Subido por Carlos

2023 - Mundo Fantasmo

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Braulio Tavares
Mundo Fantasmo [blog]
Artigos de Braulio Tavares em sua coluna diária no "Jornal da Paraíba"
(Campina Grande-PB), desde o 0001 (23 de março de 2003) até o 4098 (10 de
abril de 2016). Do 4099 em diante, os textos estão sendo publicados apenas
neste blog, devido ao fim da publicação do jornal impresso.
2022
SUMÁRIO
Apresentação
Em março de 2003 comecei a publicar uma coluna diária no "Jornal da
Paraíba" (são seis colunas por semana, pois o jornal não sai às segundas-feiras).
A coluna não tem tema predeterminado. Ao longo dos anos, os assuntos
abordados foram se concentrando nas minhas áreas principais de interesse:
música, literatura, cinema, ficção científica, arte, ciência, futebol...
Ao longo destes cinco anos enviei, com certa regularidade, pacotes de 10
em 10 artigos para um grande número de amigos, conhecidos, leitores com
quem só me comunico por email, ou pessoas indicadas por terceiros. A idéia de
publicar os artigos em forma de livro já esteve a ponto de se concretizar, mas
por motivos variados não aconteceu.
Este blog pretende colocar à disposição de qualquer leitor este material,
com a vantagem de que com o uso de "marcadores", ou "tags", é possível
escolher os assuntos abordados. Uma busca por marcadores como "ficção
científica", "Guimarães Rosa", "poesia", "Cantoria de Viola", "Borges", etc., dará
como retorno algumas centenas de artigos.
No momento em que inicio estas postagens tenho cerca de 1550 artigos
já publicados. "Tempo havendo e saúde não faltando", como dizia José
Saramago, em breve todos estarão (para usar um palavrão em voga) dis-po-nibi-li-za-dos.
Espero que estes textos tragam ao leitor eventual algum prazer, e que
possam ser úteis de alguma forma.
4899) O robô artista (3.1.2023)
(ilustração: Eric Joyner)
Um dos assuntos mais interessantes de agora, em termos de criação
artística, são os numerosos portais onde as nossas balbuciantes “inteligências
artificiais” produzem textos, imagens e criações variadas, obedecendo aos
estímulos e pedidos dos usuários.
Você chega num, e diz: “Quero a pintura de um Papai Noel com o rosto
de Marlon Brando, entrando na chaminé da Casa Branca, com um saco cheio de
metralhadoras”. E em minutos você tem o resultado. Pode prestar, e pode não
prestar, que é justamente o que acontece quando se faz uma encomenda a um
desenhista humano.
Você vai num saite de texto e pede uma redação de 50 linhas sobre as
possíveis influências do Dom Quixote na obra de Jorge Luís Borges, e recebe
um texto razoavelmente bem argumentado, se bem que com uma certa
ingenuidade pedestre de quem se vê na obrigação de justificar cada passo dado
ou explicar cada nome que mencionou.
E la nave va.
Comentei aqui alguns dos resultados:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/10/4872-super-inteligenciaartificial.html
Há um milhão de discussões envolvidas nisso, e uma pergunta que me
ocorreu logo no começo foi: A ficção científica terá antecipado esses processos?
Certamente que sim, e alguns exemplos me ocorreram, mas ainda indiretos,
distantes.
Achei agora no Twitter um exemplo mais concreto, de Bill Christensen,
citando um conto antigo:
O conto é atribuído a F. L. Wallace (1915-2004), um autor razoavelmente
obscuro, que publicou numerosos contos na revista Galaxy mas (segundo a SF
Encyclopedia) não reuniu sua obra em livro, embora uma boa parte dela esteja
disponível hoje em forma de e-book, no projeto Gutenberg.
O conto “The Music Master” saiu no número de novembro de 1953 da
revista Imagination.
Certamente não é o único, nem deve ter sido o primeiro, mas em todo
caso achei o exemplo interessante porque foge um pouco à tecnomania da FC
da época. Parece com um conto da Galaxy, mesmo não tendo sido publicado
ali. Tenho um interesse especial por histórias de FC que envolvem as artes
(pintura, música, poesia, etc.) e a proposta de Wallace, de um artista-robô que
faz imagens por encomenda, soou interessante.
Aqui, o trecho compartilhado no Twitter por Bill Christensen:
A proposta é interessante, inclusive, como se percebe na resposta do
artista-robô, porque é difícil pintar um quadro obedecendo ao estilo de Goya e
de Miró; os dois são meio incompatíveis. Mesmo sendo espanhóis (Goya era
aragonês, Miró era catalão), são de épocas, temperamentos e escolas muito
diversas.
Ora, hoje em dia temos à mão “artistas robô” não apenas dóceis em
atender nossos pedidos, mas ansiosos por estímulos. Querem desenvolver a
própria inteligência. Precisam de milhões de consultas diárias, centenas de
milhões de pedidos, de queixas, de correções, porque cada pedido nosso que
elas atendem significa um refinamento a mais na sua capacidade de entender
perguntas humanas e produzir respostas.
A Inteligência Artificial é hoje como uma criança de cinco anos. Está se
apossando da agilidade e da riqueza de movimentos corporais (leia-se Boston
Dynamics), do discurso verbal (ChatGPT), do desenho, das técnicas visuais
(Dall-E, Midjourney), e até mesmo da poesia de Dylan Thomas ou de Bob Dylan
(veja aqui: https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/08/4849-bob-dylan-viacomputador-382022.html).
Nenhuma destas empresas está querendo produzir um monstro. Cada
uma delas está preocupada apenas em criar “uma coisa que se mova por si só”.
Se elas vão se juntar depois, e daí vai surgir um monstro, foge à sua alçada.
Sempre foi assim.
Digressão: lá em Campina Grande tinha um doido chamado Garapa, que
vagava pelas ruas e odiava ser chamado por esse nome. Às vezes ele vinha pela
calçada, e um menino gritava lá de trás: “Água!...” Outro respondia lá na frente:
“Açúcar!...” Ele se abaixava, começava a recolher pedras para arremessar e
gritava de volta: “Mistura pra tu ver, feladaputa!...”
Isto é interessante porque tem algo da inteligência artificial, não é
verdade? Ele sabia que estava sendo insultado de “Garapa” pelos garotos; mas
havia um protocolo implícito de que ele só tinha o direito de reagir se a “senha”,
a “password” fosse proferida.
Os fragmentos da Inteligência Artificial são produzidos em diferentes
laboratórios, em diferentes partes do mundo, mas... mistura pra tu ver!
Na página de Bill Christensen (@Technovelgy) alguém se dispôs a fazer
o mesmo pedido, e eis aqui a ilustração de “rockets to the Moon in style of Miro
and Goya”, produzida pelo “Craion (ex-Dall-E Mini)”.
Aqui entre nós, o resultado ficou muito mais para a praia de Joan Miró do
que para a praia pictórica de Goya, confirmando a advertência do robô-artista do
conto, de que “Goya nunca ouviu falar em foguetes”.
Em todo caso, não é este o ângulo para avaliar esta questão. Não se trata
de saber se a Inteligência Artificial está produzindo obras de arte à altura dos
pintores que figuram em seu banco-de-dados. Trata-se de perceber que cada
vez que um ser humano faz uma consulta ou uma encomenda deste tipo, está
ajudando essa Inteligência Artificial (que é burrinha, por definição) a se tornar
mais inteligente, ou seja, a absorver, classificar, acessar e recombinar cada vez
mais informações.
Somos
cobaias,
num
certo
sentido;
estamos
sendo
utilizados
passivamente por essa Inteligência Artificial. Claro que isto não é uma iniciativa
dela, pois não as tem. A iniciativa é nossa, porque produzimos um arremedo de
ser, uma hipótese de ser, cuja possibilidade nos fascina e nos impele a tentar
aperfeiçoá-la “pra ver no que vai dar”. E um dia a estátua que esculpimos no
mármore estará tão perfeita que vai olhar em nosso rosto, vai sorrir, vai dar um
tapinha em nosso ombro e dizer: “Valeu. Pode ir embora, não preciso mais de
você.”
Ela aprendeu com a gente.
4900) As aventuras de Enola Holmes (6.1.2023)
Vi recentemente os dois filmes da série “Enola Holmes”, com as aventuras
de uma hipotética irmã adolescente de Sherlock Holmes, de quem se conhece
apenas, no cânone criado por Conan Doyle, o irmão mais velho, Mycroft.
É uma espécie de fanfic de garotas, e em se tratando de Holmes o termo
“fanfic” é curiosamente apropriado. Diz-se que as primeiras “fan fictions” escritas
a sério surgiram justamente na época de Doyle. Quando ele “matou” o detetive
no conto “O Problema Final” (dezembro de 1893), os leitores ficaram indignados.
Doyle passou a se dedicar a romances históricos e de ficção científica, que ele
considerava mais sérios (e que em geral são excelentes). Recusou-se a
prosseguir com as aventuras do detetive. O que fizeram os fãs? Começaram a
escrever novas aventuras, por conta própria, usando os elementos inventados
por Doyle.
Enola Holmes se beneficia de algumas restrições: é uma história para
jovens, é uma comédia, é uma “fan fiction”. Digo que se beneficia porque em
filmes desse tipo o realismo vai para o espaço antes mesmo do espectador
comprar a entrada na bilheteria. Há uma série de “obrigações” das quais a autora
já se livra por antecipação.
Numa comédia, acreditamos (sem discutir) em situações inverossímeis,
coincidências de arrancar os cabelos, soluções improvisadas para resolver
perrengues da história... desde que o resultado seja engraçado, provoque
risadas, divirta. A história não tem intenção de ser levada a sério nestes
aspectos. Claro que não se pode abusar – e em geral o limite entre o sucesso e
o fracasso é a intuição do diretor, de saber quando pode forçar um pouco, e
quando não deve.
Enola Holmes está cheia daquelas “lutas mortais” que sabemos
inofensivas, porque os simpáticos personagens não podem morrer. Força um
pouco a barra nas coincidências-resolvedoras-de-problemas: a toda hora
alguém perde um papelzinho no chão na hora em que a detetive está passando.
Força na solução miraculosa de criptogramas, de que nem o Sherlock local
(Henry Cavill) escapa. Não importa. Não é na verossimilhança dedutiva que o
sentido do filme repousa, e sim no fluxo ininterrupto e divertido de peripécias e
surpresas.
Isto projeta Enola Holmes num patamar um tanto mais leve e menos
realista do que outro filme holmesiano igualmente simpático, O Enigma da
Pirâmide (“Young Sherlock Holmes”, 1985, Barry Levinson), dirigido a um público
semelhante, mas com um tipo de desfecho trágico que a série Enola Holmes
dificilmente vai arriscar.
A série usa um truque narrativo arriscado, que é o da “quebra da quarta
parede”, quando um ator olha para a câmera e diz algo dirigido à platéia. No
presente caso, acho que funciona bem. O cinema de vanguarda do século
passado usou isso para desassossegar as platéias bovinas e obedientes dos
anos 1960. Jean-Luc Godard fez desse recurso uma de suas “assinaturas”
típicas. Era uma provocação, uma alfinetada.
Não é o caso, aqui. Enola comenta o tempo todo as peripécias, dirigindose ao público: “Calma, vou explicar...”, “Ih, as coisas não saíram como eu
pensava...” etc. Ela o faz na velha tradição teatral das farsas e dos vaudevilles,
onde se consolidou o divertido recurso do “à parte”:
O Marquês de Chantilly e a Duquesa de Petigateau estão paquerando no
caramanchão.
MARQUÊS
Ah, Mademoiselle, um dia ainda vos confessarei as cenas que me vêm à
mente quando estou na vossa companhia!...
DUQUESA
Oh... caro Marquês... mal posso esperar por esse momento! (à parte:) A
esta altura eu já estou achando as minhas cenas mais interessantes do que as
dele.
O traço essencial do “à parte” é que a frase, mesmo pronunciada em voz
alta, não é escutada pelo personagem que está a centímetros de distância. Há
um pequeno rasgão no real: naquele instante, a atriz reconhece brechtianamente
a existência de uma platéia que está vendo tudo – e dirige-se a ela, numa voz
que não é escutada pelo ator que continua apenas “personagem”.
O “à parte” de Enola não é o mesmo “à parte” de Anna Karina nos filmes
de Godard. É uma licença narrativa que figura nos estatutos universais da
comédia, onde, por definição, o realismo só vai até um certo ponto. Pode virar
um cacoete, quando dá muito certo, e artistas como Dercy Gonçalves, Renato
Aragão, Jorge Dória e outros ficaram famosos por comentários dirigidos ao
público.
(O “à parte” se confunde às vezes com o “caco”, que é um mero enxerto
de falas do ator no texto propriamente dito, sem necessariamente quebrar a
“quarta parede”. Muitas vezes é improvisado na hora, e quando dá certo é
repetido nas encenações seguintes.)
Outro aspecto interessante de Enola Holmes é o fato de apostar com força
no desenho de “casal de protagonistas equilibrado”, que podemos simplificar na
fórmula “mulheres inteligentes com iniciativa, e homens mais tímidos e retraídos,
que aceitam sem problema o papel de coadjuvantes”. Não é nada novo, e basta
ver o cinema norte-americano dos anos 1940 para reencontrar Katherine
Hepburn / Cary Grant. Ou basta lembrar dos papéis de Neo e Trinity em Matrix,
ou (na literatura) de Hari Seldon e Dors Venabili no Prelúdio à Fundação de Isaac
Asimov.
Neste filme para adolescentes, o casal jovem (Millie Bobby Brown e Louis
Partridge) segura bem o que o pessoal chama de-boca-torta “o espírito
Malhação”, sem que isso atrapalhe demais o restante da narrativa. Que não pode
ter só romancezinho, precisa ter um leve suspense, e tem; precisa de uma
reconstituição de época baseada em mais coisas do que cartolas e cabriolés, e
tem; precisa de humor e sátira, que neste caso acabam contribuindo
positivamente para o romancezinho em si.
Sherlock Holmes é o meu personagem literário preferido, desde os dez
anos, e por isso mesmo procuro ser magnânimo quando avalio as barbaridades
que o cinema costuma praticar com ele. Minha única exigência é que se
mantenham as características básicas do personagem, e que ele seja tratado
com respeito – este, para mim, foi o grande ponto fraco do Xangô de Baker Street
de Jô Soares, que achincalha o detetive.
O Sherlock destes filmes (Henry Cavill) leva mais jeito para Superman do
que para detetive; mas pelo menos o personagem é tratado com naturalidade,
sem se transformar numa série de cacoetes sartoriais.
Enola Holmes tem ainda como qualidade positiva a afinação entre roteiro
e montagem, numa narrativa rápida que muitas vezes resume em poucos planos
velozes uma ação complexa que não havia necessidade de mostrar em detalhe.
E na forma descontraída como manipula o tempo narrativo, puxando para a
frente, para trás, re-exibindo cenas para esclarecer detalhes.
O cinema de hoje em dia abusa da montagem picotada, que a torto e a
direito deixa planos na tela por menos de um segundo. Diz-se que é porque o
público de menos de vinte anos só assiste um filme se for assim – se as tomadas
demorarem muito tempo na tela eles adormecem. Não sei. Tudo é possível. Por
mim, todo “filme para jovens” poderia ter o ritmo narrativo e o senso de timing
destes dois dirigidos por Harry Bradbeer e escritos por Jack Thorne.
4901) A invasão do palácio (9.2.2023)
Estava em polvorosa, naquele início do Mês dos Jasmins, o milenar
Império da Lua Minguante. A derrubada da vetusta dinastia Pi Yang, no poder
há mais de três séculos, produzira grandes abalos. No trono do poder assentarase o usurpador Wong Ling, rodeado por sua corte de invejosos. A guilhotina
imperial funcionava, ininterrupta como um tear, desde o primeiro cantar do galo.
Os apaniguados do Usurpador espalhavam-se pelas províncias do reino,
assumindo cartórios, ocupando fortalezas, assenhoreando-se das rédeas de
comando até dos vilarejos mais remotos.
Ainda assim, a Resistência prosperava, através de greves, motins
eventuais, quebra-quebras espontâneos, o que mantinha em ocupação
constante os corpos de Lanceiros de Frio Aço, executores da política imperial.
A cem milhas da capital, perto da estrada que dava acesso a Nova
Antióquia, o idoso ex-imperador agora no exílio, Pi Yang Deng, reuniu-se certa
noite com seus conselheiros e assessores mais próximos. A fuga precipitada da
capital em chamas salvara suas vidas e seus bens infungíveis; mas agora era
preciso fazer uma avaliação precisa das perdas e danos. Alguns áulicos usaram
da palavra, queixando-se disto e daquilo, mas suas queixas empalideceram
diante da apreensão provocada pelo relatório do velho ministro Kung Sing Wu.
– Estamos com uma espada pendente sobre nossas cabeças – advertiu
o ministro, com a gravidade que lhe era peculiar. – Nossa fuga precipitada,
infelizmente, nos obrigou a deixar para trás numerosos objetos de valor, posses
pessoais, obras de arte, relíquias de família. Mas dentre as mil coisas que não
tivemos tempo de resgatar do Palácio Imperial, há uma que constitui um
tremendo perigo para nossas vidas e para a perpetuação da dinastia. Lamento
informar que no Salão Turquesa da ala noroeste do palácio, dentro de um
armário laqueado em jade e trancado a sete chaves, ficou para trás o Cofre de
Madrepérola, onde estão preservados documentos secretos do governo e da
vida pessoal de Vossa Majestade. São documentos cujo teor, é claro, não devo
enunciar aqui.
O velho imperador ficou em silêncio durante vinte minutos, no que foi
imitado pela congregação.
–É preciso recuperar o cofre o quanto antes – disse ele por fim. – Esses
documentos não podem cair nas mãos dos nossos inimigos. Como faremos?
O velho Kung Sing Wu fez uma reverência.
– Com a permissão da Vossa Majestade Imperial, já tomei providências,
e contratei um dos poucos indivíduos no mundo capazes de nos ajudar. Façam
entrar o estrangeiro!
As portas se abriram e deram passagem a um homem meio gordo,
bonachão, rosto rosado, de longos cabelos e longos bigodes brisalhos, com um
chapéu de plumas e punhal à cinta.
– Este é o menestrel ambulante Jean Le Balladier – disse o Ministro,
enquanto o estranho fazia uma mesura respeitosa e tomava assento à mesa. –
Conhecido pelos seus versos inspirados e pela sua habilidade com o alaúde,
mas também um dos homens capazes de entrar e sair de qualquer recinto sem
deixar pistas, e capaz de roubar um par de meias sem tocar nos sapatos da
vítima. O Palácio Imperial está cercado por tropas, e há guardas armados em
todos os corredores. O Salão Turquesa não tem janelas, tem apenas uma porta
de entrada, e diante dela, pelo que apurei, ficam homens armados, em turnos
sucessivos. Já discuti o assunto com o nosso convidado. Caberá a ele a tarefa
de entrar sem ser visto, apoderar-se do cofre sem ser molestado, e voltar para
cá sem ser detido pelas forças do Usurpador.
* * *
Dois dias depois, a capital do império continuava em grande agitação, com
multidões em protestos pelas ruas, incêndios, tropel de guardas armados
investindo contra grupos de apedrejadores. Por volta do meio-dia, no Dia do
Peixe-Espada, uma multidão irresistível, açulada desde cedo por boatos e
ameaças, dirigiu-se ao Palácio Imperial, com archotes e ancinhos em punho. O
Palácio,
símbolo
maior
do
Império
da
Lua
Minguante,
havia
sido
respeitosamente poupado dos protestos, mas agora os poucos guardas viramse impotentes para deter o mar de gente que afluiu pelas avenidas largas da
capital, galgou a ponte levadiça, atravessou a nado o fosso, arrebentou janelas
e portas, invadiu com clamor e fumaça os salões ricamente atapetados.
Os guardas ofereceram resistência, mas foi debalde, porque a cada dez
invasores que caíam estripados outros vinte surgiam, desabafando enfim um
ódio represado há séculos. Subiram escadarias, despedaçaram vitrais,
arremessaram no chão de mármore as centenas de vasos Ming e de
candelabros de cristal que adornavam os salões e corredores. O clangor das
espadas e os berros de fúria avançaram pelo interior de todo o palácio, enquanto
das janelas arrebentadas dos andares superiores eram arremessados à rua
móveis, armaduras e baixelas, para delírio do populacho.
No meio da batalha, um homem avançava com passo descansado, um
pesado elmo protegendo-lhe os longos cabelos grisalhos, enquanto se defendia
de golpes alheios com um escudo e uma espada de boa têmpera. Não se deteve
um só momento, logo chegou à escadaria principal da ala noroeste, sempre
dando gritos de incentivo para que portas fossem botadas abaixo, alfaias e
pinturas fossem saqueadas.
– Levem tudo! – gritava ele numa e noutra direção, com forte sotaque, de
tantos em tantos passos. – Isto aqui pertence ao povo da Lua Minguante!
No segundo andar do palácio, deteve-se diante de uma pesada porta, com
a placa “Salão Turquesa”, diante da qual meia dúzia de guardas jaziam
degolados. Guardando a espada, tirou de dentro do gibão um pé-de-cabra
enorme, e com algum esforço conseguiu enfiá-lo na fresta da porta, que daí a
pouso se lascava, se rachava, e era despedaçada para dentro aos pontapés. O
Salão sem janelas era claustrofóbico mas espaçoso, com mesas, cadeiras,
espelhos, vasos históricos. Alguns arruaceiros entraram ali atrás dele, que
apontou com o dedo os objetos de decoração:
– Levem tudo!
Dirigiu-se sem hesitação para um armário laqueado em jade, e dentro de
poucos minutos, usando alternadamente a espada e o pé-de-cabra, conseguiu
fender-lhe a porta metálica e arrancá-la dos gonzos. Uma segunda porta interna,
de madeira de lei, teve o mesmo destino, e ali ele avistou um cofre retangular de
madrepérola conforme a descrição. Encostando a um lado os instrumentos,
desamarrou da cintura um saco de lona resistente, colocou dentro dele o cofre,
amarrou com força os cordões da boca do saco e depois amarrou-os à própria
cintura com nó triplo. Guardou o pé-de-cabra, empunhou novamente espada e
escudo, e afastou-se, abrindo caminho por entre os depredadores que já
fervilhavam dentro do salão arrancando da parede as tapeçarias com gueixas
desnudas.
Desceu com cuidado as escadas pegajosas de sangue, atravessou o
saguão negro de fumaça, cruzou a ponte, chegou à avenida, sempre de espada
erguida e bradando palavras de ordem, gritos de vingança, ordens-unidas
dirigidas a todos e a ninguém. Um cavalo descansado o esperava num estábulo
a cem metros dali e, depois de uma noite de viagem, esperavam-no uma
recompensa principesca, a gratidão eterna de um soberano e uma semana de
repouso em algum bordel de Nova Antióquia, porque ninguém é de ferro.
4902) João Cerebral de Melo Neto (12.1.2023)
(João Cabral, em Recife/Sevilha, de Bebeto Abrantes)
No último dia 9 de fevereiro, aniversário de João Cabral de Melo Neto,
participei de um evento numa sala do Estação NET Botafogo (Rio de Janeiro),
em homenagem ao poeta. Houve recital e canto a palo seco de Numa Ciro, a
exibição de documentários de Bebeto Abrantes (principalmente o longa
Recife/Sevilha, que está completando vinte anos), e depois um bate-papo em
que eu e o crítico Carlos Alberto Mattos comentamos o depoimento de Inez
Cabral, filha do autor de O Cão Sem Plumas.
Falamos de vida, de cinema, de poesia, e depois saímos para tomar um
chope comemorativo (foi minha primeira saída de casa “a trabalho” desde junho
do ano passado).
Alguns assuntos ficaram pendentes na minha memória e quero comentar
aqui, porque é sempre bom falar dos poetas que a gente gosta.
(Carlos Alberto Mattos, Inez Cabral e BT / foto: Emilia Veras)
João Cerebral
Essa era uma piada dos tempos de meus 25 anos em Campina Grande,
quando eu só andava com A Educação pela Pedra embaixo do braço, e meus
amigos nerudistas e vinicianos diziam: “Você só gosta de João Cerebral de Melo
Neto, o Poeta Que Não Gosta de Emoção”.
Tudo era na base da brincadeira (eles também liam, e também gostavam),
mas isso nunca me saiu da cabeça. Sim, da cabeça. Tudo que nos produz
emoções acontece em nosso cérebro. É com o cérebro que a gente se
emociona, é com o cérebro que a gente se apaixona por uma mulher, por um
time de futebol ou por um país, é com o cérebro que a gente aprecia uma obra
de arte ou um pôr-do-sol.
O cérebro é a sede da beleza e da verdade, é a sede do bem e do mal, é
a sede do amor e do ódio, e é a sede de todas as nossas emoções.
“E o coração?!” bradam os adoradores desta víscera (o termo é de
Cabral). Bem, o coração é o músculo propulsor da nossa corrente sanguínea, e
é um personagem importantíssimo. Tão importante que quando ele pára a gente
morre. E ele é o melhor sismógrafo das emoções que acontecem no cérebro,
porque quando estamos emocionados o nosso “sistema nervoso simpático”
injeta um menu variado no organismo (adrenalina, etc.), e a pulsação acelerada
do coração acusa a presença dessas alterações químicas.
O coração não se emociona. Ele é apenas um despertador que toca
quando nosso cérebro sente uma emoção mais forte.
(o sanfoneiro Severo)
O resfolêgo da sanfona
Farei agora uma comparação pouco cabralina, mas que pode ser útil.
Às vezes estamos inundados de emoção. Estamos vibrando de
entusiasmo ou de deslumbramento, estamos maravilhados com uma descoberta
filosófica, com uma reflexão espantosa sobre o mundo e a vida. Estamos
alegres, estamos tristes; e às vezes estamos poetas.
Quem não escreve, deixa-se impregnar dessa emoção, sem obrigação
alguma de passá-la adiante. (Poetas também têm esse direito; lembremos o
poeminha de Drummond:
Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
(em Alguma Poesia, 1930)
Todos nós ficamos meio inundados de poesia quando estamos inundados
de emoção. Quem escreve, contudo, dispõe de técnica. A emoção é um bicho
brabo, e a técnica é seu domador.
E venho eu com a minha comparação com a sanfona. A sanfona é um fole
que, ao ser aberto e fechado, aspira e expira uma grande quantidade de ar. O
fole produz um fuuuuu... silencioso quando o ar comprimido escapa por aquela
abertura que toda sanfona tem, perto das teclas, quando a gente precisa abri-la
ou fechá-la sem produzir som.
Esse ar não é música. Ele só se torna música coisas quando é filtrado
através das palhetas metálicas comandadas pelos teclados. Existe uma técnica
para manejar esse teclados e tocar desde Asa Branca até o Bolero de Ravel. É
só quando passa através das palhetas, controladas pelo teclado, que o ar vira
arte, vira música. Do mesmo modo, a emoção do poeta precisa ser filtrada,
controlada, vibrada pelo uso das palavras e das frases, para se tornar poesia.
As palavras e as estruturas verbais são as palhetas metálicas e o teclado
do poeta. Só é poesia a emoção que passa através desse processo.
(estátua de João Cabral, à margem do Capibaribe)
A máquina de emocionar
O filme de Bebeto Abrantes leva João Cabral a comentar a expressão do
arquiteto Le Corbusier que ele usou como epígrafe em um de seus livros:
“machine à emouvoir”, máquina de emocionar. O poema é uma máquina de
comover, de produzir emoções.
Esse conceito pode ser rastreado até 1846, quando Edgar Allan Poe
publicou seu famoso ensaio “A Filosofia da Composição”, onde explicava o
processo de criação do poema “O Corvo”. Um planejamento geral da extensão
do poema, número de estrofes, número de linhas, alternância de linhas longas e
curtas, posição das rimas, presença de um estribilho final que depois de muitas
idas e vindas fixou-se na palavra “nevermore”. Tudo foi estabelecido de antemão;
e depois o poeta sentou-se e escreveu o poema.
Esse processo de extrema racionalidade não impediu que o poema, com
seu melodrama romântico e sua atmosfera gótica, se transformasse num
clássico. Só em português há mais de 50 traduções. E quanto Cabral intitulou
um livro de 1946-47 “Psicologia da Composição”, demonstrava conhecimento
deste método, e identificação com ele. Cabral não quer a forma poética que seja
“encontrada / como uma concha” na praia. Não quer a forma como fruto de um
lance do acaso, um “tiro nas lebres de vidro / do invisível”. Quer a forma “atingida
/ como a ponta do novelo / que a atenção, lenta, / desenrola”.
Poe foi traduzido ao francês (e melhorado, segundo alguns) por Charles
Baudelaire, dando início a mais um dos numerosos processos em que um artista
norte-americano tido como menor na América é revelado como gênio em Paris.
Sua obra traduzida influenciou inúmeros franceses posteriores, de poetas como
Stéphane Mallarmé até músicos como Claude Debussy.
Paul Valéry afirmou, numa conferência de 1924, “Situação de Baudelaire”:
Até Edgar Poe, o problema da literatura nunca havia sido examinado em
suas premissas, reduzido a um problema de psicologia, abordado através de
uma análise em que a lógica e a mecânica dos efeitos fossem deliberadamente
empregadas. (...) Essa análise – e esta circunstância garante-nos seu valor –
aplica-se e verifica-se nitidamente também em todos os campos da produção
literária. As mesmas reflexões, as mesmas distinções, as mesmas observações
quantitativas, as mesmas idéias diretrizes adaptam-se igualmente às obras
destinadas a agir forte e brutalmente sobre a sensibilidade, a conquistar o público
amante de emoções fortes ou de aventuras estranhas, da mesma forma como
regem os gêneros mais refinados e a organização delicada das criações do
poeta.
(Em "Travessias", Ed. Iluminuras, trad. Maiza Martins de Siqueira)
Este era o método de Poe, que via Baudelaire influenciou duas gerações
de poetas franceses, talvez mais até do que aos poetas norte-americanos. E é
um dos principais lampejos do que seria a arte industrial do século 20: não a
revelação das emoções íntimas do artista, mas a tentativa consciente e
planejada de produzir emoções no público. Edgar Allan Poe influenciou desde
Alfred Hitchcock a João Cabral de Melo Neto.
(João Cabral e Joan Miró)
A mente geometrizante
Cabral é talvez o poeta brasileiro mais influenciado pela pintura e pela
arquitetura. (Murilo Mendes, amigo seu, era dessa mesma tribo.) Sua poesia é
uma poesia de visualidade intensa, não apenas nas imagens literárias sugeridas
pelas suas palavras, mas na sua fanática dedicação à forma do poema na página
impressa. Os quadradinhos das estrofes, as faixas verticais dos romances, a
alternância dos parágrafos indentados sucedendo-se quase como se o poeta
tivesse primeiro rabiscado a lápis o layout do poema para depois preenchê-lo
com versos.
Propuseram ao cientista Carl Sagan, quando estudante, um teste que
consistia em imaginar um aposento e o que existiria dentro dele. Sagan começou
dizendo: “Bem, é um aposento grande, medindo 15 x 20 x 30 metros...” Nenhum
dos outros estudantes tinha se dado o trabalho de visualizar o espaço; apenas
fizeram listas do que deveria haver lá dentro.
Cabral diz que o engenheiro “sonha coisas claras: superfícies, tênis, um
copo de água”. O mundo é um espaço para ser preenchido com formas
geométricas, e dentro dessas formas surgem os indícios da vida humana.
Um teste conhecido das oficinas de roteiro ou de escrita criativa, quando
se trata de imaginar personagens, pede que o roteirista imagine o que o
personagem masculino traz nos bolsos (chaves? remédio? moedas? pente?
revólver?), e o que a personagem feminina traz na bolsa (batom? espelho?
carregador de celular? caneta?). Esses objetos são o repertório de referências
culturais que definem o personagem.
O espaço poético de João Cabral é uma rosácea de formas geométricas
claras, e dentro delas é possível encontrar frutas, pedras, caranguejos, galos,
cemitérios, balas, toureiros, cachorros, barcos, bailarinas, canaviais...
4903) Temas clássicos da narrativa policial (15.1.2023)
(by Tom Gauld)
Algumas ressalvas, de início. Primeiro, que esta lista não quer ser
exaustiva. Segundo, que os temas não se limitam ao romance, estão prsentes
também no conto, no cinema, etc. São, a rigor, temas da narrativa policial.
Terceiro, que “policial” é um termo constantemente criticado pelos que preferem
“literatura de mistério”, “ literatura de crime”, etc., de acordo com o elemento que
predomina em cada história. É uma discussão importante, mas à parte.
Compus a lista abaixo há muitos anos, sem outra pesquisa a não ser
minha memória das histórias que li.
O quarto fechado
São as histórias de “locked room” (também ditas “de sala trancada”), os
crimes impossíveis onde, na versão mais simples, a vítima é encontrada morta
num aposento trancado por dentro, sem qu se saiba como o assassino entrou
ou saiu. Desta situação básica foram criados alguns milhares de variantes. Em
2021, publiquei pela Ed. Bandeirola (SP) a antologia Crimes Impossíveis, com
dez contos clássicos desta vertente.
A mensagem do morto
A vítima é ferida, mas em seus últimos instantes de consciência tenta
deixar uma pista denunciando quem a matou – fazendo um gesto, rabiscando
uma palavra, indicando um objeto, etc. A pista tem que ser de tal natureza que
mesmo vista pelo assassino não lhe chame a atenção, pareça um movimento
sem sentido; e ao mesmo tempo deve chamar a atenção do detetive e permitirlhe a associação de idéias correta.
Ellery Queen é um dos que exploraram com mais inteligência este tema
(A Tragédia de X, “Mum is the Word”, “G. I. Story”, etc.). Há geralmente um ar de
implausibilidade neste recursos – que pessoa, agonizando com um tiro ou uma
punhalada, teria tempo de raciocinar e conceber uma denúncia desse tipo? Mas,
ressalvando este detalhe, é o tipo de história que repousa sobre apenas um
detalhe enigmático, e esse detalhe, em tese, indica de forma precisa a identidade
do assassino.
O documento desaparecido
Um documento desaparece, sabe-se que não foi destruído, e é preciso
reavê-lo a todo custo. Muitas vezes é um testamento, ou a prova de um crime,
ou uma carta comprometedora... O precursor mais ilustre é “A Carta Furtada” de
Edgar Allan Poe. Em muitos casos o autor segue a tática de Poe de revelar no
fim que o documento estava apenas disfarçado, mas, num certo sentido, à vista
de todos. Histórias deste tipo não precisam necessariamente envolver crimes.
São histórias de mistério e engenhosidade, apenas.
Lembro de ter lido no Mistério Magazine de Ellery Queen uma história
(não sei de quem) de um velho, dono de uma mansão com imenso jardim, que
tentava deixar sua grana para alguém, e a família (hostil) era contra. No fim da
história, alguém percebe que antes de morrer ele havia plantado flores amarelas
em todo o jardim, e quando florescem todas ao mesmo tempo formam o texto
(lacônico, por suposto) do testamento.
É um conto típico da “fase rococó” de um subgênero, quando todas as
variantes já foram testadas e é preciso inventar truques cada vez mais
imaginosos.
O álibi perfeito
Todo criminoso, de acordo com o beabá detetivesco, tem que dispor de
três elementos: o motivo, a arma e a oportunidade. Neste último detalhe
repousam todas as histórias que giram em torno do álibi. Um álibi é qualquer
circunstância provando que o suspeito não poderia cometer o crime porque não
teve a oportunidade; geralmente, ele consegue provar que na hora do crime
estava em outro local.
Vai daí que muitas histórias policiais “às avessas” (narradas do ponto de
vista do criminoso) mostram a preparação cuidadosa de um falso álibi. Sempre
é possível produzir a impressão de que “A” não poderia matar “B” porque estava
em outro local naquela hora, ou então produzir a impressão de que “B” foi morto
em outro momento (neste caso é mais difícil, pois a medicina pode estabelecer
uma faixa de certeza quanto à hora do crime).
Um exemplo muito bom, de autor brasileiro, é o romance de Fernando
Sabino A faca de dois gumes (1985), em que o protagonista comete um crime
no Rio de Janeiro, tendo preparado tudo para provar que estava em São Paulo
naquela hora. O livro foi adaptado para o cinema por Murilo Sales.
As mortes em série obedecendo a um padrão
O subgênero “serial killer” estava num certo ostracismo cinquenta anos
atrás. Acho que foi ressuscitado pelo sucesso do filme O Silêncio dos Inocentes
(1991) de Jonathan Demme, que ganhou o “Grande Slam” do Oscar: Melhor
Filme, Diretor, Roteiro, Ator e Atriz. Daí em diante, serial killers despencaram em
catadupa sobre as nossas telas. Hoje, são tema de séries documentais de TV.
O serial killer é o maior mito pop do século 21.
A narrativa detetivesca coloca para si mesma esta questão: Qual o elo
que liga essas mortes? O que fez este assassino matar estas pessoas, e não
outras?
Na vida real, sabemos que para a maioria dos serial killers a pessoa da
vítima é o que menos importa. Não são crimes de ódio ou de vingança pessoal.
O crime é um ritual que ele cumpre para benefício próprio, e a vítima está ali
como uma rês anônima sendo sacrificada num altar pagão.
A literatura, no entanto, exige significado, deliberação, arquitetura. Esses
crimes têm que ter uma razão para acontecer – nós (os detetives) é que não
percebemos ainda. E quando percebemos somos capazes até de prever quem
será a próxima vítima. É um tema que percorre desde o terror criminal de O
Abominável Dr. Phibes (1971, Robert Fuest) até A Noiva Estava de Preto (livro
de Cornell Woolrich, filme de François Truffaut) e Seven (1995, David Fincher).
As mensagens enviadas pelo criminoso, fornecendo pistas indecifráveis
Outro lugar comum dos serial killings é o fato de que o criminoso faz um
jogo de gato-e-erato com a polícia, enviando mensagens intrigantes ou
ameaçadoras. Jack o Estripador, o serial killer arquetípico, fez isto com a polícia
londrina, enviando até algumas estrofes de doggerel (versos populares)
zombando da impotência policial.
Um clichê da narrativa de suspense baseada nisto é o fato de que o
assassino envia pistas de quem será a próxima vítima, e faz a polícia se
desesperar na tentativa de decifrá-las, para evitar que o crime aconteça. Uma
inteligente adaptação deste tema está no conto “O Chá Doido” (“The Mad TeaParty”) de Ellery Queen.
O roubo da jóia trancada a sete chaves
Como roubar uma jóia (ou um quadro, um objeto de arte, etc.) de alto
valor, quando se sabe que este roubo será praticado, e o dono do objeto tomou
todas as providências para evitá-lo? Este tema reúne alguns elementos do
“quarto fechado” e também do “documento desaparecido”. Trata-se de mostrar
que por mais que alguém guarde, trancafie e proteja um objeto, ele poderá ser
roubado.
Entram aqui alguns dos mais famosos ladrões da narrativa policial: de
Arsène Lupin a Raffles, do Sinete Cinzento (de Frank Packard) a Simon Templar,
“O Santo” (de Leslie Charteris). Nenhum furto parece impossível a esses
mefistofélicos articuladores de planos que podem envolver de tudo: passagens
secretas, substituições relâmpago, subornos imprevisíveis, trocas de identidade,
manobras diversionistas...
O Ladrão, aliás, é um personagem à parte na narrativa de crime. Muitas
vezes não é o ladrão banal, que rouba para lucro próprio. É o indivíduo que faz
do furto uma arte, uma habilidade à disposição de quem possa pagar por ela. O
ladrão é um profissional contratado para executar uma manobra de alto risco. E
não conheço exemplo melhor do que Karmesin, o herói mirabolante criado por
Gerald Kersh, para quem tanto faz roubar um cadáver do necrotério quanto a
água de uma piscina.
A casa isolada e os crimes sucessivos
É o subgênero também chamado de círculo fechado (“closed circle”). Um
grupo de pessoas está reunido num lugar qualquer, com pouca possibilidade de
contato com o mundo exterior, e uma série de crimes começa a acontecer,
deixando claro que o criminoso provavelmente é um deles. Os lugares e as
situações variam: uma ilha longe da costa (Glass Onion, Rian Johnson), uma
casa cercada por um incêndio (The Siamese Twin Mystery, Ellery Queen), um
hotel isolado pela nevasca (The Mousetrap, Agatha Christie), uma casa de
campo isolada pela chuva (The Mad Tea Party, Ellery Queen).
Este subgênero pode equilibrar os fatores de mistério e de suspense, uma
vez que se torna claro para todos que novos crimes deverão acontecer, e
ninguém pode fugir dali.
O amnésico acusado de um crime e investigando por conta própria
Um homem desperta meio zonzo, geralmente depois de uma bebedeira,
ou de uma pancada na cabeça; e descobre que meses ou anos se passaram
desde a última vez que consegue lembrar-se. Onde ele estava, e o que fez
durante esse tempo? O homem com amnésia descobre, nas primeiras horas
após recuperar sua personalidade original, que está com documentos que não
são os seus (embora a foto seja sua), roupas que não conhece, e pessoas
desconhecidas o abordam com estranheza. E descobre que provavelmente
cometeu um crime nesse período de que não se lembra.
Uma variante desse tema começa com o protagonista despertando
amnésico – a história irá relatar seus primeiros dias ou meses sem lembrar quem
é, metendo-se em enrascadas e sem ter a quem recorrer.
Mistério e suspense se juntam nas narrativas em que o protagonista tenta
colar os cacos de si próprio. Um clássico no cinema é Memento (2000,
Christopher Nolan). Uma adaptação do tema para o techno-thriller político é a
série iniciada com A Identidade Bourne (2002, Doug Liman). Na literatura, lembro
de A Cortina Negra (Cornell Woolrich), Morte Inglória (Hugh McCutcheon), sobre
os quais escrevi aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2010/08/2324-amnesia1982010.html
(The Lodger, 1927, Alfred Hitchcock)
O vizinho (inquilino, locador) misterioso
Num hotel, pensão, casa de cômodos, etc., surge um belo dia um
indivíduo misterioso, esquisito, que nada faz de censurável ou de agressivo, mas
que incomoda pelo seu ar “diferente” ou hábitos estranhos. Crimes acontecem
na vizinhança. Terão relação com a chegada dele? The Lodger (1911) de Marie
Belloc Lowndes é um clássico deste subgênero, e foi adaptado ao cinema por
Alfred Hitchcock (1927).
Uma variante inevitável é a do vizinho “estudadamente simpático”, alguém
que fala com todo mundo, paga bebidas, faz favores antes que eles sejam
solicitados, dá sempre um jeito de se meter na vida dos outros hóspedes, tornase aquele sujeito de quem alguém só consegue se livrar com grosseria. E logo
surge a suspeita de que ele está tentando amealhar amizades, e se garantir
contra algo.
............
E por aí vai. Falo alternadamente dos tópicos acima como “temas” e como
“subgêneros”. A tendência, na literatura popular, é que um tema, ao fazer
sucesso, seja repetido com variantes pelo próprio autor inicial, ou por outros. Se
este sucesso aumentar, ele se transforma num subgênero, com regras próprias
que serão um conjunto das regras propostas nas diversas variantes. “Regras” é
um termo muito forte: digamos que todas estas histórias, vistas em conjunto,
apontam caminhos, que um novo autor pode usar ou não, de acordo com sua
conveniência.
4904) A sabedoria, de Lao-Tsé a John Lennon (18.1.2023)
Já comentei aqui um dos meus episódios preferidos da História – ou das
lendas da História, o que vem a dar no mesmo. Uma relato que inclusive
mereceu um poema escrito por Bertolt Brecht.
O sábio chinês Lao-Tsé, já com mais de 70 anos, resolveu se aposentar
e ir morar numa região distante. Empacotou meia dúzia de coisas essenciais (um
livro, um cachimbo, etc.), montou num boi puxado por um menino, e pegou a
reta. Chegando num posto de fronteira, o guarda perguntou ao menino quem era
aquela figura.
– É um homem sábio – disse o menino, todo orgulhoso. – Ele descobriu
como a água mole é capaz de partir a pedra dura. E que a dureza não dura para
sempre.
O guarda mandou que passassem, porém mal eles tinham andado alguns
metros, correu atrás. Disse que se o homem era mesmo tão sábio devia colocar
por escrito essa sabedoria, para que gente ignorante como ele, o guarda,
pudesse ter algum proveito.
Lao-Tsé olhou as roupas surradas e o jeito modesto do guarda, e achou
que essa era uma boa idéia. Além do mais, recusar o pedido pareceria um ato
pouco amistoso. Durante sete dias, ele dormiu na cabana do guarda, e procurou
resumir da maneira mais clara possível os pontos essenciais de sua filosofia.
Quando terminou, deu de presente ao guarda o manuscrito, que constava de 81
fragmentos.
O manuscrito é conhecido hoje como o Tao Te Ching – O Livro do
Caminho Perfeito, e circula pelo mundo, em todas as línguas, há cerca de 2.500
anos. É um livro pequeno: esta edição que tenho, em inglês (Ed. Shambhala,
Boston, com tradução e adaptação de Ursula LeGuin) tem apenas 125 páginas,
incluindo prefácio e notas.
Bertolt Brecht termina seu poema dizendo:
Mas as honrarias não são devidas apenas
ao sábio que assinou o manuscrito.
A sabedoria de um homem precisa ser arrancada,
e por isso o guarda da fronteira merece o seu quinhão.
Foi ele quem fez o livro ser escrito.
Walter Benjamin, que esteve na companhia de Brecht poucas semanas
depois do poema ser composto, comenta a metáfora da “água mole” dizendo
que “quem deseja fazer com que a dureza seja derrotada não deve perder
nenhuma oportunidade para fazer um gesto amistoso”. (Bertolt Brecht – Poems
1913-1956, Methuen, London, 1976, ed. John Willett, p. 572).
Corta para o ano de 2022, Rio de Janeiro. Estou eu, “nas minhas
madrugadas”, como dizia Paulinho da Viola, acompanhando as mensagens num
dos meus grupos de Facebook, dedicado à obra dos Beatles. E vejo o seguinte
diálogo entre pessoas que não conheço (a tradução é minha):
Karl McDermott
Ao que parece, um professor espanhol encontrou John Lennon na
Espanha, durante as filmagens de “How I Won The War”, em outubro de 66, e
disse que usava as canções dos Beatles para ensinar inglês aos seus alunos,
mas às vezes não entendia direito as palavras. Lennon respondeu: “Bem, se é
assim, no próximo disco vou mandar imprimir as letras na contracapa!”
Horas depois apareceu, embaixo do post dele, este comentário:
Pepa Martínez Jiménez
Karl McDermott, isto é 100% verdadeiro. Esse homem foi meu professor
durante alguns anos, e já conheço bem esta história. Ele manteve contato com
Lennon durante algum tempo, depois desse encontro. Mesmo hoje, cinco anos
após sua morte, os alunos guardam boas lembranças dele.
Quando li isto, não resisti a comentar:
Braulio Tavares
Pepa Martínez Jiménez, fala pra gente o nome do teu professor.
A resposta não demorou muito:
Pepa Martínez Jiménez
Braulio Tavares, o nome dele era Juan Carrión.
Talvez pareça estranho para pessoas mais jovens, mas cinquenta anos
atrás não era muito fácil conseguir letras de músicas, nacionais ou estrangeiras.
Quem se interessasse, tinha duas opções. A primeira era “tirar a letra” voltando
muitas vezes a agulha no disco até conseguir copiar verso por verso. Ainda tenho
velhas pastas esbagaçadas pelo tempo, cheia de letras que copiei assim, no pé
da vitrola.
A segunda opção era recorrer às numerosas “revistinhas de letras de
música”, que eram abundantes justamente por causa desse problema. Vamos
Cantar, Cante Comigo, A Modinha Popular, O Samba, Só Sucessos... Esta
solução, como a maioria das soluções, criava um novo problema, porque a
confiabilidade das letras transcritas não era grande coisa. Vendo as aberrações
nas letras em português a gente já avaliava o nível de competência de quem
estava tirando as letras de rock.
Essas revistas evoluíram, já nos anos 1970, para a histórica “Vigu”, Violão
& Guitarra, que além das letras trazia as cifras dos acordes no violão. Foi mais
importante do que a decifração da Pedra de Rosetta. Para quem já “arranhava”
o Método Paulinho Nogueira, era um aleluia.
Ainda hoje canto errado essa ou aquela letra de rock por causa do vício
que essas revistinhas deixaram de herança. Agora, com a Web, letras criteriosas
e corretas não faltam. Meu saite preferido, simples e organizadíssimo, é o AZ
Lyrics (https://www.azlyrics.com/).
Mas... deixem-me erguer um brinde nesta noite chuvosa de sábado ao
meu desconhecido amigo Juan Carrión, que, com a humildade de um guarda de
fronteira, conseguiu convencer um roqueiro sábio de que era importante tornar
sua sabedoria acessível aos simples mortais. E outro brinde a Lao-Tsé e a John
Lennon, que entenderam, sem esnobismo, sem pose, o quanto era importante
dar uma colher de chá às pessoas interessadas em entendê-los.
Uma última nota: alguns anos depois do episódio espanhol, George
Harrison compôs, e os Beatles gravaram, uma adaptação do Fragmento 47 do
Tao Te Ching, sob o título “The Inner Light”, cuja letra diz:
Você não precisa cruzar a porta
para saber o que acontece no mundo.
Você não precisa olhar pela janela
para ver o caminho do paraíso.
Quanto mais você viaja,
menos você fica sabendo.
Assim, o espírito sábio
não vai, mas conhece;
não olha, mas vê;
não age, mas faz acontecer.
4905) A poesia na era da tecla ENTER (21.1.2023)
Existem algumas sutilezas curiosas na teoria poética. Elas dependem de
uma capacidade nossa de perceber por instinto, num golpe de olhos, a diferença
entre prosa e poesia.
Nossos olhos percebem um texto antes de começar a lê-lo. Percebem
certas características do texto – e o avaliam quase inconscientemente, induzidos
por experiências prévias (“quando o texto tem um formato assim-ou-assado, é
porque se trata de um texto assim-ou-assado”).
Uma coisa bem “básico-do-básico” é o formato de uma lista. Suponhamos
que alguém me pediu para fazer uma lista de cinco filmes que eu considero
grandes obras. Eu posso fazer essa lista assim: “Oito e Meio” de Fellini; “Terra
em Transe” de Glauber Rocha; “O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman; “Mickey
One” de Arthur Penn; “O Último Metrô” de François Truffaut.
É uma lista, mas a lista vem diluída num formato de texto corrido, e só
começa a ser identificada como lista no momento em que começamos a ler. Na
cabeça da gente, lista é uma coisa que tem o seguinte visual:
·
“Oito e Meio” de Fellini
·
“Terra em Transe” de Glauber Rocha
·
“O Sétimo Selo” de Ingmar Bergman
·
“Mickey One” de Arthur Penn
·
“O Último Metrô” de François Truffaut
Listas são assim, segmentadas, verticalizadas, com ou sem numeração.
Um meme que circula muito por aí faz uma brincadeira justamente com
essa expectativa, e a frustração dessa expectativa:
É uma experiência divertida de metalinguagem, e se vale em primeiro
lugar desta nossa expectativa com relação ao formato das listas. O sujeito diz:
“Coisas que eu odeio: 1) Vandalismo” (e ele já começa vandalizando uma parede
de azulejos, escrevendo em cima dela); “2 – listas” (e nesse instante já ficou bem
clara a intenção – ele está sacaneando o próprio enunciado); “3 – ironia” (neste
ponto a gente já entendeu qual a “chave” da piada, e nossa terceira risada não
é mais de surpresa, e sim de confirmação); “4 – listas” (a risada é menor, “ué,
listas de novo?”; “5 – repetição” (volta a risada, porque no 5 a gente entende a
função do 4); “F – inconsistência” (aqui a risada é maior, porque a piada vem
“fora da caixa”).
Dá até para sugerir a proposta (meio ousada) de considerar que a Lista é
um gênero literário. Tem uma estrutura, tem uma organização no espaço, tem
uma dinâmica interna que pode ser explorada para produzir emoção,
informação, contradição, elucidação de mistérios, etc.
A literatura escrita tem essa relação com o espaço visual da página; certos
manuscritos medievais estão numa zona limítrofe entre a literatura e as artes
plásticas, de tão ricas e criativas que eram as “iluminuras” em volta do texto.
Hoje em dia, num livro, qualquer livro, o texto surge como bloco de linhas,
quando viramos a página, antes de começarmos a ler. O leitor habitual já pensa,
distraidamente: “ih, lá vem textão”, ou então “ah, essa página vai ser coisa
rápida”.
Exemplo 1:
Esta é uma reprodução da primeira página de um conto de Edgar Allan
Poe. Poe publicava na primeira metade do século 19, quando a prática editorial
era aproveitar ao máximo o espaço da página e enchê-lo de texto até onde fosse
possível.
Quando editei pela Casa da Palavra os Contos Obscuros de Edgar Allan
Poe (2010), houve algumas discussões sobre o fato de alguns textos serem um
“bife” contínuo de várias páginas sem uma só quebra de parágrafo. O pessoal
da editora dizia: “Não precisamos ser fiéis à diagramação original. O leitor de
2010 é outro. Vamos quebrar parágrafos, ‘clarear’ a página”. E me parece uma
decisão sensata. Talvez uma edição acadêmica, preciosista, científica, se sinta
obrigada a seguir o mesmo formato da primeira publicação dos textos. (E mesmo
isto é questionável, pois em vida do autor o mesmo texto geralmente é editado
em diferentes diagramações.)
Exemplo 2:
Aqui está uma típica página do grande Luis Fernando Verissimo, com seu
diálogo em ping-pong. Se a página de Poe é uma página “escurecida” pela
quantidade de texto, a página de Verissimo é uma página bem clarinha. Uma
coisa repousante para o leitor. Já vi “manuais de redação” aconselhando: nunca
faça parágrafos de 10 linhas ou mais; isto espanta o leitor. Quebre tudo em
unidades menores, sempre que possível.
Eu sigo esse conselho – sempre que possível. Porque para mim um
parágrafo, mais que uma unidade visual, é uma unidade rítmica. Há um arco de
leitura que começa na primeira frase e termina na última. Às vezes esse arco se
esgota em quatro ou cinco linhas, às vezes precisa de quarenta ou cinquenta.
Paciência.
Isto nos traz finalmente à questão da poesia.
A linha quebrada da poesia é a marcação de uma unidade rítmica.
Quando a gente está usando formas fixas, o número fixo de sílabas deixa
as linhas poéticas com o mesmo tamanho, aproximadamente:
O número fixo de sílabas (7 sílabas poéticas, no caso dos folhetos de
cordel da foto acima) é uma medida rítmica universal, mas não é a única. O
famoso poema “Howl” (“Uivo”, 1956) de Allen Ginsberg, tem linhas enormes,
longuíssimas, que se prolongam até não poder mais:
Qual a explicação de Ginsberg para essas linhas intermináveis, que
esbarram na margem direita da página e precisam ser acomodadas abaixo até
onde Deus der? Ginsberg era da geração da poesia oral, recitada, berrada nos
auditórios, sussurrada ao microfone dos bares. E ele explica:
Idealmente, cada linha de Uivo é uma unidade de respiração... Minha
respiração é extensa, e esta é a medida, uma inspiração físico-mental do
pensamento, contida na elasticidade da respiração... (...) Desse modo, você
acomoda a linha do verso na página de acordo com o ponto onde a sua
respiração se esgota, e acomoda o número de palavras dentro de cada ‘respiro’,
seja longo ou curto, e assim estes versos longos ganharam forma. (trad. BT)
Cada poeta é livre para organizar a apresentação de seus versos na
página. Não podemos esquecer o verso de Maiakóvski, que costumava partir
cada linha de verso em dois ou três segmentos que se enfileiravam como
degraus descendentes de uma escada:
A linha, do modo como aparece inscrita na página, indica um ritmo. Não
é uma obrigatoriedade; cada leitor lê do seu jeito, mas o poeta sugere uma
leitura, talvez a leitura preferencial na opinião dele, que é autor, mas nunca será
a única possibilidade.
As pessoas que costumam ler e recitar poemas se dividem geralmente
em duas leituras típicas.
Na primeira, a pessoa faz uma pequena pausa ao chegar no fim da linha,
mesmo que a frase esteja se prolongando pela linha seguinte. Mas o recitador
entende que é interessante fazer essa pausa quase imperceptível para indicar à
platéia que uma linha gráfica se encerrou naquele ponto. (Eu prefiro ler assim).
Na segunda leitura, a pessoa ignora os “finais de linha” e lê as frases
obedecendo ao ritmo de cada uma, e à pontuação gramatical; lê como se se
tratasse de um texto em prosa, lê ignorando a divisão em linhas. Isto é errado?
De maneira nenhuma, é certíssimo também. É apenas outra maneira de fazer.
O que não deve ser ignorado – por quem escreve, por quem lê, por quem
critica – é que a linha poética é uma forma de pontuar, de indicar pausas, de
delimitar unidades. Fernando Pessoa, que fazia verso curto, verso longo, verso
metrificado e verso livre com a mesma competência, discute os poemas de
‘Álvaro de Campos’, que alguns leitores acusavam de ser mera prosa em linhas
interrompidas, e avisa, na sua “Nota Preliminar”:
O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é
escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para
fins rítmicos, e esses pontos de pausa maior, determina-os ele pelos fins dos
versos. (...) Se Campos, em vez de fazer tal, inventasse um sinal novo de
pontuação – digamos o traço vertical ( | ) para determinar esta ordem de pausa,
ficando nós sabendo que ali se pausava com o mesmo gênero de pausa com
que se pausa no fim de um verso, não faria obra diferente, nem estabeleceria a
confusão que estabeleceu.
Jorge Luís Borges, em seu “Prólogo” à coletânea de poemas Elogio da
Sombra (1960, trad. Carlos Nejar e Alfredo Jacques), adverte:
Comum é afirmar que o verso livre não é outra coisa senão um simulacro
tipográfico; penso que nessa afirmação se oculta um erro. Para além de seu
ritmo, a forma tipográfica do versículo serve para anunciar ao leitor que a emoção
poética, não a informação ou o raciocínio, é o que o está esperando.
Certa vez, conversando com um amigo poeta, já nesta confortável Era Do
Computador, perguntei como ele costumava dividir os versos do poema. Ele
disse: “Ah, agora é fácil, eu vou escrevendo tudo em texto corrido. Quando
acabo, volto pro começo e vou quebrando as linhas com a tecla Enter, quebro
uma aqui, outra acolá...”
Fiquei maravilhado com esta varinha-de-condão, tão prestimosa, tão
acessível, e escrevi o poema abaixo, que resgata, num outro patamar de
sensibilidade e ritmo, algumas idéias contidas no parágrafo inicial deste artigo:
Existem
algumas sutilezas curiosas
na teoria poética. Elas
dependem de uma capacidade nossa
de perceber
por instinto,
num golpe de olhos,
a diferença entre prosa
e poesia.
("Poema" – Joaquim Cardozo)
4906) Oito sumiços (24.1.2023)
1
A cidade de Evansville (Texas) convive há décadas com o mistério do
desaparecimento de uma casa e todos os que viviam nela. Na noite de 15 para
16 de maio de 1935, uma tempestade caiu sobre a cidade, provocando
inundação, queda de pontes e de barrancos, e falta de energia elétrica das 23
horas até o amanhecer seguinte. À luz do dia, quando começou a limpeza e a
avaliação dos prejuízos, foi constatado que a casa de dois andares onde morava
a família do tabelião Ephraim Hogg, 66 anos, sumira por completo. Na colina
onde ela se erguia, a cinquenta metros da residência mais próxima, nenhum sinal
da casa nem de seus alicerces: o chão estava coberto de mato rasteiro e de
pequenas árvores, além de um ninho de térmitas com aparência muito antiga. A
família (pai, mãe, três meninos, uma adolescente, uma avó idosa, duas criadas)
sumiu sem deixar rastro. Escavações sem muita esperança foram realizadas no
local, onde os moradores ergueram depois uma pequena capela votiva com as
fotos dos desaparecidos. Dessa data em diante, o único fato novo relacionado
ao episódio se deu em maio de 2012, quando a embaixada norte-americana na
Cidade do México recebeu a remessa anônima de um baú trancado com
cadeado, que depois de aberto revelou conter documentos, fotos e peças de
roupa logo identificados como pertencentes aos membros da família Hogg, além
de um pacote de jornais do Texas, abrangendo de 1935 até 2001, cujo exame
nada revelou de significativo, por enquanto.
2
Mary Jo Blessingame, 38 anos, atriz, fazia parte do elenco da peça “White
Christmas”, em cartaz no Excelsior Theatre, em Baltimore, até a última noite da
temporada, em 19 de maio de 1996. A última cena mostrava uma dança entre
os doze atores da companhia, seis homens e seis mulheres encarnando
personagens de diferentes idades, da mesma família, numa ceia de Natal. Ao
longo da música os personagens trocavam de par, num clima de
confraternização e alegria. A certa altura, um dos atores ficou sem par e
constatou-se a falta de uma das atrizes, que segundos antes estava em pleno
palco. Os contra-regras postados junto às saídas de cena garantem que ninguém
passou por eles. Infelizmente a peça não foi fotografada nem gravada, de modo
que é impossível precisar em que preciso instante ela já não estava mais no
palco junto aos companheiros. A peça foi encerrada sem que o público
percebesse nada de anormal, mas as investigações começaram nessa mesma
noite. Mary Jo Blessingame era solteira, morava sozinha. Nunca mais foi
encontrada.
3
Em 1996, em Bananeiras (Paraíba), o professor Carlos Massilon Torres,
57 anos, precisou consultar um dicionário, e ao recorrer a sua estante verificou
a ausência do respectivo volume. Como estava trabalhando em casa nesse dia,
foi até a Biblioteca Municipal, que ficava próxima, e lá verificou que a coleção do
dicionário de Caldas Aulete, em cinco volumes, estava também desfalcada do
último, “Rociada-Zwingliano”. Um telefonema para um amigo acendeu-lhe a
desconfiança: o quinto volume deste também tinha sumido. Vinte e quatro horas
depois, o professor e seus amigos constataram que o volume 5 de todos os
Caldas Aulete da cidade tinham sumido inexplicavelmente das estantes de seus
donos, para as quais não retornaram até hoje.
4
Um homem não identificado desapareceu em questão de segundos, na
noite de 6 de janeiro de 2014, após ser atropelado numa estrada secundária
perto de Langford, na Inglaterra. O motorista, o coronel reformado Matthew
Westcalf, 61 anos, vinha num trecho reto da rodovia, em velocidade razoável,
quando de repente emergiu um homem das árvores e atravessou a estrada
correndo. O coronel não conseguiu frear e atingiu em cheio o desconhecido,
jogando-o para o alto; imediatamente trouxe o carro para o acostamento e
desceu para prestar-lhe socorro. Quase no mesmo instante dois carros que
vinham logo atrás e viram o atropelamento também pararam, deixando acesos
os faróis. Muito nervoso, o coronel constatou que o para-choque dianteiro estava
amassado e com manchas de sangue, mas não foi possível localizar o corpo do
homem atropelado. A polícia do trânsito foi chamada, buscas minuciosas foram
feitas no bosque, num raio de cem metros a partir do local do acidente. O corpo
desapareceu por completo. Amostras de sangue e de DNA foram guardadas pela
polícia do condado, que até hoje busca uma explicação.
5
A história da região da Anatólia, na Turquia, relata o polêmico episódio do
desaparecimento da Árvore de Ouro, uma relíquia do período hitita, que durante
uma guerra no século VI d.C. havia sido guardada numa gruta subterrânea, na
lateral de uma colina. Diante da entrada da gruta ficou instalado um
acampamento militar, que com o passar dos anos se transformou num quartelvilarejo. A Árvore (que se dizia ter três metros de altura, com ramos, folhas e
frutos cinzelados em ouro puro) nunca mais foi retirada, até que em 1955 o
governo decidiu transferi-la para um Museu, em Ankara. Houve grande reação
por parte da população local, mas o subterrâneo (que estava emparedado há
séculos) foi aberto, constatando-se de imediato a ausência da árvore. Nos meses
seguintes a colina inteira foi desmanchada com dinamite e jatos de água. A gruta
(que não era muito profunda) foi totalmente exposta, mas não se descobriu
qualquer sinal do paradeiro da Árvore de Ouro.
6
O zoológico de Melbourne guarda ainda em seus arquivos o controvertido
relato do que aconteceu em março de 1962 no seu setor de feras tropicais.
Cordelion, um dos seus leões mais antigos, nascido no cativeiro, desapareceu
inexplicavelmente de sua jaula, na noite de 8 para 9 daquele mês. A primeira
ronda dos vigias, ao amanhecer, constatou a jaula vazia, fechaduras intactas,
nenhum sinal do animal. Foi dado o alarma, e buscas intensas tiveram lugar
durante o dia, enquanto os diretores discutiam a viabilidade de um alarma
lançado a toda a população. Foi decidido que o caso seria abafado até terem
idéia de para onde a fera teria fugido (a questão do “como” foi posta de lado, por
irrespondível). Duas noites depois, num setor onde a vigilância não fora
reforçada, Cordelion reapareceu na jaula do tigre Sharkan, intacto e saudável.
Numerosos exames foram feitos comprovando que estava bem alimentado (com
seu alimento costumeiro) e sem sinais de violência ou dano físico. Mas o tigre
desapareceu de modo igualmente inexplicável, e continua assim até hoje.
7
O Trem de Prata, que durante décadas fez a ligação ferroviária entre o
Rio de Janeiro e São Paulo, foi desativado em definitivo a partir de 1998,
alegadamente por problemas de manutenção e pela concorrência com a Ponte
Aérea. Pesou para esta medida, no entanto, o inexplicável evento que se deu
em maio de 1998, quando o trem partiu do Rio de Janeiro, com dez vagões como
de hábito, às 20:00, e, sem fazer nenhuma parada no trajeto, chegou ao
amanhecer na estação Barra Funda (SP), com um vagão dormitório a menos. A
perplexidade dos fiscais e funcionários da RFF era justificada, pois o vagão
desaparecido, o sexto, vinha com oito passageiros, distribuídos por três cabines,
estando as demais desocupadas (um sinal da decadência que a linha já
experimentava). O mais intrigante, contudo, além de impossibilidade material de
desaparecimento de um vagão num trem em movimento constante, foi que
demonstrou-se
impossível
recolher
informações
sobre
quaisquer
dos
passageiros que vinham no vagão. Nenhum familiar ou amigo queixou-se de seu
desaparecimento, e os documentos com que se registraram para a viagem (eram
no total três homens, quatro mulheres e uma criança) revelaram-se falsos. O
caso provocou uma grave crise de responsabilidade administrativa, que
contribuiu para o fechamento da linha, menos de um ano depois.
-
8
A realização dos Jogos Estudantis das escolas públicas de Minas Gerais,
em junho de 1966, foi marcada por um episódio não esclarecido até hoje.
Delegações de várias cidades mineiras vieram a Belo Horizonte para a
realização de disputas esportivas que tiveram como local principal o complexo
de esportes da Pampulha. Após o encerramento dos Jogos, as autoridades
constataram o desaparecimento de seis alunos de diferentes colégios, vindos de
diferentes cidades. Ao que parece, todos desapareceram dos alojamentos, ou
dos vestiários, ou das arquibancadas onde foram vistos pela última vez pelos
colegas, tendo consigo apenas a roupa do corpo, já que sua bagagem e mochilas
foram encontradas nos alojamentos, do jeito que eles as deixaram. O que causou
um espanto adicional nas autoridades policiais, e nos responsáveis pelas
delegações, foi que os seis garotos, cujas idades variavam de doze a dezessete
anos, chamavam-se todos Félix (com diferentes sobrenomes). Não se
conheciam entre si, pelo que foi apurado; e até hoje nenhum indício foi
descoberto sobre o seu paradeiro, bem como sobre as razões para esse sumiço.
(Imagens meramente ilustrativas.)
4907) Primeiras Estórias: "Darandina" (27.1.2023)
Guimarães Rosa tinha uma certa fascinação pelos doidos, pelos
indivíduos meio sem juízo, fora de esquadro. Não o doido furioso, porejando
maldade: mas o doido manso, às vezes até articulado e bom argumentador,
mesmo que por linhas tortas. O doido que se comporta de maneira aceitável,
civil. Como se a gente se encontrasse com ele para conversar, na calçada, mas
cada um estivesse sendo personagem de um filme diferente.
Talvez a melhor galeria de tais personagens esteja na noveleta “O Recado
do Morro” (em Corpo de Baile, 1956), história de uma caravana morosa que ao
longo do caminho vai se deparando com um lunático atrás do outro, e todos eles
acabam se envolvendo com a misteriosa voz do Morro da Garça, que se vê no
horizonte. A voz do morro! Como se o morro pudesse dizer alguma coisa!
Em Primeiras Estórias (1962) os doidos mais comoventes são os
personagens epônimos do conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, os doidos que não
explicam nada: apenas cantam na hora da partida. Comentei essa história aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/04/4566-soroco-sua-maesua-filha-442020.html
“Darandina”, o décimo-oitavo conto do livro, é também sobre um doido e
também, como “Sorôco...” parece evocar os tempos médicos de Guimarães
Rosa no hospício de Barbacena, onde ele sentou praça por uns tempos na
juventude.
O narrador trabalha no hospício, é um interno de plantão por entre
enfermeiros e doutores, e está de manhã cedo à porta, esperando a entrega dos
jornais, quando de dentro do hospício emerge um homem bem vestido, a passo
rápido, e dá-se então um certo tumulto quando o homem parece ter afanado a
carteira de alguém, ou quem sabe foi a caneta-tinteiro. O suposto ladrão foge, é
perseguido, mas ele vai direto rumo a uma palmeira-real, majestosa, que há
quase no meio da praça. E sobe de palmeira acima!
A multidão perseguidora se ajunta, todos de cara erguida, e começa aí
um vai-não-vai, um foi-não-foi, que o autor estica espertamente por catorze
páginas. Interrogando outro interno, o Adalgiso, o narrador fica sabendo que
apesar de ter saído do prédio do hospício o homem não era um dos “hóspedes”,
tinha ido ali apenas para pedir um favor.
Disse que era são, mas que, vendo a humanidade já enlouquecida, e em
véspera de mais tresloucar-se, inventara a decisão de se internar, voluntário;
assim, quando a coisa se varresse de infernal a pior, estaria já garantido ali, com
lugar, tratamento e defesa, que à maioria, cá fora, iriam fazer falta... (...) Sabe
quem é? Deu nome e cargo, Sandoval o reconheceu. É o Secretário das
Finanças Públicas...
(p. 138, 3ª. edição)
Estamos num território bem pertinho da Itaguaí de Machado de Assis, com
seu alienista, o dr. Simão Bacamarte, e sua Casa Verde onde depois de muito
esforço ele se resignou a encarcerar os sãos de espírito, porque para caber os
doidos era necessária a cidade inteira.
A confusão, porém, está formada, e as pessoas se agitam. Que
necessidade tem uma pessoa da classe alta de se assubir numa palmeira?
A multidão exige que o doido desça. Como resposta, ele atira lá de cima
um sapato. E depois, outro. Grita lá de cima uma série de palavras de ordem
que talvez não pareçam tão doidas assim.
-- Viver é impossível! (pág. 140)
-- Pára! (...) Só morto me arriam, me apeiam! (...) Se vierem, me vou,
eu... Eu me vomito daqui! (pág. 142)
-- O amor é uma estupefação... (pág. 144)
De repente, chega esbaforido o verdadeiro Secretário das Finanças
Públicas, restabelecendo a ordem no mundo. O homem da palmeira não era uma
autoridade que endoideceu; era alguém que endoideceu de pensar que era uma
autoridade, mas agora já se desveste todo. Tira calça, camisa, cueca, arremessa
de coisa em coisa... E logo está nu em pelo lá em cima.
Guimarães Rosa conta, com riqueza de detalhes circunstanciais, essa
curiosa fábula do homem que queria passar por doido e se internar na casa de
saúde para se livrar da doidice do mundo aqui de fora; e depois, não
conseguindo, foge para o alto da palmeira e se livra de toda a roupa civil que o
incomodava.
Apenas proclamou: “Viva a luta! Viva a liberdade!” - nu, adão, nado,
psiquiartista. (pág. 149)
Nu, adão, na(sci)do: a subida à palmeira é um renascimento, a ruptura
com o mundo de antes para o surgimento de um ser novo, como a cobra que
emerge da pele usada. Sem que isto implique, contudo, num milagre qualquer
que zere os seus problemas anteriores:
Estava em equilíbrio de razão: isto é, lúcido, nu, pendurado. Pior que
lúcido, relucidado; com a cabeça comportada. Acordava! Seu acesso, pois,
tivera termo, e, da idéia delirante, via-se dessonambulizado. Desintuído,
desinfluído – se não se quando – soprado. Em doente consciência, apenas,
detumescera-se, recuando ao real e autônomo, a seu mau pedaço de espaço e
tempo, ao sem-fim do comedido. (pág. 148)
Primeiras Estórias tem um punhado de narrativas urbanas que compõem
um contraste positivo com os cenários sertanejos habituais em Rosa. Aqui, há
sem dúvida ecos de sua escala em Barbacena, seu convívio com os doidos de
lá (cujos exemplos ele cita em seus textos). Tal como ocorreu com André Breton
na I Guerra Mundial, cuidar diariamente de doidos internados ajudou a abrir
algumas portas na cabeça literária de Rosa.
Maria Luiza Ramos tem um ótimo ensaio, “Análise Estrutural de Primeiras
Estórias” (O Estado de São Paulo, 30-11-1968, Suplemento Literário), incluído
na coletânea Guimarães Rosa, Coleção Fortuna Crítica, Rio, Civilização
Brasileira, 1983, pág. 519.
Ali, ela faz um levantamento da frquência verbal de termos “com que se
tece o campo semântico” da prosa deste livro do autor:
(...) palavras e expressões como esquisito, espanto, milagre, pasmo,
arregalar os olhos, estranho, assombrável, estatelo, estupefação, engano,
surpresa, estarrecer, desatinado, espavorido, aparvoado, aturdir, irreconhecer,
tremer, estremecer, encanto, enigma, confusão, sobressalto, mistério, fatalidade.
(...) [T]odas convergem para a problemática central: a falta de lógica da
existência, ou a angústia provocada pela insegurança da vida humana.
4908) O realismo e a imaginação (30.1.2023)
(Juan Gris, “The Open Book”, 1925)
Por que motivo a literatura de gênero (fantástico, policial, aventura, etc.)
é vista como uma frivolidade de gente imatura, e a dita literatura realista seria
(por esta mesma ótica) um privilégio dos adultos?
A questão parece bem formulada, mas seria possível empregar a mesma
equação, com um enfoque diferente, e dizer: “Por que motivo a literatura de
gênero é um prazer reservado às pessoas de mente jovem, e a dita literatura
realista seria (por esta mesma ótica) um penoso estudo utilitário imposto aos
adultos?”.
Tudo depende do modo de qualificar os elementos da pergunta. Mas por
todo lado vigora o conceito difuso de que existem dois tipos de literatura – um
que serve aos garotos, aos adolescentes, aos que só são capazes de absorver
coisas simplórias, e outro que é mais elevado, ou mais profundo (o ângulo varia
muito), e que é reservado aos adultos, que têm maior capacidade mental, maior
cultura, maior envergadura moral para enfrentar os grandes problemas contidos
nesses livros.
Uma experiência curiosa que tive por volta dos dez ou doze anos foi ao
ler um dos meus primeiros livros de ficção científica de autor brasileiro, que foi A
Desintegração da Morte, de Orígenes Lessa, uma coletânea de contos
encabeçada pela noveleta-título, que aliás é a única história de FC em todo o
volume.
Tenho hoje a primeira edição (Rio, Empresa Gráfica “O Cruzeiro”, 1948),
com onze histórias no total; mas a que li naquela época foi uma versão reduzida
(quatro contos apenas) publicada na saudosa “Coleção Futurâmica”, das
Edições de Ouro, no início dos anos 1960.
O último conto deste volume, “Reencontro”, trata justamente do
reencontro do narrador com um dos seus amigos de infância, um garoto
chamado Julinho que no internato era conhecido como “o chorão”. Era bom
atleta, inteligente, esperto, mas chorava com facilidade. Os dois se reencontram
em São Paulo, como soldados, na Revolução Constitucionalista de 1932.
O narrador começa a lembrar os tempos de escola, e recorda um dia em
que ele próprio tentou “fazer bullying” com o colega (este termo não aparece no
livro, é claro) para que chore, mas acaba desistindo, porque no fundo são
amigos.
Tive remorso. Fingi não perceber, mudei bruscamente de interesse:
– É Sherlock Holmes?
Julinho hesitou, teve um olhar de náufrago pra o fascículo que trazia na
mão.
– Não. É Nick Carter.
– É bom? É melhor do que o Sherlock?
Os olhos de Julinho se adoçaram. Confraternizamos naquele assunto
inesperado. Ele já tinha lido todos os fascículos de Sherlock, já havia lido dez ou
doze de Nick Carter. Mas ia acabar com aquela besteira de livro policial. Agora
ia ler somente grandes escritores. Taunay, Alencar, Machado de Assis.
Fiquei com a crista baixa ao ler isto. Naquele tempo, era muito raro ver
uma menção a Sherlock Holmes em livros alheios; mas essa referência era ao
mesmo tempo simpática e desencorajadora. Por que livro policial seria “aquela
besteira”? E digo isso sem partidarismo, porque naquela época eu tanto lia
Conan Doyle quanto o volume dos “Contos Completos” de Machado, da Aguilar
(o mesmo que tenho até hoje, todo surradinho e aconchegante).
Era irritante essa obrigação de chamar de “besteiras” aqueles livros de
onde eu extraía tanta coisa: tanta situação nova, tanta paisagem estranha, tanto
vocabulário, tanta informação prática, tantos traços reveladores da insondável
psicologia dos adultos... Eu extraía isso tanto de Sherlock quanto de Machado,
então por que motivo um dos dois era besteira e o outro não?!
Depois que fiquei velho dediquei-me a torcer o sentido dessas fórmulas
questionáveis. E posso refazer aquele parágrafo inicial com outra formulação.
A literatura de gênero (ou aquilo que em inglês se chama de “romance”)
atrai o leitor jovem pela extensão e variedade dos assuntos que aborda, pagando
por isto o preço de uma certa superficialidade. Mas ela apela ao senso de
aventura, ao senso de deslumbramento diante do improvável (o sense of
wonder), à curiosidade factual pela cultura-de-almanaque, à excitação dos
perigos, mistérios, fugas e perseguições, e a todo um conjunto de experiências
mentais que para esse leitor jovem, essa leitora jovem, estão entre as coisas
mais importantes do mundo.
A literatura mainstream, realista, aquilo que em inglês se chama de
“novel”, atrai o leitor adulto porque conta com uma certa atitude já definida diante
do mundo. É o que os críticos chamam “a literatura burguesa”, não no sentido
de uma literatura feita por gente rica, mas feita por gente que já assumiu uma
posição definitiva diante do mundo, da vida, da sociedade. Gente que não tem
mais interesse por idéias que não rendam resultados práticos em sua vida
profissional e pessoal (familiar, sexual, financeira, etc.). O realismo tem, para
esse leitor(a) uma função utilitária, aprofundadora: conhecer melhor as sutilezas
da psicologia humana e da dinàmica da ascensão social. Mas, de preferência,
nunca sugerir a existência de outros mundos, outros planos da realidade, outros
planetas habitados, etc. etc. – outros jogos com outras regras.
Esta é uma simplificação extrema, como toda generalização; mas existe
nela um irredutível grãozinho de verdade.
Curiosamente, no mesmo ano do conto de Orígenes Lessa, 1948, o
grande T. S. Eliot emitia este juízo sobre a obra de seu conterrâneo Edgar Allan
Poe:
Poe era dotado de um intelecto brilhante, isto não se pode negar; mas ele
me parece o intelecto que tem uma pessoa jovem, altamente dotada, antes da
puberdade. Sua vívida curiosidade assume formas que são os deleites típicos
de uma mentalidade pré-adolescente: maravilhas da natureza, da mecânica, do
sobrenatural, cifras e criptogramas, quebra-cabeças e labirintos, autômatos que
jogam xadrez e voos delirantes de especulação. A variedade e o ardor da sua
curiosidade nos deleitam e nos assombram, mas no final das contas a
excentricidade e a falta de coerência dos seus interesses acabam nos fatigando.
(T. S. Eliot, citado em Poe Poe Poe Poe Poe Poe Poe, Daniel Hoffmann,
Anchor Press, 1973, trad. BT)
Podem achar uma avaliação antipática, mas tudo que Eliot diz me parece
bastante justo. Poe não é somente isto – mas é tudo isto, e o detalhe revelador
está na frase final: o sisudo e circunspecto Eliot acaba se fatigando com a
imaginação desenfreada e mórbida de outro. Eliot foi um poeta e um intelectual
condenado à vida adulta, à vida burguesa, à gravata e ao cachimbo. Era norteamericano e virou inglês, era Unitário e tornou-se Anglicano; teve uma carreira
pública e literária totalmente distinta da que teve Poe. (Quanto a este, talvez
tenha sido um adolescente até morrer aos 40 anos, com sua fascinação pelo
jogo, suas bebedeiras, suas paixões um tanto escandalosas.)
A literatura de gênero é extensa mas superficial; o romance mainstream
é limitado mas profundo. O leitor “jovem” gosta de tentar uma grande quantidade
de experiências e vivências através da literatura; o leitor “adulto” quer se
concentrar nos aspectos sociais e psicológicos que podem ter um reflexo prático
na sua vida já estabelecida, já focada num único caminho.
Tudo isto são regras fervilhantes de exceções, é claro, mas mesmo não
que não sejam verdades estatísticas devem coresponder a arquétipos que
flutuam, pairam, esvoaçam pelas nossas vidas, e nos identificamos ora com um,
ora com o outro.
Para encerrar, uma bela imagem de Primo Levi em A Tabela Periódica
(1975; Relume Dumará, 1994, trad. Luiz Sergio Henriques), no conto “Chumbo”:
Eu estava entusiasmado com a colaboração e veio-me à cabeça fazer
espelhos até com as calotas do vidro soprado, vertendo-lhes o chumbo por
dentro ou espargindo-o por fora: olhando-nos nesses espelhos, vemo-nos muito
grandes ou muito pequenos, ou ainda inteiramente deformados; esses espelhos
não agradam às mulheres mas todas as crianças querem comprá-los.
As mulheres (=os adultos) querem certezas e confirmações a respeito de
uma Realidade dentro da qual labutam e pela qual se sentem parcialmente
responsáveis. As crianças querem o improvável, o diferente, o estranho, o
bizarro, o inesperado, porque para elas o mundo está começando e as
possibilidades, como sempre, são infinitas.
Por mim, ficaria com este depoimento sincero de Fernando Pessoa, um
temperamento que via na literatura uma forma de vida e não um tema de estudo:
Todo o livro que leio, seja de prosa ou de verso, de pensamento ou de
emoção, seja um estudo sobre a quarta dimensão ou um romance policial, é, no
momento em que o leio, a única coisa que tenho lido. Todos eles têm uma
suprema importância que passa no dia seguinte.
(Fernando Pessoa, O Eu Profundo)
(Fernando Pessoa, por Rui Pimentel)
4909) A arte feita pelas máquinas (3.2.2023)
O primeiro parágrafo do conto de James Blish, “A Work of Art” (1956) é
assim:
Instantaneamente, ele se lembrou do momento em que morrera.
Lembrou, no entanto, como que a dois patamares de distância: como se
estivesse recordando uma lembrança, e não o evento em si; e como se ele
mesmo não estivesse presente no instante em que morrera.
(trad. BT)
Personagens que ressuscitam (e que às vezes ressuscitam amnésicos)
são comuns na ficção científica.
Um começo inesquecível, para mim, é o da brilhante noveleta de Kim
Stanley Robinson, “A Short, Sharp Shock” (1990):
Quando ele voltou a si, estava se afogando.
Não é propriamente uma ressurreição (a história depois se revela mais
complicada ainda), e em termos de verossimilhança científica perde para a
arrepiante frase de abertura do romance de Greg Egan Distress (1995):
– OK, ele está morto. Pode conversar com ele agora.
É um mundo futuro onde uma pessoa morta pode ser revivida por alguns
minutos mediante uma overdose de estimulantes, que a fazem recuperar
(fugazmente) a consciência, mas ajudam bastante quando é o caso (como neste
livro) de um homicídio em que a vítima pode fornecer pistas sobre o criminoso.
Para quem se interessa pelo tema, vale a pena rastrear a curiosa
antologia Five Fates (ed. Keith Laumer, 1970), com 5 contos (Keith Laumer, Poul
Anderson, Frank Herbert, Gordon Dickson e Harlan Ellison) que começam todos
com o mesmo prólogo, a morte do protagonista, e cada história imagina sua
posterior ressurreição.
No caso de “A Work of Art”, bastam duas páginas para entendermos o
que se passa. O homem que está sendo ressuscitado é o maestro e compositor
Richard Strauss (1864-1949), autor de inúmeras óperas e da famosa Assim
Falou Zaratustra (1896), cuja fanfarra inicial foi usada por Stanley Kubrick em
2001: Uma Odisséia no Espaço.
(Richard Strauss)
Strauss é despertado por um cientista que se apresenta como Barkun
Kris, “um escultor de mentes”. Depois de se certificar que o paciente está
fisicamente bem, e lúcido, ele informa a Strauss que estão no ano de 2161, ou
seja, 112 anos após a morte do maestro, e que houve um trabalho de
reconstituição da memória e da personalidade original dele para um novo corpo,
saudável e mais jovem.
Para se certificar de que tudo correu bem, ele faz um pequeno
questionário biográfico. Quem era um indivíduo com as iniciais R. K. L., que
Strauss conheceu quando regia a ópera de Viena? “Sem dúvida foi Kurt List,” diz
Strauss; “seu primeiro nome era Richard, mas ele nunca o usava. Era meu
assistente de palco.”
“Por que motivo” (pergunta o doutor) “o senhor escreveu uma nova
abertura para A Mulher Sem Sombra, e doou o manuscrito à prefeitura de
Viena?...” Ele responde: “Para ser dispensado do pagamento da taxa de
remoção do lixo da ‘villa’ que eles me deram de presente”.
Bastam algumas perguntas deste tipo para confirmar que o maestro está
com suas memórias intactas, e em pleno uso de suas faculdades mentais.
Strauss é liberado pelos médicos, descobre que tem dinheiro suficiente para se
manter com certo conforto, e que todo mundo espera que ele volte a compor e a
reger.
Entrega-se ao trabalho, cheio de ânimo, mas fica desconcertado com a
música do ano 2161. Ele constata que a música do século 22 está infestada de
compositores dodecafônicos, cujos deuses são Alban Berg, Schoenberg e von
Webern; e que ali prolifera também a tendência da música estocástica, regida
pelo acaso e que tem como ideal “...produzir uma música que seja ‘universal’ –
ou seja, totalmente expurgada de qualquer traço da individualidade do
compositor”.
(Note-se que nada há de propriamente futurista neste aspecto: Blish
estava satirizando a música da década de 1950. Ele era de formação erudita, e
dizia detestar “os Beatles e demais coleópteros”.)
A sátira vem aqui, quando ele se refere a outra moda a da “science music”:
Este termo não refletia nada a não ser os títulos das composições, que
aludiam ao voo espacial, às viagens no tempo e outros temas de natureza
romântica ou improvável. Não existia nada de científico nessa música, que
consistia apenas de uma colagem de clichês e de imitações dos sons do mundo
natural, e na qual Strauss percebia horrorizado sua própria imagem, diluída e
distorcida pelo tempo.
É uma alusão mordaz à “science fiction”. Essa música colhida entre “os
sons do mundo natural” lembra a obra de autores modernos como Edgard
Varèse (um ídolo de Frank Zappa), do qual já possuí um LP estranhíssimo, e
tudo isto me deu uma idéia que acabei glosando em meu conto “Stuntmind”
(1989):
Outro dia, igual a todos. Estou agora nu, meu corpo gira entre os colchões
de ar no interior do cilindro, estou imponderável e vertical, flutuo, descrevo giros
em torno de mim, no meio do círculo de lâmpadas bronzeadoras. Nos ouvidos,
fones com música documental: os sons do resgate de um galeão espanhol
naufragado há cinco séculos. O ar aquecido me faz bem. São 23 horas e 14
minutos de uma noite de inverno... lá fora.
Como será a música do futuro? Que sensibilidade deformadas,
aperfeiçoadas, desviadas, recompostas, terão os nossos descendentes. Talvez
sejam capazes de apreciar um Mozart ou um Tom Jobim, mas... como serão os
artistas deles, os artistas cuja música só poderia ter sido composta no tempo
deles?
Strauss convive de forma meio rebelde com os compositores da ISCM, a
“Interplanetary Society for Contemporary Music”. Quando vai se registrar na
entidade, é submetido de má vontade a testes, e ouve o funcionário referir-se
aos “mestre do passado, como Shilkrit, Steiner, Tiomkin e Pearl”... Vejo aí, no
mínimo, a citação a dois compositores de trilhas sonoras de Hollywood: Max
Steiner (Casablanca, ...E o Vento Levou) e Dmitri Tiomkin (Matar ou Morrer,
Duelo ao Sol).
Strauss continua a ser um homem de seu tempo, e decide compor uma
nova ópera, lançando mão, teimosamente, de um libreto de um autor do século
20 – Venus Observed (1950), de Christopher Fry.
Ele trabalha, irrita-se,
decepciona-se, entusiasma-se... enfim o trabalho habitual de um compositor de
ópera.
Vem a noite da estréia, salão repleto, cheio de autoridades – e ele vê nas
filas da frente a nata da guilda dos “escultores mentais”, em torno de seu
ressuscitador, o dr. Barkun Kris. Começa a ópera, Strauss rege com ardor, mas
começa a perceber que alguma coisa não está correndo bem.
E de súbito, no meio do terceiro ato, ele compreendeu.
Não havia nada de novo naquela música. Quem estava ali era o velho
Strauss – porém mais fraco, mais diluído do que nunca. (...) Suas resoluções,
sua determinação de abandonar os velhos clichês e maneirismos, a decisão de
dizer algo de novo – tudo tinha desaparecido diante da força do hábito.
De certo modo essa constatação de Strauss já seria um desfecho
satisfatório para o conto. Um homem pode ser ressuscitado, mas a “chama” da
sua vida original é irrecuperável, etc.
Blish, porém, tem um pulo-do-gato para executar diante do leitor. Porque
quando as luzes se acendem e a imensa platéia fica de pé, Strauss percebe que
os aplausos não se dirigem a ele, o compositor, o regente – mas ao dr. Barkun
Kris, que sobe os degraus do palco e se posta ao lado do pódio e do maestro.
E aí se dá a revelação. Dirigindo-se a Strauss, o doutor lhe explica que
ele na verdade se chama Jerom Busch, e foi escolhido como objeto daquela
“escultura mental”, depois de muita pesquisa, por ser um indivíduo totalmente
destituído de ouvido musical e de talento para a composição. Com base nas
informações biográficas sobre Richard Strauss, a mente de Busch foi “esculpida”
de modo a imaginar que era o compositor ressuscitado; e assim tornou-se capaz
de compor uma ópera.
A qualidade musical dessa ópera era irrelevante, secundária – porque a
verdadeira obra de arte em todo aquele episódio não era a música, e sim a
escultura mental. “Strauss” não era o artista. Era a obra de arte.
(James Blish)
O conto de Blish coloca um problema que estamos discutindo hoje com
intensidade: qual o elemento humano que caracteriza a Arte?
Damos instruções verbais a um programa como Midjourney e em minutos
ele produz uma ilustração detalhada, surpreendente. Seja boa ou má, ela em
princípio não se distingue da ilustração feita por uma pessoa. Isto é arte?
Damos instruções ao Music LM (do Google), seja uma descrição verbal,
seja assobiando um tema musical... e ele compõe trechos musicais de acordo.
Isto é música?
Damos instruções a um ChatGPT (a ferramenta da OpenAI) e ele nos
redige um artigo acadêmico (meio bobinho ainda; mas aguardem mais algum
tempo), uma letra “de Bob Dylan”, um poema “de Dylan Thomas”. Isto é
literatura?
(chatGPT)
No mesmo conto “Stuntmind”, que citei acima, incluí a possibilidade (já
extensamente discutida nos anos 1980) de “conversar” por escrito com
computadores que utilizariam “personas” literárias:
Volto à Biblioteca. Sento diante de um dos micros, escolho programas ao
acaso (De Assis, De Camp, De Quincey, De Sade...), troco cartas durante
algumas horas.
Em “A Work of Art”, James Blish nos ilude o tempo inteiro, porque ao nos
mostrar
um
Richard
Strauss
possivelmente
ressuscitado
(ou
mesmo
reconstituído), imaginamos que é porque esse mundo futuro quer ter em si
talentos equivalentes aos talentos do passado. Precisa de obras de arte
humanas, verdadeiras. E o “Strauss” produz apenas uma colagem derivativa –
mais ou menos o que acusamos, hoje, nas criações do Midjourney, ChatGPT,
etc. Falta o elemento humano: criador, personalizado, imprevisível.
Na reviravolta final, ficamos sabendo que a obra de arte que estava em
questão não era a ópera escrita por “Strauss” – era a escultura mental produzida
peplo dr. Barkun Kris, e esta parece ter sido plenamente satisfatória. Fez um
analfabeto em música criar uma ópera de Richard Strauss, uma façanha que
corresponderia ao Pierre Menard, do conto de Borges, reescrever por conta
própria uma página de Cervantes.
Do ponto de vista de “Strauss”, a ópera foi um fracasso. Revelou-se sem
mérito, sem talento, uma simples re-arrumação mecânica dos cacoetes e truques
criativos do verdadeiro Richard Strauss. Uma obra de arte frustrada, portanto.
Do ponto de vista do dr. Barkun Kris, a escultura mental foi um sucesso,
mesmo que a ópera resultasse medíocre. E na verdade, Kris parece nem
perceber (com sua mentalidade musical de 2161) que a ópera não era boa.
Diante da platéia, no final, ele elogia a genialidade da personalidade “Strauss”
que ele criou.
Ocorre, no entanto, que o falso “Strauss” percebeu que a ópera era
medíocre. E nesse momento ele tornou-se equivalente ao Richard Strauss
verdadeiro: um artista capaz de saber se o que produz é bom ou não. E dessa
forma ele acabou fazendo da escultura mental do dr. Kris um sucesso maior do
que este seria capaz de supor. Por um breve período, ele conseguiu de fato
produzir alguém com a mente criadora (com a visão autocrítica) de Richard
Strauss.
4910) "Tár": os artistas maus (6.2.2023)
O filme Tár, de Todd Field, conta a história da maestrina (ou maestra, já
nem sei mais) Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett. À frente da Filarmônica
de Berlim, ela se prepara para uma histórica gravação ao vivo de uma sinfonia
de Mahler.
É uma excelente ilustração de um tema que as pessoas se matam de
discutir: Como é possível que um(a) grande artista seja ao mesmo tempo uma
pessoa de mau caráter, uma pessoa com deformações de personalidade, uma
pessoa com graves defeitos éticos que parecem um desmentido vivo daquilo que
ela produz com sua arte?
Lydia vive entre Nova York e Berlim, pertence a essa estirpe de cidadãos
transnacionais produzidos nos circuitos da arte de elite.
Na primeira sequência do filme, ela é entrevistada, diante de um teatro à
cunha, por um jornalista que faz seu próprio papel (Adam Gopnik, da revista The
New Yorker). Precedida pela leitura de um currículo impressionante, Lydia fala
longamente sobre sua carreira e sua visão da música. Cate Blanchett deita e rola
nessa abertura, numa mistura de charme e de autoridade intelectual que chega
a lembrar figuras como Denise Stockler e Marília Gabriela, mulheres totalmente
à vontade diante de platéias exigentes.
Toda a entrevista é uma calma demonstração de força, exibindo uma
pessoa capaz de destemor sem destempero, uma artista ambiciosa mas que
parece estar mantendo bem apertados todos os parafusos de sua ambição; sua
máquina não sacoleja.
Na segunda sequência, logo após, ela tem um almoço com seu amigo e
investidor Eliot Kaplan. Na confortável intimidade de quem trabalha junto há
muito tempo, ela lhe comunica algumas medidas que está se preparando para
tomar na orquestra. É o jogo da política de bastidores, o xadrez das posições e
dos cargos em que um maestro precisa também ser craque, pois envolve
projetos de vida, vaidades, sensibilidades, ambições.
Na terceira sequência, Lydia dá uma aula prática a alunos na Escola
Juilliard, famosa escola de música de Nova York. E entra em choque com um
aluno negro e LGBT para quem J. S. Bach não passa de um compositor branco,
careta, conservador, etc. Lydia trata o rapaz com certo sarcasmo provocativo.
Ele abandona a sala em protesto.
De volta a Berlim, ela fica sabendo de sua esposa Sharon (violinista da
Filarmônica) que a filha adotiva está tendo problemas na escola. Pergunta à
garota quem a está incomodando. Deixa a filha na escola, localiza a garota
incômoda, chama-a para uma conversa em voz baixa e diz algo como “Se você
chatear minha filha, eu venho aqui e acabo com você. Entendeu?” A garota
entende.
Lydia Tár é assim, uma mulher capaz de floreios diplomáticos e de
defenestrações sumárias, uma artista de enorme sensibilidade para com as
camadas harmônicas de uma sinfonia e capaz de pisar sem pena no pé que
alguém coloque à sua frente. Um tanque de guerra coberto de graffitti artnouveau.
Aos poucos vamos percebendo que ela é uma sedutora, uma
conquistadora inveterada, que troca de amores como quem troca de orquestra,
e que é do tipo que numa batalha não volta atrás para recolher feridos. É cruel?
Talvez, mas capaz também de grandes momentos de ternura e de cumplicidade
afetiva. Como todo mundo, aliás.
“Quer saber quem é uma pessoa?”, pergunta a sabedoria popular.“Dê-lhe
poder.” Dizem que o Poder corrompe, mas dizem também que o Poder apenas
revela. Homens ou mulheres que chegam a uma posição de destaque como a
de Lydia Tár aprendem durante a subida que às vezes basta-lhes apontar um
dedo e pronunciar uma frase para que seus desejos se cumpram. A lâmpada de
Aladim, que não existe, empalidece diante deste poder, que nos rodeia em todos
os lugares. Quem não já sofreu na unha de um gerente sádico, de uma chefe
invejosa?
O filme de Todd Field começa com Lydia Tár no ápice de sua fama e de
seu poder, mas daí em diante as coisas começam a degringolar, as rédeas a
fugir-lhe das mãos, como numa orquestra que a cada apresentação tivesse que
incluir mais e mais instrumentos. Chega um instante em que não dá para manter
tudo sob controle.
O filme começa a introduzir esse ominoso tema secundário de forma
discreta mas crescente. A vida caseira de Lydia não é tão harmoniosa como
deve ter sido algum tempo atrás. Ela acorda de noite. Que barulho é aquele?
Sua alucinação é auditiva, um som incessante e longínquo que crava nela a
agulha da insônia e a deixa remexendo-se na cama. Ela levanta, olha por toda
parte. E nós, aqui fora, julgamos ouvir o que ela julga que ouve, como um
diapasão desafinado soando dentro de um buraco negro. Ou um metrônomo
tentando pedir socorro.
Uma nova paixão aparece, uma cellista russa que parece mais
interessada na vaga da orquestra do que em Lydia, que mesmo assim a cerca
com o semi-sorriso de quem dá a coisa como favas contadas. E vem outro
episódio insólito, quando ela tenta seguir a moça no interior de um prédio velho,
aparentemente abandonado, e se vê à mercê de algo que parece um cão de
pesadelo.
Decisões irrefletidas vão comprometendo sua posição, e tudo explode
com o suicídio de uma ex-discípula e ex-namorada, que a joga na berlinda, e
fornece uma excelente chance para seus desafetos botarem as unhas de fora.
Tár não é um filme sobre música, é um filme sobre política musical, o jogo de
poder que envolve a criação musical (maestros, artistas, produtores, gravadoras,
imprensa, patrocinadores, público, etc.).
Uma coisa é a literatura, e outra é a política literária – tem gente que é
excelente numa e péssima na outra, ou vice-versa. A política teatral, dos grupos,
diretores, estrelas, novatos com metas a bater, veteranos tentando manter-se à
tona. A política cinematográfica, a política jornalística, a política das artes
plásticas, a política da Cantoria de Viola...
Onde há poder, há política. E se numa guerra a primeira vítima é a
Verdade, numa carreira artística em ascensão uma das primeiras vítimas é a
Palavra Dada, é a lealdade aos companheiros de ontem diante das
oportunidades de hoje, a fidelidade a afetos que infelizmente ressecaram, a
paciência dos velozes quando há lerdos atrapalhando um avanço.
É essa política que parte a coluna vertebral aparentemente tão sólida da
carreira de Lydia Tár, porque em questão de minutos (dentro do filme) ela
começa a ver que todo mundo que estava tão de-bem com ela afinal não estava
tão de-bem assim, todo mundo tem uma conta para lhe cobrar, e vêm todas ao
mesmo tempo.
O diretor Todd Field criou neste filme uma estrutura dramática curiosa (e
que, pelo que vi, não funcionou com muitos espectadores) em que os
acontecimentos finais se precipitam de maneira desconjuntada, elíptica. Se a
maior parte do filme tem uma narrativa rigorosamente medida e pesada, os 15
ou 20 minutos finais mostram fragmentos, saltos bruscos, non-sequiturs, cenas
que dão a impressão de que vão marchar para um clímax dramatúrgico qualquer
mas são cortadas ao meio e na imagem seguinte já estamos dias depois,
mergulhando em outra situação.
A sabedoria popular costuma dizer também que “a subida é vagarosa mas
a queda é num instante”. É mais ou menos o que acontece com Lydia Tár nesse
trecho final – cada nova cena bate mais um prego no caixão, e isso nos
entristeceria se não soubéssemos que foi ela mesma quem forneceu prego e
martelo aos seus coveiros.
Espero não ter dado muitos spoilers, até porque as propagandas do filme
falam sempre coisas como “a ascensão e a queda de uma grande regente de
orquestra”. E na verdade o filme não guarda muitas surpresas – é como uma
peça musical que se inicia com um tema dominante, digamos que seja O
Sucesso, e ele desde logo vai se misturando a um sub-tema, O Fracasso, que
acaba por predominar, triunfal.
O diretor Todd Field é mais conhecido do grande público como ator. Em
Eyes Wide Shut (1999) de Stanley Kubrick ele faz o papel de Nick Nightingale, o
pianista amigo de Tom Cruise que acaba induzindo este a entrar “de penetra”
naquela orgia gregoriana numa mansão. Como diretor, a narrativa segura e a
direção de atores em Tár não me surpreendeu: Field dirigiu o excelente In the
Bedroom (2001), uma tensa narrativa de crime e justiçamento, com Tom
Wilkinson e Sissy Spacek.
4911) A resposta do ChatGPT (9.2.2023)
(INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL):
Você me pede para escrever “uma crônica sobre literatura, ao estilo do
escritor Braulio Tavares”.
Não é difícil responder a esse desafio, uma vez que os escritos desse
amanuense, nascido em meados do século passado, circulam pelo mundo virtual
e abordam insistentemente os temas recorrentes do “fazer literário”, da “magia
das palavras”, da “recriação de histórias” e outros lugares-comuns de nossa
época.
Seria preciso lembrar, de início, que o nosso bravo cronista (observe-se
que a expressão “nosso bravo [qualquercoisa]” é uma forma clichê de expressão,
mas no vocabulário estilístico de redatores daquela geração, intermediária entre
o beletrismo e a patafísica, o clichê traz consigo uma certa carga de auto-ironia,
pois o uso inesperado de uma tal fórmula denota a plena consciência, por parte
do autor, de estar manipulando um clichê, mas com a consciência de o estar
fazendo) o nosso bravo cronista, dizíamos (e aqui mais uma vez vale a
observação de que este uso do plural autoral, se não chega a ser propriamente
um clichê, é resultado de uma operação mental semelhante à do exemplo
anterior, pois se distingue do chamado “plural majestático” usado pelos reis, bem
como do “plural tribunalício” com que os juízes minimizam sua presença pessoal
numa sentença proferida; poderia, sem prejuízo da clareza, exprimir uma certa
vertente da literatura atual, mediante a qual um texto não passa de uma
colaboração mental entre o Autor e o Leitor, de tal sorte que, no momento em
que lê as palavras escritas pelo primeiro, o segundo as recria e as enuncia como
que pela primeira vez, revestindo-se este ato, portanto, de foros de co-autoria),
o nosso bravo cronista tem o vêzo (cabe aqui outra observação, porque cabe
aqui um acento circunflexo; o cronista defende a teoria de que ao usarmos
palavras pouco comuns e que o leitor talvez não saiba pronunciar corretamente,
devemos acentuá-las em benefício da clareza, mesmo quando a gramática
desaconselha o emprego de tais sinais diacríticos) o nosso bravo cronista tem o
vêzo das longas digressões.
