ESCULTURA BARROCA BRASILEIRA: QUESTÕES DE AUTORIAS Maria Helena Ochi Flexor Universidade Federal da Bahia. Brasil Paguemos ao Senhor Domingos de Souza Marques setenta e oito mil e trezentos e vinte reis do feitio de quatro castiçaes de bojo de prata e huma coroa de espinhos de prata, e hum resplendor de ouro também para o Senhor dos Passos emtrando tambem doze 8as e meya de ouro e 6 gramas que levou de mais ouro no resplendor, e oytenta e nove 8as de prata fina na coroa de espinhos. Paguemos ao Escultor que fez a Imagem do Senhor dos Passos que está colocada no Nixo da capella trinta e seis mil reis. Paguemos ao Pintor que a encarnou dezaceis mil cento e secenta reis. Paguemos pella cabeleyra para o dito Senhor dos Passos quatro mil e oyto centos reis. Paguemos pella tunica e o seu feitio dez mil e quinhentos e secenta reis. Paguemos aos Remadores que levarão o Senhor a Penha para o Senhor Arcebispo a benzer doze patacas (ALVES, 1967, p. 52-53). Essa ordem de pagamento refere-se à elaboração da imagem do Senhor dos Passos (foto 1), do Convento do Desterro da Bahia, entre 1755 e 1759. Como se pode notar, o único nome que aparece é o do ourives, Domingos de Souza Marques, tendo em consideração que esse tipo de oficial mecânico como eram chamados os artífices – devia, mais do que os outros, sempre identificar suas obras e registrar sua marca na Câmara. Os demais pagamentos foram feitos ao Escultor (artista), ao Pintor (artista), a um barbeiro ou um cabeleireiro (oficial mecânico) e a um alfaiate (oficial mecânico), sem que seus nomes tivessem sido designados. A ausência dos nomes dos artistas e artífices se deve, especialmente, ao fato da obra ser feita em oficinas, tendas, ou na própria obra, onde trabalhavam, sob as ordens do mestre, alguns oficiais e aprendizes. Era, portanto, um trabalho coletivo que se mantinha nas oficinas dos artistas1, e dos oficiais mecânicos. Alguns escultores também eram entalhadores e outros se identificaram como escultor imaginário, como foi o caso de Clemente dos Santos Marques, ativo no fim do século XVIII ou, para confirmar o que foi dito, em 1705 Manuel Gonçalves Pinheiro identificava-se como oficial de imaginário (ALVES, 1976, p. 105, 138). O documento de 1774, da Irmandade do SS. Sacramento, da antiga Sé de Salvador, sem nominar o autor mostra, também, que o escultor trabalhava unicamente a madeira: E por se achar prezente hum Escultor perito, ajustou este a dita Imagem a referida forma e tamanho, por doze mil e oito centos reis obrigandose a da-la acabada em tempo, que podesse ser encarnada para a Festa, para o que se assignou neste com o seo nome de Ioze Antonio de Araújo Lobo2 . 1 Mas usavam a mesma terminologia hierárquica dos artífices: mestres, oficiais, aprendizes. 2 Documento Livro 3o de Acórdãos, iniciado em 1774. ALVES, 1967, p. 57. Figura 1: Senhor dos Passos, século XVIII, Convento de Santa Clara do Desterro, Salvador / Bahia Tomando os dois exemplos já citados, pergunta-se, quem era o autor da obra se o escultor, ou imaginário, que desbastava a madeira3 e dava-lhe a forma interna ou o pintor que a dourava, encarnava, estofava ou pintava, dando-lhe a forma final? Enganava-se, pois, Afrânio Peixoto ao afirmar que, para Chagas a madeira é plastica às suas mãos e aos seus desbastadores; e, depois de esculpir, "encarna" e veste (PEIXOTO, 1947, p. 123). Mesmo quando o artista contratava a obra por completo, terminava subempreitando as tarefas que não eram de sua competência. Por exemplo, a 4 de maio de 1794, Manoel Inácio da Costa recebeu pagamento da escultura, da prata, e títulos de hua santa Imagem de Cristo que fez para esta Santa Caza (ALVES, 1959, fl. 1). Embora não esteja explicitado quem fez o trabalho em prata, o escultor não podia executar as tarefas dos ourives4, pelas razões já expostas. A partir daí deve-se salientar que o conceito de artista, o modo de trabalho e suas relações no Brasil do século XVIII, eram diferentes daqueles vigentes a partir da segunda metade do século XIX. A falta de assinatura, ou indicação do autor, fazia parte daquele contexto de trabalho coletivo de oficina. E, como obra coletiva, era anônima. Portanto, é desnecessário tentar buscar a autoria da grande maioria das imagens que subsistiram nas igrejas e museus da atualidade. 3 Os Inventários e Testamentos mostram que a madeira prevaleceu como material de base das esculturas mais no setecentos. No século XVII muitas imagens de barro aparecem nos oratórios familiares. 4 A exemplo do entalhador, José Joaquim de Santana que, em 1802, fez doze varas de jacaranda para as forquilhas de prata encomendadas ao ourives Manoel Gonçalves de Sousa para a Santa Casa (ALVES, 1976, p. 158). Frei Agostinho de Santa Maria (1947, p. 1-18), no Santuário Mariano, aproveitando informações dadas por religiosos e autoridades das diversas arquidioceses portuguesas, dedicou o volume 9 à Bahia. Relacionou, por 1720, 133 invocações da Virgem Maria, com predominância de Nossa Senhora do Rosário (26) e de Nossa Senhora da Conceição (14) e mais outras 46 denominações. Em nenhum momento Frei Agostinho se preocupou em apontar a autoria das imagens, indicado, quando identificado, o patrocínio que deu origem à devoção, do altar ou templo que abrigavam a imagem referenciada. Alguns nomes são conhecidos através dos registros de contratos existentes nos arquivos das instituições religiosas. Ou, ainda, se revelam pelo fato dos artistas terem sido irmãos de alguma Ordem Terceira ou Irmandade e executaram gratuitamente o trabalho. Além de coletiva, a execução da imagem baseava-se em modelos préexistentes, e copiava, se não fielmente, pelo menos dentro do mesmo padrão e da mesma tipologia. A mentalidade estética do período, no entanto, levava à cópia dos melhores mestres. Não só a pintura e a escultura fundamentavamse nesse princípio, como a própria produção dos ofícios mecânicos. Circulavam no mundo português, do Ocidente e do Oriente, e pela Europa, os riscos, ou coleções de estampas, de manuais e tratados, que serviam de modelos aos artistas. E era considerado mais habilitado aquele que copiasse o mais fielmente possível os modelos ou os mestres. Segundo Castro (1996, p. 183), o culto das imagens foi uma prática religiosa sensivel e gestual elaborada