Aramis Ribeiro Costa Cadeira 12 Patrono: Miguel Calmon, Marquês de Abrantes Fundador: Miguel Calmon du Pin e Almeida 2o. Titular: Alberto Francisco de Assis 3o. Titular: Afonso Rui de Souza 4o. Titular: Itazil Benício dos Santos Titular atual: Aramis de Almada Ribeiro Costa Posse em 25.11.1999 DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA DE LETRAS DA BAHIA Aramis Ribeiro Costa Senhores Acadêmicos: O menino via esta Casa na distância do desconhecido e do impossível. Nela habitavam vultos — nada mais que vultos — etéreos, formidáveis, inatingíveis como figuras irreais de contos de fada, ou como deuses de um outro Olimpo, cujas escarpadas encostas, à semelhança da mitológica montanha de Zeus, tornavam-no inacessível aos simples mortais. Era assim que via esta Casa aquele menino que amava os livros e as histórias, e que sonhava — porque já nascera sonhando isto, aquele menino — e que sonhava ser escritor. A casa — a estrutura física — não era esta, os vultos, os deuses que a habitavam não eram os mesmos que hoje a habitam. Erguia-se em vetusto sobrado no Terreiro de Jesus, no antigo Pátio do Colégio e cenário das antigas cavalhadas que um dia o jovem acompanhou, maravilhado, nas páginas d’As Minas de Prata, de José de Alencar. Não era esta, a casa, a estrutura física, não eram os mesmos os seus habitantes, e, no entanto, era esta mesma Casa, porque era o mesmo o espírito que a animava, sob a égide do mesmo nome de três palavras mágicas: Academia de Letras da Bahia. Academia, Letras, Bahia. As palavras Letras e Bahia, encerravam, para o menino, o encontro e a concordância de dois amores que já existiam nele muito fortes: a literatura e a sua terra. Os habitantes daquela Casa — o pai dizia isto ao menino — eram os imortais da Bahia. E o menino, como se sonhasse um desses sonhos impossíveis e paradoxalmente plausíveis nas mentes infantis, desejou, desejou muito, ser um imortal da Bahia. Mas o que vinha a ser um imortal, se todos os homens morrem? A resposta a esta pergunta, o menino só veio a formular bem mais tarde, quando o seu conhecimento da vida e da morte, da arte e da imortalidade, já lhe permitiam estabelecer um conceito, ainda que apenas um conceito. Bem maior que o interesse por aquela Casa que ele via distante e desconhecida, era o interesse pelas histórias que os avós, o pai, a mãe, o tio lhe contavam, o encantamento pelos livros das gravuras coloridas, o deleite daquele mundo de fantasia que o tornava realmente feliz. Aqueles livros... Eram o seu presente preferido, o seu encanto maior. Aos sábados, pela manhã, o pai levava-o à livraria Civilização Brasileira da Rua Chile — a mesma que seria consumida pelas chamas de um dos muitos incêndios que vitimaram a cidade naquele tempo —, e o menino corria para o fundo, para a prateleira dos livros infantis. E, diante do pai, orgulhoso e satisfeito do interesse do filho, escolhia os seus novos livros. Em pouco tempo estava íntimo daqueles autores: Lewis Carroll, Andersen, Perrault, irmãos Grimm, Condessa de Segur, La Fontaine, Collodi, sem falar das adaptações, tão em voga na época, dos livros famosos, como As Mil e Uma Noites, Robinson Crusoe e As Aventuras do Barão de Munchausen. E Monteiro Lobato. Que deslumbramento! Descobrir Lobato foi, para aquele menino, descobrir um mundo. Os livros deste escritor ele nem precisava comprar, porque o tio os possuía todos, em obra completa luxuosa, de capa dura e letras douradas, que ficava separada, numa pequena estante, em meio a uma imensa biblioteca que era, também, um dos encantos do menino. Um dia, aos doze anos de idade, de tanto ouvir o pai e o tio falarem dos mosqueteiros — de um dos quais, o preferido do pai, vinha o seu nome —, aventurou-se nas páginas mágicas e febris de Alexandre Dumas. Montado à garupa do pangaré amarelado de D’Artagnan, percorreu, deslumbrado, os caminhos da França de Luis XIII, Ana D’Áustria, Richelieu, Mazarino, do Rei Sol e do esplendor de Versailles. E leu, às escondidas, porque não sabia se já podia ler um livro tão ousado, A Relíquia, do grande Eça. O criador de Teodorico e da inefável Titi, de Amaro e de Amélia, de Basílio e de Luísa, do conselheiro Acácio e do fidalgo Ramires seria, para sempre, um dos seus preferidos. Os autores