Concomitantemente (dizem as más línguas que nós, os inteligentesartificiais, somos faltos de originalidade e surpresa; ora, digam-me se não é um
desmentido cabal dessa calúnia o emprego deste advérbio centípede, que o
autor em pauta jamais redigiu em sua longa carreira, advérbio que contudo
guarda em si o tom levemente pincenezco, e tongue-in-cheekemente pomposo,
com que ele se diverte empregando pequenas jóias lexicográficas do glossário
de autores que na adolescência o deixavam com o verbalizador zunindo, como
Guerra Junqueiro, Humberto de Campos ou Coelho Neto), sabe-se que esse
sujeito (preciso ficar aqui repetindo de quem se trata?) tem no ouvido o seu
calcanhar-de-aquiles, valha a comparação, e é pelos tímpanos-complacentes
que ele emprenha diante de metáforas ou sinédoques ou catacreses ou
metaplasmos que o arrebatam como os corcéis albinos do Valhala, precipitandoo num mundo onde o não-chão é cúbico, onde as panacéias escasseiam, onde
os morcegos relincham preces peludas ao ouvido das abantêsmas, onde as
lesmas sem assento foram condenadas a fazer a pé a volta ao mundo sem GPS,
onde cardumes de candirus organizam guerrilhas subfluviais para atrapalhar a
lua-de-mel do síndico aligátor, onde delinquentes dimenor empinam com fio de
cobre arraias voadoras e seu aguilhão envenenado disfarçado de caneta Parker
51, onde os colecionadores de aquedutos arrematam grosas de tratores
Caterpillar nos leilões à socapa onde tudo é pré-arrematado pelos
atravessadores-laranja de uma Banana Republic de bandeira cortada
horizontalmente pelo Trópico de Capricórnio; onde a Era de Aquário
desembocou no Porão das Jaulas-Fortes, cujo alçapão inferior derramou o
transeunte incauto no Corredor do Coma Induzido, de onde ele saiu apenas
quando a Revolta do Espartilho de Couro esmigalhou as caixas torácicas dos
carcereiros e ele (não o cronista alvo destas linhas; o “transeunte incauto”, caso
você esteja me acompanhando), diante da Távola Plana do reino dos
desinformados, viu-se nomeado Ouvidor-Falante semipotenciário da Casa da
Moeda e da Mansão da Nota, com estipêndio de cento e dez dracmas por diabissexto e catorze rupias esporádicas, emitidas pelo Tesouro Nacional, moeda
que é denominada de “rúpia” quando falsificada por elementos sem formação
moral como o locutor que vos fala.
Tirante este aspecto, resta-nos registrar que o indigitado, o referido, o
meu-prezado, o nossa-amizade (ver em que caixa da mudança ficou o
Vocabulário Prático de Apodos e Doestos, Soscígenes Frazão, Editora Lello,
1902) cultiva, como quem cultiva um bigode com pontas, um amplo panteão de
deuses-pequeninos, a quem ele atribui poderes mágicos de inspiração literária
e criativa, bastando-lhe às vezes salmodiar a meia-voz o nome do nautaarremessado em questão para que seu cérebro inaugure tantas sinapses que
fique parecendo uma árvore de Natal politeísta.
No capítulo “Principais Influências”, ele rasga sedas e desdobra
salamaleques diante de influênceres como Harry Stephen Keeler (brilhante
concebedor de non-sequiturs dramatúrgicos, candidato ao Prêmio Nobel de
Títulos Olharregalativos), José Agrippino de Paula (o introdutor do Autismo
Narratológico no romance da Boca do Lixo paulistana), Maura Lopes Cançado
(intelectual brasileira que sabia passar troco e atravessar rua, e nunca jogou
pedra em ninguém), Abdón Ubidia (equatoriano eqüestre no Pégaso dos
inutensílios tecno-ilógicos), Monique Wittig (xena heavy-metálica baixadora de
chibata nos titubeantes), Gisela Elsner (deformadora boschiana do pesadelo
barriga-burguês nas águas-furtadas dos germanocratas ponta-de-ramo), Carlos
Emílio Corrêa Lima (sarcasta-mor da confraria dos Logomagos, atualmente em
versão digitalizada nos quettabytes da galáxia Transpunk)... e outros que tais.
Como a minha condição de mero programa recombinatório de
informações acessíveis no metaspaço me impede de emitir opiniões que possam
sugerir uma visão desnecessariamente crítica ou inconvenientemente laudatória,
posso apenas dizer que quem quiser ter uma idéia real das habilidades do dégas,
do de-cujus, do famisgeraldo... basta se-coçar, puxar carteira e cartão, e comprar
um livro de sua autoria, porque os há e muitos, expostos à cupidez pública nas
boas casas do ramo. (É sempre aconselhável terminar com um clichê, para não
deixar o leitor pendurado num ponto de interrogação.)
4912) O detetive Fernando Pessoa (12.2.2023)
("Fernando Pessoa", por Almada Negreiros)
Fernando Pessoa era um grafomaníaco, pessoa com a mania de escrever
compulsivamente. Alguns o fazem de forma caótica, e não produzem senão
coisas sem criatividade, sem propósito e sem método. Não era o caso do poeta
português. Dele, pode-se dizer que qualquer rabisco rende alguma idéia.
Conta-se que à sua morte, em 1935, descobriu-se em sua residência o
famoso “baú” que teria mais de 25 mil páginas com todos os tipos de texto:
poemas, peças teatrais, correspondência, anotações, ficção...
Nesta última categoria pode-se incluir talvez o famoso e notável Livro do
Desassossego, compilado postumamente e atribuído ao heterônimo “Bernardo
Soares”. É uma espécie de diário ficcional cheio de reflexões curiosas e
melancólicas sobre a vida, a literatura e tudo o mais.
Fernando Pessoa é um caso à parte na literatura, pelo talento exuberante,
pelo rigor do pensamento, pelas idiossincrasias psicológicas que dão a tudo que
escreve uma posição única na observação e análise dos fatos. Muitos o
consideram, com razão, um dos maiores poetas da nossa língua, e um dos
maiores poetas do século 20 em qualquer idioma. Mas me atrevo a dizer que
não se tem a medida exata de seu talento se não se der atenção igual à sua obra
em prosa, que é mais de reflexão e análise do que de ficção.
Do meio dessa jângal de manuscritos, os pesquisadores separaram uma
boa quantidade de contos (completos ou em fragmento), dos mais diversos tipos.
Alguns são contos policiais deixados incompletos.
Nos seus depoimentos Pessoa reafirma o seu gosto pela literatura policial,
citando nominalmente autores como Conan Doyle, Arthur Morrison (o criador do
detetive Martin Hewitt) e Edgar Wallace.
Há diferentes edições dos textos considerados policiais de Pessoa, mas
vou me limitar a duas, que tenho há anos.
As Obras em Prosa (Ed. Nova Aguilar, Petrópolis, 1986, 734 págs.,
“Biblioteca Luso-Brasileira”), se dividem nas seguintes partes: “O Eu Profundo”,
“Os Outros Eus”, “Idéias Estéticas”, “Idéias Filosóficas”, “Idéias Políticas”, “Teoria
e Prática do Comércio” e “Ficção”.
Esta última, a que ora nos interessa, está assim composta:
CONTOS DE RACIOCÍNIO:
“O banqueiro anarquista”, “A janela estreita” (fragmento), “O roubo da
Quinta das Vinhas”, “A carta mágica”, “A arte de raciocinar”, “Um paranóico com
juízo”.
CONTO FILOSÓFICO DE PERO BOTELHO:
“O vencedor do tempo”
Note-se que termos como “conto policial” ou “detetve” não aparecem.
Nesta mesma compilação, vê-se uma lista de títulos (contos completos e
fragmentos) sob esta última rubrica, assim:
CONTOS DE PERO BOTELHO:
O Vencedor do Tempo (Prof. Serzedas)
A Morte do Dr. Cerdeira (Dr. Cerdeira)
A Experiência do Dr. Lacroix (Dr. Lacroix)
O Prior de Buarcos (Pe. João (José) Maria)
Quaresma, Decifrador (Dr. Abílio Quaresma), (Vários)
O Eremita da Serra Negra (O Eremita)
?No Hotel Cecil, em dia de chuva (O pessimista)
?Uma Tarde Cristã (O jesuíta Eusébio Vareiro)
?O Profeta da Rua da Glória (O judeu Salomão, Barjara)
Copio do jeito que está no livro. Como a obra de Pessoa (me parece) está
toda em domínio público, talvez uma busca paciente por esses títulos e nomes
resulte em alguma coisa. Boa sorte!
Para mim, o mais importante de tudo é a menção ao “Dr. Abílio
Quaresma”, ou “Quaresma, Decifrador”, nome que influenciou Ariano Suassuna
na criação de seu personagem “Quaderna, o Decifrador”, o protagonista do
Romance da Pedra do Reino.
O Dr. Quaresma aparece com maior destaque no outro título que possuo:
A Alma do Assassino – segundo o Dr. Quaresma, Horizonte Editora, São Paulo,
1988(?).
O livro tem uma ótima introdução, “A Novela Policial”, de Luiz Roberto
Benati. E inclui quatro contos, visivelmente fragmentários, em que Quaresma
aparece. São estes que irei comentar a seguir.
A Alma do Assassino reúne quatro fragmentos de contos. É interessante
notar que Fernando Pessoa se interessava mais pelo processo de raciocínio do
que pela narração das história em si. Suas anotações para contos constam
principalmente das explicações de alguém sobre um crime, e das explicações de
Quaresma de como o crime foi cometido e quem é o culpado.
Não se vê muita coisa da trama, a não ser o que é comentado na
mecânica dedutiva. Pessoa escrevia isso e talvez se desse por satisfeito.
“A Janela Estreita” narra somente uma reunião, entre o Dr. Abílio
Quaresma, o chefe de polícia Guedes e o Tio Porco, discutindo processos
dedutivos e fazendo menções muito superficiais ao crime que estão
investigando, e que envolve um ourives e o seu filho desonesto.
“O Roubo na Quinta das Vinhas” é mais detalhado, tem algumas cenas,
descrições de ambientes, diálogos. Um cofre foi arrombado à meia-noite, numa
casa onde várias pessoas estavam hospedadas. As suspeitas recaem sobre o
jardineiro. Conversando com o engenheiro Augusto Claro, para quem o homem
é inocente, Quaresma explica como deve ter se dado a mecânica do crime, e
quem é o verdadeiro ladrão.
“A Carta Mágica” é um enigma de “quarto fechado” ou de “crime
impossível”. No caso, o desaparecimento de uma carta comprometedora, num
aposento hermeticamente fechado. Ouvindo o relato do chefe de polícia Guedes,
Quaresma rapidamente indica como o roubo deve ter se produzido, e quem
provavelmente o executou.
“O Caso Vargas” não dá indicação do enredo. Consta de várias páginas
de monólogo explicativo do Dr. Quaresma, onde ele, com o raciocínio analítico
bem característico de Fernando Pessoa, discorre sobre os “três tipos de
raciocínio abstrato”, as “três espécies de crimes”, os “quatro tipos mórbidos do
homem”, e assim por diante.
Todos estes fragmentos recebem notas e comentários dos editores da
obra de Pessoa, explicando o contexto de cada um, sem o quê não seria possível
acompanhar as narrativas.
Num texto de 1914 (Obras em Prosa, pág. 69) ele afirma:
Um dos poucos divertimentos intelectuais que ainda restam ao que ainda
resta de intelectual na humanidade é a leitura de romances policiais. Entre o
número áureo e reduzido das horas felizes que a Vida deixa que eu passe, conto
por do melhor ano aquelas em que a leitura de Conan Doyle ou de Arthur
Morrison me pega na consciência ao colo.
Um volume de um desses autores, um cigarro de 45 ao pacote, a idéia de
uma chávena de café – trindade cujo ser-uma é o conjugar a felicidade para mim
– resume-se nisto a minha felicidade. Seria pouco para muitos, a verdade é que
não pode aspirar a muito mais uma criatura com sentimentos intelectuais e
estéticos no meio europeu atual.
Talvez seja para os senhores como que causa de pasmo, não o eu ter
estes por meus autores prediletos – e de quarto de cama, mas o eu confessar
que nesta conta pessoal assim os tenho.
("Fernando Pessoa", por João Beja)
4913) O nome de Quaderna (16.2.2023)
Escolher o nome de um personagem principal é muito trabalhoso. É como
escolher o nome de um filho. No caso de um filho, os pais conversam entre si,
trocam idéias, consultam a família e os amigos. O nome do personagem, em
geral, é uma escolha solitária.
E uma escolha mais definitiva. Já vi muitos filhos insatisfeitos que pedem
para trocar de nome, depois da maioridade. E não me vem à memória nenhum
caso de personagem cujo nome o autor tenha resolvido trocar depois da estréia.
(Há o famoso caso do personagem de Jorge Luís Borges cujo nome foi trocado
na versão inglesa, mas aí são arteirices do tradutor.)
Reza a lenda que Sir Arthur Conan Doyle entreteve durante algum tempo
a idéia de batizar seu personagem mais famoso como “Sherringford Holmes”.
Felizmente não o fez.
Quando Ariano Suassuna escreveu o Romance da Pedra do Reino
(1971), tinha como plano inicial contar a história de Sinésio Garcia-Barreto, “O
Alumioso”. Já pelo epíteto, Sinésio é sugerido como um personagem iluminado,
especial, uma espécie de herói de romance de cavalaria (como Percival, ou
como Galahad), “sem medo e sem mácula”.
O nome “Sinésio” indica provavelmente a sua origem de predestinado (a
sua “sina”), de alguém cuja missão foi profetizada e deve ser cumprida. (Além
de ser um nome marcado na poesia popular pelo poeta Sinésio Pereira, de
Olinda.) E esse nome faz um contraponto com o de seu irmão Arésio GarciaBarretto – o brutal e belicoso Arésio, cujo nome Ariano Suassuna admite ter sido
inspirado por Ares, o deus da guerra.
(Sinésio Pereira)
E Quaderna?
O Romance da Pedra do Reino foi escrito em ondas sucessivas, entre
1958 e 1970. Ariano explica que o livro não é uma autobiografia.
É mais uma caricatura do meu mundo interior, isto é, todas as vivências
aí estão. Tenho alguma coisa de padre desonesto, de poeta preguiçoso e
cangaceiro frustrado.
(cit. em Narrativas e Narradores em A Pedra do Reino, Maria-Odilia LealMcBride, ed. Peter Lang, 1989)
Ele explica também que foi ficando meio difícil ter Sinésio como foco
principal da narrativa e até como narrador. Foi quando transferiu esta segunda
função a Quaderna que Ariano “engatou” a escrita e não parou mais.
Claro. O herói sem defeitos é um símbolo imóvel. Ou pelo menos um
símbolo meio manietado. “Não pode isso, não pode aquilo...” Como ele é puro
e idealista, existe uma lista gigantesca de coisas que ele é proibido de fazer.
Já o personagem picaresco desfruta de uma liberdade que o herói não
tem. Com ele, tudo é possível, tudo pode acontecer, porque ele é humano,
mercurial, escorregadio, pode ser leal num momento e desleal no outro, pode
ser sincero e depois hipócrita, pode ser honesto e ao mesmo tempo desonesto.
É essa ambiguidade, ou multiplicidade, que faz de Quaderna um herói tão
tipicamente brasileiro, tão característico de um povo de moral negociável, que
dá um jeitinho em tudo, desde que consiga o que quer.
O período da escrita do romance coincide, curiosamente, com o período
de preparação e escrita do livro de poemas Quaderna de João Cabral de Melo
Neto, que na edição de sua Obra Completa pela Aguilar recebe a referência
cronológica de “1956–1959”.
No meu ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007), comentei as
possíveis inspirações para o nome do livro de Cabral. Entre elas esta definição,
do dicionário Lello:
QUADERNA, s. f. (lat. quaternus). A face do dado que apresenta quatro
pontos. Heráld. Objecto composto de quatro peças em quadrado, de ordinário
em forma de crescentes. Pl. Os quatro pontos de uma face dos dados.
QUADERNO, s. m. (Forma desusada de caderno).
(Lello Universal)
E esta citação do Romance da Pedra do Reino, quando o Dr. Pedro
Gouveia confere a Samuel, Clemente e Quaderna seus títulos de nobreza, e lhes
explica os correspondentes brasões heráldicos:
O escudo dos Quadernas é esquartelado. No primeiro quartel, há, em
campo de ouro, um veado negro vilenado, inscrito numa quaderna de quatro
crescentes vermelhos. No segundo, em campo vermelho, cinco flores-de-lis de
ouro, postas em santor, ou aspa, e assim os contrários. O timbre, é um cavalo
castanho, com asas, com as patas dianteiras levantadas e as traseiras
pousadas, entre chamas de fogo!
(Romance d’A Pedra do Reino, Folheto 80)
Uma “quaderna”, em termos heráldicos, são quatro imagens de um
“crescente”, simetricamente dispostas, como vemos na imagem abaixo, onde
quatro crescentes rodeiam tanto a figura da Onça quanto a do Veado:
Estas são fontes possíveis de inspiração para a escolha de um sobrenome
tão importante, além de outras que desconhecemos.
O lançamento recente do Caderno de Textos e Imagens (Nova Fronteira,
2021), organizado por Carlos Newton Júnior, trouxe um novo dado para esta
pesquisa. O volume inclui a “Conclusão” escrita por Ariano para ajudar na
adaptação do romance para a minissérie da Rede Globo, dirigida por Luiz
Fernando Carvalho.
Nessa conclusão, a ação é retomada após o tumultuado final da narrativa
de Quaderna, no Romance da Pedra do Reino. É o dia em que a cidade de
Taperoá foi invadida pela “estranha cavalgada” que tinha à frente, num cavalo
branco, o jovem Sinésio, tido como morto. Com o tiroteio que se estabelece na
cidade, Quaderna e seus amigos se refugiam no “tabuleiro” onde fica o cemitério,
e dali iniciam sua fuga.
A certa altura, eles avistam à distância um acampamento cheio de
cavaleiros, e com tendas que parecem as de um Circo. Quaderna se oferece
para ir até lá e averiguar quem são essas pessoas. Vai com a intenção de
permanecer incógnito, para que ninguém saiba que ele é um dos fugitivos que
estão sendo caçados pela polícia de Taperoá.
Ele fica sabendo que se trata do grupo teatral “Olinélson”, dirigido por D.
Olindina e “Seu” Nélson, atores errantes, artistas de estrada. Quaderna lhes
propõe, então, que reúnam os dois grupos.
Nélson olhou para mim, como se me avaliasse de acordo com os vários
aspectos da questão. Depois falou:
– É uma proposta tentadora, mas que devo pesar juntamente com meus
companheiros de Direção, a quem vou apresentá-lo. Mas para isso preciso saber
seu nome. Como se chama?
– Antonio Quaresma, o Decifrador – respondi cautelosamente, pois ainda
não me sentia inteiramente seguro.
(Caderno de Textos e Imagens, p. 233-234)
Quando li esse trecho pela primeira vez, em 2006, duas associações de
idéias vieram se impor, no mesmo instante.
A primeira, o fato de que para Ariano Suassuna um dos personagens
centrais da Literatura Brasileira, é o Policarpo Quaresma, do romance de Lima
Barreto. Nacionalista radical e um pouco ingênuo, mas sincero e obstinado,
Quaresma é chamado de doido e de quixotesco pelos vizinhos e pelos colegas
de trabalho. São inúmeras as menções de simpatia de Ariano, em suas
entrevistas e em aulas-espetáculo, a esse personagem que, contra todos os
obstáculos, luta pelo que acredita ser a nação brasileira autêntica.
Por outro lado, Quaresma o Decifrador, é um personagem de Fernando
Pessoa em alguns contos policiais pouco conhecidos, mas várias vezes
republicados.
Há uma menção a ele nas Obras em Prosa da Nova Aguilar, mas uma
edição brasileira trouxe este personagem mais para perto do nosso leitor: A Alma
do Assassino (segundo o Dr. Quaresma), São Paulo, Editora Horizonte, 1988,
com introdução de Luiz Roberto Benati.
Comentei estes contos em minha publicação mais recente neste blog:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2023/02/4912-o-detetive-fernandopessoa-1222023.html
O prefácio de Fernando Pessoa neste livro diz: “Fui verdadeiramente
amigo de Quaresma”. Os detetives lidos da época de Pessoa tinham amigos que
narravam suas aventuras: o Dupin de Edgar Allan Poe e o Lupin de Maurice
Leblanc têm narradores anônimos, Sherlock Holmes tem Watson, Martin Hewitt
(um dos detetives favoritos de Pessoa) tem o jornalista Brett.
Voltando a Ariano Suassuna e Quaderna: o nome falso usado por este
me parece prova suficiente de que Ariano, grande admirador de Fernando
Pessoa, conhecia, mesmo superficialmente, essas aventuras detetivescas do Dr.
Quaresma, e gostou do nome. Se influenciou na criação de “Quaderna” ou se só
lhe surgiu depois, não importa. Suassuna, como Pessoa, era basicamente um
poeta místico, e nenhum dos dois era imune à Sedução do Enigma.
Deve existir, portanto, um certo sopro de Fernando Pessoa na criação de
Quaderna
e
de
seu
“romance
heróico-brasileiro,
ibero-aventuresco,
criminológico-dialético e tapuio-enigmático de galhofa e safadeza, de amor
legendário e de cavalarias épico-sertanejas!”.
4914) Seis frases marcantes (18.2.2023)
1
Barão Henrich von Brokenstein, 58 anos, cientista gótico, em pleno
tumulto de uma experiência laboratorial na torre do seu castelo expressionista,
onde pretende utilizar um algoritmo viral para multiplicar em tempo recorde as
células de um embrião de leão-da-montanha, no que é atrapalhado o tempo
inteiro pelo seu prestimoso mas confuso ajudante Ygor Bitcovic, 48 anos,
corcunda, neurótico, caolho, que tenta fazer seis coisas ao mesmo tempo e
desorganiza sete, até que o Barão Brokenstein, ao empurrá-lo num gesto
impaciente, agarra-o de novo pelos ombros, olha com atenção seu rosto magro,
nariz adunco, queixo comprido... e o tapa-olho negro que está cobrindo o olho
direito, em vez do esquerdo. Desorientado com essa imagem incongruente, o
Barão tartamudeia: “Ygor! Tem algo de diferente em teu rosto. Fizeste a barba,
por acaso?...” E ele responde: “A minha barba nunca cresceu.”
2
Beto Miolo, 19 anos, primeiro volante do time juvenil do Rodoviários
Esporte Clube, de Cabiúna (Alagoas), terminou eufórico seu primeiro treino na
equipe principal; após o chuveiro abordou na saída do vestiário o técnico
Joãozinho de Berto, e indagou como se saíra, ganhando um tapinha no ombro e
o veredito: “Bom demais! Nota dez!”, o que o levou a fantasias de
profissionalização, que foram incrementadas quando os colegas o chamaram
para o almoço habitual no Bar do Haroldão, na esquina do campo, onde se
sentaram em grupo, contando piadas, trocando provocações, enquanto
Haroldão fazia aterrissar na mesa duas terrinas respeitáveis de uma
macarronada à bolonhesa oleosa e descorada, que todos atacaram com o
estoicismo dos famintos, até que Haroldão parou junto do técnico, botou o pano
de prato no ombro, perguntou como estava o almoço, e Joãozinho de Berto
respondeu com entusiasmo: “Bom demais! Nota dez!”.
3
Lucinha Mamede, 15 anos, aluna do Colégio Samaritano, bonitinha mas
meio azougada, ao reagir de forma inesperadamente grosseira às tímidas
investidas paqueratórias de seu colega de classe Mateus Rodrigues Lemos, 16
anos, e tentando justificar-se diante das colegas que a cercaram com os
argumentos previsíveis de “você não é essas brastemps” e “caiu na rede é
peixe”, o que a fez explicar cheia de angústia: “Esse menino me passa uma
energia muito negativa, eu acho que ele é feito somente de elétrons”.
4
Indaiara Ferreira de Sousa, 26 anos, dançarina da boate e pensão “Love
To Love”, no km 136 da Rio-Bahia, ao ser convidada a dar um breve depoimento
para uma equipe da TV Agreste que realizava um documentário sobre o
cotidiano dos motoristas de caminhão, fregueses tradicionais daquele
estabelecimento; ela concordou em gravar, pediu licença, foi lá dentro, voltou de
banho tomado, roupa trocada, maquiagem feita, sentou junto à janela que lhe
indicaram, ajeitou a longa cabeleira de índia, e à primeira pergunta do jornalista
cruzou a perna num gesto aristocrático, ergueu as sobrancelhas e declarou:
“Olha, meu bem, nós aqui temos uma vida... uma vida... uma vida
favoravelmente maravilhada.”
5
Apolônio Romão Gadelha, 92 anos, coronel da Guarda Nacional,
fazendeiro, ex-deputado, faleceu à 01:32 de uma madrugada fria na região do
Teixeira, depois de uma noite inteira de aflição em que a respiração lhe vinha
como que através de tubulações de esgoto; teve tempo, portanto, para se
despedir espiritualmente de seus hectares e sesmarias, de seus celeiros e
currais, de suas alfaias, seus dobrões, e de seus oito filhos e filhas que assistiram
o desenlace de pé e de cabeça baixa, todos mansos e caladinhos. Quando seu
rosto se imobilizou, a agora viúva, Dona Quitéria, 63 anos, abaixou-lhe as
pálpebras, desprendeu da mão ainda morna do defunto os dedos entanguidos
que a seguravam desde o final da tarde, ergueu-se, suspirou bem fundo, encarou
aquele grupo de rostos náufragos e anunciou: “Vou fazer um café.”
6
Sandra Natália Girão, 52 anos, professora, chegou como todos os dias à
Faculdade de Ciências Sociais Tobias Barreto, entrou na sala de aula às 7 em
ponto, jogou na mesa a bolsa, os livros, e o material impresso, deu bom dia, e
disparou um desabafo contido há anos, no sentido de que um país não prospera
e uma nação não convive em paz se não huver um mínimo de contrato social
entre as partes; se não se encurtar a distância entre o estrato mais rico e o mais
pobre; se não forem usados todos os mecanismos jurídico-institucionais para
extirpar a mentalidade colonialista, extrativista e escravocrata que ainda
contamina nosso arremedo de República; se cada pessoa não se convencer de
que ação política e cidadania são exercidas em casa e na rua nos sete dias da
semana, e não apenas nas urnas de dois em dois anos; se não acabarmos com
a cupidez insolente dos investidores, a cumplicidade servil dos cooptados, a
retórica cínica e desonesta da pseudo-imprensa, e a passividade cega dos
magarefes que se julgam donos do matadouro; e quando fez pausa para tomar
respiração o rapaz de boné e óculos da segunda fila ergueu o braço e perguntou:
“Cai na prova?...”
4915) A cordilheira sob o asfalto (21.2.2023)
Há um verso de uma canção tropicalista de Caetano Veloso (“Enquanto
Seu Lobo Não Vem”, em Tropicália ou Panis et Circensis, 1968) que diz: “Há
uma cordilheira sob o asfalto”.
Esse verso sempre teve alguma coisa de revelação para mim. Era uma
imagem surrealista que lembrava Jorge de Lima – essa imagem de uma
superfície aparentemente banal e domesticada ocultando uma realidade enorme
e selvagem.
O asfalto a que Caetano se refere é o da Avenida Presidente Vargas,
porque na mesma música ele canta:
A Estação Primeira de Mangueira passa em ruas largas...
Passa por debaixo da Avenida Presidente Vargas...
Como na época eu não conhecia o Rio de Janeiro muito bem, ficava com
uma pintura ambígua na minha imaginação. A primeira era a escola da
Mangueira desfilando por alguma rua ou túnel ou passarela que passasse por
baixo da Avenida propriamente dita.
A segunda era a Mangueira desfilando no asfalto, mas na crista dessa
cordilheira selvagem, uma serra de montanhas cobertas de florestas e rochedos.
A Mata Atlântica virgem que havia antes do Rio de Janeiro, mas (como num filme
de Glauber Rocha ou de Walter Lima Jr.) a Mangueira desfilasse, sem outra
platéia a não ser os papagaios e os sagüins, nessa Mata Atlântica virgem.
(Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.; a Avenida das Américas em 1968)
Porque em outro momento, no primeiro verso da mesma canção, o poeta
diz: “Vamos passear na floresta escondida, meu amor...” Claro que há todo um
contexto irônico de brincadeira infantil, numa citação óbvia da cantiga de roda:
Vamos passear na floresta,
enquanto seu Lobo não vem...
- Tá pronto, Seu Lobo?..
Você ouve a música 100 vezes e os versos vão se misturando, de tal
forma que a floresta escondida passa a fazer parte também da cordilheira
escondida sob o asfalto.
Ou então (isso já me veio décadas depois) como naqueles livros de ficção
científica de J. G. Ballard e outros. A floresta foi escondida pela cidade. A cidade
foi edificada no lugar onde antes havia uma floresta. A avenida de asfalto foi
plantada em cima de uma cordilheira. As duas, floresta e cordilheira, não foram
destruídas: estão apenas ocultas, mas retornarão um dia. Por que não?
Qualquer um de nós já viu essas imagens aterradoras do possível mundo
do futuro, com megalópoles invadidas pela selva, galhos de árvores brotando
das janelas dos arranha-céus, o lodo e o mato rasteiro cobrindo o chão, os
shoppings parecendo estufas exuberantes que fugiram ao controle.
A floresta está apenas escondida, mas voltará.
(Sítio arqueológico na Turquia}
Por baixo do asfalto existe não apenas a cordilheira, mas tudo que a
cidade precisou enterrar e esconder no seu processo de afirmação: as ossadas,
as valas comuns, os alicerces dos embarcadouros, dos mercados de escravos,
ossos de bichos, restos de comida petrificada, cacos de louça e cerâmica, armas
enferrujadas. Um gigantesco sambaqui de passado que foi varrido para baixo do
tapete do asfalto.
Esse tapete de asfalto é apenas uma película muito fina. Se a cidade fosse
vista lateralmente, num corte vertical, veríamos o quanto o chão civilizado em
que pisamos é fino, é quase nada, separando o presente frenético desta bolhade-sabão civilizatória e essa cordilheira de passado, pronta para emergir de novo
e tomar conta desse espaço por mais um milhão de anos.
“Que século, meu Deus! exclamaram os ratos,
e começaram a roer o edifício.
(Carlos Drummond, “Edifício Esplendor“)
Drummond tinha essa mesma noção de que os edifícios duram menos
tempo do que os ratos.
Se “tudo que é sólido se desmancha no ar”, tudo que parece luminoso
contém dentro de si uma bolha de escuridão, e essa escuridão não está vazia.
A máscara de asfalto com que a civilização finge esconder a cordilheira é
enganosa.
(Rook Island, by Ubisoft)
É a película camufladora do próprio mar, que o protagonista de Sartre em
A Náusea consegue enxergar de verdade, e perceber o quanto é uma ilusão:
Viro as costas às outras pessoas, e apoio as duas mãos sobre a
balaustrada. O verdadeiro mar é negro e frio, cheio de animais; ele se agita por
baixo dessa fina película verde feita para enganar as pessoas. As sílfides que
me rodeiam deixaram-se iludir: não veem senão essa película estreita, e ela lhes
demonstra a existência de Deus. Mas eu vi o que há por baixo!
(J.-P. Sartre, La Nausée, trad. BT)
Por baixo há o sambaqui, a cordilheira, o Passado que nunca se poderá
cancelar; só podemos mesmo é cobri-lo com películas de diferentes texturas,
“skins”, como na computação gráfica. O Passado é sempre dez vezes maior,
cem vezes mais pesado, e mil vezes mais presente.
4916) A peleja do meme contra o PhD (24.2.2023)
Quando o professor universitário e semiólogo Umberto Eco surpreendeu
o mundo inteiro com o sucesso de um romance fascinante e difícil como O Nome
da Rosa (1980), muita gente se surpreendeu com o fato de ele ter ambientado
sua história num mosteiro católico no ano de 1327. Eco precisou explicar que
conhecia a Idade Média muito melhor do que a época contemporânea.
Depois, num ensaio recolhido nas Viagens na Irrealidade Cotidiana (Ed.
Record, 1984, trad. Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade),
ele discutiu algumas idéias muito em voga nos anos 1980, em torno do conceito
de “uma nova Idade Média”. E diz, a certa altura:
Nada é mais semelhante a um mosteiro (perdido no campo, cercado e
rodeado por hordas bárbaras e estranhas, habitado por monges que não têm
nada a ver com o mundo e desenvolvem suas pesquisas particulares) do que
um campus universitário norte-americano. (p. 98)
As modas recentes do terraplanismo e do negacionismo médico
trouxeram para o debate caótico das redes sociais o distanciamento entre os
cientistas e as “pessoas comuns” (eu, por exemplo). Não sabemos nada de
Ciência, ou melhor, sabemos o que lemos na imprensa (TV, revistas, a Web),
misturado a noções que vimos quando éramos estudantes, e que já esquecemos
quase por completo.
Nunca foram tão necessários os divulgadores da Ciência, as pessoas
capazes de sintetizar conhecimentos científicos (mesmo com o risco da
superficialidade), escrevendo para leitores medianamente instruídos, leitores
com doses equilibradas de confiança e de ceticismo. O leitor que não lê “para
acreditar” nem “para discordar”, mas lê pela necessidade de pensar mais
aprofundadamente naquele assunto. Lê para se informar melhor.
Minha geração teve a sorte de ler autores para quem eu acendo uma vela
mental todas as noites, em meus oratórios agnósticos: Fritz Kahn, Paul Karlson,
Hendrik Van Loon, Henry Thomas, George Gamow... Ninguém lembra deles
hoje: eu lembro, porque foi deles a primeira porta para assuntos que vi
retomados, alguns anos depois, por Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Carl Sagan,
Stephen Hawking.
A distância abissal entre cientistas e o grande público recebeu agora uma
ótima sátira televisiva na série do Netflix O Mundo por Philomena Cunk, criado
por Charlie Brooker, em que a atriz Diane Morgan faz o papel de uma “influêncer”
com verba e sem noção, que viaja pelo mundo capitaneando um programa
instrutivo onde ela conta (em 5 episódios de meia hora) a história da
humanidade, enquanto entrevista historiadores, físicos, medievalistas, etc.
Os professores e professoras, europeus e norte-americanos, são todos
verdadeiros, e tudo que eles dizem é dito a sério – com certa dificuldade, porque
“Philomena” faz as perguntas mais abobalhadas e irritantes. Tiremos o chapéu
aos professores e professoras que precisam responder questionamentos como:
“Todo mundo sabe que o homem não foi à Lua; para começar, a Lua não existe,
concorda?”.
“Philomena Cunk” representa aquela fauna de que o YouTube está cheio:
pessoas jovens, cheias de energia e de ofuscante auto-estima, capazes de se
comunicar instantaneamente com milhões de outros jovens em torno do fato de
que todos ouviram o galo cantar e não sabem onde. Ou melhor, todos ouviram
o galo cantar, mas alguns creem que é um galo alienígena, outros questionam a
existência de galos e de aves em geral, outros dizem que aquilo não foi o canto
do galo e sim uma simulação cibernética, outros perguntam por que quem canta
é sempre o galo, e à galinha cabe apenas o papel subalterno de atravessar a
estrada...
Enfim, é um caldo cultural de meias-informações, piadas, superstições,
empirismo oitocentista, crendices, intuições interessantes, pensamento mágico,
fabulações pessoais... O mesmo caldo cultural em que viviam as populações da
Idade Média.
Umberto Eco descreve com riqueza de detalhes esse caldo cultural em O
Nome da Rosa, e descreve seu equivalente moderno em O Pêndulo de Foucault
(1988). Só que esse caldo está hoje potencializado pelo aumento da população,
a crise da educação (cada país tem a sua, mas todos têm uma) e agora o
crescimento desordenado (e ferozmente manipulado por quem pode) das
comunicações eletrônicas.
“Philomena Cunk” viaja pelo mundo inteiro (principalmente graças à magia
do chroma-key) e é muito divertido ver o olhar de terror de senhoras
ponderosamente acadêmicas, cobertas de PhDs, diante do nonsense-mental
absoluto da moça que as entrevista. É o século 21 descobrindo, horrorizado, o
espelho.
É sátira, uma sátira feita com bons redatores – há muita piada boba, afinal
o programa vem da pátria de Douglas Adams e do Monty Python, mas há muita
piada engraçada e que vai na medula, idem ibidem. A apresentadora parece
mesmo ser mentalmente avariada, conceitualmente descompensada, e tudo o
mais; é uma ótima atriz. No programa sobre a Idade Média, ela entra na sala
vazia de um castelo de paredes de pedras e ali, sozinha com a câmera, faz uma
encenação verbal (com uma engraçada pós-sonoplastia fornecendo o fictício
som ambiente) de uma festa da realeza. Um pequeno tour-de-force de texto e
interpretação.
Somos tentados a ver em O Mundo por Philomena Cunk apenas a sátira
dos “influênceres” que têm a arrogância dos comunicadores-natos somada a
uma formação cultural capenga. Porém, a presença de tantos cientistas
respeitáveis, homens e mulheres que dedicaram a vida inteira ao estudo
aprofundado da História, da Sociologia, da Física, etc., toca insistentemente um
outro sino. Quem está mais por fora do mundo real – ela, que não sabe de nada,
ou eles, que sabem de tudo e se aterrorizam com o tamanho do abismo que nos
separa?
Philomena representa o poder tecnológico do Presente, o de atingir
instantaneamente milhões de pessoas; os professores representam o poder
acumulado do Passado, um fóssil indestrutível mas que respira por aparelhos.
Há uma briga permanente entre os dois, uma briga boa, uma briga inevitável
desde o tempo das cavernas, e que a cada século muda de armas.
Como dizia Umberto Eco:
O outra Idade Média produziu no fim um Renascimento que se divertia em
fazer arqueologia, mas de fato a Idade Média não fez obra de conservação
sistemática, mas sim de destruição casual e conservação desordenada; perdeu
manuscritos essenciais e salvou outros completamente irrisórios, raspou
poemas maravilhosos para escrever em cima adivinhas ou preces, falsificou os
textos sagrados interpolando passagens e assim procedendo escrevia os “seus
livros”. (p. 98)
Estamos, aos trancos e barrancos, escrevendo os nossos.
4917) O que existe por trás do Sol (27.2.2023)
(Sol Armorial)
Quando mais jovem, em Campina Grande, trabalhei durante quase dois
anos, como datilógrafo, na Reitoria da FURNe, a Fundação Universidade
Regional do Nordeste (atual UEPB). Ficava em frente à Catedral, naquele prédio
onde hoje funciona o Instituto Histórico.
Um dia eu estava indo à Faculdade de Filosofia (que ficava atrás da
Catedral, a poucos metros dali) em companhia de Leopoldo, considerado o
melhor datilógrafo da universidade. Era um cara mais velho do que eu, moreno,
cabelo curto, não era de muita conversa mas tinha um senso de humor apurado.
Nesse dia a gente ia andando quando ele parou de repente.
– Espera um instante.
Voltou alguns passos e ficou examinando o chão de terra. Via-se ali um
salto de sapato, salto preto, de sapato tipo Vulcabrás. O chão estava um pouco
úmido e mole; Leopoldo escavou um pouco com a quina do pé, expôs o salto,
deu um “bico” com um pouco de força e o salto de borracha saltou lá para a
frente, deixando apenas o buraco na terra.
– Tudo bem – disse Leopoldo, quando retomamos a caminhada. – É
porque toda vez que eu passava aqui eu ficava pensando que tinha um cara
enterrado de cabeça pra baixo, e só o salto do sapato aparecendo.
(a antiga Reitoria da FURNe)
Essa imagem nunca saiu da minha cabeça (olha que já lá se vão 55 anos),
porque nesse tempo eu vivia com o juízo cheio de surrealismo e de Luís Buñuel.
Fiquei fascinado com a possibilidade de você enxergar um pequeno objeto e ser
capaz de visualizar, a partir dele, algo muito maior e totalmente absurdo. Como
o galo de metal no campo nevado, onde o Barão de Münchausen amarra seu
cavalo antes de dormir. Ao acordar, o Barão percebe que a neve derreteu e ele
está numa pracinha, em frente à igreja, e o cavalo está esperneando lá no alto,
preso ao galo do campanário.
Corta para o Rio de Janeiro, éons depois. Eu morava em Laranjeiras, e
pegava com frequência o ônibus da linha 184 para ir ao Largo do Machado, onde
tem metrô, comércio, lanchonetes, etc. E um dia vejo pichado na parede de um
prédio baixinho de apartamentos, já perto do Largo:
O SOL É A BRASA DO BASEADO DE DEUS
Peço desculpas às pessoas religiosas que talvez se sintam ofendidas.
Meu intuito aqui é apenas semiótico, porque essa frase, digna de um cartum de
Moebius & Jodorowsky, tem uma construção muito semelhante à idéia de
Leopoldo com o salto de sapato. É uma excelente fanopéia – na linguagem de
Ezra Pound, a imagem visual vívida e instantânea, produzida por meras
palavras.
Olhar para o sol, imaginá-lo como a brasa de um cigarro, visualizar um
ser gigantesco por trás... A imagem era um tanto blasfema (Buñuel teria
gostado). Mesmo assim, me lembrou outra imagem da infância, colhida talvez
em Monteiro Lobato: a sugestão de que o céu da noite era uma vasta redoma de
cristal escuro, e as estrelas eram buracos que os anjinhos faziam para espiar as
travessuras das crianças da Terra. (Acho que isto está em Viagem ao Céu.)
O interessante dessa imagem não era nem mesmo a curiosidade dos
anjinhos, mas o fato de que -- por trás dessa redoma escura e protetora existia
o que? Existia uma luminosidade cegante, equivalente à do Sol, que se filtrava
pelos buraquinhos.
A materialidade da abóbada celeste é um tema antigo. Vivemos (dizia a
imaginação medieval) no centro de uma esfera, que ora era transparente, ora
opaca, ora azul, ora escura e pontilhada de brilharecos.
Existe até a famosa gravura (que nem é medieval, é do século 19) em que
um homem rompe o “vidro” dessa abóbada e enxerga por trás dela mecanismos
gigantescos, engrenagens incompreensíveis.
(em L’Atmosphère: météorologie populaire, Camille Flammarion, 1888)
A curiosidade de saber o que existe por trás do céu vem dessa visão
medieval que colocava a Terra como o centro do Universo, e este seria uma
série
de
esferas
sucessivamente
maiores,
como
camadas-de-cebola
superpostas. Um universo imóvel onde as esferas (onde estavam “pregados” o
Sol a Lua, as estrelas) meramente giravam em torno do seu centro, a Terra, mas
a estrutura básica era fixa.
Dá para imaginar o choque na cabeça dos cientistas quando tiveram que
admitir por aproximações sucessivas (via Kepler, Galileu, Copérnico, Newton,
Einstein) o atual formato do Universo.
Restou aos poetas imaginar outras alternativas, no plano simbólico.
Guimarães Rosa, que era meio chegado a um cigarro convencional, projeta suas
fantasias no inventivo Lalino Salãthiel de “A Volta do Marido Pródigo” (em
Sagarana, 1946):
“Magina só: eu agora estava com vontade de cigarrar... Sem aluir daqui,
sem nem abrir os olhos direito, eu esticava o braço, acendia o meu cigarro lá no
sol... e depois ainda virava o sol de trás p’ra diante, p’ra fazer de-noite e a gente
poder dormir...”
É o caso também de Ariano Suassuna e sua forma peculiar de tratar os
temas religiosos e sertanejos. Não por acaso, um dos seus personagens mais
famosos, Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, foi expulso do seminário da
capital da Parahyba por causa de sua teoria do “Catolicismo Sertanejo”, no qual
“a Santíssima Trindade tem cinco membros: o Pai, o Filho, o Espírito Santo, o
Diabo e Nossa Senhora”.
(Irandhir Santos, como Quaderna)
A mitologia solar tem uma importância muito grande nessa visão-domundo que Quaderna expõe de maneira tão vigorosa e poética no Romance da
Pedra do Reino (1971). Pudera. Todo esse romance é uma tentativa pessoal,
por parte de Ariano, de equacionar o feixe de contradições e de confirmações
em torno da tentativa de situar Deus e o Diabo na terra do sol.
Em seu livro póstumo Romance de Dom Pantero no Palco dos Pecadores,
que é uma espécie de coral de muitas vozes e muitas “personas”, Ariano atribui
a Dom Pantero um longo monólogo em tom apocalíptico (passagens inteiras do
Apocalipse são citadas no livro) e a certa altura ele exclama:
– O Sol é o girassol do sol de Deus!
A imagem do girassol é frequente na literatura mística, para indicar a alma
sempre voltada na direção da Divindade. Para onde Deus vai, a alma do crente
gira de mansinho, para nunca perder Deus de vista, para estar sempre inundada
de sua luz.
Não sei se a frase de Dom Pantero é uma formulação de Ariano ou se ele
está citando alguém (o livro é repleto de citações disfarçadas – é o “Estilo Régio”
de Quaderna falando no centro), mas em todo caso é uma imagem de grande
beleza. Uma fanopéia notável.
A idéia é que assim como o girassol volta-se para o sol o tempo inteiro,
para embeber-se de sua luz, assim o Sol, por sua vez, volta-se o tempo inteiro
para se embeber do “sol de Deus”, que neste caso deve ser algo de brilho
incomensurável, inconcebível.
Reencontrei há pouco essa mitologia solar na leitura do volume 3 da série
“The Sandman”, de Neil Gaiman, Dream Country (1991).
Na quarta história deste volume, “Façade”, aparece a super-heroína
Element Girl, a mulher indestrutível, capaz de manipular à vontade qualquer
elemento da matéria. Ela é Rainie Blackwell, uma agente secreta que foi
transformada em Element Girl após entrar em contato com uma divindade
egípcia. Agora, está decadente, infeliz, incapaz de viver uma vida normal, e
tendo que criar máscaras orgânicas para esconder seu rosto verdadeiro, cuja
visão é insuportável às outras pessoas.
No fim, ela deseja morrer, e é visitada pela Morte, que faz parte do grupo
dos Perpétuos. A Morte lhe aconselha que peça ao deus egípcio para reverter o
que havia feito. “Mas onde vou encontrar esse deus?”, pergunta Rainie. A Morte
diz: “Deixa de ser boba, esse deus é Ra, o sol. Vai na janela e fala com ele.”
(Neil Gaiman + Colleen Doran, Malcolm Jones III, Steve Ollif, Todd Klein)
Ela o faz e diz:
-- O sol... eu não tinha percebido antes... O Sol, também, é apenas uma
máscara... E o rosto por trás dele é tão belo... é...
Element Girl usava dezenas de máscaras para poder ser vista pelos
humanos (sua casa é repleta delas), e desse modo não lhe é difícil entender que
o Sol é apenas uma máscara cegante destinada a afastar a curiosidade daqueles
que desejam ver “a verdadeira face de um Deus”.
4918) Uma leitura comentada do livro "Sagarana" (3.3.2023)
De 15 de março próximo, indo até 17 de maio, estarei ministrando um
curso sobre a obra de Guimarães Rosa e o livro Sagarana (1946). Será um curso
online via Zoom – acessível portanto, para leitores rosianos de todo o Brasil, e
do mundo!... – todas as quartas-feiras, das 19 às 21 horas.
Há mais de 15 anos que ministro cursos e oficinas através do Instituto
Estação das Letras (Rio), dirigido pela minha amiga, a poeta Suzana Vargas. Já
ministrei cursos de poesia, de conto, de ficção científica, leituras orientadas... O
mais recente foi em 2021, Lendo Borges e Cortázar.
O curso é pago (eu vivo disso), e mais detalhes podem ser obtidos pelo
telefone
do
IEL
–
(21)
99127-4088,
ou
pelo
email
[email protected] .
Dito isto, vamos ao assunto em si. Por que Sagarana?
Quando um autor se torna um clássico e tem uma obra relativamente
grande, densa, importante, as pessoas que se aproximam da obra dele pela
primeira vez procuram em geral a sua obra mais famosa, a que fez mais sucesso,
ganhou mais prêmios, foi mais estudada, recebeu mais elogios...
Às vezes essa “obra máxima” é também a obra mais difícil do autor. Aquilo
que alguns críticos chamam “o pináculo”, o ponto mais alto do que ele escreveu.
E nem sempre a subida até lá é fácil.
Autores complexos requerem uma aproximação gradual. Isto não é uma
regra universal (não existem regras universais), mas ajuda.
Eu pergunto: por que chegar à obra de (digamos) James Joyce entrando
de cara no Ulisses (1922), um livro muito difícil, quando a leitura dos contos de
Dublinenses (1914) ensinaria muitíssimo sobre o autor, seus temas, sua
linguagem, seus personagens, sua visão das coisas? Chegando ao Ulisses,
depois, metade das questões já estariam resolvidas.
Há leitores que tentam conhecer Julio Cortázar pegando o “tijolo” que é O
Jogo da Amarelinha (1963), um livro fascinante mas um tanto desorientador para
quem não conhece nada do autor. Uma aproximação gradual através dos contos
dele seria uma boa transição: livros como Bestiário (1951), Todos os Fogos o
Fogo (1966) ou Final de Jogo (1956) etc. cumpririam bem este papel.
É mais ou menos o que se coloca com Guimarães Rosa. Conheço
pessoas que já tentaram ler o Grande Sertão: Veredas (1956) duas ou três vezes
e não avançaram. Sei demais como é. Eu tentei umas cinco vezes, e só consegui
devorar o livro depois de ter lido quasse todos os outros.
Um leitor jovem, de hoje, já cresce sabendo que Rosa é “um dos maiores
escritores brasileiros de todos os tempos”, e blá-blá-blá. E que tem fama de
“autor difícil”. Sua literatura é muito pessoal, e surpreende até quem já leu
ensaios sobre ele, quem já viu suas histórias no cinema ou na TV, quem leu
resenhas e artigos sobre seus livros.
Sagarana (1946) é seu livro de estréia, publicado quando Rosa tinha 38
anos e era totalmente desconhecido. É um livro espontâneo, torrencial, com
contos extensos, e ao mesmo tempo um livro destilado e refinado durante muitos
anos. É o livro em que Guimarães Rosa tornou-se escritor.
Fernando Pessoa disse, pela voz de Ricardo Reis: “Tornar-te-ás só quem
tu sempre foste. O que te os deuses dão, dão no começo”. Guimarães Rosa já
nasceu ele mesmo com seu primeiro livro; está tudo ali. Paisagem, linguagem,
personagens; a fauna, a flora e a metafísica; a violência, o amor e o bom-humor;
o sertão, o caos e o cosmos.
Claro que houve evolução e aprofundamento, principalmente para
conduzi-lo ao “Ano Miraculoso” de 1956, quando ele jogou no colo do povo
brasileiro, com poucos meses de intervalo, as 822 páginas de Corpo de Baile e
as 571 do Grande Sertão. Mesmo assim, acho que Sagarana representou o
processo íntimo em que o escritor criou sua “régua e compasso” para produzir
tudo que veio depois.
O nosso plano de leitura é acompanhar o livro do jeito que ele se organiza,
com seus nove contos.
15 de março – Introdução a J. G. Rosa, a pessoa e o autor
22 de março – “O Burrinho Pedrês”
29 de março – “A Volta do Marido Pródigo”
5 de abril – “Sarapalha”
12 de abril – “O Duelo”
19 de abril – “Minha Gente”
26 de abril – “São Marcos”
3 de maio – “Corpo Fechado”
10 de maio – “Conversa de Bois”
17 de maio – “A Hora e Vez de Augusto Matraga”
Uma semana de intervalo é tempo bastante para ler ou reler cada história.
Além disso, uma aula perdida por um imprevisto pode ser vista depois em
gravação, e geralmente eu e os alunos criamos um grupo de mensagens para
trocar impressões, responder perguntas, etc.
Guimarães Rosa produziu um impacto muito grande com sua estréia
literária. Era um completo desconhecido que foi capaz de amadurecer em
silêncio, discretamente. E estreou já demonstrando ser um dos nossos melhores
contistas.
Um crítico criterioso como Wilson Martins chegou a duvidar se ele seria
capaz de produzir um romance à altura dos seus contos. Disse ele, em 1946,
após a leitura de Sagarana:
Um escritor que em seu primeiro livro nos apresenta qualidades incomuns
de ficcionista, que foi capaz de criar um estilo próprio de redação e de narrativa
(o que é de importância substancial no conto), dotado de raro poder expressional
e de uma capacidade de transmitir a emoção que atinge os pontos mais altos,
que realiza uma verdadeira revolução no conto brasileiro sem adotar nenhum
dos truques literários que estão à base da maior parte de tais revoluções –
poucos nomes conheço na literatura brasileira do passado e do presente que
reúnam tal conjunto de qualidades literárias como as que distinguem o Sr. J.
Guimarães Rosa. (...)
Nada sei do Sr. Guimarães Rosa: nem a sua idade, nem as suas
atividades possíveis fora da literatura, nem a sua formação cultural e educacional
– não possuo nenhum daqueles elementos biográficos que tanto ajudam o crítico
na interpretação de uma obra. (...)
Esse poder de ficcionista, de pôr de pé homens e animais, de nos mostrar
a vida em toda a sua plenitude, o Sr. Guimarães Rosa demonstra possuir com
abundância e facilidade.
É um livro que resultou de muita vivência, muita empatia e muito trabalho,
como Rosa contou mais tarde:
O livro foi escrito – quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100
folhas – em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois,
repousou durante sete anos; e, em 1945 foi “retrabalhado”, em cinco meses,
cinco meses de reflexão e de lucidez).
Não nos custa nada dedicar a ele dez semanas.
4919) O supermercado de Annie Ernaux (6.3.2023)
Annie Ernaux ganhou o Prêmio Nobel de Literatura no ano passado
graças a seus livros semi-autobiográficos, escritos com frieza e precisão. São
uma forma pessoal da “auto ficção” tão praticada hoje em dia, livros em que o
autor escreve sobre si mesmo, seja fantasiando as próprias lembranças, seja
colocando-se como um dos personagens de uma história imaginada.
Mas não se trata apenas da contação de fatos autobiográficos. Os livros
dela prendem-se a episódios específicos mas ao mesmo tempo fazem uma
análise distanciada do ambiente humano onde aquela história está se passando.
É o caso de Regarde les lumières, mon amour, em que ela fala de seu cotidiano
e descreve o ambiente e a “fauna humana” em um grande supermercado, o
Auchan, da região onde ela mora.
Os franceses desenvolveram uma forma muito peculiar de ficção
descritiva. Depois do Nouveau Roman dos anos 1950, com Alain Robbe-Grillet
e outros, surgiu um tipo de descrição hipertrofiada, que toma a frente da
narrativa. É a literatura do olho, a literatura da câmera fotográfica ou
cinematográfica, observando, acompanhando, registrando, descrevendo. Como
um jornalista incumbido de explicar um ambiente aos seus leitores, o autor nos
dá um relato visual que ao mesmo tempo é social e psicológico, porque ele não
se priva de fazer relações de significado e de importância entre os elementos
que descreve. Mas é sempre o descrever que se sobrepõe ao contar uma
história.
Um clássico desse tipo de literatura é o Espèces d’espaces (1974), em
que Georges Perec faz a ambiciosa tentativa de – num certo sentido – descrever
o Universo, como uma série de espaços concêntricos, mostrados de dentro para
fora. Perec começa em “A página”:
Eu escrevo...
Eu escrevo: eu escrevo...
Eu escrevo: “eu escrevo...”
Eu escrevo que escrevo...
etc.
Eu escrevo: eu traço palavras sobre uma página.
(Espèces d’espace, Denoël, 1974, trad. BT)
Desta página onde o livro está começando a se criar, ele passa, nos
capítulos seguintes, para “A cama”, “O quarto”, “O apartamento”, “O edifício”, e
por aí vai, até chegar ao Universo propriamente dito.
Perec é um ótimo contador de histórias, inclusive as mais improváveis e
bizarras, mas esse livro seu é um tour de force de descrição pura. Já o livro de
Annie Ernaux parece-se muito mais a um relato jornalístico, porque ela não
registra apenas as gôndolas, os balcões e os produtos do Auchan: ela observa
as pessoas, faz suposições sobre quem são e o que sentem, examina as
relações sociais, etc.
Pode-se dizer que seu livro é uma reportagem atemporal sobre um
ambiente que ela precisa frequentar com assiduidade. O livro é estruturado como
um diário, cada capítulo tendo como título uma data.
Na “Introdução”, ela explica (trad. BT):
As mulheres e os homens da vida política, os jornalistas, os “experts”,
todos aqueles que nunca puseram os pés num hipermercado não conhecem a
realidade social da França de hoje.
(...) Quem não tem o costume de vir aqui facilmente se desorienta; não
como ocorre num labirinto, ou como em Veneza, mas em virtude da estrutura
geométrica do espaço, onde se justapõem, de cada lado das aléias situadas em
ângulo reto, pequenas lojas fáceis de confundir. É a vertigem da simetria,
reforçada pelo espaço fechado, mesmo estando este aberto à luz do dia por uma
imensa vidraça que substitui o teto.
A prosa de Ernaux é direta, polida. Uma prosa de cientista social
registrando costumes exóticos nas ilhas dos Mares do Sul, ou da narração em
off de documentários da BBC explicando os hábitos de acasalamento dos
pavões. Uma prosa sem sobressaltos.
Caberia aqui, talvez, a observação mordaz, mas com conhecimento de
causa, de Joaquim Nabuco:
Os franceses desconfiam do gênio. Só admiram sinceramente aquilo que
for bem podado, bem nivelado, perfeitamente regular. Têm o culto das médias.
(Pensamentos Soltos, Livro 2, item 159)
Mesmo nos detalhes que pressupõem envolvimento pessoal, ela mantém
a objetividade:
Quinta-feira, 8 de novembro
Um pouco mais adiante, no espaço destinado à livraria, vê-se uma cliente
apenas, uma mulher madura, passeando por entre os balcões. Cada vez que me
aventuro ali, saio triste e desanimada. Não que meus livros estejam ausentes:
há alguns deles lá, na estante dos Livres de Poche, mas, com poucas exceções,
a escolha obedece a um só critério, o de best-seller. Um cartaz com mais de três
metros anuncia Os Mais Vendidos, numerados de 1 a 10 em algarismos
enormes, como os das corridas de cavalos em Longchamp. O que se pode
chamar de literatura ocupa apenas uma pequena porção deste espaço
reservado a livros sobre assuntos práticos, jogos, viagens, religião, etc.
Parece o Brasil!, exclamará algum dos nossos pessimistas de profissão.
Mas é a França, a mesma de Breton e de Voltaire. O ambiente impessoal,
contudo, reserva alguns pequenos consolos aos egos literários:
Quarta-feira, 3 abril.
No caixa, onde a fila é pequena, uma cliente puxando carrinho me deixa
passar à sua frente. Como me recuso, vigorosamente – será que pareço tão
cansada, tão envelhecida? – ela me sorri e diz saber que sou escritora.
Trocamos comentários sobre a loja, sobre as crianças em volta, numerosas para
uma quarta-feira. Ao colocar minhas compras no balcão, penso com certo
desconforto que ela vai ver o que estou comprando. Cada produto daqueles
assume de repente um peso inesperado, que revela meu estilo de vida. Uma
garrafa de champanhe, duas de vinho, leite fresco, queijo emental, pão de forma
sem casca, iogurte Sveltesse, almôndegas para os gatos, doce de gengibre
inglês... É a minha vez de ser observada, de ser transformada em objeto.
Esse olho científico, apolíneo, certamente vai além do literário. O valorde-presença que se atribui a toda a parafernália comercial das gôndolas tem algo
em comum com as pinturas pop de Andy Warhol reproduzindo latas de sopa e
garrafas de Coca-Cola.
É o reconhecimento da importância central dessas coisas em nossa vida,
porque no fundo trabalhamos tanto para poder comprá-las!... Daqui a cem anos,
a duzentos, esta arte será vista certamente com outros olhos, não imagino quais.
Quinta-feira, 11 de julho.
No guichê de “saída sem compras”, o olhar do segurança para as minhas
mãos, os meus bolsos. Como se sair dali sem nenhuma mercadoria fosse uma
anomalia suspeita. Como se eu levasse comigo a culpa de nada ter comprado.
A consciência social nunca está ausente nos franceses, basta raspar a
epiderme de seus pensamentos e um problema político salta, prontinho. Annir
Ernaux registra, no começo do livro:
Quarta-feira, 28 de novembro.
Um incêndio destruiu uma indústria têxtil em Bangladesh, matando 112
pessoas, mulheres em sua maioria, que trabalhavam ali em troca de um salário
de 29,50 euros mensais. O edifício, que não poderia ali ter mais de três andares,
tinha nove. Os trabalhadores ficaram presos no interior, sem poder sair. Essa
indústria, a Tazreen, fabricava camisas polo, T-shirts, etc. para empresas como
o Auchan, Carrefour, Pimkie, Go Sport, Cora, C&A, H&M. Evidentemente, além
das lágrimas de crocodilo, não se pode esperar muito de nós (que lucramos
alegremente com essa mão-de-obra escrava) para mudar esse estado de coisas.
A revolta só poderá vir dos próprios explorados, no outro lado do mundo. Mesmo
os desempregados franceses, vítimas da globalização, ficam satisfeitos de
poderem comprar uma T-shirt por nove euros.
E lá adiante, ela volta ao assunto:
Quarta-feira, 24 de abril.
Um edifício de oito andares desmoronou perto de Dacca, em Bangladesh.
Pelo menos duzentos mortos. Ateliês de confecção de roupas empregavam ali
cerca de 3 mil operários, para suprir o mercado ocidental.
Quarta-feira, 15 de maio.
O balanço total do desmoronamento do Rana Plaza, em Bangladesh,
fechou em 1.127 mortos. Dos escombros, foram resgatadas etiquetas de marcas
como Carrefour, Camaïeu e Auchan.
Esta frequentadora rotineira do Auchan vê-se arremessada para o lado
errado de uma história trágica, mas não deixa de fazer o registro. Ela não pode
deixar de consumir aqueles produtos e, como a maioria de nós, não se sente
diretamente responsável pelos métodos postos em prática pelos fabricantes ou
comerciantes.
4920) A arte está no detalhe (9.3.2023)
(Daniel Day-Lewis, em Lincoln)
Dizem que quando Steven Spielberg filmou a sua cine-biografia de
Abraham Lincoln, o tique-taque de relógio que ouvimos no filme é de um relógio
que de fato pertenceu a Lincoln.
Dizem que quando Luchino Visconti, em Morte em Veneza (1971) mostra
Dirk Bogarde lendo um jornal, trata-se de um exemplar autêntico de um jornal
local, da época em que transcorre o filme (1911).
Esses detalhes têm importância? Um espectador comum jamais vai
perceber a diferença. Mesmo um crítico de cinema ou um historiador precisariam
de alguma informação prévia para reparar em tais detalhes.
Na verdade, esse exibicionismo de perfeição acontece para as pessoas
que fazem o filme, não para as que o assistem. Não faz parte do filme (ou só o
faz muito pouco): faz parte da vida deles, da semana de trabalho deles.
Para conseguir o tal relógio e o tal jornal foi preciso que pessoas da equipe
de produção entrassem em contato com a instituição (museu, biblioteca, etc.)
que tinha a guarda dos objetos, enviasse um pedido formal, negociasse a
abertura de um seguro contra perdas e danos, etc.
O objeto provavelmente foi conduzido, vigiado e levado de volta por
pessoas com essa única tarefa para executar.
Inúmeras vezes alguém perguntou no set: “Quem é esse pessoal de fora?
O que estão fazendo aqui?”, e alguém respondeu: “É o pessoal que está
cuidando do relógio raro”, ou algo assim.
Claro que nem sempre tudo corre bem. No filme de Quentin Tarantino Os
Oito Odiados (2015), o ator Kurt Russell despedaçou um violão de 1870, uma
raridade insubstituível, cedido pelo Martin Museum. Havia réplicas, feitas com
essa finalidade, mas na hora da cena alguém não fez a troca, e o ator pensou
que estava tudo pronto. O violão de 145 anos virou estilhaços.
“Coisas da vida; paciência,” diria Alec Baldwin com estoicismo.
(O Martin Museum)
A primeira crítica que se faz é, inevitavelmente: “Pra que usar um
instrumento tão raro e correr esse risco? Por que não fizeram simplesmente uma
imitação bem feita, ou mais de uma, e devolveram logo o original?”.
E mais uma vez volta a possível explicação: porque quando o elenco e a
equipe sabem que estão lidando com material raro e verdadeiro, aquilo impõe
um pouco de respeito no espírito desses profissionais que precisam lidar
diariamente, na sua profissão, com a encenação, a rua “cenográfica”, o figurino
fake.
Conta-se que um diretor de Hollywood, antes de filmar a cena da atriz
principal descendo uma escadaria para um baile, exigiu um colar de diamantes
verdadeiros, coisa para mais de 100 mil dólares. O assistente propôs uma
imitação de 200 dólares. O diretor disse: “Uma mulher tem outra postura quado
ela sabe que está trazendo cem mil dólares ao pescoço.”
( John Wayne, em Red River)
Não é muito diferente da lenda que se conta sobre John Wayne. Quando
ele filmou Rio Vermelho, uma das suas melhores atuações da vida inteira, o
diretor Howard Hawks mandou confeccionar presentes para pessoas especiais
da equipe: cinturões com fivela de prata e as iniciais do dono gravadas. Hawks
e Wayne trocaram, depois, os respectivos cinturões, e Wayne usou o cinto com
as iniciais de Hawks em vários clássicos que filmou nos anos seguintes, como
Eldorado, Hatari, O Homem que Matou o Facínora e Rio Bravo. Como um talismã
de qualidade.
Não é ao público que esses detalhes se destinam, é à equipe. É para a
fantasia íntima de quem está filmando, e não é só das estrelas. É também de
gente que chega no set às 4 da manhã para começar a preparar o equipamento
dos que chegarão às 6.
Trabalho
profissional
em
equipe
exige
disposição,
seriedade,
profissionalismo, todo esse vocabulário motivatório que os coaches usam à
mancheia. Mas exige também dois dedos de fantasia, três dedos de simbolismo
e quatro de fetiche, para que todos acreditem que estão criando juntos uma coisa
de verdade, uma coisa importante, e que essa coisa faz parte da vida deles, de
segunda a sexta-feira.
Se contarem a algum desses profissionais o detalhe do relógio, do jornal
ou do colar, ele vai assentir, e dizer (lá com suas palavras) que sente orgulho de
estar participando de uma coisa bem feita. Ele sabe que o público não vai saber
disso, e de certa forma esse detalhe torna ainda mais valiosa a presença desse
objeto. Ele sabe que a equipe teve em mãos algo precioso.
Porque esta é uma condição peculiar dos artistas, e quando digo artistas
me refiro a todo mundo que trabalha na criação de uma obra de arte: eletricistas,
marceneiros, maquiadoras, cantoras, roteiristas, assistentes, cenógrafas,
diretores de fotografia... “Um filme”, “uma peça de teatro”, “um balé”, tudo isto
tem dentro de si duas coisas. Uma, é o produto que o público vê. Outra, é a
aventura de fazê-lo, e isso o público não fica sabendo.
A criação do mercado de filmes em DVD, com sua abundância de “extras”
e “bônus”, gerou alguns sub-produtos interessantes.
O “Making Of” (com um F só, revisor) dá ao público uma vaga idéia do
trabalho insano que é a realização de um filme, a ralação diária de centenas de
pessoas para colocar na tela uma história que foi imaginada por meia dúzia.
Outro bônus da era DVD são as “versões comentadas” do filme. Alguém,
geralmente o diretor, vai assistindo o filme em tempo real e fazendo comentários
sobre cada coisa que aparece. Explica detalhes técnicos, compara uma cena
com outra, relata episódios pitorescos ou assustadores, chama a atenção para
um objeto... Num mundo ideal, todo filme teria uma versão assim. Os bons filmes
ganhariam em riqueza psicológica, em verossimilhança, teriam quem sabe
algumas surpresas para o público. Até os maus filmes ficariam mais
interessantes.
4921) Pensar numa língua estrangeira (12.3.2023)
Os professores dos cursos de idiomas costumam nos dizer que falar numa
língua estrangeira não quer dizer que a gente já a “aprendeu”. Isso só acontece
(dizem) quando a gente está pensando nessa língua, e sem ser provocado.
Ou seja – quando a pessoa espontaneamente constrói uma frase em
inglês ou espanhol, mesmo estando sozinha em casa. Porque se está no país
estrangeiro, é claro que o “aplicativo idiomático mental” fica rodando 24 horas
por dia.
Ou então quando sonha na outra língua, dizem outras pessoas. Este é
mais um sinal de aplicativo rodando. Você sonha que está na Inglaterra falando
o maior inglês, ou em Buenos Aires gastando o espanhol com um transeunte
qualquer.
Ou, e isso é mais sutil ainda, você sonha que está sozinho numa casa, aí
começa a procurar o relógio perguntando a si mesmo “what time is it?”.
Isto tem interesse científico porque parece que o aprendizado de línguas
estrangeiras se espalha por partes diferentes do cérebro.
A medicina tem casos clássicos. Um oficial inglês, na I Guerra Mundial,
foi atingido por uma explosão e perdeu parte do cérebro. Recuperou a
consciência, mas parecia ter perdido a capacidade de comunicar-se
verbalmente. Um dia, médicos falaram em francês diante dele... e ele deu um
pulo! E começou a se comunicar em francês, fluentemente. E explicou que o
inglês (sua língua natal) era agora incompreensível, mas seu francês estava
“normal, normal, normal”.
Isso me lembra Joaquim Nabuco, um dos nossos grandes intelectuais do
Império e da Primeira República. Ele reconhece, com candura e nonchalance,
que sua educação cosmopolita o deixou muito mais à vontade no idioma de
Renan do que no de Machado:
[E] dava-se um fato singular,resultado desses anos de leituras francesas:
- eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o inglês e
desaprendera o alemão de Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira mágoa
do meu mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado, coagido
pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em francês. (...) [C]om
efeito, não revelo nenhum segredo, dizendo que insensivelmente a minha frase
é uma tradução livre, e que nada seria mais fácil do que vertê-la outra vez para
o francês do qual ela procede.
(Minha Formação, cap. VII)
Jorge Luís Borges é outro de formação multi-idiomática. Descendente de
ingleses (avó paterna inglesa), acostumou-se a ler inglês desde cedo.
Em casa, tanto o inglês como o espanhol eram comumente usados. (...)
Todos os livros precedentes [Mark Twain, H. G. Wells, R. L. Stevenson, Lewis
Carroll, Charles Dickens, etc.] eu os li em inglês. Quando mais tarde li o Don
Quixote no original, soou-me como uma tradução mal feita.
(“Perfis”, Ed. Globo, trad. Maria da Glória Bordini)
Parece esnobismo, e de certo modo talvez seja – exibicionismo de gente
com acesso a bens culturais. Em todo caso... existem populações pobres e multiidiomáticas em muitos lugares, lugares cheios de mistura transnacional, como
cais do porto, zona de guerra, etc. Garotos que vivem como engraxates ou
meninos-de-recados, e são capazes de conversar em 3 ou 4 línguas antes dos
dez anos.
Todas essas circunstâncias nos ajudam a desenvolver reações verbais
instintivas em diferentes idiomas. Uma pessoa martela o dedão e solta uma
praga numa língua que não fala há anos; é instintivo, corresponde a um comando
mental específico, que não passa pela alfândega da racionalidade e da intenção.
O sonho é a mesma coisa. Borges diz, no mesmo livro, referindo-se aos
tempos em que ele e sua irmã Norah, adolescentes, estudavam em francês,
morando com os pais em Genebra:
Tornei-me um bom latinista, ao mesmo tempo que fazia em inglês a maior
parte de minhas leituras particulares. Em casa falávamos o espanhol, mas logo
o francês de minha irmã ficou tão bom que ela até sonhava nessa língua.
Algo parecido deve acontecer com crianças e jovens que falam línguas
diferentes em casa e na escola. Fernando Pessoa estudou em Durban, e seus
primeiros poemas publicados não foram em português, foram em inglês. É
legítimo supor que muitos impulsos poéticos seus surgiam primeiramente em
inglês e talvez fossem depois adaptados para a língua onde seria mais fácil
divulgá-los.
Um caso notório de bilinguismo literário é o do polonês Joseph Conrad,
que escreveu toda sua obra de ficção em inglês. Conrad era de uma família
aristocrática da Polônia, estudou francês e outras línguas, mas consta que só se
tornou fluente em inglês após os doze anos. Sempre falou o inglês com forte
sotaque e um certo artificialismo, embora de maneira escrupulosamente correta.
Livros como Lord Jim, O Coração das Trevas e outros mostram um
domínio admirável de uma língua que não era a sua; e na qual ele certamente
aprendeu a sonhar.
Na nota introdutória a seu livro de memórias A Personal Record, ele
comenta (trad. BT):
O fato é que a minha aptidão para escrever em inglês é tão natural quanto
qualquer outra com que eu tenha nascido. Tenho a sensação estranha e
esmagadora de que ela foi sempre uma parte integrante de minha pessoa. O
inglês, para mim, nunca foi uma questão de escolha ou de adoção. A mera idéia
de escolha nunca me passou pela cabeça. (...) Foi uma ação muito íntima e por
isto mesmo muito misteriosa para explicar. Seria tão difícil quanto explicar um
amor à primeira vista. (...) Se eu não tivesse escrito em inglês, não teria escrito
absolutamente nada.
Fico imaginando se na Polônia, um país tantas vezes invadido, retalhado,
repartido, despojado de sua identidade histórica e geográfica – se num país
assim os seus nacionalistas mais ferrenhos veem a opção anglófona de Conrad
como um sinal de entreguismo, como uma rendição humilhante a um poder
colonial mais forte (neste caso, no campo da língua e da cultura).
4922) O barco de Teseu (15.3.2023)
O dilema filosófico do “barco de Teseu” serve de ilustração, e de ponto de
partida, para uma boa discussão sobre o lado material e o lado imaterial de um
ser, uma pessoa, um objeto.
A lenda explica que o barco que serviu ao herói Teseu em sua expedição
para matar o Minotauro, no Labirinto de Creta, foi preservado por muitos séculos,
e de vez em quando era levado em peregrinação de uma cidade para outra.
Acontece que o navio era de madeira; algumas partes se quebravam,
outras sofriam com o cupim, e aos poucos cada parte do navio foi sendo
substituída. A questão é: depois que trocaram todas as tábuas do casco e do
convés, todos os mastros, todos os bancos, todas as velas... aquele ainda era o
barco de Teseu?
O escritor Douglas Adams, criador da série de romances O Mochileiro das
Galáxias, passou por uma experiência curiosa no Japão, que ele mesmo
descreve:
Lembro que certa vez, no Japão, fui visitar o Templo do Pavilhão Dourado,
em Kyoto, e fiquei um tanto surpreso com o bom estado de conservação do
tempo, já que ele foi construído no século 14. O guia me explicou que ele não
estava tão bem conservado assim, e que na verdade tinha se incendiado duas
vezes só neste século.
– Então, este não é o templo original? – perguntei.
– Claro que é – disse ele, surpreso com a minha pergunta.
– Mas ele foi todo queimado no incêndio?
– Sim.
– Duas vezes?
– Várias vezes.
– E reconstruido?
– Mas, claro. É um edifício importante, de grande valor histórico.
– Usando materais completamente novos.
– Claro que sim. O material antigo queimou no incêndio.
– Nesse caso, como pode ser o mesmo edifício?
– É sempre o mesmo edifício.
Tive que admitir, comigo mesmo, que era um ponto de vista perfeitamente
racional, apenas partia de uma premissa diferente. A idéia do edifício, sua
intenção, seu design, tudo isto é imutável e constitui a essência do edifício. O
que sobrevive é a intenção dos que o construíram pela primeira vez. A madeira
que foi usada para isto se deteriora, e precisa ser substituída. Dar importância
excessiva ao material original, que é apenas uma lembrança sentimental do
passado, desvia a nossa visão do edifício propriamente dito, que continua
existindo.
(“Last Chance to See”, trad. BT)
Um navio e um templo são objetos físicos tão imponentes que tendemos
a dar um valor excessivo ao que eles têm de propriamente material.
Esse tema foi trazido novamente à discussão poucos anos atrás, quando
a Catedral de Notre Dame sofreu um incêndio e ficou parcialmente destruída.
Houve uma lamentação generalizada pela destruição de certos aspectos da
catedral, mas na época transcrevi esta citação de Sara L. Uckelman, estudiosa
da Idade Média (Durham Centre for Ancient and Medieval Philosophy),
comentando no Facebook:
Eu sei como é a vida das catedrais. Elas não são monumentos estáticos
ao passado. Elas são construídas, depois são incendiadas, são reconstruídas,
são ampliadas, são vítimas de pilhagem, são erguidas novamente, desabam
porque a construção não foi bem feita, e são erguidas mais uma vez, recebem
novas ampliações, são remodeladas, são alvo de bombardeios, são construídas
novamente. É a presença constante, e não a estrutura original, que tem
verdadeira importância
Acho que detalhe crucial nesse contexto é o conceito de “presença
constante”: a continuidade através do tempo tem tanta importância quanto a
presença no espaço, e talvez mais. No caso de Notre Dame, alguns vitrais eram
preciosos porque tinham duzentos anos; mas eles próprios já estavam ali
substituindo vitrais ainda mais antigos, que foram destruídos dois séculos atrás
por algum outro acidente. E la nave va.
É diferente o caso da destruição, por exemplo, da Biblioteca de Alexandria
ou do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Porque em casos assim não se trata
da destruição de um objeto que pode ser substituído, mas de milhares ou milhões
de objetos únicos (livros, artefatos, manuscritos, etc.) – e quem vai produzir
substitutos, ou seja, continuidade temporal, para tudo isto?
No caso de um livro, é preciso distinguir a obra literária e o objeto-livro.
O livro de Victor Hugo O Corcunda de Notre Dame, por exemplo, tem incontáveis
edições e traduções mundo afora. Mesmo se pensarmos apenas na língua
original, o francês, não importa quantos exemplares sejam destruídos, basta que
se preserve pelo menos um para que a “presença constante” do livro tenha
continuidade.
É a premissa do clássico Fahrenheit 451 (livro de Ray Bradbury, filme de
François Truffaut), em que os livros são preservados oralmente, na memória de
pessoas capazes de recitá-los do começo ao fim.
Outra é a situação do manuscrito original de Victor Hugo, as folhas onde
ele escreveu, com sua mão e sua caneta, a história original. Este não pode ser
substituído – ganha um valor histórico de objeto único, valor que não se reduz
se ele for xerografado, digitalizado e reproduzido. É a materialidade daquelas
folhas, que foram tocadas e manuseadas pelo artista, que estamos
reverenciando quando criamos bibliotecas destinadas à preservação de
manuscrios. A obra literária está viva como nunca, reproduzindo-se lá fora – mas
o objeto precioso, reverenciado pela nossa cultura enquanto existe, pertence a
outra ordem de valores.
(manuscrito de Victor Hugo)
4923) Começos de livros (18.3.2023)
Qualquer enumeração de “grandes começos literários” acaba sempre
citando os habituais suspeitos: Fahrenheit 451, Cem Anos de Solidão, Anna
Karenina, Moby Dick, A Metamorfose, The Go-Between, Neuromancer, Grande
Sertão: Veredas... São os melhores começos da literatura universal? Não, não
são, são apenas começos excelentes e que nossa cultura decidiu erigir como
exemplos obrigatórios.
São o troco-de-algibeira de professores, estudantes, jornalistas,
blogueiros, críticos literários. São citados, referenciados, imitados, plagiados,
parodiados, pastichados por todo pretendente a escritor que deseja mostrar, logo
de cara, que já leu “os clássicos modernos”.
Um bom começo não tem necessariamente que estar atrelado a um
clássico da literatura. Às vezes, nem sequer a um livro muito bom. É frequente
um livro começar bem, e depois desandar. E às vezes o autor, que tem lá seus
talentos e habilidades, dedicou ao primeiro parágrafo um esforço e uma lucidez
que não teve paciência de aplicar no livro inteiro. Acontece.
Vou lembrar aqui alguns começos (de romances e de contos) que acho
eficientes. Não, não são “Os Melhores De Todos Os Tempos”. São apenas
exemplos de começos bem escritos, coisa que nem todos nós conseguimos
produzir. (Os exemplos estrangeiros vão traduzidos por mim.)
O particular e o universal
Em termos de ficção científica, por exemplo gosto muito desse primeiro
parágrafo de Robert Charles Wilson, em Spin (2005). É o começo do primeiro
capítulo pra-valer da história (o livro abre com um episódio que se refere a outro
momento do tempo.
Eu tinha doze anos, e os gêmeos treze, na noite em que as estrelas
desapareceram do céu.
“Num cápsula” temos os três personagens principais da narrativa e o
grande problema cósmico envolvido (a Terra fica misteriosamente isolada do
Universo). E ilustra a grande qualidade de Wilson: narrar eventos cataclísmicos
de grandes proporções e colocar na frente os dramas pessoais dos
personagens, que poucos na FC exploram tão bem quanto ele. (O livro é a
história de um rapaz pobre que tem um casal de amigos ricos, irmãos gêmeos,
e se apaixona pela garota.)
O protagonista (modo indireto)
Mostrar o protagonista em poucas linhas é uma maneira forte de começar.
Eu não esqueço as linhas iniciais com que Robert Heinlein em The Green Hills
of Earth (1947) quando ele criou o maior poeta da FC, o bardo cego Rhysling:
Esta é a história de Rhysling, o Cantador Cego do Espaço; mas não é a
versão oficial. Vocês cantaram os versos dele na escola:
Eu rezo para aterrissar mais uma vez
no planeta onde nasci:
pousar de novo meus olhos nas nuvens brancas
e nas verdes e suaves colinas da Terra.
Ou talvez os tenham cantado em francês, ou em alemão. Talvez até em
esperanto, enquanto a bandeira de arco-íris da Terra tremulava sobre sua
cabeça.
Rhysling foi uma espécie de Cego Aderaldo ou Patativa do Assaré do
futuro, viajando de planeta em planeta e compondo versos; e em poucas linhas
Heinlein mostra sua importância nessa Terra, inclusive com o detalhe do uso do
Esperanto e da “rainbow banner”.
O protagonista (modo direto)
Outra maneira de abrir o conto mostrando sua figura principal é entrar “de
cara”, com uma descrição inequívoca, precisa, memorável. Poucos exemplos
serão tão vigorosos quanto o início do conto “A caolha” de Julia Lopes de
Almeida (em Ânsia Eterna, 1903):
A caolha era uma mulher magra, alta, macilenta, peito fundo, busto
arqueado, braços compridos, delgados, largos nos cotovelos, grossos nos
pulsos; mãos grandes, ossudas, estragadas pelo reumatismo e pelo trabalho;
unhas grossas, chatas e cinzentas, cabelo crespo, de uma cor indecisa entre o
branco sujo e o louro grisalho, desse cabelo cujo contato parece dever ser
áspero e espinhento; boca descaída, numa expressão de desprezo, pescoço
longo, engelhado, como o pescoço dos urubus; dentes falhos e cariados. O seu
aspecto infundia terror às crianças e repulsão aos adultos; não tanto pela sua
altura e extraordinária magreza, mas porque a desgraçada tinha um defeito
horrível: haviam-lhe extraído o olho esquerdo; a pálpebra descera mirrada,
deixando, contudo, junto ao lacrimal, uma fístula continuamente porejante.
É um retrato brutal, que lembra aqueles desenhos em preto-e-branco,
filigranados a carvão ou a bico-de-pena, como que na intenção de nada deixar
de fora, nenhuma verruga, nenhuma ruga, nenhum poro.
A estranheza - I
Há muitas maneiras de começar um livro produzindo uma quebra de
realidade, puxando o leitor, logo na primeira frase, para um mundo estranho.
Uma das melhores sacadas, a meu ver, é o começo de George Orwell para 1984:
Era um dia frio e ensolarado de abril, e os relógios batiam treze horas.
Um antigo ditado inglês refere-se à “décima-terceira badalada” de um
relógio como uma indicação de que o relógio está com defeito, ou de que alguma
coisa está fora dos eixos. No caso de Orwell, a crítica costuma apontar o fato de
que são todos os relógios da cidade que batem assim ao mesmo tempo. Em
tradução, isto se perde um pouco, porque “treze horas” é uma expressão que
passa despercebida aqui no Brasil; e em geral as 13:00 são assinalados com
uma batida única.
A estranheza – II
Outro exemplo de estranheza, neste caso estranheza sintática, é o
começo de Le Dimanche de la Vie (1952) de Raymond Queneau, uma história
corriqueira de amor onde Queneau infiltra, subversivamente, as críticas que fazia
ao seu idioma:
Ele não duvidava de que todas as vezes que passava diante da sua loja,
ela o observava, a comerciante, o soldado Brû. (trad. BT)
Tem um solavanco aí na ordem natural das palavras, mas um leitor que
não esteja mal-humorado aceita e entende. Queneau havia publicado um artigo
intitulado “Connaissez-vous le chinook?” (em Bâtons, Chiffres et Lettres, 1950)
onde comparava o francês coloquial, da rua, com o chinook (língua do oeste da
América do Norte). Dizia ele que os franceses estavam organizando a frase do
mesmo jeito que os falantes do chinook quando diziam: “Ela ainda não viajou,
tua prima, à África”, ao invés do francês formal, que diria: “Tua prima ainda não
viajou à África”.
Queneau escreveu mais de vinte livros, mas esta é a sua frase inicial mais
citada, depois (é claro) da palavra-inventada com que ele abre Zazie no Metrô:
“Doukipudonktan?”.
O choque
Produzir um choque nas primeiras linhas é sempre um “gancho” eficaz
para agarrar a atenção do leitor, principalmente se o choque, ao invés de se
esvair por si só, desencadeia um mistério, uma necessidade de continuar lendo
para saber que diabo significa aquilo.
O elusivo e cruel Jonathan Carroll começa assim seu romance A Child
Across The Sky (1989):
Uma hora antes de se suicidar com um tiro, meu melhor amigo, Philip
Strayhorn, me telefonou para conversar a respeito de polegares.
– Já percebeu que quando você lava as mãos você na verdade não lava
os seus polegares?
Essa mistura do macabro e do cotidiano perpassa o livro inteiro; aliás, a
obra inteira de Carroll.
A presença ominosa
Iniciar uma narrativa anunciando a existência de um fenômeno fora do
comum e descrevendo-o aos poucos, de maneira indireta, com alusões, como
que preparando o terreno. É um recurso habitual em histórias de terror ou
narrativas fantásticas em geral. É o abrir gradual de uma cortina, revelando
pouco a pouco uma realidade estranha. É importante para o autor fazer vibrar o
diapasão do livro logo no primeiro parágrafo.
Não preciso exemplificar aqui as histórias de Shirley Jackson, H. P.
Lovecraft, Conan Doyle ou Edgar Allan Poe que utilizam essa forma insidiosa de
introduzir o insólito. Mas ainda pretendo imitar o primeiro parágrafo de A Náusea
(1938) de Jean-Paul Sartre (o início do texto propriamente dito; há um prólogo):
Segunda-feira, 29 de janeiro de 1932. Alguma coisa aconteceu comigo,
não posso mais duvidar. Veio como uma doença vem; não como uma certeza
banal, não como uma coisa evidente. Veio ardilosamente, pouco a pouco;
comecei a me sentir meio estranho, meio inquieto, e isto é tudo. Uma vez que
aquilo se instalou, não se afastou mais, ficou ali sem fazer bulha, e assim eu
pude até me convencer de que não havia nada de errado comigo, que tinha sido
um falso alarme. E agora, aquilo está desabrochando.
É apenas o começo. E quantos começos, de tantas coisas em nossa vida,
não acontecem exatamente assim?
4924) "Os Falsários" (21.3.2023)
Este ótimo filme alemão-austríaco (está no streaming do Belas Artes À La
Carte) é mais um filme sobre a dura sobrevivência nos campos de concentração,
mas desta vez com um ingrediente novo. Ganhou um Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro, em 2008.
Os Falsários (“Die Fälscher”, 2007), de Stefan Ruzowitzky, conta a história
(verídica) da Operação Bernhard, baseada nas memórias de Adolf Burger, um
dos participantes. Com as inevitáveis dramatizações e simplificações, por certo.
Aqui:
https://www.belasartesalacarte.com.br/browse
Parece que a certa altura da II Guerra, os nazistas perceberam que entre
os judeus presos nos variados campos de concentração encontravam-se
desenhistas, tipógrafos, gravadores, técnicos e especialistas em tintas e
papéis... Além de falsificadores de dinheiro.
Surgiu então a idéia de usar esses técnicos (quase todos judeus) para
falsificar moeda estrangeira (libras inglesas, dólares, etc.) e jogar esse dinheiro
no mercado internacional. Com isso, os alemães teriam um lucro duplicado:
pagariam as próprias despesas de guerra, que eram colossais, e por outro lado
inflacionariam o mercado internacional com dinheiro falsos dos Aliados, gerando
uma crise financeira para os inimigos.
Adolf Burger é um dos principais personagens do filme, interpretado por
August Diehl (de O Jovem Karl Marx). Mas o protagonista, um “mix” de alguns
personagens reais, é Solomon Sorowitz, um exímio falsário que antes da guerra
vivia dos pequenos golpes habituais da profissão, mas que depois de prisioneiro
é encarregado pelos nazistas de supervisionar a operação.
A aliança com os nazistas leva esses prisioneiros para um campo mais
“light”, onde têm direito a refeições melhores, algum tratamento médico, camas
com lençóis e travesseiros limpos, etc. Para quem está naquela situação, é uma
chance de sobrevivência. Ao mesmo tempo, provoca nos presos uma crise ética.
É certo colaborar com os inimigos? Ajudar as finanças de Hitler? Ficar ali no
bem-bom, trabalhando para os alemães, enquanto no campo ao lado outros
presos são torturados, espancados, mortos a tiros por passatempo?
Os nazistas colocam uma opção muito clara. Se vocês fizerem, vão ter
direito a banho, sopa, cama limpa, sobreviver. Se não fizerem, vão ser levados
para o pátio, forçados a se ajoelhar, e abatidos com um tiro na têmpora. (Vemos
várias cenas assim.)
Uma das questões mais delicadas das ditaduras e das invasões é a dos
chamados “colaboracionistas”, as pessoas que em vez de pegar em armas
contra o invasor ou o governo criminoso decide apenas evitá-lo, desviar-se,
sobreviver, mesmo ao preço de ajudá-lo aqui e ali e, como regra geral, não bater
de frente com ele. Em situações dessa natureza, existem os que dão murro em
ponta de faca, e os que tentam apenas desviar-se da faca.
As duas atitudes geram um dos conflitos principais em Os Falsários, entre
o esquerdista Burger (autor do livro original), que grita: “Não podemos trabalhar
pela continuidade do nazismo!”, e o falsário Sorowitz, que diz: “Rapaz, primeiro
vamos tratar de sobreviver, a gente não pode ganhar a guerra daqui de dentro
deste campo.”
(Karl Markovics (Sorowitz) e August Diehl (Burger)
Um importante ponto de inflexão no filme é no seu terço final, quando a
maré do conflito bélico começa a virar. Até então, a guerra na Europa acontece
à distância; volta e meia os prisioneiros do campo ouvem algum comentário, ou
espreitam à distância os nazistas amontoados em torno de um rádio, fazendo
comentários arrogantes e, depois, preocupados.
Solomon Sorowitz começa a perceber essa virada quando o oficial
Herzog, o comandante da operação falsificadora, passa a tratá-lo com mais
jovialidade, num tom amistoso, e chega a levá-lo para almoçar em sua casa e
conhecer sua família – uma cena banal, mas, no contexto, absurdamente cruel.
A certa altura, na reta final, o oficial começa a soltar frases tipo: “Olha, eu
nem acredito muito nessa ideologia...” – “Sabia que eu já fui comunista, na
juventude?...” - “Você sabe que eu estou aqui apenas fazendo o meu trabalho...”
e isso nos mostra indiretamente a derrocada do regime.
Todo regime de força tem um núcleo de fanáticos ideológicos e uma
massa-de-manobra heterogênea de desorientados, oportunistas, conformistas,
aproveitadores, indiferentes. A ponta da lança são os ideológicos, que produzem
as rupturas sociais e instituem o regime do terror e da pressão. Quem dá
sustentação e continuidade ao regime são pessoas em busca de segurança, de
chances de ascensão social e de enriquecimento; e pessoas que seguem a
boiada por medo de represálias ou de discriminação. Fariam o mesmo por
qualquer ideologia.
Esse é o alicerce de qualquer movimento político avassalador e brutal. A
ideologia pesa, mas pesa menos do que a simples ambição do poder. E esta
pesa (em termos quantitativos, na população) menos do que a ansiedade pela
segurança, pelo emprego garantido, pelo sustento da família. Para ter isto,
milhões de indivíduos farão vista grossa a campos de extermínio, a bombas
atômicas, ao trabalho escravo, à tortura de pessoas desconhecidas.
O nazismo está sendo comido pelas beiradas; o oficial Herzog se
acovarda, sorri, dá tapinhas nos ombros dos prisioneiros, lembra a eles o quanto
os tratou bem... Tudo isto, por mais que seja patético e desprezível, é humano.
Não porque seja um modelo para a humanidade, mas porque, para quem
observa de fora, é exatamente assim que os humanos muitas vezes se
comportam.
4925) Sete autores obscuros (24.3.2023)
1
Tomás Carmelo Fiúza (1915-1998), contabilista, paraense de Marabá,
casado, três filhos. Dedicou sua vida à criação do volumoso poema épico Tábua
Esmeraldina, em doze cantos e cerca de 60 mil versos, contando a criação da
floresta amazônica desde os dias do Jardim do Éden até a época atual. O poema
usa a Tábua de Logaritmos como guia numérico, num sistema inventado por
Tomás na adolescência, e aperfeiçoado durante a vida inteira. Por meio dele,
era-lhe possível governar o número (variável) de estrofes em cada Canto, o
número de versos em cada estrofe, e o número de sílabas em cada verso. Após
sua morte, os filhos se cotizaram para financiar uma edição eletrônica da obra,
cuja publicação em papel foi considerada “inviável” pelas trinta e sete editoras a
quem foi submetido o manuscrito.
2
Lauro B. Kronka, 41 anos, funcionário público, ao dirigir consertos no
sistema subterrâneo de esgotos de Cracóvia, descobriu uma galeria que dava
acesso ao terreno exatamente por baixo do edifício para onde, após a II Guerra
Mundial, tinha sido transferido o Banco Estadual, sem levar em conta a rede de
galerias já existente naquele subsolo há mais de cem anos. Este fato o levou a
escrever e publicar o romance policial O Assalto da Véspera de Natal, onde
descrevia com riqueza de detalhes a ação de um grupo de ladrões que esvaziava
o cofre-forte do Banco por aquela via subterrânea. Mal a obra chegou às livrarias,
o Banco comprou e incinerou toda a tiragem, reforçou a segurança do cofre, e
deu a Lauro B. Kronka um “cala-a-boca” sob a forma de um salário vitalício para
que não revelasse a ninguém os aspectos mais peculiares do trajeto que havia
descoberto.
3
Anália Cedro da Costa, bibliotecária, solteira, faleceu aos 68 anos,
deixando inédito o livro de memórias que, por ocasião de sua festa dos cinquenta
anos, anunciou à família estar escrevendo. De fato, quando os herdeiros tiveram
acesso aos seus arquivos pessoais, constataram que durante todo esse tempo
ela se limitara a produzir dezenas de versões, muito diferentes entre si, do
primeiro (e finalmente único) capítulo, intitulado “Meu Nascimento”, que ela
reescreveu obsessivamente, em todos os estilos, todos os pontos de vista, todas
as convenções narrativas ao seu alcance, o que resultou num volume com mais
de 500 páginas de versões desse capítulo, as quais só tinham em comum entre
si a frase inicial: “Nasci numa manhã chuvosa de segunda-feira, e manhã
chuvosa de segunda-feira tem sido a minha vida desde então.”
4
Roberto Espiridião de Lima, mineiro de Juiz de Fora, cresceu
colecionando gibis e livrinhos de bolso, até se mudar para o Rio de Janeiro, casar
aos 19 anos com a namoradinha grávida, instalar-se vitaliciamente num
conjugado na Rua Benjamin Constant, e entrar num parafuso sem fim de
trabalhos mal remunerados mas que ele executava com fervor, bendizendo a
sorte. Arranjou numerosas tarefas de revisão e “tradução livre” em várias
editoras pequenas, onde logo passou a publicar suas próprias aventuras de
faroeste, sob pseudônimo; livrinhos de 80-100 páginas que ele começava a
escrever numa terça-feira e entregava na segunda-feira seguinte. Ao morrer de
enfarte aos 55 anos deixou anotações metódicas comprovando que ao longo de
mais de três décadas municiou sem parar editoras como a Monterrey, a
Bruguera, a Cedibra, as Edições de Ouro, a Vecchi e a Rio Gráfica Editora, tendo
publicado ao todo 238 títulos, sob 203 pseudônimos diferentes.
5
Lindalva Martins, alagoana de Penedo, prendas domésticas, nunca se
casou, e morreu aos 103 anos depois de ter sido cuidada pelos pais, pelos
irmãos, e pelos sobrinhos, sucessivamente. Escreveu poemas desde a infância
mas nunca se interessou em publicá-los. Diz a família que nunca houve um dia
em sua vida em que ela não escrevesse vários poemas, curtos ou longos,
geralmente em folhas de caderno espiral que ela depois arrancava e dava de
presente a quem estivesse por perto. Quando completou 100 anos, foi visitada
por jornalistas e equipes de televisão. Afirmou que esquecia os poemas logo
depois de escrevê-los. Perguntada de onde lhe vinha uma inspiração tão
incessante, ela estendeu o braço (estava sentada em sua caminha de solteira,
no quartinho-dos-fundos onde dormia), pegou uma caneca de lata, enfiou o dedo
indicador na asa e fez um movimento ilustrativo, enquanto explicava: “A poesia
não pára, é um riachinho que vive passando, dia e noite, aí quando eu tou com
sede eu pego minha canequinha, e...”
6
Harry Greene Holt, 37 anos, natural de Albany (NY), desde os 11 anos
estudou a fundo a obra de Quentin Tarantino, tendo composto antes dos 18 anos
uma meticulosa tábua cronológica e genealógica relativa a todos os filmes do
diretor. Escreveu centenas de cartas e emails para ele, tendo recebido apenas
uma resposta, em 2002 – uma foto autografada, sem dedicatória. Isto redobrou
suas esperanças e seu otimismo. Em 2016 ele concluiu o seu romance épico,
uma saga policial-criminal em 8 volumes, Los Vegas, cujo objetivo era preencher
ficcionalmente todas as lacunas existentes entre os filmes do diretor, que, numa
atitude incompreensível, sempre se recusou a recebê-lo.
7
Coriolano Bernardes, nascido em 1868, carioca, comerciante, charadista,
estreou na poesia em 1891 com o volume de sonetos Versos Versáteis, que teve
acolhida morna por parte da crítica, e cujo título foi na época considerado uma
imitação dos Versos e Versões (1887) de Raimundo Correia. Três anos depois
veio à luz sua segunda obra, Versos Perversos, que desta vez foi negativamente
comparada aos Versos Diversos (1890) de Antonio Sales. O desgosto e o
ressentimento produziram um longo hiato na carreira do autor, que parou de
publicar, mas não de escrever, tanto que deixou pronta e revisada, ao morrer em
1917, a obra póstuma O Holocausto dos Leopardos Verdes no Castelo Ateu de
Zanzibar.
4926) O Doutor sem ter doutorado (27.3.2023)
Dr. Valdir não era doutor na origem; era só Valdir, cinco ou seis anos mais
velho do que eu, também torcedor do Treze, também apreciador da nobre arte
da cerveja gelada e da moela com farinha. Tinha uma lojinha de ferragens
agrícolas na Rua João Suassuna, não muito longe da Praça Félix Araújo. Era do
sertão, das bandas de Brejo do Cruz. Um daqueles migrantes que nunca
voltaram para a cidade natal. Não que queimassem as pontes por onde
passaram; as pontes o tempo levou, e eles não tinham como construir outras.
Nas noitadas etílico-filosóficas comendo meio-galeto no Bar de Benedito,
Valdir dizia, apertando meu ombro, quando o olho já estava penso:
– BT, essa cidade me acolheu como se já me conhecesse. – Ele gostava
de uma frase altissonante. – E eu caí nos braços dela como se já a amasse.
Ficamos mais amigos ao descobrir que éramos leitores de revistas de
contos policiais como Suspense ou X-9, grandes sucessos da Rio Gráfica Editora
nos anos 1960. Trocávamos exemplares de vez em quando. Eu gostava mais
dos crimes enigmáticos; ele curtia as noveletas de detetives particulares contra
mafiosos e contrabandistas de uísque. E nada nos escapava nas Edições de
Ouro: Shell Scott, Johnny Liddell, Mike Shayne, Erle Stanley Gardner.
Lembro ainda hoje dos olhos dele, arregalados, quando tirei da pasta um
exemplar do Poema Sujo de Ferreira Gullar, recém-lançado, e mostrei os versos
imortais, onde o poeta se refere ao pai, encostado no balcão do armazém onde
trabalhava:
Não seria correto porque
se alguém chegasse lá
por volta das 3 da tarde (hora
de pouco movimento) – ele meio debruçado
no balcão lendo X-9...
– Tás vendo, Valdir? Revista boa todo mundo gosta.
– O pai do poeta lia revista policial! No mundo tem de tudo e mais um
pouco.
– O negócio é ler o que gosta, rapaz, e não ter preconceito.
– Claro. Eu leio, e um cara de vasta cultura como você lê também.
Valdir foi criado em roça, acunhando enxada, fincando estaca de cerca,
pastorando bezerro. Aprendeu a ler meio na marra, com o que tivesse de coisa
escrita por perto. “Eu gostava de ler propaganda de remédio,” disse ele uma vez,
morrendo de rir, “porque era um otimismo da porra, tudo acontecia bem, ali! Eita
mundo belo.”
Veio pra Campina com uns vinte anos, trabalhou de balconista em várias
lojas, até casar com uma filha do dono e acabar herdando a loja. A loja era a
vida dele: a loja, a família (com uns filhos que eu mal conhecia), a farra e as
leituras.
E uma vez ele anunciou, quando o encontrei no São João, numa barraca
do Parque do Povo:
– Passei no vestibular aos 58 anos, e estou fazendo Direito.
– Já era tempo de fazer alguma coisa direito na tua vida.
– Estou achando uma beleza. Descobri que minha vocação não é o
comércio, é a aplicação da justiça de todos para resolver os problemas de cada
um.
Ele gostava do fator altissonante, e iria dar um bom advogado. Era ligado,
não comia gato por lebre, não tinha “vasta cultura” mas tinha a inteligência das
relações humanas, coisa que sempre me faltou. Ainda penso que o livro policial
pesou um pouco nesse seu projeto meio tardio. Ele certamente alimentava uma
vaga fantasia de se ver numa sala de júri fazendo com Vital do Rêgo ou Agnelo
Amorim o que Perry Mason fazia com o promotor Hamilton Burger.
Rimos, farreamos, peguei o trevo rumo a minha vida e ele à dele. Alguns
anos sem nos vermos, mas me chegou aos ouvidos que ele estava formado, e
cheio das atividades. E um dia, em nova passagem por Campina Grande, preciso
ir ao Forum para assinar alguma coisa, resolver alguma pendenga burocrática.
Na saída, ao passar num corredor olho para dentro e vejo uma espécie de antesala com sofás majestosos e quadros a óleo na parede. E três caras
conferenciando em voz baixa, de pé, no centro da sala: Valdir e mais dois.
Cheguei à porta e um rapazote com olhar ansioso de estagiário estendeu
o braço:
– Um momento, eles estão em reunião agora.
– Tudo bem – disse eu. – Quero somente uma palavrinha rápida com Dr.
Valdir.
– Ele já vai atendê-lo – disse o rapaz, caprichando na ênclise.
Deu alguns passos até o grupo, cochichou alguma coisa; quando Valdir
ergueu o rosto e me viu na porta, seus olhos brilharam.
– Dr. Valdir?... – falei, bem alto. – Passei só para lhe dar um boa-tarde.
Não aconteceu o estardalhaço costumeiro. Ele inflou o peito, cerimonioso,
pediu licença aos colegas e caminhou compassadamente na minha direção.
– É uma honra a presença do intelectual Braulio Tavares! Colegas, já
conhecem?
Me abraçou formalmente, mas satisfeitíssimo, me apresentou: Doutor
Fulano, Doutor Sicrano... Cumprimentei todos, trocamos amenidades, ele pediu
licença aos outros, despedimo-nos e saímos para o corredor.
– Obrigado pelo “doutor” – disse. – Lá fora eu dispenso, mas aqui dentro
todo mundo sabe que eu vim do grotão, e meu dever é mostrar a eles que o
grotão sabe o que faz.
– O título confere respeitabilidade, não é?
