Subido por filipe.starling

LIVRO - Não-Monogamia Responsável - Abrindo a relação com o cuidado que ela merece

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NÃO-MONOGAMIA RESPONSÁVEL
ABRINDO A RELAÇÃO COM O CUIDADO QUE ELA MERECE
FILIPE STARLING
@NAO_MONOGAMIA_RESPONSAVEL
WWW.NAOMONOGAMIARESPONSAVEL.COM
INTRODUÇÃO
ASPECTOS HISTÓRICOS E CONTEXTUAIS
HISTÓRIA DA MONOGAMIA
O DECLÍNIO DO MODELO TRADICIONAL DE CASAMENTO E DA MONOGAMIA
HISTÓRIA DAS RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS
HISTÓRIA DA REPRESSÃO SEXUAL
HISTÓRIA DAS MENTALIDADES E COSTUMES
NÃO-MONOGAMIA POLÍTICA E OPRESSÕES ESTRUTURAIS
MITOS SOBRE A NÃO MONOGAMIA
NÃO-MONOGAMA É O MESMO QUE POLIGAMIA
“SE QUER SER NÃO-MONOGÂMICO, ENTÃO É MELHOR FICAR SOLTEIRO”
“SE AMASSEM O PARCEIRO DE VERDADE NÃO CONSEGUIRIAM VÊ-LOS COM OUTRA PESSOA.”
PESSOAS EM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICOS NÃO SE AMAM DE VERDADE
PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM PROBLEMAS PSICOLÓGICOS
PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM DIFICULDADE PARA SE COMPROMETER OU
DIFICULDADE COM INTIMIDADE
NÃO MONOGAMIA É PARA PESSOAS CONFUSAS QUE NÃO SABEM O QUE QUEREM
RELACIONAMENTO ABERTO É UM NOME CHIQUE PARA PROMISCUIDADE
RELACIONAMENTO ABERTO É PERIGOSO PARA A SAÚDE
CASAMENTO ABERTO É UM AMBIENTE RUIM PARA A CRIAÇÃO DE CRIANÇAS
É SÓ UMA FASE DO RELACIONAMENTO
É UMA TENTATIVA DESESPERADA DE SALVAR A RELAÇÃO
NÃO MONOGAMIA É O MESMO QUE INFIDELIDADE
OS DIFERENTES TIPOS DE RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS
COMO ESCOLHER ENTRE AS DIFERENTES FORMAS DE RELACIONAMENTO NÃO MONOGÂMICO?
RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ?
MOTIVAÇÕES INADEQUADAS PARA SE ABRIR A RELAÇÃO
COMO SABER SE O RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ?
O QUE FAZ UM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICO FUNCIONAR
AUTOCONFIANÇA E BOA AUTOESTIMA
CONSENTIMENTO
SABER BEM NO QUE ESTÁ SE METENDO
CAPACIDADE DE AUTORREFLEXÃO E AUTOCONHECIMENTO
INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
ABERTURA PARA SER HONESTO E VERDADEIRO EM RELAÇÃO A TUDO
CONSCIÊNCIA DOS PRÓPRIOS LIMITES
CAPACIDADE DE LIDAR COM CONFLITOS
BOA CAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO
TER CLAREZA SOBRE O QUE ESTÁ SENDO ACORDADO
ESTABELECENDO REGRAS E COMBINADOS
REGRAS X COMUNICAÇÃO
REABRINDO A RELAÇÃO
PROBLEMAS COMUNS, ARMADILHAS E DESAFIOS DAS RELAÇÕES ABERTAS
MANEJO DO TEMPO E NEGLIGÊNCIA DO RELACIONAMENTO PRINCIPAL
USAR A ABERTURA PARA FUGIR DA RELAÇÃO
USAR A ABERTURA PARA ATINGIR O OUTRO
QUANDO UM SENTE QUE ESTÁ APROVEITANDO MENOS QUE O OUTRO
PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO
QUEBRA DE COMBINADOS
QUANDO UM DOS PARCEIROS SE APAIXONA POR ALGUÉM
DESAPROVAÇÃO DE AMIGOS, FAMÍLIA E SOCIEDADE
LIDANDO COM O CIÚME E OUTROS SENTIMENTOS DIFÍCEIS
COMPERSÃO: ANTÍTESE DO CIÚME?
ABRINDO A RELAÇÃO COM O CUIDADO QUE ELA MERECE
PROPONDO A ABERTURA DA RELAÇÃO
QUANDO NÃO SE CHEGA A UM ACORDO
INTELIGÊNCIA ERÓTICA: CULTIVANDO A INDIVIDUALIDADE NAS RELAÇÕES
CUIDANDO CADA UM DA PRÓPRIA SEXUALIDADE
RECURSOS TECNOLÓGICOS PARA NAVEGAR NO UNIVERSO DA NÃO-MONOGAMIA
FONTES DE INFORMAÇÃO DE QUALIDADE ONLINE
FILMES E SÉRIES DO NETFLIX
RECADOS FINAIS
REFERÊNCIAS
LIVROS
ARTIGOS CIENTÍFICOS
SITES, MATÉRIAS E ARTIGOS DA INTERNET
INTRODUÇÃO
Relacionamentos amorosos não-monogâmicos não são um fenômeno recente na
história da humanidade. O que é recente mesmo é a frequência com que novos casais
vêm optando consensualmente por este modelo de relacionamento. Nunca na
história tantas pessoas optaram por abrir mão conscientemente da exclusividade
sexual nas relações amorosas, exclusividade esta que vem sendo a pedra angular dos
relacionamentos desde a revolução neolítica, há cerca de 10.000 anos atrás.
Há muito tempo o casamento vem trazendo como sua cláusula pétrea a exigência de
monogamia compulsória e vitalícia, o que implica numa apropriação da sexualidade
do parceiro, remetendo a uma lógica semelhante à da propriedade privada aplicada
aos relacionamentos amorosos: assim como o carro é meu e só eu posso dirigi-lo,
também a pessoa é minha e só eu posso transar com ela.
O eminente filósofo Immanuel Kant, em seu livro “Metafísica dos Costumes” de 1797,
já definia o casamento como a “união de duas pessoas de sexos diferentes para a
posse mútua e vitalícia de suas qualidades sexuais”, evidenciando claramente essa
lógica da apropriação do outro.
Vemos então que a ideia de posse já está atrelada ao casamento há milhares de anos,
mas é fato que neste século isso vem se modificando rapidamente e os casais têm
optado por abrir suas relações com cada vez mais frequência por diversos motivos,
seja porque estão buscando diversificar sua vida sexual ou simplesmente para
quebrar a monotonia e a rotina do relacionamento. Porém, ao mesmo tempo em que
abrir o relacionamento pode trazer inúmeros benefícios, também traz consigo
enormes desafios e riscos para a relação. É exatamente por essa razão que é muito
importante que o processo seja conduzido de forma responsável e cuidadosa para
não correr o risco de prejudicar o relacionamento ao invés de aprimorá-lo.
Para alguns, a simples ideia de ver o seu parceiro com outra pessoa pode disparar
emoções muito perturbadoras de medo e traição ou até mesmo ativar feridas antigas
relacionadas ao abandono e rejeição. Ao mesmo tempo em que somos seres adultos
e racionais, também trazemos dentro de nós o que os psicólogos clínicos costumam
chamar de “criança emocional”. Essa parte de nós pode reagir de forma bem
irracional ao se sentir ameaçada e não adianta querer passar por cima dela com
argumentos racionais de que ciúme é bobagem ou coisas do gênero!
Todos nós fomos condicionados a acreditar piamente que a monogamia é uma prova
de amor. Sendo assim, abrir mão dessa exigência pode facilmente nos fazer sentir
preteridos ou não amados. A ideia de abrir a relação e de dar liberdade para o outro
pode até fazer muito sentido do ponto de vista racional, mas do ponto de vista
emocional nossa experiência pode ser muito diferente.
Devemos lembrar que o ser humano não tem apenas ideias e conceitos, ele também
experimenta emoções e sentimentos que muitas vezes podem ser experimentados
de forma bastante contraditória em relação aos pensamentos. Em outras palavras,
podemos concordar racionalmente com a ideia de liberar o outro, mas ainda assim,
do ponto de vista emocional, nos sentirmos magoados com isso ou sentirmos muito
ciúme.
É importante, então, não consideramos apenas as reflexões racionais libertárias, mas
também o modo como nos sentimos em relação a tudo isso. As ideias não podem se
sobrepor às emoções, ambas as dimensões precisam ser contempladas e às vezes a
dimensão emocional leva mais tempo para ser digerida do que a racional. Roberto
Freire, médico, psiquiatra, jornalista e escritor brasileiro, descreveu muito bem essa
contradição entre ideias e emoções no seu livro “Sem Tesão Não Há Solução”:
Assim, poucas são as pessoas que não desejariam propiciar essa
liberdade aos próprios sentimentos e à pessoa que ama; porém,
parece ser muito difícil e arriscado conciliar seus impulsos e desejos
libertários com a realidade dos resíduos da formação burguesa em si
mesmos e nos parceiros. Esses resíduos, estimulados pelo ambiente
social, opõem-se radicalmente aos impulsos e desejos libertários,
parecendo que isso é natural, quando, na verdade, não passam de
deformações de caráter incutidas pela educação autoritária e
capitalista que estimula o desejo de poder e só dá segurança na
apropriação e na dominação, tanto no plano material quanto no
afetivo.1
É comum também que as pessoas iniciem um relacionamento afetivo trazendo dentro
de si registros psíquicos de experiências de abandono, rejeição, humilhação ou traição
- marcas emocionais que muitas vezes nem temos consciência. Todas essas feridas
podem vir à tona neste processo de abertura da relação e às vezes o simples fato de
se começar a discutir o assunto pode ser um poderoso gatilho emocional para
algumas pessoas, trazendo bastante sofrimento e turbulência para a relação.
Por isso mesmo, todo o processo deve ser feito com muita calma e respeito pelas
emoções e sentimentos de ambos os parceiros. Só podemos dizer que se trata de
uma não-monogamia RESPONSÁVEL quando este processo é conduzido de forma
conversada, consensual e amorosa, levando em consideração os sentimentos
e percepções de todos os envolvidos, a partir de uma ética do cuidado e da
autonomia. É importante lembrar que quando optamos por renunciar à exclusividade
afetivo-sexual em nosso relacionamento estamos fazendo isso para melhorar a
relação e não o contrário. Fazemos para aumentar as possibilidades de prazer, gozo
e alegria, ou seja, é para somar e não subtrair!
Logo, se por algum motivo optarmos por renunciar à tradição de tomar posse da
sexualidade e do afeto da outra pessoa e seguir pelo caminho do relacionamento nãomonogâmico consensual, é absolutamente crucial que esse processo seja feito de
forma cuidadosa para não gerar sofrimento desnecessário e colocar em risco nosso
relacionamento, que muitas vezes é o que temos de mais precioso na vida.
Este é o propósito básico deste livro, instrumentar as pessoas a navegarem pelo
universo das relações não-monogâmicas de forma responsável e cuidadosa, visando
1
FREIRE, R. (1987). Sem Tesão Não Há Solução. Ed. Guanabara
beneficiar ao máximo o relacionamento e minimizar os possíveis percalços que
possam surgir nessa caminhada.
Visão geral do livro
Neste livro vamos abordar os diferentes modelos de relações não-monogâmicas
consensuais, descrevendo as características que os diferenciam e elencando as
possíveis indicações e desafios associados a cada um. Discutiremos também alguns
aspectos históricos associados ao casamento, amor romântico, sexualidade e
monogamia, além de refletir sobre como se modificam as mentalidades e costumes
ao longo do tempo.
Descreveremos as motivações mais frequentes que levam as pessoas a optarem por
relacionamentos não monogâmicos, bem como alguns elementos que devem ser
considerados para avaliar se este modelo de relação é realmente indicado para você.
Além disso, abordaremos alguns mitos relacionados à não-monogamia e veremos o
que faz um relacionamento aberto funcionar e o que pode atrapalhar.
Vamos abordar também a questão da inteligência erótica, o conceito de nãomonogamia política, critérios para estabelecer os combinados que vão reger a relação
e, por fim, vamos descrever como construir a relação aberta ideal para você e como
lidar com o ciúme e outros sentimentos intensos que podem surgir neste processo.
Ao longo do livro também serão apresentados diversos depoimentos verídicos de
pessoas que optaram pela não-monogamia consensual em seus relacionamentos. Por
uma questão meramente prática, optamos por manter a linguagem toda no
masculino, mas todos os gêneros e orientações sexuais estão sendo contemplados
nesta obra.
Boa leitura!
ASPECTOS HISTÓRICOS E CONTEXTUAIS
A instituição do casamento como conhecemos atualmente é muito recente. Durante
a maior parte da história, o casamento teve o papel apenas de organizar as alianças
familiares, sempre em função de interesses políticos e econômicos, sendo impensável
levar o amor em consideração neste processo. O casamento era visto mais como um
negócio, algo muito sério para se misturar com amor.
Foi só muito recentemente na história que o amor entrou no casamento e isso
começou a acontecer mais ostensivamente após a revolução industrial, que
promoveu um grande êxodo em direção às cidades, o que favoreceu o fortalecimento
da família nuclear em contraposição às grandes famílias rurais. Neste contexto de
profundas mudanças estruturais na sociedade, os relacionamentos amorosos
surgiram para compensar essa perda afetiva advinda do afastamento das famílias de
origem, quase como um remédio contra o isolamento e a solidão das grandes cidades.
Porém, embora a experiência amorosa seja universal, a vivência desse sentimento
não ocorre da mesma maneira em todas as sociedades e variou muito ao longo da
história. Durante o Iluminismo, por exemplo, o amor foi vinculado ao ridículo, por
afastar o homem da razão que o devia guiar. Mesmo nos tempos atuais o amor é
vivido de forma diferente de acordo com a cultura... Enquanto no modelo de amor
romântico desenvolvido no ocidente tentamos nos sentir inteiros a partir de algo
externo a nós - a relação amorosa com outra pessoa - os orientais, ao contrário, se
voltam para dentro de si mesmos em busca da completude. Eles desconhecem o amor
romântico e se propõem, por conta própria, a amenizar a sensação de falta através
de um processo de individuação, numa busca por si mesmo ao invés do outro.2
O modelo de amor vigente no mundo ocidental - o modelo do amor romântico - surgiu
no período do Romantismo como um contraponto à racionalização excessiva do
Iluminismo. Este modelo de amor foi impulsionado pelos filmes de Hollywood e
2
Citado em NAVARRO, Regina (2012). O Livro do Amor (Vol 1). Ed. Best Seller.
entrou pra valer no casamento a partir de 1940, como analisa o sociólogo Túlio Cunha
Rossi em sua pesquisa de doutorado publicada no livro “Uma sociologia do amor
romântico no cinema”. Neste livro, o autor revela como
o cinema constrói regras de sentimento, normas que são
compartilhadas socialmente e que dirigem a maneira pela qual nós
devemos ou deveríamos sentir as emoções, em particular, o amor.3
Uma das características deste modelo de amor romântico tão propagado pela
indústria cultural de Hollywood é que nele a derivação de todas as necessidades do
indivíduo passa a vir do casamento. Como explica Esther Perel em seu livro “Sexo no
cativeiro: Como manter a paixão nos relacionamentos”:
Matrimônio era uma instituição econômica em que havia uma
parceria por toda a vida em relação aos filhos, status social, sucessão
e companhia. Hoje em dia queremos que nosso parceiro continue a
nos dar tudo isso e, além disso, quero que seja meu melhor amigo,
meu confidente e meu amante apaixonado, sem contar que vivemos
o dobro do tempo. Então nós basicamente pedimos a uma pessoa
que nos dê o que antes um vilarejo inteiro nos fornecia. Dê-me
merecimento,
identidade,
continuidade,
mas
também
transcendência, mistério e admiração, tudo junto. Dê-me conforto e
limite. Dê-me novidade e familiaridade. Dê-me previsibilidade e
surpresa.
A psicanalista Regina Navarro descreve a ideologia do amor romântico que rege os
relacionamentos no ocidente da seguinte forma:
O amor romântico apresenta atitudes e ideais próprios. Contém o
conceito de que duas pessoas se transformam numa única, havendo
complementação total entre elas, sem nada lhes faltar. E abarca
ainda outas expectativas, que na prática não são realistas: a de que
quem ama não sente desejo sexual por mais ninguém, de que o
3
Uma versão resumida do texto pode ser encontrada aqui: https://associacaoportuguesasociologia.pt/ix_congresso
/docs/final/COM0037.pdf
amado é a única fonte de interesse do outro e que não é possível
amar duas pessoas ao mesmo tempo.4
É justamente por isso que a exclusividade sexual é tão importante neste modelo do
amor romântico, porque ela confirma que o outro pode satisfazer todas as nossas
necessidades, não sendo necessário mais ninguém de fora. E quando alguém
demonstra interesse por outro, isso abala os alicerces dessa idealização, pois implica
que o parceiro ou a parceira não são tudo na vida um do outro.
Neste contexto, quando nos pegamos atraídos por outras pessoas, sentimo-nos
culpados porque entendemos que não deveríamos estar sentindo aquilo. Alguns vão
negar o desejo e acabar alimentando um ressentimento por negarem algo que era
importante para si. Já outros vão para o lado da indulgência, cedendo ao impulso pela
via da traição; enquanto outros vão terminar o relacionamento e iniciar um novo,
levando ao que se convencionou chamar de monogamia serial.
Uma estratégia alternativa seria conversar abertamente sobre a questão, enfrentar
os medos e o julgamento dos outros e reconhecer que uma só pessoa não é, nem
deveria ser capaz de satisfazer todas as nossas necessidades emocionais e sexuais. A
partir dessa aceitação pode-se optar, de uma forma ética e responsável, por abrir
espaço na relação para buscar a satisfação de algumas necessidades com pessoas de
fora, seja individualmente ou em conjunto com o parceiro, levando ao modelo que
chamamos de não-monogamia responsável, onde existe abertura consensual na
relação para satisfação de algumas necessidades e desejos com outras pessoas que
não o parceiro.
Olhando de fora, pode parecer que esses casais estão abrindo mão da segurança da
monogamia, mas isso não é necessariamente verdade. Em primeiro lugar porque
sabemos que a traição é uma das coisas mais comuns nos relacionamentos ditos
monogâmicos. Em segundo lugar porque quando deixamos o outro livre, passamos a
4
Essa entrevista com Regina Navarro pode ser encontrada aqui: https://veja.abril.com.br/cultura/o-fim-do-amorromantico-por-regina-navarro-lins/
entender que ele está com a gente porque está a fim e não porque está sendo
obrigado. Afinal de contas, de que adianta a pessoa ficar só comigo apenas porque
está proibida de ficar com outras pessoas? Ou como expressou poeticamente Richard
Bach: “Se você ama alguém, deixe-o livre. Se ele voltar, é seu. Se não, nunca foi”.
A monogamia é a pedra angular do modelo de amor romântico que rege o que se
espera dos relacionamentos no mundo ocidental nos dias de hoje, mas sua origem se
remete a um período muito anterior.
HISTÓRIA DA MONOGAMIA
De onde vem essa exigência cultural da monogamia? Será que a humanidade sempre
viveu assim? Certamente não! A monogamia surgiu em um contexto muito específico
para atender a uma demanda muito pragmática do período neolítico.
A humanidade existe há cerca de 200.000 anos, mas somente nos últimos 10.000
anos, na passagem do período paleolítico para o neolítico, é que surgiu a exigência da
monogamia. Com a revolução agrícola e pecuária, as famílias passaram a se
estabelecer em uma terra fixa, surgindo com isso a propriedade privada ou o que se
convencionou chamar de “minha terra, meu rebanho”. A partir do momento em que
temos a propriedade das terras bem estabelecidas, surge a necessidade de se passar
a herança da posse para os legítimos herdeiros - os filhos do dono.
Para garantir a proteção da linhagem paterna, surge a exigência de monogamia
compulsória para as mulheres, pois só assim se poderia ter certeza de que a criança
gerada era realmente do proprietário da terra, como explica Amanda Gomes:
Sendo a mulher monogâmica, seria possível assegurar a filiação
biológica do homem, garantindo, assim, a sucessão da propriedade
privada da família para filhos legítimos. Historicamente, portanto, o
surgimento da monogamia foi tardio, sendo concomitante à criação
da propriedade privada, em um período de transição da sociedade
matriarcal para a patriarcal. Constata-se que seu objetivo era de
proteção do patrimônio da família e, consequentemente, da
linhagem de filiação do casal.5
Vemos então que a monogamia se insere exatamente no contexto do surgimento da
sociedade patriarcal, aonde todo o poder passa a estar nas mãos do homem. Por isso
essa exigência era feita somente para as mulheres:
Na família Monogâmica, o homem é o centro do poder. A família é
mais sólida, pois somente o homem pode encerrar o casamento. O
homem tem o direito irrestrito de ser infiel e satisfazer sua libido.
Porém, a mulher é totalmente expropriada desse direito, pois, por
razões econômicas, o homem precisa ter seus filhos legítimos, filhos
da sua mulher oficial. Para garantir que estes filhos sempre fossem
seus, a mulher jamais poderia se relacionar com outro.6
Em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Friedrich
Engels argumenta que a monogamia
(...) nasce conjuntamente com a opressão de classe, com o
surgimento da propriedade privada, inclusive de outros homens na
forma de escravos, e a opressão feminina com a subordinação da
mulher ao direito paterno para garantir a transmissão de sua
linhagem e propriedade.7
Por essa razão, Engels afirma que a derrota histórica do gênero feminino ocorreu com
o advento da propriedade privada:
Enquanto entre os caçadores e coletores e mesmo no início da
horticultura com estaca ou enxada, as mulheres viviam em condições
igualitárias e eram as mais importantes fornecedoras de comida e
criadoras dos artesanatos, com a expansão da agricultura extensiva
e o surgimento de excedentes, sua condição social decaiu para um
tipo de servidão.8
5
GOMES, Amanda. Monogamia: princípio ou delírio coletivo? Este texto pode ser encontrado aqui:
https://amandagomes75.jusbrasil.com.br/artigos/663607728/monogamia-principio-ou-delirio-coletivo?ref=feed
6
VERSALLES, L.; VIANA, G.; ZANARDO, L. C. (2018). Nas Grades do Estado. Ed. Clube de Autores.
7
Idem.
8
Ibidem.
Enquanto existíamos como caçadores e coletores, por quase 200.000 anos, as
relações sexuais eram vistas como expressão de um intercâmbio generalizado, não
havendo nenhuma exigência de exclusividade. Um exemplo desse regime é registrado
por um cronista jesuíta entre os índios do Canadá, no século XVIII, quando ao tentar
convencer um indígena a abdicar dessa “promiscuidade” na qual sua esposa
frequentava diversos outros homens, argumentou-lhe que ele, assim, não poderia
nem sequer ter a certeza da paternidade sobre seus filhos, ao que o indígena
respondeu que isso “não lhe importava, pois se entre os brancos um homem ama
apenas seus filhos, na sua tribo os homens amavam igualmente todas as crianças.”9
A situação muda por completo com o surgimento da propriedade privada e aos
poucos a monogamia foi se convertendo na norma social que rege as relações afetivosexuais no ocidente. Inicialmente essa exigência era feita apenas para as mulheres, a
fim de garantir a procriação de filhos legítimos. Posteriormente, com o advento da
moral cristã, essa exigência passa a se estender também para os homens. Com o
passar do tempo, o amor romântico acabou incorporando essa exigência de
monogamia como forma de idealização do casamento, como explica Amanda Gomes:
A aproximação da monogamia com o amor romântico surge no
século XVIII, com o Romantismo nas artes, sendo Jean-Jacques
9
VERSALLES, L.; VIANA, G.; ZANARDO, L. C. (2018). Nas Grades do Estado. Ed. Clube de Autores.
Rousseau um dos precursores do movimento que idealizou a união
entre casamento, sexo, amor e monogamia. O filósofo acreditava
que, através da realização pessoal dos indivíduos no seio familiar, era
possível alcançar o bem-estar comum.10
Uma vez estabelecida como prática social recorrente, torna-se um fato jurídico
relevante a passa a ser normatizada nos termos da lei. No Código Civil brasileiro de
2002, por exemplo, a fidelidade recíproca aprece no rol de deveres de ambos os
cônjuges no matrimônio, devendo estes se relacionarem sexual e afetivamente
apenas entre si. Para se ter uma ideia, ainda em 2015, o adultério era considerado
crime em 21 estados dos Estados Unidos, com penas variando entre uma multa de 10
dólares no estado de Maryland até quatro anos de prisão em Michigan.11
Vemos então que essa cultura da monogamia compulsória e vitalícia que herdamos é
fruto de um alinhamento ideológico entre Sociedade, Estado e Religião, sendo que
em muitos lugares essa exigência se faz cumprir pela lei. Não é de se estranhar, então,
que quando tentamos sair deste modelo imposto culturalmente sintamos tanto
receio. Afinal, é muito difícil ir no contrafluxo das tradições estabelecidas, sendo algo
que gera muita insegurança e medo de reprovação social.
O DECLÍNIO DO MODELO TRADICIONAL DE CASAMENTO E DA MONOGAMIA
O modelo de casamento tradicional calcado nas ideias do amor romântico vem
apresentando sinais de desgaste nas últimas décadas e aparenta estar, pouco a
pouco, saindo de cena. Chega-se a essa conclusão ao se constatar que ao longo do
tempo a taxa de casamento vem caindo sucessivamente enquanto as taxas de
divórcios só crescem. Pelo menos 50% das pessoas que se casam hoje vão se separar
nos próximos 10 anos. Isso é um fato estatístico.
10
Este texto pode ser encontrado aqui: https://amandagomes75.jusbrasil.com.br/artigos/663607728/monogamiaprincipio-ou-delirio-coletivo
11
Citado na matéria jornalística “Traição pode ser mais do que fim da relação. É um crime”:
https://www.dn.pt/globo/traicao-pode-ser-mais-do-que-fim-da-relacao-e-um-crime-4748116.html
Além disso, mais e mais casais optam por construir suas relações em outras bases,
com menos idealização e mais liberdade. Em grande parte, essas mudanças estão
acontecendo como fruto das revoluções culturais que experimentamos na segunda
metade do século XX, incluindo aí o movimento feminista que libertou as mulheres
de sua escravidão doméstica, o movimento de contracultura que passou a questionar
seriamente os valores das gerações anteriores e a revolução sexual que se consolidou
em 1960 com o desenvolvimento da pílula anticoncepcional.
Nos tempos modernos, cada vez mais o desenvolvimento da própria individualidade
vem se tornando um valor e isso vai na contramão da ideologia do amor romântico,
que prega a anulação do indivíduo em prol da relação (dois se tornando um). Ao invés
de o indivíduo trabalhar pela relação, mais e mais se espera que a relação sirva aos
interesses dos indivíduos.
O desencanto com o modelo tradicional de casamento e a ideologia do amor
romântico surge quando se constata que na realidade é impossível que uma só pessoa
satisfaça todas as nossas necessidades. Não só isso é impossível como é injusto
esperar isso de alguém, como explica a psicanalista Regina Navarro:
O resultado dessas crenças na vida a dois é que, com frequência, um
acaba imaginando o outro como ele não é e espera dele coisas que
não pode dar. O tempo vai mostrando como essa forma de amor se
desenrola. É difícil resistir à convivência diária do casamento. Nela, a
excessiva intimidade torna obrigatório enxergar o parceiro como ele
é e, assim, a idealização não tem mais como se sustentar. O
desencanto é inevitável e aí vem o tédio, o sofrimento e a sensação
de ter sido enganado. Quando percebemos que o outro não é a
personificação de nossas fantasias, nos ressentimos e geralmente o
culpamos.12
Segundo a escritora Laura Kipnis, quando as expectativas oferecidas por este modelo
não se cumprem, tendemos a ficar muito frustrados, achando que a culpa foi nossa
ou que talvez não tenhamos realmente encontrado a pessoa certa... Mas talvez o
12
Essa entrevista com Regina Navarro pode ser encontrada aqui: https://veja.abril.com.br/cultura/o-fim-do-amorromantico-por-regina-navarro-lins/
problema seja do próprio modelo de relacionamento que adotamos, que é calcado
nos ideais inalcançáveis do amor romântico:
Quando cai por terra a expectativa do romance e da atração sexual
eternos, surge a pergunta: "O que há de errado comigo?"
Essas pessoas provavelmente acreditam que o problema não esteja
na instituição em si ou nas suas expectativas impossíveis. Para esses
otimistas, o problema é que por algum motivo eles falharam em
encontrar a pessoa certa ou cometeram algum erro. Ficam
imaginando: "Se eu tivesse colocado as meias no cesto de roupa suja
em vez de largá-las no corredor, tudo teria dado certo".
A questão que eu coloco é: talvez o problema não seja do indivíduo,
mas da incapacidade do casamento em cumprir as promessas de
felicidade. 13
O resultado de toda essa dinâmica é uma enorme frustração. E quando nos sentimos
frustrados, sempre procuramos um culpado para responsabilizar. Só pode ser o
parceiro com quem estamos que não está oferecendo o que eu preciso. Ou mudo de
parceiro ou então eu tento mudar o parceiro:
O casamento transforma pessoas agradáveis em tiranos domésticos.
Criticar os hábitos do parceiro torna-se a conversa-padrão do casal e
a diversão favorita passa a ser modificar o comportamento do
cônjuge. Existe algum momento na vida do casal que não seja
permeado por regras, desde o modo como você coloca os pratos na
máquina de lavar louça até o que pode dizer em uma festa? 14
Outro indicador da falência do casamento é o fato de a traição ter virado uma
epidemia global. De acordo com algumas estatísticas, 75% dos homens e 68% das
mulheres já admitiram ter traído de alguma forma ao menos uma vez na vida. Em
1953 o relatório Kinsey já constatava que 50% dos homens haviam traído ao menos
uma vez até os 40 anos, mostrando que esse problema não é de hoje. Atualmente
existem até sites especializados em traição como o Ashley Madison que conta com 65
13
14
KIPNIS, L. (2005). Contra o amor - uma polêmica. Ed. Record.
Idem.
milhões de usuários no mundo todo que buscam formas mais eficientes de pular a
cerca.
Hoje sabemos que esse alto número de pessoas traindo não é meramente um desvio
moral ou uma falha de caráter, como afirmam David Barash e Judith Eve Lipton em
seu livro seminal “O mito da monogamia – Fidelidade e infidelidade entre pessoas e
animais”:
Os conservadores sociais preferem assinalar o que veem como uma
ameaça crescente aos valores familiares. Mas eles não têm a mais
vaga ideia de como essa ameaça é realmente grande ou de onde ela
vem. A família monógama está definitivamente sitiada, e não pelo
governo nem pelo declínio da fibra moral, e certamente não por uma
ampla campanha homossexual... mas pelos ditames da própria
biologia.
Usando tecnologias de DNA hoje tão comuns em processos de reconhecimento de
paternidade, os biólogos, pela primeira vez, puderam comprovar com segurança que
a regra na natureza é a não-monogamia e não o contrário:
Ao tentarem manter um vínculo social e sexual que consista
exclusivamente em um homem e uma mulher, os aspirantes a
monógamos estão contrariando algumas das inclinações evolutivas
mais profundas com as quais a biologia desenvolveu a maioria das
criaturas, inclusive o Homo sapiens (...) graças aos recentes
desenvolvimentos na biologia da evolução, combinados com a mais
moderna tecnologia, simplesmente não há nenhuma dúvida que de
o desejo sexual por múltiplos parceiros é natural. Ele é. Da mesma
forma, simplesmente não há nenhuma dúvida de que a monogamia
é natural. Ela não é.
Curiosamente, Freud já havia afirmado há mais de um século, em seu artigo de 1908
“Moral Sexual 'Civilizada' e Doença Nervosa Moderna", que:
As relações sexuais no casamento só são satisfatórias durante
alguns poucos anos (...) após esse três, quatro ou cinco anos, o
casamento torna-se, pelo menos em relação à satisfação das
necessidades sexuais, um fracasso.
Seu discípulo, o psiquiatra Wilhelm Reich, seguiu na mesma linha de raciocínio
afirmando em seu livro “A Função do Orgasmo” que:
É preciso aprender a ver claramente o problema do casamento. (...)
As necessidades sexuais podem ser satisfeitas com um e mesmo
companheiro durante algum tempo apenas.
Então, se você estiver tendo dificuldade para se manter monogâmico em uma
relação, acredite, talvez isso não seja culpa sua! A natureza nos projetou de modo a
valorizar fortemente a variedade sexual. A vasta maioria das espécies animais são
não-monogâmicas. Helen Fisher, autora do livro “Por que nós amamos: a natureza e
a química do amor romântico”, afirma o seguinte:
Tenho uma teoria de que desenvolvemos três sistemas cerebrais
distintos para acasalamento e reprodução. Um deles é o impulso
sexual, o desejo por gratificação sexual. O segundo é o amor
romântico, essa obsessão, o desejo, o êxtase, a atenção concentrada,
a motivação para conquistar um determinado parceiro de
acasalamento; aquele amor romântico precoce e intenso. E o terceiro
sistema cerebral é o apego, aquela sensação de calma e segurança
que você pode sentir com um parceiro de longa data. O que acho
mais notável sobre esses três sistemas é que muitas vezes eles não
estão conectados. Você pode sentir uma forte sensação de apego a
um parceiro de longa data enquanto sente um intenso amor
romântico por outra pessoa, ao mesmo tempo que sente esse forte
impulso sexual por toda uma gama de pessoas diferentes.
Aqui cabe uma ressalva muito importante! O fato de apontarmos que a monogamia
não tem nada de natural - antes pelo contrário - não quer dizer que as pessoas não
possam optar por ela. Algumas pessoas se identificam sim com a monogamia, se
sentem monogâmicas e provavelmente vivem melhor assim.
O importante é cada um descobrir o que é melhor para si e só o autoconhecimento
pode trazer essa consciência para a pessoa. Estamos apenas tentando desconstruir
essa obrigação de ser monogâmico, que é tão ruim quanto a obrigação de ser nãomonogâmico. Vemos que a questão não se reside em ser ou não ser monogâmico,
mas sim em sermos ou não sermos obrigados a viver de um modo que não representa
a nossa verdade.
Como veremos mais pra frente, o movimento pela não-monogamia é um movimento
contra as opressões estruturais, contra os mecanismos de opressão existentes em
nossa sociedade que normatizam como as pessoas devem ser, roubando delas a
possibilidade de serem elas mesmas, de agirem conforme sua natureza interior. Há
de se ter muito cuidado para que essa defesa da não-monogamia não se torne uma
nova forma de opressão, por exemplo com um discurso de que a não-monogamia é
uma opção mais evoluída que a monogamia.
A luta é pela liberdade de escolha, pela não-opressão normativa. Em resumo, o que
está em jogo aqui não é a questão da monogamia versus não-monogamia e sim a
questão da liberdade de escolha versus coerção normativa. Essa imposição
normativa se dá via um discurso moral que define o que é o normal, o que seria o
certo e como as pessoas deveriam ser. Na perspectiva que estamos colocando aqui,
entendemos que as pessoas deveriam ser como elas se percebem que são. Deve
haver espaço e encorajamento para que cada um manifeste sua singularidade e sua
autenticidade, sem coerção moral ou de nenhum outro tipo!
HISTÓRIA DAS RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS
Como mencionamos anteriormente, relacionamentos não-monogâmicos não são um
fenômeno recente na história humana, embora atualmente estejam se popularizando
como nunca antes. O mais emblemático casal representante desta modalidade de
relacionamento foi Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, que nunca se casaram
oficialmente, mas em 1º de outubro juraram devoção mútua um ao outro com total
liberdade sexual para ambos.
[
O movimento de contestação da monogamia começou a se intensificar
principalmente a partir da revolução sexual, que tem seu auge entre os períodos de
1960 até os anos 1970. O advento da pílula anticoncepcional catalisou este processo,
libertando a mulher de sua escravidão reprodutiva, permitindo-a fazer sexo sem se
preocupar com a gravidez – o que a colocou em pé de igualdade com os homens pela
primeira vez na história.