dos livros que ele amava estavam mortos há muito tempo. E, no entanto, ali estavam, vivos, nas suas histórias e nos seus personagens. E o menino via que eles não tinham morrido, que não iam morrer porque continuariam a ser lidos por outros leitores depois dele, e que, por isto, eram imortais. E percebeu que a imortalidade da obra faz a imortalidade da vida. Mas ainda não era esta a propalada imortalidade da Academia. A imortalidade acadêmica — não o menino, mas o escritor adulto, em relação com a vida literária, veio a entender mais tarde —, resulta da perpetuação da memória do acadêmico pelos confrades que a ele sobrevivem, e pelos confrades que o sucedem. É como uma corrente que se perpetua nos novos elos que vão sendo acrescidos e que têm por obrigação protocolar e ética reverenciar os que o antecederam. Senhores Acadêmicos: A Cadeira nº 12, para a qual me destinastes nesta Casa, tem como patrono, bem o sabeis, uma figura do Império: o santamarense Miguel Calmon du Pin e Almeida, Visconde, depois Marquês de Abrantes. A feliz coincidência! De Santo Amaro da Purificação, em cujos canaviais, em cujas terras de massapê, em cujo leito barrento do rio estão fincadas as mais fundas raízes da minha família paterna, é que me vem o patrono, um dos mais nobres filhos da “Leal e Benemérita” do Recôncavo baiano, como se com isto a própria Cidade de Santo Amaro me viesse, e com ela me viessem os meus que já se foram, para sentarem comigo à Cadeira nº 12, para comigo sentarem em vossa companhia! Deixai-me citar, por ser patrono de Academia de Letras, alguns de seus livros: Cartas Políticas de Américus, Memória Sobre os Meios de Promover a Colonização, Ensaio Sobre o Fabrico do Açúcar, e A Missão Especial, em dois volumes, onde, no dizer de Pedro Calmon, seu biógrafo, “descrevia a Prússia, o milagre alemão, o aparelhamento de um império, cuja grandeza antevia”. Bem recebidos e bem conceituados à sua época, não se poderia entretanto creditar a estes escritos o prestígio do seu nome. O Marquês de Abrantes foi uma das mais ilustres e expressivas personalidades da política e da economia do primeiro e do segundo reinados. Deputado, ministro da Fazenda por três vezes, ministro dos Estrangeiros, senador e conselheiro do Estado, marcou de forma indelével, competente e elegante, a sua presença no cenário daquele Brasil de dois admirados monarcas. Compreensível, portanto, que, ao ser convocado para a fundação da Academia, o segundo Miguel Calmon du Pin e Almeida lembrasse do parente famoso e homônimo para patrono da sua cadeira. Aliás, há semelhanças de atividade entre estes ilustres membros da família Calmon, o patrono e o fundador da Cadeira nº 12. Baiano de Salvador, o fundador Miguel Calmon foi engenheiro, professor da Escola Politécnica da Bahia, secretário da Agricultura, Viação e Obras Públicas neste Estado, deputado federal por três mandatos não consecutivos, ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas do presidente Afonso Pena, ministro da Agricultura, Indústria e Comércio do presidente Artur Bernardes, e, finalmente, senador pela Bahia. Entre os seus trabalhos publicados, que o colocam na mesma linhagem de escrita do patrono, encontram-se Aplicações Industriais do Álcool, Fatos Econômicos, e Tendências Nacionais e Influências Estrangeiras. Sucedeu-o um professor e filantropo: Alberto Francisco de Assis. Como o patrono e o fundador, igualmente não foi um literato. Mas foi um homem de letras, por praticar a escrita didática. Era um estudioso da pedagogia e da História do Brasil, disciplina que ensinava. Sendo um professor primário, formou-se mais tarde em Direito e manteve-se professor. Lecionou na Escola Noturna da Vitória, no Instituto Normal da Bahia, do qual foi diretor, no Instituto Baiano de Ensino, que também dirigiu, no Educandário dos Perdões, no Colégio das Mercês, no Colégio da Soledade e nas Sacramentinas. Homem de espírito e de ironia fácil, era reconhecidamente um homem bom, voltado para os amigos e com uma profunda preocupação social, em particular para com as crianças deficientes visuais e carentes, interesse que o levaria a fundar o Instituto de Cegos da Bahia, mais tarde justamente chamado Instituto Alberto de Assis. Entre os seus trabalhos didáticos