compartilhar idéias, nem objetivos? Como enfrentar a solidão dentro de seu próprio lar? O medo perpassa todos os momentos do romance. Com ele o livro começa e termina. O relato se inicia com o medo que sente Quico em função da morte do gato Moro e no decorrer da narrativa vão surgindo outros medos, como o de demônios e os fantasmas que afligem Quico e o medo de Pablo de enfrentar seu pai. Nas últimas linhas dessa obra, o medo toma conta de seus principais personagens. Quico não quer ficar sozinho em seu quarto, pois todos os seus medos se encontram e entre eles o maior – o de ser preterido. Por isso, inventa vários motivos para não ficar sozinho e só consegue acalmar-se quando Mamá entra em seu quarto e segura sua mão. É exatamente nesse momento que Carmen manifesta sua fraqueza , deixando de lado a força demonstrada durante todo o dia. Ao perceber que seu filho necessitava de sua atenção, ela alivia os seus temores e o faz dormir, mas acaba admitindo que, da mesma forma que seu filho, ela também tem medo. 60 3.3 AS PERSONAGENS E SUA LINGUAGEM Devido à riqueza da linguagem apresentada nas obras de Delibes, e em particular em El príncipe destronado e também pelo fato do próprio autor considerar que a construção das personagens é ponto chave de uma obra, optamos por reservar um subitem para analisar as personagens de sua obra, considerando, principalmente seus aspectos lingüísticos. Delibes busca construir suas personagens de modo complexo, utilizando recursos lingüísticos variados. Buscaremos mostrar, então, como o autor consegue sair do convencional e povoar suas histórias com seres que parecem de “carne e osso”. Vale observar que o escritor de Valladolid atribui a suas personagens importância fundamental em sua obra e a linguagem é outro ponto que privilegia quase que de maneira obsessiva. García Dominguez, a esse propósito, desenvolve um comentário na introdução ao primeiro volume das Obras completas, lançadas em outubro de 2007, durante as comemorações dos 60 anos da outorga do Prêmio Nadal a Miguel Delibes. Na referida introdução, significativamente intitulada “Ellos son en buena parte mi biografia”, afirma que o escritor presta atenção à gente de sua terra e depois a recria e a converte em personagens. Prossegue dizendo: “Él mismo lo proclamó, con idéntico enunciado, en las palabras inaugurales del curso de verano que le dedicó la Universidad Complutense de Madrid, em 1991: ‘Yo he sido siempre un novelista de personajes’” (GARCÍA DOMINGUEZ, 2007, p.23). Para Delibes, construir tipos vivos é um dever fundamental do romancista: Una novela es buena cuando, pasado el tiempo después de su lectura, los tipos que la habitan permanecen vivos en nuestro interior; y es mala cuando los personajes, transcurridos unos meses de su lectura, se difuminan para, finalmente, olvidars e. El personaje es, para mí, el eje de la narración y, en consecuencia, el resto de los elementos deben plegarse a sus exigencias. (In: GARCÍA DOMÍNGUEZ, 2007, p.24) Para García Domínguez, Miguel Delibes não apenas cria personagens, mas também as faz falar. Mais de uma vez Delibes declarou que gostava de escutar falar o povo de sua região, fosse no campo, fosse na cidade. Em conseqüência, afirmou que escrevia de ouvido. O escritor ao agradecer por ter sido nomeado filho predileto 61 de Valladolid, reconheceu sua dívida de linguagem com o entorno em que sempre viveu: “De Valladolid y Castilla he tomado no sólo los personajes, escenarios y argumentos de mis novelas, sino también las palabras con que han sido escritas” (In: GARCÍA DOMÍNGUEZ, 2007, p.24). Nas obras de Delibes a realidade castelhana é exposta pelas personagens, por conta da liberdade que o autor lhes dá de expressarem-se em sua própria voz, em sua própria linguagem. É possível que o cuidado que Delibes dedica à linguagem de suas personagens tenha levado Pilar Celma a fazer a seguinte afirmação: Más que leer, nos parece que vemos y oímos a los personajes; personajes siempre entrañables en su sencillez, en sus limitaciones y contradicciones, a veces hasta en su mezquindad. Los personajes son presentados, no narrados, y así se construyen ante los ojos del lector que los ve crecer. (PILAR CELMA, 2003, p. 21) Em El príncipe destronado, dentro do microcosmo que é o lar de Quico, encontram-se personagens de diferentes idades, sexos, classes sociais e culturais. Optamos por fazer uma divisão ao analisar as principais características dos personagens e sua linguagem, de forma que teremos em um primeiro momento o enfoque nas personagens adultas e, a seguir, trataremos das personagens infantis. 3.3.1 As personagens adultas As principais personagens adultas desta obra são: a mãe de Quico, Carmen, Papá e as empregadas Domi e Vítora. Focalizando primeiramente os donos da casa, podemos destacar que nas primeiras horas do romance, Carmen fala pouco. Em meio a tantas tarefas da casa, ela mal tem tempo para verificar o que as crianças estão fazendo. Em suas raras falas, está sempre chamando a atenção de seus filhos, principalmente de Quico ou perguntando às empregadas o que está acontecendo. Vale destacar que da mesma forma que são raras demonstrações de carinho e afeto entre pais e filhos naquela casa, também o são frases ou palavras amorosas. Pelo contrário, podemos destacar várias passagens em que Mamá, furiosa com as traquinagens de Quico, acaba perdendo a paciência e fala de forma bastante 62 agressiva com seu filho. “Mamá levantó la mano, pero no llegó a descargarla; se contuvo ante la nuca encogida de Quico y dijo:- ¿No me has oído? ¡Calla o te doy un coscorón!” (DELIBES, 1988, p. 64). Apesar de dedicar-se exclusiva mente ao lar, ela não dá conta de todas as tarefas sozinha. A “bata de flores rojas y verdes”, forma emblemática como Quico enxerga sua mãe, avança pelos corredores com uma urgência permanente de cuidar de tudo e inteirar-se do que acontece dentro de sua casa. Porém, em função de tantas atribuições, não consegue estar perto de seus filhos e dar-lhes a atenção devida. Para ajudá-la na criação deles, Carmen conta com a babá Domi e com a empregada Vítora que, obviamente , não suprem todas as necessidades afetivas de Quico. No transcorrer da narrativa, terminado o período da manhã, Carmen tira literalmente a bata, aguardando a chegada do marido, que acontece em seguida: Mamá ya no era una bata de flores rojas y verdes, sino un jers ey a rayas blancas y azules y una falda gris y unas zapatillas de cuero en chancletas y un cigarrillo, con una hebra de humo azul, entre los dedos delgados y largos. Mas la voz era igual a la de la bata. (DELIBES, 1988, p.51) Com a chegada do marido é possível perceber mais detalhes sobre a personalidade de Carmen, principalmente a partir do diálogo durante o almoço em família. Neste momento ambos, pai e mãe, começam a definir a extrema distância ideológica que separa o casal: […] Mamá, que servía a Quico canalones de la fuente que sostenía la Vítora, les dijo muy seriamente que si no podían cambiar de conversación y para cooperar a ello le comunicó a Papá que Dora Diosdado se casaba y Papá dijo: “¿Con ese pelagatos?” y Mamá que “por qué pelagatos” y Papá “no tiene oficio, ni beneficio” y Mamá “se quieren y ya es bastante. (DELIBES, 1988, p. 62) Neste fragmento aparece uma expressão depreciativa usada pelo pai para referir-se ao noivo de Dora, reveladora do preconceito do pai de Quico em relação ao rapaz. A seguir, justifica seu preconceito por meio de uma frase feita, de acordo com o modo impositivo de quem pretende ser o detentor da verdade. A mãe de Quico, por outro lado, questiona a posição de seu marido, expõe opinião e afirma que o fato dos dois se amarem, já é o suficiente para haver o casamento. 63 Papá emprega a expressão idiomática no tener oficio ni beneficio, que é usada habitualmente para referir-se a aquelas pessoas que não têm trabalho, nem patrimônio. Torna-se clara uma característica do pai de Quico, a de ser um homem com tendências preconceituosas, neste caso especificamente com relação a diferenças entre as classes sociais. Delibes constrói os diálogos com o emprego de frases feitas e ditos populares aproximando a linguagem do dia a dia ao contexto dessa família. Um dos trechos mais ricos neste aspecto é o momento em que, após o almoço, Mamá e Papá discutem de uma forma indireta, valendo-se de Quico para dizerem o que pensam um do outro: _ Papá – dijo- ¿Me pones un disco? […] _ ¿Más discos? – dijo - ¿Te parecen pocos discos todavía? Mira, Quico, en este mundo cada cual tiene su disco y si no lo toca revienta, ¿comprendes? Pero eso no es lo malo, hijo. Lo malo es cuando uno no tiene disco que tocar y se conforma con repetir como un papagayo el disco que estuvo oyendo toda su vida. Eso es lo malo, ¿comprendes? No tener personalidad. […] Quico abría mucho los ojos. Papá sacó una pitillera de oro, golpeó el pitillo tres veces contra la superficie de la mesita enana, lo encendió y recostó la nuca sobre el respaldo del sillón succionando golosamente. Al cabo, Quico, miró a su madre. Mamá le dijo con rara suavidad: _ Quico, hijo mío, si en esta vida ves antes la paja en el ojo ajeno que la viga en el propio, serás un desgraciado. (DELIBES, 1988, p.73) O pai de Quico utiliza a expressão repetir como un papagayo, ou seja, repetir sem refletir, não possuir idéia própria. Porém Carmen, como resposta utiliza a expressão No mirar primero la paja en el ojo ajeno que la viga en el propio que significa não enxergar o seu próprio defeito, enqua nto aponta os defeitos dos outros. A personagem Carmen faz uso desta expressão para apontar uma das principias características da personalidade do seu marido que se considera detentor da verdade e não admite ter falhas. Papá não percebe que repete conceitos sem questionar, pois foi educado para isso e deseja que seus filhos repitam o modelo de homem e de família que ele tem como conceitos corretos. Aí está uma crítica indireta que Delibes faz aos governos totalitários. Podemos destacar várias outras expressões, como a utilizada pela mãe de Quico: “a palabras necias oídos sordos”, isto é: não se deve dar atenção a coisas que não têm importância, ou seja, fazer-se de surdo quando aquilo que é dito, não 64 tem sabedoria alguma. Trata-se de uma crítica a mais, uma atitude de rebeldia da mãe, aquela mesma “bata de flores rojas y verdes” do começo da narrativa, mas que ao longo da obra vai crescendo em consciência e se opõe às palavras autoritárias do marido. […] Hay personas que prefieren hacer de sus hijos unos entes afeminados antes que verles agarrados a una metralleta como hombres. Mamá carraspeó: _ Quico – dijo -. A palabras necias oídos sordos. Papá se inclinó hacia delante. Las aletillas de su nariz temblaban como un pájaro sin plumas; sin embargo, no miraba a Mamá, sino al niño: _ El día que te cases, Quico, lo único que has de mirar es que tu mujer no tenga la pret ensión de que piensa (DELIBES, 1988, p.75) A forma como o marido expressa sua opinião é absolutamente autoritária, sem admissão de questionamento. Por isso mesmo, aquela voz dura e contundente é comparada pelo narrador à voz de um general, quando afirma: ”su voz, en un principio dura y reservadamente autorita ria, era ahora dura y contundente como la de un general” (DELIBES. 