A música de Raul Seixas lançada em 1975 - “A Maçã” - ilustra bem essa contestação
dos valores monogâmicos que se seguiram ao período da revolução sexual:
Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar
Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
Porque quem gosta de maçã
Irá gostar de todas
Porque todas são iguais
Se eu te amo e tu me amas
E outro vem quando tu chamas
Como poderei te condenar
Infinita é tua beleza
Como podes ficar presa
Que nem santa num altar?
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois, existem mais
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
O que é que eu quero
Se eu te privo do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois, existem mais
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
O que é que eu quero
Se eu te privo do que eu mais venero
Que é a beleza de deitar
Apesar de já haverem existido diversas iniciativas individuais de não-monogamia
consensual como a de Sartre e Simone em todo o século XX, sabe-se que a primeira
forma organizada de não-monogamia moderna surgiu nos Estados Unidos com a
prática do Swing (troca de casais). Em 1964 foi lançado o livro “Swap Clubs” (Clube de
Trocas), relatando os resultados de uma pesquisa sobre o estilo de vida swinger onde
foram entrevistadas 800 pessoas em mais de 25 cidades dos Estados Unidos.
Em 1969 se formou a primeira associação de swingers nos Estados Unidos, chamada
de Lifesstyles Organization. Em 1970 foi fundada a North American Swing Club
Association (NASCA). A primeira convenção swinger foi realizada em 1973 e em 1980
essas convenções já atraiam mais de 1.000 casais por evento. Só em 1990 se estimava
que existiam cerca de 3 milhões de swingers apenas nos Estados Unidos.
Já em 1972 foi publicado o primeiro livro sobre casamento aberto que se tem notícia.
Com o título de “Open Marriage: A New Life Style for Couples” (Casamento aberto:
um novo estilo de vida para casais), o livro de Nena e George O´neill vendeu 1,5
milhões de cópias. O modelo de casamento proposto pelos autores enfatiza a
comunicação honesta e aberta, além da liberdade compartilhada. Eles enxergam o
casamento aberto como uma ferramenta para o crescimento pessoal onde um dá
suporte para o desenvolvimento do outro, focado no fortalecimento da
individualidade de ambos. Segundo estes autores,
Casamento aberto pode ser definido como um relacionamento em
que os parceiros estão comprometidos com o seu próprio
crescimento e com o crescimento um do outro. É uma relação
honesta e aberta de intimidade e autorrevelação baseada na
igualdade de liberdade e identidade de ambos os parceiros. O apoio
e confiança crescentes nas identidades individuais possibilitam o
compartilhamento do crescimento pessoal com uma outra pessoa
significativa, que incentiva o seu próprio crescimento e o de seu
companheiro. É uma relação flexível o suficiente para permitir
mudanças e que está em constante renegociação à luz das mudanças
nas necessidades, consenso na tomada de decisões, aceitação e
incentivo ao crescimento individual e abertura a novas possibilidades
de crescimento.
Em 1973 Larry e Joan Constantine cunharam o termo “casamento multilateral” em
seu livro “Group Marriage: A Study of Contemporary Multilateral Marriage”
(Casamento grupal: um estudo sobre casamentos multilaterais contemporâneos). O
casamento multilateral foi definido como um casamento consistindo em três ou mais
parceiros que se consideram todos casados entre si, sendo este o protótipo do que se
chama hoje de polifidelidade, um tipo de poliamorismo que será abordado mais
adiante.
Swing, Casamento Aberto e Casamento Multilateral foram as primeiras formas
organizadas e documentadas de não-monogamia consensual. Já com relação ao
termo poliamorismo, a primeira menção que se encontra é de 1953, na Illustrated
History of English Literature, por Alfred Charles Ward, que se refere ao rei Henrique
VIII como “determinado poliamorista”, com uma conotação negativa. Em 1969 temos
então a menção por Joseph McEnlroy, em sua obra de ficção Hind’s Kidnap — A
Pastoral on Family Airs, que se refere a uma “tribo poliamorosa” que estava
contribuindo para o declínio da instituição família. Em 1971 é fundada a Comunidade
Kerista (Kerista Commune), que existiu até 1991, em San Francisco, Califórnia, EUA e é
creditado a este grupo a criação de algumas palavras como “polifidelidade”,
“compersão” e “poli-intimidade”.15
Em 1984 surgiu uma revista chamada “Loving More”, dedicada a explorar relações
consensuais multi-amorosas (poliamor). As primeiras comunidades poliamorosas
começaram a surgir em 1990. Ainda na década de 90 foram publicados 5 livros sobre
o tema, sendo o mais influente de todos o livro publicado em 1997: “The Ethical Slut:
15
Citado no artigo de Nana Miranda, Newton Jr e Simone Bispo: “Por que não-monogamia política?”. Pode ser
acessado aqui: https://naomonoemfoco.com.br/por-que-nao-monogamia-politica/
A Practical Guide to Polyamory” (A Vagabunda Ética: Um Guia Prático para o
Poliamorismo), considerada por muitos a bíblia do poliamorismo e atualmente em
sua terceira edição.
Com a internet, os grupos se multiplicaram e hoje existem milhares de comunidades,
organizações, grupos online e conferências sobre swing, casamento aberto e
poliamorismo. Em 2007, um levantamento feito pela Oprah.com com 14.000 pessoas
constatou que 21% das pessoas estavam em relações não-monogâmicas.16
Essa expansão dos relacionamentos não-monogâmicos consensuais é um movimento
muito significativo, principalmente tendo em vista o amplo histórico de repressão
sexual que registramos ao longo de toda a história humana, principalmente no
ocidente.
HISTÓRIA DA REPRESSÃO SEXUAL
Você já parou para pensar no porquê que todo palavrão que usamos está de uma
forma ou de outra relacionada a sexo? Por exemplo, quando chamamos alguém de
"pentelho" ou de "escroto", por que será que usamos essas palavras? E por que que
elas acabam tendo um significado pejorativo?
Pelo simples e único motivo de estarem associadas anatomicamente aos órgãos
genitais. Isso por si só já é suficiente para dar uma conotação pejorativa à palavra! O
mesmo acontece com a expressão “ai que saco”, que utilizamos quando estamos
incomodados com alguma coisa (vem do termo anatômico “saco escrotal”).
Tem até uma piadinha com isso que diz assim: “o pior inquilino é o espermatozoide,
pois ele mora na casa do caralho, o prédio é um saco e os vizinhos da frente são um
pentelho”.
16
Citado no livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships.
Ed. Cleis Press.
Em inglês, por exemplo, é comum se utilizar a expressão "he is such a dick". Neste
caso a palavra dick, cuja tradução oficial seria pênis, acaba ganhando o significado de
"idiota" ou "babaca”.
No português nós vemos essa mesma lógica quando mandamos alguém "tomar no
c..." ou quando mandamos alguém "se fud..." ou mesmo quando chamamos alguém
de "filho da pu...." ou mandamos pra “pu.... que pariu”, novamente tudo associado a
sexo. O mesmo vale para a expressão super popular que virou até título de livro:
“foda-se”.
E a lista não para por aí... o elemento sexual aparece também em xingamentos como
piranha, corno, veado, arrombado, boiola, vagabunda, etc. Mesmo os termos que
costumamos utilizar para nos referirmos aos órgãos genitais acabaram virando
palavrão. É comum usarmos os termos caralho ou buceta quando alguma coisa de
ruim acontece, como por exemplo, quando uma pessoa tropeça e diz: “ai caralho” ou
então “ai buceta”. Inclusive, é comum em alguns lugares do Brasil se utilizar a
expressão “embucetada” para se referir a um estado de aborrecimento, raiva ou estar
de mal com a vida, como podemos ver neste dicionário online:
Os exemplos são inúmeros e praticamente todos os palavrões que utilizamos estão
em algum nível atrelados à sexualidade. E por que será que é assim? Se todo mundo
veio ao mundo através de uma atividade sexual, por que então que essa função
biológica, que deveria ser tão honrada, acabou se convertendo em algo tão
depreciativo como um palavrão?
Nossa origem sexual pode ser constatada, por exemplo, no termo genital, que vem
do latim genitale, ou “aquilo que gera”. Neste caso, aquilo que gerou a vida de cada
ser humano neste planeta! A palavra sêmen, por exemplo, tem a mesma origem da
palavra semente e curiosamente, na linguagem popular, se converteu no termo
“porra", mais um palavrão!
E por que tudo isso é importante? Porque a linguagem reflete diretamente o universo
psíquico das pessoas. Esses termos que citamos aqui representam o inconsciente
coletivo da nossa sociedade e demonstram a relação negativa que sem perceber
carregamos em relação ao sexo.
A gente sabe que a criancinha não nasce com nenhum antagonismo em relação ao
seu corpo ou à sua sexualidade. Tanto é que ela espontaneamente aprende a se
masturbar e faz isso sem nenhum constrangimento. Em que momento será que a
situação muda e ela passa a enxergar o sexo como algo hostil e depreciativo? E afinal
de contas, de onde será que veio esse gritante rebaixamento da sexualidade na
história humana?
Sem sombra de dúvidas essa desqualificação do sexo está diretamente atrelada ao
surgimento e expansão do cristianismo, como sintetiza o pesquisador Luis Felipe
Ribeiro:
A influência da tradição judaico-cristã sobre a sexualidade ocidental
é bem conhecida. Interdição, repressão e negação são a herança de
dois milênios de presença cristã no mundo.17
É muito fácil demonstrar essa relação entre cristianismo e repressão sexual. Por
exemplo, quando pensamos na pessoa de Jesus Cristo, costumamos atribuir a ele
todas as qualidades possíveis, como amor, bondade, caridade, compaixão, paz,
pureza, verdade, santidade, justiça, etc., não é mesmo?
Mas qual é a única coisa que nunca iremos associar à figura de Jesus? Isso mesmo...
sexo! Chega até a ser uma heresia pensar na vida sexual de Jesus, heresia digna de
fogueira! Mas por que seria tanta heresia assim? Ora, porque uma pessoa tão
iluminada quanto Jesus não poderia ter nenhuma relação com algo tão mundano
como o sexo!
Até mesmo com relação ao seu nascimento o cristianismo conseguiu operar,
convenientemente, uma assepsia de qualquer vestígio de sexualidade, alegando que
ele teria nascido de uma mãe virgem, realizando assim um apagamento completo das
suas origens sexuais!
Como é possível engravidar sem o ato sexual? Isso contraria todas as normas da
biologia, mas a mensagem subliminar não poderia ser mais clara: um ser tão divino
não poderia vir ao mundo através de um ato tão obsceno como o sexo. Não, ele veio
ao mundo através de uma mãe virgem e imaculada. E por que IMACULADA?
Justamente porque concebeu sem a mácula do pecado original, ou seja, sem o sexo!
Esse é o motivo pelo qual ainda hoje é difícil para nós associarmos maternidade com
sexualidade. No nosso psiquismo isso vem como uma contradição, pois uma coisa é
pura e a outra é obscena - o que na verdade é um grande paradoxo porque não
existiria maternidade se não houvesse sexo! A não ser no caso de Jesus...
17
RIBEIRO, L. F. (2007). Sexualidade cristã primitiva nos catálogos de vícios: história e arqueologia de uma interdição.
O texto completo pode ser encontrado aqui: https://www.metodista.br/revistas/revistasmetodista/index.php/oracula/article/view/5888
O fato é que há claramente aí nessa visão de mundo uma ideologia de menosprezo
por esse aspecto tão vital da existência que acabou sendo apresentado ao mundo
pelo cristianismo como algo sujo, vergonhoso e pecaminoso, que deve ser evitado ao
máximo, a não ser para procriação, mas nunca por prazer!
São Paulo, por exemplo, estipulou que o ideal de conduta era o celibato: “Bom seria
que o homem não tocasse em mulher.” (1 Corintios 7)
Mas para aqueles que não conseguem se controlar, devem pelo menos se casar, como
ensina o Apóstolo: “Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar
do que se abrasar.”
Aliás, até mesmo o sexo marital com a finalidade única de procriação já foi
considerado pecaminoso, pois, segundo escreveu o teólogo Huguccio no século 12:
“Sempre ocorre com excitação e prazer, que não existem sem pecado”.18
A verdade é que o cristianismo instaurou uma verdadeira guerra contra os prazeres
do corpo, corpo este que passou a ser visto como o grande inimigo do espírito. Papa
Gregório, o Grande, chegou a dizer que o corpo era a “abominável roupa da alma”.
Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os
desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; o
Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o
outro, de modo que vocês não façam o que desejam. (Gálatas 5:1617)
A masturbação, por exemplo, que é fundamental para o autoconhecimento sexual,
foi e ainda é severamente condenada pelo cristianismo. A página do Vaticano na
internet ainda hoje insiste em dizer que a “A masturbação, em particular, constitui
um distúrbio muito sério, que é ilícito em si mesmo e não pode ser moralmente
justificado.”19
18
Citado na matéria da Revista Super Interessante "O prazer em suas mãos": https://super.abril.com.br/ciencia/oprazer-em-suas-maos/
19
https://www.vatican.va/content/vatican/pt.html
Não é à toa que muitos pais se sentem angustiados com o comportamento de
masturbação dos seus filhos, afinal, criança é pura e o sexo é “ilícito”, como explicou
o Vaticano.
Este exemplo da masturbação demonstra claramente o casamento da ciência com a
religião na propagação de valores morais repressores. Na narrativa bíblica, a figura de
Onã é fulminada por Deus como castigo pelo delito de “derramar a semente no chão”,
já que na cultura cristã qualquer atividade sexual que não leve à reprodução é
condenada. Isso vale da masturbação até o sexo homossexual, passando pelo sexo
apenas por prazer, como ocorre nos relacionamentos não-monogâmicos.
Nos livros penitenciais que serviam como guia para orientar os padres nas confissões,
“os pecados sexuais possuíam vários itens e punições muito severas”, como explica a
pesquisadora Valéria Melki:
Nessa lista, poderíamos encontrar: sexo fora do casamento,
adultério, masturbação, prostituição, coito interrompido,
homossexualidade, sexo oral, sexo anal, sexo com mulher grávida e
sexo com mulher que já não pode engravidar – todos partiam da
mesma fundamentação, pois eram atos de luxúria, já que não tinham
finalidade de procriar.20
Todo esse antagonismo em relação à sexualidade acabou se estendendo aos órgãos
genitais também. De acordo com o escrito Moacyr Scliar em seu livro “Manual da
paixão solitária”, no hebraico antigo, tocar a própria genitália era vedado aos homens
até na hora de urinar. Segundo o autor, “Na tradição judaica, o pênis já nasce impuro.
Tanto que é preciso tirar um pedaço dele na circuncisão”.
No célebre registro de Pero Vaz de Caminha para a Corte Portuguesa quando da
descoberta do Brasil, o escrivão cristão se mostra muito surpreso com a naturalidade
com que os índios mostravam seus corpos, sem nenhuma vergonha: "Eles andam nus,
20
BUSIN, V. M. (2012) Juventude, religião e ética sexual. Pode ser encontrado aqui:
http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/312/CDDBR_juventude_religiao_etica_sexual.pdf?sequence=1&isAllowed=y
sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas
vergonhas”21
Chama atenção o fato do escrivão se referir aos órgãos genitais como “vergonhas”,
mas esse foi o legado deixado pela ideologia cristã a respeito do corpo nu: algo
vergonhoso que deve ser escondido. Ainda hoje alguns pais ensinam os filhos que se
dormirem pelados o anjo da guarda não irá visitá-los à noite, como se houvesse algo
intrinsecamente errado com nosso próprio corpo.
Já na Grécia antiga o corpo era venerado e as estátuas eram esculpidas enaltecendo
o corpo nu. Com a expansão do cristianismo, passou-se a cobrir os órgãos genitais
dessas estátuas com folhas de figueira, pois o corpo nu virou um sinal de vergonha. O
Papa Pio IX foi ainda mais longe... pegou um malho e cinzel e saiu cortando fora os
pintos das estátuas em 1857.
Por incrível que pareça, os resquícios dessa vergonha permanecem até hoje. Em 2019
a UNESCO obrigou o artista plástico a cobrir suas estátuas com calcinha para não
ofender o pudor dos visitantes.
21
A carta pode ser acessada aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_de_Pero_Vaz_de_Caminha
O que importa é perceber que essas ideologias, de uma forma ou de outra, acabam
tendo um efeito muito opressor sobre as pessoas, gerando culpa, medo e vergonha.
Muitas pessoas sofrem com isso, em especial porque o cristianismo também traz a
concepção de um Deus punitivo e onisciente, que sabe tudo o que fazemos e
escrutina cada pensamento nosso, mesmo quando estamos sozinhos - e ai de quem
desobedecer, pois pode ser condenado ao fogo eterno do inferno.
Para aumentar ainda mais o controle dos fiéis, a Igreja instaurou o mecanismo da
confissão que obriga os cristãos a revelarem qualquer deslize no controle dos
impulsos, até mesmo no nível do pensamento, como explicou o pensador Michel
Foucault no seu livro a “História da Sexualidade – A vontade de saber”:
Todas as insinuações da carne: pensamentos, desejos, imaginações
voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo,
tudo isso deve entrar agora em detalhe no jogo da confissão e da
direção espiritual. Tudo deve ser dito.
É difícil conhecer o sofrimento das pessoas com toda essa repressão sexual religiosa
porque em geral as pessoas vivem isso no seu íntimo e não costumam compartilhar
essas dores. Porém, o Big Brother Brasil acaba fornecendo uma oportunidade única
para conhecermos as pessoas em sua intimidade e na 21ª edição pudemos
testemunhar o sofrimento da maquiadora Juliette Freire, que expôs abertamente os
problemas que teve durante muitos anos com sua sexualidade por conta da religião
cristã:
Por muito tempo eu associei a sexualidade e a relação sexual, eu
misturava com o conceito da moralidade cristã. A vida cristã tem um
conceito de virtude que eu não concordo e isso me ocasionou graves
problemas sexuais. Por exemplo: eu vim me masturbar adulta. Eu
me culpava o tempo inteiro. Tanto é que, para eu perder a
virgindade de 20 para 21 anos de idade, mesmo em um
relacionamento sério com uma pessoa, eu não conseguia. Tinha crise
de pânico. Me sentia suja. Sentia que estava fazendo algo contra
minha família e contra Deus. Eu não tinha uma relação sexual
normal e não foram meus pais que me botaram isso. Eu lia a Bíblia e
queria ser fiel ao que ela prega, mas eu não sabia separar as coisas.
Eu perdi minha virgindade praticamente sem querer.
Quantos milhões de pessoas será que passam pelos mesmos conflitos da Juliette e
nunca ficaremos sabendo? Outro participante do BBB 21, o Gil do Vigor, também
explicitou seu sofrimento por conta da condenação religiosa à sua orientação sexual:
Ai, é muito chato você ficar se podando o tempo inteiro (...) tudo que
eu passei, até minha sexualidade dentro da igreja tendo que
esconder. Então como é que você vive sabendo, olhando na escritura
que você é amaldiçoado? Porque na bíblia fala: maldito é o homem
que se deita com outro. Eu não fiz mal a ninguém. Aí eu fico me
culpando pedindo desculpas se eu não fiz nenhum mal a ninguém,
entendeu? É muito chato ficar me sentindo errado o tempo inteiro.
Um estudo da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, concluiu que a
probabilidade de um homossexual cometer suicídio é cinco vezes maior do que um
jovem heterossexual.
O jovem gay Yago Oliveira foi uma dessas vítimas, não aguentou a pressão da família
extremamente religiosa e preconceituosa que não o aceitava e acabou se matando.
Em seu último post nas redes sociais Yago fez o seguinte desabafo: “A vergonha da
minha família sou eu pelo simples fato de ser gay, afinal, como eles dizem, ser gay é
pecado”. A mãe de Yago, muito cristã, se disse aliviada com o suicídio do filho gay
afirmando o seguinte: “antes morto do que em pecado!”
Muitos outros homossexuais e transexuais morrem a cada dia no mundo em função
do preconceito inspirado por esses dogmas sectários que condenam tudo que não
segue um modelo estrito do que seria determinado por Deus.
Outro elemento da cultura cristã que gera muito sofrimento é a obsessão com a
virgindade e a abstinência sexual antes do casamento. Essa obsessão cristã com a
exigência de se casar virgem leva inúmeras pessoas a se casarem de forma prematura,
apenas para terem o “direito” a fazer sexo sem pecar.
Essa mesma exigência de abstinência sexual antes do casamento gera muita
contradição interna e leva diversas pessoas a burlarem essa norma fazendo apenas
sexo anal para se manterem virgens até o casamento. Claro que isso tudo é vivido
com muita culpa e vergonha.
O pior de tudo é que toda essa proibição em cima da sexualidade só fez gerar uma
gigantesca obsessão com sexo. Essa é uma lei psíquica básica, tudo que é proibido é
desejado, toda repressão gera obsessão.
Não é nenhum pouco à toa que 30% de todo o tráfico mundial de dados da internet
gira em torno da pornografia. Cerca de 29 petabytes de dados são transferidos pelos
internautas todo mês, quase 50 gigabytes por segundo. Apenas um único site de
pornografia, o xvideos, tem mais de 350 milhões de visitantes por mês e o vício em
pornografia só cresce no mundo.
A grande verdade é que essas ideologias repressivas adoeceram o ser humano,
fazendo-o lutar contra ele mesmo, o ego lutando contra o corpo, contra os ditos
pecados da carne ou como ensinou o evangelista Pedro (1 Pedro 2:11): “os desejos
carnais que guerreiam contra a alma”.
O psiquiatra austríaco Wilhelm Reich afirmou em seu livro seminal “A Função do
Orgasmo” que o homem adoeceu psiquicamente em função de tamanha distorção no
terreno da sexualidade. Segundo ele,
As enfermidades psíquicas são a consequência do caos sexual da
sociedade (...) o homem é a única espécie biológica que destruiu a
sua própria função sexual natural e está doente em consequência
disso (...) Por causa da sua educação sexualmente defeituosa, a
grande maioria dos homens e mulheres é sexualmente perturbada.
Reich acreditava também que quando nos voltamos contra a sexualidade, sem
perceber acabamos nos voltando contra tudo que ela representa, como o prazer, a
potência, a conexão e o amor! O pensador inglês Bertrand Russel, em um de seus
livros, seguiu nessa mesma linha de raciocínio afirmando que:
Mantendo numa prisão o amor sexual a moral convencional
concorreu para aprisionar todas as outras formas de sentimento
amistoso e para tornar os homens menos generosos, menos
bondosos, mais arrogantes e mais cruéis.22
Freud, em 1908, já havia apontado essa relação entre distúrbio sexual e desequilíbrio
psicológico. Segundo ele, “Podemos, portanto, considerar o fator sexual como o fator
básico na causação das neuroses propriamente ditas (...)”. Em sua concepção, essas
neuroses
(...) derivam das necessidades sexuais de indivíduos insatisfeitos,
representando para os mesmos uma espécie de satisfação
substitutiva. Portanto, todos os fatores que prejudicam a vida sexual,
suprimem sua atividade ou distorcem seus fins devem também ser
vistos como fatores patogênicos das psiconeuroses.23
Mas no final das contas, a pergunta que não quer calar é: por que é que o cristianismo
investiu tanta energia em controlar o comportamento sexual das pessoas, punindo e
condenando quem ousasse agir diferente? Segundo a pesquisadora Bruna Suruagy do
Amaral Dantas, a motivação seria a ampliação do poder político da igreja:
Ao longo da história, a Igreja cristã desenvolveu mecanismos de
observação e instrumentos de controle para manter desejo e sexo
22
Citado no artigo de Regina Navarro “Abstinência como política: por que achamos que sexo é sujo e perigoso?”,
que pode ser encontrado aqui: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2020/02/01/sobre-a-abstinencia-sexual/
23
FREUD, S. (1908). Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna. Pode ser encontrado aqui:
https://docplayer.com.br/131159840-Moral-sexual-civilizada-e-doenca-nervosa-moderna.html
sob sua tutela com o propósito de ampliar seus dispositivos de poder.
(...) Por intermédio das confissões, o clero adquiriu um tipo específico
de saber que ampliou o poder de dominação e controle da Igreja. As
estratégias eclesiásticas consistiam em utilizar o saber obtido nas
práticas confessionais para dominar o corpo e o desejo dos fiéis,
tornando-o dócil e obediente, com o propósito de consolidar a
autoridade moral e o poder político da Igreja cristã.24
Segundo o psiquiatra Wilhelm Reich, toda essa luta contra a sexualidade teria uma
razão muito objetiva, enfraquecer as pessoas para que elas fossem mais facilmente
dominadas:
A supressão sexual tem a função de tornar o homem dócil à
autoridade exatamente com a castração dos garanhões e dos touros
tem a função de produzir satisfeitos animais de carga25.
O touro representa potência e vitalidade, por isso é utilizado como símbolo da
economia norte-americana - a mais poderosa do planeta - como mostra essa
escultura em Wall Street.
24
DANTAS, B. S. A. (2010). Sexualidade, cristianismo e poder. Estudos e Pesquisas em Psicologia. Pode ser encontrado
aqui: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8909/6790
25
REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942)
Para domesticar um touro e deixá-lo dócil e submisso é preciso primeiro castrá-lo,
assim ele fica manso e subserviente, fazendo todo tipo de serviço pesado sem se
rebelar.
Mesmo antes de Reich, Freud já chamava atenção para o fato de que a castração da
sexualidade tendia a produzir indivíduos fracos e submissos à autoridade:
A abstinência sexual com frequência produz homens fracos, mas
bem-comportados, que mais tarde ser perdem na multidão que
tende a seguir os caminhos apontados por indivíduos fortes.26
A natureza dotou os seres humanos de um intenso instinto de sobrevivência, assim
como todos os animais. O sexo representa o instinto de sobrevivência da espécie
como um todo e por isso este impulso vital é tão forte em nós. Suprimir este impulso
é crucial para manter o controle sobre as pessoas.
Os fazendeiros sabem que para controlar um animal é preciso suprimir seus instintos
selvagens desde cedo. Em visita a uma fazenda pude observar esse processo de
amansamento sendo feito com uma bezerrinha que havia acabado de nascer. Logo
26
Citado em: REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942)
em seguida ela foi amarrada ao mourão do curral e após muito se debater, ela acabou
desistindo e ficou colapsada sem reação.
O dono da fazenda explicou que “Todo bezerro que nasce deve passar um mês
amarrado para amansar, caso contrário, depois que cresce não vai querer nem entrar
no curral”. Segundo o fazendeiro, isto só funciona se for feito logo no início da vida,
já que depois que crescem se torna bem difícil amansá-los.
Freud explicou muito bem como esse processo acontece da mesma forma com o ser
humano através do controle da sexualidade. Segundo ele,
Psicologicamente, uma comunidade cultural justifica-se, com
perfeição, ao começar proibindo as manifestações da vida sexual
desde a infância, pois não conseguiria refrear os desejos sexuais dos
adultos se o terreno não houvesse sido preparado na infância27.
Cabe salientar que nem toda religião se opôs tanto à sexualidade quanto a religião
judaico-cristã. Nas religiões africanas, como o candomblé e a umbanda, existe o orixá
EXU que está ligado à sexualidade e fertilidade masculinas e costuma ser
representado com seu ogó, um bastão de madeira em formato fálico, simbolizando
o poder de criar e perpetuar a vida.
27
Idem.
Também são bem conhecidos os templos de Khajuraho na Índia com diversas
escultura eróticas - que são um belo exemplo da ligação possível entre erotismo e
religião.
[[
O tantra e o taoísmo são belos exemplos também de tradições espirituais cuja
sexualidade faz parte das práticas de autodesenvolvimento e cujos fluidos sexuais,
inclusive, são vistos como "substâncias poderosas" e usados ritualisticamente.
Na tradição hindu se utilizam os termos yoni e lingan para se referir aos órgãos sexuais
femininos e masculinos, respectivamente. Yoni é uma palavra do sânscrito que
significa "passagem divina", "lugar de nascimento", "fonte de vida" e "templo
sagrado" e também representa o órgão sexual feminino. Costuma-se dizer que a
vagina é o portal mais sagrado entre o céu e a terra, é a ligação de Deus com o ser
humano, a ligação com o invisível e o tangível.
Já o Lingam é uma palavra em sânscrito utilizada para denominar o órgão genital
masculino e significa coluna de sustentação. No tantra o Lingam é honrado como o
“bastão de luz” que canaliza energia criativa e prazer. Já no ocidente optamos por nos
referir aos órgãos sexuais como caralho, pau, cacete, buceta, racha, xereca, etc.
Por que essa diferença tão grande na forma de denominação dos mesmos órgãos
genitais? Porque a linguagem é um reflexo do psiquismo humano e como no ocidente
a principal matriz de formação cultural é judaico-cristã, naturalmente desenvolvemos
termos linguísticos que refletem o desgosto que sentimos pelo sexo e tudo que está
associado a ele.
Foi para se contrapor a essa tendência de desqualificação da sexualidade que surgiu
o movimento global chamado sex-positivity (sexopositividade), que luta pelo
desenvolvimento de uma cultura sexual positiva no mundo. Segundo a ativista Allena
Gabosch, sexpositivity é “uma atitude em relação à sexualidade humana que
considera todas as atividades sexuais consensuais como fundamentalmente
saudáveis e prazerosas, encorajando o prazer sexual e a experimentação”. 28
Já a escritora Carol Queen define sexpositivity como "uma filosofia cultural que
entende a sexualidade como uma força potencialmente positiva na vida de alguém e
pode, é claro, ser contrastada com a cultura sexual negativa, que vê o sexo como
problemático, perturbador e perigoso.” 29
E que relação será que existe entre a repressão sexual e a tradição de monogamia
compulsória no casamento?
A tradição de monogamia compulsória se desenvolveu no pano de fundo moral da
repressão sexual propagada pela religião judaico-cristã. Afinal de contas, se sexo
fosse considerado algo tão bom assim, por que criaríamos uma regra para restringir
as relações sexuais ao invés de encorajá-las?
A partir do momento em que passamos a enxergar o sexo de forma mais positiva,
começa a fazer mais sentido que busquemos arranjos sociais que favoreçam o
desenvolvimento sexual dos indivíduos, como por exemplo, os relacionamentos nãomonogâmicos.
Lembremos que para o cristianismo o sexo só tem legitimidade se for para a
reprodução, por isso o adultério sempre foi tão condenado, porque é feito apenas por
prazer e não para fins reprodutivos. A bíblia está cheia de versículos condenando o
adultério:
28
O discurso original de Allena Gabosch no Southplains Leatherfest Festival pode ser encontrado em
https://allenagabosch.wordpress.com/2014/12/08/a-sex-positive-renaissance/
29
QUEEN, C. (1997). Real Live Nude Girl: Chronicles of Sex-Positive Culture. Ed. Cleis Press
Mas o homem que comete adultério não tem juízo; todo aquele que
assim procede a si mesmo se destrói. (Provérbios 6:32)
Vocês ouviram o que foi dito: 'Não adulterarás'. Mas eu digo:
Qualquer um que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu
adultério com ela no seu coração. (Mateus 5:27-28)
Se um homem cometer adultério com a mulher de outro homem,
com a mulher do seu próximo, tanto o adúltero quanto a adúltera
terão que ser executados. (Levítico 20:10)
O casamento deve ser honrado por todos; o leito conjugal,
conservado puro; pois Deus julgará os imorais e os adúlteros.
(Hebreus 13:4)
Adúlteros, vocês não sabem que a amizade com o mundo é inimizade
com Deus? Quem quer ser amigo do mundo faz-se inimigo de Deus.
(Tiago 4:4)
O cristianismo também difundiu a ideologia do sacrifício, ilustrada pela ideia de que
Jesus havia dado sua vida para nos salvar. O sacrifício foi então enaltecido na
perspectiva cristã e associado a um ato de amor - quem ama deve se sacrificar pelo
amado. Por essa perspectiva, nada mais razoável do que se abrir mão do próprio
desejo para agradar ao parceiro, sacrificar a liberdade sexual como forma de
demonstrar amor.
A própria ideia cristã de que o sexo deveria servir apenas à reprodução vai contra os
estudos desenvolvidos pelo psiquiatra Wilhelm Reich. Em sua vasta obra, este autor
defende a ideia de que a sexualidade saudável é aquela que é “regulada pela
satisfação dos impulsos sexuais e não por normas morais.”30 Ou seja, a sexualidade
deveria ser regida em função da satisfação e prazer que ela proporciona ao sujeito e
não por normas morais criadas pela cultura. A sexualidade saudável seria, então,
aquela regulada pelas necessidades do indivíduo e não pela necessidade de atender
às demandas de instituições sociais como o casamento e a religião.
30
REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942)
Reich considerava tão importante que as pessoas pudessem explorar livremente sua
sexualidade que ele advogava que deveria haver leis para “salvaguardar a felicidade
sexual das pessoas”.31 Segundo ele, cada indivíduo deveria experimentar em torno
de 3.000 a 4.000 orgasmos ao longo da vida para se manter saudável.
A conclusão que tiramos de toda essa reflexão é que para ter uma vida sexual
saudável e satisfatória é crucial se libertar dessa moralidade repressora que
herdamos da cultura judaico cristã. Definitivamente sexo e moral não combinam.
Toda ação humana deve sim ser conduzida por princípios éticos, mas isso é muito
diferente de uma moralidade repressora que normatiza o que é certo e errado, o que
é aceitável e o que não é, deixando um saldo psicológico de frustração, culpa e medo,
além de vergonha e sentimento de inadequação.
Ética é muito diferente de moral. A moral dita o que é certo e errado, de fora para
dentro, sem considerar a vivência interna de cada um. A moralidade insufla a patrulha
ideológica dos costumes, que fica pronta para julgar e recriminar qualquer um que
saia da linha. Já a ética se refere a princípios universais de respeito e cuidado com o
próximo e a si mesmo.
A sabedoria antiga sempre exaltou a importância do autoconhecimento. No Templo
de Apolo em Delfos, consta a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, bastante semelhante
ao provérbio que se encontrava no templo de Luxor, no Antigo Egito: "Homem,
conhece a ti mesmo, assim conhecerá os deuses."
Talvez, no que se refere ao desenvolvimento sexual, seja mais importante se conhecer
do que obedecer a regras de conduta estabelecidas pelas religiões - e não tem como
se conhecer sem experimentar. E para experimentar é necessário deixar de fora toda
preocupação com o certo e o errado e se permitir ser guiado pelo prazer e pela
curiosidade, tendo sempre o autoconhecimento e a ética como balizadores da nossa
ação.
31
REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942)
Sexo é uma necessidade biológica, assim como dormir e se alimentar. Não precisamos
de moralidade na hora das refeições, basta fazer escolhas inteligentes e saudáveis. O
mesmo vale para o sexo - a regra é explorar e descobrir o que nos faz bem, sem neura
e sem culpa. Simples assim!
HISTÓRIA DAS MENTALIDADES E COSTUMES
É muito interessante ver como os costumes e as mentalidades mudam ao longo do
tempo. Coisas que eram muito importantes há 50 anos hoje têm pouca relevância e
vice-versa. Isso nos mostra o quanto o certo e o errado são relativos e o quanto é
importante encontrarmos as referências do que é bom para gente mais em nós
mesmos do que nos costumes culturais.
Leonie Linssen, coaching de relacionamento e co-autora do livro “Amor Sem Barreiras
– As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e Poliamorosos nos Dias De
Hoje”, faz uma importante consideração sobre a forte pressão social que sofremos
para nos adaptarmos à cultura:
A pressão social para adaptação é enorme. Alguém que queira viver
uma vida baseada em verdadeira autenticidade pessoal precisa,
antes de tudo, ter coragem de ser quem realmente é. Para muitos,
esse é um processo minucioso que implica, em primeiro lugar,
descobrir como entrar em contato com a nossa fonte interior da
verdade, o nosso ser mais íntimo. Depois desse olhar interior honesto,
começamos a tomar consciência do modo como fomos ensinados a
nos comportar, das nossas crenças herdadas e muitas vezes
indiscriminadas, dos nossos bloqueios mentais e emocionais e dos
valores e das normas que consideramos verdadeiros (...).