com pressupostos didáctico-pedagógicos e propagantísticos tendo os tratados, versus nesta materia, tido um carater normativo equiparavel ao da teologia e da moral5 . Como diz Rocha (1996, p. 190) de facto, depois do século XVI, pode falar-se de uma iconografia ocidental padronizada. O século XVIII restringiu o número de devoções cultuadas6. Essas restrições foram decorrentes da aprovação e aplicação das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1853, p. 8-9) que codificaram, para o Brasil, as resoluções do Concílio de Trento. Os escultores não podiam produzir livremente e em número infinito as imagens dos santos. Em geral eram feitas sob encomenda e contrato, visto que era proibido colocar imagem em igreja, ermida, capela ou altar sem licença dos prelados (CONSTITUIÇÕES, 1858, p. 257). Não se deve esquecer que a Igreja e a Monarquia, principalmente a Inquisição, vigiavam a população contra a idolatria7. Os artistas reproduziam Santos. 5 A depuração das invocações dos Santos baseou-se no II Concílio de Nicéia (ano 767). 6 Estabeleceram hierarquia das devoções, tipo de culto e controle da devoção dos 7 Desde os princípios do seiscentos, o mundo católico estava inquieto com as catástrofes, milenarismos, os horrores do pecado e atormentados pela angústia da salvação. Nesse clima a preparação para a aceitação pacífica da fé católica era feita pela Inquisição, sendo reforçada pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia e as disposições da Mesa de Consciência e Ordens que complementavam as Ordenações Filipinas. Acresciam-se as ameaças prometidas nos compromissos das diversas irmandades, punindo quem não aparecesse aos atos públicos ou não se comportasse devidamente. Além das penas pecuniárias, de prisão, excomunhão, as Constituições prometiam severos castigos a quem blasfemasse contra Cristo e sua Mãe, como o degredo. E sendo plebeu, por não ter como pagar a pena pecuniária, (CONSTITUIÇÕES, Lo 5o , tit. II, itens 890, 891, 892,p. 312-313) e os religiosos com perda das dignidades e prisão. Contra as blasfêmias aos santos, as penas eram arbitrárias. E estavam, ainda, sujeitos às multas e/ou 30 dias de cadeia impostas pela muito um número limitado de invocações permitidas pelo Arcebispado. Essa repetitividade em grande número das mesmas invocações levou um dos historiadores da arte da Bahia, Carlos Ott, a criticar severamente os artistas baianos, atribuindo a execução, especialmente das esculturas, aos negros. Esse autor acusou a presença de muitos Cristos de marfim na Bahia, ao falar de um exemplar de grande porte, existente no altar-mor da Santa Casa de Misericórdia, que foi, apesar do material básico, encarnado como os de madeira. Cogitou ter o marfim origem da Índia ou do Benim e para tentar comprovar isso, entre suposições e preconceitos, dizia: E foram numerosíssimos os escravos que vieram daquela área cultural africana ... Entre eles, evidentemente, mais de um seria especializado em escultura no marfim. Dado que o negro se revela superior a qualquer outra raça, na imitação servil de qualquer peça artística, cremos terem sido artistas negros os autores dos crucifixos baianos – negros adquiridos e empregados por escultores portugueses ou brasileiros, que lhes mandaram reproduzir, em marfim, crucifixos de madeira. Desambientados como estavam, e acostumados a reproduzir, porem não a criar, artistas exímios, pertencentes a antigas famílias de escultores da arte do Benim, poderiam executar esses trabalhos em marfim, sem imprimir-lhes os característicos daquela arte (OTT, 1960, p. 103)8. Aqui deve-se destacar os conceitos bastante divulgados na Bahia por esse autor (OTT, 1967, p. 74-75)9 que, ao se referir à pintura, estendendo-se à escultura, fez constantes referências à plágios. Esse autor defendeu ferreamente o conceito de originalidade e de propriedade intelectual, analisou com esses olhos, os séculos XVII e XVIII, fazendo afirmações como: além do mais, estava em voga, nessa época (século XVII), a imitação dos grandes mestres, não fazendo exceção mesmo eminentes pintores europeus. Ainda não se formara o conceito da propriedade intelectual, plagiando-se mutualmente, de maneira semelhante, os teólogos, os filósofos, os poetas, etc. Da segunda metade do século XVIII em diante desapareceria, gradualmente, esta tendência plagiadora, ou a disfarçavam melhor, de modo que dava menos na vista. Seguindo a lei do menor esforço, continuaram a aparecer as figuras estereotipadas de Deus Padre, da Madona, de Cristo, etc. como as vemos repetidamente, nos quadros de José Joaquim da Rocha e José Teófilo de Jesus. Plagiavam as suas próprias obras, por comodidade, ou por falta de tempo visto estarem sempre sobrecarregados de numerosíssimas encomendas.. Dizia que Francisco das Chagas, pelo seu lado africano, não podia usar modelos vivos e sim apenas outras esculturas antigas para repetir sempre as mesmas formas... e que no decorrer dos séculos os africanos conseguiram copiar exatamente imagens estilizadas, eles manifestaram a mesma habilidade quando se lhes colocava em frente modelos vivos, copiando-as com perfeição. O escultor branco nunca fazia isso, pois ele sempre gostava de procriar formas novas, ... (IDEM, 1989, p. 27; IDEM, 1990, p. 24). Em relação Câmara. Por outro lado, todos os capítulos das Constituições do Arcebispado da Bahia confirmavam as imposições feitas nas sessões do Concílio Tridentino, sujeitando os que agissem ao contrário à excomunhão. Em compensação, ofereciam-se prêmios, como, além da salvação eterna, o meio de alcança-la ainda na terra através das indulgências (IDEM, p. 195196). 8 A citação foi transcrita para não desvirtuar as palavras do autor que permeou toda a sua produção de história da arte na Bahia. 