Mário S. Ming Kong O processo de concepção arquitectónica e o

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Mário S. Ming Kong
Arquitecto, Professor Auxiliar da F.A.U.T.L
[email protected]
O processo de concepção arquitectónica e o desenho
“Projectar é fácil quando se sabe o que se quer fazer”
Bruno Munari, Das coisas nascem coisas,
Lisboa, Edições 70, Lda., p. 12.
Todo o processo de concepção, seja em que área for, assenta na busca
da “melhor” solução para um problema, 1 de acordo com as condições e
condicionantes previamente existentes.
Estas condicionantes podem ser de ordem funcional ou material, mas
também podem reflectir um propósito de tipo social, económico, político,
simbólico ou até do reino da fantasia.
Em todo o caso, o primeiro passo no acto da concepção é a definição
criteriosa do problema no seu todo, permitindo assim definir os limites dentro dos
quais o interveniente deverá trabalhar.
PROBLEMA
Nesta
perspectiva,
qualquer
processo
conceptivo
parte
do
reconhecimento de uma situação problemática e da decisão de a solucionar.
O processo de concepção é então sobretudo um acto evolutivo, um
empenho intencional em tomar conhecimento da situação do problema, definir o
seu contexto e reunir todos os dados necessários que mereçam ser tidos em
conta.
Esta é a fase mais sensível do processo de concepção, porque a
natureza das soluções está inevitavelmente condicionada ao modo de captar,
definir e articular o problema. Já o poeta e cientista Pit Hein se expressou da
1
O problema resulta de uma necessidade, mas ele não se resolve por si só. No entanto,
contém já todos os elementos para a sua solução, é, pois necessário conhecê-los e
utilizá-los no projecto de solução.
SOLUÇÃO
Fig. 1
Esquema I
seguinte forma: “A arte é resolver os problemas que não se podem formular
antes de solucioná-los. A definição de um problema faz parte da resposta.”
2
Faz parte, mas não é a resposta, já que esta só muito raramente aparece
por si só.
3
Há um percurso a fazer que implica pesquisa, experimentação,
4
aferição, avaliação e, por vezes, reformulação do problema, o que obriga a
PROBLEMA
DEFINIÇÃO DO
PROBLEMA
reiniciar todo o percurso até à obtenção de uma solução válida e viável. A este
processo, Bruno Munari (1907-1988) chama método projectual. 5
O método projectual não é mais que uma sucessão de operações
RECOLHA DE DADOS
necessárias, dispostas por uma ordem lógica ditada pela experiência. Este
método não é absoluto ou definitivo, mas aberto a novos valores que possam
assumir importância ao longo do acima referido percurso. 6 À capacidade de
reconhecer e interligar novos valores, de tomar decisões de orientação ao longo
do percurso, podemos chamar criatividade.
A criatividade revela-se, de acordo com Bruno Munari, na “utilização, com
um dado objectivo, da fantasia,
2
7
ou melhor, da fantasia e da invenção em
Francis D. K. Ching, Arquitectura: Forma, Espacio y Orden, Barcelona, Gustavo Gilli,
1982.
3
Definido o problema é necessário desmontá-lo nas suas componentes para melhor o
conhecer, isto é, qualquer que seja o problema pode-se dividi-lo nas suas
componentes. Esta operação facilita o projecto porque tende em pôr em evidência os
pequenos problemas singulares que se ocultam nos subproblemas. Uma vez
resolvidos os pequenos problemas, um de cada vez, entra em acção o processo da
criatividade.
4
Segundo o Kant todo o conhecimento começa com a experiência, mas não significa
que tudo dela se deriva. Kant citado por Alexandre Kojève, A Eternidade o Tempo e o
Conceito, Paris, Farândola, 1996, p. 24.
5
Bruno Munari, Das coisas nascem coisas, Lisboa, Edições 70, 1981.
6
A análise de todos os dados recolhidos pode fornecer sugestões acerca do que se não
deve fazer para projectar e também orientar o projecto.
7
Bruno Munari definio que “A fantasia é uma capacidade produtiva onde fantasia e
razão estão associadas e cujos resultados são sempre realizáveis na prática.” Bruno
Munari, Artista e designer, Lisboa, Editorial Presença, Lda, 1979, p. 69
ANÁLISE DE DADOS
SOLUÇÃO
Fig. 2
Esquema II
conjunto. 8 A criatividade é uma capacidade produtiva, onde fantasia e razão
estão associadas, e cujos resultados são sempre realizáveis na prática.
Assim, e seguindo este raciocínio, podemos definir o acto de criar como
sendo um percurso metódico ao longo do qual se pretende solucionar um
problema, utilizando, entre outras ferramentas, a imaginação. 9
Estabelecendo uma ponte com o passado, sobre o mesmo assunto
escreveu Vitrúvio, arquitecto/engenheiro, investigador e autor da época do
imperador romano Augusto (63 a.c. -
14 d.c.),: “[...] estas coisas obtêm-se
através da meditação e da invenção; a meditação é o esforço que o espírito faz,
convidado pelo prazer de ser bem sucedido na pesquisa de alguma coisa; a
Fig. 3
invenção é o efeito deste esforço de espírito em dar uma nova explicação aos
assuntos mais obscuros.” 10
Desta forma, quando falamos em metodologia de projecto, não estamos
a falar de um receituário, mas de um processo imaginativo e sistemático que
organiza e orienta o acto de criar, de forma a tornar o objecto arquitectónico
mais harmonioso e proporcional. Este acto exige dos intervenientes do
conhecimento uma grande variedade de disciplinas, de forma a dar resposta aos
mais diversos níveis de exigência, nomeadamente, estéticas, formais e
funcionais, e ainda a capacidade para articular esses vários aspectos e
saberes.11
8
Bruno Munari, Fantasia, invenção, criatividade e imaginação na comunicação visual,
Lisboa, Colecções Dimensões, 1987, p. 24.
9
O mundo exterior ao indivíduo é explorado pela inteligência mediante manipulações e
operações lógicas, com o objectivo de procurar compreender as coisas e os
fenómenos que nos rodeiam.
A vista, o ouvido, o tacto e todos os outros receptores sensoriais põem-se em acção
simultaneamente e a inteligência procura coordenar todos os tipos de sensações para
apreender o que se passa. Podemos dizer que o pensamento pensa e a imaginação
vê. A imaginação é o meio para visualizar, para tormar visível aquilo que pensam a
fantasia, a invenção e a criatividade.