1988, p.60). A forma verbal “has de mirar” aponta para o que deverá ser feito, já delimitado e reduzido pela expressão “lo único”. Mais uma vez o personagem de Papá demonstra sua visão preconceituosa e unitária, extremamente machista. Sua visão de masculinidade está ligada à violência, à belicosidade, na qual o homem só é reconhecido como tal se estiver com armas na mão. Já a esposa, deve ser uma mulher que não tenha sequer a pretensão de pensar. Outra expressão utilizada por Carmen aparece quando ao procurar por Quico e encontrá-lo escondido em um canto do quarto, pressente que ele deve ter feito alguma de suas travessuras: “Pero Mamá era tan fina de olfato como un sabueso y, tan pronto entró en la habitación con las meriendas – elogiando su comportamiento – y divisó a Quico arrinconado, dijo a media voz: “Qué mala espina me da…” (DELIBES, 1988, p.98). A expressão dar mala espina a alguien emprega-se quando algo tem um mal aspecto ou quando em função de uma determinada situação, temse a impressão de que algo negativo está por acontecer. Carmen, ao ver seu filho agachado em um canto da casa, pressente que deve haver um motivo para que Quico se comporte assim. Chama por ele e manda que venha a seu encontro. Percebe quando o menino se aproxima que, mais uma vez, urinou em suas calças e 65 por medo de repreensões tentava se esconder de todos e adiar o momento de enfrentar o problema. Vejamos, ainda, outra frase feita utilizada por Carmen: _ ¡Levanta, anda, levanta! – chilló Mamá y Juan dejó el álbum sobre la mesita enana y miró envidiosamente para su hermano, mientras mamá buscaba por la mesa, y por el sillón, y por el suelo y decía: ‘¡Dios mío, Dios mío, qué chico! Es de la piel de Barrabás. (DELIBES, 1988, p.126) Neste momento da narrativa, Quico novamente é protagonista de mais uma de suas travessuras e Mamá usa a expressão “ser de la piel de Barrabás”, ou seja, ser uma pessoa má ou travessa. Em geral, é utilizada para referir-se a crianças, e embora possa soar de maneira forte, segundo o Diccionario de dichos y frases hechas, de Alberto Buitrago Jiménez (1995), ela se reveste de um tom carinhoso, como na situação apresentada. Equivale a dizer que alguém é “de la piel del diablo”, e em bom português seria como dizer “é um capetinha”. Para ilustrar um pouco mais o que viemos desenvolvendo, relacionamos ainda, outras significativas expressões da obra principal aqui analisada, como a que foi utilizada quando o homem (Papá) expõe o que acredita ser o papel social ideal da mulher (Carmen): “La mujer en la cocina, Quico” (p.76). Neste caso, é feita uma possível alusão ao provérbio espanhol que diz: La mujer y la sartén en la cocina están bien, um dito absolutamente machista e autoritário, bem ao estilo de “Papá”. Ou ainda, quando não agüentando mais a “ousadia” de Carmen em seguir com a discussão, Papá diz a Quico: “[...] ve y di a tu madre que se vaya a freír puñetas. Hazme este favor, hijito.” (p. 76). Trata-se de uma expressão vulgar, com o mesmo valor de mandar a alguien a freír espárragos, tipo de expressão utilizada, muitas vezes, em discussões para dar a entender que a outra pessoa não tem razão e que pretende encerrar com a polêmica de modo incisivo. É perceptível, ainda, a ironia que acompanha a fala de Papá ao chamar de hijito a Quico, valendo-se do diminutivo afetivo enquanto agride verbalmente sua mulher. Cabe ressaltar que esse é o único momento em que Papá utiliza a palavra hijito para falar com seu filho. Em nenhum outro momento da narrativa aparece na fala do pai de Quico qualquer forma carinhosa para referir-se a seus filhos. Através dessas expressões e dos diálogos que Papá tem com Carmen, 66 vamos aprofundando o conhecimento desse homem, com suas freqüentes frases machistas e de tom vulgar: Papá permaneció unos segundos como expectante y al cabo dijo: _ Ya sabes lo que decía mi pobre padre. _ ¿Qué? – dijo Mamá. _ Mi pobre padre decía que las mujeres son como las gallinas, que les echas maíz y se van a picar a la mierda. DELIBES, 1988, p.62) O pai de Quico adapta seu registro de acordo com a necessidade do momento que vive e de seu interesse. Essa oscilação de registro vai desde a forma mais culta que chega a aparentar um discurso solene : “Lo que a mí me molesta es que siendo uno un hombre positivamente honrado, alguien venga a poner en duda la honradez de sus ideas. Si yo soy honrado, mis ideas serán honradas” (DELIBES, 1988, p.74) até a mais vulgar, em momentos em que perde o controle da situação: “Coño, con la pava ésta! – voceó -. Esto no ocurriría si a tu padre le hubiéramos cerrado la boca a tiempo, en lugar de andar con tantas contemplaciones.”(DELIBES, 1988, p.70) Quando o aparente equilíbrio da casa se rompe, nos momentos de tensão, é o homem (Papá) quem muda de registro e o torna vulgar. Palavras e expressões chulas ganham destaque em seu discurso. Esse fato tem um significado social, já que a mulher não usa o mesmo registro do homem, mesmo nas situações mais extremas. À figura feminina de seu nível social não é permitido fazer uso de uma linguagem mais chula, já que se espera dela um constante exemplo de postura e o papel de mante nedora da ordem do lar. Sobre esse tema e com relação à sociedade española de pós-guerra civil, Martín Gaite afirma: El significado de algunas palabrotas como ‘joder’, que se les podían escapar al padre o al hermano en momentos de ira, se mantuvo impenetrable hasta bastantes años más tarde para muchas jovencitas de la burguesía. Huelga, pues decir que este tipo de expresiones no manchaban nunca su boca. (MARTÍN GAITE, 2005, p. 194) Pode-se, portanto, compreender que era aceitável que um homem utilizasse expressões grosseiras e até mesmo palavrões. À mulher, no entanto, era desejável que jamais fizesse uso de palavras ou expressões vulgares. Deveria ser sempre 67 cuidadosa em seu linguajar, em qualquer situação em que se encontrasse. Outro exemplo de uma personagem masculina que utiliza a linguagem vulgar é Femio, o soldado namorado de Víto: _ Calma – dijo -, calma. Ante todo quiero que sepas que si yo me voy allá no es por voluntario. Y otra cosa: que si tú tienes hoy mala leche, yo la tengo peor. La Vítora se dobló hacia él. Le hablaba a gritos: _ No enseñes esas cosas a la criatura, ¿oyes? ¡No hables así que no estás en la cantina!” (DELIBES, 1988, p. 103) Nesse momento, Vito está nervosa porque seu namorado está prestes a ir para a guerra na África, e acaba gritando com Femio por ter utilizado a expressão “mala leche” na presença de Quico, a qual ela considera imprópria. Porém, Femio demonstra com sua linguagem e também com atitudes seu comportamento tipicamente masculino . É o que acontece no diálogo entre o casal, quando Vito manifesta seus ciúmes por Femio estar de partida e por ter que permanecer tanto tempo distante: _ ¿Y las negras? – preguntó. El Femio hizo una mueca displicente: _ ¿Son mujeres las negras? _ A la Vítora se le cortó el llanto de repente. _ Mira – dijo -. Para lo que vosotros anda buscando, sobran. _ El Femio le pasó el brazo por la espalda y deslizó la mano por el escote: _ A mí me gusta lo blanco, ya lo sabes; cuanto más blanco, mejor. (DELIBES, 1988, p. 107) Podemos perceber com a fala de Femio, além do acentuado racismo ao referir-se às mulheres africanas, o papel que deveria e/ou poderia exercer o homem. Femio utiliza expressões vulgares e não demonstra empenho em manter uma atitude “respeitosa” na casa dos patrões de sua namorada. Enquanto isso, Vito se mostra permanentemente preocupada por fazer seu namorado comportar-se de maneira adequada e controlar seu linguajar dentro da casa dos patrões, além de saber que estando distante, dificilmente seu namorado evitará estar com outras mulheres. Domi e Vito, apesar de pertencerem ao mesmo grupo social de Femio, 68 seguem a mesma conduta de Carmen, no que diz respeito ao cuidado que têm de evitar a utilização de vocabulário vulgar. Mesmo expressando-se de maneira mais popular, palavrões e expressões chulas não fazem parte do repertório lingüístico das empregadas da casa de Quico. Domi e Vítora como são de uma classe social mais humilde têm uma linguagem na qual abundam expressões idiomáticas, típicas da linguagem popular. Um primeiro exemplo de expressão utilizada por esse universo de personagens aparece no momento em que Domi se queixa ao saber que Seve, a empregada que viria para substituí-la por ocasião de suas férias, ainda não havia chegado:“- Buenas vacaciones – gruñó la vieja, contrariada, y agregó - : ¡Madre qué día más perro!” (DELIBES, 1988, p.41) Neste momento Domi utiliza a palavra perro para referir-se a como foi seu dia, indicando que ele não foi nada bom. É comum na linguagem coloquial o uso da palavra perro ou da expressão de perro como equivalente a muy mal ou muy malo. Outro exemplo de expressão utilizada por Domi, no momento em que se dirige a Quico:“- Vamos, quita – dijo la Domi de mal talante – ¡Qué chico éste! No la deja a una ni a sol ni a sombra” (DELIBES, 1988, p.42). A expressão em negrito significa incomodar, molestar alguém com insistência. Após Domi demonstrar sua insatisfação por ter que ir trabalhar, quando na realidade deveria estar de férias, Quico inicia uma série de perguntas à sua babá. Porém, Domi, naquele momento, está impaciente e não quer dar atenção ao menino. Já no diálogo entre Vítora e seu namorado, aparece na fala de Femio uma outra expressão popular: _Mírala – dijo Femio – Ya es espabilada la chavala, ya. La Vítora parecía enfadada: _ Es niño, cacho patoso – dijo - . Además, ¿qué sabe la criatura?, siéntate. Femio se sentó en una de las sillas blancas; se justificó: _ Estos chavales de casa fina, ya se sabe; ni carne ni pescado. (DELIBES, 1988, p.102) A expressão em negrito significa que aparentemente não se pode distinguir o gênero de uma pessoa, neste caso, especificamente, falam de Quico. Femio, que também pertence ao grupo de personagens menos favorecidos, cultural e economicamente, demonstra sua consciência em relação às diferenças entre as 69 classes, ao ponto de afirmar que as crianças mais ricas são tão diferentes das demais que não consegue identificar sequer se são meninas ou meninos. Ao compararmos a linguagem utilizada pelas