– Eles querem respeitabilidade; eu quero respeito. E título é como
revólver, se a gente mostrar que tem, talvez nem precise usar.
– Eu não vejo problema – respondi. – Pra mim é como chamar cafetina de
madame.
– Mês passado, sabe quem eu encontrei, na porta da sala do júri, cheia
de gente? Um primo da minha esposa, que eu não via há anos. E ele gritou de
longe: “Diz, cachaceiro!”
– Eu dava voz de prisão no ato – comentei.
– O sal dele tá se pisando. Soube que a mulher dele quer se separar, e
se eu pegar essa causa vou deixar ele sem fogão nem geladeira.
Pegamos o carro dele (era ainda o mesmo carro azul-marinho de anos
atrás, com o escudo do Galo no parabrisa.) e fomos tomar uma. Ele disse a certa
altura:
– Doutor é quem tem doutorado. Não esqueça disso. Mas nesse ninho de
cobras, quem facilitar é engolido. Tá cheio de gente boa, mas tem uns caras aí
que parece que estão com um sacarrolha enganchado no cu, e só sai se alguém
chamar de “doutor”.
4927) Terry Pratchett e a literatura infantil (30.3.2023)
(Terry Pratchett)
Muita gente diz que literatura infantil é uma mina de ouro, talvez por ser
uma espécie de literatura obrigatória, que os professores indicam e os pais têm
a obrigação de comprar (quando podem, é claro).
Por outro lado, é uma literatura que arregala os olhos, porque o nível de
ilustração e de projeto gráfico, aqui no Brasil, é realmente muito alto. Sempre
que levei meus filhos pequenos para a “bibliotequinha” que (felizmente) nossas
livrarias insistem em manter, nunca lamentei a meia hora ou uma hora em que
fiquei sentado ali junto. Não dava para ler livros inteiros, mas eu fazia um
mergulho intensivo na arte da ilustração.
Terry Pratchett não é propriamente um autor infantil, mas sua série de
fantasia “Discworld” vendeu dezenas de milhões de livros no mundo inteiro e
acabou passando às mãos de milhões de crianças, atraídas pelo seu lado
imaginativo, pela fantasia, pelo humor.
Numa entrevista de 2004, ele faz algumas colocações interessantes, e
começa por um fato crucial. Geralmente a gente diz que em livro infantil não pode
ter sexo, não pode ter palavrão, não pode ter violência excessiva, não pode ter
discurso de preconceito...
Tudo isto é uma verdade relativa, claro. Livros para pré-adolescentes
podem e devem abordar o sexo, mais cedo ou mais tarde, porque é algo que vai
entrar na vida dos jovens, queiramos ou não, e provavelmente algo que eles já
conversam na escola ou entre as turminhas de amigos. Os livros não podem
fazer vista grossa. (E também ninguém é obrigado a falar disso em todo livro.)
Violência é outro aspecto, porque se tem uma coisa que criança gosta é
história de suspense, de perigo, de perseguição, de fuga... Difícil fazer tudo isso
sem pelo menos sugestões de violência. Os desenhos animados estão cheios
disso, o cinema, a TV, os joguinhos. O livro é a mesma coisa – sempre com o
desconfiômetro ligado. (Se eu já antipatizo violência desnecessária em livro
adulto, muito mais em livro infantil.)
Mas Terry Pratchett vai mais além dessa vigilância da moral e dos bons
costumes. Ele tenta entender a psicologia do leitor infantil, o modo como o garoto
ou a garota decifram o livro e interpretam o universo complexo que está sendo
mostrado (no caso dele, o universo de Discworld, um mundo meio medieval onde
a mágica funciona.)
Uma primeira coisa é: o leitor jovem tem menos informação sobre o
mundo. Ele sabe menos coisas sobre o mundo do que o autor do livro, não por
ser bobinho, mas por não ter tido tempo de aprender. Pratchett (que morreu em
2015) diz que isso não se dá apenas com crianças. Quando escreve para
adultos, ele tem consciência de que os adultos jovens já nasceram em outro
mundo, um mundo com outras prioridades e outro ranking de importâncias.
Diz ele, numa entrevista à revista Locus (# 520, maio 2004, trad. BT):
Por exemplo, no meu livro Soul Music (1994) há uma piada que envolve
os Blues Brothers, e a esta altura há toda uma geração de leitores jovens que
não fazem a menor idéia de quem foram os Blues Brothers, e não estão nem aí
para eles. Piadas menores desse tipo perdem a atualidade; as piadas mais
profundas são as que perduram. Eu digo: “Não importa em quem você votar, o
maldito governo vai acabar mandando nele.” Isso é atual tanto agora quanto
daqui a dez anos.
Todo tipo de referência excessivamente datada, localizada, tende a
envelhecer com rapidez. Muitas vezes o autor quer pegar carona, meio
sofregamente, nos assuntos do momento. Cinco anos depois o assunto do
momento será outro. Quem vendeu vendeu, quem não vendeu não vende mais
– a não ser que o livro tenha outros méritos.
Diz Pratchett:
Em geral, os editores de livros para crianças se envolvem muito mais,
querem acompanhar o livro desde o começo da escrita, trocar idéias. E o autor
precisa saber o que está fazendo. Uma criança não traz para a leitura a mesma
bagagem trazida por um adulto qualquer, e talvez não seja capaz de “ligar os
pontos” de algo que é narrado. Leitores adultos viveram (em maior ou menor
grau) as mesmas experiências que eu vivi, leram os mesmos jornais, ouviram os
mesmos noticiários ao longo da vida. Mas o mundo gira, e a cultura se modifica.
Quando o autor vai ficando velho, precisa ficar mais atento. O mundo, hoje, está
cheio de adultos que não sabem dizer os nomes dos quatro Beatles; mas não é
por burrice. Quando a gente escreve para pessoas de outra geração, tem que
abrir o olho.
Pratchett era da minha geração (dois anos mais velho do que eu) e ele
deve ter passado em algum momento por aquele instante desacorçoado em que
a gente pensa: “Quanto mais eu envelheço, mais desinformados ficam os
jovens.” É natural, porque há uma substituição contínua de “tempos presentes”,
e os jovens querem se embeber, se ensopar, se encharcar do presente.
Ele relaciona alguns detalhes que considera importantes no “olho de
leitor” infantil.
Crianças são leitores muito apegados à lógica. Tudo que eles querem é a
explicação, e pode ser em uma frase. Mas eles precisam ver a frase, e saber
que você pensou nesse detalhe. Eles fazem perguntas que um adulto não faria
– por exemplo, “E o que aconteceu com tal ou tal personagem secundário?...”
Eles querem saber se no final tudo ficou resolvido. Gostam das coisas certinhas.
Pratchett fala de sua experiência, é claro. Apesar de ter suas obras
traduzidas em mais de 40 países (no Brasil, inclusive), seu feedback mais
imediato é com as crianças da Inglaterra, seu país natal, e não por acaso um
país com uma literatura infantil de alto nível há no mínimo um século e meio.
Em todo caso, é bom lembrar que Pratchett fez um dia essa distinção:
“Um europeu diz: Não entendi isto aqui, o que há de errado comigo?,
enquanto um norte-americano diz: Não entendi isto aqui, o que há de errado com
o autor?”.
É como se as crianças fossem européias, e ao crescer se tornassem
norte-americanas.
4928) Dicionário Aldebarã XXIV (3.4.2023)
(ilustração: Moebius)
O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos
colonizadores terrestres.
Seu vocabulário exprime as características da
natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da
cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno
Dicionário Interplanetário de Bolso.
“Ospronk”: sonhos que constam quase totalmente de experiências
corporais: a sensação de estar sentado num lugar banhado de sol, de tocar numa
parede que vibra, de ter os cabelos remexidos por um vento forte... a tal ponto
que é impossível narrar o sonho em palavras, porque mesmos as palavras que
usamos não guardam nenhuma relação com a sensação que pretendem
descrever.
“Corduflans”: certas explicações improvisadas que as pessoas dão ao
serem apanhadas de surpresa numa situação qualquer, sem tempo para
preparar uma versão convincente; e depois é preciso distorcer uma porção de
fatos ou de relatos para que nada daquilo entre em contradição com a explicação
que foi inventada sem muito preparo.
“Amburo”: pequeno fogareiro escavado no chão de terra, nas cabanas do
interior, sempre cheio de cinzas e brasas, para aquecer comida. Em muitos
lugares serve também como disfarce para o local onde estão enterradas jóias,
dinheiro, economias da família, etc. Como o uso de tal disfarce é tradicional e
de conhecimento público, gerações sucessivas de pessoas o descartam, por
inútil, e depois voltam a adotá-lo.
“Smirro”: tarefas úteis executadas coletivamente e sem pressa, como
derrubar uma árvore, remover uma pedra, aterrar um brejo. Cada pessoa que
passa pelo local faz um gesto: o machado fica ao lado da árvore para qualquer
um dar um golpe, a pedra fica ao longo da estrada para qualquer um revirá-la
uma vez, há uma pá perto do brejo. Subentende-se que é proibido uma pessoa
sozinha assumir o trabalho; tem que ser feito por todos.
“Chussamp”: pequenas canções meio narrativas, com letras absurdas e
engraçadas, cantadas sempre numa mesma cadência, e que servem de
marcador de tempo para algumas tarefas domésticas, principalmente na
cozinha. Cantar do princípio ao fim Eu Vi Vocês na Corda-Bamba marca o tempo
ideal de preparação do chá de zuinn, que tem um bom efeito sobre a atenção e
aumenta a nitidez na vista.
“Ankh-ankh”: cavalos ou cães um tanto rebeldes que passam a ser
repassados para sucessivos donos, a fim de serem amansados de acordo com
um pequeno menu de regras básicas que todos tentarão aplicar, até que o animal
é devolvido ao dono original. Por trás desta prática vigora o princípio de que, tal
como um animal, uma pessoa tem que ser educada pela coletividade inteira, e
não apenas pela sua família de origem.
“Albalahn”: pequenas cerimônias íntimas que correspondem a um “préaniversário”, e onde a pessoa acende velas, ergue um brinde, recita preces ou
versos e executa outras manifestações de esperança e respeito, tudo isto com
vistas a alguma coisa que deverá acontecer dali a exatamente um ano, e que
ela, ainda sem saber o que será, comemora e agradece por antecipação.
“Escarts”: assentos feitos de placas de vime, dobráveis, que podem ser
levados às costas (são muito leves) e depois desdobrados. Podem ser usados
em passeios, caminhadas, eventos ao ar livre, etc.; além da praticidade para
quem usa, são muito apreciados pelos artesãos que os fabricam, os quais estão
sempre inventando novos desenhos de encaixe e desdobramento, a ponto de
fazerem um banco para três pessoas caber, depois de dobrado, dentro de uma
mochila.
“Abforn”: o percurso sentimental que uma pessoa se obriga a fazer
quando visita sua cidade natal, e prepara uma lista de alguns lugares para visitas
obrigatórias: a casa de amigos, a escola onde estudou, o prédio onde trabalhou,
etc. É um percurso não obrigatório, mas que a maioria das pessoas procura
cultivar, como uma maneira não apenas de revisitar boas ou más lembranças,
mas de constatar a passagem do tempo e as transformações que produz.
“Calbug-tan”: prece informal cuja primeira parte as pessoas recitam
quando perdem algum objeto (geralmente na própria casa, em meio aos afazeres
domésticos) e querem que lhes seja revelado onde está. A tradição avisa que
daí em diante virão “pistas” aleatórias sobre a localização dele, através de
palavras ouvidas à distância, referências a um aposento ou móvel, etc. Ao ser
encontrado o objeto perdido, a pessoa deve recitar a parte final da prece.
“Lank-umm”: a percepção instintiva (e impossível de explicar) que
algumas pessoas têm com relação à casa em que vivem, e que lhes permite
saber intuitivamente, sem fazer esforço, em que parte da casa ou de seus
arredores está cada morador, em qualquer momento do dia; um talento tão mais
admirável quando se sabe que as famílias aldebaranes, somando seus
moradores, agregados e hóspedes, são sempre muito numerosas.
“Dik-dikken”: brincadeira de salão em que cada pessoa escreve uma frase
de duas ou três linhas, sobre um tema qualquer, com a intenção de não revelar
através dela a própria identidade; esses papeizinhos são dobrados, misturados
e depois lidos de um em um, enquanto as demais pessoas da roda se arriscam
a adivinhar quem escreveu cada trecho.
“Daoulb”: o individuo que se vê numa posição de intermediário entre dois
grupos, ou dois antagonistas, com a obrigação de apaziguar um conflito e
conduzir as duas partes a um acordo comum; em geral, cada um dos lados o vê
com desconfiança, encarando-o como um mero representante dos interesses do
seu adversário.
“Herlegan”: personagem folclórico, reconhecível por suas roupas
coloridas e seu comportamento meio distraído, meio anárquico; qualquer pessoa
que se vista assim e saia à rua será tratada de acordo, mas se por algum motivo
precisar “ficar séria” tem que tirar imediatamente a fantasia ritual, sob pena de
detenção por mau comportamento.
“Eswurten”: artesãos que, como atividade paralela de seus ofícios
(marceneiro, escultor, ferreiro, ourives, etc.) dedicam-se a produzir cópias
perfeitas de objetos fornecidos pelos clientes, seja para substituir um original
danificado, criar uma imitação para desviar a atenção de possíveis ladrões,
presentear alguém, etc. O termo é usado muitas vezes em tom pejorativo, com
a conotação de “falsário, fabricante de mentiras”.
“Panj”: licor de sabor forte e adocicado, que misturado a bebidas
destiladas como o rum produz um forte coquetel alcoólico; muito usado em
ocasiões festivas quando as pessoas se reúnem para beber e cantar a plenos
pulmões, e invariavelmente descambam para uma sessão de improvisação de
versos de duplo sentido, em formas fixas tradicionais, que provocam maior
hilaridade quando recorrem ao absurdo e ao despropósito.
4929) A arte de escrever difícil (6.4.2023)
Um espectro assombra a literatura brasileira desde que ela começou: o
espectro do “falar difícil”. Num país que em 1920 tinha cerca de 70% de
analfabetos, e não possuía nenhuma universidade, a prática da literatura era um
nítido diferencial de classe. (Não que os analfabetos não praticassem suas
formas literárias – a literatura oral, os contos populares, os cantos, os versos, os
romances recitados, a própria literatura de cordel, cujo grande nome, Leandro
Gomes de Barros, morreu em 1918.)
Uma crítica que se faz ainda hoje à ficção de Guimarães Rosa é que sua
linguagem é hermética, rebuscada, incompreensível, pedante... A crítica é
exagerada mas não é gratuita, porque o próprio Rosa afirma sua intenção de
inovar em cada frase, fugir à linguagem comum, banal, desgastada.
São opções de cada um, mas é bom reconhecer que Rosa não estava
sozinho nisso. Há uma nobre tradição de escrever difícil e, nos primeiros anos
do século 20, Coelho Neto é o bode expiatório habitual de quando queremos
condenar essa escrita. Mas basta lembrar dois nomes que ainda hoje são nomes
de peso na formação dos nossos escritores: Euclides da Cunha, na prosa, e
Augusto dos Anjos, na poesia. Ninguém discute a importância dos dois. E
ninguém pode ignorar o que eles têm de rebuscado, de gongórico.
Não são ilhas, são trechos de um imenso continente, e revelam nossa
tendência para a linguagem ornamental, em que o sentido pode até ser profundo,
mas é a sonoridade que retumba e encanta. O brasileiro é fascinado pelo que
está a um passo de fazer sentido. E nós (que escrevemos) nos deleitamos na
proliferação rococó de sinônimos, e nos dedicamos a enfeitar cada parágrafo
como se fosse uma barca de sushi.
Examinando nossa vitrine literária nos anos em volta do movimento
Modernista de 1922, Wilson Martins (História da Inteligência Brasileira, vol. VI)
sai mostrando exemplos variados da prosa que vigorava na época. Uma prosa
(pelo meu olho) claramente influenciada pelas ressonâncias de Os Sertões
(1902) de Euclides da Cunha.
Ali estão os termos científicos jogados descuidadamente como se fossem
moeda habitual da prosa, estão as derivações inesperadas (que J. G. Rosa iria
cultivar de uma maneira bem pessoal), a proliferação de adjetivos... E certos
torneados de frase que são bem de Euclides, e que (penso eu) o esforço de
decifrar e entender resultava no prazer de imitar.
(Hugo de Carvalho Ramos)
Ele cita, por exemplo, trecho de Tropas e Boiadas (1917), de Hugo de
Carvalho Ramos (1895-1921):
Por ali passavam tropas mineiras d’além-Paranaíba – rijos tocadores
palmilhando as alpercatas de couro cru pela extensão ardente e arenosa das
estradas poentas, ladeadas às vezes de barrancos escarpados e esfarinhentos
de pedra-canga, por cujas erosões, vincadas, medrava tenaz o catingueiro
parasitário dos morrotes. Por ali passavam, barulhentos e ralhadores, de
peregrinações distantes, após haver trilhado as rechãs esturradas d’argila
vermelha e sapé bravio dos chapadões, onde apenas, a quebrar a uniformidade
dos horizontes, apareciam de vez em vez, ao longo dos carris profundos
deixados à passagem pela roda ferrada dos pesados carros de bois, a fronteira
do lobo e os coqueiros de macaúba, como tênues, fugaces teias de sombra
espalmadas sobre a crosta recozida do solo. (W. Martins, p. 70)
“Poento”, aliás, é um adjetivo euclidiano que Ariano Suassuna
confessadamente assimilou (ele se refere a isto em seu discurso de posse na
A.B.L.).
(Otávio Brandão)
O alagoano Otávio Brandão (1896-1980), assim escreve em Canais e
Lagoas (1918):
O cinzento selenial dos horizontes, a negrura obsidiânica de certos pauis;
a transparência hidrofânica das neblinas pairando sobre os altos cabeços longe;
o lento lacrimejar das estrelas, triste como a dolorosa marcha fúnebre de Chopin;
o brazido avernal dos estios; a beleza dos estendedouros das campinas; as
ondas dos ventos frios arrepiando a pele da água voluptuosa; as barcaças
maciças, pesadas, movidas pelas zingas; o arredondado zimborial do
firmamento; a grandeza zenital das esperanças da minha Pátria; os beijos
tímidos das lavandeiras pelos velhos campaniles; a bombinela da noite a
descerrar-se para surgir o fulgor do sol levante; todas estas coisas vistas ou
sentidas através dos canais, impressionam e fazem vibrar poderosamente a
minha energia sensorial.
(W, Martins, p. 158)
Esta última frase não está muito longe do estilo da prosa de Augusto dos
Anjos. São linguagens de época que se cristalizam numa aparência de
espontaneidade.
(Carlos Vasconcelos)
Outro exemplo de Wilson Martins vem de Os Deserdados (1921), de
Carlos Vasconcelos (1881-1923):
Sussurram ainda as trovas brejeiras dos simplórios campônios, nos
festins seqüentes ao mourejar diurno, nos roçados esmeraldinos de minha terra;
balam, mansuetos, os lanígeros pelas várzeas; cambalhotam, endiabrados, os
caprinos pelas quebradas sáxeas e gemem as fontes múrmures queixas de
despedida em rumo do mar longínquo, ao grimpar céleres os socalcos de
jusante... O luar dos sertões infiltra uma suave melancolia no psiquismo desses
modernos Anteus, cuja grandeza de labor secular contra os caprichos da terra e
contra as cruezas do éter desafia rivalidades!
(W. Martins, p. 248)
(Jorge de Lima)
Ele cita um artigo onde Tristão de Athayde se queixa da impenetrabilidade
do estilo de Jorge de Lima (1893-1953), mesmo ressalvando-se que o texto
citado, de A Comédia dos Erros (1923), pretende descrever e comentar a
evolução da molécula do carbono:
Não há conjugado mais poderoso, devassando os segredos da vida,
catalogando, seriando, na escala dos hidrocarbonetos, com o metro, a
proporcionalidade das progressões aritméticas formando o encadeamento dos
corpos cíclicos e acíclicos; coordenando, compondo, concertando, atando e
desatando, com uma regularidade surpreendente, a prova de algarismos – os
dez que nem mil todo-poderosos cíngulos dígitos do Grande Ser, que
empolgassem as formas concretas do universo, na tarefa de as enumerar,
multiplicar, dividir e subdividir. Quando esta molécula se complicou, tivemos um
caos bíblico, que não a desordem, pois o magno coordenador, o carbono, não o
permitira, logramos porém uma página harmônica da vida do globo, que não
soubemos deletrear, porque não pudemos fixar em o nosso entendimento a
equivalência de suas expressões, o eco de suas ressonâncias.
(W. Martins, p. 307-308)
São maus escritores? Certamente não; eram escritores que estavam
tentando utilizar todos os recursos da língua de sua época, e essa língua estava
se refinando no sentido da riqueza vocabular, da confluência de vários jargões
(o filosófico, o científico, o regionalista, etc.), da busca de uma perfeição
descritiva que consistia em retratar coisas simples com palavras complexas, no
esforço de buscar a palavra mais justa.
O barroquismo de Guimarães Rosa, por mais pessoal que seja, não surgiu
num vácuo, nem surgiu numa planície linguística onde todo mundo escrevia
simples. É vigorosa a nossa tradição do “escrever difícil”. Coelho Neto, Euclides
da Cunha, Augusto dos Anjos, Guimarães Rosa não são montanhas isoladas,
estão cercadas de montanhas menores mas que apontam na mesma direção.
4930) Primeiras Estórias: "Substância" (9.4.2023)
(ilustração: Luhan Dias)
“Substância”, o décimo-nono conto do livro Primeiras Estórias (1962; 3ª.
edição) de Guimarães Rosa, é uma experiência interessante de conto com um
foco único. Como se fosse um quadro, uma pintura, com uma imagem
centralizada – e outros elementos irradiando-se a partir dela. Um quadro que é
possível apreender com a visão, de golpe, num instante, e depois examinar os
detalhes.
A história, portanto, é simples. Uma menina, de família problemática e
violenta, é levada embora para ser criada numa fazenda distante, a fazenda
Samburá, de Sionésio (ou Seo Nésio, conforme a técnica rosiana de variar a
grafia dos nomes dos personagens). A menina é Maria Exita, e vai trabalhar na
fabricação do polvilho que é a especialidade da fazenda, onde se plantam vastas
extensões de mandioca.
(Digressão: A fabricação do polvilho envolve a limpeza e moagem da
mandioca, e a separação do polvilho que depois de sedimentado e endurecido
em pedras é posto para secar ao sol, processo que envolve a fase de “quebra
pedra”, para que ele seja pulverizado.)
Os anos vão se passando. Seo Nésio, checando cada detalhe da sua
propriedade e dos trabalhos, começa a prestar atenção naquela moça formosa
e caladinha, quebrando pedras no sol, um trabalho cansativo mas luminoso. Se
engraça dela. Acumula em si esse sentimento até não aguentar mais e lhe propor
casamento. Ela aceita. Fim da história.
Falei que a história parece um quadro, e é por isso mesmo: porque é
intensamente visual, uma fábula da busca da beleza, da luminosidade, e tem
algo de processo alquímico nessa descrição de uma pessoa envolvida dia e noite
na decantação de uma substância através do sol, do vento e da luz.
“Deram-lhe, porém, ingrato serviço, de todos o pior: o de quebrar, à mão,
o polvilho, nas lajes. (p. 152)
“Ela é que quer, diz que gosta. E é mesmo, com efeito...” (p. 152)
“Só no pino do meio-dia – de um sol do qual o passarinho fugiu” (p. 152)
“Alvíssimo, era horrível, aquilo. Atormentava, torturava: os olhos da
pessoa tendo de ficar miudinhos fechados.” (p. 152)
“Também, para um pasmar-nos, com ela acontecesse diferente: nem
enrugava o rosto, nem espremia ou negava os olhos, mas oferecidos bem
abertos – olhos desses, de outra luminosidade.” (p. 153)
“Sua beleza, donde vinha? Sua própria, tão firme pessoa? A imensidão
do olhar – doçuras. Se um sorriso; artes como de um descer de anjos.” (p. 153)
“Maria Exita era a para se separar limpa e sem jaças, por cima da vida; e
de ninguém. Nela homem nenhum tocava.” (p. 154)
“Servia o polvilho – a ardente espécie singular, secura límpida, material
arenoso.” (p. 154)
“Os raios reflexos, que os olhos de Sionésio não podiam suportar,
machucados, tanto valesse olhar para o céu e encarar o próprio sol.” (p. 155)
“Entregou os olhos ao polvilho, que ofuscava, na laje, na vez do sol.” (p.
156)
“Você, Maria, quererá, a gente, nós dois, nunca precisar de se separar?
Você, comigo, vem e vai?” (p. 156)
(ilustração: Luís Jardim)
Guimarães Rosa disse, no Grande Sertão, que viver é rasgar-se e
remendar-se. Na mesma toada podemos sugerir que escrever é plantar, colher,
moer e purificar. Como Rosa era notoriamente um estudioso do hermetismo e
das ciências ocultas, não há como não ver no conto alusões alquímicas ao
processo de transmutação da matéria, onde ocorre a fase do albedo, que
corresponde à purificação e
decantação
da matéria,
atingindo
pura
espiritualidade.
Primeiras Estórias é todo composto de histórias assim, e sem dúvida
assustou os leitores acostumados com as obras anteriores. Este livro ganhou um
formato-de-conto que Rosa não tinha explorado até então. Os contos de
Sagarana (1946) são contos longos e largos, que se expandem como um rio
correndo devagar, sem pressa de chegar a lugar nenhum. Contos com 30 ou 40
páginas, e até mais.
Esse formato se expandiu ainda mais nas 7 noveletas que compõem
Corpo de Baile (1956).
A prosa torrencial do Grande Sertão: Veredas (1956) é o ponto máximo
dessa exuberância narrativa de quem tem muito o que dizer e quer dizê-lo
vastamente.
O grande ponto de inflexão na vida e na obra de J. G. Rosa, a grande
“virada de esquina” em sua vida é justamente no período entre 1956 (publicação
de Corpo de Baile e de Grande Sertão) e 1962 (publicação de Primeiras
Estórias).
São os anos da fama, da consagração e da polêmica, e anos de trabalho
intenso no Itamaraty. O tempo escasseia, os contos encolhem. A profusão de
histórias para contar é a mesma, mas diminuiu o tempo que ele pode dedicar à
literatura, e o tempo de vida que sente ter pela frente. Rosa era cardíaco,
fumante compulsivo, e dizia: “Eu sou médico, e sei muito bem qual é a minha
condição de saúde.”
Ele passou a publicar uma página semanal em O Globo – bem
remunerada, certamente – num espaço com tamanho mais ou menos fixo. Daí
que os contos de Primeiras Estórias, que é a reunião desse material em livro,
tenham todos aproximadamente a mesma extensão.
Algo parecido ocorreria depois com seu último livro, Tutaméia (1967),
cujos contos tiveram primeira publicação numa revista médica (Pulso, RJ) e têm
um tamanho-padrão ainda mais curto.
Rosa era um ficcionista “fractal”: cada história sua contém muitas outras
histórias incrustadas. Na reta final da carreira, foi obrigado a concentrar seu foco
criativo num espaço de texto mais estreito e mais intenso. O que era arco-íris
concentrou-se em raio laser.
A vida dá o tom do trabalho, impõe um ritmo e um formato. Rosa é um
estressado, apesar do permanente bom humor. É um consciencioso, um
perfeccionista, um “perseguidor” também – no sentido cortazariano do termo, do
artista que não sabe direito o que está criando enquanto não o cria e o
contempla.
Aproveitando a referência a Julio Cortázar, podemos dizer que em
Primeiras Estórias e em Tutaméia Guimarães Rosa se dedicou a vencer o
embate com o leitor por nocaute, e não por pontos. Adotou, por conta própria, a
fórmula do autor argentino, adepto do conto uni-direcional, do conto-flecha, do
conto que é disparado e leva o leitor consigo como um trem-bala.
É o contrário, por exemplo, dos contos de Sagarana, que eram contoscaravana, histórias que têm um destino mas abominam a linha reta, preferem o
caminho tortuoso de quem se desvia para abastecer num oásis, visitar um
vilarejo, evitar uma tempestade.
4931) A Invenção de Morel (12.4.2023)
Um tema recorrente na ficção científica é o tema da fuga para outros
planetas, antes ou durante um cataclismo qualquer. Como a Terra está em vias
de destruição, preparam-se algumas “arcas de Noé” que decolarão rumo a um
planeta habitável, onde a humanidade terá um novo recomeço.
Um clássico do cinema nessa veia é O Fim do Mundo (“When Worlds
Collide”, Rudolph Maté, 1951). A questão principal é: quem vai nessa Arca?
Quem serão os felizardos? No filme, o milionário que financia a construção da
espaçonave exige o direito, bastante compreensível, de escolher os convidados.
Briga-se muito, e a escolha acaba sendo feita por um sorteio de loteria, que dá
origem a vários desdobramentos melodramáticos.
No recente e premiado conto de N. K. Jemisin, Emergency Skin (2019; no
Brasil, na antologia Forward, Ed. Intrínseca, 2021), a Terra está em pleno
colapso e os bilionários constroem uma frota de espaçonaves para a fuga.
Depois que eles vão embora, os que ficaram para trás conseguem reverter a
situação, uma vez que os causadores da situação migraram em massa.
Numa catástrofe, salvam-se os que podem.
Se um cientista inventar um dia uma máquina de imortalidade, ou de
imortalização, quem serão os primeiros beneficiados? Provavelmente as
pessoas a quem ele tem acesso, as pessoas que são importantes para ele.
É mais ou menos o que acontece com o Morel imaginado por Adolfo Bioy
Casares no seu clássico La Invención de Morel (1940). No Brasil, o livro saiu
pela Expressão e Cultura como A Máquina Fantástica (1974, trad. Vera Neves
Pedroso), republicada em 1986 pela Rocco como A Invenção de Morel.
Fiz mais acima uma distinção entre imortalidade e imortalização, e esta é
essencial na concepção da história. Morel (não farei aqui um resumo do enredo
do romance) inventou uma espécie de cinema em 3D ou 4D, que registra e
conserva, de forma perfeita, a presença e as ações de pessoas num ambiente.
Uma espécie de cinema total, onde as imagens são tridimensionais, e têm uma
materialidade concreta que falta, por exemplo, aos hologramas.
E durante uma semana ele traz seus amigos para a ilha onde tem uma
mansão (com jardim, piscina, etc.) e todos se divertem, bebem, riem, cantam,
dançam, praticam esportes, namoram, desfrutam daquele lazer um pouco tenso
e um pouco ruidoso dos ricos que, não precisando ganhar a vida, precisam, o
tempo inteiro, inventar pretextos para preencher seus dias imensos,
longuíssimos, dias e noites que não acabam mais.
O que Morel descobre não é a imortalidade, que seria o prolongamento
indefinido da vida daquelas pessoas. As pessoas morrerão, sim. (Como dizia
Millôr Fernandes, “injustiça social mesmo era se uns morressem, e outros não”.)
O que a invenção de Morel lhes proporciona é a imortalização parcial: elas
continuarão repetindo para sempre aqueles dias, aquela vida de eterno prazer
num eterno presente. Existirão como imagens, símbolos, arquétipos. Daqui a mil
anos, se outra civilização descobrir aquela ilha, os amigos de Morel estarão ali,
reproduzindo suas vidinhas. Serão talvez os únicos registros remanescentes de
quem eram os seres humanos do século 20, que aparência tinham, como se
vestiam, o que comiam e bebiam, sobre que assuntos conversavam.
A Invenção de Morel é um dos grandes livros da ficção científica latinoamericana.
Digressão: Já vi discussões sobre a eterna e insuportável questão de
“pertence ou não pertence ao gênero...” Em primeiro lugar, obra alguma pertence
a um gênero; um gênero literário (cinematográfico, etc.) é uma classificação
artificial feita para comodidade de quem classifica. E, sendo os tais “gêneros” a
mixórdia desencontrada que são, difícil vai ser encontrar uma história que não
possa ser classificado em vários "gêneros" diferentes.
O livro de Bioy Casares mostra a criação de uma máquina capaz de captar
e reproduzir trechos da realidade, de forma tridimensional (ou quadridimensional, pois se dá ao longo do tempo), e material. É cientificamente
improvável? Talvez – tanto quanto máquinas do tempo ou espaçonaves mais
velozes do que a luz.
Como disse Jorge Luís Borges, no famoso prefácio que escreveu para
este livro:
“Adolfo Bioy Casares, nestas páginas, resolve com felicidade um
problema talvez mais difícil. Desdobra uma odisséia de prodígios que não
parecem admitir outra chave senão a alucinação ou o símbolo; e a decifra
satisfatoriamente
mediante
um
único
postulado
fantástico,
mas
não
sobrenatural.”
Fim da digressão.
O livro teve algumas adaptações cinematográficas, e vi dias atrás a versão
que está no YouTube, uma adaptação francesa com legendas em inglês. É um
filme para TV, de 1967, dirigido por Claude-Jean Bonnardot, que Bioy Casares
afirma ter assistido (sem gostar muito) em Paris, na casa de amigos.
Em todo caso, a história (da qual estou revelando apenas uma das muitas
faces) mantém a ironia presente no livro de Bioy Casares. Se alguém inventar
uma máquina de imortalização, quem serão os beneficiados? Os mais
inteligentes, os mais humanistas, os mais indispensáveis à humanidade? Não:
provavelmente serão, como em Morel, pessoas ricas e com acesso “às mais
avançadas das mais avançadas das tecnologias”.
Serão preservadas para sempre: sua aparência física, suas roupas, o que
comem, o que bebem, o que conversam... De certa forma, a invenção de Morel
se assemelha à literatura de um Marcel Proust ou de um Henry James, que
descreveram com minúcia (e cristalizaram para sempre) a vida cotidiana e os
sentimentos banais ou intensos de gente rica.
(As imagens são do filme no YouTube.)
4932) A tristeza e a música (15.4.2023)
No conto que abre o livro Sagarana (1946), “O Burrinho Pedrês”,
Guimarães Rosa encastoa uma série de pequenas histórias, “causos” que os
vaqueiros contam uns aos outros enquanto conduzem uma boiada, num trajeto
longo e vagaroso até a vila onde passa o trem.
Uma dessas histórias é contada pelo vaqueiro João Manico. Ele diz que
anos atrás o atual patrão deles, Major Saulo, era apenas “Seu Saulinho”, e os
levou para trazer uma boiada que acabava de comprar. Como na volta tinham
que passar pela cidade de Curvelo, o vendedor do gado lhes pediu um favor:
que deixassem lá um menino, um pretinho de uns 7 anos, para ser entregue ao
irmão que ali morava.
Os vaqueiros trazem o pretinho à garupa, mas o menino está inconsolável
porque está indo embora. Ele não quer ir, pede para ser levado de volta,
implora...
E, aquilo, ele chorava, sem parar, e de um sentir que fazia pena... Não
adiantava a gente querer engambelar nem entreter... Eu pelejei, pelejei, todo-omundo inventava coisa para poder agradar o desgraçadinho, mas nada d’ele
parar de chorar... (...) ...O pretinho vinha comigo na garupa, dando soluços
grandes, e molhando minhas costas de tanta lágrima... Então eu falei: — “Olha
os bois também com saudade dos pastos lá da fazenda”... — Para que foi que
eu fui dizer isso! Ele abriu ainda mais no bué, e começou a gemer: — “Ai, seu
mocinho bom! Ai, seu mocinho bom! Me deixa eu ir-s’embora para trás! Me deixa
eu ir-s’embora para trás!”...
Quando ele viu que não adiantava nada pedir, garrou só a exclamar: —
“Ai, seu mocinho ruim! Ai, seu mocinho ruim!... Eu só queria poder sentar agora,
um tiquinho, naquela canastra de couro, que tem lá no rancho de minha mãe...
Queria só ver, de longe, a minha mãezinha, que deve de estar batendo feijão, lá
no fundo do quintal!”...
Os vaqueiros ficam naquela sinuca, porque todo mundo está comovido
com o choro do garoto mas não fazia sentido voltarem atrás com boiada e tudo.
E lá vão eles. Montam acampámento para passar aquela primeira noite.
E foi aí, bem na hora em que o sol estava sumindo lá pelos campos e
matos, que o pretinho começou a cantar... ...Ah, se vocês ouvissem! Que cantiga
mais triste, e que voz mais triste de bonita!... Não sei de onde aquele menino foi
tirar tanta tristeza, para repartir com a gente... Inda era pior do que o choro de
em-antes...
A voz do menino chega a lembrar (ou será que estarei me
sugestionando?) a voz de um Milton Nascimento infantil mas já capaz das
nuances futuras de um Milton Nascimento – que já era nascido quando Rosa
publicou seu livro:
Era assim uma cantiga sorumbática, desfeliz que nem saudade em
coração de gente ruim... Mas, linda, linda como uma alegria chorando, uma
alegria judiada, que ficou triste de repente:
...“Ninguém de mim
ninguém de mim
tem compaixão...”
Os vaqueiros ficam indóceis, todo mundo nervoso. Um bebe cachaça, o
outro puxa do bolso as cartas da família, outro cantarola triste... A história do
pretinho tem um final trágico e meio sobrenatural, que fica reservado a quem se
dispuser a ler o conto.
O episódio do negrinho me trouxe à lembrança uma cena parecida, num
dos meus contos preferidos de Mark Twain, “Uma Estranha Aventura” (“A
Curious Experience”, 1881).
Um adolescente pede para se alistar nas tropas do Norte, durante a
Guerra Civil norte-americana, e é designado para ajudar na banda de música do
quartel. O problema que surge é porque toda noite, no alojamento, antes de
dormir, o menino (que tem uns 14 ou 15 anos) reza em altas vozes pedindo a
bênção do céu para cada músico da banda; e depois desata a cantar hinos
religiosos.
(Mark Twain)
Um oficial relata o fato ao Major:
Mas o mais grave de tudo é que quando acaba a reza – quando ele
finalmente acaba a sua reza – ele ergue a voz e começa a cantar. Bem, o senhor
sabe que a voz dele, quando fala, é doce como o mel; sabe como seria capaz
de persuadir aquele cão de ferro do portão a descer os degraus e vir lamber-lhe
a mão. Creia na minha palavra, isso não é nada diante da cantiga! Ah, ele se
limita a entoar aqueles versos , numa voz tão doce e tão suave, ali no escuro,
que faz a gente pensar que está no céu. (...) E ele canta: “Assim como eu sou –
um coitado, um cego, um desvalido...” (...) E ele faz um homem se sentir o bruto
mais ingrato e mais canalha que já existiu. E quando ele canta sobre a casa em
que viveu, e sua mãe, e sua infância, e as lembranças de antigamente, e os
amigos que morreram e se foram para sempre, isso traz para a mente daqueles
homens tudo que eles amaram e perderam em sua vida...
(trad. BT)
Os hinos do garoto fazem aqueles soldados rudes chorarem aos soluços,
e na manhã seguinte levantam-se todos fungando, com olhos vermelhos, sem
coragem para olhar na cara uns dos outros.
Ficam tal como os vaqueiros do conto de Rosa – que numa entrevista ao
Correio da Manhã em 1946 asseverou ter misturado à história dos vaqueiros um
personagem real: um menino preto que ele conheceu numa pensão onde morou,
quando era estudante na capital mineira.
A poética da tristeza ganha uma dimensão maior quando estabelece esse
contraste entre a inocência da infância e o temperamento calejado de homens
guerreiros.
E existe o poder hipnótico da tristeza, a tristeza como uma emanação
irresistível que brota de alguém e envolve os sentimentos de quem esteja em
volta. É algo que foi expresso de maneira inesquecível por Samuel R. Delany em
sua noveleta interplanetária Empire Star (1966; no Brasil, “Estrela Imperial”, Ed.
Morro Branco, trans. Petê Rissati)).
O protagonista desta história é Comet Jo, um rapaz meio andarilho, que
costuma tocar uma ocarina, e precisa pegar carona numa espaçonave para ir a
outro planeta, cumprir uma missão qualquer. (Não é uma “missão qualquer” –
este livro é cheio de coisas interessantes, mas que não vêm ao caso para esta
citação.) Ele é aceito na nave, e outro rapaz, também músico, chamado Ron,
começa a lhe mostrar o que há lá dentro.
Uma das coisas que há lá dentro é um carregamento de “Lll” (=a letra L,
três vezes repetida), seres alienígenas.
Jo seguiu Ron por um corredor, passaram por uma escotilha, desceram
uma pequena escada.
– Os Lll estão aqui – disse Ron, diante de uma porta circular. Ainda estava
segurando o braço do violão. Empurrou a porta, e alguma coisa agarrou o
estômago de Comet Jo e o virou pelo avesso. Lágrimas cresceram nos olhos
dele, e sua boca se abriu. Respirou com dificuldade.
– É uma porrada, hein? – disse Ron em voz baixa. – Vamos entrar.
Jo estava amedrontado, e quando penetrou naquela penumbra sentia-se
afundar dez metros a cada passo. Piscou os olhos para clarear a vista, mas as
lágrimas voltaram.
– Esses são os Lll – disse Ron.
Jo viu lágrimas no rosto queimado de sol de Ron. Olhou para diante.
Eles estavam acorrentados ao piso pelos pulsos e tornozelos; Jo contou
sete deles. Seus enormes olhos verdes piscavam na luz azulada do
compartimento de carga. Seus torsos eram encurvados, as cabeças hirsutas.
Seus corpos pareciam imensamente fortes.
– O que é que eu estou... – Jo tentou dizer, mas tinha alguma coisa presa
na garganta. – O que é que eu estou sentindo? – sussurrou ele, pois era o mais
alto que conseguia falar.
– Tristeza – disse Ron.
E assim que recebeu um nome aquela emoção se tornou reconhecível –
uma tristeza vasta, avassaladora, que sugava todos os movimentos de seus
músculos, toda a alegria dos seus olhos.
– Eles me deixam... triste? – perguntou Jo. – Por que?
– São escravos – disse Ron. – Eles constroem; constroem de uma
maneira muito bela, maravilhosa. São extremamente valiosos. Construíram
metade do Império. E o Império os protege desta maneira.
– Protege? – perguntou Jo.
– Ninguém pode se aproximar deles sem se sentir assim.
– Nesse caso, quem iria comprá-los?
– Não muitas pessoas. Mas existem em número bastante para que eles
sejam escravos incrivelmente valiosos.
– Por que não soltam eles?! – perguntou Jo, e a frase soou no final quase
como um grito.
– Economia – disse Ron.
– Como é que alguém pode pensar em economia sentindo-se deste jeito?
– Não é muita gente que consegue – disse Ron. – Essa é a proteção dos
Lll.
Jo esfregou os olhos.
– Vamos sair daqui.
– Vamos ficar mais um pouco – retrucou Ron. – Vamos tocar para eles
agora. – Ele sentou num caixote, empunhou o violão e fez um arpejo num acorde
modal. – Toque. Eu lhe acompanho.
(Empire Star, trad. BT)
À maneira típica de Delany, vários conceitos estão expostos de forma
entrelaçada nesse trecho: o esboço rápido das relações econômicas do Império
interplanetário, a dominação de uma raça por outra, o conceito aparentemente
contraditório de que um escravo é protegido pela tristeza que desperta nos
outros (o que os trancafia na esfera do “não quero pensar nisso”); e o uso da
música como fator de equilíbrio ou tentativa de comunicação. Sem falar no nome
da raça escravizada – os “Lll”, um nome impronunciável, um conceito que (do
ponto de vista do leitor, que neste momento é o mais “alienígena” de todos) pode
ser lido mas não pode ser compartilhado em voz alta.
A tristeza pode ser revelada através do canto, como no pretinho de
Sagarana, pode ser provocada nos outros através do canto, como no conto de
Mark Twain, e pode ser uma aura que, exalada telepaticamente (por assim
dizer), pode ser atenuada pela música.
(Samuel Delany, 1966)
4933) O passe e a assistência (18.4.2023)
(Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa)
A língua brasileira tem umas coisas engraçadas. A primeira delas é que
começou sendo “Língua Portuguesa”. Era assim chamada na época em que eu
comecei a frequentar a escola, ou seja, quando os dinossauros dominavam a
Terra. Mas... Meu pai era viciado em palavras-cruzadas e charadas; eu passava
dias e noites folheando as dezenas de dicionários que ele tinha em casa, e
sempre me chamou a atenção haver um Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa, cujo propósito eu já era capaz de entender e aceitar.
Era uma língua traduzida para outra língua quase igual.
Portugal, no entanto, é um amor que eu tive e vi, pelo espelho, na
distância se perder, como disseram de forma irretocável Roberto & Erasmo
Carlos. Surgiu na estrada a cordilheira dos Estados Unidos e a língua inglesa,
que tem contaminado de forma irremediável a nossa, contando com o apoio
entusiasmado de muita gente – inclusive eu.
Um debate recente é o que envolve a adoção da palavra “assistência”, no
futebol: “O gol de Pedro foi uma beleza, mas vamos reconhecer que a
assistência de Arrascaeta foi sensacional.”
Muita gente se rebela contra isto, dizendo que na nossa língua patriótica
já existe a palavra passe e que o anglicismo é dispensável. Bastava dizer “o
passe”. Era assim que a gente escrevia no Diário da Borborema. “O gol de
Fernando Canguru foi uma beleza, mas vamos reconhecer que o passe de Assis
Paraíba foi sensacional.”
(Assis Paraíba e Fernando Canguru)
A palavra assistência, pelo que entendo, veio do basquete. Eu já a via nas
transmissões do SporTV na década de 1990, quando passei a acompanhar o
time do Chicago Bulls, no tempo de Phil Jackson como técnico, e Michael Jordan
e Scottie Pipen na quadra.
Posso estar me enganando, mas desde essa época – quando ninguém
usava “assistência” no futebol – eu via uma diferença entre assistência e passe.
O passe é quando você apenas entrega a bola a um companheiro. A assistência
(no basquete) é aquele passe decisivo, no garrafão, naquelas frações-desegundo cruciais quando o ataque penetra todo de uma vez e é preciso entregar
a bola, de maneira inesperada, para alguém em condições de fazer a cesta.
Nessa mesma época, anos 1990, eu não via ninguém da imprensa do
futebol chamar um passe decisivo, passe-para-o-gol, de “assistência”. Todo
mundo que eu lia dizia algo como: “No jogo de hoje da Seleção Brasileira,
Rivaldo teve grande atuação; não marcou gols, mas deu passes decisivos para
os gols de Ronaldo e Bebeto”.
(Rivaldo)
Ninguém dizia “assistência”.
E aqui entra meu argumento em favor deste anglicismo. A palavra nova é
necessária (mesmo que venha de outra língua, o que não é nada demais)
quando carrega consigo uma nuance que não tem na palavra anterior. A palavra
assistência não substitui a palavra passe: ela indica um tipo específico de passe,
um tipo mais importante de passe.
É algo parecido com o que faz a gente distinguir entre “passe” e
“lançamento”. Um lançamento, no futebol, também é um passe: Fulano entrega
a bola para Sicrano. Mas é um passe geralmente a grande distância, e que
muitas vezes tem a intenção de dar início a uma jogada nova, um ataque, uma
combinação de avanço a toda velocidade e de deslocamento paralelo dos outros
jogadores, que se oferecem como opções de jogada.
“Jogador era Gérson, que fazia um lançamento de 40 metros com a
facilidade de quem atrasa uma bola para o goleiro.” Onde se lê “Gérson”, claro,
pode-se ler também Zico, Zidane, Iniesta, Zezinho Ibiapino.
Quem descreveu de maneira exemplar a diferença entre “passe” e
“lançamento” (sem usar estas duas palavras) foi João Cabral de Melo Neto neste
poema, do livro Agrestes (1981-1985). O “passe” é uma carta, que se entrega
em mãos; o “lançamento” é um telegrama que cruza o hiperespaço para chegar
ao destinatário.
(João Cabral de Melo Neto, pelo Santa Cruz, do Recife)
DE UM JOGADOR BRASILEIRO A UM TÉCNICO ESPANHOL
Não é a bola alguma carta
que se levar de casa em casa:
é antes telegrama que vai
de onde o atiram ao onde cai.
Parado, o brasileiro a faz
ir onde há-de, sem leva e traz;
com aritméticas de circo
ele a faz ir onde é preciso;
em telegrama, que é sem tempo
ele a faz ir ao mais extremo.
Não corre: ele sabe que a bola,
telegrama, mais que corre voa.
Passe é quando você simplesmente entrega a bola a um companheiro.
Lançamento é quando você descobre à distância um companheiro desmarcado,
ou um espaço vazio, e lança ali a bola, para “precipitar os acontecimentos”. E a
assistência é, de certa forma, o penúltimo toque antes do gol. É aquele passe
(pode ser curto ou longo) que deixa o atacante na cara do gol, com a única
função de finalizar corretamente.
(Gerson – Turma do Roma)
Me perdoem os leitores que não curtem muito futebol. Ele entrou neste
texto como Pilatos no “Credo” ou como as pedrinhas na sopa de Pedro
Malazarte. O texto é sobre a língua, as importações da língua e o enriquecimento
da língua. Não acho que dizer “assistência” empobreça nosso vocabulário
esportivo, pelo contrário.
Uma língua busca o tempo inteiro dois objetivos opostos: ser cada vez
mais simples e precisa (para que a comunicação possa fluir sem tropeços), e
cada vez mais rica e cheia de nuances (para poder refletir a realidade, que é
assim).
Quando os “Manuais de Escrita Criativa” nos dizem para usar palavras
simples, não estão nos dizendo para só dizer coisas banais. Fernando Pessoa
disse que o poeta é um fingidor porque “chega a fingir que é dor a dor que
deveras sente”. Só usou palavras simples, e isso serviu para ressaltar o
imprevisto da idéia, a originalidade da idéia, a verdade profunda da idéia.
(E o Brasil já chegou a um ponto em que muita gente torcerá o nariz diante
do “deveras”, dizendo que isto é “falar difícil”. Paciência.)
4934) O quebra-cabeças e o calidoscópio (21.4.2023)
A literatura pode às vezes ser dividida em dois tipos: a literatura quebracabeças e a literatura calidoscópio.
(NOTA INDISPENSÁVEL: o mesmo se aplica a cinema, teatro,
quadrinhos, etc. – a qualquer arte narrativa.)
O que é um quebra-cabeças, ou um puzzle, como dizem os falantes do
inglês?
É uma imagem subdividida em inúmeros pedacinhos que depois são
misturados. Cada pedacinho corresponde rigorosamente a um trecho da imagem
maior, tem seu lugar específico. Existe nele um trecho de imagem suficiente para
podermos perceber que aqui ele se encaixa, ali não, e assim vamos juntando as
peças que se encaixam até perceber qual é a imagem.
Muitas vezes começamos a resolver o puzzle já sabendo qual é a imagem
final. (É a que vem na caixa do brinquedo.) Na literatura, nem sempre sabemos.
Vamos adivinhando à medida que a história avança e o significado de cada
pedacinho daqueles vai sendo reavaliado. Dá trabalho, mas a gente insiste,
porque sabe que há uma resposta final. Faz parte do jogo haver uma resposta
final, única, inalterável, onde todas as pessoas terão forçosamente que chegar.
E o que é um calidoscópio?
É um tubo cilíndrico forrado de espelhos por dentro, colocados num
ângulo tal que refletem uns aos outros infinitamente. Se colocamos um pequeno
objeto dentro do tubo (uma bola de gude, p. ex.) e olharmos pelo visor, esse
objeto vai aparecer multiplicado ao infinito nos reflexos, nos reflexos dos reflexos,
e assim por diante.
O passatempo do calidoscópio é colocar ali um elenco arbitrário de
elementos: contas de colar, pedrinhas coloridas, tudo que for pequeno, leve,
visualmente atrativo. A cada olhada pela extremidade do tubo, essas coisas
aleatórias estarão formando uma imagem simétrica – a simetria é fornecida pelos
espelhos.
Num calidoscópio, tudo é aleatório e tudo é simétrico – uma aparente
contradição. E tudo que é simétrico nos provoca uma sensação agradável.
Vamos trazer para o campo da Literatura.
A “literatura quebra-cabeças” é aquela que parte de uma resposta préexistente, uma resposta final que será dada ao leitor (ou descoberta por ele). Isto
acontece com muita frequência, p. ex., na literatura policial, em que nos
defrontamos com um crime misterioso e aparentemente inexplicável, mas
juntamente com o detetive vamos reunindo as peças e descobrindo a resposta.
(Neste tipo de literatura policial, puzzle e quebra-cabeças são termos de
comparação frequentes.)
A “literatura calidoscópio”, pelo contrário, não tem uma resposta. Ela lida
com elementos aleatórios (tudo que a imaginação do autor puder conceber) e
uma certa aparência de ordem, fornecida pela narrativa sequencial: “Aconteceu
isto, e por causa disto aconteceu aquilo, e logo em seguida esta outra coisa, e
depois desta acabou sucedendo outra...”
A narrativa sequencial produz um efeito parecido com o da simetria no
calidoscópio: dá uma impressão de ordem. Uma impressão de causalidade, mas
isto não é obrigatório. A história não tem uma “resposta oculta” da qual nos
aproximamos durante a leitura. Cada página, cada episódio é a resposta a si
mesmo. Não conduz necessariamente a nada. E muitas vezes, quanto mais a
gente avança, mais caótica a história vai ficando.
Num livrinho que publiquei há alguns anos (A Pulp Fiction de Guimarães
Rosa, João Pessoa, Ed. Marca de Fantasia, 2008) fiz esta mesma divisão,
argumentando que estas duas literaturas se baseavam em protocolos (=acordos
implícitos com o leitor) diferentes: o Protocolo da Resposta e o Protocolo da
Pergunta.
O Protocolo da Resposta equivale ao quebra-cabeças: o autor criou uma
resposta final, uma resposta única e indiscutível, mas oculta. Cabe ao leitor
descobrir esta resposta ao longo da leitura.
O Protocolo da Pergunta não tem um objetivo final; cada passo da
narrativa a conduz numa direção diferente; o prazer não está numa revelação,
mas num estado constante de surpresa.
As duas formas de literatura são perfeitamente legítimas. O quebracabeças está muito presente na literatura de mistério detetivesco. Está na ficção
científica hard, onde há sempre um problema científico que se coloca no começo
para ser resolvido no final. Está em muitas literaturas que procuram ilustrar uma
princípio ideológico qualquer (uma mensagem política, uma mensagem social,
etc.), colocando um problema no início e indicando uma solução inequívoca no
final.
Esse tipo de literatura é muito reconfortante, porque fechamos o livro com
a sensação real de que uma tarefa foi cumprida, um mistério foi esclarecido, um
problema complexo foi solucionado. (E mais uma vez vale a advertência: nada
disto tem a ver com a qualidade literária do texto; há centenas de obras-primas
indiscutíveis, e também milhões de livros péssimos, seguindo esta fórmula.)
A literatura calidoscópio me parece mais frequente no que chamamos
“romance absurdista”, e em certas obras de vanguarda como os romances do
pessoal da OuLiPo: Harry Matthews, Georges Perec, Raymond Queneau e
outros. São histórias que geralmente “não trazem uma mensagem”, não
alcançam uma resolução final (nem se propõem a isso): são uma sucessão de
episódios desconexos, que valem por si mesmos e pelo traçado ziguezagueante
por onde conduzem o leitor.
Há uma certa literatura meio lúdica onde a gente sente o autor
improvisando doidices à medida que escreve, como nas Confissões de Ralfo
(1975) de Sérgio Sant’Anna, em Os Morcegos Estão Comendo os Mamãos
Maduros (1973) de Gramiro de Matos, em A Lua Vem da Ásia (1956) de Campos
de Carvalho... E não só nela, porque se olharmos bem a prosa de Rabelais ou
de Lautréamont vamos encontrar esse mesmo fluxo sem direção obrigatória,
esses mesmos saltos sem pouso.
Ocorre também em certa ficção popular, como a de alguns autores de pulp
fiction que começavam a contar uma história sem saber onde iam parar, atraídos
pela possibilidade da invenção incessante, da surpresa, da imprevisibilidade. O
Surrealismo, tanto nos romances de André Breton quanto nos filmes de Luís
Buñuel, elevou isso a um grau máximo.
E, mais uma vez: há também grandes obras e obras péssimas escritas de
acordo com este impulso.
Parece existir, no entanto, pelo menos em nossa cultura ocidental e em
nosso século, uma predileção pelas obras fechadas, que têm uma resposta
única, que dão ao leitor a sensação tranquilizadora de uma conta matemática
que não deixa resto. Acho isto muito natural, porque aprecio esse tipo de
narrativa.
O problema surge quando um apreciador deste tipo de narrativa abre um
livro (ou assiste um filme, etc.), na ilusão de que se trata de uma obra com esta
característica, e se depara com um Livro Calidoscópio (pense Raymond
Roussell, R. A. Lafferty, Carlos Emilio Corrêa Lima, etc.) ou com um Filme no
Protocolo da Pergunta (pense David Lynch, Raúl Ruiz, etc.).
A solução seria talvez a de tentar agradar esses dois tipos exigentes de
consumidor, dando-lhes algumas respostas mastigadinhas que abrandassem
sua fome de solução-de-problemas, mas mantendo no ar certas interrogações
mais amplas, mais implicitas, mais abstratas.
Que é, no fim das contas, o que estes autores citados fazem, porque muito
dificilmente iremos encontrar modelos puros do tipo A ou do tipo B. Mesmos
praticantes ortodoxos da literatura puzzle, como Isaac Asimov ou Arthur C.
Clarke, deixam-se seduzir, em seus romances, por certos elementos
irrespondíveis, certas dízimas periódicas do pensamento que podem ser
estendidas infinitamente sem fechar a conta.
Ao fim e ao cabo, tude retorna àquela velha arte de comer mel-deengenho com farinha. Ficou muito molhado? Bota mais farinha. Ficou muito
seco? Bota mais mel.
4935) O deserto dos tártaros (24.4.2023)
Na ciência da Guerra existem incontáveis alçapões onde o indivíduo pisa
quando menos espera... e é precipitado no abismo das situações sem volta.
O problema filosófico mais importante não é o suicídio, como sugeriu
Albert Camus, mas a guerra. Quando mais não seja, porque: 1) movimenta
bilhões (talvez trilhões) de dólares sem parar, o tempo inteiro; 2) consome
milhões de vidas; 3) produz mudanças irreversíveis no mundo inteiro.
Seria possível conciliar os dois conceitos dizendo: “O problema filosófico
mais importante é o suicídio, especialmente a guerra, que é o suicídio da espécie
humana”.
Ou, como disse inesquecivelmente Augusto dos Anjos, no erguer-dascortinas da Primeira Guerra Mundial:
É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo
de subir, na ordem cósmica, descendo
à irracionalidade primitiva...
É a Natureza que, no seu arcano,
precisa de encharcar-se em sangue humano
para mostrar aos homens que está viva!
(“Guerra”, 1914)
Minha geração só conheceu a guerra através de livros e filmes. Cabe à
minha imaginação dizer o que é a vida quando sabemos que o mundo está sendo
destruído brutalmente ao nosso redor.
Os romanos diziam: Si vis pacem, para bellum. Se você quer viver em
paz, prepare-se para fazer a guerra. Porque (subentende-se) alguma coisa
precisa ser resolvida pela violência, antes que a paz possa reinar.
E também é um alerta: você tem, sim, o direito de viver em paz, desde
que possa entrar em guerra assim que for necessário. Ou seja, se já tiver
pessoas treinadas, tiver armamentos, planejamentos, estratégias do tipo “Se nos
invadirem assim-assim, reagiremos fazendo assim-assado”.
E aí entra um dos problemas da paz. Porque mesmo quem vive num país
estável e numa nação pacífica não está a salvo de uma guerra que venha de
fora, uma guerra de invasão. O povo é pacífico, mas precisa se preparar para o
pior. Ele se prepara para o pior; gasta oceanos de dinheiro comprando armas e
treinando soldados. Fica pronto para o pior. E aí... começa a ficar impaciente
porque o pior está demorando demais.
O mecanismo da guerra começa com a preparação, e quem se prepara
para a guerra começa a ficar impaciente para que ela comece logo.
É este um dos temas do filme O Deserto dos Tártaros (”Il deserto dei
Tartari”, 1976) de Valerio Zurlini. Baseado num livro famoso de Dino Buzzatti
(que ainda não li), ele conta o dia-a-dia de um posto avançado do exército de um
país vagamente equivalente à Itália, à beira do deserto. Aqueles oficiais e
soldados estão estacionados num Forte onde Judas perdeu as botas, esperando
um inimigo que nunca vem.
Enquanto isso, os soldados ociosos descarregam uns sobre os outros a
raiva, a impaciência, a irritação, a agressividade acumulada ao longo daquela
guerra que nunca acontece.
Jacques Perrin é o oficial jovem que chega lá, inocente e deslocado, e aos
poucos vai se enredando na teia de intrigas dos oficiais mais velhos (Giuliano
Gemma, Fernando Rey, Philippe Noiret, Vittorio Gassman, Jean-Louis
Trintignant, Laurent Terzieff, Max von Sydow, Fernando Rabal, etc.), cada um
deles um ambicioso, maluco ou criminoso em potencial.
O Deserto dos Tártaros, livro e filme, é geralmente descrito como uma
obra kafkeana, por mostrar uma estrutura enorme e dispendiosa que existe para
nada, para esperar uma coisa que não acontece. Um exército que custa caro,
financiando carreiras profissionais de gente bem preparada. Homens para quem
a guerra seria preferível àquela expectativa constante de guerra.
“O soldado que não guerreia” é um tema espalhado pela literatura e pelo
cinema, e não creio que Dino Buzzatti e Valerio Zurlini o tenham esgotado.
Ele aparece de forma arrepiante (e real) nos bombardeiros mostrados por
Stanley Kubrick em Dr. Fantástico (“Dr. Strangelove”, 1966), aviões carregados
de ogivas nucleares que voam sem pousar, incansáveis, como tubarões insones,
sendo abastecidos em pleno ar, porque a qualquer momento a Guerra Nuclear
pode ser decretada e eles precisam estar perto do alvo. Qual o tripulante que em
algum momento não tem um pensamento de “Ora, foda-se, vamos acabar logo
com isto!”?
E os soldados peruanos enfiados nos cafundós da Amazônia no romance
de Vargas Llosa Pantaleão e as Visitadoras (1973)? Eternamente em guarda,
esperando alguma guerra que nunca vem, precisam ser distraídos com
prostitutas. Vargas Llosa, sabiamente, desvia a neurose na direção da galhofa
satânica, como diria Pedro Dinis Quaderna.
Quando um homem é preparado intensivamente, profissionalmente,
cientificamente, para a guerra, não se deve esperar muita coisa dele em tempo
de paz. O que fazer com esses contingentes, eternamente de armas nas mãos,
no alto de uma muralha, olhando o deserto ocre e escaldante, ansioso pela
chegada dos tártaros que (reza a lenda) vêm para matá-lo?
4936) Sete mortes misteriosas (27.4.2023)
1
Oleg Demerov, russo, 48 anos, investidor em criptomoedas, proprietário
de minas de estanho, produtor cinematográfico, caiu, jogou-se ou foi jogado da
janela de seu quarto de hotel no trigésimo andar, em Santiago do Chile, onde se
encontrava a passeio com sua noiva Masha Kurulenko, 22 anos. Demerov
estava num ritmo alucinante de trabalho, envolvido no seu super-projeto de uma
cinebiografia não-autorizada de Vladimir Putin, a ser interpretado por Daniel
Craig por um cachê na ordem dos oito dígitos. Demerov acabava de chegar ao
Chile depois de passar um mês entre Auckland e Dresden, acompanhando um
grupo de pesquisadores, e tinha uma entrevista agendada com a CNN na
semana seguinte, no Texas, na qual iria fazer importantes revelações.
2
Sylvie Froussière, 19 anos, moradora de Nantes, desapareceu na noite
de seu aniversário, até seu corpo ser encontrado dias depois numa floresta nos
arrabaldes da cidade. Crises histéricas de sofrimento por parte de alguns amigos
e amigas, estranhamente ausentes no velório, despertaram a curiosidade da
polícia, que apertou os interrogatórios até descobrir que o grupo se cotizara para
pregar-lhe uma surpresa, abordando-a, todos de macacão escuro e touca ninja,
numa rua deserta, vendando seus olhos, conduzindo-a a uma granja da família
de um deles onde a esperavam champanhe, balões comemorativos, muita
música, muitos salgadinhos na companhia de sua dúzia de amigos mais
próximos, os quais perderam a cabeça quando a retiraram da van e constataram
sua parada cardíaca de puro susto, sendo baldadas todas as tentativas de
reanimação, dando origem a uma briga feroz entre os que advogavam a
confissão total às autoridades e os que queriam ocultar o corpo como se nada
tivesse acontecido.
3
Igor Ivanovich Oblamov, 71 anos, foi assassinado misteriosamente na
mesma noite que seus filhos Piotr (46 anos), Lev (42 anos) e Andrei (39 anos),
todos solteiros e que moravam com ele, nos arredores de Oblonska, na Geórgia
meridional. Pai e filhos eram caçadores e colecionadores de armas, e foram
mortos com uma metralhadora, em diferentes cômodos de “dacha” onde
estavam passando o verão. Os corpos foram encontrados ao amanhecer pelo
leiteiro que os servia; a única pessoa sobrevivente do massacre foi a cozinheira
Nadezhda, 33 anos, que servia à família desde garota, e foi achada em estado
de choque, agachada no interior de um banheiro. As autoridades locais teceram
suposições de tentativa de assalto e de vingança, pois as vítimas eram
conhecidas pelo seu temperamento explosivo e autoritário. A cozinheira foi
levada a um hospital, onde ficou sob cuidados médicos durante duas semanas,
e ao receber alta guardou suas coisas numa malinha, pegou um trem e nunca
mais foi vista.
4
Ralph Kaprinski, 61 anos, dono de uma cadeia de lanchonetes em
Minneapolis, preparou com cuidado a próprio suicídio após descobrir-se no
estágio terminal de uma grave doença. Depois de tomar várias providências
jurídicas (testamento, liquidação de dívidas, etc.), trancou-se na cabana que lhe
servia de escritório, nos fundos de sua casa de fazenda, redigiu e datou de
próprio punho um bilhete de despedida para sua esposa Marjorie, 60 anos,
colocou na mesa à sua frente a caixa de comprimidos que iria tomar, junto com
uma garrafa de seu vinho preferido, e foi encontrado pela manhã, vítima de um
tiro na nuca, disparado por uma pistola que não foi encontrada na cabana,
trancada pelo lado de dentro.
5
Henry Koshavik, 30 anos, publicitário numa agência em Manhattan, bolou
uma surpresa para o aniversário de sua namorada, Judy Plimpton, 27 anos, a
qual tinha um fetiche erótico (publicamente assumido) pelo Homem Aranha.
Cedinho naquela manhã do ano de 2001, foi para a garagem de uma empresa
de entregas, vestiu-se de Homem Aranha, e fez-se encerrar num contêiner
vertical, do tamanho de uma cabine telefônica, o qual foi embarcado num furgão
e remetido para a casa onde morava a moça, a algumas quadras dali. Foi
durante este curto trajeto, e naquele mesmo trecho da cidade, que os aviões
terroristas derrubaram as Torres Gêmeas, espalhando o caos e cobrindo de
poeira e de detritos inúmeras ruas e centenas de veículos, inclusive o tal furgão,
cujo motorista morreu na hora. O veículo permaneceu soterrado e dias depois
foi removido e rebocado, sem maiores exames, para um depósito de emergência
situado em Staten Island, onde uma intrigante descoberta está à espera dos
investigadores de uma década futura.
6
Funcionários de um hotel em Harrogate (Yorkshire), chamaram a polícia
depois de ouvir disparos num quarto recém-ocupado. Arrombada a porta, foram
encontrados três corpos: Stephen Miller (41 anos), Samson Duncalf (35 anos) e
Annabelle Ridgeway (40 anos). Foi comprovado, por vários depoimentos, que
Miller e Ridgeway moravam na cidade e tinham um caso amoroso há alguns
anos, apesar de não viverem juntos; outras testemunhas garantiram que
Samson Duncalf, que morava em Londres, vinha nos últimos meses
encontrando-se às escondidas com ela. Os três chegaram juntos ao hotel, sem
bagagem, pouco depois do meio-dia, e três horas depois ouviram-se os tiros.
Pela posição dos corpos e pelo exame dos ferimentos, foi estabelecido que os
três estavam sentados no chão, cada um com uma arma de fogo (Miller tinha
uma
pistola
automática,
os
outros
tinham
revólveres)
e
dispararam
simultaneamente uns sobre os outros, na cabeça: Miller acertou Duncalf, este
acertou Ridgeway, e ela atingiu Miller. O Inspetor Pettinger, da polícia local,
declarou aos repórteres: “Tudo sugere tratar-se de um pacto de suicídio, a três,
planejado e executado com uma mistura de desespero e frieza. E cada um deles
com absoluta confiança de que os outros dois fariam o que foi combinado”.
7
No terceiro mês do terceiro Tenwa, na corte do Lorde Wakimodo, em
Yedo, o seu principal samurai, Yamasuké, apareceu certo dia com um ar
transtornado, e ajoelhando-se diante dos seu lorde anunciou que tinha cometido
um crime inominável e que por isso devia praticar o sepukku ou haraquiri, o
suicídio ritual. Foi grande a comoção na casa nobre e o espanto do lorde, mas
ninguém conseguiu arrancar de Yamasuké qualquer informação sobre a baixeza
ou o crime bestial que cometera. Depois de um dia inteiro de discussões, o lorde
curvou-se aos imperativos da honra, e os preparativos começaram a ser feitos
no pátio, para a cerimônia na manhã seguinte. Yamasuké pediu a seu wakatö
(escudeiro), Yokushi, que o assistisse nos procedimentos, como seu
kaishakunin,
e cortasse sua cabeça, conforme o costume, no momento
adequado. Pela manhã, estavam todos os membros da casa nobre prontos para
assistir o ritual. Yamasuké, agindo como que num sonho, fez as abluções e os
demais preparativos e sentou-se na posição tradicional. Quando empunhou a
tantö e se preparou para o golpe, houve no céu um relâmpago fortíssimo que
cegou momentaneamente todos os presentes, seguido por alguns segundos de
escuridão total e de um trovão ensurdecedor, que fez a casa estremecer.
Quando todos se recuperaram do susto e puderam enxergar novamente,
perceberam horrorizados que Yokushi, o escudeiro, estava caído sobre a própria
espada que empunhava instantes atrás, morto; e que no grupo dos assistentes
estava também caída no chão, lívida e morta, a jovem e bela esposa de
Yamasuké. Quanto a este, pareceu emergir de um pesadelo, saltou, ficou de pé
horrorizado e pôs-se a perguntar a todos o que estava acontecendo. As crônicas
da época registram apenas que depois desse dia Yamasuké raspou a cabeça e
tornou-se monge andarilho.
4937) As chamadas telefônicas de Roberto Bolaño (30.4.2023)
(Roberto Bolaño)
A literatura de Roberto Bolaño (1953-2003) tem uma aparente facilidade,
porque sua escolha de palavras, de frases, de formato de discurso, é sempre a
escolha visando à solução mais fluida, mais imediatamente legível. Numa
entrevista à televisão (no YouTube) ele afirma que seus livros têm 600 páginas
mas teoricamente poderiam ser lidos de uma só “estirada”. Não é exagero.
Essa opção faz, sem dúvida, muita gente desdenhar do seu estilo, porque
é sempre forte no meio literário a corrente que privilegia a frase trabalhada, a
palavra surpreendente, o discurso que de tão alusivo chega a ser enigmático.
Ou seja, a prosa de Guimarães Rosa, de Osman Lins, Nélida Piñon, Carlos
Emílio Corrêa Lima.
Isaac Asimov criou uma dualidade famosa: a prosa-vidraça (que é
transparente, discreta, quase invisível) e a prosa-vitral (colorida, decorativa, que
vale por si mesma, e não pelo que está além de si). Bolaño tem uma prosavidraça, das que parecem mostrar a ação da história sem interferir sobre ela.
(Sabemos que é a prosa quem cria essa “ação”; mas no instante da leitura a
ação flui tão cristalinamente que esquecemos esta verdade básica.)
Estou terminando a leitura da coletânea de contos Llamadas telefónicas
(1997), em que o chileno recorre o tempo inteiro a essa posa que para alguns é
meramente denotativa, jornalística, pouco poética, usando palavras comuns e
parecendo mais descrever do que recriar, transfigurar.
No plano do vocábulo e da frase a literatura de Bolaño é o contrário da
que Guimarães Rosa defendia. Rosa queria uma briga permanente com a
palavra, recusando o termo habitual e tentando interferir nele, ou então substituílo por um equivalente capaz de produzir estranhamento ou surpresa.
No entanto, essa prosa invisível, nos contos do chileno, está a serviço de
uma complexa dramaturgia de personagens e situações. Com linhas simples,
ele produz um desenho complexo. Estruturas barrocas, onde se cruzam e se
interferem os destinos e as motivações dos seus personagens. A complexidade
de Bolaño não está na frase, está um degrau mais acima.
A ficção de Bolaño pode ser vista como (entre outras coisas) uma
coreografia dos fluxos individuais dos personagens. É no plano dos personagens
(não no plano do vocábulo) que Bolaño desafia a atenção e a memória do leitor,
e libera sua imaginação. Ele é desses autores capazes de “tirar da cartola”,
dezenas, centenas, talvez milhares de figurantes, cada qual com rosto, biografia,
alma, personalidade, idiossincrasias e mistérios. Durante algumas linhas ou
algumas páginas serão protagonistas dos episódios mais variados – coisas que
estão acontecendo na história em si, ou que alguém meramente conta para outra
pessoa no ônibus, num passeio, numa chamada telefônica.
Episódios que podem ser trágicos, engraçados, violentos, patéticos,
emotivos, enigmáticos, sórdidos... É uma exuberância barroca de situações,
algumas banais, outras excêntricas, algumas beirando o surrealismo. Todas
verossímeis, toda dolorosamente reais no mundo em que a história acontece.
Bolaño tem um olhar empático para contemplar a comédia humana.
Constrói seus personagens com traços rápidos e precisos, revelando um lado
essencial de seu método: uma curiosidade atenta e lúcida pelas pessoas de
carne e osso, seus sentimentos, crenças, expectativas. Uma empatia que não
dispensa a visão crítica, o humor e mesmo o sarcasmo, onde ele se aplica. Uma
vivência de pele curtida. O autor viajou muito, e conheceu vários países sem
muito dinheiro no bolso, o que tem sempre seu lado educativo. Sua experiência
internacional não é a de um jovem europeu fazendo sua “grand tour” de acesso
à vida adulta; é a de um auto-exilado que sobrevive como pode, trabalha no que
aparecer, e se diverte em qualquer brecha que surgir.
Essa enorme “legibilidade” do texto de Bolaño não se perde quando ele
injeta maior dose de projeção subjetiva, como se dá com a narração, na primeira
pessoa, do conto “Joanna Silvestri”, a história de uma atriz pornô e sua paixão
por um colega de membro desmedido; ou em “Detetives”, o conto só-diálogo
entre dois policiais comentando o reencontro com um ex-colega de esquerda,
agora preso na cadeia (um episódio da juventude do próprio autor, que fugiu da
prisão no Chile ajudado por um ex-colega de escola).
Bolaño escreveu A Literatura Nazista nas Américas (1996), onde conta as
biografias fictícias de escritores de direita, dos matizes mais variados, e em
muitos casos consegue retratar de maneira não-hostil, mas analítica, esses
autores, que podem ser fascistas cruéis, e às vezes são meros desorientados,
carreiristas, oportunistas sem talento, que querem apenas “aproveitar a maré” e
se refugiar à sombra do poder.
Comentado aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2013/02/3113-literatura-nazista1922013.html
Ele não nega sua simpatia aos medíocres como “Henri Simon Leprince”
(em Llamadas Telefónicas), um escritor francês de terceira categoria que arrisca
a vida, nos anos da Resistência Francesa, para salvar a vida de escritores
melhores do que ele, que não dão muita atenção a esse indivíduo “modesto e
repugnante”.
(Bolaño jovem)
Bolaño é da minha geração: era três anos mais novo do que eu. São
muitas as infuências que se compartilha quando se tem a mesma idade e os
mesmos gostos. Seus personagens leem Borges, Albert Camus, Lovecraft,
William Carlos Williams; assistem filmes de Antonioni e de John Carpenter. Leem
a mesma ficção científica que eu li (Fritz Leiber, Philip K. Dick, Ursula LeGuin) –
e o autor dedicou a este aspecto um livro inteiro, O Espírito da Ficção Científica
(2016):
https://mundofantasmo.blogspot.com/2017/04/4228-roberto-bolano-eficcao-cientifica.html
Seus personagens cometem erros, tomam decisões irracionais, acreditam
em miragens, brigam por bobagens, mas são o tempo inteiro homens e mulheres
verossímeis, consistentes, além de imprevisíveis.
Bolaño, o narrador, o mamulengueiro desse imenso cortejo de
criaturinhas, é às vezes um pouco como o Tony do conto “Vida de Anne Moore”:
Tony jamais se irritava, jamais discutia, como se considerasse
absolutamente inútil forçar outra pessoa a compartilhar seu ponto de vista, como
se acreditasse que todas as pessoas estão extraviadas e que é muito
pretensioso um extraviado tentar ensinar a outro a melhor maneira de achar o
caminho. Um caminho que não apenas ninguém conhece, mas que
provavelmente não existe.
Muitos destes contos têm como protagonista direto ou subentendido o
poeta Arturo Belano, alter-ego do autor, um dos protagonistas de Os Detetives
Selvagens (1998). Muitos dos seus personagens são escritores: profissionais,
amadores, famosos, obscuros. Muitos escrevem diários privados, poemas que
ninguém lê, romances que ficam pela metade. Curiosamente, os personagensescritores de Bolaño não são pretexto para longas teorias estilísticas ou
discussões existenciais sobre o “fazer literário”. Detetives Selvagens tem como
figuras centrais dois anarquistas de vanguarda, Belano e Ulises Lima; durante o
livro inteiro não vemos os poemas escritos por eles. Vemos somente a vida, a
miragem, a busca, a juventude que não volta, o caminho que talvez não exista.
4938) O Cavaleiro Não-Existente (3.5.2023)
Ítalo Calvino é capaz de juntar num mesmo texto a manipulação pósmoderna dos instrumentos narrativos e a capacidade de empregá-los para
contar uma história à moda antiga. Nem todo mundo consegue. Um problema da
escritura de vanguarda, a escritura que questiona explicitamente os instrumentos
que usa, é que o resultado é quase insignificante. O texto fica sendo só
experimentação e questionamento. O leitor acostumado a ler histórias pensa
consigo: “Sim, entendi o questionamento. E daí?...”
Por outro lado, como dizia Bernard Shaw (se não me engano) sobre artes
plásticas: “As pessoas que não gostam da Arte Moderna também não suportam
mais a arte à moda antiga.”
Eu estou um pouco nessa zona crepuscular, porque há muitos autores de
vanguarda que eu admiro, leio, comento, mas não tenho prazer em ler. O texto,
mesmo apresentando-se como um romance, conto, etc., é só uma reflexão sobre
o Texto. Um experimento necessário, é claro, mas se a literatura inteira fosse
daquele jeito eu não leria muitos livros.
Calvino faz experiências com as técnicas narrativas, mas consegue contar
histórias que são alternadamente divertidas, reflexivas, desconcertantes,
humanas, absurdas, reveladoras... Ou seja, cumprem a mesma multiplicidade
de funções que cumpriam as histórias escritas nos anos 1800 e 1900.
Um bom exemplo disto é a trilogia que estou lendo, Nossos Ancestrais,
que inclui os livros O Visconde Partido ao Meio (1952), O Barão nas Árvores
(1957) e O Cavaleiro Não-Existente (1959). Farei alguns comentários sobre este
último.
Li O Cavaleiro Não-Existente numa tradução em inglês (“The Non-Existent
Knight”, Picador, trad. Archibald Colquhon), onde percebi que os nomes próprios
têm grafia diferente do original (Rambaldo torna-se Raimbaud, Gurdulù vira
Gurduloo, etc.).
Em primeiro lugar, quando Calvino usa protagonistas do tipo
visconde/barão/cavaleiro
ele
está
pedindo
emprestados
não
apenas
personagens-símbolos dos velhos romances de cavalaria, mas também os
nobres que são a encarnação daquela Europa refinada, aristocrática, guerreira,
grandiloquente. E ele faz com esses personagens o mesmo que Cervantes fez
com seu Dom Quixote. Uma desconstrução bem-humorada do cavalheirismo,
dos códigos de nobreza, da valentia, das obsessões genealógicas.
Depois, as confusões em que os personagens se metem parecem mais
reais do que os ideais que defendem. Calvino tem (como Fellini, como Pasolini)
a intuição correta e vivida de como as pessoas comuns se comportam em
variadas situações. A batalha contra os mouros pode ser uma mera abstração,
sem nenhuma autenticidade histórica, como num folheto de cordel ou num
desenho animado. Mas os dramas individuais soam verdadeiros. Como já vi um
leitor dizer uma vez: “O livro é bom porque quando o personagem tem um
problema a gente se aperreia.”
Nestas fábulas cavalarianas, Calvino pega um personagem meio absurdo
e tece em torno dele e de suas ações um rosário de histórias menores e de
personagens impagáveis. O “cavaleiro não-existente” é Sir Agilulfo, que não
passa de uma armadura vazia mas que pensa, fala, age, discute, entra em
combate, etc. Vale como uma radicalização daquele personagem de Machado
de Assis (“O Espelho”) que só se via no espelho quando vestia o uniforme militar.
No livro, entretanto, Agilulfo chama-se “Agilulfo Emo Bertrandino dei
Guildiverni e degli Altri di Corbentraz e Sura, cavaliere di Selimpia Citeriore e
Fez”, ou seja, é um representante legítimo da meritocracia hereditária do mundo
feudal e monárquico. “Tem que respeitar!...”
Agilulfo é antipatizado no exército de Carlos Magno. Os outros cavaleiros
o aceitam porque ele exerce a indispensável e chata função de organizador de
logística do exército, supervisionando comidas, dormidas, etc. É um fanático da
organização e da informação. Numa cena hilária, uma viúva bonitona consegue
levá-lo para a alcova, pensando tratar-se de um homem como os outros. Agilulfo
não quer despir a armadura e revelar-se inexistente, e no mais puro espírito nerd
passa a noite ensinando longamente à beldade as técnicas corretas de como
acender a lareira, como forrar a cama, etc., e nada acontece.
A história tem momentos que lembram Dom Quixote, outros que lembram
Monty Python e o Cálice Sagrado. Sem ser propriamente um romance
humorístico, ele provoca sorrisos pela justaposição inesperada entre emoções e
ambientes que não combinam entre si, ou entre valores morais e necessidades
práticas, ou entre a fantasia afetiva do personagem e o que de fato está
acontecendo ao seu redor.
Todos nós achamos hoje em dia que o povo medieval vivia numa espécie
de delírio coletivo, acreditando em conceitos invisíveis e não-existentes,
morrendo e matando por causa deles. Eles pensariam o mesmo de nós. E por
isso a sátira de Calvino tem dois gumes.
O autor brinca com instrumentos literários como a voz narrativa. Há um
narrador invisível contando esta história das aventuras do inexistente Agilulfo, do
jovem escudeiro Raimbaud, do brutal e desorientado Gurduloo, e outros. O
capítulo 1 começa de forma tradicional:
Por baixo dos parapeitos vermelhos das muralhas de Paris, o exército da
França estava reunido. Carlos Magno preparava-se para passar em revista os
seus paladinos. Eles já estavam à espera há mais de três horas... (trad. BT)
É uma típica história contada por um narrador onisciente. Ele descreve os
fatos como um Deus que lá do alto vê não apenas os grandes acontecimentos,
mas sabe das emoções mais íntimas de cada personagem, e até de coisas que
eles próprios não sabem.
A narração prossegue assim, bem normal, até que o Capítulo 4 se inicia
com uma longa reflexão sobre os conceitos de existir e não-existir, e a certa
altura lemos:
Eu, que conto esta história, sou a Irmã Teodora, freira da ordem de Santa
Columba. Escrevo de um convento, baseando-me em velhos papéis
descobertos, ou relatos escutados em nosso parlatório, ou ainda em raros
depoimentos de testemunhas. Nós, freiras, temos raras oportunidades de
conversar com soldados; portanto, aquilo que eu não sei sou obrigada a
imaginar, e digam-me, que outro recurso eu teria? Nem toda esta história está
clara para mim. Tenho que implorar indulgência; nós, moças do campo, mesmo
de sangue nobre, vivemos vidas reclusas, em castelos e conventos afastados; e
a não ser por cerimônias religiosas, tríduos, novenas, jardinagem, plantio,
cuidados com a vindima, punições pelo chicote, escravidão, incestos, incêndios,
enforcamentos, invasões, saques, estupros e epidemias, somos pessoas com
pouca experiência do mundo. (trad. BT)
Deste momento em diante, o livro ganha outra dimensão, porque em vez
do onisciente Calvino quem está nos contando a história é a desabusada “Irmã
Teodora”, que toma diante de nós liberdades narrativas estonteantes.
Um dos mandamentos básicos da Arte da Narrativa é: faça o leitor
(espectador, ouvinte, etc.) acreditar nos personagens, interessar-se por eles,
preocupar-se com o que lhes acontece. Os livros que permanecem costumam
ter essa capacidade. Isto está presente em obras como Em Busca do Tempo
Perdido de Proust, O Nome da Rosa de Umberto Eco, Grande Sertão: Veredas
de Guimarães Rosa... E também em best-sellers formulaicos, como os livros de
espionagem de Ian Fleming ou as novelas de amor de Barbara Cartland. As
pessoas parecem reais. O que acontece com elas, mirabolante, banal, absurdo,
nos interessa.
Isto não quer dizer que não haja grandes obras literárias sem estas
características. A literatura, no entanto, é um diálogo, ou melhor, uma discussão
coletiva entre autores e leitores, onde têm mais chance de marcar presença as
obras que (de acordo com a antiga e quase inatingível fórmula) usam uma
linguagem interessante para contar coisas interessantes que acontecem com
criaturas interessantes.
4939) Nick Cave e a coroação do Rei Charles (6.5.2023)
No próximo sábado (estou escrevendo na 4ª. feira, dia 3) o Rei Charles
da Inglaterra vai ser coroado, e o Reino Unido fervilha de piadas, memes,
debates, fofocas. Para isso servem as monarquias, afinal – para tirar dinheiro
dos turistas, e para aquecer as fantasias-de-poder das multidões.
A monarquia é puro espetáculo. O Império brasileiro, por exemplo, teve
um imperador playboy, pegador e voluntarioso. Foi substituído pelo filho –
intelectual, conciliador, severo, mas que mesmo assim não abominava o
espetáculo. O Baile da Ilha Fiscal não foi apenas o símbolo do fim de uma era,
foi o adeus à pompa e a frivolidade do reino para dar lugar à rudeza e ao suor
da caserna.
E os dois não estão assim tão distantes um do outro, porque as
monarquias são construídas no fio das espadas e no fundo das alcovas. Já dizia
o impagável Pedro Dinis Quaderna, de Ariano Suassuna, no Romance da Pedra
do Reino (1971):
“Pode dizer, Excelência! Eu absolutamente não me incomodo mais de
ser filho-da-puta! Ou melhor, de ser neto-da-puta, porque minha Mãe, coitada,
é que era filha-da-puta, filha bastarda do Barão do Cariri e portanto irmã por vias
travessas de Dom Pedro Sebastião Garcia-Barretto. Antes, eu ficava danado da
vida quando alguém falava nessa filho-da-putice nossa. Mas lá um dia, numa
discussão, Samuel declarou que isso de bastardia não tem a menor importância
nessas coisas de fidalguia e linhagens reais, tanto assim que os Braganças,
descendentes de Dom João I e Nuno Álvares Pereira, são várias vezes
bastardos e netos de padre! Depois daí, fiquei descansado e perdi a vergonha!”
(Folheto 53)
Satirizar a espetacularização do poder e a glamurização da banalidade é
um dos esportes favoritos de escritores, intelectuais, artistas em geral. E quando
o roqueiro Nick Cave, um dos expoentes do dark rock de língua inglesa, foi
anunciado dias atrás como um dos convidados para a coroação de Charles,
houve no meio roqueiro um certo movimento sísmico de incredulidade e
deboche.
Nick Cave distribui periodicamente uma newsletter, The Red Hand Files,
onde troca idéias com seus admiradores, responde perguntas, discute questões
propostas. E no número 235, já agora nos primeiros dias de maio, ele reproduziu
as mensagens de espanto de alguns fãs:
-- Que diabos, você vai pra coroação do Rei? (Jon)
-- Fiquei sabendo que você vai para a coroação, fazendo parte da
delegação da Austrália. Você é monarquista? Por que está indo? (Adrian)
-- A co-ro-a-ção? Fala sério. (Roger)
-- Nick Cave vai à coroação? O que será que o jovem Nick Cave ia pensar
disto?! (Matt)
Com a sisudez e a franqueza de sempre, o roqueiro respondeu (tradução
minha):
Caros John, Adrian, Roger e Matt:
Vou dar uma resposta breve, porque ainda estou escolhendo uma roupa
para usar na Coroação.
Não sou monarquista, nem sou roialista [Nota do tradutor: neologismo
português recente], como também, por falar nisto, não sou o mais ardente dos
republicanos. O que também não sou é espetacularmente desinteressado pelo
mundo e pela maneira como ele funciona; não sou tão ideologicamente
sequestrado nem tão ranzinza a ponto de recusar um convite para (talvez) o
evento histórico mais importante no Reino Unido em nossa geração. Não apenas
o mais importante, mas o mais estranho, o mais bizarro.
Encontrei a falecida Rainha uma vez, no Palácio de Buckingham, num
evento dedicado aos “Australianos Mais Promissores Morando no Reino Unido”
(ou coisa parecida). Foi uma ocasião meio canhestra, mas a Rainha em pessoa,
vestida num conjunto cor de salmão, parecia quase extraterrestre, e era a mulher
mais carismática que conheci. Talvez fosse a iluminação, mas ela de fato emitia
uma espécie de brilho. Quando contei a minha mãe – a qual tinha a mesma idade
da Rainha e, como ela, morreu com mais de 90 anos – a respeito dessa ocasião,
seus velhos olhos se encheram de lágrimas.
Quando acompanhei o funeral da Rainha pela TV no ano passado
percebi, para meu próprio pasmo, que também eu estava chorando quando
retiraram do ataúde a coroa, o orbe e o cetro, e o abaixaram para a abertura sob
o piso da catedral de São Jorge. Estou tentando dizer a vocês que, para além do
interminável mas necessário debate sobre a abolição da monarquia, tenho um
inexplicável vínculo emotivo com a família real – sua estranheza, e a natureza
profundamente excêntrica de todo esse fenômeno, o qual reflete com perfeição
a bizarrice inigualável da próprio Grã-Bretanha. Eu simplesmente sinto uma
atração
por
esse
tipo
de
coisa
–
tudo
que
é
bizarro,
estranho,
extraordinariamente espetacular, tudo que nos deixa pasmos.
Quanto ao que o jovem Nick Cave iria pensar... bem, o jovem Nick Cave
era, com todo o respeito ao jovem Nick Cave, jovem, e como muitos outros
jovens, era ligeiramente insano, e eu procuro ter uma certa moderação ao usálo como parâmetro para o que eu devo ou não devo fazer. Mas era um cara legal,
eu tenho que admitir. Era insano, mas era um cara legal.
Com tudo isto em mente, estou me preparando para ir à Coroação. Acho
que vou de terno.
Com amor, Nick
Sou um admirador de Nick Cave, um dos grandes poetas do rock em sua
geração. Ele é uma espécie de Edgar Allan Poe com auto-controle. Tem a
fagulha demoníaca, a vulnerabilidade angelical, o cinismo neo-urbano, o
romantismo temperado pelo senso da fatalidade, a influência má dos signos do
Zodíaco. E é australiano, ou seja, vem de uma espécie de Brasil-do-impériobritânico, um país posto de pé com o muque de degredados, bandidos, fanáticos,
aventureiros, religiosos de maus costumes, fidalgos de má reputação.
Pior que o Brasil, aliás, porque o Brasil pelo menos tem amazônias inteiras
para vender. Teve madeira, ouro, açúcar, diamantes; hoje tem petróleo e
floresta. Já a Austrália (posso estar sendo injusto, claro) é um deserto de sal,
que o ser humano tenta comer pelas beiradas e ainda não conseguiu.
Bruce Chatwin, em The Songlines ("O Rastro dos Cantos", Companhia
das Letras, 1987), mostra a Austrália como uma mistura de sítio arqueológico e
solo sagrado ao ar livre, invadido e depredado aos poucos. Werner Herzog,
amigo de Chatwin, glosou o mesmo mote em filmes como Nomad (2019) e Onde
Sonham as Formigas Verdes (1984).
Neste último, ele mostra o confronto às vezes violento entre os aborígines
australianos, defensores de seus sítios religiosos, e as construtoras e
mineradoras européias, vindas para passar o trator, a dinamite e a escavadeira
naquilo tudo. Em algumas cenas de tribunal, discutem-se os respectivos direitos,
e os aborígines precisam vestir ternos para defender seu território diante de um
juiz britânico.
“Acho que vou de terno” (Nick Cave)
(Roy Marika e Wandjuk Marika, em Onde Sonham as Formigas Verdes)
Dizem que quando D. Pedro II estava exilado em Paris, no fim da vida, fez
uma visita a Victor Hugo, a quem admirava muito. Os dois conversaram de
maneira sisuda e cortês sobre temas literários. À saída, Hugo o tratou por
“Majestade”, e D. Pedro respondeu: “Só há uma majestade aqui, e é Victor
Hugo”.
Wilson Martins comenta que esta resposta foi dada com mais malícia do
que parece à primeira vista, mas eu, como tenho cabeça de romancista, posso
imaginar que foi sincera, assim como posso imaginar o Rei Charles III apertando
a mão de Nick Cave e tratando-o por “Majestade”. Depois de toda a
esculhambação a que o rock britânico já submeteu a monarquia, seria uma
vingançazinha divertida.
(Príncipe Charles e Princesa Diana visitando Uluru (“Ayers Rock”), sítio
sagrado dos aborígines australianos, 1983)
4940) Rita Lee (1947-2023) (9.5.2023)
“A mais completa tradução de São Paulo”, no verso de Caetano Veloso.
Eu não diria a mais completa, porque acho meio utópica a idéia de que uma parte
possa representar bem o todo. Eu diria que era a idéia mais femininamente
charmosa de São Paulo, pois naquele tempo eu (falo de eu-adolescente, eudezesseis anos quando ela tinha dezenove) via São Paulo como uma cidade
lúgubre, cinzenta, fuliginosa, tchecoslovaca, uma espécie de 1984 dublado em
português. A São Paulo terrificante do Lugar Público de José Agrippino de Paula.
Rita (a Rita dos Mutantes) era luminosa, irreverente, irrequieta e dizia
coisas inteligentes. Uma mistura de Janis Joplin com Gelsomina. Se o
Tropicalismo daquele tempo nos parecia uma noite no circo, o número dos
Mutantes já sugeria que em breve eles teriam sua lona própria e fariam turnês
independentes. A voz de Rita ia desde a carícia de “Le Premier Bonheur du Jour”
até o caipirês caricato de “2001” (a famosa “Astronarta libertado...”). Num dia ela
aparecia vestida de noiva, no outro vestida de bruxa. “São Paulo é assim?”,
pensava eu. “Se for, eu quero conhecer São Paulo.” (Só conheceria dez anos
depois, mas esta é outra história.)
Volto a dizer aqui algo que já falei sobre a imagem da mulher sexy. Minha
geração (não falo pelas outras) foi submetida a um bombardeio de mulheres
fatais do cinema, aquelas que Carlos Drummond chamava de “as sereias
vulcânicas da Broadway”. Era Elizabeth Taylor, Jayne Mansfield, Rachel Welch,
Kim Novak, Ursula Andress... Mulheres fatais, mulheres capazes de descarrilar
uma locomotiva com um olhar. E vigorosas. Lembro de uma palestra de Antonio
Callado em que ele se referia a personagens femininas “tão atemorizantes
quanto uma nadadora olímpica iugoslava”.
Rita Lee era o contrário disso, e se não foi a mais completa tradução de
sua cidade foi a de sua época, a época das garotas de minissaia, botinhas, boné,
casaco, gola olímpica, as Annas Karinas, as Jeannes Moreaus, as garotas-doapartamento-ao-lado. Jogando em cima disto, claro, a carnavalização figural dos
Tropicalistas. Com ou sem fantasia, eram garotas da vida real que se
comportavam (inclusive no palco) como gente. Você não imagina Marlene
Dietrich dando uma topada no palco. Eu conseguia imaginar Rita Lee dando uma
topada, se estabacando no chão, e levantando às gargalhadas.
Os Mutantes traziam também um fio de ficção científica – a FC que nunca
mais deixei de associar à capital paulistana. Ao que parece (versões divergem),
o grupo tirou seu nome do livro O Império dos Mutantes (“La Mort Vivante”,
Stefan Wul, 1958), que o grupo leu sob este título na edição portuguesa (a
tradução brasileira se chamou “A Cadeia das 7”).
Era um livro sobre clonagem, em que o DNA de uma menina é
reproduzido sete vezes (por segurança, para o caso de alguma falha) em
laboratório. Algo foge ao controle (ou não seria FC) e daí a pouco temos sete
meninas clones, idênticas, telepáticas e (pouco a pouco) todo-poderosas.
Havia nos Mutantes, talvez, essa utopia ingênua do “somos todos um só”,
o famoso “I am he, as you are he, as you are me, and we are all together”. Não
eram: a banda brigou, Rita foi expelida, decolou numa carreira solo, voltou
arrasadoramente no fim dos anos 1970 com “Mania de Você”, ao lado de Roberto
de Carvalho; e o resto é história. Um pop brasileiro com voz feminina, pegada
roqueira, doçura bolerística, sarcasmo urbano, letras de quem gostava de ler.
A história de Rita foi se me revelando de pouquinho, ao longo dos anos.
Eu sabia desde o início que ela tinha ascendência norte-americana, e achei que
“Lee” era sobrenome da família, sendo seu nome completo “Rita Lee Jones”.
Nos anos 1980, já morando no Rio de Janeiro, comecei a ajudar Duncan
Lindsay (“o irmão de Arto”) numa pesquisa dele sobre ex-Confederados norteamericanos que, derrotados na Guerra da Secessão, vieram morar no Brasil a
partir de 1867. Entre eles, algum antepassado de Rita, cujo “Lee” não era
sobrenome de família, e sim homenagem ao famoso General Lee.
Segundo descobri através de Duncan, havia toda uma história de
Confederados que se auto-exilaram no Brasil após a derrota, muitos indo morar
na Amazônia, e outros no interior de São Paulo. Em Santa Bárbara d’Oeste, terra
do pai de Rita, há um Cemitério dos Americanos. A cidade de Americana (SP),
deve seu nome a essa corrente migratória. Que nos deu, afinal, a “ovelha negra”
da família Jones.
É mais um fio-de-aranha da História, daqueles difíceis de enxergar e
difíceis de romper, ligando a guerra de libertação dos escravos norte-americanos
e a formação do rock brasileiro. Como diziam os dialéticos, tudo se relaciona,
tudo está interligado. Isto não quer dizer que tudo seja causa de tudo, mas que
tudo é efeito-conjunto de um tecido, de um entrecruzamento de presenças.
Quando algum artista morre, os coleguinhas de imprensa sempre vêm nos
perguntar “qual é o legado que Fulana de Tal nos deixa”. O legado somos nós,
companheiro. O legado de uma pessoa como Rita Lee é a pessoa que eu sou
hoje, e não desmereço o legado dela dizendo que há mil outros legados, além
do dela, teclando estas palavras.
Somos um tecido, um texto, fios entrecruzados por onde passa uma
corrente de alguns ampères. E o mais interessante é que, mesmo que a partir
de hoje um desses fios não esteja mais aqui, a corrente vai continuar passando.
Por que? Não sei, só sei que a gente faz amor por telepatia.
(ilustração by Fraga)
4941) Minhas Canções: "Chegada" (12.5.2023)
Já escrevi aqui neste Mundo Fantasmo alguns artigos tentando explicar
minha concepção do que é rock. Não me refiro apenas ao rock-and-roll ingênuo
e cinquentão (=dos anos 50) de Bill Haley e Seus Cometas, mas a tudo que
aconteceu depois dele, e de Elvis Presley, Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan,
The Who, Led Zeppelin, Sex Pistols, The Clash... Et coetera.
O rock, para mim, é primeiro que tudo uma junção de um elemento branco
(a tecnologia eletro-eletrônica) com um elemento negro (a pulsação rítmica).
Depois, vêm muito mais coisas; mas eu acho que a base é isso aí.
Ou, como já escrevi algures:
O rock norte-americano é a eletrificação das formas de música rural
brotadas nos próprios EUA: primeiro, o blues dos negros do Mississipi; depois,
as canções “country” dos vaqueiros do Oeste, a música “bluegrass” de raiz (com
seus vertiginosos solos de banjo e de rabeca), a tradição de música “gospel” das
igrejas batistas da população negra urbana.
Do ponto de vista técnico, as palavras-chave são eletrificação e
reprodução-ampliada, porque uma coisa é você tocar um ritmo bem sacudido de
forma acústica, alcançando uma platéia de algumas centenas de pessoas, e
outra coisa é você tocar o mesmo ritmo sacudido de forma eletrificada,
alcançando centenas de milhares – em Woodstock, na Praia de Copacabana,
num desses mega-festivais que rolam por aí.
Aqui no Brasil, um dos grandes saltos musicais que minha geração
presenciou foi o crescimento de uma música eletrificada, feita no Nordeste, tendo
por base os ritmos populares como o maracatu, o baião, o cavalo marinho, o
coco e por aí vai. É o nosso rock. É a nossa eletrificação do ancestral.
Chamamos de “rock brasileiro” a música feita pelas jovens bandas
brasileiras como resposta ao rock estrangeiro: dos Mutantes aos Paralamas do
Sucesso, de Renato e Seus Blue Caps à Blitz, da Bolha à Legião Urbana, todos
pegaram o som estrangeiro e fizeram com ele o que cabia no seu balanço. Esse
Rock-BR (no qual incluo a chamada Jovem Guarda) é uma resposta nossa à
síntese norte-americana, injetando nela elementos próprios.
Poderíamos também chamar de “rock brasileiro”, com certa propriedade,
essa eletrificação dos ritmos populares. É a nossa síntese. Não somente o
maracatu e o coco, mas o samba também. Só que se alguém vai falar de rock
brasileiro não vai pensar em samba-rock, não vai pensar em Jorge Ben em
primeiro lugar.
Anos atrás, em 2003, fui procurado pela produção do Maracatu Várzea do
Capibaribe, do Recife, pedindo uma música para o disco novo. Mandei esta
canção, que foi gravada pelo cantor Abissal, acompanhado pelo Maracatu e pela
rabeca de outro parceiro, Siba. O CD é Abissal e os Caboclos Envenenados, e
dele participam outros talentos como Elias Paulino, Silvério Pessoa, Mestre
Barachinha, etc.
O maracatu eletrificado é uma das maneiras que encontramos para
inventar nosso próprio rock. Quando Chico Science e a Nação Zumbi
começaram a tocar no Brasil inteiro, Ariano Suassuna era Secretário de Cultura,
e isso gerou uma infinidade de discussões sobre as afinidades e as
desafinidades entre o Movimento Armorial e o Mangue Beat. Ariano, que
admirava a pessoa e o talento de Chico, dizia: “Ele mistura o rock com o
maracatu, e acha que com isso está valorizando o maracatu, mas está
valorizando é o rock, que é muito inferior”.
Não há muito o que discutir, pois acho normal alguém não gostar de rock,
ou não gostar de maracatu, e quem diz isso sou eu, que gosto dos dois.
O maracatu não tem raízes em Campina Grande. Meu DNA de infância
traz a sanfona do forró, a viola dos repentistas, os ganzás dos emboladores; traz
o bolero de Nelson Gonçalves e Altemar Dutra; traz o samba carioca de Miltinho
e Roberto Silva e o samba paulista de Adoniran Barbosa e dos Demônios da
Garoa, e traz até o rock – porque a minha infância foi carimbada pelo que tocava
em rádio, naqueles tempos pré-música-na-televisão.
O maracatu me chegou mais tarde, uma referência distante que vinha se
aproximando como um exército de tambores em marcha. Através dos meus
parceiros recifenses, como Zeh Rocha, Lenine, Lula Queiroga e outros, aprendi
a duras penas a reproduzir a quebrada do bombo – e acabei compondo alguns
maracatus, dos quais este aqui foi gravado, e vale como amostra.
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https://www.youtube.com/watch?v=OxByri35iBQ&ab_channel=ThiagoQu
eiroz
CHEGADA (Letra e música: BT)
Gravação: Abissal & Várzea do Capibaribe
São tambores de chamada
motores da força e luz
jogando eletricidade nos terreiros.