10
Livro I, Cap. II.
11
Os métodos utilizados em arquitectura recordam muitas vezes aqueles que a ciência
aplica, o tipo de pesquisa usada na ciência pode também ser utilizado em arquitectura. A
pesquisa em arquitectura é sem dúvida mais metódica do que dantes, mas a sua
Esquema III
Contudo, conhecimentos teóricos apenas não são suficientes. Para uma
articulação criativa e inventiva das várias áreas de conhecimento intervenientes,
são, sem qualquer dúvida, também indispensáveis a experiência e a prática.
Ambas as visões – a teórica e a prática – complementam-se e suportam-se.
Este conceito já se teorizava na Antiguidade. Segundo Vitrúvio, a
Arquitectura “é uma ciência que deve ser apoiada por uma grande diversidade
de estudos e de conhecimentos através dos quais ela julga as obras das outras
artes que lhe pertence. Esta ciência adquire-se pela Prática e pela Teoria. A
Prática consiste numa contínua aplicação à execução de projectos, segundo os
quais a forma conveniente é atribuída à matéria de que todos os tipos de obras
são feitas. A Teoria explica e demonstra a conveniência das proporções que as
coisas que se querem fabricar devem ter: isto faz com que os arquitectos que se
esforçaram para obter a perfeição da sua arte através unicamente de exercício
da mão, não obtivessem quase nenhum avanço, por muito grande que tenha
sido o seu trabalho, de igual modo aqueles que acreditam ser apenas através do
conhecimento das letras o único caminho para obter o êxito; pois não obtiveram
mais do que a escuridão: mas aqueles que juntaram a Prática e a Teoria, foram
os únicos a terem sucesso no seu empreendimento, porque estavam munidos
de tudo o que era necessário para chegar a bom fim” . 12
O processo metodológico conceptivo em arquitectura pode, assim ser
definido como uma disciplina de vasto alcance, cuja intenção é enriquecer o
vocabulário específico do desenho através da exploração teórica, orientada pela
experiência, que em seguida é posta em prática. Surge desta forma o desenho
do projecto arquitectónico.
essência nunca pode ser simplesmente analítica. A pesquisa em arquitectura será
sempre uma arte e um instinto. Fundação Calouste Gulbenkian, Alvaro Alto (1898-1978),
Lisboa, 1983, p.113.
12
Livro I, Cap. I. Cf. Maria Helena Rua, Os dez livros de Arquitectura de Vitrúvio, Lisboa,
1998, pp. 2-3.
Fig. 4
Esquema IV
Os meios que permitem comunicar a terceiros o acto conceptivo são,
entre outros, o desenho, 13 a pintura, a escultura, a modelagem, o cinema, a arte
cinética, etc.
O processo de concepção de objectos arquitectónicos expressa-se,
habitualmente, através do desenho. Uma expressão adaptada a descrever este
tipo de pesquisa é “o desenho como suporte do pensamento gráfico”.14
Ao longo das várias etapas do desenvolvimento de um projecto
arquitectónico, o arquitecto recorre a vários tipos de desenho como auxiliares do
seu processo conceptual,15 nomeadamente: o esboço,16 o desenho rigoroso, as
projecções, as perspectivas, 17 as axonometrias, 18 os desenhos construtivos,
explodidos, sobre fotografias, maquetas ...
13
Na consulta de dicionários e enciclopédias; o desenho aparece definido como arte de
representar numa superfície quaisquer seres ou coisas com a linha ou traços e sombras,
por qualquer meio (lápis, pena, pincel, etc.).
14
Ver o trabalho de Ana Leonor Magalhães Madeira Rodrigues. O Desenho, ordem
estruturante e universalizante do pensamento arquitectónico, Lisboa, Estampa, 2000.
15
Eduardo Alberto Vieira de Meireles Côrte-Real estuda O triunfo da verdade. As origens
do desenho arquitectónico. Lisboa, Livros Horizontes, 2001.
16
O esboço rápido feito a lápis ou caneta ou com qualquer instrumento, até às vezes
com pincel, serve para comunicar uma forma ou uma função ou para dar instruções
acessórias durante os trabalhos dos modelos ou os pormenores construtivos, como
também serve para anotar como pró-memória algo que tenha em mente, que descobriu,
que quer modificar.
16
Geoffrey H. Baker, Análise de la forma, Barcelona, Ediciones G.
Gili, S.A., 1991.
17
A perspectiva, como descoberta e definição das regras, está adaptada para ilustrar a
qualidade de qualquer objecto singular no espaço e na relação recíproca entre diversos
objectos dispostos a diferentes profundidades e regulada pelas relações que reúnem
grandeza e distância, forma e inclinação, luminosidade e profundidade.
As regras perspécticas reproduzem, exteriormente ao observador (no plano do
desenho), o que passa na retina.
Sobre este assunto ver ainda a Dissertação de Doutoramento de Manuel J. R.
Couceiro da Costa. Perspectiva e Arquitectura. Uma expressão da inteligência no
trabalho de concepção. Dissertação de Doutoramento em Arquitectura, na especialidade
de Comunicação Visual. Faculdade de Arquitectura, Universidade Técnica de Lisboa,
Lisboa, 1992.
Para dar uma ilustração prática ao que acertámos até agora, vamos
observar duas obras: na primeira, reportamo-nos ao passado, especificamente à
história da arquitectura Ocidental, mais propriamente ao Renascimento entre os
séculos XIV e XVI; a segunda
obra inclui-se no Movimento Moderno, na
arquitectura do século XX. Porém, neste estudo não pretendemos tratar da
evolução da arquitectura ao longo da história. A história da arquitectura foi
escrita inúmeras vezes e, provavelmente, será reescrita muitas outras.
A escolha do primeiro período deve-se, ao culminar de um conjunto de
movimentos culturais e artísticos, que tiveram como motivação o imitar e reviver
os modelos estéticos dos mestres de Antiguidade Clássica. Todavia, à
inspiração clássica dos temas e das formas, o artista imprimiu quase sempre um
tratamento pessoal, que impulsionou a evolução das artes até à época actual.
O segundo período foi escolhido porque, durante a primeira metade do
século XX, a imagem arquitectónica do mundo mudou completamente.