Vejamos, a título de exemplo, diversas mudanças que ocorreram nas últimas décadas
e que ilustram como os costumes são circunstanciais e servem aos propósitos de cada
época, propósitos estes que nem sempre estamos cientes.
O patriarcado, por exemplo, dividiu o mundo em homens e mulheres, tendo elas
ficado submetidas ao poder deles. Ainda no século passado, às mulheres só cabia o
papel de mãe e dona de casa. As mulheres não podiam trabalhar fora, não podiam
votar, não podiam estudar, não podiam ter prazer, só podiam cuidar dos filhos, da
casa e do marido. A mulher tinha que ser delicada, frágil, sensível, cheirosa,
dependente, pouco competitiva, indecisa, pouco ousada, recatada e chorar com
facilidade. Grandes pensadores da humanidade endossaram esse quadro, como por
exemplo Arthur Schopenhauer, que afirmou:
É evidente que a mulher é, por natureza, destinada a obedecer e a
prova disso é que ela se liga não importa com que homem, para que
ele a dirija e domine, pois ela precisa de um senhor. Se é jovem,
procura um amante, se é velha, um confessor32.
Hoje as mulheres ocupam cargos de liderança em grandes empresas e lideram
grandes países como a Alemanha, de Ângela Merkel e a Nova Zelândia, cuja primeira
ministra é a Jacinda Ardern, de apenas 40 anos de idade.
Há poucas décadas a virgindade era um grande valor, uma moça que não a
preservasse teria muita dificuldade em se casar. Algumas décadas depois, a vergonha,
para muitas pessoas, é chegar à idade adulta ainda virgem.
O divórcio era vivido de forma dramática, representando uma grande vergonha para
a família, a ponto de alguns colégios não permitirem a matrícula de filhos de pais
separados. Algumas décadas depois, a vergonha é não se separar quando se encontra
em um relacionamento fracassado. Aliás, a lei do divórcio no Brasil só foi promulgada
em 1977 e enfrentou enorme resistência dos conservadores que alegavam que isso
iria acabar com a família, como se vê nessa foto da época.
32
Citado nessa matéria da Revista Galileu: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/06/como-cienciacontribuiu-com-machismo-e-racismo-ao-longo-da-historia.html
Há algumas décadas o homem tinha de ser machão, não podia chorar, não podia ser
delicado nem vaidoso. Hoje já se enaltece o homem sensível e se critica o macho tosco
e a masculinidade tóxica. Até pouco tempo atrás não se admitia que um homem
usasse cabelo comprido e muito menos brinco. Mulheres nem sonhavam em dirigir
ou usar calça jeans. A homossexualidade era um pecado, uma doença.
A medicina, travestida de ciência, até o século XIX defendia que a masturbação gerava
graves doenças, inclusive deixar a mão cabeluda. E esse era um dos “efeitos
colaterais” mais brandos que se atribuíam ao sexo solitário. A lista de doenças
masturbatórias era imensa: tuberculose, loucura, cegueira, anemia, envelhecimento
precoce, calvície e epilepsia são apenas algumas delas, como demonstra o livro
“Solitairy Sex – A Cultural History of Masturbation” (Sexo solitário – Uma História
Cultural da Masturbação), do historiador americano Thomas Laqueur. Hoje em dia
não conseguimos nem imaginar qualquer cientista afirmando uma coisa dessas!
No que se refere às formas de se viver o amor e a sexualidade, também vemos que as
crenças, valores e expectativas que determinam o que é desejável ou não na conduta
íntima de homens e mulheres são sempre narrativas culturais de uma determinada
época e seguem variando com o tempo e com as circunstâncias de cada sociedade.
Essas narrativas culturais atuam sempre no sentido de reforçar as dinâmicas de poder
existentes na sociedade, o que for conveniente para manter o status quo será
encorajado. Na Grécia antiga, por exemplo, a mulher era colocada em situação de
inferioridade, invariavelmente condenada à submissão e à obediência. Apenas o
homem era valorizado, fazendo muito sentido que as relações homossexuais entre
homens fossem encorajadas.
Foi nesse contexto que surgiu a prática da pederastia na Grécia, onde um homem
mais velho iniciava sexualmente um adolescente para que fosse inserido na
sociedade. As relações pederásticas eram realizadas pelo erasta - normalmente um
homem com mais de 30 anos, denominado amante – e pelo eromeno – um jovem de
idade entre 12 e 18 anos, denominado amado.
Na cidade de Esparta, em Roma, a homossexualidade também era comum e tinha a
função social de fortalecer o exército para a batalha, como podemos ver nesta
descrição:
Sendo assim, a pederastia em Roma influenciava na formação de um
exército uno, fortalecido, e servia como base para as formações e
estratégias de guerra dos espartanos. A colônia espartana
de Tebas era exemplo disso, pois tinha um pelotão de guerra que era
considerado quase imbatível, o Pelotão Sagrado de Tebas. Sua
formação era caracterizada totalmente por duplas, que guerreavam
bravamente durante as batalhas a fim de proteger seus parceiros,
vencendo muitas batalhas e tornando-se uma tropa de elite
espartana. Sendo assim, as relações pederastas não afetavam em
nada a masculinidade dos soldados de Esparta.33
Após a expansão do cristianismo, que condenava todas as formas de prazer e só
autorizava a sexualidade para fins reprodutivos, faz todo sentido que a
homossexualidade tenha sido condenada, já que era uma relação sexual que não
culminava na procriação. O mesmo vale para a masturbação e o adultério, são todas
33
Esta citação pode ser encontrada neste versículo da Wikipedia:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Homossexualidade_na_Gr%C3%A9cia_Antiga
experiências de cunho sexual que não visam a reprodução e por isso foram
fortemente condenadas.
Em alguns momentos da história o sexo foi visto como algo abominável. Qualquer
coisa que tornasse o corpo mais atraente era entendida como um incentivo ao
pecado. Evitavam-se banhos e a sujeira se tornou virtude. Os piolhos eram chamados
de pérolas de Deus e estar sempre cobertos por eles era marca indispensável à
santidade. Há registros de freiras que ficaram 53 anos sem tomar banho, um motivo
de extremo orgulho para elas.34
Com tanta variação de costumes morais ao longo da história podemos nos perguntar:
afinal de contas, qual é o comportamento correto? É certo se divorciar? É certo se
masturbar? É correto fazer sexo apenas por prazer? É correto o sexo homossexual? É
certo o adultério? O certo é se casar virgem? É correto a não-monogamia?
A conclusão inevitável é que não existe nada que seja naturalmente certo ou
naturalmente errado, são sempre construções culturais. A moral é uma construção
cultural que está em permanente mutação.
Então quer dizer que tudo pode? Sim, desde que não prejudique outras pessoas nem
a si mesmo, pois se a moral é relativa, a ética não é. Ética se refere a princípios
universais de respeito à vida, respeito ao outro, respeito à liberdade, respeito às
diferenças. São esses princípios gerais que devem governar nosso comportamento e
não a moral cultural que é extremamente circunstancial e em geral só serve para
manter o status quo, reforçar o establishment, defendendo os interesses de um
pequeno grupo e ignorando as necessidades e singularidades da vasta maioria dos
indivíduos.
Nessa perspectiva, podemos dizer até que a moralidade pode ser muito antiética pois
toda vez que desconsideramos a experiência interna do indivíduo estamos sendo
antiéticos na medida em que não respeitamos a singularidade de cada um. Imagine
34
NAVARRO, Regina. O livro do Amor (Vol. 1) – Da pré-história à renascença. Ed. Best Seller.
uma pessoa com orientação homossexual sendo obrigado a transar com pessoas do
sexo oposto simplesmente por conta dos costumes morais. Isso é uma violência
brutal, assim como seria uma violência coagir uma pessoa heterossexual a se
relacionar sexualmente com pessoas do mesmo sexo contra a sua vontade.
E por que nos apegamos tanto aos valores morais de uma época se eles são tão
relativos? Porque eles nos dão um caminho a seguir, uma referência sobre como se
portar e isso facilita muito a vida! É muito mais fácil alguém nos dizer como temos
que nos comportar do que se nós mesmos tivermos que decidir por conta própria. Dá
muito trabalho seguir o nosso próprio caminho, é muito mais fácil seguir um rebanho.
Além disso, a necessidade de pertencimento é muito forte no psiquismo humano e
não queremos correr o risco de sermos rejeitados pelas pessoas que amamos e das
quais tanto necessitamos para nos sentirmos seguros. Então, por uma questão de
segurança, preferimos seguir as normas culturais acriticamente, pois em tese assim
não tem como errarmos - afinal de contas, estamos fazendo o que todo mundo faz, o
que todos nos disseram para fazer.
Um outro motivo pelo qual tendemos a seguir acriticamente os modelos
estabelecidos é por causa do processo de hegemonização cultural a qual todos fomos
submetidos, que é
(...) o domínio de uma sociedade culturalmente diversa pela classe
dominante, que manipula a cultura dessa sociedade - ou seja, as
crenças, as explicações, as percepções, os valores e os costumes - de
modo que a visão de mundo imposta por esta classe se torne uma
norma cultural, a ideologia dominante e universalmente válida,
que justifica o status social político e econômica como natural e
inevitável, perpétuo e benéfico a todos e não como uma construção
social artificial que beneficia apenas a classe dominante.35
A forma como os costumes e comportamentos são definidos como a norma padrão
nunca é por acaso... Estes são sempre definidos de forma a dar suporte à dominação
35
Enciclopédia Columbia, 5ª edição, 1994, página 1.215
de um grupo sobre outro. Em outras palavras, o grupo dominante define o que seria
o correto - a norma cultural - de acordo com o que vai beneficiá-lo. Um belo exemplo
desse mecanismo em ação é a forma pela qual representamos a figura de Jesus Cristo:
um homem branco, loiro, alto e de olhos azuis. É óbvio que Jesus nunca poderia ter
tido esta aparência nascendo no Oriente Médio. Aliás, diversos empreendimentos
científicos buscaram reconstruir como seria aproximadamente o rosto de Jesus. Um
deles utilizou como base três crânios do século 1, lançando mão de softwares de
modelagem 3D para determinar qual seria o formato do nariz, dos olhos, da boca…
enfim, do rosto de um adulto típico da época e o resultado foi que Jesus deve ter tido
uma aparência mais ou menos como a seguinte:36
[
Mas os Europeus o retrataram conforme sua imagem e semelhança:
36
https://super.abril.com.br/historia/jesus-era-moreno-baixinho-e-invocado/
O próprio fato de Deus ser representado como homem já faz parte de um processo
de hegemonização cultural, pois coloca o homem acima da mulher. Aliás, pai, filho e
espírito santo, estão todos no masculino; Eva veio da costela de Adão e assim por
diante... Já as religiões da Grécia antiga, por exemplo, eram politeístas e continham
diversas Deusas em seu panteão. O mesmo ocorre com o Hinduísmo. As religiões
politeístas tendem a aceitar melhor a diversidade cultural, já as monoteístas tendem
a querer impor uma verdade única sobre todos os povos.
No dia 12 de agosto de 2008, por exemplo, o “São Paulo”, jornal semanal editado
pela Arquidiocese de São Paulo, trouxe a seguinte manchete: “Igreja alerta sobre
lei da família”, com matéria de página inteira. O alerta dizia respeito à votação, que
deveria acontecer em breve pelo Congresso Nacional, do Estatuto da Família,
criticado pela Igreja católica nos seguintes termos:
Além da descaracterização da família como tal, o projeto propõe a
completa equiparação entre a família fundada no matrimônio, a
união estável, a união homoafetiva e a união parental e monoparental. Não se fala mais de família e sim de “entidades familiares”;
e atribui a todas as entidades familiares a mesma dignidade e igual
merecimento de tutela, sem hierarquia entre elas. Além disso, são
previstos tempos acelerados para a realização do divórcio, que pode
ser conseguido inclusive de modo extrajudicial.37
37
BUSIN, Valéria Melki. (2011). Religião, sexualidades e gênero. Revista Rever, Ano 11, Nº 01.
Ou seja, a Igreja estava criticando a noção de “entidades familiares”, pois a lei estaria
atribuindo a todas elas a “mesma dignidade”. Para a Igreja, somente um modelo de
família pode existir e todos os outros (união estável, união homoafetiva, união
parental,
monoparental,
polifidelidade,
etc...)
devem
ser
considerados
hierarquicamente inferiores e não dignos. Isso é hegemonia cultural, colocar uma
forma como superior a todas as outras a fim de auferir algum benefício particular neste caso, a garantia da propagação dos valores cristãos para as futuras gerações.
A Igreja sempre precisou estimular a valorização família tradicional pois ela serve
como um local privilegiado para transmissão e reprodução dos valores cristãos, como
explica a pesquisadora Valéria Melki Busin:
A família é, para diversas tradições religiosas, um lócus privilegiado
de transmissão e/ou socialização de valores e princípios religiosos.
Como as religiões não dispõem de mecanismos coercitivos, elas
instituem uma aliança com a família – fazendo a apologia desta –,
que inculca em seus membros, especialmente nos das gerações
sucessoras, os valores morais defendidos pelas religiões. (...) Por isso,
a principal estratégia utilizada pelo Catolicismo para impor seus
valores morais para a sociedade pressupõe um forte investimento na
família de origem e na manutenção do modelo nuclear de família.38
Por isso, tudo que atenta contra essa estrutura familiar é tido como errado,
indesejável e pecaminoso, como por exemplo a homossexualidade, o adultério, o
divórcio, etc.
Recentemente ocorreu outro exemplo que ilustra essa tentativa, por parte de alguns
grupos que estão no poder, de imposição autoritária de um único modelo cultural
sobre as pessoas. No dia 12 de julho de 2021 diversas mídias repercutiram a decisão
da Funarte de reprovar o pedido de apoio do Festival de Jazz do Capão, negando o
financiamento ao festival realizado na região da Chapada da Diamantina sob o
argumento de que “a música deveria servir à Deus” e isso não ocorreria no evento.
Vemos então que as pessoas que estão no poder querem determinar até a música
38
BUSIN, Valéria Melki. (2011). Religião, sexualidades e gênero. Revista Rever, Ano 11, Nº 01.
que merece ou não ser ouvida, de acordo com os critérios deles. Isso considerando
que nosso Estado é laico!
A questão central é que por conta desses processos autoritários de hegemonização
cultural, sempre existe alguém tentando nos impor a forma como deveríamos ser e
nos comportar. Nunca somos encorajados a descobrir e seguir a nossa própria
verdade. Muito pelo contrário, somos educados e treinados para seguir o que nos
dizem que é certo e errado sem questionar – quase como um adestramento.
Desta forma, não temos a oportunidade de construir a nossa própria subjetividade, o
nosso próprio jeito de ser no mundo. Somos, na verdade, formatados para
obedecermos acriticamente ao que nos dizem que é certo ou errado e se sairmos um
pouquinho da linha que nos é imposta, somos severamente julgados e nos sentimos
culpados e inadequados.
Além de sermos acusados pelo nosso “juiz interior”, existe toda uma patrulha dos
costumes do lado de fora pronta para nos recriminar, repreender e difamar... assim
corremos um sério risco de isolamento caso não voltemos para linha. Em ambos os
casos, seja a acusação vindo de dentro ou de fora, o resultado é sempre o mesmo:
ficamos com medo e inseguros e preferimos obedecer!
Existe um grande rolo compressor cultural que não permite que as pessoas
descubram sua própria verdade. Nós mesmos nos controlamos mutuamente para ter
certeza de que ninguém sairá da linha! E uma pessoa com medo e insegura irá
facilmente seguir os outros como uma ovelhinha, afinal, somos muito carentes para
correr o risco de perder a aprovação das pessoas significativas em nossas vidas. Quem
vai querer arriscar seguir no contrafluxo?
É o medo, eis o inimigo.
O medo principalmente do outro, que observa atentamente tudo o
que fazemos — sempre pronto a criticar, a condenar, a pôr restrições
— porque fazemos diferente dele. Só por isso. Nossa diferença diz
para ele que sua mesmice não é necessária. Que ele também pode
tentar ser livre — seguindo sua estrela. Que sua prisão não tem
paredes de pedra, nem correntes de ferro. Como a de Branca de
Neve, sua prisão é de cristal – invisível. Só existe na sua cabeça. Mas
sua cabeça contém — é preciso que se diga — todos os outros que
de dentro dele o observam, criticam, comentam — às vezes até
elogiam!
Porque vivemos fazendo isso uns com os outros — nos vigiando e nos
obrigando — todos contra todos — a ficarmos bonzinhos dentro das
regrinhas do bem-comportado — pequenos, pequenos. Sofremos de
Megalomania porque no palco social nos obrigamos a ser todos
anões. Nós nos obrigamos a ser, todos, pequenos e insignificantes
E ai de quem se salienta — fazendo de repente o que lhe deu na
cabeça. Fogueira para ele! Ou você pensa que a fogueira só existiu
na Idade Média?39
É muito mais fácil viver em um mundo onde tudo já está previamente definido. Como
ser homem, como ser mulher, como ser um marido, como ser uma esposa, como fazer
sexo, como não fazer sexo, o que pode e o que não pode. Abrir mão dessas referências
é como seguir a vida sem um manual de instruções! Dá trabalho descobrir por conta
própria o que é de fato bom para VOCÊ, qual é de fato a SUA necessidade, a SUA
verdade.
O convite que fazemos então, leitor, é para que você descubra qual modelo de
relacionamento atende melhor às suas necessidades ao invés de se encaixar em um
modelo pré-estabelecido de relacionamento que nos foi imposto sem levar em conta
as nossas singularidades. Não tem como um só modelo servir para milhões de pessoas
diferentes, cada qual vai ter que criar uma forma que se encaixe bem com seus
valores, com as suas características de personalidade, sua história de vida, seu
momento atual, seus desafios, etc.
E viva a liberdade tão duramente conquistada!
39
Trecho do artigo As Carícias e o Iluminado, de José Ângelo Gaiarsa. Pode ser encontrado aqui:
https://letraefilosofia.com.br/as-caricias-e-o-iluminado-jose-a-gaiarsa/
NÃO-MONOGAMIA POLÍTICA E OPRESSÕES ESTRUTURAIS
Como explicamos anteriormente, a monogamia surgiu no mundo como um sistema
de controle do comportamento sexual das mulheres a fim de servir ao interesse
dominante dos homens proprietários de terras e animais. Em muitos sentidos a
monogamia surgiu como um mecanismo de escravidão da mulher para fins
reprodutivos. Historicamente, mulher e filhos se somavam às terras e bens materiais
do patriarca como suas propriedades.
Então, de partida vemos algo de muito negativo na tradição monogâmica, ela coisifica
as pessoas, transforma as pessoas em objetos que servem ao interesse de outrem. No
passado o interesse era o controle do corpo feminino para geração de herdeiros
legítimos. Com a expansão do cristianismo, essa exigência se generalizou para os
homens também e o controle do comportamento sexual de todos passou a servir
como um mecanismo de dominação política da igreja.
De todo modo, a monogamia sempre serviu como um mecanismo de controle do
corpo de alguém, seja para fins materiais ou para fins políticos. Hoje em dia a
monogamia tem sido utilizada com o propósito de garantir segurança psicológica para
o parceiro, segurança de que a pessoa não será trocada por outra. Ainda assim, é uma
coisificação do outro, é uma forma de utilizar a sexualidade da outra pessoa para
satisfazer uma necessidade psicológica própria (neste caso, necessidade de
segurança).
Por conta desta perspectiva é que muitas pessoas no universo não-monogâmico
argumentam que devemos enxergar a não-monogamia não apenas como um modelo
relacional, mas como um ato político, como uma luta contra as opressões estruturais.
Nessa perspectiva politizada, “não-monogamia não é sobre quantidade de pessoas
que se pega. É sobre não se autorizar a legislar a sexualidade/afetiva de outra
pessoa.”40
A não-monogamia enquanto escolha política é uma desconstrução de paradigmas
impostos por uma sociedade racista, machista e patriarcal. Paradigmas que
determinam como as pessoas devem ser ao invés de as encorajarem a serem elas
mesmas. Nesse sentido a monogamia é aliada de outros mecanismos normativos de
opressão como a heteronormatividade, a cisnormatividade e o machismo. O sistema
monogâmico também se articula com o da propriedade privada e este, por sua vez,
com todo o racismo estrutural, como explica Geni Núñez:
Romper com a lógica monogâmica é romper com uma cultura
cisheteropatriacal e branca. Para isso, é necessário, um
posicionamento anti-machista, anti-racista e anti-LGBTQIfóbico
também.41
Nessa perspectiva, pode-se entender a não-monogamia também como uma
identidade e não só como uma prática relacional, como explica Nana Miranda:
Se entender não-mono contempla a busca por emancipação na
construção da identidade política, nos dando a oportunidade de
romper com uma homogeneidade social que é a monogamia. 42
Sendo assim, mesmo sendo solteiro, ainda é possível ser não-monogâmico, no sentido
de buscar se relacionar sem controlar a afetividade/sexualidade das outras pessoas. A
luta não-monogâmica é para permitir que as pessoas sejam livres para escolherem
como querem se relacionar, sem nenhuma coerção. Da mesma forma que as pessoas
devem ser livres para manifestarem a sua orientação sexual sem preconceito. Da
mesma forma que a expressão de gênero deve ser livre, sem preconceito. Da mesma
forma que os homens devem ser livres para chorar e expressarem seus afetos sem
40
Não-monogamia e as opressões estruturais - Reflexões anticoloniais. Artigo de autoria de Geni Núñez, publicado
em: https://medium.com/naomonoemfoco/n%C3%A3o-monogamia-e-as-opress%C3%B5es-estruturais7c8d7241b552
41
Idem.
42
A não-monogamia como identidade política. Artigo de Nana Miranda, publicado em:
https://medium.com/naomonoemfoco/a-n%C3%A3o-monogamia-como-identidade-pol%C3%ADtica-d132bcf15e45
julgamento. Da mesma forma que os meninos devem ser livres para usarem cor de
rosa e as meninas devem poder jogar futebol e assim por diante!
Toda normatização é opressiva e coercitiva pois não dá para um modelo só valer para
todas as pessoas. Há quem goste de ser monogâmico e há quem goste de ser nãomonogâmico - não deveríamos definir a priori qual é a norma e sim deixar as pessoas
livres para manifestarem sua verdade, sua singularidade, sem terem seu valor e sua
dignidade diminuídos por isso.
Manifesto por uma não-monogamia política43
A Não-monogamia Política é anticolonial e antirracista, por entender a estrutura
monogâmica como imposição colonial violenta e por entender a importância de se
opor à colonização, inclusive de nossos desejos e afetos.
A Não-monogamia Política é anticapitalista, por entender a estrutura monogâmica
como estrutura diretamente ligada à propriedade privada. Por entender que a
monogamia é essencial para a manutenção do trabalho doméstico não remunerado
e a criação da mão de obra para o capital, bem como a exploração e a criação da
opressão de gênero.
A Não-monogamia Política é antiLGBTfobia, por entender que o sistema monogâmico
está atrelado a estrutura cisheteropatriarcal. Uma hegemonia que se consolidou
excluindo e subalternizando corpos dissidentes. Uma estrutura que surge excluindo e
gerando violências diretas e indiretas a esses corpos.
Nossos desejos e afetos foram invadidos e colonizados. Nos foi imposto uma única
forma de amar e se relacionar. A monogamia é uma imposição social, jurídica e
religiosa/cristã. A Não-monogamia Política é a construção coletiva de um projeto de
43
Reprodução de trechos do “Manifesto por uma não-monogamia política” do coletivo NM em Foco:
https://naomonoemfoco.com.br/manifesto-por-uma-nao-monogamia-politica/
emancipação dessa invasão, além do reconhecimento do sistema monogâmico como
mais uma forma de violência a qual somos submetidos.
A estrutura monogâmica empobrece as nossas conexões. São as comunidades que
movem o mundo, não a família nuclear. O sentido ancestral da vida sempre foi
coletivo, apesar de tentarem nos dizer incessantemente que não. A Não-monogamia
Política é a busca pelo fortalecimento dessas conexões e pelo fim das estruturas de
opressão.
Questões de gênero: evitando o abuso nas relações não-monogâmicas
Já que estamos falando sobre opressão estrutural, não poderíamos deixar de
mencionar as questões de gênero subjacentes à não-monogamia. Relações abertas
funcionam melhor quando existe uma relação igualitária entre os membros da
relação, onde ambos têm voz e igual autonomia decisória. Porém, como vivemos em
uma sociedade patriarcal, sabemos que infelizmente os homens, de forma geral,
costumam ter mais poder que as mulheres, inclusive nas relações afetivas. Por isso, é
possível que os homens se utilizem desses discurso não-monogâmico para obter
benefícios para si próprio, sem levar em consideração os interesses da parceira. Neste
caso, haverá a reprodução do modelo patriarcal em que o homem utiliza a mulher
para satisfazer seus interesses pessoais.
Essa assimetria de poder na relação pode levar a situações muito opressoras,
principalmente no universo do swing, onde muitas vezes as mulheres acabam se
submetendo a participar de experiências sexuais aversivas somente porque o
parceiro quer. Ou então a mulher acaba sendo utilizada como “moeda de troca” para
o parceiro ter acesso a diferentes mulheres. Nada disso pode ser descrito como nãomonogamia responsável, que é pautada sempre pela ética do cuidado e da
autonomia de todos os participantes.
Para se proteger contra essa situação, os autores do livro “Relações Livres – Uma
Introdução” elaboraram essa lista com cinco perguntas que as pessoas,
especialmente as mulheres, devem fazer a si mesmas para compreender melhor sua
posição nessa abertura da relação. Uma resposta positiva a qualquer uma delas indica
necessidade de examinar a situação com atenção:
1. Eu quero uma relação não-monogâmica de fato ou estou
aceitando somente por medo de perder o parceiro?
2. O comportamento de meu parceiro dificulta, de alguma
forma, que eu seja livre, que eu saia com outras pessoas?
3. Meu parceiro (ou parceira) força a barra para que eu me
relacione com outras mulheres (ou homens), mesmo eu não
estando certa se é isso que eu quero?
4. Sou bi e meu parceiro só fica tranquilo quando me relaciono
com mulheres, “dando trabalho” se saio com homens?
5. Tenho a impressão de que meu parceiro só está a fim de
transar comigo, mesmo que estejamos nos propondo a
estabelecer uma relação também afetiva?
MITOS SOBRE A NÃO MONOGAMIA
Como descrevemos no capítulo anterior, as pesquisas científicas evidenciam que o
comportamento não-monogâmico é muito mais prevalente na natureza do que a
monogamia, o que contraria o mito de que as relações abertas são antinaturais e
imorais. A definição do que é certo ou errado varia conforme os costumes de cada
época, por isso preferimos entender que o correto mesmo é seguir a sua própria
verdade e criar relacionamentos honestos e éticos que estejam adaptados às suas
necessidades e a de seu parceiro.
Mesmo com grandes mudanças culturais, ainda assim a ideia da não-monogamia não
costuma ser bem recebida pelas pessoas, que criticam ferozmente essa possibilidade
relacional, como podemos ver através das críticas recebidas em nosso perfil do
instagram @não_monogamia_responsavel:
douglasferreira.g: A clássica putaria pagã da antiguidade. Quanta pobreza!
Linguaecogitandi: Então... Isso soa tipo: quero a segurança do casamento, mas sem
abdicar de umas aventurazinhas. E isso independe de ser homem ou mulher, sem essa!
pacismateus: Fruto de uma sociedade cada vez mais fluída, promíscua e rala. É a nova moda.
wolfgangschlogel: Somente quem não sabe o que é o amor verdadeiro aceitaria isso.
flavio_srf: A poligamia acaba quando o cara vê ou descobre que a mulher que ama está
dando pra outro. Ou quando o homem amado é flagrado com outra. É impossível saber que
a mulher que vc ama chupa o pau de outros caras. Desculpe a sinceridade, mas é isso!
amauryaqui: Auto-engano para nossas taras. Renomear um ato falho é auto-engano.
sambex.da.massa: Resumindo, promiscuidade.
ga_tatu: Gente degenerada do cacete. Vão se tratar, doentes.
A atriz Fernanda Nobre, quando decidiu revelar que estava em um casamento aberto,
também recebeu inúmeras críticas em seu perfil do instagram:
marialuciateixeira99: eu te admirava como atriz e acho vc mt linda mais tô chocada com
esta sua escolha de relação. Mulher de pouco cérebro, sem amor próprio.
goulart5781: não aceito um relacionamento assim, se fosse minha mulher não dividiria com
mais ninguém. Imaginem outro homem possuindo minha mulher. De jeito algum... isso é
levar piruca de touro...
beka.trajano. Sinceramente respeito mas não concordo! A modernidade está destruindo as
formas de pensar das pessoas.
danilohguimaraes. Realmente é uma trouxa conformada! kkk
perigoso_4.0. Uma forma elaborada pra dizer que adora uma putaria.
fefearmando: Deus me livre de ter uma relação dessa!
Essas críticas ilustram os diversos mitos envolvendo os relacionamentos nãomonogâmicos e também a mentalidade possessiva e machista que ainda predomina
em nosso mundo. O comentário de goulart5781 é bem ilustrativo dessa mentalidade
possessiva. Diz ele que não “dividiria” a mulher com mais ninguém, como se a mulher
fosse um bem ou um produto que pudesse ser “dividido” com os outros. Depois ele
diz: “imaginem outro homem possuindo a minha mulher”. A própria linguagem
denuncia a mentalidade possessiva que coisifica a mulher como uma propriedade do
homem – embora no fundo essa mentalidade independa do gênero.
O comentário de flavio_srf também ilustra esse machismo estrutural baseado na
posse: “é impossível saber que a mulher que vc ama chupa o pau de outros caras”.
Aliás, 90% dos comentários críticos à não-monogamia vem precisamente dos homens
e isso não é por acaso. Esse detalhe foi percebido por uma das leitoras da nossa página
no instagram, que disse assim:
É interessante ver que a maioria dos comentários contrários vem de
perfis masculinos, sendo que do ponto de vista da estatística homens
seguem traindo mais que mulheres. Talvez estejamos nos deparando
com a “não permissão” de que mulheres possam optar por
relacionamentos não-monogâmicos. Tendo em vista que muitos
homens mantêm esse tipo de relacionamento, mas de forma
escondida, caracterizando a traição.
A seguir, vamos elencar os principais mitos que cercam os relacionamento nãomonogâmicos e comentar algumas dessa falsas verdades propagandeadas pelos
críticos da não-monogamia.
NÃO-MONOGAMA É O MESMO QUE POLIGAMIA
Essa é uma confusão bastante comum, mas na verdade, trata-se de coisas muito
distintas. Poligamia é um termo de origem grega, que significa muitos casamentos. É
um sistema onde o homem tem mais de uma mulher ao mesmo tempo (poliginia) ou
até mesmo onde a mulher tem mais de um marido simultaneamente (poliandria) –
sendo que esta é bem menos comum que a poliginia.
A poligamia está presente em vários países, mas tem caído em desuso com o passar
do tempo. No islamismo ela é praticada há séculos, inclusive pelo profeta Maomé, e
até hoje é adotado em países muçulmanos, regulado pelo Alcorão - o livro sagrado
dos muçulmanos - que permite que o homem tenha, no máximo, quatro esposas.
A diferença da não-monogamia para a poligamia é muito simples. Na poligamia, essa
autorização para se ter outros parceiros é unilateral, em geral somente o homem
pode se casar com outras mulheres, sendo que elas são obrigadas a continuarem
monogâmicas. A não-monogamia responsável pressupõe uma igualdade de
oportunidades, por isso só funciona em uma relação igualitária. A poligamia costuma
ocorrer em países machistas onde o patriarcado ainda vigora com muita força,
normalmente sancionado pela religião oficial e pelas leis do Estado. Além disso, a
poligamia
(...) onde é culturalmente aceita e permitida pela legislação, é
também a norma coercitiva, tal qual a monogamia. É um arranjo
centrado em uma pessoa, ou seja, mantém centralizado o poder
hierárquico, e as outras envolvidas não se relacionam entre si. Por
isso não-monogamia deve na nossa opinião ser também uma não
poligamia, no sentido de se opor a essa estrutura nuclear de posse.44
“SE QUER SER NÃO-MONOGÂMICO, ENTÃO É MELHOR FICAR SOLTEIRO”
Vemos que em nossa sociedade existe essa crença muito arraigada de que nós sempre
temos que escolher entre sermos solteiros e continuarmos livres OU nos casarmos e
ficarmos presos. É como se tivéssemos que optar entre ter um amor OU ser livres,
numa visão bem maniqueísta da realidade: ou isto ou aquilo.
Se optarmos por sermos solteiros podemos ficar com várias pessoas, mas se optarmos
por um relacionamento só poderemos ficar com uma pessoa e fim de papo! Ora, as
pessoas não mudam só porque iniciaram um relacionamento. Se elas gostavam de ser
livres para conhecer outras pessoas enquanto estavam solteiras, não é só porque elas
entram em um relacionamento que vão deixar de curtir essa liberdade. Afinal de
contas, elas continuam sendo as mesmas pessoas e tendo as mesmas necessidades!
A grande verdade é que nós sempre vamos ter essas duas necessidades na vida: amar
E ser livres. Temos necessidade de nos sentirmos vinculados, de sentirmos segurança,
previsibilidade e estabilidade – todas essas coisas que um relacionamento oferece mas também temos necessidade de aventura, novidade, adrenalina e frio na barriga.
Como bem explica a psicoterapeuta de casal Esther Perel:
De um lado, nossa necessidade de segurança, previsibilidade,
proteção, dependência, confiança e permanência, todas essas
experiências fundamentais das nossas vidas que chamamos de lar.
Porém, temos também uma necessidade igualmente forte, homens
e mulheres, por aventura, novidade, mistério, risco, perigo, o
desconhecido, o inesperado e a surpresa.
O casamento tal como conhecemos costuma atender à primeira dessas duas
necessidades apenas, trazendo muita segurança e previsibilidade, mas a verdade é
44
Artigo de Newton Jr, Nana Miranda e Simone Bispo. Mas afinal, o que é não-monogamia. Pode ser encontrado em:
https://naomonoemfoco.com.br/mas-afinal-o-que-nm/
que o anseio pela novidade não deixa de existir só porque entramos em um
relacionamento! Por isso, faz todo sentido que queiramos ter as duas coisas ao
mesmo tempo como ocorre na não-monogamia: amar E ser livre. Nada poderia ser
mais natural que isso...
SE AMASSEM O PARCEIRO DE VERDADE NÃO CONSEGUIRIAM VÊ-LOS COM OUTRA
PESSOA.
O pressuposto aqui é de que amar implica em querer possuir o outro só pra si. Esse é
um tipo de raciocínio de quem enxerga o amado como propriedade, acaba sendo uma
coisificação da outra pessoa. Essa forma de pensar está muito alinhada com a
definição de casamento que apresentamos no início do livro, proposta pelo filósofo
Immanuel Kant, que o definiu como a “união de duas pessoas de sexos diferentes para
a posse mútua e vitalícia de suas qualidades sexuais”.45
Nessa perspectiva, é como se amar automaticamente desse o direito de exclusividade
sobre o corpo da outra pessoa, como se a certidão de casamento fosse uma escritura
de posse. É curioso que em geral costumamos ter a partilha como um valor,
ensinamos nossos filhos a partilhar os brinquedos, mas quando se refere ao amor,
queremos ele todo só para nós mesmos! Como coloca o psicólogo e escrito britânico
Adam Philips: “Podemos crer que partilhar seja uma virtude, mas parecemos não
acreditar em compartilhar aquilo que mais valorizamos na vida: nossos parceiros
sexuais”.46
Amar é querer ver o outro feliz, é querer ver o outro se realizando, se expandindo, se
descobrindo, tendo alegria, prazer, etc. Quando amamos alguém desejamos tudo de
melhor para essa pessoa, incluindo aí a liberdade e a oportunidade de ter experiências
significativas caso elas assim desejem. As pessoas que fazem esse tipo de crítica na
verdade amam mais a própria sensação de segurança do que a outra pessoa.
