Bianca Imbiriba Bonente Bianca Imbiriba Bonente possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense (2004), mestrado em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia (2007) e doutorado em Economia pela UFF (2011). Hoje é professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx). Bianca Imbiriba Bonente | Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica O objetivo deste livro é demonstrar que as teorias do desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo, e apenas ele, quanto no sentido de que, ao fazê-lo, projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para, primeiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econômicas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, empreende-se um contraste entre os termos comuns dessas teorias e os elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx. Bianca Imbiriba Bonente Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista Sendo uma formação social histórica, o capitalismo pode ser parteira de um desenvolvimento não capitalista, pós-capitalista, o que torna sempre pertinente a indagação sobre a necessidade ou possibilidade de conter a História em sua forma processual presente. Uma indagação como essa aponta para um plano mais abstrato de análise no qual o desenvolvimento capitalista não é previamente ajuizado como algo positivo (ou inexorável), mas sim como expressão da relação entre a norma de funcionamento (tendencial) interna do capitalismo e os constrangimentos externos que atuam sobre ela. Isso requer uma reconstrução crítica da ideia mesma de desenvolvimento que restaure o sentido mais geral apontado pela etimologia do termo. Considerando o que foi dito, é possível agora confessar: esta lição sobre desenvolvimento não saiu da cartola a partir da leitura de um dicionário ou obra qualquer acerca da etimologia das palavras. Na verdade, trata-se de uma entre as várias lições aprendidas na leitura do livro que o presente texto propõe-se a apresentar: Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista, de Bianca Imbiriba Bonente. Aqueles que se dedicarem ao exame atento dos capítulos do livro, com o mínimo de interesse e humildade necessários para aprender, certamente tomarão dele esta e outras lições. João Leonardo Medeiros Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança Bianca Imbiriba Bonente Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista Copyright © 2012 Bianca Imbiriba Bonente Copyright © 2016 Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal F­ luminense Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja Icaraí - ­Niterói, RJ - Brasil CEP 24220-900 Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br - [email protected] Impresso no Brasil, 2016 Foi feito o depósito legal. Sumário Apresentação, 7 Introdução, 17 PARTE I – POR UMA TEORIA ONTOLÓGICA DO DESENVOLVIMENTO, 27 Capítulo 1 – Leis gerais de desenvolvimento da sociedade: historicidade e desigualdade do desenvolvimento, 31 Seção 1.1 As leis gerais de desenvolvimento da sociedade, 32 Seção 1.2 Historicidade e desigualdade do desenvolvimento, 35 Seção 1.3 Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações finais, 40 Apêndice I – Esclarecimentos sobre a categoria desenvolvimento desigual, 46 Capítulo 2 – Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica autoexpansiva, desenvolvimento e estranhamento, 49 Seção 2.1 Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista, 50 Seção 2.2 Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas contradições, 55 Apêndice II – Desenvolvimento capitalista e mercado mundial, 63 Capítulo 3 – O desenvolvimento capitalista e suas particularidades, 69 Seção 3.1 A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo”, 71 Seção 3.2 A crise dos anos 1970 e a contrarrevolução conservadora, 81 Seção 3.3 O desenvolvimento capitalista e suas particularidades: considerações finais, 98 Apêndice III – Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista, 101 PARTE II – TEORIAS DO DESENVOLVIMENTO: POR UMA CRÍTICA ONTOLÓGICA, 105 Capítulo 4 – Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico: Harrod, Domar e Solow, 109 Seção 4.1 Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de Harrod e Domar, 112 Seção 4.2 A estabilidade do crescimento no modelo de Solow, 118 Seção 4.3 Considerações finais, 122 Capítulo 5 – Teorias clássicas do desenvolvimento (I): estratégias de industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral, 125 Seção 5.1 Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento equilibrado, 126 Seção 5.2 Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento desequilibrado, 135 Seção 5.3 Rostow e o manifesto não comunista: uma síntese do debate?, 140 Seção 5.4 Considerações finais, 147 Capítulo 6 – Teorias clássicas do desenvolvimento (II): em defesa da industrialização na América Latina, 151 Seção 6.1 O “sistema centro-periferia”e a deterioração dos termos de troca, 153 Seção 6.2 Em defesa da industrialização na América Latina, 158 Seção 6.3 Considerações finais, 163 Capítulo 7 – As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970, 167 Seção 7.1 A requalificação do debate sobre desenvolvimento, 170 Seção 7.2 O dilema “Estado x Mercado”, 178 Seção 7.3 Considerações finais, 184 Conclusão, 187 Referências, 197 Agradecimentos, 205 Apresentação Novas lições sobre um velho tema: desenvolvimento, agora (de fato) examinado desde uma perspectiva marxista João Leonardo Medeiros* 1 Em muitas ocasiões, a etimologia de um termo empregado cotidianamente presta-se ao importante papel de abrir uma fenda no senso comum, evidenciando que os vocábulos e seu conteúdo são construções históricas e, como tais, passíveis de mudança. Ao fazê-lo, a etimologia não apenas funciona como corretivo crítico do senso comum, mas faculta o reconhecimento de um sentido geral e mais abstrato (e não historicamente específico) de uma palavra ou expressão. Tomemos a palavra desenvolvimento, partindo, entretanto, de seu sentido cotidiano, associado ao trânsito processual desde um estado menos evoluído para um estado mais evoluído do que quer que seja. O movimento em si é usualmente percebido como algo positivo, como um bem, uma condição a ser alcançada e, se possível, promovida. É verdade que, normalmente, ninguém julga positiva a evolução de um câncer. Mas desenvolvimento artístico, cultural, humano são expressões que capturam o significado dominante que a palavra desenvolvimento indubitavelmente possui. Não parece absurdo sugerir que este sentido corrente de desenvolvimento baseie-se na lógica da economia do atual período histórico, uma economia em que o trânsito pelo tempo tem direção causalmente determinada pela própria dinâmica implicada pela estrutura produtiva. Entre hoje e amanhã, a tendência de uma economia capitalista é de aumento da riqueza produzida sob a forma mercantil – isto é, em sua duplicidade de utilidade e preço (valor de uso e valor). A ausência de desenvolvimento ou * Professor associado do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx) da mesma instituição. 7 sua brusca interrupção são, por outro lado, justamente associadas ao tímido potencial de crescimento da riqueza produzida ou à brusca interrupção do crescimento. Recorramos agora à etimologia da palavra desenvolvimento. Desenvolvimento, desenvolver, vem “de envolver, do latim involvere, envolver, antecedido do prefixo des-, indicador de negação, mas também de ação ou abundância, conforme o contexto: desnudar não é vestir; desfazer não é deixar de fazer (mas desmanchar, fazer outra coisa) […]” (SILVA, 2014). Seguindo a explicação etimológica, o segundo prefixo (en-) do vocábulo desenvolver “indica ‘dentro’; o primeiro, des- contraria este, significando tirar do invólucro, como em ‘descobrir’ e ‘descascar’.” Isso significa, em síntese, que “o significado de desenvolver, desenvoltura, desenvolvimento e outras palavras assemelhadas é retirar algo que está impedindo a manifestação” (Ibidem). Há, naturalmente, alguma relação entre o sentido originário da palavra desenvolvimento e seu significado atualmente predominante. Afinal de contas, o próprio estado evoluído ou não de um objeto da realidade depende não apenas de sua norma interna de funcionamento, mas também de constrangimentos externos que possam impedir ou limitar a expressão plena de suas possibilidades. Agora, se há algo que se revela pelo contraste entre o significado corrente do termo e a sua origem etimológica é a marcante presença do caráter de valor (no sentido ético do termo) que “desenvolvimento” atualmente possui. Como dito, em geral desenvolvimento é percebido como um processo positivo de explicitação do ser, sendo inclusive tratado como algo a ser promovido ou estimulado. Se faz sentido, de fato, sugerir que o vocábulo desenvolvimento, do modo como atualmente interpretado, tem relação íntima com o processo evolutivo da economia capitalista, então seu sentido valorativo corrente só pode estar associado às formas de consciência que ajuízam o desenvolvimento capitalista. Tomando por base as interpretações científicas de tal processo, em particular aquelas das teorias econômicas do desenvolvimento, isso parece fazer todo sentido, por 8 basicamente duas razões. Primeiro porque, passando em revista a infinidade de teorias econômicas do desenvolvimento, é possível reconhecer em meio à imediata diversidade (pelo menos) um elemento comum: a percepção do desenvolvimento capitalista como limite do desenvolvimento social, como o estado a ser alcançado ou promovido, ainda que não haja consenso sobre a forma particular de capitalismo que pode ou deve ser tomada como avatar. Segundo, porque, de fato, todas as teorias econômicas do desenvolvimento percebem o desenvolvimento capitalista como um bem e, na prática, constroem-se como teorias a serviço de sua promoção. A questão é que sendo uma formação social histórica, o capitalismo pode ser parteira de um desenvolvimento não capitalista, pós-capitalista, sendo sempre pertinente indagar sobre a necessidade ou possibilidade de conter a história em sua forma processual presente. Uma indagação como essa aponta para um plano mais abstrato de análise no qual o desenvolvimento capitalista não é previamente ajuizado como algo positivo (ou inexorável), mas sim como expressão da relação entre a norma de funcionamento (tendencial) interna do capitalismo e os constrangimentos externos que atuam sobre ela. Isso requer uma reconstrução crítica da ideia mesma de desenvolvimento que restaure o sentido mais geral apontado pela etimologia do termo. Considerando o que foi dito, é possível agora confessar: esta lição sobre desenvolvimento não saiu da cartola a partir da leitura de um dicionário ou obra qualquer acerca da etimologia das palavras. Na verdade, trata-se de uma entre as várias lições aprendidas na leitura do livro que o presente texto propõe-se a apresentar: Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista, de Bianca Imbiriba Bonente. Aqueles que se dedicarem ao exame atento dos capítulos do livro, com o mínimo de interesse e humildade necessários para aprender, certamente tomarão dele esta e outras lições. Para deixar clara a profundidade e relevância do argumento apresentado na obra, tomemos algumas lições nela contidas. 9 Em primeiro lugar, o livro nos ensina ser possível reconhecer na obra de Marx aquele sentido geral e abstrato do vocábulo “desenvolvimento” que põe ênfase na explicitação objetiva das possibilidades contidas no próprio ser e não no ajuizamento externo deste processo. Em se tratando do desenvolvimento capitalista, isso quer dizer que o capital é mais desenvolvido, quanto mais ampla a sua atuação. Ou seja, por mais contraintuitivo que pareça, o fato de o capital ampliar seu alcance territorial (tendência à formação do mercado mundial), penetrar nas mais distintas esferas da vida social (como, por exemplo, as artes, esportes, relações familiares, de afeto etc.) e atuar sobre um número maior de setores (como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado, nos quais a lucratividade é relativamente diminuta e o retorno é mais demorado), imprimindo, em todos esses casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o capital se desenvolveu. (BONENTE, 2016, p. 99). Parece simples e de fato é, mas só depois que alguém expressou esse entendimento nada imediato em tal simplicidade sintética, como o fez Bianca Bonente, inspirando-se em Marx. Isso conduz a mais uma lição contida na obra: desenvolvimento capitalista assim concebido não tem relação necessária com seu efeito sobre o conjunto da humanidade. O capitalismo torna-se mais desenvolvido quando a sociedade torna-se mais capitalista, quando os constrangimentos à atuação do capital são eliminados e sua lógica evolutiva contraditória avança intensiva e extensivamente no tecido da vida social. Isso pode ser facilmente percebido pelo conteúdo corrente da palavra crise, sempre associado à interrupção de uma trajetória de crescimento da produção (em geral, medida pelo PIB). Mesmo que, antes e depois da “crise”, tudo mais desmorone – ­ o meio ambiente, as condições da convivência cotidiana, a possibilidade de subsistência digna da maioria absoluta da população mundial – só se constata a interrupção do desenvolvimento e, portanto, a 10 crise, quando a produção de mais-valor reduz seu ímpeto. Em suma: “Falar sobre o desenvolvimento da produção capitalista significa falar sobre a operação de suas leis em escala global. O fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais apenas comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista, em lugar de negá-la.” (BONENTE, 2016, p. 69). Partindo desta noção de desenvolvimento abstrata, geral, objetiva, o livro nos ensina a passear por diferentes níveis de abstração, especialmente do universal ao particular. No plano universal, aprendemos sobre as condições historicamente transcendentes (i.e., propriamente gerais) do desenvolvimento da sociedade, que a autora reconhece a partir de uma leitura inspirada da Ontologia do ser social de György Lukács (2012; 2013). Considerando a complexidade do processo histórico e a diversidade da vida social, não surpreende que as tendências gerais de desenvolvimento não passem de três: a “crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à reprodução humana e a constituição da consciência genérica”. (BONENTE, 2016, p. 189). O argumento move-se adiante pela tentativa de demonstrar como essas tendências gerais do desenvolvimento social articulam-se com tendências particulares que em si caracterizam o funcionamento da sociedade regida pelo capital. É neste momento do livro que a análise clássica de Marx em O capital, particularmente de seu Livro I (MARX, 2013), comparece com mais peso, pois Bonente, corretamente em nosso juízo, compreende que o grande mérito de Marx foi ter concentrado sua atenção em determinações que conformam a norma geral do desenvolvimento capitalista (e não as condições particulares do capitalismo inglês, ou do século XIX, ou de livre concorrência etc. etc. etc.), tomando-as exatamente como aquilo que são em si: tendências universais.12 1 O termo tendência denota um tipo de legalidade (1) não empírica, mas que se manifesta empiricamente, como a lei da gravidade; e (2) não teleológica, mas baseada não teleologicamente em práticas teleológicas espontaneamente articuladas entre si, como a própria lei da queda da taxa de lucro reconhecida por Marx (2013, p. 29). 11 Ao descer uma vez mais o plano de abstração, o livro traz mais uma lição: a de que o capitalismo contém possibilidades muito diversas de operação daquela configuração geral de seu desenvolvimento. O propósito, neste caso, é demonstrar que, para além de sua configuração geral, “a produção capitalista é caracterizada por tendências particulares, circunscritas historicamente a condições específicas de reprodução sistêmica, que permitem delimitar fases de seu desenvolvimento” (BONENTE, 2016, p. 70). Reconhecendo que o estudo das determinações particulares que caracterizam as fases de desenvolvimento do capitalismo exige em si um esforço singular, Bonente limita-se a cotejar duas formas assumidas pelo capitalismo no século XX, ressaltando suas determinações mais claramente distintivas. Isso é feito nas seções 3.1 e 3.2, que comparam a feição peculiar assumida pelo capitalismo em sua assim chamada “Era de Ouro” com a forma aparentemente mais clássica assumida no longo período de crise pós 1970 – o período usualmente designado neoliberal. Com a comparação entre fases diversas assumidas pelo capitalismo no século XX, o livro encerra sua primeira parte, justamente voltada ao exame das tendências (das mais gerais às particulares) que caracterizam o desenvolvimento social na era capitalista. A Parte II do estudo assume essa análise do desenvolvimento como fundamento de um contraste crítico que permite reconhecer a modalidade característica de análise do mesmo objeto pelas ditas “teorias econômicas do desenvolvimento”. Para leitores menos pacientes com as limitações e a parcialidade da ciência econômica, principalmente os marxistas, trata-se indubitavelmente de um anticlímax. Saem de cena pensadores como David Harvey, Moishe Postone, Ricardo Antunes, Mario Duayer e, principalmente, György Lukács e Karl Marx e entram Arthur Lewis, W. W. Rostow, Robert Solow, Roy Harrod, Amartya Sen entre muitos outros que elaboram suas ideias no mesmo campo e plano. Os que bravamente resistem a tal mudança de ambiente são brindados com mais algumas lições. Por exemplo, é possível aprender como, na prática, funciona aquilo que Lukács chamou de “crítica ontológica” (LUKÁCS, 12 2012) e Roy Bhaskar de “crítica explanatória” (BHASKAR, 1998). Por isso se quer dizer uma crítica que não se limita à demonstração do caráter falso e/ou parcial de explicações alternativas (científicas ou não) sobre um objeto qualquer ou, ademais, à construção de uma explicação teórica alternativa que ressignifique o objeto. Trata-se, na verdade, de uma crítica que, além disso, busca explicar, com igual rigor e interesse, a partir da realidade, as determinações e processos que explicam a existência e a necessidade social das concepções rivais, falsas e/ou parciais como são, como interpretações correntes, principalmente quando tais concepções demonstram possuir eficácia prática.23 Assim são tomadas várias teorias econômicas do desenvolvimento. Sem perder de vista sua diversidade evidente, enfatizada nos tediosos e insípidos manuais sobre o tema, a análise de Bonente distingue-se por apontar seus pressupostos comuns. Mesmo (ou principalmente) a conhecida crítica das Economias Clássica e Neoclássica construída pela antiga Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e Caribe) é examinada deste modo. No caso da Cepal, o que se revela por detrás de oposição teórica com seu adversário direto é a seguinte afinidade: a despeito das particularidades, compartilham todas uma mesma noção de desenvolvimento (que toma como pressuposto a forma elementar de riqueza característica 2 Tanto Lukács como Bhaskar reconhecem ser justamente esse o tipo de procedimento crítico adotado por Marx em todo o seu percurso intelectual. O capital, não por outro motivo subintitulado Crítica [e não Princípios] da Economia Política, não apenas toma a Economia Política como objeto de crítica, não apenas propõe uma explicação teórica alternativa para o mesmo objeto, como se preocupa em demonstrar que a economia capitalista não poderia reproduzir-se, dado seu caráter contraditório, sem uma ciência dedicada justamente à administração das contradições. Categorias próprias do senso comum e da Economia Política são, portanto, objeto de uma análise crítica que revela sua íntima conexão com a imagem que o objeto (economia capitalista) espontaneamente projeta de si, mas também sua importância decisiva para a preservação do objeto. O exemplo clássico desse procedimento crítico, a análise da forma salário, no Capítulo XVII de O capital, é apenas uma instância entre inúmeras contidas na obra de Marx. 13 do capitalismo), uma mesma estratégia de desenvolvimento (que toma como pressuposto o modo industrial de produzir) e um mesmo ideal de desenvolvimento (espelhado nos países capitalistas desenvolvidos). (BONENTE, 2016, p. 163). Tomando a Cepal como referência, e fazendo uso da própria linguagem estruturalista, pode-se sugerir que existam “efeitos-encadeamento” – no caso, intelectuais – para trás e para frente. Se a Cepal reelabora a visão de mundo que toma o capitalismo como horizonte último da história humana de modo a torná-la mais adequada ao período excepcional em que o capital conclamou o Estado a salvá-lo de uma aguda crise de lucratividade, por outro lado, a reelaboração crítica das ideias da antiga Cepal por novos-neoclássicos travestidos de cepalinos ou não, além de novos pretensos heterodoxos, como Amartya Sen e outros, entrega uma formulação adequada ao novo período histórico pós-1960. O que se preserva, neste trânsito, é a noção de desenvolvimento capitalista como um bem e, por outro lado, a orientação da teoria no sentido de promovê-lo pela via política. Como diz a autora: “Socialmente justo, ambientalmente responsável, livre ou regulado: trata-se apenas de projetar para o futuro configurações diversas de uma mesma formação social (o capitalismo)” (BONENTE, 2016, p. 186). São, enfim, muitas as lições do livro que tenho o orgulho de apresentar. Creio que aos leitores ficará imediatamente perceptível que se trata da divulgação do primeiro trabalho de uma pesquisadora e professora segura de suas convicções e conhecedora dos argumentos necessários para sustentá-lo. Como colega de trabalho, amigo e ex-orientador, realmente não posso deixar de expressar minha satisfação em constatar a precoce maturidade intelectual de Bianca Imbiriba Bonente, uma constatação certamente compartilhada por aqueles que já travaram contato direto com suas ideias. Que sejam essas as primeiras lições de muitas outras trazidas pela grande autora corajosamente lançada pela Eduff. 14 Referências BHASKAR, Roy. The Possibility of Naturalism. London: Routledge, 1998. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012. ______. Para uma ontologia do ser social II. São Paulo: Boitempo, 2013. MARX, Karl. O capital: livro 1: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013. SILVA, Deonisio da. De onde vêm as coisas: origens e curiosidades da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lexicon, 2014. 15 Introdução Não é de se estranhar que um autor polêmico como Marx suscite ainda hoje tantas releituras e interpretações, dos mais variados tipos e nas mais diversas áreas, desde aquelas decididas a apontar inconsistências e incorreções teóricas, até as que buscam, a partir de um resgate, avançar em pontos pouco explorados pelo autor, passando ainda pelas tentativas de sistematização (pretensamente isentas) geralmente encontradas em manuais e/ou livros-texto. Em uma inspeção rápida desse material, podem ser encontradas algumas leituras pertinentes (embora nem sempre corretas) e outras insustentáveis diante de um exame cuidadoso da obra do autor. Particularmente no que diz respeito à temática do desenvolvimento, uma leitura bastante difundida é aquela que atribui ao autor uma noção de desenvolvimento associada ao trânsito inexorável por etapas históricas bem definidas. De acordo com essa concepção, portanto, Marx estaria apresentando a história humana como uma sucessão de modos de produção (movida pelas contradições que se estabelecem entre forças produtivas e relações de produção, ou entre base econômica e superestrutura), cujo fim, ou estágio último, seria o comunismo (independentemente da forma como este é concebido).1 Perspectivas desse tipo buscam amparo, por exemplo, em trechos do prefácio ao Para a crítica da economia política, em que Marx (1982, p. 26) fala de “relações de produção [...] que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas materiais”, ou ainda em trechos do conhecido prefácio à primeira edição de O capital, em que Marx utiliza por diversas vezes o termo desenvolvimento, geralmente em referência aos casos inglês e alemão (tomados ambos, especialmente o primeiro, como “laboratórios de investigação”). Nesse particular, Marx (2002, p. 16 et seq.) faz afirmações como “o país desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura do menos desenvolvido”, ou mesmo, 1 Uma síntese desta leitura, e das principais controvérsias por ela suscitadas, pode ser vista em Harris (1983). 17 “uma nação deve e pode aprender de outra. [...] não pode ela suprimir, por saltos ou por decreto, as fases naturais de seu desenvolvimento”. Nas passagens mencionadas, portanto, Marx estaria comunicando aos conterrâneos alemães que o futuro de seu país poderia ser conhecido diretamente pelo exame do passado de um país mais desenvolvido: a Inglaterra. Como sintetizado no trecho que Marx extrai das Sátiras de Horácio: “Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”.2 Ainda que o emprego da palavra desenvolvimento nas passagens supracitadas tenha alimentado polêmicas, é possível encontrar inteligibilidades bastante diversas da questão dentro do mesmo ambiente teórico. Uma interpretação particularmente instigante encontra-se no trabalho póstumo do filósofo marxista G. Lukács (1979). Considerando o conjunto da obra e o sentido geral da teoria social marxiana, Lukács propõe que, com a palavra desenvolvimento, Marx tem por referência o aumento objetivo da complexidade como elemento regulador da dinâmica de funcionamento de objetos estruturados ao longo do tempo (LUKÁCS, 1979, p. 54). Ou seja, “uma dada estrutura (totalidade) é objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da mesma espécie caso seja constituída por um maior número de componentes específicos, ou pelo mesmo número de componentes mais complexos” (MEDEIROS, 2007, p. 45). No caso da sociedade (abstratamente considerada), esse aumento no grau de complexidade poderia ser traduzido no crescimento da sociabilidade em sentido extensivo (aumento da quantidade de componentes predominantemente sociais como elementos mediadores da vida em sociedade) e/ou intensivo (crescente complexidade dos componentes já existentes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como recuo das barreiras naturais. Sobre as tendências que regulam a dinâmica de funcionamento da sociedade, Lukács (2007, p. 237 e 238 et seq.) menciona ainda o aumento das forças produtivas do trabalho (ou seja, a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e reprodução das condições de vida humana) 2 18 “Está rindo do quê? Em outras palavras, a fábula fala de ti.” e a formação do gênero humano, resultado das “ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as sociedades singulares originalmente pequenas e autônomas”. No caso da sociedade em forma especificamente capitalista, desenvolvimento significa, seguindo a mesma lógica, a operação das leis que emanam da organização própria da economia regida pelo capital em sentido extensivo (isto é, para uma porção mais ampla do globo, submetendo uma quantidade maior de formações sociais e seres humanos) e/ ou intensivo (comandando momentos mais amplos da convivência social, como as atividades artísticas, esportivas, relações afetivas etc.). O trânsito de um estágio mais baixo de desenvolvimento para um mais alto significa, portanto, a predominância mais ampla da lógica capitalista na existência social (e não a passagem do pior ao melhor, seja lá como esses estados possam ser definidos). Se essa é, de fato, a maneira como Marx concebeu o desenvolvimento, então o desenvolvimento de que fala em O capital é o desenvolvimento do seu objeto de análise (a sociedade capitalista, cuja dinâmica é dominada por sua economia, como procura demonstrar a obra). Ademais, o fato de que Marx tenha procurado capturar a essência desse desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência revela, por um lado, que o autor tem plena consciência de que o processo de desenvolvimento comporta histórias (isto é, trajetórias concretas, efetivas) bastante diferenciadas. Isso porque leis de tendências não são afirmações sobre sequências regulares de eventos, mas sim proposições sobre a capacidade causal de um determinado objeto do mundo, que pode ser exercida sem que os fenômenos causados se manifestem (em virtude da operação de tendências contrarrestantes). Naturalmente, isso confere à análise de Marx um caráter post festum, não preditivo. Por outro lado, a caracterização do processo de desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência nitidamente revela o reconhecimento do caráter não teleológico da história em seu conjunto. Ainda que Marx destaque a teleologia como o aspecto distintivo da práxis humana, ele simultaneamente 19 caracteriza a dinâmica da sociedade como o resultado da articulação espontânea, não teleológica, dessas práticas.3 Com essas considerações, torna-se possível retomar as passagens de Marx citadas no início desta introdução, especialmente aquelas que tratam da relação entre Inglaterra e Alemanha. À luz da interpretação aqui defendida, pode-se sugerir que Marx considerava a Alemanha um país capitalista, mas com um grau de penetração do capital na vida social como um todo relativamente limitado em comparação com a Inglaterra. Por esse motivo, afirma que “além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif. [O morto tolhe o vivo]” (MARX, 2002, p. 16 e 17). Um indício claro desse raciocínio também pode ser encontrado na afirmação de que a Alemanha é menos desenvolvida que a Inglaterra por não contar com uma regulação jurídica das relações entre capital e trabalho, isto é, com uma estrutura jurídica compatível com a produção capitalista (ou ainda, com “relações de produção” correspondentes à “etapa determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas materiais”). Mais do que isso, ao afirmar que a Alemanha se desenvolveria como a Inglaterra, Marx não estava falando de eventos e fenômenos históricos concretos, mas sim do surgimento, naquele país, de um terreno favorável à operação das leis (econômicas) que caracterizam e governam a sociedade capitalista. Na tentativa de esclarecer o motivo pelo qual julgamos necessário demonstrar que essa é efetivamente a noção de 3 20 Em O capital, essa diferença entre o caráter teleológico das práticas individuais e o caráter não teleológico do processo social em seu conjunto é salientada por diversas vezes. Um bom exemplo é a análise da prática dos capitalistas em processo de concorrência, realizada no Capítulo X do Livro I. Embora os capitalistas movam sua prática no sentido da extração de mais-valia extraordinária, do ponto de vista do processo em seu conjunto, o resultado de tais práticas é a redução do valor da força de trabalho (MARX, 2002, p. 368-370). desenvolvimento carregada por Marx, é indispensável ainda contrastá-la com a noção de desenvolvimento convencionalmente aceita no campo da ciência econômica. Nesse caso, observamos que o desenvolvimento é entendido, em geral, como trânsito do “pior ao melhor”, o que envolve um juízo sobre condições pretéritas, presentes ou futuras, realizado com base em determinados critérios preestabelecidos. Ao lado dessa posição geral, está a noção de desenvolvimento como mero desdobramento de possibilidades postas pelo presente ordenamento social, colapsando o desenvolvimento da sociedade enquanto tal e o desenvolvimento capitalista (o que não chega a surpreender, pois, como se sabe, para a Economia a sociedade capitalista é o limite último de todas as teorias e práticas). Os exemplos mais claros de conjugação das duas características apresentadas são, sem sombra de dúvida, oferecidos pelas teorias econômicas do desenvolvimento, tomadas como objeto do presente estudo. O surgimento desse conjunto de teorias é normalmente datado do período posterior à Segunda Guerra Mundial e marcado pelo fato de eles compartilharem uma mesma preocupação: explicar por que os diferentes países sustentam trajetórias históricas de crescimento distintas e propor saídas para os “menos favorecidos” – geralmente tratados como subdesenvolvidos.4 Como esperamos demonstrar ao longo deste estudo, essas teorias possuem diferenças e particularidades, tanto nos diagnósticos quanto nas prescrições, que não podem ser ignoradas. Ainda assim, o desenvolvimento é tratado, em geral, como a passagem de um estágio de privação material para um estado de pletora material, qualquer que seja o critério para avaliar essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Além disso, a formação social capitalista é tomada como um pressuposto, tanto na definição 4 Vale notar que há uma variedade de termos e eufemismos utilizados para tratar desse grupo de países: desde o próprio “subdesenvolvidos” até “deprimidos”, “periféricos”, “terceiro mundo” etc. Para facilitar a exposição, adotaremos prioritariamente o termo subdesenvolvimento, a não ser quando estivermos empregando a linguagem de um autor específico na exposição de suas ideias. 21 dos fins (objetivos primordiais do desenvolvimento) quanto na definição dos meios (isto é, das estratégias e requisitos necessários a essa passagem). Trata-se, portanto, como dito, de encarar o desenvolvimento como o eterno desdobrar do presente e, simultaneamente, de ajuizar esse processo, explícita ou implicitamente, como positivo. Por que deveríamos recusar a noção de desenvolvimento veiculada pela ciência econômica, uma noção que conduz à identificação imediata de desenvolvimento com desenvolvimento capitalista? Pensemos, por um minuto, que Marx tinha razão. Admitamos que ele esteja correto quando procura demonstrar que o capitalismo não pode subsistir sem o exército industrial de reserva, que o capitalismo não pode prescindir da separação dos seres humanos em classes sociais (ou seja, da desigualdade), que nós não temos como controlar, mesmo pela ação do Estado, a dinâmica capitalista (isto é, que estamos subordinados à possibilidade de crises e de um uso destrutivo da natureza). Se esse argumento faz sentido, e nós estamos presos ao desenvolvimento capitalista, então nossa única alternativa seria desenvolver uma teoria da conformação universal, e, naturalmente, da administração da calamidade. Por outro lado, se percebemos o desenvolvimento capitalista como momento específico de um desenvolvimento mais amplo, então podemos ao menos nos questionar se devemos contribuir para a explicitação das leis que respondem pelo desenvolvimento capitalista, ou se devemos, no sentido contrário, esforçar-nos por transitar para outro modo de desenvolvimento. Em segundo lugar, ainda partindo da premissa de que Marx tinha razão, se o desenvolvimento capitalista envolve, por necessidade, mazelas sociais e ecológicas, seria impossível que, junto às mazelas, não emergissem formas de consciência em diversos níveis (cotidiano, filosófico, científico etc.) que se ocupassem dessas mazelas, fosse para compreender suas causas e/ou propor soluções. Se as mazelas são mazelas em algum sentido, elas reclamam remédio, e as teorias que confundem desenvolvimento capitalista e desenvolvimento em-si enquanto tal tratam de oferecê-lo. Então, no fundo, essas teorias não 22 são apenas teorias, são ideias necessárias de um mundo que produz mazelas. Diante desse panorama geral, podemos finalmente afirmar que o objetivo deste estudo é demonstrar que as teorias do desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, ou seja, tomam o capitalismo (e apenas o capitalismo) como limite teórico e prático da sua intervenção e projetam a formação social capitalista (uma imagem dela, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para, primeiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econômicas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, foi estabelecido um contraste entre os termos comuns dessas teorias e os elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx (seguindo, é claro, a interpretação aqui defendida). O contraste evidenciou não apenas ser possível conceber o desenvolvimento da sociedade na sua atual configuração, como uma fase historicamente contingente do desenvolvimento social em geral, mas também confirmar a hipótese de que as teorias econômicas do desenvolvimento são manifestações teóricas do próprio desenvolvimento social na sua atual forma. As páginas que se seguem apresentam, em duas grandes partes, os resultados do estudo. Na Parte I, buscamos defender a possibilidade de formulação de uma teoria do desenvolvimento autenticamente ontológica e definir de modo mais preciso o sentido do termo desenvolvimento dentro dessa perspectiva.5 Para tanto, essa parte encontra-se dividida em três capítulos, nos quais buscamos progressivamente diminuir o nível de abstração da análise: no primeiro, tratando das principais linhas de desenvolvimento da sociedade, abstratamente 5 O termo ontologia, empregado por diversas vezes ao longo deste livro, refere-se ao conjunto de considerações gerais sobre a realidade, sobre o ser, sobre o que existe em-si, uma visão geral de mundo, enfim, que constitui o pano de fundo para a interpretação dos diferentes momentos da existência natural e/ou social. O termo ontologia é dotado de uma “duplicidade semântica”, podendo referir-se tanto à realidade em si mesma, quanto às considerações sobre a realidade, duplicidade que também afeta as palavras “economia” e “história”, por exemplo. 23 considerada; no segundo, buscando a apreensão das linhas gerais de desenvolvimento da sociedade em forma especificamente capitalista, com especial atenção para aquelas tendências que determinam o caráter autoexpansivo dessa formação social; no terceiro, por fim, examinando a manifestação das leis anteriormente apresentadas em dois contextos históricos específicos (o período conhecido como “Era de Ouro do capitalismo” e aquele posterior à crise dos anos 1970), buscando, com isso, mostrar como a análise do desenvolvimento em-si deve envolver o reconhecimento de que as tendências gerais são atravessadas por particularidades. A Parte I conta ainda com três apêndices, em que buscamos explorar algumas temáticas específicas, que, ao longo da pesquisa, apresentaram-se como complementos importantes à linha central de argumentação, cujo eixo encontra-se presente nos capítulos. Cumprida esta etapa, a Parte II foi dedicada à inspeção crítica das teorias econômicas do desenvolvimento, que expressam de maneira mais clara a forma como o desenvolvimento é geralmente abordado no âmbito da ciência econômica. Considerando, no entanto, a proximidade inicial entre as temáticas do desenvolvimento e do crescimento econômico (por vezes tomados como sinônimos), julgou-se prudente iniciar a Parte II oferecendo, no quarto capítulo, um panorama geral dos modelos de crescimento econômico no período pré1970. Para tratar das teorias do desenvolvimento produzidas no mesmo período (que, em virtude do “pioneirismo”, foram por nós intituladas teorias “clássicas” do desenvolvimento), foi necessário dividi-las em dois grandes grupos: aquelas que falam sobre as regiões subdesenvolvidas, em geral (apresentadas no quinto capítulo), e aquelas que tratam especificamente do caso latino-americano (apresentadas no sexto capítulo). O sétimo capítulo, por fim, busca apresentar as principais reorientações observadas no debate sobre desenvolvimento no período posterior à década de 1970. Apenas para enfatizar, a inspeção crítica realizada ao longo da Parte II não tem como objetivo avaliar se as teorias do desenvolvimento, ao interpretarem os problemas dos países 24 subdesenvolvidos, produzem ideias melhores ou piores, quando comparadas umas com as outras. Ao contrário, espera-se demonstrar, através da identificação de elementos teóricos comuns, que as teorias sob análise encontram-se no interior do amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma crítica conjunta, fundamentada no arcabouço teórico da Parte I e apresentada na conclusão geral deste estudo. 25 Parte I Por uma teoria ontológica do desenvolvimento Para realizar a inspeção crítica das teorias do desenvolvimento veiculadas pela ciência econômica, faz-se necessário, antes de tudo, esclarecer os princípios gerais que irão nortear o presente estudo e delimitar com precisão o sentido aqui atribuído ao termo desenvolvimento. Organizada em três capítulos e três apêndices (nos quais são destacados pontos específicos do argumento), a Parte I tem fundamentalmente esse intuito. Ao longo das páginas que a compõem, pretendemos defender, em linhas gerais, uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo plenamente objetivo, isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades objetivas de funcionamento do objeto examinado (independentemente da forma como se julguem essas propriedades). Se o objeto em questão for a sociedade (em geral e em sua forma especificamente capitalista), é preciso, em primeiro lugar, demonstrar a historicidade e a processualidade que caracterizam essa forma de ser. Em segundo lugar, é necessário apreender as leis gerais de movimento da sociedade e as leis que regem o funcionamento do modo de produção especificamente capitalista. Por fim, devem-se conhecer as condições concretas de manifestação dessas leis, em condições históricas específicas, e perceber como, apesar das particularidades, as determinações mais gerais são mantidas. Nesse último caso, podemos ainda observar em que medida as mudanças nas condições particulares contribuem para tornar o funcionamento do capitalismo mais adequado à lógica do capital. Para dar início ao tratamento dos pontos acima enumerados, dedicamos o primeiro capítulo da Parte I ao resgate da descrição oferecida por Marx sobre a sociedade em geral e à identificação de determinações que transcendem os marcos de qualquer modo de produção específico. Ao mesmo tempo, aproveitamos a oportunidade para expor algumas considerações preliminares, que, além de elucidarem importantes 27 afirmações feitas por Marx a respeito do mundo e da forma de capturá-lo no pensamento, também permitem “limpar o terreno”, desfazendo o que parecem ser alguns dos equívocos mais recorrentes na interpretação da teoria marxiana. O primeiro capítulo é complementado ainda por um apêndice, no qual fazemos alguns esclarecimentos adicionais a respeito da categoria desenvolvimento desigual, particularmente importantes para estabelecer a distinção entre a perspectiva aqui delineada e aquela defendida por grande parte das teorias de inspiração marxista. O segundo capítulo destina-se mais pontualmente ao resgate dos elementos indispensáveis à caracterização do sistema social vigente, tomando como base a descrição feita por Marx, especialmente em O capital. Considerando a impossibilidade de refazer o longo argumento elaborado pelo autor, o capítulo terá ao menos um foco fundamental: a demonstração de que, por sua própria constituição, a sociedade mercantil possui como dispositivo imanente o impulso para o aumento da riqueza, ou, dito de outra forma, que esse modo de produção possui uma dinâmica autoexpansiva. Trata-se, mais especificamente, de demonstrar como, em sua processualidade, a dinâmica capitalista produz crescimento contínuo da riqueza e como esse resultado vem acompanhado do acionamento de novas contradições. Para auxiliar a compreensão desse ponto, dedicamos o Apêndice II à apresentação de um importante elemento da dinâmica capitalista: a tendência à formação do mercado mundial. No terceiro e último capítulo, analisamos a dinâmica capitalista em um nível ainda mais baixo de abstração, mostrando como as tendências gerais apresentadas no capítulo anterior são atravessadas por determinações particulares (inclusive tendências historicamente específicas) que influenciam a forma concreta de manifestação das leis gerais. Para tanto, utilizamos como exemplo dois períodos históricos: o primeiro conhecido como a “Era de Ouro do capitalismo” e aquele posterior à crise dos anos 1970. A partir do contraste entre esses dois períodos, esperamos mostrar as mudanças, mas também as 28 permanências, indicando como o capital modifica-se num determinado momento para preservar sua lógica geral. Por fim, utilizamos o Apêndice III para prestar alguns esclarecimentos sobre a complexidade da dinâmica capitalista, apontando para o equívoco cometido por aquelas teorias que tentam explicar a dinâmica capitalista exclusivamente a partir de uma única categoria. 