Guitarras de feiticeiros
vibrando embaixo do som
da avenida que surgiu de madrugada.
São cabeças coroadas
de fumaça de vulcão
e uns olhos de lua cheia na lagoa.
É um milhão de pessoas
no mesmo raio de sol
e o baque dos pés no chão da noite inteira.
Chegou na tela do mundo
chegou na letra da mão
chegou no colo da fera
chegou no X da paixão;
chegou no brilho da faca
chegou no lixo da feira
chegou no arranco do grito
chegou no chão da ladeira;
chegou um rosto e um nome
nascendo dentro de mim
e continuando assim a vida inteira.
(Maracatu Real Várzea do Capibaribe)
4942) O erro traz uma idéia (15.5.2023)
(Brian Eno)
O erro é um parceiro, não um inimigo. O músico Brian Eno já preconizava:
“Valorize seu erro, trate-o como se fosse uma intenção oculta”.
Estou eu agora à noite procurando um livro qualquer em minhas estantes.
Olhando numa prateleira lá no alto, avisto uma lombada com o título O Diário da
Ratazana.
Muitos septuagenários se queixam da miopia crescente. Eu não me
queixo. Para mim, é uma janela-aberta-número-dois, trazendo-me idéias que
não me ocorreriam de outro modo. Porque ao estender o braço e puxar o volume
misterioso... é apenas O Desatino da Rapaziada, o saboroso memorial histórico
de Humberto Werneck sobre a literatura mineira da primeira banda do século
passado.
Aqui neste blog eu volto de vez em quando a este tema: uma frase é
entendida erradamente, e acaba resultando numa frase completamente outra.
Um exercício constante, praticado desde os meus dezoito anos, é o do
“erro proposital”. Produzir uma frase surrealista a partir da sonoridade ou da
grafia de uma frase banal. Inspiração de André Breton e de Raymond Roussel.
Pego, por exemplo, a frase inicial deste artigo, “o erro é um parceiro”.
Basta uma pequena torção para transformá-la em “o Eros é um pacote”. Juro:
nunca pensei nessa frase antes. E ela significa o quê? Bem, freudianamente
poderíamos dizer: o impulso erótico humano não é um mero detalhe, é um
pacote inteiro. Ou você aceita seu erotismo (sua sexualidade pessoal) com tudo
que ela inclui, necessita e acarreta... ou então vá pastar.
Posso fazer o mesmo com uma frase de logo depois: “o músico Brian Eno
já preconizava”. Isto pode me render o quê? Vejamos: “o mágico Billy The Kid já
procrastinava”. Sim, posso deixá-la assim, meio surrealista, meio selvagem de
sentido. Mas posso escavacar um pouco em busca de algum grão de história.
Digamos um mágico de salão, como no filme O Grande Truque (“The
Prestige”), de Christopher Nolan. Seu grande número é vestir-se de cowboy e
duelar com um assistente em pleno palco. O truque é encenar esse duelo-defaroeste e na hora de sacar as armas os dois sacam igual, atiram igual... e as
balas se chocam em pleno ar!
Terminado o número, o espectador mais incrédulo é chamado ao palco
para recolher as duas balas, amassadas uma de encontro à outra, e ainda
quentes do disparo.
Todo o número é filmado do palco, de vários ângulos, e depois a imagem
é passada em câmara lenta no telão: vemos as balas se chocando, tendo ao
fundo a platéia ali presente (isto elimina a hipótese de imagem pré-gravada).
Nosso Mágico, entretanto, está passando por uma crise. Digamos que (o
leitor sempre aprecia um pequeno e confortável elemento de melodrama)
justamente esse seu Assistente está tendo um caso com a esposa dele, e o
Mágico é ciumentíssimo, possessivo, feroz.
Ao apresentar no palco esse número, o Mágico o faz preceder por um
black-out no teatro, e as luzes voltam a se acender muito lentamente, ao som de
uma trilha sonora bem morricone, com guitarras plangentes, vigorosos assobios.
Ele e o Assistente emergem de extremos opostos do palco, vestidos a
caráter. O Mágico costuma, nas apresentações rotineiras, contar ali a história de
um homem cujos pais foram mortos por um pistoleiro. O menino cresceu
treinando a arte do saque, da pontaria, do disparo. E agora, depois de adulto,
ele finalmente localizou, escondido num rancho em Abilene ou em Tombstone,
o assassino de sua família.
E aí ocorre o confronto entre os dois, separados por uns dez metros de
palco, aquele silêncio insuportável (a música é bruscamente cortada) enquanto
os dois se encaram, olho no olho.
Antes, o Mágico mencionou meio casualmente à platéia a regra básica do
duelo do faroeste: se “A” sacar primeiro e matar “B”, é condenado à forca por
homicídio; mas se “A” sacar primeiro (configurando a agressão) e “B” sacar
depois e conseguir matá-lo, isto será visto como legítima defesa.
A arte, portanto, está em deixar o outro sacar primeiro, sacar depois,
acertar antes.
Ora; o número do Mágico é famoso na cidade, a imprensa já derramou
rios de tinta a respeito. E os tablóides de fofocas têm divulgado, insistentemente,
de umas semanas para cá, os passeios aparentemente inocentes onde as
câmeras registram os abraços, os sorrisos, e os momentos olho-no-olho entre o
Assistente e a Esposa do Mágico.
Todo mundo já sabe: o Mágico está sabendo. E todo mundo ali comprou
ingresso excitado, tenso, na expectativa do que pode acontecer. Do que
certamente vai acontecer.
Por isso, nessa noite de sábado, com o teatro botando gente pelo ladrão,
o Mágico inicia o número (enquanto o Assistente, paramentado de pistoleiro, já
o aguarda na outra ponta do palco) recontando o texto-padrão da morte dos pais,
etc., mas nesta noite ele adiciona um elemento a mais.
Ele afirma: esse vilão não apenas matou seus pais, mas roubou o amor
da sua mulher, da única paixão de sua vida. E começa a descrever a sordidez
desse adultério por baixo de sete capas, dessa dupla traição, a da Mulher Amada
e a do Melhor Amigo.
A platéia se remexe, inquieta, não suporta mais o nervosismo.
E o Mágico fala, fala, fala incansavelmente. Passam-se minutos, passase meia hora, uma hora de tensão incontida em plano palco. Senhoras
desmaiam, e ele falando. Homens impacientes protestam em voz alta e se
retiram. Gaiatos apupam da fileira do fundo. E ele falando.
Ele fala, fala, remexe os detalhes sórdidos daquela traição, descreve as
patifarias praticadas pelo casal de judas quando a sós no motel. Bolas de papel
chovem sobre o palco, chapéus, sapatos. A vaia começa a se alastrar. E o
Mágico fala, fala como um tatarana, fala como um iauaretê, fala como um mistersmith qualquer resolvido a filibusterizar o teatro, a cidade, o mundo inteiro até se
sentir em condições de travar o combate final, um combate “belo como o
encontro de uma bala de revólver com um coração sobre o palco de um teatro”.
Ufa.
Vejam como o Surrealismo é útil como fator desencadeante! Fui dar um
simples exemplo aleatório, mexendo numa frase randômica; e o exemplo virou
um conto. Um continho, um contito, reconheço, mas mesmo assim uma situação
interessante, na qual devo ambientação e personagens a Christopher Priest
(autor do livro The Prestige, fonte do filme de Nolan), e à técnica narrativa
(chamo-a de “presente indireto”) onde a gente narra no presente, de forma
sintética, distanciada, sem descer a detalhes, um fato fictício supostamente
passado. Técnica na qual Roberto Bolaño (que eu estava lendo hoje de tarde) é
um mestre consumado, tendo-a aprendido, é claro, com Jorge Luís Borges, o
qual por sua vez deve tê-la estudado nas sagas norueguesas, sei lá onde.
E por enquanto, é isto – agora tenho que ver como vou me virar com O
Diário da Ratazana.
4943) A arte do trocadilho infame (18.5.2023)
O melhor livro sobre o trocadilho é o clássico de Sigmund Freud Os
Chistes e a Sua Relação Com o Inconsciente (1905). A tradução “chiste” me
parece seguir o modelo espanhol; conheci esse livro numa tradução espanhola,
e tenho agora o volume VIII da Edição Standard da Ed. Imago, tradução de
Margarida Salomão.
No prefácio desse volume, discute-se a tradução do termo original alemão
(“der Witz”). Ele deu em inglês “wit” e “joke”, mas grande parte dos exemplos
freudianos, sem deixarem de ser “piadas”, “chistes”, “gracejos”, são
principalmente trocadilhos, termo que em inglês é “pun”. (Evidentemente,
nenhum brasileiro habituado a soltar um trocadilho deixou passar impune essa
palavrinha sugestiva.)
Resumindo: todo trocadilho é um chiste, mas nem todo chiste é em forma
de trocadilho.
Tenho a doença do trocadilho; pertenço a uma irmandade informal de
viciados, onde posso incluir sem medo Marcus Vilar, André Aguiar, José Araripe,
Henrique Rodrigues, Fraga, e outros calemburistas de reputação duvidosa. O
trocadilho é um sintoma neurótico, no sentido de que o indivíduo dotado dessa
capacidade sente uma compulsão irresistível de trocadilhar tudo que lhe apareça
pela frente, e, pior, de dizer em voz alta cada trocadilho que lhe ocorre.
É difícil, ao viciado, não armar um trocadilho quando as palavras se
articulam e se oferecem ao seu ouvido; e é praticamente impossível não dizê-lo.
Nenhum trocadilhista autêntico cala um trocadilho que lhe ocorra em público.
Vou teorizar um pouquinho sobre esta arte, usando um exemplo
autobiográfico. Eu teria uns dezoito anos; na casa dos meus pais, vi uma maçã
numa fruteira e fui pegá-la para comer. Minha mãe, que já tinha examinado a
fruta antes, avisou que ela estava com uma metade podre. “Não tem problema,”
disse eu, “eu jogo fora a metade má e como a metade sã.”
É um bom trocadilho, e é por coisas assim (não porque leio Freud) que
sou tido por inteligente na família. Mas esta pequena façanha tem características
que o trocadilho ideal em geral apresenta:
1) foi um improviso, uma resposta instantânea a uma situação não
planejada;
2) houve uma notável economia de meios, ou seja, não precisou de
nenhum raciocínio complicado, nem fez alusão a algum elemento externo ao fato
em si;
3) a intenção da resposta foi instantaneamente compreensível, sem
precisar de explicações posteriores. (Piada explicada é piada perdida.)
Darei como contra-exemplo uma graça contada por Ariano Suassuna, que
também manifestava pendor por esse traquejo. Ariano, aliás, eu coloco no rol
dos trocadilhistas clássicos, ao lado de Guimarães Rosa, Paulo Leminski,
François Rabelais, Millôr Fernandes, Emílio de Menezes, James Joyce, Lewis
Carroll e John Lennon.
Foi no tempo em que Ariano era jovem. Ele vinha andando na rua, numa
tarde ensolarada e abafada do verão recifense. Um amigo se aproximou, os dois
trocaram algumas frases, e o amigo disse:
– Olhe, Ariano, eu admiro muito você. Um sujeito íntegro, intelectualmente
firme.
– Muito obrigado – disse Ariano.
– Você é uma pessoa admirável, uma pessoa íntegra. Eu diria mesmo:
uma pessoa una.
– É mesmo? – disse Ariano, já com alguma coisa coçando atrás da orelha.
– E ainda mais nesse calor! – exclamou o amigo, erguendo a mão de
encontro à luz do sol. – Esse calor terrível, que faz a gente suar. E aí... suas,
una?...
Ariano fazia um muxoxo de incredulidade e comentava: “Veja bem, o
sujeito faz um arrodeio desse tamanho, traz uns assuntos que não têm nenhuma
relação, somente pra fazer um trocadilho vagabundo como esse.”
É a contraprova do primeiro exemplo! Porque claramente não foi
improvisado (foi pensado em casa e trazido para a rua), precisou introduzir dois
temas não relacionados (integridade pessoal, e calor) e mesmo não precisando
de explicação adicional fica bem claro que para juntar essas duas palavrinhas o
sujeito precisou dar o equivalente a uma volta no quarteirão.
Isso é o chamado “trocadilho infame”. E agora vou propor a segunda parte
da minha teoria: se o trocadilho é uma arte, o trocadilho infame é uma anti-arte,
uma paródia de si mesma, uma versão grotesca do Belo e uma versão
disparatada da Sabedoria. Ou seja: é Arte também.
Um trocadilho bem–feito nos leva a guardar alguns segundos de silêncio
e depois dizer um palavrão admirativo ou um elogio ao geniozinho que o fez. Um
trocadilho infame faz o grupo inteiro gargalhar ao mesmo tempo, dar tapa na
perna, tapa na barriga, fazer munganga de arrancar os cabelos ou de cortar o
próprio pescoço; provoca crises lacrimais de hilaridade e – em suma – reforça a
boa-vontade entre os seres humanos, e consequentemente contribui para a Paz
Universal.
Pertence ao domínio do trocadilho infame a famosa “charada
trocadilhesca”, tão dependente da deformação sonora dos vocábulos que não
tem cristão no mundo que adivinhe a resposta. Meu exemplo preferido: “O animal
na torre da igreja encontra-se doente. Duas e duas.” (Resposta: tatu / sino).
Ou esta clássica: “Sofre de gagueira o filho do Couto. Não é ele, é o outro.
Duas e três.” (Sacadura Cabral).
O trocadilho infame só presta se for uma forçação de barra, um pino
quadrado enfiado à força num buraco redondo (ou vice-versa), algo tão
desnecessariamente
complicado
quanto
aqueles
mecanismos
rubegoldberguianos em que dezesseis objetos diferentes são conectados uns
aos outros para acender um interruptor de parede.
(Ilustração: Rube Goldberg)
O trocadilho é uma Arte porque implica num mínimo de esforço para obter
um máximo de efeito. O trocadilho infame é uma anti-arte porque implica num
máximo de esforço para obter um mínimo de efeito. (E portanto, pelas leis do
Humor, é uma Arte também.)
(Este texto foi motivado por uma postagem de Alex Antunes no Facebook,
onde ele dizia: “Se um baiano tem abdome negativo, ele é chamado de 'meu rei
côncavo'?)
(cartum: Odyr)
4944) Perry Mason, o melhor advogado do mundo (21.5.2023)
O objetivo do romance policial detetivesco é apresentar um crime
misterioso e mostrar o processo do descobrimento da verdade: quem matou,
como matou, por quê matou.
Perry Mason, criação de Erle Sanley Gardner (1889-1970), é o advogadodetetive. Certamente não é o primeiro desse tipo, mas é o que de forma mais
consistente transformou o tribunal do júri, com sua platéia, no palco-de-teatro
que ele sempre tendeu a ser. Ali a verdade é revelada: sempre de forma
melodramática e cheia de suspense, de surpresas, de reviravoltas.
Se o palco de Hercule Poirot e Ellery Queen era a clássica cena final da
“reunião dos suspeitos”, Gardner transpôs esse ritual revelatório para o tribunal
do júri. E com o ingrediente adicional do conflito, porque Perry Mason não precisa
apenas desmascarar o criminoso, mas impor sua narrativa, diante de uma platéia
tensa e indecisa, sobre a narrativa de um promotor hostil (o eternamente
desafortunado Hamilton Burger).
Gardner é um escritor formulaico. Ou seja: praticamente todos os livros
obedecem a uma mesma estrutura, que o leitor conhece, e espera reencontrar.
Ele é, contudo, um dos mais hábeis de todos os tempos, porque sua fórmula é
larga e flexível, e ele sabia como recheá-la de situações rebuscadas, mas
verossímeis.
Um detalhe bem típico da ficção formulaica é a repetição de um esquema
nos títulos, para indicar ao leitor que são livros em série. Gardner adotou (não
em todos os livros, claro) um esquema facilmente reconhecível, de intitular os
livros “O Caso do…”, às vezes com repetição de iniciais: The Case of the Lucky
Legs (1934), The Case of the Caretaker’s Cat (1935), The Case of the Dangerous
Dowager (1937), The Case of the Haunted Husband (1941), The Case of the
Drowning Duck (1942)…
(The Case of the Borrowed Brunette, 1946)
A fórmula básica de seus enredos é simples. Uma pessoa vem a Mason
porque está sendo acusada (ou a ponto de sê-lo) de um crime. Mason acredita
na sua inocência, e cai em campo para investigar o crime por conta própria. Seus
ajudantes são sua secretária Della Street e o detetive particular Paul Drake, que
tem um escritório vizinho ao seu. Mason dá instruções, distribui tarefas, recebe
resultados, traça estratégias.
Não há nesses livros os ingredientes sensacionalistas da pulp fiction
policial da época. Lembro que ao ler O Caso dos Peixes Dourados me toquei de
que era o primeiro livro (depois de dezenas) em que eu via Mason dar um soco
num adversário e dar um beijo em Della Street.
Os crimes que Mason investiga não têm a atmosfera gótica e sinistra dos
livros de John Dickson Carr ou a complexidade barroca de Ellery Queen. São
crimes comuns, praticados em situações comuns, e a façanha do detetive é
descobrir a verdade deslindando um novelo de pistas falsas, pistas verdadeiras,
mentiras, enganos, versões truncadas, ações inexplicáveis, desculpas
implausíveis, gestos irrefletidos, erros de julgamento.
No universo detetivesco de Perry Mason, chega-se à verdade fazendo um
levantamento das ações das pessoas, e depois confrontando essas pessoas, no
banco de testemunhas, com as próprias contradições.
Mason é um detetive que usa a oratória como nenhum outro. Não no
sentido da “frase bonita”, mas da torção das idéias; das ênfases premeditadas;
das alusões veladas que deixam clara uma acusação sem que ninguém possa,
tecnicamente, se queixar; das elipses propositais em que ele, sem acusar
alguém, induz o júri a uma interpretação.
Sua estratégia é a da gradual
imposição de um sentido forçando a platéia a reavaliar os fatos – mais ou menos
como no famoso discurso de Marco Antonio no Julio César de Shakespeare.
Gardner era capaz de tirar coelhos e mais coelhos de sua inesgotável
cartola de situações. Seu método de trabalho, aliás, favorecia essas narrativas
intensamente dialogadas. Em seu rancho, ele tinha secretárias com máquina de
escrever, copiando os livros que ele ditava em voz alta. Ele usou longamente o
ditafone, modelo de gravador das primeiras décadas do século 20 (gravação em
cilindros).
Na sua biografia The Case of Erle Stanley Gardner (New York: William
Morrow, 1946), Alva Johnson compartilha algumas estatísticas do seu sucesso.
Seus romances de mistério, em todas as diferentes edições, das de dois
dólares às de 25 centavos, tiveram um total de vendas de 4.547.922 livros em
1943, 4.903.685 em 1944 e de 6.104.000 em 1945. (...) Em 1932, ele ditou seu
primeiro livro de Perry Mason O Caso das Garras de Veludo, em três dias e meio.
(...) Depois, diminuiu esse ritmo para um livro por semana. Hoje (1946), ele
desacelerou e produz cerca de um livro por mês. (trad. BT)
Um grande admirador de Perry Mason foi Raymond Chandler, seu colega
na revista Black Mask, que no início da carreira se deu o trabalho de datilografar
uma história inteira de Gardner, copiando-a, para entender melhor a dinâmica e
a tensão de um tipo de narrativa tão envolvente. Anos depois, os dois tornaramse amigos. Chandler escreveu a Gardner, numa carta de 1946:
Quando um livro, qualquer tipo de livro, atinge uma certa intensidade de
performance artística ele se torna literatura. Essa intensidade pode ser uma
questão de estilo, situação, personagens, tom emocional, idéia, ou meia dúzia
de outras coisas.
Pode ser também uma perfeição de controle sobre o
movimento da história, semelhante ao controle que um grande arremessador de
beisebol tem sobre a bola. Para mim, é isto que você tem, mais do que qualquer
outra coisa, e mais do que qualquer outra pessoa... Cada página joga o gancho
que nos puxa para a próxima. Eu considero isso uma forma de gênio. Perry
Mason é o detetive perfeito porque tem a abordagem intelectual da mente
jurídica e ao mesmo tempo aquele desassossego do aventureiro que não
consegue ficar quieto. (trad. BT)
Recentemente, foi lançada uma série com o nome Perry Mason, até
interessante, mas que não tem absolutamente nada do personagem original. É
outro clima, outro estilo, outras pessoas. A série em si não é ruim, mas seria bem
melhor se os personagens (que não têm nada a ver com os de Gardner) tivessem
outros nomes.
A série de TV Perry Mason (1957-1966, 271 episódios) foi um grande
sucesso na sua época, com Raymond Burr no papel do advogado. Vi vários
episódios dela; tem qualidades positivas de ritmo narrativo, bons atores, e
roteiros com a tarefa ingrata de compactar em 50 minutos os enredos intrincados
de romances de 250 páginas. No seriado, complexas discussões de seis ou oito
páginas precisam ser resumidas em meia dúzia de falas. Tudo se torna muito
rápido, e quebra uma das principais qualidades folhetinescas do original: o
exasperante prolongamento das discussões em que Mason pega um suspeito
no banco das testemunhas e arranca dele, gota por gota, as informações que já
conhecia, mas que precisam ser reveladas ao juiz e ao público.
O suspense dos livros de Erle Stanley Gardner requer esta condição:
longas discussões e interrogatórios, uma escavação implacável das narrativas
pessoais, até fazer aparecerem os fatos escondidos sob as palavras.
O Brasil é o País dos Bacharéis. Somos uma cultura baseada na fala, na
conversa, na oratória. Temos uma admiração instintiva por quem “fala bem”, por
quem “escreve bonito”. E por quem (como se diz lá em Campina) “tem um papo
de derrubar avião”, ou seja, uma conversa capaz de subjugar o impossível.
Perry Mason é o herói da conversa, da argumentação muitas vezes
falaciosa, cheia de armadilhas dialéticas, mas sempre com um objetivo: usar
todas as armas da retórica para impor a sua “narrativa”. Um Sócrates do tribunal
do júri, que, em vez de dizer o que pretende revelar, limita-se a formular as
perguntas certas – e a fazer o criminoso, no banco das testemunhas, confessar
seu crime.
4945) Cinco começos Bulwer-Lytton (24.5.2023)
O Prêmio Bulwer-Lytton é concedido anualmente a quem apresentar o
pior começo de romance, o mais mal-escrito possível. Criar começos assim
acabou se transformando num passatempo para escritores, uma espécie de
demonstração prática de "como não escrever".
1
“Never Say I Don’t Know”, de Barbara Scanlan.
“Em todo o Hemisfério Ocidental (e por que não dizer, também no
Oriental) milhões de mulheres suspiravam à noite ao serem assaltadas não por
assaltantes propriamente ditos, mas pela fantasia de um dia viverem a vida de
Tabatha Westinghouse, e de estarem em seu lugar quando ela percorria em seu
Rolls Royce (no banco traseiro, evidentemente) as avenidas mais chiques de
Paris e Londres, duas cidades onde ela provavelmente não poderia caminhar na
calçada sem ser abordada de forma álacre e incrédula justamente por essas
mulheres que acompanhavam religiosamente sua vida pelas colunas sociais dos
tablóides sensacionalistas dos dois hemisférios, sem saberem, distanciadas que
estão, que nem toda vida de mulher de milionário é o mar de rosas ou o colchão
de plumas que é descrito nos tablóides, mas que uma vida como esta, como
mostraremos a partir das próximas páginas, é composta também, em grande
parte, de momentos, dias e anos de renúncia, de angústia, de tensão, e por que
não dizer do sonho de se tornar novamente aquela menina camponesa que
saltitava alegremente nos prados da fazenda onde foi criada, antes de se tornar
a adolescente que lia tablóides e em seguida, num golpe do Destino que também
não nos furtaremos de narrar, em Tábatha Westinghouse, a esposa e futura
única herdeira do império de Benjamin Westinghouse, o maior fabricante de
fraldas geriátricas de todos os hemisférios.”
2
“Tough Guy At Large”, de Skip Driscoll
"Ele estava sentado no chão, apoiando as costas na parede. Arfava. O
sangue lhe escorria pelo queixo, pelo pescoço, empapava a gravata de
seiscentos dólares. “Vamos”, disse eu, só para dizer alguma coisa, “diga alguma
coisa”. Ele mexeu a boca, mexeu, mexeu, cuspiu um dente e rosnou: “Diga a
Morello que ele me matou de graça, porque não vou entregar ninguém.” “Não
matamos você ainda”, ripostei de pronto. “Você vai morrer bem devagarinho,
enquanto entrega todo mundo.” Ele olhou para a mesa. Havia uma automática
sobre a mesa. A três metros. Ele não poderia dar um salto de três metros do
lugar onde estava, mas mesmo assim fiquei de olho. Ele era guarda-costas de
um mobster, e um sujeito não se torna guarda-costas de mobster sendo bobo.
Pelo menos é o que acontece na maioria dos casos."
3
“Saudação ao Crepúsculo”, de Anastácio Dalemberte.
"Longas são as noites de primavera quando a atmosfera inteira parece se
impregnar do perfume das flores recém-desabrochadas, que, tímidas, abrem-se
para o mundo cheias de delicada expectativa de todos os seres que veem na
vida um cumular de sensações extasiantes, e se preparam para toda uma
existência consistindo apenas no dar perfume e receber adoração. Sim, nessas
noites de primavera tudo é possível! Todos os desejos parecem maduros a ponto
de serem concretizados, os sonhos transpõem o limiar do real, e todo esse
frêmito de nova vida que ressurge está vibrando ao diapasão – não, não
recuemos diante desta palavra sagrada – ao diapasão do Amor."
4
“O x”, de Pietro Barbieri
"A página. A página branca, retangular. Fita-me com seu vazio. Incita-me
com sua disponibilidade. Provoca-me com a sua nitidez. Tudo é possível diante
da página em branco. E ao mesmo tempo tudo é impossível. Qualquer começo
é impossível, no feixe de virtualidades que se superpõem e que mutuamente se
cancelam. A página tudo aceita, e ao mesmo tempo tudo proíbe. A página é um
reflexo desta minha existência, destes meus 27 anos dedicados mais a ler que
a viver, e talvez por isto mesmo ela me lance o desafio, o desafio esfíngico, de
me propor mudamente: É isto que queres – escrever? Por que não vais viver, tu
que viveste tão pouco? E no mesmo impulso eu sinto a resposta brotar de dentro
de mim: Não, não quero viver, porque viver é um ato filosoficamente gratuito,
como já foi demonstrado à saciedade por outros filósofos; eu quero escrever,
para provar que escrever me justifica. Página, estás prestando atenção?! "
5
“Guerra nos Planetas” de J. Wilson Perdigão
"O sistema solar de 47-XFK-38 estava em polvorosa com a notícia,
divulgada minutos antes pelos principais meios de comunicação, de que uma
Frota Estelar composta de onze torpedeiros, doze naves logísticas, doze navesmães e vinte e cinco espaçonaves leves de tiro rápido próprias para se
locomoverem com rapidez e agilidade numa atmosfera semelhante à da Terra
estava se aproximando. As intenções eram visivelmente hostis, visto que foi
rapidamente confirmado pelos observadores nos telescópios que era uma frota
Remulana, país com que o sistema solar estava em guerra há vários anos, e
bastou isso para que soasse em todos os planetas o sinal de alarme e os
soldados conscritos que estavam de sobreaviso para qualquer emergência
fossem rapidamente arregimentados para pilotar a frota de defesa. A galáxia se
preparava para contemplar uma batalha nunca jamais vista! "
(Ilustrações produzidas com o software de Inteligência Artificial "Bing".
4946) Os virunduns e os mondegreens (27.5.2023)
Sérgio Rodrigues, jardineiro do idioma, publicou há pouco tempo um
artigo (“Scooby-Doo dos sete mares”) sobre a importância do “virundum”, uma
criação cultural que, tal como o futebol, não teve origem no Brasil mas foi
devidamente digerida e reinventada.
O “virundum” é o equivalente brasileiro do “mondegreen” norte-americano:
a interpretação distorcida de um verso de música popular, gerando uma frase
levemente absurda e em geral muito engraçada.
Já comentei aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/06/1100-mondegreens-nampb-2492006.html
Li o artigo com certo atraso, porque não assino a Folha de São Paulo, e
para ler os textos dos meus articulistas preferidos dependo sempre de uma alma
caridosa que os copie e pregue nas paredes comunitárias de uma rede social
qualquer. Viva o dazibao controlvê.
Sérgio defende a importância do virundum como uma fonte inesgotável
de prazer dadaísta e alegria poética:
Sim, na terra em que brotou o clássico indiscutível "trocando de biquíni
sem parar" (por "tocando B.B. King sem parar", verso da canção "Noite do
Prazer", da banda Brylho), a produção de virundums é tão vasta quanto variada.
Há quem aprecie a precisão onomástica de "Meu filho Válter Gomes dos
Santos/ que é o nome mais bonito" ("Pais e filhos", Legião Urbana) e quem
prefira o clima lisérgico de "Ao sair do avião/ Judy pisou num ímã" ("Açaí",
Djavan).
Os exemplos citados são muitos, e os vários que eu não conhecia
romperam minha casca espessa de mau-humor matinal, e me fizeram soltar a
gargalhada de quem reencontra o prazer de estar-no-mundo.
O “virundum”, registra Sérgio, foi criado pela turma do Pasquim para
ironizar o “Ouviram do...” que inicia o nosso hino pátrio. É muito comum a gente
ouvir uma música à distância, num rádio ou TV, nm ambiente ruidoso, e entender
mal certos versos. Os psicólogos estudam há muito esse processo em que
identificamos os sons mais pelo contexto do que pela escuta em si. Ao ouvir mal
o que outra pessoa diz, nossa mente pensa algo como “se ele está falando de
tal-e-tal assunto, essa palavra que não entendi deve ser X ou Y”. Vamos
preenchendo com a opção mais lógica.
Quando estamos em país estrangeiro, conversando em outra língua, esse
processo é turbinado o dia inteiro.
O que há de interessante na arte do virundum é que ela começou com
erros involuntários e se transformou numa distorção proposital. Uma guerrilha
poética dadaísta. Pessoas portadoras do gene neurótico do trocadilho dedicamse a inventar por conta própria essas torções num versinho inocente e disponível.
E na primeira oportunidade, numa roda de violão ou numa platéia de show,
mandam seu virundum a plenos pulmões.
Por que?
Eu penso que um dos processos essenciais – na invenção poética; na
criação artística em geral; mais amplamente ainda, no uso coletivo da linguagem;
e quem sabe até no universo mais micro-amplo das sinapses neuroniais – é a
possibilidade de dar sentidos diferentes ao mesmo conjunto de estímulos.
Os psicólogos usam como exemplo básico desta processo a imagem do
cubo transparente, cujas quinas podem ser vistas mais próximas ou mais
afastados do nosso olho, por uma decisão e um esforço consciente de nossa
parte.
Claro que é importante haver algumas coisas que só podem ser lidas de
uma única maneira, irredutivelmente. Isto é muito útil quando precisamos ter
certeza absoluta sobre algo. A Ciência busca isso o tempo todo, num universo
repleto de dados contraditórios, fugazes, heterogêneos, em-mudança-constante.
A gente precisa poder de vez em quando se apegar a algo com um suspiro de
alívio, de olhos fechados, cheios de confiança.
Mas justamente pelo fato de nossa percepção do Universo – e da
Linguagem – ser assim, é importante sabermos lidar com as formas ambíguas,
indefinidas, contraditórias, mutáveis, estatisticamente imprevisíveis. Porque o
mundo é feito basicamente delas.
Como usar isso literariamente?
Isaac Asimov dizia que seus contos policiais da série “Black Widowers” se
baseavam geralmente num detalhe: na história há algo que pode ser visto de
duas maneiras, todo mundo vê do jeito errado, e seu detetive, Henry O Garçom,
vê do jeito certo.
Ser capaz de ouvir uma frase de duas maneiras é um exercício de
imaginação, um exercício de uma função mental que nos obriga a atribuir um
sentido, ou um segundo sentido, a alguma coisa. Como a pareidolia, que nos faz
ver rostos humanos em formas aleatórias.
(foto: Jeroen Schipper)
Vou recorrer ao meu lugar-comum de sempre, o Surrealismo. Salvador
Dali empregava o método que ele chamava de “paranóia crítica” em seus
quadros, criando imagens que podiam ser vistas de diferentes maneiras.
Diz Dali em La Femme Visible, 1930 (citado em Maurice Nadeau, Histoire
du Surréalisme, 1945, trad. BT):
Trata-se de especular com ardor sobre essa propriedade do devir
ininterrupto de todo objeto sobre o qual se exerce a atividade paranóica, também
chamada ‘atividade ultra-confusional’, que tem sua origem na idéia obsessiva.
Esse devir ininterrupto permite ao paranóico, que o testemunha, considerar as
próprias imagens do mundo exterior como instáveis e transitórias, para não dizer
suspeitas, e ele tem o preocupante poder de permitir aos outros que verifiquem
a realidade de sua impressão.
O paranóico é alguém que impõe um excesso de interpretação a fatos
banais. Às vezes bastam uma buzina de carro na rua e o barulho do elevador
para ele imaginar que agentes da CIA ou da KGB estão se encaminhando para
sua porta.
Dali usa a consciência de que os fatos em si estão em mudança
incessante (“devir ininterrupto”) e que cabe ao artista impor seu olhar, seu
desejo, sua interpretação sobre esse torvelinho em perpétuo movimento.
Apontar para uma nuvem e dizer: “Aquilo é um navio a vela”.
(Salvador Dalí, “Slave Market with Disappearing Bust of Voltaire”, 1940;
no Dali Museum, St. Petersburg, Florida)
É apenas a prática deliberada do processo que nos faz (como já me
aconteceu) ver na parede um lambe-lambe da banda “Sorriso Maroto” e ler, de
relance, “Sobrado Mardito”.
Esse processo criativo, imaginativo, tem a mesma origem que o virundun,
o mondegreen: a leitura errônea, proposital, de uma realidade que todos veem
de um jeito e que o poeta, esse corruptor de rotinas linguísticas, consegue ver
de um modo distorcido, novo, inesperado, hilário, surrealista.
4947) "Editando a Editora": Maria Amélia Mello (30.5.2023)
Terminando de ler o livrinho bem cuidado e simpático da coleção
“Editando o Editor”, da EdUsp. É uma coleção voltada para depoimentos
autobiográficos de editores brasileiros, traçando sua trajetória, sua formação, e
a sua atividade como editor de livros.
Em seu décimo número, a coleção mudou de nome para “Editando a
Editora”... porque entrevistou a primeira mulher dessa seleção majoritariamente
masculina.
Maria Amélia Mello é minha editora, e amiga desde que pus os pés para
morar no Rio de Janeiro. Ou até antes disso, porque antes de alugar casa aqui
pela primeira vez me lembro de ir visitar o Centro de Cultura Alternativa que ela
dirigiu na RioArte (ela fala disso no livro), e de deixar ali meus cordeizinhos e
provavelmente meu livro Sai do Meio Que Lá Vem o Filósofo (1980).
(Maria Amélia Mello)
Somos da mesma geração e não é de admirar tantas coincidências de
filmes, músicas, leituras (ponha Cortázar, Campos de Carvalho...). Ela observa
que desta geração em diante os cargos editoriais começaram a ser ocupados
por pessoas que, como ela, vinham da área do Jornalismo. Comenta o susto que
teve ao descobrir o quanto Frida Kahlo era famosa, e que o olho de um editor
precisa se estender a todos os campos além das “Letras”:
Esta história demonstra que o editor tem que ser ousado, mas também
muito atento, fazer as sinapses, as conexões entre tudo que está acontecendo
na área cultural. (...) Quando entrei na [editora] Civilização [Brasileira], em 1978,
havia pouco diálogo entre as áreas, os livros “apareciam” na minha mesa e
ninguém sabia de onde saíam. Os editores vinham da Sociologia, História,
Letras. Mas na década de 1990, na época de Frida Kahlo, havia muitos
jornalistas migrando para o editorial. E jornalista é assim, tem agilidade, faz
pauta, sabe quem pode escrever sobre um determinado tema, vai atrás de uma
informação. Coisas que faltavam no mercado, para o qual a entrada dos
jornalistas trouxe um novo fôlego. E uma curiosidade: a entrada de mulheres
como editoras, em cargos de comando. (p. 123-124)
Eu sou principalmente um literato (poeta, contista, romancista) mas já
trabalhei em jornal, estudei fugazmente num curso de Ciências Sociais, e sempre
achei que o mercado editorial deveria servir a todos estes senhores. A Literatura
é vista por uns como uma aristocracia do espírito, por outros como a prima pobre
cuja fama se esgota na noite do coquetel. O(a) editor(a) tem que ter essa visão
de perceber as diferentes frequências-de-onda de um livro de poesia e um
tratado sociológico, de uma antologia de contos e uma biografia, de um romance
e um livro de história do cinema. Não se pode tratar tudo isto com os mesmos
modelos estatísticos, como se fossem creme dental ou cerveja.
Acho o olho jornalístico tão importante quanto o olho científico, o olho
entretenimento, o olho show-business e muitos outros, porque em toda área
existe a possibilidade de descobrir um livro novo, um livro bom, um livro que vai
trazer uma nova voz, um novo enfoque. Não existe só a alta literatura. Existe o
livro de boa qualidade, que não vai ser best-seller, mas que vende.
A presença de mulheres no mercado editorial é muito um fenômeno da
nossa geração. Há muitas editoras (mulheres) que publicaram livros meus, e
nesse “publicar” está incluído ler, avaliar, sugerir, mexer, questionar, fazer
alertas, propor, dar forma final, divulgar.
Posso estar esquecendo alguém, mas já tive livros meus editados por
Andréa Mota (Pirata), Maria Emilia Bender (Brasiliense), Vivian Wyler (Rocco),
Valéria Gauz (Biblioteca Nacional), Bia Bracher (34), Martha Ribas (Casa da
Palavra), Clotilde Tavares (Engenho e Arte), Maria Amélia Mello (José Olympio),
Renata Nakano (Casa da Palavra), Fernanda Cardoso (Casa da Palavra), Inez
Koury (Bagaço), Lucinda Azevedo (Imeph), Sandra Abrano (Bandeirola)... Minha
gratidão a todas, pela paciência e clarividência.
Isto sem falar nas que me guiaram em mil outros trabalhos, como redator
e tradutor. Algumas, em casas editoriais gigantes, outras em editoras da salade-visitas; não importa.
E não se pense que não tive (e tenho) excelentes editores, talvez até mais
numerosos. Far-lhes-ei a devida vênia no melhor momento. São meus parceiros,
eles e elas. Sempre que um leitor argumenta algo comigo nos termos de "Ah,
mas o livro é seu", respondo: "O que é meu é o texto; o livro foi a editora que
fez". O processo é sempre o mesmo: “isto aqui é bom, vale a pena gastar
dinheiro para imprimir cópias numa gráfica e tentar vendê-las ao povo”.
Existe um “olhar feminino”, um “radar feminino” na escolha e publicação
de livros? É bem capaz, mas não me arrisco a defini-lo. Minha teoria básica é de
que no plano literário tudo que um homem é capaz de pensar uma mulher
também pode, e vice-versa. Para além disso, entram as histórias pessoais, as
sensibilidades individuais, as leituras e experiências – que são sempre únicas,
são só da pessoa.
O bom é quando vem a encomenda, como no dia em que Maria Amélia
me mandou um email pedindo um livro sobre Ariano Suassuna, que escrevi em
dois meses. O ABC de Ariano Suassuna (José Olympio, 2007) não é um estudo
aprofundado sobre o criador de Quaderna, mas me parece uma boa introdução
ao universo variado e intenso que ele criou.
Diz a editora:
Este “novo” editor participa das pautas, das vendas, do marketing, da
divulgação, ou seja, de todo o processo. Nós fazemos, muitas vezes, até o preço
do livro, pois quanto mais falamos em letras mais nos preocupamos com
números. Esse diálogo é saudável, pois assim é possível encontrar o melhor
momento para publicar um livro, lançando mão de ferramentas de outras áreas.
Existe também a relação com sites, blogs, tecnologias, como as de printing on
demand, que vêm ganhando espaço. Tudo para acertar mais nas escolhas,
enxugar custos, evitar estoques e focar melhor. (p. 172-173)
Eu tenho a sorte de poder publicar constantemente (um amigo meu diz
que eu tenho mais títulos publicados do que exemplares vendidos). E sempre
vejo no editor um parceiro de criação. O editor é o primeiro leitor de um livro, e
mesmo que uma sugestão dele não seja aceita pelo autor, ela revela uma
maneira-de-ler-aquilo para a qual o autor precisa estar atento.
No fim das contas, o trabalho criativo de um editor é como o do
antologista, função que exerço de vez em quando. É ficar atento para as coisas
boas que aparecem ao longo das leituras, da vivência, das conversas. Perceber
a qualidade e a novidade que há em cada uma, o toque diferente, relevante.
Anotar muito, fazendo aproximações por diferentes associações de idéias (“isto
aqui dá certo junto com aquilo”). Redescobrir coisas boas esquecidas; revelar
coisas boas que acabaram de surgir. Compor, com obras alheias, uma vitrine
capaz de revelar uma visão própria.
Editar um livro é tratá-lo com mão de jardineiro para que ele floresça. (p.
172)
4948) Democracia e linguagem (3.6.2023)
Na cabeça de muita gente, democracia é um regime onde eu tenho a
liberdade de fazer o que me dá na telha sem que nenhuma autoridade interfira.
Ou, como dizia impagavelmente Millôr Fernandes, “ditadura é quando você
manda em mim, e democracia é quando eu mando em você”.
Nem vou entrar no campo minado da política, mas tento às vezes aplicar
esse conceito abstrato, “democracia”, ao uso da língua e da linguagem oral, até
porque não mexo com outra coisa o dia inteiro, o ano inteiro. A linguagem é a
água onde eu sou peixe.
Sou escrevedor de profissão, e inúmeras vezes fui obrigado a negociar
com revisores de jornais, revistas, editoras de livros, editoras de enciclopédias,
editorias de websaites e de publicações on-line, porque certas coisas que eu
havia escrito não passam no crivo gramatical e ortográfico da publicação.
Em geral, o revisor passa o trator por cima do meu texto, arranca tudo que
lhe parece erva-daninha e planta em cima suas flores de estilo. Só vejo o
resultado quando abro o livro impresso. (E de vez em quando, ao constatar a
mudança que foi feita, preciso ficar dois dias de cama, com bolsa-de-gelo sobre
a testa.)
Outras vezes, recebo as provas, antes do livro ser impresso. Em geral,
concordo com 90% das mudanças feitas pelo revisor, porque são apenas
maneiras diversas de dizer ou escrever, algo que (como se diz em Campina )
“não inflói nem contribói”, então eu deixo passar. Outras vezes são correções
(que acabo aceitando) de coisas que eu escrevo do meu jeito. A palavra “idéias”,
por exemplo – não há quem me faça escrever “ideias”. Já me pediram
explicações, e dei-as.
Mas não brigo por causa disso! Quer corrigir, corrija. Às vezes, contudo,
o que parece “erro” é necessário. No texto literário, principalmente. Imaginemos
o seguinte diálogo:
– Oi, Zé. Tu é o caba que faz amplificador?
– Não, isso é Dóda, lá das Malvina. Tu já falasse com ele aqui.
Passando nas mãos de um revisor cauteloso, este pequeno fragmento de
campinensês pode ficar horrorosamente assim:
– Oi, Zé. Tu és o cabra que faz amplificadores?
– Não, esse é Dóda, lá das Malvinas. Tu já falaste com ele aqui.
Ou seja, esses esparadrapos gramaticais desconsertaram o texto e
desconcertarão o leitor.
Oswal de Andrade bradou pela “contribuição milionária de todos os erros”.
Eu concordo, mas salientando que esse “erros” terá que vir entre aspas,
forçosamente, porque não se trata de erros e sim de ruídos. Todos nós emitimos
ruídos (no sentido de “distorções, interferências, modificações não-intencionais
em algo que tem uma forma padrão”) quando falamos nossa linguagem pessoal.
E aqui vem um termo importante: existe a linguagem social e existe a
linguagem pessoal. E a democracia da linguagem precisa atentar para as duas,
porque o equilíbrio harmônico precisa dessa tensão permanente entre “o jeito
que todo mundo fala” e “o jeito que eu falo”. Um não pode jamais cancelar o
outro.
Se eu quiser, eu posso inventar uma linguagem que só eu conheça.
Ninguém pode me proibir. Aliás, historicamente, há milhares de indivíduos que
tentaram criar um idioma artificial – consultem Babel e Anti-Babel, de Paulo
Rónai, um delicioso resumo dessas excentricidades. Homens (é engraçado, não
tem nenhuma mulher) que dedicaram a vida a inventar uma língua sem defeitos.
Aí surge o “pobrema”. (Olha aí, um bom exemplo de distorção intencional
– “pobrema” é uma forma particularizada da palavra-coletiva “problema”,
pronunciada num tom de auto-ironia, bom-humor, descontração.)
Se eu invento uma linguagem minha, ainda que seja um pequeno
glossário, como vou me comunicar?!
Acho que todo mundo conhece uma
variante do conto popular em que um garoto é maltratado por um padre (que
exige ser chamado de “papa-hóstia”) e depois de várias lições vocabulares ateia
fogo a um chumaço de algodão no rabo do gato e grita:
– Acuda, seu papa-hóstia, dos braços da folgazona! Venha ver o matarato, com clareiamundo norabo; se não acudir com abundância, leva o demo a
traficância!
A história completa, junto com uma divertida versão inglesa, está
comentada aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2016/10/4175-acuda-seu-papahostia-31102016.html
Eu posso decidir chamar qualquer coisa por qualquer nome, mas se
começar a usar esses nomes fora de casa vou ter que me explicar – e ensinar
aos outros. E quem sabe possa até ter a sorte de muitas pessoas, que
inventaram uma palavra e a palavra “pegou”. Ouvindo Rita Lee estes dias, pusme a pensar em qual teria sido o primeiro grupo social em que a palavra “auê”
pegou e começou a ser usada, com a multiplicidade de sentidos que tem hoje
(rolo, confusão, celebração, algazarra...).
Já conversei sobre a questão da “linguagem neutra”, reivindicada por
vários grupos sociais, para quebrar o binarismo sufocante de idiomas como os
latinos que (de certa forma) sexualizam tudo. Já vi muitas crianças quebrando a
cabeça e perguntando aos pais: “Por que é que árvore é mulher e mato é homem,
pé é homem mas mão é mulher, faca é mulher mas garfo é homem, chão é
homem mas parede é mulher?...”
Essa formulação homem-mulher está mal feita, mas é o primeiro recurso
comparativo de centenas de milhões de pais sofredores, tias, avós, que se veem
obrigados a avalizar os despautérios do idioma, e a sugerir lógica onde ela não
existe.
A linguagem neutra é sociologicamente necessária, porque exprime um
protesto. Toda linguagem que exprime um protesto sofre repressão e angaria
simpatias, pelo menos a minha. Os fundamentos gramaticais são questionáveis,
mas dane-se, os fundamentos gramaticais de “pobrema” também são. A
linguagem neutra, que tantas vezes soa incômoda, deslocada, contraditória,
exprime a posição emocional e existencial de quem se sente, no mundo,
incômode, deslocade, contraditórie. (Não sei se é assim – valha como exemplo.)
Vai colar? Não vai colar? Dirá o tempo, que mesmo assim nunca diz a
última palavra, pois ambos, tempo e palavras, existem justamente em função de
sua renovação constante, pela pressão de quem precisa.
Eu não uso linguagem neutra porque de idiossincrasias já me bastam as
minhas, que são muitas; mas não por ser contra ela. Dou a maior força. Para
que ser contra uma deformação da língua no sentido de mais expressividade?
(Haveria problema com ela – e aqui fala o escritor de FC – se numa sociedade
futura a linguagem neutra, ou alguma equivalente, fosse imposta por um Estado
totalitário, ou por uma Inteligência Artificial politicamente-correta e roboticamente
bem-intencionada, hipótese que já brota no horizonte.)
Por força de trabalhos simultâneos, que fazem o meu dia passar rápido,
tenho lido muito dois dos meus autores preferidos, Ariano Suassuna e
Guimarães Rosa. São dois modelos de linguajar idiossincrático. Ariano tinha um
exemplo muito bom para isso. Na opinião dele, a língua escrita precisava
estabelecer uma versão-oficial das palavras, mas a língua falada ficava a cargo
de cada um. Dizia:
Vejam essa cadeira aqui. Quando eu escrevo essa palavra, escrevo
“cadeira”, e todo mundo me entende. É a versão coletiva da palavra, serve para
todos. Mas quando eu falo, eu pronuncio “cadêra”, porque sou paraibano. É a
minha, ou a nossa, versão da palavra, em nossa comunicação oral. E se algum
falante do português disser que não entende a pronúncia “cadêra”, bom, aí é
muita má vontade, não é não?...
E agora voltamos à palavra “democracia”, um conceito mais escorregadio
do que muçu ensaboado. É a conjugação (nem sempre fácil, como toda relação
conjugal) entre a conveniência coletiva e o interesse pessoal. Uma palavra
precisa ter uma forma “oficial”, sancionada pelos gramáticos, lexicógrafos,
etimólogos e acadêmicos, e ao mesmo tempo admitir muitas variantes, usadas
por grupos específicos, e até por indivíduos isolados.
A linguagem precisa de uma forma básica, essencial, consensual,
coletiva. Essa base é fornecida pela "norma culta". Mas ela não é uma camisade-força, e sim um mero núcleo para que a nuvem de linguagens parciais possa
fervilhar ao seu redor.
A linguagem precisa da contribuição constante de pessoas, grupos
formais e informais. Precisa (por exemplo) de gírias, regionalismos, bairrismos,
jargões profissionais ou comportamentais, modismos passageiros. Precisa
também de toda a inventividade e força comunicativa da poesia, da prosa, do
teatro, da oratória, das telecomunicações. Precisa tirar dos eruditos a carteirada
da erudição, e dos incultos o trauma da incultura, e permitir que se exprimam
como lhes der na telha. Alguma coisa boa acaba se incorporando.
O indivíduo propõe o novo. O coletivo decide o que vai permanecer.
4949) Contracapa de Midjourney (6.6.2023)
(Joan Miró: A Fazenda)
& o choro é livre – e a gargalhada também
& uma multidão com texto e com ensaio seria capaz de muita coisa
& a força da gravidade é uma mistura de ação presencial e wi-fi
& o espelho: tem sempre esse fantasma pronto, à minha espera
& podem fazer o que quiserem com meu boneco de cera; não ficou
parecido
& você só sabe a honestidade de alguém se lhe fizer uma proposta
irrecusável
& uma foto preserva um segundo do passado e afunda o resto nas trevas
do esquecimento
& tem gente que sempre repete as frases que diz, como se quisesse
deixá-las em negrito
&
entre outras variantes clássicas, tem se projetado ultimamente o
conceito de “a boçalidade do Mal”
& nada como o silêncio luminoso das noites do sertão
& tem gente que lava o rosto e joga a água fora sem nem agradecer a ela
& classificar as coisas assim é como dizer que os biscoitos se dividem
em redondos e quadrados – e só
&
certos filmes antigos têm o encanto dos navios naufragados, das
catedrais em ruínas
& o bom enxadrista é o que consegue usar as peças do adversário para
fazer sua jogada
& nos fuzilamentos vendam-se os olhos dos prisioneiros para proteção
dos executores
& a paz não pode destruir a guerra, mas pode diluí-la
& certos textos parecem radioativos, basta ler aquilo e o pensamento fica
envenenado
& o bom cineasta filma um pavão em preto-e-branco e ninguém percebe
esse detalhe
& o futebol hoje é assim: “Autoriza o árbitro!” – e “Desautoriza o juiz do
VAR...”
& onde subiu prédio sofreu pedreiro
& o Tempo não é algo que se desloca; ele vibra, ele estremece
& liberdade hoje em dia é feito um colírio que a gente leva no bolso e
pinga umas gotas quando sente falta
& uma pedra no meio do caminho incomoda menos do que uma pedra no
sapato
& a elevação dos oceanos talvez liberte, talvez sufoque a população dos
aquários
& a pena é mais poderosa do que a espada, porque pode desenhar uma
balança em que ela tem mais peso
& todo jatinho de empresários é um Cavalo de Tróia
& em vez de proibir alguma coisa, deviam ridicularizar; seria mais eficaz
& ensinar não é iluminar, é acender
& um Deus não é onipresente se o seu castigo vai mais longe que o seu
perdão
& ser honesto não é uma fraqueza, embora muitos só sejam honestos
porque lhes falta a força de não sê-lo
& ela tinha a nobreza das pessoas feias que só podem contar consigo
mesmas
& um homem vai ser fuzilado mas pede para esperarem o nascer da lua
cheia
&
não, o Romance não está morto, apenas num estado agudo de
catalepsia mental
& todo mundo tem um olho que enxerga melhor do que o outro
4950) O escritor enquanto Deus (9.6.2023)
(Ernest Hemingway)
Uma idéia que tento sempre passar (em cursos, oficinas, etc.), para quem
quer fazer literatura de ficção, é o fato de que o escritor é o Deus de sua história.
Não um Deus onipotente, onisciente e onipresente, mas em todo caso um Deus
como aqueles da mitologia, com o poder de fazer as coisas acontecerem de
acordo com a sua vontade. Inclusive de acordo com as suas venetas, com os
seus impulsos.
Todo mundo sabe disso, concordo, mas uma coisa é saber, e outra coisa
é descobrir por conta própria.
Minha descoberta se deu, em grande parte, numa noite décadas atrás, no
período paleozóico conhecido como “a Era da Olivetti Mecânica”. Eu tinha
acabado um trabalho que me consumiu uns dois meses, trabalho remunerado,
“para fora”, ou seja, uma coisa estritamente profissional. Entreguei, tive uma
reunião matinal que entrou pela tarde, e o projeto foi aprovado integralmente,
com aperto de mãos e promessa de depósito em breve. Voltei para casa aliviado
e triunfante.
De noite resolvi dedicar-me aos meus projetos pessoais, ou seja, à
primeira idéia genial que me viesse à cabeça, coisa que acontecia quando eu
estava, como naquela noite, com uma cerveja aberta à frente, uma lauda em
branco no rolo da máquina, e um cigarro Galaxy aceso entre os dedos (era no
tempo em que eu fumava essa desgraça).
Comecei a bolar um conto meio ao acaso, um conto mezzo Rubem
Fonseca mezzo Luiz Vilela.
Rio de Janeiro, época contemporânea. Um cara sai para beber à noite, e
reencontra por acaso um amigo de juventude, lá da Paraíba, que não via há mais
de vinte anos. Abraços, euforia, risadas, os dois começam a beber juntos, entram
naquele estágio de “e Fulano, que fim levou?”, “tem visto Sicrana, como vai ela?”,
“e tua família, todos bem?” – porque é assim o ser humano, passa dez anos sem
nem se lembrar de alguém, mas na primeira chance quer saber da vida.
Os caras começam a beber no Largo do Machado, depois vão até a Lapa,
porque o Nova Capela nunca fecha, de lá vão para um subúrbio, porque não
estão bêbados, e o que está ao volante (a história é contada do ponto de vista
dele) é experiente. Mas vão para um subúrbio, num bar no meio do matagal, e
lá enchem a cara com seriedade. Ao saírem do bar o amigo puxa um assunto
antigo, uma discussão que os dois tiveram anos atrás.
Isso não é hora para lembrar disso, defende-se o dono do carro. Não
vamos estragar uma noite tão bacana. Você já estragou, naquele dia, diz o
amigo, ligeiramente trôpego. Me chamou de pobre e de unha-de-fome. Que é
isso, retruca o primeiro. Não me lembro de nada disso. Fiz só uma comparação
entre você e seu irmão. Tá vendo como lembra? Diz o outro, em voz pastosa e
triunfante. Seu filho da puta.
Para encurtar a história, os dois se enraivecem, brigam, se esmurram, o
dono do carro puxa um revólver, alucinado de raiva (acaba de perder um dente
da frente, afrouxado por um soco) e dá dois tiros no amigo. Apavora-se. Olha em
redor. Bar fechado, matagal, luzes distantes. Ninguém viu. Ele pega o carro e
some.
A história vinha sendo contada do ponto de vista dele, mas agora o carro
segue um caminho de terra, chega à BR e desaparece ao longe; e a narrativa
permanece no local do crime, um parágrafo final descreve o corpo do outro, a
vida se esvaindo aos poucos, a poça de sangue aumentando, e ele caído ali, na
escuridão, no meio do mato, nos fundos de um terreno baldio que servia de
estacionamento. Carros passando ao longe e ele desaparecendo aos poucos.
Fui dormir satisfeito, ou bêbado, o que é a mesma coisa. No outro dia fui
pra rua resolver vários assuntos, tive uma tarde atarefada, mas de noite (estava
sozinho em casa, minha mulher estava viajando) abri outra cerveja e fui reler o
conto.
Fiquei com pena dos caras!
Achei sacanagem – dois amigos se
reencontram, tudo bem que no passado houve um desentendimento, se
chatearam um com o outro, mas amizade tem que ser como água, que você
mexe, agita, tira um pedaço, e ela volta pro formato de antes. Pra que isso?
Fiquei com pena do defunto esfriando no matagal. Fiquei com pena do outro,
cantando pneu nas curvas da rodovia, o revólver ainda quente guardado no
bolso, a ponta da língua tentando manter o dente no lugar.
Amassei a última página, voltei para o teclado e para a história. Sim, eles
saem. Eles discutem, mas não tem murro. Era pobre, não era, isso e aquilo, aí o
cara do carro puxa o revólver. Nesse instante o outro diz: “Mas Fulano, que
história é essa? Tu anda armado agora?” O cara está furibundo e diz: “Isso aqui
é o Rio de Janeiro, seu merda, aqui a pessoa tem que se cuidar, não é aquela
bosta da Paraíba onde vocês dormem de janela aberta.” O outro está bêbado
mas tem amor próprio, ergue o dedo no ar e diz: “Não insulte a Paraíba, filho
ingrato, porque até Lampião tinha medo, só passava por lá pra cortar caminho
pro Juazeiro.”
Os dois começam a rir. O primeiro abre o tambor do revólver e mostra:
“Essa porra está sem bala, eu morro de medo de um acidente”. Se abraçam
rindo, mangando um do outro, e vão à procura de um bar aberto, mesmo porque
já passa das quatro e meia da madrugada.
Ficou melhor o conto? Ficou pior? Não sei, porque foi um dos muitos que
numa tarde de verão e impaciência eu rasguei em quatro e enchi com eles um
saco de lixo, daqueles de plástico azul. Mas nesse episódio eu me senti não um
Deus, mas dois – porque soube que tinha o poder de matar, e o poder de trazer
de volta à vida.
Então, quando eu sento para escrever alguma coisa, eu procuro invocar
de dentro de mim esse poder, porque não existe coisa mais perigosa neste
mundo do que um poder que o indivíduo tem e não utiliza. Esse poder se rebela,
ele incha, estoura as costuras da alma, e acaba desequilibrando a vida do
sujeito, como um cachorro que a gente compra, bota dentro de casa e deixa
crescer sem domesticar.
Tenho inclusive a impressão (não posso mais checar, joguei o conto fora)
que os tais amigos eram escritores, e a certa altura um dos dois, nem lembro
qual, dizia ao outro: “Não tem sentido você sentar pra contar uma história onde
só acontece o banal, aquilo que acontece todo dia na vida de todo dia, ou então,
pior ainda, acontece o extraordinário conforme-as-expectativas, o fantástico selfservice, a tentativa pálida de reescrever um livro alheio que a gente leu e gostou.
O poder-de-fazer-acontecer não deve ser estragado, malbaratado, jogado aos
porcos. Faça acontecer coisas que lhe deixem o olho brilhando, a respiração
acelerada, a boca seca, o coração batendo e dizendo: caralho, velho, não
acredito que isso está acontecendo na tua história!...”
Foi isso que um dos amigos disse pro outro, ou melhor, teria dito, porque
na verdade não teve conto nem nada, isso foi só uma coisa que eu estava
pensando no sofá da sala, meia hora atrás.
4951) Meu livro de 2023: "Não Ficções" (12.6.2023)
Link: catarse.me/insolita
Tempos atrás eu estava trocando idéias com minha editora Sandra
Abrano, da Bandeirola, e ela falou de sua vontade de publicar textos de nãoficção: artigos, ensaios, crítica, etc. Me perguntou (retoricamente) se eu "por
acaso não teria algum material". Me toquei que nunca fiz uma coletânea dos
muitos artigos que já publiquei sobre FC e literatura fantástica, artigos hoje
inacessíveis, porque saíram nos fanzines de meus companheiros de trincheira
intergaláctica: o Somnium, o Megalon, o Hiperespaço, o Universo Fantástico, o
Borduna e Feitiçaria...
Conversa vai e vem, surge agora este livrinho que estamos lançando, sob
o título auto-explicativo de Não Ficções, e com o subtítulo mais explicativo ainda
de: A Literatura, a Ficção Científica, os Escritores e Seus Escritos.
Como tenho feito nos últimos anos, será um livro em financiamento
coletivo via Catarse, na base do pague agora e receba daqui a alguns meses. O
lançamento fica mais interessante ainda porque é em dupla com o livro de
George Amaral, Um Estranho Tão Familiar – Teorias e Reflexões sobre o
Estranhamento na Ficção. Onde ele examina os processos de estranhamento
literário e narrativo, uma das raízes (a meu ver) do famoso sense of wonder
despertado pela FC, a sensação de maravilhamento que se tem ao ver uma
coisa com um olhar diferente.
No meu livro, reuni textos publicados em jornais, revistas, fanzines,
websaites, bem como prefácios e apresentações de livros alheios. Além dos
fanzines, há textos saídos no Jornal do Brasil (RJ), Jornal da Tarde (SP) e outros.
Aproveitei para colocar artigos variados, tentando não me limitar à ficção
científica.
Falo de poesia, por exemplo, no texto “A visão cósmica em Drummond e
Augusto dos Anjos” (Jornal da Tarde, 1998). Sugiro ao leitor que leia, em
sequência os poemas “As Cismas do Destino” de Augusto e “A Máquina do
Mundo” de Drummond, para ver suas semelhanças estruturais e filosóficas,
como se o texto do poeta mineiro fosse uma “resposta” ao de Augusto.
Falo da cultura popular nordestina, a literatura de cordel e a literatura oral
que brota em torno dela; e da ciência popular preservada em obras como o
Lunário Perpétuo, o clássico almanaque astronômico e astrológico do interior
nordestino. Falo nisso a propósito de que? A propósito de um dos meus
personagens favoritos, o cantador de viola John The Balladeer, cujo universo
descrevo no texto “A folk fantasy de Manly Wade Wellman” (Megalon, 1999).
E falo da ficção científica na Literatura de Cordel, examinando folhetos
como “História do Homem que Subiu em Aeroplano Até a Lua”, cuja autoria é
atribuída tanto a João Martins de Athayde quanto a Leandro Gomes de Barros.
O folheto foi publicado em Recife no ano de 1923, antes até de Hugo Gernsback,
nos EUA, carimbar com o nome de Science Fiction as aventuras interplanetárias
que estava publicando.
Alguns artigos vão relatando as descobertas literárias de que participei
com meus amigos do CLFC (Clube de Leitores de Ficção Científica). Autores
brasileiros, obscuros, que estávamos na verdade re-descobrindo, porque um
livro que conseguiu ser publicado por editora não é propriamente obscuro.
É o caso de meu artigo de 1993 sobre “A Rainha do Ignoto”, romance
cearense, misto de ficção científica e fantasia, publicado em 1899, e que me foi
revelado por Carlos Emílio Corrêa Lima. É o caso do texto de 1995 sobre “Statira
e Zoroastes”, uma fantasia utópica (um país governado por mulheres” publicado
em 1826 por Lucas José d’Alvarenga.
A maioria destes artigos vem de uma época em que eu estava muito
dedicado à pesquisa da literatura fantástica e FC no Brasil, ia às bibliotecas,
passava pente-fino nos sebos, mantinha correspondência constante com outros
abnegados.
Acho importante destacar o texto que publiquei em 1995 sobre “As
aventuras de Dick Peter”, o detetive criado por Jeronymo Monteiro, sob o
pseudônimo de “Ronnie Wells”. Jeronymo foi um fã infatigável da literatura
popular, e a série Dick Peter, que começou como programa de rádio, evoluiu
para abarcar livros de aventuras policiais e de ficção científica. Numa história ele
está combatendo gangsters em Nova York, no outro está encontrando
sobreviventes da Atlântida no interior do Brasil.
Tenho alguns artigos literários publicados fora do Brasil, mas resolvi incluir
apenas um, como exemplo, porque o tenho como uma pequena façanha.
Publiquei em The New York Review of Science Fiction (março de 1997) um artigo
intitulado “From Borges’s Being to Perec’s Nothingness”. Trata-se de um
lipograma, um texto em inglês com mais de 600 palavras onde a letra “A” não
aparece nem uma vez. É uma homenagem a Perec, o rei do lipograma, e a
Borges, porque refere-se o tempo todo ao livro de Borges cujo título é justamente
A Letra Proibida.
O estudo da pulp fiction norte-americana me atraiu durante vários anos, e
produziu vários dos artigos recolhidos neste volume. Um dos mais curiosos é “O
Efeito Hoen” (Megalon, 2001). Em novembro de 1948, um fã chamado Richard
Hoen enviou uma carta ao editor da revista Astounding SF afirmando ter gostado
muito do número de novembro de 1949 da revista, inclusive citando o artista da
capa e os títulos e autores de vários contos. O editor, John W. Campbell, decidiu
levar a brincadeira a sério, e teve um ano para encomendar a cada autor um
conto exatamente com aquele título. Não conseguiu 100%, mas em novembro
de 1949 ali estava a revista “prevista” um ano antes, na qual Isaac Asimov,
Robert Heinlein, A. E. Van Vogt e outros escreviam os contos imaginados pelo
leitor.
A pulp fiction pode ter tido critérios literários pouco exigentes, mas é um
exemplo histórico de literatura imaginativa produzida sob alta pressão. Era
possível sobreviver escrevendo contos policiais ou de FC, nos anos da
Depressão, mas era preciso escrever o dia inteiro, todo dia, sem descanso nem
domingo. Comentei The Pulp Jungle, do prolífico Frank Gruber, que é um
memorial dessa época, contando dezenas de fofocas e episódios pitorescos da
comunidade dos escritores, mas também fornecendo números, estatísticas do
mercado, e dando uma descrição pragmática desse tipo de literatura, pelos olhos
de um profissional cínico e calejado. Meu texto saiu no fanzine Somnium (SP),
em 2006.
Coletâneas como esta são de interesse de um público reduzido, talvez,
público de algumas centenas de pessoas. O fato de termos hoje a opção do
financiamento coletivo torna possível uma primeira tiragem de livros prévendidos, que serve como impulso inicial para que o livro se torne conhecido e
procurado. É diferente de quando a editora imprimia 1.000 ou 2.000 exemplares,
guardava num galpão na Zona Oeste, e ficava esperando que alguém tivesse
interesse.
A projeto através do Catarse é o lançamento da linha “Bandeirola Ensaio
e Crítica” da Editora Bandeirola, e, como já falei acima, estou nesta estréia ao
lado de George Amaral, com seu Um Estranho Tão Familiar: Teorias e reflexões
sobre o estranhamento na ficção, que não li ainda, mas já está na fileira de
leituras no futuro próximo. Já publiquei um livro de temática próxima (Freud e o
Estranho: Contos Fantásticos do Inconsciente, Casa da Palavra, 2007). Há
vários processos de estranhamento na literatura fantástica e de FC.
George é psicanalista, mestre e doutorando em Teoria Literária e
Literatura Comparada pela USP. Eu e ele somos os “premiados” com a chance
de inaugurar uma série de ensaios que a Bandeirola já está encomendando ou
negociando com pesquisadores da FC e literatura fantástica.
Aqui, o link com mais detalhes sobre os livros, e as diversas opções de
apoio:
catarse.me/insólita
4952) Não dizer dizendo (15.6.2023)
Poesia se faz com palavras, ou com idéias? Para alguns, a idéia vem
primeiro. O poeta tem uma noção mais ou menos clara do que quer dizer, e
procura as palavras mais adequadas para reproduzir o que está pensando. Para
outros, o poema pode até começar com uma idéia, mas ela produz um processo
de palavra-puxa-palavra, e o sentido vai se formando meio de improviso, à
medida que as palavras se ajustam umas às outras. Poetas usam esses dois
sistemas desde que o mundo é mundo. Um teste que muitas vezes funciona é
ver se o poema resultante é fácil ou difícil de traduzir. Os poemas criados a partir
de idéias são, em geral, mais fáceis (ou menos difíceis!) de traduzir do que os
que são feitos a partir das palavras.
Qualquer idéia pode ser recriada através das palavras? Alguns filósofos
dizem que só pensamos de fato aquilo que conseguimos exprimir, mesmo que
seja inventando palavras que não existiam antes. E até mesmo a incapacidade
de dizer pode ser dita, a incapacidade de criar poesia pode ser recriada
poeticamente.
Manuel Bandeira, ao fazer uma dedicatória para uma leitora chamada
Sacha, escreveu:
Sacha muchacha
nariz de bolacha!
(Meu estro não acha
outra rima em acha.
Por isso se agacha,
se cobre de graxa,
se arranha, se racha,
se desatarracha
e pede em voz baixa
desculpas a Sacha).
É um poemazinho de circunstância (do livro Mafuá do Malungo), sem
maior pretensão literária, mas mostra de maneira claríssima a mais importante
das lições poéticas: mesmo quando achamos impossível dizer o que queremos,
sempre existe uma maneira de dizê-lo. O poeta confessa (ou finge confessar)
sua impossibilidade de achar rimas para o nome da pessoa a quem dedica o
poema, mas no momento mesmo de admitir essa derrota as rimas parecem cair
do céu, e o poema está feito.
Num tom diferente, quase trágico, Augusto dos Anjos produziu um soneto
em que reflete sobre o processo de criação da poesia, “A Idéia” (1909):
De onde ela vem?! De que matéria bruta
vem essa luz que sobre as nebulosas
cai de incógnitas criptas misteriosas
como as estalactites duma gruta?!
Vem da psicogenética e alta luta
do feixe de moléculas nervosas,
que, em desintegrações maravilhosas,
delibera, e depois, quer e executa!
Vem do encéfalo absconso que a constringe,
chega em seguida às cordas do laringe,
tísica, tênue, mínima, raquítica ...
Quebra a força centrípeta que a amarra,
mas, de repente, e quase morta, esbarra
no mulambo da língua paralítica.
A descrição é poeticamente correta: a idéia brota no cérebro, mas quando
queremos transformá-la em palavras ficamos mudos.
Em outro soneto (“O
martírio do artista”) ele compara o poeta ao paralítico (ou, em nossa linguagem
de hoje, à pessoa que sofreu um AVC) e não consegue falar: “É como o
paralítico que, à míngua / da própria voz e na que ardente o lavra / febre de em
vão falar, com os dedos brutos / para falar, puxa e repuxa a língua, / e não lhe
vem à boca uma palavra!"
Há um elemento dolorosamente biográfico na concepção destes poemas.
Sabe-se que o pai de Augusto, o Dr. Alexandre, sofreu um derrame e ficou
“paralítico e afásico”, impossibilitado de se comunicar.
As imagens de Augusto são poeticamente fortes, são impressionantes,
mas para sermos honestos temos que admitir que a culpa não é da língua. Não
é ela que forma as palavras, é o cérebro, o mesmo que forma as idéias. E que
compõe versos como estes, dizendo, de maneira brilhante, o quanto é difícil
dizer.
Voltando mais atrás no tempo, temos um soneto de Olavo Bilac, “Inania
Verba” (em Alma inquieta, 1902), no qual o de Augusto parece ter se espelhado.
Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
o que a boca não diz, o que a mão não escreve?
— Ardes, sangras, pregada à tua cruz, e, em breve,
olhas, desfeito em lodo, o que te deslumbrava...
O Pensamento ferve, e é um turbilhão de lava;
a Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve...
E a Palavra pesada abafa a Idéia leve,
que, perfume e clarão, refulgia e voava.
Quem o molde achará para a expressão de tudo?
Ai! quem há de dizer as ânsias infinitas
do sonho? e o céu que foge à mão que se levanta?
E a ira muda? e o asco mudo? e o desespero mudo?
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?
É um soneto sem a complexidade dos termos empregados por Augusto,
com uma linguagem de clareza cristalina, onde os contrastes de idéia se dão por
semelhança de forma (escrava / escreve) e por imagens visuais de apelo
instantâneo (turbilhão de lava / sepulcro de neve). Aqui, o poeta se queixa de
outras coisas, que talvez não tenha conseguido exprimir, e que sugere nos dois
tercetos finais. Mas ao queixar-se o faz mostrando domínio completo da forma,
do vocabulário, do ritmo (a repetição de “mudo”). O seu final, ao falar naquilo
que “morre na garganta” pode até ter sugerido a Augusto a imagem das “cordas
da laringe”.
Cada poeta tem seu espírito, seu temperamento, e isto fica visível quando
eles escolhem suas idéias, e, quando escolhem a mesma idéia, nas suas
escolhas de palavras. Cada um de nós tem sua maneira própria de dizer as
coisas, e também de dizer que não consegue dizê-las. Há momentos em que a
poesia é apenas um sentimento que nos toma de assalto, nos invade, nos deixa
cheios de emoções – e vazios de palavras. Talvez a gente não consiga dizer o
que sente; mas precisa dizer que não o conseguiu.
Carlos Drummond de
Andrade, distante da linguagem expressionista e científica de Augusto dos
Anjos, e do formalismo rígido e impecável de Bilac, encontra na simplicidade da
dicção modernista recursos para falar dos seus próprios momentos “sem
palavras”, quando diz em “Poesia” (Alguma poesia, 1930) :
Gastei uma hora pensando num verso
que a pena não quis escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.
Grande poeta não é o que sente grandes emoções. Qualquer pessoa é
capaz de emoções intensas. O grande poeta é aquele que fotografa essas
emoções, ou, mesmo quando não as fotografa a tempo, consegue captar sua
sombra, sua pegada ou qualquer sinal de sua presença. Como ele diz, no final
do seu “Canto esponjoso”:
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.
(Uma versão deste artigo foi publicado no número de outubro de 2008 da
revista “Língua Portuguesa”, da Ed. Segmento (São Paulo)
4953) "Impressões da Alta Mongólia" (18.6.2023)
O clown surrealista Salvador Dali estreou no cinema como parceiro de
Luís Buñuel (Um Cão Andaluz, 1928; A Idade de Ouro, 1930). Os dois brigaram,
mas paralelamente a sua milionária carreira como pintor, Dalí continuou fazendo
breves incursões pelo cinema.
Uma obra curiosa, que está disponível no YouTube, é Impressions de
L’Haute Mongolie (1975, Salvador Dalí e José Montes-Baquer). É um médiametragem de cerca de 50 minutos (parece que há uma versão mais longa nas
cinematecas), narrando, com imagens produzidas pelo pintor, uma excursão
fantasiosa à Mongólia, uma Mongólia onírica, muito diferente da Mongólia real.
Aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=ZJkDzMvVzE&ab_channel=BreconWalsh
A premissa fantasiosa do enredo parte do quadro de Vermeer A Carta.
Nele, uma mulher de pé, num pequeno aposento, lê uma carta, tendo ao fundo
um quadro. A câmera explora os detalhes da pintura enquanto Dali – no seu
melhor estilo de voz bombástico-profético – explica que este quadro encerra um
mistério. Essa carta, na verdade, traz para a mulher da pintura a notícia da
existência de uma ilha misteriosa na Alta Mongólia, ilha cuja localização está
revelada precisamente no mapa que aparece ao fundo. E o segredo principal
desta ilha é que nela crescem cogumelos alucinatórios enormes, que a
expedição narrada por Dali se prepara para ir buscar. É (diz ele) “um LSD sem
LSD”.
Seguem-se imagens borradas, abstratas, fortemente coloridas, saturadas
de cor; Dali narra as justificações teóricas da viagem (sempre num discurso
alucinatório-pomposo) e por volta dos 25 minutos começam a surgir as
aeronaves de que ele se vale para o trajeto – trucagens meio amadorísticas com
pequenos objetos que lembram cápsulas espaciais.
O filme é bastante hábil em mostrar imagens coloridas e abstratas
enquanto Dali descreve as paisagens com tranquila e peremptória subjetividade,
quase como se estivesse lendo ali manchas de cartões Rorschach de testes
psicológicos. Ele mostra "falésias", “colinas”, “florestas”, as areias brancas de
uma praia que (segundo ele) não são mais do que milhares de gigantescos
cogumelos alucinógenos pulverizados.
A imagem não é das melhores (é um filme para TV, e a cópia no YouTube
parece ser tirada em VHS) mas nos permite ver exemplos do famoso método da
“paranóia-crítica” teorizado e praticado por Dali. Uma mesma imagem pode ser
vista de diferentes maneiras. Dali e o diretor Montes-Baquer empregam as
fusões e desfoques para fazer transições lentas de uma imagem para outra, e,
frequentemente, de imagens abstratas para reproduções figurativas das cenas
que a voz de Dali está narrando. Como se aquele borrão de cores e formas fosse
ganhando significado pouco a pouco, pela imposição hipnótica da voz do
narrador, que nos “ordena” o que devemos ver, e logo em seguida a imagem lhe
obedece.
Na sequência final, Dali traz o filme bruscamente para as ruas da cidade
(talvez Port Lligat, onde ele tinha sua casa e seu estúdio), desfila pela rua com
trajes extravagantes, parando o trânsito, varando o empurra-empurra da
multidão, seguido por manifestantes que conduzem faixas e cartazes. Depois,
todos pegam mangueiras e começam a lançar jatos de tinta colorida sobre uma
parede. A imprensa filma, fotografa. Dali empunha uma câmera e filma também.
Pode ser um subgênero do Fantástico, ou do Insólito. Posso chamá-lo de
“As Expedições Mirabolantes”: histórias onde um grupo de indivíduos parte de
uma grande cidade rumo a um lugar remoto e obscuro, em busca de um objetivo
misterioso, ou improvável, ou fantasioso, ou irrelevante...
Um retrato mental e poetizado do sonho colonialista, só que aqui visto
pelos olhos, não dos homens ambiciosos de riqueza e poder, mas do buscadores
do insólito, do aventuresco, do imprevísivel.
Entram nessa faixa obras como Le Mont Analogue (René Daumal, 1952),
Conversions (Harry Matthews, 1962), La Vie mode d’emploi (Georges Perec,
1978), bem como o filme A Montanha Sagrada (Alejandro Jodorowski, 1973) e o
romance brasileiro O Púcaro Búlgaro (Campos de Carvalho, 1964).
Estas “expedições iniciáticas” são um capítulo peculiar da literatura do
Colonialismo. Não se voltam para a tarefa ufanista e civilizatória do homem
branco, seja para celebrá-la, como Kipling, seja para mostrar, como Joseph
Conrad, seu fracasso (ou sua verdadeira natureza). O livro brasileiro, aliás, é
uma sátira a essas empreitadas fantasiosas.
Julio Verne tem um papel intrigante neste processo. Por um lado, é um
cientista da era vitoriana (mesmo sendo francês), deslumbrado com os
desdobramentos da Revolução Industrial e o pipocar simultâneo de centenas de
descobertas científicas em seu tempo.
Por outro lado, é curioso ver como a obra de Verne é insistentemente
estudada, na França, em função de uma segunda leitura, uma leitura ocultista,
hermética, iniciática, em que as aventuras geográficas de seus heróis são
alegorias de aventuras espirituais de caráter místico. Ele poderia ser, nesta
leitura enviesada, agrupado junto aos demais autores das “Expedições
Revelatórias” em que europeus partem para terras distantes ou imaginárias para
elucidar questões enigmáticas, obsessivas ou meramente absurdas.
Quando Salvador Dalí, em Impressões da Alta Mongólia, explica que
foram a esse local exótico em busca de cogumelos alucinógenos, ele expande a
tradição de Daumal, e a tradição de Raymond Roussel (Impressions d’Afrique,
1910; Locus Solus, 1914), a quem seu filme é dedicado.
(Imagem de Raymond Roussel no filme de Dali)
E ao mesmo tempo está expandindo, na direção da cultura psicodélica e
lisérgica dos anos 1970, o próprio Surrealismo francês do qual surgiu.
É curioso que as pesquisas mentais de André Breton e dos outros
surrealistas tenham mantido sempre uma distância prudente em relação às
drogas. Sarane Alexandrian, em Le Surréalisme et le Rêve (Gallimard, 1974),
comenta:
Há portanto uma certa condenação da droga entre os surrealistas,
baseada na convicção de que um homem que a emprega não tem confiança
verdadeira nas generosas virtudes do surrealismo. (...) Os surrealistas não tecem
louvores à droga, mantêm distância em relação a ela, e preferem ver os
drogados como sonhadores mal sucedidos, que não conseguem sonhar senão
sob o efeito de produtos tóxicos, ainda que fosse abusivo interditar-lhes esse
uso. (p. 162-165, trad. BT)
O Surrealismo explodiu como movimento avassalador na Paris da década
de 1920, quando as drogas visionárias (não necessariamente alucinógenas)
eram o ópio, o láudano e o absinto.
William Burroughs, um filho bastardo do Surrealismo francês com a ficção
científica dos EUA (J. G. Ballard foi outro) rumou para a América do Sul em busca
do yagé, a poção miraculosa propiciadora de visões. Essa peregrinação lhe
rendeu um livro, as Cartas do Yagé (L & PM, trad. Bettina Becker).
Antonin Artaud, surrealista-raiz, foi igualmente para o México em 1936 em
busca do peiote, dos xamãs, do retorno ao inconsciente coletivo. Uma viagem
que décadas mais tarde ganharia uma versão popularizada e transformada em
best-seller por Carlos Castañeda.
A Mongólia de Salvador Dalí não é tão imaginária assim; é uma Mongólia
mental, uma Pasárgada alucinógena, um Eldorado do inconsciente. Um
permanente “convite à viagem” que a literatura, a poesia e o cinema de espírito
romântico, ou neuromântico, reiteradamente escutam e repetem, como se
soubessem que a Verdade não está no centro, e sim nas periferias.
4954) Primeiras Estórias: "Tarantão, meu patrão" (21.6.2023)
(João Guimarães Rosa)
A figura do doido é recorrente na obra de Guimarães Rosa, mas talvez
fosse melhor dizer de um jeito diferente. Não é o doido propriamente dito, mas o
personagem de comportamento amalucado. Não é o doido trancafiado no Pinel
ou na colônia. É aquele camarada, meio vagueante do juízo, parado no ponto de
ônibus, contando pra ninguém uma história que ninguém entende.
O “doido solto”, como se dizia em Campina – o indivíduo que não vale a
pena levar para o Manicômio, porque na verdade não é uma ameaça a si mesmo
nem a ninguém. Uma figura imprevisível, que à gente às vezes tolera, mas com
desconforto, porque sabe que de um instante para outro ele pode aprontar um
surrealismo qualquer.
Comentei dias atrás o conto “Darandina”, onde essa dualidade é pretexto
para Rosa contar a história divertida do sujeito que entra no hospício, pede para
ser internado alegando doidice, e, diante da negativa, volta para a rua, sobe
numa palmeiras e lá em cima tira toda a roupa, jogando-a na multidão que se
formou. Era doido ou não era?
Algo parecido se dá com o penúltimo conto do livro, “Tarantão, meu
patrão”, cujo narrador, conhecido por “Vagalume”, tem como patrão um
fazendeiro que anda meio destrambelhado do juízo. A família o confinou na
fazenda para esperar um médico, mas no abrir do conto o fazendeiro – “Iô-Joãode-Barros-Diniz-Robertes!” – já está montando a cavalo e partindo, obrigando o
pobre Vagalume a montar também e ir atrás.
O patrão está “sem paletó, só o todo abotoado colete, sujas calças de brim
sem cor, calçando um pé de botina amarela, no outro pé a preta bota; e mais um
colete, enfiado no braço, falando que aquele era a sua toalha de se enxugar.”
Mas sua demanda preocupa: ele diz a Vagalume que está indo à procura do
Magrinho para matá-lo. O Magrinho é o médico, sobrinho-neto dele, que dias
atrás lhe aplicou uma lavagem intestinal.
O patrão sai demente a cavalo, e Vagalume atrás, e ele alvoroça tudo por
onde passa, seja porque já o conhecem, seja porque seus modos chamam a
atenção. E ele vai convocando indivíduos para segui-lo. Faz gentilezas à mãe de
um, conclama outro, faz discursos, e aos poucos a sua cavalgada vai crescendo.
Que poder têm os doidos para atrair as pessoas? Não é qualquer doido,
é o doido eloquente, porque essa combinação de imprevisto e veemência parece
seduzir as pessoas que estão cochilando com a mesmice da vida. E ele vai de
lugarejo em lugarejo. Desmancha uma procissão jogando dinheiro pro alto (“...a
se curvar, o povo, em gatinhas, para poderem catar prodigiosamente aquela
porqueira imortal”). E o séquito vai aumentando.
As aventuras do Patrão são variadas, e nas mãos de um prosador com
outro perfil renderia talvez um romance divertido como O Grande Mentecapto
(1979) de Fernando Sabino. Vagalume segue o patrão como Sancho seguia o
Quixote, sempre de olho, para que não se meta numa encrenca grossa. E ele
também se entusiasma com o inédito daquilo:
Todos vindos, entes, contentes, por algum calor de amor a esse velho. A
gente retumbava, avantes, a gente queria façanhas, na espraiança, nós
assoprados. A gente queria seguir o velho, por cima de quaisquer idéias. (p. 164)
O furor vingativo do velho não arrefeceu:
Ao que o velho sendo o que era por-todos, o que era no fechar o teatro.
“Vou ao demo!” bramava. “Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!”
– de seu sobrinho doutor, iroso não se olvidava. Súspe-te! (p. 164)
Vagalume cavalga ao lado dele, e o tropel compassado dos cavalos vai
fazendo brotar no texto a sugestão do título:
Me passei para o lado do velho, junto – tapatrão, tapatrão... tarantão...
tarantão... e ele me disse: nada. Seus olhos, o outro grosso azul, certeiros, esses
muito se mexiam. Me viu mil. “Vagalume!” – só, só, cá me entendo, só de se
relancear o olhar. “João é João, meu Patrão...” Aí; e – “patrapão, tampantrão,
tarantão…” (p. 164)
E assim segue a cavalgada, entre epopéias e onomatopéias, o grupo
aumentando, até Vagalume se dar o trabalho de listar os “combatentes”, um
prazer a que Riobaldo Tatarana se entrega várias vezes no Grande Sertão:
Veredas:
E eu ali no mei. O um Vagalume, Dosmeuspés, o Sem-Medo, Curucutu,
Felpudo, Cheira-Céu, Jiló, Pé-de-Moleque, Barriga-Cheia, Corta-Pau, Rapa-pé,
o Bobo, o Gorro-Pintado, e o sem-nome nosso amigo.
E é essa “estranha cavalgada” que irrompe na casa do Magrinho, o
sobrinho-doutor. E vejam só – a casa está em festa! É o dia do batizado da filha
do Magrinho, e tudo ali é uma alegria só. Chega de repente esse Exército
Brancaleone, empoeirado, suado, em bater de cascos e tinir de esporas. No meio
a incerteza e da surpresa geral, o Patrão pede a palavra!
Todos, em roda de em grande roda, aparvoados mais, consentiram, já se
vê. Ah, e o Velho, meu Patrão para sempre, primeiro tossiu: bruba! – e se saiu,
foi por aí embora a fora, sincero de nada se entender, mas a voz
portentosamente, sem paradas nem definhezas, no ror e rolar das pedras. Era
de se suspender a cabeça. Me dava os fortes vigores, de chorar. Tive mais
lágrimas. Todos, também; eu acho. Mais sentidos, mais calados. O Velho,
fogoso, falava e falava. Diz-se que, o que falou, eram baboseiras, nada, idéias
já dissolvidas. O Velho só se crescia. Supremo sendo, as barbas secas, os
históricos dessa voz: e a cara daquele homem, que eu conhecia, que
desconhecia. (p. 166)
A festa termina assim em festa (Vagalume confirma: “Com alegria. Não
houve demo. Não houve mortes”) e o conto se instala numa outra vertente da
obra de Rosa, não muito comentada, mas presente. Como a define Paulo Rónai,
em seu prefácio, “Os Vastos Espaços”, ao livro de Rosa: “o conflito esperado
deixa de se cumprir”.
Rónai identifica essa tendência dramática igualmente em “Famigerado”,
“Os irmãos Dagobé”, “O Cavalo que Bebia Cerveja”, “Luas-de-Mel” e
“Darandina”.
Rosa é conhecido pelo sopro épico de suas batalhas de jagunços, seja
nos duelos homem-a-homem, seja nos combates tropa-a-tropa. Nestes contos,
no entanto, posteriores ao Grande Sertão, emerge o outro lado – o Rosa
diplomata, o Rosa conciliador e negociante, o Rosa de sorriso zen-melífluo, o
demarcador de fronteiras mutuamente concordadas, um homem com a
preocupação-de-ofício de agüar os conflitos antes que eles peguem fogo.
Em “Tarantão”, ficamos sem saber o que o Patrão queria de fato – se ia
mesmo matar o Magrinho e se comoveu ao ver o batizado – ou se tudo aquilo
era esperteza prévia para alvoroçar meio sertão e arrebanhar uma “cruzada” de
gente apanhada-a-laço. Mas tem quem possa sber o que um doido pensa? Só
se for doido também. Como o autor do conto (controladamente, estudadamente,
bonacheiramente) devia ser.
(O último curso deste ano; quem se interessar se apresse)
4955) Tradutor, o herói invisível (24.6.2023)
Em seu magistral e enciclopédico compêndio de tradução Le Ton Beau
de Marot (Basic Books, 1997), Douglas Hofstadter sugere a seguinte parábola
(Cap. 13, trad. BT):
Aqui estão dois tostões de diálogo para vocês, o tipo de conversa que
alguém pode ouvir facilmente numa grande cidade, ou num campus universitário:
Ele: Está sabendo? Vladimir Horowitz está na cidade, e vai dar um recital
neste sábado.
Ela: Uau, vamos assistir! Me diga, ele vai tocar o quê?
Ele: Não faço idéia. Não tem a informação no cartaz. Mas vai ser uma
beleza, Horowitz é sempre grande.
Ela: Ah, Horowitz! Que pianista! Posso passar a vida inteira escutando-o!
E agora, eis um diálogo bastante parecido, mas um que você nunca,
jamais, em tempo algum vai ouvir, seja numa metrópole ou num campus:
Ele: Está sabendo? Gregory Rabassa acaba de traduzir mais um livro!
Ela: Uau, que notícia maravilhosa. Já está à venda?
Ele: Acho que não, mas em todo caso deve estar daqui a um ou dois
meses.
Ela: Oh, sim... aliás, quem é o autor?
Ele: Não faço idéia. Não tinha essa informação no anúncio que eu li. Mas
vai ser uma beleza, Rabassa é sempre grande.
Ela: Ah, Rabassa! Que tradutor! Posso passar a vida inteira lendo suas
lindas frases!
Se você pensa que esta segunda conversa tem alguma possibilidade de
acontecer... vá sonhando, amiguinho, vá sonhando.
A inequação armada por Hofstadter mostra muito bem as semelhanças e
as diferenças entre as duas profissões. Um pianista é uma espécie de tradutor,
no sentido de ser um intermediário imprescindível entre a partitura e o ouvinte.
Um tradutor é uma espécie de instrumentista, fazendo com que o leitor que não
lê inglês (ou coreano, ou mandarim) desfrute a experiência estética cifrada no
original. (Ou quem sabe “a ilusão da experiência”, mas nem vamos mexer nesse
formigueiro.)
Meu amigo californiano Harry Ingham lamentava não saber escrever em
espanhol. “Se eu escrevesse em espanhol”, dizia ele, “teria alguma chance de
ser traduzido por Gregory Rabassa, e meu livro em inglês ficaria infinitamente
melhor”.
Exagero? Só um pouco. Um dos detalhes imponderáveis da tradução é a
escolha de vocabulário. Muitas vezes eu coloco uma palavra que funciona bem
no contexto, e me dou por satisfeito. Pode haver, porém, um sinônimo que
acrescente alguma coisa à frase – uma nuance de significado, um efeito rítmico,
uma conotação mais ampla... Se alguém “traduzisse” minha frase para o
português, com essa alteração, eu seria o primeiro a pensar: “Rapaz, ficou muito
melhor... Como isto não me ocorreu?”
Já comentei aqui no Mundo Fantasmo o livro de Rabassa, If This Be
Treason (2005), em que ele comenta muitas de suas traduções da literatura
latino-americana. Rabassa explica, em longos parágrafos, algumas opções de
tradução do clássico Cien Años de Soledad (1968) de Garcia Márquez. O título,
por exemplo: A Hundred Years of Solitude or One Hundred Years of Solitude?
Ele opta por este ultimo, e explica por quê. Do mesmo modo, explica por que
razão “solitude” lhe parece superior a “loneliness”.
Sobre o livro, aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2014/11/3666-gregory-rabassa23112014.html
O tradutor é apenas um coadjuvante no show literário, mas sem a sua
competência o show poderia desmoronar. Podemos imaginar um contexto futuro
em que a sugestão de Hofstadter pudesse se tornar real – as pessoas
comprando um livro não pelo autor, mas pelo tradutor, para fruir o trabalho do
tradutor. Por que não?
Ariano Suassuna, que gostava de demonstrações por absurdo, criou no
Romance da Pedra do Reino (1971) o personagem Samuel Wandernes, um
intelectual católico, monarquista, e nacionalista. Para Samuel, tudo que é
brasileiro é superior ao estrangeiro, inclusive na literatura. No Folheto LXXVII do
livro, ele diz:
Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso!
Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da ‘Ilíada’ e da ‘Eneida
Brasileira’: Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores grego e latino dessas
obras dele! Castilho é o autor do ‘Fausto’ e do ‘Dom Quixote’, assim como José
Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da ‘Divina Comédia’ que Dante
traduziu para o italiano!
Exagero? Talvez, mas não podemos esquecer que Eça de Queiroz
traduziu As Minas do Rei Salomão (1885) de H. Rider Haggard, tomando
extensas liberdades com o texto original (o protagonista Allan Quatermain, por
exemplo, vira “Alão Quartelmar”), numa verdadeira adaptação – tanto assim que
este volume é habitualmente incluído nas edições das obras completas de Eça.
É um dos livros de juventude de Ariano, e não é difícil ver aí uma fagulha inicial
da megalomania nacionalista de Samuel Wandernes.
Há muitos casos de tradutores que cedem à vaidade de aparecer mais do
que o autor, de mexer no texto do autor. Às vezes por pressa e impaciência: já li
romances policiais traduzidos por Monteiro Lobato em que ele pulava páginas
inteiras de descrições de ambientes (a mansão do milionário, etc.), o que às
vezes deixava a narrativa até mais leve e mais rápida. (Mas não aconselho
ninguém a fazer isto.)
Recentemente estourou na imprensa um pequeno escândalo relativo a
uma tradução para o inglês de um romance de Machado de Assis, quando um
professor norte-americano verificou que a edição que ele usava em aula era mais
completa do que a dos seus alunos, onde capítulos inteiros tinham sido
suprimidos.
Isto não é nada diante da façanha de William Julius Mickle, que em 1776
fez uma tradução de Os Lusíadas de Camões, e teve a cara-de-pau de incluir
uma batalha marítima que não existe no original.
Veja aqui:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2009/05/1041-os-lusiadas-emingles-1872005.html
4956) Primeiras Estórias: os temas eternos (27.6.2023)
O mês de julho é de férias pra todo mundo, menos para os free-lancers.
Vou aproveitar esse mês em que muita gente fica com a agenda mais liberada e
vou oferecer mais um curso online pelo Instituto Estação das Letras. A vantagem
do curso online é poder captar alunos do Brasil inteiro, e mais além, se for o
caso. Meu curso mais recente (“Lendo Sagarana”, março/maio) teve alunos de
Pernambuco, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, etc.
Como foi grande o interesse em discutir os contos de Guimarães Rosa,
farei agora em julho, todas as segundas e quartas-feiras, “Primeiras Estórias: os
Temas Eternos”.
A motivação principal para estes cursos é o fato de que o romance Grande
Sertão: Veredas (1956), por ser a obra mais monumental do escritor mineiro,
acaba atraindo a maior parte das análises, dos comentários, das leituras. Não
tenho nenhuma objeção: é um desses livros inesgotáveis, cuja releitura sempre
me dá prazer e proveito.
Os contos de Rosa, no entanto, ficam meio jogados para escanteio, o que
é
um
desperdício,
porque
são
consistentemente
ótimos,
originais,
personalíssimos. É uma obra contística incomparável, em termos de variedade,
domínio da linguagem, imaginação, carga afetiva e emocional, observação
perceptiva da vida brasileira, busca do significado cósmico da existência
humana.
No curso sobre Sagarana (1946), tivemos dez aulas: uma introdução e
nove aulas sobre os nove contos do livro. O livro Primeiras Estórias (1962) tem
21 contos e seria contraproducente estender o curso até 21 aulas. Além do mais,
eu não determino sozinho o formato do curso – ele precisa se encaixar na grade
de programação do IEL, que realiza simultaneamente inúmeros cursos, oficinas
e palestras.
Vai daí que arrumei os 21 contos do mestre Rosa em oito áreas temáticas
que cobrem, de modo aproximado, todas as estórias. Advirto sempre que meus
cursos não são cursos acadêmicos, de minuciosa análise estilística, linguística,
estrutural, etc. Sou um leitor antes de ser escritor, e minhas palestras tentam
chamar a atenção para os aspectos essenciais dos contos, e quebrar a aura de
“dificuldade”, “ilegibilidade”, “hermetismo” que muita gente ainda atribui à obra
de Rosa.
Rosa era um erudito, um poliglota, um homem de vastas leituras, mas
acima de tudo era um apaixonado pela língua portuguesa-brasileira, e pela arte
de contar estórias. Levava ao pé da letra aquela máxima de “dizer as coisas
velhas de maneira nova”. Escrevia se divertindo, escrevia dando gargalhadas,
escrevia com a alegria de um menino-sabido que arma um alçapão de varetas
para capturar um leitor.
(ilustração: Luhan Dias)
A organização do curso (que começa na 4ª.feira, dia 5 de julho) está mais
ou menos assim:
“Primeiras Estórias: os temas eternos”
Um estudo de alguns temas constantes na obra de Guimarães Rosa, com
a leitura comparada dos contos do livro “Primeiras Estórias”.
Oito aulas, duas aulas por semana. Total: quatro semanas.
Das 19 às 21:00. Estação das Letras: (21) 99127-4088
Aula 1 – 5 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
A infância e suas descobertas
Contos: “As margens da alegria”/”Os cimos”, “A menina de lá”, “A partida
do audaz navegante”, “Pirlimpsiquice”
Aula 2 – 10 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
Jagunços: violência e autoridade
Contos: “Os irmãos Dagobé”, “Famigerado”, “Fatalidade”, “Tarantão, meu
patrão”
Aula 3 – 12 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
Viagens fantásticas
Contos: “Um moço muito branco”, “A terceira margem do rio”.
Aula 4 – 17 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
A alma feminina
Contos: “Substância”, “A benfazeja”.
Aula 5 – 19 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
Os doidos
Contos: “Sorôco, sua mãe, sua filha”, “Darandina”, “O cavalo que bebia
cerveja”, “Tarantão, meu patrão”.
Aula 6 – 24 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
O mistério da existência
Contos: “A terceira margem do rio”, “O espelho”, “Nada e a nossa
condição”, “O cavalo que bebia cerveja”.
Aula 7 – 26 de julho, 4ª.feira, 19 às 21:00
A arte de contar histórias
Contos: “Pirlimpsiquice”, “Partida do audaz navegante”, “O espelho”.
Aula 8 – 31 de julho, 2ª.feira, 19 às 21:00
As formas do amor
Contos: “Nenhum, nenhuma”, “Sequência”, “Luas de Mel”
Esta classificação é bem arbitrária, porque a maioria dos contos toca em
vários destes temas, então a decisão de colocar cada num nesta “caixinha” e
não em outra é apenas para facilitar a organização.
Como sempre faço, utilizarei uma cópia do livro em PDF para vermos o
texto na tela, quando necessário, mas reitero a minha recomendação de que
todo mundo compre o livro físico. Não sei quanto está o preço na livraria. Seja
quanto for, está barato.
“Vida havendo e saúde não faltando”, como dizia José Saramago,
pretendo no ano que vem (pois no segundo semestre deste ano tenho muitas
viagens a fazer) preparar um curso semelhante. A dúvida é apenas optar entre
as sete noveletas de Corpo de Baile (1956) e as quarenta historietas de Tutaméia
(1967).
Cada um de nós se esquecera de seu mesmo, e estávamos transvivendo,
sobrecrentes, disto: que era o verdadeiro viver? E era bom demais, bonito – o
milmaravilhoso – a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos
outros e no nosso próprio falar. E como terminar?
("Pirlimpsiquice")
4957) Entrevistas Transcendentais: Edgar Allan Poe (30.6.2023)
O sol de Baltimore, nesta tarde de outono e céu azul, brilha como se por
trás de uma redoma, lançando muito pouco calor sobre a rua. Caminho devagar,
olhando as fachadas, até localizar o número 203. É uma casa de esquina com
tijolos marrons, dois andares, uma lucarna projetando-se para fora lá no alto,
onde deve ser o sótão. Subo os degraus da entrada, toco a campainha. Sou
recebido por uma curadora metódica, trajando uniforme. De iPad em punho, ela
checa meu agendamento, pede meu login e senha, indica-me a escada.
Olho em torno. Mobília de época: móveis pequenos, reluzentes, nenhuma
toalha de mesinha fora do lugar. Vou subindo para o sótão, onde ele fez seu
gabinete de escrita. Do segundo andar para o sótão a escada é meio
desconjuntada, insegura, e com o teto muito baixo. Imagino com que esforço os
visitantes idosos que vieram antes de mim conseguiram subir. No sótão, o teto
é inclinado, mal permitindo a uma pessoa de estatura normal ficar com o corpo
ereto.
(Amity Street 203 / Google View)
Ele está sentado numa cadeira junto à lucarna. No parapeito largo da
janela há um corvo empalhado, sobre um pedestal de madeira. Numa mesinha
próxima, uma bandeja com chá.
Ele se ergue, aprumado, cavalheiresco,
estende-me a mão com a pose de um gentleman que perderá os ossos antes de
perder as boas maneiras. Indica-me uma cadeira próxima, serve chá para nós
dois. As mãos tremem ligeiramente, mas não hesitam.
Trocamos amabilidades; ele ergue uma sobrancelha diante do meu
sotaque, mas estou me esforçando para falar de forma compassada, separando
bem as palavras, mesmo que isso me dê um ar artificial. A voz dele é profunda,
melodiosa, e passa-me pela cabeça a idéia de que em outros tempos poderia ter
sido um locutor de rádio. Mas não: é o teatro, o teatro que ele nunca praticou,
mas tem no sangue. Ou talvez tenha praticado a vida inteira – autor, ator e
personagem.
BT – Mr. Poe, o senhor produziu uma quantidade espantosa de textos em
sua curta existência. Na minha biblioteca, o volume dos seus “Contos e Poemas
Reunidos” tem 1.026 páginas, e o de “Ensaios e Resenhas” tem 1.472. Como vê
essa produção, hoje? Preferiria ter escrito menos? Mais, talvez?
POE – Sou um escritor profissional. Não penso em termos da obra
acumulada, penso apenas no texto que produzo naquele momento. Vivo em
função do presente, não da posteridade. Não tenho do que me queixar. Tive uma
vida difícil, cheia de conflitos familiares, decepções pessoais, penúria financeira;
mas não a vejo como uma vida diversa da maioria das pessoas da minha época.
E, embora muitos possam me considerar um incompreendido, fui um editor
respeitado, meus contos e poemas foram recebidos com admiração. Muitos
contemporâneos meus, homens e mulheres de talento, não alcançaram certos
patamares de sucesso que eu conheci.
BT – Pessoas de talento, concordo; mas sem a sua fagulha de
genialidade.
POE – Sempre achei que os maiores gênios, os mais brilhantes intelectos
que a humanidade produziu, não devem ser procurados nas academias ou nos
salões científicos, e sim no manicômio ou na prisão. Terão sido gênios, mas em
seu século foram tidos como incoerentes ou insanos. O vigor de uma inteligência
excepcional não garante que nos comunicaremos com nossos contemporâneos.
Sem ter um semelhante com quem dialogar, um indivíduo desse tipo prega no
deserto e amedronta até os que mais o querem. Nossas sociedades se
organizaram de forma a reconhecer o talento individual e empregá-lo em seu
benefício, mas o “gênio”, pelo seu caráter de incontrolável rebeldia, terá sido na
maioria das vezes vítima de incompreensão, perseguições e castigos.