Ao longo do período Renascentista, relativamente ao processo de
representação
do
método
de
projecto,
podemos
encontrar
várias
personalidades de grande importância que se destacaram, como foi o caso do
escultor e arquitecto Filippo Brunelleschi (1377-1446),
humanista Leon Batista Alberti (1404-72),
18
20
19
o arquitecto e
o arquitecto e pintor Donato
A axonometria é um método de transcrição espacial dos objectos muito usado no
desenho técnico.
19
Fig. 5
Planta e corte da Catedral
de Frorença, 1420-36, por
Filippo Brunelleschi, Foto
retirado, David Watkin, A
History
of
Western
Architectue, Great Britain,
Laurence King, 1992,
imagem nº 239, p.179.
Brunelleschi estudou monumentos da arquitectura antiga, e ao procurar um método
preciso de transpor as medidas para o papel, presume-se ter descoberto os princípios da
sua perspectiva científica.
20
Alberti não era arquitecto de formação e menos ainda canteiro ou marceneiro, mas
simplesmente um humanista. Oriundo de uma família rica da nobreza florentina, cresceu
em Veneza. Recebeu a sua formação humanista em Latim, Retórica Antiga, Filosofia e
Arte Poética, como aluno de Gasparino Barzizza (cerca de 1360 - cerca de 1431), um
dos maiores conhecedores de Cícero da sua época. Estudou depois na célebre
universidade de Bolonha, onde teve primeiro aulas de Filologia, Retórica e Filosofia,
Direito Canónico e Direito Civil, às matemáticas e à Fisica. Facto interessante, a
actividade do escritor Alberti diminui na medida em que ele é considerado cada vez mais
como conselheiro em matéria de arquitectura e, finalmente como arquitecto de tempo
Fig. 6
São Francisco de Rimini,
projecto de Leon Baptista
Alberti.
Gravura
representando
a
construção
da
igreja.
Gravura
retirada;
Domingos Tavares, Leon
Baptista Alberti. Teoria da
arquitectura, s. l., Dafne
Editora, 2004, p. 80.
Bramante (1444-1514), 21 e o pintor, arquitecto e inventor, Leonardo da Vinci
(1452-1519), 22 ver Figs. 5, 6, 7, 8.
Qualquer destas personalidades reúne condições para servir como
exemplo ao que anteriormente expusemos. No entanto, há ainda outra
personalidade da Baixa Renascença, para ser mais específico, do Maneirismo,
que, a nosso ver, se destaca pela originalidade que imprimiu a todos os seus
trabalhos, tanto no campo da pintura e da escultura como da arquitectura –
Miguel Ângelo Buonarroti (1475-1564).
inteiro. A paixão de Alberti pela arquitectura deve ter-se manifestado muito cedo, como
demostra a dedicatória do Della pintura, de 1436 ao arquitecto Brunelleschi. Em 1447,
Fig. 7
São Pietro in Montorio, o
Tempieto, 1502, Roma,
executado por Donato
Bramante, Foto retirado H.
W. Janson, História da
Arte, Lisboa, Fundação
Calouste
Gulbenkian,
1977, imagem nº 547, p.
423.
quando trabalhava já no “De re aedificatoria”, o seu colega de estudos e amigo
Tommaso Parentucelli de Sarzana, foi eleito Papa (Nicolau V, pontificado 1447-1455).
Este terá convidado Alberti a participar desde o princípio nas reflexões, complexas sobre
a restauração de São Pedro, que ameaçava ruína, assim como nos projectos de arranjo
de toda a área do Vaticano. É sem dúvida também por iniciativa do Papa que Alberti é
encarregado em 1450 de transformar a igreja sepulcral dos Malatesta em Rimini em
novo “templo”. Petra Lamers-Schütze (coord.), Teoria de Arquitectura. Do Renascimento
aos nossos dias, Lisboa, Taschen, 2003, p. 22.
21
Na sua fase de formação notam-se as influências de Pietro della Francesca e dos
tratados teóricos de Alberti. Segundo o que Sebastião Serlio (1475-1554) nos diz, foi
Bramante, mais do que nenhum outro, quem restabeleceu a gramática esquecida da
Antiguidade. Ver John Summerson, A linguagem Clássica da arquitectura, São Paulo,
Martins Fontes, 2002, p. 39
22
O Leomardo di ser Piero da Vinci , para além de ser pintor, inventor, teórico da arte,
naturalista, é considerado como um dos artistas mais representativos do Renascimento.
A obra de Leornado representa o auge da prespectiva sistemática, descoberta por
Brunelleschi. O artista, em seu entender, não só devia conhecer as regras da
perspectiva, mas também todas as leis da Natureza, sendo os olhos o instrumento
perfeito para adquirir tal conhecimento. O alcance extraordinário das suas invenções
pessoais está presente nas centenas de desenhos e notas.
Os testemunhos dos contemporâneos mostram que Leornado gozava a
reputação como arquitecto. No entanto, a construção parece tê-lo interessado menos
que os problemas básicos do traçado e da estrutura. Os numerosos projectos
arquitectónicos entre os seus desenhos destinavam-se, tal como os das suas invenções
na maioria, a ficar no papel.
Fig. 8
Projecto para uma Igreja
(Ms. B.), executado por
Leornardo da Vinci 1490.
Desenho
à
pena.
Bibliothèque de l’Arsenal,
Paris. Imagem retirada, H.
W. Janson, História da
Arte, Lisboa, Fundação
Calouste
Gulbenkian,
1977, imagem nº 546, p.
422.
Apesar da sua insistência no facto de ser, antes de mais nada, um
escultor, nenhum arquitecto de profissão teve um impacto tão surpreendente na
arquitectura quanto Miguel Ângelo. Ele apontou uma nova direcção na
arquitectura clássica.
Tomemos como exemplo o projecto para a fachada exterior da Igreja de
São Lourenço em Florença, (1521-34) executado por Miguel Ângelo. A Igreja
existente (1421-69) era obra de Brunelleschi.
O projecto da fachada de São Lourenço foi confiado a Miguel Ângelo,
quando tinha já
ele nessa altura quarenta e um anos. Tratando-se do seu
primeiro projecto arquitectónico, efectuou de imediato e com muito agrado, a
elaboração dos estudos do desenho do alçado.