29 Capítulo 1 Leis gerais de desenvolvimento da sociedade: historicidade e desigualdade do desenvolvimento Na vasta produção intelectual de Marx, é perceptível a preocupação recorrente em elucidar o modo concreto de funcionamento da sociedade, sua processualidade histórica, suas linhas gerais de desenvolvimento. Seguindo as pistas deixadas por Lukács (1979), filósofo que se ocupou deste aspecto da obra marxiana, momentos fundamentais de tais argumentos podem ser explicitados, de modo a oferecer resposta a uma série de questões pertinentes para os propósitos deste estudo. Por exemplo, o desenvolvimento da sociedade é governado por leis? Existe algum tipo de lei regulando a forma como os seres humanos, nas suas atividades cotidianas, produzem e reproduzem as condições de sua existência? Mais do que isso: existem características e determinações desse desenvolvimento que sejam comuns a todas as épocas da produção, independentemente das condições históricas específicas? Respondendo afirmativamente a essas questões, o presente capítulo tem como principal objetivo identificar justamente as leis humanas universais que caracterizam a produção, abstraídas as formas históricas (concretas) como se manifestam (como já indicado, esse nível de abstração será progressivamente reduzido conforme avançarmos para os capítulos seguintes). Para tanto, utilizamos na primeira das três seções o resgate feito por Lukács (1979; 2007) para expor, de modo sistemático, as principais tendências que regulam o desenvolvimento do ser social. Feito isso, dedicamos a segunda seção ao tratamento de duas temáticas extremamente importantes para o argumento do presente trabalho: historicidade e desigualdade do desenvolvimento. Por fim, mostramos na última seção algumas qualificações necessárias ao correto entendimento da teoria ontológica de desenvolvimento da sociedade aqui defendida. Seção 1.1 As leis gerais de desenvolvimento da sociedade Tomando como base especificamente os estudos de Marx sobre a economia (entendida aqui como a esfera de produção e reprodução da vida humana), Lukács (2007, p. 238) demonstra que a linha geral de desenvolvimento da sociedade (aquela que transcende os marcos de um modo de produção específico) é marcada por três tendências básicas: a primeira delas apresenta-se como um constante recuo das barreiras naturais, a segunda na forma de um também constante aumento das forças produtivas do trabalho, e a terceira está relacionada à conformação do gênero humano. A primeira das tendências identificadas por Lukács na obra de Marx, o recuo das barreiras naturais, significa, por um lado, que a vida humana e social jamais pode desvincular-se inteiramente de sua base última na natureza – trata-se, portanto, de recuo e não de eliminação (LUKÁCS, 1979, p. 53). Por outro, essa tendência mostra que “[...] tanto quantitativa quanto qualitativamente, diminui de modo constante o papel do elemento puramente natural (quer na produção, quer nos produtos)” (LUKÁCS, 2007, p. 238 et seq.). Nesse sentido, observamos que “momentos decisivos da reprodução humana – basta pensar em aspectos naturais como a nutrição ou a sexualidade – acolhem em si, com intensidade cada vez maior, momentos sociais, pelos quais são constante e essencialmente transformados”.1 Ainda seguindo a leitura de Lukács da obra de Marx, a segunda tendência que caracteriza a dinâmica de desenvolvimento da sociedade é a tendência ao aumento das forças produtivas do trabalho, que se manifesta diretamente em uma diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário à produção de 1 32 Para ilustrar essa tendência da vida social de tornar-se, sempre e cada vez mais, mediada por categorias sociais, podemos resgatar ainda uma das célebres passagens da Introdução de 1857, na qual Marx mostra como mesmo uma atividade vital à nossa manutenção como seres naturais (o ato de alimentar-se) é também socialmente determinada: “A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que se come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes” (MARX, 1982, p. 9). objetos e, portanto, à reprodução dos seres humanos. Antes que conclusões equivocadas sejam extraídas dessa afirmação, é necessário enfatizar que o enunciado “tempo de trabalho socialmente necessário” não deve ser confundido com o enunciado da categoria “valor”. O ser humano sempre trabalhou e sempre despendeu tempo em sua atividade produtiva, mas só em determinadas condições sociais (aquelas postas pelo capital), o trabalho apresenta-se de modo dominante como propriedade das coisas produzidas, como valor, e o tempo funciona como medida dessa propriedade. Portanto, como veremos no próximo capítulo, somente na sociedade comandada pelo capital, a redução do tempo de trabalho socialmente necessário apresenta-se como diminuição do valor unitário das mercadorias e constitui uma tendência dinâmica que marca a fundo a reprodução sistêmica. Por ora, tratamos do aumento da produtividade, numa perspectiva bastante ampla, como uma tendência ultrageral da reprodução social, que contribui para a diversificação das necessidades sociais e das formas de práticas humanas (e até mesmo para a ampliação das possibilidades de crescimento populacional). Nas palavras da historiadora Ellen Meiksins Wood: Evidentemente, não se discute que numa perspectiva bastante longa o desenvolvimento das forças produtivas materiais tenha tido o caráter geral da evolução; mas isso significa apenas que as mudanças nas forças de produção tendem a ser acumulativas e progressivas, que, uma vez ocorrido um avanço, raramente ele se perde completamente, e que a regressão seja excepcional no longo prazo. Se isso é verdade, ainda é possível caracterizar como evolutivos e “direcionais” esses desenvolvimentos (e não teleológicos), no sentido de que há uma tendência progressiva geral e cada desenvolvimento se faz acompanhar de novas possibilidades e de novas necessidades. Mas isso nada nos diz acerca do vigor, da frequência, da rapidez ou da extensão da 33 mudança; nem contradiz o entendimento, expresso por Marx, de que “petrificação” tem sido mais a regra que a exceção. (WOOD, 2003, p. 115). Sem muitas mediações, chegamos à terceira tendência que acompanha o desenvolvimento do ser social, na qual se expressa um novo aspecto de sua historicidade, e que também constitui mais um progresso objetivo desse ser: a explicitação do caráter genérico da humanidade. Sobre este ponto, é importante ter presente, em primeiro lugar, que individualidade e gênero já aparecem como categorias do ser natural, e que, portanto, do ponto de vista biológico, o gênero humano já existe em si quando o ser humano separa-se objetivamente dos primatas superiores. Mas o gênero, como relação exclusivamente natural, só pode assumir a forma de um gênero mudo, como nota Lukács: A relação assim surgida entre os exemplares singulares e o gênero é uma relação puramente natural, inteiramente independente de qualquer consciência, de qualquer objetivação da consciência: o gênero se realiza nos exemplares singulares; e esses, em seu processo vital, realizam o gênero. É óbvio que o gênero não pode ter nenhuma consciência; e igualmente óbvio é que, no exemplar singular natural, não pode surgir nenhuma consciência genérica. (LUKÁCS, 1979, p. 140). O caráter genérico da humanidade, tomada em sentido social, no entanto, manifesta-se aos indivíduos que constituem o gênero, abrindo o caminho para a tomada de consciência tanto da identidade genérica como da singularidade de cada indivíduo. Mas essa tomada de consciência é, ao menos inicialmente, restringida pelo fracionamento da humanidade em comunidades diversas e, em muitos casos, isoladas, e pela própria divisão dos seres humanos em classes sociais, que muitas vezes leva à negação do reconhecimento da identidade humana de camadas inteiras da população (escravos, 34 por exemplo). O reconhecimento do gênero humano como um problema universal que envolve todos os seres humanos, além das fronteiras de comunidades específicas, das classes e outras divisões possíveis (“raça”, gênero), é um fenômeno relativamente recente, que acompanha o recuo progressivo das barreiras naturais, o desenvolvimento das forças produtivas e especialmente a tendência à formação do mercado mundial (LUKÁCS, 2007, p. 238). Assim como no caso da tendência ao aumento das forças produtivas, veremos no próximo capítulo como a explicitação do gênero humano ganha contornos mais definidos no modo de produção capitalista, e que, apesar do caráter de progresso objetivo, vem acompanhado do acionamento de novas contradições. Antes disso, seguimos na próxima seção com o tratamento de duas questões indispensáveis ao correto entendimento da concepção de desenvolvimento aqui defendida: a historicidade e o desenvolvimento desigual. Seção 1.2 Historicidade e desigualdade do desenvolvimento A respeito da historicidade, vale notar imediatamente que atribuí-la a determinado objeto significa, antes de tudo, reconhecer seu contínuo movimento ao longo do tempo (movimento este que não implica, necessariamente, a irreversibilidade de processos, sejam eles físicos ou sociais). Nessa afirmação, é preciso dar especial atenção ao uso do termo “contínuo”, pois uma das condições para que se estabeleça a mudança de um objeto é que este continue e permaneça sendo o mesmo objeto, ainda que tenha sofrido alterações substantivas. Só é possível, por exemplo, analisar as modificações experimentadas por determinada espécie ao longo do tempo se esta se sustenta como mesma espécie. O mesmo se aplica à sociedade: falar das modificações pelas quais passou o capitalismo nos últimos anos só faz sentido na medida em que este modo de produção continua a existir. Como nota Lukács (1979, p. 79 et seq.): “a continuidade na persistência, enquanto princípio de ser dos 35 complexos em movimento, é indício de tendências ontológicas à historicidade como princípio do próprio ser”. Mais do que isso, a historicidade implica não apenas a permanência na mudança, “mas também e sempre uma determinada direção na mudança, uma direção que se expressa em transformações qualitativas de determinados complexos, tanto em-si quanto em relação com outros complexos”. Sem muitos rodeios, podemos extrair daqui o entendimento correto do papel desempenhado pelos conceitos de desenvolvimento e progresso dentro dessa formulação. Com o auxílio de Medeiros: Os conceitos de desenvolvimento e progresso são empregados para descrever em si mesma a direção do movimento de objetos estruturados, ou seja, para descrever objetivamente a direção do movimento. A ideia-chave envolvida neste procedimento é a complexidade. Uma dada estrutura (totalidade) é objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da mesma espécie caso seja constituída por um maior número de componentes específicos, ou pelo mesmo número de componentes mais complexos. Dada esta concepção de desenvolvimento, a noção de progresso serve para descrever a passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para um nível mais alto – o aumento da complexidade de objetos estruturados. (MEDEIROS, 2007, p. 45) No caso do ser social, identificamos ao menos três tendências (ou desenvolvimentos) desse tipo. A crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à reprodução humana e a constituição da consciência genérica são expressões precisas dessa “passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para um nível mais alto”. Vale notar que o reconhecimento desses progressos objetivos independe da forma como são avaliados: “Nessa constatação ontológica do progresso, não está contido nenhum juízo de valor subjetivo. Trata-se da constatação de um estado de coisas ontológico, independentemente de como ele seja avaliado posteriormente. 36 (Pode-se aprovar, deplorar, etc. o ‘recuo das barreiras naturais’)” (LUKÁCS, 1979, p. 54). A questão é que a sociedade, assim como outros objetos estruturados, fica mais bem representada como uma totalidade, composta de complexos, complexamente articulados, em que “todo ‘elemento’, toda parte, é também [...] um todo; todo ‘elemento’ é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específicas, um complexo de forças e relações diversas que agem em conjunto” (LUKÁCS, 1979, p. 40). Se investigamos, portanto, a relação que se estabelece entre as diferentes partes e/ou esferas que integram uma totalidade, o que se observa é que estas partes e/ou esferas podem possuir legalidades próprias e se comportar de maneira heterogênea: “por um lado, complexos diferentes de uma mesma totalidade podem estar em estágios distintos de desenvolvimento; por outro, alguns complexos podem estar contingentemente regredindo ao invés de progredindo”. (MEDEIROS, 2007, p. 46) Na medida em que progressos singulares, em uma ou outra esfera da vida social, podem ser acompanhados por regressões simultâneas em outras esferas, temos de reconhecer que todo desenvolvimento (ou progresso) que tem lugar na história do ser social pode assumir, por necessidade (isto é, em razão da própria configuração dinâmica do objeto), a forma de um desenvolvimento desigual. Apesar de ser por vezes associado às diferenças na distribuição de riqueza entre as nações, trata-se aqui o desenvolvimento desigual como uma categoria cujo alcance é mais abrangente, dentro da qual a desigualdade entre países pode apenas ser vista como um caso específico.2 E para entender a profundidade dessa categoria, recorremos ao exemplo, citado por Marx, da desigualdade de desenvolvimento que se estabelece entre a produção material em face da produção artística: 2 Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento desigual, focada especialmente na distinção entre as duas noções (a defendida no presente estudo e aquela que trata exclusivamente da desigualdade de desenvolvimento entre as nações), poderá ser vista no Apêndice I. 37 Em relação à arte, sabe-se que certas épocas de florescimento artístico não estão de modo algum em conformidade com o desenvolvimento geral da sociedade, nem, por conseguinte, com o da base material que é, de certo modo, a ossatura da sua organização. (MARX, 1982, p. 20). Na verdade, segundo o autor, não estão em conformidade e nem poderiam estar. Tomando como ilustração a relação entre a arte grega e a sociedade moderna, observa Marx: A intuição da natureza e as relações sociais que a imaginação grega inspira e constitui por isso mesmo o fundamento da [mitologia] grega serão compatíveis com as selfactor [máquinas automáticas de fiar], as estradas de ferro, as locomotivas e o telégrafo elétrico? Quem é Vulcano ao lado de Roberts & Cia., Júpiter em comparação com o pára-raios e Hermes em face ao Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, governa e modela as forças da natureza na imaginação e pela imaginação, portanto, desaparece quando essas forças são dominadas efetivamente. O que seria da Fama ao lado de Printing House Square? A arte grega pressupõe a mitologia grega, isto é, a elaboração artística mas inconsciente da natureza e das próprias formas sociais pela imaginação popular. Esse é o seu material. (MARX, 1982, p. 20 e 21). Ainda que tenha sido muito pouco trabalhada por Marx (o conceito de desenvolvimento desigual é apenas explicitamente abordado na Introdução de 1857, na forma de “pontos que devem ser mencionados aqui e não devem ser esquecidos”), essa formulação nos permite oferecer uma crítica consistente a, ao menos, duas concepções distintas e opostas, que normalmente figuram no debate sobre o assunto. Por um lado, tem-se a “concepção simplista e vulgarizada do progresso, que retém apenas um resultado qualquer já quantificado do desenvolvimento (crescimento das forças produtivas, difusão 38 do conhecimento etc.) e, sobre essa base, decreta a existência de um progresso generalizado”; por outro, no extremo oposto, temos a posição que, assumindo os retrocessos como unidade de medida, nega de modo absoluto a presença de progresso (LUKÁCS, 1979, p. 124). É evidente que, na medida em que, em ambos os casos, momentos singulares do processo de conjunto são amplificados e tomados como critérios únicos, as duas concepções são equivocadas. Como ressalta Lukács: Desigualdade do desenvolvimento significa, “simplesmente”, que a grande linha de evolução do ser social [...] não pode se explicitar em linha reta, segundo uma lógica racional qualquer, mas se move em parte por vias travessas (deixando mesmo atrás de si alguns becos sem saída) e, em parte, fazendo com que os complexos singulares, cujos momentos reunidos formam o desenvolvimento global, encontrem-se individualmente numa relação de não-correspondência. (LUKÁCS, 1979, p. 134). A compreensão deste ponto é particularmente importante para o presente estudo, pois as teorias do desenvolvimento não raramente incorrem em equívocos como os enunciados anteriormente. Em primeiro lugar, grande parte dessas teorias agarra-se a um critério específico de desenvolvimento para, a partir dele, decretar “a existência de um progresso generalizado”, desconsiderando o caráter necessariamente desigual desse desenvolvimento. Além disso, essas teorias, em lugar de encarar o desenvolvimento como um reconhecimento objetivo, costumam tratar o desenvolvimento como um “juízo de valor subjetivo”. Essas e outras questões correlatas serão tratadas mais detidamente nos próximos capítulos. Por ora, seguimos com a apresentação de mais alguns elementos indispensáveis à caracterização da perspectiva aqui delineada. 39 Seção 1.3 Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações finais Apesar de já terem sido revelados, ao longo das seções anteriores, as principais leis gerais de desenvolvimento da sociedade e o caráter necessariamente desigual desse desenvolvimento, o correto entendimento da teoria sobre a sociedade aqui defendida, no nível de abstração em que nos encontramos, depende ainda da realização de alguns esclarecimentos adicionais. É precisamente esse o objetivo da presente seção. Ao longo das próximas linhas, pretendemos sustentar o caráter tendencial, não teleológico e objetivo das leis sociais, nem sempre reconhecido por parte da literatura sobre o tema. Em seguida, reafirmamos o caráter necessariamente post festum do conhecimento sobre a sociedade, apontando para algumas implicações de tal atitude, tanto em termos teóricos quanto práticos. Em primeiro lugar, portanto, devemos notar que as leis sociais não são tomadas aqui como leis empíricas, ou seja, não se trata de buscar e reconhecer regularidades (conjunções constantes) na relação entre eventos. As leis de tendência, que se referem ao modo de agir de objetos estruturados, podem ou não se manifestar em eventos, dependendo da força com que operam as contratendências (ou fatores contrarrestantes). Importa compreender, portanto, que o fato de uma determinada lei não se verificar em certo momento não contradiz a existência da lei em si. Como destaca Lukács: [...] a tendencialidade, enquanto forma fenomênica necessária de uma lei na totalidade concreta do ser social, é consequência inevitável do fato de que nos encontramos aqui diante de complexos reais que interagem de modo complexo, frequentemente passando por amplas mediações, com outros complexos reais; a lei tem caráter tendencial porque, por sua própria essência, é resultado desse movimento dinâmico-contraditório entre complexos. (LUKÁCS, 1979, p. 64). 40 Além disso, as dinâmicas e determinações anteriormente enunciadas funcionam com relativa autonomia com referência às intenções particulares dos sujeitos em suas ações (o resultado social do processo em si não tem uma finalidade, ou seja, é não teleológico).3 A dificuldade aqui reside no fato simples, embora nem sempre intuitivo, de que, enquanto a maioria das atividades cujo conjunto compõe o movimento da sociedade é certamente de origem teleológica, o somatório dessas atividades é feito de conexões causais que em nenhum sentido podem ser de caráter teleológico – e, na maioria dos casos, produz resultados inteiramente diversos das motivações iniciais (LUKÁCS, 1979, p. 81). Apesar da impossibilidade de aprofundar esse e outros temas relacionados, julga-se aqui relevante ao menos indicar que, desse fato fundamental, depreende-se de imediato que os processos sociais podem ser ditos ao mesmo tempo dependentes e independentes dos atos individuais que os produzem e reproduzem.4 A correta caracterização da teoria aqui defendida exige ainda a compreensão de que as dinâmicas e tendências que se verificam no interior do ser social sustentam sua objetividade, na medida em que existem e operam independentemente do conhecimento que se tem sobre elas e a despeito dos juízos de valor formulados a seu respeito. Em postura perfeitamente compatível com uma ontologia realista e materialista (válida para além dos limites das ciências da sociedade), explicita-se aqui, em primeiro lugar, o reconhecimento fundamental da distinção entre a realidade e o conhecimento da realidade (ou ainda, nos termos de Marx, entre o concreto e o concreto pensado). Mais do que isso, trata-se, na verdade, de reconhecer a 3 4 Nas palavras de Sánchez-Vázquez (2007, p. 55 e 56): “o progresso histórico é fruto da atividade coletiva dos homens como seres conscientes, mas não de uma atividade comum consciente.” Como sintetizado por Marx em mais uma de suas célebres passagens: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, 1997, p. 21). Sobre o tema, conferir também Lukács (1979, p. 64; 2007, p. 236). 41 prioridade (ontológica) da primeira (realidade) em relação à segunda (consciência).5 Nos termos de Lukács: Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com relação a outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. É algo semelhante à tese central de todo o materialismo, segundo o qual o ser tem prioridade ontológica com relação à consciência. Do ponto de vista ontológico, isso significa simplesmente que pode existir o ser sem a consciência, enquanto toda consciência deve ter como pressuposto, como fundamento, algo que é. Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valor entre ser e consciência. (LUKÁCS, 1979, p. 40). Obviamente, como o próprio Lukács nos adverte nessa última frase, não se pretende com isso negar a importância da consciência. Embora a consciência seja entendida como um “produto tardio do desenvolvimento material”, não é jamais um “produto de menor valor ontológico”. Ao contrário, afirmar que a consciência, ao refletir a realidade, abre a possibilidade de modificá-la, significa dizer que “a consciência tem um real poder no plano do ser e não – como se supõe a partir das [...] visões equivocadas – que ela é carente de força” (LUKÁCS, 2007, p. 227). Além dessa distinção fundamental entre ser e consciência, resta ainda notar que a forma de apreender a realidade geralmente não coincide com o processo de gênese da própria 5 42 Esse é um dos aspectos mais decisivos do materialismo sustentado por Marx: “Do mesmo modo que em toda ciência histórica e social em geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das categorias econômicas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dado tanto na realidade efetiva como no cérebro; que as categorias exprimem portanto formas de modos de ser, determinações de existência, frequentemente aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por conseguinte, essa sociedade de maneira nenhuma se inicia, inclusive do ponto de vista científico, somente a partir do momento em que se trata dela como tal” (MARX, 1982, p. 18). realidade, ou seja, a leitura da história caminha no sentido oposto à gênese da própria história. Isso porque se a evolução do ser social segue a norma do aumento da complexidade interna do ser, o processo histórico efetivo tende a transformar formas mais simples em formas mais complexas. Quando se trata de compreender cientificamente as categorias sociais, ao contrário, temos acesso imediato às suas formas mais complexas e a partir delas procuramos reconstituir as formações mais simples, momentos anteriores, post festum (MARX, 1982, p. 17). Esse ponto é particularmente importante, pois, abrindo caminho para o tema do próximo capítulo, ajuda-nos a entender um dos motivos pelos quais Marx estudou de modo praticamente exclusivo a sociedade capitalista, mesmo quando tinha a intenção de descobrir propriedades gerais da sociedade. A questão é que, além de as relações sociais capitalistas constituírem o material histórico imediatamente disponível (aquele a que temos acesso de imediato), a partir dessas relações compõe-se a forma social na qual a linha geral de desenvolvimento manifesta-se de modo mais ampliado até o presente. Mas é preciso prontamente salientar que assumir esse ponto de partida não implica negar o caráter histórico da sociedade, praticando assim uma forma qualquer de anacronismo, hipóstase e/ou naturalização. Ao contrário, Marx rejeitou explicitamente todas as análises desse tipo (que fazem desaparecer as diferenças históricas e projetam características específicas da sociedade burguesa para todas as formas de sociedade precedentes), tendo sempre o cuidado de assinalar seus desdobramentos sobre a prática social.6 Ademais, e para concluir as ressalvas, é prudente advertir que o fato de Marx ter assumido o âmbito da economia como objeto de estudo não significa, como falam os críticos, que sua imagem de mundo seja fundada sobre o economicismo. A resposta a esse questionamento exige, antes de tudo, o 6 Como veremos adiante, especialmente na Parte II, a naturalização de estruturas sociais (historicamente constituídas) é algo recorrente na ciência econômica, inclusive entre as teorias do desenvolvimento, e as implicações não são muito diferentes das assinaladas por Marx. 43 entendimento do sentido atribuído por Marx ao termo “econômico”: economia em Marx aparece, em termos extremamente gerais, como a esfera de produção e reprodução da vida humana, e as categorias econômicas como categorias dessa produção e reprodução (e é isso que torna possível uma descrição da sociedade sobre bases materialistas). Concebida dessa forma, a economia ocupa o posto de determinante em última instância da vida social e, assim como na relação entre ser e consciência, aqui também podemos recorrer mais uma vez ao conceito de prioridade ontológica: O mesmo vale, no plano ontológico, para a prioridade da produção e da reprodução do ser humano em relação a outras funções. Quando Engels, no discurso pronunciado junto à tumba de Marx, fala do “fato elementar de que os homens devem primeiro de tudo comer, beber, ter um teto e vestir-se, antes de ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religião, etc”, está falando precisamente de uma relação de prioridade ontológica. (LUKÁCS, 1979, p. 41). Sobre este ponto, valeriam ao menos duas observações: afirmar a prioridade ontológica da economia em relação às outras esferas não significa dizer que a primeira seja necessariamente mais importante (ou seja, não implica qualquer juízo ou hierarquia de valor); mais do que isso, não significa que as outras esferas sejam diretamente determinadas pela economia (LUKÁCS, 1979, p. 155). É correto, no entanto, afirmar que a peculiaridade histórica da sociedade capitalista está diretamente associada ao fato de que a sua economia constitua mais do que uma base. No capitalismo, a economia forma efetivamente o centro da vida social, a partir do qual emana a dinâmica que subordina todos os demais momentos e esferas da existência. É por esse motivo que, respeitando o caráter post festum do pensamento social, Marx dedica-se ao estudo das relações econômicas que se afirmam em seu tempo e que, segundo ele logo percebe, tornam a 44 economia não apenas o momento predominante do ser social, mas a principal esfera de sociabilidade. Como veremos no próximo capítulo, esse ponto é extremamente importante para a compreensão da dinâmica capitalista. 45 Apêndice I Esclarecimentos sobre a categoria desenvolvimento desigual Como se tentou demonstrar ao longo do primeiro capítulo, desde a perspectiva ontológica defendida no presente estudo, desenvolvimento significa o reconhecimento objetivo de um aumento no grau de complexidade dos complexos constitutivos de um objeto estruturado. Tomando exclusivamente nossa condição de seres naturais e o critério apresentado, podemos dizer, por exemplo, que mesmo o mais deplorável dos seres humanos é mais desenvolvido que um animal de estimação (por maior que seja a estima por este). Uma vez entendida a sociedade como uma totalidade composta de vários complexos, complexamente articulados, o mesmo tipo de análise pode ser a ela aplicado. E, assim como no caso anterior, proferir sentenças a respeito do desenvolvimento da sociedade significa falar sobre o grau de desenvolvimento/complexidade de suas esferas constitutivas: economia, política, artes, direito, religião etc. Também desde essa perspectiva, não é possível falar em desenvolvimento sem levar em consideração o fato de que todo desenvolvimento é desenvolvimento desigual. Aqui nos referimos, mais uma vez, à heterogeneidade que se estabelece entre complexos, que, em seu desenvolvimento, comportam-se de maneira diferenciada. Portanto, em postura compatível com as defendidas por Marx e Lukács, entendemos que a categoria desenvolvimento desigual diz respeito à relação entre complexos e, mais especificamente, aos graus diferentes de desenvolvimento dos complexos que compõem uma totalidade.7 Esse não é, no entanto, o emprego mais usual da categoria. Sua versão mais disseminada é aquela difundida, em parte, por teorias inspiradas nos trabalhos de Lênin, Trotsky, entre 7 46 Ao longo do capítulo citamos o exemplo, dado por Marx, da desigualdade de desenvolvimento entre arte e economia. Podemos ainda utilizar o conceito, como sugere Marx (1982, p. 20), para falar da desigualdade que se estabelece entre direito e economia ou, como sugere Lukács (1979, p. 137), entre música e arquitetura. Um tratamento detalhado da categoria desenvolvimento desigual e a síntese de todos esses casos podem ser encontrados em Lukács (1979, p. 123-137). outros, e na noção de desenvolvimento desigual e combinado.8 Nesses autores, observamos a utilização do termo tanto para descrever o processo histórico por meio do qual determinados países realizaram tardiamente a transição para o modo de produção capitalista, combinando setores “modernos” e “atrasados” em seu interior, quanto para tratar da desigualdade de desenvolvimento (econômico) entre nações. Embora nem sempre seja feita a devida referência aos trabalhos de Lênin e Trotsky (ou se mantenha fidelidade às suas formulações originais), a utilização da categoria tornou-se muito comum entre autores de orientação marxista, especialmente para abordar a questão da desigualdade entre nações. Isso pode ser comprovado a partir da síntese formulada por Ernest Mandel: No sentido mais geral da expressão, “desenvolvimento desigual” significa que sociedades, países, nações desenvolvem-se segundo ritmos diferentes, de tal modo que, em certos casos, os que começam com uma vantagem sobre os outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por força dessas mesmas diferenças de ritmo de desenvolvimento, os que haviam ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dispunham de vantagem inicial. Para ter sentido, portanto, a ideia de “desenvolvimento desigual” deve incluir, em cada caso específico, a principal força propulsora (ou forças propulsoras) que determina essas diferenças de ritmo de desenvolvimento. (MANDEL, 1983, p. 98). 8 Quando se trata de analisar a concepção de desenvolvimento desigual sustentada por Lênin, o texto mais recorrentemente citado é, sem dúvida, o livro intitulado Imperialismo, etapa superior do capitalismo (1917). Nele, no entanto, encontram-se poucas e esparsas referências ao termo, e nenhum tipo de tratamento teórico mais refinado. Trotsky, por outro lado, faz diversas menções ao termo (acrescido do qualificativo combinado), especialmente nos livros Balanços e perspectivas (1906), 1905 (1909), III Internacional depois de Lênin (1928) e História da Revolução Russa (1930), mas também não chega a debater o conceito mais extensamente. Essa tarefa coube a alguns seguidores, como Mandel (1979) e Novack (2008), por exemplo, que buscaram dar um tratamento mais sistemático à noção de desenvolvimento desigual e combinado. Sobre o tema, conferir também Löwy (1998). 47 Não pretendemos aqui fazer uma revisão das teorias que, de uma maneira ou de outra, trabalham com a categoria desenvolvimento desigual no sentido apresentado, mas apenas chamar a atenção para alguns problemas relacionados a essa definição. Em primeiro lugar, essas teorias utilizam uma concepção de desenvolvimento (como crescimento da riqueza, capacidade produtiva, condições de vida da classe trabalhadora etc.) que em muito difere daquela utilizada por Marx e Lukács (reconhecimento objetivo da dinâmica de funcionamento da sociedade).9 Em segundo lugar, ainda que seja possível demonstrar que o desenvolvimento desigual entre países é efetivamente um caso de desenvolvimento desigual (no sentido empregado por Marx e Lukács), esse seria ainda apenas um caso possível de apresentação do problema. Ou seja, tomar essa acepção como a definição de desenvolvimento desigual seria tomar uma instância específica como o caso geral. Como não consta entre os objetivos do presente estudo demonstrar a correção ou incorreção do tratamento convencionalmente dispensado à categoria do desenvolvimento desigual (isto é, aquele que utiliza a categoria para descrever a relação entre países capitalistas), limitamo-nos apenas a mostrar, ainda que brevemente, como o desenvolvimento desigual é mais amplo e mais complexo do que sugere a interpretação tradicional e o reducionismo assim implícito nessa definição da categoria. Em suma, enfatize-se que desenvolvimento desigual, no registro marxiano, refere-se a (1) uma disparidade no grau de desenvolvimento entre complexos integrantes de uma totalidade; e (2) uma disparidade não acidental, mas provocada pelo próprio modo de ser da totalidade e dos complexos (isto é, uma desigualdade causalmente determinada). Trata-se, enfim, de uma determinação ultragenérica e que não pode ser reduzida à relação econômica (entre setores, classes ou entre nações). 9 48 Oferecendo um exemplo bastante emblemático, Paul Baran (1986, p. 47) afirma explicitamente: “Definamos crescimento (ou desenvolvimento) econômico como o aumento, ao longo do tempo, da produção per capita de bens materiais”, descartando ainda na sequência qualquer tentativa de associação entre desenvolvimento e aumento de bem-estar. Uma definição similar pode ser vista também em Dobb (1973, p. 14). Capítulo 2 Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica autoexpansiva, desenvolvimento e estranhamento Dando continuidade à tarefa proposta inicialmente para a Parte I deste livro, o presente capítulo busca contribuir para a construção de uma interpretação de mundo alternativa àquelas representações tradicionalmente aceitas pela ciência econômica. Para fazer uma breve recapitulação, vimos no capítulo anterior que a sociedade deve ser entendida como uma totalidade composta de complexos (partes que também são um todo) que, em virtude de sua própria constituição, comportam-se de maneira heterogênea, e é justamente esta heterogeneidade dos complexos que determina o caráter necessariamente desigual do desenvolvimento do ser social. Apesar desta heterogeneidade, vimos ainda ser possível identificar leis gerais de desenvolvimento da sociedade que, apesar de seu caráter tendencial e desigual, constituem progressos objetivos no interior desse ser. Seguindo, portanto, o raciocínio iniciado no capítulo anterior, mas diminuindo o nível de abstração, o presente capítulo tem como principal objetivo apresentar as linhas gerais de desenvolvimento da sociedade especificamente capitalista.1 Mais precisamente, esperamos com isso mostrar como a dinâmica capitalista também produz resultados contraditórios, ainda que se reconheçam neles progressos objetivos do tipo descrito anteriormente. Para tanto, o capítulo encontra-se dividido em duas seções: na primeira, discutiremos as principais tendências que caracterizam a dinâmica capitalista, sintetizada através do famoso enunciado de Marx da lei geral da acumulação capitalista; feito isso, voltaremos à temática do desenvolvimento e suas legalidades na segunda seção. 1 Antes de prosseguir, faz-se necessário um esclarecimento a respeito da utilização do qualificativo “geral”. Assim como as tendências expostas no primeiro capítulo, as tendências adiante examinadas são “gerais”, na medida em que independem da forma concreta como se manifestam. Mas, ao contrário das anteriores, não são comuns a todas as épocas da produção: são válidas para a sociedade capitalista e apenas para ela. Como antecipado na introdução, as formas distintas de manifestação dessas leis, em condições históricas específicas, serão objeto do próximo capítulo. 49 Seção 2.1 Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista Como se sabe, já no Livro I de O capital, Marx cumpre a tarefa de apresentar as leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista. Entre as leis identificadas por Marx, interessa-nos particularmente aquelas por intermédio das quais o autor procura dar conta do caráter expansivo da acumulação capitalista. Ou seja, concentramo-nos aqui na demonstração de que a produção capitalista é caracterizada, por sua própria organização interna, por um movimento dinâmico necessariamente expansivo. São basicamente três as tendências identificadas por Marx: (1) a tendência à concentração de capital; (2) a tendência à centralização do capital; e (3) a tendência ao aumento da composição do capital. A primeira delas nada mais é do que outra forma de expressar-se a tendência à acumulação do capital, ou seja, a sua reprodução em escala ampliada, ou, ainda, o movimento de reaplicação da mais-valia na esfera da produção. Intitula-se tendência à concentração, pois implica, em última instância, concentração crescente de meios de produção e do comando sobre o trabalho nas mãos de capitalistas individuais (MARX, 2002, p. 728 e 729). Se capital é valor que se movimenta em busca de sua valorização, a produção capitalista só pode, por definição, ser entendida como uma produção que gira em torno do aumento da mais-valia, da busca por essa valorização. Uma vez acumulada a mais-valia, ampliam-se as bases para a produção de mais mais-valia, de modo que, ao fim de cada ciclo, fica evidente a possibilidade de seu recomeço em escala ampliada. Como “a valorização do valor só existe dentro do movimento sempre renovado”, conclui Marx (2002, p. 182 e 183), “o movimento do capital é insaciável”. Na medida em que cada capital perfaz individualmente esse ciclo e se reproduz em escala ampliada, tem-se como resultado o aumento do capital para o conjunto da sociedade.2 2 50 Como se trata aqui de uma tendência, não significa que não possa existir, ou que jamais tenha existido, a reprodução simples; significa apenas que a Além da tendência à concentração do capital, que trata do crescimento do capital social realizado através do crescimento de muitos capitais individuais, destaca-se outra: a tendência à centralização do capital. Apesar de aparecer como tendências articuladas que se retroalimentam, a tendência à centralização descreve o crescimento dos capitais individuais, obtido através da centralização do comando, isto é, da “concentração de capitais já formados, a supressão de sua autonomia individual, a expropriação do capitalista pelo capitalista, a transformação de muitos capitais pequenos em poucos capitais grandes” (MARX, 2002, p. 729). Como o propósito da centralização é o aumento da mais-valia, isso pode levar à acumulação, mas, na medida em que pressupõe apenas alteração na repartição dos capitais já existentes em funcionamento, seu campo de ação não está limitado pelo crescimento absoluto da riqueza social – pode ocorrer, e normalmente ocorre, também em momentos de crise. Por fim, a terceira tendência, ao contrário das anteriores, não se refere ao tamanho do capital, mas à relação entre suas partes constitutivas. Para expressar a dimensão útil (valor de uso) da composição do capital, Marx introduz a categoria intitulada composição técnica do capital, determinada pela proporção em que o capital se divide em meios de produção e força de trabalho. Do ponto de vista abstrato (valor), tem-se a composição em valor do capital determinada pela proporção em que o capital se divide em constante (montante de capital adiantado em meios de produção) e variável (montante de capital adiantado em força de trabalho). A síntese dialética de ambas, chamada de composição orgânica do capital, expressa “a composição do capital segundo o valor, na medida em que é determinada pela composição técnica e reflete modificações desta” (MARX, 2002, p. 715). reprodução em mesma escala não é, e nem poderia ser, a regra do modo de produção capitalista: “Se a produção tem forma capitalista, também a terá a reprodução. No modo capitalista de produção, o processo de trabalho é apenas um meio de criar valor; analogamente, a reprodução é apenas um meio de reproduzir o valor antecipado como capital, isto é, como valor que se expande” (MARX, 2002, p. 661). 51 A tendência ao aumento da composição do capital, mencionada anteriormente – que se traduz em aumento do capital constante em relação ao capital variável, aumento na quantidade de meios de produção que a força de trabalho é capaz de pôr em movimento, ou ainda, substituição de trabalho vivo por trabalho objetivado –, nada mais é do que a forma de expressar-se o aumento das forças produtivas do trabalho sob o capitalismo. Mas, na medida em que o resultado final é, como tendência, queda no valor unitário das mercadorias e aumento da mais-valia relativa, pode-se afirmar a existência de uma motivação exclusivamente capitalista para aumentar a produtividade do trabalho. Antes de prosseguir com o argumento, é preciso aqui diferenciar essa tendência própria (particular) da sociedade capitalista da tendência geral (universal) de aumento das forças produtivas tratada no capítulo anterior. Vimos que o aumento da produtividade é condição sine qua non do desenvolvimento social, porque dele depende, por exemplo, a diversificação das práticas humanas e o próprio aumento populacional. O capitalismo, contudo, é a única formação social até então existente em que essa tendência universal de aumento da produtividade apresenta-se como condição particular indispensável à sua reprodução. Ou seja, diferentemente das demais formações sociais conhecidas, a sociedade capitalista tem o aumento da produtividade como elemento estrutural de sua reprodução e necessariamente entra em crise caso não se revolucionem periodicamente as condições de produção. Infere-se daí que a tendência expansiva do capital, centrada fundamentalmente na busca da valorização, confere ao aumento das forças produtivas uma potência sem precedentes na história da humanidade. Ao ingressar na produção, o capital revoluciona a forma de produzir, revoluciona o modo de fazer as coisas: transforma a produção para que esta se transforme num meio de expansão do valor.3 3 52 Já no Manifesto comunista, Marx e Engels reconheceram que o capital desenvolve por necessidade as forças produtivas do trabalho: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente o instrumental de produção e, em consequência, as relações de produção e todas as relações sociais. A conservação inalterada do modo tradicional de produção era, ao contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais preceden- Combinando as três tendências apresentadas, é possível vislumbrar uma dinâmica inerente à acumulação capitalista. Em períodos de relativa estabilidade técnica, a acumulação de capital tende a absorver mais trabalhadores, subordinando-os à lógica capitalista e ampliando extensivamente seu raio de atuação. Mas a dinâmica de acumulação ultrapassa, e tem de ultrapassar, esta fase: “Dados os fundamentos gerais do sistema capitalista, chega-se, sempre, no curso da acumulação, a um ponto em que o desenvolvimento da produtividade do trabalho social se torna a mais poderosa alavanca da acumulação” (MARX, 2002, p. 725). Isso porque o aumento de produtividade permite superar os limites encontrados pelo capital para a expansão da mais-valia com composição técnica constante, especialmente aqueles postos pela impossibilidade de se estender indefinidamente a jornada de trabalho e pelo tamanho da população imediatamente disponível. A acumulação de capital ocorre, portanto, combinando fases de acumulação predominantemente extensiva (acumulação com composição constante) e fases de acumulação predominantemente intensiva (acumulação com aumento da produtividade): nesse processo, o capital tende a absorver trabalhadores para o campo da produção (crescimento da proletarização) para depois torná-los redundantes. Assim, mesmo que a demanda por trabalho aumente em termos absolutos, como tendência, diminui em termos relativos, implicando a diminuição da participação do capital variável na totalidade do capital. O resultado é que “a acumulação capitalista sempre produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora relativamente supérflua, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do capital, tornando-se, desse modo, excedente” (MARX, 2002, p. 733). Esta população ficou conhecida como superpopulação relativa ou exército industrial de reserva. tes. A contínua transformação da produção, a turbulência ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação permanentes distinguem a era burguesa de todas as que a precederam” (MARX; ENGELS, 1985, p. 30). Marx (2002, p. 551), naturalmente, reafirma a importância dessa descoberta em O capital. 53 Apesar de tratados, no jargão econômico, como “excluídos”, é preciso notar que a existência desses desempregados e subempregados, de trabalhadores em espera, não é apenas resultado da dinâmica da acumulação capitalista, mas também seu requisito objetivo. Isso porque, se essa economia (não coordenada) pode crescer inesperada e rapidamente, é necessário ter trabalhadores à disposição e em condições de trabalhar (inclusive no que se refere à qualificação), independentemente dos limites colocados pelo efetivo incremento populacional: A expansão súbita e intermitente da escala de produção é condição para sua contração súbita; esta provoca novamente aquela, mas aquela é impossível sem material humano disponível, sem aumento dos trabalhadores, independentemente do crescimento absoluto da população. Esse aumento é criado pelo simples processo de “liberar” continuamente parte dos trabalhadores, com métodos que diminuem o número dos empregados em relação à produção aumentada. (MARX, 2002, p. 736). Se o “processo de liberar continuamente parte dos trabalhadores” descrito, tão indispensável à produção de riqueza, é o mesmo responsável pela produção de pobreza, infere-se que o pauperismo é tão indispensável à acumulação quanto a própria produção de riqueza – como diz Marx, “faz parte das despesas extras da produção capitalista” (MARX, 2002, p. 748 et seq.). E assim chegamos à verdadeira lei geral da acumulação capitalista: quanto maior a riqueza, maior tem de ser a pobreza, “[...] acumulação de riqueza num pólo é, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, de trabalho atormentante, de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral, no pólo oposto, constituído pela classe cujo produto vira capital”.4 4 54 Para outros estudos congruentes com a perspectiva aqui apresentada, que interpretam a pobreza como produto inerente e necessário da dinâmica capitalista, conferir Mészáros (2002), Cammack (2002), Medeiros (2007) e Duayer e Medeiros (2003). Para as finalidades deste estudo, basta que recuperemos, da obra de Marx, a descrição das tendências selecionadas para representar, no nível de abstração em que nos encontramos, a dinâmica que caracteriza o desenvolvimento capitalista.5 É claro que, como pretendemos demonstrar no próximo capítulo, estas são tendências que dependem de condições históricas concretas para se manifestar e, conforme o lócus específico, manifestam-se de maneira diferenciada. Mas antes de transitar para a análise da dinâmica capitalista neste nível ainda mais baixo de abstração, seguimos na próxima seção com algumas conclusões que podem ser extraídas do estudo das leis do desenvolvimento capitalista, vistas ainda no plano “geral”. Seção 2.2 Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas contradições A partir do que foi exposto e do resgate de alguns elementos apresentados no capítulo anterior, podemos fazer uma série de afirmações a respeito das leis de desenvolvimento da sociedade capitalista. Em primeiro lugar, assim como no caso das leis gerais de desenvolvimento da sociedade, as leis especificamente capitalistas são não teleológicas, ou seja, os resultados aqui apresentados não são necessariamente previstos ou intencionados pelos sujeitos em suas ações. Para entender o que está sendo dito, sem precisar ir muito longe, basta pensar que, se a combinação dessas leis produz uma deterioração relativa nas condições de vida da maioria da população, esse é um resultado indesejável que as pessoas, como regra, consideram lastimável, mesmo quando não o associam ao desenvolvimento capitalista. Em segundo lugar, na medida em que “estão em jogo fatores adversos que estorvam e anulam o efeito da lei geral” (MARX, 5 Ao lado das tendências aqui mencionadas, há outras leis que são fundamentais para reconstituir o modo de funcionamento da economia capitalista, tal como concebido por Marx. É o caso, por exemplo, da tendência à queda da taxa de lucro. Aqui nos concentramos, no entanto, em determinações que caracterizam a natureza expansiva e estranhada da produção capitalista. Essa análise será, entretanto, enriquecida, à medida que o grau de abstração for reduzido, no capítulo seguinte e principalmente no terceiro apêndice. 