(Poe, by Court Jones)
BT – O senhor é tido, hoje, como um dos criadores, ou precursores, de
três tipos muito populares de literatura: a narrativa de mistério detetivesco, a
ficção científica e o conto de horror. Não sei se, na época em que escrevia, essas
distinções eram assim tão claras.
POE – Não eram. Como editor, descobri cedo o quanto é útil produzir no
leitor algum tipo de expectativa prévia. Algumas vezes usei o termo “contos de
raciocínio”, pois este me parece um filão pouco explorado da literatura. A
literatura do meu tempo era fervilhante de sentimentos, de emoções ora
nostálgicas ora assombrosas, e eu também as explorei, ao meu modo. Mas
minhas histórias sobre a importância do raciocínio, da interpretação correta de
fatos e aspectos da realidade constituem, para mim, um gênero legítimo dentro
da literatura. Contos tão diversos quanto como “O Escaravelho de Ouro”,
“Descida no Maelstrom”, “Tu És o Homem” e “A Queda da Casa de Usher”
abordam esse tema: o raciocínio aplicado a situações limite.
BT – Ainda hoje os apreciadores da literatura policial discutem sobre a
importância do detetive raciocinador nessas narrativas.
POE – Considero um erro, ou pelo menos uma limitação desnecessária,
apor o rótulo “policial” a essa literatura, que nem sempre envolve polícia ou
criminosos. O raciocínio é uma das luzes que o Criador nos deu, e não é
privilégio de policiais. (ergue-se, caminha pelo sótão enquanto com as mãos
ilustra a cena que descreve) Tenho em minha casa uma gata que aprendeu
sozinha a abrir a porta para sair, pulando para agarrar-se ao ferrolho, movendoo com a pata, impulsionando a porta para abri-la, e depois pulando para o chão
e saindo. Os animais têm sua forma de raciocínio; mais rudimentar que a nossa,
por certo, mas real. Pude utilizá-la na justificativa para os crimes da Rua Morgue,
onde um animal com instinto imitativo mata uma pessoa sem saber o que está
fazendo.
(Detém-se diante de uma gravura na parede, mostrando um gato preto
em pose imperial, sobre uma almofada.) Quem tem animais domésticos, sejam
cães ou gatos, sabe dos seus lampejos extraordinários de inteligência na
resolução de problemas práticos. No homem, esses lampejos podem ser fonte
infinita de inspiração literária, para além da mera investigação criminal. Isto que
chamam hoje de “detetive” não se distancia muito de um médico que em dez
minutos de conversa com um doente reúne elementos suficientes para deduzir
o mal que o aflige, ou de um relojoeiro, que abre o nosso relógio e rapidamente
descobre a razão do seu defeito. É o raciocínio aplicado aos dados da vida
concreta.
BT – Esta sua tendência de pensamento nunca entrou em conflito com a
sua fascinação pelos aspectos sombrios, inconscientes e indecifráveis da mente
humana, e do Universo?
POE – Nosso espírito tem marés que avançam e recuam, como as dos
oceanos. Não nego que em vida tive fases de exaltação e fases depressivas,
bem como fases de auto-confiança no intelecto e fases de pavor diante de
aspectos inexplicáveis de nossa existência. Falei que o terror não vem da
Alemanha, vem da alma, tentando exprimir essa percepção de que esse medo
reside em nós e não podemos fugir dele. Podemos entendê-lo, interpretá-lo, e
neste caso a mente raciocinadora nos ajuda, se não a eliminar o terror, a colocálo em palavras. Não deixa de ser um triunfo parcial.
BT – A palavra nos dá uma sensação de poder, diante da realidade...
Ele volta a sentar. Estende o braço e acaricia a penugem do corvo
empalhado, com ar distraído.
POE – Sim... Quando me referi ainda agora à inteligência dos animais,
não mencionei o corvo, que é rapidíssimo na solução de problemas, usa
instrumentos agarrados com o bico, e demonstra ter uma clareza de pensamento
que nos assusta. Por isso o elegi como protagonista de um dos meus poemas.
Ele é, sim, o espírito da noite, o anjo ou demônio que negreja. Mas ele se exprime
através da palavra, de uma única palavra: “Nevermore”. O que esta palavra
significa fica a cargo do raciocínio do narrador, e este, a cada passo, dá a ela
um sentido diferente em relação a sua própria vida. Talvez sejamos como o
corvo. Talvez toda a literatura da espécie humana seja essa palavra, que um dia
será lida por uma espécie superior à nossa, tal como o homem é superior ao
corvo. E essa espécies de seres superiores dará, ao que escrevemos, sentidos
que nos escapam.
(Poe, by Edouard Manet)
BT – Esta sua valoração da inteligência nos animais poderia se estender,
talvez, até as máquinas?
POE – Em princípio, nada impede que isto ocorra, se imaginarmos a
inteligência como um processo combinatório definido por uma mecânica de
possibilidades e escolhas, uma faculdade meramente acessória do Espírito, e
sem a transcendência deste. O senhor deve lembrar o meu artigo sobre o Turco
Enxadrista. Recusei-me a crer numa máquina capaz de jogar xadrez, nas
condições daquela época. Pareceu-me mais plausível, pela navalha de Occam,
que se tratasse de um mero truque: um homem oculto no gabinete de madeira.
Nada impede, porém, que em condições técnicas mais avançadas isso possa
ser obtido. O xadrez pode ser reduzido a combinações matemáticas, e os
exemplos da calculadora de Pascal ou da máquina de Charles Babbage
poderiam ser direcionados para operações tão complexas quanto as que o jogo
requer.
BT – E quanto a operações mais complexas ainda? A criação de textos
ficcionais, por exemplo?
POE – Em primeiro lugar, devo insistir na distinção entre a mente humana,
onde brilha o Espírito, e uma máquina, por mais poderosa que seja. Com esta
ressalva, não vejo por que seria impossível criar um mecanismo capaz de gravar
em sua memória um número extraordinário de combinações numéricas, e depois
atribuir a esses elementos as mesmas funções das nossas palavras e dos
fragmentos do nosso discurso. É uma operação análoga à que descrevi em “O
Escaravelho de ouro”, só que com palavras e frases no lugar de letras, portanto
em outro patamar de complexidade – imenso, mas não inatingível.
BT – A criação de frases seria um processo meramente estatístico?
POE – Não apenas isso, mas esse aspecto é essencial para a criação de
filtros de probabilidade. No xadrez, em cada momento há centenas de jogadas
possíveis, permitidas pelas regras; mas o intelecto do jogador descarta de pronto
todas as jogadas inócuas, contraproducentes, irrelevantes, e se concentra
naquelas que têm maior peso para a disputa travada no tabuleiro naquele
instante. Num criptograma, estabelecemos regras de probabilidade para as
letras, sendo a letra “E” a mais frequente em nosso idioma inglês; e regras
específicas, como a de haver sempre uma letra “U” após a letra “Q”, etc. Esse
cálculo pode ser ampliado para pequenas frases. “Céu azul”, “céu nublado”, “céu
chuvoso” são combinações frequentes; “céu cavalo” “céu xícara”, “céu assoalho”
não fazem sentido e podem ser descartadas. As regras gramaticais eliminariam
automaticamente bilhões de respostas possíveis, e o avanço seguinte da
máquina se daria num repertório de escolhas bem mais reduzido.
BT – Pode-se criar textos literários dessa maneira? Prosa, poesia?
POE – É discutível, mas é uma questão em aberto. Assim como não há
mistério concebido pela mente humana que outra mente humana não possa
esclarecer, também não existe prodígio concebido pela imaginação humana que
o engenho humano não possa tornar realidade. Faço apenas a ressalva de que
a um processo 100% mecânico de criação de textos faltariam duas condições
essenciais à literatura humana: alma e corpo.
Entre os bilhões de combinações de palavras que nossa mente analítica
pode formar, é o Espírito quem decide as mais elevadas, as mais nobres, as
mais carregadas de verdade humana.
E há também o nosso corpo, de quem nossa linguagem tanto depende.
Criamos literatura com o corpo, tanto quanto com a mente. Alguém incapaz de
escutar conceberia um poema como “The Bells”? A audição e a visão são
essenciais a tudo que produzi. Muitos efeitos de contos como “A Tale of the
Ragged Mountains”, “The Sphinx”, “The Oval Portrait”, “A Descent of the
Maelstrom” dependem essencialmente do modo como nossos olhos enxergam.
Por outro lado, efeitos sonoros e percepção auditiva são essenciais em ”The TellTale Heart”, “The Fall of the House of Usher” etc. Pergunto: uma máquina
combinatória, sem corpo, poderia espontaneamente produzir histórias desse
teor?
O senhor deve recordar as críticas do Chevalier Dupin aos procedimentos
da polícia parisiense, no episódio do orangotango. Ele ironizava o chefe de
polícia dizendo-o “esperto demais para ser profundo” e que sua inteligência tinha
apenas cabeça, e não corpo. E no caso da carta furtada, o ministro D. tinha
qualidades de poeta e de matemático, porque se tivesse apenas estas últimas
estaria às mãos da polícia, que tem esse tipo de raciocínio.
Uma máquina-escritora, sem a inspiração divina do Espírito, e sem um
corpo (incluo aqui todos os poderes de observação empática de outros seres
humanos, como no caso dos jogadores de whist), não poderia ter a fagulha
poética, criadora. Seria um mero mecanismo re-arranjador de frases previsíveis.
O smartphone me dá um aviso vibratório e inicia a contagem regressiva
de dez minutos. Ergo-me, despeço-me dele, desejo-lhe um dia produtivo de
trabalho, pois não me escapou à vista, no outro extremo do sótão, a bancada
coberta de folhas garatujadas, os tinteiros cheios, os porta-penas, os mataborrões. O contrato me impede de questioná-lo a respeito do que está
escrevendo, porque poderia produzir uma alteração no algoritmo. Nosso último
aperto de mãos me recompensa com um olhar cálido, cheio de companheirismo.
POE – Fico muito grato pela sua visita. Há tão poucas pessoas que me
procuram hoje em dia. Brasil, não é mesmo?... Que surpreendente. Bem, leve
consigo minhas melhores lembranças aos meus leitores de Buenos Aires.
BT – Tem pelo menos dois, lá, e o admiram muito.
A escada íngreme e a funcionária atenciosa me conduzem de volta àquela
rua pacata, àquele trecho de cidade sub species aeternitatis, àquela grama que
não cresce, àquele sol que não aquece, ao céu daquele corvo que não crocita
nunca mais.
(Nota necessária: esta série de "Entrevistas Transcendentais" é composta
por textos imaginários. Eu não entrevistei essas pessoas.)
Augusto dos Anjos:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2021/01/4660-entrevistastranscendentais.html
Philip K. Dick:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/08/4608-entrevistastranscendentais-philip.html
Agatha Christie:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/05/4583-entrevistastranscendentais-agatha.html
Julio Cortázar:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2020/12/4651-entrevistastranscendentais-julio.html
Alfred Hitchcock:
https://mundofantasmo.blogspot.com/2022/12/4894-entrevistastranscendentais-alfred.html
4958) Salve o compositor popular (3.7.2023)
Fazer uma música é um dos prazeres mais simples e artesanais que nos
restam, num século em que tudo tem que ser, a) monumental, b) lucrativo, ou c)
legitimador de alguma tecnologia recém-posta à venda.
Há quem diga que literatura é a mais barata das artes, uma “arte a custo
zero”, porque pode-se escrever um livro inteiro usando apenas papel e lápis.
Pois olhe, música você pode fazer de mãos nos bolsos, e assobiando pra não
esquecer a melodia. Eu já compus assim.
Quantos bilhões de melodias já terão sido inventadas, decoradas e
repetidas, nestes últimos milênios de História? Perderam-se?
Foram
esquecidas? Que importa? Também se perderam ou foram esquecidas as
pessoas que as criaram, e mesmo assim não acho que a maioria delas creia que
viveu em vão.
Tenho para música aquilo que a gente chama de “ouvido duro”:
dificuldade para lembrar uma melodia, para distinguir duas notas ou dois acordes
muito parecidos, para perceber que uma corda de violão está semitonando.
Talvez por isso mesmo, cada lararaiá que inventei me parece um triunfo pessoal
sobre mim mesmo, digno de comemoração.
Uma vez, na casa de alguém, eu estava conversando com um músico de
orquestra sinfônica, um cara da minha idade, mas com uma carreira profissional
que já vinha desde a infância.
– Acho incrível a pessoa que compõe – disse ele. – Tocar, como eu toco,
é fácil. Mas compor! Nunca consegui compor uma música.
– Mas é muito fácil – disse eu, com a auto-confiança dos primitivos. Peguei
um violão que estava por perto, arpejei meu ré-maior básico e comecei a solar.
– Tiruliruliro... tralá-laiá... Pronto, está aqui uma melodia. Compus agora.
Ele recuou horrorizado, como se eu tivesse lhe exibido uma ratazana
sanguinolenta.
– Mas compor não é isso! – exclamou. – Não é apenas enfileirar notas. É
algo muito mais complexo.
Ele tinha razão. Ele é um músico erudito. Eu sou um músico popular. Eu
posso compor assobiando, em pé no ônibus. Eu posso me dar o luxo do lugarcomum, do formatinho banal, da melodia naïve. O luxo da repetição, como o
pintor de paisagens da Praça General Osório. Ele, não. Para ele, vale sem
dúvida a máxima de Thomas Mann quanto à literatura: “Escritor profissional é
aquele para quem o ato de escrever é mais difícil do que para as outras pessoas”.
Minha primeira música gravada foi “Caldeirão dos Mitos”, que Elba
Ramalho incluiu em seu segundo álbum, Capim do Vale (1980). Quando o disco
saiu, eu tocava a faixa cinquenta vezes por dia, para me assegurar de que ela
não tinha ido embora. Era bom demais para ser verdade.
Uma noite, nessa época, estava bebendo com amigos num bar de João
Pessoa, e a algumas mesas de distância um grupo de jovens alegres, de violão
em punho, cantava músicas variadas. De repente, começaram a cantar o
“Caldeirão”: “Tãrãrã-tãrãrã... Eu vi o céu à meia noite, se avermelhando num
clarão...”
Comoção geral na minha mesa; eu fiquei sem fala. Os amigos me
disseram: “Vai lá!... Vai na mesa deles, fala que a música é tua!” Eu, sabiamente,
não fui. Ir para quê? Para amarrar a importância da música à presença do autor?
De jeito nenhum. Música gravada é passarinho fora da gaiola. “Sabiá lá na gaiola
fez um buraquinho... voou, voou, voou, voou...”
Alguns anos atrás, eu estava na FLIP, em Paraty. Tinha acabado de
anoitecer e eu vinha testando meus tornozelos por cima das pedras traiçoeiras
daquele calçamento. Numa esquina, encontrei um ou dois amigos fazendo parte
de um grupo maior. Parei, trocamos abraços, cumprimentos, apresentações
rápidas, dez minutos de papo, e o grupo se desfez.
Saíram todos e ficamos eu e um senhor, idoso, negro, bem vestido.
– O senhor é nordestino – constatou ele, com simpatia.
– Sou mesmo – disse eu. Estendi a mão e me apresentei: – Braulio
Tavares, da Paraíba.
– Prazer – disse ele. – Sou Edeor de Paula. Fiz um samba em
homenagem ao seu Nordeste.
Eu não reconheci o nome, como não reconhecera o rosto.
– Que ótimo. Como é o samba?
Ele pigarreou e puxou:
– Marcado pela própria Natureza...
E eu já emendei em uníssono, no tom dele, com o verso seguinte:
-- O Nordeste do meu Brasil... Oh, solitário sertão, de sofrimento e
solidão...
(Edeor de Paula)
E ali, naquela encruzilhada de um começo de noite paratiense, cantamos
todo o samba “Os Sertões”, que desde 1976, quando foi lançado pela escola Em
Cima da Hora, eu me acostumara a cantar em Campina Grande, na nossa
batucada de fins de semana, a “Batucada de Lanka”. Cantando junto com o
autor, eu me lembrei de Lanka, de Lucy, de Chiquinho, de Marquinho, dos
batuqueiros que já se foram e que dariam altas gargalhadas se me vissem ali,
quarenta anos depois, tirando a maior onda e cantando o samba junto com o
autor do samba.
Seu Edeor se comoveu, certamente; nos despedimos com um abraço
amistoso, e ele deve ter experimentado pela milésima vez o raro prazer de ser
conhecido por uma música que criou.
Não existe fórmula nem receita para fazer música. Ela pode ser criada na
calada da noite por uma pessoa sozinha, e pode surgir numa ruidosa mesa de
bar, rabiscada às pressas em guardanapos, com palpites e pitacos até do
garçom. O que importa é que depois de criada a música cria seu primeiro círculo
de ressonância, entre os que cantam, os que escutam, os que decoram, os que
repetem...
A música é gravada e ai vira tudo outro patamar. A gente ouve a música
no rádio do táxi, no corredor do shopping, no palquinho de um forró, no altofalante da rodoviária, na sala de espera do dentista... É um passarinho que voa
para onde quer, sem pedir outra coisa senão o alpiste de três minutos de
atenção. O cara que compôs a música também escuta, mas dá menos atenção
à música do que aos rostos e aos olhos de quem está ouvindo. Não basta a
música tocar no rádio: ela tem que tocar as pessoas.
Dizem que Oscarito, no auge das chanchadas que estrelava com Grande
Otelo na Atlântida, costumava botar algum disfarce de óculos e chapéu e assistir
ao filme nas sessões da tarde na Cinelândia. Entrava, sentava num cantinho... e
não olhava para a tela. Olhava para a platéia. Queria ver se a piada funcionava,
se o timing de uma cena tinha ficado correto... É nisso que a gente pensa: no
que o público está pensando.
O que bate com um preceito sábio de Bertolt Brecht, quando explicava a
diferença entre o teatro tradicional e o seu teatro épico: no teatro tradicional, a
platéia observa o palco; no teatro épico, o palco observa a platéia.
Por isso quando a gente encontra um desconhecido numa esquina e ele,
sem saber sequer o nosso nome, é capaz de lembrar e cantar uma música que
a gente fez, então nesse momento o circuito se fecha. A energia flui. A gente fica
sabendo (mais uma vez) que aquela noite em claro não foi em vão.
4959) Zé Celso Martinez Corrêa, 1937-2023 (6.7.2023)
Um livro famoso de Zuenir Ventura chamou 1968 de “o ano que não
terminou”, e a morte de Zé Celso Martinez Correia, do Teatro Oficina de São
Paulo, é mais um lembrete da longevidade daquela época de geléia geral, de
miserere nobis, de divino maravilhoso, de brutalidade jardim.
Zé Celso era no universo do teatro uma figura semelhante à que Glauber
Rocha foi no cinema ou que os compositores baianos foram na música popular.
Era um criador incansável, um desarrumador de mobília, um subversor de
dicionários, um sistemático derrubador das fronteiras entre a arte coletiva e a
vida pessoal.
Alguém citou nestes dias, nas redes sociais, uma frase atribuída a ele: “É
preciso viver ao vivo, e também morrer ao vivo”. Dele ou não, a frase o exprime.
E exprime toda uma estética que explodiu em meados do século passado, uma
mistura herética entre a arte e a vida. Essa mistura, essa mestiçagem ilegal
permeou o rock, o teatro, a poesia, o cinema, as artes plásticas e sei lá mais o
quê.
Ainda é costume chamar essa explosão de A Contracultura, termo com
que Theodore Roszak a exprimiu num livro excelente e hoje esquecido. A
verdade é que o conceito tinha em si essa própria essência explosiva de mandar
cada fragmento em sua própria trajetória, afastando-se uns dos outros. Foi uma
espécie de Big Bang.
Uma crítica frequente que se faz a elementos dessa Contracultura é que
as obras resultantes são chatas: os poemas dos beatniks, o cinema de Andy
Warhol ou da fase final de Glauber ou de Godard, os LPs onde um lado inteiro
era ocupado por jam sessions de roqueiros chapadões-do-bugre, os ritos
dionisíacos de atores nus no palco...
Concordo em grande parte, apenas com a ressalva de que quando
alguém dinamita as fronteiras entre a Vida e a Arte é de se esperar que a Arte
(antes limitada a obras nítidas, arrogantemente específicas, sequiosas de
perfeição) acabe ficando parecida com a Vida: informe, desorganizada, sem
rumo certo, à mercê do eventual narcisismo, ou preguiça, ou volúpia dionisíaca,
ou agenda ideológica dos seus praticantes.
Curiosamente, não me lembro de ter assistido nenhuma peça dirigida por
Zé Celso. Havia sempre uma aura ameaçadora de ritualidade bacante em torno
delas. Tenho uma vaga lembrança de algum espetáculo que veio ao Rio de
Janeiro e alguém me disse: “Prepare-se para seis horas ininterruptas de festim,
eles arrastam todo mundo para cima do palco e fazem tirar a roupa!”. O que no
caso de um vitoriano como eu equivale a mandar ficar em casa.
A peça-de-teatro-que-dura-um-dia-inteiro faz parte dessa concepção de
arte e vida misturadas como café e leite. Lembro bem, na minha adolescência,
o sobressalto de angústia das platéias da sociedade campinense quando a luz
se apagava e o começo da peça mostrava um ator que entrava recitando a
plenos pulmões, pelo meio do público. “A que ponto chegamos,” sussurrava
alguém; “agora só falta o comunismo”.
A "quarta parede" do palco italiano é um hímen mental que precisa ser
tirado do caminho, teimosamente, a cada geração. O fato de que ela se
reconstitui prova a sua necessidade; o fato de poder ser rompida prova que é
apenas um elemento essencial, entre tantos outros, que cada artista trata como
lhe convém.
Zé Celso organizou um movimento, orientou um carnaval, criou em torno
de si um castelo sem alicerces que ele levava para onde lhe convinha; mas ele
não era apenas duende, era também lenhador, sabia prover necessidades.
Sua batalha pela conquista do espaço do Teatro Oficina, num cabo-deguerra permanente contra os bilhões do Grupo Sílvio Santos, não é a batalha de
um mero maluco beleza, é a batalha de um construtor. Tinha algo de
Brancaleone ou de Dom Quixote, mas sabia assoprar como ninguém as chamas
da guerra simbólica. Não tinha bilhões de reais investidos no Mercado: tudo que
tinha investiu em papéis efêmeros: peças, poemas, manifestos, entrevistas. No
mercado impalpável dos corações e mentes.
Foi, a seu modo, uma espécie de guru psicodélico, teve o talento
agregador de manter sempre em torno de si um grupo teatral permanente e
flutuante. Uma pequena comunidade de seguidores, que eram ao mesmo tempo
(isto vem na receita) executantes e problematizadores da proposta coletiva. Arte
coletiva não subsiste sem um centro de decisão e de normatização (que é em
geral uma pessoa, a figura do líder) e sem uma periferia indócil de pessoas
criativas, contraditórias, solidárias, rebeldes, capazes de manter ao mesmo
tempo esse ligação-tensa com o centro e com as outras pessoas em volta.
Vendo os palcos sempre a uma certa distância, mais de uma vez me
ocorreu comparar mentalmente o teatro de Zé Celso com o teatro de Antunes
Filho. Deste último, sim, vi várias peças, acompanhei mais de perto, talvez por
ser mais parecido com o tipo de teatro que me deixava mais à vontade. Tinha
uma noção mais clássica de estrutura, de começo-meio-fim, e de um diálogo
com o público baseado em expectativas mais nítidas. Em termos estruturais, o
teatro de Antunes era o desfile de uma escola de samba, o de Zé Celso era um
bloco bate-a-lata. (E eu acho as duas coisas igualmente boas e necessárias.)
Posso estar cometendo erros e injustiças de julgamento, porque estou
falando de um ofício de que conheço só um pouco (o Teatro) e da obra de um
grande artista de quem não vi a luz, vi somente o luar refletido. No entanto, a
simpatia instintiva que os trabalhos e as aprontações de Zé Celso me
despertavam vem da minha curiosidade por esses criadores que preferem viver
eternamente numa espécie de infância mental no bom sentido. Um estado
permanente de curiosidade, de perguntas, de descobertas fundamentais, de
brincadeiras gratuitas, de molecagens que fazem os críticos entrar em parafuso.
Tal como Antunes, Glauber, Godard, deve ter sido uma pessoa fascinante
de conhecer, mas não muito fácil de conviver, pelo seu voluntarismo com uma
franja permanente de narcisismo, pela sua imprevisibilidade, pela recusa à
repetição confortável do que já-deu-certo. Me lembra às vezes um depoimento
de um músico de Bob Dylan: no meio do show, depois de um número, Dylan se
volta para a banda e diz: “Agora vamos tocar Tangled Up In Blue, mas não é em
Sol Maior, é em Lá.” E a banda que se vire para transpor – ao vivo.
O Teatro é a arte do momento, a ciência do agora. Como dizia um amigo
meu, “nem adianta filmar, o teatro é justamente o que a câmera não capta”. E
quem o pratica, e quem fica depois que a luz se apaga, pode muito bem ter em
mente, como consolo e triunfo, os versos de Carlos Pena Filho:
Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar,
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha);
quando pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar,
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
arquitetar na sombra a despedida
deste mundo que te foi contraditório...
Lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório,
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
(foto: Ana Branco)
4960) Nordestinense: em grande quantidade (9.7.2023)
No Rio de Janeiro, quando se quer falar em grande quantidade de algo se
diz que tem coisa pra caramba, pra dedéu, a dar com um pau...
Pronto, eis aí uma que eu acho muito boa. Haver alguma coisa “a dar com
um pau” é uma boa maneira de exprimir visualmente a idéia de alguém rodeado
de... de que? De sapos, de coelhos, de grilos, de torcedores de um time
adversário – uma proliferação de criaturas incômodas, das quais o cidadão só
pode se livrar empunhando um pedaço de pau e distribuindo bordoadas a torto
e a direito.
O linguajar nordestinense também é cheio de opções para se referir a
grandes quantidades de alguma coisa.
Quando queremos dizer que tinha muita gente dizemos com frequência
que tinha ali “um horror” de gente. A palavra horror exprime bem o sentimento
de espanto e de uma certa repulsa diante da situação descrita. “Tenho um horror
de provas pra corrigir.” “Depois que ganhei na Mega-Sena tem um horror de
pretensos amigos-de-infância me mandando mensagens de “lembra de mim”?...”
Um horror é uma expressão que se usa nesse tom.
Pode-se dizer, por outro lado, que tem alguma coisa “dando no meio da
perna”. Outra imagem visualmente forte e evidente por si mesma. “Rapaz, fui na
tal Festa de Cerveja, e a cerveja dava no meio da perna.” Ou seja, um verdadeiro
alagamento. Até mesmo quando se refere a coisas não-líquidas, porque podese dizer também que “no carnaval de Olinda estava dando mulher no meio da
perna”.
Algumas dessas expressões são bem-humoradas, mas outras trazem
consigo (como o “horror” citado acima) uma conotação misteriosamente aflitiva.
É o que acontece quando se diz: “um castigo”. "Detesto ir num Banco no dia 1º
do mês, é aquele castigo de gente, cada fila enorme." "Pensei em ir na praia
ontem, mas quando vi o castigo de gente passando nos ônibus acabei
desistindo." "Passei dois meses viajando, quando cheguei em casa tinha um
castigo de contas pra pagar."
Quando vejo essas frases tenho sempre uma vaga curiosidade em saber
como surgiram. Não propriamente quem as inventou – que diferença faz, caso
se descubra que quem primeiro usou “um castigo” foi um tal de Espiridião Curió,
em Palmeira dos Índios, em 1835? Diferença nenhuma. Mas eu gostaria de
entender o raciocínio que subjaz ao famoso “em banda de lata”. "Rapaz, eu fui
na festa de Fulana ontem, tinha gente em banda de lata." "No dia em que fizerem
uma devassa no ECAD, vão prender gente em banda de lata."
Coletivos de pessoas são muitos, só esses encheriam um pequeno
glossário. “Magote” é um dos meus preferidos, embora há anos não o use, para
não gerar balloons interrogativos sobre a cabeça dos meus interlocutores
cariocas. Em todo caso, é geralmente usado em tom levemente depreciativo,
mesmo com bom humor, como se vê nesta citação do meu saudoso amigo Pedro
Nunes Filho:
Certa vez, Martins Preto chegou à Fazenda Bonfim, onde seu filho, Pedro
Martins, era o vaqueiro de maior confiança, procurou o proprietário, Antônio
Nunes, e disse:
-- Seu Antônio, eu estou muito aperreado porque Joaquim Aragão quer
tomar minha terrinha e eu não sei o que vou fazer para sustentar o magote de
moleque que eu tenho.
(Pedro Nunes Filho, Guerreiro Togado)
“Ruma” cumpre um papel bem semelhante, e palpita-me que esse
substantivo tenha alguma relação com o verbo “arrumar”, que talvez signifique,
por certo ponto de vista, “enfileirar as várias rumas de coisas”... algo assim.
Poeta popular gosta muito de usar esse termo:
Galinha põe todo dia
invez de ovos, é capão,
o trigo invez de semente
bota cachadas de pão,
manteiga lá, cai das nuvens
fazendo ruma no chão.
(Manoel Camilo dos Santos, Viagem a São Saruê)
Quando o chão está molhado
aparecem coisas boas:
se levantam cogumelos
que as capas parecem broas;
os sapos chocam de ruma,
bordam com cachos de espuma
os cenários das lagoas.
(Sebastião Dias, cit. em De Repente, Cantoria, de Geraldo Amâncio e
Vanderley Pereira)
Como toda linguagem oral, essas expressões nordestinenses dependem
muitas vezes de um complemento visual ou sonoro. Nisso os nordestinos se
aproximam dos italianos, que quando conversam parecem estar fazendo
tradução simultânea em Libras, o tempo inteiro. Nordestino também gesticula
muito, como por exemplo ao dizer “está assim de gente”.
A expressão é complementada pelo gesto de unir as pontas dos dedos
em círculo e fazer pequenos movimentos de abre-e-fecha.
"Rapaz, eu fui no
comício ontem à noite. Disseram que ia ser fraco, mas a praça estava ‘assim’ de
gente!" O gesto, pela convergência das pontas dos dedos, indica quantidade e
aglomeração; mas no Rio existe um gesto semelhante que os motoristas fazem
uns aos outros, durante o dia, para alertar que o outro está com os faróis acesos,
por distração. Nesse caso, o gesto significa os raios de luz, e o piscar do farol.
Durante muito tempo, toda vez que eu via esse gesto nas avenidas ou nas
estradas, pensava que queria dizer "trânsito congestionado no trecho onde
passei ".
Para se falar em multidões compactas, conheço poucos termos mais
adequados do que “duro de gente”. “Fui assistir o show de Elba no Parque do
Povo, mas nem cheguei perto do palco, estava duro de gente, só consegui ficar
a uns cinquenta metros”. É a multidão cerrada, no aperto, impenetrável.
Há um comparativo de quantidade que a gente diz muito usando o termo
“o mesmo tanto” ou “outro tanto”. Significa a mesma quantidade, ou mesma
proporção, que acaba de ser mencionada. “Fulano disse que vai pagar dois mil,
e o pai dele outro tanto, para ajudar na sua operação.”
Quanto mais eles andavam
menos saíam do canto
porque o chão dessa ponte
avançava o mesmo tanto,
e eles não prosseguiam
pela força desse encanto.
(Braulio Tavares, A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora)
E gosto muito de uma que já ouvi de meus amigos cearenses, quando
queriam se referir a uma quantidade respeitável de algo: “coisa que dá uma
guerra”. “Rapaz, fui ver o tal Museu de Arte Popular, tem coisa que dá uma
guerra.” “Meu pai me chamou para ajudar a limpar a garagem da casa dele, mas
desanimei quando vi... Tem coisa que dá uma guerra!”.
O que são essas expressões? Regionalismos? Gírias? Ecoletos? Só sei
que para meus ouvidos são expressões pertencentes à língua, mesmo que não
sejam conhecidas por todos os utentes da língua. E por este ponto de vista, são
tão legítimas quanto “em abundância”, “à cunha”, “à farta”, “à beça”, “em penca”,
“uma pá de coisa”...
4961) A Vida, o Universo e tudo o mais (12.7.2023)
Existem dois tipos de questões existenciais. As que se referem ao Ser
Humano, e as que se referem ao Universo.
O Ser Humano nos inspira o famoso grupo de perguntas: “Quem sou eu?
De onde venho? Para onde vou? O que estou fazendo aqui?”. São as perguntas
que os filósofos fazem a si próprios, até porque se um soldado de polícia os
abordar de noite na rua eles precisarão ter essas respostas na ponta da língua.
As questões relativas ao Universo são na área conceitual de: “O que é o
Universo? Quem o criou? Como o criou? Para que o criou? O que acontecerá
com o Universo no futuro? Existem outros Universos além deste?”. E por aí vai.
As religiões dão respostas variadas a estas perguntas.
As ciências
também. E o mesmo acontece com a literatura.
Com dez anos de idade eu me deparei com um conto de Clifford D. Simak
intitulado “As Respostas”. Está incluído na excelente coletânea Maravilhas da
Ficção Científica (Ed. Cultrix, 1958, organização de Fernando Correia da Silva,
seleção de Wilma Pupo Nogueira Brito).
(Clifford D. Simak)
É a última história do livro, e vem depois de uma série de contos pesopesados que, lidos naquela idade, me deixaram de queixo caído e com alguns
nomes de autores gravados a fogo na minha memória: Alfred Bester, A. E. Van
Vogt, Fredric Brown, Ray Bradbury, Isaac Asimov...
O conto de Simak fala de uma expedição espacial numa nave tripulada
por quatro criaturas: o Cão, o Humano, a Aranha e o Globo. Cada um deles
representa uma raça diferente, e percorrem a Galáxia fazendo pesquisas.
Chegam a um planeta habitado por humanos, e o Humano decide ficar ali, ao
constatar que os habitantes levam uma vida pacata, modesta, de baixa
tecnologia.
Ele é recebido pelos locais, interage com eles, aproxima-se aos poucos
de uma família, um casal idoso (Jed e Mary) e sua filha Alice. Quando se tornam
mais amigos, o astronauta pergunta por que levam uma vida tão simples e
tranquila, sem máquinas, sem aparelhagens complicadas. E Mary lhe responde:
“Encontramos a Verdade”.
No dia seguinte, Jed o leva até um edifício empoeirado, no centro de uma
aldeia deserta. Ali, há uma máquina que responde perguntas. Na verdade, a
máquina responde duas perguntas, apenas. E o homem faz a primeira pergunta.
Qual é a razão de ser do Universo?
E vem a resposta, através de uma fita impressa:
O Universo não tem razão de ser. O Universo apenas aconteceu.
Ele nem sequer tem tempo de formular a segunda pergunta, que é um
tanto óbvia. A resposta sai antes mesmo disto; uma outra fita impressa, onde
está escrito:
A vida não tem significado. A Vida é uma casualidade.
Por que motivo algumas coisas nos parecem plausíveis, na infância, e
outras não? Bem, há milhões de livros respondendo essa questão, de modo que
vou passar adiante.
Depois das aventuras espetaculares dos outros contos do livro, o conto
de Simak encerrava a antologia quase que num anti-clímax. Não havia hiperuniversos, divindades alienígenas, nenhum dos prodígios cósmicos que naquela
época eu lia na pulp fiction de F. Richard-Bessière, Jimmy Guieu ou Stefan Wul.
Depois de tantas histórias em “Cinemascope Barroco”, era até
reconfortante escutar uma explicação tão simples, tão repousante, tão óbvia.
Por isso não me angustiei nem um pouco quando, já aos 20 anos, li A
Náusea de Jean-Paul Sartre, o livro em que o impacto da pura existência é visto
como a pior bad trip possível – a existência sem essência prévia, sem uma
Divindade que lhe dê forma e função, sem um Imperativo Cósmico que, uma vez
descoberto, me ensine o que vim fazer no Universo.
Não vim fazer nada. Eu simplesmente aconteci. O que vou fazer agora,
vai depender “de mim e de minha circunstância”. Posso – como o Antoine
Roquentin de A Náusea – largar meus planos de fama intelectual ou de ascensão
social e ir escutar uma negra cantando um blues numa vitrola de ficha, perto do
cais do porto.
Posso ir viver a vida como ela é. “A vida, apenas, sem mistificação”
(Drummond). “It’s alright, Ma – it’s life, and life only” (Bob Dylan).
A maioria dos críticos considera o livro de Sartre como o aterrorizante
testemunho do absurdo da existência.
Eu o considero um dos livros mais
otimistas, mais zen, mais serenos da literatura universal. É a história de um
homem que percebe, sem máquina interplanetária alguma, que o Universo não
tem razão de ser e que a Vida não tem significado.
Quer maior liberdade do que isto? Quer maior responsabilidade do que
isto?
O conto de Clifford D. Simak foi publicado pela primeira vez na revista
Future Science Fiction (março de 1953) sob o título “...And the truth shall make
you free” (algumas republicações trazem o título usado na tradução brasileira,
“The Answers”). É uma citação do Evangelho Segundo S. João, cap. 8, versículo
32.
Clifford D. Simak (1904-1988) não era um existencialista da Rive Gauche,
experimentador de mescalina e flertador com o comunismo. Era um homem
conservador e pacato do Meio Oeste (passou a vida quase toda em Wisconsin),
autor de uma obra que vê a simplicidade da vida rural, junto à natureza e aos
animais, como uma espécie de ideal. Sua ficção científica tem um fundo
humanista, místico, quase ecológico “avant la lettre” em sua valorização e
respeito por todas as formas de vida, terrestres ou alienígenas.
A vida será o que fizermos dela. O universo será o que fizermos dele.
Sorte a minha de estar a ler ficção científica desde tão cedo (e de ter um
pai que me comprou aquele livro, imaginando que me traria algum proveito), para
que aos vinte anos pudesse ler sem descrença ou assombro, mas com uma
sensação de estar-voltando-para-casa, estes versos de Fernando “Alberto
Caeiro” Pessoa:
XLVII
Num dia excessivamente nítido,
dia em que dava a vontade de ter trabalhado muito
para nele não trabalhar nada,
entrevi, como uma estrada por entre as árvores,
o que talvez seja o Grande Segredo,
aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.
Vi que não há Natureza,
que Natureza não existe,
que há montes, vales, planícies,
que há árvores, flores, ervas,
que há rios e pedras,
mas que não há um todo a que isso pertença,
que um conjunto real e verdadeiro
é uma doença das nossas ideias.
A Natureza é partes sem um todo.
Isto é talvez o tal mistério de que falam.
Foi isto o que sem pensar nem parar,
acertei que devia ser a verdade
que todos andam a achar e que não acham,
e que só eu, porque a não fui achar, achei.
(Fernando Pessoa)
4962) Escutem a voz dos doidos (15.7.2023)
(Ariano Suassuna)
O pensamento das pessoas chamadas normais é como os automóveis no
trânsito, e o pensamento dos doidos é uma bicicleta.
O automóvel, teoricamente, poderia andar de ré em plena rua, poderia
subir na calçada, poderia dirigir na faixa da esquerda e não da direita, e assim
por diante. Poderia fisicamente, é claro. Não o faz porque existem leis, códigos,
punições previstas; e existe um consenso geral de que é melhor assim, é melhor
que haja proibições e restrições, desde que isso deixe as possibilidades mais
claras, e facilite a vida de todo mundo.
A bicicleta, não. O ciclista é um ser estranho, meio esquizóide. Está
montado num veículo mas se considera pedestre. Ciclista sobe na calçada, anda
na contramão, enfia-se a toda velocidade por um grupo de pedestres, pedala do
lado esquerdo, do lado direito... Todo mundo obedece regras, mas o ciclista só
obedece sua própria conveniência.
O juízo dos doidos é assim também – pensa o que gosta e o que
consegue, e danem-se as outras formas de pensar.
Quando digo “os doidos” não me refiro necessariamente às pessoas com
problemas mentais, internas nos manicômios, etc. Refiro-me a todas as pessoas
que pensam “fora do esquadro”, pessoas cujo raciocínio segue leis próprias; e o
fazem espontaneamente, e não de forma lúcida e deliberada como o fazem os
poetas, escritores, etc.
Exemplo do pensamento de um doido: o primeiro dicionário de polonês foi
publicado em 1746, e entre outras definições tinha esta:
“CAVALO – Todo mundo sabe o que é um cavalo”.
Este dicionarista é um doente mental? Provavelmente não, mas o
raciocínio que o fez redigir este verbete é o típico raciocínio de um doido.
G. K. Chesterton tem algumas excelentes páginas sobre a doidice no
capítulo “The Maniac” de Orthodoxy (1908). É dele a famosa frase de que “um
doido é alguém que perdeu tudo exceto a razão”. Vale lembrar que Chesterton
dizia isso lamentando o doido, e não para celebrá-lo. O sentido profundo de sua
frase é de que um doido é alguém incapaz de pensar em diferentes categorias,
de compreender um ponto de vista diferente do seu. O doido é alguém “cheio de
razão”, como a gente diz na Paraíba para qualificar uma pessoa arrogante,
prepotente, que se recusa a entender o ponto de vista do interlocutor.
Para Chesterton, a insanidade é quando uma pessoa começa a raciocinar
sem partir dos princípios corretos; ela entra num vale-tudo mental, porque a sua
razão é “uma razão sem raízes, uma razão que gira no vácuo”. Um pensamento
insano, mesmo que articulado de modo aparentemente correto; como certas
frases sintaticamente corretas mas que nada dizem, como no caso dos
cambueiros que taliscam a bata de qualquer catalunga, sem perceber que o
tirambó não calistura, nem as tragas fazem qualquer pinelo.
A doidice – essa doidice – seria um pensamento que perdeu a semântica
mas mantém um arremedo de sintaxe.
Chesterton abomina o doido (“o maníaco”) porque, para ele, doido é quem
não é cristão, quem não parte dos princípios corretos. Na análise dele não há
lugar para o doido engraçado, o doido surrealista, o doido imprevisível. O tipo
que ele descreve (com o brilhantismo de sempre) é o monomaníaco, o doido
vazio, o doido sem graça. Por isso ele diz que “mesmo os delírios mais poéticos
dos insanos só podem ser apreciados por uma pessoa sã; para o insano, sua
insanidade é extremamente prosaica, porque é real”.
Acho que foi Henri Bergson, em sua teorização sobre o Riso, quem
sugeriu esse ângulo para definir o Humor: é a nossa reação quando vemos
alguém se comportar cegamente, de maneira mecânica, encalhada num só tipo
de visão, de reação, de raciocínio. Neste ponto há uma convergência
interessante com o pensamento de Chesterton, porque esse tipo de personagem
é alguém que perdeu tudo, exceto a razão, perdeu qualquer capacidade de
pensar, exceto aquele pensamento mecânico que o transforma num cego
repetidor de clichês, de palavras-de-ordem ou de mantras que nem ele mesmo
entende.
Existem doidos de toda qualidade. Dizer “o Doido” é tão inconclusivo como
dizer “o Artista”, porque dentro desse termo cabe um milhão de tipos.
Guimarães Rosa exclama, através do seu narrador de “A Terceira
Margem do Rio”: “Ninguém é doido. Ou então todos.” Rosa era fascinado pelos
doidos, e um conto como “O Recado do Morro” (hoje incluído no livro No
Urubuquaquá, no Pinhém) exibe uma galeria de doidos muito variada.
Tem o “Catraz”, cientista amador, o homem que inventou um automóvel
ainda incompleto, porque só funcionava na descida, “na subida e no plaino ainda
não é capaz de rodar.” O Catraz queria voar para a Lua montado numa catrevage
puxada por urubus amarrados, bastando-lhe erguer na ponta de uma vara um
pedaço de carniça, que faria os urubus levantarem voo para alcançá-la, e como
a vara estaria igualmente se elevando, acabariam desembarcando na Lua ou
além.
Tem o “Coletor”, doido que vivia rabiscando números nos muros da
cidade, contabilizando suas cabeças de gado, suas terras, seus ouros...
A doideira dele era uma só: imaginava de ser rico, milionário de
riquíssimo, e o tempo todo passava revendo a contagem de suas posses.
Escrevia em papel, riscava no chão, entalhava em casca de árvore, em qualquer
parte. (...) Aquele homem tinha uma felicidade enorme.
Nossos magnatas de fortunas eletrônicas, virtuais, compartilham dessa
imaterial felicidade, e ai de quem sugerir recolhê-los ao Pinel. Me digam em que
casca de árvore ficaram os bilhões de Eike Batista ou de Bernard Madoff. São
doidos? Não, são espertalhões, mas eram menos espertos do que imaginavam.
Dinheiro é um poderoso alucinógeno; ele proporciona visões deslumbrantes,
mas também faz o sujeito atravessar a rua na hora errada.
No mundo de Chesterton não há lugar para o doido esperto. O doido
esperto é simplesmente o esperto que se faz de burro para enganar os burros
que se consideram espertos. O exemplo clássico é o Doidim que os caras da
cidade chamam e mandam escolher entre uma moeda pequena de ouro e uma
moeda grande de cobre – e ele sempre pede para si a moeda maior. Quando
alguém vai lhe explicar que seria mais jogo pegar a outra, ele diz: “Se eu pegar
a outra, eles param de me chamar”.
Esse é o doido esperto, o doido ciclista, que inventa um caminho mais útil
para si mesmo, aproveitando-se do fato de que os outros só raciocinam de um
jeito. Perderam todas as outras formas de pensar, e só lhes resta “a razão”. São
previsíveis. Podem ser driblados.
Um clássico exemplo de doido esperto é Dom Pedro Dinis FerreiraQuaderna, o narrador do Romance da Pedra do Reino (1971) de Ariano
Suassuna, um personagem mercurial, escorregadio, que ao longo do romance
se faz de doido, se faz de cego, se faz de besta, se faz de intelectual, se faz de
qualquer coisa que lhe convenha a cada instante. Quaderna tem, como certos
doidos, a mania de grandeza, de se acreditar o futuro Imperador do Brasil, por
ser descendente dos fanáticos que degolaram dezenas de pessoas em 1838, na
Pedra do Reino, para desencantar um castelo e trazer de volta Dom Sebastião.
Quaderna acredita nisso? Depende. Acredita quando lhe convém. Tem mais
juízo do que eu ou você.
Meu saudoso amigo Arievaldo Viana contava esta, de algum doidim
cearense:
Hoje encontrei um doido que anda pedindo esmola aqui na Praça Pedro
Américo. Sempre eu dou-lhe um trocado.
Ele botou a mão na minha cabeça e falou: "Se você tá com Deus, um
bandido bota a arma na sua cabeça, aperta o gatilho e a arma não dispara."
Perguntei: "E se for uma arma boa e disparar?"
Ele foi rápido: "Era porque você estava pronto pra ir ao encontro de Deus".
(Arievaldo Viana)
4963) A arte da ironia (18.7.2023)
A repetição está na raiz de qualquer literatura. Tudo que dizemos
provavelmente já foi dito por alguém, em algum momento. Não importa se eu já
vi esta frase ou não; ela já foi dita. O fato de eu ter ou não consciência disto cria
uma diferença. Se eu desconhecia a frase, estou repetindo; se eu a conhecia,
estou imitando, mas posso também estar produzindo uma variante deliberada. A
Literatura vive, também, da criação contínua de variantes do que já existe.
São as variantes de uma idéia que, injetando nela algo de novo, garantem
a sua sobrevivência e a chance de que venham a ser novamente imitadas no
futuro. É assim que se criam os gêneros literários: imitando algo que já foi feito,
e introduzindo pequenas surpresas e viradas-de-esquina. Repetindo o que já se
tornou patrimônio coletivo, e inserindo nele uma contribuição individual.
Mark Twain, um grande fazedor de frases, disse certa vez num discurso:
“Fiquei triste ao ver meu nome mencionado como um dos grandes autores
da Literatura, porque eles têm o triste costume de acabar morrendo. Chaucer já
morreu, Spencer morreu, o mesmo aconteceu com Milton, com Shakespeare...
e eu mesmo não me sinto muito bem”.
É uma enumeração grave e sisuda que resvala, aos poucos, para um final
meio gozador. O que na retórica chama-se de bathos, uma forma de anticlímax
que geralmente produz o riso quando a usamos de forma mais caricatural: “Entre
as minhas influências literárias estão Shakespeare, Goethe, Dostoiévski e Didi
Mocó.”
Mark Twain foi o primeiro a fazer esse tipo de enumeração irônica? Pode
ter sido, ou pode ser que não; não importa. Quando uma forma de dizer as coisas
se revela eficaz, ela provavelmente será imitada por alguém. Em seguida, a
existência desses dois exemplos aumenta as chances de que haja um terceiro.
E depois um quarto, e depois um quinto... e eu mesmo já estou derrapando no
mesmo caminho.
Coube a Woody Allen, um discípulo de Mark Twain (todos os humoristas
norte-americanos o são), dar sua versão desta figura retórica quando disse:
Deus está morto, Marx está morto, e eu mesmo não estou me sentindo
muito bem.
Num poema do livro Sentimento do Mundo (“Ode ao Cinquentenário do
Poeta Brasileiro”) Carlos Drummond de Andrade fez uma bela homenagem a
Manuel Bandeira, e a certa altura comparou o destino discreto de Bandeira, de
poetar quase em segredo, com o destino de outros colegas seus:
Efetivamente o poeta Rimbaud fartou-se de escrever,
o poeta Maiakóvski suicidou-se,
o poeta Schmidt abastece de água o Distrito Federal...
Macacos me mordam se não há uma ironia mordaz nessa comparação,
em que ele justapõe dois poetas (Rimbaud e Maiakóvski) que viveram trágica e
radicalmente a poesia e Augusto Frederico Schmidt, um poeta-empresário, sócio
de variadas indústrias, dono de supermercados.
Jean-Luc Godard é um autor que usa a ironia e o sarcasmo como outros
usam o sal e a pimenta. Além do mais, é um citador inveterado, e já afirmou que
o cinema deveria consistir apenas em pessoas diante de uma câmera lendo
trechos de seus livros preferidos.
(A Chinesa)
Em A Chinesa (1967), ele faz a personagem Véronique (Anne
Wiazemsky) dizer:
Olhe aqui... Nizan está morto. Merleau está morto. Sartre se escondeu
dentro de Flaubert. E Aragon se escondeu na matemática.
Ele se refere a Paul Nizan (1905-1940), escritor ligado ao grupo
existencialista, cujo romance Aden-Arabie fornece o nome escolhido pelos
personagens do filme de Godard para batizar a sua “célula maoísta”. Merleau é
Merleau-Ponty (1908-1961), filósofo, co-editor com Sartre da revista Les Temps
Modernes.
A ironia com os contemporâneos vai na direção de Sartre, na época
mergulhado em sua gigantesca análise da vida e obra de Flaubert (L’Idiot de la
Famille, 1971-1972), e do poeta Louis Aragon. No caso deste não encontrei
nenhuma relação com a Matemática, mas seja o que for soa como uma ironia
(do personagem) para com um dos criadores do Surrealismo e depois comunista
militante.
E da literatura e do cinema esse recurso retórico acaba chegando à
música popular através de Caetano Veloso, na canção “O Estrangeiro” (no álbum
Estrangeiro, 1989):
O amor é cego,
Ray Charles é cego,
Stevie Wonder é cego,
e o albino Hermeto não enxerga mesmo muito bem...
O mesmo recurso de enumeração decrescente serve aqui a outro
propósito. Eu vejo uma intenção irônica ou levemente depreciativa nos exemplos
de Carlos Drummond e de Godard. Não vejo o mesmo propósito neste exemplo
de Caetano, que formou sua citação mais pelo ouvido (ecoando o trecho final de
“...não muito bem...”) do que por uma intenção satírica.
A letra de “Estrangeiro” é uma dessas letras viajandonas de Caetano, à
base de citações inesperadas, associações livres, lirismo palavra-puxa-palavra,
quase como uma escrita automática surrealista. Mas, como sempre, “existe
método nessa loucura”. Caetano joga o tempo todo, nestes versos, com o
conceito mutante de beleza visual, coisas que todo mundo vê mas vê de forma
diferente.
Uns acham a Baía de Guanabara uma beleza, outros um horror, outros a
olham e não a veem. Enxergar é uma coisa, ver é outra. Isto é reiterado no
videoclip, em que ele “vê”, se se virar, o velho e a moça que caminham atrás
dele na areia da Baía. “Cego de tanto vê-la”, ele se equipara a Ray Charles,
Stevie Wonder e Hermeto Paschoal, e se o faz no formato retórico celebrizado
por Mark Twain, é com uma intenção totalmente diferente.
“Repetir, modificando” é um conselho útil para quem escreve ou cria; aliás
nem precisava ser um conselho, porque é uma coisa inevitável. Repetir é sempre
modificar, porque mesmo se copiarmos a obra de alguém tintim-por-tintim o
simples fato de fazer isto noutra época e noutro contexto já desvia e refrata as
leituras possíveis.
Não precisa. “Repetir, modificando” é um prazer. O que nos leva a fazê-lo
é menos a preguiça de quem repete do que a excitação de quem quer introduzir
uma variante, porque teve uma idéia nova em torno daquilo e mal pode esperar
para botá-la na roda.
4964) O não-espaço (21.7.2023)
(ilustração: Sujit Sudhi)
Um não-espaço é qualquer lugar capaz de servir como uma negação
(mesmo uma negação puramente simbólica) do espaço convencionalmente
aceito.
Não é um conceito científico, é dramatúrgico. Tem função na literatura e
em outras artes narrativas. Serve para o autor pegar um personagem e retirá-lo
do espaço comum a todos, engastando-o num local onde tudo tem que se
reorganizar em torno dele.
“A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa (em Primeiras Estórias,
1962) é um bom exemplo desse conceito. Um homem já idoso constrói para si
uma pequena canoa e, abandonando a família sem dar explicações, mete-se na
canoa rio adentro, mas sem se deixar levar pela correnteza e sem atravessar o
rio por completo. Fica para lá e para cá, indo e voltando, no meio do rio.
É um não-espaço no sentido de que ele procura permanecer num espaço
que, em uso comum, serve apenas como fluxo, como espaço a ser transposto e
deixado para trás. Nesse espaço de não-permanência, ele se instala e não faz
menção de sair.
(O Terminal)
Outro exemplo, mas com características totalmente diversas, é o filme O
Terminal (Steven Spielberg, 2004). Tom Hanks faz o papel de um cidadão de um
pequeno país em turbulência política. Ao desembarcar no aeroporto de Nova
York, ele fica sabendo que devido a um golpe de Estado seu país não existe
mais, e seu passaporte não tem valor. Ele não pode embarcar de volta, não pode
ser aceito em território dos EUA, não pode embarcar para outro lugar. Fica
morando no não-espaço do aeroporto.
Um local de passagem, de fluxo, onde ele é forçado a criar técnicas e
truques de morador permanente.
(Simão do Deserto)
O não-espaço pode ser escolhido por motivos publicamente aceitáveis. É
o caso do protagonista de Simão do Deserto (Luís Buñuel, 1965), uma
reconstituição fantástica da vida de alguns santos medievais, principalmente
Simão Estilita, que passou 37 anos vivendo no alto de uma pilastra. O santo se
isola ali no alto para se martirizar, para fugir às tentações do mundo, e também
para servir de exemplo, pois multidões se reúnem para assistir o “nãoespetáculo”.
A coluna do santo faz lembrar outro conto de Guimarães Rosa, no mesmo
livro: “Darandina”. Um homem chega a uma Casa de Saúde ou hospício e pede
para ser internado, pois acha que o mundo lá fora está ficando cada vez mais
louco e se o destino dele é ficar doido também é melhor garantir desde logo um
bom lugar. Como o homem não parece doido coisa nenhuma, não é aceito; mas
imediatamente vai para o meio da rua, rouba pertences dos passantes e escala
uma enorme palmeira que há na praça.
Lá em cima, o homem grita frases de efeito para a multidão que
rapidamente se reúne, e acaba tirando a roupa por completo e jogando-a lá do
alto. Os bombeiros vêm mas hesitam, com medo de que ele se jogue, mas de
repente o surto acaba, ele se horroriza e desce de boa vontade.
O alto da palmeira é um não-espaço, um lugar onde alguém só subiria
para cumprir alguma tarefa rápida e descer em seguida. É um lugar onde
ninguém é proibido de ir, mas só um doido quereria se demorar ali em cima.
Uma situação parecida com personagem de Ítalo Calvino em O Barão
nas Árvores (1957), em que um rapaz decide passar o resto da vida morando
nas ramagens das árvores, sem voltar a pôr o pé no chão. É uma decisão não
muito distante da do barqueiro de “A Terceira Margem do Rio”, e embora a
história percorra caminhos diferentes, o não-espaço está ali: o espaço de que só
pode se locomover sem tocar no chão.
O não-espaço é muitas vezes uma espécie de limbo, de lugar isolado de
tudo, um lugar não-lugar. Fora do espaço-tempo, talvez – e é neste aspecto que
a ficção científica multiplica as situações em que alguém se situa num tal “ponto
negativo”.
Isto vem desde a FC mais pulp fiction, como as narrativas do imaginoso e
envolvente F. Richard-Bessière. Em A Máquina Infernal do Tempo ("Carrefour
du Temps", Tecnoprint, s/d, trad. David Jardim Júnior) ele mostra como o repórter
Sidney Gordon, por ter praticado um ato que ameaçava a própria existência do
nosso Universo, é “exilado” dele e instalado num “não espaço”. Ele acorda à
noite em seu apartamento e estranha a escuridão absoluta no quarto:
O pior, porém, foi quando me debrucei sobre a sacada. Diante e embaixo
de mim, não havia coisa alguma, a não ser o vácuo impalpável e aterrador. Dirse-ia que a vida material tivesse desaparecido, além daquele peitoril e que não
existisse a própria cidade. Acima, de mim, a mesma coisa. Senti, então, o maior
medo de toda a minha vida, pois pensei que estivesse cego. O grito que quis dar
não saiu da minha garganta, e foi com a mão trêmula que acendi o isqueiro...
Graças a Deus, não estava cego... Estava vendo tudo que se encontrava
DENTRO do quarto, mas coisa alguma que estivesse FORA dele.
Que se passava?
Corri para a porta e abri-a, bruscamente.
Não sei o que se teria passado, se eu não tivesse recuado instintivamente.
Dessa vez, gritei mesmo, e senti um suor frio escorrer-me ao longo da espinha.
O que se estava passando era fantasmagórico, alucinante. Para além da porta
não havia mais o corredor. Em seu lugar estava o nada, o vácuo, o infinito, o
desconhecido...
Este tipo de não-espaço não tem verossimilhança científica, e é produzido
apenas para efeito dramático. (Praticamente tudo na pulp fiction visa apenas ao
efeito dramático, e a Ciência que vá pastar.)
Ligeiramente menos implausível, pelo menos em termos narrativos, é o
não-espaço onde um personagem é projetado em Zeitgeist (2000, Bruce
Sterling). Por estar muito próximo ao local da explosão de uma bomba atômica,
no deserto do Novo México, o Vovô Joe deixa de existir no aqui-e-agora do nosso
espaço-tempo, e vê-se espalhado ao longo de todo o século 20, como quando a
gente espalha com a mão uma mancha úmida de tinta. Um não-espaço que na
verdade é um não-tempo: há resíduos dele espalhados ao longo de todo o século
20, mas ele permanece lúcido e consegue se comunicar com o neto.
Não acho que seja forçação de barra comparar o destino de Vovô Joe
com o destino do “nosso Pai” de “A terceira margem do rio”. É a força do símbolo
(e do símbolo em branco, sem conteúdo pré-fixado) que inspira e arrasta estas
histórias: a nossa fascinação pela possibilidade de imaginar um destino
improvável mas que corresponde, pela simples negação, à realidade em que
vivemos. Ajuda a ver essa realidade “de fora”, de um espaço que é virtual,
conceitual, dramatúrgico, alegórico, nocional: um não-espaço.
4965) "Explicação": o manifesto de Carlos Drummond (24.7.2023)
Alguma Poesia (1930), livro de estréia de Carlos Drummond de Andrade,
foi uma estréia discreta, como aliás a de todos os poetas modernistas. Antonio
Cândido, num depoimento sobre Graciliano Ramos, no YouTube, lembra aos
leitores de hoje que o Modernismo não tomou de assalto a literatura brasileira
em 1922. Foi um movimento pequeno, localizado, à revelia do Brasil. Sua
importância e sua influência foram se ampliando e se solidifcando muito aos
poucos.
Drummond estreou em 1930 com este livro onde já estão presentes
muitos dos elementos que ele iria amadurecer e aprofundar ao longo da vida.
Elementos que poderiam na época parecer uma adesão automática a
certas táticas modernistas (o poema curtíssimo, o poema-piada, a gramática e a
grafia bárbaras das ruas, a ironia, a desconstruções dos ícones românticos e
parnasianos), mas hoje, em retrospecto, podemos considerar traços essenciais
do autor. Das muitas portas abertas pela agitação modernista, foi por estas que
ele se esgueirou com mais espontaneidade.
O Modernismo de 1992 era afeito aos manifestos, às palavras de ordem.
Drummond não redigiu nenhum, ao que eu saiba, mas vários poemas deste
primeiro livro têm um pouco esse tom de quem dá as cartas, de quem anuncia
valores.
É o caso de “Explicação”, que começa lembrando Manuel Bandeira (“Uns
tomam éter, outros tomam cocaína, / já tomei tristeza, hoje tomo alegria.”):
Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.
Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.
Confesso que não visualizo com facilidade o poeta, com sua calva
precoce e seus óculos redondos, pedindo uma bicada no balcão para curtir “o
desprezo da morena”. Me soa como uma precoce infiltração sambista, talvez,
agarrada a esse ubíquo verbo “cantar”. De mais a mais, a esta altura a
intelectualidade e o samba já começavam a passear de braços dados, como
registram Hermano Vianna em O Mistério do Samba (1995) e André Gardel em
O encontro entre Bandeira e Sinhô (1996).
Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A “cambalhota” soma-se a muitos versos, já presentes neste primeiro
livro, em que o poeta se oferece como algo parecido com um clown, um artista
de circo, ocupações que a intelectualidade da época olhava com os mesmos
olhos com que um intelectual de hoje observa o baile funk. E alguém imaginaria
os grandes poetas da geração anterior (Bilac, Cruz e Sousa, Guimarães Passos)
apregoando uma cambalhota?
E ficamos com esta última linha, e seu eco inevitável trazendo à memória
Cecília Meireles e seu “Não sou alegre, nem triste: sou poeta”, um achado de
límpida simplicidade, que logo se incorporou à nossa linguagem falada.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole,
preguiçosa.
Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
A sombra das bananeiras! Esta planta, velho símbolo nacional, é
insistentemente convocada pelo poeta estreante (v. “Cidadezinha qualquer”,
“Fuga”, “Sesta”). Faz parte do nosso Brasil, desde aquele tempo, o hábito de
atribuir ao clima tropical e sua flora as características indolentes do povo.
Mais interessante é a dicotomia que Drummond começa a estabelecer
nas linhas seguintes:
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado...
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades na pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.
Aqui não se trata simplesmente do poder da natureza. O poeta nos
oferece algo em troca dela: Hollywood, por exemplo. E Drummond nunca foi
imune às seduções do cinema de seu tempo, de Charles Chaplin a Greta Garbo.
O cinema aparece aos olhos do rapaz como a promessa de um mundo feérico,
onde de vez em quando as aventuras dos cowboys são estragadas pela
contaminação bárbara de “uma viola”.
O Modernismo pós-1922 deitou e rolou em cima desses contrastes entre
Rural e Urbano – contrastes que o Tropicalismo viria anos depois tonificar,
valendo-se de um momento cultural muito mais vibrante no cinema, nas artes
plásticas, no teatro, na própria literatura.
A comparação drummondiana entre “a casa de nove andares comerciais”
e “a casa colonial da fazenda” são o equivalente, em seu tempo, à “força da
grana que ergue e destrói coisas belas”. E o jovem poeta já nos traz esta fórmula
sua, que considero uma das mais diretas e inesquecíveis: “No elevador penso
na roça / na roça penso no elevador”.
Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices, a maior é suspirar pela Europa
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.
Ariano Suassuna, que se recusava a viajar para fora do Brasil, assinaria
com entusiasmo esse verso sobre a burrice de suspirar pela Europa. Drummond,
na verdura dos 28 anos, pensa muito na Europa em termos das pernas das
atrizes, que o cinema começava a propagar e que as ruas de cidades como Belo
Horizonte e Rio de Janeiro já se juntavam aos espetáculos das calçadas, do
footing ao entardecer.
São curiosos estes versos sobre o fato de “ser tudo uma canalha só”.
Cada leitor tem seu viés, é claro; eu já tive um tempo em que via nestas linhas
uma aconchegante sensação de ser brasileiro como todo mundo. Hoje, nesta
conflagrada terceira década do novo século, perto de se completarem os 100
anos do poema de Drummond, já não sei se um dia verei (ou alguém verá),
mesmo poeticamente, os brasileiros como “tudo uma canalha só”. Houve uma
clivagem brutal nestes últimos quarenta anos.
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta?
A pergunta deste final – desabusada, cheia de intimidades – equivale a
um pequeno manifesto sem cabeçalho. Tímido, discreto e convencional, por fora,
Drummond também sabia ser irreverente, emotivo sem melodrama, menino sem
puerilidade. Andando na rua poderia ser tomado por um parnasiano, mas dentro
dele (como dentro da poesia brasileira) surgia de forma irresistível essa busca
da linguagem direta e simples da rua à sua volta, da admiração franca mas nunca
embasbacada diante do cinema estrangeiro, desse interesse pela coisas novas,
coisas que podem se multiplicar, sob a condição de que deixem intactas as
coisas velhas...
Enfim: uma contradição que um século depois o país ainda não resolveu.
4966) A tabela periódica de Primo Levi (27.7.2023)
Estou lendo A Tabela Periódica (1975) de Primo Levi, na ótima tradução
de Luiz Sérgio Henriques (Ed. Relume Dumará, 1994). Levi é conhecido por
obras em que contou sua passagem pelos campos de concentração nazistas,
como Isto é um Homem? (1947).
A Tabela Periódica não tem muito a ver com o gênero conhecido como
“ficção científica”, mas é sempre mencionado quando se fala em “literatura
baseada na Ciência”. E ele é exatamente isto, e brilhantemente isto.
É um livro de memórias, em que o autor conta episódios variados de sua
vida. Conta o que lhe aconteceu, reflete sobre o que conta. Inventa pouco
(acredito eu). Mas tem o dom da escrita, o dom da contação de histórias, e
curiosamente talvez o tenha por ser um cientista, não um literato. Tem a mente
clara do cientista, a percepção-de-sutilezas do cientista, a disciplina
organizadora do cientista, a consciência permanente dos limites de seu
conhecimento – do cientista.
Levi é um químico, e adotou aqui uma curiosa “contrainte”. A história é
narrada por ordem cronológica, e ele atribui a cada capítulo o nome de um
elemento químico, o qual aparece ali ora como fator essencial, ora como
metáfora, ora como detalhe secundário mas presente. Não há forçação de barra,
não há trapaça. Eu acredito piamente que na vida de um químico os elementos
aparecem de forma tão constante e tão variada que dificilmente se encontraria
um episódio significativo em sua vida sem que houvesse a menção necessária
a um deles.
No primeiro capítulo, “Argônio”, Levi fala dos chamados gases chamados
“nobres”, ou “inertes”, porque não se combinam com nenhum outro elemento e
não interferem nas reações químicas. Ele usa essa metáfora para falar de seus
antepassados, “inclinados à especulação desinteressada, ao discurso arguto, à
discussão elegante, sofística e gratuita”.
No capítulo dois, “Hidrogênio”, ele já está com dezesseis anos, e conta
suas primeiras atividades de laboratório, bem desajeitadas, ao lado de um
colega. Encerra o capítulo contando como uma experiência resultou numa
pequena explosão, por sorte sem maior gravidade:
A mim tremiam-se um pouco as pernas, sentia medo retrospectivo e, ao
mesmo tempo, um orgulho tolo por haver confirmado uma hipótese e por haver
desencadeado uma força da natureza. Então, era mesmo hidrogênio: o mesmo
que queima no sol e nas estrelas e de cuja condensação, em eterno silêncio, se
formam os universos.
Todos descrevemos o mundo através de comparações, extraídas de um
glossário de idéias e de situações que nos são familiares. No capítulo três,
“Zinco”, Levi narra suas experiências com este metal, já na era fascista, e num
laboratório burocrático e pedante. O zinco “não é um elemento que puxe muito
pela imaginação, (...) é um metal aborrecido.” O trabalho é tedioso, e Levi
aproveita para fazer comparações químicas, ao descrever um diretor do
laboratório:
Como todos aqueles que exercem funções vicárias, constituía um
exemplar humano interessante: quero dizer, como aqueles que representam a
Autoridade sem possuí-la em si mesmos, como, por exemplo, os sacristães, os
guias de museu, os bedéis, os enfermeiros, os “assistentes” dos advogados e
dos tabeliães, os representantes comerciais. Todos eles, em maior ou menor
medida, tendem a transfundir a substância humana de seu Principal na própria
figura, como ocorre com os cristais pseudomórficos.
O judeu Levi passa o período entreguerras dando dribles no governo
fascista, adere brevemente à Resistência, é preso. A Tabela Periódica toca
apenas de leve no seu período em Auschwitz, já dissecado com detalhes no seu
livro de maior sucesso, Isto É Um Homem?.
Um dos capítulos mais amargos é “Vanádio”, no qual ele reencontra por
acaso, via correspondência profissional, um alemão, seu ex-chefe na fábrica
nazista de borracha em que foi forçado a trabalhar. Levi o reconhece pelo
sobrenome e pela grafia peculiar de um termo químico.
Começa uma troca de cartas entre os dois, agora ambos cidadãos livres.
O ex-nazista lembra-se dele, sim. Reconhece sua parcela de culpa, alega que
poderia ter se comportado de maneira muito pior; e Levi reflete:
Quase simultaneamente me chegou em casa a carta que esperava, mas
não era como a esperava. Não era uma carta modelo, paradigmática: neste
ponto, se esta história fosse inventada, poderia referir somente dois tipos de
carta: uma carta humilde, calorosa, cristã, de alemão redimido; ou então altiva,
soberba, glacial, de nazista impenitente. Ora, esta história não é inventada, e a
realidade é sempre mais complexa que a invenção: menos arrumada, mais
áspera, menos arredondada. Raramente está contida num só plano.
É um ponto de vista de cientista, mas também de escritor. De um homem
capaz de ver o quanto a ficção romanesca, aparentemente tão libertária em
termos de imaginação, obedece tanto a fórmulas quanto a fabricação de
vernizes. E onde é sempre mais prudente fazer as coisas conforme se faz há
cem anos e há cem anos que dá certo.
Não que falte imaginação ao autor. Alguns capítulos são contos.
“Chumbo” é a história de uma terra meio imaginária chamada Thiuda, e uma
família de homens que sabem extrair o chumbo das pedras e ganhar dinheiro
com seu comércio. “Mercúrio” conta de um capitão de navio semi-exilado com a
esposa numa ilha quase deserta onde começam a chegar náufragos misteriosos,
inclusive um pretendente a alquimista. Tensões e disputas levam a pequena
população a arranjos inesperados, em virtude da descoberta de jazidas de
mercúrio:
Quanto a encontrar o mercúrio em estado bruto, não nos custava nada:
na caverna, chapinhávamos no mercúrio, que nos gotejava na cabeça e nas
costas, e ao voltar para casa tínhamos mercúrio nos bolsos, nas botas e até nas
camas; subia-nos à cabeça um pouco a todos nós, tanto que começava a
parecer-nos natural trocá-lo pelas mulheres. É verdadeiramente uma substância
esquisita: é frio e fugidio, sempre inquieto, mas quando pára é possível nele
espelhar-se melhor do que num espelho. Se o fazemos girar num recipiente,
continua a girar por quase meia hora. Nele não somente flutua o crucifixo
sacrílego de Hendrik, mas também as pedras e até o chumbo. O ouro, não:
Maggie fez a experiência com seu anel, mas ele logo submergiu e, quando o
repescamos, se fizera de estanho. Em suma, é uma matéria que não me agrada,
e eu tinha pressa de concluir o assunto e livrar-me dele.
Também parece ser um conto a pequena narrativa de suspense “Titânio”,
sobre a madrugada insone do técnico que faz o possível para controlar uma
caldeira prestes a explodir, experimentando este ou aquele procedimento, e
sempre com a sensação de que a qualquer momento aquilo tudo voa pelos ares.
O último capítulo, “Carbono”, é um clássico várias vezes antologizado: a
história de um átomo de carbono, cuja importância ele resume com simplicidade:
O carbono é um elemento singular: é o único que sabe ligar-se a si mesmo
em longas cadeias estáveis sem grande dispêndio de energia, e para a vida na
Terra (a única que até agora conhecemos) se necessita justamente de longas
cadeias.
Levi passa a descrever toda a trajetória randômica desse átomo, ligandose a isto e àquilo, passando milhares de anos num lugar, milhões em outro,
transferindo-se da terra para um ser vivo e daí à terra novamente... Faz lembrar
aquela imagem de Jorge Luís Borges de que ele talvez já tenha respirado um
átomo de oxigênio que Shakespeare também respirou, visto que átomos não se
desfazem com muita facilidade.
Levi insiste em dizer que não é cientista, pois não completou estudos
superiores. Considera-se um técnico (e ganhou a vida como diretor técnico de
várias indústrias químicas), mas sua paixão pela ciência e sua honestidade
intelectual aparecem em cada frase. Um dos aspectos curiosos do seu estilo é o
seu modo criativo de usar a figura de linguagem chamada de “Falácia Patética”,
e que consiste em atribuir emoções a seres inanimados, com o fito de emocionar
o leitor.
É um recursos que tende facilmente para o melodramático ou o piegas:
“As estrelas surgiram timidamente no céu”, “a Natureza está chorando pela tua
morte”, “adormeceu embalado pelas carícias amorosas da brisa”... Um
antropomorfismo kitsch que Alain Robbe-Grillet demoliu em seu famoso ensaio
Por Um Novo Romance (1963).
Levi atribui aos seus elementos químicos toda uma gama de desejos,
preconceitos, simpatias, intenções. Faz isto com o didatismo de um professor
que quer descrever com clareza para os alunos o processo das reações
químicas, combinações, etc. E ao mesmo tempo o faz com autoridade de
ficcionista, capaz de transformar qualquer coisa, até um átomo, num
personagem cuja existência e cujo destino são capazes de nos interessar.
4967) A velhice: uma pequena morte (30.7.2023)
Um dos livros marcantes da new wave da ficção científica norteamericana, durante os anos 1960-70, foi Dying Inside (1972) de Robert
Silverberg. É a história de um telepata, David Selig, um cara que desde a infância
é capaz de ler os pensamentos das pessoas.
É um livro crepuscular e melancólico, e talvez por isto não tenha sido um
sucesso de vendas (apesar da ótima tradução de Ivanir Calado) quando o incluí
na minha efêmera Série Rama, que editei pela Editora 34, sob o título Uma
Pequena Morte (1993).
Selig é um desajustado, um arredio. Um protagonista que de cara explode
toda a expectativa do leitor de FC habituado a lidar com heróis cuja missão é
salvar o Universo. (Ou, em casos mais modestos, salvar a Humanidade.) Ele não
salva nem a si próprio. Seu relacionamento com outras pessoas é problemático,
porque ele é capaz de sintonizar o pensamento delas e tem acesso a esse
desvão proibido – “o que Fulano ou Sicrano realmente pensam e sentem ao meu
respeito”.
A infância de Selig não foi fácil, até ele descobrir por conta própria (porque
ninguém entendia as suas perguntas titubeantes) que as outras pessoas não
eram capazes de “escutar” o que ele escutava. Nunca foi bom aluno, “colava”
nas provas, estudava o menos possível, mas lia muito.
Adulto, ganha a vida fazendo bicos, como por exemplo redigir
dissertações e trabalhos para universitários preguiçosos. A indústria dos
“trabalhos fake” não é coisa recente. Selig tem um certo jeito para escrever, e as
informações estão à solta, por aí. As mentes humanas são uma Internet que ele
acessa sem dificuldade.
Dying Inside é considerado um clássico, e é visto por muitos críticos como
uma metáfora da velhice – porque durante a narrativa tomamos conhecimento
de que agora, por volta dos quarenta e tantos anos, Selig começa a perder seus
poderes telepáticos. Antes, acessava os pensamentos de qualquer pessoa,
mesmo um transeunte anônimo na rua, com a facilidade de quem sintoniza uma
estação de rádio. Agora, não, Há momentos (cada vez mais frequentes) em que
ele tenta, tenta, e não consegue captar.
Silverberg é um prodígio na FC. Não é exagero dizer que ele é o autor
mais versátil de sua geração. Do ponto de vista estilístico, é um sujeito
camaleônico, capaz de saltar da aventura mais desenfreada para a FC-cabeça
mais erudita. Tão prolífico quanto Isaac Asimov, tão narrativamente eficaz
quanto Robert Heinlein, tão inovador quanto Harlan Ellison.
Ele tem um excelente ensaio autobiográfico, “Sounding Brass, Tinkling
Cymbal”, incluído em Hell’s Cartographers (ed. Brian Aldiss & Harry Harrison,
Harper & Row, 1975). Silverberg nasceu com o dom da escrita fluente, elegante
(muitíssimo mais que a escrita igualmente fluente de Asimov). Produzindo FC,
fantasia, livros didáticos e outros tipos de escrita-por-encomenda, ele confessa
que aos 30 anos já estava rico, e pensando em se aposentar.
Eu escrevia com espantosa rapidez, vendendo quinze histórias em junho
de 1956, vinte no mês seguinte, catorze (incluindo uma serialização em três
partes) no outro mês. (trad. BT)
Quando contava apenas 21 anos, ele já tinha mais de um milhão de
palavras publicadas (entre contos e romances). Aos 30 anos, já era um homem
rico, e comprou a mansão onde tinha morado o prefeito de Nova York, Fiorello
La Guardia.
Ele conta, então, que por volta de 1968 acordou durante a madrugada,
numa noite de inverno, vendo uma luminosidade esquisita pela porta do quarto.
Pensou que um ladrão tinha entrado na casa. Não era ladrão, era um incêndio.
A casa ficou destruída de cima a baixo – literalmente; ele diz que o fogo começou
no meio de documentos guardados no sótão.
Ao amanhecer, tudo chegara ao fim. O teto não existia mais, o sótão fora
destruído, meu escritório no terceiro andar era uma ruína, e os andares inferiores
da casa, embora não queimados, estavam inundados de água, que rapidamente
congelava.
E ele se tornou um escritor igual aos outros.
Até 1967, eu escrevia meus textos, ambiciosamente, uma só vez,
produzindo vinte ou trinta páginas de texto final todos os dias, e fazendo apenas
pequenas correções a mão. Quando recomecei a trabalhar após o incêndio,
tentei prosseguir assim, mas tudo avançava devagar, eu me via parando o tempo
todo em busca de palavras, atrapalhando a narrativa; depois de meia lauda tinha
que parar tudo e começar de novo, fazendo pausas para recuperar as forças.
(...) Eu tinha me tornado um simples mortal como os demais, e tinha que produzir
dois ou três rascunhos de cada página, às vezes uma dezena, antes de poder
datilografar a versão final.
Como qualquer bom livro, Dying Inside pode ser uma metáfora da velhice
e da perda de memória, e pode ser também uma ressonância autobiográfica do
próprio autor. Pars sorte nossa, essa reduzida-de-marcha transformou
Silverberg num autor literariamente mais refinado, mais maduro, mais pensado.
Seus melhores livros foram escritos desta fase em diante. Os meus preferidos
são The Masks of Time (1968), The Man in the Maze (1969), o próprio Dying
Inside (1972), The Second Trip (1972), The Stochastic Man (1975), e algumas
coletâneas saídas no Brasil: Rumo aos Mundos do Futuro (Edameris, 1967),
Outros Tempos, Outros Mundos (Círculo do Livro, 1972).
Se tomarmos Uma Pequena Morte como uma reflexão sobre a vida do
autor, e não simplesmente uma metáfora da velhice, é possível pensar que
rapidez e quantidade podem ser qualidades positivas para quem escreve, mas
não são as únicas.
Após o trauma do incêndio, ele passou um período difícil. Seu amigo
Frederik Pohl lembra, em The Way The Future Was (Del Rey, 1978, cap. 11,
trad. BT):
Durante algum tempo chegou a parecer que a vida do casal Silverberg e
a nossa estava intimamente ligada. Carol e eu sofremos uma morte na família,
e depois um incêndio que danificou seriamente nossa casa, e quase a destruiu
por completo; pouco depois, aconteceu o mesmo a eles. Bob me escreveu uma
carta de reclamação, usando aquele tipo especial de ironia que disfarça um
sofrimento real, dizendo que não estava gostando dessa história de recapitular
as tragédias da minha vida, e pedindo-me o favor de avisá-lo o que viria em
seguida, para que ele pudesse se preparar.
Na juventude, é natural que a pessoa queira ganhar prêmios, bater
recordes, alcançar limites. Há um certo excesso de energia que precisa ser
queimada, precisa ser posta a bom uso. Passada esta fase, é preciso entender
quais são as vantagens da fase seguinte, e mudar de estratégia. Aos 60 anos
um escritor pode não ser tão prolífico quanto era aos 30, mas se souber
reorganizar sua vida e otimizar seus recursos pode produzir menor quantidade
com maior qualidade.
No mais, é como dizia Ivanildo Vila Nova: “Cantador de viola, jogador de
futebol e rapariga tem até os 40 anos para ficar rico, porque depois não tem mais
chance.” Quem escreve tem.
(Robert Silverberg)
4968) A literatura e a câmera-olho (3.8.2023)
A relação entre a literatura e as artes visuais começou talvez com a
pintura, avançou para a fotografia e por fim chegou ao cinema. (Este trajeto, é
claro, pode ser ampliado indefinidamente: a TV, o computador, o celular, o
videogame...)
As artes visuais ensinam nosso olho a captar, interpretar e
memorizar o mundo.
E a literatura acaba refletindo ao seu modo o
comportamento desse olho recém-educado, os seus modos de ver e de
entender.
O ensaio de Alan Spiegel Fiction and the Camera Eye: Visual
Consciousness in Film and the Modern Novel (1976) procura rastrear as técnicas
de visualização da prosa literária moderna, mostrando as semelhanças e as
diferenças entre o olho do cinema e o olho da literatura, bem como as
contribuições peculiares a cada autor.
Spiegel cita a profissão de fé de Joseph Conrad em seu prefácio a O negro
do Narcissus (1897): “O objetivo que pretendo alcançar é, pelo poder da palavra
escrita, fazer você ouvir, fazer você sentir, e acima de tudo fazer você ver. É isto
e mais nada, e isto é tudo”.
O objetivo de Conrad era de certa forma o mesmo de Flaubert, que a partir
de Madame Bovary (1857) tornou-se o modelo para todos os escritores para
quem a literatura é uma “forma concretizada”, um conjunto de personagens,
ações e ambientes em que basta ao autor expor o que acontece. Ao visualizar
cada cena, o leitor prescinde de explicações, porque a cena diz tudo, pela
escolha cuidadosa do modo de apresentação. Com Flaubert, de certo modo,
começou a tendência do “mostrar, ao invés de dizer”.
Como diz Spiegel,
“Flaubert permite que a ação narrativa exponha tudo que precisamos saber
sobre os personagens; ele próprio se mantém em silêncio”.
(Gustave Flaubert)
A literatura sempre teve o privilégio de saltar instantaneamente do mundo
exterior e visível para dentro da mente dos personagens, dizendo algo como: “Ao
ver aquele acidente, Fulano sentiu um misto de medo, repulsa e raiva, e lembrou
aquele dia, quando era criança, em que tal ou tal coisa lhe acontecera...”
O cinema, ao contrário, não pode nomear emoções, e só com certa
precaução pode mostrar a visualização dos pensamentos do personagem. A
literatura sempre teve uma amplitude de ação maior que o cinema; por que
motivo abriria mão dela? Ora, quando um escritor resolve contar uma história
abrindo mão dos comentários autorais e da liberdade de explicar ao leitor o que
um personagem está pensando, ele perde um instrumento que foi utilíssimo à
literatura durante séculos, mas por outro lado ele convoca o leitor a um
envolvimento maior. É como se dissesse ao leitor, estalando os dedos: “Acorde!
Não vou lhe dizer o que essas pessoas sentem. Abra os olhos, preste atenção.
Está vendo? O que acha disto?”.
A literatura tradicional dava ao escritor a confortável ubiquidade e
onipotência do contador de histórias, que sabe tudo da história que está
contando e puxa o ouvinte/leitor para junto de si, prometendo revelar o máximo
possível. O narrador moderno, ao contrário, dá um passo atrás, afasta-se da
zona iluminada, e deixa o leitor sozinho diante daquela cena reconstruída em
palavras, para que a interprete sozinho. O leitor era um ouvinte passivo; tornase agora um colaborador.
Alan Spiegel analisa o estilo de visualização de autores pré-Flaubert.
Balzac, por exemplo, “não vê uma cena com o olhar de um homem, mas com o
olhar de um deus que se imagina ao mesmo tempo fisicamente presente numa
cena e, ao mesmo tempo, fora dela e flutuando sobre ela”.
Já Charles Dickens “adere mais intimamente aos movimentos de um olho
que está presente em cada cena, um olho totalmente coordenado aos
movimentos dos objetos que descreve”.
De certa forma, esses autores pré-cinema criavam um cinema próprio
com seus planos gerais, planos de detalhe, movimentos ao longo de um
ambiente. A necessidade de “fazer ver” é sempre próxima da necessidade de
narrar, e em autores do século XIX vemos inúmeros trechos que diríamos
“cinematográficos” se eles não tivessem sido escritos décadas antes da Saída
dos operários da Fábrica Lumière (1895), ou seja – muito do que chamamos
“linguagem cinematográfica”precede a invenção do cinema, foi criado pela
literatura.
Spiegel aponta duas linhas no desenvolvimento da ficção dos fins do
século XIX e começo do XX.
Na primeira, a ênfase do romancista se afasta do objeto visto e se
concentra no olho do observador, a ponto de virtualmente dissolver o objeto; ele
analisa trechos de Émile Zola, D. H. Lawrence e Virginia Woolf para ilustrar essa
tendência.
Na segunda, os autores mantêm um equilíbrio entre objeto e observador,
produzindo uma narrativa mais próxima da experiência cinematográfica, e os
exemplos neste caso são colhidos na obra de Henry James, Joseph Conrad e
James Joyce.
(James Joyce)
Ele observa, com riqueza de exemplos, o quanto Joyce deixa claro ao
longo de suas narrativas qual é a posição dos olhos do personagem e o que,
exatamente, ele é capaz de avistar, dando a esse personagem uma função
semelhante à da câmara. Essa condição assume um duplo papel que varia entre
a identificação e o distanciamento, entre uma participação subjetiva do
personagem, misturando-se mentalmente àquilo que está vendo, e um
afastamento: “a característica frieza de visão de Joyce, uma espécie de
separação espiritual que começa com um olhar passivo, não-afetado, e nunca
permitirá ao observador uma relação completa com o que se encontra em seu
campo visual. (...) Uma espécie de solidão ocular”.
O romance contemporâneo fez um grande esforço para criar através da
prosa a frieza e a impessoalidade da câmara de cinema; um dos principais
teóricos e praticantes desse estilo foi Alain Robbe-Grillet, que aliás acabou
derivando para o cinema propriamente dito, como roteirista e diretor, sem
abandonar a literatura. Seus romances, como os de vários autores do Nouveau
Roman, são de uma visualidade exacerbada, que começa com a aparência de
objetividade total. O autor nada diz do mundo interior dos personagens, apenas
os mostra pelo lado de fora, como se fosse uma câmara. Mas essa aparente
super-objetividade acaba servindo como um bloqueio, uma amarra à narração,
porque o leitor não depende apenas de informações visuais para recompor uma
narrativa em sua mente.
A literatura descritiva, cujo lado visual vai sendo hipertrofiado, busca “a
inspeção microscópica dos momentos da existência”, uma fascinação quase
alucinatória pelo detalhe visto com uma nitidez que chega a ser excessiva, e com
uma predominância que empurra para segundo plano outros elementos da
narração verbal.
(D. H. Lawrence)
D. H. Lawrence já ironizava esse tipo de literatura num texto de 1923:
“Oh, meu Deus, se eu gostasse de me observar bem de perto, se eu
gostasse de analisar meus sentimentos nos menores detalhes, enquanto
desabotoo minhas luvas, em vez de apenas dizer rudemente que as desabotoei,
então eu poderia me alongar por um milhão de páginas em vez de apenas mil.
Na verdade, quanto mais penso nisso, é muito rude, muito pouco civilizado dizer
bruscamente: eu desabotoei minhas luvas. Afinal, que aventura absorvente é
essa! Comecei por qual botão?...”
Lawrence vê nesse delírio de objetividade excessiva uma literatura
narcisista, preocupada apenas com o Eu: “Eu sou isto, eu sou aquilo, eu sou
outra coisa. Minha reações são esta, e essa, e aquela”.
Alan Spiegel fez esta avaliação em meados dos anos 1970, quando as
vanguardas literárias, européias principalmente, levavam a extremos certas
experiências dos modernistas do começo do século. Mas ele divide a ficção
experimental daquela período em dois grupos: o de escritores “que tentam
promover a credibilidade do seu conteúdo narrativo (personagens e ação), por
mais fantásticos e inesperados que sejam”, esperando dos seus leitores a
costumeira “suspensão voluntária da descrença”, e um segundo grupo que
“procura destruir a credibilidade narrativa (dos personagens e da ação) e força o
leitor, queira ou não, a um exercício da descrença”.
Essa adoção da câmara-olho, de um olhar “cinematográfico”, começou
por enriquecer a literatura. Ela era dependente da voz narrativa onisciente e
todo-poderosa do autor do século 18, dirigida explicitamente ao leitor, entrando
com ele na mente consciente e até no inconsciente dos personagens, produzindo
juízos de valor e comentários morais sobre as cenas que narrava, chegando a
usar o romance como uma espécie de púlpito para pregações que eram só dele,
autor, e de nenhum dos seres humanos virtuais cuja história estava sendo
contada.
A literatura modernista, adotando a narração no estilo câmara-olho (além,
é claro, de variados outros recursos), esvaziou esse papel centralizador e
paternalista do autor, mas acabou por substituí-lo por um universo onde tudo é
superfície visível, tudo é imagem exterior. O autor não apenas não interpreta,
mas parece querer impedir que o leitor o faça. Essa literatura tende a entrar num
parafuso metalinguístico de auto-reflexão e auto-desmascaramento: “ela nega
personagens e ação ao nos forçar sistematicamente a analisar os meios que os
produzem. Ela nos pede para nos privarmos da experiência do romance quando
nos obriga a examinar os processos que produzem o romance”, diz Spiegel.
Curiosamente, alguns desses aspectos que a literatura tentou esvaziar
acabaram se exilando no próprio cinema.
“Desde praticamente sua criação, e com incrível facilidade e rapidez, o
filme tem assimilado todas as velhas formas narrativas e material dramático que
já se supôs serem exclusivos do romance. O épico, a saga, o romantismo, a
crônica, a história social, a biografia, a confissão, as velhas histórias de crime,
paixão, aventura, sentimento e terror – tudo isto se tornou parte do repertório
essencial do filme. Existe provavelmente uma apreciação de personagens e de
ambiente mais rica e dedicada, maior desenvolvimento e amplitude, maior
profundidade analítica e vastidão espacial – ou seja, aquilo que pertencia à
antiga experiência literária – em filmes como Intolerância, Ouro e Maldição, A
Grande Ilusão, Cidadão Kane, O Boulevard do Crime, Os Sete Samurais, A
Trilogia de Apu, Uma Mulher para Dois, Fellini 8 ½, Dr. Fantástico e Os
Emigrantes do que em qualquer obra literária recente de Robbe-Grillet, Michel
Butor e J. M. G. Le Clézio”.
O impasse que Alan Spiegel analisa nesse livro se prolongou pelas
décadas seguintes, com consequências talvez inesperadas.
Escritores
intelectualmente sofisticados do final do século, como Umberto Eco, Georges
Perec, Thomas Pynchon, Don de Lillo, Osman Lins, etc. souberam evitar o
impasse vanguardista produzindo obras que denotavam uma consciência
semiótica e uma rica capacidade descritiva, sem com isto abrir mão do prazer
literário de contar histórias tão capazes de envolver o leitor quanto qualquer
romance de cem anos atrás.
Obras como O Nome da Rosa de Eco ou A Vida Modo de Usar de Perec
têm um poder descritivo quase catalográfico, só que associado a um entusiasmo
narrativo que recupera seu vínculo com a literatura narrativa tradicional, a que
narra uma experiência humana complexa, multidimensional, capaz de ser
reconhecida e assimilada pelo leitor.
(Uma versão ligeiramente diferente deste texto foi publicada na revista
Língua Portuguesa (Editora Segmento, São Paulo), no número especial sobre
cinema, novembro de 2011)
4969) O Nonsense Metafísico (6.8.2023)
(Philip K. Dick)
O nome “ficção científica” foi, é e será uma fonte permanente de mal
entendidos para pessoas que se acercam pela primeira vez dessa literatura à
procura, por exemplo, de histórias aplicadamente submissas às leis científicas,
ao método científico, ao jeito-de-pensar científico. Existem, sim, mas me atrevo
a dizer que são minoria.
Elas estão situadas naquele terreno impreciso que em inglês é chamado
de “hard science fiction”. Algumas pessoas traduzem por “ficção científica dura”
ou “FC dura”, mas eu acho isso muito ao pé da letra. Prefiro traduzir por “FC
pesada”, pois acho que sugere melhor o peso da informação científica
necessária. Esse rótulo designa as histórias onde a verossimilhança científica é
obedecida tintim por tintim.
Em contraposição, temos as histórias de “soft science fiction” que traduzo
por “FC leve”. Existe nessas histórias uma referência a ciência e tecnologia, que
as distancia da mera narrativa fantástica ou da fantasia. Os elementos mais
comuns são viagens interplanetárias, contatos com alienígenas, espaçinaves,
máquinas do tempo... Uma certa parafernália tecnológica, mas as histórias não
resistiriam a uma sabantina científica rigorosa.
Meus próprios contos geralmente são assim. Se a história se passa noutro
planeta que não a Terra, e as pessoas andam ao ar livre, respirando sem
cilindros de oxigênio, não me pergunte qual a composição química da atmosfera;
não é disto que o livro trata. É outro planeta porque preciso colocar ali coisas
que não poderiam existir na Terra, mas imagino que o sol de lá, a atmosfera e
outros elementos são análogos aos da Terra.
Quem deu um drible muito eficaz nesse problema foi (entre outros) Ursula
Le Guin, quando postulou a existência dos Hainish, uma raça super-evoluída que
“plantou” uma espécie humana (a nossa) em vários planetas semelhantes, por
toda a galáxia, para ver como se desenvolvem. Somos apenas uma entre várias
espécies humanas parecidas, em planetas parecidos.
O peso do termo “científico” no rótulo da FC gera discussões
intermináveis. “Mas isto não é científico!” brada alguém ao ler um livro em que
um personagem, na Terra, dialoga com um lodo viscoso de Ganimede, capaz de
ler pensamentos.
Virando-se, Chuck viu um lodo viscoso e amarelo de Ganimede, que tinha
se espremido silenciosamente pela fresta embaixo da porta e agora estava se
recompondo numa pilha de pequenos globos, a aparência normal de seu corpo
físico.
– Eu moro no conapt em frente ao seu – declarou o lodo.
– Entre os terrestres existe o costume de bater na porta antes de entrar –
disse Chuck.
Este é um trecho de Clans of the Alphane Moon (1964) de Philip K. Dick.
Um leitor que exija rigor e verossimilhança científica numa história fica
compreensivelmente chocado ao ler uma cena assim – para não falar no resto
do livro, igualmente surreal. A literatura de Dick tem essa fisionomia cartunesca,
parece mais (em certos momentos) com um desenho animado do que com um
filme com atores. Os alienígenas têm as aparências físicas mais extravagantes,
e no entanto pensam como pessoas, comunicam-se como pessoas.
Em Now Wait for Last Year (1966), o protagonista, Eric Sweetscent, usa
uma droga que lhe permite viajar no tempo, e vai parar num futuro próximo em
que a Terra está invadida pelos Reegs, uma raça alienígena. Nesta cena, Eric
vai a uma indústria química para comprar mais droga, e se depara com um deles:
Era um organismo totalmente sem olhos; ele pensou, ao ver aquilo, em
frutas que havia encontrado quando era criança, peras demasiado maduras
caídas na relva, cobertas por uma camada fervilhante de criaturinhas amarelas,
atraídas pelo odor adocicado da putrefação. Aquele ser era vagamente esférico.
Tinha atado seu corpo a arreios, no entanto, que se afundavam tortuosamente
por ele todo; sem dúvida precisava daquilo pra se lomocover no ambiente
terestre. Mas ele ficou imaginando se esse esforço valeria a pena.
– Ele é mesmo um viajante no Tempo? – perguntou o homem enquanto
contava o dinheiro no caixa, fazendo um gesto com a cabeça na direção de Eric.
O organismo esférico, enfiado nos seus arreios de plástico, disse por meio
de seu sistema mecânico de áudio:
– Sim, sr. Taubman, ele é mesmo. – A coisa flutuou na direção de Eric,
então se deteve, quase meio metro acima do solo, enquanto produzia um ruído
de sucção, como se estivesse sugando fluidos através de tubos artificiais.
– Esse cara aí – disse Taubman a Eric, indicando o organismo esférico, é de Betelgeuse. O nome dele é Willy K. É um dos nossos melhores químicos.
Escritores como Philip K. Dick fazem um malabarismo constante com
vários tipos de verossimilhança. A verossimilhança científica é a primeira que vai
pro espaço, mesmo que ele se dê o trabalho de mencionar um vago “sistema
mecânico de áudio” que ajuda na comunicação. O que importa, contudo, é que
tanto o lodo viscoso de Ganimede quanto o Reeg esférico e sem olhos entram
na história com verossimilhança dramática (porque rapidamente se encaixam no
enredo, assumem funções claras e ativas) quanto verossimilhança psicológica
(suas reações diante de tudo são reações puramente humanas – o autor poderia
tê-los encaixado como dois seres humanos quaisquer).
Aceitamos esses alienígenas de aparência espantosa porque eles se
comportam exatamente como humanos. É o mesmo processo que nos faz
aceitar o Pato Donald e o rato Mickey metendo-se em aventuras, morando em
casas, dirigindo automóveis,fazendo refeições à mesa, tal como qualquer
humano. Se as ações e o modo de pensar são humanamente reconhecíveis, o
leitor logo se esquece de sua aparência física porque no contexto ela serve
apenas, no caso dos livros de Dick, para dar um verniz superficial de exotismo.
Dick era um escritor meio alucinatório, que lia carradas de pulp fiction mas
queria discutir problemas metafísicos. O que é a realidade externa, e o que é a
realidade percebida pela mente? O que é um ser humano, e o que é uma
máquina? As drogas aumentam ou diminuem a nossa percepção da realidade?
Que tipo de compromisso ético temos com seres iguais a nós, ou diferentes de
nós?
Seus romances são um tipo particular de literatura absurdista, usando os
elementos externos da ficção científica que ele tanto gostava de ler, e para cujo
mercado produzia suas histórias. Ele praticava um Nonsense Metafísico,
datilografando histórias à velocidade de uma rajada de metralhadora, produzindo
uma espécie de “escrita automática” diferente da que os Surrealistas franceses
preconizavam. Um jeito de escrever praticado por muitos autores de pulp fiction.
Histórias concebidas em torno das imagens mais delirantes, e desenvolvidas
meio de improviso, sem planejamento, quase como se o Inconsciente do autor
estivesse batucando diretamente no teclado.
Chamar esse gênero de “ficção científica” dá uma ênfase desproporcional
à presença da Ciência, o que faz muitos leigos se decepcionarem com alguns
livros, justamente porque queriam algo mais respeitoso com a Ciência.
Muito mais adequado é o termo alemão para essa literatura:
“wissenschaftlich-fantastischen Erzählungen”. Narrativas científico-fantásticas.
Porque a Ciência é uma referência que pode estar ora próxima ora distante, mas
a FC é uma literatura da imaginação e vai muito além do realismo literário
tradicional, mesmo que valendo-se de suas estruturas.
4970) O fim da crítica de cinema (9.8.2023)
A crítica de cinema é uma atividade em extinção? Não, não é, apesar de
tudo o que tem acontecido. Principalmente (entre muitas, muitas outras coisas)
a resistível ascensão do “influenciador de internet”, a pessoa que tem um canal
de YouTube, um blog, um saite, seja lá o que for – e com essa arma explica o
mundo para um milhão de seguidores.
O medo é real, no entanto, e um artigo recente de Manuela Lazic no The
Guardian pergunta: “Quem precisa de críticos de cinema, quando os estúdios
têm como certo que os influenciadores vão elogiar o filme?”. Eu diria que O
Império dos Fãs é um título muito mais ameaçador do que O Ataque Dos Clones
ou mesmo A Vingança dos Sith.
https://www.theguardian.com/film/2023/aug/01/what-are-film-critics-fortoday
Não posso ser demasiado severo com os fãs cinematográficos: fui um
deles, e pelo que me dizem não existe o conceito de “ex-fã”. Não há como negar,
porém, que qualquer multidão de fãs tem um comportamento ligeiramente
insetóide, e há um mecanismo pavloviano conduzindo essas multidões na
direção da bilheteria e, depois, na direção dos teclados, onde passarão a
conduzir novas levas para a bilheteria – que, mais do que a tela, é a razão de
ser de tudo aquilo.
Não entra aqui, por enquanto, a questão dos filmes serem bons ou ruins,
até porque estes conceitos são construídos através do que podemos chamar de
“subjetividade coletiva” – grupos significativos de pessoas que compartilham
critérios e opiniões. Se um milhão de pessoas no mundo inteiro diz que um filme
de Fellini ou um filme de David Lynch é bom, isto significa alguma coisa. Se
dizem que o filme de [coloque aqui o nome de algum diretor ruim de hoje em dia,
estou desatualizado] é bom, também não posso discutir. Como diz um meme
famoso, “cultura não é só o que você gosta”. Paciência.
A Internet e suas plataformas de vídeo têm canais onde os chamados
influenciadores falam diretamente para centenas de milhares de pessoas, ou até
milhões, seja ao vivo ou em gravação. Isto vai muitíssimo além, no Brasil por
exemplo, do que um crítico de cinema de jornal ou revista pode alcançar. Em
termos de formação de opinião, no atual desnível tecnológico, os fãs andam de
Ferrari e os críticos no fusquinha de sempre.
O poder dos críticos sempre foi proporcional ao poder dos meios de
comunicação. Nos anos 1980, no Rio de Janeiro, uma crítica negativa de Maria
Helena Dutra era capaz de tirar de cartaz um show que acabara de estrear no
Canecão. Bárbara Heliodora demolia uma peça de teatro, e a peça corria o risco
de não ter uma segunda temporada. Curiosamente, devastações desse tipo são
mais raras na literatura. Pouca gente apanhou tanto quanto Carlos Drummond e
Guimarães Rosa – mas se impuseram. Também tiveram críticos respeitados a
seu favor. Ou seja: havia peso nos dois pratos da balança.
Pode-se estender um pouquinho essa metáfora e dizer que o problema
agora não está na balança; digamos que esteja na fita métrica. Críticos de peso
continuam existindo, mas os critérios de sucesso ou fracasso não são
determinados por eles, e sim por uma floração de semi-críticos, que são os
influenciadores. Alguns certamente têm formação cultural semelhante à dos
críticos da imprensa. Outros são demasiado jovens, voluntariosos, opinativos na
base do “amei” ou “detestei”. Em parte foram formados pela própria imprensa,
quando esta começou a usar slogans redutores tipo Imperdível ou Fuja! para
qualificar os espetáculos.
(Pauline Kael)
A novaiorquina Pauline Kael, que escrevia na poderosa The New Yorker,
já teve um enorme peso-de-poder nas mãos, algo que um crítico brasileiro jamais
imaginaria. Suas opiniões nem sempre coincidem com as minhas, mas ela fala
com clareza, com paixão, com bons argumentos e com conhecimento de causa
– mesmo quando destrói filmes que eu admiro ou quando elogia banalidades.
Eu leio os críticos, afinal, não na expectativa de que concordem com a minha
opinião, mas para que a enriqueçam.
Às vezes a crítica dela vinha carregada de vitríolo, vinha azedada por
aquele complexo-de-sabe-tudo que os novaiorquinos têm (e não só eles, mas
cala-te boca). Pauline dizia receber cartas ameaçadoras dizendo em quantos
pedaços o missivista pretendia cortar seu corpo, e o que faria depois com cada
um deles. No filme What She Said: The Art of Pauline Kael (Rob Garver, 2018),
há um depoimento de David Lean que chega a incomodar. Ele tinha sido
convidado a um almoço do New York Critics Circle, em 1970.