No entanto, apesar da total dedicação de Miguel Ângelo à concepção da
fachada durante algum tempo, através de vários estudos, o projecto nunca
chegou a ser construído, por decisão dos patronos da obra – os Medici. 23
Perante esta circunstância, pode-se questionar por que motivo ainda
insistimos em eleger como exemplo este projecto não edificado. É verdade que
se considerarmos a evolução da história da arquitectura até aos nossos dias,
existem muitos outros autores que apresentam projectos acabados/inacabados
ou mesmo que não passaram de utopia. 24 No entanto, mesmo assim, a nossa
escolha prevalece no projecto de Miguel Ângelo: por um lado, pelo facto de ser
na sua época um inovador na maneira como apresenta o processo criativo; e,
por outro, pela originalidade como o autor apresenta o seu estudo metodológico
projectual, o que contribuiu para uma nova forma de pensar e projectar a
arquitectura clássica. Nas palavras de Vasari a respeito de Miguel Ãngelo: “ele
rompeu as amarras e cadeias de uma maneira de trabalhar que se tornado
habitual devido ao uso comum”.25
23
Cf. Nikolaus Pevsner, Panorama da Arquitectura Ocidental, São Paulo, Martins
Fontes, 2002, p. 223.
24
Cf. Anthony Viddler, Le Doux, Paris, Hazan, 1987. Cf. Leornardo Benevolo, História
da Arquitectura moderna, São Paulo, Editora Perspectiva, 1994, pp. 173-205.
25
John Summerson, A Linguagem Clássica da Arquitectura, São Paulo, Martins Fontes,
2002, p. 47.
Exposta a justificação, retomemos a nossa exposição central. Na fachada
de São Lourenço, é de constatar que o artista, empreendeu a sua tarefa com
entusiasmo, e afirmando: “ Farò la più bella opera che si sia mai fatta in Italia”
(Farei a obra mais bela que jamais foi feito em toda a Itália); 26 elabora então de
forma sucinta o programa da obra, que se propunha como “d’arquitettura e di
scultura lo specchio de tutta Italia” (O espelho de arquitectura e escultura de
toda a Itália). 27
Nesse projecto, ele pretendia criar um espaço onde as esculturas dos
santos mais venerados de Itália estariam como que em diálogo com os patronos
da obra – os Médici. A este diálogo chamou sacra conversazione.28
Fig. 9
Primeiro esboço do
projecto para a fachada
de
São
Lorenço,
Florencia.
Casa
Buonarroti,
Florencia,
por Miguel Ângelo Foto.
318, Retirado, Charles
de Tolnay, Miguel Angel.
Escultor,
Pintor
y
arquitecto,
Madrid,
Alianza Forma, p. 438.
Podemos, por estas expressões, depreender que, posto perante um
problema - a construção de um nova Igreja - a primeira coisa que Miguel Ângelo
fez foi estabelecer um programa, isto é, definir o problema. Pondo, de imediato,
a funcionar a fantasia como motor da sua criatividade.
Para pôr em prática a criatividade, Miguel Angelo aplicou todos os
conhecimentos que obtivera como escultor. Isto é, quando se iniciou na
arquitectura já era escultor com um domínio de formas e materiais que
transcendia o dos antigos mestres.
Fig. 10
Projecto para a fachada
de
São
Lourenço.
Florencia.
Casa
Buonarroti,
Florencia,
projecto
de
Miguel
Angelo.
Foto.
319,
Retirado, Charles
de
Tolnay, Miguel Angel.
Escultor,
Pintor
y
arquitecto,
Madrid,
Alianza Forma, p. 438.
Contudo, no ponto de partida dos seus projectos, nomeadamente na
fachada de São Lourenço, o autor recorreu a vários tipos de desenho como
auxiliares do seu processo conceptual;
29
no entanto, antes de obter uma
resolução final, recorreu a esboços, a desenhos mais elaborados e não tomou
uma decisão final sem primeiro construir uma maqueta, ver Figs. 9 10, 11, 12 e
26
Cit. em Charles de Tolnay, Miguel Ângelo. Escultor, pintor y Arquitecto, Madrid,
Alianza Forma, 1992, p.103.
27
Cit em Charles de Tolnay, Op. cit., 1992, p. 103.
28
Idem, 1882, p. 103.
29
Sobre este assunto Domingos Tavares, diz: “O desenho começa por ser um
instrumento para pensar a forma e assume depois a função de informar a execução, de
comunicar intensões, plasmar e confrontar alternativas no complexo sistema das
relações entre pessoas, no trabalho e na decisão”. Domingos Tavares, Miguel Ângelo. A
Aprendizagem da Arquitectura, Porto, Faculdade de Arquitectura da Universidade do
Porto, 2002, p. 89.
Fig. 11
Projecto para a fachada
de
São
Lourenço,
provávelmente a versão
definitiva, Florencia. Casa
Buonarroti,
Florencia,
projecto
de
Miguel
Angelo.
Foto.
319,
Retirado, Charles
de
Tolnay, Miguel Angel.
Escultor,
Pintor
y
arquitecto,
Madrid,
Alianza Forma, p. 439.
13. Compreende-se a utilização da maqueta na execução dos seus projectos, se
nos lembrarmos de que o artista, antes de ser arquitecto, considerava-se
sempre e acima de tudo escultor. E esse mesmo poder de ver, completado pela
observação prolongada das obras da Antiguidade Clássica, aliado à experiência,
permitiu-lhe transcender a gramática baseada no estudo de Vitrúvio.
Como foi dito por Vasari, segundo John Summerson: “em questão de
proporção, composição e regras, procedeu de forma diferente dos outros que
seguiram a prática comum”.
30
Isto é, criou uma nova harmonia para a sua
época.
Devemos aqui referir que o processo metodológico conceptivo criativo foi
variando de acordo com o lugar, com a cultura vigente e, ainda, consoante a
experiência e a prática de cada indivíduo, de forma a dar resposta aos mais
diversos níveis de exigência, especialmente estéticos, formais e funcionais de
cada sociedade.
31
Neste sentido, pode entender-se que a harmonia e a
proporção, foram também exprimindo-se de forma diferente, mantendo, contudo,
Fig. 12
Esboço de fórnice e
estátua para a fachada
de
São
Lourenço,
Florencia, provavelmente
a
versão
definitiva
(detalhe), projecto de
Miguel Angelo. Casa
Buonarroti,
Florencia.
Retirado, Charles
de
Tolnay, Miguel Angel.
