ESTUDO DO MEIO – 2º ANO Um vale, dois tempos: Vale do Paraíba

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ESTUDO DO MEIO – 2º ANO
Um vale, dois tempos:
Vale do Paraíba –
do café à indústria
TEXTOS DE APOIO
Texto 1
Cidades Mortas (1906) – Monteiro Lobato
A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ora em via
disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é um desconsolo, ressurge de tantas
ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a
um grupo de fatores sempre os mesmos, reflui com eles duma região para outra. Nilo emite
peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de
taperas.
A uberdade nativa do solo é o fator que o condiciona. Mal a uberdade se esvai, pela
reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o
desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital — e com ele os homens fortes, aptos
para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.
Em São Paulo temos perfeito exemplo disso na depressão profunda que entorpece boa
parte do chamado Norte.
Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.
Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na
mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes.
Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja sequer uma carroça; de há
muito, em matéria de rodas, se voltou aos rodízios desse rechinante símbolo do viver colonial
— o carro de boi. Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares,
sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiúna; casarões que lembram ossaturas de
megatérios donde as carnes, o sangue, a vida para sempre refugiram.
Vivem dentro, mesquinhamente, vergônteas mortiças de famílias fidalgas, de boa prosápia
entroncada na nobiliarquia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem da
pátina dos anos e cujo estuque, lagarteado de fendas, esboroa à força de goteiras, paira o bafio
da morte. Há nas paredes quadros antigos, crayons, figurando efígies de capitães-mores de
barba em colar. Há sobre os aparadores Luís XV brônzeos candelabros de dezoito velas,
esverdecidos de azinhavre. Mas nem se acendem as velas, nem se guardam os nomes dos
enquadrados – e por tudo se agruma o bolor râncido da velhice.
São os palácios mortos da cidade morta.
Avultam em número, nas ruas centrais, casas sem janelas, só portas, três e quatro: antigos
armazéns hoje fechados, porque o comércio desertou também. Em certa praça vazia, vestígios
vagos de “monumento” de vulto: o antigo teatro — um teatro onde já ressoou a voz da Rosina
Stolze, da Candiani...
Não há na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram-se estes remendões;
aqueles, meros demolidores — tanto vai da última construção. A tarefa se lhes resume em
especar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remendá-las mal e mal. Um dia
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metem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil-réis o milheiro — e fica à inclemência do
tempo o encargo de aluir o resto.
Os ricos são dois ou três forretas, coronéis da Briosa, com cem apólices a render no Rio; e
os sinecuristas acarrapatados ao orçamento: juiz, coletor, delegado. O resto é a “mob”: velhos
mestiços de miserável descendência, roídos de opilação e álcool; famílias decaídas, a viverem
misteriosamente umas, outras à custa do parco auxílio enviado de fora por um filho mais
audacioso que emigrou. “Boa gente”, que vive de aparas.
Da geração nova, os rapazes debandam cedo, quase meninos ainda; só ficam as moças —
sempre fincadas de cotovelos à janela, negaceando um marido que é um mito em terra assim,
donde os casadouros fogem. Pescam, às vezes, as mais jeitosas, o seu promotorzinho, o seu
delegadozinho de carreira — e o caso vira prodigioso acontecimento histórico, criador de
lendas.
Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio — magro estafeta
bifurcado em pontiagudas éguas pisadas, em eterno ir-e-vir com duas malas postais à garupa,
murchas como figos secos.
Até o ar é próprio; não vibram nele fonfons de auto, nem cornetas de bicicletas, nem
campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plás-plás
de mascates sírios. Só os velhos sons coloniais — o sino, o chilreio das andorinhas na torre da
igreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que em
bando rumoroso cruzam e recruzam o céu.
Isso, nas cidades. No campo não é menor a desolação. Léguas a fio se sucedem de
morraria áspera, onde reinam soberanos a saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela
passou o Café, como um Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e
mandada para fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada
em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à virgindade
da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na circulação europeia por
mão de herdeiros dissipados.
À mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, ressentida, vinga-se agora,
enclausurando-se numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições
perdidas.
Raro é o casebre de palha que fumega e entremostra em redor o quartelzinho de cana, a
rocinha de mandioca. Na mor parte os escassíssimos existentes, descolmados pelas ventanias,
esburaquentos, afestoam-se do melão-de-são-caetano — a hera rústica das nossas ruínas.
As fazendas são Escoriais de soberbo aspecto vistas de longe, entristecedoras quando se
lhes chega ao pé. Ladeando a Casa-Grande, senzalas vazias e terreiros de pedra com viçosas
guanxumas nos interstícios. O dono está ausente. Mora no Rio, em São Paulo, na Europa.
Cafezais extintos. Agregados dispersos. Subsistem unicamente, corno lagartixas na pedra, um
pugilo de caboclos opilados, de esclerótica biliosa, inermes, incapazes de fecundar a terra,
incapazes de abandonar a querência, verdadeiros vegetais de carne que não florescem nem
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frutificam — a fauna cadavérica de última fase a roer os derradeiros capões de café
escondidos nos grotões.
— Aqui foi o Breves. Colhia oitenta mil arrobas!...
A gente olha assombrada na direção que o dedo cicerone aponta. Nada mais!... A mesma
morraria nua, a mesma saúva, o mesmo sapé de sempre. De banda a banda, o deserto — o
tremendo deserto que o Átila Café criou.
Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente ao caminho, uma ave branca pousada no
topo dum espeque. Aproxima-se devagar ao chouto rítmico do cavalo; a ave esquisita não dá
sinais de vida; permanece imóvel. Chega-se inda mais, franze a testa, apura a vista. Não é ave,
é um objeto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dali, rumo a
Oeste, esqueceu de levar consigo aquele isolador de fios telegráficos... E lá ficará ele, atestando
nitidamente uma grandeza morta, até que decorram os muitos decênios necessários para que
a ruína consuma o rijo poste de “candeia” ao qual o amarraram um dia — no tempo feliz em
que Ribeirão Preto era ali...
(LOBATO, Monteiro. Cidades mortas. São Paulo: Globo, 2007. p. 21-24.)
Texto 2
O Café Desaloja a Floresta
Consolemo-nos com a consideração de que a terra foi dada ao homem,
que as matas caem para estender o domínio da civilização.
(Theodor Peckholt, 1871.)
“As políticas sociais exigidas pelos grandes proprietários de terra do Brasil
independente e imperial garantiam-lhes uma força de trabalho e os credenciavam a
qualquer porção de terra pública que quisessem chamar de sua. Essas políticas não
podiam garantir, no entanto, que o emprego dos recursos assim assegurados gerassem
capital; na verdade, esse monopólio autoritário em grande parte frustraria sua utilização
eficiente. No interior, havia vastas posses, habitadas por esfomeados e controlada por
sátrapas cuja reserva de capital consistia em bois e porcos e cujas habitações, vestuário e
conhecimento do mundo eram praticamente indiscerníveis dos de seus camponeses e
escravos. A independência não exorcizara uma realidade colonial crítica: o capital para
transformar essas terras estéreis em riqueza e poder efetivos tinha de vir do estrangeiro,
através da venda de mercadorias apreciadas pelos países mais ricos. Quase tudo o que
favoreceria tal fim precisava ser obtido na Europa. Desta vinha também o luxo que
significava status para uma elite jovem que, durante quinze anos, observara de perto o seu
consumo por parte de seus mentores e mestres da realeza.
(...)
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Os proprietários de terra ou o governo tampouco se mostravam capazes de avançar na
aclimatação e no desenvolvimento das culturas tropicais que tanta atenção mereceram
dos botânicos brasileiros e portugueses. O Jardim Botânico do Rio de Janeiro e o museu de
história natural rapidamente foram relegados ao quase abandono. Observadores
estrangeiros notavam, consternados, que o Jardim Botânico, enriquecido com tantas
espécies exóticas, não passava de um parque público no qual não se desenvolvia mais
trabalho botânico algum. É sintomática da mudança de concepção das novas autoridades
uma ordem, em nome do imperador recém-aclamado, escrita por José Bonifácio de
Andrada e Silva, agora não mais um cientista praticante, mas o conselheiro político mais
próximo de D. Pedro. Requisitava ao encarregado do museu os espécimes embalsamados
de tucanos, ‘aqueles que têm as gargantas bem amarelas’, deixando apenas dois para
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exibição, de sorte que se pudesse confeccionar um manto emplumado a tempo da
coroação. Os dignitários estrangeiros testemunharam assim o intento exótico da nova
dinastia de saquear seus recursos nativos para consolidar seu poder. O manto permanece
em exibição no museu imperial de Petrópolis, um atestado da prioridade da nação em
relação à natureza.
(...)
A região da Mata Atlântica experimentou por certo tempo o renascimento da
exportação de sua cultura mais tradicional e menos aprimorada, a cana-de-açúcar.
As plantações de cana-de-açúcar do Rio de Janeiro haviam entrado em declínio no início do
século XVIII com a descoberta do ouro, o que aumentou o custo da reposição de sua força
de trabalho escrava. O açúcar brasileiro perdera mercados da Europa setentrional quando
os holandeses, franceses e ingleses estabeleceram plantações em suas colônias insulares
no final do século XVII. Assim, as exportações do açúcar brasileiro sofreram múltiplos
desfalques, atingindo a média de pouco mais de 10 mil toneladas anuais nos anos de 1750,
pouco mais da metade da média de cinquenta anos antes. As exportações voltaram a
crescer no final do século, à medida que a revolução e o conflito mercantilista assolavam o
Caribe e o oceano Índico, elevando os preços e atraindo os comerciantes dispostos a correr
os riscos aumentados do comércio em tempo de guerra. Em 1800, o Brasil vendeu cerca de
24 mil toneladas de açúcar.
A cana-de-açúcar era cultivada em quase todo povoado neoeuropeu na região da Mata
Atlântica porque o mascavo — açúcar não refinado, saturado de melaço — era um gênero
básico e porque a garapa era a matéria-prima para a destilação da aguardente. Centenas,
talvez milhares, de pequenos engenhos primitivos atendiam a uma demanda interna
consideravelmente maior que a do mercado ultramarino. Enquanto cultura de plantation,
produzida em larga escala para exportação, o açúcar era importante em núcleos dispersos
ao longo das baixadas costeiras úmidas, de Natal ao Rio de Janeiro. O plantio comercial do
açúcar tornou-se lucrativo também, marginalmente, no planalto paulista, após o
calçamento, em 1792, da trilha de mulas que descia a escarpa costeira até Santos. Alguns
anos depois, autorizava-se a exportação direta a partir daquele porto. A produção paulista
continuou a se expandir; em 1836, havia 558 usinas em operação.
(...)
A área montanhosa acima da cidade imperial do Rio de Janeiro havia escapado ao
plantio comercial da cana-de-açúcar, porque possuía apenas faixas isoladas de terras de
aluvião adequadas à cultura. Mas outro produto tropical de plantation, que acenava para
os proprietários de terra nessa zona problemática e ainda densamente florestada com a
perspectiva de ganhos muito maiores, estava atraindo sua atenção. O mesmo recuo da
concorrência colonial estrangeira, que estimulou a cana-de-açúcar, também incentivara
uns poucos proprietários a experimentar uma planta quase desprezada pelos funcionários
da Coroa e seus assistentes botânicos. Essa cultura nova, o café, tornar-se-ia, nas primeiras
décadas do império, a base da economia exportadora do Rio de Janeiro. O café, ou Coffea
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arabica, uma pequena árvore da família das rubiáceas, nativa do sub-bosque da floresta do
sudoeste do planalto da Etiópia, gerava as sementes carregadas de cafeína tão apreciadas
pelos moradores urbanos da Europa. Seu oportuno surgimento resolveria de modo
brilhante a busca de um produto que o novo império poderia trocar pelas manufaturas e
luxos da Europa. Tal como o século XVIII havia sido para o Brasil o século do ouro, o século
XIX seria o século do café. Para a Mata Atlântica, entretanto, a introdução dessa planta
exótica significaria uma ameaça mais intensa que qualquer outro evento dos trezentos
anos anteriores.
A chegada do café à região do Rio de Janeiro é obscura. Séculos antes, a planta havia
sido transferida da Etiópia para o Iêmen, onde passou a ser cultivada comercialmente.
Todo o café posteriormente introduzido no Sul e Sudeste da Ásia e no Novo Mundo
derivou de duas variedades do Iêmen, atualmente conhecidas como ‘típica’ e ‘Bourbon’.
Sementes da variedade típica podem ter chegado ao Brasil no final dos anos de 1600,
talvez via Índia, mas o produto não era então exportado. Uma possível segunda introdução
ocorreu em 1727: os franceses haviam recebido café dos holandeses e o transferiram para
a Guiana Francesa. Um oficial da armada brasileira, para lá enviado a fim de verificar a
situação da fronteira, carregara sub-repticiamente para Belém do Pará um punhado de
sementes geradas por essas árvores. Ali e no vizinho Maranhão, logo se tornou um
produto comercial modesto. Um juiz servindo no Maranhão pode ter trazido as primeiras
mudas para o Rio de Janeiro em 1752 ou 1762. Foram conservadas no horto do mosteiro
dos capuchinhos, mas aparentemente eram consideradas apenas plantas ornamentais.
Quando o capitão e explorador James Cook visitou o Rio de Janeiro em 1768, descobriu
que a cidade ainda estava importando café de Lisboa.