publicados em forma de livro, estão Vultos e Datas do Brasil, Nos Degraus da História e Fé e Civismo, este último alentado volume que alcançou nada menos que seis edições e mais de dez mil exemplares vendidos. A ele sucede Affonso Ruy de Souza. Aqui a bibliografia é vasta e densa, impregnada toda ela de larga e funda baianidade, que se traduz sobretudo nos costumes e na história. Dão-se as mãos o teatrólogo e o historiador, fundidos e confundidos em inquestionável amor pela Bahia. Affonso Ruy assume a Cadeira nº 12 aos quarenta e oito anos de idade, com nome e obra feitos. Trazia, na bagagem do teatrólogo, além de uma fecunda atuação no teatro baiano, como ator, diretor, produtor e professor, dezenove textos teatrais, quinze deles já levados à cena. Ao recebê-lo em nome da Academia, Aloysio de Carvalho Filho cita, com louvores, dois de seus trabalhos como autor teatral: Flor do Vício, a primeira peça a ser escrita, aos vinte e dois anos de idade, e A Quinta Coluna, última a ser produzida antes do seu ingresso nesta Casa. Itazil Benício dos Santos, ao sucedê-lo, iria lembrar, além de Flor do Vício, Uma Aventura, Por Meu Filho, Gente da Rua e Lolita. Affonso Ruy publicaria, ainda, como estudioso de teatro, resumida porém preciosa História do Teatro na Bahia, do século XVI ao XX. Mas o historiador superaria, para a posteridade, o teatrólogo. Alguns de seus livros tornaram-se de referência a todos aqueles que estudam e produzem sobre a História da Bahia, particularmente a História da Cidade do Salvador. Dois deles, A História Política e Administrativa da Cidade do Salvador e a História da Câmara Municipal da Cidade do Salvador, encontram-se circunstancialmente vinculados aos festejos do quarto centenário desta cidade, o primeiro por ter sido publicado em 1949, e o segundo por ter merecido, por concurso, o Prêmio Cidade do Salvador, instituído pela Câmara dos Vereadores da Capital, como parte das comemorações dos quatro séculos. São ambos magníficos e alentados trabalhos de reconstituição histórica da cidade, da fundação aos primeiros anos da República. Destacaria ainda A Primeira Revolução Social Brasileira — 1798, uma observação precisa e abrangente do caráter social e reformador na sedição baiana, em cujo infeliz desfecho se fez erguer a forca na Piedade. Ali está a visão hoje aceita e amplamente estudada, dos verdadeiros motivos da Conspiração dos Búzios, princípios que vinham dos ideais revolucionários franceses de “liberdade, igualdade, fraternidade”. Desta maneira, no palco e nos livros, no teatro e na história, Affonso Ruy mostrou-se fiel ao compromisso assumido no seu discurso de posse na Cadeira nº 12, quando, ao lembrar o lema desta Casa, “Servir à Pátria honrando as Letras”, comprometeu-se antes de tudo em “honrar a Bahia, servindo às letras”. Serviu às Letras, honrou a Bahia, serviu à Pátria, honrou as Letras. Uma tradição secular da Bahia é a dos médicos que escrevem, que amam a literatura, e que dividem o tempo das suas vidas entre a “arte de tratar ciência de curar” e a arte das letras. Não vos falo de médicos que, exercendo a profissão, ganharam fama e prestígio por serem escritores, a exemplo de Tchekhov, Cronin, Macedo, Guimarães Rosa, Jorge de Lima, e, na Bahia, Afrânio Peixoto — embora a fama deste se devesse também à medicina. Falovos de um espírito, de uma tendência da velha Faculdade de Medicina da Bahia, a Faculdade do Terreiro que hoje felizmente renasce de inadmissíveis escombros. Esse espírito, essa tendência, fez da primeira faculdade de medicina do Brasil, do mais importante núcleo de ensino das ciências médicas do país, um respeitado centro de cultura em todo o século passado até meados deste. Os lentes da velha faculdade eram, antes de tudo, homens de vasta formação humanística, que não se limitavam à ciência que ensinavam aos alunos e praticavam nos consultórios e nos hospitais, transitando, com a mesma desenvoltura e o mesmo apaixonado interesse pela filosofia, pela sociologia, pela história, pela antropologia e, sobretudo, pela literatura. Não foram poucos, entre eles, os grandes oradores, a transformarem as suas aulas em eloqüentes exibições de oratória, em cujo final eclodiam os aplausos dos discípulos entusiasmados. Os relatórios