Subido por Joseph Conrad

A Dialetica da Historia - Vol1 Sinfonia Desencontrada

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WLADIMIR POMAR
A Dialética da
História
Volume 1
Sinfonia Desencontrada
1a edição
São Paulo, 2011
Copyright©
Wladimir Ventura Torres Pomar
Coordenação editorial
Valter Pomar
Diagramação
Sandra Luiz Alves
Índice
Apresentação ....................................................... 5
A síndrome dos dinossauros .............................. 12
Origem e desvios ............................................... 30
História e mudança ........................................... 45
Justificando a viagem ........................................ 63
Sobre o autor ..................................................... 82
Apresentação
O presente texto é o primeiro de uma série, cujo título geral será
A Dialética da História. Nesta série pretendo discutir a história, não
como estudo e relato do processo de mudanças exclusivamente humanas, mas como estudo do processo de mudanças, modificações,
mutações, transformações, ou metamorfoses, que ocorrem em todos os aspectos da natureza, embora ainda não conheçamos devidamente todos esses aspectos e, talvez, nunca venhamos a conhecê-los
totalmente.
Em síntese, procuro retomar a discussão sobre a dialética. Este
método, surgido na antiguidade clássica grega e chinesa, foi posteriormente retomado por Hegel e revirado de cabeça para cima por
Marx e Engels. A partir daí, um sem-número dos adeptos do marxismo preferiu tomar a dialética como uma doutrina, ao ponto de
Marx, em certo momento, ter afirmado não ser marxista.
Cerca de 150 anos depois, com a crise do socialismo, a dialética
foi relegada a um plano secundário, ou simplesmente deixada de
lado, tanto por marxistas, quanto por anti-marxistas. Deixou de ser
tida como um instrumento de análise, seja dos fenômenos da natureza, seja do desenvolvimento social. E passou a ser considerada,
progressivamente, como ideologia, ou um simples artifício descritivo, desprovido de sentido, criado pelo pensamento humano.
A dialética se tornou, assim, praticamente desconhecida dos ativistas sociais e políticos, e da maior parte dos cientistas. Em tais
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condições, providos de métodos de pesquisa pouco condizentes com
o processo de evolução e desenvolvimento da realidade social e natural, uns e outros têm produzido análises incompletas e pouco consistentes. Isto, justamente no momento em que a história ingressa
não só numa fase avançada de desenvolvimento das forças produtivas sociais e das contradições de classe, mas também das contradições dos homens com a natureza. Ou seja, justamente no momento
histórico em que, talvez, mais necessitemos de um instrumento de
análise do porte da dialética.
Por outro lado, além das vicissitudes da própria dialética, é necessário reconhecer que muita gente põe em dúvida que a natureza
se movimente dialeticamente. E que o pensamento, para refletir
aproximadamente a realidade, também deva ser dialético. Isto é, que
o pensamento deva ser o reflexo do movimento das contradições
que aparecem em todas as partes da natureza e que, num contínuo
conflito e unidade ou fusão entre seus opostos, conduza a formas
superiores de existência.
Em virtude disso tudo, pretendo retomar o argumento de que a
natureza e sua história se movem dialeticamente, com leis gerais
próprias, geradas por todas as formas específicas de movimento,
sejam mecânicas, físicas, químicas, biológicas ou sociais. Concordo,
pois, com Engels, para quem a dialética tem apenas por incumbência estudar as leis gerais decorrentes da dinâmica e do desenvolvimento da natureza e do pensamento.
Busco reafirmar que as leis dialéticas ou gerais decorrem daquele
processo natural de mudanças que compõem a história. Elas são
extraídas da história da natureza e da história humana, histórias
entrelaçadas e interdependentes, cujo conhecimento é essencial para
analisar as diferentes formas através das quais a natureza e os ho-
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mens se movem. Desse modo, o problema consiste não em impor à
natureza leis dialéticas predeterminadas, mas em descobri-las e
desenvolvê-las, partindo da própria natureza. Os princípios não são o
ponto de partida da investigação, mas seus resultados finais. Eles não
se aplicam à natureza e à história humana, mas delas são extraídas.
Em seu rascunho sobre a Dialética da Natureza, Engels acreditava que as leis dialéticas, conforme estabelecidas por Hegel, poderiam ser reduzidas a três: transformação da quantidade em qualidade, e vice-versa; interpenetração ou unidade e luta entre os contrários, ou lei da contradição; e negação da negação. Bento Caraça,
por seu lado, reduziu ainda mais a realidade a duas características
fundamentais: a interdependência e a fluência. Todos os aspectos
da realidade, em virtude disso, evoluiriam e se transformariam.
Hoje, com os avanços das ciências, com as experiências do desenvolvimento social e humano, e com as controvérsias geradas pelo
próprio conceito de dialética, talvez se deva considerar como suas
características fundamentais o movimento, em todas as suas formas; as contradições, ou a interpenetração, ou unidade e luta entre
os contrários, ou opostos; as mudanças, mutações ou transformações da quantidade em qualidade, e vice-versa; a interdependência
entre todos os aspectos da realidade, portanto entre as contradições
internas e seu meio ambiente; a negação da negação como instrumento de solução das contradições; a reprodução ampliada, sem a
qual um dos aspectos da contradição começa seu declínio; e o desenvolvimento desigual das diversas formas de movimento da matéria, fazendo com que cada história particular seja composta de várias histórias aparentemente desencontradas.
Nessas condições, ainda de acordo com Engels, uma concepção
da história, ao mesmo tempo dialética e materialista, exige o conhe-
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cimento das matemáticas e das ciências naturais. Reforçando essa
exigência e complicando o assunto, o físico Stephen Hawking assevera que no século 21 a ciência se tornou tão técnica que somente
um pequeno número de especialistas seria capaz de dominar a matemática necessária para lidar com ela. É evidente que isso me pareceu um desafio idêntico ao que os filósofos naturais enfrentaram há
mais de 2500 anos atrás. O que, de cara, me deu vontade de desistir.
Por sorte, o mesmo Hawking admitiu que, naturalmente, as idéias
básicas com relação às origens e ao destino do universo podem ser
consideradas sem o uso da matemática, de maneira que pessoas sem
formação científica possam compreendê-las. Einstein também havia dito algo idêntico. Mas é evidente que ambos esqueceram de dizer
que a dificuldade em compreender a ciência contemporânea não está
apenas na tecnicidade da matemática, ou da física, química, biologia
ou outras subdivisões em que elas se fragmentaram. Infelizmente está
também na tecnicidade, muitas vezes rebuscada, parecendo uma sinfonia desencontrada, da linguagem que os cientistas utilizam
comumente para tentar explicar suas hipóteses e comprovações.
De qualquer modo, como eles abriram a brecha para pessoas sem
formação científica explicarem a origem e a evolução histórica do
universo, decidi aproveitá-la. O que exigiu de mim voltar a estudar
as diversas ciências que procuram explicar o universo, as galáxias,
as estrelas, os planetas, os átomos, as partículas, a vida, a humanidade e a sociedade.
Aos poucos me convenci que talvez não seja tão difícil decifrar a
noção física de que a luz pode ser refletida por um meio com um
índice de refração. Como afirmou o físico e matemático Richard
Feymann, isto poderia ser dito, mais simplesmente, afirmando que
a luz pode ser refletida pela água e outros materiais que possuam
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idêntica capacidade de reflexão. O mesmo deve ocorrer com o conceito de direção da luz, que poderia ser explicitado, mais simplesmente, dizendo que a direção da luz depende da posição em que
alguém está olhando.
São esses os pressupostos que orientam esta série, que começa
com o subtítulo Volume 1: Sinfonia Desencontrada. Espero que, na
descrição de cada capítulo, os leitores possam perceber naturalmente
a presença daquelas leis dialéticas listadas acima. E que desculpem
minha necessidade de enfatizar tal presença, através de uma, ou mais
de uma, de suas características marcantes, diante daquelas concepções que as negam, de uma forma ou de outra.
Neste primeiro volume, além desta apresentação, constam quatro capítulos: Síndrome dos Dinossauros, Origens e Desvios, História e Mudanças, e Justificando a Viagem. A Síndrome dos
Dinossauros trata da contradição do conceito da história como história humana e, ao mesmo tempo, como história da mudança no
tempo, e de como o evento da extinção dos dinossauros colocou em
xeque o conceito de história como algo exclusivamente humano.
Em Origem e Desvios, tento fazer um voo de pássaro sobre a origem e a evolução da narrativa histórica desde a antiguidade grega e
chinesa, mostrando como, ainda hoje, permanece como força invejável a crença de que se vive uma eterna repetição e de que as mudanças seriam uma simples aparência.
Em História e Mudanças, procuro resgatar, também desde a antiguidade grega e chinesa, os pensadores que introduziram, cada um a
seu modo, o conceito de mutação, ou de mudança, em oposição à idéia
da imutabilidade histórica. E, em Justificando a Viagem, sugerimos
que a humanidade alcançou um ponto de desenvolvimento científico e
tecnológico de tal ordem que já permite a alguém se embrenhar, ao
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mesmo tempo, pelas profundezas mais longínquas do universo e pelo
mundo nano ou microscópico das partículas atômicas.
Com isso, penso retomar o debate sobre a dialética e a história
através de uma espécie de viagem virtual, utilizando-me dos conhecimentos e das diversas teorias que a sociedade humana moderna produziu. Primeiro, até a origem do universo atual. Depois,
de volta pelo menos até a civilização humana atual.
Serão, ao todo, mais dez volumes, cujos subtítulos preliminares, na falta de outros mais criativos, serão Redescobrindo o Mundo, Caminhos das Ciências, Viagem ao Início do Tempo,
Brotamento da Vida, Evolução da Vida, Surgimento do Homem,
Privatização Humana, Servidão Humana, Retardatários e Socialização Humana, cada um dos quais com cinco ou seis capítulos.
Talvez eu nem sempre tenha sido capaz de adaptar vários termos científicos à linguagem corrente. Ou, em vários outros casos,
tenha escorregado em agressões involuntárias aos preceitos
conceituais utilizados pelos cientistas. De qualquer modo, o que
está dito nos textos será, apenas, o que tentei saber do conhecimento acumulado por outros autores nas diversas ciências. Tudo,
com o objetivo de colocar em evidência o sentido histórico e
dialético, da natureza e da sociedade humana, em suas relações
internas e externas.
Também por isso, como tais textos de destinam a um público
amplo e diversificado, me abstive de citar, em notas de rodapé, as
pessoas associadas às idéias descritas, assumindo de antemão toda
a responsabilidade por qualquer deslize involuntário a tais idéias.
Na medida do possível, procurei observar o alerta de Feymann,
segundo o qual a verdade emergirá se levarmos em conta que são
os fenômenos da natureza que confirmam ou desabonam as teori-
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as. Nesse sentido, ele concordou plenamente, mesmo sem o saber,
com o que disse Engels mais de um século atrás.
Em outras palavras, não são os fenômenos da natureza e da sociedade que se adaptam às teorias. São as teorias que precisam
adaptar-se aos fenômenos naturais e sociais para serem consideradas verdadeiras. Esta talvez seja a lei dialética mais geral a ser
observada por todos que pretendam, como cientistas ou ativistas
da natureza e da sociedade, agir sobre elas.
Setembro de 2011
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A síndrome dos dinossauros
Sempre estranhei que alguns historiadores tomassem, como ponto
de partida da história brasileira, a descoberta ou ocupação portuguesa do território, em 1500. Os povos indígenas que ocupavam esse
território, pelo menos desde 11 mil anos atrás (alguns acreditam que
eles já estavam aqui há mais de 40 mil anos), em geral não são considerados como parte do que ocorreu a partir da chegada dos europeus ao Novo Mundo.
Além disso, por incrível que pareça, o holocausto dessas populações indígenas, durante mais de 300 anos de colonização européia e
quase 200 anos de independência, aparece como tendo sido resultado de um processo natural de falta de adaptação aos novos tempos. Eles estariam despreparados para a chegada da civilização.
Como decorrência, muitos historiadores sequer os incluem como parte do projeto escravista da Coroa portuguesa.
Essa estranheza aumentou ainda mais quando resolvi escrever
sobre o desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Ao escarafunchar
textos de diferentes autores, descobri que, além de ignorar ou tomar
como irrelevante a história anterior, algumas vezes chamada de préhistória americana, ou pré-colombiana, nossa história é contada
de forma toda fragmentada e com sérias lacunas quanto às relações
de seus diferentes aspectos.
Nela se desconsidera, por exemplo, quase totalmente como os homens sobreviviam, seja diante da natureza, seja diante de seus se-
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melhantes. A produção da própria sobrevivência e das condições materiais e espirituais da reprodução humana são quase sempre dissolvidas nos aspectos gerais da vida de cada momento, ou concentradas principalmente nas figuras de algumas personalidades.
Tudo parece como em alguns filmes, nos quais os homens não se
preocupam com o trabalho, nem com a organização da produção. A
comida e o vestuário estão sempre à disposição, mesmo que não se
saiba de onde vieram. O que importa mesmo são os revólveres e
winchesters, maravilhosos, que jorram balas que nunca terminam,
por mais tiros que dêem. Para que perder tempo com algo aparentemente sem importância, como os problemas do trabalho, da produção, e das relações que tais necessidades impõem aos homens?
Como decorrência, as análises de categorias históricas como formação econômico-social, modo de produção, forças produtivas, relações de produção e classes sociais, são quase inexistentes na narração histórica da sociedade que se formou no processo de colonização portuguesa. Na melhor das hipóteses, o que se tem é um agregado geográfico e populacional, de onde emergem relações culturais e
políticas que parecem não ter raízes sociais e econômicas.
Talvez isso ocorra porque cada historiador tem sua própria versão do que é a história, qual seu objeto, e como ela evolui. Constatei
que, muitas vezes, se confunde o processo histórico real com a narração ou a explicação do que se considera tal processo. É provável
que, no caso da língua portuguesa e algumas outras, a utilização de
uma única palavra – história – tanto para o processo real de mudanças, quanto para sua narração, mesmo que a narração não
corresponda ao real, seja um empecilho para uma melhor definição.
Além disso, boa parte dos narradores parece concordar com o
historiador francês Marc Bloch (1886-1944) que, como combatente
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anti-fascista, morreu fuzilado pelos nazistas, durante a segunda guerra mundial. Para ele, história seria tão somente a história dos homens no tempo. Os fatos históricos seriam, nada mais nada menos,
do que fatos humanos. A natureza e as ciências naturais não seriam
objetos da história. Aliás, para muitos, é uma aberração supor que a
natureza tenha história. Para outros, a natureza faria parte de uma
história natural, mas esta teria pouca ou quase nenhuma relação
com a verdadeira história, a história humana.
Mas, há sempre um mas. O próprio Bloch afirmava que a história é a ciência do tempo e da mudança. Comecei, então, a me perguntar se a história dos homens no tempo seria a mesma coisa que a
ciência do tempo e da mudança. Como reduzir a história do tempo
e da mudança à história dos homens? Como fica, diante da história
dos homens, a teoria de Darwin e sua conclusão de que os homens
descendem de algum tipo de macaco?
Os macacos ancestrais fazem ou não parte da história dos homens? E se os macacos, por sua vez, descendem de algum outro tipo
de mamífero, este será ou não parte da história humana? E se os
mamíferos, por seu turno, descenderem de algum outro tipo de vertebrado? Assim, se formos seguir a longa cadeia evolutiva e de seleção natural dos seres vivos, dos quais os homens descendem, essa
cadeia faz ou não parte da história? Diante dessas questões, como
fica a teoria de que a história se relaciona apenas aos homens?
Apesar disso, no frigir dos ovos, a maioria esmagadora dos historiadores parece concordar que os fatos históricos seriam, apenas,
fatos humanos. Entre eles, por um lado, há os que postulam a história como história dos homens no tempo. Isto é, a história ocorre
porque há mudanças de diferentes tipos, marcadas por idades, culturas e épocas. Por outro lado, há os que continuam acreditando na
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invariabilidade da sociedade humana, sua história sendo uma eterna repetição de fatos e acontecimentos.
Há, portanto, consenso entre eles quanto à exclusividade histórica dos humanos, mas divergências quanto às mudanças no tempo,
divergências que desbordam também para outros temas. Os fatos
humanos seriam essencialmente fatos culturais? Econômicos? Políticos? Ou o que ocorre é uma multiplicidade de fatos? Qual a relação
entre os diferentes fatos humanos? Como encarar o tempo histórico
humano, o presente, o passado, e o futuro?
Desse modo, todos simplesmente desconsideram a natureza, aqui
compreendida como natureza terrestre e natureza universal. Ainda
hoje, parecem amarrados ao período histórico de mais de mil anos
atrás, que se caracterizou pela concepção de que a natureza era invariável. O Sol, as estrelas, os planetas e demais corpos celestes,
assim como a geografia, a flora e a fauna terrestres existiriam da
mesma forma, desde o começo dos tempos. E este começo teria não
mais do que 4400 anos.