9 Deve-se ressaltar que esse autor, quase sempre, tomou a Alemanha, sua terra natal como parâmetro de comparação. aos negros considerava a aprendizagem como algo que se transmitia geneticamente. Pensava ele que, no setecentos, os modelos pousavam para o escultor. Nesse sentido afirmou que o Cristo da Coluna do Convento do Carmo, o seguinte: evidentemente ela não foi esculpida na Bahia: aqui não havia nenhum escultor capaz de esculpi-la, pois um modelo não podia posar horas a fio na posição artificial em que aparece aqui o Cristo, caindo pois fora Francisco das Chagas, ao qual os carmelitas querem atribuir esta imagem, pois este escultor sabia apenas copiar bons modelos e que pudessem conservar durante horas a mesma posição (OTT, 1989, p. 24), por isso mesmo, dizia ele em outro trabalho, que só podia ter sido feita por um escultor bastante idoso que já tinha feito várias imagens dessas e não precisava mais de modelos, podendo trabalhar, e melhor, de memória: Ao falar sobre o Cristo da Casa dos Santos dos terceiros carmelitas que, como se viu, atribuiu a esse artista mestiço, dizia que provavelmente foi um padre quem escolheu o modelo vivo para Francisco das Chagas representar o Cristo Morto. E ele soube escolher bem o seu modelo, o seu homem...., procuramos penetrar no espírito, na filosofia que estas imagens revelam; só grandes artistas podiam fazê-las e estes não havia na Bahia, pois não havia escolas profissionais aqui (OTT, 1990, p. 42). Dividiu a escultura em erudita e popular. Classificou poucas como eruditas, e segundo seus próprios critérios, todo o resto era popular. Preconceituoso afirmou que as imagens de vestir, ou de roca ...não possuem valor artístico (IDEM, 1989, p. 29).Todas suas obras merecem uma boa revisão crítica10. Quem encomendava as esculturas costumava determinar as principais características, especialmente tamanho, pois este estava condicionado ao local que a imagem deveria ocupar. Normalmente o trabalho era dado através da publicação de edital, ganhando aquele que o fizesse por menor preço. E pedia-se cumprimento do prazo de entrega. Nota-se que mesmo na encomenda, a maioria da documentação não apontava a autoria. Em 1752 encomendava-se a imagem da padroeira da Igreja do Santíssimo Sacramento e Santana, cuja construção chegava a seus finais, nos seguintes termos: era precizo mandar fazer a Imagem da Senhora Santa Anna para se collocar no altar Mor como orago daquela Matriz: porque. se deve cuidar muito na perfeição e asseyo da ditta imagem, e em tudo o mais que fosse precizo para o seo ornato e prefeição como era resplendor para, a dita Santa, coroa para a Senhora, e os mais accessorios recommendavão a delligencia e execução destas obras ao nosso Irmão Escrivão actual para que com o seo zello costumado e boa intelligencia mandace fazer as referidas obras pellos officiais que. julgasse mais capazes para o ditto ministério (cit. por ALVES, 1967, p. 52) 11. *** Manoel Raimundo Querino (1851-1923), artista decorador, jornalista (republicano e abolicionista defensor do operariado), cronista e professor, 10 As publicações de Carlos Ott e Manoel Querino, deve-se dizer, são constantemente citados por estudiosos da arte baiana. 11 Essa imagem foi substituída por outra feita posteriormente e encontra-se na sala das sessões da Mesa. escreveu, entre outras obras Artistas bahianos (1911) e As artes na Bahia (1913).Apesar de interessante produção intelectual para a época em que viveu, Querino foi mais um cronista que historiador e suas obras apresentam informações errôneas, imprecisões cronológicas e atribuições indevidas. Muitas de suas referências, especialmente do período que não vivenciou, baseram-se na tradição oral, ou deduções pessoais, o que não credencia seus dados como verdadeiros. Algumas atribuições, a partir de então, foram sendo repetidas tantas vezes que acabaram, sem estudos críticos, tornando-se verdades. Quem, hoje em dia, não atribui as imagens da Conceição, Santo Antônio e São Pedro de Alcântara, da Igreja do Convento de São Francisco de Salvador, a Manoel Inácio da Costa? Quais foram seus autores? Essas imagens foram feitas junto com seus altares, remodelados na segunda metade do século XVIII, e seus autores são desconhecidos. Busca-se discutir os escritos de Manoel Querino e afirmações como a que dizia que era impossível conhecer o número de seus trabalhos (de Manoel Inácio da Costa), devido principalmente à exportação desses trabalhos. Vivendo no período em que os pintores e escultores retomavam sua liberdade de criação, trânsito e comercialização, conseqüência dos ideais neoclássicos, Querino não identificou os processos de produção dos séculos anteriores ao oitocentos e distribuição dessas obras, afirmando, inclusive, que existia uma imagem de Santo Eduardo, desse escultor na Inglaterra (QUERINO, 1911, p. 17). Essa imagem nunca foi identificada e nem se sabe de onde Querino tirou essa informação. Em relação às imagens barrocas, via-as com olhos neoclássicos. Entre as suposições, feitas por esse autor, há a que dizia que os modelos de que se serviam os artistas foram manequins armados de sarrafos, e complementando que pregada a fazenda com alfinetes, como praticam os armadores e faltando o movimento de forma ondulante, que era substituída pelas asperezas das perpendicularidades. Assim, pois ficava o pannejamento com discreção das violências do vento, os pannos a voarem, produzindo máo effeito, na confusão das linhas, justificando e condenando a movimentação barroca. Explicava que disso resultou as dobras forçadas, sem elegância; o recorte duro, sem delicadeza de formas, e o talhe da fazenda grossa, como fosse o burel, obedecia aos mesmos golpes que o da fazenda fina e delicada. Pannos cahidos, mas pesados e sem symetria, mostram desconcertos nos trabalhos do tempo. E ahi estão, por exemplo, S. Francisco Xavier, S. Inácio, e mais outros trabalhos existentes na egreja da Cathedral (QUERINO, 1913, p. 15-16) 12. Manoel Querino tomou as imagens de vestir como modelos copiados pelos escultores. Tanto esse autor, quanto Carlos Ott (1989, p. 42), com diferença de 80 anos, tinham em mente que entre escultores e pintores do século XVIII, e primeira metade do XIX, na Bahia, se praticavam os métodos neoclássicos das Academias de Belas Artes. Querino atribuiu a Domingos Pereira Baião (c. 1825-1871) várias esculturas em Salvador e, genericamente, no interior do Estado, além de citar pontualmente Feira de Santana, Santo Amaro, Aracaju (Sergipe) e mesmo Ceará. O autor não esclareceu se o escultor trabalhou nessas cidades e 12 São duas imagens de vulto barrocas que ainda não foram devidamente estudadas. estados ou se suas obras foram levadas a partir de Salvador13. Atribuiu-lhe, ainda, a figura da Cabocla de 1846, do conjunto