Com a formação da Academia Fluviense em 1772, Johan Hopman, um holandês exilado
que mantinha um horto, começou a distribuir as sementes dessas árvores e instruções
sobre seu cultivo. Os primeiros que as receberam podem ter sido dois padres que
possuíam fazendas nos subúrbios. Em 1779, quando o vice-rei Lavradio entregou seu
cargo, o café ainda era tão insignificante que ele o desconsiderou em seu relatório final,
muito embora mencionasse diversas outras culturas até menores. Enquanto isso, os
franceses haviam adquirido a outra variedade do Iêmen e trouxeram-na para a ilha de
Reunião — na época, chamada Bourbon, no oceano Índico. Essa variedade também chegou
ao Brasil em alguma data incerta. Talvez tenha sido a que foi introduzida em 1782, obtida
diretamente de Caiena pelo bispo José Joaquim Justiniano. Em 1790, pouco mais de uma
tonelada de café foi produzida para o mercado local. Naquele ano, sua presença foi notada
por Manuel Ferreira da Câmara, que previu que os solos do Rio de Janeiro ofereceriam a
melhor localização para sua expansão.
Considerando que a planta se tornou e durante um século e meio permaneceu o mais
importante produto básico do Brasil, a reprimenda de Domingos Borges de Barros, escrita
quando o cultivo do café era apenas incipiente, ecoa como lástima:
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‘Não sei por que gastamos tanto tempo, e papel, para saber quem
comandou esta ou aquela batalha, quantos mortos tombaram no campo; e
nada para transmitir para a posteridade os nomes daqueles a quem devemos
esta ou aquela planta; será que, por acaso, é mais interessante saber quem
contribui para a destruição que para a conservação da espécie humana?’
Para os infelizes condenados pela escravidão a cultivar o café por mais setenta anos, os
heróis anônimos que o implantaram teriam parecido tão destrutivos quanto algum
Napoleão ou Wellington. Embora o café definitivamente seja uma planta cujas safras e
qualidade podem ser aumentadas através do tratamento cuidadoso que a propriedade
familiar e os incentivos salariais podem suscitar, no Brasil seria cultivado e comercializado
nas mesmas condições aplicadas ao cultivo da cana-de-açúcar. O café passou a ser o
produto das grandes fazendas doadas em sesmarias, enquanto a corte portuguesa residia
no Rio de Janeiro. Na verdade, o café foi a salvação da aristocracia colonial. Foi também a
salvação da corte imperial cambaleante, que, assediada por rebeliões regionais e
duramente pressionada a pagar pelas burocracias civil e militar necessárias para
consolidar o Estado, foi resgatada pelas receitas do café que afluíam para a alfândega do
Rio de Janeiro. Na época, esse comércio foi totalmente fortuito para o império. Caso as
condições de cultivo tivessem sido mais favoráveis ao café nas distantes e rebeldes cidades
do Recife, Porto Alegre ou São Luís, seriam geradas forças centrífugas que teriam dividido
o Brasil. O império, portanto, mimou os fazendeiros do Rio de Janeiro: eles eram seu grupo
de interesse primordial e seu esteio financeiro.
Por outro lado, as exigências ecológicas dessa planta etíope colocavam os limites físicos
para a reprodução do sistema de plantation e, portanto, para a estabilidade do império.
A planta encontrou na província do Rio de Janeiro um ambiente adequado, se não ideal,
para o seu cultivo. Exige precipitação pesada de chuvas, de 1300 a 1800 milímetros por
ano, porque transpira continuamente e, como uma árvore do sub-bosque, não tem
nenhum mecanismo para armazenar ou conservar umidade. Submetida a uma estação
seca em seu hábitat nativo, retira umidade do solo a profundidades consideráveis — três
metros ou mais — como reserva de água. O café foi a princípio plantado ao longo do litoral,
onde pode ter sofrido um pouco com os ventos salinos oceânicos. Logo foi transferido para
o planalto um pouco mais fresco, onde se dispõe de uma temperatura ótima de 20º a 24ºC.
A estação seca mais pronunciada do interior também é favorável porque o início das
chuvas é o principal indutor da florescência e porque a floração promove o
amadurecimento simultâneo dos frutos. A estação seca, de maio até agosto, quando se
realiza a colheita, oferece outra vantagem competitiva, porque facilita a secagem dos grãos
ao ar livre, um processo que, em outras circunstâncias, teria de ser realizado em fornos a
lenha.
O café é mesial, isto é, exige solos que não sejam nem encharcados nem secos. Nas
áreas altas do Rio de Janeiro, os fundos dos vales eram fracamente drenados e, dessa
forma, o plantio tinha de ser feito em encostas íngremes e desencorajantes — os ‘mares de
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morros’ ou ‘meias-laranjas’ da paisagem física regional. A Mata Atlântica estabilizara-se
nessas áreas, ao longo de milhares de anos de incipiente intervenção humana, um solo
raso mas moderadamente fértil e um tanto ácido. Esse material e a biomassa da própria
floresta podiam, por um certo tempo, suprir os nutrientes essenciais.
Era precisamente este o perigo para a Mata Atlântica: acreditava-se que o café tinha de
ser plantado em solo coberto por floresta "virgem". O capital e o trabalho eram escassos
demais para gastar no plantio em solos menos férteis. O café é uma planta perene — leva
quatro anos para atingir a maturidade e pode permanecer produtiva por trinta anos — e
assim podia-se imaginar que, uma vez implantado, representaria um regime agrícola de
perspectivas estáveis e conservadoras. Mas não era assim. Nas plantações do Rio de
Janeiro, plantações velhas não eram replantadas, mas abandonadas, e novas faixas de
floresta primária eram então limpas para manter a produção. O café avançou, portanto,
pelas terras altas, de geração para geração, nada deixando em seu rastro além de
montanhas desnudadas.
(...)
A escolha do terreno onde plantar, enquanto ainda existisse floresta primária, era uma
questão de mero empirismo. Uma patrulha de reconhecimento foi encarregada de localizar
espécies consideradas como ‘padrões’ indicadores dos melhores locais para os cafezais.
O manual dos agricultores, de Lacerda Werneck, com base em sua própria experiência,
apresenta reflexões sobre as práticas dos fazendeiros mais representativos e
aparentemente foi o mais lido, recebendo duas outras edições após sua primeira
publicação, em 1847. Nesse manual, ele aconselhava que as encostas dos montes fossem
observadas na primavera, quando muitas árvores da floresta estão em flor. Onde se visse o
jacarandatã ou outras espécies determinadas — ele relacionava dezesseis —, a terra era
de primeira qualidade. Todas eram, como o café, mesiais e eram encontradas apenas na
floresta primária. Havia autores, contudo, que arrolavam outras árvores, e nem mesmo
Lacerda Werneck acumulara experiência suficiente para ter certeza de que as condições de
crescimento do café se equiparavam exatamente às do jacarandatã ou de algum outro
padrão que ele mencionava. Lacerda Werneck também desaconselhava o plantio em
encostas voltadas para o sul, que ele considerava frios demais; outros autores, com menos
lógica, rejeitavam encostas voltadas para leste ou oeste. A espessura da camada de húmus
era encarada como sinal promissor: supunha-se que ela devia ser suficiente para um
homem afundar nela até o meio da barriga da perna. (Fica-se a imaginar se alguma das
matas supostamente ‘primárias’ encontradas na região ainda apresentaria húmus espesso
o bastante para se afundar nele até o meio da perna, quanto mais as ‘quatro palmas’ —
88 cm — mencionadas por Inácio Accioli de Vasconcellos; talvez os pesquisadores
contemporâneos estejam ignorando um sinal claro da ação humana anterior nessas áreas.)
É possível que os fazendeiros novatos ignorassem mesmo esses poucos conselhos e que
aprendessem a partir da experiência, uma escola que custava para a Mata Atlântica ainda
mais caro que aqueles conselhos.
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Em outros lugares e climas, o café era cultivado na sombra, uma prática que imita seu
hábitat original e que parece melhorar sua qualidade. No Brasil, em vez de preservar parte
do dossel nativo, a floresta inteira era destruída na preparação para o plantio — salvo,
aqui e acolá, um pau-d’alho. Essas árvores eram poupadas, porque eram consideradas o
mais seguro de todos os padrões e, portanto, exibidas para um comprador potencial da
fazenda como prova da produtividade de seus cafezais. (E quando os cafezais se
arruinavam e eram abandonados, os paus-d’alho sobreviventes eram um conforto para o
gado, porque transpiram uma secreção aromática que repele os insetos.) Não está claro se
o desprezo pelo café sombreado foi uma inovação deliberada. Aparentemente, os
primeiros fazendeiros tinham pouca noção de como se plantava o café em outros lugares e
simplesmente aplicavam técnicas tradicionais de derrubada e queimada em uma escala
maior e ainda mais drástica. Não foi senão muito depois de o cultivo do café no vale do
Paraíba ter entrado em decadência que se levantou seriamente a questão de que o
sombreamento poderia ter sido uma técnica superior. Por certo, a derrubada e a queimada
eram a maneira mais barata de iniciar a produção, e isso talvez bastasse para justificá-las.
(...)
O terreno assim preparado pela mão purificadora do homem assemelhava-se um
pouco a um moderno campo de batalha, enegrecido, fumegante e desolado. Muitas árvores
tombadas tinham sido apenas parcialmente incineradas; eram deixadas a apodrecer com
seus tocos ainda enraizados e os troncos caídos ao longo da linha da encosta. Então as
turmas encarregadas do plantio procediam da maneira obviamente menos estafante,
trabalhando morro acima. Assim, os pés de café eram alinhados da forma mais desastrosa
imaginável. As fileiras se desviavam ao subir as encostas, orientadas pelas formas dos
troncos caídos. Descendo as fileiras, as chuvas cavavam sulcos, formando gargantas entre
elas, carregando o húmus e a camada superficial do solo com rapidez e eficiência. Nunca
houve a prática de girar os troncos para formar barreiras contra a erosão. Ao contrário, os
troncos caídos transversalmente eram receados e evitados porque, quando os tocos e
raízes que os mantinham no lugar apodreciam, sabia-se que rolavam morro abaixo,
arruinando pés de café e esmagando trabalhadores que por azar estivessem no caminho.
O exilado francês Jousselandière afirmou que oito dos escravos de um amigo seu tinham
sido mortos por um único tronco que havia rolado. Só depois que as chuvas começavam a
expor as raízes é que se faziam pequenos esforços para fazer taludes para impedir o
deslizamento.
(...)
Os proprietários de fazendas não dispunham dos recursos para colocar de imediato
todas as suas propriedades na produção de café e, assim, o vale do Paraíba se tornou uma
colcha de retalhos de cafezais e floresta primária à medida que, em primeiro lugar, as
encostas voltadas para o norte e, depois, os locais menos favoráveis, eram queimados e
plantados. O rápido envelhecimento dos pés em seus poleiros precários aumentava o valor
da floresta remanescente: ‘A riqueza de uma plantação consiste, portanto, menos na
grande extensão de seus cafezais que nas terras disponíveis para o plantio futuro da
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rubiácea’, como afirmou o naturalista Hermann von Burmeister. Os principiantes no
negócio do café preferiam comprar terras mais acima do vale, ao longo da fronteira da
província de São Paulo, ou na zona da Mata, a zona de florestas de Minas Gerais que mais
recentemente havia sido despojada de sua população indígena, onde ficavam as nascentes
dos rios Doce, Pomba e das Mortes. O café chegou um pouco mais tarde ao Espírito Santo,
onde as condições de solo e crescimento eram menos favoráveis. Assim, o cultivo do café
espalhou-se de modo extensivo e uma parcela considerável da região montanhosa da Mata
Atlântica foi transformada em um mar encapelado de pés de café.
(...)
O primeiro século do cultivo comercial do café na região da Mata Atlântica — 1788 a
1888 — foi também o último da escravidão. Durante esse período, o Brasil produziu cerca
de 10 milhões de toneladas de café, quase todas passando pelos portos do Rio de Janeiro e
Santos. Supondo-se que setecentos quilos fossem o rendimento médio por hectare, e
supondo-se que o cafezal médio fosse economicamente produtivo durante vinte anos,
então foi necessário desmatar para esse fim uns 7200 km2 de floresta primária, o
equivalente a trezentos milhões de toneladas de biomassa florestal consumida em fumaça.
Essa área representava aproximadamente 18% da superfície da província do Rio de
Janeiro, onde quatro quintos desse café foram plantados. A essa área deve-se acrescentar a
floresta derrubada para subsistência da força de trabalho escrava, que deve ter chegado,
em média, a 140 mil pessoas. Uma parcela desconhecida de roças de subsistência, talvez
nas encostas voltadas para o sul, pode ter sido coberta de floresta primária.