55 1974, p. 266), as leis do desenvolvimento capitalista também possuem o caráter tendencial. Assim, ainda que a expansão da pobreza tenha sido apresentada como resultado intrínseco à dinâmica capitalista, essa mesma dinâmica comporta, em seu interior, a possibilidade de expansão com absorção acelerada de força de trabalho, o que cria condições favoráveis para a redução do desemprego, aumentos salariais, melhoras nas condições de trabalho, conquistas sociais etc. Se “as tendências gerais e necessárias do capital devem ser distinguidas de suas formas de manifestação” (MARX, 2002, p. 367), um período de acumulação predominantemente extensiva pode, como comprovam alguns exemplos históricos, interromper por determinado tempo a manifestação fenomênica da lei geral.6 Em terceiro lugar, tomando o conceito de desenvolvimento/ progresso apresentado também no primeiro capítulo, temos de reconhecer que, apesar dos resultados nefastos decorrentes da dinâmica capitalista, esta mesma dinâmica representa um progresso objetivo na história da humanidade. Ou seja, independentemente da forma como os sujeitos interpretam e avaliam os resultados desse processo, “a crescente socialidade da produção se manifesta não simplesmente como aumento dos produtos, mas também como diminuição do trabalho socialmente necessário para fabricá-los”, e isso representa um “traço objetivamente ontológico da tendência evolutiva interna ao ser social” (LUKÁCS, 1979, p. 82). Ao conferir ao aumento das forças produtivas um potencial ímpar, produzindo aumentos significativos de riqueza e de entrelaçamento entre os povos – e demonstrar a existência objetiva desta dinâmica é um dos objetivos de 6 56 Os anos que vão do imediato pós-guerra até meados dos anos 1970, conhecidos como a “era de ouro do capitalismo”, talvez nos ofereçam aqui o exemplo mais emblemático. Apesar dos significativos aumentos de produtividade, assiste-se durante este período a uma diminuição do desemprego e melhoria nas condições de vida da população, especialmente nos países capitalistas mais afortunados (HOBSBAWM, 1995, p. 253). O fato de que mais trabalhadores estivessem empregados e em melhores condições não significa, no entanto, que a subordinação da classe trabalhadora ao capital tenha diminuído. Ao contrário, o fato de mais trabalhadores estarem submetidos à relação salarial significa que o domínio do capital aumentou extensivamente, se revestindo apenas de “formas suportáveis” (MARX, 2002, p. 720 e 721). Marx –, amplia-se substancialmente a possibilidade de controle coletivo sobre a vida social. O aumento da produtividade cria a base material indispensável para livrar, ao menos em alguma medida, a humanidade da escravidão pelo trabalho. Acentua assim a possibilidade de a humanidade afastar-se de sua “prisão” natural, do reino de suas necessidades (MARX, 1974, p. 941). Ao exasperar esta dinâmica progressiva, o capitalismo cria e amplia as condições materiais de emancipação humana. A análise não pode, no entanto, esgotar-se neste ponto, pois, ao mesmo tempo que cria e amplia as condições da emancipação, o capital obstrui continuamente, ele mesmo, a realização plena dessa possibilidade. Isso porque, como indicado anteriormente, por mais que contenha em si um “desenvolvimento no sentido de níveis superiores”, a dinâmica capitalista envolve a “ativação de contradições de tipo cada vez mais elevado, cada vez mais fundamental” (LUKÁCS, 2007, p. 239). Conforme sintetizado por Marx na passagem a seguir: A barreira efetiva da produção capitalista é o próprio capital: o capital e sua autoexpansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção serem apenas meio de acelerar continuamente o desenvolvimento do processo vital para a sociedade dos produtores. Os limites intransponíveis em que se podem mover a manutenção e a expansão do valor-capital, a qual se baseia na expropriação e empobrecimento da grande massa dos produtores, colidem constantemente com os métodos de produção que o capital tem de empregar para atingir seu objetivo e que visam ao aumento ilimitado da produção, à produção como fim em si mesma, ao desenvolvimento incondicionado das forças produtivas sociais do trabalho. O meio – desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais – em caráter permanente conflita com o objetivo limitado, a valorização do capital existente. Por conseguinte, se o modo capitalista de produção é um meio histórico para 57 desenvolver a força produtiva social e criar o mercado mundial apropriado, é ele ao mesmo tempo a contradição permanente entre essa tarefa histórica e as relações sociais que lhe correspondem. (MARX, 1974, p. 288). Apesar de não ser a única forma de expressar-se o caráter contraditório do desenvolvimento capitalista, utilizamos a lei geral, mais uma vez, como ilustração. Ao final da seção anterior, vimos que o desenvolvimento capitalista, tal como concebido por Marx, envolve, simultaneamente, empobrecimento e enriquecimento, e que, embora o trabalho social típico da sociedade capitalista suscite um avanço técnico e científico potencialmente enriquecedor para todos os seres humanos, isso se dá a expensas do empobrecimento de muitos. Por um lado, analisando a questão objetivamente, desde o ponto de vista do funcionamento sistêmico, podemos observar que, se a riqueza no capitalismo tem caráter mercantil e, por isso, carece de realização, é contraditório que esse mesmo sistema prive permanentemente uma parte da população da capacidade de consumo (MARX, 2011, p. 343 e 344). Ademais, a massa de pobres e miseráveis representa uma ameaça à estabilidade social e política, ao menos em potencial. Por outro lado, partindo do prisma da humanidade, da preservação da vida, da melhora e desenvolvimento de nossa individualidade, também é contraditório que haja pobreza numa sociedade que cria as condições materiais para eliminá-la. No caso específico do modo de produção capitalista, essa contradição foi reconhecida, e corretamente tratada, por diversos autores, de maneiras variadas.7 Em comum entre eles, identificamos o entendimento de que, na análise de Marx, o desenvolvimento não pode ser compreendido de forma unilateral, “nem como progresso do conhecimento e da felicidade, ou como ‘progresso’ da dominação e da destruição” (POSTONE, 1993, p. 35 e 36). Ao contrário, é preciso reconhecer que, no 7 58 Conferir, por exemplo, Lukács (2007), Hobsbawm (2009), Mészaros (2002, p. 39), Cammack (2002, p. 197), Postone (1993), Medeiros (2007) e Duayer e Medeiros (2003). capitalismo, ao mesmo tempo que “a capacidade e o conhecimento da humanidade são acrescidos enormemente”, isso ocorre “de uma forma alienada que oprime as pessoas e tende a destruir a natureza” (p. 30). Esse caráter contraditório (dialético) do desenvolvimento capitalista é certamente um resultado da forma peculiar de articulação do trabalho nesta sociedade. Como Marx revela ainda nos primeiros capítulos de O capital, ao contrário de produção diretamente social, os trabalhos privados, independentes uns dos outros, somente atuam como parte constitutiva do trabalho social por meio da troca. Assim, embora resulte da interação entre as ações humanas, o trabalho articula-se socialmente constituindo uma dinâmica semiautônoma com relação a esses agires e às suas condições objetivas e subjetivas. Apesar de não ser essa a leitura convencional, muitos marxistas julgam, em nosso juízo, acertadamente, que o grande mérito de Marx foi justamente ter reconhecido – e posto em primeiro plano na sua principal obra – esse caráter estranhado ou alienado do trabalho que domina a sociedade capitalista.8 Em uma sociedade desse tipo, na qual os produtos do trabalho assumem a forma-mercadoria, o esforço de trabalho aparece, em primeiro lugar, como uma propriedade das coisas, como valor. Além disso, o trabalho humano, materializado como propriedade das mercadorias, autonomiza-se e subjuga seus produtores. E, na medida em que as relações sociais entre as pessoas aparecem como relações entre coisas, o conjunto das relações humanas aparece aos sujeitos como algo externo a eles, que os constrange e domina. Daí a centralidade da categoria valor para a compreensão dessa formação social. De acordo com Duayer, 8 Como afirma Postone (1993, p. 30): “[...] uma marca central do capitalismo é que as pessoas realmente não controlam sua própria atividade produtiva ou o que elas produzem, mas são, em última instância, dominadas pelos resultados desta atividade. Esta forma de dominação é expressa como uma contradição entre indivíduos e sociedade e constituída como uma estrutura abstrata.” 59 A categoria valor nada mais é [...] do que a expressão social do fato de que nesta sociedade os sujeitos são reduzidos a trabalho. O trabalho, se não é a única forma de socialização, é a fundamental, básica, incondicional, da qual todas as outras dependem, e sem a qual os sujeitos perdem não só a sua sociabilidade, mas também a sua humanidade e, no limite, sua existência física. O valor, na teoria de Marx, é esse poder exclusivo da espécie humana, esse notável poder social de associação, o trabalho social, que, emergindo na história nas circunstâncias em que o fez – e que poderiam ter sido outras, quem sabe – constitui-se em poder que escapa ao controle dos sujeitos e, mais do que isso, os subordina à sua lógica. E por isso tem de se apresentar como valor, como poder das coisas, em lugar de força diretamente social dos sujeitos. (DUAYER, 2008, p. 16) Em suma, essa sociedade, mesmo sendo resultado da articulação espontânea entre atos teleológicos, possui uma dinâmica que escapa ao controle de, enfatize-se, todos os sujeitos. Como Marx adverte ainda no prefácio de O capital, os capitalistas também se dobram à lógica de valorização, sendo impelidos, na condição de representantes do capital, a buscar aumentos de produtividade (MARX, 2002, p. 18). Por mais curioso que pareça, também não controlam as relações sociais em que comparecem como representação subjetiva de uma categoria objetiva, o capital.9 9 60 Como afirma Mészáros (2002, p. 96 et seq.), “O capital não é simplesmente uma ‘entidade material’ [...] mas é, em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. [...] uma estrutura ‘totalizadora’ de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar.” E segue: “O preço a ser pago por esse incomensurável dinamismo totalizador é, paradoxalmente, a perda de controle sobre os processos de tomada de decisão. Isto não se aplica apenas aos trabalhadores [...], mas até aos capitalistas mais ricos, pois, não importa quantas ações controladoras eles possuam na companhia ou nas companhias de que legalmente são donos como indivíduos particulares, seu poder de controle no conjunto do sistema do capital é absolutamente insignificante. Eles têm de obedecer aos imperativos objetivos de todo o sistema, exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências de perder o negócio.” Para encerrar o argumento, gostaríamos de enfatizar uma importante característica das leis até o momento apresentadas, fundamental para a compreensão da crítica que se pretende fazer às teorias do desenvolvimento. Como mencionado na seção de encerramento do primeiro capítulo, na medida em que são sociais, as leis de que tratamos aqui não são totalmente independentes da atividade humana e não podem, ao mesmo tempo, ser diretamente criadas por ela. Assim, por aparecerem como pressuposto da sua atividade, na forma de estruturas que condicionam a sua prática, os sujeitos percebem essas leis como elementos da natureza, e as tomam, na consciência, como condições naturais do seu agir. Ao assim fazê-lo, assumem necessariamente uma postura conservadora diante do mundo, confirmando e reproduzindo na sua prática corrente as leis pelas quais são dominados. Essa não é, no entanto, uma exclusividade das formas de consciência cotidianas: reflete-se também em formas científicas de consciência. Isso porque, como vimos também no capítulo anterior, analisar cientificamente determinado objeto significa seguir caminho oposto ao desenvolvimento histórico real: “começa-se depois do fato consumado, quando já estão concluídos os resultados do processo de desenvolvimento” (MARX, 2002, p. 97 et seq.). Quando a ciência econômica se empenha em apreender o sentido das “formas que convertem os produtos do trabalho em mercadorias”, estas já possuem a consistência de “formas naturais da vida social”, transistóricas e imutáveis. Assim, “fórmulas que pertencem, claramente, a uma formação social em que o processo de produção domina o homem, e não o homem o processo de produção, são consideradas pela consciência burguesa uma necessidade tão natural quanto o próprio trabalho produtivo” (MARX, 2002, p. 102 e 103). Quando tratarmos especificamente das teorias do desenvolvimento ao longo da próxima parte deste livro, veremos que, ainda que sejam de diversos tipos e incorporem de maneira diferenciada os fundamentos teóricos que antecedem o nascimento desse ramo específico, as teorias do desenvolvimento compartilham essa visão de mundo. Como esperamos 61 demonstrar, mesmo aquelas teorias que por vezes reconhecem o caráter histórico, e portanto passageiro, do modo de produção capitalista tomam essa forma de sociabilidade, e as possibilidades postas por ela, como pressuposto de suas formulações. Antes de realizar a inspeção das teorias do desenvolvimento, no entanto, faz-se necessário analisar o funcionamento da dinâmica capitalista em um nível ainda mais baixo de abstração. Por isso, dedicamos o próximo capítulo à apresentação de alguns exemplos históricos que nos permitam mostrar como, além das tendências gerais, o desenvolvimento capitalista é marcado por particularidades que influenciam a forma concreta de manifestação dessas leis gerais (ainda que, no fundo, as características mais gerais sejam mantidas). 62 Apêndice II Desenvolvimento capitalista e mercado mundial Dedicamos este segundo apêndice da Parte I ao tratamento de uma importante tendência da dinâmica capitalista, mencionada ao longo dos primeiros capítulos, mas não suficientemente tratada: a tendência à formação do mercado mundial. Ainda que envolva uma série de temáticas e suscite discussões que fogem ao escopo do presente estudo, julgamos necessário resgatá-la por tratar-se de uma das tendências que distinguem de modo mais universal a produção capitalista e por dela depender a própria operação da dinâmica capitalista em nível global. Como pretendemos demonstrar de modo bastante sucinto, essa tendência decorre da (e contribui para a) expansão incessante de riqueza (característica da produção capitalista) e pode ser apresentada recorrendo-se a categorias simples, também enunciadas por Marx no Livro I de O capital. Para cumprir com esse objetivo, é fundamental reconhecer, em primeiro lugar, que as trocas e, portanto, o mercado (lócus no qual se realiza a circulação – compra e venda – de mercadorias) são pressupostos do capital e do capitalismo, tanto em termos históricos, quanto (e por consequência) em termos teórico-formais (MARX, 2002, p. 177). Ao contrário do que afirmam os economistas políticos, no entanto, as trocas (e a consequente transformação do produto do trabalho em mercadoria) também são resultado de um processo histórico, que certamente envolve o contato entre sociedades não mercantis, pois a troca não poderia emergir na prática social de indivíduos imersos em relações de produção nas quais o produto não tivesse a troca como meio de distribuição. Apenas posteriormente, com o desenvolvimento das relações de comércio, as trocas penetram no seio das comunidades e se transformam na forma dominante de articulação entre os produtores. Por isso, podemos intuir que o comércio de longa distância põe as condições para o surgimento do comércio local e o precede historicamente.10 10 Não por acaso, as formas primitivas (ou, para usar a expressão de Marx, “antediluvianas”) de capital são justamente aquelas que surgem na esfera 63 Do ponto de vista analítico é possível mostrar ainda que a simples articulação de unidades produtivas pela troca coloca a necessidade da produção de riqueza material e valor em escala crescente. Isso porque a participação na riqueza social a que se tem acesso é uma alíquota que depende, ao menos potencialmente, da magnitude da produção: a porção de riqueza que se pode retirar do mercado é sempre proporcional à que nele se lança, e quanto maior a parcela da riqueza que se tem em mãos, maiores são as chances de acessar a riqueza social. E uma vez estabelecida essa dinâmica, cada produtor tem necessariamente de buscar uma produção crescente, sob pena de ver cair sua parcela da riqueza social (isto é, de empobrecer relativamente à riqueza total e aos outros produtores) (DUAYER; MEDEIROS, 2008). Esse impulso para o aumento da riqueza, que consiste em uma das determinações mais importantes da dinâmica capitalista e já pode ser percebido (embora não devidamente caracterizado, claro) a partir da análise da esfera da circulação e do caráter mercantil da sociedade, ganha novo ímpeto com o ingresso do capital na esfera da produção. Nesse sentido, é preciso reconhecer, em segundo lugar, que a colonização da esfera produtiva pelo capital e o consequente advento da produção capitalista representam um salto qualitativo, tanto em termos do desenvolvimento das forças produtivas, quanto do desenvolvimento das relações mercantis.11 Se da circulação, pertencem a essa esfera e nela permanecem confinadas: capital de comércio de mercadoria (capital mercantil) e capital de comércio de dinheiro (capital usurário). Em capítulo dedicado a “observações históricas sobre o capital mercantil”, forma mais antiga de existência do capital, Marx (1974, p. 372) mostra justamente (1) como este atua, nos seus primórdios, mediando a relação entre modos de produção diversos, voltados essencialmente à produção de valores-de-uso, (2) como contribui para que a produção seja crescentemente orientada para a troca e (3) como o seu desenvolvimento é pressuposto necessário (ainda que não suficiente) da emergência e consolidação do modo capitalista de produção. 11 Tomando como referência a produção capitalista no lócus clássico de sua emergência (a Inglaterra), observamos, por exemplo, o papel desempenhado pelo capital como elemento socializador de uma produção fracionada no campo (produção camponesa) e na cidade (produção artesanal). Tendo em vista que a produção fracionada é limitada, por natureza, e incompatível com o impulso que emerge da simples articulação pela troca, essa socialização se mostra indispensável ao aumento de produtividade e contri- 64 capital é valor que se movimenta em busca de sua valorização, valor que procura acrescer ao seu corpo mais-valor, e a sociedade capitalista é a que possui esse impulso como determinação geral (produção moldada desde a raiz para o imperativo do crescimento da riqueza na dupla forma que ela adquire quando destinada à troca), não fica difícil perceber como aquilo que é inicialmente um pressuposto também se põe como resultado do próprio desenvolvimento das relações de produção capitalistas. Partindo, portanto, do conceito de capital, observamos, por um lado, que mercado, comércio, circulação, relações de troca e troca são pressupostos, pois ainda que a extração de mais-valia (trabalho excedente) ocorra na esfera da produção, ela não dispensa, em nenhum sentido, a esfera da circulação (MARX, 2002, p. 196). Isso porque, em primeiro lugar, é na esfera da circulação que se encontram os elementos materiais (meios de produção e força de trabalho) necessários à produção de mais-valor; e, em segundo lugar, é na esfera da circulação que o valor produzido realiza-se como valor que se conserva e se expande. De acordo com os termos utilizados por Marx (2011, p. 328) nos rascunhos que antecedem a redação de O capital, é como se o capital, no momento em que deixa a forma-dinheiro e assume a forma-mercadoria, passasse por um processo de desvalorização: caso o circuito interrompa-se sem a venda do produto final (transformação de mercadoria em dinheiro), não apenas um valor novo deixa de ser acrescido, mas também se perde com isso o valor original. Por outro lado, a circulação é posta pelo capital como resultado, sempre de modo ampliado, pois a produção de valor em escala crescente também exige circulação em escala crescente, fazendo com que a tendência do capital à ampliação do trabalho excedente venha acompanhada da tendência à ampliação dos mercados. Como explicitado por Marx, novamente, “o modo capitalista de produção supõe produção em grande escala e necessariamente venda em grande escala [de tal forma que] o comércio de mercadorias [...] é condição do bui, em grande medida, para tornar a produção compatível com o aumento de riqueza. Sobre o tema, conferir Marx (2002, p. 876; 2011, p. 485). 65 desenvolvimento da produção capitalista e com ela se desenvolve cada vez mais” (MARX, 2000, p. 125).12 Sendo, portanto, dotado de uma tendência à expansão imanente, o capital precisa incorporar áreas cada vez mais extensas ao seu limite de operação; pela sua própria natureza, precisa ir além de qualquer barreira espacial, criar condições objetivas para ampliação das trocas e conquistar o mundo como seu mercado (MARX, 2011, p. 445 et seq.). E faz isso, em parte, por meio do desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte, realizando o que Marx chamou de aniquilação do espaço pelo tempo. Nas palavras do autor: “Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o mercado em que circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior expansão especial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo.”13 Nesse processo, o contato comercial de regiões nas quais o capital comanda a produção com regiões onde ele ainda não havia penetrado abre o caminho para a subordinação dessas últimas às primeiras. Essa expropriação dos modos de produção pré-capitalistas ocorre, fundamentalmente, devido à maior capacidade produtiva do capital e à operação de suas leis imanentes, e mostra como, embora não dispense outros métodos (extraeconômicos) de subordinação, o capital contém uma arma própria, muitíssimo potente, típica da expansão capitalista e da competição mercantil: o preço (isto é, a maior produtividade). Na medida, portanto, em que o desenvolvimento do comércio (e do capital mercantil) cria sobre esses modos de produção a necessidade de aumento das forças produtivas e estimula a ampliação da produção orientada para a troca (e pelo valor-de-troca), desagrega as antigas relações sociais e “exerce sempre ação mais ou menos dissolvente sobre as organizações anteriores da produção” (MARX, 1974, p. 382). 12 13 66 Cf., MARX, 2011, p. 332 e 333; 1974, p. 272; 384. Um tratamento minucioso da tendência à aniquilação do espaço pelo tempo e da discussão relacionada à produção capitalista do espaço pode ser encontrado nos trabalhos de David Harvey (1990, 2006). Em suma, mesmo que ainda hoje se discuta o efetivo alcance da produção capitalista no mundo, não há dúvidas de que, “pela primeira vez na história, o capitalismo cria uma efetiva economia mundial, a ligação econômica de todas as comunidades humanas entre si” (LUKÁCS, 1979, p. 148). De fato, não é preciso ir muito longe para perceber como o planeta “outrora povoado por inúmeras pequenas tribos, que frequentemente não sabiam quase nada uma da outra, ainda que fossem vizinhas”, hoje caminha para uma unidade econômica, “uma plena e completa interdependência mesmo entre os povos mais afastados entre si” (p. 147). Mais uma vez, essa ligação e interdependência entre os povos representam um desenvolvimento/ progresso objetivo e ampliam as possibilidades da emancipação humana (que apenas sob o modo de produção capitalista adquire consciência genérica). Como já havia sido dito em outro momento, no entanto, esse desenvolvimento vem acompanhado da ativação de contradições de tipo cada vez mais elevado e/ou da operação das contradições inerentes ao modo capitalista de produção em escala ampliada. 67 Capítulo 3 O desenvolvimento capitalista e suas particularidades No capítulo anterior, apresentamos algumas das principais tendências que caracterizam o desenvolvimento do modo de produção capitalista, tomando como base a descrição feita por Marx, especialmente em O capital. Considerando os objetivos do presente estudo e a impossibilidade de recompor todos os passos do argumento elaborado pelo autor, dedicamos especial atenção àquelas tendências que, quando articuladas, determinam o caráter necessariamente expansivo dessa formação social. Além disso, esperamos ter demonstrado como essa dinâmica subordina crescentemente os demais momentos da vida social e envolve uma série de contradições (como, por exemplo, aquela explicitada no enunciado da lei geral da acumulação capitalista). Ainda que essa análise situe-se em um nível relativamente elevado de abstração, os elementos de que dispomos até o presente momento já permitem perceber uma diferença substantiva entre a perspectiva aqui defendida e aquela propalada pelas teorias do desenvolvimento. Ao proferir sentenças a respeito do desenvolvimento capitalista, fazemos referência à sua dinâmica objetiva de funcionamento, às tendências que regulam sua transformação ao longo do tempo, a seu decurso histórico causalmente determinado. Ou seja, ao contrário do que normalmente se afirma, o desenvolvimento capitalista não é entendido aqui como a passagem de um estágio de privação material (países pobres, periféricos, Terceiro Mundo) para o estado de pletora material (países ricos, centrais, Primeiro Mundo), seja lá como for medida essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Falar sobre o desenvolvimento da produção capitalista significa falar sobre a operação de suas leis em escala global. O fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais apenas comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista, em lugar de negá-la. É claro que, como indicado anteriormente, essas tendências manifestam-se de maneiras distintas em condições históricas específicas, o que explicaria o fato, por exemplo, de que o capitalismo, ao instalar-se em localidades distintas, desenvolve-se de maneira diferenciada. Como sustentado nos capítulos precedentes, isso não exclui a possibilidade de formular uma teoria geral do desenvolvimento da sociedade, abstratamente considerada. Mas, à medida que variam as condições históricas específicas, as características nacionais, regionais, locais etc., tendências particulares se formam, e tais particularidades têm de ser levadas em conta quando se trata de analisar o desenvolvimento dessa formação social. Mais do que isso, estas particularidades precisam ser levadas em consideração quando se trata de analisar criticamente as formas de consciência produzidas sobre esse desenvolvimento no interior da ciência econômica, pois, se as teorias sobre desenvolvimento remetem a algum contexto particular, devem ser examinadas a partir da relação com seu referente histórico. Nesse sentido, dedicamos este capítulo de encerramento da Parte I à demonstração de que, além das tendências gerais indicadas nos capítulos anteriores, a produção capitalista é caracterizada por tendências particulares, circunscritas historicamente a condições específicas de reprodução sistêmica, que permitem delimitar fases de seu desenvolvimento. Não se trata, com isso, de investigar a pertinência das alegadas fases, mas apenas mostrar, através de alguns exemplos, que o desenvolvimento capitalista é marcado por particularidades e que estas particularidades suscitam entendimentos teóricos. A título de ilustração, começaremos tratando aqui de um período no qual o desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por determinações particulares: o quarto de século posterior à Segunda Guerra Mundial, mais conhecido como a “Era de Ouro do capitalismo”. É claro que não se pretende com isso recompor detalhadamente todas as características desta época ou retratar a forma específica como suas principais tendências atuam sobre as diferentes nações. Para os propósitos do presente estudo, basta que sejam resgatadas 70 especialmente aquelas particularidades relacionadas à manifestação fenomênica das leis gerais apresentadas no capítulo anterior. Feito isso, dedicamos a segunda seção do capítulo ao contraste entre a “Era de Ouro” e o período posterior à crise dos anos 1970. Seção 3.1 A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo” Muitos analistas, de diversas procedências teóricas, em diversos campos do pensamento, científico ou não, reconheceram a peculiaridade do desenvolvimento capitalista nas aproximadamente três décadas que sucederam o pós-guerra. E a característica desse período que imediatamente salta aos olhos, responsável em grande medida pela invocação de um metal tão sublime como o ouro, é, sem dúvida, a forma como a economia capitalista mundial passava por um período ímpar de expansão e prosperidade. Como ilustram os dados abaixo: Entre 1950 e 1975 a renda per capita nos países em desenvolvimento teve um aumento médio de 3% ao ano, acelerando-se de 2% na década de 1950 para 3,4% na década de 1960. Essa taxa de crescimento foi historicamente sem precedentes nesses países e ultrapassou a que fora alcançada pelos países desenvolvidos em sua fase de industrialização (Banco Mundial, 1978). Nos próprios países desenvolvidos [...] o PIB e o PIB per capita cresceram quase duas vezes mais depressa do que em qualquer período anterior desde 1820. A produtividade do trabalho aumentou duas vezes mais depressa do que em qualquer época, e houve uma aceleração extraordinária na taxa de crescimento do estoque de capital. O aumento desse estoque representou uma explosão de investimentos de duração e vigor sem precedentes históricos. (GLYN et al., 1990, p. 41 e 42). 71 Diante desses resultados, alguns chegaram a acreditar que o capitalismo havia finalmente entrado em uma nova era de expansão ininterrupta. Como ressalta o historiador Eric Hobsbawm (1995, p. 262), em sua consagrada análise sobre o século XX: “todos os problemas que perseguiam o capitalismo em sua era da catástrofe pareceram dissolver-se e desaparecer” e vozes mais otimistas “começaram a supor que, de algum modo, tudo na economia iria para a frente e para o alto eternamente” (p. 254). Segundo as previsões feitas por um destacado político britânico em 1956, tudo levava a crer que, em cerca de 50 anos, a economia inglesa teria triplicado sua produção nacional (CROSLAND apud HOBSBAWM, 1995, p. 263). Ou ainda, segundo relatório da ONU publicado em 1972: “Não há motivo especial para duvidar que as tendências subjacentes de crescimento no início e meados da década de 1970 continuarão em grande parte como nas de 1960” (GLYN et al., 1990, p. 39). E sobre esta crença na possibilidade de uma expansão contínua e sustentada, David Landes (1994, p. 554) declara: “essa é uma expressão de fé, revestida da aparência de uma previsão. Mas é esse tipo de fé que ajuda a fazer com que as previsões se realizem”. As afirmações sobre a natureza deste período não são, no entanto, de todo consensuais. Giovanni Arrighi (1996, p. 307), por exemplo, faz a seguinte avaliação: “Não há dúvida de que, nessa época, o ritmo de expansão da economia mundial capitalista como um todo foi excepcional, segundo os padrões históricos. Se foi também a melhor de todas as épocas para o capitalismo histórico, de modo a justificar sua denominação de ‘a idade de ouro do capitalismo’, é uma outra questão”. Mais do que isso, em poucos anos, aquelas grandes expectativas tornaram-se verdadeiras frustrações, pois, fosse ou não a melhor de todas as épocas, por detrás da nova roupagem, o capitalismo ainda continuava sendo o mesmo, regulado pelas mesmas determinações gerais, que “necessariamente implicam crises, exploração, pobreza, desemprego, destruição do meio ambiente e da natureza, entre tantas formas destrutivas” (ANTUNES, 2003, p. 34). 72 Conforme se entende aqui, é precisamente essa convicção, a certeza de que se trata ainda do modo de produção capitalista, que permite observar esse período a partir da operação das leis gerais identificadas anteriormente e, ao mesmo tempo, enxergar a existência de particularidades. Dizer que não há qualquer diferença, como afirma David Harvey, é o mesmo que [...] dar ao capitalismo um tratamento anistórico, considerando-o um modo de produção desprovido de dinâmica, quando todas as evidências (incluindo-se aí as explicitamente arroladas por Marx) apontam para o fato de ser o capitalismo uma força constantemente revolucionária da história mundial, uma força que reformula de maneira perpétua o mundo, criando configurações novas e, com frequência, sobremodo inesperadas. (HARVEY, 2005, p. 176). De fato, o modo de produção capitalista experimenta substantivas reorientações no período posterior à Segunda Guerra Mundial, cujas linhas gerais se definem aproximadamente entre 1929 e 1948. Estas reorientações que, em seu conjunto, ficaram conhecidas como fordista-keynesianas incluem mudanças que vão da estrutura produtiva ao plano político-ideológico e, quando articuladas, produzem uma curiosa combinação de crescimento da produção, da capacidade de consumo da classe trabalhadora e manutenção de lucros altos, influenciando decisivamente a manifestação fenomênica da lei geral da acumulação capitalista.1 Considerando os objetivos desta seção, organizaremos nossa exposição em torno desses dois eixos fundamentais, começando pelas mudanças no plano político-ideológico e seguindo para as mudanças ocorridas na estrutura produtiva. Esperamos com isso poder finalmente esclarecer os impactos dessas reformas sobre as tendências gerais do desenvolvimento capitalista. 1 Esse mesmo argumento pode ser visto, ainda que com algumas nuanças, em Harvey (2005, p. 117), Bihr (1998, p. 35) e Hobsbawm (1995, p. 253), por exemplo. 73 Sobre as mudanças no plano político-ideológico, pode-se afirmar que o primeiro aspecto digno de nota está relacionado à substantiva perda de espaço do liberalismo econômico e ascensão do ideário intervencionista. Essa ruptura com o liberalismo e posterior consolidação de um “novo padrão de gerenciamento da sociedade do capital”, no entanto, não podem ser compreendidas sem que se faça uma referência àquela que talvez tenha sido a maior crise do modo de produção capitalista: a Grande Depressão do entreguerras.2 Não pretendemos, e nem mesmo seria possível, recompor o conjunto de fatores que conduziram à crise ou apresentá-la em todos os seus detalhes, mas apenas chamar a atenção para a sua profundidade e “sua incrível capacidade de abalar os valores, crenças e estruturas sociais do século XIX de forma praticamente instantânea e tão intensamente a ponto de torná-los todos uma lembrança ameaçadora e indesejável por cerca de cinquenta anos” (MEDEIROS, 2007, p. 154). Observando as estatísticas do período, percebemos que, apesar do indiscutível impacto sobre a produção e sobre os “homens de negócios”, a crise tem uma capacidade particular de afetar aqueles que, por pressuposto, não possuem o controle sobre os meios de produção: a classe trabalhadora. Para estes, ou seja, para a maior parcela da população, o principal e primeiro significado da Grande Depressão foi o desemprego em massa, “em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo do que qualquer um já experimentara” (HOBSBAWM, 1995, p. 97 et seq.). Como mostram os assustadores dados sobre o comportamento do emprego: “no pior período da Depressão (1932-1933), 22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa e nada menos que 44% da alemã não tinha emprego. [...] Não houvera nada semelhante a essa catástrofe econômica na vida dos trabalhadores até onde qualquer um pudesse lembrar”. 2 74 Hobsbawm (1995, p. 99) chega a caracterizar este como “[...] o mais trágico episódio da história do capitalismo.” Como afirma o autor: “[...] entre as guerras, a economia mundial capitalista parecia desmoronar e ninguém sabia exatamente como se poderia recuperá-la” (p. 91). No que diz respeito especificamente ao papel desempenhado pela crise no descrédito sofrido pela ideologia liberal, Hobsbawm (1995, p. 99) sintetiza em uma única frase: “a Grande Depressão destruiu o liberalismo econômico por meio século”, e isso se deve a pelo menos dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, depois de certo tempo, já não havia mais dúvidas de que a Grande Depressão fora em parte resultado do fracasso das políticas de livre mercado. Voltaremos a este argumento mais adiante, ainda nesta seção. Por ora, basta ressaltar que, independentemente do grau de responsabilidade sobre a crise, a aplicação do receituário tipicamente liberal também não se mostrou capaz de oferecer uma saída à Depressão.3 Em segundo lugar, como já havia sido mencionado no capítulo anterior, é preciso lembrar que o desemprego em larga escala e o consequente aumento da quantidade de pobres e miseráveis representavam uma ameaça à estabilidade social e política. Por um lado, havia a possibilidade de radicalização à direita, cujo exemplo mais emblemático talvez fosse a Alemanha nazista, que conseguiu superar a Grande Depressão de maneira mais rápida e mais bem-sucedida que qualquer outro país. Por outro lado, havia a possibilidade de radicalização à esquerda: “afinal, as previsões do próprio Marx pareciam estar concretizando-se [...] e, de maneira ainda mais impressionante, a URSS parecia imune à catástrofe” (HOBSBAWM, 1995, p. 111).4 Por fim, é preciso lembrar que o relativo sucesso da 3 4 Como propõe Hobsbawm (1995, p. 106 e 107): “Até onde se podia confiar nos economistas, por mais brilhantes que fossem, quando demonstravam, com grande lucidez, que a Depressão em que eles mesmos viviam não podia acontecer numa sociedade de livre mercado propriamente conduzida, pois (segundo uma lei econômica com o nome de um francês do início do século XIX) não era possível nenhuma superprodução que logo não se corrigisse?” Ainda sobre o desempenho da URSS durante esse período, afirma Hobsbawm (1995, p. 100): “O trauma da Grande Depressão foi realçado pelo fato de que um país que rompera clamorosamente com o capitalismo pareceu imune a ela: a União Soviética. Enquanto o resto do mundo, ou pelo menos o capitalismo liberal ocidental, estagnava, a URSS entrava numa industrialização ultrarrápida e maciça sob seus novos Planos Quinquenais. De 1929 a 1940, a produção industrial soviética triplicou, no mínimo dos mínimos. Subiu de 5% dos produtos manufaturados do mundo em 1929 para 18% em 1938, enquanto 75 resposta à crise, alcançado nesses dois modelos alternativos de sociedade, estava ancorado no planejamento e na aberta intervenção do Estado na economia, contribuindo, também por esse motivo, para o descrédito do liberalismo e a crença na virtude do planejamento. Assim, fosse para afastar o perigo de retorno à Grande Depressão, ou para conter o avanço do comunismo ou do nazifacismo, consolidava-se a convicção de que um retorno ao laisser-faire estava fora de questão. Como ressalta Hobsbawm: É um engano supor que as pessoas jamais aprendem com a história. A experiência do entreguerras e, sobretudo, a Grande Depressão tinham sido tão catastróficas que ninguém podia sonhar [...] em retornar à época anterior [...]. E se a memória econômica da década de 1930 não fosse o bastante para aguçar seu apetite por reformar o capitalismo, os riscos políticos de não fazê-lo eram patentes para todos os que acabavam de combater a Alemanha de Hitler, filha da Grande Depressão, e enfrentavam a perspectiva do comunismo e do poder soviético avançando para oeste sobre as ruínas de economias capitalistas que não funcionavam. (HOBSBAWM, 1995, p. 266). É nesse contexto que, com base em argumentos tanto econômicos quanto políticos, o mercado livre é substituído pela maior intervenção do Estado na economia. A consequência disso, na prática, é a emergência de um “capitalismo reformado”, tanto no âmbito nacional, quanto internacional, com o propósito central de manter o crescimento, o pleno emprego, evitar flutuações bruscas e minimizar as incertezas inerentes ao funcionamento dos diversos mercados. No plano internacional, a regulação do capitalismo visava basicamente estabelecer uma nova ordem mundial que evitasse as fortes instabilidades econômicas ocorridas no no mesmo período a fatia conjunta dos EUA, Grã-Bretanha e França caía de 59% para 52% do total do mundo. E mais, não havia desemprego.” 76 período precedente, promovendo um crescimento controlado do comércio internacional. Os termos dessa nova ordem supranacional, estabelecidos, em linhas gerais, na conferência de Bretton Woods (1944), eram basicamente os seguintes: (1) criação do padrão dólar-ouro, que transforma a moeda norte-americana em moeda de curso internacional e conversível em ouro; (2) instituição de um regime de câmbios fixos atrelados ao padrão dólar; e (3) criação de organismos multilaterais como o Banco Mundial (originalmente chamado Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento) e o Fundo Monetário Internacional (COGGIOLA, 2002, p. 371). No âmbito nacional, testemunha-se a emergência e a disseminação dos primeiros Estados de bem-estar social, preocupados fundamentalmente com a administração keynesiana da demanda agregada, a provisão de serviços públicos essenciais (como educação, saúde, transportes etc.) e a universalização da seguridade social (garantindo ao cidadão benefícios como aposentadoria, auxílio-desemprego, entre outros).5 O resultado, como confirmam diversos analistas, foi a “incomum combinação keynesiana de crescimento econômico numa economia capitalista baseada no consumo de massa de uma força de trabalho plenamente empregada e cada vez mais bem paga e protegida” (HOBSBAWM, 1995, p. 276). Sobre as mudanças na estrutura produtiva, observamos que o pós-guerra foi marcado pela disseminação de dois princípios gerais de organização do trabalho, princípios estes que começaram a ser introduzidos ainda no final do século XIX e início do século XX. O primeiro deles, conhecido como taylorista, baseia-se na nítida separação entre “as tarefas de concepção e execução, acompanhadas de uma parcelização das últimas, devendo cada operário, em última análise, executar apenas alguns gestos elementares” (BIHR, 1998, p. 39 et seq.). O segundo, conhecido como fordista, define-se essencialmente 5 Apesar de trabalharmos aqui com uma definição bastante ampla de Estado de bem-estar, existem inúmeras controvérsias a respeito de sua origem, periodização e principais características. Para uma exposição detalhada das diferentes interpretações, conferir Gough (1989) e Esping-Andersen (1990). 77 pela mecanização do processo de trabalho, ou seja, pela criação de “um verdadeiro sistema de máquinas que garante a unidade (a recomposição) do processo de trabalho parcelado, ditando a cada operário seus gestos e sua cadência (sendo sempre a cadeia de montagem a forma extrema desse princípio)”. A combinação desses dois princípios acentua as seguintes tendências: (1) a perda do controle direto sobre o processo de produção pelo trabalhador e (2) o aumento da intensidade e produtividade do trabalho.6 Como visto no capítulo anterior, essas seriam características de um período de acumulação predominantemente intensiva, no qual diminui a participação relativa do capital variável na totalidade do capital. Esse mecanismo seria ainda responsável pela produção de uma superpopulação relativa e, ao privar parte da população da capacidade de consumo, salienta o caráter contraditório da dinâmica capitalista. Para muitos autores, um dos elementos importantes para explicar a eclosão da crise em 1929 seria justamente a inexistência de um aumento da demanda compatível com a expansão da produção durante a década de 1920. Segundo Bihr (1998, p. 41), nessa primeira onda de expansão dos métodos tayloristas e fordistas, a produtividade do trabalho cresceu, nas economias capitalistas ocidentais, em média 6% ao ano, os lucros chegaram a atingir picos históricos de 35%, enquanto o crescimento médio dos salários não ultrapassou os 2% ao ano. Ou seja: [...] o que acontecia, como muitas vezes acontece nos booms de mercados livres, era que, com os salários 6 78 Uma caracterização semelhante pode ser vista em Antunes (2006, p. 25), que entende o fordismo, fundamentalmente, “como a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção em série fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões”. ficando para trás, os lucros cresceram desproporcionalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do bolo nacional. Mas como a demanda de massa não podia acompanhar a produtividade em rápido crescimento do sistema industrial nos grandes dias de Henry Ford, o resultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua vez, provocou o colapso. (HOBSBAWM, 1995, p. 104). No período que tratamos aqui, ao contrário, apesar dos significativos aumentos de produtividade e utilização de técnicas cada vez mais intensivas em capital, a velocidade de expansão da economia foi suficiente para aumentar o nível de emprego, em termos absolutos e relativos (ao menos no “centro” do sistema capitalista e em parte da “periferia”). Em diversos países, inclusive, o esgotamento do contingente de trabalhadores disponíveis teve de ser compensado pela incorporação crescente de mulheres ao mercado de trabalho, pela migração interna (da zona rural para as cidades) e até mesmo pela migração estrangeira (HOBSBAWM, 1995, p. 262). Além disso, o crescimento do emprego foi acompanhado por contínuos aumentos de salário real, obtidos, em grande medida, por meio das profundas transformações na própria relação salarial. Estas transformações incluíram o estabelecimento de salários mínimos atrelados aos níveis de preços e produtividade da empresa, instituição de práticas e procedimentos de negociação coletiva e crescimento dos salários indiretos (benefícios sociais) (BIHR, 1998, p. 43). O resultado, em muitos países, foi uma melhoria geral nas condições de vida da classe trabalhadora e a ampliação do seu poder de compra, criando exatamente aquela compatibilidade entre produção ampliada e a necessidade de consumo crescente não conseguida no período anterior: à produção em massa um correspondente consumo em massa.7 7 Esse aumento na capacidade de consumo estendia-se, muitas vezes, inclusive para os bens de luxo: “[...] o compromisso político de governos com o pleno emprego e – em menor medida – com a redução da desigualdade econômica, isto é, um compromisso com a seguridade social e previdenciária, pela primeira vez proporcionou um mercado de consumo de massa para bens de luxo que agora podiam passar a ser aceitos como necessida- 79 É claro que a realização de lucros altos durante esse período foi essencial à manutenção desse arranjo. Como mostram os dados apresentados por Brenner (2003, p. 46), a taxa média de lucro líquido do grupo de países conhecido como G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) foi de 26,2% durante o período 1950-1970, em comparação com a taxa de 15,7% no período posterior (1970-1973). Ou seja, o aumento dos salários não chegou a comprometer os lucros presentes ou afetar as perspectivas futuras de lucros, pois era com base nessas expectativas que se efetuavam os “enormes investimentos, sem os quais o espetacular crescimento da produtividade da mão-de-obra da Era de Ouro não poderia ter ocorrido” (HOBSBAWM, 1995, p. 276).8 Vale notar, no entanto, que as condições do problema são relativamente mais complexas. Apesar de depender, em parte, da manutenção de taxas elevadas de lucro, as possibilidades de expansão da economia capitalista não podem ser concebidas exclusivamente em termos de uma única determinação. Partindo dos motivos anteriormente explicitados e da análise desenvolvida por Marx, especialmente nos Livros II e III de O capital, percebemos que a capacidade de expansão do capital depende de inúmeros outros fatores. Voltaremos a tratar mais detalhadamente desse assunto adiante, em Apêndice deste capítulo. Por ora, basta ressaltar que, assim como o progresso do capital na “Era de Ouro” não pode ser explicado somente pela taxa de lucro, também a crise da década de 1970 não pode ser entendida somente por sua queda, como será mostrado na próxima seção. 