que desfila na festa de 2 de Julho14 e uma cópia de São Pedro de Alcântara que teria oferecido a D. Pedro II, Imperador do Brasil que lhe valeu o título de esculptor da casa Imperial, de que nunca fez uso (QUERINO, 1913, p. 21). Conta a tradição que D. Pedro, ao passar pela Bahia, nos meados do oitocentos, desejou ter para si a imagem de São Pedro de Alcântara (foto 2), tanto ela o impressionara, mas que os franciscanos não cederam à vontade do Imperador (QUERINO, 1911, p. 23-28; IDEM, 1913, p. 21). Ao anotar em seu Diário a passagem pela Igreja do Convento de São Francisco, no dia 10 de outubro de 1759, D. Pedro II, que em muitos lugares por onde passou em sua viagem observou pequenos e grandes detalhes artísticos, se referiu ao conjunto franciscano, dizendo que a Bahia tinha uma igreja magnífica, no gôsto de S. Bento do Rio de Janeiro, porem maior, com duas capelas fundas e quatro altares de cada lado sob uma espécie de galeria, tudo carregado de ouro e com painéis pintados (PEDRO, 1959, p. 85) e não fez uma única nota sobre a imagem de São Pedro de Alcântara. E não existem outros autores que confirmem que Baião tenha feito essa cópia para o Imperador e tampouco que recebeu o citado título. Outra historiadora da arte da Bahia, Marieta Alves, documentou poucas imagens de autoria comprovada documentalmente de Domingos Pereira Baião o conserto das imagens de São José e São Francisco e a imagem de Nossa Senhora do Desterro, para o Convento do mesmo nome, bem como a imagem de Nossa Senhora da Conceição, para a Igreja da mesma invocação, além de figuras simbólicas do órgão da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco (ALVES, 1976, p. 31) e não incluiu a figura da Cabocla, nem a cópia de São Pedro de Alcântara. A época em que Manoel Querino escreveu, e em parte Marieta Alves e outros autores, foi o de valorização das coisas nacionais, pois decorria o período em que, regionalmente, se teve os reflexos da comemoração do centenário da Independência do Brasil (1922) e movimentos de recuperação da nacionalidade brasileira. Concomitantemente, procurava-se valorizar também, agora sob influência do socialismo, o tipo nacional como o mestiço de negro e índio (cabra), o mulato (pardo), confundindo-se inclusive, trabalho mal elaborado ou descontestualizado15 com a cor da pele 16. Vêm-se afirmativas como o século XIX não foi de todo infecundo no tocante à vocação de escultor, na Bahia. Apenas notamos que eram mestiços quase todos os artistas imaginários daquela centúria, tais como Estevão do Sacramento 13 O processo antigo não permitia ao escultor trabalhar em tantos lugares ou mandar para outras partes suas obras sempre feitas expressamente, por concorrência ou encomenda, sob licença de cada bispado. 14 Comemora-se a consolidação da Independência do Brasil que se deu na Bahia em 1823, 15 Entenda-se imagens que foram tiradas de seu lugar e, por isso, parecem tortas, mal acabadas, etc. 16 Esse preconceito continua. Basta ver um artigo muito recente, de Diego Mainardi, numa revista de grande circulação no Brasil (Veja, 25.6.2001) onde, sob o título Santos Ridículos, referindo-se a obras barrocas apresentadas na Bienal de Veneza, afirmou que o barroco brasileiro nunca foi e nunca será arte. Diz que é artesanato e o que é mais grave (prova de extrema ignorância) pergunta: como reconhecer impulso individual num escravo? ... Existe alguma diferença entre entalhar santos e cortar cana de açúcar? Rocha, José Gregório Pita, os Machado Peçanha, João Carlos do Sacramento e Domingos Pereira Baião – cabras, pardos – conforme apuramos nos assentos de óbito e de casamentos, escreveu Marieta Alves. Referia-se, ainda, a este último como o mais importante entre esses mestiços (IDEM, 1967, p. 61). A falta de habilidade, ou mesmo falta de materiais e artistas em alguns lugares mais despovoados, fez surgir imagens com feições mais rústicas, de cunho popular, o que tem levado alguns autores, dentro da ideologia nacionalista, a querer identificar a produção baiana, a atribuí-la a índios e negros ou salientando a representação da feição desses mesmos índios e negros em algumas imagens. Figura 2: São Pedro de Alcântara, século XVIII, Igreja do Convento de São Francisco, Salvador / Bahia *** De um lado, no século XIX o processo escultórico continuava o mesmo e só mudaria às vésperas do século XX, conseqüência das novas diretrizes ditadas pelo Liceu de Artes e Ofícios (1872) e Academia de Belas Artes (1877). Mesmo assim até 1899-1900 encontram-se pintores, como André Avelino da Silva encarnando imagens, com a mesma técnica (ALVES, 1976, p. 166). Além de Manoel Querino, Carlos Ott, outros autores imaginaram o processo criativo barroco como o neoclássico. Tanto este último autor (1989, p. 29), como Affonso Ruy, historiador, atribuíram a imagem de Nossa Senhora do Carmo, da Ordem 3a dessa invocação, a Francisco da Chagas, que se convencionou chamar o Cabra 17. As imagens do tempo de Francisco da Chagas, incluindo as esculpidas por ele, foram vítimas do incêndio que consumiu a igreja daquela Ordem em 1788. Carlos Ott explicou que a imagem da Senhora do Carmo estava no Convento do Carmo, preparada para a procissão da Semana Santa daquele ano, por isso salvou-se. É apenas uma suposição do autor, tanto autoria, quanto a sobrevivência da imagem, visto que não existem documentos comprobatórios. Affonso Ruy afirmou que, segundo Melo Morais, pai, a criança que serviu de modelo ao inspirado buril do escultor, faleceu no dia em que a imagem foi benzida. E ainda que, por se ter recusado a fazer uma cópia da imagem, destinada a Portugal, sofreu o escultor graves vexames e perseguições, inclusive reclusão na cadeia pública (RUY, 1965, p. 16). Mais suposições. O autor anônimo de texto da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, deu origem à primeira lenda, baseado nas trovas dos poetas que cantavam o fato no século XIX (OTT, 1947, p. 214) e Melo Moraes embasou-se nele. Querino dizia simplesmente que o Menino Deus é um primor, segundo a tradição copiado de uma criança que o artista considerou um excellente modelo (QUERINO, 1913, p. 17). Documentadamente Francisco das Chagas executou, em 1758, as imagens do Senhor Crucificado, com oito palmos, um Senhor Sentado na Pedra