45
46
KANT, I. (1797). Metafísica dos Costumes.
PHILLIPS, A. (1999) Monogamy. Ed. Vintage.
Preferem privar o outro de uma alegria genuína do que enfrentarem seus próprios
medos.
PESSOAS EM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICOS NÃO SE AMAM DE
VERDADE
Aqui o pressuposto é o de que quando amamos de verdade não temos mais
necessidades de ficar com nenhuma outra pessoa. Esse é exatamente o cerne da
ideologia do amo romântico que aprendemos ao longo de toda vida nos filmes, nas
músicas, nas novelas e nos contos de fada: quem ama não precisa de mais ninguém
nem se interessa por mais ninguém. Daí advém o famoso “casaram-se e foram felizes
para sempre”. Essa é a ideologia da alma gêmea, da cara metade que vai nos
completar e nos fazer inteiros novamente, quando então não sentiremos mais falta
de nada.
O mito da alma gêmea foi apresentado por Platão em seu livro “O Banquete”. Um dos
momentos mais fascinantes do texto é quando toma a palavra o comediógrafo
Aristófanes. Ele faz um discurso belo e que se imortalizou como a teoria da alma
gêmea.
Aristófanes começa dizendo que no início dos tempos os homens eram seres
completos, de duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, o que permitia a eles um
movimento circular muito rápido para se deslocarem. Porém, considerando-se seres
tão bem desenvolvidos, os homens resolveram subir aos céus e lutar contra os
deuses, destronando-os e ocupando seus lugares. Todavia, os deuses venceram a
batalha e Zeus resolveu castigar os homens por sua rebeldia. Tomou na mão uma
espada e cindiu todos os homens, dividindo-os ao meio.
Dessa forma, os homens caíram na terra novamente e, desesperados, cada um saiu à
procura da sua outra metade, sem a qual não conseguiriam viver. Tendo assumido a
forma que nós temos hoje, os homens estão fadados eternamente a procurarem por
sua outra metade.47
É preciso entendermos que ninguém completa ninguém. Não é saudável exigir que
alguém satisfaça todas as nossas necessidades e anseios. O outro nos acompanha em
nosso processo de desenvolvimento, mas esse processo é individual e cada indivíduo
tem as suas próprias necessidades de acordo com seu processo pessoal e sua história
de vida. Idealizar que alguém possa satisfazer todas as nossas necessidades pode
gerar muita frustração e um jogo de cobranças e acusações muito perverso. Podemos
sim amar e desejar outras pessoas e está tudo certo com isso.
PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM PROBLEMAS PSICOLÓGICOS
Uma pesquisa baseada em testes psicológicos padronizados mostrou que pessoas em
relacionamentos não monogâmicos não são mais nem menos disfuncionais,
narcisistas, neuróticas, patológicas, psicóticas ou perturbadas do que pessoas em
relacionamentos monogâmicos.48 Isso não significa dizer que as pessoas em
relacionamentos abertos sejam todas bem ajustadas e psicologicamente saudáveis.
Significa apenas que não há diferença entre pessoas monogâmicas e não
monogâmicas quanto a estes quesitos.
Outro estudo mostrou que o indivíduo em um relacionamento aberto tende a ser "um
realizador acadêmico, criativo, inconformado, estimulado pela complexidade e pelo
caos, inventivo, relativamente não convencional e indiferente ao que os outros dizem,
preocupado com os seus próprios valores e sistemas éticos, e disposto a correr riscos
para explorar possibilidades”.49 Segundo este mesmo estudo, como os
relacionamentos abertos requerem habilidades relacionais bem desenvolvidas, essas
47
Citado no texto de João Francisco P. Cabral “O mito da alma gêmea”: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/mitoalma-gemea.htm
48
PEABODY, S. A. (1982). Alternative Life Styles to Monogamous Marriage: Variants of Normal Behavior in
Psychotherapy Clients. Revista Family Relations, Vol. 31, No. 3, pp. 425-434. Ed. National Council on Family Relations.
49
Citado em TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed.
Cleis Press.
pessoas tendem a ter mais autoconsciência, melhores habilidades de comunicação e
um melhor senso de identidade.
PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM DIFICULDADE PARA SE
COMPROMETER OU DIFICULDADE COM INTIMIDADE
O pressuposto aqui é que a intimidade só pode ser experimentada com uma pessoa
apenas e que o amor é algo quantificável, então se estiver com mais de uma pessoa
ele acaba se diluindo. Porém, sabemos que os pais amam vários filhos e o fato de
amar um não implica em reduzir o amor que sente pelo outro, muito menos o
compromisso.
As pessoas em relações não-monogâmicas não estão necessariamente evitando a
intimidade ou o compromisso, estão simplesmente cultivando um estilo de
relacionamento que atende às suas necessidades ao invés de se adequar a um modelo
imposto pela cultura e pela sociedade que não contempla as necessidades e
singularidades de cada indivíduo.
Intimidade é a disposição de se manter aberto, honesto e vulnerável ao seu parceiro.
A monogamia não garante intimidade assim como a não-monogamia não garante a
não intimidade. O mesmo vale para o comprometimento. Uma pessoa pode estar
altamente investida na relação e optar pela não-monogamia, até mesmo como uma
forma de cuidar melhor dessa relação, tendo em vista que essa exigência de
exclusividade pode ser sufocante e prejudicial para algumas pessoas. Nesse sentido,
a opção pela não-monogamia pode ser entendida como uma forma de cuidado com
a relação e uma profilaxia de problemas futuros como a traição e os segredos, por
exemplo.
NÃO MONOGAMIA É PARA PESSOAS CONFUSAS QUE NÃO SABEM O QUE QUEREM
Em verdade, parece ser justamente o oposto: a maioria das pessoas não
monogâmicas tem muita clareza sobre o que querem e precisam de seus
relacionamentos e do porquê estão optando pela não-monogamia. E não é que elas
não consigam escolher entre os diferentes parceiros, é que elas não querem e
acreditam firmemente que não precisem escolher um só.
É preciso saber muito bem o que se quer quanto se opta por seguir um caminho
diferente do tradicional pois certamente é muito mais fácil seguir o rebanho do que
se arriscar desbravando uma nova rota.
RELACIONAMENTO ABERTO É UM NOME CHIQUE PARA PROMISCUIDADE
Gostar de se relacionar sexualmente com mais de uma pessoa não é algo
necessariamente negativo. Muitas pessoas solteiras têm este comportamento e não
as julgamos por isso. Não é só porque uma pessoa se casou que ela perde o interesse
de se relacionar sexualmente com outras pessoas assim como quando era solteira. O
ato de se casar não muda magicamente nossas disposições.
Essa alegação de promiscuidade está bastante associada à cultura sexual negativa
que foi mencionada na introdução. Nos fizeram acreditar que sexo era uma coisa ruim
e, portanto, fazer sexo com muitas pessoas passou a ser moralmente condenado pois
quanto menos sexo se fizesse melhor e de preferência só para reprodução. Mas como
dissemos anteriormente, nem todas as religiões desenvolveram uma visão repressora
da sexualidade. No taoísmo, por exemplo, acredita-se que ter múltiplos parceiros
sexuais pode favorecer o crescimento espiritual, como podemos ver nesse trecho do
livro “Os Segredos da Câmara de Jade”, escrito pela Sacerdote Taoísta Ch’ing Nu em
980 d.C:
A troca frequente de parceiros traz benefícios crescentes (...) Se uma
pessoa mantém relações sexuais sempre com o mesmo parceiro, seu
ching-ch’i (vitalidade sexual) torna-se fraco, e isso não só não lhe traz
grande proveito, mas fará com que o seu parceiro se torne mirrado e
macilento.50
Quando olhamos para a sexualidade como algo positivo e benéfico para o
desenvolvimento humano, percebe-se que fazer sexo com diversas pessoas não é
algo negativo. Como pontuamos anteriormente, sexo é uma necessidade biológica,
assim como dormir e se alimentar.
Além disso, vale frisar que relacionamento aberto não é somente uma questão de
sexo. É um estilo de vida que pode envolver questões muito mais profundas como
liberdade, transparência e respeito à individualidade. Algumas formas de nãomonogamia podem incluir, inclusive, liberdade afetiva além de sexual, como é o caso
do poliamor e das relações livres.
RELACIONAMENTO ABERTO É PERIGOSO PARA A SAÚDE
Ter múltiplos parceiros sexuais não te coloca automaticamente em risco de pegar
DSTs. O comportamento de sexo desprotegido com pessoas desconhecidas é que
aumenta o risco e isso pode acontecer tanto com solteiros como com pessoas que
estão em relacionamento monogâmico e traem seus parceiros. Aliás, poucos sabem,
mas, 870 mil mulheres são infectadas pelo HIV todos os anos no mundo e 80% foram
contaminadas pelos maridos ou namorados. Tal dado coloca a AIDS como a maior
causa de mortes entre mulheres em idade reprodutiva (de 15 a 49 anos) globalmente,
segundo a Unaids.
Vale ressaltar que, em geral, o combinado mais prevalente nas relações abertas é a
obrigatoriedade de se fazer sexo seguro. Já nas relações monogâmicas, onde o sexo
extraconjugal acontece de forma não combinada via traição, não existe essa regra
explícita de se fazer apenas sexo seguro fora da relação - até mesmo porque nem se
cogita essa possibilidade. Por mais frequente que possa ser a traição em nossa
50
Citado em: LINSSEN, L. & WIK, S. (2012). Amor sem barreiras: As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos
Abertos e Poliamorosos nos Dias de Hoje. Ed. Pensamento.
sociedade, nenhum casal irá discutir como deve-se agir nessas situações, o que
impede a implementação de um combinado como este, afinal, não dá para se planejar
para uma situação que nem está sendo considerada.
Sendo assim, consideramos que todas as pessoas que têm uma vida sexual ativa
devem se preocupar com sua saúde sexual, independentemente do tipo de relação
que estiverem tendo. Quem está em um relacionamento aberto tem a vantagem de
poder discutir o sexo extraconjugal abertamente, se antecipando à ocorrência dele.
Cabe lembrar também que o termo DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) caiu
em desuso e hoje os infectologistas falam em ISTs (Infecções Sexualmente
Transmissíveis) e o motivo para essa mudança na nomenclatura é bem concreto:
muitas pessoas podem estar infectadas sem manifestar nenhum sintoma de doença.
Esse é mais um motivo para todos se cuidarem, independente da forma de
relacionamento que optarem.
CASAMENTO ABERTO É UM AMBIENTE RUIM PARA A CRIAÇÃO DE CRIANÇAS
As crianças necessitam de amor e suporte dos adultos e responsáveis. A vida afetivosexual dos pais não necessariamente afeta a qualidade do cuidado que se têm com
os filhos. Famílias nucleares tradicionais podem ser tão disfuncionais quanto qualquer
outro arranjo familiar, independente de envolverem ou não exclusividade sexual.
É SÓ UMA FASE DO RELACIONAMENTO
Casais em relações abertas escutam essa pergunta com frequência: “A relação ainda
é aberta?”, como se fosse um estágio. Em geral as pessoas falam isso por não levar o
relacionamento aberto a sério, como se a única forma de relacionamento que é digna
de respeito fosse o relacionamento fechado, monogâmico. Pode até ser que o casal,
em algum momento, decida se tornar monogâmico, mas isso não significa que houve
uma evolução no caráter da relação, significa apenas que era aberto e aí ficou
fechado. Simples assim.
É UMA TENTATIVA DESESPERADA DE SALVAR A RELAÇÃO
A abertura da relação para que se possa sair com outras pessoas também costuma
ser vista como uma forma de salvar a relação, mas não é necessariamente o caso.
Pode até ser que algum casal opte pela relação aberta numa última tentativa de salvar
a relação (embora essa não seja uma boa ideia), mas não é a regra. Da mesma forma
que para alguns a exclusividade sexual pode ter um fim em si mesma, também a
liberdade sexual pode. Ou seja, não necessariamente a relação aberta é um meio para
algum fim específico, pode ser simplesmente mais coerente com o modo de pensar
dos sujeitos.
NÃO MONOGAMIA É O MESMO QUE INFIDELIDADE
Um conceito que precisa ser completamente ressignificado em nossa sociedade é o
conceito de fidelidade. Definitivamente, ser fiel não é o mesmo que se manter
monogâmico. Uma pessoa pode facilmente ser monogâmica e infiel. Vejamos os
seguintes exemplos dados pela psicanalista Regina Navarro de duas pacientes
diferentes que ela atendeu em seu consultório: 51
Caso 1
Esther, uma professora de inglês de 35 anos que parou de trabalhar quando se casou
com Rui. Logo tiveram dois filhos e a partir daí seu dia passou a se dividir entre a
administração da casa, aulas de ginástica, encontro com as amigas e compras no
shopping. Após 8 anos de casamento não sente mais desejo algum de fazer sexo com
51
Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”:
https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O
o marido. Tem o hábito de criticá-lo, sempre o desvaloriza e ridiculariza o marido para
as amigas. Impotente por não poder se separar porque o marido a sustenta e ela não
consegue se bancar sozinha, o seu ódio cresce a cada dia. Mas a Esther nunca teve
um relacionamento com outra pessoa, nenhuma relação extraconjugal.
Caso 2
Ângela, uma jornalista de 34 anos, está casada com Mauro há 7. Além de trabalhar
numa revista ela participa de outras atividades culturais que ela gosta muito.
Considera sua relação com o marido ótima. Além de serem grandes amigos, têm uma
vida sexual intensa. Viajam nos fins de semana, vão ao cinema, teatro, tem grupo de
amigos, etc. Cada um convive com os amigos em comum e amigos em separados.
Respeitam-se sem que um tente controlar a vida do outro. A obrigação de fidelidade
nunca foi discutida entre eles, nunca tocaram nesse assunto. Ângela considera essa
uma questão menor e define assim a visão que tem do seu casamento:
Amo muito meu marido e sinto muito tesão por ele. Acho que foi a
pessoa que mais me satisfez no sexo até hoje. Eventualmente sinto
desejo por outro homem e quando isso acontece não vejo razão para
me reprimir. Desde que casamos tive 4 relações extraconjugais que
não abalaram em nada o que vivo com Mauro. Suponho que ele
também deva ter tido alguns romances. Ano passado, acho até que
andou meio apaixonado. Chegava em casa calado, ficava pensativo,
parecia estar em outro mundo, mas eu não perguntei nada. Após
algumas semanas ele voltou ao normal, foi um alívio para mim.
Mauro é a pessoa que mais amo no mundo, admiro e respeito. É com
ele que prefiro conviver, fazer sexo, viajar, passar o réveillon. Quando
fico doente, quero ser cuidada por ele e também cuidar dele. Mas não
vejo por que não deva transar com outro homem por causa disso.
Se fizermos uma análise superficial desses dois casos vamos dizer que a Esther é
considerada uma mulher fiel ao marido, mesmo que ela o odeie, esteja com ele só
porque a sustenta e seja desleal falando mal pelas suas costas. Já Ângela é o que se
considera uma mulher infiel ao marido, mesmo tendo uma vida maravilhosa com o
marido e sendo muito leal a ele.
Vemos então que fidelidade não tem nada a ver com sexo. Ser fiel tem a ver com
lealdade e honestidade – é honrar o compromisso afetivo. Fidelidade é também
respeitar os acordos que regem a relação. Infidelidade envolve mentira, decepção e
a quebra de um compromisso previamente estabelecido, mesmo que não exista
relacionamento extraconjugal. Na não-monogamia consensual, ética e responsável
deve haver lealdade, transparência e comunicação aberta, além de que todos os
combinados devem ser respeitados pelos envolvidos – por isso não se trata de uma
forma de infidelidade.
Aliás, o fato de haver ou não relações sexuais fora do casamento não é
necessariamente um problema. A pesquisadora Catherine Hakim concluiu em suas
pesquisas sobre casamento e divórcio que muitas vezes ter um caso extraconjugal
pode ajudar bastante na manutenção do casamento:
As pesquisas mostram que, nos países com menor taxa de divórcio,
os casos extraconjugais são mais aceitáveis e praticados. Nos
Estados Unidos, onde a infidelidade é vista como pecado e não se
tolera a mínima escapada, metade dos casamentos termina em
divórcio. Na Europa, há uma cultura de que a fidelidade sexual no
casamento não é tão importante assim. Não é à toa que, na Espanha
e na Itália, a taxa de divórcio fica em torno de 10%.52
Além disso, fala-se muito em traição ao parceiro, mas costuma-se desconsiderar a
traição que muitos cometem contra si mesmos ao deixarem de realizar algo que é
importante para si. Por que se fala tanto em ser fiel ao outro e se ignora a importância
de sermos fiéis a nós mesmos em primeiro lugar? Será que é possível ser fiel ao outro
sem antes ser fiel a si mesmo? Como explica Esther Perel,
Ter mais de um desejo pode ser o maior tabu da intimidade moderna,
mas amontoar a totalidade de uma libido nos estreitos limites
52
HAKIM, C. (2010). Capital Erótico. Ed. Best Business
domésticos e concordar com mundo de desejos pré-retraídos
também é pra alguns auto-traição no sentido mais pleno.53
E quando sentimos que estamos nos traindo, renunciando a experiências que
consideramos ser importantes para nós mesmos, existem grandes chances de
acabarmos ficando ressentidos com a outra pessoa, como explica a psicanalista
Regina Navarro:
É nesta altura que se manifesta um estado crítico de irritação contra
o outro, irritação que, conforme o temperamento de cada um, se
exterioriza ou é reprimida. Em qualquer dos casos, e conforme
demonstra a análise de situações desse gênero, gera-se e
desenvolve-se sem cessar um ódio inconsciente contra o outro, pelo
fato de ele impedir a satisfação e frustrar os outros desejos sexuais.54
53
Citado no artigo de Regina Navarro Lins “Quem ama também trai”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2019/10/05/quem-ama-tambem-trai/
54
Citado no texto de Regina Navarro: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2019/03/11/amo-meu-maridomas-tenho-um-caso-estou-com-medo-das-consequencias-disso/
OS DIFERENTES TIPOS DE RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS
Relacionamentos não-monogâmicos são relações que prescindem da exclusividade
sexual e/ou afetiva entre os membros da relação, o que implica que a sexualidade
e/ou afetividade podem circular para fora da relação também. Isso pode acontecer
de muitas diferentes formas porque as pessoas são distintas e manifestam
necessidades e características únicas. Vamos abordar alguns dos arranjos mais típicos
que encontramos neste universo das relações não-monogâmicas consensuais.
Relação Aberta ou Casamento Aberto
Na relação aberta ou casamento aberto, as relações extraconjugais costumam ser
temporárias, casuais e não românticas. A não-monogamia neste caso seria apenas
sexual, pois do ponto de vista emocional, o casal se mantém monogâmico. Por isso
mesmo em geral existe o pressuposto básico de não se envolver afetivamente com
outras pessoas, o que quer dizer que o foco primário do tempo e energia de cada um
dos parceiros é no seu relacionamento principal. Nesta modalidade, os parceiros
podem sair sozinhos com outras pessoas, sempre respeitando as regras e os
combinados estabelecidos pelo casal.
Swing
É também um modelo de não-monogamia sexual com monogamia emocional, ou
seja, pressupõe-se que não haverá envolvimento afetivo com pessoas de fora da
relação, apenas sexo casual ou sexo recreativo, como bem explica Elaine, praticante
do swing:
As pessoas precisam entender que o objetivo do swing é apenas sexo.
Nada de romance. “Quero te ver de novo” não existe. Lá você está
mexendo com pessoas bem-casadas. Tem que ter ética, não pode
destruir o casamento dos outros. Quem quiser romance, vai para
outro lugar.55
A diferença do swing para o relacionamento aberto é que a unidade nesse caso é o
casal, ou seja, em geral o casal tem relações extraconjugais juntos, não se podendo
sair sozinho com pessoas de fora da relação. Muitos participantes, inclusive, se
consideram ciumentos. Por isso gostam de acompanhar tudo o que está acontecendo
e, também por este motivo, não abrem a relação para o parceiro sair sozinho com
outras pessoas, como explica Silvana, praticante de swing:
Tenho enorme prazer quando vejo meu marido transando com outra
mulher e, claro, também gosto de experimentar outros parceiros,
mas morro de ciúmes se ele atende o celular e eu não sei quem é56.
Existem variações na forma de se praticar o swing. Alguns casais praticam o que se
chama de soft swing, que envolve apenas troca de carícias entre os casais ou então
sexo no mesmo ambiente. Já no hard swing a troca é completa, com direito a tudo,
inclusive penetração.
Os swingers costumam ter suas próprias casas noturnas para frequentar ou então
organizam eventos privados. Existe, inclusive, toda uma indústria girando em torno
do swing, como agências de turismo, cruzeiros, hotéis, etc.
Uma coisa que se percebe no meio swinger é que os casais tendem a ser, em geral,
mais conservadores. A bissexualidade masculina é bem mais rara neste meio. Já a
bissexualidade feminina é quase que uma unanimidade.
Poliamorismo
A diferença crucial entre o poliamorismo, o swing e o casamento aberto é que no
poliamorismo a não-monogamia é sexual E afetiva também, ou seja, existe a
55
Citado na matéria de Simone Demolinari “Vale a pena experimentar um swing?”:
https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/vale-a-pena-experimentar-um-swing-1.369268
56
Idem
possibilidade de envolvimento afetivo com outras pessoas fora do relacionamento,
podendo ser desde um breve romance até um relacionamento amoroso de longo
prazo mesmo. Daí advém o termo poli amor, ou seja, múltiplos amores, múltiplos
relacionamentos amorosos ao mesmo tempo. O poliamorismo é indicado para
pessoas que sentem que têm a capacidade e o desejo de amar e se comprometer
afetivamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo.
O poliamorismo pode se manifestar em diferentes modalidades, sendo a principal
delas o poliamorismo hierárquico, onde apesar de haver múltiplas relações afetivosexuais, ainda assim existe uma que é a principal, ou seja, existe uma hierarquia de
importância e prioridade entre os diversos relacionamentos estabelecidos.
Neste caso, a relação pode ser a principal pelo fato de o casal viver juntos ou por
terem filhos juntos, ou simplesmente por estarem juntos há mais tempo. Cada
parceiro pode ter outras relações secundárias ou terciárias e assim por diante. A
grande vantagem deste tipo de poliamorismo é que existe uma clareza de qual
relação é a prioritária e isso ajuda a organizar a questão do tempo, da dedicação, etc.
Quando existe mais de um parceiro principal, esse tipo de poliamorismo é chamado
de polifidelidade. Podem ser três pessoas vivendo juntas, por exemplo. Neste caso
chamamos de trisal e os três se sentem casados entre si. Uma série da Netflix que
ilustra bem este arranjo é a série “Eu, Tu e Ela”.
Quando não existe uma relação principal ou uma que seja mais importante do que as
outras, isso é chamado de poliamorismo não hierárquico. Neste caso, não existe uma
relação que seja prioritária sobre as outras. Este modelo costuma estar associado a
uma visão de mundo que rejeita a hierarquização entre as pessoas, como por exemplo
a filosofia chamada de “anarquia relacional”. Vejamos o depoimento de Beth, que
ilustra um caso de poliamorismo não-hierárquico:
Eu me sinto diferente em relação a todos os meus amantes. Cada um
deles toca uma parte diferente de mim. Eles nutrem diferentes
aspectos de mim mesmo. Até mesmo diferentes aspectos sexuais de
mim. Alguns são mais emocionais, alguns mais intelectuais, alguns
mais físicos, alguns bastante espirituais.57
Relações livres
Em 2006 surgiu um movimento no Rio Grande do Sul que se autodenominou de Rli,
como abreviatura de Relações Livres. O objetivo deste Coletivo, segundo consta no
livro “Relações Livres – Uma Introdução” seria o de
(...) levantar o debate tanto sobre questões práticas quanto sobre
aspectos filosóficos e éticos, buscando embasamento para construir
uma sociedade na qual a monogamia deixe de ser a norma
condicionante tal como se apresenta nos dias de hoje. 58
Procura-se fazer uma distinção entre esta forma de não-monogamia e as outras já
estabelecidas, como o casamento aberto, o swing e o poliamor. O grande diferencial
é que nas relações livres a ênfase recai mais sobre o indivíduo do que sobre o casal.
As relações livres pressupõem cultivo da autonomia em vez de buscar a fusão de duas
pessoas em um casal. As Rlis – como se costuma chamar as pessoas que optam pelas
relações livres - advogam pela plena autonomia afetiva e sexual e nesse sentido elas
são mais distantes do formato clássico de casal.
RLi é uma forma consensual, política e militante de não-monogamia
que critica ativamente o amor romântico. Não só defende a
possibilidade de vários amores, como no poliamor, mas tem como
base a autonomia dos envolvidos, na livre vivência de seus desejos
afetivos e sexuais tanto em relações casuais quanto relações
duradouras. Outra diferença é em relação ao casamento, que
enquanto no poliamor é possível a polifidelidade e a união conjugal
entre mais pessoas, na RLi qualquer forma de relação nãomonogâmica fechada é rechaçada.59
57
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
58
RODRIGUES, Marcos et al. Relações livres – uma introdução. Ed. Coleção RLI
59
Artigo de Newton Jr, Nana Miranda e Simone Bispo “Mas afinal, o que é não-monogamia”. Pode ser encontrado
em: https://naomonoemfoco.com.br/mas-afinal-o-que-nm/
Nas relações livres também não se determinam relações primárias e secundárias
como pode ocorrer no poliamorismo:
Não hierarquizar significa não deixar as pessoas numa posição
previamente estipulada sobre qual é sua importância em nossas
vidas (...) Rlis estão centrados na autonomia da pessoa e não na
prioridade do casal principal60.
Rlis também não fazem contratos sobre acontecimentos afetivos futuros, por isso a
ideia de se casar não cabe dentro dessa modalidade. Idealmente, na concepção Rli,
cada qual deveria ter um espaço habitacional próprio, do indivíduo, onde a pessoa
possa exercitar sua personalidade e tomar suas próprias decisões.
Embora as relações livres sejam uma forma de se relacionar não-monogamicamente,
neste livro não vamos nos ater às Rlis pois como vimos elas não estão centradas em
um relacionamento e sim nos indivíduos que desenvolvem as relações livres.
Relacionamentos podem até ser estabelecidos, porém não existe necessariamente
um anseio por perpetuá-lo no tempo, deixando-se livre para acontecer o que tiver
que acontecer, sem um compromisso com a permanência do casal. Não existe nem a
ideia de casamento no universo das relações livres. De fato, as Rlis se opõem a esse
modelo hegemônico de organizar as relações em torno da figura do casal, já que isto
acabaria “pressupondo um nível de anulação da identidade pessoal em benefício da
identidade de casal”61
Já o swing, o casamento aberto e o poliamorismo continuam girando em torno de
relações de compromisso, em torno da criação de casais que visam a continuidade ao
longo do tempo, mesmo que sejam casais estendidos como vemos na polifidelidade
(um trisal por exemplo).
60
61
RODRIGUES, Marcos et al. Relações livres – uma introdução. Ed. Coleção RLI
Idem.
Neste livro vamos utilizar o termo relações abertas para se referir genericamente a
todos os tipos de relações não-monogâmicas, pois todas elas são abertas para
experimentação sexual e/ou afetiva com parceiros de fora.
COMO ESCOLHER ENTRE AS DIFERENTES FORMAS DE RELACIONAMENTO NÃO
MONOGÂMICO?
Algumas decisões têm que ser tomadas quando se decide prescindir da exclusividade
afetivo e/ou sexual em um relacionamento e isso varia de acordo com as
necessidades dos membros do casal. A primeira importante decisão a se tomar é se
essa liberdade será restrita apenas à esfera sexual ou se também haverá liberdade de
envolvimento amoroso com pessoas de fora da relação. O segundo passo é definir se
essa liberdade poderá ser vivida separadamente ou apenas quando ambos estiverem
juntos.
A resposta para essas duas perguntas já dá mais ou menos uma noção de qual rumo
esse contrato não-monogâmico pode levar. Se o casal optar por ampliar a liberdade
para a esfera afetiva além da sexual, isso tende a caracterizar um contrato
poliamoroso que permite o envolvimento afetivo com mais de uma pessoa ao mesmo
tempo. Neste caso, ainda assim é necessário definir se será uma relação poliamorosa
hierárquica (onde existe uma relação principal e as outras são consideradas
secundárias ou terciárias) ou não hierárquica (onde nenhum parceiro terá um status
especial em relação aos outros).
Caso a ausência de exclusividade se refira apenas à esfera sexual, isso pode caminhar
para um casamento aberto (onde cada um pode viver sua liberdade de forma
separada) ou pode também caminhar para uma relação do tipo swing, onde as
experiências extraconjugais acontecem com ambos os parceiros presentes. É o que
vemos por exemplo, na experiência do ménage ou quando ocorre troca de casais. O
que caracteriza este caminho é que ambos realizam suas fantasias juntos,
diferenciando da relação aberta, onde os parceiros podem sair sozinhos com outras
pessoas.
Esses diferentes caminhos trazem implicações distintas. Relações poliamorosas, onde
ocorre um envolvimento afetivo com mais de uma pessoa, certamente são as mais
desafiantes e mais arriscadas do ponto de vista da estabilidade do casal, além de mais
difícil de serem equacionadas na prática. Por outro lado, trazem possibilidades
ilimitadas também, permitindo ampliar o leque de experiências afetivas e relacionais.
Muitas pessoas que podem até prescindir da exclusividade sexual nunca admitiriam
a ideia de ver o companheiro envolvido afetivamente com outra pessoa, já que isso
pode gerar muita insegurança quanto ao futuro da relação. É preciso muita confiança
na solidez da relação e no amor dos cônjuges para tolerar esse nível de liberdade
afetiva. Por isso mesmo, o poliamorismo acaba não sendo para todos, já que envolve
um desprendimento muito grande. Além disso, exige muita autoestima e
autoconfiança do parceiro que vê seu amado envolvido com outra pessoa.
Os casamentos abertos com liberdade apenas sexual seriam um meio termo mais
facilmente digerível, pois cada um pode sair sozinho com outras pessoas, porém com
um foco estritamente sexual, sem perspectiva de continuidade ou aprofundamento
do vínculo extraconjugal. Ainda assim, algumas pessoas não se sentem confortável
porque não estão acompanhando o que se passa no encontro que o parceiro está
tendo fora da relação. Essa experiência de não saber como está sendo o encontro
pode fazer com que algumas pessoas fiquem bastante inseguras, podendo levar à
uma sensação de não estar no controle.
Uma modalidade de relação não-monogâmica que aparentemente traz menos riscos
para a relação do casal seria o swing, ou seja, realizar experiências sexuais
extraconjugais em conjunto com o parceiro. A grande vantagem para a relação é que
a experiência deixa de ser apenas do indivíduo e passa a ser uma experiência do casal,
semelhante a um programa de casal mesmo, assim como ir ao cinema, um
restaurante ou a uma boate - com a diferença de que neste caso é um programa que
inclui sexo extraconjugal.
A grande desvantagem dessa modalidade é que nem sempre os interesses de um são
semelhantes aos interesses do outro, o que pode dificultar muito a viabilidade prática,
já que as necessidades de um podem não bater com as necessidades do outro e viceversa. Por exemplo, pode ser que o casal conheça um outro casal e o marido se
interesse pela mulher, porém a esposa não se interesse pelo homem. Neste caso, não
pode valer apenas a vontade de um, tem que haver concordância entre todos os 4
envolvidos. Essa concordância generalizada pode ser complexa às vezes, podendo
levar à frustração de quem estava com vontade mas não pôde seguir em frente por
conta da objeção do parceiro.
Vemos então que cada modalidade traz benefícios e desafios distintos e apenas a
partir de muito diálogo e autoconhecimento é que se pode chegar a uma definição de
qual seria o melhor arranjo para cada casal. O importante é que ambos se sintam
confortáveis e contemplados com o arranjo definido após a conversa. O formato da
sua relação deve refletir seus valores, seus desejos, suas necessidades e seus
objetivos de vida, lembrando sempre de ser muito cuidadoso com os sentimentos e
o tempo de cada parceiro.
Buscamos descrever os arranjos mais comuns neste universo da não-monogamia,
mas a verdade é que cada um é livre para escolher como quer se relacionar, podendo
personalizar sua relação da forma que mais convier aos indivíduos envolvidos. Os
modelos servem apenas como inspiração para que se possa compreender as
diferentes possibilidades e ter um ponto de partida para reflexão.
RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ?
Se você está considerando a possibilidade de abrir a relação para um formato nãomonogâmico é importante primeiro se avaliar de forma honesta e em profundidade
para ver se essa é a escolha mais adequada para você. Abrir a relação pode trazer
muitos benefícios, ao mesmo tempo em que traz enormes desafios também. É
importante saber o que está motivando esta escolha. Para ajudar nessa reflexão,
vejamos algumas das motivações mais comuns que levam as pessoas a optarem por
um relacionamento não-monogâmico.
Quebrar a monotonia e a rotina do relacionamento
Monogamia às vezes combina com monotonia. Muitos casais reclamam que a vida de
casal, após algum tempo, acaba caindo na mesmice, numa rotina monótona e
previsível. Abrir a relação pode trazer novos ares para a relação, tornando-a mais
dinâmica e imprevisível, trazendo uma excitação há muito tempo esquecida.
Todo relacionamento precisa lidar com um importante paradoxo humano. Ao mesmo
tempo em que ansiamos por segurança, previsibilidade e proteção, também
necessitamos de aventura, novidade e mistério, como bem descreveu a terapeuta de
casal Esther Perel:
De um lado, nossa necessidade de segurança, previsibilidade,
proteção, dependência, confiança e permanência, todas essas
experiências fundamentais das nossas vidas que chamamos de lar.
Porém, temos também uma necessidade igualmente forte, homens
e mulheres, por aventura, novidade, mistério, risco, perigo, o
desconhecido, o inesperado e a surpresa.62
O casamento fechado tal como conhecemos costuma atender à primeira dessas duas
necessidades, trazendo muita segurança e previsibilidade, o que preenche somente a
62
Extraído do TED Talk de Esther Perel “O Segredo do Desejo em um Relacionamento Duradouto”:
https://www.ted.com/talks/esther_perel_the_secret_to_desire_in_a_long_term_relationship/transcript?language=pt
-br
um dos nossos anseios fundamentais. Abrir a relação pode ajudar a trazer o elemento
da aventura e da novidade para dentro da relação, contribuindo para satisfazer ambas
as necessidades que todo ser humano anseia.
Apimentar a vida sexual do casal
Será que podemos desejar o que já temos? Como problematiza Esther Perel, “em todo
lugar onde o romantismo entrou, parece existir uma crise do desejo, uma crise de já
se possuir o que se quer.” No centro deste problema da sustentação do desejo a longo
prazo em um relacionamento monogâmico está a questão de se conciliar essas duas
necessidades humanas fundamentais que comentamos no tópico anterior além do
fato de existir um certo paradoxo na relação entre amor e desejo:
Neste paradoxo entre amor e desejo, o que parece ser
desconcertante é que os ingredientes que nutrem o amor interdependência, reciprocidade, proteção, preocupação e
responsabilidade pelo outro - são os mesmos que podem sufocar o
desejo. Porque o desejo vem com uma série de sentimentos que nem
sempre são os favoritos do amor: ciúmes, possessividade, agressão,
poder, domínio, safadeza, ofensa. Basicamente muitos de nós se
excitam à noite pelas mesmas coisas que se manifestam contrárias
durante o dia.63
A própria idealização do outro que vem embutida no amor romântico já é algo que
desfavorece a manutenção do desejo. A idealização pressupõe que o outro seja
responsável por atender a todas as nossas expectativas e, por isso mesmo, muitas
vezes não permite que os parceiros sejam completamente autênticos para não correr
o risco de decepcionar o outro. Para nos adaptarmos ao que esperam de nós,
renunciamos ao impulso de transgressão que alimenta o desejo:
A mente erótica não é muito politicamente correta (...) em nossa
mente existe uma série de coisas acontecendo que nem sempre
63
Extraído do TED Talk de Esther Perel “O Segredo do Desejo em um Relacionamento Duradouto”:
https://www.ted.com/talks/esther_perel_the_secret_to_desire_in_a_long_term_relationship/transcript?language=pt
-br
sabemos como dizer à pessoa que amamos, porque achamos que
amor vem com abnegação e na verdade o desejo vem com uma dose
de egoísmo no melhor sentido da palavra: a habilidade de estar
conectado consigo mesmo na presença do outro.64
Temos que poder ser verdadeiros com o nosso desejo se queremos que ele se
fortaleça. Não dá pra exigir do outro que sinta um forte desejo desde que seja
somente por você. O desejo por definição é algo indômito, não pode ser
domesticado. Assim como um passarinho selvagem que quando é colocado na gaiola
perde muito do seu encanto, também o desejo perde muito da sua potência quando
passa a ser domesticado pelo casamento.