É verdade que alguns gregos e chineses da antiguidade se aventuraram a dizer que a natureza terrestre sofria mudanças, e que tudo
estava em movimento. Eles, porém, não possuíam ainda elementos
de prova para demonstrar suas teorias. Para superar questões relativamente mais simples, como colocar a Terra e os planetas girando
em torno do Sol, mostrar que a Terra tinha, ela própria, um movimento rotativo, e que o movimento em torno do Sol não era circular,
mas elíptico, foram necessários cerca de 1800 anos após Aristóteles
(300 a.c.), e 1400 anos após Cláudio Ptolomeu (100-170).
Imagine-se, então, a dificuldade para mostrar que as demais criações, tidas como divinas, eternas e invariáveis, eram criações históricas
naturais e sofriam mudanças constantes. Para chegar a tal ponto foi
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necessário que os chamados naturalistas, ou filósofos naturais, coletassem e classificassem informações e dados durante cerca de dois mil
anos. Mesmo Lineu, em 1750, ao admitir que poderiam surgir novas
espécies de plantas, apenas as admitiu como resultado de cruzamentos
espacialmente restritos. Para ele, novas espécies eram somente uma
possibilidade espacial. Não lhe passou pela cabeça que elas fossem o
resultado de mudanças e desenvolvimento no tempo. Mudanças como
desenvolvimento histórico natural estavam fora da sua percepção.
Apesar dessa dificuldade, em grande parte religiosa, alguns dos
filósofos naturais, que permearam a história da humanidade ocidental entre os séculos 15 e 19, retomaram o pensamento dos antigos dialéticos gregos e começaram a tratar a natureza como uma
criação histórica. Com isso, criaram as bases para o surgimento das
ciências, fazendo com que o conhecimento humano desse um salto,
e que a Idade Média parecesse uma Idade de Trevas.
No entanto, o caminho posterior não se viu livre dos obstáculos
representados pelas idéias de invariabilidade, imutabilidade, eternidade e de um universo formado por corpos estáticos. Veremos, em
outros locais, como essas idéias ainda hoje reaparecem, especialmente naquelas ciências que, ao contrário da química, necessitam isolar e
colocar em repouso os corpos ou fenômenos, para estudar suas propriedades sem as interferências de corpos ou fenômenos externos.
Além disso, enquanto os filósofos da antiguidade e, especialmente, da modernidade pós-século 15, tratavam do humano em sua relação com a natureza, os filósofos da atualidade não conseguem mais
acompanhar a evolução das ciências da natureza e das próprias ciências sociais. À medida que as sociedades humanas se tornaram
mais complexas, e que as ciências se desenvolveram não apenas em
quantidade, mas também em complexidade e em especialização, os
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filósofos passaram a se voltar, cada vez mais, para os aspectos humanos comportamentais. De tal modo que Ludwig Wittgeinstein
(1889-1951), tido por alguns como o mais famoso pensador do século 20, chegou a admitir que a única tarefa que sobrou para a filosofia
teria sido a análise da linguagem.
Assim, parece natural que a maioria dos historiadores continue
evitando debruçar-se sobre a história da natureza, na suposição de
que ela não acrescenta nada à história humana. Deixam isso, como
exercícios teóricos, supostamente inúteis, para astrônomos, físicos,
astrofísicos, químicos, geólogos, biólogos, arqueólogos, paleontólogos e outros naturalistas.
Sofrem, como todos os outros homens vivos, a pressão da conexão existente entre as diversas gerações humanas e a subordinação
das novas gerações às antigas. Sem libertar-se da obrigação de carregar o legado dos mortos, por mais pesado que ele seja, alguns historiadores tendem a tratar os cientistas da natureza como alienados, à parte dos problemas e das preocupações humanas. Para alguns, arqueólogos e paleontólogos não passariam de inúteis caçadores de ossos.
No entanto, a humanidade se vê cada vez mais obrigada a entender a história de sua ação em conexão com a história natural. A química e a geologia já têm uma longa e evidente tradição de participação no metabolismo entre os homens e a natureza. A geologia é responsável não só pelo estudo da estrutura da Terra, mas também pela
descoberta da deriva continental e das jazidas minerais e energéticas. Aliada à química, permitiu que esta se tornasse uma das principais responsáveis pelos avanços de diversos ramos técnicos dos meios
de vida humana, a exemplo da metalurgia, farmácia, medicina, alimentos, tecelagem, petroquímica e plásticos.
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Embora a participação da física nem sempre fique claramente
definida, muitas pessoas já se aperceberam de seu papel no uso e desenvolvimento da mecânica dos sólidos, dos líquidos e dos gases, da
aeronáutica, das energias elétrica, eólica, atômica, solar e das marés,
dos aparelhos eletromecânicos, telecomunicações, informática, automação, robótica e outras áreas importantes da vida cotidiana.
O mesmo ocorre com a biologia e suas ramificações científicas no
âmbito da medicina, agricultura, pecuária, silvicultura e ecologia. A
arqueologia e a paleontologia, tendo por base os estudos geológicos
e, por auxiliares essenciais outros ramos das ciências naturais, a cada
dia acrescentam novos dados factuais sobre a evolução histórica articulada dos homens e da natureza.
Passo a passo, principalmente diante das mudanças climáticas e
da poluição, que afetam cada vez mais a vida humana sobre o globo,
cresce o número dos que se dão conta de que é difícil desconsiderar
que a natureza não-humana, ou inanimada, tem participação, tanto à
parte, quanto paralela e intrincada, com a ação e a vontade humanas.
Durante centenas de milhões de anos, a transformação dos restos orgânicos em óleo e gás metano processou-se naturalmente, nada
tendo a ver com a ação do homem, mesmo porque o homem simplesmente ainda não surgira sobre a Terra. Durante milhões ou bilhões de anos, as atividades vulcânicas e também dos seres vivos
pré-humanos emitiram dióxido de carbono para a atmosfera terrestre, contribuindo para diferentes modificações no ambiente terrestre. Esses processos naturais continuam ocorrendo, embora possam
ter mudado sua escala e suas formas.
Assim, a natureza, em seu sentido estrito, realiza infinitas mudanças ou transformações de desenvolvimento, de elementos simples para complexos, e de complexos para simples num processo
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que inclui dissociações, associações, destruições, criações etc. Em
grande parte, sem que o homem tenha qualquer poder ou ação sobre elas. A própria vida surgiu de um processo de desenvolvimento
natural, bem antes do surgimento de algo tão complexo como os
antropóides e, depois, os homens.
O que há de novo na história da natureza, pelo menos da natureza terrestre, não é apenas a continuidade das transformações naturais, incidindo fortemente sobre a ação dos homens. Há, principalmente, o fato de que a ação humana passou a incidir fortemente
sobre as condições naturais de sua sobrevivência. A continuidade
da evolução humana parece depender, mais e mais, da natureza terrestre e, talvez, da natureza sideral. Irônica e, às vezes, sarcasticamente, a natureza obriga a história dos homens no tempo a buscar,
nela e em sua história, cada vez mais, as respostas, tanto para os
problemas que os próprios homens infligiram a ela, quanto para as
mudanças que parecem resultar da evolução histórica natural da
Terra e do universo.
Nessas condições, pode-se desconsiderar o desenvolvimento natural, esse processo de mudanças ou transformação da natureza por
seus próprios meios, meios que aos poucos vão sendo descobertos e
conhecidos pelos homens, como história da natureza? Diante de
tantas evidências de uma história natural, da qual os homens fazem
parte, pode-se deixar a história como exclusividade humana?
A história humana já vinha sendo constrangida a incluir em sua
grade temporal os hominídeos, assim como os primatas que os antecederam. Não havia outro meio de explicar suas origens, e entender como os primatas e os hominídeos se relacionaram com a natureza circundante ao longo do tempo. É verdade que existe gente que
explica a presença dos homens na Terra pela ação de extraterres-
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tres, ou por desígnios divinos. Na hipótese da ação de extraterrestres, certamente nos confrontaríamos com o enigma de sua origem
no planeta e na galáxia onde se desenvolveram. No caso dos desígnios divinos, estaríamos diante de um axioma, que dispensaria demonstração.
Porém, mesmo ai, os rastros dos homens primitivos, assim como
de animais que viveram há milhões e bilhões de anos, recolhidos
por geólogos, arqueólogos e paleontólogos, recolocam, a cada dia,
novas indagações para os historiadores da vida humana. Eles nos
obrigam a procurar a origem do homem e de seus ancestrais em
algum lugar do tempo passado, onde a natureza sem os homens era
soberana. Como fazer? Desprezar como história o tempo e a mudança da natureza, tanto da terrestre, quanto da universal, da qual
os homens fazem parte?
Por mais estranho que pareça, não foram cientistas e historiadores que colocaram em dúvida, para o grande público, essas noções
de história imutável e de história exclusivamente humana. Sem que
a maior parte das pessoas se apercebesse da contradição presente
no fato, isso começou a ocorrer quando os dinossauros viraram moda
humana, há mais de cem anos.
Esses répteis, que viveram entre 170 e 65 milhões de anos atrás,
passaram a atrair crescente atenção, em virtude das progressivas
descobertas de seus fósseis, a partir de metade do século 19, sendo
popularizados tanto pela imprensa escrita, quanto pelo cinema. Primeiro foram encontrados fósseis de Tyrannosaurus rex, um
dinossauro gigante, na Europa e na América do Norte. Depois, nos
anos 1920, ocorreu um novo surto de descobertas na Mongólia. O
que atiçou ainda mais o interesse por esses animais, que não faziam
parte da lista dos pares salvos pela Arca de Noé, durante o dilúvio
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bíblico que teria coberto a Terra. Em 1930, apareceram os primeiros filmes tendo o Tyrannosaurus como um dos astros principais.
Nos anos 1980 e 1990 foram descobertos na Argentina, China e
África Ocidental, dinossauros ainda maiores dos que os encontrados anteriormente. Os Saurópodes, herbívoros de pescoço longo,
achados na América do Sul, rivalizam em tamanho com as grandes
baleias da atualidade. Por outro lado, na China foram localizados
fósseis de pequenos dinossauros carnívoros.
Portanto, os dinossauros ocorreram em todos os continentes. As
sucessivas descobertas estimularam a crescente divulgação sobre sua
existência, milhões de anos no passado. Revistas, livros, filmes e
outras formas de divulgação transformaram os grandes dinossauros
numa verdadeira síndrome, capaz de seduzir tanto às crianças, quanto aos adultos. Síndrome hoje alimentada pela hipótese de que, com
a engenharia genética, seja possível reproduzi-los e colocá-los em
parques especiais.
O mais interessante dessa síndrome é que ela destrona o conceito de que a história seja apenas a história dos homens no tempo,
apesar de centrar-se na hipótese de que os dinossauros foram extintos, há 65 milhões de anos, não por sua evolução histórica natural,
mas em virtude da queda de um meteoro na península de Yucatan,
no México.
A partir da descoberta da existência de uma camada geológica de
irídio, relativamente grande, em algumas regiões da Itália, Dinamarca e Nova Zelândia, o geólogo Walter Alvarez concluiu que um meteoro, com diâmetro superior a 10 km, teria atingido a Terra, há 65
milhões de anos. Sua dedução teve por base três fatos articulados.
Primeiro, o irídio é um metal raro, geralmente associado à queda de
asteróides na Terra. Segundo, as camadas geológicas de irídio esta-
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vam incrustadas em camadas de calcário de 65 milhões de anos. Terceiro, a queda de um asteróide com aquele diâmetro teria causado
uma explosão equivalente a um milhão de toneladas de dinamite.
Ora, uma explosão dessa envergadura teria gerado uma nuvem
de poeira e gases com capacidade de se espalhar sobre todo o globo
através das camadas superiores da atmosfera. Sob tais condições, a
luz solar teria sido impedida de atingir o solo terrestre por muitos
anos, enquanto fragmentos incandescentes teriam caído por todo o
mundo, matando todos os animais terrestres grandes demais para
se abrigarem.
A localização da área de impacto na costa do Yucatan, no México,
onde existe uma cratera de meteorito de 200 km de diâmetro, tornou a hipótese de Alvarez uma certeza para muitos cientistas. Para
o que nos interessa, no momento, talvez pouco importe que essa
hipótese se transforme em certeza absoluta. Ela tem a vantagem de
jogar a história para um tempo em que o homem ainda não estava
presente na face da Terra.
É até possível que a extinção dos grandes dinossauros tenha ocorrido com o auxílio desse evento extraterrestre. Da mesma forma que
eventos do mesmo tipo podem ter causado a extinção de outras espécies, nos milhões de anos que antecederam aos dinossauros, ou
que se seguiram a eles. Hoje se sabe que grandes desastres naturais
ou cataclismos terrestres, como erupções vulcânicas, glaciações, terremotos, maremotos, tsunamis, enchentes e mudanças químicas nas
águas e no ar, assim como pandemias causadas por germes, foram
responsáveis por extinções de muitas espécies de seres vivos.
Porém, espantoso não é o fato de haverem ocorrido tais extinções.
Tão ou mais espantoso, no caso da hipótese de Alvarez, é o fato de
metade dos animais e plantas marinhas, e a maioria das plantas ter-
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restres, haverem sobrevivido a tal impacto e se adaptado ao novo
ambiente resultante de vários anos de ausência de luz e calor solar.
Valeria a pena, sobretudo, estudar como sobreviveram alguns descendentes diretos dos dinossauros pretensamente extintos pelo meteoro, como as aves, cujo precursor mais evidente parece haver sido
o Archaeopterix.
Assim, o realmente espantoso é que, apesar dos inúmeros desastres
naturais, modificações químicas radicais ou disseminação mortífera de
germes, ocorridos ao longo de mais de 4 bilhões de anos de vida sobre a
Terra, as espécies vivas tenham continuado seu processo de evolução e
seleção natural. Portanto, tão importante quanto o conhecimento do
que causou a extinção de espécies inteiras, é o conhecimento do que
permitiu que inúmeras delas sobrevivessem e evoluíssem.
A paleontologia tem dado passos enormes nessas descobertas,
mas ela é uma ciência muito nova. Nasceu da geologia, no século 19,
em grande medida como bifurcação dos estudos que levaram os
geólogos, durante suas escavações, a tropeçarem em dentes e ossos
de animais gigantescos, tanto carnívoros, quanto herbívoros, provenientes de diferentes eras geológicas. Estes períodos guardam não
apenas as camadas das diferentes rochas terrenas, cada uma contada por milhões e bilhões de anos, mas também fósseis de vertebrados e outros materiais orgânicos de cada período.
Em meados dos anos 1800, a maioria dos geólogos calculava em
cem milhões de anos a duração, quase incomensurável, exigida pelo
depósito das camadas de origem sedimentária. Nessa mesma época, o zoólogo Ernest Haeckel (1834-1919) considerava que os arquivos paleontológicos de então apresentavam lacunas imensas. As principais encontravam-se entre as eras Terciária (60 milhões a 600 mil
anos atrás) e Quaternária (600 mil anos atrás até hoje), onde deve-
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riam estar os restos fósseis que permitiriam descobrir a série ancestral dos mamíferos, dos quais os homens descendem.
Ele também se lamentava dos vestígios pouco abundantes dos
mamíferos no Mesozóico (200 milhões a 60 milhões de anos atrás).
Mas reconhecia que a anatomia comparada e o estudo da origem
dos fósseis comprovavam a história da evolução zoológica dos
placentários. Isto é, dos mamíferos cujos fetos são envolvidos por
placentas, ou órgãos localizados no útero das fêmeas, responsáveis
pela comunicação entre a mãe e o embrião, através do cordão umbilical, durante toda a gestação.
Os placentários surgiram no período Cretáceo, entre 140 milhões
a 60 milhões de anos atrás, como bifurcação evolutiva dos marsupiais. Estes mamíferos também possuíam placentas, mas o feto migrava para uma bolsa, ou marsúpio, sustentado por um osso à frente
da bacia, onde se encontrava uma teta mamária. O embrião permanecia nessa bolsa até completar a gestação do animal completo. Alguns descendentes dos marsupiais do Jurássico, que viveram entre
175 a 140 milhões de anos atrás, ainda continuam presentes entre
nós, como os cangurus, gambás e cangambás.
Os marsupiais, por seu turno, resultaram da evolução dos
monotrêmatos ou monotremos, que viveram na era do Triássico,
entre 200 milhões a 175 milhões de anos atrás. Eram mamíferos
cujas fêmeas tinham dois úteros, que produziam e punham ovos através da cloaca. Suas glândulas mamárias não possuíam mamilos, o
que obrigava os filhotes a lamberem o leite que escorria nos pelos. O
sistema térmico e numerosas características do esqueleto apontam
para a possibilidade desses mamíferos descenderem de répteis. O
ornitorrinco, encontrado ainda hoje na Austrália, Tasmânia e Nova
Guiné, é um sobrevivente dessa ordem animal.