e um Senhor com a Cruz as Costas (ALVES, 1976, p. 48). Essas imagens foram pintadas por Antonio da Cruz e Sousa, no mesmo ano, e ambos as executaram dentro do processo barroco de produção… Uma escultura atribuída a esse mesmo escultor é o Senhor Atado à Coluna, no Museu do Convento do Carmo (foto 3). Carlos Ott (1989, p. 24) a considerou como o São Pedro de Alcântara, de origem espanhola e foi mais longe. Aqui, também, se reproduz textualmente seu escrito mais recente para não modificar suas palavras. Do mesmo Museu (de Arte Sacra, foto 4) e de arte erudita são as duas imagens de madeira, representando um Cristo sentado na pedra fria e a outra Cristo na coluna da flagelação, atribuídas porém erroneamente a Manoel Inácio da Costa por (Valentin) Calderón e sim esculpidas pelo Francisco das Chagas, pois usou o mesmo modelo como, em 1758, na Ordem 3a do Carmo da Cidade do Salvador quando fez para ela o Cristo Morto, Cristo com a cruz nas costas e Cristo sentado na pedra fria. Na mesma ocasião, ele também esculpiu uma imagem de N. Senhora do Carmo para a mesma igreja para a qual usou para o menino Jesus um menino; e já que ele ficou com medo do escultor negro, este também copiou a mãe ficando com o filho no colo. Esta última imagem ele repetiu exatamente, embora com o nome de N. Sra. do Rosário para o altar lateral da Irmandade dos Negros desta Invocação da qual o escultor foi Irmão. Francisco das Chagas ainda esculpiu Santo Inácio de Loiola e São Francisco Xavier para a igreja dos jesuítas (hoje 17 Não se sabe de onde vem esse apelido, visto que a documentação eclesiástica não se refere a ele. Além do apelido, diz Affonso Ruy (1965, p. 16), que esse escultor enlouqueceu. Marieta Alves afirmou que foi Manoel Querino que deu o apelido de Cabra ao escultor (QUERINO, 1911, P. 11), tendo em vista que até bem pouco tempo esse escultor só era conhecido como Chagas (ALVES, 1967, p. 53). Consta que Manoel Querino tirou informações de um texto de um texto anônimo, existente na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (OTT, 1947, p. 203-217), e que o cognome advém daí, porém, mudando a informação do citado autor anônimo que escreveu há um século que um genio admiravel existiu na pessoa de um baiano, de qualidade homem de cor escura, vulgarmente cabra, e cognominado Chagas . Foi uma constante, no período que se trata neste trabalho, se identificar as pessoas pela cor, assim, o qualificativo cabra, branco, pardo, negro sempre seguia os nomes das pessoas. catedral), pois copiou outra vez apenas dois jesuítas paramentados para este fim ... Outras duas imagens que esculpiu o mesmo artista negro, uma N. Sra. da Conceição para a Catedral e outra N. Sra. do Rosário para a Igreja do Pelourinho que ele fez de memória, no máximo podem ser consideradas imagens de arte popular, mas não erudita, pois nenhuma mulher branca ia posar de modelo deliberadamente para um escultor negro do século XVIII, quando na Bahia ainda reinavam preconceitos raciais (OTT, 1990, p. 28-39). E era a sociedade setecentista a preconceituosa!!! E persiste na afirmativa do uso de modelos. Figura 3: Senhor Atado à Coluna, Museu do Convento do Carmo, Salvador / Bahia. Século XVIII Figura 4: Senhor Atado à Coluna, Museu de Arte Sacra da UFBa, Salvador / Bahia. Século XVIII Comprovadamente são apenas as três imagens citadas acima (LIVRO, 1745; ALVES, 1959; ALVES, 1976, p. 48) as de autoria de Chagas. Marieta Alves diz que os que escreveram sobre o celebrado escultor baiano apontaramno como autor de muitas imagens, existentes em várias Igrejas da Bahia, e até no Estado de Santa Catarina (ALVES, 1967, p. 54). E em outro lugar afirma categoricamente nada mais sabemos, documentadamente, de Francisco das Chagas, a quem são atribuídas tantas imagens, sem indicação das fontes. Seus próprios dados biográficos não serão esclarecidos com facilidade, em virtude do grande número de Franciscos das Chagas, que se encontram nos Livros de Casamentos e de Óbitos do Arquivo da Cúria (ALVES, 1959) da Bahia. A Francisco das Chagas foram atribuídas também as imagens de São João e Santa Maria Madalena (QUERINO, 1911, p. 12; IDEM, 1913, p. 17), da Casa dos Santos da Ordem 3a do Carmo, quando na realidade são de autoria de Felix Pereira Guimarães (1736-1809), dos poucos mestres escultores que são designados nominalmente, junto com suas esculturas, no Livro de Receita e Despesa desse tipo de associação, por 1777-1778 (ALVES, 1967, p. 56; OTT, 1947, p. 201). Essas imagens foram encarnadas pelo pintor, capitão Boaventura Álvares dos Santos (LIVRO DE RECEITA, 1777) e não foram consumidas pelo incêndio de 1788. *** Como Manoel Querino, os historiadores da arte posteriores buscaram incessantemente a autoria de obras de escultura, de pintura ou arquitetura. Na falta de indicadores, como documentação específica, passaram a repetir suas afirmações. E ainda, como ele, baseados em observações visuais, tentaram identificar semelhanças nas formas, na temática, nas cores, nos materiais, etc., e foram atribuindo as obras àqueles artistas cujos nomes foram mais divulgados. Como uns poucos nomes foram apontados na documentação, a esses atribuíram-se toda a produção artística que se supõe tenha sido feita na época em que viveram. É o caso específico de Francisco das Chagas, Manoel Inácio da Costa, Domingos Pereira Baião ou Félix Pereira Guimarães… Comprovando que, normalmente, não se designava o autor da maioria das esculturas, muitos nomes de escultores foram resgatados por Marieta Alves18, todos com dados muito restritos o que lhes valeu o esquecimento. Foram somente nomeados por Marieta Alves que, em outro trabalho, apontou ainda o nome de João José Cardoso. Todos se incumbiram de pequenas imagens de Cristo, anjos, figuras para procissões. Do levantamento que Marieta Alves realizou para seu Dicionário (1976, 210p.), assinalou apenas 38 escultores, entre 1589 e 1930 mais ou menos. Note-se que a relação dos esquecidos, acima, é grande - 22 - o que significa que apenas 16 seriam os mais conhecidos durante esse longo período. Os entalhadores somam 69, número bem superior ao de escultores se bem que alguns poucos acumulavam as duas funções. Se se comparar ao número de pintores - 119 - realmente o total de escultores, assim designados, é diminuto. O levantamento feito pela autora, evidentemente não abarcou todas as pessoas ativas. Registrou os dados que levantou durante as pesquisas que realizou em vida, sendo de notar o número elevado de ourives (314) contados entre os artistas e artífices19. Manoel Querino citou 16 escultores e destacou mais 11 que chamou de pequenos escultores (QUERINO, 1911, p. 11-42). 