8 80 des. Quanto mais pobres as pessoas, maior a proporção da renda que têm de gastar em produtos essenciais, como comida (uma observação sensata conhecida como ‘Lei de Engel’). Na década de 1930, mesmo nos ricos Estados Unidos, cerca de um terço dos gastos domésticos ainda se destinava à comida, mas no início da década de 1980 esse índice era de apenas 13%. O resto ficava disponível para outras despesas. A Era de Ouro democratizou o mercado” (HOBSBAWM, 1995, p. 264). O historiador Robert Brenner (2003, p. 47) chega mesmo a afirmar que “[...] a chave para o longo boom pós-guerra do final da década de 1940 até inícios da de 1970 foi a trajetória da taxa de lucro. O que propiciou a expansão econômica sem precedentes do período pós-guerra foi a capacidade das economias capitalistas avançadas de realizarem e sustentarem altas taxas de lucro.” Seção 3.2 A crise dos anos 1970 e a contrarrevolução conservadora Findada a Segunda Guerra Mundial, a economia capitalista passa por um grande ciclo expansivo fundado sobre um arranjo histórico peculiar que impediu, por certo período, a manifestação de determinadas contradições e tendências características desse modo de produção. Apenas para recordar, estas contradições, que tornam as crises inerentes à dinâmica de funcionamento do capitalismo, podem ser rapidamente apreendidas a partir da já mencionada lei geral da acumulação capitalista. Vimos ali que, ao mesmo tempo que produz riqueza em escala crescente, a própria dinâmica capitalista cria obstáculos à realização dessa riqueza, à medida que priva parcela significativa da população da capacidade de consumo. No período tomado aqui como objeto de estudo, no entanto, a capacidade de realização dos valores produzidos foi garantida pela transferência de parte do excedente para a classe trabalhadora (na forma de salários diretos e indiretos), sem que isso comprometesse a lucratividade e as condições de valorização do valor. Nos termos de Coggiola: Nos primeiros 20 anos de pós-guerra, apesar de uma forte expansão da produção, a reconstituição contínua do exército de reserva industrial permitiu a manutenção de uma taxa de mais-valia bastante elevada. Os salários reais aumentaram com mais lentidão que a produtividade física. Os lucros seguiam sendo elevados apesar do aumento da composição orgânica do capital. Tudo parecia caminhar no melhor dos mundos. (COGGIOLA, 2002, p. 385). Como dito anteriormente, não era difícil encontrar os que, durante os “anos gloriosos”, chegaram a pensar que aquele estado de coisas seria uma tendência estrutural do capitalismo, bastando, para tanto, que fosse garantida a aplicação das políticas “corretas”. Economistas de orientação keynesiana e 81 tomadores de decisão em geral vangloriavam-se por finalmente se haver encontrado a forma adequada de gerenciamento da sociedade do capital. Mas, não tardou muito, a história encarregou-se de demonstrar o equívoco dessa interpretação. A partir da década de 1970, a economia mundial entra inegavelmente em uma longa fase de recessão e, na tentativa de oferecer respostas à crise, observa-se uma série de reorientações importantes, tanto no plano político-ideológico quanto na estrutura produtiva. Assim como no caso da “Era de Ouro”, acredita-se aqui que essas reorientações influenciaram a forma de manifestação das principais tendências da dinâmica capitalista e não podem ser entendidas sem que se faça uma referência aos motivos que conduziram a economia a esse longo período de recessão. Em retrospectiva, é possível afirmar que os primeiros sinais de crise já começam a manifestar-se em meados da década de 1960, mas “até a década de 1980 não estava claro como as fundações da Era de Ouro haviam desmoronado irrecuperavelmente” (HOBSBAWM, 1995, p. 393 et seq.). Durante certo período, não havia sinais claros de catástrofe, pois “o crescimento no mundo capitalista desenvolvido continuou, embora num ritmo visivelmente mais lento do que durante a Era de Ouro.” Como nos dados apresentados por Brenner (2003, p. 93): a média de crescimento do produto interno bruto (PIB) no “grupo dos sete” passou de 5,1%, no intervalo entre 19601969, para 3,6% em 1969-1979, 3,0% em 1979-1990 e 2,5% em 1990-1995. Parecia, portanto, apenas uma onda de leves recessões temporárias, nada comparáveis à Grande Depressão dos anos 1930, decorrentes, em grande medida, da inusitada conjunção de fatores exógenos e inesperados. Ou seja, para os mais otimistas, a economia havia saído dos trilhos devido ao “incomum acúmulo de perturbações infelizes, sem probabilidade de se repetir na mesma escala, cujo impacto foi agravado por alguns erros inevitáveis” (MCCRACKEN, 1977, p. 14). E a mais mencionada das “perturbações infelizes”, que normalmente ocupa papel de destaque nas explicações sobre a crise, foi, sem 82 dúvidas, a elevação no preço do barril de petróleo, que passou de aproximadamente US$ 3,5 para US$ 11,5 em 1973-1974. É claro que não duvidamos aqui do importante papel desempenhado pelo aumento no preço do petróleo no aprofundamento da crise (e, para compreender este ponto, basta lembrar que durante a “Era de Ouro” houve uma explosão no uso do petróleo e derivados e que este representa ainda hoje um dos principais componentes da matriz energética de vários países). Mais do que o aumento nos preços de um produto específico, esse período também foi marcado por uma inflação generalizada que, quando combinada com o baixo crescimento do produto, produziu um fenômeno que se tornou quase uma marca registrada dessa crise: a estagflação.9 No entanto, diferentemente das explicações que privilegiam os choques exógenos, entendemos que a crise é resultado do desenvolvimento das próprias tensões internas ao modo de produção capitalista, do desenvolvimento de suas próprias contradições; “não resulta da negação das tendências do período de expansão, mas do seu desenvolvimento exacerbado” (COGGIOLA, 2002, p. 385). Como indicado anteriormente, essas contradições acabam gerando uma produção excessiva de capital ante as suas possibilidades de valorização, e é por esse motivo que as “duas formas clássicas de manifestação desse fenômeno no capitalismo” são “reduções das taxas de lucro e superacumulação/superprodução de capital” (CARCANHOLO, 2010, p. 2). Vale notar que não são poucas as teorias, dentro e fora da tradição marxista, que enxergam a queda na lucratividade e a 9 Como mostram os dados sistematizados por Carcanholo (2010, p. 3): “A inflação mundial média, medida pelos preços ao consumidor, é de 10% ao ano no período 1973-1979 e 8,1% no período 1979-1984, sendo que em 1950-1973 havia sido de apenas 4%.” Se observarmos atentamente as médias anuais de crescimento dos preços e do produto nos Estados Unidos e Reino Unido, por exemplo, vemos ainda que os períodos de inflação mais acentuada coincidiram com os períodos de queda mais acentuada no produto: 1974-1975 e 1980-1981 (BANCO MUNDIAL, 2010). Analisando também a relação entre inflação e desemprego, percebemos que, para o período 1961-1987, tanto nos Estados Unidos quanto nos países da Europa, os anos de aumentos mais significativos da inflação foram precisamente os anos de aumento mais significativo do desemprego (HARVEY, 2005, p. 141). 83 superprodução como manifestações mais gerais da incapacidade do capitalismo em manter o padrão de acumulação responsável pelo crescimento do período anterior.10 Por vezes, no entanto, parte dessas teorias acaba, em suas explicações sobre a dinâmica capitalista, reduzindo a complexidade do problema ao movimento da taxa de lucro, especialmente em momentos de crise. Uma análise mais detalhada do papel efetivo da taxa de lucro, bem como dos diversos outros fatores que podem influenciar as condições de acumulação, será realizada adiante, em Apêndice. Por ora, interessa-nos particularmente fazer dois registros. Em primeiro lugar, a despeito das diferenças pontuais, concorda-se no geral que os primeiros sinais da crise começam a manifestar-se antes mesmo de 1973 (o que nos permite com alguma facilidade descaracterizar as explicações que tomam o choque do petróleo como ponto de partida). Em segundo lugar, ainda que haja divergências sobre a profundidade das reorientações experimentadas após a crise e a dimensão de suas consequências, não há dúvidas de que as reorientações existiram e geraram impactos sobre a dinâmica capitalista. À medida que a crise aparecia fundamentalmente como uma crise do “compromisso fordista-keynesiano”, testemunha-se o declínio do keynesianismo e a ascensão do neoliberalismo e a substituição dos métodos de trabalho fordistas por métodos mais flexíveis. Como afirma Carcanholo (2008a, p. 252), “reestruturação produtiva e neoliberalismo são duas interfaces de uma mesma resposta do capital à sua própria crise nos anos 1970” e, em linhas gerais, essas duas reorientações atuaram da seguinte maneira: [...] enquanto o processo de reestruturação produtiva se encarregou da rotação do capital, o neoliberalismo, como aspecto político, ideológico e econômico, teve o papel de garantir as condições de lucratividade interna 10 84 No caso específico da crise dos anos 1970, destacam-se, por exemplo, aquelas interpretações veiculadas pela Escola da Regulação (GLYN et al., 1990), por Brenner (1999; 2003), Arrighi (1996), Harvey (2005; 2010), Antunes (2003), entre outros. Um apanhado crítico de algumas dessas teorias sobre o mundo contemporâneo pode ser visto em Postone (2008). (desregulamentação e flexibilização dos mercados – principalmente o de trabalho) e externa (pressão por desregulamentação e abertura dos mercados comerciais e financeiros). (CARCANHOLO, 2008a, p. 252). No que tange às mudanças no plano político-ideológico, é preciso deixar claro de antemão que o neoliberalismo surge, ainda no imediato pós-guerra, como reação teórica e política contra o Estado intervencionista (seja em sua versão social-democrata ou “comunista”).11 Mas como as aproximadamente três décadas da “Era de Ouro” não ofereceram condições favoráveis à disseminação desses ideais (afinal de contas, o capitalismo passava por uma fase de auge sem precedentes, tornando muito pouco críveis as advertências neoliberais), “esse movimento permaneceu à margem tanto da política, quanto da influência acadêmica até os conturbados anos da década de 1970” (HARVEY, 2008, p. 31). De acordo com o argumento neoliberal, as raízes da crise estavam evidentemente [...] localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de maneira geral, no movimento operário, que havia corroído as bases da acumulação capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. (ANDERSON, 1995, p. 10). Para recompor as condições de acumulação, seria necessário, portanto, reverter este quadro, principalmente através da implementação de reformas “pró-mercado”. Sobretudo era necessário criar um ambiente favorável aos investimentos e à 11 Vale notar que este movimento foi formado, inicialmente, por um grupo seleto de economistas, historiadores e filósofos, defensores fervorosos do liberalismo, que se agruparam em torno de Friedrich von Hayek para criar a Sociedade Mont Pèlerin. O nome do grupo é uma referência ao local na Suíça onde ocorreu a primeira reunião (em 1947), e entre os mais notáveis membros destacam-se Ludwig von Mises, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Michael Polanyi, entre outros. 85 lucratividade do setor privado através da estabilização da economia, do saneamento das contas públicas (por meio de corte de impostos e gastos, privatizações etc.) e das já mencionadas flexibilização do mercado de trabalho, abertura comercial e desregulamentação e liberalização do mercado financeiro. Diante da crise, portanto, os neoliberais viram não apenas o que julgavam ser a comprovação de suas profecias, mas também encontraram terreno fértil para a disseminação de suas ideias e práticas. Como afirma explicitamente Milton Friedman, definindo, ainda em 1962, as linhas gerais da agenda neoconservadora no seu consagrado Capitalismo e liberdade: Somente uma crise – atual ou previsível – provoca uma real mudança. Quando ocorre tal crise, as decisões tomadas dependem das ideias existentes no momento. Esta, creio eu, é nossa função fundamental: desenvolver alternativas para os programas existentes, conservá-las vivas e disponíveis, até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável. (FRIEDMAN, 1988, p. 7). Segundo os registros de Naomi Klein (2008), assim poderia se resumir quase toda a história de implementação do receituário neoliberal nas mais distintas e distantes regiões do globo ao longo das últimas décadas. Como comprovam inúmeras experiências posteriores à crise dos 1970, a perspectiva neoliberal encara os momentos de crise (inclusive as grandes catástrofes) como oportunidades para atacar a esfera pública e impor as reformas pró-mercado. Assim, argumenta a autora, enquanto “algumas pessoas costumam estocar alimentos enlatados e água para enfrentar grandes desastres, os seguidores de Friedman (1988, p. 16 et seq.) estocam ideias em defesa do livre mercado”. Perante a instalação de uma crise, “era essencial agir rapidamente, impondo mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar à ‘tirania do status quo’”. É precisamente essa tática que Klein denomina doutrina do choque. 86 Ainda que os países latino-americanos tenham oferecido, durante os anos 1970, os primeiros “laboratórios” para a aplicação dessa doutrina,12 a efetiva consagração do programa neoliberal demoraria aproximadamente uma década e não pode ser compreendida sem que se faça referência a ao menos três eventos significativos. O primeiro foi a eleição quase simultânea de dois governos declaradamente empenhados em pôr em prática o programa neoliberal, em duas grandes potências mundiais: Reino Unido e Estados Unidos. De fato, as vitórias de Margareth Thatcher, em 1979, e de Ronald Reagan, no ano seguinte, cumpriram um papel fundamental na penetração do neoliberalismo na América do Norte e em quase toda a Europa ocidental. Como afirma Anderson (1995, p. 12), “os anos 1980 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da ideologia neoliberal nessa região do capitalismo avançado”. O segundo evento digno de nota, particularmente importante para compreender a consolidação do neoliberalismo nas regiões “menos afortunadas”, foi a construção, no final dos anos 1980, daquilo que ficou conhecido como Consenso de Washington. Após o fracasso das experiências neoliberais nos países da América Latina (que ainda não haviam conseguido conter o processo inflacionário e estavam mergulhados em gigantescas dívidas externas), membros dos organismos multilaterais, funcionários do governo americano e economistas desses países reuniram-se para discutir e redefinir os rumos de sua estratégia. Como resultado dessa conferência, o economista John Williamson (1990) apresenta, de maneira bastante didática, uma lista com dez instrumentos de política econômica considerados indispensáveis 12 Entre as primeiras experiências de implementação do receituário neoliberal na América Latina, destacam-se particularmente os casos chileno e boliviano. O primeiro é bastante emblemático não apenas pelo pioneirismo, mas também pelo fato de comprovar que “a democracia em si mesma – como explicava incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do neoliberalismo” (ANDERSON, 1995, p. 19 e 20 et seq.). O segundo, por sua vez, nos mostra que “há um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas neoliberais das mais drásticas. Este equivalente é a hiperinflação.” Para mais informações sobre estas experiências, conferir Klein (2008). 87 à saúde daquelas economias e que, como disse o autor alguns anos depois, constituem “o núcleo comum de sabedoria aceito por todos os economistas sérios” (WILLIAMSON, 1994, p. 18). A partir de então, os organismos multilaterais (especialmente FMI e Banco Mundial) são explicitamente transformados em “centros de propagação de implementação do ‘fundamentalismo do livre mercado’ e da ortodoxia neoliberal”, (HARVEY, 2008, p. 38) oficialmente colonizados pela Escola de Chicago. Ou seja, aquelas instituições que haviam sido criadas como parte do acordo de Bretton Woods, baseadas na convicção de que a regulação da economia deveria ir além do plano nacional, condicionavam agora a concessão de auxílio financeiro à aplicação das reformas pró-mercado, ampliando significativamente o poder de expansão do receituário neoliberal, não apenas na América Latina, mas também sobre o continente africano.13 Como sintetiza Klein: Friedman pode ter sido contrário às duas instituições, em termos filosóficos, mas na prática, não havia organizações mais bem posicionadas para implementar sua teoria das crises. Quando os países mergulharam em graves desequilíbrios nos anos 1980, não havia a quem recorrer a não ser ao Banco Mundial e ao FMI. Ao chegarem lá, esses países deram de cara com o muro de ortodoxia dos Garotos de Chicago, que tinham sido treinados para encarar aquelas catástrofes econômicas não como problemas a serem resolvidos, mas como oportunidades preciosas a serem aproveitadas para expandir as fronteiras do livre mercado. Agora, o oportunismo das crises estava embasando a lógica das instituições financeiras mais poderosas do mundo. Isso representava uma traição fundamental de seus princípios fundadores. (KLEIN, 2008, p. 196). 13 88 “O princípio era simples: os países que estavam em crise precisavam desesperadamente de ajuda emergencial para estabilizar suas moedas. Quando a privatização e as políticas de livre-comércio são empacotadas junto com o socorro financeiro, os países têm pouca escolha além de aceitar o pacote completo” (KLEIN, 2008, p. 198). Por fim, mas não menos importante, destaca-se a sequência de eventos históricos que se inicia com a queda do Muro de Berlim, em 1989, e se encerra com a dissolução da União Soviética, em 1991, marcando o fim do socialismo real no Leste Europeu. Esse episódio é particularmente importante, em primeiro lugar, pois abriu um novo e promissor campo para a expansão da doutrina neoliberal.14 Como ressalta Anderson (1995), os novos arquitetos das economias pós-comunistas do Leste [...] eram e são seguidores convictos de Hayek e Friedman, com um menosprezo total pelo keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e, em geral, por todo modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra. (ANDERSON, 1995, p. 18 et seq.). Seguras de seus ideais, as novas lideranças realizaram reformas ainda mais amplas do que as feitas no Ocidente, fazendo com que se chegasse à conclusão de que “não há neoliberais mais intransigentes no mundo do que os ‘reformadores’ do Leste”. Além disso, embora de muitas formas as crises do Leste e do Oeste corressem paralelas e estivessem ligadas a uma única crise global, pode-se dizer que o impacto sobre a parcela capitalista e não capitalista do mundo foi significativamente diferente: enquanto, para os primeiros, a crise representava o triunfo do neoliberalismo sobre o keynesianismo, para os 14 Esse entusiasmo com as oportunidades abertas pelo fim do socialismo real pode ser vista, por exemplo, no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial publicado em 1996, inteiramente dedicado aos países que estavam, durante aquele período, “fazendo a transição do planejamento central [...] para a economia de mercado” (BANCO MUNDIAL, 1996: iii). Além de realizar um primeiro balanço dos resultados dessa transição, o relatório insiste no caráter inevitável e necessário das reformas, argumentando que, se os benefícios não foram sentidos de imediato, tratava-se de uma questão de tempo: os resultados finais seriam necessariamente positivos. Como afirmado explicitamente: “a clara lição das reformas executadas nos últimos anos é a de que, independentemente do seu ponto de partida, uma reforma decisiva e consistente dá bons resultados” (Ibid: 9). 89 segundos, parecia confirmar o triunfo do capitalismo (em sua versão liberal) sobre qualquer possibilidade de um projeto alternativo de sociedade.15 Não por acaso, é desse período a disseminação das teses conservadoras sobre o fim da história, que enxergavam na derrota do socialismo as condições para a eternização do capitalismo.16 A partir de então, pode-se dizer que, no plano político-ideológico, [...] o neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas. Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje. (ANDERSON, 1995, p. 18). As consequências desse predomínio sobre a dinâmica capitalista serão analisadas mais adiante. Por ora, vejamos como a ascensão do neoliberalismo combina-se com as transformações na estrutura produtiva. De acordo com a sistematização feita por Bihr (1998, p. 87), essa reestruturação envolveu a incorporação de novas tecnologias, novos métodos de organização do processo de trabalho, novos tipos de contrato de trabalho e, consequentemente, novas formas de envolvimento e integração da força de trabalho Um interessante contraponto a essa perspectiva é apresentado, por exemplo, por Robert Kurz (1993). Partindo da análise do sistema mundial de produção de mercadorias em seu conjunto, sistema do qual os países do Leste eram parte constitutiva, Kurz entende que, ao contrário de marcar a vitória do capitalismo sobre o socialismo, a derrocada do Leste Europeu foi parte da própria crise do capitalismo em escala global, que se iniciou no Terceiro Mundo, atingiu de maneira avassaladora os países do Leste Europeu e, finalmente, penetrou no centro do “sistema mundial produtor de mercadorias”. Para mais informações sobre este argumento, conferir também Antunes (2006, p. 107). 16 Essa tese foi disseminada, sobretudo, a partir do trabalho de Francis Fukuyama, cujas ideias centrais foram apresentadas pela primeira vez, em 1989, em palestra proferida na Universidade de Chicago, e aprofundadas três anos depois no livro O fim da história e o último homem. 15 90 na atividade produtiva. Em seu conjunto, essas reestruturações deram origem a uma “nova ordem produtiva”, cujas características básicas seriam difusão, fluidez e flexibilidade. A primeira característica está relacionada à inversão do processo de concentração produtiva originado pelo fordismo que, depois de ultrapassado certo limite, ao contrário de garantir as economias de escala previstas, passou a gerar custos excedentes.17 Assim, assiste-se ao “enxugamento” das unidades produtivas e ao surgimento de fábricas mais difusas, que externalizam parte das funções produtivas e/ou administrativas, mantendo apenas uma “unidade central que coordena, planifica, organiza a produção de toda uma rede de unidades periféricas, que podem atingir o número de várias centenas, e até de vários milhares” (BIHR, 1998, p. 88).18 Por um lado, aproveitando a já mencionada flexibilização do mercado de trabalho e do desmantelamento do sistema de benefícios conquistados pela classe trabalhadora no período anterior, o esquema de “subcontratação” ou “terceirização” possibilita a utilização de formas precarizadas de trabalho, como, por exemplo, o trabalho em domicílio, o trabalho clandestino, o trabalho temporário, em tempo parcial etc. Como destaca Harvey (2005), Vale notar que a “inversão do processo de concentração” aqui mencionada não significa uma inversão da tendência à concentração de capital identificada por Marx e apresentada no capítulo anterior. Ao contrário, os processos de difusão, fluidez e flexibilização reforçaram, em conjunto, as tendências à concentração e centralização do capital, ainda que isso ocorra, por vezes, por meio da descentralização das operações. Sobre o tema conferir, por exemplo, Chesnais (1996). Também é importante ressaltar que esta “inversão” é apenas parcial, pois os processos de produção do tipo fordista continuaram a existir em determinados setores. 18 De acordo com Antunes (2003, p. 50; 54 e 55), este processo também ficou conhecido na literatura econômica como liofilização e, em termos quantitativos, pode ser apresentado da seguinte maneira: “enquanto na fábrica fordista aproximadamente 75% da produção era realizada no seu interior”, a nova fábrica difusa “é responsável por somente 25% da produção, tendência que vem se intensificando ainda mais. Essa última prioriza o que é central em sua especialidade do processo produtivo (a chamada ‘teoria do foco’) e transfere a ‘terceiros’ grande parte do que antes era produzido dentro de seu espaço produtivo”. 17 91 a subcontratação organizada abre oportunidades para a formação de pequenos negócios e, em alguns casos, permite que sistemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista [...] revivam e floresçam, mas agora como peças centrais, e não mais apêndices do sistema produtivo. (HARVEY, 2005, p. 145).19 E esse, evidentemente, é um processo que se retroalimenta: ao mesmo tempo que “[...] os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados e subempregados) para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis”, a “redução do emprego regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado” diminuiu significativamente a capacidade de mobilização e resistência da classe trabalhadora (HARVEY, 2005, p. 143 et seq.). Por outro lado, beneficiando-se do processo de abertura comercial e financeira e da rápida redução dos custos de transporte e comunicação, a “indústria, que tradicionalmente dependia de restrições locais no tocante a fontes de matérias-primas e a mercados, pôde se tornar muito mais independente”. Com isso, algumas das atividades “externalizadas” puderam ser transferidas para as regiões onde as legislações são mais “frouxas” e a mão de obra mais barata, criando condições ainda mais favoráveis à acumulação capitalista. De acordo com o argumento desenvolvido por Chesnais (1996), a intensificação desse processo marcaria uma fase específica da internacionalização do capital, chamada por ele de mundialização. Nessa fase, o investimento direto externo teria suplantado o comércio exterior como vetor principal do processo de internacionalização, aumentando significativamente a “importância do intercâmbio 19 92 Segundo as estatísticas apresentados por Harvey (2005, p. 144), “na Inglaterra, os ‘trabalhadores flexíveis’ aumentaram em 16 por cento, alcançando 8,1 milhões entre 1981 e 1985, enquanto os empregos permanentes caíram em 6 por cento, ficando em 15,6 milhões. Mais ou menos no mesmo período, cerca de um terço dos dez milhões de novos empregos criados nos EUA estavam na categoria ‘temporário’.” intracorporativo (40% do comércio dos Estados Unidos e do Japão), e sobretudo do nível dos suprimentos internacionais em produtos semielaborados e produtos acabados, organizados com base em terceirização internacional” (CHESNAIS, 1996, p. 26). Oferecendo um contraponto à perspectiva veiculada pelos ideólogos da globalização, que acreditam que esse processo é tanto inevitável quanto bom, Chesnais argumenta ainda que essas mudanças na forma de internacionalização são fruto das próprias políticas de abertura comercial, liberalização e desregulamentação financeira e das transformações no modo predominante de organização do trabalho, e geram consequências trágicas sobre a classe trabalhadora, especialmente dos países pobres, como veremos adiante. O segundo processo, de aumento da fluidez, está ligado ao crescimento da “gestão informatizada dos fluxos produtivos”, cujo objetivo central é “otimizar a combinação, no espaço e no tempo, das matérias-primas, das energias, dos equipamentos, dos homens, da informação etc., reduzindo ao mínimo os tempos mortos no encadeamento das operações produtivas”. Isso assegura ao capital, “além de novos ganhos de intensidade e de produtividade, economia de capital constante (tanto fixo quanto circulante) por unidade produzida” (BIHR, 1998, p. 89 et seq.). Mas a introdução desse tipo de tecnologia avançada depende, em parte, também de mudanças significativas na organização do trabalho, com o “abandono da organização do trabalho em postos fixos e especializados”. Assim, em lugar da “relação operário especializado/máquina especializada, célula da organização fordista”, predomina na fábrica fluida “a relação equipe polivalente/sistema de máquinas automatizadas (e, portanto, também polivalentes)”, em que cada trabalhador deve ser capaz de intervir em várias máquinas diferentes ao mesmo tempo. As “responsabilidades de elaboração e controle de qualidade da produção, anteriormente realizadas pela gerência científica” são agora “interiorizadas na própria ação dos trabalhadores” (ANTUNES, 2003, p. 56). Como ressalta Antunes (2003, p. 48; 52; 56), à medida que este tipo de organização exige um “trabalhador mais qualificado, 93 participativo, polivalente, dotado de maior realização no espaço de trabalho”, algumas leituras mais otimistas chegaram a encarar esta como uma superação da própria contradição capital-trabalho. Esse envolvimento maior do trabalhador no processo de trabalho, no entanto, “preserva, na essência, as condições do trabalho alienado e estranhado”. Mais do que isso, o processo de produção fluido vem acompanhado de uma “intensificação da exploração do trabalho, quer pelo fato de os operários trabalharem simultaneamente com várias máquinas diversificadas, quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva”. Por fim, assiste-se ao processo de flexibilização da unidade produtiva, com a substituição das economias de escala (grande marca da produção fordista de massa) pelas economias de escopo: produção de uma variedade crescente de bens em uma mesma linha, a preços baixos e em pequenos lotes, ajustáveis às variações na demanda, mais flutuante e diversificada (HARVEY, 2005, p. 148). Essa maior flexibilidade dependia, em grande medida, da própria existência de difusão que, como visto anteriormente, está associada ao “afrouxamento das condições jurídicas que regem contrato de trabalho, implicando especialmente a possibilidade de se recorrer facilmente ao trabalho em tempo parcial e ao trabalho temporário” (BIHR, 1998, p. 92). Como reforça Bihr (1998, p. 92): “aqui, flexibilidade rima diretamente com instabilidade”. Além disso, o sucesso desse tipo de produção dependia da organização mais flexível do trabalho, associada diretamente ao aumento da fluidez também mencionado anteriormente. Por fim, a utilização de métodos mais flexíveis esteve significativamente articulada às próprias mudanças no mercado consumidor. Como destaca Harvey: [...] a acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética 94 pós-moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais. (HARVEY, 2005, p. 148). Em linhas gerais, muitas dessas características da “nova ordem produtiva” são encaradas como assimilação e incorporação no Ocidente de características próprias ao modelo japonês de produção (também conhecido como toyotismo).20 Em seu conjunto, essas mudanças permitiram, em certa medida, recompor as condições de acumulação capitalista, agora apoiada fundamentalmente na “flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, [...] no surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional” (HARVEY, 2005, p. 140). De fato, através de todos esses mecanismos, neoliberalismo e reestruturação produtiva criaram as condições para o surgimento de uma combinação particular das estratégias de extração de mais-valia absoluta e relativa, fosse pelo aumento da jornada de trabalho, da intensidade, da produtividade (obtidos através das mudanças tecnológicas ou organizacionais), fosse pelo rebaixamento do valor da força de trabalho ou pela transferência do capital para regiões onde os salários são mais baixos (HARVEY, 2005, p. 174 e 175). Aliado a isso, o tempo de rotação do capital – uma das variáveis-chave da lucratividade capitalista, como pode ser visto em mais detalhes no Apêndice – foi reduzido substancialmente. Importante também para a acumulação de capital foi o crescimento da esfera financeira, absorvendo grande parte do excesso de capital incapaz de se valorizar através da produção e realização de mercadorias. Por um lado, pode-se dizer que este 20 Como ressalta Antunes (2003, p. 57), “o processo de ocidentalização do toyotismo mescla, portanto, elementos presentes no Japão com práticas existentes nos novos países receptores, decorrendo daí um processo diferenciado, particularizado e mesmo singularizado de adaptação desse receituário.” 95 processo foi funcional para a acumulação de capital, à medida que possibilitou uma aceleração das atividades produtivas, permitindo a maior acumulação global de capital, a redução do tempo de rotação e, portanto, o aumento da taxa de lucro por período (CARCANHOLO, 2008a, p. 260). Por outro lado, no entanto, a expansão desenfreada de sua lógica gerou uma série de disfuncionalidades e aumento da instabilidade, que explicam em parte, por exemplo, o fato de a recomposição nas condições de acumulação não ter sido acompanhada por uma recuperação no ritmo de crescimento das economias. Como ressalta Anderson (1995, p. 16), “a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a inversão especulativa do que produtiva”, de modo que, [...] apesar de todas as novas condições institucionais criadas em favor do capital – a taxa de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de equipamentos produtivos, não apenas não cresceu durante os anos 80, como caiu em relação a seus níveis – já médios – dos anos 70. No conjunto dos países de capitalismo avançado, as cifras são de um incremento anual de 5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos anos 1980. Uma curva absolutamente descendente. (ANDERSON, 1995, p. 15 e 16). Nesse quesito, portanto, os resultados foram particularmente desanimadores. Como ressalta Anderson (1995, p. 15), “no final das contas, todas essas medidas haviam sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a reanimação do capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como existiam antes da crise dos anos 1970”. No entanto, entre os anos 1970 e 1980 não houve nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países da OCDE [Organização para Cooperação e 96 Desenvolvimento Econômico]. Dos ritmos apresentados durante o longo auge, nos anos 1950 e 1960, resta somente uma lembrança distante. (ANDERSON, 1995, p. 15). No que diz respeito aos impactos sobre a classe trabalhadora, pode-se dizer que os resultados são efetivamente nefastos e não podem ser de modo algum desprezados. Em primeiro lugar, destacam-se as já mencionadas transformações na relação salarial e suas principais consequências: [...] instabilidade de emprego e, portanto, de renda; desregulamentação mais ou menos forçada de suas condições jurídicas de emprego e de trabalho (em relação às normas legais ou convencionais); conquistas e direitos sociais em regressão; com frequência, ausência de qualquer benefício convencional; a maior parte do tempo, ausência de qualquer proteção e expressão sindicais. (BIHR, 1998, p. 86) Além disso, como ressalta Hobsbawm (1995, p. 403), “as décadas de crise começaram a dispensar mão de obra em ritmo espetacular, mesmo nas indústrias visivelmente em expansão”, de forma que o aumento do desemprego, a princípio visto como uma questão conjuntural, “anomalia passageira”, rapidamente se mostrou situação estrutural. De acordo com os dados disponíveis em Brenner (2003, p. 93), a taxa média de desemprego no “grupo dos sete” passou de 3,1%, no período 1960-1973, para 4,9%, em 1973-1979, e 6,8%, em 1979-1990. Tomando a média dos países da Europa, a situação se mostra ainda mais crítica, com a taxa de desemprego subindo de 2,3%, em 1960-69, para 4,6%, em 1969-1979, e 9,1%, em 1979-1990. Em uma sociedade capitalista, fundada no trabalho assalariado, essas mudanças no “mundo do trabalho” vêm acompanhadas de uma inegável e persistente deterioração nas condições de vida da população, que se expressa diretamente em aumento da desigualdade de renda, pobreza, “exclusão social”, deterioração do meio ambiente etc., fenômenos estes 97 reconhecidos, em alguma medida, dentro e fora do âmbito acadêmico, por diversos comentadores, dos mais aos menos críticos.21 Conforme entendemos aqui, tais fenômenos são um reflexo das próprias contradições inerentes ao desenvolvimento capitalista, apresentadas no capítulo anterior e sintetizadas no enunciado da lei geral. Ou seja, enquanto durante a “Era de Ouro” a manifestação empírica de tendências gerais foi obstada por determinações particulares (discutidas ao longo da primeira seção), mudanças nas próprias condições particulares no período posterior aos anos 1970 abriram o caminho para que essas mesmas tendências gerais predominassem na produção de eventos. Seção 3.3 O desenvolvimento capitalista e suas particularidades: considerações finais A partir do exposto acima, podemos extrair algumas conclusões importantes para o argumento do presente estudo. Em primeiro lugar, observamos que, se as tendências gerais continuam em ação (ainda que atravessadas por arranjos sociais diversos), recompor a dinâmica do desenvolvimento capitalista na transição entre períodos distintos significa recompor as mudanças, mas também as permanências, demonstrando como o capital modifica-se num determinado momento para preservar sua lógica geral. Nos termos sugeridos por Postone (2008, p. 94 et seq.), trata-se de compreender que a própria dinâmica capitalista produz variadas configurações históricas, que o capitalismo “não pode ser identificado completamente com nenhuma das suas configurações” e que a “emergência de 21 98 No caso específico do pensamento conservador, a preocupação crescente com as chamadas “mazelas sociais” se evidencia, por exemplo, na proliferação de estudos e relatórios publicados pelos organismos multilaterais, preocupados em encontrar a melhor estratégia para “atacar a pobreza” e minimizar os crescentes danos causados ao meio ambiente, respeitando o status quo. Como ressalta Medeiros (2007, p. 179), “não seria exagero, de fato, retratar a circulação de estudos econômicos do ‘bem-estar’ social entre instituições e autores assumidamente conservadores no último quarto de século como uma febre compulsiva, uma verdadeira fixação com o altruísmo”. uma nova configuração [...] envolve um processo de mudança (nova configuração) e de continuidade (capitalismo)”. Mais do que isso, a “dialética complexa, de mudança e reprodução, pela qual os elementos centrais do capitalismo produzem mudança e, ao mesmo tempo, reproduzem-se” baseia-se “na distinção entre superfície e estrutura profunda no capitalismo e torna acessível a possibilidade de um futuro para além do capital, mesmo ao reproduzir o núcleo básico do presente e, por meio disso, obstruir a realização do futuro”. Em segundo lugar, a análise aqui sugerida nos permite afirmar, mais uma vez, que estudar o desenvolvimento capitalista, a partir de uma perspectiva marxista, significa (1) ter consciência da processualidade que caracteriza esse sistema, (2) apreender as leis gerais de movimento da sociedade e (3) conhecer as condições concretas de manifestação de tais leis. Nesse sentido, independentemente das consequências dessas leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestáveis ou adoráveis), o que importa para a análise do desenvolvimento em si é saber se, na passagem de um período a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos adequado à lógica interna do capital. Dentro dessa perspectiva, portanto, podemos dizer que o capital é tanto mais desenvolvido, quanto mais ampla a sua atuação. Ou seja, por mais contraintuitivo que pareça, o fato de o capital ampliar seu alcance territorial (tendência à formação do mercado mundial), penetrar nas mais distintas esferas da vida social (como, por exemplo, as artes, esportes, relações familiares, de afeto etc.) e atuar em um número maior de setores (como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado, nos quais a lucratividade é relativamente diminuta e o retorno é mais demorado), imprimindo, em todos esses casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o capital se desenvolveu (MARX, 2011, p. 438). Por fim, temos clareza de que essa não é a forma como as teorias do desenvolvimento analisam o capitalismo. Em lugar do desenvolvimento em si da sociedade, tais teorias em geral se atêm a determinadas expressões empíricas, utilizadas como 99 critério para julgar o desenvolvimento capitalista como bom ou ruim. No primeiro caso, de julgamento positivo, as teorias aparecem não raramente como apologia do capital. No segundo, de julgamento negativo, as teorias soam como uma denúncia sobre o caráter desumano do capital (esquecendo, por vezes, que o capitalismo não tem sentido humano!). Como as teorias não são inócuas, mas, ao contrário, são formas refinadas de conceber a vida humana, formas que movem a prática social, que têm efeitos práticos, a questão que se coloca é: como e por que tais teorias adquiriram ou perderam legitimidade? É precisamente esta a pergunta que pretendemos responder ao longo da próxima parte que compõe o presente estudo. 100 Apêndice III Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista Neste terceiro e último apêndice da Parte I, esperamos acrescentar alguns elementos à análise da dinâmica do desenvolvimento capitalista, especialmente relacionados à sua complexidade. Como buscamos demonstrar ao longo do capítulo, o desenvolvimento capitalista é permeado por tendências particulares que influenciam a forma concreta de manifestação das leis gerais de movimento da sociedade. Assim, além das determinações gerais, em si complexas e por vezes contraditórias, os eventos causados por essas determinações dependem ainda de tendências particulares, fatores institucionais, história de cada local e cada época, tradições, costumes etc. De modo que tomar o desenvolvimento capitalista como objeto de estudo significa, em última instância, reconhecer a complexidade de sua dinâmica. Essa complexidade, no entanto, nem sempre é reconhecida e corretamente trabalhada, não sendo difícil encontrar aqueles que, independentemente de orientação político-ideológica, analisam o desenvolvimento capitalista de maneira unidimensional. Ao longo da próxima parte que compõe o presente livro, teremos a oportunidade de verificar como esse tipo de equívoco está presente em grande parte das teorias do desenvolvimento. Por ora, interessa-nos particularmente registrar o equívoco cometido por aquelas teorias que tentam explicar a dinâmica capitalista, seja em seus momentos de auge ou declínio, exclusivamente a partir da taxa de lucro. Não pretendemos, com isso, negar a relevância da categoria. Como se sabe, a taxa de lucro é um importante indicador de rentabilidade, revelando o grau de valorização do capital em relação ao total antecipado, e de fato ocupa um lugar de destaque na determinação da dinâmica capitalista, centrada fundamentalmente na necessidade incessante de valorização do valor. No entanto, qualquer tentativa de explicar a capacidade de expansão do capital a partir de uma relação direta e exclusiva com a taxa de lucro é necessariamente reducionista. 101 A expansão do valor depende de inúmeros fatores, dos quais citaremos apenas alguns mais evidentes. Em primeiro lugar, é preciso lembrar, como advertido por Marx (2002, p. 657) ainda no Livro I de O capital, que o lucro é apenas uma fração da mais-valia e que a fragmentação da mais-valia em lucro, juros, ganhos comerciais, aluguéis, impostos etc. influencia as condições de desenvolvimento do capital. Essa relação entre lucro e mais-valia vai depender, entre outros fatores, da relação entre os diferentes capitalistas que exercem diferentes funções no conjunto da produção social (representantes do capital produtivo, capital mercantil, capital usurário, proprietários de terra etc.) e da relação desses capitalistas com o Estado, como explorado mais sistematicamente pelo autor ao longo do Livro III. Em segundo lugar, também devemos recordar que, além da taxa de lucro, importa para a dinâmica capitalista a sua massa. Dessa forma, assim como um decréscimo na taxa de mais-valia pode ser compensado pelo aumento na massa de mais-valia (possibilitado por uma expansão extensiva do capital que supere a lógica de acumulação intensiva), também um decréscimo na taxa de lucro pode ser compensado por um acréscimo na massa de lucro, bastando, para tanto, que o decréscimo relativo da parcela variável do capital total venha acompanhado de um acréscimo em termos absolutos (MARX, 1974, p. 219). Em terceiro lugar, além das massas de mais-valia e lucro produzidas por período de rotação, importa sua massa anual, isto é, o quanto um capital é capaz de gerar de lucro nos sucessivos períodos de rotação em que é empregado. Esse tempo de rotação do capital, por sua vez, depende tanto do tempo de produção (determinado por fatores organizacionais e tecnológicos) quanto do tempo de circulação (determinado por condições de oferta e demanda, pelo tamanho dos mercados, grau de desenvolvimento dos meios de comunicação, de transporte etc.). Assim, quanto maior a velocidade de rotação do capital, ou seja, quanto menor o tempo entre o adiantamento do capital em forma-dinheiro e seu retorno à figura primitiva, mais favoráveis as condições de acumulação (MARX, 2000, p. 337). 102 Por fim, além dos fatores “econômicos”, ligados fundamentalmente à produção e circulação, há ainda a influência de fatores “extraeconômicos” sobre a acumulação de capital, pois, como as determinações “econômicas” não existem fora do contexto social mais amplo, as tendências que lhes são próprias em meio a esse contexto necessariamente são atravessadas por determinações particulares e mesmo gerais não ligadas ao campo econômico propriamente dito. Assim, além da influência de determinações próprias à esfera econômica sobre as tendências e suas formas de manifestação, é preciso considerar que, apesar de Marx ter centrado as atenções nos processos de produção e circulação (abstração necessária para estudar uma sociedade cuja dinâmica emana da economia), o fato de a economia, no capitalismo, adquirir uma hipertrofia não significa que não possa ser decisivamente atravessada por determinações “extraeconômicas”. Partindo ainda da análise da questão tal como apresentada por Marx, é preciso deixar claro que, assim como a taxa de lucro não figura como a única categoria na explicação da dinâmica capitalista, a sua queda não deve, tampouco, ser imediatamente identificada com a necessidade de crises. Como Marx adverte diversas vezes ao longo do capítulo em que trata da tendência à queda na taxa de lucro, esta queda decorre do decréscimo relativo (e não absoluto!) da parte variável do capital em relação à parte constante. Isso significa que o número de trabalhadores que o capital emprega, ou seja, a massa absoluta de trabalho que mobiliza e por conseguinte a massa absoluta de trabalho excedente que suga, ou de mais-valia ou de lucro que produz podem portanto crescer, e crescer de maneira contínua, apesar da queda progressiva da taxa de lucro. Não só podem, como tendem a crescer: “no regime de produção capitalista, isto é mais que uma possibilidade, é uma necessidade, se abstraímos das flutuações temporárias” (MARX, 1974, p. 219). 