Na época do colapso da escravidão, as terras consideradas adequadas para o cultivo de
café estavam quase exauridas no Rio de Janeiro. O quanto seriam biologicamente únicas
essas zonas da Mata Atlântica? Infelizmente, não se trata de uma questão que possa ser
objeto de investigação retrospectiva, embora seja historicamente verificável que poucas
de suas espécies foram coletadas antes de virarem fumaça. Auguste de Saint-Hilaire
achava que a zona ocidental do Vale do Paraíba abrigava a vegetação mais diversificada
que ele vira em todas as suas viagens pela Mata Atlântica. Bem se pode perguntar,
portanto, se algumas das criaturas, especialmente do dossel, que davam sombra a ele e a
seus colegas cientistas – mas que eles não dispunham de meios para investigar –, já não
estariam desaparecendo para sempre. Parece ao menos possível que as extinções eram
parte do preço para se levar 10 milhões de toneladas de café ao mercado, mesmo que as
espécies cujos representantes estão armazenados em frascos de conserva e prensadas em
lâminas no Jardin des Plantes e no Bayerische Botanische Gesellschaft tenham até agora
sobrevivido. Esses primeiros investigadores não dispunham nem do tempo nem dos
recursos para fazer mais que recolher amostras das formas de vida das florestas que
atravessavam. Quase todos eles se mantiveram nas mesmas trilhas de mulas, na maioria
evitavam as florestas altas, que eram demasiado impenetráveis e problemáticas, e suas
expedições foram realizadas após já iniciado o assalto à floresta. Entre os botânicos,
apenas o brasileiro Francisco Freire Alemão aproveitou a oportunidade apresentada pela
destruição da floresta: corria de uma equipe de derrubada para outra, para examinar as
gigantes abatidas que estavam sendo previamente retiradas para depois queimar as
restantes. Mas ele era apenas um indivíduo, que mal dava conta de estudar as árvores em
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si, quanto mais suas epífitas e parasitas. Além disso, carecia de fundos para coletar e
armazenar tudo que encontrou ou para publicar suas anotações.
(...)
As receitas do café, arrecadadas nas alfândegas do governo imperial, foram em grande
parte gastas na rede ferroviária que levava o café para o mercado; parte considerável
desse investimento foi antieconômico, uma vez que faliram as fazendas de café por ele
atendidas. A maior parte do restante desses recursos se destinou ao pagamento de salários
do serviço público civil e militar, que, ao final do ciclo do café, incluía muitos herdeiros das
famílias das fazendas decadentes. Quando, à medida que a economia do Vale do Paraíba
cambaleava, o império teve dificuldades em manter os padrões de vida dos fazendeiros,
estes se mostraram ingratos e se pronunciaram em favor de uma república. O café atraiu
algum capital estrangeiro para a área, mas quase todo ele chegou em apoio direto ou
indireto do comércio em si, oferecido apenas na perspectiva de retornos especulativos e
de curto prazo que fossem maiores que os obtidos nos países de origem.
Essas reflexões sugerem que uma política de recursos voltada para a estabilidade e a
renovação destes poderia ter atendido melhor ao bem-estar político e econômico e de
mais longo prazo dos habitantes do sudeste da Mata Atlântica, inclusive da própria classe
superior proprietária de terras. Um século depois da introdução do café, Augusto Ruschi, o
grande naturalista e ambientalista do Espírito Santo, lamentava o resultado: ‘Jamais
restabeleceremos o clima e as condições bióticas do solo que possuíamos.’ Ainda que fosse
do café ‘que a vida de nossa gente depende; dele depende um bom ou mau governo’, ainda
assim, vaticinava Ruschi, ‘daríamos tudo que desfrutamos em decorrência desta
monocultura do café para ficar livres deste intruso indesejável’. As características da
sociedade pós-colonial — sua avidez pelo lucro imediato, concentração de riqueza, fixação
na vigilância e no controle, empirismo extremo e total desrespeito por aquilo que apenas
cem anos depois uns poucos iluminados lembrariam como riqueza natural inestimável —
evocam instantaneamente o quanto é fútil levantar agora tais objeções quando o feito está
consumado e nenhum traço da floresta restou sobre os morros secos e amarelados do vale
do Paraíba.
Nós que nos reportamos a esses eventos com uma perspectiva de mais de um século
podemos imaginar que a ciência moderna concebeu meios mais saudáveis para o mesmo
fim, mas não é bem este o caso. Embora a seleção, reprodução, plantio e cultivo do café
tenham se racionalizado bastante, ainda não existe ferramenta melhor que a caixa de
fósforos para estabelecer uma plantação de café. A floresta primária sobrevivente, na
região da Mata Atlântica ou em qualquer outro lugar no Brasil — ou, de fato, no resto do
mundo tropical —, onde alguma parte dela encontre solos adequados para se disseminar,
continua a ser uma enorme tentação para qualquer um que, mediante um ganho, se
disponha a administrar à espécie humana sua dose diária de cafeína.”
(DEAN, Warren. A ferro e fogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 183-205.)
12
Texto 3
Os interiores do interior cafeeiro: utilidades e confortos domésticos
O processo de enriquecimento do interior paulista possibilitado pela economia cafeeira
acabaria por gerar também uma transformação radical dos objetos que guarneciam as
residências, especialmente os solares rurais e sobrados urbanos dos fazendeiros. Nas
moradias de colonos e nas vilas operárias, tais modificações seriam bem menos sensíveis e,
menos ainda, naquelas dos escravos.
A suntuosidade das residências das elites que, durante todo o período colonial, se pautava
por móveis barrocos e rococós realizados no Brasil com madeira nobres da terra, bem como
por algumas peças de prata e as caríssimas porcelanas chinesas, ou “da Índia”, substituiria
esses itens por uma enxurrada de objetos importados da Europa e por outros produzidos aqui
em sintonia com os novos padrões franceses e ingleses. Da mesma forma que se processara
com a transformação da indumentária, a abertura dos portos, a instalação da Corte no Rio de
Janeiro e os altíssimos lucros proporcionados pelo café introduziriam os costumes
sofisticados das cidades aburguesadas europeias no cotidiano das elites paulistas, reduzindo a
importância das tradições portuguesas e mesmo dos luxos de gosto asiático.
Os altos investimentos necessários à compra de escravos para garantir a produção do café
ou mesmo a expansão de terras agricultáveis retardaram, em muitas regiões paulistas, a
sofisticação dos interiores domésticos. No próprio Vale do Paraíba, a primeira área
cafeicultora em São Paulo, as casas permaneceram despojadas durante quase toda a primeira
metade do século XIX, período em que a inversão de capital na produção limitava qualquer
gasto excessivo.
O naturalista Saint-Hilaire, ao passar por Areias em 1822, não sem espanto constatou,
junto a um compatriota fixado nos arredores da localidade, o paradoxo entre a riqueza do café
e o estilo rústico dos proprietários: “Perguntei ao francês (...) em que empregavam o dinheiro.
‘O Sr. pode ver, respondeu-me, que não é construindo boas casas e mobiliando-as. Comem
arroz e feijão. Vestuário também lhes custa pouco, e nada gastam com a educação dos filhos
(...) É, pois, comprando negros que gastam todas as suas rendas e o aumento da fortuna se
presta muito mais para lhes satisfazer a vaidade do que para lhes aumentar o conforto.”
Saint-Hilaire ainda constatou ali que a casa rural do capitão-mor Domingos da Silva Moreira
mantinha-se sóbria como nos velhos tempos da capitania paulista: “A morada do capitão tem
um pátio pequeno, fechado por uma porteira, ao fundo da qual ficam algumas pequenas
construções. Como em todas as fazendas que vi hoje, a casa do proprietário é baixa, pequena,
coberta de telhas, construída de pau a pique e rebocada de barro. O mobiliário do cômodo em
que fui recebido corresponde em muito ao exterior, e consiste unicamente numa mesa, um
banco, um par de tamboretes e uma pequena cômoda.”
Já ultrapassada a metade do século XIX, o inventário para partilha no processo de
separação conjugal de José Luis Pereira, um dos mais ricos fazendeiros de Queluz, vizinha a
Areias, demonstra o quanto os traços da vida simples dos velhos paulistas ainda resistiam em
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meio à riqueza do café. Os bens arrolados em sua morada resumiam-se a: “582 oitavas de
prata velha, um par de esporas de prata, um relógio patente de Roskler com corrente, uma
bacia de arame usada, 5 arrobas de cobre velho, um tacho pequeno, uma balança grande, uma
cabeçada velha para tropa, uma mesa grande, uma mesa pequenina, uma marquesa francesa,
três marquesas singelas, 6 cadeiras de palhinha.” Era tudo que possuía em bens móveis um
fazendeiro que tinha uma fortuna de 317 contos de réis, suficiente para comprar mais de 200
escravos.”
A sedução pela projeção social possibilitada por salas de receber bem decoradas e pelos
serviços de mesa, café e chá foi, entretanto, deixando para trás os costumes mais sóbrios,
especialmente após a consolidação dos latifúndios e dos grandes plantéis de cativos. As casas
deviam, portanto, corresponder à riqueza dos fazendeiros de café. Pela primeira vez, desde o
início da colonização da América pelos portugueses, as elites paulistas puderam dispor, nas
moradias, de luxo equivalente ou superior ao das residências das ricas famílias nordestinas ou
do Rio de Janeiro.
A sofisticação incipiente das moradas dos fazendeiros do “Quadrilátero do Açúcar” iria ser
generalizada e ampliada para a própria região, para o Vale do Paraíba e mesmo para as áreas
mais longínquas das ferrovias Paulista e Mogiana. As estradas de ferro foram, aliás, grandes
favorecedoras, ao longo da segunda metade do século XIX, dos novos hábitos de consumo, já
que os vagões cargueiros transportavam com muito maior rapidez, e segurança contra danos,
todo tipo de mobiliário, além de serviços de porcelana e cristal. Pode-se, assim, dividir o
século quase que em duas partes distintas, na medida em que as ferrovias agilizaram o
transporte, antes feito pelas lentas tropas de muares. Como havia acontecido com as novas
modas de indumentária, os cafeicultores puderam então conhecer a vasta oferta de objetos
manufaturados ou industrializados não apenas mediante catálogos, mas também pelas
viagens frequentes à capital paulista, à Corte e à Europa.
Tanto nas fazendas quanto nas moradas urbanas, as salas receberam móveis neoclássicos
tardios, inspirados nas linhas napoleônicas e na produção alemã denominada Biedermeier, e,
sobretudo, a grande marca dos móveis de salão do século XIX: as cadeiras, poltronas e sofás de
palhinha. Substituindo os duros assentos de sola ou os de damasco de seda carmim comuns
no período colonial, os assentos e encostos de medalhão oval com as finas tiras de palha
trançada tornavam os móveis mais leves, permitindo rearranjos para bailes ou flexibilizando a
disposição para recepções mais amplas ou íntimas. O jacarandá continuou a ser uma das
madeiras preferidas para esse mobiliário, mas a caviúna e a madeira de óleo tornaram-se
grandes concorrentes.
Os móveis de palhinha, inspirados nas peças francesas dos reinados de Luís Felipe e
Napoleão III, foram aqueles de maior impacto no mobiliário brasileiro do século XIX, incluindo
o do interior paulista. São incontáveis as peças que permanecem nas coleções familiares ou
em museus do interior e da capital, bem como as menções presentes nos inventários post
mortem depositados nos cartórios judiciais. No que tange à região de Campinas, são
exemplares importantes dos móveis de salão em palhinha aqueles que pertenceram aos
barões de Ataliba Nogueira, de Anhumas, ao marquês de Três Rios e à família Camargo
Andrade, conservados em mãos de descendentes. No Bananal, conjuntos expressivos estão
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entre os descendentes de Píndaro de Carvalho Rodrigues e Maria Luiza Vallim Fagundes
Porto, e em Itu, no acervo do Museu Republicano.
Devem-se destacar também os conjuntos de móveis de receber tanto da Fazenda do
Pinhal, em São Carlos, quanto do Solar dos Camargo, em Guaratinguetá. As duas residências
representam um caso raro de conservação não apenas do mobiliário familiar, mas também de
enfeites, louças, cristais, imagens religiosas, utensílios de cozinha, documentos oficiais, cartas
e fotografias, que foram meticulosamente guardados pelos descendentes, constituindo um
legado inestimável da ambientação doméstica do século XIX.
O missionário norte-americano Daniel Kidder, que passou pela cidade de São Paulo em
1839, descreveu os novos móveis leves e sua grande difusão nas ricas moradias locais, um
padrão que se repetia, aliás, nos salões das elites no interior: “A mobília da sala de visitas
varia de conformidade com o maior ou menor luxo da casa, mas o que se encontra em todas
elas é um sofá, com assento de palhinha e três ou quatro cadeiras dispostas em alas
rigorosamente paralelas que, partindo de cada extremidade da primeira peça, projetam-se em
direção ao meio da sala. Quando há visitas, as senhoras sentam-se nos sofás e os cavalheiros,
nas cadeiras”.
Outros móveis característicos do século XIX e que alcançaram as primeiras décadas do
século XX são os de madeira encurvada, chamados comumente de Thonet. Produzidos em
grande quantidade na Áustria e posteriormente no Rio de Janeiro, tiveram grande
popularidade no Brasil, para o que favorecia o preço mais acessível, apesar da importação. Ao
contrário dos móveis citados anteriormente, os móveis Thonet usavam madeiras de baixa
densidade que permitiam vergamento, o que os tornava muito leves e facilmente
transportáveis. Cadeiras desse padrão, algumas delas com enfeites florais entalhados presos
no alto do encosto, podem ser frequentemente encontradas nas cidades paulistas do café.
Consoles (pequenos aparadores junto à parede) e mesas de centro com tampos de
mármore branco foram igualmente dispostos nas salas de receber e serviram de base para
relógios, estatuetas e vasos de porcelana francesa de Sèvres ou de opalina (vidros
translúcidos coloridos). Mangas de vidro ou cristal cercavam e protegiam as chamas das velas
suportadas por castiçais de prata ou de cristal lapidado. Lustres de metal com grandes
pingentes de cristal lapidado, como aqueles célebres que pendiam nos salões do comendador
Manoel de Aguiar Vallim, no Bananal, hoje pertencentes ao Museu Paulista, espalhavam pelos
salões os reflexos da tênue luz das velas e presidiam aos encontros sociais.
Cristaleiras e aparadores-guarda-louça (as étagères francesas) eram dispostos nas salas
de jantar, guarnecendo as paredes que cercavam as longas mesas para mais de uma dúzia de
pessoas. Pelos vidros nas portas destes últimos, muitas vezes lapidados com delicados
motivos florais ou com o monograma do proprietário, as famílias podiam ostentar a louça e as
porcelanas, bem como os cristais e serviços de chá em prata.
A antiga primazia mantida pela porcelana asiática ao longo da Era Moderna, quando era
importada com enorme custo pelo Ocidente, foi profundamente abalada pela fabricação de
louça e também de porcelana na Europa, compradas a rodo pelos fazendeiros de café.
Deve-se diferenciar a louça da porcelana. A louça, normalmente uma faiança de material
de cor terrosa revestida de uma capa de material vitrificado, pode ser identificada com
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facilidade virando-se a peça para baixo: o ponto onde esta tocava no forno revela o material
interno. Os ingleses especializaram-se na produção de faianças, que chegaram aos milhares no
Brasil durante o século XIX. O tipo mais comum procurava imitar a chamada porcelana de
Macau, isto é, tinha seu revestimento externo nas cores azul e branca, tentando reproduzir os
motivos orientais do produto chinês. O padrão decorativo mais usual foi o chamado “willow”,
popularmente denominado no Brasil de “azul-pombinha”, pois traz no centro da figura duas
aves voando sobre uma paisagem litorânea na qual se passa uma lenda chinesa.
Muito mais cara do que a louça, a porcelana era feita de uma mistura de caulim, uma
substância terrosa esbranquiçada, mais quartzo e feldspato, que endurece quando cozida e se
torna translúcida. Difere, portanto, da faiança, que é opaca. Os fazendeiros de café paulistas
estiveram entre os grandes consumidores brasileiros da porcelana francesa, sobretudo aquela
produzida em Limoges e Paris, bem como de diversas procedências inglesas. Monogramas e
sobretudo os brasões dos paulistas nobilitados por D. Pedro II ornavam os serviços,
compostos de pratos de diversos formatos, travessas, sopeiras, molheiras, serviços de chá e
café, bem como as cremeiras, em que eram servidos os cremes de ovos doces. Muito
disputadas por colecionadores, essas porcelanas indicam claramente a rápida sintonia entre
os hábitos que se queriam implantar nas fazendas e sobrados ou palacetes urbanos com
aqueles costumes das elites europeias dos Oitocentos. Livros de etiqueta e preceptores eram
igualmente demandados pelos fazendeiros paulistas, obrigados a aprender as boas maneiras e
a nova sociabilidade dos salões que a projeção econômica e política exigia dos rudes
produtores de café.
Os cristais foram igualmente consumidos com avidez pelas elites paulistas. As fábricas
francesas Saint-Louis e Baccarat forneceram incontáveis remessas de serviços de mesa, cálices
e licoreiras, bem como as compoteiras e fruteiras ostentadas nos aparadores. Os serviços e
faqueiros de prata francesa Christofie e os objetos decorativos produzidos pela fundição alemã
WMF concorriam com a produção de prateiros brasileiros, portugueses e ingleses e estiveram
também entre os itens mais procurados pelos fazendeiros em fins do século XIX e início do
seguinte. Completava-se, assim, o rol de consumo sofisticado em que se inseriam os
cafeicultores paulistas. Estes acabavam, de certa maneira e guardadas as apropriações
específicas dos objetos, participando de uma comunidade cultural entre as elites ocidentais
antes da Primeira Guerra Mundial.
No que toca à decoração dos salões pertencentes aos cafeicultores, cabe ainda ressaltar a
grande novidade representada pela difusão dos retratos a óleo. Requinte antes possível
apenas às famílias mais ricas da capitania, como era o caso dos já mencionados retratos da
família Souza Queiroz, os fazendeiros puderam obtê-los graças a visitas aos ateliês da Corte e,
sobretudo, aos pintores retratistas que passaram a peregrinar pelas cidades e vilas do café.
Entre estes últimos, encontram-se o inglês James Stwart e também o francês Claude
Barandier, que deixou retratos de Luciano José de Almeida e de sua esposa Maria Joaquina
Sampaio de Almeida, os mais ricos fazendeiros do Bananal, além dos barões de Atibaia e de
Ildefonso Antonio de Morais, moradores em Campinas. Nesta cidade, a mais rica do chamado
Oeste Paulista durante o século XIX, também produziram retratos Joaquim da Rocha Fragoso,
Elpinici Torrini, Emilio Vilanueva, Salvador Scolá e Fernando Piereck.
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Outro gênero de pintura que decorou os salões dos produtores de café foram as paisagens
representando as próprias unidades rurais. As fazendas Antinhas e Boa Vista (Bananal), Sete
Quedas (Campinas), Santa Gertrudes (Rio Claro), Ribeirão Bonito (Jaú) e Pinhal (São Carlos)
estão entre as que foram alvo dos pincéis dos artistas. Essa prática acabou por legar um
importante documento da aparência das sedes e construções anexas, algo bastante relevante
tendo em vista que poucas delas ainda mantêm intactas as senzalas ou mesmo as fileiras de
casas de colonos.
Quanto aos dormitórios, as camas mais requintadas poderiam ser encostadas à parede,
sendo portanto com apenas três faces decoradas com relevos ou marchetarias, ou ainda com
espaldar alto, portando entalhes ornamentais mais comedidos. Urinóis de louça, muitos com
tampa, eram peças frequentes. O restante da mobília de quarto resumia-se a arcas e à
chamada toalete, ou lavatório, composto de uma cômoda ou mesa de encostar com tampo de
pedra e um espelho. Já em fins do século XIX, começavam a aparecer os armários guardaroupas, mancebos, penteadeiras, cômodas e também os psichês, grandes espelhos encaixados
em um móvel de apoio.
As cozinhas eram ainda dotadas de fogões a lenha, sendo os de ferro fundido bastante
tardios. O equipamento para o preparo de alimentos compunha-se de tachos, panelas,
caçarolas, frigideiras, chocolateiras e caldeirões, entre outros, em geral fabricados em ferro e
cobre. Panelas de barro e gamelas, por serem mais simples e de custo ínfimo, nem sempre
constavam nos inventários, mas é de supor que estivessem presentes nas moradas mais ricas,
ainda que, obviamente, fossem mais comuns nas mais modestas.
As moradias populares, aliás, pouco puderam acompanhar as modernidades dos
fazendeiros e jamais seus luxos. Tanto nas casas de colonos imigrantes quanto nos quartos
das senzalas (quando não eram coletivas) ou nas casinhas da população pobre, os
equipamentos eram sempre modestos.
A sobriedade chegava, às vezes, a situações extremas, como aquela relatada por Augusto
Zaluar, português fixado no Brasil e autor de um relato célebre sobre sua estada na província
de São Paulo entre 1860 e 1861. Visitando a choupana de Inês, a última índia puri da antiga
aldeia de Queluz, no extremo do Vale do Paraíba paulista, Zaluar, deixou um importantíssimo
testemunho de como se podia rejeitar não apenas os confortos domésticos como a própria
inserção na sociedade produtiva ocidental, em franca expansão na São Paulo oitocentista:
“Durante todo o tempo em que a interrogamos, conservou-se de pé, com os braços erguidos e
as mãos enlaçadas em uma das traves do engradamento do teto. Por aqui se pode calcular a
altura da choupana (...) Não havia ali nem cama, nem mesa, nem mobília de qualidade alguma.
No entanto, lá moram a velha, uma filha e quatro netos! Apesar de toda esta miséria, a velha
indígena antes quer viver esmolando de fazenda em fazenda a se curvar a qualquer gênero de
sujeição que a prive de seus hábitos de independência.”
Embora a situação descrita seja radical diante do caráter específico do que restava de uma
comunidade indígena, deve-se lembrar que as moradias populares guardavam muito do
improviso ou do desapego material vindo de um passado movediço ou alheio à acumulação. A
pobreza a que estava reduzida a população livre colaborava para a rusticidade do interior dos
casebres de pau a pique, mas afinal as moradias de fazendeiros de Areias e Queluz, aludidas
17
acima, não eram muito distintas daquelas que os naturalistas Spix e Martius visitaram em
Taubaté, em 1817, e que se reproduziriam em São Paulo por todo o século XIX e parte do XX:
“O mobiliário dessas casas limita-se igualmente ao estritamente necessário; amiúde, consiste,
apenas, em alguns bancos e cadeiras de pau, uma mesa, uma grande arca, uma cama com
tabuado assentado sobre quatro paus (jiraus), coberta com esteira ou pele de boi. Em vez de
leitos, servem-se os brasileiros, quase por toda a parte, de redes tecidas ou entrelaçadas
maqueiras, que, nas províncias de São Paulo e Minas, são mais fortes e caprichosamente feitas
com fio de algodão branco e de cor.”
Os escravos viviam de maneira ainda mais rústica, nas senzalas coletivas ou,
ocasionalmente, em pequenos quartinhos ou barracos destinados a casados ou famílias. Ina
von Binzer, a preceptora alemã que serviu a famílias de grandes fazendeiros, deixou célebres
relatos da vida cotidiana da sociedade cafeeira, entre eles um trecho em que descreve a
exiguidade do mobiliário de um barraco de cativos: “Um cobertor de lã, vermelho, um
bauzinho de latão, uma mesa indescritivelmente primitiva, além de algumas panelas, pratos e
pequenos utensílios, eram a única ornamentação.”
A simplicidade dos caipiras e escravos paulistas não encontraria grande contraste naquilo
que seria possível comprar para uso doméstico pelos imigrantes. Premidos pela necessidade
de pagar as viagens transoceânicas ou mesmo para guardar economias que permitissem a
melhora de vida, é imaginável que os estrangeiros reduzissem a compra de objetos
domésticos ao mínimo necessário.
Depoimentos de viajantes italianos que percorreram as novas áreas cafeicultoras do
oeste, onde se concentrava a maior parte de seus compatriotas, ressaltam o grande asseio em
meio ao ambiente de conforto módico e marcado por lembranças da terra natal: “A mobília
era modesta, mas limpa; na cozinha, panelas, caçarolas e louças, que eram na maioria de barro
cozido, algumas vezes esmaltadas; mesas e algumas cadeiras ou bancos, raramente armários.
(...); no quarto, um leito normalmente alto (...) com lençóis de pano grosseiro, mas limpos; um
baú no canto continha as roupas (...); das paredes pendiam imagens de santos, crucifixos,
retratos de parentes distantes, quadros da família real, de Garibaldi ou Mazzini.”
Já os japoneses tinham ainda mais desapego a objetos domésticos, vivendo em ambientes
que pouco eram além de pousos noturnos; “A sala muitas vezes não passava de um espaço
vazio, sem mesa, bancos ou cadeiras e não era mais que um depósito.” Apenas com o passar
do tempo o estrado com esteira em que se sentavam à japonesa foi abandonado em favor de
mesas e cadeiras, embora o ofurô, para o banho de imersão, fosse peça construída assim que
possível.
Recentemente, a Hospedaria dos Imigrantes, situada no bairro paulistano do Brás, tem
recolhido ou exposto objetos de uso cotidiano dos imigrantes instalados em São Paulo,
colaborando para divulgar aspectos da vida material desses paulistas nem sempre alcançados
pelas memórias publicadas ou mesmo por inventários post mortem. O Museu Histórico da
Imigração Japonesa, também localizado na capital, guarda igualmente uma expressiva
quantidade de objetos de uso doméstico dos nipônicos instalados nas fazendas de São Paulo e
pode servir como modelo para outras comunidades que queiram reunir testemunhos
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materiais das condições de vida enfrentadas no dia a dia das fazendas ou das cidades
paulistas.
É necessário frisar, portanto, que o contraste entre o ambiente doméstico das elites
cafeicultoras e os demais estratos da população paulista era enorme. A relativa proximidade
entre a vida cotidiana de ricos e pobres garantida pela economia modesta da São Paulo do
século XVI e meados do XVIII foi sendo dissolvida pelo enriquecimento do açúcar para,
finalmente, ser diametralmente oposta devido ao requinte permitido pelos imensos lucros
gerados pela produção cafeeira. A mesma dicotomia entre ricos e pobres seria também
materializada pela arquitetura, tanto no meio rural quanto nas cidades do café.
(Terra Paulista: histórias, arte, costumes. Modo de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços domésticos.
Os interiores do interior cafeeiro. São Paulo: Imprensa Oficial, p. 145 a 156.)
Texto 4
A arquitetura dos tempos do café, no campo e nas cidades
De todos os legados culturais deixados pela expansão da economia cafeeira pelo território
paulista desde o princípio do século XIX, as diversas formas de arquitetura doméstica talvez
sejam as que mais marcaram a transformação dos costumes locais. A expressiva construção
de fazendas, senzalas e colônias de imigrantes por todos os quadrantes de São Paulo, bem
como o grande incremento das construções urbanas, estimulado pela importância das vilas e
cidades como centros comerciais e ferroviários, propiciou o surgimento de um amplo e
diversificado conjunto arquitetônico que ainda hoje pontua os antigos municípios do café.
De modo semelhante ao que ocorrera com o consumo de objetos luxuosos, o café também
permitiu aos paulistas, em especial às elites, terem, afinal, uma produção arquitetônica de
grande magnitude, comparável àquela havida durante o período colonial em Minas, Rio de
Janeiro e nas capitanias nordestinas. As modestas casas “bandeiristas” e os primeiros
engenhos de açúcar foram suplantados pelas construções rurais cafezistas tanto no que se
refere à dimensão das sedes e ao requinte dos acabamentos decorativos internos como na
imensidão de senzalas, construções e terreiros para beneficiamento e estocagem dos grãos de
café, além das incontáveis fileiras de pequenas casas destinadas aos imigrantes, chegados
sobretudo a partir do último quartel do século XIX.
O Vale do Paraíba, a primeira região a enriquecer com o café, guarda sobretudo os
remanescentes das grandes fazendas e casario urbano do século XIX, sendo ali absolutamente
predominante a arquitetura ligada à produção baseada no trabalho servil. Já no oeste, isto é,
nas regiões das ferrovias Mogiana, Paulista e Sorocabana (além da Noroeste e Araraquarense,
mais tardias), a maioria dos testemunhos arquitetônicos ainda existente está vinculada à era
dos imigrantes assalariados, embora haja exemplos de fazendas de mão de obra escrava, como
a do Pinhal, em São Carlos, que ainda mantém as habitações dos cativos.
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Os vários tipos de senzala
As décadas seguintes à Abolição representaram um período crítico para a manutenção do
patrimônio arquitetônico ligado ao período escravista paulista, na medida em que grande
parte das senzalas foi destruída ou profundamente alterada pelos proprietários das fazendas.
A devastação fez que as habitações escravas se tornassem uma modalidade arquitetônica
bastante rara no Estado, como, aliás, o é também no restante do país. As construções
remanescentes, a documentação dos inventários e os relatos de época permitem, contudo,
identificar três tipos básicos de habitações escravas. O primeiro deles, raro em São Paulo,
além de infinitamente mais frágil ao tempo, consistia em pequenas casas ou cabanas em que
dormiam os escravos; o segundo era caracterizado por grandes construções térreas, com
cômodos amplos para habitação coletiva, às vezes com separação por sexo; o terceiro tipo era
composto por edificações térreas divididas em pequenos cômodos, destinados a casais ou
famílias. Deve-se lembrar que muitos escravos dormiam na própria sede, seja quando não
havia um número suficiente de cativos que justificasse uma senzala, seja no que se refere aos
escravos “de dentro”, isto é, os ligados aos serviços domésticos.
No Vale do Paraíba, há alguns exemplos de senzalas como as da Fazenda Pau d’Alho, em
São José do Barreiro, e o que restou daquela pertencente à Fazenda Restauração (antiga
Retiro Formoso), em Queluz. No Oeste Paulista, podem ser citadas aquelas senzalas de
formato retilíneo, como um correr de lanços, ou dispostas em pátios na forma de U, existentes
na região de Araraquara e São Carlos, como a já mencionada pertencente à Fazenda do Pinhal,
além da Santa Maria da Babilônia, Itapiru e Santa Maria do Monjolinho. As telas já referidas
das fazendas Antinhas e Boa Vista, ambas do Bananal, mostram como eram suas senzalas, hoje
desaparecidas. Em ambas, as habitações dos cativos estão dispostas em “quadro” ou
quadrado, isto é, formando um pátio quadrangular que facilitava o controle da escravaria
pelos proprietários. É deste tipo a senzala descrita por Floriza Barbosa Ferraz, filha de um
fazendeiro de Rio Claro, em seu diário; “Acompanhando as suas paredes internas, havia uma
infinidade de pequenos quartos dando todos para um pateo no centro do quadrado. Ali os
escravos tinham apenas as suas camas as quaes eram feitas com ripas de coqueiro e forradas
com esteiras ou colchões de palha rasgada.”
As condições internas das senzalas não eram minimamente adequadas, sendo a ventilação
rarefeita pela ausência de janelas ou pela pequenez das aberturas junto ao telhado. O piso era
composto quase sempre de simples terra batida, e a cobertura, de telhas de barro ou palha. A
técnica construtiva variava bastante, sendo a mais habitual o pau a pique. As mais tardias,
porém, já foram construídas com tijolos.
As sedes na era do Neoclassicismo
Quanto às sedes das fazendas, que sobreviveram em muito maior número do que as
senzalas, pode-se dizer que seu aspecto externo, mesmo nas mais ricas, nunca chegou à
sofisticação das maiores fazendas fluminenses, erguidas durante o Império. O estilo
neoclássico francês, introduzido no Brasil pela Missão Artística de 1816, foi reelaborado em
São Paulo num grande despojamento de elementos eruditos decorativos. As colunas, pilastras
e frontões triangulares característicos da arquitetura greco-romana foram rarissimamente
20
utilizados nas fazendas paulistas; apenas o andamento simétrico de janelas e portas, os arcos
de 180° em janelas e portas e alguns eixos de centralização na fachada principal das sedes
evidenciam os princípios neoclássicos.
Uma notável exceção quanto à monumentalidade externa das fazendas neoclássicas
paulistas é a vasta fachada da sede da Fazenda Sete Quedas, construída em Campinas por
Joaquim Bonifácio do Amaral, o visconde de Indaiatuba, um dos mais ricos fazendeiros
paulistas da segunda metade do século XIX. O sobrado, situado em terreno elevado que o
destaca, tem 20 janelas de frente e um corpo central saliente que, além de estar centralizado
em relação aos corpos laterais, apresenta porta de acesso rigorosamente dentro da simetria
neoclássica. A regra, entretanto, eram construções mais despojadas e sem pretensão
arquitetônica.
Três tipos básicos de sede são encontráveis em São Paulo durante o século XIX: as térreas,
as de sobrado de meia-encosta e as de sobrado pleno. Quanto às térreas, podem ser citadas,
entre demolidas e ainda remanescentes, as da Várzea (Queluz), Bonito (Lorena), Boa Vista
(Guaratinguetá), Pasto Grande, Piedade, Quilombo, Fortaleza e do Sítio do Pica Pau Amarelo,
da infância de Monteiro Lobato (Taubaté), Santo Antonio (Jambeiro), Boa Vista (Redenção da
Serra), Conceição (Caçapava), Santo Agostinho (São José dos Campos), Jardim (Jacareí), Santa
Helena (Amparo), Fontoura (Campinas) e Saltinho (Itirapina). As mais antigas ainda portavam
as janelas de arco de canga, as mais recentes os arcos plenos ou as vergas retas.
Os sobrados de meia-encosta nas áreas cafeeiras são decorrência da presença dos
mineiros em terras paulistas, à semelhança do que também ocorrera na área fronteiriça das
vertentes do rio Pardo, como em Altinópolis. O Vale do Paraíba mostra-se especialmente rico
nesta tipologia arquitetônica, que permitia o uso do subsolo graças ao aproveitamento do
desnível do terreno. A Fazenda Restauração em Queluz, erguida em taipa de mão pelo mineiro
Teodoro José da Silva em 1867, constitui um dos melhores exemplos dessa arquitetura de
inspiração mineira em meio aos cafezais do vale, tendo não apenas a sede mas também a tulha
em meia-encosta, mais o terreiro superior e outro inferior. A fazenda, que atualmente sofre
adaptação para se transformar em hotel, dá testemunho de uma restauração meticulosa
realizada no século XX, comandada pelo historiador Antonio Alves Motta Sobrinho,
responsável pela manutenção das construções de uma fazenda de café num município que viu
quase todas as suas congêneres ruírem. Uma delas, aliás, a do Sertão, que foi propriedade do
também mineiro Antonio Ribeiro Junqueira e não existe mais, era outra valiosa expressão das
referências arquitetônicas mineiras no Vale do Paraíba.
Também se enquadram – ou se enquadravam – nessa tipologia as fazendas Alves (São
Luiz do Paraitinga), Conceição e Bom Retiro (Paraibuna), Tijuco Preto (Guaratinguetá), as
imponentes Serrote e Caeté (Santa Branca) e, no oeste cafeeiro, a imensa Santa Eudóxia, com
dezoito janelas de frente, e a Conceição (São Carlos). Esta cidade conserva outra importante
construção de meia-encosta; a sede da Fazenda Pinhal, que foi residência de Antonio Carlos de
Arruda Botelho e Ana Carolina de Mello Oliveira, conde e condessa do Pinhal. Mantida nas
mãos da família há gerações, a sede foi tombada pelas instâncias federal e estadual, o que
garantiu a preservação de um exemplar das antigas casas do tempo do açúcar que foram
ampliadas pelo enriquecimento cafeeiro. A arquitetura externa e interna permaneceu,
21
contudo, bastante sóbria, presa à simetria neoclássica de janelas equidistantes e a
acabamentos sem a suntuosidade de suas contemporâneas do Vale do Paraíba ou Campinas.
Todas as dependências de serviço e as senzalas foram igualmente mantidas, bem como o
conjunto de objetos pertencentes à família, que permitem reconstituir com precisão a vida
material da fazenda em diferentes períodos históricos (ver volume 1, página 128).
A última tipologia de sede de fazenda cafeicultora do século XIX é a do sobrado pleno, isto
é, de dois pavimentos completos, tipo que se consolidou em São Paulo apenas no decorrer
desse mesmo século. Um deles é, aliás, muito relevante para a história da preservação do
patrimônio cultural em São Paulo, pois foi o primeiro bem tombado pelo CONDEPHAAT no
Estado, ainda em 1969. Trata-se da sede da Fazenda Boa Vista, localizada em Cruzeiro, no Vale
do Paraíba: um vasto sobrado quadrangular, com catorze janelas de frente, erguido e
ampliado ao longo do século XIX. Sua linguagem predominante é o neoclassicismo
simplificado que se resumia, como em tantas outras sedes paulistas, ao andamento simétrico
das janelas, além de portar guirlandas com pendentes em todas as fachadas, logo abaixo do
beiral (ver volume 1, página 121).
Suas paredes externas foram erguidas ainda com taipa de pilão, sendo as internas e as
ampliações de pau a pique. A disposição interna é também característica das sedes de fazenda
do século XIX, com grandes salões para receber, sinal da adoção dos costumes aburguesados
europeus, embora ainda mantivesse alcovas no centro da construção. O tombamento de 1969
pode incluir todos os móveis e alfaias da casa, mantidos integralmente pelos descendentes do
major Manuel de Freitas Novaes, seu proprietário mais importante no século XIX. Grande
admirador da família imperial, que chegou a visitar no exílio francês, o major dotou a
residência de luxos europeus como cristais Baccarat, porcelanas de Sèvres e mesmo um
retrato em terracota realizado durante sua visita a Paris. A iniciativa do CONDEPHAAT
preservou, portanto, um dos mais íntegros testemunhos domésticos das elites oitocentistas.
Além disso, constituiu um passo decisivo no sentido da revisão dos critérios federais de
escolha de bens para tombamento, que sempre privilegiaram o período colonial em
detrimento do Império e da República, o que, para os paulistas, significava a exclusão da
maior parte de seu patrimônio.
O Vale do Paraíba paulista, a despeito das incontáveis perdas de sedes fazendeiras nos
últimos 30 anos, ainda mantém exemplares importantíssimos dos suntuosos sobrados rurais
do período imperial. O caso mais notório é certamente a sede da Fazenda Resgate, no Bananal.
Construída na primeira metade do século XIX e reformada a partir de 1855, a sede da Resgate,
hoje totalmente despojada das senzalas e depósitos anexos, esconde sob sua simplíssima
fachada neoclássica um interior faustosamente decorado, comparável às mais refinadas sedes
da província fluminense e mesmo aos palacetes da Corte. Muitas de suas paredes internas
foram decoradas pelo pintor catalão José Maria Villaronga, que recebeu numerosas
encomendas em Bananal. Zaluar, visitando a Resgate em 1860, deixou relatada com minúcias
a decoração interna da residência do comendador Manoel de Aguiar Vallim: “A sala de visitas,
toda de branco, com frisos e ornatos dourados, tem o teto de muito bom gosto, e nos painéis
das portas delicadas pinturas representando os pássaros mais bonitos e conhecidos do Brasil
pousados nos ramos das árvores ou arbustos de sua predileção, de cujos troncos se veem
22
pender deliciosos e matizados frutos. A sala de jantar e capela, que é um trabalho de muito
preço, não merecem menos elogios”.
A capela interna referida por Zaluar ainda impressiona por sua escala e acabamentos
murais, pois possui dois pavimentos, algo inusitado para o período, além de um amplo painel
de Villaronga. Já a sala de jantar da Resgate e o grande corredor foram decorados com uma
das técnicas em que o pintor era mais hábil, o trompe Voeil (pintura ilusionista), que falseava
vasos, azulejos e relevos com grande perfeição. Uma das pinturas da sala de jantar,
perfeitamente conservada, pode ser mesmo considerada um “atestado de óbito” da
cafeicultura do Vale do Paraíba: uma caixa com notas de dinheiro repousa sob a paisagem
ondulada da fazenda, em que se destacam morros cobertos pelas perigosas fileiras verticais
de pés de café, responsáveis pelas enxurradas que lentamente destruíram a fertilidade dos
solos. Mais do que simples decoração, o mural de Villaronga resta como emblema simultâneo
da fortuna e da posterior ruína financeira de quem não soube preservar a base ecológica da
então riquíssima Bananal (ver volume 1, página 125).
Sorte igual não teve outra sede de sobrado bananalense, a da Fazenda Rialto, construída
já na segunda metade do século XIX pela família Ribeiro Barbosa. Era esta certamente a mais
suntuosa das residências rurais da província de São Paulo, sendo seu salão principal decorado
integralmente com pinturas ilusionistas de incrível resultado visual, atribuídas a José Maria
Villaronga. Outro salão era decorado com papéis de parede europeus e relevos nos forros. O
aspecto externo mesclava ritmos e tipos de janelas neoclássicas a um pórtico de madeira
recortada com motivos orientalizantes que se erguia na fachada principal da sede, coroando a
escadaria de acesso. Sua destruição, na década de 1990, pode ser considerada uma das
maiores lástimas que se abateu sobre a memória da arquitetura paulista, permitida inclusive
pela indiferença dos órgãos de tombamento, que jamais se dignaram a preservá-la.
Outras sedes de sobrado de Bananal bastante relevantes no século XIX, como as fazendas
Independência e Boa Vista, foram transformadas em hotéis-fazenda, o que ajuda a fazer frente
aos altos custos de sua manutenção. A Boa Vista foi residência dos já mencionados
comendador Luciano José de Almeida e sua esposa d. Maria Joaquina, os mais ricos
fazendeiros da localidade. O já referido retrato da fazenda, atribuído a Georg Grimm, mostra a
sede em posição estratégica, entre os dois quadrados de senzalas e depósitos, situação
completamente desaparecida nos dias atuais. Carlos Lemos indica o quadrado posterior
abrigando senzalas e o fronteiro, além de outras senzalas, engenhos, paióis, pilões, casa de
farinha, oficinas, ranchos para tropeiros e eventualmente lojas.
Um aspecto dos sobrados rurais mostra-se, entretanto, comum à quase totalidade das
unidades do século XIX: o andar superior é um piano nobile, isto é, um pavimento nobre
destinado à moradia dos proprietários, abrigando áreas de estar, dormir e de trabalhos
manuais. Cindia-se assim uma velha tradição colonial das moradias rurais paulistas, como
aquelas “bandeiristas”, em que os proprietários residiam ao rés do chão, dividindo o piso com
todas as funções domésticas e mesmo com dormitórios de escravos. Instalações sanitárias
eram, contudo, uma modernização ainda inexistente, sendo os banhos realizados em cochos
de madeira dispostos em um cômodo. As cozinhas ainda estavam em puxados, na pavimento
térreo ou em construções anexas à sede. Paióis e tulhas para estocagem e beneficiamento do
23
café, rodas-d’água e canaletas para drenagem, bem como os imprescindíveis terreiros para
secagem dos grãos, eram outras novidades que quase sempre estavam junto à sede, de onde o
fazendeiro podia, inclusive, controlar visualmente as atividades dos escravos e agregados.
(Terra Paulista: histórias, arte, costumes. Modo de vida dos paulistas: identidades, famílias e espaços
domésticos. A arquitetura dos tempos do café. São Paulo: Imprensa Oficial, p. 157 a 164.)
Texto 5
SENHORES E SUBALTERNOS NO OESTE PAULISTA
Robert W. Slenes
Mãe e escrava do filho
Ao se tornar maior de idade em 1869, no município de Campinas, São Paulo, um jovem
compõe um documento extraordinário, formulado na linguagem da propriedade mas
carregado de emoção: “Digo eu Isidoro Gurgel Mascarenhas, que entre os mais bens que
possuo [...] sou senhor e possuidor de uma escrava de nome Ana [...] [recebida na herança] de
meu Pai, Lúcio Gurgel Mascarenhas [...] e como a referida escrava é minha Mãe, verificando-se
a minha maioridade hoje, pelo casamento de ontem, por isso achando-me com direito, concedo
à referida minha Mãe plena liberdade, a qual concedo de todo o meu coração” (grifos meus).
Não era comum no século XIX um filho ser proprietário de sua mãe. O caso extremo, no
entanto, muitas vezes ilumina a norma, ao revelar processos sociais cotidianos no interior do
Império, na zona da fronteira agrícola, em torno de fatos inusitados. A história de Isidoro e de
seus pais, Lúcio e Ana, é exemplar nesse sentido. Contextualizada com outras evidências e
analisada, ela oferece uma janela para desvendar as relações de poder entre “senhores” e seus
subordinados escravos e libertos, trabalhadores nacionais e imigrantes no “Oeste histórico”
paulista.
Os fios desta história despontam no início do século XIX, quando o avô de Isidoro, Pedro
Gurgel Mascarenhas, chega a Campinas. As experiências de Pedro e de seu filho Lúcio, ao
construírem seus patrimônios, são elucidativas dos processos de povoamento do Oeste
paulista por pessoas livres e cativas, e dos caminhos de enriquecimento e empobrecimento
que se abrem a partir da década de 1790, quando a sua região se transforma em áreas de
“grande lavoura” (agricultura voltada para a exportação), primeiro centrada no açúcar, depois
no café.
Entretanto, é a trama tecida pelos protagonistas da história, na interação entre eles, que
mais nos interessa neste ensaio. A vida de Ana, como também a de outras escravas, suas
parceiras, sugere muito a respeito do poder nas relações entre homens dominantes e
mulheres subalternas. Os dramas de outras personagens também jogam luz sobre o
(des)governo dos senhores e ainda sobre as estratégias de sobrevivência e autonomia
elaboradas, em contrapartida, pelos escravos.
Da análise dessas vivências emerge o retrato de uma classe senhorial prepotente e
frequentemente arbitrária, mas sobretudo ardilosa: uma classe que brande a força e o favor
24
para prender o cativo na armadilha de seus próprios anseios. Dentro de certos limites, os
senhores estimulam a formação de laços de parentesco entre seus escravos e instituem, junto
com a ameaça e a coação, um sistema diferencial de incentivos no intuito de tornar os cativos
dependentes e reféns de suas próprias solidariedades e projetos domésticos.
Essa política de domínio é relativamente bem-sucedida. Por isso mesmo, talvez ela
subverta a autoridade dos senhores ao mesmo tempo em que contribui para sua dominação
no cotidiano. Rachado por linhas de solidariedade diversas, cujas pontas em geral convergem
para a casa-grande, o grupo escravo também desfruta de uma experiência em comum e de
instituições, inclusive familiares, que permitem a criação de sua identidade. Como resultado,
os senhores dormem sobressaltados, pois sabem que os líderes das revoltas nas senzalas com
frequência são os escravos mais “chegados” aos proprietários. A prepotência dos senhores e
seu afã de transformar trabalhadores em dependentes sobrevivem à substituição de escravos
por imigrantes. O contraponto entre proprietários e “colonos” no final do século XIX guarda
certas semelhanças com aquele entre senhores e escravos, ainda que expresse também as
novas relações de trabalho.
A Família Gurgel Mascarenhas
Pedro Gurgel Mascarenhas, natural de Pitangui, Minas Gerais, se estabeleceu na província
de São Paulo por volta de 1813. Foi registrado no recenseamento de Campinas de 1824 como
pessoa que “vive de seus negócios”. Eram, sem dúvida, negócios prósperos, pois já lhe
permitiram acumular dezesseis escravos, mais do que dois terços dos senhores de Campinas
possuíam na época. Censos posteriores são mais explícitos quanto à fonte de renda dele: em
1825, ele “vive de jornais [”salários” ou aluguéis] dos escravos” e em 1829 é dado como
“taipeiro”; construtor (no contexto, “empreiteiro”) de prédios de taipa. Seus escravos
provavelmente trabalhavam na construção, além de prestar outros serviços. Cinco dos treze
cativos presentes em 1825 e 1829 são descritos, quando recebem a liberdade em 1843 e
1861, como artesãos qualificados: três “carapinas” (carpinteiros), um taipeiro e um alfaiate.
Os censos, contudo, não mencionam outra atividade de Pedro, além dessa que certamente
lhe deu muitos lucros. Num processo de 1829, movido por ele contra um devedor, nosso
“taipeiro” previne-se contra a possível acusação de ganancioso, dizendo que “estando
morador há dezesseis anos e tendo vendido nesta Província trezentos negros [ele, Pedro]
nunca propôs ação alguma ainda que se lhe deva muitos anos [...]”. Em suma, além de adquirir
alguns escravos para viver de seu serviço e aluguel, ele os comprava em maior número para
revender.
Em dezembro de 1843, aos setenta anos, à beira da morte, Pedro redigiu seu testamento.
Como não tinha herdeiros “forçados” nunca se casara e os pais haviam falecido , estava livre
para distribuir sua propriedade a quem quisesse. Declarou, então, que “tenho um filho natural,
de nome Lúcio, é mulato, e o instituo por meu herdeiro”: Como Pedro era descrito nos censos
sempre como “branco” e Lúcio, a única vez que aparece nesses documentos, é descrito como
“pardo”, com certeza a mãe de Lúcio era negra ou mulata. Anos mais tarde, Lúcio a
identificaria em seu próprio testamento apenas como “Florência”, sem lhe atribuir sobrenome
ou o título de “dona”, o que sugere que ela era de origem humilde. Se Florência acompanhara
25
Pedro a Campinas, ela não mais morava com ele no mesmo “fogo” (domicílio), segundo os
censos da época.
Lúcio, sim, chegou a Campinas com Pedro, mas não como filho reconhecido. No censo de
1824, um “Lúcio agregado” (morador livre), descrito como solteiro e pardo, de 23 anos –
justamente a idade que o Lúcio filho teria –, se encontra no fogo encabeçado por Pedro. Seu
nome está no final da lista de escravos, ou seja, o mais longe possível do registro do chefe de
domicílio. Nos anos subsequentes, nenhum Lúcio está mais presente nesse fogo. O testamento
de Pedro revela, entretanto, o paradeiro do filho. Ao reconhecer a paternidade em 1843,
Pedro indicou que Lúcio estava morando em Araraquara. Isto é, entre 1824 e 1825 Lúcio teria
deixado de viver junto com o pai, mudando-se para o “sertão” do Oeste paulista. Ainda
segundo Pedro, Lúcio era “carapina” de ofício. Se também negociava escravos, como seu pai
“taipeiro”, não o sabemos.
A justiça é lenta, e Lúcio só recebeu sua herança em meados de 1847. Ainda morava em
Araraquara, onde também se encontrava em julho de 1848, quando foi preso pela polícia; “por
embriagado e andar fazendo desordens, assinou termo de bem viver”. Logo em seguida, no
entanto, Lúcio mudou-se para Campinas. Em 1850, seu nome aparecia pela primeira vez na
lista de votantes desse município, que dava a profissão dele como a de “administrador”.
Dirigia, talvez, um engenho de açúcar ou fazenda de café. Já em 1852, sua ocupação era a de
“agricultor”. Quatro anos mais tarde, de acordo com o registro paroquial de terras dessa época
(um “recenseamento” fundiário), ele tinha uma propriedade na cidade de Campinas, além de
um “sítio” na área rural. Lúcio provavelmente residia durante parte considerável do ano na
cidade. Em seu inventário, uma casa urbana recebeu boa avaliação e foi descrita como mais
bem aparelhada, contendo vários objetos de prata, do que a casa do sítio, tida como “simples”.
Além disso, como o inventariante de seu espólio, e quatro dos padrinhos dos filhos de seus
escravos, era vizinho próximo de sua propriedade urbana.
Quando Lúcio faleceu, em 1861, seu patrimônio consistia principalmente em 23 escravos,
o sítio, duas casas e um terreno urbanos. Seu espólio foi avaliado em 52 contos de réis
(52:000$000), ou em torno de US$ 27000 pelo câmbio da época. Ele era, portanto, um homem
próspero na sua comunidade, mesmo entre senhores de escravos, embora estivesse longe de
ser um dos mais ricos (em 1872, três em cada quatro senhores em Campinas tinham menos de
vinte cativos; porém, os 4% mais ricos possuíam acima de cem). Seus escravos, representando
quase dois terços dos bens fundiários dele – proporção nada estranha para os senhores da
época –, eram predominantemente homens adultos. Destes, a maioria compunha-se de
trabalhadores de roça, sem dúvida empregados nos 23 hectares, onde Lúcio havia plantado
milho, feijão e arroz.
O patrimônio que Lúcio tinha quando morreu crescera, provavelmente desde o ano em
que recebeu a herança de Pedro. Em 1861, sete de seus escravos haviam nascido na
propriedade dele. Dos outros dezesseis, cinco ou seis foram comprados depois do falecimento
de seu pai. Entretanto, se Lúcio prosperou no final da década de 1840 e na de 1850, é evidente
também que a maioria dos escravos adultos de 1861 foi adquirida por ele em Araraquara
antes de 1844 ou herdada do pai. Portanto, quando Lúcio atraiu a atenção da polícia de
Araraquara em 1848, não foi por ser um homem “pobre” e suspeito de ser “perigoso”. É bem
26
possível que tenha sido responsável, de fato, por “desordens” nesse ano – o que, como
veremos, só reforça a imagem de pessoa voluntariosa que emerge dos documentos sobre a
relação dele com as mães de seus filhos.
Até aqui, as histórias de Pedro e Lúcio são bastante expressivas da região em que viviam.
A partir da década de 1790, a alta dos preços mundiais do açúcar após a revolução escrava
em São Domingos (atual Haiti) e a derrocada da economia de exportação dessa ilha somaramse à queda dos preços de africanos, provocando uma rápida expansão do açúcar no “Oeste
velho” de São Paulo: isto é, no quadrilátero compreendido entre os povoados de Sorocaba,
Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí, aí englobada a região de Campinas. Com isso, abriram-se
possibilidades para uma agricultura comercial diversificada e uma vida mercantil urbana,
também baseadas no trabalho escravo. Assim, a região passou a atrair uma corrente de
migrantes livres das mais variadas procedências.
Tais migrantes, sobretudo aqueles com relativamente poucos recursos, eram um grupo
muito volátil, sempre prestes a mudar de atividade econômica ou pôr de novo o pé na estrada
à procura de melhores condições. De acordo com um estudo recente sobre Campinas, 62%
dos chefes de domicílio que em 1817 eram “agricultores” (categoria que inclui todos os
lavradores da terra, menos senhores de engenho) não estavam mais presentes no município
em 1825, pelo menos com essa ocupação. Mesmo assim, o afluxo líquido de pessoas livres
para o Oeste paulista e especialmente para Campinas foi grande o bastante para provocar o
rápido aumento da população. Em Campinas, o número de pessoas livres cresceu de cerca de
trezentos, em 1776, para 3.300, em 1829, e 17.700, em 1874. Entre esses migrantes, havia
trabalhadores europeus; entretanto, seu número na agricultura continuaria sendo pouco
expressivo, comparado ao dos escravos, até o segundo quinquênio da década de 1880.
No tráfico de escravos para o Sudeste e sobretudo para o Oeste paulista, tanto antes
quanto depois de 1850 os homens predominavam largamente sobre as mulheres. Na compra
de cativos, os pequenos proprietários rurais parecem ter tido menos preferência por escravos
masculinos do que os grandes. Os proprietários urbanos, porém, pelo menos aqueles
engajados em atividades que “exigiam” mão de obra masculina (tropeiros, por exemplo, além
de taipeiros como Pedro), possuíam plantéis em que o superávit de homens era especialmente
grande. Ao morrer, Lúcio – talvez por ser herdeiro de Pedro – tinha um grande excesso de
homens sobre mulheres entre seus escravos adultos, mesmo para os padrões de Campinas.
Isidoro Gurgel Mascarenhas, o filho de Lúcio, nasceu em Campinas em 1850. Como sua
mãe, Ana, era escrava, ele teria começado a vida no cativeiro se o pai não o tivesse libertado
na pia batismal. Lúcio, na época, não assumia a paternidade da criança, registrada pelo pároco
como sendo de “pai incógnito”. Tampouco se identificava como o progenitor de outros dois
filhos e uma filha, nascidos de suas escravas entre 1851 e 1858 e também batizados como
livres. Entretanto, no testamento, elaborado pouco antes de sua morte em 1861, Lúcio
reconheceu Isidoro, essas outras crianças e dois meninos mais velhos que não foram
batizados em Campinas. E deixou-lhes toda a sua propriedade: “sou solteiro, nunca contraí
matrimônio e meus pais são ambos falecidos. Declaro que tenho seis filhos naturais [...] e os
instituo por meus herdeiros, os quais estão no meu poder e os criei”.
27
A “generosidade” de Lúcio para com os filhos pode ter nascido de reflexões sobre sua
própria experiência. Como vimos, ele mesmo era filho natural mulato, reconhecido pelo pai
apenas quando este estava moribundo, e sua mãe provavelmente tinha origens humildes, se
não fosse escrava. Mas, se Lúcio se reconhecia nos filhos, ele não foi magnânimo com as mães
deles.
Sabemos, por meio de uma declaração feita por seu inventariante, que havia quatro
dessas mulheres. Em prestações de contas apresentadas pelos tutores dos filhos e nos
assentos de batismo, consta que três das mães eram escravas chamadas Rufina, Ana e Maria, e
que pelo menos esta última era “crioula”. As relações sexuais de Lúcio com Maria e com Rufina
duraram (ou, se interrompidas, demarcaram) um período substancial; cada uma dessas
mulheres lhe deu duas crianças: Maria no espaço de cinco anos, Rufina provavelmente no
período de um ano a 22 meses. Isidoro, o filho de Ana, nasceu entre os dois filhos de Rufina e
num intervalo de apenas meses, o que pode indicar que Lúcio tenha mantido relações com as
duas mulheres simultaneamente. Já os filhos de Maria nasceram depois, o último em 1858,
apenas três anos antes de Lúcio redigir o testamento.
Apesar de sua intimidade com essas escravas, Lúcio manteve pelo menos duas no
cativeiro. Em 1861, Maria e Ana foram avaliadas como parte de seu espólio. Foram descritas
como costureiras e cozinheiras. Rufina não aparece nos documentos do inventário, e é
possível que Lúcio a tenha libertado. Se assim procedeu, ele não lhe deixou nada no
testamento. Aliás, nenhuma dessas mulheres foi sequer mencionada no documento. Tal
silêncio sugere que ele se interessava em esconder as origens maternas de suas crianças,
agora que se identificava como o pai, preocupando-se em não revelar sua paternidade nos
assentos de batismo, nos quais identificou as mães como escravas.
A aparente despreocupação de Lúcio pelas mães de seus filhos contrasta com a solicitude
dele para com outros cativos. No testamento, Lúcio excluiu quase um quinto de seu espólio da
herança deixada para os filhos, destinando-o a outras finalidades (missas para o bem de sua
alma, “esmolas” para pessoas pobres), e especialmente para alforrias. Estipulou que sete dos
23 escravos deveriam ser libertados sem condição após sua morte. Entre eles estava uma
mulher casada e suas cinco crianças, todos do mesmo pai cativo. Além disso, outra pessoa
recebeu alforria durante o inventário: uma mulher que Lúcio libertara em 1847, na condição
de que esta lhe prestasse serviços até ele morrer.
Em tal contexto, o fato de ter deixado as mães de seus filhos no cativeiro sugere que a
relação de Lúcio com essas mulheres não se caracterizava mais por laços de afeto ou de
reciprocidade de favores. Não há informações que indiquem o conteúdo das relações entre
Lúcio e as escravas e suas mudanças ao longo do tempo. Outras duas histórias, contudo,
ajudam a mapear o terreno em que se davam os encontros íntimos entre senhores e mulheres
cativas.
Nesse mesmo mundo de força e favor, de perigos e prêmios não gratuitos, encontravamse as escravas de Lúcio Gurgel Mascarenhas. Assediadas ou não pelo senhor delas, Ana, Maria
e Rufina “negociaram” seus termos de rendição ou de convivência com ele. Ao contrário de
Marcelina, não obtiveram, com isso, a alforria (com a possível exceção de Rufina). Viram suas
crianças, é verdade, transformarem-se em herdeiros de Lúcio. O fato em si, contudo, não lhes
28
garantiu a permanência junto aos filhos nem a liberdade. Após a morte de Lúcio, Ana e Maria
correram certo risco de serem vendidas. E, mesmo depois de se tornarem escravas dos filhos,
continuaram a ser tratadas durante anos pelos tutores destes como cativas de fato, não
apenas na lei.
Lúcio especificara no testamento que seus filhos não poderiam alienar a parte deles na
herança de maneira nenhuma até entrarem no “uso da razão”; e, mesmo assim, poderiam
apenas “vender terra para os outros herdeiros, com a permissão de seus tutores”. Entretanto,
o inventariante do espólio Antônio Joaquim de Sampaio Peixoto, associado de Lúcio e de seu
pai desde longa data, era da opinião de que “a legítima [paterna] lhes é devida [aos herdeiros]
por Direito, uma vez que foram reconhecidos” e, portanto, a cláusula de inalienabilidade no
testamento não teria validade. Além disso, argumentava que o interesse dos herdeiros era
vender a maior parte do espólio e converter sua herança em dinheiro. “Aos herdeiros não
convêm” os bens de raiz do espólio, dizia ele: nem o terreno urbano, que “não dá rendimento”,
nem o sítio, “cujo custeio é muito difícil atento à idade deles [herdeiros]”. Tampouco “lhes
convêm os escravos, não só pelo perigo da mortalidade como pela dificuldade do custeio, e
porque quando os herdeiros chegarem à idade maior já os escravos estão velhos”.
Seguindo esse raciocínio frio e calculista, despreocupado do bem-estar ou da
sensibilidade dos escravos, Sampaio Peixoto propôs que Ana e Maria fossem excluídas da
venda. Ao explicar por quê, manteve o silêncio de Lúcio no que diz respeito à relação dessas
mulheres com os herdeiros: “julgo [...] que a humanidade e a boa razão [grifos meus] exijam
que ao herdeiro Isidoro se dê em quinhão a escrava Ana, de 1:400$, e aos herdeiros Eufrásia e
Martiniano se dê a escrava Maria de 1:800$”. Ora, Isidoro era filho de Ana, assim como
Eufrásia e Martiniano eram filhos de Maria. Sampaio Peixoto também julgava “conveniente
que não vá à praça o escravo Francisco Velho, avaliado por 400$, cuja mulher e cinco filhos
ficaram libertos, visto que este escravo trata de arranjar o dinheiro para obter sua liberdade, o
que me parece muito razoável”.
Nos plantéis pequenos de Campinas, ao longo do século XIX, a proporção de escravos
adultos casados (na Igreja) ou viúvos era baixa, refletindo o restrito pool de possíveis
cônjuges dentro dessas propriedades e a virtual proibição, por parte dos senhores, de
casamentos entre escravos de donos diferentes. Já a situação nos plantéis médios e grandes
(com dez ou mais escravos) era diferente. Nessas propriedades, a proporção casada ou viúva
entre mulheres acima de quinze anos era alta, variando entre 60% e 69% em 1801, 1829 e
1872. A porcentagem entre homens da mesma faixa de idade era bem mais baixa (entre 23% e
30% de casados e viúvos nos anos indicados), refletindo o desequilíbrio numérico entre os
sexos.
Esses dados revelam uma diferença significativa entre as experiências da população
masculina e feminina. Entretanto, quando apreciados do ponto de vista de mulheres e
crianças, apontam para uma grande presença em tais propriedades de famílias nucleares,
chefiadas por ambos os pais. De fato, segundo os dados de uma amostra da matrícula de
escravos de 1872, 68% das crianças de um a nove anos nos plantéis médios e grandes de
Campinas viviam junto com pais casados. Outros 12% viviam com pai viúvo ou mãe viúva. As
29
cifras mostram, indiretamente, uma forte tendência nas propriedades médias e grandes de
não separar cônjuges ou pais e crianças pequenas por venda ou processo de herança.
Tudo indica que os padrões observados aqui são típicos do Oeste paulista. Provavelmente
são representativos, também, das regiões de plantation do Rio de Janeiro e de São Paulo de um
modo geral. Uma das implicações dessa constatação é a de que muitos escravos, seguindo suas
próprias estratégias de sobrevivência, adquiriram certo “interesse” no sistema. Ou melhor, ao
formarem famílias tornaram-se especialmente vulneráveis ao arbítrio dos senhores, pois a
tendência de manter famílias escravas juntas nas vendas e partilhas de heranças não foi
sempre seguida. Houve, sem dúvida, casos de separação, em particular nos plantéis pequenos,
cujos proprietários eram mais sujeitos a contratempos econômicos. “Seus pais foram
vendidos”, diz uma observação lacônica ao lado do nome de um menino de oito anos, na lista
de matrícula para um plantel de dois escravos. No entanto, a ameaça de separação sempre
existia, pelo menos até 1869-71, quando leis nacionais proibiram a prática (no que dizia
respeito a cônjuges e a pais e filhos menores), restringindo afinal esse abuso do poder
privado.
Em suma, a família escrava transformava os cativos em “reféns”, tanto de seus próprios
anseios quanto do proprietário. Os senhores certamente sabiam disso quando refletiam sobre
os ditames da “humanidade” e da “boa razão”. A fuga individual, por exemplo, passava a
representar para o escravo casado a perda do contato constante com entes queridos e de uma
pequena economia doméstica familiar como a de Joana, que acumulou um pecúlio de 60 milréis, e a de Manoel velho, que vendia mantimentos a Lúcio. Ao mesmo tempo, trazia a ameaça
de retaliações contra os familiares que ficassem para trás e, no limite, a possibilidade de sua
venda como represália ao fugitivo. “É preciso casar esse negro e dar-lhe um pedaço de terra
para assentar a vida e tomar juízo”, dizia sempre um senhor da região de Campinas, referindose aos escravos jovens. A frase, aparentemente banal, adquire um sentido sombrio quando
lembramos o amplo poder privado do senhor no manejo de seu arsenal de punições e
prêmios.
A família, além disso, estava associada ao sistema de incentivos senhoriais: daí,
certamente, um de seus atrativos para os escravos. As ocupações com autonomia de trabalho,
as possibilidades de acumular um pecúlio e escapar da dura labuta no eito eram distribuídas a
cativos de mais longo contato com o senhor, que tendiam a ser aqueles com uma história
familiar na propriedade. O exercício dessas ocupações, por sua vez, dava ao escravo mais
acesso a outros cativos com recursos e a homens livres, fortalecendo uma teia de relações.
Mesmo quando formada ao largo da casa-grande, tais relações contribuíam para tornar o
escravo mais refém ainda dos próprios projetos. Quem conseguia avançar no caminho do
favor ficava cada vez mais vulnerável, pois tinha mais a perder. Ao mesmo tempo, sonhava
cada vez mais com a possibilidade de alforria para uma ou mais pessoas de sua família, ou
mediante a autocompra (com o montante das poupanças dos membros da família e com
empréstimos de compadres escravos), algum arranjo com compadres livres (empréstimo
seguido de contrato de locação de serviços) ou a concessão “gratuita” ou condicional pelo
senhor. No início da década de 1870, em todo o Império, aproximadamente seis escravos em
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cada mil, por ano, obtinham a liberdade. Em Campinas, como em São Paulo e Rio de janeiro de
um modo geral, a taxa anual era a metade disso, ou um pouco mais.
Tais cifras podem parecer pequenas, mas eram, respectivamente, catorze e 7,5 vezes
maiores que a taxa no Sul dos Estados Unidos em meados do século. Projetadas ao longo de
muitos anos, indicam que o escravo no Império, mesmo no Sudeste, tinha uma chance, mas
não irrisória, de obter a liberdade durante a vida. Para os escravos mais bem-sucedidos na
formação de pecúlios familiares e laços de dependência com pessoas de recursos, a liberdade,
ao menos para uma pessoa da família, não deve ter sido uma meta irrealista. Mesmo que ainda
estivesse fora do alcance da maioria.
Deve-se enfatizar, contudo, que o que mais tornava o caminho do favor “atrativo”, como
um mal menor, era a presença e a ameaça da força. Os anúncios de escravos fugidos nos
jornais de Campinas são instrutivos nesse ponto. Na década de 1870, um em cada doze cativos
anunciados carrega, explicitamente, as marcas ou os grilhões da punição: “tem sinal de castigo
nas costas e nádegas”, “tem sinais no pescoço [e nos tornozelos] provenientes de ferros”, “está
com ferro nos pés e gancho no pescoço”. Há também fugitivos com apenas “sinais nas costas”
ou “sinais de queimaduras nas costas”, descrições que podem ser eufemismos para marcas de
castigo, a proporção vai para um em cada dez anunciados. Sem dúvida, é uma subestimativa
da proporção que realmente apresentava as marcas do cativeiro. Há vários senhores que, ao
reconhecer a presença de cicatrizes ou feridas em seus escravos, tentam distanciar-se do fato,
constrangidos: “tem sinais de castigo nas costas conforme já estava quando o anunciante o
comprou”, “tem sinais muito frescos de castigo que sofreu em consequência de sentença do
júri”, “tem bastantes sinais antigos de castigo” (grifos meus). Na verdade, são sinais dos
tempos modernos: na década de 1870, não era mais de “bom-tom” anunciar as violências
“domésticas” para o mundo. Porém, é bem possível que as marcas corriqueiras de castigo
fossem tão comuns que não ajudassem muito a distinguir entre fugitivos. “Nenhum [dos três
escravos que fugiram] tem sinal de castigo” ; diz um senhor, como se a falta de marcas no
corpo permitisse a identificação.” Finalmente, fica claro que a variedade na descrição dos
anunciantes também contribui para subestimar a incidência de castigos. Retirando-se da
análise os anúncios mais lacônicos, que registram pouco mais do que os dados pessoais
básicos da pessoa, a proporção de fugitivos com sinais explícitos de punições sobe para
aproximadamente um em cinco.
Não é necessário, porém, fazer um recenseamento preciso dos fugitivos que apanharam.
Mesmo a proporção de um em dez ou doze deve ser o suficiente para demonstrar que os
senhores estavam dispostos a usar a força, quando necessário, para impor seu domínio. Os
favores que eles ofereciam podem nos parecer (e eram) mesquinhos. Mas bastava o escravo
presenciar algumas dessas cenas de suplício de colegas sintetizadas nos anúncios – “[o
fugitivo] tem por todo o corpo sinais de chicotadas e já foi surrado” – para compreender que a
alternativa não era alentadora.
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A força e o favor
A história de Lúcio e de seus escravos permite intuir o campo de fora e favor em que os
escravos construíam suas vidas. Entretanto, ela não nos deixa flagrar o sentido que os
próprios cativos davam às estratégias deles. Por exemplo, se aqueles que mais trilhavam o
caminho do favor internalizavam valores de dependência e aproximação aos senhores,
distanciando-se de seus parceiros; e se estes olhavam para aqueles como traidores. Dois
processos-crimes, contudo, são muito sugestivos a esse respeito.
O primeiro processo retrata uma rixa entre escravos em Sorocaba. Jerônimo, cativo
solteiro de 28 ou 29 anos, natural de Sorocaba, vive no sítio de seu proprietário “desde
criança” e é “filho de Domingos”, falecido, que foi escravo do mesmo senhor. Jerônimo se
identifica como “lavrador”; contudo, é também “o encarregado por seu senhor de cuidar e
tratar dos animais”. Enfim, cresceu no sítio e pertence a uma família que prestou longo serviço
ao dono: fatos que provavelmente têm a ver com sua escolha para uma atividade de certa
responsabilidade.
Foi o empenho de Jerônimo em exercer essa responsabilidade que levou à briga entre
ele e seu parceiro Francisco e à morte deste em consequência de “uma pancada na cabeça”.
Segundo um dos três escravos que presenciaram o incidente, Jerônimo e Francisco, antes da
briga, “sempre viveram em muito boa harmonia como bons parceiros que eram”. No domingo
de Páscoa, no entanto, Francisco saiu do sítio sem autorização para visitar um irmão,
apropriando-se de uma mula de seu senhor. Na volta, “Jerônimo, que era quem cuidava dos
animais por ordem de [ ... ] seu senhor, quando se achavam na roça na carpição de café, disse a
Francisco que se continuasse a [ilegível] os animais havia de contar a seu senhor”. A essa
ameaça de delatá-lo, “respondeu Francisco que o fizesse, porque assim [ele, Jerônimo]
ganharia alforria; e ditas estas palavras avança um sobre outro ao mesmo tempo, armados de
suas respectivas enxadas”.
Na fala de Francisco, flagramos um raciocínio sobre os caminhos que podem levar à
alforria surpreendentemente semelhante àquilo que intuímos dos dados sobre família,
compadrio e ocupação. Entendemos, também, que o empenho de um “feitor” escravo em
exercer suas funções podia provocar um colega a acusá-lo de um comportamento egoísta e
subserviente para com o patrão e que a crítica podia doer a ponto de ocasionar uma briga sem
trégua. O que mais chama a atenção nesse caso, contudo, é que Jerônimo, levando a sério a
responsabilidade delegada pelo senhor, não corre para delatar seu parceiro ao proprietário
após descobrir a falta. Em vez disso, tenta negociar com Francisco, buscando um acordo que
poupe o colega de castigos e neutralize os perigos que a ocorrência representa para sua
própria pessoa, pois Jerônimo sabe que a delação poderá atrair-lhe inimizades na senzala.
Ao mesmo tempo, percebe que a complacência com Francisco pode, se instigá-lo à
reincidência, aumentar o risco de o senhor descobrir sua própria conivência com a falta e
retirar-lhe os prêmios.
Na verdade, o escravo que cultivava o favor do senhor não podia dispensar a “amizade” de
seus parceiros. Se assim fizesse, poderia ser alvo do revanchismo deles, como acontece com
um feitor cativo no romance do visconde de Taunay, Mocidade de Trajano. Ou poderia
encontrar-se sem apoio se, por um deslize próprio ou capricho senhorial, caísse do caminho
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dos prêmios para o “brejo” do desfavor. O perigo de isso acontecer era real, como pode ser
apreciado às vezes em codicilos (revisões) incluídos em testamentos, eliminando os nomes de
escravos anteriormente contemplados com benesses. O mundo do cativeiro permanecia
imprevisível, por mais que os escravos se empenhassem em reduzir o perigo em suas vidas.
Mesmo os que realmente tinham chances de ficar com o prêmio gordo, a alforria, sabiam que
as possibilidades de deixar para trás uma vida de insegurança e privações, como libertos,
eram poucas. Nessas circunstâncias, cortar os laços com a comunidade de origem não fazia
sentido.
O segundo processo-crime contribui para estas reflexões. Em 1876, o feitor escravo
Benedito é acusado em Campinas, junto com outros cativos, de assassinar premeditadamente
seu senhor, Francisco de Sales (primo-irmão de Campos Sales, futuro presidente da
República). Na justiça, ele tenta provar sua inocência. Confessa que entrara no plano, sim,
como todos os outros cativos de Sales, mas a contragosto; pois, “tendo crescido junto com seu
senhor a quem foi dado em dote pelo pai deste, não tinha coragem de concorrer para o seu
assassinato”. Na hora do crime, portanto, ele não havia segurado Sales “por detrás”, facilitando
os golpes de enxada dos outros, como afirmara outro réu. Ao contrário, “arrependido”, fora
“abraçar-se a seu senhor [...] pela frente” para protegê-lo, “pedindo a seus companheiros que
não o matassem”.
Na autorrepresentação que Benedito faz para o júri, flagramos a mesma visão do papel do
favor na política dos senhores que intuímos até aqui. Conte ele ou não toda a verdade sobre
suas ações, sua história tem certa verossimilhança. Havendo “crescido junto com seu senhor”
e tendo ganho a preferência dele ao longo dos anos, a ponto de ser instituído feitor dos outros
cativos, Benedito teria retribuído ao favor com solidariedade e gratidão, intercedendo pela
vida do proprietário, não por sua morte.
O júri não acreditou na história. Condenou Benedito e outros dois escravos, tidos como os
mais ativos no crime, a sofrer trezentos açoites e “trazer ferro ao pescoço por oito anos”.
Seu ceticismo provavelmente nasceu em parte porque já estava farto de saber de escravos
favorecidos que fingiam deferência mas que não mereciam confiança. Nas sociedades
escravistas da América, os líderes de revoltas escravas frequentemente eram cativos
“privilegiados”: feitores, trabalhadores qualificados, escravos domésticos. Não parece ter sido
diferente em Campinas. Num plano de levante em 1832, pelo menos três escravos tropeiros
desempenhavam papéis importantes. Em 1848, em outra conspiração, um senhor de escravos
revelaria que “são os escravos feitores os cabeças para tratarem com os mais”, avaliação
confirmada por outros proprietários. A julgar dos anúncios de escravos fugidos na década de
1870, ainda havia muitos cativos que, como esses feitores, eram mestres da dissimulação, fato
que não passou despercebido para os senhores: um fugitivo “fala bem”, outro tem “muita
prosa e [é] ladino”, ainda outro “tem boa prosa de iludir”.
A política de domínio dos senhores era ardilosa e eficaz. Indo ao encontro de certos
anseios dos escravos, ela aumentava a vulnerabilidade de muitos cativos, tornando-os menos
dispostos a arriscar confrontos. Entretanto, essa política provavelmente não conseguiu
cooptar a maioria dos escravos favorecidos e dividir a senzala contra eles. Sem dúvida, havia
tensões na comunidade cativa, por exemplo entre africanos e crioulos e entre campineiros e
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brasileiros de outras origens, trazidos pelo tráfico interno após 1850. Mas a própria vivência
no cativeiro, a insegurança de vida e a necessidade de escravos domésticos e qualificados
sempre terem de mediar, como Jerônimo, os (des)encontros entre senhor e trabalhador teria
dificultado a abertura de um fosso intransponível entre subalternos favorecidos e não
favorecidos.
No entanto, o ardiloso engenho montado pelos senhores voltou-se contra seus criadores.
A política que incentivava a criação de famílias, visando produzir reféns, também garantia aos
escravos um certo espaço de autonomia. Os africanos deportados para o Sudeste, na sua
grande maioria oriundos da África Central (principalmente de Angola e da região do baixo rio
Zaire), trouxeram consigo línguas e culturas com muitas afinidades entre si. A família escrava,
nuclear, extensa, incorporando compadres e malungos (companheiros “do mesmo barco”),
provavelmente serviu como instituição importante para a amálgama dessas culturas centroafricanas, para o encontro entre tradições africanas e europeias, e para a transmissão de
reflexões sobre vivências e memórias entre as gerações. Portadores de uma experiência e
cultura em comum, os muitos escravos Beneditos, ladinos e de muita prosa, teriam deixado
seus senhores sempre em dúvida; qual, afinal, o sentido “daquele abraço” do momento do
assassinato?
(ALENCASTRO, Luiz Felipe de. (Org.). História da Vida Privada no Brasil. Império: a Corte e a modernidade
nacional. Senhores e subalternos no Oeste Paulista.
v. 2. p. 233 a p. 242; p. 251 e 252; p. 256 e 257; p. 274 a 282.)
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OLIVEIRA, Roberson de. História do Brasil: análise e reflexão. Transformações decorrentes da
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—————————. Economia colonial e ação predatória. In: Folha de S. Paulo. Caderno
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