18 João Alves Carneiro (1713), oficial de escultor Antônio Duarte Meira (ativo em 1715}, Manoel Gonçalves Pinheiro (falecido 1745), José Antônio de Araújo Lobo (c. 1747-1817), Clemente dos Santos Marques (nascido c. 1750), Manoel Pedro de Barros (c. 1761-1772), José Eduardo Gracia (ativo c. 1777-1778), Pedro Nolasco (ativo c. 1779), Inácio Dias de Oliveira (natural de Matosinhos, morto em 1788}, José Joaquim de Moia (ativo em 1795), Arcanjo Rodrigues Ferreira (ativo em 1801), Luiz Teixeira Gomes (nascido cerca de 1802), Manoel Xavier dos Passos (ativo por 1807), Henrique da Penha Nogueira (nascido c. 1811), Manoel Ferreira da Moia (ativo em 1815), José Gregório Pita (ativo cerca de 1824), Estevão do Sacramento Rocha (ativo c. 1827, 1836), José Pereira de Almeida (morto em 1834), João Carlos do Sacramento (nascido c. 1836), Antônio Reduzindo (c. 1837-1864), João Guilherme da Rocha (fins do XIX e começos do XX). 19 Isso se explica por duas razões. Primeiro porque Marieta Alves foi uma das pesquisadoras que fez o levantamento sistemático dos ourives do ouro e da prata, entre 1725 e 1845, que resultou em publicação (REGISTRO, 1952, 107p) e, segundo, porque os ourives, O número diminuto de registro de nomes de escultores levou Marieta Alves a uma conclusão simplista: decididamente, os escultores eram relegados a plano inferior. Seus nomes quase nunca figuram nos documentos e notícias sobre imagens, como acabamos de provar, mais uma vez, ao transcrever o documento que se referia à feitura da imagem do Senhor da Paciência, da Matriz de São Pedro Velho, em que o nome do escultor não aparece, enquanto que, em outro documento, é nomeado o pintor que fez a encarnação e pintura, Albino Pereira de Sousa, em 181920. Essa ausência de nomes levou a autora a concluir, também, que Manoel Inácio da Costa foi o principal escultor da primeira metade do século XIX (ALVES, 1967, p. 59, 60) e, junto com Francisco das Chagas, os mais importantes mestres da imaginária baiana. São poucos escultores citados, mas houve muita produção. Basta colocar-se as imagens da Conceição, lado a lado, nos finais do século XVIII e princípios do XIX para se verificar a semelhança de composição, policromia, mudando apenas a decoração dos estofamentos que seguia a moda. As imagens foram reproduzidas em número muito grande, como acusam os documentos eclesiásticos e também os civis, como os Testamentos e Inventários que apontam as principais devoções dos diversos períodos. Por isso mesmo, a semelhança de formas não serve de parâmetro para identificação de autoria, vez que o próprio estilo barroco as determinava e que, embora não fossem oficiais mecânicos, seguiam-nos de perto, usando a cópia, como se disse, de modelos preexistentes. Já havia, no entanto, liberdade de criação, como consta do Termo de Rezolução que tomou a prezente meza, em mandar fazer a Imagem de N. Pe S. Domingos para o nosso Santuário em que o escultor Manoel Ignacio a quem esta Meza encarregou fazer a dª Imagem sendo esta de sette palmos e meio de altura e feita com toda a delicadeza, e aceio proprio a nossa encomenda, e gosto do dº escultor (IDEM, 1848, p. 61; IDEM, 1959). Mas o gosto do escultor era o barroco, presente nas obras de sua autoria. Muito embora os artistas, de longa data, tivessem desvinculado suas atividades daquelas dos artífices, continuaram na Bahia, a trabalhar dentro dos mesmos moldes dos ofícios mecânicos (FLEXOR, 1974, 90p.), montando oficina onde havia o mestre, oficiais e aprendizes e só se desvincularam dele quando, mais recentemente, se distinguiram dos operários. O próprio Manoel Inácio da Costa morava na Rua do Carro, onde tinha, em casa separada a tenda de minha oficina, declarou ele em seu testamento (COSTA, 1856). Nesse período, os pintores e escultores eram profissionais liberais, sem ter, ainda, essa designação, o que dificulta buscar-se dados mais concretos sobre o exercício de suas profissões, ao contrário dos oficiais mecânicos. O que os distinguia dos artífices era a falta de obrigatoriedade de ter carta de exame, pedir licença e pagar fiança na Câmara para poder exercer publicamente sua profissão. Só aos mestres era permitida a abertura de tenda. Oficina ou trabalhar publicamente , como se dizia. como foi dito, estavam obrigados, como se disse, a registrar suas marcas no Senado da Câmara para poder exercer suas funções, o que não acontecia com os escultores e pintores. 20 E em outra passagem: Não nos faltam notícias sôbre antigas esculturas executadas na Bahia em todo o século XVIII, falta-nos a indicação de seus autores, o que valorizaria sobremodo a informação. Dir-se-ia, hipótese absurda, que se calava, deliberadamente, o nome do artista escultor, cogitava Marieta Alves (1967, p. 51). Além da cópia de modelos que dificultam a identificação, deve-se considerar ainda que, com o transcorrer do tempo, as obras sofreram intervenções o que desqualifica a semelhança de cor, e até mesmo de forma, como critério de atribuição de autoria. A Nossa Senhora da Conceição, da Igreja de Santo Antonio da Barra, possuia repintura dos inícios do século XX. Pelo diagnóstico feito para intervenção verificou-se que toda policromia original tinha sido retirada. Por se tratar de imagem de culto, o Studio Argolo, restabeleceu, em 1996, a policromia original, do início dos oitocentos, que pode enganar o observador que a queira identificar e datar por esse critério. E as repinturas, estofamentos e reencarnações eram muito freqüentes. Em 1834, no ano seguinte à encomenda feita a Manoel Inácio da Costa, a Mesa da Ordem Terceira de São Francisco, aprovou que as imagens dos altares fossem reformadas de nova pintura e encarnação; e logo apareceo o artista - José da Costa Andrade, com quem s'ajustou para aprontar de tudo, assim como dous Anjos, e as sete Imagens... Eram elas, o próprio São Domingos, feito por Manoel Inácio, Santo