Volume 1: Sinfonia desencontrada
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Em outras palavras, mesmo antes de Darwin dar à luz sua teoria
de seleção natural, a realidade da evolução já se fazia presente na
mente de muitos cientistas do período. Isto tudo apesar de George
Cuvier (1769-1832), que desenvolvera o importante instrumento da
morfologia comparativa e fundara a paleontologia, acreditar na hipótese bíblica de que os fósseis de dinossauros eram apenas restos
de criaturas que haviam perdido o embarque na Arca de Noé.
Portanto, não é novidade que a extinção dos dinossauros seja creditada a algum tipo de cataclismo. Nesse sentido, os documentaristas
do meteoro caído no Yucatan, há cerca de 65 milhões de anos, apenas mudaram o dilúvio por um outro objeto vindo do espaço. Uns e
outros acreditam que as extinções ocorreram apenas em virtude de
cataclismos terrestres ou espaciais. Eles desdenham os problemas
internos, relacionados com a própria evolução e desenvolvimento
das espécies, que levaram muitas à extinção, mas também permitiram a muitas outras sobreviver e transformar-se.
De qualquer modo, movida ou não pelo charme da síndrome dos
dinossauros, a paleontologia aponta para o fato dos dinossauros
haverem surgido e se desenvolvido num período histórico em que
os continentes pareciam estar todos agrupados numa única massa
territorial. Aos poucos, ela também está chegando à conclusão de
que, numa época terrestre de grande abundância vegetal e animal, e
durante um período de dezenas e centenas de milhões de anos, houve um constante processo de crescimento físico de algumas espécies, com mudanças genéticas que as levaram a transformar-se em
espécies cada vez maiores, até chegarem aos sáurios enormes, como
o Tyranossaurus rex e o Saurópode.
Essas descobertas também indicam a existência, no mesmo período, de dinossauros pequenos, parecidos a ratos, assim como a pre-
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sença de espécies de insetos, anfíbios e mamíferos. Algumas das descobertas apontam para a existência de animais em transição, como
parece ser o caso do Archaeopterix e do Ornitorrinco. Em outras palavras, o processo de mudanças no ambiente natural, incluindo a cooperação e a concorrência entre espécies e dentro de cada espécie, e a
proliferação das próprias espécies, desencadeava mutações nos seus
organismos, para adaptar-se aos novos ambientes.
Nesse processo de mutação, entre 170 e 65 milhões de anos atrás,
certas espécies de seres vivos, presentes nos períodos anteriores,
haviam sido extintas, por incapacidade de adaptação ao novo ambiente. Algumas outras, modificadas de forma insuficiente, estavam
em processo de extinção. Havia as que estavam totalmente adaptadas ao ambiente de abundância e concorrência, como os dinossauros
gigantes. E havia ainda, provavelmente como os mamíferos, as que
se mantinham em dificuldade de sobrevivência nesse ambiente, que
era altamente predatório.
Bem vistas as coisas, durante os 100 milhões de anos de vida dos
dinossauros, continuou a ocorrer um processo natural ininterrupto
de bifurcações, ou ramificações, com a destruição ou extinção de
antigas espécies e surgimento de novas. Hoje há pouca dúvida de
que várias das grandes extinções de espécies no passado ocorreram
sem a ajuda de qualquer meteoro ou cataclismo terrestre. Muitas
espécies desapareceram simplesmente pelo processo constante de
mutações internas e no meio ambiente, sem deixar qualquer descendência. Muitas outras desapareceram ao transformar-se em novas espécies. Então, as questões relevantes são: por que e como isso
tem ocorrido?
Os dinossauros, assim como as diferentes espécies animais e vegetais, tiveram uma história evolucionista. Os que se transforma-
Volume 1: Sinfonia desencontrada
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ram em grandes (grandes mesmo!), talvez tenham sido extintos por
seu próprio desenvolvimento incontrolado, numa era em que o antigo ambiente terreno de abundância exuberante da vida vegetal e
animal, que lhes permitiu tal crescimento, se transformou num novo
ambiente de escassez.
Essas modificações no ambiente terrestre podem ter sido causadas por grandes secas, emergência de desertos, fortes mudanças climáticas, em combinação ou não com glaciações, erupções vulcânicas, queda de meteoros ou explosões solares. Ou mesmo pela ação
predatória animal descontrolada. No caso de algum cataclismo, resultante da queda de um meteoro, aquelas espécies já em processo
de extinção, sofreram um fim com maior rapidez. O evento externo
apenas apressou um desenlace já em curso.
O problema das espécies de grandes dinossauros talvez tenha
consistido em que elas foram incapazes de adaptar-se ao novo ambiente, conformado aos 65 milhões de anos atrás, ao contrário de
outras espécies de répteis, mamíferos e insetos, que deram continuidade à sua classe ou ordem, ao transformar-se em novas espécies, ou em novas classes, como parece ser o caso dos sáurios que deram surgimento às aves, aos crocodilos e jacarés, e aos marsupiais e
ornitorrincos. Elas sobreviveram ao primeiro minuto do ano 64 milhões atrás, continuando seu processo evolutivo, ramificando-se em
mudanças sucessivas de extinções e criações.
Como essas questões não parecem ter apelo de marketing, a exemplo das catástrofes cósmicas e dos grandes sáurios (apesar destes
nem sempre serem simpáticos), somos obrigados a conviver com a
síndrome dos dinossauros. Em certa medida, ela é apenas a síndrome
da evolução da própria humanidade. O homo sapiens surgiu de um
longo processo de evolução dos vertebrados e dos primatas, embora
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não tão longo quanto o dos dinossauros. E, em algum momento do
futuro, deve bifurcar-se, extinguindo-se e, na melhor das hipóteses,
dando lugar a outra espécie, embora esta afirmação sofra restrições até
de biólogos partidários de Darwin. Esta datação do processo evolutivo,
não apenas das espécies vivas, mas da natureza em geral, deixa muitos
historiadores e cientistas inconformados. Que se há de fazer?
Na pior das hipóteses, como aconteceu a várias outras espécies,
os homens podem simplesmente liquidar as condições de sua própria existência e extinguir-se, seja naturalmente, seja com o auxílio
de algum grande cataclismo. Eles certamente deixarão muitos rastros sobre a Terra, que deve prosseguir em sua evolução e desenvolvimento ainda por alguns milhões ou bilhões de anos. Muitas das
formas hoje viventes poderão ser extintas, juntamente com a espécie humana, enquanto outras continuarão seu processo de bifurcação ou ramificação, sendo em parte destruídas e, em parte, criando
novas formas viventes.
Portanto, extinções continuarão a ocorrer, com a participação ou
independentemente da queda de algum meteoro enorme, erupção
de um super-vulcão, conjugação de inúmeros terremotos e maremotos, formação de tsunamis gigantes, novas glaciações, ou epidemias e
pandemias. Ou, ainda, pela ação de algum artefato destrutivo criado
pelo próprio homem. Esses desastres naturais e, agora, também artificiais, poderão se fazer presentes na existência terrena, em alguns ou
vários momentos, porque eles têm sido intrínsecos às mudanças que
marcaram a história natural desde bilhões de anos atrás.
As inúmeras previsões sobre catástrofes terrestres e siderais, que
há muito fazem o imaginário humano perder o sono e ter pesadelos
e, agora, inundam televisões e revistas especializadas, apenas amplificam, consciente ou inconscientemente, o fato de que a natureza
Volume 1: Sinfonia desencontrada
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tem história. Os homens ainda não conseguiram medir a regularidade e o período de existência de muitos dos eventos históricos da
natureza, a exemplo das mudanças climáticas, das mudanças no
campo magnético terrestre e das transformações de vários tipos de
átomos e partículas. Mas o avanço das ciências indica que, algum
dia, eles podem chegar lá.
Isso acontece, em parte, porque o tempo de existência do conhecimento humano ainda é infinitésimo em relação ao tempo de existência do próprio homem, da Terra e do universo. Em parte, também, porque apesar dos avanços científicos e da transformação da
ciência, de instrumento de conhecimento, em uma das principais
forças produtivas humanas, ainda estamos tateando às cegas o interior da crosta da Terra, a atmosfera, o universo, o mundo microscópico e a própria sociedade humana.
De qualquer modo, devo agradecer à síndrome dos dinossauros.
Fui confrontado com esses espécimes gigantes, e com sua história
de mais de 100 milhões de anos, como contraponto à idéia de que a
história seria apenas a história dos homens no tempo. Portanto, comecei querendo estudar bem menos do que 500 anos de história, e
estou sendo levado a fazer uma viagem bem mais longa ao passado,
na tentativa de entender a história do tempo e da mudança.
Porém, antes de seguir adiante, é conveniente repassar, mesmo
sumariamente, o que a humanidade criou a respeito da história.
Navegar por suas origens e desvios. Conhecer os argumentos que a
consideram imutável. E, também, os daqueles que, dialeticamente,
vêem a história como algo em constante movimento e mutação.
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Origem e desvios
Qualquer sumário que se queira fazer das concepções sobre a história se confrontará, inevitavelmente, com um mosaico estraçalhado,
independentemente do ângulo utilizado para analisá-las. É possível
encontrar uma certa unidade na antiguidade grega e chinesa, quando a história era a narração dos fatos correntes, sem grandes preocupações com possíveis clivagens entre natureza e humanidade, ou
dentro desta.
Porém, à medida que a civilização humana avançou em sua espiral ascendente e foi tomando consciência de seu progressivo, embora hipotético, domínio sobre a natureza, assim como creditando tal
domínio à Providência Divina ou ao Mandato Celestial, as correntes
sobre a explicação da história multiplicaram-se.
Em geral, a teoria histórica se reporta aos gregos antigos, pelo
menos no lado ocidental do planeta, como os primeiros que tentaram investigar os fatos, os acontecimentos em curso, e explicá-los.
Para eles, a istoria significava não só o fato, o acontecimento, mas
também a investigação, ou a pesquisa sobre eles. Hesíodo (século 8
a.c.), em O Trabalho e os Dias, fez um relato circunstanciado das
formas de trabalho, das técnicas agrícolas e dos costumes de sua
época, como base do relato histórico.
Heródoto (484-425 a.c.), por sua vez, deixou isso de lado e pretendeu extrair da história as lições, ou a verdade, que fossem úteis
às gerações presentes e futuras. Ele não queria que o tempo apagas-
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se os feitos heróicos dos homens. Para Heródoto, sem narrar a história dos acontecimentos, as grandes façanhas dos gregos e dos bárbaros cairiam no esquecimento. Portanto, ele não tinha o tempo
como história, mas como um possível apagador das grandes ações
humanas do presente vivido.
Tucídides (471-400 a.c.) sucedeu Heródoto, com a pretensão de
ser testemunha ocular dos acontecimentos e relatá-los, após a crítica das informações colhidas. Ele foi, talvez, um dos primeiros repórteres de guerra da história ocidental, que se punha a trabalhar, como
disse, desde os primeiros sintomas dos conflitos. Tanto quanto
Heródoto, ele não considerava o tempo como história, do mesmo modo
que tinha esta como assunto exclusivo dos homens. A honra, ambições, avidez, heroísmo, violência, prudência, hipocrisia e paixões, que
se encarnavam na política, seriam os fatores que transformavam os
acontecimentos em matéria histórica. Desse modo, coisa tão banal
como a produção dos meios de vida dos homens não poderia fazer
parte dos fatores passíveis de transformar-se em matéria histórica.
Tucídides chegou a narrar o diálogo forte, entre atenienses e
mélios, os primeiros pretendendo convencer os segundos a se entregarem sem combate e aceitar a escravidão. Mas, não explicou que
tal escravidão estava relacionada à produção da vida material dos
homens livres de então. E que garantir essa produção era o interesse
real que colocava em movimento os combatentes. Desse modo, as
guerras pareciam apenas decorrência das paixões humanas. No entanto, tinham raízes profundas na agricultura, no artesanato e em
outras atividades produtores dos bens que, na ocasião, satisfaziam
as necessidades dos homens.
Tucidides não podia ir tão fundo. Apesar de sua perspicácia, não
fazia parte de seu imaginário considerar as formas empregadas para
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a produção dos alimentos, vestuários, armas, carros e outros utensílios indispensáveis à vida humana, porque eram assuntos privativos
dos escravos, E escravos, naquela época, haviam sido despojados de
honra, ambições e outras peculiaridades humanas. Não eram tidos
como seres humanos, mas como bestas falantes. Portanto, não poderiam fazer parte da narrativa histórica.
Xenofonte (430-354 a.c.) também se limitou a narrar a campanha do persa Ciro contra os gregos e a retirada destes. Os romanos,
depois dos gregos, também falavam em seus anais de fatos e acontecimentos, como fatos e acontecimentos em curso. Políbio (200-120
a.c.), de origem macedônica, mas obrigado a viver em Roma, desde
168 a.c., como prisioneiro de guerra, dedicou-se a estudar a transformação dos romanos em senhores do mundo. Em sua obra As Histórias, defendeu a idéia de que a história deveria fornecer os elementos de explicação dos fenômenos observados, tornando-se um
instrumento pragmático de ensino. Porém, mesmo mantendo-se fiel
à história dos fatos correntes, ele introduziu em sua narração uma
relação de causa e efeito e de repetição histórica.
Haveria causas gerais e particulares, mas delas deveriam ser excluídos os fenômenos de ordem física ou natural. Talvez por isso,
embora tenha percebido que os organismos vivos atravessavam, inevitavelmente, os estados de crescimento, maturidade e declínio,
Políbio tenha se negado a considerar esse processo como algo histórico. Vida e morte fariam parte apenas da ordem física ou natural. E, do
mesmo modo que Heródoto e Tucídides, ele desconsiderou a produção dos meios de vida, coisa de escravos, como parte da história.
No oriente, os historiadores da civilização chinesa seguiam passos idênticos a seus desconhecidos congêneres ocidentais. O Duque
de Zhou (841-780 a.c.), tendo por base documentos literários e his-
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tóricos escritos nos séculos anteriores, sintetizou os ensinamentos
morais e administrativos de conduzir-se e de conduzir o Estado, a
partir do conhecimento das causas que os levavam ao sucesso ou ao
declínio. Para ele, a história era como um espelho ou uma lição para
os condutores de homens. E homens eram apenas os seres livres.
Confúcio ou Kong Qiu (551-479 a.c.) seguiu o mesmo caminho.
Em seus Anais de Primavera e Outono, cobriu a história do Estado
de Lu, entre 722 e 481 a.c. Nessa obra, destacou as relações entre
homem e natureza, homem e sociedade, homem, família e Estado,
relatando os acontecimentos políticos e militares do período. Mas,
da categoria homem não faziam parte os escravos, nem o que eles
produziam, embora sem eles a sociedade, a família e o Estado sucumbissem.
Sun Wu ou Sun Zi (535-? a.c.), mais do que o grego Tucídides,
especializou-se na história dos acontecimentos militares como base
para sistematizar aquilo que chamou arte da guerra. As experiências históricas, positivas e negativas, de guerras, batalhas, combates, escaramuças, truques, boatos e espionagem, vividas por ele e
por outros comandantes, foram analisados e transformados em ensinamentos para as gerações seguintes de reis e estrategistas. Ensinamentos que, ainda hoje, são estudados nas mais prestigiadas academias militares e de formação de empresários de todo o mundo.
Sima Qian (145-90 a.c.) viveu durante a dinastia Han do Oeste.
Apegado à história como história humana, em seus Relatos Históricos descreveu as figuras que compunham a sociedade daquele período. Incluiu reis, nobres, burocratas, letrados, mercadores, cavaleiros e pessoas do baixo escalão social, assim como a moralidade política, as intempéries, o controle do meio ambiente, o cultivo do solo,
as colheitas e a invenção de ferramentas e instrumentos. Mas só se
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referiu aos escravos porque as rebeliões e os conflitos gerados por
eles rebatiam negativamente sobre aqueles que considerava figuras
humanas e suas realizações.
Algo idêntico ocorreu com Tito Lívio (59 a.c.-17 d.c.), considerado o maior historiador da antiguidade romana. Ele trouxe à luz as
inquietações e as desordens de seu tempo. Isto é, de declínio do Império Romano. Depois dele, Cornélio Tácito (56-112) concebeu a história como um gênero baseado na arte da expressão. A história seria
distinta por estar a serviço da verdade, através da análise das causas
e efeitos dos acontecimentos. Ele também descreveu com vivacidade o modo de vida dos bárbaros, em especial dos germanos, sobre
os quais o império romano havia se imposto.
Tanto Tito Lívio, quanto Tácito, não creditavam aos escravos qualquer papel na história. Porém, ambos acabaram por introduzi-los
em seus relatos, da mesma forma como já haviam incluído os povos
dominados por Roma, em virtude de seus distúrbios e rebeliões, que
consideravam desvios no curso da história.
Para empreender a narrativa histórica, os historiadores da antiguidade, tanto ocidentais quanto orientais, utilizaram-se tanto do
instrumento de ver diretamente os acontecimentos, ou ouvir a versão dos que haviam participado deles, quanto de referenciar-se em
documentos escritos. E todos eles já discutiam os possíveis enganos
a que poderiam ser levados por visões incompletas e versões distorcidas ou mesmo falseadas. Tinham em conta, particularmente, a
presença do gênero literário, como os anais e as epopéias, que deram renome ao grego Homero e davam mais atenção aos mitos e
paixões, que à verdade dos fatos.