empregadas da casa com a maneira de se expressar dos pais de Quico, notamos que está bem marcada a diferença do nível social e cultural desses dois grupos. As empregadas da casa, com seu modo peculiar de expressar-se, denunciam continuamente sua origem: “Colocó al niño de pie y le enjabonó las piernas y el trasero. Luego, le dijo: Siéntate. Si no lloras al lavarte la cara, te bajo conmigo a por la leche donde el señor Avelino”. (DELIBES, 1988, p.13) Ou ainda: […] Quico golpeaba rítmicamente el mármol blanco con la cuchara y la Vítora le dijo: _ Vamos, Quico, come. ¡Ay, qué criatura, madre! Quico introdujo torpemente la cuchara en la papilla y la revolvió y los surcos se marcaron profundos en el plato. Miró y tornó a revolver. _ Te se va a quedar fría, come. (DELIBES, 1988, p. 27) No primeiro trecho citado, temos exemplos de usos da oralidade. A expressão a por, que aparece em negrito, significa dizer para buscar. Já o advérbio donde, também em negrito na citação, possui o valor de donde trabaja. Ambas as formas indicam a tendência popular de abreviar ou economizar palavras. Já na segunda citação, aparece a construção “te se va a quedar fría” típica da fala popular, com evidente alteração da ordem dos pronomes. No registro culto, o pronome se deve aparecer antes do pronome te. Esta mesma frase seria apresentada da seguinte forma, se seguisse a norma culta: Se te va a quedar fría. Outro fenômeno lingüístico que é recorrente nas falas das empregadas da casa é o laísmo, utilização equivocada do pronome la (pronome complemento direto) no lugar do pronome le (pronome complemento indireto). Vejamos o exemplo: _¿Quién, el Abelardo? ¡Huy, madre! Ése ha nacido de pie, como yo digo. Yo no sé cómo se las arregla esa chica que todo le sale a derechas. Es sábado va y la toca el cupón y, el lunes, sortean y el novio aquí, ¿qué la parece? (DELIBES, 1988, p.p.25 e 26) No exemplo, os pronomes que foram destacados em negrito, pela norma culta 70 da língua, deveriam ser substituídos pelo pronome le, pois não se trata de formas diretas, e sim indiretas, não havendo neste caso a marcação de gênero como acontece com as formas pronominais la e lo (pronomes complementos diretos). Sendo assim, a frase seria apresentada da seguinte forma: Es sábado y le toca el cupón y, el lunes, sortean y el novio aquí, ¿que le parece? O uso vulgar do pronome la chama ainda mais atenção quando sabemos que a região de Castilha onde está ambientado o romance é leísta, ou seja, é geral a opção pelo pronome complemento le. Por todas as nuances da linguagem dos personagens adultos do romance aqui analisado, podemos afirmar que o que faz Delibes nesta obra é um trabalho árduo para adequar seus personagens à realidade lingüística do grupo social a que pertencem. Vale registrar que, como já declarou mais de uma vez, Miguel Delibes, em suas obras, busca também resgatar traços da linguagem oral, as expressões, o rico filão de uma linguagem que se via perdendo, contaminada e dissolvida pouco a pouco pelo progresso que de tudo se apropria. Por isso, trata de preservar naquilo que chama de “Libro vivo” não só a alma e o sentir castelhanos, mas as diferentes formas pelas quais um grupo se expressa. Dessa maneira, preserva a cultura e a história de Castilha. 3.3.2 As personagens infantis Para Delibes, a criança tem abertas todas as possibilidades do mundo, podendo ser tudo, enquanto o homem adulto é um menino que perdeu a graça e reduziu a uma suas possibilidades - o ofício que desempenha. Daí a importância das personagens infantis na obra delibiana. Para Delibes, elas despertam maior interesse ao serem protagonistas de um romance ou de um filme, pela carga de mistério que encerram, por suas múltiplas possibilidades. (GARCÍA DOMINGUEZ, 2007) Na engenhosa construção de Quico, por cujo olhar infantil vai-se desnudando a vida de uma família, e principalmente, o mundo adulto, tem grande importância o tempo infantil, medida que aplicada ao referido mundo adulto revela, expõe e denuncia. Nesta incursão de Miguel Delibes ao cotidiano, vem à tona a habilidade com que o escritor maneja o estilo direto e a linguagem infantil. Quico vai ganhando espaço desde a primeira página do romance, com o grito infantil com que avisa que 71 já acordou e requer afetividade do adulto que estiver mais próximo. A partir daí, vãose explicitando aspectos de sua personalidade, como a inocência e a ausência de auto-censura, através das palavras que usa e de como as usa. Nesse sentido, um dos pontos que mais chama a atenção é o fato de que Quico utiliza palavras consideradas impróprias pelos adultos que o cercam sem o menor pudor. _ Cris no tiene pito, ¿verdad, mamá? _ No – respondió Mamá evasivamente. _ ¿Y tú? ¿Tienes tú pito, mamá? _ Tampoco; eso sólo lo tienen los niños. A Quico se le redondearon los ojos azules y exclamó: _ Entonces, papá ¿tampoco tiene pito? (DELIBES, 1988, p.22) Apesar dos adultos considerarem pecado a utili zação de determinadas palavras e de constantemente orientarem para que Quico não as repita mais, o menino não dá ouvidos aos constantes pedidos dos adultos, já que é uma criança muito pequena e ainda não mede o que diz. Como a intenção de Quico é chamar a atenção dos adultos, nem mesmo as constantes frases ameaçadoras de Vítora surtem o efeito desejado sobre o menino: [...] El niño levantó la cabeza para ampliar las perspectivas de los bajos de la bata listada de azul de la Vítora. _ ¿Y dónde te pincha, Vito? – dijo - . ¿En el culo? _ Anda, a ver. Pero no digas eso; es pecado. _ ¿Culo es pecado? _ Eso; y si lo dices te llevan los demonios al infierno. (DELIBES, 1988, p.16) Quico, apesar de fazer uso de tais palavras, percebe que não deveria dizê las, pois é orientado tanto por sua mãe, como pelas empregadas da casa para que não as use. Sua consciência sobre esse fato é facilmente perceptível quando, estando chateado por algum motivo, ele decide utilizar palavras proibidas como “mierda”, “culo”, entre outras, como uma forma de protesto, ou simplesmente para “experimentar” e perceber a reação dos adultos. _ ¿No es ésta, por casualidad, la nena del señor Infante, el de Tapiosa? _Sí, señorita, pero es nene. La señora acentuó su sonrisa: 72 _Claro – dijo – a esta edad. Le ve una tan rubio y con esos ojos… Quico se había puesto serio, casi furioso: _ Soy un machote – dijo. Ella rió, ya en alta voz, divertida. _ ¿Así que eres un machote? – preguntó. A Quico le dolía la nuca y la estatura de ella y su condescendencia y experimentó uno de sus súbitos arrebatos. Chilló: _ ¡Mierda, cacao, culo…! (DELIBES, 1988, p.20 e 21) As criadas reprimem Quico no intuito de que deixe de empregar termos vulgares. Porém, esse não é o único motivo pelo qual podemos afirmar que elas influenciam na forma como Quico se expressa. Domi e Vito são os adultos que permanecem mais tempo com o menino, o que o faz reproduzir os mesmos “desvios” de linguagem das duas empregadas. Como Delibes é um autor que se preocupa em reproduzir as diferentes realidades lingüísticas de seu idioma, surgem na fala de suas personagens aspectos da linguagem popular que nem sempre estão de acordo com a norma culta vigente, como na fala de Quico, em que se destaca o recorrente emprego de “leísmos”, nome dado ao uso do pronome complemento indireto le, no lugar das formas pronominais lo ou la, que são pronomes complementos diretos. De acordo com a Real Academia Española de las Letras, este uso só é permitido se for utilizado em substituição a um complemento direto que seja uma pessoa, do sexo masculino e no singular. Vamos tomar como exemplo a seguinte passagem do romance: “Mamá entraba y salía de la cocina. El niño estiró el bracito con el tubo de dentífrico en la mano y se lamentó: _ ¿Ves? Me se ha mojado el cañón. Sécamele” (DELIBES, 1988, p.15). Na forma verbal seguida dos pronomes me e le que no exemplo se apresenta em negrito, observamos a ocorrência de leísmo. O pronome le foi empregado como substituto da palavra cañón, quando deveria ter sido utilizado o pronome lo, por ser o complemento direto, por ser uma palavra masculina e por estar no singular. Vale observar que essa construção com o pronome le, embora soe rara, corresponde a uma tendência leísta da região, que vai se tornando cada vez mais geral na atualidade. Analisando ainda o exemplo dado anteriormente verificamos que, além do leísmo, há outra característica da fala de Quico que merece destaque. Na frase “Me se ha mojado el cañón” houve a inversão da ordem usual dos pronomes postos em negrito. Dentro da norma do registro culto espanhol, como já foi visto, o pronome se 73 tem precedência sobre o pronome me, o que determina que a frase gramaticalmente correta fosse: “Se me ha mojado el cañó n”. O uso de leísmo e a alteração na ordem dos pronomes sobre os quais acabamos de nos referir documentam a reprodução feita por Quico do que escuta dentro da casa, seguindo, portanto, como modelo a linguagem de suas babás. Sobre o emprego do leísmo e do laísmo nas obras de Delibes, Manuel Alvar (1987) esclarece: [...] Delibes no es melindroso en el empleo de un lenguaje poco académico; a veces diríamos descuidado. Para cualquier no castellano es una agresión el uso del leísmo y del laísmo, tan del hablar de Valladolid y del occidente peninsular. Pero casi siempre el uso de la lengua intenta crear un clima real; así el vocabulario dialectal, que aflora […] más en las gentes populares o rurales que en las burguesas; o en una lengua conversacional que trata de colocarnos en el ambiente de los hablantes […]. (ALVAR, 1987, p. 27) Além dos desvios das normas gramaticais, a linguagem dos mais jovens apresenta outras semelhanças com a dos adultos. O autor também lança mão, nas falas dos irmãos de Quico, de expressões e ditos típicos da linguagem popular: “ ¡Ay!, Quiquín, cada día que pasa eres más pequeñazo y entiendes menos las cosas; eso no es una escopeta, ¿sabes?, es la trompa de un gramófono del tiempo de Maricastaña”. (DELIBES, 1988, p.148) Merche fala a seu irmão Quico a respeito de um aparelho de som muito antigo, que o irmão sequer reconhece como tal. Nesse momento ela utiliza a expressão que aparece em negrito ser del tiempo de Maricastaña. Essa expressão é utilizada quando queremos nos referir a alguma coisa que existiu ou algum fato que ocorreu há muito tempo 6. Como bem nos informa Manuel Alvar (1987), Delibes é no aspecto lingüístico, um escritor bastante audacioso, principalmente pelo fato de fazer uso de vocabulário 6 Segundo o Diccionario de Dichos y Frases Hechas, de Buitrago (1995) a história não deixa claro quem foi essa personagem chamada Maricastaña. Somente sabe-se que existiu, por volta do século XIV, uma mulher chamada Mari Castaña, apelido que pode dever-se à cor de