Explorar diferentes fantasias sexuais
Mesmo que o casal esteja satisfeito com sua vida sexual, ainda assim pode haver
diversas fantasias que simplesmente não podem ser realizadas apenas entre o casal.
É o caso, por exemplo, da fantasia de ménage, onde um quer transar com duas
pessoas ao mesmo tempo - aliás, a fantasia sexual mais comum segundo alguns
levantamentos. É simplesmente impossível explorar essa fantasia dentro de uma
estrutura estritamente monogâmica.
Outras fantasias como o gangbang (transar com 3 ou mais parceiros ao mesmo
tempo) ou a fantasia de cuckold (pessoas que sentem prazer em ver o companheiro
transando com outros) também necessariamente envolvem um arranjo nãomonogâmico. Podemos citar também fantasias de voyeurismo, exibicionismo,
dogging (transar com estranhos em local público), dentre outras.
Vivemos em uma época onde cada vez mais existe liberdade e encorajamento para
se explorar a própria sexualidade, sem tabus nem julgamentos. Durante muito tempo
a cultura e a religião nos desencorajaram e nos dissuadiram de explorar e viver todas
as infinitas possibilidades que a sexualidade pode nos oferecer. Felizmente estamos
64
PEREL, E. (2018). Sexo no cativeiro: Como manter a paixão nos relacionamentos. Ed. Objetiva.
vivendo novos tempos em que nos sentimos no direito de explorar nosso corpo como
nos convém.
Aumentar a intimidade entre o casal
Para alguns casais, poder revelar as próprias fantasias sexuais, por exemplo, pode
trazer muita aproximação. A intimidade cresce muito quando podemos nos revelar
por inteiro. Nos casamentos monogâmicos tradicionais, em geral nossos desejos e
fantasias acabam tendo que ficar em segredo e essas partes escondidas nunca são
reveladas, o que inevitavelmente cria uma barreira entre o casal. Além disso, viver
experiências significativas junto com o parceiro aumenta a intimidade e a conexão,
como ilustra os seguintes depoimentos de praticantes da não-monogamia
consensual:
Fazer sexo com outros casais nos torna mais íntimos um do outro.
Isso me ajuda a me comunicar abertamente com meu parceiro e a
mergulhar fundo em meus sentimentos, o que é algo difícil de fazer.
Depois de ir a uma festa de swing e fazer sexo com outras pessoas, o
sexo que fazemos um com o outro é íntimo e incrível.65
Janice
Em geral, depois de uma noite brincando com outras pessoas,
ficamos bem excitados um com o outro, fazemos o sexo mais incrível
e sentimos os mais fortes sentimentos de confiança em nosso próprio
relacionamento66.
João
Eu amo a liberdade de poder ser tão sexual com outras pessoas e não
ter que mentir sobre esse meu aspecto para ter um companheiro que
me ama pelo que eu sou. É brilhante que ele me ame por este aspecto
65
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
66
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
da minha sexualidade, ao invés de apesar dele. Cada um de nós
precisava de um parceiro que realmente não fosse possessivo ou
ciumento. Eu amo o vínculo incrível que surge com o bom sexo, e ser
capaz de espalhar alegria, diversão e prazer. Adoro saber que meu
marido está se divertindo com outras pessoas; nosso sexo é sempre
melhor quando estamos sozinhos novamente. Quanto mais homens
eu transo, mais amo meu marido. 67
Alice
Quando um dos parceiros têm fantasias que o outro não curte ou não quer
participar
Embora em geral nós costumemos nos aproximar de pessoas semelhantes a nós,
ainda assim nenhuma combinação é 100% perfeita. Vemos muito isso acontecer na
esfera sexual. A sexualidade de cada indivíduo é muito singular, até mesmo porque
cada história de vida é única. Quando uma diferença sexual entre os parceiros emerge
em um relacionamento monogâmico – por exemplo quando um tem uma fantasia
sexual que o outro não curte – ou a pessoa desiste de realizar aquela fantasia ou então
tem que trocar de parceiro.
Alguns casais optam por um caminho diferente, eles abrem a relação para que se
possa experimentar com um parceiro externo aquela dimensão da sexualidade que
não está encaixando bem no seu relacionamento. Digamos, por exemplo, que um dos
dois queira explorar uma dinâmica de dominação/submissão, mas o outro não está
disponível para acompanhá-lo nisso. Estes são casos em que uma relação aberta pode
ajudar a preencher a lacuna, como podemos ver no seguinte depoimento verídico de
um casal que optou pela não-monogamia consensual:
Dani, que estava casada há 10 anos, viu um especial na HBO sobre
BDSM. Ela ficou super empolgada com a ideia e quis explorar. O
marido se dispôs a experimentar, mas não gostou, então eles
chegaram à conclusão de que ela teria que realizar este desejo com
outra pessoa, como explicou a Dani:
67
Idem.
“Foi muito difícil no início, mas assim que ele percebeu que era uma
necessidade minha e que ele não conseguia ou não queria me
acompanhar, então ele disse: você vai ter que realizar esse seu desejo
em outro lugar”.68
Para poder explorar a bissexualidade de um dos parceiros
Cada vez mais se vem descobrindo que a bissexualidade humana é um fenômeno bem
mais comum do que se imaginava antigamente. As estatísticas mostram que grande
parte das pessoas já sentiu, de alguma forma, desejo por ambos os sexos. Pesquisas
indicam que nos Estados Unidos em torno de 40% dos homens se envolveram em
sexo com outros homens. A respeitada antropóloga Margaret Mead declarou o
seguinte:
Acho que chegou o tempo em que devemos reconhecer a
bissexualidade como uma forma normal de comportamento
humano. É importante mudar atitudes tradicionais em relação à
homossexualidade, mas realmente não conseguiremos retirar a
carapaça de nossas crenças culturais sobre escolha sexual se não
admitirmos a capacidade bem documentada (atestada no correr dos
tempos) de o ser humano amar pessoas de ambos os sexos.69
O pesquisador americano Alfred Kinsey acredita que a homossexualidade e a
heterossexualidade exclusivas representam apenas os extremos do amplo espectro
da sexualidade humana. Para ele, a fluidez dos desejos sexuais faz com que pelo
menos metade das pessoas sinta, em graus variados, desejo pelos dois sexos. Em
1948, este pesquisador desenvolveu a famosa escala Kinsey70 para medir a homo, a
hétero e a bissexualidade. Entrevistando 12 mil homens e 8 mil mulheres, ele
68
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
69
Citago no artigo de Regina Navarro Lins “A bissexualidade no futuro”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2014/05/27/a-bissexualidade-no-futuro/
70
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
elaborou uma classificação da sexualidade que contempla todo o espectro de
possibilidades de orientação sexual, incluindo as seguintes possibilidades:
• Exclusivamente heterossexual.
• Predominantemente heterossexual, apenas incidentalmente homossexual.
• Predominantemente heterossexual, mais do que eventualmente homossexual.
• Igualmente heterossexual e homossexual.
• Predominantemente homossexual, mais do que eventualmente heterossexual.
• Predominantemente homossexual, apenas incidentalmente heterossexual.
• Exclusivamente homossexual.
Digamos então que um dos parceiros no relacionamento se descubra bissexual e sinta
necessidade de explorar essa dimensão da sua sexualidade. Este é um exemplo de
situação que não pode ser equacionada dentro dos limites de uma relação
monogâmica, mas que pode ser facilmente contemplada em um relacionamento nãomonogâmico, como podemos ver no seguinte depoimento:
Já que sou bissexual casado com um heterossexual, se não fôssemos
sexualmente abertos, não poderíamos estar juntos, não importa o
quão profundo seja o nosso amor um pelo outro. Ter parceiros
externos para preencher as lacunas em nossa compatibilidade evita
ressentimentos e decepções; dessa forma, ninguém é visto como
deficiente ou inadequado.
Shari
Para equacionar os diferentes ritmos sexuais
É muito raro que ambos os parceiros numa relação tenham exatamente o mesmo
apetite e disposição sexual. É muito mais comum que um ou outro tenha uma libido
maior e isso pode causar grande desgaste na relação pois ambos acabam se
frustrando - um porque não teve o tanto de sexo que desejaria e o outro por estar
sempre se sentindo pressionado e cobrado a fazer mais sexo do que gostaria. Achar
uma solução satisfatória para este dilema vem sendo um importante desafio para
grande parte dos casais.
Uma das possíveis maneiras de se contornar este desgaste é dar liberdade para o
parceiro que tem mais libido fazer sexo com outras pessoas, para que não tenha que
colocar toda sua expectativa e demanda em cima de uma pessoa apenas. Isso pode
evitar muito sofrimento e desgaste para a relação, pois um não é obrigado a satisfazer
todas as expectativas e demandas do outro e não faz sentido acabar com uma relação
que está dando certo em vários aspectos apenas por essa diferença de ritmos sexuais.
Diversificação sexual e emocional
Mesmo que haja total compatibilidade sexual entre o casal, pode ser que um dos dois
ainda assim sinta um anseio por explorar experiências eróticas e emocionais com
outros parceiros pelo simples desejo de variar mesmo. Afinal de contas, costumamos
gostar de variação em toda as esferas da vida, não é mesmo? Os casais gostam de
variar o destino de viagem e também gostam de variar de restaurante de vez em
quando, por que não haveriam de gostar de variar de corpos eventualmente? Como
bem ilustrou a socióloga Catherine Hakim: “Gostar de comer em casa diariamente não
nos impede de ir ao restaurante de vez em quando.”71
A sociedade quer que acreditemos que uma pessoa só pode satisfazer todas as nossas
necessidades e desejos: físico, emocional, financeiro, espiritual e sexual. Para isso
bastaria encontrar a nossa cara-metade, a alma gêmea ou o príncipe encantado. Os
que optam pela não-monogamia consensual reconhecem que o outro não PODE nem
DEVERIA ser responsável por dar conta de nos satisfazer totalmente e está tudo bem
com isso. Isso permite que o casal crie relações únicas que nutram e contemplem os
anseios de cada um dos parceiros, como relata Caio: “O relacionamento aberto me
71
Extraído do artigo “O amante... Outra vez.”: http://tmetade.blogspot.com/2012/10/o-amante-outra-vez.html
ajuda a não me sentir frustrado ou ressentido com um parceiro se ele não for tudo
para mim.”72
Acabar com o fantasma da traição
Muitas pessoas em relacionamentos monogâmicos passam, às vezes, a vida inteira
com medo do fantasma da traição. Toda vez que estamos com medo tendemos a
recorrer ao controle, mas a psicologia explica que toda vez que tentamos controlar o
comportamento de alguém acabamos por fortalecer mecanismos de contra controle,
como por exemplo, a mentira. Quanto mais tentamos prender alguém mais
estimulamos essa pessoa a buscar formas de escapar dessa prisão. Não é à toa que
utilizamos a metáfora da “pulada de cerca” para as experiências de traição.
Aliás, sempre achei curiosa essa metáfora da “pulada de cerca”. Em geral utilizamos
cercas em presídios ou nos parquinhos infantis. Por que estamos utilizando essa
metáfora da cerca para relações entre adultos?
O fato é que, enquanto houver prisioneiros, sempre haverá tentativas de fuga, isso é
óbvio. Afinal de contas, a proibição nunca resolveu nada, só torna o proibido mais
desejável. É incrível que apesar de todas as punições que a sociedade já criou para o
adultério - incluindo a pena de morte por apedrejamento que até hoje existe em
alguns países - ainda assim, homens e mulheres de todas as épocas e lugares se
envolveram e ainda se envolvem em relações extraconjugais. Não existe cultura em
que o adultério não seja conhecido e parece não haver nada capaz de fazê-lo deixar
de existir. Como explicita a antropóloga Helen Fisher:
A nossa tendência a ligações extraconjugais parece ser o triunfo da
natureza sobre a cultura. (...) Dezenas de estudos etnográficos, sem
mencionar inúmeras obras de história e de ficção, são testemunhos
da prevalência das atividades sexuais extraconjugais entre homens e
mulheres do mundo inteiro. Embora os seres humanos flertem,
72
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
apaixonem-se e se casem, eles também tendem a ser sexualmente
infiéis a seus cônjuges.73
A verdade é que se quisermos realmente acabar com as puladas de cercas
definitivamente, talvez a única saída seja mesmo derrubar as cercas de uma vez por
todas e investir nossa energia em um diálogo aberto e transparente, trazendo
consciência para essas dinâmicas ao invés de simplesmente tentar tapar o sol com a
peneira!
As pessoas não-monogâmicas reconhecem e aceitam que durante toda uma vida você
poderá e irá inevitavelmente se atrair por outras pessoas, mesmo que esteja em um
relacionamento maravilhoso. Elas optam, então, por abrir espaço para isso ao invés
de permitir que essa questão cause ansiedade, ciúmes e fantasias destrutivas, como
podemos ver no depoimento de Carla:
Eu consigo viver conectado com a realidade de saber que meu
parceiro e eu temos desejos pelos outros e somos capazes de
negociá-los e explorá-los com respeito um pelo outro como o parceiro
principal.74
Casais que se conheceram muito cedo na vida e tiveram poucas experiências sexuais
podem optar por abrir a relação para buscarem experiências que não tiveram
Essa é uma situação que acontece com certa frequência. Casais que se casam com o
primeiro parceiro e depois se lamentam por não terem podido viver experiências
diferentes. Alguns até se separam simplesmente para poderem viver o que não
tiveram a oportunidade de viver antes. Num arranjo não-monogâmico, isso pode ser
facilmente realizado sem que a relação amorosa seja desfeita. Mas, como explica a
73
Citado no artigo de Regina Navarro “A fidelidade não é natural”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2013/02/16/a-fidelidade-nao-e-natural/
74
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
psicoterapeuta de casais Esther Perel, alguns casais às vezes preferem matar a relação
do que flexibilizarem essa exigência da exclusividade monogâmica:
Tão arraigada é nossa fé na monogamia que a maioria dos casais,
sobretudo heterossexuais, raramente toca abertamente no assunto.
Não tem necessidade de discutir o que é um dado. Preferimos matar
uma relação do que questionar sua estrutura.75
Não há nada de errado em querermos realizar nossos desejos. O desejo nos remete à
nossa singularidade e é um caminho para o autoconhecimento. O filósofo Spinoza do
século XVII afirmava que “o desejo é a própria essência do homem”. Já o
psicoterapeuta Reichiano Ângelo Gaiarsa explica que a palavra desejo
Vem do latim de-si-derio; provém da raiz "sid", da língua zenda,
significando ESTRELA - como se vê em sideral (relativo às estrelas).
Seguir o desejo é seguir a estrela — estar orientado — saber para
onde se vai — conhecer a direção...76
Busca pelo autoconhecimento e crescimento pessoal
Algumas pessoas optam por abrir o relacionamento como um caminho para o
crescimento pessoal e o crescimento da relação. Eles querem confrontar seus
sentimentos de ciúme e possessividade, querem sair da zona de conforto e produzir
transformação pessoal, como revela o relato de Elizabeth:
Sou uma pessoa muito independente, autônoma e aventureira. Eu
começo a me sentir sufocada e impaciente quando minha vida
parece muito doméstica e mundana. Ter vários relacionamentos me
75
Extraído do artigo publicado por Regina Navarro Lins “Por que é difícil falar contra a exclusividade sexual
obrigatória?”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2018/09/27/por-que-e-dificil-falar-contra-a-exclusividadesexual-obrigatoria/
76
Trecho do artigo As Carícias e o Iluminado, de José Ângelo Gaiarsa. Pode ser encontrado aqui:
https://letraefilosofia.com.br/as-caricias-e-o-iluminado-jose-a-gaiarsa/
força a ficar no momento e alerta emocionalmente, a me comunicar
melhor e enfrentar o medo diariamente.77
Alguns acreditam que se abrir para múltiplos relacionamentos faz parte de sua
identidade e prática espiritual, como vemos no relato de Kathleen:
Parte do meu trabalho nesse planeta é expressar e experimentar
amor. Tradicionalmente temos uma visão muito estreita de como
isso deve acontecer. Eu não acredito que exista uma alma gêmea.
Acredito que exista um Deus de amor lá fora, por que então ele nos
limitaria a apenas um amor?
MOTIVAÇÕES INADEQUADAS PARA SE ABRIR A RELAÇÃO
É muito importante saber o que nos move antes de tomarmos uma decisão dessa
magnitude como a de abrir a relação. As motivações que descrevemos a seguir podem
ser bem problemáticas e prejudiciais, podendo levar a consequências desastrosas
para o relacionamento.
Abrir para salvar o relacionamento
Abrir a relação pode fortalecer ainda mais uma relação que já está forte, mas
dificilmente vai consertar uma relação que já está fragilizada. Se você está passando
por dificuldades no relacionamento, abrir a relação só vai realçar ainda mais essas
dificuldades. É como querer apagar incêndio com gasolina! O ideal é que o casal esteja
vivendo um momento estável e harmônico antes de buscar essa transição para um
modelo de relacionamento não-monogâmico.
Abrir porque está na moda e todos estão fazendo isso
77
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
A motivação para abrir a relação deve ser muito intrínseca. Tem que ser algo que você
realmente acredite que faça sentido pra você, não deve ser apenas para seguir o
rebanho. Abrir a relação sem esse lastro na sua compreensão e convicção pode
colocar em sério risco o seu relacionamento.
Abrir só porque o parceiro quer ou abrir para não perder o parceiro
Não-monogamia responsável pressupõe, necessariamente, que o processo seja
totalmente consensual. Ninguém deve abrir a relação se sentindo coagido ou
pressionado pois uma concessão negativa como essa pode acabar gerando muito
ressentimento inconsciente e isso, mais cedo o mais tarde, vai estourar.
Abrir a relação acreditando que é só uma fase do seu parceiro e logo isso vai passar
Este processo tem que ser feito com muita transparência. Motivações secretas
implicam que ainda não há honestidade suficiente na relação e isso deve ser resolvido
antes de se optar pela transição para algum tipo de relacionamento nãomonogâmico.
Abrir por insatisfação com o relacionamento
Algumas pessoas querem abrir o relacionamento porque não estão gostando muito
do parceiro, então abrem a relação para conhecerem outras pessoas até acharem
uma companhia melhor que a atual. Isso é uma forma cruel de usar as pessoas, seria
melhor que a pessoa fosse honesta e assumisse que não está satisfeita. Nãomonogamia responsável necessariamente envolve transparência, honestidade e
responsabilidade afetiva.
Abrir para evitar o aprofundamento da relação
Algumas pessoas usam do artifício da relação aberta como uma forma de evitar se
aprofundar no relacionamento atual, como uma forma de manter a relação superficial
e evitar mergulhar na intimidade com o parceiro. A meu ver, abrir o relacionamento
é uma forma de enriquecer a relação, de se aprofundar ainda mais na intimidade,
favorecendo com que cada um se revele em um nível mais profundo, sem máscaras
e com maior transparência e honestidade, podendo levar a um grande
aprofundamento do vínculo e da relação.
COMO SABER SE O RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ?
Se você se reconheceu em algumas das motivações descritas acima, pode ser que
você tenha motivos para querer abrir a relação. Porém, não adianta ter motivos sem
ter um perfil adequado. O autoconhecimento é fundamental neste processo,
precisamos saber exatamente o que queremos e por que queremos, bem como quais
são nossos valores e no que acreditamos.
Abaixo estão algumas perguntas que você deveria se fazer ao considerar abrir a
relação. Essas perguntas vão ajudar a nortear algumas reflexões que podem ser bem
úteis neste processo. É importante que você consiga responder as seguintes questões
antes de seguir pelo caminho do relacionamento aberto. Você pode respondê-las em
um caderno ou discutir com o parceiro, um amigo ou até mesmo um terapeuta. O
fato é que quanto mais você refletir sobre os fundamentos da sua decisão, mais fácil
será trilhar essa jornada desafiante da não-monogamia responsável.
• Quais são suas crenças em relação à monogamia?
• Como foram suas experiências com suas relações monogâmicas anteriores?
Funcionaram para você? Sentiu falta de poder interagir sexual ou afetivamente
com outras pessoas?
• Você acredita que é possível desejar mais de uma pessoa ao mesmo tempo?
• Você acredita que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo?
• Qual é o papel que a sexualidade tem na sua relação? Qual importância isso
tem pra você?
• Qual é a importância que a liberdade tem pra você?
• Qual é a importância que tem a preservação das individualidades na relação?
• Você consegue fazer sexo sem envolvimento emocional?
• Qual é a relação que existe entre sexo e amor pra você?
• Como você define fidelidade?
• Quais são as características mais importantes em um relacionamento na sua
visão?
• O que significa compromisso pra você?
• Como você define intimidade?
• Você conhece pessoas que estão em uma relação não-monogâmica?
Como você lida com as emoções?
• Você se considera uma pessoa ciumenta?
• Como você lida com emoções fortes como raiva, ciúme e ressentimento?
• Você consegue estabelecer limites claros e comunicar bem esses limites?
• Você se considera tendo uma boa habilidade de comunicação?
• Quando algo te incomoda, você consegue comunicar com facilidade o
incômodo? Ou você guarda tudo pra você e acumula ressentimento?
• É fácil pra você se comunicar aberta e honestamente sobre assuntos delicados
e questões difíceis?
• Quando surge um conflito em sua relação, como você reage?
Quão disponível você é?
• Você tem tempo pra investir em mais de uma relação?
• Realisticamente, você sente que conseguiria sair com outras pessoas e ainda
assim investir tempo e afeto no seu relacionamento principal?
Se você já está em um relacionamento, é importante também responder às
seguintes indagações:
• Como está sua relação no momento?
• Sua relação é estável e segura?
• Quais são os conflitos mais frequentes entre vocês?
• Ambos querem explorar algo novo?
• Como está a vida sexual de vocês?
• Você tem desejos sexuais e fantasias que não estão sendo satisfeitos nesta
relação?
• Sente falta de algo na relação que um novo arranjo poderia ajudar a suprir?
• Como essa mudança poderia afetar seu relacionamento?
• Quais são as possíveis implicações negativas dessa mudança?
• O que te assusta nessa mudança?
• Quais são as possíveis implicações positivas dessa mudança?
• O que te agrada nessa mudança?
• O que você precisa para ajudar a tornar a transição provocada por essa
mudança mais fácil?
Alguns exercícios mentais também podem te ajudar a compreender se a relação
aberta é realmente adequada para você. Se você está em um relacionamento, pode
partilhar essas reflexões com seu companheiro.
Imagine seu parceiro tendo relação sexual com outra pessoa:
• Como você se sente ao imaginar essa cena?
• Que emoções isso traz à tona?
• O que seria ruim pra você nesse cenário?
• Qual seria seu maior medo neste cenário?
• Como isso poderia acontecer de uma forma mais tranquila pra você?
• O que você precisaria pra se sentir mais seguro em um contexto como este?
Imagine seu parceiro tendo um relacionamento afetivo com outra pessoa:
• Como você se sente ao imaginar essa cena?
• Que emoções isso traz à tona?
• O que seria ruim pra você nesse cenário?
• Qual seria seu maior medo neste cenário?
• Como isso poderia acontecer de uma forma mais tranquila pra você?
• O que você precisaria pra se sentir mais seguro em um contexto como este?
Além do autoconhecimento, outras habilidades são necessárias para fazer um
relacionamento não-monogâmico funcionar e este é o tema do nosso próximo
capítulo.
O QUE FAZ UM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICO FUNCIONAR
Alguns fatores podem ajudar imensamente na hora de implementar um
relacionamento não-monogâmico. Seguir essas orientações e buscar desenvolver as
habilidades requeridas são uma boa forma de se abrir o relacionamento com o
cuidado que ele merece. Vejamos alguns destes fatores.
AUTOCONFIANÇA E BOA AUTOESTIMA
Um dos grandes desafios para os envolvidos em um relacionamento nãomonogâmico é que nossa autoestima costuma ser muito testada nessas relações. Isso
porque ver o parceiro se relacionando com outras pessoas pode fazer aflorar muita
comparação e realçar sentimentos de menos valia que porventura possamos trazer
dentro de nós. Alguns questionamentos negativos podem vir à tona, como por
exemplo: “Será que ele não gosta mais de mim? Será que eu não estou sendo bom o
suficiente? O que a outra pessoa tem que eu não tenho? E se a outra pessoa for muito
mais interessante que eu, será que eu serei trocado?”
Um forte senso de valor pessoal pode ajudar bastante a minimizar esses conflitos, daí
a importância de ambos estarem em dia com seu processo de desenvolvimento
pessoal. Além disso, é importante deixar para trás os condicionamentos da nossa
bagagem histórica monogâmica, que nos faz acreditar que quem ama não deseja mais
ninguém e que deveríamos dar conta de satisfazer todos os nossos desejos e
necessidades apenas com uma pessoa.
Se nos sentimos inseguros em relação à gente mesmo ou em relação ao nosso
relacionamento, cabe aprofundar para entender o porquê. Talvez tenha um trabalho
para ser feito em relação ao nosso senso de valor pessoal ou até mesmo com relação
à nossa independência emocional. Quando dependemos do outro emocionalmente,
a tendência é querermos controlá-lo para evitar qualquer risco de perder a pessoa da
qual tanto necessitamos.
De todo modo, cabe ressaltar que existe uma diferença entre não se sentir amável e
não se sentir amado! Não se sentir amável tem relação com a baixa autoestima, já
não se sentir amado pode ser uma constatação da realidade mesmo, pois todos nós
precisamos nos sentir assegurados de que o outro nos ama, de que somos
importantes, de que o outro está comprometido com a relação, etc.
Numa relação aberta, se torna ainda mais importante que o outro nos assegure de
estar comprometido com a relação. O relacionamento aberto não pode ser uma
desculpa pra fugir de uma relação que não está boa. Aliás, se o relacionamento não
está bom ou se não valorizamos nosso relacionamento, isso é um bom indicativo para
não se abrir a relação. Abrir o relacionamento é uma forma de melhorar um
relacionamento que já está bom, em que ambos se amam e se admiram. É para se
aprofundar e não para se esquivar da relação.
CONSENTIMENTO
Para consentir não basta apenas não dizer não, deve-se esperar por um sim
categórico e explícito. O processo de abrir um relacionamento tem que ser uma
construção conjunta, ambos têm que estar no mesmo barco. Não pode haver
coerção, nem pressão de nenhum tipo. Lembrando que para o sim ter valor, o não
tem que ser realmente uma possibilidade. Ou seja, tem que haver real opção para
que a escolha tenha sentido.
A pessoa que está propondo ao parceiro deve dar espaço para o outro assimilar,
processar e decidir, sem pressa. Quem está recebendo a proposta deve ter o direito
de discutir e tirar todas as dúvidas antes de se comprometer com qualquer mudança
no formato da relação. É importante ter clareza quanto ao que de fato está sendo
consentido e lembrar-se que não é uma boa ceder simplesmente para manter a
relação ou para agradar o parceiro. Mais cedo ou mais tarde essa concessão vai se
transformar em ressentimento e essa conta vai ser cobrada do outro, mesmo que
inconscientemente.
SABER BEM NO QUE ESTÁ SE METENDO
É importante estudar e refletir seriamente sobre o assunto antes de optar por essa
modalidade de relacionamento. Apesar dos benefícios evidentes deste arranjo
relacional, nem tudo são flores. Junto com os benefícios vêm os desafios e quanto
mais conhecimento e reflexão houver antes de se abrir a relação, maiores as chances
de dar certo. Hoje há muita literatura sobre o tema, cursos, workshops, séries, filmes,
grupos de discussão, enfim, todo tipo de material disponível a um clique de distância.
Pode ser muito útil também conversar com outras pessoas que vivem
relacionamentos não-monogâmicos consensuais e esclarecer todas as suas dúvidas e
discutir seus anseios e receios.
CAPACIDADE DE AUTORREFLEXÃO E AUTOCONHECIMENTO
É muito importante saber de que lugar você está partindo, saber bem o que você
quer, o que é importante para você, como você pensa e quais são seus objetivos com
a abertura da relação. Relacionamentos em geral exigem maturidade,
relacionamentos não-monogâmicos mais ainda pois os desafios podem se tornar mais
complexos quando se envolve outras pessoas.
É muito importante saber como você funciona emocionalmente, quais são suas
fragilidades e seus limites. Se uma pessoa tiver sérios problemas de autoestima ou
insegurança crônica, por exemplo, ela precisa estar ciente de que isso poderá se
tornar um grande empecilho nessa jornada não-monogâmica. Neste caso, pode ser
importante trabalhar essa questão previamente, seja em terapia ou outro processo
de autodesenvolvimento, como meditação, retiros espirituais, ou qualquer outra
forma que funcione para a pessoa. É fato que quanto mais você se trabalhar mais bem
equipado estará para lidar com os desafios advindos dessa escolha pela nãomonogamia consciente.
INTELIGÊNCIA EMOCIONAL
Perceber bem suas emoções e saber comunicá-las com clareza é uma habilidade
importante em qualquer relacionamento, porém ainda mais relevante quando se
trata de um relacionamento não-monogâmico. Quando não expressamos nossos
sentimentos para nosso parceiro, isso acaba criando um afastamento emocional, uma
desconexão afetiva.
Infelizmente a maioria de nós não foi alfabetizada emocionalmente pois em nossa
cultura o sistema educacional somente prioriza o desenvolvimento intelectual em
detrimento do desenvolvimento emocional. Assim, muito adultos apresentam
dificuldade para reconhecerem o que sentem, nomearem adequadamente e
comunicarem para o parceiro seus sentimentos. Tendemos a guardar conosco o que
sentimos, principalmente quando se trata de emoções desconfortáveis. Mas em um
relacionamento não-monogâmico isso pode ter grande impacto, levando ao acúmulo
de frustrações e ressentimentos que acabam estourando em algum momento.
ABERTURA PARA SER HONESTO E VERDADEIRO EM RELAÇÃO A TUDO
Outra coisa que não aprendemos em nossa cultura é como sermos honestos,
verdadeiros e transparentes. De forma geral sempre somos incentivados a usar
máscaras e agir como os outros esperam que nós ajamos. A própria exigência de
monogamia compulsória estimula as pessoas a esconderem o que sentem, suas
fantasias e seus desejos. É lamentável, mas até compreensível que a principal forma
de não-monogamia existente no mundo seja não consensual e desonesta.
A sociedade nos ensinou desde a mais tenra idade sobre como devemos nos
relacionar, haja vista, por exemplo, os contos de fadas. Esses valores são reforçados
continuamente através de filmes, novelas, cerimônias de casamento, etc. Leva-se um
tempo para se descondicionar de toda essa bagagem e aprender a ser realmente
verdadeiro e transparente.
CONSCIÊNCIA DOS PRÓPRIOS LIMITES
É muito importante estar em contato com o que nos agrada e o que nos desagrada.
Conhecer os próprios limites é saber defender o próprio espaço, é não deixar ninguém
te invadir ou impor coisas sobre você que você não queira. Em última instância, é uma
questão de clareza quanto ao que você necessita e quanto aos seus valores, quanto
ao que você quer e o que você não quer. Conhecer bem seus limites e saber comunicálos pode ajudar muito a evitar mágoas e ressentimentos em um relacionamento
aberto. Às vezes não colocamos limites adequados em função do medo da rejeição
ou medo de confrontar o outro e às vezes até por culpa mesmo, por não termos
aprendido que é nosso direito colocar limite na ação dos outros.
Dicas para estabelecer limites saudáveis
• Quando você identificar a necessidade de estabelecer um limite, faça-o com
clareza, calma, firmeza, respeito e com o mínimo de palavras possível. Não
justifique, fique com raiva ou peça desculpas pelo limite que você está
estabelecendo.
• Lembre-se que você não é responsável pela reação da outra pessoa ao limite
que está estabelecendo. Você só é responsável por comunicar seus limites de
maneira respeitosa. Se isso incomodar a outra pessoa, saiba que isso é
problema dela.
• No início, você provavelmente se sentirá egoísta, culpado ou envergonhado ao
estabelecer um limite. Faça assim mesmo e lembre-se de que você tem o
direito de cuidar de si mesmo. Definir limites exige prática e determinação. Não
deixe que a ansiedade, o medo ou a culpa o impeçam de cuidar de si mesmo.
• Quando você sente raiva ou ressentimento possivelmente você precisa
estabelecer um limite. Ouça a si mesmo, determine o que você precisa fazer ou
dizer e, em seguida, comunique-se de forma assertiva.
• Desenvolva um sistema de apoio de pessoas que respeitem seu direito de
estabelecer limites. Elimine pessoas tóxicas - aquelas que querem manipular,
abusar e controlar você.
• Aprender a estabelecer limites saudáveis leva tempo. É um processo. Lembrese: o autocuidado é a melhor forma de cuidado.
CAPACIDADE DE LIDAR COM CONFLITOS
Conflitos sempre vão surgir em qualquer tipo de relacionamento. Todo
relacionamento envolve diferenças e toda diferença é potencialmente conflitante e
possivelmente geradora de desconfortos emocionais. Sendo assim, todo
relacionamento vai gerar algum tipo de conflito, porque são duas pessoas com
histórias de vida diferentes tendo que viver uma história conjunta.
Estudos de psicologia clínica com casais já atestaram que um dos fatores mais
importantes para a resolução de conflitos entre casais é a aceitação das diferenças.
Aceitação, neste caso, não quer dizer submissão ou resignação, mas uma escolha
intencional de tolerar o comportamento que gera algum tipo de aversão porque você
enxerga esse comportamento como parte de um contexto maior de quem seu
parceiro é, ou seja, você não o reduz àquela característica que te incomoda. Como
explica o psicoterapeuta de casal Stelios Sant´Anna Sdoukos:
A aceitação possui duas características terapêuticas, a primeira é que
ela intenciona transformar os problemas em veículos para a
promoção de intimidade, que pode ser desenvolvida em razão dos
problemas e não apesar deles. A segunda é auxiliar os parceiros a
renunciarem ao esforço de mudar um ao outro, o que envolve tanto
abrir mão das concepções prévias de que suas diferenças são
intoleráveis, quanto de que devem remodelar um ao outro a partir de
imagens idealizadas de como deveria ser o cônjuge. 78
78
O papel da aceitação na Terapia Comportamental Integrativa de Casal (IBCT), publicado em:
https://comportese.com/2019/06/25/o-papel-da-aceitacao-na-terapia-comportamental-integrativa-de-casal-ibct
O objetivo no trabalho com a aceitação é diminuir o apego às idealizações e as
tentativas de transformar a outra pessoa, é
(...) compreender as características aversivas do parceiro como sendo
uma parte constituinte, mas não definidora do parceiro, promovendo
desse modo, real empatia e intimidade para o casal em conflito e
diminuindo as tentativas beligerantes de modificar o outro.79
É claro que muitas coisas podem ser modificadas também e para isso é fundamental
uma conexão empática em torno dos problemas, visando encontrar soluções
conjuntas para lidar com as diferenças naturais que existem entre duas pessoas.