Escultor,
Pintor
y
arquitecto,
Madrid,
Alianza Forma, 1992,
Foto. 321, p. 439.
a mesma importância no seio da sociedade da qual brotaram e que reflectem.
Para elucidar melhor, observemos agora um exemplo mais actual, que
propusemos de início. Estamos agora no século XX, na corrente artística que se
convencionou chamar o Movimento Moderno em arquitectura. Esse movimento
teve início na década posterior à Primeira Grande Guerra (1914-18) e atingiu o
ponto culminante da sua força inovadora no final da década de 1920. Após a
Segunda Guerra Mundial os seus efeitos difundiram-se tanto, a ponto de não
existir lugar algum no mundo industrializado no qual os blocos delgados, altos e
reluzentes, as perspectivas de pilares de betão e as sequências de janelas
recortadas não se tenham tornado típicos e familiares. 32 A arquitectura moderna
30
Cit. em John Summerson, Op. cit., 2002, p. 47.
31
Cf. Leornardo Benevolo, Op. cit., 1994, p.11.
32
Um dos principais factores que permitiu esse radicalismo na arquitectura foi a
aplicação de novos materiais na construção dos edifícios, como o ferro, o betão e o
vidro, em substituição da pedra. Sobre este assunto ver: Mário Say Ming Kong,
Arquitectura Industrial. – Uma abordagem – Central Tejo, Dissertação de Mestrado em
Reabilitação da Arquitectura e Núcleos Urbanos, Universidade Técnica de Lisboa,
Faculdade de Arquitectura, volume I,II, III, Lisboa, 2001.
Fig. 13
Maqueta em madeira
para a fachada de São
Lourenço.
Casa
Buonarroti,
Florencia.
Foto.
258
e
258,
Retirado, Charles
de
Tolnay, Miguel Angel.
Escultor,
Pintor
y
arquitecto,
Madrid,
Alianza Forma, p. 403.
comporta não somente um novo reportório de formas, como também um novo
pensar.
Esta é a revolução arquitectónica do século passado e que continua a
influenciar o princípio do nosso século - a mais radical e universal na história do
mundo. Tal como toda a transformação histórica importante, o Movimento
Moderno compreende um grande número de contribuições individuais e
colectivas não sendo possível de fixar a sua origem num só lugar ou num único
ambiente cultural.
Fig. 14
Fallingwater, casa para
Edgar J. Kaufmann, Bear
Run, Pennsylvania, (19351939) do arq. Frank Lloyd
Wright. Foto retirado livro de
Bruce Brooks Pfeiffer, Frank
Lloyd
Wright
in
his
renderings
1887-1959,
Japan, A.D.A. EDITA Tokyo
Co., Lda, 1990, capa.
Dentro deste movimento destacam-se nomes como Frank Lloyd Wright
(1867-1959),33 na América, e Walter Gropius (1883-1969),
der Rohe (1887-1967),
33
34
Ludwig Mies van
35
Wright foi o primeiro a desafiar as leis de gravidade. As suas obras inspiradas nas
grandes planícies americanas, com as suas linhas longas e horizontais, acentuadas por
lajes em consola, só possíveis recorrendo aos novos materiais e de uma estreita
colaboração com a “engenharia”, teve larga influência internacional. “Fallingwater” -
Fig. 15
Bauhaus, Dessau, (1926),
projectado
por
Walter
Gropius. Imagem retirado
AAVV, World Architecture,
England,
TheHamlyn
Publishing Group Limited,
1963, p. 330, fig. 995.
Casa da Cascata, executado por Wright para Edgar J. Kaufmam, em Bear Run, na
Pensylvania (1935), é uma das obras melhor concebidas, em que tentou aproximar-se
do limite das capacidades estruturais dos materiais, em estreito diálogo com a natureza
e as memórias do lugar (ligação dos donos da obra ao local, anteriormente utilizado para
passeios e piquenique), promovendo um novo conceito de harmonia e interacção das
funções. Ver figs 14.
34
Gropius, filho de um abastado arquitecto e funcionário berlinense, trabalha no estúdio
de Behrens, porém, logo começa a projectar por sua conta. É autor do mais complexo
exemplo do «estilo internacional dos anos vinte o grupo de edifícios criados em 1925-26
para a Bauhaus destinado a albergar a nova sede da escola em Dessau. Dentro deste
grupo o mais impressionante é o bloco de oficinas com paredes, que consistem numa
superfície contínua de vidro, possível apenas pela introdução de uma estrutura em aço,
libertando a parede de qualquer função de suporte. Apesar deste conceito já ter sido
concebido algumas décadas antes, foi Gropius o primeiro a libertar-se completamente da
Fig. 16
Casas de apartamentos do
Lake Shore Drive, em
Chicago
(1950-52),
projectada por Ludwig Mies
Van
Der
Rohe.
Foto
retirado, H. W. Janson,
História da Arte, Lisboa,
Fundação
Calouste
Gulbenkian, 1977, foto. 884,
p. 710.
noção tradicional de janela como um «buraco na parede» - permitindo revolucionar o
arquétipo de parede como algo estanque e opaco. Abriu-se, assim caminho para uma
nova visão da harmonia na relação interior/ exterior, ver fig. 15.
35
Mies Van Der Rohe é filho de um mestre-carpinteiro. Trabalha primeiramente como
desenhista no estúdio de B. Paul de 1901 a 1907; depois, em 1908, ao lado do alemão
Peter Behrens (1868-1940), um arquitecto que tinha iniciado a sua carreira como pintor,
foi um dos líderes do Movimento Artes e Ofícios no início do século XX; ao ser
Fig. 17
A Casa Schroder, em
Utrecht, desenhada por
Rietvelt, em 1924. Foto
retirado, H. W. Janson,
História da Arte, Lisboa,
Fundação
Calouste
Gulbenkian, 1977, foto. 878,
p. 708.
Gerrit Thomas Rietvelt (1888-1964), 36 na Europa, ver Figs. 14, 15, 16, 17.
No entanto, um dos criativos que mais contribuiu para o desenvolvimento
da arquitectura moderna foi Charles-Édouard Jeanneret,
conhecido por Le Corbusier.
37
(1887-1965),
38
contratado como conselheiro artístico da firma de electricidade A.E.G., é encarregue em
1908, de projectar um pavilhão de turbinas para a fábrica de Berlim.