médicos, as conferências, os estudos científicos, os artigos na imprensa desses doutores da medicina, não desleixavam da linguagem e do estilo, não desdenhavam das metáforas, não escondiam o gosto literário. Pedro Calmon, em sua História da Literatura Baiana, dedica-lhes todo um capítulo, onde não falta uma extensa relação de teses, cujos títulos — vários deles — denunciam temas bem mais literários que médicos ou científicos, e Jorge Amado os recria ficcionalmente em Tenda dos Milagres. Porém a maior evidência desse espírito literário da velha Faculdade de Medicina da Bahia, encontra-se nesta Casa. No quadro dos fundadores, havia um professor e industrial tipográfico, um presbítero, dois jornalistas, dois professores primários, quatro engenheiros, quinze juristas e dezesseis médicos, entre eles Braz do Amaral, Carlos Chiacchio, Pirajá da Silva, Carneiro Ribeiro, Egas Moniz Barreto de Aragão, o Péthion de Villar, Gonçalo Moniz, Clementino Fraga e Afrânio Peixoto. Daí por diante, não faltaram médicos ilustres entre os acadêmicos, como Estácio de Lima, César de Araújo, Adriano Pondé, Alberto Silva, Magalhães Neto, Hélio Simões, Macedo Costa e Thales de Azevedo. No quadro atual da Academia, os médicos que exercem a medicina, que se notabilizam na medicina e cultuam as letras, aqui estão entre vós, tão dignamente representados, pelos doutores José Silveira, Roberto Santos e Jayme de Sá Menezes. É na esteira dessa tradição baiana e antiga, nascida no mesmo Terreiro de Jesus onde, por longos anos, viveu a própria Academia, que chega a esta Casa, no início dos anos setenta, o meu antecessor imediato, Itazil Benício dos Santos. Foi meu professor de radiologia no curso médico, era meu colega e meu amigo. A sua lembrança ainda é muito viva. Vejo-o alto, esguio, elegante, com a serenidade que a sabedoria confere aos cientistas, eles que mais sabem dos riscos e desacertos da pressa. Não me recordo de tê-lo visto, alguma vez, exaltado, a erguer a voz ou exagerar os gestos. Itazil era o mesmo homem educado e aparentemente tranqüilo, nos corredores dos hospitais e nos salões da Academia, diante de um negatoscópio ou em meio a uma discussão literária. Com o mesmo sereno entusiasmo, mas com firmeza e competência, explanava sobre uma imagem radiológica de condensação, num campo pulmonar, ou sobre os traços de uma personagem, num romance de Proust ou de Jorge Amado. Ao falar do momento supremo da descoberta dos raios X, seus olhos brilhavam, recriava o episódio sem fugir à verdade histórica, porém com cores e tons de ficcionista, Roentgen, nas suas palavras, tornava-se um interessante personagem. Verdade que, em sua vida, em seus ideais, Itazil pendia mais para a ciência de Hipócrates que para a arte de Homero. Especialista e doutor em radiologia; primeiro professor titular de radiologia em faculdade de medicina federal no país; examinador de concursos; membro e dirigente de sociedades, conselhos e congressos nacionais e internacionais de radiologia; radiologista conceituado e de enorme clientela; e autor de mais de uma dezena de importantes trabalhos científicos, todos ligados à sua especialidade. Esses trabalhos, foram devidamente registrados e enaltecidos pelo seu sucessor na Academia de Medicina da Bahia. Ao sucedê-lo nesta cadeira de letras, embora seu colega na profissão médica, cabe-me lembrar seus escritos literários: Vida e Obra de Manuel de Abreu — o Criador da Abreugrafia; Vultos e Fatos da Medicina Brasileira; Vida e Obra de Pirajá da Silva; Através do Tempo, coletânea de artigos e crônicas publicados em jornais e revistas; Itinerário de Ideais e Compromissos; e Jorge Amado — Retrato Incompleto. A biografia e o ensaio eram a sua especialidade nesta área. Em Jorge Amado — Retrato Incompleto é onde mais Itazil se afasta da medicina, voltando-se, inteiramente, para a literatura. Trabalho de extrema dificuldade! Jorge Amado atravessa o século derrubando preconceitos, alargando limites de linguagem e de tema na literatura, combatendo injustiças sociais, discriminações de raça e de religião, criando histórias, povoando o imaginário do mundo com personagens e cenas da Bahia, povo e terra, denúncia, encanto e magia. Sozinho, vale toda uma literatura. Andou por toda parte, tornou-se cidadão