Quando vocês estiverem conversando sobre a abertura do relacionamento, é bem
possível que alguns conflitos emerjam. Caso isso ocorra, é importante seguir as
seguintes diretrizes para ajudar na administração construtiva desses conflitos.80
Acalmar-se primeiro, só depois comunicar e agir
Quando nos sentimos ameaçados, entramos em um modo de funcionamento
biológico chamado de “luta ou fuga”, mecanismo este que mobiliza raiva e
adrenalina. Isso quer dizer que temos grandes chances de atacar o outro no calor dos
acontecimentos, pois é isso que a raiva no impele a fazer. Se agirmos na impulsividade
há grandes chances de isso causar danos ao nosso relacionamento. Respire fundo, se
acalme primeiro e depois converse. Se for necessário, é sempre possível postergar a
conversa para um momento mais favorável em que ambos estejam se sentindo mais
equilibrados.
Duvidar do que se pensa pode ser saudável
79
O papel da aceitação na Terapia Comportamental Integrativa de Casal (IBCT), publicado em:
https://comportese.com/2019/06/25/o-papel-da-aceitacao-na-terapia-comportamental-integrativa-de-casal-ibct
80
Texto adaptado de “Os dez mandamentos para lidar com um conflito no relacionamento”:
https://amenteemaravilhosa.com.br/dez-mandamentos-conflito-no-relacionamento/
Costumamos ter muita certeza sobre o que pensamos e isso pode parecer uma coisa
boa. Porém, a dúvida também pode ser muito saudável e construtiva. A dúvida abre
espaço para a escuta sincera. Quando temos certeza prévia de tudo, quando achamos
que somos o dono da razão, não vemos sentido em escutar verdadeiramente o outro,
antes de ouvi-lo já temos a resposta pronta em nossa cabeça. Deixe a outra pessoa
expor suas razões, suas ideias e emoções. Abra a mente para compreender outros
pontos de vista. Isso é a base da empatia. Se abrir para compreender
verdadeiramente a experiência do outro pode ser um investimento com retorno
muito alto para seu relacionamento.
Evitar uma perspectiva maniqueísta
Maniqueísmo é um tipo de pensamento simplificado que reduz tudo a certo ou
errado, bom ou mal, etc. No mundo real vemos que a vida é bem mais complicada
que isso. É muito comum que ambos os parceiros estejam corretos ao seu modo, a
partir de sua perspectiva. Abrir mão dessa simplificação do maniqueísmo pode ajudar
a nos tirar da rigidez psicológica e entender que a realidade é sempre muito mais
complexa do que gostaríamos. Isso pode fazer com que também desenvolvamos mais
empatia pela perspectiva do nosso parceiro, nos levando a querer entender melhor
por que ele enxerga as coisas de um determinado modo, diferente do nosso.
Exponha o que você sente com honestidade
Uma das melhores maneiras de lidar com um conflito no relacionamento é se
concentrar no que você sente mais do que no que você pensa. Expor seus
sentimentos com sinceridade é algo libertador para você e enriquecedor para o outro.
As expressões que nascem do coração promovem a compreensão e acabam
estreitando o vínculo entre duas pessoas.
Não grite, não maltrate
Os gritos e os maus-tratos alimentam o conflito e prejudicam a dignidade. Embora no
calor da briga possamos ignorá-la, essa é uma máxima que acaba prevalecendo. Ao
gritar e abrir mão do cuidado você autoriza o outro a fazer o mesmo. Isso, a longo
prazo, apenas promove distância e ressentimento.
Assuma primeiro suas próprias responsabilidades
Temos a tendência de buscar a resposta para nossas ações e emoções nos atos de
outras pessoas. “Você me tirou do sério”, dizemos, como se o outro pudesse controlar
o que sentimos. A atitude mais madura é sempre começar qualquer análise da
situação determinando primeiramente a sua responsabilidade no que aconteceu,
evitando a todo custo entrar no papel da vítima. Tentar culpar o outro não resolve o
conflito no relacionamento, muito pelo contrário, só o coloca numa posição ainda
mais defensiva e acusatória.
Ouça em silêncio
Em silêncio podemos trabalhar melhor o nosso diálogo interno, aquelas mensagens
que dedicamos a nós mesmos. Além disso, em uma conversa, ele é o prelúdio
educado para a troca de palavras. Interromper o parceiro que está falando é algo que
gera uma tensão adicional, porque irrita e reflete um desejo de se impor, além de
refletir desconsideração pela posição do outro.
Focar em soluções
É muito mais fácil enfrentar um conflito no relacionamento quando existe uma
atitude construtiva em relação a ele. Isso se manifesta quando entramos em uma
discussão com o objetivo de buscar soluções e saídas, em vez de fazê-lo para
aprofundar ainda mais o desconforto. Se a ênfase estiver em como resolver o
problema, a solução para o conflito estará muito mais próxima do que se a ênfase for
em acusar e culpar o outro.
O passado admite reparos, mas não retornos
Evite ficar voltando ao passado se não for para usá-lo de forma construtiva, como
uma referência do que deve ser modificado no futuro. Ficar voltando ao passado
apenas para jogar na cara do outro só ajuda a criar um clima de hostilidade e
ressentimento.
Ameaças não têm vez
As ameaças de terminar a relação ou de fazer algum mal correspondem a uma forma
de violência psicológica. Em determinado momento podem dar a sensação de
funcionar, porém, no entanto, nunca serão a verdadeira solução para um conflito.
Com elas, um vence e o outro perde, há vencedores e perdedores, o que talvez seja
o pior resultado de qualquer negociação em um relacionamento. Também não é bom
alimentar rancores. Nas relações, todos nós temos que perdoar e ser perdoados em
algum momento. Todos nós erramos e merecemos uma oportunidade para reparar o
dano e pedir desculpas.
Não basta ter razão
Muitas vezes quando iniciamos uma discussão fazemos de tudo para provar que
somos nós quem temos razão. Mas é importante lembrar que não basta ter razão, ter
razão por si só não resolve o problema. Lembre-se de que vocês estão no mesmo time
e ninguém quer ganhar do outro e sim resolver a situação. Não deixe o amor virar
rivalidade e competição. Evite ficar defendendo muito a sua posição ou
argumentando para tentar ganhar a discussão, o importante é que vocês fiquem bem
e entrem em um acordo.
Não deixe acumular mágoas pois elas podem acabar virando uma bomba-relógio
É importante que o casal dialogue com frequência para não deixar as mágoas
acumularem. Tenha o hábito de resolver os problemas logo quando estes aparecem,
como uma forma de higiene relacional.
BOA CAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO
Comunicação pode ser a habilidade mais relevante para quem quer estabelecer um
relacionamento não-monogâmico. Se você é uma pessoa que não está aberta para
conversar e discutir aspectos relevantes da sua relação, pode ter certeza que você
não tem o perfil adequado para um relacionamento não-monogâmico.
Esteja preparado para ouvir cuidadosamente, fazer empatia, se abrir para o
sentimento do seu parceiro e para se abrir também. Se você acha isso um tédio, talvez
você deva reconsiderar o tipo de relacionamento que procura, porque saber
conversar sobre a relação é fundamental para fazer um relacionamento nãomonogâmico funcionar de forma saudável. Aliás, para qualquer tipo de
relacionamento!
A conversa se fará necessária em diversos momentos em um relacionamento
aberto, como por exemplo:
• Na hora de introduzir a ideia de abrir a relação
• Na hora de negociar as regras e os combinados que vão reger a relação
• Na hora de conversar sobre como estão sendo os encontros e as experiências
com outros parceiros
• Na hora em que surgirem sentimentos difíceis, como por exemplo o ciúme ou
a insegurança
• Na hora de chegar em acordos e soluções para algum conflito que possa
emergir
• Na hora de renegociar os acordos e combinados quando forem necessários ou
quando as coisas mudarem
• Na hora de comunicar necessidade e limites
Toda comunicação de qualidade pressupõe a existência de autopercepção, não
julgamento, empatia, respeito à diferença, validação do sentimento do outro,
autorresponsabilidade e capacidade de se vulnerabilizar (se revelar sem defesas).
Um modelo de comunicação bastante apropriado para os relacionamentos nãomonogâmicos é o da Comunicação Não-Violenta (CNV), desenvolvida por Marshall
Rosenberg e apresentada originalmente no livro “Nonviolent comunication: a
language of life” (Comunicação não-violenta: uma linguagem da vida).
A CNV parte da premissa básica de que fomos educados para julgar e de que
pensamos e nos comunicamos em termos de certo ou errado. Além disso,
costumamos pedir o que queremos fazendo demandas e expressamos nossos
sentimentos em função do que a outra pessoa fez com a gente.
A CNV funciona retreinando as pessoas a se observarem cuidadosamente para
especificar com clareza os comportamentos e as condições que estão afetando-a.
Além disso, na CNV aprendemos a:
• Identificar e articular com clareza o que estamos sentindo e querendo em uma
determinada situação.
• Entrar em contato com o que você está sentindo e expressar com clareza
• Observar os fatos objetivos ao invés de fazer juízo de valores
• Escutar de forma aberta, sem julgamento e acusação
• Ouvir com compaixão ao invés de ficar no modo defensivo
• Reconhecer e expressar com clareza nossas necessidades e o que desejamos
que aconteça
• Se expressar a partir da primeira pessoa, usando a linguagem do EU ao invés
do VOCÊ.
• Assumir a responsabilidade pelo que você está sentindo ao invés de acusar o
outro por te fazer se sentir de tal modo
De forma resumida, a utilização da CNV nas relações pressupõe estruturar a
comunicação em termos de 4 elementos básicos:
1) Observação: descrever a realidade de forma objetiva, sem entrar em juízo de
valores
2) Sentimento: entender qual sentimento a situação desperta em você e nomear
esse sentimento
3) Necessidades: a partir da compreensão do sentimento, reconhecer quais
necessidade estão ligadas a ele
4) Pedido: fazer uma solicitação específica, deixando claro o que se espera da
outra pessoa
Exemplo de comunicação não violenta em um conflito no trabalho:
Joana, quando você grita comigo no ambiente de trabalho (observação),
eu me sinto diminuído e irritado (sentimento) porque preciso sentir que
sou respeitado e que meus colegas querem ajudar a me desenvolver
(necessidades). Você poderia me chamar para conversar em particular
quando se sentir irritada comigo? (pedido).
É muito importante utilizar essas diretrizes em um relacionamento aberto porque a
comunicação não-violenta é um estilo não combativo de comunicação, além de
estimular a compaixão e a gentileza. É também uma forma de evitar que a
comunicação se transforme em um jogo de acusações e julgamentos, que só faz ferir
e levar ao distanciamento do casal. Este modo de comunicação nos leva a focar no
que sentimos e no porquê sentimos isso, além de nos ensinar a nos apropriarmos das
nossas emoções (auto-responsabilização). Quando cada um se responsabiliza pelo
que sente, evitamos o condicionamento de culpar o outro pelo que sentimos.
Para evitar cair no jogo da acusação, deve-se sempre utilizar a linguagem do EU. Isso
também ajuda muito na auto-responsabilização. Por exemplo, ao invés de dizer: “você
me magoou muito quando decidiu sair com alguém mesmo quando eu estava
doente”, pode-se dizer assim: “eu fiquei muito triste quando você saiu porque eu
realmente gostaria que você tivesse ficado em casa cuidando de mim”.
Vemos neste exemplo o conceito de vulnerabilização. Ao invés de entrar no modo
defensivo e cair no jogo da acusação (“você é muito insensível de não perceber que eu
estava doente”) optou-se pelo caminho da vulnerabilização, puxando a linguagem
para a primeira pessoa:
Eu fiquei muito triste (sentimento) quando você saiu mesmo eu estando
doente (observação). Eu gostaria muito (necessidade) que você tivesse
ficado em casa cuidando de mim (pedido).
Revelações Duras X Revelações Suaves
Em psicoterapia de casal é comum o terapeuta estimular o casal a utilizar “revelações
suaves” ao invés de “revelações duras”, o que vai bem ao encontro da comunicação
não-violenta. Em geral acabamos optando automaticamente pelas revelações duras
(expressão de raiva ou acusação) porque essas tendem a trazer uma sensação de
proteção, enquanto as revelações suaves (expressão da dor, tristeza ou medo)
tendem a nos deixar vulneráveis. Porém, as revelações duras tendem a manter a
polarização e o distanciamento, porque essa é a natureza da raiva, afastar para
proteger. Já a expressão da dor ou da tristeza tende a gerar compaixão no ouvinte,
gerando aproximação e empatia.
Revelações suaves são o equivalente à vulnerabilização e têm o efeito de abrandar o
ouvinte e por isso são fundamentais no diálogo conjugal. Essa é a grande importância
da vulnerabilização, ela muda completamente a disposição emocional dos parceiros
e isso faz toda diferença na comunicação do casal. Perceba a diferença entre essas
duas formas de se expressar no seguinte exemplo e veja o que cada uma delas gera
em você:
Revelação dura: “Você é um insensível que não considera os meus sentimentos”
Revelação suave: “Quando você age assim eu fico muito triste porque parece que
meus sentimentos não estão sendo valorizados”
TER CLAREZA SOBRE O QUE ESTÁ SENDO ACORDADO
Todo relacionamento amoroso envolve algumas regras e combinados, mesmo que
estes não sejam explicitados. A exigência de monogamia costuma ser um desses
combinados que não é explicitado no início da relação. Para um relacionamento nãomonogâmico funcionar bem, é muito importante que esses combinados sejam
discutidos e explicitados. É muita idealização achar que dá para administrar um
relacionamento não-monogâmico na base do vale-tudo. Na prática isso é
simplesmente inviável pois todos necessitam de um mínimo de previsibilidade para
se sentirem seguros. No capítulo seguinte vamos abordar este importante elemento
das relações não-monogâmicas.
ESTABELECENDO REGRAS E COMBINADOS
Todo relacionamento envolve algum tipo de negociação. Nos relacionamentos nãomonogâmicos essa negociação se torna ainda mais crucial pois não costumamos ter
referências sobre como se relacionar dessa forma. Já que fomos criados em uma
cultura que prega a monogamia como padrão, acabamos ficando sem referência
quando partimos para um modelo distinto do tradicional. Isso implica que cada
detalhe deve ser negociado e discutido até se chegar a um modelo de relação que
atenda às necessidades e anseios de ambos os parceiros.
Combinados ajudam as pessoas a se sentirem seguras e terem alguma previsibilidade.
No caso das relações não-monogâmicas, os combinados servem para que o casal
possa definir o que buscam com a abertura do relacionamento, o que exatamente
querem experimentar e, não menos importante, o que não querem. Nesse sentido,
estabelecer combinados tem a ver com respeitar os limites de cada um. Para isso, é
muito importante que ambos tenham voz na hora de estabelecer os combinados, daí
a importância de existir autonomia entre os indivíduos da relação.
Não pode haver coerção ou ameaça, deve ser sempre uma negociação amorosa.
Ambos têm que sentir que suas necessidades e limites foram levadas em
consideração. O timing também é importante, dê preferência para iniciar essa
negociação quando o casal estiver bem e equilibrado. Lembre-se que o melhor é
sempre ir devagar neste processo, avançando gradativamente, sem pressa.
O ideal é que nenhum desses combinados fiquem implícitos, quanto mais explícito
melhor, podendo até serem feitos por escrito. Mas é claro que mesmo com o máximo
de explicitação possível, ainda assim vão surgir questões que não foram antecipadas
e tem que haver espaço para acomodar novas situações, rediscutindo os combinados
se for o caso. Por isso mesmo, esses combinados devem ser dinâmicos, assim como
são as pessoas e a vida. Logo, deve haver espaço para que os combinados possam ser
revistos e renegociados caso alguém não esteja se sentindo confortável com o acordo
estabelecido.
Vejamos a seguir as principais questões que podem ser definidas na hora de elaborar
os combinados que vão reger o contrato de relação não-monogâmica do casal.
Qual é o contorno geral da relação não-monogâmica? Queremos ter só variedade
sexual ou afetiva também? Sairemos sempre juntos ou pretendemos sair sozinhos
também? Vai ser swing, relação aberta, poliamorismo ou uma combinação dos três?
O que pretendemos experimentar com outras pessoas? Só sexo, sem romance? Só
amassos e beijo, sem sexo? O sexo tem que ser feito sempre com camisinha? Vale
tudo no sexo, incluindo sexo oral e anal? Ter encontros não sexuais, tipo ir pro cinema
ou almoçar juntos está valendo? E ficar trocando mensagens durante o dia, por
exemplo?
Com quem pretendemos sair? Só com desconhecidos? Pode sair com amigos? E
pessoas do trabalho, tá valendo? Pode sair com homem e mulher? E com casais?
Quando e com que frequência pretendermos sair com outras pessoas? Pode sair
sempre que quiser ou está limitado a alguns dias da semana ou do mês? Só quando
estiver fora da cidade, por exemplo? Só quando o outro já tiver algum compromisso?
Só pode sair quando a relação estiver boa, sem conflitos?
Para onde pode ir? Somente a lugares públicos? Só em casas noturnas? Pode trazer
alguém para casa? Pode transar com alguém na cama do casal? Pode dormir fora de
casa?
Outros detalhes importantes: Pode sair mais de uma vez com a mesma pessoa?
Deve-se compartilhar as experiências com o parceiro ou guarda pra si? Tem que avisar
o parceiro previamente? O outro vai ter poder de veto? Um pode ter acesso à
comunicação do parceiro com as pessoas que ele sai? Pode fazer perfil em aplicativos
de paqueras?
Os seguintes depoimentos ajudam a ilustrar como os casais vêm elaborando estes
combinados em suas relações não-monogâmicas:
Nós não namoramos amigos ou alguém que conhecemos – incluindo
qualquer pessoa de quem somos amigos nas redes sociais. Certa vez,
vi um perfil no Facebook de alguém com quem ele acabou transando
e ela estava absolutamente deslumbrante. Isso foi difícil para mim
porque eu não pude deixar de me comparar com a forma como a
percebi na internet (a maioria era apenas ilusões preenchidas por
meu próprio cérebro, é claro). Mas nós passamos por isso juntos. Só
porque ele era a causa da minha mágoa, isso não significava que eu
não podia esperar para correr pros seus braços. Nós fizemos uma
nova regra então: Não dormir com amigos do Facebook nem amigos
em geral.81
Beth
Podemos “brincar” casualmente com outras pessoas
individualmente (...) podemos fazer qualquer coisa, desde que não
haja necessidade de látex e que fiquemos em um local público ou
povoado de outra forma (um bar ou festa - não um quarto privado
ou outro lugar onde ficaríamos sozinhos com a pessoa). Podemos
brincar com outras pessoas, mas sem sexo vaginal ou anal. Pode
haver contato genital, orgasmos, fisting e penetração com
brinquedos. 82
Ricardo e Samantha
Nossos combinados são os seguintes: Inicialmente sair apenas com
casais. Quando for com solteiro, só pode sair uma vez, não sendo
permitido repetir encontro com a mesma pessoa. O outro participa
de todo o processo de escolha e tem que dar o aval com
antecedência. O outro tem acesso à toda comunicação. Só pode sair
para encontros quando o outro estiver bem e quando a relação
estiver boa. As outras pessoas com quem sairmos tem que saber que
estamos num relacionamento e que não quereremos compromisso.
Só pode sair para encontros no máximo uma vez por semana.83
81
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
82
Idem.
83
Ibidem.
Paulo e Receba
Sexo em nossa cama está bem, mas sexo na sala de meditação está
completamente proibido. Meu quarto é meu. Ele não tem permissão
para fazer sexo lá. Da mesma forma comigo em seu quarto. 84
Ronaldo e Camila
REGRAS X COMUNICAÇÃO ABERTA E CONTINUADA
Por mais que combinados e regras sejam relevantes, é preciso também deixar espaço
para a experiência ir se descortinando naturalmente e cada um descobrir o que faz
sentido para si à medida que as vivências acontecem. O modelo de combinados e
regras, dependendo de como é conduzido, pode acabar enrijecendo a experiência,
pois como mencionamos anteriormente, a realidade é muito dinâmica e não sabemos
como vamos nos sentir quando estivermos em contato com a experiência concreta.
É muito difícil prever como as coisas vão se desenrolar quando adentramos o universo
das relações não-monogâmicas. Então, talvez mais importante do que estabelecer
regras e combinados rígidos, seja a capacidade de manter uma comunicação aberta
e continuada sobre tudo o que for emergindo. Dessa forma, fica mais fácil de
acompanhar a vivência de cada um enquanto o casal se mantém aberto para aprender
com a evolução dessas experiências. Ao invés de reduzir os combinados a uma lista
de permissões e proibições do que se pode ou não fazer, talvez faça mais sentido
pensar nos combinados como diretrizes, como uma direção para onde o casal quer
caminhar, como um alinhamento de intenções, entendimentos e expectativas sobre
o que cada um deseja e anseia, bem como o que vislumbra ser melhor para si e para
o casal.
84
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
Por exemplo, “queremos abrir a relação, mas não pretendemos nos envolver com
outras pessoas afetivamente.” Essa é uma intenção, o casal quer seguir nessa direção.
Mas pode ser que aconteça algum envolvimento afetivo, já que nem sempre
controlamos isso. Neste caso, deve haver espaço para conversar a respeito, mesmo
que isso não estivesse previamente no combinado, porque muitas vezes a experiência
se sobrepõe às teorizações e isso não é necessariamente ruim, desde que tenhamos
flexibilidade para acolher o que ocorre e processar essas experiências on the fly, ou
seja, na medida em que elas vão acontecendo.
Quando pensamos em termos de regras rígidas, o risco é não haver espaço para
contemplar as experiências que forem emergindo ao longo do percurso e também
não haver espaço para cada um ir descobrindo o que faz bem para si e que tipo de
experiências anseia viver. Regras rígidas tendem a enrijecer o processo e roubar um
pouco da autonomia e espontaneidade dos sujeitos.
Na prática, o que vemos ocorrer com os casais é iniciarem a relação aberta com
muitas regras rígidas e depois, gradativamente, se moverem para um modelo mais
fluido, com menos regras e mais diálogo constante. Nesta evolução natural, a
tendência é que cada parceiro tenha cada vez mais autonomia para escolher que
experiências gostaria de ter e a negociação passa a recair mais sobre como se conduzir
na prática essas vivências e não tanto sobre o que se está autorizado ou não a fazer.
Deste modo, a relação favorece com que cada sujeito tenha autonomia de escolha
sobre seu desejo e os combinados vão servir mais para definir a melhor forma de
realizar essas experiências. Mesmo que muitos casais não estejam prontos ainda para
dar total autonomia de escolha a seus parceiros essa pode ser uma perspectiva boa
no horizonte.
O fato é que apenas aprendemos a sentir segurança através do controle mas essa é
uma segurança um tanto precária. O controle e a proibição são uma espécie de
paliativo. A verdadeira segurança é aquela que emerge da força do vínculo do casal.
Quando mais sólido é o vínculo e a conexão do casal e mais transparente é a
comunicação, maiores são as chances de o casal permanecer juntos ao longo do
tempo. É a conexão e a intimidade que fortalecem a relação e não as regras e normas.
REABRINDO A RELAÇÃO
Como tudo na vida, as relações também evoluem e os acordos que foram feitos no
início do processo podem não ser mais válidos agora, então é preciso estar sempre
disposto a rever os combinados. Devemos ter flexibilidade e espaço interno para
repactuar a relação quando for necessário, sem rigidez excessiva.
Pode ser que um parceiro descubra um novo desejo que não tinha antes e queira
espaço pra realizá-lo na relação. Pode ser que vocês dois começaram saindo sempre
juntos, mas agora um dos dois sente vontade de poder sair sozinho também. Pode
ser que um se descubra bissexual e queira explorar essa possibilidade. Enfim, assim
como as pessoas, as relações também evoluem. O importante é que se vocês
conseguiram chegar a um acordo uma vez, certamente têm condição se repactuar e
encontrar um novo equilíbrio nessa negociação.
PROBLEMAS COMUNS, ARMADILHAS E DESAFIOS DAS RELAÇÕES ABERTAS
Optar por um relacionamento não-monogâmico pode trazer inúmeros benefícios
para o relacionamento, como por exemplo:
• Viver honestamente e sem hipocrisia
• Evitar se sentir sufocado, limitado ou preso numa relação fechada
• Ser livre para reconhecer que sente atração e desejo por outras pessoas, sem
se sentir culpado por causa disso
• Ser livre para criar relacionamentos personalizados que funcionem para você
ao invés de ter que se adaptar a um modelo hegemônico que a sociedade
impõe
• Ter vários parceiros sexuais e experiências emocionais diferentes
• Poder experimentar a excitação do flerte e da sedução
• Não ter a obrigação de satisfazer todas as necessidades do parceiro e vice-versa
• Trabalhar no autoconhecimento e enfrentar desafios como ciúme e outras
questões
Se a opção for por um relacionamento poliamoroso ou uma relação livre, você poderá
desfrutar ainda de alguns benefícios adicionais, como:
• Ter múltiplos relacionamentos ao invés de um só
• Não ter necessidade de acabar um relacionamento para iniciar outro
• Ser desafiado a aprender e crescer por meio de múltiplos relacionamentos
• Poder atender a diferentes necessidades com diferentes pessoas
• Explorar diferentes dinâmicas sexuais ou relacionais
Porém, como tudo na vida, existe o outro lado da moeda e os relacionamentos nãomonogâmicos também podem trazer inúmeros desafios e armadilhas que vamos
analisar agora.
MANEJO DO TEMPO E NEGLIGÊNCIA DO RELACIONAMENTO PRINCIPAL
Às vezes a empolgação com a possibilidade de realizar nossos desejos e fantasias pode
fazer com que deixemos a relação principal negligenciada e isso a longo prazo
prejudica muito o relacionamento. Quando estamos em um relacionamento aberto,
seja de que tipo for, é muito importante guardar tempo de qualidade para esta
relação, um tempo intencional e significativo. Devemos saber de nossas prioridades
e dos nossos limites para não negligenciarmos nosso relacionamento. Para isso é
importante lidar bem com agenda, negociar bem os melhores horários para os
encontros extraconjugais ou, em último caso, sair sempre juntos para realizar as
fantasias a dois e ninguém se sentir preterido.
USAR A ABERTURA PARA FUGIR DA RELAÇÃO
Quando alguma não vai bem na relação, podemos nos sentir impelidos a querer nos
afastar dela para evitar entrar em contato com a dificuldade que está se
manifestando. Algumas pessoas fazem isso mergulhando no trabalho, por exemplo.
Quando se está em um relacionamento aberto, a própria abertura que a relação
proporciona pode acabar se convertendo em uma possibilidade de fuga. Somente o
autoconhecimento pode ajudar a reconhecer qual está sendo a motivação para
buscar algo fora. É para fugir da relação ou é simplesmente para enriquecer a vida do
casal? É importante identificar e sermos honestos com nós mesmos e nossos
parceiros, pois os problemas não somem simplesmente porque não damos atenção a
eles - pelo contrário, eles tendem a ficar maiores quando os evitamos.
Como dissemos anteriormente, o ideal é que o relacionamento esteja em harmonia
antes de se pensar em abrir a relação. O objetivo é expandir as possibilidades e não
se esquivar da relação. Os relacionamentos abertos certamente funcionam melhor
quando o casal se ama e se relaciona bem e a abertura da relação é usada para
aprimorar ainda mais a relação.
USAR A ABERTURA PARA ATINGIR O OUTRO
Toda ferramenta pode ser mal ou bem utilizada. Com o relacionamento aberto é a
mesma coisa. Ao mesmo tempo em que abrir a relação traz a possibilidade de crescer
juntos e enriquecer o relacionamento, se utilizado sem consciência, pode ser uma
forma de atingir o outro, de magoar.
Assim como mencionado no tópico anterior, devemos estar atentos às motivações
que estão conduzindo nosso comportamento para ter certeza de que a abertura da
relação esteja à serviço de uma causa construtiva. Se vocês estão se magoando com
frequência, cabe fazer uma pausa e analisar por que isso está ocorrendo. Existem
mágoas ou ressentimentos inconscientes?
QUANDO UM SENTE QUE ESTÁ APROVEITANDO MENOS QUE O OUTRO
Uma das possíveis armadilhas de um relacionamento não-monogâmico é quando um
sente que o outro está aproveitando mais que a gente. Pode ser porque o outro tem
mais tempo livre para aproveitar as oportunidades, ou porque o outro tem mais
desenvoltura e capacidade de encontrar parceiros ou até mesmo porque um é mais
atraente que o outro. O fato é que esse tipo de situação pode gerar um tipo de ciúmes
que na verdade está mascarando uma inveja ou até mesmo uma sensação de
impotência de um dos parceiros.
Como qualquer incômodo que venha a surgir em um relacionamento nãomonogâmico, o parceiro que está se sentindo incomodado deve se pronunciar e
ambos vão buscar uma solução conjunta para o desconforto que está sendo
apresentado. Uma possibilidade seria definir, por exemplo, que um só vai poder se
encontrar com outras pessoas quando o outro também conseguir agendar um
encontro. Como sempre, tudo pode ser resolvido a partir de um diálogo franco e
honesto.
PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO
Alguns dos problemas de comunicação mais comuns em relacionamentos não
monogâmicos são os seguintes:
Não ser suficientemente específico nos combinados.
Digamos que vocês façam um combinado de que não se pode fazer programas
românticos com os parceiros extraconjugais. Mas pode ser que cada um tenha uma
concepção diferente do que é um programa romântico. Por exemplo, almoçar juntos
é um programa romântico? Por isso, quanto mais específicos e explícitos forem os
combinados, melhor.
Fazer pressuposições e não confirmar
Às vezes pressupomos que sabemos como o outro vai se sentir ou como irá reagir e
por isso não nos damos o trabalho de consultar e confirmar nossas suposições.
Podemos criar muitos conflitos quando agimos com base na nossa perspectiva sem
considerar que a do outro pode ser diferente. Por exemplo, um dos parceiros pode
pensar assim: “ah, eu não me importaria com isso, então acho que ele também não
vai se importar”.
Desafio da zona cinzenta
A zona cinzenta aparece quando ocorre uma situação que não foi totalmente
especificada na negociação. Isso é mais comum do que se imagina. Digamos que vocês
combinam que não é para ter casos com pessoas do trabalho. Aí em uma determinada
festa você encontra o irmão de um amigo do trabalho. Neste caso, você poderia ficar
com ele ou não? Essa é uma zona cinzenta porque está além do que foi definido, mas
ao mesmo tempo está próximo. O ideal seria perguntar para o seu parceiro como se
comportar neste caso, mas nem sempre vocês vão conseguir se comunicar
imediatamente. Então, vale ter como regra a seguinte máxima: na dúvida, abstenhase até que a questão possa ser mais bem discutida.
QUEBRA DE COMBINADOS
Se existe uma infidelidade nos relacionamentos não monogâmicos, essa infidelidade
é a quebra dos combinados - essa é a traição no universo da não-monogamia. Quando
expressamos e combinamos claramente como as coisas devem ser, machuca muito
quando isso não é respeitado. Quando isso acontece, tem que ver se foi realmente
uma violação do combinado, uma falha de comunicação ou até mesmo uma confusão
pertencente à zona cinzenta.
Deve-se analisar com profundidade o que aconteceu. Foi intencional a quebra de
combinado? Foi só uma confusão? Ou foi uma quebra deliberada por vingança,
ressentimento ou raiva? Às vezes alguém aceita uma regra mesmo não concordando
muito e acaba quebrando depois de forma reativa, como num protesto, numa
manifestação de raiva passivo-agressiva.
A pessoa que falha tem que assumir a responsabilidade pelo que fez e se desculpar
sinceramente e não só da boca pra fora. É preciso fazer empatia com a dor provocada
no outro e saber que leva um tempo pra confiança se reestabelecer. Porém, nem toda
quebra de combinado tem o mesmo peso. Fazer sexo sem camisinha é mais grave do
que combinar de ligar quando estiver voltando para casa e não ligar. O ideal é que
nossa reação à quebra do combinado seja proporcional à gravidade do ato.
Quando ocorre uma quebra no acordo, é importante buscar entender o que causou
isso. Pode ser que alguém tenha aceitado algum aspecto do combinado sem estar
realmente convencido dele, mas apenas para agradar o outro. Por isso é importante
que as pessoas tenham de fato autonomia para escolherem o que querem ou não
fazer, porque assim elas tendem a ficar mais comprometidas com o acordo.
QUANDO UM DOS PARCEIROS SE APAIXONA POR ALGUÉM
É um fato que em todo relacionamento existe sempre o risco de um dos parceiros se
apaixonar por alguém, independente de se estar em um relacionamento aberto ou
não. A verdade é que nem tudo pode ser controlado, embora algumas coisas possam
ser antecipadas. Se vocês sabem que um dos dois tem muita facilidade de se
apaixonar, vocês podem optar por saírem apenas em conjunto e com pessoas casadas
(swing), o que minimiza imensamente a possibilidade de envolvimento afetivo. Afinal,
em ambos os lados os respectivos parceiros estão presentes, o que naturalmente
força um devido distanciamento afetivo.
Em último caso, se um dos parceiros se apaixonar por alguém, isso pode ser
conversado e se chegar a um acordo sobre a melhor forma de lidar com a situação.
Em uma relação monogâmica tradicional quando um se apaixona não tem muita
opção a não ser terminar tudo ou desistir do novo afeto. Os relacionamentos nãomonogâmicos permitem uma terceira opção, que seria incluir a possibilidade de um
relacionamento paralelo, mesmo que sendo secundário. Nesta situação teríamos um
caso de poliamorismo hierárquico.
Veja que nem sempre se apaixonar por outra pessoa é necessariamente ruim e nem
sempre isso é a tragédia que se imagina. Muitas vezes a paixão é passageira e
paradoxalmente, dar espaço para ela pode até ajudar a passar mais rapidamente,
mesmo porque sempre existe um quê de fantasia nos apaixonamentos e o contato
com a realidade pode até ajudar a ressignificar esse sentimento.
DESAPROVAÇÃO DE AMIGOS, FAMÍLIA E SOCIEDADE
Até que ponto vale a pena contar para as outras pessoas que você está em um
relacionamento não-monogâmico? Essa é uma questão delicada que exige bastante
reflexão. Como toda decisão, existem prós e contras. Existe o risco de você ser alvo
de fofocas ou até mesmo ser muito criticado pelos amigos, colegas de trabalho e até
mesmo pela família. As principais críticas que as pessoas costumam fazer são:
• Ser não monogâmico não é o que Deus espera de nós
• Você está correndo perigo de pegar DSTs
• Pessoas que não conseguem ser monogâmicas têm dificuldades psicológicas e
precisam de terapia (dificuldade de assumir e manter compromisso)
• Você ainda não encontrou a pessoa certa, quando encontrar você será
monogâmico
• Isso é porque seu último relacionamento não deu certo, né?
• Isso vai destruir seu relacionamento
• Isso é porque vocês não se amam mais
• Se vocês se amassem mesmo não aguentariam ver seu parceiro com outra
pessoa
Muitas dessas questões foram problematizadas no capítulo em que falamos sobre os
mitos da monogamia e as informações contidas naquele capítulo podem te ajudar a
elaborar uma resposta adequada para essas colocações. Quanto mais consciente você
estiver da sua decisão, mais fácil será responder às críticas e colocações feitas por
outras pessoas.
Claramente, também existem benefícios de compartilhar essa informação com outras
pessoas próximas. Um dos benefícios é não ter que esconder nada dos outros e poder
agir espontaneamente. Outro benefício é evitar especulações indesejadas, pois se
alguém testemunhar um dos parceiros ficando com outras pessoas e não souber que
vocês que estão em um relacionamento não-monogâmico, vão acabar concluindo que
está acontecendo uma traição, afinal, essa forma de não-monogamia ainda é muito
mais prevalente em nossa sociedade do que a não-monogamia consensual.
Vejamos alguns depoimentos envolvendo questões referente à revelação ou não do
status relacional de pessoas que estão em relacionamentos não-monogâmicos.