seu cabelo, ou ao fato de ser casada com alguém chamado Castaño. O que se sabe ao certo é que esta mulher encabeçou uma rebelião contra o pagamento de tributos impostos pelo bispo de Lugo, onde vivia. Esse parece ser o motivo pelo qual seu nome passou para a posteridade e acabou em forma de dito popular. No entanto, falar da origem da maioria dessas expressões que o povo reproduz há séculos, e cujo significado nem sempre pode ser deduzido interpretando-se as palavras que as formam, resulta quase sempre arriscado, pois como toda forma de expressão tipicamente oral, o tempo cuida para que se torne impreciso onde, por quem e por quê essas frases foram utilizadas pela primeira vez. 74 que, em geral, não tem lugar nas páginas de quem escreve literatura. Além disso, ele trabalha a palavra para que ganhe vida e reflita vida. Em função dessa característica, nos diálogos da obra, ganha destaque, também, a entonação da fala de seus personagens, como no momento em que Quico, ainda nas primeiras páginas do livro, acorda em seu quarto e se dá conta de que está só, e busca a atenção das pessoas da casa gritando “_ Ya me he despertadooooo!” (DELIBES, 1988 p.10). Ou ainda os sons infantis, emitidos pela irmã caçula de Quico, que sequer sabe falar: La niña palmoteaba y decía: _Atata, atata. Quico se llegó a ella, le tomó las manos y la hizo palmotear con más fuerza y la niña reía a carcajadas y el niño rompió a reír y la niña volvió a decir: _ Atata. (Delibes, 1988, p.26) Para recriar o universo infantil, as onomatopéias aparecem com freqüência no romance de Delibes: Quico se encaramó en el triciclo rojo e hizo con la boca: “Ferren-ferrenferren” y pedaleó hacia atrás con gran agilidad y, luego, salió disparado pasillo adelante. Frente a la puerta de la cocina dio vuelta al manillar y así, con él del revés, desanduvo el camino andado. De nuevo en el cuarto, tomó el fuerte astillado, buscó un cordel, lo amarró al asiento, se subió al sillín y pedaleó briosamente por el pasillo. El fuerte, al trompicar en el suelo, hacía “boom, booombooom, boooom”, mientras la rueda delantera, al girar sobre el eje reseco, hacía “güi-güiiiii-güi” […] (DELIBES, 1988, p.52) A imaginação infantil e o aspecto lúdico permeiam a narrativa e o autor logra uma vez mais, fazer com que o leitor se sinta no mesmo ambiente daquelas crianças ainda tão inocentes, que brincam de bandido e mocinho e que vêem num simples tubo de pasta de dente uma poderosa arma de guerra, sem imaginar os reais efeitos de um canhão. Para Quico, tudo é uma grande descoberta e cada experiência torna-se extremamente importa nte. Fatos simples ocorridos dentro de sua casa são supervalorizados pelo menino, a ponto de tornarem-se verdadeiras fixações. Questões pessoais também ganham importância na vida e consequentemente nas falas do menino. Daí a insistência em noticiar a todos que ele já não faz mais xixi na 75 cama, ao contrário de sua irmã Cristina e de contar a todos que chegam a sua casa sobre a morte do gato de sua vizinha. Basicamente são esses os dois únicos assuntos de Quico durante todo o seu dia. Essa limitação no tema de suas conversas segue a mesma motivação pela qual se deu a limitação do tempo na obra. Da mesma forma que, por sua pouca idade, Quico ainda não tem uma memória de seu passado e, por isso, não temos informações sobre a história da família, o universo de Quico limita-se à sua casa e somente o que ocorre ali dentro tem significado para ele. Suas primeiras percepções sobre a morte, seus pequenos avanços na direção de se tornar livre das fraldas, enfim, suas primeiras experiências possuem para ele grande importância. O momento de Quico é de descoberta sobre si mesmo e sobre o mundo que o rodeia. Entre as fixações como falar da morte do gato e falar palavrões, está a de cantar um trecho de uma canção típica da oralidade: ´No es domingo’, se dijo con tenue voz adormilada y estiró los brazos y entreabrió los dedos de la mano contra el haz de luz y los contrajo y los estiró varias veces y sonrió y canturreó maquinalmente: ‘Están riquitas por dentro, están bonitas por fuera’. (DELIBES, 1988, p.10) Em outras passagens, Quico recordará a música e irá cantá-la, mesmo quando o momento não é propício: _ Vamos, Quico come. ¡Ay qué criatura, madre! Quico introdujo torpemente la cuchara en la papilla y la revolvió y los surcos se marcaron profundos en el plato. Miró y tornó a revolver […] Quico canturreó: ‘Están riquitas por dentro; están bonitas por fuera’. La niña concluía ya su desayuno y la Vítora se alborotó toda: _ ¡Mira que llamo a tu mamá, Quico!” (DELIBES, 1988, p. 27) Apesar de cantar somente um pequeno trecho de uma canção, essa música se repete em várias horas do dia e é uma lembrança recorrente. Esses pequenos detalhes quanto ao comportamento do menino contribuem para o desenho de sua personalidade, do perfil dessa criança e para a própria construção da personagem. Nesses momentos da narrativa em que o autor nos apresenta essas peculiaridades de Quico vão aparecendo condutas típicas de um menino de sua idade que ajudam 76 a fazer com que seu leitor forme uma imagem, aquilo que Hortencia Viñes (1983) chama de visualização lingüística da personagem. Quanto à atitude de Delibes, de inserir, uma vez mais, traços da linguagem oral em seu texto, diríamos que o faz por considerar que a tradição lingüística não pode ser esquecida. Os jovens de hoje e as futuras gerações devem conhecer a história e a riqueza de sua língua, que não pode ser “enterrada” por modismos. Não é necessário padronizar a linguagem. Cada um se expressa de acordo com seu conhecimento de mundo, de acordo com sua cultura. 77 3.4 NO COMPASSO DA CANÇÃO Delibes, na tentativa de recuperar aspectos da época na qual transcorre a narrativa e da vida desse grupo de pessoas que representam a sociedade espanhola, incluindo a classe burguesa, os serviçais e gente de diferentes faixas etárias, lança mão de um elemento muito importante: as canções. Elas aparecem na obra de diferentes maneiras e vão marcando o espaço onde se concentram as personagens que representam a classe mais simples com músicas que eram sucesso na época. A maioria das canções surge na narrativa através do rádio. Não devemos esquecer que este veículo de comunicação de massa era muito importante, pois, além de entreter os ouvintes com canções românticas e populares, era inegavelmente , usado como instrumento de propaganda do governo franquista. A História oficial narrada pelos modos retóricos dos historiadores partidários de Franco coincide com o país e a sociedade sorridente que se reflete nos poemas-canção difundidos pela Espanha e pelo mundo nas ondas do rádio, um novíssimo instrumento de comunicação muito bem explorado pela propaganda franquista. (NASCIMENTO, 2002, p.2) O rádio chegava às casas de grande parte da população espanhola, alcançando até mesmo a classe social mais humilde. Foram vários os fatores que influenciaram na popularização do rádio, como nos informa Manuel Vázquez Montalbán: La radio tenía una envergadura considerable y estaba en condiciones de dictar la sentimentalidad popular, y así lo hizo entre 1950 y 1960. La cosa tuvo su prehistoria infraestructural: la intensa electrificación del país, la definitiva comercialización de los receptores. Se llegó a estimular las más variadas formas de comprar una radio. Por ejemplo: la de la radio hucha que funcionaba a base de ir metiendo monedas por una ranura. Periódicamente pasaba un empleado de la empresa vendedora y se llevaba la recaudación del mes. (VÁZQUEZ MONTALBÁN, 2003, p.108) Essa forte presença do rádio pode ser percebida através do hábito de Domi e Vítora de escutarem canções durante praticamente todo o dia. Canções como La 78 Violetera7, cantada por Sara Montiel8, e ¡Ay, Jalisco no te rajes!9, música mexicana que ficou conhecida na voz de Lola Beltrán10, são algumas das músicas ouvidas pelas criadas. Enquanto os mais velhos se conectam ao som do rádio para escutar canções românticas, os mais jovens preferem o som do twist e fazem uso de aparelhagem de som moderna para a época para poderem se divertir e dançar. É o que fazem os irmãos mais velhos de Quico: [...] Quico oyó la música en el cuarto del fondo y echó a correr por el pasillo y, desde la puerta, divisó a Merche y a Teté braceando, culeando, siguiendo el compás del tocadiscos a toda potencia, y a Marcos y Juan recostados en la mesa, mirando, y Merche canturreaba: Lo bailan las muchachas y la gente mayor, Pues es el nuevo ritmo Que ha nacido del rock; La rubia, la morena, pelirroja, da igual. Tan sólo es necesario No perder el compás. Twist, twist, baila el twist, mi amor. Twist, twist, baila sin cesar Y sentirás el ritmo en ti Con una fuerza que te hará feliz… (DELIBES, 1988, p.p.138 e 139) Assim como as canções tocadas no rádio ouvidas por Vito e Domi, esse twist parece não ter muita relevância para a narrativa, porém reflete o momento em que o ritmo estrangeiro começava a chegar à Espanha. Marca a abertura cultural que se iniciava por fim e a diferença de valores e de comportamento entre as gerações. O twist foi um ritmo de sucesso na década de 1960 e tomou conta da Espanha e de tantas outras partes do mundo após o surgimento do rock, na década anterior. El twist, heredero del rock, significaba una dulcificación de su pariente rítmico. Los padres se tranquilizaron ante aquella sustitución. El twist era muy posible bailarlo con camisa blanca y corbata, indumentaria reñida totalmente con el rock y su espíritu. (VÁZQUEZ MONTALBAN, 2003, p. 184) 7 Letra integral da canção La Violetera no Anexo A. María Antonia Alejandro Abad Fernández foi atriz e cantora espanhola que obteve grande sucesso na década de 1950 e 1960, atuando em produções es panholas, mexicanas e americanas, entre outras. 9 Letra integral da canção ¡Ay, Jalisco no te rajes! no Anexo B. 10 Lucila Beltrán Ruiz foi a maior cantora mexicana de música “ranchera”. Ficou conhecida como “Lola la Grande”. Gravou cerca de 80 discos e participou de mais de 60 filmes. 