1 POLIFONIA E PONTOS DE VISTA NA CONSTRUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES FEMININAS EM LA REGENTA E EL ABUELO ISABELA ROQUE LOUREIRO UFRJ/ 2011 2 POLIFONIA E PONTOS DE VISTA NA CONSTRUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES FEMININAS EM LA REGENTA E EL ABUELO por ISABELA ROQUE LOUREIRO Doutorado em Letras Neolatinas- Literaturas Hispânicas Tese de Doutorado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos Cursos de PósGraduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Orientadora: Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri. Faculdade de Letras da UFRJ 2º semestre de 2011 3 Polifonia e pontos de vista na construção das subjetividades femininas em La Regenta e El Abuelo Isabela Roque Loureiro Orientadora: Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos). Examinada por: ____________________________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri (UFRJ) ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Elisa Amorim Vieira (UFMG) ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Magnólia Brasil Barbosa do Nascimento (UFF) ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Rosa Gens (UFRJ) ____________________________________________________________________ Prof. Doutor Julio Aldinger Dalloz (UFRJ) ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Elena Cristina Palmero González (UFRJ) ____________________________________________________________________ Profa. Doutora Livia Maria de Freitas Reis Teixeira (UFF) Rio de Janeiro Dezembro de 2011 4 Loureiro, Isabela Roque. Polifonia e pontos de vista na construção das subjetividades femininas em La Regenta e El Abuelo. Isabela Roque Loureiro. Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2011. 376fls. Orientadora: Silvia Inés Cárcamo de Arcuri. Tese (Doutorado). UFRJ/ Faculdade de Letras/ Programa de Pósgraduação em Letras Neolatinas, 2011. Referências Bibliográficas: f. 363-376. 1. Alas, Leopoldo. 2. Galdós, Benito Pérez. 3. Literatura espanhola. 4. Subjetividades femininas. 5. Polifonia e pontos de vista. 6. Infidelidade e ponto de honra. I. Arcuri, Silvia Inés Cárcamo. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. III. Título. 5 Para a família Loureiro, que completa minha vida com seu amor e carinho. 6 AGRADECIMENTOS A Deus, por ter iluminado o meu caminho e, principalmente, por ter me dado forças para superar os momentos de grande dificuldade. Aos meus amados pais, Léia e César Loureiro, por todo carinho, apoio, companheirismo e compreensão. Dedico a vocês minha gratidão eterna e meu amor sem fim. A minha doce irmã, Bruna Loureiro, pela fiel amizade, cumplicidade e amor. Ao meu carinhoso avô, Jorge Cid Loureiro, que, mesmo distante, permanecerá sempre presente em meu coração. Aos meus queridos padrinhos, Fátima e Marcos Caselli, por todo carinho e incentivo. A minha querida orientadora, professora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri, pela indescritível paciência, dedicação, incentivo e amizade. Tê-la em meu caminho foi, sem dúvida, uma benção, da qual ficarei eternamente agradecida. Aos admiráveis professores Julio Dalloz, Elisa Amorim, Magnólia Brasil e Rosa Gens, membros da banca examinadora. À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Faculdade de Letras da UFRJ por todo apoio. Ao CNPQ, pela bolsa que me foi concedida e que muito contribuiu para a realização deste trabalho. 7 Às queridas professoras Claudia Luna, Letícia Rebollo, Mercedes Sebold, Eline Resende e Sonia Reis, que sempre me acompanharam durante a minha trajetória acadêmica na UFRJ. À equipe de língua inglesa do IFRJ- Maracanã por todo o carinho e confiança. Aos carinhosos amigos Antonio Ferreira, Leandro Cristóvão, Marina Zalona, Rafaela Tayão, Deborah Ferrer, Fabiana Magalhães, Silvia Justi, Cláudio Gomes e Leonardo Gandolfi pela preciosa e eterna amizade. Ao querido casal, Sergio e Carol Panizza, pela grande amizade e precioso incentivo. À amiga Renilse Paula por ter trazido da Espanha o romance El Abuelo, essencial para a realização desta pesquisa. A todos os companheiros que, direta ou indiretamente, me ajudaram na elaboração deste trabalho, aos quais certamente seria impossível agradecer nominalmente. 8 Cuando la sed se haya quemado en mi garganta, cuando no tenga paz ni amor, cuando todo sea voces y no llantos, una pequeña sombra habrá a mi lado. No la rosa del ansia ni el clavel de miseria, sino la joven luz del alba, la joven voz del alba mía. Efraín Huerta 9 LOUREIRO, Isabela Roque. Polifonia e pontos de vista na construção das subjetividades femininas em La Regenta e El Abuelo. Tese de Doutorado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2011. 376 fls. RESUMO O objetivo desta pesquisa é analisar as subjetividades femininas retratadas nos romances naturalistas La Regenta (1884-85), de Leopoldo Alas ―Clarín‖, e El Abuelo (1897), de Benito Pérez Galdós. Em ambas as obras, essas construções encontram-se representadas por múltiplas vozes e consciências independentes, o que nos aproxima do conceito de polifonia difundido por Bakhtin. Tratam-se, pois, de romances polifônicos, e, no intuito de analisar as diversas vozes através das quais a figura da mulher é falada ou fala, consideraremos os estudos críticos de teóricos do estruturalismo e do pós-estruturalismo sobre o uso dos pontos de vista no romance. Examinaremos, a partir da análise do jogo de vozes, as relações das personagens femininas com o seu entorno e as estratégias usadas no enfrentamento da realidade, atribuindo expressivo enfoque à figura da infidelidade, tida por nós como um recurso complexo, capaz de apresentar a profundidade da natureza feminina, os jogos de engano e a aceitação ou não das normas impostas pela sociedade patriarcal do séc. XIX. E por estar a figura da infidelidade intrinsecamente relacionada à honra masculina, promoveremos também um estudo sobre o ponto de honra, já que há, por parte dos autores, uma nítida intenção de resgatar o código de honra difundido pelo teatro espanhol do Século de Ouro, a fim de recriá-lo, dando-lhe um novo sentido: o paródico. Palavras- Chave: Leopoldo Alas ―Clarín‖, Benito Pérez Galdós, literatura espanhola, subjetividades femininas, polifonia e pontos de vista, infidelidade e ponto de honra. 10 LOUREIRO, Isabela Roque. Polifonia e pontos de vista na construção das subjetividades femininas em La Regenta e El Abuelo. Tese de Doutorado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2011. 376 fls. RESUMEN El objetivo de esta investigación es analizar las subjetividades femeninas retratadas en las novelas naturalistas La Regenta (1884-85), de Leopoldo Alas ―Clarín‖, y El Abuelo (1897), de Benito Pérez Galdós. En ellas, esas construcciones se encuentran representadas por múltiples voces y consciencias independientes, lo que nos acerca del concepto de polifonía difundido por Bakhtin. Se tratan, pues, de novelas polifónicas, y, con el objetivo de analizar las diversas voces a través de las cuales la figura de la mujer es hablada o habla, consideraremos los estudios críticos de teóricos del estructuralismo y del posestructuralismo sobre el uso de los puntos de vista en la novela. Examinaremos, a partir del análisis del juego de voces, las relaciones de los personajes femeninos con su entorno y las estrategias usadas en el enfrentamiento de la realidad, atribuyendo expresivo enfoque a la figura de la infidelidad, considerada por nosotros como un recurso complejo, capaz de presentar la profundidad de la naturaleza femenina, los juegos de engaño y la aceptación o no de las normas impuestas por la sociedad patriarcal del siglo XIX. Y por estar la figura de la infidelidad intrínsecamente relacionada a la honra masculina, desarrollaremos también un estudio sobre el punto de honor, ya que hay, por parte de los autores, una nítida intención de rescatar el código de honra difundido por el teatro español del Siglo de Oro, a fin de recrearlo, dándole un nuevo sentido: el paródico. Palabras- Clave: Leopoldo Alas ―Clarín‖, Benito Pérez Galdós, literatura española, subjetividades femeninas, polifonía y puntos de vista, infidelidad y punto de honor. 11 LOUREIRO, Isabela Roque. Polifonia e pontos de vista na construção das subjetividades femininas em La Regenta e El Abuelo. Tese de Doutorado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2011. 376 fls. ABSTRACT The aim of this study is to analyze the female subjectivities portrayed in the naturalistic novels La Regenta (1884-85), by Leopoldo Alas "Clarín", and El Abuelo (1897), by Benito Perez Galdós. In both pieces of works, these constructions are represented by multiple voices and independent consciousnesses, which brings us closer to the concept of polyphony proposed by Bakhtin. Those are, therefore, polyphonic novels and, in order to analyze the different voices through which the figure of the woman speaks or is spoken, we will consider the critical theoretical studies of structuralism and post structuralism on the use of the points of view in novel. Based on the analysis of the game of voices, we will investigate the relationships of the female characters with their surroundings and the strategies used to cope with the reality, giving significant focus to the figure of infidelity, which is understood as a complex resource which can show the depth of feminine nature, the games of deception and the acceptance or rejection of the standards imposed by the patriarchal society of the 19th century. And since the figure of infidelity is intrinsically related to the male honor, we will also promote a study on the point of honor, because, on the part of authors, there is a clear intention to save the honor code, which was encouraged by the Spanish theater of the Golden Age, in order to recreate it by giving it a new meaning: the parody. Keywords: Leopoldo Alas ―Clarín‖, Benito Perez Galdós, Spanish literature, female subjectivities, polyphony and points of view, infidelity and point of honor. 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO.......................................................................................................................p.14 1. MULHERES QUE FALAM, MULHERES QUE SÃO FALADAS...............................p.26 2. VOZES E PERSPECTIVAS NO ROMANCE LA REGENTA.......................................p.39 2.1. O narrador clariniano toma a palavra.................................................................................p.48 2.1.1. Onisciência e subjetividade do sujeito da enunciação.................................................p.53 2.1.2. Os discursos indireto e indireto livre na construção das subjetividades femininas.....p.68 2.1.2.1. Ana Ozores.........................................................................................................p.70 2.1.2.2. Paula de Pas……………………………………………………………....…..p.104 2.1.2.3. Obdulia Fandiño……………………………………………………………...p.120 2.1.2.4. Visitación………………………………………………………………..........p.133 2.1.2.5. Rufina Robledo.................................................................................................p.137 2.2. As personagens tomam a palavra.....................................................................................p.143 2.2.1. Os monólogos e os diálogos na construção das subjetividades femininas................p.143 2.2.2. As cartas e o diário: a escrita como expressão da subjetividade de Ana Ozores......p.164 3. VOZES E PERSPECTIVAS NO ROMANCE EL ABUELO .......................................p.182 3.1. O afastamento do narrador galdosiano.............................................................................p.189 3.2. As personagens tomam a palavra.....................................................................................p.213 3.2.1. Leonor e Dorotea.......................................................................................................p.222 3.2.2. Lucrecia Richmond...................................................................................................p.243 3.2.3. Personagens secundárias: Gregoria, Consuelo e Vicenta..........................................p.262 3.2.3.1. Gregoria............................................................................................................p.262 3.2.3.2. Consuelo...........................................................................................................p.265 3.2.3.3. Vicenta..............................................................................................................p.268 13 4. A FIGURA DA INFIDELIDADE FEMININA EM LA REGENTA E EL ABUELO..p.273 4.1. O tema do adultério nas produções literárias do Século de Ouro....................................p.284 4.2. A desonra em La Regenta................................................................................................p.313 4.3. A desonra em El Abuelo..................................................................................................p.342 CONCLUSÃO........................................................................................................................p.357 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................p.363 14 INTRODUÇÃO A Revolução Industrial− iniciada na Inglaterra a partir da segunda metade do séc. XVIII− foi indiscutivelmente um dos acontecimentos mais significativos, do ponto de vista econômico e social, da história do ocidente. Entretanto, foi no século XIX que a industrialização conquistou o seu esplendor, estendendo-se a inúmeros países da Europa, que, dado ao sucesso de suas empresas administrativas e comerciais, rapidamente se converteram em grandes potências mundiais. A industrialização das nações europeias e o irrefutável processo de modernização das mesmas podem ser explicados, acima de tudo, pela consolidação do capitalismo. Compreendido como um novo sistema de organização da produção econômica, o capitalismo possibilitou a formação de um novo panorama na sociedade europeia no séc. XIX, marcado por transformações de diversas ordens, tais como a expansão do comércio interno e exterior, que ampliou o número de oportunidades no mercado de trabalho e a criação de novos postos, inclusive, muitos deles ocupados pelas mulheres, tais como observamos nas indústrias têxteis; a implantação da energia elétrica nos grandes centros; a chegada das ferrovias como alternativa aos meios de transporte; a criação de novas cidades, impulsionadas pelas políticas de urbanização; a expansão de espaços públicos e privados (os cafés, os ―pubs‖, as salas de jogos nos cassinos, os passeios públicos ou ―Boulevards‖, as avenidas, as bibliotecas, os gabinetes de leitura particulares, e etc.), e o ingresso expressivo do público leitor no mundo das letras, dado ao fomento de campanhas de alfabetização e ao boom literário acarretado pela produção ostensiva de romances que, em sua maioria, apresentavam o perfeito ―retrato‖ da sociedade burguesa da 15 época. E é dentro desse contexto histórico que situamos a condição da mulher na sociedade europeia do séc. XIX, no intuito de comprovar que muitas dessas mudanças contribuíram para a formação de novas subjetividades femininas, foco central de nossos estudos sobre a figura da mulher em dois grandes romances da literatura espanhola do século XIX: La Regenta, de Leopoldo Alas ―Clarín‖ e El Abuelo, de Benito Pérez Galdós. Em ambas as obras, essas construções femininas encontram-se representadas por múltiplas vozes e consciências independentes, que se posicionam nas narrativas de forma a expressar os seus mais íntimos sentimentos e pensamentos fundamentados, a nosso ver, em posicionamentos de natureza ideológica, em especial se consideramos o fato de o indivíduo, enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, se apresentar como um fenômeno puramente sócio-ideológico, constituído pelas relações sociais com outros indivíduos na sociedade (BAKHTIN, 1995, p.58). Não obstante, antes de iniciarmos as análises sobre as diversas vozes através das quais a figura da mulher é falada ou fala, nos pareceu importante dedicar o primeiro capítulo à apresentação dos conceitos teóricos que norteiam as nossas pesquisas sobre a enunciação nos romances La Regenta e El Abuelo, a fim de que os leitores de nossa tese se conscientizem do caráter essencialmente polifônico das obras estudadas por nós. No segundo capítulo, intitulado ―Vozes e perspectivas no romance La Regenta‖, trataremos, com expressivo enfoque, da voz do narrador, o principal regente da obra. Analisaremos o tipo de narrativa priorizada pelo ―yo fictício‖ ao longo dos trinta capítulos de La Regenta, que conhecimento ou saber apresenta sobre os acontecimentos e as personagens que compõe a diegese e quais são os valores que 16 se põem em jogo ao narrar, de forma a evidenciar os principais aspectos relativos à onisciência e à subjetividade do sujeito enunciador. Em seguida, apresentaremos a forma como o narrador clariniano representa as subjetividades femininas no romance, geralmente construídas por intermédio do discurso indireto e do discurso indireto livre. E diante da portentosa galeria de personagens femininas presente nos dois volumes de La Regenta, é imprescindível comentar que direcionaremos nossos olhares para as figuras mais emblemáticas, tais como Ana Ozores, personagem central do romance, a viúva Obdulia Fandiño, dona Rufina Robledo, a Marquesa de Vegallana, a comilona Visitación e a inescrupulosa dona Paula, o que não nos impede de considerar, se necessário, a presença de outras personagens clarinianas (masculinas e femininas) em nossas análises. Trataremos também, com grande ênfase, das vozes das personagens, tão independentes quanto à voz do narrador clariniano. Inúmeras são as cenas em que podemos vislumbrar a autonomia das vozes dessas figuras, concedida intencionalmente pelo autor de La Regenta, e é, sobretudo, por intermédio dos monólogos interiores e dos diálogos que as personagens tomam para si a palavra, na intenção de expressarem diretamente o fluir de seus pensamentos e de seus pontos de vista. Em La Regenta, as vozes das personagens, sejam elas femininas ou masculinas, encontram-se carregadas de posicionamentos ideológicos, o que acentua o caráter sócio-ideológico da enunciação. Desse conceito, também difundido por Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem (1995), nos pareceu indispensável analisar como as linguagens sociais, ativadas, interpretadas e reelaboradas por Clarín e Galdós, são articuladas aos discursos das personagens dos romances La Regenta e 17 El Abuelo, questão que abre caminho à manifestação de pontos de vista diferentes, antagônicos ou complementários. E para melhor tratar da forma como o jogo de vozes se manifesta no uso dos pontos de vista, consideraremos a teoria de Gérard Genette (1972), em Figures III, e de outros críticos do estruturalismo e do pósestruturalismo, dentre os quais podemos destacar Roland Barthes (1970), em S/Z, Roland Bourneuf & Réal Ouellet (1989), em La novela, Carlos Reis (1984), em Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós, e Federico Peltzer (2001), em Los artificios del ventrílocuo. Las voces del narrador en diferentes novelas, desde el Quijote hasta nuestros días, que consideram a instância da enunciação como essencial na linguagem oral e escrita. Analisaremos também, nesse capítulo, a construção da subjetividade feminina através das cartas e do diário de Ana Ozores, uma personagem leitora e produtora de textos. E, para melhor discorrermos sobre a importância desses dois gêneros confessionais capazes de desempenhar um expressivo papel na afirmação da subjetividade de Ana, nos pareceu interessante buscar apoio nos estudos críticos sobre as escritas autobiográficas, em especial nos de Leonor Arfuch (2010), em O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, e de José María Pozuelo Yvancos (2005), em De la autobiografía. Teoría y estilo, visto que tanto o diário como as cartas tratam-se de gêneros que também traduzem a singularidade do ―eu‖ que escreve e se reinscreve no ato da escrita. Outra importante obra a ser considerada por nós será a Revista Occidente de julho-agosto de 1996, que, nesta edição, tratará especificamente do gênero diário íntimo. Da significativa coletânea de estudos reunidos nesse exemplar, nos apoiaremos enfaticamente nos textos ―El diario como género literario‖, de Alain Girard, ―El diario ¿forma abierta?‖, de Béatrice 18 Didier, ―El diario íntimo y el relato‖, de Maurice Blanchot e ―La práctica del diario personal: una investigación (1986-1996)‖, do escritor Philippe Lejeune, na intenção de tornar nossas análises mais consistentes e produtivas. No terceiro capítulo, intitulado ―Vozes e perspectivas no romance El Abuelo‖, nossa primeira discussão centrar-se-á em torno da figura do narrador, ou melhor, em torno do seu afastamento na diegese. Por se tratar de uma obra em que o autor prioriza o procedimento dialogal, a presença do sujeito enunciador torna-se praticamente ínfima, perto da relevância que as vozes das personagens passam a ter ao longo das cinco jornadas que compõem o romance galdosiano, adaptado posteriormente para o teatro espanhol na primeira década do século XX. Ainda que muitos acadêmicos tenham censurado Galdós pelo uso e pela defesa da inovadora técnica empreendida por ele, sua contribuição foi indiscutivelmente significativa à novelística contemporânea, visto que abriu caminhos para o surgimento de novas formas de narrar. E foi particularmente esse novo modelo de narrativa, um tanto revolucionário para um período consagrado pela ostensiva presença de relatos em terceira pessoa (narrativas heterodiegéticas), que nos motivou a trabalhar com o romance El Abuelo, a fim de analisar a maneira como as subjetividades femininas encontram-se representadas nessa obra tão particular. Assim como em La Regenta, atribuiremos grande destaque aos monólogos interiores e aos diálogos estabelecidos entre as personagens do romance, com o objetivo de que elas próprias− por intermédio do discurso direto− apresentem os elementos que compõem a sua interioridade e os seus pontos de vista, e, dentre as diversas figuras presentes no universo diegético de El Abuelo, é oportuno comentar que direcionaremos nossos olhares apenas para as que julgamos serem as principais 19 personagens femininas do romance: Lucrecia Richmond e suas filhas, Dolly e Nell, não descartando, evidentemente, as outras vozes das personagens (masculinas e femininas) que falam a respeito dessas três importantes figuras. Quanto ao corpo teórico, nos valeremos igualmente dos estudos desenvolvidos por Bakhtin− em Marxismo e filosofia da linguagem (1995), Questões de literatura e estética (1998) e Problemas da poética de Dostoievski (2008)− e dos estudos críticos de teóricos do estruturalismo e do pós-estruturalismo sobre o uso dos pontos de vista no romance. Da leitura de diversas obras da literatura realista/ naturalista no séc. XIX foi que nasceu a ideia de relacionarmos o comportamento transgressor das personagens femininas com o tema da traição. A figura da infidelidade feminina, dentro da tradição da literatura espanhola, é um tema de bastante recorrência e conquista significativa relevância com a publicação de obras como El Libro del Buen Amor, La Celestina, El Lazarillo de Tormes, Persiles y Sigismunda, as poesias satíricas de Francisco de Quevedo e uma expressiva parcela dos dramas de autoria de Pedro Calderón de La Barca e Lope de Vega. No romance La Regenta, Leopoldo Alas também atribui importante enfoque à figura da traição feminina, uma vez que o adultério de Ana Ozores surge primordialmente como reação a um relacionamento conjugal fracassado. Víctor Quintanar tinha por Ana um querer bem diferente daquele que se espera entre dois amantes apaixonados motivados pelos impulsos carnais. Na relação entre ambos não havia erotismo, sensualidade nem tampouco desejos. O cavalheiro a via apenas como uma pobre mulher que necessitava de proteção, enquanto o que Ana Ozores mais necessitava era amor, e foi justamente esta explícita insatisfação da jovem, explicada pela ausência do elemento masculino, 20 ou seja, pela figura do marido, que fez com que a dama visse no adultério a saída para fugir da aprisionadora vida que levava ao lado de Quintanar, que era tudo menos um marido (ALAS, 1998, p.296). A figura da infidelidade feminina como recurso de enfrentamento da realidade também será tratada na obra El Abuelo por intermédio da personagem de Lucrecia Richmond, herdeira de uma considerável fortuna adquirida após o falecimento do marido, o aristocrata Rafael Albrit. Por ser a viúva uma mulher de considerável influência e contatos políticos na sociedade espanhola do séc. XIX, ela será persistentemente acusada pelo Conde de Albrit que, por nenhum momento, poupará esforços para difamá-la, em outras palavras, para destruí-la moralmente, tal como observamos em inúmeras cenas da obra. De todas as infamantes acusações feitas por dom Rodrigo, a mais grave foi, sem dúvida, a que atribui à Lucrecia a responsabilidade pela morte do filho. O Conde, através de uma correspondência escrita por Rafael minutos antes de morrer, descobre o adultério de Lucrecia com o pintor Carlos Eraul, em Paris, o que resultou no nascimento de uma das filhas do casal. Ao conscientizar-se da má sorte do filho, o velho Albrit mostra-se inconformado, furioso com a leviandade da nora, e passará a dedicar os últimos dias de sua vida para penalizá-la por tamanha audácia, por tamanho pecado, reivindicando para si a guarda de sua verdadeira neta. Dentro das várias figuras possíveis, escolhemos a da infidelidade feminina como um recurso complexo, capaz de apresentar a profundidade da natureza feminina, os jogos de engano e a aceitação ou não das normas estabelecidas pela sociedade patriarcal da época, questões que nos direcionam ao tema da honra, que funciona como o complemento ou a outra cara da figura da mulher que trai e que se 21 faz, portanto, objeto de suspeita e de temor. Por estar a infidelidade feminina intrinsecamente relacionada à honra do marido, nos pareceu imprescindível considerar a realização de estudo sobre o ponto de honra, matéria muito presente em inúmeras obras da tradição espanhola no Século de Ouro, tais como El médico de su honra e Persiles y Sigismunda, no intuito de analisar como se configuram os seguintes temas nos romances La Regenta e El Abuelo. Para a realização dessa análise, tomaremos como referência os estudos críticos de Menéndez Pidal (1940), Menéndez y Pelayo (1948), Américo Castro (1980), Francisco Ayala (1989), Joan Oleza (2003), John Beverley (1975) e Gustavo Correa (1983). Há, por parte de Clarín e Galdós, uma nítida intenção de resgatar o código de honra difundido pelo teatro espanhol do século XVII, a fim de recriá-lo, dando-lhe um novo sentido nas narrativas de La Regenta e El Abuelo: o paródico. Procuraremos também comprovar que essa releitura do código de honra não se limitava apenas a apresentar um retrato paródico das personagens, compreendidos como representações cômicas dos heróis calderonianos. Por detrás dessas figuras havia uma proposta ideológica muito significativa: a de apresentar a transição de um discurso conservador, que consagrou Calderón no século XVII como poeta teólogo da identidade nacional, a um discurso de natureza liberal, difundido inicialmente pelo krausista Giner de los Ríos e aprimorado posteriormente pelos krausopositivistas Clarín e Galdós no período correspondente ao realismo/naturalismo na Espanha. O comportamento transgressor das personagens femininas em La Regenta e em El Abuelo também vem ao encontro dessa perspectiva crítica do realismo/ naturalismo na Espanha, muito aclarada por Joan Oleza (2002) em seus significativos estudos sobre o romance espanhol no século XIX. A multiplicidade de vozes e de 22 pontos de vista diferentes são reveladores. Através deles, notamos que muitas são as personagens que irão questionar e, inclusive, rebelar-se contra a presença de uma mentalidade predominantemente conservadora e atrasada, decorrente do Antigo Regime, o que muito dificultou a difusão de propostas de cunho político-liberal, levantadas principalmente pelos partidários da República, tais como Leopoldo Alas e Galdós, escritores visceralmente engajados na luta política a favor da revolução. Dessa forma, transgressora também é a retórica de Clarín e Galdós, sobretudo, se ponderamos a nítida intenção dos romancistas naturalistas de indagarem, em suas ficções, as zonas proibidas, ou seja, todo aquele universo marcado pela corrupção das autoridades estatais e da Igreja Católica, pela hipocrisia, luxúria e amoralidade da sociedade burguesa, pela decadência da aristocracia espanhola, pelo fortalecimento do estilo de vida burguês, caracterizado pelo consumismo exacerbado, pelo afastamento da burguesia de seus princípios revolucionários, pela marcante desigualdade social acentuada pelo modelo capitalista vigente, enfim, pela deterioração da realidade, que consequentemente levaria à deterioração do indivíduo que nela se encontrava inserido. Tanto em La Regenta como em El Abuelo essa indagação por parte dos autores não fora feita de modo despropositado, pelo contrário, além do princípio estético, havia também um princípio ideológico, o que nos revela a essência indiscutivelmente revolucionária do realismo/ naturalismo de Leopoldo Alas e Benito Pérez Galdós, romancistas que, por intermédio do texto literário, desnudavam as mazelas da vida pública e os contrastes da vida íntima, expondo, da forma mais nítida possível, os diferentes valores e ideologias dos imaginários de cada personagem, o que acentua indiscutivelmente o caráter sócio-ideológico dos romances clariniano e galdosiano. 23 O romance realista de signo liberal e revolucionário provoca inúmeras críticas, sobretudo, por parte dos acadêmicos mais tradicionais, escandalizados com a vulgaridade e feiúra de uma arte que consideravam ser desprovida de um ―ideal‖. Esse repúdio à escola realista tornar-se-á evidente no artigo do filósofo Ortega y Gasset intitulado ―Arte artístico‖, considerado um importante manifesto das vanguardas por tratar de temas relacionados à desumanização da arte. Nele, o constante ataque aos partidários do realismo se dará pelo fato de os realistas terem procedido ―impuramente‖, reduzindo a um mínimum os elementos estritamente estéticos e fazendo consentir a obra, quase por completo, na ficção de realidades humanas (ORTEGA Y GASSET, 1932. p.894), apreciação que salienta uma incontida aversão do filósofo ao realismo e uma enérgica necessidade de superação das manifestações realistas/ naturalistas, consideradas já arcaicas, exaustivas e obsoletas, em prol de uma arte não democrática e desumanizada. Evidentemente, não compartilhamos com as críticas realizadas por Ortega y Gasset e seus partidários, especialmente aquelas que desconsideravam o potencial artístico e crítico da retórica realista/ naturalista. No entanto, nos pareceu pertinente apresentá-las no intuito de contrapô-las a nossa proposta de comprovar o indiscutível caráter revolucionário do realismo de Clarín e Galdós, que, em obras como La Regenta e El Abuelo, cumprem magistralmente a função de manifestar o processo ideológico da burguesia espanhola. Nessa análise, ambicionamos associar a figura da infidelidade feminina à desonra marital, especialmente se consideramos o fato de o marido traído, amparado pelas leis vigentes do Código Penal Espanhol, ter o direito de se vingar dos adúlteros, reivindicando, assim, a honra manchada pelo adultério, considerado crime no século XIX. 24 Tanto em La Regenta como El Abuelo, os temas da infidelidade feminina e da desonra serão representados de forma particular, e para melhor compreender as particularidades apresentadas por cada romancista, nos pareceu pertinente regressar à literatura espanhola do século de Ouro, mais especificamente a obras como El médico de su honra, de Pedro Calderón de La Barca, e Persiles y Sigisminda, de Miguel de Cervantes, pelo fato de haver uma indiscutível relação dialógica entre ambas as obras. Para analisar como se estrutura o conceito de honra na sociedade espanhola do séc. XVII e como este se encontra representado nas principais produções literárias setecentistas, recorremos à teoria crítica de Ramón Menéndez Pidal, em De Cervantes y Lope de Vega (1940), Marcelino Menéndez y Pelayo, em Calderón y su teatro (1948), Francisco Ayala, em La imagen de España (1989) e Mario M. González, no artigo ―Honra y honor en Peribáñez‖ (2009). A posterior, para analisarmos como a infidelidade feminina e o ponto de honra encontram-se articulados em La Regenta e El Abuelo, consideraremos os estudos de Joan Oleza, em El discurso liberal y el teatro antiguo español; Francisco de Paula Canalejas (2003) e de Gustavo Correa, em Calderón y la novela realista española (1983), a fim de evidenciarmos a intrínseca relação entre o teatro calderoniano e o romance realista do séc. XIX. Além de apresentar o expressivo diálogo entre a literatura realista/ naturalista na Espanha oitocentista e a literatura do Século de Ouro, pretendemos também evidenciar o princípio ideológico que rege tanto La Regenta como El Abuelo. Por trás da burlesca figura de dom Víctor Quintanar e de dom Rodrigo, o Conde de Albrit, entendidos como paródias dos heróis calderonianos, havia uma proposta de cunho ideológico, aclarada pela transposição do discurso conservador, difundido 25 persistentemente por Calderón e seus contemporâneos no séc. XVII, ao discurso liberal, o que corrobora o posicionamento revolucionário da retórica de Clarín e Galdós, avessos ao conservadorismo do Antigo Regime. 26 I. MULHERES QUE FALAM, MULHERES QUE SÃO FALADAS A enunciação não é uma cena ilusória onde seriam ditos conteúdos elaborados em outro lugar, mas um dispositivo constitutivo da construção de sentidos e dos sujeitos que aí se reconhecem (MANGENEAU, 1997, p.50). Ao contrário do que propôs Ferdinand de Saussure em Curso de linguística geral (1961) e muitos outros linguistas que, posteriormente, se apropriaram de sua teoria, a língua não deve ser compreendida como um arranjo sistemático de partes que se compõe de elementos formais articulados em combinação variáveis, segundo certos princípios de estrutura, nem muito menos como um reflexo das hesitações subjetivo-psicológicas, mas sim como o fenômeno social da interação verbal (BAKTHIN, 1995, p.123), visto que a sociedade não é possível a não ser por intermédio dela e vice-versa. Seu emprego se dá através de enunciados, escritos ou orais, e é justamente por intermédio da enunciação que a língua entra em contato com a comunicação, ―imbuindo-se do seu poder vital e tornando-se uma realidade‖ (Ibidem, p.154). A conscientização do homem, enquanto sujeito, se dá a partir de sua interação com o meio, e essa interatividade, por sua vez, revela a natureza essencialmente social da enunciação e da língua, que vive e evolui historicamente de acordo com o fluxo da comunicação verbal (Ibidem, p.124). Dessa forma, por ser a língua compreendida como um espelho das relações sociais estáveis dos falantes, observamos que, no ato de comunicação social, há uma indiscutível interatividade entre os sujeitos enunciadores. O receptor, ao ouvir e compreender um enunciado, passa a adotar uma atitude responsiva, podendo atuar de forma ativa no ato 27 enunciativo. Eis a principal característica do enunciado, que, aos olhos do teórico russo, resulta de uma memória discursiva, ou seja, de uma memória repleta de enunciados que já foram proferidos em outras épocas e em outros contextos interacionais, nos quais o locutor inconscientemente toma como base para realizar a enunciação do momento, no intuito de formular o seu discurso. A enunciação caracteriza-se, assim, pela alternância de atos de fala, numa relação dialógica. Nas obras literárias, primordialmente nos romances, essa alternância torna-se sobressalente, à medida que consideramos polifonia, em outras palavras, a multiplicidade de vozes e de pontos de vista que se entrecruzam num mesmo campo discursivo. O romancista cria uma obra (enunciado) de discurso único e completo, não obstante, a produz a partir de enunciados heterogêneos, queremos dizer, de discursos heterogêneos (BAKTHIN, 2006, p.321). Cada ato de fala é repleto de assimilações e reestruturações dessas diversas vozes; logo, cada discurso é composto de vários discursos. Essas vozes ―dialogam‖ dentro do discurso, e é justamente a partir deste diálogo polifônico de interconsciências, construído histórico e socialmente, que se dá a construção da consciência individual do falante, que, como já ressaltamos, é tão social quanto a ideologia. Citamos: O indivíduo, enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, enquanto autor de seus pensamentos, enquanto personalidade responsável por seus pensamentos e por seus desejos, apresenta-se como um fenômeno puramente sócioideológico. Esta é a razão porque o conteúdo do psiquismo ―individual‖ é, por natureza, tão social quanto a ideologia e, por sua vez, a própria etapa em que o indivíduo se conscientiza de sua individualidade e dos direitos que lhe pertencem é ideológica, histórica, e inteiramente condicionada por fatores sociológicos (BAKHTIN, 1995, p.58). 28 Nós, enquanto indivíduos, estamos sempre nos definindo diante de uma realidade marcada pela historicidade das relações sociais, pelo significativo olhar do outro e pelos sentidos que nos perpassam como se fossemos matéria fluida. Somos produtos de construções discursivas, principalmente porque nos construímos a partir do momento que entramos em contato com o discurso do outro. Sendo assim, todos nós participamos, inegavelmente, do processo de construção de uma realidade percebida, o que acentua o fato de ser a experiência humana um evento tanto individual como coletivo. Estudar a língua leva inevitavelmente ao estudo da linguagem, ―uma das nossas principais fontes de conhecimento da cultura (ou do ‗mundo da significação‘) de um povo e das distinções ou divisões que aí se praticam‖1, e por dedicar-se à representação dos sujeitos falantes e dos seus universos ideológicos de cada um deles, o autor, no romance, apresenta uma indiscutível diversidade social de linguagens organizadas artisticamente por ele, que marcam: (...) a presença de dialetos sociais, de maneirismos típicos de determinados grupos, de gírias profissionais, de linguagem de gêneros, de fala das gerações, das tendências, das autoridades, dos círculos e das modas passageiras, das linguagens do dia-adia, enfim, de toda a estratificação interna de cada língua em cada momento dado de sua existência histórica‖ (BAKHTIN, 1988, págs.74/75). E é devido a esse pluringuismo social e ao plurivocalismo tão expressivos que o romance consegue organizar, em seu conjunto, todos os seus temas, todo o seu mundo objetal, semântico, figurativo e expressivo (Ibidem, p.74). O discurso do autor, os discursos dos narradores, os gêneros intercalados, os discursos das 1 ―Language is one of our chief sources of knowledge about a people‘s culture (or ‗world of meaning‘) and the distinctions or divisions which are made in it‖. HARRIS, Zellig S. Methods in structural linguistics. Chicago: University Press, 1951. p.188. 29 personagens não passam de unidades fundamentais de composição com a ajuda das quais a polifonia se introduz visivelmente na obra literária. E foi desse caráter enunciativo, intrínseco à natureza do romance, que vislumbramos a possibilidade de considerar La Regenta e El Abuelo como importantes vias de acesso às sensibilidades das mulheres espanholas do século XIX, especialmente pelo fato de as obras estudadas por nós apresentarem a cotidianidade das mulheres oitocentistas, retratando, a través da diversidade de vozes e dos pontos de vista, os seus inúmeros conflitos e tensões sociais, num momento em que a sociedade espanhola se ajustava às demandas de um mundo que se modernizava abruptamente, em decorrência das transformações sócio-econômicas consolidadas pelo capitalismo na Europa oitocentista. Nesse período, muitos foram os romancistas que viram a necessidade de apresentar uma figura feminina não mais de forma superficial, mas sim de maneira complexa, revelando os desejos e as inquietações que povoam o imaginário das mulheres, e esta explícita necessidade de expor, na obra literária, a natureza essencialmente acentuada das personagens femininas, marcada por pensamentos e por sentimentos muitas vezes contraditórios, tais como a paixão, o amor, o ódio, o desejo, a perversão, a repressão, os sonhos e a desilusão, pode ser vislumbrada em diversos textos, tais como na crítica em que Leopoldo Alas ―Clarín‖ faz ao romance galdosiano Tormento. Nela, o escritor, enquanto crítico literário, chama a atenção para o fato de a mulher ser pouco estudada na literatura espanhola. Considerava ser necessário levar adiante o seu estudo no romance, a fim de que não mais a pintassem em abstrato, mas sim em dependência ―de seu ambiente, de sua dor, de seus trapos, de seus sonhos, de suas volubilidades, de suas caídas, de seus erros, de seus 30 caprichos, considerando as diversas circunstancias que naturalmente deveriam rodeála‖, tal como afirma Adolfo Sotelo Vázquez (1999, p.27). É, portanto, dessa necessidade de estudar o imaginário feminino na ficção que nascem figuras femininas tão singulares, como é o caso de Emma, do romance Madame Bovary, personagem que se entrega desmedidamente ao amor proibido, às luxúrias e aos caprichos de uma vida consumista, explicada pela consolidação do capitalismo no século XIX, sistema que gerou renda e aumentou o poder aquisitivo de uma expressiva parcela da sociedade francesa; de Luísa, do romance O primo Basílio, personagem querosiana que escandalizou a sociedade portuguesa da época pela audácia e pelo atrevimento de suas aventuras sexuais com o primo, realizadas num modesto apartamento alugado pelos amantes, denominado ironicamente de ―Paraíso‖; e de Capitu, do romance machadiano Dom Casmurro, uma figura de personalidade marcante e de vontades próprias: ―As curiosidades de Capitu eram de várias espécies, explicáveis e inexplicáveis, assim úteis como inúteis, umas graves, outras frívolas; gostava de saber tudo‖ (ASSIS, 1998, cap. XXXI, p.53). Dentro de um rico conjunto de romances oitocentistas que se voltam para as problemáticas femininas, passando a privilegiar questões como educação, família, paixão, amor, traição e sexualidade, ou seja, que buscavam aprofundar a complexidade da natureza feminina na ficção, optamos por trabalhar com La Regenta, de Leopoldo Alas ―Clarín‖, e El Abuelo, de Benito Pérez Galdós, porque ambas apresentarem caracteres femininos extremamente acentuados, que chegam, em muitas ocasiões, a transgredir o modelo de feminilidade exigido pelas autoridades estatais, pela Igreja Católica e pela própria família. 31 Um dos aspectos que mais atraiu nossa atenção nos romances La Regenta e El Abuelo foi indiscutivelmente a pluralidade de vozes que narram as subjetividades femininas. Para Cornelius Castoriadis (1999, p.35), a noção de subjetividade deve estar relacionada à ―capacidade de receber o sentido, de fazer algo com ele e de produzir sentido, dar sentido, fazer com que cada vez seja um sentido novo‖. Dessa perspectiva, chegamos à conclusão de que tratar da subjetividade nada mais é que tratar da questão do sujeito, que está longe de ser um corpo essencialmente biológico ou físico. Segundo Foucault (1995, p.239), o sujeito se forma a partir das relações de poder e de historicidade, implicando a ética como forma de refletir sobre os movimentos da liberdade e da sujeição. Assim, falar de subjetividade é também falar do seu envolvimento com as práticas, com as técnicas, com os exercícios em um determinado contexto social ou institucional pelo qual o indivíduo se reconhece como um lugar de saber e de produção de verdade, e que irão produzir diferentes estilos de vida com intensidades próprias, com a possibilidade de se produzir uma existência artística (DELEUZE, 1992. p.142). Atribui-se importância aos modos através dos quais indivíduos se produzem e são produzidos numa determinada sociedade, nas formas de sujeição e incorporação da ou das normas, bem como nas resistências, mudanças, reelaborações, rupturas e novas formas de subjetivação, definidas como ―processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais exatamente de uma subjetividade, que evidentemente é uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si‖ (FOUCAULT, 1996, p.706), e, no plano da literatura, essa organização da consciência de um indivíduo se concretiza única e exclusivamente por intermédio da linguagem, veículo através do qual tais representações ganham vida. 32 Os romances estudados por nós formulam imaginários sobre a sociedade espanhola do século XIX, e é dessa perspectiva de formulação do novo que acreditamos surgir uma apresentação original e particular das subjetividades femininas. Tanto La Regenta como El Abuelo elas se encontram representadas por vozes autônomas e independentes, de pontos de vista, que, em muitos casos, irão se confrontar ou até mesmo se aproximar, de acordo com o posicionamento ideológico de cada personagem, o que novamente nos faz pensar no caráter sócio-ideológico da enunciação, já que toda linguagem é um ponto de vista, uma perspectiva sócioideológica dos grupos sociais reais e dos seus representantes personificados, e, sobretudo, na concepção de romance como a representação dos mundos sociais, das vozes e das linguagens de uma determinada época. Utilizaremos predominantemente o conceito de polifonia difundido por Mikhail Bakhtin, em Questões de literatura e de estética- A teoria do romance (1988) e Problemas da poética de Dostoievski (2008), no intuito de comprovar que as vozes dos narradores e das personagens de La Regenta e de El Abuelo acumulam outras vozes que refletem a heteroglossia social, formando um texto multiperspectivo, em que as personagens e as suas vozes não são meros objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso. Logo, ―(...) a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia das vozes plenivalentes‖ (BAKHTIN, 2008, p.04) são apresentadas de forma tão expressiva que as personagens de La Regenta e El Abuelo não parecem reproduzir a voz de seus autores. A consciência delas é, além de infinitas, inconclusivas, como se elas se tornassem donas de seus próprios discursos, cada qual apresentando a sua visão de mundo, o seu ponto de vista. 33 Os conceitos de Bakhtin não são os únicos a servir-nos de base para corroborar esse caráter essencialmente polifônico dos romances estudados por nós. A fim de tornar nossa discussão mais consistente e atraente, nos apoiaremos também nos significativos estudos estruturalistas de Roland Barthes (1980), especialmente naqueles que consideram o texto literário como uma trança, em outras palavras, como um tecido repleto de vozes, noção meticulosamente apresentada no capítulo LXVII, do livro S/Z. Vejamos o fragmento em que Barthes postula a pluralidade de vozes na escrita, conceito que muito se aproxima da teoria de Bakhtin a propósito da polifonia: O conjunto dos códigos, quando são apreendidos no trabalho, na marcha da leitura, constitui uma trança (texto, tecido e trança são a mesma coisa); cada fio, cada código é uma voz; estas vozes trançadas – o trançantes – formam a escritura: quando está só, a voz não trabalha, não transforma nada, ‗expressa‘; mas desde o momento em que intervém a mão para reunir e entremesclar os fios inertes, há trabalho, há transformação (BARTHES, 1980, p.135. Tradução nossa)2. Roland Barthes também trata de textos polifônicos, de narrativas marcadas essencialmente pela diversidade de vozes e de perspectivas, e é justamente em razão deste caráter plural da escrita, em outras palavras, da linguagem, que não podemos considerar La Regenta e El Abuelo obras monofônicas, isto é, a expressão de um único ―eu‖ que fala por meio das personagens, tal como podemos apreciar nas leituras de El Lazarillo de Tormes, de autoria anônima, e de Dom Casmurro, de Machado de Assis. La Regenta e El Abuelo tratam-se, pois, de obras polifônicas, uma 2 ―El conjunto de los códigos, cuando son aprehendidos en el trabajo, en la marcha de la lectura, constituye una trenza (texto, tejido y trenza son la misma cosa); cada hilo, cada código es una voz; estas voces trenzadas – o trenzantes – forman la escritura: cuando está sola, la voz no trabaja, no transforma nada, ‗expresa‘; pero desde el momento en que interviene la mano para reunir y entremezclar los hilos inertes, hay trabajo, hay transformación‖. 34 vez que se constituem da expressão de diversos indivíduos autônomos e livres em relação ao autor. A convivência de perspectivas diversas, que não se reduzem a um denominador único, constitui, portanto, a base da noção de polifonia, observada por Bakhtin (2008, p.05), em Problemas da poética de Dostoievski, como aspecto constitutivo do novo gênero romanesco: o romance polifônico. Não obstante, estudar a polifonia requer também o resgate de outro conceito bakhtiniano, o de dialogismo, visto que todo o romance polifônico é inteiramente dialógico. A polifonia e o dialogismo são elementos que se encontram interligados e levam as personagens ao conflito de vozes e a irredutibilidade de posições. Para Bakhtin, ―as relações dialógicas se estabelecem entre todos os elementos estruturais do romance, isto é, eles se opõem entre si, como um contraponto‖ (2008, p. 47). Trata-se, então, de um ponto contra outro, ou seja, de diferentes vozes que discutem sobre um mesmo tema, o que corrobora uma espécie de multivocalismo, capaz de traduzir a diversidade da vida e a complexidade das relações humanas, ou seja, tudo que tem sentido e relevância. Existe ainda um extrato mais abrangente do dialogismo que contempla não apenas a dimensão verbal da comunicação, mas também os elementos de natureza contextual existentes nela: as enunciações que ocorrem no âmbito das relações dialógicas entre indivíduo e sociedade, considerando aspectos históricos, ideológicos, linguísticos e culturais. Segundo Bakhtin em Marxismo e filosofia da linguagem (1995, p.32), entre a linguagem e o contexto em que ela se estabelece institui-se um sistema vivo e interativo, principalmente pelo fato de um signo não existir somente como parte de uma realidade, mas também por refletir e refratar outra, de forma a 35 distorcê-la, ser-lhe fiel ou até mesmo apreendê-la de um ponto de vista específico. Daí a linguagem ser o resultado do contexto histórico-social no qual atua, podendo, desta forma, inflluir nas situações de interação verbal que acontecem entre os indivíduos. Vivo e interativo é também o expressivo diálogo do texto literário com a realidade social. A literatura permite o acesso ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo e a si mesmas, quais os valores que guiavam suas trajetórias, quais os seus desejos, os seus preconceitos, os seus medos, os seus sonhos, as suas sensibilidades, os seus caracteres, enfim, os seus valores, tornandose, sem dúvida alguma, uma ―fonte privilegiada para a leitura do imaginário‖ (PESAVENTO, 2008, p.82-83). A pesar das expressivas diferenças de interesse e de classe social, não há artistas completamente indiferentes à realidade, ao meio em que vive, pois, de certa forma, todos acabam participando dos problemas vividos pela sociedade. Em oposição ao isolamento do texto literário no contexto de produção− conceito difundido enfaticamente pelos formalistas russos que, por atribuírem importância apenas aos elementos formais, acabavam desconsiderando o contexto no qual a obra estava inserida−, a obra literária deve ser entendida como o resultado das relações dinâmicas entre o escritor, o público leitor e a sociedade, e como outras manifestações artísticas, ela não só nasce vinculada a uma certa realidade, mas também pode interferir nesta realidade, contribuindo, assim, de forma significativa, no processo de transformação social. Daí a essencial importância de firmar a literatura num processo histórico-social. 36 Os conceitos de polifonia, inicialmente utilizado por Bakhtin para assinalar o caráter polifônico dos romances de Dostoievski, e de dialogismo são perfeitamente aplicáveis aos romances naturalistas La Regenta e El Abuelo, sobretudo, pelo fato de ambas as narrativas apresentarem diversas vozes sociais que se defrontam, se entrechocam, manifestando diferentes pontos de vista sociais sobre um dado objeto. Nessas obras, as vozes do autor e das personagens estão representadas em sua independência, em outras palavras, em sua autonomia ideológica, logo não há privilégios nem tampouco hierarquia, pois cada personagem fala com sua própria voz, com seu próprio discurso, o que acentua ainda mais a natureza enunciativa dos romances estudados por nós. A propósito da polifonia em La Regenta, Ricardo Gullón (1998, p.30. Tradução nossa) afirma que: A peculiaridade dessas vozes responde a substância de cada um e à pessoa em sua situação concreta, a seu modo de operar no grupo social a qual pertence e ao ponto de vista desde o qual fala- se explica, se pronuncia, se justifica, se auto-engana e engana aos demais- e desde o qual vão se formando seu pensamento e sua palavra3. Em La Regenta, as personagens são o instrumento sobre o qual a polifonia se presentifica, posto que os discursos delas preservam uma relação de independência com o outro. Além disso, há outro elemento de grande relevância que aparece na construção desse discurso: a análise da realidade social, feita de acordo com a visão de mundo que cada personagem possui, visto que o contexto histórico, cultural e social de que toma parte, muito influi nas condições em que ocorre a interação verbal. 3 ―La peculiaridad de esas voces responde a la sustanciación de cada quien y a la persona en su situación concreta, a su modo de operar en el grupo social a que pertenece y al punto de vista desde el cual habla- se explica, se pronuncia, se justifica, se auto-engaña y engaña a los demás- y desde el cual van formándose su pensamiento y su palabra‖. 37 Dessa forma, nossa ideia é mostrar que a peculiaridade das diversas vozes em La Regenta traduz os diversos imaginários presentes na sociedade espanhola do séc. XIX. Assim, as personagens devem ser vistas não só como participantes da vida representada por Leopoldo Alas ―Clarín‖, mas principalmente como parte integrante de grupos sociais determinados, visto que se expressam e que se comunicam, a partir de posições particulares, de modo a corroborar a variedade de pensamentos e de discursos da época. Em El Abuelo, o caráter polifônico do romance se sobressai ainda mais, especialmente pelo fato de Benito Pérez Galdós priorizar o procedimento dialogal, contraindo em proporções míninas as formas narrativas e descritivas, escolha que o aparta da considerável galeria de romancistas realista/ naturalistas sec. XIX que optavam por uma narrativa estruturada em terceira pessoa, por um narrador onisciente, heterodiegético por excelência. O sistema dialogal, adotado desde a publicação de Realidad, é indiscutivelmente inovador dentro do contexto literário da época. Através dele, Galdós ambiciona apresentar em El Abuelo a complexidade dos conflitos humanos a partir dos expressivos diálogos estabelecidos entre os caracteres, aproximando-os, o máximo possível, da realidade e dos seres vivos, sobretudo, se consideramos o fato de serem as personagens as principais responsáveis por manifestarem, através de suas próprias vozes, a profundidade de seus pensamentos, queremos dizer, sua contextura moral, dando por intermédio dela, ―el relieve más o menos hondo y firme de sus acciones‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.07), tal como sucederia na vida real. Tendo em vista os principais conceitos que nos permitiram pensar no caráter enunciativo dos romances polifônicos La Regenta e El Abuelo, partamos para as 38 análises que visam apresentar a forma como as subjetividades femininas encontramse representadas nos romances clariniano e galdosiano. Atribuiremos grande ênfase à voz do narrador, que atua textualmente como força organizadora da narrativa de cada obra, e às vozes das personagens, à luz das teorias de Mikhail Bakhtin, para tratar da polifonia e do dialogismo, e de Gérard Genette e de seus seguidores, para tratar do modo narrativo− perspectiva, ponto de vista. Iniciaremos, em razão da ordem cronológica da publicação dos romances, com La Regenta, de Leopoldo Alas ―Clarín‖. 39 II. VOZES E PERSPECTIVAS NO ROMANCE LA REGENTA A figura do narrador é indispensável ao processo de formação do romance, no entanto, sua presença é, muitas vezes, confundida com a do autor empírico da obra, em outras palavras, com o escritor (ser real) que recebe da realidade em que vive os estímulos que o levam à produção do texto. Carlos Reis (2000, p.18) afirma que o autor de uma narrativa deve ser fundamentalmente compreendido como uma pessoa dotada de certa personalidade, caracterizada pela presença de certo temperamento, gostos e compleição psicológico-moral, que a individualizam na sociedade em que vive. O autor, por ser a figura que se situa sempre num tempo histórico determinado e num certo contexto social e cultural também determinado, que, de forma variável, influenciam na produção artística da obra, posiciona-se não só como um indivíduo histórico e social detentor de uma ideologia, mas também de uma orientação estéticoliterária, que nem sempre é compatível com as normas e princípios vigentes (Ibidem, p.18). E talvez seja por esse motivo que grande parte dos escritores realistas/ naturalistas do século XIX− tais como os autores de La Regenta e de El Abuelo− se encontra expressivamente engajada a orientações políticas revolucionárias avessas ao tradicionalismo arbitrário e obsoleto do Antigo Regime. Tratar dessa essencial diferença entre narrador e autor, nos motiva também a adentrar numa importante discussão, que, sem dúvida alguma, será extremamente pertinente a nossa pesquisa, de forma a enriquecer nossas futuras análises sobre as vozes nos romances La Regenta e El Abuelo. Fazemos referência, aqui, à questão da autoria, muito debatida por diversos teóricos, dentre os quais destacamos Roland 40 Barthes, que se empenham em questionar a unicidade do sujeito a partir da negação de uma voz imperante e única, já que a escrita é, por excelência, uma atividade que propicia a perda da identidade daquele que escreve: (...) a escrita é a destruição de toda voz, de toda origem. A escrita é esse lugar neutro, composto, oblíquo, em que vai parar nosso sujeito, o branco e negro onde acaba por se perder toda identidade, começando pela própria identidade do corpo que escreve (BARTHES, 1968. Tradução nossa)4. Em A morte do autor, Barthes (1968) posiciona-se radicalmente contra ao sistema de propriedade característico de nossa sociedade, responsável por consolidar um severo regime de propriedade dos textos e de regras sobre os direitos do autor. Não menor será sua oposição à crítica clássica que equivocadamente persiste em vincular o autor à obra literária, permitindo crer que esta última pode e deve ser necessariamente explicada pelo primeiro. Vejamos: Dar a um texto um Autor é impor a ele um seguro, provê-lo de um significado último, fechar a escritura. Esta concepção é satisfatória à crítica, que então pretende se dedicar à importante tarefa de descobrir o Autor (ou a sua hipóstase: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: uma vez encontrado o Autor, o texto se ―explica‖, o crítico alcançou a vitória; assim, pois, não há nada de espantoso no fato de que, historicamente, o império do Autor tenha sido também o do Crítico, nem tampouco o fato de que a crítica (por nova que seja) caia desmantelada da mesma forma que o Autor (Ibidem. Tradução nossa)5. 4 ―(...) la escritura es la destrucción de toda voz, de todo origen. La escritura es ese lugar neutro, compuesto, oblicuo, al que va a parar nuestro sujeto, el blanco-y-negro en donde acaba por perderse toda identidad, comenzando por la propia identidad del cuerpo que escribe‖. 5 Darle a un texto un Autor es imponerle un seguro, proveerlo de un significado último, cerrar la escritura. Esta concepción le viene muy bien a la crítica, que entonces pretende dedicarse a la importante tarea de descubrir al Autor (o a su hipóstasis: la sociedad, la historia, la psique, la libertad) bajo la obra: una vez hallado el Autor, el texto se ―explica‖, el crítico ha alcanzado la victoria; así pues, no hay nada de asombroso en el hecho de que, históricamente, el imperio del Autor haya también sido el del Crítico, ni tampoco el hecho de que la crítica (por nueva que sea) caiga desmantelada a la vez que el Autor‖. 41 Contrário a esses poderosos impérios, Barthes irá mostrar que o autor nada mais é que uma ―personagem moderna, produzida indubitavelmente por nossa sociedade, na medida em que esta, ao sair da Idade Média e graças ao empirismo inglês, o racionalismo francês e a fé pessoal da Reforma, descobre o prestígio do indivíduo ou dito de maneira mais nobre, da pessoa humana‖ (Ibidem. Tradução nossa)6. Essa visão se intensifica com a supremacia da ideologia capitalista, que, por sua vez, em nome do mercado, vai conceder uma indiscutível importância à ―pessoa‖ do autor, associando-o persistentemente à obra literária. Citamos: (…) a imagem da literatura que é possível encontrar na cultura comum tem seu centro, tiranicamente, no autor, sua pessoa, sua história, seus gostos, suas paixões; a crítica ainda consiste, a maioria das vezes, em dizer que a obra de Baudelaire é o fracasso de Baudelaire como homem; a de Van Gogh, sua loucura; a de Tchaikovsky, seu vício: a explicação da obra se busca sempre naquele que a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da ficção, fosse, em suma, sempre, a voz de uma só e mesma pessoa, o autor, a que estaria entregando suas ―confidências‖ (Ibidem. Tradução nossa)7. Indiferente a essa relação, ou seja, à ideia de que ―o Autor é o que nutre o livro, ou seja, que existe antes que ele, que pensa, sofre e vive para ele‖ (Ibidem. Tradução nossa)8, Roland Barthes, contundente, afirma que o escritor moderno nasce ao mesmo tempo em que o seu texto: ―não está provisto de modo algum de um ser que preceda ou exceda sua escrita, não é de modo algum o sujeito cujo predicado seria o 6 ―personaje moderno, producido indudablemente por nuestra sociedad, en la medida que ésta, al salir de la Edad Media y gracias al empirismo inglés, el racionalismo francés y la fe personal de la Reforma, descubre el prestigio del individuo o dicho de manera más noble, de la persona humana‖. 7 (…) la imagen de la literatura que es posible encontrar en la cultura común tiene su centro, tiránicamente, en el autor, su persona, su historia, sus gustos, sus pasiones; la crítica aún consiste, la mayoría de las veces, en decir que la obra de Baudelaire es el fracaso de Baudelaire como hombre; la de Van Gogh, su locura; la de Tchaikovsky, su vicio: la explicación de la obra se busca siempre en el que la ha producido, como si, a través de la alegoría más o menos transparente de la ficción, fuera, en definitiva, siempre, la voz de una sola y misma persona, el autor, la que estaría entregando sus ‗confidencias‘‖. 8 ―el Autor es el que nutre al libro, o sea, que existe antes que él, que piensa, sufre y vive para él‖. 42 livro; não existe outro tempo além do da enunciação, e tudo está escrito eternamente aqui e agora‖ (Ibidem. Tradução nossa)9. Assim, nos conscientizamos de que é a linguagem, e não o autor, quem fala, perspectiva que tem suas raízes em Mallarmé, um dos primeiros a tratar da real necessidade de se substituir pela linguagem aquele que até então era tido como o seu exclusivo proprietário. Das leituras dos textos de Barthes, vimos que a dificuldade em se precisar de quem é a voz que escreve, advém do distanciamento do autor. Em um texto moderno, ―as vozes são tratadas até a negação de toda referência: o discurso ou, melhor ainda, a linguagem, fala, e isso tudo‖ (BARTHES, 1980, p.33. Tradução nossa)10. Assim, quanto mais plural é um texto, mais difícil se torna a missão de detectar a origem da enunciação (Ibidem, p.33), pois tudo o que poderia estabelecer-se a partir da identificação do autor, dissemina-se, entrando em contato com outras vozes, com outras escritas, o que novamente nos faz pensar na metáfora de texto como trança, como tecido. Vejamos: Hoje em dia sabemos que um texto não está constituído por uma fila de palavras, das que se desprende um único sentido, teológico, em certo modo (pois seria a mensagem do AutorDeus), mas sim por um espaço de múltiplas dimensões em que se concordam e se contrastam diversas escritas, nenhuma das quais é a original: o texto é um tecido de citações provenientes dos mil focos da cultura (BARTHES,1968. Tradução nossa)11. 9 ―no está provisto en absoluto de un ser que preceda o exceda su escritura, no es en absoluto el sujeto cuyo predicado sería el libro; no existe otro tiempo que el de la enunciación, y todo está escrito eternamente aquí y ahora‖. 10 ―las voces son tratadas hasta la negación de toda referencia: el discurso o, mejor aún, el lenguaje habla, y eso todo‖. 11 ―Hoy en día sabemos que un texto no está constituido por una fila de palabras, de las que se desprende un único sentido, teológico, en cierto modo (pues sería el mensaje del Autor-Dios), sino por un espacio de múltiples dimensiones en el que se concuerdan y se contrastan diversas escrituras, ninguna de las cuales es la original: el texto es un tejido de citas provenientes de los mil focos de la cultura‘. 43 E foi precisamente por ver o texto literário como um tecido repleto de vozes que acumulam as mais variadas perspectivas possíveis que os conceitos de Barthes tornam-se tão imprescindíveis a nossa pesquisa sobre a enunciação nos romances polifônicos La Regenta e El Abuelo, principalmente neste último, em que Benito Pérez Galdós faz questão de anunciar, no prólogo da obra, o recuo do autor, ou melhor, a sua ―morte‖, no intuito de ceder às personagens à palavra, evento que caracteriza não só a autenticidade da proposta como também a originalidade do romance. Em contrapartida, essa diminuição do poder da instância de autoria tem como resultado o aumento do poder do leitor, já não mais visto como consumidor, mas sim como o ―espaço mesmo em que se inscrevem, sem que se perda nenhuma, todas as citações que constituem uma escrita‖ (BARTHES, 1968. Tradução nossa)12. Roland Barthes atribui ao leitor à responsabilidade pelas diferentes maneiras de se ler uma obra e, consequentemente, de interpretá-la, dando-lhe um sentido, o que o transforma, por excelência, num dos produtos do texto, assim como o escritor moderno, já que é o ato de escrever é que faz o autor, e não o contrário. Assim, tal como Bakhtin, o sujeito só é possível, ou melhor, só é definível no interior da própria enunciação. A morte do autor, sujeito responsável por ―misturar as escritas, de contrariá-las umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas‖ (Ibidem. Tradução nossa)13, tem por finalidade expor o nascimento da escrita como destituição de toda voz, de toda origem, por fim, de toda identidade. E é dessa forma que Roland Barthes trata de ceder um significativo mérito à linguagem, que fala e destitui o autor dos papéis 12 ―espacio mismo en que se inscriben, sin que se pierda ni una, todas las citas que constituyen una escritura‖. 13 ―(…) mezclar las escrituras, llevar la contraria a unas con otras, de manera que nunca se pueda uno apoyar en una de ellas‖. 44 de pai e de propriedade que lhe foram conferidos pela sociedade. A partir dos conceitos de Bakhtin e de Barthes, vimos que o que define o romance é o fato de este ser o gênero em que se orquestra esteticamente uma indescritível diversidade de linguagens sociais. Há nele um expressivo jogo de linguagens, envolvendo as línguas sociais pelas quais o autor direciona todas as palavras para vozes alheias, entregando a construção do todo artístico a outras instancias enunciativas. Nesse processo de entrega, deparamo-nos no universo romanesco com o florescimento de diversas figuras, dentre as quais podemos destacar novamente a do narrador, ―entidade ficcional instituída pelo autor empírico‖ (REIS, 2000, p.358). Trata-se, pois, de uma personagem de ficção, de uma figura que está unicamente dentro do texto narrativo. O narrador é a voz que o enuncia e que se apresenta sob a forma de uma pessoa gramatical: primeira ou terceira pessoa de uso igualmente frequente, e estas pessoas, como é sabido, podem mudar nos relatos contados por duas vozes. Além disso, sua figura é geralmente utilizada pelo autor empírico para que este amplie suas possibilidades dentro do universo literário, tal como nos assinala Bernardelli (2006, p.38. Tradução nossa): ―A figura do narrador permite, de fato, ao autor multiplicar as possibilidades de expressar as considerações sobre os acontecimentos narrados, ao mesmo tempo de manipular a prospectiva em consonância como os eventos são propostos aos leitores‖14. Além do narrador, deparamo-nos, dentro do universo do texto, com outra importante figura: a do autor implícito, extremamente útil para dar conta do recuo do narrador e do jogo de máscaras que se trava entre os vários níveis de narração: ―O 14 ―La figura del narratore permette infatti all‘ autore di moltiplicare le possibilittà di esprimire guidizi sulle vicende narrate e, allo stesso tempo, di manipolare la prospettiva secondo cui gli eventi vengono poposti al lettore‖. 45 autor implícito é uma imagem do autor real criada pela escrita, e é ele quem comanda os movimentos do narrador, das personagens, dos acontecimentos narrados, do tempo cronológico e psicológico, do espaço e da linguagem em que se narram indiretamente os fatos ou em que se expressa diretamente as personagens envolvidas na história‖ (LEITE, 1991, p.19). Podemos compreendê-lo como instância organizadora que alenta a narração como totalidade, sendo responsável por resolver as estratégias narrativas e tomar decisões relativas à construção textual, tais como relacionar os tempos, articular os diferentes modos, alterar a cronologia ou simplesmente fixar-se a ela, e, em muitos casos, propor determinadas pistas ao leitor. No entanto, a figura do autor implícito parece, em muitos casos, coincidir totalmente com o narrador, tornando-se inseparável dele, vide o caso do narrador onisciente, figura que sabe tudo sobre o mundo, o comportamento das personagens, os seus sonhos, as suas consciências, não deixando ―pistas‖ de sua existência como um ―eu‖ que enuncia (VASSALLO, 2000, p.220). Essa modalidade perdurou predominantemente na literatura do século XIX e muitas são as obras da tradição realista/ naturalista que evidenciam esse encontro tão intrínseco entre as duas categorias, aclarado por quase não haver vestígios que possibilitem a identificação das duas instâncias− autor implícito e narrador− separadamente. Ainda que reconheçamos a importância desses conceitos essenciais à estruturação da narrativa, é importante comentar que, em nossa pesquisa, nos ocuparemos primordialmente da figura do narrador e de como a narrativa de La Regenta encontra-se estruturada por ele. Segundo Bourneuf & Ouellet (1989, p.102) a maneira mais simples e a mais absoluta que tem um narrador para se introduzir em sua narração é contar suas 46 memórias ou publicar um diário íntimo. Por ter uma visão sobre tudo o que constitui a matéria narrada de sua narração, as ações passam a se adaptar às particulares conveniências desse narrador, que acaba se transformando no maior conhecedor de todas as circunstâncias de seu material por viver os fatos como personagem principal. Trata-se, portanto, do narrador autodiegético, de acordo com a tipologia estabelecida por Genette, em Figures III (1972). Dentro da tradição literária na Espanha, muitas são as obras que apresentam a figura do narrador-personagem, e uma delas, talvez a mais importante, é o livro El Lazarillo de Tormes (1554). Nele, o uso da primeira pessoa, já no início do prólogo que compõe a estrutura externa da obra, nos remete, desde o princípio, à ideia de um relato pseudobiográfico. Lázaro escreve para ser lido, para que os leitores da obra se conscientizem de sua história de vida. Vejamos: Suplico a Vossa Mercê que receba o pobre serviço da mão de quem o fizera mais rico, se seu poder e desejo se conformassem. E pois como Vossa Mercê escreve que se lhe escreva e relate o caso muito por extenso, pareceu-me não tomá-lo pelo meio, senão do princípio, porque se tenha inteira notícia de minha pessoa.15 Estruturada em forma de correspondência, constatamos a existência de dois destinatários: Vuestra Merced, uma pessoa aparentemente de estrato social superior ao do narrador, e o leitor. Nela, o narrador apresentará os quatro grandes motivos que o levaram a escrever a obra: entreter, si considerarmos a leitura uma atividade que promove a diversão do leitor; ensinar, uma vez que o próprio narrador nos afirma que sua vida pode servir de exemplo, que os leitores podem aprender com suas 15 A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Edição, tradução, estudo e notas de Alex Cojorian. Prefácio de José Antonio Pérez. Ed. Bilingue. Brasília: Círculo de estudos clássicos de Brasília, 2002, p.37. 47 experiências; informar, sobretudo, devido às circunstâncias de miséria e pobreza, que as pessoas não têm valores, e, por fim, relatar o <<caso>>, em outras palavras, o adultério de sua esposa com o religioso San Salvador, o que lhe garantiu uma melhor qualidade de vida com a aquisição de algumas vantagens materiais concedidas pelo clérigo. O mesmo tipo de narrador pode ser encontrado no romance Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. Por se tratar de um relato pseudobiográfico, o narrador-personagem torna-se a principal figura da narrativa. A partir do projeto de escrever um livro: ―Quis variar, e lembrou-me escrever um livro. (...) Fiquei tão alegre com esta ideia, que ainda agora me treme a mão‖ (ASSIS, 1998, p.15), o narrador irá relatar todas as ações, personagens, espaços, enfim, tudo, exclusivamente sob o seu ponto de vista. Por não ter acesso aos pensamentos das demais personagens, irá, articuladamente, construir cada capítulo da narrativa de acordo com seu entendimento, pensamentos e sentimentos, no intuito de tentar persuadir o leitor de que a sua versão dos fatos é a única possível. Daí, Capitu estar vinculada a uma imagem negativa do feminino, já que para o amargurado narrador ela foi a principal responsável pela ruína do casamento. Diferentemente dos narradores de Lazarillo de Tormes e Dom Casmurro, há também outra possível variante: o narrador homodiegético, cujo narrador desempenha um papel secundário, podendo observar os acontecimentos e testemunhá-los ao leitor de modo mais direto e verossímil. Seu ângulo de visão, entretanto, é limitado, uma vez que não consegue saber o que passa no pensamento das demais personagens, podendo apenas criar hipóteses sobre o que viu e ouviu, vide o caso do romance A cidade e as serras, de Eça de Queirós, em que Zé 48 Fernandes narra a vida de seu amigo Jacinto Tormes, conhecido também como Meu Príncipe. Em oposição aos narradores autodiegético e homodiegético que, investidos de autoridade e autenticidade, encontram-se presentes na matéria-prima narrada, a fim de contar as experiências vividas por eles, o narrador de La Regenta narra o que observa, posicionando-se do ―lado de fora‖ da ação. Focaliza basicamente o seu olhar no outro, no intuito de colher informações que obtêm a partir da observação empreendida. Assim, deparamo-nos com um narrador que, em muitas ocasiões, olha para o outro para levá-lo a falar, já que ali não está para falar de suas ações e de sua experiência, procedimento que indubitavelmente acentua o caráter polifônico desse tipo de texto. 2.1. O narrador clariniano toma a palavra A narrativa de La Regenta é heterodiegética por excelência. Está organizada por um narrador onisciente, em outras palavras, por um narrador deus que demonstra um conhecimento absoluto dos acontecimentos e do caráter de suas personagens, apresentando, com indiscutível naturalidade, os seus mais íntimos pensamentos e posicionamentos. Vejamos o que Todorov comenta a propósito deste enunciador: ―... o narrador sabe mais que seu personagem. Não se preocupa em nos explicar como adquiriu esse conhecimento: vê através dos muros da casa tanto quanto através do crânio de seu herói‖ (TODOROV, 1971, p.239). Ainda que haja uma diversidade de vozes e pontos de vistas, a trama de La Regenta encontra-se intrinsecamente vinculada ao conhecimento superior desse 49 narrador que vê ―por trás‖, e essa superioridade lhe confere importantes vantagens, visto que passa a englobar a totalidade dos acontecimentos, sejam estes passados, presentes e futuros; a graduar com maior liberdade os efeitos desses acontecimentos na narrativa; a tolerar os saltos, as transposições no tempo e espaço, especialmente se consideramos o fato de o narrador ser o principal agente organizador destas duas instâncias, submetidas a sua vontade; a penetrar no imaginário das personagens e muitas outras mais. Federico Peltzer (2001, p.47. Tradução nossa) também chama a atenção para a primazia do narrador heterodiegético, que, ao adotar o ponto de vista onisciente, passa ter as ferramentas necessárias para: (…) jogar com o suspenso, como costuma fazer Stendhal quando discrimina quais acontecimentos se referirá e quais omitirá, ―para não ferir a sensibilidade delicada do leitor‖ (Rojo y negro); postergar a referência concreta aos acontecimentos que apenas enuncia ou cuja ocorrência adianta; declarar palatinamente que ignora certos atos (...); pular sobre o espaço, como se observasse os fatos desde cima e pudesse abrangê-los em sua totalidade; penetrar− como fica dito− na mente e no coração de suas criaturas, e não só em uma mas sim em várias. Uns poucos exemplos são suficientes16. Para o autor de Madame Bovary, ―o artista em sua obra deve ser como Deus no universo, presente em toda parte e visível em parte nenhuma‖17. Essa invisibilidade, que exigia do narrador heterodiegético uma atitude indiscutivelmente passível em face da história que narra, proíbe o sujeito da enunciação de intrometer- 16 (…) jugar con el suspenso, como suele hacer Stendhal cuando discrimina qué sucesos referirá y cuáles omitirá, ―para no herir la sensibilidad delicada el lector‖ (Rojo y negro); postergar la referencia concreta a los sucesos que apenas enuncia o cuya ocurrencia adelanta; declarar palatinamente que ignora ciertos actos (...); saltar sobre el espacio, como si mirara los hechos desde la altura y pudiera abarcarlos en su totalidad; penetrar− como queda dicho− en la mente y el corazón de sus criaturas, y no sólo en una sino en varias. Unos pocos ejemplos bastarán. 17 MACHADO, Duda (org). FLAUBERT, Gustave. Cartas exemplares. Rio de janeiro: Imago, 1993. Carta a Louise Colet, 9 de dezembro de 1852, p.89. 50 se no relato de forma a tirar conclusões e ditar sentenças, limitando-o, segundo Mario Vargas Llosa (1979, págs.141-142), ―a transmitir o que as personagens fazem, deixam de fazer, comentam a sós ou entre elas, sem revelar jamais seus próprios pensamentos, suas reações frente ao mundo narrado‖. O narrador, e não o artista (autor) como assinalou Flaubert de forma equivocada, confundindo duas importantes figuras da diegese, deveria, portanto, ser um sujeito carente de subjetividade, regido única e exclusivamente pela impassibilidade e pela objetividade. O narrador de La Regenta, ao contrário do que propunha Flaubert, não é neutro e nem pretende sê-lo. Dono de um ponto de vista privilegiado, que lhe permite ver os objetos a distancia ou de perto, tal como lhe convenha, esse narrador falará com autoridade própria. Leopoldo Alas ―Clarín‖, em La Regenta, não hesita em optar por uma voz narrativa que antecipe, que retorne, que tome posições e que formule juízos sobre o comportamento das personagens, e é essencialmente a partir dessa voz, dotada de plenos poderes, que surgem todos os elementos dessa substância de peculiares inflexões denominada estilo. Com isso, não nos causa surpresa nem tampouco espanto o fato de avistarmos em La Regenta um narrador que, através da primeira pessoa do plural, nos comunica, sem rodeios, a entrada de algumas personagens, tal como podemos ver no fragmento abaixo, em que o mesmo anuncia a existência de Frígilis, protagonista darwinista que só será introduzido na narrativa no capítulo III: Don Saturnino estaba muy ocupado todo el día, pero de tres a cuatro y media siempre le tenían a su disposición cuantas personas decentes, como él decía, quisieran poner a prueba sus conocimientos arqueológicos y su inveterada amabilidad. Porque además del primer anticuario de la provincia, creía ser y esto era verdad- el hombre más fino y cortés de España. No era clérigo, sino anfibio. En su traje pulcro y negro de los pies a la cabeza se veía algo que Frígilis, personaje darwinista que 51 encontraremos más adelante, llamaba la adaptación a la sotana, la influencia del medio, etc.; es decir, que si don Saturnino fuera tan atrevido que se decidiera a engendrar un Bermúdez, este saldría ya diácono por lo menos, según Frígilis (ALAS, 1998, p.77). E também no fragmento em que a personagem Pompeyo Guimarães é anunciada pelo narrador já no primeiro capítulo da obra. Vejamos: Hubo en el Cabildo épocas de negra intransigencia en que se persiguió la manía de Ripamilán como si fuera un crimen, y se habló de escándalo, y de quemar un libro de versos que publicó el Arcipreste a costa del marqués de Corujedo, gran protector de las letras. Por este tiempo fue cuando se quiso excomulgar a don Pompeyo Guimarán, personaje que se encontrará más adelante‖ (Ibidem, p.92). A partir da leitura de Estatuto e perspectivas do narrador na ficção de Eça de Queirós, de Carlos Reis (1984), percebemos que poderíamos considerar muitos dos aspectos comentados pelo teórico para corroborar a presença ativa do narrador de La Regenta. A obra nos despertou um grande interesse porque vimos que através das análises dos enunciados é possível compreender e até mesmo definir a afetividade e o posicionamento ideológico do sujeito enunciador, em outras palavras, sua atitude em face à história narrada. Esse, independente do tipo de narrativa priorizada no romance, pode manifestar voluntária ou involuntariamente sinais de sua presença, suscetíveis de serem notados ao nível do enunciado (Ibidem, págs.22/23), e ao aprofundarmos nossos estudos sobre o narrador de La Regenta, notamos que ele, muitas vezes, não consegue ficar impassível aos fatos que narra, emitindo sobre eles uma apreciação indiscutivelmente pessoal. No ensaio ―As categorias da narrativa literária‖, presente na obra Análise estrutural da narrativa (1971), Tzvetan Todorov também se dedica à discussão em torno da objetividade e subjetividade na linguagem, ao afirmar que: 52 Toda fala é, sabe-se, ao mesmo tempo um enunciado e uma enunciação. Enquanto enunciado, ela se relaciona com o sujeito do enunciado e permanece, portanto, objetiva. Enquanto enunciação, ela se relaciona ao sujeito da enunciação e guarda um aspecto subjetivo, pois representa em cada caso um ato realizado pelo sujeito. Toda frase apresenta estes dois aspectos, mas em graus diferentes; certas partes do discurso têm por única função transmitir esta subjetividade (os pronomes pessoais e demonstrativos, os tempos do verbo, certos verbos; cf. E. Benveniste ―De la subjetivité dans le langage‖, em Problèmes de linguistique générale), outros concernem antes de tudo à realidade objetiva (TODOROV,1971, p.245). Embora o discurso do narrador esteja geralmente vinculado ao plano da enunciação histórica, Todorov é enfático em nos revelar que a presença deste será visível em diversas ocasiões: ―(...) no momento de uma comparação (como de outra figura retórica) ou de uma reflexão geral, o sujeito da enunciação torna-se aparente, e o narrador se aproxima assim das personagens‖ (Ibidem, p.246), afirmação que muito se aproxima do que diz Carlos Reis sobre a afetividade do sujeito enunciador, que não se conterá em fazer comparações ou reflexões sobre a natureza humana das figuras retratadas. A subjetividade do narrador clariniano, tal como a dos narradores de O crime do padre Amaro e O primo Basílio, é aflorada especialmente diante das ações e dos pensamentos das maquiavélicas personagens que compõe o universo ficcional da obra, e no intuito de evidenciá-la, nos pareceu oportuno recorrer a algumas das principais modalidades de discurso e a alguns procedimentos textuais presentes no romance clariniano de dois volumes, acreditando serem extremamente necessários para a compreensão dos capítulos posteriores que tratarão das subjetividades femininas narradas pelo narrador e pelas próprias personagens de La Regenta. 