O mais difícil é viver em uma cultura que não sanciona tais
relacionamentos. Ou seja, se alguém compartilha seu estilo de vida
com outra pessoa, pode ser rotulado de "louco por sexo" ou pior.85
Natalia
Há momentos em que gostaríamos de agir de acordo com nossas
crenças, mas por causa do sistema de crenças prevalecente, devemos
ser muito cautelosos em como nos comportamos em público. Isso às
vezes é difícil para nós e causa sentimentos de repulsa, ressentimento
e desagrado com a sociedade (...) as pessoas se intrometem,
bisbilhotam, condenam, evangelizam e fofocam.86
Renato
No capítulo seguinte vamos falar de um desafio quase que universal para as pessoas
que optam por relacionamentos não-monogâmicos: o ciúme.
85
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
86
Idem.
LIDANDO COM O CIÚME E OUTROS SENTIMENTOS DIFÍCEIS
Nos relacionamentos, nossos gatilhos são ativados, nossa bagagem
emocional é revelada, demônios internos são confrontados e velhas
feridas são abertas - experimentamos todas as emoções conhecidas.
Os relacionamentos podem ser difíceis, desgastantes, frustrantes e
dolorosos.
A citação acima é do livro “Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships”87 e se mostra muito pertinente para a discussão sobre o ciúme.
Relacionamentos são desafiadores porque podem ativar intensas emoções e o fato é
que ao longo da vida não aprendemos a lidar bem com as emoções. Passamos mais
de uma década na escola e muito provavelmente a maioria das pessoas não teve
nenhuma única aula voltada ao manejo saudável das emoções ou a uma verdadeira
alfabetização emocional. Relacionamentos dependem de autoconhecimento e
também nunca fomos incentivados em nossa educação a olharmos para dentro, o
foco sempre foi e ainda é conquistar alguma coisa fora.
Relacionamentos dependem que aprendamos a ficar conscientes do que sentimos e
a expressar esses sentimentos. Isso pressupõe a coragem de nos vulnerabilizarmos e
mostrarmos nossas inseguranças e nossas sombras. Por isso, é muito importante que
ambos os parceiros se trabalhem de uma forma ou de outra, seja por terapia, seja por
meditação, seja por trabalhos de autodesenvolvimento, trabalhos espirituais, grupos
de apoio, ou uma combinação dessas formas.
O ciúme é um sentimento bem universal, mas em grande parte aprendido
culturalmente. Somos ensinados que devemos ter ciúme quando estamos
namorando, até mesmo como uma prova de amor, pois há quem acredite que se o
outro não sente ciúme ele não nos ama, o que é um grande equívoco. Se todos nós
houvéssemos nascidos em famílias cujos pais tivessem relacionamentos nãomonogâmicos consensuais, certamente o ciúme não seria tão comum, mas desde
87
TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press.
crianças aprendemos o contrário, aprendemos a sentir segurança apenas no controle
do outro.
É melhor pensar nos sentimentos negativos como um sinal de que algo não está bem
e depois tentar chegar ao que está por trás do que sentimos, como ensina Leonie,
coaching de relacionamentos:
O mais importante sobre os sentimentos negativos e os medos é que
sempre existem desejos ou necessidades escondidos debaixo deles,
esperando ser descobertos. Por exemplo, sob o medo de ser
abandonado pode estar uma necessidade de afirmação e
valorização. Sob a raiva, pode estar uma necessidade oculta de
defender os próprios limites. O medo de perder alguém pode
esconder uma necessidade de segurança. A necessidade de controlar
pode indicar a necessidade de ser soltar ou de se entregar. Sob o
medo de não ser bom o suficiente pode se encontrar a necessidade
de significar alguma coisa para alguém ou um desejo de mais
autoconfiança, que, por sua vez, é algo que podemos desenvolver. Se
conhecermos as nossas necessidades ocultas, também poderemos
chegar aos meios de atendê-las. Às vezes, outras pessoas podem
ajudar (...) outras vezes, nós mesmos podemos satisfazê-las – como
melhorar a autoconfiança. Ao atendermos as nossas necessidades,
os sentimentos de ciúme aos poucos amenizam. 88
Pesquisas indicam que o ciúme é a principal causa de crime passional, o que
demonstra que esta emoção pode ser bastante intensa e desestabilizadora. Mas na
verdade, ciúme é uma emoção guarda-chuvas, pois abriga outras emoções como
inveja, competitividade, insegurança, inadequação, possessividade, medo de
abandono, sentimento de não ser amado e sentimento de exclusão.
A inveja, por exemplo, pode aparecer quando um parceiro está tendo mais sucesso
que o outro em conseguir parceiros fora do relacionamento. Isso pode ser percebido
como ciúme, mas na verdade é uma inveja disfarçada de ciúmes, até mesmo porque
88
LINSSEN, L. & WIK, S. (2012). Amor sem barreiras: As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e
Poliamorosos nos Dias de Hoje. Ed. Pensamento.
é mais fácil assumir ciúme do que inveja - que é uma emoção que denota certa
fraqueza.
A insegurança pode se manifestar pela comparação. Por exemplo: “a mulher que ele
está saindo é muito mais bonita que eu, é mais gostosa, é mais nova, ou é melhor de
cama, tem mais tesão, é mais safada, etc.” Aqui o ciúme se apresenta mascarando
uma insegurança, uma sensação de menos valia, uma baixa autoestima.
O ciúme pode significar que estamos nos sentindo excluídos. Às vezes isso pode ser
resolvido combinando de se fazer programas juntos ao invés dos parceiros saírem
separadamente (por exemplo, fazer um ménage ou swing). Uma outra opção quando
nos sentimos excluídos é arranjar um programa para fazer quando o parceiro estiver
saindo com outra pessoa (caso também não tenhamos ninguém para sair naquele
dia). Pode-se também combinar com o parceiro de agendar suas saídas para um dia
que já estaríamos ocupados mesmo, por exemplo, assistindo a uma aula na faculdade
ou saindo com os amigos.
O ciúme também pode estar encobrindo um ressentimento. Nos sentimos
ressentidos quando sentimos que não estamos sendo tratados como deveríamos. Às
vezes nos sentimos ressentidos porque fazemos uma concessão que não deveríamos.
Neste caso a responsabilidade é nossa, porque sempre temos que honrar o que
sentimos e fazer concessões insinceras é certeza de ressentimento adiante. A melhor
forma de evitarmos o ressentimento é expressarmos o que sentimos sempre, mesmo
quando achamos que o que sentimos é irracional pois ainda assim temos que honrar
nossos sentimentos.
O ciúme pode representar também baixa autoestima e incapacidade de ficar bem
sozinho. Quem é inseguro não se acha possuidor de qualidades e tem uma imagem
desvalorizada de si próprio, temendo ser trocado por outro a qualquer momento.
Quem tem a autoestima elevada e se considera interessante e com muitos atrativos
não supõe que será trocado com facilidade, e se a relação terminar, sabe que vai
sentir saudade, vai ficar triste, mas também sabe que vai continuar vivendo sem
desmoronar.
O ciúme pode estar relacionado também à possessividade, à necessidade de controle,
necessidade de acreditar que o outro nos pertence. Essa possessividade pode ser,
inclusive, uma forma de avareza (“quero tudo só pra mim, não divido com mais
ninguém”).
O ciúme também pode representar resquícios de experiências infantis que não foram
totalmente elaboradas, temores mal resolvidos da infância que trazemos para a vida
adulta. Quando nascemos, logo nos primeiros meses de vida após o nascimento,
ainda nos percebemos muitos ligados à mãe, num estado de completa
indiferenciação.
Em algum momento do nosso desenvolvimento infantil nos damos conta de que
somos diferentes e estamos separados da nossa mãe. Essa percepção de ausência da
mãe faz com que nós sintamos nossa sobrevivência ameaçada. A partir dessa
consciência da separação, qualquer coisa ou pessoa que possa “roubar” essa presença
da mãe passará a ser considerada como uma verdadeira ameaça.
A psicanalista Regina Navarro explica que
O útero da mãe é o único lugar do mundo onde podemos obter a
satisfação imediata de todas as nossas necessidades. Ali
desconhecemos a fome, a sede e a falta de aconchego. Depois que
nascemos, precisamos respirar com nossos próprios pulmões,
reclamar da fralda molhada, nos desesperamos com a cólica. Somos
tomados por um profundo sentimento de falta, uma angustiante
sensação e desamparo.89
A criança tem ciúmes da mãe porque se a mãe desaparecer ela morre. É uma questão
de sobrevivência. Na vida adulta, se a dependência infantil que se tinha da mãe na
infância não tiver sido bem elaborada, ao se entrar em uma relação amorosa, esta
89
Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”:
https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O
dependência pode reaparecer com bastante força e nesses casos o ciúme tende a ser
muito intenso. O reaparecimento da insegurança infantil leva a pessoa a exigir
exclusividade total no amor e sentir um medo terrível de perder a pessoa da qual
sente que depende para sobreviver.
Como explicam os autores do livro “Relações Livres: uma introdução”,
Esse medo do abandono poderia ser trabalhado para se tornar
apenas uma pedra enterrada lá na infância, na qual aprenderíamos
a não tropeçar na vida adulta. Mas em vez de incentivar a superação
desse medo, nossa cultura se vale dele. Demonstrações de “ciúme
moderado” são esperadas como garantia de que um parceiro
continua a ter afeto pelo outro. O problema é que mesmo na
monogamia os limites entre o “ciúme moderado” e o “ciúme
destrutivo” são tênues e não convém estimular um sentimento com
potencial tão explosivo, que não raro se mistura com outros
componentes de nossa sociedade transformando-se em violência.
O ciúme é também um subproduto da experiência psicológica de escassez afetiva.
Quando experimentamos muita falta e privação na infância, internalizamos este
registro de escassez e o casamento monogâmico traz este apelo muito sedutor de nos
oferecer um amor garantido, permanente e exclusivo. Para quem experimentou tanta
privação na vida, nada poderia ser mais tentador: "Finalmente um amor só pra mim,
tudo que eu sempre quis".
O paradoxo é que a maior parte de nós somos filhos de casamentos monogâmicos e
ainda assim somos tão carentes, experimentamos tanta privação afetiva. Então é bem
possível que na atmosfera do nosso lar não houvesse amor esbanjando, por mais
monogâmico que nossos pais fossem. A verdade é que um círculo vicioso foi
instaurado em nossa sociedade. Aprendemos que o amor deve ser controlado e
exclusivo, então aprisionamos o amor na gaiola do casamento e, por isso mesmo, logo
logo esse amor se esgota pela falta de renovação, pela impossibilidade de circular
livremente.
O amor é um fenômeno que prospera na liberdade, na espontaneidade. O casamento
monogâmico é uma tentativa de institucionalizar este amor, de torná-lo certo e
garantido, mas isso acaba é sufocando e extinguindo o amor. Porque ou o amor é
livre ou não é amor. Nesse sentido, amor livre é um belo pleonasmo. Se não há
liberdade, não existe verdadeiramente amor. Possessividade não é amor. Amor é
quando eu digo para você assim: “sua sexualidade pertence apenas a você, faça o que
quiser com ela.” O amor liberta... Se o amor te aprisiona de alguma forma, não pode
ser verdadeiramente amor.
Assim como o fogo precisa do ar, o amor também precisa da liberdade pra fluir, tem
que ser um fenômeno espontâneo, tem que poder circular livremente pois ele ganha
força na medida que pode pulsar livremente, sem as fronteiras rígidas e artificiais que
a cultura monogâmica criou.
Acreditamos que essas fronteiras vão nos proteger da perda ou da reedição da perda
primária experimentada lá atrás na infância. Por isso, o medo da perda leva ao reflexo
defensivo de exclusão dos outros, que passam a ser vistos como fontes de ameaça.
Isso é o ciúme, a disputa pelas pessoas, a demarcação de um território. Porém, como
explica Brigitte Vasallo em seu ensaio “Abrir amores, fechar fronteiras?”:
O medo da perda não se resolve fechando-se fronteiras para evitar a
chegada da alteridade que nos ameaça, porque as fronteiras são
apenas portas corta-fogo que nunca ficam de pé por muito tempo. O
medo da perda se resolve apagando o fogo. Desativando a ameaça.
Desativando a ideia da alteridade como ameaça. Afinal de contas,
estamos falando de amor, ou estamos falando de Estados?
O ciúme, então, seria como um pânico da alteridade, como explica Brigitte:
A possibilidade de nos relacionarmos a partir de dinâmicas nãomonogâmicas desencadeia o pânico da alteridade. Essa “outra” que
vem roubar nossa tranquilidade, nosso bem-estar, nosso cotidiano,
nosso conforto, nossa segurança. Que vem competir conosco e nos
tirar a centralidade, o privilégio e o poder que a centralidade nos
confere. Que vem nos colocar em perigo. E então revelamos o pior de
nós mesmas. Como afirma a cultura popular, no amor como na
guerra, tudo vale. E vale tudo: o combate, o ataque, a violência, a
auto violência. Como é possível assassinar sua parceira ou exparceira com a desculpa do ciúme? Como é possível assassinar “a
outra”? Como é que nos ferimos por amor ou por desamor? Como é
que infligimos tanta violência a nós mesmas e como aceitamos
tantos maus-tratos sob o pretexto do amor?
Nesse sentido, o ciúme seria
(...) um sistema que nos diz que a chegada do “outro” nunca é uma
notícia boa, que nunca nos trará novas energias, novos
conhecimentos, novos pontos de vista, novos laços, que nunca nos
fará melhores, nem mais felizes, nem mais reais, nem mais
luminosos, nem mais alegres. Um sistema que nos diz que o outro
não tem direito de existir.90
Não existe uma receita de bolo para aprendermos a lidar com o ciúme ou com os
sentimentos difíceis em geral, porém algumas indicações podem ajudar no
processo:
• Não se critique por sentir ciúmes. Sentir ciúme é compreensível; agir conforme
manda o ciúme não.
• Permita-se sentir o ciúme, não resista nem fuja dele. Mesmo que você entenda
que ele não é racional, ainda assim ele é real e deve ser validado e legitimado.
• Quanto mais você abrir espaço para acolher o que está sentindo, menos
sobrecarregado você fica com a emoção. Respire fundo, sinta seu corpo e
perceba que você não se resume a essa emoção.
• Pode ser que seu ciúme seja uma reação aprendida, reforçada culturalmente,
então vale a pena refletir se você não está simplesmente reproduzindo algo
que aprendeu mas que não realmente reflete seus valores pessoais.
• Quando você sentir ciúmes se pergunte o que pode estar por baixo desse
sentimento. Você está se sentindo deixado de fora? É inveja porque o outro
está fazendo algo que você não está conseguindo fazer? É uma necessidade de
90
VASALLO, Brigitte (2020). Abrir amores, fechar fronteiras? Edições Chão da Freira.
controle? Você está se comparando com alguém e se sentindo diminuído por
causa disso? Você está se sentindo ameaçado ou desrespeitado? Aconteceu
alguma coisa específica que ativou seu ciúme?
• Pode ser útil conversar com seu parceiro, com um amigo, um parente ou até
mesmo com um terapeuta. Alguém de fora poderá ajudar você a entender se
sua percepção da situação está correta ou exagerada.
• Pense no que você precisa para se sentir melhor. Talvez seja fazer algum
programa que você goste, talvez seja passar mais tempo com seu parceiro ou
então talvez você tenha necessidade que seu parceiro demonstre mais que
valoriza e está comprometido com a relação. A resposta para essas perguntas
depende de uma auto investigação sincera.
• O autocuidado nessa hora é muito importante, fazer algo que gosta, ler um
livro, assistir uma série, exercício físico, sair com amigos.
• Já outros precisam desabafar com alguém ou com o parceiro, lembrando-se
sempre de falar na primeira pessoa para se responsabilizar pelo sentimento.
Depois de desabafar diga o que necessita para se sentir bem.
• O ciúme pode estar relacionado a experiências do passado que nada tem a ver
com seu relacionamento atual. Às vezes apenas ter consciência dessa relação
causal já pode atenuar a intensidade da emoção, outras vezes precisaremos de
um trabalho mais profundo para desfazer os danos causados ao nosso sistema
emocional.
Já quando é o nosso parceiro que diz que está se sentindo enciumado, nosso trabalho
é validar o sentimento dele mesmo que não entendamos ou concordemos. Nosso
primeiro objetivo será sempre ouvir e tranquilizar a outra pessoa sobre nosso
compromisso com o relacionamento.
No momento em que um parceiro estiver tendo sentimentos intensos como mágoa,
insegurança, ciúme ou traição, valide esses sentimentos e respeite-os, mesmo que
não os compreenda. Não tente dissuadir ninguém de como está se sentindo com
argumentos racionais; dizer a eles por que eles não deveriam se sentir de certa forma
não levará vocês a lugar nenhum e pode gerar ressentimento pelo fato do parceiro
não se sentir compreendido. Uma opinião mais objetiva sobre o que está
acontecendo a partir de sua perspectiva racional pode vir mais tarde.
Compartilhe a sua versão da situação, lembrando-se de assumir a responsabilidade
por seus sentimentos e ações. Digam um ao outro o que vocês precisam para resolver
o problema. Estejam preparados para fazer concessões quando for necessário.
Lembrem um ao outro de seu amor, afeto e respeito.
Vejamos os depoimentos91 de algumas pessoas que se encontram em
relacionamentos não-monogâmicos e como eles lidam com os sentimentos difíceis
que às vezes emergem em suas relações:
Quando percebo emoções desagradáveis surgindo, tomo algum
tempo para pensar a respeito. Raramente eu reajo de imediato às
emoções. Vou verificar minhas crenças e ver se a emoção é baseada
em valores que escolhi conscientemente ou se é um resquício do meu
treinamento social anterior. Por exemplo, certa vez, em uma festa, vi
Renata se beijando e se aninhando com seu novo namorado e fiquei
com um pouco de ciúme. Se fosse seguir pelos livros que li e os filmes
que assisti, eu deveria ficar com ciúme ou fazer algum tipo de cena.
Estou em território desconhecido sobre como me comportar numa
situação dessas. Eu não vi boas reações poliamorosas retratadas em
filmes e tal. Na época, saí da festa e repassei meus valores: será que
acredito que Renata tem controle total sobre seu tempo, energia e
afeto? Sim. Eu confio que Renata ainda me ama? Sim. E assim por
diante, até concluir que meus sentimentos vinham de um sistema de
valores que recusei conscientemente.
Pedro
Se eu sentir que meu parceiro está fazendo algo que me deixa
inseguro, peço a ele que não faça isso, desde que não seja algo que
vá interferir muito em sua vida. Por exemplo, ao invés de
simplesmente pedir pra pessoa para de se encontrar com fulano
91
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
porque está me incomodando eu posso falar assim: "querido, você
poderia parar de dizer para mim o quão maravilhoso fulano é? Ou se
você fizer isso, será que poderia intercalar com um elogio semelhante
para mim também?”
Coralina
Tratamos os sentimentos uns dos outros com cuidado, urgência e
sem julgamento. Muitos presumem que uma pessoa quando sente
ciúmes é responsável por se sentir assim e deve cuidar sozinha dessas
emoções. Vemos que os sentimentos pertencem ao relacionamento,
portanto, ambos somos responsáveis pelo cuidado, resolução e
nutrição deles.
Clarice
Eu não tendo a ter ciúmes enquanto sinto que estou recebendo
atenção, energia e tempo "suficiente". Se eu sentir ciúme por mais do
que um pequeno flash, é um sinal de que sinto que estou recebendo
menos do que quero ou espero, o que significa que é hora de bater
um papo com minha companheira.
Raul
Muitas pessoas, até mesmo as pessoas poliamorosas, parecem ficar
apavoradas com o ciúme... Eu penso no ciúme como a luz de
advertência no seu painel. Diz que algo está errado, mas não diz o
que fazer a respeito. Quando você sente ciúme, significa que é hora
de parar e avaliar o que está acontecendo, e só então fazer algo a
respeito.
Luís
Quando estou com ciúme, me pergunto: “será que tenho tão pouca
fé em mim mesma e em meu valor como pessoa que acho que
poderia ser facilmente substituída?” Mais uma vez, trata-se de me
forçar a cuidar de mim mesmo. Quando eu acredito firmemente em
meu valor como pessoa, há espaço para outras pessoas na vida de
meus parceiros.
Elizabeth
COMPERSÃO: ANTÍTESE DO CIÚME?
O termo compersão foi criado pelos membros da comunidade poliamorista Kerista.
Foi definido como “sentimento positivo sobre a intimidade do seu parceiro com outras
pessoas, o oposto do ciúme”. Outra definição que o termo recebeu foi: “sentir prazer
ou alegria em ver seu parceiro se engajando afetiva ou sexualmente com outra
pessoa”.
Em síntese, compersão é se alegrar com a alegria do seu parceiro. Alguns acreditam
que a compersão pode ser aprendida como tudo na vida e ela só não é mais comum
porque não foi reforçada culturalmente como o ciúme. Assim como podemos ficar
muito feliz com a realização profissional de nosso companheiro também podemos
ficar feliz com sua realização sexual e/ou amorosa. Se uma conquista é importante
para o nosso companheiro, é natural que seja importante para a gente também.
Vejamos alguns depoimentos92 reais de compersão em relacionamentos nãomonogâmicos:
Alice me apoiou, pressionou e me desafiou a ficar com esse menino
trans por quem eu tinha uma grande paixão... foi uma experiência
nova para mim (...) eu estava muito nervoso e hesitante sobre isso.
Ele e eu acabamos ficando naquela noite e em várias outras ocasiões.
Alice e eu nos divertimos muito com a coisa toda. Foi a primeira vez
que eu realmente agi em relação à minha atração por alguém além
da minha parceira de uma maneira verdadeiramente honesta,
aberta e polida... Definitivamente, foi surpreendente, confuso e
absolutamente maravilhoso que Alice tenha sido tão solidária e
interessada - muitas vezes bem na sala ao lado, quando estávamos
nos agarrando.
Fernando
92
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
Gosto de ver meus outros parceiros felizes com outra pessoa. Fico
feliz em vê-los felizes e felizes por alguém. Também fortalece nosso
relacionamento porque eles trazem esse amor e felicidade de volta
para nós.
Joana
A compersão erótica acontece quando você tem prazer em ver seu parceiro se
relacionando sexualmente com outros. Vejamos alguns depoimentos93 reais de
compersão erótica em relacionamento não-monogâmicos:
Quando essa pessoa estava fazendo sexo anal com meu parceiro,
deitei-me na outra cama e comecei a me masturbar com a Varinha
Mágica. Fiquei tão excitada em ver meu esposo sendo fodido que tive
um dos orgasmos mais poderosos que já experimentei.
Patrícia
Quando meu marido e eu estávamos namorando pela primeira vez e
ele estava namorando outra pessoa, eu sabia que a intenção deles
era fazer sexo. Eu estava sozinha naquela noite. Então eu estava
meio que sentada com uma sensação horrível tipo, “Oh meu Deus, o
que isso significa, talvez eu não seja bonita o suficiente” - todas essas
coisas insidiosas - aí eu apenas comecei a imaginar os dois juntos. Era
tão incrivelmente lindo, era excitante. Então eu trouxe meu Hitachi
(vibrador) e tive orgasmos incríveis pensando sobre eles fazendo sexo
juntos. De alguma forma, erotizar isso tirou a repugnância e
substituiu-a por excitação.
Mariana
93
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
ABRINDO A RELAÇÃO COM O CUIDADO QUE ELA MERECE
Como mencionamos na introdução do livro, abrir o relacionamento pode ser um
empreendimento bastante desafiante. Por mais que tenhamos motivos racionais para
fazê-lo, ainda assim temos que lidar com nossas suscetibilidades emocionais. Não
adianta seguir apenas a razão e passar por cima das emoções. Como explica a
coaching de relacionamentos Leonie Linssen em seu livro “Amor sem Barreiras”, abrir
a relação
É um processo que pode trazer paixão renovada, diversão e
momentos emocionantes a uma relação, mas também oferecerá
desafios que realmente a coloquem em teste. Em outras palavras,
abrir um relacionamento pode demandar tempo e energia e requer
cuidados para assegurar que decepções sejam evitadas ou
adequadamente tratadas.
Um pressuposto básico da não-monogamia responsável é que a abertura da relação
deve servir para melhorar e expandir a relação, tem a função de trazer mais verdade
e profundidade, além de liberdade para os indivíduos poderem ser autênticos e
buscarem sua realização pessoal. Em última instância, isso tudo tem relação com o
amor, amor por si mesmo, amor pelo companheiro e amor pela relação. O objetivo é
criar condições para que possamos amar e ser livres ao mesmo tempo. Todos
queremos a segurança do amor e o frescor da liberdade, são estes os dois anseios
essenciais de todo ser humano.
Para que esse movimento de abertura da relação tenha coerência, é necessário que
o casal esteja sinceramente buscando melhorar a relação, esteja sinceramente
querendo aprofundar a relação e investir no amor entre o casal. A base do amor é a
cumplicidade, é se importar com o outro, é gostar de ouvir, gostar de conversar,
gostar de estar com o outro. Além disso, amar também é uma ação, um ato de
vontade, é uma escolha por se dedicar a alguém. A não-monogamia responsável deve
surgir nesse contexto e ser coerente com esses princípios. O objetivo não é usar o
outro pra se satisfazer, o objetivo é enriquecer o vínculo, aumentando a intimidade,
a cumplicidade e a proximidade. Se usarmos a possibilidade de relação aberta para
nos distanciarmos do outro, contrariaremos esses princípios básicos de qualquer
relacionamento amoroso de longo prazo e não seria uma relação não-monogâmica
responsável como estamos propondo neste livro.
Todas essas ressalvas são importantes porque os relacionamentos não-monogâmicos
podem machucar ambos os parceiros quando malconduzidos. Quanto mais sólido for
o amor entre o casal, menos chance de isso acontecer. O seguinte depoimento ilustra
bem a importância de se ter um relacionamento primário que seja seguro e bem
administrado.
Eu acho que os relacionamentos externos têm um enorme potencial
para o crescimento pessoal, tanto individualmente quanto para o seu
relacionamento principal. Mas isso só é verdade se você tiver um
relacionamento que seja seguro e próspero. 94
Lucas
Um pressuposto básico da não-monogamia responsável é de que liberdade exige
responsabilidade. Quanto mais livres queremos ser, mais responsáveis temos que ser
também para administrar as consequências da nossa ação, dentro de uma ética do
cuidado consigo mesmo, com nosso companheiro e com as pessoas de fora que
vamos encontrar.
Primeiro passo para abertura da relação
Toda relação aberta deve se iniciar primeiramente pela COMUNICAÇÃO ABERTA.
Antes de se abrir a relação, é importante que nós possamos nos revelar por inteiro e
que essa revelação seja acolhida sem julgamentos pelo outro. Este é o melhor
caminho para pavimentar um relacionamento aberto não-monogâmico.
94
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
A ideia da relação aberta é favorecer com que cada um possa ser o que
verdadeiramente é. A ideia é encorajar a expressão do nosso ser mais autêntico, com
o objetivo de fortalecer a nossa individualidade. Essa foi a proposta original de
casamento aberto publicada no livro e 1972 com o título de “Open Marriage: A New
Life Style for Couples” (Casamento aberto: um novo estilo de vida para casais). O
modelo de casamento proposto pelos autores enfatiza a comunicação honesta e
aberta, além da liberdade compartilhada. Eles enxergam o casamento aberto como
uma ferramenta para o crescimento pessoal onde um dá suporte para o
desenvolvimento do outro, focado no fortalecimento da individualidade de ambos.
Segundo estes autores,
Casamento aberto pode ser definido como um relacionamento em
que os parceiros estão comprometidos com o seu próprio
crescimento e com o crescimento um do outro. É uma relação
honesta e aberta de intimidade e autorrevelação baseada na
igualdade de liberdade e identidade de ambos os parceiros. O apoio
e confiança crescentes nas identidades individuais possibilitam o
compartilhamento do crescimento pessoal com uma outra pessoa
significativa, que incentiva o seu próprio crescimento e o de seu
companheiro. É uma relação flexível o suficiente para permitir
mudanças e que está em constante renegociação à luz das mudanças
nas necessidades, consenso na tomada de decisões, aceitação e
incentivo ao crescimento individual e abertura a novas
possibilidades de crescimento.
A sociedade nunca encorajou a expressão autêntica do nosso ser, nunca encorajou o
fortalecimento dos indivíduos, pelo contrário. Passamos a vida toda aprendendo a
usar máscaras e a esconder nosso verdadeiro self, tendo vergonha do que sentimos,
do que pensamos e dos nossos desejos. E quando nos sentimos inadequados, nos
apequenamos, nos escondemos ainda mais, fingindo ser algo que não somos apenas
para recebermos aprovação das pessoas com quem nos importamos, como explicou
o psicólogo Carl Rogers:
Cada pessoa aprende cedo na vida que tem mais probabilidade de
ser amado se comportar-se de acordo com as maneiras que são
aprovadas pelas pessoas que lhe são importantes, do que se o seu
comportamento for a expressão espontânea dos próprios
sentimentos. Por isso, começa a desenvolver uma carapaça de
comportamentos externos, pela qual se relaciona com o mundo
exterior. 95
A verdade é que a sociedade prefere seres frágeis, que se conformam e muitas vezes
os relacionamentos amorosos acabam reproduzindo essa lógica de submissão dos
indivíduos, supostamente em prol da relação. Em geral, nos relacionamentos, a
identidade do casal é priorizada em detrimento das identidades individuais, como se
pudesse haver uma relação forte com indivíduos fragilizados. Abrimos mão do que
somos para cabermos na relação, ou seja, nos conformamos novamente, assim como
fomos ensinados a vida toda!
Relacionamento aberto é antes de tudo uma escolha por honrar e proteger as
individualidades. Como as relações são feitas de indivíduos, quanto mais
empoderados esses indivíduos forem, mais forte será a relação. É a relação que deve
servir aos indivíduos e não o contrário! Ou será que os relacionamentos não foram
concebidos para nos beneficiar?
A abertura deve, então, começar pela transparência, para que possamos revelar
nosso mundo interior e acolher as revelações do outro. Precisamos reaprender essa
lógica da permissão interna para sermos o que nós somos ao invés do que
deveríamos ser, ao invés do que o outro precisa que eu seja. O convite deve ser para
o outro se apresentar como é e não como eu gostaria que ele fosse!
A partir do momento que podemos conversar sobre tudo e conseguimos acolher
todas as emoções que emergem neste processo de revelação mútua, aí fica mais fácil
de materializar a experiência do relacionamento aberto, mas antes disso pode ser
prematuro. Relacionamentos abertos precisam de uma base sólida e essa base é a
verdade, a cumplicidade, a parceria em torno de assumirmos o que realmente somos
95
Citado em PERCHES, Tatiana (2009) Plantão psicológico: o processo de mudança psicológica sob a perspectiva da
psicologia humanista. Pode ser encontrado aqui: https://www.passeidireto.com/arquivo/50387037/doc-0
e não o que deveríamos ser. Essa parceria cria a atmosfera propícia para
concretização da relação aberta.
Vejamos algumas outras dicas que podem ajudar a minimizar os percalços nessa
caminhada de abertura da relação.
Não apressar o processo
Se tem uma coisa para a qual não devemos ter pressa é na hora de abrir a relação.
Nosso relacionamento é muitas vezes o que temos de mais precioso na vida e merece
todo cuidado do mundo. Mesmo que o processo de abertura leve mais tempo, às
vezes meses ou até anos, ainda assim é importante optarmos pelo caminho do
cuidado, porque amar é isso, é cuidar, é se importar com o outro, é considerar suas
necessidades e seus sentimentos. Leonie Linssen, coaching de relacionamento, atenta
para o fato de que:
Abrir um relacionamento não é algo que normalmente seja feito por
capricho. Não é uma decisão que tomamos no sábado à noite e na
sexta-feira seguinte estamos prontos para executá-la. Muitos casais
falam sobre isso, mas não se arriscam a partir para prática com medo
do impacto sobre a própria relação. Outros casais discutem a ideia
durante anos antes de decidir ampliar seus limites de
relacionamento. Mesmo assim, pode ser necessário que se passem
meses ou até anos antes que os parceiros envolvidos encontrem a
melhor maneira de manter seu relacionamento aberto.96
Idealmente, a iniciativa de se abrir a relação deve começar inicialmente apenas no
plano da conversa, no nível da reflexão e das ideias. Vocês podem debater questões
como: “O que cada um pensa sobre o assunto? Que benefícios e malefícios isso
poderia trazer pra relação de vocês? O que vocês acham interessante nisso? O que
96
LINSSEN, L. & WIK, S. (2012). Amor sem barreiras: As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e
Poliamorosos nos Dias de Hoje. Ed. Pensamento.
acham que tem de ruim? Quais os receios e anseios de cada um com relação a essa
questão?”
Essa reflexão pode começar também com a leitura de livros, assistindo a séries e
filmes sobre o assunto, ouvindo podcasts, etc. (ver indicações mais à frente). À
medida que vocês vão lendo e assistindo, vários temas vão surgir para aprofundar a
reflexão.
Depois deve-se partir para o nível das emoções. “O que é que essas ideias causam em
mim? Como eu me sinto ouvindo meu companheiro falar sobre o assunto? Que medos
me vêm à cabeça? Como será que eu me sentiria vendo meu parceiro com outra
pessoa?” É preciso que as emoções estejam assentadas antes de partir para a ação.
Em geral, existe muita tensão envolvendo este tema e é importante conseguir ficar à
vontade emocionalmente antes de partir para concretização, para que ninguém se
sinta atropelado emocionalmente com a experiência.
Depois vem o nível do planejamento estratégico. “Então, afinal, o que vamos fazer
com tudo isso? Como vamos organizar esse processo de abertura da relação? Como
podemos ir começando aos poucos? Qual seria um bom primeiro passo? Que
combinados vamos estabelecer?”
E por último, depois de passar por todas essas etapas, aí pode-se começar a colocar
alguma coisa em prática, pouco a pouco, respeitando o planejamento e os
combinados estabelecidos.
Uma forma boa de se começar talvez seja entrando em um aplicativo de casais e
conversando com outras pessoas que fazem parte deste universo não-monogâmico.
Outra possibilidade é ambos visitarem uma casa de swing só para olhar, para sentir o
clima. Mesmo que não façam nada nessa primeira vez já vão começando a sentir o
clima, o que ajuda no necessário distensionamento emocional em torno dessa
temática.
Depois de fazer um primeiro movimento concreto, é hora de voltar pra relação e
conversa mais um pouco. “E aí, como foi? Como se sentiu? Estamos bem pra
continuar?” Essas conversas sucessivas vão pouco a pouco gerando uma sensação de
confiança para vocês poderem de fato começar a interagirem com outras pessoas de
fora da relação. Lembrando sempre que queremos liberdade E segurança, por isso a
importância de ir com calma.
Não tenham receio de dar alguns passos para trás caso sintam que alguma coisa não
está dando certo
Não hesitem em dar alguns passos para trás caso surja algum conflito ou algum
incômodo com a relação aberta. Se algo de ruim acontecer parem tudo e fiquem um
tempo sem sair com ninguém de fora até a harmonia entre vocês se reestabelecer. É
muito comum essas idas e vindas no início do processo porque é um aprendizado
mesmo. Aos poucos vocês vão encontrando um equilíbrio ideal entre segurança e
liberdade na relação de vocês, através de tentativas e erros mesmo. Não se
desanimem caso sintam dificuldade no início, afinal de contas, nunca aprendemos a
nos relacionar assim, nem tivemos modelos para servir como referência.
Uma regra de ouro é só sair com outras pessoas quando a relação estiver boa, quando
ambos estiverem bem, quando o casal estiver equilibrado. Quando um dos parceiros
está mal, essa pessoa fica muito mais suscetível a sentir ciúmes ou a se sentir
preterida, então nessa hora é importante a tônica se mover da liberdade individual
para o cuidado com a relação.
Por exemplo, quando um dos parceiros está doente, faz todo sentido que o outro
cancele seus compromissos para dar mais atenção ao parceiro que está precisando
de uma atenção especial. Outro exemplo seria quando um dos dois está passando por
dificuldades no trabalho ou está se sentindo fragilizado por um motivo qualquer.