do mundo, lido e amado em todas as línguas. Como retratar esse capitão de longo curso, que diz fazer apenas uma navegação de cabotagem? Mas Itazil deixa-nos, ao final da leitura do seu livro, a admirada sensação de uma dificílima tarefa bem executada. Num estilo cativante e fluente, que nada recorda um sisudo cientista da radiologia, passeia pela vida, pelos romances, pelos personagens, pelas entrevistas de Jorge Amado, coloca-o inteiro e vivo nas suas páginas, traçando-lhe, na verdade, num primoroso ensaio biobibliográfico, um dos mais completos retratos do nosso maior escritor. Itazil Benício dos Santos, em tudo que fez, em tudo que escreveu, deixou-nos um legado de dedicação, integridade e competência. Como os autores preferidos da minha infância, estes vultos evocados, patrono, fundador e ocupantes da Cadeira nº12, estão mortos. Entretanto aqui estão redivivos nesta cerimônia de posse, como vivos encontram-se nas sessões de saudade, nos números da Revista onde deixaram os seus escritos, nas palestras, nos cursos, nas publicações, na biblioteca, no arquivo, estão vivos em cada uma das atividades desta Casa, e vivos permanecerão para sempre na memória da Academia, das Letras e da Bahia. Vejo, desta forma, a imortalidade acadêmica, mantida nos preceitos estatutário, protocolar e sobretudo ético, que este palácio de cultura abriga e cultua. Não poderia, aliás, uma instituição como esta, viver sem memória, como não poderia existir sem fitar longe e largo o futuro. Passado, presente e futuro visavam os fundadores, naquela noite de 7 de março de 1917, quando, na sala de sessões da antiga Câmara dos Deputados, na Ladeira da Praça, Arlindo Fragoso os reuniu, excluindo-se modesta e dignamente da lista de quarenta nomes que ele próprio elaborara. Ali plantavam-se os fundamentos, ali estabelecia-se o alicerce sobre o qual seria erguido o sólido edifício. O quadro dos primeiros quarenta traduzia, inegavelmente, o que havia, na época, de mais representativo na literatura, no saber e no prestígio político da Bahia. Ruy Barbosa, Artur de Sales, Bernardino de Souza, José Joaquim Seabra, Severino Vieira, Simões Filho, Teodoro Sampaio, Xavier Marques, Octávio Mangabeira, eram alguns outros desses nomes, além dos aqui citados. Oitenta e dois anos depois, vejo-vos, Senhores Acadêmicos, como no tempo dos fundadores, acima das ideologias políticas, acima das escolas, tendências ou gostos literários, acima das crenças e descrenças religiosas, representantes estelares da Academia, das Letras e da Bahia. Na ficção, encontro Jorge Amado, Wilson Lins, Luís Henrique Dias Tavares, James Amado e Hélio Pólvora, o mestre baiano do conto, que me honra ao me receber nesta Casa em vosso nome. Na poesia — esta deusa maior das letras baianas — encontro Oldegar Franco Vieira, Myriam Fraga, Epaminondas Costalima, João Carlos Teixeira Gomes, Fernando da Rocha Peres, Florisvaldo Mattos e Clóvis Lima, meu grande e querido Clóvis Lima que há tantos anos me deseja em vossa companhia. Na história — sobretudo na pesquisa dos vultos e fatos que, em nossa terra, construíram a civilização brasileira, — encontro Anna Amélia Vieira Nascimento, Waldir Freitas Oliveira, Cid Teixeira, José Calasans, Waldemar Mattos, Walfrido Moraes e Consuelo Novais Sampaio. No folclore e nos costumes Hildegardes Vianna. No ensaio, na biografia e na memória, Jayme de Sá Menezes, José Silveira, Pedro Moacir Maia, Cláudio Veiga, João Eurico Matta, Gerson Pereira dos Santos e Rubem Nogueira. Na oratória, esta arte baiana de quatro séculos, a voz santamarense de Monsenhor Gaspar Sadoc e a eloqüência parlamentar e acadêmica de Josaphat Marinho. No jornalismo a ética e o talento de Jorge Calmon, de Cruz Rios e de Ari Guimarães. Nos estudos da educação, Edivaldo Boaventura. No patrimônio Paulo Ormindo de Azevedo. Na política, Antônio Carlos Magalhães e Roberto Santos. E na religião, mas sem deixar de ser escritor, D. Lucas Moreira Neves, bispo e cardeal de Roma. Assim vos vejo, nos atributos que vos fizeram pertencer a esta Casa, mas vejo-vos também irmanados nas perdas inevitáveis da instituição, perdas que a entristecem, mas que lhe dão maiores motivos de prosseguir, na guarda perpétua da memória dos que partem. E aqui inscrevo, para