Cristo, Nossa Senhora da Conceição, S. Francisco, Santa Isabel Rainha da Hungria, Santo Ivo, S. Luís Rei de França e os Anjos e o Crucificado da Capela-mor (ALVES, 1948, p. 6667; IDEM, 1959). Era uma prática antiga, pois assinala-se, nos meados do setecentos, o pintor Domingos da Costa Filgueiras encarnando algumas imagens de vulto, não designadas, cabeças e mãos das imagens dos Passos da Ordem 3a do Carmo (ALVES, .1976, p. 76-77). Como estas, todas as outras, de tempos em tempos, passavam por intervenções, devido às próprias exigências da Igreja de trazer suas imagens sempre em estado decente. Isto já era previsto pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707, que determinava: e as que (os Visitadores e mais Ministros) acharem mal, e indecentemente pintadas, ou envelhecidas, as farão tirar de taes lugares, e as mandarão enterrar nas Igrejas em lugares apartados das sepulturas dos defuntos... (CONSTITUIÇÕES, 1858, p. 258). Ou deviam ser queimadas. Os próprios escultores restauravam as esculturas, cabendo ainda ao pintor a encarnação. Para a inauguração da Casa dos Santos da Ordem 3ª de São Francisco. em 1849, as velhas imagens, que saiam na Procissão de Cinzas, foram reparadas pelo escultor Antônio de Sousa Paranhos, 29 ao todo, e encarnadas pelo pintor Querino da Silva (ALVES, 1958; IDEM, 1976, p. 74). Se as imagens não passaram por restaurações, eram substituídas. A imagem de Santo Antônio de Argüim, do conjunto franciscano, foi substituída por outra, de Santo Antônio de Lisboa antes da construção da atual Igreja e, uma outra vez, na segunda metade do setecentos, pela imagem atual. E isto sem se falar das reformas que os edifícios passaram com a febre do neoclassicismo ou entronização do Sagrado Coração de Jesus. Grande parte das imagens setecentistas, da Igreja da Ordem 3ª de São Domingos, que desapareceu com a reforma, de 1873, que a tornou inteiramente neoclássica. Outras intervenções em outros edifícios modificavam a aparência das imagens. Foi o caso do próprio Manoel Inácio da Costa que, como consultor e irmão terceiro, foi chamado a modernizar, isto é, tornar neoclássicas as obras barrocas da Ordem 3a de São Francisco, por ocasião da grande reforma por que passou aquele templo a partir de 1828. Em 1833 esse escultor foi encarregado de fazer a imagem de S. Domingos, ficando o dito Senhor. obrigado a desbastar o corpo dos mais Santos da nossa Igreja, ao gosto moderno, em razão de serem muito grosseiras (ALVES, 1948, p. 61; IDEM, 1976, p. 56). Parece que esse artista só desbastou, canhestramente, a imagem de São Francisco de Assis (foto 5) 21 e as demais só tiveram retirada a policromia, pois continuam, até o presente com as curvas e movimentos do panejamento exagerados do estilo barroco. Foram apenas reencarnadas e pintadas (foto 6). Da mesma forma, Pedro Ferreira dizia, em 1954, que em sua juventude, por 1924, cometera o erro, do qual se arrependia, ao modernizar a imagem de Nossa Senhora da Graça, da igreja do mesmo nome, de ter privado da rusticidade primitiva, suavizando-lhe as feições e compondolhe outra roupagem. (ARGOLO, 1997, p. 5). Era imagem do século XVII. Figura 6: Sâo Luís, Rei de França, século XVIII, Igreja da Orden Terceira de Sâo Francisco, Salvador / Bahía Apesar dessa documentação se referir à intervenções mais recente, a prática é antiga como mostra uma indicação do Livro de Receita e Despesa da Santa Casa de Misericórdia, referindo-se a José Antônio de Oliveira Braga que foi chamado, por 1743-1744, a aperfeiçoar a imagem do Santo Cristo do Consistório, hoje desaparecido (ALVES, 1959). Outra dificuldade para identificação refere-se à origem das imagens. Muitas vieram de Portugal. Sem se fazer uma análise da madeira empregada na estrutura das imagens não é possível determinar sua origem, pois reproduziam os mesmos modelos. Mesmo assim é um critério muito precário, 21 Querino atribuiu este São Francisco a Bento Sabino dos Reis. Ele data dos finais do século XVIII e é de autor desconhecido (QUERINO, 1913, p. 19). visto que grande quantidade de madeiras ia do Brasil para a Metrópole. Era costume enviar-se madeira a Portugal para que lá se executassem as imagens como fez a Mesa da Ordem 3ª do Carmo que, em 1674, que remeteu a madeira doada pelos irmãos Antônio da Costa Andrade e Nicolau Jorge, para a execução de uma imagem de Cristo sentado na pedra, de 7 palmos (ALVES, 1959). Também havia imagens feitas por portugueses radicados na Bahia, como Inácio Dias de Oliveira, admitido na Irmandade da Santa Casa em 1746, morador nas Portas do Carmo. Figura 7: Sâo Francisco de Assis, século XVIII, “modernizada” no século XIX, Igreja da Orden Terceira de Sâo Francisco, Salvador / Bahía A entronização das imagens nas igrejas tinha origens diversas: instituição de irmandade, patroacínio passado por escritura, solicitação especial feita por fieis, individuais ou em grupo, etc. Por exemplo: os literatos José da Gama Quaresma, Francisco Alvares da Torre, Tomé Teles de Maris, Inácio de Castro, Clemente de Carvalho e outros pediam, e foram atendidos, para introduzir a imagem de S. Tomás de Aquino, protetor da classe, em um dos altares da Igreja da Ordem 3ª de S. Domingos (ALVES, 15.9.1958, ALVES, 1967, p. 51), em 1735. Esta imagem é anônima, desapareceu, mas foi referida por Silva Campos (1941, p. 46). Por outro lado, as imagens tiveram origem em doações de particulares, feitas em função de filiação à Irmandade, devoção particular, promessa a determinado santo, etc., como o fez o irmão da Ordem 3ª de S. Domingos, em 1855, que doou uma imagem de Cristo muito bem guarnecida de prata à Igreja dessa Ordem (ALVES, 1950, p. 24). Em todos esses casos, dificilmente se poderá recuperar informações sobre sua autoria. Portanto, nem sempre, a aparência ou materiais podem dar alguma pista para a identificação das esculturas e, de forma alguma, deve-se utilizar a metodologia de Ott que afirmava que a mingua de documentos comprobatórios poderíamos, por comparação, chegar a saber se a imagem do Senhor da Redenção, existente na igreja do Corpo Santo, assim como outras imagens do mesmo gênero que se encontram nas igrejas do Desterro e da Ajuda, são da autoria do mesmo Chagas (OTT, 1947, p. 202). *** Tornando à problemática do trabalho