103 Assim, tomando como exemplo o período posterior à crise dos anos 1970 e o comportamento decrescente da taxa de lucro nas últimas três ou quatro décadas (em contraponto às décadas posteriores à crise de 1929, marcadas pelo crescimento significativo da taxa média de lucro), poderíamos ser levados a concluir (não sem propósito) que o capitalismo vem passando por uma longa fase de estagnação. No entanto, considerando tudo o que foi dito até o momento, também temos motivos para acreditar que, apesar da possível compressão das taxas de lucro, as particularidades desse período (extensamente analisadas ao longo do capítulo terceiro) possibilitaram a redução significativa dos tempos de produção e circulação, aumentando a velocidade de rotação do capital e, portanto, a valorização anual por unidade de capital aplicado. Também não podemos ignorar os processos de concentração e centralização do capital e o papel desempenhado pelo crédito durante esse período. Enfim, não pretendemos transformar esta em uma lista interminável de particularidades ou realizar uma análise minuciosa de todas elas. Considerando os propósitos do presente estudo, esperamos apenas ter chamado a atenção para a complexidade da dinâmica capitalista, mostrando, a partir do estudo desses casos concretos, como, além da taxa de lucro, são inúmeros os fatores que podem influenciar o desenvolvimento capitalista e que as condições específicas desse desenvolvimento vão depender de determinações particulares, que favorecem algumas causas em detrimento de outras. 104 Parte II Teorias do desenvolvimento: por uma crítica ontológica Uma vez apresentado o sentido geral da teoria ontológica do desenvolvimento aqui defendida, dedicamos a Parte II do presente livro à inspeção crítica daquelas formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar um tratamento mais refinado à temática: as chamadas teorias do desenvolvimento. Ainda que, passando em revista a evolução do pensamento econômico, seja possível encontrar incontáveis referências à questão do desenvolvimento, tomamos como ponto de partida as formulações produzidas nos anos 1940/1950, momento no qual se registra o nascimento da Economia do Desenvolvimento como uma disciplina relativamente autônoma e especificamente dedicada à temática. Como retratado anteriormente,1 esse período, que coincide com o fim da Segunda Guerra Mundial, foi marcado por uma série de reorientações (especialmente no plano político-ideológico) e transformações significativas na configuração mundial (em virtude das inúmeras descolonizações e revoluções), que oferecem importante auxílio à compreensão das principais características daquele conjunto teórico. Um aspecto comumente ressaltado, e recorrentemente utilizado como critério para reunião dessas teorias em um mesmo grupo, diz respeito ao fato de compartilharem todas uma mesma preocupação: diante do reconhecimento de que os diferentes países sustentam trajetórias históricas de crescimento distintas, as teorias do desenvolvimento são identificadas como aquelas que se ocupam de explicar a existência dessas trajetórias particulares e sugerir possíveis soluções para os “menos favorecidos” (ou subdesenvolvidos). O aspecto geralmente utilizado para distinguir essas teorias, portanto, é a preocupação com a ausência de desenvolvimento, ou seja, com o subdesenvolvimento – termo que, como indica a própria etimologia da palavra, é normalmente 1 Ver Capítulo 3, Seção 1. 105 utilizado para designar uma condição de baixo grau (ou mesmo ausência) de desenvolvimento. Nesse período, passaram a ser chamadas de subdesenvolvidas aquelas regiões materialmente menos favorecidas (também conhecidas como Terceiro Mundo), que não foram capazes de acompanhar determinado padrão de desenvolvimento socioeconômico, atribuído aos países capitalistas pioneiros no processo de industrialização (também conhecidos como Primeiro Mundo). Apesar da diversidade de teorias que marca esse período de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento, algumas características gerais ainda podem ser identificadas. Em primeiro lugar, ainda que a origem do subdesenvolvimento fosse explicada de maneiras distintas, o desenvolvimento foi entendido predominantemente como sinônimo de crescimento do produto (per capita), associado à crença de que o crescimento do produto é também capaz de gerar melhores condições de vida para a população, em geral. Em segundo lugar, ainda que não tenha havido de fato um consenso em torno da estratégia para a superação do subdesenvolvimento (se capitaneada pelo Estado ou deixada ao sabor das forças do mercado), a ênfase recaía, também de forma predominante, na necessidade de industrialização das economias ainda agrárias ou mercantis. Naquele contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento surgem como formulação científica de compreensão e administração da dinâmica social capitalista, consolidando o argumento segundo o qual, somente através deste expediente, seria possível promover uma convergência (ou, no mínimo, uma aproximação) entre as trajetórias de crescimento das diferentes nações (ou conjunto de nações). Como se pretende argumentar, tratava-se de transformar o progresso presumidamente automático que caracteriza esta sociedade num projeto presumidamente dirigido (pelo Estado). Pode-se dizer que esta foi a visão dominante até meados dos anos 1970, quando, acompanhando a crise econômica que se espalhou pelo mundo durante essa década e a seguinte, a pretensão de dirigir o capitalismo entrou em colapso. Além 106 disso, assiste-se durante esse período à proliferação de denúncias sobre a devastação do meio ambiente, resultante do processo de industrialização e crescentes exigências de que os benefícios do aumento da riqueza sejam apropriados e distribuídos de modo mais equitativo. Nesse contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento vestem uma nova roupagem, geralmente associada à incorporação de novos critérios à definição do desenvolvimento e a redefinições estratégicas. Que se trata de novas teorias, no sentido de teorias diversas, não resta qualquer dúvida. Mas é possível e necessário indagar se essas teorias, a despeito de sua diversidade interna e com relação ao conjunto teórico que lhes antecede, constituem, de fato, uma novidade. Ou seja, se são novas teorias, no sentido de delinear de fato uma nova visão de desenvolvimento (isto é, uma imagem efetivamente diferente da sociedade em seu estágio “desenvolvido”). Na tentativa de responder a essas questões, a Parte II encontra-se dividida em quatro capítulos. Considerando a estreita relação entre as temáticas do desenvolvimento e do crescimento (especialmente no período que antecede a crise dos anos 1970), inicia-se, no quarto capítulo, com um panorama geral dos modelos de crescimento econômico no período pré1970. Para tanto, utiliza-se como ilustração as formulações pioneiras de Harrod e Domar, seguidas do contraponto sugerido por Solow. O exame das teorias “clássicas” do desenvolvimento, produzidas no mesmo período, encontra-se no quinto capítulo, que resgata algumas formulações (especialmente aquelas produzidas por Rosenstein-Rodan, Nurkse, Myrdal, Hirschman e Rostow) que tratam das regiões subdesenvolvidas, em geral; o sexto capítulo resgata, ainda, formulações que tratam especificamente do caso latino-americano (especialmente gestadas no âmbito da Cepal). O sétimo capítulo, por fim, busca apresentar as principais reorientações observadas no debate sobre desenvolvimento no período posterior à década de 1970. Em linhas gerais, espera-se ao longo desses capítulos reunir elementos comuns que permitam comprovar que tais teorias geralmente abordam a questão do desenvolvimento de forma 107 maniqueísta e positiva porque a temática do desenvolvimento é lida como algo necessariamente bom e o subdesenvolvimento (ou seja, a ausência de desenvolvimento) como algo necessariamente ruim, clivagem esta que pressupõe a eleição ad hoc de determinados critérios (crescimento da renda per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.); e positiva porque a temática do desenvolvimento sempre se refere às condições imediatamente dadas e às possibilidades que podem se pôr (também imediatamente) a partir dessas condições (a crítica das condições e das possibilidades não é realizada). 108 Capítulo 4 Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico: Harrod, Domar e Solow Quando observamos os desenvolvimentos teóricos mais significativos do imediato pós-guerra, salta aos olhos o grande interesse dos cientistas em geral pela temática do crescimento econômico. Isso não significa, evidentemente, que a busca pelos determinantes do crescimento da riqueza tenha sido um tema ausente em formulações teóricas de épocas anteriores. Se nos voltamos, por exemplo, para o período de nascimento da ciência econômica, observamos que os primeiros economistas clássicos estavam particularmente preocupados em compreender os principais mecanismos de funcionamento da sociedade emergente (capitalista), que conduziam ao nunca antes visto crescimento da riqueza e avanço das forças produtivas do trabalho. Foram os primeiros, mas não os únicos: passando em revista a evolução da análise econômica, encontramos inúmeras e distintas interpretações sobre os determinantes do crescimento da riqueza (como, por exemplo, aquelas oferecidas por Marshall, Keynes e Schumpeter), algumas das quais serviram posteriormente como fundamento para as teorias do crescimento e do desenvolvimento econômico, stricto sensu. No entanto, ainda que tenham buscado amparo em teorizações anteriores, as formulações sobre crescimento características do século XX estão mais intimamente associadas, pelos motivos já apresentados, à necessidade de explicar por que os diferentes países possuem trajetórias de crescimento distintas. Assim, ainda que não tenham sido formuladas com o propósito de explicar as particularidades por detrás do baixo crescimento do produto nos países pobres (ou subdesenvolvidos) – tarefa reservada para as teorias do desenvolvimento, analisadas nos próximos capítulos –, as teorias do crescimento também são capazes de oferecer uma resposta para a desigualdade de renda no plano mundial. Em segundo lugar, não podemos deixar de notar que as teorias do crescimento produzidas durante esse período ficaram 109 conhecidas pela formalização matemática, de inspiração neoclássica. Assim, mesmo quando buscam inspiração em fontes diversas (isto é, seja em Keynes ou em Ricardo), os modelos de crescimento pressupõem um modo particular de se fazer ciência, que se tornou hegemônico na ciência econômica apenas depois da chamada “revolução marginalista”, no final do século XIX. Por fim, observamos que, seguindo o mesmo critério de cientificidade, os modelos de crescimento pretendem ser um “corpo de conhecimento sistematizado referente ao que é”, e não um “corpo de conhecimento sistematizado relativo ao critério do que deveria ser e referido, portanto, ao ideal como algo distinto do atual” (KEYNES, 1999, p. 22). No entanto, mesmo que não tenham sido formulados com conteúdo explicitamente normativo, os modelos de crescimento podem ser (e são, geralmente) utilizados como base para prescrições e formulação de políticas econômicas. Na tentativa de oferecer um panorama geral dos modelos de crescimento econômico no período pré-1970, o presente capítulo encontra-se dividido em três seções. Na primeira, apresentamos as linhas gerais dos modelos pioneiros de Harrod e Domar, formulados em 1939 e 1946, respectivamente. Considerando que são ambos modelos de inspiração keynesiana, dedicamos a segunda seção à exposição do modelo de Solow, construído em 1956 como contraponto aos modelos anteriores e tomado aqui como representante dos modelos de inspiração neoclássica. Por fim, encerramos o capítulo com algumas considerações gerais sobre os modelos discutidos. Vale destacar, desde já, que não pretendemos com isso analisar os pormenores dos modelos em questão, discutir o modo como o grau de sofisticação foi aumentando ao longo do tempo, que hipóteses foram “relaxadas” ou abandonadas etc. Considerando os objetivos do presente estudo, interessa-nos mostrar, em primeiro lugar, como esses modelos acabam por dar inteligibilidade científica a um dos principais elementos da dinâmica capitalista (seu caráter inerentemente expansivo). Em segundo lugar, pretendemos explicar também como, naquele 110 contexto histórico específico, os modelos de crescimento terminam por responder a questões levantadas pela própria dinâmica de acumulação de capital em nível global e oferecer, a despeito da sua pretensa neutralidade, um instrumental útil à reprodução desta dinâmica. 111 Seção 4.1 Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de Harrod e Domar Como indicado anteriormente, com a presente seção buscamos apresentar as linhas gerais dos modelos de crescimento de Harrod e Domar, cujas características centrais encontram-se delineadas já nos artigos de 1939 (An essay in dynamic theory) e 1946 (Capital expansion, rate of growth and employment), respectivamente, considerados precursores nesse campo.1 Além do pioneirismo, os modelos de Harrod e Domar ficaram conhecidos pela orientação teórica explicitamente keynesiana e pelo fato de terem chegado a conclusões semelhantes, ainda que por caminhos diferentes e relativamente independentes, como esperamos mostrar adiante.2 Começando com o modelo proposto por Harrod, observamos que seu objetivo inicial era dar um tratamento dinâmico a alguns conceitos básicos e ideias-chave da macroeconomia inaugurada por Keynes. Mais especificamente, as preocupações de Harrod podem ser resumidas em três questões fundamentais: qual a taxa de crescimento da renda capaz de manter a igualdade entre os planos de investimento e os planos de poupança (condição de um equilíbrio estático) ao longo do tempo? Este equilíbrio é necessariamente um equilíbrio a pleno emprego dos fatores? Existe alguma garantia de que esta taxa de crescimento, uma vez atingida, se sustente no longo prazo? Para responder a essas questões, Harrod (1939, p. 14) toma como ponto de partida três hipóteses básicas: (1) “o nível de renda de uma comunidade é o determinante mais importante de sua oferta de poupança”; (2) “a taxa de crescimento dessa renda é um determinante importante da demanda por poupança”; e (3) “a demanda é igual à oferta”. Em termos formais: 1 2 112 Para a apresentação das concepções de Harrod e Domar nos valemos, além dos textos originais, das sistematizações elaboradas por Jones (1979) e Thirlwall (2005). Em virtude das semelhanças entre os modelos, é bastante comum encontrar nos livros-texto de Economia a referência a um único modelo “Harrod-Domar”. (1) (2) (3) S = sY I = C∆Y S=I Onde S é a poupança; s, a propensão marginal a poupar; Y, o nível de renda; I, o investimento; C, o incremento “de capital requerido para a produção de uma unidade de produto adicional”.3 A partir de uma manipulação simples das equações apresentadas, chegamos à “equação fundamental” do modelo de Harrod (1939, p. 16 e 17), que apresenta a taxa garantida de crescimento (warranted rate of growth) como: GW = s C Segundo o autor, a taxa garantida (GW) deve ser entendida como “[...] a taxa de crescimento que, caso aconteça, satisfará todas as partes envolvidas, de maneira que não produzirão nem mais nem menos do que o montante correto” (HARROD, 1939, p. 16). Em outras palavras, a taxa garantida é aquela capaz de colocar os empresários “em um estado de espírito que os levará a tomar decisões no sentido da manutenção do mesmo ritmo de crescimento”. No entanto, não necessariamente será esta a taxa verdadeira de crescimento (actual rate of growth), isto é, a taxa efetivamente verificada. Utilizando o mesmo conjunto de equações anteriormente apresentadas, Harrod define a taxa verdadeira de crescimento (GA) como: GA = s Cp Onde s é a propensão marginal a poupar; Cp, o incremento do estoque de capital no período dividido pelo incremento 3 De acordo com Jones (1979, p. 58), haveria ainda no modelo de Harrod uma hipótese sobre o comportamento da função de produção (“do tipo proporções fixas”), a partir da qual o autor buscava registrar a existência de certa rigidez tecnológica limitando as possibilidades de substituição entre os fatores de produção (capital e trabalho). Em última instância, essa rigidez da relação capital-trabalho levaria a uma rigidez da relação capital-produto “efetiva” (Cp), que, como veremos adiante, será um dos pontos centrais da crítica de Solow ao modelo “Harrod-Domar”. 113 total do produto (∆K/∆Y), ou ainda, o incremento de capital por unidade adicional de produto efetivamente produzido. De acordo com essa formulação, portanto, só seria possível alcançar uma trajetória de crescimento equilibrado quando a taxa verdadeira coincidisse com a taxa garantida de crescimento (GA = GW).4 Como sintetizado por Jones (1979), se o produto na verdade cresce à taxa garantida, então o verdadeiro estoque de capital vai ser igual ao estoque de capital desejado e uma grande gama de hipóteses sobre as respostas comportamentais dos empresários implica que, assim sendo, eles estariam preparados para continuar a implementar a mesma taxa de crescimento no futuro. (JONES, 1979, p. 62 e 63) No que tange à segunda questão, Harrod afirma que a trajetória de crescimento equilibrado não necessariamente corresponde ao pleno emprego dos fatores de produção. Segundo Harrod (1939, p. 30), para que isso aconteça, é preciso não só que a taxa verdadeira iguale-se à taxa garantida, mas também que ambas igualem-se à taxa natural de crescimento (GN), definida como “a taxa máxima de crescimento permitida pelo crescimento populacional, acumulação de capital, progresso tecnológico e pela alocação das preferências entre trabalho e lazer, supondo sempre a existência de algum tipo de pleno emprego”. Portanto, a condição para que haja um crescimento equilibrado com pleno emprego é: GA = GW = GN No entanto, ainda que a igualdade entre as taxas de crescimento verdadeira, garantida e natural fosse possível, ela seria pouco provável. Isso porque as variáveis que determinam as diferentes taxas de crescimento seriam reguladas por fatores 4 114 Como advertido por Harrod (1939, p. 16), é preciso aqui tomar cuidado com a utilização da palavra “equilíbrio”, pois, “ainda que cada ponto da trajetória do produto descrita por Gw seja um ponto de equilíbrio no sentido de que os produtores, permanecendo nela, estarão satisfeitos e serão induzidos a manter a mesma taxa de crescimento em curso, o equilíbrio é, pelas razões a serem explicadas, altamente instável”. distintos, não havendo qualquer mecanismo que garantisse essa coincidência – se ela de fato se verificasse, seria por questões meramente casuais. De acordo com Jones (1979, p. 65), esta conclusão, também conhecida como primeiro problema de Harrod, pode ser entendida como “uma versão dinâmica da alegação central keynesiana de que o equilíbrio com desemprego é possível numa economia capitalista”. Dando sequência ao argumento, Harrod (1939, p. 22) busca mostrar como, além de pouco provável, o crescimento equilibrado a pleno emprego dos fatores é altamente instável. Isso porque desvios da trajetória de equilíbrio (dinâmico), ao contrário de “autocorretivos”, são “autoagravantes” (conclusão também conhecida como segundo problema de Harrod). De acordo com o autor, se a taxa verdadeira for menor que a taxa garantida (GA < GW), a relação capital-produto efetiva será maior que a requerida (Cp > C), induzindo os empresários a reduzir os investimentos, reduzindo ainda mais a taxa de crescimento. Por outro lado, se a taxa verdadeira for maior que a taxa garantida (GA > GW), a relação capital-produto efetiva será menor que a requerida (Cp < C), induzindo os empresários a aumentar os investimentos, aumentando ainda mais a taxa de crescimento. Assim, no que tange à terceira questão, em vez da reaproximação entre as taxas GA e GW, o que se verifica é o crescente distanciamento entre elas. Como indicado anteriormente, Domar também chegou a conclusões similares àquelas encontradas por Harrod, ainda que por caminhos ligeiramente diferentes. Tomando como ponto de partida a afirmação de que determinada economia estará em equilíbrio quando sua capacidade produtiva igualar-se à renda nacional, Domar (1946, p. 138) está particularmente preocupado em, aplicando os princípios da análise dinâmica, “descobrir as condições sobre as quais esse equilíbrio pode ser mantido”, ou ainda, “a taxa de crescimento à qual a economia deve se expandir para que se mantenha em um estado contínuo de pleno emprego”. Em linhas gerais, para que o nível verdadeiro da renda ou produto (Y) e o nível máximo potencial da renda ou produto 115 (P) permaneçam em igualdade é preciso que ambos cresçam com as mesmas taxas (∆Y e ∆P, respectivamente), definidas pelo autor da seguinte maneira: ⎛ 1 ⎞ ΔY = ⎜ ⎟ΔI ⎝ s ⎠ ΔP = σI Onde s é a propensão marginal a poupar; I, o fluxo de investimento; σ, a “produtividade social potencial média do investimento” (que, como veremos adiante, aproxima-se, em certo sentido, da relação capital-produto requerida (C) de Harrod). Combinando de maneira simples as equações acima apresentadas, temos que: ⎛ 1 ⎞ ⎝ s ⎠ σI = ⎜ ⎟ΔI Ou ainda: ΔI = sσ I Tem-se aí a “equação fundamental” do modelo de Domar. Segundo Jones (1979, p. 74 et seq.), “se s e σ são considerados constantes, a taxa de crescimento do investimento que vai manter a renda verdadeira igual ao nível de renda máximo potencial é a taxa constante proporcional sσ”. Ora, se σ (∆P/I) é o crescimento potencial do produto por unidade de investimento, enquanto C é o número de unidades de novos investimentos necessários para produzir uma unidade extra de produto, σ = 1/C, e a substituição demonstra que as equações fundamentais de Harrod e Domar são formalmente iguais, considerando também os termos propostos por Domar, ainda que seja possível, não há qualquer garantia de que os investimentos cresçam efetivamente a essa taxa. Em suma, os modelos de Harrod e Domar ficaram conhecidos (especialmente o primeiro) por descreverem uma dinâmica 116 tumultuada de crescimento econômico. Elaborados sob a atmosfera de duas guerras entremeadas por uma grande depressão, suas conclusões mostravam-se razoavelmente compatíveis com as próprias evidências do período. Por outro lado, as experiências bem-sucedidas de crescimento econômico que teriam lugar nas décadas posteriores seriam igualmente utilizadas por parte dos críticos como prova da incompatibilidade entre o modelo Harrod-Domar e os “fatos”.5 Assim, como geralmente observado nas disputas teóricas internas à ciência econômica, o critério de adequação empírica foi determinante na reorientação dos modelos de crescimento econômico. Construídos como contraponto direto aos trabalhos de Harrod e Domar, os principais desenvolvimentos teóricos posteriores caminharam justamente no sentido de demonstrar que o crescimento econômico estável com pleno emprego era não apenas possível, mas também provável. No campo keynesiano, os esforços constituídos especialmente através dos trabalhos de Robinson, Kaldor, Pasinetti, entre outros, concentraram-se na análise dos fatores determinantes da formação de poupança, do ponto de vista da dinâmica econômica. Sugeria-se que, por um lado, a poupança dependia mais dos lucros que dos salários e que, por outro, os lucros variavam na mesma direção da renda nacional (cresciam em período de expansão econômica e decresciam durante as recessões). O resultado era que se, por exemplo, a taxa de crescimento fosse superior à garantida, a própria expansão, à medida que permitisse lucros maiores, favoreceria a elevação da taxa de poupança e mudaria a própria taxa garantida de crescimento, aproximando novamente as duas – o inverso ocorrendo caso a taxa natural se encontrasse aquém da taxa garantida (THIRLWALL, 2005, p. 26 e 27). Alternativamente, no campo neoclássico, um dos principais problemas apontados pelos críticos foi a já mencionada 5 De acordo com Jones, esse tipo de crítica poderia ser rebatido pela utilização do seguinte argumento: “os problemas de Harrod não emergiram no período do pós-guerra por causa da aplicação sistemática das políticas keynesianas de estabilização econômica” (JONES, 1979, p. 79). 117 hipótese de uma relação capital-produto constante (que indicaria a impossibilidade de substituir os fatores de produção, capital e trabalho). De acordo com este argumento, levantado inicialmente por Solow e Swan, a hipótese das “proporções fixas” seria não apenas incompatível com um modelo que pretende realizar análises de longo prazo, como também seria fator determinante na conclusão a respeito da instabilidade do crescimento. Portanto, como pretendemos mostrar na seção seguinte, é tomando como ponto de partida a flexibilização dessa hipótese que os modelos neoclássicos pretendem demonstrar a existência de estabilidade no crescimento econômico. Seção 4.2 A estabilidade do crescimento no modelo de Solow Para tratar dos desenvolvimentos teóricos no campo neoclássico, tomamos como referência a versão mais simples do modelo de Solow, apresentada em 1956 no artigo A contribution to the theory of economic growth.6 Como indicamos ao final da seção anterior, este modelo toma como ponto de partida uma crítica ao modelo Harrod-Domar, focada principalmente na hipótese das “proporções fixas”. Mesmo deixando de lado a discussão a respeito da correção ou incorreção desta hipótese – sob a justificativa de que “toda teoria depende de hipóteses que não são totalmente verdadeiras” –, Solow (1956, p. 65 et seq.) acredita que o modelo em questão também não está de acordo com a “arte de bem teorizar” (entendida por ele como a arte de “fazer as inevitáveis hipóteses simplificadoras de tal maneira que os resultados finais não sejam muito sensíveis”). Segundo o autor, “a oposição fundamental entre as taxas garantida e natural de crescimento deriva da hipótese crucial de que a produção acontece sob condições de proporções fixas”, de tal modo que, “se essa hipótese é abandonada, 6 118 No intuito de facilitar a apresentação deste modelo, utilizamos também as sínteses realizadas por Jones (1979) e Jones (2000). a noção de ‘fio da navalha’ de crescimento instável parece ter o mesmo destino”.7 Assim, tratando do mesmo conjunto de problemas levantados pelos modelos anteriores (a busca da condição de equilíbrio dinâmico e dos mecanismos que conduziriam a economia a tal estado), Solow (1956) pretende formular um “modelo de crescimento de longo prazo que aceita todas as hipóteses de Harrod-Domar, exceto aquela de proporções fixas”. Para tanto, o modelo é construído a partir de duas equações fundamentais: (1) uma função de produção, que apresenta os diferentes níveis de produto compatíveis com diferentes combinações dos fatores de produção (capital e trabalho) e (2) uma equação que descreve a dinâmica da acumulação de capital, determinada pelo investimento bruto e pelo montante da depreciação ocorrido durante o processo produtivo. Em termos formais: (1) (2) Y = F ( K , L) = K α L1−α • K = sY − dK Onde Y é a renda; K, o capital; L, o trabalho; α é qualquer � número entre 0 e 1; K é a variação no estoque de capital; s, a propensão marginal a poupar; d, a taxa de depreciação do capital. Na primeira equação, um α maior ou menor nos diz se a tecnologia utilizada é mais ou menos intensiva em capital. Na segunda equação, observamos que, quanto maior o nível de investimento e quanto menor a depreciação, maior a taxa de variação do capital. Como os fatos que o modelo de Solow busca explicar envolvem também o produto por trabalhador ou o produto per 7 A noção de “fio da navalha”, utilizada por Solow (1956, p. 65) para descrever “a conclusão característica e poderosa da linha de pensamento Harrod-Domar”, foi explicitamente rejeitada por Harrod (1973, p. 33; 32) anos depois. Segundo o autor, esta nomenclatura “soa profundamente irrealista e, mesmo, um tanto ridícula”, sendo mais apropriada a comparação do sistema econômico com “uma bola sobre uma declividade gramada. É necessário um chute forte para movê-la. Mas, uma vez movida, ela pode ir bem mais longe – especialmente se a encosta é abrupta – do que um chute inicial de igual força a faria ir sobre um campo plano”. 119 capita (y = Y/L), podemos dividir ambos os lados das equações (1) e (2) por L e obter os seguintes resultados: (3) (4) y = kα • k = sy − (n + d )k Onde n representa a taxa de crescimento da população (considerada, por hipótese, igual à taxa de crescimento da força de trabalho), que também passa a atuar como fator redutor da taxa de variação do estoque de capital. Uma vez apresentadas as “equações fundamentais” do modelo, Solow afirma que uma economia qualquer estará em equilíbrio quando o investimento per capita for do tamanho necessário para manter constante o montante de capital por trabalhador, compensando os efeitos negativos da depreciação e do crescimento da força de trabalho – situação na qual a taxa de crescimento do capital per capita iguala-se a zero. Assim, combinando as equações (3) e (4), e supondo a condição de equilíbrio, temos que: (5) 1 � s �1�a k =� ÷ �n + d � * Substituindo (5) na função de produção por trabalhador (3), chegamos, finalmente, ao produto por trabalhador na situação de equilíbrio, y*: (6) a � s �1�a y =� ÷ �n + d � * Assim construído, o modelo conduz à conclusão de que o produto per capita no equilíbrio de longo prazo depende apenas das variáveis s, n e d e do parâmetro α. Esta situação de equilíbrio, na qual o montante de capital por trabalhador permanece constante, será chamada por Solow de estado 120 estacionário.8 A Figura 1, baseada em Solow (1956, p. 70), sintetiza as conclusões até aqui apresentadas. Sendo as curvas expressões dos dois termos da equação (4), o ponto (y*, k*) denota a situação de equilíbrio, que anula a taxa de crescimento do capital per capita. Figura 1 - Gráfico de Solow Uma vez definida a condição de equilíbrio, Solow busca demonstrar a existência de mecanismos geradores de uma tendência ao crescimento equilibrado. Analisando graficamente, fica fácil observar que em qualquer ponto à esquerda de k* o montante de investimento por trabalhador (representado pela curva sy) supera o decréscimo de capital por trabalhador advindo da depreciação e do crescimento populacional (representado pela curva (n+d)k). Essa situação implicaria, portanto, o crescimento do capital por trabalhador (k), até o ponto em que k = k*. A situação seria inversa em qualquer ponto à direita de k*, em que o investimento está aquém do necessário para compensar o decréscimo de capital, determinando a redução de k novamente até o ponto k*. Em suma, quaisquer que sejam os valores iniciais das variáveis básicas do modelo, a economia sempre se move em direção ao estado estacionário – único ponto capaz de manter a estabilidade do crescimento. 8 Vale enfatizar: a situação descrita como estado estacionário não implica a inexistência de crescimento econômico. Implica, sim, que o produto cresça à mesma taxa que a população, garantindo uma relação “produto/trabalho” estável. 121 Seção 4.3 Considerações finais A partir da inspeção dos modelos de Harrod, Domar e Solow, buscamos com as seções anteriores apresentar os principais elementos constitutivos dos modelos de crescimento econômico formulados no período pré-1970. Este exercício faz-se necessário, pois, apesar das diferenças nada desprezíveis existentes entre os modelos de crescimento aqui apresentados e as teorias do desenvolvimento discutidas nos três próximos capítulos, essas formulações têm em comum o fato de serem dirigidas à compreensão dos fatores determinantes da disparidade de renda entre os diferentes países. Uma vez que, durante o período pré-1970, o desenvolvimento das nações foi entendido, predominantemente, como sinônimo de crescimento da renda (per capita), os modelos de crescimento podem ser enquadrados no conjunto mais amplo de formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar tratamento à temática do desenvolvimento naquele contexto histórico específico. Considerando ainda que este consiste no primeiro dos três capítulos destinados à inspeção crítica das concepções sobre o desenvolvimento dominantes no período pré-1970, talvez seja prudente chamar a atenção, mais uma vez, para o tipo de crítica que pretendemos realizar aqui. Dados os diferentes rumos possíveis de uma análise crítica e o conteúdo das formulações apresentadas, o leitor talvez seja induzido, por exemplo, a acreditar que temos a pretensão de partir para uma discussão sobre o caráter restritivo das hipóteses utilizadas como fundamento dos modelos, ou ainda, sobre o tipo de método por eles empregado no estudo das relações econômicas. Ainda que a importância de considerações desse tipo não esteja sendo colocada em questionamento, não é esse o caminho que buscamos trilhar. Partindo da concepção de que a autêntica crítica científica deve dirigir-se não apenas às ideias em si, mas também às formas de existência que tornam aquelas ideias correntes e necessárias, interessa-nos aqui fornecer elementos que permitam explicar por que, apesar de todos os problemas relacionados à descrição da dinâmica de funcionamento da economia sugerida pelos modelos de crescimento, aquelas são concepções atrativas, de ampla circulação e aceitação. Para tanto, faz-se imperativo olhar não apenas para as formulações teóricas em si, mas também para a relação dessas teorias com o modo de produção capitalista, em geral, e com o contexto histórico em que são produzidas, em particular. Falando mais diretamente sobre os modelos de crescimento, vimos nas seções anteriores que um dos seus principais objetivos era explicar, com recurso à lógica formal ou matemática, os fatores determinantes do crescimento da riqueza (medida pelo crescimento do produto ou produto per capita). Isso é, indubitavelmente, apropriado (útil até) à descrição de um modo de produção que possui como determinante central o impulso ao aumento da riqueza (ou seja, que tem o não crescimento como um problema), riqueza esta homogeneizada em termos de valor (pressuposto fundamental que torna possível o tratamento exclusivamente quantitativo das relações econômicas). Em que pese essa nítida “adequação empírica”, a aceitação automática do crescimento, como critério central ao juízo das condições socioeconômicas dos países e regiões, deixa de lado uma questão fundamental, levantada por críticos de diversos matizes teóricos: qual o sentido humano de tal crescimento? Como veremos no último capítulo, a partir da crise dos anos 1970 e do reconhecimento de problemas associados ao padrão de crescimento/desenvolvimento defendido ao longo das décadas anteriores, questionamentos desse tipo tornaram-se ainda mais frequentes, da esquerda à direita. E mesmo quando levantado no campo conservador – como, por exemplo, no trabalho de Amartya Sen (2000), Desenvolvimento como liberdade, tal questionamento tem o mérito de despertar a atenção para a possibilidade de uma existência social na qual normalidade ou crises econômicas não sejam sinônimo de aumento ou diminuição do produto. Quando observamos os modelos de Harrod-Domar e Solow em conjunto, no entanto, percebemos que ambos reduzem a 123 condição da economia (e, por seu intermédio, da sociedade) ao crescimento do produto; ambos concebem o crescimento como dependente da poupança; ambos associam o crescimento do produto ao crescimento populacional (numa reedição da lógica de Malthus e Ricardo), entre outras semelhanças. As principais diferenças entre estas formulações residem basicamente nas conclusões sobre o caráter estável ou não do crescimento e sobre a possibilidade de que a economia equilibre-se ou não em condições de pleno emprego. Em termos mais amplos, essa distinção pode ser entendida como resultado da filiação a uma de duas posições: a posição liberal clássica, que considera que o mercado é capaz de atingir, por si mesmo, uma situação econômica não apenas ordenada como produtiva, e a posição identificada com a crítica de Keynes, que nega esta possibilidade e reclama uma participação mais ativa do Estado na vida econômica. O discurso oscila, então, entre a defesa, em geral implícita, do capitalismo liberal e a defesa, em geral aberta, do capitalismo “regulado”. Livre ou “regulado”, é sempre o capitalismo que se projeta para o futuro. Veremos nos capítulos seguintes como as teorias do desenvolvimento reeditam, de algum modo, esse debate pendular entre configurações diversas da mesma formação social. 124 Capítulo 5 Teorias clássicas do desenvolvimento (I): estratégias de industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral Realizada a análise crítica dos principais modelos de crescimento, passamos agora ao estudo das teorias clássicas do desenvolvimento, produzidas no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Como indicado anteriormente, esse período marca o nascimento de um campo relativamente autônomo dentro da ciência econômica, também conhecido como Economia do Desenvolvimento, que, diferentemente dos modelos de crescimento, tem por objetivo central explicar os determinantes do subdesenvolvimento e apontar saídas para esta condição. Para além desse aspecto geral, algumas características particulares podem ainda ser identificadas nesse período de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento. Como pretendemos deixar claro ao longo do presente capítulo, em primeiro lugar, o desenvolvimento é tomado como sinônimo de aumento da riqueza, medida pela renda per capita (acompanhado, em alguns casos, da noção de que este aumento de riqueza deve ser capaz de gerar melhorias nas condições de vida da população). Consequentemente, por contraposição, o subdesenvolvimento é associado à baixa renda per capita (e, por vezes, à incapacidade de garantir condições dignas de vida para a população). Além disso, o que se observa nesse período é a predominância da ideia de que o desenvolvimento deve ser promovido através da industrialização. Assim, utilizando uma combinação de argumentos teóricos (de inspiração clássica, keynesiana e/ou schumpeteriana) e históricos (amparados nas experiências bem-sucedidas de industrialização da Europa ocidental, Estados Unidos e União Soviética), essas teorias procuram defender e justificar a necessidade da industrialização. Por outro lado, as principais divergências entre as teorias clássicas do desenvolvimento giram em torno de dois pontos fundamentais. O primeiro diz respeito aos determinantes do subdesenvolvimento e, portanto, à tentativa de explicar a baixa renda per capita – nesse caso, veremos que, enquanto algumas teorias apontam a baixa poupança e a ausência de recursos como determinantes em última instância do subdesenvolvimento, outras acreditam que se trata apenas de uma má utilização dos recursos disponíveis. O segundo ponto refere-se à estratégia de industrialização defendida pelas diferentes teorias (mais ou menos intensiva em capital, com ou sem intervenção do Estado, equilibrada ou desequilibrada etc.). Para dar conta de todos esses aspectos, o capítulo encontra-se divido em quatro seções. Na primeira, tratamos de algumas teorias que explicam o subdesenvolvimento a partir da inexistência de recursos e/ou defendem uma estratégia de crescimento equilibrado.1 Na segunda, serão analisadas as críticas à noção de crescimento equilibrado realizadas por Gunnar Myrdal e Albert Hirschman. A terceira seção será dedicada exclusivamente ao trabalho de Walt Rostow, que, como pretendemos argumentar, melhor simboliza toda essa geração de estudos. Por fim, dedicamos a seção de encerramento do capítulo ao apontamento de algumas conclusões críticas que podem ser extraídas da análise das teorias do desenvolvimento. Seção 5.1 Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento equilibrado Como indicado anteriormente, a caracterização do desenvolvimento como crescimento da riqueza (medida pelo produto per capita) e a noção de que esse objetivo só pode ser alcançado por meio da industrialização são algumas das principais marcas das teorias do desenvolvimento produzidas no período anterior à crise dos anos 1970. Entre as contribuições mais significativas desse período, destaca-se Problemas de industrialização da Europa do leste e do sudeste, trabalho de RosensteinRodan, publicado em 1943. Compartilhando a definição de 1 126 A seleção dos textos a serem analisados nesta primeira seção tomou como base a famosa coletânea de artigos organizada por Agarwala e Singh (2010), A economia do subdesenvolvimento, publicada pela primeira vez em 1958 e que se tornou referência mundial para o debate sobre desenvolvimento. desenvolvimento acima apresentada (com ênfase, inclusive, no debate sobre a convergência da riqueza mundial), Rodan afirma que, além de interessar às “áreas deprimidas” em geral, a industrialização desses países é conveniente para o mundo como um todo, visto ser o único “meio para que se alcance uma distribuição de renda mais equitativa entre diferentes partes do mundo pela elevação da renda nas regiões deprimidas a uma taxa mais alta que nas regiões ricas” (ROSENSTEINRODAN, 2010, p. 265 et seq.). Além do pioneirismo e do fato de ser um dos representantes fiéis da perspectiva dominante do período, resgatamos aqui o trabalho de Rodan por diversos outros motivos. Em primeiro lugar, Rodan inaugura uma série de teorias que, partindo do arcabouço teórico clássico ou keynesiano, irão caracterizar o subdesenvolvimento (e explicar as baixas taxas de crescimento nessas regiões) a partir do “excesso de população agrária” e consequente subemprego rural. Diante dessa constatação,2 Rodan apresenta duas soluções alternativas: (1) levar a mão de obra excedente até o capital através da emigração ou (2) levar o capital, por meio da industrialização, até onde há excesso de trabalho. Considerando que ambas são equivalentes “do ponto de vista da maximização da renda mundial” e que a primeira é difícil de realizar-se em grande escala, “em sua maior parte o problema terá de ser resolvido pela industrialização”. Em segundo lugar, no que diz respeito à estratégia de industrialização, é bastante emblemático que Rodan tenha escrito, ainda durante a Segunda Guerra Mundial, especificamente sobre aqueles países situados entre a União Soviética e a Europa Ocidental e que posteriormente passariam a compor o conjunto de “países socialistas” (também conhecidos como Segundo Mundo). Nesse contexto, Rodan foi um dos autores a defender 2 Constatação empírica, tomada como hipótese inicial do trabalho. Nas palavras do autor: “As hipóteses no caso em estudo são as seguintes: existe um ‘excesso de população agrária’ na Europa do Leste e do Sudeste, que corresponde de 20 a 25 milhões de habitantes para uma população total de 100 a 110 milhões; ou seja, cerca de 25% da população se encontra total ou parcialmente desempregada (‘desemprego disfarçado’)” (ROSENSTEIN-RODAN, 2010, p. 265). 127 explicitamente uma estratégia de desenvolvimento que se contrapõe diretamente ao chamado “modelo russo” (ou “autárquico”) de industrialização.3 De acordo com o autor, essa modalidade de industrialização caracteriza-se pela busca da autossuficiência (por meio da integração vertical), envolvendo uma série de sacrifícios que poderiam ser evitados caso os países optassem por uma industrialização “ajustada” à economia mundial. Nesse caso, os países deveriam seguir os “sólidos princípios da divisão internacional do trabalho [que] postulam técnicas intensivas de mão-de-obra – isto é, indústrias leves para as regiões subdesenvolvidas”, suprindo o restante das necessidades (especialmente daqueles bens produzidos por “indústrias pesadas”) através da importação. Segundo o autor, esta estratégia de industrialização “preservaria as vantagens da divisão internacional do trabalho, produzindo, portanto, mais riqueza para todos ao final do processo”. Assim, para Rodan, a superação do subemprego rural (característico das economias subdesenvolvidas) deve passar pela adoção de uma estratégia de industrialização integrada, que insira a região na economia mundial, preservando as vantagens da divisão internacional do trabalho. Além do respeito aos desígnios das vantagens comparativas, o sucesso da estratégia depende, em primeiro lugar, do treinamento e habilitação da mão de obra (que permita transformar camponeses em trabalhadores industriais), e, em segundo lugar, do planejamento em grande escala que possibilite a criação de um sistema de indústrias complementares (especialmente aquelas que produzem a maioria dos bens adquiridos com salários). Essa estratégia de industrialização, posteriormente conhecida como estratégia de crescimento equilibrado, teria ainda outra grande vantagem: “a criação planejada de um sistema de indústrias complementares desse tipo reduziria o risco de insuficiência de procura e, visto que o risco pode ser considerado um custo, reduziria os custos. É, nesse sentido, um caso 3 128 Veremos adiante o exemplo mais emblemático e explícito: Rostow e seu manifesto não-comunista. especial de ‘economias externas’”.4 Considerando que os trabalhadores não gastam seus salários em um único produto, o emprego de toda a mão de obra excedente em uma única indústria produziria um desequilíbrio nesse setor e nos demais (excesso de oferta no primeiro e de demanda nos demais). Tais desequilíbrios poderiam, eventualmente, ser corrigidos pelo mecanismo de mercado (por meio do movimento de preços, como previsto pela Lei de Say), mas poderiam ser evitados através do investimento maciço em diversas indústrias complementares, de modo coordenado.5 Essa coordenação faria com que o aumento da oferta em diversas indústrias criasse sua própria demanda, promovendo “uma expansão da produção mundial com um mínimo de perturbação do mercado internacional”. Como, para Rodan, nos países subdesenvolvidos é mais fácil prever a demanda da população, o planejamento em larga escala também seria facilitado. Uma abordagem bastante similar, e, em grande medida, inspirada no antecessor, também pode ser vista nos trabalhos de Ragnar Nurkse, que apresenta a formação de capital como o fator capaz de diferenciar países desenvolvidos e subdesenvolvidos.6 Segundo o autor, esta formação de capital estaria 4 5 6 Rosenstein-Rodan (2010, p. 269 et seq.) cita ainda dois outros tipos de “economias externas” que podem surgir a partir da criação de um sistema de indústrias complementares: (1) as economias externas à firma e internas à indústria e (2) as economias externas à indústria. Por esse motivo, o autor ficou conhecido como um dos primeiros a utilizar a divergência entre “retorno privado” e “retorno social” dos investimentos como justificativa para a coordenação de projetos integrados de industrialização. Mais adiante, no entanto, veremos como o mesmo argumento será utilizado para defender a estratégia de crescimento desequilibrado. Uma síntese do debate pode ainda ser vista nos textos de Fleming (As economias externas e a doutrina do crescimento equilibrado) e Scitovsky (Dois conceitos de economias externas), também presentes na coletânea de Agarwala e Singh (2010). Como aparece na sistematização realizada por Scitovsky (2010, p. 324): “Daí a ideia de que falta um planejamento centralizado do investimento ou algum sistema de comunicação adicional que suplemente o sistema de preços como dispositivo de sinalização.” Ou seja, “as chamadas ‘áreas subdesenvolvidas’, em confronto com as avançadas, são aquelas que se encontram subequiparadas de capital em relação à sua população e recursos naturais” (NURKSE, 1957, p. 3 et seq.). Vale notar que a palavra capital comparece na frase, e na concepção do autor em geral, no sentido limitado (e mistificador, como demonstrou Marx) de máquinas, equipamentos e materiais indispensáveis à produção. 