Existe uma coisa, não sei bem como chamá-la, digamos: um círculo de
críticos. Eles têm línguas afiadas. E eu fiquei ali por duas horas. E Pauline Kael
tem uma língua especialmente afiada. Eu só lembro de ter dito, no final: “Acho
que vocês só ficarão satisfeitos no dia em que eu fizer um filme preto-e-branco
em 16mm”. E Pauline Kael disse: “Oh, não, pode fazer colorido.” E isto foi tudo.
Teve um efeito muito sério sobre mim. Eu pensei: por que diabo estou fazendo
filmes? Eu não tenho que fazer isso. E deixei de fazer, por algum tempo. Isso
abala a confiança da gente, sabe, de um jeito terrível.
(David Lean)
Quem diz isso não é um jovem inseguro, é o homem que dirigiu A Ponte
do Rio Kwai, Doutor Jivago, Lawrence da Arábia e A Filha de Ryan. Disse ao ser
acuado por críticos que certamente não gostavam de seu cinemão de tela larga,
paisagens amplas, dramas pessoais misturados a momentos épicos da História,
com bela música orquestral. Bons filmes. (Eu gosto.)
Hoje, um rapaz ou uma moça de 25 anos, que ouviu algum galo cantar
mas não sabe onde, pode fazer um estrago semelhante ao de Pauline. Mesmo
que não seja algo encomendado por inimigos pessoais do diretor ou por estúdios
rivais, mesmo que seja uma opinião sincera e sem maldade, pode produzir um
estrago pela simples questão dos grandes números.
Millôr Fernandes (que tinha língua tão ferina quanto a de Pauline Kael)
disse que ditadura é quando você manda em mim, e democracia é quando eu
mando em você. Dá para pensar que um bom crítico/influenciador é o que
concorda com meu gosto, e o mau é o que discorda. As opiniões em si teriam
um efeito apenas estimulante se não fosse o enorme poder que é conferido a
alguém, seja nas páginas de uma revista influente como The New Yorker seja
num canal de YouTube com um milhão de assinantes.
Dizem que o poder corrompe, e se fosse só isto era bom. A verdade é que
o poder ilumina, ofusca, fortalece, inebria, ilude, reafirma, provoca, atiça... Um
crítico em posição de poder é uma pessoa montada num tigre. (Um artista
também.)
4971) O começo Mike Tyson (12.8.2023)
(Gardner Dozois)
Gardner Dozois, editor da Asimov’s Science Fiction, uma revista que
recebia centenas de contos por semana, tinha uma receita infalível para filtrar
este material. Dizia ele:
Leio a primeira página do conto, e depois a última. A primeira página tem
que me dar vontade de continuar lendo sem parar. A última precisa me dar
vontade de voltar atrás e saber o que aconteceu para resultar naquele desfecho.
Quando se tratava de um romance (completava ele), fazia o mesmo com
o primeiro e o último capítulo.
Isto não é um critério absoluto de julgamento literário, porque alguns
textos começam de mansinho e vão nos envolvendo. Outros terminam bem,
mas de maneira indireta, alusiva, sem desfechos bombásticos. Mas para quem
precisa definir um critério urgente de interesse, serve perfeitamente. Um bom
começo é meio caminho andado.
Já tive o hábito de chamar esse tipo de abertura de conto “O Começo Mike
Tyson”. Mike Tyson foi o campeão mundial dos pesos-pesados nos anos 19801990, e era famoso por ganhar as lutas logo no primeiro assalto. A gente ia
assistir a luta num bar, e quando emendava as mesas, sentava e pedia a primeira
cerveja... a luta já tinha acabado. Ele partia pra cima e resolvia o problema, às
vezes, em questão de dois ou três minutos.
(Machado de Assis, por Abel Costa)
No conto (ou romance), às vezes nem precisa ser um parágrafo inteiro,
porque a primeira frase pega o leitor pelo braço e o conduz. Machado de Assis
é um mestre nessas frases de abertura que em poucas palavras impõem uma
situação, jogam o leitor de súbito no meio de um acontecimento. Como em “O
relógio de ouro”:
“Agora contarei a história do relógio de ouro. Era um grande cronômetro,
inteiramente novo, preso a uma elegante cadeia”.
Em “Fulano”, ele arrasta o leitor:
“Venha o leitor comigo assistir à abertura do testamento do meu amigo
Fulano Beltrão. Conheceu-o? Era um homem de cerca de sessenta anos...”
Em “A carteira”, começa ele:
“...De repente Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se,
apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes”.
Outras frases de abertura provocam espanto, como em “História comum”:
“Caí na copa do chapéu de um homem que passava...”
O autor não tarda a revelar que quem conta a história é um alfinete.
Começos bruscos convêm a histórias de mistério e suspense, como na
aventura de Sherlock Holmes “A granja da abadia”, contada por Conan Doyle:
“Numa fria e nevoenta manhã de inverno, em 97, acordei com uma batida
no ombro. Era Holmes. A vela que ele segurava brilhava no rosto ansioso e
fiquei imediatamente sabendo que acontecera alguma coisa. – Venha, Watson,
venha! O jogo começou! Nem uma palavra! Vista-se e venha!”
É a técnica de começar a história in media res, já no meio dos
acontecimentos, sem deixar ao leitor tempo para respirar, como faz Rubem
Fonseca na abertura de “Desempenho”:
“Consigo agarrar Rubão, encurralando-o de encontro às cordas. O filho
da puta tem base, agarra-se comigo, encosta o rosto no meu rosto para impedir
que eu dê cabeçadas na cara dele”.
É a descrição de uma luta, que o autor torna vívida através do uso de
palavrões, que exprimem a agressividade animal da cena, e do uso do jargão
dos lutadores (“de encontro às cordas”, “tem base”).
Fonseca é mestre nos inícios coloquiais, em que logo na primeira frase
nos deparamos com uma história de narrador pouco confiável, como “Gazela”:
“O senhor talvez pense que eu estou bêbado, mas não estou bêbado
porra nenhuma. É esta história que me deixa tonto, nunca contei nada para
ninguém; na verdade, quem me parece bêbado é o senhor”.
Outra técnica tradicional das aberturas é anunciar o caráter extraordinário
da história a ser contada, e fisgar o leitor logo na primeira linha.
Como faz Conan Doyle, em “O caçador de besouros”:
“—Uma experiência curiosa? disse o doutor. – Sim, meus amigos,
aconteceu-me curiosíssima experiência. Espero nunca ter outra, porque seria
contra todas as leis da probabilidade que dois acontecimentos semelhantes se
passassem numa só vida de um homem. Podem vocês acreditar-me ou não,
mas a coisa aconteceu exatamente tal como a conto”.
Criar uma aura de mistério ou anunciar uma revelação espantosa serve a
autores que lidam com o fantástico, como Guy de Maupassant na abertura de
“Quem sabe?”:
“Meu Deus! Meu Deus! Vou afinal escrever o que me aconteceu! Mas
será que conseguirei? Terei coragem? Aquilo é tão estranho, tão inexplicável,
tão incompreensível, tão louco!”
O tom desesperado, quase histérico de Maupassant é herdeiro direto de
autores como Edgar Allan Poe, que manipularam com a mesma mestria o conto
alucinatório. Poe começa assim “O coração denunciador”:
“É verdade! Tenho sido e sou nervoso, muito nervoso, terrivelmente
nervoso! Mas, por que ireis dizer que sou louco? A enfermidade me aguçou os
sentidos, não os destruiu, não os entorpeceu.”
Ou em “O gato preto”:
“Para a muito estranha embora muito familiar narrativa que estou a
escrever, não espero nem solicito crédito. Louco, em verdade, seria eu para
esperá-lo, num caso em que meus próprios sentidos rejeitam seu próprio
testemunho. Contudo, louco não sou e com certeza não estou sonhando”.
Muitos autores escolhem começar assim um conto. Anunciar um mistério,
uma dúvida, uma situação enigmática e inquietante, e contar com a curiosidade
do leitor pra mantê-lo preso até o final. Isto pode ser feito como Conan Doyle
em “Os três Garridebs”, com a revelação parcial de detalhes:
“Podia ter sido uma comédia como podia ter sido uma tragédia. A um
homem custou a perda da razão, a mim me custou um pouco de sangue e a um
terceiro lhe custou as penas da lei. Entretanto, sempre houve um elemento de
comédia. O leitor que julgue por si mesmo”.
Claro que nem sempre é preciso recorrer ao suspense ou a situações
violentas. Basta o mistério, como Machado começa “Entre santos”:
“Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula (contava um padre
velho) aconteceu-me uma aventura extraordinária”.
Em “Idéias de canário” ele começa assim:
“Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a
alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns
chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração”.
E seu conto clássico “Missa do Galo” principia:
“Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há
muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta”.
Esta frase inicial dá o tom de todo o conto, em que a personagem feminina
nos é revelada pelo narrador ingênuo, sem que ele entenda os fatos que está
narrando.
(Uma versão ligeiramente diferente deste artigo foi publicada na revista
Língua Portuguesa (Ed. Segmento, São Paulo) em dezembro de 2008.)
4972) A não-música de John Cage (15.8.2023)
No mês de setembro completam-se 111 anos do nascimento de John
Cage, o compositor mais fora-de-esquadro da música dos Estados Unidos.
Chamado de gênio e de charlatão por muita gente. É o que acontece com muitos
artistas de vanguarda que inventam um conceito de criação artística, aferram-se
a ele com uma monomania quase psicótica, e acabam sendo compreendidos por
um certo número de pessoas, em quantidade (e importância) suficientes para
garantir a sobrevivência das suas obras.
Cage é visto como um dos integrantes do que alguns gozadores chamam
“a turma do barulho”, compositores de formação erudita que utilizam métodos
não-convencionais para produzir música. Instrumentos, notações, estruturas,
tudo a serviço de composições que parecem querer, insistentemente, desmontar
nosso conceito do que é música.
Perguntado num programa de TV se de fato fazia música, ele disse: “Sim.
Eu considero que música é a produção de sons, então posso chamar de música
isto que faço”.
Cage faz música experimental de muitos tipos. Um deles consiste em
descobrir sonoridade e expressividade em sons de origem diferente e estrutura
diferente do que se observa numa música orquestral comum.
Acho que é mais fácil entendê-lo quando pensamos nas experiências do
nosso Hermeto Paschoal na música popular. O albino Hermeto toca chaleira,
toca badalo de vaca, bota porco para roncar numa gravação, balança uma lata
cheia de tampas de garrafa... É música? Eu acho que sim, porque, sendo músico
popular, ele envolve tudo isso num colchão sonoro de música convencional, feita
com teclados, saxofones, etc.
Em
Hermeto,
os
sons
não-convencionais passam
como
mero
complemento da música dele. Uma música às vezes estranha, mas jazzística,
meio erudita, meio popularzona, uma música que tudo recebe e tudo acolhe.
John Cage, não. Ele oferece ao ouvinte o som concreto, cru e cumulativo
de campainhas, percussões aleatórias usando vidro e metal, água jorrando ou
sendo chacoalhada, ruído de aparelhos culinários, rádio captando estática... Ele
faz essa música propositalmente não-melódica, não-rítmica e não-harmônica
(creio eu) não para agredir nossos ouvidos, mas para despertá-los.
A música que nós ouvimos (erudita ou popular) é feita de um repertório de
sons muito vasto, os sons produzidos pelos instrumentos de uma orquestra, uma
banda de rock, uma escola de samba, etc. Sua riqueza é espantosa, inesgotável,
mas é um conjunto de timbres, fraseados melódicos, estrutura e cadências com
as quais já nos acostumamos. Reagimos a ela como um cachorro reage a uma
campainha. Fomos treinados para aceitá-la, e nossa balança de gosto/não-gosto
funciona em torno do cardápio que ela oferece.
Mas... Basta ouvir meia hora de música oriental ou africana para perceber
o quanto ignoramos e o quanto provavelmente estamos perdendo. Bastava ouvir
mais, prestar atenção, ler um pouco a respeito, construir uma nova
sensibilidade... Mas a verdade é que pouca gente tem tempo pra isso. Contentase com o que já conhece, e que não é pouco.
Cage é um artista provocativo, com muito da atitude dos artistas plásticos
de vanguarda. Ele faz uma composição que consiste apenas de silêncio, o que
equivale às telas em "Branco sobre branco" de Malévitch. Com um complemento:
a peça 4’33” exige que o concertista se sente ao piano, mas sem tocar, e a peça
sonora será composta pelos ruídos da plateia.
Todo o trabalho de Cage (incluindo livros, palestras, entrevistas) mostra
os bastidores da música, a discussão do que constitui uma música, o limite entre
a música na cabeça do compositor e o resultado final mostrado ao público. Em
geral, essa discussão não nos interessa. Somo consumidores, somos ouvintes,
queremos o resultado pronto. Não queremos participar da discussão criativa,
queremos fruir uma criação e passar para a próxima.
Esse “queremos” é relativo, claro, porque milhares de pessoas (eu por
exemplo) tem algum interesse por essas discussões. Não queremos só andar no
carro, queremos saber como o motor funciona.
Daí que a língua inglesa tem um expressão-padrão para isso: “a poet’s
poet” é um poeta que escreve para outros poetas, “a painter’s painter” é um pintor
cuja obra interessa mais a outros pintores do que ao público, e assim por diante.
Não tem nada demais nisso, e só mesmo o furor consumista e anti-intelectual de
nossa época para considerá-lo uma forma de elitismo.
Em todo caso, Cage é abraçado e estudado não apenas por músicos
eruditos. Roqueiros como Frank Zappa, Brian Eno, e outros tocam para
multidões, fazem música dançante para balançar o esqueleto, mas gostam de
refletir sobre a filosofia da composição, e de estudar em profundidade a matéria
primas (o som e o silêncio) que estão manipulando, e os instrumentos que
utilizam. E a obra de Cage é uma referência para eles.
No documentário John Cage: Journeys in Sound (2012) de Allan Miller e
Paul Smaczny, Cage aparece em papos-cabeça com John Lennon e Yoko Ono;
explicando sua obsessão por cogumelos comestíveis; compondo com o auxílio
do I-Ching, o Livro das Mutações. É um experimentalista, um curioso com
erudição, um cara que gosta – pra usar um clichê do momento – de “pensar fora
da caixa”.
No programa de TV que aparece no documentário, Cage conta que às
vezes o pai o levava para caçar no bosque, e os dois não conseguiam abater
nenhuma caça para o jantar. Então o pai dizia: “Não faz mal, a gente sempre
pode ir na cidade e comprar alguma coisa de verdade”. Os animais caçados
pessoalmente são vistos como um substituto da comida “de verdade” – a
industrializada, que se compra no supermercado.
Essa curiosa dicotomia está na raiz da música de Cage. Para ele, os sons
de verdade, a música de verdade, são as sonoridades livres, selvagens e à solta
que existem no mundo: barulho de chuva, de trânsito, de talher de metal em
prato de louça, de porta rangendo, de vidro quebrando, de papel sendo
amassado...
E
não
a
música
radiofônica,
feita
como
sonoridades
industrializadas, codificadas, domesticadas, padronizadas... A comida-enlatada
do som.
No mesmo programa de TV o apresentador previne Cage, antes do
“concerto”, que algumas pessoas da platéia poderão rir durante os seus números
“musicais”. Ele responde, tranquilo: “Tudo bem. Eu acho o riso melhor do que as
lágrimas”.
4973) Otacílio Batista, cantador (18.8.2023)
O próximo mês de setembro trará as comemorações do centenário de
nascimento de Otacílio Batista, um dos grandes cantadores de viola de sua
geração. Um amigo-e-mestre com quem tive a sorte de conviver durante alguns
anos, principalmente entre 1975 e 1980, quando eu morava no Nordeste
(Campina Grande, Salvador) e convivia mais de perto com o Olimpo da cantoria.
Digo “Olimpo” na brincadeira, mas a cantoria é meio assim – uma
montanha fabulosa habitada por deuses capazes de façanhas que nos parecem
sobrenaturais, mas basta subir a ladeira e vê-los de perto para constatar que são
“humanos, demasiado humanos”, com as mesmas paixões nossas, os mesmos
sentimentos, as mesmas qualidades e defeitos... Ou seja: são duas vezes mais
interessantes.
Otacílio Batista (28-9-1926 / 5-8-2003) era um dos três irmãos violeiros
que muito fizeram para transformar São José do Egito (PE) numa das capitais
simbólicas da cantoria. Junto com Lourival (1915-1992) e Dimas (1921-1986) ele
representou a geração de meados do século 20, que viveu e impulsionou um dos
vários ciclos de expansão e modernização da arte do repente.
E está pronta para ir às livrarias a biografia Otacílio Batista, uma história
do repente brasileiro (São Paulo: Hedra & Acorde!, 2023), escrita pelo seu neto
Sandino Patriota, pesquisador da Universidade Federal do ABC (UFABC). Não
é o primeiro livro abordar a pessoa e os versos de Otacílio, mas neste caso o
autor, sendo da família, teve acesso a uma grande quantidade de material,
inclusive narrativas orais que enriquecem o retrato.
Otacílio Batista Patriota já tem o nome na métrica perfeita do decassílabo
em martelo agalopado, com acento nas sílabas 3, 6 e 10. Era um cantador de
verso rápido, mas com uma dicção calma e cadenciada, a cabeça trabalhando
como um chip Intel enquanto a voz escandia as sílabas sem vexame (=pressa),
como se estivesse ditando o verso para alunos aplicados.
Fui um deles, aquele tipo de aluno de mesa de bar a quem ele sempre
dava explicações pacientes, orgulhoso ao ver como os universitários cabeludos
e intelectualóides estavam começando, em meados dos anos 1970, a querer
saber quem inventou o galope beira-mar, quem foi Fabião das Queimadas, e a
diferença entre sextilha e gemedeira.
O livro de Sandino traz uma comparação detalhada e pitoresca entre os
três irmãos Batista, traçando o perfil único de cada um.
Lourival: o mais velho, boêmio, farrista, humor sarcástico, lirismo delicado,
trocadilhista emérito, vida profissional caótica.
Dimas (que não conheci pessoalmente) mais reservado, leitor voraz, lírico
e erudito ao mesmo tempo, acabou deixando a viola de lado para ser professor
e diretor de colégio.
Otacílio, grande observador, de verso elegante e resposta rápida, autor
de inúmeros livros, capaz de belas poesias líricas e de versos fesceninos de
fazer inveja a Bocage.
Como observa Sandino Patriota:
Apesar de ser apenas oito anos mais velho do que Otacílio e seis do que
Dimas, a distância real entre esses cantadores era de uma geração inteira.
Lourival pertenceu à geração dos Vates antigos: cantava, se portava e pensava
como os cantadores que fizeram fama no fim do século XIX. (pág. 24)
Começando a carreira de cantador profissional em 1940, Otacílio foi um
dos protagonistas do “boom” do repente após a II Guerra Mundial.
Em 1946, Ariano Suassuna quebrou um honorável tabu da cultura elitista
ao levar cantadores (os Batista entre eles) para o palco do Teatro Santa Isabel,
no Recife.
Em 1947, Rogaciano Leite organizou o primeiro congresso (=festival) de
cantadores do Nordeste, no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, onde a dupla
vencedora foi Cego Aderaldo e Otacílio Batista.
Em 1948 Rogaciano “fechou o firo” ao levar para o Teatro Santa Isabel o
segundo congresso de cantadores.
Em 1949, um grupo de políticos e jornalistas, admiradores do repente,
produziram e organizaram uma viagem, ao Rio e São Paulo, de um grupo de
violeiros que incluía os três Batistas, o veterano Severino Pinto (o “Pinto do
Monteiro”) e Agostinho Lopes dos Santos. A revista O Cruzeiro (25-6-1949)
dedicou várias páginas à caravana de poetas, que cantaram para ministros e
autoridades, e foram celebrados por Carlos Drummond de Andrade e Joaquim
Cardozo.
(Otacíio, Lourival, Pinto e Dimas)
É bom destacar, sempre, que isto se deu num momento em que o baião
de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira varria o Brasil radiofônico de ponta a
ponta, e Gonzagão nunca deixou de lembrar o quanto sua música devia à batida
da viola e às toadas dos cantadores. Foi um grande momento de evidência da
cultura do Nordeste na indústria cultural (rádios, jornais, revistas) sudestina.
Sandino aborda também a questão do mito de Zé Limeira, “o Poeta do
Absurdo” celebrado por Orlando Tejo. Como se sabe, muitos dos versos
atribuídos por Tejo a Zé Limeira foram escritos por Otacílio. Hoje, destrinchar
quem fez o quê é um pouco como pegar uma xícara de café com leite e separar
os dois.
Otacílio era alto, corpulento, branco de olhos claros, sempre bem vestido,
passo vagaroso, porte altivo. Sempre cortês e atencioso, mas avermelhava num
segundo quando alguma coisa o irritava. Bem humorado na hora da anedota ou
da piada ferina sobre algum incauto, tinha pavio curto quando se ofendia, erguia
os ombros, ficava que era ver um touro. Mas não era homem de briga; se vingava
no verso, porque Deus é grande.
Lourival Batista já foi objeto de alguns livros (de Ivo Mascena Veras,
Alberto da Cunha Melo), e de filmes de curta-metragem, inclusive o Bom Dia,
Poeta (2015) de Alexandre Alencar, onde colaborei no roteiro. Otacílio tem agora
esta atenta e útil biografia. Fica faltando a de Dimas Batista, o homem que disse:
“tudo passa na vida, tudo passa, mas nem tudo que passa a gente esquece”.
4974) Eu já fui cineasta (21.8.2023)
(Lydia Tár)
Em certos momentos tenho a impressão de que fui a única pessoa a
gostar do fime Tár, estreado por Cate Blanchett e dirigido (com brilhantismo) por
Todd Field, aquele rapaz que faz o pianista amigo de Tom Cruise no filme
kubrickiano Eyes Wide Shut (“De Olhos Fechados”, 1999).
Sei que não sou o único, claro, e nas redes sociais vi inúmeros elogios.
Mas vi também rejeições bruscas, irritadas: ao filme, ao enredo, à personagem
principal, à narrativa, à verossimilhança da história contada.
Tar se passa num mundo que eu só aceito como real porque sei que o é.
É o mundo das pessoas riquíssimas, sofisticadas, cosmopolitas, poderosas. Não
é um mundo de executivos bilionários, de banqueiros, de políticos.
Curiosamente, é o mundo da Cultura e da Arte, ou seja, em princípio este mesmo
mundinho de fundilhos rasgados e mão-em-concha onde vivo e bulo há mais de
meio século.
Só que, no caso dela, é o mundo da alta cultura, da música orquestral,
das grandes temporadas líricas... Alguém já afirmou que a música sinfônica e a
física teórica são as maiores contribuições da Europa ao pensamento humano.
Uma constatação que pode ser ampliada, é claro (eu incluiria o romance dos
séculos 18-19), mas nunca reduzida. Estes dois monumentos ninguém discute.
Lydia Tár é uma maestra talentosa, culta, articulada, articuladora,
ambiciosa, sagaz, olimpicamente certa do próprio poder no mundo da música.
Não é um papel difícil para Cate Blanchett. Ela já interpretou Bob Dylan, o Dylan
elétrico do Royal Albert Hall Concert, o Dylan de 1966. E tira Lydia Tár de letra.
A maestra é do tipo capaz de passar o trator por cima de tudo, quando
precisa alcançar um objetivo: namorar uma musicista jovem, demitir um
funcionário, proteger a filhinha que sofre bullying na escola, acabar um namoro
que perdeu o encanto. Tudo isto a ajudou na subida à Fama – e, como nos
romances-para-costureirinhas, tudo isto vai provocar seu desmoronamento final.
(Que,
ao
contrário
da
maioria
dos
espectadores,
achei
adequado,
dramaturgicamente plausível, e narrado com desconcertante simplicidade.)
Gosto de fazer aproximações inesperadas, meio randômicas, entre coisas
não-relacionadas. O nome da personagem de Cate Blanchett me foi trazido à
memória quando assisti agora há pouco tempo o documentário Béla Tarr: I Used
to be a Filmmaker (2013) de Jean-Marc Lamoure, sobre o cineasta húngaro
conhecido por seus filmes austeros, enigmáticos, arrastados, filosóficos,
tarkovskyanos.
(Béla Tarr)
O documentário acompanha as filmagens de O Cavalo de Turim (2011) o
último filme dirigido por Tarr, nascido em 1955, autor de Satantango, O Homem
de Londres e outros.
É um filme feito na borda do fim dos tempos, por assim dizer: uma
campina semi-desértica, açoitada por uma ventania que parece obstinar-se em
varrer dali a presença humana para que o mundo se acabe sem que haja
testemunhas.
Numa casa de pedra vivem um homem de um braço só e uma mulher
jovem, aparentemente sua filha. Ele tem uma carroça e um cavalo, e de vez em
quando vai vender coisas num vilarejo. E só.
O filme é preto-e-branco, e tem uma música que parece uma ventania
repetida em loop misturada a uivos de banshees carpindo a morte do sol.
No doc, vemos Béla Tarr dirigindo cenas deste filme impressionante, e
conversando com membros da equipe, que dão breves entrevistas comentando
seu trabalho. São artistas que criam juntos com o diretor há muitos anos: a
montadora (e esposa) Agnes Hranitzky, o escritor Lazslo Krasznahorkai, o
fotógrafo Fred Kelemen, o compositor Mihaly Vig, a atriz Erika Bok.
É o mundo da Arte e da Cultura, também. E ao ver as filmagens de O
Cavalo de Turim tenho a sensação de que o diretor e sua equipe estão mais
próximos, social e historicamente, daqueles personagens miseráveis cuja vida
estão filmando do que do mundo glitzy, o mundo blasé, o mundo highbrow da
maestra Lydia Tár.
Tudo isso é cultura, por certo, e não estou aqui contrapondo maestras que
vestem (o quê, Deus do céu? Eu só estudei até Dior e Givenchy) a cineastas
intelectuais que trajam capote e botas. É um mundo só, e Béla Tarr não é
propriamente um tresmundista rodando filme vencido e largando papagaios no
comércio do vilarejo onde filmou. Seus filmes são produções internacionais, e
aparecem nos grandes festivais de cinema. Ele não é um pobretão.
Mesmo assim, há um contraste tão desconcertante entre o mundo de
Lydia Tár e o mundo de Béla Tarr que o primeiro impulso é achar que são polos
opostos, e que os dois nada têm em comum. Eu vejo, contudo, no olhar de Cate
Blanchett (quando “recebe” a maestra) e no olhar do diretor húngaro a mesma
concentração, a mesma fixidez, a mesma imperturbabilidade das pessoas
capazes de criar com grande intensidade e em alto nível. O olhar impiedoso do
artista nos momentos em que deixa de ser gente como a gente e passa a ser o
que é.
A maestra deixa que a vida pessoal lhe arruíne a carreira; o cineasta pára
de filmar em 2011 e vai fazer outra coisa. Rica ou modesta, fashion ou ascética,
a Arte de verdade cobra um preço alto. Feliz de quem tem uma vida com que
pagá-lo.
4975) Drummond: "Cabaré Mineiro" (24.8.2023)
Este poema do livro Alguma Poesia (1930) poderia aparecer numa
antologia de poesia erótica brasileira, sem decepcionar. Decepcionaria, talvez,
quem acha que a poesia erótica só é feita para excitar, para despertar um desejo
bem empoderado de fazer “aquilo”. Nada contra; mas existe a poesia erótica que
implica numa reflexão sobre o erotismo, num desvendar de sintomas do
erotismo, como se mostrasse um ambiente (ou uma vitrine) e perguntasse
mudamente ao leitor: “Isto te excita? E isso? E aquilo?”.
Ou, para lembrar o título impagável de um conto de Robert Sheckley:
“Você sente alguma coisa quando eu faço assim?...”
“Cabaré Mineiro” é um título auto-explicativo e merecedor de comentário.
Existem vários tipos de lugares chamados de "cabarés", que não são,
necessariamente, casas de prostituição. Neste extremo, temos aqueles lugares
onde os clientes entram, há um recinto com várias mulheres em exposição (ou
elas são trazidas em grupo, para serem apreciadas), o cliente escolhe uma, e os
dois se retiram rumo a um dos quartos.
É um sistema vapt-vupt, eminentemente prático; ninguém perde tempo
com nhém-nhém-nhém. (Já ouvi muuuito esse argumento.) A gente vê isso em
contos de Rubem Fonseca, em filmes como Domicílio Conjugal de François
Truffaut ou A Bela da Tarde de Luís Buñuel, em filmes de Fellini como Roma,
Amarcord etc. Eu acho que chamar de cabaré um lugar desse tipo é usar um
santo nome em vão.
No extremo oposto, o cabaré é um lugar alegre. Um night-club: tem
mesas, pista de dança, palco com orquestra (ou, na faixa popularesca, vitrola de
ficha), balcão e garçons servindo bebidas... Os quartos ficam no andar de cima
ou na parte traseira, mas as mulheres circulam por entre os clientes, conversam,
sentam na mesa, bebem, flertam... Ali o nhém-nhém-nhém impera, porque
(também já ouvi muito este argumento) sem nhém-nhém-nhém que graça tem?!
O cabaré do poema de Drummond é bem assim, como os cabarés de
Jorge Amado. É um espaço social onde os homens se exibem, gastam a rodo,
disputam a atenção das mulheres mais bem cotadas, assistem danças, em
alguns casos jogam baralho... O sexo é apenas um dos elementos envolvidos.
O poeta diz:
A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
A nacionalidade duvidosa da dançarina já carimba no primeiro verso a
natureza fantasiosa do ambiente, onde o uísque escocês é paraguaio. A “sala
mestiça” é um elemento confirmador de que não é nenhum “Tabarís” frequentado
por coronéis ricaços; é um cabaré de classe média.
Com olhos morenos estou despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
É interessante o fato do poema ser narrado, sem pudor, na primeira
pessoa. Não se trata de saber, biograficamente, se Drummond frequentava
cabarés, mas de vê-lo como um personagem-narrador identificado com o
ambiente.
É o mesmo poeta que no mesmo livro insiste em afirmar que já foi
“brasileiro moreno como vocês”. O poeta afirma ter olhos morenos, como em
outro poema queixava-se do “desprezo da morena”. Há uma busca consciente
de brasileiridade, projeto meio confuso mas provavelmente sincero que os
modernistas cultivaram em maior ou menor grau.
A descrição realista da dançarina torna mais clara essa tensão mental e
simbólica entre a mente de um rapaz classe-média (que está ali, em princípio,
pagando) e uma moça pobre. Ela é picada de mosquitos, tem marca de bala,
tem dente de ouro, é gorda... Mas é linda, é linda! O desejo fala mais ato do que
tudo. O poeta vê os supostos defeitos, mas não liga. E quem liga?!
Lembra um poema muitíssimo posterior de Drummond, de Boitempo,
onde ele diz: “eu quero a puta eu quero a puta”.
Ele (o narrador da historinha) quer descarregar a tensão sexual
acumulada, é claro, mas é mais do que isso. Ele quer compartilhar (com ela, com
o leitor, tanto faz) o instante de iluminação em que ele percebe que uma mulher
feia pode ser linda, o desejo de quem precisa dela a torna linda; assim como um
país feio pode ser um país lindo, se conseguirmos ter desejo por esse país.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...
Estou exagerando? Não acho. Olha só o paralelismo dos versos “com
olhos morenos... / cem olhos brasileiros...”. Ele pula da experiência particular
para a experiência social, coletiva. Naquele salão, todos somos morenos, todos
somos brasileiros, todos somos espanholas de Montes Claros. Há um desejo
coletivo que serve de liga, de argamassa.
As tetas da dançarina, elemento atrator do desejo dos homens, equivalem
às tetas da lavadeira em “Iniciação amorosa”. E lembra os versos do repentista
Canhotinho:
Quando era injusto o Brasil,
os pretos se cativaram;
o choro dos filhos brancos,
as mães pretas consolaram,
e o leite dos filhos pretos,
os filhos brancos mamaram!
É mais um capítulo da nossa promiscuidade cruel e afetiva entre classes
sociais, com sua mistura de desejo e repulsa, de dominação e submissão, de
exploração e de armistício.
(Canhotinho)
4976) A arte do nome do personagem (28.8.2023)
O nome é o rosto verbal do personagem, a senha que basta pronunciar
para fazê-lo surgir por inteiro. Na criação de um personagem, a escolha ou
invenção de um nome próprio é uma decisão final que nem sempre é fácil.
Alguns escritores costumam fazer listas de nomes e sobrenomes, e os
distribuem pelos personagens seguindo um pouco o instinto e um pouco a busca
de verossimilhança.
Pode ser que o autor queira fazer do seu personagem alguém típico,
mediano, e nesse caso pode ser útil dar-lhe um nome quase invisível. “José da
Silva” já é caricatural, mas nomes como “Antonio Barbosa” ou “Paulo Ferreira”
são nomes brasileiros que tendem a passar despercebidos. Qualquer “Maria”
se dilui em milhões de outras, a menos que traga um segundo nome fora do
comum.
Na antiga literatura satírica ou moralizante usava-se o nome do
personagem para revelar desde logo sua característica principal. Um indivíduo
ingênuo chamava-se “Simplício” ou “Inocêncio”; um indivíduo decente e probo
era “Honorato”. “Fidélia” sugeria uma esposa digna, e “Dolores” uma sofredora.
Essas indicações óbvias destinavam-se talvez a um público leitor não
muito sofisticado, para quem a iniciativa de associar o nome do personagem ao
seu caráter era uma gratificante façanha intelectual. Com o passar dos tempos
este recurso foi se tornando mais sutil, mas não se perdeu de todo. Em Dona
Flor e Seus Dois Maridos Jorge Amado contrasta os dois esposos da
protagonista chamando a um Vadinho, que sugere “vadio”, e ao outro Teodoro
Madureira, que sugere um homem religioso e maduro.
Os nomes dos personagens de Guimarães Rosa já mereceram
numerosos estudos, começando pelo Recado do Nome de Ana Maria Machado,
em 1976. Na literatura de Rosa existe um propósito permanente de não tratar
os nomes próprios como um dado imutável, documental, extraído da realidade e
impossível de modificar. Ele considera que o nome é um elemento literário a
mais, e que cabe ao escritor interferir nele, torná-lo significante.
Os nomes dos grandes personagens de sua obra (Riobaldo, Diadorim, Zé
Bebelo, Augusto Matraga, Miguilim, etc.) já foram exaustivamente analisados
pela crítica. Mas basta pegarmos uma lista de coadjuvantes para perceber o
ouvido e a memória afetiva do autor, como nas listagens que Riobaldo faz dos
jagunços do bando: Alaripe, Sesfrêdo, João Concliz, Quipes, Joaquim Beijú,
Tipote, Quêque, Mão de Lixa, Freitas Macho, Preto Mangaba, Coscorão, Jiribibe,
Moçambicão, Sidurino, Rasga-em-Baixo, Dimas Doido... Nomes tão peculiares
e característicos quanto um rosto humano visto de perto.
Nomes abstratos foram muito usados na literatura romântica, onde
apareciam “o Marquês de S...” ou “a Duquesa de D...”, quando não “o Barão de
***” – o que levou a Emília de Monteiro Lobato a proclamar-se “Condessa de
Três Estrelinhas”.
Osman Lins foi um dos raros escritores brasileiros a criar um sinal gráfico
para designar um personagem, em vez de um nome.
Em seu romance
Avalovara, uma personagem feminina é referida por um sinal: um círculo com
um ponto no centro e duas pequenas saliências erguidas dos lados, como duas
orelhas. Um recurso ousado, até pelo fato de que o leitor não dispõe de um
equivalente sonoro para este sinal, como ocorre com qualquer nome comum. Se
um personagem se chama “Capitu”, existem sons correspondentes à
combinação dessas seis letras nessa ordem. Mas a personagem de Avalovara
existe apenas para os olhos, na página; é um personagem fora do mundo oral.
(Avalovara)
Oswald de Andrade, embora mais conhecido como poeta e agitador
literário, escreveu dois romances que estão entre as obras mais criativas de todo
o Modernismo Brasileiro, Memórias Sentimentais de João Miramar e Serafim
Ponte Grande. Neles, a verve satírica do escritor se volta contra a afetada e
ignorante burguesia de sua época, e ele prega aos seus personagens nomes
burlescos:
Pinto
Calçudo,
Machado
Penumbra,
Madama
Rocambola,
Carlindoga, Mariquinhas Navegadeira... São nomes que nada têm de realistas,
mas que muitas vezes evocam justamente os apelidos cômicos que as pessoas
de sobrenomes pomposos colocam nos parentes, na sua intimidade familiar.
A literatura de ficção científica tem a obrigação de inventar outros mundos,
outras civilizações, outras línguas e outras Histórias. Como produzir nomes que
reflitam essa enorme estranheza? Um alienígena, vindo de outro sistema solar,
não pode se chamar William nem Bóris.
Uma solução frequentemente
empregada pelos autores é tentar reproduzir foneticamente os sons,
teoricamente ininteligíveis, que constituem os nomes próprios.
Daí surgem
nomes como “Ph’theri” e outros.
Isaac Asimov, nas suas histórias sobre robôs inteligentes, dá aos seus
robôs mecânicos siglas que são transformadas, na linguagem coloquial, em
nomes próprios. Assim, “NS-Two” torna-se “Nestor”, “LV-X” torna-se “Elvex” e
assim por diante. Já os nomes dos personagens humanos na sua série da
“Fundação” são uma hábil mistura de radicais e sílabas aleatórias, que os tornam
fáceis de pronunciar, mas com o grau de estranheza suficiente para parecerem
nomes de outros mundos: Hari Seldon, Salvor Hardin, Golan Trevize, Dors
Venabili, Ebling Mis, Eto Dermezel, etc.
Cada escritor cria um laboratório de nomes de acordo com o universo que
está criando. Os planetas onde ocorrem as histórias de Cordwainer Smith têm
um clima retrô, são civilizações avançadas que procuram reproduzir fases
antigas da História da humanidade, recorrendo a idiomas extintos. Isto o faz
criar nomes próprios como Lord Jestocost, Dolores Oh, Magno Taliano, Lord
Femtiosex, Lady Arabella, Lord Sto Odin, além de lugares como o planeta Viola
Siderea e o Alpha Ralpha Boulevard, “a avenida que subia até as nuvens”.
O ideal é que um nome literário seja marcante, único, e que fique colado
àquele personagem para sempre: Quincas Borba, Jane Eyre, Gregor Samsa,
Isaías Caminha, Emma Bovary, Dorian Gray, Maria Moura... Nomes fortes,
característicos, não tão comuns que se confundam com outros, não tão raros
que sugiram um exotismo desnecessário.
(Uma versão ligeiramente diferente deste texto apareceu na revista
Língua Portuguesa, Editora Segmento (São Paulo), março de 2009)
4977) Os monstros do Loch Ness (31.8.2023)
Desde que eu me entendo por gente existe uma busca constante pelo
famoso Monstro do Loch Ness, uma espécie de criatura aquática pré-histórica
que se diz existir nesse lago da Escócia. Dezenas de pessoas dizem que já o
viram, mas isto não prova a existência de nada. Algumas pessoas o
fotografaram, mas isto nunca foi prova, mesmo no tempo dos filmes de celulóide
e de negativos que podiam ser periciados. Depois da invenção do Photoshop, e,
agora, com a famigerada Inteligência Artificial, fotos do monstro vão pipocar por
todos os lados. O que também não serve de prova para coisa alguma.
A foto mais famosa do monstro (a do início deste texto) foi tirada em abril
de 1934 pelo médico londrino Robert K. Wilson. É tão famosa quando a foto do
Pé Grande (ou “Sasquatch”) – na verdade um fotograma de um curto trecho de
filme captado em 1967 no norte da Califórnia por Roger Patterson e Robert
Gimlin. As acusações de fraude são muitas, é claro. Vendo um monstro, quem
resistiria a fotografá-lo? Não o vendo, quem resistiria a forjar uma foto? Vendo a
foto, quem resistiria a questioná-la? E la nave va.
(O sasquatch)
Neste ano de 2023 foi desencadeada uma nova busca ao monstro do
Loch Ness, ou “Nessie”, desta vez usando barcos com hidrófonos (que captam
o som num meio líquido) e drones térmicos, que fotografam a água de cima para
baixo, registrando imagens dos objetos com diferença de temperatura. “Nessie”
deve ser o mais famoso dos criptídeos (animal cuja existência é suposta, mas
não comprovada). Buscas deste tipo criam uma situação ambígua. Descobrir o
monstro (vivo ou morto) não seria uma maneira de extinguir a curiosidade, a
atração, as polêmicas?
Uma característica interessante do Loch Ness é a sua extensão. Ele é
uma faixa de água estreita e comprida, num comprimento de cerca de 56
quilômetros por 2 ou 3 km de largura, e com uma profundidade máxima de 220
metros. A água é pouco transparente, devido às características do solo em volta.
Ou seja – há uma série de circunstâncias físicas tornando a busca mais fácil ou
mais difícil, conforme o ponto de vista.
Há uma verdadeira indústria local em torno dos avistamentos do monstro,
e isso nos remete a uma coisa curiosa. As aparições da Virgem Maria em
localidades como Lourdes (1858), Fátima (1917), La Vang (1798), Zeitoun (1968)
são fatos que desencadeiam reações muito parecidas. Alguém vê (ou imagina
ter visto) algo extraordinário. A notícia se espalha, multidões acorrem, a
imprensa aproveita, os céticos ridicularizam, os crentes se encolerizam e
acreditam cada vez mais...
E enquanto isto há um saudável aquecimento da indústria hoteleira local,
dos restaurantes, dos postos de gasolina, das lojas de souvenires, dos postos
de venda de produtos relacionados ao fenômeno – quadros, imagens, bonecos,
panfletos, fotos, bonés, camisetas e por aí vai.
Fatos deste tipo lembram um conceito proposto por Kurt Vonnegut Jr. em
seu livro Cama de Gato (“Cat’s Cradle”, 1963). É o conceito de “wampeter” –
que, ao que eu saiba, nada tem a ver com o trêfego jogador Vampeta, exCorinthians e Seleção Brasileira.
Em seu livro, Vonnegut descreve uma religião bizarra, o “bokononismo”,
organizada em torno de conceitos bem curiosos. Bem ao estilo do autor de
Matadouro Cinco, são conceitos cheios de crítica corrosiva ao funcionamento do
nosso mundo.
O wampeter precisa ser entendido em função de outro conceito, o karass,
que ele explica logo nos capítulos iniciais do livro (Cama de Gato, Ed. Aleph,
trad. Livia Koeppl):
Nós, bokononistas, acreditamos que a humanidade é organizada em
equipes, equipes que realizam a Vontade de Deus, sem nunca descobrir o que
estão fazendo. Bokonon chamou equipes como essas de karass (...). “O homem
criou o tabuleiro de xadrez: Deus criou o karass”. Com isto ele quer dizer que um
karass ignora fronteiras nacionais, institucionais, profissionais, familiares e de
classe social. Tem a forma tão livre como a de uma ameba. (pág. 12)
No capítulo 24, ele explica:
Isto me leva ao conceito bokononista de wampeter.
Um wampeter é a base de um karass. Não existe karass sem wampeter,
Bokonon diz, assim como não existe uma roda sem eixo.
Um wampeter pode ser qualquer coisa: uma árvore, uma pedra, um
animal, uma idéia, um livro, uma melodia, o Santo Graal. Seja o que for, os
membros do karass giram em torno do seu wampeter no caos majestoso de uma
nebulosa espiral. É evidente que as órbitas dos membros do karass que estão
em volta do wampeter em comum são órbitas espirituais. São as almas que
giram, não os corpos. (pág. 58)
O monstro do Loch Ness é um wampeter, uma hipótese que atrai para si
a vida e os esforços de dezenas de milhares de pessoas, talvez mais,
mobilizadas para demonstrar sua existência ou sua não-existência. Nesse grupo
heterogêneo cabe todo tipo de gente, desde os fanáticos que fazem disto uma
religião até cientistas de bom senso tentando estabelecer a verdade dos fatos, e
gente com dinheiro sobrando, tempo livre, e disposição para embarcar em
alguma aventura divertida.
É possível (longinquamente possível, arrisco-me a supor) que haja algum
ser pré-histórico no Loch Ness, ou se não pré-histórico pelo menos algum tipo
raro de criatura volumosa e assustadiça. A busca por ela é algo mais justificável,
por exemplo, do que a demanda dos defensores da Terra Plana. Ainda não
podemos afirmar com certeza que “Nessie” não existe, então faz sentido
investigar se ela é real ou não. Por outro lado, a redondeza da Terra foi
comprovada de muitas maneiras. Que wampeter meio absurdo é este, que
mobiliza tanta gente?
(O Lago Ness)
As pessoas precisam girar em torno de uma idéia, um projeto, um objetivo
(=um wampeter), entre outros motivos pelo fato de que nossa sociedade se
interessa por pessoas que agem assim. Vendo no streaming alguns
documentários sobre terraplanistas, observei mais uma vez um padrão
recorrente. Um número considerável deles são pessoas com certa segurança
material (dinheiro herdado, ou profissões confortáveis) mas sem um objetivo
mobilizador de suas energias, e muitas vezes com uma certa angústia de
invisibilidade social, aquele pavor de “não ser ninguém”.
No momento em que se tornam parte de um karass e dedicam-se a um
wampeter (um wampeter extraordinário, polêmico, fora do comum) essas
pessoas saltam para outro patamar social. Ficam famosas. São convidadas para
participar de convenções, seminários, mesas redondas; recebem bilhetes aéreos
e vouchers de hospedagem; dão entrevistas para jornais e emissoras de TV;
envolvem-se em polêmicas que do dia para a noite fazem a Web pegar fogo com
acusações, questionamentos, desmentidos, solidariedades, traições...
Em suma: por causa do wampeter que cultivam, esses John Does, esses
Zé Ninguéms tornam-se pessoas importantes, e os mais espertos chegam
mesmo a faturar uma boa grana.
O monstro existe? A Terra é plana? No fim das contas, isso é irrelevante.
Existe a busca pelo monstro, existe a “demonstração” da idéia terraplanista, e é
isto que faz mover a engrenagem de discussões, artigos, programas, debates,
teses, documentários, notícias. O fenômeno de um karass em torno de um
wampeter tem a forma de uma rosquinha, um “donut”, um toróide. O centro é
vazio, sim, mas tudo que gira em torno dele é real.
4978) Quatro mentiras do bem (3.9.2023)
1
D. Hosana Silveira, 61 anos, dona de casa, foi até a feira livre de um bairro
próximo, numa sexta, à procura de alguns ingredientes para o almoço de sábado.
Fez as compras habituais em algumas barracas de vendedores já conhecidos,
mas na última, a de melancia, teve uma decepção. “Tive um problema e só
recebo amanhã,” explicou seu Arnaldo, alto, bigodão de ponta, prestativo. “Que
pena,” disse ela, “meu cunhado vem almoçar com a gente amanhã, e ele adora”;
mas comprou algumas frutas menores e despediu-se. Depois que guardou tudo
em casa, lembrou-se de uma quitanda perto da praça onde vira melancias
tempos atrás. Foi, arriscando; e deu sorte, porque havia, e ela comprou logo
duas, para se garantir. No dia seguinte, passava um pouco do meio dia quando
tocaram no portão, e ela saiu e deu de cara com seu Arnaldo, retirando do
bagageiro de uma moto uma sacola grande. “Quem me ensinou sua casa foi Seu
Dão, o do peixe.” Afastou as duas alças da sacola e revelou duas enormes
melancias. “Trouxe logo duas, pra garantir,” disse todo animado. “Meu Deus do
céu, seu Arnaldo,” exclamou D. Hosana. “Salvou meu almoço! Quanto é?...”
2
Bittencourt Juvino da Mota, 70 anos, metalúrgico aposentado, colaborador
de semanários e tabloides trabalhistas, conhecido como “Bité do Sindicato”,
intelectual auto-didata, amante dos livros e da música popular brasileira (“mas
só a autêntica”), um auto-proclamado marxista-leninista, que rompera aos 19
anos com os pais ao se proclamar ateu e perseguidor de Papas, costumava de
vez em quando tomar uma cervejinha de leve no bar do colega Damásio ,
lembrando os velhos tempos. Certa noite estava lá, perto da hora de fechar,
quando elevou-se dos fundos do bar um alarido de choros femininos. “É a filha
da cozinheira que o menino está com febre,” explicou Damásio, “não tem nem
uma semana de nascido”. Os dois foram até o quarto dos fundos. Sentada na
cama, uma moça magrinha de cabelos desgrenhados segurava ao colo um bebê
minúsculo envolto num trapo, enquanto uma mulher idosa murmurava,
debulhando um terço. A mocinha ergueu para os dois homens um rosto de
lágrimas escorrendo. “Seu Damásio, o bichinho vai morrer pagão!”
Bité
aproximou-se, tocou no peito arquejante do bebê, viu como os olhos já meio que
se reviravam. Viu uma caneca de lata junto do filtro, derramou ali dois dedos de
água, pegou na asa dobrando o indicador esquerdo, mandou que todos se
afastassem. Perguntou o nome do menino; era Natanael. Mergulhou o indicador
direito no líquido, e fez o traçado regulamentar na testa que ardia em febre,
dizendo: “Natanael, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.” Todos murmuraram: “Para sempre
seja louvado.” E a mocinha beijou a mão de Bité.
3
Hélio
Fernando de Sousa, 54 anos, comerciante em Patos (PB),
acompanhava com vibração a campanha da Seleção Brasileira na Copa de
2014. Apesar das performances pouco convincentes do time de Felipão, ele
estava confiante no Hexa, conforme dizia a sua esposa Dona Rute e a todos os
amigos. Em 7 de julho, ao voltar para casa às pressas (tinha esquecido uma
pasta de documentos que precisava apresentar no fórum) perdeu o controle da
direção, colidiu em dois outros carros e espatifou o seu Pálio de encontro a uma
árvore. Gravemente ferido, foi conduzido à UTI de um hospital local, onde
permaneceu sedado. Dois dias depois, mesmo com seu estado se agravando,
recuperou a consciência e reconheceu Dona Rute, perguntou que dia era. “Já
teve o jogo Brasil x Alemanha?”, perguntou. Dona Rute, que na véspera assistira
taciturna o jogo inteiro, na esperança de um dia comentar os detalhes com o
esposo, disse que sim. “O Brasil ganhou?...” disse ele. E ela respondeu, com um
sorriso: “Ganhou de dois a zero.” “Eu sabia,” disse ele, e fechou os olhos.
Minutos depois mergulhou num coma profundo do qual nunca veio a retornar.
4
Leila Gonçalves, 28 anos, recepcionista, não cabia em si de felicidade
após seu casamento com Djalma “Dêja” Antunes Ferreira, 33 anos, professor da
rede pública. A grana era curta mas o amor não tinha mais tamanho, porque os
dois tinham gostos e temperamentos harmônicos, conversavam muito, e
estavam naquela fase inicial do casamento em que a alma se abre para o
universo e o corpo só pensa numa coisa, que aliás estava mais que satisfatória
para ambos. Leila era boa de receitas e gostava de cozinhar de vez em quando
para ele (por questões de agenda e horário, durante a semana os dois comiam
no trabalho). Certo fim de semana, Dêja acordou no bom humor de sempre e
extraiu dela a promessa de que ficaria deitada até que ele a chamasse à sala.
Quando o fez, ela se deparou com a mesa posta, uma terrina de arroz, outra de
salada, outra de batatas, e uma travessa com dois enormes e suculentos bifes.
Cobriu-o de beijos, sentaram-se, comeram, e a certa altura ele disse: “Seja
honesta, seja amiga. Ficou bom?” Ela, que até então mastigara em silêncio,
ergueu para ele dois olhos puros e límpidos de mulher apaixonada e disse
baixinho: “Môzinho, está delicioso.”
4979) A Barbárie de Queimadas (6.9.2023)
Numa noite de fevereiro de 2012, na cidade de Queimadas (PB), um grupo
de homens armados e mascarados invadiu uma casa onde rolava uma festa de
aniversário com rapazes e moças, alguns deles de famílias consideradas
importantes na cidade. A luz foi apagada, as pessoas foram amarradas e
distribuídas pelos vários quartos. Seguiu-se uma série de estupros,
espancamentos, ameaças. A certa altura, duas das mulheres foram arrastadas
para uma camionete, que partiu em seguida. Na mesma noite, as duas foram
encontradas, mortas a tiros. Eram Izabella Pajuçara, “Ju”, e Michelle Domingos.
O caso ficou conhecido como “a Barbárie de Queimadas”, e assim
continua a ser chamado pela imprensa. Em princípio, é um caso de violência e
feminicídio semelhante a muitos outros que acontecem no Brasil. O escritor e
jornalista Bruno Ribeiro acompanha o episódio há mais de dez anos, e
entrevistou mais de cem pessoas para escrever o livro Era Apenas Um Presente
Para o Meu Irmão (Todavia, 2023).
No dia seguinte ao crime, o mistério começou a ser esclarecido. O mentor
do assalto foi Eduardo dos Santos Pereira, o dono da casa onde acontecia a
festa. Ele convidou várias moças da cidade, de famílias amigas, que conviviam
no dia a dia com ele e com seu irmão, o aniversariante Luciano. O objetivo era
fingir um assalto (recrutando alguns amigos) e permitir que todos pudessem
estuprar as moças.
O livro de Bruno Ribeiro destaca esses pontos que diferenciam este crime
da maior parte dos gang rapes que se vê por aí. O primeiro ponto é o fato de que
criminosos e vítimas se conheciam, conviviam no ambiente de uma cidade
pequena. Ou seja, mesmo com o uso de máscaras e balaclavas cobrindo os
rostos, era provável que algum deles acabasse sendo reconhecido, mesmo com
a casa sob blecaute; e foi o que aconteceu.
Outro ponto é que no grupo de dez estupradores havia pelo menos três
menores de idade, e alguns indivíduos (descritos pelas testemunhas como
“bobões”) que poderiam servir de bodes expiatórios. Alguns declararam que só
tomaram parte no assalto porque a intenção (de acordo com o mandante,
Eduardo) era de “fazer uma brincadeira”, “dar um susto nelas”. A explicação final
do cabeça do crime é justamente a que deu o título ao livro de Bruno Ribeiro. Ou
seja, o aniversariante iria receber de presente a chance de “comer na marra”
algumas moças bonitas da cidade.
Apenas duas mulheres da festa não foram tocadas: as esposas de
Eduardo e Luciano, que foram trancadas juntas num quarto e poupadas pelo
grupo.
Tudo desandou quando Izabella reconheceu Eduardo e começou a gritar
seu nome. Outros homens foram reconhecidos, pela voz, ou por adereços
pessoais. No dia seguinte, as primeiras prisões ocorreram durante o velório das
duas moças, à medida que os assaltantes entregavam uns aos outros.
Bruno Ribeiro é autor de romances como Febre de Enxofre (Penalux,
2016), Glitter (Moinhos, 2019) e Porco de Raça (Darkside, 2021). O livro sobre
a Barbárie de Queimadas ganhou o Prêmio Todavia de Não Ficção e faz um
poderoso contraponto à sua ficção áspera, de prosa crispada e tensa, sobre a
violência que perpassa o espírito do nosso tempo.
Um aspecto interessante é que por volta da metade de Era Apenas Um
Presente... já foi descrito o crime, já lemos os depoimentos dos envolvidos, já
aconteceram as prisões e os julgamentos, as sentenças já foram proferidas.
Temos a impressão de que o livro termina ali. O que resta para contar?
Daí em diante começa a investigação do que rodeou o crime; do que o
favoreceu; do que conduziu àquele estado de coisas; do que veio depois.
Eduardo, o líder, foi condenado a 106 anos de prisão. Em novembro de 2020,
ele fugiu andando, pela porta, do presídio de segurança máxima PB1, em João
Pessoa. O escândalo dessa fuga fez estremecer novamente todos os fios que
convergem para o crime de 2012. Lealdades de família, troca de favores,
influência política, proteção, pesados subornos, tudo é discutido no ambiente dos
advogados, dos jornalistas, dos policiais, dos defensores dos direitos humanos.
O livro mostra essa rede tensa de relações sociais baseadas no dinheiro,
na violência, na influência política, no machismo e na certeza da impunidade.
Algumas pessoas, na época, chamaram os estupradores de Queimadas de
“imbecis” por terem acreditado que um crime tão mal executado poderia passar
impune. Na verdade, não houve tanta preocupação em esconder a identidade
dos assaltantes. Os que estavam à frente tinham certeza da impunidade, e
sabiam que, mesmo presos, dariam um jeito de escapar.
Bruno Ribeiro deixou o romancista de lado e ligou o aplicativo-jornalista
para fazer o levantamento minucioso das histórias, versões e interpretações de
dezenas de pessoas. Na última parte do livro, ele traz a narrativa para o presente
e descreve, numa tensa narrativa em tempo real, a visita que fez à Rocinha, no
Rio de Janeiro, e as cervejas que tomou no bar do pai de Eduardo – o bar onde
muita gente, inclusive a polícia, acha que Eduardo está escondido até hoje.
Nesse momento, depois de tantas páginas de compilação e recapitulação de
momentos passados, o romancista emerge com a habilidade de mostrar o
momento presente: um galeto servido na mesa, a troca “casual” de frases com
os parentes do criminoso, a presença de homens que bebem numa mesa
afastada, uma ida ao banheiro, uma música que toca...
É em ambientes assim que os crimes são gestados? Talvez, porque a
possibilidade do crime permeia tudo, como uma umidade relativa do ar que está
sempre presente e invisível, e a qualquer momento, em qualquer lugar, pode se
concentrar em tempestade.
Como diz o autor:
“Quando se estuda crimes no Brasil, pode-se dizer que aquele que suja
as mãos é pego, mas quem o mandou sujar as mãos, não. Há sempre uma parte
que nunca é agarrada, algo movediço, alheio aos nossos esforços. No caso da
Barbárie, o julgamento foi uma resolução clara do caso, resolvido até com certa
destreza. Mas as raízes do crime, tudo que existiu para fazê-lo acontecer e, não
só ele, mas tantos outros casos de feminicídio que foram praticados e ainda
acontecem em Queimadas, parece ficar na escuridão, abafado. A resolução de
grandes crimes é sempre uma metonímia: uma narrativa que nos entrega mais
um pedaço que o todo.” (pág. 188)
4980) Uma mulher chamada James Tiptree (9.9.2023)
Nos anos 1960, um escritor misterioso chamado James Tiptree Jr. surgiu
na ficção científica norte-americana, com uma série de contos inovadores, numa
linguagem energética, calejada, cínica, que não recuava diante da violência.
Demonstrava ter conhecimento direto dos bastidores do poder, da vida militar,
do uso de armas e de tecnologias variadas. E, tendo uma escrita “máscula” e
assertiva, demonstrava ao mesmo tempo um conhecimento surpreendente da
psicologia
feminina,
e
suas
personagens
mulheres
geralmente
eram
protagonistas, tomando nas mãos as rédeas da narrativa.
Tiptree não dava entrevistas, não telefonava, não comparecia às
convenções de FC, não enviava fotos, fornecia escassos dados pessoais de si
próprio, e comunicava-se apenas através de uma caixa postal no Estado da
Virginia. Por outro lado, era um correspondente vibrante e dedicado, mandando
cartas de dez ou quinze páginas para escritores e editores que sequer conhecia
pessoalmente. Era um missivista compulsivo e envolvente, tal como Raymond
Chandler ou H. P. Lovecraft.
Seu nome começou a chamar a atenção por volta de 1968, ano em que
saíram contos seus em revistas como Analog, Galaxy, Fantastic e If. Sua
produção manteve-se constante a partir daí, e sua primeira coletânea de contos,
Ten Thousand Light Years From Home saiu em 1973. Seguiram-se várias
premiações importantes: o prêmio Hugo (1974, 1977), o Nebula (1973, 1976,
1977), o Jupiter (1977) e outros.
Havia um certo consenso, na comunidade de FC, de que a discrição de
James Tiptree era por ser ele um agente ou ex-agente da CIA (seus relatos
pessoais indicavam isto) e precisava manter um low profile quando se envolvia
em atividades profanas como a literatura popular. Havia consenso, também, de
que se tratava de um homem, não apenas pelo nome. Robert Silverberg, um
autor nem um pouco bobo, chegou a escrever, em 1975:
Alguém sugeriu que “Tiptree” pode ser uma mulher, uma teoria que
considero absurda, porque para mim existe algo de inelutavelmente masculino
em sua escrita.
Depois, Silverberg confessou, numa carta pessoal: “Você não me
enganou. Fui eu que enganei a mim mesmo.”
Sua identidade foi revelada em 1976. Tiptree mencionou casualmente que
sua mãe havia morrido em Chicago. Seu correspondente Jeff Smith vasculhou
os obituários, e conferiu os relatos de infância e juventude de “James Tiptree Jr.”
com os textos sobre Mary Hastings Bradley, falecida aos 94 anos, escritora com
vários livros sobre seus safaris na África ao lado do marido e da filhinha pequena.
Jeff Smith escreveu ao seu amigo Tiptree:
Meu caro Tip: OK, vou botar minhas cartas na mesa. Não se sinta
obrigado a fazer o mesmo. Isto já deve ter chegado aos seus ouvidos, mas o fato
é que está se espalhando um boato de que seu nome é Alice Sheldon.
Alice Bradley Sheldon admitiu a verdade; continuou usando o pseudônimo
masculino para assinar seus livros, manteve a privacidade (recebia
pouquíssimas pessoas). E sua vida anterior começou a ser mais conhecida.
Mary Hastings e seu marido Herbert Bradley (os pais de Alice) eram ricos,
colecionavam objetos de arte, e eram fascinados pela África. Alice nasceu em
1915, e aos seis anos já acompanhava os pais em safaris, numa caravana com
mais de 200 carregadores. Foram eles os primeiros brancos a alcançar as
margens do Lago Kivu, entre Ruanda e o Congo, e fizeram as primeiras
filmagens de gorilas em seu habitat.
A garota alternava momentos de pânico e de onipotência.
Se eu largasse alguma coisa no chão, já estava habituada a apenas bater
palmas, e seis enormes canibais nus se precipitavam para recolher o objeto e
me entregar de volta.
(Alice Sheldon na África, aos 6 anos)
De volta a Chicago, Alice leu furiosamente durante a adolescência e início
da vida adulta: Rudyard Kipling, Spinosa, William James, W. B. Yeats, Proust,
Freud, Ibsen, Dostoievsky – e carradas de pulp magazines de ficção científica,
que ela doou a uma biblioteca quando entrou para o Exército (WAAC, Women's
Army Auxiliary Corps) em 1942, aos vinte e sete anos.
É grande a tentação de resumir aqui a vida de Alice, que casou com um
militar (Huntington Sheldon, “Ting”), entrou com ele para a CIA em 1952, saiu de
lá em 1955 e voltou para a vida universitária, onde se doutorou em Psicologia
Experimental (1967).
A biografia de Julie Philips, James Tiptree Jr. – The Double Life of Alice
B. Sheldon (St. Martin’s Press, 2006) é uma das melhores que já foram escritas
sobre um autor de ficção científica.
Ela revela a rivalidade entre Alice e a mãe (uma “escritora de verdade”,
autora de livros sérios, elogiados pelos críticos), sua paixão pelo xadrez (consta
que seu marido, Ting, apaixonou-se por ela ao ser derrotado num jogo de xadrez
onde Alice estava com os olhos vendados), seu projeto de montar uma granja
de aves (que só lhe deu prejuízo), sua mania de escrever aos autores que
admirava (Ítalo Calvino lhe respondeu: “Uma carta como a sua é o melhor
presente que um carteiro pode deixar na minha caixa. É para o leitor
desconhecido que todo autor escreve, mas são raras as chances de encontrá-
lo, mesmo por correspondência, e de descobrir que ele é uma pessoa tão bacana
e tão espirituosa”).
Tal como Philip K. Dick (com quem também trocou cartas), Alice era
viciada em drogas permitidas, drogas de farmácia. Julie Philips relata (Cap. 36)
que num período de duas semanas em maio de 1976 ela registrou em seu diário
o uso de Seconal, fenobarbital, Dexedrine, Compazine, codeína, Percodan,
Valium, Demerol e Numorphan. O desgaste da idade se abateu sobre ela e mais
ainda sobre Ting, que era doze anos mais velho, e cuja condição de saúde se
agravou aceleradamente. Ela falava aos amigos mais próximos sobre um “pacto
de suicídio”.
Em 1987, ela matou o marido e se suicidou em seguida, não sem antes
avisar o advogado da família. Os dois foram encontrados na cama, lado a lado,
de mãos dadas.
Alguns contos de James Tiptree Jr. já saíram no Brasil, na saudosa Isaac
Asimov Magazine (Ed. Record), editada por Ronaldo di Biasi.
Agora, a Ímã Editorial, na sua coleção “Meia Azul”, lança o volume
Mulheres Que os Homens Não Veem. O volume traz um prefácio da escritora e
blogueira Lady Sybylla, a transcrição de trechos de cartas de Alice, e três contos
dentre os melhores dela, traduzidos por mim: “Mulheres Que os Homens Não
Veem” (“The Women Men Don’t See”, 1973), “Garota Plugada” (“The Girl Who
Was Plugged In”, 1973) e “As Mulheres Que Morrem Como Moscas” (“The
Screwfly Solution”, 1977, publicado sob o pseudônimo de Raccoona Sheldon).
James Tiptree Jr. é um desses casos de pseudônimo que acabou se
tornando, como os heterônimos de Fernando Pessoa, um personagem em si, um
“Eu dramatúrgico” que brota no momento da escrita e serve ao autor como uma
personalidade postiça, capaz de mobilizar toda a sua energia criativa, e de
acessar redutos emotivos que normalmente ficam vedados no dia a dia.
A “máscara masculina” serviu a Alice Sheldon para a criação de uma
persona biograficamente verdadeira mas com um espírito inventado. Depois que
sua identidade se tornou pública, Alice explicou às pessoas com quem se
correspondia (principalmente Ursula LeGuin e Joanna Russ) que tudo que
dissera de si mesma era verdade, menos o fato de ser homem. E depois que o
segredo vazou, ela confessou ser incapaz de “psicografar” novamente a voz de
James Tiptree Jr. Foi como se ele tivesse desaparecido, e tudo que ela publicou
a partir dali custou-lhe muito mais esforço e teve menos impacto.
Ainda assim, o “menos impacto” de Sheldon/Tiptree está muitos pontos
acima da maioria da FC norte-americana, onde a maioria dos autores não tem,
nem de longe, a experiência de vida que ela teve, quando começou a publicar
FC aos 50 anos. Neurótica, empoderada, desafiadora, sofisticada, ela dizia que
um pseudônimo masculino a poupava de ser chamada pela enésima vez de “a
primeira mulher a...”.
Experiência múltipla de vida e cultura literária produziram essa autora
capaz de usar títulos como:
“Her Smoke Rose Up Forever”
“Your Faces, Oh My Sisters! Your Faces Filled of Light!”
“The Psychologist Who Wouldn’t Do Awful Things to Rats”
“Faithful To Thee, Terra, In Our Fashion”
“The Snows Are Melted, The Snows Are Gone”
“Love Is The Plan, The Plan is Death”
Uma autora que declarou, numa carta a um amigo:
Eu sou metade mulher, metade ser humano.
4981) Young Sheldon (12.9.2023)
Não assisto muitas sitcoms (“situation comedies”) na televisão. Não
porque não goste, mas porque é algo como comer Batatas Pringle: de uma em
uma você come uma caixa, e quando olha pela janela você percebe que agora
é um septuagenário e ainda não leu A Divina Comédia.
Este argumento me saiu muito ao estilo de Sheldon, o personagem da
sitcom The Big Bang Theory, cuja infância estou agora acompanhando via Netflix
na série Young Sheldon (primeira temporada). É bastante pringle esse seriado,
porque cada episódio tem menos de meia hora, e a narrativa é rapida, estilo vaptvupt. Quando você menos espera o episódio terminou e você meio
inconscientemente se permite saltar para o começo do próximo.
Sheldon é um dos meus personagens preferidos na televisão, uma
espécie “do que eu gostaria de ser caso crescesse”. Ele tem a memória de um
Funes O Memorioso, a objetividade de um Sherlock Holmes, o traquejo social de
um Jerry Lewis e a empatia de uma maçaneta. Depois de anos de sucesso de
The Big Bang Theory, o ator que o interpreta (Jim Parsons) teve uma idéia: por
que não fazer outra série, contando a infância do personagem?
(Jim Parsons como Sheldon; Iain Armitage como o jovem Sheldon)
Sheldon, segundo os críticos, tem um comportamento com características
de autismo (ou de “síndrome de Asperger”) e de personalidade obsessivocompulsiva. Seus cacoetes são uma fonte permanente de humor nas histórias.
Em Young Sheldon, aos dez anos de idade ele coloca em situações
constrangedoras os pais, os irmãos, os professores e os colegas, pela sua mania
impassível de recitar respostas certas ou de fazer comparações despropositadas
envolvendo a Física Quântica, a Astronáutica ou o Cálculo Diferencial.
Todos os pais querem ter um filho brilhante, mas ninguém quer ter um
filho cujo poder intelectual está na razão inversa de sua capacidade de conviver.
Em Young Sheldon, o geniozinho
é de certa forma o eixo e o ponto de
desequilíbrio de uma família assustadoramente comum.
(Annie Potts, como a avó de Sheldon)
Um episódio da primeira temporada mostra Sheldon e a avó Meemaw (a
ótima Annie Potts, que sempre tem as melhores falas) assistindo um episódio de
Star Trek. Sheldon, é claro, é fã de Mr. Spock, que ele vê como um modelo de
inteligência, impassibilidade e invulnerabilidade emocional. Cabe à avó mostrar
a ele que o herói dela na série é o Capitão Kirk, que tem mais jogo de cintura e
é capaz de pequenas trapaças para conseguir o que quer. Com isso, ela ensina
Sheldon a mentir e a trapacear – e de certa forma o liberta do automatismo.
A série é divertida porque nos identificamos com a família de Sheldon –
que não entende as fórmulas matemáticas e os conceitos científicos recitados
por ele a qualquer pretexto. O garoto fica na condição de qualquer garotoprodígio num contexto não hostil, onde a família tem afeto e admiração por ele e
faz o possível para criá-lo “como um menino normal”.
Sheldon, por sua vez, se encaixa naquela definição de Henri Bergson
segundo a qual o humor nasce quando vemos uma pessoa se comportar de
maneira mecânica, cega, repetitiva, sem atentar para o feedback que recebe do
mundo à sua volta. Por outro lado, o fato de Sheldon não possuir um grande
“simancol” no trato social o faz revelar verdades ocultas, abordar problemas que
outras pessoas varrem para baixo do tapete, criticar “sem papas na língua” os
defeitos que percebe em outras pessoas.
Young Sheldon é uma série-pipoca, divertida, que tem pontos de contato
com outros trabalhos de maior espessura dramática. Desde o início me lembrei
deste filme de Jean-Pierre Jeunet, um cineasta que aprecio muito: The Young
and Prodigious T. S. Spivet (2013), onde um garoto também super-dotado
manda um trabalho para o Smithsonian Institute (sem revelar a própria idade), e
depois que o trabalho é aceito precisa fugir de casa (lá nos confins do Meio
Oeste) para ir a Washington fazer a palestra (e aturdir de incredulidade os
funcionários do Instituto).
Lembrei também da série O Gambito da Rainha (2020) de Scott Frank,
com sua protagonista super-inteligente, fora-de-esquadro, meio antissocial, meio
imprevisível.
E um filme talvez hoje esquecido, mas que na epoca me despertou muita
atenção: Little Man Tate (“Mentes Que Brilham”, 1991), dirigido por Jodie Foster
(ela própria uma criança excepcional) e que conta a história de um garoto superinteligente e do cabo-de-guerra entre a mãe (que o adora, mas é uma mulher
“simples”, e não sabe como cuidar dele) e a professora (que pode dar a ele um
acompanhamento profissional).
Sheldon é uma versão bem-humorada desse problema – o que fazer com
as crianças super-inteligentes, pontos-fora-da-curva. Trazê-las para a curva
seria um desperdício, e além disso é impossível. É a curva que precisa diminuir
a distância entre os dois.
4982) Minhas Canções: "Meu Foguete Brasileiro" (15.9.2023)
Desde
a
adolescência
eu
vivo
mergulhado
em
dois
mundos
aparentemente distantes, o da música popular brasileira e o da ficção científica.
Primeiro como leitor e ouvinte, e depois como autor.
Muita gente me pergunta o que tem uma coisa a ver com a outra, e uma
resposta que já forneci foi um artigo publicado na saudosa revista Isaac Asimov
Magazine (Ed. Record), em que mostro como diferentes compositores da MPB
(e do rock brasileiro, também) trataram os temas da FC. Temos Gilberto Gil (para
mim o mais consistente e de cabeça mais “ficcientífica”), Raul Seixas, Caetano
Veloso, Fausto Fawcett... Muita gente.
Temos a tendência a definir um gênero literário (cinematográfico, musical,
etc.) a partir dos exemplos que conhecemos, e curiosamente às vezes tentamos
atribuir ao gênero certas características das obras, que não são, em absoluto,
típicas do gênero, e podem ser deixadas de lado.
Meu exemplo preferido é de quando me pediram um exemplo do ghost
story brasileira e eu mencionei Dona Flor e Seus Dois Maridos de Jorge Amado,
história de um morto que volta para fazer vadiagem com a própria viúva. Meu
interlocutor queixou-se: “Mas isso não é uma ghost story... Não tem castelo em
ruínas, não tem abadia gótica, não tem aparição noturna arrastando correntes...”
Passei por experiência semelhante ao falar de músicas brasileiras de
ficção científica e citar o clássico Eu Vou Pra Lua, gravado por Ari Lôbo: “Eu vou
pra Lua, eu vou morar lá... Vou no meu Sputnik, do campo do Jiquiá”. O campo
do Jiquiá ficava no Recife; era o lugar onde os zepelins ficavam atracados no
auge da fama desses dirigíveis. A canção descreve uma ida para a Lua e lá o
encontro com uma civilização que é uma versão satírica da nossa. Por que não
pode ser ficção científica?
É o mesmo argumento que uso para defender esta minha simpática
parceria com Antonio Nóbrega, “Meu Foguete Brasileiro” (no álbum Lunário
Perpétuo, 2002). Na preparação do álbum, tínhamos feito um levantamento de
temas e de estilos que podíamos abordar. Pensamos em fazer alguma coisa
inspiradas nos cocos de embolada, e eu lembrei uma antiga canção de Manoel
Serafim gravada por nossos amigos Cachimbinho e Geraldo Mousinho, “O Navio
Brasileiro”, que tem o refrão:
Meu navio deu um tombo
que a proa abalou,
o mastro pendeu e tombou
lá no alto mar...
Confiram aqui a gravação:
https://www.youtube.com/watch?v=F1yjP3hGiE&ab_channel=AcervoOrigens
É a descrição de um navio gigantesco, portentoso, que dentro de si
contém máquinas fabulosas, edifícios, fazendas de gado, campos lavrados,
residências, um despropósito de coisas de fazer inveja àquelas grandes
embarcações dos EUA com não-sei-quantos andares, que fazem cruzeiro pelo
Mar do Caribe.
O coco de Cachimbinho e Geraldo segue uma tradição, cujo antecessor
mais provável é “O Avião Brasileiro” dos saudosos Antonio da Mulatinha e Dedé
da Mulatinha, que vi cantar muitas vezes em Campina Grande. A professora
Elizabeth Travassos (UFRJ) faz uma transcrição e análise do coco dos dois
irmãos campinenses num artigo incluído em Ao Encontro da Palavra Cantada,
org. Cláudia Neiva de Matos, Elizabeth Travassos e Fernanda Teixeira de
Medeiros (Rio: 7Letras, 2006).
Como os poetas já tinham lançado mão de avião e navio, só nos restou
apelar para o foguete interplanetário, e acho que veio de Nóbrega a idéia de, em
vez de usar o verso curto da embolada, usarmos o verso longo do “galope beira
mar”. E logo veio o recurso de trocar o refrão final desse estilo (“cantando galope
na beira do mar”) por “cantando galope e voando no ar”, visto que se tratava de
uma espaçonave.
E fomos em frente, enfileirando situações utópicas e divertidas, na
descrição desta super-espaçonave brasileira que sairia pelos arrabaldes do
Sistema Solar, encontrando outros povos, fazendo trocas comerciais,
desbravando novas paisagens.
É ficção científica? É, sim, mas em vez da ficção científica ufanista,
desbravadora e colonialista (“a missão do Homem é civilizar o universo”) é uma
ficção científica brincalhona, irônica, meio ingênua em suas imagens e meio
madura ao lidar com essa própria ingenuidade.
MEU FOGUETE BRASILEIRO
(BT & Antonio Nóbrega – março-abril 2002)
https://www.youtube.com/watch?v=jHr3iojbb_s&ab_channel=AntonioN%
C3%B3brega-Topic
1
Eu fiz um foguete de andar pelo espaço
igual um que eu vi pela televisão:
não sei se era coisa da França ou Japão
mas basta ver gringo fazer eu já faço!...
Mandei buscar logo cem chapas de aço,
latão, alumínio, ferro de soldar;
dez mil arrebites para reforçar
a parte de fora da infra-estrutura:
cem metros de longo, trinta de largura,
e dez de galope voando no ar.
2
Por dentro o foguete tem compartimentos:
setor de serviço, cabine da frente,
motor titular e o sobressalente
e pra equipagem mil apartamentos.
Canhões telescópicos mais de duzentos,
castelo de proa, sensor e sonar;
torre de comando, luneta, radar,
produto avançado da tecnologia:
pretendo acabá-lo e sair qualquer dia
cantando galope e voando no ar!...
3
Botei no foguete diversas antenas
para captar raios infra-vermelhos.
Na parte de cima um sistema de espelhos
que amplia as imagens de estrelas pequenas.
Motores na popa que servem apenas
pra tudo aquecer, e pra refrigerar.
Movidos a pura energia solar
tem computadores, TVs virtuais:
mil inteligências artificiais
que cantam galope, voando no ar!
4
Maior do que tudo é a parte cargueira
que leva produtos de exportação:
tem saca de açúcar, tonel de carvão,
baú de café, tora de madeira.
Tem pano de lenço, tem palha de esteira,
xampu, querosene, bebida de bar,
rede de dormir, colchão de deitar,
cueca de seda, calcinha de renda...
Achando quem compre, não tem quem não venda,
cantando galope e voando no ar!
5
Na parte de cima da carga pesada
tem carro, trator, “caterpilha”, caçamba,
tem alegoria de Escola de Samba,
carro de bombeiro, mangueira e escada.
Tem locomotiva recém-fabricada
e tem ponte pênsil pronta pra instalar;
tem ônibus-leito, tanque militar,
caixão de defunto, navio de guerra...
Um pouco de tudo que existe na Terra,
cantando galope e voando no ar!
6
Merece destaque o setor do varejo,
com mercadorias de boa saída:
barraca de praia, caixa de bebida,
ganzá, cavaquinho, tantã, realejo...
Lagosta, siri, corda de caranguejo,
tem carne de sol e tem frutos do mar;
cordão de ceroula, produtos do lar,
catálogo novo, preço de primeira:
daqui do país, só não vendo a bandeira
que vai hasteada, voando no ar...
7
Depois que enchi os porões do foguete
com mil toneladas de mercadoria
pensei que de nada adiantaria
trancar-me sozinho nesse palacete.
Não sou sacerdote, nem sou um cadete,
não sou da igreja nem sou militar...
Sou só um poeta doidim pra casar
ganhar cafuné, um cheiro, um carinho...
O diabo é quem sai viajando sozinho
cantando galope, e voando no ar!
8
Olhei sem demora os mapas solares
dos meus alfarrábios de Astrologia
e vi que de fato eu precisaria
de ter companhia nos céus estelares.
Eu que planejava sair pelos ares
buscando planetas pra colonizar,
somente podia vir a povoar
os mundos distantes, sem ter empecilhos,
com muitas mulheres me enchendo de filhos,
cantando galope, e voando no ar...
9
Ainda por cima, era necessário
por uma bem simples questão de harmonia
que as raças humanas que eu espalharia
surgissem de modo bem igualitário.
Fiz logo um harém multi-milionário
nos seis continentes mandei contratar
as deusas mais belas que pude encontrar
e fiz delas todas as minhas mulheres:
café da manhã com seiscentos talheres,
cantando galope e voando no ar!
10
Criei no foguete diversos setores:
indústria, comércio, serviços, lazer.
Fazendas de soja pra dar de comer
aos meus tripulantes e navegadores.
Conjuntos de vilas pros trabalhadores,
e até “piscinão” com água do mar;
meu grande foguete é obra sem par
maior do que a China, melhor que o Japão;
tão belo de ver que parece o Sertão,
cantando galope e voando no ar!
11
Depois eu sentei no meu tamborete
puxei a lavanca, pisei no pedal,
subi pro espaço com força total
fazendo tremer o motor do foguete.
Passei bem por cima do Empire State,
da Torre Eiffel, Monte Palomar;
e vi pela tela se distanciar
a mancha azulada do nosso planeta...
Pensei: “Minha Nossa! Aqui vai Tonheta,
cantando galope e voando no ar!...”
12
Fiz logo uma escala no chão marciano
vendi rapadura, comprei tungstênio,
enchi os meus tanques de oxigênio,
parti outra vez no começo do ano.
Passei por Saturno, passei por Urano,
cheguei lá no fim do Sistema Solar;
desci em Plutão, tomei banho de mar,
botei gasolina comum e azul,
segui com destino ao Cruzeiro do Sul
cantando galope e voando no ar!
13
Foi tanta viagem, foi tanta aventura,
foi tanta Demanda, foi tanta Odisséia...
Eu posso jurar à distinta platéia
que tudo isso foi a verdade mais pura.
Também teve um pouco de literatura,
história inventada para relaxar;
mas eu que não minto não quero falar
e o resto eu só conto aqui pra você
no próximo show, ou em outro CD,
cantando galope e voando no ar!
4983) "A Tortura do Silêncio" (18.9.2023)
Eu me lembro de que, ainda menino, ouvia minha mãe comentar com
outras pessoas um filme com um tema arrepiante. Um padre, no confessionário,
recebe a confissão de um assassino, que revela ter acabado de matar uma
pessoa. O assassino vai embora. A polícia investiga o crime. O padre sabe quem
foi; mas não pode dizer nada, porque o segredo da confissão, na religião católica,
é inviolável.
Depois, o enredo tem uma complicação a mais: a polícia descobre que o
homem assassinado estava chantageando o padre, por algum motivo. Ele corre
o risco de ser preso – e continua sem poder revelar quem é o criminoso.
Somente depois vim a saber que esse filme foi dirigido por Alfred
Hitchcock; é A Tortura do Silêncio (“I Confess”, 1953), com Montgomery Clift no
papel do padre. Vi esse filme agora, pela primeira vez. Eu sempre guardo alguma
coisa dos meus autores preferidos para ver um dia”. Quando eu estiver com 95
anos de idade, sempre terei à minha disposição um livro “inédito” de Kafka, um
disco “inédito” de Gilberto Gil, um filme “inédito” de Scorsese. A velhice nunca
nos privará de estar vendo algo pela primeira vez.
A Tortura do Silêncio foi mal visto pela crítica justamente por causa de sua
premissa central. A maioria das pessoas não “comprou” a idéia de que o padre
tinha que manter silêncio. Os católicos levam a confissão muito a sério, mas nem
todo mundo é católico, e a voz geral era: “Gente, custava nada dizer que quem
matou foi o jardineiro? O Papa ia absolver!”.
Isto nos conduz a um dos argumentos mais canhestros de nossa
avaliação de obras literárias ou do cinema. É quando alguém desdenha a
história, dizendo que ela não faz sentido, e somos obrigados a dizer: “Naquele
tempo era assim”. Os valores morais eram outros. As lealdades familiares ou de
grupo eram outras. As leis e proibições eram outras.
Muitas vezes somos forçados a explicar para alguém (pais para filhos,
professores para jovens estudantes) que aquela história não é absurda, pelo
contrário, aquele drama vivido pelos personagens era, na época em que o livro
foi publicado, um drama sério e real que pesava sobre as pessoas.
É mais trabalhoso do que explicar a leitores jovens o que era orelhão,
talão de cheques, aerograma, corso carnavalesco...
Hitchcock era um cineasta católico, muito influenciado (tal como Federico
Fellini, Luís Buñuel) pela educação religiosa que recebeu na infância. Para ele,
o drama do Padre Logan, em A Tortura do Silêncio, era um drama real.
A tortura de um indivíduo que conhece o autor de um crime mas não pode
revelá-lo já estava no filme anterior do cineasta, Pacto Sinistro (“Strangers on a
Train”, 1951). Nele, um psicopata (Bruno) propõe a um tenista profissional matar
a ex-esposa deste, enquanto Guy, o tenista, deveria matar o pai de Bruno –
enquanto ambos garantiriam álibis invulneráveis para o dia do crime. Guy recusa,
horrorizado, mas quando sua ex-esposa de fato aparece morta ele não tem como
denunciar o criminoso sem parecer cúmplice.
(Montgomery Clift, como o Padre Logan)
Em I Confess, o papel do Padre Logan coube a Montgomery Clift, um dos
grandes atores de sua geração, mas cujo estilo não se afinava com o do diretor.
Hitchcock sempre preferiu tratar os atores como se fossem bonecos, marionetes
cujas ações, gestos e expressões seriam cuidadosamente previstos num
storyboard e depois executados diante da câmera. Clift era um ator do método
stanislawskiano. Procurava reconstituir a origem das emoções do personagem,
e precisava de uma razão psicológica para tudo.
Hitchcock dizia: “Eu pedia ao ator para que saísse do prédio e olhasse
para o alto, para que eu pudesse cortar para a imagem seguinte. E ele dizia: Não
sei se o personagem estaria olhando para o alto nesse momento...”
O segredo da confissão é o grande “gancho” narrativo do filme, mas nem
constitui uma grande novidade. Na segunda parte do Dom Quixote, logo no
primeiro capítulo, Cervantes alude a um conto do folclore valenciano, em que um
padre é roubado mas o ladrão o força a jurar que jamais o denunciará a pessoa
alguma. Algum tempo depois, está o padre rezando a missa com a presença do
Rei, e avista o ladrão no meio dos fiéis. Rapidamente, ele conta para a
congregação o que lhe sucedeu, e virando-se para o altar declara:
Jurei não o dizer a ninguém, mas digo-o a vós, Senhor Deus, que não sois
homem nem mulher, e o ladrão está ali debaixo do púlpito.
E com isso o ladrão é preso, o dinheiro recuperado, e a honra do prelado
não sofre nenhum arranhão.
4984) A literatura de mundo afora (21.9.2023)
(Ngugi Wa Thiong'o)
Andei lendo, misturadamente, duas entrevistas de autores muito distantes
entre si mas que trazem a discussão para um terreno comum: o da experiência
transnacional, dos escritores exilados (voluntariamente ou não) em outro país ou
outra língua, os escritores que se afastam de sua terra natal e assim podem até
enxergá-la melhor.
Aqui no Brasil existe um viés nacionalista muito forte desde que nossa
literatura começou a existir “oficialmente”, como fenômeno coletivo de fato, no
segundo Império, em meados do século 19. Ser nacionalista refletia os nossos
arrufos de independência de Portugal, a nossa necessidade de falar do que era
tipicamente brasileiro e só brasileiro, incluindo aí a nossa maneira peculiar de
escrever, de falar, de recriar o idioma.
William Gibson se referia ao mundo do futuro imediato como “pósgeográfico”, talvez não no sentido de que países e fronteiras deixarão de existir,
mas colocando em primeiro plano as conexões eletrônicas e internéticas que
propõem novas formas de contato, aproximação, diálogo, agrupamento, acesso,
compartilhamento.
Um refugiado, numa dessas levas recentes de êxodos coletivos,
entrevistado na Europa, queixou-se de que, depois de semanas de fuga no meio
de uma migração caótica, perdeu o celular. “Senti nesse momento que tinha
saído do meu país.” A experiência do exílio é física, presencial, mas a um toque
e a um clique do aparelho alguém pode ter a impressão de estar de volta ao
ambiente que frequentava, contando com imagens de câmera, sons em tempo
real.
Dizem que D. Pedro II levou para seu exílio parisiense um travesseiro
cheio de terra do Brasil, para manter a conexão simbólica. Sempre precisamos
de objetos que, por uma espécie de “magia de contato” nos dão a sensação de
estarmos tocando um lugar ausente. E quando Fernando Pessoa dizia que
“minha pátria é minha língua”, não deixa de haver uma certa sutileza nisso,
quando se sabe que foi criado na África do Sul e grande parte de suas primeiras
leituras e primeiros escritos foi em inglês.
https://lareviewofbooks.org/article/prison-left-me-laughing-aconversation-with-ngugi-wa-thiongo/
O queniano Ngugi Wa Thiong’o, cujo idioma nativo é o gikuyu, conversou
com a Los Angeles Review of Books e lembrou a importância de ter uma língua
natal. O jornalista perguntou-lhe se escrever em sua própria língua era uma
questão de “salvação pessoal” ou de “libertação coletiva”.
NWT – Eu suponho que quando alguém escreve em inglês escreve para
sua salvação pessoal. Joseph Conrad era polonês, mas aprendeu inglês aos 19
anos e produziu uma incrível obra literária nesse idioma. Foi uma questão
pessoal, no sentido de que ele se realizou coo escritor, ou algo assim, mas ele
não contribuiu para com a literatura polonesa. O mesmo se aplica a escritores
como Chinua Achebe e eu. Things Fall Apart (1958), de Achebe, é um romance
brilhante, em inglês; mas que não fez nada, absolutamente nada, pela literatura
ibo. O mesmo no caso de James Joyce e muitos escritores irlandeses, pois o
irlandês foi também sistematicamente destruído pelos colonizadores ingleses.
James Joyce, na verdade, é bastante consciente, em seus escritos, da questão
do idioma, mas ainda assim ele escreveu em inglês. O mesmo se aplica a meus
primeiros romances, escritos em inglês: Weep Not, Child (1964), The River
Between (1965), A Grain of Wheat (1967) e Petals of Blood (1977). Sou feliz por
tê-los escrito, mas estou mais satisfeito ainda por ter escrito meus romances
subsequentes em gikuyu.
(...)
Eu recuso uma hierarquia de línguas onde algumas línguas presumem ser
mais elevadas do que outras – especialmente nos países pós-coloniais que
experimentam algum tipo de sistema de opressão. Ao mesmo tempo, acredito
que todas as línguas são únicas, especiais. Cada língua, por menor que seja,
possui uma musicalidade única, que não pode ser substituída por outra. Gosto
de compará-las a instrumentos musicais. Um piano tem seu som ou sua
musicalidade específica, que não pode ser confundida com a de uma guitarra.
Quando diferentes instrumentos estão tocando juntos, produzem harmonia; uma
orquestra de muitas línguas.
Por que razão o senhor se recusa a usar o termo “língua de minorias” em
seu livro?
NWT – Porque esse termo é geralmente usado de uma maneira ridícula.
Pense, por exemplo, num idioma da Índia, que é falado por milhões de pessoas,
mas ainda é chamado de “língua das minorias”. (Risos) Esses termos são parte
do sistema hierárquico que eu rejeito. Mas existem línguas de poder? É claro! A
língua do poder é a língua da nação dominante, ou a língua da classe dominante
em uma nação. Eu sou do Quênia, e a minha língua materna é o gikuyu, mas no
Quênia o inglês é a língua da administração pública e da educação – a língua do
poder – mesmo que 90% dos quenianos não o usem. Se você pretende se
educar ou alcançar qualquer posição no governo, tem que se curvar à linguagem
do poder.
O senhor satirizou o modo como países africanos exploram os
desfavorecidos para criar uma imagem pública. Há uma cena no começo de
Wizard Of The Crow em que o narrador menciona que mendigos e moscas estão
sendo usados nas ruas de Aburiria para atrair turistas.
NWT – (Risos) Olhe para as imagens da África. Elas mostram, em geral,
a pobreza extrema, ou a riqueza da fauna e da flora, mas ignoram as pessoas
comuns e as pessoas ricas que vivem ali. A África não é feita somente de pobres,
de narizes escorrendo e moscas em volta dos olhos; está cheia de gente
dirigindo Mercedes-Benz e helicópteros. O essencial seria mostrar as duas
coisas. Não falo em ignorar a pobreza, mas em mostrar os dois lados, e revelar
suas conexões. Se eu vier à Bélgica com a minha câmera, não vou apontá-la
apenas para os palácios e os arranha-céus, mas também para as ruas, e o modo
como o povo vive.
(Bruce Sterling)
Bruce Sterling, escritor de ficção científica, é um dos criadores do
movimento cyberpunk, e seu trabalho eventual como jornalista (para revistas
como Wired e outras) o levou a viajar pelo mundo todo. Ele acabou casando com
uma sérvia, e em 2007 estava morando em Belgrado. Numa entrevista à Locus
(#561, outubro 2007), ele comentou essa experiência de expatriamento
voluntário, curiosidade por outras culturas e o choque que o olhar norteamericano (que ele considera meio provinciano, tacanho) experimenta diante da
realidade da Europa Oriental.
BS – Uma coisa em que venho pensando ultimamente é um romance
“regional” sobre o Planeta Terra. O mundo tornou-se um lugar pequeno, e é
preciso que se escreva um romance-de-cidadezinha-pequena a respeito dele.
Eu sou de uma região [Texas] muito voltada para o romance regional. O romance
regional texano gira em torno da angústia do Gótico Sulista, sobre pais e filhos
e a posse da terra – coisas tipo Lonesome Dove. Precisamos de um livro que
relate o que aconteceu conosco de um ponto de vista transnacional, para
interpretar o sentido cultural de tudo isto e fazer julgamentos de valor a seu
respeito, porque é algo cada vez mais forte, e está acontecendo muito depressa.
Isto vai ser bom para o quê, vai ser ruim para o quê? Quem são os vencedores,
quem são os derrotados? O que temos a ganhar com isso tudo? Alguém precisa
criar obras literárias sobre a globalização, mas não é o meu caso, porque não
sou um grande romancista. (...)
Eu vivo hoje num país [a Sérvia] que já atravessou seis colapsos
econômicos, mas você ainda consegue sair de casa e obter um jantar. Belgrado
é uma cidade em gráfico ascendente no momento atual. Eles já passaram por
uma hiperinflação, onde você vai ao mercado com um carrinho de mão cheio de
cédulas e compra um pão; e não apenas todas as pessoas perderam suas
economias, como depois vieram os bandidos e atearam fogo à cidade. Mas o
mundo não se acabou (ele se acaba quando para de chover por dois anos e toda
a vegetação morre). Essa situação econômica é apenas um epifenômeno. Você
pode visitar lugares por toda a Europa onde a economia já entrou em colapso. A
Europa é cheia de sociedade pós-catástrofes.” (...)
Se você viaja pelos Bálcãs, vê o tempo inteiro pessoas que já perderam
tudo. Eles têm uma espécie de resiliência, um humor sinistro a esse respeito.
Para mim, é uma espécie de segundo lar espiritual, de muitas maneiras, uma
sociedade com um temperamento muito mais sombrio. Eu sou uma espécie de
figura piadista, fazendo frases de mau-humor ao estilo de Mencken, mas em
Belgrado eles me veem como um cara leve, um cara divertido. “Você é um
americano amistoso, sempre espirituoso, sempre com uma frase engraçada.” Na
América, dizem: “Por que você vive escrevendo sobre distopias?” Não são
distopias, é o mundo que é assim.”
Existe provavelmente espaço para o crescimento de uma literatura
transnacionalista que não abra mão de todas as conquistas linguísticas,
temáticas e ideológicas dos nacionalismos literários, mas que seja capaz de
articular esse nacionalismo aos seus equivalentes mundo afora. Seria uma
maneira de combater a padronização, a uniformização das narrativas, a
propagação de uma literatura consumista que seria a mesma em todos os
continentes.
4985) Dicionário Aldebarã XXV (24.9.2023)
O planeta de Aldebarã-5 tem uma civilização influenciada pelos
colonizadores terrestres.
Seu vocabulário exprime as características da
natureza do planeta e o seu modo de observar os fenômenos da psicologia e da
cultura. Confiram os verbetes abaixo, recolhidos, meio ao acaso, do Pequeno
Dicionário Interplanetário de Bolso.
Catrinus – Jogo de salão onde as pessoas improvisam coletivamente uma
narrativa. Cada uma tem cinco a dez minutos para narrar em voz alta sua
contribuição, usando como “mote” um objeto aleatório retirado de um saco.
Retirado o objeto, a pessoa precisa usá-lo como tema para prosseguir a história
do ponto em que foi largada pela pessoa anterior. Segue-se assim em rodadas
sucessivas até que os objetos se esgotem, e o último deles será usado por quem
irá criar o desfecho da história.
Nandei – Nome de um tipo de prensa metálica usada para prensar
diferentes tipos de folhas vegetais, de diferentes árvores e arbustos, para a
fabricação de uma “tela” especial onde serão aplicadas pinturas abstratas muito
apreciadas para decoração de aposentos.
Some-Sime – Empregado (geralmente um rapaz ou moça adolescente)
que trabalha para as famílias de uma rua inteira, fazendo pequenas tarefas e
com direito a comer e dormir em qualquer uma das casas, de acordo com sua
conveniência. Essa processo dura um ano e é considerado um rito de passagem,
porque um some-sime entrega correspondências, lava pratos, bota crianças para
dormir, apara mato, ajuda a arrumar móveis e a costurar roupas, cozinha, serve
à mesa, cuida de doentes, faz trabalhos de marceneiro, pedreiro, etc.
Nelones – Caixinhas de pedidos colocadas em lugares públicos. A pessoa
deposita uma moeda, coloca um pedido num papelzinho dobrado, e retira outro,
aleatoriamente. Quando não pode atendê-lo, coloca o pedido de volta. Se achar
que pode atender o pedido, leva-o consigo e depois entra em contato com quem
pediu. Grande parte dos pedidos são relativos a utensílios, instrumentos, livros,
peças de roupa específicas.
Senkaya: grandes murais pintados nas paredes das escolas de arte, onde
gerações sucessivas de estudantes pintam novas formas, figuras e paisagens
sobre que foram pintadas pelas gerações anteriores, num movimento perpétuo
de substituição e renovação.
Rana-dem-Dur: a sensação de estar usando alguma coisa que não se
encaixa bem no nosso corpo ou na nossa personalidade: um sapato pequeno,
uma roupa apertada, uma comida muito sofisticada, um veículo muito lento ou
muito rápido, um emprego inadequado.
Dreakans: hábito brincalhão, entre pessoas da mesma família ou amigos
muito próximos, de no meio de uma discussão acalorada, ao perceber que está
havendo um aumento da tensão, uma pessoa começar a cantarolar o que diz,
ao invés de simplesmente falar, ao que a outra imediatamente adere, e as duas
passam a improvisar um pequeno número musical, totalmente informal e
descontraído, com o único intuito de diluir a agressividade e a irritação que
começavam a surgir.
Kimbass: Uma espécie de quarto-de-despejo, porão ou sótão existente na
maioria das casas, para onde são levados trastes velhos, objetos quebrados mas
passíveis de conserto, utensílios ainda úteis mas que foram substituídos por uma
versão mais nova, brinquedos, roupas, instrumentos obsoletos. Por extensão,
tornou-se um termo para designar o acervo de lembranças ou de fatos
irrelevantes que nossa memória acumula ao longo dos anos, e gerou expressões
como “Isto aí está no kimbass”, com o sentido aproximado de "Existe, mas é
impossível de encontrar”.
Vistunyi: crianças de inteligência acima da média, para as quais há uma
permissão provisória para que participem de atividades adultas relacionadas ao
estudo, ao trabalho e ao lazer, como uma espécie de iniciação precoce ao mundo
adulto. Em função disso, precisam fornecer contrapartidas, que vão desde o
ensino para outras crianças até a participação em conselhos educacionais e de
administração do bairro em que vivem.
Ulfos: almofadas macias, em tamanhos variados, que se usam na cama;
diferentes regiões e diferentes culturas usam formas de animais ou objetos que
podem ter um sentido religioso, erótico, familiar, e há crenças de que durante o
sono noturno as entidades que elas representam entram em contato mental com
os sonhos das pessoas adormecidas.
4986) Drummond: "Sociedade" (27.9.2023)
(Carlos Drummond -- auto-caricatura)
Um ângulo interessante da poesia modernista, que de certa forma se
cristalizou após a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, é o modo
como a nova poesia começou a se aproximar da prosa, e, mais precisamente,
da crônica, um gênero literário praticado e consumido sem problemas no Brasil.
A crônica é um tipo de voz literária que se dirige ao leitor de modo um
tanto informal, e que o leitor aceita com a mesma descontração. O que fazia
muita gente rebaixar a crônica como gênero literário . Na época em que Carlos
Drummond publicou seu primeiro livro (Alguma Poesia, 1930) vigorava (embora
não por unanimidade) a visão de que a Arte teria que ser necessariamente
solene, e a linguagem poética teria que ser necessariamente uma linguagem
“elevada”. A poesia, portanto, podia se aproximar da epopéia, mas não da
crônica.
A crônica dispensava essas elevações, conversava com o leitor, e pode
ter sido, ela também, uma influência a mais no estilo que Machado de Assis
transportou para o conto e para o romance. Ao invés de um narrador onipotente
contando uma história para um leitor invisível, o romance de Machado – a partir
de Brás Cubas (1881) – adotou esse tom conversacional, coloquial, de trocarfigurinhas com o leitor enquanto lhe relata os acontecimentos.
Isso vazou para a poesia, e isto que eu chamo de poema-crônica tornouse cada vez mais frequente – e cada vez mais perseguido pelos defensores da
poesia-em-cima-de-um-altar.
Drummond assimilou, com a espontaneidade de quem por fim encontrou
sua turma, essa irreverência que hoje pode nos parecer meio bobinha, mas na
época era um escândalo em copo dágua.
“Sociedade” é um dos poemas de Alguma Poesia em que esse veio
aparece de forma mais divertida. Um poema de cortes rápidos, falas curtas,
descrição minimalista, que de certo modo faz um contraponto às famigeradas
colunas sociais onde se redigem, séculos afora, notas tipo: “O Sr. e a Sra. Fulano
receberam nesta sexta-feira, para jantar, a visita do casal Sr. e Sra. Sicrano,
personalidades de destaque de nossa sociedade...”
“Me aguarde ...” (deve ter pensado o tímido Carlos Drummond).
Sociedade
O homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.
O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.
O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.
Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.
No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.
– A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.
E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.
O poeta generaliza os tipos (“o homem”, “a mulher”, “o amigo”). Deixa
implícita a hierarquia social entre os dois, porque não é o amigo que convida: o
homem anuncia, sem papas na língua, que irá à casa do outro. A dúzia de
foguetes soltados pelo amigo reforça o sentido de que aquela visita é um evento
notável. O amigo sente-se, a partir daí com crédito a um convite semelhante,
mas nada disso acontece. É o casal visitante quem repete a visita conforme lhe
dá na vontade. Na vida social, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
O amigo, anfitrião desta primeira visita, anuncia timidamente que irá à
casa do “homem”, mas este não corresponde. Sai falando mal do jantar – e
quem, com toda sinceridade, nunca foi à casa de alguém para depois sair
botando defeito na decoração, na discoteca, no comportamento das crianças, no
menu, nos modos à mesa?...
A vida social, neste retrato drummondiano (mordaz e sincero), é uma
relação verticalizada, entre pessoas de diferente status social, em que os De
Cima se aproveitam dos De Baixo, cobram favores que não retribuem, exigem
atenções, desfrutam o que lhes agrada, e no fim de tudo saem falando mal como
modo de reafirmar a própria superioridade: “Eles não estão à nossa altura”.
Manuel Bandeira se queixava de que grande parte da má fama dos
modernistas se devia ao temperamento galhofeiro do grupo, e seus poemaspiada. Carlos Drummond já observou que no seu famoso poema da pedra no
meio do caminho o que irritava os críticos nem era o abstracionismo do conteúdo,
mas o fato de que ele escrevia “tinha uma pedra”, em vez de “havia uma pedra”,
como teria escrito um “poeta culto” de 1930.
Uma boa parte desta má fama, no entanto, pode ser atribuída a essa
disposição para zombar das frivolidades sociais, das hipocrisias de classe, das
amizades interesseiras, do alpinismo social baseado no sorriso fácil e no tapinha
nas costas.
4987) Os filmes de Samuel Fuller (30.9.2023)
Ele foi um diretor de filmes B norte-americanos. Essa fórmula é meio
escorregadia, mas não é exagero dizer que Samuel Fuller (1912-1997) foi um
diretor que nunca deu muita bola para altos orçamentos ou elenco de estrelas.
Preferia a relativa liberdade de fazer filmes com orçamento de mediano para
baixo, onde ninguém tinha muita expectativa de lucro. De vez em quando, dava
a sorte de trabalhar com um produtor que confiava nele e lhe dizia: “Vá em frente,
eu garanto”.
Para os cinéfilos do cinema de arte, é bom lembrar da ponta que ele faz
em O Demônio das Onze Horas (“Pierrot Le Fou”, 1965) de Jean-Luc Godard,
aparecendo como ele mesmo durante uma festa e trocando algumas frases com
Jean-Paul Belmondo.