53 2.1.1. Onisciência e subjetividade do sujeito da enunciação Comecemos pelas modalidades de discurso. Uma das mais interessantes formas de projeção da subjetividade do sujeito enunciador encontra-se presente no discurso figurado. Nele, o narrador clariniano tem a intenção de imprimir no enunciado um grau mais amplo de expressividade, o que consequentemente produz como efeito ―o desvirtuamento do signo original e a rejeição de um grau zero da linguagem‖ (REIS, 1984, p.89), e dentro deste domínio, atribuímos destaque especial à ironia, recurso que corrobora a intenção depreciativa do narrador, ao inverter uma característica ou qualidade de um ser por outra que lhe é totalmente contrária. A narrativa de La Regenta é construída sob a séria prerrogativa de fazer chocar através do riso, de estabelecer uma denúncia pela ironia e de expor explicitamente a decadência da sociedade espanhola do século XIX. Por muitas vezes, o narrador opta por um tom mais humorado, dando preferência ao patético, ao ridículo. Aposta, cada vez mais, não na agressividade do relato, mas sim na ironia do discurso, tal como pudemos observar no capítulo XXII, na descrição da figura de Santos Barinaga: ―don Santos es un tonel en persona y tiene más espíritu de vino en el cuerpo que sangre en las venas; es una mecha empapada en alcohol (...), prenda usted fuego y verá‖ (ALAS, 1998, p.668-669). O vício compulsivo pela bebida é tratado pelo narrador do romance com altas doses de humor e irreverência, e este tom cômico não é único e exclusivo do discurso do narrador, mas primordialmente da própria personagem, que, amargada pela falência de seus negócios, entrega-se ao alcoolismo. Vejamos: 54 - Todo es inútil..., la Iglesia me ha arruinado..., no quiero nada con la Iglesia... Creo en Dios, creo en Jesucristo... que era... un gran hombre..., pero no quiero confesarme, señor Carraspique, y siento... darle a usted este disgusto. Por lo demás..., yo estoy seguro... de que esto que tengo... se curaría..., o por lo menos... se..., se..., con aguardiente... (Ibidem, p.687). Nessa cena, o narrador cede a voz a Santos Barinaga que, através do discurso direto, fala-nos de sua crença nas figuras de Deus e de Jesus Cristo e na sua profunda aversão à Igreja corrupta de Vetusta, a principal responsável pela ruína de seus negócios: um pequeno estabelecimento comercial que vendia artigos religiosos, falido devido ao ostensivo monopólio de La Cruz Roja, loja de grande porte administrada pela gananciosa Dona Paula, mãe de Fermín de Pas. Por trás do discurso jocoso da amargurada personagem, que prefere aguardente à confissão, verificamos que, muito mais que uma crítica social, há uma exposição da condição humana: a de degradação, e é justamente essa condição trágica de Santos Barinaga que o torna uma das figuras mais lastimáveis e risíveis de toda a obra. Em: ―su marido era botánico, ornitólogo, floricultor, arboricultor, cazador, crítico de comédias, cómico, jurisconsulto; todo menos un marido‖ (Ibidem, p.296), notamos que Víctor Quintanar também não foge das picantes doses de humor empregadas pelo narrador de La Regenta. Em muitos episódios da obra, deparamonos com a figura de um ser paternalista que mais podia ser compreendido como um pai, ao invés de marido: ―Su Ana era como su hija... Y él sentía su deshonra como la siente un padre‖ (Ibidem, p.887). Apresentava por Ana um querer bem diferente daquele que se espera entre dois amantes apaixonados, movidos pelos impulsos carnais, e foi precisamente esta ausência do elemento masculino que a motivou a buscar nos braços de Álvaro Mesía o amor carnal que tanto desejava sentir e conhecer. 55 A ironia também pode ser vislumbrada na cena em que o narrador clariniano descreve a robustez do corpo de Fermín de Pas, escondida pelas vestes religiosas que a sobrepunha. O clérigo contempla com uma profunda tristeza os seus ―músculos de aço‖, em outras palavras, o seu corpo vigoroso e másculo; porém de força inútil, revelando, dessa forma, um sentimento de impotência, por não poder usá-lo como qualquer outro homem, já que, como representante de Deus, deveria reprimir todos os desejos carnais e físicos. Vejamos como o narrador, através do discurso indireto, descreve o olhar amargurado de Fermín de Pas sobre si mesmo: (…) mirándose al espejo, mientras se lavaba y peinaba, De Pas sonreía con amargura mitigada por el dejo de optimismo que le quedaba de sus reflexiones de poco antes. Estaba desnudo de medio cuerpo arriba. El cuello robusto parecía más fuerte ahora por la tensión a que le obligaba la postura, al inclinarse sobre el lavabo de mármol blanco. Los brazos cubiertos de vello negro ensortijado, lo mismo que el pecho alto y fuerte, parecían de un atleta. El Magistral miraba con tristeza sus músculos de acero, de una fuerza inútil. Era muy blanco y fino el cutis, que una emoción cualquiera teñía de color rosa. Por consejo de don Robustiano, el médico, De Pas hacía gimnasia con pesos de muchas libras; era un Hércules (Ibidem, p.325). É com um sorriso amargo que De Pas contempla o seu corpo viril e potente, e é com ironia que o narrador debocha do castigo recaído sob ele. Semelhante inquietação é experimentada pela inescrupulosa figura de Amaro no romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós. Na obra, o narrador querosiano também recorre à ironia para ilustrar a impotência do padre, aclarada pela impossibilidade de proclamar abertamente o seu amor por Amélia, tal como desejava de forma persistente, e um dos episódios em que podemos vislumbrar essa frustração vivenciada pelo clérigo encontra-se no capítulo VI, na cena em que o narrador relata o ódio de Amaro à figura de João Eduardo, noivo da jovem. Citamos: 56 Odiou-o então, dum ódio complicado de inveja ao seu bigode negro e ao seu direito de amar (...). Desceu para o seu quarto, desesperado. Pôs a vela sobre a cômoda; o espelho estava defronte, e a sua imagem apareceu-lhe; sentiu-se feio, ridículo com sua cara rapada, a volta hirta como uma coleira, e por trás a coroa hedionda. Comparou-se instintivamente com o outro que tinha um bigode, o seu cabelo todo, a sua liberdade! Par que hei-de eu usar a ralar-me? Pensou. O outro era um marido; podia dar-lhe o seu nome, uma casa, a maternidade; ele só poderia dar-lhe sensações criminosas, depois os terrores do pecado! (QUEIRÓS, 2004, págs: 81-82). A ironia se revela principalmente a partir da comparação estabelecida por Amaro com João Eduardo. As aparências físicas- o bigode negro e o cabelo vistosoe a sua condição de homem livre, com o direito de apaixonar-se, casar-se e constituir uma família são tidos por Amaro como aspectos positivos e apreciados, o que, sem dúvida alguma, contribui para o florescimento da inveja e da cobiça da personagem, que passa a desejar para si o que pertence ao outro. Amaro, após comparar-se com o belo rapaz, sente-se feio, pouco atrativo; não se conforma com sua imagem, vista através do espelho, nem tampouco com sua aprisionadora condição de padre, de representante de Deus na Terra, e será exatamente essa indiscutível insatisfação pessoal que o levara a odiar, cada vez mais, a figura daquele que se tornará seu grande adversário. Em La Regenta, outra expressiva figura patética apresentada pelo narrador clariniano é Saturno Bermúdez, um homem culto que se destaca pelos conhecimentos em literatura, arquitetura, história, religião e até mesmo por assuntos insignificantes e pouco atrativos, tais como a construção das ogivas, o tamanho exato dos arcos e das colunas da imponente catedral de Vetusta. Bermúdez usava o seu saber, sobretudo, para atrair e impressionar as mulheres da cidade. No entanto, sua estratégia de conquista não produzia efeito positivo nas damas, pois o máximo que 57 ele conseguia com as intermináveis divagações, teses e comentários sobre os assuntos mais variados possíveis, muitas vezes, em momentos inapropriados, eram algumas risadinhas desconcertadas e alguns bocejos abafados que representavam, na verdade, uma resposta ao tédio e ao aborrecimento que aquelas conversações enfastiosas lhes causavam. O ―arqueólogo de Vetusta‖, assim conhecido pelos seus saberes enciclopédicos, apesar da educação e da inteligência, virtudes que o consagram como cavalheiro, também não escapa do acirrado humor do narrador, que se empenha em ironizar o seu fracasso com as mulheres, ou seja, a sua incapacidade de conquistá-las. E uma das cenas em que podemos apreciar a impotência de Saturno Bermúdez encontra-se no primeiro capítulo de La Regenta, no episódio em que o narrador zomba a visão da personagem sobre as mulheres casadas e a consequente paixão do mesmo por Ana Ozores, produto da leitura de romances que tratavam das heroínas pecadoras, porém redimidas pela fé. Citamos: Las muchachas de Vetusta eran incapaces de comprenderle, así como él se confesaba a solas que no se atrevería jamás a acercarse a una joven para decirle cosa mayor en materia de amores. Tal vez las casadas, algunas, por lo menos, podrían entenderle mejor. La primera vez que pensó esto tuvo remordimientos para una semana; pero volvió la idea a presentarse tentadora, y como en las novelas que saboreaba sucedía casi siempre que eran casadas las heroínas, pecadoras sí, pero al fin redimidas por el amor y la mucha fe, vino en averiguar y dar por evidente que se podía querer a una casada y hasta decírselo, si el amor se contenía en los límites del más acendrado idealismo. En efecto, don Saturno se enamoró de una señora casada; pero le sucedió con ella lo mismo que con las otras solteras; no se atrevió a decírselo con los ojos sí se lo daba a entender, y hasta con ciertas parábolas y alegorías que tomaba de la Biblia y otros libros orientales; pero la señora de sus amores no hacía caso de los ojos de don Saturno ni entendía las alegorías ni las parábola; no hacía más que decir a espaldas de Bermúdez: - No sé cómo ese don Saturno puede saber tanto: parece un mentecato. 58 Esta señora que llamaban en Vetusta la Regenta, porque su marido ahora jubilado, había sido regente de Audiencia, nunca supo la ardiente pasión del arqueólogo (Ibidem, p.79). As figuras femininas também não escapam das constantes alfinetadas do implacável narrador clariniano, e inúmeros são os episódios de La Regenta em que podemos observar o ataque do sujeito da enunciação às personagens do romance de Leopoldo Alas, geralmente desprovidas de caráter e de sentimentos nobres, como a bondade, a humildade e a compaixão. Vejamos uma boa amostra da subjetividade do narrador: (…) las ilustres damas pasaban mucho tiempo fuera del triste de sus mayores. Visitaban a lo mejor de Vetusta, sin contar la visita al Santísimo y la Vela, que les tocaba una vez por semana. Asistían a todas las novenas, a todos los sermones, a todas las cofradías, y a todas las tertulias de buen tono. Comían dos o tres veces por semana fuera de casa. Lo más del tiempo lo empleaban en pagar visitas. Esta era la ocupación a que daban más importancia entre todas las de su atareada existencia. No pagar una visita de clase, les parecía el mayor crimen que se podía cometer en una sociedad civilizada. Amaban la religión, porque éste era un timbre de su nobleza, pero no eran muy devotas; en su corazón el culto principal era el de la clase, y si hubieran sido incompatibles la Visita a la Corte de María y la tertulia de Vegallana, María Santísima, en su inmensa bondad, hubiera perdonado, pero ellas hubieran asistido a la tertulia. La etiqueta, según se entendía en Vetusta, era la ley por que se gobernaba el mundo; a ella se debía la armonía celeste (ALAS, 1998, p.158). O enunciado ―ilustres damas‖ por si só já justificaria o acentuado deboche do narrador em atribuir um termo respectivamente digno, virtuoso, a duas figuras femininas desprezíveis, as solteironas Águeda e Anunciación, que usavam a religião para garantir benefícios próprios. A ironia se acentuará à medida que o narrador nos revela a falta de religiosidade das tias de Ana, ao afirmar que estas não eram muito devotas, tal como faziam questão afirmar para a sociedade vetustense, mas sim 59 interesseiras e amorais, o que corrobora a natureza hipócrita das personagens que, em razão da decadência financeira, acentuada com a morte do patriarca Carlos Ozores, passam a viver de aparências, assim como toda a cidade: ―La etiqueta, según se entendía en Vetusta, era la ley porque se gobernaba el mundo; a ellas se debía la armonía celeste. Suprimida la etiqueta, las estrellas cohocarían y se aplastarían probablemente‖ (Ibidem, p.158). Não satisfeito em debochar da pouca fé das oportunistas irmãs Anuncia e Águeda, o narrador clariniano ridiculariza também a ignorância, a falta de conhecimento de Anuncia, no episódio em que ela descobre que Anita escrevia poesia em um pequeno caderno de versos, cultivando, assim, o dom da escrita. No fragmento: Cuando doña Anuncia topó en la mesilla de noche de Ana con un cuaderno de versos, un tintero y una pluma, manifestó igual asombro que si hubiera visto un revólver, una baraja o una botella de aguardiente. Aquello era una cosa hombruna, un vicio de hombres vulgares, plebeyos. Si hubiera fumado, no hubiera sido mayor la estupefacción de aquellas solteronas (Ibidem, p.172). Além do horror, do espanto, que tal descoberta lhe causara− uma Ozores poetiza−, a zombaria deve ser atribuída, sobretudo, à confusão feita pela personagem que desconhecia o significado de ―versos livres‖, acreditando serem estes versos libertinos, lascivos, em razão das acusações feitas no passado por dona Camila, que, após o episódio da Barca de Trébol, acusara a pequena Ana de promiscuidade. Vejamos o diálogo em que o Marquês de Vegallana tranquiliza a beata, explicandolhe o motivo de sua confusão: El marqués de Vegallana, a quien sus viajes daban fama de instruido, declaró que los versos eran libres. 60 Doña Anuncia se volvía loca de ira. -¿Con que indecentes, libres? ¡Quién lo dijera! La bailarina... -No, Anuncita, no te alteres. Libres quiere decir blancos, que no tienen consonantes; cosas que tú no entiendes (Ibidem, págs.172-173). As críticas com relação à falta de fé não recaem apenas sob as falsas beatas Águeda e Anuncia, mas principalmente sobre os próprios membros eclesiásticos, os ―venerables canónigos‖, que, segundo o narrador, se encontravam profundamente entediados com suas obrigações e deveres dentro da Igreja Católica. E esse descontentamento fica-nos evidente a partir da comparação dos ofícios desempenhados pelos religiosos aos de um funcionário público, que atua em seu trabalho de forma mecânica, sem amor e sem paixão. Citamos: El coro había terminado: los venerables canónigos dejaban cumplido por aquel día su deber de alabar al Señor entre bostezo y bostezo. Uno tras otro iban entrando en la sacristía con el aire aburrido de todo funcionario que desempeña cargos oficiales mecánicamente, siempre del mismo modo, sin creer en la utilidad del esfuerzo con que gana el pan de cada día. El ánimo de aquellos honrados sacerdotes estaba gastado por el roce continuo de los cánticos canónicos, como la mayor parte de los roquetes, mucetas y capas de que se despojaban para recobrar el manteo (ALAS, 1998, p.90). A metáfora é outro domínio do discurso figurado através da qual a subjetividade do sujeito da enunciação pode ser apreciada. Ela ocorre quando há, no discurso, o transporte do nome de uma coisa para outra, como uma espécie de analogia baseada em características similares entre os dois objetos focados. É a figura da linguagem que consiste, portanto, ―no transportar para uma coisa o nome de outra, ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie de 61 uma para a espécie de outra, ou por analogia‖18. Não obstante, é oportuno afirmar que, por trás dessa significativa transposição, a metáfora revela-se muito mais que um recurso embelezador, que um mero adorno, mas sim como uma figura complexa, através da qual o signo desenvolve as suas potencialidades, alcançando a pluralidade de significados. Daí explica-se o fato de a metáfora ser uma figura que vai muito além da palavra, sendo tida por muitos como ―a mais importante das <<figuras de palavras>>. É muito mais. Também é criação linguística, é conhecimento de realidades, é mudança de sentido‖ (CASTRO, 1978, p.12), aspecto que indiscutivelmente caracteriza uma abordagem cognitiva. Em A metáfora viva, Paul Ricoeur afirma que ―não há metáfora no dicionário, apenas existe no discurso; neste sentido, a atribuição metafórica revela melhor que qualquer outro emprego da linguagem o que é uma fala viva; esta constitui por excelência uma <<instância de discurso>>‖ (1983, p.148), e por crer na perspectiva de que o discurso metafórico acentua indiscutivelmente as marcas da subjetividade do enunciador, queremos dizer, os sinais de sua presença, suscetíveis de serem percebidos ao nível do enunciado, foi que nos pareceu admissível considerá-la em nossas análises a propósito da figura do narrador. Em La Regenta contamos com uma diversidade de exemplos em que o sujeito da enunciação recorre ao emprego da metáfora, e um dos mais pertinentes encontrase no primeiro capítulo da obra, na descrição dos provocativos olhares de Obdulia Fandiño para o clérigo Fermín de Pas, que se sentia intensamente aborrecido com o assédio explícito da viúva de Pomares. 18 ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: I.N.C.M, 3ª Ed., s.d., p.133. In: SANTOS, Américo Oliveira. ―Metáfora: figurações, fulgurações‖. Revista da Faculdade de Letras <<LÍNGUAS E LITERATURAS>>. Porto, XV, 1998, p.188. 62 O olho é o órgão da visão humana, uma parte do corpo que nos permite observar e perceber semelhanças e diferenças entre os mais variados objetos e pessoas, e através dele não só percebemos o mundo que nos rodeia como também podemos transmitir nossos mais íntimos sentimentos e emoções, o que o transforma numa das mais importantes formas de expressão, sem necessitarmos recorrer às palavras. O olhar, a forma com que olhamos o outro, é extremamente significativa, reveladora, por fim, comunicativa, e é através do uso das metáforas sobre as ―miradas más ardientes, más negras de aquellos ojos negros, grandes y abrasadores‖ que o narrador clariniano nos permitirá ver e compreender, de forma mais enfática, o claro desejo de Obdulia por Fermín. Vejamos o fragmento abaixo: La dona Obdulia le fatigaba, le mareaba. ¡Y Ella que quería seducirle, hacerle suyo como al obispo de Nauplia, aquel prelado tan frío que no se separaba de ella cuando vivieron en el hotel de la Paix, en Madrid,… en medio! Las miradas más ardientes, más negras de aquellos ojos negros, grandes y abrasadores eran para De Pas; los adoradores de la viuda lo sabían y le envidiaban. Pero él maldecía aquel bloqueo. <<Necia, ¿si creerá que a mí se me conquista como a don Saturno>> (Idibem, p.85). Parece que os insinuantes olhares da viúva não são os únicos responsáveis pelo inegável aborrecimento de De Pas. A estridente gargalhada de Obdulia, outro elemento metaforizado pelo narrador de La Regenta, também é um dos motivos de enfado por parte do religioso, que desaprova a descompostura da ousada personagem feminina, de reputação denegrida dentro da sociedade vetustense: ―Pronto las carcajadas de Obdulia Fandiño, frescas, perladas, como las llamaba Don Saturno, llenaron el ambiente, profanado ya con el olor mundano de que había infestado la sacristía desde el momento de entrar (...). Aquella mujer le crispaba los nervios a don Fermín; era un escándalo andando ‖ (Ibidem, p.84). 63 Dentro do discurso figurado, há também a comparação, e uma das mais interessantes, a nosso ver, encontra-se relacionada à capacidade de observação de Fermín de Pas, comparada a de um naturalista, a de um estudioso que analisa com agudeza e precisão o material o qual se dedica a observar: El Magistral, olvidado de los campaneros, paseaba lentamente sus miradas por la ciudad escudriñando sus rincones, levantando con la imaginación los techos, aplicando su espíritu a aquella inspección minuciosa, como el naturalista estudia con poderoso microscopio las pequeñeces del cuerpo. No miraba a los campos, no contemplaba la lontananza de montes y nubes; sus miradas no salían de la ciudad. Vetusta era su pasión y su presa‖ (Ibidem, p.64). No Prólogo a La Regenta (1901), Benito Pérez Galdós também chama a atenção para o labor de observação empreendido pelo romancista Leopoldo Alas, que com muita perspicácia e maestria extraiu do entorno social, da cidade de Oviedo (Vetusta), todo o frutífero material necessário para a construção de seu romance, o que vem acentuar o papel do escritor naturalista, que compreende a sociedade como matéria que se pode novelar. Vejamos o que diz Pérez Galdós a respeito do engenho de Alas de ajustar a realidade da natureza e da alma humana às ficções da arte, representando objetos e pessoas, caracteres e lugares tal como Deus os concebeu: Más que ciudad, es para él Vetusta una casa con calles, y el vecindario de la capital asturiana una grande y pintoresca familia de clases diferentes, de varios tipos sociales compuesta. ¡Si conocerá bien el pueblo! No pintaría mejor su prisión un artista encarcelado durante los años en que las impresiones son más vivas, ni un sedentario la estancia en que ha encerrado su persona y sus ideas en los años maduros. Calles y personas, rincones de la Catedral y del Casino, ambiente de pasiones o chismes, figures graves o ridículas pasan de la realidad a las manos del arte, y con exactitud pasmosa se reproducen en la mente del lector, que acaba por creerse vetustense, y ve proyectada su sombra sobre las piedras musgosas, entre las 64 sombras de los transeúntes que andan por la Encimada, o al pie de la gallardísima torre de la Iglesia Mayor19. Sendo assim, Leopoldo Alas, por meio de uma profunda investigação fundamentada na observação e documentação da realidade, aprendeu a partir de sua própria experiência, e este conhecimento, construído gradativamente por meio de longos meses de análises e estudos, tornar-se-á de extrema importância para a construção de La Regenta e de muitos outros romances de sua autoria. Benito Pérez Galdós também não foge à regra. No prefácio de Misericordia, escrito em 1897, o romancista comenta que, antes mesmo de iniciar o processo de produção da obra, dedicou diversos meses na observação da realidade, visitando, através do disfarce de médico, as ruas, os abrigos e as tabernas rodeadas de indivíduos que viviam na mais absoluta miséria, tais como os mendigos que pediam esmola em frente à catedral de Madrid. Vejamos o que diz o autor sobre sua experiência de observador do meio: ―Em Misericordia me propus descer às zonas ínfimas da sociedade madrilense, descrevendo e apresentando os tipos mais humildes, a suma pobreza, a mendicidade profissional, a desocupação viciosa, a miséria, dolorosa quase sempre...‖ (PEREZ GALDÓS, 1990, p. 7). As comparações podem ser encontradas também relacionadas ao discurso abstrato, que, por sua vez, se prontifica a vincular a ideologia e a afetividade do narrador, assumindo, assim, a forma de um comentário pessoal (REIS, 1984, p.95). Vejamos uma prova da possível relação entre os discursos na cena em que o narrador de La Regenta compara a triste juventude de Fermín de Pas à recordação de uma mulher querida, que hoje se encontra esquecida. Citamos: 19 Ver Prólogo de Benito Pérez Galdós a La Regenta. In: ALAS, Leopoldo. La Regenta. Tomo I. Madrid: Librería de Fernando Fé, 1901. 65 El Magistral empezaba a despreciar un poco los años de su próxima juventud, le parecían a veces algo ridículos sus ensueños y la conciencia no se complacía en repasar todos los actos de aquella época de pasiones reconcentradas, poco y mal satisfechas. Prefería las más veces recrear el espíritu contemplando lo pasado en lo más remoto del recuerdo; su niñez le enternecía, su juventud le disgustaba como el recuerdo de una mujer que fue muy querida, que nos hizo cometer mil locuras y que hoy nos parece digna de olvido y desprecio (ALAS, 1998, p.67). Assim como o discurso figurado e suas diversas modalidades, a subjetividade do sujeito da enunciação também pode ser encontrada no discurso modalizante, efeito da apreciação do narrador a um fato, espaço ou personagem observada, podendo ser compreendido, no enunciado, pelo uso de um verbo como ―parecer‖ ou equivalente e pela presença de determinados advérbios de caráter dubitativo (REIS, 1984, p.96). Vejamos um exemplo em que o narrador emprega o uso do verbo ―parecer‖ a fim de caracterizar a beleza natural do bairro da Colonia: ―El Magistral volvía el catalejo al Noroeste, allí estaba la Colonia, la Vetusta novísima, tirada a cordel, deslumbrante de colores vivos con reflejos acerados; parecía un pájaro de los bosques de América, o una india brava adornada con plumas y cintas de tonos discordantes‖ (Ibidem, p.71), e um outro exemplo em que caracteriza a rudeza e a falta de encantos de dona Camila, criada contratada por Carlos Ozores para instruir Ana durante o período correspondente a infância da personagem: ―Tomó un aya, una española inglesa que en nada se parecía a la de Cervantes, pues no tenía encantos morales, y de los corporales, si de alguno disponía, hacía mal uso‖ (Ibidem, p.134). A alusão à personagem cervantina, que funciona como uma contraposição à feiúra de dona Camila, faz com que pensemos também num outro aspecto mais além da subjetividade do enunciador: em La Regenta como uma obra que se constrói a partir da correlação de diversos livros, já que ―todo texto é um mosaico de citações, é 66 absorção e transformação de outro texto‖ (LAURENT, 1979, p. 13). Assim como Don Quijote de la Mancha, o romance La Regenta é um livro feito de livros, repleto de citações, de alusões e de referências a outros textos, vide as inúmeras obras lidas e relidas pelas personagens-leitoras, e todas estas se afirmam por mostrar que o ―nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras citadas) é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade, de uma grau vário de aperceptibilidade e de relevância‖ (BAKHTIN, 2006, p.294-295), o que, sem dúvida, corrobora a importância da intertextualidade. Perpassando por algumas das principais modalidades de discursos, observamos que presença do narrador de La Regenta e suas consequentes marcas de subjetividade no relato são, de fato, indiscutíveis. Longe de se limitar a um discurso objetivo, tal como prescreviam os naturalistas franceses encabeçados por Zola, o narrador clariniano deixa escapar juízos de valor nitidamente denunciativos seja através de qualificativos, seja através de figuras de linguagem como a metáfora e a comparação. Somos irredutíveis em afirmar que o narrador de La Regenta caracteriza-se por uma presença ativa, deixando transparecer no enunciado as marcas de uma subjetividade pulsátil e, muitas vezes, incontrolada, e são precisamente estas marcas que nos permitem estabelecer com concernente segurança as coordenadas essenciais de um perfil ideológico e afetivo, aclarado pelo franco repúdio à hipócrita sociedade ovetense do séc. XIX, imbecilizada por uma educação limitada e aprisionadora, por uma burguesia inerte e entorpecente, por uma aristocracia decadente, por um clero corrupto e usurpador, pelo conservadorismo absoluto e, principalmente, pela ausência de valores morais dos indivíduos. 67 A partir da literatura picaresca, consolidou-se uma nova perspectiva literária caracterizada pela predileção às experiências individuais em oposição às coletivas. Em razão dessa transposição, surge a noção de personagens como entidades ficcionais que possuem, dentro do universo diegético do romance, uma história fundamentada em circunstancias e espaços determinados, ao contrário do se sucedia antigamente nos mitos e fábulas, por exemplo, quando ―<<tipos gerais>>> ou <<protótipos>> se recortavam num universo predeterminado por uma convenção literária apropriada‖ (WATT, 1984, p.23). O naturalismo foi uma das correntes estético-literárias que mais importância atribuiu à personagem. Preocupava-se em estudá-la minuciosamente, cada detalhe de sua natureza, e, ao mesmo tempo em que o narrador buscava apresentar os recantos mais íntimos da personalidade dessa figura, ele procurava também explicitar o mútuo condicionamento que caracteriza as relações do indivíduo com a sociedade em que se integra, proposição que evidencia o um forte apreço, por parte dos romancistas realistas/ naturalistas do século XIX, às teses de caráter social e de ação moralizadora. Em La Regenta, as personagens encontram-se intrinsecamente relacionadas com o meio, estando, muitas vezes, condicionadas pelas origens, pelo temperamento e pela educação que receberam. E, ao focalizarmos nossos olhares sobre elas, observamos que o narrador procura destacar não só a origem social e as diretrizes culturais e morais que orientaram a sua formação, mas todo um conjunto de vícios e qualidades eventualmente reveladas pelo ambiente que as marcou. Com isso, buscaremos, no próximo sub-capítulo, delinear a configuração física, moral e 68 ideológica das principais figuras femininas do romance clariniano, a partir de discurso indireto e indireto livre do narrador. 2.1.2. O discurso indireto e indireto livre na construção das subjetividades femininas Optamos por essas duas modalidades de discurso porque através do discurso indireto, notamos que o narrador clariniano utiliza as próprias palavras para representar a personagem, e, portanto, a fala dela, o que corrobora a supremacia da sua voz. Dessa forma, o narrador fica encarregado de incorporar na sua linguagem a fala das personagens, transmitindo aos leitores apenas a essência do pensamento a ele atribuído. No discurso indireto livre, a mais famosa invenção do autor de Madame Bovary, a fala de determinada personagem ou fragmentos dela é sutilmente inserida no discurso do narrador, permitindo que o mesmo exponha aspectos psicológicos da personagem, de forma a revelar a intimidade− ideias, sentimentos, sensações e recordações− de dentro, aproximando, desta forma, o narrador onisciente da personagem. A partir do discurso indireto livre, conseguimos um via de ingresso até o íntimo da personagem, em outras palavras, à sua subjetividade. Temos a sensação de escutá-la, de vê-la, por fim, de acompanhar passo a passo uma consciência que se encontra em movimento, sem a necessidade de que se converta em expressão oral. É o discurso que se consagrou por ter significado: (...) o primeiro grande passo do romance para narrar diretamente o processo mental, para descrever a intimidade, não põe suas manifestações exteriores (atos ou palavras), através da interpretação de um narrador ou um monólogo oral, mas 69 representando-a mediante uma escrita que parecia localizar o leitor no centro da subjetividade da personagem (VARGAS LLOSA, 1979, p.156). E por narrar tão próximo da personagem, as fronteiras entre ambos se diluem, dando uma impressão de ambiguidade, na qual os leitores, muitas vezes, não sabem se aquilo que o sujeito da enunciação narra provém do relato do narrador ou da própria personagem que está refletindo mentalmente. A proliferação desse tipo de discurso em La Regenta é notória. No entanto, é válido comentar que, em diversas ocasiões, o narrador clariniano irá optar por desfazer essa ambiguidade própria do discurso indireto livre, através de aspas didáticas que ―(...) atribuem as ideias envolvidas claramente aos interlocutores sem deixar parte nenhuma possível ao narrador‖ (HATZFELD, 1977, p.49)20, determinando, assim, a voz daquele que fala, daquele que toma a palavra para si. Dentro de uma significativa galeria de personagens femininas que se entregam ao amor proibido, motivadas principalmente por caprichos e por prazeres mundanos, tal como podemos apreciar na obra Madame Bovary, através da figura de Emma, ―a amante experiente e lasciva, mestra nas mil artes do erotismo e liberada para desejar outros prazeres‖ (KEHL, 1998, p.157), deparamo-nos em La Regenta com uma figura particular, capaz, por um lado, de despertar encanto, simpatia, dada a ingenuidade e bondade de seus sentimentos− o que a coloca em posição de destaque frente às demais personagens do romance−, e por outro, pena, lamento, devido à consentida resignação à hipócrita cidade que, a todo instante, conspirava por sua queda. 20 ―(…) atribuyen las ideas envueltas claramente a los interlocutores sin dejar parte ninguna posible al narrador‖. 70 2.1.2.1. Ana Ozores Este pobre navegante, Meu coração amante Enfrentou a tempestade No mar da paixão e da loucura Em busca da felicidade. (Paulinho da Viola) A complexa natureza sentimental de Ana Ozores, personagem central do romance de Leopoldo Alas, despertou-nos, desde nossos primeiros estudos sobre as figuras da leitura e do leitor em La Regenta, realizados no mestrado, um indescritível interesse, sobretudo, pelo fato de Ozores encontrar-se constantemente dividida ora por suas aspirações e desejos, ora pelas castradoras obrigações e deveres impostos pela sociedade patriarcal do século XIX, predominantemente machista, intolerante e conservadora. Dessa forma, assim como os escritores realistas/ naturalistas, seduzidos pela profundidade da natureza humana, procuraremos analisar, em primeiro lugar, detalhe por detalhe do processo de construção da subjetividade de Ana Ozores, a partir do discurso direto e indireto livre do narrador do romance, o principal regente do coro de vozes que compõe a narrativa de La Regenta. Para isso, direcionaremos nossos olhares aos capítulos IV e V, que tratam de dois períodos essenciais à formação do imaginário de Ana: a infância e a adolescência. Filha do engenheiro militar Carlos Ozores e de uma humilde modista italiana, que ―vivia em médio de seducciones sin cuento, honrada y pobre‖ (ALAS, 1998, p.132), Ana nasce de um relacionamento fadado ao repúdio e a inúmeras críticas por parte da sociedade vetustense, escandalizada com o fato de Carlos ter escolhido uma 71 plebéia, uma mulher que não pertencia à mesma classe social que a dele. Dom Carlos vinha de uma importante linhagem de aristocratas espanhóis, uma das mais tradicionais de Vetusta. Na cidade, ser um descendente do Ozores era sinônimo de prestigio e de admiração, o que vem corroborar o expressivo valor que se atribuía, no sec. XIX, ao status de uma nobre família dentro de uma sociedade hierarquizada, marcada por diferentes classes sociais. E foi justamente por ser Carlos o último herdeiro dos Ozores que suas irmãs Anunciación e Águeda se pronunciaram explicitamente contra o casamento com a modista italiana− a quem o narrador não menciona nem o nome− o que resultou no rompimento das relações com o irmão mais velho. Vejamos: Su matrimonio había originado al coronel un rompimiento con su familia. Se escribieron dos cartas secas y no hubo más relaciones. -Si viviera mi padre -pensaba Ozores- de fijo perdonaba este matrimonio desigual. -¡Si viviera padre, moriría del disgusto! -decían las solteronas implacables (Ibidem, p.132). A ruptura comentada pelo narrador de La Regenta também é aclarada pelo jogo de vozes entre as personagens que defendiam, aqui, pontos de vista contraditórios, queremos dizer, perspectivas ideológicas antagônicas sobre o matrimonio na sociedade patriarcal do século XIX. Carlos reconhecia a desigualdade social, porém, aos olhos da personagem, esta não significaria o impedimento da união, pensamento que explica a indiferença do patriarca à divisão da sociedade oitocentista em diferentes classes. Para Carlos Ozores, o que importava, de fato, era o amor, a autenticidade dos sentimentos. Já Águeda e Anuncia manifestavam-se radicalmente contra, pois acreditavam que aquela união rompia a sólida estrutura hierárquica que prevalecia entranhada na sociedade patriarcal da época. Para elas, 72 ainda que a condição financeira da família não fosse a das melhores, um nobre só poderia casar-se com outro nobre, ou seja, com indivíduos da mesma classe, do mesmo sangue, e o rompimento dessa estrutura teria consequentemente como resposta a rejeição, em outras palavras, o distanciamento dos familiares. Águeda e Anuncia não são as únicas a se oporem ao <<matrimonio desigual>>, assim definido pelo próprio Carlos Ozores. A nobreza também se pronunciará contra a relação que considera inapropriada, o que nos faz compreender o desprezo das beatas solteironas, porta-vozes do discurso aristocrata: ―Toda la nobleza vetustense aprobaba la conducta de aquellas señoritas, que vieron un castigo de Dios en el desgraciado puerperio de la modista italiana, su cuñada indigna‖ (Ibidem, p.132). Tão grande é a indignação das irmãs e de toda Vetusta que nem mesmo a morte da italiana, após ter dado a luz à Ana, primeira sobrinha, é capaz de promover a aproximação dos irmãos brigados. Citamos: ―A don Carlos le dolió mucho que ni siquiera se le preguntase por su hija. La nobleza vetustense opinó que muerto el perro no se acabase la rabia; que la muerte providencial de la modista no era motivo suficiente para hacer las paces con el infame don Carlos ni para enterarse de la suerte de su hija‖ (Ibidem, p.132). O cruel distanciamento das beatas agravou-se ainda mais depois que a cidade inteira começou a anunciar a adesão de Ozores ao republicanismo, o que motivou a transformá-lo num filósofo <<librepensador>>, expressivo admirador de ideias revolucionárias, tais como a implantação de uma educação mais liberal e harmônica, fundamentada nos princípios krausistas. Motivado pelos novos conhecimentos, Carlos Ozores decide viajar pela Europa, a fim de aprimorá-los. Como não podia 73 contar com o apoio de Águeda e Anuncia, Ozores decide contratar Camila Portocarrero para que esta se encarregue da educação de Ana Ozores, principalmente pelo fato de a criada ser, do ponto de vista de Carlos, ―una mujer ilustrada, aunque española; educada en Inglaterra donde ha aprendido el noble espíritu de la tolerancia‖ (Ibidem, p.134). O que a princípio fora tido por Carlos como uma grande vantagem− a contratação de dona Camila−será para o narrador uma das razões de sua ruína. A partir do discurso do sujeito da enunciação, é possível se conscientizar da verdadeira índole da ambiciosa criada, que em nada se assemelhava a de Cervantes, e para melhor ilustrar a falta de caráter e inclusive de atributos físicos admiráveis da personagem, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: Era, en fin, una hipocritona de las que saben que a los hombres no les gustan las mujeres beatas, pero tampoco descreídas, sino, así un término medio, que los hombres mismos no saben cómo ha de ser. La hipocresía de doña Camila llegaba hasta el punto de tenerla en el temperamento, pues siendo su aspecto el de una estatua anafrodita, el de un ser sin sexo, su pasión principal era la lujuria, satisfecha a la inglesa: una lujuria que pudiera llamarse metodista si no fuera una profanación (Ibidem, p.134). A malícia de dona Camila é acentuada quando Carlos mostra-se indiferente às suas constantes tentativas de seduzi-lo. Camila é interesseira, vê em Ozores uma oportunidade de ascensão social, sobretudo, pelo fato de acreditar que o viúvo não se importava com um casamento entre pessoas de distintas classes sociais: ―Creyó que don Carlos se había casado por compromiso, que era un hombre que se casaba con la servidumbre. Conocía este tipo y sabía cómo se le trataba. Pero fue inútil‖ (Ibidem, p.135). O casamento era o que permitia ao sexo feminino reconhecimento e posição 74 social no século XIX. Colocava-se para as mulheres no mesmo nível que profissão, carreira política ou riqueza para os homens. Na sociedade oitocentista, a mulher que não se casava estava, quase sempre, predestinada a uma vida celibatária pouco encantadora para as mulheres daquela época, educadas fundamentalmente em função do matrimônio. Para Ingrid Stein (1984, p.30), a condição de ―solteirona‖ significava o confinamento da mulher na casa dos pais, em outras palavras, a sua completa submissão à família patriarcal, devido ao fato de permanecer economicamente dependente da figura do pai. Não havia encantos nessa vida solitária, ausente de luz e de cores, e suas atividades resumiam-se em acompanhar a mãe às visitas e aos passeios públicos, aos cuidados da casa e à educação dos irmãos mais novos ou sobrinhos, quando os tivesse. Para a mulher que não se casara, havia também a possibilidade de ingressar à vida eclesiástica para tornar-se ―esposa de Jesus‖. Na Europa do século XIX, ainda era muito comum que os pais, quando não encontravam algum pretendente condizente com posição social da família, mandassem suas filhas às instituições religiosas, na principal intenção de preservar a honra delas e, assim, proporcionarlhes uma vida digna, longe do evidente desprestígio atribuído àquelas que se mantinham solteiras na casa dos pais, perspectiva que se torna um tanto compreensível numa sociedade particularmente interessada na estrutura casamento/ família. Sendo assim, o matrimônio tinha na vida da mulher uma função de grandiosa importância, pois só através dele é que a mulher conquistava o tão almejado status social, livrando-se, assim, das raras opções que, além de serem pouco atraentes para o público feminino, condenavam-lhe à difamação. Vejamos: 75 Casar-se representava na vida da mulher uma função importantíssima, pois só com isto ela obtinha um status mais elevado (...). Para a mulher- como para o homem- o casamento podia implicar ascensão social, mas para ela, esta era a única maneira de alcançá-la, uma vez que não se permitiam atividades que lhe possibilitassem promover-se socialmente por esforço próprio (STEIN, 1984, p.32). Dona Camila Portocarrero é uma personagem astuciosa, de ambições desmedidas. Possui uma notável capacidade de percepção da realidade e muita vontade e capacidade de empenho, no sentido de alcançar as suas metas, a partir do outro, ou melhor, do homem. Camila sabe que a melhor forma de realizar-se seria através do matrimônio com Carlos. No entanto, a recusa de Ozores caiu-lhe como uma grande ofensa e, indignada por não ter sido aceita como futura esposa, a criada jura ódio mortal ao patrão, sentimento que inevitavelmente também recai sobre a pequena órfã: Anita, que, ao lado de Camila, passa a viver o inferno na terra. Após a partida de Carlos Ozores, dona Camila é incumbida da preciosa missão de educar Ana Ozores, de prepará-la para a vida. A senhora Portocarrero, entretanto, não faz mais que enquadrá-la nos moldes de uma educação repressora, que condenava o senso crítico, a autonomia da personagem e, por fim, o seu despertar para o mundo. A infância de Anita, período que deveria ser marcado pela alegria e felicidade, transforma-se num verdadeiro tormento para a pequena órfã. Desde cedo, ela tem de conviver com uma sombria realidade, aclarada pela ausência materna e posteriormente paterna, o que, sem dúvida, muito contribuiu para o florescimento da sensação de solidão e de abandono. Fora a falta dos pais, teve de conviver também com as maliciosas insinuações feitas pela ardilosa criada, quem defendia que a educação de Anita, de apenas quatro anos de idade, deveria estar 76 cercada de <<cuidados especiales>>, em outras palavras, de severos castigos, por esta ser filha da italiana. Citamos: El aya afirmaba en todas partes, entre interjecciones aspiradas, que la educación de aquella señorita de cuatro años exigía cuidados muy especiales. Con alusiones maliciosas, vagas y envueltas en misterios a la condición social de la italiana, daba a entender que la ciencia de educar no esperaba nada bueno de aquel retoño de meridionales concupiscencias. En voz baja decía el aya que «la madre de Anita tal vez antes que modista había sido bailarina» (Ibidem, p.136). De acordo com as principais teorias das ciências experimentais do século XIX, tais como as de Lamarck, a propósito da hereditariedade dos caracteres adquiridos, e as de Darwin, sobre a sobrevivência e adaptação dos indivíduos mais bem dotados em face do meio natural, o homem era um simples produto biológico cujo comportamento resultava da pressão do ambiente social e da hereditariedade psicofisiológica. Ao apropriar-se desses conceitos, muitos romancistas naturalistas passam, então, a ver o homem como mero produto da hereditariedade, cujas forças preexistentes lhe roubavam o livre-arbítrio, de forma a limitar as suas responsabilidades, tornando-os verdadeiros joguetes nas mãos do destino, perspectiva que aclara a preocupação de dona Camila, que, por sua vez, acreditava no fato de Ana haver herdado o caráter da mãe, persistentemente acusada por todos de leviandade. Segundo Vives (2000), a educação que proporciona dona Camila à jovem Ozores é uma educação contra todos os princípios relacionados à natureza; era uma instrução baseada na repressão dos instintos e na anulação de toda espontaneidade e autonomia da criança. Citamos: 77 De todas suertes, doña Camila se rodeó de precauciones pedagógicas y preparó a la infancia de Ana Ozores un verdadero gimnasio de moralidad inglesa. Cuando aquella planta tierna comenzó a asomar a flor de tierra se encontró ya con un rodrigón al lado para que creciese derecha. El aya aseguraba que Anita necesitaba aquel palo seco junto a sí y estar atada a él fuertemente. El palo seco era doña Camila. El encierro y el ayuno fueron sus disciplinas. (Ibidem, p.136). O fragmento é revelador, especialmente pelo uso das metáforas ―flor‖ y ―palo seco‖. Através delas notamos que a jovem fora educada sem qualquer tipo de afetuosidade, sendo submetida, a todo instante, ao rigor e à disciplina de uma educação basicamente tradicional, fundamentada nos moldes ingleses. A vida de Anita, como vimos, encontrava-se indelevelmente marcada pelo desamparo e pela tristeza, não obstante, eram nos sonhos que a pequena, dona de uma surpreendente capacidade imaginativa, encontrava a felicidade que tanto desejava experimentar. O que salvou Ana Ozores do terror experimentado por ela foi indiscutivelmente sua imaginação aflorada, que a conduzia a outro mundo, tal como afirma o narrador e a própria personagem que, posteriormente, tomará a palavra para si. Vejamos as diversas vozes no fragmento: Ana que jamás encontraba alegría, risas y besos en la vida, se dio a soñar todo eso desde los cuatro años. En el momento de perder la libertad se desesperaba, pero sus lágrimas se iban secando al fuego de la imaginación, que le caldeaba el cerebro y las mejillas. La niña fantaseaba primero milagros que la salvaban de sus prisiones que eran una muerte, figurábase vuelos imposibles. «Yo tengo unas alas y vuelo por los tejados, pensaba; me marcho como esas mariposas»; y dicho y hecho, ya no estaba allí. Iba volando por el azul que veía allá arriba (Ibidem, p.136). Ana cresce, completa dez anos de idade. Os seus vôos imaginários também não param de crescer, sobretudo, porque, agora, ela, além de contar com mais 78 conhecimento de vida, construído, em especial, por intermédio das leituras que realizou aos cuidados de dona Camila, conta com Germán, seu primeiro amigo e companheiro de aventuras. Se Ana já se destacava, desde criança, pela inventividade de seus sonhos, ao lado de Germán estes estarão muito mais criativos. Com ele, Anita brinca de descobrir novos mundos, de realizar viagens perigosas, arriscadas, a países que ele nem de nome conhecia. Germán participava das brincadeiras idealizadas por Ana com gosto, sem demonstrar nenhuma oposição às mirabolantes ideias de sua mais nova amiga, que, em seu íntimo, só queria ―marchar de veras, muy lejos, huyendo de doña Camila‖ (Ibidem, p.138). A deliciosa sensação de liberdade saboreada por ela, fruto da amizade com Germán, teve seu fim. Uma de suas maiores aventuras, intitulada pelo narrador de ―La Barca de Trébol‖− pelo fato de Ana e Germán escaparem à noite para ver a lua e contar contos na barca−, é tida por dona Camila como um pecado gravíssimo, digno de repreensão e censura. A ingenuidade da brincadeira ganha contornos distintos aos olhos da maldosa criada que julgava improcedente e indecorosa a conduta da menina. Vemos, aqui, a perversidade de dona Camila que, na tentativa de inferiorizá-la e castigá-la, atribui a suposta depravação da pequena Ana à mãe, à tão difamada modista italiana, o que novamente nos faz pensar na tese da herança, muito presente nos romances realistas/ naturalistas. Citamos: ―Ya se sabe cómo entendió la grosera y lasciva doña Camila la aventura de los niños. Era de tal índole la maldad de esta hembra, que daba por buenas las desazones que el lance pudiera causarle, por la responsabilidad que ella tenía, con tal de ver comprobados por los hechos sus pronósticos‖ (Ibidem, p.139). Faz-se necessário comentar que a adjetivação é outro possível recurso capaz de realçar a afetividade do narrador. Dessa forma, através dos 79 adjetivos ―grosera‖ e ―lascivia‖, empregados intencionalmente pelo sujeito da enunciação para caracterizar a perversa criada, é possível perceber também as marcas da subjetividade do enunciador, em outras palavras, os sinais de sua presença no relato. A maldade de dona Camila não tem limites. Não satisfeita em punir a pequena Ozores de um ―crime‖ que não cometeu, a personagem emprenha-se na caluniosa missão de difundir, para quem quisesse ouvir, sua inescrupulosa versão sobre a ―imprudência‖ da filha de Carlos, realizando, assim, uma espécie de vingança contra aquele que a negou, que não a quis como mulher. Quando Ana completa quatorze anos, ninguém mais em Loreto se recordava do escandaloso episodio da ―Barca de Trébol‖, exceto a própria Ana que não se esquecia, nem tampouco compreendia com clareza as razões de tão terríveis acusações, já que, do seu ponto de vista, a aventura não passava de uma simples brincadeira. Vejamos: Al principio la calumnia habíale hecho poco daño, era una de tantas injusticias de doña Camila; pero poco a poco fue entrando en su espíritu una sospecha, aplicó sus potencias con intensidad increíble al enigma que tanta influencia tenía en su vida, que a tantas precauciones obligaba al aya; quiso saber lo que era aquel pecado de que la acusaban, y en la maldad de doña Camila y en la torpe vida, mal disimulada, de esta mujer, se afiló la malicia de la niña que fue comprendiendo en qué consistía tener honor y en qué perderlo; y como todos daban a entender que su aventura de la barca de Trébol había sido una vergüenza, su ignorancia dio por cierto su pecado. Mucho después, cuando su inocencia perdió el último velo y pudo ella ver claro, ya estaba muy lejos aquella edad; recordaba vagamente su amistad con el niño de Colondres, sólo distinguía bien el recuerdo del recuerdo, y dudaba, dudaba si había sido culpable de todo aquello que decían. Cuando ya nadie pensaba en tal cosa, pensaba ella todavía y confundiendo actos inocentes con verdaderas culpas… (Ibidem, 140). A partir do discurso do narrador, observamos que a repressão imediata de dona Camila não provocou, a princípio, graves danos à personagem, até porque a 80 pouca idade, associada à escassa experiência de vida, impedia que ela tirasse profundas conclusões sobre o assunto. Viu, então, a punição como mais uma das injustiças cometidas pela criada. As lembranças do episódio, no entanto, não desapareceram e, com o passar dos anos, voltaram a se manifestar com mais intensidade, abrindo verdadeiras feridas incicatrizáveis na imaginação de Anita. Assim, tomada por dúvidas e incertezas, Ana ia acreditando, cada vez mais, na infame história inventada pela maquiavélica criada, até fazer da mentira uma verdade absoluta. Os comentários grosseiros e vulgares feitos por dona Camila fizeram com que Ana interpretasse a aventura com Germán na barca como um evento escandaloso. Desde então, vimos que Ana Ozores, quando se falava do relacionamento entre homens e mulheres, passava a demonstrar repugnância e frieza, associando, segundo Sara E. Schifter (1982, p.232), ―a sexualidade como um intenso sentimento de culpabilidade, de temor e com uma certa repugnância‖. Vejamos: (…) la barca de Trébol, que la avergonzaba todavía, miraba con desconfianza, y hasta repugnancia moral, cuanto hablaba de relaciones entre hombres y mujeres, si de ellas nacía algún placer, por ideal que fuese. Aquellas confusiones, mezcla de malicia y de inocencia, en que la habían sumergido las calumnias del aya y los groseros comentarios del vulgo, la hicieron fría, desabrida, huraña para todo lo que fuese amor, según se lo figuraba. Se la había separado sistemáticamente del trato íntimo de los hombres, como se aparta del fuego una materia inflamable (ALAS, 1998, p.144). Em La Regenta, a ideia da sexualidade feminina como pecado, como crime, é, sem dúvida, algo que deve ser posto em evidência, primordialmente, para compreender as futuras frustrações sexuais da personagem, decorrentes de um casamento convencional, sem amor. Temerosa à repreensão, Ana Ozores, desde 81 pequena, passa a conter os seus mais íntimos desejos e aspirações, em fim, os seus impulsos naturais, declarando-se vencida à conduta moral que dona Camila lhe havia imposto, tal como nos revela o narrador no seguinte fragmento: ―(...) contradiciendo poderosos instintos de su naturaleza, vivió en perpetua escuela de disimulo, contuvo los impulsos de espontánea alegría; y ella, antes altiva, capaz de oponerse al mundo entero, se declaró vencida, siguió la conducta moral que se le impuso, sin discutirla, ciegamente, sin fe en ella, pero sin hacer traición nunca‖ (Ibidem, p.141). Essa é a primeira das inúmeras manifestações de submissão, de aceitação, demonstradas pela personagem clariniana, e esta resignação ganha contornos mais evidentes à medida que o narrador de La Regenta nos revela o peso que possui o olhar do outro na construção da subjetividade de Ana. A teoria bakhtiniana sobre a exotopia− presente no capítulo ―O autor e a personagem‖ de Estética da criação verbal (2006) − nos permite uma compreensão imediata da alteridade por apresentar uma visão multireferenciada, na qual tempo e espaço se encontram em plena interação no processo de construção do eu/ outro. Mencionamos: (...) é verdade que até na vida procedemos assim, a torto e a direito, avaliamos a nós mesmos do ponto de vista dos outros, através do outro procuramos compreender e levar em conta os momentos transgredientes à nossa própria consciência: desse modo, levamos em conta o valor da nossa imagem externa do ponto de vista da possível impressão que ela venha a causar no outro− para nós mesmos esse valor não existe imediatamente (para a autoconsciência e efetiva pura)−, consideramos o fundo às nossas costas, isto é, tudo o que nos rodeia, o que não enxergamos imediatamente, não conhecemos e não tem para nós importância axiológica direta, mas, pelo visto, é significativo e conhecido aos outros... (BAKHTIN, 2006, págs.13-14). Cada um de nós prescinde e necessita indubitavelmente do olhar do outro e que esta condição essencialmente alteritária do outro em relação a mim é 82 fundamental à experiência humana, à constituição do indivíduo. Sendo assim, o outro não deve ser visto como alguém que seja estranho a nós mesmo, em outras palavras, que esteja fora de nós, mas sim como alguém que indiscutivelmente contribui para o nosso processo de construção. Vejamos o que diz Tezza (1995), a propósito da importância do olhar do outro: (...) só um outro pode nos dar acabamento, assim como só nos podemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós, daqui onde estamos, temos sempre apenas um horizonte, estamos na fronteira do mundo que vivemos− e só o outro pode nos dar um ambiente, completar o que desgraçadamente falta ao nosso próprio olhar‖. E o que afirma Beth Brait (2005, p.24): O sujeito sabe do outro o que este não pode saber de si mesmo, ao tempo em que depende do outro para saber o que ele mesmo não pode saber de si. Ver-se no espelho não dá ao sujeito a visão acabada de ser Ser que só o olhar do outro lhe confere. Assim, só nessa relação de eus entre si pode nascer o sentido, que é função dela e ao mesmo tempo serve para moldá-la. Não há dúvidas de que Ana passa a construir-se a partir do olhar do outro, de um olhar que, a nosso ver, está longe de ser considerado inocente, devido ao fato de refletir inumeráveis possibilidades do sistema de crenças, valores e ideologias. Assim, nunca nenhum personagem olhará para Ana com olhos limpos, começando: (…) pelas pessoas do seu entorno infantil, a instrutora e seu lascivo amante, suas tias, seu marido, Víctor Quintanar, seu amante, Álvaro Mesía, as amigas, Obdulia, Visitación, Saturnino Bermúdez, os marqueses de Vegallana, todos, todos eles a observarão com os olhos cheios de inveja, conveniência o desejo, e desde uma perspectiva na que se somam ao pessoal às aspirações de sistemas de valores que fazem que o leitor experimente o texto narrativo como una explosão de 83 culturemas, de pequenas unidades de significado (GULLÓN, 2005. Tradução nossa)21. E por se encontrar rodeada de figuras hipócritas e amorais, que estão condicionadas ao entorno em que vivem, Ana acaba sendo influenciada por elas. A visão que a jovem terá de si será, muitas vezes, uma visão negativa, deturpada propositalmente pela maldade intrínseca dessas que se aproveitam da sensibilidade e da fragilidade da personagem, qualidades inadmissíveis em Vetusta, para prejudicála. Ao voltar dom Carlos do exterior, este se dá conta do terrível dano que causara a Anita ao conferir à dona Camila a preciosa missão de instruí-la. Reconhecido o equívoco, o próprio Ozores, após dispensar a criada de seu dever, se encarrega pessoalmente da instrução de Ana. Em oposição à viciosa educação que a jovem havia recebido da maquiavélica ama, Carlos prioriza um ensino mais liberal, permitindo que Ana se desenvolvesse livremente por meio de uma educação unilateral e harmônica, de acordo com os princípios krausistas. Em nossa dissertação de mestrado, intitulada ―A educação sentimental e a leitura no século XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas <<Clarín>>‖, mais especificamente no capítulo dedicado as leituras de Ana Ozores e as quatro fases correspondentes à educação da personagem, nos empenhamos em evidenciar que o krausismo, movimento orquestrado na Espanha pelos catedráticos da Universidad Central de Madrid− Francisco Giner de los Ríos, Canalejas e Salmerón− 21 (…) por las personas de su entorno infantil, la institutriz y su lascivo amante, sus tías, su marido, Víctor Quintanar, su amante, Álvaro Mesía, las amigas, Obdulia, Visitación, Saturnino Bermúdez, los marqueses de Vegallana, todos, todos ellos la observarán con los ojos llenos de envidia, conveniencia o deseo, y desde una perspectiva en la que se suman a lo personal las apetencias de sistemas de valores que hacen que el lector experimente el texto narrativo como una explosión de culturemas, de pequeñas unidades de significado‖. 84 posicionava-se em defesa de uma educação liberal e científica, permitindo o desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos que, através de desafios, eram levados a pensar e a refletir sobre determinados assuntos ou pontos de vista. Os krausistas incentivaram um novo estilo na relação entre professores e alunos, o que, consequentemente, acarretou a formação de um espírito altamente crítico e reflexivo, fato que, sem dúvida, muito motivou e incentivou os aprendizes a construírem o conhecimento, não através de métodos defasados e ineficazes, mas sim por meio de uma lógica que priorizava, acima de tudo, o raciocínio e o senso crítico. Com relação à filosofia de vida, os krausistas acreditavam que todas as religiões tinham algo de bom e de verdadeiro, e que o homem deveria fazer uso de sua razão para escolher a melhor, apelando, em casos de dúvida, para sua consciência como juízo final. Assim, não existia dogma nem rito que não devesse ser submetido ao espírito crítico, questionador. O princípio do livre arbítrio era fundamental no sistema krausista, e, naturalmente, provocou um antagonismo absoluto por parte dos conservadores, que, a todo instante, procuravam conter as grandiosas conquistas de um ensino laico e liberal. É importante afirmar que o livre arbítrio na filosofia krausista não se limitou somente à religião; este pôde se estender à filosofia, à política e a todas as manifestações da vida, fato que muito preocupou os setores mais tradicionalistas da época, aliados à Igreja Católica, que viam no movimento uma grande ameaça ao equilíbrio e à hegemonia do sistema monárquico vigente na Espanha oitocentista. Com base nos moldes da educação krausista, vimos que Anita, no período em que esteve orientada pelo pai, entra em contato com diversos tipos de leitura, ampliando seus horizontes e enriquecendo o seu conhecimento. Carlos Ozores, um 85 personagem instruído em várias matérias, amava a literatura com ardor, e, ao longo de sua vida, pôde reunir uma expressiva biblioteca, a qual continha, dentre muitas obras, livros condenados pelo Índice. Dado ao fácil acesso à biblioteca, Ana, talvez pelo fato de invejar os deuses de Homero, que viviam como ela havia sonhado que se deveria viver, ao ar livre, com muita luz e muitas aventuras, lê várias obras clássicas, demonstrando, assim, um grande interesse pela mitologia grega: ―(...) sabía mucha Mitología, con velos y sin ellos‖ (ALAS, 1998, p.142). Despertado o desejo pela leitura, Ana Ozores começa buscar novos livros. Nessa procura, a jovem, que limpava as estantes da biblioteca de dom Carlos, se depara como um volume em francês das Confesiones de San Agustín. No mesmo instante, sentiu-se tomada por um impulso irresistível e decidiu, imediatamente, iniciar a leitura do livro. Ana o lia com a alma agarrada às letras e quando concluía uma página, seu espírito já estava lendo outra, e é dessa incontrolável fascinação que surge o primeiro impulso místico. Vejamos: (...) seguía leyendo; aún estaba aturdida, casi espantada por aquella voz que oyera dentro de sí, cuando llegó al pasaje en donde el santo refiere que, paseándose él también por un jardín, oyó una voz que le decía "Tolle, lege", y corrió al texto sagrado y leyó un versículo de la Biblia... Ana gritó, sintió un temblor por toda la piel de su cuerpo y en la raíz de los cabellos como un soplo que los erizó y los dejó erizados muchos segundos. Tuvo miedo de lo sobrenatural; creyó que iba a aparecérsele algo... Pero aquel pánico pasó, y la pobre niña sin madre sintió dulce corriente que le suavizaba el pecho al subir a las fuentes de los ojos. Las lágrimas agolpándose en ellos le quitaban la vista. (Ibidem, p.147). Ao entrar em contato com a literatura religiosa, a personagem muito se emociona, pois a leitura de Confesiones de San Agustín trouxe-lhe lembranças da falta que a presença materna fazia em sua vida. Muitas foram as noites em que Anita passara chorando e lamentando a ausência das carícias e dos abraços aconchegantes 86 da mãe que jamais conhecera. Por encontrar nas santas palavras de Agustín a paz e a luz que tanto buscava para suprir o vazio proveniente da falta do amor materno, Ana se identifica com a literatura mística, passando a ler, neste importante período de formação, obras como as poesias religiosas de Fray Luis de León: ―Si queres, como algum dia,/ adorar cabelos louros,/ adora os de Maria,/ mais dourados e mais belos,/ que o sol claro ao meio-dia‖ (Ibidem, p.149) e o Cantar de los Cantares, na versão poética de San Juan de la Cruz. É importante comentar que esses livros foram fundamentais para a manifestação do langor místico que envolverá a personagem ao longo de sua trajetória como leitora. Foram esses acessos de religiosidade, que ela acreditara ter sido uma revelação providencial de uma vocação verdadeira, que determinaram as violentas crises de histeria e de enfermidades− pontos a serem retomados por nós mais adiante − que puseram sua vida em risco por inúmeras vezes. Através da leitura, Ana Ozores consegue manifestar suas tendências e aspirações pessoais, comprovando como essa atividade pode interferir no comportamento e na formação do indivíduo leitor, e para melhor corroborar a ocorrência da educação sentimental na vida da personagem, nos pareceu imprescindível citar um fragmento em que ela, após ter lido o Cantar de los Cantares, de San Juan de la Cruz, sente-se inspirada e tenta compor versos dedicados à Mãe Celestial, revelando-nos, assim, os efeitos da leitura em sua vida: (...) Abrió un libro de memorias, lo puso en sus rodillas, y escribió con lápiz en la primera página: << A la Virgen >>. Meditó, esperando la inspiración sagrada. Antes de escribir dejo hablar el pensamiento. Cuando el lápiz trazó el primer verso, ya estaba terminada, dentro del alma, la primera estancia. Siguió el lápiz corriendo sobre el papel, pero siempre el alma iba más de prisa; los versos engendraban los versos, como un beso provoca ciento; de cada concepto amoroso y rítmico brotan enjambres de ideas poéticas, que nacían vestidas con todos los colores y 87 perfumes de aquel decir poético, sencillo, noble, apasionado. (Ibidem, p. 152). Após o falecimento de Carlos Ozores, Ana fica sob a tutela de Águeda e Anuncia, personagens que, não por amor, mas sim por remordimentos, assumem a guarda da sobrinha órfã. A convivência com as ―caridosas‖ tias, que faziam questão de propagar para toda Vetusta a generosidade de sua obra− a acolhida de Ana− tornase cada vez mais insuportável para jovem, especialmente depois que ela escuta uma conversa entre as tias sobre a história narrada por dona Camila em uma de suas cartas a elas: Ana que descansaba, vestida, sobre su pobre lecho, saltó de él a las primeras palabras de aquella conversación. Pálida como una muerta, con dos lágrimas heladas en los párpados, con las manos flacas en cruz, oyó todo el diálogo de sus tías. No hablaban a solas como delante de los señores de clase; no eran prudentes, no eran comedidas, no rebuscaban las frases. Doña Anuncia decía palabras que la hubieran escandalizado en labios ajenos. La conversación tardó en volver al pecado de Ana, a la vergüenza de que les hablaba la carta de doña Camila. La huérfana oía, desde su alcoba, historias que sublevaban su pudor, que le enseñaban mil desnudeces que no había visto en los libros de Mitología (ALAS, 1998, p.159). Novamente o episódio da Barca de Trébol vem à tona fazendo com que Ana se lamente do pecado que acredita haver cometido. Lamenta-se também por encontrar-se numa condição de profunda miséria e abandono, tendo que contar com a benevolência de suas tias que a todo instante faziam questão de lembrá-la. Ana começa a ver-se como um peso na vida de Águeda e Anuncia, e na intenção de livrálas daquela responsabilidade, ou melhor, daquela ―admirável obra de caridade‖ das velhas, a jovem que ―quería fuerzas, salud, colores, carne, hermosura‖ (Ibidem, p.162), passa a refletir sobre as possíveis formas de conseguir sua emancipação: 88 (…) su miseria, su abandono, la preocupaban más que todo; su pensamiento principal era librar a sus tías de aquella carga, de aquella obra de caridad que cada día pregonaban más solemnemente las viejas. Quería emanciparse; pero ¿cómo? Ella no podía ganarse la vida trabajando; antes la hubieran asesinado las Ozores; no había manera decorosa de salir de allí a no ser el matrimonio o el convento (Ibidem, p.172). Diferentemente dos dias atuais, marcados cada vez mais pelo crescente posicionamento das mulheres no mercado de trabalho, a sociedade espanhola do século XIX não via com ―bons olhos‖ a emancipação feminina, ainda que diversos setores− impulsionados, sobretudo, pelo processo de industrialização e pela urbanização das cidades− aplaudissem o ingresso do público feminino, tal como podemos ver nas fábricas de indústria têxtil e nos institutos de educação. A mulher no séc. XIX deveria ser educada apenas para que esta pudesse cumprir melhor o seu papel dentro da instituição familiar, em especial no cuidado da casa e dos filhos, o que contribui para reforçar a ideologia do modelo de feminilidade, estruturado no modelo de ―ángel del hogar‖, que, segundo Isabel Navas Ocaña (2008, p.142) nada mais é que uma estratégia de contenção das nascentes aspirações feministas. Formadas exclusivamente para seus papéis futuros de mulher: dona de casa, esposa e mãe, as mulheres oitocentistas teriam de ostentar virtudes próprias da feminilidade como a docilidade e uma receptividade passiva em relação aos desejos e às necessidades dos homens, e por serem educadas em função desse modelo que, segundo Stendhal22, inutilizava algumas das faculdades mais brilhantes capazes de propiciar felicidade tanto a elas quanto a seus companheiros, muitas das qualidades, 22 Ver Stendhal (Henry Beyle). ―De l‘Education des Femmes‖, em De L’Amor. Paris: Calmann- Lévy, 1998. 89 ideias e ambições femininas permaneceram esmagadas por uma educação que as condenava à ignorância e à infantilidade. Ana Ozores vive em uma sociedade misógina que condena a sexualidade e a inteligência feminina em nome da domesticação das mulheres, a fim de que estas pudessem cumprir o destino que estariam naturalmente designadas (KEHL, 1998, p.58): a casa e a família. Daí, explica-se o conflito da personagem que se vê obrigada a optar pelo casamento ou pela vida religiosa. Desejo semelhante de conseguir emancipar-se é manifestado pela personagem central do romance galdosiano Tristana, publicado em 1892. Nele, Benito Pérez Galdós nos apresenta, a partir do diálogo entre Saturna e Tristana sobre o casamento e sobre a condição da mulher na sociedade patriarcal do séc. XIX, dois distintos pontos de vista, o que corrobora um significativo contraponto de perspectivas ideológicas. Vejamos o discurso de cada uma delas: (…) Te reirás cuando te diga que no quisiera casarme nunca, que me gustaría vivir siempre libre. Ya, ya sé lo que estás pensando; que me curo en salud, porque después de lo que me ha pasado con este hombre, y siendo pobre como soy, nadie querrá cargar conmigo. ¿No es eso, mujer, no es eso?. - ¡Ay, no, señorita, no pensaba tal cosa! -replicó la doméstica prontamente-. Siempre se encuentran unos pantalones para todo, inclusive para casarse. (…) Libertad, tiene razón la señorita, libertad, aunque esta palabra no suena bien en boca de mujeres. ¿Sabe la señorita cómo llaman a las que sacan los pies del plato? Pues las llaman, por buen nombre, libres. De consiguiente, si ha de haber un poco de reputación, es preciso que haya dos pocos de esclavitud. Si tuviéramos oficios y carreras las mujeres, como los tienen esos bergantes de hombres, anda con Dios. Pero, fíjese, sólo tres carreras pueden seguir las que visten faldas: o casarse, que carrera es, o el teatro... vamos, ser cómica, que es buen modo de vivir, o... no quiero nombrar lo otro. Figúreselo. - Pues mira tú, de esas tres carreras, únicas de la mujer, la primera me agrada poco; la tercera menos, la de en medio la seguiría yo si tuviera facultades; pero me parece que no las tengo... Ya sé, ya sé que es difícil eso de ser libre... y honrada. (…) Yo quiero vivir, ver mundo y enterarme de por qué y para 90 qué nos han traído a esta tierra en que estamos. Yo quiero vivir y ser libre... (PÉREZ GALDÓS, 2004, p.61-62). O diálogo entre Tristana e Saturna, representado pelo uso do discurso direto, é revelador principalmente pelo fato dele aclarar uma nítida contraposição de perspectivas. Através das relações dialógicas que nele permeiam, é possível vislumbrar os distintos pontos de vista que cada personagem feminina possui a respeito do matrimônio e da condição da mulher na sociedade do séc. XIX. Tristana não fora adequadamente escolarizada, não teve um amplo acesso ao mundo das letras: ―(...) mi mamá no pensó más que en darme la educación insustancial de las niñas que aprenden para llevar un buen yerno a casa, a saber: un poco de piano, el indispensable barniz de francés y qué sé yo…, tonterías‖ (Ibidem, p.116), e esta falta de instrução muito limitou o seu conhecimento de mundo e suas experiências de vida. Antes de morrer, dona Josefina, mãe de Tristana, concedeu a dom Lope Garrido a tarefa de orientá-la, e este o fez conforme sua própria vontade, cativando com esmero a imaginação da jovem e semeando ideias que fomentaram a conformidade com a semelhante vida, marcada pelo infortúnio. Não havia oposição, mas sim uma aceitação por parte de Tristana que, inclusive, passou a incorporar alguns conceitos de dom Lope, tornando-se herdeira do pensamento de seu dono: ―Algunas ideas de las que con toda lozanía florecieron en la mente de la joven procedían del semillero de su amante y por fatalidad maestro>> (Ibidem, p.60), e uma destas opiniões referia-se ao casamento, o que novamente nos leva a pensar no conceito bakhtiniano sobre a importância do olhar complementário do outro. Por ver o mundo com os olhos do decadente cavaleiro, a jovem de ―destino gris‖, definida assim por Leopoldo Alas na crítica literária do romance galdosiano, 91 também se demonstrou desfavorável à união matrimonial. Vejamos: ―Yo me entiendo: tengo acá mis ideítas. Nada de matrimonio, para no andar a la greña por aquello de quién tiene las faldas y quién no. (…) Libertad honrada es mi tema…, o si quieres, mi dogma. Ya sé que es difícil, muy difícil, porque la sociedaz, como dice Saturna… No acaba de entenderlo… (Ibidem, p.124). Do ponto de vista da personagem, a liberdade era sinônimo de independência e de honra, e o casamento, de prisão e de submissão, visão que revelava a presença de um espírito indiscutivelmente revolucionário, transgressor, dado o imensurável desprendimento da jovem. O pensamento transgressor de Tristana sobre a liberdade feminina e sobre o casamento pode ser explicado principalmente pelo fato de a jovem haver se apropriado do discurso liberal daquele que inicialmente estava predestinado a ser o seu tutor, dom Lope, quem também manifestava grande aversão ao relacionamento conjugal. Além de aclarar a apropriação do discurso, o narrador heterodiegético, através do diálogo das personagens, pretende pôr em evidencia algo maior: a relação dialógica que há nele, já que o discurso de Tristana se conflitará com o de sua fiel criada, Saturna. Em oposição à Tristana, Saturna torna-se porta-voz do discurso ideológico da conservadora sociedade patriarcal na Espanha do séc. XIX, principalmente por afirmar que a liberdade trata-se de uma palavra que não soa bem na boca das mulheres. E essa repulsa à emancipação feminina fica mais nítida quando a criada faz alusão às três possíveis ―carreiras‖ que a mulher poderia seguir: ser casada, ser artista e ser prostituta, revelando, assim, a indiscutível importância da sociedade na 92 determinação do papel da mulher, que impreterivelmente deveria dedicar-se à família e ao lar. Para Bakhtin (1995, p.41), ―as palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos‖, e a voz de Saturna pode ser compreendida como a voz que ecoa na sociedade espanhola no séc. XIX. Por mais que as mudanças sócio-econômicas decorrentes da modernidade tenham proporcionado diversas conquistas ao público feminino, as mulheres que buscavam conquistar sua emancipação, sua independência, não eram bem vistas pelos homens nem tampouco por muitas mulheres, perplexas com as atitudes e os comportamentos daquelas que viam na liberdade e, acima de tudo, no trabalho, o caminho para se desprenderem das amarras impostas pela sociedade predominantemente masculina. Em La Regenta, essa contraposição de perspectivas quanto à emancipação feminina no séc. XIX também se faz presente, principalmente através dos discursos das tias de Ana Ozores. Águeda e Anuncia, escandalizadas pelo fato de Anita demonstrar uma profunda paixão pela escritura, pela atividade literária, até então ofício exclusivo do público masculino, são contundentes em repreender a sobrinha, argumentando ser esta uma atividade inconcebível a uma mulher honrada, de família: ―Aquello era cosa hombruna, un vicio de hombres vulgares, plebeyos‖ (ALAS, 1998, p.172). E para melhor apresentar o repúdio das personagens clarinianas, hipocritamente perplexas com a paixão de Ana pelas letras, nos pareceu interessante citar um fragmento em que o narrador nos revela essa conotação negativa, em outras palavras, pejorativa da mulher que se dedicava às atividades literárias, através do termo ―literata‖. Não há dúvidas de que a palavra encontra-se, aqui, revestida de um sentido depreciativo, chegando a assumir configurações grotescas, dada a 93 comparação com monstros asquerosos e horríveis. Vejamos o que diz o enunciador a respeito das mulheres que produziam literatura: Tan general y viva fue la protesta del gran mundo de Vetusta contra los conatos literarios de Ana, que ella misma se creyó en ridículo y engañada por la vanidad. A solas en su alcoba algunas noches en que la tristeza la atormentaba, volvía a escribir versos, pero los rasgaba en seguida y arrojaba el papel por el balcón para que sus tías no tropezasen con el cuerpo del delito. La persecución en esta materia llegó a tal extremo, tales disgustos le causó su afán de expresar por escrito sus ideas y sus penas, que tuvo que renunciar en absoluto a la pluma; se juró a sí misma no ser la «literata», aquel ente híbrido y abominable de que se hablaba en Vetusta como de los monstruos asquerosos y horribles (ALAS, 1998, p.173). Há, sobre a concepção das tias, um valor indiscutivelmente social, uma vez que toda a sociedade patriarcal do século XIX ainda se posicionava, em especial os setores mais conservadores dela− a Igreja, o Estado e a própria família−, radicalmente contra as atividades literárias femininas. Isso fica evidente no livro da historiadora Michelle Perrot, Minha história das mulheres (2007), mais especificamente no capítulo intitulado ―O acesso ao saber‖, em que a escritora nos cita, como exemplo, a polêmica obra Projet d’une loi portant défense d’apprende à lire aux femmes (1801), de Sylvain Maréchal, em que o autor declara-se notoriamente contra a mulher intelectual, uma vez que o saber em demasia era tido por ele como algo monstruoso, extremamente prejudicial à natureza feminina. Vejamos o que o diz Maréchal a propósito da mulher culta: Quer a razão que as mulheres não metam jamais o nariz num livro, jamais a mão numa pena (...). Para o homem, as produções do gênio. Para a mulher, os sentimentos do coração. (...) A razão quer que doravante seja permitido somente às cortesãs serem mulheres de letras, pensadoras e virtuoses. (...) Uma mulher poeta é uma monstruosidade moral e literária, da 94 mesma forma que um soberano mulher é uma monstruosidade política.23 Em La Regenta, a opinião de condenar o interesse da jovem Ozores pela literatura foi unânime, e o resultado não poderia ser outro: a resignação da personagem à sociedade. O desejo de tornar-se escritora, de escrever um livro: ―salió sola, con el proyecto de empezar a escribir un libro, allá arriba, en la hondonada de los pinos que ella conocía bien; era una obra que días antes había imaginado, una colección de poesías << A la Virgen>>‖ (Ibidem, p.150), não condizia com a mesquinha realidade que a rodeava e a sobrepujava, e é precisamente essa pressão social que faz com que Ana abra mão de seus sonhos, de suas aspirações, e, do que nos pareceu mais agravante, de sua própria identidade: ―Vetusta era su cárcel, la necia rutina, un mar de hielo que la tenía sujeta, inmóvil. Sus tías, las jóvenes aristócratas, las beatas, todo aquello era más fuerte que ella; no podía luchar, se rendía a discreción y se reservaba el derecho a despreciar a su tirano, viviendo de sueños‖ (Ibidem, p.178). Igualmente foi a oposição à vocação religiosa manifestada por ela. É seu confessor, dom Cayetano, quem a reprime, argumentando ser esta uma inclinação improvisada e sem fundamento. Observemos a censura manifestada pelo confessor e, em seguida, pela própria personagem que, através do discurso direto, toma a palavra para si: Don Cayetano, que sabía ponerse serio, llegado el caso, procuró convencer a su amiguita de que su piedad, si era suficiente para una mujer honrada en el mundo, no bastaba para los sacrificios del claustro. -«Todo aquello de haber llorado de amor leyendo a San Agustín y a San Juan de la Cruz no valía nada; había sido cosa de la 23 Ver PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. págs.92-93. 95 edad crítica que atravesaba entonces. En cuanto a Chateaubriand, no había que hacer caso de él. Todo eso de hacerse monja sin vocación, estaba bien para el teatro; pero en el mundo no había Manriques ni Tenorios, que escalasen conventos, a Dios gracias. La verdadera piedad consistía en hacer feliz a tan cumplido y enamorado caballero como el señor Quintanar, su paisano y amigo» (Ibidem, p.180). O religioso fê-la desistir da disparatada ideia de converter-se em monja e aconselhou-a ao casamento, a aceitar como pretendente o generoso cavalheiro dom Víctor Quintanar, homem de ideias puras, elevadas e inclusive poéticas. Águeda e Anuncia, por outro lado, na tentativa de se livrarem o mais breve possível da generosa missão da qual estavam encarregadas, tentam esposar a sobrinha com dom Frutos Redondo, um americano milionário, desejado e temido, procedente de Matanzas, que veio à cidade a fim de comprar a melhor residência de Vetusta, a ter os melhores carros, a tornar-se deputado e a casar-se com a mulher mais linda da cidade. Assim que viu Ana Ozores, apaixonou-se prontamente por ela. A condição dos Ozores, com o falecimento de Carlos, decaíra progressivamente. Ainda que a jovem pertencesse à aristocracia, a atual condição financeira da família impossibilitava que Águeda e Anuncia conseguissem um bom casamento para a sobrinha. Sem dinheiro para o dote, as tias sabiam da dificuldade que seria conseguir um noivo para Ana e, ao se conscientizarem das pretensões do rico imigrante, vislumbraram uma oportuna possibilidade de casá-lo com a bela sobrinha, o que, consequentemente significaria o fim da árdua tarefa a qual estavam encarregadas. A rudeza do pretendente arranjado pelas tias, no entanto, causou-lhe espanto. Fez com que Anita, não por amor, mas sim por salvação, se aproximasse de Víctor Quintanar, do cortês cavalheiro de quarenta e poucos anos de idade, tal como determina o narrador. 96 Mesmo após ter se questionado sobre um casamento sem amor: ―(...) no sería una temeridad casarse sin amor?‖ (Ibidem, p.179), Ana, sem muitas alternativas, decide aceitar o pedido de dom Víctor, tornando-se, assim, ―la Regenta‖, uma mulher muito diferente do que ela gostaria de ter sido, tal como nos revela Germán Gullón (2005), em: ―se vê obrigada a casar-se com dom Víctor e, logo, a viver nessa sociedade onde os valores que regem a obrigam a ser de uma maneira distinta de como quisesse‖24. Mais uma vez, deparamo-nos com a submissão da personagem clariniana, que renuncia inclusive o direito de amar, de ser feliz da sua maneira. Em: ―<<no le amaba, no, pero procuraría amarle>>‖ (Ibidem, p.184), fica nítido o fato de que Ana enganara-se profundamente. O amor por Quintanar não amadurece, não vinga, o que aumenta a frustração de Ana, que era mais vista como filha do que propriamente esposa. E é justamente essa condição de não ser amada, nem tampouco desejada, a principal responsável pelo agravamento das terríveis crises emocionais, vivenciadas por Ana Ozores desde a juventude, que deram origem a pesadelos, calafrios, febres e até mesmo a crises histéricas, vistas por nós como uma espécie de pronunciação do corpo enfermo. Magnabosco (2003) afirma que ―o discurso do feminino pode também ser pronunciado pelo posicionamento do soma (corpo), pelo alógico à ideologia dominante e, muitas vezes, pelo silêncio‖, o que demonstra uma significativa autonomia e expressão de sua capacidade comunicativa. Até então relegado à invisibilidade, o corpo feminino consegue ocupar um expressivo papel de destaque tanto nos estudos médico-psiquiátricos, como nos literários, tornando-se, no contexto 24 ―se ve obligada a casarse con don Víctor y, luego, a vivir en esa sociedad donde los valores que rigen la obligan a ser de una manera distinta de como quisiera‖. 97 histórico e cultural do século XIX, um importante objeto de análise e atenção por parte de inúmeros pesquisadores e romancistas que passaram a aceitar e inclusive a se apropriar de diversos postulados da ciência experimental nos campos da Psicologia e também da Fisiologia e da Sociologia para melhor explicá-lo. E para melhor ilustrar a concepção de que o corpo feminino, através de suas falas sintomáticas, metonímicas, metafóricas e, até mesmo silenciosas, permitiu que a personagem clariniana produzisse um discurso capaz de expressar os seus medos, aflições, prazeres e desejos, nos pareceu interessante citar um fragmento do capítulo V, em que Ana, muito fragilizada com a notícia da morte do pai, manifesta os principais sintomas da histeria, neurose complexa caracterizada, segundo a psicanálise freudiana, pela instabilidade emocional: Tuvo pesadillas, y aunque hizo esfuerzos para no declararse enferma, el mal pudo más, la rindió. El médico habló de fiebre, de grandes cuidados necesarios; le hizo preguntas a que ella no sabía ni quería contestar. Estaba sola y era absurdo. El doctor dijo que no tenía con quien entenderse; añadió pestes de la incuria de los criados. -«La dejarán a usted morir, hija mía». Ana dio gritos, se asustó mucho, se sintió muy cobarde; llorando y con las manos en cruz pidió que llamaran a sus tías, unas hermanas de su padre que vivían en Vetusta y que tenía entendido que eran muy buenas cristianas (Ibidem, p.155). Os ataques histéricos de Ana Ozores se acentuam após o casamento com dom Víctor Quintanar, personagem impotente, segundo as frequentes insinuações do narrador clariniano. Para a Psicanálise, ―a especificidade da histeria se busca no predomínio de certo tipo de identificação, de certos mecanismos (especialmente a repressão, frequentemente manifestada) e no afloramento do conflito edípico que se desenvolve principalmente nos registros libidinais fálico e oral‖ (LAPLANCHE & 98 BERTRAND PONTALIS, 1979, p.175. Tradução nossa)25. Essas conceituações nos permitem entender melhor a histeria da personagem feminina como uma manifestação patológica de um matrimônio ausente de sexualidade, aspecto também discutido por Isabel Navas Ocaña, em seu recente artigo ―La Regenta y los feminismos‖ (2008, p.144. Tradução nossa), e por diversos outros estudiosos que se ocupam do presente tema: Não faltam, é claro, estudos que abordem a problemática da loucura e do biologismo desde uma perspectiva psiquiátrica ou psicológica. De fato, Bridget A. Aldaraca (1990) e Jo Labanyi (1991) examinaram a histeria na personagem de Ana Ozores como manifestação patológica de um matrimônio carente de sexualidade26. As crises patológicas manifestadas por Ana Ozores, além de serem explicadas, sobretudo, pelas frustrações sexuais, advindas de um casamento entediante, podem ser atribuídas ao conflito entre o ser e o dever, ponto comentado por Miguel Ángel de la Cruz Vives (2000) no artigo intitulado ―El universo filosófico de La Regenta‖. Vejamos: ―entre el mundo y la iglesia, la carne y el espíritu, consume Ana su juventud sin llegar a vivir plenamente. La felicidad hubiera podido encontrarla si el equilibrio armónico entre el alma y el cuerpo fuera posible. Pero no lo es‖. E várias são as cenas em que podemos apreciar esse constante desequilíbrio experimentado por Ana Ozores, aclarado pela luta travada entre a alma e o corpo, o que a transforma numa verdadeira mártir. Citamos: 25 ―la especificidad de la histeria se busca en el predominio de cierto tipo de identificación, de ciertos mecanismos (especialmente la represión, a menudo manifiesta) y en el afloramiento del conflicto edípico que se desarrolla principalmente en los registros libidinales fálico y oral‖. 