8 79 Não importava o significado das letras das canções e, sim, seu ritmo alegre, frenético, uma espécie de rebeldia frente ao autoritarismo de uma época. No entanto, mesmo tendo esse caráter rebelde, o twist era visto com bons olhos pelos pais desses jovens, pois seus filhos, ao dançarem aquele ritmo, o faziam de forma mais comedida e conservavam uma maneira de vestir “adequada”, como nos afirma Vázquez Montalbán. Percebemos dois comportamentos diante da música no contexto da obra que podem nos indicar e/ou exemplificar duas posturas distintas frente à realidade político-cultural dos anos 60 na Espanha. Primeiramente, um proletariado sem muitas expectativas, nem planos para o futuro, que encontrava nas canções românticas ou de ritmos alegres a evasão para seus problemas e desesperanças. E por outro lado, jovens pertencentes a uma pequena burguesia começavam a consumir ritmos que, vindos dos Estados Unidos e da Inglaterra, estavam na moda e eram a preferência da juventude de países onde não havia a mão pesada do poder a indicar o que era boa fonte ou não de diversão popular. Se até pouco tempo atrás certos temas relativos à Espanha do franquismo eram obscuros, desconhecidos, hoje eles vêm à tona, na tentativa de um conhecimento maior sobre um longo período em que se manteve todo o país sob mão férrea do poder hegemônico de Franco. E o que poderia parecer sem importância, contribuiu para um melhor conhecimento daquele período. É o que mostra estudos recentes sobre a canção ligeira no período franquista que começam a surgir aqui no Brasil. Em agosto de 2007, no XII Congresso de Professores de Espanhol, organizado pela AMPLE (Associação Mato-grossense de Professores de Espanhol) em Cuiabá, chamou-nos a atenção uma mesa coordenada cuja proposta era a de pensar a música como testemunha de um momento histórico, como elemento relevante, protagonista até, pois para os membros da mesa a música também é capaz de contar história, fazer parte de sua dinâmica social e não só de ilustrá-la. Em meio a músicas românticas e ingênuas e ao twist com seu ritmo alegre, uma canção chama a atenção por tratar de questões políticas, mais especificamente do exílio, algo tão delicado para a época. 80 La Vito suspiró. La asaltó repentinamente una idea, se volvió al armario blanco, abrió una de las puertas, tomó un transistor, envuelto en una desgastada funda, color tabaco, y lo conectó. La voz salió un poco áspera, un poco gangosa, un poco rutinaria: ‘A Genuino Álvarez – dijo - , por haberle tocado a África, de quien él sabe, oirán ustedes Cuando salí de mi tierra’. (DELIBES, 1988, p.43) El Emigrante 11 foi escrita e cantada por Juanito Valderrama, um dos principais cantores do flamenco espanhol que durante a guerra civil espanhola alistou-se em um batalhão republicano. Essa canção, diferentemente do que seu nome sugere, trata, de forma velada, dos exilados que tiveram que deixar Espanha por motivos políticos durante o governo de Franco. O sucesso dessa música foi tão grande que o próprio ditador espanhol aplaudiu e pediu bis em uma apresentação de Valderrama, e ainda elogiou a canção que foi compreendida por ele como muito “patriótica”, sem perceber que se cantava a triste partida de um exilado político que , ao deixar sua terra, deixa para trás o que tem de mais precioso - sua pátria e seu amor 12. A música está presente na casa de Quico não só por causa do rádio ou da vitrola, símbolos de mudança de hábitos e de certa modernização da sociedade, ela também se faz presente pela recuperação de uma tradição, mais especificamente a poesia de tradição oral espanhola , através da personagem Domi. Domi é uma senhora que apresenta em alguns momentos um caráter bastante falho , por tentar demonstrar perante Carmen sua paciência e carinho pelas crianças, o que nem sempre condiz com seus verdadeiros sentimentos, como na passagem em que, na ausência da mãe de Quico, Domi mostra-se impaciente e chega a ser dura com as crianças; porém, ao perceber a presença de Carmen, a babá passa a mostrar-se como uma pessoa frágil e com sentimentos: Quico terció, mirando a los altos, girando la cabecita rubia hacia todas partes: _ ¿Dónde está la mosca, Domi? _ ¡Vamos, calla la boca tú! _ Entró súbitamente la bata de flores rojas y verdes. La Domi adoptó una actitud compungida; apretó fuertemente los párpados hasta que en uno de los ángulos de los ojos surgió una lágrima. La bata se aplacó: _ ¿Ocurre algo, Domi? (DELIBES, 1988, p. 42) 11 12 Letra completa da canção El Emigrante no Anexo C. Entrevista de Juanito Valderrama no Anexo D. 81 Percebemos nesse momento da narrativa que Domi dissimula diante de Carmen. No entanto, depois que se ausenta da cozinha, muda de expressão repenti namente e volta a ser a mesma pessoa rude de antes. Apesar de tudo isso, ela consegue a admiração de Quico, cativando-o através das histórias antigas e trágicas que conta. Em função disso, Quico faz questão da presença da empregada em sua casa, mesmo quando sua mãe, insatisfeita com algumas atitudes da babá ameaça demiti-la. _ Mamá, yo no quiero que se marche Domi. _ Que lo diga – dijo Mamá. Quico aguardó un rato antes de hablar: _ Si se va Domi – dijo – ¿Ya no vuelve nunca, nunca? _ Otra vendrá – dijo Mamá. _ Yo no quiero que venga otra. (DELIBES, 1988, p.125) Domi, na tentativa de dominar os ânimos das crianças da casa, traz ao cenário familiar a poesia popular, canções pertencentes à tradição oral. É ela quem detém o conhecimento da literatura oral, que vive na boca do povo e se transmite de geração em geração. As cantigas cantadas por Domi assemelham-se à “literatura de cordel” ou “romances de ciego”, literatura popularizada através de “pliegos de cordel”, ou seja, pequenos cadernos que continham os te xtos literários e eram vendidos atados a uma corda enquanto cegos cantores entoavam as histórias. De autores anônimos, essas canções relatam histórias dramáticas, com um desenlace trágico. Segundo Lorenzo Vélez (1982), a literatura de cordel foi até o início do século XX um importante meio de transmissão de poesia, um excelente instrumento de informação e um eficaz sistema de propaganda política até a ascensão do jornalismo, iniciada no século XIX. Aparecem na obra duas canções de tradição oral, nas quais os temas tão a gosto dos tradicionais “pliegos de cordel” são desenvolvidos. A primeira delas, Domi canta a pedido de Quico que a chama de “lo del niño que comía con las vacas”. Nela, a situação se constrói a partir de uma seleção vocabular altamente dramática e uma adjetivação inteiramente negativa que remetem ao medo e à desgraça: 82 Quico arrastró la butaquita de mimbre a los pies de la mujer y se sentó. Juan y Quico levantaban sus caritas expectantes. La Domi carraspeó; entonó al fin: _ Prestad mucha atención al hecho criminal de un padre ingrato, degenerado, hombre sin corazón, sin ninguna piedad, que en Valdepeñas ha secuestrado a un hijo suyo este hombre infame en un establo y sin comer, La Domi imprimía a la copla unas inflexiones, unos trémolos que subrayaban el patetismo de la letra. Quico le miraba el hueco negro en la fila de dientes de abajo, aquel vano oscuro que acentuaba la gustosa sensación de terror que le recorría la espalda como un escalofrío […] (DELIBES, 1988, p.92-93) Além de palavras como “criminal”, “ingrato”, “degenerado”, “sin piedad”, “sin corazón”, corrobora para a criação de um ambiente ameaçador a interpretação de Domi que consegue fazer com que seus expectadores se envolvam na história a ponto de sentirem arrepios. Porém, o medo que toma conta das crianças é justamente o elemento que as seduz e prende sua atenção. Quico se encanta tanto com as canções que não se satisfaz em escutar somente uma e suplica a sua babá para que siga cantando. Domi, então, entoa “Rosita Encarnada”. Nesta canção, conta-se a história de um soldado que ao regressar da guerra vai ao encontro do seu antigo amor. Porém, acaba descobrindo que ela está casada e por isso deseja matar sua amada: La Domi oscureció la voz. Siempre que hablaba el Soldado bajaba la voz tanto que parecía que cantaba dentro de una caja de muerto: Me juraste Rosita Encarnada Que con otro hombre no te casabas, Ahora vengo a casarme contigo Y me encuentro que ya estás casada. La Domi hizo un alto estudiado y miró a los dos pequeños, inmóviles, como hipnotizados. Su voz se aflautó, se hizo implorante y desgarrada, de pronto: ¡No me mates, por Dios, no me mates! No me mates, tenme compasión; Ese beso que tú a mí me pides Ahora y siempre te lo he de dar yo. Juan denegó con la cabeza. Sabía que el Soldado no la besaría. Siempre temía, sin embargo, que cediera y terminara besándola. Quico le miró con el rabillo del ojo y denegó también sin saber bien a qué. La voz de la Domi se tensó y, aunque brumosa, se hizo vivaz y dramática: Yo no quiero besos de tus labios, Lo que quiero es lograr mi intención, Y sacando un puñal de dos filos En su pecho se lo atravesó. (DELIBES, 1988, p.p. 95 e 96) 83 Novamente a representação por parte da babá cria um ambiente propício à canção: “Domi oscureció la voz”, “hizo un alto estudiado”, “Su voz se aflautó, se hizo implorante y desgarrada”. Essas mudanças no tom de voz de Domi são necessárias para dar a dramaticidade necessária à canção. Toda essa “encenação” desperta a imaginação das crianças, aumentando o interesse delas pelas canções, a ponto de pedirem à Domi que cante outras mais. Domi canta cada história valendo-se de sua memória, utilizando uma versão recebida possivelmente de pessoas mais velhas, pais ou avós que lhe entregaram retalhos de uma tradição oral que ora ela reproduz. Por pertencerem à tradição oral, essas canções estão permanentemente sujeitas a transformações, perdas ou acréscimos de elementos, como se observa por meio de outras versões 13. Elas fazem parte de um sistema aberto que se mantém em contínua adaptação ao ambiente, ao sistema lingüístico e cultural do grupo humano que as produzem ou as cantam. Tanto a figura do pai ingrato que seqüestra o próprio filho, como a do soldado que retorna da guerra e mata sua namorada, nos remete à observação de Lorenzo Vélez (1982) quando afirma que a literatura de cordel oferece una visão vitalista da realidade, na qual entram em jogo crimes passionais, terríveis vinganças e arrependimentos de pecadores incorrigíveis. Verificamos, assim, que embora as canções de Domi não integrem o repertório do cordel, contém os mesmos ingredientes. Domi também resgata as canções infantis, que tal como os “romances de ciego” não possuem autor conhecido e também fazem parte da tradição oral. Porém, essas canções não têm elementos dramáticos ou que causem espanto, e sim servem como entretenimento, para brincadeiras e para adormecer as crianças. Cristina empezó a lloriquear y la Domi movió acompasadamente las piernas y canturreó: ‘Arre, borriquito, vamos a Belén…’ y la niña se recostó en su pecho y cerró los ojos. Dijo: - Esta criatura está muerta de sueño. (DELIBES, 1988, P.45) É oportuno observar que como o romance em questão se passa no mês de dezembro, mais especificamente no dia 03, Domi, ao cantar, diz “vamos a Belén”, já 13 Outras versões de Rosita Encarnada no Anexo E. 84 que se aproxima o Natal. No entanto, no lugar de “Belén”, há destinos como Jeréz e Sanlúcar, encontradas em outras versões dessa canção, utilizadas fora da época do Natal14. Por se tratar de formas tradicionais de expressão popular espanhola, Miguel Delibes reserva às cantigas, sejam elas infantis como as cantada para Cristina, ou trágicas como as que desejavam escutar Quico e Juan, um lugar especial em sua obra. Como incansável defensor das diferentes formas de linguagem e manifestações culturais, Delibes oferece uma contribuição no sentido de preservar as manifestações culturais de seu povo, de modo a fazer com que gerações futuras possam conhecer e desfrutar do imenso caudal cultural guardado na memória de sua gente . As canções populares correm o risco de desaparecer, se não forem passadas para as gerações futuras através da própria oralidade ou através do texto escrito, como faz Delibes, ao registrá-las em suas obras. 