De qualquer modo, este tipo de história contemporânea surgiu
do gênero literário e do gênero de registros factuais. Hesíodo,
Volume 1: Sinfonia desencontrada
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Heródoto e Xenofonte, na Grécia, assim como seus congêneres chineses, iniciaram esses gêneros, que se mantêm vivos ainda hoje. Paul
Veyne (1970), por exemplo, afirma que a história é um relato dos
acontecimentos, todo o resto decorrendo disso. No mesmo rumo vai
Lawrence Stone (1980), que se opõe às investigações históricas que
chama de estruturais e cientificistas, como a marxista e a ecológicodemográfica, e defende uma história narrativa, tendo o homem como
primeiro objeto.
Embora algumas correntes modernas da história dos fatos correntes admitam que a história teve uma existência temporal no passado, outras supõem que a história é apenas uma sucessão de fatos
numa existência geral fixa. Aristóteles (384-322 a.c.), por exemplo,
apesar de toda sua erudição, supunha que o tempo era imutável,
uniforme e simultâneo, o mesmo por toda parte. A história, portanto, não fazia nem fez parte de suas preocupações.
Essa concepção de imutabilidade histórica se acentuou durante a
Idade Média européia, que se estendeu dos anos 300 aos anos 1450.
A explanação histórica tornou-se progressivamente um gênero menor, a serviço da teologia. Para esta, a Providência Divina criara a
Terra e todos as coisas e seres, mantendo-os da mesma forma para
todo o sempre. A história, portanto, deveria dedicar-se exclusivamente à missão de contar os desígnios de Deus. A verdade histórica,
desse modo, era ditada pela autoridade política, religiosa ou secular, que estivesse a serviço da Providência Divina.
Algo idêntico ocorreu na Idade Média chinesa, que se estendeu
dos anos 220 a.c. aos anos 1900. Seus historiadores dedicaram-se
principalmente a escrever crônicas e compilações sobre as regiões e
localidades dos sucessivos Impérios, pesquisando nos documentos
anteriores os elementos necessários para o desenvolvimento e a so-
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brevivência das dinastias. Sima Guang (1019-1086), da fase final da
dinastia Song, acreditava que a chave dessa sobrevivência histórica
residia no espírito moral da benevolência (Ren), retidão (Yi), cortesia (Li), inteligência (Zhi) e veracidade (Xin).
No período do expansionismo europeu das Cruzadas (1096-1270),
surgiram cronistas, como Villehardouin e Joinville, que exaltavam a
honra, a lealdade e o cavalheirismo dos reis e seus cavaleiros, ao
narrar os combates que, a serviço de Deus, eles travavam contra os
infiéis. As pretensões territoriais e a abertura de rotas comerciais
para o oriente, que faziam parte dos interesses de boa parte dos que
financiaram e participaram das Cruzadas, não foi tema da história
desses cronistas.
Eles sequer se deram conta de que esses interesses influenciaram
fortemente a história real, fazendo com que as Cruzadas contribuíssem para a abertura de novas rotas de comércio e contatos com o
oriente médio e extremo. E que levassem à descoberta de documentos e realizações, tanto dos antigos mundos grego e romano, quanto
dos muçulmanos, que combatiam, e dos povos orientais, que em geral
desconheciam.
Numa das ironias de que é pródiga a história real, a Igreja cristã
viu-se constrangida a preservar de olhos ímpios, por alguns séculos,
os documentos descobertos, que traziam à luz, no velho mundo medieval, o sempre jovem mundo grego. E mais tarde, já no final da
Idade Média, acabou por se tornar a agente da universalização da
história, ao dar conhecimento das inquietações e abordagens geniais da filosofia grega sobre o mundo e os homens.
Mesmo então, porém, os cronistas medievais ainda procuravam
exaltar as façanhas, reais ou imaginárias, da nobreza em decadência. Esta, já vivendo num novo tempo de ebulições sociais, políticas
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e militares, e de descobertas e invenções nos sistemas produtivos,
procurava manter sua posição social privilegiada, através de versões fantasiosas de seu papel e de seus feitos. E excluía os burgueses
e os camponeses das histórias de suas campanhas militares, embora
fosse cada vez mais obrigada a levá-los em conta. Afinal, essas classes subalternas eram o grosso de seus exércitos. E, em geral, seus
motins tinham os nobres como alvo principal, na prática negando a
história que os cronistas destes narravam.
Talvez como reação a tudo isso René Descartes (1596-1650) tenha desprezado a história como um dos ramos do saber. Mas essa
era uma época em que a suposição de espaços, tempo e história estáticas ou imutáveis, estava profundamente enraizada, mesmo na
mente de muitos dos homens que revolucionaram o conhecimento
a partir dos anos 1400 e 1500. A começar por Nicolau Copérnico
(1473-1543), que desfechou um golpe mortal na visão religiosa da
Terra como centro do universo, ao situar o Sol como ponto central
de sua teoria planetária. Apesar de haver imprimido rotação e movimentos circulares aos planetas, Copérnico permaneceu fiel à idéia
da fixidez do Sol.
Johannes Kepler (1571-1630) sofreu horrores diante das crenças
religiosas de seu tempo, que também eram as suas. Primeiro, quando
concluiu que a teoria de Copérnico concordava com as medições que
fizera das órbitas dos planetas e que era a Terra, assim como os demais planetas conhecidos, que giravam em torno do Sol. Bem que
tentou argumentar que isso, muito mais do que estava escrito nos
livros sagrados, demonstrava toda a sapiência e beleza da obra de Deus.
Tão terrível quanto sua comprovação da teoria de Copérnico foi a
descoberta de que tal teoria, embora tivesse causado uma revolução
no conhecimento do sistema planetário, estava tão errada quanto as
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escrituras religiosas em relação à forma geométrica das órbitas planetárias. Elas não eram formadas por círculos, tidos como a forma
geométrica perfeita criada por Deus. Eram elipses que tinham o Sol
como fulcro. Kepler tentou, mais uma vez, argumentar que as formas elípticas eram uma criação divina muito mais bela. Mas isto
também não convenceu os sacerdotes, nem o livrou de perseguições
e de ver sua mãe acusada de bruxaria.
Foi preciso esperar outros dois séculos para que a teoria das órbitas elípticas fosse aceita em concordância com a realidade. Nesse
meio tempo, Giordano Bruno (1548-1600) foi queimado na fogueira por defender a extensão da teoria de Copérnico a todo o universo.
Galileu Galilei (1564-1642), por sua vez, embora tendo boas relações com o próprio Papa, foi excomungado por defender a idéia de
que a Terra tinha um movimento de rotação.
Isaac Newton (1642-1727) viveu num novo momento histórico e
pode partir das premissas de Kepler, Laplace e Galileu, quanto ao
sistema planetário e ao movimento dos corpos celestes, para elaborar sua teoria de gravitação. Mas desconsiderou o tempo, tomandoo como uma criação divina absoluta. Voltaire (1694-1778), por sua
vez, apesar de haver liquidado a história teológica de Jacques Bossuet
(1627-1704), introduzindo a secularização da história e da evolução,
e haver ajudado, juntamente com Descartes, a emancipar a história
da tutela da teologia, também considerava o homem e a natureza
imutáveis. Ou seja, negava a essência de seus próprios argumentos.
Apesar da força demonstrada pelas idéias de imutabilidade, imobilidade, estática e eternidade, elas começaram a ter seus alicerces
abalados a partir das descobertas marítimas e arqueológicas, da invenção de novos instrumentos de pesquisa e de produção, da recuperação dos textos clássicos gregos e da expansão do comércio. Es-
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sas mudanças, perceptíveis na história contemporânea européia
desde meados dos anos 1400, deram surgimento a novas correntes
de pensamento, que introduziram dúvidas nas concepções de um
tempo eternamente fixo, ao mesmo tempo em que acentuaram a
cisão entre literatura e história.
Jean Bodin (1530-1596) iniciou o rompimento com a supremacia
da teologia na história, introduzindo, além da forma divina, que trataria da ordem e da fé, a forma natural e a forma humana. A forma
natural se ocuparia das causas secretas da natureza e se prenderia à
ordem das necessidades. A forma humana explicaria as ações do homem vivendo em sociedade. A história humana decorreria principalmente da vontade dos homens, que nunca seria semelhante a si mesma e da qual jamais se poderia entrever o término, já que as ações
humanas não cessariam de conduzir permanentemente a erros.
Apesar desse pessimismo, Bodin não concordava com a filosofia
cristã da história, que acentuava a decadência progressiva da humanidade. Comungando com o otimismo de seu tempo, ele introduziu a influência do clima na evolução das sociedades e citou as modernas descobertas do Novo Mundo, a expansão do comércio e o
aparecimento de inventos, a exemplo da bússola, metalurgia e imprensa, como demonstração do progresso humano. Concluiu, daí,
que o motor da história seria o instinto de sobrevivência dos homens, que os levaria ao desejo de adquirir riquezas e civilização.
Nivelou, assim, interesses materiais e espirituais ao instinto de sobrevivência, teoria que ainda hoje se mantém em vários círculos acadêmicos.
Logo depois, Jean Mabillon (1632-1707) se associou às preocupações quanto ao estudo da escrita e dos suportes materiais dos documentos, tomando-os como a verdadeira fonte da história, enquanto
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Alexandre de La Popelinière (1693-1762) assegurava que a essência
da história consistia em conhecer os motivos e verdadeiras ocasiões
dos fatos e acontecimentos humanos. Isto deu surgimento à
paleografia, isto é, ao exame minucioso dos documentos antigos para
verificar sua veracidade ou falsificação, que levou a descobertas
desconcertantes. Muitos documentos emitidos por reis, nobres e
religiosos não passavam de falsificações. A busca da verdade documental como a primeira regra da pesquisa histórica tomou vulto.
Naquele momento, não se podia prever que a história da natureza e a história do homem estavam prestes a mostrar a existência de
outros tipos de documentos, além dos escritos, a exemplo das ferramentas fabricadas pelos hominídeos, a partir do paleolítico e do
neolítico, e dos restos fósseis. Mas deram uma contribuição importante ao estudo da história ao chamar a atenção para a necessidade
de distinguir a verdade da falsificação, ou do erro, no processo de
pesquisa.
Na China da dinastia Qing (1644-1911), quando esta ainda considerava seu império o centro do mundo, os historiadores dedicaram
seus estudos às relações entre os fenômenos astronômicos, as condições geográficas e a vida social e política. Nessa busca, muitos resvalaram para os antigos mitos da comunicação entre o Céu ou Mandato Celestial, e o homem, enquanto outros adotaram a idéia da existência de relações entre o ambiente natural e a vida social. Mas, como
no ocidente, a conclusão principal foi que a história da natureza era
absolutamente distinta da história da humanidade.
Para Wang Fuzhi (1619-1692) o valor da história residia em seus
serviços como mestre para a posteridade. Neste sentido, um historiador que relatasse muitos eventos em detalhe, mas negligenciasse
os eventos importantes, que poderiam servir como lição às gerações
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seguintes, seria de valor histórico insignificante. Desse modo, a relação entre natureza e humanidade se diluía na necessidade de extrair noções morais da história de cada geração humana.
A história da natureza possuiria suas próprias leis de desenvolvimento. Por outro lado, os fenômenos astronômicos ou geográficos
não teriam, necessariamente, influência sobre o desenvolvimento
das sociedades humanas. E, no embalo do quase completo
autarquismo feudal da dinastia manchú, o filósofo Zhang Xuechang
(1738-1801) pensava que os fatos anotados na historiografia não poderiam ser mais do que episódios como as biografias dos soberanos,
incluindo aí seus deuses e seus mitos.
A essa altura dos séculos 17 e 18, os estudos e discussões sobre a
relação histórica entre natureza e humanidade haviam explodido
na Europa. Gottfried Leibnitz (1646-1716) considerava a história no
contexto do processo genético e de continuidade da sociedade humana, sugerindo haverem três modos de sua exposição: o narrativo,
o pragmático e o genético. Enquanto isso, como já se viu, Descartes
negava à história lugar nos ramos do saber. Já para Giambaptista
Vico (1668-1744), em oposição a Descartes, a história seria a forma
pela qual os homens conheceriam a si mesmos.
O mundo ocidental, para Vico, teria surgido e se consolidado sob
o dualismo homem-natureza. Tal dualismo teria levado a ciência
social a transformar-se na filosofia da autoridade e esta, por sua vez,
levara ao conhecimento da gênese do pensamento bárbaro, peculiar
aos primeiros homens. Aí estaria a origem da complexidade histórica e das fábulas, que criaram o mundo civil. Isto, diferentemente da
representação da natureza, que a Física e a Mecânica cartesianas
explicavam unicamente sob uma forma plana, segundo a ordem e a
medida de tudo aquilo que era matéria e movimento.
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Mas Vico recusou-se a pensar a história profana separada da história sagrada. Dedicou-se, então, a explorar a cultura de seu tempo,
concluindo que ela era multidimensional e instrumento de conhecimento da história, embora cada cultura só pudesse ser compreendida em sua época singular. Ele também concluiu que a história não
evoluía como processo linear, mas em espiral, no quadro da Providência, aceitando a idéia de declínio e queda. Assim, embora navegando no movimento dialético, Vico também vagou entre o idealismo e o materialismo filosóficos.
Emanuel Kant (1724-1804), elaborou um conceito de história
universal segundo o método de uma teoria geral da natureza, guiada
pelo princípio mecânico. O universo teria surgido do caos de uma
nebulosa, e se desenvolvido num processo evolutivo e progressivo.
Com isso, desferiu um golpe não apenas nas idéias de uma natureza,
uma humanidade e uma história imutáveis, mas também naquelas
que separavam irremediavelmente homem e natureza.
Porém, contrariamente a Kant, J.G. Herder, (1744-1803), substituiu a história pragmática por uma história que seria um drama interior da humanidade. Ele via o homem não como a soma de seus
atos, mas como a dinâmica de seu sentir. Na mesma linha de pensamento, o inglês Walter Dilthey (1833-1911) e o italiano Benedetto
Croce (1866-1952) tomaram a história como o conhecimento do eterno presente e a história do espírito. Para Dilthey, entre o objeto da
história e o historiador haveria uma relação de vida. Nessas condições, a natureza não poderia fazer parte dessa relação.
Croce, por seu lado, queria livrar-se do materialismo vulgar das ciências de seu tempo e afirmou que toda a história era história contemporânea. Ela reviveria na própria consciência a atividade passada. Para
ele, o que constituía a história era o ato de compreender e entender,
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induzido pelas exigências da vida prática. Ainda de acordo com Croce,
as obras históricas de todos os tempos e de todos os povos teriam nascido dessas exigências e das perplexidades que implicavam.
A ciência e a cultura histórica existiriam com o propósito de manter e desenvolver a vida ativa e civilizada da sociedade humana. A
história seria, pois, obra do historiador, clara afirmação subjetiva. A
história seria a história do espírito. Croce, desse modo, também vagou entre o idealismo e o materialismo. Embora reconhecendo que
os homens faziam sua própria história, não levou em conta que eles
a faziam sob condições naturais e humanas já dadas, e não ao livre
arbítrio dos sujeitos contemporâneos.
O abismo cavado por Dilthey, Croce e outros, entre as ciências
naturais e as ciências do espírito, parece ter sido levado ao extremo
por H. Rickert (1836-1916), ao afirmar que a natureza e a história
seriam dois conceitos opostos, que se distinguiriam por seus objetos
e por seus métodos. Para Rickert, enquanto na natureza se considerava um fato, um ser, ou um fenômeno, sem referência a valores, a
história estudava o fenômeno cultural na sua particularidade, na sua
individualidade. Ou seja, os determinantes da história seriam os
valores humanos, ou os fatores constituintes daquilo que se
convencionou chamar de cultura.
Em plena primeira metade do século 20, supostamente com base
numa tese de Georg Hegel (1770-1831), Alexandre Kojève defendeu o
fim da história em virtude do advento da ciência. Com isto, a história
pararia, desapareceria, emergindo uma pós-história, na qual o homem
estaria de pleno acordo com a natureza, perpetuando uma vida natural. A imutabilidade retornaria, assim, aparentemente sob os auspícios
de Hegel, o filósofo moderno que foi pioneiro em apresentar a história como o próprio processo de mudança ou transformação.
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Não muito depois disso, para Michel Foucault (1926-1984), a história do homem não poderia ser uma espécie de modulação, como
as que ocorriam nas mudanças das condições de vida, a exemplo de
clima, profundidade do solo, modos de cultura, exploração das riquezas, ou nas transformações da economia e, por via de conseqüência, da sociedade e das instituições ou, ainda, na sucessão das formas
e usos da língua. O pensamento se formaria a partir do discurso e não
da prática social. O homem, simplesmente, não seria histórico.