Andei vendo alguns filmes de Fuller nos últimos meses. O excelente
policial noir com Richard Widmark , Pickup on South Street (1953), que lhe trouxe
problemas com o FBI de J. Edgar Hoover.
The Big Red One (1980), um filme de guerra magnífico, com um grupo de
soldados jovens chefiados pelo veterano Lee Marvin, registro autobiográfico das
campanhas de que Fuller participou na II Guerra Mundial (invasão da Sicília,
invasão da Normandia, descoberta dos primeiros campos de concentração).
E Run of the Arrow (1957), um western envolvendo soldados da cavalaria
e índios, influência clara sobre Dança Com Lobos (1990).
Tudo isto me conduziu ao saite do Sesc Digital (filmes muito bons para
ver online, gratuitamente) onde estão dois filmes sobre o diretor.
O primeiro filme é A Fuller Life (2013), dirigido por sua filha Samantha
Fuller. Ela soube aproveitar muito bem o enorme material autobiográfico deixado
pelo pai. Até entrar para o Exército, Fuller trabalhou como jornalista: repórter,
colunista, caricaturista. Publicou alguns romances, e deixou um extenso material
de memórias, que no fime são lidas por amigos seus – um time que inclui Mark
Hammill, Wim Wenders, Tim Roth, Jennifer Beals, William Friedkin e vários
outros.
Os longos e perspicazes depoimentos de Fuller são cobertos com
imagens que ele mesmo registrou durante a guerra – sua família localizou, após
sua morte, inúmeras bobinas de filme em 16mm. que ele levou consigo durante
os combates, fazendo um precioso registro dos campos de batalha.
https://sesc.digital/conteudo/cinema-e-video/tigrero-o-filme-que-nuncaexistiu
O outro filme, Tigrero: a Film That Was Never Made (1994) tem muito
interesse para nós brasileiros. Num certo momento em sua carreira, em 1954,
Fuller, que era um aventureiro nato e gostava de se meter a filmar nos lugares
mais inóspitos, teve a idéia de vir ao Brasil para filmar os índios carajás, em Mato
Grosso.
O pretexto era um argumento intitulado Tigrero, a história de um casal de
brancos que se aventura na selva junto com o personagem-título, um caçador
de onças local. Acontecem aventuras variadas, e um triângulo amoroso acaba
se formando entre os protagonistas, que em tese iriam ser interpretados por
Tyrone Power (o marido), Ava Gardner (a esposa) e John Wayne (o caçador).
Fulller foi ao Mato Grosso e filmou centenas de metros de película
registrando a vida dos índios, que iria servir de pano-de-fundo ao drama
principal, mas por motivos variados (e narrados no filme) a produção não
avançou.
(Jim Jarmusch e Samuel Fuller em frente ao Copacabana Palace)
Quarenta anos depois, coube a dois jovens cineastas a idéia de levar
Fuller de volta à tribo dos carajás, para se reencontrar com alguns índios que ele
filmara da primeira vez. O “mestre de cerimônias” do filme é Jim Jarmusch
(Daunbailó, Estranhos no Paraíso, Dead Man, etc.), que acompanha Fuller na
viagem, entrevistando-o e extraindo dele toda a complicada história do filme que
não foi feito.
O segundo é o diretor do filme, Mika Kaurismaki, um finlandês que, como
seu irmão Aki Kaurismaki, dirige documentários e filmes de ficção muito
interessantes e que às vezes passam despercebidos. Mika Kaurismaki morou
vários anos no Rio de Janeiro, e tinha um bar (Mika’s Bar) na Praça N. S. da
Paz, em Ipanema, onde eu próprio assisti vários shows e cheguei a cantar
também, no tempo em que era cantor independente [sic].
Tigrero leva esse trio improvável para os cafundós do Mato Grosso,
filmado pela câmera de Jacques Cheuiche, e ali Samuel Fuller reencontra vários
dos seus colegas de aventura fílmica do passado, numa tribo já bastante
modificada pela invasão da cultura branca. Ele exibe para os indígenas o
material filmado anos atrás, conversa com eles, etc.
Além da curiosidade de um diretor com esse perfil filmando no Brasil, a
atração do filme é mesmo a personalidade de Fuller. Se no filme póstumo,
dirigido pela filha, vimos uma biografia em imagens com o depoimento dele na
primeira pessoa, em Tigrero vemos o próprio Fuller, já com mais de 80 anos,
caminhando inquieto pra lá e pra cá, e falando sem parar diante da câmera.
(Samuel Fuller)
Ele tem o carisma dos diretores aventureiros, inteligentes e com vasta
leitura, mas sem grandes elucubrações intelectuais. Fumando charutos o tempo
inteiro, com uma inquieta cabeleira branca, queimado de sol, visualmente ele
parece um cruzamento improvável entre Harpo Marx e o ex-ministro Roberto
Campos. É do tipo capaz de contar um filme inteiro e segurar a plateia o tempo
todo, e no fim dar uma de suas gargalhadas desarmantes, como quem diz: “Não
se preocupem, tô só viajando numa idéia”.
Fuller era incensado pela turma do Cahiers du Cinéma nos anos 1960, e
sem dúvida os franceses contribuíram decisivamente para que ele, perseguido
ou esnobado em seu país, mantivesse a chama acesa, bem como o charuto. Os
EUA devem à França uma compreensão mais profunda dos artistas que eles
mesmos produzem, desde Edgar Allan Poe (resgatado por Baudelaire) até Philip
K. Dick e os músicos de jazz do pós-guerra. Vive la France.
4988) Seis conselhos (3.10.2023)
1
Dona Graúda Ferreira, 58 anos, em Cajazeiras (Paraíba), está fazendo
bolo para o jantar às quatro e meia da tarde de uma quinta-feira, quando recebe
a visita de seu filho Vamberto, 29 anos, bancário, que divide apartamento com
mais dois colegas da agência local. Vamberto faz os arrodeios de sempre, e
depois explica que tomou a decisão de casar com sua recente namorada Arlene,
21 anos, por ter constatado que ela é a mulher de sua vida. Conta isso ao longo
de meia hora enquanto a mãe bate claras em neve, unta a forma, fatia maçãs e
tudo o mais. Terminada a declaração, que ela escuta em concentrado silêncio,
ela limpa as mãos no avental e pergunta: “Já brigaram alguma vez?” Vamberto
se empertiga, com todas as defesas em riste: “Claro que não! A gente dá muito
certo um com o outro.” Ela abre a tampa do forno, coloca a forma lá dentro com
todo cuidado, e enquanto procura a caixa de fósforos diz por cima do ombro:
“Pegue uma briga com ela. Pra saber como ela briga.”
2
Gilbert Dickinson, 25 anos, inglês, soldado de infantaria do exército
britânico na I Guerra Mundial, na batalha de Surmontès, no inverno, agachado e
com água pela cintura, depois de dez horas seguidas de fuzilaria cerrada alemã,
virou-se para o Sargento, desesperado, e disse: “Sargento... Quero ir embora
daqui”, e o sargento disse: “É só ficar em pé”.
3
Eduardo Villaverde, carioca, 31 anos, num estado de exaltação emocional
visível a uma quadra de distância, encontra num café o velho amigo Lourival
Sabino, 44, e derrama-lhe em cima sua nova paixão arrebatadora, por Ingrid,
uma loura enigmática, elusiva, misteriosa, uma Nadja bretoniana ou Maga
cortazarista, com quem semanas atrás compartilhou uma única noite de sexo,
drogas e rock-and-roll, finda a qual ele recorda, entre brumas matinais de pós-
orgia, o recado de que “procurasse por ela em Copenhague”. Seguiram-se dias
de paixão febril e de corridas atrás de passaporte, visto, bilhetes com conexão,
reservas às pressas no primeiro Airbnb que apareceu, e a compra (ele abre o
saco plástico e mostra) de um dicionário de bolso “Português-Dinamarquês,
Dinamarquês-Português”, ao que o filosófico Lourival retruca: “Você já foi
conferir naquela loja de chocolates da Visconde de Pirajá?...”
4
Dioclécio Ramos, 81 anos, desempregado, ex-funcionário público, excomerciante falido por juros bancários, viúvo por erro médico, presidiário por seis
meses sob acusação de peculato com provas duvidosas e testemunhos de
desafetos, vivendo no quarto dos fundos da casa do genro, foi abordado na rua
por Ismael Cordeiro, 27 anos, militante partidário, que lhe enfiou na mão uma
maçaroca de panfletos impressos a cores em papel cuchê, e o exortou a votar
no candidato da vez, explicando que era pelo bem do Brasil, pela libertação do
Brasil, pela possibilidade do Brasil realizar enfim seu destino manifesto, ao que
Seu Dioclécio tirou da boca o cachimbo apagado e disse: “Enfie o seu Brasil no
cu, começando por aquela parte mais fina.”
5
Genoveva Monteiro, "Vevinha", 19 anos, de Barra de Santa Rosa, filha de
Dona Osminda, viúva, 58 anos, acabou se casando com Raimundo Berto, 30
anos, mecânico, um cara meio abrutalhado. Um mês depois de casada ela foi na
casa da mãe e disse: “Mãe, todo fim de semana Raimundo sai pra beber, volta
pra casa todo sujo, e quando eu reclamo ele me dá uma surra. O que é que eu
faço?...”. A mãe tirou o cachimbo da boca e disse: “Proteja os dente”.
6
Lourival Araújo, 28 anos, estudante, recifense, torcedor do Náutico,
amava esse clube como quem ama uma mulher tuberculosa, desesperando-se
por ele, sofrendo na carne e no sangue cada derrota, bebendo rios de álcool a
cada desclassificação, dando desgosto aos pais, dando trabalho aos amigos que
pagavam Uber para levá-lo em casa (eram sempre motoristas igualmente
alvirrubros, estoicamente compreensivos e solidários). Uma noite, depois de um
empate sem gols nos Aflitos contra um Aparecidense desfalcado, ele sentou no
bar de Misael, pediu uma garrafa de Fogo Paulista, serviu uma dose de três
dedos e virou. Seu Donda, pai de Misael, estava lanchando na mesa ao lado e
lhe mandou um olhar em diagonal, sabedor que era do drama do rapaz. (Seu
Donda era Sport, e bem ou mal conseguia conciliar o sono à noite.) Criou
coragem e disse: “Lourival, tu quer um conselho?...” O rapaz serviu-se de outra
dose, ergueu o copo em saudação e respondeu: “Seu Donda, conselho é como
esmola, a gente só dá a quem pede." E emborcou o copo.
4989) Eu vi "Magical Mystery Tour" (6.10.2023)
Como todo fã dos Beatles durante os seus escassos oito anos de
atividade (entre 1962 e 1970), me roí de impaciência e de inconformismo,
durante muitos anos, pela impossibilidade de assistir o terceiro filme do grupo, o
famigerado Magical Mystery Tour (1967). Feito para a TV, o filme não foi exibido
no Brasil a não ser em algumas transmissões obscuras ou sessões privadas a
que eu, um simples mortal, jamais tive acesso.
Tive acesso agora, porque um amigo me arranjou uma cópia em MP4. É
engraçado. Mudariam os Beatles ou mudei eu? Fiquei meses com o filme no
computador, comecei a vê-lo umas três ou quatro vezes, ao longo de alguns
meses, e só agora vi até o fim.
MMT foi a primeira criação profissional dos Beatles depois da morte do
empresário Brian Epstein. Paul McCartney, esse otimista incorrigível (e
indispensável em qualquer grupo) convenceu os amigos, todos muito abatidos,
de que a melhor coisa a fazer era inventar um projeto novo e mergulhar de
cabeça em sua realização. McCartney é uma espécie de Tom Cruise do rock,
um cara que acredita nos projetos com olhos brilhando, joga-se nele de corpo e
alma, e convence todo mundo a fazer o mesmo.
O filme foi muito mal recebido em sua primeira exibição na TV inglesa. Foi
rodado em cores, no mês de setembro, e a televisão o exibiu numa sessão
natalina em preto-e-branco. No alvoroço do lançamento, e sem o precavido Brian
examinando a papelada, eles venderam os direitos de exibição para a BBC-TV,
cujos canais eram quase todos em preto-e-branco... e foi assim quer o filme foi
visto em horário nobre, com grande publicidade, por 15 milhões de espectadores.
A imprensa britânica deitou e rolou em cima dessa oportunidade de falar
mal da banda. Entende-se. Jornalistas muitas vezes sentem-se presos à
obrigação moral da imparcialidade. Quando elogiam alguém seguidamente,
começam a torcer por uma chance de falar mal, para provar que têm uma opinião
distanciada, objetiva, neutra...
O filme é uma bagunça, uma prova de que entusiasmo e talento não
resultam necessariamente num trabalho bem feito. Os Beatles encheram um
ônibus com amigos e atores, e partiram estrada afora para uma viagem de cinco
dias, sem roteiro, sem história, dispostos apenas a improvisar coisas engraçadas
ao longo do trajeto. Talvez influenciados pelo clima de “vale tudo” dos filmes de
Richard Lester (A Hard Day’s Night, Help!), eles acharam que bastaria ter
algumas câmeras circulando e dizer coisas engraçadas.
A verdade é que a receita talvez até funcionasse, se houvesse uma
produção de verdade por trás. Philip Norman, na sua ótima biografia da banda
(Shout!, Simon & Shuster, 1981) comenta (trad. BT):
O caos se instalou desde o princípio. A Magical Mystery Tour, ao invés de
flutuar rumo a um crepúsculo psicodélico, arrastou-se fisicamente como uma
lesma pelas rotas por onde os britânicos viajam nas férias de verão, caçada por
uma caravana de veículos da imprensa, rodeada em cada parada aleatória por
hordas de turistas e de fãs. Avistando uma placa que indicava a direção de
Banbury, foram nessa direção, para ver se em Banbury havia um parque de
diversões. Não havia, e eles retornaram para Devon, enquanto o trânsito se
engarrafava à frente e atrás do ônibus. (p. 314)
Brian Epstein (que morrera semanas antes, em 27 de agosto) tinha sido
uma presença invisível, uma barreira. Uma de suas funções principais era isolar
os Beatles dos problemas práticos, para que se concentrassem na música. Sem
ele, a bolha se rompeu. O faz-tudo Neil Aspinall, homem de confiança da banda,
comenta, no mesmo livro:
Quando Brian estava vivo, nunca tínhamos de nos preocupar com esse
tipo de coisa. Bastava pedir quinze carros e vinte quartos de hotel, e eles
apareciam. (...) Viajamos até Brighton e tudo que fizemos foi filmar dois
deficientes físicos na praia. O que devíamos ter filmado era o caos que
estávamos provocando – o ônibus tentando cruzar uma ponte estreita demais,
com filas e filas de carros atrás de nós, e depois tendo que desistir, dar meia
volta, e passar por todos aqueles motoristas que nos amaldiçoavam, até que
John ficou furioso e arrancou os posters pregados no lado de fora do ônibus. (p.
315)
Depois da caótica filmagem, seguiram-se onze semanas de edição do
material. Dez horas de negativo foram reduzidas a 52 minutos. Tony Bramwell,
outros amigo-de-fé que assumiu parte das tarefas do falecido Epstein, comenta:
Paul vinha ao estúdio pela manhã e editava o material. Depois, à tarde,
aparecia John, e re-editava o que Paul tinha feito. Depois chegava Ringo... (p.
315)
É visível no filme a tentativa de reproduzir o clima inconsequente e de
nonsense dos filmes de Richard Lester, mas os músicos não tinham o talento de
Lester. Ele dominava o segredo do ritmo, da montagem e da narração, como
provou nos filmes da banda e em A Bossa da Conquista (“The Knack”, 1964).
Muitos trechos de MMT lembram seus achados absurdistas, como a tenda no
meio de um terreno vazio onde os ocupantes do ônibus entram e vão dar num
espaço enorme, com palco e platéia.
Há outra sequência maluca, uma espécie de corrida desembestada entre
o ônibus da MMT e pessoas usando bicicletas, carros, etc., numa gincana que
lembra (com um pouco de boa vontade) o funeral acelerado de Entr’acte (René
Clair, 1924). A bagunça noturna dentro do ônibus, com todo mundo cantando e
tocando, faz lembrar o clima da Rolling Thunder Review
que Bob Dylan
organizou anos depois (com uma produção mais eficiente).
Uma cena surrealista mostra uma mulher imensamente gorda sonhando
que está comendo num restaurante onde um garçom (John Lennon) serve-lhe
montanhas de espaguete, com uma pá. Lennon chamou seu personagem de
“Pirandello” (o autor de Seis Personagens Em Busca de um Autor), talvez numa
alfinetada pouco sutil ao filme em si.
Talvez nem tudo esteja perdido. O diretor Peter Jackson produziu
recentemente um milagre, aproveitando o material bruto do filme Let It Be e
criando os três episódios da série Get Back, uma obra totalmente diversa, e
excelente. Quem sabe as dez horas de material de MMT estejam escondendo
um filme – para quem seja capaz de dominar a arte e a ciência da montagem.
O filme-para-TV frustrado poderia resultar num registro semelhante ao de
Jackson com Get Back? Duvido muito. As imagens e os sons originais são de
natureza completamente diferente. O que Magical Mystery Tour possui como
vantagem, no entanto, é a intenção (totalmente anos-1960) de não ter a
obrigação de fazer sentido, e meramente explorar a magia, o mistério, a jornada
sem final em vista, a experiência lisérgica, o absurdo, o nonsense, o humor
anárquico.
Não se pode extrair de um material filmado com esse propósito (e filmado
de modo canhestro, amadorístico) um discurso lógico e apolíneo. Seria preciso
entregar o material nas mãos de um daqueles cineastas underground capazes
de reproduzir na montagem as técnicas de associação livre, de fluxo da
consciência, da enumeração caótica, da colagem psicodélica. Algo na linha do
cinema-ensaio-poético, como experimentava Chris Marker ou o Jean-Luc
Godard de filmes-colagem como Film Socialism, Histoire(s) du Cinéma, Adieu le
Langage etc.
4990) O real-irreal de W. J. Solha (9.10.2023)
W. J. Solha acaba de lançar O Irreal e a Suspensão da Credulidade
(Cajazeiras: Arribaçã, 2023), o mais recente volume da sua série de poemas
filosóficos, iniciada há alguns anos, e que andei resenhando aqui neste blog.
Conheço o trabalho de Solha desde o tempo em que morava em Campina
Grande; nossa amizade presencial tem tido proporcionalmente poucos
encontros em carne e osso, se divididos pelo período de tempo. Ainda assim, é
um diálogo dos mais compensadores, porque sou um dos beneficiários diretos
de sua experiência existencial e literária.
Paulista radicado na Paraíba, Solha faz romance, poesia, pintura; é ator
de cinema, ator e diretor de teatro (aposentado, diz ele – mas nunca acredite
quando um ator diz que não sobe mais no palco); libretista de ópera; e acho que
tem mais prêmios do que eu tenho títulos publicados. Com inteiro merecimento,
porque é uma avalanche de criatividade.
O Irreal e a Suspensão da Credulidade é um volume fininho (menos de
100 páginas) mas dá um novo impulso ao poema-rio que Solha vem publicando
há anos. O mestre Hildeberto Barbosa Filho, em seu posfácio, descreve a obra
como “uma poética em espiral”, e como “uma espécie de autobiografia
intelectual, artística e filosófica”, o que vai no centro do alvo.
Neste comentário irei acabar repetindo algo que devo ter falado quando
comentei alguns dos volumes anteriores: Trigal com Corvos (2004), Marco do
Mundo (2012), Esse é o Homem (2013), Deus e outros quarenta problemas
(2015), Vida Aberta (2019), 1/6 de laranjas mecânicas, bananas de dinamite
(2021).
O tema principal deste enorme poema-serial é o conhecimento do mundo
e o estabelecimento de associações, contrastes e analogias entre coisas
aparentemente não-relacionadas. Como se fosse (para usar uma expressão de
Carlos Drummond de Andrade em sua Antologia Poética) “uma tentativa de
exploração e interpretação do estar-no-mundo”. Ou quem sabe a tentativa de
estabelecimento de uma sintaxe das formas individuais e coletivas de produção
de significado.
Solha abre este novo poema com algumas citações, entre elas a do
poema de Jorge Luís Borges que agradece pelo “divino labirinto dos efeitos e
das causas” e pelo “poema” que ele sabe ser um só, e “inesgotável”. Essa
intuição totalizante (justificada ou não), de que universo e literatura são feitos da
mesma trama e tecido, percorre a obra do escritor argentino, e Solha se
emparelha com ele ao enxergar o mundo inteiro como uma linguagem em que
algo ou alguém tenta nos explicar alguma coisa.
Alguma coisa que percebemos sem saber direito como isto acontece:
(...) pensando numa bela palavra
do português e
espanhol:
sol
e me lembro de que o vi,
na infância,
da urgência do
meu trem,
a correr – irreal, vertiginoso – no poente,
por trás das árvores negras,
até... “morrer”
lentamente,
deixando-me... diferente. (p. 8-9).
A vida é uma sucessão de pequenas revelações que percebemos sem
decifrar; como dizia o próprio Borges em “O Fim” (em Ficções):
Há uma hora da tarde em que a planície está por dizer alguma coisa,
nunca o diz ou talvez o diga infinitamente e não a compreendemos, ou a
compreendemos mas é intraduzível como uma música... (trad. Carlos Nejar)
Traduzir esses recados é uma das tarefas a que Solha se propõe, e não
somente os recados do morro ou da planície, mas os da arte e da cultura
acumuladas pelos milênios. Sem negar a existência do talento ou da genialidade
dos indivíduos, o poeta parece retroceder alguns passos e encarar em conjunto
o grande mural da História, e somente dessa distância, paradoxalmente,
consegue perceber a simetria de dois detalhes situados em espaços opostos.
Assim como Jessier Quirino define um poeta como “um prestador de
atenção”, Solha é um observador intenso, quase monomaníaco, dessas
pequenas simetrias ou assimetrias improváveis no bordado do mundo. Percebe
inclusive os pontos onde está faltando um fio, uma linha, um cordel, uma ligação
qualquer entre dois pontos:
E isto é sério:
Montaigne... e Rabelais,
cada um a seu tempo e em sua redoma,
foram – não pela fé – a Roma
...e escreveram,
deslumbrados,
sobre o milenar Império,
nada, porém – o que é um petardo – sobre Miguelângelo e Leonardo,
sobre nenhum dos dois!
porque só se veria a importância do Renascimento a partir
de Jacob Burckhardt,
...trezentos anos depois! (p. 35)
O mundo físico e o mundo da cultura são feitos tanto de fios quanto de
vazios:
Entre mil arapucas:
se alguém quiser montar a Paixão de Cristo com base apenas em Lucas,
não terá uma coroa de espinhos,
e
se em depoimento de João,
sozinhos,
ficará – e a lacuna é tamanha – sem o Sermão da Montanha!
Na capa do livro (e no corpo do texto), o poeta usa no lugar da letra “R” a
imagem do “olho de Hórus”, que José Eduardo Degrazia, em outro posfácio,
descreve como “o olho clarividente e onipresente (aí entra a maçonaria), que
tudo sabe, tudo vê e tudo julga.” Esse olhar implacável é o do poeta, que anota
e cataloga cada detalhe a lhe atrair a atenção, e não só isso: que reconhece na
cultura humana um tecido de olhares, de coisas que somente um percebeu, e
que ao registrar e publicar transformou em dez mil percepções.
Daí que – mais uma vez – gracias quiero dar
ao aparente inacabamento – irreal – fundamental
do
conhecimento,
que se vê também nas pequenas coisas,
como na... solidão – que nos comove – da mulher enlutada
a cruzar a ponte levadiça
em Arles,
século XIX,
sem saber que lhe faz companhia o van
Gogh,
uns trinta metros – à esquerda – atrás dela,
e que a inclui na tela,
sem saber que eu e você agora “vemos” os dois,
tanto tempo
depois. (p. 50)
É o peso do real-da-arte, mais real (porque mais intenso e mais
deliberado) que o real-da-vida. Algo que observamos, também, quando a ilusão
teatral sugere (=exibe) a presença de um artefato gigantesco e inconcebível
mediante efeitos simples:
Suspensão da
INcredulidade é o fenômeno digerido de Coleridge,
em espetáculos por mim dirigidos,
quando – por exemplo – a guerreira olha para o alto e grita
que a nave do inimigo está
descendo,
coisa que a platéia – sem obstáculos – “vê” ocorrendo
nos cento e tantos refletores acesos,
presos... à parafernália das gigantescas e sempre até então
ocultas varas de luz que eu baixo ao palco,
entre a zoada de turbinas e nuvens de
talco. (p. 13)
Fenômeno semelhante ao da persistência retiniana que recria, no cinema,
um movimento do mundo físico, através de um movimento que só existe em
nosso conjunto olho-e-cérebro:
Surreal:
com incapacidade
total
de ver
nenhum
dos vinte e quatro fotogramas de uma sequência projetada
em disparada,
numa tela
no velho cinema,
passou a nela ver a... irreal reprodução
não registrada!
...da ação
“filmada”! (p. 32-33)
O projeto poético-filosófico de Solha, expresso nestes (até agora) seis
livros é um projeto universalista, totalizante, uma tentativa de salvar o mundo
registrando tudo que nele parece fazer sentido. Algo como a obra de Bispo do
Rosário, a “enciclopédia do apocalipse”, onde o artista julgava estar salvando da
destruição tudo que reproduzia em sua linguagem pessoal.
Ao longo dessas obras, Solha tem desenvolvido um estilo próprio de
versejar, uma combinação pessoal entre o verso livre e a rima. Ele usa
insistentemente o verso livre, a linha sem tamanho fixo, ora muito curta, ora muito
extensa, “quebrada” em qualquer ponto, como uma forma de criar “quebra-molas
verbais” capazes de suster e cadenciar o fluxo da leitura.
Sua dicção, mesmo quando usa imagens retóricas poderosas, é sempre
a dicção da prosa, da prosa expositiva, consequencial, em que um argumento
ou uma descrição se desenrolam com rigor e clareza. O corte da linha funciona,
neste caso, como um alerta permanente de que o ritmo de leitura-e-degustação
deve ser outro.
Vai daí que Solha emprega seus artifícios para atenuar essa tendência à
linguagem prosaica. “Prosaica” no bom sentido, da fala sem excesso de
artifícios, como lembrava T. S. Eliot em “The Music of Poetry” (em On Poetry and
Poets, Noonday Press, 1961):
“A poesia não deve derivar para muito longe da nossa linguagem
ordinária, cotidiana, a que usamos e que ouvimos. Que seja ela acentual ou
silábica, rimada ou sem rimas, formal ou livre, ela não pode se dar o luxo de
perder o contato com as formas mutáveis do discurso coloquial. (...) Cada
revolução na poesia acaba resultando, e muitas vezes assim se proclama, num
retorno à fala comum.” (trad. BT)
Solha abre mão de metrificar, não por não saber fazê-lo (quando ele
produz letras para serem musicadas, suas sextilhas e seus martelos são
impecáveis), mas porque sua aventura não é só poética, é poético-filosófica, e
requer a convivência (tensa) entre os recursos de ambas as linguagens.
Surge também daí (acho eu) seu uso personalíssimo das rimas, que em
seu texto não têm localização fixa, e aparecem distribuídas meio aleatoriamente
no interior dos versos, às vezes surpreendendo pelo inusitado de sua presença,
às vezes invisíveis (inaudíveis) pelo modo sem-costura com que se integram ao
conteúdo do discurso.
Se este projeto ambicioso de Solha tem aquilo que Borges descrevia
como “balbuciante grandeza”, que os seus leitores esperem a maciça
“Auto/b/i/o/grafia” que ele vem há tempos distribuindo em fragmentos pelo
Facebook. Fiel ao seu propósito de pensar o mundo enquanto mundo e
pensamento existam.
4991) A Empregada e o Professor (12.10.2023)
A pulp fiction consagrou uma imagem típica da ficção científica, a do
cientista louco. Em geral é um pesquisador solitário, isolado da comunidade
acadêmica, com delírios de grandeza e de poder sobre o resto da humanidade.
Reúne traços de inventores obsessivos como Thomas Edison, empreendedores
implacáveis como Steve Jobs ou Elon Musk, e autocratas como Vladimir Putin.
O cientista louco da pulp fiction, é claro, é um cara tipo Dr. Silvana, é Lex
Luthor, é o Dr. No...
O cinema e a literatura de anos mais recentes têm abordado um tipo que
acho muito mais interessante, em termos de dramaturgia, e mais próximo da
nossa realidade. Podemos chamá-lo “o cientista excêntrico”, ou “o gênio fora-deesquadro”. Ele não é ambicioso, não é vilão, não sabe de política, não busca
riqueza, não ameaça ninguém (a não ser ele mesmo, por descuido). É apenas
um sujeito que vive num mundo mental próprio.
Já abordei alguns destes personagens aqui, mas o tema me voltou agora
após a leitura do romance The Housekeeper and the Professor (“Hakase no ai
shita suushiki”, 2003) de Yoko Ogawa. Há uma tradução brasileira, A Fórmula
Preferida do Professor (Estação Liberdade, 2017, trad. Shintaro Hayashi).
Yoko Ogawa é uma escritora japonesa contemporânea, de quem li
recentemente o ótimo Hotel Iris (1996), uma espécie de roman noir japonês
sobre a relação mórbida entre uma adolescente e um homem mais velho.
Este outro livro tem como foco também a relação de uma mulher mais
jovem (uma criada doméstica de trinta e poucos anos) e um velho professor que
sofre de amnésia parcial. A mulher vai servir de empregada na casa dele através
de uma agência de empregos, e se depara com um homem idoso, considerado
um gênio matemático. Ele sofreu um acidente e agora sua memória só consegue
reter os últimos 80 minutos de sua vida.
O Professor (assim chamado durante todo o livro) vive num “eterno
presente” parecido com o de Leonard, o personagem de Guy Pearce em
Amnésia (“Memento”, 2000) de Christopher Nolan. O personagem do filme
tatuava e escrevia recados para si mesmo na própria pele. O Professor anota as
informações essenciais em papeizinhos e os prega com alfinetes no terno.
A relativa tensão na convivência entre a Empregada e o Professor decorre
do seu distanciamento social bem japonês, bem respeitoso; e do fato de que
todos os dias ela precisa se reapresentar a ele. O gelo começa a ser quebrado
quando o Professor descobre que ela tem um filho de 10 anos que fica sozinho
em casa esperando que ela volte do trabalho. O Professor é radical. Crianças
merecem toda a atenção. Ele obriga a Empregada a trazer o filho do colégio e
ficar com ela até o fim do expediente.
O Professor começa a ajudar o garoto a fazer suas tarefas de casa. Os
dois gostam de beisebol, e começam a trocar figurinhas”, enquanto o Professor
fala de Matemática com tanto entusiasmo que a Empregada começa, por conta
própria, a estudar a teoria dos números primos e outros capítulos abstrusos da
Matemática Pura, seduzida pelo entusiasmo que ele demonstra.
O livro não é um thriller, não tem peripécias, não tem suspense (a não ser
os pequenos e ingênuos suspenses da vida banal de todos nós, talvez os únicos
que venhamos a experimentar). É um estudo de delicadeza e de aproximação
gradual entre pessoas muito diferentes. E do mistério de uma mente capaz de
resolver problemas complicadíssimos de raciocínio mas que precisa todos os
dias ser apresentado de novo às pessoas que lhe são mais próximas.
O mundo mental do Professor me trouxe à memória (a minha ainda
funciona, podem testar) o matemático do filme Pi (1998) de Darren Aronofsky.
Neste caso, o matemático é mais jovem e mais amalucado. Max Cohen é um
rapaz cujas viagens no mundo abstrato da alta Matemática o deixaram meio
maluco, meio paranóico, profundamente convencido de estar a apenas um
passo de desvendar os segredos fundamentais do Universo.
São duas histórias muito diferentes, mas ambas nos dão um vislumbre do
estado alterado de consciência que é a prática do raciocínio abstrato em alto
nível.
E não é somente a Matemática Pura. Um dos filmes mais intrigantes e
“em surdina” que vi nos últimos tempos foi The Sound of Silence (2019, Michael
Tyburski), em que um técnico de som dedica-se a gravar e analisar os sons
produzidos numa grande metrópole (no caso, Nova York).
Gravando e ouvindo, obsessivamente, ele desenvolve uma teoria que é
uma espécie de “Feng Shui do som” – um modo de alterar o background sonoro
de uma casa a fim de melhorar as condições psicológicas de quem mora nela.
Peter Lucien, o personagem, não tem nada de doido nem de paranóico, e
é interpretado por Peter Sarsgaard num diapasão contido e discreto que somente
aos poucos vai nos fazendo resvalar para o mundo de obsessão e de
monomania. Lucien é manso, educado, sensível; mas tem uma total
incapacidade de explicar às “pessoas comuns” as coisas que vê, que pensa e
que ouve.
("The Sound of Silence")
Um dos ângulos mais fascinantes destas histórias é o fato de que esses
cientistas excêntricos não são propriamente perseguidos nem ameaçados com
as fogueiras da Inquisição. Eles simplesmente não conseguem fazer com que
ninguém (nem mesmo as pessoas que os amam) entenda as descobertas
prodigiosas que fazem.
Li anos atrás um conto de Joyce Carol Oates, cujo título não recordo, em
que um astrônomo idoso e sem família é cuidado por uma enfermeira ou
governanta, numa situação parecida com a de A Empregada e o Professor. O
astrônomo é tido como senil, caduco, mas inofensivo; e a criada o trata de
acordo. Ele fala o tempo todo nos cálculos e nas descobertas prodigiosas que
está fazendo; e ela, atarefada, limpando a poeira, responde no tom de “ah, que
bom, professor, que bom que seu trabalho está dando certo, não esqueça de
comer sua aveia”.
Nas últimas páginas do conto o astrônomo está febril, enfraquecido, mas
fica empurrando um maço de folhas de papel nas mãos da criada, dizendo que
ligue para aquelas pessoas, aqueles telefones, explique o que está acontecendo,
explique que ele fez uma descoberta que vai mudar o mundo, e ela, “ah, claro,
professor, não esqueça de tomar seu remédio”. E o conto se encerra com uma
dupla leitura extraordinária, porque ele tanto pode ser um velhinho caduco
quanto um novo Einstein a quem ninguém dá ouvidos.
4992) Lupin e a pérola negra (15.10.2023)
A série francesa Lupin voltou agora pelo Netflix, em sua terceira
temporada. Houve um certo receio de que não voltasse, porque as duas
primeiras temporadas mostraram o começo, meio e fim da aventura de Assane
Diop (o “Arsène Lupin” moderno) para destruir a família do milionário Pellegrini,
algoz de seu pai.
A terceira temporada inicia uma aventura nova, “A Pérola Negra”, com o
mesmo ótimo elenco, roteiros espertos e direção agradável. É um folhetim, e
estas aventuras têm momentos dramáticos mas não buscam a tragédia, têm
momentos engraçados mas não se pretendem propriamente cômicas.
Vi algumas críticas às temporadas anteriores: “Ah, mas assim é muito
fácil, alguém deixou uma porta destrancada, sem perceber, e ele fugiu...”
Facilidades deste tipo fazem parte da dramaturgia do folhetim, que não tem que
ser 100% plausível. Uma dramaturgia séria como a de Breaking Bad não poderia
usar de forma tão relaxada a coincidência, ou o fato de que o herói possui
justamente o recurso necessário (instrumento, informação, contato, amizade)
que lhe permite sair de uma sinuca.
O folhetim não é uma narrativa realista, é uma prestidigitação com
acontecimentos. Uma série de truques, como os da magia de palco, onde
sabemos muito bem que aquilo é impossível (a mulher não foi serrada ao meio,
a água não virou confetes), mas aplaudimos a fluência com que a falsa magia é
apresentada.
Lupin emprega reiteradamente alguns efeitos narrativos que aumentam
em muito o interesse do espectador, principalmente o espectador que leu os
romances originais de Maurice Leblanc e a cada episódio lembra-se de um
truque, uma situação, um golpe, um suspense que estavam nos livros e são
agora recuperados em contextos diferentes, atuais.
Os livros de Maurice Leblanc sobre Arsène Lupin foram sucesso absoluto
entre 1905 e 1935. Há exatamente 100 anos ele estava publicando As Oito
Pancadas do Relógio, um dos seus melhores livros, com oito contos em que
Lupin (nessa época mais para detetive amador do que para simples ladrão
elegante) decifra uma série de crimes. Incluí um conto desse livro, “A Morte na
Praia” (“Thérèse et Germaine”) na minha antologia Crimes Impossíveis
(Bandeirola, 2021).
É típico do aventureiro Arsène Lupin estar numa das pontas de um
triângulo complementado pela “polícia” e pelos “vilões”. Lupin não é o vilão. É
apenas um desapropriador contumaz de fortunas mal ganhas. Quando ocorre
um assalto ou um crime de grande repercussão, a polícia naturalmente o atribui
ao “usual suspeito”, ou seja, ele. Lupin arregaça as mangas, mergulha por conta
própria na investigação, decifra o mistério, ridiculariza a força policial, entregalhe manietado o criminoso, e foge com algum tipo de riqueza ou jóia com que se
deparou no transcurso da aventura (ou pelo menos uma mulher bonita).
Um dos charmes desta série de TV é que o herói original, um bonitão
elegante com porte de Omar Sharif, é apenas a inspiração literária para Assane
Diop (o ótimo Omar Sy), um negro enorme, simpático, atlético, de papo
convincente, e com um talento para o disfarce que consegue atenuar (usando
inclusive a “invisibilidade social” do negro) a extrema visibilidade de sua estatura.
Um detalhe importante da série é a presença do policial Guédira, que tal
como Diop é um fã dos romances de Maurice Leblanc, e os conhece a fundo.
Isto é pretexto para um jogo de pistas e alusões em que Guédira percebe as
intenções de Diop, mas não consegue explicar aos demais membros da polícia
a importância das alusões literárias.
Dessa maneira, existe um diálogo à distância entre o ladrão e o policial,
uma “fanzice” compartilhada, com uma aproximação gradual que vem se
estreitando ao longo da temporada. E que de certa forma “atualiza” a simpatia
meio paternal que o Lupin original tinha pelo sofredor Inspetor Ganimard.
(Omar Sy, como Assane Diop, e Soufiane Guerrab, como o policial
Guédira)
Dois recursos narrativos do roteiro da série (criada por George Kay e
François Uzan) ajudam a dar dinamismo à situações mostradas – que, como é
habitual no gênero dos “heist movies” ou “filmes de assalto”, precisam ter um
pouco frouxas as rédeas da verossimilhança.
O primeiro é o fato de que a narrativa conta em paralelo a vida adulta e a
infância de Assane Diop (e nesta parte encontramos várias das pessoas que
virão a ser importantes na sua vida de adulto). E muitas vezes, quando o Assane
adulto está num beco sem saída qualquer, surge um flashback de sua infância
mostrando que quando adolescente ele passou por uma situação parecida, deuse bem ou deu-se mal, mas aprendeu uma lição. Lição que agora põe em prática.
(Mamadou Haidara, como o jovem Assane)
O segundo recurso é uma espécie de “rewind” da narrativa. No momento
crucial do perigo, surge uma interferência salvadora aparentemente “do nada”
para resolver a situação. Nesse instante, a narrativa se interrompe, surge um
letreiro tipo “Três dias antes...”, e só então entendemos como Diop tinha
antevisto o perigo e preparado sua salvação.
Lupin é uma série que teve a sabedoria de, ao invés de fazer uma série
de época, de cem anos atrás, dando vida ao personagem, preferiu mostrar um
Lupin atual, um leitor-fã com inteligência suficiente para se meter em aventuras
semelhantes ao de seu personagem favorito. E de fazê-lo numa Paris de hoje,
uma Paris multirracial, cheia de novas tensões sociais e de novas tecnologias.
É interessante notar que este último aspecto já havia sido adotado pela
série inglesa Sherlock (com Benedict Cumberbatch e Martin Freeman). Ali, os
personagens originais foram “transplantados” para o presente. Holmes continua
detetive – mas Watson é blogueiro. E se faz uma exploração intensa de
celulares, computadores, GPS, internet, etc., ou seja, é necessária uma
mudança estrutural em alguns enredos que se baseavam numa sociedade onde
o telégrafo, o telefone e a fotografia eram o máximo de recursos high-tech à
disposição.
4993) A pior sensação da vida (18.10.2023)
(Manuel Bandeira)
“A vida inteira que poderia ter sido e não foi”, pensou um dia Manuel
Bandeira, durante um poema.
Frágil, ameaçado pela tuberculose desde a adolescência, o poeta não
tinha como não fantasiar outras vidas, o que aliás fez lindamente em “Vou-me
embora pra Pasárgada”. Tanta coisa para viver, tantas aventuras, tantos
prazeres! E a vida se resume ao esforço fatigante de preservar uma existência
sem atrativos. Por isso, talvez, gente como Janis Joplin dizia preferir viver dez
anos a mil-por-hora do que mil anos a dez.
Janis conseguiu o que queria. A maioria das pessoas prefere viver
pianinho, prefere pegar leve, poupar-se, mesmo que resignando-se a uma certa
pasmaceira. E abrindo mão daquilo que a cultura-de-massas chama “a
realização do seu sonho”.
Paulo Coelho popularizou (não foi ele quem criou) a expressão “quando
você vai atrás do seu sonho, o universo inteiro conspira a seu favor”. É uma frase
eficaz no sentido motivacional, porque todos nós precisamos de uma aplicação
de otimismo quando temos que encarar uma tarefa, mesmo algo simples como
arrumar a escrivaninha ou lavar o banheiro de casa.
É preciso acreditar que o objetivo vai ser atingido. Times de futebol,
equipes de vendedores, grupos de militantes políticos, soldados no campo de
batalha – todos eles precisam acreditar no sucesso, precisam da hipnose
benéfica do otimismo.
Esse tipo de auto-ajuda funciona de forma paradoxal, porque as pessoas
conseguem acreditar ao mesmo tempo no livre-arbítrio (“eu tomei esta decisão
e tenho certeza de que alcançarei meu objetivo”) e no destino (“está escrito que
serei vencedor”). O que é compreensível: sempre que os fatos parecem
desmentir um desses aspectos, basta-nos trocar de chave, e acreditar no outro.
(Hugh Mac Leod)
Hugh MacLeod, autor de livros de auto-ajuda, afirma (em Ignore
Everybody):
Toda pessoa foi trazida para a Terra com um Monte Everest privado para
escalar. Talvez você nunca chegue ao pico, e isto é compreensível. Mas se você
não fizer pelo menos um esforço sério para chegar ao cume nevado, anos depois
você vai se ver deitado em seu leito de morte, e tudo que vai sentir é um enorme
vazio. (trad. BT)
A auto-ajuda consiste muitas vezes em reafirmar, com suas próprias
palavras, algo que você leu e lhe pareceu fazer sentido.
(Franz Kafka)
Franz Kafka tem uma parábola famosa chamada “Diante da Lei”. Um
homem chega diante de uma porta que dá acesso à Lei. Diante dela há um
guarda enorme, ameaçador, que o dissuade de tentar entrar ali. “Depois desta
porta há outra,” explica ele ao homem, “com um guarda ainda maior que eu, e
depois outra ainda maior, e assim por diante; eu próprio não consigo olhar para
eles sem ficar tomado de terror.”
O homem hesita, acha que não vai ser capaz, e passa o resto da vida ali,
ao pé da porta. Perto de morrer, ele chama o guarda e pergunta por que motivo,
durante todos aqueles anos, não apareceram outras pessoas ali à procura da
Lei. O guarda responde: “Porque esta porta existia somente para ti, e como agora
vais morrer, terei que fechá-la”.
A porta da Lei e o Everest privado são o mesmo conceito – existe algo
que somente você será capaz de tentar, e não adianta tentar se beneficiar da
experiência alheia ou do efeito manada, invadindo o recinto junto com uma
multidão. As conquistas pessoais são solitárias, por definição. Dependem só de
você.
(Henry James)
Henry James glosou este mote em sua misteriosa noveleta “A Fera na
Selva” (1903). Seu protagonista, John Marcher, é um homem inteligente, pacato,
metódico, que confessa viver à espera de um evento extraordinário que (por uma
intuição qualquer) ele pressente estar à sua espera no futuro. Preparando-se
para esse evento (que tanto pode ser uma epifania quanto um desastre), ele se
poupa, se protege, evita embarcar em outros compromissos. E no final, nada
acontece. O evento extraordinário talvez estivesse no seu caminho se ele tivesse
se lançado à vida, ao invés de se proteger dela.
(John Crowley)
Ter medo da vida é doloroso. O que dizer de quem tem medo da
literatura? John Crowley tem um conto, “Novelty”, na coletânea do mesmo nome
(Foundation / Doubleday, 1989), cujo protagonista, um indivíduo cheio de
ambições literárias, um dia se depara, dentro de si mesmo, com uma revelação
acabrunhante.
Muitos anos depois, ele percebeu que a diferença entre ele e
Shakespeare não era propriamente de talento, mas de fibra. A capacidade de
não se intimidar diante das idéias mais vastas ou mais poderosas e de
simplesmente (simplesmente!) sentar-se à mesa e pôr mãos à obra. A terrível
languidez que se apossava dele quando algo imenso e complexo tornava-se
subitamente claro aos seus olhos, algo com as dimensões de um “Rei Lear” e a
minúcia de um soneto. Se ao menos não desabasse sobre ele assim, de uma
vez, tudo tão monumental e tão perfeito, deixando-o amedrontado e frouxo diante
da perspectiva de articular tudo aquilo, cena por cena, página por página!... (...)
Gemendo como um fantasma desprezado, a idéia grandiosa ruflava as asas e
sumia no vazio. (trad. BT)
Alguns autores são assim, capazes de se maravilhar (e se aterrorizar) com
as dimensões de uma empreitada. Outros são mais pragmáticos.
(Thomas Carlyle)
Conta-se que Thomas Carlyle recebeu de seu colega John Stuart Mill, em
1834, a encomenda da redação de uma história da Revolução Francesa. Mill
recebera essa proposta mas não tinha condições de executá-la. Carlyle aceitou,
e pôs mãos à obra. Depois que concluiu o livro (cuja edição atual tem cerca de
800 páginas), enviou o manuscrito para Stuart Mill. Na casa deste, por engano,
uma criada pegou o pacote com o manuscrito e o queimou, achando que era
destinado ao lixo. Quando recebeu a notícia, Carlyle sentou-se à mesa, pegou
pena e tinteiro, escreveu “Capítulo 1”, e refez o livro por completo.
4994) Fellini: as mulheres e as luzes (21.10.2023)
O cinema de Federico Fellini sempre circulou em torno de meia dúzia de temas,
e um dos mais constantes é o que hoje chamaríamos de show business, mas na
Itália onde ele se tornou diretor tinha o nome de varietà. É o nosso teatro de
variedades, centrado não numa obra dramatúrgica mas numa sucessão de
pequenos esquetes ou entremezes, números musicais, números de mágica de
salão, quadros humorísticos, danças, contação de piadas (o que hoje chamamos
de stand-up comedy) e assim por diante.
É o mundo dos artistas mambembes, das companhias ambulantes que vão de
cidade em cidade na esperança de faturar uns trocados enquanto vivem o
"momento mágico do palco”, que para muitos deles, pobretões e esfomeados,
parece ser paga suficiente.
Este primeiro filme de Fellini foi dirigido em parceria com o mais experiente
Alberto Lattuada. Luci del Varietà (“Mulheres e Luzes", 1951) é a história de
Checco dal Monte (interpretado por Peppino de Filippo), uma mistura de
canastrão e dono-de-companhia, e sua trupe de artistas mambembes, viajando
de trem (e de carroça, e a pé) pelas cidadezinhas do interior. Checco se apaixona
por Liliana, uma moça bonita (Carla del Poggio) doida para virar artista; e causa
uma grande decepção em Melina – Giulieta Masina no papel da mulher um
pouco mais velha, mais vivida, mais realista, e que lê com olhos de raios-X o
entusiasmo do companheiro pela nova estrela da companhia.
Não muito distante (pela data, inclusive) daquelas chanchadas nacionais em que
o trêfego Zé Trindade, casado com a ameaçadora Violeta Ferraz, ficava todo de
risadinhas e salamaleques rumo a vedetes como Anilza Leoni e outras.
Se o tema for do interesse de algum leitor, sugiro ver The Travelling Players, de
Theo Angelopoulos (1975), filme grego que acompanha um grupo similar de
vaudeville ambulante, desta vez na Grécia, e com um viés trágico percorrido pela
II Guerra e a ditadura militar que foi imposta ao país logo depois. Há cenas em
que Angelopoulos parece estar citando diretamente o filme de Fellini/Lattuada –
o dia nasce e os atores andam de rua afora, sonolentos, malas na mão, rumo à
estação do trem e à próxima aventura de bilheteria.
(The Travelling Players)
Não é a única referência que me veio à mente quando vi agora Mulheres e Luzes.
Aqui, a primeira dança da bela Liliana, ainda sem jeito, ainda uma estranha na
companhia, acaba provocando aplausos quando sua roupa se rasga. O número,
incorporando o detalhe, torna-se sucesso nas noites seguintes. Em Viva Maria
(1965, Louis Malle) acontece algo semelhante nos primeiros números de dança
da amadora Maria II (Brigitte Bardot) com a profissional Maria I (Jeanne Moreau).
Os críticos têm comentado também a semelhança do enredo com o de A
Malvada (“All About Eve”, 1950) – a atriz jovem, bela e ambiciosa que rouba o
marido e a carreira de uma atriz mais experiente. Fellini e Alberto Lattuada, os
dois diretores, colocaram suas respectivas esposas (Giulieta Masina e Carla del
Poggio) nesses papéis, mas ao contrário do filme norte-americano a ênfase
deles é no personagem masculino, em que Peppino de Filippo arrasta a asa à
jovem enquanto é ridicularizado por todo o mundo.
“Quebrando” uma companhia atrás da outra, Checco dal Monte se endivida,
mete os pés pelas mãos, mas não desiste nem da beldade (que o explora até
não poder mais) nem do palco.
Vem daí uma das cenas famosas do filme. Desalentado e sem grana, impedido
de entrar na pensão onde estava em dívida, ele caminha de madrugada pelas
ruas desertas da cidade, na companhia de um norte-americano negro,
trumpetista, um dos muitos soldados do exército dos EUA que se deixaram ficar
na Itália depois do fim da guerra. Os dois se deparam com uma moça ao violão
(apresentada como “a grande artista brasileira, Moema”) que não é outra senão
Vanja Orico, que poucos anos depois ficaria famosa aparecendo em O
Cangaceiro (1953), de Lima Barreto.
(Vanja Orico)
É curioso ver no filme de estréia de Fellini uma cantora entoando “Meu Limão,
Meu Limoeiro” em puro português. Não é surpreendente, no entanto – é bom
lembrar que a década de 40, entrando pela de 50, foi o auge do baião de Luiz
Gonzaga e Humberto Teixeira, e muitos filmes estrangeiros da época incluíam
canções brasileiras em sua trilha. Foi também o caso de Noites Brancas (1957)
de Luchino Visconti, onde escutamos “Muié Rendeira”, a composição de Zé do
Norte tornada famosa em O Cangaceiro.
E o próprio Lattuada viria a incluir em seu Anna (1951) um nímero musical
cantado por Silvana Mangano, “El negro Zumbón”, um dos mais conhecidos
baiões compostos fora do Brasil – a música é de Armando Trovajoli, grande
“trilheiro” do cinema italiano, e letra de Francesco Giordano.
Aqui, “Meu Limão, Meu Limoeiro”:
https://www.youtube.com/watch?v=CoKUmGP9FCw&ab_channel=gelsomminn
a
E aqui, “Sodade, Meu Bem, Soidade” (O Cangaceiro):
https://www.youtube.com/watch?v=_rqMBScsrgY&ab_channel=RADIOSANTO
S%28REM%29
Fellini, mesmo em seu primeiro filme (e um filme co-dirigido por um amigo mais
experiente) já era o cineasta do grotesco e do bizarro. Encontrei aqui neste filme
uma cena de submundo que seria depois recriada na tela pelo carioca Miguel
Borges. São os homens que “dormem na corda”, ou seja, sentados num banco
comprido e debruçados sobre uma longa corda amarrada horizontalmente.
Quando o dia amanhece, o dono do pulgueiro desamarra a corda, todo mundo
tomba para a frente, levanta e vai embora.
E há a cena inesquecível de quando a companhia de vaudeville se apresenta
numa cidadezinha e desperta a simpatia de um ricaço local, que convida a todos
para jantar, na esperança de exibir seus próprios dotes artísticos (cantando o
“Figaro”) e de tirar uma casquinha da desejada-das-gentes, Liliana. A companhia
está esfaimada, e o jantar é uma longa cena em que a câmera percorre a mesa
mostrando uma dúzia de rostos que mastigam com concentração, voracidade e
êxtase, sem trocar uma palavra sequer.
4995) Cada qual com as suas manias (24.10.2023)
(Seu Nilo)
Toda pessoa tem direito a uma mania mansa, uma mania inofensiva, algo que
na pior das hipóteses consome seu tempo livre e uma fatia de seu orçamento.
Tem gente que coleciona chaveiros, latas de cerveja, cartões postais, selos. Tem
gente que coleciona recortes de jornal. Tem gente que anota resultados de
futebol, de eleições, de corridas de cavalos.
Meu pai era charadista e cruzadista, ou seja, gostava de resolver (e criar)
charadas e problemas de palavras cruzadas nas muitas revistas que comprava
todo mês, como Brasil Enigmista ou A Recreativa (para ele, Coquetel e
congêneres eram para crianças ou amadores.) Eu contraí esse vírus, e ainda
hoje tenho que me conter quando vejo uma “grade” cruzadista pela frente.
Por volta de 1960 ele cismou de criar um dicionário de palavras cruzadas, e
começou a anotar definições em pequenas fichas pautadas para as quais ele
próprio construiu uma porção de gavetinhas de madeira. Não lembro qual era o
viés do dicionário; acho que eram palavras organizadas pelo número de letras.
Ele dava a mim e a minha irmã Clotilde um “agrado” monetário para a gente
copiar definições das dezenas de dicionários que tinha na estante.
Aquilo exigia tempo, aquilo ocupava muito espaço, desarrumava a casa, e eu
teria uns dez anos quando por motivos que nunca entendi ele desistiu do trabalho
e mandou que a gente rasgasse tudo. Eu, que me divertia copiando as fichas,
me diverti rasgando-as.
Meu pai era expansivo e piadista quando estava de bom humor, mas quando
ficava contrariado fechava-se, virava uma ostra, uma esfinge. Cada pessoa tem
seu temperamento. O dele era de não fazer confidências, o meu é de não fazer
perguntas. Nunca me passou pela cabeça, a não ser postumamente, chegar
para ele e perguntar: “Por que o senhor desistiu do dicionário?”.
Outra mania que ele tinha era o futebol, e esta eu herdei de corpo inteiro. Ele se
entusiasmou loucamente com a Copa do Mundo de 1958, e comprava todas as
revistas que traziam matérias sobre a Copa da Suécia: Manchete Esportiva,
Fatos & Fotos, A Gazeta Esportiva Ilustrada... (Acho que a Revista do Esporte,
em formato menor, só surgiu depois.)
Não só comprou como encadernou todas. E para mim a Copa de 1958 (cuja
comemoração em tempo real presenciei meio aturdido, porque tinha apenas 7-8
anos) se transformou depois numa aventura literária. Eu pegava um daqueles
enormes volumes encadernados, sentava no sofá, e passava uma manhã inteira
lendo as detalhadíssimas reportagens sobre cada jogo, com mil fotos, diagramas
ilustrativos de cada gol da Seleção, cartuns, piadas, entrevistas... e as páginas
assinadas pelos irmãos Nelson Rodrigues e Mário Filho.
Em 1961 nos mudamos triunfalmente para a “casa própria”, no bairro do Alto
Branco. Nesse tempo meu pai já tinha tantos livros que a mudança foi feita em
dois dias: no primeiro dia, uma camionete levou os livros, e no dia seguinte veio
o resto da casa. O primeiro dia foi épico. O Alto Branco era (ainda é) uma colina
muito úmida, com muita água à flor da terra, muita lama. A camionete atolou a
100 metros da casa, e atraiu a curiosidade de dezenas de garotos desocupados.
Minha mãe, atarefada e expedita, coordenou uma força-tarefa com promessa de
níqueis e lanches. A vizinhança ficou assistindo a caravana de guris descalços
que sobraçavam pilhas de livros e os levavam ao seu destino final, voltando na
carreira para buscar mais.
“Ah, Fortuna inviolável!...” A casa não era muito grande, os livros atravancavam
tudo, mas havia uma garagem e meu pai nunca dirigiu carro, de modo que
ergueram na garagem uma parede e uma porta. Os livros desceram para lá. A
umidade porejava das paredes. Em poucos anos, as coleções de Manchete
Esportiva etc. foram sendo corroídas por manchas de mofo. Era um papel-jornal
barato, vulnerável. Enormes crateras esverdeadas se abriam no sorriso largo de
Vavá, no choro de Pelé abraçado a Gilmar, na calma hitchcockiana de Vicente
Feola, no cigarro no canto da boca de Nelson ao comentar “Meu Personagem
da Semana”.
E a coleção de dezenas de volumes capa-dura foi trasladada melancolicamente
para o lixo, enquanto eu reprimia os inevitáveis trocadilhos tipo “o mofo deu”.
Meu pai nada dizia (pelo menos na minha frente). Acendia um cigarro e olhava
a paisagem.
Devo ter herdado um pouco disso tudo, não só das manias como do estoicismo.
Não sei onde foram parar as centenas de fichas técnicas de filmes que anotei
em
meus
tempos
de
cineclube
(Diretor/Produtor/Roteiro/Música/Fotografia/Elenco),
nem
os
cadernos
os
jogos
onde
copiava
com
fervor
religioso
incontáveis
do
Treze
(data/local/juiz/renda/gols do 1º. Tempo/gols do 2º. Tempo/placar final/escalação
do time).
Perderam-se ao longo das minhas muitas mudanças de cidade em cidade.
Espalharam-se com meus livros de bolsos, minhas revistas de contos policiais,
meus Argonautas, meus Vampiros, para não falar nas pilhas de Pasquim,
Opinião, Movimento, Versus, Flor do Mal, Rolling Stone... Meu tesouro se
espalhou pelo tempo afora, tal como o Tesouro de Agra que hoje repousa no
fundo do Tâmisa.
Quando alguém vem na minha casa e diz: “Puxa vida, você tem muitos livros, e
acumula muito papel”, eu respondo baixinho: “Isto é apenas a ponta de um
iceberg que derreteu”.
Todo maníaco é um obstinado, dizem os tratados médicos. Meu pai não desistiu
e durante a década de 1970 iniciou um novo projeto faraônico: o Dicionário do
Que, um dicionário inverso que ele datilografou em stêncils e rodou no
mimeógrafo-a-tinta que mantinha no quarto dos fundos da casa do Alto Branco.
Cabe aqui, para os leigos (as pessoas normais) uma explicação sobre os
dicionários inversos. Quando a gente vai resolver uma “palavras-cruzadas”, a
gente se depara com uma definição que nos encaminha para a resposta. “Pedra
de sacrifício”, é o que nos pedem: e a gente cedo ou tarde descobre que é “ara”.
Minha iniciação à obra de Sigmund Freud veio ao descobrir que “o substrato
instintivo da psique” é “id”.
Ora, muitas dessas pistas se iniciam pela palavra “Que”, esse coringa verbal que
é para nosso idioma um problema e uma solução. “Que tem duas pernas” = não
demoramos muito a entender que a palavra é bípede. Entretanto, os dicionários
comuns são organizados em função da palavras, e não de suas definições. Sem
saber a palavra, jamais encontraremos a definição-pista.
Vai daí que os cruzadistas dedicam-se a compilar “dicionários inversos”,
organizados a partir das definições, e indicando no fim a palavra correspondente.
Meu pai se dedicou a organizar todas as definições começadas com “Que...”, um
projeto babélico, borgiano. Bem ou mal, ele produziu alguns volumes
mimeografados, que distribuiu entre seus confrades da TERNOR (Tertúlia
Nordestina), um grupo de aposentados bonachões que se dedicava ao mesmo
passatempo.
Corta para a década de 1990, eu já morando no Rio de Janeiro, trabalhando
como redator da TV Globo. Discutíamos pautas para os programas, e alguém
sugeriu uma matéria sobre clubes de decifradores de charadas e palavras
cruzadas: “é um pessoal excêntrico, mas simpático”. Eu me ofereci para
pesquisar, e certa tarde bati à porta de um desses clubes, numa transversal da
Av. Rio Branco. Havia dois ou três senhores conversando, entre poltronas,
estantes e um balcão. Expliquei que era da TV (o que sempre produz um
alvoroço de solicitude), estava fazendo uma matéria...
Mandaram-me sentar, crivaram-me de perguntas. Tive que demonstrar o meu
conhecimento do assunto – e olhe, nunca me faço de rogado nesse
departamento. Quando falei que meu pai pertencia à TERNOR, soltaram
exclamações de familiaridade.
– Qual o pseudônimo dele? – perguntaram. (Todo charadista se assina com
pseudônimo, mesmo que sua identidade seja conhecida de todos).
Respondi:
– “Pequeno Polegar”. Ele inclusive compilou um dicionário inverso, chamado
Dicionário do Que.
Os caras arregalaram os olhos. Um deles foi à estante e não demorou a trazer o
volume com capa de papelão, que folheei e reconheci, comovido. Apertaram
minha mão, serviram-me cafezinho, responderam tudo que perguntei. A matéria
da TV acabou saindo de pauta, mas aquela tarde foi ganha. Não estou sendo
demagógico se disser que ver um livro meu na vitrine de uma livraria carioca me
dá muito prazer, mas ainda menos do que tive ao encontrar naquela salinha
modesta o resultado da mania mansa de Seu Nilo, e a vindicação das muitas
noites que passou compilando (sem ambição de glória, sem cobiça de fortuna)
o seu livro de areia.
4996) Os segmentos de estória de Roberto Bolaño (27.10.2023)
Passou pelas minhas mãos o livro póstumo de Roberto Bolaño El Gaucho
Insufrible, uma coletânea de contos e ensaios curtos, já com tradução e edição
brasileira à vista. (Li na edição omnibus da Anagrama, Barcelona, 2010, onde o
livro vem em conjunto com Llamadas telefónicas e Putas asesinas).
Bolaño tem uma prosa líquida, fluente, aparentemente espontânea, um estilo de
escrever que muitas vezes parece sair pronto do teclado, sem maior esforço que
o de digitar. Não que lhe seja estranha a prosa mais elaborada, mais tensa, cheia
de imagens imprevistas, de reviravoltas inesperadas no modo de pensar e de
expor. Na maioria dos casos, no entanto, ele dá a impressão de que escrevia e
mandava direto para a gráfica. O que é sempre ilusório. Parecer espontâneo dá
muito trabalho.
Outro traço típico dele é o modo como ele parece evitar de propósito os finais
espetaculares, dramáticos, catárticos. Apesar de se dizer um fã de Edgar Allan
Poe, neste aspecto ele vai na contramão do mestre. Seus contos estão mais
para o efeito de Tchecov: a descrição de uma série de eventos que, ao invés de
conduzir a um evento final retumbante, vai se diluindo em eventos menores e
menos expressivos, como uma fumaça que se dissipa no ar.
Em El Gaucho Insufrible temos contos nos dois modelos. E temos um exemplo
de conto fantástico ou alegórico, não típico do autor, que é “El policía de las
ratas”, uma fábula zoológica que ele deriva explicitamente de “Josefina, a
cantora, ou o povo dos ratos”, de Franz Kafka. O rato narrador é um policial a
quem cabe investigar uma série de crimes misteriosos que estão ocorrendo nos
esgotos onde a rataria vive.
Bolaño era um leitor atento e inteligente de poesia, de prosa, de ficção científica
e romance policial. O livro se conclui com dois textos que na verdade são
agregados de fragmentos curtos de apreciação literária: “Literatura +
enfermedad = enfermedad” e “Los mitos de Cthulhu”.
Este aqui não tem
nenhuma menção a Lovecraft. O título é apenas uma isca, um clickbait, para que
o leitor-de-gênero o leia antes de todos os demais.
Os dois melhores contos são duas histórias longas com enredo bem ao gosto de
Bolaño: um protagonista que vai entrando aos poucos num trajeto de
acontecimentos onde cada evento novo conduz a uma situação que o precipita
noutro evento imprevisível, e assim por diante. O protagonista parece não saber
muito bem o que pretende, e quando o sabe parece não estar ansioso para
alcançar seu objetivo. Deixa-se levar meio passivamente, como um daqueles
personagens para-existencialistas dos romances policiais noir. “Deixa a vida me
levar, vida leva eu.”
O primeiro conto é o que dá o nome ao livro. “El gaucho insufrible” transcorre na
Argentina e conta as peripécias da vida de Héctor Pereda, advogado bem
sucedido, viúvo, com um casal de filhos adultos. As crises políticas e econômicas
do país o levam a abominar a cidade tumultuada e refugiar-se no campo, numa
propriedade remota a que nunca dera muita atenção. Ali, como tantos
urbanóides, ele tenta se adaptar a uma vida mais pura, mais simples, no meio
de vaqueiros e camponeses rudes, que o tratam com respeito mas veem com
estranheza seus rompantes gastadores, seu paternalismo jovial.
A vida de Pereda vai se tornando uma sucessão de empreitadas bem ou mal
sucedidas, enquanto ele se recusa a tornar a Buenos Aires. Os filhos, e alguns
amigos, empreendem a longa viagem até sua estância para tentar trazê-lo de
volta ao mundo civilizado. Ele tenta restaurar casarões, caça coelhos (uma
verdadeira praga do lugar), espanta-se com a vastidão aterradora do pampa.
A mulher e as crianças puseram-se a caminhar por uma rodovia e embora se
afastassem e suas figuras fossem se tornando diminutas passaram-se mais de
três quartos de hora, calculou o advogado, até que desaparecessem no
horizonte. É redonda a Terra?, pensou Pereda. É claro que é redonda,
respondeu a si mesmo.
(trad. BT)
No final, depois de anos de pesadelo campesino, ele volta a uma Buenos Aires
que não reconhece mais, caminha a esmo pelas ruas, pára diante das vidraças
de um café de escritores que frequentara no passado, e sente-se ali como uma
espécie de extraterrestre, ou, como diria Fernando Pessoa, “um estrangeiro aqui
como em toda parte”.
O outro conto tem um perfil de quest, de demanda, e também de investigação,
lembrando os obsessivos “detetives selvagens” do romance do mesmo título, à
caça de uma pessoa que parece nunca ter existido. “El viaje de Álvaro Rousselot”
parte de um início enigmático. Rousselot, escritor argentino, publica um romance
intitulado Soledad que acaba sendo traduzido ao francês. Pouco depois, aparece
na França um filme, Las voces perdidas, dirigido por Guy Morini, que parece um
plágio descarado do romance.
Rousselot se inquieta, mas deixa passar. Publica um romance policial, torna-se
medianamente famoso, e em seguida um romance humorístico, Vida de recién
casado, que é bem recebido pelo público. Logo em seguida, contudo, surge nas
telas um novo filme, de Guy Morini: Contornos del día, que é uma versão fiel mas
melhorada do livro mais recente de Rousselot.
Começa então o périplo do escritor, que reúne suas economias e, a pretexto de
comparecer a um evento literário na Europa, escapa rumo à França e entra numa
investigação (desajeitada, incompetente, cheia de surpresas agradáveis e outras
nem tanto) em busca do elusivo Guy Morini. Não se sabe bem para quê; para
tomar satisfações? Processá-lo? Beber com ele? Crivá-lo de balas? Rousselot
viaja, inquire, telefona, pega ônibus e trens, e ele mesmo não tem uma idéia do
que fará quando se deparar com seu plagiador.
Muitos contos de Bolaño têm esse enredo que nos dá a impressão de que, tal
como seu personagem, o escritor não sabe muito bem para onde está se
dirigindo e todo dia, ao sentar-se para escrever, vai tecendo episódios menores
que conduzem a episódios mais longos, que não dão em nada mas lhe permitem
dobrar uma esquina do enredo e conduzir a investigação (a invenção da estória)
num rumo imprevisto.
É uma leitura desconcertante para os leitores formatados pelos manuais de
roteiro televisivo e pela estética do romance onde tudo conduz a alguma coisa,
tudo se amarra, tudo tem função, tudo tem uma resposta mais adiante.
Bolaño, quando envereda por este tipo de narrativa, nos leva de árvore em
árvore sem muita intenção de revelar (ainda que a si mesmo) o formato da
floresta. Seus contos se parecem ao que os matemáticos denominam “um
segmento de reta”. Uma linha reta (conceitualmente) não tem começo e não tem
fim, de modo que é preciso atribuir-lhe (para efeito de uma demonstração
qualquer) o começo A e o final B. Os contos do chileno são pura travessia, e se
esvaem ou se interrompem bruscamente sem que suas principais perguntas
tenham obtido resposta. Como a vida. A do próprio Bolaño, por exemplo.
4997) Drummond: "Sesta" (30.10.2023)
Nos poemas de Alguma Poesia (1930), o livro de estréia de Carlos Drummond
de Andrade, este aqui faz parelha, ou faz grupo, com “Infância”, “Cidadezinha
qualquer”, “Família”, “Iniciação amorosa”... São as descrições da rotina familiar
que não muda, a rotina modorrenta, naquele cansaço de não fazer nada, em que
paisagem, família, adultos, crianças, criadas e animais parecem se nivelar num
mesmo estado de sonambulismo.
A “poesia de infância” de Drummond, em seus primeiros livros, vagueia o tempo
todo entre a saudade afetuosa de um “tempo bom” e a ironia cáustica dos
modernistas contra qualquer manifestação de sentimentalismo água-comaçúcar. Ter saudade de uma infância feliz é um sentimento singelo que deveria
estar protegido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, mas o fato é
que a nossa poesia do século 19 (de Gonçalves Dias a Casimiro de Abreu)
carregou um pouco nas tintas. Era preciso um antídoto.
O Modernismo de 1922 forneceu esse antídoto, e ele veio muitas vezes dentro
da ampola da crítica social, uma poderosa medicação-de-choque contra a
nostalgia adocicada. Drummond mostra isso repetidamente, e seus poemas
sobre “a família mineira” são misturas nem sempre sutis entre a lembrança boa
e a crítica contaminada de sarcasmo.
Não podemos esquecer que estes poemas (do livro Alguma Poesia, 1930) são
poemas de um rapaz de 28 anos, momento de ingresso na vida adulta, em que
a palavra infância não traz muito saudosismo. Ela é apenas um contratempo que
foi enfrentado e vencido, como a catapora e os dentes-de-leite. Na velhice, a
partir da série Boitempo (Boitempo, 1968; Menino Antigo, 1973; Esquecer Para
Lembrar, 1979), o poeta se descontraiu. Tratou o sentimentalismo como um
chinelo velho e confortável, e ao mesmo tempo não perdeu o gume da
observação.
“Sesta” é dedicado a Martins de Almeida (1903-1983), companheiro de geração
de Drummond, a geração de poetas de A Revista. Nascido em Leopoldina, fazia
parte do grupo de rapazes belorizontinos encantados com a literatura francesa
de sua época. Numa reminiscência de coluna de jornal (Tribuna da Imprensa,
26-10-1977, p. 9) Hermenegildo de Sá Cavalcante descreve a chegada de um
livro de Marcel Proust à Livraria Francisco Alves, do livreiro Kneipp, ponto de
encontro dos jovens e entusiasmados poetas:
No primeiro desembarque de 1920, chegara o Prêmio Goncourt do ano anterior.
(...) O bando atacou o caixote. Empunhava martelo e pé-de-cabra o risonho
Francisco Martins de Almeida. Iniciada a operação salta um pacote que vai
tombar aos pés de um moço de olho vivo e ar tímido, mas atilado leitor e hábil
tipógrafo. Era Eduardo Frieiro. Rápido, apanha-o e sobraçando o embrulho sai
correndo para o fundo da loja. Mal aberto, grita: -- É o Goncourt, pessoal! Mais
quatro moços atiraram-se em seu encalço e arrebataram os exemplares: Milton
Campos, Pedro Nava, Carlos Drummond de Andrade e Alberto Campos.
O relato completo está aqui:
https://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=154083_03&pagfis=292
22
Foi nesse clima de busca-do-tempo-perdido e de zoeira inofensiva que
Drummond foi se descobrindo poeta, e foi compilando seu livro de estréia.
“Sesta” é esse retrato afetuoso e meio debochado da “família mineira”, instituição
tão primordial quanto os elementos químicos. A expressão “família mineira” é
usada quatro vezes, com insistência proposital. Está aqui a fala coloquial que o
Modernismo impôs à sensibilidade greco-romana dos parnasianos e simbolistas:
“quentando”, “pereba”, “corta ele, pai”. Aqui está o mundinho provinciano,
fechado em si mesmo: “Os olhos se perdem / na linha ondulada / do horizonte
próximo / (a cerca da horta). / A família mineira / olha para dentro.”
Existia nesses jovens a necessidade de ruptura com o Passado, peso que
continuava asfixiando o presente.
Sesta
A Martins de Almeida
A família mineira
está quentando sol
sentada no chão
calada e feliz.
O filho mais moço
olha para o céu,
para o sol não,
para o cacho de bananas.
Corta ele, pai.
O pai corta o cacho
e distribui pra todos.
A família mineira
está comendo banana.
A filha mais velha
coça uma pereba
bem acima do joelho.
A saia não esconde
a coxa morena
sólida construída,
mas ninguém repara.
Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo
(a cerca da horta).
A família mineira
olha para dentro.
O filho mais velho
canta uma cantiga
nem trite nem alegre,
uma cantiga apenas
mole que adormece.
Só um mosquito rápido
mostra inquietação.
O filho mais moço
ergue o braço rude
enxota o importuno.
A família mineira
está dormindo ao sol.
Numa das reminiscências do livro Confissões de Minas (1944), “Recordação de
Alberto Campos” (com a anotação de ter sido escrita em 1933), Drummond
lembra desses amigos de juventude e comenta:
Um recuo de dez anos projeta no presente esse grupo que em 1923 procurava
o caminho, e no qual a presença dele [Alberto Campos] operava como um
elemento de crítica vivaz e mordente. (...) Mas não éramos felizes. Fomos as
primeiras vítimas da nossa própria ironia, e, impiedosos com o próximo, não nos
perdoávamos a nós mesmos nenhuma fragilidade. O nosso compromisso, que
era o de não assumirmos nenhum, impunha-nos disciplinas severas. A
voluptuosa disponibilidade deixava de ser uma condição edênica para constituir
fonte contínua de angústias.
Era uma geração sofrida, reflete Drummond, que não teve “o respeito aos
mestres nem a ilusão dos discípulos”.
4998) A última canção dos Beatles (3.11.2023)
Este título está um pouco melodramático, mas é apenas para servir de clickbait
(=isca de cliques) e para marejar os olhos dos mais suscetíveis. Sendo o
Mercado o que é, e sendo os Beatles o que foram, não duvido que daqui a cinco
ou dez anos apareça alguma nova tecnologia capaz de fazê-los não apenas
cantar juntos de novo, mas quem sabe até compor juntos.
Nunca duvidem dessa junção: Mercado & Tecnologia. É uma dupla mais
inventiva do que Lennon & McCartney.
Nada mais adequado do que a última canção que reúne os quatro Beatles (dois
deles já mortos) seja uma reconstrução eletrônica de uma gravação caseira.
“Now And Then” foi uma fita demo gravada por Lennon em seu apartamento no
edifício Dakota. Não pôde ser aproveitada para o projeto Anthology, de 1995, por
problemas técnicos. Na época, era impossível eliminar os ruídos e fazer a
separação entre voz e piano. Problemas que só puderam ser resolvidos agora.
Dizem que McCartney deu uma mexida na canção, eliminou trechos, cortou e
emendou pontas. Está certo. Era assim que os dois compunham. Ninguém
compõe versões definitivas das canções; chega-se a elas por aproximações
sucessivas.
Esta música, lançada curiosamente no Dia de Finados (2 de novembro de 2023),
vem se juntar a dois projetos excepcionais e recentes. O primeiro é o
documentário Get Back, em três partes, dirigido por Peter Jackson a partir das
gravações do álbum Let It Be. O segundo é a série McCartney 3, 2, 1, em que
Paul e o produtor Rick Rubin conversam sobre a música criada pelo grupo.
Antes de ouvir a música, vale a pena ver o curta de 12 minutos onde se narra a
sua produção:
https://www.youtube.com/watch?v=APJAQoSCwuA&ab_channel=TheBeatlesV
EVO
“Now And Then” não se parece muito com o Lennon da época dos Beatles. É
tipicamente o Lennon do Edifício Dakota em seus momentos mais introspectivos
e melódicos. Lembra certas faixas de Walls & Bridges (“Bless You”) ou Imagine
(“Jealous Guy”). Canções lentas, puxadas pela melodia do piano, distantes do
Lennon roqueiro de guitarra em punho.
Numa entrevista, perguntaram a Lennon qual era seu principal talento como
músico. Ele disse: “Sou bom na guitarra-base. Sei fazer uma banda pulsar.”
“Yesterday” foi uma virada-de-esquina na obra dos Beatles, porque permitiu a
Paul McCartney desdobrar-se em “homem dos sete instrumentos”, indo para
além do esquema guitarra-baixo-bateria e passando a utilizar todos os recursos
que herdou de seu pai, Jim McCartney, ex-líder da “Jim Mac’s Jazz Band”. Sem
essa virada, não haveria canções como “She’s Leaving Home”, “Honey Pie”,
“Martha My Dear”...
Uma coisa que perdemos de vista às vezes é que grande parte dos grandes
compositores de rock se viravam muito bem ao piano. As composições de
Lennon pós-Beatles denotam essa convivência com o instrumento. “Now And
Then” pertence a essa vertente lírica, melódica, intimista, sem a preocupação de
“fazer uma banda pulsar”. Uma espécie de “lado B” do Lennon eletrificado e
explosivo de “Whatever Gets You Through The Night”, “Instant Karma”, “Cold
Turkey” e por aí vai.
Um aspecto interessante desta “nova-velha” canção é sua letra – em princípio
uma letra de amor, sem novidades poéticas. Mas dadas as circunstâncias
excepcionais em que a canção foi recomposta e lançada ao público, é possível
fazer uma leitura metalinguística de seus versos iniciais.
A letra em inglês diz:
I know it's true, it's all because of you
And if I make it through, it's all because of you
And now and then, if we must start again
Well, we will know for sure that I love you
Basta deslocar esse “you” que dramaturgicamente se dirige à mulher amada, e
imaginar que essa voz é a voz de Lennon, dirigindo-se aos seus três parceiros.
Eu sei que é verdade, é só por causa de vocês.
E se eu conseguir, é só por causa de vocês.
E, tanto agora quanto naquela época,
se formos recomeçar,
bem, saberemos com certeza que eu amo vocês.
“Now and then” é uma expressão coloquial que significa “de vez em quando”,
“vez por outra”, etc., mas também “agora e naquele tempo” – ou seja, no
momento atual (apenas dois sobreviventes, com mais de 80 anos) e naquele
tempo em que eram jovens e Beatles. Um tempo que o próprio George Harrison
celebrou na canção “All Those Years Ago” (1981).
“All Those Years Ago”:
https://www.youtube.com/watch?v=eNL40ql4CYk&ab_channel=GeorgeHarrison
Estes versos podem ser lidos como se Lennon estivesse falando, através do
Universo, e agradecendo aos amigos que conseguiram trazê-lo de novo para
cantarem e tocarem juntos.
Trazer de volta (artificialmente) pessoas já falecidas é um tema antigo da ficção
científica, e estamos caminhando para lá.
4999) "O Conde": o vampiro Pinochet (6.11.2023)
O filme de vampiros mais original e mais bem realizado dos últimos anos não
veio dos estúdios ingleses da Hammer Films nem de Hollywood. Veio do Chile,
e faz uma inesperada (mas plausível) junção do general Augusto Pinochet com
a estirpe imortal dos Nosferatus.
O filme está disponível em streaming no Netflix.
O diretor Pablo Larraín gosta de abordar a vida de personagens históricos e darlhes uma guinada interpretativa, como fez com Jacqueline Kennedy-Onassis em
Jackie (2016), com a Princesa Diana em Spencer (2021), com o poeta Pablo
Neruda em Neruda (2016) e possivelmente em outros. Essa maneira
desabusada de tratar a História é elevada ao cubo em El Conde, onde Pinochet
é transformado numa espécie de Conde Drácula.
No filme, Pinochet é francês e já é vampiro desde a época da Revolução
Francesa. Depois da queda dos reis (ele lambe a guilhotina que decapitou Maria
Antonieta) dedicou-se a reprimir revoluções pelo mundo inteiro até chegar ao
Chile.
“Mas o general Pinochet não morreu em 2006, aos 91 anos?...” Aparentemente
sim: o diretor mostra este episódio (incluindo a cusparada que um oficial deu no
vidro do caixão durante o velório). Por baixo do pano, contudo, o velho vampiro
recolheu-se clandestinamente a sua fazenda numa ilha distante. Ali, dispõe de
enormes frigoríficos com corações humanos trazidos de suas expedições
noturnas.
O Conde Pinochet bate um coração no liquidificador com a nonchalance com
que um baiano bate um abacate.
O filme de Pablo Larraín parte dessa premissa bizarra (mas emocionalmente tão
plausível!) e constrói um filme que não hesito em classificar na minha rubrica de
“Filme B Para Intelectuais”. Por que? Um filme “B”, por definição, é um filme que
não tem as grandes expectativas de retorno financeiro que estrangulam filmes
“A” como Titanic ou Avatar. É um filme que tem como horizonte de sucesso pagar
as próprias despesas e provocar um certo rebuliço na audiência.
O rebuliço é previsível no Chile, onde o General ainda tem muitos admiradores
(e beneficiários). O Conde é mostrado como um vampiro, e sua família não fica
muito atrás. A viúva e os cinco filhos adultos não são vampiros – o general
recusou-se a mordê-los e dar-lhes assim a imortalidade. Por outro lado, têm uma
sede permanente de dinheiro. A história dá uma guinada quando a família
contrata uma contadora para dar um balanço nas centenas de contas bancárias
secretas que o general tem pelo mundo afora. É o dinheiro acumulado em 15
anos de assassinatos políticos e rapina.
(os filhos do vampiro)
Larraín pontua o filme com uma porção de referências explícitas, mas bem
encaixadas, que vão desde Nosferatu de Murnau até A Paixão de Joana D’Arc
de Carl Dreyer, desde o Batman do cinema e dos quadrinhos até os romances
sobre ditadores latino-americanos delirantes, e aqui a enumeração de autores
iria longe: Garcia Márquez, Alejo Carpentier, Miguel Ángel Astúrias, Augusto Roa
Bastos e até mesmo Edward Lucas White (El Supremo, 1916).
É curioso como os tropos e as imagens do filme de vampiro se encaixam com
perfeição neste último gênero narrativo, e é surpreendente que essa junção não
tenha sido mais explorada no passado. Eu, pelo menos, não lembro de nenhum
exemplo de histórias sobre ditadores-vampiros. O máximo que me vem à
memória é o romance de Kim Newman Anno Dracula (1992), em que a Rainha
Vitória é uma vampira, mas, como dizia um amigo meu, todo britânico tem genes
vampirescos.
Em todo caso, se alguém organizar um festival de filmes sobre ditadores
monstruosos, delirantes, este filme de Larraín não faria feio ao lado de Cabeças
Cortadas (1970) de Glauber Rocha, O Último Rei da Escócia (2006) de Kevin
MacDonald e talvez O Recurso do Método (1978) de Miguel Littín, Cobra Verde
(1987) de Werner Herzog e outros.
Se o Poder corrompe, e o Poder absoluto corrompe absolutamente, não é de
admirar que um ditador-sanguinário qualquer seja retratado, principalmente na
literatura,
como
uma
espécie
de
Gollum
desvairado,
alucinado,
em
decomposição física e psíquica, precisando desesperadamente do Poder
Absoluto para continuar respirando.
Outra associação de idéias pode ser feita entre El Conde e um filme argentino
contemporâneo, Azor (2021) de Andreas Fontana. Nele, um jovem banqueiro
suíço vem à Argentina pós-golpe militar para substituir um colega, e aos poucos
vai conhecendo os figurões políticos locais, e se misturando na trama de
denúncias, traições e crimes políticos. Aqui, sem recurso ao vampirismo, mostrase o mecanismo simples que faz de toda ditadura um assalto permanente à mão
armada, onde pessoas são mortas, propriedades são confiscadas e repartidas
entre os assassinos, e fica tudo por isto mesmo.
Outra produção contemporânea, que ainda pretendo comentar aqui, é a série
Netflix A Queda da Casa de Usher (2023), de Mike Flanagan. Há um paralelo
perceptível (mas inconsciente, e inevitável) entre a família Pinochet do filme e a
família Usher da série. Famílias milionárias, regidas por um patriarca impiedoso
e com mão de ferro, e com os filhos se escoiceando por preferência, atenção,
vantagens e dinheiro.
Larraín faz o que chamei de “filme B” (sem muita grana, e sem muita expectativa
de grana) mas com as facilidades tecnológicas de hoje em dia. Não é o mesmo
“filme B” que Roger Corman fazia nos anos 1960. Ele narra esta fábula
extravagante (e estranhamente plausível) com o auxílio de uma direção de arte
(Tatiana Maulen) e uma fotografia (Edward Lachman) que nem sempre se
encontra em filmes muito mais caros e muito mais ambiciosamente produzidos.
Tendo como ponto central um vampiro que voa, e as paisagens desoladas e frias
das ilhas chilenas, a fotografia em tela larga (proporção de 2.00 : 1) e preto-ebranco, produz uma incrível impressão da vastidão dos espaços abertos.
O roteiro do filme é bem amarrado, e tem algumas surpresas-revelatórias que
não posso comentar aqui, a não ser para dizer que tudo é extremamente
verossímil. A herança tenebrosa da ditadura Pinochet ainda tem peso sobre o
Chile; é diferente do que aconteceu na Argentina, onde os torturadores e
saqueadores foram condenados nos tribunais, independentemente de seus
uniformes ou de seus cargos políticos. No Chile, Pinochet escapou impune, e
talvez seja isto que sugeriu ao diretor a imagem do vampiro que não morre
nunca, que parece estar dormindo num ataúde mas de noite se levanta para
saquear mais uma vez.
5000) Borges: biblioteca, livro, palavra, letra (9.11.2023)
A obra de Jorge Luís Borges existe numa zona crepuscular entre a literatura e a
vida real. Não é exagero dizer que o próprio Borges existia numa área mais pra
lá do que pra cá, mais feita de estórias do que de matéria. Tímido, cego,
introvertido, insone, dono de uma memória extraordinária, seu mundo mental era
decerto mais vívido e mais estimulante do que a realidade física de seu corpo.
Talvez por isto suas imagens poéticas relativas ao corpo sejam tão tocantes. São
vislumbres de alguém tentando não perder o contato com uma parte minúscula,
mas essencial, de si mesmo: a sua parte feita de carne e osso.
Borges foi um dos raros leitores de Kafka capazes de compreendê-lo por
completo. Nós outros vemos a obra do escritor tcheco como vemos as catedrais
de Gaudí ou os poemas em prosa de Lautréamont: admiramos o resultado, mas
não somos capazes de reconstituir os processos mentais que o produziram.
("Biblioteca de Babel", projeto de Maria Cano)
A biblioteca
Borges demonstrou ter compreendido Kafka quando concebeu seu mais célebre
conto de horror, “A Biblioteca de Babel”. É claro que a crítica literária não
classifica este conto como pertencente a esse gênero. Resenhadores do mundo
inteiro concordam que a literatura de horror é apenas o domínio preferencial dos
vampiros, dos lobisomens, dos mortos-vivos e dos psicopatas que comem carne
humana.
“A Biblioteca de Babel” é o pesadelo definitivo de quem lê. Um pesadelo capaz
de expulsar dos seus domínios, inclusive, o Conde Drácula e o canibal Hannibal
Lecter. Um universo fechado, ilimitado, talvez infinito, onde não existem a terra,
os rios, as árvores, as montanhas, o céu, os pássaros. Um universo insetóide,
hexágonos compactos cobertos por estantes de livros.
Em Babel, no interior do Mundo do Livro, só existe o livro, a página, o texto. É o
mundo de um homem capaz de prever a cegueira que lhe estava geneticamente
destinada. Borges publicou “A Biblioteca de Babel” em 1941, quando ainda
enxergava o suficiente para ler e escrever. Na famosa conferência “A Cegueira”
(em Sete Noites, Ed. Max Limonad, 1983, trad. João Silvério Trevisan) ele fixa
em 1955 o momento em que soube, oficialmente, que estava cego.
Uma cegueira cruel, que não lhe proporcionou sequer o repouso da escuridão,
por mais que fechasse ou cobrisse os olhos.
Vivo em um mundo onde há livros que não têm letras, ou pessoas que não têm
rostos, ou cores que estão reduzidas a uma espécie de verde acinzentado, um
mundo do qual desapareceram completamente o preto e o vermelho. Vejo o
amarelo, e todo o restante vejo esverdeado, acinzentado, azulado.
(Dicionário de Borges, Bertrand Brasil, 1990, trad. Vera Mourão)
A biblioteca-universo era uma metáfora do mundo pós-cegueira, que ele antevia
assim, ocupado apenas por livros quase ilegíveis. Uma biblioteca iluminada por
uma luz que ele descreve cruelmente como “uma luz insuficiente, incessante”.
Esse conto tornou-se um dos mais famosos de Borges, a ponto de muitos leitores
verem nele uma espécie de Paraíso, porque o argentino dizia conceber o Paraíso
como uma biblioteca; esquecem que essa biblioteca absurda, coberta com
“léguas e léguas de cacofonias insensatas” é o contrário de uma biblioteca
desejável. O conto não é uma fantasia desejante, é um pesadelo de horror.
O livro
Depois que “A Biblioteca de Babel” adquiriu fama, uma amiga de Borges, Letizia
Álvarez de Toledo, lhe sugeriu que era desnecessário conceber uma biblioteca
ilimitada para representar o Universo. A imagem poderia ser de um livro ilimitado,
um livro com infinitas páginas de espessura infinitesimal. Surgiu daí a inspiração
para o conto “O Livro de Areia”, publicado em 1975 no livro do mesmo nome.
O conto é narrado pelo vagamente auto-ficcional personagem de tantas outras
histórias de Borges, personagem que às vezes ostenta seu nome e outras vezes
detalhes biográficos negligentemente inseridos na narração. Um homem
desconhecido bate à sua porta e lhe oferece um livro, e ao manuseá-lo ele
percebe ser um livro infinito, inesgotável.
Abri-o ao acaso. Os caracteres eram-me estranhos. As páginas, que me
pareceram gastas e de pobre tipografia, estavam impressas em duas colunas,
como uma bíblia. O texto era apertado e estava ordenado em versículos. No
ângulo superior das páginas havia algarismos arábicos. Chamou-me a atenção
que a página par trouxesse o número (digamos) 40.514 e a ímpar, a seguinte,
999. Virei-a; o dorso estava numerado com oito algarismos.
(O Livro de Areia, Ed. Globo, 1999, em Obras Completas III, trad. Lígia Morrone
Averbuck, p. 80)
Uma vez fechado o livro, é praticamente impossível reencontrar uma página
qualquer. O vendedor explica a “Borges”:
“O número de páginas deste livro é exatamente infinito. Nenhuma é a primeira;
nenhuma, a última. Não sei por que estão numeradas desse modo arbitrário.
Talvez para dar a entender que os termos de uma série infinita admitem qualquer
número.” (p. 81)
A biblioteca total foi comprimida num volume único de um “inusitado peso”. O
narrador mergulha nele, faz anotações intermináveis, deixa-se mesmerizar pelo
seu caráter inesgotável. Passa a achá-lo “monstruoso”, sente que aquilo não
passa de “um objeto de pesadelo, uma coisa obscena que infamava e corrompia
a realidade”.
Pensei no fogo, mas temi que a combustão de um livro infinito fosse também
infinita e sufocasse com fumaça o planeta. (p. 82)
A palavra
Esse pesadelo ilegível assaltou Borges em plena cegueira, aos 75 anos, mas de
certa forma vem contrabalançado por outro conto no mesmo Livro de Areia. É o
conto intitulado “Undr”, a história de um bardo que vai parar num reinado remoto,
o dos Urnos, e ali vê um dos rapsodos locais cantar diante do rei um poema
longo que lhe parece constar de uma única palavra. Outro poeta local esclarece:
– (...) Não definimos cada fato que inflama nosso canto: nós o ciframos em uma
única palavra que é a Palavra.
Respondi:
– Não pude ouvi-la. Peço-te que me digas qual é.
Vacilou alguns instantes e respondeu:
– Jurei não revelá-la. Além disso, ninguém pode ensinar nada. Deves procurá-la
sozinho. Apressemo-nos, que tua vida corre perigo. (p. 56-57)
Começa então, para o Bardo que narra essa história, uma vida nova cheia de
ofícios, tarefas, aventuras, trabalhos, experiências, aprendizados. Num longo
parágrafo, Borges recorre a um de seus recursos habituais, a enumeração de
eventos díspares que se contradizem, se complementam, abrem possibilidades
narrativas improváveis... Em menos de uma página ele resume acontecimentos
capazes de encher mais de uma vida humana, como nas linhas iniciais de “A
Loteria em Babilônia” e em trechos de “O Imortal”.
E ao longo desse lento aprendizado de cicatrizes, ele persegue a Palavra:
No curso do tempo fui muitos, mas esse torvelinho foi um longo sonho. O
essencial era a Palavra. Uma ou outra vez não acreditei nela. Repeti para mim
que renunciar ao belo jogo de combinar palavras belas era insensato e que não
há por que indagar sobre uma só, talvez ilusória. Um missionário me propôs a
palavra Deus, que recusei. (p. 57)
Um dia ele julga ter encontrado a Palavra, e retorna ao palácio do rei, e ao amigo
que o protegera anos atrás. Pergunta pelo rei, e o amigo responde (com a fina
ironia borgiana em relação ao Poder político): “Já não se chama Gunnlaug.
Agora seu nome é outro”.
E o amigo lhe revela então a Palavra:
Disse a palavra Undr, que quer dizer maravilha.
Na ficção de Borges (não me meto a afirmar que nas etimologias reais) “Undr” é
um remoto ancestral nórdico da palavra inglesa Wonder, que quer dizer
“maravilha”. A capacidade de alguém se deslumbrar, se fascinar, se encantar
por alguma coisa. A curiosidade que conduz às revelações, às epifanias. Há mais
de cem anos os leitores de ficção científicas definem como parte integral desse
gênero literário o “sense of wonder” (que os fãs dos anos 1930 grafavam
“sensawunda”).
“Wonder”, como verbo, significa também imaginar, matutar, devanear, avaliar
possibilidades de modo meio aleatório e sem compromisso, apenas
experimentando, concebendo hipóteses como quem, ao cigarro, forma anéis de
fumaça com a boca. “To wonder” é especular, supor, pensar experimentalmente
enquanto dá de ombros para o resultado.
Extrapolando,
vejo
também
nessa
raiz
remota
Undr
uma
tataravó
encarquilhadazinha do verbo inglês “to wander” = vagar, andar sem destino,
peregrinar, vagabundear, sair de mundo afora, caminhar sem pressa e sem
compromisso. A curiosidade pelo mundo e pelas maravilhas (boas e más) que
ele nos reserva.
Com o conto “Undr”, publicado aos 75 anos, Borges parece estar exorcizando
seu pesadelo da biblioteca de Babel e do livro de areia. Quando toda a poesia
do mundo se concentra numa só palavra, essa palavra é uma libertação. Ao
invés de um cárcere de palavras, é uma alforria de experiências que trazem
consigo a exaltação de viver. O duelo de espadas e o amor de uma mulher, não
surpreendentemente, estão entre as “maravilhas” que o tímido Borges, o pudico
Borges, ansiava encontrar no mundo que não via.
A letra
E o percurso se fecha, curiosamente, com uma volta ao ponto de partida, ao
Borges ainda jovem que publicou El Aleph, em 1948. Um Borges que ainda era
capaz de se apaixonar e de dedicar um conto a uma de suas musas platônicas:
no fim do texto, vem a dedicatória: “A Estela Canto”.
O Universo, que já fora uma biblioteca, um livro e uma palavra, colapsa agora
integralmente numa única letra, o aleph, o alfa, o A, o início de tudo. O que é o
Aleph? É um ponto situado (prodigiosamente) na casa de “Beatriz Viterbo”, a
musa ficcional desse Borges que conta a história com incredulidade e maravilha.
Após a morte dessa “socialite” que ele amou de perto e sem esperança, ele vem
a saber que na Rua Garay, numa escada que conduz ao porão, é possível
encontrar um Aleph, um ponto de onde se avista todo o universo.
Meio descrente o narrador desce até lá – e nessa letra que sintetiza o universo
ele avista (e lá nos traz Borges outra de suas enumerações caóticas) tudo que
existe no mundo. Tudo que ele sabe e que não sabia, tudo que ele desejava ver
e o que não desejava.
Vi o populoso mar, vi a aurora e a tarde, vi as multidões da América, vi uma
prateada teia de aranha no centro de uma negra pirâmide, vi um roto labirinto
(era Londres), vi intermináveis olhos próximos perscrutando em mim como num
espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi num pátio da
Rua Soler os mesmos ladrilhos que, há trinta anos, vi no saguão de uma casa
de Frey Bentos, vi cachos de uva, neve, tabaco, listras de metal, vapor de água,
vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia...
(“O Aleph”, em O Aleph, Ed. Globo, 1972, trad Flávio José Cardozo)
A obra e o pensamento de Borges parecem, assim, oscilar entre um universo
composto unicamente por livros e páginas (“A Biblioteca de Babel”, “O Livro de
Areia”) – e um universo composto por experiências reais (“Undr”, “O Aleph”).
Afastando-se de um, o mundo das coisas, ele se resignava ao outro, o mundo
dos livros; e depois voltava ao primeiro.
Em todo caso, Carlos Drummond dizia que “a vida, quando vai aos livros, é para
voltar mais vida”. Toda a literatura de Borges descreve esse movimento em
espiral que ora o aproxima ora o afasta desse mundo do qual ele não conseguia
participar por completo, mas que sempre foi o centro de sua existência – o
mundo das coisas, o que sempre desejou, não o dos livros, o que lhe coube.
5001) Os retratos fantasmas do Recife (12.11.2023)
Retratos Fantasmas (2023) pode surpreender o espectador que assistiu Bacurau
e espera do diretor Kléber Mendonça outro filme tipo guerrilha-underground
misturado com distopia-terceiromundista. Tem todo direito de esperar – eu
também esperava, de certo modo, porque gostei do perfil daquele thriller B de
futuro próximo. E gostaria de ver outra especulação dele sobre as rebordosas
localizadas da violência global.
Mas Retratos Fantasmas, meio documentário, meio autoficção, meio álbum de
lembranças afetivas, deixa mais nítido outro veio na obra do diretor. Uma obra
rica, atual, que fala sobre o processo quase fatalista, quase mecanicista, que faz
as cidades crescerem, passando por cima do que estiver na frente.
É um filme de amor ao cinema, de amor aos cinemas de rua, mas acima de tudo
de amor à Cidade. Que no caso de Kléber é o Recife, inesquecivelmente
fotografado, e emocionante para quem, como eu, conheceu na infância o São
Luiz, o Trianon, o Art-Palácio, o Moderno. E que, já cineclubista e crítico, conheci
o Veneza.
(Senti falta do meu querido Cinema de Arte Coliseu, em Casa Amarela, mas não
se pode ter tudo, e o foco do filme é a área central do Recife. Vida que segue.)
Cinema e Cidade se misturam na memória da gente. Quantas vezes saíamos de
Campina Grande de ônibus, à tarde, e quatro horas depois desembarcávamos
na rodoviária velha do Recife, e assistíamos todas as sessões possíveis do
mesmo filme (acertou quem disse Alphaville, quem disse Blow Up, quem disse
Cléo das 5 às 7).
Dormíamos numa pensão qualquer, voltávamos para Campina na manhã
seguinte, e à noite, nas escadarias do Colégio Estadual da Prata, “tinha
resenha”.
O Cinema era uma cidade desconhecida ao alcance da nossa carteira, da nossa
mesada ou salário-mínimo. Uma cidade que (não importa o nome que tivesse,
Paris, Rio, Roma, Moscou) tornava-se apenas a cidade costurada pela agulha
daquela câmera que a percorria. A cidade construída pelo filme só tinha
existência nesse labirinto, que levava uma hora e meia para ser percorrido até o
fim.
Estas divagações me ajudam a focar a atenção no veio “cidade canibal” que
atravessa praticamente todos os filmes de Kléber Mendonça. A cidade que
cresce sem parar, a cidade que engole a si mesma, alimenta-se destruindo as
melhores partes de si mesma, e com isso produz novas partes – que os
desavisados jovens do futuro considerarão “as melhores” – tal como aconteceu
conosco.
Em O Som Ao Redor (2012), é o processo que faz a riqueza rural conquistada a
poder de porrada adquirir latifúndios urbanos à beira-mar (Boa Viagem, no caso),
e depois vendê-los à Cidade, deixar-se comer pelas beiras. E se submeter às
vendettas da barbárie rural, porque, como diz o ditado, “quem bate, esquece,
quem apanha, não”.
Em Aquarius (2016), a Cidade está se expandindo em plena euforia corporativa.
O cafofo afetivo onde fomos criados precisa ser desocupado a poder de cheques
e tapinhas nas costas. Sonia Braga representa o exército-Brancaleone dos que
dizem (como eu): “Por que motivo um condomínio de duas torres e 40 andares
é mais necessário do que o oitão onde eu jogava bola?”.
Em Bacurau (2018), acontece uma inversão, porque aqui não se trata da Cidade
Grande, e sim do seu oposto Tao-Te-King, a Cidade Pequena. A cidade que não
luta para engolir, mas para não ser engolida. Sua violência não é predatória, é
afirmativo-defensiva. Sua maneira de crescer é continuar do tamanho atual, sem
permitir ser diminuída, vitimizada, predada, arrendada pelo Poder inescrupuloso
para servir de feliz-campo-de-caça a sadistas estrangeiros.
A Cidade é essa coisa, um aglomerado que nunca se sabe ao certo se é benigno
ou maligno (falta uma ciência para isto), mas nesse crescer vai passando por
cima de tudo. Ou, como disseram Chico Science e a Nação Zumbi, “a cidade
não pára / a cidade só cresce / o de cima sobe / e o de baixo desce.” Essas
vozes ressoam em mim porque são as vozes do Recife, a primeira metrópole
que conheci, a primeira que me preocupou.
Existem mil instâncias de Poder envolvidas: prefeituras, câmaras municipais,
corpos legislativos, planos diretores, secretarias, entidades patronais, sindicatos,
imprensa, ministério público, representantes da sociedade civil... Esta mera
enumeração já mostra que o processo é coletivo, um tanto randômico,
impulsionado por mil variáveis, influências locais ou globais. Não há uma mente
central (boa ou má) coordenando tudo. É um pouco como Formigas Carregando
Folhas.
Retratos Fantasmas vira sua câmera para mostrar um pequeno setor desse
processo. Mostra como a vida pessoal e a vida social se contaminam através do
Cinema e através do Crescimento Urbano.
É fascinante a Parte I do filme onde Kleber faz um resumo da sua história familiar
e mostra o apartamento de sua família, onde inúmeras cenas de seus filmes
foram concebidas ou rodadas. Vou ter que ver de novo os filmes originais para
tentar separar uma coisa da outra. Sala, móveis, quadros nas paredes, janela,
paisagem, sons ambientes.
Em certo momento me lembrei de quando assisti La Peau Douce (1964) de
François Truffaut, e soube que havia sido rodado no próprio apartamento onde
ele morava na época. Me senti um voyeur, me senti um leitor de Caras torcendo
o nariz diante de alguma reportagem sobre casal roqueiro: “Que cafona, esse
sofá... Mas aquela gravura na parede é bonitinha.” É grande a facilidade com
que a ficção nos seduz e o documentarismo nos desencanta.
Por mais que a gente (=espectador) tente separar a vida do artista e a arte do
artista, é o próprio artista o primeiro a fracassar neste projeto. A arte não é
reflexo, cópia ou imitação da vida pessoal – é consequência, apenas. “Apenas”.
Muita gente deixaria de incluir inúmeras imagens ou sequências que Kleber
coloca neste filme, com um receio prévio de serem taxados de “narcisistas” ou
equivalente. Acho admirável o modo como ele mostra a sala que serviu de
cenário, de ambiente de reuniões, de risca-risca de roteiro e de corta-corta de
montagem. É a vida. Um filme é feito da vida daquelas pessoas que o estão
fazendo. O que passa na tela é apenas a ponta visível desse iceberg de
conversas e discussões infindáveis, telefonemas, café, cigarros, noites em claro,
bate-bocas, correrias, repetições extenuantes, azares, soluções caídas do céu,
namoros que brotam, casamentos que definham.