14 Outras versões da cantiga Arre borriquito no Anexo F. 85 CONCLUSÃO Ao debruçarmo-nos sobre a obra de Miguel Delibes, parece-nos que seu propósito era o de estimular seu leitor à reflexão sobre os problemas que afligem o homem em sua contemporaneidade, pois acredita que no futuro o mundo pode e deve ser melhor. Um mundo em que todos possam reconhecer-se como seres humanos dependentes uns dos outros para viver melhor e em harmonia. Nesse futuro deveria figurar um ser humano mais livre em pensamentos e ações, que não estivesse subjugado pela fome, pela pobreza ou por qualquer tipo de exploração. Por outro lado, os homens teriam que desenvolver toda a sua capacidade de aceitar o outro como é, tolerando as diferenças, que são tão poucas se comparamos com o que existe em comum entre os seres humanos que habitam qualquer parte desse nosso planeta. Porém essa mudança só seria possível com comunicação, solidariedade entre os setores da sociedade e compaixão entre os homens. A educação configurase nesse quadro como um dos principais pilares para a mudança. Através dela poderia haver uma alteração de valores da sociedade que, já na segunda metade do século XX e também em nossos dias atuais, estão voltados para a aparência e para a obtenção de bens materiais. Assim, o homem, o que há dentro dele, vai ficando cada vez mais preterido e sua essência escamoteada sua essência durante a cíclica substituição do ser pelo parecer. Nem tudo o que Delibes queria escrever era lícito. Suas obras escritas durante o período franquista, principalmente aquelas escritas até a década de 1960, período a partir do qual iniciou-se uma lenta abertura, não alcança tocar em todas as questões cruciais da época, mas atingem o seu propósito se não acreditarmos na ingenuidade de sua trama, mesmo aquela que pareça não tratar de nenhum tema relacionado à política ou a problemas sociais. A preocupação social de Delibes está presente em suas obras, não para identificar os “bons” e os “maus” e separá-los em dois bandos, pois isso já havia sido feito, mas mostrar os dois lados como vítimas e culpados ao mesmo tempo. A preocupação social não consiste em fazer um mundo maniqueísta, e sim em aproximar-se dos problemas do homem para, então, compreendê-los e, a partir deles, justificar sua conduta (ALVAR, 1987). Delibes narra a partir de sua observação dos fatos, e sente piedade daqueles 86 que não possuem força para lutar em igualdade de condições e por isso estão no grupo dos mais fracos, daqueles que, em geral, saem perdendo. Não podemos nos esquecer que as décadas que se seguiram após o término da guerra civil espanhola foram tempos marcados por guerras que levaram ao mundo ocidental problemas graves em sua economia, culminando, muitas vezes, no desamparo de sua população que se viu imersa na fome, na incerteza, na insegurança quanto ao futuro. A diferença entre as classes sociais, fortemente marcada, dividia a sociedade entre os que tinha m poder aquisitivo para manter um bom padrão de vida, de educação e social e os que viviam um dia de cada vez, tentando manter-se de pé no sutil limite entre a pobreza e a miséria. Para Delibes, a principal causa desse quadro desolador era o desamor e a crença cega na existência de uma verdade única e absoluta, capaz de traçar destinos, responsáveis por atitudes egoístas que abriam passo ao abandono, à insensibilidade e a tantos outros males que geram mais malefícios à sociedade, como a falta de comunicação, que por sua vez é responsável pela solidão existente até mesmo dentro de um pequeno espaço social, devido à completa falta de destreza para conviver com as diferenças. Todas essas questões estão em El príncipe destronado e uma a mais: a guerra. Apesar de não haver um período de guerra dentro da Espanha nos anos 1960, existe ainda um clima de guerra perceptível através das relações conflituosas entre Papá e Mamá, que estão constantemente se enfrentando numa espécie de guerra verbal em que ambos os lados não se compreendem, nem se toleram e pelas constantes lembranças de Papá com relação ao conflito bélico e de sua crença nos homens que lutaram pelos ideais nacionalistas e nos seus valores. Delibes se atreve a entrar no mundo infantil, cheio de descobertas, medos e desejos em apenas uma jornada, que encerra um mundo completo. Traça-nos um retrato da infância que alude ao regime político de Franco, à difícil relação entre homens e mulheres, aos conflitos familiares e domésticos. A casa de Quico é o microcosmo de Espanha sob vários prismas pois nos mostra as relações humanas, as guerras, além de estarem retratados ali costumes e tradições, formas de expressão do povo espanhol, através da música e da oralidade. São apresentados na obra diferentes níveis da fala do povo espanhol: desde o modo de se expressar de imigrantes rurais, com sua linguagem simples, com seu vocabulário limitado, mas que guardam uma grande riqueza, pois são conhecedores 87 de uma cultura popular que sobrevive através de canções transmitidas oralmente de geração em geração, capazes de recontar uma parte da história do povo espanhol, até o dos ricos, com seu vocabulário requintado, com forte influência da cultura norte-americana. Trata-se de extremos que se encontram em um mesmo espaço, que convivem e trocam experiências. Certa mistura entre os grupos acontece, principalmente entre crianças e empregados, pois vários registros coexistem e motivam a heterogeneidade da linguagem do romance. O romancista, criador e testemunha dessa realidade plural segue o estilo de cada um de suas personagens ao narrar a história. Um modo “popular“ de escrever, segundo afirma Valle Spinka (1975), que com o uso de gírias, apelidos, repetição do uso de gestos por parte do falante, entonações diferenciadas, reprodução da fala das crianças, onomatopéias, artigos com nomes próprios, entre outros recursos, dá individualidade a cada personagem. Além de seu desejo de preservar as tradições, ou seja, de valorizar o passado, há também em Delibes, como vimos, o interesse de registrar o está acontecendo no momento em que escreve . Daí a presença do rádio, o principal veículo de informação na década de 1960, e de novidades do mundo musical que faziam sucesso entre adolescentes e jovens, como o twist e de temas como a guerra e a violência, questões centrais para a Espanha e para todo o mundo, já que ainda estava muito presente o horror vivido pela Guerra Civil e pela Segunda Grande Guerra. El príncipe destronado é uma das muitas incursões de Miguel Delibes no mundo cotidiano. Por observar a normalidade da vida, Delibes é capaz de trazê -la para sua narrativa usando um estilo direto e aparentemente fácil, como se estivesse falando ao seu leitor, o que é um de seus maiores desafios e grande mérito. Por tudo o que foi exposto e discutido nesta dissertação, pensamos ter encaminhado, com nossa leitura, uma reflexão sobre a questão da Espanha dividida, ainda que isso tenha sido feito a partir de uma obra que tematiza um dia na vida de uma criança de pouco mais de três anos de idade. Cremos também ter sido possível mostrar Miguel Delibes como um escritor audacioso pela temática que aborda em suas obras, pela linguagem utilizada, pelo uso de palavras muito mais ouvidas do que lidas, pela constante inovação da forma como são narradas suas histórias ou estruturados os seus romances. Esperamos, por fim, ter comprovado que a leitura 88 dos romances de Delibes, e especificamente de El príncipe destronado, oferece ao leitor a oportunidade de dialogar com um escritor que se vale de seu ofício para expressar seu pensamento, sempre voltado para o ser humano e seu direito à liberdade, já que sua obra é uma prolongação de sua pessoa, de suas inquietações, obsessões e esperanças. 89 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABELLÁN, Manuel L. “Censura y franquismo: ensayo de interpretación”. In: Temas para el Debate, Madrid, nº 12, 1995. ALARCOS LLORACH, Emilio. La novela de Miguel Delibes. Barcelona: Destino, 1960. ALONSO DE LOS RIOS, César. Conversaciones con Miguel Delibes. Madrid: E.M.E.S.A., 1971. ALVAR, Manuel. El mundo novelesco de Miguel Delibes. Madrid: Gredos, 1987. BROWN, G.G. Historia de la literatura española – el siglo XX. Barcelona: Ed. Ariel, 1998. BUITRAGO JIMÉNEZ, Alberto. Diccionario de dichos y frases hechas. Madrid: Espasa Calpe, 1995. CÂNDIDO, Antônio et al. 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Villancicos Disponível em <http://webpages.ull.es/users/joramas/villancicos.htm#tres>. Acesso em 21/12/2007. 95 ANEXO A Esta é uma das canções que as empregadas Domi e Vítora escutam pelo rádio. Fez sucesso na voz de Sara Montiel, cantora e atriz que também protagoniza o filme La Violetera, produção de 1958, em que sua personagem Soledad é uma vendedora de violetas na rua e, na véspera do Ano Novo, conhece o aristocrata Fernando (Raf Vallone). O casal apaixona -se, mas a sua diferença social ameaça o romance. LA VIOLETERA Autores: E. Montesinos/ J. Padilla/ J. Saint-Granier/ A. Willemetz - 1956 Como aves precursoras de primavera Em Madrid aparecen las violeteras Que pregonando parecen golondrinas Que van piando, que van piando. Llévelo usted señorito que no vale más que un real Cómpreme usted este ramito Cómpreme usted este ramito Pa’ lucirlo en el ojal Son sus ojos alegres, su faz risueña Lo que se dice un tipo de madrileña Me trae castiza que siento horná los ojos Que cauteriza, que cauteriza. Llévelo usted señorito que no vale más que un real Cómpreme usted este ramito Cómpreme usted este ramito Pa’ lucirlo en el ojal Cómpreme usted este ramito Cómpreme usted este ramito Pa’ lucirlo en el ojal Disponível em <http://vagalume.uol.com.br/sarita-montiel/lavioletera.html>. Acesso em 11/07/2007. 