26 ―No faltan por supuesto estudios que aborden la problemática de la locura y del biologismo desde una perspectiva psiquiátrica o psicológica. De hecho, Bridget A. Aldaraca (1990) y Jo Labanyi (1991) han examinado la histeria en el personaje de Ana Ozores como manifestación patológica de un matrimonio carente de sexualidad‖. 99 Mas resuelta a huir de los extremos, a ser como todo el mundo, insistió en seguir a las demás beatas en todos sus pasos, y aunque sin gusto, entró en todas las cofradías, fue hija y hermana, según se quiso, de cuantas juntas piadosas lo solicitaron. Dividía el tiempo entre el mundo y la iglesia: ni más ni menos que doña Petronila, Olvido Páez, Obdulia y en cierto modo la Marquesa. Se la vio en casa de Vegallana y en las Paulinas, en el Vivero y en el Catecismo, en el teatro y en el sermón. Casi todos los días tenían ocasión de hablar con ella, en sus respectivos círculos, el Magistral y don Álvaro, y a veces uno y otro en el mundo y uno y otro en el templo; lugares había en que Ana ignoraba si estaba allí en cuanto mujer devota o en cuanto mujer de sociedad (Ibidem, p.587). A acentuada natureza da personagem faz com que ela se transforme o tempo todo, num processo contínuo de metamorfose, de forma a assumir novas perspectivas que, quase sempre, mostram-se antagônicas, contraditórias umas com as outras. Dessa forma não nos parece incompreensível, por exemplo, a profunda aversão de Ana Ozores à figura de Fermín de Pas, após o confessor, o seu <<hermano mayor>>, ter se declarado completamente apaixonado por ela− cena descrita no capítulo XXV de La Regenta: Ana, inmóvil, había visto salir al Magistral sin valor para detenerle, sin fuerzas para llamarle. Una idea con todas sus palabras había sonado dentro de ella, cerca de los oídos. «¡Aquel señor canónigo estaba enamorado de ella!». «Sí, enamorado como un hombre, no con el amor místico, ideal, seráfico que ella se había figurado. Tenía celos, moría de celos... El Magistral no era el hermano mayor del alma, era un hombre que debajo de la sotana ocultaba pasiones, amor, celos, ira... ¡La amaba un canónigo!». Ana se estremeció como al contacto de un cuerpo viscoso y frío. Aquel sarcasmo de amor la hizo sonreír a ella misma con amargura que llegó hasta la boca desde las entrañas (Ibidem, p.747). E o repentino desejo de reconciliação dela, que escreve uma carta ao clérigo pedindo-lhe perdão e jurando-lhe fidelidade e amizade eternas. Assim como não é de se estranhar também o fanatismo de Ana, que, como prova de amor à religião, desfila na procissão da Sexta-Feira Santa ao lado de Fermín 100 de Pas, descalça e vestida de nazarena, satisfazendo, desta forma, o ego do clérigo enamorado, que a exibia por toda Vetusta como se fosse o seu mais precioso troféu. E o seu consequente arrependimento, após o evento que abismara os hipócritas habitantes da cidade, ―escandalizados‖ com a audácia da senhora Quintanar e surpresos com o poder que Fermín exercia sobre ela. Vejamos a cena em que o narrador inclui dentro de sua narração uma focalização, ou melhor, uma perspectiva da personagem clariniana, inconsolável pela vergonha, por ter se permitido ―prostituir‖ de tal forma: Aquellos pies desnudos eran para ella la desnudez de todo el cuerpo y de toda el alma. «¡Ella era una loca que había caído en una especie de prostitución singular!; no sabía por qué, pero pensaba que después de aquel paseo a la vergüenza ya no había honor en su casa. Allí iba la tonta, la literata, Jorge Sandio, la mística, la fatua, la loca, la loca sin vergüenza». Ni un solo pensamiento de piedad vino en su ayuda en todo el camino. El pensamiento no le daba más que vinagre en aquel calvario de su recato. Hasta recordaba textos de Fray Luis de León en la Perfecta Casada, que, según ella, condenaban lo que estaba haciendo. «Me cegó la vanidad, no la piedad, pensaba». «Yo también soy cómica, soy lo que mi marido» (Ibidem, p.787). Ao analisarmos a história de Ana Ozores, constatamos uma série de transformações, mudanças, que certamente estão relacionadas à leitura, uma prática que a acompanha desde sua infância: ―¡Saber leer! Esta ambición fue su pasión primera. Los dolores que Doña Camila le hizo padecer antes de conseguir que aprendiera las sílabas, perdonóselos ella de todo corazón. Al final supo leer‖ (ALAS, 1998, p.137). A partir da segunda metade do século XIX, surge uma produção literária direcionada ao público feminino que tenta dar uma resposta imaginária aos anseios reprimidos de uma grande parte das mulheres burguesas. Segundo Kehl, ―os projetos 101 de mudar de vida, numa mulher infantilizada pela sua posição na família, só poderiam realizar-se por duas vias: a do amor (adultério, aventura, ‗fuga‘ romântica para um lugar distante) ou a do devaneio literário‖ (KEHL, 1998, p.17), e, em La Regenta, estes foram os dois caminhos percorridos por Ana Ozores que tenta, num primeiro momento, por meio da literatura e, posteriormente, por meio do adultério, encontrar o caminho para a tão almejada felicidade. O objetivo de fazer da vida uma grande aventura, versão romantizada dos devaneios de ascensão social e de independência que sustentam a ordem burguesa, entra em conflito com as exigências da disciplina familiar que, por sua vez, também se encontram ameaçadas pelas inúmeras transformações, sobretudo, as de ordem social, decorrentes das revoluções sucedidas na Europa a partir de século XVIII. Impossibilitada de se expressar poeticamente, Ana Ozores provavelmente viu no adultério uma nova possibilidade de descobrir o amor, sentimento até então desconhecido. E por presumir ser o mundo semelhante às narrativas idealizadas que passou a ler desde a juventude, a personagem lia tudo como se fosse um romance sentimental, atribuindo, sob esta perspectiva, um novo significado a um ―(...) amplo número de livros sérios << de verdadeira arte >>, fábulas gregas, poesia homérica e pastoril clássica, San Agustín, Chateaubriand e San Juan de la Cruz, além de toda classe de antologias, florilégios, parnasos e livros de edificação‖ (CATELLI, 2001, p.128-129. Tradução nossa)27. Essa visão romântica do mundo, entretanto, não será um fato gratuito em La Regenta. Na narrativa de Clarín, notamos a presença do poder vivificador do 27 ―(...) amplio continente de libros serios << de verdadero arte >>, fábulas griegas, poesía homérica y pastoril clásica, San Agustín, Chateaubriand y San Juan de la Cruz, además de toda clase de antologías, analectas, florilegios, parnasos y libros de edificación‖. 102 sofrimento e da dor, já que se trata de uma sociedade marcada por todas as espécies de corrupção humana, tais como a inveja, a perversidade e a hipocrisia. Em contraposição, Ana Ozores representará a pureza e a beleza dessa realidade sufocante, e esta incompatibilidade com o mundo provocará na personagem não só o surgimento de uma sensação de isolamento, como também uma sensação de incompreensão e tédio, fatores que muito contribuíram para o desgaste do casamento e para consumação do adultério. No texto ―Lecturas y lectores de Clarín‖, Oleza (2003a) também nos chama a atenção para essas questões. A personagem, em virtude de sua personalidade conflitante, de frustrações anímicas e de fortes pressões do meio, consegue reunir mais motivos que qualquer outra heroína para a insatisfação pessoal, o que a faz buscar uma nova vida, e, segundo o crítico, nenhum outro romance europeu apresentou tantos argumentos, tantas razões como o fez Clarín em La Regenta para a traição. Deslumbrada com a possibilidade de uma nova condição, libertando-se daquela vida enfadonha e angustiante que levava ao lado de seu marido, Ana Ozores entrega-se ao amor proibido, violando, abruptamente, dois dos principais pilares do modelo de feminilidade: a casa e o casamento. De <<La perfecta casada>> passa a assumir uma nova posição, a de <<Mujer insatisfecha>>, e esta representação tornarse-á bastante comum em muitos dos romances publicados a partir da segunda metade do século XIX por escritores como Flaubert, Eça de Queirós, Galdós, George Eliot, León Tolstoy e o próprio Leopoldo Alas. Marcada pela condição de mulher adúltera, Ana Ozores foi tida como a principal culpada pela trágica morte de dom Víctor Quintanar, assassinado em um 103 duelo por Álvaro Mesía, chefe do partido liberal. Caíram-lhe todas as responsabilidades do crime. Desprotegida e, sobretudo, desmoralizada por todos, inclusive pelos amigos mais íntimos e por seu confessor, Fermín de Pas, a personagem será brutalmente castigada por ter tido a incapacidade de preservar um dos elementos mais preciosos em uma relação proibida: o silêncio. A verdade emerge e a cidade inteira, completamente ―escandalizada‖ com o caso, celebra a sua queda, o seu fim moral. A personagem não foi capaz de adaptar-se à realidade de Vetusta e tampouco ao discurso que vinculou a nova condição social da mulher a suas funções no matrimônio e dentro de sua própria casa. A partir do Renascimento, as mulheres são reconhecidas como parte integrante da sociedade, em outras palavras, como sujeito civil, porém este reconhecimento estaria vinculado a algumas condições, dentre as quais podemos destacar a subordinação da figura feminina à casa, aos filhos e ao marido. Direcionadas para as atividades e funções que deveriam desempenhar no casamento, as mulheres tornam-se servas da casa, comprometidas exclusivamente com as obrigações domiciliares, o que muito contribui para o desgaste das relações conjugais. Ao mesmo tempo em que cresce um sentimento de frustração, nasce um forte desejo de libertação, de fuga, e o adultério será um dos caminhos escolhidos por muitas mulheres que pretendiam buscar uma nova vida. A doce domesticidade deixa, portanto, de ser o paraíso e passa a transformar-se num verdadeiro sofrimento, e vários formam os romances do séc. XIX que representaram magistralmente a crise desta conflitante inversão. O mundo real torna-se o pior inimigo de Ana Ozores, da mesma maneira que o foi para Dom Quixote e para Emma Bovary, personagens que morrem, segundo 104 Bloom (1966, p.02), assassinados pela realidade. Vetusta representa uma sociedade de aparências, onde a verdade, por mais deplorável que fosse, deveria ser mascarada a todo custo. Ana Ozores, deixando-se levar ora por desejos espirituais, caindo no misticismo, ora pelos desejos carnais, se entregando ao amor proibido, rompe esse tão importante silêncio, provocando, assim, um grande escândalo público na ―heróica ciudad‖. Na vida de Ana Ozores tudo se transforma, e talvez seja por isso que, a cada capítulo de La Regenta, nos deparamos com um narrador que se empenha em apresentar os principais embates que permeiam o imaginário da personagem central, desnudando, com isso, a particular complexidade do caráter da heroína clariniana, um dos pontos mais cruciais de toda a obra. 2.1.2.2. Paula de Pas Reconhece a queda E não desanima Levanta, sacode a poeira E dá a volta por cima. (Paulo Vanzolini/ Noite Ilustrada) Assim como Ana Ozores, Dona Paula será outra figura feminina da qual o narrador clariniano se ocupará com grande vigor e interesse. Através dela, o sujeito da enunciação apresentará a imagem da mulher inteligente e ambiciosa, que tudo fará para conquistar uma melhor condição de vida, comportamento bastante criticado e mal visto na sociedade patriarcal do século XIX, movida pelas diferenças de classe e por uma mentalidade conservadora que condenava, de forma severa, a emancipação da mulher, mesmo sendo esta por intermédio do trabalho. 105 Através do relato retrospectivo, nós, leitores, somos conduzidos pelo narrador de La Regenta ao período correspondente à infância de Paula. Aqui é preciso comentar que, ao lado da história principal, ―o romance pode conter outras, secundárias, que só servem habitualmente para caracterizar uma personagem‖ (TODOROV, 1971, p.236); tratam-se, pois, das histórias encaixadas, daí sua importância na narrativa de La Regenta. Para Todorov, essas histórias são menos integradas ao conjunto da narrativa que às histórias principais, e é em razão disto que nós a sentimos como se estivessem, de fato, ―encaixadas‖, já que o encaixamento é a inclusão de uma história no interior de outra (Ibidem, p.236). A partir da leitura dos capítulos dedicados à criação de Paula, notamos que o aflorado desejo por uma qualidade de vida melhor a fez mulher antes do tempo. Dona Paula, quando jovem, tinha uma seriedade prematura, uma prudência firme e fria, demonstrando possuir uma personalidade bastante atípica para a pouca idade que possuía: La niña fue aprendiendo lo que valía el dinero, por la gran pena con que los suyos lo lloraban ausente. A los nueve años era Paula una espiga tostada por el sol, larga y seca; ya no se reía: pellizcaba a las amigas con mucha fuerza, trabajaba mucho y escondía cuartos en un agujero del corral. La codicia la hizo mujer antes de tiempo; tenía una seriedad prematura, un juicio firme y frio. Hablaba poco y miraba mucho. Despreciaba la pobreza de su casa y vivía con la idea constante de volar…, de volar sobre aquella miseria. Pero ¿cómo? Las alas tenían que ser de oro. ¿dónde estaba el oro? Ella no podía bajar a la mina. Su espíritu observador notó en la iglesia un filón menos oscuro y triste que el de las cuevas de allá abajo <<el cura no trabajaba y era más rico que su padre y los demás cavadores de las minas. Si ella fuera hombre no pararía hasta hacerse cura. Pero podía ser ama como la señora Rita>> (Ibidem, p.451). Por intermédio do discurso indireto livre do narrador clariniano, a ambição da pequena personagem revela-se de forma imediata, sem rodeios. Deparamo-nos, 106 então, com uma figura inconformada com a situação de miséria da família, que passa a ver na Igreja Católica uma excelente oportunidade para se livrar da angustiante vida que levava em Matalerejo. Paula era determinada, queria definitivamente mudar de vida, e o primeiro passo dado para transformar o seu sonho em realidade foi aproximar-se do próspero universo religioso. A partir daí: ―comenzó a frecuentar a la iglesia; no perdió novena ni rogativas, ni misiones, ni rosarios y siempre salía la última del templo‖ (Ibidem, p.451). A devoção fervorosa da personagem não nasce de uma vocação religiosa verdadeira, mas sim de um desejo incontrolável de enriquecer, de prosperar, libertando-se, assim, da pobreza a qual estava confinada, submetida. Extremamente consciente de sua deplorável situação financeira e de suas inúmeras limitações como mulher pobre e sem dotes, Paula, que não saia mais da igreja, empenhava todos os seus esforços para conseguir um trabalho como auxiliar de serviços na paróquia de sua cidade. E, diante de tanto empenho, o próprio padre não teve como não realizar o desejo da jovem que se ―fuera hombre no pararía hasta hacerse cura‖ (Ibidem, p.451). Paula conseguiu o emprego tanto almejado: trabalhar como criada na casa da Reitoria de Matalerejo; porém, sua admirável ambição e perseverança não a deixaram se acomodar com o pouco que ganhava cuidando dos afazeres domésticos na casa do idoso pároco da cidade. A jovem queria voar mais alto, pensamento que a motivou a vencer a grande batalha contra a penúria, o que por si só já a torna uma das personagens mais transgressoras da obra. Pérez Galdós, em Tristana, também retrata a ambição desmesurada da personagem central do romance, no entanto, a jovem senhorita de Reluz, diferentemente de dona Paula, ―quer e não pode, imagina 107 e não atua, aprende e não cria, começa mil coisas e não acaba nada‖ 28 (NAVARRO, 1999, p.117), demonstrando ter forças apenas para idealizar, para imaginar e não para concretizar os seus sonhos e as suas ambições. Sendo assim, enquanto Tristana é derrotada pela realidade, dona Paula luta bravamente contra ela, mostrando-se vitoriosa, dada à sabedoria apontada pelo narrador da obra como a maior virtude da personagem, avessa a qualquer tipo de lirismo e de fantasia romântica. Com a morte do bondoso religioso, um novo padre é indicado pela arquidiocese para assumir o controle da pequena paróquia local. Esse ―tenía fama de santo; era un joven que predicaba moralidad, castidad, sobre todo a los curas de la comarca, y predicaba con el ejemplo‖ (ALAS, 1998, p.452), porém, a imagem de homem casto é desconstruída à medida que o narrador relata o lado animalesco do religioso, que não resiste à tentação e acaba se entregando ao pecado. E, para melhor aclarar o furor que se apodera do religioso, nos pareceu interessante citar o episódio em que o jovem padre, excitado por desejos selvagens, assedia e ataca a senhorita Paula, no intuito de possuí-la fisicamente. Vejamos: Y una noche, reparando al cenar que Paula era mal formada, angulosa, sintió una lascivia de salvaje, irresistible, ciega, excitada por aquellos ángulos de carne y hueso, por aquellas caderas desairadas, por aquellas piernas largas, fuertes, que pedían de ser como las de un hombre. A la primer insinuación amorosa brusca, significada más por gestos que por palabras, el ama contestó con un gruñido, y fingiendo no comprender lo que le pedían; a la segunda intentona, que fue el ataque brutal, sin arte, de hombre casto que se vuelva loco de lujuria en un momento, Paula dio por respuesta un brinco, una patada; y sin decir palabra se fue a su cuarto, hizo un lío de ropa, símbolo de despedida, porque tenía allí muchos baúles cargados de trapos y otros artículos, y salió diciendo desde la escalera: -¡Señor cura! Yo me voy a dormir a casa de mi padre (Ibidem, p.453). 28 ―quiere y no puede, imagina y no actúa, aprende y no crea, empieza mil cosas y no acaba nada‖. 108 A linguagem erótica utilizada na descrição da cena nos despertou atenção para a manifestação do desejo masculino. Esse é indiscutivelmente aflorado pela presença feminina, pois é no corpo da mulher onde reside a sensualidade, o erotismo e o desejo: <<aquellos ángulos de carne y hueso>>, <<aquellas caderas desairadas>> e <<aquellas piernas largas, fuertes>> (Ibidem, p.453). O narrador clariniano aponta a existência de uma importante pulsão de ordem física, em outras palavras, carnal, manifestada pelo ―hombre casto que se vuelva loco de lujuria en un momento‖ (Ibidem, p.453), e Paula será a principal responsável pelo florescimento deste incontrolável desejo que levará o padre a cometer a mais irracional loucura de amor. O religioso, no entanto, teve de pagar um preço muito caro pelo silêncio de Paula. Desde esse dia, a personagem o tem nas mãos, fazendo-o refém de sua incontida ambição: ―La transación le costó al clérigo humillarse hasta el polvo, una abdicación absoluta. Vinieron en paz en adelante, pero él vio siempre en ella a su señor de horca y cuchillo; tenía su honor en las manos; podía perderle‖ (Ibidem, p.453), e foi justamente esta condição de submissão que permitiu que Paula, com a ajuda de Francisco de Pas− um licenciado de artilharia, que frequentava muito a casa do padre, de quem era parente, na intenção de conquistar a esquiva criada, que repudiava com bofetadas os seus galanteios−, aplicasse um golpe no padre e lhe arrancasse todas as suas economias, quantia suficiente para que ela pudesse abrir o seu próprio empreendimento, tal como nos aponta o narrador no fragmento abaixo: Cuando Paula estuvo segura de que había fruto de aquella traición, o de las concesiones subsiguientes, dijo a su novio: «Ahora se lo digo al amo y tú, cuando él te llame, te niegas a casarte, dices que dicen que no eres tú solo... que en fin... -Sí, sí, ya entiendo. -¡Lo que sospechabas, animal! -Sí, ya sé. -Pues eso. -¿Y después? -Después deja que el cura te ofrezca... y no digas que bueno a la primer promesa; deja que suba el precio... ni a la segunda. A la tercera date por vencido...». 109 Y así fue. Paula arranco de una vez al pobre párroco de Matalerejo, el más casto del arciprestazgo, el resto del precio que ella había puesto al silencio. ¡Con qué fervor predicaba el buen hombre después la castidad firme! <<un momento de debilidad te pierde pecador; basta un momento! Un deseo, un deseo que no sacias siquiera, te cuesta la salvación>> (y todos tus ahorros y la paz del hogar, y la tranquilidad de toda la vida, añadía para sus adentros). Paula compró grandes partidas de vino y lo vendía al por mayor a los taberneros de Matalerejo; empezó bien el comercio gracias a su inteligencia, a su actividad. (Ibidem, p.454). Muitos foram os preconceitos enfrentados pela personagem clariniana, a começar pelas acusações de promiscuidade, de haver tido relações com o jovem padre enquanto trabalhava para ele. No entanto, dos ataques selvagens do religioso resultaram apenas materiais para que Paula elaborasse o astuto plano que desencadearia a ruína do pároco, que, temeroso em perder sua honra pelo descuido fatal, opta por entregar a Paula todas as suas reservas. Não houve relação sexual entre Paula e o padre louco de luxúria, logo o filho que ela teve não poderia jamais ter sido dele. O pai biológico é Francisco, que invade o quarto de Paula para manter relações com ela. A personagem engravida e dá luz a Fermín, dois meses antes de o patético padre uni-los com as bênçãos do sagrado matrimônio. Francisco de Pas sabia que aquelas injúrias levantadas sobre a pessoa de Paula tratavam-se de comentários mal intencionados, proferidos com o principal objetivo de difamá-la, desmoralizá-la socialmente. Mostrou-se, portanto, indiferente às observações do povo e convicto da honestidade de Paula, em outras palavras, de sua ―honra verdadera‖. Vejamos: Todos los vecinos dijeron que Fermín era hijo del cura, quien dotó al ama con buenas peluconas. Francisco De Pas no era interesado; siempre había tenido intención de casarse con Paula, pero los vecinos le habían llenado el alma de sospechas y espinas, y él, creyendo que podía el cura estar riéndose de un licenciado, hizo lo que hizo. Pero aquella noche que fue como 110 la de una batalla a obscuras, terrible, le convenció de la inocencia del párroco y de la virtud de Paula. Aquello no se fingía; mucho sabía el artillero de las trampas del mundo, de las doncellas falsas, pero él se fue a su casa al alba persuadido de que había vencido, bien o mal, una honra verdadera (Ibidem, p.454). A indiferença de Francisco de Pas aos caluniosos comentários feitos pela sociedade sobre a figura de dona Paula, nos fez pensar novamente na obra El Lazarillo de Tormes. Assim como o pícaro Lazarillo, o pai de Fermín não se manifesta nem um pouco preocupado com sua honra social, mostrando-se indiscutivelmente avesso aos comentários maldosos feitos pelos vizinhos. De Pas acredita convictamente em Paula, e esta confiança aumenta, sobretudo, quando ele se conscientiza de que poderia tirar lucrativos proveitos do inescrupuloso plano idealizado pela astuta mulher. Francisco torna-se, então, o cúmplice do golpe de mestre que deixaria o casal numa posição mais confortável, fato que evidencia a notória ausência de caráter dele, que se permite corromper por dinheiro. A astúcia da personagem é, por diversas vezes, posta em evidência pelo sujeito da enunciação. A prosperidade de Paula deve ser atribuída principalmente ao espírito empreendedor que a motivava e a fazia querer voar cada vez mais alto, rompendo as infinitas barreiras impostas por uma sociedade machista, que inutilizava uma das faculdades mais brilhantes capazes de propiciar felicidade tanto a elas quanto a seus companheiros: o saber, a inteligência feminina. Não obstante, a esperteza de Paula entrará em conflito com o caráter fantasioso de Francisco. O repetido ato de contar aos amigos e aos assíduos frequentadores da improvisada taberna que abrira com Paula as façanhas e as aventuras vividas por ele fez com que os negócios do casal ficassem muito prejudicados. De Pas, em muitas das suas bebedeiras, não só vendia a fiado, como 111 também não cobrava dos clientes, que expertamente se aproveitavam para não pagar o que consumiam: La manía de dar al fiado llegó a ser un vicio, una pasión del manirroto licenciado. Le gustaba darse tono de rico y despreciaba el dinero con gran prosopopeya. «¡Los países que él había visto! ¡las mujeres que él había seducido, allá muy lejos!». Sus amigos los taberneros que no habían visto más río que el de su patria, le engañaban al segundo vaso. Mientras él se perdía en sus recuerdos y en sus sueños pretéritos, que daba por realizados, sus compadres interrumpiéndole, entre alabanzas y admiraciones, le sacaban pellejos y más pellejos de vino pagaderos... «De eso no había que hablar». «El hombre es honrado» decía el artillero y añadía: «Si yo tengo un duro pongo por ejemplo, y un amigo, por una comparación, necesita ese duro... y quien dice un duro dice veinte arrobas de vino, pongo por caso...». Pocos años necesitó, a pesar de la prosperidad con que el comercio había empezado, para tocar en la bancarrota. Se atrevió un parroquiano a no pagar y tras él fueron otros, y al fin no le pagaba casi nadie (Ibidem, p.455). Em razão das crescentes dívidas, Paula optou pelo fechamento do estabelecimento. Com o pouco que lhes sobrara, Francisco de Pas, como patriarca da família, decidiu, então, investir na atividade pecuária, tomando algumas vacas com alguns fazendeiros em parceria. Buscava, no campo, uma vida mais tranquila principalmente para o seu filho Fermín, a quem desejara transformar num habilidoso pastor e vaqueiro. O plano de Francisco para o pequeno Fermo entra, novamente, em confronto com as expectativas da ambiciosa mãe, que desejava, com toda intensidade, um futuro mais grandioso para o filho: a carreira eclesiástica, o que corrobora o caráter inegavelmente visionário da personagem. Por conta do destino, De Pas perde a vida de uma forma bastante trágica: ―Había caído de lo alto de una peña abrazado a la osa mal herida que perseguían los vaqueros hacía una semana‖ (Ibidem, p.456), e essa fatalidade permitiu que dona Paula pusesse em prática o projeto idealizado: 112 transformar o filho em padre. Para isso, contou com a ajuda do pároco que ela havia enganado. Sensibilizado pela precária condição da viúva, repleta de dívidas, de promissórias e de créditos que jamais seriam pagos, o padre, mais por caridade que propriamente por medo das inflames ameaças feitas por ela no passado, decide ajudála a cuidar do menino, que, na ocasião, já era adolescente; tinha quinze anos de idade. O jovem Fermín, além de trabalhar, ajudando nos serviços domésticos da Reitoria e nos cuidados da horta, estudava com muito afinco para ingressar no seminário, o que seria uma forma de recompensar o sacrifício da mãe, que, após a morte do marido, passa a dedicar-se exclusivamente à educação do filho. E para melhor ilustrar o admirável esforço da personagem para mudar de vida, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: El espectáculo de la ignorancia, del vicio y del embrutecimiento le repugnaba hasta darle náuseas y se arrojaba con fervor en la sincera piedad, y devoraba los libros y ansiaba lo mismo que para él quería su madre: el seminario, la sotana, que era la toga del hombre libre, la que le podría arrancar de la esclavitud a que se vería condenado con todos aquellos miserables si no le llevaban sus esfuerzos a otra vida mejor, una digna del vuelo de su ambición y de los instintos que despertaban en su espíritu (Ibidem, p.457). Assim, vemos Fermín incorporar o discurso transgressor da mãe, que desde menina, vê na Igreja uma forma de conseguir conquistar uma melhor qualidade de vida. Não há dúvidas de que o sacrifício de Fermín, personagem de infância e adolescência repletas de privações e limitações, é reflexo do desmedido esforço de dona Paula para educá-lo e para direcioná-lo ao caminho da prosperidade, queremos dizer, da riqueza material. 113 Paula abre novamente uma taberna, onde tudo o que vendia era clandestino, de procedência duvidosa: ―todo era falsificado; ella compraba lo peor de lo peor y los borrachos lo comían y bebían sin saber lo que tragaban...‖ (Ibidem, p.459). Encontrava-se circunscrita em uma realidade sombria e marginal, e, para sobreviver, tinha de agir da mesma forma, o que justifica, aos nossos olhos, a influência do meio nas atitudes e no comportamento da viúva. À frente de seu negócio, a personagem teve de deparar-se com situações, muitas vezes, constrangedoras, especialmente porque lidava com um público que, apesar de pagar-lhe bem, era rude e pouco instruído. A maioria dos frequentadores da taberna de dona Paula, também conhecida como ―la Muerta‖, por sua palidez excessiva, o que lhe dava um aspecto cadavérico, eram trabalhadores bêbados e viciados em jogo. Ainda que a frequência se tornasse cada vez mais desagradável, pior, a personagem clariniana não se intimidava, nem mesmo quando um ou outro frequentador, depois de exagerar no consumo de bebida alcoólica, decidia atacá-la, uma vez que se encontrava sozinha, sem a presença de um homem para protegê-la. Todo aquele universo imundo, deplorável e, quase sempre, grotesco, lhe incomodava profundamente, lhe causava asco. Não obstante, essa era a forma que encontrara para garantir o sustento da casa e principalmente os estudos do filho, o futuro Magistral de Vetusta. Paula, como mulher, se anulou e passou a se dedicar integralmente a Fermo; logo, tudo que fazia era em função do filho, em prol da prosperidade e da ascensão do rapaz que, a todo custo, deveria seguir a carreira religiosa, tal como nos revela o narrador: A veces quería Fermín ayudarla, intervenir con sus puños en las escenas trágicas de la taberna, pero su madre se lo prohibía: - Tú a estudiar, tú vas a ser cura y no debes ver sangre. Si te ven entre estos ladrones, creerán que eres uno de ellos. 114 Fermín, por respeto y por asco obedecía, y cuando el estrépito era horrísono, tapaba los oídos y procuraba enfrascarse en el trabajo hasta olvidar lo que pasaba detrás de aquellas tablas, en la taberna (Ibidem, p.457). Paula possuía uma força interna admirável, surpreendente, não só porque conseguia defender-se fisicamente das constantes investidas dos alcoólatras, mas principalmente porque conseguia suportar, com muita frieza e tolerância, todo aquele ambiente imundo e repugnante do qual obtinha sua fonte de renda. Convicta, portanto, de que todo esse sacrifício era necessário, ―no dejó el tráfico hasta que los estudios y la edad de Fermín lo exigieron‖ (Ibidem, p.459). Se a Ana Ozores faltava convicção para determinar o seu destino, Paula a tinha de sobra. A ambição desmedida que nutria a personagem clariniana fez dela uma figura feminina de fibra, que não se entregava facilmente às adversidades da vida. A vontade de prosperar, de livrar-se da desprivilegiada condição social a qual estava submetida, motivou-a a investir todas as suas forças na carreira do filho, que, desde jovem, demonstrou grande talento, sagacidade e vocação para o ofício religioso. Em La dominación masculina y otros ensayos, Pierre Bourdieu (2010) trata com grande ênfase da díspar distinção entre os sexos, afirmando que: A dominação masculina tem todas as condições para seu pleno exercício. A preeminência universalmente reconhecida aos homens se afirma na objetividade das estruturas sociais e das atividades produtivas e reprodutivas, e se baseia em uma divisão sexual do trabalho de produção e reprodução biológico e social que confere ao homem a melhor parte… (Ibidem, págs.:48-49. Tradução nossa)29. 29 ―La dominación masculina tiene todas las condiciones para su pleno ejercicio. La preeminencia universalmente reconocida a los hombres se afirma en la objetividad de las estructuras sociales y de las actividades productivas y reproductivas, y se basa en una división sexual del trabajo de producción y reproducción biológico y social que confiere al hombre la mejor parte…‖ 115 Em contraposição a essa perspectiva, Paula de Pas pode ser vista como uma figura feminina que rompe com essa rígida estrutura das sociedades patriarcais− baseadas fundamentalmente, segundo o sociólogo, nas diferenças biológicas que ―assim parecem estar na base das diferencias sociais‖ (Ibidem, p.35. Tradução nossa)30− uma vez que na criação de Fermo, invoca a instância paterna, ou seja, o papel institucional desempenhado pelo homem, fato que vem caracterizar a ascensão da maternidade frente à paternidade, tema também visto nos romances Pedro Páramo e Fortunata y Jacinta, em que o homem funciona apenas como ―um mero instrumento da linha sucessória‖ (MATAMORO, 2009. Tradução nossa)31. Assim, somos apresentados a um perfil feminino um tanto singular para a época; a uma figura que, em razão da sua condição social, é levada a amadurecer de forma muito precoce, passando a assumir um posicionamento inegavelmente masculino− manifestado antes mesmo da ausência de Francisco, em outras palavras, do representante patriarcal−, para emancipar-se. As ambições de dona Paula, como vimos, são desmedidas, e seus projetos para Fermo tornam-se cada vez mais audaciosos: ―no le quería jesuíta. Le quería canónigo, obispo, quien sabe cuántas más‖ (Ibidem, p.459). Esses a fizeram se aproximar propositalmente de dom Fortunato Caimorán, um personagem de natureza bondosa e de coração generoso. De acordo com o sujeito da enunciação, era o religioso um homem ―incapaz de gobernarse en las necesidades premiosas de la vida, no entendía palabra de los intereses del mundo, y al poco tiempo llegó a comprender que Paula era sus ojos, sus manos, sus oídos, hasta su sentido común. Sin Paula acaso, acaso le hubieran llevado a un hospital por loco y pobre‖ (Ibidem, p.460). 30 31 ―así parecen estar en la base de las diferencias sociales‖. ―un mero instrumento de la línea sucesoria‖. 116 Paula, ao perceber a nítida fragilidade de Caimorán, aproveita-se para tirar grandes proveitos dele, o que novamente vem revelar a esperteza e a potencialidade da viúva, que, com muita maestria, consegue tudo que queria. Não tarda muito para Paula conquistar a confiança de Caimorán, que em nome da gratidão à mulher passa a não medir esforços para consolidar a carreira de Fermín dentro da soberana Igreja Católica: ―el canónigo comprendió que debía mirar al estudiante como a cosa suya; si Paula le consagraba la vida a él, él debía consagrar sus cuidados y su dinero y su influencia al hijo de Paula (Ibidem, p.460). Admirável também é a capacidade de persuasão da personagem, que convence Fortunato Caimorán a aceitar o cargo de bispo de Vetusta para ajudar Fermín, abrindo-lhe novas portas. Com medo de passar o resto de sua vida confinado a uma velhice solitária, o clérigo, que antes havia rejeitado o convite, decide, então aceitá-lo, decisão extremamente conveniente para os dois lados; para Caimorán, que necessitava de companhia, e para Paula, que precisava de um nome de influência dentro da Igreja. Aceito o convite, todos se mudam para Vetusta, a ―heróica cidade‖, segundo o irreverente narrador. Nela, Paula continua dedicando-se às atividades comerciais, só que agora não mais à frente de uma improvisada e imunda taberna, mas sim na gerencia de ―la Cruz Roja‖, uma grande loja de artigos religiosos, oficio que lhe rendia uma considerável quantia todo mês. A obstinação de dona Paula é, sem dúvida, uma das características mais significativas da natureza da personagem. Vemos, através do discurso do sujeito da enunciação, a figura de uma mulher visionária, de mentalidade que mais se assemelhava a de um homem, tanto pela forma de pensar como de agir, o que particularmente a torna interessantíssima, se comparada à grandiosa galeria de 117 figuras femininas representadas não só pelo discurso narrador clariniano como também pelas diversas vozes das personagens em La Regenta. Avessa ao lirismo e à sensibilidade romântica, dona Paula era fria, calculista e impiedosa. Dificilmente demonstrava manifestações de carinho, de amizade, de compaixão, enfim, de afetuosidade. Não obstante, por trás dessa impenetrável fortaleza humana, enrijecida pelas múltiplas desgraças sucedidas, a personagem cultivava um sentimento nobre: o amor por Fermín, seu único filho. Esse amadurece da mesma forma que a mãe: ―había seguido la escuela de su madre‖ (Ibidem, p.440), transformando-se numa figura que, devido ao poder que lhe fora consentido pela Igreja, despertava respeito e também inveja nos seus inúmeros opositores, adversários. Entretanto, por debaixo da imponente batina trajada pelo homem mais poderoso de toda Vetusta, habitava um coração como qualquer outro, capaz de abrigar os sentimentos mais variados e contraditórios possíveis, tais como o amor e o ódio. A convivência cada vez mais frequente com Ana Ozores fez com que Fermín de Pas despertasse sentimentos e desejos adormecidos, jamais experimentados, em razão de uma educação baseada na contenção e na total disciplina. Em meio a tantas identificações, a paixão pela bela Ozores torna-se inevitável, assim como o imediato desespero da mãe, que, ao perceber a nítida mudança de comportamento do filho, fará tudo para afastá-lo de Ana, a quem acusa de tê-lo desvirtuado acintosamente. Vejamos o fragmento em que dona Paula, a partir do recuo do narrador, toma a palavra para acusar Ana Ozores de ser uma mulher pior que as prostitutas que dormiam dom Saturno: Se levantó, cerró la puerta, y en pie y desde lejos prosiguió: Has ido allí a buscar a esa... señora... has comido a su lado... has 118 paseado con ella en coche descubierto, te ha visto toda Vetusta, te has apeado en el Espolón; ya tenemos otra Brigadiera... Parece que necesitas el escándalo, quieres perderme. -¡Madre! ¡madre! -¡Si no hay madre que valga! ¿te has acordado de tu madre en todo el día? ¿No la has dejado comer sola, o mejor dicho, no comer? ¿te importó nada que tu madre se asustara, como era natural? ¿Y qué has hecho después hasta las diez de la noche? -¡Madre, madre, por Dios! yo no soy un niño... -No, no eres un niño; a ti no te duele que tu madre se consuma de impaciencia, se muera de incertidumbre... La madre es un mueble que sirve para cuidar de la hacienda, como un perro; tu madre te da su sangre, se arranca los ojos por ti, se condena por ti... pero tú no eres un niño, y das tu sangre, y los ojos y la salvación... por una mujerota... -¡Madre! -¡Por una mala mujer! -¡Señora! -Cien veces, mil veces peor, que esas que le tiran de la levita a don Saturno, porque esas cobran, y dejan en paz al que las ha buscado; pero las señoras chupan la vida, la honra... deshacen en un mes lo que yo hice en veinte años... ¡Fermo... eres un ingrato!... ¡eres un loco! Se sentó fatigada y con el pañuelo que traía a la cabeza improvisó una banda para las sienes (Ibidem, págs: 447-448). Fermín, tal como a maioria dos homens que passaram pela vida de dona Paula− o jovem padre de Matalerejo, Francisco de Pas e Caimorán−, funciona como uma espécie de marionete, de instrumento da mãe, que, estrategicamente, o comanda e o manipula de acordo com suas aspirações: ―Ella era el general invisible que dirigía aquellas cotidianas batallas; el Magistral su instrumento inteligente‖ (Ibidem, p.377). Essa perspectiva muito se aproxima do que comenta Blas Matamoro, no artigo ―La figura materna en la literatura‖, sobre o filho que permanece como ―o neném da mamãe, objeto inerte ao qual a mãe anima com seu próprio desejo, dando e tirando o instrumento da potência, segundo seja‖ (2009. Tradução nossa)32. 32 ―el nene de mamá, objeto inerte al cual la madre anima con su propio deseo, dando y quitando el instrumento de la potencia, según sea‖. 119 Em: ―Su madre. Era su égida. Sí, ella primero que todo. Su despotismo era la salvación; aquel yugo, saludable. Además, una voz interior le decía que lo mejor de su alma era su cariño y su respeto filial (Ibidem, p.336)‖, fica nítido o amor incondicional de Fermín por Paula. No entanto, é imprescindível anunciar que esta manifesta relação de amor passa a ganhar contornos particulares; torna-se, cada vez mais, possessiva e aprisionadora por parte da mãe, sobretudo, à medida que o clérigo vai conquistando poder e prestígio dentro da Igreja Católica, fato que nos leva a pensar numa relação edipiana, aclarada principalmente pela dependência do mesmo. Fermo, diante de dona Paula, se posicionava mais como um menino que propriamente como homem, acatando, assim, todas as suas ordens e vontades, o que, neste aspecto, muito o aproxima da bela Ana Ozores, que constantemente tem de renunciar suas aspirações em prol daquilo que os outros− dona Camila, Águeda, Anunciación, Caymorán e etc.− lhe haviam determinado. Talvez por inexperiência, Fermín deixa-se levar inteiramente pelo sentimento novo e arrebatador que tanto desconhecia. A paixão por Ana cresce de forma avassaladora, a ponto de o confessor declarar-se explicitamente a ela. Não obstante, a frustração causada pelo amor não correspondido torna-se incontrolável, transformando-se em ódio, quando o clérigo descobre o envolvimento de Ana com Álvaro Mesía, também conhecido como o Don Juan de Vetusta. Mais incontrolável ainda é a fúria de dona Paula, que se mostra indignada e encolerizada não propriamente com a traição de Ozores, mas, sobretudo, com o fato de Ana ter desprezado Fermín, ao preferir o sedutor Mesía como amante. Temerosa com que De Pas pudesse fazer, Paula decide vingar-se de Ana, divulgando a toda 120 cidade o ―crime‖, ou seja, o adultério cometido por ela, vingança que acentua a perversidade entranhada na alma da viúva. Citamos: Si antes la maldecía porque la creía querida de su Fermo, ahora la aborrecía porque el desprecio, la burla, el engaño, la herían a ella también. ¡Despreciar a su hijo, abandonarle por un barbilindo mustio como don Álvaro! El orgullo de la madre daba brincos de cólera dentro de doña Paula. «Su hijo era lo mejor del mundo. Era pecado enamorarse de él, porque era clérigo; pero mayor pecado era engañarle, clavarle aquellas espinas en el alma... ¡Y pensar que no había modo de vengarse! No, no lo había». Y lo que más temía doña Paula era que el Magistral no pudiera sufrir sus celos, su ira, y cometiese algún delito escandaloso. La desesperaba la imposibilidad de consolarle, de aconsejarle. A doña Paula se le ocurría un medio de castigar a los infames, sobre todo al barbilindo agostado; este medio era divulgar el crimen, propalar el ominoso adulterio, y excitar al don Quijote de don Víctor para que saliera lanza en ristre a matar a don Álvaro (Ibidem, p.909). 2.1.2.3. Obdulia Fandiño Meu bem, você me dá Água na boca Vestindo fantasia Tirando a roupa (Rita Lee/Roberto de Carvalho) Outra personagem feminina que nos despertou grande interesse é Obdulia Fandiño, a viúva de Pomares. Em Figuras femininas de Machado de Assis, Ingrid Stein (1984, p.86) analisa a significativa presença da figura da viúva nas obras do escritor brasileiro, que representa quase um quinto das figuras femininas, sobre três aspectos: o da independência na decisão de questões relevantes ao próprio destino, o da aceitação de viver a viuvez e, por fim, o do exercício de sua influência social na sociedade patriarcal oitocentista. E foram justamente esses aspectos considerados 121 que nos motivaram a direcionar nossos olhares sobre essa figura transgressora por excelência, que muito se contrastará com as mulheres que pertencem ao grupo das que se retiram em sua viuvez. No século XIX, a mulher que perdia o marido possuía a autonomia de traçar o seu próprio destino. Tinha por direito a liberdade de optar por viver em luto ou constituir uma nova família, contando com a preciosa vantagem de dispensar a figura de um intermediário que lhe ajudasse na decisão de um segundo noivado, o que a colocava numa posição privilegiada numa época em que os casamentos eram acordados, na maioria das vezes, sem se considerar a opinião dos prometidos. No que compete à liberdade de organização de vida, à mobilidade e à independência, a mulher viúva, em oposição às solteiras, por quem respondia o pai ou responsável, e às mulheres casadas, que se encontravam subordinada ao marido/ chefe da família, ―encontrava-se no único estado civil que lhe podia proporcionar uma maior liberdade e relativa autonomia. Além disso, já se livrara do risco da pecha de solteirona; havia ingressado na instituição do casamento e, com isto, adquirido o único status idealmente reconhecido pela sociedade para a mulher‖ (Ibidem, p.90). Assim como dona Paula, Obdulia decide não se casar, a não constituir uma nova família. Não obstante, vai viver a viuvez de uma forma completamente diferente da tirânica Paula que, ao contrário da escandalosa viúva de Pomares, vai optar por um estilo mais reservado e comedido. A inveja é indiscutivelmente uma das características mais marcantes de Obdulia, e diversos são os episódios de La Regenta em que a cobiça da personagem é posta em evidencia pelo narrador clariniano. Um deles pode ser visto no capítulo II, na cena em que o mesmo relata não só o desejo de Obdulia Fandiño pela pele de tigre 122 que decorava o quarto da bela Ozores− peça rara em toda Vetusta− como também a admiração de Fandiño pelo corpo de Ana, mais precisamente pelas suas formas e pela sua cútis. Citamos: Obdulia admiraba sinceramente las formas y el cutis de Ana, y allá en el fondo del corazón, le envidiaba la piel de tigre. En vetusta no había tigres; la viuda no podía exigir de sus amantes esta prueba de cariño. Ella tenía a los pies de la cama la caza del león, pero ¡pero estampada en tapiz miserable! (ALAS, 1998, p.113). Além da inveja, a viúva de Pomares se caracteriza pela promiscuidade em excessos, pela luxúria obsessiva e pela completa ausência de caráter, qualidades avessas ao modelo de feminilidade− difundido persistentemente pela conservadora sociedade patriarcal da época− que baseava seus princípios na valorização do recato, do silêncio e da contenção de toda e qualquer forma de manifestação que pudesse desestruturar um dos mais importantes pilares do século XIX: a família. Obdulia Fandiño representava a ruptura desse modelo difundido especialmente pelo Estado e pelas autoridades religiosas, uma vez que era vulgar e escandalosa, tanto na forma de se comportar quanto na forma de se vestir. Vejamos: Obdulia ostentaba una capota de terciopelo carmesí, debajo de la cual salían abundantes, como cascada de oro y más rizos de un rubio sucio, metálico, artificial. ¡Ocho días antes el Magistral había visto aquella cabeza a través de las celosías del confesionario completamente negra! La falda del vestido no tenía nada de particular mientras la dama no se movía; era negra de raso. Pero lo peor de todo era una coraza de seda escarlata que ponía el grito en el cielo. Aquella coraza estaba apretada contra algún armazón (no podía ser menos) que figurada formas de una mujer exageradamente dotada por la naturaleza de los atributos de su sexo. ¡Qué brazos!, ¡qué pecho!, ¡y todo parecía que iba a estallar! Todo encantaba a don Saturno, mientras irritaba al Magistral, que no quería aquellos escándalos en la Iglesia (Ididem, p.84-85). 123 Aproveitamos também para destacar a essencial importância da vestimenta no século XIX, vista por nós como uma importante estratégia feminina na conquista masculina, uma vez que, dentre as diversas formas de ser notada, de chamar a atenção e de ser nitidamente apreciada, o vestuário, ou a falta do mesmo, era a preferida pelas mulheres oitocentistas. Para Ingrid Stain (1984, p.37), ―a moda, à medida que, explorando os corpos, alimentava ilusões e principalmente fantasias, oferecia a possibilidade de, sem arranhar a moral reinante, de certa forma, dar vazão a impulsos sexuais reprimidos‖ e, de todas as situações, eram nas festas que surgiam as melhores oportunidades para se atenuar a tensão entre os sexos na época, visto que nelas sucediam a ruptura da rigidez, constituindo, assim, a ocasião em que homens e mulheres se encontravam sob vigilância menos rigorosa. Assim, eram possíveis contatos mais estreitos, apertos de mão, declarações amorosas ao pé do ouvido, enfim, proximidade entre os corpos, o que dificilmente ocorreria em qualquer outra situação pública. Em: ―Trajes sumários, trajes excessivos, trajes descompostos, todos eram artifícios culturalmente aceitos e admirados para incitar o desejo masculino, confirmar posição social e sublinhar a sedução do feminino‖ (ARAÚJO, 2004, p.58), vimos que além de evidenciar os artifícios de sedução, que consequentemente, despertavam o desejo do público masculino, a indumentária também exerce outra distinta função dentro da sociedade patriarcal do século XIX: corroborar o status familiar. É através da roupa e dos adornos, jóias, que a identificação da condição financeira da família se torna possível; logo, quanto mais luxo, mais riqueza ela possuía. Vejamos o que diz Emanuel Araújo (Ibidem, p.54) a propósito dos vestuários femininos de cada classe: ―O tecido e a forma do vestido indicavam o 124 mundo em que vivia a mulher: as abastadas exibiam sedas, veludos, serafinas, filós, debruados de ouro e prata, musselina; as pobres contentavam-se com raxa de algodão, baeta negra, picote, xales baratos e pouca coisa mais...‖. Dessa forma, a roupa feminina passa a ser expoente de um ócio e de um luxo não mais individual, mas sim da unidade básica a que a mulher está sujeita− o lar‖ (STEIN, 1984, p.37). No artigo ―Alquimia y saturación del erotismo en La Regenta‖, o crítico JeanFrançois Botrel (2003) comenta que no romance clariniano, ―um braço nu, uma panturrilha, umas meias ou umas enáguas bordadas resultam detalhes propícios para um funcionamento erótico, por deixar ver o que no se ha de ver‖ (Tradução nossa)33. Assim como Botrel, também acreditamos que Leopoldo Alas ―Clarín‖ atribui um expressivo valor às vestimentas das personagens, e será principalmente através da provocativa figura de Obdulia, para quem ―las demás mujeres no tenían más valor que el de un maniquí de colgar vestidos; para trapos ellas, para todo lo demás los hombres‖ (ALAS, 1998, p.261), que o autor enfatizará a moda como uma das estratégias utilizadas pelas mulheres para exercitarem sua sexualidade na sociedade patriarcal do sec. XIX. A viúva de Pomares, ―una mujer exageradamente dotada por la naturaleza de los atributos de su sexo‖ (Ibidem, p.85), tal como descreve o narrador, tinha plena consciência de suas características físicas, e esta conscientização sobre a suntuosa beleza de seu corpo lhe dava segurança de usar e abusar de acessórios e de roupas altamente exageradas, enfeitadas e propositalmente sensuais, capazes de despertar os olhares mais ardentes e insinuantes por parte das figuras masculinas do romance clariniano. Assim, não nos restam dúvidas em afirmar 33 ―un brazo desnudo, una pantorrilla, unas medias o unas enaguas bordadas resultan detalles propicios para un funcionamiento erótico, por dejar ver lo que no se ha de ver‖. 125 que Obdulia Fandiño vestia-se essencialmente para conquistar, o que lhe confere um ar de Femme fatale. Diferentemente das roupas e das prendas utilizadas em ocasiões de festejos pelas mulheres oitocentistas, as peças usadas dentro de casa− espaço privado− eram bem simples. No século XIX, era comum que as mulheres andassem dentro de suas residências com camisas de cassa finíssima que permitiam, muitas vezes, que os seios ficassem inteiramente à mostra. E não só o busto, como também diversas partes do corpo feminino acabavam ganhando contornos mais definidos com esse tipo de traje, um tanto leve e transparente. Em La Regenta, o narrador clariniano, além de retratar os vestuários de festas e de passeio usados pelas personagens femininas, retrata também as vestimentas utilizadas na intimidade doméstica, tais como as utilizadas pela criada Petra− figura da qual nos ocuparemos com mais detalhe apenas no quarto capítulo de nossa tese, por ser peça fundamental na revelação do adultério de Ana Ozores. Assim como a provocante Obdulia, Petra é outra personagem feminina a recorrer à vestimenta, ou melhor, a ausência dela, para seduzir os seus pretendentes. No fragmento: Volvió Petra con la tila. Don Víctor observó que la muchacha no había reparado el desorden de su traje, que no era traje, pues se componía de la camisa, un pañuelo de lana, corto, echado sobre los hombros y una falda que, mal atada al cuerpo, dejaba adivinar los encantos de la doncella, dado que fueran encantos, que don Víctor no entraba en tales averiguaciones, por más que sin querer aventuró, para sus adentros, la hipótesis de que las carnes debían de ser muy blancas, toda vez que la chica era rubia azafranada… (ALAS, 1998, p.122). A princípio, o que era tido como uma hipótese, os supostos encantos da criada, torna-se algo comprovado, manifesto. Ainda no mesmo capítulo, a partir do diálogo entre dom Víctor e Petra, vemos que a descompostura da serviçal não é algo 126 natural, nem tampouco inocente, mas sim intencional, com o objetivo de despertar a manifestação do desejo masculino. Petra faz-se sensual, e para melhor ilustrar a proposital intenção da personagem, que tinha plena consciência da beleza de seu corpo e que, em razão disto, fazia questão de mostrá-lo, nos pareceu imprescindível citar a seguinte cena: Atravesó un gran salón que se llamaba el estrado; anduvo por pasillos anchos y largos, llegó a una galería de cristales y allí vaciló un momento. Volvió pies atrás, desanduvo todos los pasillos y discretamente llamó a una puerta. Petra se presentó en el mismo desorden de antes. -¿Qué hay? ¿se ha puesto peor? -No es eso, muchacha -contestó don Víctor. «¡Qué desfachatez! Aquella joven ¿no consideraba que estaba casi desnuda?». -Es que... es que... por si Anselmo se duerme y no oye la señal de don Tomás (Frígilis)... Como es tan bruto Anselmo... Quiero que tú me llames si oyes los tres ladridos... ya sabes... don Tomás... -Sí, ya sé. Descuide usted, señor. En cuanto ladre don Tomás iré a llamarle. ¿No hay más? -añadió la rubia azafranada, con ojos provocativos. -Nada más. Y acuéstate, que estás muy a la ligera y hace mucho frío. Ella fingió un rubor que estaba muy lejos de su ánimo y volvió la espalda no muy cubierta. Don Víctor levantó entonces los ojos y pudo apreciar que eran, en efecto, encantos los que no velaba bien aquella chica. Se cerró la puerta del cuarto de Petra y don Víctor emprendió de nuevo su majestuosa marcha por los pasillos (Ibidem, p.124125). Nesse fragmento, é interessante comentar que o atrevimento de Petra encontra-se caracterizado duplamente, tanto pela voz da personagem− Dom Víctor− como pela voz do narrador, o que muito acentua o caráter polifônico do romance. Com o recuo proposital do sujeito da enunciação, Quintanar passa a assumir o papel de enunciador, deixando-nos evidente o seu fascínio pelo despudor da jovem Petra, que o atende quase nua. Apesar da advertência feita à empregada, o encanto pela 127 descompostura dela é inegável. Outra possível forma de identificar a ousadia da empregada se dá− como já aludimos− através do discurso do narrador, mais especificamente pelo emprego da metáfora ―ojos provocativos‖, que traduz magistralmente a explícita intenção da astuta e dissimulada criada em provocar o patrão. Regressando às reflexões que tratam das figuras das viúvas em La Regenta, observamos que, da mesma forma que dona Paula e Obdulia se aproximam em determinados aspectos, elas também se apartam em outros. A insinuante viúva de Pomares, em contraposição à sisuda figura de dona Paula, que tal como dona Glória nunca abandonara o luto, é uma personagem extremamente sensual e provocativa. Seu principal atributo é a beleza exterior: ―una mujer exageradamente dotada por la naturaleza de los atributos de su sexo. ―¡Qué brazos!, ¡qué pecho‖ (Ididem, p.85), ou seja, um corpo exuberante utilizado sabiamente por Fandiño como instrumento de conquista, de sedução, o que desperta, por um lado, o interesse de diversos homens, tais como dom Saturno, e, por outro, a ira de Fermín de Pas, alvo principal das mais calorosas investidas da viúva. Além de evidenciar a indiscutível indiferença do clérigo à figura de Obdulia, o narrador de La Regenta também revela a corrupção de alguns membros eclesiásticos, dentre eles o bispo de Nauplia (um dos amantes da viúva), contaminado por um dos prazeres mundanos mais condenados pela Igreja Católica: o sexo. É importante comentar que esta crítica nos faz pensar novamente em El Lazarillo de Tormes, uma vez que o narrador (Lázaro adulto) relata o adultério de sua esposa com o Arcipreste de San Salvador, o que lhe garantiu uma melhor qualidade de vida com a aquisição de algumas vantagens materiais concedidas pelo 128 religioso inescrupuloso. Igualmente a El Lazarillo, o narrador de La Regenta também chama a atenção para a corrupção do clero, evidenciando a imoralidade de muitos religiosos que, em vários episódios, mostravam-se avessos à própria doutrina católica predicada por eles. Pensamos também no romance O crime do padre Amaro, do escritor Eça de Queirós. Na obra, o narrador querosiano, assim como os demais, promove uma explícita denúncia sobre os abusos e as infrações cometidas pelos representantes da soberana Igreja Católica em Portugal, no século XIX, através da representação de figuras geralmente corrompidas e amorais, dentre as quais nos pareceu pertinente citar a do Cônego Dias, quem tinha como amante a senhora Joaneira. Ao descobrir a clandestina relação de Dias com a mãe de Amélia, descrita, com muito detalhe, pelo narrador querosiano no capítulo VI: (...) ao passar diante da sala de jantar sentiu no quarto da S. Joaneira, através do reposteiro de chita, uma tosse grossa; surpreendido, afastou sutilmente um lado do reposteiro, e pela porta entreaberta espreitou. — Oh, Deus de Misericórdia! a S. Joaneira, em saia branca, atacava o colete; e, sentado à beira da cama, em mangas de camisa, o cônego Dias resfolegava grosso! Amaro desceu, colado ao corrimão, fechou muito devagarinho a porta, e foi ao acaso para os lados da Sé. O céu enevoara-se, leves gotas de chuva caíam. — E esta! E esta! dizia ele assombrado. Nunca suspeitara um tal escândalo! A S. Joaneira, a pachorrenta S. Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter dado a idade, a nutrição, as dignidades eclesiásticas! Que faria então um homem novo e forte, que sente uma vida abundante no fundo das suas veias reclamar e arder! (QUEIRÓS, 2004, p.79). O jovem padre Amaro passa a questionar-se sobre sua castidade, sobre seu compromisso com a religião, o que o deixa na mesma condição que o inescrupuloso cônego. A princípio, o que fora tido como um escândalo, o relacionamento proibido, 129 passa a ganhar uma configuração diferente. Amaro alegra-se, vendo naquele contexto uma excelente oportunidade para por em prática seu ardiloso plano de conquistar Amélia, transformando-a em sua concubina, tal como a mãe o é para o asmático cônego Dias. Logo, da mesma forma que Dias podia ter como amante a S. Joaneira, ele poderia ter Amélia, ponto de vista que amenizava, de certa forma, o pensamento pecaminoso cultivado pelo pároco, desde que este se deu interessado pela bela Amélia. Citamos: (...) caminhando depressa, cheio de uma só ideia deliciosa que o fazia tremer: ser o amante da rapariga, como o cônego era o amante da mãe! Imaginava já a boa vida escandalosa e regalada; enquanto em cima a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificuldades asmáticas — Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental, quase doloroso: agora a ideia muito magana dos dois padres e as duas concubinas, de panelinha, dava àquele homem amarrado pelos votos uma satisfação depravada! Ia aos pulinhos pela rua. — Que pechincha de casa! (Ibidem, p.80). Em La Regenta, outra característica particular da natureza indomável de Obdulia Fandiño é a voracidade com que ela empreendia os seus ataques às figuras masculinas, o que lhe dá um ar masculino, varonil. A personagem é, a nosso ver, um homem de saias, ou melhor, é a versão feminina de Álvaro Mesía, o conquistador Don Juan da provinciana cidade. Por nenhum momento, vemo-la constrangida pelo seu comportamento um tanto audaz para a época. Não se intimidava pelo fato de ser mulher, pelo contrário, se aproveita dos inúmeros atributos físicos que possuía para conquistar, de forma prodigiosa, as suas presas, e, para melhor aclarar o furor da femme fatale de La Regenta, nos pareceu imprescindível citar a cena em que a provocativa Obdulia seduz o cozinheiro dos marqueses de Vegallana, Pedro: 130 Obdulia, que había aprendido en Madrid de su prima Tarsila a premiar con sus favores a los ingenios preclaros, a los hijos ilustres del arte y de la ciencia; no de otro modo que la tarde anterior había vuelto loco de placer y voluptuosidad al señor Bermúdez, en premio de su erudición arqueológica, ahora vino a otorgar fortuitos y subrepticios favores al cocinero de Vegallana con miradas ardientes, como al descuido, al oír una luminosa teoría acerca de la grasa de cerdo; un apretón de manos, al parecer casual, al remover una masa misma, al meter los dedos en el mismo recipiente, v. gr., un perol. El cocinero estuvo a punto de caer de espaldas, de puro goce, cuando, por motivo del punto que le convenía al dulce de melocotón, Obdulia se acercó al dignísimo Pedro y sonriendo le metió en la boca la misma cucharilla que ella acababa de tocar con sus labios de rubí (este rubí es del cocinero.) Al personaje del mandil se le apareció en lontananza la conquista de aquella señora como una recompensa final, digna de una vida entera consagrada a salpimentar la comida de tantos caballeros y damas, que gracias a él habían encontrado más fácil y provocativo el camino de los dulces y sustanciales amores (ALAS, 1998, p.250). Através do discurso do narrador, acompanhamos passo a passo a conquista empreendida por ela, que começa a seduzir Pedro através de olhares ardentes. À medida que vai sendo correspondida, a investida evolui, passando a intensificar-se através do contato físico, de um descuidado aperto de mãos entre ambos, e, por fim, a cartada final da sedutora viúva se dá com a colherada de doce levada aos lábios do cozinheiro, que, em razão do audacioso gesto, se delicia de tanto prazer. O jogo de sedução empreendido por Obdulia Fandiño se realizava também com antigos amantes da personagem, dentre os quais podemos destacar o jovem Paco, filho de Rufina Robledo, a marquesa. Por conhecer detalhadamente o perfil de cada um dos homens que já possuíra, Obdulia ia diretamente ao ponto fraco de cada um deles, e no caso de Paco, a atração fora inevitável pelo fato de Obdulia ter permitido, de forma proposital, que o mesmo visse grande parte de uma meia escocesa que usava por baixo da saia curta e apertada ao corpo, o que vem corroborar a importância da 131 vestimenta feminina, vista por nós como poderosa e estratégica arma de conquista. Vejamos a cena: Obdulia había tropezado quinientas veces con el Marquesito; se rozaban sus brazos, sus rodillas, las manos sobre todo, durante minutos, y fingían no pensar en ello. Un movimiento brusco de la dama, que traía falda corta, recogida y apretada al cuerpo con las cintas del delantal blanco, dejó ver a Paco parte, gran parte de una media escocesa de un gusto nuevo. Siempre había considerado el joven aristócrata como una antinomia del amor aquella preferencia que él daba a la escultura humana con velos, sobre el desnudo puro. ¿Por qué le excitaba más el velo que la carne? No se lo explicaba. Veía la rolliza pantorrilla de una aldeana descalza de pie y pierna ¡y nada! ¡veía una media hasta ocho dedos más arriba del tobillo... y adiós idealismo! Y así fue esta vez. Es más; si la media de Obdulia no hubiera sido escocesa, tal vez el mozo no hubiese perdido la tranquilidad de su reposo idealista; pero aquellos cuadros rojos, negros y verdes, con listillas de otros colores, le volvieron a la torpe y grosera realidad, y Obdulia notó en seguida que triunfaba (Ibidem, p.252). Entre contínuos tropeços e duradouros esbarrões de braços, joelhos e mãos, todo um cenário é maliciosamente construído pela viúva de Pomares para pôr em prática a conquista de Paco. A reação do ex-amante, discípulo fervoroso do experiente Álvaro Mesía, não poderia ser outra: a excitação, o que deixou Obdulia Fandiño profundamente orgulhosa e triunfante de sua desenvoltura para com os homens, executada descaradamente sem pudor. Não obstante, nem sempre, os efeitos produzidos pelas incessantes investidas da dama são os mesmos. Para a viúva, que adorava saborear no presente as lembranças vividas ao lado de seus admiradores, a resistência surge justamente daquele que considerava como o melhor homem de sua vida: o sedutor Álvaro Mesía, que friamente, após conseguir o que desejara, olhava-a com indiferença, como se nada houvesse acontecido entre eles. Obdulia, durante o período em que esteve ao lado de Álvaro, por mais inesperado que parecesse, lhe fora fiel, o havia 132 amado de verdade. Apesar da fidelidade absoluta, o impiedoso Mesía não estava interessado no leal amor da viúva, nem tampouco nos agrados que esta poderia lhe oferecer futuramente. Tudo não passara de uma aventura, de mais uma conquista do vigoroso sedutor, que a via sem mais nenhum desejo carnal: Para la viuda, uno de los placeres más refinados era «una sesión» alegre con uno de sus antiguos amantes; aquello de no principiar por los preliminares le parecía delicioso. ¡Después, los recuerdos tenían un encanto! ¡Saborear como cosa presente un recuerdo! ¿Qué mayor dicha? Paco había sido su amante. Ella hubiera preferido a Mesía, que estaba en las mismas condiciones y era mucho más antiguo. ¡Pero Álvaro estaba hecho un salvaje! La trataba como don Saturnino, antes de atreverse; con la finura del mundo y la miraba con la indiferencia fría y honrada con que la miraba el señor Obispo. Estaba segura de que ni al Obispo ni a Mesía les sugería su presencia jamás un deseo carnal. Era intratable aquel don Álvaro. También lo era el Obispo. Y sin embargo, bien lo sabía Dios, ella le había sido fiel -a Mesía, por supuesto-; todavía le amaba o cosa parecida. Le hubiera preferido siempre a todos. Pero él no quería ya. Aquello se había acabado (Ibidem, p.252). Assim como o conquistador Álvaro Mesía, Fermín de Pas era outra personagem a demonstrar profunda aversão à exuberante figura da viúva de Pomares. O religioso, tal como vimos no sub-capítulo que trata da subjetividade do sujeito da enunciação em La Regenta, também se fazia nitidamente indiferente às provocativas estratégias de sedução utilizadas por Obdulia Fandiño para atraí-lo, tal como podemos apreciar no seguinte fragmento, presente no capítulo XIII: ―(…) se volvió al Magistral insinuante, provocativa; procuraba marearle con sus perfumes, con sus miradas de telón rápido y con cuantos recursos conocía y podían ser empleados contra semejante hombre y en tales circunstancias. De Pas respondía con mal disimulado despego a las coqueterías de Obdulia…‖ (Ibidem, p.408), o que, consequentemente, despertará ainda mais a inveja da viúva, indignada pelo fato de ambos só terem olhos para Ana. 133 2.1.2.4. Visitación Provei Do amor todo o amargor que ele tem, Então jurei Nunca amar mais ninguém. (Noel Rosa e Vadico) Outra figura feminina marcada pela ausência de caráter é Visitación, personagem ―que pasaba la vida ocupada en su gran pasión de tratar asuntos de los demás, de chupar golosinas ajenas, y comer fuera de casa‖ (Ibidem, p.393) e que também ―salía a caza de noticias, de chismes, de terrones de azúcar y de recomendaciones la señora del Banco que estaba en todas partes y siempre en activo servicio‖ (Ibidem, p.393). Visitación, assim como Obdulia Fandiño, também havia sido amante de Álvaro no passado, homem que a fez cometer as maiores loucuras de sua vida, tal como nos revela o narrador: Hablaban ella y don Álvaro como hermanos cariñosos. Él había sido su primer amor serio, es decir, el primero que le había hecho cometer imprudencias, como, v. gr., saltar de noche por un balcón. ¡Pero estaba ya tan lejos todo aquello! La vida había puesto por medio todos sus prosaicos cuidados. La necesidad de acudir a cada paso con expedientes a restañar las heridas del crédito, a conjurar la bancarrota, había convertido el espíritu de aquella loca al positivismo vulgar, y había atajado las demasías eróticas de su fantasía juvenil (Ibidem, p.254). Após o breve e ardente romance, <<aquella loca>> e Álvaro Mesía tornam-se grandes amigos, a ponto de o sedutor confessar-lhe, com os mínimos detalhes, por mais escandalosos que estes fossem, suas verdadeiras intenções. O sedutor falava de Ana Ozores com Visita com mais franqueza que com Paco, uma vez que com o 134 jovem marquês, seu discípulo e admirador, era preferível falar-lhe de um amor puro, idealizado, até para que este pudesse ajudá-lo a aproximar-se de Ozores. Já com Visita, a situação era diferente, não havia a necessidade de enganá-la, de dizer-lhe que se tratava realmente de amor, mas sim de um voluptuoso desejo. Visita era amiga de Ana desde que ela havia chegado à Vetusta com suas tias e com Ripamilán, o atual Arcipreste da cidade. Em: ―Admiraba a su amiguita, elogiaba su hermosura y su virtud; pero la hermosura la molestaba como a todas, y la virtud la volvía loca. Quería ver aquel armiño en el lodo‖ (ibidem, p.255), vemos que o narrador de La Regenta, além de denunciar, debocha com grande sarcasmo da estima de Visitación por bela Ozores, o que destaca a falsidade da maquiavélica personagem, que se fingia de amiga para aproximar-se dela, no intuito de conquistar sua confiança, para em seguida, manipulá-la mais facilmente. Para Visita nada era mais ridículo que o romantismo, e definia como romântico tudo aquilo que não fosse ―vulgar, pedestre, prosaico, callejero‖ (Ibidem, p.479): Visita era el papa de aquel dogma anti-romántico. Mirar a la luna medio minuto seguido era romanticismo puro; contemplar en silencio la puesta del sol... ídem; respirar con delicia el ambiente embalsamado del campo a la hora de la brisa... ídem; decir algo de las estrellas... ídem; encontrar expresión amorosa en las miradas, sin necesidad de ponerse al habla... ídem; tener lástima de los niños pobres... ídem; comer poco... ¡oh! esto era el colmo del romanticismo (Ibidem, p.479). A aversão à Ana, parte justamente dessa perspectiva, da legitimidade da natureza romântica de Ozores. Excitada pela confissão do cafajeste e profundamente afetada por uma alta dose de inveja, Visita decide ajudá-lo em seu mais novo e lascivo plano: conquistar Ana Ozores, a mulher mais cobiçada de toda cidade, e para melhor aclarar o perverso desejo de Obdulia de transformar Ana em mais uma vítima 135 do don Juan de Vetusta, nos pareceu pertinente citar o seguinte fragmento: ―Su nueva campaña, la más importante acaso de su vida, la llamaba ella para meterle por los ojos a ése: el dativo que se suplía era Anita. Quería meterle a don Álvaro por los ojos, y después de la conversación de la tarde anterior con Mesía, no pensaba en otra cosa‖ (Ibidem, p.393). A perversidade da personagem é notória: procurava que Ana ―fuese al fin y al cabo como todas‖ (Ibidem, p.255). Visitación tinha plena consciência de que todo aquele disfarce, aquele fingimento declarado, se tratava apenas de mais uma ambiciosa tática do volúvel, ambicioso e materialista sedutor para encantar a carente e romântica Ana Ozores. Para Mesía, o amor não passava de uma prática profissional, e, consciente da ausência de caráter, de escrúpulos e da incapacidade de amar de verdade, Visita alia-se a ele, tornando-se a principal motivadora de Álvaro, tal como nos revela a própria personagem: ―-¡Cómetela...!- grito al oído de Álvaro Visita con voz en que asomaba un poco de burla‖ (Ibidem, p.262), o que mais uma vez comprova a maldade entranhada na alma dessa figura que tudo fazia para degustar a ―aquellos extraños sabores picantes de la nueva golosina‖ (Ibidem, p.478), a preferida de todas. Aqui, também queremos chamar atenção para o uso de enunciados típicos da gastronomia, tais como <<sabores picantes>>, <<golosinas>>, <<saborcillo agridulce y picante>> e <<dulzuras de la confitería>>, metaforicamente utilizados pelo narrador de La Regenta, no intuito de não só delinear, como também de particularizar aspectos próprios da subjetividade de Visitación, indiscutivelmente marcada pela presença de um apetite insaciável, que a fazia devorar as pessoas como se estas fossem deliciosas guloseimas. 136 Em sua tese de doutorado, intitulada ―O prazer gastronômico no reino das duas Sicílias: entre o sagrado e o profano na representação literária‖, Fabiano Dalla Bona (2009, p.17)34 afirma que a gula pode ser encarada como um comportamento excessivo que se manifesta em vários outros planos como o emocional, o sexual, o social, o financeiro, entre outros, funcionando como um importante sinalizador que avalia o momento que a pessoa está vivendo, o que precisa ser transformado, mudado ou substituído. Partindo dessa perspectiva, vemos que a fome de Visitación trata-se, portanto, de um comportamento compulsivo oriundo da insatisfação incondicional e irrestrita consigo mesmo, e a tentativa de encontrar um remédio para esta angústia manifesta, desencadeia sentimentos de frustração e de agonia que se abrandam com o avassalador ataque ao seu objeto de desejo, o que também a torna num ser desejante. Diferentemente de Obdulia, Visita não demonstrava mais nenhum tipo de interesse amoroso e carnal por Álvaro. O ciúme e a inveja, não obstante, podem ser explicados pelo fato de a personagem não suportar a natureza romântica de Ana e, sobretudo, a resistência dela às persistentes e irresistíveis investidas de Mesía, das quais fora vítima no passado: Visitación sentía ahora una vergüenza retrospectiva; recordaba el tiempo que había ella tardado en ceder, lo comparaba con la resistencia de Ana y... se le encendían las mejillas de cólera, de envidia, de pudor malo, falso. Algo le decía en la conciencia que el oficio que había tomado era miserable... pero buena estaba ella para oír consejos de comedia moral y gritos interiores; aquel anhelo villano era una pasión cada día más fuerte, era de un saborcillo agridulce y picante que prefería ya a todas las dulzuras de la confitería. Era una pasión, una cosa que recordaba la juventud, aunque al mismo tiempo parecía síntoma de la vejez. En fin, ella no trataba de resistir, y había llegado a creer que sería capaz de arrojar a su amiga a la fuerza en brazos del antiguo amante (Ibidem, págs.553-554). 34 A tese encontra-se disponível no site do Programa de Letras Neolatinas da UFRJ: http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/media/bancoteses/fabianodallabonadoutorado.pdf 137 Imbuída por um desejo indecoroso, tal como nos comenta o sujeito da enunciação, Visita não queria renunciar o prazer incondicional de ver sua ―amiga‖− aqui estamos sendo tão irreverentes quanto o narrador de La Regenta−, cair, ou pelo menos padecer com a presente tentação. Ver Ana Ozores, a impecável, nos braços de Álvaro, era, portanto, o único prazer intenso que Visitación se permitia naquela vida tão desgastada e tão vulgar de emoções repetidas. 2.1.2.5. Rufina Robledo Final de semana Na casa de praia Só gastando grana Na maior gandaia. (Seu Jorge, Gabriel Moura e Pretinho da Serrinha) O narrador clariniano também chama a atenção para o improdutivo estilo de vida da classe aristocrática da época, através da personagem Rufina de Robledo, mais conhecida como Marquesa de Vegallana. Casada com o chefe do partido conservador de Vetusta, a personagem tinha o costume de passar grande parte do tempo na privacidade doméstica, mais precisamente dentro do gabinete de leitura do palácio em que morava. Vejamos: Robledo, marquesa de Vegallana, se levantaba a las doce, almorzaba, y hasta la hora de comer leía novelas o hacía crochet, sentada o echada en algún mueble del gabinete. La gran chimenea tenía lumbre desde Octubre hasta Mayo. De noche iba al teatro doña Rufina siempre que había función, aunque nevase o cayeran rayos; para eso tenía carruajes. Si no había teatro, y esto era muy frecuente en Vetusta, se quedaba en su gabinete donde recibía a los amigos y amigas que quisieran hablar de sus 138 cosas, mientras ella leía periódicos satíricos con caricaturas, revistas y novela (Ibidem, p.236). Muito mais que promover a descrição do ocioso estilo de vida de dona Rufina, o narrador faz uma crítica contra esse comportamento improdutivo da aristocracia do século XIX, e, com o objetivo de ilustrá-la, fazê-la mais evidente, o sujeito enunciador, ironicamente, utiliza o superlativo <<excelentísima>> para condenar a enfadonha vida da Marquesa, que se resumia praticamente em levantar-se tarde, fazer crochê, ler jornais satíricos, revistas e romances, ir ao teatro e receber a ―elite‖ de Vetusta em seu imponente palácio para se divertir e conversar, amenizando, assim, as árduas horas de permanência em casa. Apesar do improdutivo way of life da senhora Vegallana, não poderíamos deixar de comentar um aspecto de grande valor, que nos fez olhá-la de forma diferente, com mais atenção: a inteligência acentuada da personagem, de caráter liberal: La Marquesa tenía a su esposo por un grandísimo majadero, condición que ella creía casi universal en los maridos. Ella sí que era liberal. Muy devota, pero muy liberal, porque lo uno no quita lo otro. Su devoción consistía en presidir muchas cofradías, pedir limosna con gran descaro a la puerta de las iglesias, azotando la bandeja con una moneda de cinco duros, regalar platos de dulce a los canónigos, convidarles a comer, mandar capones al Obispo y fruta a las monjas para que hicieran conservas. La libertad, según esta señora, se refería principalmente al sexto mandamiento. «Ella no había sido ni mala ni buena, sino como todas las que no son completamente malas, pero tenía la virtud de la más amplia tolerancia. Opinaba que lo único bueno que la aristocracia de ahora podía hacer era divertirse (Ibidem, p.234). Não se tratava, portanto, de uma figura imbecilizada por um modelo educacional castrador e aprisionador que condenava as mais admiráveis virtudes e as habilidades femininas, mas sim de uma personagem espertalhona, que muito 139 apreciava a boa vida que levava e que muito se destacava pela grande sabedoria que possuía, tal como nos revela o narrador no seguinte fragmento: ―(...) doña Rufina demostraba um gran conocimiento del mundo‖ (Ibidem, p.236). Circunscrita em uma realidade marcada pela hipocrisia, pela ociosidade e pela libidinagem, não nos surpreende o comportamento liberal assumido pela Marquesa de Vegallana, que, segundo o sujeito da enunciação, se mostra consciente de que em sua casa os jovens aproveitavam para namorar de uma forma um pouco mais calorosa, em razão da ausência de vigilância e de controle por parte da família: La Marquesa sabía que en su casa se enamoraban los jóvenes un poco a lo vivo. A veces, mientras leía, notaba que alguien abría la puerta con gran cuidado, sin ruido, por no distraerla; levantaba los ojos; faltaba Fulanito: bueno. Volvía a notar lo mismo, volvía a mirar, faltaba Fulanita, bueno ¿y qué? Seguía leyendo. Y pensaba: «Todos son personas decentes, todos saben lo que se debe a mi casa, y en cuestión de peccata minuta... allá los interesados». Y encogía los hombros. Este criterio ya lo aplicaba cuando vivían con ella sus hijas (Ibidem, p.239). A postura um tanto liberal da matriarca torna-se mais evidente se consideramos uma significativa estratégia feminina utilizada por diversas figuras de La Regenta: a dissimulação. A experiente Rufina Robledo sabia perfeitamente de todas as aventuras que ocorriam na mansão, inclusive mediante sua presença. Não obstante, fazia questão de não se intrometer, ou melhor, de ignorar os acontecimentos sucedidos, comportando-se de forma dissimulada, o que, sem dúvida alguma, muito favorecia as audaciosas investidas masculinas e femininas daqueles que frequentavam sua casa, em especial as de seu filho Paco, o jovem discípulo do sedutor Mesía, que ainda se mostrava muito incipiente nas artes do amor. E, para melhor ilustrar a dissimulação de dona Rufina, nos pareceu interessante citar a cena em que ela, a fim de evitar maiores constrangimentos, ou seja, flagrar Paco em ação, 140 sobe as escadas do segundo andar tossindo e falando aos berros, dando ao filho, a oportunidade de se recompor: A Paco, a su adorado Paco, le había puesto cien veces por modelo la habilidad y el sigilo de Mesía al sorprender al hijo de sus entrañas en brazos de alguna costurera, planchadora o doncella de la casa. Su Paco era torpe, no sabía... «¡Es indecente que yo te sorprenda en tus desmanes, muchacho!... No llegas al plato y te quieres comer las tajadas... Aprende primero a ser cauto y después... tu alma tu palma». Y añadía, creyendo haber sido demasiado indulgente: -«Además, esas aventuras... no deben tenerse en casa... Pregunta a Mesía». Era su madre quien había iniciado al Marquesito en el culto que tributaba al Tenorio vetustense. La Marquesa, viendo incorregible a su hijo, tomó el partido de subir siempre al segundo piso tosiendo y hablando a gritos (Ibidem, págs. 239240). Definido metaforicamente pelo narrador clariniano como a <<Arcadia casera>>, o palácio dos Vegallana será o lugar mais requisitado pelos infames personagens de La Regenta, primordialmente por não haver na residência limites e restrições para o prazer: ―No había rincones seguros contra el atrevimiento de los amigos íntimos; y en los gabinetes, y hasta en las alcobas donde estaba aún el lecho virginal de las hijas de Vegallana, sonaban a veces carcajadas, gritos comprados, delatadores de los juegos en que se consistía la vida de aquella Arcadia casera‖ (Ibidem, p.240). E será justamente essa liberdade excessiva que provocará a ira de muitas personagens, inconformadas com o comportamento permissível da Marquesa. Dentre eles, chamamos atenção para Fermín de Pas, que, ao presenciar a volta dos convidados de dona Rufina do almoço organizado por ela − todos alegres e cantarolantes−, episódio narrado no capítulo XIV da obra, acaba acusando-a de Celestina, especialmente pelo fato de acreditar que a senhora, motivada pela perversão, incentivava a temível aproximação de Álvaro e Ana Ozores: 141 Ya se oía el rumor sordo y como subterráneo de las ruedas... el aliento fogoso de los caballos cansados... y, por fin, la voz chillona de Ripamilán... Ahora callaban los del coche grande. La carretela iba a pasar junto al Magistral, que se apretó a la columna de hierro, para no ser visto. Pasó la carretela a trote largo. De Pas se hizo todo ojos. En el lugar de Ripamilán vio a don Víctor de Quintanar, y en el de la Regenta a Ripamilán; sí, los vio perfectamente. ¡No venía la Regenta en el coche abierto! ¡Venía con los otros! ¡Y al marido le habían echado a la carretela con el canónigo, la Marquesa y doña Petronila!... Luego don Álvaro y ella venían juntos... ¡y acaso venían todos borrachos, por lo menos alegres! «¡Qué indecencia!» pensó, sintiendo el despecho atravesado en la garganta. Y sin saber que parodiaba a Glocester, añadió: -«¡Se la quieren echar en los brazos! ¡Esa Marquesa es una Celestina de afición!» (Ibidem, págs. 440-441). Através do discurso indireto livre do narrador, notamos que Fermín de Pas não é o único a criticar o caráter dona Rufina Robledo. Glocester, injuriado por não ter recebido o convite da marquesa para o almoço que reuniria as figuras mais célebres de Vetusta, também chama dona Rufina de alcoviteira, pelos mesmos motivos que De Pas, coincidência que nos faz pensar na relação dialógica entre os discursos, uma vez que os pontos de vista das personagens se aproximam. Vejamos: Glocester, sacando fuerzas de flaqueza, se levantó, tendió la mano a doña Rufina, y salió diciendo chistes, haciendo venias y prodigando risas falsas. Iba ciego; ciego de vergüenza y de ira. «¡Convidar al otro... a un prebendado de oficio... y desairarle a él... que era dignidad! ¡Siempre el enemigo triunfante!... Pero ya las pagaría todas juntas». En el portal, mientras se echaba el manteo al hombro (y eso que hacía calor) pensó esta frase: «¡esta señora Marquesa es una... trotaconventos, es una Celestina!... ¡Se quiere perder a esa joven! ¡Se quiere metérselo por los ojos!...». Y salió a la calle pensando atrocidades y buscando fórmula decorosa para comunicar al prójimo lo que pensaba (Ibidem, págs.390-391). Outra personagem empenhada a comunicar às pessoas o que pensava sobre a Marquesa de Vegallana é Pepe Ronzal, a quem dona Rufina Robledo tratava com uma frieza cerimoniosa por tê-lo como <<demasiado borrico>>. Em contrapartida, 142 Ronzal se vingava da explicita indiferença da marquesa, dizendo que a senhora era republicana, que escrevia em La Flaca− uma revista espanhola de caráter principalmente satírico e de uma tendência política republicana e federal, publicada em Barcelona entre março de 1869 e de 1876−, e que havia sido uma coisa qualquer em sua juventude, calunias que funcionavam como uma espécie de desabafo. E quando lhe perguntavam o motivo de nítida desavença, Pepe afirmava que esta devia ser atribuída ao fato de dona Rufina desacreditar o partido conservador dinástico de Vetusta, do qual seu marido era chefe. A onisciência ocupa um lugar de destaque em La Regenta. Entretanto não podemos deixar de comentar que essa onipotência do sujeito da enunciação não domina exclusivamente a totalidade da narrativa clariniana. Em alternância com o ilimitado conhecimento que detém o narrador do romance clariniano, consta-se outra modalidade de representação narrativa enraizada na subjetividade das personagens participantes da história narrada: a focalização interna. Nela, o narrador abdicará da sua onisciência, e as personagens, sejam elas centrais ou secundárias, são selecionadas pelo sujeito da enunciação na intenção de ―orientarem o processo de representação narrativa mediante a imposição de sua subjetividade‖ (REIS, p.1984, p.71). Marcando sempre uma situação de alternância relativamente à onisciência, a focalização interna é utilizada, portanto, com o objetivo de veicular o brotar da corrente de consciência das personagens, tornando mais intensa a vivência desses momentos viscerais à narrativa. 