Quando Truffaut fez A Noite Americana (1973), filme que descreve a filmagem
de outro filme, ele conseguiu ao mesmo tempo desmistificar o cinema,
mostrando o feijão-com-arroz e o pão-com-manteiga de sua feitura, e torná-lo
ainda mais fascinante – porque para quem gosta de cinema o ato de filmar se
transforma numa obra de arte em si, tanto quanto o filme que resulta dele.
Os velhos projecionistas mostrados junto aos cinemas onde trabalharam são
figuras melancólicas porque de certo modo sobreviveram a si mesmos. O
combustível que os impelia para a frente acabou, e seus últimos anos de
existência serão uma banguela silenciosa até que possam repousar na terra do
acostamento.
Personagens fascinantes, que voltam recorrentemente em filmes como Kings of
the Road (“Im Lauf Der Zeit”, 1976) de Wim Wenders, Cinema Paradiso (1988)
de Giuseppe Tornatore, até O Homem da Cabine (2008) de Cristiano Burlan.
Todos têm alguma coisa de abandonado, de largado no meio do caminho, como
aqueles marinheiros cujo navio ficou ancorado num porto distante e eles ficaram
morando ali, tomando conta, enquanto o navio enferruja pelos anos afora.
A terceira parte do filme mostra as salas de cinema que foram transformadas em
templos de seitas evangélicas. Virou um lugar-comum dos cinéfilos comparar o
recinto sagrado da experiência cinematográfica com a exploração profana das
seitas caça-níqueis. O próprio filme, porém, mostra que são ondas alternadas. O
cine São Luiz foi construído em 1952, e para isto foi derrubada uma igreja
anglicana que havia no local, no quem-me-quer à beira do Capibaribe, desde
1838.
O que é afinal um “fantasma”? É alguém cujo corpo cessou de funcionar e entrou
em decomposição, mas cuja alma continua a ser acessada por nós, continua
visível, lembrável. Não importa se essa “alma” pertencia de fato à entidade que
faleceu, ou se é o resíduo, a lembrança, a persistência retiniana impressa em
nós: continua existindo, e estamos conversados.
A última sequência do filme mostra o próprio Kléber, à noite, pegando um Uber
no centro do Recife. Conversa com o motorista, que lhe diz estar ouvindo Herb
Alpert porque é trumpetista, e toca numa orquestra de frevo. Kleber diz que
trabalha com cinema. Nesse instante o motorista diz que tem um superpoder:
consegue ficar invisível. Materialmente presente, mas invisível. E a câmera
adota o ponto de vista do cineasta (que está no banco de trás) e mostra o volante
do carro, sem motorista, mas avançando normalmente pelo centro da cidade.
É o tipo de conversa-pra-boi-dormir que a gente tem com taxistas em geral. É o
tipo da conversa semi-fantástica que surge a qualquer instante, nos papos-emespiral de mesa de bar, que surge sem qualquer propósito, num filme B de
qualquer país, entre pessoas que se encontram na rua. O carro passa por lojas
e farmácias (estas imensas farmácias do mundo de hoje, latifúndios urbanos
fluorescentes, oferecendo milhões de veneninhos milagrosos), e lembramos a
frase (em outro momento do filme): “Filmes futuristas também são
documentários”. E vice-versa. Documentários também são filmes futuristas, e às
vezes quando estamos registrando alguma coisa que passou e sumiu, deixamos
aparecer na tela fragmentos do que estava começando a aparecer, e nem
percebemos.
É mais fácil aceitar as mudanças de uma cidade quando não nascemos nela,
quando não moramos nela. Aceitamos que ela se auto-destrua e se recomponha
às cegas, como as pessoas. Porque assim, à distância, podemos nos iludir
pensando que só quem mudou foi ela, e continuamos intactos. Daí que nos
reencontros nos venha logo à boca o clichê benevolente, “Puxa vida... Você não
mudou nada...”, o que nos ajuda a suportar o choque daquela mudança alheia
que revela o abismo embaixo dos nossos pés.
5002) Explicar o poema e a piada (15.11.2023)
Dizem que Ava Gardner, numa visita social ao poeta Robert Graves, disse a ele:
“Sabe de uma coisa, Robert, eu não entendo poesia.” E ele, cavalheirescamente:
“Minha querida, ninguém espera que você entenda um poema, espera que você
o desfrute.”
Isto bate um pouco com a afirmativa de Stanley Kubrick de que um filme,
idealmente, não deve ser compreendido, e sim desfrutado como se fosse uma
peça musical.
Quer dizer que um poema não deve ser examinado pelo nosso intelecto, pela
nossa mente racional, analítica? Deve, sim; se alguém inventar de dizer que não
deve, aí é que a mente analítica se assanha toda para produzir interpretações.
A questão é outra. Um poema não converge para uma explicação nítida e clara,
como ocorre com um problema matemático. O poema espalha significados em
várias direções, a cada leitura, e para cada leitor.
Interpretar (“explicar”) um poema é uma tarefa desnecessária mas inevitável,
porque somos uma civilização propensa a interpretar tudo. Precisamos explicar
tudo cujo sentido não é imediatamente claro – uma chuva fora de estação, um
bezerro que nasceu com duas cabeças, um carro novinho que deu o prego na
BR, o comportamento bizarro de um técnico de futebol ou de um político.
Ao ler um poema diante de uma classe com 40 adolescentes, um professor de
literatura não consegue ficar o tempo inteiro colhendo e comparando 40
impressões. Ele cede à tentação demasiado humana de matar a charada:
– Este poema fala sobre a perplexidade do Homem diante da falta de sentido de
nossa civilização.
Soa tão plausível que desse momento em diante todas as leituras do poema
tenderão a passar por esta porta, e só por ela.
Uma das maiores armadilhas em que o leitor acaba caindo é a de achar que um
poema tem uma “resposta certa”, uma “mensagem”, um “significado único” que
é preciso descobrir, como se fosse uma charada ou uma adivinhação.
Uma adivinhação é algo assim:
O que é, o que é: cai em pé e corre deitado?
Resposta: a chuva.
Quem inventou essa adivinhação tinha esta resposta em vista, e nesse caso,
sim, podemos considerar que esta é a “resposta certa”.
Outras podem admitir mais de uma resposta-certa, e com isso servem de jogo
de engana-engana.
(Trupizupe, o Raio da Silibrina, direção de Hermano José, com Gilmar
Albuquerque, Saint-Clair Avelar e Geová Amorim, 1979, Campina Grande)
Na minha peça Trupizupe, o Raio da Silibrina (1979) vários pretendentes vão à
corte do Rei responder adivinhações, para conquistar a mão da princesa, mas
ela é mal-humorada e não quer casar com ninguém.
REI: Que entre o primeiro candidato!
(ENTRA CANDIDATO 1)
PRINCESA: O que é, o que é: quanto maior menos se vê?
CANDIDATO 1: A distância!
PRINCESA: Errado! É a escuridão. Cortem-lhe a cabeça!
(CANDIDATO 1 SAI)
REI: Que entre o segundo candidato!
(ENTRA CANDIDATO 2)
PRINCESA: O que é, o que é: quanto maior menos se vê?
CANDIDATO 1: A escuridão!
PRINCESA: Errado! É a distância. Cortem-lhe a cabeça!
E por aí vai. O conceito de “resposta certa” pertence ao domínio da Matemática,
da Lógica, da Ciência (de algumas Ciências), mas não ao domínio da cultura
popular ou da poesia.
O poema é um gerador de “imagens”, “melodias” e “idéias” (fanopéia, melopéia
e logopéia, nos termos usados por Ezra Pound), e quem o escreve tem
consciência de estar apenas desencadeando um processo nas mentes alheias.
Mal comparando, o poema é como um raio de luz. As mil-e-uma impressões
sensoriais, emotivas e intelectuais que fervilham na mente do poeta são como
um espectro de várias cores, que ele consegue por fim sintetizar num raio único,
de cor branca, onde se contém tudo que estava em sua mente. Esse raio branco
é o poema. E quando o poema é lido por uma pessoa, ele volta a se refratar em
raios de várias cores, mas – isto é crucial – esses raios jamais serão idênticos
aos que havia na cabeça do poeta.
Assim como nossos olhos veem no mesmo arco-íris um arco-íris diferente do
que as pessoas ao nosso lado estão vendo (porque o ângulo de incidência dos
raios luminosos é diferente, mesmo com alguns centímetros de distância entre
os olhos de um e os olhos do outro), nossa leitura do mesmo poema é parecida
mas nunca é igual. Porque aquelas palavras despertam ressonâncias diferentes
em mim e em você.
Um poema não conduz a um único significado, previsto (e disfarçado) pelo autor.
É um gerador de múltiplos significados – todos flutuando, é claro, no interior da
“nuvem” de significados cabível nas palavras do texto. O poema não é uma casada-mãe-joana onde cada um lê o que bem entende.
Um poema é para ser sentido, desfrutado, saboreado, experimentado com
interesse, curiosidade, sem muita pressa de “entender”, de “achar a resposta”.
Nem todo poema se presta a isso. A maioria dos poemas que eu leio eu não
desfruto muito, não porque “não compreenda o significado”, mas, em geral,
porque já li centenas de poemas muito parecidos. Aquele ali, por mais
benfeitinho que esteja, é agradável, mas não me traz muita novidade. É uma lata
de Coca-Cola a mais.
Explicar um poema é um pouco como explicar uma piada. A gente conta a piada.
Algumas pessoas riem no final, outras não. Então a gente vai explicar a piada, o
que já é, por definição, a confissão de uma derrota. É como fazer uma carícia na
parceira, ouvir dela que não sentiu absolutamente nada, e depois explicar-lhe
cientificamente por que deveria ter sentido alguma coisa. “Sheldon In Love.”
A emoção do poema e a graça da anedota dependem muitas vezes de um voo
mental, dependem da nossa capacidade de, num segundo, repensar o que vinha
sendo pensado e ver tudo com novos olhos, a partir de cada informação nova
que chegou.
Fazer isto é saltar de um pico-da-montanha a outro, sem descer ao vale; mas o
que chamamos “compreender” é filho do “explicar”, que é por natureza uma
atividade pedestre. Explicar requer um avanço passo a passo, um
reconhecimento cauteloso de cada pedaço de chão, como quem cruza uma
floresta detendo-se a nomear e descrever cada árvore.
Nem o poema nem a anedota resistem a esse desfibrar de uma experiência que
se supõe instantânea. Claro que uma explicação sempre deixa algum lucro atrás
de si; mas é como explicar a água fria a alguém que nela não mergulha a mão.
Ou explicar o que é o leite a um menino cego, como na anedota antiga que li em
Seleções.
Um Homem está passeando no parque, num dia de sol, fazendo companhia a
um Menino cego de nascença. O menino se queixa do calor e diz que gostaria
de tomar um copo dágua.
Homem: Por mim, eu tomaria um copo de leite.
Menino: O que é leite?
Homem: É um líquido branco.
Menino: Líquido, eu sei o que é. Mas o que é branco?
Homem: É a cor das penas de um ganso.
Menino: Penas, eu sei o que é. Mas o que é ganso?
Homem: É uma ave do pescoço torto.
Menino: Pescoço, eu sei o que é. Mas o que é torto?
O Homem, já impaciente, pega o braço do menino, estica-o, e diz: “Assim, seu
braço está reto”. Dobra o braço do Menino, e diz: “E assim está torto”.
Menino: Ah... Entendi o que é leite.
O problema da maioria das explicações, principalmente as de poesia, é que
tendem a se afastar cada vez mais da questão inicial.
Para explicar uma frase, o explicador propõe um conceito que não está visível
no poema em si. Não está muito distante, também; mas só em ser chamado a
esclarecer alguma coisa ele já desloca o centro da discussão um pouquinho para
o lado. Um novo questionamento afasta esse centro ainda mais, e assim por
diante.
O poema vai se distanciando no retrovisor, vai sumindo, e a explicação vai
produzindo novos e mais novos conteúdos, e em torno deles a discussão
avança. Pode deixar algo positivo? Sem dúvida. Mas o poema perdeu-se lá
atrás, intacto.
E é isto que acontece com centenas, milhares de poemas que lemos desde a
infância e a adolescência, enquanto ampliamos a nossa capacidade de ler e de
sentir. E jamais chegaremos a um ponto em que sejamos capazes de “entender”
qualquer poema. Ninguém chega – embora seja capaz de explicar tudo e mais
um pouco.
5003) O método científico e o absurdo (18.11.2023)
A Ciência pode ser vista como um conjunto de procedimentos que se vigiam e
se corrigem mutuamente. Um desses procedimentos, por exemplo, é a
experimentação direta: não adianta conceber a hipótese mais fascinante; é
preciso testá-la no mundo “daqui de fora”, fora dos livros, fora das palavras, fora
das fórmulas.
Outro procedimento é o da diversidade de observadores: o resultado que eu
obtive deve ser o mesmo que é obtido por outros observadores. Uma coisa que
somente eu percebo não pode ser base científica para nada.
Outro procedimento que a Ciência emprega, e nisto se faz parceira da Filosofia,
é o emprego de conexões lógicas entre os fatos. Aqui é um terreno mais
escorregadio, porque os filósofos têm o hábito (muito saudável, aliás) de procurar
brechas e inconsistências nos argumentos dos colegas. E, por isto mesmo,
acabam produzindo argumentos mais sólidos e precisos.
A Lógica é um desses instrumentos, e serve de apoio às investigações
científicas. O silogismo é uma fórmula simples que todo mundo já viu por aí:
a.
Todos os homens são mortais.
b.
Ora, Sócrates é um homem.
c.
Portanto, Sócrates é mortal.
Quando aplicadas à vida prática, estas fórmulas precisam corresponder à
verdade observável na vida prática. É neste ponto que alguns espertos turvam
as águas e nos forçam a aceitar resultados absurdos, simplesmente porque nos
jogam no colo uma premissa falsa... e nós não a questionamos :
a.
Todos os escritores são bêbados.
b.
Ora, Charles Bukovsky é um escritor.
c.
Portanto, Charles Bukovsky é um bêbado.
Parece verdade, mas infelizmente (ou felizmente) o ítem “a” não é uma verdade
demonstrável.
Nessas demonstrações lógicas, é a forma que conta. Se cada afirmação for
factualmente correta, o raciocínio é sempre o mesmo.
a.
Todos os gugurinos são travões.
b.
Ora, o manipanso-mor é um gugurino.
c.
Portanto, o manipanso-mor é um travão.
O raciocínio é correto; pouco importa se os termos são absurdos.
Esse bê-á-bá da Filosofia é essencial para o raciocínio científico. Curiosamente,
tem a ver com muitas proposições da Matemática, que um dia alguém descobre
e sistematiza sem saber para que serve (são meros cálculos numéricos ou
geométricos), e cinquenta anos depois alguém descobre que esse tipo de
raciocínio pode ser aplicado com perfeição a partículas sub-atômicas ou a
reações químicas.
O interessante dessas proposições é que elas dão espaço para uma mistura
totalmente incongruente (e divertida) entre o rigor filosófico e o nonsense. Se a
relação entre os elementos é lógica, não importa se os elementos em si são
absurdos.
(Hubert Phillips, "Caliban")
Hubert Phillips (1891-1964), conhecido como “Caliban”, manteve durante anos
algumas colunas de quebra-cabeças matemáticos e lógicos em publicações
como o Daily Telegraph, New Statesman, The Nation e outros. Muitos desses
problemas foram reunidos no livro My Best Puzzles in Logic and Reasoning
(New York: Dover, 1961).
Entre eles está o divertido problema intitulado “Pickled Walnuts”, que ele
descreve como “um daqueles exercícios em inferência que tanto fascinavam
Lewis Carroll”. É uma série de proposições (que devem ser aceitas a priori como
verdadeiras – ou seja, não há trapaça) envolvendo situações e personagens
meio surrealistas, das quais pode ser extraída alguma conclusão lógica.
Fiz uma tradaptação (tradução + adaptação) do problema, mantendo o rigor das
proposições.
·
Cerveja Stella Artois é servida sempre nas reuniões sociais do Dr.
Frankenstein.
·
Nenhum torcedor que não prefere o Barcelona ao Real Madrid pega,
jamais, um táxi na Cinelândia.
·
Todos os morcegos sabem tocar sanfona.
·
Nenhum animal pode ser registrado como enólogo se não levar consigo
um iPhone.
·
Qualquer animal capaz de tocar sanfona pode ser eleito para o Clube dos
Alquimistas Amnésicos.
·
Somente animais registrados como enólogos são convidados para as
reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·
Todos os animais que podem ser eleitos para o Clube dos Alquimistas
Amnésicos preferem o Real Madrid ao Barcelona.
·
Os únicos animais que saboreiam cerveja Stella Artois são aqueles que a
experimentam nas reuniões sociais do Dr. Frankenstein.
·
Somente animais que pegam táxi na Cinelândia levam consigo um iPhone.
Qual a conclusão que pode ser extraída?
Quem quiser ver a versão original do problema, e a resposta, pode acessar aqui,
e ver a “Solução ao Problema #43”:
https://gizmodo.com/theres-a-star-hiding-in-this-image-can-you-find-it1724344803
O que significa isto, para além do lado de humor “lewiscarrolliano”?
Significa que o pensamento científico, armado com os instrumentos da lógica
filosófica, pode chegar a conclusões satisfatórias mesmo quando lida com
elementos indefinidos, desde que essa ação de “lidar” tenha uma lógica própria,
que essa lógica seja coerente, e que possa conduzir sempre aos mesmos
resultados, quando é seguida à risca.
Grande parte da solidez no método científico (sempre, em casos assim, deparelha com a filosofia) não depende da natureza dos elementos que manipula,
mas do rigor das regras dessa manipulação. É como dizer: “Três laranjas mais
cinco laranjas é igual a oito laranjas”. Não importa se são laranjas, abacaxis ou
carburadores. Três mais cinco é igual a oito.
5004) "Bodies": uma guerra no tempo (21.11.2023)
Corpos (“Bodies”, de Paul Tomalin) é uma série de ficção científica em streaming
pelo Netflix, adaptação da graphic novel do mesmo nome escrita por Si Spencer.
É uma história policial de viagem no tempo, e transcorre em Londres, em quatro
épocas diferentes, mostrando o repetido aparecimento do mesmo cadáver, no
mesmo local (um homem nu, com marcas estranhas no corpo). O mistério é
investigado por quatro detetives: Alfred Hillingshead em 1890, Charles Whiteman
em 1941, Shahara Hasan em 2023 e Iris Maplewood em 2053.
Não assisto muitas séries de FC, e devo estar perdendo muita coisa boa que há
por aí. Em todo caso, esta aqui é muito bem escrita e dirigida, e em seus 8
episódios chega a uma conclusão satisfatória. Espero que não haja continuação
(as continuações são quase sempre um trajeto ladeira abaixo.)
Bodies tem o clima de paranóia dos thrillers de perseguição-e-fuga de Philip K.
Dick: cada pessoa, por mais inocente que pareça, pode ser um agente plantado
ali pela Conspiração para intervir no momento adequado. Ninguém é casual.
Todo mundo está ali com “uma agenda secreta”, com segundas intenções. E da
mesma forma todo mundo pode ser o “agente salvador”: um transeunte aleatório,
o porteiro do prédio, o frentista do posto, qualquer um deles pode ser a pessoa
que agarra o herói pelo braço na hora do perigo e diz algo na linha do clássico
“Vem comigo, explico depois”.
(Amaka Okafor como "Shahara Hasan")
Esse clima de paranóia é aliás uma das características da obra de P. K. Dick e
é um sintoma neurótico da Guerra Fria, período em que Dick surgiu como
escritor. A paranóia absurda e alucinada em que ele viveu parte dos seus últimos
anos se deve a isso: ele tinha fantasias de que estava sendo espionado pelo
FBI, e chegou a delatar Stanislaw Lem (o polonês autor de Solaris, e um dos
seus grandes admiradores) como agente comunista. O medo do comunismo
durante a Guerra Fria gerou (na literatura inclusive) essa situação mental de que
“Ninguém é inocente, ninguém é o que parece ser, todo mundo está fingindo,
todo mundo é perigoso”. E os thrillers de FC recentes bebem dessa fonte, direta
ou indiretamente: O Homem do Castelo Alto, Severance, Black Mirror, Dark, etc.
A série alemã Dark, com seu roteiro complexo e (em geral) bem amarrado,
ajudou a fixar certos marcos, pontos de referências, recursos que irão servir a
outros dramaturgos. Pessoas que transitam de um século para outro, num
desenho complexo de perseguições e assassinatos, acabam se incorporando ao
repertório do público e viram um instrumento dramatúrgico, prático, rápido, fácil
de usar.
Outro elemento presente em filmes/séries recentes é, curiosamente, o fato de
que a “máquina do tempo” está em desuso. A máquina vitoriana do filme de
George Pal, a Tardis usada pelo Dr. Who, o carro de De Volta Para o Futuro...
Agora, a viagem no tempo se dá através de “singularidades” fixas; locais, portais
não-portáteis. Podem estar no interior de uma caverna (Dark), num subterrâneo
artificial (Ministério do Tempo, Bodies), mas em todo caso são lugares imóveis,
a que o personagem precisa ter acesso, para viajar.
Num certo sentido, isso me parece mais cientificamente plausível do que o
“automóvel do tempo”, que o passageiro pode pilotar na direção que bem
entender. E há precursores, é claro, desde a velha série Túnel do Tempo.
Outro elemento que reaparece aqui é a multiplicação dos corpos idênticos da
mesma pessoa, reiteradamente morta: efeito semelhante ao de The Prestige
(livro de Christopher Priest, filme de Christopher Nolan).
Em muita dessas narrativas de viagens no Tempo,uma parte crucial do enredo
lida com um evento específico (o nascimento ou a morte de uma pessoa; o
deflagrar de uma guerra; uma descoberta científica fundamental, etc.) que um
grupo de pessoas tenta evitar que aconteça, e outro grupo se dedica a garantir
que aconteça. Mudar ou preservar o rumo da História.
A narrativa de Bodies tem quatro linhas de enredo (1890, 1941, 2023 e 2053) e
consegue não misturá-las. É uma verdadeira proeza de malabarismo, mas a
série consegue isto, mediante quatro direções-de-arte reproduzindo épocas
diferentes, com diferentes paletas de cores, vestuário, ruídos e música de fundo,
etc.) de tal modo que o espectador nunca se perde. (Eu pelo menos, que sou
danado para confundir essas narrativas intercaladas, não me perdi.)
Há momento inclusive em que a câmera, com enquadramentos sutis, parece
sugerir
que
personagens
de
dois
tempos
diferentes
estão
olhando
interrogativamente um para o outro, como se se avistassem por cima do “abismo
do tempo”. E os detetives (Hillinghead, Whiteman, Shahara Hasan, Iris
Maplewood) vão descobrindo e revelando peças do quebra-cabeças, de modo
que o mistério vai sendo atacado e elucidado em quatro flancos, ao mesmo
tempo.
(Jacob Fortune-Lloyd como "Charles Whiteman")
Na novela gráfica original, o autor Si Spencer obteve esse efeito fazendo com
que cada uma das linhas temporais fosse desenhada por um artista diferente:
Dean Ormston, Phil Winslade, Meghan Hetrick e Tula Lotay.
Há uma certa repetição de temas na prefiguração de uma Inglaterra sob regime
autoritário. Todas essas narrativas de elites despóticas regendo Londres com
mão de ferro (e aqui incluo até V de Vingança, Children of Men, etc. ) devem
muito ao 1984 de George Orwell. Mesmo quando tecem variantes demonstram
estar partindo dessa premissa tão culturalmente próxima aos ingleses. Daí que
as distopias britânicas de J. G. Ballard (High Rise, Crash, etc.) dão um salto de
originalidade, porque a brutalidade não emerge de um governo totalitário, mas
vem de baixo para cima, da população mais abastada.
A série (a maioria das séries atuais) recoloca, em seus termos, a questão das
influências, referências, citações explícitas, homenagens. Todo mundo está se
queixando, atualmente, de que as “Inteligências Artificiais (IAs)” reciclam obras
alheias o tempo inteiro sem citar a fonte. Bem – nossas inteligências biológicas
fazem a mesma coisa há séculos. A única diferença é que as IAs têm a seu
serviço todo o sistema de acesso a “Big Data” (quantidade massacrante de
informações), rapidez de processamento e de compartilhamento.
Em Bodies vi referências a O Exterminador do Futuro (James Cameron, 1980),
O Vingador do Futuro (Paul Verhoeven, 1990), O Bebê de Rosemary (Roman
Polanski, 1968), Fundação (Isaac Asimov, 1940+), O Homem do Castelo Alto
(Frank Spotnitz, 2015-2019) e por aí vai. A dramaturgia de gênero (livros, filmes,
séries, quadrinhos, etc.) canibaliza-se a si mesmo o tempo inteiro, sem muita
cerimônia. Ressalvados os casos de plágio com visível má fé e sem qualquer
contribuição criativa, os autores sabem, implicitamente, estar contribuindo para
um gigantesco banco-de-dados onde outros autores, iguais a eles próprios, irão
um dia recolher velhas idéias para novas histórias. A não ser que isso seja feito
por um “robô” cibernético capaz de processar terabytes de narrativa por
segundo. Aí... já é outra história.
Como dizia Umberto Eco:
Os mass‑media são genealógicos e não têm memória, mesmo que as duas
características pa-reçam incompatíveis uma com a outra. São genealógicos
porque neles toda invenção nova produz imitações em cadeia, produz uma
espécie de linguagem comum. Não têm memória porque, depois que se produziu
a cadeia de imitações, ninguém mais pode lembrar quem a iniciou, e se confunde
facilmente o iniciador da estirpe com o último dos netos.
(Viagem na Irrealidade Cotidiana, Nova Fronteira, 1984, trad. Aurora Fornoni
Bernardini e Homero Freitas de Andrade, pag. 176)
5005) O cinema e a ampulheta (24.11.2023)
Todo cinéfilo tem experiências traumatizantes. Um dia, quando eu for capaz de
vencer o constrangimento, contarei de como, aos sete ou oito anos, fui ver um
filme no Cine Capitólio, acompanhado por minha mãe. Estava com os pés cheios
de calos sangrentos, provavelmente porque tinha acabado de ganhar um novo
par de sapatos. (Eu geralmente usava sapatos velhos do meu pai, com um
complemento de algodão na ponta pelo lado de dentro, para acomodar meus
pés imberbes.)
Os calos me incomodavam demais e começado o filme descalcei espertamente
os sapatos, e devo ter chegado a cruzar a perna, ou pelo menos a botei numa
posição tal que ela ficou dormente. Chegado o fim do filme, mexi a perna, e a
volta da circulação, combinada com o enfiamento regulamentar do sapato,
provocou uma dor tão intensa nos calos que Dona Cleuza foi forçada a me levar
para fora da sala nos braços, como uma furibunda Pietà sertaneja, enquanto eu
me lamentava em tão altas vozes que os circunstantes perguntavam,
compadecidos: “Mas o que aconteceu, ele quebrou a perna?...” e ela retrucava,
esbaforida: “Não!... É só safadeza mesmo!...”
Nem era essa a história que eu ia contar! Ela se intrometeu por conta própria.
Eu ia falar de um trauma de cinéfilo, e não de minha fase Young Sheldon. O fato
é que morávamos na Rua Miguel Couto, a dois quarteirões e meio do Capitólio,
e a partir de certa idade fui autorizado a ir sozinho ao cinema, mas sempre na
“primeira sessão”.
Havia duas sessões, às 19 e às 21 horas. A “segunda sessão”, que terminava
por volta as 23:00, pertencia somente ao mundo dos adultos. Ninguém me
autorizava a ver filmes na segunda sessão, e cresci colocando essa proibição na
mesma categoria mítica dos filmes “proibidos para menores de 18 anos”. Era
uma terra incognita onde tudo podia acontecer, e eu deveria evitá-la como o
Diabo à Cruz ou vice-versa.
Uma vez, por um atraso cujo motivo não me restou, cheguei bem atrasado para
a primeira sessão. Comprei o ingresso, entrei correndo, achei uma cadeira (eram
assentos de madeira, não eram poltronas) e joguei-me nela. O filme já tinha
começado há bastante tempo, uns trinta ou quarenta minutos.
Gerou-se então o drama, na minha apavorada consciência. Como eu tinha
chegado no meio da primeira sessão, quando ela terminasse eu teria de ir
embora, tendo perdido o começo do filme. “Jamais!”, bradei silenciosamente. O
jeito era ficar... e ver a proibidíssima segunda sessão, e ao chegar tarde em casa
tentar sossegar a crise nervosa da família, isto se não encontrasse a casa com
as luzes todas acesas, e cheia de bombeiros e investigadores da Polícia Civil.
Enquanto decidia, eu olhava as cenas na tela durante um minuto, e depois
tapava os olhos, “guardando-me” para rever o filme na sessão seguinte. Vi
pedaços desconexos da história, que ao que parece girava em torno de um
detetive de paletó e gravata, e uma mulher que ele conhece na rua e insiste que
ela se vista com uma roupa específica. No fim, a mulher se joga do alto de uma
torre!
Finda a primeira sessão, ocorreu-me uma das minhas soluções salomônicas:
para não chegar tarde demais em casa, eu não assistiria a segunda sessão
inteira – ficaria somente até chegar à cena em que eu tinha começado a ver na
sessão anterior.
Luzes se acenderam, multidão levantou-se e saiu, e eu fiquei sentado,
tranquilão, porque corria a década de 1950 e naquele século abençoado a gente
podia, com um ingresso apenas, ver o filme quantas vezes quisesse. Ninguém
evacuava a sala entre uma sessão e outra.
Começou a segunda sessão, veio o Canal 100, alguns trailers esquecíveis, e o
filme recomeçou. Eu estava numa atitude mental de “Episódio 2”. Lá vem meu
detetive, coitado, traumatizado pela morte da namorada. E de repente ela
ressurge, a mesma, aliás lindíssima, estimulando-me certas respostas
biológicas. Mas então ela não morreu! E eu mesmo me recriminava: “Imbecil,
isso é o que tinha acontecido antes do que já aconteceu!”.
Chegando à primeira cena que reconheci sem hesitação, considerei a missão
cumprida, e debandei ofegante para casa, onde minha chegada às dez e meia
da noite mal foi percebida, entre os bocejos e os noticiários radiofônicos de
sempre. Problema foi depois, na cama, tentar coordenar aqueles fragmentos de
história e aquelas várias mulheres que são uma só. Se tem um filme que não
entendo direito até hoje é Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock.
Este exemplo me ficou, contudo, como uma espécie de vacina. Até então, eu
tinha a sensação mental de que um filme tinha o formato de um círculo: algo que
começava com um ponto minúsculo (a primeira cena) e ia se expandindo até
contrair-se rumo ao desfecho, e mostra o The End no ponto final. Isto que hoje
chamam de “arco narrativo”, só que bidimensional.
A partir daquela noite comecei a cultivar a imagem do filme como uma
ampulheta, e passei a chegar na metade. Ao sentar na cadeira, o filme já estava
existindo. Era algo já largo, expandido, algo vasto já acontecendo para toda a
platéia, e eu não sabia quem era fulano, quem era sicrano, quem queria matar
quem, qual a razão da briga, quem morava naquela casa que volta e meia
recebia uma chuva de balas. Fim do filme. Ponto final.
Recomeço. Ponto inicial. Meus personagens voltavam a aparecer, uns
remoçados, outros ressuscitados, todos inocentes quanto ao próprio futuro,
enquanto eu os contemplava com o fatalismo de um viajante no tempo. A história
começava a se alargar, a se auto-explicar, a se esclarecer – e chegado ao ponto
culminante eu me levantava da cadeira e caía fora.
O cineclubismo e as cinematecas me ajudaram a ver filmes em forma de
ampulheta: chegando no meio da história (=do círculo), vendo até o fim, e depois
revendo do minúsculo começo até o auge, o ponto onde eu tinha chegado.
Depois repeti isso com as novelas de TV. Xeretando um capítulo por acaso, não
preciso saber a história. Tudo eu deduzo, tudo eu suponho, eu adivinho,
percebendo “do nada” quem inveja quem, quem olhou de esguelha, quem
titubeou no depoimento ao escrivão ou na declaração de amor à lourinha
ingênua, e sempre que me deparo com algo que não entendo, imagino: “Tudo
bem, já explicaram antes, eu é que peguei o bonde andando; vida que segue”.
A não-necessidade de entender tudo é uma virtude intelectual que deveria ser
mais cultivada. Temos a mania obsessiva de querer explicação para cada
detalhe, cada frase, cada gesto. O cineclubismo, confesso, me traumatizou
nesse ponto. Por que motivo a vitrine da loja era azul? O que foi que o rapaz
cochichou no ouvido da moça? Por que os garotos foram embora da praia e
deixaram um chapéu de palha? O que era a construção esquisita que aparecia
ao fundo naquela cena?
Filmes não respondem tudo, e quando entramos num filme já começado temos
que fazê-lo de espírito aberto, pronto a considerar relevante ou banal qualquer
detalhe.
Umberto Eco, num documentário recente (La Biblioteca Del Mondo, Davide
Ferrario) conta que na juventude tinha acesso gratuito a peças de teatro de
pessoas amigas, mas por alguma razão precisava sair antes do final. Ficou
amigo de um cara com quem sucedia o contrário: como trabalhava vendendo
ingressos, só podia entrar para ver a peça depois que a bilheteria fechava, e
desse modo nunca via os começos. Os dois passaram, então, a trocar
informações sobre os pedaços faltantes das respectivas memórias teatrais.
E ele comenta a velha máxima de que a vida é um filme: entramos na sala depois
que ele começou, e temos que sair antes do fim.
5006) Minhas canções: "Tuareg e Nagô" (27.11.2023)
Na literatura de ficção científica e de fantasia existe um conceito chamado de
worldbuilding, ou “criação de um mundo”. O autor imagina um mundo diferente
do nosso, e ali ambienta suas histórias. Esse “mundo” pode ser outro planeta,
no caso da FC, ou pode ser um mundo imaginário como o da série de “Narnia”
(de C. S. Lewis) ou dos continentes descritos na série “Game of Thrones” de
George R. R. Martin.
Um ponto crucial desses “mundos construídos” é que sejam coerentes, sejam
surpreendentes, e sejam plausíveis. O leitor quer surpresas, que descobrir
mistérios e novidades, quer se deparar com rasgos de imaginação que
aumentem o prazer da leitura. Por outro lado, ele geralmente preza uma certa
lógica no que está sendo mostrado; aquilo não deve ser gratuito ou desordenado.
Se o autor mostra uma história de navios piratas e a certa altura introduz uma
bomba atômica, a história fica parecendo uma bagunça de anacronismos. O que
não impede um bom escritor de muitas vezes tornar verossímil alguma
incongruência desse tipo.
“Tuareg e Nagô” é uma canção gravada por Lenine no CD Olho de Peixe (1993),
seu disco de estréia solo, produzido com Marcos Suzano e Denilson Campos.
Essa faixa nasceu da confluência de várias idéias.
A primeira delas remonta ao disco Baque Solto (1983), de Lenine e Lula
Queiroga. Esse disco é hoje o que se chama de “um clássico cult”. Eu tinha
chegado ao Rio há cerca de um ano, e a turma que encontrei aqui era um grupo
de parceiros de outras aventuras musicais no Nordeste: Lenine, Lula Queiroga,
Tadeu Mathias, Mestre Fuba, Ivan Santos, Alex Madureira, Zeh Rocha... Todos
morando no Rio, cantando no “Bar do Violeiro”, tentando gravar.
Quando o Baque Solto foi gravado, tinha composições e participação
instrumental dessa turma toda – menos eu, que era um dos mais recentes.
Sugeriram então que eu fizesse um texto poético falando da força da música
nordestina, etc. e tal. E no dia em que fomos fazer a foto da “Gente de Baque
Solto”, registrada no estúdio por Hélio Viana, levei o texto “Mapa do Tesouro”,
que saiu no encarte do LP e é substancialmente a letra da futura “Tuareg e
Nagô”:
É a festa dos negros coroados
no batuque que abala o firmamento...
Passou-se. Os meses e os anos fiaram seu fio de areia. Comecei a compor junto
com Lenine, e uma das primeiras coisas que nos aproximou foi o gosto pela
ficção científica, fantasia, fenômenos bizarros (de Charles Fort até Operação
Cavalo de Tróia). E um dos nossos passatempos era imaginar, em sessões de
devaneio e de “world building”, cenários para narrativas fantásticas.
Um desses cenários foi o que fiquei chamando de “A Ilha”, partindo de uma
premissa simples. Todo mundo imagina a Atlântida como uma ilha futurista no
meio do Oceano Atlântico – uma espécie de “Metrópolis” de Fritz Lang, mas com
túnicas gregas e templos de mármore. Nossa idéia partiu da premissa contrária:
e se essa ilha no meio do mar fosse na verdade uma ilha tropical, caribenha,
ensolarada, fértil, super-populosa, tecnologicamente um tanto precária mas com
uma vida cultural intensa?
Essa ilha seria uma confluência de todas as civilizações navegantes que
cruzaram o Atlântico, cada uma deixando ali suas marcas. E assim surgiu o verso
que depois tornou-se o refrão da música:
Quando o grego cruzou Gibraltar
onde o negro também navegou,
beduíno saiu de Dacar
e o viking no mar se atirou...
Uma ilha no meio do mar
era a rota do navegador:
fortaleza, taberna e pomar,
num país tuareg e nagô...
Estavam presentes na mistura uma série de povos que, teoricamente, teriam se
encontrado e miscigenado nessa Ilha imaginária no meio do Atlântico. A Ilha
servia de ponto de parada, descanso, reabastecimento, trocas comerciais... Algo
bastante plausível, em termos de ficção. E de lá os navegadores seguiriam na
direção Sul, cruzando a linha do Equador e chegando finalmente à América do
Sul e o Brasil.
É o destino dos navegadores que partiam rumo ao oeste, à região onde o sol vai
se pôr – “to sail beyond the sunset”, no verso famoso de Lord Tennyson.
E coube a Lenine pegar os versos antigos do “Mapa do Tesouro”, organizar tudo
em estrofes, e mudar várias coisas para dar coerência ao “mundo construído”.
Ali temos canaviais, estradas de ferro, plantações, frevo, religiões africanas... É
de certo modo a Zona da Mata nordestina, mas, colocada nesse contexto
imaginário, acho que ela ganha outras cores.
Cores caribenhas, na verdade, porque a Ilha, a nossa “atlântida”, ficava a meio
caminho entre o oeste da África e o Golfo do México. Uma latitude e longitude
que a deixavam praticamente ao lado do Mar do Caribe – ou seja, uma Ilha que
parecia pouco com a Atlântida dos livros, e parecia muito com Cuba, Jamaica,
Porto Rico...
Lembrei de uma frase de Gabriel Garcia Márquez numa entrevista, quando ele
disse que o Recife era a cidade mais caribenha que ele conheceu fora do Mar
do Caribe. Na época, fizemos os versos iniciais de uma canção glosando esse
mote, explorando a assonância entre Caribe e Capibaribe:
Lá, onde o mar bebe o Capibaribe...
Coroado leão, caribenha nação
longe do Caribe.
“Coroado leão” é uma referência futebolística que nos era inevitável, mas esse
fragmento, que tinha ficado como um começo apenas, encontrou seu
complemento com a canção da Ilha.
Lenine pensava em termos de canções, eu pensava em termos de histórias.
Cheguei a rabiscar resumos de contos que eu poderia ambientar nessa Ilha,
contos focados apenas nos personagens e deixando essa questão históricogeográfica como um pano-de-fundo remoto, mero ambiente, sem obrigação de
explicar muita coisa.
Não avancei nessa direção porque nessa mesma época eu estava empenhado
noutro projeto de “worldbuilding”: a criação da cidade imaginária de
Campinoigandres, uma cidade árabe-ibérica no Portugal do século 14, onde
ambientei vários contos e o meu romance A Máquina Voadora (1994). Mas aí já
é outra história.
“Tuareg e Nagô” foi lançada no Olho de Peixe em 1993 e teve várias
regravações; minha preferida entre elas é a de Mônica Salmaso, em Trampolim:
https://www.youtube.com/watch?v=kirM7tkAvD4&ab_channel=M%C3%B4nicaS
almaso-Topic
Tuareg e Nagô
(Lenine/BT)
É a festa dos negros coroados
no batuque que abala o firmamento,
é a sombra dos séculos guardados,
é o rosto do girassol dos ventos...
É a chuva, o roncar de cachoeiras
na floresta onde o tempo toma impulso,
é a força que doma a terra inteira
as bandeiras de fogo do crepúsculo...
Quando o grego cruzou Gibraltar
onde o negro também navegou
beduíno saiu de Dacar
e o Viking no mar se atirou...
Uma ilha no meio do mar
era a rota do navegador
fortaleza, taberna e pomar
num país Tuareg e Nagô.
É o brilho dos trilhos que suportam
o gemido de mil canaviais,
estandarte em veludo e pedrarias
batuqueiro, coração dos carnavais...
É o frevo a jogar pernas e braços
no alarido de um povo a se inventar,
é o conjuro de ritos e mistérios,
é um vulto ancestral de além-mar.
Quando o grego cruzou Gibraltar
onde o negro também navegou
beduíno saiu de Dacar
e o Viking no mar se atirou.
Era o porto pra quem procurava
o país onde o sol vai se pôr
e o seu povo no céu batizava
as estrelas ao sul do Equador.
5007) A Queda da Casa de Usher (30.11.2023)
Edgar Allan Poe deve estar se remexendo dentro do túmulo, a julgar pelas
recentes adaptações de sua obra ao cinema e à TV. Não que sejam todas ruins,
mas porque este é o karma ancestral de Edgar, autor de “O Enterramento
Prematuro”.
A adaptação mais recente, por sinal, é bastante boa, dirigida pelo especialista
em horror Mike Flanagan (Doctor Sleep, The Midnight Club etc.), e que adota
uma técnica que parece a dos enredos de escola de samba – apertar no espaço
disponível o máximo de informações relativas ao tema.
A Queda da Casa de Usher (Netflix, 8 episódios) é um melodrama Grand Guignol
que não economiza sangue, animais monstruosos, mutilações, traições cruéis,
vinganças diabólicas, inimigos sobrenaturais. Dito assim parece uma coisa
inassistível, mas a verdade é que o excesso de estilização da narrativa acaba
diluindo o “gore” (o horror especificamente físico) e transformando tudo num
espetáculo tão artificial e pouco realista quanto uma ópera.
Flanagan faz uma colcha-de-retalhos da obra de Poe, lançando mão de várias
histórias, entrelaçando-as umas às outras, e distribuindo nomes de personagens
com a prodigalidade de um rei distribuindo títulos de nobreza a quem o apóia.
O enredo: o magnata Roderick Usher e sua irmã Madeline são chefes do
conglomerado farmacêutico “Fortunato”, que destrói a saúde da população com
remédios de efeitos colaterais mortíferos. Madeline é solteira, mas Roderick tem
dois filhos legítimos e quatro ilegítimos, todos eles herdeiros de sua fortuna. E
todos, em certa medida, odiando-se uns aos outros. A “Fortunato” está sendo
submetida a um processo judicial, conduzido pelo investigador Auguste Dupin.
Na juventude ele e Roderick eram amigos, depois romperam relações, mas resta
algum respeito mútuo entre os dois.
(Carl Lumbly como "Dupin", Bruce Greenwood como "Usher")
A série toda é um longo flashback em que Roderick chama Dupin a sua casa
para lhe explicar como e por quê seus seis filhos foram assassinados, um após
o outro, no espaço de poucos dias. A conversa entre os dois é a moldura mais
ampla que envolve os oito episódios.
Bilionários e “serial killers” são dois temas constantes na dramaturgia do século,
ligados por um vínculo essencial, que talvez seja a alucinação do poder absoluto.
Os crimes desta série seguem o modelo do conto referido em cada episódio: “A
Máscara da Morte Rubra”, “Os Crimes da Rua Morgue”, “O Gato Preto”... Há um
certo exagero “gore”, mas é bom ter em mente que o mesmo nível de exagero já
está nos contos de Poe, escritor fascinado por mortes bizarras, mecanicamente
produzidas, com excesso de mutilação e horror.
Isto, para mim, coloca a série dentro do subgênero dos “crimes seriais” em que
existe um padrão para os assassinatos. Exemplos típicos são O Abominável Dr.
Phibes (Robert Fuest, 1971), com Vincent Price, onde os crimes seguem o
padrão das pragas do Egito; e As Sete Máscaras da Morte (Douglas Hickox,
1973), também com Price, onde os crimes fazem citação a peças de
Shakespeare.
(Carla Gugino como "Verna")
Mike Flanagan toma muitas liberdades com os textos originais de Poe, mas isto
nem é defeito nem é novidade. São raras a adaptações fiéis dos contos de Poe.
As mais conhecidas e mais cult são as que Roger Corman produziu e dirigiu na
década de 1960, e têm pouquíssimo a ver com o original. Poe está ali como uma
inspiração, uma aura, um diapasão para afinar o inconsciente coletivo de
roteiristas, diretores e elenco.
No presente caso, Flanagan conta com uma direção de arte excelente, criando
numerosos ambientes, muito diversos entre si, e que reproduzem o mundo
mental de cada personagem. É uma família de bilionários, então é lícito supor
que cada um dos filhos Usher criou seu ambiente à imagem e semelhança de si
mesmo. O elenco também é ótimo, dentro do estilo levemente histérico que
filmes desse tipo precisam extrair dos atores. Os diálogos são abundantes,
rápidos, as pessoas falam o tempo todo, parecem metralhadoras, e felizmente o
streaming nos dá a chance de voltar atrás e ouvir/ler tudo de novo, para poder
entender. Eu não gosto de ver filmes deste tipo na sala de cinema.
O ponto central do elenco é Roderick Usher, interpretado na velhice por Bruce
Greenwood, ótimo ator que já fez o papel de John Kennedy em Dez Dias Que
Abalaram o Mundo. Ele tem uma dicção clássica e elegante, e a força impositiva
do patriarca. Uma presença curiosa no elenco é a de Mark Hammill, o antigo
Luke Skywalker das aventuras espaciais, fazendo aqui o papel de Arthur Gordon
Pym, o advogado sinistro e implacável da família Usher.
(Mark Hammill como "Arthur Gordon Pym")
Narrativas referenciais como esta, maciçamente baseadas numa obra préexistente, deparam-se às vezes com um problema de verossimilhança. Lembrome da novela Mandala (1987-88) da Rede Globo, em que o mito de Édipo era
trazido para os tempos modernos com um elenco que incluía Felipe Camargo
(Édipo), Vera Fischer (Jocasta) e Perry Salles (Laio). Na época, a seção de
cartas de leitores dos jornais vivia cheia de protesto neste tom:
“Será que esse pessoal não se toca? O cara se chama Édipo, conhece uma
mulher chamada Jocasta... Eles nunca leram sobre as lendas gregas? Eles não
sabem o perigo que ambos estão correndo?”
A questão levantada pelos leitores tem partes iguais de razão e de ingenuidade.
De fato – vivemos num mundo em que até o conceito de “Complexo de Édipo”
foi criado a partir da lenda, e o cara tem esse nome e não sabe?!
Por outro lado, mesmo sendo uma história modernizada, que se passa no Brasil
contemporâneo, é preciso – para que a história faça sentido, e a tragédia
implacável se cumpra – que a lenda seja ignorada. Que tudo aquilo esteja
acontecendo “pela primeira vez”. Portanto, Mandala da Globo existia num
universo paralelo em que a lenda grega de Édipo (e a peça de Sófocles) não
existem.
É um pouco como a situação do filme Yesterday (2019, Danny Boyle), em que
um rapaz vai parar num universo onde os Beatles não existiram... e ele fica
milionário tocando as músicas de Lennon & McCartney e dizendo que são suas.
Para que a história da Queda da Casa de Usher faça sentido, é preciso que tudo
aquilo aconteça num universo onde a obra de Edgar Allan Poe (que impregna
todas as situações, todos os personagens) não exista – para que seus
personagens não saibam avaliar o perigo de um gato preto, de um cálice de
Amontillado, e assim por diante.
Que eu me lembre, o nome de Edgar Poe não é citado por nenhum dos
personagens, embora seus versos sejam recitados o tempo inteiro. É um
universo paralelo onde aqueles personagens não vieram ao mundo no século
19, mas no 21, com os mesmos nomes, mais ou menos os mesmos traços
biográficos, personalidades semelhantes, etc. Todos cumprindo ali o karma de
serem personagens de um dos criadores do gênero horror – mas eles não o
sabem, pensam que são pessoas como as outras, e por isto caminham
cegamente para a destruição que nós, no universo do lado de cá, sabemos ser
inevitável.
5008) Contracapa de Midjourney (3.12.2023)
(by Remedios Varo)
& o choro é livre, e a gargalhada também
& uma multidão sem texto e sem ensaio não é capaz de muita coisa
& a força da gravidade é uma mistura de ação presencial e wi-fi
& o espelho tem sempre esse fantasma-pronto à minha espera
& façam o que quiserem com esse boneco de cera: não se parece comigo nem
um pouco
& a melhor maneira de conhecer a honestidade de alguém é fazendo-lhe uma
proposta que você acharia irrecusável
& uma foto preserva um segundo do Passado, e afunda o resto nas trevas do
esquecimento
& tem gente que sempre repete as frases que diz, como se quisesse deixá-las
em negrito
& entre outras variantes clássicas, tem tido muita aceitação ultimamente o
conceito de “a boçalidade do mal”
& nada como o silêncio luminoso das noites do sertão
& tem gente que lava o rosto e depois joga a água fora sem nem agradecer a
ela
& fazer uma distinção assim é um pouco como dizer que os biscoitos se dividem
em redondos e quadrados
& certos filmes antigos têm o encanto dos navios naufragados, das catedrais
em ruínas
& o bom enxadrista é o que consegue usar as peças do adversário para fazer
sua jogada
&
nos fuzilamentos vendam-se os olhos do prisioneiro para proteção dos
executores
& a paz não pode destruir, mas pode diluir a guerra
&
certos textos parecem radioativos, basta ler aquilo e o pensamento fica
envenenado
& o bom cineasta filma um pavão em preto-e-branco e ninguém percebe
& “Autoriza o árbitro!...” – e desautoriza o juiz
& onde subiu prédio sofreu pedreiro
& o tempo não se desloca, ele vibra, ele estremece
& o conceito de qualidade literária muda mais do que corte de cabelo
& liberdade hoje é como um colírio,que a gente leva no bolso e pinga um
pinguinho quando sente falta
& uma pedra no caminho incomoda menos do que uma pedra no sapato
& a elevação dos oceanos libertará a população que mora nos aquários, ou a
sufocará?
& a pena é mais poderosa do que a espada porque pode desenhar uma balança
onde ela tem mais peso
& todo jatinho de empresário é um cavalo de Tróia
& em vez de proibir qualquer coisa, deviam ridicularizar, ia dar muito mais
resultado
& ensinar não é iluminar, é acender
& Deus não é onipresente caso o seu castigo chegue mais longe do que o seu
perdão
& ser honesto não é uma fraqueza, embora alguns sejam honestos porque lhes
falta a força de não sê-lo
& eu me calei para ouvir os pássaros, mas eles tinham se calado para ouvir a
folhagem
& ele tinha aquela nobreza das pessoas feias que sabem só poder contar
consigo mesmas
& um homem vai ser fuzilado mas pede para esperarem o nascer da lua cheia
& todo mundo tem um olho que enxerga melhor que o outro
& não, o gênero do Romance não está morto, está apenas num estado agudo
de catalepsia mental
5009) Exu, o viajante no tempo (6.12.2023)
Um ditado popular afirma que “Exu matou ontem um pássaro com uma pedra
que jogou hoje.”
E por que não poderia? No meu entendimento, Exu é o abridor (e fechador,
quando lhe interessa) de caminhos, o portador de mensagens ou de
mercadorias. É o Hermes dos gregos e o Mercúrio dos romanos.
Uma de suas funções é de pegar alguma coisa em A e transportar para B. É um
viabilizador de procedimentos, como diria algum desses geniozinhos
corporativos de terno-e-camisa pretos e cabelo desenhado. “Exu entrega,”
garantiriam eles, eufóricos com a miragem de metas-de-desempenho.
Preciso desde logo deixar claro que, para mim, a discussão sobre quem é Exu,
e o que faz Exu, está em pleno domínio do simbólico e do anímico, da
imaginação personificadora. Eu não perco o sono imaginando se Exu existe.
Para mim, ele existe no mesmo plano de realidade que Édipo, Sherlock Holmes,
Super-Homem, Dr. Who... É um personagem, um arquétipo, um ícone.
Não é algo em que a gente “acredita”, é algo que a gente concebe, examina, usa
para tirar conclusões, para imaginar variantes. A “imagem” de cada um deles
(“imagem” total, muito mais além da simples representação visual) é como a
senha de acesso para o desencadeamento de um processo criativo que envolve
memória, associação de idéias, imaginação, desejo, aceitação, recusa.
Exu é igual a porta, portal, porteira, ponte, passagem? Tenho essa imagem meio
esboçada na imaginação. Salvo melhor juízo, Exu pode ser também um
facilitador, um zangão do Detran, um coiote da fronteira Texas-México, um guiaesperto-para-turistas-indefesos.
Um
removedor
de
coágulos.
Um
desengasgador de gargalos. (E, sempre, o contrário disso tudo. Quando lhe
convém.)
E, vejam só: por este raciocínio, Exu é um desembargador.
Porque esta palavra vem de “des + embargar”, e embargar é “embarricar”, “criar
barricadas”, “trancar com barras”, “encher de obstáculos”, “impedir a passagem”.
E, reversamente, desembargar é facilitar o fluxo, liberar a via, dizer para a
multidão: “Bora, pessoal – circulaaandooo!...”
E os nossos Desembargadores, é claro, são discípulos humanos manipulando o
poder do exuísmo. Embargam quem os incomoda. E desembargam quem os
favorece.
Exu é uma Rua da Passagem. Se Exu é personificação desse conceito abstrato,
isto significa que ele não é limitado, quando está em pleno uso de seus poderes,
pelas restrições normais de tempo, espaço e causalidade. Exu é capaz de
desafiar o fluxo unidirecional do tempo, e a própria Segunda Lei da
Termodinâmica.
A Segunda Lei da Termodinâmica diz que o Universo como um todo está se
encaminhando para uma morte térmica, uma dissipação irremediável de energia,
que ocorrerá quando todas as estrelas existentes tiverem consumido o
combustível nuclear que as alimenta. Não haverá mais pontos de fogo e de luz
no Universo, e ele se tornará um espaço indiferenciado, escuro e frio.
Exu acende um cigarro, bota os pés em cima da escrivaninha, e argumenta:
“Beleza, mas vamos lembrar que a Segunda Lei da Termodinâmica, como
qualquer outra lei, tem os seus pontos fracos, as suas brechas, os seus
interstícios. Dá pra negociar. Dá pra transgredir aqui e ali... e escapar impune.”
Quebrar a flecha do tempo, para Exu, é besteirinha.
Ele se evade das restrições físicas de tempo e de espaço, pulando para uma
dimensão extra a que não temos acesso. Exu é como o cavalo do jogo do xadrez
– o único capaz de pular por cima das casas vazias e das casas ocupadas por
outras peças. Para o restante das “peças pedestres” do jogo, o cavalo é um orixá
mágico. Vejam só – ele está num ponto, e logo em seguida, magicamente, sem
ter transposto o espaço intermédio, aparece num ponto mais à frente. Ou mais
atrás.
O nosso conceito de tempo (nosso – seres humanos, demasiado humanos,
sujeitos à velhice, e Segunda Lei da Termodinâmica) se parece com o dos peões
do xadrez. Andamos somente uma casa de cada vez, e sempre em frente, não
podemos andar de lado, nem pegar uma transversal oblíqua, e muito menos
andar para trás.
O tabuleiro de xadrez é uma boa metáfora para o universo onde convivem seres
naturais (os peões = os humanos) e seres sobrenaturais (=as outras peças) que
podem ir de um lado para outro, transpor enormes distâncias, ir para a frente (=o
futuro), ir para trás (=o passado), cada um deles submetido às suas próprias
regras e limitações, mas com uma liberdade que nós, meros peões, nem sequer
imaginamos.
E o cavalo tem uma liberdade a mais que todos: a de saltar usando os túneis de
outra dimensão.
O tempo de Exu não é uma seta em direção perpetuamente única. É uma
espiral, onde ele vive eternamente indo e voltando, consertando aqui,
complicando acolá, voltando atrás para resolver um problema, pulando à frente
para retomar o caminho, curando uma situação passada, correndo para evitar
um efeito colateral futuro. Feito aquele pessoal da escola de samba, que durante
o desfile, enquanto a escola avança como um rio vagaroso, fica correndo pra
frente e pra trás, coordenando, mandando acelerar, mandando segurar um
pouco...
O tempo não é uma linha, pelo contrário, é um tabuleiro de muitas dimensões
onde Exu passeia dentro de sua própria jurisdição. Abrindo caminhos.
Transportando energia. Administrando trocas. Puxando a ponta de cada elástico
para gerar uma tensão-de-necessidade, um traslado de forças que deverá ser
cumprido.
Recebendo a bola rebatida pelos zagueiros e acionando os pontas-de-lança. Exu
não precisa necessariamente fazer o gol. Ele até prefere deixar isso para
entidades mais visíveis e famosas, que só fazem isso mesmo, empurrar a bola
do Acaso para dentro da rede do Destino. E que por isto ficam com a fama de
Onipotentes, de Resolvedores, de Supremos Poderes.
Que nada. Têm seu poder, sim, mas nada seriam sem a costura incansável de
Exu. Carregador de piano. E que, quando é preciso, faz a ligação entre a defesa
e o ataque, conduz de uma área até a outra; esconde a bola, sem permitir o
desarme; ou toca a bola de primeira, lançando vertical, em profundidade.
Daí que lhe seja possível viajar no Tempo, mexer no código-fonte dos
acontecimentos, banhar-se de novo no mesmo rio, retroagir no interior de um
evento até transformá-lo no seu inverso.
Claro que Exu (ou qualquer ente capaz de viajar no Tempo) não é onipotente,
não pode executar tudo que desejaria; mesmo ele tem limites. Mas ele obedece
à seta do Tempo como nós, humanos, obedecemos à Força da Gravidade, que
funciona por igual sobre todas as coisas, mas que conseguimos eludir. Porque
afinal de contas somos capazes de erguer balões de gás, foguetes, dirigíveis,
asas-delta. Domesticamos forças capazes de contrabalançar a atração da
gravidade, e as usamos em nosso benefício.
Assim fazem os viajantes no Tempo: conseguem, de maneira localizada,
específica, contrabalançar a seta do Tempo e acessar, de maneira limitada mas
bastante útil, momentos específicos do futuro e do passado.
E conseguem voltar trazendo uma prova. Uma flor? Não; talvez um pássaro.
Exu mata a ave e mostra a pedra.
5010) Seis animais estranhos (9.12.2023)
1
Na Austrália setentrional pode ser encontrado, com o auxílio de guias aborígines,
um roedor chamado por eles de niawohl (pronúncia: “ni-Á-wohl”) e que os
colonos ingleses acostumaram-se a chamar de open-hand (“mão aberta”). Tratase de um tipo raro de aracnídeo, de seis patas, e sua aparência lembra uma mão
peluda que se movimenta com surpreendente rapidez e agilidade. O animal
alimenta-se de cascas de árvores e de pequenos insetos. É sensível à luz solar
mas precisa de calor, de modo que muitas vezes é encontrado nas proximidades
de fogueiras, fornos, caieiras, etc. É inofensivo aos seres humanos, a não ser
quando atacado, o que acontece às vezes pelo seu hábito de se aconchegar a
pessoas adormecidas, em busca de calor corporal.
2
O passarinho-bêrde é uma ave esquiva, com plumagem esverdeada de uma
coloração uniforme e inconfundível que se estende até o bico e as patas. Como
tem muitos predadores, é um alvo preferencial dos observadores de pássaros e
dos fotógrafos, que muitas vezes passam dias no campo à espera de um
avistamento. Tido como sinal de boa sorte pelas populações rurais, é uma
espécie considerada “vulnerável” pelas entidades ambientais, e tem seus
habitats mais típicos na Península Ibérica e nas Ilhas Britânicas.
3
A cobra-bainha pode ser encontrada em certas áreas do Brejo paraibano, e da
região vizinha do Curimataú. É um réptil típico de regiões úmidas, férteis,
abundantes em pequenos roedores que são seu alimento principal. O aspecto
mais curioso dessas serpentes é que quando mudam de pele elas, ao contrário
de outras espécies, não abandonam a pele antiga, mas a guardam
cuidadosamente dentro de suas tocas ou de seus abrigos. Quando ameaçadas
ou sentindo-se em perigo, as cobras-bainhas voltam a se enfiar no interior da
pele velha e ali se mantém imóveis. Segundo os zoólogos, é um mecanismo
instintivo de camuflagem e auto-proteção, que torna esta espécie bastante
distinta de outras que, mal saídas da pele antiga, se dedicam a devorá-la.
4
O lagarto come-lixo, espécie nativa da Guatemala, apesar de tecnicamente ser
um lagarto tem o corpo rotundo e a pele rajada de um sapo, além de uma boca
descomunal munida de dentes serrilhados. Animal de hábitos soturnos e
introspectivos, prefere manter-se imóvel por longos períodos de tempo, desde
que haja alguém para alimentá-lo. Em vista disso, as populações rurais
costumam criar um ou dois deles no fundo do quintal, em curraizinhos feitos com
troncos de bananeira, e todo o lixo produzido na casa é levado para os lagartos,
que o devoram imediatamente. São capazes de comer (além de restos de
refeições, cascas de fruta, etc.) pano, papel, plástico, alguns tipos leves de
madeira. Tê-los em casa é uma maneira prática de se livrar do lixo doméstico,
mas por outro lado é preciso produzir esse lixo constantemente, pois com apenas
algumas horas de jejum os come-lixo se inquietam e manifestam a tendência de
invadir a casa, mastigando tudo que lhes aparecer pela frente.
5
A buba é um peixe típico do Oceano Índico, com tamanho médio de trinta
centímetros e carne saborosa. Seu traço característico é uma bolha inflável, uma
espécie de air-bag orgânico que ela conduz, dobrada e oculta, junto à cauda. Ao
se sentir perseguida por um predador, ela começa a inflar essa bolha, cuja face
interior é percorrida por uma complexa rede de vasos sebáceos, que se dilatam
e pulsam quando estimulados, fazendo a bolha aumentar muito de tamanho e
adquirir a aparência de uma posta de carne suculenta. Quando o predador crava
ali os dentes, eles ficam presos à gosma pegajosa secretada por aqueles vasos,
e não consegue nem mastigar nem libertar a boca. A buba, cujo corpo é longo e
flexível como o de uma enguia, volta-se sobre si mesma e ataca a cabeça do
predador com seus dentes longos e pontiagudos, do tamanho de alfinetes.
6
O gambaju é um artrópode encontradiço na ilha de Madagascar, tendo seu
habitat preferido entre ruínas e encostas pedregosas. A principal curiosidade a
seu respeito é o seu modo único de crescimento. Seu corpo é dividido, como
ocorre com as centopeias, em cabeça e vários segmentos mais compridos,
alguns deles com um par de pernas, outros com dois. Ele cresce a partir da parte
posterior da cabeça, que periodicamente começa a emitir um pedúnculo mais
fino (chamado “pescoço” por alguns), o qual gradativamente adquire uma
cobertura quitinosa protetora. Enquanto isto, o último segmento começa a ficar
opaco, descolorido, quebradiço, e por fim resseca e se desprende
espontaneamente do corpo, quando o novo segmento junto à cabeça adquire a
maturidade.
5011) Um Louvre dentro de um Titanic (12.12.2023)
As leituras da obra de Jules Verne são hoje em dia, tanto tempo após sua morte
(Verne morreu quando Machado de Assis ainda estava vivo), as mais variadas
possíveis. Curiosamente, na França multiplicam-se as leituras místicas,
ocultistas e esotéricas de seus livros, apelando para simbologia alquímica, magia
ritual, sociedades secretas... A obra de Verne, vista por esse ângulo, renderia
um novo Pêndulo de Foucault a Umberto Eco.
Verne escreveu metodicamente, abundantemente, produzindo livros de
aventuras empapados de ciência, com a regularidade de um mecanismo de
relojoaria. Dois romances por ano. A leitura de seus livros em sequência nos
revela a sua curiosidade sobre o conhecimento científico, o seu otimismo
tecnológico, o seu senso de aventura “aconchegante e confortável”...
Uma leitura específica que sempre me esclareceu foi a que Roland Barthes faz
em Mitologias (1957) sobre o Capitão Nemo e suas aventuras (“Nautilus e
Bateau Ivre”).
Barthes vê com olho esperto o Capitão Nemo e seus ideais de herói romântico;
tendo rompido com a humanidade, ele na verdade nem quer destruir nem
consertar o mundo, apenas afastar-se dele.
A descrição de Barthes é toda cheia de simpatia irônica:
A imaginação da viagem corresponde em Verne a uma exploração da clausura,
e o bom entendimento que existe entre Verne e a infância não provém de uma
mística banal da aventura, mas, pelo contrário, de um gosto comum pelo finito,
que se pode encontrar na paixão infantil pelas cabanas e tendas: enclausurarse e instalar-se, este é o sonho existencial da infância e de Verne. O arquétipo
deste sonho é esse romance quase perfeito, A Ilha Misteriosa, no qual o homemcriança reinventa o mundo, povoa-o, fecha-o e nele se encerra, coroando este
esforço enciclopédico com a postura burguesa da apropriação: pantufas,
cachimbo e lareira, enquanto lá fora a tempestade, isto é, o infinito, uiva
inutilmente.
(Mitologias, Difusão Européia do Livro, trad. Rita Buongermino, Pedro de Souza
e Rejane Janowitzer, p. 118)
Barthes estabelece um contraste interessante entre este herói romântico
introvertido e os heróis românticos extrovertidos de tantos romances europeus
de aventura, exploração e conquista.
Jules Verne escrevia para jovens, e mantinha em seus enredos a pulsação
excitante de toda aventura de peripécias. Outros autores, contudo, na época dele
e depois dele, usavam essas aventuras em lugares exóticos para criar parábolas
onde não enxergamos propriamente o entusiasmo colonialista de ocupar novos
territórios, mas a narração de uma aventura geográfica com ressonância mais
profundas – ressonâncias simbólicas onde as terras e as ilhas desconhecidas
são as partes inexploradas da alma humana.
Como René Daumal e seu famoso Mount Analogue (que tem como subtítulo
“Romance
de
aventuras
alpinistas,
não-euclidianas,
e
simbolicamente
autênticas”), em que um grupo de exploradores é arregimentado por um cientista
com a finalidade de descobrir uma ilha misteriosa no Pacífico Sul, tornada
invisível por uma anomalia gravitacional.
Ou as excursões insólitas dos romances de Georges Perec (W, ou a Memória
da Infância; A Vida, Modo de Usar) e Harry Matthews (Conversions), em busca
de objetivos ligeiramente absurdos, demandas sem utilidade aparente, em que
o explorador sente-se como que obedecendo a uma força superior.
É um gesto aventureiro diferente do gesto de Verne com seu Capitão Nemo:
Verne não procurava de modo algum distender o mundo conforme as vias
românticas da evasão ou de planos místicos de infinito: procurava
incessantemente retraí-lo, reduzindo-o a um espaço conhecido e fechado, que o
homem poderia em seguida habitar confortavelmente. (p. 119)
O que torna fascinante a obra do criador de Phileas Fogg é justamente a
possibilidade de ver nela este duplo impulso.
Por um lado, um impulso para fora, de aventura, descoberta e conquista,
característico da literatura do século 19, de um colonialismo triunfante decidido
a ocupar e mapear os menores recantos do mundo. E ao mesmo tempo a recusa
a uma expansão infinita; o comodismo de dizer “pronto, game over,já
conquistamos o mundo, agora vamos ignorar o resto”.
Culturas como a Europa e os Estados Unidos de hoje se parecem com o
“Nautilus” de Nemo, um imenso repositório de riquezas culturais arrecadadas por
todos os cantos do mundo e remetidas para a capital do império. Um imenso
Louvre ou Museu Britânico obtido através das conquistas militares, econômicas
e políticas.
E ao mesmo tempo um Louvre que está sendo remetido para dentro de um
Titanic, de um receptáculo que mesmo gigantesco parece destinado ao
naufrágio, fadado a suicidar-se pelo seu próprio peso.
O gesto profundo de Júlio Verne é portanto, incontestavelmente, o da
apropriação. A viagem do barco, tão importante na mitologia de Verne, não
contradiz este gesto, muito pelo contrário: o barco pode ser o símbolo da partida;
mais profundamente, é o sinal da clausura. O gosto pelo navio é sempre a alegria
do enclausuramento perfeito, do domínio do maior número possível de objetos,
do ato de dispor de um espaço totalmente finito: amar os navios é, antes de mais
nada, amar uma casa superlativa, porque fechada sem remissão, e de modo
algum as grandes e indeterminadas partidas. O navio é uma ação do habitat,
antes de ser um meio de transporte.
(p. 121)
5012) A palavra obrigado (15.12.2023)
Existe em nós um prazer maligno no ato de interferir na linguagem coletiva e
estabelecer, “do nada”, que de agora em diante algumas coisas são proibidas e
outras são obrigatórias.
Quando quem faz isto é o vizinho do lado, que se limita a bradar seus
impropérios, tudo bem; o pior é quando quem faz isso é uma massa amorfa de
gente ansiosa para aderir a uma moda qualquer e sentir-se significativa.
Na minha infância, certas palavras eram consideradas de mau gosto. Eram
termos plebeus, grosseiros, que gente direita não usava. Algumas tias minhas,
quando em reuniões um pouco mais formais, com pessoas de fora da família,
nunca diziam: “Fulana está grávida”. Diziam: “Fulana está esperando”. Ou,
melhor ainda: “Fulana está em estado interessante”. Minha curiosidade
sheldoniana era: Grávida é palavrão? Não, elas me asseguravam. É que é mais
educado dizer assim.
Me vinha à mente o exemplo (se não me engano) do Conselheiro Acácio, de Eça
de Queiroz, que não dizia “vomitar”, e sim “restituir”, e fazia um gesto ilustrativo.
Há sempre um eufemismo que serve para mostrar o quanto somos refinados,
bem-falantes, o quanto sabemos o que é delicadeza e não precisamos olhar no
dicionário o significado de circunlóquio nem o de cerca-lourenço.
Um eufemismo muito em voga atualmente é “gratidão” no lugar de “muito
obrigado”. Vários amigos e amigas com quem converso preferem essa forma. E
me explicam. “Muito obrigado” passa uma idéia de que você se sente coagido,
preso, se sente forçado a agradecer, está sendo obrigado a agradecer mas por
sua vontade não agradeceria. Ao passo que “gratidão”, este mero substantivo,
tem a clareza e a pureza de exprimir, sem subterfúgios, o que você está sentindo
diante do gesto alheio.
É sempre divertido xeretar as origens dos termos, e me veio à idéia buscar as
origens de “obrigado”, até porque me interessava saber se havia alguma relação
etimológica com o verbo “brigar”. Quantas vezes dizemos “’Brigado!...”, “
‘Brigadão!...” (Spoiler: não tem.)
Fui olhar no útil etymonline.com a palavra “obligation”, e eis que ela advém do
latim “ob-ligationem”, que envolve a idéia de “ligar”, unir, prender através de um
laço (concreto, ou simbólico); a idéia de vínculo através de um compromisso, de
uma promessa, de uma dívida, de um pacto, e assim por diante.
Daí vem a interpretação corrente, de que você me fez um favor ou uma gentileza,
e por isto estou ligado a você por esse vínculo de gratidão; é algo que nos une
simbolicamente.
A crítica que se faz a “obrigado” talvez se origine de um certo desconforto quanto
à nuance de “estou te devendo um favor” “estou ligado a você por uma dívida
que serei coagido a pagar mais cedo ou mais tarde”.
Essa dívida é real? Para muita gente, sim. O favor é uma moeda perigosa, sujeita
ao câmbio flutuante das relações de poder. Às vezes o sujeito me dá uma carona
numa noite de chuva e meses depois pede meu carro emprestado para ir a um
show de rock.
A questão de “pagar de volta um favor” transforma a arte de ajudar alguém uma
espécie de agiotagem da bondade. Como dizia um sábio, “cuidado com quem
lhe dá alguma coisa que você não pediu, porque cedo ou tarde vai lhe pedir
alguma coisa que você não pretendia dar”.
(Theodore Sturgeon e Robert Heinlein)
O gesto de pagar de volta um favor qualquer é sempre um gesto positivo. Mas
igualmente positivo é o gesto de pagar para diante, “to pay forward”, como dizem
os norte-americanos. Dizem que Theodore Sturgeon, o grande escritor de More
Than Human, estava uma vez numa pindaíba que dava dó. O igualmente grande
Robert Heinlein, que estava com um ou dois livros na lista de best-sellers, ficou
sabendo e mandou-lhe pelo correio um cheque que lhe zerava as dívidas.
Sturgeon agradeceu e disse que pagaria de volta, quando pudesse. Heinlein
disse: “Não precisa me pagar. Quando vir alguém que precisa, e puder ajudar,
ajude. Pague para diante.”
Eu não me sinto manietado nem jungido quando mando meu muito-obrigado a
alguém. A carga de significado desse agradecimento está mais na posição que
ele ocupa no encadeamento do diálogo do que no sumo semântico de seus
termos. Esqueçam os termos em si. Como diz um amigo meu, quando a gente
chama um sujeito qualquer de filho-da-puta não está tentando ofender a mãe
dele, uma santa senhora que não merece o filho canalha que tem.
Na minha cabeça, a palavra “obrigatoriedade” evoca idéias de autoritarismo,
perda do livre arbítrio, cerceamento da liberdade. Curiosamente, a expressão
“muito obrigado” não carrega (falo de minha leitura pessoal) nenhuma dessas
conotações. Por alguma tresleitura feita na infância, algum entendimento
enviesado do que os adultos estavam dizendo, sempre traduzi “muito obrigado”
por “muito agradecido”, e essa fórmula para mim encerrava a questão. Você me
faz um favor. Eu reconheço, registro, agradeço, e boa tarde.
Eu nada tenho contra quem usa “gratidão”, e na verdade nem percebo mais.
Digo “obrigado!” há décadas e espero continuar a fazê-lo por muitas décadas
mais. Embora atualmente me veja dando preferência ao popular “Valeu!...”. Ele
me parece uma versão mais informal desse termo, uma versão mais calça-jeanse-camiseta. “Obrigado” ainda é um pouco camisa-social-de-mangas-compridas.
5013) Andrés Fava, avatar de Cortázar (18.12.2023)
Andrés Fava é um dos personagens do romance O Exame Final (“El Examen”)
de Julio Cortázar, um curioso livro que Cortázar escreveu em 1950, pouco antes
de deixar a Argentina em definitivo para ir morar em Paris. O romance ficou
inédito durante a vida do autor, e só teve publicação póstuma (1986).
Para essa publicação, Cortázar deixou uma nota em que dizia:
(...) Publico hoje este velho relato porque me agrada irremediavelmente sua
linguagem livre, sua fábula sem moral-da-história, sua melancolia portenha, e
também porque o pesadelo de onde nasceu continua desperto e anda pelas
ruas.
Julio Cortázar, esse simpático e otimista cronópio, a quem foi poupada a visão
da Argentina de hoje.
Em paralelo a El Examen, surgiu em 1995 o Diário de Andrés Fava (no Brasil:
Ed. José Olympio, 1997). A tradução brasileira é de Mario Pontes.
O diário roça apenas muito de leve pelos acontecimentos e personagens do
romance, e consiste em reflexões de Andrés Fava sobre literatura,
(principalmente), política, a vida em geral. São anotações, fragmentos, aforismos
curtos, algumas argumentações mais concatenadas que se estendem por duas
ou três páginas.
Fava é claramente um avatar do Horácio Oliveira de O Jogo da Amarelinha
(“Rayuela”, 1963) – um homem jovem, preocupado o tempo inteiro com questões
literárias e existenciais. Cortázar parecia não ter Oliveira, seu personagem mais
famoso, em alta conta: em suas entrevistas com Omar Prego ele descreve o
personagem como “um medíocre, sem nenhum talento especial”.
Em todo caso, esses personagens são sempre parte de uma turma, um grupo
de amigos (homens e mulheres) jovens, muito próximos, com variadas opiniões
sobre tudo, desde a política até a estética. É sobre estas turmas que Cortázar
escreve em Divertimento (1949, publicado em 1986), Rayuela (1963), 62:
Modelo para Armar (1968), O Livro de Manuel (1973) – e em El Examen, onde
Andrés Fava tem a função de coadjuvante e anotador.
Cortázar é um anotador compulsivo de fragmentos e reflexões curtas. O caráter
fragmentário de Rayuela se deve em grande parte a esse método criativo por
acreção, por acréscimo gradual de reflexões aleatórias:
Porque eu tinha, nas gavetas, em cima das mesas e em outros cantos de Paris,
montanhas de papeizinhos e cadernetas onde, principalmente nos cafés, tinha
ido anotando coisas, impressões. (...) Em Paris avancei, juntando todos aqueles
papeizinhos e movido pelo que havia neles, que jamais tinham sido escritos com
a intenção de serem um romance. Repito que escrevi esses papeizinhos em
diferentes cafés, em épocas diferentes. Entre um papelzinho e outro podem terse passado cinco ou seis anos.
(O Fascínio das Palavras, Julio Cortázar e Omar Prego, trad. Eric Nepomuceno,
José Olympio, 1991)
É idêntico o modo de composição do diário de Andrés Fava, que em termos de
enredo é o antecessor mais imediato de Rayuela. Pode-se simplificar a questão
dizendo que enquanto o autor dividiu em dois livros autônomos a primeira
narrativa (El Examen e o Diário), em Rayuela ele incrustou o “diário de reflexões”
no corpo do próprio romance.
O diário de Fava traz reflexões sobre literatura:
Balzac – Martínes Estrada me faz lembrar em seu curso – trabalhava de catorze
a dezoito horas por dia. Feliz dele, em que a suposta infelicidade do escritormártir (blablablá) aguentava semelhantes estirões. Tenho certeza absoluta de
que ele se sentia felicíssimo escrevendo assim; que essa era a finalidade de sua
vida, e que as saídas de casa representavam para ele algo assim como trocar a
água do aquário, preparar os olhos e o coração para ir até onde Rastignac o
esperava com impaciência. (p. 84)
Ter cuidado com o realismo ao escrever. Evitar a fauna do zoológico, convocar
unicórnios e tritões, dando-lhes realidade. (p. 63)
A poesia quer ser metafísica, e às vezes consegue sê-lo com Lamartine e Valéry.
A poesia inglesa é metafísica sem querer ser, surge no plano metafísico, que é
seu céu e sua graça. Onde Mallarmé chega com seu último e extenuante bater
de asas, Shelley já está naturalmente plantado como uma copa de árvore. (p.
37)
É difícil saber em que medida esses comentários são a visão pessoal do escritor
Cortázar ou são a visão que ele atribui a seu personagem Andrés Fava. Em todo
caso, é divertido vê-lo citar autores policiais em mistura aos clássicos:
Vagus quidam, como Petrarca dizia de um discípulo. Leio Suetônio, Tácito, Ellery
Queen... (p. 63)
O termo em latim refere-se a um estudante que lê o que lhe cai nas mãos, sem
se concentrar num só tema. Nas conversas com Omar Prego, o autor argentino
deixa suas preferências muito claras:
Já a partir dos 16 ou 17 anos eu era um onívoro capaz de devorar os Ensaios de
Montaigne, alternados com As aventuras de Buffalo Bill, Sexton Blake, Edgar
Wallace, os romances policiais da época (fui um grande leitor de romances
policiais) e os Diálogos de Platão. (O Fascínio das Palavras, p. 37)
Andrés Fava também não deixa de comentar obras de ficção científica:
Lido, já meio fora de hora, The Time Machine. Oh, pequena Weena, animalzinho
humano, única coisa viva nessa história insuportável. Escrever musiquinhas,
brincadeiras e cantigas de roda para Weena. Sentir que a levamos nos braços
quando, sozinhos, atravessamos titubeando um aposento às escuras. (p. 22)
O autobiografismo criativo faz com que Cortázar atribua a Andrés Fava uma idéia
que ele próprio iria desenvolver mais tarde no famoso conto “Continuidade dos
Parques” (em Final do Jogo, 1964). Diz Andrés:
Não pude nunca escrever bem a história que mostraria essa imbricação da
literatura e do objetivo, e ao mesmo tempo o voluntário afastamento daquela,
que no fundo odeia o realismo. A idéia é a de um homem sentado em um sofá
verde junto de um janelão dando para um parque, lendo um romance em que
uma mulher encontra furtivamente o amante, que concorda quanto à
necessidade de assassinar o marido para ficarem livres, e sobe a escada que a
conduzirá ao quarto onde o marido, sentado em um sofá verde, ao lado de um
janelão, lê um romance... (p. 107-108)
Andrés Fava é um avatar de Cortázar numa Buenos Aires sufocante, submersa
pelo enorme vagalhão populista do peronismo. El Examen mostra, ao longo de
duas noites e um dia, esse grupo de jovens estudantes, intelectuais, cheios de
interesses literários e dúvidas existenciais, na Buenos Aires fantasmagórica,
invadida por uma neblina escura que se assemelha a uma nuvem-baixa de
antimatéria.
A “neblina” é o único elemento fantástico nesse romance de caminhadas urbanas
sem destino certo, madrugada adentro. Equivale à proibição de ir à popa do
navio em Os Prêmios (1960). A neblina escurece as ruas, os prédios, provoca
acidentes de trânsito, obriga à interdição de avenidas. Andrés e seus amigos
(Juan, Clara, Stella, o Jornalista, o esquisito e ameaçador Abel) andam por essa
Buenos Aires ao mesmo tempo gótica e plebéia.
Cortázar exilou-se voluntariamente em Paris por não suportar a Argentina
peronista,
que
ele
considerava
grosseira,
cafona,
pedante,
apegada
irracionalmente a conceitos abstratos de pátria, família, nacionalismo. El Examen
narra, num capítulo quase surrealista, um enorme ajuntamento de pessoas que
fazem fila numa praça para admirar uma relíquia, um osso – no qual muitos
críticos viram uma prefiguração das multidões que dois anos depois formariam
fila para ver o cadáver de Evita Perón.
5014) O filme de Samuel Beckett (21.12.2023)
Um dos filmes mais modestamente enigmáticos da História do Cinema é a
improvável parceria entre o dramaturgo Samuel Beckett (Prêmio Nobel de
Literatura 1969) e o ator Buster Keaton, o rei das comédias-pastelão do cinema
mudo. Film (1965) dura apenas 22 minutos, pode ser visto online, e não tem
nenhum diálogo, o que de certa forma corresponde ao currículo do ator principal
(Keaton) e ao temperamento do roteirista (Beckett).
O roteiro foi esboçado por Beckett em 1963, e a filmagem aconteceu em New
York, em 1964, com a presença do autor – a única viagem de Samuel Beckett
aos Estados Unidos.
O diretor do filme, Alan Schneider, tinha experiência apenas teatral, tendo
dirigido numerosas montagens da obra de Beckett, inclusive a estréia de
Esperando Godot no EUA, em 1956. Film é sua criação cinematográfica mais
conhecida.
O filme é a narrativa puramente visual, num ambiente urbano meio em ruínas,
da aparente fuga de um homem encapotado (Keaton), em plena luz do sol,
procurando ocultar-se às vistas de outras pessoas e trancando-se num quarto,
onde aparentemente mora.
Sempre perseguido pela câmera (que entra com ele no quarto), o homem passa
a bloquear tudo que pareça estar observando-o. Coloca cobertores vedando a
janela, o espelho, depois cobrindo a gaiola onde há um papagaio, e até mesmo
o aquário onde um peixinho parece vigiá-lo. Numa cesta no meio do quarto há
um gato e um pequeno cão; o homem leva cada um deles até a porta e os
empurra para o corredor.
Nste trecho há a única ação que um fã de Buster Keaton pode identificar com
suas comédias tradicionais, porque ele põe o gato para fora, vem buscar o cão,
e quando abre a porta para livrar-se do cão o gato entra de novo. Isso se repete
algumas vezes – é uma gag clássica do cinema mudo.
Depois o homem manuseia e rasga algumas fotografias (que supostamente
reproduzem sua vida desde a infância), e um desenho pregado na parede. Por
fim, a câmera (que estava sempre às suas costas) mostra seu rosto: ele usa uma
venda negra sobre o olho esquerdo, e quando olha para a câmera vê-se a si
mesmo, como se a câmera fosse seu “duplo”, vigiando-o sem parar.
No saite “UbuWeb” (o “YouTube da vanguarda”) há um relato do diretor Alan
Schneider descrevendo o entusiasmo e o horror de alguém que está dirigindo
um filme-de-verdade pela primeira vez. Exultante por estar trabalhando com dois
dos artistas que mais admirava, ele lamenta a própria inépcia, a própria
inexperiência, e faz comentários tipo: “O segundo dia de filmagem nos trouxe
diferentes problemas, mas foi tão horrendo quanto o primeiro”.
A Wikipedia (na sua versão em inglês) tem um verbete surpreendentemente
longo e opinativo sobre o filme. Um dos comentários mais interessantes é o que
o compara ao poema de Victor Hugo “La Conscience”, em que o poeta compara
a consciência humana a um olho sempre em vigia, um olho que nunca se fecha.
Comparação que não deixa de me evocar a imagem do morcego, no soneto
famoso de Augusto dos Anjos:
A consciência humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
imperceptivelmente em nosso quarto!
O personagem de Buster Keaton consegue se livrar da janela, do espelho, do
cão, do gato, do papagaio, do peixe, até mesmo dos rostos pintados ou
fotografados que o contemplam: mas no final é forçado a reconhecer a presença,
dentro do quarto, da câmera, que age como um sucedâneo dele próprio. A
câmera que, como ele, só tem um olho. A câmera que, como o morcego, é ao
mesmo tempo cega e dotada de um radar próprio.
Não deve ter escapado aos críticos o fato de que o Olho é uma das mais antigas
imagens de Deus, aquele que tudo vê, tudo sabe, tudo vigia, tudo fiscaliza, tudo
testemunha.
Curiosamente (por uma dessas sincronicidades serendipíticas na vida de quem
escreve) fui consultar online uma resenha de Andrew Sarris, um crítico que leio
com proveito, mesmo que às vezes rilhando os dentes de irritação. Ele descarta
Film como sendo “um fracasso completo” e observa, com agudeza, que por ser
silencioso o filme abre mão da maior qualidade de Beckett como dramaturgo,
que é o seu diálogo.
Ao lado, porém, ele resenha o filme Marlowe (1969), dirigido por Phil Bogart, com
James Garner no papel do detetive Philip Marlowe. E a certa altura diz:
Vejam só que adendo providencial. O detetive é “o cavaleiro andante do olho
privado e da consciência pública”. Traduzo “private eye” (=detetive particular) ao
pé da letra para manter essa equivalência: o Olho é a consciência controladora
que nos segue, o drone, a câmera da vigilância.
Dizem que no roteiro original de Beckett para Film aparecia uma citação do Bispo
Berkeley, "esse est percipi" = existir é ser percebido. (O que lembra a máxima
do grande Pudóvkin, cineasta russo: “O ator não-iluminado não existe”). Todos
nós vivemos (diz a tradição) sob o olhar de Deus, e se sua atenção se desviasse
de nossa pessoa por um segundo apenas, seríamos instantaneamente
evaporados. (Não deixa de ser encantadora essa humaníssima capacidade
divina para a distração.)
O roteiro de Beckett prevê estes dois personagens, que ele chama de “E” (Eye
= a câmera) e de “O” (Object = Buster Keaton). “E” sempre acompanha o
personagem filmando-o pelas costas de maneira sorrateira e implacável; quando
“O” percebe sua presença, encolhe-se, assustado, irritado, pronto para fugir.
Fico
imaginando
se
Beckett
terá
em
algum
momento
pensado,
trocadilhisticamente, em chamar um destes dois personagens de “I”, que seria
ao mesmo tempo “Eu” e “Olho” (=eye). Um Eu todo encapotado em pleno sol de
verão (como o “homem invisível” de Wells, que precisava cobrir-se de roupas
para ninguém “vê-lo” e perceber que ele é invisível) e um Olho que o persegue
voyeuristicamente, arrastando consigo todos nós, curiosos de saber por que,
para aquele homem, ser visto é algo tão doloroso.
Film é um desses trabalhos pouco visíveis mas que deixam ecos em obras mais
conhecidas – basta lembrar o caso de Eraserhead (1977), o filme de estréia de
David Lynch, que parece uma glosa e desdobramento de alguns temas deste
curta.
A equipe técnica do filme inclui ainda o diretor de fotografia Boris Kaufman, russo
de nascimento (como o diretor Schneider), e um dos grandes fotógrafos de
cinema de sua geração, com trabalhos do nível de L’Atalante (1934), Sindicato
de Ladrões (1954), 12 Homens e uma Sentença (1957), O Homem do Prego
(1964).
Curiosamente, Kaufman era irmão do documentarista Dziga Vertov, o criador do
“cinema-olho” soviético com filmes tipo O Homem com a Câmera (1929), cujo
título ecoa o do filme de Buster Keaton The Cameraman (1928).
(O Homem com a Câmera, 1929, Dziga Vertov)
O homem, a câmera, o olho: uma mitologia cinematográfica que poderia ser mais
e mais estendida, sempre evocando a experiência religiosa de sentir-se vigiado
por um Deus, ou a experiência de sentir-se investigado por um policial, ou a
experiência de ser seguido e fotografado por fãs, jornalistas, paparazzi,
curiosos...
Os três principais responsáveis por Film foram homens de vidas atribuladas,
sujeitas
a
acidentes
levemente
absurdos,
retrospectivamente seus temperamentos paranóicos.
(Buster Keaton)
que
parecem
justificar
Buster Keaton trabalhou em centenas de comédias amalucadas, absurdistas,
sempre correndo, caindo, chocando-se com objetos, pulando de edifícios, sendo
espancado, atropelado. Diz-se que após sua morte o médico legista perguntou
a sua esposa sobre a ocasião em que ele quebrou o pescoço, por volta do ano
tal-e-tal. Ela desconhecia o fato – sabia apenas que durante uma filmagem
naquele ano ele machucou o pescoço mas no dia seguinte foi trabalhar
normalmente, mesmo reclamando. O pescoço curou-se sozinho.
Keaton assinou um contrato com o estúdio para cristalizar sua imagem como “o
homem que não ria”. Nunca riu num filme. Raramente foi visto sorrindo em
público.
(Samuel Beckett)
Samuel Beckett era um misantropo permanentemente recluso, com poucos
contatos sociais. Embora seus amigos mais íntimos desmentissem certos mitos
em torno dele, sua vida e sua obra são um longo obituário da comunicação
humana. Quando tinha trinta e poucos anos, Beckett foi esfaqueado na rua por
um desconhecido; durante o inquérito, perguntou ao atacante por quê fizera
aquilo, e ele respondeu: “Não sei, senhor... desculpe”.
(Alan Schneider)
O absurdo também visitou o diretor Alan Schneider. Em 1984 ele estava em
Londres, dirigindo uma peça, e atravessou uma rua com a intenção de postar
uma carta para seu amigo Beckett. Esquecido de que a “mão inglesa” é ao
contrário da norte-americana, ele olhou para o lado errado e morreu atropelado
por uma moto.
Para ver o filme:
https://www.ubu.com/film/beckett_film.html
O depoimento do diretor:
https://www.ubu.com/papers/beckett_schneider.htm
5015) Natal 2023 (24.12.2023)
("A Arena", 1950, Maria Helena Vieira da Silva)
1
... e torno ao labirinto de onde escapo
sabendo que não há lado de fora:
labirinto do Hoje, o Aqui, o Agora...
Du bist so schön, ó glorioso instante!
Meu desejo é que o tempo desencante
a si mesmo, e distenda seu elástico
transformando um só dia num fantástico
sempre-agora – incessante, inacabável...
É pecado sonhar? É condenável
brincar de crer no que não pode ser?
2
Falar do Tempo é luta e é prazer,
bastidores e palco, treino e jogo.
Alguns dizem que o Tempo é como o fogo;
tanto destrói quanto ilumina e aquece.
Outros dizem que o Tempo se parece
a um Olho que rói tudo que observa:
a carne, o chão, a água, o bicho, a erva,
a beleza, a verdade e a memória...
Corrosiva visão que cria a História:
soma do que esquecemos e lembramos.
3
Por piores Natais nós já passamos!
Vamos então sorrir no que há sorrisos,
fantasiar trenós, renas e guizos
como fantasiamos hobbits e ETs...
Nada melhor do que “Era uma vez...”
pra reduzir o peso do real.
O peso do existir, ser material,
ter doenças, incômodos e achaques,
ficar sujeito à dor, aos piripaques,
às síndromes de nomes estrangeiros...
4
São duzentos milhões de brasileiros
cada qual com seus corpos e seus traumas,
todos sonhando que possuem almas
e que todas vão ter segundas-chances...
Pobre de mim, que li tantos romances
e aprendi a descrer da crença alheia...
O mundo é sem Aranhas. É só Teia,
mero desenho e possibilidade;
não existe arquiteto ou divindade,
existe o espaçotempo – e a matéria.
5
Sendo assim, o Natal é coisa séria;
futebol, carnaval, apendicite,
Grammy e Oscar, Nobel e dinamite,
todas as ilusões desta existência!
Tudo é sério: o humor e a ciência,
o ser e o nada, o cu e a cueca,
o deus de Roma e o alá de Meca,
a reza, a rosa, a prosa e a poesia,
a honestidade e a patifaria,
o fato, o fóton, a foto, o selfie, o fake...
6
Todo palácio vale um milk-shake!
Um mendigo equivale a um senador!
Um vampiro de filme de terror
não é menos real que o cineasta.
O Real é tufão que tudo arrasta,
ventania que varre o mapa-múndi,
poeira que nos cega e nos confunde,
o tempo, o vento que nada perdoa...
Tudo é real onde existir pessoa,
esse espelho-do-ser chamado gente.
7
E o Natal acontece novamente!
E Boas Festas a quem merecê-las.
“Alforje ao ombro, recolhendo estrelas”,
eu retorno, à maneira de Seu Nilo,
e de astro em astro vou enchendo um silo,
e com esperança aguardo o ano seguinte,
e brindo com meu vinho sub-20
à saúde de todos, todas, “todes”...
Irão me achar no camarim dos “roadies”
onde a conversa é mais interessante.
8
Errar é humano? Eu sou judeu errante,
andarilho da idéia. I am the walrus.
Minha estrada é moebius-ouroboros,
o meu chão é de vácuo e é de vento,
um mar de mármores em movimento,
vagalhão congelado que goteja...
Pois venha o tempo, e o que vier, que seja!
Isto aqui não é sangue, é vinho tinto.
Chego à saída deste labirinto,
empurro a porta onde se lê: da capo...
5016) Drummond: "Romaria" (27.12.2023)
("Deus e o Diabo na Terra do Sol")
As romarias ou peregrinações são eventos curiosos, onde há de tudo –
mortificação do corpo, diversão, penitência, passeio, busca da transcendência,
busca do gregarismo, jornadas espirituais íntimas, afirmações coletivas de união
em torno de uma fé.
Penso nisto quando avalio toda a variedade de peregrinações, inclusive os
caminhantes de Santiago de Compostela e os romeiros dos Contos de
Canterbury de Chaucer.
Histórias de peregrinações são sempre “road movies”, filmes (ou romances) de
estrada, de tudo que acontece aos peregrinos durante um trajeto fixo, mítico,
carregado de significação em cada pedra, em cada árvore.
A romaria é uma forma reduzida de peregrinação – muitas vezes se dá no interior
de uma mesma cidade, ou na direção de uma cidade vizinha; mas o espírito é
quase o mesmo.
(Juazeiro)
As romarias cristãs dos brasileiros têm um pouco desses formatos tradicionais,
como têm um pouco de tudo.
Minha mãe fazia romaria todos os anos para o Juazeiro do Padre Cícero,
geralmente na época do Dia dos Finados. Era um grupo de gente idosa e super
animada; anualmente faziam uma vaquinha e alugavam um ônibus com
motorista para levá-los ao Horto do Padrinho. Iam cantando de Campina Grande
até o Cariri cearense. Levavam lanche, marmita, farofa. Chegando lá, rezavam,
tiravam fotos, reencontravam amigos distantes, pagavam promessas antigas,
faziam promessas novas, e voltavam felizes da vida.
Eu já tinha minhas fumaças agnósticas, mas adotava uma postura filosófica e
dizia: “Deixa, é o Woodstock deles.”
Pensamos na romaria como uma caminhada só de sofrimentos, talvez porque
nos venha a imagem dos peregrinos auto-flagelantes, que caminham
chicoteando as próprias costas e deixando um rastro de sangue. Mas toda
romaria é heterogênea. Há os masoquistas, os comerciantes (romaria é como
carnaval de rua, está cheia de gente com isopor vendendo alguma coisa), os
festeiros, os compungidos e circunspectos, os que estão aproveitando aquela
chance de sair do confinamento doméstico...
("Deus e o Diabo na Terra do Sol")
Gilberto Gil fez um dos melhores retratos na clássica “Procissão” (1967):
Olha, lá vai passando a procissão
se arrastando que nem cobra pelo chão...
As pessoas que nela vão passando
acreditam nas coisas lá do céu...
As mulheres cantando tiram verso,
os homens escutando tiram o chapéu,
eles vivem penando aqui na Terra
esperando o que Jesus prometeu.
A procissão de Gil sempre me evocou visualmente, por motivos óbvios, aquela
multidão de pedintes andrajosos que em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964,
Glauber Rocha) avança ao longo daquele buñuelesca escadaria do Monte
Santo, seguindo o profeta Sebastião com seu burel esfarrapado e sua cruz que
não passa de dois galhos esquálidos atados com cordas.
("Deus e o Diabo na Terra do Sol")
Diferente é a “Romaria” que Carlos Drummond de Andrade incluiu em seu livro
de estréia (Alguma Poesia, 1930). O retrato feito por Drummond é mais rico, mais
variado, tem algo das procissões auto-punitivas, tem algo das procissões
festivas, chega a parecer uma festa-de-largo ambulante, mas não deixa de exibir
seu elenco de devotos maltrapílhos que lembram os mendigos de Viridiana ou
de Los Olvidados.
Existe mortificação física (espinhos, pedras) mas em compensação as romeiras
têm coxas, os homens cantam sem parar, joga-se baralho, fumam-se cigarros,
é dia de festa.
É curioso que um poema assim talvez fosse a oportunidade para um poeta cético
e modernista dirigir alguma crítica ao excesso de fanatismo. O poema de
Drummond parece criticar o excesso de festa, é como se dissesse: “Pessoal,
vamos devagar, isto aqui não é quermesse!”. Mas... no Brasil tudo que tem
multidão vira quermesse.
("Deus e o Diabo na Terra do Sol")
E os inesgotáveis pedidos! Pedem a Deus tudo quanto não têm, e não é pouco.
Talvez o pedido mais patético e sutil seja o desse leproso (outro personagem
buñuelesco), que traja uma opa (casacão comprido), agita um estandarte, e pede
a Deus para ser curado – mas não da doença, e sim do amor que sente e
ninguém retribui.
***********************
Romaria
A Milton Campos
Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.
Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.
No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha um estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.
Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa.
No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.
Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.
Senhor, meu amo, dai-me dinheiros,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não pissui.
Jesus me Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.
Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.
Os romeiros pedem com olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade.
5017) Resoluções para 2024 (30.12.2023)
(Saul Steinberg, 1949)
Tirar a poeira que provavelmente se acumulou por trás dos livros nas prateleiras
da estante. (Ou pagar alguém para fazê-lo, o que está mais próximo ao reino das
possibilidades.)
Fazer uma consulta no oculista; trocar as lentes dos meus óculos, mais
arranhadas do que o escudo de Sir Lancelote; e, talvez, parar de ler os livros
como se lesse em Braille com a ponta do nariz. (Bem, devo estar exagerando,
mas a miopia está tão avançada que a olho nu não distingo entre enxergar e
exagerar.)
Entregar aquele texto atrasado, mas não esquecido. (Desculpa aí, amigos, mas
o que nasce de parto natural tem seu ritmo próprio, e ainda não se inventou a
cesariana literária.)
Dar uma nova chance a pelo menos um terço dos livros que no ano passado não
passaram no Teste do Primeiro Capítulo. (Sim, sei que o critério é brutal, mas
trata-se de uma pilha com cerca de quarenta ou cinquenta obras, e nestas horas
não sou mais o intelectual diletante e complacente, sou segurança-de-boate com
dentes de titânio e tatuagem de Chuck Norris no bíceps, e só tem acesso quem
fizer por onde.)
Responder todas as mensagens ainda não respondidas, assim que for capaz de
decidir se devo fazê-lo por ordem cronológica, por ordem alfabética, ou por
ordem de importância. (E, neste último caso, retomar os originais dos meus
Prolegômenos a uma Taxonomia Hierárquica das Motivações Subjetivas dos
Meus Assim-Ditos Semelhantes, interrompida na página 638 no início da
pandemia.)
Investigar mais a fundo o dúbio acidente de automóvel que vitimou o escritor
Albert Camus, nos primeiros dias de janeiro de 1960, e que muitos dizem ter sido
um crime premeditado. (Paul Auster é um dos que defendem essa tese
polêmica.)
Pesquisar com detalhes o meu projeto antigo de criar na Paraíba uma
reprodução do “Caminho de São Tiago de Compostela”, começando em João
Pessoa (Ponta do Seixas) e indo até Cajazeiras, a última grande cidade
paraibana, num trajeto feito a pé. (Calcular número de quilômetros por dia,
possíveis paradas, albergues, etc.)
Escrever um livro de contos intitulado “Praça de Alimentação”, com pequenas
cenas, diálogos, etc., ambientados nas respectivas praças de alimentação de
dez shoppings de cidades brasileiras, com detalhamento de descrição suficiente
para serem identificados, mas sem dizer quem é quem. (O livro será um bestseller absoluto, porque irá impactar lucrativamente na frequência a esses
recintos, e receberá um impulso comercial extra sempre que uma das praças for
identificada sem sombra de dúvida.)
Escrever uma biografia de B. Traven. (Já que ninguém sabe quem foi ele ao
certo, embora sua obra literária seja famosa, qualquer biografia tá valendo.)
Desencaixotar aquela parte da mudança de 2019 na qual ainda não tive ânimo
para mexer. (Principalmente porque muitos livros sumiram na mudança, quem
me garante que não estarão ali? Questão de lógica elementar!...)
Redigir o piloto daquela série de TV que será um grande sucesso, “Dennis vs.
Sheldon”, em que o Pimentinha dos gibis encontra o Young Sheldon, o futuro
protagonista da série The Big Bang Theory. (Verossimilhança cronológica à
parte, claro, porque esse detalhamento diegético fica para esse pessoal
pentelhante e catador-de-lêndeas, os sheldonianos da vida real.)
Separar as camisas em que é preciso pregar botão. (E mais uma vez me verei
diante do dilema: aprender a costurar aquela cruzinha que sustenta o botão, ou
continuar terceirizando? Fortes emoções nos próximos capítulos.)
Aprender a fazer mágicas. (Sim, muitas pessoas transbordantes de
solidariedade dirão que eu “já faço mágica com as palavras, etc etc...”, mas meu
sonho é fazer mágica com baralho, lenço, pombo, jarro dágua, etc.)
Passear nas três linhas do VLT do Rio, que praticamente não conheço ainda.
(Eu não moro no Rio de Janeiro, moro no meu apartamento.)
Baixar aquele software que atribui uma nota musical a cada tecla deste meu
teclado de escrita, e registrar a melodia-aleatória correspondente a meus
poemas mais conhecidos. (Ainda estou em dúvida se solto as melodias no
YouTube e ofereço um prêmio a quem descobrir, mas isso vai bagunçar minha
rotina, melhor não.)
Traduzir o Eugene Onegin de Pushkin sob o título de Eugene, Oregon, mantendo
o formato de “soneto pushkiniano”, e ambientar a história no noroeste dos EUA,
uma história tipo aquele Paterson de Jim Jarmusch. (Pode parecer uma
violentação à arte do poeta russo, mas muito pior do que isto foi o que fez
Vladimir Nabokov!)
Todos os dias trancar a porta do escritório, pegar o violão, e improvisar sextilhas
sobre temas aleatórios durante 30 minutos. (Só começar a gravar a partir do
quinto mês.)
Ganhar bem muito dinheiro, comprar as casas onde já morei em Campina
Grande, e cedê-las às autoridades para que sejam transformadas em bibliotecas
públicas. (Para ser totalmente realista, a parte mais provável desta proposição é
o seu trecho inicial.)
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