Em 1913, Mies abre um estúdio de arquitectura em Berlim, mas seu trabalho é
logo interrompido pela Guerra. Fixou-se em Chicago como arquitecto profissional. As
casas de
apartamentos do Lake Shore Drive, em Chicago (1950-52), dois blocos
severamente elegantes, com formas puras, perpendiculares um ao outro, explicam o
preceito de Van der Rohe de que o «menos equivale a mais». Entre os arquitectos
contemporâneos, ele foi o que aprofundou mais o estudo dos elementos de construção,
com o propósito de agir sobre as partes funcionais do edifício, transmutando-as em
arquitectura em virtude unicamente de relações bem medidas.
36
Gerrit Rietvelt, arquitecto holandês que se junta a Mondrian no movimento de Stijl. Ao
terminar a Primeira Guerra Mundial, o grupo Stijl representava as ideias mais avançadas
da arquitectura europeia. Os seus traços severamente geométricos, com base no
princípio de Mondrian de um equilíbrio alcançado pela confrontação de opostos
desiguais, mas equivalentes, tiveram uma influência decisiva em tantos arquitectos no
estrangeiro, que o movimento cedo se tornou internacional. A casa Schroder, em
Utrecht, desenhada por Rietvelt, em 1924, é o exemplo desta ideia.
37
Le Cobursier entre 1908 e 1909 trabalhou no escritório do arquitecto francês, Auguste
Perret (1874-1954), em Paris, e entre 1910-11 passou alguns meses com Behrens na
Alemanha.
Perret era um projectista completamente diferente de Behrens. O primeiro, tinha
preferência na utilização do betão armado, que é considerado um claro precedente da
arquitectura em ferro e aço e do funcionalismo moderno; enquanto o Behrens, expoente
máximo do racionalismo arquitectónico do século XX, uniu os espaços interior e exterior
por meio de grandes superfícies envidraçados e aços.
Desta forma, Le Corbusier mostra a influência desses mestres, em especial de
Perrret no seu primeiro projecto de residência, construído na suíça durante a Primeira
Guerra Mundial. Após a guerra dedicou-se à pintura e participou num movimento a que
chamaram purismo. O purismo tinha como objectividade evitar o que consideravam a
desintegração iminente do cubismo, através de uma disciplina matemática. Em 1920, Le
Corbusier começou a escrever sobre arquitectura. Os seus artigos foram reunidos em
um volume, publicado em 1923, o famoso Vers une Architecture (Por uma Arquitectura),
provavelmente o livro de arquitectura mais lido e influente da nossa época.
Fig. 17
A Casa Schroder, em
Utrecht, desenhada por
Rietvelt, em 1924. Foto
retirado, H. W. Janson,
História da Arte, Lisboa,
Fundação
Calouste
Gulbenkian, 1977, foto. 878,
p. 708.
Le Corbusier, ao conceber os seus projectos, inverteu completamente a
arquitectura moderna que se fazia então. No seu processo de concepção, na
busca da “melhor” solução para o problema, que nessa altura estava
estreitamente ligada à introdução de novas tecnologias, à construção
industrializada e a uma sociedade em mutação, aplica o que chamou de Tracés
régulateurs, (os traçados reguladores). 39
Na base deste tipo de abordagem está a convicção de que relações
harmoniosas em arquitectura podem ser alcançadas apenas quando todos os
elementos de um edifício, desde a forma dos compartimentos até às aberturas
nas paredes, estão em conformidade com todas as proporções do edifício e com
a natureza.
De acordo com esta filosofia, Le Corbusier procurou o seu caminho para
dar resposta ao que considerava ser o desafio à arquitectura no seu tempo, ou
seja, ao aparecimento de uma nova sociedade com novos valores culturais e
costumes, adaptada a uma nova forma de vida provocada pela industrialização.
Entre as obras primas da construção da nossa época, encomendadas a
Corbusier, na qual se verifica este tipo de traçados nas diferentes fases da sua
concepção, é a Casa Savoye, Poissy-sur-Seine, França, (1929-30), ver Figs. 18,
19 e 20.
38
Le Corbusier, deformação do nome de um antepassado do lado da mãe, Lecorbésier.
Petra Lamers-Schütze, Teoria da arquitectura. Do renascimento aos nossos dias,
Lisboa, Taschen, 2003, p. 704.
39
O discurso que Le Corbusier apresenta é “três lembretes aos senhores arquitectos”:
volumes simples, superfícies definidas mediante as linhas directrizes dos volumes, a
planta como princípio regulador; a arquitectura deve ser submetida ao controle dos
traçados geométricos reguladores; os elementos da nova arquitectura já podem ser
reconhecidos nos produtos industriais as naves, aeroplanos, os automóveis; os meios da
nova arquitectura são as relações que enobrecem os materiais rudes, o exterior como
projecção do interior, a moda natural como pura criação espiritual; a casa deve ser
construída em série, como as máquinas; as transformações nos pressupostos
económicos e técnicos comportam necessariamente uma revolução arquitectónica. Le
Corbusier, Por uma Arquitectura, 6ª edição, São Paulo, Editora Perspectiva, 2002. pp.
11- 40.
Fig. 18
Casa Savoye, Poissy-sur-Seine, França, (1929-30), Autour Le Corbusier, imagem retirada do livro W. Boesiger ; H.
Girsberger, Le Corbusier 1910-65, 3ª edición, Barcelona, Editorial Gustavo Gili, S. A., 1988, p. 59.
Fig. 19
Estudo de um esquema simétrico para a
Casa Savoye, finais de Novembro de 1928
(Fundação le Corbusier), Imagens retida no
livro, William J. R. Curtis, Le Corbusier
Ideas Y forma, Madrid, Hermann Blume,
1987, p. 96
Fig. 20
Casa Savoye Plantas: Piso 0; Piso 1; piso 2. Imagens retiradas no livro, William J. R. Curtis, Le Corbusier Ideas Y forma,
Madrid, Hermann Blune, 1987, p. 95. Na Casa Savoye, le Corbusier principia com uma malha estrutural, um quadrado
regularmente ritmado por pilares. Dentro de uma fórmula geométrico-racional encerra o espaço em quatro paredes de
janelas contínuas. A forma dos pilares faz lembrar as colunas dóricas. As superfícies lisas e polidas, desmentindo toda a
sensação de peso, acentuam a preocupação de Le Corbusier com os «blocos espaciais» abstractos. Para descobrir como a
caixa está subdividida, temos de entrar nela. O que permite constatar que este simples «caixote» contém espaços habitáveis
simultaneamente abertos e fechados, separados por paredes de vidro. Dentro da casa, estamos ainda em comunicação
com o exterior. Todavia, permite uma total intimidade, visto que o observador da rua não pode ver o seu interior, a não ser
que haja uma proximidade de uma janela. O funcionalismo da Casa Savoye está subordinado a um projecto para viver e não
a uma razão de eficiência mecânica.
Esta obra inovadora mostra claramente uma diferente atitude de projectar
e uma nova estética resultante de um novo espirito. Todavia, o processo de
concepção e compreensão arquitectónica continua muito semelhante à de
Miguel Ângelo: apesar de os resultados serem estética e funcionalmente
diferentes, ambos se distinguem pela plasticidade, razão pela qual recaiu sobre
estes a nossa escolha. Ambos aplicam a metodologia a que Bruno Munari muito
mais tarde virá a chamar de “Método de Projecto”.
Efectivamente, pode ser observado ao longo da história da arquitectura
uma profunda tradição que apresenta variadas formas de expressão gráfica.
Assim, cada época tem a sua sensibilidade, sua beleza, sua harmonia e suas
proporções.
Ao analisarmos obras arquitectónicas
de tempos distintos, torna-se
evidente que a arquitectura é algo mais do que mera resposta a uma exigência
puramente funcional inscrita num programa de construção, e de um exercício de
desenho.
Sendo assim, implica que se coloque de imediato a questão de como
analisar a harmonia e a proporção existentes numa determinada obra
arquitectónica?
Os estudos e as investigações que efectuámos, levam-nos a constatar
que, para
compreender melhor a harmonia e a proporção na arquitectura,
teremos de, em primeiro lugar, entender os desenhos que levaram até ela.
Para que um edifício ser considerado equilibrado todos os elementos que
o compõem devem ser estudados minuciosamente, tendo em conta as seguintes
características: a planta seja abstractamente bela no papel; as quatro paredes,
que são as fachadas, estejam previamente estudadas atendendo ao equilíbrio
dos cheios e vazios, dos relevos e das reentrâncias; o conjunto de todos os
elementos resulte proporcionado e harmonioso.
Os dados sociais, isto é, da função, os dados construtivos, ou seja, da
técnica, os dados volumétricos e decorativos, nomeadamente, plásticos e
pictóricos, são decerto bastante úteis, mas ineficazes para fazer entender o valor
da arquitectura se esquecer a sua essência, o substantivo que é o espaço. Já
Bruno Zeví (1918-2000) foi levado a afirmar: “ Que o espaço não é só o
protagonista da arquitectura, mas esgota a experiência arquitectónica, e que, por
consequência, a interpretação espacial de um edifício é suficiente como
instrumento crítico para julgar uma obra de arquitectura”. 40
Ou seja, tornarmo-nos senhores do saber ver constitui a chave que nos
permitirá a compreensão da arquitectura. Mas seria absurdo pensar que o
espaço é um objecto de estudo meramente estético, já que, fundamentalmente e
funcionalmente, deve albergar as actividades humanas.41
Contudo, também seria absurdo desligar da preocupação funcional do
espaço a sua vertente estética, pois ambas devem ser conjugadas para melhor
satisfazer as necessidades de conforto e bem-estar dos utentes.
Na obra arquitectónica, a disposição e a organização proporcionada e
harmoniosa dos elementos da forma e do espaço transmite significados e faz
brotar, nos seus utentes, respostas, vontades e intenções. Mas esses elementos
da forma e do espaço apresentam- se, em consequência da necessidade de
resolver um problema, como resposta às condições da funcionalidade,
intencionalidade e contexto. 42
Se admitimos o que fica dito acima, (e admiti-lo parece questão de bom
senso e de lógica), poderemos vislumbrar uma possível abordagem à questão
que formulámos anteriormente.
40
Bruno Zevi, Saber ver Arquitectura, São Paulo, Martins Fontes, 1978, p. 25.
41
Bruno Zevi, na obra citada, “O que faz distinguir a arquitectura em relação às restantes
actividades artísticas, está o facto de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o
homem. A pintura funciona em duas dimensões, a despeito de poder sugerir três ou
quatro. A escultura funciona em três dimensões, mas o homem fica de fora, desligado,
olhando o exterior as três dimensões. Por sua vez a arquitectura é como uma grande
escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha.” Bruno Zevi, op cit.,
Lisboa, 1978, p. 17.
42
Segundo Herbert Read, no seu trabalho O significado da Arte, referiu: “o arquitecto
tem de expressar-se por meio de edifícios com fim utilitário qualquer”. Herbert Read, O
Significado da Arte, Viseu, Editora Ulisseia, s.d., p.11.
Todos sabemos que o homem, na idealização das suas formas e
espaços, se serve de vários meios para transmitir sentimentos, emoções,
sensações, ideias. A isso se resume a necessidade fundamental de comunicar
algo que implique expressão intencional e poder mobilizador. Eis, justamente, o
que mais define o processo do pensamento artístico.
Desta forma, todo o processo do pensamento artístico surge intimamente
ligado ao processo visual, à capacidade de ver, à possibilidade de formular
juízos sobre as coisas. Ou seja, o homem vive num mundo de inúmeras formas
naturais e objectos de civilização, o que condiciona os comportamentos e a
formação do seu modo de ver.
Cada um de nós vê as coisas de modo diferente, isto porque existem
vários tipos de códigos estéticos. Estes mudam consoante o tempo e a
civilização. Podemos dizer que para cada momento, para cada problema, para
cada caso, há um tipo de beleza e harmonia diferentes. Esta diferença vai
determinar, na prática, uma variedade significativa do modo de fazer, isto é, uma
variedade de soluções que cada um encontra para transmitir aos outros a
experiência do mundo que o rodeia.43
A nosso ver, para compreender o processo de composição subjacente a
um projecto arquitectónico, é necessário; analisar o percurso passo a passo,
para descobrir os sentidos e ideias (evidentes e escondidos); encontrar
esquemas, padrões, estruturas, influências e orientações históricas, sociais e
filosóficas, nos desenhos e projectos - para que o todo resulta num conjunto
lógico e harmonioso, em que as partes que formam esse todo tenham uma
relação dinâmica, dimensional, material e estrutural. Isto torna-se ainda mais
premente quando nos propomos estudar obras resultantes de culturas
diferentes, mas que apresentam, aparentemente, linhas convergentes, podendo
levar a crer que possam ter estado sujeitas a influências mútuas.