Nessa mesma linha, nos anos 1990, Francis Fukuyama retomou
a tese do fim da história. Porém, não mais em virtude do advento da
ciência, mas em virtude da consolidação das ciências e tecnologias
como motores da vida moderna, assim como da vitória supostamente
definitiva do capitalismo sobre o socialismo.
Portanto, a crença de que se viveria uma eterna repetição e de
que as mudanças seriam uma simples aparência parece, ainda hoje,
permanecer como uma força invejável. Ela apresenta uma vitalidade que a torna um dos principais entraves a uma abordagem mais
consistente da história real.
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História e mudança
É verdade que o pensamento de um mundo imutável e estático
ainda apresenta uma vitalidade que não se pode subestimar. No
entanto, esse não é o pensamento único, nem agora, nem nos tempos passados. Durante a antiguidade grega e chinesa, diversos pensadores introduziram, cada um a seu modo, o conceito de mutação,
ou de mudança, em oposição à idéia da imutabilidade.
Na Grécia, o pensamento de que o movimento e as mudanças
eram os componentes essenciais do mundo surgiu antes das idéias
de um mundo imutável. Tales de Mileto (624-548 a.c.) procurou
demonstrar a ideia das mudanças a partir da comprovação de que a
água modificava constantemente seus estados físicos. Anaxímenes
de Mileto (610-550 a.c.) usava o ar como elemento mutável por excelência. Tornava-se fogo ao esquentar, nuvem ao condensar-se, água
ao condensar-se ainda mais, e pedra ao atingir um grau ainda maior
de condensação. Heráclito (550-480 a.c.), por sua vez, ilustrava a
idéia de que tudo estava em mudança constante ao dizer que nunca
se mergulhava na mesma água de um rio.
Na China, ao contrário, a teoria do Mandato Celestial, segundo a
qual tudo se manteria em seu estado para todo o sempre, antecedeu
em cerca de mil anos a teoria das mutações (Yi ou Yi Jing). Esta
surgiu, por volta de 1200 a.c., em parte pelas dúvidas suscitadas com
as crises das dinastias Xia (2070-1600 a.c.) e Shang (1600-1046 a.c.),
as primeiras dinastias da história chinesa. E tomou vulto justamente durante a decadência da dinastia Shang (1075-1046 a.c.).
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Segundo a teoria das mutações, as mudanças seriam inerentes
aos fatos e fenômenos, inclusive históricos. Lao Zi, ou Lao Tsé (580500 a.c.), cujo nome verdadeiro parece ter sido Li Er, expressava
essa idéia com a afirmação de que nenhum regente de um estado
poderia estar para sempre em sua posição e isento de mudanças.
Para ele, no curso do tempo, colinas se transformariam em vales e
vales em colinas; um furacão nunca duraria uma manhã toda, nem
uma tempestade um dia todo. A história, desse modo, seria movimento e mudança constantes.
Séculos depois, já no império romano, Marco Túlio Cícero (10643 a.c.), considerava a história como o testemunho dos séculos, a
luz da verdade, a vida da lembrança, a matriz da vida, a mensageira
da antiguidade. Com isso, distanciou-se dos anais de sua época, que
ficavam restritos aos acontecimentos do momento, e diferenciou-se
das epopéias, onde os mitos predominavam, preocupando-se com
as regras que podiam levar à verdade.
Estipulou que não se deveria afirmar nada falso, contrapondo ao
falso tudo que fosse verdadeiro, evitando qualquer parcialidade e
respeitando a cronologia. Porém, preso aos ditames de sua época,
em que os escravos e os povos tributários não faziam parte da humanidade, Cícero ignorou as formas de produção da vida dos homens, e também não chegou a indicar como diferenciar o falso do
verdadeiro.
Caio Plínio, o Velho (23-79) se aventurou a escrever uma História Naturalis, reunindo os conhecimentos sobre a natureza, produzidos até então. Foi uma exceção no mundo romano, cuja literatura
entrara em decadência e se contentava com o picaresco. Só 1600
anos depois, John Locke (1632-1704) voltou a atacar a idéia da imutabilidade do ser humano, ao afirmar que apenas o prazer e a aver-
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são seriam inatas. Todo o resto da natureza humana teria sido adquirido pela associação ou hábito no curso da história. Hoje, através
do surgimento e desenvolvimento das neurociências, se sabe que
também o prazer e a aversão são produtos históricos.
O Barão de Montesquieu (1689-1775), por sua vez, retomou a idéia
da história como uma imersão no tempo, a partir da qual se poderia
compreender a relação entre as dimensões espacial e temporal. A
história seria uma reflexão sobre o passado. Dela se extrairiam as
diferenças e semelhanças entre os homens e o tempo de seu leitor. A
lei histórica seria uma relação necessária entre termos variáveis, de
tal modo que cada diversidade fosse uniformidade e cada transformação fosse constância, imanentes aos fatos. Tratar-se-ia de um
conjunto de variáveis ligadas por um processo de comparação histórica, que estabeleceria correlações e formulações de regras gerais.
A idéia de história, para Montesquieu, compreendia as questões
físicas, climáticas e geográficas, sendo mutável, submetida a leis dinâmicas e regulares, cujas mudanças conduziriam tanto a estados
de desequilíbrio, quanto de estabilidade. Ele não ligava sua idéia de
mudança àquela idéia de progresso entendido como uma mudança
para melhor. Dizia que onde mais detinha sua mente era diante das
enormes mudanças que fizeram as eras tão diferentes das eras, a
Terra tão dessemelhante de si mesma.
Jean Jacques Rousseau (1712-1789) acreditava que era somente
na espécie humana que as necessidades, os desejos e as faculdades
não se reconciliavam. Idealizando o mundo selvagem, supunha que
apenas entre os homens existiriam guerras, escravidão, assassinatos e suicídios. Não tinha conhecimento de quão árdua era a vida
dos animais não-humanos. Porém, ao contrário de grande parte dos
pensadores de sua época, que consideravam imutável a natureza
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humana, Rousseau tinha consciência do caráter histórico do ser humano e da maleabilidade de sua natureza no curso do tempo.
Quanto a Hegel, já nos anos 1800, criticou, sobretudo, o pragmatismo histórico. Considerava que a reversão histórica não era possível. Não haveria um caso sequer que fosse completamente igual a
outro. Para ele, o problema residia em que os historiadores pragmáticos, que haviam dominado a narração histórica até o século 19, só
procuravam saber o que havia ocorrido no passado em virtude do
que estava acontecendo no presente. Portanto, não tinham interesse em conhecer o que realmente havia ocorrido.
Se assistirmos hoje a qualquer programa televisivo sobre os acontecimentos internacionais e nacionais, poderemos comprovar ao vivo
aquilo que Hegel chamava de pragmatismo histórico. A história ocorrida é sempre um pretexto de justificação do que está acontecendo
no momento. Em reação a tal pragmatismo, Hegel opôs sua história
filosófica. Isto é, a história das leis que regem os acontecimentos,
tendo por base as contradições.
Para ele, da mesma forma que para os dialéticos da antiguidade
grega, as contradições estariam presentes e ativas em todos os momentos históricos. Essas contradições dariam um caráter singular,
ou diferente, a cada um desses momentos históricos. E elas conteriam, dentro de si próprias, a condição de sua superação e de surgimento de um novo momento histórico e, portanto, de novas contradições. As contradições seriam o motor da história, porque a partir
delas teriam se originado os processos históricos.
Hegel assegurava que a Razão deixava, astuciosamente, que as
paixões agissem em seu lugar. Desse modo, através da ação das paixões, a Razão podia chegar a ter existência e a experimentar as perdas e a sofrer os danos das ações. Essa astúcia da Razão, por outro
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lado, levava os homens a acreditarem que faziam sua própria história, embora tal história se desenvolvesse às suas costas.
Hegel não se dava conta de que ocorria justamente o contrário.
Isto é, que a história se desenvolvia às costas dos homens porque eles
a faziam, sempre, nas condições herdadas das gerações anteriores e
das mudanças impostas pela natureza, levando a Razão a crer que os
enganava com a astúcia das paixões, quando era ela a enganada.
Apesar disso, Hegel tinha razão ao afirmar que não era no tempo
que tudo se produziria e passaria. O próprio tempo produziria o futuro, negação do presente, gerando aniquilamento e criação. Embora ele considerasse o tempo uma abstração, que engendraria tudo e
destruiria tudo que criava, a afirmação de que a história desdobraria seu processo segundo uma sucessão de épocas, cada uma constituindo uma totalidade e traduzindo uma plenitude do presente vivido, representava uma inversão materialista em seu pensamento.
Bastava considerar as mudanças ou transformações como constituintes do próprio tempo, num processo progressivo, em que o futuro,
bom ou ruim, seria a única perspectiva histórica, para retirar o tempo da abstração e colocá-lo na realidade.
Em contraposição a Hegel, Ranke (1795-1885) dissociou o estudo do passado das paixões do presente. Pretendeu narrar a história
como na realidade teria sido, estabelecendo a necessidade da construção histórica basear-se em fontes estritamente contemporâneas.
Juntamente com Niebuhr, procurou criar um método que deixasse
os historiadores do século 19 indiferentes às soluções e imposições,
tanto da dialética idealista de Hegel, quanto do determinismo de
Comte e do evolucionismo de Darwin. Desse modo, ao procurar livrar-se das contradições, do movimento, dos acasos e das determinações, resvalou numa história oca.
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O positivismo determinista de A. Comte (1782-1837) reduzira a
história à descoberta e coleta dos fatos. No estudo de tais fatos seriam estabelecidas as relações de causa e efeito, e formuladas as leis
gerais do desenvolvimento humano. H. Taine (1828-1892), na esteira de Comte e na contramão de Herder e Ranke, aventurou-se a
tomar por base o desenvolvimento das ciências naturais e da mecânica, e deduzir daí que a história era um jogo das forças da raça, do
meio e do momento, cuja conexão resultaria na conformação de leis
históricas. Desse modo, o positivismo sempre vagou entre a dialética e a metafísica, sem entender a profunda relação entre acaso e
determinação na história.
Quanto ao evolucionismo, ele já estava em curso com Christian
Wolf (1679-1754), Jean Baptiste Lamarck (1744-1829) e outros zoólogos, desde o final do século 18. Portanto, bem antes de Charles
Darwin (1809-1892) e Alfred Wallace (1823-1913) fazerem suas descobertas sobre a seleção natural das espécies e introduzirem uma
cunha dialética profunda na história biológica.
A comprovação de que as espécies evoluíam através de um processo histórico de seleção natural deu uma base científica às teorias
evolucionistas e representou um golpe poderoso contra as ideias,
principalmente religiosas, de que a natureza era imutável e não tinha história. Por outro lado, estabeleceu um forte elo entre a história natural e a história humana, já que o homem provinha de alguma linhagem de vertebrados ou, como afirmou Darwin, descendia
de algum tipo de macaco antropóide.
Fustel de Coulanges (1830-1889), por seu turno, ponderava que
a história era a ciência das sociedades humanas. O que lhe valeu
críticas dos que consideravam tal ideia uma redução da parte que
cabia ao indivíduo na história. J. Berckhardt (1818-1897) não acre-
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ditava na história como ciência. Considerando a cultura uma de suas
forças universais, supunha a história reversível e procurava nela o
típico e o constante. Já Pierre Proudhon (1809-1865) tinha a história como uma determinada série de acontecimentos, no rumo do
progresso, nesse sentido concordando com o positivismo.
Karl Marx (1818-1883) e Frederic Engels (1820–1895) diziam
conhecer apenas uma ciência, a ciência da história. Engels afirmou
que, com o homem, os seres vivos haviam entrado na história. Com
isto, ele não queria dizer que a história começou com os homens,
mas que estes evoluíram ao ponto de conhecerem como a história se
processava. Reconhecia que os demais animais também tinham uma
história, a de sua descendência e desenvolvimento gradual até seu
estado atual. Essa história era feita por eles, mas na medida em que
participavam dela, a realizavam sem que o soubessem ou quisessem. Os homens, pelo contrário, quanto mais se afastavam dos demais animais, tanto mais faziam sua própria história. Os resultados
desta história poderiam corresponder, cada vez com maior exatidão, a objetivos previamente estabelecidos.
No entanto, Marx e Engels frisavam que tais objetivos só obteriam os resultados desejados se observassem as leis da natureza. Mesmo porque, tudo quanto era criado acabaria perecendo. Milhões de
anos podiam escoar-se. Centenas de milhares de gerações poderiam
nascer e morrer. Mas, inexoravelmente, avançaria a hora em que o
calor solar, em declínio, não conseguiria derreter os gelos invasores.
Em que, pouco a pouco, desapareceria o último resquício de vida
orgânica e em que a Terra giraria cada vez mais próxima do Sol apagado, e deveria ser por ele absorvida.
Haldane achou que essas previsões fúnebres teriam sido
desmentidas por Milne e Dirac, entre 1936 e 1938. Os dois teriam
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demonstrado que as leis da natureza evoluiam e que as transformações químicas se aceleravam em relação às transformações físicas.
Isto tornaria possível que o processo de aceleramento fosse suficientemente rápido para gerar calor e compensar o esfriamento das
estrelas. A vida, desse modo, poderia nunca se tornar impossível.
Infelizmente para Haldane, as observações astronômicas posteriores demonstraram que, além daquela hipótese fúnebre, pode haver
outras que levem ao mesmo fim as estrelas e a vida terrena.
A partir das considerações acima, Marx e Engels achavam possível enfocar a história de dois ângulos, dividindo-a em história da
natureza e história humana. No entanto, não seria possível separálas completamente. Enquanto os homens existissem, ambas se
condicionariam mutuamente. Para eles, o problema chave no tratamento da história como ciência, assim como das ciências em geral,
estaria no método.
De um lado estaria o método metafísico ou lógico formal, cujas
bases se encontravam em Aristóteles. Embora destruído teoricamente por Kant e Hegel, esse método perdurava por inércia e pela ausência de um outro mais simples. Eles reconheciam que o método
metafísico, ou lógico formal, perdurava no trabalho de grande parte
dos cientistas, dos diferentes campos do conhecimento humano,
porque conseguira responder razoavelmente bem a determinadas
questões do movimento terrestre.
Por exemplo, Kepler conseguira determinar as órbitas dos planetas
sem jamais colocar em dúvida que Deus os tinha colocado lá. Newton
estabelecera as leis da gravidade, sem entender o conteúdo das forças
envolvidas, nem seus limites ao ambiente terrestre. Faraday determinara as leis de ação das correntes elétricas sem saber da existência
do elétron. Maxwel explicitara o movimento da luz sem conhecer os
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fótons. E as leis da termodinâmica foram definidas sem que seus
autores conhecessem o processo interno de movimento dos átomos.
Nas chamadas ciências sociais, o próprio Aristóteles havia vislumbrado a existência do valor, sem nada saber sobre a força de trabalho. Adam Smith (1723-1790) e David Ricardo (1772-1823) concluíram que o trabalho humano era o gerador da riqueza sem saber
o mecanismo através do qual essa riqueza era gerada. Os historiadores relatavam os acontecimentos muitas vezes sem conhecer suas
origens remotas e os diferentes interesses envolvidos, ou creditando
a fonte geradora apenas a um ou a outro fator.
O problema da lógica formal seria sua limitação para o conhecimento das leis internas que geram esses fenômenos. Diante dessa
contradição, os metafísicos preferem dizer que é impossível conhecer a essência das coisas ou corpos. Mas os cientistas que, sem consciência dos métodos filosóficos envolvidos em qualquer pesquisa,
tentam aplicar a metafísica a fenômenos relacionados à química, à
física molecular, ao atomismo, à física das partículas (ou quântica),
à biologia, à paleontologia, à economia política, à sociologia e a outras ciências nas quais as mudanças são uma constante evidente,
emaranham-se em problemas e contradições de diferentes ordens.
A questão do método tornou-se, então, vital para resolver tais
problemas e contradições, surgidos com o desenvolvimento social e
o avanço das ciências. O método dialético de Hegel, que se opunha à
metafísica, tinha o defeito de apresentar-se sob uma forma abstrata, especulativa e idealista. Ao partir do pensamento puro, numa
situação em que seria preciso partir dos fatos reais, o método lógicodialético de Hegel tornava-se inservível.
Mas esse método, apesar disso, tinha a vantagem de resolver as
contradições da metafísica ao dar sentido histórico a tudo que é exis-
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tente e permitir a investigação e o conhecimento das leis internas
dos corpos. Ou seja, a lógica dialética não se limitava a calcular as
órbitas de vários corpos celestes com uma certa precisão, nem a afirmar que o Sol deve nascer em determinada hora. Ela tinha a capacidade de explicar, mesmo usando apenas o raciocínio abstrato, a origem e a natureza desses movimentos, ou de suas mudanças, e de
verificar se as descobertas das ciências naturais correspondiam às
leis de movimento da natureza.