129 sujeita à ação de forças circulares (tanto do lado da oferta, quanto do lado da demanda) que manteriam as economias em um “estado de equilíbrio de subdesenvolvimento”.7 Este mecanismo, também conhecido como círculo vicioso da pobreza, foi exemplificado por Nurkse da seguinte maneira: Um homem pobre não tem o bastante para comer; sendo subalimentado, sua saúde é fraca; sendo fisicamente fraco, sua capacidade de trabalho é baixa, o que significa que ele é pobre, o que, por sua vez, quer dizer que não tem o bastante para comer; e assim por diante. Tal situação, transposta para o plano mais largo de um país, pode ser resumida nesta proposição simplória: um país é pobre porque é pobre. (NURKSE, 1957, p. 7) Deixando de lado a excentricidade desse raciocínio ímpar (que, aplicado à medicina, resultaria no diagnóstico de que um homem doente tem uma doença ou na constatação de que um morto não está vivo!), o que efetivamente importa são as relações de causalidade aludidas na explicação da escassez de capital. No caso de um país, Nurkse observa que, por um lado, há baixa oferta de capital, em virtude da “pequena capacidade de poupar, resultante do baixo nível da renda real”. Por outro, a baixa demanda por capital, reflexo do baixo estímulo para investir, seria derivada “do pequeno poder de compra da população, consequência de reduzida renda real”. Em síntese, “o ponto em comum em ambos os círculos é o baixo nível de renda real” (NURKSE, 1957, p. 8). Ainda assim, para o autor, nem tudo estaria perdido: “a constelação circular do sistema estacionário é bastante real, mas, felizmente, o círculo não é intransponível” (NURKSE, 1957, p. 14). Exatamente como na formulação de Rodan, o rompimento com o círculo vicioso da pobreza dependeria de uma estratégia 7 130 Em relação aos fundamentos teóricos dessa formulação, o próprio Nurkse (1957, p. 14) faz questão de enfatizar que o estado de equilíbrio de subdesenvolvimento seria “um tanto análogo ao ‘equilíbrio de subemprego’, cuja possibilidade nos países industrialmente avançados nos foi apontada por Keynes”. de crescimento equilibrado, também conhecida como “grande impulso” (ou big push), possível apenas através “de uma aplicação de capital mais ou menos sincronizada numa ampla gama de indústrias diferentes” (NURKSE, 2010, p. 278). O resultado desse investimento “sincronizado” também seria mais ou menos o mesmo: [...] ampliação geral do mercado e, portanto, uma saída para o impasse. Os indivíduos que trabalham com mais e melhores equipamentos em certo número de projetos complementares se tornam clientes mútuos. As indústrias que abastecem o consumo das massas são em sua maioria complementares, no sentido de que ao mesmo tempo proporcionam um mercado e se sustentam mutuamente. Essa complementação básica resulta da diversidade dos desejos humanos. No caso do “crescimento equilibrado”, baseia-se, em última análise, na necessidade de uma “dieta equilibrada”. (NURKSE, 2010, p. 278 et seq.). Ainda que semelhante na proposta, Nurkse, por um lado, acredita que a defesa do crescimento equilibrado, ao implicar diversificação da economia doméstica, rompe em parte com a teoria das vantagens comparativas. Por outro, este autor é bem menos definitivo a respeito dos meios para atingir o desenvolvimento (se obtido através da participação do Estado ou deixado ao sabor das forças do mercado, ou seja, dos empresários). Em suas palavras: “seja o crescimento equilibrado sustentado por planejamento governamental ou levado a cabo espontaneamente pela iniciativa privada trata-se, no fim das contas, de uma questão de método”. Mais que isso, segundo Nurkse (1957, p. 20), “O economista, como técnico, não tem imperativos categóricos a levantar sobre o assunto”. Apesar da repercussão que tiveram esses primeiros trabalhos, pode-se dizer que a ênfase no subemprego rural como característica principal do subdesenvolvimento encontrou sua expressão mais efetiva no trabalho de Arthur Lewis, intitulado 131 Desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-obra, de 1954.8 Diferentemente dos teóricos anteriores, no entanto, Lewis é mais explícito ao afirmar que, enquanto uma teoria inspirada no arcabouço teórico keynesiano prevê a possibilidade de equilíbrio com subemprego dos diversos fatores de produção, em uma situação de subdesenvolvimento somente a mão de obra é excedente.9 Se o contingente populacional não oferece, portanto, nenhuma restrição objetiva ao crescimento, o “problema do desenvolvimento econômico” estaria na “escassez de capital”. Tomando como ponto de partida a análise de uma “economia fechada”, Lewis procura demonstrar como o desenvolvimento, na medida em que está sujeito à quantidade de capital disponível, depende, em última instância, da quantidade de poupança (aceitando, em grande medida, um dos postulados que sustentam a Lei de Say, ou seja, a ideia de que a poupança deve preceder o investimento). Nesse sentido, Lewis define o “problema central da teoria do desenvolvimento econômico” da seguinte maneira: O problema central da teoria do desenvolvimento econômico é a compreensão do processo pelo qual uma comunidade que anteriormente não poupava nem investia mais que 4 ou 5% de sua renda nacional, ou ainda menos, transforma-se numa economia em que a poupança voluntária se situa por volta de 12 ou 15% da renda nacional, 8 9 132 Assim como outros teóricos do desenvolvimento, Lewis viria a receber (25 anos após essa publicação) o prêmio Nobel de Economia, “pela pesquisa pioneira sobre desenvolvimento econômico com particular atenção aos problemas dos países em desenvolvimento”. Disponível em: <www. nobelprize.org>. Por esse motivo, como o próprio Lewis faz questão de enfatizar nas páginas iniciais de seu artigo, a perspectiva por ele defendida estaria mais próxima da teoria clássica, utilizada explicitamente como fundamento da sua formulação. Nas palavras do autor: “Este artigo foi escrito segundo a tradição clássica, aceitando suas suposições e formulando suas questões” (LEWIS, 2010, p. 413 et seq.). E mais adiante: “O propósito desse artigo é, portanto, descobrir o que se pode aproveitar do marco clássico para resolver os problemas da distribuição, acumulação e crescimento, em primeiro lugar numa economia fechada e, depois, numa economia aberta.” ou mais. Este é o problema central porque a questão principal do desenvolvimento econômico é a rápida acumulação de capital (incluindo aí os conhecimentos e especializações). Nenhuma revolução “industrial” pode ser explicada (como pretendiam alguns historiadores econômicos) enquanto não se puder explicar por que aumentou relativamente a poupança em relação à renda nacional. (LEWIS, 2010, p. 428). Para que a poupança aumente, no entanto, não basta haver um aumento da renda nacional per capita (p. 429). Isso porque, como se sabe, pouca ou nenhuma poupança é feita pelos trabalhadores assalariados, sendo esta tarefa exclusiva dos capitalistas (e proprietários, em geral), remunerados por lucros e rendas e retratados como verdadeiros heróis sociais. Sem muita cerimônia, Lewis extrai desse ponto a seguinte conclusão: para que o problema do desenvolvimento seja resolvido, é preciso haver uma alteração na distribuição da renda em benefício da classe poupadora (isto é, da classe capitalista), e isso é tanto mais possível quanto menores os salários (ou seja, quanto mais os níveis salariais de subsistência se estenderem para a totalidade do sistema). Apresentando ainda um argumento muitíssimo similar àquele defendido por Ricardo,10 Lewis (2010) tenta mostrar como esse processo não pode prosseguir indefinidamente. Em determinado momento, a demanda crescente por mão de obra (ainda que não chegue a superar a oferta) gera uma pressão positiva sobre os salários e uma pressão negativa sobre os lucros, ou seja, “os salários começam a subir acima do nível de subsistência e o excedente capitalista vê-se afetado de modo 10 Estamos nos referindo aqui, mais especificamente, à noção ricardiana de estado estacionário, descrita pelo autor como a situação na qual deixa de haver incentivo a novos investimentos. No caso de Ricardo (1996), no entanto, essa tendência está associada a duas premissas básicas: (1) a teoria malthusiana do crescimento populacional e (2) a ideia de que o preço dos produtos agrícolas é regulado pelo trabalho necessário à produção nas terras menos férteis. Assim, à medida que o crescimento populacional fosse tornando necessária a produção em terras menos férteis, geraria um aumento no preço dos alimentos com consequente aumento de salários e queda dos lucros. 133 desfavorável” (p. 448), e isso, à medida que diminui o incentivo a novos investimentos, gera problemas para o desenvolvimento da economia. No entanto, é precisamente nesse ponto que a análise da “economia fechada” deve, segundo Lewis (2010), ser substituída pela “economia aberta”, a partir da qual se torna possível vislumbrar uma saída para o problema. Isso porque “os países que atingiram a escassez de trabalho se veem cercados por outros que têm trabalho em abundância”, e enquanto continuar a existir excedente de mão de obra disponível a salário de subsistência, em outros países, o problema pode ser resolvido de duas formas diferentes: incentivando-se a imigração ou exportando o capital. Após analisar as duas alternativas, Lewis (2010) chega a uma conclusão similar àquela defendida por Rosenstein-Rodan: a segunda solução (exportação de capital) é muito mais factível que a primeira, “visto que os sindicatos trabalham eficientemente contra a imigração, sendo, no entanto, muito menos eficazes no controle à exportação de capital” (p. 449). Antecipando possíveis críticas, Lewis se apressa em afirmar que esse não é o único fator que explica a exportação de capital: O que dá origem à exportação de capital não são, inevitavelmente, os lucros descendentes dentro do país, ou os salários em elevação, mas simplesmente o fato de que os países estrangeiros possuem diferentes recursos em diferentes graus de utilização, havendo, portanto, algumas oportunidades rentáveis para o investimento no exterior. (LEWIS, 2010, p. 452 et seq.) No entanto, naqueles países em que existe escassez de trabalho, “o efeito será a redução da demanda por trabalho, impedindo, assim, que os salários aumentem tanto como aumentariam de outro modo”. 134 Seção 5.2 Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento desequilibrado A teoria do desenvolvimento acima apresentada recebeu inúmeras críticas, entre as quais obtiveram grande repercussão as oferecidas por Gunnar Myrdal (1957 – Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas) e Albert Hirschman (1958 – A estratégia de desenvolvimento econômico). O primeiro, ganhador do Nobel de Economia em 1974 “pela análise penetrante da interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e institucionais”, estava particularmente interessado em oferecer um contraponto à concepção de círculo vicioso da pobreza formulada por Nurkse, criticando especialmente a ideia de equilíbrio por detrás dessa formulação. Nesse sentido, Myrdal (1972, p. 33) apresenta a tese da causação circular acumulativa, buscando mostrar que, se não controlado, o processo de mudanças sociais tende a provocar desequilíbrios crescentes.11 Começando com a defesa do caráter circular dos processos sociais, o autor utiliza como ilustração um estudo seu sobre a situação dos negros norte-americanos. Os leitores, naturalmente, não devem se prender aqui à explicação superficial e maniqueísta da condição de vida dos “negros norte-americanos”,12 mas à lógica da analogia pretendida por Myrdal: Em sua forma mais simples, o modelo explanatório se reduz a dois fatores: “o preconceito do branco”, que causa a discriminação contra os negros em vários aspectos, e o “baixo padrão de vida da população negra”. Esses dois fatores se relacionam mutuamente; o baixo padrão de vida dos negros é mantido pela discriminação dos brancos, enquanto, por outro lado, a pobreza, Segundo o autor, “essa ideia contém em poucas palavras o método mais objetivo de análise da mudança social, portanto, uma visão da teoria geral do desenvolvimento e do subdesenvolvimento pela qual todos estamos esperando” (MYRDAL, 1972, p. 33). 12 Como ignorar, por exemplo, o passado escravocrata dos Estados Unidos e as escassas possibilidades de ascensão social no capitalismo, mesmo num país conhecido por difundir ideologicamente a esperança de enriquecimento como um de seus valores fundantes? 11 135 a ignorância, a superstição, as más condições de habitação, as deficiências sanitárias, a sujeira, o mau cheiro [sic], a indisciplina, a instabilidade das relações familiares e a criminalidade dos negros estimulam e alimentam a antipatia dos brancos. (MYRDAL, 1972, p. 38). Nesse aspecto, portanto, a “causação circular” não se diferencia muito da noção de “círculo vicioso” apresentada por Nurkse: ambas explicam, no máximo, um aspecto do processo de reprodução de condições previamente causadas (caso contrário, seria preciso imaginar que os brancos e negros encontram-se em disparidade de condições por sua constituição genética, isto é, brancos teriam nascido ricos e cheirosos, e os negros, pobres e malcheirosos). No entanto, diferentemente do que foi defendido por Nurkse, Myrdal (1972, p. 39) afirma que “essa ‘acomodação’ estática é inteiramente fortuita, e não provoca, absolutamente, uma posição de equilíbrio estável”. Isso porque, Se qualquer um dos dois fatores se modificasse, haveria mudança no outro e, também, desencadearia um processo acumulativo de interação mútua, no qual a mudança em determinado fator seria continuamente apoiada pela reação do outro. Assim, sucessivamente, [...] todo o sistema se moveria na direção da mudança primária, de maneira cada vez mais ampla. Mesmo que o impulso original cessasse, depois de algum tempo, ambos os fatores se teriam alterado para sempre, ou, o que também poderia suceder, o processo de mudanças recíprocas persistiria, sem possibilidade de neutralização imediata. (MYRDAL, 1972, p. 39). Assim, enquanto Nurkse oferece uma imagem circular do funcionamento da economia, a imagem oferecida por Myrdal estaria mais próxima de uma espiral, para cima ou para baixo, dependendo do caráter da “mudança primária” (se positiva ou negativa). Segundo o autor, a noção de que o processo de 136 mudança social é acumulativo e opera em ambas as direções faz parte da própria sabedoria popular e é utilizada, ainda que de modo implícito, por “todo homem de negócio bem sucedido [...] na sua forma de resolver problemas práticos; de outro modo não obteria êxito” (MYRDAL, 1972, p. 44). Também no campo da política econômica, os “efeitos cumulativos” deveriam ser levados em conta e poderiam ser aproveitados em benefício público caso houvesse um bom conhecimento da relação entre as variáveis.13 Para tanto, partindo de uma concepção particular de “ideal científico”, Myrdal (1972, p. 42) defende que esse conhecimento deva assumir a forma “de um conjunto de equações quantitativas interdependentes, que descrevessem o movimento do sistema estudado sob as várias influências em jogo, e as mudanças internas”, ainda que uma formulação desse tipo, “completamente quantitativa e verdadeira”, esteja além de suas pretensões. Para dar fundamento à sua formulação, Myrdal recorre ainda aos estudos empíricos realizados pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa durante a década de 1950, que extraem das análises dos dados as seguintes conclusões: (1) as desigualdades são maiores nos países ricos do que nos países pobres e (2) as desigualdades tendem a se tornar menores nos países ricos e maiores nos países pobres (MYRDAL, 1972, p. 61 e 62). Segundo o autor, esse fenômeno explica-se, pois, quanto mais alto o nível de desenvolvimento de um país, mais fortes são os “efeitos positivos” e maior a capacidade de neutralizar os “efeitos negativos”, enquanto nos países subdesenvolvidos observa-se o contrário. Assim, a afirmação tautológica de Nurkse de que “um país é pobre porque é pobre” teria de ser substituída pelas seguintes proposições: (1) um país rico tende a tornar-se mais rico e (2) um país pobre tende a tornar-se cada vez mais pobre. 13 “Quanto mais conhecermos a maneira pela qual os diferentes fatores se inter-relacionam – os efeitos que a mudança primária de cada fator provocará em todos os outros – mais seremos capazes de estabelecer os meios de obter a maximização dos resultados de determinado esforço político, destinado a mover e alterar o sistema social” (MYRDAL, 1972, p. 43). 137 Para impedir, ainda que temporariamente, a continuidade dessa tendência, o Estado deveria atuar através da coordenação e planejamento, proteção do mercado interno e das indústrias nascentes etc. Além disso, os países deveriam trabalhar, sempre que possível, para transformar seus Estados nacionais em Estados de bem-estar social. Nas palavras do autor: Quanto mais um Estado Nacional se transforma, efetivamente, em um “Estado de Bem-Estar” – quanto mais se aproxima de uma democracia perfeita, tendo à sua disposição recursos nacionais, em tal magnitude, que seja possível o emprego, em grande escala, de políticas igualitárias, como sacrifícios toleráveis pelas regiões e grupos cujos padrões de vida são relativamente melhores – tanto mais fortes serão a necessidade e a capacidade de combater as forças cegas de mercado que tendem a provocar desigualdades regionais. Esse fato por sua vez impulsionará o desenvolvimento econômico e assim, sucessivamente, em processo de causação circular. (MYRDAL, 1972, p. 72). Uma ideia semelhante pode ser encontrada no trabalho de Hirschman (1961, p. 87 e 88), que constrói seu argumento como contraponto direto à noção de crescimento equilibrado. Para o autor, em primeiro lugar, essa perspectiva seria marcada por uma espécie de esquizofrenia, visto que “combina uma atitude derrotista acerca das possibilidades das economias subdesenvolvidas com esperanças inteiramente fictícias sobre o seu poder de criação”. Em outras palavras, “se um país estivesse em condições de aplicar a doutrina do desenvolvimento equilibrado”, investindo em uma grande quantidade de indústrias novas ao mesmo tempo, “então, preliminarmente, não seria um país subdesenvolvido”. Em segundo lugar, a teoria do crescimento equilibrado poderia ser vista, na melhor das hipóteses, como um exercício de “estática comparativa retrospectiva”, que, ao observar a existência de certo equilíbrio entre os diferentes setores em uma 138 economia desenvolvida, supõe que os setores cresceram efetivamente na mesma proporção durante o período revisto. Para o autor, ao contrário, “o desenvolvimento equilibrado, que se revela nos dois instantes fotográficos, tirados em dois períodos de tempo diferentes, representa o resultado final de uma série de avanços desiguais de um setor, seguido pelos outros setores que o procuram alcançar” (HIRSCHMAN, 1961, p. 102). Assim, essa teoria não seria capaz de explicar o processo através do qual as economias transitam do estado inicial de “equilíbrio do subdesenvolvimento” ao “equilíbrio de desenvolvimento” nem de oferecer uma solução prática para o problema. Como comprova a experiência (empírica), a “solução simultânea” se mostraria “especialmente inaplicável pelo fomentador de decisões, nos países subdesenvolvidos” (HIRSCHMAN, 1961, p. 9), impraticável e antieconômica, quer ou não o governo viesse em auxílio. Sobre esse ponto, ressalta o autor: A última cláusula é importante, pois a doutrina do desenvolvimento equilibrado é geralmente invocada como justificativa para o sentido de governo centralizado e coordenador do processo de desenvolvimento. Mas tal justificativa dificilmente convence. Uma tarefa que o empreendimento privado ou que os valores do mercado sejam incapazes de realizar não se torna, ipso facto, idealmente adequada à execução pelas autoridades públicas. Temos de reconhecer que obras há que simplesmente excedem a capacidade de um grupo social, não importa a quem sejam confiadas. O desenvolvimento equilibrado, no sentido de desenvolvimento simultâneo, múltiplo, parece ser uma delas. (HIRSCHMAN, 1961, p. 90) Na tentativa de dar fundamento a sua formulação, Hirschman (1982, p. 11) procura, em primeiro lugar, generalizar o diagnóstico do subemprego como traço característico do subdesenvolvimento, argumentando que, ao contrário do que normalmente 139 afirmam os teóricos do desenvolvimento, “os países subdesenvolvidos [possuem] efetivamente reservas ocultas [...] não apenas de mão de obra, mas de poupanças, capacidade empresarial e outros recursos”. Assim, se o problema não consiste na falta de recursos, a solução não deve ser procurada na “importação” dos recursos faltantes (seja capital, conhecimento técnico, espírito empreendedor etc.): trata-se, na verdade, de “provocar e mobilizar, com propósito desenvolvimentista, os recursos e as aptidões, que se acham ocultos, dispersos ou mal empregados” (HIRSCHMAN, 1961, p. 19). Para mobilizar esses recursos de forma “eficiente”, Hirschman (1961, p. 9; 102) defende, ao contrário de Rodan e Nurkse, uma estratégia de crescimento desequilibrado, que determine “pontos estratégicos básicos”, assinalando “prioridades de áreas ou setores ou a modalidade de esforço de industrialização a ser conseguido”. E, assim como sugerido por Myrdal em sua tese da causação acumulativa, Hirschman acredita que um impulso inicial em determinados setores tenderia a se espalhar para os demais, produzindo “progressos adicionais”. Seção 5.3 Rostow e o manifesto não comunista: uma síntese do debate? Como indicado anteriormente, reservamos a terceira seção do presente capítulo ao tratamento da teoria do desenvolvimento formulada por Rostow, especialmente em seu clássico As etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-comunista, publicado em 1952. Esta opção justifica-se, em primeiro lugar, pelo grande número de polêmicas suscitadas pelo seu trabalho, não apenas entre economistas, mas também entre historiadores e cientistas sociais, em geral.14 Em segundo lugar, entendemos que, apesar das inúmeras críticas, a teoria de Rostow não dista muito das anteriormente apresentadas: sustentando uma mesma concepção de desenvolvimento, o 14 140 Parte das polêmicas foi sistematizada e respondida pelo autor no prefácio e no apêndice (Os críticos e as evidências) incorporados à segunda edição do livro, dez anos depois. autor incorpora elementos da teoria do crescimento equilibrado e antecipa argumentos posteriormente defendidos pelos teóricos do crescimento desequilibrado. Mais do que isso, entendemos que o tratamento dado por Rostow à temática do desenvolvimento é bastante emblemático e sintetiza a noção de toda essa geração de trabalhos produzidos no período anterior à crise dos anos 1970.15 Em termos bastante sumários, Rostow (1974, p. 16 et seq.) busca nesse trabalho oferecer uma teoria geral da história, tomando como ponto de partida a observação e generalização de diversos casos e experiências nacionais de industrialização. Com isso, o autor chega a um conjunto de cinco etapas de desenvolvimento, dentro das quais qualquer formação social poderia ser enquadrada: a sociedade tradicional, as precondições para o arranco, o arranco, a marcha para a maturidade, e, por fim, a era de consumo em massa.16 De acordo com esta formulação, o subdesenvolvimento seria uma simples imagem do passado das economias desenvolvidas, sendo o trânsito de uma etapa a outra acessível a qualquer país que reunisse as condições necessárias para tanto.17 Começando com a primeira etapa, Rostow define a sociedade tradicional como “aquela cuja estrutura se expande dentro de funções de produção limitadas, baseadas em uma ciência Como pretendemos mostrar no Capítulo 7, alguns aspectos da noção de desenvolvimento aqui apresentada foram, inclusive, recentemente resgatados como base para a formulação de alternativas à estratégia neoliberal de desenvolvimento, dominante no período pós-1970, sendo uma das mais conhecidas tentativas de resgate aquela proposta por Ha-Joon Chang (2004) no livro Chutando a escada. 16 Com essa formulação, Rostow (1974, p. 14) pretende oferecer “uma alternativa à teoria de Karl Marx sobre a História”, dividida em quatro etapas: o feudalismo, o capitalismo burguês, o socialismo e o comunismo. Uma apresentação sistemática das semelhanças e diferenças entre as duas perspectivas foi realizada pelo autor e pode ser vista no capítulo intitulado “Marxismo, comunismo e etapas do desenvolvimento”. 17 Embora essa supersimplificação do processo histórico, característica do etapismo defendido por Rostow, tenha sido negada por grande parte dos teóricos do período, uma versão mais branda do etapismo encontra-se presente, ainda que não explicitamente, em toda a teoria clássica do desenvolvimento (à medida que o subdesenvolvimento é encarado, em última instância, como uma etapa prévia ao desenvolvimento). Uma apresentação crítica desse argumento pode ser vista, por exemplo, em Marini (1992, p. 72). 15 141 e tecnologia pré-newtonianas, assim como em atitudes pré-newtonianas diante do mundo físico”. Porém, o ponto central capaz de caracterizar qualquer uma destas sociedades tradicionais é o fato de estarem todas sujeitas a um teto máximo de produção per capita – e isto se justifica pelo não conhecimento das potencialidades que ciência e tecnologia viriam desvendar mais tarde.18 As precondições para o arranco são definidas como “a era de transição em que a sociedade se prepara – ou é preparada por forças externas – para o desenvolvimento sistemático” (ROSTOW, 1974, p. 30). As mudanças que então operam sobre as economias decorrem fundamentalmente da influência sobre o processo produtivo da ciência moderna em avanço, em paralelo à expansão do mercado mundial e, consequentemente, da concorrência internacional. Nas palavras do autor: Dissemina-se a ideia de que não só é possível o progresso econômico, mas também que ele é condição indispensável para uma outra finalidade considerada benéfica: seja ela a dignidade nacional, o lucro privado, o bem-estar geral, ou uma vida melhor para os filhos. Aparecem novos tipos de homens de empresa – na economia privada, no governo ou em ambos – dispostos a mobilizar economias ou a correr riscos visando ao lucro ou à modernização. Despontam bancos e outras instituições destinadas à mobilização de capital. Crescem os investimentos, notadamente em transportes, comunicações e matérias-primas em que outras nações possam ter um interesse econômico. Alarga-se a órbita do comércio interna e externamente. (ROSTOW, 1974, p. 19 et seq.) 18 142 “Em termos de História, pois, com o nome ‘sociedade tradicional’ nós englobamos todo o mundo pré-newtoniano; as dinastias da China; a civilização do Oriente Médio e do Mediterrâneo; o mundo da Europa medieval. E ainda adicionamos as sociedades pós-newtonianas que, por certo tempo, permaneceram intatas ou indiferentes à nova capacidade do homem para manipular regularmente o meio ambiente tendo em vista seu proveito econômico” (ROSTOW, 1974, p. 18). Nessa definição de “sociedade tradicional”, podemos observar um exemplo claro de anacronismo, comum a diversas teorias do período, do qual falaremos mais detalhadamente na próxima seção. Porém, ressalta Rostow, muito tempo se passa até que estejam postas estas condições, e essa lentidão deve-se ao fato de as economias permanecerem limitadas pelos métodos tradicionais, pela estrutura social, valores e instituições políticas ainda remanescentes do período anterior. Principalmente sobre esse aspecto político, Rostow afirma ser imprescindível ao arranco a constituição de um Estado nacional centralizado, “aspecto decisivo do período das precondições”. Terminado este estado transitório, estaria posto, portanto, o arranco, momento “decisivo da história de uma sociedade em que o desenvolvimento passa a ser sua condição normal” (ROSTOW, 1974, p. 52).19 Apresentando uma noção de desenvolvimento plenamente compatível com aquela defendida pelos demais autores do período, Rostow (2010) define esta fase como o intervalo durante o qual a taxa de investimento cresce de tal modo que aumenta o produto real per capita, proporcionando esse aumento inicial transformações radicais nas técnicas de produção e na disposição dos fluxos de renda que perpetuam a nova escala de investimentos e, assim, perpetuam também a tendência crescente do produto per capita. (ROSTOW, 2010, p. 181) Seria, portanto, uma espécie de “revolução industrial ligada diretamente a transformações radicais nos métodos de produção e que obtém resultados decisivos num prazo relativamente curto” (ROSTOW, 2010, p. 205).20 Observamos, portanto, que, assim como defendido por Lewis, Rostow (1974, p. 65) acredita que o sucesso da estratégia Note-se que esta etapa, também conhecida como decolagem (ou take-off), é bastante similar ao grande impulso (ou big push) de Nurkse: enquanto, para Nurkse, uma economia, ao libertar-se das amarras do círculo vicioso da pobreza, ingressa em uma situação de crescimento equilibrado, para Rostow, o estímulo que detona o arranco faz com que o crescimento passe a ser o estado normal da economia. 20 Um quadro com os registros dos períodos de decolagem de alguns países que chegaram à etapa do crescimento autossustentado pode ser visto em Rostow (2010, p. 187; 1974, p. 54). 19 143 depende não apenas do aumento da renda per capita, mas também de uma mudança na “disposição dos fluxos de renda” em favor da “classe poupadora”, sendo esta “uma das ideias mais antigas e básicas da Economia”. Além disso, defendendo uma estratégia de desenvolvimento um tanto similar à estratégia de crescimento desequilibrado, Rostow (1974, p. 55 e 56) insiste que o aumento expressivo da taxa de investimento com relação ao produto nacional (até 10% do produto nacional líquido, aproximadamente) deve ser direcionado especialmente para alguns setores manufatureiros básicos, com elevados índices de crescimento, capazes de gerar estímulos sobre os demais setores da economia. Estes setores, chamados pelo autor de “líderes”, “devem ser tais que sua expansão e sua transformação técnica induzam, para o aumento de sua capacidade, uma cadeia de necessidades [...] e o potencial de novas funções de produção em outros setores, ao que a sociedade deve responder progressiva e eficazmente” (ROSTOW, 2010, p. 205 et seq.). Em síntese: [...] o crescimento rápido de um ou mais novos setores manufatureiros é uma força poderosa e essencial de transformação econômica. Sua potência deriva da multiplicidade de formas que seu impacto pode ter, desde que a sociedade esteja disposta a responder positivamente a ele. O crescimento nesses setores, com novas funções de produção de elevada produtividade, tende, por si mesmo, a aumentar o produto per capita, colocando rendas em poder de gente que não só poupa uma porção mais elevada da renda crescente como também a empregará em investimentos altamente produtivos; estabelece uma cadeia de demanda efetiva para outros produtos manufaturados; provoca a necessidade de maiores áreas urbanas, que podem ter custos de capital elevados, mas cuja população e organização de mercado contribuem para fazer da industrialização um processo continuamente em marcha; e, finalmente, abre um conjunto de economias externas que contribuem, 144 em última análise, para criar novos setores líderes quando começa a diminuir o impulso inicial dos setores líderes na decolagem. Passado esse momento, a capacidade de expansão da riqueza produzida se tornaria mais ou menos automática, e as economias poderiam seguir uma trajetória quase natural rumo aos limites de suas potencialidades produtivas, até chegar à era do consumo em massa: “uma fase de que os norte-americanos estão principiando a sair; cujas alegrias, nem sempre nítidas, a Europa ocidental e o Japão estão começando a experimentar, e com a qual a sociedade soviética está flertando meio contrafeita” (ROSTOW, 1974, p. 23). Nessa etapa, possível apenas depois de atingida a maturidade tecnológica, as sociedades poderiam reconsiderar suas finalidades, valores etc., e transferir sua atenção da “oferta para a procura, dos problemas de produção para os de consumo e para os do bem-estar, na mais ampla acepção” (ROSTOW, 1974, p. 96 et seq.). Em primeiro lugar, as nações poderiam aproveitar o nível elevado de recursos para aumentar, política e/ou militarmente, seu “poderio e influência no exterior”. Em segundo lugar, poderiam empregar os “poderes do Estado, inclusive o de redistribuir a renda por meio de impostos progressivos, para alcançar objetivos humanos e sociais (abrangendo, nisso, o lazer crescente) que o processo do mercado livre, em sua forma menos adulterada, não conseguiu”. Por fim, “a expansão dos níveis de consumo para além das necessidades fundamentais de alimentação, habitação e vestuário” permitiria que essas sociedades chegassem “à órbita do consumo em massa de bens duráveis de consumo e serviços, que as economias amadurecidas do século XX podem proporcionar”. A partir daí, a questão levantada por Rostow (1974, p. 114 et seq.) é a seguinte: o que esperar para além do consumo em massa? O que aconteceria no momento em que os indivíduos tivessem acesso a literalmente tudo o que poderiam desejar com a renda que possuem? Que sentido dariam a suas próprias vidas? Será que a humanidade cairia “em uma estagnação espiritual, 145 não encontrando nenhuma aplicação digna para suas energias, talentos, e o instinto para atingir a imortalidade?”. Tomando por referência a última questão, a resposta de Rostow é não, por enquanto. Antes que os “habitantes de países bem governados e bem administrados” sejam acometidos pelo tédio, os países desenvolvidos deveriam se empenhar na resolução de dois problemas diferentes: o primeiro, relacionado à “existência de armas modernas de destruição em massa que, se não forem domadas e controladas, poderão solucionar este e todos os outros problemas da raça humana, de uma vez por todas”, e o segundo, relacionado ao “fato de que toda a metade austral do globo, mais a China, está envolvida ativamente na etapa das precondições para o arranco ou no arranco propriamente dito”. Assim, Estes dois problemas – o da corrida armamentista e o das novas nações cheias de aspirações –, intimamente relacionados no mundo da diplomacia contemporânea, apresentam, para as sociedades setentrionais tecnicamente mais amadurecidas, uma ordem do dia das mais trabalhosas, para o que, a despeito das doçuras dos bens duráveis de consumo dos serviços, e até mesmo das famílias maiores, devemos voltar nossa atenção se quisermos ter uma oportunidade de ver se poderá ser vencida a estagnação espiritual secular – ou o tédio. Observamos, portanto, que, levadas ao extremo, as projeções feitas por Rostow (1974, p. 198) para o futuro do capitalismo se aproximam significativamente daquelas realizadas por Smith: uma vez que as nações mais pródigas são agraciadas com os benefícios do desenvolvimento, este se espalha progressivamente para as demais, “até o dia em que [toda a humanidade possa] partilhar as opções abertas na etapa do consumo em massa e além dela, mas também no processo da marcha para aquela etapa”.21 Aqui, novamente, Rostow oferece 21 146 Mesmo não havendo uma referência explícita ao trabalho de Smith, o caráter marcadamente etapista da teoria de Rostow também pode ser visto uma versão radicalizada do ideal de desenvolvimento compartilhado por grande parte das teorias do pós-guerra. Como veremos no Capítulo 7, a possibilidade de realização desse ideal de sociedade e consequente expansão do padrão de consumo norte-americano para as demais regiões do globo foram questionadas no próprio âmbito das teorias do desenvolvimento (que, particularmente preocupadas com a evidente degradação ambiental decorrente desse modelo de desenvolvimento, passaram a dar tratamento mais sistemático a questões de cunho ecológico). Mas, antes de falar sobre o surgimento dessa e de outras novas perspectivas, encerramos o capítulo com algumas conclusões que podem ser extraídas da análise das teorias clássicas do desenvolvimento. Seção 5.4 Considerações finais Vale notar de antemão que, assim como nos demais capítulos, as proposições desta seção conclusiva não pretendem esgotar o conjunto de considerações críticas dirigidas às teorias aqui examinadas, sequer no que diz respeito ao argumento do próprio estudo. O principal, neste momento, é demonstrar que as teorias sob análise neste capítulo encontram-se no interior do amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma crítica conjunta, fundamentada no desenvolvimento teórico da Parte I e apresentada ao final deste livro. Neste sentido, o que importa são os elementos destacados a seguir, identificáveis, de modo diverso, nas interpretações anteriormente apresentadas. Em primeiro lugar, observamos que essas teorias compartilham uma mesma concepção de desenvolvimento, entendido como sinônimo de crescimento do produto (per capita). Considerando que o produto só adquire homogeneidade, tornando-se passível de agregação, quando considerado em termos de valor, o desenvolvimento significa porções crescentes de valor como uma herança dos autores clássicos. Em A riqueza das nações, por exemplo, tratando das despesas com a defesa nacional, Smith (1996, p. 173) apresenta e compara a sociedade de caçadores, de pastores, de agricultores e, finalmente, a sociedade comercial. Para mais informações sobre o tema, conferir ainda Brewer (2008). 147 produzido. Como só mercadoria tem valor, esta noção de desenvolvimento pressupõe que o produto tenha forma mercantil, ou seja, pressupõe a mercadoria como forma elementar da riqueza. Mais do que isso, como destacado no Apêndice do Capítulo 2, a generalização da forma-mercadoria e, consequentemente, da articulação de unidades produtivas por meio da troca coloca a necessidade da produção de riqueza material e valor em escala crescente. As teorias do desenvolvimento, portanto, terminam por projetar sobre toda a história e sociedades as formas de riqueza e trabalho que são historicamente específicas do capitalismo, dando inteligibilidade científica ao impulso ao aumento da riqueza (uma das determinações mais importantes da dinâmica capitalista). Em segundo lugar, observamos que essas teorias compartilham um mesmo ideal de desenvolvimento (isto é, de crescimento do produto, associado ao aumento da capacidade de consumo e do bem-estar da população), profundamente influenciado pelo período de prosperidade e expansão posterior à Segunda Guerra Mundial, também conhecido como “Era de Ouro do capitalismo”. Como discutido na primeira seção do Capítulo 3, as particularidades deste período (associadas a reorientações de cunho político-ideológico e no âmbito da estrutura produtiva, posteriormente conhecidas como fordista-keynesianas) permitiram aos países capitalistas desenvolvidos manter índices elevados de crescimento do produto, da produtividade, do emprego, dos salários etc., garantindo melhorias nas condições de vida da população, em geral. Não é estranho, portanto, que, diante desse contexto, tenha se disseminado entre a opinião pública, em geral, e entre os cientistas, em particular, a crença na possibilidade de levar as condições privilegiadas das nações mais ricas para as nações mais pobres (e que a própria condição de pobreza tenha sido associada não ao capitalismo em si, mas a um momento ainda não desenvolvido desse sistema). Por fim, também não causa estranheza que o anúncio das práticas “corretas” necessárias à realização de tal projeto fosse plenamente compatível com o (e, por vezes, uma cópia fiel do) 148 padrão de intervenção e planejamento adotado pelos países “bem-sucedidos”. Por mais difícil que a tarefa tenha parecido a alguns, a convicção de que seria possível levar o conjunto de práticas “corretas” (juntamente com os recursos, em alguns casos) para os países subdesenvolvidos pode ainda ser explicada, em parte, pelo evidente sucesso do Plano Marshall no que tange à reconstrução da Europa ocidental arrasada pelas guerras.22 Ainda que o esforço de reconstrução fosse evidentemente reconhecido como uma situação particular, acreditava-se que os países subdesenvolvidos poderiam, ao menos, aproveitar o aparato institucional disponível e, combinando ajuda externa e planejamento, obter o almejado crescimento da riqueza – assim como se fez, em muitos casos. Esta tarefa mostrava-se ainda mais urgente por causa da “ameaça” (suposta ou concreta, pouco importa) de avanço do “bloco comunista” sobre os países que seriam objeto das políticas de desenvolvimento. Como, de fato, a disparidade entre os níveis de desenvolvimento (tal como definido anteriormente) das nações capitalistas tem o potencial de provocar contraditórios e não raramente perniciosos efeitos econômicos e políticos – tais como crises econômicas internacionais, acirramento da competição, guerras, ocupação colonialista –­ , seria surpreendente se a consciência científica permanecesse alheia aos problemas trazidos por tal disparidade. Num mundo em que há países considerados pobres e outros considerados ricos, a ciência não pode se furtar a discutir por que uns são pobres e outros, ricos, nem deixar de lado a pergunta a respeito da melhor maneira de fazer dos pobres, ricos. E como visto ao longo do capítulo, a resposta oferecida pelas teorias em análise – exatamente como a resposta das teorias apresentadas no capítulo anterior e no que se segue – foi basicamente a seguinte: a recriação nos países pobres das estruturas das sociedades afluentes, seja lá como elas forem concebidas. 22 Sem falar no verdadeiro espanto provocado pela acelerada modernização da Rússia e dos demais países que compuseram a União Soviética. 149 Capítulo 6 Teorias clássicas do desenvolvimento (II): em defesa da industrialização na América Latina Além das teorias do desenvolvimento que tratam das regiões subdesenvolvidas em geral, apresentadas no capítulo anterior, também se destacam no período pré-1970 aquelas teorias que se dedicaram especificamente ao estudo do caso latino-americano, gestadas, em sua maioria, no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal). Fundada em 1948 como uma agência regional da Organização das Nações Unidas (ONU),1 a Cepal tem como principal objetivo “contribuir para o desenvolvimento econômico da América Latina, coordenar as ações destinadas a sua promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e com as demais nações do mundo”.2 Assim, apesar do foco na formulação de propostas que orientem os policy-makers da região, a Cepal terminou por produzir um entendimento particular a respeito das causas do subdesenvolvimento, consolidado e refinado durante as décadas seguintes, mas cujas características gerais são reveladas no seu primeiro documento de grande repercussão: Estudio económico de la America Latina, publicado em 1949.3 Como explicitado já nas páginas iniciais desse documento, a teoria do desenvolvimento produzida pela Cepal, diferentemente das anteriormente apresentadas, toma como ponto de partida uma crítica explícita à teoria ricardiana das vantagens comparativas – utilizada, ainda hoje, como base do entendimento convencional sobre as relações de comércio entre países. Amparada em evidências empíricas, a Cepal procurou demonstrar como, ao contrário de gerar benefícios para todos, a troca 1 2 3 Que no mesmo período criou Comissões Econômicas para a Europa, Ásia, Extremo Oriente e, posteriormente, para a África. Para mais informações sobre os propósitos e atividades realizados pela Cepal, conferir o sítio da instituição (www.eclac.org). A seção introdutória do documento, escrita por Raúl Prebisch (2000), que ganhou circulação independente sob o título O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas principais, tornou-se uma referência do pensamento cepalino do período e também será aqui utilizada como base para a exposição do argumento. 151 entre países desenvolvidos (exportadores de manufaturas) e subdesenvolvidos (exportadores de produtos primários) gerava resultados positivos para os primeiros e negativos para os últimos. Nesse sentido, tanto em virtude das diferenças na estrutura produtiva, quanto em função dos diferentes papéis desempenhados na divisão internacional do trabalho, a Cepal passou a chamar esses países de centrais e periféricos, respectivamente. Apesar das inegáveis peculiaridades da teoria cepalina, destrinçadas adiante, é possível também identificar algumas semelhanças entre o entendimento veiculado pela instituição e aquele encontrado nas demais teorias do desenvolvimento produzidas no imediato pós-guerra. Em primeiro lugar, observamos que a noção de desenvolvimento compartilhada (embora nem sempre explicitada) por essas teorias é essencialmente a mesma: aumento da renda per capita, na medida em que contribui para o aumento do “padrão de vida das massas”, ou ainda, do “bem-estar mensurável da coletividade” (PREBISCH, 2000, p. 72; p. 110). Também na teoria cepalina veremos como, ainda que por motivos distintos, a promoção do desenvolvimento deve necessariamente passar pela industrialização (tida, nesse caso, como o único mecanismo através do qual seria possível alterar a estrutura da divisão internacional do trabalho, responsável pela perpetuação do estado de subdesenvolvimento). Voltado exclusivamente à apreciação crítica da teoria do desenvolvimento formulada pela Cepal no período pré-1970, o presente capítulo encontra-se dividido em três seções. A seção a seguir busca esclarecer como o subdesenvolvimento é caracterizado a partir do “sistema centro-periferia” e da tendência à “deterioração dos termos de troca”. Na segunda, trataremos do papel desempenhado pela industrialização na estratégia de superação do subdesenvolvimento proposta pela Cepal. Na terceira e última seção, resgatamos alguns pontos indispensáveis à compreensão do argumento aqui defendido, chamando a atenção, mais uma vez, para o vínculo existente entre as teorias do desenvolvimento, o modo de produção capitalista em geral e o contexto histórico em particular. 