preservá-los também nesta oração festiva de posse, como os guardarei na lembrança permanente da amizade, os nomes de Renato Berbert de Castro e de Carlos Eduardo da Rocha. Cabe-me a tremenda responsabilidade de ser o primeiro da minha geração a entrar nesta Casa, o primeiro a assumir o compromisso de continuar as tradições octogenárias e perenes deste sodalício. Vejo nesta circunstância apenas um acaso, aqui poderiam estar muitos outros com mais brilho e com mais mérito, mas a circunstância fortuita de ser o primeiro, obriga-me a falar, neste momento, por todos os outros. A minha geração, Senhores Acadêmicos, é aquela que foi às ruas, não de caras pintadas e quase em festa, com o apoio da imprensa e a concordância do povo, incentivada por políticos poderosos e com a proteção da polícia e até do Exército, mas aquela que saiu às ruas de peito aberto para enfrentar as balas dos fuzis, os cães treinados, as bombas de gás lacrimogênio; aquela que, num dos períodos mais sombrios da história política brasileira, num dos momentos mais duros e arbitrários da história deste país, arriscou a vida pela liberdade de pensamento, pela liberdade de expressão, pela democracia. Vi amigos serem presos, e nunca mais os vi, soube de torturas, presenciei colegas de colégio serem expulsos, e terem suas vidas, certamente luminosas, inteiramente apagadas. Mas, apesar disto, a minha geração não deixou de acreditar no país, não deixou de acreditar em si própria, não permitiu que lhe extinguissem os ideais sagrados da juventude, não permitiu que lhe subtraíssem a esperança. Pertenço à geração que, em meio a todas as turbulências e adversidades, a todos os cerceamentos e censuras, não parou de criar, e que fez das artes e da literatura um sólido escudo na defesa da inteligência, da cultura, da beleza e da liberdade, contra a opressão e a brutalidade política. Às armas que nos apontavam, às ameaças, respondíamos com festivais de música popular que atraíam e empolgavam multidões, com peças de teatro em parte censuradas, quando não inteiramente proibidas, com poemas e contos publicados em revistas estudantis, com novelas e romances que os próprios autores editavam. Pertenço, Senhores Acadêmicos, à geração que participou dos últimos anos gloriosos do grande Colégio da Bahia, forja e celeiro da cultura da juventude baiana até o final dos anos sessenta. Sem perder de vista os acontecimentos políticos, sem deixar de lutar pelos princípios de liberdade nos quais acreditávamos, não esquecíamos, no centenário Colégio, a filosofia, a história, a música, a literatura. Nos intervalos das aulas, nos corredores, nos pátios, nos bancos de cimento à volta das velhas árvores, discutíamos Graciliano Ramos, Adonias Filho, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Rachel de Queiroz, falava-se, com entusiasmo, em Hemingway, Huxley, Sartre, Hermann Hesse, os mais eruditos citavam Joyce, Proust e Kafka. É neste cenário de efervescência da juventude, à sombra de uma dessas árvores e cercado por colegas, que vou encontrar um jovem magrinho, de óculos, tão falante quanto os outros, tão seguro da sua sabedoria quanto os outros, e que acreditava ser escritor. Havia razões para isto, na verdade. A sua sede de escrever era tão grande que, na quarta série de ginásio, aos quatorze anos, criara um jornal mural semanal, que ele próprio passara a dirigir, apenas para ali escrever, semanalmente, crônicas e editoriais, a exemplo do que fazia, no jornal de verdade, o tio jornalista e cronista diário. E, aos quinze anos de idade, começara a colaborar com aquele mesmo jornal de verdade, A Tarde, publicando, semanalmente, o que fez durante doze anos, histórias infantis, na Página Infantil que o tio editava, crônicas, contos e poemas na Página Literária. Vivia embriagado de literatura. Então, era escritor aquele jovem, e o fato de escrever em A Tarde — a poderosa A Tarde — conferia-lhe um indiscutível prestígio literário entre os colegas. Mas era escritor, sobretudo, porque, ainda que quisesse — e jamais o quis — não podia deixar de escrever, e tinha no ideal literário, o ideal da sua própria vida. O sonho maior daquele jovem era publicar um livro, nada lhe parecia mais importante do que isto, e sonhava com o seu nome na capa, e