143 2.2. As personagens tomam a palavra No romance La Regenta, vários são os episódios em que podemos apreciar o narrador clariniano interrompendo o seu discurso a fim de ceder a voz a uma das personagens, e, para melhor analisar esse interessante procedimento narrativo, nos pareceu oportuno, neste sub-capítulo de nossa tese, dedicar-nos exclusivamente a essas vozes, em especial, as femininas, que, a partir do proposital e estratégico recuo do narrador, tomarão a palavra para si através dos monólogos interiores e dos diálogos. 2.2.1. Os monólogos e os diálogos na construção das subjetividades femininas Dentre os inúmeros procedimentos narrativos adotados pelo narrador clariniano em La Regenta, nos pareceu pertinente, neste sub-capítulo, chamar a atenção para o uso do monólogo interior, definido por Genette (1972), como ―discurso imediato‖, devido ao fato de aparecer emancipado da tutela do narrador. Com o afastamento do ―yo fictício‖, figura que, em razão do dom de penetração, percorre e transita livremente pelo interior das personagens, em outras palavras, pela ―ciudad oculta de las conciencias‖ (ALAS, 1998, p.316), tal como define o próprio narrador de La Regenta, as personagens tornam-se porta-vozes de seus próprios discursos, no intuito de aclarar, da forma mais imediata possível, os mais íntimos pensamentos, as impressões subjetivas, as sensações, os desejos e principalmente as lutas interiores, geralmente acarretadas pela conflitante relação entre o querer e o 144 dever. Assim, nós, leitores, nos depararemos com a presença direta de uma consciência que flui de acordo com o ritmo do processo psíquico vivenciado pela personagem que é levada a falar O uso dos monólogos interiores, estratégia muito utilizada no teatro− basta recordar as reflexões elaboradas pelas personagens dos dramas de Calderón e de Lope de Vega−, teve grande expressão no século XIX, com o apogeu do romance e pode ser apreciado tanto nas narrativas em primeira pessoa, como nas de terceira, e independente do tipo de narração priorizada pelo sujeito enunciador, seu objetivo é único: refletir a consciência da personagem, concedendo-lhe um caminho livre para que esta possa formular ―in mente‖ um parecer, uma observação sobre os fatos ou uma declaração sobre seus verdadeiros motivos, tal como nos assinala Federico Peltzer (2001, p.56) em Los artificios del ventrílocuo. Não obstante, é preciso assinalar que o proposital afastamento do narrador no monólogo interior não significa seu total desaparecimento. Trata-se, pois, de uma ausência aparente, sobretudo, se consideramos o fato de ser esse narrador, todo poderoso por excelência, quem comanda a entrada da personagem no texto, deixando-a livremente para falar. O narrador é o principal responsável pela organização do conteúdo da consciência das personagens, e essa organização retórica supõe, a nosso ver, uma trabalhosa seleção de dados ou de indícios que nos permite, como leitores, tomar conhecimento do que passa no interior da personagem nos determinados momentos em que ela é levada a falar. O que antes era tido apenas como um bulir interior passa, então, a transformar-se em linguagem, em discurso, ainda que este tenda a apresentar a incoerência do fluxo interior da personagem. Dessa forma, ―(...) essa pretendida eliminação não faz mais que realçar sua presença, 145 pois de outro modo é impossível explicar como o pensamento amorfo e nascente passou à linguagem articulada‖ (Ibidem, p.62. Tradução nossa)35, e é justamente por isso que não podemos falar de um desaparecimento absoluto do narrador, mas sim de uma intencional minimização do seu papel, que buscará traduzir o fluxo da consciência das personagens. Em La Regenta, não há dúvidas de que o narrador clariniano atua como ―maestro textual que orquestra com destreza esse permanente ir e voltar de fora da personagem para dentro, para que saibamos e entendamos como se veem uns aos outros e se supõem ser, como desejam que seja o outro (...)36, tal como nos assinala Germán Gullón (2005), e para melhor apresentar a complexidade das figuras clarinianas, em especial, os seus pensamentos e a forma como cada uma delas se vê, nos pareceu fundamental recorrer a alguns exemplos de monólogos interiores, tais como o que se encontra presente no capítulo XIX, na cena em que Ana Ozores, acompanhada de Petra, sua criada, num passeio pelas ruas de Oviedo, se dá conta de que o amor é, sem dúvida alguma, uma necessidade universal e de que ela, indiscutivelmente, ao lado de Víctor, não era feliz. Entre aquele cinismo aparente dos diálogos, dos roces bruscos, dos tropeções insolentes, da brutalidade jactanciosa daqueles indivíduos andrajosos que circulavam pelas ruas mais populosas da cidade, Ana viu também beleza: ―había flores delicadas, verdadero pudor, ilusiones puras, ensueños amorosos que vivían allí sin conciencia de los miasmas de la miseria‖ (ALAS, 1998, p.276). A personagem participa um momento daquela ―voluptuosidad andrajosa‖, assim definida pelo 35 ―(...) esa pretendida eliminación no hace sino realzar su presencia, pues de otro modo es imposible explicarse cómo el pensamiento amorfo y naciente ha pasado al lenguaje articulado‖. 36 ―maestro textual que orquesta con destreza ese permanente ir y volver de fuera del personaje al dentro, para que sepamos y entendamos cómo se ven unos a otros y se suponen ser, cómo desean que sea el otro (…)‖. 146 narrador de La Regenta, o que a faz pensar na sua própria vida, numa vida desgraçada, consagrada ao sacrifício, a privações e à proibição absoluta do prazer e do amor. Diante dessa reflexão, Ana, inegavelmente, teve pena de si. Citamos: ―Yo soy más pobre que todas estas. Mi criada tiene a su molinero que le dice al oído palabras que le encienden el rostro; aquí oigo carcajadas del placer que causan emociones para mí desconocidas...‖ (Ibidem, págs.276-277). Não há dúvidas de que a notória infelicidade de Ana Ozores deve ser atribuída à insignificante vida que ela levava ao lado do Víctor Quintanar, ―el marido abstracto‖. Ainda que Ana não amasse dom Víctor, a personagem procurava ser uma esposa boa e afetuosa, sobretudo, porque sabia que era seu dever amá-lo, respeitá-lo e obedecê-lo, tal como lhe fora ensinado por suas tias, que, a todo instante, faziam questão de deixar claro o papel social que a mulher deveria cumprir dentro da sociedade patriarcal do século XIX e, primordialmente, dentro da própria família. Além de procurar seguir as orientações sociais, Ana apoiava-se também nas orientações religiosas, através dos conselhos de seu confessor, Fermín de Pas, que, no íntimo, desejava convertê-la beata, com a principal preocupação de afastá-la daquele ambiente promíscuo e libertino experimentado por grande parte das personagens de La Regenta. Não obstante, aquela vida dissimulada, repleta de mentiras e de frustrações de diversas ordens, atormentava-lhe profundamente, pois fazia com que ela se sentisse culpada por pelo absurdo de encontrar-se unida para sempre com um homem que não amava e que não a fazia feliz. O desgosto é inevitável. Ana, atormentada especialmente pela falta de amor, já não conseguia mais suportá-lo, qualificando de hipócrita toda a sua piedosa resignação e todas as insistentes tentativas de aproximação com o marido, que mais a 147 via como uma filha que propriamente como mulher. Vejamos o que diz a personagem, através do monólogo interior, sobre a condição aprisionadora a qual se encontrava: «¡Oh no, no! ¡yo no puedo ser buena! yo no sé ser buena; no puedo perdonar las flaquezas del prójimo, o si las perdono, no puedo tolerarlas. Ese hombre y este pueblo me llenan la vida de prosa miserable; diga lo que quiera don Fermín, para volar hacen falta alas, aire...» (Ibidem, p.549). Para voar, em outras palavras, para viver, Ana necessitava libertar-se. A presença de uma vida enfadonha, sufocante e ausente de novas experiências fazia com que a dama conduzisse involuntariamente seus pensamentos à imagem do sedutor Álvaro Mesía, que, em oposição à Quintanar, era tudo o que Ana queria para si. Pensar em Mesía trazia-lhe conforto, alegria e, sem dúvida alguma, esperança de poder conquistar aquilo que mais desejara conhecer: o amor. O imaginário da personagem é, então, alimentado com estas doces imagens e, especialmente, com os efeitos apaziguadores provocados por elas. E assim, Ana ia cultivando, cada vez mais, a proibida e inevitável paixão. Vejamos: ―Estos pensamientos la llevaban a veces tan lejos que la imagen de don Álvaro volvía a presentarse brindando con la protesta, con aquella amable, brillante, dulcísima protesta de los sentidos poetizados‖ (Ibidem, p.549). Também encontramos o uso do monólogo interior no capítulo XVI de La Regenta, na cena em que Ana Ozores demonstra um desconcerto por haver se esquecido da confissão com Fermín. O confessor escreveu-lhe uma carta antecipando o encontro marcado e, após realizar a leitura da correspondência, a personagem sentiu-se culpada, considerando o seu esquecimento de ―imprudente conduta‖. Acreditou ser infiel no pensamento, o que lhe causou um certo estranhamento, 148 devido ao fato de ter sido Fermín e não o seu marido, dom Víctor, o principal responsável por dito remordimento. Atordoada por ideias impuras, visceralmente relacionadas à primorosa figura de dom Álvaro, Ana mostrou-se receosa em confessar-se com De Pas; não se sentia espiritualmente preparada para a tão aguardada confissão por parte do religioso, desejoso em vê-la. Vejamos o que diz a personagem sobre a antecipação da confissão: «Es verdad, pensaba; habíamos quedado en que mañana temprano iría a confesar... ¡y se me había olvidado! y ahora él adelanta la confesión... Quiere que vaya esta tarde. ¡Imposible! No estoy preparada... Con estas ideas... con esta revolución del alma... ¡Imposible!» (Ibidem, p.513). Ana, que não queria despertar qualquer tipo de suspeita em Fermín, homem de notável inteligência, decide escrever-lhe imediatamente uma carta pedindo que a confissão fosse adiada em razão de uma forte enxaqueca, que não a fazia sentir-se muito bem. Aqui, vemos nitidamente uma importante estratégia feminina sendo utilizada de forma espontânea por ela para evitar que o clérigo descobrisse a revolução que atormentava a sua alma, em outras palavras, sua paixão por Mesía. Nesse episódio, podemos apreciar a bela Ana Ozores mentindo para o confessor com a intenção de enganá-lo, uma vez que este jamais deveria desconfiar dos reais motivos que a levaram desmarcar a confissão, e, para melhor corroborar a astucia da personagem, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: ―Se vistió deprisa, cogió papel que tenía el mismo olor que el del Magistral, pero más fuerte, y escribió a don Fermín una carta muy dulce con mano trémula, turbada, como si cometiera una felonía. Le engañaba; le decía que se sentía mal, que había tenido la jaqueca y le suplicaba que la dispensase; que ella le avisaría…‖ (Ibidem, p.513). 149 Outro atrativo exemplo do uso do monólogo interior em La Regenta encontrase no capítulo XXI, mais especificamente no episódio em que a bela Ana, através do discurso direto, reflete sobre a necessidade de manter seus pensamentos bem distantes de Álvaro e mais próximos de Deus, o que magistralmente evidencia a luta interior vivida por ela, que, a todo instante, muda de ponto de vista e também de posicionamento. Assim, a natureza inconstante da personagem clariniana é novamente posta em questão. Diferentemente da análise anterior, na qual apontamos a profunda satisfação da personagem, que muito se deleitava ao pensar no don Juan de Vetusta, aqui, vemos uma Ana mais preocupada e consciente; uma Ana que se apega à religião, no intuito de afugentar-se da tentação que consequentemente a levaria à perdição. Observemos o pensamento da personagem que afirma preferir a morte ao encantador engano de entregar-se a Álvaro: - Sería engañar a Dios, engañar al Magistral pensar en ese hombre ni un solo instante, ni siquiera para compadecerle... ¡Oh! ¡qué hipócrita, qué gazmoña miserable sería yo si tal hiciera! ¡Qué romanticismo del género más ridículo y repugnante sería el mío, si después de tanta piedad que yo creí profunda, vocación de mi vida en adelante, volviera una pasión prohibida a enroscarse en el corazón, o en la carne, o donde sea!... ¡No, no! ¡Ridículo, villano, infame, vergonzoso, además de criminal! ¡Mil veces no! Quiero morir, morir, Señor, antes que caer otra vez en aquellos pensamientos que manchan el alma y le clavan las alas al suelo, entre lodo... (ALAS, 1998, p.654). O narrador clariniano também cede à palavra às personagens masculinas de La Regenta, e, dentre elas, nos pareceu pertinente chamar atenção para Fermín de Pas, o Magistral de Vetusta, que se apaixonará perdidamente por Ana Ozores. Fermín, que teve sua infância e adolescência comprometidas com os estudos, em prol 150 da carreira religiosa, edificada estrategicamente por dona Paula, é, sem dúvida, uma das mentes intelectuais mais notáveis de toda cidade. Rico de conhecimentos teóricos, porém pobre de experiências de vida, Fermín, diante do novo, do sentimento desconhecido, mostra-se completamente perturbado, a ponto de comprometer a temível e inabalável imagem que levara anos para ser construída. Muitas são as cenas de La Regenta em que podemos apreciar os conflitos decorrentes dessa nova paixão, e uma delas encontra-se no capítulo XIV, no episódio em que o Magistral de Vetusta, após ter passado pelo casarão dos Ozores e ter visto que Ana e Víctor ainda não haviam chegado, vai à residência dos Marqueses de Vegalhana para tentar espioná-los. Ao escutar ―gritos, carcajadas, y las voces roncas y metálicas del piano desafinado‖ (Ibidem, p.442), Fermín questiona-se por estar ali, aquelas horas da noite, em frente a casa dos marqueses tentando descobrir alguma informação sobre a bela Ozores, e, para melhor apresentar os questionamentos do religioso, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: ―«¡Sigue la broma! (…). Pero yo ¿qué hago aquí? ¿Qué me importa todo esto?... Si ella es como todas... mañana lo sabré. ¡Estoy loco! ¡estoy borracho!... ¡Si me viera mi madre!»‖ (Ibidem, p.442). Através do monólogo interior, a personagem é levada a falar, expressando, desta forma, as principais inquietações que povoam o seu imaginário. O próprio Fermín julga ser sua atitude um tanto improcedente, atribuindo ao desvario de ficar parado em frente à casa dos Vegallanas à loucura e à bebedeira, o que indubitavelmente produz um efeito cômico na cena. Escondido perto de um portal escuro, De Pas vê, em uma das varandas da mansão dos Vegalhanas, um vulto feminino, que, pela estrutura física, muito se assemelhava ao de la Regenta. Imediatamente, se sente possuído pela irresistível 151 ideia de persegui-lo, de observá-lo, fixando sobre ele os seus mais atentos e perspicazes olhares. A escuridão, não obstante, dificulta a visão do religioso, que, tomado pela incerteza, passa a perguntar-se: ―«¿Quién era?». Imposible distinguirlo; parecía alta, bien formada; lo mismo podía ser Obdulia que la Regenta. «¡Es decir, la Regenta no podía ser; no faltaba más! ¿Y el de los brazos? ¿quién era? ¿por qué no salía al balcón?»‖ (Ibidem, p.443). Fermín queria saber se a mulher que, muito a vontade, se encontrava na varanda na presença de outro homem era, de fato, Ana, e sua obstinação era tão expressiva que o clérigo, por nenhum momento, demonstrou preocupação em ser reconhecido por alguém na rua, o que, a nosso ver, demonstra uma certa ousadia por parte da personagem, que muito se arrisca para espiá-los sorrateiramente. Citamos: De Pas estaba seguro de no ser visto, en completa obscuridad, en un portal de enfrente. No pasaba nadie; pero podían pasar... y ¿qué se pensaría si le veían allí, espiando a los convidados del Marqués?... Debía marcharse... sí; pero hasta que aquellos bultos se retirasen del balcón no podía moverse (Ibidem, p.443). Os conflitos internos produzidos pela avassaladora paixão de Fermín por Ana também podem ser vistos capítulo XXVII, mais especificamente na cena em que Fermín de Pas reflete sobre a possibilidade de aceitar o convite feito por dona Rufina Robledo, a Marquesa de Vegallana, para passar o dia na propriedade de campo da família, na presença de seus amigos e da bela Ana Ozores. Vejamos: (…) Ojalá tuviera valor para faltar, para despreciaros, para olvidarlo todo... pero ya estoy cansado de luchar con esta maldita obsesión que me vence siempre. Sí, si he de acabar por ir, si estoy seguro de que al fin he de tomar el camino del Vivero, más vale ahorrarme el tormento de la batalla y declararme vencido. Iré». (ALAS, 1998, págs.812-813). 152 Na cena, deparamo-nos com um interessante exemplo de como o narrador recua a fim de dar a palavra à personagem, evidenciando, assim, a presença do monólogo interior. O afastamento do narrador clariniano é intencional. Ele o faz na finalidade de que o próprio apresente aos leitores de La Regenta o intenso conflito entranhado em sua alma, por ter de lutar contra a paixão proibida por Ana Ozores, em prol de sua carreia dentro da Igreja Católica. Dessa forma, constatamos que é através da voz da personagem, em outras palavras, do discurso de De Pas, que se torna possível a apreciação desse conflito interno, inato de caracteres acentuados, tais como assinala Machado de Assis, em seu memorável artigo sobre o romance O primo Basílio, de Eça de Queirós. O conflito da personagem clariniana se aprofunda ainda mais no capítulo seguinte de La Regenta. Nele, o narrador dá sequência ao episódio que narra o grande encontro realizado pela família Vegallana, dando expressivo enfoque ao repentino desaparecimento de Ana e de Álvaro, motivo que despertou uma explícita preocupação por parte Fermín. Mediante o sumiço de ambos, o clérigo se desespera, especialmente pelo fato de suspeitar do interesse de Ana pelo seu maior adversário, o galã e sedutor Álvaro Mesía. A personagem, torturada por seus pensamentos mais íntimos, em outras palavras, pela voz de sua consciência, acredita havê-la perdido para o Don Juan de Vetusta, passando a se martirizar por ter se entregado cegamente a essa paixão desmedida, capaz de provocar sentimentos até então jamais experimentados por ele. Aos olhos de Fermín, Ana será a principal responsável por ter-lhe desencadeado a cegueira, e, ao atribuir à dama a culpa de toda a sua necedade, o clérigo evidenciará aos leitores de La Regenta uma visão extremamente negativa da mulher, da figura feminina em si, capaz de corromper o juízo de qualquer homem, 153 até mesmo dos mais ponderados. Vejamos o que afirma o religioso sobre as mulheres: ―(…) es verdad, es verdad... he estado ciego... la mujer siempre es mujer, la más pura... es mujer... y yo fui un majadero desde el primer día... Y ahora es tarde... y la perdí por completo. Y ese infame...‖ (Ibidem, p.828). Com a consumação do adultério de Ana Ozores, essa imagem pessimista da mulher será reavivada com mais intensidade por parte do confessor, que, como vimos, se colocará na posição de marido traído, reivindicando para si o direito de reclamar a honra perdida. Através do monólogo interior, vemos com nitidez a consolidação da desilusão amorosa do religioso, que, corroído pela ira, passa a manifestar sórdidos desejos de matar os amantes infiéis. Fermín acusa Álvaro de têla roubado e Ana de tê-lo enganado perfidamente, ao desprezar o verdadeiro amor que ele cultivava com tanto carinho e apresso por ela. A fúria do confessor é implacável, o que converterá todo o amor ressentido em raiva, em ódio, e, contaminado por estes sentimentos, De Pas não hesitará em acusá-la de leviandade, chamando-lhe inclusive de ―prostituta como todas as mulheres‖, o que novamente vem acentuar essa perspectiva negativa sobre a figura feminina, tão recorrente nos principais romances realistas/ naturalistas do século XIX. Vejamos o que diz Fermín de Pas a respeito da infidelidade de Ana Ozores: Idiotas ¿que, por qué mato? Porque me han robado a mi mujer, porque me ha engañado mi mujer, porque yo había respetado el cuerpo de esa infame para conservar su alma, y ella, prostituta como todas las mujeres, me roba el alma porque no le he tomado también el cuerpo... Los mato a los dos porque olvidé lo que oí al médico de ella, olvidé que ubi irritatio ibi fluxus, olvidé ser con ella tan grosero como con otras, olvidé que su carne divina era carne humana; tuve miedo a su pudor y su pudor me la pega; la creí cuerpo santo y la podredumbre de su cuerpo me está envenenando el alma... Mato porque me engañó; porque sus ojos se clavaban en los míos y me llamaban hermano mayor del alma al compás de sus labios que también 154 lo decían sonriendo, mato porque debo, mato porque puedo, porque soy fuerte, porque soy hombre... porque soy fiera...» (Ibidem, p.905). Mais uma vez, o narrador cede a palavra ao confessor, deixando-o expressar toda angustia que lhe acometia. Através do monólogo interior, entendido como a mais íntima expressão do pensamento, a mais próxima ao consciente, o leitor encontra-se em presença direta com a consciência de Fermín de Pas. Essa, por sua vez, flui ao ritmo do processo psíquico vivido pela personagem, chegando-nos de modo imediato, como se emanasse diretamente dele, sem a necessidade da existência de um destinatário. Assim, notamos que Fermín pensa para si próprio e o fluir de suas ideias ocorre livremente, o que evidencia a real manifestação de seu pensamento em estado nascente. Além de aclarar a visão interna da personagem, também nos pareceu relevante chamar a atenção para dois importantes aspectos gramaticais no uso dos monólogos interiores direto: a ausência de pontuação e o emprego de tempos verbais no presente do indicativo, o que, de fato, traduz a imediatez dos conteúdos da consciência da personagem que fala, que enuncia. Nesse instante, passamos a nos deparar com um texto em que o relato e a história encontram-se ausentes. Assim, é importante comentar que o tempo e o ritmo do monólogo interior coincidirão praticamente com a realidade, uma vez que nós vivemos como leitores o que, na transcrição da escritura, vive a personagem (PELTZER, 2001, p.58). É como se esse estivesse simplesmente diante de nós, porém sem se dar conta de que nós estamos ouvindo-o, e nesse aspecto nos pareceu imprescindível assinalar a diferenciação entre monólogo interior e solilóquio, para que não haja confusão entre os dois conceitos. No primeiro, a personagem fala sem um destinatário determinado, ou seja, fala para si própria, o que faz transparecer a incoerência do conteúdo, uma vez que este não se 155 preocupa em organizá-lo em razão da ausência de um receptor. No solilóquio, ao contrário, a personagem se pronuncia no intuito de ser escutada por uma platéia, o que aclara a coerência, racionalidade e organização do conteúdo indiscutivelmente selecionado pelo locutor que possui a palavra. Em La Regenta, a heterogeneidade enunciativa se manifestará por intermédio dos discursos das personagens, o que vem corroborar a natureza polifônica e ideológica do romance de Leopoldo Alas. As vozes opostas entre si trazem em seu bojo um olhar crítico sobre o contexto histórico, político e social do final do século XIX, e, ao priorizar as perspectivas, estas vozes sociais e históricas são incorporadas ao romance clariniano, o que, muitas vezes, motiva as personagens a subverterem os estereótipos para questionar valores, romper barreiras e romper tabus. No capítulo relativo à subjetividade do sujeito da enunciação, vimos que o ativo narrador de La Regenta criticará todas as formas de fanatismo religioso e de corrupção do clero, e será primordialmente por meio da voz de determinadas personagens, dentre as quais destacamos a de Santos Barinaga, que melhor observaremos essa crítica, um tanto inquietante para a conservadora sociedade ovetense do século XIX, católica por excelência. Um dos episódios em que podemos vislumbrar a aversão às práticas ilícitas cometidas pelos principais representantes da Igreja Católica encontra-se no capítulo XV, na cena em que o narrador se afasta da matéria narrada, com o objetivo de dar a palavra a dom Santos, figura que acusa publicamente Fermín e dona Paula de terem provocado, de forma proposital, a ruína se seus negócios. Vejamos o fragmento em que Barinaga, através do discurso indireto livre, proclama abertamente a corrupção praticada pela família De Pas: 156 Don Santos volvió a su monólogo, interrumpido por entorpecimientos del estómago y por las dificultades de la lengua. -¡Miserables! -decía con voz patética, de bajo profundo¡miserables!... ¡Ministro de Dios!... ¡ministro de un cuerno!... El ministro soy yo, yo, Santos Barinaga, honrado comerciante... que no hago la forzosa a nadie... que no robo el pan a nadie... que no obligo a los curas de toda la diócesis... eso, eso, a comprar en mi tienda cálices, patenas, vinajeras, casullas, lámparas (iba contando por los dedos, que encontraba con dificultad), y demás, con otros artículos... como aras; sí señor ¡que nos oigan los sordos, señor Magistral! usted ha hecho renovar las aras de todas las iglesias del obispado... y yo que lo supe... adquirí una gran partida de ellas..., porque creí que era usted... una persona decente... un cristiano... (ALAS, 1998, p.468). A crítica ao catolicismo também pode ser apreciada no capítulo XVI, na cena em que a cidade inteira se escandaliza diante da polêmica aparição de Ana Ozores, na procissão da sexta-feira santa, descalça e vestida de nazarena. O que, a princípio, deveria ter sido interpretado como uma inegável prova de amor à religião acaba configurando-se, para a maioria dos hipócritas habitantes de Vetusta, como um verdadeiro ato de loucura, de insanidade, especialmente pelo fato de Ana ser uma senhora casada, o que por si só exigia-lhe recato e pudor. Dentre as personagens que mais se horrorizaram com o fanatismo religioso da bela Ozores, destacamos a Marquesa de Vegalhana, e, para melhor aclarar o espanto da aristocrata, nos pareceu pertinente citar o seguinte fragmento: ―-Dígase lo que se quiera; estos extremos no son propios... de personas decentes‖ e também: Aquello no era piedad, no era religión; era locura, simplemente locura. La devoción racional, ilustrada, de buen tono, era aquella otra, pedir para el Hospital a las corporaciones y particulares a las puertas del templo, regalar estandartes bordados a la parroquia; ¡pero vestirse de mamarracho y darse en espectáculo!... (Ibidem, p.777). 157 Não foi menor a oposição de dom Víctor Quintanar frente à audaciosa exposição da esposa na cidade, e, para melhor corroborar o que Quintanar diz aos amigos sobre a aparição de Ana na procissão, em outras palavras, sobre o «inaudito atrevimiento» da esposa, nos pareceu oportuno citar o seguinte fragmento: - No, no es eso. No sé lo que me digo... Quiero decir... Señores, mi mujer está loca... Yo creo que está loca... Lo he dicho mil veces... El caso es... que cuando yo creía tenerla dominada, cuando yo creía que el misticismo y el Provisor eran agua pasada que no movía molino... cuando yo no dudaba de mi poder discrecional en mi hogar... a lo mejor ¡zas! mi mujer me viene con la embajada de la procesión (Ibidem, p.779). Muito mais que loucura, o ex-regente também viu no gesto da mulher uma profunda submissão ao seu confessor, Fermín de Pas, a quem Víctor acusava explicitamente de indigno, principalmente pelo fato de o religioso havê-la cegado propositalmente, tirando-lhe, assim, o seu bom senso. Vejamos as palavras de Quintanar: ―-¡Infame! ¡es un infame! ¡me la ha fanatizado! (Ibidem, p.790). Foja também se opõe severamente ao fanatismo religioso de Ana Ozores. Para ele, Fermín a usava pública e estrategicamente com a primordial intenção de mostrar para a cidade inteira o quão grande era o seu poder e o quanto a fé é capaz de modificar a vida do homem, e, no intuito de revelar a profunda aversão da personagem ao confessor e à própria Ana, que se deixou prostituir por ele, nos pareceu imprescindível citar o seguinte fragmento: ―«Todo eso es indigno. No sirve más que para dar alas al Provisor. Lo que ha hecho la Regenta lo pagarán los curas de aldea. Además, la mujer casada la pierna quebrada y en casa»‖(Ibidem, p.789). Ainda que grande parte da sociedade vetustense tenha se pronunciado notoriamente contra a atitude de Ana Ozores, algumas personagens, em especial as que são devotas fervorosas do catolicismo, viram o gesto da bela Ana como uma 158 verdadeira prova de amor à religião, o que grandiosamente merecia notável admiração. Uma das figuras que mais se empenhou em valorizá-lo foi a carola dona Petronila Rianzares, que dizia que ―(...) Anita está resuelta a dar este gran ejemplo a la ciudad y al mundo...‖ (Ibidem, p.776). Assim como Petrolina, Joaquín Orgaz, ―el populacho religioso‖ (Ibidem, p.789), tal como afirma o narrador, também admirou a humildade de la Regenta, afirmando que: «Aquello era imitar a Cristo de verdad. ¡Emparejarse, como un cualquiera, con el señor Vinagre el nazareno; y recorrer descalza todo el pueblo!... ¡Bah! ¡era una santa!» (Ibidem, p.789). Outro importante procedimento utilizado pelo narrador de La Regenta foram os diálogos. Esses foram introduzidos nos romance a fim de que as personagens clarinianas pudessem expressar diretamente os seus pensamentos e opiniões, o que, aos nossos olhos, proporciona um expressivo imediatismo à história. Uma vez que a personagem toma a palavra, assumindo para si a função de enunciador, a presença do narrador é abrandada na principal intenção de fazer com que os leitores conheçam e julguem as personagens não a partir dos informes e intervenções do narrador, mas sim pelas suas condutas e pelo que elas próprias dizem de si e dos outros. Muitos são os críticos que atribuem a supremacia do diálogo à novelística do século XIX, mais especificamente às escolas realista/ naturalistas, que se encontravam definitivamente engajadas com a proposta de representação da realidade. Fundamentando-se na concepção aristotélica de Mimeses, o artista buscava em sua obra aparentar um alto grau de fidelidade do mundo observado por ele, e o diálogo passa, então, a adquirir um caráter mais natural, mais espontâneo, chegando, em muitas ocasiões, a traduzir a rudeza da linguagem vulgar, tal como podemos apreciar em muitos romances realistas/ naturalistas da tradição espanhola, vide, por 159 exemplo, Misericordia (1897), obra em que Pérez Galdós consegue revelar a personalidade de suas criaturas, em outras palavras, a natureza de seus caracteres, expondo as particularidades de cada um de acordo com a sua condição social, educacional, suas características pessoais e inclusive com as suas manias. A prosa de Leopoldo Alas ―Clarín‖, segundo Ricardo Senabre (2001), também conta com a ilustre e complexa mescla de modernidade e populismo. O escritor asturiano reconhece que, devido à sua fervorosa inclinação às atividades jornalísticas, foi praticamente impossível dedicar-se a um estilo exclusivamente nobre, e que certas formas não acadêmicas acabavam brotando de sua pluma, sem que o mesmo pudesse evitá-las ou contê-las. No romance La Regenta, Leopoldo Alas, em determinadas cenas, também recorre ao diálogo no intuito de apresentar, através do discurso das próprias personagens levadas a falar, os pontos de vista delas, e para melhor aclarar essa perspectiva, nos pareceu interessante citar o diálogo entre Ana Ozores e Víctor Quintanar, presente no capítulo X de La Regenta. Nele fica nítida a preocupação do ex-regente de Audiência com a saúde de Ana, muito afetada pela falta de exercícios físicos e pela ausência de atividades que pudessem distraí-la, entretê-la. Muito preocupado com as consequentes crises emocionais da esposa, Víctor, motivado pelo discurso médico da época, que via a necessidade de a mulher oitocentista ocupar-se com novas atividades, tenta convencê-la a renunciar o confinamento a qual estava condicionada por livre e espontânea vontade, a fim de que ela pudesse desfrutar a vida de uma forma mais prazerosa e saudável. Vejamos o que falam as personagens: 160 -Pero, hija, ¿qué te pasa? tú estás mala... -No, Víctor, no; déjame, déjame por Dios ser así. ¿No sabes que soy nerviosa? Necesito esto, necesito quererte mucho y acariciarte... y que tú me quieras también así. -¡Alma mía, con mil amores!... pero... esto no es natural, quiero decir... está muy en orden, pero a estas horas... es decir... a estas alturas... vamos... que... Y si hubiéramos reñido... se explicaría mejor... pero así sin más ni más... Yo te quiero infinito, ya lo sabes; pero tú estás mala y por eso te pones así; sí, hija mía, estos extremos... -No son extremos, Quintanar -dijo Ana sollozando y haciendo esfuerzos supremos para idealizar a D. Víctor que traía el lazo de la corbata debajo de una oreja. -Bien, vida mía, no serán; pero tú estás mala. Ayer amagó el ataque, te pusiste nerviosilla... hoy ya ves cómo estás... Tú tienes algo. Ana movió la cabeza negando. -Sí, hija mía; hemos hablado de eso en el palco la Marquesa, don Robustiano y yo. El doctor opina que la vida que llevas no es sana, que necesitas dar variedad a la actividad cerebral y hacer ejercicio, es decir, distracciones y paseos. La Marquesa dice que eres demasiado formal, demasiado buena, que necesitas un poco de aire libre, ir y venir... y yo, por último, opino lo mismo, y estoy resuelto -esto lo dijo con mucha energía- estoy resuelto a que termine la vida de aislamiento. Parece que todo te aburre; tú vives allá en tus sueños... Basta, hija mía, basta de soñar (ALAS, 1998, págs.:302-303). Outro expressivo diálogo realizado entre as personagens clarinianas pode ser apreciado no capítulo, na cena em que Álvaro Mesía e Paco Vegallana dialogam sobre la Regenta. Citamos: -¿Qué has visto tú... en ella? -¡Hola, hola! Parece que pica. -¡Ya lo creo! ¿Y dónde creerás que pica? Vegallana se volvió para mirar a Mesía. Este señaló el corazón con ademán joco-serio. -¡Puf! -hizo con los labios Paco. -¿Lo dudas? -Lo niego. -No seas tonto. ¿Tú no crees en la posibilidad de enamorarse? -Yo me enamoro muy fácilmente... -No es eso. -¿Y te pones colorado? -Sí; me da vergüenza, ¿qué quieres? Esto debe de ser la vejez. -Pero, vamos a ver, ¿qué sientes? Mesía explicó a Paco lo que sentía. Le engañó como engañaba a ciertas mujeres que tenían educación y sentimientos semejantes 161 a los del Marquesito. La fantasía de Paco, sus costumbres, la especial perversión de su sentido moral le hacían afeminado en el alma en el sentido de parecerse a tantas y tantas señoras y señoritas, sin malos humores, ociosas, de buen diente, criadas en el ocio y el regalo, en medio del vicio fácil y corriente (Ibidem, p.223). Álvaro afirma estar completamente apaixonado por Ana Ozores, no intuito de fazer com que o amigo− sensibilizado com a suposta paixão− lhe ajudasse a conquistá-la: ―Importaba mucho al jefe del partido liberal dinástico de Vetusta que Paquito le creyera enamorado de aquella manera sutil y alambicada. Si se convenciera de la pureza y fuerza de esta pasión le ayudaría no poco (Ibidem, p.224). Mesía, dissimuladamente, confessa a Paco o que sentia, de forma a enganá-lo como se engana certas mulheres de educação e de sentimentos iguais aos do sensível jovem. Ainda que Paco aplaudisse os ordinários galanteios e as vulgares empreendidas de seu tutor, o belo marquês desejava para si um amor puro e verdadeiro, ―un amor grande, como el de los libros y las comedias (...) Allá dentro, en regiones de su espíritu en que él entraba rara vez, veía vagamente algo mejor que el ordinario galanteo‖ (Ibidem,p.223), o que, neste aspecto, o distingue de Álvaro Mesía. Além de Ana Ozores, Obdulia Fandiño é outra figura feminina a tornar-se o foco das conversas entre as inescrupulosas personagens de La Regenta. Um indiscutível exemplo da popularidade da viúva de Pomares pode ser visto no segundo capítulo da obra, mais precisamente no episódio em que os religiosos questionavam, em plena sacristia, o fato de Obdulia estar sempre muito bem vestida, trajando vestidos e prendas muito caras, que não seriam compatíveis com o seu poder aquisitivo. Vejamos a cena em que o narrador recua com o objetivo de ceder a palavra às personagens: 162 La historia de Obdulia Fandiño profanó el recinto de la sacristía, como poco antes lo profanaran su risa, su traje y sus perfumes. El Arcipreste narraba las aventuras de la dama como lo hubiera hecho Marcial, salvo el latín. -Señores, a mí me ha dicho Joaquinito Orgaz que los vestidos que luce en el Espolón esa señora... -Son bien escandalosos... -dijo el Deán. -Pero muy ricos -observó el pariente del ministro. -Y muchos; nunca lleva el mismo; cada día un perifollo nuevo añadió el Arcediano-; yo no sé de dónde los saca, porque ella no es rica; a pesar de sus pretensiones de noble, ni lo es ni tiene más que una renta miserable y una viudedad irrisoria... -Pues a eso voy -interrumpió triunfante don Cayetano-. Me ha dicho el chico de Orgaz, que acabó la carrera de médico en San Carlos, que estos últimos años Obdulita servía en Madrid a su prima Tarsila Fandiño, la célebre querida del célebre... -Sí ¿qué? -Que le servía de trotaconventos, digámoslo así. Es decir, no tanto: pero vamos, que la acompañaba y... claro, la otra, agradecida... le manda ahora los vestidos que deja, y como los deja nuevos y tiene tantos y tan ricos... (Ibidem, p.97). É através das inúmeras insinuações, feitas com a primordial intenção de corroborar o caráter leviano e promíscuo da atrevida personagem, que pouco se importava com os comentários mal intencionados sobre sua pessoa, que nós, leitores, conseguimos nos conscientizar sobre a forma como a viúva os conseguia. Tratam-se, pois, de presentes dados pela prima, Tarsila Fandiño, como maneira de retribuir os ―favores‖ afetuosamente prestados pela dama no período em que esta vivia em Madrid. E para finalizar, não poderíamos deixar de mencionar o célebre diálogo estabelecido entre dona Paula e Fermín, no capítulo XI de La Regenta, que aclara a profunda indignação da matriarca ao tomar consciência da intimidade existente entre Ana Ozores e seu filho, a quem a esposa de dom Víctor tratava docemente de ―Hermano mayor‖. Astuta, dona Paula percebe o desconcerto de Fermo, que se ruboriza após a leitura de uma carta escrita por Ozores. Imediatamente, a mãe solicita 163 que Fermín realize a leitura da correspondência em voz alta, e este o faz sem hesitar, comportamento que evidencia indiscutivelmente a submissão do filho à autoritária mãe, sua tirana. O espanto de Paula é imediato devido à forma carinhosa com que a bela Ozores refere ao confessor, e, para melhor aclará-lo, nos pareceu de grande importância citar, antes mesmo do diálogo entre mãe e filho, a carta escrita por Ana. Vejamos a correspondência em que a senhora Quintanar pede, afetuosamente, a Fermín de Pas que ele a encontrasse mais tarde para que ambos pudessem conversar: «Mi querido amigo: hoy no he podido ir a comulgar; necesito ver a usted antes; necesito reconciliar. No crea usted que son escrúpulos de esos contra los que usted me prevenía; creo que se trata de una cosa seria. Si usted fuera tan amable que consintiera en oírme esta tarde un momento, mucho se lo agradecería su hija espiritual y affma. amiga, q. b. s. m., Ana de Ozores de Quintanar» (Ibidem, págs.:329-330). Agora vejamos o diálogo em que dona Paula reprova a conduta de Ana Ozores, acusando-a de proceder de forma imprudente e indecorosa− tal como fazia persistentemente a leviana Obdulia Fandiño−, uma vez que se referia a Fermín, seu confessor, de maneira demasiadamente amistosa. Citamos: -¡Jesús, qué carta! -exclamó doña Paula con los ojos clavados en su hijo. -¿Qué tiene? -preguntó el Magistral, volviendo la espalda. -¿Te parece bien ese modo de escribir al confesor? Parece cosa de doña Obdulia. ¿No dices que la Regenta es tan discreta? Esa carta es de una tonta o de una loca. -No es loca ni tonta, madre. Es que no sabe de estas cosas todavía... Me escribe como a un amigo cualquiera. -Vamos, es una pagana que quiere convertirse. El Magistral calló. Con su madre no disputaba. -Ayer tarde no fuiste a ver al señor de Ronzal. -Se me pasó la hora de la cita... 164 -Ya lo sé; estuviste dos horas y media en el confesonario, y el señor Ronzal se cansó de esperar y no tuvo contestación que dar al señor Pablo, que se volvió al pueblo creyendo que tú y Ronzal y yo y todos somos unos mequetrefes sin palabra, que sabemos explotarlos cuando los necesitamos y cuando ellos nos necesitan los dejamos en la estacada. -Pero, madre, tiempo hay; el chico está en el cuartel, no se los han llevado; no salen para Valladolid hasta el sábado... hay tiempo... -Sí, hay tiempo para que se pudra en el calabozo. ¿Y qué dirá Ronzal? Si tú que estás más interesado te olvidas del asunto, ¿qué hará él? -Pero, señora, el deber es primero. -El deber, el deber... es cumplir con la gente, ¡Fermo! ¿Y por qué se le ha antojado al espantajo de don Cayetano encajarte ahora esa herencia? -¿Qué herencia? De Pas daba vueltas en una mano al sombrero de teja, de alas sueltas, y se apoyaba en el marco de la puerta, indicando deseo de salir pronto. -¿Qué herencia? -repitió. -Esa señora; esa de la carta, que por lo visto cree que mi hijo no tiene más que hacer que verla a ella. -Madre, es usted injusta. -Fermo, yo bien sé lo que me digo. Tú... eres demasiado bueno. Te endiosas y no ves ni entiendes (Ibidem, págs.:330-331). Além do ponto de vista de dona Paula sobre la Regenta, evidente, aqui, a partir do diálogo estabelecido entre as personagens, nos pareceu de extrema importância chamar a atenção para outro ponto a ser trabalhado por nós em nossa tese: o da construção da subjetividade feminina através das cartas e do diário de Ana Ozores, uma personagem leitora e produtora de textos. 2.2.2. As cartas e o diário: a escrita como expressão da subjetividade de Ana Ozores Em O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, Leonor Arfuch (2010) afirma que a pluralidade das formas que integram o espaço 165 biográfico−essencial não só para a afirmação do sujeito moderno como também para definir a fronteira imprecisa entre o público e o privado e, por conseguinte, a nascente articulação entre o individual e o social − oferece um aspecto comum: ―elas contam, de diferentes modos, uma história ou experiência de vida (2010, p.111). Para a autora, a percepção do caráter configurativo das narrativas, em especial as autobiográficas e vivenciais, se articula, quase de modo implícito, com o caráter narrativo da experiência, o que muito se relaciona à proposta de Paul Ricouer, ao comentar que as nossas experiências não só devem como também têm o mérito de serem contadas: ―Contamos histórias porque afinal de contas as vidas humanas precisam e merecem ser contadas‖ (1994, p.116). E por ser a personagem central de La Regenta uma grande leitora e produtora de textos confessionais, atribuiremos, neste sub-capítulo, um significativo enfoque à epístola, que, a partir do séc. XVIII, se transforma no ―veículo privilegiado da construção da intimidade e da expressão do homem‖ (SANTOS, 2008, p.61), e ao diário íntimo, que ―cobre o imaginário de liberdade absoluta, cobiça qualquer tema, dá insignificância cotidiana à iluminação filosófica, dá reflexão sentimental à paixão desatada‖ (ARFUCH, 2010, p.143), no intuito de melhor traduzir a profundidade daquele que escreve, ou seja, daquele que transporta suas representações mentais à escrita, configurando-as textualmente num espaço onde um ―eu prisioneiro de si mesmo... proclama para poder narrar sua história, que ele (ou ela) foi aquilo que hoje escreve‖ (POZUELO YVANCOS, 2005, p.33-34. Tradução nossa)37. No processo de construção da identidade da mulher, esses dois gêneros, tidos por Bakhtin (1988, p.124) como ―uma das formas mais importantes e substanciais de 37 ―yo prisionero de sí mismo... proclama para poder narrar su historia, que él (o ella) fue aquello que hoy escribe‖. 166 introdução e organização do plurilinguismo no romance‖, capazes inclusive de ―determinar a forma do romance como um todo (romance ficção, romance-diário, romance-epistolar, etc.‖ (Ibidem, p.124), são extremamente pertinentes no estudo da subjetividade feminina, visto que constituem uma das primeiras formas de autorepresentação do ―eu‖ feminino. Assim como Bakhtin, Leonor Arfuch também destaca a importância dos gêneros primários nessa construção narrativa da identidade, comentando que: ―(...) por meio deles se tece em boa medida a experiência cotidiana, as múltiplas formas como, dialogicamente, o sujeito se ―cria‖ na conversa‖ (2010, p.80), demonstrando a possibilidade de serem estes dois registros determinantes na objetivação da ―vida‖ como vivência e totalidade. Para Alain Girard (1996), ―entre todos os textos escritos, nenhum pode informar melhor sobre a imagem do eu que os escritos em primeira pessoa‖ (Idibem, p.38. Tradução nossa)38. Foi, portanto, por intermédio de gêneros discursivos como esses que as mulheres registraram acontecimentos próximos ao momento da escrita que as motivaram a tomar a palavra para si, revelando-nos os seus interesses individuais, familiares e políticos, ao mesmo tempo em que davam testemunho dos costumes e das opiniões, contribuindo, desta maneira, para com o surgimento de uma voz indiscutivelmente singular e de uma visão muito pessoal da época e do ambiente em que elas viveram. A partir de uma escrita despretensiosa e desprovida de aspirações literárias, a personagem clariniana Ana Ozores, através das correspondências e do livro de memórias que conservava com tanto esmero, descreverá sua perspectiva de mulher dentro da sociedade predominantemente patriarcal do século XIX, o que nos 38 ―entre todos los textos escritos, ninguno puede informar mejor sobre la imagen del yo que los escritos en primera persona‖. 167 proporciona uma visão muito significativa sobre os aspectos singulares de sua natureza acentuada. Após a leitura das cartas escritas por Ana e de algumas passagens presentes em seu diário, foi possível adentrar no interior da personagem, de forma a desvendar alguns dos mais íntimos medos, aflições, aspirações e desejos dela. No entanto, é preciso comentar que, embora ambos os gêneros apresentem características semelhantes quanto ao modo da escrita, a ponto de nos deixar evidente uma expressiva relação entre eles, tal como nos comenta Béatrice Didier: (...) esses dois <<gêneros>> tem em comum a ausência de limites, a fragmentação, o dia-a-dia, o fato de ser concebidos, ao menos em um princípio, sem propósito de publicação. Não são <<obras>> propriamente ditas: nem tem o caráter acabado destas, nem sofrem as vicissitudes próprias da publicação, a difusão, o ingresso no circuito comercial. Inclusive se as correspondências e os diários íntimos se publicam finalmente, continuam estando marcados por essa liberdade, essa ausência de forma inerente a sua origem (DIDIER, 1996, p.43. Tradução nossa)39. É preciso, desde já, salientar uma importante diferença: a natureza da relação com o outro, visto que, em oposição ao diário íntimo, a correspondência necessita impreterivelmente de um destinatário, ou seja, de estar endereçada a alguém. Em La Regenta, muitas das cartas escritas por Ana Ozores encontram-se destinadas ao médico Benítez, ―el joven de pocas palabras y muchos estudios, observador y taciturno‖ (ALAS, 1998, p.796), que muito a incentivara a escrever, sobretudo, nas horas de desocupação. Benítez entendia a escrita como uma importante fonte de 39 ―(...) esos dos <<géneros>> tienen en común la ausencia de límites, la fragmentación, el día-a-día, el hecho de ser concebidos, al menos en un principio, sin propósito de publicación. No son <<obras>> propiamente dichas: ni tienen el carácter acabado de éstas, ni sufren las vicisitudes propias de la publicación, la difusión, el ingreso en el circuito comercial. Incluso si las correspondencias y los diarios íntimos se publican finalmente, siguen estando marcados por esa libertad, esa ausencia de forma inherente a su origen‖. 168 distração, daí o incentivo a sua prática. É evidente que nos referimos, aqui, a uma escrita descompromissada e sem pretensões literárias, bem diferente, portanto, daquela praticada por Ana no período correspondente a sua juventude, que resultou na produção de diversos poemas− todos considerados abomináveis, segundo as personagens masculinas de La Regenta, que viam com muito preconceito e discriminação a atividade literária feminina. Vejamos, através do diálogo, o que eles diziam: En una mujer hermosa es imperdonable el vicio de escribir decía el baroncito, clavando los ojos en Ana y creyendo agradarla. -¿Y quién se casa con una literata? -decía Vegallana sin mala intención-. A mí no me gustaría que mi mujer tuviese más talento que yo. La marquesa se encogía de hombros. Creía firmemente que su marido era un idiota. «¡A qué llamarán talento los maridos!» pensaba satisfecha de lo pasado. -Yo no quiero que mi mujer se ponga los pantalones -añadía el afeminado baroncito (ALAS, 1998, p.174). Para Ana, o pedido do médico não representava sacrifício, pelo contrário, soava-lhe como algo comum e rotineiro, pois desde criança a personagem sempre teve uma habilidade enorme para expressar-se, dada a facilidade que tinha com a pluma. Por ser a carta um veículo privilegiado da construção da intimidade e da expressão da subjetividade, Ana Ozores, através da escrita, desnuda-se, deixando escapar inúmeros testemunhos de sua afetividade, e é a partir desta ditosa revelação que nós, leitores, conseguimos adentrar na sua interioridade e melhor conhecê-la, conscientizando-nos sobre os seus mais íntimos pensamentos e sentimentos. Obediente a Benítez, Ana lhe escreve a seguinte correspondência: (…) Buenas noticias. Nada más que buenas noticias. Ya no ha aprensiones: ya no veo hormigas en el aire, ni burbujas, ni nada de eso; hablo de ello sin miedo de que vuelvan las visiones: me 169 siento capaz de leer a Maudsley y a Luys, con todas sus figuras de sesos y demás interioridades, sin asco ni miedo. Hablo de mi temor a la locura con Quintanar como de la manía de un extraño. Estoy segura de mi salud. Gracias, amigo mío; a usted se la debo. Si no me prohibiera usted filosofar, aquí le explicaría por qué estoy segura de que debo al plan de vida que me impuso la felicidad inefable de esta salud serena, de este placer refinado de vivir con sangre pura y corriente en medio de la atmósfera saludable... pero nada de retórica; recuerdo cuánto le disgustan las frases... En fin, estoy como un reloj, que es la expresión que usted prefiere. El régimen respetado con religiosa escrupulosidad. El miedo guarda la viña, seré esclava de la higiene. Todo menos volver a las andadas. Continúo mi diario, en el cual no me permito el lujo de perderme en psicologías ya que usted lo prohíbe también. Todos los días escribo algo, pero poco. Ya ve que en todo le obedezco. Adiós. No retarde su visita. Quintanar le saluda... roncando. Ronca, es un hecho. En aquel tiempo la Regenta hubiera mirado esto como una desgracia suya, que le mandaba ex profeso el destino para ponerla a prueba. ¡Un marido que ronca! Horror... basta. Veo que tuerce usted el gesto. Perdón. No más cháchara. A Frígilis que venga con usted o antes. Diga lo que quiera mi esposo, si Crespo no viene a prepararme la caña y a convencer a las truchas de que se dejen pescar no haremos nada. Adiós otra vez. La esclava de su régimen, q. b. s. m., Anita Ozores de Quintanar (Ibidem, págs.:796-797). Na carta dedicada a Benítez, vemos nitidamente a subjetividade de Ana sendo posta em evidência a partir de suas próprias palavras, de sua escrita. Contente com a progressiva melhora, Ana confessa ao doutor haver recuperado a saúde e principalmente o equilíbrio emocional, perturbado depois da desastrosa aparição de nazarena na procissão de sexta-feira Santa. Passada a crise nervosa, Ana escreve-lhe que se encontra recuperada, revigorada, enfim, tão bem e segura que, inclusive, já conseguia falar sobre temas que antigamente a afligiam demasiado, tal como o medo de enlouquecer. Agora, falava do seu temor à loucura da mesma forma que, por exemplo, comentava a mania de um desconhecido, consciência que nos revela o desenvolvimento da personagem, que passa não só a compreender, mas também a lidar com as angustias e com os medos que permeavam sua fértil imaginação. 170 Outro aspecto a ser comentado é o tom jocoso com que Ana a escreve, deixando transparecer o seu senso de humor, quando, por exemplo, ela fala debochadamente dos roncos do marido: ―Quintanar le saluda... roncando‖ e de que seria inclusive capaz de ler os livros do inglês Henry Maudsley e do francês Jules Bernard Luys− ambos especialistas em psiquiatria− sem ter asco e medo: ―me siento capaz de leer a Maudsley y a Luys, con todas sus figuras de sesos y demás interioridades, sin asco ni miedo‖. Ana recupera a felicidade e a vontade de viver. Assim como a ajuda médica, outro elemento essencial na recuperação da dama foi o efetivo contato com a natureza. A saída de Vetusta e a permanência de Ana, na companhia de Víctor, na quinta dos Vegallanas− a bela propriedade de campo dos marqueses−, permitiu que a personagem rapidamente encontrasse a paz e a harmonia interior necessárias para a cura. Em contato direto com a natureza, tudo aquilo que, outrora, havia sido brutalmente reprimido, a começar pela verdadeira essência da personagem, aflora naturalmente. Pela primeira vez vemos espontaneidade, autenticidade, o que vem ao encontro do que afirma Miguel Ángel de la Cruz Vives (2000) em ―El universo filosófico de La Regenta‖: ―Ana descansa en el Vivero y vuelve a estar en contacto con la naturaleza, lejos de Vetusta, del Magistral y de Álvaro Mesía, se atemperan sus pasiones y es feliz. Es entonces cuando resurge su antigua vocación y comienza de nuevo a escribir. Se siente libre‖. Por Benítez tê-la ajudado de forma persistente em sua recuperação, notamos que Ana Ozores demonstra-se profundamente agradecida ao jovem médico, a quem proclama um expressivo carinho e afeição, que podem ser apreciados através da forma de tratamento: ―amigo mío‖ e da fiel promessa de cumprir todas as 171 recomendações solicitadas pelo profissional, tornando-se, assim, uma ―esclava de la higiene‖. Além de anunciar as ―buenas noticias‖, ou seja, sua vitoriosa recuperação, e de pronunciar a notável admiração por Benítez, Ana Ozores comenta-lhe que tem escrito todas as noites em seu diário, e, tal como o solicitado pelo médico, não procura ―filosofar‖, ou seja, fazer reflexões muito detalhadas e minuciosas sobre a sua vida, o que possivelmente a conduziriam as outras crises emocionais. Muitos dos comentários feitos por Ana na carta enviada ao médico também podem ser vistos na correspondência em que ela escreve para o seu confessor, Fermín de Pas. Citamos: ...No se queje de que soy demasiado breve en mis explicaciones. Ya le tengo dicho, amigo mío, que Benítez me prohíbe, y creo que con razón, analizar mucho, estudiar todos los pormenores de mi pensamiento. No ya el hacerlo, sólo el pensar en hacerlo, en desmenuzar mis ideas, me da la aprensión de volver a sentir aquella horrorosa debilidad del cerebro... No hablemos más de esto. Bastante hago si le escribo, pues prohibido me lo tienen. Pero entendámonos. Lo prohibido no es escribir a usted. ¿Hablo ahora claro? Lo prohibido es escribir mucho, sea a quien sea, y sobre todo de asuntos serios. ¿Qué cuándo volvemos a Vetusta? No lo sé. Fermín, no lo sé. Que yo estoy mucho mejor. Es verdad. Pero quien manda, manda. Benítez es enérgico, habla poco pero bien; ha prometido curarme si se le obedece, abandonarme si se le engaña o se desprecian sus mandatos. Estoy decidida a obedecer. Usted me lo ha dicho siempre: lo primero es que tengamos salud. ¿Qué hay tibieza tal vez? No, Fermín, mil veces no. Yo le convenceré cuando vuelva. ¿Qué rezo poco? Es verdad. Pero tal vez es demasiado para mi salud. ¡Si yo dijera a Quintanar o a Benítez el daño que me hace, sana y todo, repetir oraciones!... Que en mis cartas no hablo más que de don Víctor y del médico. ¿Pero de qué quiere que le hable? Aquí no veo más que a mi marido; y Benítez me acaba de salvar la vida, tal vez la razón... Ya sé que a usted no le gusta que yo hable de mis miedos de volverme loca... pero es verdad, los tuve y le hablo de ellos, para que me ayude a agradecer al médico (de quien tanto hablo) mi salvación intelectual. ¿Para qué me hubiera querido mi hermano mayor del alma, sin el alma, o con el alma obscurecida por la locura?... ¿Qué se acabó esto y se acabó lo otro...? No y no. No se acabó nada. A su tiempo volverá todo. Menos el visitar a doña Petronila. No me pregunte usted por qué, pero estoy resuelta a 172 no volver a casa de esa señora. Y... nada más. No puedo ser más larga. Me está prohibido (¡otra vez!). Acabo de cenar. Su más fiel amiga y penitente agradecida. Ana Ozores. P. D. -¿Qué se conoce que tengo buen humor? También es verdad. Me lo da la salud. Si lo tuviera malo y pensara mal, creería que a usted le pesa de mi buen humor, a juzgar por el tono con que lo dice. Perdón por todas las faltas» (ALAS, 1998, págs.: 797-798). Após a leitura da correspondência escrita por Ana Ozores ao religioso, identificamos a existência de um diálogo epistolar, aclarado, primordialmente, pelas frases interrogativas, tais como: ―¿Qué cuándo volvemos a Vetusta?‖. Esse expressivo diálogo entre remetente/destinatário vem ao encontro do que comenta Ana Maria Pessoa dos Santos (2008, p.73) em Cartas do Sobrado, a propósito da troca de cartas, tida por ela como a ―expressão da vontade de manter, mesmo à distância, um tipo de ―convívio‖, uma ―intimidade‖, numa dinâmica de reiteração afetiva que se inscreve em determinado tipo de sociabilidade‖. Com termos e estilo diferentes, a bela Ozores explica o porquê de ser tão concisa e breve nas correspondências que escreve a Fermín, justificando, segundo orientações médicas, não poder mais estender-se em assuntos sérios. Na epístola, Ana também comenta a melhora experimentada nas últimas semanas, atribuindo-a ao enérgico doutor, e, como forma de agradecimento, ela, muito entusiasta pela nítida recuperação, promete devotamente fazer tudo o que Benítez havia determinado. Outro ponto interessante a ser comentado da carta que Ana escreve a De Pas é a forma de tratamento: ―usted‖. No entanto, apesar do uso da terceira pessoa do singular, também vemos intimidade, uma vez que a personagem, por diversas vezes, o invoca apenas pelo primeiro nome, ―Fermín‖, e também afetividade, ao despedir-se 173 escrevendo ―su más fiel amiga y penitente agradecida‖. Ademais dessa particularidade, deparamo-nos também com um leve tom de ironia quando Ozores, de forma espirituosa, responde ao confessor que não havia mais assunto para contarlhe, em: ―¿Pero de qué quiere que le hable? Aquí no veo más que a mi marido; y Benítez me acaba de salvar la vida, tal vez la razón...‖, o que comprova, de certa forma, essa familiaridade apontada por nós. Outro aspecto revelador é a assinatura diferenciada das cartas assinadas por Ana. Na primeira carta enviada ao médico, a personagem a assina como ―Anita Ozores Quintanar‖, enquanto que na correspondência enviada a Fermín de Pas, sua assinatura muda para ―Ana Ozores‖, sem fazer, portanto, alusão ao diminutivo, carinhosamente empregado por ela como prova de devota amizade a Benítez, e ao sobrenome ―Quintanar‖, herdado do matrimonio com dom Víctor. Ainda que vejamos diferenças visíveis na assinatura de Ana, que, a nosso ver, traduzem a diferente relação que ela mantinha com cada um deles− com o médico do corpo e com o médico da alma−, não podemos deixar de comentar que, tanto na primeira como na segunda carta, há uma nítida intimidade, e esta deve ser atribuída, sobretudo, pelo fato de Ana, através delas, pronunciar-se livre e abertamente, sem temer possíveis represálias e censura, tais como as que recebeu quanto suas tias descobriram o seu caderno de versos. José Manuel González Herrán (2007), em seu artigo ―Ana Ozores, La Regenta: escritora y escritura‖, afirma que a escrita deve ser compreendida como ―meio indireto de expressar, mediante uma adequada retórica, coisas difíceis de dizer em viva voz‖ (Tradução nossa)40. Nós, no entanto, a vemos como um meio direto de 40 ―medio indirecto de expresar, mediante una adecuada retórica, cosas difíciles de decir en viva voz‖. 174 expressão, em especial daquilo que não se tem coragem de pronunciar pessoalmente. Entendemos a escrita, tal como o discurso oral, como uma das mais expressivas e imediatas vias de acesso ao interior do indivíduo, e é por intermédio dela que nós, leitores, conseguimos ampliar significamente nossos conhecimentos sobre Ana Ozores. E, assim como as inúmeras cartas de la Regenta, o diário íntimo é outra possível fonte de estudo para a análise da subjetividade da personagem clariniana, que, através dele, registrará suas mais pessoais e particulares impressões sobre a vida. No artigo ―El diário personal: una investigación (1986-1996)‖, Philippe Lejeune, após um amplo estudo sobre as práticas do diário na França, comenta que ―muita gente imagina que cultivar um diário é um costume fora de moda, que caiu em desuso. Eu sustento a hipótese inversa: a prática do diário está ligada à escolarização dos adolescentes. A escola obrigatória para todos, e o prolongamento dos estudos, não pode senão desenvolvê-la‖ (LEJEUNE, 1996, p.61. Tradução nossa)41. Hoje, quinze anos após a divulgação dos resultados dos estudos de Lejeune (1996) sobre a prática do diário íntimo, nos deparamos, além dos tradicionais diários, com novas formas de escritas autobiográficas. Com o significativo avanço da tecnologia, mais especificamente da internet, surgem cada vez mais gêneros, tais como os blogs, destinados a ―popularizar novas modalidades das (velhas) práticas autobiográficas das pessoas comuns, que, sem necessidade de mediação jornalística ou científica, podem agora expressar livre e publicamente os tons mutantes da subjetividade contemporânea‖ (ARFUCH, 2010, p.150). No entanto, diferentemente 41 ―mucha gente se imagina que llevar un diario es una costumbre pasada de moda, que ha caído en desuso. Yo sostengo la hipótesis inversa: la práctica del diario está ligada a la escolarización de los adolescentes. La escuela obligatoria para todos, y la prolongación de los estudios, no han podido sino desarrollarla‖. 175 desses diários virtuais e de outros tipos de gêneros confessionais publicados inegavelmente no intuito de serem lidos pelo público leitor− como foi o caso das epístolas do estadista argentino Juan Domingo Perón, que intencionalmente as escrevia com o objetivo de construir uma imagem positiva de sua pessoa−, os diários íntimos, a princípio, não apresentam essa explícita intencionalidade, pelo contrário, resguardam silenciosamente a vida de seu autor, ―dos quais talvez nada se saiba, calada a sua voz‖ (Ibidem, p. 143). E é justamente desse diário, escrito na intimidade com a ideia de não ser publicado, que nos ocuparemos nas análises seguintes. Das leituras realizadas sobre o diário íntimo− gênero em que as atividades e as impressões de um sujeito frente a si mesmo são registradas conforme o passar dos dias (CATELLI, 1996, p.87.)− notamos que grande parte dos teóricos estudados por nós procura assinalar o que Anna Caballé (1996) comenta tão primorosamente em seu artigo ―Ego tristis, el diario íntimo em España‖ sobre o fato de o diário estar desprendido não só de interação social− uma vez que, diferentemente da carta, não exige a presença de um destinatário− como também de limitações técnicas ou artísticas, visto que não há por parte do diarista nenhuma intenção em publicá-lo. Vejamos: O diário costuma se apoiar em uma escrita de grande pureza, no sentido de que em sua organização e estrutura não estão presentes as ataduras impostas à estrutura literária: não há interação social, não há outro interlocutor que aquele mesmo que escreve, nem tampouco limitações técnicas ou estilísticas que obriguem ao diarista a acomodar seu discurso a determinadas convenções formais− ainda que sim éticas e sociais (CABALLÉ, 1996, p.101. Tradução nossa)42. 42 ―El diario suele apoyarse en una escritura de gran pureza, en el sentido de que en su organización y estructura no están presentes las ataduras impuestas a la estructura literaria: no hay interacción social, no hay otro interlocutor que uno mismo, ni tampoco limitaciones técnicas o estilísticas que obliguen al diarista a acomodar su discurso a determinadas convenciones formales− aunque sí éticas y sociales‖. 176 Entretanto é preciso comentar que essa notável sensação de liberdade que sugere o gênero diário íntimo aos escritores seria absoluta se não fosse a necessidade deles registrarem os dias em que suas memórias foram escritas. Mencionamos, aqui, a visceral relação do diário com o calendário. E foi dessa perspectiva que nos pareceu interessante considerar o que afirma Maurice Blanchot (1996) em seu ensaio intitulado ―El diário íntimo y el relato‖, no intuito de justificar a existência de um pacto que sacraliza esta significativa correspondência, essencial na compreensão do gênero: O diário íntimo, que parece tão desprendido das formas, tão dócil diante dos movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, já que pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmo, acontecimentos importantes, insignificantes, todo lhe convém, na ordem e desordem que se queira, está submetido a uma cláusula de aparência leviana pero temível: deve respeitar o calendário. Este é o pacto que sela. O calendário é seu demônio, o inspirador, o compositor, o provocador e o guarda. Escrever seu diário íntimo significa colocar-se momentaneamente sob o amparo dos dias comuns, colocar o escritor sob essa mesma proteção, e significa proteger-se contra a escrita submetendo-a a essa regularidade feliz que o indivíduo se compromete a manter (Ibidem, p.47. Tradução nossa)43. Inúmeros são os motivos que levam um indivíduo a escrever um diário. Roland Barthes, em Délibération. Le bruissement de la langue, comenta que a motivação para a escritura de um diário pode provir de quatro motivos: poético, uma vez que o principal é a escritura pessoal; histórico, em razão dos vestígios do tempo; utópico, por ascender à realidade do escritor; e o amoroso, por transformar o diário 43 ―El diario íntimo, que parece tan desprendido de las formas, tan dócil ante los movimientos de la vida y capaz de todas las libertades, ya que pensamientos, sueños, ficciones, comentarios de sí mismo, acontecimientos importantes, insignificantes, todo le conviene, en el orden y desorden que se quiera, está sometido a una cláusula de apariencia liviana pero temible: debe respetar el calendario. Este es el pacto que sella. El calendario es su demonio, el inspirador, el compositor, el provocador y el guardia. Escribir su diario íntimo significa ponerse momentáneamente bajo el amparo de los días comunes, poner al escritor bajo esa misma protección, y significa protegerse contra la escritura sometiéndola a esa regularidad feliz que uno se compromete a mantener‖. 177 em uma oficina de frases exatas: fetichismo da linguagem (1984, págs.: 424-425)44. Em La Regenta, o longo período de permanência em casa e a carência de amigos verdadeiros a quem Ana pudesse confidenciar coisas íntimas de sua vida foram, sem dúvida, as razões que a motivaram a dedicar-se à escritura do diário. Vejamos um fragmento do livro de memórias de Ana Ozores, presente no capítulo XXVII da obra, com o objetivo de melhor conhecer a profundidade da personagem: El Vivero, mayo 1… (…) Llueve todavía. No importa. Todo el diluvio no me arrancaría hoy un gesto de impaciencia. La ventana está cerrada, los regueros del agua resbalando por el cristal me borran el paisaje. Víctor ha salido con Frígilis (segunda visita del buen Crespo, el único grande hombre que conozco de vista.) Bajo un paraguas de Pinón de Pepa- el casero de los marquesesrecorren, como cobijados en una tienda de campaña, el bosque de encinas que mi marido llama siempre seculares. Van a comprobar no sé qué experimento de química, invención de Frígilis, según él. Dios les haga felices y les conserve los pies secos. Hoy me siento inclinada a la historia, a los recuerdos. No los temo. Poco más de cinco semanas han pasado y ya me parece de la historia antigua todo aquello. ¡Qué tres días! Yo me figuraba estar prostituida de un modo extraño (aquí la letra de la Regenta se hace casi indescifrable para ella misma.) ¡Todo Vetusta me había visto los pies desnudos, en medio de una procesión, casi del brazo de Vinagre! ¡Y tres días con los pies abrasados por dolores que me avergonzaban, inmóvil en una butaca! Llamé a Somoza que se excusó. Vino el sustituto Benítez, silencioso, frío; pero comprendí que me observaba con atención cuando yo no le miraba. Debía de creer que yo me iba volviendo loca. Él lo niega, dice que todo aquello lo explica la exaltación religiosa y la exquisita moralidad con que decidí sacrificarme al bien del que creía ofendido por mis pensamientos y desaires. Benítez cuando se decide a hablar parece también un confesor. Yo le he dicho secretos de mi vida interior como quien revela síntomas de una enfermedad. 44 BARTHES, Roland. Délibération. Le bruissement de la langue. Essais Critiques IV. Paris, Éditions du Seuil, 1984. In: ―Punto y coma. Pavese y El oficio de vivir‖, de Ana Gallego Cuiñas. Este texto encontra-se disponível no site: http://www.crimic.paris-sorbonne.fr/actes/tl2/gallego.pdf. ―Barthes habla de los 4 motivos para escribir un diario: poético (lo principal es la escritura personal, histórico (huellas de la época), utópico (acceder a la realidad del escritor), ―enamorado‖: convertir en diario en un taller de frases exactas: fetichismo del lenguaje‖. 178 Conocía yo cuando le hablaba de estas cosas, que él, a pesar de su rostro impasible, me estaba aprendiendo de memoria... El mal subió de los pies a la cabeza. Tuve fiebre, guardé cama... y sentí aquel terror... aquel terror pánico a la locura. De esto no quiero hablar ni conmigo misma. Lo dejo por hoy; voy al piano a recordar la Casta diva... con un dedo (ALAS, 1998, págs.: 801-802). Ana encontra-se em paz consigo mesma, e nem o mau tempo é capaz de tirarlhe o sossego e a tranquilidade. O relato é iniciado por uma breve descrição do tempo chuvoso que fazia naquele primeiro de maio e de acontecimentos que ocorreram no dia, tais como o passeio de Quintanar e Frígilis, que, segundo Ana, é o único grande homem que conhecia. Mais adiante, o teor da narrativa vai se aprofundando, assumindo novos contornos. Ana passa, então, a tratar de assuntos mais complexos, relativos à sua interioridade. A bela Ozores começa a discorrer sobre como se sentia naquele dia: estava propensa a recordações, a lembranças, e todas elas se relacionavam especificamente ao episódio da sexta-feira Santa, em outras palavras, à sua aparição na procissão vestida de nazarena e com os pés descalços. A crise nervosa havia passado, entretanto, as sequelas permaneciam. Ana, além de envergonhada, sentiu-se literalmente prostituída pelo confessor: ―Yo me figuraba estar prostituida de un modo extraño (aquí la letra de la Regenta se hace casi indescifrable para ella misma.), e o comentário do narrador a respeito da caligrafia de Ana, feito entre parênteses, só vem corroborar essa negativa impressão que a personagem teve de si. O que anteriormente fora visto por ela como grande prova de devoção, hoje, no momento real da escrita, ―le parecía una especie de sacrificio babilónico, algo como entregarse en el templo de Belo para la vigilia misteriosa‖ (Ibidem, p.802). E a propósito desse momento da escrita da personagem, não poderíamos deixar de considerar a importância de dois significativos conceitos: o de 179 tempo, que, segundo Leonor Arfuch (2010, p.112), fundamentando-se na concepção de Paul Ricoeur (1994), torna-se humano na medida em que é articulado sobre um modo narrativo: Falar do relato, então dessa perspectiva, não remete apenas a uma disposição de acontecimentos- históricos ou ficcionaisnuma ordem sequencial, a uma exercitação mimética daquilo que constituiria primariamente o registro da ação humana, com suas lógicas, personagens, tensões e alternativas, mas à forma por excelência de estruturação da vida e, consequentemente, da identidade. E o de temporalidade− conceito que determina, hoje, a forma da narrativa e dos processos históricos−, visto que a forma da temporalidade autobiográfica é sempre uma forma de presença. Assim: A memória autobiográfica é passado presente. A autobiografia tem como dominante de sua estrutura a convocatória pela escrita da presença do passado. Por isso, a atividade escritural autobiográfica não remete nunca ao passado como um todo, como um conjunto, mas sim aos pontos sucessivos do passado, aos diferentes presentes, duráveis, desse passado (POZUELO YVANCOS, 2005, p.87. Tradução nossa)45. Pozuelo Yvancos (2005) afirma que o passado não é inerte, não é história, mas sim presença constante, dinâmica que penetra no interior do presente e interage com ele. Dessa forma, o que sucedeu no passado muito contribui para dar sentido à posteridade e se funde em uma forma de presença, de presente que é o que justifica o fato autobiográfico não como história, mas sim como imediatez (Ibidem, págs.8788), perspectiva igualmente discutida por Jean-Philippe Miraux, na obra La 45 ―La memoria autobiográfica es pasado presente. La autobiografía tiene como dominante de su estructura la convocatoria por la escritura de la presencia del pasado. Por ello, la actividad escritural autobiográfica no remite nunca al pasado como un todo, como un conjunto, sino a los puntos sucesivos del pasado, a los diferentes presentes, durables, de ese pasado‖. 180 autobiografía. Las escrituras del yo (2005, p.16. Tradução nossa), ao afirmar que o diário é um gênero que se propõe como atualização do presente. Vejamos: O diário enlaça o fio da existência; não recompõe o curso de uma vida, não é uma anamnese (uma evocação voluntária do passado), mas sim o paciente e meticuloso inventário de uma vida dia a dia. Não vai desde o presente ao passado, mas sim que se realiza no instante da enunciação mais ou menos instantânea; inclusive, ainda que emprega a mediação da escrita, arraiga no imediatismo46. No fragmento citado do diário de Ana Ozores, novamente a vemos comentar sobre a visceral importância do jovem médico na sua vida. Nele, Ana escreve o primeiro encontro que tivera com Benítez, que veio substituindo Somoza, o antigo médico da família. No relato, a personagem descreve também suas primeiras impressões sobre o doutor, que para ela podia ser definido através dos adjetivos: silencioso, frio e muito observador. Com o tempo, Ana adquire confiança em Benítez, que, segundo ela, muito se parecia com um confessor. Passa, então, a confidenciar-lhe tudo, inclusive os seus mais íntimos segredos, o que, por sua vez, permitia que o médico a conhecesse melhor. Ana Ozores comenta-lhe sobre o medo de estar enlouquecendo, e o médico é categórico em afirmar que a crise nervosa, desencadeada após a procissão, fora fruto da exaltação religiosa e não da loucura. Consciente dos reais motivos que a levaram à instabilidade física e mental, Ana procura, então, adotar um novo estilo de vida. Começa a desfazer-se de velhos e enfadonhos hábitos, cultivados especialmente em nome do fanatismo religioso, e a ocupar-se com atividades revigorantes que lhe proporcionassem bem estar e prazer. 46 ―El diario enlaza el hilo de la existencia; no recompone el curso de una vida, no es una anamnesis (una evocación voluntaria del pasado), sino el paciente y meticuloso inventario de una vida día a día. No va desde el presente al pasado, sino que se realiza en el instante de la enunciación más o menos instantánea; incluso, si bien emplea la mediación de la escritura, arraiga en la inmediatez‖. 181 Tendo concluídas nossas considerações sobre as subjetividades femininas no romance La Regenta, de Leopoldo Alas, chega o momento de partirmos para as análises da segunda obra estudada por nós: El Abuelo, de Benito Pérez Galdós. Sigamos para o terceiro capítulo de nossa tese. 182 III. VOZES E PERSPECTIVAS NO ROMANCE EL ABUELO Antes de iniciarmos nossas reflexões sobre a forma como as subjetividades femininas encontram-se representadas no romance galdosiano, nos pareceu interessante justificar a nossa escolha pela obra, especialmente porque, a princípio, trabalharíamos com outro romance de Pérez Galdós: Tristana, publicado em 1892. Nele, também estudaríamos as questões relacionadas à polifonia e ao ponto de vista, uma vez que as figuras femininas são construídas pelas diversas vozes− narrador e personagens− no romance. Juntamente a elas, examinaríamos temas como a educação feminina no século XIX, as leituras realizadas pelas mulheres, o trabalho feminino, a família oitocentista, a relação conjugal e as diversas estratégias femininas usadas no enfrentamento da realidade, no intuito de poder, desta forma, desvendar a complexidade do imaginário feminino das principais personagens da obra. Assim como La Regenta, a narrativa de Tristana é heterodiegética por excelência, segundo a tipologia estabelecida por Genette (1972). Regida por um narrador onisciente, este, em muitas ocasiões, se afastará intencionalmente do papel que lhe é atribuído pelo autor real, a fim de conceder às personagens a palavra, de modo que elas mesmas se apresentem diretamente aos leitores. Os instrumentos seriam basicamente os mesmos utilizados para as análises dos perfis femininos em La Regenta: o discurso indireto, indireto livre, os monólogos interiores, os diálogos e as correspondências, dada a semelhança estrutural existente entre ambos os romances naturalistas. As obras, a metodologia, os objetivos, o corpo teórico, enfim, o projeto da tese estava devidamente definido e pronto para ser posto em prática, se não fosse o expressivo interesse pelo romance El Abuelo. 183 Após a leitura da obra, realizada em março de 2009, a mudança do corpus foi inevitável. Essa se deu não só pela existência de temas em comum, mas principalmente por El Abuelo possuir uma estrutura narrativa completamente diferente da de La Regenta e dos demais romances realistas/ naturalistas publicados na segunda metade do século XIX, o que aprofunda e torna muito mais interessante os nossos estudos sobre a polifonia e os pontos de vista no romance oitocentista. Sendo assim, fomos seduzidos pelo fato de El Abuelo ser, tal como o autor afirma no prólogo da obra, um romance dialogado, que contrai a proporções mínimas as formas descritiva e narrativa, na medida em que as próprias personagens tornam-se as principais enunciadoras do romance composto em cinco jornadas, que mais se assemelha, pela estrutura, a uma peça teatral que propriamente a um romance. Vejamos o que comenta Galdós a propósito da nova estética na arte de novelar: Aunque por su estructura y por la división en jornadas y escenas parece El Abuelo obra teatral, no he vacilado en llamarla novela, sin dar a las denominaciones un valor absoluto, que en esto, como en todo lo que pertenece al reino infinito del arte, lo más prudente es huir de los encasillados, y de las clasificaciones catalogales de géneros y formas. En toda novela en que los personajes hablan, late una obra dramática. El Teatro no es más que la condensación y acopladura de todo aquello que en la Novela moderna constituye acciones y caracteres (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.8). Desde a publicação de Realidad (1889), fica nítido o expressivo apresso do escritor espanhol pelo sistema dialogal, justificado enfaticamente no prólogo de El Abuelo. Nele, a proposta de buscar novas formas de narrar torna-se mais explícita, a ponto de o próprio escritor declarar-se partidário de não estabelecer barreiras rígidas entre os gêneros literários. No entanto, a ideia de aproximar os dois gêneros despertou uma grande polêmica no meio acadêmico espanhol, dado o interesse de 184 muitos escritores pela nova estética galdosiana, dentre os quais destacamos Emilia Pardo Bazán, que, assim como Zola, não via nenhum inconveniente em defender uma aproximação entre ambos os gêneros, e a censura de outros, tais como o próprio Leopoldo Alas, que, a partir de 1891, passa a conceber a união dos respectivos gêneros como algo incompatível, devido à divergência na forma e nos objetivos. Vejamos o que comenta Ermitas Penas Varela (1985) sobre o posicionamento de Clarín: A respeito deste assunto em que a literatura se transforma em polêmica, a atitude de Clarín resulta, a princípio, ambígua. Em 1881 propunha que o drama devia tomar do romance o quanto pudesse; dez anos mais tarde sua opinião muda. Leopoldo Alas, inspirado, segundo Laureano Bonet, pelas ideias de A. W. Schlegel, não acredita definitivamente na aproximação de ambos os gêneros por considerá-los muito diferentes em forma e objetivos (Tradução nossa)47. Leopoldo Alas, imbuído por novos pensamentos, muda de atitude. Após a publicação dos romances Realidad e El Abuelo, o autor de La Regenta passa, então, a defender a ideia de que o melhor ―é dar a cada coisa sua forma própria e usada, deixando para casos muito extraordinários licenças como esta de dividir em jornadas e cenas um romance e por em acotações, se pudesse dizer, a descrição, muito da narração e não pouco dos caracteres‖48. Assim como Clarín, José María de Pereda 47 ―Con respecto a este asunto en que la literatura se convierte en polémica, la actitud de Clarín resulta, en principio, ambigua. En 1881 proponía que el drama debía tomar de la novela cuanto pudiese llevarse a las tablas; diez años más tarde su opinión ha cambiado. Leopoldo Alas, inspirado, según Laureano Bonet, por las ideas de A. W. Schlegel, no cree definitivamente en el acercamiento de ambos géneros por considerarlos muy diferentes en forma y objetivos‖. 48 «Más sobre El Abuelo», en Galdós, p. 306. In: PENAS VARELA, Ermitas. El sistema dialogal galdosiano. Anales galdosianos [Publicaciones periódicas]. Año XX, 1985, número 2. Acesso em maio de 2009. Este texto encontra-se disponível no site: http://www.cervantesvirtual.com/s3/BVMC_OBRAS/025/546/428/2b2/11d/fac/c70/021/85c/e60/64/m imes/02554642-82b2-11df-acc7-002185ce6064_41.html. ―es dar a cada cosa su forma propia y usada, dejando para casos muy extraordinarios licencias como ésta de dividir en jornadas y escenas una novela y poner en acotaciones, se pudiera decir, la descripción, mucho de la narración y no poco de los caracteres‖. 