152 Seção 6.1 O “sistema centro-periferia” e a deterioração dos termos de troca Como indicado anteriormente, o principal objetivo dos estudos pioneiros produzidos pela Cepal é encontrar explicações para o atraso dos países latino-americanos, e, consequentemente, apontar a melhor forma de superá-lo. Nesse sentido, utilizando uma metodologia de análise posteriormente conhecida como “histórico-estruturalista”,4 a Cepal busca explicar o subdesenvolvimento fundamentalmente a partir do “sistema centro-periferia”, capaz de revelar não apenas as diferenças nas estruturas socioeconômicas, mas também a sua perpetuação ao longo do tempo (determinada, basicamente, pelo mecanismo de difusão do progresso técnico e de distribuição dos ganhos desse progresso entre os diferentes países). De acordo com essa formulação, a diferença entre economias centrais e periféricas teria sua origem, antes de tudo, no longo processo de consolidação e expansão do modo de produção capitalista, ocorrido, fundamentalmente, a partir da Revolução Industrial.5 Assim, os países centrais seriam aqueles pioneiros no processo de industrialização e incorporação das técnicas capitalistas de produção, em torno dos quais vai se formando, progressivamente, uma periferia “vasta e heterogênea”, com “participação escassa no aperfeiçoamento da produtividade” (CEPAL, 2000a, p. 139 et seq.). Além disso, enquanto os países centrais seriam caracterizados pela grande capacidade de absorção e difusão do progresso técnico para as mais distintas atividades, na periferia, ao contrário, “o 4 5 Segundo Bielschowsky (2000, p. 21), este método de análise tornar-se-ia uma das marcas distintivas do pensamento da Cepal. Uma descrição minuciosa do estruturalismo latino-americano pode ser vista ainda em Rodríguez (1981; 2009). Como consta no documento de 1949, a formação dos grandes centros industriais teria sido resultado de um movimento que se iniciou “na Grã-Bretanha, prosseguiu com graus variáveis de intensidade no continente europeu, adquiriu um impulso extraordinário nos Estados Unidos e finalmente abrangeu o Japão, quando este país se empenhou em assimilar rapidamente os modos de produção ocidentais” (CEPAL, 2000a, p. 139). Uma análise similar sobre o marco histórico do processo desenvolvimento-subdesenvolvimento também pode ser vista em Sunkel (1973). 153 progresso técnico só se dá em setores exíguos de sua imensa população, pois, em geral, penetra unicamente onde se faz necessário para produzir alimentos e matérias-primas a custo baixo, com destino aos grandes centros industrializados”. Tanto em função da posição relativamente privilegiada de que partem os países centrais, quanto em função do mecanismo de difusão do progresso técnico no interior dos países, consolidam-se estruturas produtivas bastante diferentes nos países centrais e periféricos: diversificadas e homogêneas nos primeiros e especializadas e heterogêneas nos últimos.6 Associado a isso, assiste-se também à consolidação de uma estrutura de divisão internacional do trabalho dentro da qual caberia “à América Latina, como parte da periferia do sistema econômico mundial, o papel específico de produzir alimentos e matérias-primas para os grandes centros industriais” (PREBISCH, 2000, p. 71). De acordo com a interpretação dominante, compartilhada por grande parte das teorias do desenvolvimento e amparada, ainda que nem sempre de modo explícito, na teoria ricardiana das vantagens comparativas, essa especialização seria benéfica para todas as partes envolvidas. Isso porque, se cada país se especializasse naquela atividade em que possui vantagens relativas, o comércio internacional terminaria por distribuir os frutos do progresso técnico pelos diferentes países, de maneira equitativa, através da queda dos preços (e correspondente aumento do poder de compra), promovendo uma convergência da riqueza das nações. 6 154 Apenas para enfatizar, a estrutura produtiva periférica era entendida como especializada porque se amparava, quase que exclusivamente, no setor ligado aos produtos de exportação, “com baixo grau de diversificação e com complementaridade intersetorial e integração vertical extremamente reduzidas” (BIELSCHOWSKY, 2000, p. 32). Uma vez que apenas aquele setor (e alguns poucos a ele associados) conseguia absorver tecnologias modernas, configurava-se igualmente uma fratura da estrutura produtiva, marcada pela coexistência de setores modernos e atrasados, conformando a chamada heterogeneidade estrutural. Como observam Bielschowsky (2000) e Rodríguez (1981, p. 50), no entanto, ainda que se aplique à formulação cepalina dos anos 1950, o conceito de “heterogeneidade estrutural” só seria utilizado pela primeira vez por Aníbal Pinto, na década de 1960. Assim, se as variações nos preços efetivamente acompanhassem as variações de produtividade, um aumento de produtividade mais intenso nas indústrias dos países centrais do que nos setores primários periféricos deveria vir acompanhado de uma queda nos preços dos produtos manufaturados superior à queda nos preços dos produtos primários. Nesse caso, “a relação de preços entre ambos teria melhorado persistentemente em favor dos países da periferia, à medida que se desenvolvesse a disparidade das produtividades” (PREBISCH, 2000, p. 80 e 81 et seq.), indicando que, com a mesma quantidade de produtos primários, seria possível adquirir uma quantidade maior de produtos manufaturados. Não haveria, portanto, qualquer incentivo à industrialização na América Latina: “antes, haveria uma perda efetiva, enquanto não se alcançasse uma eficiência produtiva igual à dos países industrializados”. No entanto, não era esse o comportamento revelado pelos dados sobre a relação entre os preços dos produtos primários e os dos artigos finais da indústria, divulgados em um dos relatórios publicados pela ONU, também em 1949, extensamente utilizados pela Cepal. Ao contrário da variação de preços em favor da periferia, os dados mostraram que, entre o final do século XIX e meados do século XX, houve uma variação de preços em benefício dos países centrais – fenômeno também conhecido como deterioração dos termos de troca.7 Assim, além de não receber parte do fruto da maior produtividade dos países centrais, os países periféricos não teriam sido capazes de “reter para si todo o benefício do seu próprio progresso técnico, por terem tido que ceder uma parte dele aos produtores industriais” (CEPAL, 2000a, p. 143 e 144). De acordo com argumento defendido pela instituição, portanto, o que se observa ao longo do tempo é uma transferência dos ganhos de produtividade das regiões periféricas para as regiões centrais, promovendo disparidades crescentes, em vez da homogeneização da riqueza mundial. 7 Uma ideia muito similar foi apresentada de modo independente, também em 1949, por Hans Singer no artigo The distribution of gains between investing and borrowing countries. 155 Apesar da tendência geral à deterioração dos termos de troca, também era possível perceber que o movimento de cessão dos benefícios do progresso técnico não seguia um padrão uniforme, mudando de direção e intensidade, em função de diversos fatores explorados pela Cepal ao longo do relatório. Para compreender esse ponto, no entanto, é preciso ter em mente as já mencionadas diferenças das estruturas produtivas centrais e periféricas, os diferentes papéis desempenhados por essas economias na divisão internacional do trabalho e, a partir disso, observar a forma como cada uma delas se comporta diante das flutuações cíclicas. Como visto anteriormente, os países centrais seriam aqueles dotados de estruturas produtivas diversificadas e homogêneas, exportadores de produtos industrializados, e os países periféricos, caracterizados pela estrutura produtiva especializada e heterogênea e pela exportação de produtos primários. Considerando ainda que produção industrial e primária possui efeitos dinâmicos bastante distintos – ou seja, que o aumento da atividade industrial é capaz de fomentar a atividade primária, enquanto o inverso não se verifica (argumento que também será utilizado na defesa da industrialização), as fases ascendentes do ciclo, de aquecimento das atividades econômicas no centro terminariam por aumentar a demanda por produtos primários (alimentos e matérias-primas). Durante essa fase, portanto, o crescimento da demanda em relação à oferta geraria uma pressão “altista” sobre preços, lucros e salários, tanto no centro, quanto na periferia. Quando, nesse processo, o aumento dos preços dos produtos primários superasse o aumento dos preços dos produtos finais (tendência que, de acordo com a Cepal, poderia ser efetivamente observada nas fases cíclicas ascendentes), teríamos uma transferência de lucros do centro para a periferia (PREBISCH, 2000, p. 86 et seq.). Ainda segundo esse argumento, os desajustes nos termos de intercâmbio aconteceriam no momento de reversão do ciclo. Isso porque, se os “preços primários sobem com mais rapidez do que os finais na fase ascendente, [...] também descem mais do que estes na fase descendente, de tal forma que 156 os preços finais vão se distanciando progressivamente dos primários através dos ciclos”. Tal fenômeno seria, em termos gerais, um reflexo da rigidez em relação à baixa dos preços dos produtos industrializados nas fases descendentes dos ciclos, determinada, fundamentalmente, pela resistência à queda dos salários. Essa resistência à queda dos salários, por sua vez, seria resultado do maior poder de organização da classe trabalhadora nos países centrais, capaz não só de conseguir ganhos salariais significativos nas fases ascendentes, mas também de impedir a queda do seu padrão de vida nas fases descendentes. Na periferia, ao contrário, “a desorganização característica das massas trabalhadoras na produção primária, especialmente na agricultura [...], impede-as de conseguirem aumentos salariais comparáveis com os que vigoram nos países industrializados, ou de mantê-los com amplitude similar”. Assim, considerando a menor resistência à contração de renda (sejam lucros ou salários) nos países periféricos e o fato de ser a própria demanda por produtos primários dependente da demanda por produtos industrializados, os países centrais acabariam encontrando maior facilidade para “deslocar a pressão cíclica para a periferia, obrigando-a a contrair sua renda mais acentuadamente do que nos centros”. Em suma: [...] durante os ciclos, as relações de preços deslocam-se em favor dos produtos primários, nas fases crescentes; mas, em geral, nas fases decrescentes, perdem mais do que tinham ganhado durante o curso das primeiras. Assim, ao cair a relação de preços a cada depressão, mais do que havia melhorado na prosperidade, desenvolve-se através dos ciclos a tendência contínua ao agravamento dos termos de intercâmbio. (CEPAL, 2000a, p. 157 e 158). Com isso, a Cepal acredita ter mostrado como a dinâmica do capitalismo no plano internacional seria responsável não apenas pela produção de países ricos e países pobres, centrais e periféricos, mas também pela perpetuação dessa 157 desigualdade. Como esperamos mostrar na próxima seção, no entanto, essa não seria, para a Cepal, uma situação de todo irremediável: a superação do subdesenvolvimento e da condição periférica poderia, a despeito de todas as dificuldades, ser alcançada por meio da industrialização. Seção 6.2 Em defesa da industrialização na América Latina Como procuramos mostrar ao longo da seção anterior, além de ressaltar os fatores socioeconômicos inerentes às economias subdesenvolvidas, a interpretação proposta pela Cepal sugeria que a forma específica de inserção dessas economias no sistema de trocas internacionais, como exportadoras de produtos primários, determinava, em última instância, sua incapacidade de reter e acumular internamente os frutos de seu progresso técnico mantendo, assim, esses países em uma condição periférica. Diante dessa caracterização geral, a estratégia de superação do subdesenvolvimento deveria passar, necessariamente, pela mudança da inserção latino-americana na divisão internacional do trabalho, e a única forma de operar essa alteração, segundo a Cepal, seria através da industrialização. Nos termos de Prebisch (2000, p. 72): “Daí a importância fundamental da industrialização dos novos países. Ela não constitui um fim em si, mas é o único meio de que estes dispõem para ir captando uma parte do fruto do progresso técnico e elevando progressivamente o padrão de vida das massas.” Na verdade, como afirmado explicitamente pelo próprio Prebisch (1983, p. 1079), anos depois, as análises realizadas durante aquele período tratavam de apresentar justificativa teórica para o processo de industrialização já em curso em alguns países da América Latina, estimular aqueles que ainda não haviam iniciado tal processo e oferecer a todos um plano de ação. E esses esforços de reflexão e proposição (que davam sentido à existência da própria Cepal) mostravam-se tanto mais necessários, pois, ao mesmo tempo que a industrialização apresentava-se como uma alternativa para a promoção 158 do desenvolvimento na América Latina, tornavam-se cada vez mais evidentes as dificuldades envolvidas nesse processo. Sobre os primeiros passos no caminho da industrialização trilhados pelos países latino-americanos, é preciso chamar a atenção, em primeiro lugar, para o fato de terem sido impulsionados, grosso modo, pelas restrições ao comércio internacional impostas pelas duas Grandes Guerras e pela Grande Depressão dos anos 1930. Diante desses eventos, portanto, países até então marcados por uma dinâmica de desenvolvimento voltada para fora, isto é, estimulada predominantemente pelo crescimento das exportações, foram impelidos a adotar um novo padrão de desenvolvimento voltado para dentro, ou seja, marcado pela ampliação e diversificação da atividade industrial e pelo fortalecimento do mercado interno. Essa primeira etapa de industrialização espontânea, resultado da reação das economias periféricas aos sucessivos desequilíbrios no balanço de pagamentos, também ficaria conhecida como industrialização via substituição de importações (expressão presente já nos primeiros documentos produzidos pela Cepal, mas consagrada a partir da publicação do trabalho de Maria da Conceição Tavares (1973), no início dos anos 1960). Em segundo lugar, a industrialização via substituição de importações não deve ser confundida com um ataque à produção primária, com a busca da autossuficiência ou repúdio ao comércio internacional. Ao contrário, na medida em que o crescimento da produção primária voltada para a exportação era responsável pelo fornecimento de parte dos recursos necessários ao crescimento da indústria, em um contexto de escassez de divisas internacionais, o aperfeiçoamento desse setor deveria ser visto, nos termos de Prebisch (1983, p. 73), como “uma das condições essenciais para que o desenvolvimento da indústria [pudesse] ir cumprindo o objetivo social de elevar o padrão de vida.” Apenas para reforçar o entendimento da perspectiva acima apresentada: “a solução não está em crescer à custa do comércio exterior, mas em saber extrair, de um comércio exterior cada vez maior, os elementos propulsores do desenvolvimento”. 159 Na formulação proposta por Tavares (1973, p. 34 e 35), a mesma questão poderia ser colocada nos seguintes termos: ainda que o processo de industrialização tenha sido responsável por um deslocamento do eixo dinâmico da economia – da variável exógena “exportação”, para a variável endógena “investimento” –, setor exportador e comércio internacional continuariam a desempenhar um papel relevante, contribuindo para a diversificação da estrutura produtiva através das importações. No entanto, de acordo com Tavares (1973), seria preciso ainda chamar a atenção para o caráter parcial e fechado das transformações operadas nos países periféricos durante esse período: parcial, pois a sobrevivência de uma “base exportadora precária e sem dinamismo” foi responsável, em grande medida, pela manutenção do estrangulamento externo; e fechado, pois as mudanças na divisão social do trabalho não foram em absoluto acompanhadas por simultânea transformação na divisão internacional do trabalho. Nos termos da autora, o processo de substituição de importações deve ser entendido, portanto, “como um processo de desenvolvimento ‘parcial’ e ‘fechado’ que, respondendo às restrições do comércio exterior, procurou repetir aceleradamente, em condições históricas distintas, a experiência de industrialização dos países desenvolvidos”. Sobre esse último ponto, é importante ressaltar que o reconhecimento dos contrastes e disparidades entre o processo tardio de industrialização na América Latina e aquele experimentado pelos países hoje centrais, quando consolidaram suas indústrias no final do século XIX, desempenhou um papel central na definição da estratégia de industrialização e serviu, em conjunto com outros motivos, como amparo para a defesa da intervenção do Estado na economia proposta pela Cepal. Apenas para oferecer um panorama geral, os principais contrastes e disparidades poderiam ser agrupados em torno de um problema fundamental: a dificuldade de incorporação das técnicas modernas de produção pelos países latino-americanos. Entre as dificuldades mais ressaltadas nos documentos produzidos pela instituição, destaca-se, em primeiro lugar, 160 aquela relacionada à escassez de poupança.8 Isso porque, enquanto no período inicial do processo de industrialização dos países centrais a pouca disponibilidade de recursos (determinada pela baixa renda per capita) mostrava-se compatível com a quantidade (também baixa) de capital exigida para o emprego das técnicas existentes, a incorporação das técnicas modernas pelos países da América Latina, à medida que exigia uma quantidade considerável de recursos, tropeçava constantemente na escassez de poupança (decorrente do baixo nível de renda per capita) (CEPAL, 2000a, p. 163). Além disso, no caso dos países periféricos, a produção em grande escala também esbarraria em limites impostos pelo lado da demanda. Isso porque, enquanto nos países centrais “a renda originalmente exígua coincidiu com formas de produção de escala proporcionalmente reduzida” – havendo tempo para que o aumento da renda acompanhasse o aumento de produtividade e garantisse a absorção do aumento de produção –, nos países que incorporam tardiamente as técnicas industriais modernas, “a demanda é baixa porque a produtividade é pequena, e esta o é porque a demanda exígua se opõe, por sua vez, juntamente com outros fatores à utilização de elementos de técnica mais avançada” (CEPAL, 2000a, p. 164).9 Sobre o lado da demanda, poderia ser mencionado ainda o conhecido “efeito demonstração”, que produz na população periférica o desejo de manter um padrão de consumo equivalente ao padrão de consumo dos países centrais e gera impactos negativos sobre a poupança e o balanço de pagamentos. 8 9 Não poderia deixar de notar com certa estranheza o fato de a Cepal ter incorporado em sua formulação, nesse ponto particular, um dos axiomas fundamentais de toda teoria ortodoxa: a ideia de que o investimento tem por pressuposto a poupança. Vale ressaltar, inclusive, que este talvez tenha sido um dos pontos centrais da crítica dirigida por Tavares e Serra (1973, p. 159) a Celso Furtado, evidenciada quando afirmam que “Furtado parece ter vestido a ‘camisa de força’ de um modelo neoclássico de equilíbrio geral – elegante, mas ineficaz para explicar a dinâmica de uma economia capitalista”. Essa é uma tese muito difundida a partir do trabalho clássico de Alexander Gerschenkron (1962) sobre o perfil diferenciado dos países de industrialização retardatária. No caso da industrialização brasileira, um estudo clássico sobre a especificidade que explica e provoca o “atraso” no processo de industrialização é aquele oferecido por João Manuel Cardoso de Mello (1982). 161 Por fim, a incorporação de técnicas modernas também esbarraria, no caso dos países periféricos, no excesso de população. Como se sabe, o progresso técnico implica normalmente a substituição de técnicas mais intensivas em mão de obra por técnicas mais intensivas em capital (e poupadoras de mão de obra), tanto nos países centrais, quanto nos países periféricos. Nos países centrais, no entanto, o florescimento das indústrias de bens de capital acabaria servindo como “poderoso elemento de absorção da mão-de-obra desempregada”. Como nos países periféricos geralmente o setor de bens de capital é incipiente (ou inexistente), não apenas o mecanismo de absorção de mão de obra deixaria de funcionar, mas também a demanda por bens de capital “passa a provocar efeitos na economia dos centros industrializados, onde esses bens de capital são produzidos”. Além disso, considerando o nível baixo de salários encontrado nos países periféricos, nem sempre a introdução de novas tecnologias se mostraria economicamente interessante (CEPAL, 2000a, p. 167 e 168). Nesse sentido, ainda que a Cepal (2000a, p. 164) tenha reconhecido as vantagens de “encontrar nos grandes centros uma técnica que custou a estes muito tempo e sacrifício”, as inúmeras “desvantagens inerentes ao fato de acompanharem tardiamente a evolução dos acontecimentos” tornavam a atuação deliberada do Estado na promoção do desenvolvimento ainda mais importante no caso dos países periféricos. Além de produzir a já mencionada deterioração dos termos de troca (responsável pela manutenção da condição periférica), no plano internacional, o livre jogo das forças de mercado também não seria capaz de corrigir os problemas acima enunciados. Nos termos de Prebisch (1983, p. 1083), as mudanças estruturais inerentes à industrialização requerem racionalidade e visão de uma política governamental e investimento em infraestrutura para acelerar o crescimento econômico, obter uma relação adequada entre a indústria e a agricultura e outras atividades, e reduzir a vulnerabilidade externa. Portanto, [há] fortes razões em favor do planejamento. 162 Seção 6.3 Considerações finais Uma vez apresentadas as linhas gerais da teoria do desenvolvimento produzida no âmbito da Cepal, dedicamos esta seção de encerramento do capítulo à indicação de alguns elementos que permitam reunir a formulação cepalina no conjunto mais amplo de concepções que encaram o desenvolvimento exclusivamente em termos da reprodução, em escala universal, das relações sociais capitalistas. Iniciamos, portanto, resgatando alguns pressupostos fundamentais compartilhados pela teoria cepalina e as demais teorias do desenvolvimento formuladas no período: a despeito das particularidades, compartilham todas uma mesma noção de desenvolvimento (que toma como pressuposto a forma elementar de riqueza característica do capitalismo), uma mesma estratégia de desenvolvimento (que toma como pressuposto o modo industrial de produzir) e um mesmo ideal de desenvolvimento (espelhado nos países capitalistas desenvolvidos). Com a indicação desses elementos comuns às teorias analisadas nos três últimos capítulos, não pretendemos, no entanto, negar a existência de especificidades – sejam elas determinadas por fatores de origem histórica, geográfica, teórica, ideológica etc. No que diz respeito ao referente histórico-geográfico, por exemplo, vale recordar que as reflexões produzidas pela Cepal estavam particularmente direcionadas para a situação dos países latino-americanos. Do mesmo modo, no que tange aos fatores teórico-ideológicos, também não podemos deixar de reconhecer o fato de que todo o conjunto de teorias associadas à Cepal, ou ao estruturalismo de modo mais amplo, é construído como crítica do ideário liberal-conservador. Nesse sentido, é preciso perceber que o ideal de desenvolvimento projetado pela Cepal efetivamente difere, em certos aspectos, da imagem veiculada pelas teorias de inspiração liberal – basta lembrar, por exemplo, a visão cepalina sobre o funcionamento do mercado no plano internacional ou sobre a necessidade do planejamento, cientificamente amparado – e, por esse motivo, reclama o estatuto de “teoria crítica”. 163 Considerando, no entanto, que a Cepal articulava uma imagem de futuro que tinha também como contraponto o ideal construído em torno do “socialismo realmente existente”, não fica difícil concluir que se trata de mais uma instância de uma visão de mundo conservadora. Enquadrando essas ideias no contexto mais amplo do mundo bipolarizado do pós-guerra, não fica difícil perceber o papel desempenhado por parte das comissões regionais (criadas todas naquele mesmo período) na “domesticação ideológica” do Terceiro Mundo (MARINI, 1992, p. 73 e 74). Como já havíamos indicado, o objetivo da Cepal e das demais comissões era estudar os problemas específicos de cada uma das regiões e propor políticas para a promoção do desenvolvimento capitalista, respondendo, com isso, às inquietações provocadas pela emergência de inúmeros novos Estados nacionais e à percepção das enormes desigualdades de renda no plano internacional. Portanto, o fato de se constituir como crítica do ideário liberal-conservador não deve levar à conclusão de que as ideias cepalinas conformam uma crítica da sociedade capitalista enquanto tal. Como já ressaltado, a crítica científica pode assumir diversas feições e se expressar em diversos planos – sendo possível até mesmo afirmar que todas as teorias, inclusive as mais conservadoras, constroem-se como críticas (seja do senso comum formado sobre um determinado objeto, seja de interpretações científicas concorrentes). No entanto, quando nos referimos a alguma perspectiva autenticamente “crítica” neste estudo, tomamos por referência teorias que dirigem suas colocações explicitamente não apenas contra outras ideias, mas também contra as formas de existência objetiva que as reclamam como ideias correntes, necessárias.10 Se a teoria cepalina atende ao primeiro critério, pois recusa as concepções econômicas ortodoxas e procura demonstrar sua falsidade, não se pode afirmar que atende ao segundo, porque 10 164 O melhor exemplo de crítica científica autêntica, tomada como referência no presente estudo, é certamente aquela dirigida por Marx à ciência econômica, que aparece em diversos dos seus trabalhos, mas ganha forma mais bem-acabada em O capital. Uma explicação sintética do caráter peculiar da crítica de Marx pode ser encontrada em Duayer (2001). jamais se pergunta se as concepções ortodoxas são ou foram concepções necessárias à reprodução do capitalismo num período determinado. Não é por outra razão que os autores inspirados nas ideias cepalinas tomam as teorias ortodoxas como produção científica de menor valor, mesmo quando a ortodoxia demonstra-se de fato ortodoxa, isto é, hegemônica. Para quem observa os dois conjuntos teóricos desde uma perspectiva externa, entretanto, suas divergências no plano teórico, e mesmo no plano político-ideológico, podem ser tomadas como a expressão de condições concretas da reprodução sistêmica, que se alteram ao longo do tempo. Por isso, podem ser minimizadas, ainda que não negligenciadas, na compreensão do processo de desenvolvimento das próprias ideias. Essa é justamente a perspectiva assumida neste estudo, razão pela qual julgamos pertinente dirigir à Cepal e ao seu antagonista direto (a explicação convencional do desenvolvimento) uma única e mesma crítica. 165 Capítulo 7 As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970 Apresentadas as principais contribuições à teoria do desenvolvimento produzidas em seu período de nascimento e proliferação (isto é, entre as décadas de 1940 e 1960), dedicamos o presente capítulo à indicação das mudanças mais substantivas sofridas pela temática do desenvolvimento no período posterior à década de 1970. Esse recorte justifica-se, como já indicado, pois a crise dos anos 1970 – conhecida pela “inusitada” combinação de estagnação (baixo crescimento) e inflação – marca uma série de profundas transformações na economia mundial que não poderiam deixar de refletir-se no estudo sobre desenvolvimento econômico. Como reconhecido por diversos comentadores (e mesmo por alguns teóricos do desenvolvimento) (HIRSCHMAN, 1982), a crise dos anos 1970, aliada à posterior ruína do socialismo real, refletiu-se inicialmente em uma crise para a disciplina, seguida de substantivas reorientações. Em primeiro lugar, a crise na disciplina assume a forma de um crescente ceticismo quanto à possibilidade de superação do subdesenvolvimento e promoção da tão almejada convergência da riqueza das nações. Assim, as décadas de 1960 e 1970 são marcadas pelo surgimento de inúmeros trabalhos questionando a possibilidade de realização do ideal de desenvolvimento compartilhado pelas concepções “clássicas” do desenvolvimento, mesmo entre autores profundamente identificados com as teorias já mencionadas. No caso latino-americano, por exemplo, são bastante emblemáticos a inflexão ocorrida no âmbito da Cepal e o aparecimento do conjunto de formulações conhecido como teorias da dependência – que, apesar da não homogeneidade, compartilham o entendimento de que o sistema econômico mundial, por sua própria constituição, produz desenvolvimento de alguns à custa do subdesenvolvimento de outros.1 1 Além da saída de Prebisch, em 1963, a inflexão ocorrida no âmbito da Cepal se faz sentir, especialmente, nos trabalhos de Anibal Pinto (Chile, um caso Por outro lado, observa-se o surgimento de toda uma nova literatura decidida a provar que o fracasso na promoção do desenvolvimento não deriva da impossibilidade de realização do projeto em si, mas das estratégias adotadas para promovê-lo (especialmente aquelas focadas na industrialização com intervenção do Estado na economia). Na verdade, esse expediente crítico pode ser visto como reflexo de uma mudança mais ampla no plano político-ideológico, marcada pelo enfraquecimento do keynesianismo e ressurgimento da ideologia liberal (renovada sob a roupagem do neoliberalismo). Nesse sentido, além da tentativa de demonstrar os equívocos das estratégias de desenvolvimento baseadas na intervenção e no planejamento, as principais contribuições nesse campo entendem que a resolução de problemas característicos dos países subdesenvolvidos depende, fundamentalmente, da ampliação da liberdade de mercado. Finalmente, esse contexto também é marcado pelo surgimento de teorias que acreditam que o problema do desenvolvimento não está no seu caráter “mitológico” ou nos equívocos estratégicos, mas na própria definição de desenvolvimento. Assim, embora diversos autores continuem a tratar o desenvolvimento econômico como sinônimo de crescimento do produto – como pode ser visto, por exemplo, nos novos modelos de de desenvolvimento frustrado, de 1962), Celso Furtado (Subdesenvolvimento e estagnação, de 1966) e Oswaldo Sunkel (Mudança social e frustração no Chile, de 1965), considerados representantes do debate sobre dependência realizado no seio da instituição. Para além dessas contribuições, as teorias da dependência podem ser divididas em duas grandes vertentes: a primeira, de declarada orientação marxista, descendente direta da tradição leninista da teoria do imperialismo, é inaugurada com os trabalhos de André Gunder Frank (Capitalismo e subdesenvolvimento na América Latina, de 1967), Theotonio dos Santos (A estrutura da dependência, 1970) e Ruy Mauro Marini (Dialética da dependência, de 1972); e a segunda, comumente caracterizada como a vertente weberiana da teoria da dependência, foi elaborada a partir do trabalho pioneiro de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Dependência e desenvolvimento na América Latina, de 1970). As teorias da dependência, no entanto, não serão aqui tomadas como objeto de estudo por se proporem, ao menos na sua vertente marxista, como crítica externa das teorias de desenvolvimento convencionais (isto é, daquelas formuladas no interior da ciência econômica). Investigar se essa alegação de externalidade é justificada exigiria um estudo à parte. 168 crescimento que utilizam aparatos matemáticos e estatísticos cada vez mais sofisticados –, ganha força durante esse período a perspectiva segundo a qual o desenvolvimento não pode ser entendido como sinônimo de crescimento do produto. Uma reorientação bastante significativa no debate sobre desenvolvimento, portanto, está relacionada à alteração mais profunda na noção de desenvolvimento. Com a constatação de que o processo de intensa industrialização do período anterior, além de produzir evidentes danos ambientais, não foi capaz de conduzir a uma situação considerada suficientemente igualitária e promover a desejada convergência da riqueza das nações, novas dimensões foram sendo progressivamente incorporadas à ideia de desenvolvimento, que se torna mais “fragmentada”: não bastaria mais falar naquele “desenvolvimento econômico” medido somente em termos da produção nacional (preferencialmente a produção per capita, incapaz de revelar as desigualdades distributivas) e que teria como meta diminuir as disparidades de renda entre as nações, mas de um desenvolvimento que é sustentável em sentido amplo, ou seja, baseado em uma sustentabilidade física (ecológica), econômica (de durabilidade ao longo do tempo) e social (inclusiva). Além da incorporação das novas temáticas (especialmente da equidade e da sustentabilidade) no debate sobre desenvolvimento, é possível perceber também que a derrocada do “socialismo” real fez praticamente desaparecerem as discussões sobre o caráter histórico do capitalismo e as possibilidades de pensar o desenvolvimento para além dos marcos desse modo de produção. O resultado é que, nas formulações mais recentes, o grau de confiança no poder dos mercados e do Estado passa a ser o alvo exclusivo das disputas. Ou seja, enquanto as teorias dominantes sustentam a precedência do irrestrito funcionamento do mercado sobre o dirigismo estatal (sem ignorar a eventual necessidade do Estado, especialmente na garantia do bom funcionamento dos mercados), as teorias heterodoxas defendem uma participação mais ativa do Estado (sem negar, no entanto, a importância do mercado forte). O debate, enfim, gira em torno do grau de intervenção do Estado necessário 169 para objetivar a sociedade projetada pelas diferentes teorias do desenvolvimento. Na tentativa de oferecer um panorama geral da forma como o desenvolvimento é tratado a partir da década de 1970, o presente capítulo divide-se em duas seções. Na primeira, serão apresentadas algumas das principais temáticas incorporadas ao debate sobre desenvolvimento, com especial ênfase na contribuição de Amartya Sen para a redefinição do conceito. Na segunda, trataremos das tentativas de redefinição das estratégias de desenvolvimento centradas no debate Estado x Mercado. Para tanto, começamos com a ofensiva neoliberal sistematizada na agenda do Consenso de Washington, seguida de perspectivas mais “conciliadoras”, como aquelas contidas na agenda do Pós-Consenso e da Nova Cepal, por exemplo. Feito isso, utilizamos a contribuição de Ha-Joon Chang como ilustração de um movimento mais recente de surgimento de perspectivas que, partindo de uma crítica às “boas políticas” prescritas pelo Consenso de Washington, resgatam as teorias “clássicas” do desenvolvimento e, junto com elas, a velha noção de desenvolvimento (associada ao planejamento e industrialização). Seção 7.1 A requalificação do debate sobre desenvolvimento Como visto nos três capítulos anteriores, uma das principais semelhanças entre as teorias do desenvolvimento produzidas no período pré-1970 é o fato de tomarem o desenvolvimento como sinônimo de aumento da riqueza (medida pelo crescimento do produto per capita) e compartilharem, de modo quase unânime, o entendimento de que a realização desse objetivo deve passar pela industrialização das economias subdesenvolvidas, o que quer dizer que todas aquelas colocações, a despeito de sua diversidade, projetam para o futuro de todas as nações uma sociedade capitalista num formato determinado. Isso não significa, evidentemente, que as teorias “clássicas” do desenvolvimento tenham desprezado a necessidade de o crescimento econômico ser acompanhado por uma melhoria 170 nas condições de vida da população, por vezes explicitamente mencionada como o objetivo último do desenvolvimento. No entanto, considerando as experiências “bem-sucedidas” dos chamados países desenvolvidos e a disseminação da crença segundo a qual o aumento na qualidade de vida seria um resultado quase inexorável do crescimento do produto, a renda per capita serviu durante aqueles anos como o principal critério de mensuração e avaliação dos diferentes graus de desenvolvimento das nações. Diante dos resultados pouco animadores decorrentes da implementação de estratégias de superação do subdesenvolvimento, das inúmeras denúncias sobre a devastação do meio ambiente resultante do processo de industrialização e da constatação de que esse processo não havia se traduzido em uma distribuição mais equitativa da renda, assiste-se à proliferação de questionamentos sobre o caráter positivo do processo de desenvolvimento, tal como concebido até então. Assim, especialmente durante as décadas de 1980 e 1990, entram subitamente em cena novas formulações argumentando que o desenvolvimento deve envolver a realização de objetivos mais amplos, como, por exemplo, equidade, sustentabilidade, melhoria no acesso a bens como saúde, educação etc. Estas formulações não chegam a negar a importância do crescimento econômico para o desenvolvimento, mas tratam o primeiro como apenas um aspecto do último (ou ainda, como condição necessária, mas não suficiente). Uma das tentativas mais emblemáticas de redefinir a noção de desenvolvimento, utilizada aqui para ilustrar essa importante tendência do debate no período pós-1970, talvez tenha sido aquela promovida por Amartya Sen, laureado Nobel de Economia em 1998. Isso porque, além da significativa produção teórica voltada à exposição do seu enfoque das capacidades e à defesa do desenvolvimento como liberdade (cujos contornos pretendemos delinear adiante), Sen atuou como colaborador direto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), sendo um dos responsáveis pela elaboração do índice de desenvolvimento humano (IDH). 171 Construído com base na convicção de que desenvolvimento deve ir além do simples aumento da renda per capita, o índice foi apresentado no primeiro Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) em 1990, cuja mensagem central representa fielmente a mudança de perspectiva característica do período: “enquanto o crescimento da produção nacional (PIB) é absolutamente necessário para alcançar todos os objetivos humanos essenciais, o importante é estudar como esse crescimento se traduz – ou falha em se traduzir – em desenvolvimento humano em várias sociedades” (PNUD, 1990, iii). Nesse sentido, na tentativa de oferecer uma forma de mensuração do desenvolvimento que não se restrinja apenas ao rendimento nacional per capita, mas que também incorpore elementos relacionados às condições de vida da população, o IDH conjuga indicadores de renda, esperança de vida e nível de escolaridade, cujos dados se encontram disponíveis para a maioria dos países. Como explicitamente reconhecido pelos formuladores do IDH já no momento de sua criação, e reafirmado no balanço realizado no vigésimo RDH, publicado em 2010, a simplicidade do novo indicador poderia ser vista, ao mesmo tempo, como uma virtude e um defeito. Por um lado, a simplicidade do IDH poderia ser encarada como um “ponto forte”, pois permitiria que o indicador fosse utilizado como uma alternativa ao PIB per capita e despertasse o interesse do público em geral pelas outras variáveis analisadas ao longo do relatório. Por outro lado, o fato de basear-se em médias nacionais tornava o indicador insensível às assimetrias distributivas, não havendo também uma “medida quantitativa de liberdade humana” que pudesse ser a ele incorporada (PNUD, 2010, p. 4). Nos termos de Sen (2010, p. 6), portanto, “os limites estreitos do IDH” não devem ser confundidos com a “enorme amplitude da abordagem do desenvolvimento humano” ou com a reorientação por ele proposta (ainda que, carregado de méritos, o indicador sirva como uma boa aproximação). Como pode ser visto, por exemplo, no artigo publicado por Sen no início dos anos 1980 e intitulado Development: which way now?, o autor busca, por um lado, oferecer um contraponto 172 ao ceticismo que naquele momento declarava morta e enterrada a discussão sobre desenvolvimento e, por outro, opor-se àquelas perspectivas preocupadas em retomar o debate sobre desenvolvimento exclusivamente com base em reformulações estratégicas. Diferentemente de ambas, a formulação proposta por Sen toma como ponto de partida uma reafirmação das principais teses e estratégias defendidas pelas teorias “clássicas” do desenvolvimento (exercício realizado pelo autor por meio da análise de algumas experiências concretas), acompanhada da tentativa de agregar a essas teorias novas dimensões e responder, com isso, aos anseios de ampliação da noção de desenvolvimento. Nesse sentido, assim como a perspectiva defendida no RDH reafirma a importância do crescimento econômico para o desenvolvimento (refletida na própria manutenção da renda per capita como um dos elementos componentes do IDH), o ponto central do argumento de Sen não consiste na negação do crescimento ou na rejeição dos meios propostos pelas teorias “clássicas” do desenvolvimento com vistas a esse objetivo. A “real limitação da economia do desenvolvimento tradicional” residiria, segundo Sen (1983, p. 753 et seq.), no “reconhecimento insuficiente de que o crescimento econômico não é mais que um meio para outros objetivos”. Ou seja, “o ponto não é dizer que o crescimento não importa. Ele pode ter grande relevância, mas, se tem, é por causa de alguns benefícios a ele associados, que se realizam no processo de crescimento econômico”. De acordo com Sen (1983), portanto, ao contrário do foco na “produção nacional, renda agregada ou oferta de determinados produtos”, as teorias do desenvolvimento deveriam preocupar-se com os intitulamentos [entitlements] e com as capacidades [capabilities] geradas por tais intitulamentos. Estes devem ser entendidos como o “conjunto de diferentes pacotes de mercadorias que uma pessoa pode comandar em uma sociedade, utilizando a totalidade de direitos e oportunidades que estão diante dela”. O conceito de funcionamento, por sua vez, expande o campo da avaliação do bem-estar para além dos limites da reprodução material (economia), refletindo “as 173 várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer ou ter. Os funcionamentos valorizados podem variar dos elementares, como ser adequadamente nutrido e livre de doenças evitáveis, a atividades ou estados pessoais muito complexos, como poder participar da vida da comunidade e ter respeito próprio” (SEN, 2000, p. 95). As capacidades, finalmente, são entendidas como o conjunto de funcionamentos disponíveis aos indivíduos dada a totalidade de seus recursos, ou seja, a capacidade de uma pessoa “consiste nas combinações alternativas de funcionamentos cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou, menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos)”. A ideia é que, se se considerar todo o conjunto de combinações de funcionamentos disponíveis aos indivíduos (o que Sen denomina “conjunto capacitário”), pode-se formar um juízo dos estilos de vida à sua disposição e da liberdade que alcançaram para escolher a vida que se deseja levar (SEN, 2001, p. 80). Em linhas gerais, portanto, a teoria do desenvolvimento proposta por Sen defende que, ao contrário do crescimento do produto, o processo de desenvolvimento deve envolver a ampliação das liberdades individuais (capacidades). Considerando ainda a “relação funcional entre os intitulamentos das pessoas sobre bens e suas capacidades, uma caracterização útil – ainda que derivada – do desenvolvimento econômico é em termos da expansão dos intitulamentos” (SEN, 1983, p. 755). Como sistematizado, sobretudo, no ciclo de palestras proferido no Banco Mundial nos anos de 1996/1997 e posteriormente publicado no livro Desenvolvimento como liberdade, a “expansão da liberdade é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o principal meio do desenvolvimento” (SEN, 2000, p. 10). Ainda que tenham sido poucas as categorias aqui recolhidas do trabalho de Sen, acredita-se que já são suficientes para delinear sua concepção de desenvolvimento e, portanto, deixar clara a sua diferença em relação às teorias do desenvolvimento do período anterior. Já as convergências entre a teoria seniana 174 e todas as demais (abordadas neste capítulo e nos últimos) serão tratadas no momento oportuno (isto é, na conclusão deste capítulo e na conclusão geral do livro). Seria um desperdício, no entanto, se não fossem indicados de pronto os elementos de seu raciocínio que expõem de modo relativamente claro a perspectiva político-ideológica a que se filia. Em primeiro lugar, no que diz respeito à forma como Sen trata a relação entre as liberdades substantivas (fins) e instrumentais (meios), é preciso notar que, assim como os intitulamentos não significam apenas as rendas reais disponíveis para os sujeitos, a expansão dos intitulamentos, entendida pelo autor como um dos meios para alcançar o desenvolvimento, não deve ser confundida com a simples melhoria na distribuição de renda.2 Isso porque os usos que os indivíduos podem “dar a um dado pacote de mercadorias ou, de um modo mais geral, a um dado nível de renda” são bastante distintos e “dependem crucialmente de várias circunstâncias contingentes, tanto pessoais como sociais” (SEN, 2000, p. 90). De acordo com Sen, portanto, existiriam ao menos “cinco fontes distintas de variação entre nossas rendas reais e as vantagens – o bem-estar e a liberdade – que delas obtemos”: (1) heterogeneidades pessoais, (2) diversidades ambientais, (3) variações no clima social, (4) diferenças de perspectivas relativas, e (5) distribuição na família. Em primeiro lugar, as “heterogeneidades pessoais” seriam aquelas “características físicas díspares relacionadas a incapacidade, doença, idade ou sexo” que fazem com que as necessidades dos indivíduos sejam diferenciadas. As “diversidades ambientais” incluiriam, por exemplo, “circunstâncias climáticas (variações de temperatura, níveis pluviométricos, inundações etc.)” que também “podem influenciar o que uma pessoa obtém de determinado nível de renda”. As “variações no clima social”, por sua vez, incluiriam “os serviços públicos de educação” e/ou a “prevalência ou 2 Ainda que reconheça méritos nas tentativas, bastante comuns no período pós-1970, de mudar o foco para as questões distributivas, Sen (1983, p. 760) entende que “suplementar dados sobre o PNB per capita com informação sobre distribuição de renda é bastante inadequado para dar conta dos requerimentos da análise do desenvolvimento”. 