96 ANEXO B Esta é mais uma canção que surge na narrativa através do rádio. Seus intérpretes mais famosos são: Jorge Negrete e Lola Beltrán. Outro exemplo de canção que fazia sucesso na década de 1960, do tipo romântica, que encantava jovens sonhadoras, como Vítora. ¡Ay, Jalisco no te rajes! Autores: M. Esperón/ E. Cortazar ¡Ay, Jalisco, Jalisco, Jalisco! Tú tienes tu novia que es Guadalajara, Muchacha bonita, la perla más rara De todo Jalisco es mi Guadalajara. Y me gusta escuchar los mariachis, Cantar con el alma sus lindas canciones Oír cómo suenan esos guitarrones Y echarme un tequila con los valentones. ¡Ay, Jalisco no te rajes! Me sale del alma gritar con calor, Abrir todo el pecho palechar este grito: ¡Qué lindo es Jalisco, palabra de honor! Pa’ mujeres, Jalisco primero, Lo mismo en Los Altos, que allá en la Cañada, Mujeres muy lindas rechulas de cara, Así son las hembras de Guadalajara. En Jalisco se quiere a la buena Porque es peligrosos querer a la mala, Por una morena echar mucha bala Y bajo la luna cantar en Chapala. ¡Ay, Jalisco no te rajes! Me sale del alma gritar con calor, Abrir todo el pecho palechar este grito: ¡Qué lindo es Jalisco, palabra de honor! Disponível em <http://ingen.org/songs/jalisco.html>. Acesso em 11/07/2007. 97 ANEXO C EL EMIGRANTE Autor e intérprete: Juanito Valderrama Tengo que hacer un rosario Con tus dientes de marfil Para que pueda besarlo Cuando esté lejos de ti, Sobre sus cuentas divinas Hechas de nardo y jazmín Rezaré pá que me ampare Aquella que está en San Gil Y adiós mi España querida, Dentro de mi alma Te llevo metida, Y aunque soy un emigrante Jamás en la vida podré olvidarte. Cuando salí de mi tierra Volví la cara llorando Porque lo que más quería Atrás me lo iba dejando, Llevaba por compañera A mi Virgen de San Gil, Un recuerdo y una pena Y un rosario de marfil. Y adiós mi España querida … Yo soy un pobre emigrante Y traigo a esta tierra extraña Y en mi pecho un estandarte Con los colores de España Con mi patria y con mi novia Y mi Virgen de San Gil Y un rosario de cuentas Yo me quisiera morir Disponível em <www.antonioburgos.com/enlaces/varios/valderrama.html>. Acesso em 25/10/2007 98 ANEXO D Aquella España, de Juanito Valderrama Sinfonía de introducción: una copla para el Generalísimo El decano de los “cantaores” reconstruye, a través del ingenio de Antonio Burgos, el tiempo de esa España de la que fue protagonista y testigo en el libro “Juanito Valderrama: mi España querida”, que se publicará el próximo martes. El capítulo que reproducimos recoge el momento en el que Valderrama interpretó “El emigrante” ante Franco, en una época en la que, según rememora el “cantaor”, “no había emigrantes, sino exiliados”. por Antonio Burgos Yo me llamo Juan Valderrama Blanca y nací en 1916 en Torredelcampo, un pueblecito muy cerca de Jaén, donde de chico aprendí a cantar mientras cogía aceitunas en los hielos del invierno o cuando mi padre me llevaba al trato de las mulas que compraba y vendía a los gitanos por las ferias de los pueblos, con las calores del verano. Yo he cantado flamenco desde que tenía pantalón corto. Yo, que empecé impresionando mis cantes en placas de pizarra que se escuchaban en un gramófono al que había que darle cuerda con una manivela, que le decían “la maquinilla cantaora”, he grabado tres grandes antologías con la historia del flamenco que ahora se oyen en discos digitales. Mis cantes empezaron a sonar en radios de galena y ahora se oyen en la televisión por satélite. Conozco todos los estilos del flamenco, tengo grabados 700 cantes y he recorrido todos los teatros de España y del mundo durante más de 70 años de artista. He dedicado mi vida entera a cantar y a aprender de los grandes y creo que he conseguido en mi género lo máximo que se puede lograr. Pero como soy un cantaor que el público ha conocido por sus canciones propias a orquesta, mi tarjeta de visita es El emigrante. Con El emigrante yo fui el primer cantautor que hubo en España. El primero que llegó al gran público con una letra que había escrito él mismo y donde se recogían los sentimientos, las alegrías y las penas de todo un pueblo. Cómo será la fama de El emigrante, que de esa canción hasta Franco me pidió un bis. Yo creo que he sido el único artista al que Franco, que era tan serio, le ha tocado las palmas y le ha pedido un bis. Eso ocurrió en 1950, en una cacería de perdices en casa de don Francisco Aritio, en una finca cerca de Madrid. Don Francisco Aritio era uno de los más ricos de España, accionista de muchas empresas. Rico podrido, de aquellos capitales que se hicieron después de la guerra nuestra. Yo creo que medio Banco de España era suyo. Y cuando estábamos en el teatro Calderón de Madrid, en los ensayos de Pena y oro, un espectáculo teatral que me habían escrito Quintero, León y Quiroga, este Aritio organizó una fiesta en una finca con un caserío señorial que tenía por San Martín de Valdeiglesias. La fiesta era con motivo de una cacería de perdices que daba para Franco, a quien le gustaba mucho la escopeta y la caña de pescar. 99 Aquello era un palacio, con un salón que llegaba desde aquí a allí enfrente. El maestro Quiroga nos llamó para que fuéramos a esta fiesta, donde la parte de artistas la organizaba don Fernando Fuertes de Villavicencio, que era el jefe de la casa civil del Generalísimo y la mano derecha de Franco para estas cosas; el que llamaba también a los artistas para que fueran a actuar en los jardines del palacio de La Granja todos los años, en vísperas del 18 de julio, una recepción muy grande que daba allí el Caudillo a los diplomáticos y a todas las autoridades y donde siempre había actuaciones. Cuando me dijo Quiroga que Fuertes de Villavicencio nos llamaba para ir a esta fiesta de la cacería de perdices yo estaba en los ensayos de Pena y oro, medio malo, recién operado de apendicitis, que no me habían ni quitado los puntos todavía, pero cualquiera se negaba a ir a una cosa de Franco, allí no se podía mandar parte facultativo. Llevaron también a aquella fiesta a Carmen Sevilla y a Luis Mariano, el cantante francés que estaban rodando en España aquellas películas de tanto éxito, El sueño de Andalucía y Violetas imperiales. Nos llevaron a ellos dos y a mí, que fui con el Niño Ricardo. Y como en España todavía había tanta carestía de tantas cosas, que todavía duraban los efectos de nuestra guerra, se comentaba por allí que el coche que traía Luis Mariano desde Francia, un Cadillac, era de un año más nuevo, de un modelo más moderno que el que usaba el propio Franco. Pero en voz baja, claro. Cualquiera era el guapo que se atrevía a comentar en voz alta que Luis Mariano tenía un coche mejor que el de Franco. En aquella fiesta de la cacería de perdices nos tuvieron allí en un cuarto de segunda mesa, y cuando llegó la hora de cantar nos pasaron a aquel salón inmenso, muy lujoso, con muchos cuadros y muchos muebles muy buenos, con alfombras, con muchas lámparas, en el que habían montado una especie de escenario, con un piano abajo y un tablado arriba para los artistas. Y allí sentado en ese salón, Franco, con sus ministros, muchos uniformes de militares, muchos ayudantes con los cordones dorados por el hombro, y mucha gente desplegada por allí, por la carretera, por el camino y por los alrededores de la casa: la Guardia Mora y otros que iban vestidos de requetés con la boina colorada guardando aquello, con las metralletas en la mano y con los naranjeros. Como si fuera el palacio de El Pardo, pero en una cacería de perdices en San Martín de Valdeiglesias. Y cuando llegó la hora de cantar, nos subimos arriba al escenario de aquel salón tan enorme el Niño Ricardo con la guitarra y yo. Y el maestro Quiroga abajo, al piano, que como estaba más acostumbrado a aquel plan del Caudillo nos daba confianza. Cada artista estaba cantando una canción solamente. Y yo, todo cortado delante de tantos uniformes y con Franco allí delante vestido de paisano, muy serio, mirándome muy fijo, le pregunté a Quiroga antes de subir: –¿Qué cantamos, maestro? Y aunque el maestro Quiroga no había escrito aquella canción, seguramente se la pediría Fuertes de Villavicencio de parte de Franco, porque me dijo: –El emigrante, Juan, por supuesto que El emigrante... Hizo Ricardo una introducción a la guitarra, con el fondo del piano del maestro 100 Quiroga, y allí delante de Franco, por culpa de quien tantos españoles se habían tenido que ir de España y no podían volver y tenían que vivir lejos de su tierra, me puse a cantar la canción que precisamente hablaba de ellos, porque entonces no había todavía emigrantes a Alemania con la maleta amarrada con guita, sino exiliados de nuestra tragedia por todo el mundo: Cuando salí de mi tierra/volví la cara llorando porque lo que más quería/atrás me lo iba dejando, llevaba por compañera/a mi Virgen de San Gil, un recuerdo y una pena/y un rosario de marfil. Adiós mi España querida,/dentro de mi alma te llevo metía,/y aunque soy un emigrante jamás en la vida/yo podré olvidarte. Me tocaron las palmas los que estaban en el salón, los ministros, los militares, la gente de la grandeza del dinero que estaba allí en la cacería. Y hasta Franco vi que me tocaba las palmas como él las tocaba, con desgana, como por lo militar. Y me bajé del tablado, y Fernando Fuertes de Villavicencio, que no se nos quitaba del lado, me dio un empujón para donde Franco estaba: –Cumplimenta a Su Excelencia, Juanito, venga, cumplimenta a Su Excelencia. “Cumplimenta a Su Excelencia” era que lo saludara al hombre. Y me acerqué al Caudillo, y Franco me tendió aquella mano que te ponía con tanta frialdad, la manita así medio cerrada, sin sentimiento, y me dijo con aquella vocecita chillona suya: –Valderrama, muy bonita esa canción, es muy patriótica... –Muchas gracias, Su Excelencia, muchas gracias. Y Franco se queda callado un buen rato, sin pronunciar palabra, mirándome sin mover un músculo de la cara, y de pronto va y me suelta: –Valderrama, ¿usted serían tan amable de cantarla otra vez? Yo me quedé más cortado todavía de lo que estaba. Yo no sabía dónde meterme. Yo pensé, muerto de miedo: “Esto es para enterarse bien de lo que digo en El emigrante y meterme preso...” Y Fuertes de Villavicencio, con muchas carreras y muchos aspavientos: –Venga, Juanito, venga, y tú, Ricardo, arriba otra vez, que Su Excelencia quiere oír esa canción otra vez... Y le tuve que hacer un bis a Franco. Subió Ricardo otra vez al escenario con la guitarra y se puso el maestro Quiroga otra vez al piano y canté otra vez El emigrante. Creo que muy pocos artistas le han tenido que hacer un bis a Franco. 