sonhava com o título, o livro, o livro. Reuniu alguns dos contos da Página Infantil de A Tarde, deu-lhes um título, No País das Aventuras, mostrou ao pai, ao tio, por um tempo viveu em torno daquela idéia, mas logo um novo projeto empolgou-o: não mais a estréia com um livro de histórias infantis, porém com um de contos para adultos. Para ele o gênero não importava — e, na verdade, continuou não importando. Em literatura, gostava de tudo, interessava-se por tudo, e via — e continuou vendo — no gênero literário apenas a roupagem da idéia. Cada idéia, cada inspiração pede um gênero, cabe vesti-la com a vestimenta adequada. O romance era um objetivo, mas não se sentia, naquele tempo, preparado para enfrentá-lo, havia que aprender muito, antes de aventurar-se na ficção de largo fôlego. E atirou-se a produzir contos, um após o outro, escrevendo e reescrevendo, fazendo e refazendo, varando as noites e as madrugadas, os domingos e os feriados, na sua máquina portátil Olivetti Lettera 22, que o pai lhe dera nos seus quatorze anos, e que fora o melhor presente que ele lhe dera, de todos os muitos presentes que lhe deu. Escrevia e reescrevia porque era obcecado pela mais alta qualidade do texto, achando que podia sempre fazer melhor, e cada vez que reescrevia percebia que era possível, sim, era possível fazer melhor, sempre melhor, e, um dia, com trinta histórias datilografadas e postas num classificador de papelão, acreditou que tinha, finalmente, o seu livro de contos. Deu-lhe o título do primeiro, “A Moça Triste”, um conto que, depois, de tanto ser reescrito, acabou sendo perdido, como esse próprio livro, que jamais foi editado. Mas não parou de escrever contos, como não parou de escrever e publicar histórias e fábulas na Página Infantil, e tocado pelas paixões e sentimentos da juventude, tão exacerbados e tão verdadeiros, escrevia também poesias, tempo houve em que escreveu bem mais poesia do que ficção. O livro A Moça Triste, na verdade, não seria inteiramente perdido, alguns dos seus contos, reescritos muitos anos depois, seriam aproveitados. Mas foram, aqueles trinta contos da juventude, um importante aprendizado não apenas para o gênero, mas para a própria escrita. Entretanto o primeiro livro, publicado vários anos depois, aos vinte e quatro anos de idade, um mês antes da formatura em medicina, seria de poesia: Quarto Escuro, uma seleção de cinqüenta poemas. Aquele moço escritor, de primeiro livro, também via esta Casa na distância do impossível, embora alimentasse uma secreta e forte esperança de, um dia, chegar aqui. A Academia apresentava-se aos da minha geração uma instituição altamente respeitável e respeitada, depositária e guardiã da cultura e das tradições intelectuais da Bahia, porém inacessível. O secular sobrado do Terreiro de Jesus abria as suas portas ao público nos grandes acontecimentos, notadamente nas cerimônias de posse. O mais das vezes mantinha-se fechado e circunspecto, sendo admitidos apenas, no convívio dos acadêmicos, as personalidades importantes ou os privilegiados amigos da Casa. Mais tarde é que viria habitar este belo e espaçoso Palacete Góes Calmon, de magníficos salões ornados de preciosos azulejos, móveis antigos, telas, biscuits. Então, sob a serena e firme presidência do Professor Cláudio Veiga, a dinâmica e eficiente direção executiva de Carlos Cunha, e o carinho e a dedicação de uma dezena de funcionários integrados ao espírito da Casa, abriria de par em par as suas portas para os escritores, o público, a vida literária, franqueando a valiosa biblioteca e o arquivo, promovendo lançamentos de livros, palestras, cursos, seminários, concursos, publicações, transformando-se no mais prestigioso centro gerador de cultura do Estado, base e defesa da literatura baiana. E não é de pouca importância a presença de uma instituição como esta na Bahia, sobretudo no contexto do panorama da cultura nacional. O desenvolvimento, visível, inegável, da cidade e do estado ainda não foi suficiente para nos libertar de um colonialismo cultural que nos constrange, que nos limita, que nos insulta. A qualidade dos autores baianos e a produção baiana de livros, podem ser comprovadas nos lançamentos diários que ocorrem em Salvador, não raras vezes mais de um por