43
Um dos objectivos deste estudo é expor e descrever de que maneira a anotação
gráfica toma forma, uma forma particular, para poder satisfazer uma função
comunicativa. Para isso, é necessário analisar o processo do pensamento gráfico no
desenho arquitectónico, procurando aprofundar todos os elementos e processos que
intervêm na determinação do dado representado.
No Oriente, por exemplo, ainda hoje é o pensamento filosófico que
fundamenta todas as artes e ciências, dando a noção de estarmos perante um
conjunto orgânico, tendo a maior parte em comum a procura da harmonia entre
todos os elementos que compõem o universo.
Há milénios que os chineses se dedicam ao estudo das energias que
influenciam todos os aspectos da vida. É nesse principio que se fundamenta o
Feng Shui. 44
Mais do que uma forma de abordar a arquitectura de uma casa, a sua
decoração ou a paisagem que a envolve, o Feng Shui pretende trabalhar as
energias existentes num lugar de modo a criar harmonia, 45 não apenas entre
esse lugar e o que o rodeia, mas proporcionar um equilíbrio perfeito entre os
indivíduos que venham a usufruir desse espaço e a sua relação com o universo
no seu todo. 46 Este princípio está de tal forma enraízado na cultura chinesa, que
até hoje faz parte da forma de estar na vida deste povo.
Já no Ocidente este sentimento de universalidade tem vindo a perder-se.
Actualmente, cada expressão artística ou científica é abordada como se de uma
disciplina isolada se tratasse, com princípios e métodos específicos. Esta perda
pode ser um dos aspectos que dificulta uma avaliação interpretada dos vários
saberes e, consequentemente, a sua articulação funcional.
44
O Feng Shui, que se pronuncia «Fong Suei» ou «Fang Shuei», significa literalmente
em chinês «Vento e Água», sendo a manifestação da energia vital da Terra. O Feng
Shui teve origem na China há 4000 anos e a sua prática traduz-se numa longa história
no Oriente. Sobre uma breve história do Feng Shui, c.f. Kwan Lau, Feng Shui. Reordene
su entorno para la salud y el bienestar, Madrid, Editorial EDAF, 1998.
45
O vento e a água são, portanto, como a alimentação e a necessidade de respirar,
imprescindíveis ao perfeito estado de saúde que a terra deve apresentar. Estas energias
podem manifestar-se dos mais diversos modos, dependendo, então de uma perfeita
avaliação de um especialista em Feng Shui que seja capaz de detectar os pontos de
desequilíbrio e corrigi-los do modo mais adequado.
46
Estamos perante de um dos princípios do Feng Shui que significa “Vento e Água”. É a
arte de projectar a casa de modo a obter o bem estar da vida humana. Simon Brown,
Guia prático Feng Shui, Lisboa, Circulo de Leitores, 1999.
Longe vai o tempo de Virtrúvio, que declara, no seu tratado “Os dez livros
de Arquitectura”, dever o arquitecto, antes de conhecer a técnica da construção,
possuir conhecimentos de Geologia, Geometria,
47
assim como não ignorar a
Óptica, saber Aritmética e muito de História. É também necessário ter estudado
bem a Filosofia, ter conhecimento da Música, inclusive compreender o ritmo da
música, algumas luzes de Medicina, de Astrologia, e de Jurisprudência, para
encontrar o máximo de harmonia com o universo. 48
Esta visão globalista ainda se encontra no Renascimento, mas vai-se
perdendo progressivamente com a especialização das várias áreas do saber,
47
Na Geometria Descritiva podemos individualizar uma área que se baseia na
necessidade de ter presente a propriedade métrica dos objectos representados, a fim de
poder actuar sobre toda uma série de operações de relevo, construção, projecto,
manipulação, montagem e ainda deslocações, indicações de percurso, localizações, que
dizem respeito à relação operativa de transformação concreta em que se baseia a
contínua interacção do homem com o ambiente.
Os métodos que a Geometria tem criado englobam as projecções ortogonais,
as projecções cotadas, a representação das sombras, transmitem operações rígidas
codificadas de “projecções”, “cortes”, “rebaixamentos”, obtendo-se configurações
altamente comunicativas, limitadas, porém, devido às qualidades tomadas em
consideração, neste caso específico as dimensionais e construtivas.
48
Neste sentido, podemos ler na obra de Vitrúvio: “A razão é para que não se esqueça
de nada do que tem a fazer, o arquitecto deverá executar boas memórias, e para esse
efeito, é necessário saber bem Desenhar, para que possa com maior facilidade, sobre os
desenhos que traçar, executar todas as obras do projecto. A Geometria também lhe é
duma grande ajuda, particularmente para aprender a bem servir-se da régua e do
compasso, e para tomar alinhamentos e executar todas as coisas com esquadria e com
nível. A Óptica serve-lhe para saber dominar os dias e fazer aberturas apropriadas
segundo a disposição do Céu. A Aritmética serve-lhe para o cálculo do dispêndio das
obras que empreende, e para regrar as medidas e as proporções que se determinam por
vezes melhor pelo cálculo que pela Geometria. A História fornecerá matéria para a
maioria dos ornamentos da arquitectura, donde deverá saber o porquê da reprodução.
Em relação à Música, ele deve estar inteirado de forma a conhecer a proporção. A
Medicina serve para saber quais são os diferentes locais da terra, de forma a conhecer a
qualidade do Ar, se é saudável ou nocivo, e quais são as diversas propriedades das
Águas, pois não é possível construir uma habitação que seja sã, se não forem
ponderados todos estes assuntos”. Maria Helena Rua, Os dez livros de Arquitectura de
Vitrúvio, Lisboa, 1998, pp. 3-9.
obrigando desta forma ao envolvimento de um número cada vez maior de
técnicos.
Podemos, no entanto, pressupor que em qualquer época, de qualquer
cultura, o objectivo máximo será sempre proporcionar qualidade de vida aos que
venham a usufruir dos espaços projectados. 49
49
Nos dez livros de Arquitectura de Vitrúvio, no capítulo IV é descrito como se pode
conhecer se um local é saudável e o que o impede de o ser. Maria Helena Rua, Op.
cit., pp.16-19.
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