101 Mientras la cantaba por segunda vez no se me quitaba el mosqueo. Seguía pensando: “¿Qué va a pasar ahora como este tío se entere bien y ya no le parezca tan patriótica? ¿Pensará de buenas o pensará meterme en la cárcel? Y en mi miedo y en mi extrañeza me acordé de la noche en que terminé de escribir El emigrante. El estribillo se me había ocurrido en una gira por el norte, un día que estábamos actuando en un teatro de Ponferrada y el Niño Ricardo me hizo a la guitarra una falseta preciosa, acompañando unos versos que yo recitaba. Una falseta con una melodía que me dio casi escrito el estribillo de la canción, de sentimiento que tenía: Adiós, mi España querida,/dentro de mi alma te llevo metía... Pero la letra de la canción entera la terminé de escribir mucho después, y de un tirón, como si me la fuera dictando mi propio corazón, en la misma turné, después de aquella noche moruna tan española en que vi las lágrimas de los exiliados españoles en Tánger. Disponível em <http://www.elmundo.es/magazine/2002/123/1012557363.html> Acesso em 01/11/ 2007 102 ANEXO E Em El príncipe destronado são apresentadas somente algumas estrofes da canção Rosita Encarnada. Trazemos, então, duas versões completas da canção, que apresentam diferenças entre si, o que reafirma seu caráter oral. Rosita encarnada Ya venimos de la quema de África porque todo lo trae el amor. Ya venimos de la quema de África porque todo lo trae la pasión. Al marcharme, Rosita encarnada me juraste que tú me amabas y ahora vengo a casarme contigo y te encuentro que ya estás casada. Casada casadita estoy que el amor me hubo de volver. Me he casado en la flor de mi vida con un hombre que yo nunca amé. ¿Te acuerdas del pañuelo de grana que de novios yo te regalé? Dámelo, que si tú no lo has roto en tu nombre yo lo romperé. Yo no sé del pañuelo de grana ni de los regalos que me hiciste. Sólo de un costurero de plata donde tú mi retrato pusiste. Dame un beso Rosita encarnada, dame un beso de aquellos de amor que en tu pecho ha tocado otro hombre y en tus labios quiero tocar yo. Ese beso que tú a mí me pides ni ahora ni nunca te lo podré dar. Ese beso se lo he dado a otro hombre que con él me hicieron casar. Ese beso que yo a ti te pido ahora y siempre tú me lo has de dar y si no con la mano derecha en tu pecho clavaré un puña l. Si tú tienes puñal de dos hilos tú mi pecho podrás traspasar. 103 Matarás hermosa criatura que dentro de mi pecho estará. Yo no mato hermosa criatura que no viva en un mundo inocente pero el día que ella venga al mundo a ti sola te daré la muerte. A los cinco días tuvo una niña más hermosa que la luz del sol y de nombre le pusieron Rosa, Rosa, como su madre mandó. A los quince días salió a misa y en la plaza con él se encontró. Buenos días, Rosita encarnada. Ahora vengo a lograr mi intención. No me mates, por Dios, no me mates, no me mates, tenme compasión que ese beso que tú a mí me pides ahora y siempre te lo daré yo. Ya no quiero besos de tus labios, lo que quiero es lograr mi intención. Y sacando un puñal de dos hilos en el pecho fue y se lo clavó. A los pocos momentos del crimen su marido llorando llegó. Dime, dime Rosita encarnada, dime, dime quién te asesinó. Y Rosita encarnada llorando a su esposo así le contestó: Me ha quitado la vida aquel hombre que yo en tiempos le juré el amor. Al volver y encontrarme casada él juró el quitarme la vida por haber faltado a la palabra, que mis padres a ello me obligan. Y mis padres a mí me obligaron a casarme sin ser gusto mío y ahora tristemente lloran el castigo que yo he merecido. Pobrecita Rosita encarnada, qué joven te han quitado la vida. 104 Hoy tus padres lloran tu muerte y tu esposo, de noche y de día. Yo te juro, Rosita encarnada que tu muerte yo la vengaré aunque vengan mañana y me lleven y en la cárcel muera yo también. Y dio cuenta a la autoridad y la Guardia Civil enseguida salió en busca de aquel asesino que se había marchado a una finca. Al momento de haber llegado un revólver del bolso sacó y arrimándolo sobre sus sienes la cabeza se la traspasó. Ha dejado una carta escrita que causaba penita y dolor. Adiós Rosita, que has muerto. Por tu culpa también muero yo. Esta carta que yo dejo escrita es para las mocitas solteras. Cuidadito cuando tengas novio, no juréis un amor que no sintáis. Una vez que el amor has jurado en el pecho de aquel que bien quieres imposible poderlo arrancar y que antes la muerte prefiere. Una vez que el amor has jurado mucho alumbra pero poco quema. Esto es causa de los atropellos que en España pasan donde quiera. Disponível em: <http://www.aliste.info/cancionero.asp?título=Palazuelo&encabezado =Rosita%20encarnada%20(cantada)>. Acesso em 05/05/2007 105 Rosita encarnada -Dios te guarde, carita de rosa, que me han dicho que me has olvidado, yo venía a casarme contigo y ahora veo que ya te has casado. -Soy casada y no puedo quererte y otras leyes nos sirven de ver, ante Dios y los hombres he jurado que a un esposo sólo he de querer. -Dame un beso, por Dios te lo pido, no me niegues un beso de amor, si ese hombre ha tocado en tu pecho en tus labios quiero besar yo. -Ese beso que tú me has pedido ahora y nunca te lo puedo dar, de mocita no bese a ningún hombre y ahora menos que estoy casá. -Ese beso que yo a ti te pido ahora y siempre lo tienes que dar y si no con mi mano derecha en tu pecho clavaré un puñal. -Si tú tienes puñal de dos filos y con él me atraviesas el alma, al morir en tus brazos queridos muere el ángel que está en mis entrañas. -Ese ángel no tiene la culpa, que es un ángel bendito e inocente, la que tiene la culpa eres tú y por eso te voy a dar la muerte. A los diez días ha nacido una niña más hermosa que el rayo del Sol y Rosita se llama la niña, como quiso mamá se llamó. Ha nacido el ángel del alma, a matarte que ya vengo yo. -Si me matas que yo no lo sienta ni mi esposo querido se entere. Si mi esposo querido se entera en el alto te dará la muerte. 106 Y una mañana temprano de sol que brilla en el cielo he visto a una hermosa niña tres veces en el cementerio. Como era pequeña y sola no me pude contener: -¿Para quién son esas flores, pequeña? -le pregunté. -Son para mi amada madre, para mi padre también, que vivo sola en el mundo, que huérfana me quedé. Huérfana de madre y padre, sin cariño y sin hogar, yo vivo sola en el mundo, voy buscando caridad. La otra noche soñaba que con mi madre dormía. ¡Ay, qué sueño tan feliz! Tenía en el alma mía las flores del campo santo, con lágrimas las regué, viendo que no las encontraba de rodillas me hinqué: Adiós, madre de mi alma, madre de mi corazón, adiós para siempre, madre adiós para siempre, adiós. Disponível em <http://www.weblitoral.com/archivo%20de%20textos/palabras_mayores/romances-ehistorias-decordel/copy45_of_la-que-no-sabia-remendar>. Acesso em 10/06/2007. 107 ANEXO F A canção Arre borriquito apresenta a particularidade de que, ao cantar, o adulto coloca o bebê sobre as pernas e o balança ao ritmo da música. Há variedades de versões da canção, que podem ser natalinas ou não, o que deixa claro seu caráter oral. ARRE BORRIQUITO Arre borriquito, Arre burro, arre, Are borriquito que llegamos tarde. Arre borriquito, Vamos “pa” Jeréz, A comer las peras que están como miel. Arre borriquito, Vamos “pa” Sanlúcar, A comer las peras Que están como azúcar. Arre borriquito, Vamos “pa” Jerez, Que mañana es fiesta y al otro también. Disponível em <http://www.weblitoral.com/archivo%20de%20textos/palabras_mayores/romances-ehistorias-decordel/copy45_of_la-que-no-sabia-remendar>. Acesso em 10/06/2007. Arre borriquito Venid, pastorcitos, venid a adorar al Rey de los cielos que ha nacido ya. Arre borriquito, vamos a Belén a ver a la Virgen y al niño también. Rústico techo abrigo le da, por cuna un pesebre por templo un portal. Arre borriquito, vamos a Belén que mañana es fiesta 108 y al otro también. Esta noche con la luna y mañana con el sol a Belén caminaremos a ver pronto al Niño Dios. Vamos, pastores, vamos, vamos a Belén, a ver a ese Niño las glorias del Edén. Disponível em <http://www.guiainfantil.com/serviios/musica/villan/arre.htm>. Acesso em 21/12/2007. ARRE BORRIQUITO Arre, borriquito. Arre, burro, arre. Vamos más deprisa que llegamos tarde. Arre, borriquito. Vamos a Belén que mañana es fiesta y al otro también. Ha nacido el Niño Dios en un portal miserable para enseñar a los hombres la humildad de su linaje. Arre, borriquito..... En el cielo hay una estrella que a los Reyes Magos guía hacia Belén para ver al Dios hijo de María. Arre, borriquito..... Hacia el portal de Belén se dirige un pastorcito cantando de esta manera para alegrar el camino. Arre, borriquito..... En la puerta de mi casa voy a poner un petardo, "pa" reírme del que venga a pedir el aguinaldo, pues si voy a dar a todos, porque hoy es Nochebuena, pronto tendría que estar pidiendo de puerta en puerta. Arre borriquito..... Disponível em <http://webpages.ull.es/users/joramas/villancicos.htm#tres>. Acesso em 21/12/2007. 109 ANEXO G Cartaz do filme La Guerra de Papá, de 1977. Uma adaptação para o cinema do romance El príncipe destronado. Produção de José Frade e direção de Antonio Mercero. Disponível em <http://.nuestrocine.com/grancartel/carl....> Acesso em 20/01/2008. 110 ANEXO H Capa da primeira publicação de El príncipe destronado, em dezembro de 1973, pela Ediciones Destino S/A. Publicação em outros países: Dinamarca Edit. ASCHENHOUG DANSK FORLAG (1984) Edit. GRAFISK FORLAG (1992) Rusia Edit. LITERATURE MAGAZINE (1982) Yugoslavia Edit. NOLIT (1984) Edit. JUGOSLOVENSKA AUTORSKA (1989) Francia Edit. EDITIONS VERDIER (1990) Disponível em <http://canales.nortecastilla.es/delibes/biblio/biblionovelas.htm>. Acesso em 20/01/2008. Livros Grátis ( http://www.livrosgratis.com.br ) Milhares de Livros para Download: Baixar livros de Administração Baixar livros de Agronomia Baixar livros de Arquitetura Baixar livros de Artes Baixar livros de Astronomia Baixar livros de Biologia Geral Baixar livros de Ciência da Computação Baixar livros de Ciência da Informação Baixar livros de Ciência Política Baixar livros de Ciências da Saúde Baixar livros de Comunicação Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE Baixar livros de Defesa civil Baixar livros de Direito Baixar livros de Direitos humanos Baixar livros de Economia Baixar livros de Economia Doméstica Baixar livros de Educação Baixar livros de Educação - Trânsito Baixar livros de Educação Física Baixar livros de Engenharia Aeroespacial Baixar livros de Farmácia Baixar livros de Filosofia Baixar livros de Física Baixar livros de Geociências Baixar livros de Geografia Baixar livros de História Baixar livros de Línguas Baixar livros de Literatura Baixar livros de Literatura de Cordel Baixar livros de Literatura Infantil Baixar livros de Matemática Baixar livros de Medicina Baixar livros de Medicina Veterinária Baixar livros de Meio Ambiente Baixar livros de Meteorologia Baixar Monografias e TCC Baixar livros Multidisciplinar Baixar livros de Música Baixar livros de Psicologia Baixar livros de Química Baixar livros de Saúde Coletiva Baixar livros de Serviço Social Baixar livros de Sociologia Baixar livros de Teologia Baixar livros de Trabalho Baixar livros de Turismo