A lógica dialética, por exemplo, admitia que as órbitas dos planetas do nosso sistema solar e os horários de nascimento do Sol, definidos através da metafísica, eram verdadeiros para o momento histórico em que vivemos. No entanto, ela também afirmava, antes que
os astrônomos e astrofísicos se convencessem que o universo tinha
uma história, que há alguns milhões de anos atrás, as órbitas e o
nascer do Sol não eram os mesmos da atualidade. E que, daqui a
vários milhões de anos, chegaria o dia em que o Sol não nascerá e
seu sistema planetário deixará de existir. A lógica dialética do século
19 certamente errou nos milhões de anos, ao invés dos bilhões. Mas
acertou na tendência geral.
Assim, se desde o início os homens de ciência houvessem entendido que nada é estático, que o movimento e as mudanças são inerentes a todas as formas da matéria, e que a contradição é o motor
que as gera, provavelmente estivéssemos mais avançados na compreensão de muitos fenômenos ainda desconhecidos. Porém, esse
descompasso tem feito parte da história do pensamento, e ainda faz
parte da realidade.
De qualquer modo, foi em virtude do sentido histórico do método dialético hegeliano que Marx e Engels avaliaram, em meio a todo
o material lógico existente na época, que ele era o único que podia
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ser utilizado. A dialética hegeliana era a única que marchava paralelamente ao desenvolvimento histórico universal. Nutrindo-se de conteúdo real, ela punha em relevo o processo de desenvolvimento, suas
conexões internas, em toda parte tratando a matéria historicamente.
Tal concepção, submetida à crítica, poderia ser a premissa direta
de uma nova concepção histórica, materialista, além de brindar um
ponto de partida para o método lógico-dialético. No dizer de Marx,
ele teria apenas restaurado o método dialético de Hegel, despojando-o de sua roupagem idealista e colocando-o sobre uma base materialista. A partir dessa conclusão, qualquer pesquisa científica poderia ser abordada tanto pelo método histórico, quanto pelo método lógico-dialético.
Ao seguir o procedimento histórico, onde as coisas se desenrolariam a grandes traços, os pesquisadores se defrontariam, porém,
com a interferência de fatores ou relações externos. Alheios ao processo gerador do fenômeno ou acontecimento, esses fatores ou relações externos fariam com que a história, freqüentemente, se desenvolvesse aos saltos e em ziguezagues, obscurecendo o processo real
de desenvolvimento do fenômeno ou acontecimento pesquisado.
Por isso, Marx considerou que o método lógico-dialético seria o
mais adequado para estudar os fenômenos específicos de desenvolvimento da natureza e da humanidade. Da mesma forma que muitos cientistas já vinham isolando, empiricamente, seus objetos de
pesquisa das interferências externas, a lógica dialética estabelecia essa
prática como forma científica de analisar todo e qualquer fenômeno
da natureza, incluindo a sociedade humana, em sua forma pura, de
modo a descobrir seus aspectos internos de desenvolvimento.
Marx e Engels não consideravam que isso representasse uma separação irreparável entre o método histórico e o método lógico-
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dialético. Este último não passaria do método histórico despojado
de sua forma histórica e das contingências perturbadoras que a cercam a cada momento. Em outras palavras, apesar dos desvios e sobressaltos impostos por essas contingências externas, se a pesquisa
lógico-dialética fosse correta, a prática a comprovaria mais cedo ou
mais tarde, mesmo que, em muitas ocasiões, devesse esperar a história para realizar-se plenamente.
Por exemplo, um ser humano tem um período de vida que inclui,
a partir do nascimento, a infância, a puberdade, a juventude, a idade adulta, a velhice e a morte. Completar todas essas fases representa completar todo o seu desenvolvimento lógico-dialético. Historicamente, porém, esse ser pode morrer logo após o parto, ou em qualquer das fases intermediárias, por problemas congênitos, por acidentes ou por outro motivo qualquer. Portanto, a história pode interromper o processo lógico-dialético de desenvolvimento, antes de
que ele se complete. Ela também pode causar um desvio nesse processo, como é o caso dos seres humanos que, por algum fator externo ou interno, encurtam ou alongam algumas dessas fases, ou sobrevivem muito além do período médio de vida.
Um dos problemas de alguns cientistas consiste em sua incapacidade de trabalhar essas duas ordens de desenvolvimento – o lógicodialético e o histórico – de modo articulado. Para Marx, na aplicação do método lógico-dialético dever-se-ia sempre partir da relação
primeira e mais simples, que existisse historicamente e de fato.
Tomar tal relação significaria considerar a existência de dois lados ou aspectos, a serem analisados tanto separadamente, quanto
em sua interdependência recíproca. Segundo ele, tal análise conduziria a contradições que reclamariam solução, seguindo uma sucessão real de fatos ocorridos real e efetivamente. Ao estudar o caráter
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da solução encontrada, lograr-se-ia uma nova relação, cujos aspectos contrapostos deveriam ser analisados na busca de outra solução,
e assim sucessivamente.
Como decorrência da utilização desse método na história humana, Marx deduziu que todas as lutas históricas das sociedades humanas, fossem aquelas que se realizavam nos terrenos social, político, religioso e filosófico, fossem as que ocorriam em qualquer outro
terreno das idéias, não seriam mais do que a expressão relativamente clara de lutas entre classes sociais. Por sua vez, a existência dessas
lutas estaria condicionada pelo grau de desenvolvimento de sua situação econômica e pelo caráter do modo de produção e de troca
que davam base a tal situação. É lógico que Marx deixou de lado o
período histórico da humanidade em que as classes e as sociedades
ainda não existiam, e em que a cooperação e o conflito ocorriam
tendo por base outros interesses.
Por esse e por outros motivos, o método proposto e adotado por
Marx e Engels encontrou reações contrárias de todos os tipos. Primeiro, porque Hegel, embora tendo sido posto sobre uma base materialista, permaneceu difícil de ser estudado e compreendido. Segundo, porque o próprio Marx, assim como Engels, acharam mais importante dedicar-se à aplicação desse método ao estudo econômico-político das relações internas do capital, do que tentar explicar didática e
historicamente a evolução do próprio método. Terceiro, porque embora existam muitos textos em que tanto Marx quanto Engels apliquem seu método ao estudo de acontecimentos históricos, a maior
parte dos historiadores não os conhece, nega-se a lê-los e, mesmo assim, os repudia como mecanicamente estreitos, ou deterministas.
Além disso, muitos dos seguidores de Marx e Engels não entenderam o método de ambos e procuraram transformá-lo em doutri-
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na. O que os tem levado a uma interpretação metafísica dos textos
econômicos, filosóficos e históricos de ambos, e a uma avaliação
pouco científica da realidade, em especial da realidade social. Por
fim, à medida que o marxismo se tornou um instrumento para a
transformação social, seu método passou a ser encarado como um
método ideológico e não científico. Nessas condições, muitos pensadores deixaram de lado o método lógico-dialético, seja criticandoo ou simplesmente ignorando-o ou omitindo-o.
Max Weber (1864-1920) e Ernest Troeltsh (1865-1923), por exemplo,
o rejeitaram, acreditando na necessidade de estudar a história concreta,
os acontecimentos particulares de cada momento. Tinham grandes reservas às generalizações, tendo em conta a multiplicidade dos fatores reais. Weber considerava que a história só seria uma ciência à medida que
levasse em conta os procedimentos metodológicos. Em oposição às contradições do método dialético, criou a teoria da multiplicidade das
conexões causais, da importância dos fatores ideais e da periodização
da história universal, considerando as ciências históricas (sociologia, antropologia e história) fora do domínio das ciências naturais.
Emile Durkheim (1858-1917), por seu turno, considerava que a
história só poderia ser uma ciência com a condição de elevar-se acima do individual, deixando de ser ela mesma para tornar-se um ramo
da sociologia. François Simiand (1873-1935) também pretendia que
a história se juntasse à sociologia para tornar-se científica, libertando-se de seus ídolos. Ou seja, deixando de lado a preocupação dominante nos fatos políticos e militares, o hábito inveterado de conceber-se como história dos indivíduos, e a cronologia, perdendo-se no
estudo das origens.
J.H. Rodrigues (1913-1987) se aproximou de Hegel e de Marx, ao
afirmar que a história seria a ciência da mudança. Tratar-se-ia de
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uma ciência humana, que não temeria verdades incômodas, porque
serviria à verdade e não aos acontecimentos políticos do dia. A história se colocaria em tudo, acompanhando o processo temporal no
todo e em cada parte. A vida e a realidade seriam história, gerando
passado e futuro. Ao mesmo tempo, porém, ele expressou a opinião
de que o marxismo era mecanicamente estreito.
Em oposição a tal estreiteza, sugeriu que o historiador deveria
estar ligado ao ponto de vista contemporâneo. A realidade histórica seria uma pintura que dependia da perspectiva que o historiador tivesse. Um problema histórico, para ele, seria sempre uma
questão levantada pelo presente em relação ao passado. Assim, ao
invés de considerar o presente como um desenvolvimento do passado, oferecendo condições mais favoráveis para o entendimento
desse passado, subordina este à perspectiva presente, distorcendo
a visão histórica.
Paul Ricoeur (1913-1986) opinou que a filosofia hegeliana da história teria empanado, com sua totalização, os interesses singulares
dos indivíduos, do Estado e dos povos. Portanto, sua perda de credibilidade teria sido um grande acontecimento do século 20. Com isso, expressou o ponto de vista de uma grande corrente de historiadores que
procura atacar o marxismo através do descredenciamento de Hegel.
Mas Adam Schaff (1913-1989), na linha do pensamento de Hegel
e Marx, afirmou que o historicismo, como corrente de pensamento,
contestava o ideal da natureza imutável do homem e das leis naturais. Procuraria captar a natureza, a sociedade e o homem, em constante movimento, em suas mutações contínuas. Reconhecia, porém,
que o historicismo havia se desdobrado em duas vertentes. Uma,
anti-naturalista, não acreditava na existência de leis gerais, enquanto a outra, naturalista, embora sustentando a existência de leis de
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desenvolvimento histórico, discordava da utilização de leis universais para os fenômenos sociais.
Em outras palavras, uma simplesmente descartava a dialética
como imprestável. A historia se produziria totalmente de forma aleatória, sendo impossível enxergar nela qualquer regularidade ou
determinação. A outra reconhecia a existência da dialética, mas não
nos processos sociais. Assim, a dialética teria acompanhado os
hominídeos até constituírem a sociedade. A partir daí, o desenvolvimento histórico teria deixado a dialética de lado e seguido seu próprio rumo.
Já a visão de Bloch, sobre a história como ciência do tempo e da
mudança, não se coadunava com a sua própria idéia de que a história
é a história dos homens no tempo. Pensava as duas coisas, sem
considerá-las uma contradição. Para ele, seguindo Dilthey nesse aspecto, o objeto da história seria, por natureza, o homem. Ou, melhor:
os homens, que deveriam procurar a verdade e a justiça na história.
Por isso, Bloch também considerava que, ao invés de uma ciência do passado, deveríamos ter uma ciência histórica que levasse os
homens a compreenderem o presente pelo passado e, correlativamente, o passado pelo presente, embora o passado não fosse objeto
de ciência. Talvez nem se tenha dado conta de que, se o passado não
for objeto da ciência, ele não poderá fazer parte da ciência histórica.
Nestas condições, como os homens poderiam compreender o presente pelo passado e, correlativamente, o passado pelo presente?
Fernand Braudel (1902-1985) procurou colocar a história como
a ciência federativa das ciências humanas, opondo a longa duração
histórica à antropologia estrutural de Claude Lèvi-Strauss (19082009). Supunha que a longa duração subordinaria até mesmo as
estruturas imutáveis da antropologia. Para isso, ele pluralizou a di-
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mensão temporal, considerando que o tempo se decompunha em
ritmos heterogêneos, que romperiam a unidade da duração. No entanto, ao fazer isso ele não mais diferenciou passado, presente e futuro. Estes se reproduziriam sem descontinuidade.
Ou seja, embora levando em conta a existência de ritmos diferentes ou desiguais no processo de mudanças, que nos dão um ritmo
temporal plural (por exemplo, num mesmo momento histórico do
planeta Terra, convivem sociedades de momentos históricos diferentes), Braudel misturou passado, presente e futuro e nos conduziu a um tempo estacionário.
Para Walter Benjamin (1892-1940), a história não tem uma relação de causa e efeito, não se devendo pensar o passado e o presente
como uma relação de sucessividade. O passado seria contemporâneo do presente. Como a trama histórica seria de natureza dialética,
identificá-la a um simples nó causal redundaria em desencaminharse. Seus fios ficariam perdidos durante séculos e se entrelaçariam,
bruscamente, pelo curso atual da história. Este é um exemplo de
onde pode nos levar uma leitura desatenta de Hegel.
Emmanuel Le Roy Ladurie (1929-1973) achou que a história não
colocava sua tônica nas acelerações e mutações, mas sobre os agentes da reprodução, que permitiriam a repetição idêntica dos equilíbrios existentes. Em conseqüência, seria nos fatos biológicos, mais
do que na luta de classes, que se encontraria o motor da história
humana.
Finalmente, sob o impacto da física quântica, Alain Boyer considera a indeterminação essencial para pensar as várias possibilidades dos agentes da história. Com ele, o chamado princípio de incerteza, de Heisenberg, saltou da teoria quântica para a teoria histórica. Embora nossa morte seja previsível, em algum tempo no futuro,
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o princípio da incerteza nos diz que é impossível prever a data certa,
como se isso fosse uma descoberta científica fundamental.
Assim, repassando o pensamento de uma relação apenas sumária de historiadores que trataram da teoria da história, nos deparamos com um mosaico desencontrado de escolas díspares. Questões
sobre a história da natureza, sua relação com a história humana,
sobre o espaço e o tempo histórico, sobre a imutabilidade e a mudança histórica, sobre o método de estudo histórico e sobre uma
série de temas relacionados ao conhecimento da história como ciência, não só permanecem contraditórios, mas também obscuros em
grande parte dos textos históricos.
Decidi, então, tentar esclarecer para mim próprio esses assuntos.
E, ao mesmo tempo, comprovar se Engels tinha razão ao afirmar
que, na natureza, se aplicam, na confusão de suas inumeráveis transformações, as mesmas leis dialéticas do movimento, leis essas que
governam a aparente contingência dos fatos históricos. Para isso,
nada melhor do que começar por uma viagem ao início dos tempos
atuais.
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Justificando a viagem
Querer aventurar-se numa viagem ao início dos tempos atuais,
mesmo de maneira virtual, parece coisa de ficção científica. No entanto, não é isso que estamos sugerindo. Estamos apenas afirmando
que a humanidade alcançou um ponto de desenvolvimento científico e tecnológico que nos permite conhecer aquela realidade histórica com razoável grau de aproximação.
Tal viagem seria impensável em qualquer outra época da história humana. Somente agora a ciência tornou viável a alguém se
embrenhar, ao mesmo tempo, pelas profundezas mais longínquas
do universo e pelo mundo nano ou microscópico das partículas atômicas. Ela reuniu uma massa de conhecimentos empíricos e teóricos, a partir de observações continuadas do cosmos e das partículas
microscópicas, que permite discutir o processo histórico da natureza desde os seus momentos primordiais, como costumam especificar alguns físicos e filósofos das ciências.
Portanto, nossa primeira preocupação será demonstrar que, apesar de uma nova barbárie estar à nossa porta, já alcançamos tal estágio de desenvolvimento. Esta é uma contradição que aponta para
desafios de monta. Hoje, somos mais de seis bilhões de seres humanos sobre a Terra. À primeira vista, a maioria dessa humanidade
está organizada em nações e regiões autônomas ou independentes.
A maior parte delas é constituída de nações multi-étnicas, cada uma
das quais com dezenas ou centenas de etnias, com seu próprio idio-
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ma. Algumas dessas etnias possuem apenas alguns milhares de seres, como a kaiuwa e a ianomami, enquanto outras possuem centenas de milhões, como a han e a hindu.
Apesar da variedade de interpretações sobre a história e a essência humana, assim como sobre sua organização em sociedades, algumas destas bastante ricas e prósperas, uma observação mais atenta
nos leva à conclusão de que, da mesma forma que seus ancestrais
mais longínquos, a maioria dos homens atuais continua tendo que
trabalhar. Eles precisam produzir alimentos, vestuários, moradias,
meios de transporte, energia e outros bens necessários à vida cotidiana, tanto as suas, quanto as dos demais membros da sociedade.
Em função dessa necessidade, tanto biológica, quanto social, os
homens continuam tendo que se organizar para realizar tal produção, assim como para distribuir seus resultados entre os diversos
membros de cada sociedade. Esta produção e distribuição ganhou o
nome de economia política ou, para alguns, simplesmente economia.
A organização econômica depende, por sua vez, dos recursos ou
matérias primas que a natureza coloca à disposição dos homens,
assim como do nível técnico que alcançaram os meios de extração
desses recursos naturais, os meios de transformação desses recursos em produtos úteis, e os meios capazes de distribuir tanto as matérias primas quanto os produtos criados a partir delas. Em outras
palavras, dependem dos meios de produção e das relações que os
homens estabelecem com a natureza e entre si.