185 também vê restrições na aproximação dos dois gêneros literários, o que o leva a posicionar-se em defesa da estrutura tradicional do romance. Fará inúmeras e severas críticas ao sistema dialogal de El Abuelo, tido por ele como a representação da forma mais rudimentar de narrar. Citamos a perspectiva do autor sobre o romance galdosiano presente na carta escrita em 05 de dezembro de 1897: (…) não concebo facilmente à forma teatral no romance. Enfim é um esqueleto: falta ali a carne do autor, sua personalidade literária, seu estilo, sua arte, o que nos palcos se supre, pessimamente pelo comum, com o ator; o sal e a pimenta, como si disséssemos do ensopado: parece-me, em resumo, esta forma, a mais rudimentar do romance... com perdão dos que pensam de diferente modo49. Para os autores de La Regenta e de Sotileza a técnica de aproximar a narrativa do drama era um procedimento bastante arriscado, uma vez que esta poderia resultar na perda da complexidade do romance, através da simplificação da ação, de forma que os temas secundários ficassem reduzidos a um único tema central; da redução dos focos espaciais; da conversão do tempo a uma estrita sucessão linear, desprovida de relatos retrospectivos e da expressiva redução das personagens. Já Galdós, diferentemente de Alas e de Pereda, viu na união dos gêneros muito mais ganhos que propriamente perdas; viu uma oportunidade de renovação num cenário marcado pela crise do romance. A necessidade de buscar novas formas de narrar leva o escritor espanhol a pensar no estratégico casamento entre os gêneros literários, resgatando do drama características consideradas por ele extremamente relevantes para o romance, tais como a instantaneidade dos diálogos, a agilidade de 49 Ver ORTEGA Y GASSET, Cartas a Galdós, p.187. ―(…) no me avengo fácilmente a la forma teatral en la novela. Al cabo es un esqueleto: falta allí la carne del autor, su personalidad literaria, su estilo, su arte, lo que en las tablas se suple, malamente por lo común, con el actor; la sal y la pimienta, como si dijéramos del guisado: me parece, en suma, esta forma, la más rudimentaria de la novela... con perdón de los que piensan de distinto modo‖. 186 expressão e a ausência de descrição e de digressões extensas; e do romance a grande capacidade de análise, de forma que se pudesse corrigir ―tanto os excessos de intriga e artificiosidade do primeiro como os abusos descritivos da segunda‖ (PENAS VARELA, 1985. Tradução nossa)50. Dessa perspectiva, louvável foi o mérito de Benito Pérez Galdós. O sistema dialogal priorizado por ele rompia com toda a estrutura estética vigente no século XIX− fundamentalmente apoiada na concepção literária de uma modalização de onisciência. Acreditando na produtiva união entre o drama e a narração, tal como sucede em La Celestina, de Fernando de Rojas, que, segundo Galdós, no prólogo de El Abuelo, trata-se da ―más grande y bella de las novelas habladas‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.9), o sistema dialogal passa a ser adotado pelo autor em suas últimas obras, as quais, anos mais tarde, acabam sendo encenadas no teatro espanhol. Galdós acredita que ―la palabra del autor, narrando y describiendo, no tiene, en términos generales tanta eficacia, ni da directamente la impresión de la verdad espiritual‖ (Ibidem, págs.:7-8), o que justifica, por sua vez, a intensa participação das personagens que, através dos inúmeros diálogos, vão se mostrando, ou melhor, se desnudando, para os leitores, de forma que estes tenham a ―liberdade para interpretar, recriar, completar o que no romance não está escrito sem necessidade de que um autor todo poderoso o esteja sugerindo mais ou menos abertamente‖ (PENAS VARELA, 1985. Tradução nossa)51. Por trás desse pensamento, destaca-se também a incontida sede de objetividade do autor, que buscava apresentar os fatos e as personagens com mais realismo, tal como na vida real. Dessa forma, temos o privilégio de vê-las e de conhecê-las profundamente, pois o sistema dialogal nos dá 50 ―tanto los excesos de intriga y efectismo del primero como los abusos descriptivos de la segunda‖. ―libertad para interpretar, recrear, completar lo que en la novela no está escrito sin necesidad de que un autor todopoderoso lo esté sugiriendo más o menos abiertamente‖. 51 187 ―uma sensação de imediatismo, de algo visto e ouvido de forma simultânea, mostrando diretamente a vida interior das personagens‖ (Ibidem. Tradução nossa)52. Vejamos o que diz Benito Pérez Galdós no prólogo de El Abuelo: El sistema dialogal, adoptado ya en Realidad, nos da la forja expedita y concreta de los caracteres. Estos se hacen, se componen, imitan más fácilmente, digámoslo así, a los seres vivos, cuando manifiestan su contextura moral con su propia palabra, y con ella, como en la vida, nos dan el relieve más o menos hondo y firme de sus acciones (PÉREZ GALDÓS, 2001, págs.:7-8). Esse conhecimento, por sua vez, se dá primordialmente pelas vozes delas, o que indiscutivelmente vem acentuar o caráter polifônico do romance galdosiano. No entanto, por ser El Abuelo uma obra dialogada em que as personagens enfaticamente tomam a palavra para si, muitos leitores acabam pressupondo o desaparecimento da figura do narrador neste tipo de estrutura narrativa. A presença do sujeito da enunciação pode até não ser constante, tal como é a do narrador clariniano em La Regenta e na maioria dos romances oitocentistas, mas daí a pensar na inexistência dessa figura seria um grave equívoco, principalmente porque o próprio autor deixa evidente a impossibilidade de desaparecimento dela: Con la virtud misteriosa del diálogo parece que vemos y oímos sin mediación extraña el suceso y sus actores, y nos olvidamos más fácilmente del artista oculto; pero no desaparece nunca, ni acaban de esconderle los bastidores del retablo, por bien construidos que estén (Ibidem, p.8). E para melhor tratar da sutil presença do narrador em El Abuelo, seguiremos para o próximo sub-capítulo, intitulado ―O afastamento do narrador galdosiano‖, em que estudaremos suas raras, porém visíveis marcas no texto literário e os 52 ―una sensación de inmediatez, de algo visto y oído de forma simultánea, mostrando directamente la vida interior de los personajes‖. 188 procedimentos utilizados por ele para não desaparecer por completo, tal como sucede, por exemplo, em muitos dos romances do escritor argentino Manuel Puig, um dos mestres do relato dialogado de seu tempo, em que a figura do narrador simplesmente deixa de existir: Nas obras de Puig não aparece, em nenhum momento, ninguém a quem se possa identificar, não digo a com o autor, mas, simplesmente com a voz... Diria que tomam a palavra por si mesmas as personagens ou, em todo caso, uma voz que não sendo a de uma personagem, é a voz de uma personagem mais. Não há um narrador. Não digo já um narrador onisciente, não digo um narrador clássico. Não existe, simplesmente, um narrador (GIMFERRER, 1991, p.20. Tradução nossa)53. 53 ―En las obras de Puig no aparece, en ningún momento, nadie a quien se pueda identificar, no digo a con el autor, sino, simplemente con la voz... Se diría que toman la palabra por si mismos los personajes o, en todo caso, una voz que no siendo la de un personaje, es la voz de un personaje más. No hay un narrador. No digo ya un narrador omnisciente, no digo un narrador clásico. No existe, simplemente, un narrador‖. 189 3.1. O afastamento do narrador galdosiano Um dos aspectos mais significativos do segundo romance dialogado de Pérez Galdós é, sem dúvida, a importância atribuída às vozes das personagens. Essas, como vimos, são as principais responsáveis pela construção da narrativa de El Abuelo. Entretanto, ainda que essa indiscutível autonomia seja um dos aspectos mais marcantes da obra, não podemos nos esquecer de uma segunda característica, tão relevante quanto à primeira: a presença do narrador. Não falamos aqui de um narrador semelhante ao encontrado nos romances realistas e naturalistas do século XIX, que, em razão do poder que lhe é atribuído pelo autor real, assume praticamente o controle absoluto da narrativa, embora muitas personagens tomem a palavra para si, mas sim de um enunciador que faz questão de se ocultar, aparecendo em situações bem específicas, tais como no início, no meio e/ou no fim de cada cena. Falamos, portanto, de um narrador que, apesar do seu proposital e estratégico distanciamento, jamais desaparecerá da narrativa e que se fará presente na obra por intermédio de um recurso muito empregado no teatro− as didascálias, também conhecidas como acotações. Compreendidas como a voz direta do dramaturgo, as didascálias, no teatro, diferenciam-se visualmente do resto do texto teatral seja por estarem escritas geralmente entre parêntesis, seja por estarem impressas em itálico ou de qualquer outra forma que especifique que se trata de uma voz à margem das falas das personagens. No romance El Abuelo, as didascálias funcionam como uma importante ferramenta para a pronunciação do sujeito da enunciação. São utilizadas estrategicamente pelo narrador com o principal objetivo de orientar os leitores, para 190 que estes tenham um melhor entendimento da obra, e será justamente sobre este procedimento, muito usado pelo narrador galdosiano desde Realidad, que iremos nos deter nos próximos parágrafos de nossa tese. Para Guillermo Schmidhuber de la Mora (2001): Ao começo e fim de cada cena e no meio dos diálogos, aparecem infinidade de textos carentes de dramatismo, que estão escritos geralmente com letra cursiva e rodeados entre parêntesis; são as chamadas acotações, e mais academicamente, didascálias. Com elas o dramaturgo propõe advertências para a melhor decodificação das ações das personagens e expressa precisões para a melhor compreensão do processo de comunicação entre as personagens54. Muito mais que guiar os leitores de El Abuelo, o uso das didascálias reflete uma ambição maior: a manifesta necessidade de romper as fronteiras entre os dois gêneros literários. No prólogo do romance galdosiano, o autor afirma que: ―En toda novela en que los personajes hablan, late una obra dramática. El Teatro no es más que la condensación y acopladura de todo aquello que en la Novela moderna constituye acciones y caracteres‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.8). Assim como os diálogos e os monólogos pertencem por excelência ao gênero teatral, as didascálias, por sua vez, também possuem características suficientes para pertencerem ao discurso narrativo, e uma grande prova disto deve-se ao fato delas serem registradas sempre em terceira pessoa do singular, o que muito as aproxima das descrições narrativas e da própria enunciação do narrador de um romance heterodiegético. 54 ―Al principio y final de cada escena y en medio de los diálogos, aparecen infinidad de textos carentes de dramatismo, que están escritos generalmente con letra cursiva y amurallados entre paréntesis; son las llamadas acotaciones, y más académicamente, didascalias. Con ellas el dramaturgo propone advertencias para la mejor decodificación de las acciones de los personajes y expresa precisiones para la mejor comprensión del proceso de comunicación entre los personajes‖. 191 Para Schmidhuber de la Mora (2001), as acotações pertencem, por natureza, ao discurso narrativo, mesmo sendo um elemento sine qua non do drama, perspectiva que inegavelmente vem ao encontro da tentativa do romancista de renovar o romance moderno, dando-lhe uma maior expressividade a partir da aliança entre os dois gêneros. Em nossas leituras, constatamos que muitas são as categorias de didascálias encontradas no romance dialogado de Pérez Galdós, que, segundo Ermitas Penas Varela (1985), variam desde as acotações ―estritamente teatrais, dentro da tradição dramática, cuja única missão é orientar a posta em cena. De tal maneira que nelas se descreve o cenário ou espaço novelesco, se assinala a situação das personagens nele ou se dão pautas sobre a atitude destes em relação com o que se diz ou sucede‖55, até as mais complexas ―de muito distinto signo, de tal forma que podíamos qualificá-las de narrativas, onde a voz do narrador onisciente dá ao leitor variada informação não presente na trama‖56. Com isso, pretendemos nos dedicar tanto às didascálias em que geralmente a figura do narrador se restringe à descrição das personagens e dos espaços, tais como as que se encontram no início da terceira cena da primeira jornada, em que o sujeito da enunciação descreve a bela paisagem natural do bosque nas mediações de Jerusa: Bosque en las inmediaciones de Jerusa, formado de corpulentos robles, hayas y encinas. Lo atraviesa un tortuoso sendero, donde se ven los surcos trazados por los carros del país. Por el Norte, formidable cantil de roca y conglomerado, en cuyos cimientos baten las olas del mar; al Sur cierra el paisaje la espesura de la vegetación; hacia el Oeste serpentea y se subdivide el sendero, 55 ―estrictamente teatrales, dentro de la tradición dramática, cuya única misión es orientar la puesta en escena. De tal manera que en ellas se describe el escenario o espacio novelesco, se señala la situación de los personajes en él o se dan pautas sobre la actitud de éstos en relación con lo que se dice o sucede‖. 56 ―de muy distinto signo, de tal forma que podríamos calificarlas de narrativas, donde la voz del narrador omnisciente da al lector variada información no presente en la trama‖. 192 atravesando algunas calvas y espesos matorrales (PEREZ GALDÓS, 2001, p.28). E no meio da oitava cena da terceira jornada, em que o narrador descreve a gruta de Santorojo, entrecortando o diálogo entre Nell e dom Rodrigo: Cavidad ancha y profunda en la fragorosa peña. Festonean su boca parietarias viciosas, raíces de árboles cercanos, helechos y plantas mil de variado follaje. El interior se compone de masas cretáceas de variado color, con formas de una arquitectura de pesadilla. Las concreciones de la bóveda son como un sueño de bizarras magnificencias, labradas en cristal, azúcar y estearina (Ibidem, p.126-127). Como também àquelas que buscam enfatizar a interioridade das personagens, evidenciando-nos os aspectos mais íntimos e particulares da subjetividade delas, vide as acotações narrativas que encontramos na oitava cena da terceira jornada, em que o narrador, através delas, explicita o conflito vivenciado pelo Conde de Albrit, que desesperadamente tenta descobrir qual das meninas é a verdadeira neta. Vejamos: EL CONDE.- (Para sí.) ¡Confusión horrible!... «Soy yo», dice la Naturaleza... ¿Y quién eres tú?... (Reflexionando.) ¿Será Nell la mala?... ¿Será Dolly? (Se clava los dedos en el cráneo, y permanece un rato en actitud de meditación o somnolencia. Un trueno retumba, con formidable sucesión de sonidos pavorosos.) (PEREZ GALDÓS, 2001, p.128). Da análise dos diversos tipos de didascálias utilizadas pelo narrador galdosiano, observamos que, embora a proposta de Pérez Galdós tenha sido priorizar a objetividade do relato a partir da utilização do sistema dialogal em El Abuelo, esse narrador que ―<<sabe>> muito mais que o leitor, prejulga e manipula a informação de tal maneira que este se encontrará com aquele que está impondo um determinado tipo de <<leitura>>, já que todas essas personagens serão apresentadas a priori como agradáveis ou desagradáveis, antes que se mostrem diretamente a través de seus ditos 193 e fatos‖ (PENAS VARELA, 1985. Tradução nossa)57. Logo, não é desproposital o fato de as descrições e reflexões realizadas pelo narrador da obra− através das didascálias− coincidirem notavelmente com as que as personagens, através dos diálogos e dos monólogos, fazem de si e dos outros. Essa ―coincidência‖ acabou afetando o comprometimento da objetividade no romance, assunto posteriormente reconhecido pelo próprio autor de El Abuelo, ao afirmar que: ―esta forma no puede emplearse sistemáticamente, en la novela, y sólo de tarde en tarde me permito usarla‖58. Tendo em vista essas considerações sobre a figura do narrador, ou melhor, sobre sua presença a partir do emprego das didascálias, tratemos de elucidá-las com alguns exemplos. Das diversas acotações analisadas por nós, a que trata da figura do Conde de Albrit, descrita pela primeira vez na quarta cena da primeira jornada, é indubitavelmente uma das mais significativas de todas elas. Nela, chamamos a atenção para o fato de o narrador destacar a modesta vestimenta do Conde, o que está intrinsecamente relacionada à atual situação financeira vivida por dom Rodrigo, após a perda do seu inestimável patrimônio. Vejamos a didascália em que o narrador, a partir dos enunciados ―desdichada ruína y acabamiento de una personalidad ilustre‖, nos indica a condição de miséria da personagem: NELL y DOLLY, DON RODRIGO DE ARISTA-POTESTAD, CONDE DE ALBRIT, MARQUÉS DE LOS BAZTANES, SEÑOR DE JERUSA Y DE POLAN, GRANDE DE ESPAÑA, etc. Es un hermoso y noble anciano de luenga barba blanca y corpulenta figura, ligeramente encorvado. Viste buena ropa de 57 ―<<sabe>> mucho más que el lector, prejuzga y manipula la información de tal manera que éste se encontrará con que se le está imponiendo un determinado tipo de <<lectura>>, ya que todos esos personajes serán presentados a priori como agradables o desagradables, antes de que se muestren directamente a través de sus dichos y hechos‖. 58 Carta a Pereda, fechada en Madrid a 20 de diciembre de 1898, en Carmen Bravo Villasante, «28 cartas de Galdós a Pereda», Cuadernos Hispanoamericanos, núms. 250-252 (1970-1971), p. 50. 194 viaje, muy usada; calza, gruesos zapatones y se apoya en garrote nudoso. Revela en su empaque la desdichada ruina y acabamiento de una personalidad ilustre (Ibidem, p.33). A figura do Conde é indiscutivelmente uma das mais admiráveis de El Abuelo, especialmente se considerarmos sua acentuada personalidade, muito semelhante ao caráter de um nobre cavalheiro. Apesar de encontrar-se na mais absorvente condição de miséria, dom Rodrigo conservava em sua alma o brio de uma época marcada pela ascensão e pela prosperidade da aristocracia espanhola, o que lhe proporcionou uma série de benefícios, dentre eles os significativos títulos de Conde de Albrit, Marquês dos Baztanes, senhor de Jerusa e de Polán, e grande de Espanha, o mais imponente. Assim como El Abuelo, muitas foram as narrativas realistas/ naturalistas que retrataram o declínio da aristocracia no século XIX. Em Tristana, outra obra de Benito Pérez Galdós, também se produzem movimentos de convulsões sociais, acarretados primordialmente pelo desmoronamento da antiga nobreza e da sua respectiva organização hierárquica. A decadência da aristocracia espanhola no romance Tristana pode ser vista de diferentes formas, a começar pela descrição física do cavalheiro dom Lope Garrido: o ―pobre e caduco galã‖, empreendida pelo narrador no capítulo VI da obra: O desalento, a tristeza de sua ruína, deviam de influenciar não pouco na queda do necessitado cavalheiro, afundado as rugas de suas têmporas mais que os anos, e mais que a atividade intensa que desde os vinte se trazia. Seu cabelo, que aos quarenta começou a clarear (...). A dentadura se conservava bem na parte mais visível; mas seus até então admiráveis dentes começaram a insubordinar-se, negando-se a mastigar bem, ou rompiam-se em pedaços, como se uns e outros se mordessem. O rosto de soldado de Flandes ia perdendo suas linhas severas, e o corpo não podia conservar sua esbelteza de outrora sem o auxílio de uma férrea vontade. Dentro de casa a vontade se rendia, 195 reservando seus esforços para a rua, passeios e cassino (PÉREZ GALDÓS, 2004, p.68. Tradução nossa)59. No respectivo fragmento, os leitores de Tristana se deparam com a representação de uma figura degradada, não só pelo acúmulo dos anos, mas principalmente pela atual condição de miséria que acelera o processo de envelhecimento da personagem que, neste aspecto, muito se aproxima da figura do cavalheiro pobre da picaresca, cuja vida é marcada por inúmeras adversidades, infortúnios. A degradação física da aparência de dom Lope acarreta algo muito mais grave: a perda de valores morais. Em Tristana, além da decadência financeira do aristocrata, há também a decadência moral, uma vez que dom Lope transforma a jovem Tristana em sua mais preciosa escrava, em outras palavras, em sua mais nova e linda aquisição. E se a descrição física e psicológica de Lope Garrido por si só já declarava a indiscutível ruína da personagem, tão significativa fora a apresentação do espaço privado− a residência− na narrativa galdosiana. Muito mais que situar espacialmente o leitor, o espaço, interagindo com a descrição, recurso essencial à narrativa oitocentista, também proporciona uma nítida ideia da condição sócio-econômica das personagens, o que transforma o espaço em ―arma eficaz para o controle e organização da realidade‖ (ZUBIAURRE, 2000, p.101. Tradução nossa)60. E, ao empreender uma minuciosa descrição da casa de 59 ―El desaliento, la tristeza de su ruina, debían de influir no poco en el bajón del menesteroso caballero, ahondando las arrugas de sus sienes más que los años, y más que el ajetreo que desde los veinte se traía. Su cabello, que a los cuarenta empezó a blanquear (…). La dentadura se le conservaba bien en la parte más visible; pero sus hasta entonces admirables muelas empezaban a insubordinarse, negándose a masticar bien, o rompiéndosele en pedazos, cual si unas a otras se mordieran. El rostro de soldado de Flandes iba perdiendo sus líneas severas, y el cuerpo no podía conservar su esbeltez de antaño sin el auxilio de una férrea voluntad. Dentro de casa la voluntad se rendía, reservando sus esfuerzos para la calle, paseos y casino‖. 60 ―arma eficaz para el control y organización de la realidad‖. 196 dom Lope, no capítulo VI de Tristana, o narrador retrata a crise vivenciada por ele, que tem de desfazer-se dos seus bens para poder sobreviver. Citamos: Porque a casa, na qual brilhavam restos de instalações que foram luxuosas, ia ficando cada vez mais feia e triste que se possa imaginar: tudo anunciava penúria e decadência: nada do quebrado ou deteriorado se compunha ou se reparava. Na salinha desconcertada e glacial apenas ficava, entre trastes muito feios, um móvel de madeira estragado pelas mudanças, no qual tinha dom Lope seu arquivo elegante. Nas paredes se viam os pregos de onde penderam as panóplias. No gabinete se observava amontoamento de coisas que haviam de ter espaço em local maior, e na cozinha não havia mais móveis que a mesa, e umas cadeiras coxas com o couro desgastado e sujo. A cama de D. Lope, de madeira com colunas e pavilhão garboso, impunha por sua corpulência monumental; mas as cortinas de damasco azul não aguentavam com tantos rasgões. O quarto de Tristana, ao lado de seu dono, era o menos marcado pelo selo do desastre, graças ao delicioso esmero com que ela defendia seu enxoval da decomposição e da miséria. (Ibidem, págs.6768. Tradução nossa)61. Para Georg Lukács (1968), o declínio da aristocracia europeia foi um dos grandes temas do século XIX, especialmente em países marcados por um abrupto processo de transição entre ―um capitalismo industrial nascente e a cultura tradicional e o modo de produção‖62, tal como a Espanha de Clarín e Galdós. Tanto em El Abuelo como em Tristana, o romancista retrata a decadência da ―gentile society‖, porém, ao compará-los, notamos uma diferença particular entre ambos: as 61 ―Porque la casa, en la cual lucían restos de instalaciones que fueron lujosas, se iba poniendo de lo más feo y triste que es posible imaginar: todo anunciaba penuria y decaimiento: nada de lo roto o deteriorado se componía ni se reparaba. En la salita desconcertada y glacial solo quedaba, entre trastos feísimos, un bargueño estropeado por las mudanzas, en el cual tenía don Lope su archivo elegante. En las paredes veíanse los clavos de donde pendieron las panoplias. En el gabinete observábase hacinamiento de cosas que debieron de tener hueco en local más grande, y en el comedor no había más mueble que la mesa, y unas sillas cojas con el cuero desgarrado y sucio. La cama de D. Lope, de madera con columnas y pabellón airoso, imponía por su corpulencia monumental; pero las cortinas de damasco azul no podían ya con más desgarrones. El cuarto de Tristana, inmediato al de su dueño, era lo menos marcado por el sello del desastre, gracias al exquisito esmero con que ella defendía su ajuar de la descomposición y de la miseria‖. 62 Ver ―Seeing history: reflections on Galdós‘ El Abuelo, de John Beverley‖. Anales galdosianos [Publicaciones periódicas]. Año X, 1975. Acesso em fev. 2009. Este texto encontra-se disponível no site: www.cervantesvirtual.com. ―a nascent industrial capitalism and traditional culture and mode of production‖. 197 personagens. A figura imponente do Conde de Albrit destoa-se expressivamente da burlesca figura de dom Lope, que mais bem pode ser associada à figura de um bon vivant, já que ―passava a vida em ociosas e prazerosas tertúlias de cassino, consagrando também metodicamente alguns momentos a visitas de amigos, a conversas em café e a outros centros, ou melhor lugares, de espairecimento, que não há o porquê nomear agora‖ (PÉREZ GALDÓS, 2004, p.39. Tradução nossa)63. Esse estilo de vida, boêmio, ocioso e improdutivo por excelência, entra em confronto com o acelerado ritmo capitalista, que priorizava, cada vez mais, as crescentes demandas de um mercado de consumo em plena ascensão. E esse modelo de vida eleito por dom Lope, cada vez mais rejeitado pelo capitalismo no século XIX, também pode ser visto em La Regenta por meio da figura de Álvaro Mesía, mais conhecido como <<el demonio de la seducción>> (ALAS, 1998, p.301). A personagem nada mais é que a representação do modelo perfeito da vida social vetustense durante o período da Restauração na Espanha oitocentista. Completamente volúvel, ambicioso e materialista, Mesía é um sedutor que atua em uma sociedade burguesa e produtiva de forma inteiramente improdutiva. É uma figura voltada para o consumismo e não para a produção, para o trabalho. Álvaro, com toda habilidade e maestria nas artes da sedução, carece de virtudes e de originalidade própria, sendo incapaz de amar de verdade. Para Mesía, o amor não passa de uma prática profissional, visão que muito diverge da clássica concepção de amor adotada pelo dom Juan romântico: ―Os realistas transformaram radicalmente o mito de Dom Juan, privando-o da aura de transcendência para instalá- 63 ―se pasaba la vida en ociosas y placenteras tertulias de casino, consagrando también metódicamente algunos ratos a visitas de amigos, a trincas de café y a otros centros, o más bien rincones, de esparcimiento, que no hay para qué nombrar ahora‖. 198 lo em uma atmosfera anti-heróica e burguesa‖ (OLEZA, 2003a. Tradução nossa)64, e esta transformação encontra-se evidente tanto em La Regenta como em Tristana, o que corrobora a desconstrução do donjuanismo tradicional, verdadeiramente comprometido com o romantismo. Por não exercer nenhuma ocupação profissional, dom Lope apartava-se desse novo estilo de vida burguesa, o que lhe gerou uma série de dívidas. Além da ausência de um ofício que lhe propiciasse rendimentos, o cavalheiro em decadência contava com um agravante mais sério: a vaidade. Vejamos: Sempre foi dom Lope muito amigo de seus amigos, e homem que se descaroçava para auxiliar as pessoas queridas que se vissem em algum compromisso grave. Serviçal até o heroísmo, não punha limites aos seus generosos arranques. Sua generosidade chegava, neste aspecto, até a vaidade; e como toda vaidade se paga, como o luxo dos bons sentimentos é o mais dispendioso que se conhece, Garrido sofreu consideráveis quebrantos em sua fortuna. Seu bordão familiar de dar a camisa por um amigo não era uma simples afetação retórica. Se não a camisa, várias vezes deu a metade da capa como San Martín; e ultimamente, a peça de roupa mais útil, como mais próxima à carne, havia chegado a correr perigo (PÉREZ GALDÓS, 2004, págs.:45-46. Tradução nossa)65. A vaidade excessiva de dom Lope, associada ao espírito improdutivo que o governava, resultou na ruína de seu patrimônio. A personagem era solidária e não media esforços para ajudar ao próximo, especialmente quando se tratavam de amigos de grande estima, tal como o pai de Tristana, dom Antonio Reluz, amigo de infância, 64 ―los realistas transformaron radicalmente el mito de Don Juan, privándole del aura de trascendencia para resituarlo en una atmósfera anti heróica y burguesa‖. 65 ―Siempre fue don Lope muy amigo de sus amigos, y hombre que se despepitaba por auxiliar a las personas queridas que se veían en algún compromiso grave. Servicial hasta el heroísmo, no ponía límites a sus generosos arranques. Su caballería llegaba en esto hasta la vanidad; y como toda vanidad se paga, como el lujo de los buenos sentimientos es el más dispendioso que se conoce, Garrido sufrió considerables quebrantos en su fortuna. Su muletilla familiar de dar la camisa por un amigo no era una simple afectación retórica. Si no la camisa, varias veces dio la mitad de la capa como San Martín; y últimamente, la prenda de ropa más útil, como más próxima a la carne, había llegado a correr peligro‖. 199 a quem dom Lope queria infinitamente. Antonio encontrava-se na mais legítima decadência financeira, e, para ajudá-lo, Lope Garrido desfez-se de inúmeras propriedades e bens em nome da verdadeira amizade entre eles. A solidariedade não é característica exclusiva do galã caduco. Em El Abuelo também podemos observá-la na imponente figura do Conde de Albrit. Por inúmeras vezes, dom Rodrigo não hesita em ajudar aqueles que necessitam, e o faz de coração, sem pretensões, pois em sua alma reside uma bondade inigualável, própria de um nobre cavalheiro. Seu espírito é virtuoso e digno por excelência, motivo que o afasta de toda a sociedade hipócrita apresentada no romance. Muitos são os episódios de El Abuelo que ilustram a generosidade de dom Rodrigo, e um deles encontra-se presente na primeira jornada, na cena IX, representado pelo diálogo entre o austero Conde, Venancio e o padre de Jerusa, dom Carmelo, em que o religioso afirma estar muito grato pela impagável ajuda ofertada pelo poderoso de ―león de Albrit‖. Vejamos: EL CONDE- (Muy cariñoso.) Bien, Carmelo; bien, Pastor Curiambro. Siéntate a mi lado. ¡Cómo corren, ¡ay!, cómo se escabullen los pícaros años! Tú... a ver si acierto... andarás en los cincuenta. EL CURA- Andaba en ellos... dos años ha. VENANCIO- Como yo. Somos del mismo tiempo. EL CONDE- No podía ser menos. Tenías veintiséis cuando... EL CURA- Cuando murió mi padre. A la generosidad del señor Conde debí el poder terminar mi carrera de Teología y Derecho. EL CONDE- (Con natural delicadeza.) Pues, mira tú, de eso no me acordaba. EL CURA- ¡Ah, yo sí! (PÉREZ GALDÓS, 2004, págs.:48-49). Outra personagem a beneficiar-se com a generosidade de Albrit foi o jovem médico, dom Salvador Ângulo. Por ser filho de um antigo e fiel servidor do Conde, Bonifacio Ângulo, o jovem fora apadrinhado pelo poderoso dom Rodrigo e consegue 200 concluir seus estudos na tradicional faculdade de medicina de Valladolid, sem se preocupar com as despesas que o curso requeria. Citamos: EL CURA- Es hijo de Bonifacio Angulo, aquél que llamaban aquí por mal nombre Cachorro, guarda de los montes de Laín. EL CONDE- ¡Oh, sí!... Cachorro, hombre sencillo y un tanto rudo... servidor fiel... Le recuerdo perfectamente. (Le da otra vez la mano, que EL MÉDICO le besa.) EL CURA- Y no habrá olvidado el Sr. D. Rodrigo que a este chico le costeó la carrera en Valladolid. EL MÉDICO- Por lo cual, debo al señor Conde lo poco que soy y lo poco que valgo. EL CONDE- De eso no me acordaba... mi palabra que no me acordaba. EL CURA- Pues ha de saber usted... no es porque esté delante... que este chico es una notabilidad... pero una notabilidad, en la ciencia médica. (Ibidem, págs.:53-54). Outra expressiva prova da grandiosidade de dom Rodrigo é apresentada na cena XII da quarta jornada. Nela, o carismático mestre dom Pío Coronado, o professor de Nell e Dolly, confessa ao Conde de Albrit o desejo de suicidar-se, em razão das constantes seções de maus tratos lideradas pelas diabólicas filhas bastardas. Vejamos o que diz Coronado sobre as perversas mulheres que acabou acolhendo como filhas: D. PÍO- Déjeme que siga contándole, para que acabe de despreciarme. Lo que sufro con esas culebronas a quienes llamo hijas no hay palabras para decirlo. Ellas me pegan, ellas me insultan, ellas me matan de hambre; ellas gozan con mis dolores, con mi vergüenza... ¡Qué malas, qué malas son! Cada una es un demonio, y juntas el Infierno. Y que no me vale huir de mi casa y abandonarlas, porque salen desaforadas a buscarme, y me cogen, y me llevan por fuerza, y me besuquean y hacen mil carantoñas. Tengo el corazón tan blando, que cuando veo llorar a alguien soy un río de lágrimas (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.187). A vontade de morrer se contrapõe à falta de coragem que imbuía a natureza amável da personagem, cujos defeitos, segundo o narrador, eram a frouxidão de 201 caráter e a tolerância excessiva com a infância escolar. Por ser detentor de uma ―bondad que raya en lo inverosímil‖ (Ibidem, p.185), dom Pío não conseguia abandonar as malvadas filhas, muito menos impor sua autoridade como chefe da família, e esta fraqueza o impedia de reagir aos constantes ataques delas e aos frequentes deboches dos próprios habitantes de Jerusa, que muito o ridicularizavam. E, diante da desesperada confissão de dom Pío, o vigoroso Albrit decide ajudá-lo, oferecendo-se para empurrá-lo no precipício, o que solucionaria o angustiante problema do amigo, que não tinha coragem de fazê-lo. A cena em que Albrit se compromete a matar o bom amigo seria grave se não fosse a presença de um recurso estilístico muito presente na narrativa galdosiana: a ironia que, por sua vez, atribui ao episódio uma nova conotação, a cômica. Não há como não saborear a desconstrução da gravidade do argumento. Dessa forma, se a intenção fora provocar o riso dos leitores de El Abuelo, Galdós indiscutivelmente o consegue sem muito esforço. Vejamos um fragmento do diálogo entre o Conde e o mestre: EL CONDE- (Andando los dos del brazo.) Pues en este momento, mi buen Coronado, se me ocurre una idea que puede ser tu salvación. Tú te librarás de todo mal a que tu bondad te ha traído, y yo tendré el gusto de producir en ti el único bien que has disfrutado en tu vida. D. PÍO- (Algo inquieto.) ¿Qué idea es esa, Sr. D. Rodrigo? EL CONDE- Pues muy sencillo. Tú no tienes valor para lanzarte de este mundo al otro. El valor que a ti te falta, a mí me sobra. Te agarro, te arrojo por el cantil, y al llegar abajo ya eres cadáver y se han acabado tus sufrimientos. (Pausa.) D. PÍO- (Que se rasca la cabeza, metiendo la mano por debajo del pañuelo.) Es una idea excelente. Por mi parte, no me opongo... Al contrario... Lo único que temo es que la muerte no sea muy rápida... EL CONDE- ¿Pero qué estás diciendo? Morirás en menos de cinco segundos. No, no encontrarás muerte mejor, ya emplees arma, veneno, o el ácido carbónico. Muerte instantánea, súbita 202 entrada en la felicidad, en el Paraíso, de que nunca debiste salir (...) EL CONDE- (…) Remachas tu bondad con el tremendo deshonor de amarlas. Para poner fin a tanta ignominia es preciso... (Le agarra fuertemente por la cintura.) D. PÍO- (Riendo, para disimular su temor.) Otro día, señor Conde, otro día... Esta noche me encuentro algo destemplado (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.188-189). Em El Abuelo, o tema da decadência da aristocracia espanhola também pode ser apreciado pela precária condição financeira da Marquesa, definida em Dramatis personae apenas como a ―viuda campesina pobre‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.11). Vejamos um fragmento da didascália que introduz a nona cena da terceira jornada: Casa pobre de campo, de un solo piso, de una sola puerta, con dos ventanuchos tuertos. Sale humo en bocanadas por entre las tejas musgosas, que en sus junturas y en las jorobas del caballete ostentan un jardín botánico en miniatura, colección lindísima de criptógamas y plantas parásitas. Junto a la casa, un huerto mal cercado de pedruscos, con un albérchigo desgarbado, un madroño copudo, varios girasoles con sus caras amarillas, atónitos ante la lumbre del sol, y unas cuantas coles agujereadas por los gusanos. La fauna consiste en un cerdo libre, que hociquea en el charco formado por la lluvia; dos patos, gallinas, y todos los caracoles y babosas que se quieran poner. Las moscas, huyendo de la lluvia, han querido refugiarse en el interior de la casa, y como el humo las expulsa, voltejean en la puerta sin saber si entrar o salir… (Ibidem, p.129-130). A descrição da residência da personagem é extremamente significativa e reveladora: a situação é de ruína. Ao contrário das luxuosas propriedades da Marquesa de Vegallana, figura que representava a rica aristocracia vetustense em La Regenta, a Marquesa retratada em El Abuelo vive com seus filhos em uma casa simples e modesta: ―casa pobre de campo‖, sem qualquer espécie de requinte e de sofisticação, o que indubitavelmente evidencia a crise vivenciada pela classe aristocrática no final do século XIX com a abrupta ascensão da burguesia no poder. 203 Voltando a tratar das didascálias, cabe também ressaltar aquelas que se encontram marcadas pelo visível deboche do narrador galdosiano. Em El Abuelo, o sujeito da enunciação vai, em determinadas ocasiões, se pronunciar de forma explícita no relato, no intuito de caracterizar ironicamente os aspectos mais risíveis e grotescos das personagens. Inúmeras delas foram satirizadas no romance galdosiano, vide a figura de dom Carmelo, o padre gorducho e glutão, apresentado aos leitores na nona cena da primeira jornada. Através da caricaturesca descrição do clérigo, podemos melhor apreciar o riso incontido do narrador. Vejamos, então: EL CONDE, VENANCIO y el CURA, hombrachón de buen año; de aventajadas dimensiones, enormemente barrigudo, sin carecer por eso de cierta agilidad y soltura de miembros. Su cara es arrebolada, su boca risueña, su nariz como pico de garbanzo, sus ojos pillines. Usa gafas de un azul muy claro, que se le corren sobre el caballete. Viene a palo seco, es decir, sin balandrán, por ser buen tiempo. Es limpio, y la sarga de su sotana, pulcra y reluciente, ciñe y modela sin arrugas la redondez del abdomen, bien atacados todos los botoncitos que corren desde el cuello hasta la panza. Un gorro negro alto, con caída de fleco, y paraguas de reglamento, que así le sirve para el sol como para la lluvia. Entra en la casa y en la habitación presuroso metiendo bulla, y se dirige al CONDE con los brazos abiertos (Ibidem, p.47-48). Além do discurso valorativo, caracterizado pela presença de qualificativos, tal como em ―aventajadas dimensiones‖, vale a pena também chamar a atenção para o uso do discurso figurado, que tem como objetivo imprimir no enunciado um grau mais amplo de expressividade, em razão do desvirtuamento do signo original. Daí, justificamos o uso da comparação, em: ―su nariz como pico de garbanzo‖, e da metáfora, em: ―boca risueña‖, exemplos que demonstram as marcas da subjetividade do narrador no romance dialogado, em outras palavras, os sinais da sua afetividade. 204 A ironia do narrador de El Abuelo também pode ser apreciada na descrição do professor de Dolly e Nell, Pío Coronado, apresentado na extensa didascália que abre a primeira cena da terceira jornada. Citamos: NELL, DOLLY, D. PÍO CORONADO, sentados los tres alrededor de una mesa estudio, donde se ven papeles, tintero, libros de texto. Es el maestro de las niñas de ALBRIT un anciano de estatura menguada, muy tieso de busto y cuello, y algo dobladito de cintura, las piernas muy cortas. La expresión bonachona de su rostro no lograron borrarla los años con todo su poder, ni los pesares domésticos con toda su gravedad. Guiña los ojuelos, y al mirar de cerca sin anteojos, los entorna, tomando un cariz de agudeza socarrona, puramente superficial, pues hombre más candoroso, puro y sin hiel no ha nacido de madre. Un rastrojo de bigote de varios colores, recortado como un cepillo, cubre su labio superior. Viste con pobreza limpia anticuadas ropas, recompuestas y vueltas del revés, atento siempre al decoro de la presencia en público. Maestro de escuela jubilado, desempeñó con eficacia su ministerio durante treinta años, distinguiéndose además como profesor privado de materias de la primera y segunda enseñanza. Su defecto era la flojedad del carácter, y la tolerancia excesiva con la niñez escolar. Sabía el hombre todo lo que saber necesita un maestro, y algo más; pero con la edad y las inauditas adversidades que le agobiaban fue perdiendo los papeles, y hasta la afición. Su cabeza llegó a pertenecer al reino de los pájaros; su memoria era una casa ruinosa y desalojada, en la cual ninguna idea podía encontrar aposento; todo lo que perdía en ciencia lo ganaba en debilidad y relajación del carácter. En esta situación le designó D. CARMELO para maestro de las niñas de ALBRIT, teniendo en cuenta tres razones: que si no sabía mucho, no había en Jerusa quien le aventajara; que era honrado, honesto, absolutamente incapaz de enseñar a sus discípulas cosa contraria a la moral, y, por último, que al aceptarle para aquel cargo realizaba LA CONDESA un acto caritativo. Su bondad, la excesiva blandura de corazón, eran ya en CORONADO un defecto, casi un vicio, por lo cual, lamentándose de sus acerbas desdichas, solía decir, elevando al cielo los ojos y las palmas de las manos; «¡Señor, qué malo es ser bueno!» (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.93-94). Aqui, nos deparamos com uma figura singular, caracterizada especialmente pela nobreza de seus sentimentos, o que, neste aspecto, muito o aproxima do ilustre dom Rodrigo, o Conde de Albrit. De todas as admiráveis virtudes de Pío Coronado, a 205 principal delas era a bondade, uma bondade excessiva jamais vista até então, tal como nos revela o próprio narrador do romance: ―pues hombre más candoroso, puro y sin hiel no ha nacido de madre‖. Não obstante, essa generosidade acentuada apresentada como algo excepcional acaba entrando em conflito com a mediocridade dos inescrupulosos habitantes de Jerusa, que perversamente fazem questão de transformá-lo no principal objeto de escárnio da cidade. Assim como as personagens de El Abuelo, o narrador também irá satirizar a ―flojedad del carácter y la tolerancia excesiva con la niñez escolar‖ e a falta de memória do mestre, ao afirmar que ―su cabeza llegó a pertenecer al reino de los pájaros; su memoria era una casa ruinosa y desalojada, en la cual ninguna idea podía encontrar aposento‖, o que indiscutivelmente o torna uma das figuras mais carismáticas e desajeitadas de toda a obra. A zombaria do narrador de El Abuelo também pode ser vista na descrição de Sénen, presente no início da segunda cena da primeira jornada. Observemos a didascália dedicada à descrição física e ao caráter ordinário da personagem: (…) SENÉN, de veintiocho años, más bien más que menos, vestido a la moda, con afectada elegancia de plebeyo que ha querido cambiar rápidamente y sin estudio la grosería por las buenas formas. Su estatura es corta; sus facciones aniñadas, bonitas en detalle, pero formando un conjunto ferozmente antipático. Pelito rizado; chapas carminosas en las mejillas; bigote rubio retorcido en sortijilla. Lucha por su existencia en el terreno de la intriga, olfateando las ocasiones ventajosas y utilizando la protección y gratitud de las personas a quienes ha prestado servicios de ínfima calidad, sobre los cuales guarda cuidadoso secreto. Ya no se acuerda de cuando andaba descalzo y harapiento por las mal empedradas calles de Jerusa. Nacido de la Coscoja, viuda pobre que adormecía sus penas emborrachándose, Senén vivió de la caridad pública hasta que fue recogido por los Condes de Laín, que lo pusieron en la escuela y después le tomaron a su servicio. Fue pinche de cocina, escribiente, ayuda de cámara, hasta que su agudeza, reforzada por ardiente ambición de dinero, le emancipó de la servidumbre. En diversos trabajos y granjerías, hubo de probar 206 fortuna: viajante de comercio, corredor de vinos, administrador de periódicos, y por fin la Condesa le abrió los espacios de la Administración pública con un destinillo de Hacienda, al que siguieron ascensos, comisiones y otras gangas. Compensa la cortedad de su inteligencia con su constancia y sagacidad en la adulación, su olfato de las oportunidades, y su arte para el pordioseo de recomendaciones. Su egoísmo toma más bien formas solapadas que brutales, y para disimularlo, el instinto, más que la voluntad, le sugiere la economía, y todo el ahorro compatible con el lucimiento y afeite de su persona. Guarda su dinero, y se apropia todo lo que sin peligro puede apropiarse. En lo que no es ostensible, o sea en el comer, gasta lo indispensable, reservando casi todo su peculio para el coram vobis. Su vicio es la buena ropa, y su pasión las alhajas… (Ibidem, p.19-20). Em El Abuelo, muitas são as acotações em que a descrição costuma vir acompanhada da narração de certos fatos relacionados às personagens retratadas, dando-nos informações essenciais sobre a classe social, os antecedentes familiares, a situação pessoal e sobre o comportamento das figuras em cena, e será justamente a partir de didascálias como estas que temos a oportunidade de comprovar os sinais que caracterizam a afetividade do narrador no enunciado. Enquanto que na acotação anterior percebemos um visível apreço por parte do burlesco narrador de El Abuelo pela figura do querido professor, nessa percebemos um notável repudio à personagem citada, satirizada com altas e corrosivas doses de humor. Através dos enunciados ―afectada elegancia de plebeyo‖, ―conjunto ferozmente antipático‖ e ―lucha por su existencia en el terreno de la intriga, olfateando las ocasiones ventajosas‖, deparamo-nos com a apresentação de uma figura inegavelmente maquiavélica e oportunista, desprovida de caráter e de valores morais. Tal como a personagem Lazarillo de Tormes, Senén nasce de uma família bastante pobre, sem recursos para educá-lo. É prontamente acolhido pelos Albrit, que lhe garantem dignidade a partir dos estudos e do trabalho. No entanto, ele não se contenta em viver de ―caridad pública‖, nem tampouco de ofícios como ajudante de 207 cozinha, escrevente e ajudante de quarto na casa dos Condes, tal como nos comenta o narrador, e foi justamente sua ambição desmedida pelo dinheiro que o motivou a emancipá-lo, em outras palavras, a sair dessa vida de servidão. Impulsionado, portanto, pela ―ardiente ambición‖, o inescrupuloso Senén, amante do luxo e da riqueza, passa a semear a discórdia e, através de chantagens, passa também a manipular as pessoas, de forma a tirar-lhes grandes proveitos, em especial financeiros, a fim de conquistar a tão almejada ascensão social, antes impossível em razão de sua origem humilde. A avareza excessiva não será uma característica exclusiva de Senén. Ela também será retratada pelo enunciador na didascália que apresenta as personagens Venancio e Gregoria, presente na primeira cena da primeira jornada de El Abuelo. Vejamos a acotação abaixo: GREGORIA, junto a la mesa de piedra, desgranando judías en la falda; VENANCIO, que viene por la huerta y se entretiene con un criado, observando los frutales. Son marido y mujer, de más de cincuenta años, ambos regordetes y de talla corta, de cariz saludable, coloración sanguínea y mirar inexpresivo. Pertenecen a la clase ordinaria, que ha sabido ganar con paciencia, sordidez y astucia una holgada posición, y descansa en la indiferencia pasional y en la santa ignorancia de los grandes problemas de la vida. El rostro de ella es como una manzana, y el de él como pera de las de piel empañada y pecosa. No tienen hijos, y cansados de desearlos principian a alegrarse de que no hayan querido nacer. Se aman por rutina, y apenas se dan cuenta de su felicidad, que es un bienestar amasado en la sosería metódica y sin accidentes. Gruñen a veces, y rezongan por contrariedades menudas que alteran la normalidad del reloj de sus plácidas existencias. En edad madura viven donde han nacido, y son propietarios donde fueron colonos. Su única ambición es vivir, seguir viviendo, sin que ninguna piedrecilla estorbe el manso correr de la onda vital. El hoy es para ellos la serie de actos que tiene por objeto producir un mañana enteramente igual al de ayer. Visten el traje corriente y general, así en pueblos como en ciudades, muy apañaditos, limpios, modestos. GREGORIA es hacendosa, guisandera excelente, tocada del fanatismo económico, lo mismo que su marido. Este entiende de labranza horticultura, de 208 caza y pesca, de algunas industrias agrícolas y no es lerdo en jurisprudencia hipotecaria, ni en todo lo tocante a propiedad, arrendamientos, servidumbres, etc. Para entrambos la Naturaleza es una contratista puntual, y una despensera honrada, como ellos, prosaica, avarienta, guardadora. En la mesa una cesta de hortalizas (Ibidem, p.13-14). Nela, vemos uma apresentação detalhada do mesquinho casal que, em decorrência da crise financeira vivida por Albrit, tornam-se os novos proprietários de La Pardina, residência da qual foram antigos empregados. Vale ressaltar que a referida apropriação do imóvel por Venancio e Gregoria vem intensificar o declínio da aristocracia espanhola no final do século XIX, tema, como vimos, muito presente nos romances de Pérez Galdós. Assim, não é gratuito o comentário feito pelo narrador, ao afirmar que a ―classe ordinária‖− referindo-se, aqui, aos trabalhadores− soube ganhar com paciência, sordidez e esperteza uma folgada posição. Na caracterização física e psicológica das personagens, constatamos que o narrador de El Abuelo recorre, por inúmeras vezes, ao discurso figurado que, segundo Carlos Reis (1984, p.89), tem como consequência primeira o ―desvirtuamento da transparência do signo e a rejeição de um grau zero da linguagem‖. Sendo assim, chamamos atenção para a ironia nos enunciados: ―santa ignorancia‖ e ―fanatismo económico‖, em que fica clara a intenção depreciativa por parte do enunciador; para a metáfora, que ―registra um alto grau de representatividade, deixando supor um narrador consideravelmente atento às múltiplas facetas da realidade diegética e às conexões que entre elas se estabelecem (Ibidem, p.90-91), em ―su felicidad, que es un bienestar amasado en la sosería metódica y sin accidentes‖; e, por fim, para a comparação, figura de linguagem em que melhor se patenteia a intenção do narrador de ―fazer preponderar junto do narratário uma determinada imagem do facto ou entidade visada‖ (REIS, 1884, p.90), 209 tal como podemos apreciar em: ―Naturaleza es una contratista puntual, y una despensera honrada, como ellos, prosaica, avarienta, guardadora‖ e também em: ―El rostro de ella es como una manzana, y el de él como pera de las de piel empañada y pecosa‖. Não poderíamos também deixar de comentar a didascália dedicada à apresentação das netas de dom Rodrigo, Leonora e Dorotea, mais conhecidas como Nell e Dolly. Nela, o narrador transparece toda a sua empatia pelas personagens, deixando explícitas no enunciado as marcas da sua afetividade. Vejamos a acotação para, em seguida, analisá-la: LEONOR y DOROTEA, niñas de quince y catorce años respectivamente, lindas, graciosas, de tipo aristocrático, la tez bronceada por el aire marino y el sol. Son negros sus ojos, rasgados, melancólicos; negro también su cabello, peinado al descuido en moño alto. Se lo adornan con flores silvestres, que van clavando en él como se clavan los alfileres en un acerico. La diferencia de edad, un año y meses, apenas en ellas se distingue, y por gemelas las tienen muchos, viendo la semejanza de sus rostros, y la igualdad del talle y estatura. Son ágiles, corretonas, traviesas; dos diablillos encantadores. Visten, con sencillez graciosa y elegancia no aprendida, trajecitos claros, cortados y cosidos en Jerusa. La modestia da más realce a su gentileza vivaracha, y les imprime cierta gravedad dulce cuando están quietas. Desde la niñez, su madre, irlandesa, las nombraba con los diminutivos ingleses NELL y DOLLY, y estos nombres exóticos prevalecieron en Madrid como en Jerusa. Las acompaña y juega y brinca con ellas un perrito canelo, de pelo largo y fino, hocico muy inteligente, rabo que parece un abanico. Atiende por Capitán (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.28). Assim como o narrador de La Regenta, o sujeito da enunciação recorre ao discurso figurado para melhor apresentar Nell e Dolly. Na descrição, deparamo-nos com o emprego da metáfora, em: ―Son negros sus ojos, rasgados, melancólicos‖ y ―dos diablillos encantadores‖, e da comparação, em: ―Se lo adornan con flores silvestres, que van clavando en él como se clavan los alfileres en un acerico‖. 210 Encontramos também o uso enfático dos qualificativos, usados, na acotação acima, para definir o espírito altivo das meninas, vistas, segundo o enunciador, como figuras ―ágiles, corretonas, traviesas‖, descrição que, mais adiante, irá coincidir com o ponto de vista das demais personagens do romance, que também as veem como meninas indiscutivelmente encantadoras e muito brincalhonas. E, por fim, a última didascália a ser considerada por nós encontra-se na primeira cena da segunda jornada de El Abuelo. Nela, o narrador se dedicará basicamente à apresentação da mãe das meninas: Lucrecia Richmond, a Condessa de Laín, procurando salientar os principais aspectos físicos e psicológicos da personagem. Citamos: NELL, DOLLY y LUCRECIA, CONDESA VIUDA DE LAÍN. Es mujer hermosa, de treinta y cuatro años, del tipo que comúnmente llamamos interesante, mezcla feliz de belleza, dulzura y melancolía; castaño el cabello, el rostro alabastrino, de un perfil elegante, precioso modelo de raza anglo-sajona, recriada en América. Sus ojos son grandes, obscuros, con ráfagas de oro, y el mirar sereno y triste, como de tigre enjaulado que dormita sin acordarse de que es fiera. En su talle esbelto se inicia la gordura, fácil de corregir todavía con la ortopedia escultórica del corsé. Viste con elegancia traje de luto. En su habla, apenas se percibe el acento extranjero (Ibidem, p.57). Na breve didascália, chamamos a atenção para o expressivo destaque que o narrador atribui à figura de Lucrecia, descrita, aqui, como uma mulher balzaquiana, que, apesar dos trinta e quatro anos, conservava uma beleza primorosa− característica que, segundo o enunciador, a tornava um tipo interessante. Enunciados como ―perfil elegante‖ e ―mezcla feliz de belleza, dulzura y melancolía‖, em que destacamos o uso dos adjetivos, são estrategicamente empregados no intuito de acentuar esse perfil feminino que, sem dúvida alguma, é um dos mais belos de toda a obra. Enfatizamos 211 também o uso do discurso figurado, mais especificamente da metáfora seguida da comparação, em: ―Sus ojos son grandes, obscuros, con ráfagas de oro, y el mirar sereno y triste, como de tigre enjaulado que dormita sin acordarse de que es fiera‖, com o objetivo de explicar o significativo olhar da personagem, tomado por uma imperiosa tristeza. É importante comentar que a relação estabelecida pelo narrador entre o olhar sereno e triste de Lucrecia com o de um tigre enjaulado não será um fato gratuito no romance dialogado de Pérez Galdós. Segundo o Diccionario de símbolos, organizado por Juan Eduardo Cirlot (2006), a palavra tigre, além de representar metaforicamente a cólera e a escuridão, também pode ser compreendida por representar dois estados diferentes, um, que denota a condição de fera selvagem e o outro, de fera domada. Vejamos a definição para o enunciado: Simbológicamente, son en absoluto equivalentes estas dos definiciones de significados: ―Asociado a Dioniso. Símbolo de la cólera y de la crueldad‖.‖En China, símbolo de la oscuridad y de la luna nueva‖. Pues la oscuridad, asimilada siempre a las tinieblas del alma, corresponde al estado que los hindúes denominan tamas, en el simbolismo del nivel, y al desenfreno de todas las potencias inferiores de la instintividad. Ahora bien, en China, el tigre parece desempeñar un papel similar al león en las culturas africanas y occidentales. Aparece, pues, como éste, en dos estados diferentes (y como el dragón): como fiera salvaje y como fiera domada. En este aspecto, se emplea como figura alegórica de la fuerza y el valor militar puestos al servicio del derecho (Ibidem, p.445). A comparação é indiscutivelmente expressiva. O narrador a faz na intenção de evidenciar que, por trás da beleza balzaquiana da viúva, havia uma mulher de temperamento forte e de personalidade extremamente marcante que possivelmente, em razão da intensidade dos seus sentimentos, mostrar-se-á por diversas ocasiões uma mulher agressiva e ríspida, tal como uma fera indomada, que estando acuada não hesitará em demonstrar a sua força e o seu poder. Por outro lado, essa mesma 212 figura inicialmente capaz de revelar uma indiscutível ferocidade, sobretudo, quando se vê ameaçada pelos constantes ataques do Conde de Albrit, será também, no final de El Abuelo, uma daquelas que mais manifestará compaixão pelo teimoso sogro, fato que demonstra uma importante mudança na natureza da personagem galdosiana, que passará por diversas transformações ao longo das cinco jornadas do romance. E será especialmente sobre esse processo de metamorfose experimentado pela personagem que procuraremos nos deter no próximo sub-capítulo de nossa tese, de forma a analisar os principais aspectos relacionados à subjetividade de Lucrecia e das demais personagens femininas que tomarão para si a palavra, tornando-se as principais enunciadoras do romance galdosiano. Por se tratar El Abuelo de um romance dialogado, em que as próprias personagens têm autonomia de pronunciar os seus pontos de vista, visões de mundo e tendências, nosso principal instrumento para as análises das subjetividades femininas na obra será o diálogo. Esse assumirá um papel preponderante na narrativa de El Abuelo, não só por amenizar a influência do narrador, permitindo que o leitor julgue as personagens pelo que estas falam, mas principalmente pelo fato de funcionar como um dos recursos mais significativos para revelar a personalidade delas, visto que cada uma delas encontra-se constituída ―de acordo com sua educação, sua condição social, suas características pessoais e até seus tiques ou preferências por frases feitas‖ (PELTZER, 2001, p.77)66. Com base nessas considerações, sigamos, então, para o próximo sub-capítulo de nossa tese, intitulado: ―As personagens tomam a palavra‖. 66 ―de acuerdo a su educación, su condición social, sus características personales y hasta sus tics o preferencias por frases hechas‖. 213 3.2. As personagens tomam a palavra Dentre muitos, um dos aspectos que mais despertou nossa atenção na leitura do romance dialogado El Abuelo foi a forma com que as netas de dom Rodrigo fora apresentadas aos leitores da obra tanto pelo narrador como pelas diversas personagens. Nas primeiras cenas das primeiras jornadas, nós, leitores, temos a sensação de nos deparar com duas figuras praticamente iguais, de idênticos pensamentos e de semelhantes corações. A aparente similaridade, já comentada por nós, se dá tanto pela voz do enunciador, que, desde o princípio, fez questão de revelá-la, ao afirmar que ―por gemelas las tienen mucho‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.28), como pelas próprias personagens, em especial pelo avô das meninas, o Conde de Albrit que, motivado a descobrir qual das duas netas era a bastarda, fruto do adultério de Lucrecia com o pintor Carlos Eraul, irá empreender uma longa análise sobre o comportamento e o caráter de cada uma delas. O método de observação adotado por dom Rodrigo é, no entanto, impreciso e muito subjetivo, o que leva a personagem a vivenciar terríveis crises emocionais em razão da incerteza, da dúvida. Essa condição angustiante− possivelmente a mesma sofrida pela personagem Bento Santiago, de Dom Casmurro, que desconfiava profundamente da traição de Capitu, ainda que não contasse com provas concretas da infidelidade dela− era a principal responsável pela cegueira do Conde, curada apenas nas últimas cenas do romance. E a mesma cegueira que acometera o imponente leão de Albrit, que, por inúmeras vezes, mudava de opinião, desconfiando ora de Nell, ora de Dolly, atinge também a nós, leitores de El Abuelo, angustiados e incertos sobre as 214 considerações feitas pelas diversas vozes que compõe o romance dialogado de Pérez Galdós. Dessa notável insegurança experimentada pelo avô e por nós, somos imediatamente conduzidos a direcionar os nossos olhares a um tema de significativa pertinência dentro da literatura: a figura do duplo, conceituada por Ramón Cotarelo García (2004), no artigo ―La interpretación literaria del conflicto fundamental del ser humano- sobre la figura del doble en la literatura‖ como uma ―manifestação da dualidade entre o bem e o mal, que é o conflito fundamental do ser humano, como indivíduo e como espécie‖67. Entendemos que uma das maneiras que a literatura tem para revelar os conflitos do homem− visto por nós como um campo de batalha onde se confrontam e combatem as forças do bem e do mal− se dá através do recurso do duplo: ―a figura do duplo é a interpretação literária mais clara da essencial dualidade antagônica do ser humano que é um ser conflitante externamente porque o é internamente‖ (Ibidem. Tradução nossa)68. A propósito do tema, Juan Herrero Cecilia (2007) afirma que ―a figura mítica do duplo foi abordada na literatura a partir de perspectivas muito diversas, e deu lugar a manifestações e a figuras muito diferentes‖69. A mesma perspectiva é compartilhada por Cotarelo García (2004), ao explicar que ―a figura do duplo apresenta muitas e interessantes facetas nos aspectos filosófico, artístico, religioso e 67 ―manifestación de la dualidad entre el bien y el mal, que es el conflicto fundamental del ser humano, como individuo y como especie. (…) y esa dualidad se manifiesta siempre que se plantea a sempiterna lucha entre el bien y el mal en el corazón de los hombres‖. 68 ―la figura del doble es la interpretación literaria más clara de la esencial dualidad antagónica del ser humano que es un ser conflictivo hacia fuera porque lo es hacia dentro‖. 69 ―la figura mítica del doble ha sido abordada en la literatura desde perspectivas muy diversas, y ha dado lugar a manifestaciones y figuras muy diferentes‖. 215 lendário‖ (Ibidem. Tradução nossa)70, cujas origens encontram-se num passado de crenças e de histórias populares. Além de apontar a existência de uma expressiva diversidade de modalidades do duplo na literatura, o teórico também comenta que os duplos começam a aparecer no universo literário com ―Jean Paul, Adalbert Von Chamisso e E.T.A. Hoffmann, quem inspira um dos maiores nomes da literatura russa, o escritor Dostoievsky‖71, sendo este último o primeiro a transformar o conflito entre o ―eus‖ (eu do bem e o outro eu do mal) no eixo central de seu relato, estando todos os demais temas subordinados a ele. Em El Abuelo, não há duvidas de que a cegueira do Conde de Albrit acaba evocando uma nova modalidade do duplo. Dom Rodrigo via suas netas, Nell e Dolly, como se elas fossem uma só pessoa que, em razão das qualidades e dos defeitos que se alternavam, se desmembrava em duas. E as próprias personagens galdosianas, a partir de seus discursos, irão, muitas vezes, acentuar esse desdobramento idealizado pelo avô a partir do uso da primeira pessoa do plural, o que, indubitavelmente, muito aprofunda e enriquece a difusão do tema no romance. Entretanto, essa perspectiva comum de que Nell e Dolly são exatamente idênticas, tanto nas ideias quanto na personalidade e no caráter, tal como podemos apreciar no discurso de dom Rodrigo, ao comentar: ―(…) porque vosotras, ¡ay!, sois dos aunque a mí me parezcáis una (PÉREZ GALDÓS, 2001, p. 119), vai se fragmentando à medida que nos deparamos com novos episódios que buscam, sobretudo, apresentar a reação de cada uma delas, de forma que seus contornos e suas identidades tornem-se cada vez mais nítidos, ou seja, visíveis para as próprias 70 ―la figura del doble presenta muchas e interesantes facetas en los aspectos filosófico, artístico, religioso y lendario‖. 71 ―Jean Paul, Adalbert Von Chamisso y E.T.A. Hoffmann, quien inspira uno de los mayores nombres de la literatura rusa, el escritor Dostoievsky‖. 216 personagens e para nós, leitores, que juntamente com elas decifraremos, passo a passo, o inquietante mistério em torno da paternidade das meninas. Antes de iniciarmos uma análise mais aprofundada sobre as carismáticas Leonora e Dorotea, no intuito de melhor apresentar os principais aspectos constituintes da subjetividade de cada uma delas, nos pareceu imprescindível mencionar o que ambas têm em comum, o que muito vem acentuar a presença do duplo na narrativa dialogada de El Abuelo. E de todas as características que as aproximam, a mais evidente é o senso de humor. O espírito debochado e irônico das netas de Albrit é contagiante e sedutor. Não há como não se encantar com o refinado sarcasmo das jovens que, com tão pouca idade, acabam desconcertando inclusive as personagens mais idosas e experientes, vide o avô− dom Rodrigo− e o mestre− Pío Coronado. E para melhor ilustrar a espirituosidade de Nell e Dolly, nos pareceu interessante citar o diálogo entre elas e o professor, presente na primeira cena da terceira jornada. Vejamos o que dizem as meninas: DOLLY.- (Dando un golpe en la mesa.) ¿Que no sé una palabra? Mejor... Ni falta que me hace. D. PÍO.- (Apelando a la emulación.) No dirá lo mismo Nell, que desea aprender. NELL.- Sí, señor, digo lo mismo: ni falta que me hace. D. PÍO.- (Con severidad fingida, que no convence.) Está bien, muy bien. He aquí dos niñas finas, criadas para la alta sociedad, y que se empeñan en ser unas palurdas. DOLLY.- Sí, señor: queremos ser palurdas. NELL.- Salvajes, como quien dice. D. PÍO.- ¡Anda, salero! ¡Salvajes las herederas de los condados de Albrit y Laín! DOLLY.- (Tirándole suavemente de una oreja.) Sí, sí, maestrillo salado. ¿No eres tú muy ilustradito? NELL.- ¿Y de qué te sirve? DOLLY.- ¡Vaya un pelo que has echado con tu ilustración! D. PÍO.- (Suspirando.) Puede que estéis en lo cierto, niñas de mi alma... Bueno, sigamos. Dolly, otra miajita de Historia... 217 ¡Vamos allá! DOLLY.- (Apoyando los codos en la mesa y la cara en las manos, le contempla risueña.) ¡Piito, qué guapo eres! D. PÍO.- (Tocando las castañuelas con los dedos.) Señorita Dolly, juicio. NELL.- Tu cara parece una rosa. Si no fueras viejo y no te conociéramos, diríamos que te pintabas. D. PÍO.- Juicio, Nell... ¡Pintarme yo! DOLLY.- Dime otra cosa: ¿es verdad que cuando eras pollo hacías muchas conquistas? D. PÍO.- (Tocando con más rápido movimiento las castañuelas, que es su manera especial de llamar al orden.) Juicio, niñas. Sigamos la lección. NELL.- Nos han dicho que las matabas callando. DOLLY.- Y que tenías las novias por docenas. D. PÍO.- ¿Novias...? Oh, no: quítenme allá eso... Son muy malas las mujeres. NELL.- (Pegándole suavemente en el cuello.) Peores son los hombres. No hables mal de nosotras. D. PÍO.- Vaya, que estáis hoy juguetonas y desatinadas. (Queriendo enfadarse.) ¡Por vida de...! Si no dais la lección, os lo digo con toda mi alma, os lo juro... NELL.- ¿Qué? D. PÍO.- (Deseando enfadarse.) Que me enfado. DOLLY.- Ya lo había conocido. Estamos temblando (Ibidem, págs.: 94-95). A pesar das frustrantes tentativas de Pío Coronado para fazer com que elas aprendessem os conteúdos ensinados, tal como nos apresenta o narrador no início da cena: ―Al comenzar la escena llevaba ya el maestro una hora de inútiles tentativas para introducir en las molleras de sus alumnas los conocimientos históricos, aritméticos y gramaticales‖ (Ibidem, p.94), as astutas Nell e Dolly− conscientes da frouxidão do mestre –tudo faziam para fugir das cansativas lições, fazendo da aula uma verdadeira bagunça. Quanto ao comportamento, ambas atuam de forma similar, zombando do professor, que prontamente deixa-se levar pelas constantes brincadeiras, esquecendo-se, assim, da principal tarefa que lhe fora atribuída pelos responsáveis: ensiná-las, de maneira a garantir-lhes uma boa educação. Ruborizado, 218 da mesma cor que a rosa, o professor, a quem a falecida esposa e as perversas filhas bastardas muito maltratavam− daí o pessimismo do comentário feito por ele sobre as mulheres− tenta dar sequência à aula quando novamente é interrompido por uma das meninas− Nell – que, sem constrangimento, lhe faz uma proposta irresistível: estudar na praia, no intuito de tornar a aprendizagem mais interessante e atrativa. Vejamos: NELL.- Piito salado ¿no sería mejor que nos fuéramos los tres a dar un paseo por la playa? D. PÍO.- Está bien, muy bien. ¡Magnífico! ¡De pingo todo el santo día, aun las horas dedicadas a la educación! Muy bonito; sí, señoras, muy bonito... Y heme aquí de figurón, de monigote irrisorio; yo, que soy la ciencia; yo, yo, que estoy aquí para inculcaros... DOLLY.- Piito, no nos inculques nada, y vámonos. NELL.- En la playa seguiremos dando lección. Frente al mar, la del viaje de Colón a América. DOLLY.- Y el paso del Mar Rojo. D. PÍO.- (Suspirando desalentado.) ¡Ay, qué niñas! ¡No hay quien pueda con ellas! Bueno, pues transijo... Pero antes pasemos un poco de Gramática. NELL.- (Tocando las castañuelas.) ¡Viva Coronado! DOLLY.- (De carretilla.) La Gramática es el arte de hablar correctamente el castellano... D. PÍO.- Vamos más adelante. Dolly, dígame usted qué es participio. DOLLY.- (Flemática.) ¡No me da la gana! NELL.- Participio... Una cosa que se parte por el principio. D. PÍO.- (Poniendo el paño al púlpito.) ¡Tontas, casquivanas, que no tenéis aquel punto de amor propio que veo yo en otras niñas, ¡Señor!, en otras niñas aplicaditas y formales, que aprenden para lucirse en los exámenes, y para que a sus padres se les caiga la baba oyéndolas! (Ibidem, págs.: 96-97). Na cena acima, o sarcasmo das personagens assume um contorno bem mais acentuado, à medida que passam a desdenhar os conceitos gramaticais ensinados pelo professor. Esse, indignado com o desinteresse de Nell e Dolly sobre o particípio, definido ironicamente por Nell como ―una cosa que se parte por el principio‖ 219 (Ibidem,p. 97), adverte-as com o objetivo de se fazer respeitado. No entanto, a tardia advertência de Coronado− já acostumado a ceder aos caprichos das raparigas− não fora suficiente para conter o inigualável senso de humor das meninas que, por trás da recusa de aprender o conceito gramatical de particípio, acabam promovendo uma importante crítica à forma como os conteúdos eram ensinados a meninos e meninas do século XIX. Para a sociedade cristã da Baixa Idade Média e para a sociedade do começo da Renascença, aprender a ler e escrever era o privilégio mais exclusivo da aristocracia e, após o século XIII, da alta burguesia. A maioria dos meninos e de algumas meninas dessas classes aprendia as letras muito cedo, e este primeiro contato com a leitura e com a escrita ocorria, geralmente, através da mãe ou da governanta que, caso fosse letrada, se encarregava das primeiras fases do processo de instrução das crianças. Depois do aprendizado das primeiras letras, feito principalmente por meio de cartilhas e de abecedários, a família que dispusesse de boas condições financeiras contratava professores como tutores particulares, para que estes ficassem encarregados de aprofundar o conhecimento dos seus alunos, introduzindo-os, de fato, em uma nova atmosfera educacional, marcada pela instrução de novas disciplinas pedagógicas (História, Geografia, Matemática, Ciências, o estudo da Língua Materna e Religião), fundamentais à formação do indivíduo. Em decorrência das grandes transformações sócio-econômicas e políticas, da industrialização, da urbanização, do fortalecimento da burguesia e do aumento na produção de texto impresso que, consequentemente, propiciou o aumento do público leitor, o século XIX é também marcado pelas campanhas de alfabetização 220 (CHARTIER & HÉBRARD, 1995, 17). O direito de ler e escrever, nessa época, passa a se estender às mulheres, porém muitos questionaram os benefícios da educação pública, uma das importantes conquistas da Revolução Francesa, e da educação privada feminina, pois não era muito apropriado que as meninas aprendessem a ler e a escrever numa sociedade em que o conhecimento passa ser ameaçador para toda uma ordem edificada por pilares conservadores e tradicionais. Diferentemente da educação dos meninos, a feminina era muito mais limitada e contida, com o objetivo de conter o surgimento de certas aspirações perigosas provenientes principalmente das más leituras realizadas pelas mulheres, tidas pela sociedade patriarcal do sec. XIX como seres frágeis e frívolos. Educadas a fim de conhecer a verdadeira fé cristã e os seus deveres como esposa e rainha do lar, a educação feminina fundamentava-se, portanto, na concepção de que as damas precisariam proteger-se dos perigos que constantemente ameaçavam suas almas, o que certamente muito ignorava o potencial e as faculdades mais brilhantes das mulheres oitocentistas. Em El Abuelo, a educação feminina terá, por parte do autor, um tratamento especial, principalmente se considerarmos o fato de serem as meninas, e não o professor, que decidem o que deve ou não ser estudado por elas. Além do significativo ponto de vista de Nell e Dolly sobre o ensino dos conteúdos enciclopédicos nas áreas de História, Aritmética e Gramática, atribuímos também grande destaque à proposta feita por Nell de todas estudarem na praia para melhor aprenderem ―el viaje de Colón a América‖ e ―el paso del Mar Rojo‖, ideia que vem ao encontro da perspectiva do movimento krausista na Espanha do século XIX. Assim como em La Regenta, fica notavelmente nítida a necessidade de renovar a 221 educação no país, ainda aprisionada a um modelo conservador de ensino que abruptamente limitava o florescimento da consciência crítica do aluno. O Krausismo− movimento encabeçado pelos catedráticos da Universidad Central de Madrid, Francisno Giner de los Ríos, Canalejas e Salmerón− surge como uma importante arma no combate à defasagem do ensino na Espanha, uma vez que buscava não só introduzir uma moderna pedagogia racionalista, mas com isso promover uma verdadeira renovação didática a partir de uma educação liberal e científica, que, de fato, proporcionasse o desenvolvimento das potencialidades dos alunos. Em El Abuelo, outro particular aspecto comum entre Leonora e Dorotea é a generosidade, qualidade que as faz destoar das mesquinhas e interesseiras personagens representadas pelo narrador e pelas demais vozes do romance. Na nona cena da terceira jornada, podemos apreciar com nitidez, através do diálogo entre Dolly, Nell, dom Rodrigo e a Marquesa, a bondade das meninas ao se prontificarem a ajudar a humilde senhora que, tal como o Conde de Albrit, vivia na mais absorvente miséria, após o enfraquecimento da aristocracia espanhola, em razão da ascensão burguesa e do capitalismo. Vejamos o diálogo das personagens: EL CONDE.- ¡Ay!, desde aquel tiempo ha dado muchas vueltas y sacudidas el mundo, y se han caído algunas torres. Otros conozco yo que eran más ricos que tú, mucho más, y ahora son pobres, más pobres que tú... Y tus hijos, ¿qué ha sido de ellos? Yo recuerdo unos mocetones como castillos. LA MARQUEZA.- En la América están dos... Dicen que ricachones. Los demás se han muerto. Para mí, muertos todos... Pasó la nube, señor, y se llevó lo bueno, dejándome a mí para rociarlo con mis lágrimas. Estas criaturas son de mi hija, la Facunda, que enviudó por San Roque, y en las minas trabaja como una mula. Vivimos en miseria. Dispénseme, señor mi Conde; pero no tengo nada que ofrecerle. EL CONDE.- Gracias. Yo tampoco puedo darte más que palabras tristes... el tesoro del pobre. Estamos iguales. 222 NELL.- Marqueza, yo te voy a traer ropita para tus nietas. DOLLY.- Y yo los cuartitos que tengo ahorrados, para que tú les compres lo que quieras. (Se van a jugar con los chicos junto a unos troncos.) LA MARQUEZA.- Bendígalas Dios... ¡Qué par de pimpollos tiene aquí el buen Conde! Da gloria verlas tan reguapas, tan bien apañaditas... (Ibidem, págs.: 130-131). A indiscutível semelhança física, o acentuado senso de humor e as constantes provas de generosidade das irmãs desencadeiam inúmeras indagações por parte do avô, obcecado pela missão de descobrir qual das duas netas era a verdadeira herdeira dos Albrit, e também por parte dos leitores que, igualmente confundidos, muito se questionam sobre os pensamentos e as reações de cada uma delas. E para melhor tratar do que é aparentemente tido pelo obstinado avô como ―um só ser‖, partiremos, a seguir, para uma análise mais detalhada de cada um dos caracteres, no intuito de revelar que, por trás da suposta semelhança, há muita diferença. Comecemos as comparações entre as irmãs. 3.2.1. Leonor e Dorotea Eu tenho tanto pra lhe falar Mas com palavras não sei dizer Como é grande o meu amor por você (Roberto Carlos) Uma das características mais evidentes de Nell é, sem dúvida, a responsabilidade nos estudos. Por ser mais receosa que a irmã, ela acaba sendo aquela que mais se preocupará com o seu futuro. Tem plena consciência da importância de se educar para melhor poder exercer o seu papel de mulher na 223 sociedade; logo sua dedicação aos estudos será bem mais expressiva, tal como podemos vislumbrar no episódio em que ela tenta convencer Dolly a estudar para aprimorar os conhecimentos em História, presente na terceira cena da primeira jornada: NELL.- Te desgarrarás el vestido... DOLLY.- Lo coseré... sé coser tan bien como tú... ¿A qué me subo? NELL.- No está bien. Nos tomarían por chiquillas de pueblo. DOLLY.- (Que suspendiéndose de una rama, se balancea.) Pues ser chiquilla de pueblo o parecerlo, ¿crees tú que me importa algo? Dime, Nell, ¿andarías tú descalza? NELL.- Yo no. DOLLY.- Yo sí. Y me reiría de los zapateros. (Viendo que NELL se sienta y saca un librito.) ¿Qué haces? NELL.- Quiero repasar mi lección de Historia. Ya hemos corrido bastante; estudiemos ahora un poquito. Acuérdate, Dolly: ayer, D. Pío te dijo que no sabes jota de Historia antigua ni moderna, y en buenas formas te llamó burra. DOLLY.- Burro él... Yo sé una cosa mejor que él: sé que no sé nada, y D. Pío no sabe que no sabe ni pizca. NELL.- Eso es verdad... Pero debemos estudiar algo, aunque no sea más que por ver la cara que pone el maestrillo cuando le respondamos bien. Es un alma de Dios (Ibidem, p.29). Diferentemente de Dolly− mais preocupada em divertir-se na natureza− Nell, além de mostrar-se visivelmente comprometida com os estudos, apresenta-nos também uma preocupação de ordem social, visto que afirma não querer ser tida pela sociedade como a ―menina do povo‖, da província. Já Dolly é dona de um espírito livre e de um temperamento audacioso, marcado pelas ideias mais travessas e cheias de graça, tal como a que vemos na quinta cena da primeira jornada, em que a personagem resolve ―dar asas ao livro de História‖, em outras palavras, jogá-lo em cima da árvore, com a debochada finalidade de instruir os pássaros que ali se encontravam. Citamos: 224 DOLLY.- ¡Está el día tan hermoso! NELL.Salimos con ganas de leer. Tú dijiste que estudiaríamos en el campo mejor que en casa. DOLLY.- Porque allí nos molestaban los berridos de Venancio. NELL.- (Repitiendo una frase de su maestro.) ¡Sus, valientes, y a los libros! (Dando a su hermana el manualito de Historia.) Mira, lees en alta voz, y así nos enteramos las dos a un tiempo. DOLLY.- (Toma el libro y levántase de un brinco.) Dame acá. ¿Sabes lo que se me ocurre? Que conviene que se instruyan también los pájaros... Toda la ciencia no ha de ser para nosotras. (Lanzando el libro a los aires con fuerte impulso.) NELL.- ¿Qué haces, tonta? (El libro, abierto en el aire y dando al viento sus hojas, describe una curva, y se detiene al fin en una rama de encina, como pájaro que se posa.) NELL.- ¡Buena la has hecho! ¿Y cómo lo cogemos ahora? DOLLY.- De ninguna manera. Los pájaros se enterarán ahora de lo que hicieron D. Alejandro Magno, el señor de Atila y el moro Muza. NELL.- (Riendo.) ¡Si a los pajaritos todo eso les tiene sin cuidado! DOLLY.- Como a mí (Ibidem, p.32). Ao contrário da irmã, Dolly se interessa mais pelas coisas da vida, e é justamente por isso que não podemos deixar de tratar da curiosidade da personagem que, motivada sempre por uma vontade enorme de saber, chega a ser, muitas vezes, indiscreta, tal como na cena em que pergunta a dom Coronado se suas filhas o amavam, no intuito de confirmar se os boatos sobre os maus tratos eram, de fato, verdadeiros. Vejamos como a jovem conduz a delicada conversa: D. PÍO.- (Embobado.) ¡Zalameras, melosas, carantoñeras! DOLLY.- Di una cosa: ¿es verdad que tienes muchas hijas? D. PÍO.- (Lanzando un suspiro muy hondo y fuerte. Diríase que lo saca de los talones.) Muchas, sí... NELL.- ¿Son guapas? D. PÍO.- No tanto como lo presente. DOLLY.- ¿Te quieren? D. PÍO.- (Intentando sacar otro suspiro hondo, que se le queda atravesado en el pecho, cortándole la respiración.) ¡Quererme... ellas! 225 NELL.- Me han dicho que no. Si es así, no te importe, que bien te queremos nosotras. DOLLY.- ¿y tú nos quiere? (Don Pío hace signos afirmativos.) NELL.- Nos idolatra... Estudiamos cuando se nos antoja, y cuando no, jugamos. DOLLY.- Y eso haremos hoy: jugar, irnos a la playa. D. PÍO.- (Vencido.) ¡A la playa! (Ibidem, p.98). Além da explícita indiscrição da menina, há outro aspecto que particularmente atraiu toda nossa atenção para a personagem: o espírito altivo de Dolly, impressionante para uma menina de apenas catorze anos. O peso que o autor de El Abuelo dá à voz da personagem é inquestionável, o que, sem dúvida alguma, faz dela uma figura de grande potencial. E para melhor ilustrar a altivez da menina, escolhemos um fragmento da décima quinta cena da quarta jornada, em que Dolly adverte bruscamente a todos que participaram do plano que visava confinar dom Rodrigo no mosteiro de Zaratán. Citamos: DOLLY.- (Estallando en ira, con gallarda fiereza.) Pues al Alcalde de Jerusa, y al Cura de Jerusa, y a todos los alcaldes y a todos los curas habidos y por haber en el mundo, les digo yo que es una oficiosidad inicua lo que han querido hacer con mi abuelo... EL CURA.- ¿Pero tú...? EL ALCALDE.- ¡Esta mocosa...! Usted... DOLLY.- (Creciéndose a cada palabra.) Sí, señor, yo... yo misma. Han faltado al respeto que merece el noble desvalido, el anciano, el padre de Jerusa, el que no debiera entrar en estos valles y en este pueblo sin que antes las piedras se levantaran para bendecirle, y hasta los árboles se arrodillaran para adorarle... ¿Por qué queréis privarle de libertad? No padece más locura que el cariño que nos tiene; y si los que se han criado a su sombra le menosprecian o le ultrajan, aquí estamos nosotras, sus nietas, para enseñar a todo el mundo la veneración que se le debe (Ibidem, págs.: 202-203). E também o diálogo final que encerra a quarta jornada, em que Dolly, inconformada com o descaso de Venancio e Gregoria ao avô, faz questão de lembrá- 226 los de que estes, ainda que sejam os proprietários de La pardina− residência onde moravam−, devem sempre servi-las e jamais recusar-lhes hospitalidade, o que certamente causara um grande desconforto no casal que não tem outra alternativa que ceder à ordem da briosa menina. Citamos: VENANCIO.- Digo que, a pesar de todo, por esta noche le alojaremos y le serviremos. DOLLY.- (Con brioso arranque.) ¿Cómo se entiende? ¡Por esta noche! Por esta y por todas las noches del mundo, mientras nosotras estemos aquí. La casa es tuya, es verdad; pero somos tus amas nosotras, mi hermana y yo: somos tus amas, ¿lo entiendes bien? A excepción de esta huerta, las tierras que cultivas y que tienes en arrendamiento casi de balde, o en administración, nuestras son, nuestras. Somos las herederas de la casa de Laín, y tú, Venancio, y tú, Gregoria, servís a mi abuelo, no por caridad, que caridad está visto que no tenéis, sino porque yo os lo mando, ¿lo entendéis bien?, yo os lo mando... (Repite el concepto con firme autoridad.) VENANCIO.- La que manda... es... GREGORIA.- La señora Condesa. DOLLY.- (Altanera.) Silencio. A disponer la cena... (A GREGORIA.) Tú a la cocina... de cabeza... El Conde de Albrit vive con sus nietas. No nos tenéis de limosna... Cenará aquí, cenaremos los tres aquí, (Da un fuerte golpe en la mesa.) en esta mesa. Dormirá en su aposento, que para eso se lo arreglé yo misma esta tarde. Y si no queréis ir a la cocina, iré yo... Y si habéis descompuesto la alcoba, irá Nell a arreglarla... Pronto, vivo... (A VENANCIO y GREGORIA.) A poner la mesa... Señores, se les convida. EL ALCALDE.- (Con desvío.) Gracias. EL CURA.- Pero, chiquilla, tú... DOLLY.- Yo... Me basto y me sobro. Nieta soy de mi abuelo (Ibidem, págs.: 203-204). Voltando à Nell, outro aspecto interessante de ser comentado é o apresso da menina pelas atividades religiosas, o que chega a fazê-la pensar na possibilidade de ser monja, desejo igualmente manifestado pela personagem clariniana− Ana Ozores− em La Regenta, no período correspondente à sua adolescência. Vejamos a cena em 227 que ela, no diálogo com Dolly, demonstra certo fascínio pela vida religiosa, mais propriamente pela paz e pela tranquilidade que esta lhe proporciona: NELL.- (Mordiendo el palo de una florecita.) Salvaje no quiero yo ser... ni civilizada a estilo de D. José Monedero. También te digo que dentro de la civilización puede existir la soledad que tanto me agrada. ¿A ti no se te ha ocurrido alguna vez ser monjita? DOLLY.- ¡Ay, no! Nunca he pensado en eso. NELL.- Yo sí, sobre todo cuando nos llevan a misa a las Dominicas. ¡Qué iglesita más mona y más sosegada! Me figuro yo que de aquellas rejas para dentro hay una paz, una tranquilidad... DOLLY.- (Recogiendo piedrecitas.) La religión es cosa bonita... lo mejor entre lo bueno. El rezar consuela... Pero eso de estar siempre rezando, siempre, siempre... francamente, hija... Y metida entre rejas, como están las monjas, ni ves árboles, ni ves flores... NELL.- Tonta, si tienen huertas y jardines... DOLLY.- Pero no ves el mar. NELL.- ¡Bah!... Veo a Dios, que es más grande. DOLLY.- ¡Si Dios está en todas partes! ¿Crees que no está también aquí, oyendo todo lo que decimos? NELL.- Pero no le vemos ni le oímos nosotras. DOLLY.- Hay que mirar bien, Nell, y escuchar callandito. (Ibidem, págs.:31-32). As visões de mundo se contrastam. Enquanto que Dolly via Deus em todas as partes− pensamento panteísta, difundido pelo filósofo alemão Krause e incorporado posteriormente pelo Krausismo, que consistia na ideia de que Deus é imanente e transcendente ao universo– Nell sentia a presença divina na religião, mais especificamente na igreja que frequentava. Assim como Leonora, a personagem querosiana− Amélia – do romance O crime do padre Amaro, também demonstrará, desde a adolescência, um profundo gosto pelo ambiente religioso que a rodeia. No entanto, é preciso, aqui, marcar que esse interesse não se manifestará de forma espontânea como o vemos em El Abuelo, mas sim de maneira intencional, já que a 228 mãe de Amélia− a S. Joaneira− tinha o costume de receber em sua casa a visita de muitos padres, cônegos e beatas. Amélia, desde sua infância, familiarizou-se muito rápido com esse ambiente religioso, sendo educada rigorosamente nos moldes da fé cristã. Falavam-lhe sempre dos castigos do céu e de um Deus que lhe aparecia como ―um ser que só sabe dar o sofrimento e a morte‖ (QUEIRÓS, 2004, p.60), e que seria necessário abrandar tal fúria rezando, jejuando, se confessando, ouvindo novenas e animando os padres. A jovem temia veemente os castigos divinos e para evitá-los, procurava seguir os ensinamentos (lições) que aprendera no catecismo e na intensa convivência com os padres que frequentavam sua casa. Tornou-se uma menina disciplinada pelo medo e muito obediente aos deveres que uma boa mulher de família deveria impreterivelmente conhecer e aceitar. A personagem passa toda a sua infância e juventude sendo orientada, ou melhor, direcionada a seguir pretensamente uma vida desprovida de pecados e de pensamentos impróprios. Ao longo do capítulo V, observamos que os desejos manifestados por Amélia relacionavam-se, quase sempre, ao prazer que a personagem sentia de estar, se é que podemos nos referir assim, em ―comunhão‖ com a atmosfera religiosa que a cercava. Aos quinze anos, Amélia passa a manifestar exageradamente as tendências religiosas que, desde pequena, as convivências de padres tinham, paulatinamente, criado na sua natureza sensível: (...) lia todo dia o livro das rezas; encheu as paredes do quarto de litografias coloridas dos santos; passeava longas horas na igreja, acumulando Salve-Rainhas à Senhora da Encarnação. Ouvia todos os dias missa, quis comungar todas as semanas- e as amigas da mãe achavam-na ―um modelo‖ de dar virtude a incrédulos‖ (Ibidem, p.68). 229 E foi dessa maneira que a personagem passou grande parte de sua infância e adolescência: admirando e louvando o Senhor Jesus. Aos vinte e dois anos, ―de olhar aveludado, beiços muitos frescos‖ (Ibidem, p.69), Amélia fizera-se uma bela moça. Dentre um universo carregado de personagens esteticamente feios e doentes, a jovem destaca-se por sua beleza e por sua brancura, iluminando todo aquele cenário, muitas vezes, pavoroso e obscuro descrito pelo narrador querosiano, que, ao longo da narrativa, se destina, insistentemente, a denunciar a condição humana. Nessa idade, a jovem Amélia continuara dedicando-se cegamente ao Catolicismo, porém sua devoção apresentara-se de uma forma modificada: o que mais adorava na religião e na Igreja eram os seus aparatos, os seus elementos. Passara a admirar desde os componentes que constituíam os altares- capas recamadas de ouro, brilhando entre os tocheiros, o altar principal ornado de flores cheirosas, o deslizar das correntes dos incensadores de prata- até as missas cantadas ao som do órgão e do coro de aleluias. Deus passa a ser para Amélia o seu ―luxo‖ (Ibidem, p.69), e tudo que provinha dessa atmosfera sacra passa a proporcionar-lhe uma sensação de contentamento, ou melhor, de prazer. Em El Abuelo, Nell, além da igreja, também encontrava prazer nas atividades do lar. Enquanto que a irmã mais nova dedicava-se à culinária, a mais velha preferia os trabalhos de casa como ―lavar cristales..., mojarse, fregotear, pegar cosas rotas, limpiar las jaulas de los pájaros y echarles la comidita‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.101), afazeres que, independente da classe social das personagens, estavam intrinsecamente relacionados à educação feminina do séc. XIX, uma vez que as 230 mulheres eram educadas, como vimos, para melhor desempenhar o seu papel dentro da família e da sociedade oitocentista. Já Dolly encontrava um grande prazer na cozinha, e diversas são as cenas em que a vemos se prontificar a cuidar das refeições, todas feitas por ela com muito gosto e satisfação, fato que corrobora o acentuado desprendimento da pequena aristocrata. E para melhor ilustrar o notável dote culinário de Dolly, nos pareceu interessante citar a quarta cena da quarta jornada, em que o avô se surpreende não só com a iniciativa da neta de preparar-lhe um excelente café da manhã, como também com a vontade dela em alegrá-lo e servi-lo da melhor forma possível. Citamos: EL CONDE.- ¡Ah! Nell... ¿qué traes ahí? NELL.- ¿Cómo habíamos de consentir que no te desayunaras? Hemos reñido a Gregoria. EL CONDE.- ¡Oh!, ¡qué ángel!... A ver... ¡Oh, esto sí que es bueno!... recién hecho... ¡qué aroma!... Dios te bendiga. NELL.- No merezco yo las bendiciones, sino Dolly, que es quien te lo ha hecho. EL CONDE.- Pero la idea habrá sido tuya. (Se sirve.) NELL.- No quiero engalanarme con plumas ajenas. La idea fue de ella... Se ha puesto furiosa... Y a Venancio, le ha echado una buena peluca. EL CONDE.- ¡Atrevidilla! NELL.- Le gusta cocinar... y sabe... ¿Qué tal está? EL CONDE.- Riquísimo... ¿Dices que Dolly sabe cocinar? NELL.- Le gusta. Quiere aprender. Pues ahora está preparando un guisote, y luego te hará fruta de sartén. Verás qué bueno. EL CONDE.- ¡Qué criatura! Dile que venga. NELL.- Cree que estás enfadado con ella, y no se atreve a venir. EL CONDE.- (Imperioso.) Que venga, digo. NELL.- (En la puerta de la casa, llamando.) A Dolly, que venga. Dolly, ven... Dice que no está enfadado. DOLLY.- (Con mandil de arpillera, remangados los brazos.) Abuelito, con esta facha no quería presentarme a ti. EL CONDE.- Ven... no seas tonta... Gracias, chiquilla, por el excelente café que me has hecho. DOLLY.- Y si me dejase Gregoria, te haría un arroz... que te chupabas los dedos. 231 EL CONDE.- (Sonriendo benévolo.) Bien, bien... Vaya, posees el genio de dos artes muy difíciles: la pintura y la culinaria. DOLLY.- (Haciendo una graciosa reverencia.) Para servir a usía, señor Conde. (Ibidem, págs.: 160-161). Não é menor também o talento de Dolly para a pintura, habilidade que, diferentemente da culinária, causara uma grande surpresa no avô dom Rodrigo, principalmente por este saber que uma das netas fora fruto da traição de Lucrecia com o pintor Carlos Eraul. Vejamos a cena em que o Conde, Nell, Dolly e a Marquesa conversam sobre os quadros e os desenhos de Dolly e sobre a paixão da menina pelas artes plásticas: EL CONDE.- (Excitadísimo, llamando.) Nell, Nell... Ven acá, hija... (Se acerca.) Oye lo que dice la Marqueza... (Ésta repite lo del guarro.) NELL.- Yo, no. Es Dolly la que dibuja y hace acuarelitas... EL CONDE.- (Llamando.) Dolly... ven... ¿Es verdad esto, Dolly?... (Acércase ésta, sofocada.) ¡Qué callado te lo tenías! ¡Tú pintora! DOLLY.- (Con modestia.) Me dio por hacer monigotes. Aquí veníamos algunas mañanas, por ser éste el sitio más bonito de los alrededores de Jerusa. NELL.- (Que quiere congraciarse con DOLLY.) Tiene un álbum lleno de apuntes preciosos. DOLLY.- No valen nada, abuelito. NELL.- Di que sí. Pinta y dibuja... ¡Si tuviera fundamento, qué preciosidades haría! DOLLY.- Quita, quita. EL CONDE.- (Con profundo interés.) ¿Quién te ha dado lecciones? DOLLY.- Nadie: lo que sé lo he aprendido yo solita, mirando las cosas. Me gusta, eso sí, y cuando me pongo a ello no sé acabar. LA MARQUEZA.- Unos señores que vinieron acá una tarde... eran de Madrid, y traían unas cajas con trebejos y cartuchitos de pintura... vieron lo que hacía la señorita Dola, y se pasmaron... DOLLY.- (Ruborizada.) No hagas caso, papá. NELL.- Y dijeron que esta chica, si estudiara, sería una gran artista... sí que lo dijeron. No vengas ahora con farsas. 232 EL CONDE.- (Con gran agitación, que procura disimular.) ¡Eres pintora, Dolly... y te avergüenzas de serlo! Dime, ¿sientes una afición honda, un gusto intenso de la pintura? ¿Te sale del fondo del alma el anhelo de reproducir lo que ves? ¿Ayúdante los ojos y la mano, y encuentras facilidad para dar satisfacción a tus deseos? DOLLY.- Facilidad, sí... digo, no... Me gusta... Quiero, y a veces no puedo... EL CONDE.- ¿Y hace tiempo que sientes en ti ese ardor, esa fiebre del arte, don concedido a la criatura desde el nacer, que no se aprende, que se trae del otro mundo, de...? DOLLY.- Me entró la afición... qué sé yo cuándo. NELL.- Desde niña hacía garabatos... EL CONDE.- Ya me acuerdo. Cinco años tenías, y me quitabas todos los lápices. LA MARQUEZA.- ¡Ángel de Dios! EL CONDE.- Y tú, Nell, ¿no dibujas? NELL.- ¡Soy más torpe...! No sirvo... no acierto. Me aburro. EL CONDE.- (Con viveza.) ¡Tú eres pintora, Dolly, tú... tú...! ¡Y te avergüenzas!... Bueno, hijas, seguid jugando. Dejad aquí a los viejos que hablemos de cosas tristes (Ibidem, p.132-133). Aqui, notamos claramente a intenção do autor de El Abuelo de assinalar a importância da hereditariedade, tema muito presente na literatura naturalista do século XIX. Assim como Leopoldo Alas em La Regenta, Pérez Galdós defende uma visão predominantemente biológica do ser humano, oriunda, por excelência, da ciência, mais especificamente das teorias de Darwin sobre a evolução e de Mendel sobre a hereditariedade, difundidas respectivamente nas obras A origem das espécies e Leis da herança. Logo, dentro dessa perspectiva, não será incongruente a notória surpresa manifestada por dom Rodrigo ao descobrir o gosto e o talento de Dolly pela pintura, nem tampouco o desdém a neta, a quem ironicamente começa a chamar de ―pintora‖. Vejamos: ―Sí..., y vayan delante, Venancio y la pintora. Adelantaos todo lo que queráis. Ésta y yo no tenemos prisa, ni hemos de perdernos… (Ibidem, p.136). Assim como em Otelo e Dom Casmurro, a dúvida é um dos elementos constituintes da narrativa de El Abuelo, aspecto que particularmente só vem 233 corroborar a originalidade do enredo, que trata da desmedida busca do avô pela verdade. Em meio a tantas incertezas quanto à paternidade das netas, dom Rodrigo, tal como os escritores realistas/ naturalistas no séc. XIX que extraiam da sociedade o material necessário para a produção de seus romances, tal como afirma Pérez Galdós, no artigo intitulado ―La sociedad presente como materia novelable‖72, irá empreender uma série de observações sobre o caráter das meninas, na intenção de conhecê-las a partir do que pensam e falam as próprias personagens diante dos fatos. Vejamos a oitava cena da terceira jornada: EL CONDE.- (Hablando solo, desalentado.) Las facciones nada me dicen... (Animándose.) Hablarán los caracteres... Ya se clarean, ya. Nell paréceme más grave, más reposada; Dolly, más frívola y traviesa... Pero noto que cambian, permutan las cualidades de una y otra, de modo que aquélla parece ésta, y ésta, aquélla. Observemos mejor. (Las niñas juegan a cuál corre más.) DOLLY.- (Que vuelve triunfante, casi sin respiración.) No me has cogido, no. NELL.- (Jadeante también.) Que sí... Corro yo más que tú. DOLLY.- Nunca. NELL.- Ayer te gané. DOLLY.- Mentira. NELL.- Yo digo la verdad. DOLLY.- (Picadas las dos.) Ahora no... Es que eres tú muy orgullosa. NELL.- Abuelo, me ha dicho que miento. EL CONDE.- Y tú no mientes nunca; no está en tu natural la mentira. DOLLY.- Ella me dijo ayer a mí... embustera. EL CONDE.- ¿Y qué hiciste? DOLLY.- Echarme a reír. NELL.- Pues yo no consiento que me digan que miento. (Lloriquea.) EL CONDE.- ¿Lloras, Nell? DOLLY.- (Riendo.) Tonterías, abuelo. 72 Ver PÉREZ GALDÓS, Benito. Ensayos de crítica literaria. Barcelona, Península, 1990. Págs.:157165. 234 NELL.- Soy muy delicada. Mi dignidad por la menor cosa se ofende. EL CONDE.- ¡Tu dignidad! DOLLY.- Lo que tiene es envidia. EL CONDE.- ¿De qué? DOLLY.- (Con travesura jovial.) De que todos me quieren más a mí. NELL.- Yo no soy envidiosa. EL CONDE.- Vaya, Nell, no llores, pues no hay motivo para tanto. Y tú, Dolly, no te rías. ¿No ves que la has ofendido? NELL.- Siempre es así. Todo lo toma a risa. EL CONDE.- (Para sí.) Nell tiene dignidad. Esta es la buena. (A DOLLY, con un poquito de severidad.) Dolly, te he mandado que no te rías. DOLLY.- Es que me hace gracia. EL CONDE.- (A NELL, acariciándola.) Tú eres noble, Nell. En ti se revela la sangre, la raza... Vaya, haced las paces. NELL.- No quiero. DOLLY.- Ni yo... EL CONDE.- Esa risita, Dolly, es un poquito ordinaria. DOLLY.- (Poniéndose seria.) Bueno. (Súbitamente se lanza a la carrera.) EL CONDE.- (A NELL.) Estoy algo cansado. Dame el brazo. NELL.- Dolly está sentida... Le has dicho ordinaria, y esto le llega al alma. ¡Pobrecilla! EL CONDE.- Dime, hija mía, ¿has notado otra vez en Dolly estos arranques...? NELL.- ¿De qué? EL CONDE.- De naturaleza ordinaria. NELL.- No, papá... ¡Qué cosas tienes! Dolly no es ordinaria. Creo que se lo has dicho en broma. Dolly es muy buena. EL CONDE.- ¿La quieres? NELL.- Muchísimo. EL CONDE.- ¿Y no estás incomodada con ella porque te dijo que mentías? NELL.- Yo no... Cosas de nosotras. Reñimos, y en seguida hacemos las paces. Dolly es un ángel: le falta sentar un poquito la cabeza. Yo la quiero; nos queremos... ¡Ya tengo unas ganas de abrazarla y decirle que me perdone! EL CONDE.- (Con júbilo.) ¡Otro rasgo de nobleza! Nell, tú eres noble. Ven a mí... (La abraza.) Y esa loca, ¿dónde está? NELL.- Ya viene. DOLLY.- (Volviendo como una exhalación.) Abuelito, llueve. Me ha caído una gota de agua en la nariz. NELL.- (Deseando coyuntura para hacer las paces.) Y a mí dos. 235 DOLLY.- Papá, ¿quieres que nos metamos en la gruta de Santorojo? Has hecho mal en no traer paraguas. EL CONDE.- Es un chisme que no he usado nunca. DOLLY.- ¡Ya... acostumbrado a andar siempre en coche! Pero ahora no tienes más remedio que andar a patita, como nosotras. EL CONDE.(Para sí.) Se burla de mí... ¡Qué innoble! (Ibidem, págs.:123-125). Na cena, dom Rodrigo acredita ser Nell uma menina mais grave e contida, ao contrário da irmã, definida por ele, por diversas vezes, como a ―loca‖ (Ibidem, p.124) que ―todo lo toma a risa‖ (Ibidem, p.123), em razão das brincadeiras e dos comentários feitos por ela, tal como o que vemos no final da citação: ―¡Ya... acostumbrado a andar siempre en coche! Pero ahora no tienes más remedio que andar a patita como nosotras‖ (Ibidem, p.125), o que causa uma incômoda irritação no avô devido à ousadia da risível comparação entre pata e perna. Chamamos atenção também para o uso dos adjetivos ―ordinaria‖ (Ibidem, p.124), ―innoble‖ (Ibidem, p.125), ―juguetona y atropellada‖ (Ibidem, p.143), ―mala, la intrusa‖ e ―descarada‖ (Ibidem, p.142) para caracterizar a pequena Dolly, que, devido ao acentuado senso de humor, acaba sendo mal interpretada pelo avô, ficando este, muitas vezes, com uma péssima impressão da travessa menina de apenas catorze anos. O velho Albrit− desconfiado pela suspeita de ser Dolly sua neta bastarda, dada à predileção da jovem pela pintura− se revolta pelo comportamento dissimulado dela que, travessamente, o acusa de ter trapaceado no jogo dos palitinhos para favorecer Nell. O sarcasmo de Dolly fora interpretado pelo patriarca da pior forma possível, como uma atitude abominável, indigna de respeito, o que acentuou a impressão inicial que tivera sobre a menina: ―un poquito ordinaria!‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.124). Citamos: 236 NELL- (Con alegría.) Yo gané. (Muestra la pajita grande.) DOLLY- (Retirándose corrida.) Ha habido trampa. NELL- ¿Qué? DOLLY- (Con ligereza, sin saber lo que dice.) El abuelo ha hecho trampa. EL CONDE- ¡Que yo hago trampas! DOLLY- Porque no me quiere. EL CONDE- (Meditabundo, hablando solo.) ¡Qué innoble! No hay duda, es la falsa, la mala, la intrusa. (Las niñas llenan las tazas). EL CURA- ¡Si os quiere a las dos! Dolly, no te enfades. DOLLY- Yo no me enfado. (Se ríe.) EL CONDE- (Para sí.) ¡Se ríe... qué descarada... después de ofenderme! NELL- (Llevando al abuelo su taza.) Abuelo... ahí lo tienes como te gusta, amarguito. EL CURA- Dolly me sirve a mí. Ya sabes: pónmelo dulzacho. DOLLY- Ahí va. Ahora el té para el doctor. EL CONDE.(Para sí.) ¡Y aún se ríe!... Carece de delicadeza... No le hacen mella los desaires. Epidermis moral muy gruesa... extracción villana. (Alto.) ¿Qué tal os sirve la pintora? EL CURA- Divinamente. EL CONDE- Siempre juguetona y atropellada. (Ibidem, págs.:142-143). Dolly, por sua vez, acaba percebendo uma mudança no comportamento do avô, que escandalizado com a debochada acusação, passa a evitar o contato com a neta. Vejamos a reação de dom Rodrigo: EL CONDE.- (Volviéndose hacia ella bruscamente.) No vengas. (Con displicencia.) Acompaña a estos señores. Aprende a ser cortés. (Pausa.) (Retíranse despacio EL CONDE y NELL. DOLLY vuelve al centro de la estancia, se sienta, apoya en la mesa los codos, la cara en las palmas de las manos.) (Ibidem, págs.: 144-145). O afastamento do avô é nítido. Sentindo-se rejeitada, a jovem chega inclusive a cogitar a hipótese de que o mesmo não a amava, perspectiva que pode ser 237 vislumbrada notoriamente na conversa entre ambos, presente na quarta jornada da obra: DOLLY.- Pero tú no me quieres. EL CONDE.- (Confuso.) Sí te quiero. Es que... DOLLY.- No vayas a creerte que hago yo estas cosas porque me quieras. Pégame, y haré lo mismo. Las hago porque es mi deber, porque soy tu nieta, y no puedo ver con calma que a un caballero como tú, poderoso en otro tiempo y dueño de toda esta comarca, le desatiendan gentes groseras, que no valen lo que el polvo que llevas en la suela de tus zapatos. EL CONDE.- (Con viva emoción.) Deja que te bese una y mil veces, criatura. ¿Con que tú...? DOLLY.- Y a esos indecentes, que no se acuerdan de la miseria que tú les remediaste, ni de que crecieron, yerbecitas chuponas, en el tronco de Albrit; a esos puercos, arrastrados, canallas, les estaría yo dando en la cabeza con el palo de esta escoba, hasta que aprendieran a respetar al que honra su casa sólo con pisar en ella. EL CONDE.- (Empañada la voz por la emoción.) ¡Y tú... tú piensas eso! DOLLY.- Y lo digo... y lo hago...Esta noche, cuando vuelva del convite, te arreglaré toda la ropa, que la tienes bien destrozadita. Esa pánfila de Gregoria no da una puntada en tu ropa. Fíjate en la de Venancio, que parece un Duque. EL CONDE.- (Cruza las manos y la contempla extático, tratando de estimular la visión en sus ojos enfermos.) ¡Y lo haces por mí, por mí! DOLLY.- (Se sienta a su lado, la escoba entre las manos.) Sabiendo que me quieres menos que a Nell. Reconozco que Nell lo merece más que yo, porque es más fina... y además tan buena... EL CONDE.- (Algo perturbado.) Pero a ti... a ti te quiero también. Dime la verdad: ¿te incomodaste porque no te dejé subir conmigo? DOLLY.- ¡Vaya con el desprecio que me has hecho... dos noches seguidas! La primera vez, D. Carmelo y el Médico, que cenaron aquí, me consolaban... Pero anoche... ¡ay!, me entró tal tristeza, que no pude dormir, y los ratos que dormí tuve sueños muy malos (Ibidem, págs.:165-166). No entanto, o atrevimento de Dolly não era motivo suficiente para condenála, até porque dom Rodrigo tinha plena consciência de que as qualidades de uma e de outra permutavam constantemente de maneira que ―aquella parece ésta, y ésta, 238 aquélla‖ (Ibidem, p.123). Dessa forma, não nos surpreende a reação de espanto do Conde de Albrit com o egoísmo de Nell, que pouco se preocupava se Dolly e o avô estavam muito molhados: EL CONDE.- Llueve... Vamos a prisa. NELL.- (Encontrando el paso fácil hacia la gruta.) Que os mojáis... Yo estoy en salvo ya. EL CONDE.- (Para sí.) Paréceme Nell un poco egoísta... ¡Qué horrible duda, Señor! ¡Si resultará que Dolly es la buena! (Ibidem, p.126). Nem tampouco a alegria do mesmo ao deparar-se com o amor incondicional de Dolly, que lhe confessa preferir ficar em Jerusa cuidando dele e acompanhando os seus passos a ter de mudar-se com a mãe e com a irmã para Madrid. Vejamos: DOLLY.- Abuelito, tengo que decirte una cosa. Que te quiero mucho, mucho. EL CONDE.- (Con viva ternura, abrazándola.) ¡Corazón grande! DOLLY.- Y vas a saber otra cosa. EL CONDE.- (Poniendo el oído.) ¿Es también secreta? DOLLY.- (Amorosa.) Sí, muy reservada... Que no se entere nadie. Quiero seguir tu suerte. Si pasas trabajos, yo también... Si vas de puerta en puerta, como dices, también yo... Yo contigo, siempre contigo. EL CONDE.- (Con intensa emoción.) ¡Señor, qué alegría!... ¡Compensación hermosa de mis infortunios! Todo lo que padecí, quebrantos de fortuna, humillaciones, pérdida de seres queridos, se contrapesa con este inmenso galardón de tu cariño, que Dios me da sin yo merecerlo... (Abrazándola y besándola con efusión.) ¿Pues qué merezco yo, que nada soy, que nada valgo ya?... Dios da la bienaventuranza en esta vida, ya lo veo... a mí me la da. No necesita uno morirse, no, para entrar en el Cielo... (Pausa.) DOLLY.- En la prosperidad o en la desgracia, abuelito, tu Dolly no te abandonará (Ibidem, p.210). A verdade quanto à identidade da verdadeira neta do Conde de Albrit emerge através da maliciosa confissão de Senén que, com a revelação, pretendia vingar-se da 239 Condessa por ela haver-lhe negado a indecorosa proposta de promoção no trabalho. Com a verdade revelada, a dúvida deixa de existir, não obstante, a certeza de que Dolly era a neta bastarda não anula o conflito vivido pela personagem, que passa a sofrer de melancolia. A melancolia deve ser compreendida como um arquétipo constante dentro da literatura espanhola, uma vez que podemos vê-la com grande expressão em diversas obras de distintos gêneros literários e de épocas diferentes que, por exemplo, podem ir desde as consagradas Coplas de amor a su padre, do poeta Jorge Manrique, até a rima LXIX de Gustavo Bécquer em Rimas y leyendas e as poesias sobre a melancolia e o desengano de Miguel de Unamuno, um dos maiores nomes da Generación del 98− geração de intelectuais que contribuiu significamente para a renovação estética e literária na Espanha do século XX. A tristeza profunda de dom Rodrigo se agrava depois da conversa com Nell, que demonstra pouca preocupação quanto ao futuro do mesmo. Leonora, muito mais preocupada com a mudança para Madrid, mostra-se egoísta e, por nenhum momento, sugere a possibilidade de o avô poder acompanhá-las na viagem, tal como sugerira Lucrecia. Ao contrário, insiste para que dom Rodrigo aceite o convite feito pelo Priori de Zaratán, onde seria recebido de braços abertos pelos monges, mesmo depois de ter fugido de lá. Vejamos a conversa em que Nell tenta convencê-lo de que o retiro é a melhor opção para ele, seguida do monólogo interior que revela a dor que se instala no coração do desiludido avô: NELL.- (Confusa.) Papaíto, ¿qué razón hay para tanta tristeza? ¡Si te queremos lo mismo! Yo te aseguro que vendremos a verte, y que nos enfadaremos con mamá si no nos trae. EL CONDE.- No os traerá... ¿Y para qué? ¿Qué soy yo? Un despojo miserable... El viejo tronco muere; pero quedas tú, 240 gallardísimo árbol nuevo, que perpetuará mi nombre y mi raza. NELL.- (Con mayor ternura.) Abuelo mío, si tanto me quieres, ¿por qué no haces lo que yo digo, lo que yo te mando? Eres un niño, y los que te aman deben... no digo mandarte... eso no... dirigirte. ¿Me permites que te dirija? EL CONDE.- Marquesa de Breda, tú mandas. NELL.- (Envaneciéndose.) Pues si alguna autoridad tengo sobre ti, oye lo que te digo, y hazlo, hazlo por Dios... Acepta el recogimiento de Zaratán. EL CONDE.- (Lastimado en lo más vivo.) Adiós, Nell... Vete con tu madre. NELL.- En Zaratán estarás muy bien. CONSUELITO.- (Metiendo su cucharada.) Como un príncipe, como un emperador. NELL.- Vendremos a verte. EL CONDE.- Adiós, Nell... (Se retira tambaleándose.) ¿El Prior dónde está? NELL.- (Gozosa, creyendo que su abuelo busca al PRIOR para tratar con él de su retiro en Zaratán.) En la sacristía... Por aquí. CONSUELITO.- (Cogiendo a NELL de la mano y llevándosela.) Niña, vámonos... Ya le has dicho lo que debías decirle. ¡Pobre anciano! Es, en verdad, un niño... demente. NELL.- ¡Qué pena, Dios mío!... (Llamándole.) ¡Abuelo, abuelo!... CONSUELITO.- Déjale ya... El león arrogante y fiero entra en la sacristía. No dudes que nuestro buen Prior le armará una bonita trampa... Verás, verás cómo cae... (Confundidas entre la multitud, se alejan de la parroquia.) EL CONDE.- (Que, tentando la pared, logra coger la puerta y se precipita en las salas que conducen a la sacristía.) ¡Horrible, horrible! Ni siquiera ha manifestado el deseo de vivir en mi compañía... Ni siquiera me ha dicho, como su madre: «Vente con nosotras». Lo que quiere es encerrarme... Esto es dar con el pie al ser inútil, al ser caído, que estorba... La duda, oh Dios, me asalta otra vez; la duda sopla otra vez en mi alma como huracán, y de las pavesas que se iban apagando levanta llamaradas... No, no es ésta la legítima, no puede serlo. Todos me engañan... Nell no tiene corazón; su frialdad desdeñosa desmiente la noble sangre. No es, no es... (Gritando.) (Ibidem, págs.: 243-244). Em El Abuelo, o tema da melancolia será tratado, portanto, a partir da figura do avô que, no final de sua vida se vê duplamente amargurado, em primeiro lugar, pela decadência financeira e, em segundo, pelo desamparo, condição que o faz desejar a 241 morte, entendida, aqui, como um caminho para a salvação. Vale comentar que, assim como a melancolia, o descontentamento com vida será um dos grandes temas das poesias de Unamuno. Nelas, o escritor espanhol deixará patente uma notável preocupação não só com o problema de Espanha− seu passado, seu presente e seu futuro−, mas, sobretudo, com o sentido da vida, importando-se essencialmente com o sentimento trágico da existência humana. E para melhor evidenciar o desencanto de dom Rodrigo pela vida, nos pareceu oportuno citar o diálogo em que a personagem confessa à Marquesa os motivos que o levam a querer renunciá-la. Citamos: LA MARQUEZA.- Señor, ¿qué le pasa? ¿Qué disparates dice? Voy a la Pardina con esta cesta de caracoles que me ha encargado el Sr. Venancio. ¿Quiere algo para allá? ¿Por qué no se viene conmigo? EL CONDE.- ¿Yo a la Pardina?... ¿Has visto a las niñas de Albrit? ¡Qué feas son!... repugnantes como gusanos venenosos. La legítima no me quiere: me manda al manicomio. Dolly, que me ama, no es mi nieta. Es hija de un pintor vicioso y grosero... linaje de contrabandistas en el Alto Aragón. (Riendo sarcásticamente.) Dime, Sibila, ¿dónde está el hoyo más hondo de basura y lodo para meterme, y hacer en él mi cama eterna? Como escarabajo, allí labraré la nueva casa de Albrit, toda inmundicia. LA MARQUEZA.- Buen señor, no piense cosas malas. EL CONDE.- Vete, déjame. Si ves a Venancio, le dices que me arrodillo ante su radiante imbecilidad... Adiós, Sibila, adiós. (Ibidem, p.246). Ainda que El Abuelo apresente de forma nítida os temas da melancolia e do desapego pela vida por intermédio da imponente figura do Conde de Albrit, estes são prontamente vencidos pelo sentimento mais generoso e grandioso de toda a humanidade: o amor, o que por si só torna o livro numa obra indubitavelmente especial. É Dolly, a neta bastarda, que irá salvá-lo de um destino cruel e solitário, ao mostrar-lhe o quanto é verdadeiro o amor que ela sentia por ele, fato que rompe com todas as expectativas sobre um possível final trágico para a personagem prestes a 242 suicidar-se em nome da honra. E para melhor ilustrar a rendição do avô à nobreza do sentimento da travessa menina– incomparável com a dos demais personagens de El Abuelo–, nada mais interessante que apresentar a cena em que Dolly novamente declara o incontrolável desejo de viver em Jerusa na companhia do avô para, desta forma, poder cuidar dele até os últimos dias de sua vida. Vejamos o efeito das doces palavras de Dolly, na vida de dom Rodrigo: DOLLY.- (Acongojada.) Papaíto, ¿por qué no miras a tu Dolly?... ¿Qué dices?... ¿Ya no quieres a tu Dolly? EL CONDE.- (Desconcertado.) Eres mi oprobio... Dolly... ¿por qué me amas? DOLLY.- ¡Vaya una pregunta! (Acariciándole.) Ya te dije esta mañana en la Pardina que tu Dolly no se separará nunca de ti... A donde tú vayas, voy yo... Váyase Nell con mamá; yo quiero compartir tu pobreza, cuidarte, ser la hijita de tu alma. EL CONDE.- (Con grandísima agitación.) ¡Oh, Dolly, Dolly!... DOLLY.- ¿Qué tienes?... EL CONDE.- Parece que me ahogo... Es que Dios me abre el pecho de un puñetazo, y se mete dentro de mí... Es tan grande, tan grande... ¡ay!, que no cabe... DOLLY.- Si Dios entra en tu corazón, allí encontrará a Dolly con su patita coja... Abuelo, abuelo mío, cuando todos te abandonan, yo soy contigo. (Le abraza y le besa.) EL CONDE.- (Alelado.) Cuando todos me desprecian, tú eres conmigo... El mundo entero pisotea el tronco de Albrit, y Dolly hace en él su nido. DOLLY.- Sí que lo haré... De veras digo que si no me llevas en tu compañía a donde quiera que vayas... EL CONDE.- (Vivamente.) Si no te llevo, ¿qué? DOLLY.- Me moriré de pena. EL CONDE.- (Elevando hacia el cielo las palmas de sus manos.) Señor, ¿qué es esto? ¿Tal monstruosidad es obra tuya? ¿Qué nombre debo dar a esta cosa espantable y enorme que llena mi alma de gozo?... Del seno del cataclismo salen para mí tus bendiciones... Ya veo que de nada valen los pensamientos, los cálculos y resoluciones del ser humano. Todo ello es herrumbre que se desmorona y cae. Lo de dentro es lo que permanece... El ánima no se oxida. D. PÍO.- (Con hermosa ingenuidad.) Señor, ¿hacia qué parte de los cielos o de los abismos cae el honor? ¿En dónde está la verdad? EL CONDE.- (Abrazando a DOLLY.) Aquí... (Como quien 243 vuelve de un desvanecimiento.) Dime, amigo Coronado, ¿he dicho muchos disparates? Porque siento que vuelve a mí la razón. Esta chiquilla, trastornándome, me ha vuelto a mi ser, y yo, trepidando, recobro mi equilibrio. Ya ves... Todos me desprecian; ella sola me ama y consagra a este pobre viejo su florida juventud. DOLLY.- (Besándole.) Albrit, ¿quién te quiere? EL CONDE.- Tú sola. DOLLY.- No te llamaré Albrit, sino Abuelo. EL CONDE.- Sí, sí: me gusta ese nombre... ¡Es tan dulce! Puedes darle el sentido que quieras. (Ibidem, págs.:250-251). Além das meninas, também não será menor a atenção dada à figura de Lucrecia Richmond, a Condessa de Laín, personagem que representa um dos perfis femininos mais transgressores de todo o romance dialogado de Pérez Galdós. 3.2.2. Lucrecia Richmond Deixe-me ir Preciso andar Vou por aí a procurar Rir para não chorar (Cartola) Em nossas análises sobre Lucrecia Richmond foi necessário retomar alguns dos conceitos apresentados no artigo ―La madrileña‖, de Patrocinio de Biedma, presente na obra Las mujeres españolas, americanas y lusitanas pintadas por sí misma (1881), organizada por Faustina Saez de Melgar. Segundo dona Faustina, o livro trata-se de um estudo completo da mulher oitocentista em todas ―las esferas sociales, sus costumbres, su educación, su carácter, influencia que en ella ejercen las condiciones locales y el espíritu general del país a que pertenece‖, e a leitura do ensaio ―La madrileña‖ permitiu que estabelecêssemos importantes relações entre a 244 mulher madrilense, que, apesar da aparência e formas suaves, é resistente e infatigável: ―De aparência delicada, de formas finas, a madrilense é forte e incansável, e o mesmo resiste em plena rua o gelo do inverno, que o terrível calor do verão‖ (BIEDMA,1881, p.162. Tradução nossa)73, e a Condessa de Laín, que mesmo sendo estrangeira− irlandesa e criada na América−, muito se identifica com esse caráter inegavelmente espanhol, a começar pela sua indiscutível paixão pela capital da Espanha, a cidade de Madri. Lucrecia, tal como as madrilenses, é uma mulher urbana, cosmopolita, que necessitava viver na atmosfera dos grandes centros urbanos para os quais nascera. Dificilmente se adaptaria ao estilo de vida monótono das cidades provincianas de Espanha, que, neste aspecto, acabariam por tirar-lhe o brilho e a vivacidade. Assim, a Condessa, tal como a madrilense, ―só em Madri se encontra tal como é, pois longe de Madrid se transfigura‖ (Ibidem, p.161. Tradução nossa)74, de forma a perder toda a sua graciosa originalidade. Daí explica-se o inquietante desconforto da personagem e sua breve permanência na provinciana Jerusa, pequena cidade onde vivem as filhas Nell e Dolly, aos cuidados de Venancio, Gregoria e do mestre Pío Coronado. Falemos também da posição social que a Condessa ocupava dentro da sociedade espanhola retratada em El Abuelo. Lucrecia representa o perfil de uma mulher ilustrada e financeiramente independente, condições que notoriamente a apartavam das demais figuras femininas do romance. O acesso ao conhecimento, procedente, por sua vez, de uma instrução de boa qualidade, e sua situação de viuvez fez com que a personagem se emancipasse prontamente, vindo a tornar-se uma mulher de grande expressão nos cenários político e social da época− contemporânea, 73 ―De apariencia delicada, de formas finas, la madrileña es fuerte e incansable, y lo mismo resiste en plena calle el hielo del invierno, que el calor abrumador del estío‖. 74 ―sólo en Madrid se encuentra tal cual es, pues lejos de Madrid se transfigura‖. 245 segundo o autor em Dramatis personae (PÉREZ GALDÓS, 2004, p.11), à publicação do romance. Essa nova condição− a de mulher independente − muito a aproxima do perfil da madrilense que, segundo Patrocinio Biedma (1881, p.167. Tradução nossa), ―está chamada a ser as primeiras que defendam e pratiquem em Espanha a liberdade do trabalho para a mulher, ou seja, a independência da vida, a dignidade própria sem submeter-se à necessidade humilhante de uma forçada proteção‖75 em função da dominação masculina. E essa tão ambiciosa independência feminina, essencial não só ―para os ofícios profissionais que a consciência prática, mas sim para as pequenas ocupações domésticas, base do bem estar de uma família‖ (Ibidem, p.165. Tradução nossa)76, pode ser vislumbrada em El Abuelo através da figura de Lucrecia. A personagem mais vivia para a sociedade que propriamente para a família, razão que a torna uma figura indiscutivelmente transgressora por romper com a vigente ordem social que confirma a hegemonia masculina, tal como afirma Pierre Bourdieu em La dominación masculina y otros ensayos (2010), ao deixar clara a diferença entre gêneros feita pela sociedade patriarcal: A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica tendente a ratificar a dominação masculina, dominação sobre a qual se funda: é a divisão sexual do trabalho, distribuição muito estrita das atividades dadas a cada um dos sexos, seu lugar, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, com sua oposição entre o lugar de reunião ou de mercado, reservado aos homens, e a casa, reservada às mulheres, ou seja, ao interior daquela, entre a parte masculina, na casa, e a parte feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, jornada, ano agrário ou ciclo de vida, com seus momentos de 75 ―está llamada a ser de las primeras que defiendan y practiquen en España la libertad del trabajo para la mujer, es decir, la independencia de la vida, la dignidad propia que no tiene que doblegarse a la necesidad humillante de una forzada protección‖. 76 ―para los oficios profesionales que a conciencia práctica sino para las pequeñas ocupaciones domésticas, base del bienestar de una familia‖. 246 ruptura, masculinos, e os longos períodos de gestação, femininas (BOURDIEU, 2010, p.12. Tradução nossa)77. A divisão sexual da qual se ocupa Pierre Bourdieu (2010) em muitos dos seus ensaios sobre a dominação masculina encontra-se estritamente vinculada a uma ordem social que, segundo o sociólogo francês, funciona como uma imensa máquina simbólica. Essa, por sua vez, tende a ratificar a preponderância do homem e a submissão da mulher ao mesmo, marcando, assim, a existência de uma sociedade predominantemente desigual e machista, à medida que desconsidera as potencialidades femininas e suas habilidades para outros trabalhos que não estejam relacionados apenas às tarefas do lar e ao cuidado da família. Devido aos bons relacionamentos políticos, Lucrecia Richmond consegue promover uma série de benfeitorias à provinciana Jerusa, dentre as quais podemos citar a Estação Telegráfica, a Estrada de Jorbes e o Instituto de Educação Secundária. Além do prefeito da cidade, muitas foram as personagens de El Abuelo que também se beneficiaram com a influência de Lucrecia, definida metafórica e sugestivamente pelo Conde de Albrit como ―una gran potencia‖ (PÉREZ GALDÓS, 2004, p.37), em razão do seu poder. Dentre elas, destacamos o hipócrita Senén, que, segundo o narrador, ―ya no se acuerda de cuando andaba descalzo y harapiento por las mal empedradas calles de Jerusa‖ (Ibidem, p.19). De origem humilde, Senén viveu grande parte de sua infância e adolescência contando com a caridade dos Condes de Laín, que o acolheram, e Lucrecia, neste aspecto, teve um papel decisivo na ascensão 77 ―El orden social funciona como una inmensa máquina simbólica tendiente a ratificar la dominación masculina, dominación sobre la cual se funda: es la división sexual del trabajo, distribución asaz estricta de las actividades impartidas a cada uno de los sexos, su lugar, su momento, sus instrumentos; es la estructura del espacio, con su oposición entre el lugar de reunión o de mercado, reservado a los hombres, y la casa, reservada a las mujeres, o bien, al interior de aquella, entre la parte masculina, en el hogar, y la parte femenina, con el establo, el agua y los vegetales; es la estructura del tiempo, jornada, año agrario o ciclo de vida, con sus momentos de ruptura, masculinos, y los largos períodos de gestación, femeninos‖. 247 da personagem, pois foi quem lhe proporcionou novas oportunidades: ―le abrió los espacios de la Administración pública con un destinillo en Hacienda, al que siguieron ascensos, comisiones y otras gangas‖ (Ibidem, p.20). E como recompensa, Senén mostra-se solidário e fiel à Condessa de Laín, dando-lhe, propositalmente uma impressão de confiabilidade. Vejamos o que ele diz de Lucrecia em conversa com Gregoria e Venancio: VENANCIO.- Todas esas lenguas, y más que supiera, no bastan para contar los horrores que acerca de ella corren en castellano neto. SENÉN.- (Endilgando sabidurías que aprendió en los cafés.) ¡Horrores!... No hagáis caso. La honradez y la no honradez, señores míos, son cosas tan elásticas, que cada país y cada civilización... cada civilización, digo, las aprecia de distinto modo. Pretendéis que la moralidad sea la misma en los pueblos patriarcales, digamos primitivos; como esta pobre Jerusa, y los grandes centros... ¿Habéis vivido vosotros en los grandes centros? VENANCIO.- Ni falta. SENÉN.- Pues en los grandes centros veríais otro mundo, otras ideas, otra moralidad. La Condesa Lucrecia no es una mujer: es una dama, una gran señora. ¿Qué? ¿Qué le gusta divertirse? Cierto que sí; se divierte por la noche, por la mañana y por la tarde... No, no me saquéis el Cristo de la moralidad. Yo os digo, y lo pruebo, que es cosa esencial en las sociedades que las damas se diviertan; porque del divertirse damas y galanes viene el lujo, que es cosa muy buena... (Ibidem, págs.:23-24). Nela, Senén tenta convencê-los da dignidade de Lucrecia, garantindo-lhes ser a Condessa uma mulher demasiadamente caridosa, incapaz de mostrar indiferença aos necessitados e aos aflitos. Além do coração terno e da generosidade acentuada, o ambicioso também destaca como aspecto positivo a excelente instrução que teve Lucrecia, o que lhe permitiu aprimorar os seus conhecimentos sobre o mundo. No entanto, a admirável formação da personagem, que sabia inclusive falar quatro línguas diferentes, não era o aspecto que mais despertava a curiosidade dos ávidos 248 jerusenses. O que a torna interessante são os maldosos rumores sobre ela, mais especificamente sobre sua índole, e quando indagado novamente sobre o caráter de Lucrecia o ―astuto escudeiro‖ fazia questão de defendê-la, dizendo ser a aristocrata uma grande mulher e que, exatamente por isso, ela teria o direito de se divertir a sua maneira, ponto de vista incompatível com a mentalidade provinciana dos habitantes de Jerusa, que viam com desprezo e indiferença a emancipação da mulher na sociedade patriarcal, ainda que esta fosse viúva. Cabe também comentar que a reprovação à independência feminina não parte apenas dos homens machistas, mas sim de muitas mulheres, sobretudo, das que viviam em províncias afastadas da capital do país, tal como vemos na citação anterior, o que evidencia um contraste particularmente interessante à medida que nos deparamos com perfis femininos um tanto distintos. E segundo Biedma, esse marcante contraste estaria principalmente relacionado à questão cultural, uma vez que a mulher dos grandes centros urbanos ―é menos intrigante, menos invejosa, ‗menos mulher‘, se nos permite dizê-lo assim, que a de qualquer outra região, nos limitando às regiões espanholas. O motivo é tão simples como indubitável: está mais ocupada. O ócio cria todas essas pequenas misérias que corroem o corpo social, como a umidade, o mofo que corrói o ferro‖ (Ibidem, p.162. Tradução nossa)78. E é dessa perspectiva, portanto, que se torna compreensível o fato de Lucrecia ser tão destoante das mulheres provincianas retratadas em El Abuelo. Ao mesmo tempo em que chamava atenção pelo caráter acentuado e pelos influentes contatos, a Condessa de Laín também despertava inveja nas demais 78 ―es menos murmuradera, menos invidiosa, ‗menos mujer‘, si se nos permite decirlo así, que la de cualquiera otra región, limitándonos a las regiones españolas. El motivo es tan sencillo como indudable: está más ocupada. El ocio crea todas esas pequeñas miserias que corroen el cuerpo social, como la humedad, el moho que corroe el hierro‖. 249 personagens da obra que cobiçavam não só sua beleza como também sua posição financeira e social, fato que novamente a aproxima da mulher madrilense, que julgada por seu desejo de brilhar, por sua exibição constante e por sua aparência indiferente, é tida pela sociedade como ―frívola, insensível e ligeira, assim como vaidosa e sedutora‖ (Ibidem, p.164. Tradução nossa)79. Patrocinio de Biedma também explica que ―a independência de que goza a mulher nos grandes centros não é só difícil de conservar nos pequenos, mas perigoso, porque se expõe a ser alvo dessa crítica frequente das pessoas desocupadas, más terrível que a calunia mesma, pois não mata de um golpe como esta uma reputação, mas a envenena pouco a pouco entre veladas burlas, frases afiadas e sarcásticas ironias‖ (Ibidem, p.156. Tradução nossa)80. A partir dessa constatação, fica nítido, então, o fato de Lucrecia tornar-se alvo de impiedosas críticas, e para melhor ilustrálas, nos pareceu oportuno citar um fragmento da conversa entre Venancio e Gregoria, em que esta última deixa evidente o seu ponto de vista sobre a Condessa de Laín, definida pejorativamente por ela como a ―condenada extranjera‖: VENANCIO.- ¿Yo qué sé? La Condesa Lucrecia vendrá, como siempre, a dar un vistazo a sus hijas. GREGORIA.- Y a pagarnos la anualidad vencida por el cuidado, manutención y servicio de las dos señoritas que puso a nuestro cargo... ¡Ah, ruin pécora...! Las tiene en este destierro para poder zancajear y divertirse sola por esos Parises y esas Ingalaterras de Dios... o del diablo... ¡Tunanta! Lo que yo digo, Venancio: comprendo que su suegro, el señor Conde de Albrit, que es el primer caballero de España, ¡y que lo digan! le tenga tan mala voluntad a esa condenada extranjera, de quien se enamoró como un tontaina su hijo (que esté en gloria)... Lo que no me cabe en la cabeza es que parezca por aquí, si sabe que ha de hocicar con ella... O será que lo ignora... ¿Qué piensas, 79 ―frívola, insensible y ligera, al par que vanidosa y coqueta‖. ―la independencia de que goza la mujer en los grandes centros es no sólo difícil de conservar en los pequeños, sino peligroso, porque se expone a ser blanco de esa crítica menudo de las personas desocupadas, más terrible que la calumnia misma, pues no mata de un golpe como esta una reputación, pero la envenena poco a poco entre veladas burlas, frases punzantes y sarcásticas ironías‖. 80 250 hombre? VENANCIO.- (Revolviendo en la cesta de hortalizas.) Pronto hemos de ver si vienen a posta los dos, o si la casualidad les hace empalmar en Jerusa... ¡Y que no traerán ella y él las uñas bien afiladas!... Créetelo... hemos de ver por tierra mechones de barbas blancas o de pelos rubios, y tiras de pellejo... porque si el Conde D. Rodrigo quiere a su hija política como a un dolor de muelas, ella en la misma moneda le paga (Ibidem, p.15). O desprestígio de Lucrecia fica explícito no fragmento anterior. Gregoria, além de burlar-se do indescritível afã da Condessa pela diversão, a acusa de haver abandonado as filhas em Jerusa para, assim, poder cuidar melhor de sua vida, o que fora interpretado por ela como um grave ato de egoísmo. Na quarta cena da segunda jornada− no diálogo entre Vicenta, dom Carmelo e Consuelito− a viúva rica e alcoviteira também deixará claro o seu ponto de vista sobre a Condessa de Laín, demonstrando sentir um perverso prazer em caluniar a reputação dela, a partir de murmurinhos alheios e de instigantes insinuações. Vejamos o que diz Consuelo: CONSUELITO.- A esta buena señora no le vendría mal mirar un poquito por su reputación... Ella será buena; pero no puede hacerlo creer a nadie. LA ALCALDESA.- Chitón, Consuelo. Lucrecia está en mi casa. EL CURA.De todas las historias que por ahí corren, descontemos lo que añaden la malicia, la envidia, el afán de los chistes, y... CONSUELITO.- Quite usted todo el jierro que quiera, y siempre quedará lo que es público y notorio. LA ALCALDESA.- ¿Y quién te asegura que no sea invención? CONSUELITO.- No creo en las invenciones, ni siquiera en la de la pólvora... Esta Vicenta, cuando se pone a no querer entender las cosas... LA ALCALDESA.- Indicábamos que podría ser invención... CONSUELITO.- ¿He inventado yo que esta buena señora no tenía ni pizca de amor a su marido... y que le dejó morir como un perro en una fonda de Valencia? LA ALCALDESA.- ¡Consuelo, por Dios...! CONSUELITO.- Hija, en Madrid lo oí... Los chicos de la calle no sabían otra cosa. Bueno: que es mentira. ¿Queréis que diga y 251 sostenga que miente todo el mundo? Pues lo digo: a benevolencia nadie me gana. Pero también os aseguro una cosa: en mi fuero interno creo que el Conde de Albrit tiene razón en odiar a su nuera, y lo pruebo, como diría Senén. EL CURA.- (Riendo.) Recomiéndele usted a su fuero interno que no sea tan malicioso. CONSUELITO.- Pero no puedo recomendar a mis ojos que no vean lo que ven; y han visto que la cara de la Condesa se queda como el mármol cuando le nombran a su suegro. EL CURA.- De mármol blanco. Es que tiene una tez que ya la quisiera usted para los días de fiesta. CONSUELITO.- Yo no presumo. EL CURA.- Podía... LA ALCALDESA.- (Cortando la cuestión.) Basta. Mientras esta señora esté en mi casa, yo no tolero... CONSUELITO.- Claro... pero conste que ella viene a honrarse a tu casa... no eres tú quien se honra con recibirla y agasajarla. ¡Pues no le han dado hoy poquita ovación!... Y dice que no le gustan los vivas... A poco más revienta de orgullo. EL CURA.- Señora Doña Consuelito, no abre usted la boca sin decir algo en ofensa del prójimo. Haga caso de mí, que la quiero bien: ponga mesura en sus palabras, y enfrene un poco su curiosidad de las vidas ajenas. CONSUELITO.- ¿Qué mal hay en saber lo que pasa, siendo verdad? La curiosidad es hija de Dios, y de la curiosidad nace la historia que usted cultiva, y nace la ciencia que descubre tantas cosas (Ibidem, págs.: 69-71). De todos os comentários feitos sobre Lucrecia, aqueles que mais comprometem a sua dignidade são proferidos por dom Rodrigo, o sogro da dama. Neles, observamos a amargura e o rancor do Conde de Albrit ao falar de sua nora, a quem ele acusa ferozmente de ser a única responsável pela morte de Rafael e consequentemente pela desgraça da família. E para melhor ilustrar essa nítida discórdia entre o Conde e Lucrecia, nos pareceu importante apresentar o diálogo em que o velho Albrit deixa patente o seu ponto de vista sobre a Condessa de Laín. Vejamos a cena em que as personagens dialogam: EL CONDE.- Extranjera por la nacionalidad, y más aún por los sentimientos, jamás se identificó usted con mi familia, ni con el 252 carácter español. Contra mi voluntad mi adorado Rafael eligió por esposa a la hija de un irlandés establecido en los Estados Unidos, el cual vino aquí a negocios de petróleo... (Suspirando.) ¡Funestísima ha sido para mí la América!... Pues bien: como todo el mundo sabe, me opuse al matrimonio del Conde de Laín; luché con su obstinación y ceguera... fui vencido. Me han dado la razón el tiempo y usted; usted, sí, haciendo infeliz a mi hijo, y acelerando su muerte. LUCRECIA.- (Airada, y todavía medrosa.) Señor Conde... eso no es verdad. EL CONDE.- (Fríamente autoritario.) Señora Condesa, es verdad lo que digo. Mi pobre hijo ha muerto de tristeza, de dolor, de vergüenza. LUCRECIA.- (Sacando fuerzas de flaqueza.) No puedo tolerar... EL CONDE.- Calma, calma. No se acalore usted tan pronto... cuando apenas he comenzado... LUCRECIA.- Es monstruoso que se me pida una entrevista para mortificarme, para ultrajarme. (Afligida.) Señor Conde, usted nunca me ha querido. EL CONDE.- Nunca... Ya ve usted si soy sincero. Mi penetración, mi conocimiento del mundo no me engañaban. Desde que vi a Lucrecia Richmond la tuve por mala, y si en algo han fallado mis augurios ha sido en que... en que salió usted peor de lo que yo pensaba y temía (Ibidem, págs.: 77-78). No diálogo, dom Rodrigo, tomado pela ira proveniente da perda do filho, acusa Lucrecia de ter agido de forma leviana, atribuindo a promiscuidade da nora à sua nacionalidade, que, segundo ele, muito divergia da perspectiva ideal que tinha da mulher espanhola, casta e fiel ao lar e ao marido. Via com repúdio o espírito independente que nutria a alma da Condessa, que em razão da personalidade acentuada irá transgredir o modelo de feminilidade que toda a mulher oitocentista deveria impreterivelmente seguir, baseado no recato, no pudor e na contenção dos desejos. Por ser uma figura transgressora, Lucrecia se opõe a esse modelo tão difundido pela Igreja, pelo Estado e, sobretudo, pela família, o que por si só servirá de motivo para que dom Rodrigo a acuse de impostora e de mau caráter. 253 Fora as explícitas e ofensivas acusações feitas por pelo Conde de Albrit, na intenção de intimá-la e levá-la a confessar o segredo sobre a identidade da verdadeira neta, a conversa entre o sogro e a nora também é marcada por outro aspecto indiscutivelmente interessante: a dissimulação feminina, um dos temas a ser trabalhado por nós, de forma mais aprofundada, no próximo capítulo de nossa tese. Lucrecia, em razão dos constantes ataques, sente-se coagida e a dissimulação funciona, aqui, como um importante recurso utilizado por ela para enganar o Conde, dando-lhe estrategicamente a impressão de inocência e de estar sendo injustiçada, sustentando, assim, uma imagem de ―pobre mujer‖ (Ibidem, p.80). Vejamos: LUCRECIA.- (Intentando tomar una posición ofensiva.) Es usted, según creo, el hombre de las equivocaciones, y bien puede decirse que todo aquello en que pone la mano le sale mal. Le hacen creer que el Gobierno peruano está dispuesto a reconocerle la propiedad de las minas de Hualgayos, y se embarca, la cabeza llena de viento, discurriendo cómo traerá la enorme carga de millones que allá le tenían muy guardaditos... Pero la realidad le deparó tan sólo desprecios, cansancio inútil, humillaciones... Y no teniendo sobre quién descargar su despecho, se resuelve contra una pobre mujer, y la injuria y la maldice. EL CONDE.- Si al regresar de aquella excursión que consumó mi ruina hubiera yo encontrado a mi hijo vivo, su cariño me habría hecho olvidar mi triste situación. Pero la muerte de Rafael, acaecida hace cuatro meses, avivó en mí la irascibilidad, despecho si usted quiere, el sabor amargo que en mi alma dejaron las desdichas... y avivó también el odio a la persona que creo responsable de la infelicidad y de la muerte de aquel hombre tan bueno y leal. LUCRECIA.- (Altanera.) ¡Responsable yo de su muerte! Eso es una infamia, señor Conde. EL CONDE.- (Con gran entereza.) Mi hijo ha muerto... del abatimiento, del bochorno a que le llevaron los escándalos de su esposa. Eso lo sabe todo el mundo. LUCRECIA.- (Airada, levantándose.) Mire usted lo que dice. Se hace usted eco de viles calumnias. Tengo enemigos. EL CONDE.- Más que los enemigos, difaman a Lucrecia Richmond... sus amigos. LUCRECIA.- (Desconcertada.) Repito que es calumnia. EL CONDE.- (Levantándose también.) Ahora lo veremos... 254 (Con cierta dulzura.) Lucrecia... aún podría suceder que yo me equivocara, que fuese usted mejor de lo que supongo... Este error mío lo confirmaría usted, dándome con ello una dura lección, si tuviera el arranque de confesarme la verdad... LUCRECIA.- (Aturdida.) ¿La verdad?... EL CONDE.- Sí... sobre un punto delicadísimo sobre el cual le interrogaré. LUCRECIA.- (Medrosa.) ¿Cuándo? EL CONDE.- Ahora mismo... sí, y contestándome sin pérdida de tiempo, me proporcionará el placer inefable de perdonarla. Crea usted que al fin de mi vida, quebrantado, triste, moribundo casi, el perdonar es gran consuelo para mí. LUCRECIA.- (Con terror.) ¡Interrogarme! ¿Soy acaso criminal? EL CONDE.- Sí. LUCRECIA.- (Luchando con su conciencia, que anhela manifestarse.) Todos somos imperfectos... No me tengo por impecable... ¿Pero a usted... quién le ha hecho confesor... y juez? EL CONDE.- Me hago yo mismo... Quiero y debo serlo, como jefe de la familia de Albrit, y guardador de su decoro. LUCRECIA.- (Con pánico, queriendo huir.) Esto es insoportable... No puedo más... (Ibidem, págs.: 80-81). Também gostaríamos de comentar que, além do discurso da personagem, a dissimulação de Lucrecia é igualmente percebida pelo discurso do narrador que, através do enfático uso das didascálias, consegue deixar evidente o estado emocional da Condessa que, para disfarçar sua culpa, não hesitará em passar-se por vítima. E para melhor apresentar esse comportamento assumido pela personagem, nos pareceu de indiscutível importância citar o fragmento em que Lucrecia, no intuito de diminuir o seu remorso, acusa o falecido marido de tê-la introduzido num ambiente frívolo, de pessoas sem consciência, convivência que acabou contribuindo para o desgaste do recente matrimônio: LUCRECIA.- Digo que Rafael, llevándome desde el principio, contra mi gusto, a la esfera social más favorable a la relajación del vínculo matrimonial, contribuyó a perderme. Me vi rodeada de gente frívola, de aduladores, de personas sin conciencia... EL CONDE.- ¡Sin conciencia! Tuviérala usted, ¿y qué le 255 importaban los demás? LUCRECIA.- (Premiosa.) En aquel ambiente no supe o no pude combatir el mal. A mi lado no tenía un censor severo de mi propia debilidad, un guardián vigilante... (Ibidem, p.85). Através dos argumentos anteriores, Lucrecia tenta convencê-lo de que não fora a única culpada pela crise no casamento, tal como afirmava persistentemente o velho leão de Albrit, que pouco se comove com a argumentação da nora. As críticas, pelo contrário, tornam-se cada vez mais agravantes, o que faz Lucrecia desesperarse, principalmente quando o Conde faz alusão à carta deixada pelo filho morto. E ao saber que nela estava registrada a confissão de que uma das netas de dom Rodrigo era fruto da traição de Lucrecia com o pintor Carlos Eraul, a personagem, motivada pela pressão, chega a mentir ―maquinalmente‖ (Ibidem, p.87), segundo o narrador, negando o que para ela tratava-se de uma verdade irretorquível. Vejamos a reação da Condessa: EL CONDE.- Basta que yo repita su contenido. La sé de memoria. LUCRECIA.No basta... Si me acusa, necesito leerla, reconocer su letra... EL CONDE.- No es preciso. Yo no miento. Bien lo sabe usted... Principia con un párrafo de amargas quejas que pintan la discordia matrimonial, lo inconciliable de los caracteres. Siguen estos gravísimos conceptos: (Repitiéndolos palabra por palabra.) «Te anuncio que si no me envías pronto a mi hija, la reclamaré. Quiero tenerla a mi lado. La otra... la que, según declaración tuya en la desdichada carta que escribiste a Eraul, y que pusieron en mi mano sus enemigos... no es hija mía... te la dejo, te la entrego, te la arrojo a la cara... (Pausa silenciosa.) LUCRECIA.- (Con estupor, que casi es embrutecimiento.) ¿Eso decía... eso dice...? EL CONDE.- Esto dice... (Repitiendo con pausa.) «La otra... la que no es mi hija, te la dejo, te la entrego, te la arrojo a la cara». Y luego añade: «Ya sabes que lo sé. No puedes negármelo... Tengo pruebas». LUCRECIA.- (Buscando una salida.) ¡Pruebas!... ¡Quiero ver la carta! 256 EL CONDE.- ¿Duda usted de lo que digo...? LUCRECIA.- No lo dudo... no sé... Pero la carta puede ser falsa. La escribiría algún enemigo mío para vilipendiarme. EL CONDE.- (Con ademán de sacar la carta.) La escribió mi hijo. LUCRECIA.- (Espantada.) No, no quiero verla... ¡Qué abominación! EL CONDE.- Luego, usted niega... LUCRECIA.- (Maquinalmente.) ¡Lo niego! (Ibidem, págs.: 86-87). Fracassadas as tentativas de fazer com que dom Rodrigo desistisse do obstinado projeto de descobrir qual das duas netas era a verdadeira herdeira dos Albrit, iguais foram as intenções de se ver livre do chantagista Senén, a quem Lucrecia muito temia por saber de diversos e comprometedores segredos seus. E foi justamente por saber demais que o inescrupuloso passou a intimidar a Condessa, que, mesmo contrariada, acabou cedendo aos ambiciosos caprichos do impertinente empregado. Observemos o extenso diálogo entre ambos, enriquecido pelo enfático uso das didascálias, que tão bem ilustram as emoções sentidas pelas personagens: LUCRECIA.(Sentada a la sombra de una magnolia frondosísima.) Ya sé que has visto a ese hombre, que le has hablado. SENÉN.- (En pie, respetuoso.) Viene de malas. LUCRECIA.- (Disimulando su miedo.) ¿Y qué me importa? Forzoso es darle algo para que viva... Me dejará en paz. SENÉN.Lo dudo... Como soberbio que es, no querrá limosna; como quisquilloso y camorrista, querrá escándalo. LUCRECIA.- (Trémula.) ¡Escándalo!... ¿Qué?... ¿te ha dicho algo? SENÉN.- (Haciéndose el misterioso.) A mí, no... En Madrid, un amigo mío que vivió en Valencia con el señor Conde, me dijo que éste, desde la muerte de su hijo (Dios le tenga en su gloria), no vive más que para un fin: revolver lo pasado, los desechos del pasado... LUCRECIA.- Como los traperos en los motones de basura. SENÉN.- Revolver para sacar... lo que encuentre. LUCRECIA.- (Muy inquieta.) Y a ti te haría mil preguntas... 257 Sabe que fuiste mi criado... y los criados siempre poseen algún secreto... digo mal, algún dato de las intimidades de sus amos. SENÉN.- (Enfáticamente.) En mí tuvo y tendrá siempre la señora Condesa un servidor leal... LUCRECIA.- Lo sé... Confío en ti. SENÉN.- Y aunque no me obligaran a la lealtad los motivos de agradecimiento que me hacen esclavo de la señora, seré fiel y seguro, porque tengo la honradez metida en las entrañas... LUCRECIA.- Lo sé... (Apuradisíma por librar su olfato del insoportable perfume de heliotropo que SENÉN despide de su ropa, saca el pañuelo, y se acaricia con él la nariz, fingiendo constipación.) SENÉN.- Sirvo a la Condesa de Laín desinteresadamente en todo aquello que guste mandarme, sea lo que fuere... Pero no olvide la señora que su humilde protegido, el pobre Senén, no merece quedarse a mitad del camino en su carrera. LUCRECIA.- (Con hastío y desdén.) ¿Pero qué... quieres más? ¿Solicitas otro ascenso? Ahora es imposible. SENÉN.- (Quejumbroso.) No es eso. Por la administración a secas no se va a ninguna parte. LUCRECIA.- ¿Pues qué pretendes?... Dilo pronto y acaba de una vez. ¿Quieres el arzobispado de Toledo o la cruz laureada de San Fernando? SENÉN.- Aspiro a una posición obscura y de mucho trabajo, con lo cual podré asegurar mi subsistencia en lo que me quede de vida. LUCRECIA.- (Impaciente, deseando que se vaya.) Bueno: la tendrás. ¿Es cosa que puedo hacer yo? SENÉN.- Facilísimamente, no dejando pasar la ocasión. Es cosa muy sencilla. Que me nombren agente ejecutivo de la cobranza de Derechos Reales. LUCRECIA.- ¿Y eso da dinero? SENÉN.- ¡Que si da!... LUCRECIA.- ¿De modo que pidiéndolo al Ministro...? SENÉN.- Como tenerlo en la mano. LUCRECIA.(Levantándose, por huir del perfume y del perfumado.) Si es así, cuenta con ello. SENÉN.- Permítame la señora un momentito... LUCRECIA.- ¡Insufrible pedigüeño! ¿Todavía más? SENÉN.- Se me olvidó decir a la señora que para desempeñar ese cargo necesito fianza. LUCRECIA.- (Muy displicente.) ¿También eso? SENÉN.- Una fuerte fianza. LUCRECIA.- (Sofocando su ira.) Yo no puedo ponértela... SENÉN.- (Dando un paso hacia ella.) Pero el señor Marqués de Pescara me la facilitará sólo con que la señora se lo diga... o 258 se lo mande. LUCRECIA.¡Oh!... Esto ya es absurdo... Pides cosas difíciles, enfadosas. SENÉN.- (Dando un paso en seguimiento de LA CONDESA, que se aleja.) Si la señora no quiere molestarse para que yo salga de pobre, no he dicho nada... Se me olvidaba manifestarle que el dinero estará seguro, y el señor Marqués cobrará intereses de la Caja de Depósitos. LUCRECIA.(Deseando concluir.) Está bien... Pero es dudoso que yo pueda ver a Ricardo... SENÉN.- (Con seguridad.) Le verá mañana o pasado. LUCRECIA.- (Con súbito interés, aproximándose a él, sin temor a la fragancia hetiotrópica.) ¿Dónde?... ¿Qué dices?... ¿Dónde? SENÉN.- En Verola, a donde la señora va desde aquí. LUCRECIA.- ¿Y cómo lo sabes? SENÉN.- Cuando lo digo, es porque lo sé... y lo pruebo. LUCRECIA.- ¡Él también en Verola!... ¡Ah!, lo sabes por su ayuda de cámara, que es tu primo. ¿Estás seguro? SENÉN.- Prométame la señora que si encuentra allí al señor Marqués le pedirá la fianza. Con eso me basta. LUCRECIA.(Rehaciéndose, avergonzada de sostener coloquio familiar con un inferior.) Yo veré... Ignoro en qué disposición encontraré a Ricardo. SENÉN.- (Muy animado.) Prométame hablarle de mi fianza si le encuentra en buena disposición. Me conformo. LUCRECIA.- Te prometo no olvidar el asunto, mirarlo con interés... siempre que tú me asegures una lealtad a toda prueba... SENÉN.- (Con aspavientos de adhesión.) ¡Señora!... LUCRECIA.- (Tapándose la nariz.) Retírate... SENÉN.- ¿Qué... está la señora constipada? LUCRECIA.- (Burlona.) No, hombre... Es que usas unos perfumes tan fuertes, que no se puede estar a tu lado... Vete ya. SENÉN.(Turbado.) Pues yo creía... No molesto más... (Saludando a distancia.) Señora... LUCRECIA.- (Agitando con su pañuelo el aire, para alejar los miasmas olorosos.) ¡Qué desgraciada soy, Dios mío! ¡Tener que soportar a ese animalejo, y oírle, y olerle... sólo porque le temo!... (Ibidem, págs.: 71-74). No diálogo, observamos que Senén, antes de fazer o pedido à Condessa, comenta-lhe como fora a conversa que tivera com o furioso dom Rodrigo, com o objetivo de persuadi-la de sua ―estimada fidelidade‖, já que nada falara sobre o 259 romance proibido nem muito menos sobre a filha que nascera dessa relação clandestina. Jurada a pretensiosa lealdade, Lucrecia acaba aceitando o audacioso pedido de Senén, demonstrando, com isso, fragilidade e medo, sentimentos incompatíveis com a imagem de ―gran potencia‖, assim definida pelo Conde. Não obstante, é preciso comentar que o temor da Condessa não será algo persistente. A personagem recobrará toda sua força e potencial no enfrentamento com o ambicioso Senén, negando-lhe o pedido, reação que imediatamente nos leva a pensar na comparação feita pelo narrador de El Abuelo na acotação destinada à apresentação de Lucrecia, mulher de ―mirar sereno y triste, como tigre enjaulado que dormita sin acordarse de que es fiera‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.57). A Condessa, antes resignada à chantagem de Senén, decide despertar, dando fim à angustiante sensação que a atormentava a ponto de causar-lhe uma profunda tristeza. E para ilustrar a indiferença da Condessa de Laín ao ―animalucho siniestro‖ (Ibidem, p.223), nos pareceu oportuno citar um fragmento do diálogo em que Lucrecia, com uma altivez inquestionável, o menospreza, afirmando não mais temer o interesseiro silêncio dele: LUCRECIA.- (Interrumpiéndole.) ¿Pero de dónde sales tú? En ese mundo de tu ambición ridícula se pierde, por lo visto, toda noción de la realidad. Está bien: yo no tengo más que hacer que importunar a todos mis amigos, pidiendo fianzas para este gaznápiro. SENÉN.- (Escondiendo las uñas.) Sí, ya sé... la señora no puede... ¡Qué le hemos de hacer! Es difícil... y además, ¿quién soy yo para que la señora se moleste por mí? No, no lo pretendo. Los servicios que he prestado a la Condesa de Laín, mi lealtad a toda prueba, ¿qué valen? LUCRECIA.- (Con arrogancia.) Tus servicios bien pagados están. Ea, me canso ya de contemplaciones. Senén, no te debo nada. SENÉN.- (Erizándose el pelo.) Bueno... sea como la señora dice. Yo me callo. Eso he hecho yo toda mi vida, callarme; y de tanto callar, me veo tan atrasado en mi carrera... de tanto callar, 260 sí, señora; y si quieren que lo pruebe, lo pruebo. LUCRECIA.- Tu silencio me importa ya tan poco, que no doy nada por él... No me tiene cuenta (Ibidem, págs.: 222-223). Outra notável reação da personagem pode ser apreciada na oitava cena da quinta jornada, mais especificamente na segunda conversa que tivera a sós com dom Rodrigo. Nela, apreciamos uma significativa mudança no comportamento da Condessa que, por sua vez, se mostra mais receptiva e indiscutivelmente mais carinhosa. A personagem, após uma profunda crise nervosa, afirma estar arrependida, o que a leva a pedir perdão ao sogro pelos consecutivos ataques proferidos no primeiro encontro entre eles, retratado na oitava cena da quinta jornada. Vejamos o diálogo: LUCRECIA.- (Un tanto cohibida.) Como por encanto se me ha quitado la pereza. Ya sabe usted que estos arrechuchos nerviosos... la epidemia de las señoras... de improviso nos acometen y de improviso también se nos pasan. EL CONDE.- (Suspicaz.) Lo celebro mucho. LUCRECIA.- Enfermamos como heridas del rayo, y basta una vibración del aire para ponernos buenas. De la espantosa crisis sólo me queda cierta alegría interna, y un deseo ardientísimo, irresistible... EL CONDE.- (Suspenso.) ¿Qué...? LUCRECIA.- El deseo de besarle a usted la mano... (Se arrodilla y le besa la mano una y otra vez.) y de pedirle perdón por las injurias que aquel día triste le dirigí. EL CONDE.- (Queriendo levantarla.) Lucrecia... ¿qué es esto?... (Por un momento cree que es burla; pero no tarda en advertir la sincera emoción de la dama.) LUCRECIA.- Mi única pena es que usted sospechará quizá... que le engaño. EL CONDE.- No, no; creo que es verdad... LUCRECIA.- (Que se levanta, enjugando sus lágrimas.) Necesito explicar a usted cómo ha venido esta crisis... sacudimiento moral, revolución de todo mi ser... (Se sienta. Su lenguaje es cortado, febril.) Los temblores de tierra trastornan el suelo... Una catástrofe horrible en mis sentimientos me ha trastornado a mí, me ha hecho morir y revivir en menos de dos días... ¿Es esto nuevo? Yo creo que no. Ha ocurrido mil veces... 261 Fácilmente lo comprenderá usted... Un desengaño de los que anonadan... la perfidia de un hombre... tempestades del alma que todo lo destruyen y todo lo iluminan. Mi dolor ha sido como un incendio entre las ruinas... He visto mi conciencia... la he visto. Ya sé que no debo ser la que he sido, y estoy decidida a ser otra (Ibidem, págs.: 225-226). Passada a crise, seguramente acarretada pela insegurança e pelo medo de ter a verdade revelada, a personagem recobra a consciência e consequentemente a força, de modo que não só reconhece todos os erros que cometera no passado como também pede desculpas por eles. Lucrecia, não obstante, tem de lutar com a resistência do obstinado dom Rodrigo que, mesmo depois da humilde e nobre reação da nora, não consegue perdoá-la. A agitação e o antigo desconforto voltam a atormentá-la, o que a faz solicitar a presença do médico− dom Salvador −, que cuidará do corpo, e a do padre− dom Carmelo−, que, por sua vez, tratará da alma, mostrando ser a medicina e a religião dois campos essenciais à vida da personagem. Ainda com os ânimos alterados, por nenhum momento a vemos manifestar qualquer tipo de ressentimento, pelo contrário, passa a demonstrar um notável carinho pelo Conde, fato que revela a autenticidade da mudança sofrida por ela. E essa emergente afetuosidade de Lucrecia por dom Rodrigo pode ser percebida tanto na sua fala: ―(...) debemos compadecerle, cuidar de él con todo cariño‖ (Ibidem, p.231), como também na sua escrita, como vemos na carta enviada por ela ao Conde de Albrit, que fora lida por Dolly: ―Señor Conde. Puesto que usted quiere a Dolly y Dolly le quiere, doy consentimiento para que viva en su compañía por sus días. Y que éstos sean muchos desea ardientemente su hija, Lucrecia‖ (Ibidem, p.253), em que a Condessa faz questão de pronunciar-se como ―filha‖ de dom Rodrigo, demonstrando, desta forma, um afeto até então jamais declarado. 262 De todas as figuras femininas de El Abuelo, não há dúvidas de que Nell, Dolly e Lucrecia são as mais significativas de toda a obra, em razão da acentuada personalidade de cada uma delas e das transformações que ambas sofreram ao longo das cinco jornadas da segunda narrativa dialogada de Benito Pérez Galdós. Entretanto, ainda que tenhamos concentrado grande parte de nossa atenção nessas três portentosas construções, nos pareceu indispensável tecer também um breve comentário sobre outras três personagens de El Abuelo: Gregoria, Consuelo e Vicenta, de modo a aprofundar ainda mais o nosso estudo sobre as subjetividades femininas no romance galdosiano. 3.2.3. Personagens secundárias: Gregoria, Consuelo e Vicenta 3.2.3.1. Gregoria Você diz que minha rosa é frágil Que o meu samba é plágio E é só lugar comum No fim do mês sei que você vem ágil Passa um curto estágio E eu fico sem nenhum (Chico Buarque) Dessa figura o que mais nos atraiu foi indubitavelmente o espírito interesseiro que, independente da situação, a fazia querer tirar o maior proveito de tudo e de todos. Da ambiciosa Gregoria dificilmente se vislumbra a manifestação de sentimentos nobres e despretensiosos, tais como o carinho, o amor, a bondade e a solidariedade, pois tanto suas palavras como seu comportamento tendem a omitir suas verdadeiras aspirações e desejos. Essa falta de autenticidade faz com que 263 Gregoria apresente diferentes pontos de vista que, por sua vez, vão variar de acordo com os seus interesses. Cambiante também será o seu comportamento, que pode variar desde uma suposta comoção, vide a que presenciamos na primeira cena da primeira jornada, em que a personagem afirma lamentar a deplorável situação de dom Rodrigo: ―¡Infeliz señor! Venancio, tenemos que ampararle‖ (Ibidem, p.16), até uma implacável indiferença, vislumbrada na décima terceira cena da quarta jornada, quando dá graças a Deus por ver-se livre da presença do Conde em sua casa: ―¡Y qué descanso! Ya vivimos otra vez en la gloria. Cenaremos tranquilos y nos acostaremos dando gracias a Dios‖ (Ibidem, p.194). A aparente ternura e solidariedade demonstradas por Gregoria no início da obra tratam-se, pois, de manifestações inautênticas, longe de serem verdadeiras, o que justifica o tratamento pouco privilegiado dado ao Conde de Albrit, antigo proprietário de La Pardina. A presença de dom Rodrigo acaba tornando-se, em razão da conflitante relação do mesmo com a nora, o principal motivo de discórdia entre o casal de colonos, que, muito insatisfeito com a permanência do antigo senhor, faz de tudo para tornar a convivência cada vez mais desastrosa e intolerável. E no intuito de ilustrar o descaso de Gregoria com dom Rodrigo, nos pareceu interessante citar um fragmento da conversa entre o médico, o padre, Venâncio, Gregoria e o Conde, em que este último, através de uma fina ironia, critica a mulher por suspender-lhe a bebida que mais apreciava: o café, deixando explícita a falta de consideração de Gregoria. Vejamos: VENANCIO.- Señor, díganos las cosas claras. EL CONDE.- Digo lo que siento. Y otra: tienes una mujer que no te la mereces. Esta Gregoria vale más que pesa, y con su 264 instinto de gobernante de casa te ayudará, te empujará para que subas pronto a la cima de la opulencia. GREGORIA.- (Asustada.) Señor, ¿por qué lo dice? EL CONDE.- Porque es verdad. ¡Cuánto siento no estar ya en edad de tomaros por modelo! EL CURA.- ¿Pero qué...? EL CONDE.- Que esta Gregoria, con su arte sublime de mujer casera, me ha suprimido mi bebida favorita: el buen café. GREGORIA.- Señor, si se lo llevé esta mañana. EL CONDE.- Me serviste un cocimiento de achicoria, recalentado y frío, que... Pero no te riño, no. Si está muy bien. Siempre me dais mucho más de lo que merece este pobre viejo inútil, enfadoso... Prosperad, prosperad vosotros, y que os vea yo llenos de bienestar, desde el fondo de esta miseria en que he caído (Ibidem, págs.: 107-108). Além da notória mesquinharia da personagem, outro significativo episódio que revela a natureza sovina de Gregoria encontra-se logo no início da primeira jornada, na conversa dela com o marido. Do diálogo, também podemos observar a inexpressiva consideração da mulher com as meninas, Leonora e Dorotea, cuidadas por ela e por Venâncio apenas em troca de dinheiro. A cada trimestre o casal recebia da Condessa uma remuneração pelos cuidados com Nell e Dolly, e, ao cogitar o fato de Lucrecia ter voltado a Jerusa para levar as filhas a Madrid, Gregoria temeu pela perda do capital, evidenciando, desta forma, o espírito ganancioso da personagem que, por nenhum momento, demonstrou tristeza pela possível partida das travessas meninas. Citamos: GREGORIA.- (Asaltada de una idea.) ¡Ay, Venancio de mi alma, lo que se me ocurre! ¡No haber caído en ello ni tú ni yo! ¿Apostamos a que Doña Lucrecia viene a llevarse sus niñas? VENANCIO.- (Permaneciendo largo rato con la boca abierta.) Puede que aciertes... Ya son grandecitas... mujercitas ya. Pues, mira, nos fastidia... GREGORIA.- ¡Hijo de mi alma, cuándo nos caerá otra breva como esta! VENANCIO.- (Paseándose meditabundo.) No es mucho lo que nos pasa cada trimestre por cuidarlas y mantenerlas; pero algo es algo: rentita puntual, saneada... No, no: verás cómo no se las 265 lleva. GREGORIA.- ¡Ea!, no nos devanemos los sesos por adivinar hoy lo que sabremos mañana. (Dispónese a pasar a la casa.) (Ibidem, págs.: 17-18). Fora a ganância desmedida, constatamos também que Gregoria, tal como o marido, compartilha o mesmo ponto de vista sobre a Condessa de Laín, o que, como vimos, vem aclarar o conceito de polifonia, difundido por Bakhtin em muitas de suas obras ao tratar da heterogeneidade discursiva dentro do romance, gênero em que as diversas vozes sociais irão se defrontar ou até mesmo se aproximarem de forma a manifestar diferentes ou semelhantes pontos de vista sobre um determinado objeto. O casal é enfático em caluniá-la, e o faz a partir de termos inegavelmente pejorativos, tais como os substantivos ―culebrón‖ (Ibidem, p.17), ―berganata‖ (Ibidem, p.17), ―tununta‖ (Ibidem, p.15) e os enunciados ―ruin pécora‖ (Ibidem, p.15), ―condenada extranjera‖ (Ibidem, p.15) e ―mala sombra de família‖ (Ibidem, p.17). Assim como Gregoria, outra personagem feminina empenhada em difamar Lucrecia Richmond, seja em razão da inveja, seja simplesmente por puro prazer, é Consuelo, a viúva rica e alcoviteira. 3.2.3.2. Consuelo É pior do que cobra cascavel Seu veneno é cruel (Rita Lee) Conhecida também pelo apelido de La solitaria, em razão da viuvez e da ausência de filhos, a personagem, que era prima do prefeito de Jerusa, se ocupava de 266 investigar vidas alheias, tornando-se, segundo o narrador de EL Abuelo, ―un viviente archivo de historias, enredos y chismes‖ (Ibidem, p.65). E essa necessidade quase doentia e incontrolável da personagem de falar da vida dos outros, não se importando com a repercussão que os comentários, quase sempre difamatórios, poderiam apresentar, deve ser atribuída a dos importantes fatores: o primeiro, à falta de caráter, já que o faz consciente, e o segundo, à solidão, que a amargurava e a impedia de ver beleza na vida. Da análise sobre os aspectos mais sobressalentes da subjetividade de Consuelo, um dos pontos que mais despertou nossa atenção foi, sem dúvida alguma, o fato de a própria se reconhecer como intrigante, demonstrando, assim, um sórdido interesse pela vida dos conhecidos, em especial da Condessa de Laín. E é justamente esse explícito reconhecimento que lhe dá um contorno cômico, burlesco, notavelmente apreciado na quarta cena da quinta jornada, mais especificamente quando debocha dos amigos– Vicenta, dom José, dom Carmelo e Senén– acusandolhes ironicamente de serem mais fofoqueiros que ela. Vejamos o que diz a sarcástica viúva sobre os companheiros: CONSUELITO.- (Gozosa.) Ya estoy de vuelta, y con las alforjas bien repletas. EL CURA.- ¿La de la espalda? CONSUELITO.- Las dos... Sois unos mandrias, que aguantáis, sin rascaros la comezón de la curiosidad. Yo no puedo: o averiguo lo que no sé, o reviento. EL ALCALDE.- ¿Sabes algo, maestra? CONSUELITO.- ¿Cómo algo? EL CURA.- Y algos. CONSUELITO.- No me ofendáis suponiendo que sé las cosas a medias. No: Consuelo Briján, o las ignora por entero, o las sabe de cabo a rabo; y todo, todito lo que pasó ayer en Verola lo conoce ya... y vosotros... ni palabra... y estáis rabiando porque yo os lo cuente: de donde resulta que sois tan curiosones como yo; pero hipócritas al propio tiempo, porque os regaláis con la 267 fruta que buscan los que llamáis chismosos... ¡Ay, dejadme que me siente!... estoy cansadísima... he venido volando para contaros... No, no: punto en boca. Ahora me vengo de los hipocritones, negándome a darles la golosina... (Gozándose en la ansiedad de los que la rodean.) No, no: no digo nada. Sois más fisgones que yo, y más ávidos del escándalo ajeno que yo... Mira, mira los ojos chispos del Alcaldillo... Y el curita... cómo se relame esperando el dulce... Pues me callo... Soy muy discreta... No me gusta meterme en vidas ajenas. (Con énfasis cómico.) Es pecado; es falta de caridad, de delicadeza... Cada cual se las arregle para buscar la comidilla, que a mí mi trabajito me ha costado sacarla de las entrañas de la tierra. ¡Ahora se fastidian, se fastidian! (Ibidem, págs.: 213-214). Esse aspecto risível de Consuelo ganha contornos mais acentuados quando a personagem, ainda nesse mesmo episódio, afirma só revelar o rumor, tida por ela como ―la noticia gorda, la bomba final‖ (Ibidem, p.215), caso ficasse com o tacho de doce de coco com batata que Vicenta havia ganhado da confeitaria, pedido que manifesta a gargalhada de muitos, devido à irreverência da viúva. Observemos a cena em que a gulosa negocia o doce pelo tão aguardado boato: CONSUELITO.- Me has de dar el tarro de dulce de coco con batata que recibiste ayer de la confitería. Ya sabes que me muero por el coco. EL CURA.- (A carcajadas.) Golosa había de ser. EL ALCALDE.- Está bueno. ¡Que le den el dulce por las mentiras! CONSUELITO.- (Poniendo morros.) Pues si no me lo dan, no hay caso. No suelto uma palabra. LA ALCALDESA.- Hija, no: lo que es el coco, no lo catas... CONSUELITO.- Pues no cataréis vosotros la miel que tanto os gusta... ¿Ves, ves al curita cómo se relame?... EL CURA.- (Riendo.) Vicenta, dele usted el tarro, ¡por San Blas!, porque si no se lo dan, no habla; y si no habla, revienta. LA ALCALDESA.- Bueno; le cederé la mitad. CONSUELITO.- Anda, cicatera... Pues la noticia es que a Lucrecia le dieron como unos siete ataques espasmódicos seguiditos. EL ALCALDE.- Bah, bah... CONSUELITO.- Espérate... Y se tiró de los pelos, y se abofeteó a sí misma, diciéndose por su propia boca muchas más 268 abominaciones que han dicho de ella las bocas de los demás (Ibidem, págs.: 215-216). Outra personagem a ser sucintamente comentada por nós, já que dela não possuímos materiais suficientes para uma análise mais aprofundada, é Vicenta, a mulher de José María Monedero, o prefeito de Jerusa. 3.2.3.3. Vicenta Ninguém nunca sabe Que males se apronta Fazendo de conta Fingindo esquecer (Toquinho e Vinícius de Moraes) Na breve didascália dedicada à apresentação de Vicenta, o narrador galdosiano procura enfatizar a forçada necessidade da senhora em aparentar elegância e fineza, o que acaba transparecendo em seus atos, palavras e, inclusive, gestos, tal como podemos comprovar no fragmento a seguir: LA ALCALDESA, señora enjuta y menudita, que no tiene en aquel momento más preocupación que aparecer fina, y este singular estado de su espíritu, con la tirantez consiguiente, se revela en todos sus actos, en sus palabras melosas, y hasta en los mohines estudiados de su boca y nariz. Viste bata azul, elegante, que le han enviado de Madrid (Ibidem, p.58). Na acotação anterior, fica explícita a constante preocupação manifestada por Vicenta que, a todo o momento, buscava aparentar à sociedade jerusense uma imagem refinada à base de muita elegância e delicadeza. E essa preocupação acaba 269 dando-lhe, muitas vezes, um aspecto artificioso, que está bem longe de ser original e autêntico. Ainda que não sejam muitas, em El Abuelo há algumas cenas, sobretudo, as que se encontram marcadas pelas intervenções do narrador, a partir das acotações, em que podemos apreciar esse nítido empenho de Vicenta em aparecer sempre como a figura que se destaca pela delicadeza e primor, e para melhor ilustrar a acentuada finura da personagem, que, como já vimos, é engenhosamente cultivada por ela, nos pareceu pertinente citar o diálogo entre Vicenta e dom Rodrigo, presente na quinta jornada do romance. Nele, podemos contemplar o desconcerto da dama, transtornada com a inesperada visita de dom Rodrigo em sua casa para falar com Lucrecia, e, em seguida, o seu recompor, ou melhor, o esforço que faz para recobrar a serenidade e a delicadeza, tidas por ela como sinais de nobreza. Vejamos como a personagem se comporta diante da repentina chegada do temido Conde: EL CONDE.- Deseo hablar con Lucrecia. Y no sé con qué palabras solicitar de usted la benevolencia que necesito por esta libertad, por esta osadía de mal gusto con que llego a su casa. LA ALCALDESA.- ¡Oh, señor Conde...! EL CONDE.- Es que su esposo de usted y yo no hacemos buenas migas. Anoche hemos cruzado algunas palabras un tanto mordaces... Si el Sr. Monedero me arroja de su casa lo llevaré con paciencia... (LA ALCALDESA, sin saber qué decir, hace con ojos y boca diferentes muecas y monerías.) Ya no me importa. En el conflicto en que me veo, la dignidad, ¿qué digo dignidad?, la vergüenza, no significa nada para mí. Voy derecho a mi objeto con cara insensible, y mi objeto es... LA ALCALDESA.- (Recobrando su aplomo.) Ver a Lucrecia, sí. EL CONDE.- Y me atrevo a rogar a usted que haga comprender a su amiga que sólo me mueve a molestarla la necesidad imprescindible de tratar con ella, sin recriminaciones, un grave asunto de familia. LA ALCALDESA.- Yo se lo diré. No dude usted que hablaré a mi amiga con vivo interés. 270 EL CONDE.- Gracias, millones de gracias, señora mía. Carmelo quedó en proporcionarme la entrevista; mas sin duda sus ocupaciones se lo han impedido. Cansado de esperarle, deshecho, ardiendo en impaciencia, no he podido refrenar mi temperamento ejecutivo, y arrostrando el disgusto del señor Alcalde, aquí me tiene usted... LA ALCALDESA.- (Decidida a emplear un lenguaje extremadamente fino.) Abrigo la esperanza de ser afortunada en la misión que usted me confía. Pero no puedo evitar al señor Conde la molestia de esperar un ratito, porque Lucrecia, que ha venido malísima, en un estado nervioso imposible, ¡ay qué pena!, ha podido al fin conciliar el sueño. La verdad, no me atrevo a despertarla. EL CONDE.- (Alardeando de paciencia.) Aguardaré todo lo que usted quiera: tres días con sus noches, si fuese preciso. Para mí no es molestia esperar. Si para usted no lo es tener a este pobre viejo en su casa, aquí me estoy, sentadito, hasta que mi ilustre nuera se digne mejorar de sus nervios, y acuerde recibirme (Ibidem, págs.: 218-219). E não poderíamos deixar de concluir o nosso comentário sem antes atribuir grande destaque às didascálias: (Aturdida), (LA ALCALDESA, sin saber qué decir, hace con ojos y boca diferentes muecas y monerías), (Recobrando su aplomo) e (Decidida a emplear un lenguaje extremadamente fino), que, neste caso, são essenciais para enfatizar o estado emocional da personagem galdosiana. Assim como Consuelito e Gregoria, Vicenta também demonstra um notável interesse pela vida de Lucrecia Richmnond, tida por ela como ―amiga mía‖ (Ibidem, p.231), vide a cena em Consuelo chega anunciando a todos ―la noticia gorda, la bomba final‖ (Ibidem, p.215), presente na quarta cena da quinta jornada. No entanto, diferentemente da viúva intrigante e gulosa e da ambiciosa Gregoria, a mulher do prefeito, em nenhuma das cenas em que se faz presente, a calunia ou até mesmo insinua algum comentário difamatório sobre o caráter da Condessa, o que, neste aspecto, a distancia das demais personagens que não hesitavam em criticar a ―inadmissível conduta‖ da estrangeira. Vemos, sim, certa simpatia por Lucrecia, e 271 para melhor apresentá-la, nos pareceu oportuno citar um fragmento da conversa entre Vicenta e Senén, em que a mulher de José María, além de conter o riso diante da imbecilidade do empregado de Lucrecia, demonstra indignação diante do posicionamento arbitrário de dom Rodrigo, tido por ela como ―viejo extravagante‖. Vejamos a cena: LA ALCALDESA.- (Sofocando la risa.) Onomástica, Senén. SENÉN.- (Sin dar su brazo a torcer.) En Madrid lo decimos de varios modos. Decimos también fiesta morganática. LA ALCALDESA.Bien, hombre, no riñamos por una palabra... Pero no acabo de creer que el león se haya escapado de la espléndida jaula de Zaratán. Cuando lo sepa José María, ¡bueno se pondrá! ¡Y D. Carmelo tan confiado en que el Prior se daría sus mañas para retenerle! SENÉN.- Me inclino a creer que no hay quien pueda con Albrit. Para su soberbia no se han inventado jaulas ni barrotes fuertes. LA ALCALDESA.- Te advierto que las chicas no saben nada de esta conspiración para enjaular a su abuelo. SENÉN.- Conviene que lo ignoren. LA ALCALDESA.- Es un dolor que ese viejo extravagante las llame en lo mejor de la fiesta. ¡Están tan divertidas las pobres! Lo que han gozado esta tarde no puedes figurártelo. Entra, y tomarás un dulce y una copa. (SENÉN da las gracias, y trata de ganar terreno dentro de la sala; pero el apretado gentío se lo impide.) Está esto imposible... Pues sí: ahora se ve que a estas infelices niñas de Albrit les gusta la sociedad, y que para la sociedad han nacido. Da pena verlas hechas unos saltamontes, del bosque a la playa y de la playa al bosque, cuando su centro, su atmósfera, como quien dice, es la buena sociedad, el dar broma con decoro, y el divertirse lícitamente (Ibidem, págs.: 196-197). A partir da fala da personagem, que recorre ao discurso figurado, mais propriamente à metáfora para referir-se ao confinamento do Conde por meio do verbo ―enjaular‖, nos conscientizamos de que Vicenta também sabia do sórdido plano de trancafiar o obstinado avô no convento de Zaratán, elaborado pelo marido e pelos amigos, com o consentimento da Condessa. Fora o fato de ter plena consciência da conspiração, que jamais deveria ser descoberta pelas meninas de 272 Albrit, vemos também o ponto de vista de Vicenta sobre a permanência de Nell e Dolly em Jerusa. A dama acredita que, assim como a mãe, as meninas nasceram para a sociedade, o que novamente nos leva a pensar no que afirma Patrocinio Biedma (1881) a propósito das mulheres madrilenses que, longe da agitada atmosfera dos grandes centros urbanos, se desvanece, perdendo a luz e o brilho. Vê-las na provinciana Jerusa, longe de Lucrecia e a cargo de uma educação precária causavalhe uma notável tristeza, que vem ser justificada pelo enfático uso do substantivo ―pobres‖ e do adjetivo ―infelices‖ no enunciado ―infelices niñas‖. Vicenta, em oposição às demais personagens, também demonstra grande preocupação com Lucrecia− muito aturdida após a última conversa com o sogro−, aclarada na nona cena da quinta jornada. E por ter sido o episódio já citado por nós no sub-capítulo dedicado à Lucrecia Richmond, não vemos a necessidade de citá-lo novamente, findando, assim, nossos comentários sobre ela. Concluído o terceiro capítulo de nossa tese, partamos para o quarto e último, no qual buscaremos analisar preponderantemente a intrínseca relação entre a traição feminina e o ponto de honra, temas de significativa relevância dentro da literatura do Século de Ouro. 273 IV. A FIGURA DA INFIDELIDADE FEMININA EM LA REGENTA E EL ABUELO Em nossa dissertação de mestrado, intitulada ―A educação sentimental e a leitura no século XIX no romance La Regenta, de Leopoldo Alas‖, evidenciamos que as inúmeras transformações sócio-econômicas decorrentes do processo de modernização dos grandes centros urbanos proporcionaram significativas conquistas para as mulheres burguesas no séc. XIX, dentre as quais podemos destacar o relevante acesso ao mundo das letras− explicado não só pelo fomento das campanhas de alfabetização, difundidas desde a Revolução Francesa pelos filósofos iluministas, como também pelo boom literário que, consequentemente, motivou a produção e publicação de muitos livros, barateando o custo e a compra deles − e o ingresso, ainda que modesto, a determinados postos de trabalho, pautado pela lógica capitalista vigente no séc. XIX, que refletia uma visível necessidade de incorporá-las a setores específicos do mercado, tais como vemos nas indústrias têxteis e nas cada vez mais crescentes instituições escolares dedicadas à instrução de meninos e meninas. A formação desse novo panorama social, econômico, cultural e educacional na Europa no séc. XIX fez com que muitos intelectuais, artistas e profissionais da área médica direcionassem os seus olhares às mulheres oitocentistas− que, em meio a essas diversas mudanças, ainda encontravam-se majoritariamente submetidas a uma condição de inferioridade−, a fim de melhor analisá-las, tal como o fez Sigmund Freud em muitos de seus estudos, especialmente naqueles em que a mulher torna-se foco central das teorias psicanalíticas sobre a histeria, a esquizofrenia e outras possíveis enfermidades tratadas pela Psicanálise. A ciência, no entanto, não foi o único campo a demonstrar um profundo interesse pela natureza feminina. A 274 literatura, nesse aspecto, também o demonstrou, na medida em que muitos romancistas do século XIX se empenharam em levar adiante o estudo da mulher no romance, com o objetivo de não mais apresentar a figura feminina de forma superficial e abstrata, mas sim de maneira complexa, revelando os desejos e as inquietações que povoam o imaginário das mulheres oitocentistas, tal como nos revela Clarín, enquanto crítico literário, na apreciação do romance galdosiano Tormento. E é dessa explícita necessidade de se promover novos estudos sobre as mulheres no séc. XIX que nasceram das plumas dos escritores personagens femininas tão acentuadas e transgressoras, como as que encontramos nos romances realistas/ naturalistas Naná, Madame Bovary, O primo Basílio, O crime do padre Amaro, Os Maias, Dom Casmurro, Anna Karenina, La Regenta, Su único hijo, Tristana, Tormento, El Abuelo e em muitos outros. Diante de figuras tão emblemáticas como, por exemplo, a de Emma, em Madame Bovary, que, em muitas ocasiões, chega a questionar e a confrontar explicitamente a ideologia patriarcal prevalecente na sociedade francesa do século XIX, notamos que grande parte dos romances publicados neste período encontravase visceralmente compromissada com a representação do adultério feminino. Muitos foram os romancistas realistas/ naturalistas que se dedicaram a retratar os conflitos vivenciados pelas mulheres que, condenadas a uma vida infeliz, devido a um relacionamento convencional, desprovido de satisfação e de prazer, passam a ver no amor proibido uma possibilidade para a conquista da tão almejada e desconhecida felicidade. E é dentro desse rico conjunto de romances, que procuravam tratar essencialmente da figura da mulher que trai e que se faz, portanto, objeto de suspeita e de temor, que chamamos atenção para o tema da infidelidade feminina nos 275 romances espanhóis La Regenta, de Leopoldo Alas ―Clarín‖, e El Abuelo, de Benito Pérez Galdós. Nossa ideia é tratá-la como um dos mais importantes recursos femininos nesse conflitante embate entre a mulher e a sociedade oitocentista, e por ser um recurso complexo, capaz de apresentar a profundidade da natureza feminina, os jogos de engano e a aceitação ou não das normas estabelecidas pela sociedade burguesa da época, vimos que o tema da infidelidade em ambos os romances encontra-se intrinsecamente relacionada a outro tema de grande expressão dentro da tradição literária espanhola: o ―punto de honor‖, ou seja, o direito de vingança atribuído exclusivamente ao homem pelas instâncias jurídicas, pelo Estado e pela própria sociedade patriarcal do século XIX. Para Frank Henderson Stewart (1994, p.65), tudo que se considere como ―honroso‖ ou ―desonroso‖, ―próprio‖ ou ―impróprio‖ pode variar de uma sociedade para outra, o que vem corroborar, sem sombra de dúvidas, a riqueza e a profundidade do tema, de cunho universal. Na sociedade espanhola do século XIX, o conceito de honra ainda encontrava-se estritamente vinculado à fama, ou seja, à opinião pública sobre a reputação do indivíduo: ―Mas ainda que a honra se ganhe com atos próprios, depende de atos alheios, da estimação e fama que outorgam os demais‖ (MENÉNDEZ PIDAL, 1940, p.156. Tradução nossa)81, e esta inseparável relação entre ―honra‖ e ―fama‖, deve, por sua vez, ser diferenciada de outra importante correspondência, aquela entre ―honor‖ e ―virtude individual‖, o que inevitavelmente nos leva a dissertar sobre a antiga polêmica existente entre os vocábulos ―honra‖ e ―honor‖. 81 ―Mas aunque la honra se gana con actos propios, depende de actos ajenos, de la estimación y fama que otorgan los demás‖. 276 Tivemos muita dificuldade, no início, em deslindar os limites entre ―honra‖ e ―honor‖ na língua espanhola, visto que os próprios conceitos acabam se tornando intercambiáveis, tal como podemos constatar no texto ―El punto de honor castellano‖, de Francisco Ayala (1989). No artigo, o ensaísta espanhol ora se refere à ―honra‖: ―(...) obligación de limpiar con sangre la mancha de la honra‖ (AYALA, 1989, p.115) e também: ―(...) la mancha en la honra masculina produzida por la conducta desonesta de la esposa‖ (Ibidem, p.115), ora a ―honor‖: ―(...) la mancha del honor sólo con sangre podía lavarse‖ (Ibidem, p.103) e também: ―Aunque el honor masculino depende en manera muy especial de su honestidad y buen nombre, también la conducta de otras mujeres de la familia, hijas, madres, hermanas, puede mancharlo‖ (Ibidem, p.92). O próprio dicionário da Real Academia (DRAE)82 também nos fornece algumas entradas que, a princípio, nos levam a crer que ambos se tratam de conceitos idênticos, tal como sucede entre os exemplos: ―La protagonista perdía el honor con su donjuán‖ e ―La doncella prefirió perder la vida antes que la honra‖ e também: ―Mancharon su honor con calumnias‖ e ―Las calumnias dañaron su honra‖. No entanto, foi Américo Castro, a partir da distinção que Ramón Menéndez Pidal percebe entre os conceitos de honra/ honor em De Cervantes y Lope de Vega (1940), quem estabeleceu em El pensamiento de Cervantes (1980) a mais interessante, a nosso ver, diferenciação entre ambos os términos. A ―honra‖, além de ser um bem comunitário depositado nos indivíduos, cuja responsabilidade de defesa cabia a todos os integrantes da comunidade, encontra-se sempre dependente da opinião alheia, queremos dizer, da opinião pública. 82 Todas as citações foram extraídas do Diccionario práctico del estudiante de la Real Academia Española. Espanha, 2007. p.365. 277 Trata-se, pois, de um conceito herdado na Espanha da tradição feudal, especialmente da literatura medieval, a principal fonte da qual se nutriam os dramaturgos espanhóis do Século de Ouro− basta recordar obras como as Cronicas, o Romancero e um dos mais importantes clássicos da literatura espanhola: Mio Cid. Nele, o tema da honra reluz com toda a intensidade, especialmente pelo fato de a personagem principal lutar incessantemente até ver a sua honra resgatada e suas filhas casadas. E nesse aspecto, é imprescindível comentar que no poema de Mio Cid a honra não se encontra associada apenas à valentia do destemido guerreiro, mas também à obediência, ao orgulho, à fidelidade, à adoração, ao sacrifício e inclusive à pureza do sangue, se consideramos a importância social e racial atribuída ao indivíduo que não portava sangue contaminado nem com a estirpe judaica nem com a muçulmana. Tal associação fez com que muitos críticos, tais como Edwin Honig (1972), pensassem numa possível degeneração do modelo medieval, uma vez que dito conceito fora reformulado por determinados dramaturgos do Século de Ouro, dentre os quais citamos Pedro Calderón de La Barca, no intuito de transformá-lo em um importante mecanismo de preservação de casta, ideal combativo que corrobora a presença de um caráter muito mais repressivo que o encontrado na Idade Média, se consideramos, por exemplo, o rigor com que o tema da honra fora tratado em obras como El médico de su honra e El Alcade de Zamalea. ―Na Espanha da Contra-Reforma (...), o conceito medieval de honra foi reforçado e enrijecido‖ (HONIG, 1972, p.12. Tradução nossa)83, e grande parte dessa preocupação manifestada por certos escritores espanhóis do Século de Ouro deve ser 83 ―In the Spain of the Counter-Reformation (...), the medieval concept of honor was reinforced and rigidified‖. 278 atribuída principalmente às razões sociais, ou seja, ao fato de a sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII ser nitidamente estratificada, cujas classes sociais se diferenciavam umas das outras não só pelas riquezas e bens, mas principalmente pela ostentação que os seus membros faziam da honra, o que acentua o seu caráter social. O conceito de ―honor‖, ao contrário, nasce com a noção de indivíduo, mais precisamente com o nascimento do homem moderno− representado, segundo Peter Berger (1979, p.85), pela personagem cervantina, Alonso Quijano, em seu estado enfermiço, terminal. ―A época que viu a decadência da honra foi também testemunha da aparição de novas moralidades e de um novo humanismo, e mais concretamente, de um interesse sem precedentes históricos pela dignidade e pelos direitos do indivíduo‖ (Ibidem, p.82-83. Tradução nossa)84, perspectiva que vem ao encontro da proposta de Américo Castro em vincular ―honor‖ à ―dignidade‖. Para Castro (1980, p.355), o conceito da pura dignidade humana é baseado na virtude racionalmente autônoma, independente de fama, casta e linhagem, pois cada um é filho de suas obras. Com isso, vimos que o conceito da dignidade do homem não depende, portanto, de nenhuma circunstância externa (fama, opinião, elogios), mas sim da intimidade da virtude individual. A dignidade trata-se, então, de um atributo da virtude humana. Estabelecida a importante diferença entre ―honra‖ e ―honor‖ no espanhol, à luz da teoria de Américo Castro (1980), não é menor nossa preocupação em assinalar essa mesma diferença na língua portuguesa, uma vez que nos deparamos com a impossibilidade de traduzir de forma diferenciada os vocábulos ―honra‖ e ―honor‖. 84 ―La época que vio el ocaso del honor [honra] fue también testigo de la aparición de nuevas moralidades y de un nuevo humanismo, y más concretamente, de un interés sin precedentes históricos por la dignidad y los derechos del individuo‖. É importante assinalar que, no processo de tradução do livro, o original em inglês- honor- foi traduzido como honor para o espanhol, enquanto nós, em razão das diferenças entre honra y honor, o entendemos como honra, equivalente, aqui, como honra-opinião. 279 Como é sabido, no português ―apenas se usa uma palavra que pareceria servir para expressar o que tanto honor como honra teriam em comum: honra. Honor existe, mas os dicionários o rotulam como desusado e remetem ao seu sinônimo, honra. Esse vocábulo, por sua vez, reúne acepções equivalentes àquelas que os dicionários espanhóis repartem entre honor e honra (GONZÁLEZ, 2009. Tradução nossa)85, o que também nos levaria a aceitar a sinonímia entre ambos os termos na língua espanhola. E por não termos uma tradução específica para a palavra ―honor‖, foi que nos pareceu oportuno, aqui, chamá-la de dignidade, assim como o fez o professor Mario M. González no artigo intitulado ―Honra y honor en Peribáñez‖ (2009), a partir das definições propostas por Américo Castro (1980), na intenção de preencher o vazio semântico existente entre ambos os términos na língua portuguesa, deixando, assim, clara as noções operacionais e diferenciadas de cada um deles. Muitas foram as aproximações encontradas entre os romances naturalistas La Regenta e El Abuelo e as principais obras literárias publicadas na Espanha do Século de Ouro, um dos períodos mais significativos da história do país, devido, sobretudo, ao expressivo florescimento cultural em diversas áreas. Não obstante, o diálogo intertextual existente entre as obras não é característica exclusiva dos romances oitocentistas estudados por nós. No teatro de expressão realista, em outras palavras, de signo liberal e reacionário, também podem ser vistos muitos elementos das produções literárias do séc. XVII, e a crítica ―é unânime na hora de assinalar a 85 ―Honra y honor en Peribáñez‖, de Mario M. González. Conferência apresentada no Congresso Internacional Lope de Vega, realizado nos dias 28 e 29 de agosto de 2009, na Universidade Federal Fluminense (UFF). ―sólo se usa una palabra que parecería servir para expresar lo que tanto ―honor‖ como ―honra‖ tendrían en común: ―honra‖. ―Honor‖ existe, mas los diccionarios lo rotulan como desusado y remiten a su sinónimo, ―honra‖. Este vocablo, a su vez, reúne acepciones equivalentes a aquellas que los diccionarios españoles reparten entre ―honor‖ y ―honra‖. 280 influência direta dos dramas trágicos de Calderón no tratamento da dignidade conjugal pelo teatro burguês pós-romântico‖ (OLEZA, 2003b. Tradução nossa)86. O teatro espanhol também contou com expressivas contribuições de muitos romancistas da época, como é o caso de Clarín, que, desde a juventude já demonstrava uma predileção pelas artes cênicas, o que o levou a escrever mais de quarenta dramas, sendo a maioria deles perdidos, segundo nos aponta José María Martínez Cachero, no texto ―Versos y Teatro‖ (1993, p.214). Jovem, Clarín chegou a acreditar que o teatro era sua principal vocação. Queria ser ator e dramaturgo, e, em razão deste desejo, estreia uma peça dramática de assunto histórico, intitulada El cerco de Zamora, em um ateneu estudantil em Oviedo. Anos depois, a paixão pelas artes cênicas reflorescerá. Em 1895, produz a peça Teresa, um ensaio dramático em prosa, estreando-a no dia 20 de março, no Teatro Español de Madrid. Com a intenção de apresentar os conflitos atuais aos quais a humanidade estava submetida, tanto Leopoldo Alas como seus contemporâneos, dentre eles Benito Pérez Galdós, acreditavam que deveria haver uma ―substancial renovação para a cena espanhola contemporânea‖ (Ibidem, p.214. Tradução nossa)87, crença que muito desagradou não só o público, como também a crítica. Essa finalidade promoveu um verdadeiro ataque ao drama de Alas, em especial pelo fato de a produção retratar situações violentas, presentes no cotidiano de pessoas humildes que viviam num ambiente longe de ser requintado e luxuoso. E, em razão dessas críticas feitas a Teresa, seu autor é, mais uma vez, obrigado a defender-se publicamente contra toda a difamação germinada após a estreia da peça. 86 ―es unánime a la hora de señalar la influencia directa de los dramas trágicos de Calderón en el tratamiento del honor conyugal por el teatro burgués postromántico‖. 87 ―sustancial renovación para la escena española contemporánea‖. 281 Apesar de serem inúmeras as contribuições desses autores ao teatro realista na Espanha oitocentista, não é nosso intuito analisá-las, uma vez que tais análises nos direcionariam a outros estudos mais particulares sobre a dramaturgia espanhola no século XIX. Nesse sub-capítulo, pretendemos, sim, constatar que há, por parte dos respectivos romancistas, uma nítida intenção de resgatar o código de honra difundido pelo teatro espanhol do século XVII, a fim de recriá-lo, dando-lhe um novo sentido estético nas narrativas de La Regenta e El Abuelo: o paródico. Ambicionamos também comprovar que essa releitura do código de honra não se limitava apenas a apresentar um retrato paródico das personagens, compreendidos como representações cômicas dos heróis calderonianos. Por detrás dessas figuras, havia uma proposta ideológica extremamente significativa: a de apresentar a transição de um discurso conservador e nacionalista, que consagrou Calderón, no século XVII, como poeta teólogo da identidade nacional, a um discurso de natureza liberal, difundido inicialmente pelo krausista Giner de los Ríos− que predicava a construção de uma história nacional regeneracionista e liberal− e aprimorado posteriormente pelos krausopositivistas Clarín e Galdós, no período correspondente ao realismo/naturalismo espanhol, o que resultará na nova apropriação do drama antigo espanhol, mais precisamente do teatro clássico de Calderón. No artigo intitulado ―Calderón y la novela realista española‖ (1983), Gustavo Correa já havia apontado o desejo de Leopoldo Alas e Pérez Galdós em superar os valores da tradição cavalheiresca do Século de Ouro, que estariam relacionados, sem sombra de dúvidas, à sobrevivência do Antigo Regime, no primeiro terço do século. Aos olhos dos autores do realismo crítico no romance oitocentista, essa perspectiva calderoniana, cujo pilar principal se fundamentava no ―punto de honor‖ espanhol, 282 representava um verdadeiro arcaísmo da consciência hispânica, que urgentemente deveria ser extirpado do processo de configuração da nova sociedade espanhola, aspiração que indiscutivelmente evidenciava a conflitante relação política entre os absolutistas, defensores da conservadora monarquia, e os revolucionários, partidários de um governo republicano, ou seja, de uma Espanha mais livre e independente. Leopoldo Alas ―Clarín‖ e Benito Pérez Galdós, avessos ao tradicionalismo do Antigo Regime, serão os pioneiros na difusão de uma nova conscientização da sociedade espanhola. Essa deveria surgir a partir das ruínas do passado, ou seja, de todo aquele universo estacionário, obsoleto e inautêntico, em que ―a massa amorfa que resulta da decomposição das antigas classes sociais, o Povo e a Aristocracia constitui a pedreira de onde se há de extrair a infinita variedade de situações e caracteres que hão de formar a estrutura do romance realista‖ (CORREA, 1983. Tradução nossa)88. Juntos empreendem severas críticas ao conservadorismo do Antigo Regime, cujos vestígios ainda perduravam em pleno século XIX, e também aos escritores da primeira fase do realismo espanhol, tais como Cecilia Böel de Faber, mais conhecida pelo pseudônimo de Fernán Caballero, e o romancista José María de Pereda, que, em suas obras, tratavam de promover uma idealização do mundo que observavam. E essa advertência à poetização idílica da realidade pode ser vista tanto em La Regenta como em El Abuelo, que, através de seus caracteres, condenavam esse arcaísmo calderoniano, considerado anacrônico à perspectiva realista da época. 88 ―Para Galdós, la masa amorfa que resulta de la descomposición de las antiguas clases sociales, el Pueblo y la Aristocracia constituye la cantera de donde ha de extraerse la infinita variedad de situaciones y caracteres que han de formar el entramado de la novela realista. (…) Nuevas instituciones y un nuevo sistema espiritual han de surgir de las ruinas del antiguo‖. 283 No entanto, antes de apresentarmos a forma como a figura da infidelidade feminina e o ―punto de honor‖ se configuraram nos romances La Regenta e El Abuelo, nos pareceu imprescindível comentar a maneira como as personagens de importantes obras da tradição literária setecentista, tais como Dom Gutierre, de El médico de su honra (1637), e Ortel Banedre, de Persiles y Sigismunda (1617), atuam com relação à traição feminina e ao código de honra, o que nos permitirá, em seguida, estabelecer possíveis aproximações entre os romances naturalistas estudados por nós e a produção literária do Século de Ouro, em especial os dramas trágicos de Calderón de La Barca. Para isso, consideraremos a teoria crítica de Ramón Menéndez Pidal (1940), Marcelino Menéndez y Pelayo (1948), Américo Castro (1980), Francisco Ayala (1989), John Beverley (1975), Gustavo Correa (1983) e Joan Oleza (2003a e 2003b). 284 4.1. O tema do adultério nas produções literárias do Século de Ouro Em De Cervantes y Lope de Vega, Menéndez Pidal (1940, p.155) afirma que, no século XVII, a boa reputação do indivíduo encontrava-se visceralmente vinculada à sua conduta honrosa. No entanto, apesar de ela ser construída pelos próprios atos, o homem digno deveria atentar-se também à conduta alheia, pois, dependendo da gravidade do acontecimento, a falta cometida poderia comprometer drasticamente a sua integridade. Na sociedade setecentista, a desonra masculina não se encontrava apenas relacionada aos casos de insultos, brigas, adultério e má fama da esposa, mas também ao comportamento e atitudes de todas as mulheres da família que se achavam sob os cuidados do homem, o que aumentava a responsabilidade do patriarca na importante missão de preservar o seu nome. Vejamos: A desonra que a leviandade feminina produz não está limitada de modo algum ao caso do adultério, ou sequer má fama da esposas. Ainda que a dignidade masculina dependa da maneira muito especial de sua honestidade e bom nome, também a conduta de outras mulheres da família, filhas, mãe, irmãs, pode manchá-lo‖ (AYALA, 1989, p.92. Tradução nossa)89. A integridade masculina deveria, a todo custo, manter-se intacta, e, para tal fim, aos homens lhes eram concedidos poderes absolutos e incontestáveis sobre os membros da família, em especial sobre as mulheres, o que revela a condição desprivilegiada do sexo feminino na sociedade patriarcal do século XVII. As mulheres, segundo os códigos estabelecidos pelas autoridades religiosas e estatais, deveriam ser submissas e subordinadas ao discurso masculino, outorgado 89 ―La deshonra que la liviandad femenina produce no está limitada en modo alguno al caso del adulterio, o siquiera mala fama, de la esposa. Aunque el honor masculino depende en manera muy especial de su honestidad y buen nombre, también la conducta de otras mujeres de la familia, hijas, madre, hermanas, puede mancharlo‖. 285 principalmente pelo direito romano, que concedia ao homem o poder de ser o ―dono de quantos compõem a sua, não menos que de seus escravos; sua autoridade está fundada sobre a propriedade‖ (Ibidem, p.94. Tradução nossa)90. Dessa forma, cabia à figura masculina a responsabilidade por todos os membros da família patriarcal, e, mesmo na ausência do pai, seja por falecimento ou abandono, era o filho mais velho quem assumia o controle dela, o que mais uma vez corrobora a ausência de uma voz feminina que pudesse reivindicar os seus direitos dentro da sociedade. Em suma, a condição de pater familias é indiscutivelmente o principal ingrediente patrimonial que compõe o complexo ético-social constituinte dessa honra. A partir do momento em que há a afirmação da família monogâmicopatriarcal, o domínio que o homem passa a exercer no núcleo dela torna-se cada vez mais significativo e intenso, e, ao estabelecer o controle do homem no mundo dos negócios, o patriarcalismo inevitavelmente provocou a submissão da mulher, atribuindo-lhe um papel secundário. A paternidade sobrepuja a maternidade, e essa nítida ascensão do homem foi fatal à mulher, pois ―enquanto o macho reservava para si o privilégio de exercitar o sexo fora de casa, as mulheres tinham de ater-se a mais perfeita castidade, antes do casamento, e a mais completa fidelidade depois‖ (DURANT, 1942, p.38-39), confirmando, assim, a desigualdade existente entre os sexos, que perdura, até hoje, em muitos países que tiveram o trabalho servil como base de sua economia. Na concepção cristã, tanto o adultério feminino como o masculino representava uma violação ao juramento de fidelidade consagrado pelo matrimonio cristão, que convertia o homem e a mulher em uma só carne. Não obstante, a 90 ―dueño de cuantos componen la suya, no menos que de sus esclavos; su autoridad está fundada sobre la propiedad‖. 286 imprudência masculina tornou-se mais ―aceitável‖ à medida que a própria opinião pública passou a considerar as raízes biológicas, que residiam especialmente no terreno da natureza animal, como algo determinante ao temperamento impulsivo e viril dos homens, e à medida que as próprias mulheres passaram a incorporar esse ponto de vista, silenciando-se diante do adultério do cônjuge. A infidelidade masculina possuía, portanto, ―razões justificáveis‖, e, devido à ausência de leis jurídicas que garantissem o direito de as mulheres casadas reivindicarem a honra manchada pela traição de seus maridos, a maioria encontrava-se em condições de subordinação, já que eram tidas como propriedades de seus esposos, o que por si só evidencia a situação desprivilegiada a qual se encontravam. Assegurados por um sistema opressor, muitos homens mantiveram relacionamentos clandestinos com outras mulheres, principalmente com as prostitutas. E, por ser esse um envolvimento livre de sanções oficiais, a opinião pública no séc. XVII não considerava a traição masculina uma desonra tão grave, enquanto que a mulher, nessas mesmas condições, seria brutalmente penalizada pela infâmia, fato que concedia ao marido o direito de vingança, ainda que na relação entre ambos prevalecesse a inexistência de amor ou até mesmo de qualquer tipo de desejo. Tendo em vista a desigualdade entre os sexos, herança de uma mentalidade patriarcal e machista, estabeleceu-se uma série de privilégios masculinos. Segundo o Código Penal espanhol, vigente ainda em pleno século XX, o assassinato da esposa pelo marido em caso de flagrante de adultério era tido como um delito privilegiado, posto que conferia ao réu o direito de absolvição. Vejamos: (...) o Código penal espanhol construiu o uxoricídio da conjugue surpreendida em adultério como um 287 delito privilegiado, cuja pena o equipara na prática a um caso de desculpa absolutória− fazendo nisso par com o homicídio em duelo...‖ (AYALA, 1989, p.97. Tradução nossa)91. Dessa forma, nos casos de duelo, em que havia a morte do amante pelo marido ultrajado, bastava com que este último alegasse ter agito de acordo com o código de honra para que o supremo tribunal lhe concedesse a liberdade, e essa absolvição não era cedida apenas pelas leis oficias do Estado, mas também pela sociedade− opinião pública− que aclamava e aplaudia a punição dos culpados. O mesmo procedia em outras sociedades. No Brasil, no séc. XIX, a mulher que violasse o leito conjugal, segundo a Lex Julia de Adulteriis, do tradicional direito romano, poderia ser açoitada e encerrada num convento como forma de punição. Se o marido não a perdoasse pelo crime cometido, ou falecesse sem consentir-lhe o perdão, ela era castigada diante de toda a comunidade, permanecendo difamada para o resto de sua vida. Muito mais que a dor física, proveniente das atrozes sessões de tortura, essas mulheres tiveram de conviver com algo infinitamente mais doloroso: a perda da integridade, visto que ―ficavam marcadas indelevelmente com um sinal invisível, mas perceptível a todas as <<pessoas de bem>> para que fosse mantida à distância como uma leprosa ou um cão hidrófobo‖ (KOSOVSKI, 1983, p.100). Durante o regime do patriarcado no Ocidente, o adultério feminino passa a ser visto como algo inadmissível, como um pecado mortal, e os castigos para a adúltera variavam de grau, indo desde o assassinato público da mulher, sendo este respaldado pela legítima defesa da honra e da integridade masculina, até o repúdio, punição magistralmente retratada no romance Dom Casmurro, publicado em 1899. Nele, Machado de Assis também aborda o tema do adultério feminino, porém de uma 91 ―... el Código penal español construyó el uxoricidio de la cónyuge sorprendida en adulterio como un delito privilegiado, cuya pena lo equipara en la práctica a un caso de excusa absolutoria- haciendo en esto pareja con el homicidio en duelo…‖. 288 perspectiva bastante particular: a partir do ponto de vista do marido. A narrativa se constitui por meio das lembranças de Bento Santiago, que julgava ser Capitu a amante de Escobar, seu melhor amigo. Diferentemente de todas as produções realistas/ naturalistas da época, em Dom Casmurro não havia nenhuma evidência concreta da traição, apenas suposições apresentadas única e exclusivamente sob o olhar do ciumento marido, o narrador da obra. E será no capítulo CXLI, A solução, que melhor podemos compreender como se explica essa questão do repúdio, que também foi tido como umas das formas de se castigar e penalizar a mulher. O casamento entre Bentinho e Capitu entra em crise a partir do nascimento do filho Ezequiel que, no decorrer da narrativa, vai apresentando certas semelhanças com o comportamento e postura de Escobar: ―Alguns dos gestos já lhe iam ficando mais repetidos, como os das mãos e pés de Escobar; ultimamente, até apanhara o modo de voltar da cabeça deste, quando falava, e o deixá-la cair, quando ria‖ (ASSIS, 1998, p.154). Não satisfeito, o narrador aponta também a existência de uma semelhança física entre ambos, e, para melhor elucidá-la, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: ―Aproximei-me de Ezequiel, achei que Capitu tinha razão; eram os olhos de Escobar...‖ (Ibidem, p.167) e também: ―(...) contemplando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e ruidoso. Até a voz; dentro de pouco, já me parecia a mesma‖ (Ibidem, p.169). A similaridade entre Ezequiel e Escobar fez com que Bento imaginasse a efetiva traição de Capitu, e, conforme o garoto vai se desenvolvendo, a personagem, defronte às supostas coincidências, vai deixando-se consumir não só pelos indícios como também pelos ciúmes, alimentando cada vez mais a ―certeza‖ de que Ezequiel 289 realmente não era o seu filho. Inconformado com aquilo que julgara ser a maior traição de sua vida, Bento Santiago decidiu separar-se de Capitu, dando fim à bela história de amor cultivada entre ambos desde a infância. A separação foi arbitrária e intolerante. Capitu não teve a oportunidade de se justificar da grave acusação de adultério, nem tampouco de comprovar a legítima paternidade de Ezequiel. Para o narrador, o afastamento era a solução mais acertada, devendo este ser feito através de ―meias palavras ou em silencio‖ (Ibidem, p.175), de forma com que cada um partisse com a sua ferida. Citamos: Aqui está o que fizemos. Pegamos em nós e fomos para a Europa, não passear, nem ver nada, novo nem velho; paramos na Suíça. Uma professora do Rio Grande, que foi conosco, ficou de companhia a Capitu, ensinando a língua materna a Ezequiel, que aprenderia o resto nas escolas do país. Assim, regulada a vida, tornei ao Brasil. Ao cabo de alguns meses, Capitu começara a escrever-me cartas, a que respondi com brevidade e sequidão. As dela eram submissas, sem ódio, acaso afetuosas, e para o fim saudosas; pedia-me que a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhas como se acabasse de viver com ela; naturalmente as viagens eram feitas com o intuito de simular isto mesmo, e enganar a opinião (Ibidem, p.177). O abandono e o isolamento são destrutivos para toda a família, especialmente para Capitu que, no exílio, conta apenas com a indiferença daquele que ainda era o seu maior amor. É sabido que a separação conjugal também não era bem vista aos olhos da sociedade brasileira no séc. XIX, e, no intuito de esconder a suposta desonra de Capitu e Escobar da opinião pública, que certamente se escandalizaria com a divulgação do caso, o narrador age como se nada tivesse acontecido, como se ambos ainda estivessem casados, guardando para si aquilo que indubitavelmente seria a maior desgraça de sua vida. 290 Segundo Ramón Menéndez Pidal (1940, p.161), todo homem digno e virtuoso deve conservar intacto o precioso patrimônio da honra social de que cada um é depositário e guardião, honra que anima a existência inteira da comunidade, para viver sua vida coletiva com elevado ânimo e virtuoso, esforço, e, sendo a desonra associada à morte, a vítima ultrajada deveria, a todo custo, vingar-se da falta cometida pelos infratores, por mais que esta lhe causasse profunda dor, perspectiva que nos revela o indiscutível caráter social da honra. O drama trágico El médico de su honra (1637), de Pedro Calderón de la Barca, traduz exatamente esse ponto de vista social da honra, uma vez que o marido ultrajado, dom Gutierre Alonso Solís, se sente vítima da dura lei social que o aprisiona, transformando-se, assim, num emblemático escravo dela, na medida em que passa a atuar em seu nome. No drama calderoniano, a desonra masculina se consolida exemplarmente com o meticuloso plano idealizado por Gutierre, que resulta no cruel assassinato da inocente e fiel esposa, dona Mencía. Para o crítico Menéndez Pidal (1940, p.165), a atitude da personagem reflete nada mais que o caráter heróico da vingança marital, cujo dever doloroso se cumpre com sofrimento sereno e decidido, e este caráter heróico, apontado pelo crítico, encontrava-se indiscutivelmente relacionado à epopeia, que atribuía notável valor ao tema da vingança, assunto transportado ao terreno da fidelidade conjugal pelos principais nomes do teatro espanhol no Século de Ouro. Dessa forma, assim como os heróis épicos, os heróis dos dramas trágicos dos séculos XVI e XVII também se engrandeciam profundamente com a vingança, que, do ponto de vista social, era a mais importante alternativa para a reparação da honra. 291 Nasci em Sevilha, e nela viu-me Enrique, festejou meu desdém, celebrou meu nome… feliz estrela! Foi-se, e meu pai atropela a liberdade que houve em mim: a Gutierre dei a mão, voltou Enrique, e em rigor, tive amor, e tenho dignidade. Isto é o que sei de mim (CALDERÓN, 1979, p.145. Tradução nossa)92. Na cena XI, da primeira jornada de El médico de su honra, Mencía confidencia à criada Jacinta um segredo relativo a uma antiga paixão. Apaixonados, a jovem senhora e o infante Enrique foram protagonistas de um grande amor, interrompido pela desaprovação do pai, posicionamento que revela a importância da voz patriarcal na decisão dos matrimônios feitos naquele período. Mencía, ao ter sua preferência veemente desconsiderada, aceita o pedido de casamento de dom Gutierre, descumprindo, assim, a promessa feita a Enrique, que consistia em esperá-lo para que ele pudesse desposá-la. E, ao reencontrá-la, anos depois, o infante se surpreende com a terrível notícia de que a dama havia se casado com Gutierre, homem de grande valor e virtudes. Inconformado com o fato de Mencía não tê-lo esperado, Enrique se aproveita da oportuna ocasião− a injusta prisão de Gutierre− e vai até a casa da senhora não só para exigir-lhe satisfações como também para declarar todo o seu amor por ela. Apesar de Mencía comover-se com a cativante declaração do infante, mantém-se fiel 92 ―Nací en Sevilla, y en ella me vio Enrique, festejó mis desdenes, celebró mi nombre… ¡felice estrella! Fuese, y mi padre atropella la libertad que hubo en mí: la mano a Gutierre di, volvió Enrique, y en rigor, tuve amor, y tengo honor. Esto es cuanto sé de mí‖. 292 às suas convicções e aos princípios cristãos, visto que recusa as doces e sedutoras palavras proferidas por aquele que havia sido o seu maior amor na juventude. Em: ―(...) está aprisionado o fogo!/ que já, resulta em cinzas,/ é ruína que está dizendo: <<Aqui foi amor!>>‖93 (Ididem, p.130. Tradução nossa), Mencía mostra que a paixão pelo infante havia desvanecido com o passar do tempo; logo, todo aquele fogo que alimentava e dava vida ao amor do jovem casal não passava, naquele momento, de cinzas, de ruínas. E, em nome de sua nova condição, a de mulher casada, a virtuosa personagem calderoniana resiste firmemente aos persistentes galanteios e investidas de dom Enrique, demonstrando ter plena consciência do seu papel de esposa honrada. E, para melhor esclarecer essa castidade tão entranhada na natureza da figura feminina, nos pareceu interessante citar um fragmento da segunda jornada, cena III, em que a personagem revela ser sua dignidade (honor) maior que todo o medo e temor provenientes da audácia de Enrique: Assim eu, vendo a tua alteza, fiquei muda, absorta estive, conheci o risco, e temi, tive medo e dignidade tive porque meu temor não ignore, porque meu espanto não duvide que é quem me há de dar a morte... (Ibidem, p.165. Tradução nossa)94. Essa integridade, virtude pessoal, torna-se mais explícita no episódio em que Mencía, com a ajuda de Jacinta, consegue tirar Enrique de sua casa, sem que Gutierre 93 ―(...) está aprisionado el fuego!/ que ya, resuelto en cenizas,/ es ruina que está diciendo: <<¡Aquí fue amor!>>‖. 94 ―Así yo, viendo a tu alteza, quedé muda, absorta estuve, conocí el riego, y temblé, tuve miedo y honor tuve; porque mi temor no ignore, porque mi espanto no dude que es quien me ha de dar la muerte‖. 293 perceba. E, nesse aspecto, nos pareceu interessante destacar a fundamental relevância de dois pontos essenciais às investigações empreendidas por nós: a dissimulação feminina e a relação de cumplicidade existente entre a patroa e a serviçal. Se Gutierre encontrasse o infante escondido no quarto de sua esposa, caberia a ele o direito de exigir vingança contra aqueles que o ofenderam, já que esta se tratava de uma situação de flagrante. E, no intuito de proteger-se, a personagem elabora um audacioso plano que, caso falhasse, comprometeria, de fato, a sua vida. O plano consistia em fazer com que Gutierre acreditasse na presença de um ladrão no aposento de Mencía, para que Jacinta conseguisse escapar com dom Enrique por outro caminho, evitando, assim, o desafortunado encontro entre os cavalheiros. Enquanto o casal se dirigia para quarto, Mencía, intencionalmente, apagou a luz da vela, a fim de impossibilitar a visão do marido, e, ao reacendê-la, Gutierre não viu absolutamente nada. O plano organizado por ela se destacou, dentre muitos aspectos, pela inteligência com que fora executado, o que evidencia uma imagem um tanto audaz da figura feminina se a comparamos com aquela que a sociedade patriarcal do séc. XVII fazia questão de predicar: recatada e submissa. E, dentro dessa perspectiva, não poderíamos deixar de comentar a visceral importância da obra Decameron, de Giovanni Boccaccio, no tratamento da astúcia e do engano feminino na literatura. A obra, escrita em dialeto toscano entre os anos 1349 e 1351, encontra-se composta por dez jornadas, sendo cada uma delas estruturadas por dez novelas, o que resulta, ao todo, cem narrativas. As novelas de Boccaccio, por possuírem um pequeno número de elos, apresentam intrigas relativamente simples, comuns, e são constituídas no máximo por quatro personagens. A maior parte delas é tratada em 294 breves páginas e muitas se encontram semanticamente relacionadas, queremos dizer, possuem os mesmos traços semânticos, o que fez com que diversos críticos as considerassem variantes umas das outras, tais como as novelas IV, 1 e IV, 9, em que ambas as mulheres se suicidam após se depararem com os corações de seus amantes assassinados (TODOROV,1982, p.45). Ambientado num período marcado pela peste negra na Itália, Decameron é considerado um marco literário na ruptura entre a moral medieval, em que se considerava o amor espiritual, e o início do realismo, iniciando o registro dos valores terrenos, que veio a redundar no humanismo. E, por romper com a mítica literatura medieval e por buscar na tradição cultural, mais especificamente, no folclore de diversas regiões da Itália e de diversos países− seja de autores antigos ou contemporâneos− o material necessário para a sua escrita, tal como nos assinala Tzvetan Todorov, em A gramática do Decameron: ―O próprio Boccaccio indicou o caminho a seguir, na conclusão do livro: ele não INVENTOU estórias, mas as ESCREVEU. É na escrita, com efeito, que se cria a unidade; os motivos, que o estudo do folclore nos revela, são transformados pela escrita boccacciana‖ (1982, p.12), o conjunto de novelas de Giovanni Boccaccio pode, sem dúvida alguma, ser considerado um dos primeiros livros realistas da literatura italiana, dada a apresentação de uma visão panorâmica da sociedade e dos costumes vigentes de sua época. Ainda que não houvesse um expressivo acesso da mulher medieval na cultura letrada, Boccaccio dedica a publicação de Decameron e, sobretudo, do livro De mulieribus claris − obra em que escritor italiano afirma, na dedicatória, querer tratar das virtudes femininas por meio de um estilo agradável, que leva ao deleite, tal como 295 as Heróides, de Ovídio− às mulheres do séc. XIV, principalmente pelo fato de elas se encontrarem severamente aprisionadas à família e à conservadora sociedade medieval, o que nos faz pensar não só no caráter essencialmente pedagógico das narrativas− delineadas, em especial, para o público feminino− como também na prática da leitura como uma importante forma de entretenimento, de lazer. Dentro da diversidade de temas presentes em Decameron, o amor é indiscutivelmente um dos mais importantes deles, notadamente pelo fato de Boccaccio atribuir-lhe um novo sentido. Ao contrário do manifestado pela literatura anterior, o amor se trata sempre de um estado quase físico (Ibidem, p.34), o que dificilmente abre caminhos para o surgimento de um amor platônico, sublime, entre as personagens boccaccianas. No entanto, apesar de o amor assumir em Decameron uma condição praticamente física, ele não dever ser confundido com o sexo, que, na obra, se encontra intrinsecamente associado à luxúria e à astúcia, uma vez que para obter prazer, homens e mulheres passam a dissimular e, por fim, a enganar, pondo em evidencia todo o engenho e as artimanhas aplicáveis na conquista de seus objetivos, vide a novela II,7, em que a figura feminina, Alatiel, vai para o leito do príncipe, a título de donzela, e lhe dá a ilusão de virgindade: ―Di ciò fece il re del Garbo gran festa, e mandato onorevolmente per lei, lietamente la ricevette. Ed essa che con otto uomini forse diecemilia volte giaciuta era, allato a lui si coricò per pulcella, e fecegliele credere che così fosse; e reina con lui lietamente poi più tempo visse‖95, o que indiscutivelmente corrobora a esperteza da personagem que engana, num primeiro momento, o pai, escondendo-lhe o verdadeiro motivo do período em 95 Ver Decameron, de Giovanni Boccaccio. A obra completa encontra-se disponível no site: http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/lb000120.pdf 296 que esteve ausente− o rapto dos oito amantes−, e, num segundo momento, o príncipe, o seu futuro esposo, a respeito da virgindade perdida. Por ser Decameron um conjunto de novelas que trata de temas como a libertinagem, a patifaria, a fraqueza, a inveja, a avareza e a falta de respeito da mulher para com o marido e vice-versa, deparamo-nos constantemente com a existência de caracteres que, por diversas vezes, transgridem a moral e os bons costumes vigentes, como é o caso das personagens femininas que enganam os seus maridos e recorrem ao sexo ou a aventuras fora do casamento, tal como podemos observar na narrativa VII,2, em que Peronella, através do disfarce, mente inescrupulosamente para o ingênuo e humilde marido, ao dizer-lhe que o homem, que na casa se encontrava, tratava-se de um próspero comprador e não do seu amante. Assim como a narrativa VII,2, o tema do adultério se repete em muitas outras novelas de Decameron, dentre as quais podemos citar: II,9; III,4; IV,1, 9 e 10, V,10; VI,7; VII,1 à 10, VIII,8; IX,6, o que, como já vimos, acentua a presença de uma nítida correspondência semântica entre as novelas boccaccianas. Em oposição ao recato com que muitos escritores medievais tratavam das questões relativas à sexualidade, recorrendo, em grande maioria, a formas veladas, tais como os eufemismos e palavras de duplo sentido, o autor de Decameron as explorava de maneira bastante intensa e explícita, fato que justifica a narrativa de diversos casos sobre fornicação e adultério, em especial do feminino, visto que se acreditava que as mulheres, no medievo96, eram mais luxuriosas e tinham mais desejo sexual do que o homem, o que as levava a enganar os seus companheiros em 96 ―Contrary to the modern stereotype that views males as more susceptible to sexual desire than females, during the Middle Ages women were often seen as much more lustful than men‖. A presente citação encontra-se presente no texto ―Sexual Desire‖, disponível no site: http://www.brown.edu/Departments/Italian_Studies/dweb/society/sex/sexual-desire.php 297 razão da satisfação dos seus prazeres, evidenciando, assim, o outro lado da natureza feminina, avesso à imagem domesticada e infantilizada da mulher, regida pelo pudor e pela contenção dos sentimentos e das aspirações. Desse ponto de vista, explica-se, então, o fato de muitas das figuras femininas retratadas por Boccaccio em Decameron serem qualificadas como astutas, lascívias e insaciáveis. No drama calderoniano analisado por nós, embora a astúcia feminina seja empregada por Dona Mencía a fim de que o marido não desconfiasse da presença de Dom Enrique na casa do casal, o que certamente corresponderia a uma grande falta, a dama mantém-se virtuosa, digna, o que a contrapõe à maioria das personagens femininas de Decameron, que buscam, por intermédio da traição, a satisfação de seus prazeres. Em razão da imprudência do infante, Mencía engana não por perfídia, mas sim para evitar a eclosão de uma tragédia. Dessa forma, o disfarce ocorre não só em nome da dignidade da personagem, mas principalmente de sua vida. Além da esperteza de Mencía, Calderón de La Barca atribui também grande importância à figura da criada Jacinta que, além de ajudar a patroa nesse <<grande atrevimiento>>, torna-se sua maior confidente. Diferentemente da perversa Leonela, de El Curioso impertinente, breve narrativa presente no romance Don Quijote de La Mancha, Jacinta guarda para si o segredo de dona Mencía, e, por nenhum momento, ameaça contá-lo em troca de lucros e vantagens, nem mesmo quando dom Gutierre decide demiti-la, o que demonstra a discrição e a cumplicidade da serviçal. O projeto seria perfeito se não fosse o fato de Gutierre ter encontrado uma adaga bastante distinta caída no quarto. E, ao mostrá-la para Mencía, o esposo surpreende-se com o inesperado comportamento da mulher, que muito se aflige ao vê-la nas mãos do marido. A partir daí, manifesta-se a primeira suspeita do 298 cavalheiro com relação à fidelidade da dama, e esta desconfiança pode ser vislumbrada através do seguinte pensamento da personagem: ―¡Ai dignidade, nós dois temos muito que falar a sós!‖ (Ibidem, p.177. Tradução nossa)97. No entanto, é no episódio XV, da segunda jornada, que relata a libertação de dom Arias e dom Gutierre por intermédio da alteza de Castela, que o desconfiado marido tem a confirmação a respeito da origem da adaga encontrada no aposento da dama. Ao compará-la com a espada de dom Enrique, Gutierre percebe a evidente semelhança entre elas, o que indiscutivelmente aumentou a suspeita de um possível relacionamento entre Mencía e o infante. A personagem, ao relacionar os fatos entre si, lamenta profundamente a sua desonra: ―E em ocasião como esta, bem podeis, olhos, chorar: não o deixeis de vergonha‖ (Ididem, p.184. Tradução nossa)98. Dom Gutierre, mediante um discurso excepcionalmente primoroso e organizado, em que se evidencia o problema, as causas, as consequências e as possíveis saídas para o mesmo, analisa a sua condição diante do código de honra, e será justamente essa reflexão, pautada em indícios, em suspeitas, que o motivará a transformar-se no <<médico de su honra>>, ou seja, naquele quem irá curar o aparente ultraje com as próprias mãos, consideração que nos faz destacar a visceral importância dos solilóquios no drama El médico de su honra, uma vez que é a través deles que nós, leitores, podemos apreciar a aguda capacidade de reflexão das personagens calderonianos em cena, que extravasam de maneira ordenada e lógica os seus mais íntimos pensamentos e emoções. Apesar da inquietante suspeita, a cautela e o silêncio foram precisos, pois dom Gutierre necessitava de mais evidências, queremos dizer, de provas concretas e 97 98 ―¡Ay honor, mucho tenemos que hablar a solas los dos!‖. ―Y en ocasión como ésta, bien podéis, ojos, llorar: no lo dejéis de vergüenza‖. 299 comprometedoras, antes de executar a vingança planejada, e, para consegui-las, ele idealiza o seguinte plano: Esta noite irei a minha casa de segredo entrarei nela para ver que malícia tem o mal; e até apurar esta, dissimularei, se posso, esta desgraça, esta pena, este rigor, esta falta, esta dor, esta ofensa... (Ibidem, p.186. Tradução nossa)99. Para o êxito de seu projeto, recorre às mesmas estratégias utilizadas por Mencía para enganá-la. O marido invade o aposento de sua mulher e apaga a chama da vela que iluminava o recinto. Na escuridão da noite, Gutierre, intencionalmente, a desperta e se faz passar por outra pessoa, ao mudar o tom de sua voz. Ainda sonolenta, a dama pensa que se trata de mais uma das atrevidas aventuras de Enrique, e, percebendo que sua senhora se referia à alteza, dom Gutierre confirma todas as suas suspeitas iniciais, de que o infante havia, de fato, ultrajado a sua honra. Vejamos o diálogo entre o casal: Dona Mencía Que desculpa me acautela... Dom Gutierre Nenhuma Dona Mencía De vir assim, tua alteza? Dom Gutierre (Ap.) Tua alteza! Não é comigo. Ai Deus! Que escuto! 99 ―Esta noche iré a mi casa de secreto entraré en ella por ver qué malicia tiene el mal; y hasta apurar ésta, disimularé, si puedo, esta desdicha, esta pena, este rigor, este agravio, este dolor, esta ofensa...‖ 300 Com novas dúvidas luto Que angustia! Que infortúnio! Que tristeza! (Ibidem, p.193. Tradução nossa)100. A honra era tida pela opinião pública como um valor social que deveria ser cuidadosamente protegido, inclusive de meras suspeitas, aparências ou até mesmo de falsos rumores. Em El médico de su honra, a monstruosa obrigação imposta pela norma vigente na sociedade do século XVII faz com que o marido carrasco se prontifique a concluir o sacrifício de matar a esposa impiedosamente, o que, por sua vez, não sucede no drama Peribáñez y el Comendador de Ocaña, de autoria de Lope de Vega. Nele, constatamos que a emblemática figura do camponês Peribáñez, ao assassinar o nobre cavalheiro e os seus cúmplices, atua exclusivamente em nome da sua dignidade (honor), o que o caracteriza como herói acima de todas as convenções sociais, uma vez que sua virtude pessoal− fundamentada, segundo Américo Castro (1980), na virtude racionalmente autônoma, independente de fama, casta e linhagem−, não o permite deixar de atuar em defesa de sua bela esposa, ainda que o agressor fosse de uma estirpe privilegiada. Com isso, fica claro que as ações de Peribáñez não devem ser atribuídas à opinião alheia, queremos dizer, aos papéis institucionais, mas sim a sua irrefutável dignidade, que está acima de qualquer hierarquia social. 100 ―Doña Mencía ¿Qué disculpa me previene... Don Gutierre Ninguna. Doña Mencía De venir así tu alteza? Don Gutierre (Ap.) ¡Tu alteza! No es conmigo. ¡Ay Dios!, ¡qué escucho! Con nuevas dudas lucho ¡Qué pesar!, ¡qué desdicha!, ¡qué tristeza!‖ 301 O desejo de vingança manifestado por dom Gutierre nasce, portanto, de uma cobrança oriunda do seio de uma sociedade obcecada pela punição daqueles que infringissem a moral e os bons costumes em vigor. Além de assassinar a inocente esposa, a personagem calderoniana comete outro grave crime, quando obriga o médico Ludovico a forjar, por meio de uma sangria, a morte de Mencía, fazendo-a parecer natural. Dessa forma, tudo fora premeditado detalhadamente por Gutierre, a fim de que a vingança se mantivesse oculta e silenciosa, tal como observamos no seguinte fragmento: Porém não é certo que o publique porque se sei que o segredo altas vitórias consegue e que falta que é oculta oculta vingança pede morra Mencía de sorte que ninguém a imagine. (CALDERÓN, 1979, p.207. Tradução nossa)101. Como vimos, a vingança de Dom Gutierre Alonso de Solís se consolida secretamente, sobretudo, por não ser sua intenção torná-la pública. Não obstante, havia casos em que a desonra vinha à tona, e essa temível propagação da infâmia exigia do marido ofendido uma resposta também pública contra os infratores que o difamaram, tal como sucede em La Regenta, romance clariniano estudado por nós. Constatamos que a notícia do adultério de Ana Ozores é rapidamente propagada por toda provinciana cidade, o que agrava ainda mais a desonra do cavalheiro dom Víctor Quintanar que, mediante tal ofensa, é obrigado a posicionar-se publicamente. 101 ―Mas no es bien que lo publique porque si sé que el secreto altas victorias consigue y que agravio que es oculto oculta venganza pide muera Mencía de suerte que ninguno lo imagine‖. 302 A vingança, nesse caso, deveria ser pública, e, para melhor caracterizá-la, o exregente de Audiência opta pelo duelo, uma das grandes novidades introduzidas por Leopoldo Alas ―Clarín‖, pois no teatro clássico espanhol, em especial nos dramas trágicos de Calderón, não se tinha o costume de reivindicar a honra por intermédio da justiça− ainda que esta conferisse ao marido todos os direitos legais dele se vingar da falta cometida−, nem muito menos de desafiar o adúltero num duelo. ―Limpar com sangue a mancha da honra‖ (AYALA, 1989, p.115, Tradução nossa)102 foi, portanto, a alternativa escolhida por dom Gutierre, em El médico de su honra. A morte da dama foi meticulosamente orquestrada pelo marido, o que destaca o caráter diligente da vingança, consumada não em nome de uma verdadeira paixão, como vemos em Otelo, de Shakespeare, mas sim em nome das convenções sociais. Ainda que tenhamos afirmado o caráter heróico da vingança, que deveria ser cumprida no intuito de invalidar a desonra, tal como nos apresentou Menéndez Pidal (1940), não podemos deixar de comentar e inclusive de nos apropriarmos da apreciação estabelecida por Marcelino Menéndez y Pelayo, quando este se refere ao caráter ―não profundo, e com uma expressão às vezes simples e natural‖ (1948, p.236. Tradução nossa)103 das principais personagens masculinas dos dramas trágicos de Pedro Calderón de la Barca. Para o crítico, as obras de Calderón são, sem dúvida, de uma grandiosidade inigualável, seja por elas representarem o caráter de época e de raça, em outras palavras, o espírito nacional, seja por elas idealizarem tudo o que na concepção do poeta lhe parecera grandioso, nobre e generoso na sociedade de seu tempo. Porém, ainda que dom Pedro seja compreendido como ―o espelho dos costumes de seu 102 103 ―Limpiar con sangre la mancha de la honra‖. ―no profundo, y con una expresión a veces sencilla y natural‖. 303 século‖ (Ididem, p.230. Tradução nossa)104, ele peca em não atribuir às suas personagens o drama necessário a uma tragédia. Dificilmente os leitores dos dramas trágicos de Calderón se deparam com figuras universais, profundamente marcadas por sentimentos intensos tais como ódio, amor, ciúmes e paixão, um dos principais componentes do drama. Não há uma profunda imersão na natureza humana das personagens, e essa superficialidade fica evidente na figura de dom Gutierre. O marido opta decididamente pelo assassinato da esposa, sem mesmo ter a confirmação do adultério, e, por nenhum momento, hesita abandonar o sanguinário plano de vingança, que se consolidou com o vil assassinato da inocente dona Mencía. Não queremos afirmar que ele não tenha sofrido. O nobre cavalheiro sofreu, sim, porém não das mesmas aflições que Otelo. A razão de seu sofrimento fora simplesmente uma só: sua desonra, enquanto que na peça shakespeariana fora o amor ferido, o que indiscutivelmente acentua a dramaticidade do enredo e o caráter humano da personagem. O que questiona Menéndez y Pelayo em suas ilustres conferências sobre Calderón y seu teatro (1948) nos fez pensar no polêmico artigo intitulado ―Eça de Queirós: O primo Basílio‖, publicado na revista O Cruzeiro, no dia 16 de abril de 1878, em que Machado de Assis enfatiza a importância da presença dos conflitos de ordem interna na natureza da personagem central do romance. E, talvez, tenha sido esse um dos pontos mais discutidos pelo escritor brasileiro na crítica de O primo Basílio, pelo fato de Eça de Queirós não ter atribuído à Luiza um caráter moral, em outras palavras, uma personalidade de essência complexa e acentuada. Vejamos: (...) Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes um títere do que uma pessoa moral. Repito, é um 104 ―el espejo de las costumbres de su siglo‖. 304 títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciência (MACHADO, 1962, p.905). A crítica feita ao esvaziamento de Luísa torna-se mais evidente quando Machado a compara com Eugênia Grandet, personagem balzaquiana. O prestígio dessa última pode ser explicado pela profundidade de seus valores morais, ou seja, pelo caráter indiscutivelmente completo de uma alma apaixonante e sublime, o que, sem dúvida, muito motivou os leitores a se interessarem pela leitura do romance francês. Em O primo Basílio, essa falta de motivação, segundo o autor de Dom Casmurro, ocorre devido ao fato de Luísa ser uma personagem carente de vitalidade e desprovida de qualquer sentimento verdadeiro que pudesse animá-la e dar-lhe vida, e uma das cenas que melhor ilustra a ausência de ―cor‖ e de ―nervos‖ da dama encontra-se no capítulo VIII, no episódio em que a dama coloca, junto com os seus pertences, uma fotografia de Jorge no saco de viagem preparado para a fuga. Citamos: Eram onze e meia; foi pôr o chapéu. O coração batia-lhe alto, e apesar do terror de ver entrar Juliana, não se decidia a sair; sentou-se mesmo, com o saco de marroquim nos joelhos. Vamos!, pensou enfim. - Ergueu-se; mas parecia que alguma coisa de sutil e de forte a prendia, a enleava... Entrou na alcova devagar; o seu roupão estava caído aos pés da cama, as suas chinelinhas sobre o tapete felpudo... - Que desgraça! - disse alto. Veio ao toucador, mexeu nos pentes, abriu as gavetas; de repente entrou na sala, foi ao álbum, tirou a fotografia de Jorge, meteu-a toda trêmula no saco de marroquim, olhou ainda em roda como desvairada, saiu, atirou com a porta, desceu a escada correndo (QUEIRÓS, 1997, p.252). A cena do abandono, seja ele por parte da esposa ou do marido, é um acontecimento grave; porém, em O primo Basílio, o episódio, segundo Machado de Assis, adquire um contorno incongruente, devido ao fato de Luiza levar junto com os 305 seus pertences o retrato do marido. Uma ação como essa não escapou das sagazes críticas do escritor brasileiro, que ignorava ―inteiramente a razão fisiológica ou psicológica desta precaução de ternura conjugal que, em todo caso, não lhe era aparente‖ (MACHADO, 1962, p.906). No entanto, com a difusão de correntes existencialistas e de estudos relacionados à psicanálise, o gesto de Luísa, tão vilipendiado por Machado no século XIX, não nos parece, hoje, algo tão despropositado e incoerente, mas sim uma reação perfeitamente compreensível e aceitável, uma vez que pode ser compreendida como um ato falho movido pelo automatismo das práticas sociais, perspectiva que nos faz pensar no fato de que se Machado de Assis estivesse vivo, nos dias de hoje, sua crítica a respeito do gesto da personagem possivelmente não seria a mesma. Para o autor de Brás Cubas, Luísa não representava nada. Não manifestava amor, paixão, aspiração, sonho, ódio, revolta, nem sequer perversão, mas apenas uma inércia aprisionadora que a impedia de libertar-se da condição de ―títere‖ atribuída por ele. Sendo assim, para que Luiza pudesse despertar atenção era preciso que as tribulações que a afligissem viessem dela mesma: ―(...) seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral. Gastar o aço da paciência a fazer tapar a boca de uma cobiça subalterna, a substituí-la nos misteres ínfimos, a defendê-la dos ralhos do marido, é cortar todo o vínculo moral entre ela e nós‖ (Ibidem, p.906-907). A crítica de Menéndez y Pelayo (1948) à ausência de paixão nos caracteres calderonianos não foi tão incisiva quanto à machadiana, que desconsiderava por inteiro a construção feminina feita por Eça de Queirós em O primo Basílio. Mas o ponto central fora o mesmo: a superficialidade dos sentimentos das personagens. 306 Logo, ainda que grandioso em vários aspectos, o drama calderoniano El médico de su honra se consagra exceto pela presença de caracteres tão complexos, tão vivos e tão próximos à realidade, tal como determinava a poética aristotélica, caracterizada pela representação da natureza humana em toda a sua riqueza, variedade e expressão. Tanto nos dramas trágicos como nas comédias de costume, também intituladas de ―capa y espada‖, Calderón foi um notável propagandistas da moral da honra e do seu espírito reivindicativo. No entanto, apesar dessas obras mais funcionarem com um poderoso meio de exaltação e propaganda dos valores morais da época, havia muitos romances setecentistas que apresentavam uma posição contrária a essa perspectiva: a religiosa, que, por sua vez, se encontra inteiramente desvinculada da opinião pública, em outras palavras, do campo dos valores sociais. Muitas são as obras de Miguel de Cervantes que abordam essa perspectiva cristã no tratamento da desonra conjugal, e, dentro desta significativa produção literária, nos pareceu interessante considerar os capítulos VI e VII do romance Los trabajos de Persilis y Sigismunda, historia septentrional, publicação póstuma de 1617, por ser esta uma narrativa que nitidamente se afasta do implacável posicionamento defendido por Calderón no que se refere ao ―punto de honor‖. Conhecido como um ―imenso livro de aventuras, uma poemática novela de cavalarias que ratifica o fracasso do herói em Don Quijote‖ (VALBUENA PRAT, 1956, p.1525. Tradução nossa)105, a obra é a síntese de todos os ideais e aspirações do autor, visto que apresenta, sobretudo, através da figura de uma das personagens mais significativas do romance, Periandro/ Pérsiles, uma inigualável bondade, tolerância e misericórdia. E todas essas qualidades próprias da natureza de um herói 105 ―inmenso libro de aventuras, una poemática novela de caballerías que ratifica el fracaso del héroe en Don Quijote‖. 307 podem ser melhor apreciadas na cena em que o mesmo tenta convencer o polonês Ortel Banadre a não se vingar de sua esposa, Luisa, e de seu amante, Alonso. Nos capítulos citados, os leitores de Persiles y Sigismunda se deparam com a narrativa de mais um caso de adultério feminino. Perdidamente apaixonado pela beleza indescritível de Luisa, Banadre decide pedi-la em casamento, mesmo sabendo que sua fama não era a das mais aceitáveis para uma mulher honrada. Menosprezada a opinião pública, que a considerava ―atrevidinha e um pouco livre e descomposta‖ (CERVANTES, 1956, cap. VI, p.1647. Tradução nossa)106, o polonês, muito convincente de seus sentimentos e da honestidade da moça, tudo faz para tê-la, abrindo mão, inclusive, do dote que deveria receber do pai da jovem. Mencionamos: Decidi falar com o seu pai, pedindo-a como mulher. Mostrei-lhe minhas pérolas, revelei-lhe minha fortuna, disse-lhe cortesias de minha perspicácia e de minha produção, não só para conserválos, mas para aumentá-los; e com estas razões, e com a ostentação que lhe havia feito de meus bens, veio mais suave que uma luva a consentir com meu desejo, e mais quando viu que eu não exigia o dote, pois só com a formosura de sua filha me havia pagado, contente e satisfeito deste acordo (Ibidem, cap.VII, p.1648. Tradução nossa)107. O narrador, além de tratar da cega paixão da personagem, trata também de um tema bastante pertinente: o casamento por conveniência e não por amor. No séc. XVII, a preferência dos filhos, fossem estes homens ou mulheres, era quase sempre desconsiderada. Todos os casamentos eram acertados em negociações e cabia ao pai da noiva dar o dote ao noivo. Esse poderia ser tanto em forma de espécie, dinheiro, 106 ―atrevidilla y algún tanto libre y descompuesta‖. ―Determiné de hablar a su padre, pidiéndosela por mujer. Enseñéle mis perlas, manifestéle mis dineros, dijele alabanzas de mi ingenio y de mi industria, no sólo para conservarlos, sino para aumentarlos; y con estas razones, y con el alarde que le había hecho de mis bienes, vino más blando que un guante a condescender con mi deseo, y más cuando vio que yo no reparaba en dote, pues con sola hermosura de su hija me tenía por pagado, contento y satisfecho de este concierto‖. 107 308 como também em forma de bens, propriedades, o que refletia a finalidade extremamente lucrativa dos acordos matrimoniais feito entre as famílias. Por desconsiderar todos os comentários difamatórios sobre a figura feminina que tanto o encantara e por idealizá-la equivocadamente, transformando-a em ―deusa Venus‖, o polonês é um dos principais responsáveis pela sua própria tragédia. Luisa, ao contrário do que supunha Banedre, é amoral e corrupta. Não lhe interessava o amor cortês do cavalheiro, mas sim sua fortuna, sua riqueza, e, convencida por Alonso, seu inescrupuloso amante, foge de Talavera levando dinheiro, algumas jóias e o tesouro mais precioso de Ortel Banedre: sua honra. Esse, diante da injúria da esposa, decide se vingar, principalmente quando descobre que os amantes foram detidos na prisão de Madrid enquanto fugiam, e, para melhor aclarar a força desse desejo manifestado pela personagem, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: (...) vou com vontade determinada de tirar com seu sangue as manchas de minha honra, e, com tirar-lhes as vidas, tirar dos meus ombros a pesada carga de seu delito, que me traz aterrado e consumido. (…) ¡Vive Deus, que o mundo há de saber que não sei dissimular ofensas, principalmente as que são tão danosas que entram até as medulas da alma (CERVANTES, 1956, cap.VII, p.1648. Tradução nossa)108. Através do discurso da personagem, é possível observar como esse forte desejo de vingança encontra-se enraizado no imaginário da sociedade da época. Para limpar a sua honra, Ortel precisaria tirar-lhes as vidas, como se a morte dos amantes fosse extinguir de sua alma toda a dor e sofrimento resultantes da traição cometida pela esposa. E, ao conscientizar-se da intenção do estrangeiro, o generoso Persiles 108 ―(...) voy con voluntad determinada de sacar con su sangre las manchas de mi honra, y, con quitarles las vidas, quitar de sobre mis hombros la pesada carga de su delito, que me trae aterrado y consumido. (…) ¡Vive Dios, que ha de saber el mundo que no sé disimular agravios, y más los que son tan dañosos que se entran hasta las medulas del alma‖. 309 decide aconselhá-lo a não matá-los, e no intuito de conter a indomável fúria que acometera os sentimentos mais nobres do cavalheiro, o herói cervantino apóia-se num importante argumento: ¿Qué pensais que vos sucederá quando a Justiça vos entregue vossos inimigos, atados e rendidos, em cima de um teatro público, a vista de infinitas pessoas, e a vós brandindo a faca em cima do cadafalso, ameaçando cortar-lhes as gargantas, como se pudesse limpar seu sangue, como dizeis, vossa honra? ¿Qué vos pode suceder, como digo, senão tornar mais pública vossa ofensa? Porque as vinganças castigam, mas não tiram as culpas (Ibidem, cap.VII, p.1648/ 1649. Tradução nossa)109. A morte dos amantes tornaria a desonra evidente, e, de acordo com a opinião pública, a vingança deveria ser praticada na intimidade, de forma privada, com o objetivo de preservar o que restou da dignidade do marido ofendido. Convinha evitar a divulgação da perda da honra, ainda que esta tenha sido resgatada ou reivindicada depois da morte dos culpados. Essa inquietante preocupação por manter o agravo em silêncio fazia com que muitos homens realizassem a vingança com as próprias mãos, tal como sucede em El médico de su honra, ao invés de levar o caso para a justiça (AYALA, 1989, p.116). O tribunal, por sua vez, concedia ao marido o direito de vingar-se da mulher e do amante, e este valioso poder de decisão estava pautado em uma disposição do Foro Real, incluída nas recopilações oficiais vigentes durante os séculos XVI e XVII, tal como nos evidencia Francisco Ayala (Ibidem, p.116). Sendo assim, cabia ao homem decidir se a entregava à justiça, se a matava com as próprias mãos, se a repudiava ou, em alguns casos, se a perdoava. 109 ―¿Qué pensáis que os sucederá cuando la Justicia os entregue a vuestros enemigos, atados y rendidos, encima de un teatro público, a la vista de infinitas gentes, y a vos blandiendo el cuchillo encima del cadalso, amenazando el segarles las gargantas, como si pudiera su sangre limpiar, como vos decís, vuestra honra? Qué os puede suceder, como digo, sino hacer más público vuestro agravio? Porque las venganzas castigan, pero no quitan las culpas‖. 310 O segundo notável argumento utilizado por Periandro para persuadir Banedre fora fundamentado nas leis do repúdio, reconhecidas tanto pelo direito romano como pelo Catolicismo, religião que considerava pecador o indivíduo que, por qualquer motivo que fosse, tirasse a vida de alguém, fazendo justiça com as próprias mãos. (…) senhor, pensai melhor e, dando lugar à misericórdia, não recorrais à Justiça. E não vos aconselho por isto que perdoeis a vossa mulher para trazê-la a vossa casa, que a isto não há lei que vos obrigue; o que vos aconselho é que a deixeis, que é o maior castigo que podereis dar-lhe (…). E, finalmente, quero que considereis que vais a cometer um pecado mortal em tirarlhes as vidas, que não se há de cometer por todas as ganâncias que a honra do mundo ofereça (Ibidem, cap.VII, p.1649. Tradução nossa)110. Na concepção da personagem cervantina, a justiça deveria ser feita unicamente por intermédio de Deus e não pelo homem, pensamento que contrariava a concepção dos valores sociais, que exigia do marido ultrajado a limpeza do sangue e da honra. Convencido pela exposição de Periandro, o polonês Ortel Banedre abandona o projeto inicial de matar os amantes. Reconheceu que a melhor forma de castigá-los seria através do repúdio, e, com isso, decide regressar ao seu país de origem a fim de construir uma nova vida, ―deixando todos admirados de seus fatos e da boa elegância com que os havia contado‖ (Ibidem, cap.VII, p.1649. Tradução nossa) 111. Ortel Banedre deixa de lado a valorização dos signos externos que podiam fazê-lo merecedor de honra, e à medida que abdica do assassinato dos adúlteros, vemos nascer nele a consciência de que a dignidade deve estar acima de qualquer rol 110 (…) señor, volved en vos y, dando lugar a la misericordia, no corráis tras la Justicia. Y no os aconsejo por esto a que perdonéis a vuestra mujer para volverla a vuestra casa, que a esto no hay ley que os obligue; lo que os aconsejo es que la dejéis, que es el mayor castigo que podréis darle (…). Y, finalmente, quiero que consideréis que vais a hacer un pecado mortal en quitarles las vidas, que no se ha de cometer por todas las ganancias que la honra del mundo ofrezca. 111 ―dejando a todos admirados de sus sucesos y del buen donaire con que los había contado‖. 311 institucional. À diferença de dom Gutierre em El médico de su honra, Banedre não se refugia na obsessiva necessidade de cumprir o código de honra para limpar o seu nome. Assim, vemos que sua ação é motivada essencialmente por sua dignidade (honor), o que o torna um personagem indiscutivelmente particular dentro de uma literatura marcada pela ostensiva presença de maridos vingativos. Ao perpassarmos pelo drama trágico El médico y su honra e pelo romance cervantino Persiles y Sigismunda, constatamos a forma como as personagens atuam, segundo suas próprias convicções e ideologias particulares, com relação ao código de honra. Na primeira obra, a vingança havia de ser realizada pelo esposo, a fim de que o mesmo resgatasse a honra manchada, o que evidencia o caráter social da vingança para Calderón de La Barca. Em oposição ao rigor calderoniano, Persiles y Sigismunda oferece aos seus leitores uma perspectiva completamente diferente, uma vez que o polonês Ortel Banedre renuncia, em nome da moral cristã e, sobretudo, da dignidade, o projeto inicial de assassinar publicamente a esposa e o seu amante: os principais responsáveis por sua desonra. Sendo assim, concluímos que o tratamento da infidelidade feminina e do ponto de honra em El médico de su honra e Persiles y Sigismunda pode ser explicado a partir do próprio ponto de vista ideológico dos autores, que apresentavam opiniões bastante divergentes sobre os temas, e também pela própria questão dos gêneros literários, pois ―o romance destinado à leitura privada convidava à reflexão condenatória de uma vingança sangrenta, enquanto o teatro exigia entregar-se aos sentimentos de maior expressão‖ (MENÉNDEZ PIDAL, 1940, p.170. Tradução nossa)112. 112 ―la novela destinada a la lectura privada invitaba a la reflexión condenatoria de una venganza sangrienta, mientras el teatro exigía entregarse a los sentimientos de mayor efectismo‖. 312 No século XIX, não foi menor o enfoque que os escritores do realismo/ naturalismo espanhol atribuíram à figura da infidelidade feminina e ao ponto de honra em suas obras. Em La Regenta, Leopoldo Alas ―Clarín‖, através da figura burlesca de dom Víctor Quintanar, ressuscita a angustiante condição de ultraje vivenciada pelas personagens dos dramas trágicos do século XVII, ao deparar-se com a inesperada traição de Ana Ozores. Apesar de a temática também estar centrada em torno da traição feminina, o que, consequentemente, desencadeia a desonra masculina, veremos, a seguir, que Clarín confere ao marido traído um contorno bastante particular− o paródico−, principalmente se considerarmos o fato de o exregente de Audiência ser um leitor compulsivo dos dramas trágicos de Calderón, em especial de El médico de su honra. O diálogo intertextual entre as obras é explícito, e, por inúmeras vezes, o narrador faz questão de corroborá-lo, o que justifica as nossas digressões sobre a desonra conjugal em algumas das principais produções literárias do séc. XVII, essenciais para a compreensão das propostas estética e ideológica elaboradas por Leopoldo Alas, em La Regenta, e posteriormente por Pérez Galdós, em El Abuelo. 313 4.2. A desonra em La Regenta Em Cartas a Galdós, Clarín confessa ao estimado amigo estar escrevendo o romance La Regenta, fato até então mantido em sigilo absoluto. Por vários momentos, o implacável crítico literário mostra-se receoso e preocupado com a repercussão que a obra poderia assumir, em especial, no âmbito acadêmico da época. Vejamos: No sé si sabrá Vd. que yo también me he metido a escribir una novela, vendida ya (aunque no cobrada) a Cortezo de Barcelona. Si no fuera por el contracto, me volvería atrás y no la publicaba: se llama La Regenta y tiene dos tomos- por exigencias editoriales. Creo que empieza demasiada gente a escribir novelas, y al pensar, de repente, que yo también voy a prevaricar me dan escalofríos. Hablando en secreto, creo firmemente que los únicos novelistas verdaderos son Vd. y Pereda, y de la parte contraria Alarcón y algo Valera, cuando Dios quería [...] Ahora figúrese Vd. lo que me parecerá de mí mismo. No me reconozco más condiciones que un poco de juicio y alguna observación para cierta clase de fenómenos sociales y psicológicos, algún que otro rasgo pasable en lo cómico, un poco de escrúpulo en la gramática... y nada más. Me veo pesado, frío, desabrido..., y, en fin, ha sido una tontería meterme a escribir novelas. ¿Con qué cara voy a insultar en adelante a los demás?113 O medo e a insegurança, capazes de provocar calafrios, se apoderam do autor que, inicialmente, chega a arrepender-se de ter se dedicado à produção de romances. No entanto, meses depois, o arrependimento momentâneo do escritor é desfeito e, no lugar de temores e preocupações, surge uma sensação de confiança que corroborava a ideia de que estava definitivamente no caminho correto. La Regenta foi considerada unanimemente pela crítica como o melhor romance naturalista espanhol do século XIX. 113 CLARÍN. Cartas a Galdós. Revista de Occidente, Madrid, 1964. p.220-221. 314 A notícia de que Clarín publicara a obra difundiu-se rapidamente pelos círculos literários da época, e, em seguida, pelo público leitor, graças à distribuição de um prospecto de propaganda feito pela <<Biblioteca Arte y Letras>>. Publicada entre os anos de 1884 e 1885, o romance naturalista, que retrata com muita maestria a provinciana cidade de Oviedo, intitulada de ―Vetusta‖, provocou uma grande polêmica em vários setores da cidade, principalmente naqueles que se encontravam sob as rédeas de uma das instituições mais poderosas daquele período: a Igreja Católica. Dessa forma, não nos cabem dúvidas de que há uma proposta, assim como em El Lazarillo, por parte do narrador, de enfatizar a inexorável exploração da maldade humana, a fim de evidenciar a assustadora ausência de caridade no seio de uma sociedade orgulhosa por intitular-se <<cristã>>. Contra esse poderio abusivo e arbitrário, o narrador Clarín, implacável em suas críticas, promove inúmeras denúncias, evidenciando-nos, ao longo dos trinta capítulos da obra, a arrogância, a ambição e a imoralidade de muitos membros religiosos que se mostravam avessos à própria doutrina católica ensinada por eles. A narrativa de La Regenta é, em muitos episódios, construída sob a séria prerrogativa de fazer chocar através do riso, de estabelecer uma denúncia pela ironia e de expor atrozmente a corrupção do clero como um dos males que corrompia a sociedade ovetense da época. O humor e a ironia são indiscutivelmente dois importantes recursos estilísticos utilizados pelo narrador, que, em determinadas cenas, opta por um tom mais patético e mais risível, podendo chegar, inclusive, a assumir configurações grotescas, e uma das personagens que melhor ilustra essa perspectiva é dom Víctor Quintanar, o esposo de Ana Ozores, que era ―botánico, 315 ornitólogo, floricultor, arboricultor, cazador, crítico de comédias, cómico, jurisconsulto; todo menos un marido‖ (Ibidem, p.296). Constituído por muitas leituras que realizou, Víctor Quintanar é um notável exemplo de figura do leitor. Apaixonado pelo teatro do século XVII, em especial, pelos textos de Calderón de la Barca, a leitura também passa a desempenhar um papel crucial na vida do ex-regente, que tem seu imaginário alimentado e moldado pelas imortais comédias espanholas, dentre elas El médico de su honra, seu livro preferido. Buscava nelas um modelo exemplar de vida, de conduta, e era justamente nas personagens de Calderón e de Lope de Vega que o ex-regente o encontrava. Estabelece-se, assim, uma profunda relação de identificação entre o texto lido e o leitor, o que, mais uma vez, vem corroborar a fundamental importância da leitura na vida dessas figuras que se educam por meio de livros. Dessa forma, ler, muito mais que entretenimento, significava viver. Inúmeras são as cenas de La Regenta em que os leitores podem observar os efeitos dessas leituras na vida de dom Víctor Quintanar, ―un aragonés muy cabal, valiente, gran cazador, muy pundonoroso y gran aficionado de comédias‖ (ALAS, 1998, p.177), e, para melhor esclarecer essa pujante grande paixão do ex-regente de Audiência pelo teatro do século XVII, nos pareceu interessante citar o seguinte fragmento: Siempre había sido muy aficionado a representar comedias, y le deleitaba especialmente el teatro del siglo diecisiete. Deliraba por las costumbres de aquel tiempo en que se sabía lo que era honor y mantenerlo. Según él, nadie como Calderón entendía en achaques del puntillo de honor, ni daba nadie las estocadas que lavan reputaciones tan a tiempo, ni en el discreteo de lo que era amor y no lo era, le llegaba autor alguno a la suela de los zapatos. En lo de tomar justa y sabrosa venganza los maridos ultrajados, el divino don Pedro había discurrido como nadie y sin quitar a «El castigo sin venganza» y otros portentos de Lope 316 el mérito que tenían, don Víctor nada encontraba como «El médico de su honra». (Ibidem, p.127). E também: Todas las noches antes de dormir se daba un atracón de honra a la antigua, como él decía; honra habladora, así con la espada como con la discreta lengua. Quintanar manejaba el florete, la espada española, la daga. Esta afición le había venido de su pasión por el teatro. Cuando trabajaba como aficionado, había comprendido en los numerosos duelos que tuvo en escena la necesidad de la esgrima, y con tal calor lo tomó, y tal disposición natural tenía, que llegó a ser poco menos que un maestro. Por supuesto, no entraba en sus planes matar a nadie; era un espadachín lírico. Pero su mayor habilidad estaba en el manejo de la pistola; encendía un fósforo con una bala a veinticinco pasos, mataba un mosquito a treinta y se lucía con otros ejercicios por el estilo. Pero no era jactancioso. Estimaba en poco su destreza; casi nadie sabía de ella. Lo principal era tener aquella sublime idea del honor, tan propia para redondillas y hasta sonetos (Ibidem, p.128). Por ser um profundo admirador da honra e da virtude, elementos essenciais à natureza de um cavalheiro, Quintanar torna-se, a princípio, ―o porta-voz do mito calderoniano da honra‖ (OLEZA, 2003a. Tradução nossa)114. O ex-regente inspiravase nas principais personagens e tentava viver da mesma maneira que eles, o que, de certa forma, acentuava a inexistência de uma personalidade e de um discurso próprios, já que muitas de suas ações eram meras reproduções daquilo que lera nos livros. Essa apropriação lhe dá, muitas vezes, um aspecto caricaturesco, dada a semelhança existente entre as personagens dos dramas idolatrados por ele, e, para melhor aclarar essa personalidade carente de caráter e de discurso, citamos o seguinte fragmento proferido pelo narrador: ―Hasta en el estilo se notaba que Quintanar carecía de carácter. Hablaba como el periódico o el libro que acabara de leer, y 114 ―el portavoz del mito calderoniano de la honra‖. 317 algunos giros, inflexiones de voz y otras cualidades de su oratoria, que parecían señales de una manera original, no eran más que vestigios de aficiones y ocupaciones pasadas‖ (ALAS, 1998, p.540). Outra importante leitura realizada por Quintanar é a de La imitación de Jesucristo, de Kempis. A obra o fez meditar sobre fatos que nunca lhe haviam passado na mente. A concepção de que a vida, de todas as maneiras, é bem triste, especialmente pelo fato de tudo ser passageiro, contamina a alma da personagem: ―poco a poco Kempis fue tiznándole el alma de negro y don Víctor llegó a despreciar las cosas por efímeras‖ (Ibidem, p.652), e esta visão pessimista reaparecerá no capítulo XXIX, na cena em que o ex-regente resolve confidenciar a Frígilis, o seu melhor amigo, a traição de sua esposa. Nesse episódio, Quintanar faz crer que ―todo el mundo era podredumbre; el ser humano lo más podrido de todo‖ (Ibidem, p.896). Ao pensar em Kempis, reconhece que sempre haverá uma cruz para se carregar: ―(...) verás que siempre tienes algo que padecer de grado o por fuerza; siempre hallarás la cruz...‖ (Ibidem, p.896), e a ocorrência deste pensamento contradiz todo o universo idealizado projetado pela personagem-leitora. Diante dessa incompatibilidade, o pessimismo acaba vencendo, acarretando a derrota de um ser que a vida inteira mostrou-se à margem da verdadeira realidade, não se adaptando, de forma alguma, a ela, o que imediatamente nos faz pensar em El ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha (1605/1615), primeiro romance moderno a tratar da desilusão da figura do herói na literatura. Outro possível ponto retomado de Don Quijote por Clarín da tradição cervantina foi a figura da criada perversa. Nos capítulos que narram ―La novela del 318 Curioso Impertinente‖, os amantes Camila e Lotario viveriam na mais perfeita tranquilidade o proibido idílio se não fosse a interferência da criada Leonela. Ao conscientizar-se das aventuras clandestinas da patroa, confissão feita pela própria dona Camila, Leonela, ―com pouca vergonha e muita desenvoltura‖ (CERVANTES, 2005, parte I, cap.XXXIV, p. 308. Tradução nossa)115, encontrou-se no direito de viver as suas livremente, sem dar qualquer tipo de satisfação a sua senhora. Essa, por sentir-se ameaçada, acabou encobrindo o atrevimento da ama, que, por inúmeras vezes, levava o seu amante para dentro da casa dos patrões. Camila tornou-se refém de Leonela, e esta desprivilegiada condição da patroa será, sem dúvida, um dos pontos mais interessantes da narrativa cervantina, por caracterizar, assim, uma inversão de papéis entre as personagens. Será a criada quem dará o primeiro passo para a eclosão da tragédia. No capítulo XXXV, na cena: ―- Não me mates, senhor, que eu te direi coisas de grande importância das que possas imaginar. – Diga-as logo- disse Anselmo-; se não morta és. - Agora será impossível- disse Leonela-, como estou confusa; deixa-me até amanhã, que então saberás de mim o que te há de admirar‖. (CERVANTES, 2005, parte I, cap. XXXV, p.322. Tradução nossa)116, Anselmo, após ver sair do quarto de Leonela um vulto masculino, exige-lhe explicações, ameaçando-a inclusive de matála, caso não as desse. Temendo o que poderia acontecer-lhe, a maliciosa serviçal pede a Anselmo que lhe poupe a vida, pois tinha algo de grande valia para contar-lhe. Mais tranquilo por saber que o vulto se tratava do futuro marido de Leonela, o patrão aceita a condição da criada, deixando-a trancada em seu aposento, o que de 115 ―con poca vergüenza y mucha desenvoltura‖. ―- No me mates, señor, que yo te diré cosas de más importancia de las que puedes imaginar. Dilas luego- dijo Anselmo-; si no muerta eres. - Por ahora será imposible- dijo Leonela-, según estoy de turvada; déjame hasta mañana, que entonces sabrás de mí lo que te ha de admirar‖. 116 319 nada serviu, pois a astuta escapa pela janela, assim como o fez seu amante. Em seguida, Anselmo, ―el fabricador de su deshonra‖, conta a Camila tudo aquilo que havia presenciado minutos antes, e, desesperada com a possível revelação de Leonela, a adúltera decide fugir, levando consigo dinheiro e as melhores jóias que possuía. No dia seguinte, a desgraça estava declarada. O marido ultrajado finalmente se dá conta do abandono da mulher, e, ao procurar Lotario para comunicar-lhe da fuga de Camila, ele também se surpreende com o repentino desaparecimento do amigo. Ligando um fato a outro, a personagem chega a uma tardia conclusão: a traição daqueles que mais estimava. Em La Regenta, o descobrimento do adultério também está estritamente vinculado com a maquiavélica atuação da criada. Desprovida de valores morais, Petra alimentava-se da vaidade e da inveja, mostrando-se completamente avessa não só aos sentimentos nobres e verdadeiros como também a qualquer tipo de sentimentalismo romântico, o que corrobora, sem dúvida, a potencialidade do valor simbólico de seu nome. Sua maior satisfação provinha da desgraça alheia, logo, quando se tratava de interesse particular, a jovem não hesitava em passar por cima de quem quer que fosse para atingir os seus objetivos, posicionamento que revela a crueldade de uma das mais pícaras personagens clarinianas. No intuito de ocupar o lugar deixado por Teresina, a ex-governante da residência de Fermín de Pas, Petra elabora um sórdido plano, digno de sua perfídia− e nesse ponto vale a pena chamar a atenção para a astúcia feminina na obra, especialmente pelo fato de Petra recorrer ao disfarce, à dissimulação, vendo-a como uma importante estratégia para modificar determinada situação, o que inevitavelmente a aproxima das personagens boccaccianas, em Decameron. A criada, 320 fazendo-se de vítima, confessou ao apaixonado Fermín o idílio amoroso de sua senhora com Álvaro Mesía, o que, consequentemente, despertou a fúria do clérigo. Porém, muito mais que a ascensão social, a diabólica Petra almejava a vingança contra todos aqueles que, em alguma ocasião, a injuriaram e a usaram de forma a garantir proveitos e vantagens, tal como o fizeram respectivamente os seus patrões, Ana e Víctor, e os seus dois amantes, Álvaro Mesía e Fermín de Pas. Vejamos: Vengáse protegiendo ahora los amores de Mesía y Ana, <<del idiota de don Víctor>> que se ponía a comprometer a las muchachas sin saber de la misa la media; vengábase de la misma Regenta que caía, caía, gracias a ella, en un agujero sin fondo, que estaba sin saberlo la hipocritona en poder de su criada, la cual el día que le conviniese podía descubrir todo. Tenía entre sus uñas a la señora, ¿qué más quería ella? (…) Pero además gozaba de otra venganza más suculenta que todas éstas la endiablada moza. ¿Y el Magistral? El Magistral la había querido engañar, la había hecho suya; ella se había entregado creyendo pasar en seguida a la plaza que más envidiaba en Vetusta, la de Teresina (Ibidem, p.867). E foi assim, de uma só vez, que a personagem mais astuciosa de todo o romance conseguiu efetivar uma dupla conquista: a primeira, vingar-se dos quatro integrantes que compunham o quarteto amoroso engenhosamente elaborado por Leopoldo Alas; e a segunda, ascender socialmente, ocupando o posto mais desejado por todas as criadas em Vetusta. Da mesma forma que Clarín, o romancista português Eça de Queirós, em O primo Basílio, também atribui um papel de destaque à diabólica figura da criada. Para Machado de Assis (1962, p.905), Juliana é justamente a criação mais completa e verdadeira de todo o livro, e esta importância se deve, sobretudo, ao fato de haver um esvaziamento da personagem principal, Luísa, que, segundo o crítico, não passava de uma ―matéria inerte‖. Devido ao torpor permanente que assolava a natureza de Luísa, 321 à ausência de conflitos internos e à inexistência de motivos que justificasse a consumação do adultério, é que se destaca Juliana, pois será a partir da intervenção da gananciosa serviçal que a narrativa de O primo Basílio mudará de foco: ―... o cordel que move a alma inerte de Luísa passa das mãos de Basílio para as da criada‖ (Ibidem, p.906). Quem passará a controlar Luísa, não mais será o oportunista Basílio, já entediado com a relação amorosa, mas sim Juliana, que descobrirá o adultério dos primos, através das correspondências trocadas por eles. Com as provas da traição nas mãos, a chantagista Juliana obteve tudo que desejava e tudo que lhe fora conveniente, passando a atribuir à Luísa a responsabilidade na realização das tarefas domésticas, como engomar a roupa e varrer a casa, o que revela a perversidade e o oportunismo da personagem querosiana. Aos olhos do renomado crítico brasileiro, o fato de Eça atribuir ao ―acessório‖ toda a importância e valor do ―termo principal‖, ou seja, conferir à Juliana a posição de destaque que deveria ser, impreterivelmente, assumida pela personagem principal, Luísa, foi tido como uma grande incongruência, um ―defeito capital‖, posto que distorcia os princípios mais elementares da escola realista. Citamos: ―Ora, a substituição do principal pelo acessório, a ação transplantada dos caracteres e dos sentimentos para o incidente, para o fortuito, eis o que me pareceu incongruente e contrário às leis da arte‖ (Ibidem, p.910). Não obstante, ainda que Eça de Queirós, um dos mais vivazes escritores da escola realista em Portugal, tenha se equivocado ao atribuir à Juliana, personagem secundária, a função visceral na narrativa, sua presença, de acordo com o próprio Machado, não deixa de ser um dos aspectos mais significativos de toda a obra. 322 Diferentemente de O primo Basílio, a complexidade de La Regenta, não se centraliza apenas na figura da maquiavélica serviçal, mas primordialmente na desconstrução do tradicional triângulo amoroso. A traição feminina e o ponto de honra foram tratados por Leopoldo Alas ―Clarín‖ de forma díspar, pois, além das figuras do marido traído, da esposa infiel e do amante sedutor, Leopoldo Alas introduz mais uma: a do clérigo apaixonado que assumirá, através da inversão− método de elaboração textual−, o papel de esposo enganado: ―Él, él era el maridopensaba- y, no aquel idiota, que aún no había matado a nadie‖ (ALAS, 1998, p.904905). Ao contrário do que o público leitor esperava, será o confessor Fermín de Pas o principal responsável pela vingança de Ana Ozores, e não o seu legítimo marido, dom Víctor Quintanar, originalidade que por si só anularia qualquer crítica referente à tentativa de plágio, de imitação. De confessor, Fermín de Pas transforma-se gradativamente no melhor amigo de Ana Ozores, o caráter mais conflitante de toda narrativa, dividida ora pelos impulsos carnais, ora pelos impulsos religiosos. Fermín, atordoado pela possibilidade de tê-la física e espiritualmente, apaixona-se pela bela dama, tornando-se um ser desejante, em outras palavras, uma ―máquina desejante‖. Aqui, fazemos referência ao sentido mais íntegro do que Gilles Deleuze & Feliz Guattari (1972) definem em seus estudos sobre o desejo, visto por eles como algo capaz de ser produzido, ou melhor, de ser construído pelo seres humanos. Vejamos: ―O desejo é da ordem da produção e qualquer produção é ao mesmo tempo desejante e social‖ (Ibidem, p. 308). Ambos os teóricos vislumbram o desejo como uma força motriz que impulsiona o ser humano a produzir, perspectiva que muito se diverge do proposto 323 pela psicanálise, ciência que o preconiza como algo reprimido e recalcado. Para Deleuze & Guattari (1972), o desejo não deve ser visto como uma falta, mas sim como uma criação de vida, na medida em que não carece de nada. Assim, compreender o desejo como a representação de um objeto perdido, implica, segundo os teóricos, o esvaziamento da sua potencia, em outras palavras, o extermínio da sua imanência a todos os processos sociais. Em La Regenta, será a presença feminina de Ana Ozores que motivará a manifestação do desejo masculino: No quería más que hundir el alma en aquella pasión innominada que le hacía olvidar el mundo entero, su ambición de clérigo, las trampas sórdidas de su madre de que él era ejecutor, las calumnias, las cábalas de los enemigos, los recuerdos vergonzosos, todo, todo, menos aquel lazo de dos almas, aquella intimidad con Ana Ozores (ALAS,1998, p.635-636). E essa intimidade entre ambos ganhará proporções avassaladoras, sobretudo, se consideramos o processo de metamorfose, pelo qual o robusto Fermín passa, no decorrer dos capítulos. O leitor de La Regenta vai conscientizando-se de que por debaixo das vestes religiosas há um homem como qualquer outro. Um homem que sente, chora, sorri, manipula, mente, e, por fim, deseja: ―El Magistral no era el hermano mayor del alma, era un hombre que debajo de la sotana ocultaba pasiones, amor, celos, ira...‖ (Ibidem, p.746), e foi justamente esta nova condição, a de ser desejante, que o levou à perdição, uma vez que passou a contrariar uma série de valores morais e religiosos defendidos pela soberana Igreja Católica e por ele mesmo em seus pomposos sermões pronunciados na catedral da cidade. Citamos: Aquella felicidad que saboreaba De Pas como un gastrónomo los bocados, aquella libertad, aquella pereza normal que el verano hacía más voluptuosa para su cuerpo robusto, los sueños 324 vagos de amor sin nombre, la deliciosa realidad de ver a la Regenta a todas horas y mirarse en sus ojos y oírla dulsísimas palabras de una amistad misteriosa, casi mística, hacían desear a don Fermín que el sol se detuviera otra vez, que el tiempo no pasara. Aquel agosto, tan triste para don Víctor, era para el Magistral el tiempo más dichoso de su vida (Ibidem, p.664665). Mais uma vez a ideia de desejo faz-se presente na narrativa de Clarín. Fermín, que teve sua infância e adolescência comprometidas com os estudos, conteve, nestas fases, muitos dos seus sonhos e aspirações em prol da formação eclesiástica, acompanhada passo a passo por dona Paula, a mãe da personagem. Uma das mentes intelectuais mais brilhantes da sociedade vetustense, rica de conhecimentos teóricos, porém pobre de experiências de vida, diante do novo, do sentimento desconhecido, mostra-se completamente perturbado, a ponto de comprometer a temível e inabalável imagem que levara anos para ser construída. A comparação feita pelo narrador, no capítulo XI da obra: ―Se parecía un poco a su querida torre de la catedral, también robusta, también proporcionada, esbelta y bizarra, mística; pero de piedra‖ (Ibidem, p.326), se desfaz durante o relato. O coração de Fermín de Pas, inexperiente em matéria de relacionamento, abandona o seu estado original, o de <<piedra>>, e passa a ganhar vida, manifestando sentimentos jamais experimentados por ele. E, com o propósito de corroborar essa nítida transformação, nos pareceu interessante citar um fragmento em que o clérigo, após descobrir o adultério de Ana, demonstra o lado passional que contaminava a sua alma. Citamos: Yo soy tu esposo; me lo has prometido de cien maneras; tu don Víctor no es nadie; mírale cómo no se queja; yo soy tu dueño, tú me lo juraste a tu modo; mandaba en tu alma, que es lo principal; toda eres mía, sobre todo porque te quiero como tu miserable vetustense y el aragonés no te pueden querer, ¿qué 325 saben ellos, Anita, de estas cosas que sabemos tú y yo…? Sí, tú las sabías también… y las olvidaste… por un cacho de carne fofa, relamida por todas las mujeres malas del pueblo…Besas la carne de la orgía, los labios que pasaron por todas las pústulas del adulterio… (Ibidem, p.908). A notícia da infidelidade de Ana lhe é catastrófica, a ponto de transformar o amor em ódio. Para o autor de Fragmentos de um discurso amoroso, a repercussão é o ―modo fundamental da subjetividade amorosa: uma palavra, uma imagem, repercutem dolorosamente na consciência afetiva do sujeito‖ (BARTHES, 1990, p.171), e esta acaba por transformar a escuta numa confusão inteligível, e o enamorado num ouvinte monstruoso‖ (Ibidem, p.173), capaz de cometer as maiores atrocidades possíveis. Diante da ardilosa confissão de Petra, Fermín torna-se monstruoso, e esta nova condição vem ao encontro do que Roland Barthes afirma no capítulo ―Eu sou odioso‖. Vejamos: ―o sujeito se dá conta bruscamente que ele envolve o objeto amado numa rede de tiranias: ele se sente passar de miserável a monstruoso‖ (Ibidem, p.148). Inconformado por tê-la perdido para um de seus maiores opositores, o sedutor Álvaro Mesía, Fermín de Pas, com o seu coração corroído pelo ciúme, ―sentimento que nasce no amor e que é produzido pelo medo de que a pessoa amada prefira um outro‖ (Ibidem, p.46) e pela ira, vai se colocar na posição de marido traído. A partir daí, Fermín irá conspirar contra a amada, empreendendo um ―monstruoso‖ plano de vingança. A pedido do religioso, a perversa serviçal, adianta o relógio de Víctor Quintanar para que o mesmo despertasse antecipadamente e visse o amante saindo do quarto de sua esposa. Ao ver dom Álvaro pulando o muro, o ex-regente sente-se atordoado: (...) le gritaba: muévete, haz algo, tu deber; aquí de tus promesas, mata quema, vocifera, anuncia al mundo tu 326 venganza, despídete de la tranquilidad para siempre, busca energía en el fondo del sueño, de los bostezos arranca los apóstrofes del honor ultrajado, representa tu papel, ahora te toca a ti, ahora no es Perales quien trabaja, eres tú, no es Calderón quien inventa casos de honor, es la vida, es tu pícara suerte, es el mundo miserable que te parecía tan alegre, hecho para divertirse y recitar versos. Anda, anda, corre sube, mata a la dama, después desafía al galán y mátale también…Aquél era su drama de capa y espada… (Ibidem, p.885/886). Como havíamos mencionado, a realidade sobrepuja o mundo idealizado por Quintanar a partir das leituras realizadas por ele: ―<<De todas suertes, las comedias de capa y espada mentían como bellacas; el mundo no era lo que ellas decían: al prójimo no se le atraviesa el cuerpo sin darle tiempo más que para recitar uma redondilla. Los hombres honrados y cristianos no matan tanto ni tan deprisa>>‖ (Idibem, p.897). O marido passa a desejar a morte dos amantes, a fim de resgatar a sua honra perdida, mas, em oposição à implacável sede de vingança manifestada por dom Lope em El médico de su honra, a personagem clariniana fraqueja e não tem coragem de reivindicá-la imediatamente. E, por mais incoerente que fosse a covardia de dom Víctor, esta não justifica a comparação estabelecida por Ricardo Gullón, no prólogo de La Regenta, ao afirmar que o mais correto seria ―associá-lo com Lázaro de Tormes, corno feliz, que com os heróis calderonianos dispostos a castigar a infidelidade conjugal com uma sangria‖ (GULLÓN, 1998, p.28. Tradução nossa)117. Por ser Lázaro uma figura pícara, a personagem, desde a sua infância, tem plena consciência da brutalidade do mundo. O narrador de El Lazarillo de Tormes não revive na realidade mundos ficcionais já caducados, motivo que, por si só, já o diferencia do ex-regente dom Víctor, que mais pode ser compreendido como a 117 ―(…) asociarlo con Lázaro de Tormes, cornudo feliz, que con los héroes calderonianos dispuestos a castigar la infidelidad conyugal con una sangría‖. 327 representação de uma Espanha sonhadora, que se nutria de um passado glorioso que, na realidade, não mais existia. Em La vida de Lazarillo de Tomes y sus fortunas y adversidades (1554), Lázaro não hesitou em aceitar o pedido feito por San Salvador, especialmente porque via nele a forma que tanto buscava para conquistar a tão almejada prosperidade, em outras palavras, a ascensão social. O religioso, no intuito de encobrir o relacionamento proibido com sua criada, propõe a Lázaro que ele se case com ela, e, em troca, lhe garantiria uma série de benefícios materiais, que variavam desde a alimentação até o vestuário. Vejamos: E assim me casei com ela, e até agora não estou arrependido. Porque, além de ser boa filha e diligente serviçal, tenho no senhor arcipreste todo o favor e ajuda. E sempre, ao ano, em várias vezes, nos dá quase uma carga de trigo; pelas Páscoa, sua carne; e quando dá oferendas, deixa também as calças velhas. E fez-nos alugar uma casinha junto a sua. Aos domingos e dias de festa quase todos comíamos em sua casa118. Independente dos comentários gerados pelas frequentes visitas de sua esposa à casa do religioso, Lázaro não se importava com sua desonra, e esta despreocupação pode ser explicada pelo fato de a personagem ser desprovida de valores morais. O adultério feminino não fora tido por ele como algo infame, mas sim como um <<negocio redondo>>, extremamente conveniente para a sua fortuna, o que explicita a intenção satírica do narrador em desconstruir toda aquela pujante mentalidade de que ―a mancha da honra só podia ser lavada com sangue‖ (AYALA, 1989, p.103. Tradução nossa)119. 118 A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Edição, tradução, estudo e notas de Alex Cojorian. Prefácio de José Antonio Pérez. Ed. Bilingue. Brasília: Círculo de estudos clássicos de Brasília, 2002, p.179. 119 ―la mancha del honor sólo con sangre podía lavarse‖. 328 Em La Regenta, Dom Víctor Quintanar lamenta profundamente a sua desonra, porém não consegue consolidar o plano de vingança que resultaria na morte dos amantes. A personagem vacila, e este posicionamento assumido por ele pode ser compreendido pela essência paternalista do ex-regente de audiência, que mais a tinha como filha que esposa. Citamos: ¡Matarla!- eso se decía pronto- ¡pero matarla...! Bah, bah..., los cómicos matan en seguida, los poetas también, porque no matan de veras…, pero una persona honrada, un cristiano no mata así, de repente, sin morirse él de dolor, a las personas a quien vive unido con todos los lazos del cariño, de la costumbre… Su Ana era como su hija... Y él sentía su deshonra como la siente un padre; quería castigar, quería vengarse, pero matar era mucho. No tendría valor ni hoy, ni mañana, ni nunca, ¿para qué engañarse a sí mismo? Mata el que ciega, el que aborrece; él no estaba ciego, no aborrecía, estaba triste hasta la muerte, ahogándose entre lágrimas heladas; sentía la herida, comprendió todo lo ingrata que era ella, pero no la aborrecía, no quería, no podría matarla‖ (Ibidem, p.887-888). Dom Víctor tinha por Ana Ozores um querer bem diferente daquele que se espera entre dois amantes apaixonados. Na relação entre ambos não havia erotismo, sensualidade, desejos, nem tampouco amor. O cavalheiro a via apenas como uma pobre mulher que necessitava de proteção, de carinho, enquanto o que ela mais precisava era da presença de um marido que amasse e que a fizesse feliz. E, talvez, tenha sido por esse motivo que Víctor fracassa, não conseguindo colocar em prática tudo aquilo que aprendera por intermédio das leituras, como a incrível habilidade com o manejo da pistola e o pomposo discurso sobre a vingança, caso descobrisse a traição de sua companheira, tal como podemos observar no seguinte fragmento do capítulo III: ―Yo no me veré nunca en el doloroso trance de excogitar médios para vengar tales agravios [de honor]; pero juro a Dios que llegado el caso, mis atrocidades serían dignas de ser puestas en décimas calderonianas‖ (Ibidem, p.128). 329 Logo, ―(...) em lugar de fazer sangrar Ana até a morte, a perdoa, colocando as culpas sobre si e sobre o sedutor‖ (OLEZA, 2003a. Tradução nossa)120. Contra esse último, Víctor deseja tirar-lhe a vida, porém desperdiça duas importantes oportunidades para fazê-lo: a primeira, quando surpreende o amante saindo do quarto de sua esposa, e a segunda, no duelo de pistolas, fato que evidencia a intenção satírica do narrador em desarticular a perspectiva calderoniana de que o marido ultrajado deveria, a todo custo, vingar-se da falta cometida. E essa proposta torna-se mais explícita, mais reveladora, no capítulo XXX, na cena em que o narrador relata a morte do ex-regente de Audiência, dom Víctor Quintanar. O covarde sedutor tinha plena consciência de que se dom Víctor atirasse ele iria definitivamente matá-lo. O que Álvaro, no entanto, não esperava era que <<el gran cazador>> hesitasse em disparar o tiro fatal, tão temido por ele. Sendo assim, impulsionado por um forte pressentimento, Álvaro atira mais rápido que dom Víctor, acertando-o, por ironia, com um tiro na bexiga, que, por sua vez, encontrava-se cheia. O ex-regente não resiste aos ferimentos e morre no mesmo local onde sucedera o duelo, acontecimento que confere à cena um aspecto grotesco, devido à incongruência do desenlace. Vejamos: Mesía avanzó cinco pasos y apuntó. En aquél instante se sintió tan bravo como cualquiera. ¡Era la corazonada! El pulso estaba firme; creía tener la cabeza de don Víctor apoyada en la boca de su pistola; suavemente oprimió el gatillo frío… creyó que se le había escapado el tiro. <<No, no había sido él quien había disparado, había sido la corazonada>>. Ello era que don Víctor Quintanar se arrastraba sobre la yerba cubierta de escarcha, y mordía la tierra. La bala de Mesía le había entrado en la vejiga, que estaba llena. Esto lo supieron poco después los médicos, en la casa nueva del Vivero, adonde se trasladó, como se pudo, el cuerpo inerte del digno magistrado (ALAS, 1998, p.928/929). 120 ―(...) en lugar de hacer sangrar a Ana hasta la muerte, la perdona, echando las culpas sobre sí y sobre el seductor‖. 330 Esse aspecto grotesco da morte de dom Víctor, apresentado magistralmente pelo narrador clariniano, nos fez pensar no tratamento burlesco que Francisco de Quevedo, um dos mais ilustres poetas do Barroco espanhol no século XVII, dá ao tema da traição feminina. Autor de uma expressiva produção literária dividida em poemas metafísicos, poemas satírico-morais, poemas religiosos, poemas amorosos, poemas satírico-burlescos e outros mais, o poeta espanhol alcança esplendor com a poesia satírica, especialmente com o soneto CDXXXVII a, intitulado Un casado se ríe del adulterio que le paga el gozar con susto lo que a él le sobra, publicado em Sonetos de Quevedo. Vejamos: Díceme, don Jerónimo, que dices que me pones los cuernos con Ginesa; yo digo que me pones casa y mesa; y en la mesa, capones y perdices. Yo hallo que me pones los tapices cuando el calor por el octubre cesa; por ti mi bolsa, no mi testa, pesa, aunque con molde de oro me la rices. Este argumento es fuerte y es agudo: tú imaginas ponerme cuernos; de obra yo, porque lo imaginas, te desnudo. Más cuerno es el que paga que el que cobra; ergo, aquel que me paga, es el cornudo, lo que de mi mujer a mí me sobra121. Na composição, Quevedo apresenta o tema do adultério feminino sob uma ótica cômica, completamente distinta daquela exposta por Calderón em El médico de su honra e em outros dramas trágicos de sua autoria. Em oposição ao rigor implacável de dom Gutierre, que levara a vingança até as últimas consequências, o 121 QUEVEDO, Francisco de. Sonetos de Quevedo. Edición de Ramón García González. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 2003. Este texto encontra-se disponível no site: http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/00361629890036295209079/p0000003.htm 331 marido ultrajado debocha, sarcasticamente, do amante de sua mulher, comportamento que revela a natureza pícara da personagem e o tom humorístico do poema. E, além da traição feminina, Francisco de Quevedo apresenta a dupla condição da mulher amante, uma vez que esta se transforma no principal agente da desonra do marido e da fama do seu conquistador, dom Jerónimo. Na primeira estrofe do poema, enquanto dom Jerómino se vangloria por tê-lo desonrado com a traição, o eu-poético, ironicamente, afirma lucrar grandes proveitos materiais, já que é o próprio amante quem custeia as despesas da casa, tal como a privilegiada alimentação a base de frangos e perdizes. Vejamos: Díceme, don Jerónimo, que dices que me pones los cuernos con Ginesa; yo digo que me pones casa y mesa; y en la mesa, capones y perdices. (QUEVEDO, 2003) O tom humorístico da obra torna-se mais revelador, à medida que o esposo declara a maliciosa intenção de tirar cada centavo do bolso do amante: Este argumento es fuerte y es agudo: tú imaginas ponerme cuernos; de obra yo, porque lo imaginas, te desnudo. (QUEVEDO, 2003) Dessa forma, quanto mais dinheiro Jerónimo gastasse com Ginesa, mais valiosos seriam os lucros que o eu-poético obteria dessa relação nem um pouco clandestina. No entanto, esse pensamento um tanto desconcertante, de um marido condescende com o pecado dos amantes, entra em conflito com a conservadora <<opinião pública>> da sociedade espanhola da época, que aspirava pela sede de vingança e pela condenação dos infratores. No poema de Quevedo, qualquer hipótese 332 de vingança é descartada pelo eu-poético, pois não lhe era necessária, nem tampouco conveniente que aquela proveitosa relação terminasse. Más cuerno es el que paga que el que cobra; ergo, aquel que me paga, es el cornudo, lo que de mi mujer a mí me sobra. (QUEVEDO, 2003) Sendo assim, os leitores chegam ao final do poema com a conclusão de que a única pessoa enganada não é o marido, mas sim o próprio amante, o ―corno‖ dom Jerónimo, quem paga, sem saber, pelas sobras deixadas pelo esperto esposo de Ginesa, desfecho que indica a irreverência e o engenho de Francisco Quevedo, que através de grandes doses de ironia e humor, conseguiu desarticular essa enorme sanção social estabelecida para proteger os bons costumes. Em La Regenta, Ana Ozores, com a morte de Víctor e com a fuga do Don Juan de Vetusta, é tida como a principal culpada pela eclosão da tragédia. Caíramlhe todas as responsabilidades do crime. Desprotegida e desmoralizada por todos, inclusive pelos amigos mais íntimos e por seu confessor, a personagem é brutalmente castigada pela sociedade, por ter tido a insolência de violar um dos mais importantes pilares do modelo de feminilidade: o casamento. Citamos: Y se la castigó rompiendo con ella toda clase de relaciones. No fue a verla nadie. Ni siquiera el marquesita, a quien se le había pasado por las mientes recoger aquella herencia de Mesía. La fórmula de aquel rompimiento, de aquel cordón sanitario fue ésta: − ¡Es necesario aislarla…! (Ibidem, p.936). A verdade emerge com a ruptura do silêncio. A cidade inteira, completamente escandalizada com o caso, celebra a queda de Ana Ozores, imagem que nos remete à ideia de uma vida assimilada à leitura, visto que o narrador clariniano se propõe a comparar <<aquel gran escándalo>> com o trágico desfecho 333 de um romance oitocentista. Notemos, então, a comentada comparação, entendida por nós como uma importante marca da subjetividade do sujeito da enunciação: Vetusta la noble estaba escandalizada, horrorizada. Unos a otros, con cara de hipócrita compunción, se ocultaban los buenos vetustenses el íntimo placer que les causaba aquel gran escándalo que era como una novela, algo que interrumpía la monotonía eterna de la ciudad triste. (...) ¡Era un escándalo! ¡Un adulterio descubierto! ¡Un duelo! ¡Un marido, un exregente de Audiencia muerto de un pistoletazo en la vejiga! (...). Aquel tiro de Mesía, del que tenía la culpa la Regenta, rompía la tradición pacífica del crimen silencioso, morigerado y precavido (Ibidem, p.934). Como vimos, o duelo de pistolas entre Víctor e Álvaro escapa da esfera privada e torna-se público, assim como a desonra do casal. Isso ocorre devido à existência de uma série de personagens empenhadas em divulgá-los. Dentre eles, destacamos Petra e Ronzal, duas figuras que se deliciam com a propagação dos rumores sobre a traição de Ana Ozores: Petra y Ronzal habían sido los indiscretos. Petra, por venganza, por mala índole, había hablado, había dicho a alguna amiga lo de su antigua ama. <<Que por qué había dejado aquella casa? Por tal y por cual.>> Trabuco, a quien la honra de merecer la confianza de Quintanar había llenado de vanidad, no había podido resistir la tentación de dejar transparentarse su secreto. Ello era que en todo Vetusta no se hablaba de otra cosa‖ (Ibidem, p.922). Entretanto, foi Dona Paula, mãe de Fermín de Pas, quem mais contribuiu para a difusão do ultraje da bela dama. Inconformada com o sofrimento do filho, Paula, numa espécie de vingança contra a adúltera, a castiga divulgando o polêmico acontecimento para toda cidade: ―A doña Paula se le ocurría un medio de castigar a los infames, sobre todo al barbilindo agostado; este medio era divulgar el crimen, propalar el ominoso adulterio, y excitar al don Quijote de don Víctor para que saliera 334 lanza en ristre a matar a don Álvaro‖ (Ibidem, p.909), comportamento que expõe a perversidade da cruel viúva. Ana Ozores, assim como dom Víctor Quintanar, é uma personagem quixotesca; não foi capaz de adaptar-se à realidade de Vetusta nem tampouco ao discurso que vinculou a nova condição social da mulher a suas funções no matrimônio e dentro de sua própria casa. A partir do Renascimento, as mulheres são reconhecidas como parte integrante da sociedade, em outras palavras, como sujeito civil, porém este reconhecimento estaria vinculado a algumas condições, dentre as quais podemos destacar a subordinação da figura feminina à casa, aos filhos e ao marido. Moldadas, desde o princípio, para as atividades e funções que deveriam desempenhar no casamento, as mulheres deveriam comprometer-se exclusivamente com as obrigações domiciliares, o que muito contribuiu, na verdade, para o desgaste das relações conjugais, em especial dos casamentos convencionais, arranjados, em sua maioria, pelas famílias. Ao mesmo tempo em que cresce um sentimento de frustração, nasce um forte desejo de libertação, de fuga, e o adultério fora um dos caminhos escolhidos por muitas mulheres que pretendiam buscar uma nova vida, ou seja, uma oportunidade para ser feliz. A doce domesticidade deixa, portanto, de ser o paraíso e passa a transformar-se num verdadeiro pesadelo, e vários foram os romances realistas/ naturalistas do século XIX que representaram magistralmente a crise desta conflitante relação, tais como Madame Bovary, O Primo Basílio, Anna Karenina e as obras analisadas por nós: La Regenta e El Abuelo. No romance clariniano, Ana Ozores, deslumbrada com a possibilidade de se libertar daquela vida enfadonha que levava ao lado de dom Víctor, entrega-se ao 335 amor proibido. A personagem, devido ao ―aborrecimento, pressão do meio, atrativo do homem, abandono-paternalismo do marido e exaltação imaginativa‖ (GULLÓN, 1998, p.20. Tradução nossa)122, consegue reunir mais motivos que qualquer outra heroína para a insatisfação pessoal, e, segundo Joan Oleza (2003a), nenhum outro romance oitocentista apresentou tantos argumentos, tantas razões para a traição feminina como o fez Clarín em La Regenta, fato que traduz a indiscutível a originalidade da obra. Esse caráter próprio, que aparta La Regenta de qualquer estereótipo folhetinesco ou tentativa de plágio, reside, sobretudo, na presença de Ana Ozores, a figura feminina mais singular de todo o romance, dada as profundas inquietações que afligiam o seu imaginário. Diferentemente das astutas adúlteras que permeiam as páginas de Decameron e de importantes produções da literatura europeia, a heroína de Clarín destaca-se primordialmente pela natureza frágil, sendo, por muitas vezes, manipulada ora pelo discurso religioso do seu confessor Fermín de Pas− cujo objetivo era convertê-la beata−, ora pelo discurso romântico e sedutor de Álvaro Mesía− que desejava tê-la como amante, inconstância que nos revela a presença de uma personalidade indiscutivelmente volúvel, instável. E certamente é essa a razão pela qual podemos compreender o nítido desequilíbrio emocional e físico da personagem, que vivia em desarmonia consigo mesmo. Vejamos um fragmento em que o narrador nos mostra a instabilidade vivida por ela: Dividía el tiempo entre el mundo y la iglesia: ni más ni menos que doña Petronila, Olvido Páez, Obdulia y en cierto modo la Marquesa. Se la vio en casa de Vegallana y en las Paulinas, en el Vivero y en el Catecismo, en el teatro y en el sermón. Casi todos los días tenían ocasión de hablar con ella, en sus 122 ―aburrimiento, presión del medio, atractivo del hombre, abandono-paternalismo del marido y exaltación imaginativa‖. 336 respectivos círculos, el Magistral y don Álvaro, y a veces uno y otro en el mundo y uno y otro en el templo; lugares había en que Ana ignoraba si estaba allí en cuanto mujer devota o en cuanto mujer de sociedad. Pero ni De Pas ni Mesía estaban satisfechos. Los dos esperaban vencer, pero a ninguno se le acercaba la hora del triunfo. (ALAS, 1998, p.587). A abrupta diferença de idade entre Ana e dom Víctor Quintanar e o particular desinteresse do marido pela esposa, que mais a tratava como uma filha, fez com ela se sentisse profundamente amargurada com a vida solitária que levara ao lado do marido no casarão da família. A personagem chega a propor ao esposo a ideia de darlhe um filho, na esperança de que este trouxesse mais alegria para o lar, salvando, assim, o seu casamento da monotonia e do tédio. O ex-regente, no entanto, rejeita a aspiração da mulher, demonstrando apatia e indiferença ao projeto idealizado por Ana Ozores. A partir daí, a convivência com Víctor Quintanar torna-se cada vez mais angustiante, e esse explícito descontentamento passa a acentuar o desencadeamento de uma série de crises nervosas− experimentadas por Ana, pela primeira vez, na adolescência, a partir da leitura da obra de santo Agostinho (cap. IV)−, marcadas por alucinações, histeria, desmaio, febre e abatimento físico. Nem por isso Quintanar abdica do seu natural egoísmo. Víctor mostrava-se completamente distante da mulher, tão ausente que não há sequer um episódio de La Regenta em que o exregente manifeste qualquer tipo de desejo sexual por ela. Em contrapartida, o narrador clariniano nos deixa claro que essa inexistência de desejos é apenas com relação à esposa, já que o cavalheiro mostra-se indiscutivelmente interessado pela criada Petra, que lhe desperta, devido ao atrevimento e à descompostura, uma grande atração. 337 Inúmeras são as cenas em que o narrador clariniano dedica-se a enfatizar a ruína do relacionamento conjugal: Tenía veintisiete años, la juventud huía; veintisiete años de mujer eran la puerta de la vejez a que ya estaba llamando... y no había gozado una sola vez esas delicias del amor de que hablan todos, que son el asunto de comedias, novelas y hasta de la historia. El amor es lo único que vale la pena de vivir, había ella oído y leído muchas veces. Pero ¿qué amor? ¿dónde estaba ese amor? Ella no lo conocía. Y recordaba entre avergonzada y furiosa que su luna de miel había sido una excitación inútil, una alarma de los sentidos, un sarcasmo en el fondo... (Ibidem, p.297). Na relação entre Ana e Víctor não havia amor verdadeiro, nem tampouco sexo. A jovem Ozores, em plena flor da idade, tinha absoluta consciência de que seu marido não a amava e não a queria como mulher− e, neste aspecto, destacamos a importância da leitura na vida da personagem leitora, que se conscientiza da sua condição por intermédio dos livros lidos e das experiências vividas. E é, essencialmente, essa ausência do elemento masculino na vida de Ana Ozores que implica a aparição de uma inquietante frustração sexual, a principal responsável por impulsioná-la aos braços do galanteador Álvaro Mesía, o Don Juan de Vetusta. As doces palavras de Álvaro ecoam para Ana como as mais belas cantigas de amor. A conquista não foi imediata, exigiu bastante maestria e paciência por parte do cortejador que, ao fim, conseguiu conquistar o coração da bela Ozores. Ana entregase de corpo e alma ao amor proibido, consumando, assim, a traição. No entanto, aqui cabe comentar que a entrega da personagem central de La Regenta ocorre de forma bastante singular, queremos dizer, sutil, se a comparamos, por exemplo, com as que observamos em Madame Bovary e em Anna Karenina, muito mais prematuras e explícitas. 338 Nos romances de Gustave Flaubert e Lev Tolstói, deparamo-nos com figuras femininas cujas naturezas caracterizam-se pelo comportamento audaz e transgressor, uma vez que confrontam e questionam explicitamente a ideologia sócio-patriarcal predominante no séc. XIX, a qual nitidamente determinava a submissão da mulher ao homem, ou seja, ao chefe da família. Tanto Emma como Anna não hesitam em proclamar abertamente os seus amores proibidos, o que, sem dúvida, corrobora a essência altiva que imbui o espírito das personagens flaubertiana e tolstoiana, condenadas e censuradas em nome da moral vigente. Em La Regenta, o pudor imposto pela sociedade oitocentista à mulher burguesa faz com que Ana Ozores se contenha e reprima muitos de seus desejos e aspirações. Ana é uma personagem conflitante, que lutava permanentemente consigo mesma, e possivelmente foi essa luta constante entre os valores morais/ religiosos e os valores mundanos, que tardou a sua entrega a Álvaro Mesía, acontecimento consumado apenas nos últimos capítulos do romance. Com o adultério, Ana também transgride a ideologia da sociedade patriarcal do século XIX. Entretanto, o que mais chamou a nossa atenção, principalmente por diferir-se de obras como Madame Bovary e Anna Karenina, foi a forma como essa transgressão é apresentada em La Regenta pelo sujeito da enunciação, a começar pelo uso das estratégias femininas usadas por Ana Ozores. Diferentemente da natureza luxuriosa e caprichosa de Emma e do espírito emancipatório que, durante muito tempo, se apoderou de Anna, personagens que usam e abusam do engano, da dissimulação e de outros recursos para viverem livremente as suas aventuras amorosas, Ana é, neste sentido, mais contida que as heroínas de Flaubert e Tolstói, que o fazem explicitamente, demonstrando uma profunda indiferença ao modelo de 339 feminilidade exigido pelas autoridades estatais, pela Igreja e pela própria família no séc. XIX, baseado no recato, na contenção e na compostura. Em La Regenta, a omissão é indiscutivelmente um dos recursos mais empregados pela personagem central do romance para ludibriar essa repressora sociedade patriarcal, que, a todo instante, a sobrepujava. Omitir, aos nossos olhos, é deixar de fazer, dizer ou escrever; não mencionar; não atuar, não se manifestar ou simplesmente não se pronunciar, quando seria de esperar que o fizesse, e muitas são as ocasiões em podemos vislumbrar a personagem clariniana recorrendo a esta importante estratégia feminina, no intuito de velar o seu amor por Álvaro, e um dos episódios que melhor ilustra a omissão de Ana encontra-se no capítulo XVI, no seguinte fragmento: … no habló de la gran tentación que la empujaba al adulterio así se llamaba- mucho tiempo hacía. Buscó subterfugios para no confesar aquello, se engañó a sí misma, y el Magistral sólo supo que Ana vivía de hecho separada de su marido, quo ad thorum, por lo que toca al tálamo, no por reyerta, ni causa alguna vergonzosa, sino por falta de iniciativa en el esposo y de amor en ella. Sí, esto lo confesó Ana, ella no amaba a su don Víctor como una mujer debe amar al hombre que escogió, o le escogieron, por compañero; otra cosa había: ella sentía, más y más cada vez, gritos formidables de la naturaleza, que la arrastraban a no sabía qué abismos obscuros, donde no quería caer… (ALAS, 1998, p.481). Através do discurso do narrador heterodiegético de La Regenta, nós, leitores, nos conscientizamos da real intenção da personagem em esconder de seu confessor o seu pecaminoso desejo. Em: ―Ni en la mañana en que la Regenta reconcilió con don Fermín, antes de comulgar, ni ocho días más tarde, cuando volvió al confesonario, ni en las demás conferencias matutinas en que declaró al padre espiritual dudas, temores, escrúpulos, tristezas, dijo Ana aquello que al determinarse a rectificar su 340 confesión general se había propuesto decir…‖ (Ibidem, p.481), vimos que Ana Ozores chega a pensar na possibilidade de dizer-lhe a verdade. Entretanto, desiste principalmente por sabe que, aos olhos do clérigo, tal aspiração seria tida como um pecado gravíssimo, uma falta reprovável. Ana tem plena consciência da impureza de seus pensamentos e do que significaria a revelação de tal segredo para Fermín de Pas, e foi justamente por este motivo que ela optou pela omissão, guardando para si o ardente desejo que, a posterior, resultara na eclosão da tragédia. Mesmo com a morte do ex-regente de Audiência, dom Víctor Quintanar, a vingança é, de fato, consumada. Desprovido de compaixão e de piedade, Fermín de Pas negará o perdão a Ana Ozores, castigando-a severamente por meio da indiferença e do desprezo, o que denota a grande ironia do narrador em atribuir sentimentos e posicionamentos maquiavélicos à figura de um homem que deveria, acima de tudo, ser piedoso e compromissado com as palavras de Deus. O clérigo atua em nome da punição, e, para melhor elucidar a perversidade de Fermín, nos pareceu pertinente citar o que, para nós, foi um dos episódios mais significativos, dada a indiscutível frieza com que o religioso abandona a bela Ozores, deixando-a desmaiada no chão da imponente catedral de Vetusta: El Magistral se detuvo, cruzó los brazos sobre el vientre. No podía hablar ni quería. Temblábale todo el cuerpo; volvió a extender los brazos hacia Ana…, dio otro paso adelante… y después, clavándose las uñas en el cuello, dio media vuelta, como si fuera caer desplomado, y con piernas débiles y temblonas salió de la capilla. Cuando estuvo en el trascoro, sacó fuerzas de flaqueza, y aunque iba ciego, procuró no tropezar con los pilares y llegó a la sacristía sin caer ni vacilar siquiera. Ana, vencida por el terror, cayó de bruces sobre el pavimento de mármol blanco y negro; cayó sin sentido (Ibidem, p.945). 341 A metamorfose ocorre mais uma vez. A personagem clariniana recobra sua verdadeira identidade, aquela que nos fora apresentada no primeiro capítulo da obra: ―Era montañés (...). Cuanto más subía más ansiaba subir; en vez de fatiga sentía fiebre que les daba vigor de acero a las piernas y aliento de fragua a los pulmones. Llegar a lo más alto era un triunfo voluptuoso para De Pas‖ (Ibidem, p.63), e foi precisamente esta ambição desmedida pelo poder, acompanhada, agora, pelo orgulho ferido, proveniente da traição da amada, que ressuscitou a adormecida natureza implacável de Fermín De Pas, que assumirá o papel do verdadeiro marido traído na obra. 342 4.3. A desonra em El Abuelo A nítida influência dos dramas trágicos do Século de Ouro, especialmente os de autoria de Pedro Calderón de la Barca, no que diz respeito ao tratamento da honra conjugal, não é uma característica exclusiva do romance clariniano La Regenta. El Abuelo (1987), de Benito Pérez Galdós, também pode ser compreendido como resposta ―a uma leitura do código de honra calderoniano dominante em obras como Un drama nuevo, El nudo gordiano o El gran galeoto, que adotam como referência intertextual El médico de su honra‖ (OLEZA, 2003b. Tradução nossa)123, dada a obsessiva sede de vingança manifestada por dom Rodrigo, personagem central do romance galdosiano. Essa significativa apropriação assumirá em El Abuelo um contorno bastante particular do que fora apresentado anteriormente em La Regenta, sobretudo, pelo fato de a desonra masculina ter sido reivindicada não pelo marido ultrajado, mas sim pelo pai do mesmo, o que corrobora a indiscutível originalidade do argumento apresentado por Pérez Galdós. Amargurado pela traição e, consequentemente, pela desonra do seu nome, Rafael Albrit perde, por completo, o interesse pela vida, deixando-se consumir lentamente por uma profunda tristeza: ―La vida había perdido para él todo interés. Hallábase enfermo, y en su desesperación no anhelaba curarse. Le consumía el desaliento, la pérdida de toda ilusión, la vergüenza de ver ultrajado su nombre...‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.82). Dom Rodrigo de Arista-Potestad, também conhecido como Conde de Albrit, ao conscientizar-se, por intermédio de uma carta, da lamentável situação de Rafael, 123 ―a una lectura del código del honor calderoniano dominante en obras como Un drama nuevo, El nudo gordiano o El gran galeoto, que adoptan como referencia intertextual El médico de su honra‖. 343 parte imediatamente rumo à Espanha, a fim de acudir o filho desiludido pela consumação do adultério. No entanto, a longa distância impossibilitou o esperado reencontro entre pai e filho, e, ao chegar a Valença, o patriarca depara-se com a trágica notícia de que Rafael havia falecido duas horas antes de sua chegada à cidade espanhola. No singelo quarto alugado pelo filho, o Conde de Albrit encontra, sob uma mesa, uma carta, ainda inacabada, com a letra de Rafael. Além das infinitas lamentações decorrentes da injúria, a correspondência destacava-se pela presença de uma confissão assombrosa: a de que uma de suas filhas seria bastarda, fruto do relacionamento clandestino de Lucrecia Richmond com o pintor Carlos Eraul, em Paris. Atordoado pela gravidade da revelação, o Conde de Albrit assume para si a responsabilidade do filho morto, tornando-se o principal agente do plano de vingança contra a nora, a seu ver, a grande ―responsable de la infelicidad y de la muerte de aquel hombre bueno‖ (Ibidem, p.80). O ódio e a implacável sede de vingança contaminam a nobre alma de dom Rodrigo, que passa a dedicar sua existência, em outras palavras, seus últimos dias de vida, à desgostosa missão de descobrir qual das duas netas− Dolly e Nell− era a legítima herdeira dos Arista-Potestad, para, em seguida, exigir de Lucrecia a guarda da verdadeira, ficando esta sob a tutela exclusiva do avô. Diferentemente de dom Gutierre, o marido assassino de El médico de su honra, Rafael desejava vingar-se de Lucrecia separando-a de suas duas filhas, seus maiores tesouros, e, ao tomar consciência do último desejo do filho, o Conde parte prontamente a Jerusa, no intuito de iniciar o mais importante projeto de sua vida: o 344 resgate da honra dos Albrit, manchada publicamente pela infidelidade de Lucrecia Richmond, a condessa de Laín. No romance La Regenta, a vingança, para dom Víctor Quintanar, ainda encontrava-se indissociável do caráter social, o que o obrigou a posicionar-se diante da sociedade vetustense, escandalizada com a notícia do adultério. Quintanar age em nome da honra (opinião pública) e não em prol da dignidade, tal como sucede em Peribáñez y el Comendador de Ocaña, de Lope de Vega. Ademais, é preciso levar em consideração o fato de ser Víctor uma figura intencionalmente construída por Clarín a partir dos moldes dos heróis trágicos de Calderón de la Barca, devido à presença do espírito calderoniano que habitava na alma da personagem, aficionada pelo teatro espanhol dos séculos XVI e XVII. Por detrás dessa figura paródica, reside uma proposta mais grave: a desconstrução do discurso calderoniano sobre o ponto de honra, ou seja, sobre a inexorável sede de vingança apontada pelo dramaturgo e seus contemporâneos, tais como Lope de Vega, em muitas de suas obras. Essa mentalidade, por sua vez, tornou-se incompatível com as inúmeras transformações sociais e políticas ocorridas após a Revolução Francesa (1789), no século XVIII. Menéndez Pidal afirma que ―a honra conjugal ficou, sob muitos aspectos, incompreensível depois do século XVIII, que praticava a cortesia, o galanteio e outros costumes análogos, digamos assim, a ciência e paciência do marido, um galã que obsequiava até na maior intimidade. Este século de verdadeira anti-honra tornou dificilmente incompreensível o drama de honra‖ (1940, p.161. Tradução nossa)124, e esta indiscutível aversão à vingança 124 ―el honor marital quedo bajo muchos aspectos incomprensible después del siglo XVIII, que practicaba el cortejo, el chichisbeo y otras costumbres análogas, digámoslo así, a ciencia y paciencia del marido, un galán que obsequiaba hasta en la mayor intimidad. Este siglo de verdadero anti-honor ha hecho difícilmente incomprensible el drama del honor‖. 345 sanguinária apresentada pelos maiores nomes do teatro do Século de Ouro encontrase nitidamente presente em El Abuelo, uma vez que o Rafael não opta pelo assassinato da esposa, mas sim por algo infinitamente mais doloroso para uma mãe: a perda da guarda de uma filha. Não obstante, o não assassinato de Lucrecia não quer dizer que a vingança idealizada por Rafael tenha se desassociado do caráter social. Pelo contrário, na sociedade espanhola do séc. XIX, a respectiva reivindicação feita pelo marido traído representava, na verdade, uma forma de castigar a esposa pela leviandade, e, por ser o velho Conde uma figura definitivamente compromissada com a honra, ele não vai hesitar em pôr em prática a vingança articulada pelo filho, o que desencadeará uma série de conflitos, em especial os de ordem emocional, uma vez que esse obcecado projeto será alvo de ferozes críticas, inclusive por parte do narrador da obra. Em El Abuelo, a figura feminina também será a principal desencadeadora da desonra masculina. O casamento entre Rafael e Lucrecia nunca fora aprovado por dom Rodrigo, que, desde o princípio, desconfiava do caráter caprichoso e frívolo da dama. Além da beleza, a condessa de Laín se destacava pela presença de um caráter transgressor, o que, sem dúvida, muito a diferenciava das provincianas personagens femininas de El Abuelo. Lucrecia Richmond é a representação de um perfil feminino cada vez mais frequente na sociedade patriarcal das últimas décadas do século XIX, a de mulher independente financeiramente. Essa condição, como vimos no subcapítulo dedicado à personagem, deve-se ao fato de a dama ter enviuvado muito cedo, estando desimpedida, segundo as leis vigentes do Código espanhol da época, para iniciar uma nova vida, podendo inclusive casar-se novamente com o propósito de constituir uma segunda família. 346 A figura da mulher independente também pode ser vista em Su único hijo (1891), de Leopoldo Alas ―Clarín‖. No romance clariniano, a personagem Emma Valcárcel, após a morte do patriarca, torna-se a principal responsável pela família, o que lhe dá autonomia e plenos poderes de decisão. Vejamos: Emma era a chefa da família; era mais, segundo já havíamos comentado, seu tirano. Tios, primos e sobrinhos acatavam suas ordens, respeitavam seus caprichos. Este domínio sobre as almas não se explicava de modo suficiente por motivos econômicos, mas sem dúvida estes influíam bastante. Todos os Valcárcel eram pobres. (…) Já dissemos que Emma era filha única, e, portanto, herdeira universal do advogado romântico e flautista. (ALAS, 1990, p.168. Tradução nossa)125. A tirana personagem passa a manipular e a controlar todos os membros da família Valcárcel, inclusive o esposo, o escrevente Bonifacio Reyes, que melhor pode ser compreendido como o joguete de Emma, ―que cada dia desprezava mais seu marido, a quem apenas estimava como físico‖ (Ibidem, p.171. Tradução nossa)126. Não havia amor na relação conjugal, apenas um sentimento aprisionador de posse, que impedia a felicidade e a harmonia do casal dentro do lar. E essa obsessão pelo controle pode ser compreendida, ou pelo menos explicada, pelo fato de Emma ter padecido de uma série de doenças, se desgastando física e emocionalmente para tratá-las. As sequentes crises nervosas sofridas por ela comprometeram em demasia o seu estado de saúde, impossibilitando-a de ter uma vida normal. Tal condição despertou-lhe uma profunda amargura e impotência, e, em razão disto, passou a descontar no marido toda a frustração proveniente dos sintomas das doenças, que 125 ―Emma era el jefe de la familia; era más, según ya se ha dicho, su tirano. Tíos, primos y sobrinos acataban sus órdenes, respetaban sus caprichos. Este dominio sobre las almas no se explicaba de modo suficiente por motivos económicos, pero sin duda estos influían bastante. Todos los Valcárcel eran pobres. (…) Ya se ha dicho que Emma era hija única, y, por tanto, heredera universal del abogado romántico y flautista‖. 126 ―que cada día despreciaba más a su marido, a quien sólo estimaba como físico‖. 347 resultaram no repentino emagrecimento, na excessiva palidez e na perda da beleza, devido ao aparecimento de rugas que a horrorizavam, fazendo-a pensar na imagem de uma caveira. Com isso, a personagem torna-se insuportável, um verdadeiro tormento para o seu marido. A personalidade acentuada de Emma é, sem dúvida, um dos aspectos mais singulares de Su único hijo. Por inúmeras vezes, o narrador, a fim de melhor retratála, refere-se a ela como um ser diabólico, infernal, destacando a perversidade fortemente entranhada na alma da personagem. Em oposição ao romantismo exacerbado de Ana Ozores, Emma é avessa a qualquer tipo de manifestação idealista e sentimental, mostrando-se apática às demonstrações de amor e carinho, o que, mais uma vez, corrobora a natureza cruel da senhora Valcárcel. Nem mesmo o bondoso Bonifacio Reyes escapava dos constantes ataques de sadismo da esposa, que o maltratava conscientemente, submetendo-o às tarefas mais deploráveis possíveis para satisfazer a vaidade desmedida da mulher, que, ao invés de vê-lo como marido, o via como o seu mais precioso e dedicado escravo. Citamos: Não dormiam juntos, mas sim em quartos muito distantes; mas o marido, assim que se levantava, que não era tarde, tinha a obrigação de correr à alcova de sua mulher para cuidar dela, para preparar para ela tudo, porque a criada tinha irremediável torpeza nas mãos… (Ibidem, p.185. Tradução nossa)127. E também: Emma continuava sentindo-se orgulhosa do físico de seu Bonis, como chamava Reyes; e ao vê-lo ir e vir pela alcova, sempre de agradável e nobre catadura apesar dos ofícios humildes em que ali se empregava, experimentava a alegria íntima da vaidade satisfeita. Mais antes a fariam pedaços que deixasse transluzir 127 ―No dormían juntos, sino en habitaciones muy distantes; pero el marido, en cuanto se levantaba, que no era tarde, tenía la obligación de correr a la alcoba de su mujer a cuidarla, a preparárselo todo, porque la criada tenía irremediable torpeza en las manos…‖. 348 semelhantes afetos, e quanto mais lindo, mais escravo queria o mísero escrevente de D. Diego, más humilhado quanto más airoso em sua humilhação. Repreender Bonifacio chegou a ser seu único consolo; não pôde prescindir nem de seus cuidados nem de pagá-los com gritarias e maus modos. ¿Que dúvida cabia que seu Bonis havia nascido para sofrer por ela e para cuidá-la? (Ibidem, p.186. Tradução nossa)128. Em El Abuelo, os caprichos de Lucrecia evidentemente não atingem a requintada crueldade apresentada pelo narrador de Su único hijo, porém foram suficientes para provocar a discórdia declarada de dom Rodrigo. Nas narrativas de Otelo e Dom Casmurro, as personagens centrais, Otelo e Bentinho, não dispunham de provas concretas que justificassem a infidelidade feminina; contavam apenas com a presença de indícios e suspeitas, acentuadas, em especial, pelos maliciosos comentários de Iago e José Dias, respectivamente. Em El Abuelo não há dúvida quanto ao adultério de Lucrecia, mas sim quanto à identidade da verdadeira descendente dos Albrit, argumento que justifica o comportamento agressivo assumido pelo virtuoso patriarca. A inquietude manifestada pela trágica figura do Conde não será um fato gratuito na narrativa de Galdós, pelo contrário, será a justificativa de uma personalidade indiscutivelmente complexa pela profundidade de seus valores morais, o que transforma El Abuelo em uma das obras de maior intensidade dramática da literatura espanhola no fim do século XIX. O mérito é irrefutável. O romancista espanhol acerta em dar à narrativa de El Abuelo o drama necessário que movesse a personagem central, a ponto de fazê-la 128 ―Emma seguía sintiéndose orgullosa del físico de su Bonis, como llamaba a Reyes; y al verle ir y venir por la alcoba, siempre de agradable y noble catadura a pesar de los oficios humildes en que allí se empleaba, experimentaba la alegría íntima de la vanidad satisfecha. Mas antes la harían pedazos que dejase traslucir semejantes afectos, y cuanto más guapo, más esclavo quería al mísero escribiente de D. Diego, más humillado cuanto más airoso en su humillación. Reñir a Bonifacio llegó a ser su único consuelo; no pudo prescindir ni de sus cuidados ni de pagárselos con chillerías y malos modos. ¿Qué duda cabía que su Bonis había nacido para sufrirla y para cuidarla?‖. 349 manifestar reações adversas, sentimentos incongruentes e paixões intensas. O resultado dessa combinação não poderia ser melhor: a presença de um caráter complexo, de uma alma sublime e apaixonante. A figura de dom Rodrigo representava a aristocracia espanhola que ainda conservava o tradicional conceito de honra, relacionado à pureza do sangue, e um agudo sentido de classe, apesar de encontrar-se na degradante miséria. Toda a riqueza do aristocrata se finda com a utópica empreitada no Peru, onde fora reivindicar, inutilmente, o direito sobre uma mina de ouro em Hualgayoc, deixada por seu avô. A ilusão é traiçoeira, e a consequência dessa audaciosa empresa é o acúmulo de dívidas impagáveis, que acabaram por comprometer o inestimável patrimônio constituído, ao longo dos anos, com muito afinco, pela ilustre família dos Arista-Potestad, desde a época dos grandes Reis Católicos na Espanha. A desventura é notória, podemos percebê-la por intermédio do próprio discurso da personagem, que, humildemente, tem de aceitar a falsa caridade dos habitantes de Jerusa em troca de hospitalidade. E, para melhor ilustrar a hipocrisia reinante na provinciana cidade, nos pareceu interessante citar um fragmento em que o Conde de Albrit, ironicamente, diante do médico, do padre, e do casal Venancio e Gregoria, critica o tratamento ―privilegiado‖ recebido por ele durante sua estadia em La Pardina, residência que outrora lhe pertencera. Vejamos o diálogo: EL CONDE- (Con ironía finísima.) Pero, tontos, si no os riño; si me parece bien lo que habéis hecho... si os lo agradezco, porque así me vais educando en la pobreza, y enseñándome a ser como vosotros, económico, administrativo... No quiero ser gravoso; quiero que prosperéis; y con medidas como éstas claro es que habéis de llegar a ser riquísimos. VENANCIO- Señor, díganos las cosas claras. EL CONDE- Digo lo que siento. Y otra: tienes una mujer que no te la mereces. Esta Gregoria vale más que pesa, y con su instinto de 350 gobernante de casa te ayudará, te empujará para que subas pronto a la cima de la opulencia. GREGORIA- (Asustada.) Señor, ¿por qué lo dice? EL CONDE.- Porque es verdad. ¡Cuánto siento no estar ya en edad de tomaros por modelo! EL CURA- ¿Pero qué...? EL CONDE- Que esta Gregoria, con su arte sublime de mujer casera, me ha suprimido mi bebida favorita: el buen café. GREGORIA- Señor, si se lo llevé esta mañana. EL CONDE- Me serviste un cocimiento de achicoria, recalentado y frío, que... Pero no te riño, no. Si está muy bien. Siempre me dais mucho más de lo que merece este pobre viejo inútil, enfadoso... Prosperad, prosperad vosotros, y que os vea yo llenos de bienestar, desde el fondo de esta miseria en que he caído. (PÉREZ GALDÓS, 2001, págs.107-108). Nem mesmo a situação mais mísera e absoluta faz com que o patriarca abdicasse de suas convicções e de seus ideais: ―... Te lo digo tranquilo y sin ninguna afectación, pues con la realidad no caben juegos de retórica. He llegado a los escalones más bajos de la pobreza; pero por mucho que descienda, no he llegado ni llegaré nunca al deshonor. Fuera de la decadencia material, soy y seré hasta el último día lo que fui‖ (Ibidem, p.46). Diferentemente de dom Lope Garrido, o Conde não perde aquilo que mais estima: sua virtude. Aceita a pobreza com resignação, porém não admite o desrespeito daqueles que, no passado, foram seus subordinados. Dessa forma, a decadência de dom Rodrigo relaciona-se apenas à condição financeira, o que o impossibilitou de desfrutar na velhice os consideráveis benefícios conquistados no passado glorioso pela família Arista- Potestad, perdidos pela imprudência de um devaneio. O decadente Conde de Albrit, com o objetivo de restaurar a honra de sua família, dirige-se à Jerusa. Ao chegar à provinciana cidade onde vivera os dias mais alegres e abençoados de sua vida, o velho dom Rodrigo depara-se com um novo cenário, com um panorama completamente modificado pelo que os seus habitantes 351 definiam como progresso. A cidade não era mais aquela velha e pacata Jerusa do passado que, ao invés de recebê-lo encarecidamente pelas benfeitorias realizadas, o recebia com os mais sórdidos e falsos cumprimentos de boas-vindas. Vejamos: ―… me recibieron con frío desdén, que me llenó de tristeza y amargura‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.39). Assim como Clarín, em La Regenta, Pérez Galdós também irá apresentar no romance El Abuelo uma sociedade deteriorada, em outras palavras, corrompida pela ganância e pelas aparências: ―Dijéronme que la villa se había civilizado. Era una civilización improvisada y postiza, como la levita que compra el patán en un bazar de ropas hechas‖ (Ibidem, p.39). Grande parte das personagens são seres amorais, hipócritas e interesseiros, caracterizados pela ausência total de caridade e de valor. É tão intensa a exploração da maldade humana que inúmeras são as cenas em que a crueldade requintada das personagens pode ser observada, vide a terceira jornada que trata da consumação do diabólico plano de enclausurar o velho Albrit no distante convento dos Jerónimos, em Zaratán. A monomania de dom Rodrigo, em outras palavaras, ―la sutileza del honor y de la moral rígida, en un grado de rigidez casi imposible, y sin casi, en las sociedades modernas‖ (Ibidem, p.103), despertara em Lucrecia um pavor aterrador de perder a guarda da única filha que tivera com Rafael Albrit. Em sua última conversa com o Conde, o nobre lhe havia deixado claro estar consciente do adultério cometido pela dama e esperava que ela lhe confessasse a verdadeira identidade de sua neta. Precisava saber qual das duas era a legítima herdeira dos Arista-Potestad, a fim de torná-la sucessora da sua linhagem. Citamos: 352 No puedo impedir hoy, ¡triste de mí!, este caso vergonzoso de bastardía legal; no puedo impedir que la ley transmita mi nombre a mis dos herederas, esas niñas inocentes. Pero quiero hacer en favor de la auténtica, de la que es mi sangre, una exclusiva transmisión moral. Esa será la verdadera sucesora, esa será mi honor y mi alcurnia en la posteridad... La otra, no. Falsa rama de Albrit, la repudio, la maldigo... maldigo su extracción villana y su existencia usurpadora (Ibidem, p.89). A condessa de Laín, profundamente atormentada pelas terríveis ameaças do velho Albrit, não atende ao pedido de dom Rodrigo, nem mesmo quando o desesperado sogro chegou a jurar-lhe que tornaria o caso público. A única alternativa, portanto, para conter a indomável fúria do Conde fora afastá-lo de Jerusa, com o objetivo de silenciar a tragédia anunciada. Em razão disso, a cidade inteira, súdita da influente condessa, se volta contra Albrit, que passa a tornar-se uma figura indesejável, mesmo por aqueles que contaram com a inestimável ajuda do cavalheiro no passado, como foi o caso do jovem médico, do padre e do casal Gregoria e Venancio. O ápice da crueldade, não obstante, encontra-se presente na última jornada de El Abuelo. Lucrecia, após uma longa discussão com Senén, nega o pedido do impertinente serviçal, que pretensiosamente visava ocupar um cargo de grande valia no governo. Em troca do lucrativo ofício, o ambicioso garantiria à dama segredo absoluto quanto às confidências e aos segredos compartilhados no período em que esteve à disposição da condessa. Senén não atinge o seu objetivo, pois Lucrecia se nega a submeter-se às sutis ameaças do empregado e, em resposta ao desprezo manifestado pela ―condenada extranjera‖ (Ibidem, p.15), irá revelar ao Conde o nome de sua verdadeira neta, consumando, assim, a vingança planejada. Vejamos o diálogo entre Senén e o Conde: 353 SENÉN- Lucrecia no ha querido decir a su padre político la verdad... Ese secreto, señor Conde, no lo posee más que un hombre en el mundo, y ese hombre soy yo. EL CONDE- ¡Tú! SENÉN- Yo, que lo oculté, y ahora lo revelo. La hija falsa, la hija espuria... es Dolly. EL CONDE(Aterrado.) ¡Oh!... No, no... ¡Tú mientes! (Poseído súbitamente de un furor trágico.) Lacayo vil, tú mientes, y yo... ahora mismo, (Se arroja sobre él, clavándole ambas manos en el cuello.) ¡Te ahogo, rufián! (Forcejean. EL CONDE, aunque anciano, es mucho más vigoroso que SENÉN; le arroja al suelo, y oprimiéndole con el peso de su cuerpo, le acogota.) ¡Villano, serpiente!... te mato, te ahogo, te aplasto... (Ibidem, p.238). O desfecho de El Abuelo seria indiscutivelmente trágico se não fosse a indescritível generosidade do virtuoso Conde de Albrit. Com o imperioso orgulho dilacerado, dom Rodrigo confessa ao carismático Coronado o verdadeiro nome de sua herdeira: Nell, aquela que friamente o aconselha a aceitar a hospitalidade dos monges no monastério de Zaratán, enquanto que ela, Dolly e Lucrecia se mudavam para Madri. Impressionado com a insensatez da legítima neta, que, por nenhum momento hesita em deixá-lo só, o Conde desvanece em sua tristeza: ―... ¡Horrible, horrible! Ni siquiera ha manifestado el deseo de vivir en mi compañía... Ni siquiera me ha dicho, como su madre: «Vente con nosotras». Lo que quiere es encerrarme...‖ (Ibidem, p.244). A frieza de Leonora é letal ao espírito nobre do velho Albrit, e, diante de tal tormenta, a personagem só enxerga uma alternativa: a morte, em outras palavras o suicídio. No entanto, antes de atirar-se no penhasco, o Conde e o professor dialogam sobre um dos assuntos que, particularmente, motivou a realização deste estudo: a questão da dignidade, da virtude, e, para melhor apresentá-la, nos pareceu fundamental citar o seguinte fragmento: 354 EL CONDE- Y yo quiero que me digas... antes de caer al abismo, lanzado por mí... quiero que me digas, gran filósofo: ¿qué piensas tú del honor? D. PÍO- (Lleno de confusiones.) El honor... pues el honor... Yo entendía que el honor era... algo así como las condecoraciones... Se dice también honores fúnebres, el honor nacional, el campo del honor... En fin, no sé lo que es. EL CONDE- Hablo del honor de las familias, la pureza de las razas, el lustre de los nombres... Yo he llegado a creer esta noche... y te lo digo con toda franqueza... que si del honor pudiéramos hacer cosa material, sería muy bueno para abonar las tierras. D. PÍO- Y criar la hermosa lechuga y el rico tomate. Para semilleros, he oído que no hay nada como la gallinaza y palomina. EL CONDE- Y para la hortaliza social, para este mundo de ahora, nacido sobre acarreos, la mejor sustancia es la ignominia, la impureza y mezcolanza de sangres nobles y sangres viles... Quedamos en que tú no aciertas a decirme lo que es el honor, ni te has encontrado nunca esa alimaña en tus excursiones filosóficas. (Se sientan al pie de las cruces. La noche está plácida, y la luna, en creciente avanzado, platea el cielo y la mar, y baña en dulce claridad la tierra.) D. PÍO- (Aguzando el entendimiento.) Pues el honor... Si no es la virtud, el amor al prójimo, y el no querer mal a nadie, ni a nuestros enemigos, juro por las barbas de Júpiter que no sé lo que es (Ibidem, págs.247-248). O diálogo entre as personagens é revelador, sobretudo, se considerarmos a nova concepção que o conceito de honra (opinião pública) passa a assumir na narrativa de El Abuelo: a de esterco. A obsessiva necessidade de limpar o nome através da vingança, herança calderoniana, cede lugar à ironia de Pérez Galdós que a desconstrói estrategicamente. A neta intrusa e fraudulenta deveria ser condenada sem piedade, até porque ―a ley inflexível da honra impõe que as filhas purguem as faltas cometidas pelas mães, ainda que tal injustiça se encontre tingida de crueldade‖ (CORREA, 1983. Tradução nossa)129, e este pensamento inexorável, ainda presente na sociedade patriarcal do século XIX, entra em conflito com os nobres sentimentos que dom Rodrigo cultivava por Dolly. De forma gradativa, a aversão inicial à figura 129 ―la ley inflexible del honor impone que las hijas purguen las faltas cometidas por las madres, aunque tal injusticia se halle teñida de crueldad‖. 355 da travessa menina, foi sendo substituída por um enorme carinho que, ao consolidarse, transformou-se em amor. Apesar de pequena, seus gestos eram grandiosos, admiráveis, e sua consideração pelo avô era inigualável, digna de uma AristaPotestad, o que corroía ainda mais o coração do Conde de Albrit, encantado com a nobreza da bastarda. No inesperado desfecho de El Abuelo, o amor consagrou-se vitorioso. À beira da morte, momentos antes de atirar-se no precipício, o cavalheiro dom Rodrigo escuta os gritos clamorosos daquela que ele considerava ser sua verdadeira neta: Dolly. Não resistindo à emoção, o velho Albrit abraça a menina e promete cuidar dela até os seus últimos dias de sua vida. A beleza da cena é indescritível e a generosidade da personagem, muito mais. Receber Dolly de braços abertos e se comprometer, com a ajuda do carismático dom Pio, a educá-la revela muito mais que um final feliz, mas sim a superação de uma mentalidade arcaica e, definitivamente, incompatível com as diversas transformações ocorridas na sociedade espanhola das últimas décadas do século XIX. A intrínseca semelhança entre Nell e Dolly foi, sem dúvida, a principal causa da cegueira do avô, que apenas via ―bien más que las cosas grandes‖ (PÉREZ GALDÓS, 2001, p.43). A visão de Dom Rodrigo, obscurecida pela presença de uma mentalidade ultraconservadora, incompatível com a modernidade dos novos tempos, não conseguia desvendar o caráter de cada uma delas, e muitas foram as cenas em que o próprio clamava por ―luz‖, expressando, assim, a angústia acarreada pela dificuldade de ―ver‖. A cegueira do Conde de Albrit, não obstante, resulta passageira. O amor incondicional de Dolly pelo patriarca é o que o resgata do obscuro abismo que 356 gradativamente consumia sua alma e sua paz de espírito. Se em Tristana Pérez Galdós peca em castigar abruptamente a jovem de destino gris, deixando-a coxa e casada com o seu maior algoz, tal como afirmou Emilia Pardo Bazán 130, em El Abuelo o romancista, a nosso ver, acerta por conferir à narrativa um desfecho, digamos, surpreendente. Ao invés de castigo, os leitores de El Abuelo se deparam com o perdão, em outras palavras, com a grandiosidade de uma alma nobre, de um caráter acentuado que, em nome do amor, perdoa a traição da nora e abdica o obsessivo desejo de vingança que o cegava, impedindo-o de ver beleza na vida. O grande ensinamento de Galdós não se encontra relacionado ao fracasso do herói, como vemos em La Regenta e na maioria dos romances publicados no séc. XIX, mas sim na intenção de educar o público leitor a ―see better‖, tal como assinala John Beverley (1975). Sendo assim, a união de dom Rodrigo e Dorotea representa o incessante desejo de renovação, de superação de todos ―os substratos arcaicos de um tradicionalismo nocivo que ainda perdura na consciência coletiva‖ (CORREA, 1983. Tradução nossa)131. Depois da revolução Francesa (1789) e da consolidação do capitalismo na Europa, priorizou-se, cada vez mais, o nascimento de um novo homem, e, neste aspecto, todo arcaísmo e rigor do mundo calderoniano impediam que o mesmo nascesse, impossibilitando, assim, a consolidação dessa nova sociedade, tão idealizada por Galdós, Clarín e seus contemporâneos. 130 Ver ―Benito Pérez Galdós y el aburguesamiento en Tristana”, de Zoila Clark. 2006. Este texto encontra-se disponível no site: http://www.ucm.es/info/especulo/numero33/tristana.html. Acesso em maio de 2011. 131 ―los sustratos arcaicos de un tradicionalismo nocivo que aún pervive en la conciencia colectiva‖. 357 CONCLUSÃO Muitos foram os caminhos percorridos por nós até a chegada desta que é a parte final de nossos estudos sobre a construção das subjetividades femininas nos romances naturalistas La Regenta, de Leopoldo Alas, e El Abuelo, de Benito Pérez Galdós. O ponto de partida para as análises dessas construções literárias veio de dois importantes conceitos: o de polifonia− magistralmente elaborado por Bakhtin, teórico que o resgata da música− e o de texto como um tecido repleto de múltiplas escritas, de Roland Barthes. Associando essas duas noções, notamos o caráter essencialmente polifônico das obras. Ambas as produções tratam-se de romances polifônicos, de narrativas compostas por uma notável diversidade de vozes que se posicionam de forma a expressar os seus mais íntimos sentimentos e pensamentos, ou seja, os seus pontos de vista. Esses, segundo o crítico russo, encontram-se fundamentados em posicionamentos de natureza sócio-ideológica, sobretudo, se consideramos o fato de o indivíduo, enquanto detentor dos conteúdos de sua consciência, se apresentar como fenômeno essencialmente sócio-ideológico, formado pelas relações sociais com outros indivíduos. No primeiro capítulo de nossa tese, fizemos questão de mostrar que as vozes dos narradores de La Regenta e de El Abuelo são acompanhadas de muitas outras vozes no relato. A heteroglossia faz com que pensemos nos romances espanhóis La Regenta e El Abuelo como textos indiscutivelmente multiperspectivos, e foi, portanto, dessa pluralidade de vozes e de perspectivas que pudemos iniciar nossas 358 análises sobre as subjetividades femininas, vistas por nós como produtos da enunciação. No segundo capítulo, cinco foram as personagens estudadas por nós: Ana Ozores, Paula De Pas, Obdulia Fandiño, Visitación e Rufina Robledo. Nele tratamos de considerá-las não só como participantes da vida representada por Clarín, mas principalmente como parte integrante de grupos sociais específicos, já que elas se expressam e se comunicam a partir de posições muito particulares, corroborando, desta forma, a variedade de pensamentos e de discursos na obra. Para melhor apresentar a forma como essas figuras femininas se encontram representadas no romance La Regenta foi essencial recorrer à obra Figures III, de Gérard Genette (1970). Nela, o autor promove uma interessante analogia entre o relato− discurso narrativo− e o verbo, afirmando que ambos dispõem de tempo, modo e voz. Em nossos estudos, nos atentamos particularmente às duas últimas instâncias: ao modo, ou seja, a forma como se nos apresenta o narrado, atribuindo grande ênfase ao ponto de vista (perspectiva), que consiste na adoção ou não de uma perspectiva restritiva por parte do narrador; e a voz, que implica estudar as características da narração− também definida pelo crítico francês de ―enunciação‖. É, portanto, através dela que podemos estabelecer a relação do narrador a respeito do que se narra, caracterizando, assim, o tipo de relato priorizado por ele. Entendemos que a voz trata-se, pois, de aspecto complementar ao ponto de vista, e foi a partir dessa relação que conseguimos definir e apresentar as diversas construções femininas presentes no romance clariniano. Consideramos também os estudos críticos de Roland Barthes (1970), em S/Z, Roland Bourneuf & Réal Ouellet (1989), em La novela, Carlos Reis (1984), em Estatuto e perspectivas do narrador 359 na ficção de Eça de Queirós, e Federico Peltzer (2001), em Los artificios del ventrílocuo. Las voces del narrador en diferentes novelas, desde el Quijote hasta nuestros días, que, assim como Genette, conferem indiscutível importância à análise estrutural do discurso narrativo. Definido o nosso corpo teórico, partimos para as análises das subjetividades femininas, dando grande destaque aos discursos indireto e indireto livre do narrador e também aos monólogos e aos diálogos entre as personagens, que a partir do afastamento do narrador tornam-se as principais enunciadoras do romance. Outras importantes vias para a análise das subjetividades femininas em La Regenta foram as cartas e os diários de Ana Ozores. Gêneros como esses− autobiográficos por excelência− nos possibilitam uma maior proximidade à profundidade do ―eu‖ que escreve. É através deles que a personagem clariniana, por intermédio de uma escrita descompromissada, desprendida de qualquer aspiração literária, vai registrar as suas mais íntimas impressões sobre a vida, dando-nos um testemunho imediato daquilo que viveu e que, de certa forma, continua vivo para ela no momento da escrita. Em El Abuelo, vimos que o caráter polifônico do romance galdosiano se sobressai ainda mais, especialmente pelo fato de Pérez Galdós priorizar o sistema dialogal, adotado desde a publicação de Realidad (1892). Através dele, o escritor ambicionava apresentar a complexidade dos conflitos humanos a partir dos diálogos travados entre as personagens, aproximando-as, o máximo possível, da realidade e dos seres vivos. A diversidade de vozes que permeiam a narrativa dialogada de El Abuelo é de uma grandiosidade indescritível, e foi justamente esse novo modelo de narrativa− um 360 tanto transgressor para um período consagrado pela presença ostensiva de narrativas heterodiegéticas− que nos motivou a optar pela mudança de obra, já justificada no início do terceiro capítulo. Para melhor analisar as subjetividades femininas no romance de Benito Pérez Galdós foi necessário estruturar o capítulo ―Vozes e perspectivas no romance El Abuelo‖ em duas partes. Na primeira, procuramos tratar do distanciamento do narrador, que intencionalmente se afasta do relato a fim de que as personagens tomem a palavra para si. No entanto, esse almejado e anunciado afastamento não significa o seu desaparecimento. Sua presença ainda se faz evidente, sobretudo, nas didascálias que introduzem as principais cenas do romance de cinco jornadas. Foi, portanto, através delas que conseguimos decifrar as marcas do sujeito da enunciação na obra. Na segunda parte, procuramos considerar as vozes das personagens galdosianas. Sete foram as selecionadas por nós, sendo que delas, três mereceram um destaque especial, em razão da posição privilegiada que ocupavam na narrativa. Referimo-nos, aqui, as travessas netas de dom Rodrigo− Nell e Dolly− e a mãe delas− a aristocrata Lucrecia Richmond− acusada pelo sogro de infidelidade e, consequentemente, de ser a principal responsável pela desonra da família. Tanto La Regenta como El Abuelo são romances que tratam com grande ênfase da infidelidade feminina, estudada por nós como uma figura complexa, capaz de apresentara profundidade da natureza das personagens, os jogos de engano e a aceitação ou não das normas determinadas pela sociedade patriarcal do século XIX. Em ambas as obras, a traição de Ana Ozores e de Lucrecia Richmond encontra-se visceralmente vinculada ao ponto de honra, tema de significativa recorrência dentro 361 da literatura espanhola do Século de Ouro, em especial nos dramas de Pedro Calderón de la Barca. Essa relação nos fez revisitar importantes obras como El médico de su honra e Persiles y Sigismunda, no intuito de comprovar a existência de um expressivo diálogo intertextual entre La Regenta e El Abuelo com o teatro espanhol do Século de Ouro. Novamente o caráter polifônico dos romances estudados por nós é posto em evidencia. Não há dúvidas de que houve, sim, por parte dos autores, uma explícita intenção de se apropriar do código de honra com o objetivo de aprimorá-lo, dando a este um novo sentido: o paródico, uma vez que tanto Víctor Quintanar como dom Rodrigo mostram-se incapazes de executar a vingança que, por direito, lhes fora atribuída pelas instâncias jurídicas, pelo Estado e, principalmente, pela sociedade patriarcal da época. Não poderíamos também deixar de comentar que a representação cômica dos heróis calderonianos, a partir das emblemáticas figuras do ex-regente de audiência e do velho Conde de Albrit, resguarda uma proposta de cunho ideológica muito significativa: a de apresentar a transição de um discurso conservador, que consagrou Calderón no séc. XVII como poeta teólogo da identidade nacional, a um discurso de natureza liberal, difundido, a princípio, pelo krausista Giner de los Ríos e aprimorado, a posterior, por Leopoldo Alas e Benito Pérez Galdós no período correspondente ao realismo/ naturalismo na Espanha, o que, sem dúvida alguma, muito contribuiu para a renovação do gênero romance no país. Sendo, portanto, a conclusão a parte destinada às últimas considerações sobre a nossa pesquisa, a concluímos não só com a esperança de haver alcançado com êxito todos os objetivos estabelecidos no início deste trabalho, mas também com a certeza 362 de que nossos estudos sobre as subjetividades femininas estão longe de ter fim, especialmente agora que nos conscientizamos de que regressar ao século XIX acabou, de certa forma, possibilitando o resgate de uma história da qual somos herdeiros e de que, até hoje, palpita nos discursos atuais, sem que haja muita consciência de que houve um processo, do qual a literatura do século XIX muito nos ensina. 363 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Autoria anônima. A vida de Lazarillo de Tormes e de suas fortunas e adversidades. Edição, tradução, estudo e notas de Alex Cojorian. Prefácio de José Antonio Pérez. Ed. Bilingue. Brasília: Círculo de estudos clássicos de Brasília, 2002. AGUIAR E SILVA, Victor Manuel. Estrutura do romance. Coimbra: Almedina, 1974. 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