coletivo deve-se ressaltar, ainda uma vez, que os trabalhos dos entalhadores, escultores e pintores estavam intimamente ligados. Os pintores, além das obras tradicionais de pintura, encarnavam e, tanto pintavam e douravam imagens, quanto as talhas, molduras de painéis, retábulos, emblemas, urnas, grades, etc. preparavam andores para procissões, figuras, pendões, tochas, restauravam pinturas, douravam ou prateavam castiçais, simalhas, sanefas, jarrinhas. Por 1756 houve um ajuste, que consta do Livro de Termos e Resoluções da Ordem 3ª do Carmo, 1745-1793, por onde se sabe que o pintor Domingos da Costa Filgueira encarnou imagens de vulto, cabeças e mãos das figuras que se destinavam aos Passos da Quaresma. Segundo Marieta Alves, esta é a notícia mais antiga que encontramos sobre o pintor de teto da Igreja de N. Senhora da Saúde e Glória, obra executada muitos anos depois, em 1769 (ALVES, 1960). Ainda no século XIX a prática continuava, pois o pintor e dourador Manoel Joaquim Lino dourou as talhas do interior da Igreja do Convento do Desterro e as do corpo da Igreja do Pilar e da Casa dos Santos (Capela do Noviciado) da Ordem 3ª de São Francisco (ALVES, 1976, p. 94). O pintor Querino da Silva, em 1849, encarnou e pintou as imagens da Casa dos Santos da Ordem franciscana e mais 14 imagens, inclusive a da antiga imagem da padroeira do Convento do Desterro (ALVES, 1976, p. 173). Os escultores entalhavam imagens, talhas, retábulos, castiçais, móveis, vestiam figuras para procissões (ALVES, 1967, p. 55). Feliciano de Sousa de Aguiar incumbiu-se, em 1797, da armação dos andores e fez figuras e anjos para a procissão de Cinzas. Para outra procissão, a de reabertura da Igreja da Ordem 3ª do Carmo depois do incêndio, em 11 de setembro de 1803, vestiu as figuras que tomaram parte da mesma (IDEM, 1976, p. 18). Da mesma forma Feliciano de Sousa de Aguiar (17… - 1838) renovou imagens dos altares da Ordem 3ª do Carmo (IDEM, 1976, p. 18). O próprio Manoel Inácio da Costa consertou imagens e fez pequenos trabalhos para as Igrejas do Convento do Desterro e da Saúde e Glória (IDEM, 1959). Além do mais, século XVIII e parte do XIX, a nenhum artista, enfim nenhum personagem social, era permitida a notoriedade individual, sob pena de ser apontado como régulo, ainda mais em se tratando de negros e mulatos, portanto o culto à personalidade, a não ser a do Rei, não fazia parte desse mundo luso setecentista22, mais uma razão para não se buscar gênios entre os escultores baianos. 22 O mérito era reconhecido pelos serviços prestados ao Rei e ligados aos feitos militares e administrativos superiores e jamais artísticos a não ser que estivessem ligados ao militar, como os engenheiros. A escolha do mestre para executar a obra não levava em conta a fama, importância social, mas, no geral era feita, por concorrência23 , a lanços, ganhando o que oferecia o preço mais módico, sendo feito contrato24, muitas vezes registrado em cartório, indo o tabelião ao encontro dos interessados. Outras vezes firmava-se contrato entre as partes interessadas, sempre com a presença de testemunhas. Neste caso a escolha do mestre podia ser direta, baseada na qualidade do trabalho já conhecido. Seguia-se o mesmo ritual de assinatura de contrato para garantir a execução, de acordo da encomenda e dentro do tempo previsto, sobretudo considerando que, quando se encomendava qualquer imagem, tinha-se em mente um festejo, a entronização em algum altar, a renovação parcial ou total do seu altar. Considerava-se, sobretudo, que haviam outros mestres de outras atividades, que deviam intervir na mesma imagem. Os interessados eram chamados perante as Mesas administrativas das Irmandades ou estas encarregavam um dos Irmãos para efetuar os trâmites legais para a realização da obra. O fato de pertencer a uma Irmandade não garantia a escolha para a execução de obras, a não ser quando gratuitas ou sendo produto de doação. Felix Pereira Guimarães fez obras para a Santa Casa, para a Ordem 3ª do Carmo, embora pertencesse a Ordem 3ª de São Francisco para quem ofereceu, em 1763, a Árvore do Paraíso para sair na Procissão de Cinzas, realizada por aquela Ordem (ALVES, 1958). Feliciano de Sousa de Aguiar pertencia aos quadros sociais da Santa Casa, era irmão da Ordem 3ª do Carmo e fez, também, vários trabalhos para a Ordem 3ª franciscana (IDEM, 1959; 1960). A produção de imagens, na Bahia, foi muito grande no período enfocado. Elas povoavam não só os altares, tribunas, nichos, retábulos, colunas das igrejas, como também eram resguardadas em casas de santos, especialmente as procissionais, em geral de vestir, e nos oratórios domésticos. Pelos inventários dos bens deixados pelos baianos percebe-se que nenhuma residência deixou de ter seu oratório, indo do pequeno até ao de dizer missa, povoado de imagens, especialmente o Cristo Crucificado, Nossa Senhora da Conceição, Santana, Santo Antônio, São Francisco, São José e o Menino Deus e as devoções particulares dos donos. Porém, como se viu, são pouquíssimas as imagens identificadas e a maioria delas já não está nas igrejas ou museus e aquelas que estão disponíveis à visibilidade atualmente são, na maioria, anônimas, de autores desconhecidos modernizadas, ou reencarnadas ou foram trocadas por outras mais recentes. Se está aprofundando o estudo, que já mereceu algumas comunicações e trabalhos 25, mas se procura divulgar, cada vez mais, tentando desfazer as 23 Termo de ajuste que se fez pela Meza da Venerável Ordem 3ª do Carmo com Francisco das Chagas - Mestre escultor para a factura de trez Imagens que se manda fazer para a Procissão do enterro do Senhor. 24 Nesse contrato o mestre assinava termo e se comprometia fazer a obra por preço módico, com as características ou risco e materiais indicados, a dar a obra limpa e com perfeição, hipotecando, ele e seus herdeiros, todos seus bens. ALVES, 1960. 25 FLEXOR, Maria Helena Ochi. Autorias e atribuições: a escultura na Bahia dos séculos XVIII e XIX. In: Mvsev, Porto, V série, nº 7, p. 175-215, 1998; IDEM. A escultura na Bahia do século XVIII: autorias e atribuições. A Cor das Letras , Feira de Santana, nº 2, p. 129135, dez. 1998; IDEM. Historiografia da arte na Bahia: Manoel R. 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