Assim, nos defrontamos com produções minerais, agrícolas e industriais e com meios de transporte extremamente desiguais em sua
distribuição territorial, seja entre países e regiões globais, seja entre
regiões dentro de um mesmo país. Em vários casos, nos defrontamos com as chamadas altas tecnologias, a exemplo das fabricações e
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transportes automatizados, com o auxílio de computadores e robôs.
Em vários outros, predominam as tecnologias tradicionais, a exemplo do artesanato, da lavoura manual e do transporte de tração animal, aqui incluído o próprio homem.
Na maioria das nações atuais predomina o modo de produção capitalista. Isto é, um modo de produção no qual uma série de pessoas
concentra em suas mãos riquezas monetárias, ou dinheiro. Com o dinheiro, essas pessoas compram meios de produção, distribuição e
circulação (prédios, máquinas, equipamentos, energia, matérias primas, transportes etc) e a força de trabalho necessária para o funcionamento daqueles meios. Através de tais meios, a força de trabalho
transforma as matérias primas fornecidas pela natureza em produtos, mercadorias, ou valores de troca, para uso na vida humana.
Meios de produção e força de trabalho constituem pólos de uma
relação social normalmente chamada forças produtivas. Historicamente, o desenvolvimento técnico dos meios de produção tem desempenhado papel fundamental para o estabelecimento das relações entre a força de trabalho e os proprietários dos meios de produção. A invenção da agricultura levou a humanidade a estabelecer as
relações escravistas, nas quais o dono da força de trabalho, isto é, o
trabalhador agrícola, assim como a terra, era propriedade privada.
O desenvolvimento dos instrumentos agrícolas, associada a diversos outros fatores históricos, introduziu mudanças importantes
nas relações dos donos da força de trabalho com os proprietários
privados. Nos campos, em geral, manteve o trabalhador agrícola
como escravo da terra, mas não mais como propriedade privada do
proprietário fundiário. O escravo da terra tornou-se proprietário privado de pequenos meios de produção e, ao mesmo tempo, tributário
do proprietário fundiário.
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Ao lado disso, com a ampliação do artesanato e o surgimento da
manufatura, fez surgir, embrionariamente, um trabalhador livre de
qualquer propriedade, que vendia sua força de trabalho em troca de
soldo. Posteriormente, com a transformação da manufatura em indústria, em virtude do desenvolvimento técnico dos meios de produção, da
acumulação de imensas riquezas de metais nobres, transformadas em
dinheiro, e da expropriação de massas de lavradores, a utilização desse
tipo de trabalhador livre tornou-se cada vez mais intensa.
O capital surge, historicamente, da relação que o proprietário de
dinheiro estabelece com o proprietário da força de trabalho. O capital é, assim, uma relação social, ou um conjunto de relações sociais,
que se materializa principalmente na compra e na venda. O espaço
onde essas relações de compra e venda ocorrem é o famoso mercado, que muitos tratam como um ser vivente, mitologicamente eterno, embora tenha surgido apenas no estágio histórico do escravismo.
Temos, então, de um lado os proprietários de capital dinheiro,
que transformam esse dinheiro tanto em ativos ou capital constante (compra de meios de produção), quanto em capital variável (compra de força de trabalho). De outro, temos não-proprietários de capital, mas proprietários de força de trabalho, que podem vender essa sua
força, como uma mercadoria qualquer, em troca de salário, para colocar em funcionamento os meios de produção pertencentes aos proprietários de capital constante. Temos aí uma relação de opostos em que a
cooperação predomina para a realização da produção social.
Mas o segredo do desenvolvimento do modo capitalista de produção reside no fato de que, no processo de cooperação para a produção social a força de trabalho, ao transformar as matérias primas
em novos produtos, gera um valor superior ao valor que recebe para
se reproduzir. Neste caso, para se reproduzir seja como força de tra-
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balho, seja como ser humano. Esse valor a mais, ou mais-valia, ou
capital excedente, ou lucro, é apropriado pelo proprietário dos meios de produção, que o divide para seu usufruto individual e para a
substituição ou ampliação dos seus meios de produção.
Esta é a base do conflito estrutural entre os proprietários dos meios
de produção e os proprietários da força de trabalho, estes os produtores de fato. Os primeiros procuram aumentar a mais-valia através
de uma série de artifícios, os principais sendo o rebaixamento dos
salários e a extensão das horas de trabalho. Os segundos procuram
melhorar as suas condições de reprodução, principalmente através
da elevação dos salários, o que incide diretamente sobre a mais-valia.
Assim, temos aqui uma relação entre opostos em que a disputa, a
competição ou o conflito predomina no processo da produção social.
Neste aspecto, como dizia Engels, Darwin não tinha a menor idéia
da sátira amarga que escreveu sobre os homens, quando afirmou
que a livre competição, a luta pela existência, que os economistas
celebram como a maior conquista histórica da humanidade, constitui exatamente o estado natural do reino animal. Essa disputa entre
os proprietários capitalistas e os proprietários da força de trabalho é
um dos principais aspectos da luta de classes no capitalismo, mas
não o único.
Os proprietários dos meios de produção cooperam entre si, por
diferentes meios, para elevar suas taxas de lucratividade, ou rentabilidade, na relação com os proprietários de força de trabalho. Por
outro lado, o modo capitalista de produção também se move empurrado por uma constante concorrência ou competição entre os
diversos proprietários de meios de produção.
Esta competição os compele a realizar inovações técnicas e
organizacionais, que elevem a produtividade do trabalho, reduzin-
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do o valor de troca unitário de seus produtos e elevando suas vantagens, em termos de custos e preços, em relação aos concorrentes.
Ao introduzir reduções nos valores de troca, a concorrência incide
sobre a lucratividade dos capitalistas, fazendo com que a taxa média
de lucro tenda a cair. Isto represente uma contradição entre semelhantes, difícil de ser resolvida porque a concorrência ou competição é vital para a sobrevivência dos proprietários capitalistas no mercado, como seres econômicos e sociais. Os que não conseguem vencer na concorrência do mercado são expelidos e aniquilados, como
capitalistas, por seus próprios semelhantes.
Os proprietários de força de trabalho também cooperam entre si
para forçar a elevação dos salários e das condições de sua reprodução. No entanto, a elevação da produtividade, assim como outros
fatores de funcionamento do processo produtivo, tendem a criar um
excedente de força de trabalho disponível no mercado. A força de
trabalho não empregada procura resolver sua situação de reprodução ofertando-se por salários mais baixos. Isto também representa
uma contradição entre semelhantes, difícil de ser resolvida no quadro das relações capitalistas.
Desse modo, cooperação e conflito se apresentam como aspectos
contraditórios não só da relação entre os proprietários de meios de
produção (capitalistas) e os proprietários de força de trabalho, os
assalariados, (ou proletários como os chamavam os romanos da época do escravismo), mas também como aspectos contraditórios de
cada um dos pólos da contradição entre capitalistas e proletários.
Em cada nação ou região do mundo, esse modo capitalista de produzir possui diferentes graus de desenvolvimento de suas forças produtivas, o que inclui tanto os meios de produção quanto a força de trabalho. Em geral, elas estão mais concentradas em algumas zonas urba-
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nas do que em outras. No Brasil, por exemplo, as principais forças
produtivas estão concentradas nas capitais e em algumas grandes cidades da região sudeste, evidenciando seu desenvolvimento desigual.
As relações sociais, em especial as que dizem respeito à divisão
da propriedade, também são mais polarizadas em alguns países e
menos em outras. O Brasil também é um exemplo de país onde a
propriedade, em especial a propriedade territorial, é altamente concentrada. O mesmo ocorre com a divisão social do trabalho, que se
eleva proporcionalmente à concentração da propriedade capitalista
e da força de trabalho.
Além disso, em várias nações ou regiões o modo capitalista convive, às vezes em cooperação, às vezes em conflito, com remanescentes de modos de produção historicamente mais antigos, como o camponês, o feudal, o escravista e o comunitário. Também convive, em
cooperação e/ou em conflito, nos sistemas políticos socialistas, com
as formas econômicas públicas e estatais sob controle do Estado, que
têm poder de interferir no funcionamento do mercado e da economia
como um todo. Em termos gerais, a maior parte da humanidade se
encontra em sistemas de transição de um modo de produção para
outro, seja dos antigos para o capitalismo, seja deste para outro. O
socialismo, neste sentido, não passa de um sistema de transição.
Essa situação gera grande multiplicidade de culturas, tanto antigas, quanto modernas. Isto é, idiomas, artes, literatura, teatro, cinema, culinária, comportamento, sensibilidade etc, são muito variados
entre as diferentes nações, e dentro de cada uma delas. Os sistemas
políticos também variam. Democracias liberais, democracias populares, regimes socialistas, monarquias constitucionais, monarquias hereditárias, ditaduras étnicas, teocracias, ditaduras militares etc, formam um mosaico variado, algumas vezes no interior de cada país.
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As disparidades regionais e de renda também são acentuadas.
Na África, Ásia e América Latina, cerca de dois bilhões de pessoas
vivem ameaçadas de extinção pela fome e pelas doenças. Mesmo
nos países economicamente mais desenvolvidos, é possível verificar
aquilo que Engels chamava colossal desproporção entre os objetivos fixados e os resultados obtidos.
Se aplicarmos a tese de que os homens impõem cada vez mais
sua própria história à história humana, verificaremos que os efeitos
não previstos predominam sobre os objetivos fixados. As forças não
controladas seriam muito mais poderosas do que as postas em movimento pelo plano estabelecido. Isto porque a principal atividade
histórica do homem, aquela que o elevou da animalidade à humanidade, que constitui o fundamento material de todas as suas outras
atividades – a produção para as necessidades de sua vida – estaria
submetida ao jogo das influências indesejáveis, de forças não controladas, como é o caso do capitalismo.
A conseqüência do domínio dos homens sobre as forças naturais, com o capitalismo elevando a produtividade a níveis inimagináveis, tem sido, acima de tudo, miséria e poluição. Assim, por um
lado, os países ricos da Europa e América alcançaram um desenvolvimento material de tal ordem que permitiria à humanidade
suprir as necessidades da maior parte de seus membros, se a apropriação dos resultados desse desenvolvimento fosse realizada de
maneira socialmente equilibrada. Porém, esse desenvolvimento
exponencial da capacidade produtiva proporcionado pelo capitalismo foi realizado, em grande parte, às custas da exploração dos
demais países e povos do planeta. Paradoxalmente, ele estimulou
e, ao mesmo tempo, foi estimulado pelo desenvolvimento científico e tecnológico.
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Se olharmos em retrospectiva, há mais de um milhão de anos
atrás, os ancestrais dos homens começaram a dominar o fogo e a
utilizá-lo para fins úteis à sua sobrevivência. Fósseis do hominídeo
yuanmounensis, datados de 1,7 milhão de anos, apresentaram evidências de que esse antropóide já utilizava o fogo. Depois, entre 15
mil e 5 mil atrás, o Homo sapiens passou a domesticar animais e
plantas, inventou a agricultura e, com ela, o pensamento de escrever
e fazer operações com números.
As primeiras ferramentas para lavrar a terra, de madeira, pedra e
osso, surgiram entre 7 mil e 6 mil anos atrás, da mesma forma que o
primeiro calendário solar, feito pelos egípcios. Para inventar a escrita, os homens consumiram uns 2 a 3 mil anos após a revolução
agrícola. Os egípcios criaram os seus hieróglifos cerca de 5500 anos
atrás, os chineses, os seus caracteres há 4700 anos, e os hindus há
4300 anos. Há 4100 anos atrás a cidade-estado de Ur, na
Mesopotâmia, criou o primeiro código jurídico, enquanto os gregos
de Creta criavam a primeira civilização do mar Egeu e os fenícios
criavam uma escrita alfabética.
A cobrança de impostos reais talvez tenha sido o primeiro impulso para a criação da geometria, já que as taxas de cobrança tinham
por base a área de terra ocupada. Os agiotas da Babilônia aprenderam a calcular juros, embora através de enigmas, e utilizavam um
sistema de cálculo geométrico idêntico ao teorema de Pitágoras.
A metalurgia de bronze foi praticada pelos chineses desde 4300
anos atrás. Mas a metalurgia do ferro levou pelo menos outros 1700
anos para ser praticada por hititas, babilônios, chineses e gregos. Os
primeiros veículos de transporte de pessoas e cargas, e as primeiras
máquinas que substituíram os músculos humanos na fabricação de
fios e tecidos, só surgiram há uns 3500 anos.
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Por volta de 500 a.c. os chineses já escreviam em tiras de papel
vegetal e fabricavam tecidos de seda, enquanto os egípcios utilizavam
pergaminhos e tecidos de algodão. Depois disso, os humanos mais
avançados gastaram mais 2 mil anos para inventar moinhos de água
e de vento, relógios de água e mecânicos, a bússola, a pólvora e as
armas de fogo, construir as primeiras embarcações oceânicas, pavimentar e iluminar ruas, redescobrir os continentes e conhecer outros
povos. Mas, segundo um manuscrito alemão de 1481, esta foi a primeira vez que introduziram o sinal de + (mais) em seus cálculos.
Depois, levaram apenas mais quinhentos anos para criar manufaturas, inventar a máquina a vapor, o fuso e o tear mecânicos, a
locomotiva e os navios a vapor, as ferrovias, o motor elétrico, o motor diesel e a explosão, e o aço. Criaram a indústria, com suas máquinas ferramentas e linhas de produção, capazes de produzir substâncias químicas, tecidos, chapas e laminados de aço, navios e aviões em série. Constituíram assim um complexo sistema muscular e
sanguíneo produtivo industrial, que multiplicou por milhares de
vezes a capacidade do cérebro e das mãos humanas em produzir
bens e equipamentos para sua comodidade.
A seguir, num espaço de menos de 50 anos, na segunda metade
do século 20, as sociedades humanas avançadas deram um salto ainda maior. Tendo por base o sistema industrial que seus técnicos e
empreendedores haviam criado, elas passaram a produzir equipamentos e instrumentos capazes de analisar grandes corpos, como
estrelas e galáxias, e corpos microscópicos, como partículas e vírus.
Com isso, ampliaram consideravelmente o conhecimento que os
homens de ciência tinham da realidade que cerca a vida terrena e o
cosmos. E transformaram as ciências e tecnologias nas principais
forças produtivas da humanidade.
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No estudo dos corpos microscópicos, foram dados grandes passos para diagnosticar as doenças dos seres vivos e descobrir meios
de curá-los. Descobriu-se, por exemplo, que os vírus eram causadores de inúmeras doenças, como a febre amarela e a dengue. Em contrapartida, também foram descobertas e produzidas as sulfanilamidas, os antibióticos, as vacinas, a insulina, os fatores que permitem
uma transfusão de sangue segura, o saneamento, a higiene pessoal e
as dietas para a saúde humana.
Ao mesmo tempo, com a invenção dos sistemas eletrônicos e das
tecnologias de supercondutores de silício, puderam ser projetadas e
fabricadas bobinas de escaneadores, para a obtenção de imagens
por ressonância magnética, assim como microscópios de alta resolução, o eletro-encefalograma, o tomógrafo e outros equipamentos
avançados para diagnoses e cirurgia por imagens.
A descoberta dos semicondutores levou à fabricação do transistor, no qual o fluxo de elétrons é controlado. Isso permitiu substituir as antigas válvulas amplificadoras usadas nos rádios e tornou o
transistor usado universalmente em televisores e outros aparelhos
eletro-eletrônicos, na forma de chips de silício.
Os bioquímicos desenvolveram novas técnicas de difração dos
raios X, que tornaram possível estudar a composição das grandes
moléculas. Na química, tudo o que pode ser pensado com coerência
e for possível de ser produzido, passou a ser realizado. Os químicos
criaram os plásticos, os vidros e as cerâmicas refratárias, assim como
as tecnologias de montagem dos circuitos eletrônicos miniaturizados
em chips. Hoje ela avança nos trabalhos com fulerenos, nanotubos e
supercondutores de altas temperaturas, materiais que podem revolucionar ainda mais o processo produtivo.
Os fisiologistas conseguiram descobrir que bilhões de células dos
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organismos vivos morrem e são repostas a cada dia, mesmo estando
fisiologicamente saudáveis. E descobriram a forma de produzir tecidos vivos em cultura, em especial as células-tronco embrionárias,
que constituem o embrião inicial para a especialização e desempenho das células.
Os geneticistas demonstraram que os genes eram feitos de DNA,
a mais singular de todas as moléculas celulares, abrindo um campo
vasto para o conhecimento em profundidade da evolução histórica
da vida e introduzindo a informação como um aspecto importante
do processo de reprodução das espécies.
Com o Projeto Genoma Humano, através de técnicas automatizadas para decifrar as informações codificadas do DNA, constataram que os seres humanos contam com menos genes do que se supunha. Apenas cerca de 35 mil, muitos dos quais são compartilhados com insetos e plantas, embora suas funções sejam diferentes.