175 ausência de crime e violência na localidade específica”. No que diz respeito às “diferenças de perspectivas relativas”, Sen afirma que “as necessidades de mercadorias associadas a padrões de comportamento estabelecidos podem variar entre comunidades, dependendo de convenções e costumes”. Finalmente, a “distribuição na família” trataria do fato de que “as rendas auferidas por um ou mais membros de uma família são compartilhadas por todos – tanto por quem a ganha como por quem não a ganha” (SEN, 2000, p. 90 e 91). Considerando os propósitos do presente estudo, a análise da forma como Sen refere-se às “características distintivas dos seres humanos” (misturando diferenças individuais e sociais) é particularmente importante, pois, como sugere Medeiros (2007, p. 72 et seq.), é nesse momento que “Sen fornece os primeiros indícios para revelar um aspecto marcante – e raramente explicitado – de sua abordagem: o seu caráter aistórico, restrito ao âmbito da ordem social vigente”. Isso porque, na medida em que “características pessoais irredutíveis (genotípicas e fenotípicas)” e “aspectos históricos (resultantes do desenvolvimento social)” são colocados no mesmo plano (“o das diversidades dos seres humanos, [...] como se a diversidade entre estas diversidades inexistisse ou fosse absolutamente irrelevante”), características inerentemente sociais como, por exemplo, a divisão de classes são naturalizadas “e a crítica dirigida a qualquer distinção herdada da história (entre escravos e libertos, por exemplo) passa a ter o mesmo estatuto de ataques criminosos à diversidade humana (como o nazismo e o racismo)”. No que diz respeito ao caráter instrumental da liberdade (ou seja, ao fato de que a liberdade em uma determinada dimensão, digamos política, seja meio para ampliar a liberdade em outra dimensão, digamos econômica), Sen (2000, p. 55) lista cinco tipos diferentes de liberdade que teriam esse caráter pronunciado: (1) liberdades políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4) garantias de transparência e (5) segurança protetora. Para os propósitos do presente argumento, concentremos as atenções nas “facilidades econômicas”, que, segundo o autor, são “as oportunidades que os 176 indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo, produção ou troca”. Trata-se, enfim, para dizê-lo resumidamente, da “liberdade de participar irrestritamente de todos os mercados” (MEDEIROS, 2007, p. 219). Mesmo de um leitor distraído chamaria a atenção o fato de que a liberdade de mercados seja considerada não apenas constitutiva do desenvolvimento (liberdade), mas um meio poderoso para alcançá-lo. Essa é sem dúvida uma defesa do livre mercado não apenas explícita, mas talvez ainda mais contundente do que a realizada por autores de renome do pensamento liberal, inclusive Smith, pois, embora muitos liberais tenham afirmado que o laissez-faire é condição para alcançar o desenvolvimento (instrumento), poucos chegaram a afirmar que ele é por si mesmo um atributo definidor da nação desenvolvida. Trata-se, em suma, não apenas de uma proposição conservadora, mas, em tempos neoliberais, de uma proposição radicalmente conservadora, como o autor parece fazer questão de deixar claro na passagem seguinte: Ser genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto ser genericamente contra a conversa entre as pessoas (ainda que certas conversas sejam claramente infames e causem problemas a terceiros – ou até mesmo aos próprios interlocutores). A liberdade de trocar palavras, bens ou presentes não necessita de justificação defensiva com relação a seus efeitos favoráveis mais distantes; essas trocas fazem parte do modo como os seres humanos vivem e interagem na sociedade (a menos que sejam impedidos por regulamentação ou decreto). A contribuição do mecanismo de mercado para o crescimento econômico é obviamente importante, mas vem depois do reconhecimento da importância direta da liberdade de troca – de palavras, bens, presentes. (SEN, 2000, p. 21). 177 Seção 7.2 O dilema “Estado x Mercado” Além da tentativa de incorporar novas temáticas ao debate sobre desenvolvimento, a década de 1970 foi marcada pela retomada da hegemonia neoliberal nos planos teórico, político e ideológico. Como retratado anteriormente,3 o projeto neoliberal ganha força com base no argumento de que a crise vivenciada por diversos países nos anos 1970 tinha origem no excesso de intervenção do Estado na economia. Assim, enquanto nos países “desenvolvidos” essa concepção traduziu-se especialmente em um ataque ao Estado de bem-estar social e das instâncias de organização e representação da classe trabalhadora (sindicatos e partidos de esquerda), no caso dos países “subdesenvolvidos” o diagnóstico neoliberal entendia a crise como manifestação da suposta falência do modelo de desenvolvimento implementado nesses países durante os anos anteriores. À medida que o debate sobre política econômica passou a ser dominado, predominantemente, por questões de curto prazo (particularmente voltadas para a necessidade de estabilização macroeconômica), a virada neoliberal foi repetidamente rotulada como o “fim do debate sobre desenvolvimento”. No entanto, apesar de aparecer inicialmente de maneira dispersa, como um simples conjunto de políticas de curto prazo, é possível identificar no projeto neoliberal tanto um ideal de desenvolvimento, quanto uma estratégia para alcançá-lo. Do ponto de vista do ideal de desenvolvimento, pode-se dizer que as mudanças não foram muito significativas: assim como no caso das teorias “clássicas”, o desenvolvimento seguia sendo encarado fundamentalmente como sinônimo de crescimento do produto. Do ponto de vista da estratégia, no entanto, tratava-se de resgatar “velhos” argumentos clássicos e neoclássicos em favor da liberdade de mercado. De modo geral, a estratégia de desenvolvimento neoliberal pode ser dividida em três momentos de uma mesma lógica: o ponto de partida seria a estabilização macroeconômica 3 178 Ver Capítulo 3, Seção 2. (primeiro momento), precondição para as reformas estruturais (segundo momento) necessárias à retomada do investimento e crescimento (terceiro momento). A estabilização seria, assim, um dos pilares da estratégia (mas não o maior, conforme comumente se afirma), e a forma de se alcançar a estabilidade e operar a sequência das reformas dependeria das especificidades de cada país. No entanto, a lógica seria sempre a mesma: a estabilidade aparece como uma precondição para as reformas e as reformas como uma precondição para a retomada do investimento e do crescimento. Esse projeto de desenvolvimento foi sistematizado, sobretudo, na agenda do chamado Consenso de Washington – resultado de um encontro realizado no fim da década de 1980 que buscava averiguar o andamento das reformas neoliberais já em curso na América Latina e, mesmo diante dos resultados pouco animadores, enfatizar a necessidade de dar prosseguimento a sua implementação. Embora tenha sido construído com vistas especificamente às circunstâncias latino-americanas, o Consenso apresentava um conjunto de reformas que se supunha necessário a quaisquer países e amplamente aceito por todos os “economistas sérios”4 (WILLIAMSON, 1994, p. 18). As reformas assim propostas deveriam, de modo geral, estar voltadas para a abertura comercial, a desregulamentação e liberalização do sistema financeiro e a mudança do papel do Estado na economia. Em suma, tratava-se de implementar reformas “pró-mercado” que garantissem a esta instituição o papel principal na alocação dos recursos econômicos. Por isso seria necessário garantir o saneamento das contas públicas (por meio de corte de gastos, privatizações etc.) para criar um ambiente favorável aos investimentos e à lucratividade do setor privado (WILLIAMSON, 1990). 4 Diante das controvérsias suscitadas pelo caráter pretensioso da expressão Consenso de Washington, Williamson (2004b, p. 285) observa ainda que: “Um dos debatedores de meu trabalho, Richard Feinberg, argumentou que ela deveria ter sido chamada ‘convergência universal’, porque (1) a mudança no pensamento econômico que ela resumia era de âmbito mundial, em lugar de confinada a Washington; e (2) a extensão do acordo ficava muito aquém do consenso. É claro que Feinberg estava correto em ambos os pontos, mas era tarde demais para mudar o nome de marca.” 179 No que diz respeito ao debate sobre desenvolvimento, essa proposta recebeu inúmeras (e acertadas) críticas, especialmente após a avaliação do desempenho econômico dos países subdesenvolvidos na década de 1990 (conhecida, no caso latino-americano, como a “década mais que perdida”). De um lado, parte dos críticos tentava ressaltar a necessidade de resgatar o Estado como agente promotor do desenvolvimento, sem com isso negar a relevância do mercado. De outro, os defensores da agenda neoliberal tratavam de afirmar (1) a necessidade de completar as “reformas de primeira geração” (especialmente promovendo a desregulamentação do mercado de trabalho), (2) a necessidade de implementar as “reformas de segunda geração” (voltadas especialmente para o fortalecimento das instituições) e (3) a necessidade de combinar crescimento e equidade social. Em linhas gerais, portanto, a agenda focada especialmente nos pontos (2) e (3) (também conhecida na literatura econômica sob o título de Pós-Consenso de Washington) não propõe a reversão das reformas, mas uma espécie de gerenciamento e direcionamento dos efeitos da abertura comercial e da liberalização financeira externa, obtidos particularmente através do fortalecimento das instituições, necessário à retomada do crescimento acelerado e de melhorias na distribuição de renda.5 Nas palavras de Williamson: Um papel importante para as instituições é perfeitamente consistente com o mainstream econômico que coloca o papel crucial do Estado para a criação e manutenção da infraestrutura institucional de uma economia de mercado, na provisão de bens públicos, internalizando as externalidades e, dependendo de visões políticas, corrigindo a distribuição de renda (observe que nenhum desses papéis serve para racionalizar uma responsabilidade governamental a fim de movimentar usinas siderúrgicas, geradoras de eletricidade, ou bancos). (WILLIAMSON, 2004a, p. 10). 5 180 Um detalhamento das “reformas de segunda geração” constitutivas do Pós-Consenso pode ser visto em Williamson e Kuczynski (2004). Uma postura que se pretende alternativa à proposta neoliberal foi defendida no âmbito da Cepal explicitamente a partir da década de 1990. Esse período ficou conhecido por uma mudança de rumos no pensamento cepalino, desde então identificado com a postura neoestruturalista, e que tem como marco a publicação do documento Transformação produtiva com equidade: a tarefa prioritária do desenvolvimento da América Latina e do Caribe nos anos noventa. Tomando como ponto de partida a constatação de que os anos 1980 não foram muito generosos com as economias latino-americanas e os desafios postos para a década de 1990,6 a perspectiva neoestruturalista busca definir uma nova estratégia de desenvolvimento para a região que se situe no meio-termo entre os argumentos neoclássicos, em favor dos benefícios advindos de uma economia de mercado, e o argumento das teorias “clássicas” do desenvolvimento, particularmente da teoria “clássica” cepalina, em favor da adoção de uma estratégia de desenvolvimento com recurso à intervenção do Estado na economia. Assim, a postura adotada pela Cepal após a década de 1990 pode ser encarada como um exemplo de propostas conciliadoras, bastante em voga nos dias de hoje, e que se apoiam sobre um diagnóstico de que os “novos tempos de abertura e globalização” não deixam espaço para pensar o desenvolvimento fora de uma economia de mercado.7 Não obstante, o mercado é 6 7 Como consta no documento: “o produto real per capita no final de 1989 não retrocedeu ao que fora registrado dez anos antes, mas ao nível de treze anos antes, e até mais do que isso, no caso de algumas economias. Por conseguinte, os países da região estão iniciando a década de 1990 com o peso da inércia recessiva dos anos 1980, com o passivo representado por sua dívida externa, e com a presença de uma inadequação fundamental entre estruturas da demanda internacional e a composição das exportações latino-americanas e caribenhas” (CEPAL, 2000b, p. 889). Essa seria, em parte, uma das características de inúmeras intervenções identificadas como novo-desenvolvimentistas, que têm como fundamento a tentativa de atribuir novamente um papel mais ativo do Estado nas estratégias de desenvolvimento, mas que, por outro lado, não consegue se desvencilhar da retórica pró-mercado. Como pode ser visto, por exemplo, no texto de apresentação do livro Novo-desenvolvimentismo – um projeto nacional de crescimento com equidade social: “Os termos novo-desenvolvimentismo e neo-estruturalismo retomam a ideia da necessidade de um desenvolvimento endógeno, mas não deixam de lado a necessidade do livre comércio para al- 181 também enxergado como uma instituição que, mesmo quando funcionando em completa liberdade, pode ser pouco sensível aos chamados “problemas sociais” (e também ambientais), sobretudo no curto prazo. Dessa forma, as propostas neoestruturalistas (e correlatas) passam a defender a ideia de que o Estado deveria atuar como gerenciador de políticas e reformas pró-mercado, de modo a ampliar a concorrência, garantir a eficiência econômica e estimular a incorporação de novas tecnologias (isto é, realizar uma transformação produtiva), e atuar como instância responsável pela distribuição mais equitativa (e ambientalmente responsável) dos frutos dessa transformação. Apesar de se pretender alternativa, portanto, essa postura guarda diversas semelhanças com a proposta neoliberal, particularmente na versão do Pós-Consenso de Washington – quando se torna clara, mesmo para certas alas mais conservadoras, a necessidade da atuação do Estado no gerenciamento e administração das condições de reprodução sistêmica.8 Para encerrar a presente seção, gostaríamos de mencionar ainda um tipo de intervenção relativamente recente que, partindo de uma crítica às “boas políticas” prescritas pelo chamado Consenso de Washington, busca construir uma estratégia de desenvolvimento alternativa ao projeto neoliberal através de um resgate mais incisivo das teorias do desenvolvimento formuladas nos anos 1940/1950. Como indicado na introdução, um exemplo bastante emblemático de reorientação nesse sentido é oferecido pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang, especialmente no livro Chutando a escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica – um título que alude à 8 182 cançar competitividade internacional e, assim, um crescimento sustentado. Da mesma forma que a economia social de mercado, o novo-desenvolvimentismo é um caminho do meio entre dois extremos, este entre o livre comércio incondicional e o protecionismo econômico, aquele entre o liberalismo e o socialismo” (SICSU; PAULA; MICHEL, 2005, p. 31). Para mais informações sobre a relação entre a também chamada Nova Cepal e as proposições neoliberais (geralmente negada pelos membros da instituição), conferir, por exemplo, Almeida Filho (2003), Carcanholo (2008b) e Corrêa (2007). expressão utilizada por Friedrich List, economista alemão do século XIX, defensor da proteção à indústria nascente. Com o debate pautado, mais uma vez, em evidências empíricas, autores como Chang questionam o sucesso das políticas neoliberais na promoção do desenvolvimento e, em movimento semelhante ao da década de 1970, atribuem aos adversários a culpa pelo desempenho econômico pífio de parte das economias subdesenvolvidas nas últimas décadas. Particularmente no caso de Chang, o argumento utilizado no ataque ao liberalismo e defesa do intervencionismo também toma como base o resgate histórico das políticas e instituições efetivamente adotadas pelos “países atualmente desenvolvidos”, “quando se achavam em processo de desenvolvimento” (CHANG, 2004, p. 13 et seq.) – expediente analítico que, segundo Chang, seria bastante comum entre os teóricos do desenvolvimento dos anos 1940/1950.9 De acordo com o autor, portanto, ao observar historicamente a forma como os “países ricos enriqueceram de fato”, é possível chegar à conclusão de que “eles não seriam o que são hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que agora recomendam às nações em desenvolvimento”. Ou seja, ao contrário do que normalmente se afirma, “o fomento à indústria nascente [especialmente por meio de políticas industrial, comercial e tecnológica intervencionistas] foi a chave do desenvolvimento da maioria das nações” – constatação esta que leva o autor a acreditar que os “países atualmente desenvolvidos” estariam agora “‘chutando a escada’ pela qual subiram ao topo, impedindo as nações em desenvolvimento de adotarem as políticas e instituições que eles próprios adotaram”. 9 Citando autores como Lewis, Rostow, Kuznets, Gerschenkron e Hirschman, que “formularam suas teorias dos ‘estágios’ do desenvolvimento econômico com base num conhecimento profundo da história da industrialização nos países desenvolvidos”, Chang (2004, p. 20 e 21) procura mostrar como uma das marcas distintivas do período de “auge da economia do desenvolvimento” foi a proliferação de “ensaios explicitamente destinados a transmitir aos países em desenvolvimento as lições extraídas da experiência histórica das nações desenvolvidas” – perspectivas essas “abafadas pela predominância da economia neoclássica, que rejeita categoricamente esse tipo de raciocínio indutivo”. 183 Para utilizar a própria metáfora sugerida por Chang (2004, p. 210; 24), não se trata de (1) questionar a existência de uma escada (ou seja, questionar a possibilidade de se reproduzir nos países subdesenvolvidos os padrões de desenvolvimento dos países desenvolvidos, como presente nas formulações mais céticas) ou (2) perguntar para onde leva a escada (ou seja, questionar o próprio padrão de desenvolvimento dos países desenvolvidos, movimento característico das tentativas de requalificação do debate sobre desenvolvimento, apresentadas na seção anterior). Ao contrário, parte-se do pressuposto de que a escada existe (“intervenção direta do Estado, sobretudo na forma de políticas industrial, comercial e tecnológica”, ainda que não seja negada a importância, por exemplo, de políticas para a manutenção da estabilidade macroeconômica) e leva ao caminho correto (“crescimento econômico”, entendido como “a chave do desenvolvimento econômico mais amplamente definido”), restando aos teóricos do desenvolvimento apenas a tarefa de colocá-la em pé novamente. Seção 7.3 Considerações finais Como viemos enfatizando ao longo dos capítulos que compõem a Parte II do presente livro, a análise das teorias do desenvolvimento aqui realizada não tem como objetivo avaliar os graus de correção ou incorreção dessas formulações. Mais distante ainda de nossos objetivos está o questionamento sobre a adequação das diferentes estratégias de desenvolvimento à realização dos ideais de desenvolvimento carregados por essas teorias, seja nos anos 1950 ou nos dias atuais. Trata-se, na verdade, de indicar como tanto as estratégias (meios) quanto os ideais (fins) veiculados pelas teorias do desenvolvimento, corretos ou equivocados, respondem, em cada contexto histórico específico, às necessidades de reprodução das relações capitalistas em nível global. Ao longo dos três capítulos anteriores, tratamos mais detidamente das teorias do crescimento/desenvolvimento formuladas no período de nascimento e auge da chamada Economia 184 do Desenvolvimento, da relação existente entre essas formulações e o contexto no qual foram formuladas e, finalmente, da relação dessas teorias com o modo de produção capitalista em geral. Nessa investigação, vimos que o desenvolvimento foi tratado durante aquele período fundamentalmente como sinônimo de crescimento do produto, que a estratégia de desenvolvimento foi associada à industrialização das economias subdesenvolvidas, e o ideal de desenvolvimento, inspirado nas experiências das economias capitalistas ditas desenvolvidas. No presente capítulo, buscamos mostrar, através de alguns exemplos, como o período posterior à crise dos anos 1970 foi marcado por inúmeras tentativas de redefinição dos objetivos e estratégias de desenvolvimento. Do ponto de vista dos objetivos, a constatação de que o crescimento do produto vinha, não raramente, acompanhado de efeitos perniciosos (como, por exemplo, a má distribuição de renda e a degradação do meio ambiente) lançou sobre as teorias do desenvolvimento a necessidade de incorporar novos critérios à definição de desenvolvimento (que permitissem ir além do simples crescimento da renda). Ou seja, ainda que o fim da experiência do socialismo real tenha sido entendido como a prova definitiva de superioridade do capitalismo em relação a projetos alternativos de sociedade, as teorias do desenvolvimento permanecem desempenhando um papel importante na sustentação da crença na possibilidade de que o desenvolvimento capitalista não submeta a maioria da população a condições subumanas de vida e (contrariando as previsões mais catastróficas) seja compatível com a própria manutenção da vida no planeta. Interessante também é notar como essas mudanças na concepção de desenvolvimento se refletem nas distintas tentativas de redefinição das estratégias de desenvolvimento, resumidamente expressas no debate liberalismo x intervencionismo. Ou seja, salvo raríssimas exceções, é possível perceber como as diferentes estratégias de promoção do desenvolvimento e/ ou superação do subdesenvolvimento, com maior ou menor intervenção do Estado, com maior ou menor liberdade de mercados, acabam por incorporar as temáticas da equidade 185 e sustentabilidade. Como já indicado, portanto, o debate termina girando em torno do grau de liberdade de mercado e intervenção do Estado necessário para objetivar a sociedade projetada pelas teorias do desenvolvimento. Quando observamos mais atentamente os pressupostos por detrás das formulações aqui apresentadas, no entanto, percebemos que as mudanças são menos significativas do que parecem à primeira vista. Mesmo no caso de propostas de reorientação consideradas “radicais”, como, por exemplo, a sugerida por Sen em seu Desenvolvimento como liberdade, as teorias do desenvolvimento não abandonam o critério crescimento do produto e não deixam de tratar o desenvolvimento exclusivamente em termos da reprodução, em escala universal, das relações sociais capitalistas. Socialmente justo, ambientalmente responsável, livre ou regulado: trata-se apenas de projetar para o futuro configurações diversas de uma mesma formação social (o capitalismo). 186 Conclusão Em uma passagem pouco citada do Grundrisse, Marx examina as condições histórica e logicamente necessárias para que o capital encarregue-se de investimentos de vulto na construção de estradas, canais, pontes etc. (obras de infraestrutura em geral), que exigiam, até o período moderno, um esforço coletivo usualmente capitaneado pelo Estado. Trata-se de um momento do texto, portanto, no qual Marx aborda explicitamente a oposição entre Estado e mercado no que tange ao provimento dos assim chamados (atualmente) bens públicos. Tal argumento não teria nenhuma relação com o conteúdo deste estudo, não fosse o fato de Marx – numa colocação que certamente surpreenderia os desavisados e despertaria a ira de posições pseudodogmáticas à esquerda – ter tratado a situação em que o capital atinge condições para dar conta do investimento em infraestrutura como uma condição de “máximo desenvolvimento do capital”. Em suas palavras, O máximo desenvolvimento do capital se dá quando as condições gerais do processo de produção social não são criadas a partir da dedução da renda social, dos impostos do Estado – em que a renda, e não o capital, aparece como fundo de trabalho e o trabalhador, embora seja trabalhador assalariado livre como qualquer outro, economicamente se encontra em uma outra relação –, mas pelo capital como capital. Isso mostra, de um lado, o grau em que o capital já submeteu a si todas as condições da produção social e, por essa razão, de outro lado, a extensão com que a riqueza reprodutiva social está capitalizada e todas as necessidades são satisfeitas sob a forma da troca.1 (MARX, 2011, p. 439). 1 Um pouco antes, no mesmo parágrafo, Marx (2011, p. 438) afirma ainda: “Todas as condições gerais de produção, tais como estradas, canais etc., seja as que facilitam a circulação ou as que a tornam possível, seja igualmente as que aumentam a força produtiva (como irrigações etc. realizadas pelos governos na Ásia e, de resto, também na Europa), tais condições, para serem levadas a cabo pelo capital, em lugar do governo, que representa a 187 É nítido nesta passagem que Marx emprega o termo desenvolvimento não para designar uma situação em que a sociedade capitalista atinge uma condição “mais humana” ou “melhor” em qualquer sentido, mas sim para caracterizar um momento da história dessa formação social no qual o capital adquiriu extensão e força suficientes para dominar todos os momentos da existência social, inclusive, no caso, o provimento de infraestrutura. Ainda que fosse – como parece ser – possível demonstrar que o monopólio privado, capitalista, do fornecimento de bens e serviços públicos essenciais cria toda sorte de infortúnios àqueles que não podem dispensar o seu uso, ainda assim tal situação poderia ser tida como um indício do caráter desenvolvido do capitalismo. Nessa passagem, como em muitas outras em sua obra, Marx utiliza a categoria desenvolvimento para tratar tanto de uma forma específica de sociedade (o capitalismo, por exemplo), quanto de qualquer objeto portador de um processo de mudança e permanência (ou permanência na mudança, como diria Lukács), incluindo o ser em geral. Falar em desenvolvimento, portanto, significa antes e acima de tudo reconhecer o processo de transformação de determinado objeto ao longo do tempo, seu movimento para adiante, sua dinâmica de funcionamento. Esse “movimento para adiante”, como se procurou demonstrar, é governado por leis/tendências que regulam a dinâmica de funcionamento do objeto e podem ser apreendidas cientificamente, de maneira objetiva. No caso da nossa existência como seres naturais, por exemplo, sabe-se que (a despeito das fábulas que descrevem um mundo no qual se pode ser eternamente jovem ou dos próprios avanços na ciência que possibilitaram à humanidade aumentar significativamente sua expectativa de vida) ela é regulada por ao menos uma determinação geral: independentemente de classe, credo ou cor, todos devemos nascer, crescer e morrer. Por menor que seja o desejo dos comunidade enquanto tal, supõem um elevado desenvolvimento da produção fundada no capital. A desvinculação das obras públicas do Estado e sua passagem ao domínio dos trabalhos executados pelo próprio capital indica o grau em que se constituiu a comunidade real na forma do capital.” 188 sujeitos de se renderem a esta determinação geral, esta é uma lei/tendência que regula o nosso desenvolvimento como seres naturais e que pode ser objetivamente reconhecida, a despeito das particularidades que fazem com que a vida de um sujeito A seja diferente (melhor ou pior) da vida de um B qualquer. Essa não é, no entanto, a dinâmica que regula a nossa existência como seres sociais. Para fazer uma brevíssima recapitulação, identificamos ao menos três tendências que regulam o desenvolvimento da sociedade, abstratamente considerada: a crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e reprodução das condições de vida humana e a constituição da consciência genérica. No caso da sociedade em forma especificamente capitalista, destacamos especialmente aquelas tendências que, quando articuladas, determinam o caráter expansivo e contraditório dessa formação social. Com isso, procuramos mostrar que, no modo de produção capitalista, a esfera econômica (do trabalho) apresenta-se como a principal esfera de sociabilidade, a partir da qual emana a dinâmica (de ampliação do trabalho) que subordina os demais momentos e esferas da existência. Por fim, buscamos mostrar como essas tendências gerais manifestam-se de maneira distinta, em condições históricas distintas, tomando como exemplo dois períodos nos quais o desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por determinações particulares: as quase três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial e os anos posteriores à década de 1970. A opção por resgatar elementos dessas duas conjunturas não foi meramente casual: esteve também relacionada ao fato de serem esses os períodos nos quais se registram as produções no campo das teorias do desenvolvimento econômico (servindo, em ambos os sentidos, como bons contrastes). Em suma, esperamos ter demonstrado, nos capítulos que conformaram a Parte I deste estudo, que, desde uma perspectiva marxista, estudar o desenvolvimento capitalista significa, em primeiro lugar, ter consciência da historicidade e processualidade que caracterizam a sociedade; em segundo lugar, apreender as leis de movimento da sociedade em geral e em 189 sua forma especificamente capitalista; e, em terceiro lugar, conhecer as condições concretas de manifestação dessas leis. Na análise do desenvolvimento em-si, portanto, o importante é saber se (e de que forma), na passagem de um período a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos adequado à lógica interna do capital. Pode-se dizer, então, que uma sociedade capitalista é tanto mais desenvolvida quanto mais ampla – e, considerando a sua lógica interna de funcionamento, mais bem-sucedida – for a atuação do capital (seja em termos setoriais, territoriais, ou em sua capacidade de penetrar nas mais distintas esferas da vida social). Em contraponto a essa perspectiva, buscamos, ao longo da Parte II, traçar um panorama geral do modo como a questão é encarada no campo da ciência econômica, especialmente no interior das chamadas teorias do desenvolvimento. Nesse caso, observamos que a análise do “desenvolvimento” envolve, recorrentemente, a eleição de determinados critérios e parâmetros (“empiricamente observáveis”) que permitam quantificar a condição de países ou regiões em momentos diversos de sua história. Além disso, é normalmente com base na extrapolação de um desses critérios que se afirma ou nega a superioridade de povos e/ou países com relação a outros. Por fim, o conceito de “desenvolvimento” é tratado, via de regra, como um juízo de valor subjetivo: ou seja, o “desenvolvimento” é visto como algo bom, viável e desejável (e que, portanto, deve ser promovido) e a sua ausência como algo ruim (e que, seguindo a mesma lógica, deve ser superado). Tomando como ponto de partida o período de surgimento e proliferação das teorias do desenvolvimento, vimos como o critério central utilizado na comparação entre distintos graus de “desenvolvimento” (ou “subdesenvolvimento”, por contraposição) foi predominantemente o aumento da riqueza, medido pelo crescimento do produto per capita. Por esse motivo, a análise crítica desse conjunto de teorias iniciou-se pelos chamados modelos de crescimento, que, a seu modo, estiveram preocupados com os determinantes do crescimento do produto ou da renda (oferecendo uma explicação possível para 190 a desigualdade de renda no plano mundial), expressando de maneira bastante emblemática a orientação geral do período. No caso das teorias do desenvolvimento propriamente ditas, mais focadas na tentativa de explicar as particularidades por detrás do baixo crescimento do produto nos países subdesenvolvidos e mais explicitamente propositivas, vimos como, além da associação do “desenvolvimento” ao crescimento do produto, as estratégias para a promoção do “desenvolvimento” (ou superação do “subdesenvolvimento”) estiveram associadas predominantemente à industrialização. A despeito das especificidades – que impuseram, inclusive, a divisão dessas teorias “clássicas” do desenvolvimento em dois grandes grupos (aquelas que tratam das regiões “subdesenvolvidas” em geral e aquelas que tratam particularmente do caso latino-americano) –, podemos perceber que todas compartilham, em linhas gerais, as características acima apresentadas. Já no período posterior à década de 1970, vimos como, diante da crise e do reconhecimento cada vez mais amplo de “efeitos colaterais” (sobre a natureza ou sobre os seres humanos) associados ao crescimento do produto, as teorias reagiram pela incorporação de novos critérios à definição de “desenvolvimento” (ainda que o crescimento do produto não tenha sido totalmente abandonado). Essa “mudança” na concepção de desenvolvimento (que talvez fique mais bem caracterizada como “ampliação”) também se refletiu nas tentativas de redefinição de estratégias para a promoção do “desenvolvimento” (ainda que o centro das controvérsias tenha sido a participação do Estado na economia). Diante dessa caracterização geral, portanto, não podemos deixar de reconhecer que uma das dificuldades de tomar as teorias do desenvolvimento como objeto de estudo reside justamente na diversidade de formulações, seja essa diversidade determinada pelo fato de terem sido produzidas em contextos históricos muito distintos ou pelo fato de carregarem consigo orientações teóricas diversas (liberal, keynesiana, schumpeteriana etc.). Essa diversidade, como se buscou ressaltar ao longo da Parte II, também se manifesta de variadas maneiras, 191 seja (1) na noção de desenvolvimento, (2) no ideal de desenvolvimento ou (3) na estratégia de desenvolvimento. No entanto, a análise crítica dessas teorias demonstrou-se capaz de revelar que todas, sem qualquer exceção digna de nota, tomam o capitalismo como pressuposto de suas formulações. Considerando, por exemplo, a convergência em torno da redução do desenvolvimento ao “crescimento do produto”, só episodicamente rompida, fica bastante nítido o modo como as teorias do desenvolvimento projetam sobre o passado e sobre o futuro as formas de riqueza e trabalho que são específicas do capitalismo, sem jamais indagar quais são os pressupostos objetivos de um trabalho que adquire esse caráter de permanente expansão. Com isso, as teorias não apenas naturalizam processos históricos altamente complexos, não apenas se apresentam como instrumentos a serviço dessa história “naturalizada”, mas também, ao lhe fornecer inteligibilidade, comparecem objetivamente como formas de consciência indispensáveis à sua reprodução. Comparecem, portanto, como a ciência deste desenvolvimento. Mesmo as teorias usualmente encaradas como teorias “críticas” (ou seja, aquelas capazes de reconhecer problemas associados à dinâmica capitalista, especialmente seu caráter “desumano”) acabam por admitir acriticamente os limites impostos ao exercício teórico e prático pelo objeto, em sua forma imediatamente dada. Nesse caso, percebemos que, apesar de a preocupação “humanitária” assegurar um acento crítico, essas teorias hipostasiam a forma de trabalho correspondente a essa forma de sociedade e podem, na melhor das hipóteses, almejar uma “organização mais ‘humana’ do trabalho no capitalismo” (DUAYER, 2010, p. 2). Em síntese, para empregar a expressão difundida por Duayer, podemos dizer que se trata, quando muito, de uma crítica positiva. Nas palavras do autor: A crítica positiva, como se sabe, toma o mundo tal como ele se apresenta como um dado insuperável, incontornável. E é nesse quadro de um mundo por princípio inalterável em sua estrutura e constituição essencial que 192 a crítica positiva comparece, primeiro descrevendo o mundo – positivamente – e, segundo, em conformidade com tal descrição, prescrevendo as atitudes e práticas possíveis dos sujeitos. E a crítica positiva, é preciso não se iludir, pode ser de fato crítica à sua maneira. Pode se insurgir sinceramente contra as infâmias desse mundo incontornável. E mobiliza instrumentos teóricos sempre mais sofisticados para consertar os erros do mundo, ou para desentortar o mundo, como imaginava fazer Quixote. E arregimenta paixões, sinceras paixões, sem as quais tais instrumentos restariam inertes, para a reparação do mundo. Todavia, recorde-se, a crítica positiva e as práticas que alimenta são sempre prisioneiras desse mundo, do mundo imediato, anistórico. (DUAYER, 2010, p. 7). No caso de Marx, bem ao contrário, percebemos que a crítica dirigida ao capitalismo pode ser mais bem caracterizada como uma crítica negativa: “crítica do trabalho no capitalismo, crítica do trabalho como atividade socialmente mediadora, ou seja, crítica da sociabilidade fundada no trabalho”2 (DUAYER, 2010, p. 7). Em outras palavras, trata-se de uma crítica que reconhece, desde o início, o caráter histórico do seu objeto de estudo; de uma crítica que indaga sobre as condições históricas que fizeram emergir esse objeto. Uma crítica que procura, na organização interna do objeto, na forma como ele veio a se constituir estruturalmente, as condições do seu desenvolvimento no tempo e no espaço. Uma crítica que, por fim, expressa esse movimento causalmente determinado em leis de tendência. 2 Postone (1993, p. 63 e 64) também reconheceu e salientou a negatividade da crítica de Marx: “Ao formular uma crítica do trabalho no capitalismo tomando como base da análise sua especificidade histórica, Marx transformou a natureza da crítica social baseada na teoria do valor trabalho de uma crítica ‘positiva’ em uma crítica ‘negativa’ [...] – aquela que critica o que é sob as bases do que poderia ser – que aponta para a possibilidade de outra formação social.” 193 Uma crítica como essa não tem qualquer compromisso a priori com o seu objeto de estudo, a sociedade capitalista, pois não o toma por antecipação como uma forma de existência insuperável, que, portanto, deve ser reparada ou amparada a qualquer custo quando sua linha evolutiva geral demonstra-se desumana (ou ameaçadora em termos ecológicos). Ao contrário, justamente por não perder de vista a transitoriedade histórica possível dessa formação social, por um lado, e por demonstrar o caráter necessário de sua desumanidade, por outro, é que pode converter o conhecimento de suas leis de tendência numa proposta de práxis orientada em favor da transição concreta para uma sociedade dotada de outra dinâmica evolutiva, de outra linha de desenvolvimento interno. Esse nexo entre a crítica social de Marx e a sua proposta de práxis transformadora é enfatizado na passagem de Postone, que nos permitimos citar extensamente abaixo: [...] a análise de Marx implica uma ideia de superação do capitalismo que não acarreta nem a afirmação sem crítica de que a produção industrial seja condição de progresso humano, nem a rejeição romântica do progresso tecnológico per si. Ao sugerir que o potencial do sistema de produção desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o próprio sistema, a análise de Marx supera a oposição entre essas instâncias e mostra que cada uma significa um momento de um desenvolvimento histórico muito mais complexo para se constituir a totalidade. Isto é, a abordagem de Marx abrange a oposição entre a fé no progresso linear e sua rejeição romântica, como expressando uma antinomia histórica que, em ambos os termos, é característica da época capitalista. Mais abrangentemente, sua teoria crítica não defende nem a simples conservação, nem a destruição daquilo que foi historicamente constituído no capitalismo. Ao contrário, sua teoria mostra a possibilidade de que o que foi constituído de forma alienada seja apropriado e, em consequência disso, fundamentalmente transformado. (POSTONE, 1993, p. 36) 194 Se, enfim, o esforço empreendido neste estudo é capaz de confirmar a hipótese de que as concepções autointituladas “teorias do desenvolvimento” constituem a ciência da preservação do desenvolvimento capitalista, por outro lado, o mesmo esforço parece ser capaz de demonstrar que a intervenção crítica de Marx rompe com o vínculo entre produção teórica e prática conservadora não por se tornar mais “ideológica”, menos científica. Justo ao contrário, esse vínculo é rompido porque a teoria marxiana consegue projetar seu olhar para além dos determinantes imediatos de seu objeto e encarar seu desenvolvimento como aquilo que efetivamente é: a expressão do modo de funcionamento de um objeto dinâmico. Por isso, podemos concluir este estudo com uma constatação que, embora evidente, raramente é trazida à consciência e/ ou devidamente enfatizada: se há um autor que escreveu uma autêntica teoria do desenvolvimento capitalista, este autor foi Marx; se há uma obra que fala do desenvolvimento capitalista, esta obra é O capital. Isso, aliás, Marx fez questão de patentear já no prefácio da primeira edição, que citamos na introdução e recordamos novamente neste encerramento: “o objetivo final desta obra é descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna” (MARX, 2002, p. 18). Se Marx descobriu ou não essa lei, isso é uma questão que estará sempre em aberto. Mas que Marx procurou descobri-la, não é, de fato, possível negar. 195 196 Referências AGARWALA, Amar Narain; SINGH, Sampat Pal. (Org.). A economia do subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. ALMEIDA FILHO, Niemeyer. 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Apesar dos inúmeros contratempos e das questões deixadas em aberto, creio que, neste produto em particular, apresentado em agosto de 2011 ao Programa de Pós-graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense como requisito para a obtenção do doutorado em Economia, e agora publicado pela EdUFF, consegui sistematizar de maneira mais bem acabada o material da pesquisa e reunir as principais conclusões a respeito do tema. A todos aqueles que contribuíram, direta ou indiretamente, para que isso fosse possível, deixo aqui registrados os meus sinceros agradecimentos. Em especial, agradeço ao amigo João Leonardo Medeiros, orientador na ocasião e hoje colega de trabalho, que abraçou esse projeto com empenho admirável, que esteve sempre disponível (apesar das distâncias que separam Niterói de Uberlândia, Campos e/ou Vitória), sabendo ser duro e afável nos momentos certos. Além da orientação dedicada, do trabalho árduo de revisão e das incontáveis sugestões, João aceitou gentilmente minha intimação e agora nos presenteia com o excelente texto de apresentação deste livro (confirmando apenas minha convicção de que não poderia ter feito escolha mais acertada!). Agradeço aos professores e amigos: Marcelo Carcanholo, que carregou durante muito tempo parte da responsabilidade por este trabalho, respondendo formalmente como meu orientador, sempre disposto a dialogar sobre o tema e a fazer valiosas críticas e sugestões; Niemeyer Almeida Filho, que colaborou com este projeto durante todo o período do mestrado, mas especialmente como orientador da minha dissertação; e André Guimarães, o primeiro a ter coragem de me acompanhar nesta empreitada, ainda no período da graduação, sendo peça fundamental no meu retorno a Niterói para o início do doutorado. Apesar da impossibilidade de prestar os devidos agradecimentos aos demais professores que contribuíram para minha formação, gostaria de agradecer ainda a duas pessoas muito especiais, sem as quais nada disso teria sido possível. Em 205 primeiro lugar, ao professor Mario Duayer, por ter “iluminado meus caminhos” e me apresentado às discussões no campo da filosofia da ciência, que serviram como fundamento para a realização deste trabalho; e também gostaria de deixar registrados meus agradecimentos póstumos à professora Alice Werner, com quem tive a primeira oportunidade de conhecer a obra de Marx. Agradeço ainda ao professor Paulo Nakatani, pela leitura atenta e pelos comentários ao trabalho; a todos os professores, funcionários e colegas do Programa de Pós-gradução em Economia da UFF, além das queridas funcionárias da BEC (Biblioteca da Faculdade de Economia). A todos os colegas e amigos do Departamento de Economia da UFF/Campos (sempre generosos e extremamente compreensivos diante da minha necessidade de dedicar muito das quarenta horas semanais à redação deste trabalho), do Instituto de Economia da UFU (onde fiquei por um período breve, mas muito feliz), do Grupo de Pesquisa Teoria Social e Crítica Ontológica e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o marxismo (espaços de diálogo e aprendizado constantes). Mais uma vez, apesar da impossibilidade de mencionar os nomes de todos aqueles que estiveram ao meu lado e contribuíram com a realização deste projeto, gostaria de prestar um agradecimento especial à amiga de todas as horas Lérida Povoleri e, com enorme pesar, um agradecimento póstumo à amiga Paula Nabuco, de quem sentirei muita saudade. Por fim, agradeço a toda a minha família (avô, avós, tios, tias, primos e primas), em especial ao meu pai Humberto (apoio e presença constantes), à minha mãe Thereza Lucia (exemplo de mãe, mulher e profissional, que ainda encarou, nos momentos finais, a árdua tarefa de revisar todo o trabalho), à minha irmã Luciana (minha luz) e ao meu sobrinho Theo (menino adorável). À família que adotei nos últimos anos (Eduardo, Madelaine, Creuza, Elisa e demais membros da família Figueira), especialmente ao meu companheiro durante toda essa jornada, Hugo Figueira, que esteve ao meu lado nos últimos 13 anos, me apoiando nos momentos mais difíceis, abrindo mão das suas próprias questões para me auxiliar com as minhas, algo que só uma pessoa com coração tão grande e generoso é capaz de fazer. Com ele, hoje divido o prazer de ver crescer o doce Benjamim, fruto mais saboroso da nossa relação. Muito obrigada! Niterói, setembro de 2015. 206 Título: Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista Autora: Bianca Imbiriba Bonente Série: Coleção Biblioteca, 78 Edição: 1ª Editor responsável: Aníbal Bragança Equipe de realização Coordenadora de produção: Mariana Simões Revisão: Icéia Freixinho, Sônia Peçanha, Graça Carvalho Normalização: Fátima Corrêa Diagramação e capa: Marcos Antonio de Jesus Formato: 16 x 23 cm Tipologia: ITC Cheltenhan, corpo 10 Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo) Cartão Supremo 250 g/m2 (capa) Número de páginas: 208 Tiragem: 500 exemplares Impresso e acabado na Nova Aliança - Av. Almirante Frontin, 381, Ramos, Rio de Janeiro, RJ CEP 21030-040, em abril de 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP B712 Bonente, Bianca Imbiriba. Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista / Bianca Imbiriba Bonente. – Niterói : Eduff, 2016. – 208 p.; 23 cm. – (Coleção Biblioteca 78). Inclui Bibliografia. ISBN 978-85-228-0944-8 BISAC BUS068000 BUSINESS & ECONOMICS / Development / Economic Development 1. Economia marxista. 2. Marx, Karl, 1818-1883. 3. Desenvolvimento econômico. I. Título. II. Série. CDD 330.1594 Bianca Imbiriba Bonente Bianca Imbiriba Bonente possui graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal Fluminense (2004), mestrado em Economia pela Universidade Federal de Uberlândia (2007) e doutorado em Economia pela UFF (2011). Hoje é professora adjunta do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (NIEP-Marx). Bianca Imbiriba Bonente | Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica O objetivo deste livro é demonstrar que as teorias do desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo, e apenas ele, quanto no sentido de que, ao fazê-lo, projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para, primeiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econômicas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, empreende-se um contraste entre os termos comuns dessas teorias e os elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx. Bianca Imbiriba Bonente Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista Sendo uma formação social histórica, o capitalismo pode ser parteira de um desenvolvimento não capitalista, pós-capitalista, o que torna sempre pertinente a indagação sobre a necessidade ou possibilidade de conter a História em sua forma processual presente. Uma indagação como essa aponta para um plano mais abstrato de análise no qual o desenvolvimento capitalista não é previamente ajuizado como algo positivo (ou inexorável), mas sim como expressão da relação entre a norma de funcionamento (tendencial) interna do capitalismo e os constrangimentos externos que atuam sobre ela. Isso requer uma reconstrução crítica da ideia mesma de desenvolvimento que restaure o sentido mais geral apontado pela etimologia do termo. Considerando o que foi dito, é possível agora confessar: esta lição sobre desenvolvimento não saiu da cartola a partir da leitura de um dicionário ou obra qualquer acerca da etimologia das palavras. Na verdade, trata-se de uma entre as várias lições aprendidas na leitura do livro que o presente texto propõe-se a apresentar: Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista, de Bianca Imbiriba Bonente. Aqueles que se dedicarem ao exame atento dos capítulos do livro, com o mínimo de interesse e humildade necessários para aprender, certamente tomarão dele esta e outras lições. João Leonardo Medeiros Professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense