revista do instituto de pesquisas e estudos

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RE­VIS­TA DO INS­TI­TU­TO
DE PES­QUI­SAS E ES­TU­DOS
Divisão Jurídica
ISSN 1413-7100
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos
Bauru
v.40, n.45
p. 1-414
jan./jun. 2006
REVISTA DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS (DIVISÃO JURÍDICA)
Publicação semestral da Faculdade de Direito de Bauru
Mantida pela Instituição Toledo de Ensino (ITE)
DIRETORIA EXECUTIVA
Ana Maria Leite de Toledo
Antonio Euphrásio de Toledo Filho
Daniel Camargo Leite de Toledo
Edson Márcio de Toledo Mesquita
Flávio Euphrásio de Carvalho Toledo
CONSELHO EDITORIAL
Carlos Maria Cárcova
Flávio Luís de Oliveira
Iara de Toledo Fernandes
Luiz Alberto David Araujo
DIREÇÃO
Paulo Afonso de Marno Leite – Diretor
Luiz Antônio Rizzato Nunes
SUPERVISÃO EDITORIAL
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Luiz Otavio de Oliveira Rocha
COORDENAÇÃO EDITORIAL
Bento Barbosa Cintra Neto
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
produção gráfica
Erika Canal Woelke – Depto. Comunicação
Roberto Francisco Daniel
Lydia Neves Bastos Telles Nunes
Pietro de Jesús Lora Alarcón
Rogelio Barba Alvarez
catalogação
Marcia Perez Viana – Biblioteca Rui Barbosa
Thomas Bohrmann
Praça 9 de Julho, 1-51 – Vila Pacífico – 17050-790 – Bauru, SP
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos : Divisão Jurídica.
Instituição Toledo de Ensino. -- n. 1 (1966) - . -Bauru, SP : a Instituição, 1966- .
v.
Semestral
ISSN 1413-7100
Solicita-se permuta.
1. Direito – periódico I. Instituto de Pesquisas e Estudos. II. Instituição Toledo de Ensino
CDD 340
NOTA: Os trabalhos assinados exprimem conceitos da responsabilidade de seus autores, coincidentes ou não com os pontos de vista da redação
da Revista.
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do Código Penal, cf. Lei no. 6.895, de 17-12-1980) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações diversas
(arts. 122, 123, 124 e 126, da Lei no. 5.988 de 14-12-1973, Lei dos Direitos Autorais).
Edição Comemorativa
Edição Comemorativa
Homenagem aos
Colaboradores da Primeira Edição • 1966
Agostinho Minicucci
Aldo Castaldi
Damásio E. de Jesus
Daniel S. Yamashita
Darcy Arruda Miranda Jr.
Fernando da Costa Tourinho Filho
Gutenberg de Campos
Héber Americano Silva
João Carlos Fairbanks
José Barros Azevedo
José Manoel de Arruda Alvim Netto
Luiz Bonsi Júnior
Luiz Fernando Giglio
Octávio Médici
Thereza Alvim
Sumário
7
apresentação
Doutrina Internacional
13
LA FUNCIÓN DE LA CRIMINOLOGÍA PENITENCIARIA EN LA LEY DE
EJECUCIÓN DE PENAS DEL ESTADO DE JALISCO
Rogelio Barba Álvarez e José Gerardo Crivelli Stefanoni
37
DEL ESTADO DE DERECHO AL DERECHO DEL ESTADO (Razón de Estado y
Tortura bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco)
Marcos Pablo Moloeznik
61
EUROPA Y LA GLOBALIZACIÓN DE LA SALUD
Bartolomé Ribas Ozonas e Ney Lobato Rodrigues
79
Siete cuestiones sobre las relaciones entre el Derecho
Internacional Público y el Derecho interno y su aplicación al
ordenamiento brasileño
Itzíar Gómez Fernández
Doutrina nacional
129 INIMPUTABILIDADE PENAL E JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
Antonio Carlos da Ponte
149 CONCEITOS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA
Lafayette Pozzoli e Caio Henrique Lopes Ramiro
171 Reforma do Estado, Prestação de Serviços Públicos,
Contribuições Especiais e Federalismo
Gilberto Bercovici, José Maria Arruda de Andrade e Luís Fernando Massonetto
195Significado Político-Constitucional do Direito Penal
Cláudio Brandão
215 A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às
pessoas. Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira.
Consequências de sua ausência ou deficiência.
Roberto Luis Luchi Demo
233 O CONTRATO DE SEGURO E OS SEUS ELEMENTOS ESSENCIAIS
Bruno Novaes Bezerra Cavalcanti
257 A ATUALIDADE DO DEBATE DA CRISE PARADIGMÁTICA DO DIREITO E A
RESISTÊNCIA POSITIVISTA AO NEOCONSTITUCIONALISMO
Lenio Luiz Streck
291 O PODER CONSTITUINTE E A CONSTRUÇÃO DAS UTOPIAS: SUAS
POSSIBILIDADES E LIMITES
Paulo Magalhães da Costa Coelho
315 DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE. ATENDIMENTO À FUNÇÃO
SOCIAL. REQUISITOS PARA DESAPROPRIAÇÃO PARA FINS DE REFORMA
AGRÁRIA. VÍCIOS FORMAIS E mATERIAIS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO.
CABIMENTO DE MANDADO DE SEGURANÇA
Ives Gandra da Silva Martins e Cláudia Fonseca Morato Pavan
351 A EXPLORAÇÃO PETROLÍFERA NA AMÉRICA DO SUL. UMA BREVE ANÁLISE
DO CASO BOLIVIANO
Wladmir Tadeu Silveira Coelho
363Exclusão ou inclusão social, precária e marginal: O ‘BAGAÇO’
NÃO RECICLÁVEL
Maurício Gonçalves Saliba e Marcelo Gonçalves Saliba
367 GUARDA COMPARTILHADA
Tatiana Morato Leite
Orientadora: Profª. Ms. Maria Isabel Jesus Costa Canellas
399MORTE RELATIVA : UM DIREITO ARTIFICIAL
Newton Martins Pina
Orientadora: Profª. Ms. Daniela Nunes Veríssimo Gimenes
413 Informações aos colaboradores
apresentação
Não é preciso consenso e nem arte, nem beleza ou idade:
A vida é sempre dentro e agora (...)
A vida pode florescer numa existência inteira,
mas tem que ser buscada, tem que ser conquistada.
Lya Luft
Este é o quadragésimo quinto número da NOSSA REVISTA: RIPE – REVISTA
DO INSTITUTO DE PESQUISAS E ESTUDOS: Divisão Jurídica, da ITE-Bauru (SP).
Seu marco histórico oficial, porém, se inicia há exatos quarenta anos, julho de 1966,
quando da publicação de seu primeiro número. Cronologicamente, no entanto, sua
origem retrocede ao momento em que começou a ser idealizada, um ano antes do
lançamento de seu primeiro número, com a criação do Instituto de Pesquisas e Estudos Jurídico-Econômico-Sociais, conforme consta do respectivo Regimento, registrado pelo Ato n. 1, de 16.06.1965. Sua trajetória assinala que os objetivos da revista
se vêm cumprindo passo a passo, como mencionado nas apresentações das edições
anteriores.
Sua acolhida nos meios acadêmicos nacionais e internacionais constitui o reconhecimento de seu papel e sucesso, tão bem atestado pelo interesse que pesquisadores do Brasil e de outros países têm demonstrado em ver sua produção veiculada
neste periódico. Acreditamos, assim, que se consolida com este número especial, comemorativo do aniversário de quarenta anos, um ciclo de amadurecimento, período
em que se foi atingindo o objetivo proposto de garantia pela qualidade.
NOSSA REVISTA – RIPE, nesse longo espaço de tempo, norteou-se pelo
princípio de um processo permanente de aperfeiçoamento, buscando a melhor qualificação: a vida acadêmica é isso, criação continuada, construção que se reconstrói a
cada momento, em fidelidade à intenção de centro universitário.
Desde então, muitas mudanças aconteceram, muitos colaboradores passaram
por aqui... juristas ilustres e ilustres desconhecidos, advogados renomados, e também
recém-graduados, além de docentes colaboradores e alunos pesquisadores, tanto do
Curso de Pós-Graduação como da Graduação, principalmente os integrantes dos Núcleos de Pesquisa Científica.
Ao longo de todos esses anos, enriqueceram, igualmente NOSSA REVISTA,
as produções científicas desenvolvidas por fervorosos professores educadores que
dedicaram a vida ao sacerdócio de ensinar; profissionais de outros países, lídimos
embaixadores de seus idiomas pátrios que, universalizando o conhecimento, romperam os limites territoriais e aqui registraram sua passagem para compartilhar
conosco suas experiências e saber - numa liturgia de beleza, fraternidade e culto à
missão da universidade.
Todos eles, nossos colaboradores e nossos fiéis leitores, com encanto e devoção, brindando aos justos anseios da RIPE, com suas opiniões, suas teses (muitas
vezes polêmicas e outras tantas inovadoras), lançando debates e discussões e surpreendendo a todos ...
Nesses quarenta anos muitas outras coisas mudaram ... a cor da revista mudou, o seu layout mudou, nós mudamos ... Os textos normativos também sofreram
mudanças e com eles novos paradigmas foram propostos. Os entendimentos de nossas cortes abriram espaço para uma outra dimensão da lei (ainda que alguns julgados teimem em se conservar inertes) e, diante das mudanças na estrutura da organização jurídica da família, a jurisprudência redimensionou a “solidariedade” como
valor essencial a todas as formas de convivência humana, autorizando-nos “a falar
sobre uma ética do afeto como um dos sustentáculos e pilares do Direito de Família”,
tão bem analisada por Rodrigo da Cunha Pereira.
Uma coisa não mudou nesses quarenta anos ... A nossa paixão pelo Direito !!!
Digo nossa porque ela não é isolada ou somente da comissão editorial. Ela é a
sua paixão, a paixão do operador do direito ... em todas as áreas e níveis de atuação. É
a paixão do nosso leitor, fiel ou acidental ... mas ela é nossa paixão !!!
E com a mesma paixão trazemos conosco a energia para buscar novas conquistas, novos desafios, alcançar novos horizontes, novos colaboradores, novos leitores... o
que nos move é a paixão pelo Direito, conforme descrita por Luís Roberto Barroso:
Na verdade, não falo do amor porque ele é um ponto de chegada, um porto
de repouso. Quem ama encontrou e se encontrou. Falo da paixão, que é a
procura. Quem está apaixonado está em busca do ponto de equilíbrio. O
desejo é a falta. Por isto mesmo, a paixão é o exercício de uma busca. Encontrar é ter de partir para outro lugar. A paixão não é feita de realidade,
senão que de imaginação. É a paixão, ou são as paixões, mais que o amor,
a energia essencial que move o mundo. Há as paixões menores, como a
cobiça, a vaidade, a ambição de poder. Mas há paixões redentoras, como
a da liberdade e da justiça. A paixão que nos move aqui na academia, no
mundo universitário, é a paixão intelectual, a paixão do conhecimento. Nós
vivemos do pensamento... A linguagem do Direito há de conformar-se aos
rigores da técnica jurídica. Mas sem desprezo à clareza, à transparência, à
elegância e ao ritmo melodioso da poesia. As palavras, para o Professor,
Princípios fundamentais norteadores do direito de família: Belo Horizonte: Del Rey, 2005, p. 10.
para o advogado, para os operadores do Direito, em geral, são feitas para
persuadir, demover, incentivar. Não basta sintaxe. Não basta ortografia. Não
basta semântica. É PRECISO PAIXÃO. (Grifamos)
A nossa história é o nosso suporte, bem demonstrada pela emoção intensa
de seu fundador quando da publicação da primeira edição da REVISTA, em 1966.
Ela é o nosso alicerce para novos tempos, novos rumos, novos caminhos a serem
trilhados. Juntos, nas palavras do saudoso Reitor Antônio Eufrásio de Toledo, “palmilharemos as mesmas estradas, viveremos os mesmos sonhos, sentiremos todas
as emoções e conquistaremos juntos, o respeito dos que nos cercam, através do
trabalho que dignifica”.
Juntos, com nossos colaboradores e leitores, queremos conquistar o direito de
florescer quarenta anos mais... e para sempre, aspirando que NOSSA RIPE se mantenha fiel ao seu projeto inicial, já assinalado por seu fundador no primeiro número
do periódico: “Impulsionados para os destinos reservados às obras que nascem e
vivem, como a nossa, sob os desígnios de uma vontade superior, vamos caminhar
com o espírito Eternamente Moço em busca das conquistas que Deus nos proporcionará”. (Grifamos)
Essa é a nossa verdade. É a razão que nos move para mais uma vez brindar a
todos com o melhor trabalho que podemos oferecer. E agradecemos por aceitar esse
brinde que oferecemos... SAÚDE !!!
Junho de 2006
Maria Isabel Jesus Costa Canellas
Direito e Paixão. Fonte: http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto062.htm. Acesso
em 04.02.2005 04.02.2005.
Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos Jurídico-Econômico-Sociais. Bauru: Instituição Toledo de Ensino,
Ano I, nº. 1, jan./jul/1966, p. 7.
Ibidem.
Doutrina
Internacional
LA FUNCIÓN DE LA CRIMINOLOGÍA PENITENCIARIA EN LA
LEY DE EJECUCIÓN DE PENAS DEL ESTADO DE JALISCO
Rogelio Barba Álvarez*
José Gerardo Crivelli Stefanoni**
Resumen
El presente trabajo aborda desde la óptica interdisciplinaria la función de la criminología en la Nueva Ley de ejecución de penas para el Estado de Jalisco, presentando un
repaso por las distintas doctrinas criminologicas para resolver el problema semántico y de interpretación sobre el concepto de Criminología, dado que hasta nuestros
días, un sector de la doctrina especializada niega el carácter de ciencia, al no incluir
elementos tan importantes como la víctima y el control social. El objetivo central de
este articulo es demostrar la articulación del derecho penitenciario con la criminología, basada en el principio interdisciplinario que rige a esta ultima y como puede
ser una ciencia complementaria de las ciencias penales para prevenir el delito y dar
respuesta a la criminalidad.
Palabras clave: la criminología como ciencia. Doctrina española. Doctrina mexicana.
Doctrina alemana. Doctrina francesa. Doctrina norteamericana. Doctrina austriaca.
Doctrina italiana. Objeto de estudio de la criminología. Delincuente. Victima. Función de la criminología. La criminología en el sistema penitenciario de Jalisco. Análisis
del artículo 67 de la lepej. Aportación doctrinal.
*
**
Profesor de la Universidad de Guadalajara. Miembro del Sistema Nacional de Investigadores.
Profesor Investigador de la Universidad de Guadalajara.
14
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Introducción
El presente trabajo pretende enfatizar la importancia de la ciencia de la criminología en el ámbito penitenciario y su relación intrínseca con la sociedad llena
de problemas, económicos y políticos principalmente; además carente de valores,
esta noble ciencia analiza la posibilidad de atacar la raíz el fenómeno criminal y sus
consecuencias apoyándose de los diferentes métodos científicos y la experiencia que
nos a aportado la historia y los presentes acontecimientos delincuenciales donde se
pudiera decir que la delincuencia no solo le lleva un paso adelante al Estado, si no,
que por mucho al parecer esta por encima de él. Acontecimientos recientes como
los que se han dado cita en centros penitenciarios federales llamados también de
readaptación social hablan de un problema que al parecer las autoridades no han
podido erradicar y es que el poder corruptivo que tiene la delincuencia organizada
así como los recursos económicos con los que cuentan los han llevado a tener contra
la pared a toda la sociedad en general ya que los mismos candados con los que la ley
cuenta no permiten que el estado tome medidas precautorias especiales en contra de
la criminalidad organizada.
La nueva Ley de Ejecución de Penas privativas y restrictivas para el Estado de
Jalisco contempla ya a la criminología. Más en su campo de acción se ve limitado
por no contar con un reglamento que delimite la metodología de investigación, y estimar quienes podrían participar para aportar información que permita una mejor
profesionalidad.
Además el gobierno Estado de Jalisco no incluye en su sistema penitenciario, criminólogos de formación para que su participación en las investigaciones no sean tendenciosas o con inclinación muy arbitraria y por ende no englobe todos los factores que
se deben tomar en cuenta para disminuir los índices delictivos así como las numerosas
victimas de delitos que al fin de cuentas la mayor victima es la sociedad en general.
LA CRIMINOLOGIA COMO CIENCIA
Se expone la autonomía de la criminología frente al derecho penal puesto
que hoy por hoy, la criminología se identifica como ciencia auxiliar del derecho
Ponencia Presentada en el XI Congreso Nacional de Criminología del 16 al 19 de Noviembre del 2005, en la
ciudad de Querétaro.
Mediante Decreto 20140, publicado en el Diario Oficial El Estado de Jalisco el 29 de noviembre de 2003.
Articulo 67.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
penal, razonamiento equivoco y por demás preocupante para el desarrollo de la
ciencia criminologica.
Concepto de criminología
El origen etimológico lo podemos encontrar en las raíces latinas crimen-criminis “crimen delito” y del griego logos “tratado”, el primero en utilizar este vocablo
fue el antropólogo francés Toppinard pero quien en realidad utiliza la palabra “criminología” para titular con el mismo nombre su obra, fue Garófalo jurista italiano y
uno de los precursores de la escuela positiva italiana.
Hasta hoy no tenemos una definición universal para la ciencia de la criminología a pesar de los esfuerzos doctrinales y por el repaso de la historia de esta ciencia
no existe una definición común por lo que presentamos algunas definiciones de los
más destacados estudiosos sobre el tema.
Doctrina Española
Para el talentoso jurista LUIS JÍMENEZ DE ASÚA, será la “Ciencia causal
explicativa, que completada con remedios imperara en el futuro”. Para MARIANO RUIZ FUNES10, profesor de Quiroz Cuarón, “Ciencia sintética y empírica, sus limites están fijados por su contenido: el estudio triple del delincuente y
del delito bajo los aspectos antropológico-biológico, psicológico y sociológico”.
QUINTILIANO SALDAÑA11 “Ciencia del crimen o estudio científico de la criminalidad, sus causas y medios para combatirla”. DON CONSTANCIO BERNALDO
10
11
Así lo han manifestado en el X Congreso de Criminología celebrado en la Ciudad de Morelia, los días 21 y 22
de noviembre de 2004.
Diccionario de la real Academia Española, 21 edición, Editorial Espasa; Madrid, España, 1992.
Fue el primero en utilizar el vocablo criminología, opinión mayoritaria de los tratadistas en esta materia en
BOGNER, W. A.: Introducción a la Criminología, Fondo de Cultura Económica, México Distrito Federal, México, 1943. p. 39.
Ibidem.
Ya que la criminología al margen de ser ciencia ha recibido diferentes definiciones desde su nacimiento por
parte de filósofos, moralistas, y literatos según HERRERO Herrero, en Criminología. Parte general y Especial,
Editorial Dikynson, Madrid España, 1997 pp.23 .ss.
JIMENEZ DE ASUA L., Tratado de derecho penal T. I. 25 y ss.
RODRÍGUEZ MANZANERA L., Criminología, México, decimotercera edición 1998, p. 3.
RODRÍGUEZ MANZANERA L., Criminología, op. cit. p. 5.
15
16
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
DE QUIRÓS12 la estima como; “Ciencia que se ocupa de estudiar al delincuente
en todos sus aspectos”.
Para el penalista CUELLO CALON es el conjunto de conocimientos relativos
al delito. MANUEL LÓPEZ-REY Y ARROJO,13 “la criminología la define como la ciencia- para los más, mientras que algunos la estiman arte- que se ocupa de determinar
las causas o factores del delito afines de prevención y tratamiento del delincuente”
Doctrina Mexicana
Los maestros mexicanos QUIROZ CUARON Y RODRIGUEZ MANZANERA
estiman a la criminología como; “Ciencia sintética, causal explicativa, natural y
cultural de las conductas antisociales”. Para el autor mencionado la criminología
reúne los principales atributos de investigación ya que en primer lugar describe
el objeto de estudio del problema en concreto de manera general, lo clasifica con
parámetros y variables de acuerdo a estadísticas, establece una explicación, y relaciona los fenómenos.
Doctrina Alemana
De la doctrina alemana citamos a GÜNTER KAISER; “Conjunto ordenado de
la ciencia experimental acerca del crimen, del infractor de las normas jurídicas, del
comportamiento socialmente negativo y del control de dicho comportamiento”, el
médico y jurista HANS GÖPPINGER; estima
La criminología es una ciencia empírica e interdisciplinar. Se ocupa de las
circunstancias de la esfera humana y social, relacionadas con el surgimiento,
la comisión y la evitacion del crimen, así como del tratamiento de los violadores de la ley.
Doctrina Francesa
Para la escuela francesa representada por G. STEFANI Y G. LEVASSEUR14
La criminología será; “la que estudia la delincuencia para investigar sus causas
12
13
14
RODRÍGUEZ MANZANERA L., Criminología, op. cit. p. 6.
LÓPEZ-REY Y ARROJO, M., Introducción a la criminología, Madrid, 1981, p. 13.
G. STEFANI Y G. LEVASSEUR, Droit Pénal General et criminologie precis Dalloz, Paris, 1961, n.44.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
su génesis, su proceso y sus consecuencias”. En este sentido R. JAMBU-MERLIN;15 mencionan que; “es el estudio de las causas de la delincuencia” advirtiendo que; “entre estas causas de la delincuencia algunas residen en la personalidad
de los delincuentes”, ampliando las definiciones de la escuela francesa, que es
por demás interesante.
Cabe destacar la aportación de PIERRE-FERNAND CECCALDI que estima
a la criminología en un doble sentido a saber; en el sentido amplio16 es el conjunto de procedimientos aplicables a la investigación y al estudio de un crimen para
llegar a su prueba.
En este caso, conviene distinguir: los procedimientos policiales, que entran en juego para dirigir una investigación e incluyen la recopilación de pruebas; los procedimientos científicos, empleados para mostrar estas pruebas; los
procedimientos jurídicos encuadrando y codificando la administración de dichas pruebas para que sean recopiladas o demostradas en las otras formas previstas por el derecho.
Para este autor la criminología se encuentra en medio del camino científico
investigativo-criminal entre la policía y la justicia penal.
Siguiendo con el mismo autor; en el sentido estricto,17 la criminología será
esta ciencia concreta, incluso separa de la medicina la toxicología y la psiquiatría legales cuyo sujeto es muy distinto y el objeto, consagrado desde mucho tiempo.
Es un domino que no recae en el médico en químico o psiquiatra puesto
que su técnica es absolutamente diferente y particular, tal es la criminología que
nos proponemos circunscribir en esta primera aproximación cuyos límites son
indecisos lindantes con aquellos que las otras ciencias no pueden o no quieren
atender.
Tanto en el sentido amplio como en el sentido estricto18, la criminología es
un estudio doctrinal y aplicado del fenómeno “crimen” entendiendo por crimen toda
agresión dirigida contra los valores morales o socialmente definidos y penalmente
protegidos, como las personas, las costumbres, los bienes.19
15
16
17
18
19
R JAMBU-MERLIN, G. STEFANI Y G. LEVASSEUR, Criminologie et science pénitentiarie, ed. Dalloz, París,
1985, pp. 2-3.
Ibidem
Ibidem.
Ibidem.
Ibidem.
17
18
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Doctrina Norteamericana
Representada por E. SUTHERLAND Y CRESSEY,20 ven a la criminología como
resumen de distintas maneras de considerar al crimen, y como la totalidad del saber
sobre el crimen como fenómeno social. “su campo de acción comprende los fenómenos de la formación de las leyes, la infracción de las mismas y la reacción a la
violación de la Ley”
Doctrina Austriaca
Esta escuela desarrolla un exacto sistema del objeto de estudio de la criminología para definirla así; ERNEST. SEELING,21 “Ciencia que estudia los elementos
reales del delito.”, HANS GROSS, será una conducta psíquico-corpórea y culposa de
un hombre, que por ser contraria a la sociedad esta jurídicamente prohibida y amenazada con una pena.22
Doctrina Italiana
La escuela positiva italiana surgida por los pensadores Cesar Lombroso, Enrico Ferri, Rafael Garofalo no mantienen una definición sui géneris de Criminología
cabe señalar que como pioneros de esta noble ciencia el único que mantiene una
definición es RAFAEL GAROFALO será; “Criminología como la ciencia del delito”.23
BENIGNO DI TULLIO24 estima a la criminología como “Ciencia de la generosidad” apoyado en sus principios de criminología aduciendo el de
dar vida a una verdadera y propia ciencia de la bondad, mediante la cual se
haga posible combatir mas eficazmente la causa de los mas graves y mas frecuentes actos antisociales y criminales, y buscar los medios mas aptos para
desarrollar en cada hombre una mas profunda y activa bondad, que constituye la premisa esencial de todo verdadero mejoramiento de la persona humana y, por ello, de la misma humanidad.
20
21
22
23
24
GÖPPINGER H., Criminología, Madrid, 1975, p.1.
SEELING, E., Tratado de criminología, Madrid, 1958, p.7.
RODRÍGUEZ MANZANERA L., Criminología, op. cit. p. 7
GAROFALO R., Criminología, Ángel Editores, México, 2000.p. 15.
DI TULLIO B., Principios de criminología clínica y psiquiatría forense, Madrid, 1996 p.p. 15 y sig.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Como podemos ver después de describir los principales conceptos de criminología de la doctrina criminológica mas influyente, destacamos que los conceptos
hasta ahora citados hacen una fuerte referencia al estudio del delito, al comportamiento criminal, a explicar el drama criminal, desde una perspectiva biopsicosocial
dichos conceptos no satisfacen las necesidades político criminales y de criminalidad
contemporánea por lo que nos inclinamos a un concepto amplio y acorde a cubrir el
objeto de estudio del drama criminal.
Es importante decir que los anteriores autores consideran el concepto desde el
punto de vista restrictivo ya que en su objeto de estudio siguen sin tomar en cuenta a
la victima y a otro factor de relevancia como lo es el control social.
Concepto adoptado:
Es una ciencia empírica e interdisciplinaria, que se ocupa del estudio del delito, del delincuente, de la victima y el control social del comportamiento crimal.
Esta ultima definición es mucho mas extensiva en cuanto involucra a la víctima y a la conducta criminal desviada (objetos de estudio que veremos en el capítulo
siguiente), los afectados, las consecuencias de esa conducta y la represión de la misma, no olvidándose el sustento científico que conlleva la definición y el método interdisciplinario para cumplir con los objetos de la ciencia, y es a partir de esta definición
donde se puede investigar de una manera mas amplia sobre el crimen la pareja penal
y el control social de la criminalidad.
Objeto de estudio de la criminología
La Criminología es creada para el estudio de los fenómenos que llevan a el delincuente a cometer el acto antisocial, de la manera en que la sociedad tipifica el delito, de sus causas por las que este se convierte en tal y de su represión, apoyándose en
la investigación que realizan las ciencias relacionadas tomando en cuenta los datos
que definen y explican del origen del comportamiento del delincuente el verdadero
fin que persigue al cometer el delito y la repercusión que este tiene en la sociedad.
También a su vez menciona que la criminología es tomada como parte de el
Derecho Penal y que como mencionamos hace referencia a la aplicación de las penas
con relación al delito de manera que estas sean lo mas justas posibles y además la
criminología aporta datos para mejorar la política criminal mas no menciona a la
victima y esta tiene una gran relevancia si se pretende tomar en cuenta todas la
19
20
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
variables de estudio decimos entonces que para realizar un estudio serio en criminología debemos tomar en cuenta ciencias como la antropología, sociología, psicología,
Criminalistica, medicina, estadística, etc.
La criminología; nace para dar respuesta a los abusos dogmáticos del derecho
penal que imperan hasta el siglo XIX, la exageración jurídica de la escuela clásica,
donde la impunidad, delito y pena; gobernaba en el pensamiento de los juristas y
practica de la justicia, la base de su filosofía basada en el derecho natural y libre albedrío por parte del sujeto infractor, que es capaz de querer como ser conciente, inteligente y libre de actuar en contra de la norma establecida.25
Delito
La criminología seguirá ocupándose del delito, decimos que seguirá puesto
que el objeto de estudio sigue abarcando este importante rubro que también es objeto
de estudio de otras disciplinas jurídicas y no jurídicas como pueden ser al derecho
penal, la filosofía, sociología, derecho penitenciario, a la penología, Victimología etc.
Por esta razón es importante delimitar el concepto del delito, que utiliza la criminología y por que hasta ahora no existe una definición común de delito por la ciencia
citada. Cabe destacar que la criminología como ciencia autónoma debe delimitar su
objeto de estudio sin someterse a las definiciones del delito que provengan de otros
pensamientos de otras ciencias o de otras instancias.
Para el Derecho penal delito será desde una perspectiva formal y normativa
y por exigencias de los principios de legalidad y seguridad jurídica como toda conducta prevista en La ley Penal y solo aquella que la Ley Penal castiga es una conducta
antijurídica culpable y punible por la Ley.26
Delito para el Código Penal para el Estado de Jalisco en su articulo 5to lo define como: “Delito es el acto u omisión que concuerda exactamente con la conducta
que, como tal, se menciona expresamente en este código o en las leyes especiales del
Estado”. Para la Filosofía y para la Ética el delito se encuentra más allá del Derecho
Positivo en el orden moral el natural la razón etc.27
25
26
27
BASTERO Archanco, J.: Revista de Legislación y Jurisprudencia, Numero 50; año 1952, Madrid España, p. 613.
En este mismo sentido; RODRIGUEZ Manzanera, Criminología…., Op. Cit., p. 240.
COBO DEL ROSAL M., VIVES ANTON, Manual de Derecho Penal Parte General, Valencia, 2000, pp. 15 y sig.
GARCIA-PABLOS DE MOLINA A., Criminología Una introducción a sus fundamentos teóricos para juristas
Valencia 1996 pág.28
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ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Para la antropología criminal, el Delito toma forma en el delincuente verdadero, nato es una peculiar especie humana cognoscible en virtud de determinadas
características corporales y anímicas, un peculiar species generis humani.28
Para la escuela positiva italiana que formulo un concepto equivoco de delito natural “una lesión de aquella parte del sentido moral, que consiste en los sentimientos altruistas fundamentales (piedra y probidad), según la medida media en que se encuentran en las razas humanas superiores, cuya medidita es necesaria para la adaptación del
individuo a la sociedad”.29
La Sociología criminal utiliza el concepto de conducta desviada, para definir
el delito. Este concepto adolece de un marco conceptual sólido y definido al quehacer
criminológico no expresa una noción valorativa y objetiva de delito mantiene una
carga valorativa con cierta dosis de relativismo he incertidumbre pues las conductas
desviadas por si mismas y por sus cualidades objetivas no existen, la desviación reside propiamente en los demás en las mayorías sociales que etiquetan a un determinado grupo de individuos como autor o estigma desviado.
Para la moderna criminología30 el delito será ante todo un problema social y
comunitario entendiendo esta categoría acuñada en las ciencias sociales, pues según la
doctrina un determinado hecho criminal debe ser definido como problema social.
Delincuente
La criminología va a estudiar al delincuente, este tuvo su época de oro como
objeto de estudio al comienzo de la criminología como ciencia, esto es, durante su
etapa incipiente de la criminología con Lombroso, Ferri y Garofalo desde una perspectiva biopsicopatológica convirtió al delincuente en el punto exclusivo de referencia científica sin embargo la moderna criminología a dado un giro paradigmática
dejando en segundo termino al hombre delincuente esto se debe al giro científico
que denota en las nuevas investigaciones que ahora concentran la atención hacia la
conducta delictiva a la victima y al control social.
Existen dos puntos de vista que sientan precedentes importantes en el obsesionado objeto de estudio desde una perspectiva meramente física del delincuente,
nos referimos al edicto de Valerio; que por una parte afirmaba: “cuando tengas duda
28
29
30
EDMUNDO MEZGER., Criminología, Puebla, primera edición 2002, p. 3.
GAROFALO R., Criminología, op. cit., p. 30 y sig.
GARCIA-PABLOS DE MOLINA A., Criminología op. cit. p. 30
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penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
entre dos presuntos culpables, condena al mas feo” en el mismo sentido el Márquez
de Moscardi definía en un proceso criminal deliberando de la siguiente manera “oídos los testigos de cargo y de descargo, y vista tu cara y tu cabeza te condeno ha…” la
sentencia aplicada en esa época para el infractor era de prisión o de horca.31
Para GARCIA-PABLOS32 existen cuatro orientaciones para dar explicación del
delincuente:
La clásica.
Positivista.
Correccionalista.
Marxista.
Clásica; la etapa clásica parte de una idea de ser humano como el centro del
universo dueño y señor de si mismo es decir de sus actos el criterio de libertad se
asienta a su mal uso en un echo criminal determinado no se debe a criterios internos
del individuo ni mucho menos a factores externos para los clásicos el delincuente es
un pecador que opto por el mal pudiendo y debiendo haber respetado la ley.
El positivismo; parte de una teoría radicalmente opuesta a la clásica no reconoce al hombre como el centro del universo, FERRI, estima el comportamiento del
delincuente como una combinación transitoria que puede lanzar rayos de locura y
de criminalidad, niega el libre albedrío al insertar el comportamiento del criminal
en la dinámica de causas y efectos que rige el mundo natural y social: en una cadena
de estímulos y respuestas que son determinantes los factores internos, endónenos
(biológicos) o externos, exógenos (sociales) que darán la explicación de esa conducta
antisocial.
Para el positivismo criminológico, el infractor es un prisionero de su propia
patología, o de procesos causales ajenos al mismo: un ser esclavo de su herencia, encerrado entre si, incomunicado de los demás que mira al pasado y sabe, fatalmente
escrito su futuro: un animal salvaje y peligroso.33
El correccionalismo; ve en el infractor de la norma como un minusválido, incapaz de dirigirse por si mismo libremente su quehacer cotidiano, cuyo débil voluntad
requiere de la eficaz y desinteresada intervención del Estado, ve a éste como su tutor.
31
32
33
MIGUEL CLEMENTE/PABLO ESPINOZA La Mente Criminal, Madrid 2001 p. 15.
Manual de Criminología op. cit. p. 61 y sig.
Ibídem.
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ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
El marxismo; este pensamiento responsabiliza al Estado y a determinadas estructura económicas de suerte que el infractor será una víctima del sistema político
responsabilizando a la sociedad de su actuar criminal.
Victima
Victima viene del latín victimae, y con ello se designa a la persona o animal
sacrificado o que se destina al sacrificio.
En este sentido, se hace referencia al concepto original de sacrificio, del hebreo
Korbán, aunque esta palabra tiene ahora un significado más amplio, en cuanto que
representa al individuo que se sacrifica a si mismo, o que es inmolado en cualquier
forma.
Para otros, el sentido es mas restringido; Stanciu nos señala que la victima es
un ser que sufre de una manera injusta, los dos rasgos característicos de la victima
son por lo tanto el sufrimiento la injusticia, aclarando que lo injusto no es necesariamente lo ilegal.34
Desde un punto de vista puramente jurídico, una persona es victimizada
cuando cualquiera de sus derechos ha sido violado por actos deliberados o “maliciosos”.35
Como hemos señalado se puede ser victima en sentido por demás amplio, y
en múltiples casos sin mediar una conducta antisocial.
Para la ciencia penal la victima viene a ser el sujeto pasivo del delito siendo el
titular del bien jurídico protegido. Cobo/Vives, menciona que es preciso distinguir entre
el sujeto pasivo del delito y sujeto pasivo de la acción aunque puedan normalmente
coincidir en ambos.36
En los tratados de Derecho Penal en la parte general, se estudia a la victima
en cuanto “sujeto pasivo”, en forma por demás superflua, según parece lo verdaderamente importante para la dogmatiza penal es la teoría del delito y dentro de esta, a
tomado relevancia especial la teoría del tipo.
Algunos autores consideran al sujeto pasivo como un simple elemento del
tipo, otros ni siquiera lo mencionan., en los tratados de parte general escasamente lo
34
35
36
SEPAROVIC, Z PAUL, OP. CIT.
STANCIU, V. V., ETET victimal et civilización, etudes internationales de Psychosociologie Criminelle, nums.
26-28. 1975.
COBO DEL ROSAL., M., VIVES ANTON, T. S. Derecho Penal, op. cit., p.331.
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penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
encontramos y va a ser en la parte especial, y en algunos delitos, cuando se va a ser
referencia al mismo.
El Derecho Penal regula la conducta humana en un contexto social, protegiendo bienes particularmente importantes para la convivencia social y para ello ataca
determinadas conductos determinándolas “delitos”.
La ley al regular los delitos, pone particular énfasis en el realizador de las conductas prohibidas, y en la conducta misma, así como el resultado, es decir, las consecuencias que deberá sufrir el autor del delito.
La ley por lo general trata eliminar a la victima de la participación del delito
y de todo lo relacionado a este sin embargo cada vez va aceptando su participación
en el echo delictivo.
Göppinger37 señala que
la ciencia del derecho afirma desde hace tiempo la existencia de determinadas relaciones entre delincuentes y victimas si bien estas, en la configuración
normativa del Derecho Penal reflejadas en algunas situaciones consideradas
como particularmente apropiadas.
Es verdad que en la construcción de algunos tipos delictivos la victima desempeña un papel decisivo en la producción del hecho ilícito, pero en esto hay amplias
variaciones según los diversos delitos y los diferentes códigos.
En la parte conducente señalamos que no puede equipararse el sujeto pasivo
del delito con la victima este concepto es notablemente mas amplio que el primero, y
podría ser peligroso para el derecho penal adoptarlo principalmente porque podría
hacer de protección publica todos los bienes jurídicos, y sabemos que el derecho penal debe tutelar tan solo bienes de la mas alta jerarquía y absolutamente necesarios
para la adecuada convivencia social.
La victima en el delito doloso ha sido estudiada en algunos sentidos, principalmente a lo referente a provocación y consentimiento.
Efectivamente, la victima puede desencadenar la hacino delictuosa de dos
maneras: por provocación o por petición:
En la petición existe consentimiento de la victima quien solicita la comisión
de la acción dañina en su propio perjuicio, en consecuencia hay una coincidencia
entre los sujetos de la pareja penal. En el caso de la provocación a l contrario hay
desarmoniza, y en la victima resulta tal, por haber ejercido previamente 8una ac37
GÖPPIGER, op. Cit. (Criminología), p. 362.
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penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
ción contraria a los intereses de la otra parte, la cual reaccionando para conservar
sus derechos atacados o bien para ejercer una represalia comete el acto considerado
infracción.38
La victima de los delitos culposos, es decir en aquellos que son producidos
por imprudencia o impericia de la gente, es un tema poco explorado por la doctrina
penal que ha dedicado sus esfuerzos a la intencionalidad del sujeto activo.
Para el derecho mexicano, obra culposamente el que produce el resultado típico que no previo siendo previsible o previo confiado en que no se produciría en
virtud de la violación a un deber de cuidado que debía y podía observar según las
circunstancia y condiciones penales.
Como podemos observar aquí la victima es más sujeto “pasivo” que nunca.
Utilizando una clasificación ya citada, veremos que la victima en el delito de
imprudencia puede haber tenido una gran participación, una participación mediana
o una pequeña participación. Pede darse el caso también que no haya tenido participación (el sujeto que esta en su casa cuando un vehículo automotor conducido imprudentemente penetre en ella y lo mata), o que su participación sea total (el sujeto
que cruza una iba de alta velocidad restringida a los peatones).
en numerosos homicidios y lesiones culposas resulta ya casi imposible distinguir el autor y la victima y determinar la medida de su culpabilidad., en
ella intervienen el azar como la tercera forma de energía, favoreciendo o perjudicado, unas veces al autor y otras veces a la victima.39
La Organización de las Naciones Unidas llego a la conclusión donde se planteo que el termino victima puede manifestar que la persona ha sufrido perdida,
daño o lesión, sea en su persona propiamente dicha, su propiedad o sus derechos,
como resultado de la conducta que:
Constituya una violación a la legislación penal nacional, Constituya un delito
bajo el derecho internacional que constituya una violación de principios sobre derechos humanos reconocidos internacionalmente.
Que de alguna forma implique un abuso de poder por parte de personas que
ocupen posiciones de autoridad política o económica.
Para Herrera Moreno la victima viene a ser el sujeto paciente del injusto típico, es decir las personas que sufren merma de sus derechos, en el mas amplio senti38
39
SOSA CHACIN , JORGE, La Victimología y el Derecho Penal, anuario del Instituto de ciencia Penales y criminología, num. 2, Universidad Central de Venezuela, Venezuela, 1968, p. 207.
VON HETING, op. Cit. (Delito), p. 412.
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penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
do de la palabra, como resultado de una acción típicamente antijurídica, sin que sea
necesario que el victimario haya actuado culpablemente.40 Las victimas son por lo
tanto, titulares legitimas del bien jurídico vulnerado, cabe hacer la siguiente reflexión
que puntualmente hace BERISTAIN,41 al decir que todo sujeto pasivo es victima, pero
no toda victima es sujeto pasivo de un delito.
Con lo antes mencionado coincidimos la victima actualmente esta recobrando un protagonismo después de haber sido olvidada por las ciencias afines.
La Función de la Criminología
Coincidimos en afirmar que la función principal de la criminología es
la de optimizar la calidad de vida de la sociedad aumentar una mejor relación
entre el estado los organismos de control social formal y la sociedad a través de
el estudio del comportamiento de todos los factores que influyen para que el ciudadano cometa actos delictivos, es importante mencionar que en la manera en
que la sociedad tome los cambios influye directamente en la forma y el aumento
o disminución de la criminalidad esto es el rechazo o aceptación de los nuevos
mecanismos de control social.
La cultura el derecho y los demás sistemas normativos de control social influyen de manera directa en la aceptación o rechazo de la sociedad para la nueva
normatividad impuesta para bajar los índices delictivos.
Es por esto que la criminología como ciencia debe buscar la excelencia en
su análisis experimentación y método de aplicación para no establecer nuevas
formas de delincuencia como reacción a la presión ejercida por la nueva normatividad, pongamos como ejemplo la creación de una nueva corporación policial
donde no se le da la preparación adecuada tampoco se le proporcionan recursos
materiales para el combate a la delincuencia adecuados y poco se incentiva a
superarse y mejorar la calidad de su trabajo comúnmente este tipo de corporaciones llegan a ser presa fácil de la delincuencia organizada y el remedio pasa a
ser peor que la enfermedad.
Los índices de criminalidad no necesariamente bajaran si el sistema de control social penal es mas coercitivo ya que entre mas normas o leyes se requiere mas
inversión, en juzgados corporaciones policíacas y cárceles la eficacia de el control so40
41
HERRERA MORENO, M., op. cit., 332.
BERISTAIN, A.: EL Código Penal desde la victimología, Madrid, 1997.
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penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
cial formal depende directamente de la relación que debe llevar con el control social
informal la prevención es mejor método ya que es preferible y menos costoso evitar
los crímenes que castigarlos.
De igual manera los medios de control social formal previstos como lo
son las cárceles solo contienen de momento el problema pero ya estando dentro
de este establecimiento toda aquella información de el porque se genero este
problema se pierde por no contar con los medios necesarios para recabarla y
procesarla así como compartirla con los demás sistemas de control social formal
he informal.
Para la criminología su función primaria es recabar toda la información
posible de el delito, el delincuente y la victima así como del comportamiento de
el control social formal he informal para estudiarlo analizarlo y así proponer
a la sociedad y a el estado los mecanismos y métodos que mejoren la relación
entre estos.
Es importante mencionar que la criminología no es una ciencia exacta como
pretendían en el siglo XIX algunas seudo ciencias dar una correcta razón de causa
y efecto de la delincuencia tomando conclusiones subjetivas y por demás teóricas,
tampoco su función es solo de recabar y archivar información de muchas disciplinas
si no que al contrario de manera dinámica debe dar respuesta mediata a los problemas sociales, tampoco se puede aspirar a llegar a una verdad absoluta de el comportamiento criminal ya que al igual que la sociedad y la tecnología la criminología se
encuentra en constante cambio.
También debe entenderse a la criminología como una ciencia que se apega a la realidad y no a la decisión arbitraria teórica divorciada práctica ya que
perdería su sentido si también la practica le diera la espalda a la metodología
científica seria como volver a los inicios de esta ciencia y pasar por todo lo ya
superado.
La función de la criminología es vista de diferente forma de acuerdo a la
sociedad y cultura que la estudia ya que el sistema capitalista difiere en gran medida del socialista y comunista no será entonces la misma perspectiva con la que se
observe a el crimen y por ende no serán las mismas medidas o formas que deben
tomar de una sociedad a otra es por esto tan importante que no se adopten modelos de política criminal y mucho menos de investigación criminologica de otros
países ya que los resultados así como la capacidad de inversión serán totalmente
distintos de un estado a otro.
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ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Una de las funciones primordiales de la criminología es aportar datos y conocimientos ordinarios42 o científicos43 sobre el fenómeno criminal, mediante una
investigación rigurosa con técnicas y métodos adecuados, coordinando las aportaciones de otras ciencias (antropología, Criminalistica; biología criminal, sociología,
ciencias penales, medicina, y psicología), y tal como lo cita García-Pablos
La criminología no solo aporta datos que pueden ser informales, sino que
contribuye a generar conocimientos y que sistemáticamente ordena, según el ámbito
del estudio-problema en concreto44
La criminología adquirió el rango de ciencia cuando el positivismo generalizo
el empleo del método empírico, esto es, cuando el análisis, la observación y la inducción sustituyeron a la especulación y el silogismo, superando razonamiento abstracto, formal y deductivo del mundo clásico.45
De todo lo anterior podemos decir que la función primordial de la criminología es prevenir el delito, debe ser capaz de anticiparse a el mismo utilizando los mecanismos legales y los recursos materiales así como el apoyo del control social informal
para lograr un mejor convivencia en todos los niveles y estructuras de gobierno y de
la sociedad, ya sea en el seno familiar la comunidad que pertenece y también en la
reaserción de aquel que delinque.
LA CRIMINOLOGÍA EN EL SISTEMA PENITENCIARIO DE JALISCO
Es importante mencionar que no sirve de nada el crear leyes para sancionar
las conductas delictivas sin tomar en cuenta los recursos la infraestructura y el personal con que se cuenta, además si este ultimo tiene la capacitación adecuada.
Los centros de readaptación social, también llamadas Universidades del crimen han jugado un papel olvidado por la sociedad y el estado dado a su sobrepo42
43
44
45
MIRALLES, T.: Métodos y Técnicas… Op. cit. p. 31. el conocimiento ordinario se desarrolla en tres direcciones: Conocimiento técnico como el arte y la habilidad profesional; la protociencia o ciencia embrionaria que
consta de observación y reunión de datos pero sin sustrato teórico y la pseudo ciencia como creencias y practicas a saber; investigación espiritista, psicoanálisis, cuyos planteamientos, técnicas y cuerpo de conocimientos
difieren del científico
BUNGE M.: La investigación…Op. cit. p. 21 y ss. El conocimiento científico es la búsqueda creadora de las
ideas que dan razón de los hechos de un modo cada vez adecuado, de ahí que se produzca un abanico de
opiniones científicas de desigual peso: unas mas fundadas y mas detalladamente contrastadas que otra.
GARCIA-PABLOS, de M. A.: Manual de Criminología…, Op. cit., pp. 141 y ss.
En este sentido Keiser. G., Kriminologie, cit. pág.124 Cfr.: García-palos, A. Manual de Criminología, cit.
Págs. 50 ss.
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ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
blación y casi nula atención de las diferentes áreas que contempla le ley para llevar a
cabo la finalidad con la que fueron creadas, la readaptación.
En la Ley de Ejecución de Penas Privativas y Restrictivas del Estado de Jalisco
se menciona las áreas de medicina, de trabajo social, psicología, psiquiatría, educativa, de capacitación, laboral, jurídico, de vigilancia y administrativo como pudieran
todas estas áreas atender a tantos reclusos menos pensar que la mencionada área de
criminología nueva ciencia para algunos y totalmente desconocida para otros pueda
cumplir con las pretensiones de esta ley.
Si a esto asociamos la falta de una pronta determinación en el proceso judicial
estamos por demás muy por debajo de la idealista pretensión de darle justicia a todos
por igual y menos aun creer que la criminología pueda ayudar a prevenir todo esto si ni
siquiera hay una formación o capacitación de esta ciencia a las áreas de las diferentes
disciplinas participantes.
Creemos firmemente que se deben buscar mejores alternativas para la sanción de las conductas antisociales que la simple reclusión en estos establecimientos que
lejos de readaptar obligan al privado de su libertad a delinquir de otras maneras.
Análisis del artículo 67 de la LEPEJ
Dentro de los motivos que llevaron a considerar a la criminología dentro de la
ley de ejecución de penas después de que históricamente tuvo que pasar por tantos
estudios análisis y experimentación es increíble ver que el articulo 67 de esta ley
solo considera a el delincuente y los fenómenos que lo llevaron a cometer la conducta
antisocial solo para cumplir con el requisito que como institución tiene el tratamiento y derechos del ser humano infractor pero como ya vimos con anterioridad
con todos los elementos que son parte de la criminología y la relación intrínseca que
guarda para con la sociedad debe de considerarse el uso de la información para que
los sistemas de control social cambien su política criminal para la habitación de la
continua y repetida acción
Artículo 67 – El área de criminología respectiva, realizará los dictámenes que
permitirán conocer los factores criminógenos que intervinieron en la comisión del
delito, el índice de estado peligroso, o riesgo institucional y social, según sea el caso.
Los estudios serán considerados y determinantes para la clasificación y ubicación penitenciaria, la estructuración del plan de acciones técnico penitenciarias y
el otorgamiento de beneficios de libertad anticipada.
29
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ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Aportación doctrinal
La profesión adecuada para dirigir, planear, ejecutar y evaluar la Política Criminal y elaborar programas de prevención criminal es sin lugar a dudas la del Criminólogo, desgraciadamente en México la capacitación es insuficiente y deficiente,
este grave problema se presenta en la Administración Pública local, estatal o federal
mexicana en la que existe un cuadro de profesiones para el criminólogo, sin embargo
los titulares de las oficinas correspondientes no tienen una formación sui generis en
esta materia, en este sentido estimo que estos funcionarios no podrán argumentar y
sostener científicamente un análisis o estudios criminológicos serios debido a estas
limitaciones.46 El ejemplo más reciente lo podemos encontrar en la nueva “Ley de
Ejecución de Penas del Estado de Jalisco” creada mediante Decreto Núm. 20140, aprobado el 21 de Octubre 2003,47 en los siguientes artículos:
5- El Consejo de Evaluación y Seguimiento se integrará con un
representante de: la Dirección General de Prevención y Readaptación Social; la
Dirección General del Sistema Postpenitenciario y Atención a Liberados; de
la Dirección Jurídica de la Secretaría; la Dirección General de Estadística y
Política Criminal; y un representante de la Procuraduría General de Justicia
del Estado de Jalisco.
Artículo 7.- Son facultades de la Dirección General de Prevención y Readaptación Social, las siguientes: …V. Diseñar y aplicar el sistema de acciones
técnicas penitenciarias a través de las áreas de observación y clasificación,
fijas y flotantes, para la realización del estudio inicial y secuencial, cubriendo
los aspectos médico, de trabajo social, psicológico, psiquiátrico, educativo, de
46
47
La Dirección General de Seguridad Pública Municipal de Guadalajara (D.G.S.P.G.) en su organigrama designa
dentro del área técnica una subdirección de análisis criminogenos siendo el titular una persona ajena a la
profesión del criminólogo, http://seguridadpublica.guadalajara.gob.mx/, la Secretaria de Seguridad Pública
de Jalisco (S.S.P.J.) opera dentro de la Dirección Técnica y Política Criminal, siendo el titular un Licenciado en
Economía y sin tener experiencia alguna que debe ostentar su cargo pues ha fungido como responsable del
Tratamiento de la Información de la Encuesta Industrial Mensual del Instituto Nacional de Estadística Geografía e informática (INEGI) y posteriormente como director de análisis y estadística de la Secretaria de Seguridad Pública 1998 a marzo 2001 y la Dirección General de Prevención Readaptación Social (DIGPRES) en su
oficina de subdirección Técnica hay una Jefatura de Análisis Criminológico siendo el titular un Psicólogo vid.
http://seguridad.jalisco.gob.mx/principal.html. mas aún Todas estas dependencias cuentan con oficinas las
cuales deben ofrecer estudios o análisis en criminología, por el contrario los titulares de dichas oficinas, tienen
una formación académica limitada en estudios de criminología ya que solo asisten o solo les ofertan cursillos
de solo seis meses relacionados con la criminología.
Esta reciente Ley sufre de importantes carencias sistemáticas pues no existe una exposición de motivos que la
antecede por lo que el legislador no tuvo cuidado en implementarla, esto debido a la capacidad limitada para
elaborar una iniciativa de Ley y como resultado de esta despreocupación crean leyes estériles que mas que
beneficiar a la sociedad la perjudica.
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ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
capacitación, laboral, criminológico, jurídico, de vigilancia y administrativo;
y demás disciplinas que se requieran, para la atención, readaptación y reinserción social de los procesados o sentenciados de toda la entidad, de conformidad con la política penitenciaria que establezca el Consejo de Evaluación
y Seguimiento…
Artículo 8.- La Dirección General del Sistema Postpenitenciario y Atención a
Liberados tendrá las siguientes facultades: …II Realizar estudios técnicos interdisciplinarios y sociales a las personas que han obtenido su libertad con el
fin de establecer estrategias conducentes para evitar la reincidencia; apoyándose de la medicina, el trabajo social, la psicología, psiquiatría, educación,
sociología, criminología, el derecho y las áreas laboral y de capacitación…
Artículo 12.- Cada área de observación y clasificación contará con un organismo técnico interdisciplinario el cual, previo estudio, dictaminará sobre
la clasificación criminológica, el seguimiento y atención individualizada de
cada interno en sus diferentes fases.
Artículo 28.- El Sistema Penitenciario del Estado de Jalisco se integrará por
los siguientes establecimientos: Los demás establecimientos que el Consejo
resuelva crear, a propuesta de la Dirección General de Prevención y Readaptación Social en acuerdo con la Dirección General de Estadística y Política
Criminal, de conformidad con esta ley.
Artículo 54.- El expediente técnico criminológico que se forme a cada interno, tanto procesado como sentenciado, se iniciará con el estudio integral
de su personalidad, será actualizado cada seis meses y se integrará con la
documentación e información correspondiente a cada una de las siguientes
secciones:
V. Criminológica.- Contendrá la historia criminológica inicial y los estudios
criminológicos efectuados durante el periodo de internación, a fin de conocer
los factores que intervinieron para la comisión del ilícito, el riesgo social e
institucional de la criminología penitenciaría.
Artículo 67.- El área de criminología respectiva, realizará los dictámenes que
permitirán conocer los factores criminógenos que intervinieron en la comisión del delito, el índice de estado peligroso, o riesgo institucional y social,
según sea el caso.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Esta Ley no contiene un Reglamento General Penitenciario,48 lo que representa un grave problema para llevarla a cabo taxativamente. Como se puede observar
esta nueva Ley hace referencia de manera repetitiva a la aplicación de la criminología,
sin embargo como se ha podido demostrar los funcionarios titulares de estas dependencias con conocimientos en la materia de criminología es limitado o en el mayor
numero de casos es nulo, por ejemplo el titular de la Dirección General de Estadística
y Política Criminal carece de conocimientos de Criminología y de Política Criminal
al tener una formación de economista.49 La Ley entre otras cosas menciona que se
apoyara en estudios de la criminología para evitar la reincidencia (art.8) que habrá
una clasificación criminológica de los delincuentes (art.12) y que se elaborara un
expediente técnico criminológico (art.54.V). En base a lo que se desprende de esta
Ley solo los dos últimos artículos se cumplen bajo los lineamientos que la Comisión
Nacional de Derechos Humanos,50 en el que exige criterios para la clasificación de la
población penitenciaria que se encuentra de la siguiente manera:
Población de ingreso.
Población que requiere cuidados especiales.
Población en riesgo
Población sancionada con aislamiento temporal.
Población general.
A esta clasificación se suman dos subclasificaciones para facilitar las medidas
aplicacables como:
Población en semilibertad.
Población en tratamiento preliberacional.
En base a estas recomendaciones de la CNDH existen 14 dormitorios en el
penal de Puente Grande Jalisco con la siguiente clasificación criminólogica y donde se ubican los puntos antes señalados: existe un Dormitorio donde se encuentran
los internos que requieren cuidados especiales por razón de edad, enfermedad física
o mental por lo que se les otorga atención diferente del resto de la población, otro
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El Reglamento se encuentra en fase de elaboración por parte del DIGPRES, que ha sido rechazado por el poder
legislativo.
Nos remitimos a la cita 11.
Comisión Nacional de Derechos Humanos; Criterios para la clasificación de la población penitenciaria
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
para aquella población que se encuentre sujeto al término constitucional de 72 hrs.,51
agrupados en una área aparte de toda la población cumpliendo con el ordenamiento
No. 4 de los criterios de clasificación de la CNDH.52 En el siguiente Dormitorio se
encuentran la población de ingreso con prisión preventiva con una duración que no
debe de exceder a los 15 días internado, existe el dormitorio con población en riesgo;
aquí están los internos que por sus conflictos personales o sus vínculos con otros
internos representan probabilidad de ser agredidos o de agredir a otros internos, en
este dormitorio se consideran además los siguientes criterios:
Que haya sido integrante de alguna corporación policial.
Que sea o haya sido integrante de organizaciones criminales estimadas en el
artículo 194 bis del Código Federal de Procedimientos Penales.53
Siguiendo con la criminología penitenciaria, también se incluye la clasificación de la población en aislamiento temporal constituida por los internos a quienes le haya sido impuesto una sanción,54 la clasificación de los condenados a purgar
penas en semilibertad para cumplir este punto deberán utilizarse establecimientos
destinados a ejecutar estas condenas y en áreas de la zona metropolitana de Guadalajara y deberá de evitarse la relación con la población interna, los preliberados; son
aquellos internos sentenciados que, por la cercanía de su externación, se encuentran
sometidos a un régimen diferente al de los demás internos. Por último se encuentra
la población en general que será aquella que consta de internos que no representan
o no se pueden ubicar en ninguno de los dormitorios antes señalados. La penitenciaría de Jalisco ubicada en Puente Grande a 20 minutos de la zona metropolitana
de Guadalajara cuanta con una subdirección técnica de criminología penitenciaria a
este respecto mediante una entrevista con el Director General de Prevención y Readaptación Social (DIGPRES), del Estado de Jalisco Prof. y Mtro. En Derecho PEDRO
SERRATOS VALLE, nos señalo que la titular de esta área es una Licenciada en Trabajo
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Esta disposición se encuentra contenida en el artículo 19 de la Carta Magna Mexicana, la cual dispone: que
ninguna detención ante autoridad judicial podrá excederse del plazo de setenta y dos horas, a partir de que
el indiciado sea puesto a su disposición, sin que se justifique con un auto de formal prisión, en el que se expresarán: el delito que se impute al acusado, el lugar, tiempo y circunstancias de ejecución, así como los datos
que arroje la averiguación previa, los que deberán ser bastantes para comprobar el cuerpo del delito y hacer
probable la responsabilidad del indiciado.
Esta disposición estima que; en ningún caso podrá ubicarse a alguien en zonas distintas a las destinadas para
alojamiento de los internos. El trato que se dé a los internos debe ser el mismo, siempre dentro del marco de
respeto de sus derechos humanos, sin importar el área en la que se encuentren ubicados.
Este artículo sanciona las actividades llevadas a cabo por miembros de la delincuencia organizada, en delitos
contra la salud, como es el narcotráfico.
Esta sanción se debe de ajustar a las garantías de legalidad y de proporcionalidad.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Social quien elabora el diseño y aplicación de estudios criminológicos a los internos,
dichos estudios se integran con los siguientes datos:
Nombre del interno, número de expediente, antecedentes antisociales en
el entorno familiar en línea recta hasta el segundo grado, edad criminal (edad en
el que cometió el primer crimen), si es primo delincuente, reincidente o habitual
el tipo de delito cometido: si es culposo o doloso, modus operandi, motivos si es
por venganza, lucro, impulso sexual, agresivo. Si hubo una conducta posterior
del delito; si se entrego, se fugo, si denuncio. En este estudio se ha insertado la
valoración de la víctima, si hubo necesidad de valoración médica, psicológica, u
otro servicio de urgencia.
La paradoja de la situación actual en el sistema penitenciario en Jalisco se
demuestra por el alto costo de manutención de los internos por día que asciende a
139.20 pesos diarios al Estado (aproximadamente 12 euros).
Este presupuesto destinado a las cárceles municipales del Estado no resuelve la situación de hacinamiento, carencia de locutorios, limitaciones en actividades
laborales dentro de las prisiones, carecen de teléfono, y existe en muchos casos deficiente alimentación.
La situación del Sistema Penitenciario Federal (me refiero a la penitenciarias
donde actualmente albergan internos de alta peligrosidad y que son administrados
por el gobierno federal) no es ajeno a los problemas antes señalados. Los llamados
Centros Federales de Readaptación Social CEFERESO, que operan en la República
Mexicana son tres; el de la Palma ubicado en almoloya de Juárez Estado de México,
el de Puente Grande Jalisco, y el de Matamoros con las siguientes características: La
Palma con capacidad para 724 internos inaugurado en Noviembre de 1991 recientemente han sido ejecutados tres importantes narcotraficantes en el interior del Centro
Penitenciario, el segundo con capacidad para 724 internos se inauguro en Octubre de
1993 en este centro ocurrió un hecho histórico al fugarse un capo del narcotráfico en
el año 2001 y por último esta el de Matamoros con la misma capacidad de los anteriores inaugurado en el año 2000, recientemente han sido ejecutados seis custodios de
este centro donde alberga grandes capos del narcotráfico mexicano. Es un problema
grave de difícil solución, preconizamos que la formación profesional en criminología
al personal directivo como al operativo se podría dar solución a todo este tipo de
problemas en el sistema penitenciario mexicano.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 13-35, jan./jun. 2006.
ÁLVAREZ, Rogelio Barba; STEFANONI, José Gerardo Crivelli. La función de la criminologia
penitenciaria en la ley de ejecución de penas del estado de Jalisco.
Conclusiones
La Criminología, considerada aun por algunas personas parte del Derecho
Penal y por otras que afirman que no es una ciencia, debe ser más que criticada y
etiquetada ser aprovechada y apoyada por el Estado la sociedad y los medios de control social para que se convierta, en una herramienta de regulación de la convivencia
humana en sus diferentes facetas.
En este trabajo se menciona, que la criminología a través de la historia, ha
sido más que de un medio de apoyo y regulación de los fenómenos criminológicos
del estado y la sociedad, pareciera que le sirve mas a aquellos que pretender estar mas
allá del estado de derecho, ya que estos si toman en serio la información y la utilizan
a su favor para ganarle a el sistema establecido por las mayorías, en el sentido de que
conocen las fallas del mismo y las utilizan en su contra, a diferencia de el estado y
demás sociedad que se encuentra por mucho dividido por individualismos maquiavélicos de intereses totalmente personalistas.
Es por esto que la sociedad debe de retomar el rumbo y pensar que lo que le
afecte a un de sus miembros le afecta directamente así mismo, ya no debe de darse el
lujo de ser insensible al dolor supuestamente ajeno, ya que ese miembro de la sociedad
afectado en sus intereses en algún momento por recuperarse puede afectar a otro.
En el ámbito penitenciario mencionar el descuido que la sociedad le a dado a
este es preocupante, ya que si se analiza desde el punto de vista de los números tomando en cuenta que son miles los recluidos en estos centros y mas los familiares de estos
que se encuentran fuera, podríamos comenzar a preocuparnos por las decisiones que
estos pudieran tomar en conjunto.
Es por esto que es necesario, crear un reglamento funcional para cumplir con
la normatividad de la Ley de Ejecución de Penas Privativas y Restrictivas para el
Estado de Jalisco. Este reglamento debe incluir de manera integral a la criminología
en que todas las áreas de gobierno penitenciario, para que se fusionen en la investigación criminologica intercambiando puntos de vista.
Este reglamento, debe de contener mecanismos para el proceso de la información y debe incluir en principio un área específica de criminología, que tenga criminólogos de formación para que interactúen con las demás áreas buscando un fin común.
Así mismo este reglamento, requiere contemplar la forma de aportar toda
esta información a los demás sistemas de control social he informal en medida que
la misma le permita.
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DEL ESTADO DE DERECHO AL DERECHO DEL ESTADO
(Razón de Estado y Tortura bajo gobierno de
alternancia en el Estado de Jalisco)
Marcos Pablo Moloeznik*
Resumen
El artículo presenta los instrumentos jurídicos internacionales, nacionales y locales
vigentes que persiguen la prohibición y sanción de la aberrante práctica de la tortura en el Estado de Jalisco, México; lo que contrasta con la práctica de los órganos
responsables de velar por la seguridad pública en la entidad y bajo un gobierno de
alternancia política de segunda generación encabezado por Francisco Javier Ramírez
Acuña (2001-2006).
Palabras clave: Derechos humanos. Tortura. Estado de derecho. Cuerpos de seguridad
pública. Policía investigadora.
El Estado de Jalisco, México, se encuentra bajo un gobierno de alternancia política de segunda generación; sin embargo, la actual gestión
del Poder Ejecutivo no se caracteriza precisamente por un respeto escrupuloso a los Derechos Humanos. Antes bien, se verifica un contraste entre, por un lado, el marco normativo y, por el otro, las actuaciones de las
*
Profesor-Investigador, Departamento de Estudios Políticos, CUCSH, Universidad de Guadalajara, México.
Doctor en Derecho por la Universidad de Alcalá de Henares, España e Investigador Nacional Nivel I, México.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 37-60, jan./jun. 2006.
MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
dependencias del Poder Ejecutivo que socavan los derechos fundamentales de los jaliscienses. Dicho en otras palabras, actualmente en Jalisco los
hechos demuestran que el proceso de tránsito en la dimensión política no
tiene como derrotero la democracia, sino el pasaje del Estado de Derecho
al Derecho del Estado. La razón de Estado se impone en la praxis gubernamental sobre la dignidad de la persona humana: tanto el desarrollo de la
tortura, que prácticamente se había logrado erradicar durante el primer
gobierno de alternancia en Jalisco, como el tratamiento o respuesta a los
hechos de violencia del 28 de mayo de 2004 por parte de las autoridades
de Jalisco, constituyen testimonio de ello, por lo que este trabajo que se
pone a consideración del lector intenta dar cuenta de las recientes intervenciones del Gobernador del Estado de Jalisco y, en especial, de la
práctica de la tortura.
1
La Prohibición de la Tortura en el Derecho Internacional y en el Derecho Interno Mexicano
De conformidad con la Real Academia Española, se entiende por tortura:
Grave dolor físico o psicológico infligido a alguien, con métodos y utensilios
diversos, con el fin de obtener de él una confesión, o como medio de castigo. 2.
cuestión de tormento. 3. dolor o aflicción grande, o cosa que lo produce.
Esto explica porqué la tortura, así como los tratos crueles, inhumanos y degradantes, se encuentran expresamente prohibidos por los instrumentos jurídicos
internacionales y la legislación nacional y local.
1.1 Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos
Tratándose de México, su Ley Fundamental establece en el Artículo 20, Apartado A, Fracción II:
...Queda prohibida y será sancionada por la ley penal, toda incomunicación,
intimidación o tortura...
Real Academia Española. Diccionario de la lengua española. 22. ed. Madrid: Espasa-Calpe, 2001. tomo II. p.
2201.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 37-60, jan./jun. 2006.
MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
El mismo espíritu se plasma en su Artículo 22, que a la letra reza:
Quedan prohibidas las penas de mutilación y de infamia, la marca, los azotes,
los palos, el tormento de cualquier especie, la multa excesiva, la confiscación
de bienes y cualesquiera otras penas inusitadas y trascendentales
De esta forma, se impone como mandato constitucional el Derecho a la integridad y seguridad personal, al proscribirse esta aberrante práctica, tanto en el proceso penal como en la aplicación de sanciones.
Para un reconocido jurista europeo:
El imputado es una persona que participa, que se suele denominar “sujeto
procesal”; es esto precisamente lo que lo distingue al proceso reformado del
proceso inquisitorio. Han de mencionarse, por ejemplo, el derecho a la tutela
judicial, el derecho a solicitar la práctica de pruebas, de asistir a interrogatorios y, especialmente, a no ser ni engañado, ni coaccionado, ni sometido a
determinadas tentaciones.
1.2Acuerdos, Convenios y Tratados Internacionales
En cuanto a los tratados o compromisos internacionales suscritos por el Presidente de la República y aprobados por el Senado de la Nación, la Constitución Política
de los Estados Unidos Mexicanos dispone en su Artículo 133 que son la Ley Suprema
de toda la Unión; lo que es interpretado así por la máxima instancia jurisdiccional:
[...] esta Suprema Corte de Justicia considera que los tratados internacionales
se encuentran en un segundo plano inmediatamente debajo de la Ley Fundamental y por encima del derecho federal y el local. Esta interpretación del
artículo 133 constitucional, deriva de que estos compromisos internacionales
son asumidos por el Estado mexicano en su conjunto y comprometen a todas
sus autoridades frente a la comunidad internacional; por ello se explica que
el Constituyente haya facultado al presidente de la República a suscribir los
tratados internacionales en su calidad de jefe de Estado y, de la misma manera, el Senado interviene como representante de la voluntad de las entidades
federativas y, por medio de su ratificación, obliga a sus autoridades [...]
Günther Jakobs, Derecho penal del ciudadano y Derecho penal del enemigo; en, Günther Jakobs y
Manuel Cancio Meliá, “Derecho penal del enemigo”. Madrid: Civitas Ediciones, 2003. p. 44.
Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, Tomo X, noviembre de 1999, Tesis P.LXXVII/99,
página 46; y, Tomo XI, marzo de 2000, Tesis: P. LXXVII/99, página 442. Tratados Internacionales.
Se ubican jerárquicamente por encima de las leyes federales y en un segundo plano respecto de la
Constitución federal.
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
Si para la Suprema Corte de Justicia de la Nación, en México la ratificación de
los instrumentos jurídicos internacionales colocan a los mismos por encima de las
leyes emanadas de la Constitución, vale la pena detenerse y revisar aquellos compromisos del Estado mexicano relacionados con la proscripción de la tortura, a saber:
• La Declaración Universal de Derechos Humanos, que en virtud de su Artículo 5, establece que “Nadie será sometido a torturas ni a penas o tratos
crueles, inhumanos o degradantes”;
• El Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, que a tenor de su
Artículo 7, del mismo modo proscribe las torturas, penas o tratos crueles,
inhumanos o degradantes;
• La Convención contra la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes que define a la tortura en su Artículo 1, Inciso 1 de la
siguiente manera:
Todo acto por el cual se inflija intencionadamente a una persona dolores o
sufrimientos graves, ya sean físicos o mentales, con el fin de obtener de ella
o de un tercero información o una confesión, de castigarla por un acto que
haya cometido, o se sospeche que ha cometido, o de intimidar o de coaccionar a esa persona o a otras, o por cualquier razón basada en cualquier tipo
de discriminación, cuando dichos dolores o sufrimientos sean infligidos por
un funcionario público u otra persona en el ejercicio de funciones públicas, a
instigación suya, o con su consentimiento o aquiescencia...
El mismo Artículo (1.2), dispone que “...se entenderá sin perjuicio de cualquier instrumento internacional o legislación nacional que contenga o pueda contener disposiciones de mayor alcance”
Mientras que el Artículo 2 de esta Convención obliga a todo Estado Parte a tomar “...medidas legislativas, administrativas, judiciales o de otra índole eficaces para
impedir los actos de tortura en todo territorio que esté bajo su jurisdicción”
Pero, además de imponer a los Estados signatarios medidas para evitar la
práctica de la tortura, su Artículo 4 obliga al Estado Parte a velar porque todos los actos de tortura, su simple tentativa o complicidad en su comisión, constituyan delitos
Ratificado el 24 de marzo de 1981 y publicado en el Diario Oficial de la Federación (DOF) el 20 de mayo de
1981.
Ratificado el 23 de enero de 1986, publicada en el DOF el 6 de marzo de 1986 y en vigor el 26 de junio de
1987.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 37-60, jan./jun. 2006.
MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
conforme a la legislación penal y, por ende, se sancione estos con “penas adecuadas
en las que se tenga en cuenta su gravedad”. Del mismo modo, y conforme a su Artículo 12, se compromete a velar para proceder a una investigación pronta e imparcial, si
existen motivos fundados para creer que se ha cometido un acto de tortura.
A lo que se suma el mandato contenido en su Artículo 11, por el cual se exige
al Estado Parte examinar las normas e instrucciones, métodos y prácticas de interrogatorio, así como disposiciones para la custodia y tratamiento de las personas bajo
arresto, detención o prisión en cualquiera de sus modalidades, con el objeto de impedir la práctica de la tortura.
• La Declaración sobre la Protección de todas las Personas contra la Tortura
y otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, adoptado el
9 de diciembre de 1975, que concibe a la tortura como “[...] una forma
agravada y deliberada de trato o pena cruel, inhumano o degradante” (Artículo 1.1)
La misma también va más allá de prohibir a Estado alguno tortura u otros
tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes (Artículo 3), puesto que obliga al
principal sujeto de Derecho Internacional a tomar “[...] medidas efectivas para impedir que se practiquen dentro de su jurisdicción torturas u otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes”.
• El Protocolo Facultativo de la Convención contra la Tortura y Otros Tratos
o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes;
• La Convención Americana sobre Derechos Humanos; que, en su Artículo
5.2 establece que:
Nadie debe ser sometido a tortura ni a penas o tratos crueles, inhumanos o
degradantes
• La Convención Interamericana para Prevenir y Sancionar la Tortura, que en
su Artículo 1 obliga a los Estados parte a prevenir y sancionar la tortura.
En tanto que, en virtud de su Artículo 2 y a diferencia de los instrumentos
jurídicos de la Organización de Naciones Unidas (ONU) en la materia, su definición
de tortura excluye el calificativo grave en los dolores que se inflijan:
Firmado por México el 23 de septiembre de 2003.
Ratificada por México el 24 de marzo de 1981 y publicada en el DOF el 7 de mayo de 1981.
Ratificada el 22 de junio de 1987, publicada en DOF el 11 de septiembre de 1987 y en vigor el 26 de mayo de
1988.
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
Para los efectos de la presente Convención se entenderá por tortura todo acto
realizado intencionalmente por el cual se inflijan a una persona penas o sufrimientos
físicos o mentales, con fines de investigación criminal, como medio intimidatorio,
como castigo personal, como medida preventiva, como pena o con cualquier otro
fin. Se entenderá también como tortura la aplicación sobre una persona de métodos
tendientes a anular la personalidad de la víctima o a disminuir su capacidad física o
mental, aunque no causen dolor físico o angustia psíquica.
Es decir, se trata de una concepción de mayor alcance que el resto de las normas supranacionales, incluyendo la propia Convención contra la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes.
Cabe reflexionar también sobre los responsables de cometer el delito de tortura que, siguiendo la Convención Interamericana (Artículo 3), recae en las siguientes
dos categorías:
a. los empleados o funcionarios públicos que actuando en ese carácter ordenen, instiguen, induzcan a su comisión, lo cometan directamente o que,
pudiendo impedirlo, no lo hagan
b. las personas que a instigación de los funcionarios o empleados públicos a
que se refiere el inciso a. ordenen, instiguen o induzcan a su comisión, lo
cometan directamente o sean cómplices.
Y al igual que la Convención de la ONU, obliga a los Estados Parte a garantizar
que todos los intentos de cometer tortura o los actos de tortura propiamente dicho,
constituyan delitos y sean penalizados severamente, teniendo en cuenta su gravedad
(Artículo 6)
• El Acuerdo de Asociación Económica, Concertación Política y Cooperación entre la Comunidad Europea y sus Estados miembros, por una
parte, y los Estados Unidos Mexicanos, por otra; el mismo contiene la
denominada “cláusula democrática”, ya que las partes se comprometen
al (Artículo 1):
[...] respeto a los principios democráticos y a los derechos humanos fundamentales, tal como se enuncian en la Declaración Universal de los Derechos
Humanos, inspira las políticas internas e internacionales de las Partes y constituye un elemento esencial del presente Acuerdo.
http://europa.eu.int/comm/external_relations/mexico/conf_en/pre/12.pdf ; el cual entró en vigor el 1° de julio de 2000.
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
• El Código de Conducta para Funcionarios Encargados de Hacer Cumplir
la Ley, que se encuentra incorporado al ordenamiento jurídico mexicano,
establece (Artículos 2 y 5):
En el desempeño de sus tareas, los funcionarios encargados de hacer cumplir
la ley respetarán y protegerán la dignidad humana y mantendrán y defenderán los Derechos Humanos de todas las personas.
Ningún funcionario encargado de hacer cumplir la ley podrá infligir, instigar o tolerar ningún acto de tortura u otros tratos o penas crueles, inhumanos o
degradantes, ni invocar la orden de un superior o circunstancias especiales, como
estado de guerra o amenaza de guerra, amenaza a la seguridad nacional, inestabilidad política interna, o cualquier otra emergencia pública, como justificación de la
tortura u otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes.
1.3Leyes Federales
Por su parte, la Ley General que Establece las Bases de Coordinación del Sistema Nacional de Seguridad Pública, en su Artículo 22, Fracción IV, fija que todo integrante de la institución policial debe:
Abstenerse en todo momento y bajo cualquier circunstancia de infligir, tolerar o permitir actos de tortura u otros tratos o sanciones crueles, inhumanos
o degradantes, aun cuando se trate de una orden superior o se argumenten
circunstancias especiales, tales como amenaza a la seguridad pública, urgencia de las investigaciones o cualquier otra.
La Ley Federal para Prevenir y Sancionar la Tortura, dispone que:
Comete el delito de tortura, el servidor público que actuando con ese carácter,
inflija a una persona dolores o sufrimientos graves, sean físicos o psíquicos,
con fines de investigación de hechos delictivos o infracciones, para obtener
información o confesión del torturado o de un tercero, como medio intimidatorio, como castigo por una acción y omisión en que haya incurrido o se
sospeche que incurrió o la coaccione para que realice o deje de realizar una
conducta determinada o con cualquier otra finalidad.
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
1.4Leyes Estatales
Incluso, en el ámbito de Jalisco, su Constitución Política va más allá al consagrar en su Artículo 4:
Toda persona, por el sólo hecho de encontrarse en el territorio del Estado de
Jalisco, gozará de los derechos que establece esta Constitución, y es obligación
fundamental de las autoridades salvaguardar su cumplimiento.
Se reconocen como derechos de los individuos que se encuentran en el territorio del Estado de Jalisco, los que se enuncian en la Constitución Política
de los Estados Unidos Mexicanos, así como los contenidos en la Declaración
Universal de los Derechos Humanos, proclamada pro la Asamblea General de
las Naciones Unidas, y en los tratados, convenciones o acuerdos internacionales que el gobierno federal haya firmado o de los que celebre o forme parte.
La Ley de Seguridad Pública establece en su Artículo 2 la obligación de respetar:
[...] a la ciudadanía y las garantías que consagra la Constitución Política de
los Estados Unidos Mexicanos, la particular del Estado y el respeto a los derechos humanos; tiene como fines y atribuciones los siguientes: I. Proteger
y respetar la vida, la integridad corporal, la dignidad y los derechos de las
personas así como de sus bienes.
Más adelante, en el Capítulo Quinto de su Título Segundo, se plasman los siguientes principios de actuación de los Cuerpos de Seguridad Pública de la entidad
(Artículo 12):
Los elementos de los cuerpos de seguridad pública, deberán basar su actuación en los principios de legalidad, eficiencia, profesionalismo y honradez, fundamentalmente en los siguientes lineamientos:10
I. Velar por el respeto irrestricto de los derechos y garantías individuales y
sociales consagradas en la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, y los otorgados en la particular del Estado, así como el respeto permanente de los derechos humanos.
10
En particular, la fracción I de este Artículo del ordenamiento jurídico local considerado, abreva
en la Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, que en su Artículo 21 establece que
[...] La actuación de las instituciones policiales se regirá por los principios de legalidad, eficiencia, profesionalismo y honradez.
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
IV. Recurrir a medios persuasivos no violentos ante de emplear la fuerza y
las armas.
V. Mantener un trato digno y respetuoso <...> para las personas privadas de
su libertad.
Tratándose de la Ley Orgánica de la Procuraduría General de Justicia del Estado de Jalisco, su Artículo 6 contempla las siguientes atribuciones del Ministerio
Público en materia de Derechos Humanos:
I. Promover entre los servidores públicos de la Procuraduría, una cultura
de respeto a los derechos humanos.
II. Atender las visitas, quejas, propuestas de conciliación y recomendaciones
de la Comisión Nacional de Derechos Humanos y de la Comisión de Derechos
Humanos del Estado...
III. Coordinarse con la Comisión Nacional de Derechos Humanos y la Comisión de Derechos Humanos del Estado, para procurar el respeto a los derechos humanos; y
IV. Recibir las quejas que formulen directamente los particulares en materia
de derechos humanos y darles la debida atención.
En lo que toca a la Secretaría de Seguridad Pública, Prevención y Readaptación Social, la misma cuenta con un Código de Ética y Conducta para
la Policía Estatal de Jalisco, que en su Artículo 11 consagra de esta manera la
conducta de los efectivos encuadrados en la corporación:11
En el desempeño de sus funciones, los elementos de la Policía Estatal respetarán y protegerán en todo momento, la dignidad, los Derechos Humanos y
las Garantías Individuales de todas las personas. Por tanto, no podrá infligir,
instigar o tolerar ningún acto de tortura u otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes como justificación de la aplicación de la Ley.
En virtud de su Artículo 15, se fundamenta la actuación de los elementos de
la Policía Estatal en los preceptos internacionales de conducta de los Funcionarios
Encargados de hacer cumplir la Ley.
Recapitulando, la tortura constituye una trasgresión grave al Derecho a la integridad y seguridad personal, entendida como cualquier acción u omisión que cause
a una persona dolores o sufrimientos, físicos o psíquicos, realizada directamente por
una autoridad o servidor público, o indirectamente mediante su anuencia para que lo
11
Periódico Oficial El Estado de Jalisco, Guadalajara, 6 de enero de 2001, Número 16, Sección II.
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
realice un particular, con el fin de obtener del sujeto pasivo o de un tercero, información, confesión, o castigarla por un acto que haya cometido o se sospeche que ha cometido, o coaccionarla para que realice o deje de realizar una conducta determinada.
Asimismo, significa la acción de instigar, compeler, o servirse de un tercero, realizada
por parte de una autoridad o servidor público, para infligir a una persona dolores o
sufrimientos, físicos o mentales, o no evitar que éstos se inflijan a una persona que
está bajo su custodia.
El Artículo 3 de la Ley Estatal para Prevenir y Sancionar la Tortura,12 impone al
responsable del delito de tortura una sanción de prisión de uno a nuevo años, multa por
el importe de doscientos a quinientos días de salario e inhabilitación para el desempeño de cualquier cargo, empleo o comisión públicos hasta por dos tantos del lapso de
privación de libertad impuesta en sentencia; y, tratándose de un caso de reincidencia, la
inhabilitación será definitiva.
También el Artículo 4 contempla las penas previstas para el servidor público
que, actuando con ese carácter, instigue, ordene, obligue o autorice a un tercero o se
sirva de él, para infligir a una persona dolores o sufrimientos graves, sean físicos o
psíquicos; o no evite que se inflijan dichos dolores o sufrimientos a una persona que
esté bajo custodia.
2
La aberrante práctica de la tortura en el Estado
de Jalisco bajo gobierno de alternancia
Este adecuado marco normativo internacional, federal y local, contrasta con las prácticas de los integrantes de los cuerpos de seguridad
pública, en especial con la policía investigadora, auxiliar del ministerio
público en la persecución y resolución de delitos: como se pone de relieve
a continuación, la práctica de la tortura en Jalisco subsiste en los años
2004 y 2005 y se aplica de manera sistemática. Tal parece que en Jalisco
se desarrolla un proceso de transición del Estado de Derecho al Derecho
del Estado.
Dicho en otras palabras, existe suficiente evidencia como para afirmar con absoluta certeza que en el territorio de Jalisco ni siquiera se garantizan los Derechos Humanos de primera generación;13 ya que entre los
12
13
Decreto 15228, entra en vigor el 24 de diciembre de 1993.
Comisión Nacional de Derechos Humanos y Federación Mexicana de Organismos Públicos de
Protección y Defensa de los Derechos Humanos, Manual para la calificación de hechos violatorios
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
quebrantamientos a los derechos fundamentales más frecuentes, destaca
el Derecho a la Integridad y Seguridad Personal por acciones u omisiones
de autoridades y servidores públicos en la entidad, al afectarse la dignidad inherente al ser humano, de su integridad física, psíquica y moral,
incluyendo la tortura.
Lo que se desprende, entre otras, de las Recomendaciones 06/2004, 10/2004
y 11/2004 del 29 de septiembre, 22 de diciembre y 27 de diciembre de 2004, respectivamente. Aquella dirigida al Procurador General de Justicia del Estado de Jalisco
así como al Presidente Municipal de Jalostotitlán, por hechos de tortura física protagonizados por elementos de la policía investigadora encabezados por su jefe de
grupo, destacados en ese municipio de la región de los Altos. La 10/2004 que tiene
como destinatario al Procurador General de Justicia del Estado, es emitida por la
constatación de la práctica de la tortura en la agencia 20 operativa especializada en
Robo a negocios y a casa-habitación. También la última de estas tres recomendaciones es motivada por actos de tortura a cargo de policías investigadores adscritos
al municipio de Ameca, conjuntamente con sus pares de la Coordinación de Robo
a vehículos bajo la supervisión de su titular y la omisión de la médica municipal;
por lo que está dirigida tanto al Procurador General de Justicia del Estado, como al
propio Presidente municipal de Ameca.
Por lo tanto, la tortura sigue siendo una práctica recurrente en el Estado de
Jalisco, particularmente tratándose de la policía investigadora: se recurre a ella como
un método de investigación policial, principalmente, aunque también se aplica como
castigo o sanción.
Para algunos tratadistas, “Es quizá la persistencia de una cultura en la que
quienes ejercen la autoridad castigan y someten a sus detenidos”.14
La tortura constituye un ancestral y repugnante recurso que, mediante la coacción física o psíquica, busca obligar a una persona a confesar su participación en la
comisión de un delito. Lamentablemente, esta práctica de arrancar la confesión por la
vía de la violencia, no ha sido del todo superada en Jalisco: es penoso admitir que ésta
sigue existiendo, y que sus prácticas son ahora incluso más sofisticadas.
14
de Derechos Humanos, México, 1998, páginas 31 y ss; el subrayado es nuestro.
Alfredo Castillo Romero, “La práctica de la tortura en México”; en Comisión Nacional de los Derechos Humanos, Memoria del Foro sobre la Tortura en México, México, agosto de 2002, página 117
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
2.1Lo que propicia el recurso a la tortura
Probablemente, el desarrollo de la práctica de la tortura en Jalisco responda a
los siguientes factores:
• La ausencia de autonomía de la Procuraduría General de Justicia del Estado de Jalisco, que se encuentra al servicio del titular del Poder Ejecutivo
local, su propia estructura, organización y estilo de gestión.15
• El nulo o bajo nivel de profesionalismo de los elementos encuadrados en
las corporaciones policíacas y, en especial, el desconocimiento de metodologías y técnicas científicas así como tecnología apropiada para la investigación y resolución de delitos.
• La sobrecarga de trabajo de las instituciones responsables de velar por la
seguridad pública y la procuración de justicia en la entidad.
• La falta de compromiso de algunos jueces, que continúan aceptando como
pruebas aquellas confesionales obtenidas bajo tortura.
• Pero, sobre todo, la falta de interés de las autoridades para erradicarla.
Cabe preguntarse si en Jalisco:16 ¿Lo son la tortura como medio de averiguación de la verdad, la prisión sin los derechos mínimos reconocidos internacionalmente
a los presos, la privación de libertad meramente gubernativa, sin control judicial? A
la luz del cada vez mayor número de quejas interpuestas por supuestos casos de tortura ante el organismo protector de los Derechos Humanos en Jalisco, así como de las
constataciones realizadas por el Comisión Estatal de Derechos Humanos, tal parece
que la respuesta es, lamentablemente, afirmativa.
En lo que se refiere a los métodos físicos más comunes determinados por el
quejoso o agraviado, en México destacan principalmente:17
15
16
17
Sobre el particular, recomendamos el clásico trabajo titulado La necesaria afectación del Ministerio Público Estatal; en, José Barragán Barragán, Miguel Bazdresch Parada y Efraín González Morfín, “Libro Blanco sobre los Derechos Humanos en Jalisco”, Universidad de Guadalajara, 1994,
páginas 16 y ss.; cuyas recomendaciones fueron recogidas en la Plataforma Político-Electoral del
Partido Acción Nacional en 1994, pero jamás llevadas a la praxis.
Francisco Muñoz Conde. “El Derecho Penal del Enemigo”. México: Instituto Nacional de Ciencias Penales,
2003. p. 25.
Ricardo Hernández Forcada y María Elena Lugo Garfias, “Algunas notas sobre la tortura en México”, Comisión
Nacional de los Derechos Humanos, México, mayo de 2004, página 123; ajustado a los casos documentados en
el Estado de Jalisco.
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
Golpes - con manos, pies, objetos-; aplicación de agua, gaseosa o con chile en
nariz, boca u orejas; atados o amarrados de pies y manos; aplicación de descargas
eléctricas en diferentes partes del cuerpo; violencia física o moral; esposados; durante los interrogatorios; bolsa de plástico en la cabeza; golpes en los oídos, detenciones
violentas.
En el caso de Jalisco, las versiones de los agraviados son coincidentes en señalar los que siguen:18
1. Tortura física, en la que destacan golpes con pies y manos en diversas
partes del cuerpo, o con libros de pasta dura sobre la cabeza; la aplicación de
toques eléctricos; se les acuesta boca arriba en colchones mojados, atados de
pies y manos; colocación de trapos húmedos en nariz y boca, sobre los cuales
se les arroja agua para provocar asfixia; quemaduras con cigarro o con encendedor; se les obliga a permanecer hincados o en otras posiciones incómodas;
y se les pone una bolsa de plástico sobre la cabeza, cubriendo boca y nariz,
para impedir la respiración.
2. Tortura psicológica, modalidad en la que prevalece la intimidación mediante la amenaza de causar daños a familiares o al propio torturado; impedirle la visión mediante la colocación de vendas; desnudarlo y vejarlo; realizar detonaciones de arma de fuego cerca de la víctima; acercarlo a precipicios
o barrancas con la amenaza de lanzarlo; amenazas de llevarlos ante los militares para que los golpeen; amenazas de quitarles a sus hijos, así como de
involucrar a sus familiares en hechos delictivos.
Cabe destacar que, en general, estos métodos se han mantenido incólumes
desde la Inquisición.19
Al igual que el resto de las entidades federativas, en el Estado de Jalisco la Procuraduría General de Justicia es la institución más señalada por supuestas prácticas
de tortura.
18
19
Comisión Estatal de Derechos Humanos Jalisco, Informe 2005, Guadalajara, 28 de febrero de 2006, Segunda
Visitaduría, Capítulo IV.
Ver; por ejemplo, Peter Deeley, “Historia de las Torturas” <Las técnicas de interrogatorios policíacos y militares más crueles del mundo>, México, Editorial Novaro, 1975.
49
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
Quejas presentadas por la supuesta violación de Tortura, del 1° de enero de 2000 a 31
de diciembre de 2003. (Autoridades más señaladas)
Autoridades
Procuraduría General de Justicia del Estado
Direcciones de Seguridad Pública Municipales
Dirección de Seguridad Pública de Guadalajara
Dirección de Seguridad Pública de Zapopan
Dirección de Seguridad Pública de Puerto Vallarta
Secretaría de Seguridad Pública
Dirección de Seguridad Pública del Estado
Total de Quejas
Total de Quejas
301
83
36
13
8
8
8
369
Fuente: Comisión Estatal de Derechos Humanos, Módulo de Operación, 3 de marzo de 2004.
A lo largo de la administración encabezada por Alberto Cárdenas Jiménez
(1995-2000), la tortura prácticamente se había logrado erradicar: se verificó una correspondencia entre la voluntad política del gobernador y el compromiso de poner fin a
los métodos inquisitoriales.
Con el advenimiento de Francisco Javier Ramírez Acuña a la primera magistratura del Estado (2001-2006), la situación sufre una profunda transformación, que se
refleja en el número de quejas por tortura que alcanza en 2002 y 2003 un total de 161 y
162, respectivamente.
Esta tendencia no se revierte durante 2004 y 2005, años en que la Comisión
Estatal de Derechos Humanos Jalisco (CEDHJ) atiende un total de 155 y 125 quejas
por supuesta violación de Tortura, respectivamente, de las cuales la mayoría señala
directamente a la Procuraduría General de Justicia del Estado (PGJE) a cargo de Gerardo Octavio Solís Gómez; lo que permite presumir la responsabilidad del personal
policial adscrito a las áreas de robo de vehículos, robo a negocios y casa habitación,
homicidios intencionales, robo a vehículos de carga pesada y secuestros, así como las
agencias del ministerio público especiales para detenidos.
La falta de voluntad política del Poder Ejecutivo del Estado de Jalisco por
erradicar la práctica de la tortura se refleja en los siguientes dos hechos, por demás
significativos:
• Las declaraciones públicas del propio Gobernador ante los múltiples pronunciamientos del ombudsman sobre esta grave violación a los derechos
fundamentales, en el sentido de que “Son muchas las denuncias de tortura
interpuestas por ciudadanos en contra de cuerpos policíacos en Jalisco,
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pero son pocos lo que prueban sus dichos”20 Es decir, tanto Francisco Javier Ramírez Acuña como Gerardo Octavio Solís Gómez, coinciden en
invertir la carga de la prueba, ya que -de aceptarse su argumento- le
correspondería a la víctima de la tortura probar los hechos. Para el
Presidente de la Comisión Estatal de Derechos Humanos de Jalisco (CEDHJ), Carlos Manuel Barba García, “Como precisamente la comisión de
conductas de tortura entraña un delito también le corresponde a la Procuraduría en ejercicio de sus funciones el verificar la investigación correspondiente”.21 Tampoco le corresponde a la CEDHJ probar los supuestos casos de tortura, sino alertar acerca de estas aberrantes prácticas, la
mayoría de las cuales se desarrollan en el Ministerio Público local, por lo
que difícilmente los afectados presenten denuncias ante la misma dependencia del Poder Ejecutivo donde sufrieron o fueron sometidos a tortura.
• La negativa del Poder Ejecutivo del Estado de Jalisco para firmar el Acuerdo específico de colaboración para la contextualización del Protocolo de Estambul a través del dictamen médico-psicológico especializado en casos de
posible tortura y/o maltrato, con el gobierno federal; acto solemne llevado
a cabo el 1° de diciembre de 2004 en el edificio principal de la Procuraduría General de la República en ciudad de México.
2.2Recientes casos de Tortura en Jalisco
A manera de ejemplo, basta ilustrar esta violación de los Derechos Humanos de Primera Generación que atentan contra la dignidad humana con
las quejas 717/02 y 2212/02, por violaciones a la libertad, a la integridad y seguridad personal, a la legalidad, tortura y seguridad jurídica de las personas.
Se trata de agraviados que se inconformaron por la forma y procedimiento de
ser investigados por personal de las agencias especializadas de la Procuraduría
General de Justicia del Estado (PGJE).
Todos los quejosos coinciden en señalar haber sufrido tortura de mano de
policías investigadores, que los sometieron a asfixia provocada por bolsa de plástico
en la cabeza, o por una franela mojada en la boca y nariz, a toques eléctricos en di20
21
Ver, por ejemplo, Periódico Mural, Guadalajara, 7 de diciembre de 2004, página 1b. Cabe señalar que el 28 de
abril de 2004 el titular de la Procuraduría General de Justicia del Estado, fue el primer funcionario que, ante los
señalamientos de la Comisión Estatal de Derechos Humanos, reacciona retando a que “se pruebe la tortura”.
“Refuta Barba a la PGJE”; en, Periódico Mural, Guadalajara, 30 de abril de 2004, página 11b.
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
versas partes blandas del cuerpo, a contusiones provocadas con diversos elementos
en sus economías corporales y en algunos casos quemaduras con fuego, entre otras
modalidades. Además, tales técnicas de tortura fueron aplicadas en lugares aislados
o alejados de miradas indiscretas.
No se debe pasar por alto el hecho de que las evidencias recogidas en la totalidad de los casos se sustentan en fe de lesiones, inspección judicial de lesiones,
certificados y partes médicos, así como estudios sobre el estado físico y mental de los
agraviados,22 a cargo del Instituto Jalisciense de Ciencias Forenses y otros peritos y
facultativos legalmente autorizados.
Queja 717/02
Se trata de un presunto agraviado detenido por elementos del Área de Robo
de Vehículos del Ministerio Público estatal, quien declara su experiencia personal:
[...] me sentaron en una oficina, donde me empezaron a golpear en la cara
con la mano abierta y luego llegaron varios elementos, que aproximadamente
eran veinte, quienes comenzaron a hablar en claves y de pronto me pusieron
una bolsa en la cabeza y me decían que no me hiciera guey, [...] y luego me
volvieron a tapar la cara con una bolsa de plástico y me comenzaron a golpear
en mi costado a la altura de las costillas, así como en la espalda y luego me
pusieron en el suelo y luego me vendaron la cara y me echaban agua a la cara
por la nariz, forzando para que les dijera las cosas yo, querían que les dijera
quién había robado las cosas y quién era el jefe y yo les decía que yo no sabía
de que me hablaban y me dieron toques eléctricos, me amarraron un cable en
el pulgar izquierdo y un cable en el pulgar derecho de ambas manos, así como
también me pusieron los cables en el pecho y de igual forma me los pasaron
por el ano, esto lo hicieron en varias ocasiones. [...]
Otra persona a disposición de la misma agencia especializada de la PGJE,
brinda el siguiente testimonio:
[...] Me subieron a su unidad y dejaron ir a mis familiares, y ya abordo me
empezaron a interrogar sobre un robo a una casa habitación y yo les preguntaba de qué robo me hablaban y me decían que no me hiciera pendejo, ya
que ellos los elementos de la policía investigadora ya sabían todo de mi. Me
trasladaron a la Procuraduría General de Justicia que se ubica en la Calzada
Independencia, donde sin registrarme en algún libro, me metieron por una
22
En general los quejosos presentan lo que se conoce como estrés postraumático, como secuela de la
tortura.
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
cochera o puerta lateral de metal y me sentaron en una silla y me dijeron,
“ahora si se te cayó el cantón”, “te creías muy chingón” y yo decía “¿de que me
están hablando?”, por lo que de inmediato comenzaron a agredir en la cara
ya que me golpeaban con la mano abierta en la cabeza y en la nuca, en las mejillas y en los oídos, [...] Me quitaron la ropa y como yo no quise me golpearon
en la espalda, costillas con los puños cerrados, por lo que accedí a quitarme la
ropa y quedé en calzones. Me pusieron una venda en los ojos, uno me jalaba
los píes y otro me quería tumbar, hasta que lograron someterme, ya que yo
no me dejaba. Una vez que me sometieron uno se me subió a las costillas a
la altura del pecho y me puso un trapo sucio en la cara, cubriéndomela toda,
mientras que otros me vendaban los pies al tiempo que otro me echaba agua
en la cara sobre el trapo, yo no me dejaba y les decía que les iba a decir lo que
quisieran con tal de que no me golpearan y me limité a repetir lo que ellos me
decían, con tal de que no me siguieran golpeando [...]
Queja 2212/02
De manera similar una persona es detenida por la policía investigadora, acusada de haber cometido un homicidio intencional y trasladada a instalaciones del
Ministerio Público, donde se atiende la siguiente declaración del quejoso:
[...] después de esposarlo y vendarle los ojos lo trasladaron a un lugar que
desconoce, específicamente lo tuvieron en un cuarto en donde lo amarraron
los brazos hacia atrás, después de colocarlo en el piso le amarraron los pies y
vendaron sus ojos, le colocaron un trapo mojado en la cara y le comenzaron a
echar agua sobre el trapo, hasta que el agua que entraba por su nariz y boca le
provocaban asfixia, después de quitarle el trapo de la cara lo cuestionaban sobre un taxista que apareció muerto en la cajuela de su auto de alquiler; agregó
que durante el interrogatorio, cada vez que se equivocaba o les decía algo que
no les pareciera, le daban de golpes en la cabeza con la mano y también con
las manos abiertas, le pegaban en los oídos [...]
Estos son tan sólo dos ejemplos para ilustrar una práctica que ofende la
dignidad de la persona humana pero que, en el Estado de Jalisco, goza de buena salud. 23 Fundamentalmente, se trata de actuaciones extra legales a cargo de la policía
investigadora, a la sazón auxiliar del Ministerio Público en la persecución y resolución de delitos que llegan a conocimiento de las autoridades; lo que se ve reflejado
23
Estas dos quejas, sumadas a las que se consignan en el siguiente cuadro, constituyen el insumo para una
Recomendación dirigida al titular de la Procuraduría General de Justicia del Estado que se encuentra en preparación y que, probablemente, se hará pública a principios del año 2005.
53
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bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
en el imaginario colectivo, ya que en Jalisco 71 por ciento de la población reconoce
tener “poca o ninguna confianza en la policía investigadora”.24
Quejas relevantes seleccionadas por supuestos actos de tortura en Jalisco
Número de Queja Autoridades señaladas
Métodos físicos empleados
Vendado y desnudo / Se le subieron al cuerpo
0092/03-II
Policía Investigadora
Le patearon los genitales
Bolsa de plástico en la cabeza
1179/03-II
Policía Investigadora
Descargas eléctricas en dedos
Bolsa de plástico en la cabeza
Policía Investigadora de Robo
1464/03
Trapo en el rostro y le arrojaron agua
a Negocios
Toques eléctricos en el cuerpo
1523/03-II
Policía Investigadora
Golpes con manos
Lo hincaron y golpearon / Descargas eléctricas
1593/03-II
Policía Investigadora
aplicadas en brazo, cuello, pecho y genitales
Policía Investigadora adscrita Golpes con pies y manos
1665/03-II
a Chapala
Quemado con varilla al rojo vivo
Golpes con pies y manos
1811/03-II
Policía Investigadora
Toques eléctricos en los pies
1909/03-II y su acuTaparon la cara con camisa
Policía Investigadora
mulada 1922/03-II
Golpes a los oídos con las palmas
Ojos vendados y desnudo / Amarrado con
2010/03-II
Policía Investigadora
cinta canela / Trapo en boca y nariz
2173/03
Policía Investigadora
Bolsa de plástico en la cara
Policía Investigadora de
Golpes en el cuello y cabeza
2510/03-II
Homicidios Intencionales
Vaciaron agua por nariz y boca
Policía Investigadora de
Golpes con pies y manos
2884/03
Robo de la Agencia de Robo a
Toques eléctricos en los testículos
Negocio y Casa-Habitación
Fuente: Comisión Estatal de Derechos Humanos Jalisco (CEDHJ), Informe de Quejas relacionadas con el concepto de violación de tortura a cargo de Visitadores Adjuntos, Guadalajara,
24 de diciembre de 2004.
Llama poderosamente la atención que, si desde el inicio de la gestión del segundo gobierno de alternancia en Jalisco (2001), por un lado, se verifica un notorio
incremento de la práctica de la tortura, por el otro y en contraste, ningún funcionario
o servidor público ha sido sancionado por este delito.
24
Instituto Ciudadano de Estudios sobre la Inseguridad, A.C. (ICESI). Tercera Encuesta Nacional sobre Inseguridad 2005, México, noviembre de 2005.
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
3Del Estado de Derecho al Derecho del Estado
¿Cómo puede interpretarse esta infamante práctica inquisitoria? Para un actor comprometido con la defensa de los Derechos Humanos:25
[...] la agresión llamada tortura no representa un hecho de azar, ni un accidente,
sino que reviste siempre un claro carácter social, tanto por sus destinatarios
finales como por la infraestructura tecnológica y política que requiere para infligirla. Se trata, primordialmente, de un fenómeno político que no cabe
atribuir al descontrol o a la perturbación de algunos sujetos aislados.
Efectivamente, la naturaleza política de la tortura explica porqué en el Estado
de Jalisco y bajo la gestión de dos gobernadores surgidos de las filas de un mismo
partido político, la conducta de la policía investigadora se presenta de manera diferente: con el primer gobierno de alternancia disminuye drásticamente este fenómeno, mientras que con el segundo o actual, se convierte en una práctica cotidiana.
Prueba de ello son los casos de tortura, con motivo de las detenciones de los
hechos de violencia desarrollados en Guadalajara el 28 de mayo de 2004, tal como se
hace constar por la Comisión Estatal de Derechos Humanos Jalisco (CEDHJ):26
[...] Nos preocupan los testimonios que se presentaron ante la CEDHJ en
los que se relatan las vejaciones sufridas por los detenidos y que estamos
investigando:
•
Los acostaron sobre el piso con las manos en la nuca apoyados con los
codos y piernas cruzadas por espacio de varias horas.
•
A las mujeres se les desnudó y obligó a hacer sentadillas.
•
Recibieron insultos verbales y palabras altisonantes.
•
A las mujeres las amenazaron con violarlas.
•
Los golpearon con pies y manos en diversas partes del cuerpo.
•
Los amenazaron con lanzarlos a la barranca.
•
Les tiraron del pelo.
•
Cuando iban al baño, los golpeaban con pies y manos.
•
Se les obligó a lavarse las manos con los orines del excusado, entre otros.
•
De acuerdo con el dicho de los detenidos, algunos de estos maltratos
también ocurrieron en la Procuraduría General de Justicia del Estado.
25
26
Castillo Romero, Vid Supra, página 117; el subrayado es nuestro.
Comisión Estatal de Derechos Humanos Jalisco, Boletín o Comunicado de Prensa número 63/04, 4 de junio de
2004.
55
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
El 7 de junio de 2004, la Comisión Nacional de Derechos Humanos (CNDH)
acuerda ejercer la facultad de atracción y continuar con la investigación de estas quejas interpuestas por ciudadanos detenidos por las autoridades de Jalisco.27
De lo que se trata es de las actuaciones de la CNDH, llevadas a cabo con motivo de los hechos de violencia suscitados en la ciudad de Guadalajara el 28 de mayo
de 2004, en el marco de la III Cumbre de Jefes de Estado y de Gobierno de América
Latina y el Caribe-Unión Europea, como se desprende del Informe Especial que dicho
organismo protector de los derechos humanos hizo público el 16 de agosto de 2004.
En esta rendición de cuentas a cargo de la CNDH, se acredita que servidores
públicos de la Dirección General de Seguridad Pública del Estado y de la Procuraduría General de Justicia del Estado de Jalisco, con motivo de sus atribuciones y carentes
de motivo y fundamento legal, someten a los detenidos a una serie de sufrimientos
físicos y psicológicos, con el fin de obtener de ellos una confesión, información, intimidarlos o castigarlos, lo que se tradujo en actos de tortura, a saber:
[...] Los sufrimientos físicos quedaron acreditados con diversos testimonios
de los agraviados, con la fe de lesiones y los certificados médicos que fueron
practicados por personal de la propia CNDH, así como por un perito médico
de la CEDHJ, por la Dirección General de Prevención y Readaptación Social y
por el Instituto Jalisciense de Ciencias Forenses. Los agraviados manifestaron
que personal de ambas dependencias les amarraron las manos por la espalda
con cinta canela, siendo algunos esposados e hincados, y forzados a tener una
bolsa de plástico en la cabeza con lo cual se les provocó “asfixia momentánea”, con la finalidad de que se declararan culpables de los hechos violentos
acontecidos el 28 de mayo de 2004, así como para que señalaran como probables responsables de la comisión de diversos ilícitos a otras personas. Indicaron también que, posteriormente, fueron conducidos a un lugar conocido
como “la catorce”, en el que los colocaron contra la pared con las manos hacia
atrás y esposados; que después los llevaron de cuatro en cuatro a las celdas
donde continuaron golpeándolos, lugar en el que les amarraron las manos
por la espalda con cinta canela y los pusieron de pie con la frente apoyada en
la pared; que cualquier movimiento era motivo de golpes, teniendo además
la prohibición de hablar; pasaron más de 24 horas sin comer ni beber. En
particular, se trata del método de tortura por posición, como se establece en
el Capítulo V, letra D, numerales 4 y 7 del Protocolo de Estambul, así como
en el Manual para la Investigación y Documentación Eficaces de la Tortura y
27
Esta facultad de atracción ejercida por la CNDH y prevista por la Ley se enmarca en el Expediente de Queja
número 2004/1673-2, integrado con motivo de los hechos de violencia suscitados en la ciudad de Guadalajara,
el 28 de mayo de 2004.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 37-60, jan./jun. 2006.
MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
otras Penas o Tratos Crueles, Inhumanos o Degradantes de la Oficina del Alto
Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos. Esta modalidad de tortura puede o no dejar señales exteriores o signos radiológicos,
aunque con el tiempo son frecuentes las graves discapacidades crónicas; cabe
destacar, además, que todas las torturas de posición afectan directamente a
tendones, articulaciones y músculos.
Para el ombudsman a los agraviados le fueron conculcados sus derechos fundamentales relativos a la dignidad humana, a la integridad física, a
la legalidad y a la seguridad jurídica, incluso, en contra de particulares ajenos a dicha manifestación; todo lo cual, expresa el evidente desprecio por la
legalidad por parte de los elementos de la Dirección General de Seguridad
Pública de Guadalajara, la Dirección General de Seguridad Pública del Estado y la Procuraduría General de Justicia del Estado de Jalisco.
Hechos violatorios de los Derechos Humanos que la CNDH logra acreditar
Detención arbitraria
15
Detención ilegal
73
Incomunicación
73
Trato cruel y degradante
55
Tortura
19
Total
233
El Informe especial de la CNDH concluye que servidores públicos del municipio de Guadalajara y del Estado de Jalisco, propiciaron la violación directa de
diversas disposiciones de los órdenes jurídicos nacional e internacional, lo cual implica el abandono de los valores que emanan de los principios que dan sustento a las
condiciones mínimas de dignidad humana, integridad física, legalidad y seguridad
jurídica con que deben contar las personas que ejercen su derecho a asociarse y manifestarse. Lo anterior, supone el desconocimiento o desprecio del deber del Estado
de actuar con la debida diligencia ante la presencia de este tipo de contingencias, en
menoscabo de los Derechos Humanos reconocidos por la Constitución Política de los
Estados Unidos Mexicanos, así como por los compromisos internacionales asumidos
por el Estado Mexicano en la materia.
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
Es importante señalar que los acontecimientos descritos en el cuerpo de este
documento no se generaron de manera aislada, sino colectiva, lo cual queda acreditado con las declaraciones, testimonios y evidencias recabadas por la CNDH, a través
de las que quedó comprobado que si bien algunos particulares se excedieron en su
derecho a manifestarse, ya que incumplieron el deber que tiene toda persona de convivir de manera que puedan desenvolver integralmente su personalidad, al desobedecer la ley y demás mandamientos legítimos de la autoridad, también es cierto que
la intervención de la fuerza pública rebasó sus funciones y atribuciones y propició
que se agravaran los acontecimientos sucedidos el día 28 de mayo de 2004 en la ciudad de Guadalajara, Jalisco.
Por las consideraciones vertidas con anterioridad, el mismo organismo protector de los Derechos Humanos, formula las siguientes propuestas al Gobernador
constitucional del Estado de Jalisco:
Primera. Se giren las instrucciones necesarias a fin de que se inicie
procedimiento administrativo de responsabilidad en contra de los servidores públicos de la Dirección General de Seguridad Pública y de la Procuraduría General de Justicia de esa entidad federativa, por las violaciones a los
derechos en que incurrieron durante los hechos de violencia ocurridos el
día 28 de mayo de 2004 en la ciudad de Guadalajara, Jalisco, lo cual culminó
con detenciones arbitrarias, retenciones ilegales, tratos crueles y degradantes, incomunicaciones, y torturas de las personas ajenas a los mismos que
fueron descritos en las observaciones del presente informe especial.
Segunda. Se de vista de los hechos a que se refiere el presente informe especial al Procurador General de Justicia del estado a fin de que se
inicie la averiguación previa respectiva y se deslinden las responsabilidades
penales a que haya lugar por las violaciones a los derechos humanos.
Tercera. Gire sus instrucciones a quien corresponda, a efecto de que
se dicten los lineamientos necesarios y oportunos a efecto de prevenir y
evitar que en el ejercicio de sus atribuciones, los servidores públicos de la
Dirección General de Seguridad Pública y de la Procuraduría General de
Justicia de esa entidad federativa, sometan a los particulares a detenciones
arbitrarias, retenciones ilegales, incomunicación, tortura y tratos crueles y
degradantes o cualquier otro contrario a los derechos humanos, que propicien la repetición de los abusos que dieron origen al presente informe
especial.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 37-60, jan./jun. 2006.
MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
El gobernador ha rechazado dichas recomendaciones, negándose a poner en
práctica medida alguna para esclarecer los hechos, enjuiciar a los responsables y dar
una reparación adecuada a las víctimas:
No es motivo de mi preocupación, porque no hicimos nada irregular.28
El pasado 28 de mayo los jaliscienses fuimos agredidos, y fuimos agredidos
por un grupo de “globalifóbicos” que atacaron el patrimonio de los tapatíos.
Fueron puestos a disposición de la Procuraduría 45 adultos, remitidos a los
jueces penales [...] por Jalisco, por los tapatíos, por ustedes, volvería a tomar
esta decisión [...] los “globalifóbicos” es un tema que he comentado, y que
como lo he dicho, lo volveríamos a tomar...29
Pero, no sólo ambos organismos protectores de los Derechos Humanos reaccionan ante las violaciones de los derechos básicos en Jalisco: el mundo, consternado,
es testigo de la imposición de la razón de Estado sobre el respeto por los derechos y
libertades fundamentales en la entidad.
Otras instituciones preocupadas por lo ocurrido durante la Cumbre celebrada en Guadalajara30
• Organización de Naciones Unidas (ONU): organizaciones no gubernamentales (ONG) hicieron llegar al secretario general de la ONU, Kofi
Annan, un documento para que indague la tortura en Jalisco, que ya era
investigada por un representante en México.
• Amnistía Internacional, el 8 de junio de 2004, expresó su preocupación
por la actuación de las fuerzas de seguridad involucradas en las detenciones del 28 de mayo en Guadalajara.
28
29
30
Mensaje con motivo del Informe Especial de la CNDH: http://www.jalisco.gob.mx/abajo.html
Cuarto Informe de Gobierno de Francisco Javier Ramírez Acuña, Guadalajara, 1° de febrero de 2005, Discurso,
página 14; en, http://www.jalisco.gob.mx/comunicación.nsf/d4994e87ef07b59a86256570006d0875/1cc89
No debe extrañar el interés que despierta, tanto en el concierto de las naciones como en las redes
mundiales de organizaciones de la sociedad civil, la actuación gubernamental durante la celebración de la cumbre de mayo en Guadalajara, puesto que “[...] La imagen que un país tiene en el
respeto al Estado de Derecho es fundamental en los círculos internacionales, es fundamental
en las inversiones, es fundamental en la imagen. No se les olvide que nosotros tenemos una cláusula democrática con la Unión Europea y esa cláusula democrática nos compromete, entre todos,
a los Derechos Humanos...” (Secretaría de Relaciones Exteriores, Versión Estenográfica de las Palabras de la Subsecretaria para Asuntos Multilaterales y Derechos Humanos, Patricia Olamendi, al
inaugurar los trabajos del Seminario sobre los Instrumentos Nacionales e Internacionales para
Prevenir, Investigar y Sancionar la Tortura, México, D.F., 11 de noviembre de 2004; el subrayado
es nuestro)
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MOLOEZNIK, Marcos Pablo. Del estado de derecho al derecho del estado. Razón de estado y tortura
bajo gobierno de alternancia en el Estado de Jalisco.
• Human Right Watch, el 15 de julio de 2004, envió una carta al Gobernador
del Estado de Jalisco
• Unión Europea, señaló que hubo abuso de policías hacia los manifestantes
y pidió al Presidente Vicente Fox intervenir para iniciar procedimientos y
castigar a los culpables.
Por último, un auténtico compromiso por erradicar la tortura debería reflejarse de manera inmediata, investigando y sancionando a todos los servidores públicos
responsables de haber cometido actos de tortura; es decir, poner fin a la impunidad,
así como garantizar la reparación del daño causado a las víctimas y sus familias.
Lamentablemente, hasta la fecha, tanto las propuestas emanadas del
Informe, como las observaciones de los citados organismos e instituciones
supranacionales, no han sido atendidas por las máximas autoridades estatal
y municipal que, incluso, descalifican las actuaciones de la CNDH y se niegan a llevar a cabo las investigaciones para fincar responsabilidades; lo cual
resulta todavía más grave, si se tiene en cuenta que el Poder Ejecutivo de
Jalisco se sumó a la firma, el día 1° de diciembre de 2004 en Los Pinos, del
Acuerdo Nacional para Erradicar la Tortura.31 Y es que, más allá de los compromisos contraídos oficialmente, bajo el dominio del Derecho del Estado
no hay lugar para la persona humana y sus derechos fundamentales.
31
Resulta por demás significativa la ausencia del gobernador Francisco Javier Ramírez Acuña a
tan significativa ceremonia encabezada por el Presidente de la República; en su lugar, el Gobernador de Jalisco envía al Secretario General de Gobierno, Héctor Pérez Plazola. Cabe destacar que
todas las entidades federativas signaron el citado Acuerdo, impuesto por el Gobierno Federal a la
luz de los compromisos internacionales asumidos por la República Mexicana, y que los principales Estados estuvieron representados en esta ceremonia al más alto nivel de conducción política
por sus respectivos Gobernadores constitucionales.
EUROPA Y LA GLOBALIZACIÓN DE LA SALUD
Bartolomé Ribas Ozonas*
Ney Lobato Rodrigues**
RESUMEN
La globalización de la salud es ya un hecho, y necesita de la colaboración entre todos los países y de la ética de los medios humanos y de la aplicación de los medios
técnicos, ofrecidos por las tecnologías de la información y de las comunicaciones.
Los transportes de personas, alimentos y animales no tienen fronteras y están globalizados, no así la educación como se manifiesta en nuestros días, todo ello puede
propiciar la difusión de las enfermedades. Se debe promover la investigación experimental en salud, la educación sanitaria, su promoción y la cooperación internacional,
esenciales para aumentar la calidad de vida y la armonía entre países y sus ciudadanos. Todo ello promueve la reducción de los gastos, el control de las enfermedades
crónicas, orgánicas y degenerativas, de la contaminación ambiental con sustancias
químicas, en beneficio de la salud humana y del ecosistema.
*
**
Doctor en Farmacia e Médico. Professor Asociado Universitário. Jefe de Área del Instituto de Salud Carlos III.
Madrid. España. Membro Fundador do Grupo de Estudos e Pesquisas das Ciências Jurídicas e Biológicas da
Faculdade de Direito de Bauru-ITE. São Paulo. Brasil.
Advogado Militante. Mestre em Direito Constitucional. Professor de Filosofia do Direito da Faculdade de
Direito de Bauru, ITE. Professor de Noções de Bioquímica no Centro de Pós-Graduação da ITE. Professor
Pesquisador no Núcleo de Pesquisas e Integração do Centro de Pós-Graduação da ITE. Professor Titular de
Bioquímica da UNESP. Campus de Botucatu. São Paulo. Brasil. Membro Fundador do Grupo de Estudos e
Pesquisas das Ciências Jurídicas e Biológicas da Faculdade de Direito de Bauru-ITE. São Paulo. Brasil.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
Palavras-llave: Globalizacíon. Salud. Alimentos. Enfermedades.
abstract
Nowadays, health globalization it is acceppted. It is needed the international collaboration of all countries, and the ethics of the human and application of the technical supports of the Communication and Information Technologies. The transport
of humans, food and animals have no frontiers today, and there are globalized, but
not education, as it is manifested to-day, and all of which promotes the diffussion
of diseases. It is necessary to promote the experimental research in health, health
education, health promotion and international cooperation, all of them esencial to
increase the quality of life and harmony between countries and world inhabitants. All
of which facilitates the reduction of expenses, the control of the chronic organic and
degenerative diseases, the reduction of environmental contamination by chemicals,
in order to benefits human and ecosystem health.
Keywords: Globalization. Health. Food. Diseases.
1
INTRODUCCÍON
La globalización en Europa es una realidad, porque Europa ya fue antes, y
existe una identidad común previa. Los europeos con los mismos usos y costumbres,
han retomado sus raíces comunes romanas (siglo I), carolingias (siglo VIII). España
fue sucesivamente la Hispania Romana, la España de los Godos, la España Musulmana, y la España de los Reyes Católicos. El “Camino de Santiago”, desde el siglo
VIII, como señaló el investigador polaco Dobrowolski a mediados del siglo XX, es
recorrido de forma solidaria y espontánea, como un impulso y sentimiento espiritual,
por creyentes y no creyentes de todos los pueblos de Europa. Y también las Cruzadas
(siglo XI), que organizadas en diferentes áreas geográficas de Este a Oeste de Europa,
son ejemplos de un sentimiento común europeo.
En el siglo XVI el Rey Carlos V, hizo una gran unidad europea, y desde el siglo
XII con la primera Universidad, hasta el XVIII, durante casi siete siglos, se estudió en
la misma lengua, el latín, en todas las Universidades Europeas, desde el norte Suecia
con Upsala, Italia con Bolonia, hasta el sur de Europa con España y Portugal.
ORTEGA y GASSET, 1989, señaló, que Europa es un gigantesco proyecto en
común. Si Europa o España entran en crisis como la yugoeslava, serían crisis del ab
ORTEGA Y GASSET, J .España invertebrada. Bosquejos de algunos pensamientos históricos. Madrid, 1969.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 61-78, jan./jun. 2006.
OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
surdo. Ocasionadas por la falta de sabiduría y generosidad, y de visión trascendental
e histórica de sus políticos, y como en la época de la invasión musulmana del año
711, por la pérdida de los valores culturales, sociales y religiosos, según AYGUALS DE
IZCO, y evidentemente por la degradación de las costumbres en palabras de SÁNCHEZ ALBORNOZ. A pesar de todo, existe una conciencia común europea.
Los temas sanitarios que afectan a la Salud Pública de la Unión Europea están
en periodo de globalización. Se inició en el tiempo, con la “Real Expedición Filantrópica de la Vacuna” subvencionada por la Corona de España, en tiempos de Carlos IV,
dirigida por Balmis a Sur América y Filipinas, y que el Instituto de Salud Carlos III,
ha conmemorado doscientos años después, en el año 2004.
La globalización de la Salud, no solo en Europa sino en el planeta, será una
realidad, si se siguen las indicaciones y recomendaciones de la Carta de Bangkok
para la promoción de la salud en un mundo globalizado. Conclusión a la que se llega
después de la VI Conferencia Mundial de Promoción de la Salud, celebrada en agosto
de 2005 en Bangkok, Thailandia.
Son numerosas las instituciones sanitarias responsables de la salud en Europa. Entre ellas, además de la propia Comisión de la Unión Europea (UE.), consideramos el Observatorio Europeo, la Oficina Europea de la Organización Mundial de la
Salud, las propias de cada país y Comunidades y otras. Los medios de comunicación
son los primeros, quienes de una manera prominente, se hacen eco de los casos de
enfermedad o accidentes en salud pública, que surgen en cualquier parte del planeta,
y los difunden y transmiten de una manera rápida y eficaz. De tal manera que, son
los primeros en dar a conocer la noticia de una infección, contaminación, accidente
o muerte, presentándolos como una primicia, a los lectores, oyentes y televidentes.
Se trata principalmente de enfermedades emergentes, y que los medios de comunicación alertan globalmente a toda la población, y sobre todo lo que pueda afectar a
la Salud Pública.
Por una parte, es una ventaja, que los medios de comunicación participen, con
evidente rapidez, pues implican una alerta informativa para la sociedad, y en algunos
casos comunican la actitud de prevención a tomar. La participación de los medios
de comunicación ha sido clara en lo ocurrido con el reciente caso de la peste o gripe
aviar o aviaria, y con anterioridad, con el Síndrome respiratorio agudo grave, ocasionado por un coronavirus (SARS-CoV), y con el Síndrome de las vacas locas. Por otra
AYGUALS DE IZCO, W. Galeria regia. Ed. Ayguals. Tomo II, 2ª edición. Ed. Ayguals, Madrid, 1848.
SANCHEZ ALBORNOZ,C, España um enigma histórico. Ed. Sudaméricana. Buenos Aires, 1962.
CARTA DE BANGKOK ,Para la promoción de la salud en un mundo globalizado. VI Conferencia Mundial
para la Promoción de la Salud,Bangkok,agosto,2005.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
parte, diversos medios bibliográficos como CUADERNOS QUIRAL, la participación
de los medios de comunicación, es considerada como un trastorno sociológico, ya
que algunos problemas sanitarios que estarían limitados a áreas geográficas locales,
se mundializan, causando serias alarmas, como ocurrió en el caso del SARS-CoV
(Severe Acute Respiratory Síndrome).
Según los trabajos de NOLTE y MCKEE las redes de información existentes,
sobre los sistemas de salud y legislación, en las que participa el Observatorio Europeo,
permiten hoy día actualizar y cuantificar los conocimientos en minutos y en su caso
horas, y transmitir cualquier opinión, informe o suceso en todo el planeta. Los avances científicos permiten también la detección e identificación de los agentes causales
en cortos periodos de tiempo. Los avances en bioquímica analítica, salud pública,
virología y epidemiología facilitan y acortan este proceso. Por ello, las grandes inversiones para investigación en la Unión Europea, se orientan a aquellos centros, grupos
o estructuras cuyas actividades y resultados permiten garantizar una investigación
de alto nivel motivadora de profesionales que realicen una investigación de rigor y
competitiva a nivel nacional y mundial, tanto básica como aplicada. Se debe apostar
por un impulso definitivo a la investigación, desarrollo e innovación, para superar el
objetivo europeo del 3% del Producto Interior Bruto (PIB) para el año 2010.
La Unión Europea, en el marco de la gripe aviar, promueve en contacto con la
industria, la producción y aumento de las reservas de antivirales, entre otras medidas, para una acción internacional coordinada, ante la amenaza de la enfermedad y
posible desarrollo de una pandemia, en el caso de que el virus sufra una mutación, es
decir, modifique su estructura génica y pueda transmitirse de persona a persona.
Un gran avance, en relación a la protección de la salud humana y del ecosistema, y en reducir gastos en los sistemas de salud europeos, Seguridad Social y
servicios hospitalarios, ha sido, que el Parlamento Europeo haya aprobado el 17 de
noviembre 2005, el nuevo Reglamento sobre “Registro de Evaluación y Autorización
de Sustancias Químicas” REACH. Este obliga a la industria europea a registrar las
sustancias y sus preparados a comercializar, aportando datos científicos que lo justifiquen. Porque hoy día se conoce poco o muy poco, de sus efectos biológicos y tóxicos y su participación en la etiología de las enfermedades crónicas. Como es sabido,
CUADERNOS QUIRAL . N0 18, Fundación Vila Casas.Barcelona.Diciembre,2003.
NOLTE,E & MCKEE,M.Responding to challenge of chronic diseases:lesson fron England?Euro-Observer.
Vol.7(2),1-3,2005.
REACH: Register for Evaluation and Authorization of Chemicals.Parlamento Europeo.Unión Europea. Bruselas,2005.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
ocasionan estas un elevado gasto en los sistemas de salud europeos, Todo ello, sin
perjudicar la competitividad de la industria europea, líder en este campo.
2EL PELIGRO DE LA GRIPE AVIAR
Se trata de una enfermedad infecciosa de las aves, causada por un virus de la
familia Orthomyxoviridae, del género Influenzavirus A y B, pertenece a la cepa A de
la gripe aviar H5N1. Su sintomatología consiste en altas fiebres, vómitos y diarreas,
pero puede acabar con la muerte de los pacientes, siempre que se vean afectados
gravemente. Esta vieja enfermedad, identificada por primera vez en Italia hace mas
de cien años, ocurre en todo el mundo.
Las cifras económicas que se manejan son elevadas y variadas. La Comisión
Europea destina unos 30 millones de euros para combatir la gripe aviar en los países
asiáticos. La Organización Mundial de la Salud (OMS) pronostica que, puede haber
entre 2 y 360 millones de muertes en el mundo. Lo razonable sería, según pronostica la
OMS os siete millones de muertes. En diversos países del Sur-Este de Asia ya hubo un
receso del producto interior bruto (PIB) del 2%, lo que ocurriría en EE.UU., Europa y el
resto del mundo si acaeciera la pandemia.
Las cifras económicas que se manejan son elevadas y variadas, EE.UU. ha dedicado más de 7 billones de dólares, para un plan estratégico de alerta y diagnóstico
rápido, en relación al virus aviar (flu virus). El Banco Mundial cifra en mil millones
de dólares la lucha contra la gripe aviar, y el laboratorio que elabora las vacunas señala que no se dispondrá de las suficientes vacunas hasta el año 2007. En China se ha
cifrado el coste de una pandemia en 800.000 millones de dólares en total, desde la
elaboración de la vacuna, la producción e antivirales, frenar y evitar nuevos focos, e
impedir que las aves contagien a los humanos, y que haya mutación entre los virus
aviar y de la gripe común humana. El primer ministro de China señaló, a mediados
de noviembre, que el brote no está totalmente controlado, y que su país padece una
situación grave, ante la muerte de 64 personas.
A pesar de que los virus aviares no suelen ser capaces de infectar al ser humano,
si que es capaz de condensarse por afinidad dentro de un huésped, con el de la gripe
humana, o lo que es lo mismo, con el de otro mamífero. Aumenta así su virulencia y
se convierte en muy peligroso en el contagio. Su reservorio son las aves silvestres, pero
ha pasado a infectar las domésticas, y representar una gran inquietud en el próximo
WORLD HEALTH ORGANIZATION.The World Health Report 2000,Ginebra,Suiza.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
futuro, principalmente para las aves y por tanto para la protección de las silvestres en
los humedales. Desde 2003 hasta hoy se han producido 121 casos de infección en personas al cuidado de población avícola con el virus H5N1 entre humanos de los que 63
han sido mortales. Se han sacrificado mas de 150 millones de aves afectadas, en mas
de diez países: Camboya, Indonesia, Tailandia, Vietnam, China, Laos, Rusia, Kazajstán,
Turquía, Rumania y Croacia, y finalmente Grecia, al cerrar esta edición. Hay contagio en
humanos, debido al alto grado de exposición y a la mutación del virus, necesaria para
su subsistencia en un nuevo organismo, el de un mamífero, y en este caso el humano.
En todo grupo de individuos, como en los mismos animales, los hay hipersensibles.
También ocurre en algunos seres humanos, hipersensibles a las infecciones, alergias
por polen u otro alergeno y a determinados agentes físicos (radiaciones solar, campos
magnéticos, TV, radar) y agentes químicos (drogas, tabaco, plaguicidas como insecticidas herbicidas) y determinadas plantas y animales.
En la fecha de impresión de esta aportación científica, hace tres meses, desconocíamos su evolución y repercusiones, tanto en su morbilidad, patología, posibles mutaciones, y evolución habida, como el desenlace de la misma. Sin embargo, el virus se
extiende día a día, y tras detectarse el primer caso en una isla de Grecia, en el mar Egeo,
se teme que llegue a otras áreas geográficas de la Unión Europea. El mayor peligro es
que el virus sea transportado por las aves migratorias hacia el sur de Europa y norte de
África, y pueda originar una gran mortalidad, como hoy se dice multicultural, multirracial y plurinacional, es decir una pandemia. Hasta el momento presente, la mayoría de lo
casos humanos han mantenido un contacto intenso con aves infectadas vivas.
En definitiva, estar preparados en caso de que se produzca un contagio en
humanos, y ante el temor de que se difunda provocando una pandemia. Por otra parte, ante la inquietud de no existir ni producir suficientes antivirales por la Industria
Farmacéutica, hay que destacar que ésta ha colaborado siempre en casos necesarios,
cuando más en las emergencias. El “tamiflu”, fármaco antiviral, activo contra el virus,
elaborado por Roche, podrá fabricarse por otras Compañías, ha señalado su portavoz, en caso de necesidad. Además de la buena disposición, para conceder licencias
subsidiarias para su producción y su distribución para cualquier Gobierno que lo
necesita de forma urgente, y disponga de los medios necesarios para ello, ya que se
necesita una determinada infraestructura.
3
POSIBLE PÁNICO MORAL
La epidemia del Sudeste Asiático o Síndrome respiratorio agudo grave (SARSCoV, enfermedad respiratoria viral, sembró gran inquietud en la población europea,
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
debido a los medios de comunicación. Hubiera sido solo un problema local, recluida
en la región geográfica del Sudeste Asiático. Paralelamente, el desarrollo y el conocimiento de la gripe aviar está enmarcada en lo que conocemos hoy sobre los estudios
culturales y sobre las Tecnologías de la Información y de las Comunicaciones (TIC),
en el movimiento nuevo llamado revisionismo. Su aplicación en este caso promueve
el pánico moral. Proviene inicialmente de la tradición crítica, que ha dedicado gran
parte de su energía a atacar las premisas y asunciones de esa tradición. En el ámbito
cultural, el nuevo revisionismo rechaza sin duda los modelos de sociedad, los modos
de conceptuar el papel de los medios, los marcos de interpretación y las problemáticas centrales de los principales paradigmas críticos en la investigación de la comunicación de masas.
Existe un cambio radical de conducir la sociedad, a través de las TIC. Este
nuevo revisionismo se presenta a sí mismo, a menudo, como original e innovador,
como, un movimiento emancipatorio y progresista, que está desechando los corsés
de la tradición. Pero no es ninguna de estas cosas. Parte de este nuevo pensamiento
es más re-vivalista que revisionista, supone una reversión de saberes recibidos previamente, más que el reconocimiento de otros nuevos. Otra tendencia de este movimiento es la de que continúa la tradición “critica” pero en una forma suavizada que
incorpora el liberalismo y otras visiones.
4MEDICINA DEL FUTURO
Podemos señalar que la medicina del futuro será muy compleja, en la que cabe
toda una amplia gama de ámbitos, desde la epidemiología hasta la biología molecular
con su terapia génica, proteómica, genómica, toxicogenómica y otras. Una da las ramas
de mayor interés es la Medicina Preventiva, para impedir que los brotes se conviertan en
epidemias y estas en pandemias. Las enfermedades crónicas y degenerativas. El cáncer
con un 80% de etiología ambiental, de la nutrición, endocrinas, neurológicas, genéticas,
hereditarias e inmunológicas, como otras muchas, lo justifican. Las enfermedades crónicas van a constituir un reto futuro para los servicios sanitarios, por una parte debido
al incremento del porcentaje de población anciana, y por otra, al aumento de la contaminación ambiental. En el ámbito de las enfermedades infecciosas, se deben tomar las
debidas precauciones para disminuir al mínimo la posibilidad de contagio, y prevenir
pandemias. En el caso de nuevos brotes deberán tomarse medidas drásticas, como el
cierre de fronteras, bloqueo de transportes humanos y de mercancías.
Es de actualidad en Salud Pública y Medicina del Trabajo, el control de las
fumigaciones agrícolas con productos químicos, que contaminan el ecosistema, así
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
como la prevención y control de los aplicadores y acompañantes. Conocer y avaluar
la presencia de los compuestos aplicados en agricultura y acuicultura, para el rendimiento de la producción de alimentos: hortalizas, frutas, peces y animales. Otro de
los campos de la medicina del futuro, según MAYOR ZARAGOZA, en su aportación
personal, propone que se abordarán grados más complejos de integración: macromoléculas, compartimentos celulares, células, órganos en desarrollo y organismos
en su conjunto. Todos ellos interactúan tanto internamente como externamente con
el medio ambiente. Se trata de una visión molecular integrada de la vida, donde se
sitúan la salud y la enfermedad. Lo que está de acuerdo con lo expresado en el libro
de GONZÁLES BARÓN & CASADO SÁENZ10 sobre que, el 80% de los cárceres tienen
una etiología ambiental. Aboga por una medicina de diagnóstico-tratamiento-ajustes, a una medicina más personalizada, y a la aplicación de la información genética y
terapia génica. Esta prevención está abocada a tener en cuenta los parámetros de longevidad, los factores económicos, sociales, laborales, educativos, psicológicos y todos
los que procedan de un elevado porcentaje de población inmigrante.
5
PRIMERA GLOBALIZACÍON
El Instituto de Salud Carlos III ha recordado y celebrado en el año 2004, el
bicentenario del inicio de la globalización de la Sanidad por un país europeo, España.
Este hecho se ha plasmado en el libro: “Las vacunas, 200 años después de Balmis.11
Significado que tuvo el viaje de vacunación internacional de la viruela por Balmis
y sus colaboradores por toda la América española y Filipinas, bajo los auspicios de
la Corona de España. La expedición partió del puerto de A Coruña el 30 de noviembre de 1803 con un gran sentido humanitario. Francisco Javier Balmis, médico de
Alicante y graduado en Valencia en 1772, en el año 1779 viajó a México, en 1790 era
Director del Hospital de San Andrés, en México, y posteriormente regresó a España,
para embarcarse de nuevo dirigiendo la expedición en la fecha antes señalada. Regresó a España en 1806, tres años después de su partida. José Salvany, su colaborador,
permaneció en América difundiendo la vacuna contra la viruela hasta 1810, y murió
cuando intentaba llevarla a Buenos Aires. Ambos son los artífices de la primera campaña de vacunación masiva en la historia de la medicina. Hicieron realidad el primer
10
11
MAYOR ZARAGOZA,F. Bases moleculares de la enfermidades metabólicas,prevención. Real Academia
Nacional de Medicina,Madrid,España.2002.
GONZÁLES BARÓN,M & CASADO SÁENZ ,E.Cáncer y Medio Ambiente.Ed.NOESIS S.L. Madrid,1997.
Las vacunas doscientos años después de Balmis. Instituto de Salud Carlos III y Ministerio de Sanidad y
Consumo.Comisión Nacional Bicentenario 1803-2003. Real Expedición Filantrópica de la Vacuna,2004.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
Programa de Cooperación Internacional en Salud de la historia de la humanidad,
con el apoyo y financiación de la administración, en este caso por el Rey Carlos IV.
Los científicos son capaces de llevar los avances médicos a países donde los recursos
son escasos, y donde los mas necesitados no tienen acceso a la Salud Pública. Como
observamos los europeos iniciaron el camino de la cooperación y el desarrollo mundial. Las expediciones de Balmis y Salvany dejaron en las instalaciones sanitarias que
utilizaron, las técnicas que aplicaron, sus enseñanzas, libros, instrucciones escritas
y la necesaria organización sanitaria para llevar a cabo, proseguir y mantener las
vacunaciones.
Destaca F.JIMÉNEZ SÁNCHEZ,12 en su capítulo titulado: “Trás los pasos de
Balmis: cooperación internacional y vacunas”, que la importancia de la sostenibilidad, la formación y la continuidad, son características imprescindibles de cualquier
proyecto de cooperación sanitaria. Implantaron las bases de la prevención y promoción de la salud, que hoy día tiene tanta trascendencia. Balmis se convierte en el primer preventivista y el precursor de la educación sanitaria, hoy entendida en sentido
global, por BANDO CASADO13 como educación para la Salud.
Las epidemias de la viruela de las que verdaderamente tenemos constancia
fueron desencadenadas por movimientos de la población, como en el caso de las
Cruzadas, las invasiones turcas, así como la llegada de los españoles al Continente
americano, que hasta este momento había permanecido aislado y ajeno a diversos
virus comunes en Europa; como la viruela, la gripe, el sarampión y el tifus exantemático. En el siglo XVII la enfermedad infecciosa alcanza una gran expansión, a través
de las rutas marítimas llega a África Austral, Escandinavia, Groenlandia y Canadá,
convirtiéndose en una de las principales causas de muerte. En el siglo XVIII fallecían
en Europa alrededor de 400.000 personas anualmente, un tercio de los afectados
padecían oftalmopatías graves con secuelas de ceguera. La expedición de la viruela,
que ordenó el Rey Carlos IV, para proteger a sus súbditos de las colonias, gozó de
gran reconocimiento y valoración, en la misma época de su realización. Según los
trabajos de R. NUÑEZ CENTELLA14 hay una cita de Edward Jenner, descubridor de
la vacuna contra la viruela, afirmó en 1806: “no me imagino que en los anales de la
historia haya un ejemplo de filantropía tan noble y tan extenso como este”. Alexander
von Humboldt en 1825 escribió “Este viaje permanecerá como el mas memorable
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13 14
GIMÉNEZ SÁNCHEZ,F.Trás los pasos de Balmis:cooperación internacional y vacunas.En: Las vacunas
doscientos años después de Balmis. Vol.1.Instituto de Salud Carlos III,Ministerio de Sanidad y Consumo.
BANDO CASADO,H-C.La promoción integral de la salud:un reto de futuro.GlaxoSmithKline,2002
NUÑEZ CENTELLA,R. Sobre la exposición “vacunas para todos”. En: Las vacunas doscientos años después de Balmis. Vol.I . Instituto de Salud Carlos III.Ministerio de Sanidad y Consumo,17-22,2004.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
en los anales de la historia”. Nuestro reconocimiento ahora a las 22 crianzas de 3 a 9
años, que llevaron la vacuna en su cuerpo hasta América. A Isabel Cendala y Gómez,
Rectora del Hospicio de A Coruña, que las acompañó y cuidó durante la travesía. Su
entrega y dedicación a las crianzas, era
necesaria para conservar el virus de la vacuna durante el viaje en barco, pues
cada semana se inoculaban dos de ellas con el material obtenido de las pústulas de
los vacunados la semana anterior.
6CARTA DE BANGKOK
6.1 Introducción
En la VI Conferencia Mundial de Promoción de la Salud, celebrada en agosto
de 2005, en Bangkok, Tailandia, se suscribió la “Carta de Bangkok” para la promoción
de la salud en un mundo globalizado. En ella se establecen las medidas, los compromisos y las promesas necesarias, para abordar los factores determinantes de la salud
en un mundo globalizado mediante la promoción de la misma. Su objetivo consiste
en que las políticas vayan dirigidas a mejorar la salud y la igualdad en materia de
salud, y deben ocupar un lugar central en el desarrollo mundial y nacional.
La Carta de Bangkok se fundamenta en la Carta de Ottawa para el Fomento
de la Salud y en las conferencias mundiales sobre promoción de la salud, ratificadas
por los estados miembros, en la Asamblea Mundial de la Salud. Se dirige a todos, a los
Gobiernos y a los políticos de todos los niveles; a la sociedad civil, por la que estamos
todos y cada uno de nosotros comprometidos; al Sector privado; a las Organizaciones
Internacionales y a la Comunidad de Salud Pública.
Las Naciones Unidas reconocen: que el disfrute del mayor grado de Salud es
uno de los derechos fundamentales de todo ser humano sin discriminación alguna.
[...] … y que la salud es un factor determinante de la calidad de vida, que abarca el
bienestar individual y espiritual. [...] y se debe capacitar a la gente para ejercer un
mayor control sobre los determinantes de su salud y mejorar así esta. En definitiva,
todos debemos esforzarnos en evitar y tal vez afrontar las enfermedades transmisibles, las no transmisibles y otras amenazas para la salud.
6.2 Factores determinantes
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 61-78, jan./jun. 2006.
OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
Entre los factores determinantes que tienen hoy una influencia crítica sobre
la salud, cabe destacar:
• desigualdades crecientes en los países y entre ellos;
• nuevas formas de consumo y comunicación;
• medidas para la comercialización;
• cambios ambientales mundiales; y
• urbanización;
• coherencia de las políticas de cada país;
• sostenibilidad del ecosistema.
Entre otros factores que influyen en la salud consideramos los cambios sociales, económicos y demográficos rápidos y con frecuencia adversos, que afectan a las
condiciones laborales, entornos de aprendizaje, las estructuras familiares, la cultura
y las diferencias sociales. Mujeres y hombres se ven afectados de distinta forma, vulnerabilidad actual de los niños y de las mujeres, las personas marginadas, los discapacitados y los pueblos indígenas.
La globalización brinda nuevas oportunidades de colaboración para mejorar la salud y disminuir los riesgos transnacionales que la amenazan, como son las
tecnologías de la información y las comunicaciones, por una parte, y por la otra los
mejores mecanismos disponibles para el gobierno mundial y el intercambio de experiencias en los sistemas de salud, como en Europa promovidas por el Observatorio de
Salud, del que mas adelante expondremos su función, actividades y beneficios.
La coherencia política en cada país y la responsabilidad civil de la sociedad de
cada país.
6.3Medidas a adoptar
Se debe poner en práctica y cumplir con las leyes, reglamentaciones y Directivas sanitarias de cada país a todos los niveles, por su probada eficacia y experiencia
adquirida. Debemos añadir que el Tratado de Maastricht15 de la Unión Europea, 1999,
aboga por una salud en base a los derechos humanos y la solidaridad. Invertir en las
políticas, medidas e infraestructura sostenibles para poner en práctica los factores
determinantes de la salud. Educación, promoción, prevención, transferencia de conocimientos, y la investigación en la salud. Garantía de un alto grado de protección
15 La Sanidad española en la Europa de Maastricht.V.Moya & Navarro.Ed.I.M.& C.Madrid,España,1993.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
para todos, con la igualdad de oportunidades y el bienestar de todas las personas. Es
importante la participación de todos como las organizaciones públicas, privadas, no
gubernamentales nacionales e internacionales y la responsabilidad de la sociedad
civil que se logra con los planes de promoción y prevención; y de educación sobre el
ecosistema.
6.4 Salud para todos
El ámbito de la salud es clave en el desarrollo de los pueblos y en su conjunto
de la Humanidad, por ello son indispensables las políticas sobre salud, su promoción y
su prevención y las alianzas entre países, e implica los sectores institucionales, oficiales
y privados, y la Sociedad. La responsabilidad social es clave en la salud de cada uno y
del ecosistema. En esta última se incluye la llamada “Garantía de Calidad” en todos los
ámbitos del saber y del trabajo, como las buenas prácticas empresariales e industriales,
buenas prácticas de laboratorio, etc. En lo que respecta a la Unión Europea, se va cerrando la brecha en salud entre ricos y pobres, el
Reglamento sobre Evaluación y Autorización de Sustancias Químicas es una
prueba de ello, así como las actividades de las Agencias Europeas del Medicamento, la de Seguridad Alimentaria, la de Sustancias Peligrosas, etc. Todas
ellas están implicadas en la prevención y protección de la salud para todos, en
relación al comercio, los productos, los servicios y las estrategias de comercialización, mediante la evaluación del riesgo en humanos y del impacto ambiental. El sector empresarial incluido el de los transportes por mar, carretera
y aéreo, tiene un importante impacto en la salud humana y del ecosistema.
Las empresas públicas y privadas tienen que velar por la salud y seguridad
en el ambiente de trabajo, así como promocionarla y mejorar el bienestar de
sus empleados, sus familias y sus comunidades. Además, a escala mundial
deben reducir los riesgos personales y ambientales de posibles accidentes,
como tantos habidos en el transporte por tierra y por mar, cumpliendo las
normas y acuerdos locales, nacionales e internacionales, que fomenten y protejan la salud.
La promoción de la salud para todos debería evitar conflictos y guerras, por
ser esencial en la protección de la vida y del medio ambiente para todos, lo
que requiere alianzas, pactos y ayudas internacionales y relaciones de buena
vecindad. En un mismo país requiere colaboración entre todos los estamentos, gubernamental, privado y sociedad civil. La cooperación entre las naciones puede tomar como ejemplo los tratados ya existentes, como el “Convenio
Marco para el Control del Tabaco de la Organización Mundial de la Salud”.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 61-78, jan./jun. 2006.
OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
La implicación de una sociedad en su salud determina el desarrollo social,
económico y político de la misma, en beneficio del propio país que la promociona.
Las Asociaciones profesionales tienen una importante función en la promoción a
través de la formación continuada, implicación de sus afiliados y en la rapidez y efectividad de las medidas a tomar y de sus planes educativos. Necesita de inversiones
dentro y fuera del ámbito sanitario, una financiación sostenible y la ayuda e implicación de todos. Por ello es particularmente importante la necesidad de apoyar a las
Comunidades menos desarrolladas. Los niños, los ancianos y las mujeres suelen ser
los que precisan una atención preferente y por supuesto su promoción, ayuda y protección de la Constitución.
7ENFERMEDADES CRÓNICAS Y GASTO
7.1 El reto de las enfermedades crónicas
Debemos analizar el reto que representan las enfermedades crónicas, tanto desde el punto de vista de su prevención, con los hábitos personales, como del enorme
gasto que representan para toda la Sociedad. En definitiva, se trata de una carga social
para todos que se refleja en los impuestos. Se trata de un acusado gasto económico en
la mayoría de los países de la Unión. El número de las enfermedades crónicas aumenta
continuamente, y de una forma solidaria con el envejecimiento de la población. Deben
analizarse los factores, para en lo posible, poner remedio a la situación. Entre estos cabe
destacar el sedentarismo, hábitos nutritivos, el tabaco, alcohol, dieta grasa, y la polución
del ecosistema, del que dependen, como es lógico, todo tipo de alimentos. No hay que
olvidar que el 80% de las patologías cancerosas tienen un componente o etiología medioambiental. Hoy en día se encuentran cifras de plaguicidas (insecticidas, herbicidas,
bactericidas) en frutas, hortalizas, legumbres, agua de bebida, aire y materiales de plástico. El tratamiento alarga la vida pero conlleva un acusado gasto sanitario. La artrosis
es la segunda causa de incapacidad laboral, afecta a 7 millones de españoles y cursa con
inflamación de las articulaciones, y con pérdida progresiva del cartílago, lo que conlleva
como es sabido, un importante gasto sanitario.
Los efectos agudos a corto plazo son improbables o muy leves, sin embargo
los crónicos pueden ser importantes, sobretodo en la edad adulta, y conllevan un
acusado gasto sanitario a escala social, por el número de personas afectadas en el
conjunto de la sociedad.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
Se acusa actualmente un incremento de las enfermedades crónicas y de los
padecimientos múltiples, principalmente en personas ancianas y con tratamientos
de hipertensión, insuficiencia cardiaca, angina, enfermedad pulmonar obstructiva
crónica o artritis y en algunos casos con diabetes. Hay que añadir en zonas industriales, una disminución de la fertilidad.
El incremento de enfermos infecciosos con Inmunodeficiencias (HIV) con
tratamientos de por vida, sometidos los enfermos a una costosa medicación antiviral (retrovirales). El SIDA o Síndrome de inmunodeficiencia adquirida, ha pasado
a incrementar recientemente, el número de enfermedades crónicas, que además de
requerir un tratamiento de por vida, es letal, infecciosa y por lo tanto entraña un
elevado gasto.
A este grupo debemos añadir los enfermos de cáncer, operados y en prevención post-operatoria, con un largo tratamiento inmunosupresor. Añadimos además,
los que reciben una terapia sustitutiva con hormonas tiroideas y sexuales.
En definitiva, un médico de cabecera puede tener varias decenas de enfermos
en tratamiento con cocktails de medicamentos, con un gasto todavía mas acusado.
7.2 Prevención de la enfermedad y disminución del gasto
Para un enfoque ordenado y responsable de la prevención de la enfermedad y
de la reducción del gasto sanitario son importantes ambos criterios, el gasto-beneficio y el riesgo-beneficio. Bruselas llama la atención sobre el gasto sanitario en relación con los efectos de las sustancias químicas, como factores de riesgo en la etiología
de enfermedades crónicas, sugiriendo que es mayor a 5 mil millones de euros/año, y
solo contemplando el asma y las alergias en Alemania. A este gasto sanitario habría
que añadir el de más de 2.000 casos de cáncer y el de todo el grupo de las enfermedades crónicas en ese mismo país, lo que equivaldría a multiplicar el mismo por un
factor diez o superior.
En este sentido y después de una discusión de años, sobre la trascendencia de
la polución de sustancias químicas en el ambiente y sus posibles efectos en la salud
humana, en el ecosistema y sus costes sanitarios, el Parlamento Europeo aprobó el 17
de noviembre 2005, el nuevo “Reglamento” (REACH: siglas en inglés de Register, Evaluation and Authorization of Chemicals Reglamento para la Evaluación y Autorización de sustancias químicas, y que para su aceptación definitiva tiene que ser revisado
y posiblemente modificado por la Comisión de la U.E. en Bruselas. Pero ya se ha dado
un paso importante y decisivo. Se obliga a la industria europea a registrar y evaluar
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 61-78, jan./jun. 2006.
OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
científicamente los compuestos vendidos en mas de una tonelada/año, que son unos
30.000 de mas de 100.000 sustancias químicas registradas. Hoy estamos expuestos a
la mayoría de ellos, sin conocer con exactitud, en que medida influyen o son factores
de riesgo de la etiología de enfermedades crónicas, como: cáncer, cáncer de mama,
asma, alergias, Alzheimer, Parkinson, artrosis, diabetes, problemas hormonales de
tiroides, criptorquidia, infertilidad, cambio de sexo. El objetivo es proteger la salud,
sin perjudicar la competitividad de la industria europea, actualmente líder mundial
en la síntesis, elaboración y comercialización de estos productos.
El nuevo ordenamiento obliga a las compañías que solicitan el permiso de
comercializar sus productos, a proporcionar toda la información con los datos experimentales, publicaciones y monografías, sobre los efectos biológicos de las sustancias químicas, en los preparados que deseen poner a la venta. La documentación
presentada será revisada para elaborar una seria evaluación del riesgo, para la salud
y el ecosistema, por expertos, nombrados por la Agencia de Productos Químicos, con
sede en Helsinki. Por otra parte, en el ámbito de los medicamentos, actúa la Agencia
Europea del Medicamento (EMEA) con sede en Londres, y con subsedes contratadas
para las evaluaciones de riesgo en York (Reino Unido) y Braunschweig (Alemania).
A partir de la documentación presentada por los laboratorios, se elaborará una Monografía sobre la sustancia en cuestión, sea nueva o ya conocida o antigua, en la
que se caracterizará su peligrosidad, mediante toda una serie de datos metabólicos,
farmacológicos y toxicológicos, estableciéndose claramente sus dosis, y sus efectos
biológicos ante la exposición. Se establece la obligación de revisar las autorizaciones
cada cinco años. Se tiene previsto que el nuevo reglamento se aplique en toda su
extensión en el año 2007, y en su totalidad en el 2018.
Este “Reglamento” REACH, de Reglamento de Evaluación y Autorización de
Productos Químicos, ha sido el más complejo de los reglamentos que ha conocido la
Unión, por las exigencias de las partes intervinientes, su trascendencia económica, su
proyección en diferentes ámbitos de la salud y del ecosistema y los diferentes ministerios implicados. Entre ellos cabe destacar: el poder político que obra a partir de los
datos científicos proporcionados por los expertos; los agricultores que desean abaratar costes, reducir las plagas y aumentar el rendimiento de las cosechas, aplicando los
compuestos más potentes y baratos; la industria con su economía y el interés de sus
propietarios. Pero siempre para la Administración, el objetivo de fondo es el de abaratar costes en relación a los Sistemas de Salud Europeos, Seguridad Social y Servicios
Hospitalarios. Estas sustancias se vierten en toneladas en el medio ambiente, y sin
duda tienen sus efectos nocivos sobre la salud humana y del ecosistema.
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OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
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REFLEXIONES FINALES
1. En la lucha contra las enfermedades es necesario sumar esfuerzos; ningún
país puede luchar por si solo, y para mejorar la salud de su población, debe reforzar
la de sus vecinos. Sobre todo en la actualidad cuando los transportes de alimentos,
animales y de personas no tienen fronteras, y están globalizados, lo que propicia la
difusión de las enfermedades.
2. Promover la investigación experimental, pluridisciplinar, y la cooperación
internacional, en sus distintos niveles y ámbitos. Establecer los mecanismos de acción e interacción molecular, las interacciones hormonales y receptoras, las alergias, la
inmunología, la patología molecular con la terapia génica, profundizar en el genoma
y la proteómica. Apoyar las iniciativas creadoras de tipo diagnóstico y clínico en salud. Así como la educación, formación y promoción de la salud.
3. Reducir gastos sanitarios, de los Sistemas Nacionales de Salud europeos,
mediante la disminución de los índices de enfermedades crónicas (pulmonares, cardíacas, cardiovasculares, asma, alergias, cáncer, infertilidad, disfunciones hormonales), y las degenerativas (Alzheimer, Parkinson, artrosis, osteoporosis), a través del
control de la toxicidad y persistencia (compuestos tóxicos persistentes), y de la evaluación del riesgo para los humanos y el ecosistema de las sustancias químicas.
4. Favorecer el interés que muestran las nuevas generaciones para trabajar, y
hacer algo útil y nuevo, mostrarles la capacidad y habilidad para desarrollarlo, y el
saber y la formación para ponerlo en marcha, y finalmente su aplicación en beneficio
de la Humanidad. Se necesita pues, aplicar medios suficientes, para el avance de la
Ciencia y la Técnica, para la salud humana y del ecosistema.
5. Aplicar la legislación vigente sobre medio ambiente, seguridad alimentaria,
salud pública y trabajo, mediante la educción sanitaria, docencia e investigación, es
decir, mediante una promoción integral de la salud (Bando Casado, 2002), que incluye la ética de los medios de comunicación.
Sin embargo, no olvidemos las palabras de SANTIAGO GAHONA FRAGA:16
Para seguir subsistiendo Europa clama en todas partes por su civilización,
por una revitalización poblacional y espiritual, un renacimiento cultural, una
renovación política y de ideas, así como un enorme plan de creación de trabajo que canalice los proyectos, energías y aspiraciones de los jóvenes europeos,
desde Sevilla hasta Helsinki; desde Edimburgo hasta Viena.
16 GAHONA FRAGA,S.Los españoles en Europa hacia el siglo XXI.Editora:Ois-tau.Barcelona
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 61-78, jan./jun. 2006.
OZONAS, Bartolomé Ribas; RODRIGUES, Ney Lobato. Europa y la globalización de la salud.
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BANDO CASADO H-C. La promoción integral de la Salud: un reto de futuro. GlaxoSmithKline, 2002.
CARTA DE BANGKOK para la promoción de la salud en un mundo globalizado. VI Conferencia Mundial para la
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WORLD HEALTH ORGANIZATION. Health System-Improving Performance. Ginebra, Suiza, 2000.
77
Siete cuestiones sobre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y
su aplicación al ordenamiento brasileño
Itzíar Gómez Fernández*
Resumen
Los ordenamientos internacional y nacional sufren influencias mutuas en la medida en que pueden llegar a actuar sobre sujetos, situaciones y territorios idénticos
y de forma simultánea. Por esa razón, y para evitar el planteamiento de conflictos
interordinamentales abiertos e irresolubles, es preciso determinar de forma clara
los modos de incorporación de las fuentes externas al ordenamiento interno, la posición que esas fuentes ocupan en relación con las disposiciones constitucionales
y las disposiciones de rango infraconstitucional y los mecanismos de control para
garantizar el cumplimiento de las pautas de incorporación y posición del derecho
Profesora de la Universidad Carlos III de Madrid. El texto de este artículo se basa en el contenido de sendas
clases impartidas en diciembre de 2004 en Brasil, en la Instituição Toledo de Ensino (Bauru), y en la Universidade Federal do Para (Belem), en desarrollo de las actividades enmarcadas en el proyecto de investigación
“Justicia Constitucional en Iberoamérica (Ref. BJU2001-1372)”. La autora quiere expresar su más profundo
agradecimiento a los integrantes de ambas instituciones y en especial a los profesores Luis A. Araujo y Antonio
Gomez Moreira Maués, a quien agradezco además sus observaciones sobre la primera versión de este artículo
y su apoyo constante en este y otros proyectos.
*
Ayudante doctor en el área de derecho constitucional del Departamento de Derecho público del Estado de la
Universidad Carlos III de Madrid y miembro del Instituto de Derecho Público Comparado de la Universidad
Carlos III de Madrid.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 79-125, jan./jun. 2006.
FERNÁNDEZ, Itzíar Gómez. Siete cuestiones sonre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y su
aplicación al ordenamento brasileño.
internacional en relación con el derecho nacional. Evidentemente los modelos son
muchos y podrían ser muchos más. Lo interesante es observar las ventajas e inconvenientes de las fórmulas utilizadas con más frecuencia en el Derecho Comparado
y tratar de identificar en un ordenamiento, en este caso el Brasileño, los modelos
o fórmulas descritos con carácter general para concluir tal identificación con la
calificación del sistema brasileño como un ordenamiento abierto al derecho internacional o como un sistema cerrado a la influencia de las fuentes externas.
Palabras clave: Tratado Internacional. Constitución Nacional. Control de constitucionalidad de tratados. Principio de “internacionalidad”. Jerarquía. Supremacía.
Conflicto entre ordenamientos. Jurisprudencia del Supremo Tribunal Federal. Incorporación de tratados.
1
Introducción
1. Uno de los síntomas o de las consecuencias –no tengo clara la conexión
determinista en este punto-, de la era de la globalización en que vivimos es una
expansión del sistema internacional de organización de las naciones sin precedentes históricos, de modo que incluso podría hablarse de una suerte de globalización
jurídica. Así, un número ingente de organizaciones internacionales de tipo gubernamental –junto a otras no gubernamentales-, surgen por doquier para ocuparse
de los temas más variados, desde el comercio y la economía, evidentemente, hasta
la cultura, la educación, la protección a la infancia, el medio ambiente, etc... A su
vez los Estados, en el ámbito de las organizaciones o fuera de ellas, cada vez son
más interdependientes y gestionan esa dependencia mutua a través de la firma
de acuerdos internacionales bilaterales o multilaterales. Y no sólo eso, sino que
algunos de esos acuerdos van a dejar atrás el método tradicional de la cooperación
internacional para situarse en el ámbito de la integración supranacional. En una
situación del género, tenían que surgir por fuerza voces que hablaran de la crisis
del Estado-Nación tradicional y que plantearan la necesidad de modificar los paradigmas conceptuales cuando se tratase de hablar, por ejemplo, de la soberanía. En
Modelo que supone que mediante la firma de un tratado de integración se cederán competencias propias del
Estado a una organización interestatal que las gestionará a través de los instrumentos jurídicos necesarios al
efecto. En torno a las diferencias entre los procesos de cooperación internacional, y de integración supranacional comunitaria Pérez Tremps, P.: “El concepto de integración supranacional en la Constitución”. Revista del
Centro de Estudios Constitucionales, n. 13, septiembre-diciembre, 1992, pp. 103 y ss.
Se refiere a la crisis del Estado- nación en general Corcuera Atienza, J.: Los nacionalismos: globalización y crisis
del estado-nación. Consejo General del Poder Judicial. Madrid, 1999; y a la misma crisis en relación con el
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 79-125, jan./jun. 2006.
FERNÁNDEZ, Itzíar Gómez. Siete cuestiones sonre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y su
aplicación al ordenamento brasileño.
este punto, la reflexión que se desarrollará en las siguientes páginas pretende mostrar que el diseño de las relaciones entre fuentes internacionales y fuentes internas
adquiere efectivamente matices nuevos a la luz de las actuales circunstancias, pero
que esos matices no fuerzan necesariamente –aunque podrían llegar a hacerlo en
el futuro- un cambio radical de paradigmas jurídicos, sino una adaptación de los
vigentes hasta ahora. Esta reflexión se llevará a cabo a partir del planteamiento y
solución de unas pocas cuestiones que, sin embargo, son clave y que están vinculadas al modelo de relaciones existente entre Derecho Internacional y Derecho
Interno. Desde ese punto de partida de los modelos teóricos generales, se pasará a
la ejemplificación en sede del ordenamiento jurídico brasileño.
2
¿Qué norma debe fijar esas relaciones? La Constitución
2. Si se considera el actual estado de desarrollo del sistema internacional de
fuentes, es más, si se considera que existen dudas incluso en torno a la propia existencia de tal sistema como ordenamiento jurídico, la norma más adecuada para
determinar el modelo de relación entre fuentes de origen externo -que resultan
de la actividad exterior de los Estados- y fuentes de origen interno se situará en
el propio ordenamiento nacional, en cuyo seno la norma más apropiada para fijar
estas relaciones es la Constitución.
Las razones de esta afirmación son esencialmente dos:
a. La Constitución es “norma de normas” de modo que una de sus finalidades es fijar los términos de validez, vigencia y solución de antinomias
proceso de integración europeo Villacañas, J.L.: “Crisis del Estado nación y construcción europea”, contenido
en la obra En torno a Europa, Fundación para el Análisis y los Estudios sociales, Madrid, 2003, p. 13 y ss.
Hay un buen número de autores que aseguran que es una contradicción hablar de ordenamiento jurídico internacional, o incluso de sistema de fuentes, porque ambos términos implican la existencia de cierto orden
o sistemática en la relación entre las fuentes, orden y sistemática que no se dan efectivamente en el mundo
jurídico internacional. Por todos estos autores baste citar Mangas Martín, A.; Liñán Nogueras, D.J.: Instituciones
y Derecho de la Unión Europea. 2ª Ed. Mc Graw Hill, 1999, p. 168.
A este tipo de relación la denominaríamos “interordinamental”, puesto que se establece entre normas procedentes de distintas categorías de fuentes, o dicho de otro modo, que tienen su origen en ordenamientos
distintos en la medida en que las instituciones que las crean no se ubican en la misma estructura de poder.
Junto a este tipo de relaciones se encontrarían las relaciones internormativas, que podrán establecerse entre
las disposiciones integrantes de la misma categoría de fuentes. Véase al respecto Gómez Fernández, I.: Conflicto
y cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Tirant Lo Blanch, Valencia, 2005, pp.
39 y 40.
De Otto, I.: Derecho Constitucional. Sistema de fuentes. Ariel, Barcelona, 1995, p. 87.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 79-125, jan./jun. 2006.
FERNÁNDEZ, Itzíar Gómez. Siete cuestiones sonre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y su
aplicación al ordenamento brasileño.
de las disposiciones que actúan en el mismo tiempo y lugar que ella
misma, ya se trate de preceptos de origen externo o de origen estrictamente interno. Esta naturaleza de norma normarum le permite establecer, como se verá más adelante, el modelo de incorporación de las fuentes externas al ordenamiento nacional y las relaciones de esas fuentes de
origen externo con las de elaboración estrictamente interna.
b. la Constitución es la disposición normativa que recoge en su seno la voluntad constituyente de los sujetos que a ella se someten, contemplando
las opciones políticas fundamentales de una nación. Entre esas opciones
se encuentra la fijación de la posición del Estado-Nación en el mundo y
el modo en que se van a plantear las relaciones con los otros sujetos del
Derecho Internacional (Estados y Organizaciones Internacionales).
3. Este último argumento es, seguramente, el que ofrece una estructura más
sólida a la respuesta de que la norma que debe fijar las reglas de comportamiento
de las relaciones interordinamentales es la Constitución. La carta magna es la voz
del poder constituyente, expresión máxima y primaria de la soberanía nacional, y
es el soberano el que, a través del texto constitucional, puede permitirse establecer
cuál es la forma de Estado y de Gobierno, cual es el modo de organización territorial, cual el sistema de garantía de los derechos y libertades individuales, y así con
todas las decisiones estructurales del sistema político nacional que se consideren
básicas y configuradoras del mismo.
Ahora bien, a pesar de lo dicho, el constituyente no siempre se manifiesta
de forma clara sobre la posición que el Estado ha de tener hacia la sociedad y el
ordenamiento jurídico internacional. Al contrario, esta opción, que es fundamental sin lugar a dudas, queda poco definida en buena parte de las Constituciones
nacionales, aunque se concreta un poco más en aquellos Estados que, tras salir
de situaciones políticamente complejas, de dictaduras o de contextos bélicos -caracterizadas todas ellas por un fuerte aislacionismo-, manifiestan su voluntad de
apertura buscando fórmulas de cooperación o de integración que ayuden a evitar
la reproducción de las situaciones de las que se sale.
Incluso en aquellos casos en que el aislacionismo no era característico de la
estrategia internacional del Estado, el fenómeno de la globalización económica ha
impulsado a perfeccionar los modelos de relaciones internacionales, en aras a sa
Pueden leerse al respecto, sólo por mostrar algunos ejemplos, los artículos 9 de la Constitución austriaca, 37
de la Constitución de Luxemburgo, 167 de la belga, 23 a 26 de la Constitución alemana, 10 y 11 de la constitución italiana, 7 y 8 de la carta magna portuguesa, 28 de la norma fundamental griega, 10.2 y 93 a 96 de la
Constitución española y los títulos VI y XV del texto constitucional francés.
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car un mejor partido de ese fenómeno económico, político y cultural. De este modo
muchos Estados, a la hora de elaborar o modificar sus constituciones, han tenido
en cuenta la necesidad de promover o pertenecer a grupos de integración económica regional capaces de afrontar las consecuencias de esta apertura internacional
de los mercados y de las transferencias de recursos facilitadas por la revolución de
las comunicaciones a todos los niveles.
Pues bien, esta voluntad constitucionalmente contemplada condiciona la
relación del Estado con el mundo, pero también la conexión entre el sistema de
fuentes nacional y el sistema internacional, porque determina el alcance de la soberanía del Estado, es decir, determina hasta donde quiere extender del Estado el
alcance de su propia autonomía en la toma de decisiones. Y parece claro que las
limitaciones a la soberanía sólo pueden proceder de la norma que proclama la existencia de dicha soberanía, y esa norma no es otra que la Constitución nacional.
4. Estas razones, que justifican que la Constitución sea la norma que fije las
relaciones entre Derecho interno y Derecho Internacional, serán válidas al menos
hasta que la sociedad internacional encuentre, por un lado, una fórmula de organización política que permita elaborar normas en las que se plasme en condiciones
de igualdad la voluntad de todos los individuos que la integran, y por otro lado un
modelo de estructuración del sistema de fuentes que garantice la seguridad jurídica de los sujetos sometidos al imperio de las normas que lo integran.
Es decir, nada impide que pueda modificarse la respuesta a la cuestión
planteada, trasladando la norma definidora del modelo al ámbito de las fuentes
internacionales si un día, que hoy no parece cercano, la sociedad internacional logra darse una norma o un conjunto de normas que establezcan -garantizando el
respeto a los principios de igualdad y seguridad jurídica-, el número y caracteres
de las fuentes internacionales, el sistema de relaciones de esas fuentes internacionales entre si y con las fuentes internas, y el sistema efectivo de sanciones previsto
para el supuesto de que no se respeten esas disposiciones. Dicho de otro modo, una
fórmula para garantizar el obligado respeto al sistema por todos los miembros de
la sociedad internacional sin que sea necesario acudir al uso de la fuerza.
De hecho un modelo internacional en el que existe una norma de ese tipo,
configuradora o constitutiva del sistema de fuentes, puede encontrarse en el proceso de integración supranacional Europeo. A través de la firma de los “tratados
constitutivos”, fuentes de derecho comunitario originario, los actores de esa sociedad internacional de ámbito regional, actuando al menos formalmente en plano de
igualdad, se dotan de un sistema de fuentes preciso, y de un sistema de control de
ajuste de las disposiciones creadas al modelo previsto en los tratados, así como de
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un elenco de reglas de solución de antinomias entre las disposiciones del propio
sistema, y entre las fuentes comunitarias y las nacionales. Seguramente este modelo solo sea válido cuando se trata de pequeñas “subsociedades” internacionales,
en las que los países se encuentran objetivamente próximos a nivel económico,
político, cultural, y sea utópico, o quizás sólo prematuro, plantear su extrapolación
al sistema mundial.
5. El ordenamiento brasileño no plantea excepciones a las observaciones
realizadas hasta aquí. La Constitución Federal de Brasil de 5 de octubre de 1988
manifiesta, si bien no siempre de manera clara, la voluntad del constituyente de
abrir el Estado a las relaciones con los países de su entorno, en un contexto político
regional en que habían finalizado las dictaduras militares en todos los países del
Cono Sur. Hasta ese momento las relaciones internacionales básicas de Brasil se
habían establecido con Europa y con Estados Unidos por razones económicas y estratégicas, pero la Constitución de 1988 puso de relieve que, dada la potencialidad
del país para ser protagonista de la escena internacional por sus particulares características geo-demográficas, Brasil debía desarrollar ese protagonismo a través
de fórmulas de integración con los países de su entorno. Esta voluntad se expresa
en el art. 4, parágrafo único CFB, donde se identifica la “cláusula de integración”
de la Constitución Brasileña en los siguientes términos: “A República Federativa
do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações”. La evolución de los acontecimientos económicos y políticos ha reducido,
hasta la fecha, la formación de esa comunidad latinoamericana a la constitución
del Mercosur, comunidad con voluntad de integración, creada mediante la firma
del “Tratado para la constitución de un mercado común entre la Republica Argentina, la Republica Federativa del Brasil, la Republica del Paraguay y la Republica
Oriental del Uruguay” (Tratado constitutivo de Asunción de 1991).
No puede olvidarse que los principios comunitarios de solución de antinomias -autonomía de los ordenamientos jurídicos, primacía, y efecto directo- fueron creados por el Tribunal de Justicia de las Comunidades,
deduciéndolos de la propia naturaleza del modelo de integración, para lograr la efectiva aplicación de los tratados constitutivos. Estos principios son positivados en los arts. I-6 y I-33 del Tratado por el que se establece
una Constitución para Europa (TCUE), acuerdo que fue firmado en Roma el 29 de octubre de 2004 –DO C 310,
de 16 de diciembre de 2004-, y que se haya en proceso de ratificación.
Véase respecto de la posición de Brasil en el juego de la geopolítica mundial Cintra, R.: “Brasil e o novo cenário mundial, a dinâmica de una inserção”. Working Papers WP n. 186, Institut de Ciènces Politiques i Socials.
Barcelona, 2000. Este texto se consultó en soporte digital el 10 de octubre de 2005 en http://www.diba.es/icps/
working_papers/wp.htm
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Junto a esta voluntad de integración económica, el constituyente Brasileño
ha manifestado su voluntad de apertura al sistema internacional de protección de
los derechos humanos, y ello a través de lo contenidos en el art. 5.2 CFB –sobre el
que se volverá más adelante- y en el nuevo art. 5.3 CFB, introducido por la enmienda constitucional nº 45 de 8 de diciembre de 2004 (DOU de 31/12/2004) –al que
también se hará referencia-. La lectura de estos preceptos –ajena a la interpretación jurisprudencial que les acompaña- “parece” poner de manifiesto una voluntad clara de que los tratados de derechos humanos vigentes en Brasil sean fuente
directa de derechos subjetivos de rango constitucional, y por tanto susceptibles de
ser invocados ante los jueces y tribunales nacionales, incluso, como parámetro de
referencia constitucional.
Todo ello ofrece una panorámica “teórica” de voluntad aperturista por lo
que al texto constitucional brasileño se refiere. Otra cosa, y esto también se analizará, es la exégesis que sus legítimos intérpretes hagan de estas normas fundamentales, interpretación que puede conducirnos a la conclusión contraria, es decir a la
constatación de que el ordenamiento y jurisprudencia brasileñas dan la espalda y
cierran las puertas al ordenamiento y jurisprudencia internacionales.
3
¿Está por ello supraordenada la Constitución al
resto de disposiciones, incluidas las internacionales?
6. A priori, y manteniendo la aseveración de que la Constitución es la disposición determinante del modelo de relaciones entre fuentes internas y fuentes
internacionales, podría entenderse que la respuesta es positiva y que, en su calidad
de norma de normas, la Constitución está supraordenada al conjunto de las fuentes
cuyas relaciones articula, y cuyas pautas de validez y de aplicabilidad establece. De
hecho el concepto material de Constitución se utiliza como sinónimo de norma
suprema.10
7. Pero seguramente esta respuesta sea excesivamente simplificadora cuando se trata de marcar la relación de la Constitución con las fuentes de origen externo. Habitualmente se ha asociado el término de supraordenación a los conceptos
de superioridad jerárquica o supremacía, y se han buscado múltiples argumentos
10
Al menos así es en la formulación kelseniana, véase al respecto Kelsen, H.: Teoría General del Derecho y del
Estado, Universidad Nacional Autónoma de México. México, 1995, p. 246 y ss.
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que permitan afirmar que es la Constitución la norma que goza de esa superioridad jerárquica.
Entre las posiciones doctrinales más repetidas en casi todos los ordenamientos, se hallan las que consideran que la Constitución es norma jerárquicamente superior, incluso frente al derecho internacional, porque opone resistencia a ser
modificada, derogada o suspendida por cualquier otra norma del ordenamiento,
incluidos los tratados internacionales.11 El contra-argumento a esta posición viene
dado por el hecho de que la existencia de fuerza pasiva y activa de una disposición
frente a otras no siempre implica su superioridad de rango, porque también puede
darse que una ley general, por ejemplo, sea inhábil para modificar una ley especial
y ello no significa que la segunda sea jerárquicamente superior.
Otra de las razones que suelen darse en muchos ordenamientos para sostener la idea de superioridad constitucional, especialmente frente al Derecho Internacional Convencional, radica en la posibilidad de controlar la constitucionalidad de las fuentes externas. La posibilidad de que los tratados internacionales
sean objeto de control de constitucionalidad determinaría, según tal argumento,
la subordinación de los mismos al Derecho Constitucional. El problema de este
razonamiento es que el discurso lógico que lo inspira es erróneo. La posibilidad
de controlar la constitucionalidad de una norma deriva de su previa consideración
como norma infraconstitucional, de modo tal que es consecuencia y no causa de
esa consideración.12
Si se considera que el razonamiento que justifica la supraordenación de la
Constitución es que la misma contiene los parámetros de validez de las normas
jerárquicamente infraordenadas13 no se podría proclamar la supremacía constitucional sobre las fuentes internacionales, en la medida en que las pautas de validez
de dichas normas no se contienen en su totalidad en la Constitución, sino que se
reparten entre esta norma y fuentes internacionales como la costumbre interna11
12
13
A este respecto véase De Otto, I.: Derecho Constitucional, Sistema de fuentes. Op. Cit., pp. 111 y ss. Se hace eco
de esta posición, en lo que a los países del cono sur y sus doctrinas jurídicas se refiere Perotti, A. D.: Habilitación constitucional para la integración comunitaria. Estudios sobre los Estados de Mercosur. Tomo I: Brasil y
Paraguay. Tomo II: Argentina y Uruguay. Universidad Austral, Konrad Adenauer Stiftung, Uruguay, 2004.
Véase, en desarrollo de estos argumentos Gómez Fernández, I.: Conflicto y cooperación entre la Constitución
Española y el Derecho Internacional. Op. Cit. p. 47.
Esta era la formulación kelseniana a principios del siglo XX – véase Kelsen, H.: Teoría General del Derecho y del
Estado, Op. Cit. pp. 146 y ss, así como las referencias contenidas en el apartado 8 de este artículo-. Junto a esta
formulación del principio de jerarquía, otros teóricos plantean argumentos menos recurrentes. Es el caso de
Bobbio, N.: Contribución a la teoría del Derecho. Editorial Debate. Madrid, 1990, p. 343, y de Ruiz Miguel, A.:“El
principio de jerarquía normativa”, REDC, 1988, N° 24, pp. 152 y 153.
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cional, la Convención sobre Tratados adoptada en la Habana el 20 de febrero de
1928, el Convenio de Viena sobre Derecho de los Tratados de 1969, etc. Es decir la
Constitución no contiene los criterios de validez de las disposiciones internacionales, o al menos no todos los criterios de validez, aunque si determina todas las
condiciones de aplicabilidad o eficacia de las normas internacionales como se verá
más adelante.
8. La cuestión es que, en cualquier caso, el criterio más útil para fijar la
posición de las fuentes internacionales o internas en relación con la norma constitucional es el de jerarquía, en la medida en que cualquier razonamiento parte de la
idea de “fundamentalidad” del texto constitucional.14 Sobre esta certeza, trabaja la
doctrina que regresa recurrentemente a este principio para explicar la estructura
del sistema de fuentes. Ahora bien, en la medida en que los fundamentos clásicos
del principio jerárquico expuesto no son útiles cuando se trata de definir las relaciones entre Constitución y fuentes internacionales, será preciso encontrar un
fundamento adicional. Un argumento tal se basaría en la consideración de que la
norma jerárquicamente supraordenada ha de contener las reglas fundamentales
definidoras de las opciones políticas fundamentales del cuerpo soberano que elabora esa norma suprema. Aquí el principio de jerarquía tiene un matiz diferente: la
Constitución sería norma superior respecto a las fuentes externas si en la misma
se contienen una serie de opciones políticas fundamentales, opciones políticas que
contemplan, entre otras cosas, el juego de relaciones entre las fuentes del ordenamiento puramente interno y del sistema de normas externas como expresión del
modelo de relaciones internacionales del Estado.15 Dicho de otro modo, la Constitución está supraordenada a las fuentes externas porque es la disposición que recoge
la decisión del constituyente de cómo el Estado, la Nación, el Ordenamiento interno,
se van a comportar en relación con dichas fuentes externas. Es más, la Constitución
seguiría siendo la norma suprema incluso si alguno de sus preceptos estableciese,
de forma expresa o implícitamente, que se puede dar aplicación prioritaria a una
fuente externa sobre la norma constitucional en determinados supuestos. Incluso
14
15
Se descarta en este caso el recurso a los principios de competencia, especialidad o sucesión de normas en el
tiempo. Los dos últimos criterios porque se utilizan para resolver antinomias en el ámbito de la legalidad, de
la aplicabilidad de las disposiciones normativas, pero no para fijar las relaciones entre la Constitución y el
resto de normas del ordenamiento. El principio de competencia tampoco es útil aquí porque es precisamente
la Constitución como norma normarum la disposición que determinará la competencia normativa o material
y no se conoce ningún caso en que la Constitución nacional distribuya entre sí misma y el Derecho Internacional competencias normativas, tratándose este de un reparto apriorístico bastante difícil de imaginar.
Se desarrolla este planteamiento ampliamente en Gómez Fernández, I.: Conflicto y cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Op. Cit., p. 69 a 73.
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en ese caso la decisión de desplazar la primacía se habría tomado en sede constitucional y, de hecho, no cabría si no se hubiese dado en esta sede, con lo cual podría
decirse, independientemente de cual sea la norma que se aplique, que la norma
supraordenada es la Constitución.
Quizá en la dimensión práctica del funcionamiento del derecho lo determinante sea la norma que se aplica en última instancia en caso de que exista una
antinomia, con lo cual si es la norma internacional la norma aplicable, esta será
la que se considere supraordenada. Pero en la dimensión teórica es importante
determinar la legitimidad de los principios aplicables para resolver los conflictos
jurídicos, máxime cuando está en juego la idea de soberanía, clave para garantizar
el funcionamiento del sistema político, y en esa dimensión teórica la supremacía
puede llegar a identificarse en una disposición que no siempre sea de aplicación
preferente.
En cualquier caso ha de reconocerse que esta construcción teórica es compleja, y que procede de una formulación académica con poco predicamento entre
los jueces constitucionales. No obstante, y de un modo sorprendente, el Supremo
Tribunal Federal de Brasil se pronuncia en este sentido, de un modo casi idéntico al que aquí se formula. Baste como ejemplo este extracto de la sentencia RHC
79785/RJ:
Quando a questão - no estágio ainda primitivo de centralização e efetividade da ordem jurídica internacional - é de ser resolvida sob a perspectiva
do juiz nacional - que, órgão do Estado, deriva da Constituição sua própria
autoridade jurisdicional - não pode ele buscar, senão nessa Constituição
mesma, o critério da solução de eventuais antinomias entre normas internas e normas internacionais; o que é bastante a firmar a supremacia sobre
as últimas da Constituição, ainda quando esta eventualmente atribua aos
tratados a prevalência no conflito: mesmo nessa hipótese, a primazia derivará da Constituição e não de uma apriorística força intrínseca da convenção internacional.16
No es habitual que el texto constitucional exprese abiertamente su posición
respecto del resto de las fuentes, y si lo hace, normalmente es para expresar su
supremacía. La exégesis que los jueces constitucionales harán del silencio constitucional, o de la proclamación de supremacía constitucional irá en el sentido de
16
Si bien no se utiliza exactamente el mismo razonamiento, esta misma idea subyace en la Declaración del
Tribunal Constitucional español 1/2004, en la que se resuelve el conflicto entre el TCUE y el texto de la Constitución española de 1978.
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afianzar ese carácter de norma suprema en la mayoría, por no decir la totalidad, de
los supuestos, aunque sólo sea porque es esa idea la que justifica su propia esencia como jueces. Junto a esto, no puede dejar de reconocerse que la cuestión de la
posición que la Constitución ocupe sobre el resto de las fuentes interesa a jueces y
teóricos, en la medida en que determina la solución de eventuales conflictos que
puedan darse entre las fuentes externas y la Constitución, conflictos que, lejos de
ser una hipótesis de laboratorio, se dan con cierta frecuencia, encontrándose en la
carta magna brasileña cumplidos ejemplos.
9. La Constitución Federal de Brasil de 1988, como es tónica general, no
proclama de forma expresa su supremacía respecto de las fuentes externas en ninguno de sus preceptos (así lo reconoce el STF en RHC 79785/RJ). Ello deja la puerta
abierta a las interpretaciones doctrinales y jurisprudenciales, tanto en el sentido de
considerar la infraconstitucionalidad como la superioridad de los tratados sobre la
norma fundamental, y tanto una como otra posición encuentran un anclaje constitucional para sus afirmaciones.
10. En el ámbito doctrinal, algunos autores17 justifican la infraconstitucionalidad de los tratados por la interpretación dada a los preceptos constitucionales
97, 102. I. a) y p) y 102. III. a) y b). El art. 97 CFB daría carta blanca para que los
jueces declarasen la inconstitucionalidad de actos normativos del poder público,
entre los que podría contarse los tratados internacionales, y el 102 CFB, en los apartados referenciados, concedería jurisdicción al Supremo Tribunal Federal para conocer de las acciones directas de inconstitucionalidad o acciones declaratorias de
constitucionalidad contra tratados, y de los recursos extraordinarios que pudieran
presentarse frente a las decisiones judiciales declaratorias de la inconstitucionalidad de un tratado. Los argumentos apoyados en la interpretación de los citados
preceptos constitucionales afirman que la posibilidad de controlar la constitucionalidad de los tratados deducible de tales disposiciones, muestra que el tratado es
infraconstitucional, pero ya se ha expuesto cómo la lógica argumentativa de esta
afirmación no es correcta.
Otros autores18 utilizan un argumento distinto, basado en las diferencias
existentes entre los procesos de reforma constitucional y de aprobación de los tratados. La superioridad de la Constitución se apoyaría en el hecho de que su aprobación y reforma se someten a un procedimiento mucho más complejo que el que
se asocia a la ratificación de un tratado, de lo que cabría deducir la voluntad cons17
18
Cuyas posiciones compendia Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., pp 110 y ss.
Andreiuolo Rodrigues, M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos Humanos e a Constituição”, en
Lobo Torres, R. (Coord.): Teoría dos Direitos Fundamentais, Renovar, Brasilia, 2002, p. 166.
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tituyente de preservar con mayor fuerza el texto de la norma fundamental que la
del resto de disposiciones y frente al resto de disposiciones, incluidos los tratados.
Ahora bien, este argumento perdería su peso en el momento en que la Constitución
contemplase un procedimiento similar al de la reforma constitucional para permitir la ratificación de todos o de una parte de los tratados internacionales en que el
Estado quisiera ser parte. De hecho esto es lo que sucede en el ordenamiento brasileño tras la reforma introducida por la enmienda constitucional nº 45 que dota
a los tratados de derechos humanos cuya incorporación al ordenamiento interno
se tramite mediante el procedimiento establecido en el nuevo artículo 5.3 CFB el
rango de enmienda constitucional. Así pues la propia Constitución reconoce la posibilidad de que ser modificada mediante la ratificación de un tratado en materia
de derechos fundamentales si el procedimiento interno tendente a autorizar dicha
ratificación es el mismo que el de la reforma constitucional. En este caso ya no se
podría hablar de supremacía constitucional amparándose en el argumento que se
venía exponiendo.
11. Frente a esta posición mayoritaria, que predica la infraconstitucionalidad de los tratados, otro sector de la doctrina establece que, cuando menos los
tratados sobre derechos humanos, han de ser considerados normas de aplicación
preferente en caso de conflicto con la Constitución. El anclaje constitucional de tal
afirmación se encontraría en el artículo 5.2 CFB que establece que “Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime
e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Este precepto, que admite a sensu contrario que los tratados internacionales ratificados por Brasil son fuente de derechos
fundamentales y garantías para el ordenamiento brasileño, interpretado a la luz
art. 4.II CFB que establece que la prevalencia de los derechos humanos es uno de
los principios que rige las relaciones internacionales de la República, permitiría
priorizar la aplicación de los tratados internacionales sobre la Constitución.19 Los
derechos y garantías contenidos en los tratados ratificados por Brasil, y que son
fuente inmediata en el orden interno han de ser respetados de manera que se haga
prevalecer el respeto a los derechos humanos, incluso cuando ello signifique dejar
de aplicar el texto constitucional.
19
En este sentido se pronuncian Alburquerque Mello, C.: “O §2º do art. 5º da Constitução Federal”, en Lobo
Torre, R. (Coord.): Op. Cit., pp. 1 y ss.; Cançado Trindade, A.A.: Tratado de Direito Internacional dos Direitos
Humanos. Sergio Antonio Fabris, Porto Alegre, 1996, p. 408; y Piovesan, F.: Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, São Paolo, Max Limonad, 1996, pp. 111 y 122.
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A este argumento podría añadirse ahora que la enmienda constitucional
nº 45 –que incorpora a la Constitución el art. 5.3-, admite la posibilidad de que los
tratados de derechos humanos ratificados por Brasil, previo cumplimiento de ciertos requisitos formales, se incorporen al ordenamiento con rango constitucional,
con lo cual podrían ser aplicados con preferencia sobre la Constitución sin ninguna
dificultad, en la medida en que se considerarían enmiendas constitucionales. No
obstante sobre esta cuestión se regresará de inmediato.
12. El Supremo Tribunal Federal se hace eco de una y otra posición, pero es
la de la infraconstucionalidad de los tratados la que posee mayor predicamento. El
STF interpreta a menudo la voluntad expresa en los arts. 97 y 102 CFB en el sentido
de estimar que el constituyente quiso dotar a la carta magna de supremacía incluso
frente a las fuentes externas. Es elocuente, a este respecto, el contenido de la resolución ADI 1480/DF que establece
No sistema jurídico brasileiro, os tratados ou convenções internacionais
estão hierarquicamente subordinados à autoridade normativa da Constituição da República. Em conseqüência, nenhum valor jurídico terão os
tratados internacionais, que, incorporados ao sistema de direito positivo
interno, transgredirem, formal ou materialmente, o texto da Carta Política.
O exercício do treaty-making power, pelo Estado brasileiro - não obstante o
polêmico art. 46 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (ainda em curso de tramitação perante o Congresso Nacional) -, está sujeito à
necessária observância das limitações jurídicas impostas pelo texto constitucional (En el mismo sentido se manifiesta el STF en RHC 79785/RJ, ADI
MC 1347/DF, RE 172720/RJ, HC 81319/GO).20
De forma coherente con tal jurisprudencia21 los conflictos que se pusieran
de manifiesto entre un tratado internacional y la Constitución se resolverían apli20
21
Y, en ocasiones, no se detiene ahí, sino que afirma que la ley complementar tampoco puede ser modificada por
el tratado, respecto del que ostenta carácter de ley especial, por la especial reserva que, respecto de las mismas,
realiza el texto constitucional (ADI 1480 MC/DF ). “Os tratados internacionais celebrados pelo Brasil - ou aos
quais o Brasil venha a aderir - não podem, em conseqüência, versar matéria posta sob reserva constitucional de
lei complementar. É que, em tal situação, a própria Carta Política subordina o tratamento legislativo de determinado tema ao exclusivo domínio normativo da lei complementar, que não pode ser substituída por qualquer
outra espécie normativa infraconstitucional, inclusive pelos atos internacionais já incorporados ao direito positivo interno”.
Cuyo análisis desarrolla ampliamente Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., pp 124 y ss. Se refieren, por supuesto a
este tema muchos internacionalistas brasileños, entre los que se puede citar a Alburquerque Mello, C.D.: Curso
de direito internacional público, 1º vol., Livraria Editora Renovar, Rio, 1997, p. 103 y ss.; REZEK, J.F.: Direito
internacional público: curso elementar, 6ª ed., Saraiva, São Paulo, 1996, p. 104 y Direito dos Tratados, Edit.
Forense, Rio de Janeiro, 1994.
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aplicación al ordenamento brasileño.
cando esta última y relegando la norma externa, pero esta tendencia provoca en el
ordenamiento brasileño al menos dos problemas de relieve.
13. El primero se refiere a la cuestión de la prisión civil por deudas.22 El art.
5.LXVII CFB, así como alguna norma infraconstitucional de desarrollo,23 admite
la imposición de una pena privativa de libertad para constreñir al cumplimiento
de la obligación civil de prestar alimentos o de guardar con fidelidad un depósito,
en el caso de que voluntariamente se faltare a tales obligaciones. La cuestión es
que tal disposición choca sin dudas con lo previsto en el art. 11 del PIDCP24 donde
se establece que “nadie será encarcelado por el solo hecho de no poder cumplir
una obligación contractual” (art. 11 PIDCP) y en buena medida también con la
previsión del art. 7.7 de la CIDH25 donde se prohíbe la detención por deudas con la
excepción de “los mandatos de autoridad judicial competente dictados por incumplimientos de deberes alimentarios”. En la práctica, y dada la excepción aplicada
a la prisión por deuda alimenticia, los problemas de antinomia entre los arts. 7.7
CIDH y 11 PIDCP y el art. 5.LXVII CFB se centra en la prisión por deudas del depositario infiel. En este caso la jurisprudencia del STF ha aplicado de manera preferente la Constitución e incluso algunas leyes infraconstitucionales de desarrollo del
precepto constitucional frente al tratado (Sentencias del STF RE 457077/MG, HC
73151/RJ, RE 253071/GO), con algunas excepciones puntuales en que la aplicación
preferente del tratado se amparó en la utilización del principio pro homine (STF
HC 84382/SP).26
Por su parte la doctrina se halla dividida, fundamentalmente, entre internacionalistas y constitucionalistas. Los primeros pugnan por el predominio de los
tratados de derechos humanos, argumentando que esta disciplina específica es
mucho más importante que cualquier norma de derecho interno, incluido el Constitucional. Alegan también que los tratados poseen una mayor legitimidad que la
Constitución al tener como fundamento el ideal de dignidad del ser humano y aña22
23
24
25
26
Andreiuolo Rodrigues, M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos Humanos e a Constituição”,
Op. Cit. pp. 182 y ss.
Como, por ejemplo, la Ley n. 556, de 25 de junio de 1850, Código Comercial de Brasil (arts. 280 a 286); la Ley
Federal n. 3.071, de 1 de enero de 1916 (art. 1.287 del Código Civil); el Decreto Ley n. 7.661, de 21 de junio de
1945 (art. 12); la Ley Federal 4.728 de 14 de julio de 1965 (art. 66); el Decreto Ley n. 413, de 9 de enero de 1969;
el Decreto Ley 911 de 1969; la Ley Federal n. 5.869, de 11 de enero de 1973 (art.150); la Ley Federal n. 8.866, de
11 de abril de 1994, que dispone sobre el depositario infiel de valor perteneciente a la Hacienda Pública y otras
providencias; artículos 1º, 2º y 3º.
Ratificado por Brasil y publicado por el Decreto n. 592, de 6 de junio de 1992.
Ratificado por Brasil y publicado mediante el Decreto n. 678, de 6 de noviembre de 1992
Esta es una corriente jurisprudencial realmente minoritaria, que encuentra expresión, casi siempre, en
aquellos pronunciamientos en que es ponente el ministro Carlos Britto.
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aplicación al ordenamento brasileño.
den que, finalmente y ya que se trata de normas que regulan derechos subjetivos,
se trata de normas constitucionalmente materiales, con lo cual nada debería obstar
a su aplicación sobre disposiciones internas contradictorias. La doctrina constitucionalista defendería una noción de supremacía constitucional que no cedería ni
ante los tratados de derechos humanos, disposiciones que deberían ser interpretados a la luz de la Constitución.27
14. La cuestión es que todas las posiciones doctrinales y jurisprudenciales
relatadas podrían adquirir nuevos matices si se replantea el tema desde la nueva
perspectiva que ofrece la enmienda constitucional promulgada el 8 de diciembre
de 200428 y que, pese a dirigirse a promover alteraciones en la estructura del poder judicial brasileño, afecta también al modelo de relaciones interordinamentales
del sistema de fuentes ya que modifica el artículo 5. 3º, que adopta esta nueva redacción:29 “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que
forem aprovados, en cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros serão equivalentes às emendas constitucionais”. Esto significa que determinados tratados de derechos humanos podrían adquirir rango constitucional, pero ¿qué sucede con los tratados de derechos
humanos que han sido ratificados antes de la enmienda constitucional?, ¿esconde
esta enmienda la voluntad del constituyente de desplazar la primacía constitucional a ciertos tratados internacionales de derechos humanos? ¿a cuales si los más
importantes y de alcance más general han sido ya ratificados e incorporados al ordenamiento brasileño? Evidentemente el precepto pretende resolver los problemas
provocados por cuestiones como la de la prisión por deudas, pero no se solventan
con esta enmienda todos los problemas en la medida en que la mayor parte de los
tratados de derechos humanos ya han sido ratificados por Brasil por un procedimiento distinto al recogido en el nuevo art. 5.3 CFB.
La opción, apuntada por algún autor en foros de discusión académica, de
volver a autorizar de nuevo los tratados ya ratificados a través el nuevo procedi27
28
29
Sintetiza las posiciones de estas dos corrientes Andreiuolo Rodrigues, M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos Humanos e a Constituição”, Op. Cit. pp. 157 y ss
Esto se venía pidiendo hace tiempo por la la doctrina y la jurisprudencia. Al respecto cabe citar lo contenido en
la STF HC 81319/GO cuyo relator fue Celso de Mello: “Revela-se altamente desejável (...)”de jure constituendo”,
que, à semelhança do que se registra no direito constitucional comparado (Constituições da Argentina, do Paraguai, da Federação Russa, do Reino dos Países Baixos e do Peru, v.g.), o Congresso Nacional venha a outorgar
hierarquia constitucional aos tratados sobre direitos humanos celebrados pelo Estado brasileiro”. En el mismo
sentido véase la STF RHC 80035/SC.
Consultada en Oliveira Lauris dos Santos, E.: “Enmienda Constitucional n. 45: Alterações na estrutura do judiciário Brasileiro”, en Foro Constitucional Iberoamericano (revista electrónica), n. 8/2004, Novedades normativas: Brasil, dirección URL: http://www.uc3m.es/bjc.htm, visitada el 15 de noviembre de 2005.
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miento es realmente compleja. En realidad no podría hablarse de una autorización
a la ratificación, porque la misma ya se ha dado, sino que se trataría de un pronunciamiento del legislativo con una naturaleza totalmente distinta a la de la autorización, aunque se utilizase el procedimiento contemplado en el art. 5.3 CFB. Pero si
se afronta este proceso de “declaración expresa de rango” por parte del legislativo
quedaría por resolver la cuestión de qué sucedería si la nueva “autorización” no es
concedida, si el legislativo se pronuncia contra la consideración como enmienda
constitucional de los tratados ratificados antes de la entrada en vigor de la enmienda nº 45, ¿habría que entender que existe una voluntad del Congreso de denunciar
el tratado, o habría que entender sencillamente que se rechaza la posibilidad de
otorgar rango constitucional a tales tratados? Desde luego la solución aportada por
la reforma constitucional genera a su vez nuevos problemas de difícil solución. No
obstante no se trata de un conflicto irresoluble. Cabe la posibilidad de realizar la
apuntada “declaración expresa de rango” de los tratados de derechos humanos ratificados antes del 2004, dejando bien claro en la decisión del legislativo - que podría
exigir para ser adoptada la misma mayoría que pide el art. 5.3 CFB para estimar
que un tratado se caracteriza como enmienda constitucional- cuales son los efectos de la aceptación o rechazo de esa declaración. Por otro lado existe la posibilidad
de reformar la Constitución allí donde doctrina y jurisprudencia han puesto ya de
manifiesto un conflicto expreso entre el texto constitucional y un tratado de derechos humanos de modo tal que, desaparecida la antinomia, no sería tan problemático proclamar hermeneuticamente la paridad de rango. Y por último sería posible
solucionar la confusa situación creada por la enmienda 45 por vía interpretativa,
lo cual exigiría que el Supremo Tribunal Federal concediese rango constitucional
a los tratados internacionales sobre Derechos Humanos, apartándose de su jurisprudencia más reciente, y a la vista de que esa parece ser la voluntad constituyente.
No obstante, y dado el sistema de justicia constitucional en Brasil, quizá sea más
adecuado que la solución sea de orden normativo.
15. El segundo problema evidenciado entre la Constitución y el ordenamiento externo tiene que ver con el proceso de integración económica en el Mercosur
que genera dos conflictos constitucionales.30 El primero tiene que ver con la contradicción existente entre el principio de universalidad de la jurisdicción contenido en
el art. 5. XXV CFB –“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou
ameaça a direito”- y la creación de un Tribunal Permanente de Revisión del Merco30
Trabaja sobre este problema Alburquerque Mello, C.: “O direito Internacional Publico no Direito Brasileiro”, en
Borba Casella, P. (coord.): Dimensão Internacional do Direito. Estudos em Homenagem a G.E. do Nascimento e
Silva, Ltr Editora San Pablo, Brasil, 2000.
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sur mediante el Protocolo de Olivos para la solución de controversias en el Mercosur de 18 de febrero de 2002, -vigente a partir del 2 de enero de 2004-, que vendría
a terminar con el monopolio de los jueces internos sobre determinadas cuestiones.
En la reforma constitucional del 2004 a la que se viene haciendo referencia, se incluía un apartado 4º al artículo 5, que solventaba el problema de la universalidad
de la jurisdicción en relación con el Tribunal Penal Internacional, afirmando que “O
Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha
manifestado adesão”, pero no se incluyó una especificación equivalente en relación con el Tribunal del Mercosur, de lo que se deduce que el conflicto sigue vivo. El
conflicto constitucional radica en el hecho de que el modelo de integración supone
restricciones a la “soberanía económica” del Estado contemplado en lo dispuesto
a lo largo del Título VIII de la Constitución. En la línea de lo que sucede con los
tratados internacionales, y visto que el Derecho Comunitario es considerado como
Derecho Internacional Convencional stricto sensu por los tribunales brasileños,
se daría aplicación preferente a la Constitución sobre el derecho del Mercosur allí
donde se pusieran de manifiesto contradicciones, con el consiguiente perjuicio que
la integración del sistema sufriría en este caso. Sólo la cesión de soberanía, y la
consiguiente preterición de las disposiciones internas en favor de la aplicación de
las normas comunitarias, es decir sólo la actuación del principio de primacía del
derecho comunitario, garantiza el éxito del modelo de integración.
4
¿Qué puede decir la Constitución sobre sus propios límites frente al alcance de las fuentes internacionales?
16. La respuesta a esta cuestión ha de partir de la siguiente hipótesis: en virtud de su calidad de norma suprema la Constitución puede desplazar la aplicación
preferente que normalmente le correspondería como consecuencia de su primacía
a otras disposiciones, incluso de origen externo. Ahora bien, esta facultad que hemos reconocido al texto constitucional ha de situarse dentro de ciertos límites que
garanticen que la Constitución mantiene inalterables los elementos básicos que
identifican las opciones políticas fundamentales adoptadas por el constituyente, y
sin las cuales no puede hablarse de “conservación” de la Constitución sino de mutación o reforma constitucional. Cuando la Constitución incluye en su texto la posibilidad de primar la eficacia de determinadas fuentes externas, como los tratados
internacionales de derechos humanos o el derecho de integración supranacional
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aplicación al ordenamento brasileño.
por ejemplo,31 no está o no debería estar introduciendo una fórmula de reforma
constitucional, sino simplemente una regla de aplicación de fuentes entre las que
se encuentra ella misma. Esa es una de las razones que exige que el desplazamiento
de aplicación preferente esté sometido a ciertos límites que han de ser, cuando
menos los que afectan a la reforma constitucional, pero que, seguramente, habrán
de ser más estrechos.
17. Existen dos modos de contemplar semejantes límites. Por un lado se
pueden determinar de forma expresa en el propio texto constitucional los lindes del
desplazamiento de la primacía a través de la redacción de una suerte de cláusula
de intangibilidad que contuviese los límites e impidiesen desplazar la supremacía
constitucional a normas que afectasen a determinados contenidos materiales. Del
mismo modo que se impide la reforma constitucional de ciertos preceptos constitucionales para garantizar la conservación de las bases del régimen constitucional,32 podría impedirse que la fuente externa prime sobre el derecho constitucional
interno cuando la materia que trate la norma internacional afecte a las citadas “bases del régimen constitucional”.
Por otro lado, y en caso de que no exista un elenco de materias intangibles,
los intérpretes constitucionales podrían seleccionar, de entre los contenidos de la
Constitución aquellos que se consideren determinantes del ejercicio de la soberanía nacional, razón por la cual, no podrían ser apartados del radio de acción de la
misma para ser colocados en la esfera de las potestades de una organización supranacional, o en el ámbito normativo exclusivo del derecho internacional.33 Entre
esos contenidos estaría el respeto a los derechos fundamentales y a los valores que
garantizan la existencia del Estado como ente soberano, la definición de la organización territorial del Estado, y de la forma política del mismo, y la consideración de
31
32
33
La interpretación que los jueces brasileños hagan del actual art. 5.3 CFB, podría conducir a la siguiente reflexión: este precepto permite desplazar la primacía constitucional a los tratados de derechos humanos ratificados
en virtud del procedimiento que describe. En la misma línea el Tribunal Constitucional español ha admitido
recientemente - Declaración 1/2004- que en el art. 93 CE, precepto de contenido orgánico procedimental y
material, se encuentra el apoyo argumental que permite desplazar la aplicación preferente de la Constitución
nacional al Tratado Constitucional Europeo.
En ese modo se manifiesta el art. 60.4 CFB que excluye la posibilidad de deliberar propuetas de enmienda
constitucional tendentes a abolir la forma federal del Estado, el voto directo, secreto, universal y periódico, la
separación de poderes y los derechos y garantías individuales.
Así lo han hecho los tribunales constitucionales de Francia, Italia o España, por ejemplo, a través de la elaboración de conceptos como el de “controlimiti” – teoría comentada por Cartabia, M.: Principi inviolabili e integrazione europea, Milan, 1995-o “conditions essentielles d’exercice de la souveraineté”- entre otras decisión
del Conseil Constitutionnel n.2004-505 de 19 de noviembre de 2004-.
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aplicación al ordenamento brasileño.
la necesidad de garantizar la plena eficacia de la Norma Fundamental respecto de
los mandatos referidos a la validez y aplicabilidad de las fuentes internacionales.
5
¿A qué debe responder la Constitución cuando
establece el sistema de relaciones interordinamentales?
5.1Al tipo de fuentes externas que reconoce y admite el ordenamiento interno
18. Las Constituciones nacionales pueden reconocer la incorporación y posición de todos y cada uno de los tipos de normas internacionales que se identifican en el orden jurídico internacional, hacer referencia sólo a una parte de ellas,
o establecer sus propios modelos de clasificación que determinen el modo de incorporación de las normas de origen internacional al ordenamiento interno y su
posición en él, modelos que, en todo caso, no tendrán más que efectos puramente
internos.
Los dos grandes grupos en que se organizan tradicionalmente las normas
internacionales son el Derecho Internacional General y el Derecho Internacional
Convencional. El primero está compuesto por normas no escritas de proyección
universal -la costumbre internacional y los principios generales del derecho internacional-, cuyo alcance se determina de acuerdo con la práctica constante y uniforme y la opinio juris de la generalidad de los Estados. El segundo viene integrado
por los acuerdos internacionales celebrados por escrito en los que se pone de manifiesto la voluntad concurrente de dos sujetos de la sociedad internacional. A estos
dos grandes y tradicionales grupos habría que añadir el Derecho Comunitario, al
que se le puede otorgar carta de naturaleza independiente, tipificándolo como Derecho Internacional sui generis, en la medida en que se inscriba en procesos de integración supranacional donde el método normativo de integración prime sobre el
método de coordinación. Dicho de otro modo, a mayor nivel de integración mayor
independencia del Derecho Comunitario y menor identidad entre este y el Derecho
Internacional Convencional,34 aunque no pueda olvidarse que la base del Derecho
34
En esta línea de razonamiento no existirían demasiadas dudas en torno a la consideración del Derecho Comunitario Europeo como derecho internacional de carácter sui generis, en la medida en que el nivel de integración es muy alto, mientras que existirían más dudas - Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p. 233.- en torno
a la consideración del Derecho Comunitario del Mercosur como derecho internacional distinto del derecho
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aplicación al ordenamento brasileño.
Comunitario, su origen, se sitúa en los tratados constitutivos que son convenios
internacionales en sentido estricto. En esta línea de razonamiento no existirían
demasiadas dudas en torno a la consideración del Derecho Comunitario Europeo
como derecho internacional de carácter sui generis, en la medida en que el nivel de
integración es muy alto, mientras que existirían más dudas35 en torno a la consideración del Derecho Comunitario del Mercosur como derecho internacional distinto
del derecho convencional internacional, y ello porque existe una preeminencia de
los mecanismos de cooperación sobre los mecanismos de integración supranacional. El propio STF considera que los tratados que se firman en el entorno de Mercosur son tratados internacionales en sentido propio, sin distinciones sobre el resto
(STF CR 8279 AgR/AT.36)
Junto a estos tres grandes grupos existen además otra serie de fuentes que
no pueden encajarse en los mismos, como por ejemplo los acuerdos administrativos, los actos unilaterales, los gentlements agreements, y los actos de las organizaciones internacionales.37
35
36
37
convencional internacional, y ello porque existe una preeminencia de los mecanismos de cooperación sobre
los mecanismos de integración supranacional. El propio STF considera que los tratados que se firman en el entorno de Mercosur son tratados internacionales en sentido propio, sin distinciones sobre el resto: “A recepção
de acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL está sujeita à mesma disciplina constitucional que
rege o processo de incorporação, à ordem positiva interna brasileira, dos tratados ou convenções internacionais
em geral. É, pois, na Constituição da República, e não em instrumentos normativos de caráter internacional, que
reside a definição do iter procedimental pertinente à transposição, para o plano do direito positivo interno do
Brasil, dos tratados, convenções ou acordos - inclusive daqueles celebrados no contexto regional do MERCOSUL”
(STF CR 8279 AgR/AT).
Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p. 233
Este pronunciamiento establece que “A recepção de acordos celebrados pelo Brasil no âmbito do MERCOSUL
está sujeita à mesma disciplina constitucional que rege o processo de incorporação, à ordem positiva interna
brasileira, dos tratados ou convenções internacionais em geral. É, pois, na Constituição da República, e não em
instrumentos normativos de caráter internacional, que reside a definição do iter procedimental pertinente à
transposição, para o plano do direito positivo interno do Brasil, dos tratados, convenções ou acordos - inclusive
daqueles celebrados no contexto regional do MERCOSUL”
Los acuerdos administrativos se definen como acuerdos normativos concluidos por órganos que carecen
de los poderes necesarios para representar al Estado, con lo cual precisan siempre de la cobertura formal
y material de un previo acuerdo marco o acuerdo básico al que desarrollan y ejecutan. Los actos o declaraciones unilaterales se caracterizan por ser expresión de la voluntad internacional de un sujeto suficientemente capaz para el Derecho Internacional, no vinculada a forma especial alguna, y supeditada tan sólo
a ser puesta en conocimiento de terceros, de quienes no se precisa nunca ni el consentimiento ni ninguna
actitud complementaria. Los gentlemen agreements, también denominados acuerdos no normativos, son
instrumentos legítimos de la política exterior a los que se recurre por parte de los Ejecutivos con relativa
frecuencia para aumentar el margen de discrecionalidad del negociador y el margen de exigencia en la
satisfacción de los compromisos.
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FERNÁNDEZ, Itzíar Gómez. Siete cuestiones sonre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y su
aplicación al ordenamento brasileño.
Lo más habitual es que los textos constitucionales no hagan referencia a
la incorporación, posición y control de las fuentes de Derecho Internacional General en el orden interno aunque en ocasiones se alude al mismo para afirmar la
adecuación del ordenamiento interno a las reglas de Derecho Internacional (línea
14 del preámbulo de la Constitución francesa de 1946), para hacer referencia a la
asunción por el Estado de determinados principios generales del Derecho Internacional (art. 7 de la Constitución portuguesa) o, de modo indirecto, para admitir la
permeabilidad del ordenamiento, o de determinados sectores del ordenamiento,
respecto del Derecho Internacional General (arts. 10.2 y 96.1 de la Constitución
española).38
Frente a la afirmación anterior, las constituciones acostumbran a referirse expresamente a la fase interna del procedimiento de ratificación de las fuentes
convencionales -clasificándolas o no en distintos tipos-, a su posición en el ordenamiento y a su control. Las referencias al derecho comunitario son precisas sólo
excepcionalmente39 y suelen reducirse como regla general a la inclusión de la consabida cláusula comunitaria que abre la puerta del Estado a la integración en un
modelo de organización supranacional. Las alusiones al resto de fuentes menores
son sencillamente testimonial.
19. En el caso de la Constitución brasileña, siguiendo el modelo de la
lusa, su art. 4 constitucionaliza los principios de obligado respeto por los poderes
del Estado brasileño en sus relaciones internacionales como parte del Derecho Internacional General. Esos principios son la independencia nacional, la prevalencia
de los derechos humanos, la autodeterminación de los pueblos, la no intervención,
la igualdad entre los estados, la defensa de la paz, la solución pacífica de los conflictos, el repudio al terrorismo y al racismo, la cooperación entre los pueblos para
el progreso de la humanidad y la concesión de asilo político.
38
39
Esto es así porque en buena parte de las Constituciones prima la idea kelseniana (y monista) de que existe unidad de ordenamientos, y por tanto la mera existencia de un orden jurídico interno implica que si el Estado se
relaciona internacionalmente tal ordenamiento recibe ecos del internacional cuyos fundamentos se sitúan en
la costumbre y los principios generales que lo rigen. Allí donde, o bien no prima esta idea (por la implantación
de una interpretación dualista de la conexión de ordenamientos), como en Italia, Austria, Alemania, Irlanda,
Dinamarca o Estados Unidos, por ejemplo, o no se considera que sea sobreabundante el reconocimiento expreso de tal conexión las Constituciones se refieren al Derecho Internacional General. Véase a este respecto
Gómez Fernández, I.: Conflicto y cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Op. Cit.,
pp. 128 y ss
Arts. 168 y 169 de la Constitución belga, Sección 96 de la Constitución finlandesa, Título XV de la Constitución
francesa, art. 23 de la Constitución alemana, art. 29 de la Constitución irlandesa, y art. 7.2 de la Constitución
eslovaca.
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aplicación al ordenamento brasileño.
Por su parte la referencia al Derecho Internacional Convencional es mucho
más extensa y pasa por el reconocimiento constitucional de que los convenios internacionales, cuya celebración compete en exclusiva al Presidente de la República
(art. 84.VIII CFB) previo refrendo del Congreso, se incorporan al ordenamiento
brasileño. La Constitución brasileña no establece tipologías de manera expresa en
relación con los tratados internacionales que se incorporan al sistema de fuentes
nacional, pero la reforma de 8 de diciembre de 2004 viene a establecer una doble
categorización separando los tratados de derechos humanos del resto, y concediendo a aquellos una especial fórmula de incorporación al orden nacional y un rango
diferente al del resto.
Por su parte, y sin contar con un apoyo constitucional adecuado, el “Superior Tribunal de Justiça” (STJ), ha consagrado la distinción entre los “tratados-ley”
y los “tratados-contrato” (STJ REsp. 34932/PR, REsp. 37065/PR, REsp. 196560/RJ).
Esta distinción se explica por la reticencia de este órgano jurisdiccional a aplicar
con plenitud de efectos la previsión del art. 98 del Código Tributario Nacional que
establece que los tratados y las convenciones internacionales revocan o modifican
la legislación tributaria interna y serán observados por la posterior. Así, para evitar
la prelación de los tratados en materia tributaria sobre la ley nacional en todo caso
el STJ establece que sólo se aplicará la previsión del art. 98 CTN a los tratados-contrato, es decir los acuerdos que contienen disposiciones contractuales en sentido
estricto, como por ejemplo el convenio del GATT, afirmando que los tratados-ley,
que contienen disposiciones de naturaleza “legislativa” no tendrán fuerza pasiva
frente a la legislación posterior. El problema de esta “artificial” distinción jurisprudencial es que no está claro, ni para la doctrina ni para los propios jueces, cuales
son las características que permiten distinguir ambos tipos de pactos,40 con lo cual
su aplicación se aleja notoriamente del respeto al principio de seguridad jurídica,
máxime cuando casi todos los tratados suelen contener disposiciones “contractuales” y “legislativas”.
40
Suele teorizarse afirmando que en el tratado-contrato las voluntades que lo conforman tienen contenidos
diferentes pero son complementarias, de modo que se acomodan entre sí con la firma del tratado suponiendo
un intercambio de prestaciones entre las partes contratantes. Por su parte el tratado-ley se caracterizará porque establece normas de aplicación general y carácter coercitivo, caracterizadas porque las voluntades que las
conforman tienen un mismo objeto. En cualquier caso esta distinción no es científica, los autores aún no se
han puesto de acuerdo sobre su alcance y, desde luego, no tiene réplica en el orden internacional, con lo cual
muchos abogan por su desaparición. Véase al respecto Alburquerque Mello, C.: “O §2º do art. 5º da Constitução Federal”, Op. Cit., pp. 27. y David Araujo, L.A., Serrano Nunes Júnior, V.: Curso de Direito Constitucional.
Editora Saraiva, San Pablo, 2003, p. 305.
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aplicación al ordenamento brasileño.
Por último y respecto al Derecho Comunitario, en el art. 4 parágrafo único
de la Constitución brasileña se encuentra la consabida cláusula comunitaria, que
reconoce que Brasil “buscará la integración económica, política, social y cultural
de los pueblos de América Latina, con vistas a la formación de una comunidad
latinoamericana de naciones”. Esta cláusula no establece el modo en que tal formación habrá de materializarse, ni el modelo de la comunidad –económica o política,
de integración o de cooperación-, con lo cual deja la puerta abierta a cualquiera de
estas opciones, y ha supuesto el anclaje constitucional de la integración en de Brasil
en el Mercado Común del Sur (MERCOSUR).
5.2 A la fórmula de incorporación de las fuentes externas al ordenamiento interno
20. La Constitución puede determinar cuál es el procedimiento interno que
ha de seguirse para que las fuentes externas sean aplicables en el seno del ordenamiento nacional, siempre y cuando se cumpla que sean válidas y aplicables a su
vez en el orden internacional. Además el cumplimiento de tal procedimiento va a
determinar parcialmente la validez de las normas internacionales que se incorporarán al ordenamiento jurídico porque si no se respeta tal procesus, dichas fuentes
externas, que en cualquier caso obligarán internacionalmente al Estado que los
ratifique, podrán a su vez ser inaplicados e incluso declarados inválidos (inconstitucionales) en el orden interno. Lo más habitual es que la Constitución describa un
procedimiento de incorporación para las fuentes de Derecho Internacional Convencional, y no para el resto. Y dentro del procedimiento descrito para proceder a
esta incorporación se pueden diseñar diferentes variantes en función, por ejemplo,
del contenido del tratado, o de la tipificación que el propio ordenamiento interno
haya hecho de las fuentes externas.
21. La fórmula de incorporación más sencilla es la que no exige ningún trámite interno con carácter previo a la entrada en vigor nacional del tratado, con lo
cual bastaría la firma y ratificación por parte del Ejecutivo, por regla general titular
del treaty making power, para que un convenio fuese válido en el ordenamiento nacional. En un supuesto de este tipo, podría contemplarse o no la exigencia de informar de la ratificación a las Cámaras legislativas tras la conclusión del tratado (en
esta línea lo dispuesto en el art. 94.2 de la Constitución española, por ejemplo).
En segundo lugar se sitúa la fórmula que exige la participación del poder
legislativo en una fase interna del proceso de elaboración del tratado y con carácter
previo a la ratificación del mismo. El modo concreto de participación va a depen-
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aplicación al ordenamento brasileño.
der de que se hayan establecido o no tipologías en el orden interno a la hora de
clasificar los tratados, y puede ir desde la simple autorización parlamentaria a la
ratificación adoptada mediante mayoría simple, hasta la tramitación de una reforma constitucional si el tratado que se pretende ratificar entrase en conflicto con la
Constitución (en este sentido se manifiesta el art. 95 de la Constitución española).
Entre los dos caben métodos intermedios como la concesión de autorización mediante mayorías cualificadas (lo que se contempla, por ejemplo, en el art. 93 de la
Constitución española y en el nuevo art. 5.3 de la Constitución brasileña)
Por último existe la posibilidad de que la Constitución no exija la previa
autorización a la ratificación, sino la transformación del tratado, sucesiva a aquella,
en norma con rango de ley. Esta fórmula, existente por ejemplo en el ordenamiento italiano donde recibe el nombre de “adattamento” suele asociarse a los ordenamientos en que prima la orientación dualista, y que en esa línea, afirman la existencia de dos ordenamientos independientes y sin posibilidad de intercomunicarse, el
interno y el internacional, de modo que para que una disposición procedente de
uno, el internacional, sea válida y aplicable en el otro es necesario transformar su
contenido en alguna de las formas propias del ordenamiento nacional.41
22. Descendiendo al caso del ordenamiento brasileño, el artículo 84.VII CFB
concede las competencias generales en materia de política exterior al Presidente
de la República y el apartado VIII del mismo precepto le reconoce la competencia
exclusiva para la celebración de tratados, convenciones y actos internacionales, exclusividad que no obsta a que en las negociaciones que preceden la firma del tratado pueden participar los representantes de los ministerios que sean competentes
por razón de la materia.42 De esta disposición, así como de lo establecido en los arts.
21.I y II y 49.I CFB se deduce además que es competencia de la Unión mantener
relaciones con otros Estados, participar en organizaciones internacionales y, por
supuesto, negociar tratados internacionales.
23. Semejante preeminencia del ejecutivo en el ejercicio del poder exterior
exige que las Cámaras, depositarias de la soberanía nacional, intervengan al menos
en el procedimiento de incorporación del tratado al orden interno, para garantizar la participación en un proceso que, al fin y a la postre, tiene por finalidad la
elaboración de normas con rango de ley. Guiada por este espíritu la Constitución
brasileña exige la autorización parlamentaria y previa a la ratificación del tratado,
41
42
Véase el epígrafe 8 “El papel de las teorías clásicas y de los jueces en la fijación de un modelo de relaciones
entre el derecho interno y el derecho internacional”, de este mismo artículo.
Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p. 55.
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aplicación al ordenamento brasileño.
según el segundo de los modelos analizados más arriba. Y aquí se abren dos vías
tras la reforma del año 2004.
En una se sitúan los tratados sobre derechos humanos a los que se dotarán
de fuerza equivalente a la de una enmienda constitucional si se la autorización a su
ratificación es concedida por el procedimiento dispuesto en el nuevo art. 5.3 CFB:
aprobación en dos turnos por una mayoría de tres quintos en cada Cámara del
Congreso Nacional, es decir en la Cámara de Diputados y en el Senado Federal.
En la otra vía se situarían tanto los tratados que no tienen que el ver con la
protección de los Derechos Humanos como aquéllos que, refiriéndose efectivamente a esta cuestión, no vayan a ser incorporados con rango constitucional. Aunque la
Constitución no hace esta salvedad de forma expresa, tal posibilidad se extrae de
la interpretación a sensu contrario de lo dispuesto en el art. 5.3 CFB. Nada obliga
a las Cámaras a tramitar como una enmienda constitucional la autorización a la
ratificación de todos los tratados de derechos fundamentales, sino que esta opción
es precisamente eso, una posibilidad puesta en manos del Congreso Nacional. En
este caso el trámite de autorización ha de pasar, a imagen de lo que sucede en el
procedimiento legislativo ordinario, por ambas Cámaras y en ellas, tanto la Comisión correspondiente especializada por razón de la materia como el Pleno, han
de aprobar por mayoría simple (art. 47 CFB) la autorización a la ratificación, que
formalmente se concederá mediante Decreto Legislativo, disposición destinada a
regular sobre las competencias exclusivas del poder legislativo sin que sea precisa
la sanción del Presidente de la República (art. 59 IV CFB). No existe un plazo determinado para la concesión de la autorización, pero como el trámite se inicia a
instancia del Presidente, si este lo considera oportuno, podría solicitar el tramite
de urgencia (art. 64. 1 y 2 CFB).
Dentro de este grupo la Constitución no establece ningún tipo de clasificación o tipificación adicional de los tratados, con lo cual se supone que todos
ellos habrán de pasar por este trámite. No obstante la doctrina plantea algunos
interrogantes en relación con la obligatoriedad del trámite. E primero se plantea si
realmente es preciso autorizar la ratificación de todos los tratados o si sólo sería
necesario tramitar la autorización para ratificar los convenios que entren en los
ámbitos reservados a la ley.43 El segundo interrogante se cuestiona si el inciso del
art. 49.I CE, que hace referencia a la competencia exclusiva del Congreso Nacional
para resolver definitivamente sobre tratados “que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”, no significa que solo habrán de pasar por
43
Perotti, A. D.: Ibídem., pp. 86 y ss.
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el congreso los acuerdos que generen responsabilidad o cargas económicas para
el Estado.44 Y el último tiene que ver con los acuerdos adoptados en forma simplificada, en la medida en que tales acuerdos no pasarían por las Cámaras ya que el
momento de la firma y de la ratificación coinciden, con lo cual no cabría someter
el texto del tratado, definitivamente fijado, a la autorización del legislativo. Y todos
estos interrogantes no se ven resueltos sino acrecentados por la jurisprudencia del
Supremo Tribunal Federal que en ocasiones introduce límites al poder de compromiso convencional internacional del Estado, como cuando excluye la posibilidad
de que los tratados afecten a determinados contenidos materiales, concretamente
a aquellos que entran en la reserva legal complementaria (si bien tal exclusión no
contó en su día con la opinión unánime del pleno, STF ADI 1480 MC/DF).
24. En cualquier caso, y sea cual sea el trámite y pormenores de la autorización,45 la potestad para elevar el proyecto a la consideración del Congreso sigue
siendo del Ejecutivo y éste realizará el envío en el momento en que lo considere
conveniente, sin que exista un término perentorio posterior a la fecha de la firma
para que tal solicitud de autorización se produzca. Tras la concesión de la autorización, el Presidente seguirá teniendo en su mano la decisión de ratificar, la decisión
acerca de si empeña o no la responsabilidad internacional del Estado. El voto del
Congreso concediendo la autorización no implica la obligación por parte del Presidente de ratificar el tratado, si bien su denegación impediría la prestación definitiva del consentimiento. Se observa en todo el proceso una posición dominante del
Presidente, constitucionalmente querida, a la que puede llegar a unirse un abuso
de esa posición que deje fuera de juego al legislativo en caso de que el Ejecutivo
decida ratificar el pacto sin solicitar la autorización previa. En ese caso, el abuso de
su posición preferente por parte del Ejecutivo, hallaría su réplica en una eventual
declaración de inconstitucionalidad del tratado por vicios formales.
25. Dado que la Constitución Brasileña no exige la adaptación o transformación del tratado al ordenamiento interno, es de suponer que una vez que se
produce la ratificación por parte del Estado y concurriendo la entrada en vigor
internacional del pacto, el signatario queda obligado a respetarlo frente a los cosignatarios, derivándose, a partir de ese momento, obligaciones y responsabilidad
internacional en caso de incumplimiento. Pero esta suposición no es totalmente
44
45
Perotti, A. D.: Ibídem., p. 55.
Se hace notar que la naturaleza de la autorización, en ordenamientos como el español, en que también se
requiere, no es incontrovertida. Véase al efecto la STC 155/2005 y las consideraciones realizadas en Gómez
Fernández, I.: Conflicto y cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Op. Cit., pp. 338
y ss.
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acertada. En el ordenamiento brasileño la eficacia interna del tratado no es automática tras la ratificación sino que se hace depender, en virtud de una costumbre
constitucional sin reconocimiento normativo, de la promulgación del Tratado mediante un Decreto del Presidente de la República, que ordena su publicación, y que
marca el momento de incorporación del tratado al ordenamiento nacional. La falta
de exigencias constitucionales expresas al respecto provoca la polémica en torno a
la naturaleza y efectos de este Decreto presidencial.
El Supremo Tribunal Federal reconoce a esta disposición del Ejecutivo nacional carácter “constitutivo” de la eficacia del tratado (STF ADI 1480 MC/DF, CR
8279/AT, HC 84796 MC/PE), y define la incorporación del tratado al sistema interno de fuentes como acto subjetivamente complejo, en que concurren las voluntades
homogéneas del Congreso Nacional y del Presidente de la República (ADI 1480
MC/DF STF, CR 8279/AT). Además el STF, por boca del Ministro Celso de Mello,
asegura que los efectos del Decreto son “a) a promulgação do tratado internacional;
(b) a publicação oficial de seu texto; e (c) a executoriedade do ato internacional,
que passa, então, e somente então, a vincular e a obrigar no plano do direito positivo interno” (ADI 1480 MC/DF).
Pero la doctrina no admite de forma unánime tal jurisprudencia. De un
lado, en línea con las formulaciones del STF, hay quien defiende que la eficacia
interna de los tratados internacionales sólo dependerá de la promulgación, porque
la misma traduce la voluntad presidencial de que el tratado resulte aplicable en
Brasil y porque la publicidad que supone la promulgación es imprescindible para
habilitar el cumplimiento de la norma convencional internacional por parte de los
poderes públicos y de los particulares, y la garantía de su vigencia por parte del
poder judicial.46 De otro lado se sitúan quienes afirman que la voluntad de obligar
al Estado por medio del acuerdo internacional se manifiesta en el mero acto internacional de ratificación, con lo cual la promulgación y publicación del tratado en el
DOU se produciría a los solos efectos de dotar de publicidad al texto del convenio.
Al primer planteamiento, en que coinciden doctrina y jurisprudencia del
STF, y que adopta un sesgo marcadamente dualista se le pueden oponer dos objeciones. La primera es que conceder al Decreto naturaleza constitutiva de la eficacia
interna del tratado deja en manos del Ejecutivo la posibilidad de aplicar un tratado
que ya ha sido negociado, autorizado por las Cámaras y ratificado, comprometiendo la responsabilidad internacional del Estado a causa de un ejercicio abusivo de
su posición dominante en relación con el treaty making power. La segunda es que
46
En este sentido se manifiestan Alburquerque Mello, C.D.: Curso de direito internacional público, Op. Cit.
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calificar de preceptiva la promulgación para que el tratado sea eficaz en un proceso
de integración como el que afecta a Brasil en relación con el MERCOSUR, mina las
bases de la propia integración, cuyos progresos quedarán en manos del Presidente
de la Nación, y no de la voluntad de la organización internacional que es quien debe
impulsar dicha integración.
En general sería más respetuoso con el orden internacional, y en concreto
más eficaz para consolidar la integración económica del Cono Sur, considerar la
promulgación y la publicación como actos materiales de carácter administrativo,
a los que no se le puede conceder valor constitutivo a efectos de la recepción del
tratado en el ordenamiento jurídico interno, aunque pudieran llegar a actuar como
causa suspensiva de la eficacia interna plena del tratado.47
5.3 A las relaciones entre las fuentes externas y las normas con
rango de ley de origen interno
26. Lo más habitual es que quienes reflexionan sobre esta cuestión, se planteen el problema de la posición de las fuentes externas en el ordenamiento interno,
pero cuando se procura dar respuesta a este problema se descubre que en realidad
no importa la posición, sino la forma en que se resuelven las antinomias entre estas
normas, o dicho de otro modo, no importa tanto declarar que la ley es superior
al tratado o viceversa, sino analizar qué norma se aplica preferentemente cuando
existe un conflicto y, como se ha visto y se dirá todavía, la aplicación preferente no
siempre se traduce en superioridad jerárquica.
27. Una vez la Constitución se ha establecido como norma normarum, a ella
le corresponde determinar las reglas de solución de conflictos entre disposiciones
internas procedentes del mismo poder normativo (conflictos internormativos),
normas internas originarias de distintos poderes normativos correspondientes a
varios órdenes territoriales (conflictos interordinamentales), o entre normas internas y normas internacionales, en ese caso siempre procedentes de distintos poderes normativos (conflicto interordinamental).48
Si se acude a un planteamiento de tipo general, las pautas de solución de
antinomias podrán acudir a criterios de determinación de la validez de las nor47
48
Paniagua Redondo, R.: “La recepción, publicación y rango normativo de los tratados internacionales en el ordenamiento jurídico español”. Revista Jurídica de Cataluña, n. 4, 1991, p. 928.
Gómez Fernández, I.: Conflicto y cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Op. Cit.,
pp. 39 y 40.
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mas -jerarquía y competencia- o a criterios de determinación de la aplicabilidad
- especialidad, sucesión de normas en el tiempo o “desplazamiento” por razón de
la naturaleza de la norma-. Pero al descender de la teoría a los textos constitucionales en vigor se observa que rara vez presentan pautas claras de solución de
antinomias entre disposiciones internas y disposiciones internacionales y que sólo
excepcionalmente fijan de forma indubitada la posición infralegal, supralegal o de
identidad de rango legal de los tratados.
Es un principio constante del Derecho Internacional General la proclamación de la supremacía las fuentes internacionales sobre las meramente internas, pero
las soluciones constitucionales raramente están en conformidad con este principio.
En el mejor de los casos son tan ambiguas que dejan en manos del intérprete la
determinación de la posición de las fuentes internacionales en el ordenamiento
interno o, para ser más precisos, la determinación de las relaciones entre aquellas
y las disposiciones con rango de ley.
Para eliminar esa ambigüedad, la fijación del tipo de relación que puede
establecerse entre las normas internacionales y las leyes exige acudir a un doble
criterio: por un lado el análisis de las consecuencias que tiene sobre la validez de
las leyes anteriores la incorporación de un nuevo tratado, y por otro el examen de
los efectos derivados de la aplicación de normas internacionales en relación con
las normas internas sucesivas en el tiempo. Si el tratado posterior desplaza a la
norma interna anterior sin derogarla, y a su vez presenta resistencia a ser derogada
por las disposiciones internas posteriores en el tiempo, la mayoría de la doctrina
va a hablar de superioridad, o primacía de los tratados sobre las leyes, y por tanto
de supralegalidad, aunque podría evitarse la calificación en este sentido, que no
siempre es pacífica manifestando, simplemente, que se aplica preferentemente el
tratado sobre la ley. Si el tratado desplaza la ley anterior y es desplazado por la ley
posterior, funciona de forma idéntica a como lo hacen el resto de disposiciones exclusivamente internas, en cuyo caso no hay aplicación preferente del tratado, sino
simple aplicación del criterio lex posterior derogat priori, debiéndose hablar, en ese
supuesto, de identidad de rango entre convenios y leyes internas.49
28. En el caso del ordenamiento brasileño su Constitución Federal no fija
la posición de las fuentes internacionales en relación con las normas internas con
rango de ley, ni establece pautas claras de solución de antinomias entre derecho
interno y derecho internacional.
49
Gómez Fernández, I.: Ibídem, pp. 93 y ss.
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aplicación al ordenamento brasileño.
Ello obliga a la jurisprudencia, acudiendo a los criterios a que se ha hecho
referencia, a establecer las pautas con arreglo a las cuales se relacionan las fuentes
internas y las internacionales, pautas que se han visto modificadas a lo largo del
tiempo y que, aún hoy, no pueden ser calificadas como de aplicación constante y
unánime por parte de todos los jueces y tribunales, si bien existe una línea predominante bastante clara.50
Si se tiene en cuenta que el desarrollo y generalización de los tratados como
fuente del derecho interno y del derecho internacional se produce a partir de la
segunda guerra mundial, es interesante remontarse a mediados del siglo XX para
analizar la evolución que ha tenido desde ese período la jurisprudencia brasileña
en el asunto que nos ocupa.51 Hasta finales de la década de los 50 el Supremo Tribunal Federal suele proclamar la prevalencia de los tratados sobre las fuentes internas, con especial contundencia si los pactos son posteriores en el tiempo (Sentencias del STF ACi 9587/DF; ACi 9593; ACi 9400; ACi 9594, RMS 5800). A pesar de ello
no llega a afirmar de forma indubitada que los tratados sean normas supralegales,
sino que tiende a otorgarles, pese a su aplicación preferente, rango idéntico al de la
ley (STF ACi 9587/DF). Más tarde, y notablemente en la década de los 70 -durante
el gobierno militar autoritario de Hernesto Geisel-, el Supremo Tribunal se adhiere
a lo que podría denominarse “teoría dualista pura”,52 y en tal sentido se manifiesta
favorable a la aplicación del principio lex posterior derogat priori, de forma que la
disposición posterior en el tiempo, sea esta ley o tratado, deroga la anterior, pudiendo decirse que el Derecho Internacional Convencional no posee ningún valor
añadido respecto de la ley en el sistema interno de fuentes del derecho (RE 80004/
SE, HC 74383/MG). En esta nueva orientación jurisprudencial el Superior Tribunal
de Justicia (STJ REsp 141.611/RJ, Resp 331022/RJ) y otros tribunales inferiores
siguen la senda marcada por el Supremo Tribunal Federal.53
Desde entonces, y de modo sorprendente, la jurisprudencia dominante del
Supremo Tribunal apenas ha variado, manteniéndose la consideración sobre la pa50
51
52
53
Esta circunstancia es criticada por la doctrina, que además, considera la jurisprudencia al respecto relativamente escasa. Véase Alburquerque Mello, C.: “O direito Internacional Publico no Direito Brasileiro”, Op. Cit., p.
298.
Hace un recorrido exhaustivo por la evolución de la jurisprudencia brasileña Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p.
140 y 141 y p. 156 y ss.
Véase en el epígrafe 8 de este mismo artículo las reflexiones sobre los sistemas monista y dualista.
Celso de Alburquerque Mello cuestiona el cambio en la línea jurisprudencial argumentando que se produce
en un período de gobierno autoritario durante el que no se puede afirmar con plena seguridad que el Supremo
Tribunal Federal fuese totalmente independiente. Alburquerque Mello, C. D: “O direito Internacional Publico
no Direito Brasileiro”, Op. Cit., p.298.
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aplicación al ordenamento brasileño.
ridad de rango e introduciéndose nuevos criterios para solucionar las antinomias
(Sentencias del STF ADI MC 1347/DF, ADI 1480/DF, CR 8279/AT, RE 80004/SE).
En este sentido es fundamental la sentencia del Supremo Tribunal Federal ADI nº
1.480-DF, que se toma como referencia de muchos pronunciamientos posteriores y
que afirma la paridad de rango en estos términos:
os tratados ou convenções internacionais, uma vez regularmente incorporados ao direito interno, situam-se, no sistema jurídico brasileiro, nos mesmos planos de validade, de eficácia e de autoridade em que se posicionam
as leis ordinárias, havendo, em conseqüência, entre estas e os atos de direito
internacional público, mera relação de paridade normativa.
Partiendo de esta identidad jerárquica entre tratados y normas internas con
rango de ley, el mismo pronunciamiento fija los principios de sucesión normativa o
de especialidad como criterios de solución de antinomias.
A eventual precedência dos tratados ou convenções internacionais sobre as
regras infraconstitucionais de direito interno somente se justificará quando
a situação de antinomia com o ordenamento doméstico impuser, para a solução do conflito, a aplicação alternativa do critério cronológico (“lex posterior
derogat priori”) ou, quando cabível, do critério da especialidade.54
Pero la utilización de cualquier de los dos principios deviene problemática
para solventar las antinomias entre normas externas y normas internas.
El criterio cronológico, cuya aplicación pudo resultar útil durante la década
de los setenta como instrumento de una determinada política exterior aislacionista,
no resulta tan eficaz a principios del siglo XXI, dada la sobreproducción normativa
internacional y la necesidad de respetar los pactos internacionales para no incurrir
en responsabilidad. Esta realidad es reflejada por el legislador brasileño en el art.
98 del Código Tributario Nacional de 1966 (CTN en adelante) que establece que los
tratados y convenciones internacionales revocan o modifican la legislación tributaria interna, y serán observados por la que les sobrevenga. Este precepto acude al
criterio de que el tratado tiene fuerza activa y fuerza pasiva55 frente a la legislación
interna, es decir modificará a las disposiciones que le precedan pero no será modificado por las que le sucedan, con lo cual no se aplicará siempre el principio de
sucesión cronológica, sino exclusivamente cuando la disposición más reciente sea
el tratado internacional, que una vez incorporado al ordenamiento sufre una suerte
54
55
En el mismo sentido véanse STF CR 8279/AT, RTJ 70/333,RTJ 100/1030 y RT 554/434.
De Otto, I.: Derecho Constitucional, Sistema de fuentes. Op. Cit., pp. 111 y ss.
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aplicación al ordenamento brasileño.
de “inmunización” que le permite resistir los “embates” de la normativa interna
posterior. Por extensión se aplica tal disposición no sólo a los tratados de contenido
tributario, sino también a pactos de naturaleza diversa que contengan cláusulas
relativas a tributación (como el ALALC –convenio de integración económica-, sentencias del STF RE 75962/GB, RE 90150, RE 90824/SP; y STJ REsp 104566/SP, entre
otros), así como a determinadas disposiciones del GATT (STJ REsp 1532/SP). No
obstante, la aplicación de este precepto no es ni mucho menos uniforme ni pacífica, puesto que el STJ restringe, en muchas ocasiones, la aplicación de lo previsto
en el art. 98 CTN a lo que denominan “tratados-contrato”, excluyendo del alcance
de lo dispuesto en tal precepto a una buena parte de los convenios internacionales
en materia tributaria (STJ STJ REsp. 34932/PR, REsp. 37065/PR, REsp. 196560/RJ,
REsp 426945/PR).56
La aplicación del criterio de especialidad supone que la norma internacional tendría el carácter de norma especial frente a la interna que sería considerada
general, de manera que resultaría aplicable la norma especial sin que la validez de
la norma general quedase afectada. El problema es que la jurisprudencia no aplica
este criterio con carácter general sino sólo a determinados tratados y en función de
su contenido material, dándose además la circunstancia de que los criterios determinantes de la especialidad de una norma internacional se alterarían en función
del caso concreto, lo cual no va en aras, precisamente, de proteger la seguridad jurídica.57 Un supuesto interesante se da en relación, de nuevo, con la prisión por deudas del depositario infiel. En muchos de los casos conocidos por el STF al respecto
no sólo se aplica la Constitución de manera preferente sobre el tratado, sino que se
estima que la legislación infraconstitucional de desarrollo de la previsión del art.
5. LXVII CFB no queda desplazada por el tratado porque ha de ser considerada ley
especial frente a la general, que sería la disposición internacional, de manera tal
que habrá de aplicarse la legislación interna de forma preferente frente al tratado
(STF AI 546854/DF; HC 79.870/SP).
29. La conclusión que se extrae de la descripción de esta “deriva jurisprudencial” es que la tendencia general de los jueces y tribunales, salvo contadas excepciones, consiste en dar prioridad a la aplicación de las disposiciones estrictamente
56
57
Se ha hecho referencia a esta artificial distinción más arriba.
En este sentido puede analizarse la evolución jurisprudencial del Superior Tribunal de Justicia en relación
con un mismo tratado, la Convención de Varsovia de 1925 sobre responsabilidad del transporte aéreo, que
es considerada en unos casos ley especial -STJ REsp 658748/RJ- y en otros ley general -STJ REsp 235.678/
SP-. Sucede lo mismo en los casos de extradición donde se considera que la ley interna es general, cediendo
por ello su posición ante el tratado, que sería regla especial –a este respecto véase Andreiuolo Rodrigues,
M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos Humanos e a Constituição”, Op. Cit., pp. 166-.
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internas de rango constitucional y de las normas con rango de ley sucesivas a los
tratados internacionales o que pueden ser consideradas “norma especial” respecto
del tratado. Hay pues una preferencia por la aplicación de la norma interna sobre
la norma internacional.
La doctrina brasileña es menos uniforme que la jurisprudencia, existiendo
autores que defienden y autores que critican la impostación mayoritaria de los jueces. Así las posiciones doctrinales van desde la consideración de la prevalencia de
la ley, pasando por la estimación de la primacía de los acuerdos sobre la legislación
interna, pese a una identidad de rango deducida de su equiparación total a la ley
en lo que al control de constitucionalidad se refiere [véanse los arts. 102 I a) y III
b), 105 y 109 CFB], hasta llegar a la justificación de una suerte de superioridad
jerárquica de las fuentes internacionales amparada en la interpretación del preámbulo del texto constitucional, así como de los artículos 1.I , 4. I, III, IV, V y VII,
49, 84 y 178 CFB.58 En cualquier caso la mayoría de las voces se pronuncian a favor
de la aplicación preferente del tratado sobre la ley sin las limitaciones que la jurisprudencia impone. Esta posición se justifica por la conciencia de que la prelación
de la ley subvertiría el orden jurídico derivado del respeto del principio pacta sunt
servanda, del cual se deriva que sólo la denuncia del tratado permitiría evitar su
aplicación al caso, principio recogido en el art. 10 del Convenio sobre tratados de la
Habana de 192859-“ningún Estado puede eximirse de las obligaciones del Tratado
o modificar sus estipulaciones sino con el acuerdo, pacíficamente obtenido, de los
otros contratantes”-, y en los arts. 27 y 46 del Convenio de Viena sobre derecho
de los tratados de 1969 que, pese a no haber sido ratificado todavía por Brasil se
puede usar no obstante como pauta de interpretación conforme, porque este pacto
tan sólo codifica la práctica uniforme de los estados en materia de tratados60, o
dicho de otro modo, no hace sino codificar reglas de Derecho Internacional General
vigentes ya en Brasil.
58
59
60
Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p. 157.
Promulgado por el Decreto n. 5647, de 8 de nero de 1929.
Se refiere a esta cuestión Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p. 174
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¿Que mecanismos de control se pueden determinar para garantizar el respeto a estos dictados
constitucionales?
30. Las fórmulas de control de la acción exterior del Estado adoptan dos
modalidades clásicas. El control político y el control jurisdiccional. En la medida en
que la iniciativa y la mayor parte de las responsabilidades de desarrollo de la acción
exterior del Estado corresponden al Ejecutivo, el control parlamentario efectuado
a través de los mecanismos tradicionales de control (preguntas, interpelaciones,
comparecencias en Pleno o en Comisión, etc.) o de los mecanismos específicos de
intervención en materia internacional (autorización a la ratificación) adquiere una
importancia muy notable, observación que se realiza dentro de la certeza de que
los problemas que acucian al control parlamentario en las democracias contemporáneas pueden extenderse sin dificultad, e incluso pueden considerarse incrementados cuando se trata de controlar la política internacional.
31. Junto a ello, el control jurisdiccional también es contemplado como remedio frente a la aparición de antinomias en el sistema provocadas por la incorporación de fuentes internacionales. Los procedimientos de solución de conflictos
normativos, así como la sede jurisdiccional en que se ventilará la cuestión dependerán de la respuesta que se haya dado en relación con los criterios de solución de
conflictos interordinamentales.
32. Por lo que hace a los conflictos entre normas con rango de ley y tratados,
caben dos opciones. En caso de que se considere que los tratados son normas con
rango de ley, a efectos internos, los criterios que determinarán la aplicación preferente de la norma externa se situarán en el ámbito de las pautas de concreción de la
aplicabilidad de la norma y no de su validez. Es decir, se tratará de resolver un problema de norma aplicable. En ese caso serán los jueces ordinarios los encargados
de dirimir la controversia en la medida en que se trata de un problema de legalidad,
y no de constitucionalidad, y para ello podrán aplicar los criterios cronológico, de
especialidad o, quizá el más adecuado por respeto al principio pacta sunt servanda,
el de preterición general de la ley interna cuando exista un tratado materialmente
equivalente, anterior o posterior en el tiempo, al que se dará aplicación preferente.
Si se considera que los tratados poseen rango supralegal, el análisis jurisdiccional tendente a solventar la antinomia -que se encontrará muy cercano al control
de constitucionalidad y al que podría darse el nombre de control de “convencionalidad”-, implicará que la solución de la controversia se calibrará en función de la
aplicación del principio de jerarquía y supondrá la determinación de la validez o
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aplicación al ordenamento brasileño.
invalidez de la norma infraordenada, es decir de la ley nacional. En este caso podrían ser los jueces constitucionales los encargados de efectuar el control porque
lo que se discute es un problema de validez de las normas nacionales, y su declaración de no ajuste al tratado no implicará un desplazamiento en la aplicación, sino
una declaración de nulidad.
33. La solución a las antinomias entre tratados y Constitución siempre va a
ser un problema de constitucionalidad, y por tanto, habrá de ser conocido por los
jueces constitucionales. Si el tratado es considerado como norma de rango constitucional la solución de la antinomia pasa por procurar una interpretación integradora de ambos textos, o por aplicar una en detrimento de la otra y en virtud de
la utilización de principios generales del derecho, como el principio “pro homine”,
cuando se trate de integrar disposiciones relacionadas con los derechos fundamentales. Por su parte si los tratados son considerados normas infraconstitucionales
la solución del conflicto pasa por someter la fuente convencional internacional a
los procedimientos propios del control de constitucionalidad, cuya forma concreta
dependerá del modelo de justicia constitucional ante el que se halle el convenio.
34. En los Estados con sistemas de control difuso de constitucionalidad, los
jueces y magistrados de la jurisdicción ordinaria van a realizar el análisis de ajuste
de constitucionalidad de los tratados tras su entrada en vigor. Es decir siempre
se tratará de un control a posteriori y al hilo de la solución de un caso concreto,
con lo cual los efectos de las sentencias que declaren la inconstitucionalidad de las
fuentes externas van a suponer la inaplicación de dichas fuentes al caso concreto.
No obstante la limitación de los efectos, esta actuación de los poderes públicos
nacionales podrá hacer incurrir al Estado en responsabilidad internacional por incumplimiento de las obligaciones contraídas internacionalmente, aunque se trate
de un incumplimiento localizado y puntual.
35. En los Estados cuyo modelo corresponde al kelseniano de justicia constitucional concentrada, será competencia del Tribunal Constitucional determinar
el ajuste constitucional de las fuentes externas, pudiéndose hacer efectivo tal control a través del control previo de constitucionalidad de tratados y el control sucesivo.61
61
En realidad nada obsta a que se pueda proceder al control del ajuste constitucional de los tratados a través
de procedimientos cuyo objeto principal no sea el control de constitucionalidad de fuentes – como los procedimientos para dirimir los conflictos de distribución de competencias o de atribución de poderes, o los
procedimientos de garantía de los derechos fundamentales, pero que, indirectamente, puedan poner de relieve
una “antinomia” entre la Constitución y los pactos internacionales.
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aplicación al ordenamento brasileño.
El control previo o a priori actúa sobre tratados que aun no han sido ratificados por el Estado, de manera que se tratará de un control abstracto de constitucionalidad, sin que ello le haga perder su carácter jurisdiccional. Junto a este rasgo
definitorio puede decirse que se trata de un tipo de procedimiento flexible, porque
se puede diseñar de modo que su interposición sea obligatoria o potestativa frente a
todos o a una parte de los tratados que pretenden ratificarse. Pero quizá lo que hace
más interesante este tipo de control son los efectos de los pronunciamientos que le
ponen fin. Como el objeto del control es un tratado cuyo texto está definitivamente
fijado, pero que no posee eficacia en relación con el Estado que pretende su firma
al no haber sido aún ratificado, la declaración de inconstitucionalidad del mismo
no supone la cesación de efectos, y la consiguiente generación de responsabilidad
internacional, sino que va a llevar a la renegociación del tratado, a la introducción
de cláusulas excepcionales o declaraciones interpretativas, a la no ratificación o a
la reforma constitucional. Estos especiales efectos son los que permiten afirmar
que su objetivo prioritario no es tanto garantizar la supremacía constitucional
–objetivo básico indiscutible del control de constitucionalidad- como velar por la
coherencia del sistema de fuentes que se abre a normas de origen externo que han
de integrarse en el ordenamiento sin plantear antinomias a nivel constitucional.
Por esta razón este tipo de control no se resuelve en un procedimiento contencioso,
sino que se caracteriza por tratarse de un control de “tipo técnico” que se integra
como una fase más del proceso interno tendente a la ratificación del tratado y que
determinará de que modo ha de proseguir dicho trámite en virtud del ajuste o no
del tratado al texto constitucional. El problema de este tipo de proceso es que la
naturaleza apriorística enturbia el control con dos objeciones. La primera es que si
el vicio de inconstitucionalidad del tratado es un vicio formal relativo al procedimiento de incorporación del pacto externo al orden jurídico interno que se produce tras la finalización del procedimiento de control previo, no podrá ser revisado
por este procedimiento, como no podrán serlo los vicios de inconstitucionalidad
sobrevenida por reformas constitucionales posteriores a la ratificación del tratado.
La segunda es que, en muchos casos, los vicios de constitucionalidad no se hacen
presentes al analizar el texto normativo en abstracto, sino cuando éste es aplicado
evidentemente después de su ratificación e incorporación al ordenamiento.
36. También existe la posibilidad de someter el tratado a un control sucesivo
cuyo objeto será depurar el ordenamiento de normas que se descubren contrarias
a la Constitución una vez han entrado en vigor. Normalmente los tratados internacionales se someten a idénticos procedimientos de control de constitucionalidad
que el resto de las normas con rango de ley y tales procedimientos pueden suponer
el control abstracto de constitucionalidad o el control vinculado a la solución de
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aplicación al ordenamento brasileño.
un supuesto concreto. El problema de este tipo de control a posteriori es que los
efectos de las sentencias emparejan frecuentemente el binomio inconstitucionalidad-nulidad, lo cual implicaría que la norma externa declarada inconstitucional
dejaría de ser eficaz, con alcance ex nunc, para los poderes públicos y ciudadanos
del Estado y de esa inaplicación se derivaría la responsabilidad internacional por
incumplimiento del Estado. La declaración de nulidad afecta a la naturaleza del
tratado como norma interna, pero no a su dimensión externa, de modo tal que
el tratado seguirá siendo una norma válida a efectos internacionales aunque el
Estado haya dejado de aplicarla. Las eventuales soluciones a este inconveniente
del control sucesivo pasan, o bien por mantener el control de constitucionalidad
de tratados dentro de los procedimientos de control generales pero disociando los
efectos de declaración de inconstitucionalidad y nulidad, o bien por establecer un
modelo ad hoc de control sucesivo de constitucionalidad de los tratados que tenga
en cuenta la doble naturaleza del tratado como norma de origen internacional y de
eficacia interna e internacional, estableciendo unos adecuados efectos del pronunciamiento que le pondría fin.
37. Las dos fórmulas de control analizadas, el control previo y el control sucesivo, pueden ser combinadas en un mismo sistema,62 lo cual modularía un modelo teórico óptimo de control de las fuentes externas ya que no habría tratados que
se escapasen al control de constitucionalidad. Tal afirmación se sostiene desde la
consideración de que las naturalezas, y por tanto las finalidades del control previo
y del control sucesivo son diversas, y desde la apreciación de que la combinación
de ambas fórmulas neutraliza las desventajas que cada una de ellas presenta al
considerarse aisladamente. Es decir, una adecuada convivencia de los modelos de
control previo y de control sucesivo implica no una simple vigencia simultánea de
los mismos, sino una coordinación de sistemas que pasaría por la corrección de los
inconvenientes identificados en cada uno de los modelos.63
38. Por último, en los sistemas mixtos de control de constitucionalidad
que combinan los criterios del control difuso y del control concentrado de consti62
63
Sin ir más lejos el modelo de justicia constitucional que introduce la Constitución española de 1978 se considera objeto válido de control de constitucionalidad en todos y cada uno de los procesos (control previo de
constitucionalidad, recurso de inconstitucionalidad –abstracto a posteriori-, cuestión de inconstitucionalidad
–“concreto” a posteriori-) a los tratados internacionales, única fuente susceptible de ser sometida a todas las
modalidades de control, en aplicación de las previsiones de los arts. 95 161.1.d) CE y art. 78 para el control
previo y. 27.2.c) LOTC, para el control sucesivo o reparador vía recurso o cuestión de inconstitucionalidad [art.
161.1.a) CE].
Gómez Fernández, I.: Conflicto y cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Op. Cit.,
p. 454.
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tucionalidad, y entre los que se encuentra el brasileño que puede servir como paradigma de este sistema,64 la competencia para controlar el ajuste se repartirá entre
los jueces ordinarios y los jueces del órgano superior de la justicia constitucional
que, en el caso de Brasil es el Supremo Tribunal Federal.65
Así lo reconoce el propio tribunal en el pronunciamiento ADI 1480 MC/DF:
O Poder Judiciário - fundado na supremacia da Constituição da República
- dispõe de competência, para, quer em sede de fiscalização abstrata, quer
no âmbito do controle difuso, efetuar o exame de constitucionalidade dos
tratados ou convenções internacionais já incorporados ao sistema de direito positivo interno. Doutrina e Jurisprudência.
Así pues, el control de ajuste constitucional de los Tratados en Brasil se efectuará a través del:
a. Control difuso de constitucionalidad, del cual podrán conocer todos los
jueces y tribunales y, en última instancia, el Supremo Tribunal Federal
en respuesta:
1. A los recursos ordinarios frente a las decisiones de los tribunales
superiores dictadas en resolución de procesos de protección de los
derechos fundamentales, habeas corpus, habeas data, o mandados
de injunçao decididos en única instancia por esos tribunales superiores [art. 102.II.a) CFB].
2. A los recursos extraordinarios frente a causas decididas en única o
última instancia cuando la decisión recurrida pueda considerarse
contraria a la Constitución [art. 102.III.a) CFB] o declare la inconstitucionalidad de un tratado [art. 102.III.b) CFB]
b. Control concentrado de constitucionalidad que el Supremo Tribunal
Federal conoce, básicamente,66 mediante los procesos de acción direc64
65
66
Este tema ha sido estudiado en Brasil por Alburquerque Mello, C.: Direito Constitucional Internacional, Renovar, Rio de Janeiro, 1994.
Da Silva, J. A.: Poder Constituinte e Poder Popular (estudos sobre a Constitução). Malheiros Editores. Brasil,
2002, p. 177.
El adverbio “básicamente” significa que el STF también puede llegar a conocer cuestiones vinculadas al ajuste
de constitucionalidad de los tratados a través del resto de procedimientos de que conoce en única instancia,
pero cuyo objeto principal no es el control de constitucionalidad de fuentes. Especialmente podrá hacerlo a
través de las peticiones de medidas cautelares de las ações diretas de inconstitucionalidade [art. 102.I.p) CFB],
la solución de litigios entre Estados extranjeros y/u organismos internacionales y la Unión [art. 102.I.e) CFB],
las solicitudes de extradición internacional pasivas [art. 102.I.g) CFB], y la homologación de las sentencias
extranjeras [art. 102.I.h) CFB].
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ta de inconstitucionalidad de normas (ADIn) y acción declarativa de
constitucionalidad (ADC) [art. 102.I.a) CFB]. Las dudas principales
en relación con estos procedimientos se refiere al objeto de control, ya
que hay quien considera que el tratado internacional es el objeto directo de control, frente a quienes opinan que la norma impugnable es la
disposición nacional que autoriza, promulga o denuncia el tratado. En
realidad a efectos prácticos poco importa cual sea formalmente la disposición impugnada, porque en caso de que lo sea la norma interna que
favorece la incorporación del tratado al orden interno –decreto legislativo de autorización o decreto presidencial de promulgación-. Si ésta
es declarada inconstitucional perdería efectividad automáticamente la
incorporación en el orden interno, con lo cual el tratado, que obliga al
Estado en razón de su ratificación internacional, no sería aplicable en el
Estado, con lo cual se incurriría en responsabilidad internacional. En el
supuesto de que fuese el propio tratado el declarado inconstitucional el
efecto final sería el mismo, la “desaparición” del acto internacional del
ordenamiento brasileño (STF ADI 1480 MC/DF). Ahora bien, en la medida en que una situación tal genera responsabilidad internacional por
incumplimiento será preciso procurar la denuncia del tratado cuanto
antes, siendo competente para ello el Ejecutivo, que fue quien tuvo la
competencia para negociar y ratificar.67
7
¿Qué modelos de apertura constitucional a las
fuentes internacionales pueden describirse?
39. El actual estado de desarrollo del Derecho Internacional, el grado de
participación y la necesidad de integración de los Estados en la política y economía
internacionales, obligan a los textos constitucionales a “abrirse” al orden internacional. Más allá de que las Constituciones reconozcan que la introducción de fuentes externas en el ordenamiento jurídico interno puede provocar el conflicto entre
uno y otro orden, razón por la cual se establecen los mecanismos de control a los
67
Esta facultad del Ejecutivo en relación con la declaración de inconstitucionalidad de los tratados introduce
una diferencia con las consecuencias que se derivan de la declaración de inconstitucionalidad de una norma
interna, en cuyo caso corresponde al Senado “suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada
inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal” (art. 52, X CFB). Esta no es sino una
manifestación más de la especial posición que el Ejecutivo tiene en relación con el Treaty Making Power nacional.
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aplicación al ordenamento brasileño.
que se acaba de hacer referencia, los mismos textos fundamentales admiten que el
Derecho Internacional puede “colaborar” con el derecho interno, completando sus
dictados y llegando incluso allí donde los textos constitucionales no llegan.
Sistematizando la práctica presente en el Derecho Comparado, y utilizando parámetros racionales, pueden describirse dos categorías de cooperación entre
fuentes internas –especialmente de rango constitucional- y fuentes externas. Debe
apuntarse como premisa, no obstante, que estas categorías –da fácil distinción en
el plano teórico-, no se identifican de forma tan nítida en la práctica, porque los
intérpretes de la Constitución utilizan los mismos tratados internacionales unas
veces en aplicación de una de ellas y otras en aplicación de la otra.
La primera permite la apertura de la Constitución y del ordenamiento interno hacia el derecho internacional como parámetro directo de control de constitucionalidad, de modo que el derecho internacional vendría a completar los dictados constitucionales mediante el reenvío expreso o implícito de la Constitución
a fuentes externas. Esta interacción de las fuentes externas e internas permitiría
a los órganos encargados de realizar el control de constitucionalidad resolver las
dudas de ajuste de constitucionalidad – quizá fuese más apropiado hablar de ajuste
de “convencionalidad”- de las fuentes internas utilizando como parámetro de referencia tanto la Constitución formal como los tratados a las que ésta haya hecho
reenvío.
La segunda es una apertura “de menor intensidad” hacia el derecho internacional, pese a lo cual es mucho más importante porque afecta de modo transversal
al ordenamiento. La misma consiste en considerar que los tratados son parámetro
interpretativo en manos de los jueces ordinarios o de los jueces constitucionales de
suerte que existiría una cláusula de utilización preferente de las fuentes internacionales para interpretar todo o parte del texto constitucional con arreglo a lo dispuesto en dichas disposiciones externas. Esta colaboración supone la introducción
de un principio que podría se denominado “principio de internacionalidad” en la
interpretación de la Constitución nacional, parámetro hermenéutico imprescindible en los ordenamientos que no deseen permanecer al margen de la evolución internacional del derecho, especialmente en ámbitos dignos de especial atención.68
68
Incluso en algunos ordenamientos, como el español, es imprescindible acudir a el para el Tribunal Constitucional, porque existe un mandato expreso en el art. 10.2 CE al respecto. Véase Gómez Fernández, I.: Conflicto y
cooperación entre la Constitución Española y el Derecho Internacional. Op. Cit., pp. 355 y ss., y Saiz Arnaiz, A.:
La apertura constitucional al Derecho Internacional y Europeo de los derechos humanos; el artículo 10.2 de la
Constitución Española. Consejo General del Poder Judicial. Madrid, 1999.
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aplicación al ordenamento brasileño.
40. En el ordenamiento constitucional brasileño, abierto al orden internacional ya desde el Preámbulo y tal y como se ha venido analizando,69 se establece
una apertura expresa al primero de los modos de colaboración, y podría presumirse la aplicación del “principio de internacionalidad”, a pesar de que no existe un
mandato constitucional al respecto.
El reenvío tiene que ver con los tratados de derechos humanos. El art. 5.2
CFB establece que “Os direitos e garantias expressos nesta Constitução não excluem outros decorrentes do refime dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Junto a este
precepto el art. 109.5 CFB establece que
Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral
da República, con a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações
decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em
qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competència para a Justiça Federal.
Ambas disposiciones pueden interpretarse en el sentido de que los tratados
en los que se contengan derechos individuales serán capaces de ampliar el elenco de derechos constitucionalmente reconocidos, y por tanto capaces también de
constituir parámetro de enjuiciamiento en los procedimientos de protección de
derechos sean estos procesos de la esfera procesal constitucional o no lo sean. La
Constitución se abriría así de forma nítida a un ámbito del derecho internacional
fundamental, el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.70 Esto supone
la incorporación del Derecho Internacional Convencional de derechos humanos
como fuente directa de derechos subjetivos y la certeza de que la violación de estas
fuentes externas implica una vulneración constitucional que podrá ser objeto de
tratamiento judicial,71 pero no resuelve el problema de la relación de este derecho
internacional especial con el derecho interno de rango constitucional con el que
podría llegar a entrar en conflicto72 como, sin ir más lejos, sucede con el ya referido
problema de la prisión por deudas.
69
70
71
72
Perotti, A. D.: “Brasil”, Op. Cit., p. 49.
Da Silva, J. A.: Poder Constituinte e Poder Popular. Op. Cit., p. 195.
Da Silva, J. A.: Ibídem, p. 195 y Piovesan, F.: Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, Op. Cit. pp.
114 y ss.
A pesar de que, como se vio, una parte de la doctrina afirma que estos tratados se incorporan directamente al
ordenamiento interno en el nivel de las normas constitucionales. Así, Da Silva, J. A.: Poder Constituinte e Poder
Popular. Op. Cit., p. 196.
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aplicación al ordenamento brasileño.
Tanto en lo que atañe a los tratados de derechos humanos, como a los que no
afectan directamente a derechos fundamentales, el STF se muestra reticente a utilizarlos como parámetro directo de constitucionalidad de las fuentes internas con
rango de ley, argumentando que la inconstitucionalidad que debe constatarse en
el acto normativo impugnado no puede hacerse depender del análisis de contraste
entre dicho acto y un tratado internacional, cuyo rango es infraconstitucional (ADI
1347 MC/DF). No obstante no descarta que se utilicen los mismos tratados como
parámetro de control de legalidad de reglamentos o actos administrativos, supuesto en el cual, en cualquier caso, no se estaría ya ante un control de constitucionalidad que hubiera de conocerse a través del procedimiento de control concentrado,
sino en sede de la jurisdicción ordinaria y a través de los procedimientos comunes
de control de legalidad (ADI 1347 MC/DF¸ ADI 531 AgR/DF; ADI 365 AgR/DF)
Por otro lado en el ordenamiento brasileño no existe una disposición constitucional que exija a los jueces y tribunales la aplicación del “principio de internacionalidad” pero, en la medida en que existe un reenvío a las normas internacionales de Derechos Humanos, cabe suponer que tal reenvío comprende la obligación
de someter la interpretación de las normas constitucionales a las disposiciones
internacionales, y especialmente a la interpretación que de ellas hagan los Tribunales internacionales creados al efecto, ya que si cabe abrir el texto de la Constitución
a fuentes internacionales, por qué no iba a poderse adaptar la interpretación de la
Constitución a las mismas fuentes, máxime cuando entre los principios que deben
regir las relaciones internacionales de Brasil se encuentra el de prevalencia de los
derechos humanos (art. 4.II CFB).73 En este sentido parece ir el pronunciamiento
del STF en la ADI 1675 MC/DF:
A Convenção 126 da OIT reforça a argüição de inconstitucionalidade: ainda
quando não se queira comprometer o Tribunal com a tese da hierarquia
constitucional dos tratados sobre direitos fundamentais ratificados antes
da Constituição, o mínimo a conferir-lhe é o valor de poderoso reforço à
interpretação do texto constitucional que sirva melhor à sua efetividade:
não é de presumir, em Constituição tão ciosa da proteção dos direitos fundamentais quanto a nossa, a ruptura com as convenções internacionais que
se inspiram na mesma preocupação.
73
Gómez Fernández, I.: “Los Tratados Internacionales como objeto y parámetro de control de constitucionalidad
y la Constitución Política de Ecuador”, en Derecho procesal constitucional. Pablo Pérez Tremps (Dir), Corporación Editora Nacional/Instituto de Derecho Público Comparado, Quito (Ecuador), 2005.
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FERNÁNDEZ, Itzíar Gómez. Siete cuestiones sonre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y su
aplicación al ordenamento brasileño.
8El papel de las teorías clásicas y de los jueces en
la fijación de un modelo de relaciones entre el
derecho interno y el derecho internacional
41. Todavía es muy frecuente encontrar entre los investigadores especializados en derecho constitucional, derecho internacional, o “derecho constitucional
internacional”74 denodados esfuerzos por clasificar los ordenamientos jurídicos
nacionales en una de los dos modelos teóricos clásicos surgidos en los albores del
siglo XX que explican las relaciones entre las fuentes internas y las fuentes externas.75 Estas dos grandes teorías76 son el monismo77 y el dualismo o pluralismo.78
El modelo monista establece el dogma de la unidad de ordenamientos que
implica que el orden jurídico internacional y el orden nacional se integran en un
ordenamiento jurídico universal, razón por la cual no sólo poseen los mismos
sujetos, objeto y fuentes,79 sino que además todas las fuentes internacionales se
incorporan directamente al ordenamiento interno una vez adquirieran vigencia
internacional. Esta doctrina se divide en dos corrientes que se distinguen por el
tipo de relaciones que describen entre las fuentes de ese “ordenamiento universal”.
Según el monismo nacionalista, ha de proclamarse la superioridad de los órdenes
internos sobre el internacional, mientras que el monismo internacionalista proclama la superioridad del orden internacional.
Por su parte el dualismo considera que existen dos sistemas separados, el
nacional y el internacional, que conforman círculos tangentes que no se interseccionan, de manera que el derecho internacional vincularía sólo al Estado y no a los
sujetos de este último, circunstancia de la que se deriva la necesidad de que la norma de Derecho Internacional sea transformada en – recibida como o adaptada a
- una norma de derecho interno, porque de otro modo la disposición internacional,
pese a ser internacionalmente válida, no será aplicada por los jueces nacionales a
74
75
76
77
78
79
Alburquerque Mello, C.: Direito Constitucional Internacional, Op. Cit.
En este sentido, por ejemplo Mauricio Andreiuolo, que afirma que la cuestión monismo versus dualismo,
es un asunto todavía actual. Andreiuolo Rodrigues, M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos
Humanos e a Constituição”, Op. Cit., p. 161.
A las que se refire el autor brasileño Grandino Rodas, J. : Tratados Internacionais, item n.8, RT, 1991, p. 17.
Entre cuyos teóricos destaca Han Kelsen que lo pone de manifiesto en obras como Teoría General del Derecho
y del Estado. Op. Cit., p. 457, o “La transformation de droit international en droit interne ”. Révue Génerále de
Droit International Public, 1936, pp. 35 y ss.
Defendido en Alemania por Triepel, H., Völkerrecht und Landesrecht, Leipzig 1899, y en Italia por Anzilotti, D.,
Il diritto internazionale nei giudizi interni, Bologna 1905,
Vide Kelsen, H.: “La transformation du droit international en droit interne”. Op. Cit., pp 35 y ss.
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aplicación al ordenamento brasileño.
las relaciones entre particulares.80 Todo ello indica que en un sistema dualista el
tratado internacional no vincula directamente más que al poder legislativo, obligado a elaborar una norma, generalmente con rango de ley, que incorpore el tratado
internacional al ordenamiento jurídico interno, de modo tal que semejante orden
de ejecución sirva de puente de comunicación entre esos dos círculos tangenciales
del derecho interno y el derecho internacional.81
42. Estas teorías ofrecen una notable ventaja didáctica y un indudable interés histórico, pero la cuestión es que semejantes formulaciones teóricas apenas
pueden identificarse con carácter puro en ningún ordenamiento, sino que en todos
y cada uno de ellos pueden encontrarse instrumentos de articulación de las fuentes
internas y las fuentes internacionales que se aproximan tanto a una teoría como
a otra. Estas formulaciones teóricas, preconcebidas y apriorísticas,82 no explican
toda la complejidad de los sistemas y es que a principios del siglo XXI, casi un siglo
después de que consolidasen las doctrinas apuntadas, la morfología del sistema
de fuentes internacional ha cambiado sustancialmente, pasándose de un sistema
en que predominaban las fuentes de derecho internacional general a otro en el
que se propugna la codificación y por tanto se considera el derecho internacional
convencional como grupo normativo prioritario.83 Además ha hecho su aparición
el derecho internacional de integración, que obliga a los Estados que lo asumen a
someterse con un mayor grado de cesión de soberanía a los dictados de este ordenamiento, sumisión que impide la aplicación de los modelos monista o dualista,
sencillamente porque no encajan en el planteamiento integracionista.
Los textos constitucionales van a recoger la opción del constituyente relativa a un modelo de relaciones entre las fuentes internas y las fuentes internacionales, pero sin situarse necesariamente en una u otra impostación teórica y algunos
elementos destacados de ese modelo llevarán a los teóricos a elaborar su exégesis
del sistema desde una perspectiva o desde la opuesta, con lo cual casi cualquier
dato normativo, casi cualquier disposición constitucional podrá ser interpretada
tanto desde el enfoque de la unidad como de la pluralidad de ordenamientos. Dicho
de otro modo los datos legislativos positivos de los ordenamientos estatales son
absolutamente neutrales, porque lo único que resulta determinante para clasificar
80
81
82
83
Strozzi, G.: Il diritto dei tratatti. G. Giappichelli Editore. Torino, 1999, p. 131
Andreiuolo Rodrigues, M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos Humanos e a Constituição”,
Op. Cit., pp. 162.
Wildhaber, L.: Treaty-Making Power and Constitution. Helbing and Lichtenhahn. Basel und Stuttgart, 1971.
Cançado Trindade -Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Op. Cit., p. 22- califica de polémica
clásica, estéril y ociosa la discusión entre dualistas y monistas.
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aplicación al ordenamento brasileño.
a un ordenamiento dentro de una u otra corriente, es la solución teórica escogida
por el intérprete para definir las relaciones entre Derecho internacional y derecho
interno.84
43. La doctrina mayoritaria brasileña se adhiere a la posición monista85
así como una buena parte de la jurisprudencia del Supremo Tribunal Federal (RE
24006, Rp 803/DF, RE 71154/PR), porque esta es la corriente que se impone después de la Segunda Guerra Mundial, con lo cual interpretan los preceptos constitucionales que hasta aquí se han venido refiriendo desde esta perspectiva. Dentro
de esta concepción mayoritaria una parte de esa doctrina concede prioridad al derecho internacional, mientras que otra se lo concede al derecho interno tal y como
se ha referido.
No obstante una posición dualista moderada minoritaria86 estima que puede calificarse de dualista el modelo brasileño y ello porque el decreto presidencial
que promulga el tratado internacional actuaría como instrumento de adaptación
de la fuente externa al orden interno, y sería imprescindible para dotar de validez
interna a dicha fuente internacional. Esta posición también es acogida por el propio Supremo Tribunal Federal tal y como se observa en el siguiente fragmento de
su pronunciamiento CR 8279/AT:
Não obstante a controvérsia doutrinária em torno do monismo e do dualismo tenha sido qualificada por CHARLES ROUSSEAU (...) como mera
“discussion d’école”, torna-se necessário reconhecer que o mecanismo de
recepção, tal como disciplinado pela Carta Política brasileira, constitui a
mais eloqüente atestação de que a norma internacional não dispõe, por autoridade própria, de exeqüibilidade e de operatividade imediatas no âmbito
interno (...).Não obstante tais considerações, impende destacar que o tema
concernente à definição do momento a partir do qual as normas internacionais tornam-se vinculantes no plano interno excede, em nosso sistema
jurídico, à mera discussão acadêmica em torno dos princípios que regem o
monismo e o dualismo, pois cabe à Constituição da República - e a esta, somente - disciplinar a questão pertinente à vigência doméstica dos tratados
internacionais. Sob tal perspectiva, o sistema constitucional brasileiro - que
84
85
86
Defiende esta posición La Pergola A.: “La transformación del Derecho Internacional en derecho interno y la
teoría de Hans Kelsen”. REDI. 1961, vol. XXIV, p. 470. Desarrolla esta idea a lo largo de todo el artículo, pero
profundiza en esta línea de pensamiento en su obra principal sobre esta cuestión Constitución del Estado y
normas internacionales. UNAM. México, 1985.
Por todos ellos Andreiuolo Rodrigues, M.: “Os Tratados Internacionais de Porteção dos Direitos Humanos e a
Constituição”, Op. Cit., pp.164; Da Silva, J. A.: Poder Constituinte e Poder Popular. Op. Cit. p. 195 y Piovesan, F.:
Direitos Humanos e Direito Constitucional Internacional, Op. Cit. pp. 114 y ss.
Alburquerque Mello, C.: “O §2º do art. 5º da Constitução Federal”, Op. Cit. pp. 21 y 22
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aplicación al ordenamento brasileño.
não exige a edição de lei para efeito de incorporação do ato internacional ao
direito interno (visão dualista extremada) - satisfaz-se, para efeito de executoriedade doméstica dos tratados internacionais, com a adoção de iter
procedimental que compreende a aprovação congressional e a promulgação executiva do texto convencional (visão dualista moderada).
44. En cualquier caso, lo determinante no va a ser tanto la calificación doctrinal que se haga del modelo, sino los efectos que los jueces y tribunales puedan
derivar de tal calificación o de los preceptos constitucionales relativos a la incorporación y relación de las fuentes externas con el ordenamiento interno. Finalmente
va a ser la actitud de los jueces, favorable a la máxima apertura del derecho interno
al internacional o la actitud de defensa férrea del orden interno frente a las innovaciones procedentes del derecho internacional la que determinará de modo más
realista la posición del ordenamiento interno en relación con el internacional, la
situación de primacía de las normas internas o de las normas internacionales allí
donde no haya dicción constitucional expresa.
Apenas unos ejemplos ilustran esta afirmación.
En España, con un control de constitucionalidad de tratados concentrado,
prevalece un cierto self restraint por parte del juez constitucional que procura forzar la interpretación conforme entre tratados y Constitución a sabiendas de que,
tal y como están diseñados los procesos de control, en la mayoría de los casos la
declaración de inconstitucionalidad va a llevar aparejada la automática ineficacia
del tratado y la consiguiente responsabilidad internacional por incumplimiento, o,
en el mejor de los casos, va a forzar la renegociación o denuncia del tratado, con las
dificultades que eso genera. Al mismo tiempo el Tribunal Constitucional español
utiliza de forma clara, expresa y recurrente el derecho internacional de los derechos
humanos como pauta interpretativa de los derechos contenidos en la Constitución Interna. Así puede definirse que es el Tribunal el que marca una apertura al
derecho internacional por la vía interpretativa y una cierta precaución a desvelar
conflictos claros entre tratados y Constitución que lo obliguen a tomar partido por
la supremacía de uno o de otro.
En los sistemas de control difuso, como en Estados Unidos, en la medida
en que la declaración de inconstitucionalidad sólo implica la inaplicación del tratado en el caso concreto, los jueces son más propensos a pronunciarse contra la
constitucionalidad del tratado, porque son conscientes de que las consecuencias
internacionales serán de menor calado.87 Además, también en Estados Unidos, la
87
Wildhaber, L.: Treaty-Making Power and Constitution. Op.Cit.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 79-125, jan./jun. 2006.
FERNÁNDEZ, Itzíar Gómez. Siete cuestiones sonre las relaciones entre el Derecho Internacional Público y el Derecho interno y su
aplicación al ordenamento brasileño.
apertura de la Supreme Court al derecho internacional o sencillamente al derecho
extranjero es muy pequeña,88 de modo que podríamos decir que el sistema es un
sistema en que cala poco el derecho internacional y en el que se da primacía clara
al derecho interno.
En Brasil son pocos los casos en que el Supremo Tribunal ha declarado la
inconstitucionalidad de un tratado internacional y los jueces ordinarios también
son tímidos al respecto (STF Rp 803/DF, en que declara inconstitucional algunas
disposiciones de la Convención nº 110 de la OIT).89 Se trata de un tema poco analizado por los jueces, omisión que muestra el escaso papel que las relaciones internacionales juegan en la vida “ordinaria” de los poderes públicos de brasil y de sus
ciudadanos. Y a ello se añade que, cuando el tema es tratado, en muchas ocasiones
se pone de manifiesto la priorización de la ley interna frente al tratado, tal y como
se ha venido analizando, con lo cual se dan a menudo desconexiones entre la vigencia interna y la internacional del tratado, con el devengo de responsabilidad
internacional del Estado que eso supone.90
En cierto modo podría decirse que, pese a las proclamaciones internacionales y al diseño teórico y formal del modelo de integración de las fuentes externas en
el ordenamiento brasileño, los jueces no acaban de reconocer la apertura internacional de ese ordenamiento que la Constitución parece proclamar. Ahora es preciso
esperar y ver si la enmienda 45 trae como consecuencia la modificación de esa línea jurisprudencial prioritaria, y la consiguiente apertura de los jueces brasileños,
a las normas internacionales.91
88
89
90
91
Esta cuestión, del uso del derecho internacional y el Derecho Comparado, como parámetro de referencia susceptible de ser utilizado por la Supreme Court, se ha replanteado entre la doctrina norteamericana tras la
sentencia del caso Roper v. Simmons, 125 S. Ct. 1183, 1199 (2005).
Alburquerque Mello, C.: “O direito Internacional Publico no Direito Brasileiro”, Op. Cit. p. 306.
Alburquerque Mello, C.: “O §2º do art. 5º da Constitução Federal”, Op. Cit. pp. 21 y 22
Alburquerque de Mello, C.: Ibídem, p. 28
125
Doutrina
nacional
INIMPUTABILIDADE PENAL E JUIZADOS ESPECIAIS CRIMINAIS
Antonio Carlos da Ponte*
Palavras-chave: Composição civil. Transação penal. Suspensão condicional do processo. Ausência total ou parcial de higidez mental e Lei nº 9.099/95.
1Considerações gerais
Com base em preceito constitucional (artigo 98, Inciso I, da Constituição Federal), a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, criou os Juizados Especiais Cíveis
e Criminais, trazendo ao mundo jurídico um novo sistema de natureza instrumental
e obrigatório destinado à rápida solução dos litígios de pequena monta, alguns dos
quais considerados de pequeno potencial ofensivo.
O diploma em apreço não retirou o caráter ilícito de nenhuma infração penal,
mas disciplinou certas “medidas despenalizadoras”, que buscam evitar a aplicação
*
Promotor de Justiça e Vice-Diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP. Mestre e Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor de Direito Penal dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação da PUC-SP.
Professor do Curso de Pós-Graduação da Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE).
Dispõe o artigo 98 da Constituição Federal, in verbis: “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os
Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a
conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor
potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei,
a transação e o julgamento de recursos por turmas e juízes de primeiro grau ...”.
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PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade penal e juizados especiais criminais.
da pena privativa de liberdade ou medida de segurança detentiva, tendo como ponto
básico a conciliação. Podem ser apontadas como principais “medidas despenalizadoras” introduzidas pela Lei nº 9.099/95, as seguintes:
1ª) nas infrações de menor potencial ofensivo de iniciativa privada ou pública
condicionada, havendo composição civil, resulta extinta a punibilidade (artigo 74,
parágrafo único); 2ª) não havendo composição civil ou tratando-se de ação pública incondicionada, a lei prevê a aplicação imediata de pena alternativa (restritiva
ou multa) (artigo 76); 3ª) as lesões corporais culposas ou leves passam a requerer
representação (artigo 88); 4ª) os crimes cuja pena mínima não seja superior a um
ano permitem a suspensão condicional do processo (artigo 89).
A transação (artigo 76), a representação (artigo 88) e a suspensão condicional do processo (artigo 89) são institutos que possuem, concomitantemente, natureza penal e processual penal, visto que produzem efeitos imediatos dentro da fase
preliminar ou do processo, além de provocarem reflexos na pretensão punitiva do
Estado.
2Composição civil
A Lei dos Juizados Especiais prevê a composição civil, que pode ser realizada
antes da transação penal ou de formulada a acusação.
Na audiência preliminar, presentes o autor do fato, a vítima e, se possível, o
responsável civil, acompanhados de advogado, bem como o representante do Ministério Público, o juiz de direito togado ou, na sua falta, um conciliador sob sua
orientação esclarecerá sobre a possibilidade e as conseqüências advindas de eventual
composição dos danos.
Ocorrendo a composição civil, esta será reduzida a escrito e, depois de homologada pelo juiz de direito, mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título
judicial a ser executado no juízo cível, na hipótese de seu descumprimento.
GRINOVER, Ada Pellegrini et alii. Juizados Especiais Criminais – Comentários à Lei 9.099, de 26.09.95.
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, p. 18-19.
Dispõe o parágrafo único do artigo 73 da Lei nº 9.099/95, que: “Os conciliadores são auxiliares da Justiça, recrutados, na forma da lei local, preferentemente entre bacharéis em Direito, excluídos os que exerçam funções
na administração da Justiça Criminal”.
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PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade penal e juizados especiais criminais.
No caso de ação penal pública condicionada ou de iniciativa privada, a composição civil importará na renúncia ao direito de representação ou de queixa, com
reflexos na punibilidade do agente, que será extinta (artigo 74, parágrafo único, da
Lei nº 9.099/95).
Na ação penal pública incondicionada, a reparação do dano permite reconhecer o arrependimento posterior (artigo 16 do Código Penal), que traz como efeito
a redução da pena em eventual transação penal ou até mesmo na sentença penal
condenatória que venha a ser proferida no rito sumaríssimo.
Ao admitir a possibilidade de conciliação civil, a Lei n º 9.099/95 valorizou a
vítima, dando expressão concreta a um dos objetivos fixados pelo artigo 62 do citado
diploma legal, qual seja, a efetiva reparação do dano.
3Transação penal
O Ministério Público, havendo representação ou tratando-se de crime de ação
penal pública incondicionada, desde que não seja caso de arquivamento, está legitimado a oferecer proposta de transação penal, com a aplicação imediata de pena
restritiva de direitos ou multa, nas contravenções penais e nos crimes, cuja pena máxima abstratamente considerada seja igual ou inferior a dois anos; respeitadas as
vedações contidas no § 2º do artigo 76 da Lei nº 9.099/95.
Afrânio Silva Jardim defende a tese de que na própria proposta de transação
penal encontra-se embutida a acusação, contendo imputação e pedido de aplicação
da pena. Sustenta o eminente professor que,
presentes os requisitos do § 2º do artigo 76, poderá o Ministério Público exercer
a ação penal de dois modos: formulando a proposta de aplicação de pena não
privativa de liberdade, após atribuir ao réu a autoria ou participação de uma
determinada infração penal, ou apresentar a denúncia oral. Nas duas hipóteses,
estará o Ministério Público manifestando em juízo uma pretensão punitiva estatal. Assim, a discricionariedade que existe está adstrita apenas entre exercer
um tipo de ação penal ou o outro. Faltando um daqueles requisitos, não cabe a
A renúncia ao direito de queixa, em hipótese de reparação do dano, constitui exceção à regra, já que o artigo
104 do Código Penal cuida de forma diversa da questão. Com efeito, dispõe o aludido dispositivo legal: “Art.
104. O direito de queixa não pode ser exercido quando renunciado expressa ou tacitamente.
Parágrafo único. Importa renúncia tácita ao direito de queixa a prática de ato incompatível com a vontade de
exercê-lo; não a implica, todavia, o fato de receber o ofendido a indenização do dano causado pelo crime”.
SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo Penal Constitucional. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1999, p. 204.
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proposta e o Ministério Público terá o dever de oferecer a denúncia, tendo em
vista o princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal.
Efetivada a proposta de transação penal pelo órgão do Parquet, aceita pelo
acusado e seu defensor e, finalmente, homologada pelo juiz, impõe-se pena restritiva
de direitos ou multa a pessoa apontada como autora da infração penal.
Se a pena restritiva de direitos, objeto de homologação judicial, não for cumprida, ou ainda, se a multa aplicada não for honrada sem motivo justificado, haverá
a conversão daquela em privativa de liberdade, enquanto a sanção pecuniária será
considerada dívida de valor, aplicando-se-lhe, nos termos do artigo 51, “caput”, do
Código Penal, as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública,
inclusive no que concerne às causas interruptivas e suspensivas da prescrição.
A sentença que homologa a transação penal não é considerada condenatória
em sentido próprio, posto que não reconhece a culpabilidade do agente e, tampouco,
gera reincidência. Devido a este último motivo, não impede a concessão do sursis
em outro processo, não influi na fixação do regime inicial de cumprimento da pena
em relação a delito apurado em outro feito e não obriga o lançamento do nome do
acusado no rol dos culpados, dentre outros efeitos. Seu registro busca apenas inviabi
JARDIM, Afrânio Silva. Ação Penal Pública – Princípio da Obrigatoriedade. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,
1998, p. 101.
Manifestando-se a respeito do assunto em discussão, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, em venerando acórdão relatado pelo eminente Ministro José Arnaldo da Fonseca, emitiu o seguinte entendimento:
“A sentença homologatória de transação penal, por ter natureza condenatória, gera a eficácia da coisa julgada
formal e material, impedindo, mesmo no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração
da ação penal. Havendo transação penal homologada e aplicada pena de multa, não sendo paga esta, impõese a aplicação conjugada do artigo 85 da Lei 9.099/95 com o artigo 51 do Código Penal, com a conseqüente
inscrição como dívida ativa da Fazenda Pública, a fim de ser executada pelas vias próprias” (RT 768/542).
No mesmo sentido, também se encontram os seguintes julgados: “A multa acordada entre as partes e homologada pelo julgador, na forma do artigo 76 da Lei 9.099/95, não pode vir a ser revogada por falta de pagamento
ou descumprimento de condição estabelecida em transação penal. A sentença homologatória tem natureza
condenatória e gera eficácia de coisa julgada material e formal, obstando a instauração de ação penal contra
o autor do fato, se descumprido o acordo homologado. No caso de descumprimento da pena de multa, conjuga-se o artigo 85 da Lei 9.099/95 e o 51 do Código Penal, com a nova redação dada pela Lei 9.268/96, com a
inscrição da pena não paga em dívida ativa da União para ser executada” (Habeas Corpus 10.198-SP – 5ª T.
– j. 02.12.1999 – rel. Min. Gilson Dipp – DJU 14.02.2000 – RT 777/570).
“A homologação de acordo resultante de transação penal, prevista no artigo 76 da Lei 9.099/95, é decisão interlocutória mista com força terminativa, posto que não resolve a responsabilidade criminal ou a inocência do
réu. No entanto, o trânsito em julgado daquela decisão homologatória implica também o trânsito em julgado
do fato gerador da relação processual, acobertado pela coisa julgada material, motivo suficiente a impedir a
instauração nova ação penal em razão do autor do fato não ter cumprido a obrigação assumida” (TACRIM-SP
– Ap. 1.179.757/5 – 4ª Câm. – j. 22.02.2000 – rel. Juiz Marco Nahum – RT 779/597).
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PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade penal e juizados especiais criminais.
lizar idêntica concessão no prazo de cinco anos (artigo 76, § 4º). Porém, não pode ser
considerada como sentença meramente homologatória, como sustenta respeitável
corrente doutrinária e jurisprudencial, uma vez que gera a eficácia de coisa julgada
formal e material, impedindo, no caso de descumprimento do acordo pelo autor do
fato, a instauração da ação penal.
Possuindo natureza jurídica condenatória – visto que impõe uma sanção,
ainda que não privativa de liberdade, a decisão homologatória da transação
faz coisa julgada material, não sendo, pois, passível de ser desconstituída em
face do descumprimento do acordo, porquanto a sua eficácia não se condiciona ao cumprimento da multa ou da pena restritiva de direitos.
Como bem observa Weber Martins Batista,
esgotados os recursos cabíveis da decisão que homologou a transação penal, ou ultrapassado o prazo da lei sem interposição dos mesmos, aquela
decisão não pode mais ser modificada. A não ser, como evidente, para beneficiar o autor do fato, pois dela pode caber revisão criminal. Nunca, no
entanto, em desfavor dele.10
Não havendo composição civil e, tampouco, transação penal, o promotor de
justiça, se não houver necessidade da realização de diligências imprescindíveis, oferecerá denúncia oral, nos termos do artigo 77, caput, da Lei nº 9.099/95, que trata do
início do procedimento sumaríssimo, a qual será reduzida a termo, entregando-se
cópia a pessoa apontada como autora da infração, na forma de citação, e prosseguindo-se o feito nos moldes dos artigos 78 e seguintes da lei indicada.
4Suspensão condicional do processo
Extrai-se do disposto no artigo 89 da Lei nº 9.099/95 que a suspensão condicional do processo será cabível nas infrações penais, cuja pena mínima cominada for
10
Cf. GRINOVER, Ada Pellegrini et alii, op. cit. p. 134; BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. 3ª ed. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 1997, p. 107. Este último
tratadista defende que a decisão homologatória da transação penal é uma “sentença declaratória constitutiva”.
Voto parcial do Ministro José Arnaldo da Fonseca, proferido no REsp 190.319-SP – 5ª T. – j. 20.04.1999 – DJU
24.05.1999 – RT 768/543.
Juizados Especiais Criminais e Suspensão Condicional do Processo. Rio de Janeiro, Forense, 1996, p. 331.
Cf., na mesma linha, PAZZAGLINI FILHO, Marino et alii. Juizado Especial Criminal. São Paulo, Atlas, 1997,
p. 90; MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 4ª ed. São Paulo, Atlas, 2000, p. 142.
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igual ou inferior a um ano. Denominada de sursis processual, não se confunde com o
sursis propriamente dito, que pressupõe a existência de uma sentença penal condenatória transitada em julgado; e muito menos com a probation anglo-saxônica, onde
ocorre apenas a suspensão da sentença condenatória.11
A suspensão condicional do processo faz com que o feito seja suspenso desde o início, isto é, após o recebimento da petição inicial acusatória.12 Isso acontece
desde que o Ministério Público, presentes os requisitos legais, ofereça a proposta de
suspensão, esta seja aceita pelo acusado e, em seguida, deferida pelo juiz de direito.
De acordo com Luiz Flávio Gomes,
o que temos, em síntese, é a paralisação do processo, com potencialidade extintiva da punibilidade, caso todas as condições acordadas sejam cumpridas,
durante o período de prova. Concretizado o plano traçado consensualmente,
sem que tenha havido revogação, resulta extinta a punibilidade, isto é, desaparece a pretensão punitiva estatal decorrente do fato punível descrito na
denúncia.13
Trata-se a suspensão condicional de
mais uma espécie de transação processual, autorizada por expressa disposição da Constituição Federal (artigo 98, Inciso I) e fundada no denominado
‘espaço de consenso’ em área processual penal, atenuando-se os princípios da
obrigatoriedade da ação penal, do devido processo legal, da ampla defesa e do
contraditório. É possível, com o consenso do acusado, que exerce uma faculdade dispositiva a respeito das citadas garantias, evitar a instrução, o debate
11
12
13
Na probation, em primeiro lugar, há a declaração da culpabilidade (conviction) e, posteriormente a sentença
(sentence), na qual se impõe a pena ou a medida adequada ao caso.
A mesma opinião é compartilhada pela jurisprudência, ao sustentar que: “A suspensão condicional do processo, quando for o caso, poderá ser proposta ao réu e a seu defensor somente após o recebimento da denúncia e
nunca antes deste ato, visto que não se suspende a ação penal que ainda não existe, cabendo ao representante
do Ministério Público, por outro lado, formular a oferta do benefício legal juntamente com a inicial acusatória,
sob pena de protelamentos indesejáveis, com reflexos na regularidade da persecução penal” (TAMG – RSE
281.134-3 – 1ª Câm. – j. 18.08.1999 – rela. Juíza Jane Silva – RT 777/706).
“... Tal disposição cuida da proposta de suspensão do processo, viabilizando-a, tão-somente, ao instante do
oferecimento da denúncia, o que faz evidente que, se é esse o momento adequado à proposta de suspensão,
não poderá ela sobrevir após a prolação da sentença de primeira instância. Assim sendo, acarretaria maiores
entraves, maior burocracia e maior retardamento na prestação jurisdicional – o contrário dos propósitos do
legislador, i.e, a eliminação dos incovenientes e da inocuidade de uma ação penal relativa a delitos havidos
como de menor gravidade, conferindo-lhes uma solução breve e prática” (Voto parcial do Desembargador
relator Renato Talli, proferido na Ap. 205.935-3/2 – TJSP).
GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995.
p. 124.
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do mérito da causa e a aplicação da sanção penal com a aceitação das condições obrigatórias e facultativas impostas com a suspensão do processo.14
Em verdade, o instituto analisado criou uma espécie de transação de natureza
nitidamente processual, onde o réu não admite a culpa ou vê declarada sua inocência.
Ela não se confunde com a transação do artigo 76 da mesma lei, que possui aspectos
notadamente penais, posto que, em virtude dela, há a aplicação de pena restritiva de
direitos ou de multa em lugar de pena privativa de liberdade.
A conseqüência penal do sursis processual é a extinção da punibilidade, desde que cumpridas todas as condições previamente estabelecidas. Enquanto isso não
acontece, o ius puniendi do Estado permanece incólume.
O artigo 89 da Lei nº 9.099/95 assegura ao Ministério Público, com exclusividade, a iniciativa de proposta de suspensão condicional do processo; devendo, para
tanto, o titular da ação penal agir com discricionariedade regrada, não optando por
um caminho ou outro arbitrariamente.15 No entanto, existem vozes em contrário, sus14
15
MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2000. p. 245.
A respeito do assunto tratado, a jurisprudência tem-se manifestado nos seguintes termos: “Com o advento da
Lei 9.099/95, a propositura da suspensão processual, quando cabível, passou a ser ato essencial, cuja omissão
justifica a nulidade da sentença. Em razão de sua natureza, a suspensão condicional do processo significa
poder-dever do Ministério Público, obrigando-o sempre que a denúncia versar sobre crime cuja pena mínima não exceda a um ano, a se pronunciar sobre a suspensão, em sentido positivo ou negativo” (TJCE – Ap.
97.03821-6 – 2ª Câm. – j. 07.12.98 – rel. Des. José Evandro Nogueira Lima – RT 768/636).
“... Cabendo ao Ministério Público exclusiva promoção da ação penal pública, nos termos do artigo 129, Inciso
I, da Constituição Federal, e mencionando o artigo 89 da Lei 9.099/95 que o ‘Ministério Público, ao oferecer a
denúncia, poderá propor a suspensão do processo’, é certo que a interpretação mais consentânea é de que se
trata de faculdade do órgão da Justiça Pública, não podendo o juiz agir de ofício.
Não se trata de sursis, onde já terminada a ação penal exsurge direito subjetivo do réu à suspensão da pena,
onde tem o juiz o dever, presentes os requisitos legais, de concedê-la.
No caso da suspensão do processo não se tem sequer condenação, não podendo, pois, o juiz agir ex officio,
fazendo as vezes do órgão titular da ação penal.
Impera no Processo Penal o princípio obrigatoriedade de propositura da ação penal, vigendo, em fase de
denúncia, o princípio in dubio pro societate.
Assim, não pode o juiz imiscuir-se indevidamente na ação em curso para, passando sobre manifestação ministerial, conceder a suspensão do processo.
Caso pretendesse que tal benefício fosse direito público subjetivo, tal fato viria descrito no texto legal e não se
usaria a palavra poderá dirigida ao Órgão Ministerial.
Também o texto legal não mencionou que o juiz poderia agir ex officio para concessão deste benefício.
Dessa forma, o que a lei não distinguiu, não cabe ao intérprete fazê-lo...” (Voto parcial do Juiz relator Damião
Cogan, proferido na Ap. 1.142.949/5. TACRIM-SP – 1ª Câm. – j. 15.07.1999 – RT 771/612).
“Lei 9.099/95. Suspensão condicional do processo. Direito subjetivo do réu. Inocorrência. Análise de aspectos
objetivos e subjetivos. Necessidade: a suspensão condicional do processo, disciplinada no artigo 89 da Lei
9.099/95, não é um direito do denunciado, mas faculdade do Ministério Público, que exige, além da primarie-
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tentando que o instituto em questão configura direito subjetivo do acusado, podendo,
assim, ser concedido ex officio pelo juiz, na ausência de proposta do Parquet.16
Como bem destaca Mirabete,
o Ministério Público é o titular, privativo, da ação penal pública, afastada a
possibilidade de iniciativa e, portanto, de disponibilidade por parte do juiz
(artigo 129, Inciso I, da Constituição Federal). Não pode, portanto, a lei, e
muito menos uma interpretação extensiva dela, retirar-lhe o direito de pedir a prestação jurisdicional quando entende que deva exercê-la. Consagrado pela Constituição Federal o sistema acusatório, em que existe separação
orgânica entre o órgão acusador e o órgão julgador, não pode um usurpar a
atribuição ou competência do outro.
Mais adiante, arremata o autor, que
não é possível concluir-se que um instituto, fundado no ‘espaço de consenso’
do processo penal, seja aplicado quando não há o assentimento de uma das
partes. A concessão do benefício sem a concordância do Ministério Público
desnatura a relação própria dessa espécie de transação admitida pela Constituição Federal. Consenso é ato bilateral, acordo, livre adesão de vontades e,
onde há obrigatoriedade ou imposição a uma das partes, não se pode falar
em transação ou consenso.17
Some-se aos argumentos lançados, que o juiz de direito, de ofício, não pode
estipular as condições de uma proposta de suspensão condicional do processo contra
a vontade ou à revelia do titular da ação penal pública. Insistir no posicionamento em
contrário significa admitir que o magistrado poderia dispor do direito de ação que
não lhe pertence; impedindo, com isso, que o legítimo titular do referido direito continuasse a exercê-lo. A conseqüência imediata da adoção de tal tese seria a aceitação,
16
17
dade, a análise de aspectos subjetivos e objetivos a demonstrar a sua suficiência e necessidade” (TACRIM-SP
– 7ª Câm. – Proc. 286.076 – rel. Juiz Rubens Elias – j. 01.02.1996, rolo-flash 1.018/433).
“Lei nº 9.099/95. Suspensão condicional do processo. Ausência de oferecimento da proposta pelo Ministério
Público. Aplicação ex officio pelo juiz. Impossibilidade, aplicação do artigo 28 do Código de Processo Penal.
Necessidade: em sede da Lei nº 9.099/95, no caso de não oferecimento de proposta de suspensão condicional
do processo pelo Ministério Público, não pode o juiz aplicá-la ex officio devendo remeter os autos ao Procurador Geral da Justiça, por analogia do artigo 28 do Código de Processo Penal, vez que, assim, preserva a autonomia de vontade das partes e vai de encontro com o objetivo da lei ao instituir a transação penal” (TACRIM-SP
– 12ª Câm. – Proc. 1.017.745 – rel. Juiz Walter Guilherme – j. 08.07.1996, rolo-flash 1.048/563).
Cf. RT 759/603, 749/695; RJTJERS 191/111; RJDTACRIM 40/371, 35/338; RSTJ 115/508, 117/544 e 123/403.
MIRABETE, Juizados Especiais Criminais, p. 287-288.
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ainda que indireta, da exclusão do Ministério Público da própria relação processual,
destruindo o actum trium personarum, próprio do sistema acusatório.18
A base da proposta de suspensão condicional encontra-se no princípio da
oportunidade, que confere ao Parquet o poder de optar pela via alternativa despenalizadora discutida, em prejuízo da forma clássica. Quando do oferecimento da
denúncia abrem-se-lhe dois caminhos, quais sejam, buscar a aplicação de uma
sanção ou abrir mão da atividade persecutória em benefício da via conciliatória
representada pela suspensão.19
Por outro lado, a recusa do órgão do Ministério Público, quanto ao oferecimento da proposta de suspensão, deve vir acompanhada de sólida argumentação.
A justificação pode ser fundada não só em óbices legais expressos, como a
apreciação subjetiva das circunstâncias do crime (gravidade maior do fato,
agravantes, causas de aumento de pena), mesmo as de caráter pessoal do
agente (antecedentes, personalidade, conduta social, motivação etc.) e, inclusive, por política criminal justificada... Não é justificativa aceitável, entretanto,
deixar o representante do Ministério Público de fazer a proposta por eleição
puramente objetiva de determinado delito, em critério puramente abstrato.
Deve ela referir-se às peculiaridades e circunstâncias do caso concreto, com
ênfase especial à culpabilidade do autor.20
O sursis processual implica um acordo de concessões mútuas, que não pode
ser celebrado com a finalidade exclusiva de atender aos interesses do réu. A lei não
determina ao órgão do Ministério Público que aja em determinados casos; faz justamente o contrário. Permite-lhe deixar de promover ou prosseguir na ação penal
proposta, desde que atendidos limites previamente estabelecidos no texto legal, na
política criminal por ele traçada e no bom senso. Essa é a essência daquilo que se
convencionou denominar de “discricionariedade regrada”.21
18
19
20
21
JARDIM, Op. cit., p. 102.
GOMES, Luiz Flávio. Suspensão Condicional do Processo, p. 168.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais, p. 298.
No sentido da argumentação exposta, mostra-se como irrepreensível o magistério do Professor Celso Antônio
Bandeira de Mello, para quem a discrição “é a mais completa prova de que a lei sempre impõe o comportamento ótimo. Procurar-se-á demonstrar que quando a lei regula discricionariedade a uma dada situação, ela
o faz deste modo exatamente porque não aceita do administrador outra conduta que não seja aquela capaz de
satisfazer excelentemente a finalidade legal... Com efeito, se a lei comporta a possibilidade de soluções diferentes, só pode ser porque pretende que se dê uma certa solução para um dado tipo de casos e outra solução
para outra espécie de casos, de modo a que sempre seja adotada a decisão pertinente, adequada à fisionomia
própria de cada situação, tendo em vista atender à finalidade que inspirou a regra de direito aplicanda.
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PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade penal e juizados especiais criminais.
A suspensão condicional do processo só tem lugar nas ações penais públicas
incondicionadas e condicionadas, conforme depreende-se do texto legal (artigo 89),
que simplesmente silenciou a respeito da ação penal de iniciativa privada. A suposta
omissão do legislador tem justificativa. A proposta de suspensão do processo realizada pelo Ministério Público significa a adoção do princípio da oportunidade, que
permite ao titular da ação penal transigir com o réu e, conseqüentemente, provocar a suspensão da persecutio criminis, mediante o cumprimento de determinadas
condições, estipuladas com base no texto legal, por parte do último. Por sua vez, a
ação penal de iniciativa privada já traz em seu bojo a consagração dos princípios da
oportunidade e da disponibilidade, na medida em que é entregue ao ofendido ou seu
representante legal a decisão quanto à conveniência da propositura da ação, podendo,
inclusive, no curso processual, perdoar o ofensor ou desistir da demanda, provocando, com isso, a extinção da punibilidade do agente.22
Essa orientação visa a evitar novo e penoso sofrimento à vítima que, pela
inexpressiva ofensa, desproporcional gravidade da lesão e a sanção estatal
correspondente, ou pela especialíssima natureza do crime, lesando valores
íntimos, prefere amargar a sua dor silenciosamente, posto que a divulgação
e repercussão social podem causar ao ofendido ou a seus familiares dano
maior do que a impunidade.23
A decisão que determina a suspensão condicional do processo não analisa o
mérito da demanda, ou seja, não absolve, condena ou julga extinta a punibilidade do
agente, motivo pelo qual também não gera efeitos secundários, tal como acontece na
sentença penal condenatória.
Não respeitadas as condições estabelecidas na suspensão condicional do
processo, ou ainda, verificada quaisquer das hipóteses contidas no § 3º do artigo 89
– não-reparação, injustificada, do dano ou beneficiário vem a ser processado por outro crime –, o feito volta a ter seu trâmite regular.
22
23
A existência de uma variedade de soluções comportadas em lei outorgada de discrição evidentemente não
significa que esta considere que todas estas soluções são iguais e indiferentemente adequadas para todos os
casos de sua aplicação. Significa, pelo contrário, que a lei considera que algumas delas são adequadas para
alguns casos e que outras delas são adequadas para outros casos” (O Poder Discricionário e o Controle
Jurisdicional. São Paulo, Malheiros, 1992, p. 36-37).
Cf. Ap. 275.089-3/8 – 3ª Câmara de Férias “Julho/1999” – 03.12.1999 – rel. Des. Gonçalves Nogueira – RT
777/595.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 309.
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5
Ausência total ou parcial de higidez mental e Lei
nº 9.099/95
Um dos problemas mais intrincados em matéria de Juizados Especiais Criminais refere-se à possibilidade ou não de aplicação da Lei nº 9.099/95 aos inimputáveis e semi-imputáveis. O legislador ordinário simplesmente silenciou a respeito do
assunto, não tecendo qualquer consideração. Todavia, a realidade forense, com certa
freqüência, reaviva o questionamento lançado, cuja solução não se mostra pacífica.
Baseando-se no fato de a suspensão condicional do processo ter como principal característica a manifestação livre e consciente do acusado, parte da doutrina,
representada por autores como Ada Pellegrini Grinover, Antonio Magalhães Gomes
Filho, Antonio Scarance Fernandes e Luiz Flávio Gomes, entende que ela não se aplica
aos inimputáveis, que são carentes nesse aspecto. Por outro lado, defendem a adoção
do instituto em relação aos semi-imputáveis, desde que não necessitem de especial
tratamento curativo.24
Ressalvada a convicção dos eminentes professores citados, parece, data venia,
que a melhor solução aponta para conclusão diversa.
O artigo 62 da Lei nº 9.099/95 estabelece que o Juizado Especial Criminal
orientar-se-á pelos princípios da oralidade, informalidade, economia processual e
celeridade, buscando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. O texto legal não faz referência
ao inimputável, semi-imputável e, tampouco, às medidas de segurança. Mais adiante, em seu artigo 92, a referida lei estabelece que a ela se aplicam subsidiariamente,
desde que sejam compatíveis com seu espírito, as disposições dos Códigos Penal e de
Processo Penal.
A principal preocupação do legislador ao criar institutos como a composição
civil, a transação penal e a suspensão condicional do processo, foi estabelecer, dentro
do possível, critérios objetivos e seguros para a aplicação de uma ou outra medida
despenalizadora. Não se referiu à incapacidade total ou parcial de o agente entender
e querer, em razão de referido assunto já se encontrar devidamente disciplinado no
Código Penal.
Daí, conclui-se que, do ponto de vista legal, não há qualquer óbice à aplicação
da Lei nº 9.099/95 aos inimputáveis e semi-imputáveis.
24
GRINOVER, Ada Pellegrini et al, Op. cit. p. 204-205.
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Superada essa primeira dificuldade, logo se apresenta a segunda, marcada
pelo acréscimo de considerável complexidade. Como viabilizar os institutos em estudo àqueles que não possuem higidez mental ou a apresentam de forma parcial;
mormente a composição civil e a transação penal, que não contam com o respaldo de
um inquérito policial e, muito menos, de uma ação penal em curso?
A solução ao impasse descrito encontra resposta no Código de Processo Penal.
Havendo fundada dúvida em relação à saúde mental da pessoa apontada como violadora da lei penal, deverá o representante do Ministério Público, logo que tomar conhecimento do conteúdo do termo circunstanciado, ou no silêncio deste, por ocasião
da audiência preliminar, requerer ao juiz de direito a redesignação do ato e a nomeação de um curador especial ao acusado. Não se cogita da instauração de incidente
de insanidade mental do acusado, diante dos princípios que norteiam os Juizados
Especiais Criminais, dentre os quais destacam-se a informalidade, a oralidade e a celeridade processual, que fatalmente seriam atingidos caso o feito seguisse as normas
estabelecidas pelos artigos 149 e seguintes do Código de Processo Penal.
Não há qualquer óbice legal na providência preconizada. Do mesmo modo
que o magistrado pode nomear curador especial ao ofendido menor de dezoito anos,
mentalmente enfermo ou retardado mental, que não conte com representante legal,
para que exerça o competente direito de queixa ou de representação (artigo 33 do
Código de Processo Penal), também pode fazê-lo no caso de, em tese, justificar-se a
aplicação da lei em apreço.
Na hipótese de o agente já se encontrar interditado, será o seu próprio curador
que irá assisti-lo no Juizado Especial.
Nomeado o curador especial, encargo que poderá recair sobre qualquer das
pessoas elencadas no artigo 31 do Código de Processo Penal, ou na inviabilidade de
tal solução, em pessoa da confiança do juízo, não há qualquer óbice ao transcurso regular da composição civil, que deverá contar, ainda, com o concurso do representante
do Ministério Público, ante as peculiaridades próprias destacadas.
Mostrando-se inviável a composição, passa-se, subseqüentemente, à transação penal, que demanda outras precauções em relação aos casos que a admita.
O legislador, ao traçar os objetivos das chamadas “medidas despenalizadoras”, destacou que elas objetivavam, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade. O Código Penal,
em seu artigo 32, estabelece que no Brasil são adotadas três modalidades de penas:
privativas de liberdade; restritivas de direitos; e multa. Foram descartadas as penas
corporais, as restritivas de liberdade e o confisco.
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Excluindo-se, por imposição legal (artigo 62), as penas privativas de liberdade, podem ser aplicadas nos Juizados Especiais Criminais as penas restritivas de
direitos e a multa; também modalidades de sanção penal, assim como as medidas de
segurança. Procurou o legislador evitar a imposição de privação de liberdade sem a
existência de processo, ou na suposta verificação deste, vedar a adoção de tal medida
extrema, condicionada ao respeito de condições previamente homologadas pelo juiz.
Mesmo silenciando a respeito das medidas de segurança, pode-se concluir
que a detentiva não poderia ser cogitada, visto que implicaria a internação do acusado em casa de custódia e tratamento psiquiátrico, sem a formação da culpa ou efetiva
demonstração da periculosidade do agente.
Resta, pois, discutir a medida de segurança restritiva, representada pelo tratamento ambulatorial, que não implica privação da liberdade.
Cuida o tratamento ambulatorial de modalidade de medida de segurança não
detentiva, através da qual o acusado assume o compromisso de comparecer ao hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, nos dias que forem determinados pelo
médico, a fim de ser submetido à modalidade terapêutica prevista. Não há qualquer
óbice legal a que o tratamento ambulatorial seja realizado em outro local, público ou
particular (desde que devidamente credenciado), com dependência médica adequada, sendo ainda assegurada ao paciente a contratação de médico de sua confiança
pessoal ou de sua família, a fim de orientar o tratamento.
Como se pode constatar, o tratamento ambulatorial não implica privação da
liberdade, mas, assim como as penas restritivas de direitos, está sujeito a regras.
Não há qualquer empecilho à determinação de submissão a tratamento ambulatorial do inimputável ou semi-imputável apontado como autor de infração penal
que admita a transação penal.25
25
Na mesma linha sustentada, encontra-se o voto vencido do Juiz Soares Levada, cujo teor é o seguinte: “Com
a devida vênia da douta maioria, homologava-se a transação havida, nada obstante a determinação de 1 ano
de tratamento ambulatorial não se inserir como pena e sim como medida tratativa, de segurança, visando à
melhoria das condições da saúde do réu, devidamente atestadas nos autos.
Em primeiro lugar, porque a imposição de tal medida mostra-se favorável ao réu e conforme os princípios
gerais informativos da Lei nº 9.099/95, mormente quanto à informalidade. Em segundo lugar, porque a Lei nº
9.099/95 não proíbe expressamente a cominação de medida de segurança e, ao invés, determina a aplicação
subsidiária do Código Penal (artigo 92).
Ora, se não há conflito entre normas, pois, como dito, não há vedação expressa à cominação de medida de
segurança quando esta se mostre adequada às condições pessoais do réu, aplica-se o princípio da subsidiariedade para que se imponha, favoravelmente ao réu, a medida de segurança com a qual o Ministério Público, réu
e Defensor mostraram-se de acordo, o que atinge plenamente os objetivos da lei, sem qualquer ofensa, data
venia, ao princípio da reserva legal.
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Pode, assim, o promotor de justiça oferecer proposta de transação penal, na
qual o ausente total ou parcial de higidez mental se submeta a tratamento ambulatorial. Aceitando o curador especial a proposta formulada, – que não importará na admissão de culpa, nem implicará a sujeição a efeitos civis decorrentes de uma sentença
penal condenatória ou absolutória imprópria –, caberá ao juiz de direito, desde que
a entenda compatível, deferi-la sob condição, não homologá-la. Justifica-se a cautela,
na medida em que, como já acentuado anteriormente, a sentença homologatória de
transação penal faz coisa julgada formal e material, impedindo, no caso de descumprimento do acordo pelo autor do fato, a instauração da ação penal.
Ora, se o autor do fato não se submeter regularmente ao tratamento ambulatorial, desde que homologada por sentença a transação, nada poderá ser feito, posto
que se encontra inviabilizada a propositura da competente ação penal, além do que,
a medida de segurança restritiva não poderia ser convertida em detentiva, sob pena,
agora sim, de se aplicar sanção privativa de liberdade sem o devido processo legal.
A única solução que se mostra plausível é o deferimento do acordo celebrado,
mediante condição, qual seja, o efetivo cumprimento da medida de segurança restritiva
acordada, que deverá obedecer a prazos mínimo e máximo previamente delimitados.
Cessada a periculosidade do agente ou atingido o período máximo previsto, extinguese a sua punibilidade.
Embora não previstos em lei, a proposta, a aceitação e o deferimento da sujeição a tratamento ambulatorial, além de ser medida de interesse do inimputável e da sociedade, impediria o exercício da ação penal por falta de uma
das condições da ação: interesse de agir, consubstanciado na desnecessidade
e inutilidade da tutela jurisdicional. Ao inimputável, é sabido, não se aplica
pena, mas medida de segurança, que se em cumprimento voluntário e antecipado não exige a constritiva intervenção do Estado.26
Ficando demonstrada a viabilidade da imposição de medida de segurança
restritiva em sede de transação penal, resta, finalmente, discutir a aludida sanção
com vistas à suspensão condicional do processo.
26
Pelo meu voto, pois, homologava a transação para impor 1 ano de tratamento ambulatorial ao réu, fiscalizando-se o tratamento no Juízo de origem e feitas as devidas anotações e registros para os fins do artigo 76, §§
4º e 6º, da Lei nº 9.099/95” (TACRIM-SP – Apelação Criminal 993.147/8 – 9ª Câm. – rel. Juiz Aroldo Viotti – j.
12.06.96).
COSTA, Freddy Lourenço Ruiz. Medida de Segurança e sua aplicação na Lei nº 9.099/95. In: LEX, 1998
(out.). v. 110, p. 14.
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PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade penal e juizados especiais criminais.
O sursis processual pressupõe a existência de ação penal regular, cujo andamento é obstado mediante consenso das partes, deferido pelo juiz, com a imposição
de condições legais (artigo 89, § 1º, Incisos I a IV) e judiciais (artigo 89, § 2º), que
deverão ser cumpridas pelo réu. Requisito obrigatório é que a infração atribuída ao
acusado tenha pena mínima igual ou inferior a um ano.
O não-acatamento das restrições estabelecidas ou, ainda, a não-reparação do
dano, ou o fato de o beneficiário vir a ser processado por outro crime, faz com que o
feito volte a ter seu trâmite regular (artigo 76, § 3º).
A suspensão condicional do processo, em se tratando o acusado de inimputável ou semi-imputável, apresenta solução diferenciada, comparada com a transação
penal.
Constatada a ausência de higidez mental total ou parcial em inquérito policial
regular, e instaurado o competente incidente por determinação do juízo, quando de
eventual proposta de suspensão condicional por parte do órgão do Ministério Público, o acusado já contará com curador, cabendo a este manifestar-se sobre sua aceitação ou não. Porém, caso surja dúvida sobre a saúde mental do increpado somente
em juízo, mesmo já tendo sido concretizada a proposta de suspensão, deverá o juiz de
direito suspender o processo e determinar a instauração de incidente de insanidade
mental.
Concluído o incidente e verificada a perturbação da saúde mental, depois de
nomeado curador ao acusado, o juiz deverá determinar o retorno dos autos ao promotor de justiça, para eventual aditamento à proposta de suspensão formulada. Após,
ouvirá o curador e o defensor do acusado e, finalmente, deferirá ou não a medida.
Entendendo por bem conceder a suspensão, convém ao magistrado estabelecer como condição judicial o tratamento ambulatorial que, indubitavelmente, se
adequa ao fato e à situação pessoal do acusado.
Resta observar que, ainda que o delito cometido seja apenado com reclusão,
não é possível a imposição de medida de segurança detentiva como condição para a
suspensão condicional do processo, por significar privação da liberdade; providência
expressamente desautorizada pela Lei nº 9.099/95.
Homologada a proposta de suspensão que impõe ao acusado o tratamento
curativo, observar-se-á o período de prova fixado, que deverá variar de dois a quatro
anos. Na hipótese de cura do acusado durante o período de prova, será desconsiderada a condição judicial fixada. Caso contrário, a exigência terá vigência até o término
do sursis processual.
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PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade penal e juizados especiais criminais.
Pelo exposto, fica evidente que a medida de segurança restritiva, desde que
aceita pelo curador e defensor do réu, poderá ser estabelecida como condição genérica da transação penal e condição judicial da suspensão condicional do processo.
No que diz respeito ao réu inimputável, esta é a única alternativa que torna
possível a compatibilidade entre seu estado de saúde mental e a Lei dos Juizados
Especiais Criminais. Possuindo o acusado capacidade parcial de entender e querer,
sempre que possível, deverá ser evitada a aplicação da medida de segurança restritiva, dando-se prioridade à multa e às penas restritivas de direitos.
A Lei nº 9.099/95 não traz qualquer distinção, quanto à sua aplicação, entre
imputáveis, semi-imputáveis e inimputáveis. Não seria, pois, justo e, muito menos
coerente com a proposta nela contida, simplesmente excluí-la de aplicação junto
àqueles que não possuem capacidade de entender e querer.
O ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito não pode
permitir que as pessoas que exijam maior acuidade no tratamento sejam ignoradas ou simplesmente excluídas, com base em deficiências que possam acusar ou no
próprio silêncio da lei. O inimputável e o semi-imputável devem ser tratados com
respeito e dignidade e, sobretudo, com a mesma isenção de ânimo que é assegurada ao imputável.
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CONCEITOS DE JUSTIÇA PARTICIPATIVA
Lafayette Pozzoli*
Caio Henrique Lopes Ramiro**
Palavras-chave: Justiça contextualizada. Justiça comutativa. Justiça distributiva. Justiça Social. Justiça participativa. Cidadania. Sentido atual de Justiça. Justiça e participação do cidadão. Iniciativa legislativa popular.
1
INTRODUÇÃO
Considerando a justiça como um fim social, de forma idêntica à igualdade, à
liberdade, à democracia participativa, ao bem-estar social, é possível identificar com
certa facilidade, distinções significativas e norteadoras de um melhor entendimento,
na atualidade, sobre justiça. Um desses significados é o fato pelo qual a justiça é a
conformidade da conduta de uma norma; outro, é aquele pelo qual a justiça constitui
a eficiência de uma norma (ou de um sistema de normas), entendendo-se por efici*
**
Advogado. Consultor avaliador do INEP (MEC) para Cursos Jurídicos. Professor na Faculdade de Direito da
PUC/SP. Sócio efetivo do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo. Doutor e Mestre em Filosofia do Direito
e do Estado pela PUC/SP. Professor na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Direito-Mestrado,
do UNIVEM. Diretor Adjunto de Publicações do Instituto Jacques Maritain do Brasil. Membro do Núcleo de
Estudos de Doutrina Social da Faculdade de Direito da PUC/SP. Correspondente no Brasil da Revista “Notes et
documents”, uma publicação do Instituto Internacional Jacques Maritain, com sede em Roma.
Bacharel em direito pelo UNIVEM – Centro Universitário Eurípides de Marília. Aluno especial do curso de
filosofia da UNESP - Campus de Marília (História da Filosofia Medieval e Renascentista e História da Filosofia
Contemporânea). Pesquisador do CEDEJUS – Grupo de estudos e pesquisa.
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ência de uma norma certa medida em sua capacidade de tornar possíveis e saudáveis
as relações entre os seres humanos.
No primeiro sentido, falamos da justiça como uma qualidade da pessoa, como
virtude ou perfeição subjetiva. Por exemplo, aquela pessoa é justa; o senso de justiça
é fundamental no magistrado. É assim que nos referimos à justiça, da mesma forma
como nos referimos à prudência, à temperança e à coragem como virtudes humanas.
Logo, um conceito empregado para julgar o comportamento humano ou a pessoa
humana, e esta com base em seu comportamento. Por conseguinte, a discussão que
resta é saber qual a natureza da norma que é tomada em exame, na aplicação concreta da justiça. Ora, tanto pode ser a norma de fato, como a norma da natureza ou a
norma divina ou, mais comumente, a norma positiva.
No segundo significado, emprega-se a palavra justiça para designar, objetivamente, uma qualidade da ordem social. Aqui, é possível identificar a justiça numa
lei ou instituição. Um sentido, portanto, tomado para julgar as normas que regulam
o próprio comportamento. Não se trata de uma referência ao comportamento ou à
pessoa, mas à própria norma que exprime uma eficiência capaz de tornar, em geral,
possíveis às relações humanas. Neste caso, o objeto do juízo é a própria norma jurídica posta por autoridade competente.
Mas é necessário aprofundar ainda mais o entendimento sobre o novo conceito de justiça participativa. Trabalho que será realizado na seqüência.
2
A JUSTIÇA CONTEXTUALIZADA
Buscamos, nos exemplos, uma forma de compreensão do conceito atual de
justiça participativa.
Imaginemos uma família (pai, mãe e quatro filhos pequenos) que mora numa
cidade grande em casa alugada. O pai desempregado e está sendo despejado da casa
onde mora. Neste caso, é possível dizer que a sociedade está praticando uma injustiça. Mas, ter o pai um emprego e a família uma casa para morar já se contempla no
conceito que temos de justiça? Ora, e a educação para os filhos, a segurança etc, não
precisam existir, então? Por isso, parece que para haver justiça deve haver algo mais.
O que será? É preciso analisar como se chegou à concepção de justiça que se tem nos
dias de hoje. É o que veremos.
O termo justiça tem sido tratado pela moderna filosofia do direito como
uma idéia ética do direito e que se intui estar escondida nas dobras do direito positivo. Junto com isso, fica também a idéia de que o direito natural, fonte por exce-
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lência da justiça, fora completamente abandonado, assumindo o seu lugar o direito
positivo que deixa normalmente o conceito objetivo de justiça também fora da sua
abrangência.
Ficando a justiça fora do campo do direito positivo, fala-se num ideal de justiça, ou seja, a cada época, dá-se um conceito à justiça, tem-se uma maneira própria
de entendê-la e, conseqüentemente, ser aplicada e vivida pelas pessoas. Porém, seja
a justiça conceituada como princípio universal ou como ideal de justiça, a verdade é
que ela tem servido como um elemento que muito ajuda na organização das relações
sociais básicas da vida da comunidade humana. Isto ocorre no âmbito da relação
mútua para com o parceiro igual, de pessoa para pessoa, e também das associações
para com seus membros e vice-versa.
No entanto, o ideal de justiça tem servido como elemento organizador das
relações sociais básicas da vida comunitária dos seres humanos, seja no âmbito da
relação mútua para com o parceiro igual, da relação dos corpos sociais para com seus
membros e destes para com os corpos sociais. Aliás, a tradição ocidental conhece três
espécies fundamentais de justiça (comutativa - distributiva - social), cuja herança
remonta Aristóteles, que cuida da justiça como virtude, enquanto uma qualidade das
pessoas nos seus inter-relacionamentos. Adiante, procuraremos classificar as espécie
de justiça já pensadas pelos gregos.
Embora embutida dentro das três espécies de justiça - comutativa, distributiva e social - é digno de atenção um aspecto importante que envolve o conceito de
justiça: trata-se da justiça participativa. Inclui pontos essenciais das outras três espécies, dá um aspecto positivo do dever a ser cumprido ou a ser exigido.
Diante das circunstâncias que legitimam os Estados na atualidade, a não-participação do cidadão - aquele que tem direitos a ter direitos - na condução da sociedade, é passível de ser considerada uma atitude de injustiça.
Aliás, tomando-se como parâmetro a nova realidade do mundo que está
se dividindo em blocos intercontinentais de comércio, onde também estão sendo
abrangidas as áreas da política, da cultura e social, vemos iniciar um processo de
alargamento do conceito de soberania até agora conhecido, logo também o de cidadania, atingindo aqueles grupos de países e a cidadania sendo ampliada como a do já
existente cidadão europeu, na União Européia.
Enfim, a investigação das clássicas espécies de justiça poderá apontar um caminho para conceituar a justiça participativa.
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3ESPÉCIES DE JUSTIÇA
Para um entendimento de como está situada a justiça, nos dias atuais, devemos considerar as três espécies de justiça - comutativa, distributiva e social - já pensadas por Aristóteles, um filósofo que viveu na Grécia antiga. Ele já estudava a justiça
como uma virtude, enquanto uma qualidade ligada diretamente às pessoas (conferir
no seu livro: Ética a Nicômaco - Livro V). Um estudo importante que deu sustentação
para uma evolução do conceito de justiça até a presente idade.
Existem vários estudos analisando as espécies de justiça. Partir das informações existentes em investigações científicas já realizadas sobre o tema, até como forma de adquirir alguma motivação, pode significar um engrandecimento do presente
estudo, na busca de melhor transmitir informações.
3.1Justiça Comutativa
A justiça comutativa, que quer dizer trocar, permutar, assim chamada porque
regula o intercâmbio entre pessoas iguais, que se encontram no mesmo plano. Sua
finalidade consiste em estabelecer uma igualdade fundamental nas relações entre os
seres humanos e exigir que essa igualdade seja restabelecida quando violada. Justo é
o igual e injusto é o desigual, dizia Tomás de Aquino, filósofo e teólogo do século XII.
Para o professor João Baptista Herkenhoff, à justiça comutativa é a que melhor
representa à justiça no aspecto particular, definindo a justiça comutativa como sendo
a que “exige que cada pessoa dê à outra o que lhe é devido” (Herkenhoff, 2002, p. 89).
Não é difícil ver, na realidade quotidiana, indicativos claros da presença ou
ausência de justiça comutativa.
A sociedade industrial atual é altamente consumista. Vale dizer que quase
tudo aquilo de que as pessoas necessitam para sua sobrevivência, seja produto ou
serviço, pode ser comprado. Os critérios adotados para atribuir a cada produto ou
serviço, um preço, é chamado de política de preços. Os governos têm que estabelecer
uma justiça de preços, assumindo, conseqüentemente, a política de preços uma importância que era desconhecida em tempos passados de economia individual.
Aliás, todos sabemos que, não sendo o preço máximo dos combustíveis tabelado pelo governo, haveria uma diversidade tão grande de preços, acima do normal,
que refletiria diretamente nos preços da maioria dos produtos e serviços que dependem do transporte como o arroz que sai do campo e, através do transporte, chega à
cidade.
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Neste mesmo sentido, os salários dos trabalhadores têm que estar regulados
por convenção coletiva de trabalho. A isto se chama política salarial. As condições de
trabalho, atualmente, para cerca de 80% das pessoas ocupadas que exercem suas atividades profissionais ligadas a um empreendimento comercial, a uma empresa, são
de dependência salarial. Poucos são aqueles que conseguem ter o próprio negócio.
Assim, torna-se relevante a existência de uma justiça salarial, onde o trabalhador,
com sua força de trabalho, possa ganhar o justo para viver e não apenas o mínimo
como se vê no estabelecimento do salário mínimo.
Também no sistema de trânsito, vê-se a presença de justiça comutativa. Com
o crescimento vertiginoso do número de veículos circulantes nas ruas, avenidas e estradas, as indenizações por acidente culposo de trânsito não podem excluir a família
dos feridos ou dos mortos, sob pena de se caracterizar ato injusto e inaceitável para
a própria sociedade. Se um pai de família é atropelado e morto, ou ainda, se um pai
de família é atropelado e fica incapacitado para o trabalho é justo que sua esposa e
filhos sejam indenizados, já que dependiam do dinheiro que o pai ganhava para o
sustento da vida.
No universo da saúde (seguro social), estima-se um número superior a quatro quintos da população dos países industrializados que participam de sistemas de
seguros previdenciários. Não é o que ocorre nos países em fase de desenvolvimento.
Dai a importância de se dar a devida atenção a este tema, significando um descaso
por parte dos governantes e empresários a não-atenção, atingindo diretamente a dignidade dessas pessoas, podendo estar praticando, portanto, um ato de injustiça.
É através da justiça comutativa que as pessoas são tratadas pelo direito, pelas
leis, de acordo com as suas desigualdades, porém, sempre considerando a necessidade de essas se sentirem parte da própria sociedade.
3.2Justiça Distributiva
A justiça distributiva tem por objetivo permitir que pessoas participem do
bem comum mediante uma distribuição eqüitativa, de acordo com seus méritos ou
suas habilidades. Em outras palavras, consiste em dar a alguém o que lhe é devido
segundo uma igualdade.
Segundo Herkenhoff, a justiça distributiva “manda que a sociedade dê a cada
particular o bem que lhe é devido” (Herkenhoff, 2002, p. 89).
Fica difícil ter uma vida digna sem a presença da justiça. O tratamento das
pessoas, de acordo com suas capacidades e possibilidades significa uma atenção ao
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bem comum. O governante ou autoridade que deixa os interesses próprios (como não
tomar dinheiro público para enriquecer o seu patrimônio) para atender interesse
social, dá exemplos de seriedade e demonstra uma preocupação para com o bem
comum da sociedade, que nada mais é do que as pessoas vivendo em paz.
No exemplo acima mencionado, quando o governante ou autoridade deixa de
lado seus interesses particulares e tem seu agir dentro dos contornos éticos e da probidade administrativa, demonstra para toda a sociedade que é possível e bem melhor
ter uma vida sedimentada na justiça, no agir com justiça; dessa forma, demonstrando que a vida do ser humano justo é melhor que a vida de um ser humano injusto.
Entrementes, já na Antigüidade grega, Trasímaco afirmava que a “justiça consiste em fazer o que é conveniente para o mais poderoso” (Platão, 1999, 25). O sofista
defendia a tese de que a justiça se resumia na conveniência e, de que a vida cujos
alicerces estavam fixados na injustiça era uma vida melhor do que a vida de um ser
humano justo.
A sociedade dispõe de um tipo de justiça reguladora da distribuição dos bens
e dos encargos aos diferentes membros da comunidade, cuja distribuição deve seguir
o critério de conformidade com as necessidades que cada membro da sociedade tenha ou não algo a oferecer em intercâmbio. Aqui, o direito de cada pessoa é definido
em relação ao conjunto dos que possuem bens na sociedade.
A aposentadoria é uma forma de justiça distributiva. A pessoa trabalha a
vida toda e passa a ter o direito no recebimento de um salário ou benefício na forma
de aposentadoria. Sua contribuição, durante a vida que trabalhou para a sociedade,
dentro das suas proporções, foi suficiente para, nesse momento, ter uma retribuição
justa.
Quando se participa de uma competição, o premiado em primeiro lugar ganha uma medalha de honra ao mérito, isto por ter ele se esforçado mais que os outros
que competiam. Todos iniciaram participação na competição em pé de igualdade.
No curso da mesma, um acaba por se destacar, por empenho ou por habilidade, e
os organizadores da competição reconhecem o empenho e, por justiça, dão-lhe um
prêmio.
Neste caso, será correto reconhecer que somos desiguais? Sendo assim, também
é correto constatar que fomos criados à semelhança do Criador para podermos construir um mundo solidário e de mútua ajuda. Isto não é utopia, mas sim aponta para
uma necessidade de consideração do humano que, caso contrário, tudo seria idêntico e
harmônico, perdendo o sabor precioso da vida, notadamente a vida social.
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POZZOLI, Lafayette; RAMIRO, Caio Henrique Lopes. Conceitos de justiça participativa.
3.3Justiça Social
Num terceiro plano, está a justiça social, também chamada de justiça geral
ou legal, isto porque é por intermédio da lei que normalmente o bem comum pode
ser realizado numa sociedade. A justiça social volta sua atenção para o bem em geral
da coletividade. Aristóteles argumentou o seguinte: “Nem a estrela da manhã, nem a
estrela vespertina são tão belas quanto a justiça social”.
Outrossim, o professor João Baptista Herkenhoff assevera que “a justiça geral,
social ou legal determina que as partes da sociedade dêem à comunidade o bem que
lhe é devido” (Herkenhoff, 2002, p. 89).
A justiça social é a realização do ideal de justiça dentro das relações sociais,
que pressupõe um processo de reflexão sobre o mundo sensível ou a realidade fática
de uma época para que haja a possibilidade de se sentir o justo.
Dessa forma, a justiça social está ligada a uma visão comprometida com o
bem comum, com a observação e reconhecimento das desigualdades sociais, lutas
de classe, reconhecimento da legitimidade de movimentos sociais que, sem dúvida, representam os clamores das massas por justiça, por igualdade, advirta-se uma
igualdade substancial, por uma verdadeira vida digna para todos.
Sobre a justiça social, muitos são os exemplos que podemos tomar no mundo
globalizado. No entanto, ater-nos-emos somente em lembrar as ações humanitárias
desenvolvidas pelos organismos internacionais por conta das inúmeras guerras em
curso, neste início de terceiro milênio, no mundo.
Resumindo, a justiça comutativa preocupa-se com o bem ou o direito da pessoa humana em si, como pessoa. A justiça distributiva tem como objeto a pessoa
humana, mas considerada em sua posição profissional, familiar ou social, e a justiça
social volta a atenção para o bem em geral da coletividade.
Mas, após análise das 3 espécies clássicas de justiça, vendo a realidade atual,
parece faltar nelas algum elemento para completar calibradamente o estudo sobre
justiça. Por isto, nos referimos à justiça participativa.
3.4Justiça Participativa
Diversos aspectos existentes nas três espécies de justiça, até agora vistas, fazem parte do conceito de justiça participativa. Ligada diretamente à relação que a
pessoa tem na sociedade, como já afirmado, dá um aspecto positivo do dever a ser
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cumprido ou a ser exigido, desperta a consciência das pessoas para uma tomada de
atitude positiva no falar, atuar, enfim, entrar na vida interna da comunidade em que
se vive ou que se trabalha. A justiça participativa visa a despertar a obrigação de
cada um em participar, de forma consciente e livre, fazendo, portanto, acontecer uma
interação total e de maneira habitual na vida social a que pertence.
A história de vida de João e Anna ilustra significativamente a prática, na sociedade, da justiça participativa. Nasceram numa mesma cidade, ele era filho de pais
pobres e ela já nasceu num berço de ouro, ou seja, seus pais eram ricos.
João achava que não era possível continuar existindo uma situação onde
crianças tinham que trabalhar. Ele queria poder estudar e não podia, pois ficava ocupado o dia inteiro com o trabalho onde ganhava um dinheiro para ajudar no sustento
da família.
Anna, por causa da boa condição econômica que desfrutava seus pais, somente estudava e fazia alguns cursos, como natação, ginástica etc.
Ocorre que João, sempre esforçado, estudando à noite, embora com dificuldades para pagar o colégio, consegue, finalmente, passar no vestibular de uma Faculdade de Direito, a mesma em que Anna ingressou.
Na classe sempre apareciam pessoas do Centro Acadêmico (organização estudantil) convidando os alunos para algum evento. Na verdade, quase ninguém participava e cada um tinha uma justificativa e, por isso, não existiam muitas manifestações
no contexto da Faculdade.
Porém, um de seus professores, que gostava de dar dicas a seus alunos, nas
suas aulas, sempre dizia: “quando sonho sozinho é apenas um sonho, quando o outro começa a sonhar comigo é o começo de uma nova realidade”. Uma frase que em
muito acabou por ajudar no processo de conscientização de ambos, afinal refletiram
profundamente por algum tempo sobre o enunciado do professor.
A partir daí, começaram a participar de todas as atividades do Centro Acadêmico e perceberam que era possível mudar aquilo que consideravam ser injusto
como, por exemplo, não poder o aluno fazer prova porque atrasou o pagamento da
mensalidade. Junto com vários outros participantes da agremiação estudantil, conseguiram convencer o dono da Faculdade que era melhor o aluno fazer a prova e ter
menos preocupação para poder ganhar o dinheiro necessário para pagar a Faculdade. Também para o país, não deixava de ser uma boa iniciativa, afinal, não havia
evasão escolar.
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Muitas outras atividades foram desenvolvidas por João e Anna, conjuntamente com seus colegas de classe e de Faculdade. Por certo, eram atividades que acabavam por dar sentido às suas próprias existências.
Em várias oportunidades, João contava as dificuldades de sua vida para Anna.
Ela percebia que suas dificuldades eram infinitamente diferentes e, do ponto de vista
social, inferiores e que não precisava de todo o dinheiro que estava à sua disposição.
Assim, não foi difícil notar que o que faltava para João sobrava para Anna. Este foi
um dos motivos que muito ajudou na tomada de consciência de ambos para os problemas sociais.
Participar de atividades tornou-se algo gostoso na vida de ambos. Cada vez
mais sentiam a necessidade de ajudar na luta dos diversos segmentos da sociedade
e decidiram, a partir de então, participar o tanto quanto possível para mudar a realidade das crianças no país. Após várias análises da questão, perceberam, juntamente
com inúmeros outros jovens, que a criança e o adolescente precisava de uma lei para
regular seus direitos de vida, como, por exemplo, proteção e segurança em relação
aos adultos.
Como estudavam no curso de direito, fizeram uma pesquisa para saberem
sobre as leis de proteção da criança e do adolescente. Verificaram que, na verdade,
existiam muitas leis e as pessoas não as cumpriam. Buscaram informações junto à
Organização das Nações Unidas - ONU, através da UNICEF, órgão da ONU encarregado de cuidar das questões relativas à criança e ao adolescente, e ficaram sabendo
da existência de uma Declaração Universal dos Direitos da Criança. Receberam informações sobre a legislação existente em vários países.
Assim, com todo o material pesquisado, criaram um grande grupo de estudos
em que houve a participação de vários colegas da Faculdade onde estudavam e de
outras. O Centro Acadêmico da Faculdade acabou por incorporar a luta e, por fim,
assumida pela própria União Nacional dos Estudantes.
Sabiam que isso não era o suficiente. Contataram diversas associações ligadas
à área da criança, entidades governamentais e não governamentais. Encontraram um
grande trabalho já realizado com a participação de muitas pessoas. Souberam que
alguns parlamentares já tinham apresentado no Congresso Nacional projetos de lei
para melhorar a vida das crianças. Notaram, por fim, que a sociedade estava participando e foi nesse contexto que se aprovou no Congresso Nacional o Estatuto da
Criança e do Adolescente. Nele, muitos direitos foram garantidos, mas João, Anna e
todos aqueles que participaram da luta sabiam que não bastaria a lei ser promulgada.
Teria, sim, que haver uma conscientização de todos para melhorar a situação.
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POZZOLI, Lafayette; RAMIRO, Caio Henrique Lopes. Conceitos de justiça participativa.
Bem, ainda se desrespeita o Estatuto da Criança e do Adolescente. Um grande
passo foi dado, resta agora dar continuidade para que todas as crianças possam ter condições reais de estudo e poder contribuir melhor para o desenvolvimento do país.
João e Anna trilharam um caminho que, na verdade, é possível identificá-lo
com a definição de justiça participativa, vivenciando ou exercendo a cidadania e fazendo justiça.
4.
JUSTIÇA PARTICIPATIVA E CIDADANIA
Cidadania. O que esta palavra quer dizer? Muitos utilizam a referida expressão; no entanto, pouco se fala sobre seu real significado.
Para podermos melhor entender o conceito de cidadania, forçoso nos reportarmos à definição dada a cidadão, tendo em vista o fato de estes vocábulos estarem
ligados um ao outro em suas definições.
Segundo Herkenhoff “cidadão é o indivíduo que está no gozo dos direitos civis
e políticos de um Estado. Faça-se, porém, uma advertência. O cidadão também tem
deveres para com o Estado” (Herkenhoff, 2004, p. 19).
Salienta ainda o professor Herkenhoff “cidadania é a qualidade ou estado de
cidadão” (Herkenhoff, 2004, p. 20)
As palavras cidadão e cidadania hoje têm um sentido maior, tendo em vista
que a sociedade evolui, o que também ocorre com a língua e com as palavras; nesse
diapasão, com a evolução dos acontecimentos sociais, as palavras cidadão e cidadania incorporaram outras dimensões.
Corroborando a assertiva supra, nos valemos mais uma vez das palavras do
professor Herkenhoff, que diz: “o conteúdo da cidadania alargou-se ao longo da História. A cidadania hoje não tem apenas o conteúdo civil e político de sua formulação
original. Modernamente, a cidadania abrange outras dimensões” (Herkenhoff, 2004,
p. 21).
Com efeito, nos dias atuais, nos parece conveniente olharmos para os significados de cidadania e cidadão levando em consideração as dimensões do existencial
(ser pessoa), do social, do educacional e do econômico, para podermos definir a participação dos cidadãos nos acontecimentos sociais.
Mas, afinal, quem deve participar? Todos que vivem na sociedade, ou seja, o
cidadão, aquele que tem direito a ter direitos, como, por exemplo, a ter um salário
justo, poder respirar um ar puro etc. Mas também o cidadão tem obrigações por estar
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POZZOLI, Lafayette; RAMIRO, Caio Henrique Lopes. Conceitos de justiça participativa.
vivendo numa sociedade. Uma delas é a de participar, construindo novos relacionamentos com o objetivo de superar a “cultura do ter”, própria do individualismo, e
implantar a “cultura do dar”, característica do solidarismo. A não-participação do
cidadão, na condução da sociedade, é passível de ser considerada uma atitude de
injustiça.
Mas, o cidadão, quem é? É você que está lendo este artigo, são todas as pessoas
que vivem no País e têm documentos. Para o direito, o que dá a condição de cidadão
são os documentos que a pessoa tem, como a certidão de nascimento, o RG (registro
geral), o CIC (cartão de identificação de contribuinte), o título de eleitor etc. Imagine-se sem documentos! Para tudo, é preciso ter documentos, afinal vivemos numa
sociedade complexa, não sendo possível ficar sem documentos.
Os jornais dão conta daquele caso da velhinha com mais de 80 anos de idade e
sem registro de nascimento. Após encontrar o batistério, é que foi passível providenciar o respectivo registro e poder a velhinha começar a receber uma pensão mensal
da parte do Estado.
Portanto, para poder participar na sociedade, é preciso ter coragem e vontade,
mas também é necessário o documento. Para se ter uma idéia da importância que
tem a participação do cidadão, tomando-se como exemplo a nova realidade que o
mundo está vivendo, vê-se iniciar um processo de alargamento do conceito de soberania até agora conhecido (a soberania é o poder que um país tem em fazer lei para
ser obedecida em todo o território nacional); logo, também, o conceito de cidadania
está sendo ampliado. Um novo conceito de cidadania, que está surgindo em muitos
lugares, especialmente na Europa. Os italianos, os franceses, os portugueses já têm a
condição de “cidadão europeu”, podendo transitar por toda a Europa com um único
documento, o passaporte europeu.
Na América Latina existe o Mercosul - Mercado Comum do Sul - tratado assinado em 1991 pelos países: Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Existe também
o Pacto Andino, tratado assinado pelos países: Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e
Venezuela. Em breve, será possível ter-se o cidadão latino-americano, vale dizer, o
brasileiro terá um documento, um passaporte latino-americano, e poderá trabalhar
em qualquer país da América Latina como se estivesse no Brasil. Com tudo isto a
responsabilidade do cidadão aumenta e a necessidade de le participar da condução
dos negócios da sociedade é emergente.
De qualquer sorte, a justiça participativa tem por objetivo o engajamento das
pessoas no processo de desenvolvimento da sua comunidade como sendo uma espécie
de bem maior. Neste processo a falta de participação passa a caracterizar-se tão injusta
quanto à violação de uma das três espécies de justiça anteriormente analisadas.
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POZZOLI, Lafayette; RAMIRO, Caio Henrique Lopes. Conceitos de justiça participativa.
Vale observar que a justiça participativa pode garantir a sobrevivência, a democracia e o progresso evolutivo da sociedade humana. Justiça participativa e cidadania andam juntas. As duas se completam mutuamente, atuam juntas, espalham
vida e dão-se apoios. Juntam as mãos na caminhada da harmonia, da solidariedade
das nações e da paz. Isto porque, as relações entre as pessoas e os povos não podem
ser determinadas pelo medo, mas pela participação, pois a justiça participativa é capaz de conduzir os seres humanos a uma concepção honesta e múltipla, donde poderão nascer muitos benefícios materiais e espirituais, apontando para uma sociedade
justa e fraterna.
Aquele que costuma dizer que não gosta de participar, é bom salientar que
esta é uma forma de participação, porém, lamentavelmente, negativa. É dos milhares de braços cruzados que uma minoria consegue evitar uma justa distribuição de
rendas, um justo salário que dê para uma família sobreviver dignamente e a exclusão
de inúmeras pessoas que ficam desempregadas, sem casa para morar etc. A omissão
no exercício da cidadania é semelhante acreditar que a construção da história deva
ser feita apenas por alguns e à maioria das pessoas caberá tão-somente tecer críticas
como forma de justificar uma eventual não-participação.
Querendo ver construído um mundo justo, fundado em critérios de solidariedade, interdependência, igualdade, liberdade e paz é querer envolver-se num diálogo
permanente com o semelhante, sempre tomado por uma vontade de praticar o bem
na busca de uma sociedade livre e justa.
5O SENTIDO ATUAL DE JUSTIÇA
Uma discussão que deve aqui ser empreendida é sobre qual a natureza da
norma jurídica que é tomada como referência para análise. Ora, tanto pode ser a norma de fato (ligada à cultura das pessoas); a norma da natureza do ser humano (como,
por exemplo, a lei que permite respirar, ela não está escrita em nenhum lugar mas
pertence à natureza do ser humano); a norma divina (utilizada pelas religiões); ou a
norma positiva (a lei que o Estado edita).
Imaginemos um campo de futebol com suas regras estabelecidas pelo direito
desportivo. O campo tem uma medida oficial. As traves indicativas do gol têm suas medidas, inclusive com as respectivas áreas. O uso do campo de futebol se dará quando
cada time tiver onze jogadores, sendo possível a disputa entre dois times. Esta, em síntese, são as regras estabelecidas pela legislação desportiva sobre o futebol de campo.
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Agora, como conciliar a eficiência da legislação desportiva com a justiça? E
isto seguindo os passos regrados e apontados no parágrafo anterior. Mas, ocorrendo
uma partida de futebol, acontece que o técnico de um dos times exige a presença de
20 jogadores para realizar uma partida contra 7 jogadores do outro time (sic!). Aqui,
percebe-se que, embora escrita a lei, não há de se falar em eficiência da legislação
que regula o jogo em campo de futebol, já que uma injustiça foi praticada, qual seja,
gerou-se um desequilíbrio entre as duas equipes.
Também, dentro deste raciocínio, por outro lado, nada impede que um dos
jogadores dê um empurrão no jogador do time adversário. Ora, esse comportamento, embora não esteja regulado pelo direito desportivo, na exata maneira como ele
ocorreu, porém, como conseqüência, o jogador que praticou a violência será punido.
Assim, continuará havendo a eficiência da lei que estabelece regras para o futebol, já
que a justiça fora restabelecida. Ao contrário do jogo de 20 x 7 jogadores que, sendo
realizado, seria praticado um ato de injustiça. Este caso, sendo levado a julgamento
num Tribunal Desportivo seguramente estariam os juízes determinando a realização
de nova partida com 11 jogadores de cada lado, restabelecendo também a justiça.
Mas, qual a incidência desses significados de justiça, até agora analisados, no
contexto social atual?
6
IMAGENS SOBRE JUSTIÇA NO CAMPO SOCIAL
Face à abrangência anteriormente exposta dos significados sobre a Justiça (conformidade da conduta de uma norma - eficiência de uma norma) e o fato de ser o conceito de justiça utilizado tanto por juristas (aquele que escreve sobre o direito) como por
moralistas, explica a diferença presente nas espécies de justiça, já pontuadas.
O jurista vê, na justiça, em primeiro lugar, uma exigência de vida social. Radbruch (filósofo do direito alemão) afirma que, ao jurista, só interessa a justiça, considerada em sentido objetivo que, aliás, sob esse aspecto, é um princípio superior da
ordem social.
O moralista, que se ocupa de uma atividade pessoal do ser humano, vê na
justiça uma qualidade subjetiva do mesmo, o exercício de sua vontade, uma virtude.
Já ao jurista, que tem preocupações diversas do moralista, interessa-lhe fundamentalmente a ordem social objetiva.
Nota-se, portanto, que qualquer que seja a ótica vista, o uso da razoabilidade da
conduta pela pessoa acaba por ser um princípio da própria disciplina social, definindo
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que aquilo que não é razoável é injusto. Ademais, os latinos já diziam que “cada coisa
grita pelo seu dono”.
Com isso, fica claro que a ausência da justiça nas relações sociais, qualquer
que seja o espaço, acaba por gerar situações de intranqüilidade no contexto social.
Junte-se como verdade o fato de que as pessoas não encontram normalmente ambiente adequado para o desenvolvimento e exercício da cidadania.
Muito embora várias sejam as leis motivadoras da participação do cidadão,
dentro do direito promocional, uma das funções da lei posta pelo Estado é de cumprir uma função social. Este artigo indica algumas dessas leis, dando uma visão histórica da constituição do direito com a presença da justiça.
Resta, agora, apontar soluções alternativas orientadas pelo desejo da busca de
um mundo justo pelos laços fraternos da solidariedade entre as pessoas. O próximo
passo vai estar ligado ao entendimento ampliado do direito e como se dá sua interpretação nos dias atuais.
7
JUSTIÇA E PARTICIPAÇÃO DO CIDADÃO
O direito positivo é produzido pelo Estado. Essas leis são elaboradas para
serem cumpridas, obedecidas por todos na sociedade. No momento da lei ser aplicada ao caso concreto, o juiz precisa interpretar o direito. Mas como se dá este processo
de passagem ou interpretação da lei para o caso concreto?
A lei só terá sentido se for elaborada com base nos valores existentes na sociedade e na realidade social. São elementos essenciais a lei para que todos possam
cumpri-la. A mesma lei é aplicada em vários casos, de forma individualizada. Assim,
no momento da aplicação, o juiz analisa as circunstâncias do caso e interpreta a lei de
acordo com a situação a ele apresentada.
A interpretação da lei ao respectivo caso pode ser demonstrada no seguinte
exemplo: o Art. 927 do Novo Código Civil Brasileiro (antes Art. 159), dispõe o seguinte: “Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado
a repará-lo.”
Tendo Tereza a porta do seu carro amassada pelo carro de José, que dirigia
sem cuidado, e não conseguindo solução do caso, foi buscar a Justiça, através de um
processo judicial, para ser ressarcida nos danos que teve com o conserto do carro. A
Justiça obrigou José a pagar todos os gastos.
A lei acima aponta, de forma genérica, a responsabilidade civil das pessoas
(alguém pode causar prejuízo a outrem). O trabalho que cabe ao juiz desenvolver é
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realizar a adaptação da lei ao caso concreto (José amassou o carro de Tereza e, por isso,
tem que pagar o prejuízo). Assim é possível alcançar a justiça ao respectivo caso.
No exemplo do parágrafo anterior, temos um caso onde é possível se realizar
a aplicação do direito ao caso concreto através do princípio da subsunção, princípio
esse que nos fornece um silogismo, sendo que o juiz tem a premissa maior que é a lei;
a premissa menor o fato posto em juízo e tira uma conclusão que é a sentença.
Entretanto, este método de aplicação do direito, por algumas vezes, deveria
ser abandonado, sendo forçoso ao julgador ter uma postura reflexiva perante a situação fática que lhe é dada. Para tanto, o juiz não deve acreditar em sua neutralidade
total no momento de julgar.
O juiz, como ser humano que é, tem sentimentos, inteligência e uma própria
postura perante o ordenamento jurídico, ou seja, difícil acreditar que suas decisões
sejam isentas de sentimento ou de ideologia.
O desvendamento ideológico da visão tradicional (positivismo jurídico) e os
novos postulados de uma visão atenta à realidade fática contemporânea, bem como
uma nova realidade do direito irá, sem sombra de dúvida, influenciar o julgador no
momento de esse estruturar sua decisão.
Assim, na busca que as pessoas empreendem para alcançar segurança e bemestar social, sob a égide do Estado democrático, está presente a justiça, e que acaba
por ser um dos pilares sustentadores da estrutura do ordenamento jurídico do Estado, possibilitando legitimação e formação de comunidades de seres humanos livres.
A justiça, como até agora vista, tem forte influência operativa no processo
interpretativo das normas jurídicas. Por outro lado, não deixa de ser uma maneira,
dentro do direito, com a qual se aponta para uma identificação clara da legitimidade
que as instituições têm na sociedade.
Com isso é fácil identificar que a legislação abrange temas dos mais diversos
relacionamentos das pessoas existentes na sociedade. Também está presente na lei
um grande número de instrumentos que viabilizam a participação do cidadão, tendo
em vista que deve ter a lei uma função social, ou seja, estar a serviço do ser humano,
onde, aliás, ela encontra seu sentido teleológico, qual seja, sua finalidade.
8
INSTRUMENTO DE PARTICIPAÇÃO – AGIR CONJUNTO
Já na Antigüidade, é fácil constatar a figura do cidadão que exerce a sua atividade no âmbito da cidade, da polis. A vida política dependia da atuação desse cidadão
e a sua razão de ser baseava-se na ação por ele desenvolvida na polis. Enfim, a política
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exercida pela pessoa libertada constituía-se no que se chama de esfera pública, local
de encontro das pessoas.
A vida em sociedade exige de cada pessoa uma ação articulada no universo da
política. O conceito de cidadão ampliou-se, indicando para aquele que tem direito a
ter direitos. Sair fora desse contexto significava querer buscar, junto à natureza, como
um eremita, a sua tranqüilidade. Aliás, comparando com os dias de hoje, aquele que
quer tal serenidade, é bastante provável que a encontrará; porém, a liberdade, como
concebida contemporaneamente, jamais poderá ser objeto de tal procura.
A participação e a liberdade estão relacionadas diretamente com a política,
como ocorria na polis grega, diferenciando-se somente no tocante à vontade, pois a
liberdade não é um fenômeno da participação, que está num estágio anterior da ação
política. Portanto, a liberdade é um atributo da ação, do agir, do agir conjunto.
Com efeito, surge no panorama um novo conceito de liberdade ligada à justiça participativa. A ação conjunta, ou agir conjunto das pessoas, desenvolvida pelos
cidadãos, dentro dos seus princípios, é que vai esboçá-la, nos dias hodiernos, como
realizada pelo próprio ser humano.
É notório que as pessoas se comuniquem mesmo estando numa atitude de
isolamento. Mas, vivendo em sociedade, a necessidade de ação conjunta é básica para
o viver bem. Assim, o processo comunicativo é intensificado e a manifestação do poder pelo agir conjunto dá maior possibilidade organizativa de entidades que atuam
na área, além de enriquecer o universo jurídico, através de textos legais.
O direito, atualmente, deve ser visto, também, como um direito promocional
da pessoa humana, que tem uma função social, que se interessa por comportamentos
tidos como desejáveis por todos e, por isso, não se circunscreve a proibir, obrigar ou
permitir, mas almeja estimular comportamentos através de medidas diretas ou indiretas, como, por exemplo, as ações judiciais coletivas.
Antes, o trabalhador em greve que, individualmente, impetrasse um mandado de segurança contra alguma arbitrariedade praticada por autoridade, corria o
risco de perder o emprego além de eventual condenação. Agora, na lei, existe a figura
do mandado de segurança coletivo onde todos, num agir conjunto, participam na
defesa dos seus interesses, quando se tratar, por exemplo, de arbitrariedade exercida
por autoridade. A possibilidade de represália é baixa, tendo em vista o agir conjunto
dos trabalhadores proporcionado pela lei.
Trata-se, portanto, de um instrumento legal e estimulador da atividade participativa do cidadão no exercício da sua cidadania.
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9CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
A admissão da Iniciativa Legislativa Popular na Constituição Federal - também
existe em nível de Estados e Municípios - demonstrou uma preocupação do Constituinte
quanto à colaboração direta do cidadão com o órgão legislativo. Este desempenha o papel
de obter garantia de que a lei surja como autêntica expressão da vontade popular. Porém,
diante de críticas como no procedimento da convocação do corpo eleitoral - para eleger os
representantes - criou-se um instrumento que possa suprir respectiva falha e dar maior
vazão no desempenho do processo representativo, que é a iniciativa popular.
Existem outras formas de manifestações diretas. Na democracia da Grécia
antiga, as decisões políticas eram tomadas em assembléia populares. O sufrágio universal, o voto escrito, acabou por substituir, em grande parte, esta forma de manifestação direta, principalmente nas democracias contemporâneas, salvo nos cantões
suíços, na Suíça, onde continuam os cidadãos reunindo-se na praça e, por aclamação,
elegendo, por exemplo, o prefeito da cidade.
Não obstante as observações acima, a Constituição Brasileira atual adotou, como
forma de soberania popular, o plebiscito, o referendo e a Iniciativa Legislativa Popular.
São institutos jurídicos, formas encontradas pelo constituinte para motivar a participação das pessoas. O princípio basilar deles foi traçado no artigo 1º, parágrafo único, da
Constituição Federal, que afirma: “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou DIRETAMENTE, nos termos desta Constituição”.
A parte final do artigo acima transcrito traz para a própria Constituição as
formas definidoras da aplicação da democracia direta, permitindo e incentivando
a participação do cidadão. Das três, será examinada a Iniciativa Legislativa Popular,
que nos interessa mais de perto, neste artigo.
10.
INICIATIVA LEGISLATIVA POPULAR
A Iniciativa Legislativa Popular está prevista nos artigos 14, inciso III e
61, Parágrafo segundo, da Constituição Federal de 1988, e tende a assegurar a
participação daqueles que ficam à margem do sistema político, na maioria das
vezes, com seus interesses simplesmente implícitos na representatividade em
que as decisões são tomadas pela maioria, salvo aquelas que não são objetos de
deliberação, como, por exemplo, os direitos e garantias fundamentais, dignificadores da cidadania.
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Pode-se considerar a Iniciativa Legislativa Popular como um freio que tem
por fim limitar a liberdade de legislar e de atuar dos grupos políticos governantes, escolhidos pela maioria dos eleitores. Aparentemente, viola-se o princípio democrático
que dá o poder à maioria, mas na realidade, limitando-lhe os poderes, o freio defende
a maioria da tirania de quem, de outro modo, agiria em nome próprio. Desta maneira, fica salvaguardada implicitamente a democracia participativa.
Como fazer acontecer a iniciativa popular? Através de um projeto de lei assinado por cidadãos, neste caso terão que ser eleitores, e entregue ao Congresso Nacional. Precisa ser assinado por, no mínimo, um por cento (1%) do eleitorado Nacional,
distribuído por, no mínimo, cinco Estados da Federação, com mais de três décimos
por cento (0,3%) dos eleitores de cada um deles. Assim, deve haver a presença de uma
entidade que atue nacionalmente, como, por exemplo, a OAB, a CNBB.
O fato de exigir um mínimo de Estados presentes é uma preocupação do
Constituinte em atribuir ao Congresso Nacional a suscetibilidade de apreciar uma
causa de interesse nacional e não somente local ou regional que, neste caso, competiria às Assembléias Legislativas dos Estados ou Câmaras Municipais.
Com isso, fica entendida uma clara intenção do texto constitucional em motivar uma participação do cidadão, podendo apresentar diretamente ao Parlamento
suas necessidades, livre da influência dos partidos ou dos grupos de pressão, estes
formados por segmentos da sociedade.
Vale ressaltar a importância de se ter uma ou mais entidades em nível nacional para apresentar, via iniciativa popular, projetos de lei regulamentando princípios
constitucionais pertinentes, aqueles direitos escritos, como a obrigação do Estado em
amparar a pessoa com mais de 70 anos de idade que não tem condições econômicas
de sobrevivência.
Procedimento análogo pode ser intentado no âmbito estadual e municipal, já
que a maioria dessas esferas legislativas comporta este tipo de iniciativa.
A Iniciativa Legislativa Popular é uma ferramenta essencial e estimuladora à
participação de entidades e cidadãos, para ter lei com as especificações competentes
e podendo ser devidamente cumprida, sempre a serviço das pessoas. Com isso, o
direito não deixa de ser um instrumento de promoção da dignidade da cidadania, do
ser humano; por fim, da própria justiça.
Tendo o direito o caráter promocional, a conseqüência é imediata, o nível e a
intensidade de participação dos cidadãos - também a consciência política e de cidadania aumentam sensivelmente.
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Por outro lado, e da mesma forma, para o cidadão ter seu direito garantido,
por exemplo, dentro dos Tribunais, é essencial que a lei estabeleça o caminho que o
processo judicial deva seguir. No caso do mandado de segurança coletivo, só foi possível após a última Constituição Federal ditar as regras. A justiça acaba por florescer
e as pessoas participam mais, sendo a legislação compatível e acolhedora dos direitos
fundamentais da pessoa humana.
11
REFLETIR PARA PARTICIPAR
O ato de pensar ou raciocinar é o elemento que diferencia o ser humano dos
demais animais. Para realização de qualquer atividade, é necessário refletir antes. O
cérebro desenvolve atividade de pensar mesmo quando se diz ter pensado de forma automática: a pessoa, para realizar qualquer atividade, terá que pensar. Da mesma forma,
é importante a reflexão para melhorar o desempenho de uma atuação participativa.
O primeiro povo que muito ajudou a humanidade na dimensão do pensamento através da filosofia, foi o grego. O legado é grande. Da mesma maneira, é impressionante que ha mais de 2000 anos já se usava um sistema de governo igual ao que se
tem hoje, qual seja, a democracia, regime político que é permitidor da participação
do cidadão. É verdade que se tratava de um sistema político adaptado à cultura grega,
mas já há de se falar em um começo.
Querer participar ativamente da sociedade requer tomar como primeiro passo o ato de refletir sobre os seus problemas. Aliás, agindo de forma reflexiva, a criatividade flui, muito mais, ainda que naturalmente, em tudo que se faz.
Para ilustrar, a humanidade tem em Einstein um gênio. Ora, a principal teoria dele,
a da relatividade, foi fruto de uma profunda reflexão que durou nada mais de 12 anos!
A reflexão exige o entendimento das regras da lógica que regem o raciocínio.
A leitura do presente artigo pode significar um grande passo dado na linha da reflexão e, por conseqüência, da participação e da justiça participativa. Isto porque se fez
entender sobre as regras que regulam o ato participativo, passivo ou ativo, além da
compreensão histórica de como se formou a idéia de agir conjunto participativo.
12CONCLUSÃO
Muitos são os espaços, os lugares onde se pode encontrar a oportunidade para
deixar o individualismo e acreditar que a menor das iniciativas pode ligar a uma ten-
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dência de humanização. Basta lembrar que Gandhi mudou a Índia, andando, como
ele mesmo disse, sua grande caminhada teve início no seu primeiro passo.
A justiça participativa, portanto, pode ser útil no contexto de sala de aula, no
dia-a-dia com os colegas de trabalho, buscando novas formas de aprendizagem.
Para participar, não é possível ficar à espera de que o outro, ou o governo,
faça alguma coisa. O comodismo pode levar a uma situação de desagregação social
semelhante àquele país onde a maioria das pessoas não consegue viver bem. Também, pode gerar o paternalismo, método de ação de governos autoritários, que não
permitem o processo participativo, e que se pode resumir na seguinte frase: “não
penses, porque o chefe pensará por ti” (sic!). Excluindo a reflexão, acaba-se, conseqüentemente, com a participação do cidadão.
Não é necessário dizer não ao paternalismo, seja ele governamental ou de pessoas que convivem conosco. Precisa-se substituí-lo por uma política que permita a
efetiva manifestação das pessoas ou da pessoa e, por fim, da sociedade civil.
O medo de participar ativamente das atividades da sociedade é uma circunstância que pode ser facilmente abandonada através da fórmula: participar. O poeta,
na sua lúcida visão de mundo, escreveu uma frase de digna lembrança: “Quanto mais
se avança na escuridão da noite, mais próximo está o clarão da madrugada”.
Crer num mundo regrado pela solidariedade entre as pessoas; crer, portanto,
num mundo justo e fraterno, é uma realidade que necessariamente deve ser levada
ao outro, que também faz parte do mundo. Realizando este ato participativo, o país e
a cidadania plena são os grandes ganhadores, ou melhor, o crédito é das pessoas, da
justiça participativa.
Embora possa parecer, dentro do contexto, que a participação como cidadão
seja insignificante, é muito importante. Ademais, os grandes avanços da humanidade tiveram seus começos nos pequenos atos das pessoas, sonhadoras e que fizeram
outros sonharem.
Só querer uma sociedade, uma vida melhor não basta, temos que fazer algo
para a melhora acontecer. Na verdade, a responsabilidade por um mundo justo e fraterno, sob os laços da solidariedade, encontra-se em nossas mãos.
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SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança jurídica e jurisprudência - um enfoque filosófico-jurídico. São Paulo: LTr,
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169
Reforma do Estado, Prestação de Serviços Públicos,
Contribuições Especiais e Federalismo
Gilberto Bercovici*
José Maria Arruda de Andrade**
Luís Fernando Massonetto***
Resumo
O presente texto busca analisar, de maneira crítica, as transformações jurídicas
operadas na periferia do capitalismo na modelagem da prestação de serviços
públicos durante a década de 1990. Sob um enfoque multidisciplinar, a partir do
objeto de estudo de seus autores, pretende-se um primeiro esforço de compreensão de tais transformações e sua repercussão na formação de fundos públicos e
implementação crescente de contribuições sociais e de intervenção no domínio
econômico.
Palavras-chave: Reforma do Estado. Prestação de Serviços Públicos. Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico. Federalismo. Fundos Públicos. Patrimonialismo.
*
**
***
Professor Associado do Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Doutor pelo Departamento de Direito Econômico e Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo. Professor universitário e advogado em São Paulo.
Doutorando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 171-193, jan./jun. 2006.
BERCOVICI, Gilberto; ANDRADE, José Maria Arruda de; MASSONETTO, Luís Fernando. Reforma do Estado,
prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
Apresentação
Tendo em vista que o presente texto parte de uma análise de base histórica,
é fundamental explicitar algumas premissas que foram consideradas na sistematização das discussões e na formatação do presente texto. A primeira e talvez a mais
importante, pela redução do objeto proporcionada, é que as transformações jurídicas
operadas na periferia do capitalismo, na modelagem da prestação de serviços públicos, decorreram da crise fiscal do Estado e das estratégias de estabilização calcadas
na produção sucessiva de resultados positivos de execução orçamentária, excluído o
pagamento de juros (superávit primário).
De modo que não é possível compreender as transformações nos serviços
públicos e a densificação de sua regulação sem compreender a estratégia de gestão
fiscal subjacente. Neste aspecto, cabe uma nota crítica das discussões sobre a nova
regulação, que avaliam a questão em perspectiva macroeconômica exclusivamente
como justificativa do objeto em estudo. Em uma perspectiva crítica, a compreensão
da estratégia fiscal que subjaz o novo modelo de regulação dos serviços públicos evidencia a arbitragem de ganhos e perdas do atual estágio do capitalismo, tornando
possível o estudo do assunto sem reduzi-lo a mera expressão ideológica.
A partir desta premissa e do balanço preliminar de ganhos e perdas neste
processo, pretende-se avançar sobre uma questão muito cara aos estudiosos das instituições brasileiras: o patrimonialismo. Ainda que preliminarmente, pretende-se
demonstrar que a nova regulação constitui uma atualização da apropriação privada
do fundo público, dando base a um patrimonialismo redivivo, a um patrimonialismo
moderno.
Por fim, pretende-se uma análise da majoração e da crescente instituição de
contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico como estratégia fiscal
de concentração federal de recursos e de manipulação de fundos públicos apartados
do orçamento, instituição e majoração essas muitas vezes totalmente desvinculadas
das premissas teleológicas adotadas na justificativa legislativa de sua criação.
E, como ponta de lança desta análise, é importante realçar as bases da discussão sobre o viés do federalismo, apreendido como estratégia de desenvolvimento
nacional estabelecida na Constituição da República. A relação entre o novo modelo
Trechos desse texto foram apresentados, sob o título “Regulação, Federalismo e Integração Econômica: Elementos para um Novo Debate” no Projeto CAPES/COFECUB 439/03 “Serviço Público e Integração Regional:
União Européia e Mercosul”, em 15/01/03, na Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne. Prof. Coord. Gérard
Marcou. Prof. coord. brasileiro: Eros Roberto Grau.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 171-193, jan./jun. 2006.
BERCOVICI, Gilberto; ANDRADE, José Maria Arruda de; MASSONETTO, Luís Fernando. Reforma do Estado,
prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
e a Federação também constitui importante elemento de elaboração teórica, justificado por suas possibilidades de compreensão do fenômeno e pelos desdobramentos
críticos da análise.
I
Com a crise econômica iniciada na década de 1970, o Estado Intervencionista
(ou Estado Social) começou a ser questionado e combatido. A idéia, hoje praticamente
consensual em muitos meios, de “crise fiscal” do Estado Social foi desenvolvida pelo
americano James O’Connor, em 1973. Para O’Connor, seriam contradições inerentes
ao Estado capitalista a obrigação de se preocupar, ao mesmo tempo, com a acumulação do capital e a sua legitimação. Desta maneira, o Estado deve garantir e incentivar
o sistema econômico capitalista e, simultaneamente, executar uma série de políticas
públicas de cunho social para se legitimar. A acumulação de capital e as despesas
sociais, enquanto processo contraditório, originariam crises econômicas, políticas e
sociais, graças à tendência dos gastos estatais crescerem mais rapidamente do que a
capacidade do Estado em financiá-los adequadamente. Assim, desde a análise clássica de O’Connor, os problemas de financiamento do Estado Social, embora possuam
soluções financeiras ao menos teóricas, são os mais atacados pelos seus opositores.
O papel do Estado na economia é cada vez mais contestado. Propõe-se um
Estado neoliberal, pautado e condicionado pelo mercado, ou seja, a economia de
mercado determina as decisões políticas e jurídicas, relativizando a autoridade governamental. Para tanto, o que vem ocorrendo é a concretização de profundos cortes
setoriais. Busca-se eliminar serviços e prestações específicos, dirigidos a algum setor
James O’CONNOR, The Fiscal Crisis of the State, New York, St. Martin’s Press, 1973, pp. 6-10 e 40-42.
Francisco José Contreras PELÁEZ, Defensa del Estado Social, Sevilla, Universidad de Sevilla, 1996, pp. 147149. Para o caso brasileiro, vide José Luís FIORI, “Reforma ou Sucata? O Dilema Estratégico do Setor Público
Brasileiro” in Em Busca do Dissenso Perdido: Ensaios Críticos sobre a Festejada Crise do Estado, Rio de
Janeiro, Insight, 1995, pp. 107-109 e José Luís FIORI, “Por uma Economia Política do Estado Brasileiro” in Em
Busca do Dissenso Perdido cit., pp. 151-154. Ainda sobre a crise fiscal do Estado, vide José Eduardo FARIA,
O Direito na Economia Globalizada, São Paulo, Malheiros, 1999, pp. 116-128.
Neste sentido, vide Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e
Crítica), 4ª ed, São Paulo, Malheiros, 1998, pp. 22-23, 30 e 36-38.
Cf. José Eduardo FARIA, O Direito na Economia Globalizada cit., pp. 177-182. O fim do Estado Nacional,
para Paulo Nogueira Batista Jr é um dos vários mitos da globalização. Vide, especialmente, Paulo Nogueira
BATISTA Jr, “Mitos da ‘Globalização’”, Estudos Avançados, vol. 12, nº 32, São Paulo, EDUSP, janeiro/abril de
1998, pp. 154-163 e 181.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
social não majoritário com pouca ou nenhuma capacidade de reagir ou buscar uma
resistência bem-sucedida.
Ao mesmo tempo, o Estado vem sendo reformado para promover o descomprometimento público em relação à economia, por meio da privatização, liberalização e desregulação, buscando a substituição do Estado Intervencionista por um
Estado Regulador. Com o Estado Regulador, o Estado deixa de prestar o serviço público monopolisticamente e passa a regular a sua prestação, fiscalizando e garantindo
a sua universalização. O Estado não deve ser mais o executor direto das atividades
econômicas (inclusive os serviços públicos,) mas apenas interfere indiretamente,
regulando estas atividades. Segundo Vital Moreira, há uma relação inversa entre a
atividade econômica do Estado e sua atividade regulatória: a redução do papel do
Estado normalmente implica no aumento da regulação.
Esta foi a lógica da chamada “Reforma do Estado”, promovida no Brasil entre
1995 e 2002,10 especialmente por meio de emendas à Constituição de 1988 e a criação de novos órgãos públicos, chamados de “agências”, imitando a estrutura administrativa norte-americana. A Emenda Constitucional nº 19, de 1998, especialmente
buscou instituir a chamada “Administração Gerencial”, cuja preocupação se dá em
10
Francisco José Contreras PELÁEZ, Defensa del Estado Social cit., pp. 168-171. No caso brasileiro, este tipo
de política buscou atingir diretamente o funcionalismo público e os aposentados e pensionistas, principais
prejudicados com as mudanças instituídas pelas Emendas Constitucionais nº 19 e nº 20 à Constituição de
1988.
Vital MOREIRA, Auto-Regulação Profissional e Administração Pública, Coimbra, Livraria Almedina,
1997, pp. 43-45. Vide também Vinícius Marques de CARVALHO, “Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia” in José Eduardo FARIA (org.), Regulação, Direito e Democracia, São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2002, pp. 13-15.
Para o entendimento do serviço público como espécie da atividade econômica em sentido amplo, concepção
adotada neste texto, vide Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 130148. Cumpre, ainda, ressaltarmos que no decorrer deste texto, damos ênfase aos serviços públicos definidos
constitucionalmente que foram objeto do processo de privatização, especialmente nas áreas de infra-estrutura, telecomunicações e energia, como telefonia, eletricidade, gás, etc.
Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania: A Reforma Gerencial Brasileira
na Perspectiva Internacional, reimpr., São Paulo/Brasília, Ed.34/ENAP, 2002, pp. 38-40; Floriano Peixoto de
Azevedo MARQUES Neto, Regulação Estatal e Interesses Públicos, São Paulo, Malheiros, 2002, pp. 166-168
e 183-185 e Vital MOREIRA, Auto-Regulação Profissional e Administração Pública cit., pp. 37-39.
Para uma análise da crise do Estado Desenvolvimentista brasileiro e de seus instrumentos de planejamento e
intervenção direta na economia, especialmente sob a ótica da crise de financiamento, vide Rui de Britto Álvares AFFONSO, “A Ruptura do Padrão de Financiamento do Setor Público e a Crise do Planejamento no Brasil
nos Anos 80”, Planejamento e Políticas Públicas nº 4, Brasília, IPEA, dezembro de 1990, pp. 37-66.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
termos de eficiência e resultados, transplantando mecanismos da iniciativa privada
para a Administração Pública e pautando a atuação do Estado pelo mercado.11
Os objetivos da Reforma Gerencial, segundo um de seus formuladores, o exMinistro Luiz Carlos Bresser Pereira, são aumentar a eficiência e a efetividade dos
órgãos estatais, melhorar a qualidade das decisões estratégicas do governo e voltar
a Administração para o cidadão-usuário (ou cidadão-cliente). A lógica da atuação
da Administração Pública deixa de ser o controle de procedimentos (ou de meios)
para ser pautada pelo controle de resultados, buscando a máxima eficiência possível.
Para tanto, um dos pontos-chave da Reforma é atribuir ao administrador público
parte da autonomia de que goza o administrador privado, com a criação de órgãos
independentes (as “agências”) da estrutura administrativa tradicional, formados por
critérios técnicos, não políticos.12
Uma das propostas principais da Reforma do Estado foi, também, a privatização das empresas estatais brasileiras. A privatização, no Brasil, foi associada à delegação de serviços públicos à iniciativa privada. Com a venda das empresas estatais
que detinham o monopólio da prestação do serviço público, transferiu-se, conjuntamente com a propriedade da empresa, a execução do serviço.13 A regulação passou a
ocorrer de dois modos distintos: a regulação contratual, ou seja, por meio do contrato
de concessão entre o órgão regulador e o particular prestador do serviço público; e
a regulação econômica setorial (economic regulation), através do controle e fiscalização da prestação do serviço desempenhada pela atuação da “agência” reguladora
do setor.14
11
12
13
14
Adriana da Costa Ricardo SCHIER, A Participação Popular na Administração Pública: O Direito de
Reclamação, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, pp. 129-154. Devemos ressaltar que a “Reforma Gerencial” da
Administração Pública brasileira foi promovida “de fora para dentro”, obedecendo às diretrizes dos órgãos
de financiamento internacionais, que exigiam uma estrutura administrativa “mais confiável” para que o país
pudesse atrair investimentos e capitais estrangeiros. Cf. Maria Paula Dallari BUCCI, Direito Administrativo
e Políticas Públicas, São Paulo, Saraiva, 2002, pp. 29-30.
Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania cit., pp. 109-126. Para uma crítica ao
gerencialismo da Reforma do Estado implementada no Brasil, vide, entre outros, Maria Paula Dallari BUCCI,
Direito Administrativo e Políticas Públicas cit., pp. 32-34.
Vinícius Marques de CARVALHO, “Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia” cit., p.
16.
Vinícius Marques de CARVALHO,“Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia” cit., pp.
17-20. Para La Spina e Majone, a economic regulation corrige defeitos internos ao mercado para garantir o
seu normal funcionamento, ou seja, busca a eficiência econômica do mercado regulado. Já a social regulation
tem uma perspectiva normativa, buscando corrigir efeitos colaterais ou externalidades da atividade econômica em campos como a saúde, meio ambiente, segurança no local de trabalho e direitos do consumidor.
Não se trata de política social, mas de atendimento de alguns interesses difusos que podem atrapalhar o bom
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
Em termos federativos, a crise financeira do Estado e a instabilidade econômica do período da redemocratização acabaram minando as bases de sustentação de
um projeto de desenvolvimento que continuasse a soldar o pacto federativo brasileiro.15 Além disto, desde 1994, vem sendo implantado um programa de estabilização
econômica (Plano Real), cujos pilares básicos são, como vimos, a Reforma do Estado,
com políticas de privatização, desregulamentação e de controle de gastos e redução
do déficit público.
Como a autonomia política e financeira dos entes federados constitui um
entrave às metas federais de ajuste fiscal, há, desde este período, uma forte tendência à centralização, com a crescente reconcentração de receitas na órbita federal.16
Privados de recursos federais, por meio de transferências ou investimentos diretos da União, os Estados e Municípios, também em crise financeira, lançaram-se
em uma luta fratricida de captação de recursos da iniciativa privada: a “guerra
fiscal”.17 Estas são duas principais características do federalismo brasileiro pós1988: ao invés da coordenação e cooperação previstas no texto constitucional, o
que se constata é a recentralização de receitas na órbita federal e a disputa cada vez
mais acirrada entre os entes federados.
Além da reconcentração de recursos junto à União, o fortalecimento do Governo Federal dá-se também, entre outros motivos, devido à forte crise financeira
dos Estados, agravada pela concentração tributária na esfera federal, que passaram a
depender mais do Poder Central. A elevação das taxas de juros como um dos instrumentos de sustentação do plano de estabilização econômica onerou, pesadamente, o
endividamento dos Estados, que foram forçados a reestruturar os bancos estaduais e
a renegociar suas dívidas com a União.18
15
16
17
18
funcionamento do mercado. Cf. Antonio LA SPINA & Giandomenico MAJONE, Lo Stato Regolatore, Bologna,
Il Mulino, 2001, pp. 38-48.
Para uma análise histórica da formação e evolução do federalismo no Brasil, vide Gilberto BERCOVICI, “The
Autonomy of States in Brazil: Between Federalism and Unitary Government” in Marcelo NEVES & Julian Thomas HOTTINGER (orgs.), Federalism, Rule of Law and Multiculturalism in Brazil, Basel/Généve/München, Helbing & Liechtenhan, 2001, pp. 25-56.
Vide, especialmente, Francisco Luiz C. LOPREATO, “Um Novo Caminho do Federalismo no Brasil?”, Economia e Sociedade nº 9, Campinas, Instituto de Economia da UNICAMP, dezembro de 1997, pp. 97-103.
Sobre a “guerra fiscal”, vide Andrés RODRÍGUEZ-POSE & Glauco ARBIX, “Estratégias do Desperdício: A
Guerra Fiscal e as Incertezas do Desenvolvimento”, Novos Estudos nº 54, São Paulo, CEBRAP, julho de 1999,
pp. 55-71e Sérgio PRADO & Carlos Eduardo G. CAVALCANTI, A Guerra Fiscal no Brasil, São Paulo/Brasília,
FUNDAP/FAPESP/IPEA, 2000.
Lourdes SOLA, Christopher GARMAN & Moises MARQUES, “Central Banking, Democratic Governance and
Political Autority: The Case of Brazil in a Comparative Perspective”, Revista de Economia Política, vol. 18,
nº 2 (70), São Paulo, Ed. 34, abril/junho de 1998, pp. 121-128; Celina Maria de SOUZA, “Intermediação de
Interesses Regionais no Brasil: O Impacto do Federalismo e da Descentralização”, Dados – Revista de Ciên-
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
O Governo Federal impôs uma série de exigências para a renegociação
das dívidas estaduais. Em primeiro lugar, contrariando totalmente a autonomia
política dos Estados, a União exigiu que eles se adequassem à sua política de privatizações, especialmente dos bancos e das companhias energéticas estaduais.19
Desta forma, todos os Estados que assinaram a repactuação de suas dívidas com
a União foram obrigados a concordar com a privatização de suas empresas estatais, além de terem que comprometer, por exigência do Governo Federal, parte
da sua receita para o pagamento das dívidas, bem como aderir a um programa
de “ajuste fiscal”, no qual se previa, sem qualquer fundamento sólido, um crescimento na arrecadação tributária.20 Os acordos foram firmados de tal maneira
que uma esfera (a estadual) parece estar totalmente subordinada à outra (a federal). A relação que deveria ser de coordenação tornou-se uma relação de dominação, violando o pacto federativo.21
Além da reestruturação das relações federativas, com a Reforma do Estado,
criaram-se duas áreas distintas de atuação para o Poder Público: de um lado, a Administração Pública centralizada, que formula e planeja as políticas públicas. De outro,
os órgãos reguladores (as “agências”), que regulam e fiscalizam a prestação dos serviços públicos.22 Isto contraria o próprio fundamento das políticas públicas, que é a
necessidade de concretização de direitos por meio de prestações positivas do Estado,
19
20
21
22
cias Sociais, vol. 41, nº 3, Rio de Janeiro, IUPERJ, 1998, pp. 580-583; Francisco Luiz C. LOPREATO, “Um Novo
Caminho do Federalismo no Brasil?” cit., pp. 102-103 e Rui de Britto Álvares AFFONSO, “Descentralização
e Reforma do Estado: a Federação Brasileira na Encruzilhada”, Economia e Sociedade nº 14, Campinas,
Instituto de Economia da UNICAMP, junho de 2000, pp. 138-139 e 144-146. A questão dos bancos estaduais
é extremamente relevante, pois indica o “grau de tolerância” da política econômica federal com a autonomia
financeira que devem possuir os entes federados, bem como diz respeito à centralização da autoridade monetária no Banco Central. Vide especialmente Lourdes SOLA; Christopher GARMAN & Moises MARQUES,
“Central Banking, Democratic Governance and Political Autority: The Case of Brazil in a Comparative Perspective” cit., pp. 115-121 e Rui de Britto Álvares AFFONSO, “A Federação no Brasil: Impasses e Perspectivas”
in Rui de Britto Álvares AFFONSO & Pedro Luiz Barros SILVA (orgs.), A Federação em Perspectiva: Ensaios
Selecionados, São Paulo, FUNDAP, 1995, p. 62.
Celina Maria de SOUZA, “Intermediação de Interesses Regionais no Brasil: O Impacto do Federalismo e da
Descentralização” cit., pp. 582-583.
Francisco Luiz C. LOPREATO, “Um Novo Caminho do Federalismo no Brasil?” cit., pp. 103-107.
Vide Rui de Britto Álvares AFFONSO, “Descentralização e Reforma do Estado: a Federação Brasileira na Encruzilhada” cit., pp. 146-148.
Cf. Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania cit., p. 110 e Floriano Peixoto de
Azevedo MARQUES Neto, Regulação Estatal e Interesses Públicos cit., p. 201.
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BERCOVICI, Gilberto; ANDRADE, José Maria Arruda de; MASSONETTO, Luís Fernando. Reforma do Estado,
prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
ou seja, por meio dos serviços públicos.23 Política pública e serviço público estão
interligados, não podem ser separados, sob pena de esvaziarmos o seu significado.24
Sintomática do espírito da Reforma do Estado, ainda, foi a substituição, no
texto constitucional, dos beneficiários com os serviços públicos: a coletividade foi
substituída pelo usuário. O titular do direito de reclamação pela prestação dos serviços públicos (previsto no artigo 37, §3º da Constituição de 1988) foi alterado pela
Emenda nº 19, passando da população em geral para o consumidor. O cidadão, com a
“Reforma Gerencial”, é entendido apenas como cliente, como consumidor.25
Apesar disto, o repasse de atividades estatais para a iniciativa privada é visto
por muitos autores como uma “republicização” do Estado, partindo do pressuposto
de que o público não é, necessariamente, estatal.26 Esta visão está ligada à chamada
“teoria da captura”, que entende tão ou mais perniciosas que as “falhas de mercado”
(market failures), as “falhas de governo” (government failures) provenientes da
cooptação do Estado e dos órgãos reguladores para fins privados. No Brasil, esta idéia
é particularmente forte no discurso que buscou legitimar a privatização das empresas estatais e a criação das “agências”. As empresas estatais foram descritas como
focos privilegiados de poder e a sua privatização tornaria público o Estado, além da
criação de “agências” reguladoras “independentes”, órgãos técnicos, neutros, livres da
ingerência política na sua condução27.
23
24
25
26
27
Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 cit., pp. 238-242 e Maria Paula Dallari
BUCCI, “As Políticas Públicas e o Direito Administrativo”, Revista Trimestral de Direito Público nº 13, São
Paulo, Malheiros, 1996, p. 135.
Para uma reafirmação do conceito material de serviço público, entendido como atividade indispensável à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social em um determinado momento histórico,
portanto, concepção adaptada às necessidades de um país subdesenvolvido como o Brasil, vide Eros Roberto GRAU, “Constituição e Serviço Público” in Eros Roberto GRAU & Willis Santiago GUERRA Filho (orgs.),
Direito Constitucional - Estudos em Homenagem a Paulo Bonavides, São Paulo, Malheiros, 2001, pp.
252-257 e 262-267.
Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania cit., pp. 109, 111-112, 115, 118-119
e 121-122. Para a crítica desta visão, vide Adriana da Costa Ricardo SCHIER, A Participação Popular na
Administração Pública cit., pp. 153-154, 215-217 e 231-237.
Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania cit., pp. 81-94 e Floriano Peixoto de
Azevedo MARQUES Neto, Regulação Estatal e Interesses Públicos cit., pp. 174-194. Para a concepção de atividades públicas não-estatais (atividades como escolas, universidades, hospitais, centros de desenvolvimento
científico e tecnológico, etc) e das organizações que poderiam gerir estas atividades (chamadas de “organizações sociais”), vide Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania cit., pp. 98-101 e
235-250.
Vinícius Marques de CARVALHO,“Regulação de Serviços Públicos e Intervenção Estatal na Economia” cit., pp.
20-22. Para a justificativa oficial, vide Luiz Carlos Bresser PEREIRA, Reforma do Estado para a Cidadania
cit., pp. 156-160. Sobre as market failures e as government failures, vide Antonio LA SPINA & Giandomenico MAJONE, Lo Stato Regolatore cit., pp. 15-17 e 117-126.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
Ora, sabemos que as “agências independentes” não são independentes.28 E,
conforme iremos demonstrar adiante, a regulação no Brasil não significa a “republicização” do Estado. Pelo contrário, a regulação é uma nova forma de “captura” do
fundo público, ou seja, a regulação consiste em um novo patrimonialismo.
II
A noção moderna de serviço público é contemporânea da idéia de Estado
Fiscal.29 No bojo do desenvolvimento do capitalismo, a organização do Estado em
torno da prestação de serviços públicos não prescinde da existência prévia de um
fundo público, isto é, de recursos financeiros aptos a sustentar as crescentes despesas estatais. Seja como financiadora da prestação direta de serviços pelo Estado, seja
como garantidora da prestação por delegatários do poder estatal, a emergência da
fazenda pública relacionada a tais atividades vincula decisivamente a questão fiscal à
prestação de serviços públicos pelo Estado.30
Não é por outra razão que as crises fiscais contemporâneas têm sido constantemente associadas ao crescimento das despesas públicas, na maior parte das vezes
motivado pela expansão dos serviços públicos. Na perspectiva liberal, que apregoa a
redução da carga tributária e a diminuição do papel do Estado na economia, mesmo
na prestação de serviços públicos, a crise fiscal do Estado implica a necessidade de
ajustes nas despesas, com a conseqüente delegação de atividades à iniciativa privada,
além de redução dos tributos lançados, pela expansão de incentivos concedidos como
estímulo à transferência de atividades públicas à iniciativa privada.31
28
29
30
31
Sobre o paradoxo “independent agencies are not independent”, vide Cass R. SUNSTEIN, “Paradoxes of the
Regulatory State” in Free Markets and Social Justice, reimpr., Oxford/New York, Oxford University Press,
1999, pp. 285-286 e 293-294. Para outras críticas ao modelo de “agências” implementado no Brasil, vide Eros
Roberto GRAU, “As Agências, Essas Repartições Públicas” in Calixto SALOMÃO Filho (org.), Regulação e
Desenvolvimento, São Paulo, Malheiros, 2002, pp. 25-28.
“O que caracteriza o surgimento do Estado Fiscal, como específica configuração do Estado de Direito, é o novo
perfil da receita pública, que passou a se fundar nos empréstimos, autorizados e garantidos pelo Legislativo, e
principalmente nos tributos - ingressos derivados do trabalho e do patrimônio do contribuinte -, ao revés de
se apoiar nos ingressos originários do patrimônio do príncipe. Deu-se a separação entre o ius eminense, e o
poder tributário, entre a fazenda pública e a fazenda do príncipe (...)” in Ricardo Lobo TORRES, A Idéia de
Liberdade no Estado Patrimonial e no Estado Fiscal, Rio de Janeiro, Renovar, 1991, p. 97.
Histórico sintético deste duplo pode ser apreendido em Dominique LORRAIN, “Os Serviços Urbanos, os Mercados e as Políticas” in Claude MARTINAND (org.), A Experiência Francesa do Financiamento Privado
de Equipamentos Públicos, São Paulo, Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE), 1996.
Sobre a discussão da dimensão do setor público nas Finanças Públicas ver Joseph E. STIGLITZ, Economics of
the Public Sector, 3ª ed, New York, W.W. Norton & Company, 1999.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
No recente debate da reforma do Estado brasileiro, que acompanhou uma
política nacional de desestatização, a discussão sobre a relação entre os serviços públicos e os fundos que os mantinham foi feita de maneira oblíqua. Primeiramente,
apontou-se uma crise de financiamento e a impossibilidade do Estado continuar dispondo de suas rendas para a manutenção destes serviços. Além de extremamente
onerosa, a prestação pelo Estado seria fatalmente ineficiente, pela impossibilidade do
fundo público fazer frente às despesas crescentes com o custeio e com a imperativa
universalização dos serviços. Além desta crise de financiamento, apontava-se uma
ineficiência estatal inata, passível de correção pela prestação dos serviços pelo setor
privado. Privilegiando uma visão de excelência dos serviços prestados sob a livre
iniciativa, apregoava a destinação do fundo público para as questões essencialmente
estatais. Em linhas gerais, dois argumentos sustentavam a política de desestatização:
a crise fiscal do Estado e a ineficiência, contingente ou inerente, dos serviços prestados pelo aparato estatal.
Porém, se o fundo público teve importante papel no convencimento e legitimação da política de desestatização, ele foi pouco a pouco sendo relegado a um
segundo plano, desvinculando-se, ao menos no debate público, da configuração do
novo Estado Regulador. Na estratégia de reforma do Estado adotada, a constituição
de um Estado Regulador foi a principal tarefa intentada. Redefinindo o papel do Estado, para além do velho poder de polícia, mas muito aquém do Estado Providência, os
novos marcos regulatórios tiveram importante papel no que concerne à relação entre
o fundo público e os serviços públicos. Adotando a lógica binária da Teoria dos Sistemas, a nova regulação jurídica pautou-se pela divisão clara de papéis entre o Estado e
uma nova instância intermediária criada - as “agências” de regulação. Fragmentando
o ambiente da prestação dos serviços, buscou a constituição de microssistemas equilibrados, com o equilíbrio garantido pelas agências de regulação.
Ocorre que em um país com desníveis extremos de renda, tal regulação se
equilibra muito mais pelo que exclui do que pelo que realmente atende. De forma
que, em relação aos serviços públicos, a lógica regulatória produziu duas espécies
de universalização:32 a primeira, a cargo das políticas desenvolvidas no âmbito regulado, que busca o universal como garantia do equilíbrio; e a segunda, a cargo do
Estado, que busca o atendimento dos excluídos da prestação dos serviços pela via do
mercado. A compreensão do papel do fundo público em cada uma das fases do modo
de prestação dos serviços público se torna fundamental, evidenciando que, a despei32
Para a discussão da problemática da universalização de serviços públicos vide Diogo COUTINHO, “A Universalização do Serviço Público para o Desenvolvimento como uma Tarefa da Regulação” in Calixto SALOMÃO
FILHO, Regulação e Desenvolvimento cit., pp. 65-86.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
to da propalada eficiência e auto-suficiência privada, não se vislumbra a prestação de
serviços públicos na ausência do fundo público.
O desenvolvimento da noção de serviços públicos, como atividade de natureza econômica prestada pelo Estado, acompanhou o crescimento das despesas estatais
com a oferta de tais bens públicos. Neste período, é inegável a destinação crescente
de recursos orçamentários voltados à manutenção e universalização de serviços públicos. Fazendo uso de suas receitas correntes e alavancando despesas com a contratação de operações de crédito ou com o crescimento da dívida pública, o Estado
ampliou consideravelmente os beneficiários de tais comodidades estatais. Em linhas
gerais, as despesas do Estado com tais atividades podem ser resumidas no custeio
dos serviços e nos esforços de universalização das comodidades, seja pela expansão
dos serviços seja pela concessão de subsídios.33
Durante o século XX, a prestação direta de serviços públicos passou a ser
acompanhada da delegação de tais atividades, seja a empresas estatais ou sociedade
de economia mista constituídas para este fim, seja a grupos privados por intermédio
da concessão. Depois de um período de alternância da prestação de serviços diretamente pelo Estado ou por delegatários do poder estatal, no último quartel do século
XX, as políticas de desestatização voltaram com muita força, associadas, porém, ao
capital financeiro. Beneficiados com o que se convencionou chamar de “globalização”, os fluxos financeiros que transitam ao redor do globo passaram a eleger determinados setores como alvo de novos investimentos. De maneira que, estrangulado
pela crise fiscal, muitos Estados optaram pela desestatização de seus serviços, seja
com a sua concessão a empresas globais, seja com a alienação de ativos visando ao
atingimento de metas fiscais acertadas com estes mesmos investidores.
Porém, se no período anterior a delegação de serviços públicos acabou por
onerar os cofres públicos, seja pelo desvio de finalidades das concessões realizadas,
seja pelo atendimento de interesses privados com a coisa pública, é inegável a marginalidade da apropriação privada dos fundos públicos em relação ao modelo mais
recente. Em tal modelo, a política foi marcada pela predação do fundo público. “Refém” da volatilidade do capital financeiro, o Estado brasileiro levou a contento a sua
política nacional de desestatização, consumindo todo o produto da política em sua
estratégia de estabilização monetária. Ao fundo público, coube um duplo papel: primeiramente, serviu como estímulo à desestatização. Seja através de preços aviltantes
ofertados, seja por incentivos fiscais concedidos, proporcionais ao ágio propositadamente atingido, o Estado abdicou de ingressos futuros em prejuízo da higidez do fun33
Ver R. MUSGRAVE & P. MUSGRAVE, Finanças Públicas: Teoria e Prática, São Paulo, EDUSP, 1980.
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do público, anuindo com a apropriação de parte significativa do fundo público por
setores privados. Em segundo lugar, o fundo público, a partir da associação de privatização com a financeirização dos serviços e de seus delegatários, passou a servir
como garantia dos investimentos realizados. E, lastreando operações de risco, típicas
do mercado financeiro, o Estado passou a ofertar ao setor privado uma das mercadorias mais caras em tempos de globalização financeira: a garantia.
Em relação à garantia, como produto apropriado pelo capital privado, é importante salientar que ela aparece de diversas maneiras. Ora como garantia financeira concreta, ora como garantia de equilíbrio de contrato que produz o fenômeno do
capitalismo sem risco, ora com a fragmentação do ambiente de prestação de serviços,
garantindo, com a redução dos agentes econômicos e com o equilíbrio do ambiente regulado, a segurança do retorno do capital investido, diminuindo os riscos dos
investidores e alavancando, por isso, o capital social das empresas delegatárias do
serviço público.
A predação do fundo público na estratégia de reforma do Estado brasileiro
não se limitou à constituição de garantia. Para evitar que a fragmentação dos serviços, necessária ao atendimento dos interesses do setor privado, impedisse a universalização dos serviços públicos, foi prevista a criação de fundos financeiros voltados
a suportar os investimentos necessários à complementação da expansão promovida
pelo mercado. Tais fundos de universalização, em tese, legitimariam o equilíbrio excludente dos ambientes regulados. Assim, à exclusão provocada pelo equilíbrio dos
microssistemas regulados, a reforma acenava com uma fonte de financiamento de
políticas públicas e de universalização de serviços, para além da disposição do mercado.
Assim, motivado pela lógica financeira, foram criados os fundos de universalização, de modo a separar investimento privado e universalização integral dos serviços públicos. No entanto, a mesma lógica que impôs a fragmentação dos serviços e a
pletora de garantias a partir do fundo público implicou a não-execução das receitas
integrantes desses fundos.
A estratégia de estabilização monetária, que tornou possível a conversibilidade da moeda e fez aumentar o “interesse” dos investidores internacionais, foi calcada na idéia de garantia, como o cumprimento de metas fiscais, consubstanciadas na
produção de superávits primários. A fim de garantir o capital de curto prazo, atraído
pelas estratosféricas taxas de juros, o governo passou a perseguir ousadas metas
fiscais, com resultados positivos cada vez maiores. Ocorre que tais superávits são, por
fim, obtidos com a não-execução das receitas de diversos fundos financeiros estatais,
dentre os quais os fundos de universalização. Desta forma, também o fundo público,
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
que deveria ser destinado à execução concreta de políticas de universalização de serviços públicos, acaba sendo voltado à oferta de garantia ao capital financeiro, restando imobilizado à conta da produção de sucessivos superávits primários.
Vale destacar que, além da questão da ineficiência estatal na prestação de serviços públicos, a ideologia da reforma do Estado, que sustentou as transformações
dos anos 1990, apresentou o novo modelo de regulação como superação do Estado
burocratizado e do patrimonialismo que lhe era subjacente. A nova regulação, com
suas instâncias independentes, eqüidistantes dos agentes econômicos e do Estado,
tornaria possível a gestão impessoal e eficiente, em conformidade com os princípios
da Administração Pública. Tanto que, em rápido processo de “aggiornamento” nas
universidades norte-americanas, a doutrina passou a discorrer, como vimos, sobre a
“teoria da captura”, trazendo como novidade um velho conhecido de qualquer estudioso com os olhos na realidade nacional.
Em um Estado há muito capturado por setores privados, a nova regulação
nada mais faz do que operar a razão cínica para modernizar a arcaica apropriação
do fundo público. A financeirização do Estado e dos prestadores do serviço público,
somada a um inegável amadurecimento das instituições democráticas, implicaram
uma necessidade de atualização do velho patrimonialismo. Os ganhos econômicos
dos participantes das privatizações e de seus agregados mais os resultados das instituições financeiras e dos principais beneficiários do Estado rentista evidenciam uma
nova forma de apropriação do fundo público, um novo patrimonialismo.
III
No contexto da análise das reformas administrativas promovidas pelo Poder
Executivo Federal, sobretudo quando se foca a questão dos fundos constituídos para
o financiamento da regulação e universalização dos serviços privatizados, vale considerar, ainda que brevemente, o formato tributário utilizado para a formação desses
fundos, o perfil de sua implementação e possíveis desvios de finalidade.
Os últimos governos federais foram marcados por uma série de medidas tributárias para melhorar a fiscalização e a arrecadação de receitas derivadas. Sucessivamente, vários recordes de arrecadação foram anotados pela Receita Federal e pelo
Instituto Nacional do Seguro Social. Foi promovido, ainda, um aumento não só da
carga tributária, mas da concentração federal dessa tributação, obtida por meio da
majoração da alíquota ou da implementação de novas contribuições, cujas receitas,
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
constitucionalmente, não são repassadas, geralmente, aos Estados-membros da Federação.
Esta parte do texto serve, portanto, para analisar a utilização de contribuições
(espécie tributária) como forma de aumento da carga e da concentração tributária
federal e da contribuição de intervenção no domínio econômico – CIDE (sub-espécie) como forma de financiamento de políticas públicas e a constituição de fundos
nos moldes apresentados no item anterior.
No sistema constitucional tributário brasileiro hodierno, as contribuições
pertencem à região própria do regime dos tributos em geral. Antiga é a discussão
acerca da natureza tributária ou não dessas figuras exacionais. No âmbito desse
texto, contudo, comporta apenas considerar que as contribuições recebem o tratamento (regime) jurídico próprio dos tributos, independentemente de sua natureza
jurídica.34
Historicamente, entretanto, as contribuições surgem no contexto da parafiscalidade e da facilidade de sua criação (já que imune as rígidas regras tributárias e
orçamentárias), aliada à necessidade de rápida intervenção/atuação, seja ela social,
econômica ou setorial profissional/econômica. Outra vantagem na utilização dessa
figura exacional é a desnecessidade de repassar parte da receita arrecada aos Estados-membros, o que acarreta uma maior concentração fiscal federal.
No âmbito da Constituição Federal de 1988, a comissão constituinte responsável pela elaboração do Sistema Tributário Nacional (arts. 145 a 162) buscou
privilegiar a exaustividade das competências tributárias para a implementação de
impostos35 (arts. 153, 155 e 156) e buscou limitar as competências extraordinárias e
residuais (art. 154), prescrevendo, ainda, de maneira bem detalhada várias limitações
ao poder de tributar (arts. 150 a 152, sem prejuízo de outras garantias asseguradas
ao contribuinte).
Já a comissão encarregada dos trabalhos da constituinte, relacionados à Ordem Social, foi outra, que caminhou no sentido de uma concretização de finalidades
interventivas voltadas à saúde, à assistência social e à previdência, flexibilizando a ri34
35
No sentido de entender as contribuições como figuras que tem o regime mas não a natureza jurídica tributária, ver Marco Aurélio GRECO, Contribuições (uma figura “sui generis”), São Paulo, Editora Dialética,
2000, pp. 69 e ss. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, no RE 146.733 (Pleno, Relator Ministro Moreira
Alves, DJ 6.11.92) e no RE 138.284 (Pleno, Relator Ministro Carlos Velloso) declarou a natureza tributária das
contribuições, aliás, em geral, o critério tem sido mais topográfico do que jurídico.
Ver Humberto ÁVILA Sistema Constitucional Tributário, São Paulo, Editora Saraiva, 2004, p. 109 e ss.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
gidez do sistema tributário nacional e algumas garantias, como a da anterioridade,36
impondo, ainda, a solidariedade do custeio da seguridade social.
Não faz parte do objetivo deste texto analisar eventuais divergências entre
setores constitucionais ou mesmo definir os limites da flexibilização de garantias
do contribuinte no âmbito das contribuições da seguridade social e até mesmo do
art. 149, que, no sistema tributário nacional, define a competência para criação
das contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesses
de categorias.
Importa, antes, analisar o aumento da importância das contribuições na política da União, não só pela definição do constituinte de 1988 por uma República
Interventiva, mas a partir da diminuição da arrecadação de impostos da União, como
o imposto de renda (IR) e o imposto sobre produtos industrializados (IPI) – impostos repassados aos Estados e municípios – e o crescente índice de arrecadação das
contribuições – tributos não repassados aos demais membros da federação e que, a
partir 1993,37 podem ter suas receitas acumuladas empregadas em outros setores que
não aqueles previstos constitucional e legalmente.
Essa crescente arrecadação de contribuições, em detrimento daqueles impostos repassados aos outros entes da federação, acarretou uma concentração federal.
Um bom exemplo desta política de concentração federal de receitas derivadas
ocorreu em 2000, quando o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória nº
2.062-60, com a qual elevou, de 15% para 25%, a alíquota do imposto de renda devido na fonte sobre royalties pagos ou creditados a pessoas com sede ou domicílio
no exterior, igualando, portanto, a alíquota nessas situações à já utilizada nos demais
casos de remessas ao exterior. A citada Medida Provisória continha, ainda, a previsão
de que a alíquota retornaria ao patamar anterior (15%) tão logo fosse instituída contribuição de intervenção no domínio econômico sobre a remessa de royalties para
o exterior.
Posteriormente, em 30 de dezembro de 2000, foi publicada a Lei nº 10.168,
através da qual instituiu-se
36
37
O relato sobre o trabalho das duas comissões e as divergências e repercussões pode ser encontrado em José
Roberto Rodrigues AFONSO e Érika Amorim ARAÚJO, “Contribuições Sociais, mas Antieconômicas” in Ciro
BIDERMAN & Paulo ARVATE, Economia do Setor Público no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Elsevier, 2004,
p. 271 e ss.
Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) e, depois, Desvinculação da Receita da União (DRU). Nesse sentido, ver
José Roberto Rodrigues AFONSO e Érika Amorim ARAÚJO, “Contribuições Sociais, mas Antieconômicas” cit,
p. 273.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
contribuição de intervenção no domínio econômico, devida pela pessoa jurídica detentora de licença de uso ou adquirente de conhecimentos tecnológicos, bem como aquela signatária de contratos que impliquem transferência
de tecnologia, firmados com residentes ou domiciliados no exterior.
Em outras palavras, criou-se uma falsa harmonização de alíquotas de imposto de renda retido na fonte nas remessas ao exterior (cuja parte da receita seria
repassada aos Estados membros) seguida da redução da mesma alíquota em prol da
instituição de uma contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE), cuja
arrecadação não é repassada aos entes da Federação. Esta é, portanto, uma das marcas dos últimos anos do governo federal no Brasil: a crescente utilização de contribuições como forma mais fácil e eficiente de aumento de arrecadação e cumprimento
das metas de superávit fiscal impostas pelo FMI ao país.
Outra situação característica desse movimento, que suplantou as fronteiras
do governo Fernando Henrique, estando plenamente vigentes no atual governo federal, é a supressão, para vários setores e situações, da cumulatividade da Contribuição
para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS)38 e do PIS (Programa de Integração Social).39
Se no passado já havia sido providenciada a majoração da alíquota da COFINS (de 2% para 3%) e da base de cálculo do PIS e da COFINS (unificadas e alteradas para qualquer receita, independente de sua classificação contábil),40 mais recentemente foram majoradas as alíquotas dessas contribuições (1,65% no PIS e 7,6%
na COFINS) e permitidos alguns creditamentos, o que foi nomeado como o fim da
cumulatividade daquelas contribuições.
Há, ainda, com relação às contribuições de intervenção no domínio econômico (CIDE’s), um verdadeiro processo de redescoberta dessa figura exacional pelos
governos federais. Recentemente, foram criadas as seguintes contribuições de intervenção no domínio econômico:
38
39
40
A Lei Complementar n° 70, de 31 de dezembro de 1991, com base no artigo 195, I da Constituição Federal
de 1988, instituiu a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS. Seus recursos seriam
destinados exclusivamente ao custeio das despesas com atividades afins das áreas de saúde, previdência e
assistência social.
O Programa de Integração Social -PIS foi instituído pela Lei Complementar n° 07, de 07 de setembro de 1970,
com apoio no artigo 165, V da anterior Constituição Federal de 1967, destinado a promover a integração do
empregado na vida e no desenvolvimento das empresas.
Leis 9.715/98 e 9.718/98.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
1. contribuição para a pesquisa e desenvolvimento do Setor Elétrico e para
Programas de Eficiência Energética no Uso Final (Lei 9.991/2000 com alterações da Lei 10.438/2002);41
2. contribuição para o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – FUST (Lei 9.472/1997, Lei 9.998/2000);42
3. contribuição ao Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações – FUNTTEL (Lei 9.472/1997, Lei 10.052/2000);43
4. contribuição para o financiamento do Programa de estímulo à interação
universidade-empresa (Lei 10.168/2000 e Lei 10.332/2001);
5. contribuição para o desenvolvimento da indústria cinematográfica nacional (Medida Provisória nº 2.228/2001 e Lei 10.454/2002);
6. contribuição de intervenção no domínio econômico incidente sobre a
importação e a comercialização de petróleo e seus derivados (Lei nº
10.336/2001).
Além dessas, há projetos de lei propondo a criação de outras CIDE’S para:
1. financiar projetos de infra-estrutura nas áreas de atuação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM e da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste – SUDENE (Projeto de Lei (CD)
03678, de 2000, de autoria do Executivo Federal);
2. contribuição ao Fundo de compensação de competitividade nas importações (Projeto de Lei 4.817/1998);
3. Fundo de financiamento de ações de tratamento aos doentes vítimas de
alcoolismo (Projeto de Lei Complementar nº 121/2000);
41
42
43
Vide Ricardo Mariz de OLIVEIRA, “Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico – Concessionárias,
Permissionárias e Autorizadas de Energia Elétrica – ‘Aplicação’ Obrigatória de Recursos (Lei 9.991)” in Marco
Aurélio GRECO, Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e Figuras Afins, São Paulo, Editora Dialética, 2001, pp. 375-431 e Paulo Roberto Lyrio PIMENTA, Contribuições de Intervenção no Domínio
Econômico, São Paulo, Editora Dialética, 2002, pp. 110-112.
Sobre essa contribuição, vide Natanael MARTINS “As Contribuições ao FUST e ao FUNTTEL” in Marco Aurélio GRECO, Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico e Figuras Afins cit., São Paulo, Editora
Dialética, 2001, pp. 345-356 e Paulo Roberto Lyrio PIMENTA, Contribuições de Intervenção no Domínio
Econômico cit., pp. 110-112.
Paulo Roberto Lyrio PIMENTA, Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico cit., pp. 112-114.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
4. Fundo de financiamento de ações de tratamento de doentes vítimas do
fumo, cigarro e tabaco (Projeto de Lei Complementar nº 139/2000);44
Assim, mediante a listagem das recentes contribuições interventivas criadas,
bem como das possíveis vindouras, percebe-se a crescente utilização dessa forma de
arrecadação.
Alguns requisitos devem ser lembrados, já que configuram não somente o
perfil constitucional das contribuições, mas também os requisitos de validade delas. As contribuições aparecem no artigo 149 da Constituição brasileira de 1988, que
estabelece a competência da União Federal para instituir “contribuições sociais, de
intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de atuação nas respectivas áreas”, devendo ser atendidos os princípios da legalidade e anterioridade e a necessidade de lei complementar
a tratar, genericamente, de matéria tributária”.
A doutrina tributária, tão apegada à enumeração exaustiva de todos os limites
da competência impositiva e dos elementos da obrigação fiscal, logo ressaltou a ausência de maiores detalhes quanto às contribuições, e o Poder Executivo, justamente
diante desse pano de fundo, tem preferido aumentar sua tributação por meio dessa
figura exacional. Lembre-se, ainda, que não há no Código Tributário Nacional brasileiro maiores especificações sobre os limites e as características das contribuições.
O Supremo Tribunal Federal (STF), que já desenvolveu sólida construção jurisprudencial acerca de impostos e taxas, tem se deparado cada vez mais com processos
questionando a validade dessas contribuições. Do ponto de vista formal, a principal
questão recaía sobre a necessidade ou não de lei complementar (nos moldes do artigo 146, inciso III da Constituição Federal de 1988). A matéria, entretanto, encontrou
guarida na Máxima Corte, que definiu a possibilidade de criação de uma CIDE por lei
ordinária no julgamento da contribuição ao SEBRAE (RE396.266).45
44
45
Essa lista de projetos de lei aparece no artigo de Natanael MARTINS “As Contribuições ao FUST e ao FUNTTEL” cit., p. 347.
“EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. CONTRIBUIÇÃO: SEBRAE: CONTRIBUIÇÃO DE INTERVENÇÃO NO DOMÍNIO ECONÔMICO. Lei 8.029, de 12.4.1990, art. 8º, § 3º. Lei 8.154, de 28.12.1990. Lei
10.668, de 14.5.2003. C.F., art. 146, III; art. 149; art. 154, I; art. 195, § 4º. I. - As contribuições do art. 149, C.F.
- contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse de categorias profissionais ou
econômicas - posto estarem sujeitas à lei complementar do art. 146, III, C.F., isto não quer dizer que deverão
ser instituídas por lei complementar. A contribuição social do art. 195, § 4º, C.F., decorrente de “outras fontes”,
é que, para a sua instituição, será observada a técnica da competência residual da União: C.F., art. 154, I, ex vi
do disposto no art. 195, § 4º. A contribuição não é imposto. Por isso, não se exige que a lei complementar defina
a sua hipótese de incidência, a base imponível e contribuintes: C.F., art. 146, III, a. Precedentes: RE 138.284/CE,
Ministro Carlos Velloso, RTJ 143/313; RE 146.733/SP, Ministro Moreira Alves, RTJ 143/684. II. - A contribuição
do SEBRAE - Lei 8.029/90, art. 8º, § 3º, redação das Leis 8.154/90 e 10.668/2003 - é contribuição de interven-
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
No âmbito do presente texto, importa tão-somente falar sobre a questão de
referibilidade da criação de uma CIDE com um Fundo (tendo como pressuposto a
autorização constitucional para a intervenção no domínio econômico do setor eleito). Conforme bem desenvolvido pela doutrina brasileira, há o entendimento de que
as contribuições devem ter seu controle de constitucionalidade submetido a uma validação finalística (e não condicional), nos termos apresentados por Marco Aurélio
Greco,46 já que quando
se edita uma norma jurídica para obter um resultado, é porque este resultado
ainda não existe. Se o resultado ainda não existe, a diretriz do ordenamento,
nestes casos, é de construção de uma realidade nova, de busca de um contexto inexistente, no momento da própria edição da norma.
As técnicas de controle de validade de tributos que, historicamente, se desenvolveram no Brasil dizem respeito ao exame da hipótese de incidência e da base de
cálculo (validação condicional). Trata-se da tradicional teoria do fato gerador. O advento das contribuições outrora denominadas especiais ou parafiscais, sobretudo no
período marcado pelas grandes guerras mundiais, inaugura outro capítulo na teoria
tributária mundial. Isso acontece porque as contribuições têm, como escopo, não o
funcionamento estatal ordinário, e sim financiamento de políticas de intervenção e
atuação pública em setores delimitados (áreas sociais específicas, domínios econômicos, categorias profissionais, etc).
Dessa forma, o controle de validade dessas contribuições fica atrelado não só
à formalidade do dispositivo normativo que a criou (se lei complementar ou não, por
exemplo), mas, sobretudo, se se está diante de áreas de atuação permitidas constitucionalmente e se o grupo eleito de contribuintes o pode ser, sem prejuízo do controle
da efetiva destinação do produto arrecadado ao setor almejado normativamente.47
Daí porque o controle de validade de uma CIDE deve atender a itens como: fim almejado (setor da economia, política pública), o grupo eleito como contribuinte, uma
entidade para gerir os recursos arrecadados.
46
47
ção no domínio econômico, não obstante a lei a ela se referir como adicional às alíquotas das contribuições
sociais gerais relativas às entidades de que trata o art. 1º do D.L. 2.318/86, SESI, SENAI, SESC, SENAC. Não se
inclui, portanto, a contribuição do SEBRAE, no rol do art. 240, C.F. III. - Constitucionalidade da contribuição
do SEBRAE. Constitucionalidade, portanto, do § 3º, do art. 8º, da Lei 8.029/90, com a redação das Leis 8.154/90
e 10.668/2003. IV. - R.E. conhecido, mas improvido.” DJ 27-02-2004 p. 22.
Marco Aurélio GRECO, Contribuições (uma figura “sui generis”) cit., pp. 119-120.
Neste sentido, Helenilson Cunha PONTES, O Princípio da Proporcionalidade e o Direito Tributário, São
Paulo: Dialética, 2000, p. 153.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
Uma ressalva, entretanto, deve ser feita: não é prática comum do Supremo Tribunal Federal realizar esse tipo de análise de mérito dos tributos criados, a atuação
dessa Corte tende a ser mais tímida e formal. Um bom exemplo disso é a recente declaração de constitucionalidade das novas contribuições sociais ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço - FGTS (Lei Complementar nº 110/2001), que foram criadas
não para promover políticas sociais na área e sim para cobrir o prejuízo financeiro
da derrota judicial da União Federal em processos nos quais se discutiam a correção
monetária das contas depositadas na Caixa Econômica Federal.
Nas duas medidas cautelares ajuizadas em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIs 255648 e 2568,49 ajuizadas respectivamente pela CNI e pelo PSL) a
análise ficou apenas quanto aos aspectos formais das contribuições (criação por meio
de lei complementar, por exemplo), com exceção do único voto contrário, da lavra do
Ministro Marco Aurélio de Mello.
Portanto, a análise da privatização dos serviços públicos e a constituição de
fundos para financiar a universalização desses serviços devem ser acompanhadas
do cuidado para não desvirtuar a finalidade de uma contribuição de intervenção no
domínio econômico, qual seja, arrecadar receita para a efetiva prestação de serviços
públicos ou atuação em áreas econômicas específicas.
Torna-se nociva a utilização dos fundos criados para sustentar agências reguladoras como forma de gerar superávit fiscal ou como garantia, nos moldes do item
anterior. Por outro lado, a figura da CIDE, quando bem utilizada, permite o financiamento específico de fundos para o financiamento de políticas públicas pré-estabelecidas, o que favorece a idéia de um Estado que atue diretamente nas importantes
questões nacionais e não pense a questão financeiro-fiscal como tão-somente metas
de superávit a permitir empréstimos junto ao FMI.
IV
Este modelo de Estado Regulador, que vem sendo implementado desde a década de 1990 no Brasil, contrasta com a estrutura federativa prevista na Constituição
de 1988, cujos princípios estão fundados na busca da cooperação entre União e entes
federados, equilibrando a descentralização federal com os imperativos da integração
econômica nacional. Em suma, com as mudanças recentes promovidas no Estado
48
49
DJ 08-08-2003, p. 87, Relator Min. Moreira Alves.
DJ 08-08-2003, p. 87, Relator Min. Moreira Alves.
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prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
brasileiro, o federalismo cooperativo previsto no texto constitucional de 1988, que
poderia renovar as estruturas da Federação brasileira, tem enfrentado sérios obstáculos para a sua concretização.50
Nos regimes federais, tradicionalmente, compete à União buscar a redução das
desigualdades regionais. No Brasil, a forte presença estatal na economia contribuiu
para que o sistema tributário e fiscal ocupe um papel de fundamental importância
nas políticas de desenvolvimento regional.51 Desta maneira, os fundos públicos (receitas tributárias, gastos da União e das estatais federais, incentivos fiscais e empréstimos públicos), são fundamentais nas relações federativas, especialmente em países
com enormes disparidades regionais como o nosso. A estruturação federal pressupõe
transferência considerável de recursos públicos entre as regiões, fundamentada no
princípio da solidariedade.52
Os pressupostos da construção de um Estado Social, como pretende a Constituição brasileira de 1988, com as exigências dos princípios da igualdade e solidariedade,
geram obrigações para a União e os entes federados, orientando o exercício das suas diversas competências no sentido da igualação das condições sociais, ou seja, no sentido
da homogeneização social:
O conceito de homogeneização social não se refere à uniformização dos
padrões de vida, e sim a que os membros de uma sociedade satisfazem
de forma apropriada as necessidades de alimentação, vestuário, moradia, acesso à educação e ao lazer e a um mínimo de bens culturais.53
A igualdade, assim, recebe uma nova dimensão no federalismo cooperativo:
a proibição de discriminação territorial passa a ser um de seus conteúdos essenciais. Ou seja, todos os habitantes de um determinado Estado federal têm direito aos
mesmos serviços públicos essenciais, independentemente da região onde estejam.
O princípio da igualação das condições sociais de vida significa que os cidadãos das
regiões menos desenvolvidas têm o direito de que o Estado providencie para eles a
mesma qualidade de serviços públicos essenciais que usufruem os cidadãos das regiões mais desenvolvidas. O que se quer evitar é que a população seja penalizada por
50
51
52
53
Neste sentido, vide também Marcelo NEVES, Grenzen der demokratischen Rechtsstaatlichkeit und des Föderalismus in Brasilien, Basel/Fribourg, Helbing & Lichtenhahn/Institut du Fédéralisme, 2000, pp. 3-7 e 47.
Celina Maria de SOUZA, “Intermediação de Interesses Regionais no Brasil: O Impacto do Federalismo e da
Descentralização” cit., pp. 575-576.
Cf. Rui de Britto Álvares AFFONSO, “A Federação no Brasil: Impasses e Perspectivas” cit., pp. 57-58 e Rui de
Britto Álvares AFFONSO, “Descentralização e Reforma do Estado: a Federação Brasileira na Encruzilhada”,
cit., pp. 132-133.
Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 38.
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BERCOVICI, Gilberto; ANDRADE, José Maria Arruda de; MASSONETTO, Luís Fernando. Reforma do Estado,
prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
habitar em um ou outro ente da Federação. Para tanto, União e entes federados devem
atuar conjuntamente para assegurarem a igualdade na prestação de serviços públicos essenciais a todos os brasileiros. A igualdade que se busca é tanto a igualdade dos
cidadãos em relação à prestação de serviços públicos, quanto à igualdade da capacidade de todos os membros da Federação na prestação destes mesmos serviços.54
Podemos, inclusive, afirmar que estes fundamentos de igualdade perante os serviços
públicos não se coadunam com a concepção dos chamados “serviços de interesse
econômico geral”, mas com a noção material de serviço público desenvolvida pela
doutrina brasileira.55
Deste modo, a igualação das condições sociais de vida, em todo o território
nacional, é a diretriz fundamental do nosso federalismo cooperativo. Esta homogeneização só é possível se os entes federados possuírem capacidade econômica e política para satisfazerem suas funções essenciais. Portanto, a igualação das condições
sociais passa, necessariamente, pela igualação da capacidade dos entes federados.
Busca-se, assim, um sistema federativo que responda às exigências de igualdade e
solidariedade sem renunciar à sua própria estrutura federal.56
O fundamento desta homogeneização é o princípio da solidariedade, cujo
conteúdo constitucional essencial é a busca a homogeneidade social.57 De acordo
com a Constituição, o princípio da solidariedade exige o estabelecimento do equilíbrio econômico socialmente adequado e justo entre as várias regiões. A Constituição
estabelece a interdependência entre o direito à autonomia e o princípio da solidariedade, ou seja, segundo González Encinar, autonomia e solidariedade são as duas faces
da mesma moeda.58
54
55
56
57
58
Jean ANASTOPOULOS, Les Aspects Financiers du Fédéralisme, Paris, L.G.D.J., 1979, pp. 316-317 e 331-332
e Rômulo ALMEIDA, “Sugestões para um Novo Modelo de Desenvolvimento do Nordeste” in Nordeste: Desenvolvimento Social e Industrialização, Rio de Janeiro/Brasília, Paz e Terra/CNPq, 1985, pp. 217-220.
Para a incompatibilidade entre as concepções de serviço público e de “serviço de interesse econômico geral”,
embora defendendo, ao contrário de nossa opinião, o abandono do serviço público pelo “serviço de interesse
econômico geral”, vide Antonio Troncoso REIGADA, “Dogmática Administrativa y Derecho Constitucional: El
Caso del Servicio Público”, Revista Española de Derecho Constitucional nº 57, Madrid, Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, setembro/dezembro de 1999, pp. 115-131 e 140-147.
Jean ANASTOPOULOS, Les Aspects Financiers du Fédéralisme cit., pp. 314-315 e Enoch Alberti ROVIRA,
Federalismo y Cooperacion en la Republica Federal Alemana, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1986, pp. 379-381 e 553.
Sobre a solidariedade como princípio e programa constitucional, vide Uwe VOLKMANN, Solidarität – Programm und Prinzip der Verfassung, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1998, pp. 369-406.
José Juan González ENCINAR, El Estado Unitario-Federal: La Autonomia como Principio Estructural
del Estado, Madrid, Tecnos, 1985, pp. 160-165.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 171-193, jan./jun. 2006.
BERCOVICI, Gilberto; ANDRADE, José Maria Arruda de; MASSONETTO, Luís Fernando. Reforma do Estado,
prestação de serviços públicos, contribuições especiais e federalismo.
A garantia da existência digna por meio da homogeneização social está,
também, diretamente vinculada à democracia. Segundo Hermann Heller, a sobrevivência do regime democrático depende do êxito da relativa homogeneidade
social, sob pena de se transformar em uma ditadura disfarçada dos setores privilegiados.59 Além disto, com a falta de homogeneidade social, inúmeros setores
da população já não mais se identificam na política e no Estado.60 Para Heller, a
homogeneização social não significa a supressão dos antagonismos da sociedade,
mas que estes interesses antagônicos podem ser compostos e viabilizar a inclusão
da população no processo democrático.61
A cidadania não se limita aos direitos de participação política, inclui, também, os direitos individuais e, fundamentalmente, os direitos sociais. A idéia de
integração na sociedade é fundamental para a cidadania, o que não ocorre, segundo Marcelo Neves, nos países em que há sobreintegração e subintegração, como o
Brasil.62 A igualação das condições sociais de vida, portanto, está intrinsecamente
ligada à consolidação e ampliação da democracia. Além disto, é, também, a melhor
forma de distribuição de renda integrada com a redução das desigualdades regionais, revitalizando o sistema federativo mediante a coordenação e cooperação de
todas as esferas de poder.
59
60
61
62
Hermann HELLER, “Politische Demokratie und soziale Homogenität” in Gesammelte Schriften, 2ª ed,
Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1992, vol. 2, pp. 429-431. Vide também Friedrich MÜLLER, Wer ist
das Volk? Die Grundfrage der Demokratie: Elemente einer Verfassungstheorie VI, Berlin, Duncker &
Humblot, 1997, pp. 48-49 e 56. Este domínio dos setores privilegiados é definido, por Marcelo Neves, como
sobreintegração, que utiliza a Constituição apenas na conformidade de seus interesses, ignorando-a quando
limita sua esfera de atuação política ou econômica. Vide Marcelo NEVES, “Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente”, Dados - Revista de Ciências Sociais vol. 37, nº 2, Rio de Janeiro, IUPERJ,
1994, p. 261.
Marcelo Neves denomina esta situação de subintegração: os subintegrados não têm acesso aos direitos fundamentais e benefícios do ordenamento jurídico. Não é propriamente uma exclusão, pois estes setores têm
deveres e responsabilidades impostos pelo aparelho repressor do Estado. Vide Marcelo NEVES, “Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente” cit., pp. 260-261. Vide também Friedrich MÜLLER, Wer
ist das Volk? cit., pp. 49-50 e Marcelo NEVES, Grenzen der demokratischen Rechtsstaatlichkeit und des
Föderalismus in Brasilien cit., pp. 61-68.
Hermann HELLER, “Politische Demokratie und soziale Homogenität” cit., pp. 427-430. Vide também Friedrich MÜLLER, Wer ist das Volk? cit., pp. 47-48.
Marcelo NEVES, “Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente” cit., pp. 254-257 e 260.
193
Significado Político-Constitucional do
Direito Penal
Cláudio Brandão*
Palavras-chave: Conceito de Direito Penal. Direito Penal Objetivo e Subjetivo. Objeto
do Direito Penal. Método do Direito Penal. Escorço histórico sobre o método penal. O
método atual: o pós-positivismo.
1DELIMITAÇÃO DO ESTUDO E OBJETO DA INVESTIGAÇÃO
O Direito Penal é a mais gravosa forma de intervenção estatal. Isto se dá porque, através dele, retiram-se da pessoa humana direitos constitucionalmente assegurados, quais sejam: vida, liberdade e patrimônio. Ressalte-se, inclusive, que ditos
direitos retirados são cláusulas pétreas da Constituição.
Isto posto, a interpretação e aplicação do Direito Penal não devem ser feitas de
forma autista, isto é, encerradas exclusivamente na dogmática daquele direito. Se o
que se atinge no Direito Penal são bens assegurados pela Carta Política, sua aplicação
e interpretação devem ser feitas em consonância com os Princípios Constitucionais.
Isto importa reconhecer que, além do caráter técnico-dogmático, o Direito Penal tem um caráter político. Ocorre que o caráter político não é inócuo; ao contrário,
*
Doutor em Direito. Professor de Direito Penal nos cursos de graduação. Mestrado e Doutorado em Direito da
UFPE. Professor do Centro de Ensino Superior do Extremo Sul da Bahia.
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BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
ele condicionará o objeto e o método do Direito Penal, fazendo com que os mesmos
tenham uma relação substancial com os Princípios Constitucionais.
Dita análise se constitui o objetivo desta investigação.
2CONCEITO DE DIREITO PENAL
2.1
Construção de uma definição normativa
Para se conceituar o Direito Penal, é imprescindível ter-se em menção dois
pontos: em primeiro lugar, os institutos que estruturam esse ramo do Direito; em
segundo lugar, a significação desses referidos institutos no contexto do Direito.
Como sabido, o Direito Penal – como qualquer outro ramo do Direito – é estruturado em normas. Destarte, o referido Direito Penal regula condutas através de
enunciados gerais, os quais prescrevem abstratamente modelos de comportamentos
que devem ser seguidos, porque, no caso do comportamento prescrito não ser seguido, será imputada, como conseqüência, uma sanção ao sujeito.
Pois bem, é das normas que se extraem os institutos do Direito Penal.
O primeiro instituto que conforma o Direito Penal é a Infração. Consoante foi
dito, a norma prescreve um modelo abstrato de comportamento proibido e esse modelo poderá ser qualificado pelo legislador de crime ou de contravenção. Isto posto,
pode-se afirmar que infração é o gênero do qual crime e contravenção são espécies.
Todavia – é imperioso se ressaltar – não existe, na essência, uma diferença substancial entre o crime e a contravenção, sendo as infrações classificadas de acordo com o
primeiro ou com a segunda em conformidade com o arbítrio do legislador. De modo
geral, pode-se afirmar que o conceito de crime é imputado às infrações consideradas
mais graves pelo legislador, enquanto que o conceito de contravenção é imputado às
infrações consideradas como menos graves.
Registre-se que é comum, na doutrina penal, substituir-se o termo infração
(que é o gênero) pelo termo crime (que, enfatize-se, é uma das espécies de infração).
Isto se dá por dois motivos: primeiramente, em termos quantitativos, o número de
crimes é muito superior ao número de contravenções; segundamente, os elementos
que foram construídos ao longo de mais de duzentos anos, desde o século XIX, para
o aperfeiçoamento conceitual do crime (quais sejam: tipicidade, antijuridicidade e
culpabilidade), aplicam-se também ao conceito de contravenção. Destarte, no âmbito
deste trabalho, o termo infração doravante será substituído pelo termo crime.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 195-213, jan./jun. 2006.
BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
O segundo instituto, que conforma o Direito Penal, é a Pena. Consoante foi
consignado acima, a realização da conduta proibida tem como conseqüência a sanção. Pois bem, é propriedade exclusiva do Direito Penal a mais grave sanção de todo
o Ordenamento Jurídico: a Pena. Isto posto, se a norma define o crime como conduta
proibida e traz, como conseqüência da realização desta conduta, a pena, é imperioso
afirmar-se que a pena é a conseqüência jurídica do crime, neste sentido, o extraordinário Tobias Barreto afirmava que “a razão da pena está no crime”. Esta conseqüência é, inclusive, apontada como o marco diferencial deste ramo do Direito, pois
quando ela está presente a norma obrigatoriamente pertencerá ao Jus Poenale.
O terceiro instituto, que conforma o Direito Penal, é a Medida de Segurança.
De acordo com o que foi explicado, a pena somente poderá ser aplicada se sua causa
estiver realizada, isto é, se houver a realização de um crime. Todavia, existem certas
pessoas que não podem cometer crimes em virtude de não poderem compreender o
significado de seu ato ou de não terem capacidade de auto-determinação, em face de
serem acometidas de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Neste caso, o que se imputa a essas pessoas não é uma pena, mas uma medida de segurança, que se traduz em tratamento psiquiátrico ambulatorial obrigatório
ou, nos casos mais graves, em internação compulsória em hospitais psiquiátricos.
Deve-se salientar, desde logo, que nos sistemas jurídicos dos Estados Democráticos de Direito, todos estes institutos somente podem ser criados por uma
Lei, já que o Princípio da Legalidade é condição necessária para que se constitua
o Direito Penal.
A definição de Direito Penal é feita, inicialmente, com base nos três institutos
que foram elencados: Crime, Pena e Medida de Segurança.
Deste modo, o Direito Penal é um conjunto de normas que determinam
que ações são consideradas como crimes e lhes imputa a pena – esta como conseqüência do crime –, ou a medida de segurança.
Quer no Direito Penal estrangeiro, quer no Direito Penal brasileiro, encontra-se um certo consenso nesta definição que, formalmente, se conserva através dos
tempos.
No tocante ao Direito estrangeiro, não se pode fechar os olhos à contribuição
vinda da Alemanha, que influenciou grandemente, boa parte dos sistemas jurídicopenais do ocidente, aí incluído o sistema brasileiro. Para Franz von Liszt, autor de
obras de referência datadas do final do século XIX e início do século XX, o Direito
Menezes, Tobias Barreto de. “Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal”. Estudos de Direito II. Record
– Governo de Sergipe:1991. p.102.
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BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
Penal é “o conjunto de normas estatais que associam ao crime enquanto tipo penal
a pena como sua conseqüência legítima”. Na explicação de sua definição, von Liszt
integra a este conceito a medida de segurança.
No fim da primeira metade do século XX, Edmund Mezger, outro autor de referência na construção do conceito de Direito Penal, definia-o neste mesmo espeque.
Para ele, o “Direito Penal é o conjunto de normas jurídicas que regulam o exercício
do poder punitivo do Estado, associando ao delito, como requisito, à pena como conseqüência jurídica”. Completando sua definição, diz Mezger que também é Direito
Penal o conjunto de normas que associam ao delito outras medidas de índole diversa
da pena, que tem por objeto a prevenção de delitos.
Não se apresentam conceitos que destoem muito deste padrão dentro dos autores contemporâneos. Veja-se, a título de exemplo, o conceito de Direito Penal dado
por Hans-Heinrich Jescheck: “O Direito Penal determina que ações contrárias à ordem social são crimes e como conseqüência jurídica dos crimes impõe penas. Relacionado ao crime prevê também medidas de correção e segurança”.
Na doutrina brasileira, também não existe muito distanciamento da definição acima exposta. Por exemplo, Francisco de Assis Toledo, coordenador da reforma
penal de 1984, definiu o Direito Penal como a “parte do Ordenamento Jurídico que
estabelece e define o fato-crime, dispõe sobre quem deva por ele responder e, por fim,
fixa as penas e as medidas de segurança que devam ser aplicadas”.
A substância desta definição desvela o primeiro aspecto mencionado no início do presente texto, qual seja: a necessidade de conceituar-se o Direito Penal a partir
dos institutos que formam sua essência.
A partir da definição de Direito Penal, chega-se à definição de Dogmática Penal. Esta última é o discurso e a argumentação que se fazem a partir do próprio Direi
Tradução livre de: „Strafrecht ist der Ingbegriffs derjening saatlichen Rechtgeleln, durch die an das Verbrechen als Tatbestand die Strafe als Rechtfolge genküpft wird“. Liszt, Franz von. Lehrbuch des Strafrecht. Berlim
und Lipzig: VWV. 1922. p. 1.
Idem. Ibidem. p.1.
Tradução livre de: „Strfrecht ist der Inbegriff der Rechtnormen, welche die Ausübung der staatlichen Strafgewalt reglen, idem sie an das Verbrechen als Voraussetzung die Strafe als Rechtsfolge knüpfen“. Mezger, Edmund. Strafrecht. Ein Lehrbuch. Berlin und Munich:Duncker und Humblot. 1949. p.3.
Idem. Ibidem. p.3.
Tradução livre de: „Das Strafrecht bestimmt welche Zuwiderhandlungen gegen die soziale Ordnung Verbrechen sind, es droht als Rechtfolge des Verbrechens die Strafe an. Aus Anlaβ eines Verbrechens sieht es ferner
Maβreglen der Besserung und Sicherung und andere Maβnahmen vor.“ Jescheck, Hans-Heinrich. Lehrbuch des
Strafrecht. Berlin: Duncker u. Humblot. 1988. p.8.
Toledo, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. São Paulo:Saraiva. 1994. p.1.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 195-213, jan./jun. 2006.
BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
to Penal e dos seus elementos constitutivos. Não é incorreto afirmar-se que a Dogmática Penal é um método. Explique-se: o método é o caminho para a investigação de
um objeto, constituído de cânones para a investigação, conhecimento, interpretação
e crítica sobre o dito objeto. Pois bem, como os institutos essenciais do próprio Direito Penal e de sua Dogmática (crime, pena e medida de segurança) são cânones
para o conhecimento da criminalidade, a citada Dogmática Penal pode também ser
encarada como um método de conhecimento daquela. Assim, a dogmática “é uma
elaboração intelectual que se oferece ao poder judiciário [e a todos os operadores do
Direito] como um projeto de jurisprudência coerente e não contraditória, adequada
às leis vigentes”. Enquanto método, no dizer de Zaffaroni, a dogmática procura fazer
previsíveis as decisões judiciais.
A dogmática penal, diferentemente do Direito Penal, não se restringe a um
Estado determinado, mas tem um caráter universal. Recorde-se, ainda, que as leis penais estatais somente começaram a existir a partir do século XIX, porque o Princípio
da Legalidade penal somente foi formulado no fim da Idade Moderna. Os institutos
da dogmática penal (antijuridicidade, legítima defesa, erro etc.) estão presentes em
todos os sistemas jurídicos ocidentais; o que difere entre os sistemas, portanto, não
são os institutos, mas a solução jurídica para a sua aplicação, que é variável segundo
a lei de cada país. Com efeito, uma situação reconhecida como legítima defesa no
Brasil, por exemplo, pode não ser reconhecida como tal na Argentina; se em ambos
os países há a dita legítima defesa, a aplicação dela poderá variar, pois dependerá dos
requisitos das suas respectivas leis penais.
Entretanto, a aplicação da dogmática penal comparada não pode ser feita de
forma acrítica, através do simples encaixe de um conceito estrangeiro em um determinado ordenamento. Ao contrário, a dogmática comparada deve sempre ser invocada com a devida atenção acerca da sua pertinência com o ordenamento normativopenal, como também em harmonia com a realidade histórico-sócio-cultural do local
que a recebe. Quando ocorre essa dupla relação de pertinência, dá-se a utilização
crítica da dogmática comparada.
Conforme dito, não se pode chegar à correta idéia do que é o Direito Penal
nem da dogmática penal sem a análise da significação dos institutos adiante mencionados (crime, pena e medida de segurança) perante o próprio Direito. Isto significa
que a definição anteriormente dada, por si só, muito pouco diz sobre a substância
do conceito de Direito Penal. Os elementos que formam o conceito dado, portanto,
Neste sentido veja-se a obra de Zaffaroni, Eugenio Raul. En torno de la cuestión penal. Montevideo - Buenos
Aires:BdeF. 2005. Pp. 72-73. 77 e ss.
Idem. Ibidem. p.74.
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BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
somente podem revelar a verdadeira face do Direito Penal se compreendidos de uma
ótica que transcende o formalismo da norma, que – conforme se demonstrou – cria
aqueles institutos. Dita ótica transcendente é a perspectiva política.10
2.2Significado político da definição de Direito Penal
È subjacente à idéia de Direito Penal a idéia de violência. Registre-se, inicialmente, que o próprio senso comum já associa a ação criminosa à idéia de violência,
que se realiza de várias formas, tais como em homicídios, lesões corporais, estupros,
roubos.
Na seara penal propriamente dita, vê-se que na elaboração conceitual de muitos crimes está presente o conceito de violência física, que traduz a mais grave forma
de apresentação da referenciada violência. Veja-se, por exemplo, o crime de constrangimento ilegal, capitulado no art. 146 do Código Penal:
Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de
haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não
fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda. (Grifei)
Em outros delitos, ainda, a idéia de violência está implícita, como, v.g., no homicídio.
Deste modo, o uso de uma energia física contra um ser humano, capaz de alterar a sua conformação anatômica, capaz de danificar sua saúde ou, até mesmo, hábil
para lhe ceifar a vida, é presente em muitos dos crimes previstos pelo Direito Penal.
Mas a presença da violência no nosso ramo do Direito vai muito mais além
do crime. A pena, que é a conseqüência do crime, também é uma manifestação de
violência. No ordenamento jurídico brasileiro, existem as penas de morte (somente
para os crimes militares próprios em tempo de guerra), de privação de liberdade,
de restrição de direitos e de multa. O fato é que quaisquer destas penas atingem os
bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. Se pelo crime de homicídio (art. 121
do Código Penal) incrimina-se a produção da morte de alguém, pela pena de morte
também se mata alguém; se pelo crime de seqüestro (art. 148 do Código Penal) incrimina-se a violação da liberdade de locomoção de uma pessoa, pela pena de pri10
Brandão, Cláudio. Introdução ao Direito Penal.Rio de Janeiro:Forense. 2002. p.43.No mesmo sentido veja-se a
afirmação de Tobias Barreto, o qual modera seu penasamento positivista ao escrever que: “A aplicação legislativa na penalidade é uma pura questão de política social”. “Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal”.
Estudos de Direito II. Record – Governo de Sergipe:1991. p.116.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 195-213, jan./jun. 2006.
BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
vação de liberdade se viola esta mesma liberdade; se pelo crime de furto (art. 155 do
Código Penal) incrimina-se a violação do patrimônio de alguém, pela pena de multa
também se viola o patrimônio de uma pessoa. É por isso que Carnelutti já afirmava
que, na relação de custo e benefício, crime e pena são a mesma coisa, são formas de
produzir um dano.11 Portanto, a pena, assim como o crime, também é uma forma de
manifestação da violência. Todavia, a pena é uma reação, que somente se imputa em
face da realização prévia de um crime; por isso o Estado, através do Direito Penal, a
qualifica como legítima, já que ela será uma conseqüência em face do cometimento
de uma violência prévia – que é o crime – por parte do agente que a sofre.
Neste sentido, o Direito Penal concretiza a face violenta do Estado, porque ele
monopoliza a aplicação da violência da pena. Mas a sanção própria do Direito Penal
(Pena) não será somente a mais gravosa sanção que o Estado pode impor, o seu significado vai muito mais além. Na verdade, a possibilidade de aplicar a pena é condição
de vigência do próprio Direito, porque Direito sem pena é Direito sem coercitividade,
é um Direito que não pode se utilizar de força em face de seus súditos, para efetivar os
seus comandos. Sem pena, portanto, o Direito se transforma em um mero conselho.
Consoante mostra a experiência, o Direito é, por sua vez, condição de existência do
próprio Estado, assim é também a pena uma condição para a existência do próprio
Estado, “por isso mesmo existe entre pena e Estado, histórica e juridicamente, a mais
íntima ligação. Ou antes [...], Estado, Direito e pena são completamente inseparáveis
um do outro”.12
À luz do exposto, o Direito Penal tem uma inegável face política, porque ele
concretiza o uso estatal da violência. É o multi referido Direito Penal o mais sensível
termômetro para aferir a feição liberal ou totalitária de um Estado,13 a saber: caso a
violência da pena seja utilizada pelo Estado sem limites, sem respeito à dignidade da
pessoa humana, estaremos diante de um Estado totalitário, ou ao invés, se a violência
estatal for exercida dentro de limites determinados pelo Direito, aí se guardando o
respeito à dignidade da pessoa humana, estamos diante de um Estado Democrático
de Direito. Por isso, já asseverou Bustos Ramírez que “a justiça criminal, por ser a
concreção da essência opressiva do Estado, é um indicador sumamente sensível no
reflexo das características do sistema político-social imperante”.14
11
12
13
14
Carnelutti, Francesco. El Problema de la Pena. Buenos Aires:Europa América. 1947. p.14.
Barreto, Tobias. “Prolegômenos do Estudo do Direito Criminal”. Estudos de Direito II. Record – Governo de
Sergipe:1991. p.102.
Ouviña, Guillermo. “Estado Constitucional de Derecho e Derecho Penal”. Teorías Actuales en Derecho Penal.
Buenos Aires:Ad-hoc. 1998. Pp. 56-57.
Bustos Ramírez, Juan. Contol Social y Derecho Penal. Barcelona:PPU. 1987. Pp. 584-585.
201
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BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
Isto posto, o conceito de Direito Penal tem um duplo viés: um dogmático e
outro político. Atualmente, é recorrente falar-se da crise do Direito Penal. A pretensa
crise decorre da separação destes dois aspectos, isto é, a dogmática nua, despida de
sua significação traduzida no poder violento do Estado, conduz a um autismo jurídico, que a encerra num mundo próprio, alheio à realidade dos fatos. Neste sentido, diz
Zaffaroni que
as mais perigosas combinações têm lugar entre fenômenos de alienação técnica dos políticos com outros de alienação política dos técnicos, pois geram
um vazio que permitem dar forma técnica a qualquer discurso político.15
3DIREITO PENAL OBJETIVO E SUBJETIVO. CRÍTICA DA VIABILIDADE DA DISTINÇÃO
A divisão do Direito em Direito Objetivo e Direito Subjetivo foi cunhada pelo
Positivismo Jurídico. Sua origem se dá, mais precisamente, na Alemanha, no decorrer
do século XIX. Nessa época, o Direito naquele país gravitava em torno do Direito
Romano. Com efeito, o Digesto, também chamado de Pandectas, originou a Escola dos
Pandectistas e, nela, pelas mãos de Windscheid, encetou-se a dicotomia Direito Objetivo e Direito Subjetivo. Não é sem razão que a dicotomia em análise começou pelas
mãos dos pandectistas. O Digesto romano recorreu com freqüência ao conceito de
facultas agendi, isto é, a faculdade de agir, que norteava a regulação das relações privadas. Foi a partir deste conceito que Windscheid definiu o Direito Objetivo, que seria
a norma, e o Direito Subjetivo, que seria o poder da vontade de realizar o comando
da norma. Outro pandectista a procurar precisar o conteúdo dos conceitos de Direito
Objetivo e de Direito Subjetivo foi Jhering, para quem enquanto o Direito Objetivo é
a norma, o Direito Subjetivo é o interesse juridicamente protegido. No século XX, o
positivismo normativo de Kelsen identificou o Direito Objetivo e o Direito Subjetivo
como duas faces de uma mesma moeda, sendo apenas pontos de vista oriundos do
mesmo fenômeno.
Na seara penal, a distinção entre Direito Objetivo e Direito Subjetivo ressoou
de uma forma muito premente, iniciando-se já no século XIX. Identificava-se o Direito Penal em sentido objetivo como a norma penal e o Direito Penal em sentido
subjetivo como o Direito do Estado de punir, chamado de Jus Puniendi.
Como dito, o Direito Penal em sentido objetivo seria conceituado a partir da
norma. É definido como “um conjunto de normas jurídicas que têm por objeto a de15
Zaffaroni, Eugenio Raul. En torno de la cuestión penal. Montevideo - Buenos Aires:BdeF. 2005. p.77.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 195-213, jan./jun. 2006.
BRANDÃO, Cláudio. Significado político-constitucional do Direito Penal.
terminação das infrações de natureza penal e suas respectivas sanções – penas e
medidas de seguranças.”16
É correto afirmar-se que, desde o início do século XIX, encontra-se na Dogmática Penal referência à idéia de Direito Subjetivo. Tal afirmativa pode ser comprovada pela obra de Anselm von Feuerbach, que definia o crime como uma injúria
prevista por uma lei penal, que se consubstanciava numa ação violadora do direito
alheio, proibida mediante uma lei penal.17
Segundo Feuerbach, o “crime é, no mais amplo sentido, uma injúria contida
em uma lei penal, ou uma ação contrária ao Direito de outro, cominada numa lei
penal”.18 Os crimes são sempre lesões ao Direito, por exemplo, “a lesão do direito à
vida constitui o homicídio”.19
Deste modo, o crime não é somente conceituado a partir de uma ofensa à lei
penal, já que para a sua existência será necessária também a violação de um direito
alheio, isto é, a violação do Direito Subjetivo.
Todavia, apesar de Feuerbach vincular o conceito de crime ao conceito de violação do Direito Subjetivo, não podemos afirmar que ele criou o conceito de Direito
Penal Subjetivo. Isto se dá porque o conceito de Direito Penal Subjetivo é muito mais
amplo que o próprio conceito de crime. Este último é o “direito que tem o Estado a
castigar – jus puniendi –, impondo as sanções estabelecidas pela norma penal, àqueles que tenham infringido os preceitos da mesma”.20
O conceito de Direito Penal Subjetivo foi desenvolvido por Karl Binding, que
se utiliza do conceito de norma como comando de conduta extraído da lei para formular um sistema geral acerca das mesmas e suas violações. É das normas que surge
o Direito de Punir do Estado, isto é, o Direito Penal subjetivo.
No panorama atual, alguns penalistas ainda recorrem à dicotomia Direito Penal Objetivo e Direito Penal Subjetivo. Mir Puig, grande jurista espanhol, por exemplo, utiliza-se da noção de Direito Penal Objetivo para o estudo da norma penal, e do
Direito Penal Subjetivo para a análise do Direito de castigar do Estado (Jus Puniendi)
que seria o Direito de criar e aplicar o Direito Penal objetivo.21 Neste último conceito,
Mir Puig enfrenta o escorço doutrinário acerca dos limites ao poder de punir do Esta16
17
18
19
20
21
Hernandez, Cesar Camargo. Introducción al estudio del derecho penal. Barcelona:Bosch. 1960. p.9.
Neste sentido: Rocco, Arturo. El objeto Del delito y de la tutela jurídica penal. Contribuición a las teorías generales del delito y de la pena. Montevideo – Buenos Aires: BdeF. 2001. Pp. 29-30.
Feuerbach, Anselm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires:Hammurabi. 1989. p. 64.
Idem. Ibidem. p. 164.
Hernandez, Cesar Camargo. Introducción al estudio del derecho penal. Barcelona:Bosch. 1960. p.45.
Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte Geral. Barcelona: Edição do Autor. 1998. Pp.7-8.
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do e seus limites.22 Tais limites são de várias ordens e têm sempre, na substância, um
fundamento constitucional, traduzindo-se nos Princípios que limitam a atividade
punitiva.23 Todavia os princípios constitucionais limitadores da atividade punitiva,
deve-se consignar aqui, são de extraordinária importância no sistema de dogmática
penal, devendo os mesmos serem cuidadosamente tratados no estudo desta disciplina, mas eles não se situam no campo do Direito Penal Subjetivo.
Não é viável, em uma interpretação constitucional do Direito Penal, a recorrência à dicotomia Direito Objetivo versus Direito Subjetivo. De início, registre-se que,
no panorama hodierno, do pós-positivismo, a própria distinção entre eles é bastante criticada, por conta da constatação de manifestações do Direito fora do Estado.
Refere-se o pós-positivismo, para efetuar essa crítica, aos estudos que envolvem o
chamado Direito Alternativo.
Mas não é este o fundamento da inexistência desta dicotomia no Direito Penal.
Na verdade, não se pode falar em Direito Penal em sentido Subjetivo porque
não há o direito do Estado de punir ninguém com a retirada dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e ao patrimônio. Seria uma contradição reconhecer o direito subjetivo de o Estado violar direitos subjetivos constitucionais do sujeito. O que
existe é, isto sim, um dever de punir em face do cometimento de um crime e todo
dever supõe requisitos que tornam obrigatória alguma prestação. O conceito de Direito Subjetivo tem como elemento essencial a faculdade de dispor do deste direito,
que é precisamente o que os romanos falavam: a facultas agendi, a faculdade de agir.
Por ter o Estado o dever de aplicar a pena quando os seus pressupostos estiverem
configurados, não há de se falar em Direito Penal Subjetivo. Com efeito, o dever de
agir é conceitualmente incompatível com a essência do multi referido conceito de
Direito Subjetivo.
Outrossim, conclua-se afirmando que não existe uma utilidade prática desta
distinção burilada no século XIX no estágio atual da ciência penal. Isto se dá porque
o estudo dos limites à aplicação da pena por parte do Estado se faz na seara dos Princípios do Direito Penal e não no pretenso Direito Penal Subjetivo. Aceitar-se a continuidade hodierna dessa dicotomia é assimilar de modo acrítico o panorama penal de
dois séculos atrás, que possuem pontos de partida diferentes daqueles utilizados na
dogmática contemporânea.
22
23
Segundo Mir Puig, o estudo dos limites ao poder de punir são feitos no âmbito do Direito Penal Subjetivo,
verbis: “La alussión al Derecho penal em sentido subjetivo será oportuna más adelante, cuando se trate de fijar
los limites que há de encontrar el derecho del Estado a intervir mediante normas penales”. Op. Cit. p.8.
Mir Puig, Santiago. Derecho Penal. Parte General. Op. Cit. Pp. 71 e ss.
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4OBJETO DO DIREITO PENAL
Segundo José Cerezo Mir,
o Direito Penal é um setor do ordenamento jurídico, segundo a opinião dominante na dogmática moderna, ao qual se lhe incumbe a tarefa de proteger
os bens vitais fundamentais do indivíduo e da comunidade. Esses bens são
elevados pela proteção das normas do Direito Penal à categoria de bens jurídicos. [...] O substrato destes bens jurídicos pode ser muito diverso. Pode
ser, como assinala Welzel, um objeto psíquico-físico (a vida, a integridade
corporal), um objeto espiritual-ideal (a honra), uma situação real (a paz do
domicílio), uma relação social (o matrimônio, o parentesco) ou uma relação
jurídica (a propriedade). Bem jurídico é todo bem, situação ou relação desejado e protegido pelo Direito.24
Ao conceituar o Direito Penal a partir de sua missão, Cerezo Mir revela o próprio objeto do referido Direito Penal.
Quando se procura precisar o objeto do Direito punitivo, devemos aqui consignar, coloca-se o alicerce que permite justificar racionalmente o poder de punir e,
em conseqüência dessa justif.icação, o Direito Penal tem condições de se legitimar.
Toda norma penal que institui um crime tutela um bem. Se observarmos a
estrutura do nosso Código Penal, veremos que todos os crimes estão gravitando em
torno de um bem, por exemplos: o homicídio (art. 121), o induzimento, instigação ou
auxílio ao suicídio (art. 122), o infanticídio (art.123) e o aborto (art. 124 usque 128)
estão reunidos em função do bem vida. Com efeito, o título que os agrupa (Título I do
Código Penal) é o dos “Crimes contra a Vida”. No mesmo espeque do exemplo dado,
os demais crimes vigentes no nosso ordenamento também se agrupam em torno de
bens, descritos nos títulos e/ou capítulos do Código ou das leis penais esparsas. Pois
bem, bem jurídico é o nome técnico dado a esses ditos bens, protegidos através da lei
penal, que comina uma pena em face de sua violação.
O objeto do Direito Penal é, pois, a tutela de bens jurídicos.
Todo bem ou valor que existe no mundo fático-social, cabe aqui ressaltar, somente se converte em bem jurídico a partir de uma lei penal, que define a sua violação e comina a respectiva pena. Isto posto, somente o legislador pode constituir um
bem jurídico, daí se infere que o surgimento ou a manutenção de um bem jurídico
24
Cerezo Mir, José. Curso de Derecho Penal Español. Madrid:Tecnos, 1993. p.15.
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no Direito Penal é uma eleição política do citado legislador. O bem jurídico, assim,
corrobora a face política do Direito Penal.
Todavia, deve-se concluir com este alerta, a tutela de bens jurídicos não pode
ser realizada de qualquer modo e a qualquer preço. Em primeiro lugar, essa tutela somente poderá ser realizada e considerada como legítima se forem observados
os requisitos impostos pelo Estado de Direito (v.g. Legalidade. Culpabilidade, Intervenção Mínima). Em segundo lugar, porque a pena retira direitos constitucionais da
pessoa humana, somente haverá proporcionalidade se o bem jurídico tutelado tiver
guarida constitucional, isto é, se se situar entre aqueles bens protegidos pela Carta
Magna, quer sejam de natureza individual (vida, patrimônio etc.) ou supra-individual (meio-ambiente, ordem econômica etc.)
5MÉTODO DO DIREITO PENAL
5.1Escorço histórico sobre o método penal
Por método, se entende o caminho para a investigação de um objeto. É, pois, o
método, o instrumental que se traduz nos cânones para possibilitar as investigações
das evidências apreendidas sobre algum objeto e a conseqüente formulação de enunciados que tornem o referido objeto conhecido.
O Direito Penal que rompe com o arbítrio e se preocupa com a pessoa humana,
é relativamente recente. Foi somente com o Iluminismo, mais precisamente a partir
da obra de Beccaria, na segunda metade do século XVIII, que foi aventada de forma
sistemática a necessidade de limitar o jus puniendi do Estado; o primeiro instituto
que o milanês apresentou para que tal desiderato fosse alcançado foi o Princípio da
Legalidade.25 No início do século XIX, em 1801, Anselm von Feuerbach sistematizou
o Princípio da Legalidade, com a formulação da teoria da coação psicológica, segundo a qual a tutela de interesses, que é o fim do Direito Penal, deve ser realizada a partir
de uma coação psicológica, feita a partir da publicização da pena que será imputada
a cada crime, o que acarretaria a retração das condutas que violassem os interesses
protegidos pelo Direito Penal. Como o instrumento adequado para dispensar tal conhecimento é a lei, esta última ocupará um papel exponencial neste ramo do Direito,
pois não haverá crime sem lei (nullum crimen sine lege), pena sem crime (nulla poena
sine crime), e nem haverá crime sem a tutela legal de um interesse (nullum crimen
25
Cesar Bonecasa. Marques de Beccaria. Tratado de los Delitos e de las Penas. Buenos Aires: Arengreen. 1945. p.47.
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sine poena legali).26 Tais máximas foram consubstanciadas no brocardo Nullum Crimen Nulla Poena Sine Lege.
Nesse panorama, pode-se compreender o método inicialmente apregoado
pelo iluminismo, onde a lei e a legalidade tinham uma particular significação. Segundo Engisch:
Houve um tempo em que tranqüilamente se assentou na idéia de que deveria
ser possível uma clareza e segurança jurídicas absolutas através de normas
rigorosamente elaboradas, e especialmente garantir uma absoluta univocidade a todas as decisões judiciais e a todos os atos administractivos. Esse tempo
foi o do Iluminismo.27
Com efeito, a legalidade era e ainda é a mais importante limitação ao poder
de punir do Estado. Ela evita que o Direito Penal seja aplicado retroativamente para
acomodar situações desagradáveis aos detentores do poder político, protegendo o
homem do próprio Direito Penal.
Como dito, a legalidade foi formulada à época do Iluminismo do século XVIII,
sendo o método defendido à essa época, para o Direito Penal, o silogístico. Este era
traduzido num processo de subsunção lógica onde a lei era a premissa maior, o caso
era a premissa menor e a conclusão do processo seria a adequação do caso à lei.
Tal método, que por força do positivismo jurídico, foi muito presente no século XIX e na primeira metade do século XX, apresentou uma significação altamente
benéfica no início de sua aplicação. A história mostra inúmeros exemplos através dos
quais se pode comprovar a aplicação do Direito Penal como um instrumento para
acomodar as situações desagradáveis aos detentores do poder político, traduzindo-se
num instrumento de arbítrio estatal. Com o silogismo, o que não estivesse previsto
como crime na lei seria penalmente indiferente, não se podendo, destarte, aplicar-se
retroativamente o Direito Penal, nem a analogia para incriminar condutas.
Isto posto, a ideologia da lei e o método silogístico representaram a primeira
garantia do homem em face do poder de punir. Dita garantia constitui-se, até hoje, na
base do Direito Penal liberal.
Deve-se, aqui, antes de tudo, trazer à colação a advertência de Bettiol e Mantovani sobre a conceituação anteriormente posta. Sob a denominação Direito Penal
liberal não se encontra um conjunto homogêneo de doutrinas, mas sob um certo
aspecto se encontram mesmo doutrinas contrastantes entre si, que são reunidas por
26
27
Feuerbach, Anselm von. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Hammurabi. 1989. p.63.
Engisch, Karl. Introdução ao Pensamento Jurídico.Lisboa: Calouste Gulbenkian. 2001. p.206.
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possuírem um ponto em comum: a limitação ao poder de punir do Estado. Em contraposição ao Direito Penal liberal, encontra-se o Direito Penal do terror, que tem por
característica a não limitação do jus puniendi estatal e a não garantia, via de conseqüência, do homem em face do poder de punir.28
Como sabido, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, a legalidade dos crimes e das penas é uma garantia fundamental, inserida em
quase todas as constituições democráticas ocidentais, donde se encontra a Constituição Federal brasileira, de 1988. Essa garantia fundamental traduzida na multi-referida legalidade é a maior característica do Direito Penal liberal.
Por conseguinte, infere-se que o silogismo legal integra o método do Direito
Penal liberal, posto que é através dele que se realiza a principal limitação do poder de
punir, assegurando-se ao homem um anteparo frente ao poder do Estado.
Todavia, a compreensão silogística, desde a crise do positivismo, mostrou-se
como um elemento necessário, mas não suficiente, para se apreender o método do
Direito Penal.
É que, no Direito Penal, muitos casos se resolvem até mesmo contra a lei, o que
comprova a insuficiência do método proposto. Por exemplo, traga-se à colação o crime
do art. 229 do Código Penal. Dito crime – casa de prostituição – tipifica a conduta de
manter, por conta própria ou de terceiro, local especialmente destinado à manutenção
de atos libidinosos, haja ou não intuito de lucro, haja ou não mediação direta de proprietário ou gerente. Ninguém que viva na nossa sociedade questiona que os estabelecimentos conhecidos como motéis existem para proporcionar a realização de atos de natureza
sexual, e que nesses locais existe, ademais, tanto o intuito de lucro quanto a mediação de
proprietário ou gerente. Se na década de setenta, do século passado, o Supremo Tribunal
Federal decidiu, pelo método da subsunção lógica, que as pessoas que mantinham os
motéis deveriam responder por casa de prostituição, diferente é a aplicação hodierna
do direito penal. O Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, tem decisão que não
reconhece o crime em tela – no caso dos motéis – dentre outras coisas porque não se
pode fechar os olhos para a drástica modificação dos costumes por que passou a sociedade de 1940, época da lei, até os dias atuais.29 Por óbvio, para dar tal decisão, não se
utilizou o silogismo, que conduziria inevitavelmente à condenação.
Com efeito. Com a crise do positivismo, o seu método também entrou em
crise por revelar-se insuficiente.
28
29
Bettiol, Giussepe. Mantovanni, Luciano Petoelo. Diritto Penale. Pádua:CEDAM. 1986. p.20.
AC 98.873. Rel. Des. Luiz Betanho. In: Franco, Alberto Silva et alii. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. São Paulo:RT. 1993. p. 2595.
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Foi nos anos cinqüenta do século XX que um jusfilósofo alemão, chamado
Teodore Viehweg, chama-nos atenção para a tópica. Tópica é a compreensão dos fatos. Segundo a tópica, a decisão tem que ser tomada a partir de uma interpretação
universal da totalidade do acontecer, ou seja, de uma história compreendida.
Para o método tópico, deve-se fazer um processo semelhante ao dos romanos para
se chegar à decisão jurídica: os romanos consideravam o Direito uma arte, porque o pretor,
em caso concreto, construiria a decisão boa e justa. É essa a definição de Celso: Ius ars boni
et aequi. A tópica defende, pois, que a decisão deve brotar sempre do caso em si.
No último capítulo de sua obra, Viehweg aponta o papel fundamental da retórica para a sua teoria. É a retórica que desenvolve a tópica, na medida em que ela
justifica a decisão. Por óbvio, os sinais lingüísticos são fundamentais para a argumentação em face do caso, mas a retórica não é formada somente por eles, já que ela
também leva em conta a semântica e a pragmática. Por conseguinte, a retórica que
constrói a decisão a partir do caso se assentará em três pilares: a sintaxe, a semântica
e a pragmática.
Na sintaxe: se diz a relação dos sinais com os outros sinais, semântica: a relação dos sinais com os objetos, onde sua designação é afirmada, e a pragmática: a relação situacional (der situativ Zusammenhang) onde os sinais são
usados entre os interessados.30
5.2 O método atual: o pós-positivismo
Entretanto, a tópica, em si mesma, é tão radical quanto o positivismo. A ideologia da lei trouxe um grande benefício à aplicação do direito, conforme declinado
acima, e não pode ser simplesmente afastada em favor da análise do caso concreto.
Nesse sentido, a filosofia pós-positivista busca um equilíbrio entre o silogismo e a tópica, reconhecendo que o Direito admite uma superposição entre duas esferas: a esfera da compreensão da norma, de um lado, e a esfera da compreensão do
fato, de outro, levadas a cabo pelo ser historicamente presente, pelo procedimento
argumentativo. Esse método é chamado de tópico-hemenêutico.
Usa-se, portanto, no método penal, a lei e a compreensão do caso.
30
Tradução livre de: „ Syntax soll also heiβen: der Zusammenhang von Zeichen mit anderen Zeichen, Semantik: der Zusammenhang von Zeichen mit Gegensatänden, deren Bezeichnung behaupetet wird, und Pragmatik: der situativ Zusammenhang, in dem die Ziechen von den Beteiligten jeweils benutzt werden“. Viehweg,
Teodor. Topik und Jurisprudenz. München: Beck. 1974. p.111.
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A lei é o limite negativo, isto é, não se admite a incriminação do que está fora
dela, já que a mesma tem por função dar a garantia do homem em face do poder de
punir, conforme se apregoava desde o Iluminismo. O limite negativo do método penal o harmoniza com o Princípio Constitucional da Legalidade.
O caso dá o limite positivo, podendo ser utilizado como um meio para justificar uma decisão que aumente o âmbito da liberdade, isto é, que seja pro libertate.
Como a finalidade da legalidade foi garantir a liberdade do homem em face do poder
de punir, conforme discorrido acima, a tópica é teleologicamente conforme a legalidade, não havendo nenhuma incompatibilidade entre elas. Com efeito, são possíveis
decisões não baseadas no silogismo, pela importância que deve ser dispensada ao
Homem. Isto, em verdade, representa o cumprimento do Princípio Constitucional da
Dignidade da Pessoa Humana, porque só se valoriza o homem a partir da compreensão do caso, que traduz a sua história real, que é única e irrepetível.
Vejamos um exemplo da decisão a partir do caso, isto é, da tópica, que serve
para aumentar o âmbito de liberdade. Como sabido, a lei somente prevê duas causas
legais de exclusão da culpabilidade: obediência hierárquica e coação moral irresistível (art. 22 do Código Penal). Entretanto, não se nega a existência das causas supra
legais de inexigibilidade de outra conduta, que por óbvio não estão baseadas na lei,
para afastar a culpabilidade do agente. Esta referida exclusão se realiza com base em
um julgamento das circunstâncias do caso concreto que excluem a censurabilidade
do autor da conduta, reconhecendo-se que elas afetaram a liberdade do agente entre
se comportar conforme ou contrário ao Direito. É o caso da jurisprudência abaixo
transcrita:
PENAL E CONSTITUCIONAL. NÃO-RECOLHIMENTO DE CONTRIBUIÇÃO
PREVIDENCIÁRIA. ART. 95, “D”, § 1º, DA LEI 8.212/91. MATERIALIDADE
COMPROVADA. FALÊNCIA DA EMPRESA. INEXIGIBILIDADE DE OUTRA
CONDUTA.
I - Pratica o delito previsto no art. 95, “d”, da Lei 8.212/91 (hoje com redação
dada pela Lei 9.983/00, que inseriu o art. 168-A no Código Penal Brasileiro), o
empregador que desconta contribuição previdenciária de seus empregados e
deixa de recolhê-la aos cofres da Previdência.
II - Dolo manifestado na vontade livre e consciente de não repassar as contribuições recolhidas dos contribuintes à Previdência Social. Desnecessária
a demonstração de dolo específico. O animus rem sibi habendi é exigido na
apropriação indébita comum, mas não o é na apropriação indébita previdenciária.
III - A existência de provas cabais quanto à alegada dificuldade econômica
da empresa administrada pelos acusados, culminando com a decretação de
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falência, possibilita o reconhecimento de inexigibilidade de conduta diversa e
justifica a exclusão da culpabilidade.
IV - Apelação do Ministério Público Federal desprovida.
Relator: Des. Fed. CÂNDIDO RIBEIRO. TRF 1ª Reg. Ap. Crim. nº
199838000079575. Terceira Turma. DJ 18/3/2005 Pág.: 18.
Assim, o método do Direito Penal reside na síntese entre os Princípios Constitucionais da Legalidade, o qual norteia seu limite negativo e da Dignidade da Pessoa
Humana, que norteia seu limite positivo.
6SÍNTESE CONCLUSIVA
Porque o Direito Penal encerra em si o uso estatal da violência, sua compreensão somente pode ser efetuada através da união de seus elementos técnico-dogmáticos com o seu significado político. Com efeito, a face política do Direito Penal
aflora tão fortemente que ele é apontado como o mais sensível termômetro da feição
política do próprio Estado, isto é, se a violência da pena for aplicada de forma ilimitada, sem resguardar a Dignidade da Pessoa Humana, estaremos diante de um Estado
arbitrário; de outro lado, se a violência da pena for aplicada dentro de parâmetros
de proporcionalidade (legalidade, culpabilidade etc.), de modo que se respeite a dita
Dignidade da Pessoa Humana, estar-se-á ante um Estado democrático.
Deste modo, não se pode desvincular o Direito Penal de um duplo viés: a aplicação e a de interpretação constitucional. O primeiro viés – aplicação constitucional
– condiciona o objeto do Direito Penal, o segundo – interpretação constitucional, o
método.
O objeto do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos. Toda lei penal tutela
um bem, que ela própria aponta. Os crimes no nosso ordenamento jurídico estão
reunidos e sistematizados sob epígrafes, as quais constituem os títulos e os capítulos
tanto do Código Penal, quanto das leis especiais (Por exemplo, na epígrafe: “Crimes
contra a honra”, que está no capítulo V do Código Penal, reúnem-se os delitos de
calúnia, difamação e injúria; todos ele representam uma violação ao bem jurídico
honra, expresso na epígrafe). Pois bem, quando o legislador (leia-se, o político) elege
um bem jurídico, ele efetua uma atividade de natureza política, mas essa referida
atividade política precisa ter também um lado técnico: a coerência finalística e sistemática com o texto constitucional. Isto se dá porque, se a pena atinge bens jurídicos
constitucionalmente assegurados (vida, liberdade e patrimônio), os bens jurídicos
protegidos através da definição legal do crime também precisarão ter um substrato
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constitucional. Caso contrário, a lei penal violará os ditames da Carta Política, mormente o Princípio da Proporcionalidade.
De outro lado, o método do Direito Penal conformará a aplicação das normas
daquele Direito no caso concreto. Com efeito, quando o aplicador das normas, o juiz
(leia-se, o técnico) realiza a decisão do caso, ele também realiza uma atividade política. Por isso o método de aplicação da norma penal não pode ser resumido em um
silogismo, onde a lei é a premissa maior, o caso é a premissa menor e a sentença é a
subsunção do caso à lei. Tal assertiva pode ser comprovada com relativa facilidade:
quem poderá sustentar serem as causas supralegais inexigibilidade de outra conduta,
ou do reconhecimento da exclusão da antijuridicidade pelo consentimento do ofendido, baseadas em silogismos? Muito ao contrário, esses exemplos afastam a lei – que
fatalmente conduziria à conclusão do caso a aplicação da pena – e decidem o caso
pela tópica. Esta última (a tópica) encontra sua legitimidade positiva nos princípios
constitucionais. O método penal, assim, encontra na lei o seu sentido negativo (não
se pode punir fora da lei) e no caso seu limite positivo (o caso pode ensejar uma
argumentação racional para o afastamento da lei, através de fundamentação constitucional). Este método representa, pois, a síntese dos Princípios Constitucionais da
Legalidade e Dignidade da Pessoa Humana.
O fenômeno da alienação técnica dos políticos, somado à alienação política
dos técnicos, conduz à falta de norte do Direito Penal. Com esse fenômeno, o Direito
Penal se assemelha a um traje de arlequim, já que suas normas nunca guardam harmonia, ora existindo leis extremamente severas, ora extremamente brandas, sem que
se atinja um ponto de equilíbrio. A sua aplicação concreta, por outra parte, fica assemelhada a um lance de sorte, porque os julgamentos variarão sempre entre a técnica
autista do silogismo nu, vinculada que está à ideologia do século XVIII, de que a lei
pode encerrar em si toda a complexidade humana na regulação de condutas, ou estarão em conformidade com um raciocínio mais elaborado e trabalhoso, que se utiliza
da tópica e da hermenêutica, tendo a Constituição como baliza entre a lei e o caso.
Essa falta de norte, ao que parece, é a situação do Direito Penal brasileiro.
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A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação
ao espaço e às pessoas. Concorrência de jurisdições
nacional e estrangeira. Consequências de sua
ausência ou deficiência
Roberto Luis Luchi Demo*
Resumo
Este trabalho, após tecer algumas considerações sobre a jurisdição, parte da premissa
segundo a qual o direito penal material brasileiro dá o tom para a jurisdição penal
nacional, e aborda o desenho desta jurisdição em relação ao espaço e às pessoas, bem
assim a concorrência das jurisdições penais brasileira e estrangeira. A análise é contextualizada da legislação à doutrina e jurisprudência, passando por acontecimentos recentes e contemporâneos da história. Finalmente, distingue en passant direito
internacional penal e direito penal internacional para tratar das conseqüências da
ausência ou deficiência da jurisdição penal brasileira, especialmente no que se refere
à jurisdição complementar do Tribunal Penal Internacional, também no mesmo contexto multifário.
Palavras-chave: Jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas. Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência. Tribunal Penal Internacional.
*
Pós-graduado em Direito Processual Civil pelo IBEJ/PR e em Direito Penal pelo INBRAPE/PR. Juiz Federal Substituto na Seção Judiciária de Brasília-DF. Ex-Procurador Federal. Especialista em Direito Penal. Autor do livro
Competência penal originária. Uma perspectiva jurisprudencial crítica. São Paulo: Malheiros Editores, 2005.
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
1
Prolegômenos
O Brasil, a comunidade jurídica e o povo brasileiro foram homenageados,
de 28 a 31 de março de 2006, com o XXVII Período Extraordinário de Sessões da
Corte Interamericana de Direitos Humanos, realizado na sede do Superior Tribunal
de Justiça - STJ, em Brasília - DF. Foi a primeira vez que um tribunal internacional
funcionou no Brasil, com audiências sobre dois casos e uma medida provisória em
tramitação naquele tribunal, abertas ao público e traduzidas para a linguagem diária
da “última flor do Lácio, inculta e bela”, como diria nosso poeta OLAVO BILAC.
Esse acontecimento, louvável em todos os aspectos, repercute no âmbito do
direito internacional penal, que busca responsabilizar o Estado por atos ou omissões
lesivos aos direitos fundamentais do homem. Logo, não pode ser confundido com o
direito penal internacional, que busca responsabilizar o indivíduo por crimes internacionais. De se lembrar, neste passo, que o direito penal internacional, no seu turno,
repercute na jurisdição penal nacional, é dizer, no direito penal nacional. Basta, para
efeito de verificação, lembrar que no art. 7o, incs. I e II e §3o, CP, estão consagradas regras que se inspiram nos postulados de solidariedade internacional e cooperação penal internacional, com vistas a resolver eventual aplicação simultânea de leis penais
(nacional e estrangeira), e que encontram seus antecedentes em tratados bilaterais
ou multilaterais, convenções e regras internacionais.
Presente o contexto acima delineado, tenho como oportuno passar em revista
os contornos da jurisdição penal no nosso Brasil, cujas dimensões continentais se
devem, não só mas também, ao diplomata e historiador BARÃO DO RIO BRANCO.
Distinguem-se, portanto e em última análise, direito internacional penal, direito penal internacional e direito penal nacional, sob o color da história, da doutrina, da
legislação e, por último mas não menos importante, da jurisprudência.
2
A jurisdição
A jurisdição é, com a administração e a legislação, forma de exercício e uma
das manifestações da soberania estatal, do Poder Público. O Poder é indivisível, sendo
suas funções divididas em jurisdicional, administrativa e legislativa. Historicamente,
O conceito de soberania, o eixo fundamental que organiza os Estados Nacionais, é hoje arranhado (não sob o
aspecto formal, mas em sua essência) por países desenvolvidos (mediante o tráfego comercial), instituições
financeiras multilaterais surgidas após a Segunda Guerra Mundial (Fundo Monetário Internacional - FMI,
Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID) e algumas organizações não-governamentais, que mos-
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
a função administrativa precede a jurisdicional que, a seu turno, precede a legislativa. A jurisdição é a função estatal que aplica, de maneira imperativa, a lei material
hic et nunc ao caso concreto (etimologicamente, juris = direito e dictio = dizer, jurisdictio = poder de conhecer os fatos e de dizer o direito aplicável), desde o momento
em que, proibida a justiça privada e a vingança, reconheceu-se que o Estado está em
melhor condição de dirimir as lides do que qualquer outra pessoa ou instituição. É
que o conceito de Estado tem como pressuposto a consecução e manutenção do bem
comum, que passa pela manutenção e efetividade da ordem jurídica.
Das notas que caracterizam a jurisdição, ressalto algumas, já com os matizes da jurisdição penal, sem olvidar que caracterizam também a jurisdição civil, até
porque a distinção entre uma e outra não se baseia em diversidade funcional, mas
unicamente sobre a diversidade do objeto, da res in judicio deducta, que implica tãosó alteração formal ou de procedimento em uma e outra jurisdição.
A indeclinabilidade da jurisdição, por que nenhum juiz pode subtrair-se do
exercício da função jurisdicional, tampouco delegá-la (delegatus judex non potest
subdelegare), salvante as hipóteses taxativamente permitidas, exemplo na expedição
de precatórias. Isso não quer dizer que a tutela penal (seja ao Autor, com a procedência da pretensão punitiva, ou ao Réu, com a improcedência do pedido) há de ser
concedida em toda ação penal. Não. A ação penal tem supostos formais (art. 41, CPP),
cuja desobediência leva ao não-recebimento da denúncia ou queixa, e pressupõe existência cumulativa de lastro probatório mínimo e idôneo e das condições da ação (art.
43, CPP), cuja inexistência leva à rejeição da peça vestibular.
Outrossim e em relação ao elemento notio da jurisdição, não há atividade
jurisdicional de ofício (ne procedat judex ex officio), salvante na concessão ex officio de
habeas corpus e na execução das penas privativas de liberdade e restritivas de direito.
Na execução da pena de multa, a atuação do juiz fica condicionada à provocação. Andante, a substitutividade nem sempre está presente na jurisdição penal: sendo essa
tram uma reminiscência da Lei de Hobbes, da lei do mais forte no plano internacional: “o homem é o lobo
do homem”.
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, 10a edição, São Paulo: Saraiva, 2000, p. 16.
A autotutela, fora das hipóteses legalmente admitidas (v.g., prisão em flagrante, estado de necessidade e legítima defesa) configura ilícito penal, tipificado no art. 345, CP, quando cometido por particular, e no art. 350, CP,
quando cometido por agente público
MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953, p. 14.
“O poder jurisdicional não compreende apenas a decisão em que é declarada a vontade legal. Embora seja a
sentença o ato jurisdicional por excelência, jurisdicionais são, outrossim, os demais atos que no processo foram praticados em preparação ao decisório. Compreende, por isso, a jurisdição, os cinco elementos seguintes:
notio, vocatio, coercio, judicium e executio” (MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. São
Paulo: Saraiva, 1953, p. 24).
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jurisdição penal necessária, sintomática, desaparece a substitutividade, que somente
estará presente na execução da pena de multa, sem embargo de que, em todas as
situações, o Juízo é sempre um terceiro alheio à lide a ser composta, por isso que
imparcial (abandonando aqui o mito da neutralidade).
Essa necessidade (ou necessariedade, como colocam alguns) da jurisdição
penal, no seu turno, evidencia a importância de um Poder Judiciário eficaz e eficiente.
Eficaz em realizar o Direito Penal objetivo, quando se tem em conta as lições de CESARE BECCARIA, por que importa mais a certeza da condenação do que o montante
da pena, acabando com o sentimento de impunidade (e a lei dos crimes hediondos
está aí para confirmar essa lição de que não adianta majorar as penas, tampouco
endurecer seu regime de cumprimento). Eficiente, quando se tem a compreensão da
atual sociedade, com o atual quadro de desenvolvimento de tecnologias de informação e comunicação, marcado pelo caráter de instantaneidade e por uma conseqüente
aceleração no ritmo de vida, tornando as expectativas mais urgentes e carecedoras de
serem atendidas cada vez mais rapidamente.
A atividade jurisdicional é monopólio do Poder Judiciário (sistema inglês de
controle judicial ou da unidade de jurisdição: una lex una jurisdictio), com exceção
apenas da competência de Casas Legislativas (Poder Legislativo) em determinadas
situações numerus clausus. Quanto à função jurisdicional, o sistema constitucional
pátrio vigente não deu margem, portanto, a que pudesse ser exercida pelo Poder
Executivo. A função jurisdicional típica, assim considerada aquela por intermédio
da qual conflitos de interesses são resolvidos com o cunho de definitividade (res iudicata), é praticamente monopolizada pelo Judiciário, e só em casos excepcionais e
expressamente mencionados na Constituição, é desempenhada pelo Legislativo. Ainda neste caso, temos atividade jurisdicional, mostrando que o critério orgânico ou
subjetivo não é bastante para caracterizar o ato jurisdicional, impondo-se sobranceiros os critérios objetivos material e formal, especialmente a coisa julgada material
(res iudicata).
Outra característica da jurisdição é que, em relação a um dado caso concreto,
a sua atuação implica o respectivo esgotamento, de modo que não pode haver dupla
ver COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Trabalho apresentado no
Seminário Nacional sobre Uso Alternativo do Direito, evento comemorativo do sesquicentenário do Instituto
dos Advogados Brasileiros, Rio de Janeiro, 7 a 9 de junho de 1993. Aliás, a neutralidade do homem enquanto
integrante da sociedade, que o forma, não existe, valendo a regra para todos os campos da atividade humana,
podendo-se invocar, exemplificadamente, o comunista soviético Nikita Krutschev, quando disse que “existem
países neutros, mas não homens neutros”.
“O rigor do suplício não é o que previne os delitos com maior segurança, porém a certeza da punição” (BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2000, p. 64).
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Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
condenação pelo mesmo fato delituoso. E essa garantia não se restringe à hipótese de
condenação: se o réu é absolvido por falta de provas (art. 386, VI, CPP), não se admite
novo processo, mesmo descobertas novas provas posteriormente. Assim, porque o
processo é um instituto que pressupõe seriedade e responsabilidade, de modo que
se o Ministério Público ou querelante não têm provas suficientes para acusar, devem
aguardar novas provas, com comedimento no manejo do jus accusationis. Do ponto
de vista do réu, submetido ele a julgamento uma vez, não pode ser novamente submetido, até porque não há revisão criminal pro societate. Diferente é a hipótese de
simples arquivamento do inquérito, quando a descoberta de novas provas permite a
sua reabertura (Súmula 524/STF).
Constituindo manifestação da soberania estatal, a jurisdição é exercida nos
limites do território do país respectivo, por força do princípio da efetividade: a jurisdição pressupõe, do Estado-Juiz que proferir a sentença, a possibilidade de executá-la (elemento coercio da jurisdição), até porque e especialmente na jurisdição
penal, uma sentença condenatória que não pudesse ser concretizada pelo Estado
seria apenas uma manifestação de intenção, jamais uma manifestação de soberania.
Parafraseando RUDOLF VON JHERING, jurisdição sem poder de execução é como
fogo que não queima. Isso não quer dizer que a jurisdição brasileira se afirma com
exclusividade em todos os casos em que possa executar suas decisões. Há situações
em que a lei brasileira admite a concorrência de sua jurisdição com a estrangeira,
como se verá adiante.
2.1A medida da jurisdição penal brasileira
Diferente do processo civil, em que o Juiz nacional pode aplicar o direito material estrangeiro (arts. 7o a 10, LICC e art. 337, CPC), no processo penal o Juiz sempre
há de aplicar o direito penal material nacional. Assim, a jurisdição penal nacional é
limitada pela incidência do direito penal objetivo nacional10: se o suposto fático não
é qualificado pelo direito penal objetivo brasileiro, não há jurisdição penal brasileira. De se mencionar também a nota de jurisdição penal nas medidas de cautela (ex:
10
STF, HC 72.330, FRANCISCO REZEK, 2A T, DJ 27.10.95.
O mesmo se dá no processo civil, em que a não-comprovação do fato constitutivo do direito implica a improcedência da ação, e não a extinção do processo sem exame do mérito, como infelizmente e com pouca técnica,
fazem muitos juízes, em especial quando versam demandas contra o Poder Público.
Nesse sentido: MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953, pp.
78/9.
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Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
decretação de prisão preventiva, seqüestro de bens11) ou contra-cautela (ex: fiança e
habeas corpus) referentes à aplicação do direito penal objetivo brasileiro, bem assim
nas medidas preparatórias de ações penais veiculando pretensão de aplicar-se aquele
direito (ex: quebra de sigilo bancário e de sigilo telefônico).
Nessa toada, convém estudar as hipóteses de incidência do direito penal material brasileiro, seja em relação ao espaço, bem como em relação às pessoas, enquanto
medida da jurisdição penal nacional.
3
A jurisdição penal brasileira em relação ao espaço
3.1Territorialidade da lei penal brasileira
Prevê o art. 5o, caput, CP: “Aplica-se a lei brasileira, sem prejuízo de convenções,
tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional”.
A lei penal brasileira aplica-se, portanto e com base nessa norma de superdireito,
a todos os crimes cometidos em território nacional, independente da nacionalidade
do agente ou do titular do bem jurídico lesado. A regra vale, inclusive, para crimes
cometidos nas sedes de organizações que têm personalidade jurídica de direito internacional (organizações internacionais ou intergovernamentais) e são sediadas ou
representadas no Brasil. Por exemplo: foi realizada, nos dias 13 a 18 de junho de 2004,
a XI Conferência Internacional sobre Comércio e Desenvolvimento, quando o Centro
de Convenções do Anhembi, em São Paulo, transformou-se na sede da Organização
das Nações Unidas – ONU. Eventuais crimes ali praticados neste período também se
submetem à lei brasileira. A ressalva feita na norma a convenções, tratados e regras
de direito internacional caracteriza a territorialidade temperada.
O CP não definiu o que seja território, deixando a matéria a cargo do Direito
Público. Neste passo, de se registrar que território nacional, em seu sentido jurídico,
é mais amplo que no seu sentido estrito, abrangendo, além do território real, de base
puramente física, o chamado território fictício.
Território, em sua conformação física, é o espaço em que o Estado exerce sua
soberania. Abrange o solo, o subsolo, as águas interiores (eventualmente limitadas
11
No rigor técnico, o seqüestro não visa a garantir a aplicação do direito penal objetivo, mas antes e pelo contrário, a garantir a aplicação do direito civil objetivo, viabilizando o ressarcimento dos danos causados pelo
crime mesmo, este sim qualificado pelo direito penal objetivo. Entretanto, a legislação brasileira atribuiu ao
juízo penal o conhecimento e julgamento dessa medida cautelar tendente a garantir a indenização (arts. 125 e
132, CPP), por que se pode falar em jurisdição penal.
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
pela linha mediana, eqüidistante das margens, ou pela linha do talvegue, que acompanha a maior profundidade, se fizer fronteira com outro país), o mar territorial
(entendido como a faixa de mar exterior que se estende por 12 milhas marítimas,
a partir da baixa-mar do litoral continental - art. 1o, Lei 8.617/93) e o espaço aéreo
(equivalente à coluna atmosférica sobre o território - art. 11, Lei 7.565/86, temperando-se a Convenção de Paris, de 1919 – de uma época, portanto, em que o desenvolvimento tecnológico não permitia ainda vislumbrar as possibilidades totais na exploração desse espaço12, descurando, por isso mesmo, a fixação dos limites de altitude
ao exercício da soberania territorial – , e a Convenção de Chicago, de 1944, que, neste
particular, manteve referida omissão).
No tocante ao mar territorial, de se registrar que o exercício da soberania é
delimitado pelo direito de passagem inocente13. A zona contígua, faixa de 12 a 24 milhas marítimas, na qual o Brasil pode tomar medidas de fiscalização, a fim de evitar
infrações às leis aduaneiras, fiscais, de imigração ou sanitárias não compreende o território nacional. Nessa premissa, eventual crime de entrada ou permanência ilegal de
estrangeiro (art. 309, CP), embora possa ser evitado pelas autoridades competentes
na zona contígua mesma, somente se consuma no mar territorial.
Espaço cósmico e alto-mar: não se sujeitam à soberania de qualquer país.
Voltando ao CP, prevê o §1o do art. 5o: “Para os efeitos penais, consideramse como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de
natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem,
bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade
privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em altomar”. Trata-se do princípio do pavilhão ou da bandeira, que estende, mediante ficção jurídica, o conceito de território do Estado onde estejam matriculadas as naves14.
Assim, às naves de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro só se aplica
a lei do seu pavilhão, onde quer que se encontrem, diferente do que ocorre com as
12
13
14
o primeiro vôo homologado da história da aviação, de Santos Dumont que, em seu 14 Bis decolou, voou por
220 metros a 6 metros de altura e pousou, dera-se há poucos anos: 1906.
Art. 17, Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar ou Convenção de Montego Bay, de 1982. A
Convenção ainda esclarece que a passagem é inocente desde que não seja prejudicial à paz, à boa ordem ou à
segurança do Estado costeiro. Em todos os casos a passagem deve ser contínua e rápida.
Esse critério formal de aferição da nacionalidade pela matrícula, embora de aceitação pacífica para as aeronaves, devido ao intenso controle internacional da atividade de transporte aéreo, não é aceito pacificamente para
as embarcações, sendo que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, exige um vínculo
substancial entre o Estado e o navio, como exigência para o reconhecimento da nacionalidade, justamente
para combater as chamadas “bandeiras de conveniência” (SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Introdução
ao Direito Internacional Público, 3a edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003, p. 118).
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
naves mercantes ou de propriedade privada. Os barcos ou destroços são considerados remanescentes da embarcação ou aeronave, sendo, por conseguinte, extensão do
território nacional.
No seu turno, o §2o do mesmo art. 5o consigna: “É também aplicável a lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de
propriedade privada, achando-se aquelas em pouso no território nacional ou em vôo
no espaço aéreo correspondente, e estas em porto ou mar territorial do Brasil”. Entretanto, se o crime cometido a bordo de aeronave ou embarcação estrangeira, em vôo
ou navegação, não produzir efeitos no Brasil (por exemplo, não houver comunicação
a autoridades nacionais ou pedido de ajuda) nem atingir seus interesses, o Brasil
dispõe de sua jurisdição, de sorte que não intervirá no vôo ou navegação tão-só com
o fito de exercer sua jurisdição penal15.
Os lugares militarmente ocupados (e aqui convém mencionar a espécie, por isso
que a história recente trouxe e continua trazendo exemplos, infelizmente, da atualidade
do tema), presumem-se, por ficção jurídica, extensão do território do exército ocupante
se, e somente se, a ocupação decorrer de operação bélica. Desse modo, em se tratando
de ocupação consentida pelo país ocupado e não havendo convenções especiais entre os
dois governos, a lei do exército ocupante somente se aplica aos seus militares16.
Complementando a regra da territorialidade, o art. 6o, CP determina que “considera-se praticado o crime no lugar em que ocorreu a ação ou omissão, no todo
ou em parte, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado”. Em
relação aos crimes permanentes, aplica-se a lei nacional quando qualquer dos fatos
do iter criminis tenha-se realizado em território brasileiro. Entende-se que parte do
resultado também é resultado, para fins de incidência da norma. Tem-se a teoria unitária ou da ubiqüidade. Essa regra diz com a determinação da jurisdição nacional, por
isso há de ser aplicada tão-só nos crimes a distância (ação ou parte da ação no território nacional/estrangeiro; resultado, parte do resultado, impedimento do resultado
ou impedimento de parte do resultado no estrangeiro/território nacional, respectivamente). O art. 70, CPP e o art. 6o, Lei 9.099/95, que veiculam a teoria do resultado e a
teoria da atividade, nessa ordem, são regras de determinação de competência, e não
de determinação de jurisdição, por isso que deixam de ser analisadas aqui.
Neste passo, três observações.
15
16
Nesse sentido: NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 25a edição,
1997, p. 15.
MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953, p. 127.
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
Primeira, a teoria da ubiqüidade aplica-se também em relação ao território
fictício, ou seja, em relação a embarcações e aeronaves em alto-mar ou espaço aéreo
correspondente. O STF, por esse fundamento, reconheceu a competência da Justiça
brasileira para o processo e julgamento de explosão de navio inglês em alto-mar decorrente de bomba-relógio colocada na Bahia, declarando a competência da 2a Vara
Criminal de São Salvador17.
Segunda, o resultado, para fins de aplicação da lei penal brasileira é o resultado típico e não o resultado secundário. Exemplo: homicídio; ação no estrangeiro
(aliunde); resultado típico: morte, no estrangeiro; resultado secundário: sucessão
patrimonial no Brasil; jurisdição: estrangeira18.
Terceira, as regras de modificação de competência (conexão ou continência)
não se aplicam para ampliar a jurisdição nacional a causas afetas à justiça estrangeira, até porque modificação de competência pressupõe competência mesma e esta,
por sua vez, pressupõe jurisdição, inexistente na hipótese19. Essa diretriz está, inclusive, no art. 303 do Código Bustamante, Código de Direito Internacional privado para
a América, incorporado ao ordenamento positivo brasileiro pelo Decreto 5.647/29.
Então e por exemplo, se ocorre um furto (conhecido e comprovado) na Argentina e
receptação (conexo) no Brasil, aqui somente será julgada a receptação.
3.2Extraterritorialidade da lei penal brasileira
Já o art. 7o, CP, prevê a aplicação da lei penal objetiva brasileira a crimes cometidos fora do território nacional. São casos de extraterritorialidade da lei penal.
No inc. I, estão os crimes sujeitos à extraterritorialidade incondicionada, por
força do princípio da proteção ou da defesa: a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República; b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito
Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de
economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público; e c) contra a
administração pública, por quem está a seu serviço; e do princípio da universalidade,
da justiça universal ou da competência universal: d) de genocídio, quando o agente for
brasileiro ou domiciliado no Brasil.
17
18
19
SIQUEIRA, Galdino, Direito penal brasileiro, apud MARQUES, José Frederico, Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953, pp. 97/8.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte geral. 2a edição, v. I, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 90.
Nesse sentido: MARQUES, José Frederico, Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953, pp.
92/3.
223
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
No inc. II e § 3o do mesmo art. 7o estão os crimes sujeitos à extraterritorialidade condicionada, que veiculam o princípio da universalidade, da justiça universal
ou da competência universal: a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a
reprimir; princípio da nacionalidade ou personalidade ativa: b) praticados por brasileiro; princípio da representação: c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí
não sejam julgados; e princípio da proteção ou da defesa: cometidos por estrangeiro
contra brasileiro fora do Brasil, desde que não tenha sido pedida ou tenha sido negada a extradição e haja requisição do Ministro da Justiça.
As condições da incidência da lei penal (nas hipóteses de extraterritorialidade condicionada) são cumulativas e estão no §2o do mesmo art. 7o: a) entrar o agente
no território nacional; b) ser o fato punível também no país em que foi praticado; c)
estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena; e e)
não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta
a punibilidade, segundo a lei mais favorável. A saída do agente em momento posterior ao início da ação penal, não prejudica, em tese, sua continuidade.
Questão interessante surge quando um súdito brasileiro supostamente comete crime em outro país e foge para o Brasil. Instado a entregar o brasileiro àquele
país, o Brasil não poderá fazê-lo, por força da expressa proibição constitucional de
extraditar-se o súdito nacional (art. 5o, LI, CF). Nessa hipótese, o Brasil deve consultar
formalmente aquele país sobre seu interesse em ver o súdito brasileiro submetido
à persecução penal, no Brasil mesmo, pelo suposto crime, e submetê-lo a processo
penal de ação penal pública condicionada à requisição do Ministro da Justiça, consoante recomenda o consagrado princípio “aut dedere aut judicare” e o dever éticojurídico de se evitar a impunidade do nacional que delinqüiu alhures. De se registrar
que essa situação pode gerar impunidade, já porque as provas do crime estão aliunde,
o que dificulta sobremaneira o julgamento; por outro lado, é melhor correr esse risco
do que permitir um súdito brasileiro, por exemplo, ser julgado na Inglaterra, onde é
visto no imaginário popular como um latino-americano que entrou ilegalmente no
país e cometeu um crime contra um nacional, sendo que provavelmente não seria
julgado com imparcialidade20.
Vale ressaltar que, em se tratando de contravenções penais, a lei brasileira somente é aplicável às cometidas no território nacional (art. 2o, DL 3.688/41 – Lei das
20
Isso se tivesse a oportunidade de ser julgado, o que não ocorreu com o brasileiro Jean Charles de Menezes, que
morava na Inglaterra e, confundido com um terrorista, foi assassinado brutalmente por policiais da famosa
Scotland Yard, em julho de 2005.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 215-232, jan./jun. 2006.
DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
Contravenções Penais – LCP). Em contrapartida, a Lei 9.455/97, que define os crimes
de tortura, “aplica-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território
nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira” (art. 2º).
3.3
Concorrência de jurisdições: jurisdição principal e jurisdição
subsidiária
Pode ocorrer que a jurisdição nacional e a jurisdição estrangeira concorram
sobre um determinado fato criminoso, por isso que as leis penais objetivas do Brasil
e do Estado estrangeiro incidem, consoante suas regras de superdireito, concorrentemente naquele suporte fático.
Nas hipóteses de territorialidade (art. 5o, CP) e de extraterritorialidade incondicionada (art. 7o, I, CP) da lei penal brasileira, a jurisdição nacional é principal ou
preponderante em relação à jurisdição estrangeira: “o agente é punido segundo a lei
brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro” (art. 7o, §1o, CP). Isso
não significa, porém, que haverá um duplo apenamento pelo mesmo fato, na medida
em que há detração com a parte da pena provisória cumprida no estrangeiro (art. 42,
CP), bem assim “a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil
pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada, quando idênticas” (art.
8o, CP).
Por outro lado, nas hipóteses de extraterritorialidade condicionada (art. 7o,
o
II e §3 , CP), a jurisdição nacional é subsidiária em relação à jurisdição estrangeira.
Com efeito, o STF tem afirmado o caráter subsidiário do princípio da universalidade,
que informa a extraterritorialidade condicionada, dando prevalência ao princípio da
territorialidade, no concurso de jurisdições nacional e estrangeira21.
Outrossim, do exame do art. 7o, §2o, CP, percebe-se que processo penal em
curso no estrangeiro, ainda que em país integrante do Mercosul, não impede o processo penal no Brasil22. Entretanto, se o agente for processado no juízo estrangeiro,
sua sentença preponderará sobre a do juiz brasileiro, mas somente se a coisa julgada
21
22
FERREIRA, Roberto dos Santos. Competência da Justiça Federal. Rio de Janeiro: Editora Independente, 1997,
p. 174.
Não se pode olvidar que o Protocolo de Las Leñas, internalizado pelo Brasil pelo Decreto 2.067/96, instituiu a
litispendência no âmbito do Mercosul, no seu art. 22, mas essa regra não abrange os processos penais, restrita
que fica aos processos cíveis (no seu sentido amplo, é dizer, que envolvam as matérias civis, comerciais, trabalhistas e administrativas, nos termos do art. 1o, Protocolo de Las Leñas).
225
226
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
for anterior ao início do processo penal brasileiro: não que se reconheça o fenômeno
jurídico da coisa julgada em outro país, em seu sentido técnico, mas por aplicação do
princípio universal do non bis in idem. Caso o réu seja absolvido pelo juiz territorial,
aplicar-se-á a regra non bis in idem para impedir a persecutio criminis (art. 7o, §2o,
“d”, CP). No entanto, em caso de condenação, se o condenado se subtrair à execução
da pena (ainda que de parte da pena), não lhe caberá invocar o non bis in idem: será
julgado no Brasil e eventualmente condenado de novo, aplicando-se, entretanto, a
detração do art. 42 e o art. 8o, ambos do CP.
4
A jurisdição penal brasileira em relação às pessoas
Já anotei o princípio da territorialidade ser temperado, i.e., relativo. Daí, há
pessoas a quem é conferida imunidade de jurisdição nacional, em virtude de tratados, convenções internacionais e regras de direito internacional. Trata-se das imunidades diplomáticas do Direito Internacional Público. Mas o Direito Público interno
também veda incidência às normas penais brasileiras, nas denominadas imunidades
parlamentar e judiciária. Em todos os casos, a imunidade não tem em vista a pessoa
do agente, mas a função por ele exercida.
Antes de prosseguir, pois, convém esclarecer o duplo sentido da imunidade
em relação às normas penais objetivas brasileiras. O primeiro é o sentido oriundo da
imunidade diplomática, que se apresenta como verdadeiro impedimento ao exercício
da jurisdição brasileira sobre as pessoas que a detêm, mas existem delito e pena, até o
ponto em que, na hipótese de renúncia do Estado acreditante, o agente pode ser condenado de conformidade com a lei nacional e pela jurisdição nacional23. O segundo é
o das imunidades parlamentar e judiciária que, no seu turno, não impedem o exercício da jurisdição nacional sobre as pessoas que as detêm, mas tão-só excluem a ilicitude do fato penal típico. Assim, somente a imunidade diplomática exclui a jurisdição
nacional e pode ser considerada exceção ao princípio da territorialidade, i.e., exceção
ao preceito de que o Estado pode punir todos os crimes praticados em seu território.
As imunidades parlamentar e judiciária, bem como as excludentes de ilicitude (art.
23, CP: estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento de dever legal e
exercício regular de direito) não excluem a jurisdição penal, mas só a ilicitude do fato
típico e, consequentemente, o crime.
23
ZAFFARONI, Raul Eugenio; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte geral, 2ª
edição, São Paulo: RT, 1999, p. 236.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 215-232, jan./jun. 2006.
DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
Nessa ordem de considerações, somente se justifica, neste trabalho, a análise
da imunidade diplomática.
4.1Imunidade diplomática
A imunidade diplomática vem regulada pelas Convenções de Viena, de 1961
(relativa ao agente diplomático) e de 1963 (concernente ao serviço consular), incorporadas ao ordenamento positivo interno pelos Decretos 56.435/65 e 61.078/67, respectivamente. A imunidade diplomática admite renúncia que, entretanto, é de ser
manifestada pelo Estado ou Organismo Internacional acreditante, e não pelo titular
da imunidade. É de competência da Justiça brasileira decidir sobre a ocorrência ou
não da imunidade diplomática24.
A imunidade do agente diplomático é absoluta, referindo-se a qualquer delito,
impedindo não só qualquer inquérito ou processo, bem assim a prisão e a condução
coercitiva para prestar testemunho. Essa imunidade se estende aos membros do pessoal administrativo e técnico da missão diplomática (exclui-se, portanto, o pessoal
não-oficial, como os secretários particulares, datilógrafos, mordomos e motoristas),
assim como aos membros de suas famílias que com eles vivam, desde que não sejam
nacionais do Estado acreditado nem nele tenham residência permanente. A imunidade absoluta abrange também o chefe de Estado estrangeiro ou Organismo Internacional que visita o país e os membros de sua comitiva, bem assim os membros das forças
armadas estrangeiras que se encontrem no país em tempo de paz (art. 7º, Tratado de
Direito Internacional de Montevidéu, de 1940).
Importante ressaltar que os locais das missões diplomáticas já não são mais
considerados extensão de território estrangeiro25, embora sejam invioláveis26, não
podendo ser objeto de busca, requisição, embargo ou medida de execução. Assim,
delitos cometidos nas representações diplomáticas, por pessoas que não gozam de
imunidade, submetem-se à jurisdição brasileira.
Os crimes dos agentes diplomáticos devem ser levados ao conhecimento dos
respectivos governos, únicos competentes para o respectivo processo e julgamento.
24
25
26
STF, RHC 34029, EDGARD COSTA, PLENO, DJ 11.3.57.
NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, 25a edição, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 15.
O que não impediu, quando o ditador panamenho Manuel Noriega se refugiou na embaixada do Vaticano, que
os soldados do Psyop, especialistas em guerra psicológica do Exército dos Estados Unidos, bombardeassemno dia e noite com rock, amplificado por caixas acústicas de 10 mil watts: em poucos dias, Noriega se rendeu,
com os nervos em frangalhos.
227
228
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DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
Em outras palavras: a imunidade não livra o agente da jurisdição de seu Estado patrial. De outro lado, na hipótese de renúncia do Estado acreditante, o agente diplomático pode então ser processado e julgado pela jurisdição nacional.
O cônsul não representa o Estado: suas funções são pertinentes às atividades
privadas, especialmente a mercantil, sem maior interesse político. Por isso, a imunidade do cônsul é relativa tão-só à jurisdição das autoridades judiciárias e administrativas do Estado receptor pelos atos realizados no exercício das funções consulares.
A regra se aplica tanto aos cônsules de carreira ou originários (cônsules missi), bem
assim aos cônsules honorários (cônsules electi), estes recrutados no país onde vão
exercer o ofício, já porque idêntico o regime jurídico de ambos. Essa definição da imunidade penal do cônsul, que a torna inviável para ser estendida aos membros de sua
família, permite o inquérito, o processo e a prisão referentes a crimes não-relacionados com a função consular.
Enfim, calha anotar que alguns países, como o Brasil, unificaram as duas carreiras. Cada profissional da diplomacia, nesses países, transita concomitantemente
entre funções consulares e funções diplomáticas. A função exercida no momento é
que determina a pauta de privilégios no tocante à imunidade diplomática.
5
Ausência ou deficiência da jurisdição penal brasileira e jurisdição complementar do Tribunal Penal Internacional – TPI
Considerada a existência de um direito penal internacional, vocacionado para
a prevenção e repressão dos crimes mais graves, praticados por pessoas e que assolam a comunidade internacional, por isso mesmo reconhecidos em tratados internacionais e denominados crimes internacionais, vemos e vivemos dois fenômenos.
O primeiro é a constitucionalização do Direito Internacional, que consubstancia a idéia de implantação de uma comunidade universal de Estados, devidamente
institucionalizada, revelando-se pela criação de organismos políticos a que os Estados juridicamente organizados aderem, organismos estes que adotam, à guisa de tratados fundadores, verdadeiras Constituições internacionais, providas de órgãos que
muito lembram os existentes nas instituições internas dos Estados. Como exemplo,
cite-se a Carta da ONU.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 215-232, jan./jun. 2006.
DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
O segundo é a internacionalização do Direito Constitucional27, que consiste na
recepção de preceitos de Direito Internacional por algumas Constituições modernas.
Como exemplo desta tendência, cite-se o art. 7o, ADCT/88, propugnando pela formação
de um tribunal internacional dos direitos humanos; o art. 5º, § 3º, CF/88, acrescentado
pela EC 45/04 – Reforma do Judiciário, que trata da incorporação dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos ao Direito brasileiro, equiparando-os
às emendas constitucionais; e o art. 5o, §4o, CF/88, também acrescentado pela EC 45/04,
submetendo o Brasil à jurisdição do Tribunal Penal Internacional – TPI.
Nesse contexto é que se observa o aparelhamento de órgãos intergovernamentais especialmente criados para prevenir e reprimir os crimes internacionais, a exemplo da Internacional Criminal Police Organization – INTERPOL e, mais recente, do
Tribunal Penal Internacional – TPI28.
Neste passo é bom asseverar que não há confundir o direito penal internacional, que busca responsabilizar o indivíduo por crimes internacionais, com o direito
internacional penal, que busca responsabilizar o Estado por atos ou omissões lesivos
aos direitos fundamentais do homem.
No âmbito do direito internacional penal, mencionem-se a Corte Européia
dos Direitos do Homem (Estrasburgo) e a Corte Interamericana dos Direitos do Homem (São José da Costa Rica), ambas inseridas no sistema de garantia de eficácia das
normas protetivas dos direitos humanos postas, respectivamente, na Convenção Européia sobre os Direitos do Homem (1950) e na Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969).
Em relação à última, mencione-se sua competência para julgar casos de
violações de direitos humanos atribuídas aos Estados da Organização dos Estados
Americanos – OEA que hajam reconhecido sua competência contenciosa, bem assim
para determinar medidas provisórias com vistas a prevenir possíveis violações em
situações graves e urgentes e, finalmente, para emitir opiniões consultivas sobre a in27
28
Essas expressões “internacionalização do Direito Constitucional” e “constitucionalização do Direito Internacional” são da lavra de PAULO BONAVIDES, in Curso de Direito Constitucional, 11a edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2001, pp. 32-3.
Não há confundir o Tribunal Penal Internacional – TPI com a Corte Internacional de Justiça – CIJ. Esta, com
sede em Haia (Holanda) - onde também funciona o TPI -, é a mais alta instância da ONU, criada para resolver
pendências entre seus Estados membros, ou seja, é uma das alternativas de solução pacífica jurisdicional de
litígios internacionais. É de se lembrar que, recentemente, o Conselho de Segurança da ONU pediu para que
a CIJ emitisse uma decisão sobre as conseqüências legais do muro que Israel estava construindo ao redor
do território ocupado pelos palestinos. Em 09 de julho de 2004, a CIJ decidiu que o muro violava os direitos
humanos, mas nem por isso Israel deixou de dar continuidade à sua construção, o que mostra a pouca eficácia
que possuem as decisões da CIJ.
229
230
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 215-232, jan./jun. 2006.
DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
terpretação e aplicação dos tratados de direitos humanos do sistema interamericano.
Cumpre referir, ainda, que as denúncias feitas no Brasil não chegam direta e automaticamente à Corte Interamericana dos Direitos do Homem (que foi reconhecida
pelo Brasil em 1998). Essas denúncias são, antes, “filtradas” pela Comissão Interamericana dos Direitos do Homem que, a par do amplo espectro de atribuições que
possui (ex: requisitar informações e formular recomendações aos governos dos Estados pactuantes, as quais, infelizmente, poucas vezes são cumpridas ou observadas),
só encaminha para a referida Corte aquelas que reputa, no seu juízo discricionário,
mereçam ser examinadas29.
Voltando ao direito penal internacional, cumpre referir que a aprovação do
Estatuto de Roma, ratificado pelo Senado brasileiro no primeiro semestre de 2002
e internalizado no ordenamento brasileiro por meio do Decreto 4.388/02, criando o
Tribunal Penal Internacional – TPI, com sede em Haia (Holanda), é, sem dúvida, um
dos marcos mais significativos no seu desenvolvimento.
O TPI vem com o mérito de ser um tribunal permanente e internacional, não
marcado com a hedionda etiqueta de tribunal ad hoc de vencedores para julgar vencidos30. Outrossim, não faz tábula rasa da soberania dos Estados31 e a fortiori de sua
jurisdição primária, uma vez que sua jurisdição é residual a dos Estados, na medida
em que a sua atuação somente ocorrerá de forma complementar à jurisdição nacional e na hipótese de falência da justiça interna do Estado32. Trata-se do princípio da
complementaridade, consagrado no art. 1o, Estatuto de Roma.
29
30
31
32
Para maiores detalhes, confira-se: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (coords.), O sistema interamericano
de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro, São Paulo: RT, 2000.
Exemplos que a História traz em quantidade razoável. Cite-se o Tribunal Penal Internacional de Nuremberg,
criado após a II Guerra Mundial pelos países aliados para julgar os crimes de guerra cometidos pelos chefes
da Alemanha nazista, sendo Herman Goering o mais famoso (leia-se: afamado); o Tribunal Penal Internacional da ONU para a ex-Iugoslávia, que está processando Slobodan Milosevic por crimes de genocídio e de guerra; e o Tribunal Penal Internacional para Ruanda, que julga os responsáveis por um dos maiores genocídios da
história, em que os tutsis foram massacrados pelos hutus.
Sem embargo dessa constatação, os Estados Unidos da América não assinaram o Tratado de Roma, ao discurso de que há de prevalecer a sua soberania nacional em detrimento da defesa dos valores universais, como
os direitos humanos, por isso que não se admite que um cidadão americano seja julgado por outro tribunal
que não americano. Contradizendo esse discurso, dirigiram ações bélicas contra o Iraque, sem a luz verde do
Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas – ONU: parece que só a soberania norte-americana interessa... Mais recente, os Estados Unidos da América propuseram acordos bilaterais com outros países
no sentido de impedir a extradição de americanos processados no Tribunal Penal Internacional, bem assim
retaliações aos países que não assinassem mencionados acordos, dentre os quais, o Brasil.
REZEK, J. F., Direito Internacional público. 8a edição, São Paulo: Saraiva, 2000, pp. 149/50. Indício dessa falência
da justiça interna pode ser exemplificado no caso de emasculação de crianças para ritual de magia negra
ocorrido em Altamira, Belém, nos idos de 1989 a 1993, cuja lentidão no processo (parte dos acusados só
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 215-232, jan./jun. 2006.
DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
Nessa ordem de considerações, a ausência ou deficiência da jurisdição primária brasileira pode, portanto, implicar a incidência da jurisdição complementar
do TPI. Isso não é, porém, uma assertiva absoluta, já que este tribunal não exerce
sua jurisdição em relação a todos os crimes internacionais, mas somente em relação
àqueles previstos no art. 5o, Estatuto de Roma: genocídio, agressão, contra a humanidade e de guerra.
Demais disso, o TPI é regido pelo princípio do juiz natural, de modo que sua
jurisdição somente será exercida em relação aos crimes cometidos após a vigência do
Estatuto de Roma, e se um Estado se tornar Parte no referido Estatuto após esta data,
o Tribunal poderá exercer sua jurisdição unicamente sobre crimes cometidos após
a entrada em vigor do Estatuto para tal Estado, salvo expressa declaração em outro
sentido (art. 11, Estatuto de Roma).
É importante referir também que o art. 12, Estatuto de Roma, por sua vez,
consagra como condição prévia ao exercício da jurisdição do TPI, a necessidade de
ser parte do Estatuto, o Estado em cujo território teve lugar a conduta ou o Estado
a que pertença o acusado do crime. De mais a mais, a jurisdição do TPI só pode ser
exercida nas hipóteses de o Estado comunicar ao Promotor uma situação que envolva
crimes de sua competência, o próprio Promotor instaurar um inquérito de ofício ou,
finalmente, o Conselho de Segurança da ONU comunicar ao Promotor uma situação
(art. 13, Estatuto de Roma). Neste último caso, porém, não se pode olvidar que o
Conselho de Segurança age sob seletividade política.
Feitas essas ponderações, fica pois o sentimento de que, apesar do grande
passo dado com a criação do TPI, ainda assim vários crimes graves passam e passarão, na hipótese de ausência ou deficiência da jurisdição nacional, ao largo da jurisdição deste tribunal e, conseqüentemente, de uma sanção penal. Em outras palavras,
embora o TPI já não seja mais utopia (palavra latina que significa, literalmente, em
lugar nenhum), não se pode invocar CAMÕES, na sua plenitude, quando disse: “cessa
tudo que a antiga musa canta, que outro valor mais alto se alevanta”...
referÊncias
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2000
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11a edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2001
foram a julgamento pelo júri em 27 de agosto de 2003) contribuiu para que o Brasil fosse denunciado na Corte
Interamericana de Direitos do Homem.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 215-232, jan./jun. 2006.
DEMO, Roberto Luis Luchi. A jurisdição penal brasileira. Desenho em relação ao espaço e às pessoas.
Concorrência de jurisdições nacional e estrangeira. Consequências de sua ausência ou deficiência.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte geral. 2a edição, v. I. São Paulo: Saraiva, 2001
CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência, 10a edição. São Paulo: Saraiva, 2000
COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. Trabalho apresentado no Seminário
Nacional sobre Uso Alternativo do Direito, evento comemorativo do sesquicentenário do Instituto dos Advogados
Brasileiros, Rio de Janeiro, 7 a 9 de junho de 1993
DEMO, Roberto Luis Luchi. Competência penal originária. Uma perspectiva jurisprudencial crítica. São Paulo: Malheiros Editores, 2005
FERREIRA, Roberto dos Santos. Competência da Justiça Federal. Rio de Janeiro: Editora Independente, 1997
GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (coords.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o
direito brasileiro, São Paulo: RT, 2000
MARQUES, José Frederico. Da competência em matéria penal. São Paulo: Saraiva, 1953
NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 25a edição. São Paulo: Saraiva, 1997
REZEK, J. F., Direito Internacional público. 8a edição, São Paulo: Saraiva, 2000
SEITENFUS, Ricardo; VENTURA, Deisy. Introdução ao Direito Internacional Público, 3a edição, Porto Alegre: Livraria
do Advogado Editora, 2003
ZAFFARONI, Raul Eugenio; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte geral, 2ª edição,
São Paulo: RT, 1999
O CONTRATO DE SEGURO E OS SEUS ELEMENTOS ESSENCIAIS
Bruno Novaes Bezerra Cavalcanti*
Palavras-chave: Contrato de seguro e seus elementos. Formação dos contratos de seguros. Características dos contratos de seguros.
Segundo Cesare Vivante, “o contrato de seguro é aquele pelo qual uma empresa se obriga a pagar certa soma, dado um evento fortuito, mediante prêmio calculado
segundo as probabilidades daquele evento suceder”. Na mesma linha, seguia o Código Civil de 1916, ao considerar como contrato de seguro aquele pelo qual uma das
partes se obriga para com a outra, mediante a paga de um prêmio, a indenizá-la do
prejuízo resultante de riscos futuros, previstos no contrato.
Pelo exposto, podemos constatar que a doutrina nacional e estrangeira identifica, de um modo geral, os mesmos elementos essenciais e as mesmas características
nos contratos de seguro, de acordo com as definições a seguir.
Mazeaud e Mazeaud:
El contrato de seguro es el contrato por el cual una de las partes, el asegurador, toma a su cargo mediante el pago de una prima o cuota, un riesgo cuya
realización amenaza a la otra parte, ela segurado. El asegurador evita el riesgo
que lê hace correr cada contrato considerado aisladamente, celebrando un
*
Advogado em Recife. Especialista em Direito Processual Civil pela UFPE. MBA em Direito Empresarial pela
FGV/RJ. Mestre em Direito Privado pela UFPE.
VIVANTE, Cesare. Instituições de Direito Comercial. Campinas: LZN Editora, 2003. p. 285.
234
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
gran número de contratos, y reasegurandóse en cuanto a los riesgos importantes.
Louis Josserand:
El seguro es un contrato por el cual es asegurador toma a su cargo, mediante
el pago por ela assegurado de primas o de cotizaciones, un risco cuya realización contemplan las partes, y cuya incidencia definitiva queire el asegurado
no soportar por si solo y personalmente.
Marcel Planiol:
O seguro é um contrato pelo qual uma pessoa, chamada segurador, promete
a uma outra, chamada segurado, indenizar uma perda eventual a que este é
exposto, mediante uma soma chamada de prêmio, a ser pago pelo segurado
ao segurador. O evento que causa a perda se chama sinistro.
Francesco Messineo:
Implica que el asegurador, a cambia del pago de una suma de dinero (prima)
por parte del contratante, se obliga a liberar (mantener indemne; la ley dice,
con expresión menos correcta “reintegrar”) al asegurado de las perdidas, o de
los daños, que pueden derivarle de determinados siniestros (os casos fortuitos); o bien a pagar (al asegurado, o a um tercero) una suma de dinero, según
la duración, o los eventos de la vida de una o varias personas (art.1882). Lo
que significa que el asegurador asume sobre si (“cubre”) um riesgo ajeno, esto
es, dela segurado.
Moitinho de Almeida:
Contrato em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis
da Estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o
pagamento de uma soma determinada, a, no caso de realização de risco, indenizar o segurado pelos prejuízos sofridos, ou tratando-se de evento relativo à
vida humana, entregar um capital ou renda, ao segurado ou a terceiro, dentro
MAZEAUD e MAZEAUD. Leciones de Derecho Civil. v. IV. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América.
p.510-511.
JOSSERAND, Louis. Derecho Civil, v. II. Buenos Aires: Bosch, 1951. p. 294.
PLANIOL, Marcel. Traité Élémentaire de Droit Civil. 6a ed. Paris: LGDJ. p.43.
MESSINEO, Francesco. Manual de Derecho Civil y Comercial. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América. p.157.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento
dos prêmios, tratando-se de prestação a realizar em data determinada.
Marcelo da Fonseca Guerreiro:
Seguro é a operação pela qual o segurador recebe dos segurados uma contribuição pecuniária denominada prêmio, para a formação de um fundo comum por ele administrado, que tem como finalidade assegurar o pagamento
de um montante em dinheiro àqueles que forem afetados por um dos riscos
cobertos. É uma operação pela qual, mediante o pagamento da remuneração
adequada, uma pessoa se faz prometer para si ou para outrem, no caso de efetivação de um evento determinado, uma prestação de uma terceira pessoa, o
segurador, que, assumindo o conjunto de eventos determinados, o compensa
de acordo com as leis da Estatística e o Princípio do Mutualismo.
Pontes de Miranda:
Contrato de seguro, segundo a definição corrente, é o contrato pelo qual o
segurador se vincula, mediante pagamento de prêmio, a ressarcir o segurado,
dentro do limite que se convencionou, dos danos produzidos por sinistro, ou
a prestar capital ou renda quando ocorra determinado fato, concernente à
vida humana ou ao patrimônio.
Como visto, a doutrina encontra, nos contratos de seguro, alguns elementos
essenciais: o binômio segurador/segurado, o risco, o prêmio e a indenização. Estes
são traços que sempre estarão presentes nesta espécie de contrato. É o que se vê inclusive em conceitos legais, tais como o da lei espanhola dos contratos de seguro:
Artículo 1º - El contrato de seguro es aquel por el que el assegurador se obliga, mediante el cobro de uma prima y para el caso de que se produzca el
evento cuyo riesgo es objeto de cobertura a indemnizar, dentro de los limites
pactados, el dano producido al asegurado o a satisfacer un capital, una renta
u otras prestaciones convenidas.
Judith Martins Costa propõe a taxonomia de contratos comunitários para os
contratos de seguro, tendo em vista que a sua racionalidade econômico-social traduz
VASQUES, José. Contrato de Seguro. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p.89-90.
GUERREIRO, Marcelo da Fonseca. Seguros Privados - Doutrina, legislação e jurisprudência. Rio de Janeiro:
Forense Universitária. p.6.
MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1964. p.272-272.
235
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
“a noção de comunidade, uma vez que num dos pólos não está meramente o interesse
de uma soma aritmética de ‘individualidades’, mas interesses supra-individuais ou
coletivos”.
1.1A empresa seguradora
O segurador se constitui sob a forma de sociedade anônima, sendo a pessoa
que assume o risco do pagamento da indenização, em caso de ocorrência do sinistro.
É ele que suporta os danos sofridos pelo segurado, quando o risco se realiza.
Messineo afirma que a empresa seguradora é
Una organización fundada, principalmente, sobre la multiplidad de los contratos estipulados; en tal caso, existe um forte grado de probabilidad de que
no todos los riesgos se conviertan en siniestros; y que, por consiguiente, no
a todas las obligaciones de indemnización asumidas corresponde un deber
concreto de indemnizar.10
Fica claro que a função da empresa seguradora é operar com uma massa de
riscos homogêneos entre si, cobrando o prêmio de um grande número de segurados,
posto que o conjunto dos sinistros deve ser suportado pelo fundo comum.
O segurador utiliza o fundo comum, formado pelo prêmio pago, para realizar o pagamento das indenizações. A massa de segurados proporciona, através dos
prêmios, o meio para o pagamento das indenizações. Os segurados não afetados por
sinistros pagam pelos afetados.11 Em síntese, pode-se afirmar que a seguradora indeniza os danos sofridos no patrimônio do segurado.
A doutrina costuma destacar algumas características das empresas seguradoras, tais como a exclusividade de atuação, a submissão às normas específicas de
funcionamento, as operações em massa, a exigência de capital inicial e a exigência de
garantias financeiras.
A exclusividade de atuação não permite que as companhias de seguro atuem
em áreas distintas daquelas relacionadas com o seguro e a previdência privada. Não
10
11
MARTINS COSTA, Judith. Reflexões sobre o princípio da função social dos contratos in Revista Direito GV, v.1,
n.1, maio 2005. São Paulo: Ed. FGV. p.53.
MESSINEO, Francesco. Manual de Derecho Civil y Comercial. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América. p.158.
MESSINEO, Francesco. Manual de Derecho Civil y Comercial. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América. p.159.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
se pode imaginar uma seguradora atuando como uma empresa de consórcios, que
demanda autorização específica do Banco Central.
De acordo com o art.170, parágrafo único, da CF/88, a liberdade econômica é
assegurada, ressalvados os casos em que, pela relevância e reflexos para a sociedade,
há a necessidade de autorização e controle estatal. Tal ocorre com instituições financeiras, corretoras de valores mobiliários e seguradoras. Saliente-se que esta limitação à livre iniciativa está presente nos principais ordenamentos jurídicos modernos,
mesmo naqueles em que explicitamente não está na Constituição. Neste sentido,
Louis Favoreau e outros autores lecionam em relação à França, citando, inclusive, a
decisão do Conselho Constitucional (n.141, de 27 de julho de 1982), fundada no princípio de que o Direito de Propriedade e a liberdade de iniciativa “não são gerais nem
absolutos, não podendo existir sem a moldura de uma regulamentação instituída
pela lei”.12
A submissão às normas específicas de funcionamento está relacionada com o
controle estatal sobre a atividade seguradora. Não há dúvida de que as seguradoras
funcionam como gestoras da poupança alheia, motivo pelo qual são submetidas à
Susep - Superintendência de Seguros Privados, autarquia federal vinculada ao Ministério da Fazenda e encarregada de exercer a fiscalização das empresas seguradoras.
Fábio Ulhoa atesta:
O controle estatal da atividade securitária destina-se a impedir que atos de
má gestão das seguradoras possam vir a comprometer sua capacidade econômica e financeira de honrar as obrigações assumidas perante segurados
e beneficiários. É a competente organização empresarial da seguradora que
hoje permite conferir a garantia esperada pelo contratante do seguro. A deficiência na administração da entidade pode comprometer a disponibilidade
dos recursos dos fundos alimentados pelos prêmios puros, inviabilizando,
deste modo, a socialização dos riscos.13
A necessidade de operar em massa é reflexo da lei dos grandes números, que
pode ser assim sintetizada: quanto maior o número de exposições, menor será a
distância entre os resultados efetivamente ocorridos e os resultados esperados. Ou
seja, podemos afirmar que quanto maior a massa de segurados, mais precisão terá
a seguradora para calcular os prêmios cobrados e mais segurança terá para gerir os
recursos comuns.
12
13
FAVOREAU, Louis e outros. Droit Constitucionel. Paris: Dalloz, 1998. p.838.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 2005. p.352.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
Por fim, a exigência de capital inicial e as garantias financeiras solicitadas têm
por finalidade garantir, ao segurado, a solidez da companhia de seguros, sendo-lhe
exigida reservas técnicas mínimas para entrar em funcionamento.
1.2O segurado
O segurado é o titular do risco transferido à seguradora; “é a pessoa física ou
jurídica que, tendo interesse segurável, contrata o seguro em seu benefício pessoal ou
de terceiros”.14 Amílcar Santos preferiu defini-lo como “a pessoa em relação a qual o
segurador assume a responsabilidade de determinados riscos”.
Em muitos países, contudo, o enfoque é diferente. O norte-americano Lewis E.
Davids, no seu Dictionary of Insurance, define o segurado (insured ou assured) como
“a pessoa ou empresa protegida pela cobertura de uma apólice de seguro, para os
casos de perdas materiais ou eventos relacionados com a vida”.15
O segurado é a pessoa exposta, cujos bens estejam expostos a determinado
risco. “É a parte no contrato de seguro, pessoa natural ou jurídica, que tem o interesse
segurado garantido contra riscos predeterminados, mediante o pagamento de um
prêmio (preço do seguro)”.16
Alguns ajustes, no entanto, poderiam ser feitos nessas definições, uma vez que
mesmo entes não personificados podem eventualmente ser segurados. Mais correto
seria dizer que o segurado é o titular do risco que se quer garantir, posto que pessoas
ou entes a ele equiparados podem ter interesse em garantir seus bens através de seguros, afinal a massa falida ou espólio pode assegurar seus bens.
1.3O risco
O risco é o evento futuro e incerto, previsto na apólice que, quando efetivado,
faz surgir a obrigação de indenizar. O risco efetivado é chamado de sinistro. Deve-se
14
15
16
Verbete segurado in Dicionário de Seguros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Funenseg, 2000.
Verbete segurado in Dicionário de Seguros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Funenseg, 2000.
MARTINS, João Marcos Brito. Dicionário de Seguros, Previdência Privada e Capitalização. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. p.219.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
atentar, contudo, que para ser segurável o risco deve ser possível, futuro, incerto, concreto, lícito, fortuito e mensurável economicamente.17
Deve, necessariamente, existir a possibilidade de ocorrência do sinistro, conjugada à incerteza quanto à sua ocorrência. Deve ser ainda concreto, ou seja, analisado e valorado pela seguradora antes da contratação, necessitando ainda de conteúdo
econômico.
A fortuidade e a futuridade são também características do risco segurável,
uma vez que seu acontecimento não pode depender da vontade humana. Bem como
afigura-se impossível a contratação de seguro para riscos já passados.
O risco, na terminologia securitária, pode ser empregado para expressar duas
idéias distintas: o risco como objeto do contrato de seguro; e como a ocorrência possível, que cause dano e cuja garantia esteja prevista na apólice, acarretando a obrigação do segurador de efetuar o pagamento da indenização.18
1.4 O prêmio
Já o prêmio é “a remuneração que o segurado deve pagar ao segurador, pela
garantia que lhe dá pela cobertura de certo risco. É a compensação pela assunção do
risco (...)”. Ou, como diz Vivante,
É a compensação do risco assumido pela empresa. Compõe-se de dois elementos, nem sempre nitidamente distintos: o prêmio puro ou líquido, que
constitui o valor do risco conforme as estatísticas; e o adicional do prêmio
puro, de onde a empresa obtém o reembolso das despesas e os lucros provenientes dos capitais empregados na sua indústria. O prêmio líquido constitui
o fundo de onde se extraem os capitais segurados, à medida que os sinistros
vão se dando. O adicional do prêmio é empregado na remuneração devida
aos agentes, nas despesas de administração, nos dividendos repartidos entre
os acionistas. O prêmio puro aumentado por este adicional forma o prêmio
bruto, ou o prêmio da tarifa, aquele sobre o que se contrata. Dizendo-se simplesmente prêmio, entende-se, segundo o uso vulgar, que trata deste último.19
17
18
19
GUERREIRO, Marcelo da Fonseca. Seguros Privados - Doutrina, legislação e jurisprudência. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001. p.39.
LOZANO, Antonio Guardiola. Manual de Introdución al Seguro. Madrid: Editorial Mapfre, 2001. p.4.
VIVANTE, Cesare. Instituições de Direito Comercial. Campinas: LZN Editora, 2003. p. 292-293.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
É importante dizer que a expressão prêmio é freqüentemente confundida
com a indenização a cargo do segurador. Como já mencionado, prêmio é a prestação
do segurado para com o segurador. É aquele valor de contribuição do segurado para
a formação do fundo comum, de onde serão retirados os recursos para o pagamento
das indenizações.
António Menezes Cordeiro faz interessantes observações sobre o emprego da expressão:
A utilização do termo “prêmio” no contrato de seguro tem sido objeto de
discussões, quanto à sua origem. A expressão é universal: premium, pramie,
prime ou prêmio, nas línguas inglesa, alemã, francesa e italiana, respecitivamente. Prêmio advém do latim praemium, de prae (prévio, preliminar ou
primeiro) mais emo (tomar para si ou capturar), que inicialmente significava
a parte da presa tomada ao inimigo e retirada, em primeiro lugar, para ser
oferecida ao vencedor ou à divindade que assegurou a vitória. Passou, depois, a exprimir algo que era dado ou tomado em primeira linha ou lugar.
Nos seguros, a utilização do termo prêmio poderá ter um sentido profundo:
o tomador começa por pagar uma certa quantia, transferindo o risco para o
segurador. Como veremos, o prêmio deve ser mesmo servido em momento
prévio; depois de decorrido o momento “perigoso”, saber-se-á se houve ou
não “sinistro”. O seguro não faz, então, qualquer sentido. A expressão prêmio
está etimologicamente ligada ao pagamento preliminar.20
Ascarelli complementa:
A conclusão sistemática de contratos de seguro dá lugar a uma série de efeitos jurídicos. Realmente, é pelo fato de ser o segurador uma empresa, que
a circulação do risco realizado por meio do seguro prevê, economicamente,
a verificação dele conforme as leis estatísticas e, portanto, substituir, a um
risco incerto, a previsão de uma determinada porcentagem de sinistros anualmente. Alcança-se, assim, uma segurança social (e uma certeza quanto à
possibilidade do beneficiário de cobrar efetivamente a indenização devida)
que nunca decorreria de um contrato “isolado”.21
Podendo ainda afirmar que, sob o prisma econômico, o prêmio é a soma
máxima de dinheiro que uma pessoa que tem aversão ao risco pagaria para evitar
20
21
CORDEIRO, António Menezes. Manual de Direito Comercial. Coimbra: Almedina, 2001. p.589.
ASCARELLI, Tullio. O problema das Sociedades Anônimas no Direito Comparado. Campinas: Bookseller, 2001.
p.315.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
assumir um determinado risco. O valor do prêmio está, portanto, diretamente relacionado aos riscos com que se defronta a pessoa.22
Afora os elementos essenciais já referidos, é preciso agora classificar os contratos de seguro, fixando suas principais características. O art. 757 do Código Civil brasileiro de 2002 dispõe que, pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o
pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo à pessoa ou
coisa, contra riscos predeterminados.
2
A formação dos contratos de seguro
Usualmente, a formação dos contratos se dá pela aceitação da proposta, tal
como está previsto nos artigos 427 a 435 do CCB. Contudo, em relação aos contratos
de seguro, ganha especial importância a figura do corretor que, segundo a dicção
legal, é o intermediário - pessoa física ou jurídica - legalmente autorizado a angariar
e promover contratos de seguro entre as companhias de seguro e as pessoas.
Deve-se destacar que inexiste, no ordenamento jurídico pátrio, norma jurídica proibindo a contratação direta entre segurado e segurador; no entanto, esta prática
quase não existe. Na verdade, as seguradoras preparam todo o material - propostas,
condições gerais etc - que é entregue aos corretores, para ser oferecido aos segurados.
Outrossim, é importante mencionar que a proposta de seguro parte sempre
do segurado, com a descrição dos riscos a serem assegurados, sendo que a seguradora deve fazer sua análise, estabelecer o prêmio e emitir a apólice, em caso de aceitação
do risco.
A profissão de corretor de seguros está regulamentada pela Lei 4594/64, que
estabelece seus direitos e deveres. Para estar habilitado a intermediar as propostas, o
corretor deve estar habilitado junto à Susep - Superintendência de Seguros Privados,
que exerce ainda fiscalização sobre os corretores e as corretoras.
O art.13 dessa lei é expresso ao ditar que só ao corretor de seguros legalmente
habilitado - e que houver subscrito a proposta - deverão ser pagas as corretagens.
A mesma lei, no art.18, dispõe que as sociedades seguradoras só poderão receber
proposta de contrato de seguro por intermédio de um corretor legalmente habilitado,
diretamente dos proponentes ou dos seus legítimos representantes.
22
PINDYCK, Robert S. e RUBINFELD, Daniel L. Microeconomia. 5ª ed. São Paulo: Pearson/Prentice Hall, 2005.
p.156.
241
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
A lei que regulamenta a profissão de corretor deve ser analisada juntamente
com os artigos 722 a 729, do Código Civil de 2002, pois muito se discute acerca da
natureza jurídica da relação entre os corretores, o segurado e as seguradoras. O art.
722 do CCB determina que, pelo contrato de corretagem, uma pessoa não ligada a
outra, em virtude de mandato, de prestação de serviço ou por qualquer relação de
dependência, obriga-se a obter para a segunda um ou mais negócios, conforme as
instruções recebidas.
A matéria, contudo, é controversa. O que diz a respeito Domingos Afonso Kriguer Filho, in litteris:
Pelo fato de ser prevista em lei a possibilidade de assinar propostas pelo segurado, alguns têm considerado o corretor como um verdadeiro mandatário
daquele. Contudo, tal ponto de vista não nos parece acertado, dado que quando assim atua, age não em virtude de um mandato strito sensu, mas de uma
atividade profissional específica de intermediação, nos moldes do artigo 36
e dos seguintes do Código Comercial. Alguns corretores chegam inclusive ao
ponto de firmar um contrato escrito de corretagem com seus segurados, que
lhe outorgam poderes expressos para representá-los perante as seguradoras,
com assistência e representação também da fase de execução, sendo que tal
medida, porém, não tem o condão de lhe retirar a natureza de negócio próprio,
transformando-o em outro que lhe é acessório. Com relação ao segurador,
pensamos que deva se distinguir a forma pela qual se exterioriza a atividade
do corretor: se realiza suas atividades em escritórios ou dependências das
seguradoras, trazendo ou sendo procurado neles pelos clientes ou se, munido
de propostas e documentos destas, sai a público oferecendo e vendendo seus
seguros. Na primeira hipótese, não temos dúvida que o corretor deve ser considerado preposto do segurador, dado que, em tal situação, impossível não é
se vislumbrar a influência que a marca ou nome deste incute no consumidor,
que inexoravelmente passa a vê-lo neste contexto como empregado daquele,
legalmente habilitado a praticar atos em seu nome.23
Não há concordância com o raciocínio desenvolvido, até mesmo pela proibição constante no art.17, da Lei 4594/64, que veda aos corretores e seus prepostos
serem sócios, administradores, procuradores, despachantes ou empregados de empresas de seguros. Ora, não se pode conceber que o corretor seja mandatário ou empregado, uma vez que a lei é taxativa ao vedar este tipo de comportamento.
23
KRIGUER FILHO, Domingos Afonso. O contrato de seguro no Direito brasileiro. São Paulo: Labor Júris, 2000.
p.110.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
Além disso, é importante ressaltar que o corretor pode angariar contratos
para diversas seguradoras, devendo ainda orientar o segurado quanto às garantias
oferecidas e ao prêmio cobrado. Não adianta, por exemplo, uma indústria situada em
Recife adquirir garantias contra terremotos e esquecer de contratar cobertura para
inundações. É obrigação do corretor orientar o segurado na contratação do seguro,
permitindo a este contratar as garantias que lhe interessam.
Os corretores devem ter independência para orientar seus segurados a contratar as garantias necessárias pelo menor preço - a corretagem, portanto, tem natureza própria, não se confundindo com outras modalidades contratuais.
Normalmente, os segurados, em especial as pessoas físicas, contratam sem
se preocupar nem em ler a proposta de seguro e sem saber quais foram as garantias
contratadas, limitando-se a indagar questões essenciais que nem sempre são esclarecidas pelo corretor.
As propostas de seguro são acompanhadas de um questionário de avaliação
de riscos, que permite às seguradoras aceitar ou não a proposta e taxar o prêmio a
ser pago pelo segurado. Neste momento, nasce o dever do segurado de declarar em
sua inteireza os riscos aos quais está sujeito, já que só ele tem real conhecimento dos
fatos descritos na proposta.
O art. 776 do CCB é taxativo ao dispor que se o segurado (ou seu representante)
fizer declarações inexatas ou omitir circunstâncias que possam influir na aceitação
da proposta ou na taxa do prêmio, perderá o direito à garantia, além de ficar obrigado
ao pagamento do prêmio vencido. Sobre o tema, salienta Carlos Harten que
Por la necessidad de la empresa aseguradora conocer con exactidud el riesgo
garantizado y por la impossibilidad de esta, en un sistema de contratación
masiva, realizar la averiguación de todos los riesgos en contratación, universalmente las leyes modernas de contrato de seguro establecieron el deber del
contratante de declaración del riesgo a la empresa aseguradora. Este deber
es precontractual, con fundamento en la buena fé y es figura distinta de las
reglas generales de vicio del consentimiento. Por este deber, el contratante de
seguros debe declarar al asegurador todas las circunstacias por él conocidas
que pueda influir en la contratación del seguro (aceptación de la propuesta o
tasación del prima).24
24
HARTEN, Carlos. El deber de declaración del riesgo en el contrato de seguro - Exposición y crítica del modelo
brasileño com estudio en el Derecho Comparado. Salamanca, 2002. p.153.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
A proposta escrita com a declaração dos elementos essenciais do interesse a
ser garantido e do risco é pressuposto para a expedição da apólice, documento que
prova a existência do contrato e que contém as suas condições gerais e especiais,
mencionando os riscos assumidos, o início e o fim da sua validade, o limite da garantia, o prêmio devido e o nome do segurado (eventualmente dos beneficiários).
A apólice “é o instrumento do contrato de seguro pelo qual o segurado repassa à seguradora a responsabilidade sobre os riscos estabelecidos na mesma que
possam advir”.25
Ressalta-se, contudo, que apesar dos seguros serem comumente representados por apólices, não se pode deixar de mencionar, ainda que brevemente, os bilhetes
de seguro. Como explica Pedro Alvim, o bilhete de seguro:
Constitui para o mercado segurador brasileiro o estágio mais avançado do
processo de simplificação das relações entre segurador e segurado. Reduz
ao mínimo os elementos do contrato. Suas condições são todas impressas e
inalteráveis. Figuram no próprio bilhete. Não podem ser acrescidas de novas cláusulas datilografadas para atender aos interesses do segurado, como
sucede com as apólices em geral. Obedecem a um padrão que nivela todos
os segurados na mesma posição. Esta peculiaridade limita seu campo de
aplicação. Só prestam para os ramos de seguro que se prestam à massificação, através de uma cobertura tipo, com as mesmas condições para todos os
segurados.26
O exemplo mais tradicional de bilhete de seguro é o seguro para danos pessoais, causados a terceiros por veículos automotores terrestres, vulgarmente conhecido
pela sigla DPVAT, mantendo condições idênticas para todos os segurados.
Nos contratos, em geral, não é muito difícil visualizar as fases do processo formativo; contudo, em relação aos contratos de seguro, há algumas peculiaridades que
merecem destaque. Primeiramente, deve-se lembrar que o contrato é, via de regra,
intermediado pelo corretor. As tratativas não se dão diretamente entre segurado e
segurador, mas entre segurado e corretor, que tentam junto às seguradoras conseguir
um prêmio menor para as garantias pretendidas pelo segurado.
Só após a negociação realizada entre o corretor e a seguradora é que o segurado
vai ter oportunidade de aderir ou não ao clausulado que lhe é apresentado, o que já
25
26
Verbete apólice in Dicionário de Seguros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Funenseg, 2000.
ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 159.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
configura uma grande diferença entre a grande maioria dos demais contratos, em que
as tratativas são levadas a cabo pelas partes, sem a necessidade de um intermediário.
O corretor, então, vai apresentar ao segurado as garantias oferecidas pelas seguradoras e os prêmios por elas cobrados. Com isso, o segurado e o seu corretor vão
submeter a proposta de seguro com a descrição dos riscos ao segurador, que aceitará ou
não a contratação e estabelecerá o prêmio a ser cobrado. O corretor exerce seu mister ao
negociar, junto às seguradoras, as melhores condições para o segurado, sendo que após
a aceitação da proposta ocorre a expedição da apólice. Mais adiante, será possível ver
que o contrato de seguro é consensual, servindo a apólice como prova da contratação.
Do exposto, pode-se deduzir que ao lado do dever de declaração do risco a
cargo do segurado, tem a seguradora a obrigação de redigir as apólices e as suas condições gerais, de forma clara, permitindo ao segurado o conhecimento do conteúdo
do contrato antes da subscrição da proposta. Lílian Caldeira esclarece:
O direito à informação é básico e essencial ao segurado, de modo a garantir
sua efetiva manifestação da vontade, ao celebrar um contrato de seguro. Não
custa repetir que o CDC erigiu a informação do consumidor como seu instrumento predileto de prevenção, no que se alinha com os diplomas legais
mais avançados. Pensamos ser a falta de informação do segurado sobre o alcance das garantias que lhe serão asseguradas, pela celebração de contratos
de seguro, uma das maiores causas dos problemas surgidos em sua relação
negocial com o segurador.
Nesse ponto é que se afigura o corretor de seguros, uma vez que ele deverá
esclarecer o segurado acerca das garantias contratadas e seus valores, bem como das
exclusões de cobertura e das condições gerais do seguro
3
As características dos contratos de seguro
É com base na definição legal e nas características nela encontradas que se
discorrerá, à luz da doutrina, sobre os contratos de seguro, sempre ressaltando as
discussões existentes a respeito.
Os contratos de seguro possuem as seguintes características:
• BILATERALIDADE
É sabido que, quanto à formação, todos os contratos são bilaterais. A expressão
é aqui utilizada quanto à existência de direitos e obrigações que são recíprocos, consta-
245
246
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
tando-se ser bilateral o contrato de seguro, posto que encerra direitos e obrigações para
ambas as partes. O segurado deve efetuar o pagamento do prêmio, evitar o agravamento do risco e obedecer às demais obrigações contratuais; já a empresa seguradora tem
por obrigação primordial efetuar o pagamento da indenização, em caso de sinistro.
Na mesma linha, os ensinamentos de Sílvio Venosa:
É bilateral ou sinalagmático, porque depende da manifestação de vontade de
ambos os contratantes, que se obrigam reciprocamente. O segurado assume a
obrigação de pagar o prêmio e não agravar os riscos, entre outras; o segurador obriga-se a pagar o valor contratado em caso de sinistro.27
Marcello Bittencourt registra que os contratos de seguro trazem “em seu cerne condições gerais aprovadas por um órgão governamental - a Susep, existindo a
possibilidade das partes convencionarem entre si condições especiais, uma vez que o
risco pode apresentar características peculiares.”28
Tal observação aparece com especial importância no que se refere às cláusulas
que são negociadas pelas partes, visto que o Judiciário costuma tratar como de adesão
obrigatória todas as cláusulas insertas nos contratos de seguro, mesmo aquelas que
tenham sido negociadas pelas partes. Deve ser verificado o mecanismo de formação
do contrato antes de se considerarem como abusivas as cláusulas negociadas entre as
partes. Não se pode dar a uma cláusula livremente contratada o mesmo tratamento
dado a uma cláusula padronizada, inserida em contrato de adesão apresentado pela
seguradora. Sobre o assunto já escreveu Rubén Stiglitz:
Tampoco revisten carácter de abusivas aquellas cláusulas o condiciones particulares o especiales que hayan sido negociadas por ambas as partes. Se entende
que ello acontece, cuando al adherente le ha sido possible influir en el contenido de las mismas. Obviamente non mencionamos a las condiciones generales como cláuslas factibles de ser negociadas, pues es inherente o intriínseco
a ellas la falta de negociación. De allé que también se denominem ‘cláusulas
predispostas’. Vienen redactadas previamente y esta afirmación comporta uma
presunción irrefragable. En cambio, las condiciones particulares e especiales
pueden o no ser predispuestas. Si lo son, configurados sus elementos caracterizantespoderán llegar a constituir cláusulas abusivas. Caso contrario, al ser
negociadas, queda excluída a possibilidad del abuso contratual.29
27
28
29
VENOSA, Sílvio. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.377-378.
BITTENCOURT, Marcello Teixeira. Manual de Seguros Privados. Rio de Janeiro: Lúmen Juris Editora, 2004.
p.72.
STIGLITZ, Rubén. Clausulas Abusivas en el Contrato de Seguro. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, s/d. p.68.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
Fica claro que antes da aplicação de qualquer regra referente aos contratos
de adesão, deve ser observado, previamente, o modo pelo qual o contrato de seguro
se formou, para verificar se existiu ou não a aderência.
• ONEROSIDADE
O contrato de seguro é oneroso porque as partes pretendem obter vantagem
no negócio. Vale ressaltar que, muitas vezes, são vantagens que não se contrapõem, de
acordo com a doutrina comentada a seguir por diversos autores.
Sílvio Venosa:
É oneroso porque cada uma das partes procura uma vantagem patrimonial
no negócio. O segurado procura obter proteção contra o risco; o segurador
recebe o pagamento do prêmio e paga o valor previsto na apólice, na ocorrência de sinistro.30
Carlos Roberto Gonçalves:
É oneroso porque ambos os contratantes obtêm proveito, ao qual corresponde um sacrifício. A vantagem para o segurado está na garantia contra os efeitos dos riscos previstos no contrato, a qual corresponde a obrigação de pagar
o prêmio; para o segurador, está no recebimento do prêmio, logo de início,
assumindo, em contrapartida, a obrigação de pagar a indenização em caso de
ocorrência de sinistro.31
O sacrifício efetuado pelas partes é revelado pela obrigação do segurado de
pagar o prêmio e evitar o agravamento dos riscos, em contrapartida da garantia
prestada pela empresa seguradora. Fica patente a inexistência de discussão quanto à
onerosidade dos contratos de seguro.
• ALEATORIEDADE
A maior parte da doutrina entende ser o contrato de seguro um contrato aleatório, existindo a possibilidade de ganhos e perdas para o segurado e o segurador.
30
31
VENOSA, Sílvio. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.378.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. v. III. São Paulo: Saraiva, 2004. p.475.
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248
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
Diz Marcello Bittencourt que “a aleatoriedade é a característica do contrato
de seguro que se traduz pela possibilidade ou não da ocorrência do risco, dentro do
período de vigência contratual”.32
Alguns autores entendem ser a aleatoriedade a essência dos contratos de seguro. É sabido que, em todo contrato, existe uma álea normal, mas nos contratos de
seguro o pagamento da indenização é condicionado à existência do sinistro. Não se
pode conceber contrato de seguro para risco já realizado. O risco futuro e incerto é
necessário para que o contrato exista.
José Vasques ensina que contrato aleatório é aquele onde as partes desconhecem, no momento da contratação, as vantagens patrimoniais dele decorrentes, afirmando ainda que o desconhecimento da álea é da natureza do contrato.33
Na mesma linha, Yvonne Lambert-Faivre afirma que o caráter aleatório está
presente no objeto dos contratos de seguro, que é o risco garantido, concluindo que
só um risco aleatório pode ser objeto de seguro.34
O já clássico Pedro Alvim coloca:
O seguro é tipicamente um contrato aleatório. Gira em torno do risco, acontecimento futuro e incerto cujas conseqüências econômicas o segurado transfere ao segurador, mediante o pagamento do prêmio. Se o evento ocorre, uma
soma bem maior que o prêmio será paga ao segurado; em compensação, reterá o segurador a quantia recebida, se o fato não se verificar. Não há equivalência nas obrigações, por força da natureza aleatória do contrato. O segurado
perde ou ganha, mas o segurador escapa a esta condição, não tendo relação a
um contrato isolado, mas no conjunto dos contratos celebrados, compensando os lucros e as perdas de cada um. Eis por que o seguro é um contrato de
massa. Sua estabilidade cresce no volume da carteira.35
Contudo, apesar de a maioria da doutrina entender que o contrato de seguro é
aleatório, há divergência sobre a matéria. Alguns autores entendem que os contratos
de seguro só seriam aleatórios em relação aos segurados, figurando como comutativos quando vistos pela ótica do segurador. Sobre a discussão, escreveu Sílvio Rodrigues que o contrato de seguro não é aleatório para o segurador, já que para a empresa
o contrato é visto como integrante da massa de contratos existentes. Esclarece que
32
33
34
35
BITTENCOURT, Marcello Teixeira. Manual de Seguros Privados. Rio de Janeiro: Lúmen Juris Editora, 2004.
p.73.
VASQUES, José. Contrato de Seguro - Notas para uma teoria geral. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p.105.
LAMBERT-FAIVRE, Yvonne. Droit des Assurances. 11a ed. Paris: Dalloz, 2001. p.181.
ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.123.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
quando se tem “apenas um contrato, a álea está presente, pois é possível que, em troca de um modesto prêmio recebido, tenha o segurador de pagar uma indenização
enorme”.36
A discussão não pára por aí. Há uma corrente doutrinária, capitaneada no
Brasil por Ernesto Tzirulnik, Flávio de Queiroz B. Cavalcanti e Ayrton Pimentel, que
defende a comutatividade dos contratos de seguro:
A comutatividade do contrato tem por base justamente o reconhecimento de
que a prestação do segurador não se restringe ao pagamento de uma eventual
indenização (ou capital), o que apenas se verifica no caso de sobrevir lesão
ao interesse garantido, em virtude da realização do risco predeterminado.
Tal prestação consiste, antes de tudo, no fornecimento de garantia e é devida
durante toda a vigência material do contrato. A comutação ocorre entre o prêmio (prestação) e a garantia (contraprestação). Ao obter garantia do interesse
para a hipótese de realização do risco predeterminado (sinistro), o segurado
obtém uma vantagem ou atribuição patrimonial sem a qual permaneceria
em estado potencial de dano. É por isso que a garantia, como prestação devida pela seguradora, deve estar respaldada em provisões patrimoniais que
ausentes caracterizam inadimplemento, independentemente da efetiva ocorrência de sinistros.37
Na mesma linha dos autores supracitados, Fábio Ulhoa Coelho defende a comutatividade dos contratos de seguro:
Classificam-se os seguros entre os contratos comutativos. No passado, a
maior parte da doutrina os considerava aleatórios, isto é, daqueles contratos
em que as partes não podem antecipar como serão executados. De fato, nem
seguradora e nem segurado sabem, ao contratarem, se o risco objeto do seguro irá ou não se manifestar em evento danoso. O sinistro é sempre um evento
futuro e incerto, e exatamente por esta razão as pessoas buscam as seguradoras para se precaverem contra seus efeitos. (...) O seguro possui caráter
comutativo porque a seguradora deve uma prestação continuada e pode ser,
inclusive, responsabilizada, na hipótese de administrar mal os fundos constituídos pelos prêmios puros, reduzindo ou comprometendo a garantia devida
aos segurados. A lei brasileira, ao definir o contrato (CC, art.757 - “Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento de um prêmio,
a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou coisa, contra
36
37
RODRIGUES, Sílvio. Direito Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 2002. p.334-335.
TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B. e PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro de acordo com o Novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.30.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
riscos predeterminados”), conferiu-lhe a natureza de comutativo. Inexiste
álea na obrigação assumida pela seguradora. Enquanto vigorar a cobertura,
ela é obrigada a administrar os recursos pagos, a título de prêmio puro por
seus segurados, de modo a poder honrar os compromissos com estes, na hipótese de sinistro (cf. Groutel, 2003:254/256). A obrigação da seguradora, em
outros termos, não é essencialmente a de pagar a prestação devida, mas a de
se organizar como empresa para garantir este eventual pagamento. Do lado
do contratante, também não se pode falar em álea: sua obrigação é de pagar o
prêmio contratado no vencimento e em contrapartida dela recebe a garantia
securitária. Há, portanto, clara comutatividade no seguro.38
Apesar da qualidade da doutrina que defende a comutatividade dos contratos de seguro, parece que a aleatoriedade é uma das suas características essenciais,
pois a obrigação principal decorrente do contrato só surge quando o risco é realizado
através do sinistro.
O entendimento dos contratos de seguro como comutativos confunde a relação jurídica securitária com a relação econômica, expressada por um “contrato de
seguro” onde se confronta o total dos gastos da seguradora com a sinistralidade, os
encargos e tributos, e a receita auferida, que não se confunde em nada com o negócio
jurídico isoladamente. Em relação a estes, a aleatoriedade é a regra; já em relação ao
conjunto, pela aplicação das estatísticas e do cálculo das probabilidades, os riscos são
diminutos e a álea quase que desaparece.
Luiz Mendonça esclarece:
Como parte do todo econômico, o setor de seguro não escapa à regra geral.
Seu preço é a imagem de cada economia nacional e, portanto, insuscetível a
comparações internacionais. Aliás, com um complicador extra, na formação
do preço do seguro intervém um componente sui generis, que é o risco, ou
seja, um fenômeno de massa. Este componente tem a característica de ser
aleatório, casual. Em termos estatísticos, porém, isso não quer dizer que o
risco deixe de alcançar certa regularidade de comportamento. Para isso, a
condição indispensável é a grande massa de dados, pois quanto maior o universo das observações, tanto mais o preço empírico do seguro se aproxima
de seu exato valor real. Daí o imperativo de que a atividade seguradora seja
exercida na mais alta escala possível, já que o preço do seguro decresce com a
expansão do mercado pela maior estabilidade, que assim adquire o comportamento de risco.39
38
39
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil. v.3. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 346-347.
MENDONÇA, Luiz. O seguro em retalhos. Rio de Janeiro: Funenseg, 1997. p.34.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
É evidente que os contratos de seguro têm, em seu conjunto, os valores dos
prêmios fixados a partir de dados estatísticos, de modo que a soma dos prêmios
percebidos em um determinado grupo, associada ao valor dos prêmios arrecadados,
deve ser superior ao índice de sinistralidade somado aos custos, incluindo-se tributos, encargos e lucro.
Ressalta-se que a aleatoriedade em relação à seguradora é minorada pela figura do resseguro, mas está presente em relação a cada contrato visto isoladamente.
Comentando a lei espanhola dos contratos de seguro, Fernando Sanchez Callero relata que não faltaram autores contrários à classificação dos contratos de seguro
como aleatórios, mencionando que vários argumentos foram levantados para defender a natureza comutativa destes contratos.40
Os defensores do caráter comutativo dos contratos de seguro argumentam
que por meio de um contrato aleatório, os contratantes podem obter um ganho ou
uma perda, sendo que os contratos de seguro não objetivam um ganho por parte do
segurado, além do fato da empresa seguradora não considerar o contrato individualmente, mas a massa de segurados, inexistindo risco de perdas como conseqüência
destes contratos.
Esses argumentos não são suficientes para convencer acerca da natureza comutativa dos contratos. Em sendo assim, não se pode deixar de concordar com Fernando Sanchez Calero, quando ele diz:
Este contrato es aleatório porque en el momento de su conclusión “las partes
no sabén cuáles poderán ser las consecuencias econômicas de la verificación
del siniestro y, además, muy frecuentemente, se ignora por completo si este se
verificará, así que puede suceder que el asegurador, aun habiendo cobreado
las primas, no deba pagar la indemnización o bien que la quantia de la indemnización sea más modesta que las primas o, al contrario, que sea mucho
mayor”. Esta aleatoriedad se produce también em los contratos de seguro de
vida, ya que em éstos el pago de la indemnización dela segurador depende de
que se produzca um hecho futuro e incierto (como sucede en el supuesto de
seguros temporales para el caso de muerte y en los de sobrevivencia), o bien
de un evento futuro del que es al menos incierto el momento en que há de
realizarse (...).41
40
41
CALERO, Fernando Sanchez. Ley de Contrato de Seguro - Comentários a la Ley 50/1980 y a sus modificaciones.
Pamplona: Aranzadi, 1999. p. 39-40.
CALERO, Fernando Sanchez. Ley de Contrato de Seguro - Comentários a la Ley 50/1980 y a sus modificaciones.
Pamplona: Aranzadi, 1999. p. 40.
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CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
• CONSENSUALIDADE
Através do que se estabelece no Código Civil brasileiro de 2002, inexistem
quaisquer dúvidas sobre o caráter consensual do contrato de seguro. Isto está expresso no próprio texto legal: “art. 758 - O contrato de seguro prova-se com a exibição da
apólice ou do bilhete do seguro, e, na falta deles, por documento comprobatório do
pagamento do respectivo prêmio. Inexiste, portanto, a necessidade de expedição da
apólice para a validade do contrato, que poderá ser provado inclusive pelos comprovantes de pagamento do prêmio”.
Ernesto Tzirulnik, Flávio de Queiroz B. Cavalcanti e Ayrton Pimentel sintetizam:
O novo texto reforça a consensualidade do contrato de seguro, até porque se
refere à apólice e aos demais documentos para a prova, e não para a substância do negócio. Conjuga-se a regra (art. 758) com o disposto no art. 107, pelo
qual a validade da declaração só depende de “forma especial quando a lei
expressamente a exigir”. Impossível, dessa forma, insistir em caracterizar o
contrato de seguro como formal.42
São interessantes as considerações de Carlos Roberto Gonçalves, referindo-se
ao fato da forma escrita ser exigida apenas ad probationem, ou seja, como prova préconstituída, não sendo, porém, essencial, visto que a parte final do art. 758 também
considera perfeito o contrato, desde que o segurado tenha efetuado o pagamento do
prêmio. A falta de apólice é, portanto, suprível por outras provas, especialmente a
perícia feita nos livros do segurador.43
Durante muito tempo, os contratos de seguro eram contratos formais, só se
perfazendo com a expedição da apólice. Esta caracterização era de especial importância, no momento em que a atividade seguradora engatinhava, dispondo apenas de
instrumentos precários para controlar a expedição das apólices e o pagamento das
indenizações.
Com o passar do tempo, deixou de existir justificativa plausível para os contratos de seguro serem tratados como contratos formais, até mesmo por terem surgido outros meios de provar a contratação, não havendo necessidade de expedição da
apólice para comprovar a formação do vínculo.
42
43
TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio de Queiroz B. e PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de Seguro de acordo com o Novo Código Civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p.42.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro. v. III. São Paulo: Saraiva, 2004. p.476.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
Na mesma linha, a doutrina portuguesa: “Não implicando o contrato de seguro qualquer ato material de que dependa sua validade, considera-se como consensual, no sentido de que o negócio fica perfeito com o simples acordo das partes”.44
E também a doutrina francesa, dispondo que o contrato de seguro é consensual, sendo o consentimento das partes necessário e suficiente para a formação e
validade do contrato.45
Inexiste qualquer dúvida acerca do caráter consensual dos contratos de seguro no Direito brasileiro.
• ADESIVIDADE
Os contratos de seguro são, em geral, contratos de adesão, com suas cláusulas
predispostas pelas seguradoras, restando aos segurados aderir ou não ao clausulado.
Pedro Alvim explica:
O contrato de adesão não surge como capricho de uma das partes para fazer
valer sua vontade preponderante. É a própria natureza da atividade econômica
que inspira sua criação. Na verdade, o aspecto multitudinário - ensina Bessone
- assumido por algumas relações contratuais (transporte, seguro, diversões públicas etc) é que as submete a uma regularização uniforme, imposta pela conveniência e celeridade na conclusão dos negócios, sendo formulada por uma
das partes, precisamente, aquela em cujas mãos, como nota Carnelutti, unificam-se, em feixe, os múltiplos fios que a vinculam, destacadamente a cada um
dos seus inúmeros e indetermináveis co-contratantes. (...) O contrato de seguro
realmente está incluído entre os contratos de adesão. Realmente o segurado não
participa da elaboração de suas condições gerais. Foram elas preparadas pelo
segurador, tendo em vista a experiência de cada ramo.46
Ora, o contrato de seguro não deixa margens de negociação ao segurado,
que é submetido às condições gerais do seguro, tendo tão-somente a opção de
subscrever ou não a proposta de seguro. É exemplo clássico do contrato de adesão,
restando ao segurado a possibilidade de aderir ou não ao clausulado apresentado
pelo segurador.47
O contrato de seguro é elaborado e impresso pelo segurador, sendo que o segurado tem a opção de aderir ou não às condições gerais que lhe são ofertadas. José
44
45
46
47
VASQUES, José. Contrato de Seguro - Notas para uma teoria geral. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p.106.
LAMBERT-FAIVRE, Yvonne. Droit des Assurances. 11a ed. Paris: Dalloz, 2001. p.180.
ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.134-135.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, Vol. III. São Paulo: Saraiva, 2004, p.475.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
Vasquez ainda reforça que a “característica central do contrato de seguro é a adesividade, porque uma das partes se limita a aderir aos termos que lhe são propostos, não
ajustando todos os pontos do contrato”.48
Não se deve confundir a adesão às cláusulas gerais com a possibilidade de
se ter cláusula especial em relação a determinados contratos, sobretudo quando há
peculiaridades no objeto segurado, exigindo condições especiais - por exemplo, o seguro sobre danos causados ao rosto e ao corpo de uma modelo ou à integridade física
de um jogador de futebol.
• BOA-FÉ
O Código Civil de 1916 consagrou diversas normas versando sobre a boa-fé,
sempre a relacionando com institutos específicos e não a figurando como cláusula
geral. A boa-fé objetiva já estava presente nos artigos referentes aos contratos de seguro, especialmente nos artigos 1444 e 1445 do CCB de 1916.
A boa-fé aparece no Direito sob diversas maneiras, como princípio, regra ou
limite. O Código Civil brasileiro de 2002, inspirado nos princípios da eticidade e da
socialidade, consagra a boa-fé em vários artigos.
No que tange especificamente ao Direito Contratual, a cláusula geral de boafé, esculpida no art. 422 do Código Civil, dispõe: os contratantes são obrigados a guardar, na conclusão e na execução do contrato, os princípios de probidade e boa-fé.
Também o Código Civil de 2002, no art.765, consagra a boa-fé objetiva no tocante aos
contratos de seguro. O segurado e o segurador são obrigados a guardar, na conclusão
e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé, tanto a respeito do objeto como das
circunstâncias e declarações a ela concernentes.
É importante salientar que, em Roma, apenas a boa-fé subjetiva era conhecida, sendo que seu processo de objetivação se deu no Direito Germânico, conhecendo
um notável desenvolvimento que levou, inclusive, ao aparecimento de institutos derivados da tutela da confiança.
Vale ressaltar que, no Direito atual, a boa-fé objetiva possui uma maior importância, dela derivando regras de probidade e lealdade que se institucionalizam no
dia-a-dia, passando a regrar determinados comportamentos.
A boa-fé pode ser definida como:
Um dos princípios básicos do seguro. Este princípio obriga as partes a atuar
com a máxima honestidade, na interpretação dos termos do contrato e na
48
VASQUES, José. Contrato de Seguro - Notas para uma teoria geral. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p.108.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
determinação do significado dos compromissos assumidos. O segurado se
obriga a descrever, com clareza e precisão, a natureza do risco que deseja cobrir, assim como ser verdadeiro em todas as declarações posteriores, relativas
a possíveis alterações do risco ou a ocorrência de sinistro. O segurador, por
seu lado, é obrigado a dar informações exatas sobre o contrato e a redigir
o seu conteúdo de forma clara, para que o segurado possa compreender os
compromissos assumidos por ambas as partes. Este princípio obriga, igualmente, o segurador a evitar o uso de fórmulas ou interpretações que limitem
sua responsabilidade perante o segurado.49
Por esse motivo, Pedro Alvim afirma:
A boa-fé deve presidir à formação de todos os contratos. Corresponde a um
estado de espírito em harmonia com a manifestação de vontade que vinculou
as partes contratantes. É a intenção pura, isenta de dolo ou malícia, manifestada com lealdade e sinceridade, de modo a não induzir a outra parte em erro.
Não constitui um privilégio do contrato de seguro, mas aí é reclamada com
maior insistência, dada a relevância de que se reveste na formação e execução
do negócio. Os autores são unânimes em sublinhar a especial significação da
boa-fé no contrato de seguro.50
Não diferem também os ensinamentos de Sílvio Venosa, quando afirma que a
boa-fé se afigura como princípio basilar do Direito Contratual, estando prevista tanto
no Código Civil de 2002 como no CDC.51
A exigência de boa-fé nos contratos de seguro não é prerrogativa exclusiva da
lei brasileira, sendo que, na maioria das legislações, há obrigação de segurado e segurador agirem de boa-fé, nas tratativas e durante a vigência dos contratos de seguro.
Neste sentido, a seção 13 do Insurance Contracts Act australiano é representativa.52
Na mesma linha, a doutrina portuguesa explica que a classificação dos seguros como de boa-fé é da maior importância, pois a formação do contrato é baseada
nas informações prestadas pelo segurado, exigindo-se a uberrimae bona fidei (máxima boa-fé) tanto do segurado, como do segurador.53
E também Yvonne Faivre-Lambert afirma que a qualificação dos contratos
de seguro como de boa-fé ressalta a necessidade de lealdade por parte do segurado,
49
50
51
52
53
Verbete boa-fé in Dicionário de Seguros. 2ª ed. Rio de Janeiro: Funenseg, 2000.
ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p.130.
VENOSA, Sílvio. Direito Civil. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.379.
MANN, Peter. Annotated Insurance Contracts Act. 4th ed. Sidney: LawbookCo, 2003. p.36.
VASQUES, José. Contrato de Seguro - Notas para uma teoria geral. Coimbra: Coimbra Editora, 1999. p.108.
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256
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 233-256, jan./jun. 2006.
CAVALCANTI, Bruno Novaes Bezerra. O contrato de seguro e os seus elementos essenciais.
para que seja possível a manutenção da equidade na relação contratual.54 Pelos motivos expostos é que o contrato de seguro considera-se de máxima boa-fé, ficando as
empresas seguradoras e os segurados obrigados a agir com probidade, sem a quebra
das legítimas expectativas da outra parte.
54
LAMBERT-FAIVRE, Yvonne. Droit des Assurances. 11a ed. Paris: Dalloz, 2001. p.184.
A ATUALIDADE DO DEBATE DA CRISE PARADIGMÁTICA DO
DIREITO E A RESISTÊNCIA POSITIVISTA
AO NEOCONSTITUCIONALISMO
Lenio Luiz Streck*
Palavras-chave: Direito positivo. Crise paradigmática do Direito. Neoconstitucionalismo.
Embora o avanço que as diversas posturas críticas têm representado no campo da teoria do direito e do direito constitucional, torna-se necessário, ainda, reafirmar uma velha questão, sobre a qual venho me debruçando, mormente a partir da
Constituição de 1988: a crise de paradigmas que atravessa o imaginário dos juristas.
Com efeito, passados dezoito anos, a crise está longe de ser debelada. Como tenho referido em vários textos – principalmente em Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma
exploração hermenêutica da construção do direito –, a crise possui uma dupla face:
de um lado, uma crise de modelo de direito (preparado para o enfrentamento de conflitos interindividuais, o direito não tem condições de enfrentar/atender às demandas
*
Pós-doutorado em Direito Constitucional e Hermenêutica (Lisboa). Doutor e Mestre em Direito do Estado
(UFSC). Professor Titular dos Cursos de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Direito da
UNISINOS/RS. Professor Visitante da Universidade de Coimbra (Portugal). Coordenador do ‘Acordo Internacional Capes-Grices’ entre a UNISINOS e a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Professor Convidado
da UNESA/RJ. Professor Visitante da Universidade de Lisboa. Proefssor Visitante da Universidad de ValladolidES. Membro Conselheiro do Instituto de Hermenêutica Jurídica (IHJ). Procurador de Justiça (RS).
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.
STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
de uma sociedade repleta de conflitos supraindividuais), problemática de há muito
levantada por autores como José Eduardo Faria; de outro, a crise dos paradigmas
aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, o que significa dizer, sem medo de
errar, que ainda estamos reféns do esquema sujeito-objeto.
Fundamentalmente, essa crise de dupla face sustenta o modo exegético-positivista de fazer e interpretar o direito. Explicando melhor: se, de um lado, parte considerável do direito ainda sustenta posturas objetivistas (em que a objetividade do
texto sobrepõe-se ao intérprete, ou seja, a lei “vale tudo”, espécie de consolidação do
“paraíso dos conceitos do formalismo” de que falava Hart); de outro, há um conjunto de posições doutrinário-jurisprudenciais assentadas no subjetivismo, segundo o
qual o intérprete (sujeito) sobrepõe-se ao texto, ou seja, “a lei é só a ponta do iceberg,
isto é, o que vale são os valores ‘escondidos’ debaixo do iceberg” (sic). A tarefa “crítico-revolucionária” do intérprete seria a de “descobrir” esses valores “submersos”...
O aspecto “crítico” estaria no fato de que o barco do positivismo bateria contra os
“valores submersos”!
Isto tem sido assim porque, com sustentação em Kelsen e Hart (para falar apenas destes), passando pelos realistas norte-americanos e escandinavos, construiu-se,
com o passar dos anos, uma resistência ao novo paradigma de direito e de Estado
que exsurgiu com o segundo pós-guerra. O novo constitucionalismo – que exige uma
nova teoria das fontes, uma nova teoria da norma e um novo modo de compreender o direito – ainda não aconteceu, com a necessária suficiência, em terrae brasilis.
Ainda não compreendemos o cerne da crise, isto é, que o novo paradigma do direito
instituído pelo Estado Democrático de Direito é nitidamente incompatível com a velha
teoria das fontes, com a plenipotenciariedade dos discursos de fundamentação, sustentada no predomínio da regra e no desprezo pelos discursos de aplicação, e, finalmente,
com o modo de interpretação fundado (ainda) nos paradigmas aristotélico-tomista e
da filosofia da consciência. Assim, a teoria positivista das fontes vem a ser superada
pela Constituição; a velha teoria da norma cederá lugar à superação da regra pelo
princípio; e o velho modus interpretativo subsuntivo-dedutivo – fundado na relação
epistemológica sujeito-objeto – vem a dar lugar ao giro lingüístico-ontológico, fundado na intersubjetividade.
Trata-se, pois, de três barreiras à plena implementação do novo paradigma
representado pelo Estado Democrático de Direito. Essas barreiras fincam raízes na
Talvez o exemplo mais contundente acerca desse problema ocasionado pela (ainda) não superada teoria das
fontes é a interpretação que o Supremo Tribunal Federal deu ao texto que estabelece a garantia fundamental
ao mandado de injunção. Para a Suprema Corte brasileira, o dispositivo constitucional não é auto-aplicável,
carecendo, pois, de interpositio legislatoris.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.
STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
concepção positivista de direito, que identifica texto e norma, vigência e validade,
ignorando a parametricidade formal e material da Constituição, fonte de um novo
constituir da sociedade. Se o positivismo está fundado em um mundo de regras que,
metafisicamente, pretendem abarcar a realidade – circunstância que afasta toda
perspectiva principiológica –, torna-se necessário compreender a origem da diferença entre regra e princípio, porque nela – na diferença – está novamente a questão que
é (ou deve ser) recorrente em qualquer teoria que se pretenda crítica e que objetive
transformar o direito em um saber prático: pela regra fazemos uma justificação de
subsunção (portanto, um problema hermenêutico-filosófico), que no fundo é uma
relação de dependência, de subjugação, e, portanto, uma relação de objetivação (portanto, um problema exsurgente da predominância do esquema sujeito-objeto); já por
intermédio do princípio não operamos mais a partir de dados ou quantidades objetiváveis, isto porque, ao trabalhar com os princípios, o que está em jogo não é mais a
comparação no mesmo nível de elementos, em que um elemento é causa e o outro é
efeito, mas, sim, o que está em jogo é o acontecer daquilo que resulta do princípio, que
pressupõe uma espécie de ponto de partida, que é um processo compreensivo.
Nesse sentido, em face da complexidade/dificuldade para definir as diversas posturas positivistas, não parece
desarrazoado a opção por uma classificação – que poderia ser denominada “a contrario sensu”, a partir das
características das posturas consideradas e autodenominadas pós-positivistas, entendidas como as teorias
contemporâneas que privilegiam o enfoque dos problemas da indeterminabilidade do direito e as relações entre o direito, a moral e a política (teorias da argumentação, a hermenêutica, as teorias discursivas, etc). Ou seja,
é mais fácil compreender o positivismo a partir das posturas que o superam. Autores como Albert Casalmiglia
(Postpositivismo. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 22, Alicante, 1998, p. 209-220) consideram que
a preocupação das teorias pós-positivistas é com a indeterminação do direito nos casos difíceis, ou seja, para
os pós-positivistas, o centro de atuação deslocou-se em direção da solução dos casos indeterminados (mais
ainda, os casos difíceis não mais são vistos como excepcionais). Afinal, os casos simples eram resolvidos pelo
positivismo com recurso às decisões passadas e às regras vigentes. Já nos casos difíceis estava-se em face de
uma “terra inóspita”. “No deja de ser curioso que cuando más necesitamos orientación, la teoria positivista
enmudece”. Daí a debilidade do positivismo (lato sensu), que sempre dependeu de uma teoria de adjudicação,
que indicasse como devem se comportar os juízes (e os intérpretes em geral). Veja-se a pouca importância
dada pelo positivismo à teoria da interpretação, sempre deixando aos juízes a “escolha” dos critérios a serem utilizados nos casos complexos. Para o pós-positivismo, uma teoria da interpretação não prescinde de
valoração moral, o que está vedado pela separação entre direito e moral que sustenta o positivismo. O póspositivismo aceita que as fontes do direito não oferecem resposta a muitos problemas e que se necessita de
conhecimento para resolver estes casos. Alguns são céticos sobre a possibilidade do conhecimento prático,
porém, em linhas gerais, é possível afirmar que existe um esforço pela busca de instrumentos adequados para
resolver estes problemas (Dworkin e Soper são bons exemplos disso). Em acréscimo às questões levantadas
por Calsamiglia, vale referir o acirramento da crise das posturas positivistas diante do paradigma neoconstitucionalista, em face da sensível alteração no plano da teoria das fontes, da norma e das condições para a
compreensão do fenômeno no interior do Estado Democrático de Direito, em que o direito e a jurisdição
constitucional assumem um papel que vai muito além dos “planos” do positivismo jurídico e do modelo de
direito com ele condizente.
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STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
Este é o estado da arte do modus interpretativo que ainda domina o imaginário jurídico prevalente em parcela considerável da doutrina e da jurisprudência
praticada no Brasil. Trata-se, fundamentalmente, de um problema paradigmático,
bem representado por aquilo que venho denominando “baixa constitucionalidade” e
“crise de dupla face”, ambos fenômenos caudatários de uma espécie de acoplamento
do Trilema de Münchausen ao mundo jurídico brasileiro. Talvez por isto não cause
estranheza à comunidade jurídica a recentíssima decisão de um juiz federal que, em
resposta aos embargos de declaração em que o advogado questionava o fato de a
sentença não ter se manifestado sobre a “obrigação de controle difuso da constitucionalidade” levantada como questão prejudicial, rejeitou o provimento, sob o argumento de que “ao cumprir seu dever constitucional de fundamentar as decisões, o
juiz não é obrigado a analisar ponto por ponto todas as alegações deduzidas” (grifei).
O problema é que o ponto principal questionado pelo advogado era, exatamente, a
inconstitucionalidade de um ato normativo!
Do mesmo modo, veja-se a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal,
deixando assentado que “ a inconstitucionalidade de uma lei, ou ato normativo, sabidamente, não se presume, nem seria possível declará-la no âmbito restrito do habeas
corpus” (grifei).
Em linha similar:
Ação rescisória. Fundamento em incompetência da Turma julgadora e violação literal de lei. Procedência pelo segundo fundamento. (...)
O controle difuso da constitucionalidade das leis ocorre quando qualquer
órgão judicial (monocrático ou colegiado), para decidir a causa, tenha de
examinar, previamente, a questão de ser ou não constitucional a norma legal
que tenha incidência na demanda. Por esse exame, que independe de argüição
do incidente de inconstitucionalidade, não declara o órgão judicial a incons
Ver, para tanto, ALBERT, Hans. Tratado da Razão Crítica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976.
É difícil mensurar a dimensão da crise. Bem recentemente, o país assistiu perplexo à tentativa de se convocar
uma Assembléia Constituinte, que colocaria o direito constitucional brasileiro abaixo do que provavelmente
se estuda na Suazilândia. E no parlamento chegou a ser lavrado parecer na requentada PEC 157, na qual se
decretava que “o poder constituinte é uma ficção” (sic). Transcendendo às fronteiras do direito stricto sensu, o
país assistiu em rede nacional ao humorista e apresentador de TV, Jô Soares, ironizar a Constituição do Brasil,
comparando-a em tamanho com a dos Estados Unidos. Para piorar o quadro, uma jornalista presente – eram
quatro na mesa para comentar as várias CPIs instaladas em 2005 – explicou a discrepância nas dimensões das
respectivas Cartas: a dos Estados Unidos era sintética, porque fora fruto do sistema germânico (sic); a do Brasil era “grande”, porque inspirada no sistema romano... (sic)! E os estudantes de direito presentes aplaudiram
a “explicação”.
HC nº 752396 e HC nº 753097, Rel. Des. Lécio Resende, 1ª Turma Criminal, TJDF, j. em 20/03/97, DJU 14/05/97
p. 9.378).
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STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
titucionalidade da lei. Simplesmente deixa de aplicá-la em face do caso concreto, por considerá-la inconstitucional. Há diferença entre declarar-se que a
lei é inconstitucional (controle direto, com efeito erga omnes) e deixar-se de
aplicar a lei por se a considerar inconstitucional” (controle difuso, com efeito
apenas no caso julgado) (grifei).
No exato contexto da presente crítica à crise paradigmática do direito, confira-se as decisões a seguir delineadas, nas quais o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul faz uma auto-restrição acerca do seu poder/dever de controlar a constitucionalidade das leis:
Embora, no Regimento Interno deste Tribunal seja possível a um Órgão Fracionário levar ao Órgão Especial uma possível argüição de inconstitucionalidade de lei municipal ou mesmo estadual, frente à Constituição Estadual, o
Órgão Especial não tem competência para decidir matéria de lei estadual que
fira a Constituição Federal. Então, a matéria não está na competência deste
Tribunal nem deste Órgão Fracionário.
Destarte, no controle difuso, quando o Tribunal Pleno ou Órgão Especial não
tem competência para declarar a inconstitucionalidade de tal modo que provoque a suspensão da execução pela Assembléia Legislativa, a competência
é do Órgão Fracionário, que examinará a matéria em relação ao STF, assim
como o juízo de Primeiro Grau em relação ao Segundo. O juiz não declara
inconstitucional a lei ou ato porque a competência pertence ao STF ou ao
pleno ou Órgão Especial do TJ, mas deixa de aplicá-los por considerá-los inconstitucionais. Assim também faz o Órgão Fracionário em tais casos. Se a
competência declarar é do Pleno ou Órgão Especial do Tribunal de Justiça,
faz o envio; e se a competência é do STF, deixa de aplicá-los por considerá-los
ARC nº 50896, Rel. Des. Valter Xavier, 1ª Câmara Cível, TJDF, j. em 02/09/98, DJU 14/10/98, p. 30. Como se pode
verificar, o acórdão em tela confunde os conceitos de controle difuso e controle concentrado. Em primeiro lugar, cabe referir que o art. 97 da Constituição, que estabelece a reserva de plenário (full bench), não é aplicável
tão-somente ao controle concentrado/direto/abstrato de constitucionalidade. Ao contrário, exatamente em
face da reserva de plenário é que o art. 97 aplica-se ao controle difuso. É por ele que ocorre a cisão de competência, fazendo com que, per saltum, a questão constitucional (portanto, questão prejudicial) seja catapultada
do órgão fracionário para o plenário do tribunal (ou órgão especial). Em segundo lugar, ao contrário do que
assentou o Tribunal, não há diferença entre “declarar-se que a lei é inconstitucional” (que, equivocadamente, o
Tribunal considera característica exclusiva do controle direto), e “deixar-se de aplicar a lei por se a considerar
inconstitucional”. Na verdade, se o órgão fracionário entender que a lei é inconstitucional, não pode ele deixar
de aplicá-la sem suscitar o respectivo incidente (a exceção consta no parágrafo único do art. 481 do CPC). Ao
deixar de aplicar a lei por entendê-la inconstitucional, estará o órgão fracionário subtraindo do plenário do tribunal a prerrogativa (que é só dele, neste caso) de declarar a inconstitucionalidade da lei, no âmbito do controle
difuso, ocorrendo, destarte, flagrante violação do art. 97 da Constituição.
Apelação Cível nº 70000205609, Rel. Des. Wellington Pacheco Barros, 4ª Câmara Cível, TJRS, j. em 23/08/00).
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inconstitucionais. Neste caso – repito – não deve nem pode fazer o envio,
pois estará delegando jurisdição, e qualquer manifestação do Pleno ou do
Órgão Especial, sob o ponto de vista constitucional, é inócua. Por isso mesmo
o voto refere a questão dos efeitos externos e a competência exclusiva do STF.
Desacolho.
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo, em sede de Agravo de Instrumento (nº
313.238-5/1-00), deu por inconstitucional a Lei Federal n.º 10.628/02 – que tratava
do foro especial para prefeitos –, sem qualquer menção à necessidade do cumprimento do disposto no art. 97 da Constituição. Ou seja, aquilo que constitui o núcleo
central do controle difuso é deixado de lado, fenômeno que pode ser conferido pelo
ínfimo número de incidentes de inconstitucionalidade suscitados nos tribunais da
federação.
Como é possível perceber, os problemas decorrentes de uma “baixa constitucionalidade” podem ser constatados nos mais diversos âmbitos do direito e sob os
mais diversos matizes. O déficit de constitucionalização da operacionalidade do direito tem suas feridas expostas na (metafísica) equiparação entre vigência e validade
(o que equivale hermeneuticamente a equiparar texto e norma, vigência e validade).
Com isto, a Constituição fica relegada a um segundo plano, porque sua parametricidade perde importância na aferição da validade de um texto.
Nesse sentido, calha registrar o não distante episódio da entrada em vigor do
Código Civil em 2003, ocasião em que foi possível – e ainda é – detectar o grau de
arraigamento às concepções metafísico-dualísticas. Com efeito, na medida em que o
Código demorou quase três décadas para ser aprovado, era inevitável que o produto
final contivesse uma sucessão de equívocos, que vão de simples incompatibilidades
no plano das antinomias até flagrantes inconstitucionalidades. Já nos primeiros meses centenas de emendas foram encaminhas ao Congresso Nacional, esperando que
este viesse a corrigir as anomalias. O que causa maior estranheza é que um expressivo
número dessas emendas eram (e continuam sendo) desnecessárias, uma vez que os
alegados vícios são perfeitamente sanáveis a partir de um adequado manejo da interpretação constitucional, mediante a aplicação da jurisdição constitucional. É evidente
que sempre é melhor que uma lei seja corrigida pelo próprio legislador. Entretanto,
a cidadania não pode ficar à mercê dessa longa espera pelo legislador, correndo-se o
risco do solapamento da própria Constituição. O inusitado advém do fato de que, em
alguns casos, os juízes continua(ra)m aplicando determinados dispositivos, mesmo
Embargos de Declaração nº 70004895660 ao Agravo de Instrumento nº 70003602158, Rel. Des. Irineu Mariani,
1ª Câmara Cível, TJRS, j. em 04/09/02.
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sabendo da tramitação de emendas propondo a derrogação dos mesmos, por violação da Constituição (v.g., art. 1621, §2o; art. 1641, inc. II; art. 1614; art. 1694, §2º; para
citar tão-somente algumas incidências). Em outros casos, bastaria a aplicação da interpretação conforme e as emendas tornar-se-iam dispensáveis (v.g., art. 1602; art.
1.638, inc. III; art. 1566, incs. I e II; art. 1727-A; para ficar apenas em alguns dos casos
objetos de emendas). Ou seja, uma adequada filtragem hermenêutico-constitucional
do novo Código Civil eliminaria, de imediato, a maior parcela de suas anomalias. Mas,
como se pode perceber, a velha teoria das fontes não permite a distinção entre vigência e validade, entre texto e norma.
A ausência de uma nova teoria das fontes fez – e continua fazendo – vítimas
nos diversos campos do direito. Para se ter uma idéia, o princípio constitucional da
ampla defesa (art. 5º, inc. LV, da Constituição do Brasil) ficou quinze anos sem ser
aplicado nos interrogatórios judiciais, sem que a doutrina e a jurisprudência – com
raríssimas exceções – reivindicassem a aplicação direta da Constituição. Com efeito,
até o advento da Lei n.º 10.792, de 1o de dezembro de 2003, os acusados de terrae
brasilis vinham sendo interrogados sem a presença de defensor. Os raríssimos acórdãos (v.g., da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul) que
anulavam interrogatórios realizados sem a presença de advogado, sistematicamente
eram atacados via recursos especial e extraordinário. E, registre-se, o Superior Tribunal de Justiça anulava os acórdãos que aplicavam a Constituição sem interpositio
legislatoris, reforçando, assim, a problemática relacionada a um dos três obstáculos
que o postivismo opõe ao neoconstitucionalismo: a teoria das fontes. De qualquer
sorte, não há notícias de que os manuais de direito processual penal, neste espaço
de vigência da Constituição, tenham apontado na direção de que seria nulo qualquer
interrogatório sem a presença do defensor. Note-se que, nesse período de três lustros,
foram escritos centenas de obras (comentários) ao Código de Processo Penal. Mas – e
aqui vai a confissão da crise paradigmática – bastou que a nova Lei viesse ao encontro da (tênue) jurisprudência forjada inicialmente na 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, para que a polêmica se dissolvesse instantaneamente. Sendo mais claro: os juristas preferiam não obedecer a Constituição, da qual
era possível extrair, com relativa facilidade, o império do princípio do devido processo
legal e da ampla defesa; entretanto, com o advento da Lei n.º 10.792/03, estabelecendo
exatamente o que dizia a Constituição, cessaram-se os problemas. Obedece-se à lei,
mas não se obedece à lei das leis...!10 É como se a vigência de um texto contivesse, em
si mesma, a sua validade.
10
Registre-se a dimensão da crise que obstaculiza o acontecer da Constituição: mesmo com o advento da lei, um
dos manuais mais vendidos no Brasil resiste em aceitar essa constitucionalização do direito de defesa, verbis:
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Ainda no mesmo diapasão, a dimensão da crise faz com que não cause maiores
perplexidades (na comunidade jurídica) o modo-de-agir dos juristas que, sob uma outra perspectiva, negam a validade da Constituição naquilo que deve ser entendida como
instituidora de um novo modus interpretativo, apto a superar o modelo subsuntivo próprio do (ainda) prevalecente positivismo jurídico, valendo referir, v.g.:
a) uma denúncia criminal por porte ilegal de arma feita contra um cidadão
que tentou suicídio em sua própria casa, desgostoso que estava com o iminente abandono de sua esposa amada (e o juiz o condenou à pena de um
ano e dois meses de prisão)11;
b) o caso do juiz que, no ano da graça de 2005, condenou um indivíduo – não
esqueçamos que, para tanto, o Promotor de Justiça ofereceu a respectiva
denúncia – à pena de um ano e dois meses de reclusão, mais multa, a ser
cumprida em regime fechado (sic), por ter subtraído três panelas usadas,
de ínfimo valor12;
c) também no ano de 2005, um indivíduo condenado à pena de um ano e sete
meses de reclusão, a ser cumprida em regime semi-aberto, por ter “cometido crime de estelionato”, consistente no ato de “enganar” o proprietário
de um estabelecimento comercial na compra de dois copos (pequenos) de
aguardente13;
d) o caso ocorrido em São Paulo, em que, enquanto uma mulher respondia
presa a processo criminal por furtar sabonetes (ou algo desse tipo), Maluf
e seu filho foram liberados, não havendo, ao que se saiba, nenhum clamor
“jurídico-popular”, nem no primeiro e nem no segundo casos;
e) um cidadão teve sua prisão preventiva requerida por passar um cheque de
R$ 60,00 (sessenta reais); a prisão foi indeferida, mas ele foi condenado à
pena de dois anos de reclusão;
f) outro restou condenado à pena de dois anos de reclusão por ter furtado um
par de tênis usado e pequenos objetos, tudo avaliado em menos de R$ 50,00
(cinqüenta reais). O acusado negou a autoria; seu advogado, entretanto, “confessou” o delito em nome do réu;
11
12
13
“A realização do interrogatório, sem a presença do seu defensor ou, pelo menos, de defensor ad hoc, configura,
em nosso entendimento, nulidade relativa, afinal, pode não ter acarretado prejuízo algum ao réu” (NUCCI,
Guilherme. Código de Processo Penal Comentado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 385).
Apelação-crime nº 70001945070, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em
07/02/01).
Apelação-crime nº 70013630520, Rel. Des. Aramis Nassif, 5ª Câmara Criminal, TJRS.
Apelação-crime nº 70013705769, Rel. Des. Aramis Nassif, 5ª Câmara Criminal, TJRS.
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g) de Santa Catarina vem a notícia de que um casal ficou preso preventivamente por 46 (quarenta e seis) dias, por tentar furtar um par de chinelos.
Não há, pois, ser-no-mundo; não há princípios; não há ethos; não há paridade
axiológica e, portanto, não há isonomia. Há, sim, apenas regras. E abstrações. E subsunções. Talvez porque fossem “casos fáceis” (easy cases), em que a regra “resolveu”
o problema, como na hipótese em que um campesino foi condenado, em pleno ano de
2005, à pena de dois anos de reclusão, mais multa, por ter disparado um tiro de espingarda para o alto, a fim de espantar animais que invadiram sua propriedade rural.
Afinal, a regra (art. 15 da Lei n.º 10.826/03) estabelece “exatamente” que o disparo
de arma de fogo é crime. Num “mundo jurídico” sem princípios, sem mundo prático,
o caso foi interpretado como um easy case, quando, na verdade, trata-se de um hard
case (embora a inadequação da distinção entre easy e hard cases)14.
Os exemplos simbolizam a crise de dupla face, que esconde facilmente, por
exemplo, a “realidade” representada pelas idiossincrasias constantes na legislação
penal brasileira, na qual “adulterar chassi de automóvel” tem pena maior que “sonegação de tributos”, e “furto de botijão de gás” realizado por duas pessoas tem pena
(bem) maior do que “fazer caixa dois”. Mais, se alguém sonega tributos, tem a seu
favor um longo e generoso REFIS15; já na hipótese do ladrão de botijões, mesmo que
14
15
Distinguir casos fáceis e casos difíceis significa cindir o que não pode ser cindido: o compreender, com o qual
sempre operamos e que é condição de possibilidade para a interpretação (portanto, da atribuição de sentido
do que seja um caso simples ou um caso complexo). Afinal, como saber se estamos em face de um caso fácil ou
de um caso difícil? Para que se entenda tal problemática – e o socorro vem da percuciente análise de Stein –,
é preciso ter presente que em todo processo compreensivo o desafio é levar os fenômenos à representação ou
à sua expressão na linguagem, chegando, assim, ao que chamamos de objetivação. Isso naturalmente tem um
caráter ôntico, uma vez que é a diversidade dos fenômenos e dos entes que procuramos expressar, referindonos a esse ou àquele fenômeno ou ente. Quando chegamos ao final de tais processos de objetivação, realizamos
provavelmente aquilo que é o modo máximo de agir do ser humano. Entretanto, esse resultado da objetivação
pressupõe um modo de compreender a si mesmo e seu ser-no-mundo que não é explicitado na objetivação, mas
que podemos descrever como uma experiência fundamental que se dá no nível da existência e que propriamente
sustenta a compreensão como um todo.
Recentemente foi promulgada a Lei n.º 10.684/03, que, seguindo a tradição inaugurada pela Lei n.º 9.249/95
(que, no seu art. 34, estabelecia a extinção de punibilidade dos crimes fiscais pelo ressarcimento do montante
sonegado antes do recebimento da denúncia), estabeleceu a suspensão da pretensão punitiva do Estado referentemente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei n.º 8.137/90 e nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal,
durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no
regime de parcelamento (art. 9º). Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extinção da punibilidade dos crimes
antes referidos quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos
oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. De pronto, cabe referir que inexiste semelhante favor legal aos agentes acusados da prática dos delitos dos arts. 155, 168, caput, e 171, do Código Penal,
igualmente crimes de feição patrimonial não diretamente violentos. Fica claro, assim, que, para o establish-
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ele devolva o material subtraído, não terá a seu favor os benefícios concedidos aos sonegadores. Do mesmo modo, a crise paradigmática conseguiu esconder muito bem
(não esqueçamos que o discurso ideológico tem eficácia na medida em que não é
percebido) o fato de que, com o advento da Lei n.º 10.259/01, os crimes de abuso
de autoridade, maus tratos em crianças, sonegação de tributos, fraude em licitações,
dentre muitos outros, foram transformados em soft crimes, isto é, em crimes de “menor potencial ofensivo” (sic), tudo sob o silêncio eloqüente da comunidade jurídica.
Construiu-se, pois, um imaginário jurídico assentado em uma cultura prêt-àporter, estandardizada, em que o ensino jurídico é reproduzido a partir de manuais,
a maioria de duvidosa qualidade. Com efeito, simbolicamente, os manuais16 que povoam o imaginário dos juristas representam com perfeição o estado d’arte da crise.
Os próprios exemplos utilizados em sala de aula, através dos próprios manuais, estão
desconectados daquilo que ocorre em uma sociedade complexa como a nossa. Além
disso, essa cultura estandardizada – e aqui está o problema da prevalência dos paradigmas metafísicos clássico e moderno – procura explicar o direito a partir de verbetes jurisprudenciais ahistóricos e atemporais, ocorrendo, assim, uma ficcionalização
do mundo jurídico-social.
Alguns exemplos beiram ao folclórico, como no caso da explicação do “estado
de necessidade” constante no art. 24 do Código Penal, não sendo incomum encontrar professores (ainda hoje) utilizando o exemplo do naufrágio em alto-mar, em que
duas pessoas (Caio e Tício, personagens comuns na cultura dos manuais) “sobem
16
ment, é mais grave furtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuições sociais. Daí a pergunta:
tinha o legislador discricionariedade (liberdade de conformação) para, de forma indireta, descriminalizar os
crimes fiscais (lato sensu, na medida em que estão incluídos todos os crimes de sonegação de contribuições
sociais da previdência social)? Poderia o legislador retirar da órbita da proteção penal as condutas dessa espécie? Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. No caso presente, não há qualquer justificativa de
cunho empírico que aponte para a desnecessidade da utilização do direito penal para a proteção dos bens jurídicos que estão abarcados pelo recolhimento de tributos, mormente quando examinamos o grau de sonegação
no Brasil. No fundo, a previsão do art. 9º da Lei n.º 10.684/03 nada mais faz do que estabelecer a possibilidade
de converter a conduta criminosa – prenhe de danosidade social – em pecúnia, favor que é negado a outras
condutas. Também aqui – com raríssimas exceções – não tem havido qualquer resistência constitucional no
plano da operacionalidade do Direito. A respeito do tema, ver STRECK, Lenio Luiz. Da proibição de excesso
(Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra
normas penais inconstitucionais. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, (Neo)constitucionalismo, n. 2,
Porto Alegre, 2004, p. 243-284.
Os exemplos citados são todos verídicos. As obras, seus autores e demais protagonistas desta crônica não
serão explicitados, porque o objetivo não é elaborar uma crítica pessoal, mas, sim, uma crítica científica ao
imaginário (senso comum teórico) dos juristas. Nesse contexto, cada jurista assume um lugar no interior desse imaginário, fazendo parte de um complexo de significações, como o indivíduo que está “em uma ideologia”:
se está, não pode dizê-lo; se pode dizer, é porque já não está. Talvez por isto a ideologia tenha eficácia na exata
medida em que não a percebemos (M. Chauí).
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STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
em uma tábua” e, na disputa por ela, um deles é morto (em estado de necessidade...!). A pergunta fica mais “sofisticada” quando o professor resolve discutir o “foro
de julgamento” de Caio (entra, então, a relevantíssimo debate acerca da origem da
referida tábua, como se pudesse haver outra flutuando em alto-mar, além daquela
que, com certeza, despregou-se do navio naufragado...!) No exemplo, devem existir
muitas tábuas – talvez milhares – em alto-mar, para que um dos personagens, nascidos para servirem de exemplo no direito penal, agarre-se a ela. Interessante também
o exemplo utilizado para explicar as concausas constantes nos artigos 13, do Código
Penal. Num deles, há um sujeito pendurado à beira do abismo e vem outro que lhe
pisa às mãos...
Não faz muito tempo, em um importante concurso público, foi colocada a seguinte pergunta: Caio quer matar Tício (sempre eles), com veneno; ao mesmo tempo,
Mévio também deseja matar Tício (igualmente com veneno, é claro!). Um não sabe
da intenção assassina do outro. Ambos ministram apenas a metade da dose letal (na
pergunta não há qualquer esclarecimento acerca de que como o idiota do Tício bebe as
duas porções de veneno). Em conseqüência da ingestão das meia-doses, Tício vem a
perecer... Daí a relevantíssima indagação da questão do concurso: qual o crime de
Caio e Mévio?
Outro exemplo que há tempos venho denunciando é o de uma pergunta feita
em concurso público de âmbito nacional, pela qual o examinador queria saber a solução a ser dada no caso de um gêmeo xifópago ferir o outro...! Com certeza, gêmeos xifópagos, encontrados em qualquer esquina, andam armados e são perigosos (a
propósito, o que os gêmeos xifópagos acharam do referendum sobre o desarmamento?
Votaram sim ou não?) Pois não é que a pergunta voltou a ser feita, desta vez em concurso público de importante carreira no Estado do Rio Grande do Sul? A questão de
direito penal que levou o número 46 dizia:
André e Carlos, gêmeos xipófagos (sic), nasceram em 20.01.79. Amadeu é
inimigo capital de André. Pretendendo pôr (sic) fim à (sic) vida de André,
desfere-lhe um tido mortal, que também acerta Carlos, que graças a uma intervenção cirúrgica eficaz, sobrevive.
E seguiam várias alternativas.
Sem entrar no mérito da questão – e até para não parecer politicamente incorreto e não ser processado pelo gêmeo xifópago que, milagrosamente, sobreviveu –,
impõem-se, no mínimo, duas observações: primeira, é importante saber que os gêmeos xifópagos (e não xipófagos, como constou da pergunta) nasceram no mesmo
dia (tal esclarecimento era de vital importância!); e, segunda, não está esclarecido o
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porquê de Amadeu odiar apenas a André, e não a Carlos (afinal, tudo está a indicar
que eles sempre andavam juntos).
Ora, diariamente tenho lutado para superar a crise do ensino jurídico e da
operacionalidade do direito. Para se ter uma idéia da dimensão do problema, há um
importante manual de direito penal que ensina o conceito de erro de tipo do seguinte
modo: um artista fantasia-se de cervo e vai para o meio do mato; um caçador, vendo
apenas a galhada, atira e acerta o indivíduo “disfarçado”. Fantástico. Quem não sabia
o que era erro de tipo agora sabe. Só uma coisa me deixou intrigado: por que razão
alguém se fantasiaria de cervo (veado) e iria para o meio da floresta? O mesmo livro
explica o significado de nexo causal, a partir do seguinte exemplo sobre causas preexistentes: “o genro atira em sua sogra, mas ela não morre em conseqüência dos tiros,
e sim de um envenenamento anterior provocado pela nora, por ocasião do café matinal”. Mas, tem mais tragédia familiar: o que seria causa “superveniente” no direito
penal? O mesmo manual dá a solução, com o seguinte exemplo: “após o genro ter
envenenado sua sogra, antes de o veneno produzir efeitos, um maníaco invade a casa
e mata a indesejável (sic) senhora a facadas”. Significa dizer que o genro foi “salvo”
pelo maníaco?
E o que seria erro de pessoa no direito penal? Veja-se a resposta perfeita:
é quando o agente deseja matar o pequenino filho de sua amante, para poder
desfrutá-la com exclusividade (sic). No dia dos fatos, à saída da escolinha, do
alto de um edifício, o perverso autor efetua um disparo certeiro na cabeça da
vítima, supondo tê-la matado. No entanto, ao aproximar-se do local, constata
que, na verdade, assassinou um anãozinho que trabalhava no estabelecimento como bedel, confundindo-o, portanto, com a criança que desejava eliminar
(grifei).
Imaginemos a cena e façamos uma reflexão sobre a (falta de) função social do
direito: alguém quer matar o filho da amante para “desfrutar” da mãe do infante...!
Pesquisando um pouco mais, descobri em outro manual que o indivíduo que escreve
uma carta não pode ser agente ativo do crime de violação de correspondência; também constatei que, para configurar o crime de rixa, é necessário o animus rixandi; e
verifiquei que agressão atual é a que está acontecendo, enquanto agressão iminente
é a que está por acontecer. Também desvelei outro mistério: o crime de quadrilha
necessita, no mínimo, da participação de quatro pessoas. Um antigo manual explica
a diferença entre dolo eventual e culpa consciente do seguinte modo: um jardineiro
quer cortar as ervas daninhas e acaba cortando o caule da flor...! Finalmente, outro
mistério foi solucionado pela dogmática penal. Havia sérias dúvidas acerca do que
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seria o “princípio da consunção”17. Mas a resposta já está nas bancas, nas melhores
casas do ramo, através do seguinte exemplo: é quando “o peixão (fato mais abrangente) engole os peixinhos (fatos que integram aquele como sua parte)”.
Enquanto setores importantes da dogmática jurídica tradicional se ocupam
com exemplos fantasiosos e idealistas/idealizados, o déficit de realidade aumenta
dia a dia. As idiossincrasias não se restringem ao campo penal ou processual penal.
Depois de tantas mini-reformas do Código de Processo Civil, todas elas buscando
– de forma equivocada – uma “efetividade quantitativa”, que vão desde a alteração do
artigo 557 até a emenda constitucional institucionalizando as súmulas vinculantes,
a comunidade jurídica depara-se com um novo projeto de lei que, a despeito de ser
inconstitucional, coloca por terra a teoria processual até hoje estudada. Com efeito,
tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n.º 4.728/0418 , que acrescenta o
art. 285-A ao Código de Processo Civil. Acaso aprovado o projeto, quando, nos processos cíveis, a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver
sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser
dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente
prolatada (sic). Segundo dispõe o §1º, é facultado ao autor apelar, no prazo de cinco
dias, hipótese em que o juiz pode decidir por não manter a sentença, determinando
o prosseguimento da ação. De acordo com o §2º, se a sentença inicial for mantida,
será ordenada a citação do réu para responder ao recurso. Não fosse pela violação
flagrante de vários princípios constitucionais, como o acesso à justiça, o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa (e o duplo grau de jurisdição), âncoras do
exercício da cidadania e da jurisdição no Estado Democrático de Direito, o projeto
incorre no vício – herdado da revolução francesa – que separa a questão de fato da
questão de direito. Além disso, o novo dispositivo institucionaliza a “jurisprudência
de um juízo só”. Como interpretar o enunciado “e no juízo já houver sido proferida
sentença”? E o que são “casos idênticos”? Se são “casos”, não podem ser somente “de
direito”, pois não? E o que é proferir sentença “reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada”? E o que dizer da nova figura jurídica criada: o juiz profere sentença
“reproduzindo” a anterior, rechaçando o pedido; o autor reclama e o mesmo juiz pode
17
18
Nessa linha, basta um rápido olhar em um dos manuais de maior venda em terrae brasilis, para que se descubra, na parte atinente aos comentários ao art. 155 do Código Penal (furto), que escalada é a subida de alguém
a algum lugar, valendo-se de escada; destreza é a agilidade ímpar dos movimentos de alguém; veículo automotor é o que circula por seus próprios meios; obstáculo é o embaraço que impede o acesso à coisa; alheia
é toda coisa que pertence a outrem; móvel é a coisa que se desloca; e chave falsa é instrumento para abrir
fechaduras...! Sobre a caracterização de furto de bagatela, lê-se o seguinte exemplo: o sujeito que leva, sem
autorização do banco onde vai sacar dinheiro, o clipe que está sobre o guichê!
Projeto de autoria do Poder Executivo, que recebeu o substitutivo do Relator Dep. João Almeida (PSDB-BA).
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revogar a sua própria decisão...! Ou seja, o novel dispositivo permitirá que o juiz – de
primeiro grau – decida de forma terminativa duas vezes...! Tais questões não chocam
por sua explicitude; na verdade, chocam pelo silêncio eloqüente que produzem, enfim, chocam pelo não-dito. Isto ocorre porque projetos desse jaez encontram terreno
fértil no imaginário dos juristas. E, por isto, devem ser analisados no contexto do
estado d’arte da crise de paradigmas que atravessa o direito.
Finalmente, talvez por tudo isto não cause maiores perplexidades na comunidade jurídica a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (AgReg em EREsp n°
279.889-AL), na qual o Ministro Humberto Gomes de Barros assim se pronunciou:
Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do
Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O
pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como
orientação. A eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha
consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual, para que
este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o entendimento de que
os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros
decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do
Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental
expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes
de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos
a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é,
mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que
assim seja (grifei).
Para aqueles que pensam que o direito é aquilo que os tribunais dizem que
é, o voto de Sua Excelência é um prato cheio. Só que não é bem assim, ou, melhor
dizendo, não pode ser assim (ou, melhor ainda, felizmente não pode ser assim!). Com
efeito, o direito é algo bem mais complexo do que o produto da consciência-de-sido-pensamento-pensante, que caracteriza a (ultrapassada) filosofia da consciência19,
19
Apontando para o novo, enfim, para as possibilidades críticas do direito, vale trazer à colação interessante
applicatio hermenêutica feita em acórdão que supera o problema do paradigma epistemológico da filosofia da
consciência. Cito parte da decisão: “Assim, além da mera explicação dos motivos pelos quais se chegou à esta
ou àquela conclusão, a motivação da sentença impõe – em uma relação intersubjetiva – o enfrentamento a
todas as teses apresentadas pela acusação e defesa, onde o juiz abandone a postura de sujeito cognoscente
isolado na interpretação das relações sociais. Como salienta Lenio Streck, é necessário afastar o esquema sujeito-objeto, onde um sujeito observador está situado em frente a um mundo, mundo este por ele ‘objetivável
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como se o sujeito assujeitasse o objeto. Na verdade, o ato interpretativo não é produto
nem da objetividade plenipotenciária do texto e tampouco de uma atitude solipsista
do intérprete: o paradigma do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade.
Repetindo: o direito não é aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto,
o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na individualidade de seus
componentes, dizem que é (lembremos, aqui, a assertiva de Herbert Hart20 acerca
das regras do jogo de críquete, para usar, aqui, um autor positivista contra o próprio
decisionismo positivista que claramente exsurge do acórdão em questão). A doutrina
deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com
as quase mil faculdades de direito, os milhares de professores e os milhares de livros
produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? Se os juízes podem “dizer o que querem” sobre o sentido das
leis, ou se os juízes podem decidir de forma discricionária os hard cases, para que
necessitamos de leis? Para que a intermediação da lei? É preciso ter presente, pois,
que a afirmação do caráter hermenêutico do direito e a centralidade que assume a
jurisdição nesta quadra da história, na medida em que o legislativo (a lei) não pode
antever todas as hipóteses de aplicação, não significam uma queda na irracionalidade
e, tampouco, uma delegação em favor de decisionismos.
Retorna-se, sempre, ao contraponto “regra-princípio”, “lei-Constituição”,
“subsunção-atribuição de sentido”, teoremas nos quais estão assentados os problemas decorrentes dessa “afirmação decorrente do caráter hermenêutico do direito” e
daquilo que está ínsito a essa “guinada-do-papel-do-direito-no-neoconstitucionalismo”: o controle dos atos de jurisdição, enfim, os atos dos juízes.
Os juristas brasileiros não se deram conta de que a superação do modelo de
regras implica uma profunda alteração no direito, porque, através dos princípios,
passa a canalizar para o âmbito das Constituições o elemento do mundo prático. E,
igualmente, não perceberam que o ponto de ligação com a filosofia (o processo de
compreensão ainda sustentado no esquema sujeito-objeto, que mutilava a interpretação do direito) se dá exatamente no fato de que o direito, entendido como conjunto
de regras, procurava, a partir de uma metodologia fulcrada no método, abarcar a realidade onticamente, possibilitando ao intérprete, de forma, causalista-objetivista, dar
20
e descritível’, a partir de seu cogito (Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, Livraria do Advogado, p. 80)” (Habeas
Corpus n° 70004235610, Rel. Des. Amilton Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 08/05/02). Na
mesma linha, vale conferir o teor do acórdão prolatado na Apelação-crime nº 70012713525, Re. Des. Amilton
Bueno de Carvalho, 5ª Câmara Criminal, TJRS, j. em 09/11/05.
Cf. HART, Herbert. The Concept of Law. Oxford: Oxford Univesity Press, 1961.
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conta de suas complexidades a partir da adjudicação de teorias acerca de como devem proceder os intérpretes quando em face dos assim denominados casos difíceis.
Ora, a inserção da faticidade se dá através dos princípios, que, para além do
causalismo-explicativo de caráter ôntico, vai se situar no campo do acontecer de caráter ontológico (não clássico). Daí a questão de fundo para a compreensão do fenômeno: antes de estarem cindidos, há um acontecer que aproxima regra e princípio em
duas dimensões, a partir de uma anterioridade, isto é, a condição de possibilidade da
interpretação da regra é a existência do princípio instituidor.
Ou seja, a regra está “subsumida” no princípio. Nos “casos simples” (utilizando,
aqui, argumentativamente, a distinção que a teoria da argumentação faz), ela apenas
encobre o princípio, porque consegue se dar no nível da pura objetivação. Havendo,
entretanto, “insuficiência” (sic) da objetivação (relação causal-explicativa) proporcionada pela interpretação da regra, surge a “necessidade” do uso dos princípios. A
percepção do princípio faz com que este seja o elemento que termina se desvelando,
ocultando-se ao mesmo tempo na regra. Isto é, ele (sempre) está na regra. O princípio
é elemento instituidor, o elemento que existencializa a regra que ele instituiu. Só que
está encoberto. Por isto é necessário, neste ponto, discordar de Dworkin21, quando diz
que as regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada e que os princípios enunciam
uma razão que conduz o argumento em uma certa direção, mas ainda assim necessitam de uma decisão particular.
Hermeneuticamente, pela impossibilidade de cindir interpretação e aplicação
e pela antecipação de sentido que sempre é condição de possibilidade para que se
compreenda, torna-se impossível “isolar” a regra do princípio, isto é, é impossível interpretar uma regra sem levar em conta o seu princípio instituidor. Isto porque a regra não está despojada do princípio. Ela encobre o princípio pela propositura de uma
explicação dedutiva. Esse encobrimento ocorre em dois níveis: em um nível, ele se dá
pela explicação causal; noutro, pela má compreensão de princípio, isto é, compreende-se mal o princípio porque se acredita que o princípio também se dá pela relação
explicativa, quando ali já se deu, pela pré-compreensão, o processo compreensivo.
Em síntese: há uma essencial diferença – e não separação – entre regra e princípio. Podemos até fazer a distinção pela via da relação sujeito-objeto, pela teoria do
conhecimento. Entretanto, essa distinção será apenas de grau, de intensidade; não
será, entretanto, uma distinção de base entre regra e princípio. No fundo, o equívoco
da(s) teoria(s) da argumentação está em trabalhar com os princípios apenas com
uma diferença de grau (regrando os princípios), utilizando-os como se fossem regras
21
Cf. DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Cambridge: Harvard University Press, 1977.
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de segundo nível (equívoco que se repete ao se pensar que, além dos princípios, existem meta-princípios, meta-critérios ou postulados hermenêuticos). Enfim, como se
fosse possível transformar a regra em um princípio. Ocorre que ela jamais será um
princípio, porque no princípio está em jogo algo mais que a explicação causalista.
Para essa compreensão, torna-se necessário superar os dualismos próprios
da metafísica. Trata-se, assim, não de fundamentar – metódica ou epistemologicamente –, mas de compreender (fenomenologicamente). E compreender é aplicar. Isto
significa dizer que estamos diante de um problema hermenêutico, no sentido de uma
teoria da experiência real, que é o pensar. Já o compreender não é um dos modos
do comportamento do sujeito, mas, sim, o modo de ser da própria existência, como
ensina Gadamer.
A crise que atravessa o direito e a hermenêutica jurídica possui uma relação
direta com a discussão acerca da crise do conhecimento e do problema da fundamentação, própria do início do século XX. Veja-se que as várias tentativas de estabelecer
regras ou cânones para o processo interpretativo a partir do predomínio da objetividade ou da subjetividade, ou, até mesmo, de conjugar a subjetividade do intérprete
com a objetividade do texto, não resistiram às teses da viragem lingüístico-ontológica,
superadoras do esquema sujeito-objeto, compreendidas a partir do caráter ontológico prévio do conceito de sujeito e da desobjetificação provocada pelo circulo hermenêutico e pela diferença ontológica.
Não se pode olvidar que – em pleno paradigma da intersubjetividade – ainda
domina, na doutrina e na jurisprudência do direito, a idéia da indispensabilidade do
método ou do procedimento para alcançar a “vontade da norma” (sic), o “espírito de
legislador” (sic), o “unívoco sentido do texto” (sic), etc. Acredita-se, ademais, que o
ato interpretativo é um ato cognitivo e que “interpretar a lei é retirar da norma tudo
o que nela contém” (sic), circunstância que bem denuncia a problemática metafísica
nesse campo de conhecimento.
A hermenêutica jurídica praticada no plano da cotidianidade do direito deita
raízes na discussão que levou Gadamer a fazer a crítica ao processo interpretativo
clássico, que entendia a interpretação como sendo produto de uma operação realizada em partes (subtilitas intelligendi, subtilitas explicandi, subtilitas applicandi, isto
é, primeiro compreendo, depois interpreto, para só então aplicar). A impossibilidade dessa cisão implica a impossibilidade de o intérprete “retirar” do texto “algo que
o texto possui-em-si-mesmo”, numa espécie de Auslegung, como se fosse possível
reproduzir sentidos; ao contrário, o intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung).
O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes (Horizontenverschmelzung), porque compreender é sempre o processo de fusão dos supostos
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horizontes para si mesmos. Para interpretar, necessitamos compreender; para compreender, temos que ter uma pré-compreensão, constituída de estrutura prévia do
sentido – que se funda essencialmente em uma posição prévia (Vorhabe), visão prévia (Vorsicht) e concepção prévia (Vorgriff) – que já une todas as partes do “sistema”,
como bem ressaltou Gadamer.
Uma hermenêutica jurídica que se pretenda crítica, fundamentada nessa revolução copernicana, deve, hoje, procurar corrigir o equívoco freqüentemente cometido por diversas teorias críticas (teorias da argumentação, teorias analíticas, tópica
jurídica, para citar apenas estas) que, embora reconheçam que o direito caracteriza-se por um processo de aplicação a casos particulares (concretude), incorrem no
paradigma metafísico, ao elaborarem um processo de subsunção a partir de conceitualizações (veja-se o paradigmático caso das súmulas vinculantes no Brasil22), que
se transformam em “significantes-primordiais-fundantes” ou “universais jurídicos”,
“acopláveis” a um determinado “caso jurídico”. Isto ocorre nas mais variadas formas
no modus interpretativo vigorante na doutrina e na jurisprudência, como o estabelecimento de topoi ou de meta-critérios para a resolução de conflitos entre princípios,
além das fórmulas para “regrar” a interpretação, propostas pelas diversas teorias da
argumentação jurídica.
Anote-se, neste ponto, que “apesar de também combater a perspectiva do
positivismo normativista tradicional, a teoria da argumentação tem em comum com
essa corrente a tentativa de deduzir subsuntivamente a decisão a partir de regras prévias”23, problemática presente, aliás, em autores como Manuel Atienza para quem
para ser considerada plenamente desenvolvida, uma teoria da argumentação
jurídica tem de dispor [...] de um método que permita representar adequadamente o processo real da argumentação – pelo menos a fundamentação
de uma decisão, tal como aparece plasmada nas sentenças e em outros documentos jurídicos – assim como de critérios, tão precisos quanto possível,
para julgar a correção – ou a maior ou menor correção – dessas argumentações e de seus resultados, as decisões jurídicas24.
22
23
24
Ver, para tanto, STRECK, Lenio Luiz. O efeito vinculante das súmulas e o mito da efetividade: uma crítica
hermenêutica. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, Crítica à dogmática, n. 3, Porto Alegre, 2005, p.
83-128.
Cf. KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried (Orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Lisboa: Gulbenkian, 2002, p. 176.
Cf. ATIENZA, Manuel. As razões do direito: teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2003. Como
se pode perceber, Atienza permanece nos quadros do paradigma epistemológico da filosofia da consciência, ao
sustentar uma função instrumental para a interpretação, otimizada, para ele, a partir da teoria da argumentação jurídica, mesmo problema – diga-se de passagem –, encontrável na maioria das teses caudatárias das
teorias da argumentação no Brasil. Para Atienza, uma das funções da argumentação é oferecer uma orientação
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De certo modo, tais questões também estão presentes na teoria do discurso
proposta por Habermas, que, embora não fale em “regras prévias”, propõe a antecipação de um discurso ideal, contrafático25. Essa formação discursiva (também) é
prévia; sua função é a de servir como princípio regulativo, isto é, conforme Habermas, todo discurso racional é um necessário princípio regulativo de todo discurso
real. A compreensão assim denominada de “racional” não é pensada em contraposição com a tradição, cuja linguagem é insuficiente e/inadequada para abarcar o “real”;
a compreensão é pensada como a realização de um ideal por consumar, contrafaticamente. Novamente, vê-se a cisão do incindível; vê-se, mais uma vez, o problema da
dispensabilidade do mundo prático (porque este está “traduzido” em uma linguagem
inadequada, insuficiente, distorcida).
De mais a mais, não basta dizer que o direito é concretude e que “cada caso é
um caso”, como é comum na linguagem dos juristas. Afinal, é mais do que evidente
que o direito é concretude e que é feito para resolver casos particulares. O que não
está evidente é que o processo interpretativo é applicatio, que o direito é parte integrante do próprio caso, que uma questão de fato é sempre uma questão de direito e
vice-versa. Hermenêutica não é filologia. Lembremos a todo o momento a advertência de Friedrich Müller: da interpretação de textos temos que saltar para a concretização de direitos.
Assim, embora os juristas – nas suas diferentes filiações teóricas – insistam
em dizer que a interpretação deve ocorrer sempre em “cada caso”, tais afirmações
não encontram comprovação, nem de longe, na cotidianidade das práticas jurídicas. Na verdade, ao construírem “pautas gerais”, “conceitos lexicográficos”, “verbetes
doutrinários e jurisprudenciais”, ou súmulas aptas a “resolver” casos futuros, os juristas sacrificam a singularidade do caso concreto em favor dessas espécies de “pautas gerais”, fenômeno, entretanto, que não é percebido no imaginário jurídico. Daí a
indagação de Gadamer: existirá uma realidade que permita buscar com segurança o
25
útil nas tarefas de produzir, interpretar e aplicar o direito (já neste ponto, é possível perceber a subdivisão do
processo interpretativo em partes/etapas, questão tão bem denunciada por Gadamer!). Para corroborar a tese,
o mesmo Atienza afirma que “um dos maiores defeitos da teoria padrão da argumentação jurídica é precisamente o fato de ela não ter elaborado um procedimento capaz de representar adequadamente como os juristas
fundamentam, de fato, as suas decisões”. É evidente que não se pode olvidar – e o registro insuspeito é feito
por Kaufmann (op. cit., p. 194) – que especialmente Alexy desenvolveu de forma notável regras prescritivas de
argumentação e de preferência. A única desvantagem, assinala, “reside no fato de estas regras se ajustarem ao
discurso racional, mas já não ao procedimento judicial”.
Nas palavras do próprio Habermas, somente a antecipação formal do diálogo idealizado como uma forma de
vida a realizar garante a intenção condutora última, contraposta à existente de fato, que nos une previamente
e sobre cuja base toda intenção de fato, se é falsa, pode ser criticada como falsa consciência (APEL, Karl-Otto
et.al. Hermeneutik und Ideologiekritik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1971, p. 164 e segs.).
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conhecimento do universal, da lei, da regra, e que encontre aí a sua realização? Não é a
própria realidade o resultado de sua interpretação?
A rejeição de qualquer possibilidade de subsunções ou deduções aponta para
o próprio cerne de uma hermenêutica jurídica inserida nos quadros do pensamento
pós-metafísico. Trata-se de superar a problemática dos métodos, considerados pelo
pensamento exegético-positivista como portos seguros para a atribuição dos sentidos. Compreender não é produto de um procedimento (método), nem um modo de
conhecer. Compreender é, sim, um modo de ser, porque a epistemologia é substituída
pela ontologia da compreensão. Isto significa romper com as diversas concepções que
se formaram à sombra da hermenêutica tradicional, de cunho objetivista-reprodutivo, cuja preocupação é de caráter epistemológico-metodológico-procedimental,
cindindo conhecimento e ação, buscando garantir uma “objetividade” dos resultados
da interpretação. A mesma crítica pode ser feita à tópica retórica, cuja dinâmica não
escapa das armadilhas da subsunção metafísica. Aliás, o fato de ligar-se “ao problema”
não retira da tópica sua dependência da dedução e da metodologia tradicional, o que
decorre fundamentalmente de seu caráter não-filosófico.
Uma filosofia no direito – avançando para além de uma filosofia do direito
– deve estar apta a explicar esse caráter hermenêutico assumido pelo direito nesta
quadra da história. Superando o modelo de regras, a preocupação das teorias jurídicas passa para a busca das respostas acerca da indeterminabilidade do direito. É
possível construir uma racionalidade capaz de resolver o problema decorrente da impossibilidade da legislação prever todas as hipóteses de aplicação? Como superar as
práticas subsuntivas? Como superar o dedutivismo? A tarefa de “preencher” os espaços da indeterminabilidade deve ser deixada aos juízes, como queria o positivismo?
Tais questões inexoravelmente desembocam nas diversas construções discursivas
que pretendem superar os dilemas que surgem com esse novo perfil assumido pelo
direito, pelo Estado e pela jurisdição constitucional.
Daí que, levando em conta as promessas incumpridas da modernidade em
terrae brasilis, a superação dos paradigmas metafísicos clássico e moderno – condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno do neoconstitucionalismo e
da conseqüente derrota do positivismo – não pode representar o abandono das possibilidades de se alcançar verdades conteudísticas26. As teorias consensuais da verdade
mostram-se insuficientes para as demandas paradigmáticas no campo jurídico. Ao
26
Sendo mais claro: a hermenêutica jamais permitiu qualquer forma de “decisionismo” ou “realismo”. Gadamer
rejeita peremptoriamente qualquer acusação de relativismo à hermenêutica (jurídica). Falar de relativismo
é admitir verdades absolutas, problemática, aliás, jamais demonstrada. A hermenêutica afasta o fantasma
do relativismo, porque este nega a finitude e seqüestra a temporalidade. No fundo, trata-se de admitir que,
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contrário da hermenêutica filosófica, não há ser-no-mundo nas teorias consensuais-procedurais, pelas quais só é possível atribuir um sentido a alguma coisa quando qualquer outra pessoa que pudesse dialogar comigo também o pudesse aplicar.
Nelas, a condição de verdade das sentenças (enunciados) é o acordo potencial de
todos os outros. Ou seja, nelas não há espaço para a substancialidade (conteudística).
Portanto, não há ontologia (no sentido de que fala a hermenêutica filosófica). Isto
demonstra que a linguagem – que na hermenêutica é condição de possibilidade –,
nas teorias consensuais-procedurais, é manipulável pelos partícipes. Continua sendo, pois, uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito e um objeto, embora os
esforços feitos por sofisticadas construções no plano das teorias discursivas, como
Habermas e Günther.
Ou seja, é possível dizer, sim, que uma interpretação é correta, e a outra é incorreta. Movemo-nos no mundo exatamente porque podemos fazer afirmações dessa
ordem. E disso nem nos damos conta. Ou seja, na compreensão os conceitos interpretativos não resultam temáticos enquanto tais, como bem lembra Gadamer; ao contrário, determinam-se pelo fato de que desaparecem atrás daquilo que eles fizeram
falar/aparecer na e pela interpretação27. Aquilo que as teorias da argumentação ou
qualquer outra concepção teorético-filosófica (ainda) chamam de “raciocínio subsuntivo” ou “raciocínio dedutivo” nada mais é do que esse “paradoxo hermenêutico”,
que se dá exatamente porque a compreensão é um existencial (ou seja, por ele eu não
me pergunto porque compreendi, pela simples razão de que já compreendi, o que faz
com que minha pergunta sempre chegue tarde).
Uma interpretação será correta quando é suscetível dessa desaparição (Paradoxerweise ist eine Auslegung dann richtig, wenn sie derart zum Verschwinden fähig
ext). É que se pode chamar de “existenciais positivos”. Aquilo que algumas teorias
chamam de casos fáceis, solucionáveis, portanto, por intermédio de “simples subsunções” ou “raciocínios dedutivos” (por todos, Manuel Atienza) são exatamente a
27
à luz da hermenêutica (filosófica), é possível dizer que existem verdades hermenêuticas. A multiplicidade de
respostas é característica não da hermenêutica, mas, sim, do positivismo.
Como bem diz Gadamer (Wahrheit und Methode. Ergänzungen Register. Hermeneutik II. Tübingen: Mohr,
1990, p. 402): “das gilt der Sache nach auch dort, wo sich das Verständnis unmittelbar einstellt und gar keine
ausdrückliche Auslegung vorgenommen wird. Denn auch in solchen Fällen von Verstehen gilt, dass die Auslegung möglich sein muss. Sie bringt das Verstehen nur zur ausdrücklichen Ausweisung. Die Auslegung ist also
nicht ein Mittel, durch das da verstehen herbeigeführt wird, sondern ist in den Gehalt dessen, was da verstanden wird, eingegangen. Wir erinnern daran, dass das nicht nur heisst, dass die Sinnnmeinung des Textes
einheitlich vollziehbar wird, sondern dass damit auch die Sache, von der Text spricht, sich zu Worte bringt. Die
Auslegung legt die Sache gleichsam auf die Waage der Worte”.
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comprovação disto28. Explicando: na hermenêutica, essa distinção entre easy e hard
cases desaparece em face do círculo hermenêutico e da diferença ontológica. Aqui se
encaixa a discussão acerca da inadequada, porque metafísica, distinção entre casos
simples (fáceis) e casos difíceis (complexos). Essa distinção não leva em conta a existência de um acontecer no pré-compreender, no qual o caso simples e o caso difícil se
enraízam. Existe, assim, uma unidade que os institui.
Ao contrário do que se diz, não interpretamos para, depois, compreender,
mas, sim, compreendemos para interpretar, sendo a interpretação a explicitação do
compreendido, nas palavras de Gadamer. Essa explicitação não prescinde de uma
estruturação no plano argumentativo. A explicitação da resposta de cada caso deverá
estar sustentada em consistente justificação, contendo a reconstrução do direito, doutrinaria e jurisprudencialmente, confrontando tradições, enfim, colocando a lume a
fundamentação jurídica que, ao fim e ao cabo, legitimará a decisão no plano do que
se entende por responsabilidade política do intérprete no paradigma do Estado Democrático de Direito.
Mutatis mutandis, trata-se de justificar a decisão (decisão no sentido de que
todo ato aplicativo – e sempre aplicamos – é uma de-cisão). Para esse desiderato,
compreendendo o problema a partir da antecipação de sentido (Vorhabe, Vorgriff,
Vorsicht), no interior da virtuosidade do circulo hermenêutico, que vai do todo para a
parte e da parte para o todo, sem que um e outro sejam “mundos” estanques/separados, fundem-se os horizontes do intérprete do texto (registre-se, texto é evento, texto
é fato). Toda a interpretação começa com um texto, até porque, como diz Gadamer,
se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo. O sentido
exsurgirá de acordo com as possibilidades (horizonte de sentido) do intérprete em
dizê-lo, d’onde pré-juízos inautênticos acarretarão graves prejuízos hermenêuticos.
As explicações decorrentes de nosso modo prático de ser-no-mundo (o desde
já sempre compreendido) resolvem-se no plano ôntico (na linguagem da filosofia
28
Vejamos como essa dualização metafísica apresenta problemas sem resposta: casos fáceis, segundo Atienza
(que vale também para as demais versões da teoria da argumentação jurídica), são os casos que demandam
respostas corretas que não são discutidas; já os casos difíceis são aqueles nos quais é possível propor mais de
uma resposta correta “que se situe dentro das margens permitidas pelo direito positivo”. Mas, quem e como
definir “as margens permitidas pelo direito positivo”? Como é feita essa definição? A resposta parece ser: a
partir de raciocínios em abstrato, a priori, como se fosse primeiro interpretar e depois aplicar... Neste ponto,
as diversas teorias do discurso se aproximam: as “diversas” possibilidades de aplicação se constituem em
discursos de validade prévia, contrafáticos, que servirão para juízos de “adequação”. Ocorre que isto implica
um dualismo, que, por sua vez, implica separação entre discursos de validade e discursos de aplicação, cuja
resposta se dará, quer queiram, quer não, mediante raciocínios dedutivos. Por isto, retorno à acusação feita
por Kaufmann, acerca da prevalência do esquema sujeito-objeto nas diversas teorias discursivas.
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da consciência, em um raciocínio causal-explicativo). Mas esse modo ôntico permanecerá e será aceito como tal se a sua objetivação não causar estranheza no plano
daquilo que se pode entender como tradição autêntica. Nesse caso, devidamente conformados os horizontes de sentido, a interpretação “desaparece”. Em síntese, é quando ninguém se pergunta sobre o sentido atribuído a algo. Veja-se o caso de uma regra
jurídica que proíba a condução de cães no parque. Ninguém discutirá que é vedado o
trânsito de cães da raça pitbull (é, pois, a resposta correta), uma vez que os pré-juízos
autênticos, que conformam o modo-de-ser no mundo dos juristas apontam para o
sentido do que seja proibição, o sentido de cão, etc.
Mas, se essa fusão de horizontes se mostrar mal sucedida, ocorrerá a demanda
pela superação das insuficiências do que onticamente objetivamos. Trata-se do acontecer da compreensão, pelo qual o intérprete necessita ir além da objetivação. Observese, nesse sentido, o seguinte exemplo envolvendo o mesmo texto legal anterior, só que,
agora, agregando um elemento complicador: se a regra proíbe cães, é possível o trânsito
de um urso? E se regra proíbe cães, é possível levar um filhote pequinês? Aqui, pois,
claramente emerge a insuficiência da regra e, conseqüentemente, a presença de uma
fusão de horizontes que não encontra guarida na mera objetivação. Com efeito, estando
o intérprete inserido em uma tradição autêntica do direito, em que os juristas introduzem o mundo prático seqüestrado pela regra (para utilizar apenas estes componentes
que poderiam fazer parte da situação hermenêutica do intérprete), a resposta correta
advirá dessa nova fusão de horizontes: pelo princípio da proporcionalidade (e, se quiser,
da razoabilidade), a regra deve obedecer a uma adequação entre fins e meios. Conseqüentemente, não é proporcional e/ou razoável que se proíba cães e se dê salvo conduto
para ursos, assim como se proíba o trânsito de animais que não tenham qualquer possibilidade de causar danos aos freqüentadores do parque, fim último da regra estatuída.
Veja-se, a partir disso, a resolução de casos como o do indivíduo que foi condenado à
pena de dois anos de reclusão por disparar arma de fogo (espingarda de caça) em seu
sítio a fim de espantar animais, para citar apenas este caso. Obtida a resposta a partir
de “simples” subsunção, esta se mostra absolutamente equivocada, ao ser submetida a
um processo de compreensão. Ou seja, os pré-juízos inautênticos dos intérpretes (juiz
e promotor) levaram a uma inadequada fusão de horizontes, produzindo uma decisão
equivocada (resposta errada).
Por isso o acerto de Dworkin, ao exigir uma “responsabilidade política” dos
juízes. Os juízes têm a obrigação de justificar29 suas decisões, porque com elas afetam
29
Isto é assim porque o sentido da obrigação de fundamentar as decisões previsto no art. 93, inc. IX, da Constituição do Brasil implica, necessariamente, a justificação dessas decisões. Veja-se que um dos indicadores da
prevalência das posturas positivistas – e, portanto, da discricionariedade judicial que lhe é inerente – está no
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os direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado
Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui um direito fundamental. Daí a necessidade de ultrapassar o “modo-positivista-de-fundamentar” as
decisões (perceptível no cotidiano das práticas dos tribunais, do mais baixo ao mais
alto); é necessário justificar – e isto ocorre no plano da aplicação – detalhadamente o
que está sendo decidido. Portanto, jamais uma decisão pode ser do tipo “Defiro, com
base na lei x ou na súmula y”. A justificativa é condição de possibilidade da legitimidade da decisão.
A applicatio evita a arbitrariedade na atribuição de sentido, porque é decorrente da antecipação (de sentido) que é própria da hermenêutica filosófica. Aquilo
que é condição de possibilidade não pode vir a se transformar em um “simples resultado” manipulável pelo intérprete. Afinal, não podemos esquecer que mostrar a hermenêutica como produto de um raciocínio feito por etapas foi a forma pela qual a
hermenêutica clássica encontrou para buscar o controle do “processo” de interpretação. Daí a importância conferida ao método,“supremo momento da subjetividade assujeitadora”. Ora, a pré-compreensão antecipadora de sentido de algo ocorre à revelia
de qualquer “regra epistemológica” ou método que fundamente esse sentido. Não há
métodos e tampouco meta-métodos ou meta-critérios (ou um Grundmethode30, para
imitar Kelsen e “escapar” do problema – insolúvel – do fundamentum inconcussum).
A compreensão de algo como algo (etwas als etwas) simplesmente ocorre, porque o
ato de compreender é existencial, fenomenológico, e não epistemológico. Qualquer
sentido atribuído arbitrariamente será produto de um processo decorrente de um vetor (standard) de racionalidade de segundo nível, meramente argumentativo/procedimental31, isto porque filosofia não é lógica e, tampouco, um discurso ornamental.
Algumas reflexões finais:
1. A crise dos modelos interpretativos, aqui inserida naquilo que denomino
crise de paradigmas de dupla face, não autoriza que as teorias da argumentação ou outras teorias procedurais (teorias do discurso) venham a
30
31
escandaloso número de embargos de declaração propostos diariamente no Brasil. Ora, uma decisão bem fundamentada/justificada (nos termos de uma resposta correta-adequada-à-Constituição, a partir da exigência
da máxima justificação) não poderia demandar “esclarecimentos” acerca da holding ou do dictum da decisão.
Os embargos de declaração – e acrescente-se, aqui, o absurdo representado pelos “embargos de pré-questionamento” (sic) – demonstram a irracionalidade positivista do sistema jurídico.
Sobre a problemática do “método”, ver STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma
Nova Crítica do Direito. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, especialmente o cap. 5.
Ibid., p. 246 e segs, onde trabalho a noção dos vetores de racionalidade de Hilary Putnam e Ernildo Stein.
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se constituir em uma espécie de reserva hermenêutica, que somente seria
chamada à colação na “insuficiência” da regra, isto é, quando se estiver
em face de casos difíceis (hard cases). Casos fáceis e casos difíceis partem de um mesmo ponto e possuem em comum algo que lhes é condição
de possibilidade: a pré-compreensão. Esse equívoco de distinguir easy e
hard cases é cometido tanto pelo positivismo de Hart como pelas teorias
discursivo-argumentativas, que vão desde Habermas e Günther até Alexy
e Atienza, para citar apenas estes. O que têm em comum é o fato de que,
nos hard cases, considerarem que os princípios (critérios) para solvê-los
não se encontram no plano da aplicação, mas, sim, devem ser retirados
de uma “historia jurídica” que somente é possível no plano de discursos a
priori (no fundo, discursos de fundamentação prévios). Também Dworkin
faz indevidamente essa distinção entre casos fáceis e casos difíceis. Mas o
faz por razões distintas. A diferença é que Dworkin não “desonera” os discursos de aplicação dos discursos de fundamentação, que se dão prima
facie. Na verdade, como Gadamer, ele não distingue discursos de aplicação
de discursos de fundamentação, assim como não separa interpretação e
aplicação.
2. Partir de uma pré-elaboração do que seja um caso simples ou complexo é
incorrer no esquema sujeito-objeto, como se fosse possível ter um “grau
zero de sentido”, insulando a pré-compreensão e tudo o que ela representa
como condição para a compreensão de um problema. Não esqueçamos
que a discricionariedade interpretativa é fruto do paradigma representacional e que ela se fortalece na cisão entre interpretar e aplicar, o que
implica a prevalência do dualismo sujeito-objeto.
3. Essa discricionariedade/arbitrariedade positivista – sob as mais variadas
vestes – ainda domina o modo-de-agir dos juristas. No fundo, em linguagem mais simples, significa aquilo que Kelsen “incentivou” no oitavo
capítulo de sua Teoria Pura do Direito32: o decisionismo que poderia ser
praticado nos “limites” da moldura da norma jurídica, ou a delegação em
favor dos juízes da tarefa de decidir sobre os hard cases, que pode ser vista
em Concept of Law33, de Hart.
4. Observe-se como esse problema da discricionariedade, que exsurge, com
o positivismo, a partir da “delegação” em favor do juiz do poder de “resol32
33
KELSEN, Hans. A Teoria Pura do Direito. São Paulo. Martins Fontes, 2003.
HART, op. cit.
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ver os casos difíceis”, acaba sofrendo um deslocamento em direção a uma
“objetividade textual”, não propriamente da regra (texto jurídico), mas
das conceitualizações prévias elaboradas pela dogmática jurídica. Ou seja,
o próprio positivismo procura controlar a discricionariedade judicial, mediante a elaboração de um discurso prêt-à-porter, principalmente – e paradoxalmente – advindo do próprio Judiciário, para, em um processo de
retroalimentação, servir de controle das decisões judiciais. Provavelmente
por isto, parte considerável da doutrina reproduz a posição dos tribunais,
que elaboram uma espécie de versão positivista de “discursos de fundamentação prévia”. Isto é feito através de uma estandardização da cultura
jurídica (verbetes, ementas, súmulas, etc). Essa construção dogmática é
fruto de uma espécie de adaptação darwiniana do positivismo jurídico,
que funciona a partir da elaboração de conceitos jurídicos com objetivos
universalizantes, utilizando, inclusive, os princípios constitucionais. Ou
seja, os princípios constitucionais que deveriam superar o modelo discricionário do positivismo, passaram a ser anulados por conceitualizações,
que acabaram por transformá-los em regras. E tudo volta à origem, com
o sacrifício da singularidade do caso concreto, isto é, o que caracteriza o
direito como saber prático é obnubilado pelo modelo conceitualista que
domina a operacionalidade do direito.
5. Observe-se que, enquanto Dworkin considera o discricionarismo antidemocrático, Hart vai dizer que o poder discricionário é o preço necessário
que se tem de pagar para evitar o inconveniente de métodos alternativos
de regulamentações desses litígios (casos difíceis), por exemplo, o reenvio
ao Legislativo. Embora isto possa ser negado pelas correntes positivistas,
Hart representa uma espécie de pensamento médio: aliás, há uma coisa
em comum entre o positivismo e as diversas teorias da argumentação: a
distinção/divisão “casos simples – casos complexos” (fáceis e difíceis), o
que demonstra a presença (e permanência) do paradigma representacional, emergente do dualismo metafísico e do esquema sujeito-objeto.
6. Como o direito é um saber prático e que deve servir para resolver problemas e concretizar as promessas da modernidade que ganharam espaço
nos textos constitucionais, a superação dos obstáculos que impedem o
acontecer do constitucionalismo de caráter transformador estabelecido pelo novo paradigma do Estado Democrático de Direito pressupõe a
construção das bases que possibilitem a compreensão do estado da arte
do modus operacional do direito, levando em conta um texto constitucional de nítida feição compromissória e dirigente, e que, passadas quase
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duas décadas, longe está de ser concretizado. Na base dessa inefetividade,
para além do problema relacionado à configuração política e econômica
da sociedade brasileira (democracia em consolidação, alternando longos
espaços de ausência de estado de direito, a histórica desigualdade social, a
cultura patrimonialista, o regime presidencialista que se mantém com governabilidade ad hoc, etc.), encontra-se solidificada uma cultura jurídica
positivista que coloniza a operacionalidade (doutrina e jurisprudência) e
o processo de elaboração das leis, em um processo de retroalimentação.
7. O problema da inefetividade da Constituição – e tudo o que ela representa
enquanto implementação das promessas incumpridas da modernidade
(por isto o Brasil é um país de modernidade tardia) – não se resume a um
confronto entre modelos de direito. O confronto é, pois, paradigmático.
Veja-se, nesse sentido, o problema surgido na Espanha pós-Constituição
de 1978, que formalmente encerrava a transição da ditadura franquista à
democracia constitucional. Confronto paradigmático significa o embate
entre o novo e o velho, como bem demonstra Hernández Gil, lembrando
a necessidade de mudar radicalmente a linguagem jurídica, o sistema de
linguagem ou o marco de referência jurídico de todos os operadores do
direito da Espanha para uma compreensão adequada do novo paradigma
constitucional recém instituído. Neste ponto, assinala o professor espanhol,
o ano de 1981 pode ser considerado crucial para esse intento. Com efeito,
basta que se examine a correlação semântica que os juristas tinham antes e
aquela que têm agora acerca de expressões como igualdade, discriminação,
inocência, prova, domicílio ou lei fundamental, cujos significados sofreram
radical alteração se comparados com a versão a-técnica e pré-técnica que
tinham antes da entrada em funcionamento do Tribunal Constitucional.
Sem a existência de um Tribunal Constitucional, tais modificações não teriam se firmado com tanta firmeza ou, ao menos, tal fenômeno não teria
ocorrido com tanta rapidez. E isto pode servir para colocar uma questão
de relevante interesse: o Tribunal Constitucional não somente utiliza normas de interpretação, como as constrói e as determina à comunidade jurídica. Assim, na sentença 64/83, impôs aos juízes e Tribunais a obrigação de
interpretar as leis em conformidade com a Constituição34.
34
Cf. HERNÁNDEZ GIL, Antonio. La justicia en la concepción del derecho según la Constitución española. In:
LÓPEZ PINA, Antonio. División de poderes e interpretación: hacia uma teoria de la práxis constitucional. Madrid: Tecnos, 1987, p. 150-154. No caso brasileiro, veja-se, por exemplo, os conceitos de direito adquirido, ato
jurídico perfeito, uso da propriedade, etc., cujas definições continuam sendo buscados em doutrina e textos
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. Nesse confronto paradigmático, as velhas teses acerca da interpretação
– subsunção, silogismo, individualização do direito na “norma geral”, a
partir de “critérios puramente cognitivos e lógicos”, liberdade de conformação do legislador, discricionariedade do poder Executivo, o papel da
Constituição como estatuto de regulamentação do exercício do poder –
dão lugar a uma hermenêutica que não trata mais a interpretação jurídica
como um problema (meramente) “lingüístico de determinação das significações apenas textuais dos textos jurídicos”35. Trata-se, efetivamente, de
aplicar o grande giro hermenêutico ao direito e, portanto, à Constituição.
9. O novo constitucionalismo nascido da revolução copernicana do direito
público traz para dentro do direito temáticas que antes se colocavam à
35
legais infraconstitucionais escritos há dezenas de anos, como se os textos e as expressões tivessem conceitosem-si-mesmos, metafísicos, portanto. Um problema bem atual diz respeito ao conceito de crime de tráfico,
previsto no art. 12 da Lei n.º 6.368, de 1973. Observe-se que parcela considerável dos condenados por tráfico
são pequenos criminosos, o que, no plano daquilo que aqui denomino “filtragem hermenêutico-constitucional”,
mostra o equívoco que existe na compreensão do tipo penal previsto no art. 12 da Lei n.º 6.368/73. Parece óbvio
que a velha Lei, por ser de origem anterior à Constituição de 1988, necessita passar por uma releitura constitucional (filtragem constitucional). Explicando melhor: quando a Lei de Tóxicos entrou em vigor, o tráfico (art.
12) não era crime hediondo, categoria esta que somente ingressou em nosso universo jurídico a partir de 5 de
outubro de 1988. Conseqüentemente, quando a Lei dos Crimes Hediondos alçou o crime de tráfico à categoria
de hediondos, a nova Lei e a própria Constituição estabeleceram um novo fundamento de validade à antiga
lei. Ou seja, a partir da transformação do tráfico de entorpecentes em crime hediondo, o conceito de tráfico
não é mais o mesmo que o do antigo texto da Lei; o tráfico, agora, é o tráfico hediondo, exsurgente do novo
topos hermenêutico-constitucional. Desnecessário e totalmente despiciendo remeter, aqui, o leitor a Kelsen,
porque sobejamente conhecido pela comunidade jurídica, naquilo que se chama de princípio da recepção das
normas, assim como também a Ferrajoli, na discussão da dicotomia vigência-validade, na qual a primeira é
secundária em relação à segunda, a qual sempre será aferida a partir da confrontação com a Constituição. Isto
significa dizer que, se simples “consumidores”, “possuidores” ou “pequenos traficantes” são processados (e
condenados) por crime de tráfico, é porque o tipo penal está sendo aplicado de forma indevida e equivocada.
Falta, pois, in casu, um olhar constitucional e constitucionalizante. Ou seja, é preciso ter presente que, em face
do crescimento da criminalidade, está ocorrendo a banalização da criminalização, representada pela equivocada aplicação da lei penal, onde não se obedece (mais) nem sequer à legalidade formal (conceito analítico
de delito). Dito de outro modo, se o Estado estabeleceu que o crime de tráfico de entorpecentes deveria ser
alçado à categoria de hediondo – e, registre-se, tal classificação não foi nem sequer questionada pelo Poder
Judiciário –, é porque o crime de tráfico coloca em xeque a sociedade (e não a saúde individual enquadrável
na relação interindividual!!!). Logo, não há como entender a existência de “traficantes bagatelares”. Pequeno
traficante ou traficante bagatelar é uma contradição em si mesmo! Cf. STRECK, Lenio Luiz. As (novas) penas
alternativas à luz da principiologia do Estado Democrático de Direito e do controle de constitucionalidade.
In: FAYET JÚNIOR, Ney; CORRÊA, Simone Prates Miranda (Orgs.). A sociedade, a violência e o direito penal.
Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2000, p. 121-144. Essa mesma problemática se faz presente nos crimes de
atentado violento ao pudor, pela falta de um tipo penal que abarque condutas “intermediárias”. Para tanto, ver
parecer que lancei na Apelação-crime nº 70012433421, disponível em www.leniostreck.com.br.
Veja-se, a propósito, a contundente crítica de CASTANHEIRA NEVES, Antonio. O actual problema metodológico da interpretação jurídica – I. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 287 e segs.
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STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
margem da discussão pública: a política, representada pelos conflitos sociais, os direitos fundamentais sociais historicamente sonegados e as possibilidades transformadoras da sociedade a serem feitas no e a partir do
direito. Afinal, direito constitucional é direito político (H. P. Schneider).
10. Tais perspectivas aparecem a partir de um constitucionalismo compromissário e (ainda) dirigente36, mormente em países em que as promessas
da modernidade nunca foram cumpridas. E a materialidade das Constituições institucionaliza-se a partir da superação dos três pilares nos quais
se assenta(va) o positivismo jurídico (nas suas variadas formas e facetas):
o problema das fontes (a lei), a teoria da norma (o direito é um sistema
de regras em que não há espaço para os princípios) e as condições de
possibilidade para a compreensão do fenômeno, isto é, a questão fulcral
representada pela interpretação, ainda fortemente calcada no esquema sujeito-objeto, d’onde permanece o modelo subsuntivo, como se a realidade
fosse acessível a partir de raciocínios causais-explicativos.
11. Não se pode menosprezar o papel do positivismo ainda nos dias atuais.
Com efeito, o positivismo acredita que o mundo pode ser abarcado pela
36
As características desse novo constitucionalismo provocam profundas alterações no direito, proporcionando
a superação do paradigma positivista, que pode ser compreendido no Brasil como produto de uma simbiose
entre formalismo e positivismo, no modo como ambos são entendidos pela(s) teoria(s) crítica(s) do direito.
Na verdade, embora o positivismo possa ser compreendido no seu sentido positivo, como uma construção humana do direito enquanto contraponto ao jusnaturalismo, e tenha, portanto, representado um papel relevante
em um dado contexto temporal, no decorrer da história acabou se transformando – e no Brasil essa questão
assume foros de dramaticidade – em uma concepção matematizante do social, a partir de uma dogmática
jurídica formalista, de nítido caráter retórico. Com efeito, se o formalismo e o positivismo marca(ra)m indelevelmente o pensamento jurídico moderno, no Brasil é possível dizer que em muitos aspectos ambos (ainda)
se confundem, isto porque se engendrou um imaginário jurídico atrelado, ao mesmo tempo, ao formalismo e
às suas insuficiências, para explicar o direito e a realidade (o direito é concebido no plano abstrato e entendido como sendo apenas um objeto histórico-cultural), e ao positivismo, com as suas características que vêm
delineando os caminhos da doutrina e jurisprudência, como por exemplo: a não-admissão de lacunas; o nãoreconhecimento dos princípios como normas; as dificuldades para explicar os “conceitos indeterminados”,
as normas penais em branco e as proposições carentes de preenchimento com valorações, proporcionando a
discricionariedade do juiz, que acaba se transformando em arbítrio judicial (ou decisionismos voluntaristas); a
inoperância em face dos conflitos entre princípios, culminando, via de regra, na sua negação, com a remessa da
solução à discricionariedade do juiz; e, por último, tem ficado visível que o positivismo não tem como tratar
da questão da legitimidade do direito. Por isto, a legalidade ocupa o lugar da legitimidade (ver GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 30 e segs.). Como conseqüência
dessa (con)fusão entre normativismo e positivismo, tem-se uma verdadeira blindagem contra a “intervenção”
da Constituição (entendida nos quadros do neoconstitucionalismo), que introduz as condições para a superação do problema da identificação (imanência) normativista-positivista entre vigência e validade: na verdade,
a Constituição introduz a diferença entre vigência e validade, alçando a validade à condição primeira, caindo
por terra a plenipotenciariedade textual-normativa e tudo o que isto vem representando no campo jurídico.
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STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
linguagem e que a regra – no plano do direito – abarca essa “suficiência do
mundo”, isto é, a parte do mundo que deposita na regra as universalidades
conceituais que pretendem esgotar a descrição da realidade. Na insuficiência daquela parte da linguagem para fornecer as respostas, chama-se à
colação a subjetividade do intérprete, que, de forma solipsista, levanta o
véu que “encobre” a resposta que a regra não pôde dar. A diferença entre
a regra (positivista) e o princípio é que este está contido na regra, atravessando-a, resgatando o mundo prático37. Na medida em que o mundo
prático não pode ser dito no todo – porque sempre sobra algo – o princípio traz à tona o sentido que resulta desse ponto de encontro entre texto e
realidade, em que um não subsiste sem o outro (aqui, o antidualismo entra
como condição de possibilidade para a compreensão do fenômeno).
12. Parece não haver dúvida de que o positivismo – compreendido lato sensu – não conseguiu aceitar a viragem interpretativa ocorrida na filosofia
do direito (invasão da filosofia pela linguagem) e suas conseqüências no
plano da doutrina e da jurisprudência. “Todo jurista sabe que as decisões
jurídicas dependem de uma multiplicidade de fatores que não estão dados
nas regras do sistema”, assinala Campbell38. Se isto é verdadeiro – e penso
que é – então como é possível continuar a sustentar o positivismo nesta
quadra da história? Como resistir ou obstaculizar o constitucionalismo
que revolucionou o direito no século XX? Entre tantas perplexidades, parece não restar dúvida de que uma resposta mínima pode e deve ser dada
a essas indagações: o constitucionalismo – nesta sua versão social, compromissária e dirigente – não pode repetir equívocos positivistas, proporcionando decisionismos ou discricionariedades interpretativas.
13. Isto é, contra o objetivismo do texto (posturas normativistas-semânticas)
e o subjetivismo (posturas axiológicas que desconsideram o texto) do
intérprete, cresce o papel da hermenêutica de cariz filosófico, que venho
trabalhando sob a denominação de Nova Crítica do Direito39. Embora o
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39
Afinal – e o alerta é de Pablo Navarro (Tensiones conceptuales en el positivismo jurídico. Doxa. Cuadernos de
Filosofía del Derecho, n. 24, 2001, p. 133-163) –, o positivismo jamais se comprometeu a reconhecer relevância
prática às normas jurídicas, o que significa dizer que podemos descrever o fato de que uma norma seja válida
e informar acerca do status jurídico de certas ações ou estados de coisas sem aderir ao conteúdo de suas prescrições.
Cf. CAMPBELL, Tom. El sentido del positivismo jurídico. Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n. 25,
Alicante, 2002, p. 304.
Ver, para tanto, STRECK, Hermenêutica Jurídica, op. cit.; e, também, STRECK, Jurisdição Constitucional, op.
cit.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 257-290, jan./jun. 2006.
STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
avanço e a importância das teorias do discurso para o enfrentamento das
demandas de um universo de direito pós-positivista, em que a jurisdição
assume especial relevância, pela necessidade de controlar a indeterminabilidade das normas que não conseguem – por impossibilidade filosófica
– abarcar as diversas hipóteses de aplicação, a hermenêutica aqui proposta para superação do positivismo pretende ir além dos discursos prévios
de fundamentação trazidos pelas teorias discursivas como solução para o
problema da subjetividade (e, portanto, da discricionariedade) do juiz.
14. Daí a tarefa fundamental de qualquer teoria jurídica nesta quadra da história: concretizar direitos, resolvendo problemas concretos. Ou seja, passar da filologia para a sangria do cotidiano. Desse modo, se o dilema da
teoria jurídica nestes tempos de resgate de direitos é “como se interpreta”,
“como se aplica” (Ian Schapp) e “como se supera o decisionismo positivista que permite múltiplas e variadas respostas”, é necessário dar um salto
em direção às perspectivas hermenêuticas que têm na linguagem não um
instrumento ou uma terceira coisa que se coloca entre um sujeito e um
objeto, mas, sim, a sua própria condição de possibilidade.
15. Nitidamente, ainda há uma resistência à viragem hermenêutico-ontológica40, instrumentalizada em uma dogmática jurídica41 (que continua)
40
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Nesse sentido, não devemos esquecer que a concretização da Constituição é, assim, (também) um problema hermenêutico, como bem assinala Konrad Hesse (A força normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE,
1991), para quem resulta de fundamental importância para a preservação e a consolidação da força normativa
da Constituição a interpretação constitucional, que se encontra necessariamente submetida ao mandato de
otimização do texto constitucional.
A crítica à dogmática jurídica não significa, à toda evidência, qualquer pregação no sentido de que a dogmática jurídica seja despicienda. A dogmática jurídica pode ser crítica. E deve ser crítica. Afinal, não há direito sem
dogmática, como bem assevera Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. É exatamente a partir de uma dogmática
jurídica consistente e crítica que se pode construir as condições para evitar – ou minimizar – os decisionismos e as discricionariedades, tendo em vista que “não há direito sem uma dogmática onde as palavras
tenham um sentido aceito pela maioria, ainda que elas escorreguem e, de tanto em tanto, mereçam – e tenham
– uma alteração de curso. Metáforas e metonímias (ou condensações e deslocamentos, como queria Freud), a
partir da demonstração de Lacan, esvaziam de sentido (ou conteúdo) preestabelecido qualquer palavra que
ganhe um giro marcado pela força pulsional e, portanto, determinada pelo inconsciente. Falar de dogmática
– enquanto descrição das regras jurídicas em vigor (Haesaert) –, contudo, não é falar de dogmatismo; e isto
é despiciendo discutir. Sem embargo, não são poucos os que confundem – e seguem confundindo – os dois
conceitos, com efeitos desastrosos para o direito. Quando se fala de dogmática e o interlocutor pensa em dogmatismo, a primeira reação, invariavelmente, é de desprezo; e por que não de medo, mormente se se quer algo
que possa suportar uma postura avançada, de rompimento com o status quo. Sem embargo do erro grosseiro,
a situação cria embaraços e constrangimentos, exigindo uma faina dissuasiva elaborada e complexa, com
efeitos duvidosos porque se não tem presente os reais resultados [...] A dogmática, então, precisa ser crítica
(do grego kritiké, na mesma linha de kritérion e krisis) para não se aceitar a regra, transformada em objeto,
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STRECK, Lenio Luiz. A atualidade do debate da crise paradigmática do direito e a resistência positivista ao neoconstitucionalismo.
refratária a uma reflexão mais aprofundada acerca do papel do direito
no século XXI. Sejamos claros: no campo da interpretação do direito, não
houve ainda a invasão da filosofia pela linguagem. E não há como esconder essa evidência: inserido nessas crises, o jurista (ainda) opera com as
conformações da hermenêutica clássica, vista como pura técnica (ou técnica pura) de interpretação (Auslegung), na qual a linguagem é entendida
como uma terceira coisa que se interpõe entre um sujeito cognoscente (o
jurista) e o objeto a ser conhecido (o direito). Sempre sobra, pois, a realidade! Esse modo-de-ser encobre o acontecer propriamente dito do agir
humano, objetificando-o na linguagem e impedindo que se dê na sua originariedade, enfim, na sua concreta faticidade e historicidade.
16. É isto! A viragem lingüístico-hermenêutica (ontologische Wendung) demonstrou que ambas as metafísicas (clássica e moderna) foram derrotadas. E o direito, locus privilegiado do processo hermenêutico – porque os
textos necessitam sempre de interpretação, questão que a própria dogmática jurídica reconhece –, não pode caminhar na contramão desse rompimento paradigmático. Tais conclusões, porque hermenêuticas, não são, a
toda evidência, definitivas. Como já referido acima, a hermenêutica, por
ser crítica, está inexoravelmente condenada à abertura e ao diálogo.
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como uma realidade. Isso só é possível, por evidente, porque se tem presente que o real é impossível quando
em jogo a sua apreensão e, com muito custo, que a parcialidade a que se chega depende, no seu grau (embora
difícil mensurar o quantum), de muitos saberes que não aquele jurídico. Trata-se, portanto, de uma linha
média, que não abdica, de forma alguma, da dogmática (dado ser imprescindível o seu conhecimento, sob
pena de se não ter juristas, mas verdadeiros gigolôs), a qual deve estar sempre atenta ás arapucas ideológicas
do positivismo e, assim, abre-se, por necessidade, por ser imperioso, a outros saberes, a serem dominados na
medida do possível” (COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Dogmática crítica e limites lingüísticos da lei.
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O PODER CONSTITUINTE E A CONSTRUÇÃO DAS UTOPIAS:
SUAS POSSIBILIDADES E LIMITES
Paulo Magalhães da Costa Coelho*
Palavras-chave: Poder Constituinte. Poder Constituinte e a construção das utopias. A
utopia: quimera ou realidade possível. Utopia e Constituição.
1
INTRODUÇÃO
Esse trabalho representa a tentativa de sistematização de algumas reflexões e
idéias, ao mesmo tempo sistematizadas e críticas, sobre a teoria da Constituição e do
Poder Constituinte, sem se esquecer jamais do caráter inter-disciplinar do direito e, notadamente, suas íntimas relações com as nominadas ciências humanas, a Sociologia, a
Filosofia e a Antropologia.
Desnecessário dizer que o trabalho - mesmo porque fruto de reflexões que
ainda estão a merecer maior aprofundamento - não pretende dissertar sobre verdades absolutas, estas sempre precárias e provisórias no campo da ciência. Aliás, verdades absolutas e ciência são conceitos antípodas, porque essa requer o permanente
questionamento como meio de se obter o progresso científico.
*
Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC de São Paulo. Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Campinas e Professor de Filosofia do Direito do Curso de Pós-Graduação em Direito Constitucional da
Instituição Toledo de Ensino de Bauru.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Ao mesmo tempo, porém, em que o trabalho não pretende criar verdades absolutas, não se furta a questionar idéias ou conceitos absolutos, menos pela estéril
rebeldia pseudo-científica e mais por reconhecer que só do debate sem preconceitos
dos dogmas estabelecidos é que advém o progresso científico que, aliás, desde logo
deve ser frisado, não é algo que esteja alheio à realidade humana. Não tenho receio
de afirmar que o progresso da ciência não tem valor algum senão relacionado com a
aventura e o drama humanos. A ciência não serve a si mesma, mas ao progresso e à
felicidade do Homem, que é a medida de todas as coisas.
É nesse contexto que o trabalho foi concebido e se tentará sistematizá-lo.
Ao início, aborda a questão do conceito e do fundamento do Poder Constituinte, demonstrando a dificuldade doutrinária em torno dessas questões.
Na seqüência, enfrentará o debate sobre a natureza do Poder Constituinte,
como um poder já juridicamente domesticado ou como um poder que se expressa
exclusivamente pela lógica das forças dos fatos, com evidentes conseqüências sobre
suas possibilidades e limites.
Após, se analisarão os graus do poder constituinte e se abordará o aspecto
primordial do trabalho que é a demonstração das possibilidades e limites do Poder Constituinte e seu papel na aventura da construção das utopias humanas que,
exatamente por serem utopias, jamais serão inteiramente alcançadas, mas que, por
representarem o melhor que o gênero humano produziu para a convivência fraterna,
ética e igualitária das pessoas humanas, devem ser buscadas e construídas historicamente, ainda que de modo imperfeito.
É a isso que o trabalho se propõe.
2EM TORNO DO CONCEITO DE PODER CONSTITUINTE
São absolutamente indissociáveis as idéias de Estado e Poder Constituinte.
Não se poderá conceituar o Poder Constituinte sem se ter clara sua ligação
com o fenômeno político que, por sua vez, é manifestação da própria natureza humana, que não existe senão com a característica de ser gregária, social e histórica.
O Estado é manifestação, talvez a mais complexa, do fenômeno político que é
próprio e decorre da convivência dos homens com seus semelhantes, condição primeira de sua formação e perpetuação como espécie.
As formas de Estado variaram conforme os distintos, espaços geográficos e
momentos históricos em que se formaram, evoluíram e pereceram.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 291-314, jan./jun. 2006.
COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Mas é com o Estado Moderno, a sociedade política mais complexa e extraordinária da história do Homem, que se relaciona inteiramente o conceito de Poder
Constituinte.
É com a idéia de que não apenas as pessoas, mas também o Estado devem
sujeitar-se ao direito, que ganha corpo a Nação e o conceito de Poder Constituinte.
A idéia de autoridade estatal vai se legitimar em torno de um ideário ou de
um sistema de normas que confirmará direitos e deveres, transformando homens em
cidadãos, como, ainda, determinará que a autoridade estatal exercida pelos governantes deva se expressar dentro de certos pressupostos e limites.
A idéia do exercício da autoridade se desloca do eixo da força ou da mera conveniência, para ganhar legitimidade como “autoridade constituída”, segundo regras
previamente estabelecidas.
Para que haja, todavia, direitos reconhecidos aos cidadãos e que se imponham
ao próprio Estado, para que haja “autoridade constituída”, enfim, a sujeição do próprio Estado a certos regramentos, é preciso conceber um poder anterior e de cuja
expressão seja soberana e constituidora e não meramente constituída.
E justamente a esse poder que surge como confirmador da estrutura do Estado e que confere direitos e deveres aos cidadãos e impõe limites à própria soberania
do Estado, dá-se o nome de Poder Constituinte.
Sua característica será a de ser um poder pré-jurídico – no momento da formação do Estado Constitucional – e a expressão mais perfeita do poder político que
ganha conformação institucional.
Daí o porquê irá conceituá-lo J. H. Meirelles Teixeira como aquele que
[...] aparece como a etapa primeira, a mais alta, de atuação do poder político, porque é então que se institucionaliza política e juridicamente a nação
que se está transformando em Estado (Estado nada mais é que Nação juridicamente organizada), que se funda, que se cria, portanto, o Estado; que
na ausência de Constituição e de Governo estabelecido de acordo com normas jurídicas anteriores (porque estas ainda não existem) se estabelece um
“governo de fato”, e, normalmente, se convocam “eleições constituintes”,
através das quais se elege uma Assembléia Constituinte, que irá elaborar e
promulgar a primeira Constituição.
Curso de Direito Constitucional, pág. 203/204.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
O Poder Constituinte, como doutrina, foi inicialmente pensado pelo Abade
Sieyès que em seu “Quem é o Terceiro Estado?” soube aprender a característica fundamental desse poder originário e seu caráter constituidor (Potestas Constituens),
assim como estabeleceu uma relação precisa entre ele e a nação.
O Poder Constituinte seria, então, atributo da nação e expressão de sua soberania e que, ao elaborar uma constituição, não estaria preso a limites pré-existentes.
Daí o porquê de se operar a distinção entre essa forma peculiar de manifestação da soberania da nação dos poderes ditos constituídos, ou seja, criados e conformados por obra do Poder Constituinte.
George Burdeau, em seu “Traité de science politique”, demonstrará a dificuldade de se analisar juridicamente o fenômeno do Poder Constituinte, dada a natureza
muito especial. O exercício do poder pressupõe a existência de competência de modo
a ser domesticado e, por isso mesmo, facilmente analisado juridicamente.
O Poder Constituinte, todavia, não se enquadra nessa formulação por ser ele
mesmo o poder criador, não se enquadrando no rigor da análise jurídica, nem se
submetendo - pelo menos em sua manifestação primeira - a condicionamentos da
ordem jurídica.
Raul Machado Horta, analisando a doutrina de Burdeau em torno da natureza
do Poder Constituinte, dirá em excelente síntese sobre a temática:
Com o poder constituinte, diz Burdeau, acontece o contrário, pois ele é rebelde
a uma integração em sistema hierarquizado de normas e competências. É que
ele é o poder criador da ordem jurídica, fixando-lhes os princípios e oferecendo-lhes seus investimentos. Burdeau localiza o poder constituinte originário
no ponto de conexão entre a Política e o Direito, entre a turbulência das forças
sociais e a serenidade dos procedimentos, entre a desordem revolucionária e
a ordem dos regimes estabelecidos.
Evidentemente que a análise em torno do conceito de poder constituinte é
complexa e não se esgota em poucas linhas de um item de um trabalho.
A própria natureza muito especial desse poder não permite a sistematização
fácil de sua questão conceitual.
Foram lançadas, porém, algumas idéias em torno desse fenômeno histórico
extraordinário, cuja problematização se dará no correr do fluxo do trabalho. O poder
constituinte é um poder de fato e, por isso mesmo, absoluto e ilimitado, ou um poder
Obra citada, pág. 181/182.
Estudos de Direito Constitucional, pág. 25/26.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
que - nada obstante suas peculiaridades - também se submete de alguma forma à
ordem jurídica?
3O FUNDAMENTO DO PODER CONSTITUINTE
A questão do conceito de Poder Constituinte nos remete necessariamente, a
uma outra reflexão.
Se se admite com tranqüilidade que o Poder Constituinte, dito originário, não
haure suas forças nos poderes constituídos e nas competências instituídas, mas sim
que é ele um poder criador que difere radicalmente dos poderes do Estado, onde
residirá seu fundamento é a pergunta que se impõe.
Forçoso concluir que, embora se possa admitir um condicionamento constitucional pela cadeia de constituições criadas ao longo da história, a primeira delas,
aquela que se confundiu mesmo com o momento de formação do Estado Constitucional, foi incondicionada por norma positiva de qualquer categoria. De onde provém, portanto, a fonte legitimadora desse poder criador.
Kelsen, procurando responder a questão, criou o conceito de “norma hipotética fundamental”, que fundaria e condicionaria toda ordem jurídica e, inclusive, as
Constituições.
Colocada no topo da pirâmide, como pressuposto lógico do sistema, a “norma
hipotética fundamental” seria a autoridade legitimadora de todas as demais normas
jurídicas positivas.
Convém, todavia, ressaltar que a genial elaboração Kelseniana, por ser uma
mera pressuposição lógica ou por dar por logicamente suposto o fundamento da
Constituição, pode até encerrar a discussão em torno do tema - por dele se afastar
- mas não responde a incômoda indagação do fundamento do Poder Constituinte.
A chamada teoria da positividade, por outro lado, que procurou legitimar a
validade obrigatória das normas jurídicas, por sua própria existência, também se
mostra insuficiente.
É por demais simplório sustentar que as normas valem em decorrência de
sua própria positividade que se sustenta em uma força capaz de dotá-las de coerção,
seja a legitimidade do consenso ou até mesmo a ilegitimidade da violência e da arbitrariedade.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
A teoria, em verdade, não está preocupada em buscar o fundamento do Poder Constituinte, mas simplesmente legitimar a ordem jurídica positiva, qualquer
que seja ela.
A única razão fundante para o poder constituinte deverá ser, sem embargo
das diversas teorias sobre o tema, metajurídica, vale dizer, residirá em fundamentos
e princípios superiores éticos, filosóficos e políticos que estão fora do direito positivo
ou a ele são transcendentes.
Sobre o tema, superiormente dirá J. H. Meirelles Teixeira:
O fundamento da Constituição não é e nem pode ser, portanto, nenhuma
norma jurídica prévia ou superior. Na expressão do mesmo Recaséns Siches, a norma constitucional (Constituição), que serve de base para todo o
sistema jurídico, apóia-se, em última instância, em “algo superior e anterior
a todo direito estabelecido”sobre um “fenômeno real de existência política”. A base, o fundamento último de um sistema de normas jurídicas”, não
é, portanto, em última análise, algo normativo, mas algo real: a vontade
social, que da integração à comunidade política, imprimindo-lhe certas diretivas.” Essa “vontade social” não é aquela entidade misteriosa, metafísica,
do romantismo político, mas um simples “processo”, “uma resultante, um
equilíbrio das vontades individuais” existentes no interior do Estado. Esta
vontade social, manifestando-se sobre a existência política da nação, sobre o modo dessa existência, sobre a organização jurídica da nação, que a
transformará em Estado, é o poder constituinte.
O que importa notar, aqui, em última análise é que a Constituição como o
ápice da pirâmide das normas jurídicas, nelas não poderá encontrar seu fundamento,
mesmo porque aqueles princípios dos quais se originaram as normas constitucionais, não podem ser explicados por razões tão-somente jurídicas, mas sim por princípios e valores que são a elas transcendentes.
IV.
PODER CONSTITUINTE ORIGINÁRIO: PODER DE FATO OU
DE DIREITO?
Como se tem por assente que o poder constituinte originário é o criador da
ordem jurídica que nele encontra fundamento de validade e não o contrário, discutese sobre sua natureza.
Obra citada, pág. 200.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 291-314, jan./jun. 2006.
COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Será o poder constituinte originário um meio poder de fato, circunstância que
lhe concede um caráter de ser absoluto e incondicionado?
Ou será ele também em certa medida um poder já juridicizado, uma vez que
mesmo ele encontra seus limites.
Considerando ser o poder constituinte aquele que irá originar o primeiro e
mais fundamental estatuto jurídico do Estado e em seqüência emprestar validade a
toda cadeia normativa com ele compatível, negam os normativistas o caráter jurídico
desse poder, cuja autoridade é histórica e factual.
Bem por isso seria impossível emprestar uma disciplina jurídica adequada
a uma manifestação de poder que é pré-jurídica e como tal deve ser estudada por
outras ciências que não o direito.
Celso Antonio Bandeira de Mello, abordando a questão em conferência ministrada e publicada na Revista de Direito Constitucional, com a força de sua argumentação, sustentará:
A primeira indagação que ocorreria é se o Poder Constituinte é um Poder Jurídico ou não. Se se tratar de um dado interno do mundo do direito ou se, pelo
contrário, é algo que ocorre no plano das relações políticos sociais, muito mais
do que no plano da realidade do direito. E a minha resposta é que o chamado
Poder Constituinte originário não se constitui num fato jurídico. Em rigor as
características, as notas que se apontam para o Poder Constituinte, o ser incondicionado, o ser ilimitado, de conseguinte não conhece nenhuma espécie
de restrição, já estão a indicar que ele não tem por referencial nenhuma espécie
de norma jurídica, pelo contrário, é a partir dele que vai ser produzida a lei
suprema, a norma jurídica suprema, o texto constitucional; tem-se concluir que
o Poder Constituinte é algo pré-jurídico, precede, na verdade, a formação do
direito.
Parcela expressiva da doutrina, porém, argumenta, com base nos fundamentos do jusnaturalismo, que o direito não é tão-somente aquele positivado. Direitos
outros existem, supra-positivos, e que decorrem da própria natureza humana e que
prende à própria existência do Estado.
Esse direito suprapositivo conferirá certa disciplina, certa domesticação ao
conteúdo fático presente no Poder Constituinte originário, fazendo-o tributário de
seus princípios e valores.
Revista de Direito Constitucional, pág. 4/69.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Percebendo o extraordinário conteúdo de poder factual embutido na manifestação do Poder Constituinte, Georges Burdeau sustentará, no seu “Traité de science
politique”, o seu caráter autônomo e incondicionado e sua insubordinação à ordem
jurídico-constitucional pretérita, porque é poder criador e não demiúrgico. Mas ressaltará Burdeau que nem por isso deixará também o Poder Constituinte de ser um
poder de direito. Porque poder de direito, como sustenta Raul Machado Horta, citando o mesmo Burdeau, não é só aquele que promana de um estatuto positivado
anterior ou, em suas palavras,
É erro supor que o poder de direito seja unicamente aquele que cuja existência e exercício se acham condicionados por estatuto jurídico anterior. Seria
paradoxal recusar qualificação jurídica ao poder portador da idéia de direito
que se imporá no ordenamento jurídico em seu conjunto. A verdade, conclui
Burdeau, é que esse singular poder não é comandado pelo direito positivo
estatal. Admitindo que o direito preceda ao Estado, o poder constituinte converte-se na mais evidente prova dessa anterioridade.
No estudo da questão, Canotilho apontará que a idéia de um poder constituinte, absolutamente incontrastável na expressão de sua radicalidade, estaria ligada ao
seu figurino francês e ao ideário presente no momento da revolução francesa, tendolhe sido reconhecido o poder divino de constituir, de editar normas e de criação a
partir do nada.
Contudo, admitirá na seqüência, Canotilho:
A doutrina actual rejeita essa compreensão. Desde logo, se o Poder Constituinte se destina a criar uma Constituição concebida como organização
e limitação do poder, não se vê como esta “vontade de constituição pode
deixar de condicionar a vontade do criador. Além disto, as experiências
humanas não revelando a indispensabilidade de observância de certos
“princípios de justiça”que, independentemente da sua configuração (como
princípios suprapositivos ou como princípios supra-legais mas “intra-jurídicos” são compreendidos como limites de liberdade e de onipotência do
poder constituinte.
Também ainda em torno do tema, Nelson Saldanha, no seu extraordinário “Poder Constituinte”, procedendo à distinção entre um poder constituinte pré-constitucional e um poder constituinte interconstitucional, afirmará o seu caráter jurídico.
Estudos de Direito Constitucional, pág. 26.
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 75.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Dirá, então, Nelson Saldanha que induvidosamente o poder constituinte distingue-se dos poderes do Estado, poderes constituídos.
Todavia, admite para a necessidade de se analisar os momentos históricos da
manifestação do poder constituinte.
Quando se manifestar no momento externo e radical, na origem mesmo do
Estado Constitucional poderá ser considerado um poder pré-constitucional.
Entretanto, se sua manifestação já encontra uma ordem estatal-constitucional
dada, assevera, em verdade, um caráter inter-constitucional, com a característica dialética de romper e ligar-se à antiga Constituição.
Daí porque sustentará que, em certo sentido, esse poder constituinte será
também constituído, porque já estará imbricado numa ordem constitucional. Sua
natureza, portanto, não seria pré-constitucional, mas sim transconstitucional.
É o que sustenta, com o brilho invulgar de seus argumentos,
Mas o poder constituinte também é, em certo sentido, um poder constituído. A ordem constitucional não só o implica como o contém; ele (entendido
como “instituído” no sentido que adotamos, não como originário e inicial)
pressupõe uma base constitucional, prossegue através das Constituições
que gera (ver parágrafo 9); é então um poder que podemos chamar “transconstitucional”. Como originário terá a precedê-lo apenas os princípios
jurídicos genéricos, mesmo nos casos revolucionários; como instituído
supõe eleições, supõe um processo de atribuição de poder a um grupo representativo. Nem se pode imaginar um poder constituinte, em momento
originário, atuando hoje com independência absoluta de uma experiência
constitucional qualquer, como o terão sido as primeiras tentativas constitucionais na história do Ocidente. Portanto, ao menos em sua fase instituída,
que é de resto a definitiva, o poder constituinte aparece como um poder
constitucional e pois constituído
5
GRAUS DO PODER CONSTITUINTE
A análise dos graus do Poder Constituinte não pode prescindir da evidência
de que, como quer Nelson Saldanha, sendo ele um poder que se expressa historicamente, possuirá uma ou outra radicalidade, conforme o momento histórico em que
venha a se manifestar.
O Poder Constituinte, pág. 84.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Nesse aspecto e com base na profunda doutrina de Nelson Saldanha, é possível entender os diferentes graus do poder constituinte, conforme se expresse ele
num momento fundamental que se confunde com a própria criação do Estado Constitucional ou em momento posterior no qual sua expressão já encontrará uma certa
estrutura estatal mais ou menos complexa.
Distinguindo os momentos históricos nos quais se dá a atuação do Poder
Constituinte, Nelson Saldanha sustentará que é necessário compreender o fenômeno
concretamente. Dirá, então:
No primeiro caso, o problema consiste em se compreender o poder constituinte situado, ou em um momento de sentido extremo e radical, isto é, no
que se possa chamar de “primeiro” ato constituinte de uma comunidade
política, ou em outro momento, mais “atual”, em que ele se ache disponível
dentro de uma existência estatal - constitucional dada.
Nelson Saldanha chamará ao Poder Constituinte, que está na base da formação do Estado Constitucional moderno, como originário e aquele que se expressa historicamente já dentro ou na seqüência constitucional, de poder constituinte
instituído.
Para sua teoria, originário deve ser considerado tão-somente o poder constituinte que atue num momento primeiro que se confunde com o próprio nascimento
do Estado Constitucional e que, portanto, não seja condicionado por norma positiva
anterior.
Por outro lado, nomina instituído o Poder Constituinte que se inserirá numa
ordem ou numa seqüência constitucional e, portanto, se expressará dentro de um
ordenamento jurídico pré-existente.
A distinção de graus do Poder Constituinte que propõe pode ser singelamente
resumida na seguinte proposição: Poder Constituinte originário é aquele que se expressou no momento da formação do Estado Constitucional e, por isso mesmo, nasceu, sob certo prisma, incondicionado. A partir desse momento extremo que se confundirá com a própria gênese do Estado Constitucional, o poder constituinte, ao se
expressar nos momentos históricos subseqüentes, será, de certa forma, condicionado
pelas manifestações anteriores e, portanto, também, em alguma medida instituído.
A maioria dos doutrinadores, todavia, tratará a questão de modo diverso,
identificando o poder constituinte originário como aquela potência capaz de elaborar
O Poder Constituinte, pág.78.
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COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
uma Constituição em todo e qualquer momento histórico e o denominado derivado
como aquele já previsto nas Constituições, capaz de empreender suas reformas.
Paulo Bonavides dirá sobre a questão que,
Costuma-se distinguir o poder constituinte originário do poder constituinte
constituído ou derivado.
O primeiro faz a Constituição e não se prende a limites formais: é essencialmente político ou, se quiserem, extra-jurídico.
O segundo se insere na Constituição, é órgão constitucional, conhece limitações tácitas e expressas, e se define como poder principalmente jurídico, que
tem por objeto a reforma do texto constitucional.10
A distinção operada pela doutrina ou conforme o enfoque que se dê a essa circunstância das diferentes manifestações do Poder Constituinte, segundo o momento histórico
em que atue, terá significativas conseqüências ao se abordar em momento posterior, a
questão dos limites jurídicos e extrajurídicos que se impõe ao Poder Constituinte.
Sem embargo das classificações que os diversos doutrinadores dão à temática, a contribuição da doutrina de Nelson Saldanha está justamente na singularidade
de demonstrar, e isso de forma induvidosa, que existirá um poder constituinte, por
assim dizer, pré-constitucional, e um poder constituinte constitucional que, nada
obstante a força renovadora que traz dentro de si, não poderá simplesmente ignorar,
por absoluto, a ordem constitucional pretérita consolidada ao longo da história dos
Estados Constitucionais.
6
POSSIBILIDADES E LIMITAÇÕES DO PODER CONSTITUINTE
O Poder Constituinte não é um fenômeno que possa ser analisado abstratamente.
Em verdade, por ser um fenômeno histórico de se expressa, portanto, historicamente, sua análise há que ter em conta o momento concreto de sua manifestação
na vida dos povos.
Impossível falar-se dos eventuais limites dessa força soberana, senão situandoa historicamente e nela observando as dimensões fáticas e jurídicas que a compõem.
Ao nosso ver, o Poder Constituinte não pode ser considerado tão-somente
como força fática ou, por outro lado, apenas como um fenômeno jurídico, uma disciplina jurídica.
10
Curso de Direito Constitucional, pág. 125.
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Dialeticamente, fato e norma compõem o Poder Constituinte, remetendo-lhe a um
original, mas ao mesmo tempo emprestando-lhe algum grau de disciplina jurídica.
Momentos haverá em que se expressará ele com toda a força de sua radicalidade fática, como naquelas hipóteses em que se confundirá com a própria formação
do Estado Constitucional e, em outros, sua manifestação já se depará com uma ordem estatal e com uma cadeia condicionante de Constituições pretéritas.
Em um e outro caso, com as gradações próprias de cada momento histórico,
se depará ele com certos limites, inclusive de natureza jurídica.
A postura clássica da doutrina francesa, que concebia o Poder Constituinte
como uma força incontrastável, encontra hoje certas objeções a evidenciar limites
políticos, jurídicos e suprapositivos.
Dirá Canotilho que a doutrina atual rejeita o Poder Constituinte como um
poder jurídico e socialmente desvinculado, e esclarece:
... se o poder constituinte se destina a criar uma Constituição concebida como
organização e limitação ao poder, não se vê, como essa “vontade de Constituição” pode deixar de condicionar a vontade do criador. Por outro lado, esse
criador, este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e obedece
a padrões e modelos de condutas espirituais, culturais, éticas e sociais radicados na consciência jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como “vontade do povo”. Além disto, as experiências humanas vão
revelando a indispensabilidade da observância de certos princípios de justiça, independentemente de sua configuração (como princípios supra-positivos ou como princípios supra-legais mas infra-jurídicos) são compreendidos
como limites de liberdade e de omnipotência do poder constituinte.11
Também Nelson Saldanha, e com o mesmo brilho, postulará e demonstrará a
existência de certos limites a essa extraordinária força criadora e criativa.
Dirá, então, que
O poder de criar uma constituição, se é por uma parte em poder livre e incondicionado, e, sob o aspecto positivo, um poder pré-jurídico, por outra parte é
um poder atraído por um fim, orientado por um objetivo jurídico, e como tal
controlado, domesticado, limitado. Não fora limitado e não seria jurídico; se o
fosse de todo, não seria um poder sociologicamente distinto, nem constituinte.
Na proporção de seus limites estão porém seus alcances, de vez que esta mesma
11
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pág. 75.
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combinação de fato e norma, que o segura, lhe fornece as mais concretas perspectivas de atuação.12
6.1Poder Constituinte originário
Mesmo na atuação do Poder Constituinte originário - seja no momento de sua
radicalidade extrema, seja como Poder Constituinte instituído, como chama Nelson
Saldanha, aquele poder que tem a força de elaborar uma Constituição, mas que se
expressará dentro de uma seqüência constitucional - encontrará limites de natureza
jurídica e extra-jurídica.
Sobre o tema, afirmará a doutrina de Jorge Miranda:
“O poder constituinte é logicamente anterior e superior aos poderes ditos constituídos - na tricotomia clássica, o legislativo, o executivo e o judicial.[...]
Daí não decorre, porém, que o poder constituinte equivalha a poder soberano
absoluto e que signifique a capacidade de emprestar à Constituição todo e
qualquer conteúdo, sem atender a quaisquer princípios, valores e condições.
Não é o poder soberano absoluto - tal como o povo não dispõe sobre um
poder absoluto sobre a Constituição - e isso tanto à luz de uma visão jusnaturalista ou na perspectiva do Estado de Direito como na perspectiva da
localização histórica concreta em que se pronunciar o órgão nele investido. O
poder constituinte está sujeito a limites.
Embora seja mais corrente na doutrina considerar a existência (ou a possibilidade ou necessidade de existência) de limites materiais do poder de revisão constitucional - freqüentemente tido como poder constituinte derivado
- importa outrossim considerar a existência de limites materiais (em graus
diversos, se se quiser) do poder constituinte verdadeiro e próprio, e mesmo
do poder constituinte material originário.13
6.1.1 Limitações extrajurídicas
Uma das primeiras limitações à atuação do poder constituinte a ser anotada
é aquela que diz respeito aos contornos políticos e sociais no seio do qual irá se manifestar.
12
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O Poder Constituinte, pág. 90.
Manual de Direito Constitucional, pág. 105/106.
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Evidente que a eclosão do Poder Constituinte, quase sempre estará organicamente vinculada a uma situação revolucionária ou, no mínimo, reformadora do
status quo.
Por trás da força fática do Poder Constituinte, haverá sempre um ideário,
doutrinas, ainda que não inteiramente hegemônicas e que ditarão regras e, portanto,
imporão limites à sua ação soberana.
Assim, por exemplo, a Constituição que se seguiu à proclamação da república
estava fortemente influenciada por um ideário, por certas doutrinas dominantes à
época que, evidentemente, o Poder Constituinte, com toda sua força fática, não poderia contrariar. A forma de governo republicano, o estado federativo, a separação dos
poderes temporal e espiritual, a rotatividade periódica nos cargos eletivos, formaram
um ideário que, naquele momento histórico, impunham um limite à soberania do
Poder Constituinte que não poderia contrariá-lo e sim consagrá-lo.
Ninguém admitirá, por outro lado, no atual estágio de desenvolvimento da
consciência coletiva ética e jurídica dos povos, uma constituição que possa restabelecer a escravidão.
Há, ainda, outras limitações como a própria soberania que, como aponta
Nelson Saldanha, em sua extraordinária monografia sobre o Poder Constituinte, é
ao mesmo tempo sua fonte e sua limitação. Isso porque o Poder Constituinte atuará
apenas e tão-somente na órbita de sua soberania.
6.1.2 1imitações jurídicas
O Poder Constituinte, dito originário ou instituído, também ele possui limites,
inclusive, de natureza jurídica.
Parte da doutrina sempre rejeitou a idéia de que o Poder Constituinte originário, sobretudo aquele que se expressaria em momentos de graves rupturas institucionais, viesse a possuir limites de natureza jurídica.
Diz, acertadamente, que nesses momentos históricos, o Poder Constituinte
não age condicionado por uma pré-positividade.
Ainda que existente esse direito anterior, o Poder Constituinte não lhe reconhece validade ou eficácia para se interpor entre sua manifestação e sua resultante.
No momento em que o Brasil foi constituído como república, evidentemente,
reviram as leis da Monarquia. Nesse sentido, o Poder Constituinte não foi por elas
condicionado ou influenciado.
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Isso deve ser, absolutamente, aceito. Todavia, existem certos princípios vinculados à dignidade humana que, embora suprapositivos, mas intrajurídicos como
postula Canotilho, se impõem como limite ao Poder Constituinte e vão contrabalançar seu elemento fático.
Esses princípios, ligados à dignidade humana, como a liberdade, a igualdade - jurídica e material -, o acesso aos bens materiais e imateriais necessários ao
desenvolvimento da personalidade, a ausência ou a proibição de discriminações, se
estabelecem como um limite à atuação soberana do Poder Constituinte, ainda que
originário, e por ele não podem legitimamente ser negados.
Evidentemente que a Constituição não irá haurir sua legitimidade seja em
outra Constituição, seja na ordem jurídica positiva anterior.
Mas como adverte J. H. Meirelles Teixeira,
note-se que falamos em ausência de subordinação do Poder Constituinte a
normas jurídicas positivas anteriores.
Há normas não positivas, e contudo jurídicas, às quais o Poder Constituinte
está sujeito: os grandes princípios do Direito Natural, da Justiça e da democracia, os princípios gerais do direito, os grandes princípios da convivência
internacional.
Em relação a esses princípios, não positivos, mas jurídicos, num sentido superior e mais elevado ainda, aos quais o Poder Constituinte está subordinado,
pode-se falar em juridicidade da Constituição.”14
Evidentemente que, se na hipótese mero poder fático se sobrepor a todas essas exigências, desconhecendo os direitos inalienáveis da pessoa humana, impondose exclusivamente pela força, não haverá aí, legitimamente, manifestação do Poder
Constituinte.
Haverá opressão, arbítrio, mas não legitimamente Constituição.
Só há legítima manifestação do Poder Constituinte e só se pode falar assim
em Poder Constituinte e não de mero poder que se impõe pela lógica da força, quando em sua manifestação estiver presente o equilíbrio entre o individual e o coletivo, a
justa equação que postula Nelson Saldanha deva ser buscada pelo Estado Moderno.
Bem por isso admitirá a doutrina de Jorge Miranda:
Os limites transcendentes são os que, antepondo-se ou impondo-se à vontade do Estado (e, em poder constituinte democrático, à vontade do povo)
e demarcando a sua esfera de intervenção, porém de imperativos de Direito
14
Curso de Direito Constitucional, pág. 222.
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Natural, de valores éticos superiores, de uma consciência jurídica coletiva
(conforme se entender).
Entre elas se avultam os que se prendem com os direitos fundamentais imediatamente conexos com a dignidade da pessoa humana. Seria inválido ou
ilegítimo decretar normas constitucionais que gravemente os ofendessem
(v.g.), que estabelecessem o arbítrio no seu tratamento com o Estado, que
negassem a liberdade da crença ou a liberdade pessoal, que criassem desigualdades em razão da raça ou em Portugal, pelo menos, que restaurassem
a pena de morte.15
Ao que deve visar o Poder Constituinte contemporâneo, já experimentado
pelo decurso da história senão o estabelecimento de um programa, de uma meta
concretizável, dentro de um clima de respeito às liberdades individuais e de promoção integral da pessoa humana. Afinal, qual é a finalidade última do Estado senão
proporcionar racionalmente a todas as pessoas a participação na herança material e
espiritual da civilização humana.
6.2 Poder Constituinte derivado
Como se viu, de um ponto de vista funcional, o Poder Constituinte pode ser
definido como aquele a que se atribui o poder de criar a Constituição e distribuir as
competências do Estado.
Haverá Poder Constituinte tanto na manifestação primeira, que cria a primeira Constituição e cujo momento se confunde com o surgimento do Estado Moderno,
como, ainda, em outras situações nas quais a nova ordem constitucional se integrará
naquilo que Nelson Saldanha denomina “regime constitucional” ou “interconstitucionalidade”.
Na hipótese do poder de reforma, a situação é um pouco distinta.
Embora se admita que a manifestação do poder reformador também implique a idéia ou a manifestação do Poder Constituinte, autores há que lhe negam esse
traço distintivo.
Mas mesmo para aqueles que buscam ou sustentam a essência única do Poder Constituinte, é impossível não distinguir certas diferenças essenciais entre ambos, com evidente reflexo no tema de suas limitações.
15
Manual de Direito Constitucional, pág. 107.
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Burdeau chamará de originário o poder de fazer uma constituição e de instituído o poder de revê-la, mas sempre identificando com o Poder Constituinte.
Classicamente, a doutrina costumeira emprega a terminologia “Poder Constituinte originário” e “Poder Constituinte derivado”.
Nelson Saldanha, em sua extraordinária monografia sobre o Poder Constituinte, irá criticar como identificação e demonstrará o traço distintivo entre os fenômenos. Afirmará, então, que o Poder Constituinte, por colocar toda vida constitucional, quando não a preceder, terá um alcance muito maior que o poder de reforma.
Nelson Saldanha postula que o poder de reforma não é criador, mas demiúrgico na medida em que apenas trabalha e refaz a Constituição já elaborada.
Dessa postura, decorre, evidentemente, a conseqüência de se verificar limites
postos pela Constituição à própria possibilidade de sua reforma.
O sentido do Poder Constituinte não é apenas formal, mas material, qual seja,
destinada a uma missão específica de colocar a ordem constitucional. E, esse sentido
material, o poder de reforma não o possui.
6.2.1 Limites constitucionais de reforma
De toda distinção anteriormente procedida, decorre logicamente a evidência
de que, ainda que se admita o caráter constituinte do poder de reforma, estará ele sujeito a diversos limites, sejam formais, sejam materiais, em grau de intensidade muito
maior do que aqueles eventualmente colocados ao Poder Constituinte originário.
Dentre os limites ditos formais, sobreleva notar aqueles relacionados ao procedimento: iniciativa, quorum, dentre outros.
Há, também, outros relacionados aos aspectos temporais quando a Constituição impede sua reforma ou a revisão de certa matéria senão decorrido outro lapso
de tempo.
Ao lado de limitações formais ao poder de reforma, limites outros de conteúdo material a ele se impõem impedindo sejam revistas as denominadas cláusulas
pétreas.
Para o citado Jorge Miranda,
Mantendo-se em vigor a mesma Constituição, o poder de revisão é um
poder constituído, como tal sujeito às normas constitucionais; quando o
poder de revisão se libertasse da Constituição, nem haveria mais Constituição, nem poder de revisão, mas sim Constituição nova e poder constituinte
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originário. A subordinação material do poder de revisão constitucional ao
poder constituinte (originário), de revisão constitucional à Constituição,
é um postulado lógico: por uma banda, se o poder de revisão se deriva do
poder constituinte, a revisão constitucional que realiza não pode ir contra
a Constituição como totalidade instituída pelo mesmo poder constituinte;
por outra banda, se a revisão constitucional é a revisão de normas constitucionais, não a feitura de uma Constituição nova, ela fica encerrada aos
limites da Constituição.[...]
O poder de revisão é um poder constituinte, porque diz respeito a normas
constitucionais. Mas é poder constituinte derivado, porque não consiste em
fazer nova Constituinte, introduzindo princípios fundamentais em vez de outros princípios fundamentais.16
Aqui, nesse aspecto, razões metajurídicas impediram que o poder de reforma
viesse a tocar em questões estruturais do Estado e em direitos e garantias individuais.
Na vigência da ordem constitucional inaugurada em 1988, expressamente são
vedadas a abolição da forma federativa do Estado, o voto direto, secreto, universal e
periódico, a separação dos poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º
da C.F.).
Acresce notar, outrossim, que, ao lado dessas cláusulas pétreas explícitas,
existem outros limites implícitos à reforma e que derivam do próprio espírito da
Constituição.
Dentre eles, evidentemente, estavam aqueles princípios superiores, suprapositivos e supraconstitucionais que se impõem, inclusive, ao Poder Constituinte originário, como já analisado em tópico anterior.
Aqui caberia, também, uma palavra quanto àqueles direitos de índole social e
que representam uma conquista dos trabalhadores, como, por exemplo, a garantia da
limitação da jornada de trabalho, a liberdade sindical, dentre outros.
Poderíamos fazer um referência à igualdade jurídica e à igualdade material, a independência e separação dos poderes, a impossibilidade da subtração
do Poder Judiciário de qualquer lesão a direito, devido processo legal, a fundamentação das decisões administrativas e judiciais, enfim toda uma gama de
garantias da cidadania, como pressuposto do desenvolvimento da personalidade
e o alcance do bem comum, da convivência fraterna e igualitária dos homens, um
rico caminho a ser explorado.
16
Obra citada, pág. 197.
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PODER CONSTITUINTE E A CONSTRUÇÃO DAS UTOPIAS
7.1A utopia: quimera ou realidade possível
Utopia pode ser singelamente definida como um modelo ideal de sociedade,
por meio do qual se possa contrastar a sociedade histórica e real, mas destinada à
irrealização, a uma simples aspiração ou mesmo alienação das condições reais de
existência.
É mais ou menos assim que o nosso senso comum identifica a utopia, algo
inatingível, uma esperança irreal, uma quimera, enfim.
As quimeras, porém, seres híbridos e fantásticos, pertencentes ao imaginário
mitológico, compõem-se de partes de animais perfeitamente identificáveis na natureza.
Assim como nas quimeras, é possível identificar uma parte do real; também
nas utopias, é possível tornar realidade um ideal de convivência humana.
Ainda que um projeto seja utópico, sua tentativa de consecução sempre ferirá
e transformará o real, tornando menos iníquas as condições de vida dos homens.
A utopia pode ser sonho, mas não é uma miragem estéril, e sim uma ação e
finalidade coletivas.
Muito do que se considerava no século passado utopias científicas, meras ficções, não passam hoje de realidade banal, a demonstrar que a intervenção do homem
pode transformar a natureza, o mundo e, portanto, suas próprias condições de vida
e existência.
A utopia, ainda que muitas vezes sirva para tentativa de legitimação, possui
importante papel crítico das consciências coletivas e de importante modelo de crítica
do real, uma análise prospectiva de futuros possíveis para a humanidade.
Não que seja a utopia ela mesma um motor que movimenta a história, mas ela
é um vetor, um vetor axiológico que indica um caminho, uma direção.
Se a utopia propõe, muitas vezes, esperanças impossíveis, cuja frustração implicaria amargas desilusões, é preciso não perder de vista que ideal e real, conquanto não
possam ser inteiramente identificados, podem ser aproximados. O ideal pode fecundar o
real e transformá-lo.
A utopia não é mero devaneio, mas sim uma análise prospectiva de futuros possíveis ou não e que pode estabelecer, assim como o mito, uma importante relação com
a realidade. Mas seu papel primordial não é ser a visão do mundo futuro, um arquétipo
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contemplado a priori por poucos, seu fundamental papel é ser a crítica do real e assim
nos impulsionar para um futuro que será construído e não só pensado melhor.
Como dirá Paulo Ferreira da Cunha,
Ao contrário dos que pensam que a utopia é uma espécie de visão do mundo
futuro - encarado esse, portanto, como um dado, um arquétipo que aos iluminados seria dado contemplar a priori -, consideramos que a grande vantagem
da utopia está em influir sobre a realidade presente, e assim actuar sobre a
constituição do futuro. Não é pelo seu “realismo” que uma utopia acaba por
se realizar. É pelo seu utopismo bem sucedido. E o sucesso do ideal no real
deve-se a todo o mare magnum dos acasos da história.17
Apenas completaria asseverando que não se deve perder a consciência crítica,
não dissolvê-la na mesmice das pretendidas unanimidades, tão ao gosto dos tempos
da globalização e, sobretudo, não se perder a esperança de sonhar, de transformar a
realidade pela intervenção consciente e pela generosidade fraterna dos homens.
7.2 Utopia e Constituição
A utopia não deve ser vista como uma mera tentativa de antecipação do futuro, mas aquela que aprende certos vetores presentes na sociedade real que - devido à
sua complexidade e sua historicidade, é muito mais conciliadora -, não pode assumilos na sua inteireza.
Assim, a utopia poderá falar livremente, por exemplo, na abolição do Estado,
sem que isso tenha sido em algum tempo histórico se realizado.
A utopia nos fornece prontos certos modelos que a realidade histórica só nos
deixará antever em aspectos multifacetados e caóticos, realizando-se, parcialmente,
ao longo da aventura humana do conhecimento da natureza, do mundo e das relações
sociais.
Daí o valor prospectivo das utopias, apontando erros, indicando caminhos e
pleiteando que se tome, neste momento histórico, as sóbrias medidas já antevistas.
Utopia e lei são realidades ou ideais que pretendem se excluir. A utopia radical
pretende prescindir das leis. E essas, confessadamente, não querem parecer utópicas.
Mas a lei pode ser um modo de intervenção e de transformação da realidade,
pode ser um vetor na construção de um programa utópico.
17
Constituição, Direito e Utopia, pág. 98.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 291-314, jan./jun. 2006.
COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Nas normas ditas programáticas da Constituição, por exemplo, não se pode
negar um certo valor utópico, conquanto deva ser esclarecido que ali não foram inseridas por mero diletantismo ideológico ou filosófico, mas sim para serem concretizados. São os vetores que apontam para o futuro. Assim, pode-se afirmar que o programatismo liga a Constituição à Utopia.
Esse componente utópico da Constituição nada tem de quimérico, mas de
projeto possível e realizável de cidade (sociedade) ideal.
O espírito constitucionalista, poderíamos dizer o Poder Constituinte, guarda
muita similitude com a concepção das utopias.
As inspirações utopistas muitas vezes são o motor iedeológico/filosófico das
revoluções e das transformações sociais.
No apaziguamento dessas forças inspiradoras e transformadoras, é preciso
criar as utopias legais e as Constituições após o embate entre as idéias e as forças
políticas e históricas representarão, em grande parte, a sociedade a que se almeja ou,
ao menos, a utopia possível naquele momento.
A utopia inspiradora é, por assim dizer, decantada e filtrada pela realidade
política e histórica, para ser transformada em discurso jurídico, em Constituição.
Abstraídos os regramentos de pormenores e de regulamentação secundária,
as lutas programáticas que se dão no seio do Poder Constituinte e que se transformam
em normas constitucionais são vetores importantíssimos a demonstrar a vontade
concreta de mudança social e o caráter, em certo sentido, utópico das Constituições.
Ainda que nesse aspecto a utopia e a Constituição não retratem um mundo
real e histórico, mas a um mundo ideal que, todavia, aspira a fecundar a realidade.
O momento histórico no qual atua esse extraordinário fenômeno constituinte, que recria em outras bases uma nova aspiração de mundo, sobre as ruínas das ilusões superadas, convida ao sonho e à ousadia de tornar possível os sonhos utópicos.
Nesse sentido, o Poder Constituinte destrói as velhas bases de um passado
injusto, mas para avançar nas conquistas humanas.
Não se trata apenas de negar uma velha ordem, mas, como as utopias, procurar a construção de um mundo novo, justo e feliz.
Só um utopismo de asas audazes e raízes profundas poderá arrancar como
um sopro renovador de metanóia, o conhecimento do político de seu presente marasmo, ou desencanto. Desde que se guarde de cair na cristalização do
sonho utópico. Não é, pois, o livro de Tomas Moro que mais importa: o que
conta, e o que permanecerá, é o seu olhar e o seu sorriso, desafiando o futuro
e as tiranias, subtil, firmemente. Para isso também, aí está o guarda vigilante
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 291-314, jan./jun. 2006.
COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
do Direito, a impedir, como âncora sólida e segura, largadas levianas e infelizes, mas igualmente a soprar os bons ventos da Justiça, esse utopismo de
todas as marés.18
É preciso lutar contra a proibição dos sonhos e a interdição das utopias que
subliminarmente vazam no discurso pragmático da contemporaneidade.
Mais do que eficiência e competência, é preciso não perder a capacidade de
ousar e, contra todas as evidências do discurso alienante das pretensas unanimidades, apontar um caminho de um mundo novo, fraterno e sobretudo mais justo.
Todos, e os operadores do direito, em particular, têm que resgatar o sentido
utópico das Constituições e torná-lo possível.
8CONCLUSÃO
O objetivo do presente trabalho foi proceder a uma análise, um olhar panorâmico sobre esse fenômeno fático-jurídico de extraordinárias conseqüências na vida
das civilizações e dos povos, modernamente.
E justamente por ser um olhar panorâmico, conjugado, ainda, com os limites
naturais de um trabalho acadêmico, muitas das questões aqui abordadas deixaram de
ser aprofundadas.
Preferiu-se a análise mais abrangente do fenômeno, com o enfoque mais específico para a demonstração dos limites jurídicos do Poder Constituinte e sua importância para a construção no presente de sociedades, senão perfeitas, ao menos
mais equilibradas e justas, no seio das quais todos os homens possam desenvolver
suas potencialidades e serem felizes.
Espera-se, assim, tenha se dado uma contribuição para a análise do Poder
Constituinte e a demonstração que, presentemente, não pode ser ele encarado como
uma mera expressão de poder factual.
Domesticado ao longo de sua história pelas diversas expressões que assumiu,
o Poder Constituinte é, hoje, também, um poder jurídico.
Poder-se-ia dizer, em conclusão, que nele se mesclam componentes fáticos
que o impulsionam para o progresso da história e componentes jurídicos que são um
limite à sua mera expressão factual.
18
Paulo Ferreira Cunha - obra citada - pág. 447/449.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 291-314, jan./jun. 2006.
COELHO, Paulo Magalhães da Costa. O poder constituinte e a construção das utopias: suas possibilidades e limites.
Na sua extraordinária e irresistível atuação, esse poder encontrará também
seus limites, notadamente naqueles direitos cujo conhecimento representam o elevado grau de desenvolvimento da consciência ética e jurídica das civilizações.
Não se trata, aqui, de constituir direitos, mas de reconhecer que direitos há,
suprapositivos, atemporais, toda aquela gama de requisitos para que possa florescer
com dignidade humana.
Falamos, evidentemente, da liberdade pessoal, da consciência, da igualdade,
não apenas formal, mas de igual possibilidade de acesso aos bens culturais imateriais
e aos bens materiais naturalmente, enfim da própria dignidade humana que, lamentavelmente, ontem e mais ainda hoje, tem faltado, pela prevalência do egoísmo, da
exploração do homem pelo homem e em detrimento da solidariedade.
Finalmente, era preciso demonstrar que os momentos de eclosão do Poder
Constituinte, geralmente momentos extremos ou pelo menos muito férteis, são oportunos para o avanço da humanidade para a construção de sociedades mais justas ou
menos excludentes.
É o momento de se antecipar o futuro e não apenas antevê-lo, de saber ousar
e tornar concreto o sonho dos homens.
referências
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 1997.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997.
CUNHA, Paulo Ferreira da. Constituição, Direito e Utopia. Coimbra: Coimbra Editora, 1996.
FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1996.
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte, Livraria Del Rey Editora, 1995.
MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Poder Constituinte. Revista de Direito Constitucional e Ciência Política 4/85. Rio
de Janeiro: Forense, 1985.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra, Coimbra Editora, 1996.
SALDANHA, Nelson. O Poder Constitinte. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1986.
TEIXEIRA, J.H. Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
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DIREITO FUNDAMENTAL DE PROPRIEDADE. ATENDIMENTO
À FUNÇÃO SOCIAL. REQUISITOS PARA DESAPROPRIAÇÃO
PARA FINS DE REFORMA AGRÁRIA. VÍCIOS FORMAIS E
MATERIAIS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO.
CABIMENTO DE MANDADO DE SEGURANÇA
Ives Gandra da Silva Martins*
Cláudia Fonseca Morato Pavan**
Palavras-chave: Direito fundamental da propriedade. Função social. Desapropriação.
Processo administrativo.
CONSULTA
O ilustre advogado Dr. José Carlos de Mello Dias honra-nos com consulta assim formulada:
“Trata-se de mandado de segurança impetrado pela consulente, contra Decreto baixado pelo Excelentíssimo Senhor Presidente da República, declarando de
interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural, situado em município
do Estado de São Paulo.
*
**
Professor Emérito das Universidades Mackenzie, em cuja Faculdade de Direito foi titular de Direito Constitucional e Direito Econômico.
Advogada em São Paulo.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Alega a Impetrante que o Relatório Agronômico de Fiscalização – RAF – considerou a área total do imóvel como sendo de 2.868,71 hectares, superior à área efetiva da fazenda de 2.824,4980 hectares, constante da matrícula do Cartório de Registro
de Imóveis, área essa obtida por sentença judicial, em ação de retificação de registro,
acobertada pelo manto intangível da coisa julgada.
Não se discute se a alteração da área é ou não suficiente para modificar a
produtividade do imóvel, mas ser inadmissível a vistoria considerar área maior do
que a constante do registro público, oponível erga omnes, e, ainda, contravindo no §
4º, do artigo 2º, da Lei nº 8629/93, com a redação da Medida Provisória nº 2.183/56,
de 24/08/01.
Há, também, violação da Lei nº 8.629, de 1993, porque a vistoria do INCRA não
considerou duas áreas de 96,00 e 358 hectares, de reforma e recuperação de pastagens,
com extração de sementes, afrontando o disposto no § 7º, do artigo 6º, da cita lei, verbis:
não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que, por razões
de força maior, caso fortuito ou renovação de pastagens, tecnicamente
comprovadas pelo órgão competente, deixar de apresentar no ano respectivo, os graus de eficiência, os graus de eficiência e exploração exigidos para a
espécie (grifos da consulente).
Aduz mais, ter havido cerceamento ao seu direito de defesa no processo administrativo, pela falta de relatório e fundamentação da decisão determinando o seu prosseguimento e no não recebimento do recurso contra essa decisão (Proc. Adm. fls.).
A liminar foi concedida pelo Min. GILMAR MENDES, argumentando que o
Decreto Presidencial declara a área do imóvel de 2.824,4980 hectares, igual à do registro de imóveis, “em razão de sentença judicial transitada em julgado”, enquanto
o relatório aponta a “área medida” de 2.868,1571 hectares, culminando por concluir
que “as diversas dimensões do imóvel referidas no Decreto Presidencial, no Relatório
Agronômico de Fiscalização e no seu registro (com referência, inclusive, à sentença
judicial transitada em julgado) podem ter conseqüências sérias e relevantes para a
avaliação da produtividade, tal como postulado pela impetrante´ (fls. 220/221).
As informações do Consultor-Geral da União, apoiadas por parecer da Assessoria Jurídica do Ministério do Desenvolvimento Agrário, tratam da questão como se
fosse simples discussão reflexa da produtividade do imóvel, vedada no âmbito estreito do writ of mandamus.
De sua parte, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, na mesma
linha das citadas informações, traz a querela para o campo leitoso da discussão (ine-
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 315-350, jan./jun. 2006.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
xistente) da produtividade do imóvel, o que demandaria dilação probatória, inviável
no mandado de segurança, opinando, a final, pela denegação da ordem.
Diante disso, indaga-se:
1. Quais as conseqüências jurídicas da vistoria do Incra, ter considerado
área maior do que a constante do registro público, oriunda de sentença
judicial transitada em julgada e, ainda, ao arrepio da Lei nº 8.629/93 (§ 4º,
do art. 2º, com a redação da Medida Provisória n. 2183/56)?
2. A falta de relatório e de motivação na decisão do processo administrativo,
declarando o imóvel improdutivo, viola a Lei nº 9784, de 1999 (artigos 2º
e 50), ou antes, afronta a Constituição Federal (art. 5º, LIV)?
3. O não recebimento e o não encaminhamento do recurso manejado em
face da decisão do Comitê Regional de Análise, dirigido ao Presidente do
INCRA (fls. 500/501), visto sob a ótica do artigo 56, §§ 1º e 2º, da Lei nº
9.784, de 1999, constitui-se em cerceio do direito de defesa?
4. É válido o processo administrativo, base e amparo legal do Decreto Expropriatório?
5. Existem, no caso, fatores legais impeditivos da desapropriação da Fazenda, para fins de reforma agrária?
6. A impetração traz a prélio a produtividade do imóvel, ou simplesmente,
ainda que pela rama, tece considerações evidenciadoras dos erros do relatório da fiscalização do INCRA?
Passamos a enfrentar as questões propostas à luz do quadro fático trazido pelo consulente.
RESPOSTA
O direito de propriedade é classificado pela doutrina constitucional como direito fundamental de primeira geração.
Direito fundamental é aquele reconhecido e garantido pelo ordenamento jurídico de determinado Estado, consistindo em manifestação positiva do direito, com
aptidão para produção de efeitos no plano jurídico. Não se trata, portanto, de mera
pauta ético-política, desprovida de força coercitiva. Tanto assim o é que, ao lado dos
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
direitos fundamentais existem, como instrumentos assecuratórios dos mesmos, as
garantias fundamentais, dentre as quais se destaca o mandado de segurança (art.
5º LXIX CF). As garantias fundamentais asseguram ao indivíduo a possibilidade de
exigir dos poderes públicos o respeito ao direito que instrumentalizam.
Os direitos fundamentais consagrados pelo jurídico moderno foram reconhecidos paulatinamente. Daí a sua classificação em direitos fundamentais de primeira,
segunda e terceira geração.
A primeira geração de direitos fundamentais surgiu com o constitucionalismo, movimento que cresceu ante a insatisfação da burguesia com regimes absolutistas. A Declaração de Virgínia de 12.01.1776 foi a primeira declaração de direitos
fundamentais do mundo. A mais famosa, no entanto, é a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, originária da Revolução Francesa de 1789.
O constitucionalismo teve como objetivo judicializar idéias liberais, ligadas à
garantia do cidadão perante o Estado. Para atingir essa meta, buscou-se assegurar a
separação de poderes e proclamar direitos individuais, em documentos constitucionais, como garantias da liberdade almejada.
Daí a razão de essa geração de direitos ser constituída pelos direitos de oposição do indivíduo frente ao Estado, que visam, sobretudo à preservação da esfera de
liberdade particular. São os diretos do homem, considerado em sua individualidade.
Antes, porém, do advento das primeiras declarações de direitos, a história já
registra importantíssimos precedentes históricos, como, p. ex.: (a) Código de Hamurábi, (b)
a lei de Valério Publícola, proibindo penas corporais contra cidadãos em certas situações até culminar com o Interdicto de Homine Libero Exhibendo,
remoto antecedente do habeas corpus moderno, que o Direito Romano instituiu como proteção jurídica da liberdade,
Como bem sintetiza Bruno Galindo, “a idéia de direitos fundamentais está associada a prerrogativas de todos
os cidadãos, enquanto que a idéia de garantias fundamentais está ligada à questão dos meios utilizáveis para
fazer valer aqueles direitos, ou seja, salienta-se o caráter material dos direitos fundamentais e o caráter instrumental das garantias fundamentais” (Direitos Fundamentais: análise de sua concretização constitucional.
Curitiba: Juruá editora, 2003. Pág. 50).
Já há na doutrina constitucional autores apontando a existência de direitos fundamentais de quarta geração,
entre os quais se inseririam os direitos à democracia direta, à informação e ao pluralismo. Essa a posição de Paulo
Bonavides (Curso de Direito Constitucional. 13ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. Págs. 570 a 572).
In, Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1996. Pág. 134.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 315-350, jan./jun. 2006.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
(c) os pactos, forais e as cartas de franquia da Idade Média, entre os quais se
cita: o juramento de León e Castela, do Rei Afonso IX da Espanha, no sentido de defender a justiça, assegurando a propriedade privada; a Magna Carta inglesa, de 1215;
o Petition of Rights, de 1628; o Habeas Corpus Act, de 1679, o Bill of Rights, de 1688 e
o Act of Settlement, de 1707, dentre outros.
Os direitos de primeira geração asseguram as liberdades individuais como
limites negativos à ação do Estado, são direitos de defesa e de autonomia. Como já
aduzia Benjamim Constant, em 1814: “Os Cidadãos possuem direitos individuais
independentes de toda autoridade social ou política, e qualquer violação pela autoridade é ilegítima. Tais direitos são: a liberdade individual, a liberdade religiosa,
a liberdade de opinião, que compreende o direito em sua livre expressão, o gozo da
propriedade, a garantia contra todo ato arbitrário. Nenhuma autoridade pode atentar contra estes direitos sem violar o seu próprio título”. (grifamos)
Atualmente não há texto constitucional que deixe de assegurar os direitos
fundamentais de primeira geração. Esses direitos têm como titular o indivíduo e não
a sociedade ou uma coletividade. “São oponíveis ao Estado e traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais
característico, enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.
A doutrina é concorde em enumerar, dentre os direitos fundamentais, o direito à vida, à liberdade (de expressão, de domicílio, de sigilo de correspondência), à
propriedade e à igualdade formal.
O que se busca com a proteção constitucional aos direitos fundamentais de
primeira geração é assegurar o indivíduo contra ingerências estatais; enfim, separar
Estado e sociedade.
É nesse sentido que se deve ler o art. 5º caput e XXII CF, segundo o qual:
Princípios Políticos Constitucionais: princípios políticos aplicáveis a todos os governos representativos e particularmente à Constituição atual da França (1814). Tradução de Maria do Céu Carvalho. Rio de Janeiro: Liber
Juris, 1989. Pág. 68.
BONAVIDES, Paulo. Op. Cit. Págs. 563 e 564.
ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. 3ª edição. Corde.
www.mj.gov.br/sedh/dpdh/corde/protecao_const.htm.
Comentando esses dispositivos, um dos ora pareceristas, teceu as seguintes considerações: “Entre os cinco fundamentos maiores da Constituição Federal, encontra-se o direito à propriedade, ao lado daquela à segurança, à
vida, à liberdade e à igualdade. O mais relevante artigo da lei suprema, que é o de nº 5 e que cuida dos direitos e
garantias individuais tem seu discurso assim principado: ´Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]´ Deve-se lembrar que uma
Constituição é composta de duas grandes vertentes de princípios, a primeira, dedicada a garantir e assegurar os
direitos da sociedade, a quem os governos deveriam servir, e a segunda, de que forma a sociedade controla os
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXII – é garantido o direito de propriedade;
(grifamos)
Em nosso ordenamento, a propriedade privada é, ainda, um dos fundamentos
da ordem econômica e financeira, a teor do art. 170 II CF, segundo o qual:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
II – propriedade privada
Esses dispositivos da Constituição de 1988 derivam da luta secular dos povos
contra o absolutismo do poder político, traduzido no direito à própria resistência,
inerente ao embate entre sociedade e detentores do poder. De fato, até o mais inocente dos homens tem consciência de que, mesmo em um regime democrático, uns
homens predominam sobre os outros, o que sujeita os detentores do poder a dele
abusar, caso não estejam assegurados os direitos fundamentais.
Ocorre que o direito à propriedade, assim como quaisquer outros direitos
fundamentais individuais, não é absoluto – exceção feita, em nosso ordenamento, ao
direito à vida - . A Constituição adota duas posições na veiculação de restrições aos
direitos individuais fundamentais: ora expressamente veicula essas restrições, ora
prevê reserva legal de índole restritiva.
governos, dispondo, pois, sobre o funcionamento do Estado. De rigor, as duas vertentes voltam-se, para realçar o
que de mais importante há, no Estado, que é o povo – e para que o povo não seja uma massa despersonalizada
– para proteger o indivíduo. Por esta razão, o Título II da Constituição Federal, que elenca direitos e garantias
fundamentais, tem, no seu capítulo I, a indicação de que tais direitos e garantias são individuais e coletivos, a que
se acrescem os deveres, que correspondem a seu exercício”. (MARTINS, Ives Gandra da Silva.“Atentado ao Direito
de Propriedade”. Jornal “O ESTADO DE SÃO PAULO”. 26.03.1991. Pág. 25.
Não será abordado neste trabalho, por fugir ao tema proposto, a questão relativa à possibilidade lógica de
existir restrição a direito fundamental que é suscitada, p.ex., por Friedrich Klein, para quem, a legislação
ordinária apenas traz o conceito do direito individual, mas não uma limitação. (Apud, MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos
Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000. Pág. 224)
J.J. Gomes CANOTILHO. Direito Constitucional.. Pág. 602-603.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 315-350, jan./jun. 2006.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
O direito a propriedade é restringido pelo texto constitucional ao cumprimento da sua função social. É o que deflui do art. 5º XXIII, segundo o qual:
XXIII - propriedade atenderá à sua função social.10
Conjugando os incisos XXII e XXIII do art. 5º CF, a conclusão lógica é de que a
Constituição Federal protege a propriedade individual, desde que atendida a função
social. Em se tratando de direito fundamental, o texto constitucional tomou a cautela
de definir o que se entende por função social da propriedade, nos arts. 182 § 2º e 186.
Em se tratando de propriedade rural, como é o caso da consulta, a função social é
atendida sempre que:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em
lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (grifamos)
Esse dispositivo constitucional veicula o que doutrina denomina de reserva
legal restritiva a direito fundamental. Cuida-se, na hipótese, de reserva legal qualificada e não, de mera reserva legal simples. A reserva legal qualificada ocorre quando
quando a Constituição prevê os objetivos ou os requisitos que devem ser observados
pela lei que vier a prever o afastamento do direito individual. Já a reserva legal simples
se dá quando a Constituição limita-se a autorizar a regulamentação por lei ordinária
de direito individual, sem qualquer vinculação quanto a conteúdo ou finalidade. São
exemplos de reserva legal simples os incisos VI, VII, XV, XLV e XLVI do art. 5º CF.
No caso de restrição ao direito à propriedade rural, a definição do que seja
“função social” está definida na Constituição Federal, cabendo à lei ordinária apenas
veicular os critérios e graus de exigência relativamente ao aproveitamento reacional
e adequado da terra, à utilização dos recursos naturais, à preservação do meio ambiente, à observância da legislação trabalhista e à exploração favorável ao bem-estar
dos proprietários e dos trabalhadores.
10
No mesmo sentido é o inciso III do art. 170 CF.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Tais critérios para aferição do cumprimento da função social da propriedade
rural estão previstos na Lei 8629/93, cujo art. 9º determina:
Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta lei, os seguintes
requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus
de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a
7º do art. 6º desta lei.
§ 2º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na
medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da
saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.
§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho,
como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parcerias rurais.
§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que
trabalham a terra, observa as normas de segurança no trabalho e não prova
conflitos e tensões sociais no imóvel.
Quanto à racionalidade e adequação do aproveitamento da terra, o art. 6º da
mesma lei, com a redação conferida pela MP 2183-56, prevê:
Art. 6º. Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e
de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.
§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser
igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual
entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.
§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a
100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática;
I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto
pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente
do Poder Executivo para cada Microrregião Homogênea;
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 315-350, jan./jun. 2006.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;
III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo,
divida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.
[...]
O imóvel que não atender a tais critérios poderá ser desapropriado por interesse social, para fins de reforma agrária. É o que estabelece o art. 184 CF, nos seguintes termos:
Art. 184. Compete à União desapropriar pro interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social,
mediante prévia e justa indenização e títulos da dívida agrária, com cláusula
de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir
do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
Assim, salvo as pequenas e médias propriedades rurais, que, a teor do art.
185 CF, estão a salvo da desapropriação para fins de reforma agrária, a exploração
de grande propriedade rural que não atender aos critérios previstos na Lei 8629/93,
ou seja, que não cumprir sua função social, poderá ser desapropriada pela União
Federal.
Para além da desapropriação para fins de reforma agrária, de que trata o dispositivo supra transcrito, a Constituição prevê, ainda, a desapropriação “por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização
em dinheiro” (art. 5º XXIV CF). É a chamada “desapropriação por utilidade pública”,
regida por legislação específica (Decreto-lei 3365/41, Lei 4132/62, Lei 6602/78, Decreto-lei 1075/70, LC 76/93, LC 88/98, Lei 9785/99 e Lei 10406/02).
No caso do consulente cuida-se de desapropriação para fins de reforma agrária, que só é possível de ser legitimamente decretada quando caracterizado o descumprimento da função social da propriedade rural.
O fato de determinada propriedade rural ser grande e, portanto, apta ao assentamento de diversas famílias – como aduz a autoridade administrativa ao longo
do processo – não legitima, por si só, a desapropriação para fins de reforma agrária.
Se assim fosse, seria mais lógico proibir, desde logo, a propriedade de grande imóveis
rurais, condenando o país ao subdesenvolvimento agropecuário. O que legitima a desapropriação para fins de reforma agrária e apenas e tão somente o descumprimento
da função social, apurado em processo administrativo regular.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Tratando-se de exceção a direito fundamental o processo de desapropriação para fins de reforma agrária deve ser conduzido de acordo com os ditames
legais, observados todos os princípios que regem o processo administrativo, entre
os quais o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, tanto formal
quanto material.11
De fato, os direitos fundamentais, como o é o direito de propriedade, envolvem duas dimensões, uma objetiva e outra, subjetiva.
Os direitos fundamentais de primeira geração, quais sejam, os direitos fundamentais do constitucionalismo liberal, eram visualizados apenas sob a ótica subjetiva. A preocupação, à época, era identificar quais pretensões o indivíduo poderia
exigir do Estado em razão de um direito positivado na ordem jurídica.
A faceta subjetiva dos direitos fundamentais não perdeu sua importância e,
até hoje, constitui instrumento indispensável de controle dos detentores do poder.
Mas, a doutrina contemporânea desvendou nova faceta dos direitos fundamentais,
trata-se da dimensão objetiva de tais direitos.
De acordo com Daniel Sarmento, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais liga-se ao reconhecimento de que “tais direitos, além de imporem certas prestações aos poderes estatais, consagram também os valores mais importantes em uma
comunidade política, constituindo, como afirmou Konrad Hesse, ´as bases da ordem
jurídica da coletividade´”.12
Assim, os direitos fundamentais para além de serem limites para o Estado,
convertem-se em guia para a sua atuação. A posição absenteísta do Estado não mais
satisfaz aos anseios sociais. Não basta que os Poderes Públicos se abstenham de violar tais direitos, exige-se deles a proteção ativa contra agressões e ameaças provindas
de terceiros.
A esse respeito as lições de Vieira de Andrade, esclarecendo que “os direitos fundamentais não podem ser pensados apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto
faculdades ou poderes que estes são titulares, antes valem juridicamente também do
ponto de vista da comunidade, como valores ou fins de que esta se propõe”.13
11
12
13
O devido processo legal, sob o aspecto material, encerra os juízos de necessidade, adequação e proporcionalidade. Para aprofundamento sobre o tema, consulte: GUERRA FILHO, Willis Santiago. “Direitos fundamentais,
processo e princípio da proporcionalidade”. In, GUERRA FILHO, Willis Santiago (coord.). Dos Direitos Humanos aos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. Pág. 12.
A Dimensão Objetiva dos Direitos Fundamentais: fragmentos de uma teoria. In, SAMPAIO, José Adércio Leite
(coord.). Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. Pág. 253.
Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1998. Págs. 144-145.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
O desenvolvimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais tem raízes na famosa teoria dos direitos públicos elaborada por Jellinek, no final do século
XIX - muito embora seu estudo parta de uma visão exclusivamente subjetiva dos
direitos fundamentais -. Essa teoria distingue quatro diferentes posições que o indivíduo pode assumir frente o Estado. São elas: (a) status sbiecciones: o indivíduo é
visto como súdito do Estado, totalmente subjugado; (b) status negativus: ao indivíduo
é reservada uma esfera de liberdade, na qual o Estado não pode se imiscuir; (c) status
activus: o indivíduo tem o direito de participar na formação da vontade do Estado, é
detentor de direitos políticos; (d) status positivus: o indivíduo tem o direito de reclamar prestações positivas dos poderes públicos.
Em verdade, na sua concepção tradicional, os direitos fundamentais são direitos de defesa, destinados a proteger determinadas posições particulares da intervenção do Poder Público. Contêm, assim, definições de uma competência negativa
do Poder Público, que fica obrigado a respeitar o núcleo de liberdade constitucionalmente assegurado.
Ocorre que a garantia de liberdade do indivíduo só é exitosa se a sociedade
for também livre. E, como aduz, o E. Min. Gilmar Ferreira Mendes, “uma sociedade
livre pressupõe a liberdade dos indivíduos e dos cidadãos, aptos a decidir sobre as
questões de seu interesse e responsáveis pelas questões centrais de interesse da comunidade. Essas características condicionam e tipificam, segundo Hesse, a estrutura
e a função dos direitos fundamentais. Eles asseguram não apenas direitos subjetivos,
mas também os princípios objetivos da ordem constitucional e democrática”.14
A dimensão objetiva dos direitos fundamentais permite identificar que a função desses direitos não é apenas de direitos de defesa, mas que também ensejam um
dever de proteção do Estado.
Sob o enfoque objetivo, os direitos fundamentais apresentam um aspecto de
direito à prestação positiva, cobrando a adoção de providências, quer materiais, quer
jurídicas, de resguardo dos bens protegidos.
Assim, para resguardar a propriedade rural, a Constituição e a legislação ordinária só atribuem legitimidade a decreto de desapropriação para fins de reforma
agrária, quando, após o cumprimento de todo iter procedimental, com a observância
do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, restar comprovado o
descumprimento da função social.
14
Os Direitos Fundamentais e seus múltiplos significados na ordem constitucional. Revista Jurídica Virtual nº 14
– julho/2000.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Quanto ao procedimento, a Lei 8629/93 limita-se a especificar a forma como
poderá o órgão federal competente ingressar na propriedade privada para fins de
levantamento dos dados necessários a apuração do cumprimento da função social
da propriedade.
O silêncio da legislação específica não importa, no entanto, em liberdade para
a Administração Pública em decidir pela desapropriação para fins de reforma agrária, sem observar as garantias processuais previstas na Constituição Federal.
O Estado tem, tanto no exercício da funções jurisdicionais, quanto no exercício
de funções executivas, o dever de observar os princípios do contraditório, da ampla
defesa e do devido processo legal, insertos no art. 5º LIV e LV CF. Vale a transcrição
dos dispositivos, cuja redação deixa clara sua aplicabilidade à hipótese presente:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV – aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em
geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. (grifamos)
Esses dispositivos, conjugados, ainda, com o direito de petição (art. 5º XXXIV
“a” CF), deixam claro que o processo administrativo encontra-se alçado à categoria
constitucional e, constitui condição imprescindível a que seja afastado o direito fundamental da propriedade, quando desatendida sua função social.
Esta é uma conseqüência inevitável do Estado de Direito. Não pode, o particular,
ter seu direito fundamental de propriedade afastado, sob o fundamento de desatendimento à função social, sem que lhe seja conferida a oportunidade de oferecer defesa e
ter seus argumentos enfrentados por decisão devidamente fundamentada. Aplicam-selhe os princípios ordinários do direito processual, como p. ex., aqueles que atribuem às
partes oportunidade de oferecimento de contra-razões, produção de provas e, apresentação de recursos, dentre outros.
Vem a calhar comentários de Celso Antônio Bandeira de Mello tecidos à luz
dos arts. 5º LIV e LV CF, a seguir transcritos:15
Estão aí consagrados, pois, a exigência de um processo formal regular pra que
sejam atingidas a liberdade e a propriedade de quem quer seja e a necessidade de que a Administração Pública, antes de tomar decisões gravosas a um
dado sujeito, forneça-lhe oportunidade de contraditório e de defesa ampla,
no que se inclui o direito a recorrer das decisões tomadas. Ou seja: a Admi15
Curso de Direito Administrativo. 15ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2003. Pág. 105.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
nistração Pública não poderá proceder contra alguém passando diretamente
à decisão que repute cabível, pois terá, desde logo, o dever jurídico de atender
ao contido nos mencionados versículos constitucionais.
Note-se que `privar` da liberdade ou da propriedade não é apenas e simplesmente elidi-las, mas também o é suspender ou sacrificar quaisquer atributos
legítimos inerentes a uma e a outra; vale dizer: a privação não precisa ser
completa para caracterizar-se como tal. Assim, para desencadear conseqüência dessa ordem, a Administração terá que obedecer a um processo regular (o
devido processo legal), o qual, evidentemente, como resulta do inciso LV do
art. 5º, demanda contraditório e ampla defesa.
Vale rememorar que o princípio de devido processo legal remonta à Magna
Carta que João-Sem-Terra concedeu, em 1215, aos barões. Esse documento assegurava que nenhum homem livre teria sua liberdade ou propriedade sacrificadas, salvo
se observada a law of the land.
A obrigatoriedade, sob pena de inconstitucionalidade, de o Estado observar
os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, decorre
também dos princípios da moralidade, da publicidade e da legalidade, a que está
adstrita a Administração Pública (art. 37 caput CF”). A esse respeito é clara a lição de
Carlos Roberto Siqueira de Castro:16
Do campo processual penal e civil a garantia do devido processo legal alastrou-se aos procedimentos travados na Administração Pública, impondo a
esses rigorosa observância dos princípios da legalidade e da moralidade administrativa. Por sua crescente e prestigiosa aplicação, acabou por transformar-se essa garantia constitucional em princípio vetor das manifestações do
Estado contemporâneo e das relações de toda ordem entre o Poder Público,
de um lado, e a Sociedade e os indivíduos de outro.
O processo administrativo no âmbito da Administração Pública encontra-se
regido pela Lei 9784/99, cuja aplicação, ao processo de desapropriação se impõe por
força do art. 69.17 A lei em questão prevê a observância dos seguintes direitos e garantias do administrado:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo
no âmbito da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial,
16
17
Apud, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. Cit. Pág. 107.
O dispositivo tem a seguinte redação: “Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se
por lei própria, aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
à proteção dos direitos dos administrados e ao melhor cumprimento dos
fins da Administração.
Art. 2º A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios
da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade,
moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse
público e eficiência.
Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
I - atuação conforme a lei e o Direito;
[...]
IV - atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé;
V - divulgação oficial dos atos administrativos, ressalvadas as hipóteses de
sigilo previstas na Constituição;
VI - adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao
atendimento do interesse público;
VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem
a decisão;
VIII – observância das formalidades essenciais à garantia dos direitos dos
administrados;
[...]
X - garantia dos direitos à comunicação, à apresentação de alegações finais,
à produção de provas e à interposição de recursos, nos processos de que
possam resultar sanções e nas situações de litígio;
[...]
Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração,
sem prejuízo de outros que lhe sejam assegurados:
[...]
II – ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que
tenha a condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles contidos e conhecer as decisões proferidas;
III - formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais
serão objeto de consideração pelo órgão competente;
[...]
Art. 6o (omissis)
[...].
Parágrafo único. É vedada à Administração a recusa imotivada de recebimento de documentos, devendo o servidor orientar o interessado quanto ao
suprimento de eventuais falhas. [...]
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Art. 27. (omissis)
Parágrafo único. No prosseguimento do processo, será garantido direito de
ampla defesa ao interessado.
Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem
para o interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse.
[...]
Art. 38. O interessado poderá, na fase instrutória e antes da tomada da decisão, juntar documentos e pareceres, requerer diligências e perícias, bem
como aduzir alegações referentes à matéria objeto do processo.
§ 1º Os elementos probatórios deverão ser considerados na motivação
do relatório e da decisão.
[...]
Art. 48. A Administração tem o dever de explicitamente emitir decisão nos
processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria
de sua competência.
[...] Art. 50. Os atos administrativos deverão ser motivados, com indicação
dos fatos e dos fundamentos jurídicos, quando:
I - neguem, limitem ou afetem direitos ou interesses;
II - imponham ou agravem deveres, encargos ou sanções;
III - decidam processos administrativos de concurso ou seleção pública;
[...]
V - decidam recursos administrativos;
[...]
§ 1º A motivação deve ser explícita, clara e congruente, podendo consistir
em declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres,
informações, decisões ou propostas, que, neste caso, serão parte integrante
do ato.
[...]
§ 3º A motivação das decisões de órgãos colegiados e comissões ou de
decisões orais constará da respectiva ata ou de termo escrito.
[...]
Art. 56. Das decisões administrativas cabe recurso, em face de razões de
legalidade e de mérito.
§ 1º O recurso será dirigido à autoridade que proferiu a decisão, a qual,
se não a reconsiderar no prazo de cinco dias, o encaminhará à autoridade superior.
(grifamos)
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Muito embora a lei tenha sido editada em conformidade com a Constituição Federal, visando a proteger o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal, esses
princípios constitucionais não fora observados no caso trazido pelo consulente.
Ciente do Relatório Agronômico de Fiscalização (RAF) que classificou seu
imóvel como grande propriedade rural improdutiva e, portanto, sujeito à desapropriação, a proprietária ofertou impugnação, perante a Superintendência Regional do
INCRA (fls. 248 a 289 dos autos do processo administrativo). O processo seguiu para
prolação de pareceres pela equipe técnica.
Ciente de superveniente decisão judicial que reconheceu a nulidade de convênio firmado entre o INCRA e o ITESP – Fundação do Instituto de Terras do Estado
de São Paulo - para exercício da fiscalização do cumprimento da função social da
propriedade, a proprietária ofertou aditivo à sua defesa, uma vez que a vistoria de seu
imóvel foi realizada por funcionário do ITESP (fls. 321 a 391 dos autos do processo
administrativo).
Foram, então, ouvidas a Procuradoria Regional do INCRA (fls. 395 e 396) e o
Chefe da Divisão Técnica (fls. 398 a 401).
A proprietária interessada não foi cientificada de tais pronunciamentos proferidos pela Administração.
Sem que conste dos autos qualquer intimação dando conta da data em que
o feito seria o julgado, foi juntada aos autos ata de reunião do Comitê de Decisão
Regional do INCRA, da qual consta que o processo teria sido julgado. Não há nos
autos qualquer documento que decline as razões que levaram o comitê decisório a
julgar improcedente a impugnação ofertada pela consulente. A ata limita-se a consignar que:
4 – Apreciado o processo administrativo nº 54.190.000362/2002-18 que
trata de desapropriação da Fazenda, no município, foi analisado o recurso
administrativo apresentado pelo proprietário e entendeu o CDR, por negar
provimento ao recurso, deliberando dar prosseguimento ao processo administrativo pela improdutividade do imóvel, comunicando ao proprietário esta
decisão por ofício.
A autoridade administrativa julgadora, qual seja, o CDR – Comitê de Decisão
Regional – não declinou quais as razões que lhe levaram a rejeitar os argumentos
suscitados pela proprietária rural em sua peça de defesa. Do trecho supra transcrito,
do único documento que registra o julgamento ocorrido, sequer se infere que foram
enfrentadas as razões da proprietária, oferecidas tempestiva e regularmente. Não fo-
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
ram apontadas as causas e o elementos determinantes para a prolação da decisão.
Sequer a fundamentação legal consta do ato decisório.
Tal como prolatada, a r. decisão de primeira instância administrativa carece
de fundamentação. O dever de motivar18 as decisões é ínsito à atividade de julgar. A
autoridade administrativa desprezou, ao deixar de proferir decisão fundamentada
acerca da oposição da proprietária à desapropriação de sua fazenda, não só o direito
fundamental de propriedade, mas também as garantias do devido processo legal, da
ampla defesa e do contraditório.
Confira-se, a esse respeito, a doutrina de Hely Lopes Meirelles:19
Nesse sentido é a lição dos modernos publicistas, a começar por Bielsa, neste passo: ‘Por princípio, as decisões administrativas devem ser motivadas
formalmente, vale dizer que a parte dispositiva deve vir precedida de uma
explicação ou exposição dos fundamentos de fato (motivos-pressupostos) e
de direito (motivos-determinantes da lei)´. E, rematando, o mesmo jurista
reafirma: `No Direito Administrativo a motivação – como dissemos – deverá
constituir norma, não só por razões de boa administração, como porque toda
autoridade ou Poder em um sistema de governo representativo deve explicar
legalmente, ou juridicamente, suas decisões.
O excelente Jèze já acentuava, de há muito, que, ´para se ter a certeza de que
os agentes públicos exercem a sua função movidos apenas por motivos de
interesse público da esfera de sua competência, leis e regulamentos recentes
multiplicam os casos em que os funcionários, ao executarem um ato jurídico,
devem expor expressamente os motivos que o determinaram. É a obrigação de
motivar. O simples fato de não haver o agente público exposto os motivos de
seu ato bastará pra torná-lo irregular; o ato não motivado, quando o devia ser,
presume-se não ter sido executado com toda a ponderação desejável, nem ter
tido em vista um interesse público da esfera de sua competência funcional’.
Pela motivação o administrador pública justifica sua ação administrativa,
indicando os fatos (pressupostos de fato) que ensejam o ato e os preceitos
jurídicos (pressupostos de direito) que autorizam sua prática[...].
18
19
Como ensina Augustín Gordilho: “La motivación de lacto, contenida dentro de lo que usualmente se denomina
´los considerandos´ del acto, es una declaración de cuáles son las circunstancias de hecho y de derecho que
han llevado a la emanación, o sea los motivos o presupuestos del acto; constituye pro lo tanto la fundamentación fáctiva y jurídica con que la administración entiende sostener la legitimidad y oportunidad de la decisión
tomada y es el punto de partida para el juzgamiento de esa legitimidad” (Tratado de Derecho Administrativo. T
3. 3ª ed. Buenos Aires: Ediciones Macchi, 1995. P. X-7).
Direito Administrativo Brasileiro. 27ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2002. Págs. 96-97.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Decisão administrativa que não expõe as razões de fato e de direito pela qual
a pretensão do administrado é rejeitada importa, ademais, em burla ao controle jurisdicional que, em nosso sistema é inafastável, por força de previsão constitucional
expressa (art. 5º XXXV CF). Decidir processo administrativo sem apresentar, ainda
que sucintamente, os fundamentos que levam à tomada da decisão, é o mesmo que
desprezar a cidadania, um dos fundamentos da República brasileira.
Apesar de o dever atribuído à autoridade administrativa de fundamentar as
suas razões seja conseqüência direta dos princípios constitucionais supra mencionados – devido processo legal, contraditório, ampla defesa, inafastabilidade do controle
jurisdicional e cidadania – a legislação adjetiva foi farta em reiterar essa obrigação. O
dever de fundamentar, ou seja, o dever de motivar o ato decisórios, vem expresso no
art. 2º caput, parágrafo único VII e, ainda, no art. 50 (in totum) da Lei 9784/99.
Muito embora sequer fosse necessário, já que o dever de motivar as decisões
advém de princípios constitucionais, a Lei 9784/99 impõe à Autoridade Administrativa a obrigação de motivar seus atos, especificando que, por motivação se entende a
indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a decisão (art. 2º
parágrafo único VII).
No caso trazido pelo consulente, essas balizas, que constituem a base do
Estado de Direito, não foram observadas pela Administração Pública. Não houve a
prolação de decisão devidamente fundamentada, com a declinação das razões que
levaram à rejeição da pretensão do administrado. Há, apenas, uma ata, dando conta
de que a impugnação ofertada pela proprietária do imóvel encaminhado para desapropriação, não foi acolhida.
A irregularidade se agrava em virtude de o ato administrativo desprovido da
necessária motivação, implicar afastamento de direito individual fundamental, como
o é o direito de propriedade. A ausência de motivação importa em nulidade do processo administrativo.
Para além de a decisão de primeira instância carecer de fundamentação, o
que, por si só, implica nulidade do processo administrativo, até a sua prolação se
verificam, ainda, outras irregularidades, quais sejam: o administrado não foi cientificado dos atos administrativos que sucederam à sua impugnação e, portanto, não
pôde refutar os pareceres técnicos e jurídicos proferidos e, tampouco, foi intimado da
data em que seu processo seria julgado.
Assim, da análise do processo administrativo conclui-se que, até a decisão de
primeira instância, foram violados:
(a) o princípio da publicidade (art. 37 caput CF, arts. 2º parágrafo único
V e X, 3º II, 28 da Lei 9784/99): uma vez que não houve intimação da parte
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
interessada acerca da data em que seu processo seria julgado, comprometendo não só sua defesa, bem como a própria legitimidade do julgamento que
correu à sua revelia. A proprietária da fazenda tinha, como o tem qualquer
administrado, o direito de ser comunicada previamente à realização do julgamento do seu processo e fazer-se ouvir no órgão colegiado com competência
para apreciar suas razões;
(b) o princípio do contraditório20 (art. 5º LV CF e art. 2º caput da Lei
9784/99): uma vez que a proprietária do imóvel não foi cientificada dos pareceres e laudos técnicos oferecidos após a impugnação ao RAF, o que viola a
paridade de armas (Chancengleichheit e Waffengleichheit) a ser assegurada
ao litigante, tanto em processo administrativo quanto em processo judicial,
por ordem constitucional. Não foi assegurada à proprietária o direito de ser
ouvida em todas as fases do processo, produzindo provas e outras manifestações que julgasse pertinentes à vista dos pronunciamentos da Divisão Técnica do INCRA e da Procuradoria Regional, que se seguiram à sua defesa, como
demanda o princípio em tela;
(c) o direito à ampla defesa21 (art. 5º LV CF, art. 2º caput, parágrafo único X,
art. 3º III da Lei 9784/99): uma vez que a proprietária do imóvel não teve seus
argumentados enfrentados, ainda que de maneira sucinta, pelo ato decisório.
A versão trazida pela parte interessada em defender seu direito fundamental
de propriedade não foi levada em consideração para a prolação da respectiva
decisão. Ademais, não foi concedida à proprietária do imóvel a oportunidade
de ilidir os argumentos tecidos pelos órgãos administrativos após a apresentação de sua peça de defesa;
20
21
O conteúdo do princípio do contraditório é explicitado por Nelson Nery nos seguintes termos: “Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os
atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contendores têm direito de deduzir suas pretensões e defesas, de realizar as provas que requereram
para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direito de serem ouvidos paritariamente no processo
em todos os seus termos”. (Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 6ª edição. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 2000. Págs. 131/132)
Em obra conjunta com um dos ora pareceristas, Celso Bastos declina o conteúdo do direito constitucional à
ampla defesa, nos seguintes termos: “Por ampla defesa deve-se entender o asseguramento que é feito ao réu
de condições que lhe possibilite trazer para o processo todos os elementos tendentes a esclarecer a verdade. É
por isso que ela assume múltiplas direções, ora se traduzirá na inquirição de testemunhas, ora na designação
de um defensor dativo, não importando, assim, as diversas modalidades, em um primeiro momento. Por ora
basta salientar o direito em pauta como um instrumento assegurador de que o processo não se converterá
em luta desigual em que o ao autor cabe a escolha do momento e das armas para travá-la e ao réu só cabe
timidamente esboçar negativas. Não, forçoso se faz que ao acusado se possibilite a colocação da questão posta
em debate sob um prisma conveniente à evidenciação da sua versão”. (BASTOS, Celso Ribeiro. MARTINS, Ives
Gandra da Silva. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988.Vol. II. São Paulo:
Saraiva, 1988-1989. Pág. 266).
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
(d) o princípio do devido processo legal22 (art. 5º LIV CF): em conseqüência de todas as irregularidades supra analisadas, o processo administrativo trazido pelo consulente não atendeu ao devido processo legal,
padecendo de vício insanável de nulidade. De fato, várias disposições da
legislação adjetiva foram desrespeitas pela autoridade julgadora quando da
instrução e análise do processo em questão. Citamos algumas das irregularidades: não houve a divulgação oficial de todos os atos praticados (art.
2º parágrafo único V), não foram observadas as formalidades essenciais à
garantia dos direitos da peticionária (art. 2º parágrafo único VIII), não foi
deferido ao administrado o direito de apresentar alegações finais e produzir provas (art. 2º parágrafo único X), a proprietária não foi cientificada da
tramitação do processo (art. 3º II).
Para além dessas irregularidade que antecederam o ato decisório, há, ainda,
outros vícios formais que lhe sucederam e que acarretam, a nosso ver, nulidade do
processo administrativo em questão.
De fato, cientificada de que sua impugnação não fora acolhida em sede de
primeira instância administrativa, a proprietária da fazenda ofereceu, em 14.11.2002,
recurso (fls. 412 a 422 dos autos do processo administrativo).
Em virtude de não ter sido atribuído efeito suspensivo a tal recurso, a proprietária do imóvel impetrou Mandado de Segurança (processo nº 24482), no qual
logrou obter liminar, concedida pelo E. Min. Gilmar Mendes do Eg. Supremo Tribunal
Federal.
Os autos do processo administrativo foram, então, requisitados para pela Procuradoria, a fim de oferecer as informações requeridas pelo Relator do Mandado de
Segurança. Prestadas as informações, os autos foram devolvidos.
Ocorre que o recurso oferecido contra a decisão do Comitê Regional de Análise do INCRA não foi processado e, tampouco, apreciado, o que importa em violação
ao art. 56 da Lei 9784/99. Referido dispositivo, transcrito supra, prevê o cabimento de
recurso de todas as decisões administrativas. A revisibilidade das decisões administrativas, por órgão superior, consulta não só ao interesse público de auto tutelar os
atos administrativos, como também ao princípio da segurança jurídica.
22
Citemos, mais uma vez, Nelson Nery Junior para especificar o conteúdo desse princípio: “Em sentido processual, a expressão alcança outro significado, mais restrito, como é curial. No direito processual americano, a
cláusula (procedural due process) significa o dever de propiciar-se ao litigante: a) comunicação adequada sobre
a recomendação ou base da ação governamental; b) um juiz imparcial; c) a oportunidade de deduzir defesa
oral perante o juiz; [...]; g) uma decisão fundamentada, com base no que consta dos autos”. (Op. Cit. Pág. 39).
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Ainda que a autoridade administrativa viesse a considerar que teria havido,
em virtude da impetração, renúncia à instância administrativa, com o deslocamento
da matéria de fundo para julgamento pelo Judiciário, deveria ter sido prolatada decisão nesse sentido.
O que se nota da análise dos autos do processo administrativo, que nos foi
fornecido em cópia, é que a autoridade administrativa negou à proprietária da fazenda o direito de recorrer, uma vez que não ofereceu qualquer resposta ao recurso
interposto.
A ausência de processamento do recurso ofertado viola não só o art. 56 da
Lei 9784/99, como também os princípios do devido processo legal e da ampla defesa,
tantas vezes desprestigiado no caso ora em análise.
Para além das limitações procedimentais à desapropriação para fins de reforma agrária, que, como visto supra, não foram observadas no caso trazido pelo
consulente, há, ainda, limitações materiais.
De fato, a Lei 8629/93 só admite desapropriação para fins de reforma agrária
de imóvel rural cujo grau de utilização da terra – GUT – seja inferior a 80% e o grau
de eficiência na exploração – GEE - seja inferior a 100% (art. 6º).
No caso trazido pelo consulente, o imóvel estaria, de acordo com a análise efetuada pelos técnicos do ITESP, em parceira com o INCRA, apto para a desapropriação
em virtude de ter atingido GEE de 93,39, apesar ter sido apurado grau de utilização
da terra de 100%.
A apuração do GEE envolve cálculos complexos, discriminados no art. 6º §
2º I, II e III da Lei 8.629/93. Da leitura desses dispositivos, extraímos a seguintes
fórmulas:
Quantidade colhida de produtos vegetais
A=
Índices de rendimento
Total de unidades animais
B=
Índices de lotação
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
A+B
GEE =
Área Efetivamente Utilizada
X 100
O conceito de área efetivamente utilizada está assim delimitado pela Lei
8629/93:
Art. 6º...
[...]
§ 3º. Considera-se efetivamente utilizadas:
I – as áreas plantadas com produtos vegetais;
II – as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação
por zona de pecuária, fixado pelo Poder Executivo;
II - as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação
por zona de pecuária, fixado pelo Poder Executivo;
III - as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo,
para cada Microrregião Homogênea, e a legislação ambiental;
IV - as áreas de exploração de florestas nativas, de acordo com plano de exploração e nas condições estabelecidas pelo órgão federal competente;
V - as áreas sob processos técnicos de formação ou recuperação de pastagens
ou de culturas permanentes, tecnicamente conduzidas e devidamente comprovadas, mediante documentação e Anotação de Responsabilidade técnica.
§ 4º No caso de consórcio ou intercalação de culturas, considera-se efetivamente utilizada a área total do consórcio ou intercalação.
§ 5º No caso de mais de um cultivo no ano, com um ou mais produtos, no
mesmo espaço, considera-se efetivamente utilizada a maior área usada no
ano considerado.
§ 6º Para os produtos que não tenham índices de rendimentos fixados, adotar-se-á a área utilizada com esses produtos, com resultado do cálculo previsto no inciso I do § 2º deste artigo.
§ 7º Não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que,
por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens
tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na
exploração, exigidos para a espécie. (grifamos)
O Relatório Agronômico de Fiscalização – RAF (fls. 20 a 37 dos autos do processo administrativo) contém, pelo menos, duas irregularidades materiais que comprometem a sua validade.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Em primeiro lugar, se constata o descumprimento ao § 7º supra transcrito,
uma vez que foi desconsiderada a existência de reforma de pastos, conduzida de
acordo com projeto elaborado por engenheiro agrônomo devidamente registrado, e
protocolado perante a autoridade administrativa (fls. 189 a 221 dos autos do processo
administrativo).
O RAF desconsiderou o projeto com base nas seguintes razões:
A proprietária apresentou, através seu procurador para assuntos técnicos
junto ao INCRA, eng. agr. Carlos Augusto Arantes, Projeto Técnico de Exploração Agropecuária, para a Fazenda, com cronograma operacional nos anos
agrícolas 2.001/02 a 2.005/06; mas protocolado junto ao SR/INCRA/SP em
19/12/01. Nos termos do inciso IV do artigo 7º da Lei nº 8.629/93, o mesmo
não foi protocolado no prazo, na forma estabelecida em regulamento.
Com certeza, este projeto, apesar de não ter validade para fins de atender às
exigências do presente relatório de fiscalização, será de bastante utilidade na
melhoria das condições de exploração do imóvel, em futuro próximo.
Referido projeto, no quadro distribuição de áreas do imóvel, menciona um item
de lavouras diversas cm a área de 132,60 hectares; e outro item de reforma de
pastagens com área de 121,00 hectares. Na vistoria, constatamos a existência de pastagens reformadas (96 ha), mas não a área de lavouras diversas.
Referido projeto nem mesmo menciona a produção e colheita de sementes de
gramíneas, conforme dito e anotado em planta fornecida”. (grifamos)
Para desconsiderar a reforma de pastagens promovida pela proprietária do
imóvel, o RAF utilizou, como fundamento, o inciso IV do art. 7º da Lei 8629/93, segundo o qual não será objeto de desapropriação “o imóvel que comprove estar sendo
objeto de implantação de projeto técnico” aprovado pelo órgão federal competente,
na forma do regulamento, no mínimo seis meses antes da comunicação de início da
vistoria (redação atribuída pela MP 2183-86).
Esse dispositivo cuida de hipótese diferente daquela que é objeto da norma
do § 7º do art. 6º. A regra do § 7º do art. 6º da Lei 8629/93 atribui qualificação de
propriedade produtiva ao imóvel rural que esteja sendo objeto de renovação de pastagens, conduzida por técnico, independentemente da existência ou não de projeto
aprovado e, também, da observância ou não, de determinado prazo para protocolo
do referido projeto.
Já o art. 7º da Lei 8629/93, cuja redação encontra-se regida pela MP 2183-56,
põe a salvo da desapropriação imóvel que comprove estar sendo objeto de implantação de projeto técnico aprovado, no mínimo seis meses antes da notificação de realização da vistoria.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
São hipóteses distintas. A existência de projeto técnico aprovado, a que alude
o art. 7º da Lei 8629/93, não se confunde com a circunstância contemplada no § 7º
do art. 6º da mesma lei, segundo a qual será considerada produtiva a área em que se
verifique renovação de pastagens naquele ano vistoriado. Acaso se tratasse da mesma hipótese não haveria a necessidade de sua previsão constar de dois dispositivos
separados da lei.
A renovação de pastagens garante a produtividade da terra, independentemente de haver projeto técnico aprovado pela autoridade administrativa. Por outro
lado, o projeto técnico a que alude o art. 7º da Lei 8629/93 pode se referir a diversas
melhorias técnicas e não, exclusivamente, à renovação de pastagens, e deve, por força
do inciso II, englobar no mínimo 80% da área total aproveitável do imóvel.
A exigência de aproveitamento de, no mínimo, 80% da área total do imóvel
não existe para a hipótese de renovação de pastagens a que se refere o § 7º do art. 6º,
como também inexiste, nessa hipótese, prazo para aprovação de projeto, já que a lei
sequer cogita da existência de projeto formalizado.
Daí a irregularidade do decreto de desapropriação, por ter desconsiderado realidade fática, admitida pela autoridade administrativa. De fato, o RAF reconhece que
há pastagens reformadas (96 ha), o que é suficiente para assegurar a produtividade
do imóvel, nos termos do § 7º do art. 6º da Lei 8629/93.
Ainda que assim não fosse e que tanto o § 7º do art. 6º quanto o art. 7º da
Lei 8629/93 cuidassem da mesma hipótese de exclusão da desapropriação – o que é
aventado apenas a guisa de argumentação - , constata-se que o protocolo do projeto
atendeu ao prazo determinado na legislação.
De fato, a proprietária da terra foi notificada da realização da vistoria em
22.11.01 (fls. 11 dos autos do processo administrativo). Em 13.08.2000 havia sido protocolado projeto de reforma de pastos e produção de sementes de pastagens (fls. 189
dos autos do processo administrativo). Dos elementos que nos foram encaminhados
não se constata a aprovação ou reprovação do referido projeto. Fato é que o administrado não pode ser apenado pela inércia da Administração em analisar os projetos que lhe
são apresentados. Assim, tendo a proprietária do imóvel, de boa-fé, apresentado projeto
de reforma de pastagens e de produção de sementes, com mais de um ano de antecedência do início da vistoria, sua existência não poderia ter sido desconsiderada para
fins de enquadramento do imóvel como propriedade improdutiva.
Para além desse vício, o RAF viola a coisa julgada, por ter desconsiderado,
para fins de apuração do GUT e do GEE, sentença proferida em ação de retificação de
registro, que fixou a área do imóvel em 2.824,4980 ha.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Da documentação que nos foi encaminhada, constata-se que por decisão judicial, transitada em julgado, houve a retificação do registro do imóvel, para a área total
de 2837,8 ha. Após a retificação foram objeto de desapropriação amigável 65.637,30
m2 e 65.382,50 m2, para passagem de uma estrada. O saldo apurado na própria RAF
é de 2824,4980 ha. O agente que promoveu a vistoria ignorou o registro de imóveis,
que foi retificado por força de decisão judicial transitada em julgado, e atribuiu ao
imóvel a área de 2868,1571 ha, o que levou à apuração do GEE de 93,39 %.
Ao assim proceder, a autoridade administrativa, violou a coisa julgada, cuja
imutabilidade é assegurada pela Constituição Federal (art. 5º XXXVI), como forma
de implementar a segurança jurídica, razão de ser do Estado de Direito.
Embora seja discutível a faculdade de a fiscalização, ao proceder à vistoria,
constatar a existência de área diversa daquela objeto do registro de imóveis, no caso
presente, essa faculdade ficou totalmente eliminada em virtude da existência de ordem judicial, transitada em julgado, retificando, para fins de registro imobiliário, a
área do imóvel em questão.
A coisa julgada, qualidade dos efeitos de direito material da sentença, que
consiste na sua imutabilidade, é expressão da segurança jurídica. A garantia da coisa
julgada é direito fundamental do cidadão, inatingível até mesmo por alterações legislativas, o que se dirá por entendimento de agente contratado pelo INCRA, mediante
convênio, para fiscalizar o cumprimento da função social de determinada propriedade. A coisa julgada transmite a certeza do direito, que não pode ser mais discutido
em qualquer instância.
Assim, tendo havido, em sede de ação ordinária, retificadora de registro de
imóveis, a apuração da área real do imóvel, é defeso ao agente administrativo desconsiderar a coisa julgada, para adotar área diferente daquela que a decisão judicial
atribuiu ao imóvel.
Note-se que a coisa julgada é, também, uma exigência prática. A busca pela
justiça há de ter fim, ou seja, os litígios surgem para que cheguem a uma solução
definitiva, não devem perdurar indefinidamente.
Assim, independente do acerto ou desacerto da decisão, quando dela não couber mais recurso, terá se tornado imutável, devendo ser respeitada não só pela parte
vencida como, principalmente, pelos órgãos administrativos.
Esses ensinamentos remontam a Hans Kelsen, para quem:23
23
In, Teoria Pura do Direito. Trad. De João Baptista Machado. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996. P. 297299,
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
[...] para atender à finalidade da justiça, existe, no processo, o sistema de recursos, através dos quais pode o interessado pedir o reexame das decisões
por diversos órgãos jurisdicionais. Para atender à necessidade de segurança e
estabilidade, existe o fenômeno da coisa julgada. Após serem esgotados todos
os recursos, a decisão judicial torna-se imutável, não podendo ser alterada
ainda que, objetivamente, não tenha concluído contrariamente ao direito.
A mesma posição é adotada pela doutrina brasileira, como se vê dos ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho ao comentar o art. 5º XXXVI CF:24
Este dispositivo tem por objetivo dar segurança e certeza às relações jurídica,
conseqüentemente, aos direitos assumidos pelos indivíduos na vida social.
No convívio diuturno com outros homens, cada um pratica atos jurídicos dos
quais lhe resultam direitos e obrigações. Haveria gravíssima insegurança, a
ameaçar os próprios fundamentos da vida social, se tais atos pudessem ter
sua validade, a qualquer tempo, reposta em discussão, se a decisão dos tribunais sempre pudesse ser impugnada e reimpugnada, se a existência dos
direitos fosse a cada passo renegada.
Só teria, o fiscal, a faculdade de desprezar a área firmada na ação de retificação
de registro promovida pela proprietária do imóvel, acaso a coisa julgada tivesse sido
rescindida em ação proposta com essa finalidade. Desrespeitar o quanto decidido
em ação de retificação de registro, sem sequer apontar quais as razões que levaram à
apuração de uma área maior do que aquela que foi reconhecida por decisão judicial
transitada em julgado, é afrontar não só a garantia constitucional da coisa julgada,
bem como, os princípios da moralidade25 e da legalidade.
24
25
Comentários à Constituição brasileira de 1988. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1997. Pág. 54.
O princípio da moralidade foi assim analisado por um dos ora pareceristas em trabalho apresentado ao XXI
Simpósio de Direito Tributário: “O princípio da moralidade administrativa é o mais relevante princípio da
Administração. O art. 37 da CF contém quatro princípios fundamentais a conformar o perfil de administrador
público. São a saber: os princípios da legalidade, da moralidade, da publicidade e aquele da impessoalidade.
Um exame mais pormenorizado dos quatro princípios demonstra que, de rigor, todos terminam por desaguar
na moralidade pública. O princípio da legalidade reveste todo o sistema jurídico do país. (...) Dizer, pois, que
os administradores devem cumprir a lei é reiterar formulação essencial no mais relevante artigo da Constituição Federal que é voltada ao cidadão mais do que àqueles que o devem servir. Por outro lado, determinar
que o administrador público deve ser impessoal, pois está à disposição da sociedade, não podendo privilegiar
amigos, parentes ou interesses em detrimento do bem servir, é afetar faceta da ética administrativa, sendo,
pois, a impessoalidade dimensão parcial da moralidade. O mesmo se dá com princípio da publicidade. Exceção feita às questões de segurança nacional, os atos administrativos devem ser transparentes, não se admitindo decisões escusas, resoluções de gaveta, visto que o administrado não pode desconhecer as regras da
Administração. O princípio da moralidade administrativa, portanto, é o princípio essencial. O mais relevante,
aquele que se destaca de forma absoluta. Que torna a Administração confiável perante a sociedade e que faz
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
De acordo com os fundamentos supra analisados entendemos ser ilegítima
a edição de decreto expropriatório do imóvel em questão, com base no processo administrativo 54.190.000362/2002, dados os vícios formais e materiais supra-analisados.
Por fim cumpre enfrentar a questão proposta pelo consulente, relativa ao cabimento de mandado de segurança impetrado para o fim de ver reconhecida nulidade
do decreto expropriatório, que decorreu do processo administrativo exaustivamente
analisado neste parecer (54.190.000362/2002).
Aduz o consulente que, na tentativa de configurar o incabimento do mandado
de segurança, a Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral da República abordam a questão sob o aspecto da produtividade, aduzindo que a obtenção ou não GEE
de 100% é matéria que demanda dilação probatória.
Essa não nos parecer ser, contudo, a matéria ventilada no mandado de segurança trazido pelo consulente para nossa análise. O que se postula com a impetração
é ressalvar o direito líquido e certo da proprietária de não ter o imóvel desapropriado
para fins de reforma agrária, sob o fundamento de que o decreto expropriatório foi
emitido com violação aos princípios do devido processo legal, do contraditório, da
ampla defesa, da publicidade, da motivação do ato administrativo e, ainda, em ofensa à garantia da coisa julgada, do que deflui, também, desrespeito aos princípios da
moralidade e da legalidade.
Essa matéria é de ordem documental e, portanto, passível de ser apreciada em
sede de mandado de segurança, sob pena de amesquinhamento do remédio heróico e
configuração de denegação de justiça (arts. 5º LXIX e XXXV CF).
O mandado de segurança vem previsto nas Constituições brasileiras desde
1934. Apenas a Carta de 1937 não garantiu o cabimento dessa ação contra ato praticado por autoridade pública que importe em ilegalidade ou abuso de poder. Na Constituição de 1988 a garantia vem prevista no art. 5º LXIX nos seguintes termos:
LXIX – conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido
e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando o respondo administrador público um ser diferenciado. Quem presta concurso para servir ao povo, sabe de antemão
que sua probidade deverá ser absoluta, pois seu exemplo é fundamental para que as instituições sejam estáveis. (...) E a moralidade é aquela que se vincula não só à obediência estrita da lei que deve ser aplicada, mas
também à preocupação de não gerar problemas de nenhuma espécie ao administrado, podendo, inclusive, ser
responsabilizado o servidor, civilmente, nos termos do art. 37 § 1º, da lei suprema, se não agir eticamente”. (O
Princípio da moralidade no direito tributário. São Paulo: RT e CEU, 1996. (Pesquisas Tributárias. Nova série; n.
2). Págs. 17 a 20)
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
sável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de
pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público; (grifamos)
A adoção da expressão direito líquido e certo - primeiramente pela Constituição de 1946 - em contraposição à expressão “direito certo e incontestável”, adotada
pela Constituição de 1934,26 deixou claro ser cabível mandado de segurança ainda
que a matéria seja dotada de alto grau de dificuldade.
Essa alteração terminológica só veio reforçar entendimento jurisprudencial
de que mandado de segurança não prescinde da análise da prova documental necessária à comprovação dos fatos aduzidos.
De fato, mesmo antes do advento da Constituição de 1946, o Supremo Tribunal Federal já reconhecia o cabimento de mandado de segurança para amparar direito líquido e certo, ainda que a questão jurídica fosse complexa, isso porque direito
líquido e certo é fato. Confira-se o vetusto voto Min. Costa Manso:27
Quem requer o mandado de segurança defende o seu direito, isto é, o direito
subjetivo, reconhecido ou protegido pela lei O direito subjetivo, o direito da
parte, é constituído por uma relação entre a lei e o fato. A lei, porém, é sempre
certa e incontestável. A ninguém é lícito ignorá-la, e com o silêncio, a obscuridade, a indecisão, dela não se exime o juiz de sentenciar ou despachar (CC,
art. 5º da Introdução). Só se exige prova do direito estrangeiro ou de outra
localidade, e isso mesmo se não for notoriamente conhecido. O fato é que
o peticionário deve tornar certo e incontestável, para obter o mandado
de segurança. O direito será declarado e aplicado pelo juiz, que lançará mão
dos processos de interpretação estabelecidos pela ciência, para esclarecer os
textos obscuros ou harmonizar os contraditórios. Seria absurdo admitir se
declare o juiz incapaz de resolver de plano um litígio, sob o pretexto de haver
preceitos legais esparsos, complexos ou de inteligência difícil e duvidosa. Desde, pois, que o fato seja certo e incontestável, resolverá o juiz a questão
de direito, por mais intricada e difícil que se apresente, para conceder ou
denegar o mandado de segurança. (MS 333, de 9.12.36, apud Castro Nunes,
ob. Cit., pp. 92/93) (itálico no original, grifos nossos)
26
27
Eis o teor do dispositivo: “Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o
mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não
prejudica as ações petitórias competentes”.
APUD, MELLO, Celso Antônio Bandeira de. DALLARI, Adilson Abreu. FERRAZ, Sérgio. FIQUEIREDO, Lúcia
Valle. VELLOSO, Carlos Mário da Silva. São Paulo: RT, 186. Pág. 76.
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para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Do trecho supra transcrito da jurisprudência - que , com o passar dos anos,
se transmudou em doutrina -, vê-se que não é apenas o direito translúcido, evidente,
acima de qualquer dúvida razoável, que pode ser protegido na via do mandado de
segurança. Se assim fosse, apenas as questões muito comezinhas poderiam ser objeto dessa ação especial. Interpretação nesse sentido violentaria a teleologia do art.
5º LXIX da CF, porque desproveria o mandado de segurança de grande parte da sua
utilidade.
O que permite o manejo, ou não, do mandado de segurança é a comprovação
dos fatos e não, a simplicidade da questão jurídica posta. A comprovação dos fatos,
por sua vez, se dá por meio de prova documental, pré-constituída. Ainda que a documentação seja vasta e complexa – o que sequer é a hipótese trazida pelo consulente
– cabe mandado de segurança se a prova produzida for suficiente para comprovar
os fatos alegados. Negar a via mandamental, sob o fundamento de que a matéria é
complexa, configura verdadeira negativa de prestação jurisdicional.
Com o passar dos anos, o argumento de a complexidade da prova documental
seria empecilho ao conhecimento de mandado de segurança – argumento suscitado
na tentativa de reduzir o número de impetrações contra atos perpetrados por autoridades públicas revestidos de ilegalidade -, foi sistematicamente rebatido pela jurisprudência do Eg. Supremo Tribunal Federal, como se vê dos seguintes precedentes:
NÃO E POSSIVEL CONCEDER MANDADO DE SEGURANÇA SEM O EXAME
DA DOCUMENTAÇÃO NA QUAL SE FUNDA O ALEGADO DIREITO LIQUIDO E CERTO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.28
MANDADO DE SEGURANÇA. COMPLEXIDADE DOS FATOS. LITISCONSORCIO NECESSÁRIO.
I. A COMPLEXIDADE DOS FATOS NÃO EXCLUI O CAMINHO DO MANDADO DE SEGURANÇA, DESDE QUE TODOS SE ENCONTREM COMPROVADOS DE PLANO.
II. [...]29 (grifamos)
MANDADO DE SEGURANÇA - COMPLEXIDADE DOS FATOS - QUESTÕES FATICAS DE ALTA INDAGAÇÃO. HÁ DE SE DISTINGUIR A
COMPLEXIDADE DOS FATOS E DO TEMA DE DIREITO DAQUELAS
SITUAÇÕES QUE NÃO PRESCINDEM DA ABERTURA DE FASE DE INS28
29
Brasil. Supremo Tribunal Federal. AgRg 83.698-5/RJ. Primeira Turma. Sessão de 22.09.81. Rel. Min Soraes
Muñoz. DJ 09.10.81. Ementário 1229-2
Brasil. Supremo Tribunal Federal. RE 100.411-8/RJ. Segunda Turma. Sessão de 04.09.84. Rel. Min.Francisco
Rezek. DJ 26.10.84. Ementário 1355-3.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
TRUÇÃO. SE O CASO ESTÁ COMPREENDIDO NO CAMPO DA REFERIDA DIFICULDADE, NEM POR ISSO O MANDADO DE SEGURANÇA
EXSURGE COMO VIA IMPROPRIA, IMPONDO-SE O JULGAMENTO DE
MÉRITO. SOMENTE EM DEFRONTANDO-SE O ÓRGÃO JULGADOR COM
QUADRO A EXIGIR ELUCIDAÇÃO DE FATOS CABE DIZER DA IMPERTINENCIA DA MEDIDA, SINALIZANDO NO SENTIDO DO INGRESSO EM JUÍZO MEDIANTE AÇÃO ORDINARIA. (grifamos)30
A esse respeito também é concorde a doutrina. Citamos, exemplificativamente, Eduardo Arruda Alvim:31
Com a CF/46, foi substituída a expressão direito certo e incontestável, por direito líquido e certo; ao mesmo tempo, retirou-se a exigência de que se tratasse, o ato impugnado, de ato manifestamente ilegal ou inconstitucional. [...]
A partir desse marco histórico (CF/46), foi-se firmando a posição (doutrinária e jurisprudencial) no sentido de que a liquidez e certeza do direito (requisitos do mandado de segurança que subsistem até hoje, com a redação
do inc. LXIX do art. 5º da CF/88) em verdade não guardam relação com a
simplicidade do direito em discussão.
Mas, já em 1945, o então Min. Orosimbo Nonato, em voto proferido no STF, alertava para o fato de que tal interpretação – que restringia a admissão do mandado de segurança a questão simples – era perigosa, pois, em sendo aceita, ´nenhum ato ofereceria matéria a mandado de segurança, pois muito rara é a regra
de direito ou princípio jurídico que não sofre crítica, revisão ou restrição´.
Hoje, predomina o entendimento de que a certeza do direito é aferível
a partir da circunstância de estarem suficientemente demonstrados os
fatos a partir dos quais se pretende a concessão da ordem.
Examinemos com mais vagar a idéia de certeza do direito, em função do tipo
de prova. Como se disse, está ela ligada à prova documental que instrui a inicial. No mandado de segurança, os fatos deverão estar cabalmente provados, mediante prova documental junta com a petição inicial.
[...]
Caso fique constatado, ab initio, que os fatos não estão suficientemente provados, será caso de carência da ação tal como a não plausibilidade do direito
invocado (eis que a plausibilidade consubstancia o interesse e a possibilidade
jurídica do pedido). Isso não impede, todavia, que a autoridade coatora,a
o prestar as informações procure interpretar os fatos, como também
30
31
Brasil. Supremo Tribunal Federal. RMS 21514-3/DF. Segunda Turma. Sessão de 27.04.93. Rel. Min. Marco Aurélio. DJ 18.06.93. Ementário 1708-02.
Mandado de Segurança no Direito Tributário. São Paulo: RT, 1998. Pág. 90 a 94.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
não obsta a que a autoridade coatora negue a própria existência dos fatos. (itálico no original, grifos nossos)
Em matéria de desapropriação há vasta jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que afasta o cabimento do mandado de segurança sempre que presente
controvérsia fática em torno de índice de produtividade do imóvel.32 A esse respeito
o célebre precedente da relatoria do E. Min. Celso de Mello, cuja ementa, traz o entendimento da Corte, nos seguintes termos:33
MANDADO DE SEGURANÇA - IMÓVEL RURAL - DESAPROPRIAÇÃO
PARA REFORMA AGRARIA - OFENSA À COISA JULGADA - INOCORRÊNCIA - EXISTÊNCIA DE MAIS DE UM IMÓVEL RURAL EM NOME DOS
IMPETRANTES - IMPOSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DA CLÁUSULA
CONSTITUCIONAL DE INEXPROPRIABILIDADE (CF, ART. 185, IN FINE)
- INVOCAÇÃO DA PRODUTIVIDADE FUNDIARIA COMO FUNDAMENTO
AUTÔNOMO DE IMPUGNAÇÃO DO DECRETO PRESIDENCIAL (CF, ART.
185, II) - CONTROVERSIA SOBRE A PRODUTIVIDADE DO IMÓVEL - ILIQUIDEZ DO DIREITO ALEGADO - WRIT DENEGADO.
- A circunstancia de haver sido anteriormente concedido mandado de segurança aos impetrantes, em virtude da ausência dos atos legislativos reclamados pelos arts. 184, par. 3., e 185, I, da Constituição, não impede que o
Presidente da República, tendo presente a edição superveniente da Lei complementar n. 76/93 e da Lei n. 8.629/93 - e uma vez observados os pressupostos nelas estabelecidos -, venha a renovar, para fins de reforma agrária, e
sem qualquer ofensa a autoridade da coisa julgada, declaração expropriatória
concernente ao mesmo imóvel rural.
[...]
32
33
Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.320/SP. Plenário. Sessão de 11.11.96. Rel. Min. Moreira Alves.
DJ19.12.96. Ementário 1855-01. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.285/SO. Plenário. Sessão de 01.04.96
Rel. Min. Sydney Sanches. DJ 17.05.96. Ementário 1828-02. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.478/PR.
Plenário. Sessão de 07.10.94. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ 30.06.97. Ementário 1884-01. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 24.327/DF. Plenário. Sessão de 28.11.02. Rel. Min. Gilmar Mendes. DJ 19.12.02. Ementário
02096-02. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.547/MG. Plenário. Sessão de 14.11.96. Rel. Min. Ilmar
Galvão. DJ 107.03.97 Ementário 1860-01. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 24.224/DF. Plenário. Sessão
de 28.05.02. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ 27.09.02. Ementário 2084-01. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS
23.754/AL. Plenário. Sessão de 23.08.01. Rel. Min. Ellen Gracie. DJ 31.10.01. Ementário 2050-03. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 221.971/PE. Plenário. Sessão de 16.03.95. Rel. Min. Moreira Alves. DJ 16.06.95.
Ementário 1791-02. Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 23.311/PR. Plenário. Sessão de 09.12.99. Rel. Min.
Sepúlveda Pertence. DJ 25.02.00. Ementário 1980-02.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.022-8/ES. Plenário. Sessão de 07.10.94. Rel. Min. Celso de Mello. DJ
04.11.94. Ementário 1765-2.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
- A propriedade produtiva independentemente de sua extensão territorial
e da circunstância de o seu titular ser, ou não, proprietário de outro imóvel rural, revela-se intangível à ação expropriatória do Poder Público
em tema de reforma agrária (CF, art. 185, II), desde que comprovado, de
modo inquestionável, pelo impetrante, o grau adequado e suficiente de
produtividade fundiária.
A controvérsia documental em torno do índice de produtividade do
imóvel rural basta para descaracterizar a necessária liquidez dos fatos
subjacentes ao direito subjetivo invocado pelos impetrantes, tornando
impertinente, por ausência de um de seus requisitos essenciais, a utilização da via processual do mandado de segurança. Precedentes. (grifamos)
A jurisprudência supra transcrita revela hipótese que não se confunde com
aquela trazida pelo consulente. Trata-se de ação na qual os fatos alegados não restaram incontroversos, ou seja, não foram suficientemente comprovados pela documentação acostada à inicial. Para essa hipótese, realmente, é incabível a impetração
de mandado de segurança, uma vez ausente a liquidez e certeza do direito, pois não
deflui da prova pré-constituída.
A ausência de prova do direito alegado leva, inevitavelmente, à descaracterização do direito líquido e certo e, em conseqüência ao incabimento do mandado de
segurança. Essa não é, contudo, a hipótese do mandado de segurança 24.482-8/160DF. Nesses autos, o direito líquido e certo é facilmente aferido a partir da prova documental produzida. Acostado à petição inicial encontra-se o processo administrativo,
que resultou no decreto expropriatório. Os vícios do processo administrativo, analisados ao longo desse parecer, implicam ilegalidade do decreto expropriatório.
É certo que, para aferir a legalidade ou não de procedimento administrativo,é
cabível a impetração de mandado de segurança. Se assim não fosse, a Administração
Pública estaria “blindada” ao controle jurisdicional pela via célere do mandado de
segurança, restando ao administrado a penosa via ordinária que, muito raramente,
é capaz de impedir ou mesmo de reparar lesões ao direito argüido. Proteger direito líquido e certo violado por ato ilegal de autoridade pública proferido em sede de
processo administrativo é uma das principais funções do mandado de segurança.
Essa questão, que sequer nos parece controvertida, já foi objeto de pronunciamento
expresso do Eg. Supremo Tribunal Federal. Confira-se:
O MANDADO DE SEGURANÇA LABORA EM TORNO DE FATOS CERTOS
E COMO TAIS SE ENTENDEM AQUELES CUJA EXISTÊNCIA RESULTA DE
PROVA DOCUMENTAL INEQUIVOCA. EM FACE DESSE PRESSUPOSTO, A
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA EM INQUERITO ADMINISTRATIVO, PODERA SER OU NÃO APRECIADA EM MANDADO DE SEGURANÇA, CONFORME A LESÃO SE APRESENTAR OU NÃO DEMONSTRADA
ATRAVÉS DE PROVA DOCUMENTAL INEQUÍVOCA34
No caso objeto, do presente, parecer a prova documental é inequívoca, constituída da íntegra do processo administrativo – juntada por cópia à petição inicial do
mandado de segurança, de cuja análise se extrai a violação aos princípios da ampla
defesa, do contraditório, do devido processo legal, da moralidade e, ainda, o desrespeito à coisa julgada.
Mesmo em hipóteses de desapropriação, o Eg. Supremo Tribunal Federal admite o manejo do mandado de segurança sempre que o direito líquido e certo se
encontrar documentalmente comprovado. Confiram-se os seguintes precedentes:35
EMENTA: - Mandado de segurança. Decretos do Presidente da República declaratórios de interesse social para Reforma Agrária. 2. Alegação de nulidade
dos atos preparatórios que ensejaram os decretos impugnados. Falta de indicação na notificação da data de início da vistoria. Ausência de notificação
para que os impetrantes impugnassem as alterações cadastrais realizadas de
ofício. 3. Ausência de prévia notificação da Federação da Agricultura do Estado do Acre, quanto à vistoria. 4. Vistoria realizada com notificação prévia
irregular. Não é possível dar à notificação prévia a natureza, que pretende reconhecer o INCRA, de simples comunicação de que servidores da Autarquia
inspecionarão o imóvel. 5. Precedente do STF no MS 22.164-0. 6. Mandado de
segurança deferido para anular os decretos da autoridade impetrada datados
de 15.12.1999, que consideraram de interesse social para Reforma Agrária, os
imóveis denominados “Fazendas Planalto I e II”, “Fazenda Campo Alegre”,
“Fazendas Castanhal e Espigão”, “Fazenda Promissão I, II e III”, todos localizados no Município de Capixaba, Estado do Acre, e integrantes do denominado “Seringal Nova Amélia’, de propriedade dos impetrantes.36
EMENTA: DESAPROPRIAÇÃO POR INTERESSE SOCIAL. FALTA DE NOTIFICAÇÃO A QUE SE REFERE O § 2º , DO ARTIGO 2º , DA LEI 8.629/93. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA: INEXISTÊNCIA: NULIDADE DO ATO.
34
35
36
Brasil. Supremo Tribunal Federal. RE 80.444/PB. Primeira Turma. Sessão de 08.11.77. Rel. Min. Suares Muñoz.
DJ 25.11.77. Ementário 1080.
Ainda na mesma linha dos precedentes transcritos, consulte-se: Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.328/
PR. Plenário. Sessão de 27.06.96. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ 22.08.97. Ementário 1879-02. Republicação DJ
19.09.97. RTJ 163/984.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 23.675/AC. Plenário. Sessão de 04.10.01. Rel. Min. Néri da Silveira. DJ
14.12.01. Ementário 2053-04.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
TERRA PRODUTIVA. COMPROVAÇÃO MEDIANTE LAUDO DO PRÓPRIO
INCRA OFERECIDO EM PROCEDIMENTO EXPROPRIATÓRIO ANTERIOR
E POSTERIORMENTE NÃO CONSUMADO. VERIFICADO QUE O IMÓVEL
RURAL É PRODUTIVO TORNA-SE ELE INSUSCETÍVEL DE DESAPROPRIAÇÃO-SANÇÃO PARA OS FINS DE REFORMA AGRÁRIA. MANDADO DE SEGURANÇA DEFERIDO. 1. A propriedade selecionada pelo órgão estatal para
o fim de desapropriação por interesse social visando à reforma agrária não
dispensa a notificação prévia a que se refere o parágrafo 2º , do artigo 2º ,
da Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, de tal modo a assegurar aos seus
proprietários o direito de acompanhar os procedimentos preliminares para o
levantamento dos dados físicos objeto da pretensão desapropriatória. O conhecimento prévio que se abre ao proprietário consubstancia-se em direito
fundamental do cidadão, caracterizando-se a sua ausência patente violação
ao princípio do contraditório e da ampla defesa (CF, artigo 5º , inciso LV). 2.
Desconstituída desapropriação anterior acerca do mesmo imóvel, em face de
decisão judicial, a fim de que novo decreto presidencial seja editado, impõe-se
seja repetida a notificação, para que se cumpra a determinação do parágrafo
2º , do artigo 2º, da Lei nº 8.629/93, sob pena de perda absoluta de eficácia do
ato de desapropriação. Provada a inexistência do cumprimento preliminar
desse atributo do direito do expropriado, caracteriza-se ofensa ao seu direito
líquido e certo, ensejando o cabimento e deferimento do mandamus. 3. Se na
fase da primeira tentativa de desapropriação expediu o órgão encarregado
da política de reforma agrária laudo técnico de reconhecimento sobre ser o
imóvel rural produtivo, preenchendo o índice de 80% (oitenta por cento) do
Grau de Utilização da Terra e de 100% (cem por cento) do Grau de Eficiência
e Exploração -G.E.E., é esse laudo que prevalece diante da impossibilidade de
obter-se um segundo em decorrência da ocupação das terras por grupos de
“Sem Terra”. 4. Caracterizado que a propriedade é produtiva, não se opera a
desapropriação-sanção - por interesse social para os fins de reforma agrária
-, em virtude de imperativo constitucional (CF, art. 185, II) que excepciona,
para a reforma agrária, a atuação estatal, passando o processo de indenização, em princípio, a submeter-se às regras constantes do inciso XXIV, do
artigo 5º, da Constituição Federal, “mediante justa e prévia indenização”. 5.
Violado o direito líquido e certo do titular de propriedade produtiva e constatada a falta da notificação prévia como preliminar do processo, o edito de
expropriação por interesse social para os efeitos de reforma agrária torna-se
plenamente nulo.37
37
Brasil. Supremo Tribunal Federal. MS 22.193/SP. Plenário. Sessão de 21.03.96. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ
29.11.96. Ementário 1852-12.
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 315-350, jan./jun. 2006.
MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
Nos casos supratranscritos vê-se que o Eg. Supremo Tribunal Federal não se
furtou do seu dever de prestar a jurisdição, em que pese a complexidade do direito argüido. No caso trazido pelo consulente, a matéria sequer aponta alto grau de
complexidade. As ilegalidades cometidas ao longo do processo administrativo e, em
especial, a ofensa à coisa julgada, são questões aferíveis pela simples leitura da cópia
do referido processo, que foi juntada à petição inicial do mandado de segurança. Assim, ainda que a questão de direito não fosse simples – o que não nos parece ser no
caso ora em análise – mostra-se adequado o manejo do mandado de segurança para
resguardar o direito fundamental de propriedade que deflui líquido e certo da prova
produzida.
Analisadas as questões propostas, respondemos, objetivamente, aos quesitos
formulados pelo consulente:
1. O fato de a vistoria do INCRA ter atribuído ao imóvel área maior do que
aquela reconhecida por decisão judicial transitada em julgado, importa
em nulidade do processo administrativo, por ofensa à garantia da imutabilidade da coisa julgada (art. 5º XXXVI CF).
2. A falta de fundamentação da decisão proferida no processo administrativo viola os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório
(art. 5º LV) e do devido processo legal (art. 5º LIV), todos expressos na Lei
9784/99 (arts. 2º caput, parágrafo único VII e 50). Representa, ainda, burla
à inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º XXXV CF), o que viola
a cidadania, um dos fundamentos da República.
3. Sim. O ato da autoridade administrativa de deixar de processar recurso
regularmente interposto desatende ao art. 56 da Lei 9784/99 e representa,
ainda, violação aos princípios da ampla defesa (art. 5º LV CF), do devido
processo legal (art. 5º LIV CF) e da segurança jurídica (art. 5º caput CF),
razão de ser do Estado de Direito.
4. Não. O processo administrativo 54190.000362/2002, base para o decreto
expropriatório não é válido, em virtude das ilegalidades e inconstitucionalidades indicadas nos itens precedentes.
5. Sim. Existem fatores legais impeditivos da desapropriação da Fazenda para
fins de reforma agrária, tal como apurado no processo 54.190.000362/2002,
seja em virtude dos vícios formais objeto das respostas anteriores, seja em
virtude de não ter sido considerada área objeto de reforma de pastagens,
que inibe o poder de desapropriar, a teor do art. 6º § 7º da Lei 8629/93.
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MARTINS, Ives Gandra da Silva; PAVAN, Cláudia Fonseca Morato. Direito fundamental de propriedade. Atendimento à função social. Requisitos
para desapropriação para fins de reforma agrária. Vícios formais e materiais do processo administrativo. Cabimento de mandado de segurança
6. Nos autos do MS 24.482-8/160/DF postula-se a proteção a direito fundamental – direito de propriedade - que se mostra líquido e certo a partir
da análise da prova documental pré-constituída, resultando, de rigor, o
seu conhecimento, sob pena de restar configurada negativa de prestação
jurisdicional.
S.M.J.
São Paulo, 30 de julho de 2005.
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS
CLÁUDIA FONSECA MORATO PAVAN
IGSM/cfmp/p2005-017
A EXPLORAÇÃO PETROLÍFERA NA AMÉRICA DO SUL
UMA BREVE ANÁLISE DO CASO BOLIVIANO
Wladmir Tadeu Silveira Coelho*
Palavras-chave: Princípio da livre concorrência. Estado e economia.
Introdução
O modelo de exploração dos recursos minerais energéticos na América do Sul
caracteriza-se, historicamente, pela presença de grupos monopolistas internacionais
legitimados por um discurso liberal de “progresso”, entendendo este como resultante
do acúmulo de capital através da exportação de bens primários.
Observa-se, neste caso, a utilização de uma ideologia, na qual a base estaria no princípio da livre concorrência, a favor de uma ação mercadológica restritiva,
gerando, como resultado, o controle por um reduzido número de empresas de um
importante setor da economia. A cristalização deste modelo ampara-se, ainda, em
outro dogma do liberalismo, ou seja, a defesa de um distanciamento do Estado das
atividades relacionadas à economia, caracterizando este como ineficiente diante das
“leis naturais” que regeriam o mercado.
*
Mestrando em direito (Universidade FUMEC). Membro da Fundação Brasileira de Direito Econômico. Professor. Historiador.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 351-361, jan./jun. 2006.
COELHO, Wladmir Tadeu Silveira. A exploração petrolífera na América do Sul. Uma breve análise do caso boliviano.
No caso dos países da América do Sul, este discurso torna-se hegemônico
em fase anterior a qualquer tipo de intervenção estatal no setor petrolífero; e acaba
funcionando como uma espécie de escudo protetor para os interesses dos grupos
privados internacionais preocupados em garantir o controle das áreas produtivas
conquistadas.
Deste modo, a legislação petrolífera de países como Bolívia, Venezuela, Peru e
Brasil procurou possibilitar - desde o início do século XX - a maior liberdade possível de ação às empresas internacionais do setor, oferecendo - via de regra - extensas
regiões para pesquisa e lavra do mineral.
Dos países citados, somente a Venezuela; considerando o modelo privado de
exploração, conseguiu apresentar resultados que, pelo menos, indicassem a possibilidade de acúmulo de capital e na lógica liberal o crescimento econômico através
da exportação de um produto primário. Nas demais nações, observou-se, ao longo
das primeiras décadas do século passado, uma diminuição ou mesmo suspensão das
atividades relacionadas à exploração petrolífera; entretanto, sem a devolução ao patrimônio nacional das áreas oferecidas para a exploração.
A solução encontrada para esta realidade manifestou-se a partir da década de
1930, através de movimentos nacionalistas de caráter estatizante; aspecto verificado
na Bolívia, ou regulatório, situação observada no Brasil. Neste caso, fica claro que o
discurso intervencionista sul-americano não estaria associado ao modelo inicial de
crescimento econômico, mas em uma forma reparadora da ausência ou inoperância
da iniciativa privada em um determinado setor, ou mesmo como parte de uma política econômica que possibilite ao Estado retirar determinadas vantagens na relação
comercial com setores do oligopólio do petróleo.
1O petróleo boliviano
O caso boliviano, dos anos de 1930, representa com clareza a tentativa do Estado em superar a inoperância do setor petrolífero privado, que atuava naquele país
através da Standard Oil of New Jersey, desde 1921. A atuação dessa empresa caracterizou-se por todo tipo de abuso, incluindo o contrabando através de um oleoduto clandestino para a Argentina, além de falsificação na estimativa do volume das reservas
de petróleo existentes.
O rompimento definitivo entre a Standard e o governo Boliviano ocorre em
1936 com a criação da Yacimientos Petroliferos Fiscales Bolivianos (YPFB) como resultado da insatisfação popular provocado após a chamada “Guerra do Chaco” contra
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 351-361, jan./jun. 2006.
COELHO, Wladmir Tadeu Silveira. A exploração petrolífera na América do Sul. Uma breve análise do caso boliviano.
o Paraguai. Durante o citado conflito, a Standard, entre outros procedimentos, negouse a fornecer o combustível necessário às tropas bolivianas alegando escassez no país
e apontando para a necessidade de importação de combustíveis. Naturalmente, esse
procedimento tornou a empresa antipatizada diante da opinião pública, sendo que
esta passou a exigir providências no sentido de recuperação da soberania política e
econômica do Estado.
A estatização ocorrida na Bolívia foi a primeira da América Latina; entretanto, as pressões efetivadas pelos Estados Unidos logo reduziram o seu alcance. Assim,
em 1940, durante o governo de Enrique Peñaranda, a Standard Oil é indenizada a
título de “colaboração do país com os aliados.”
Uma segunda estatização ocorre trinta anos mais tarde, durante o governo de
Alfredo Ovando Candia, que promove uma nova nacionalização do setor petrolífero,
através do fortalecimento das atribuições da Y.P.F.B., incluindo a estatização Gulf Oil
que atuava na exploração do gás natural.
Com o fortalecimento da ideologia liberal dos anos de 1990, ocorre um novo
distanciamento do Estado boliviano das atividades petrolíferas, entendendo que este
setor melhoraria o seu desempenho a partir de sua abertura à iniciativa privada.
1.2A privatização
O ano de 1996 marca a oficialização dessa abertura através da aprovação, durante o governo de Gonçalo Sanches de Lozada, da lei 1689, de 30 de abril. A nova
legislação, seguindo o vocabulário liberal “flexibilizou” o monopólio do petróleo, admitindo a presença de grupos privados, mediante o estabelecimento dos contratos de
operação e associação.
A lei 1689 manteve a propriedade do subsolo com o Estado determinando, em
seu artigo primeiro, que:
Por norma constitucional, los yacimientos de hidrocarburos, cualquiera sea el
estado en que se encuentren o la forma en que se presenten, son del dominio directo,
inalienable e imprescriptible del Estado. Ninguna concesión o contrato podrá conferir la propiedad de los yacimientos de hidrocarburos BOLÍVIA (1996).
Até este ponto da citada lei, o processo de estatização iniciado em 1936 não
sofre transformação visível; todavia, encontraremos em sua complementação a seguinte redação:
El derecho de explorar y de explotar los campos de hidrocarburos y de comercializar sus productos se ejerce por el Estado mediante Yacimientos Petrolí-
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feros Fiscales Bolivianos (YPFB). Esta empresa pública, para la exploración,
explotación y comercialización de hidrocarburos, celebrará necesariamente
contratos de riesgo compartido, por tiempo limitado, con personas individuales o colectivas, nacionales o extranjeras, según las disposiciones de la
presente Ley BO­LIVIA (1996).
As justificativas para a abertura das atividades relacionadas ao ramo petrolífero fundamentavam-se no princípio da impossibilidade de o modelo nacionalista
boliviano proporcionar, através de uma empresa estatal, os recursos financeiros necessários para a modernização e aumento da produtividade do setor.
Criou-se, como opção, a dita falta de recursos do Estado, a idéia de “capitalizar”
a Y.P.F.B. através do oferecimento dos chamados “Contratos de Riesgo Compartido”.
Abria-se, desse modo, a exploração do petróleo e gás natural aos grupos nacionais ou
estrangeiros, ficando a antiga estatal com a obrigação de supervisionar a aplicação,
por parte das empresas privadas, dos métodos mais adequados à exploração desses
recursos minerais, conforme determinava o artigo 4 da lei 1689.
A idéia de capitalização não ficou restrita ao setor de combustíveis, atingindo
outros pontos importantes da economia boliviana, que se encontravam sob controle
de empresas administradas pelo Estado; assim, a rede de eletricidade, as telecomunicações, transportes aéreos, as ferrovias, o abastecimento de água e o estanho foram
incluídos neste processo.
1.2.1O órgão regulador
Para regular os setores capitalizados a lei 1600 de 28 de outubro de 1994 criou
o “Sistema de Regulación Sectorial” (SIRESE) cuja estrutura dividia-se em “Superintendência General” e “Setoriales”; incluindo a de “hidrocarburos”. As funções das superintendências setorias foram determinadas no artigo 10º da citada lei e nos casos
do petróleo e gás natural especificadas em diferentes artigos da lei 1689.
Ao SIRESE, coube à autorga de concessões de exploração e transporte por
via de dutos dos combustíveis, a fiscalização quanto à formação de monopólios, o
estabelecimento dos volumes mínimos destinados ao abastecimento interno de gás
e petróleo; licitar novos dutos e, dentre outras, atividades próprias de uma agência
reguladora.
Entretanto, essas atividades, em pelo menos dois pontos conferiam à entidade reguladora um aspecto intervencionista. O primeiro estaria na determinação da
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quantidade de petróleo e gás a ser exportado (artigo 24 da lei 1689), tendo em vista
o estabelecimento de uma cota para utilização no mercado interno, e o segundo ao
apresentar um preço máximo dos combustíveis para o mercado interno (artigo 81 da
lei 1689). A possibilidade de intervenção do Estado no setor petrolífero - neste caso
- não se apresentou totalmente descartada, sugerindo aos concessionários certos limites ou cuidados relativos aos futuros investimentos.
A confiança dos concessionários no caráter absolutamente liberal, e por isso
regulador da nova legislação, talvez estivesse no próprio artigo 24 da lei 1689, que
contraditoriamente determinava:
Quienes celebren contratos de riesgo compartido con YPFB para la exploración, explotación y comercialización de hidrocarburos adquieren el derecho de
prospectar, explotar, extraer, transportar y comercializar la producción obtenida. Se exceptúan de la libre comercialización de los mismos los volúmenes
requeridos para satisfacer el consumo interno de gas natural y para cumplir
con los contratos de exportación pactados por YPFB con anterioridad a la
vigencia de la presente Ley BOLÍVIA (1996).
Esta contradição característica básica dos textos liberais levantou uma nova
questão relacionada a sua constitucionalidade pois, segundo empresários e políticos
nacionalistas, o citado artigo transferia na prática a propriedade do petróleo e do gás
aos concessionários.
A dúvida foi “desfeita” mediante decisão do Tribunal Constitucional, que entendeu da seguinte forma o conteúdo do artigo 24 da lei 1689:
[...] Para el caso que nos ocupa es conveniente referirse al criterio coincidente
expresado en la doctrina, sobre los contratos de riesgo compartido (joint-venture), en especial sobre su naturaleza jurídica, que es la de una asociación de
personas físicas o jurídicas que “acuerdan participar en un proyecto común,
generalmente específico (ad hoc) para una utilidad común, combinando sus
respectivos recursos, sin formar ni crear una corporación (...) en sentido legal. No implica, a diferencia de la sociedad, una relación duradera entre las
partes...” (citado por Sergio Le Pera, JOINT VENTURE Y SOCIEDAD) a su
conclusión cada uno de sus componentes recupera o mantiene su propia
individualidad que, además, la conserva durante la vigencia del contrato de
riesgo compartido. En cuanto al objeto, por sus características es transitorio
para uno o varios negocios. En consecuencia, la titularidad a la que se refiere
el artículo único del DS impugnado, transcrito en el punto precedente, debe
entenderse como los derechos y obligaciones emergentes de este tipo de contrato que tiene cada una de las partes, que por consiguiente no tienen dentro
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de él derecho propietario alguno, salvo sobre sus propios bienes e inversiones,
reatados al riesgo del negocio convenido en el joint venture
Por lo expuesto se concluye en que el DS 24806 de 4 de agosto de 1997 no
contradice las normas constitucionales mencionadas por los recurrentes, o
sea los arts. 59.5ª., 7ª.; 30, 69 y 139 de la Ley Fundamental BOLÍVIA (2003).
Desfeita a “dúvida”, quanto à constitucionalidade da lei 1689, a confiança dos
setores envolvidos possibilitou a continuidade dos investimentos externos nos setores do petróleo e do gás boliviano.
2
INVESTIMENTOS DA PETROBRÁS E A FLEXIBILIZAÇÃO DO
SETOR PETROLÍFERO NA BOLÍVIA
2.1O gasoduto
2.1.1A atuação externa da PETROBRÁS
A Empresa Brasileira de Petróleo (PETROBRÁS) foi criada no ano de 1953
como forma de superar as dificuldades impostas pelos grupos monopolistas internacionais, que impediam o avanço da indústria petrolífera no Brasil. Assim, a missão
principal desta empresa seria a exploração, refino e distribuição do petróleo em território nacional, contando para este fim, até o ano de 1994, com o monopólio deste
setor da economia.
No final da década de 1960, durante a gestão do General Ernesto Geisel naquela empresa, articulou-se a ampliação da área de atuação da PETROBRÁS, resultando
em uma nova política de investimentos externos. O acordo assinado em 1996 entre
Brasil e Bolívia, apresentando como principal produto a construção de um gasoduto
A decisão do Tribunal Constitucional contou com o voto dissidente do Magistrado Rolando Roca entendendo
este que:
En consecuencia, de una interpretación contextualizada de la Constitución, los hidrocarburos, que son riquezas naturales del subsuelo- son bienes nacionales, sin que pueda hacerse una separación (con diferente régimen jurídico) entre el yacimiento y la producción en boca de pozo; pues, conforme a la Constitución, ambos
constituyen riquezas naturales hidrocarburíferas que pertenecen sólo al Estado, y cuya propiedad no puede
ser transferida; por lo que el DS impugnado, al aprobar el Modelo de Contrato de Riesgo Compartido para
Áreas de Exploración y Explotación por Licitación Pública, que en su Claúsula Tercera otorga la propiedad de
los hidrocarburos en Boca de Pozo a las empresas hidrocarburíferas, vulnera no sólo el art. 139, sino también
el art. 136 de la Constitución. BOLÍVIA (2003)
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entre os dois países, pode ser entendido como resultante da política iniciada no período militar, na qual a empresa brasileira priorizaria a exploração de combustíveis em
áreas consideradas mais atrativas do ponto de vista econômico.
2.1.2A construção do gasoduto Bolívia-Brasil e a associação
tre Shell e PETROBRÁS
en-
O controle do Gasoduto Bolívia-Brasil encontra-se dividido da seguinte forma: Em território boliviano, é administrado pela Gás Transboliviano S/A, empresa
cujo controle acionário pertence à Shell; no Brasil, a PETROBRÁS, através de sua subsidiária, a Gaspetro, controla 51% da Transportadora Brasileira do Gasoduto BolíviaBrasil (T.B.G.). Desta empresa, participam ainda a BBPP Holding (El Passo, Total,
British Gás) com 29% das ações, Transredes (Shell) com 12%, Shell com 4%.
Verifica-se, desta forma, que o controle do gasoduto Bolívia-Brasil quanto à
exportação, pertence, na verdade, à Shell, empresa responsável ainda pela administração da Transrede, cuja função é distribuir o gás no mercado interno daquele país.
A PETROBRÁS (através da T.B.G.) atuaria como distribuidora do gás no mercado nacional, contando para este fim com a parceria da Shell, empresa que atua no
ramo da distribuição de combustíveis desde as últimas décadas do século XIX.
Com este quadro, observa-se que mercado de distribuição de combustíveis
na Bolívia retomava a sua característica histórica de oligopólio, tendo como principal
objetivo a proteção da exportação.
3
A Guerra do Gás
Esta política econômica direcionada para a exportação atinge o seu ponto
de maior desgaste durante o segundo governo de Gonzalo Sanches de Lozada que,
prosseguindo às negociações iniciadas por seu antecessor, Jorge Queiroga, finaliza o
projeto para o fornecimento de gás natural ao México e Estados Unidos, utilizando
como ponto de escoamento os portos Chilenos.
A atividade exportadora seria desenvolvida através do consórcio Pacific
L.N.G. controlado pela Panamerican Energy e Brithish Energy e apresentaria, como
principal necessidade para sua concretização, um acordo comercial entre Bolívia e
Chile. Esses entendimentos ocorreram em sua maior parte de forma secreta, pois
dentre outros aspectos representariam de modo subjetivo a renúncia boliviana à sua
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histórica reivindicação de acesso soberano ao Oceano Pacifico, perdido para os chilenos na guerra de 1879.
Aos obstáculos históricos, somavam-se denúncias de corrupção governamental e prejuízos econômicos para a Bolívia em função dos baixos valores que seriam
arrecadados pelo país, que não ultrapassariam os 18% da produção.
O descontentamento de diferentes setores sociais, diante desse possível acordo, torna-se evidente e observa-se o registro, em diferentes pontos da Bolívia, de
protestos que culminam, no mês de outubro de 2003, em uma revolta popular que
ficou conhecida como “La Guerra del Gas”.
Esse movimento, duramente reprimido pelo governo, apresentou como saldo
negativo, um número ainda desconhecido de mortos, um sério abalo nas instituições
do Estado boliviano; além de mergulhar o país em um processo que poderia terminar com a eclosão de uma Guerra Civil.
A renúncia e exílio nos Estados Unidos do presidente Sanches Lozada proporcionou uma trégua no movimento das ruas, conduzindo o vice-presidente Carlos
Mesa ao poder. Mesa apresenta, como prioridade de seu governo, uma reformulação
na legislação do petróleo e gás, aceitando a exigência dos movimentos sociais de realização de um referendum vinculante, como forma de nortear a elaboração de uma
nova lei para o setor.
3.1 O referendum vinculante e a nova legislação
Realizado em 18 de julho de 2004, o referendum vinculante, apresentava as
seguintes questões:
1)¿Está usted de acuerdo con la abrogación de la Ley de Hidrocarburos 1689
promulgada por Gonzalo Sánchez de Lozada? Sí o No.
2) ¿Está usted de acuerdo con la recuperación de la propiedad de todos los
hidrocarburos en boca de pozo para el Estado boliviano?
3) ¿Está usted de acuerdo con refundar Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, recuperando la propiedad estatal de las acciones de las bolivianas y
los bolivianos en las empresas petroleras capitalizadas, de manera que pueda
participar en toda la cadena productiva de los hidrocarburos?
O diplomata chileno Edmundo Pérez Yoma - resposável pelos entendimentos com o governo boliviano- descreve
em seu livro “Una missión, las trampas de la relación chileno boliviana” os detalhes destas negociações.
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4) ¿Está usted de acuerdo con la política del presidente Carlos Mesa de utilizar
el gas como recurso estratégico para el logro de una salida útil y soberana al
océano Pacífico?
5) ¿Está usted de acuerdo con que Bolívia exporte gas en el marco de una política
nacional que cubra el consumo de gas de las bolivianas y los bolivianos, fomente
la industrialización del gas en territorio nacional, cobre impuestos y/o regalías a
las empresas petroleras llegando al 50 por ciento del valor de la producción del
gas y el petróleo en favor del país; destine los recursos de la exportación e industrialización del gas, principalmente para educación, salud, caminos y empleos?
A vitória do SIM, nos cinco pontos levantados no referendum, obrigou à elaboração de uma nova legislação para o petróleo e o gás boliviano, que deveria apresentar como principal fundamento a decisão popular de direcionamento à nacionalização e estatização do setor.
Entretanto, o projeto apresentado pelo governo de Carlos Mesa mostrou-se
conservador e pouco receptivo à idéia de estatização. O governo admitia alterações no
valor dos impostos, e a divisão da Y.P.F.B. em duas empresas, sendo uma autárquica,
responsável pela administração dos contratos e outra mista, cuja função seria explorar e comercializar gás e petróleo.
No parlamento, diferentes partidos, incluindo o M.A.S. (Movimento ao Socilismo) dirigido pelo então deputado Evo Morales, apresentam um projeto de lei que
acreditam aproximar-se do resultado do referendum vinculante, defendendo claramente a estatização do petróleo e do gás.
Aprovada pelo parlamento, a nova lei é recusada pelo presidente Carlos Mesa
que, discordando do caráter estatizante da nova legislação, apresenta sua renúncia.
4
A lei 3058 de 17 de maio de 2005
Diante deste quadro, a nova lei de “hidrocarburos” da Bolívia é sancionada pelo
parlamento, iniciando, assim, o processo de nacionalização e estatização do petróleo e gás
daquele país.
Esta característica nacionalista presente na nova lei pode ser entendida como
resultante de uma exigência da sociedade boliviana que respondeu majoritariamente
sim às perguntas um e dois do referendum vinculante, exigindo, dessa forma, o controle pelo Estado dos minerais energéticos. A lei 3058 segue esta orientação e determina em seu artigo 5º:
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[...] se recupera la propiedad de todos los hidrocarburos en Boca de Pozo
para el Estado Boliviano. El Estado ejercerá, a través de Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), su derecho propietario sobre la totalidad de
los hidrocarburos BOLÍVIA (2005).
No mesmo artigo, surge a data para a terceira estatização dos “hidrocarburos”
da história boliviana, que deveria iniciar-se em 180 dias. Esse prazo não foi cumprido, ficando as empresas do setor atuando no país em desacordo com a legislação,
possivelmente esperando ou articulando modificações no texto legal que as mantivessem intocáveis.
Esta modificação não ocorreu e, passados doze meses da publicação da lei
3058, o atual presidente Evo Morales assina o Decreto 28701 determinando a nacionalização e estatização dos hidrocarburos.
Conclusão
Diante das modificações verificadas no setor petrolífero da Bolívia, os meios
de comunicação e as empresas atingidas mostram-se “surpresas” e “indignadas”,
apresentando-se essas últimas como vítimas de uma grande injustiça. Contudo, este
trabalho torna possível observar que o processo de abertura da economia, aplicado
na Bolívia, a partir dos anos de 1990, desenvolveu-se sem a devida sustentação legal,
contrariando, inclusive, a Constituição daquele país em seus artigos 136, 137 e 139.
Nos citados artigos constitucionais, os hidrocarburos são entendidos como
bens nacionais de domínio originário, direto, inalienáveis e emprencidíveis do Estado, constituindo em propriedade pública inviolável. Entretanto, as empresas petrolíferas preferiram ignorar a Constituição, estabelecendo contratos fundamentados na
legislação criada especialmente para atender à política de privatização do governo
Sanches Lozada.
Possivelmente, acreditando em uma não-reversão do neoliberalismo como
ideologia e atitude econômica hegemônica, as empresas petrolíferas passaram a encarar a Bolívia como um simples fornecedor de matéria-prima; deste modo, apressaram-se em criar condições para retirar do subsolo daquele país a maior quantidade
possível dos recursos que, por lei, eram considerados patrimônio da nação.
O gasoduto Bolívia-Brasil seguiu essa lógica, criando um caminho perigoso
para os dois pobres povos sul-americanos. O resultado deste encontro foi, para os
bolivianos, o prejuízo de ter retirado de seu patrimônio uma parcela considerável
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COELHO, Wladmir Tadeu Silveira. A exploração petrolífera na América do Sul. Uma breve análise do caso boliviano.
do gás natural, mediante o pagamento de impostos baixíssimos; e, aos brasileiros, a
dependência de um combustível de origem estrangeira com todas as implicações que
essa situação oferece à economia e segurança de um país.
Em resumo, fica a existência de dois perdedores que, na realidade, não passavam de clientes da Shell, sendo que essa empresa, como sempre, lucra na Bolívia e no
Brasil ao realizar o transporte através do seu gasoduto.
No passado, uma situação muito próxima deu origem à chamada “Guerra do
Chaco”, entre Bolívia e Paraguai. Nesse conflito, morreram mais de cem mil pessoas
que jamais imaginaram que, por detrás das bandeiras e dos hinos, escondiam-se os
interesses da Standard Oil e de uma empresa anglo-holandesa.
REFERÊNCIAS
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BOLIVIA. Lei nº 3058 de 17 de maio de 2005. Disponível em: www. Geocities . com/ bolilaw/ legisla. Htm. Acesso em
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BOLIVIA. Un repaso a la historia de Y.P.F.B. Disponível em www.Ypfb.gov.bo. Acesso em 05/05/2006-05-08
DIAS, José Luciano de Mattos; QUAGLINO, Maria Ana. A questão do petróleo no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1993.
SILVEIRA, Joel; COUTINHO, Lourival. História de uma conspiração. Rio de Janeiro: Coelho Branco, 1959.
YOMA, Edmundo Pérez. Una missión, las trampas de la relación chileno-boliviana. Santiago de Chile, 2004.
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Exclusão ou inclusão social, precária e marginal:
O ‘BAGAÇO’ NÃO RECICLÁVEL
Maurício Gonçalves Saliba*
Marcelo Gonçalves Saliba**
Palavras-chave: Capitalismo. Lixo: consciência ecológica ou lucro?
A sociedade mundial, nos últimos anos, tem-se aperfeiçoado na prática de
aproveitar o inaproveitável, consumir o inconsumível, levando a termo a máxima
científica de que na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma (Lavoisier). A cana-de-açúcar é um exemplo claro e próximo no nosso Brasil, pois dela
se extraí etanol, açúcar, com o bagaço o adubo, energia etc. Do lixo doméstico, se
aproveita tudo.
Essa industrialização do resto daquilo que consumimos não está ligada a uma
consciência ecológica, como querem alguns, mas ao processo produtivo a que estamos todos ligados. Contaminado pela lógica capitalista, o tema ecologia, tão em moda
hodiernamente, se transforma num discurso hipócrita, pois posterga a importância
da diminuição do consumo e ressalta a idéia de reciclagem. A idéia não é preservar
a natureza, mas obter vantagem econômica na industrialização ou, ao menos, uma
*
**
Graduado em Historia. Mestre e doutorando em Educação pela UNESP/Marília. Professor visitante de pósgraduação da UNICAMP e professor de Sociologia e Política da Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos-FAESO.
Promotor de justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestrando em Ciências Juridicas pela
FUNDINOPI. Professor de Direito Penal e Processual Penal das Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO. .
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 363-366, jan./jun. 2006.
SALIBA, Maurício Gonçalves; SALIBA, Marcelo Gonçalves. Exclusão ou inclusão social, precária e marginal: o ‘bagaço’ não reciclável.
vantagem moral. O viver do lixo agora tem outro sentido, pois não mais é preciso
comê-lo, basta vendê-lo. Algumas pessoas gabam-se por sua filantropia ao separar
o lixo para o “outro” que passa para recolhê-lo. O pai agora ensina seu filho que, ao
atender ao tocar da campainha, não deve mais dizer que não há resto de comida, vez
que o lixo pode ser aproveitado.
A característica da reciclagem está no aproveitar aquilo que não pode mais
ser aproveitado, já que o consumidor dali retirou o que lhe interessava. É assim com
o bagaço! Tiramos o doce suco e o resto vai para o lixo, porém o processo determina sua reutilização como adubo orgânico, dando-lhe nova utilização, tão importante
quanto aquela.
Mas nem tudo é reciclável! Alguns restos não conseguem ser reaproveitados,
não havendo um espaço no processo econômico a que se consiga dar-lhe destinação.
Eis o resto do resto, aquilo que ninguém quer por não se aproveitar. A esse resto, não
reciclável, o destino é o isolamento, o afastamento dos nossos olhos, para que não
possamos enxergá-lo. Mas o afastamento não nos permite tomar consciência que
aquele resto foi por nós produzido e o seu constante amontoamento tende apenas a
aumentar e protelar o problema.
A sociedade moderna é antropoêmica, o que significa dizer, vomita a parcela
da sociedade que não lhe interessa, excluindo-a do seu meio (Lévi-Strauss). Quem interessa à nossa sociedade? O doente, o velho, o enfermo, o delinqüente? Com certeza,
não! Eles são, então, excluídos, afastados, institucionalizados.
O processo de industrialização aproveita os corpos que são aptos para seu desenvolvimento, sugando-os e devolvendo-os já esgotados. O precioso liqüido da vida
é absorvido, mas o corpo esbagaçado pelo trabalho não é aproveitado. A reciclagem
não é possível e nem interessante.
Parcela da nossa sociedade não consegue sequer ter seu corpo consumido
pelo processo econômico, não que lhe falte vontade, interesse ou capacidade, mas
pelo simples fato de não encontrar espaço, vaga – dois corpos não podem ocupar
uma mesma vaga (Newton), o que no processo capitalista é levado à risca – o que um
empregado pode fazer não justifica a mantença de outros.
O “resto” dessa sociedade passa a vagar pelo seu meio, sem espaço para ligarse a ela. Não há aderência social. Esse desligamento leva à exclusão ou à inclusão
precária e marginal que, muitas vezes, resvala para a prática de atos contrários ao
interesse social, fazendo nascer a delinqüência, o crime e o encarceramento. A sociedade contemporânea produziu uma nova desigualdade, que resulta do fim de um
longo período de possibilidades de ascensão social. A nova forma de pobreza já não
possibilita qualquer alternativa e desaba sobre o destino dos miseráveis como uma
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 363-366, jan./jun. 2006.
SALIBA, Maurício Gonçalves; SALIBA, Marcelo Gonçalves. Exclusão ou inclusão social, precária e marginal: o ‘bagaço’ não reciclável.
condenação. A desmoralização do trabalho, como meio privilegiado de integração,
obriga os indivíduos a buscarem alternativas radicais.
O cárcere representa a “ponta do iceberg” no processo de exclusão e ao encarcerado, uma nova vida lhe é dada. Não há uma nova oportunidade para a vida e
sim uma nova vida, que se marcará pela estigmatização e, se antes não conseguia a
inserção social, agora a mesma é impossível. A etiqueta de criminoso, imposta socialmente, torna-o invisível aos olhos da sociedade, que enxerga naquela pessoa somente
os atributos que lhe foram impostos. A aparência de criminoso é a única a ser vista e
o ser humano que por trás se encontra é esquecido.
Não há interesse no aproveitamento desse resto social, na reciclagem, por isso,
da mesma maneira que nas favelas, nossas prisões tornaram-se depósitos, afastados
dos nossos olhares, como se tivéssemos de ser protegidos daquela nefasta visão para
a qual em nada contribuímos. Todavia, cada tijolo levantado foi ali colocado por um
de nós e cada pessoa encarcerada representa o nosso fracasso como membros de um
grupo social. A “sociedade” não é uma entidade ou algo natural, mas fruto de uma
construção histórica. Para entendermos a violência, precisamos olhar para a nossa
história. Nós nos acostumamos a conviver num mundo onde a desigualdade econômica é vista como fruto da virtude de alguns e incompetência de outros. Quando,
na fase do capitalismo sem trabalhadores, o Brasil explode, ficamos todos atônicos e
perplexos. Erguemos nossos muros e cercamos nossas casas sem nunca nos questionarmos até aonde isso irá!?!
As rebeliões e os ataques ocorridos no Estado de São Paulo não foram fatos
isolados no Brasil ou no mundo, pois representam o grito do “resto”. Não foram os
primeiros, e nem serão os últimos, já que diariamente o “resto” é amontoado.
A criminalidade organizada cresce e se desenvolve onde nossos olhares não
chegam e não querem chegar. Cresce onde a única resposta social levada, muitas vezes em domicílio, é a arma da repressão e da violência.
O grito dos excluídos nos fez acordar por breves momentos, discutir e tentar
compreender a razão daquela revolta. Passados alguns dias, nossa consciência tranqüila nos faz adormecer novamente, até que tudo recomece.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
______. Globalização – as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1999.
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RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 363-366, jan./jun. 2006.
SALIBA, Maurício Gonçalves; SALIBA, Marcelo Gonçalves. Exclusão ou inclusão social, precária e marginal: o ‘bagaço’ não reciclável.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir – nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 28. ed. Rio de Janeiro:
Vozes, 2004.
YOUNG, Jock. A sociedade excludente. Exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução
Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
GUARDA COMPARTILHADA
Tatiana Morato Leite*
Orientadora: Profª. Ms. Maria Isabel Jesus Costa Canellas**
RESUMO
O presente trabalho trata da modalidade conjunta de guarda de filhos. Uma novidade que está aos poucos, sendo inserida em nosso País. Além do conceito do
referido tema, trata ainda sucintamente dos aspectos jurídicos e se aprofunda um
pouco mais nos aspectos psicológicos relacionados à criança, pois esta é a mais
atingida em todo processo de separação dos pais. Na maioria dos casos, com a ruptura da vida conjugal, acaba se desfazendo também toda uma família, tendo como
conseqüência o distanciamento da relação entre filho e o genitor não-guardião. A
guarda compartilhada veio como solução para extinguir ou, pelo menos, minorar
problemas como este e proporcionar a todos os membros de uma família de pais
separados ou divorciados uma melhor qualidade de vida, embora de difícil prática
no cotidiano familiar.
Palavras-chave: Guarda compartilhada. Separação judicial. Divórcio. Família Filhos.
*
**
Graduada pela Faculdade de Direito de Bauru - ITE.
Advogada civilista em Bauru. Mestre em Direito pelo Centro de Pós-Graduação da ITE. Professora da Faculdade de Direito de Bauru/ITE. Pesquisadora-membro do Núcleo de Pesquisa Docente da Faculdade de Direito
de Bauru/ITE.
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ABSTRACT
This is a research work about the parents’ shared custody of children, a new form
of custody of a child shared by divorced or separated parents who alternate physical
custody of and share all decisions regarding to the child. Such a new practice has
been introduced in our country. Besides this, the present study deals with the juridical aspects of the institute and it goes further, analyzing the children’s psychological
aspects because they are the most liable for consequential damages in every parents’
separation process. In most cases with the broken married life an entire family also
disintegrates. Conseqüently the relationship between the children or adolescents and
the no-guardian parent becomes much more distant. The shared custody came as a
way to solve problems like that and to provide for all the members of the family a
better life quality, though difficult to practice in everyday life.
Keywords: Shared custody. Being in a state of separation. Divorce. Family. Children.
1
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo demonstrar que ainda não foi expressamente prevista em lei a denominada guarda compartilhada, modalidade essa que, aos
poucos, está ganhando espaço entre nós e encontrando adeptos na doutrina, centrados em buscar o significado do melhor interesse dos filhos e de cada um dos genitores
separados ou divorciados. Diante de números cada vez maiores de separações, divórcios
e dissolução de uniões estáveis, é preciso atentar para um caminho mais salutar em
relação aos filhos havidos de relações que foram extintas. Isto porque, são justamente
eles os mais atingidos com a nova situação de vida que está por vir.
O modelo tradicional de guarda, já não mais atende às necessidades dos filhos menores, causando muitas vezes o abandono e o afastamento daquele genitor não-guardião.
Quadros de desinteresses dos pais, até ao nível de abandono material, moral
e afetivo, contribuem para a desestruturação no processo de formação da criança ou
do adolescente.
Para atingir os objetivos propostos, o trabalho está estruturado da seguinte forma: uma síntese sobre poder familiar, a evolução da guarda no Brasil, partindo então
para outras modalidades de guarda, incluindo a tradicional que, aqui no Brasil é a
mais adotada. Atingindo-se, então, o ponto principal do trabalho, que é justamente o
Este artigo é apenas uma síntese da monografia de conclusão de curso com obtenção de louvor pela banca
encarregada de análise da mesma, sob orientação da Professora Ms. Maria Isabel Jesus Costa Canellas.
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conflito gerador da situação, ou seja, o desamor entre os progenitores. E, ainda, aspectos
psicológicos da criança, a função do pai atualmente e a guarda compartilhada propriamente dita.
Com o escopo de despertar a importância da crítica, em nosso País, para a
necessidade de um Direito Civil renovado, procura-se também expor os benefícios e os
malefícios que a mesma traz consigo, não só pelo enfoque jurídico como também sob
o aspecto emocional da criança.
A modalidade conjunta, como também é conhecida, é o modelo ideal para os
nossos dias, e já vem sendo utilizada há algum tempo em outros países com resultados muito favoráveis.
Desde que seja empregada da forma correta, entre casais que apresentem estruturas psicológicas bastante sólidas, será a solução para o extermínio de traumas entre
pais e filhos, após a dissolução do vínculo conjugal, sob todos os aspectos.
Por fim, o que se pretende demonstrar é a tendência para se fazer uma opção
maior em relação a esse tipo de guarda, considerando ultrapassadas as outras existentes, fruto ainda de uma cultura impregnada de um estado de beligerância entre
as pessoas envolvidas – nuclearizada em questões pessoais, culturais, religiosas e
econômicas – com preterição à família, que fica relegada a um segundo ou terceiro
plano, na vida em sociedade.
2CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA E SUAS
FORMAS DE PROTEÇÃO LEGAL
2.1 Reflexão sobre a família, natureza jurídica e importância do
instituto
Historicamente, a família passou por sérias mutações. Experimentou uma vasta
opção em sua constituição, possibilitando diferentes modelos de organizações do grupo
familiar.
O ser humano não nasceu para viver isolado, uma de suas características básicas é a vivência em grupo. A base principal de que uma pessoa necessita é a sua vida
privada, no seio familiar.
Segundo Maria Luzia Clemente e Vilma Regina da Silva, pode-se afirmar que
tais foram as mudanças:
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Num estudo clássico sobre a família, temos na obra de Engels, 1884, cujo
apoio obteve de L. Morgan que analisou os estágios básicos do desenvolvimento, abrangendo desde o período em que os seres humanos viviam em
promiscuidade sexual, com uniões grupais até a família monogâmica.
O primeiro estágio é chamado selvagem, e corresponde ao período em que os
homens habitavam os bosques, as árvores, se alimentavam de raízes, frutas,
pesca e caça. Essa é a época em que começa o uso do fogo, da clava, da lança,
do arco e da flecha.
No segundo estágio, chamado barbárie, introduz-se o uso da cerâmica, domesticação de animais, o cultivo das hortaliças e o emprego do tijolo cru e da
pedra nas construções.
Inicia-se com a fundição do ferro, o estágio da civilização, passando à fase da
escrita alfabética. Nesta fase, o homem continua aprendendo a elaborar os
produtos naturais, surgindo a escrita alfabética e seu uso se generaliza.
Para Morgan, in Engels, foi na família que se iniciou a divisão social do trabalho, tendo sua estrutura determinada pelo desenvolvimento das forças
produtivas.
Cada uma das fases por que passaram homens e mulheres serviu para evolução da organização familiar (CLEMENTE; SILVA, 2000, p. 117).
Foi na monogamia, que o homem, juntamente com o direito paterno, adquiriu
plenos poderes perante os membros de sua família, dando início à família patriarcal.
Maria Luzia Clemente e Vilma Regina da Silva acrescentam que:
Nesse tipo de família, os casamentos eram realizados por conveniências entre
as partes, prevalecendo a autoridade masculina na figura do “patriarca”.
Essa família apresenta uma solidez maior dos laços conjugais, que não podiam ser rompidos por vontade de qualquer das partes. Como regra, só o homem tinha esse direito.
No século XX, com o advento da urbanização, há o ingresso da mulher na
força do trabalho, afastando-se a tradicional divisão sexual do trabalho.
Os casamentos começam a serem realizados por interesses individuais, notando-se mudanças consideráveis nessa família, com a maior igualdade entre
os sexos. No entanto, continua a repressão à sexualidade feminina e reforça
no homem a prática de sua sexualidade.
Portanto, embora atribuída à mulher maior participação social, percebe-se
que nos papéis de gênero não houve alteração, prevalecendo a autonomia do
homem e a submissão da mulher, vivendo uma educação voltada ao casamento (CLEMENTE; SILVA, 2000, p. 119).
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Há, depois, o surgimento da família proletária que passou a habitar os subúrbios da cidade, buscando melhores condições de vida, provocando, assim, a quebra
do vínculo com a comunidade de origem.
Dessa forma, conforme exposto acima, é possível observar as diversas fases
pela qual a família passou, sendo um instituto completamente mutável. Com isso,
hoje, temos a família moderna, denominada pela doutrina como “família nuclear”.
Trata-se de uma organização que subsiste às mudanças históricas e políticas da humanidade, redesenhando seu contorno através dos tempos e persistindo na função
de sua estrutura inabalável, responsável pela constituição do sujeito e pela transmissão da cultura.
Tivemos, no século passado, uma espécie de família, importada de outros
povos e que entre nós sobreviveu por longos anos, até porque é decorrente de uma
experiência empírica, a chamada família patriarcal, onde prevaleciam as ordens e
obediências emanadas do chefe-de-família, pessoa em torno da qual ela gravitava, tal
como ocorre no mundo oriental.
Por questões religiosas e até mesmo ideológicas, e a partir do instante em que
a mulher libertou-se das amarras que a prendia desde a época medieval, explicável e
justificável pela célere evolução industrial que foi acolhida pelo mundo ocidental, o
pensamento também mudou.
Muito provavelmente foi neste caldo, que surgiu aquilo que hoje conhecemos, a chamada monoparentalidade. Bem diferente daquela que lhe antecedeu, ou
seja, a patriarcal.
A monoparentalidade é resultado de uma modernização da instituição família, sem desnuclearizá-la.
Dito em outras palavras, o entendimento do que seja família, hoje, é bem mais
amplo; aliás, é o que se vê da própria Constituição Federal, em seu artigo 226 e parágrafo 4º, dando ênfase à união de pessoas ligadas tanto pelo vínculo de consangüinidade como por afinidade, não implicando, necessariamente, o primeiro vínculo.
“Relação monoparental é a entidade familiar constituída por um ascendente e o
seu descendente” (LISBOA, 2002, p. 153). Como exemplo, podemos citar: entre qualquer dos pais e seus filhos, entre um dos avós e seus netos ou entre um dos bisavós
e seus bisnetos.
Existem também aquelas formadas por apenas três irmãos, entre primos ou
entre tio ou tia e o sobrinho ou sobrinha.
Curiosa é lição de Roberto Senise Lisboa:
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Também se configura possível, ante a realidade na qual a sociedade vive, o reconhecimento de relação familiar entre cônjuge viúvo e o parente ascendente
ou descendente do outro. Exemplos: sogro ou sogra e genro ou nora, e padrasto
ou madrasta e enteado ou enteada (LISBOA, 2002, p. 156).
Nos dizeres de Karen R. P. Nioac de Salles,
Ante o crescimento das formas de conjugalidade, é extremamente difícil enumerar os atuais e futuros tipos de lares monoparentais. Assim, conclui-se que
não se deve avaliar o fenômeno da monoparentalidade já que o mesmo é criado por inúmeras situações, sempre atípicas, que não possuem precisa identificação e, muito menos, previsão legal codificadas (SALLES, 2002, p. 82).
2.2 Poder Familiar
2.2.1Noções introdutórias
A denominação “poder familiar” trata do instituto que, no anterior Código de
1916, vinha com a nomenclatura de “pátrio poder”. Isto porque, antigamente, só o
pai, ou seja, pater o exercia, possuindo domínio total sobre a família e o patrimônio da
mesma. O regime era o patriarcal onde o pater familias era a autoridade plena. O Direito
Romano exerceu uma grande influência no Direito de Família.
Dessa forma, como preleciona Ana Maria Milano Silva,
Em assim sendo, o Pátrio Poder era exercido somente pelo pai (como bem
diz o nome) e significava um poder idêntico ao da propriedade, que incluía a
esposa, os filhos, os escravos e os assemelhados.
Era um poder absoluto, sem limites e sem fim. O pai possuía o direito de expor ou matar o filho, vendê-lo ou entregá-lo à vítima de dano causado por seu
dependente. Quanto ao direito de vida e morte esse só poderia ser exercido
mediante consulta aos membros da família mais próxima.
A mulher, também considerada como propriedade do homem, era literalmente usada para gerar filhos e suprir as necessidades biológicas masculinas, podendo para tanto ser capturada, comprada, trocada ou recebida como
uma recompensa. Por muitos séculos foi tida como reles reserva do homem
(SILVA, 2005, p. 18-19).
O Cristianismo exerceu grande influência para a mudança de pensamento em
todo o exposto acima, pois, com ele, iniciou-se o reconhecimento da igualdade entre
os cônjuges e, além disso, a pregar como uma obrigação, um dever dos pais, os cuida-
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dos em geral de seus filhos. As legislações foram acompanhando tais mudanças, e a
figura da mãe foi cada vez mais se igualando.
Lentamente, vai desaparecendo a família patriarcal dando lugar à família nuclear, tendo como base a igualdade e o companheirismo.
Desse modo, o antigo Código Civil, em seu artigo 380, estatuía que, durante o
casamento, competia o pátrio poder aos pais, exercitado pelo marido com colaboração da
mulher.
Mas, foi em 27 de agosto de 1942, com a Lei nº 4.121 - Estatuto da Mulher
Casada - que conferiu à mãe a posição de colaboradora do marido no exercício do
pátrio poder.
A Lei nº 6.515/77, em seu artigo 27, também indica como titulares dos encargos parentais o pai e a mãe. Em consonância, a Lei nº 8.069/90 - Estatuto da Criança
e do Adolescente - em seu artigo 21, reza pela igualdade de condições de pai e mãe no
que tange ao exercício do pátrio poder.
E, por último, não menos importante, a Constituição Federal de 1988, em
seu artigo 226, parágrafo quinto, pôs fim à discussão e, expressamente, estabeleceu
a igualdade de condições entre o homem e a mulher no que se refere aos direitos e
deveres da sociedade conjugal.
Essa evolução de conceitos se deu de forma gradativa e no sentido da mudança de um poder sobre os outros em autoridade natural com relação à prole, como
pessoas providas de dignidade, no melhor interesse tanto dos filhos quanto da convivência familiar.
Há uma crítica de alguns doutrinadores e estudiosos do Direito, afirmando que a
atual nomenclatura ainda não é a mais adequada, porque reflete a expressão “poder”
e que o ideal seria autoridade parental.
Eduardo de Oliveira Leite destaca:
O “poder parental” (e não “familiar” como, equivocadamente, consta no Código civil de 2002) é a expressão que revela com intensidade esta nova ordem
de valores que passa a invadir o ambiente familiar. Poder parental, dos pais, e
não mais pátrio poder que, inevitavelmente, sugeria o conjunto de prerrogativas
conferidas ao pai (pater), na qualidade de chefe da sociedade conjugal (LEITE,
2005, p. 277).
Preciosa é a lição de Paulo Luiz Netto Lôbo:
Assim, o poder familiar, sendo menos poder e mais dever, converteu-se em
múnus, concebido como encargo legalmente atribuído a alguém, em virtude de
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certas circunstâncias, a que se não pode fugir. O poder familiar dos pais é
ônus que a sociedade organizada a eles atribuiu, em virtude da circunstância
da parentalidade, no interesse dos filhos. O exercício do múnus não é livre, mas
necessário no interesse de outrem. (LÔBO, 2001, p. 144.
Destarte, conclui-se pela evolução descrita do pátrio poder, que o poder familiar traz hoje o amplo significado de igualdade entre os pais, devendo ambos, assumirem todos os direitos e obrigações em relação a seus filhos.
2.2.2Conceito de Poder Familiar
Os doutrinadores conceituam o poder familiar de diversas maneira, porém, todas explicações no mesmo sentido. Vejamos algumas delas.
Para o renomado Silvio Rodrigues, a definição é:
O pátrio poder é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, em
relação à pessoa e aos bens dos filhos não emancipados, tendo em vista a
proteção destes.
O fato de a lei impor deveres aos pais, com o fim de proteger os filhos, realça o
caráter de múnus público do pátrio poder. E o torna irrenunciável. (RODRIGUES, 2002, p. 398).
Poder familiar é o conjunto de direitos e deveres atribuídos aos pais, no tocante à pessoa e aos bens dos filhos menores (GONÇALVES, 2005, p. 357).
Roberto Senise Lisboa:
Poder familiar é, ao mesmo tempo, uma autorização e um dever legal para
que uma pessoa exerça as atividades de administração dos bens e de asseguramento do desenvolvimento dos direitos biopsíquicos do filho incapaz,
pouco importando a origem da filiação.
Revela-se um autêntico múnus legal, pois o poder familiar importa não apenas em direitos sobre a pessoa do incapaz e os seus bens, como também em
deveres pessoais e patrimoniais sobre o filho (LISBOA, 2002, p. 158).
2.2.3 Direitos e deveres decorrentes do Poder Familiar
Como preleciona Ana M. Milano Silva,
O poder familiar é imposto aos pais pelo Estado que é o fiscalizador do exercício legal do mesmo. Essa competência do Estado é direcionada para fiscalizar e
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controlar as relações entre os sujeitos Pai/Filhos para que os direitos e deveres
sejam cumpridos com o respeito devido à lei e nos limites por ela permitidos
(SILVA, 2005, p. 28).
O artigo 1.634 do Código Civil de 2002 traz, expressamente, o elenco dos direitos e deveres dos pais no que tange aos filhos menores, como, por exemplo: dar educação e criação, competindo aos pais torná-los pessoas de caráter, sob o ponto de vista
moral. Outro ponto importante é ao qual se refere o inciso II do mencionado artigo
quando preleciona: “tê-los em sua companhia e guarda”. A respeito deste inciso, importante é a lição de Ana M. Milano Silva:
O direito em ter os filhos sob sua companhia e guarda é tanto do pai quanto
da mãe e, assim é que mesmo separados de fato, nenhum deles pode reclamar o exercício desse direito, invocando preferência. A guarda dos filhos não
constitui, por si só o exercício do poder familiar, sendo um de seus atributos e, desse modo, embora designado judicialmente um dos cônjuges para
ter o filho sob sua guarda, como na separação e divórcio, isso não implica a
exoneração do outro quanto aos deveres do poder familiar, principalmente a
criação e educação (SILVA, 2005, p. 29).
Há outros direitos e deveres devidamente arrolados no citado artigo.
2.2.4 Poder Familiar e Guarda
Diante de todo o exposto, está claro afirmar que o poder familiar é mais uma
obrigação dos pais em relação a seus filhos do que um direito propriamente dito. Na
verdade, o direito, em si, seria da prole, de receber todo cuidado, atenção e zelo de seus
genitores. Direito esse, que é supervisionado pelo Estado, tendo amparo legal.
“O Poder Familiar resulta de uma necessidade natural” (SILVA, 2005, p. 38).
Ocorre que, quando há a ruptura do vínculo conjugal, conseqüentemente o
poder familiar é afetado também. Isto se dá porque a cisão da guarda resultará na
maior convivência do filho com apenas um dos genitores, enfraquecendo os direitos
do genitor que não é o guardião.
Grandiosa é a lição de Eduardo de Oliveira Leite ao afirmar que:
Dúvida não há, de que os pais, os dois genitores permanecem titulares da autoridade parental em relação a seus filhos e independente do rumo que tomar seu
casamento. A ruptura do casal, não tem o condão de provocar a ruptura dos laços
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jurídicos e afetivos da filiação, que persistem imutáveis, independentemente
dos acontecimentos (LEITE, 2004, p. 167).
Importante ressaltar que, no caso descrito, não há a perda da guarda por um
dos genitores, já que ela é um desdobramento do poder familiar; o que ocorre é que
seu exercício ficará comprometido a um dos pais.
Como ressalta Ana Maria Milano Silva,
No sentido jurídico, guarda é o ato ou efeito de guardar e resguardar o filho
enquanto menor, de manter vigilância no exercício de sua custódia e de representá-lo quando impúbere ou, se púbere, de assisti-lo, agir conjuntamente
com ele em situações ocorrentes.
A guarda é inerente ao poder familiar, compartilhado por ambos os genitores
enquanto conviventes. Numa separação, quem perde a guarda não perde o
poder familiar, mas seu exercício efetivo, na prática, é do genitor-guardião.
O do outro fica restrito, embora se repita, conserva todas as faculdades que
decorrem do poder familiar, conforme o artigo 1632 do atual CC, bem como
o artigo 21 do ECA, mesmo quando transferida a terceiros, pois com os pais
subsistem certas atribuições, como fiscalizar a manutenção e a educação dos
filhos e a prestação de alimentos, que só desaparecem com a privação do poder familiar por determinação do juiz (SILVA, 2005, p.43-44).
Dessa forma, a guarda é um atributo do poder familiar e, tendo a opção de
separar-se do mesmo, não se extingue e nem se confunde com ele.
Apesar de ser comum a acumulação da guarda e do poder familiar nas mesmas pessoas, é possível sua separação.
Devido a isso, uma pessoa pode deter a guarda sem ser titular do poder familiar, como o contrário também é permitido.
A guarda é composta de dois aspectos: um material (coabitação) e o outro
jurídico (exercício dos poderes-deveres). Esta última deveria continuar a ser plenamente exercida pelo genitor que não detém a guarda, como decorrência do poder
familiar. Porém, ela só ocorre a distância, através de fiscalização posterior, e não mediante uma decisão em conjunto de ambos os pais.
Como corolário lógico, o genitor que detém a guarda material acaba por exercer tanto essa como a outra (a jurídica), usufruindo, por inteiro, do poder familiar.
Devido a essa desigualdade causada na guarda tradicional (ou única), é de
suma importância o estudo da guarda compartilhada, onde ambos os pais exercerão simultaneamente todos os seus deveres e obrigações em relação à prole.
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Importantíssima é a lição de Gustavo Tepedino:
Em segundo lugar, ao contrário de ordenamentos da família romano-germânica, em que, com a separação judicial ou o divórcio, o exercício da autoridade
parental pode ser atribuído pelo juiz exclusivamente ao titular da guarda, no
sistema brasileiro a dissolução da sociedade conjugal em nada altera as responsabilidades dos pais pelo exercício do chamado poder familiar (g.n.) (TEPEDINO, 2004, p. 314).
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VISÃO SOBRE A GUARDA E DIREITO COMPARADO
3.1 A guarda e sua evolução
Várias foram as evoluções e aprimoramentos no sentido de harmonizar a
convivência dos pais separados com os filhos.
Fez surgir, até mesmo, do empirismo, o gérmen da guarda compartilhada, tal
como hoje se conhece no Direito comparado.
A própria sociedade passou por várias transformações, não só ela como também o núcleo familiar; afinal, a lei nada mais é do que um reflexo dos costumes.
Assim, a questão da guarda modificou-se bastante. Inicialmente, competia ao
pai o exercício dela com o caráter quase que exclusivo, fruto de uma cultura e de uma
época. E assim o era porque, entendimento predominava no sentido de que somente
o varão encontrava-se apto para fornecer amparo psicológico, material e alimentar.
Com o advento da Revolução Industrial e das conseqüências dela resultante, fizeram com que o pai fosse obrigado a permanecer por longo período fora do lar.
Nasceu daí a idéia de que a mulher deveria suprir-lhe a falta dedicando-se
integralmente ao lar e, de conseguinte, na criação, formação e educação dos filhos.
Em razão e por causa disso, surgiu o importante papel da mulher no seio familiar,
nomeadamente no que diz respeito ao relacionamento e convivência com a prole.
Predica Maria Antonieta Pisano Motta, em um caderno de estudo, “Direito de
Família e Ciências Humanas”:
Essa doutrina, em muito apoiada pela Psicanálise, que em suas várias vertentes colocava a importância máxima e quase exclusiva do convívio entre mãe e
filhos, transformou-se em base legal para a assunção da mãe como detentora
preferencial da guarda dos filhos (MOTTA, 2000, p. 81).
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Portanto, percebe-se a modificação do instituto que, primeiramente, era exercido unilateralmente pelo pai, e à mãe em segundo plano.
Tendo em vista que hoje a mulher exerce qualquer atividade profissional em
igualdade de condições com o homem, este, agora, superadas todas aquelas fases em
que o trabalho externo lhe pertencia, reclama, com razão, sua participação mais efetiva
no cotidiano dos filhos.
Em decorrência do que acima foi exposto, a mulher é que passou a exercer,
com exclusividade, a guarda e proteção dos filhos, e agora, em tempos outros o que se
pretende é que este exercício seja compartilhado por ambos, na medida do possível,
em igualdade de condições.
Logo, a guarda compartilhada surgiu como uma forma de se adequar a novas
situações, propondo a participação de ambos os pais no exercício do poder familiar.
3.2 Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança: novos horizontes
A partir da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, realizada em
1989, o tema sob epígrafe focou o relacionamento bem próximo dos pais com os
filhos, passando a ser um direito reconhecido.
Ressalta sobre o assunto Waldyr Grisard:
Inspirada na Declaração de Genebra de 1924, a Assembléia Geral da ONU
adotou, em 20.11.59, a Declaração Universal dos Direitos da Criança. Exatos trinta anos depois, em 20.11.89, um grupo de trabalho da Comissão de
Direitos Humanos da ONU preparou o texto do documento que se conhece
hoje por Convenção sobre os Direitos da Criança, que entrou em vigor internacional em 02.09.90.
Pelo Decreto Legislativo 28, de 14.09.90, o Congresso Nacional aprovou a
Convenção, tendo o Governo brasileiro ratificado seu texto em 24.09.90, que
entrou em vigor para o Brasil em 23.10.90. O Dec. 99.710, de 21.11.90, promulgou a Convenção e o Brasil, assim, insere-se dentre os povos das Nações
Unidas que reconhecem primordial o interesse maior da criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade (GRISARD FILHO,
2002, p.117/118).
A nossa Carta Magna, de 1988, em seu artigo 227, aderiu de modo implícito ao
princípio do melhor interesse da criança.
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Antes de sua inserção na Constituição, ele já era cogitado, e alguns magistrados em suas sentenças chegavam até mesmo a mencioná-lo.
Porém, nada se compara nos dias atuais a força que este princípio ganhou, principalmente quando o assunto é guarda de filhos.
Hoje, o que prevalece é o melhor interesse da criança, e nada mais. Mesmo em
casos em que há culpa na separação por parte de um dos cônjuges, se ficar comprovado que aquele que deu causa é quem tem melhores condições de criar, educar e dar
amor, a este pertencerá a guarda.
Isso significa uma grande evolução no direito. Graças à sobredita Convenção, há uma expansão de valores, parâmetros, e modernização no aspecto da guarda,
onde se coloca a felicidade do menor como bem supremo assunto que, até então, não
era alvo de grande preocupação entre doutrinadores, juristas e estudiosos do direito.
Como resultado, surge a idéia de que a obrigação de criar e educar decorre não
do casamento, mas da filiação estabelecida.
É a lição de Leila Maria Torraca de Brito, em “Família e Cidadania”:
Assim, a partir da década de 1990, em decorrência da citada Convenção,
observa-se uma grande mudança na concepção sobre guarda: passa-se a
compreender que a criança pode e deve conviver com o pai e a mãe, mesmo que estes não formem mais um casal. Conseqüentemente, a legislação de
diversos países foi alterada, tornando o exercício unilateral da guarda uma
exceção.(BRITO, 2002, p. 444).
A mencionada Convenção é forte aliada da guarda compartilhada, pois prova
o quanto é importante a presença de ambos os pais na vida dos filhos.
3.3 A aplicação da Guarda Compartilhada em outros países
É sempre bom citarmos exemplos de outros países que seguem tal modalidade, para mostrar que, apesar de ser um instituto novo para os brasileiros, para outros
povos já está bem difundido.
Ana Maria Milano Silva explica:
Apesar de ser significativo apresentarmos um apanhado sobre a efetiva aplicação da guarda compartilhada em outros países, é importante constar que
as experiências vivenciadas na realidade familiar são diversas de país a país,
no tocante aos costumes e práticas.
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Sofrem elas influências de vários fatores, como grau de desenvolvimento
cultural, formação e características particulares de cada povo. Todavia, como
vivemos na era da globalização, os exemplos bem sucedidos tendem a ser
copiados em todas as esferas da vida, especialmente na social e familiar,
acompanhando o próprio desenvolvimento cultural dos povos e conduzindo
os vários segmentos da sociedade a lutar por novos rumos e, principalmente,
no tema que escolhemos para discorrer, a faculdade de poder escolher dentre
novos modelos, aquele que melhor se adapte ao sucesso do processo formativo da personalidade da criança (SILVA, 2005, p. 86).
3.3.1 Guarda Compartilhada na França
A noção de guarda compartilhada é difundida, na França, desde 1976, com o
objetivo de reduzir as injustiças que a guarda unilateral causava.
Como preleciona Grisard,
A jurisprudência que se formou favoravelmente à guarda compartilhada resultou na Lei 87.570, de 22.07.87, denominada comumente lei Malhuret, Secretário de Estado dos Direitos Humanos, que modificou os textos do Código
Civil francês a respeito do exercício da autoridade parental, harmonizando-o
com a torrentosa Jurisprudência existente (GRISARD FILHO, 2002, p. 124).
Portanto, foi na França que surgiu a primeira lei sobre guarda compartilhada, que
integrou o Código Civil francês com a jurisprudência existente àquela época.
Assim, se o casal se separa, o exercício da guarda tanto pode ser unilateral, sendo o
outro mero visitante, ou compartilhada. No que se refere a essa última, a nova lei veio
fazer da guarda compartilhada algo perfeitamente legal.
3.3.2 Guarda Compartilhada nos Estados Unidos
O Direito americano não fez diferente e logo aderiu a essa nova tendência.
Dados mostram que os pais são favoráveis a ela pelos benefícios que trazem
para os filhos como: adaptação, melhor desenvolvimento emocional, entre outros.
Como cada Estado é responsável pela sua própria legislação, surge um problema de aplicação uniforme, desta forma, para evitar problemas de competência entre os
tribunais de cada Estado, almeja-se uniformizar a legislação a respeito.
Como assegura Waldyr G.,
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LEITE, Tatiana Morato. Guarda compartilhada.
Presentemente, é política pública dos Estados assegurar ao menor contato
freqüente e continuado com ambos os pais depois que se separam ou divorciam, incentivando o compartilhamento dos direitos e das responsabilidades.
Haverá sempre uma forte presunção natural de que a guarda compartilhada
está nos melhores interesses da criança. Hoje, a legislação de cerca de 45 Estados autoriza a guarda compartilhada e em apenas 7 não é especificamente
autorizada. Em outros 12 é presumida e em outros 8 a presunção se dá por
acordo de ambos os pais.Com a lei uniforme procura-se evitar os conflitos de
competência entre os Estados e promover a cooperação entre os respectivos
Tribunais, intervindo o que esteja em melhores condições de decidir sobre a
questão da guarda, tomando em consideração, em primeiro lugar, o interesse
da criança. Com isso, fica garantida a estabilidade do regime adotado e facilitado o cumprimento da sentença (GRISARD FILHO, 2002, p. 127).
Nos Estados Unidos da América do Norte, a guarda compartilhada é bastante
discutida e estudada, além de ser uma das modalidades de guarda que mais está em
expansão.
3.3.3 Guarda Compartilhada no Canadá
No Canadá, a guarda compartilhada só é deferida quando os pais optam por
ela. Porém, os magistrados sempre dão a opinião de que ela é a mais favorável.
Como preleciona Ana Maria Milano,
A seção 16 da lei de divórcio canadense diz que o tribunal deve garantir à
criança o contato constante com cada pai, na medida de seus interesses. Os
tribunais canadenses baseiam a limitação da aplicação da guarda conjunta
apenas em casos de pedido conjunto das partes, na argumentação de que não
se pode compelir um pai a cooperar em uma guarda compartilhada quando
ele não a deseja, sob o risco de não se atingir o objetivo (SILVA, 2005, p. 99100).
Precioso é o ensinamento de Waldyr G.:
No Canadá, a formulação típica da guarda, após o divórcio, é a sole custody
a um dos pais, concedendo-se ao outro o direito de visita. A guarda compartilhada só se confere quando os pais manifestam opção por ela, através de
acordo para melhor atender os interesses seus e dos filhos (GRISARD FILHO,
2002, p. 128-129).
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LEITE, Tatiana Morato. Guarda compartilhada.
E, mais adiante, continua:
Qualquer Corte ao decidir sobre guarda indagará acerca dos melhores interesses da criança. O juiz considerará muitos fatores relativos ao bem-estar
físico e emocional do menor e as condições de cada um dos pais para encontrar as verdadeiras necessidades do menor. O meio econômico não é o fator
decisivo. Se a criança tem mais de doze anos, o juiz considerará também a
sua vontade, que não tem, entretanto, o direito de fazer a decisão por si mesmo
(GRISARD FILHO, 2002, p.129)
3.3.4 Guarda Compartilhada em Portugal
Por sua vez, Portugal batizou a guarda compartilhada como “guarda conjunta”. Os tribunais portugueses já a admitiam, antes de haver qualquer regulamentação.
É preciosa a informação de Ana Maria Milano:
Na maior parte dos casos (em mais de 86%) os filhos foram confiados à mãe,
apesar da lei portuguesa prever a possibilidade da guarda conjunta das crianças pelos dois pais, esta oportunidade foi muito raramente aplicada, o que
significa que os juízes portugueses preferem confiar os filhos às mães.
De fato, devido a esta situação em Portugal, depois da separação ou divórcio o
pai é freqüentemente afastado de uma efetiva participação nas necessidades
físicas, emocionais e educacionais dos seus filhos (SILVA, 2005, p. 96).
O Código Civil de Portugal, de 1966, no que tange ao direito de família, era resultado de uma visão conservadora e fechada da sociedade; possuía uma idéia patriarcal
sobre família.
A lei não estipulava qualquer solução no que tange ao poder paternal (como
lá é denominado) após separação ou divórcio. Apenas o que se mencionava era que, na
ocorrência de uma das situações ditas acima, o poder paternal era exercido pelos
pais; porém, regulado por acordo dos mesmos, ou, não havendo consenso, pelo Tribunal de Menores.
Preciosa é a lição de Maria Clara Sottomayor:
A doutrina entendia que, nos casos de divórcio ou de separação, à mãe pertencia a função educativa, exercendo o pai, por força da tradição, o poderdever de representação ou, uma vez que a unidade familiar estava destruída
pela separação ou pelo divórcio, o pai deixava de ser o chefe da família e a
mãe exercia integralmente o poder paternal, sendo esta a solução mais con-
RIPE – Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 40, n. 45, p. 367-398, jan./jun. 2006.
LEITE, Tatiana Morato. Guarda compartilhada.
sentânea com o princípio da igualdade e com o interesse da criança (SOTTOMAYOR, 2001, p. 53-54).
E mais a frente continua:
Apesar de a guarda conjunta ter sido considerada pelo legislador de 1977, ela
foi rejeitada, pois, até então, como resultado das estruturas familiares tradicionais, o divórcio era um acontecimento raro e conflituoso, sendo a percentagem de divórcios litigiosos superior à dos divórcios por mútuo consentimento, o que fazia supor a dificuldade de entre ex-cônjuges se estabelecer
uma relação amigável que permitisse o exercício conjunto do poder paternal
(SOTTOMAYOR, 2001, p. 53-54).
Apesar do exposto acima, a ausência de uma disposição legal consagrando o
exercício conjunto do poder paternal, não foi suficiente para que a jurisprudência homologasse, apenas em alguns casos, o exercício conjunto do poder parental. Sempre
dando ênfase ao interesse da criança.
Em 31 de agosto de 1995, a Lei nº 84/95, modificou o Código Civil no que diz
respeito ao exercício do poder parental com o divórcio. Assim, ao invés do exercício
conjunto do poder paternal, há ainda a permissão de que determinados assuntos sejam
solucionados pelo acordo dos genitores.
“Essa lei foi o resultado de uma proposta preparada pela Associação de Mulheres Juristas e por uma instituição de apoio à criança (Pai-Mãe-Criança) e apresentada no Parlamento pelo Partido Socialista” (SOTTOMAYOR, 2001, p. 55).
Em Portugal, o escopo para a introdução da guarda conjunta foi o interesse do
menor, levando-se em consideração todas as suas necessidades. Com isto, tornariam
também o divórcio algo menos traumático tanto para os pais, quanto para os filhos.
Além disso, verificou-se também, que após a ruptura da sociedade conjugal, era a mulher
que arcava com todos os aspectos da vida do filho.
É nítido que apenas alguns grupos estariam preparados para o compartilhamento do poder paternal, geralmente, aqueles mais instruídos, em desfavor aos de
menor educação.
Desta forma, ensina Maria Clara Sottomayor:
Após um breve debate, o texto final da lei foi aprovado por unanimidade. O
projecto inicial sofreu duas alterações significativas. A primeira foi a exigência de acordo dos pais para o exercício conjunto do poder paternal, pois, este
ponto não era claramente requerido no projecto. A segunda foi a rejeição da
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possibilidade de residência alternada da criança com ambos os pais, reconhecida no projecto originário.
(...) O terceiro passo desta evolução da lei relativa ao exercício do poder paternal
no período pós-divórcio foi dado por uma associação de pais (Pais para Sempre) que surgiu em 1998 e preparou um projecto, segundo a qual o exercício
conjunto do poder paternal se transformaria no princípio-regra, constituindo o
exercício unilateral do poder parental uma solução excepcional adotada apenas
mediante a prova de que o exercício conjunto do poder paternal representa uma
solução contrária ao interesse da criança (SOTTOMAYOR, 2001, p. 57).
Ana Maria Milano Silva dá a seguinte informação a respeito do que foi dito
logo acima:
Em Portugal, há a “Associação Pais Para Sempre”, uma instituição particular
de solidariedade social, com sede em Lisboa, que tem como objetivo assegurar às crianças e aos pais a regularidade, o significado e a continuidade dos
contatos dos filhos com seus dois pais e com o restante da família (SILVA,
2005, p. 96).
Outra questão que deve aqui ser tratada é da violência doméstica, tema este
debatido em Portugal.
Com tal assunto, provou-se que foi errado achar-se que o projeto partiu do
pressuposto de ex-cônjuges que possuem relações amigáveis, muito ao contrário;
nestes casos, nem há de se cogitar da intervenção de uma lei. Deste modo, a sobredita
lei dirigiu-se à população que luta nos tribunais pela guarda dos filhos e pelo direito
de visita, o objetivo foi de dirimir os conflitos.
“Foi no ano de 1999 que o Código Civil de Portugal recebeu a emenda que
privilegiou a guarda compartilhada, elevando-a à categoria de lei, para permitir a
consecução dos direitos de pais e filhos à convivência mútua depois do divórcio ou
separação” (SILVA, 2005, p. 97)
3.3.5 Guarda Compartilhada na Argentina
Na Argentina, foi adotado também o exercício conjunto, igualmente entre pai e
mãe, podendo ser casados ou não.
“Também condiciona esse exercício ao melhor interesse do menor, devendo o
juiz analisar, sob esse ângulo, qualquer conflito que seja levado à sua decisão” (SILVA,
2005, p. 99)
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LEITE, Tatiana Morato. Guarda compartilhada.
Cabe aqui diferenciarmos os tipos de guarda para que não haja entraves entre
a guarda compartilhada e as demais espécies. Sendo que cada uma comporta um
significado diferente.
4.MODALIDADES DE GUARDA
4.1Guarda alternada
Quanto à guarda alternada, assim pode ser seu conceito:
Neste modelo de guarda, tanto a jurídica como a material, é atribuída a um e
a outro dos genitores, o que implica alternância no período em que o menor
mora com cada um dos pais. Esta modalidade de guarda opõe-se fortemente
ao princípio de “continuidade”, que deve ser respeitado quando desejamos o
bem-estar físico e mental da criança (GRISARD, 2002, p. 79).
Assim, nessa modalidade, um dos genitores fica com o filho por um tempo estabelecido de forma exclusiva, exercendo a totalidade dos poderes-deveres que compõem o poder familiar. Após o término de tal período, os papéis se invertem, e quem
exercia a guarda física naquele período passa a exercer o direito de visitas.
A criança ou adolescente não possui uma residência fixa tendo que se deslocar sempre que acaba o período estabelecido.
Importante destacar uma diferença essencial entre a guarda compartilhada e a
alternada. Na primeira, o menor possui uma residência fixa, o que se dividem são os
direitos e deveres entre os pais; na segunda, o menor possui uma alternância de residências dos pais por certos períodos.
E ainda sobre a guarda alternada, podemos acrescentar que é um modo que não
respeita o princípio da continuidade, algo essencial na vida de uma criança ou adolescente.
Em nosso ordenamento, ela não foi adotada; em seu lugar, há o chamado direito de visita.
4.2Guarda dividida
Na guarda dividida, o menor vive em um lar fixo e determinado, e recebe a
visita periódica do genitor que não possui a guarda. Esta modalidade é também conhecida como guarda tradicional ou unilateral.
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Importante é a lição de Waldir Grisard:
(...) A ausência sistemática do filho pela periodicidade forçada desestimulou
o exercício da guarda, levando os pais, que se viram negligenciados pela sociedade, a se afastarem do convívio com os filhos.
As visitas periódicas têm efeito destrutivo sobre o relacionamento entre pais
e filhos, uma vez que propicia o afastamento entre eles, lente e gradual, até
desaparecer, devido às angústias perante os encontros e as separações repetidas. São os próprios pais, hoje que contestam esse modelo e procuram novos
meios de garantir uma participação maior e mais comprometida na vida de
seus filhos depois de finda a sociedade conjugal (GRISARD, 2002, p. 112).
Nesta modalidade, há o direito de visita, figura essa que gera constantemente conflito entre os pais e, por conseqüência, o afastamento do pai ou mãe não-guardião.
Tal modelo não leva em consideração o melhor interesse dos filhos, princípio
este de suma importância e relevância em uma situação de término de laços familiares. Na guarda unilateral, prevalece o interesse dos pais em conflito, e impõe uma
barreira ao filho que tem direito ao livre acesso não só aos pais, mas também à convivência familiar.
O direito de visita é algo onde ainda paira certa penumbra, pois quando não
exercido pelo genitor não-guardião, pode causar sérios danos ao visitado, muitas vezes possibilitando até indenizações. Isto porque, no nosso ordenamento jurídico, não
há penas aplicáveis aos genitores que descumprem os termos impostos ao direito de
visitas.
É o caso do aresto abaixo:
EMENTA – INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO
DA AFETIVIDADE
A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável,
com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana (Apelação cível nº
408.550-5 – 01.04.2004).
Tudo isso, muitas vezes se dá, justamente pelo abismo que permanece entre
um pai ou uma mãe e seu filho quando há uma dissolução familiar e, então, começam
a existir dias e horas determinados para que se possa realizar o mínimo contato com
seu filho.
Quanto à atribuição da guarda unilateral, ela poderá ser feita de duas formas:
através de uma decisão judicial ou por acordo entre os genitores.
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LEITE, Tatiana Morato. Guarda compartilhada.
Na maioria das vezes, a guarda unilateral é atribuída à mãe, sobrando para o
pai que não é o guardião, o direito de visitas e vigilância, que não pode transformarse em um direito de interferências.
Como preleciona Claudete Carvalho Canezin, RBDF nº 28,
Nesse modelo, não se exige sequer que o guardião consulte o outro (pai ou
mãe) não-guardião sobre as decisões importantes a tomar relativamente ao
menor. O não-guardião não pode, nem direta e nem indiretamente, participar
da educação dos filhos, nem goza de um direito a ser ouvido pelo seu ex-cônjuge em relação às questões importantes da educação do menor (CANEZIN,
2005, p.15).
E continua: “Na guarda unilateral, não há contato contínuo com o nãoguardião, o que, conseqüentemente, afasta o filho do pai não-guardião” (Canezin,
2005, p. 15)
Eduardo Oliveira Leite, com sua brilhante lição,
A guarda dividida - se impôs como o recurso de exercício da autoridade
parental mais propício à criança, já que ela viverá nem “lar” determinado e
usufruirá a presença do outro genitor - a quem não foi atribuída a guarda
- através do direito de visita. Entretanto, a tendência dos Tribunais no sentido de atribuir, sistematicamente, à mãe o exercício da guarda, reservando ao
pai, apenas o direito de visita gerou distorções no sistema que elevaram os
juristas à procura de um meio mais justo de atribuição de guarda (Eduardo
O. Leite, 2004, p.234).
4.3Aninhamento ou Nidação
Neste modo de guarda, há uma curiosidade; aqui, quem tem alternância de
domicílio são os pais. Isso importa dizer que a criança ou adolescente possui um lar
fixo, cabendo a um dos genitores, por tempos alternados a mudança para a casa onde
o menor se encontra, para fins de convivência com o filho.
“O aninhamento ou nidação é um tipo de guarda raro, no qual os pais se revezam, mudando para a casa onde vivem as crianças, em períodos alternados de tempo.
Parece ser uma situação irreal, por isso pouco utilizada” (Ana M. Silva, 2005).
Ainda ressalta Waldyr Grisard:
Tais acordos de guarda não perduram, pelos altos custos que impõem à sua
manutenção: três residências; uma para o pai, outra para a mãe e outra mais
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onde o filho recepciona, alternadamente, os pais de tempos em tempos (GRISARD, 2002, p.79).
Estas outras formas de guardas, que não a compartilhada, recebem severas
críticas quer de psicólogos, assistentes sociais ou até mesmo de profissionais do direito. Tudo isso porque com tais espécies, o menor ou adolescente não cria um vínculo ou até mesmo residência fixa (em se tratando da modalidade alternada), prejudicando seriamente o seu desenvolvimento. É fundamental para o menor ter seu
espaço certo, seu limite, seus amigos. Criar uma rotina, uma história, pois isso é de
suma importância para o seu amadurecimento.
Tanto a guarda alternada como a dividida acredita-se ser prejudicial ao menor
ou adolescente, isso porque há uma quebra constante nas relações e no ambiente
afetivo, pois ocorrem muitas aproximações e separações, gerando, como corolário
lógico, uma imensa instabilidade emocional e psíquica no filho.
4.4 Guarda Compartilhada: exercício conjunto ou indistinto
A guarda compartilhada é uma modalidade que permite ao filho o direito de
conviver com ambos os pais mesmo após a separação do casal. Esse é um caminho
que se mostra no mundo ocidental. Aqui, há uma igualdade de direitos e deveres
entre pai e mãe.
Desse modo,nenhum dos genitores fica com mais ou menos responsabilidades, elas se
igualam, permitindo, assim, menos conflitos entre ambos.
Destarte, conclui-se que um dos pais ficará com a guarda material ou física do
filho, mas os dois terão os mesmos direitos e deveres em relação ao mesmo; portanto,
ambos exercem o poder familiar (artigo 21, Estatuto da Criança e do Adolescente).
Tal guarda é recente em nosso meio, e ainda alguns juristas se mostram resistentes a esta modalidade.
Ana Maria Milano Silva discorre com muita propriedade a respeito:
A noção de guarda compartilhada surgiu do desequilíbrio dos direitos parentais e de uma cultura que desloca o centro de seu interesse para privilegiar
a criança, no meio de uma sociedade que agora mostra tendência igualitária
(SILVA, 2005, p. 65).
Na guarda compartilhada, a posição de um dos genitores, em relação ao filho,
altera-se, deixando de ser visitante e voltando a ser um pai (ou mãe) presente.
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Indiscutível é a lição de Karen de Salles:
O funcionamento da guarda conjunta, porém, de fato dependerá da boa vontade do genitor a quem o filho foi confiado, visto que tal modalidade de guarda só é cabível em hipótese de total acordo sobre todas as questões relativas à
prole (SALLES, 2002, p. 84).
Segundo Claudete Carvalho Canezin, a guarda compartilhada teve sua origem
na Inglaterra, e com o passar do tempo proliferou em vários países, notadamente na
América do Norte, onde ela se tornou uma escolha dos próprios pais (CANEZIN,
2005, p. 12).
Sua lição continua:
Portanto, a guarda compartilhada pode ser determinada pelo magistrado,
se os autos revelarem que é modalidade que melhor atende aos interesses
do menor, porque a guarda compartilhada ajusta-se perfeitamente ao texto
constitucional, que determina a igualdade dos pais no exercício do poder familiar e coloca o interesse da criança como prevalente ao dos pais... (CANEZIN, 2005, p. 18).
Percebe-se aqui neste instituto o quanto deve prevalecer o interesse do menor.
E o que se deve entender por isso?
Segundo Silvio Neves Baptista, o entendimento seria este: “O que de fato interessa ao menor é boa formação moral, social e psicológica; a busca da saúde mental ou
a preservação da sua estrutura emocional” (BAPTISTA, 2000, p. 290).
Não podemos deixar de citar também a opinião de Leila Maria Torra De Brito:
A alegação de que no nosso país o poder familiar pertence tanto ao pai quanto à mãe, responsáveis por seus rebentos, termina por confirmar a hipótese
de que não precisamos, portanto, dividi-los em duas categorias após a separação conjugal: a dos guardiães e as dos visitantes (BRITO, 2004, p. 364-365).
4.4.1 Responsabilidade Civil dos pais em relação aos filhos menores na guarda compartilhada
Interessante é o ponto de vista colocado por Caetano Lagrasta Neto, no que
tange à imputação de responsabilidade:
Outra questão curiosa diz respeito à atribuição de responsabilidade por danos ocasionados pelo menor (acidente, atropelamento, morte), com base no
artigo 1.521, do C. Civil. Deve entender-se que não basta a determinação legal; a guarda conjunta implica a responsabilidade jurídica de ambos os geni-
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tores. Se ambos educam, se ambos possuem economia própria, evidente que
ambos devem ser responsabilizados para saldar o prejuízo. Dizer que o pai
(ou a mãe) é responsável, com exclusividade, por ter o menor saído com o
veículo, mesmo não autorizado, não é suficiente para que todo o arcabouço de
um acordo – que vinha funcionando – desabe. Há que distinguir da situação
em que o menor é autorizado e, muitas vezes, incentivado, por um dos genitores,
à prática de atos abusivos ou proibidos pela legislação: aqui, sim, cabe-lhe
assumir integralmente a reparação civil (LAGRASTA NETO, 2000, p. 125-126).
Entretanto, em que pese o brilhante posicionamento doutrinário, em termos
de responsabilidade civil, pelo fato e em razão de resultar em gravame à pessoa que
deve suportá-la, não se pode entender que, na guarda compartilhada, pelo motivo de
assim ser, se possa inferir daí a responsabilidade solidária de ambos.
A propósito, convém ressaltar que a primeira parte do artigo 928 do Código
Civil, imputa ao menor subsidiariamente a responsabilidade pelo dever de reparar o
dano, na hipótese de seus responsáveis não possuírem valores suficientes para tanto.
Conclui-se, então, que cada caso deve ser analisado de forma isolada sob pena
de se cometer injustiça e contrariar a própria lei no que tange a solidariedade.
De fato, é sabido por todos os estudiosos da Responsabilidade Civil, que não
se presume a solidariedade. Esta resulta da lei ou da vontade das partes. Com isto,
quer se afirmar que, mesmo em se tratando de guarda compartilhada, não se pode negar
ao outro cônjuge o inafastável direito de provar a culpa exclusiva de seu ex-consorte,
o que vale dizer que, nesta modalidade de guarda, não significa, necessariamente, a
responsabilidade conjunta de ambos. Mas, nada impede, até prova em contrário, que
ambos têm o dever de indenizar.
Nos casos acima mencionados, torna-se difícil para a vítima saber da existência ou não de guarda compartilhada, ou de qualquer outra modalidade. No caso
de dano a outrem, deve sempre prevalecer o ressarcimento do prejudicado, ou seja, primeiramente deve haver o reparo da vítima, para posterior análise do caso concreto e
conclusão da responsabilidade dos pais.
É o que nos ensina também Ana Maria Milano Silva:
Todavia, voltando ao cerne da responsabilidade civil, as peculiaridades de
cada caso devem ser observadas, como alude Rui Celso Reali Fragoso ao afirmar: “Nada impede, todavia, a responsabilização de ambos, nas hipóteses de
guarda conjunta, ou a imputação de culpa ao outro genitor, quando o fato
danoso ocorre durante o exercício do direito de visitas (fins de semana alternados, férias etc.) (SILVA, 2005, p. 131).
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Em se tratando de guarda única, a regra é diferente por uma série de razões
que aqui poderiam ser elencadas, mas que ficam bastosas e suficientes com a clara
dicção e comando, previstos no inciso I do artigo 932 do Código Civil.
Dito em outras palavras, na modalidade tradicional de guarda, em princípio,
a responsabilidade cabe àquele que o tem em sua autoridade e companhia no momento da ocorrência do evento danoso, englobando tais expressões um conteúdo muito
maior do que simplesmente morar sob o mesmo teto. Não se deve fazer uma interpretação apenas literal.
A autoridade se estende até a companhia; esta está inserida naquela. Tais expressões estão presentes mesmo quando não há a presença física do genitor guardião.
Estando suspensa apenas no momento em que estiver sob a companhia do outro
genitor não-guardião.
Não obstante tudo o que foi examinado, não se pode deixar de mencionar que
o atual Código Civil, em seu artigo 933, objetivamente, imputa aos pais a responsabilidade pelos atos lesivos a terceiros causados por seus filhos, especialmente se ainda
estiverem sob sua guarda e responsabilidade.
Sendo uma guarda tradicional, e o menor estiver com aquele que possui a
guarda, este responderá, objetivamente; bastando a vítima provar o nexo de causalidade entre o dano sofrido e o agente que o praticou.
No passado, falava-se que o representante legal respondia por culpa in vigilando.
Se for compartilhada, poderá ser solidária, ou, então, responde aquele que estava na companhia do menor.
Não sendo os cônjuges separados, não há dúvida, a responsabilidade é solidária. Destaca-se, ainda, já à primeira vista, que a guarda compartilhada possui dois
aspectos: um físico, ou também conhecido como material, e outro jurídico. O primeiro significa ter um dos genitores o filho consigo; o segundo já pertence a ambos, e diz
respeito ao exercício dos pais de todos os poderes-deveres que fazem parte do poder
familiar.
5
VANTAGENS E DESVANTAGENS DO MODELO
Como dito sucintamente em linhas anteriores, a guarda compartilhada não
é prevista em nosso ordenamento jurídico. Desta forma, conclui-se que certamente
tal assunto necessita de melhor abordagem, quer da doutrina ou da jurisprudência.
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Por isso, é uma modalidade de guarda ainda desconhecida pela grande maioria das
pessoas.
Nesse entendimento, caminha Waldyr Grisard:
Embora inexista norma expressa nem seja usual na prática forense, a guarda compartilhada mostra-se lícita e possível em nosso Direito, como o único
meio de assegurar uma estrita igualdade entre os genitores na condução dos
filhos, aumentando a disponibilidade do relacionamento com o pai ou mãe
que deixa de morar com a família. Opõe-se, com vantagens, à guarda uniparental, que frustra a adequada convivência do filho com o pai ou a mãe
não-guardião, desatendendo às necessidades do menor, que não dispensa a
presença, permanente, conjunta, ininterrupta, de ambos os genitores em sua
formação para a vida. A função paternal, nas diversas fases do desenvolvimento dos filhos, não é descartável (GRISARD FILHO, 2002, p. 143).
De conseguinte, a tendência normal especialmente aos juízes que atuam no
Direito de Família e o Ministério Público é aconselhar a que as partes, tanto quanto e
na medida do possível, optem por este sistema até que seja disciplinado legalmente.
Esta é a razão pela qual, ao menos durante o período de ausência de lei sobre
a matéria, que o juiz deve nortear-se por regras principiológicas voltadas para o melhor benefício da criança e harmonia entre os separandos.
Dessa forma, continua Waldyr Grissard:
Dos vários dispositivos legais pontuados, foi possível anotar que, antes de
impedir, nosso Direito favorece a modalidade de guarda compartilhada, reafirmando a discricionariedade do juiz nessa matéria (GRISARD FILHO,
2002, p. 145).
Porém, este modelo não possui só vantagens, pois como tudo na vida, existe um
lado bom e outro ruim. Com a guarda conjunta, não é diferente. Alguns autores, e até
mesmo psicólogos, apontam problemas que podem servir de obstáculo para o uso da
modalidade conjunta.
Deve-se ter todo cuidado, zelo, pois se trata da vida de um menor: “crianças
não são objetos de experiências laboratoriais de psicólogos, advogados, assistentes sociais e juízes” (BRANDÃO, 2002, p. 81).
Como preleciona Claudete Carvalho Canezin,
Para que o exercício da guarda compartilhada possa funcionar, importa que
os pais revelem capacidade de cooperação e de educar, em conjunto, o filho
menor, esquecendo todos os conflitos interpessoais, já que somente é possível
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o exercício desse modelo quando existe, entre os genitores, uma relação marcada pela harmonia e pelo respeito, sem disputa e nem conflito (CANEZIN,
2005, p.14).
E continua:
Existem algumas contradições quanto à adoção da guarda compartilhada:
a primeira refere-se à violência doméstica, quer seja comprovada ou que se
tenha indícios significativos de que um dos genitores praticou qualquer ato
de violência contra o outro ou contra um dos filhos. Outra contra-indicação
da guarda compartilhada refere-se ao caso de separação conjugal litigiosa,
em que há mágoas e ressentimentos, dificultando, assim, que o ex-casal mantenha um relacionamento livre de conflitos (CANEZIN, 2005, p. 13-14).
Outra questão desfavorável seria quando o infante possui tenra idade, vez que
nesta condição ele necessita mais do lado materno, até mesmo por uma questão de
aleitamento. Torna-se complexo para ela entender estar ora com o pai, ora com a
mãe, ressaltando a suma importância no constante papel da mãe no início da vida do
rebento, que aumenta na medida inversa de sua idade.
Débora Brandão, em um artigo publicado na Revista Imes, destaca:
Os argumentos contrários ao exercício da guarda compartilhada também são
sensíveis. São eles: apresentação de sinais de insegurança pela criança; a exploração, normalmente, da mulher quando a guarda compartilhada é usada
como meio para negociar valores menores de pensão alimentícia; necessidade de constante adaptação por parte dos pais e dos filhos; a necessidade dos
genitores de terem um emprego com horário flexível para o atendimento da
prole (BRANDÃO, 2002, p. 78).
Com muita propriedade, destaca Waldyr Grissard:
Pais em conflito constante, não cooperativos, sem diálogo, insatisfeitos, que
agem em paralelo e sabotam um ao outro contaminam o tipo de educação
que proporcionam a seus filhos e, nesses casos, os arranjos de guarda compartilhada podem ser muito lesivos aos filhos. Para essas famílias, destroçadas, deve optar-se pela guarda única e deferi-la ao genitor menos contestador
e mais disposto a dar ao outro o direito amplo de visitas (GRISARD FILHO,
2002, p. 177).
Conclui-se que a modalidade conjunta não é a solução para todas as hipóteses
de guarda de filhos. Ela deve ser usada da forma correta, aplicada em famílias que
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possuem pais que se respeitem e que, acima de tudo, zelem pelo bem-estar de sua
prole, pais esses que sejam capazes de esquecer todas as desavenças do passado, para
se preocuparem com um futuro sadio para seus filhos.
Tal guarda não obterá êxito se houver constantes antagonismos, egoísmo e
mágoas, e principalmente a ausência de uma boa educação. Nesses casos, é melhor
que se aplique a guarda tradicional, pois o menor não pode ser objeto de rixas, e alvo
de discussões.
No que tange às vantagens, algumas delas já foram citadas no decorrer do
trabalho, mas se pode aqui dar mais ênfase a esse ponto.
É sabido que na guarda conjunta, há participação dos pais nas decisões importantes a serem tomadas em relação ao filho, no que diz respeito à educação, saúde, religião, línguas, esportes, entre outros. Há, também, outras prioridades como: a alternância de residência, tendo o menor a liberdade de escolha. Quando há coincidência
de os ex-cônjuges residirem perto um do outro, o filho, poderá sem maiores discussões ou desacordos ir e vir de uma casa para outra, dentre outras prerrogativas.
Como dispõe Raquel Alcântara de Alencar,
As vantagens da guarda compartilhada são maiores que as desvantagens, basicamente em função de uma melhora na auto-estima do filho, melhora no
rendimento escolar enquanto que na guarda monoparental decai) , diminuição do sentimento de tristeza, frustração, rejeição e do medo de abandono,
já que permite o acesso sem dificuldade a ambos os pais. Também ajuda na
inserção da nova vida familiar de cada um dos genitores, além de ter uma
convivência igualitária. Não são muitas as desvantagens neste tipo de guarda. Cabe lembrar que, através de informações fornecidas por psicólogas da
teoria sistêmica, puderam constatar em seus consultórios no atendimento
dos filhos (crianças e adolescentes) que o maior sintoma é a falta dos pais, o
medo do abandono, as conseqüências de uma separação seja consensual ou
litigiosa. Na guarda compartilhada o filho não perde o vínculo com os pais,
permanecendo certo tempo com o pai e outro período com a mãe (site do
IBDFAM dez./03) (ALENCAR, 2003).
Um ponto importante que devemos destacar é que os pais podem requerer ao
juiz a concessão da guarda compartilhada, e este observará se é pertinente a implantação da modalidade no caso telado. Porém, muitos ex-cônjuges nem sequer sabem
do surgimento deste tipo de guarda, pois não devemos esquecer que vivemos em um
país subdesenvolvido, onde a educação e, principalmente, as condições financeiras
são escassas, não obtendo a população, muitas vezes, as informações necessárias.
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Assim, partindo-se, desta premissa, é conveniente a iniciativa do magistrado
para propor aos pais a guarda compartilhada.
Portanto, tal modalidade, desde que aplicada corretamente, pode se tornar
uma importante aliada na consolidação da sociedade familiar. O seu uso, de forma
irresponsável e aleatória, pode levar ao descrédito do instituto perante a sociedade,
o que seria lastimável.
Importante também a lição de Caio Mário da Silva Pereira:
A “guarda compartilhada” apresenta-se como uma solução viável e possível;
embora a criança tenha uma residência principal, fica a critério dos progenitores planejar a convivência em suas rotinas quotidianas. A intervenção do Juiz
será apenas com o objetivo de homologar as condições pactuadas, ouvindo o
Ministério Público. Conscientes de suas responsabilidades quanto ao desenvolvimento dos filhos, esta forma de guarda incentiva o contínuo acompanhamento de suas vidas. O fator determinante para se garantir a guarda aos
pais deve estar na habilidade de se colocar o interesse da criança acima dos
próprios objetivos pessoais.
Embora não tenhamos no Brasil qualquer texto legal regulamentando este
tipo de Guarda, o art. 1.583 abre um espaço para este tipo de acordo ao estabelecer que “no caso de dissolução da sociedade ou do vínculo conjugal
pela separação judicial por mútuo consentimento ou pelo divórcio direto
consensual, observar-se-á o que os cônjuges acordarem sobre a guarda de
filhos”. Deixa-se aos pais a prerrogativa de fixar um sistema de conveniência
apropriado aos seus hábitos familiares
(PEREIRA, 2004, p. 428).
Com todo o exposto, o ponto de conclusão a que se chega é o de que ser a
guarda compartilhada vantajosa ou desvantajosa é algo que envolve, principalmente,
o caráter subjetivo, sem que seja possível afastar o elemento objetivo, material ou
concreto da realidade econômico-social da família. Só depende da compreensão dos
pais para que não torne abismal a separação judicial, com irreparáveis prejuízos aos
filhos, até porque não pediram para vir a este mundo, e não podemos culpá-los pela má
educação que lhes foi dada.
6CONCLUSÃO
O Direito de Família, tendo em vista que cuida e disciplina a célula mater da sociedade; portanto, o núcleo de qualquer Estado, está sujeito a constantes modificações segundo os reflexos dos fatos resultantes da família. Mesmo porque, o fato faz
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o direito e não o contrário. Demais disso, sofre constantes influências de natureza
religiosa e ética.
Queremos dizer que o Direito de Família é a parte do Direito mais afeto e
afeito às modificações, tanto que é forte a corrente doutrinária no sentido de que se
deveria editar um Código de Família.
Como exemplos, podemos citar o Estatuto da Criança, o Estatuto do Idoso, a Lei
de Alimentos, A Lei do Divórcio e Separação, verdadeiros microssistemas jurídicos,
tantas são as modificações constantes que a vida em seu curso apresentam.
A guarda conjunta teve origem devido à busca de igualdade entre homens e mulheres, em seus respectivos papéis, quais sejam, os de pai e mãe.
É certo que, em princípio, pode até parecer ser platônica a idéia de guarda
compartilhada, porquanto, a maioria das separações resulta entre as partes uma divisão abissal, quase que insuperável.
Esta, talvez, seja o maior fundamento para a constituição da guarda tradicional, vez que as partes, anteriormente consorciadas, após a fissura, ou são inimigas ou
não se toleram, raramente mantêm a amizade em plano civilizado.
Infelizmente, é da cultura do povo sul-americano, a formação do estado de
beligerância entre os separandos, porque costumamos mais enfatizar o interesse econômico colocando-o acima dos interesses pessoais e familiares.
O atual Código Civil, em louvável salto para frente, deixa entrever, de forma clara,
a ausência do elemento culpa como fundamento da separação judicial. Dito em outras palavras, vem ganhando foro entre nós a separação sem culpa.
Disso resulta que, afastando-nos dessa herança atávica, ou seja, descentralizar a separação no elemento culpa, as partes começam a divisar outras realidades até então
impensáveis.
É preciso, ainda, para que se atinjam os objetivos desta modalidade de guarda, a inestimável colaboração de juízes e membros do Ministério Público, os quais
devem mostrar-se irmanados com esses mesmos ideais, deixando de lado questões
meramente técnicas e de ordem formais, tanto que este trabalho enfatizou a questão
fora desse contexto.
Entre nós, embora ainda não codificada, a guarda conjunta deixou de ser apenas uma ideologia, mas uma realidade, visto que não só os pais se tornam beneficiários dela, mas e, principalmente, os filhos que não experimentam e nem sofrem
radicalmente, os efeitos deletérios da separação entre os cônjuges.
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Não se nega que esta modalidade de guarda, em determinadas situações, pode
ser até mesmo desvantajosa, tal como demonstrado enfaticamente em páginas deste trabalho. E que aqui se torna dispensável repetir.
Não é menos verdade, porém, que a tendência do mundo moderno é a sua
aceitação, porquanto os resultados positivos superam, em muito, os negativos.
Nesta vida, o mais importante é lançarmos uma semente, ainda que a curto
prazo ela não frutifique.
Assim ocorreu com a guarda conjunta, a qual, diante dos sopros constitucionais, da visão humanística que a nossa Carta Política contextualizou, desabrochou
nesta ambiência a semente da guarda compartilhada, sustentada e fortificada pelas
regras do direito alienígena, especialmente do Canadá e Portugal. Propiciou-nos um
grande passo e avanço para o fim de mitigar a ruptura da sociedade conjugal, de
maneira que, entre os consortes, não prevaleça o desamor, com reflexos na prole.
É exatamente isto, dentre outros argumentos, que este trabalho procura exponenciar, demonstrando sua viabilidade jurídica ainda que não prevista, como
se disse, em texto legal, mas nada impede que, em juízo, tais objetivos possam ser
concretizados, daí porque se disse anteriormente da imprescindível participação de
juízes e promotores.
Não nos esqueçamos de que, se é certa a existência de ex-cônjuge, o mesmo
não se pode falar em relação ao filho, porque não existe ex-filho. Com isso, quer se
dizer que a guarda compartilhada traz novas colorações e paramentos ao contexto
familiar.
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MORTE RELATIVA : UM DIREITO ARTIFICIAL
Newton Martins Pina*
Orientadora: Profª. Ms. Daniela Nunes Veríssimo Gimenes**
RESUMO
O estudo ora apresentado versa sobre uma nova modalidade de ficção jurídica, que
transcende os conceitos até então conhecidos, denominada “Morte relativa: um direito artificial”. A expressão “morte relativa” significa a ausência do “estado consciente” diante da vida biológica, visto que a integridade genética de um organismo
humano é preservada em sua totalidade ou fragme
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