Em outras palavras, colocaram os seres humanos como mais um
dos resultados do processo histórico de transformação de substâncias inanimadas em substâncias orgânicas e, destas, em seres vivos,
com o surgimento das primeiras proteínas.
Planos cada vez mais precisos e extensos permitem racionalizar a
composição química, de tal modo que as qualidades dos compostos
poderão ser previstas antes de qualquer experiência. O conhecimento
profundo de uma substância particular pode ser aprimorado, precisado e multiplicado pelo conhecimento de substâncias diferentes ou
pelo conhecimento do conjunto das substâncias. Ao se introduzir
corpos novos em séries de corpos incompletamente conhecidos,
como fizeram os geneticistas que modificaram alguns pares de genes
do DNA, substitui-se o conhecimento de corpos particulares pelo
conhecimento da série.
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Astrônomos, físicos, astrofísicos, cosmólogos e engenheiros criaram o radiotelescópio, o espectrógrafo, a óptica adaptável e a
interferometria, abrindo janelas maiores para observar fenômenos
cósmicos de baixa temperatura e determinar a composição química
das estrelas a distâncias maiores.
Os físicos descobriram a fissão e a fusão nucleares como poderosas fontes de energia. E a ciência física moderna, do mesmo modo
que a química moderna, tornou-se cada vez menos ciência dos fatos
e mais ciência dos efeitos. Em geral, as ciências estão se transformando, rapidamente, de instrumentos de pesquisa da realidade, em
instrumentos de modificação da realidade e das forças produtivas.
Cada vez mais nos encontramos em condições de conhecer as conseqüências mais remotas de nossas atividades mais comuns de produção. Teoricamente, o homem pode submeter a natureza, pondo-a
a serviço de seus fins determinados e imprimindo-lhe as modificações que julga necessárias, sem romper com as leis naturais de desenvolvimento.
Com a criação da espantosa tecnologia aeroespacial, que permite
fazer viagens a longa distância, em curtos espaços de tempo, a humanidade pode chegar à Lua, enviar sondas astronômicas de pesquisa a
outros planetas do sistema solar, e manter telescópios e satélites artificiais de controle meteorológico e militar ao redor da Terra. E pode
sonhar com a possibilidade de explorar e habitar outros planetas e
satélites do nosso sistema solar, num futuro não muito distante.
Com tudo isso, a humanidade assistiu, ainda sem perceber todas
as suas implicações, à criação daquilo que se pode chamar de sistema nervoso do processo produtivo e da comunicação social, através
de equipamentos eletrônicos de coleta, tratamento e transmissão de
dados, informação e comunicação. Com a invenção do rádio, televi-
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são, computadores, telefones sem fio e, mais recentemente, da
Internet, tornou-se comum realizar em poucos minutos cálculos
matemáticos complexos e acompanhar ao vivo os acontecimentos,
descobertas científicas, inventos e inovações tecnológicos, em cada
canto do mundo.
Embora persistam regiões em que esses meios de informação e
comunicação ainda não aportaram, a solução deste problema não é
mais técnica, mas estritamente econômica e social. Desse modo, de
provados instrumentos de pesquisa e conhecimento, as ciências,
associadas às tecnologias, se transformaram nas forças produtivas
mais poderosas dos seres humanos, tendo por base novos ramos científicos, a exemplo da eletrônica, robótica, biotecnologia,
nanotecnologia e química fina. Conhecendo em profundidade as leis
da natureza, os homens se tornaram capazes de replicá-las em produtos projetados para uso humano.
No entanto, apesar das ciências e tecnologias haverem alcançado
esses níveis e demonstrarem uma capacidade de desenvolvimento
cada vez maior, os homens ingressaram no século 21 às voltas com
inúmeras lacunas no conhecimento sobre si próprios, seu entorno
ou meio ambiente, e sobre o universo em que se encontram. Além
disso, estão confrontados com os problemas resultantes dos danos
causados à natureza, tanto pelas antigas formações sociais, quanto
pelo atual sistema capitalista.
Simulações em computador mostraram que a queima de combustíveis fósseis tem ligação estreita com a quantidade de dióxido
de carbono na atmosfera e pode causar a elevação da temperatura
da camada de ar que envolve a superfície terrestre. Mas os modelos
computadorizados também mostraram que o próprio processo natural de atividades vulcânicas, e dos seres vivos em geral, emite quan-
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tidades consideráveis de dióxido de carbono para a atmosfera. Assim, o atual processo de rápidas mudanças nos padrões atmosféricos e nas correntes oceânicas ainda é imprevisível, em grande medida porque o processo geral de resfriamento, tanto do Sol, quanto da
Terra, continua.
O exame de amostras nas capas de gelo da Groenlândia e da
Antártida mostrou que ocorreram mudanças bruscas durante vários períodos glaciais dos últimos milhões de anos. O clima global pode
ser apenas parcialmente estável, podendo saltar de um estado
confiável para outro imprevisível, como ocorreu várias vezes no passado remoto. Em alguns momentos de sua história, a Terra esteve
coberta por camadas de gelo que chegaram aos trópicos. Cada um
desses períodos parece ter terminado quando erupções vulcânicas
lançaram grandes quantidades de dióxido de carbono e outros gases-estufa na atmosfera, derretendo as camadas de gelo tão repentinamente quanto haviam surgido (repentinamente, no caso, podendo significar algumas centenas ou mesmo milhares de anos).
Embora hoje saibamos, com a ajuda dos satélites artificiais de
pesquisa, que as mudanças climáticas no Índico liberam grandes
ondas de energia, mudando os padrões climáticos do Atlântico Norte, empurrando massas de poros e germes patogênicos do deserto
do Saara para o Caribe e influenciando a vegetação marinha caribenha, ainda não temos um quadro claro sobre os malefícios e/ou benefícios desse fenômeno.
Só há pouco tempo começou a ganhar foros de verdade a hipótese de que na natureza nada acontece isoladamente. Segundo alguns,
o bater de asas de uma borboleta no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, ou em qualquer outra parte do mundo, repercutirá em toda
parte. A maioria das pessoas tem dificuldade de entender exemplos
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desse tipo, porque os matemáticos que procuram demonstrar essa
interação entre todos os eventos do universo e da Terra (é disso que
se trata), apresentando isso como uma novidade, não conseguem
dar exemplos práticos.
Poderiam, agora, tomar como exemplo a explosão do vulcão
islandês Eyjafjalla, e a nuvem de cinzas que lançou no espaço, em
abril de 2010. A nuvem, empurrada pelos ventos árticos no sentido
leste e sudeste, causou caos ao transporte aéreo em toda a Europa,
mesmo naquelas regiões aonde não chegou, e problemas no sistema
de transporte aéreo de todo o mundo. Embora não tenha sido
publicada a dimensão de todas as repercussões da cadeia de acontecimentos, ela certamente chegou a locais inusitados em todo o planeta, com resultados bastante contraditórios.
Certamente ampliou de forma inesperada a ocupação dos hotéis
próximos aos aeroportos e o transporte rodo-ferroviário, carreando
lucros extras para esses setores. Certamente, também, causou prejuízos imensos às companhias aéreas, e deve ter impedido negócios
no interior do Laos e da Bolívia. E pode ter levado outras pessoas a
terem a mesma reação imbecil de um turista que declarou, na televisão, odiar a Islândia por causa da erupção.
Na segunda metade dos anos 1800, bem antes das recentes teorias
do caos e fractais, e sem os instrumentos matemáticos que só agora
são possíveis, Engels frisava que a interconexão universal, sugerida
por Hegel, era uma lei do movimento da matéria, em qualquer das
formas que se apresentasse. No rascunho que preparava sobre a Dialética da Natureza, afirmou que os fenômenos exercem entre si influências recíprocas, num movimento de interação universal.
Para demonstrar essa noção, com exemplo práticos, Engels lembrou que, tanto os animais inferiores, quanto os homens, modifica-
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vam a natureza exterior com suas atividades, ao mesmo tempo em
que essa modificação repercutia sobre os próprios causadores. Esse
exemplo, que em sua época pareceu uma bizarrice a um grande número de naturalistas, é hoje algo que biólogos e geneticistas têm comprovado cada vez com maior insistência.
Os animais inferiores modificam a natureza em menor proporção do que os homens, e de modo involuntário e acidental, mas não
há dúvidas de que as cabras desmataram os bosques da Grécia. O
problema reside em que os homens, à medida que se afastam dos
animais inferiores, mais exercem sobre a natureza uma influência
intencional e planejada, a fim de alcançar objetivos previamente
projetados.
Isto é, ao provocar estragos na vegetação, os homens fazem isso
com o propósito de utilizar a terra livre e a madeira, semear trigo,
soja ou outros grãos, plantar árvores frutíferas, ou cultivar videiras
e laranjais, conscientes de que a colheita será maior. Ao transportar,
de um país para outro, plantas úteis e animais domésticos, os homens modificam a flora e a fauna de continentes inteiros, às vezes
com danos irreversíveis, como ocorreu com a vegetação da Ilha de
Santa Helena e com a fauna da Nova Zelândia e, modernamente,
com a Mata Atlântica e parte do Cerrado do Brasil.
Engels também analisou que as plantas cultivadas e os animas
criados em condições artificiais sofriam uma influência tão grande
nas mãos do homem, que chegavam a se tornar irreconhecíveis.
Portanto, num texto escrito em 1876, bem antes de nossos ecologistas acordarem, esse filósofo já dizia que não deveríamos nos regozijar com as vitórias humanas sobre a natureza. Ele sugeria que, a
cada vitória dessas ações humanas, a natureza respondia com uma
vingança. Cada uma dessas vitórias produzia conseqüências que
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podíamos prever, como o aumento das safras agrícolas decorrentes
da derrubada de bosques e matas. Porém, elas também resultavam
em conseqüências muito diferentes, não previstas, que quase sempre anulavam as vitórias anteriores.
Para reforçar sua visão ecológica, ele acrescentou os exemplos da
destruição dos bosques e florestas na Mesopotâmia, Grécia, Ásia
Menor e Alpes italianos. Essa destruição deu origem à desertificação
dos solos, ao deslizamento das encostas e ao assoreamento dos rios
das respectivas regiões. Ele lembrou ainda a propagação da
escrofulose, pelo plantio da batata, e se mostrou indignado com a
queima dos bosques das encostas montanhosas cubanas, para o plantio de cafeeiros. Sem dar a mínima importância às chuvas torrenciais dos trópicos, que varriam a camada vegetal do solo, esse plantio
causou devastação e deixou como legado apenas rochas desnudas.
Em outras palavras, a natureza nos adverte de que não podíamos
dominá-la como um conquistador domina um povo estrangeiro,
como alguém situado fora da natureza. Ao contrário, pertencemos à
natureza, com nossa carne, nosso sangue, nosso cérebro. Estamos
no meio dela, e nosso domínio sobre ela consiste na vantagem que
levamos sobre os demais seres, de poder chegar a conhecer suas leis
e aplicá-las corretamente.
Engels tinha a esperança de que, com os progressos das ciências,
os homens seriam capazes de prever e controlar cada vez mais as
remotas conseqüências naturais de suas atividades de produção, pelo
menos das mais comuns, e evitar os danos que até então vinham
causando. Não tinha dúvidas de que a natureza e o homem eram
mutáveis, sofriam transformações. No entanto, conhecendo as leis
de transformação, os homens poderiam adaptar-se a tais leis naturais e agir positivamente sobre elas.
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É na busca dessas leis de transformação que nos propomos a fazer uma viagem ao início do tempo, no qual os homens ainda não
estavam presentes.
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Wladimir Pomar
Sobre o autor
Wladimir Pomar nasceu em Belém do Pará, a 14 de julho de 1936,
filho de Pedro Pomar e Catarina Torres. Desde os cinco anos, conheceu a vida da clandestinidade, pela perseguição que a polícia do
Estado Novo de Vargas movia às atividades do Partido Comunista
do Brasil (PCB), do qual seu pai era membro.
Começou a trabalhar aos doze anos, como aprendiz de linotipista, ao mesmo tempo que fazia o ginásio. Depois trabalhou como repórter e redator nos jornais Tribuna Popular e Classe Operária.
Foi colaborador do jornal Movimento, diretor do Correio Agropecuário, além de repórter e diretor editorial de Brasil Extra.
Adquiriu formação técnica e trabalhou como técnico de planejamento e manutenção de máquinas pesadas da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ) e Conselheiro Lafaiete
(MG). Foi engenheiro de serviços da General Eletric, no setor de
locomotivas, tendo trabalhado junto às estradas de ferro Leopoldina
(RJ) e Leste-Brasileira (BA). Também trabalhou como engenheiro
de manutenção da Cerâmica do Cariri.
Militante político desde 1949, quando ingressou no PCB,
Wladimir Pomar atuou inicialmente no movimento estudantil
secundarista. Em 1951, estudou ajustagem mecânica no Senai, trabalhou na Arno e participou no movimento sindical metalúrgico.
Em 1962, fez parte do movimento que deu origem ao PCdoB. Em
1964, foi preso na Bahia, por ação de resistência ao golpe militar.
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Solto no final deste ano, devido a habeas corpus, foi julgado e condenado à revelia.
Depois de 1964, colaborou com a imprensa partidária e desenvolveu suas atividades políticas principalmente no interior de Goiás
e do Ceará, aqui entre os sindicatos de trabalhadores rurais.
Viveu na clandestinamente até 1976, quando foi preso novamente. Desta vez, durante uma ação militar que assassinou três dirigentes do PCdoB, no bairro da Lapa (SP), um dos quais seu pai.
Foi libertado pouco antes da Anistia, em 1979. Pouco depois, desligou-se da direção do PCdoB e ingressou no Partido dos Trabalhadores.
Entre 1984 e 1990, integrou a executiva nacional do PT, onde foi
responsável pela secretaria nacional de formação política, atividade
que acumulou com a coordenação do Instituto Cajamar. Em 1986,
participou da coordenação da campanha de Lula a deputado federal
constituinte. Durante as eleições presidenciais de 1989, foi coordenador-geral da campanha Lula.
Wladimir Pomar é autor de diversos estudos e livros sobre a China, entre os quais O enigma chinês: capitalismo ou socialismo (Alfaômega); China, o dragão do século XXI (Ática); A revolução chinesa (Unesp); China: desfazendo mitos (Editora Página 13 & Editora
Publisher).
É autor, também, de uma trilogia sobre a teoria e a prática das
tentativas de construção do socialismo, ao longo do século XX: Rasgando a cortina (Brasil Urgente), Miragem do mercado (Brasil
Urgente), A ilusão dos inocentes (Scritta) e Os latifundiários (Editora Página 13).
Outra vertente de suas obras aborda a história do Brasil e da esquerda brasileira. É o caso de Araguaia, o partido e a guerrilha
(Brasil Debates) e de Pedro Pomar: uma vida em vermelho (Xamã);
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Wladimir Pomar
Quase lá, Lula e o susto das elites (Brasil Urgente) e Um mundo a
ganhar (Viramundo); O Brasil em 1990 e Era Vargas: a modernização conservadora (Ática).
Nos últimos trinta anos colaborou regularmente com o Correio
da Cidadania e com a revista Teoria e Debate.
Para comemorar seus 75 anos, foi lançada a página eletrônica
www.wladimirpomar.org.br, onde se pode conhecer sua obra. Mas
grande parte de seus textos ainda não foi organizado para consultas,
nem publicado em formato de livro. É o caso do romance inédito O
nome da vida.
Casado com Rachel, é pai de três filhos, avô de 11 netos e 2 bisnetos.
Livros de Wladimir Pomar
Q Araguaia, o partido e a guerrilha. São Paulo: Brasil Debates, 1980.
Q
O enigma chinês: capitalismo ou socialismo. São Paulo: Alfa-
ômega, 1987.
Q
Rasgando a cortina. São Paulo: Brasil Urgente, 1991.
Q
A miragem do mercado. São Paulo: Brasil Urgente, 1991.
Q
A ilusão dos inocentes. São Paulo: Scritta, 1994.
Q
O Brasil em 1990. São Paulo: Editora Ática, 1996.
Q
China, o dragão do século XXI. São Paulo: Editora Ática, 1996.
Q
Um mundo a ganhar: revolução democrática e socialista. São
Paulo: Viramundo, 2002.
Q
Pedro Pomar: uma vida em vermelho. São Paulo: Xamã, 2003.
Q
Era Vargas: a modernização conservadora. São Paulo: Editora
Ática, 2004.
Q
A revolução chinesa. São Paulo: Unesp, 2004.
Q Pedro Pomar: um comunista militante. São Paulo: Expressão Po-
pular, 2007.
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Q
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China: desfazendo mitos. São Paulo: Publisher e Editora Página
13, 2009.
Q
Quase lá, Lula o susto das elites. São Paulo: Editora Página 13,
2009.
Q
Os latifundiários. São Paulo: Editora Página 13, 2009.
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