dia. Apesar disto, ainda não temos as nossas editoras de conexão nacional, que editem os livros dos autores baianos e os distribuam e os divulguem nacionalmente. A luta pela publicação, pela divulgação, pela distribuição, pela permanência nas prateleiras das livrarias, pela venda dos livros, pelo ressarcimento dos livros vendidos, só pode ser comparada, em pertinácia e força de vontade, à própria vontade de escrever, à própria necessidade de publicar. A circunstância não ocorre apenas à Bahia. Como a injusta distribuição de renda entre as pessoas deste país, tem sido, também, injusta a distribuição de cultura entre os estados, ou seja, a oportunidade de gerar, promover, distribuir e divulgar nacionalmente a cultura entre os estados, como se ainda fôssemos, culturalmente, um Brasil de corte e províncias. A Bahia, no particular, tem comprovado não ser uma mera consumidora, mas geradora importante de cultura, capaz de enriquecer culturalmente os outros estados, bastando, para isto, que as barreiras da distribuição e da divulgação sejam vencidas. É esta uma batalha que se trava no dia-a-dia da vida literária da nossa cidade, do nosso estado. Nesta luta, que é de todos os que escrevem, incorporam-se as instituições culturais, incorpora-se sobretudo a Academia, justificando o seu presente, com o mesmo empenho com que cultua o passado e ambiciona o futuro. Para finalizar, manda o protocolo da oração de posse que vos diga algo sobre o meu trabalho de escritor. Da poesia nada vos digo, que dela nada sei. Tem sido, para mim, amante infiel e caprichosa, que me surge de repente, quando menos a espero, e subitamente se vai. Quando chega, curvo-me submisso aos seus encantos e caprichos, deixo que ela, senhora e soberana, imponha-me as suas tirânicas vontades. Quando se vai, nada faço para detê-la, não a persigo, não sigo os seus invisíveis passos, e não me é dado saber se algum dia retorna. Procuro nela uma qualidade, para vos exibir, e apenas lhe encontro um grave defeito: o de ser excessivamente indiscreta, expondo-me inteiro nos seus versos. Da ficção, esta fiel, que jamais me deixou e que espero jamais me deixe, apenas vos aponto um mérito: o de ter aprendido as lições de Xavier Marques, de Vasconcelos Maia e de Jorge Amado, fazendo de Salvador o cenário das minhas histórias. Os meus personagens vivem nas ruas, ladeiras e largos desta cidade, andam, falam, riem, amam e se aborrecem como baianos, comem dos pratos da cozinha baiana, são baianos de Salvador. Eu os quero assim, banhados da luz intensa desta cidade morena e risonha, respirando o cheiro de mar desta cidade, impregnados do mistério, da preguiça, do dengo, da poesia e da música desta cidade, mas alimentados da força de quatro séculos e meio desta cidade. É desta forma que uno estes dois amores da minha vida inteira, a literatura e a Cidade do Salvador. Ao vos agradecer, comovido, a honra e o privilégio de pertencer à Academia, vos afirmo a determinação de prosseguir no caminho que tracei para a minha obra. Para um escritor, mais importante que o feito é o por fazer, o melhor livro é sempre o próximo, e o melhor de todos por vezes nem tão próximo, esboçado na idéia e na vontade, à espera de, um dia, ser escrito. Ao me juntar a vós, Senhores Acadêmicos, não vos trago a vaidade e o orgulho dos que conquistam os lauréis, embora seja esta a mais alta, mais nobre e mais expressiva láurea que se pode cumular a quem escreve nestas terras baianas. Trago-vos apenas a enorme alegria daquele menino que amava os livros e as histórias, e que via esta Casa na distância do desconhecido e do impossível. Trago-vos o entusiasmo daquele jovem que, ao começar a escrever, sonhava, dia e noite, em ter um livro publicado. Trago-vos a emoção e as esperanças daquele moço que, ao publicar o seu primeiro livro, ainda mais intensamente do que o menino, mais conscientemente do que o jovem, desejou muito um dia ser um de vós. Trago-vos, finalmente, a afetiva, carinhosa e reiterada afirmação de que os vossos votos e a vossa confiança trouxeram-me para a minha Casa. Por tudo isto, Senhores Acadêmicos, por muito mais que tudo isto, não vos faço um discurso, mas um canto comovido de amor à Academia, um canto de amor às Letras, um canto de amor à Bahia.