Assim se pratica a responsabilidade afetiva.
Voltando temporariamente à monogamia
Pode ser indicado, até mesmo, voltar temporariamente a um arranjo monogâmico
quando surgir uma necessidade de força maior, como vemos neste depoimento:
Quando meu parceiro se mudou para o outro lado do país para morar
comigo, decidimos ser monogâmicos por seis meses enquanto ele se
mudava para uma nova cidade, um novo emprego, basicamente
uma vida totalmente nova. Com tanta coisa para ele se ajustar, eu
queria dar a ele uma sensação de segurança e deixá-lo saber que ele
seria minha prioridade.97
Fernanda
Vemos neste depoimento um exemplo de priorização do relacionamento, acima
inclusive da abertura da relação. Isso nos lembra que a abertura deve servir ao
relacionamento e não o contrário. É um movimento dialético, nós cuidamos da
relação e a relação se fortalece permitindo que sejamos cada vez mais livres. À
medida que nos sentimos mais livres, tendemos a querer retribuir cuidando ainda
mais da relação, gerando um círculo virtuoso de amor e liberdade.
Dedicar tempo de qualidade ao relacionamento
Lembre-se sempre que a prioridade é o casal. Ambos têm que estar se sentindo
valorizados, tem que sentir que a relação está em primeiro lugar, senão não se pode
falar em não-monogamia RESPONSÁVEL. Queremos aumentar as possibilidades de
gratificação, mas sem reduzir a qualidade do vínculo. O depoimento de Beatriz ilustra
bem essa priorização do relacionamento principal:
Essa foi a primeira regra que inventamos: esse é o nosso principal
relacionamento. Fazemos questão de não gastar muito tempo com
parceiros secundários. Nós podemos, e às vezes nos tornamos
amigos deles, especialmente se ficarmos juntos por um tempo
97
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
considerável, mas temos que cortar a relação se ela se tornar
invasiva.98
Vale a pena de vez em quando deixar um tempo só para o casal. Por exemplo, um
final de semana por mês é só do casal. Ou talvez combinar que durante as férias ficam
temporariamente suspensos os encontros extraconjugais. Ou o contrário,
relacionamentos extraconjugais são permitidos apenas nas férias. Há que se dedicar
tempo de qualidade para o relacionamento regularmente pois sem isso nenhum
relacionamento amoroso pode prosperar.
O cuidado com a relação é o alicerce sólido que permite uma maior liberdade
individual. É justamente porque sentimos que a relação está sólida que permitimos
que o outro seja livre. Caso contrário, se existe uma fragilidade do vínculo, a tendência
é querermos nos sentir seguros através do controle e aí fica difícil dar liberdade para
o outro. Quando estamos com medo, nossa tendência é contrair e segurar o outro.
Infelizmente todos nós aprendemos a sentir segurança no controle e o que estamos
propondo aqui é a possibilidade de criar segurança através do fortalecimento do
vínculo e da cumplicidade e não através do controle e da castração.
PROPONDO A ABERTURA DA RELAÇÃO
É muito raro que ambos os parceiros tenham a ideia de abrir a relação no mesmo
momento. Em geral a iniciativa parte de um dos parceiros que faz a proposta para o
outro. Como fomos condicionados a acreditar que deveríamos realizar todas as
nossas necessidades com uma só pessoa, a simples proposta de abertura pode
precipitar mágoas no parceiro que a recebe, pois essas idealizações têm muita força
no nosso psiquismo.
Leva-se um certo tempo para se descondicionar de toda bagagem histórica
monogâmica que herdamos, por isso a pessoa que faz a proposta deve dar bastante
98
Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open
Relationships. Ed. Cleis Press.
tempo para o outro assimilar e ressignificar as crenças que traz sobre o que seria um
relacionamento ideal. O parceiro que for propor inicialmente a abertura da relação
deve fazer isso de forma suave e não confrontativa, sondando a disponibilidade do
outro aos poucos. Por exemplo: “você viu aquela matéria que saiu na revista sobre
relacionamentos abertos? O que você achou?”
A pessoa que estiver ouvindo a proposta deve manter a mente aberta e evitar críticas
e julgamentos. Evite cair na armadilha de acreditar que existe algum problema com
você. Lembre-se que a sociedade quer que acreditemos que uma pessoa deve dar
conta de satisfazer todas as necessidades do parceiro, mas isso é algo irreal, um mito.
Procure manter a mente aberta para considerar novas possibilidades, pois se o outro
está fazendo a demanda, é porque de algum modo isso é importante para ele. Devese evitar ao máximo julgar e condenar o outro por estar sendo transparente e honesto
na relação, já que isso é muito melhor do que trair pelas costas como a maioria das
pessoas fazem.
Quem faz a proposta deve escolher um bom momento para levantar a questão da
abertura da relação. Além disso, deve evitar pressionar o outro para tomar uma
decisão logo pois esta é uma decisão que tem vastas implicações para a dinâmica do
casal. Lembre-se que a abertura da relação tende a realçar as dificuldades do
relacionamento, como explica a terapeuta Joy Davidson:
Quando os parceiros primários trazem à tona a questão da não
monogamia pela primeira vez, o paradigma do relacionamento é
imediatamente alterado e a conversa que segue força a exploração
de necessidades que não estão sendo atendidas e segredos
emocionais que possivelmente foram mantidos ao longo do tempo.99
Confrontar os padrões disfuncionais e as necessidades não atendidas em seu
relacionamento não é fácil, e este pode ser um bom momento para procurar
aconselhamento ou terapia de casal. Idealmente, deve-se resolver quaisquer conflitos
99
Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”:
https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O
e questões importantes para se chegar a um equilíbrio no relacionamento antes de
se abrir a relação. Do contrário, é provável que as coisas e desestruturem muito
rapidamente.
QUANDO NÃO SE CHEGA A UM ACORDO
Na medida em que a não monogamia consensual se torna cada vez mais comum,
muitas pessoas que antes presumiam que os relacionamentos deveriam ser
necessariamente exclusivos agora estão se perguntando se não valeria a pena abrir a
relação. Isso significa que não é incomum encontrar pessoas que entraram em um
relacionamento monogâmico pensando que era o que elas queriam e depois
resolvem mudar de ideia. Até aí tudo bem, porque todos têm o direito de mudar de
ideia. A questão é que não necessariamente o parceiro vai gostar da novidade.
Propor abertamente para seu parceiro seu interesse em abrir a relação mesmo sem
saber o que ele pode pensar a respeito é um ato de integridade, pois é melhor ser
honesto do que trair pelas costas. Mas assim como você tem o direito de expressar
sua preferência pela não-monogamia, seu parceiro também tem o direito de declarar
sua preferência pela monogamia. Então o que fazer se o casal tiver preferências
diferentes neste quesito?
Primeiro, esclareça os mal-entendidos
Muitas pessoas têm medo da não-monogamia porque não entendem realmente o
que é e acabam associando com traição. É importante explicar que na verdade a nãomonogamia consensual é justamente uma forma de evitar a traição. Além disso, é
importante explicar que não é um vale tudo, mas na verdade um processo organizado
que envolve regras e combinados. Também pode ser explicado que existem várias
formas de não-monogamia consensual, inclusive com os dois parceiros
experimentando simultaneamente, como no caso do swing ou através de um ménage
por exemplo. Neste caso, nenhum dos dois estaria saindo sozinho com outra pessoa,
o que já pode trazer uma certa segurança. Além disso, a implementação pode ser bem
gradual, não precisa ser de uma hora para outra e é tudo conversado previamente.
Esclareça as motivações de ambos
É importante explicar para o seu o seu parceiro exatamente que tipo de
relacionamento você está imaginando e que seu objetivo não é prejudicar a relação
de vocês e sim aprimorá-la, trazendo mais intimidade e sinceridade. Ofereça recursos
para o parceiro compreender melhor o assunto, como livros, séries, filmes, sites, etc.
Explique suas motivações e o que está te levando a fazer tal proposta. Esclareça que
não tem nada a ver com seu amor por ele e que não é nada pessoal contra ele. Ao
mesmo tempo, se o parceiro se mostrar resistente, é importante compreender qual
é a motivação para ele não querer abrir a relação. É medo de ser abandonado? Será
que a pessoa tem um histórico de ter sido traída?
Saber o motivo pelo qual o outro não concorda com a abertura da relação por si só já
pode ajudar a saber como abordar a questão. A partir da explicação da outra pessoa,
você pode propor alguma forma de contornar a objeção que ela está fazendo. Muitas
das dificuldades podem ser contornadas com os combinados estabelecidos. Por
exemplo, se o medo é de ser abandonado, vocês podem combinar de somente saírem
juntos. O importante é buscar uma abordagem criativa, de modo que as necessidades
de todos sejam contempladas e atendidas.
De todo modo, não cobre uma decisão imediata do seu parceiro. Talvez você já venha
pensando sobre o assunto há muito tempo, mas para seu parceiro pode ser a primeira
vez que ele está refletindo sobre essa questão. Se seu parceiro se mostrar disposto a
manter uma conversa com a mente aberta e refletir mais sobre o assunto, já é um
bom começo.
Entenda também que é possível que seu parceiro fique com o ego machucado ao
saber que você tem interesse em ficar com outras pessoas. Está tudo bem com isso.
Como todos viemos de uma tradição monogâmica - que tem como dogma central a
ideia de que quem ama não deseja mais ninguém - isso pode afetar a percepção que
seu parceiro tem do seu amor por ele. É absolutamente necessário não ter pressa
nessa hora. Dê bastante tempo para o outro digerir.
Aprendam a fazer concessões e busquem soluções criativas que sejam boas para
ambos
Quando um casal realmente quer ficar juntos, é importante que ambos estejam
dispostos a fazer alguma concessão de modo a contemplar a necessidade de todos os
envolvidos, buscando uma abordagem criativa para solucionar as divergências e
chegar em um lugar que fique confortável para ambos. Se importar com as
necessidades e anseios do seu parceiro também é uma forma de amor.
Uma análise que pode ajudar a identificar as concessões que podem ser feitas é ter
clareza do quão custoso seria para cada um abrir mão de sua preferência. Ou seja, o
quão custoso seria para a pessoa que quer abrir a relação desistir deste anseio? E o
quão custoso seria para a pessoa que prefere manter a relação fechada abrir mão da
monogamia?
Lembrando que toda concessão deve ser feita com muita consciência, porque quando
cedemos em algo que é absolutamente fundamental para nós, isso pode deixar um
saldo grande em termos de ressentimento, fazendo com que a pessoa que renunciou
ao que era fundamental para si acabe se vingando inconscientemente do outro mais
pra frente, como explica o psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa:
Reprimir os verdadeiros desejos não significa eliminá-los, por
questões morais pode-se controlar esse impulso, mas é impossível
impedi-lo de existir. O parceiro que teve excessiva consideração
tende-se a se sentir credor de uma gratidão especial, a considerar-se
vítima e a tornar-se intolerante100.
É importante considerar que nem tudo nessa esfera é uma questão de mera escolha.
Para alguns a questão da orientação monogâmica ou não-monogâmica é quase uma
questão identitária mesmo, sendo melhor entendida como uma questão de
orientação sexual, ou seja, algo que não escolhemos, mas que simplesmente
reconhecemos em nós. Uma pessoa heterossexual simplesmente reconhece que se
sente atraída por pessoas do sexo oposto, não é uma escolha. O mesmo vale para o
homossexual que simplesmente percebe-se sentindo atração por pessoas do mesmo
sexo. Sabemos também que algumas pessoas se sentem atraídas por pessoas de
ambos os sexos, o que tampouco é uma escolha.
Nessa perspectiva, podemos pensar que existem pessoas que simplesmente se
reconhecem orientadas não-monogamicamente a ponto de estabelecerem uma
identidade em torno dessa posição e vice-versa. Isso certamente é verdade, por
exemplo, para algumas pessoas que desde muito cedo sempre se percebem nãomonogâmicos. Como explica a Ph.D e autora de inúmeros livros sobre
relacionamentos não-monogâmicos Elizabeth Sheff,
Pessoas que se consideram poliamoristas-por-orientação-sexual
frequentemente mencionam sentirem-se atraídas por múltiplas
pessoas desde a infância, fingindo ter mais de um cônjuge ao
brincar de casinha ou socializando em grupos ao invés de ter um
único melhor amigo. Muitos enfatizam sentir um grande
desconforto na monogamia e não conseguirem permanecer em
relações monogâmicas.101
Essas pessoas não-monogâmicas por orientação sexual não conseguem enxergar um
futuro possível que inclua a monogamia. Em suas pesquisas, Elizabeth Sheff
100
Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”:
https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O
101
SHEFF, Elisabeth. (2016). Is Polyamory a Form of Sexual Orientation? Publicado em:
https://www.psychologytoday.com/intl/blog/the-polyamorists-next-door/201610/is-polyamory-form-sexualorientation?fbclid=IwAR0lkDBUbOgFL9JQp2zbCKbDrVvGCtpHDdZn9PBv9BL_ps_-VmBLBww82Jg
entrevistou um participante que resumiu suas relações monogâmicas da seguinte
forma:
É como usar sapatos dois números menores — você até pode
esmagar seus pés ali momentaneamente, mas não vai ser prazeroso
e você não vai conseguir ir muito longe com eles.
Elizabeth Sheff também entende que existem os não-monogâmicos por escolha ou
mesmo por ideologia. São pessoas que já se sentiram confortáveis em relações
monogâmicas em algum momento de suas vidas e afirmam que considerariam a
monogamia como escolha possível no futuro. Para essas pessoas,
(...) há muito mais flexibilidade para encontrar realização numa
variedade de estilos de relacionamento. Em alguns casos, escolhem
o poliamor por um período específico da vida: quando são jovens e
sem filhos, depois de um divórcio, quando querem jogar com suas
possibilidades de forma aberta e honesta, ou depois que os filhos
saíram de casa e eles se sentem mais livres para experimentar com
sua sexualidade.102
Procurem ajuda especializada
Quando não existe nem disposição para explorar o assunto e refletir e buscar soluções
conjuntas para que ambos se sintam confortável na relação, então talvez seja hora de
reavaliar o relacionamento. Mas se ambos têm certeza de que valorizam a relação e
querem ficar juntos e ainda assim não estão conseguindo lidar com esse conflito de
interesses, não se desesperem. Tenham paciência um com outro e saibam que vocês
podem sim chegar a um acordo que contemple as necessidades de ambos.
Uma possibilidade real é a de um relacionamento misto onde um dos parceiros é nãomonogâmico e o outro se mantem monogâmico de acordo com sua convicção. Neste
caso ninguém se sente desrespeitado. Entenda que da mesma forma que seria muito
ruim obrigar uma pessoa monogâmica a se relacionar com diversas pessoas contra
102
Idem.
sua vontade também é bem cruel obrigar uma pessoa não-monogâmica a se abster
de se relacionar com várias pessoas contra sua vontade.
Mas caso o casal não esteja conseguindo alcançar um consenso, buscar uma ajuda
especializada pode ser de grande valia, por exemplo com um psicoterapeuta de casal.
O importante é que esse profissional esteja familiarizado com as questões
relacionadas às relações não-monogâmicas.
INTELIGÊNCIA ERÓTICA: CULTIVANDO A INDIVIDUALIDADE NAS RELAÇÕES
Este livro trata dos relacionamentos não-monogâmicos, onde o casal abre
consensualmente a possibilidade de experimentação com outras pessoas além do
parceiro de relacionamento. Ainda assim, é importante que o casal continue se
curtindo juntos na cama também para fortalecer a relação e não ficar sempre na
dependência de alguém de fora pra ter prazer.
Todos sabem como é difícil sustentar o desejo sexual pelo parceiro em um
relacionamento de longo prazo. Esther Perel, psicoterapeuta belga e autora do livro
“Sexo no cativeiro – Driblando as Armadilhas do Casamento”, argumenta que uma
das estratégias para manter a chama acesa seria ampliar “nossa inteligência erótica.”
Em seu livro a autora descreve alguns paradoxos que vivemos nos relacionamentos
amorosos de longa duração, como por exemplo o paradoxo da intimidade:
Ironicamente, o que contribui para uma intimidade gostosa nem
sempre contribuiu para um sexo gostoso. O aumento da intimidade
afetiva muitas vezes é acompanhado por uma diminuição do desejo
sexual, a desintegração do desejo parece uma consequência não
intencional da criação da intimidade.103
É necessário, então, saber manter uma certa distância na relação, como explica a
autora:
Desejamos criar intimidade nas nossas relações, preencher a lacuna
que há entre nós e nosso parceiro, mas ironicamente essa mesma
lacuna entre eu e o outro que é a sinapse erótica. Para trazermos
sensualidade pra casa precisamos recriar a lacuna que fizemos tanto
esforço pra preencher. Inteligência erótica é criar distância, depois
dar vida a essa lacuna. Em vez de sempre procurar intimidade há
103
Citado no artigo de Regina Navarro Lins “Amo meu marido mas não consigo sentir desejo por ele”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2019/05/20/amo-meu-marido-mas-nao-consigo-sentir-desejo-porele/#:~:text=A%20terapeuta%20de%20casal%20belga,uma%20diminui%C3%A7%C3%A3o%20do%20desejo%20sexual.
qualquer preço os casais talvez possam estar em situação melhor
cultivando suas individualidades.104
Isso não quer dizer que não deva haver intimidade na relação do casal, mas sim que
essa intimidade não deve acontecer às custas das individualidades dos parceiros.
Como explica Esther Perel, “A individualidade é vital para o desejo (...) Para isso, é
necessário haver egoísmo, no melhor sentido da palavra: a habilidade de estar
conectado consigo mesmo na presença do outro”.105 Muitos casais, porém,
confundem intimidade com simbiose, o que tende a levar a uma anulação das
diferenças individuais.
A intimidade saudável é aquela que não anula as diferenças. Para isso é necessário
haver um forte senso de autonomia individual, como explica a psicanalista Regina
Navarro:
Ter uma relação de intimidade quer dizer entrar na vida do outro sem
perder o sentido da própria identidade. Para isso é necessário haver
uma forte autonomia individual. (...) Ao contrário da simbiose, a
intimidade precisa da manutenção de um forte sentido de
individualidade: só a pessoa que confia em si própria pode soltar as
amarras e enfrentar o mar aberto de uma relação envolvente com o
outro106.
Porém, a ideologia do amor romântico que povoa o mundo ocidental acaba
contribuindo para um enfraquecimento das individualidades na medida em que
estimula que um não viva sem o outro, que sejamos apenas metades procurando
nossa contrapartida, etc. O que é estimulado nesse modelo de relacionamento é
justamente a dependência emocional e não a intimidade saudável.
104
Citado no artigo de Regina Navarro Lins “O que é inteligência erótica e como podemos desenvolvê-la”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2018/05/10/o-que-e-inteligencia-erotica-e-como-podemos-desenvolvela/#:~:text=Desejamos%20criar%20intimidade%20em%20nossas,fizemos%20tanto%20esfor%C3%A7o%20para%20pre
encher.
105
Citado na matéria do portal Metrópoles “Guru de relacionamentos, Esther Perel convida casais a repensarem a
traição”: https://www.metropoles.com/colunas/claudia-meireles/guru-de-relacionamentos-esther-perel-convidacasais-a-repensarem-a-traicao
106
Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”:
https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O
A dependência emocional entre um casal é encarada por todos com naturalidade
porque se confunde com amor e é reforçada pelo modelo do amor romântico que
pressupõe que um vai satisfazer todas as necessidades do outro. Isso favorece com
que reeditemos experiências muito primitivas da infância, quando dependíamos
totalmente da mãe para sobrevivermos, como explica a psicanalista Regina Navarro:
As relações amorosas do adulto funcionam mal porque a maioria
tende a reeditar inconscientemente com o parceiro a relação típica
da infância. E isso fica claro na forma como se vive o amor, só se
aceitando como natural se for um convívio possessivo e exclusivo
com uma única pessoa107.
No parceiro é depositada a certeza de ser cuidado e de não ficar só. A distância faz
sentir o desamparo, da mesma forma que se sentia quando a mãe se ausentava. A
dependência emocional que se estabelece torna comum depositar no outro a
garantia de não ficar só. O medo da solidão e do desamparo leva à exigência de que
o parceiro não tenha olhos para mais ninguém. O receio de ser abandonado ou
trocado por outra pessoa leva a se exigir do parceiro que não tenha interesse nem
ache graça em nada fora da vida a dois, longe da pessoa amada.
Se o marido ou a mulher for tomar um chope com os colegas ao sair do trabalho, isso
já pode causar uma grande dor no outro, que entende essa atitude como desinteresse
e uma ameaça à estabilidade da relação. Nenhum tipo de prazer individual é admitido
quando se espera ser a única fonte de interesse do outro. O psicoterapeuta Paulo
Lemos, em seu livro “Educação Afetiva – Por que as pessoas sofrem no amor?”, explica
que:
Algumas pessoas realmente se sentem amarradas e presas quando
estão numa relação, como se não pudesse mais viver ou gozar a
liberdade. Elas absorveram a ideia de que conviver significa absterse de ter vida própria. (...) Possuir um espaço próprio dentro de uma
relação torna-se então uma questão de higiene – manutenção da
saúde da relação. Como a maioria de nós foi educada para estar
107
Citado no artigo de Regina Navarro “Por que a maioria deseja se casar”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2015/12/01/por-que-a-maioria-deseja-se-casar/
grudado, quando intuitivamente um dos pares começa a reivindicar
espaço maior para si parece que algo estranho está acontecendo.
Surgem as fantasias de abandono, surge o ciúme.
Por isso é muito importante cultivar espaço para a individualidade dentro do
relacionamento. Cada um deve manter suas amizades, ter seus próprios projetos, ter
um tempo só seu, enfim, uma parte de si mesmo que esteja fora do âmbito da relação,
algo que te diferencie do seu parceiro. Essa diferenciação entre os parceiros ajuda
também a manter o desejo aceso, como explica Esther Perel:
Para mim, se há um verbo que vem junto com amor é o ter. E um
verbo que vem junto com desejo é o querer. No amor, nós queremos
ter, queremos conhecer o amado. Queremos minimizar a distância.
Queremos diminuir o espaço. Queremos neutralizar as tensões.
Queremos proximidade. Mas no desejo, temos a tendência de não
querer voltar aos lugares em que já estivemos. O conhecido não
mantém nosso interesse. No desejo, queremos um Outro (...) no
desejo, queremos uma ponte para atravessar (...) algumas vezes digo
que o fogo precisa do ar. O desejo precisa de espaço. 108
Uma boa forma de visualizar esse espaço próprio tão necessário de ser cultivado pelos
membros da relação é através de uma representação gráfica. O que caracterizaria
uma intimidade saudável seria a existência de espaços distintos: a vida própria de A,
a vida própria de B e a vida em comum de ambos, que pode ser representado da
seguinte forma:
108
Extraído do TED Talk de Esther Perel “O Segredo do Desejo em um Relacionamento Duradouto”:
https://www.ted.com/talks/esther_perel_the_secret_to_desire_in_a_long_term_relationship/transcript?language=pt
-br
VIDA EM COMUM DO CASAL
AeB
VIDA PRÓPRIA DO PARCEIRO A
VIDA PRÓPRIA DO PARCEIRO B
Já o que vemos no processo de simbiose é a perda da individualidade dos parceiros,
sendo que a vida a dois ocupa a totalidade das vidas dos indivíduos, podendo ser
representado da seguinte forma:
A verdade é que não somos metades procurando complementos, somos inteiros em
nós mesmos e optamos por partilhar essa inteireza com outra pessoa. Estamos com
outra pessoa não porque PRECISAMOS dela, mas porque QUEREMOS estar com ela,
é por prazer e não por necessidade. Como explica Scott Peck,
Quando se precisa de outra pessoa para sua sobrevivência, se torna
um parasita dessa pessoa. Não existe escolha nem liberdade na sua
relação. É mais uma questão de necessidade do que de amor. O amor
é exercício da escolha livre. Duas pessoas sentem amor uma pela
outra apenas quando são capazes de viver uma sem a outra mas
escolhem viver uma com a outra.109
Para Esther Perel, precisar é desestimulante: “Já procurei, mas ainda não encontrei
uma pessoa que se excite por alguém que precisa dela.”110 O desejo vem quando o
outro é visto como independente. A autora, que viajou por dezenas de países
promovendo seu livro e realizando pesquisas sobre o sexo no relacionamento,
observa que onde o romantismo entrou, instalou-se uma crise do desejo. Ela resolveu,
então, fazer a pergunta: quando você sente mais atração pelo seu parceiro? Apesar
de proverem de culturas, religiões e gêneros diferentes, as respostas foram bastante
semelhantes e permitiram ser reunidas em três grupos:
Primeiro grupo: “sinto mais atração pelo meu parceiro quando estamos longe e nos
reencontramos.”
Aqui vemos o componente da distância e da saudade contribuindo para o desejo.
Segundo grupo: “sinto mais atraída pelo meu parceiro quando o vejo se destacando
em seu ambiente ou fazendo algo que gosta muito, quando é o centro das atenções,
109
Citado no artigo de Regina Navarro Lins “Dependência emocional e amor se confundem: é seu caso?”:
https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2018/10/18/dependencia-emocional-e-amor-se-confundem-e-o-seucaso/
110
Citado no artigo de Letícia Iolandi “Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os
dilemas atuais do casamento?”: https://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2013/06/28/noticiassaude,194361/relacao-aberta-ou-inteligencia-erotica-existe-uma-resposta-unica-para.shtml
por exemplo, quando minha mulher faz uma apresentação de trabalho para centenas
de pessoas sem nem perceber que estou ali na plateia.”
Aqui vemos a importância dos parceiros terem suas individualidades fortalecidas,
estarem centradas em suas próprias vidas. Nessa hora, aquela pessoa familiar volta a
ter um certo mistério, neste espaço nasce o movimento, o impulso erótico. O desejo
vem quando o outro é visto como independente.
Terceiro grupo: “sinto mais atração pela minha parceira quando estou surpreso,
quando rimos juntos, quando há alguma novidade.”
Aqui vemos a importância do elemento da novidade que não necessariamente tem
nada a ver com novas posições na cama ou novas técnicas e sim com se descobrir, se
renovar.
Vemos então que para o desejo surgir, não existe a necessidade obrigatória de uma
nova pessoa, bastam novos comportamentos e novas iniciativas. É um esforço, um
trabalho contínuo de renovação. A inteligência erótica “está vinculada ao impulso de
manter-se vivo, à conexão com a força energética vital”, explica Esther. A autora
esclarece que, no Ocidente, o erotismo é automaticamente associado ao sexo, mas a
inteligência erótica não é necessariamente uma habilidade sexual.
O ato sexual não pode ser o único objetivo. O erotismo é a poesia do
sexo, é o sexo transformado pela nossa imaginação, e isso está além
da cama – tem a ver com quem eu sou, com a identidade de cada
um. Tem a ver com descobrir como é possível manter a novidade, a
curiosidade e o espírito explorador dentro de um relacionamento
duradouro (...) Se vejo o erotismo como inteligência, então é algo que
cultivo, principalmente com a imaginação. (...)As crianças têm uma
capacidade de imaginação, curiosidade e inovação constante. Elas
estão dispostas a brincar, explorar e descobrir. Essas características
fazem parte da inteligência erótica, mas não nascemos com elas –
precisamos cultivá-las.111
Uma grande frustração que muitos casais têm, segundo Esther, é acreditar que o sexo
entre o casal deve ser igual ao do início do relacionamento. O desejo, com o tempo,
passa a vir de forma mais calma, mas nem todos aceitam isso pois o casamento
inspirado pelo amor romântico traz expectativas irreais e acaba virando um motor de
insatisfações. Uma vez que o desejo deixa de ser espontâneo, ele passa a ser
premeditado, planejado mesmo, e está tudo bem com isso.
O sexo espontâneo no casamento de longa duração é um mito. Se aceitamos que é
necessário empenho em outras áreas da vida, também na sexualidade conjugal isso
se faz necessário. Da mesma forma como acontece quando decidimos cozinhar um
prato especial e precisamos pensar na receita, comprar os ingredientes, definir a
apresentação do prato, etc.
Como pontua Esther Perel, “o desafio erótico é integrar a relação de duas
necessidades humanas fundamentais e opostas – uma relação comprometida,
estável, segura e previsível de um lado; e a surpresa, a novidade, o mistério e o fascínio
pelo desconhecido, de outro”.112 Como é impossível que a mesma pessoa seja
naturalmente estável e surpreendente, familiar e inovadora, previsível e misteriosa,
a psicóloga insiste na importância do esforço, da ação intencional.
Outros aspectos que dificultam o sexo no casamento, segundo Esther Perel, são: o
egoísmo do parceiro, a dificuldade em comunicar suas preferências sexuais, o
desapontamento com as preferências do outro, a rotina, a idade avançada, o sexo
focado apenas na parte genital do corpo, a falta de orgasmo para alguns e o foco
apenas no orgasmo para outros. E temos ainda o fato de não gostar do próprio corpo.
“Se você não gosta do próprio corpo, como vai convidar alguém para desfrutá-lo junto
111
Citado no artigo de Letícia Iolandi “Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os
dilemas atuais do casamento?”: https://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2013/06/28/noticiassaude,194361/relacao-aberta-ou-inteligencia-erotica-existe-uma-resposta-unica-para.shtml
112
Idem.
com você? A tirania do corpo que existe em vários países, inclusive no Brasil, exacerba
essa frustração”.113
Além disso, parece ser importante a capacidade de tolerar a existência de conflitos
na relação. Muitos casais apostam em uma vida sem brigas e se nenhuma
agressividade, mas a raiva pode trazer a distância que estimula o erotismo. Afeição
permanente pode abafar o tesão, a agressividade saudável deve ter seu espaço na
relação.
CUIDANDO CADA UM DA PRÓPRIA SEXUALIDADE
Neste capítulo estamos abordando alguns aspectos relacionais que favorecem a vida
sexual do casal, porém, existem diversos aspectos relacionados ao próprio indivíduo
que também podem favorecer ou atrapalhar uma vida sexual mais plena.
Um desses fatores é o cuidado com a saúde. Sexo depende de vitalidade e vitalidade
depende de como cuidamos do nosso corpo. Exercício físico regular e um sono de
qualidade são elementos cruciais na manutenção da vitalidade e da libido.
O manejo do estresse também deve entrar nessa equação, pois se sabe hoje em dia
que a resposta biológica do estresse crônico envolve desligar determinados
mecanismos corporais, sendo um deles a função reprodutiva e sexual. Ou seja, quanto
maior o nosso estresse, menos libido e menos desejo sexual.
A comunicação assertiva também é amiga da sexualidade. Quanto melhor consigo
comunicar ao meu parceiro o que me faz bem e o que me traz prazer, mais chances
eu tenho de aproveitar a relação sexual. Não devemos esperar que o outro adivinhe
nossos gostos.
113
Citado no artigo de Letícia Iolandi “Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os
dilemas atuais do casamento?”: https://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2013/06/28/noticiassaude,194361/relacao-aberta-ou-inteligencia-erotica-existe-uma-resposta-unica-para.shtml
Mas até mesmo para que seja possível comunicar ao parceiro o que nos dá prazer, é
preciso primeiro se conhecer bem, explorar o próprio corpo a sós. Nesse sentido a
masturbação é um grande aliado do autoconhecimento sexual. Quanto mais você se
toca e se experimenta mais saberá o que ajuda seu prazer.
Outra dica importante é aprender a sair da mente e se conectar com as sensações
corporais na hora do ato sexual. Ficar pensando nas contas que tem a pagar
certamente não ajuda no prazer sexual durante a relação.
RECURSOS TECNOLÓGICOS PARA NAVEGAR NO UNIVERSO DA NÃO-MONOGAMIA
Nos tempos atuais a internet vem ocupando um espaço cada vez maior em todos os
aspectos das nossas vidas. Cada vez mais questões são solucionadas através da
internet e não seria diferente com o universo das relações não-monogâmicas.
Existem, por exemplo, redes sociais e aplicativos que auxiliam muito a navegar por
essa experiência.
Como temos advogado ao longo deste livro, o processo de abertura da relação deve
ser gradual, progressivo e cuidadoso. Quanto mais lento for o processo, mais fácil fica
digerir emocionalmente esse novo paradigma relacional. Umas das formas de ir se
aproximando gradativamente deste campo de relações não-monogâmicas pode ser
justamente através de algum aplicativo ou rede social voltada para este fim.
Uma boa opção para conhecer melhor o universo do swing é através do Sexlog, a
maior rede social de sexo e swing do brasil. Em seu site consta a seguinte descrição:
Somos uma rede social exclusiva para maiores de 18 anos, formada
por mais de 10 milhões pessoas interessadas em sexo, swing,
encontros, fetiches, fantasias, festas liberais, livecam e o que mais a
sua imaginação mandar114.
Ao navegar pelas páginas do site você poderá encontrar diversos perfis de pessoas
interessadas em sexo, podendo restringir a busca por casais ou solteiros, homo ou
heterossexuais. Mesmo que seja só para conversar, já é uma grande opção para ir aos
poucos adentrando este universo.
Outra ferramenta que ajuda bastante a adentrar o universo das relações abertas é o
aplicativo Ysos115, que funciona ao modo de um Tinder liberal, voltado para casais que
querem se aventurar pelo universo das relações não-monogâmicas, em especial o
114
115
https://sexlog.com
https://ysosapp.com.br/
swing. Também é possível encontrar solteiros ou solteiras para experiências de
ménage.
FONTES DE INFORMAÇÃO DE QUALIDADE ONLINE
A internet também se mostra essencial como ferramenta de busca de informações.
Há diversos canais de vídeos do Youtube, blogs e perfis de Instagram que abordam o
tema das relações não-monogâmicas.
Uma grande fonte de informações de qualidade sobre não-monogamia política é o
Blog intitulado de NM EM FOCO, que pode ser acessado através de qualquer
navegador no endereço https://naomonoemfoco.com.br/
Outro blog com informações de qualidade é o Blog da escritora e psicanalista Regina
Navarro, que pode ser acessada no link https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/
No Instagram existem diversos perfis especializados na temática não-monogâmica,
como
por
exemplo:
@naomonogamia,
@nao_monogamia_responsavel,
@compersao, @chamegamos, @naomonodate, @naomonoemfoco, @policompoly.
No Youtube podem ser encontrados diversos vídeos sobre não-monogamia. Um canal
com bastante informação é o canal Pessoas Não Mono, que pode ser acessado aqui:
https://www.youtube.com/c/PessoasNaoMono.
Um excelente podcast sobre questões ligadas ao desenvolvimento sexual é o Podcast
do UOL sobre sexualidade chamado Sexoterapia:
https://www.uol.com.br/play/universa/podcast/sexoterapia/
FILMES E SÉRIES DO NETFLIX
Também existem diversas produções cinematográficas que ajudam a adentrar o
universo das relações não-monogâmicas. Um filme que ilustra a modalidade do
Relacionamento aberto é o Newness, do Netflix.
A série Eu, Tu e Ela, do Netflix, ilustra bem uma experiência poliamorista no formato
do trisal. Já a série Wanderlust mostra um casal que após muito tempo de casado
passou a ter dificuldades sexuais e optaram por abrir a relação para que pudessem
transar com outras pessoas e acabaram evoluindo para um poliamorismo.
Vale a pena conferir também a série Easy, do Netflix, cujo episódio 6 (Utopia) ilustra
uma experiência de ménage. Para quem quer entender um pouco mais sobre as
origens da monogamia existe uma série do Netflix chamada Explicando que tem um
episódio sobre a origem da monogamia
Uma lista mais completa de filmes com a temática não-monogâmica pode ser
encontrada
monogamicos/
aqui:
https://contosdeantheia.com/2018/10/03/17-filmes-nao-
RECADOS FINAIS
Segundo alguns pensadores, estamos vivendo a era da aceleração da história
humana. As mudanças estão acontecendo cada vez mais rápido, graças à globalização
e às tecnologias de comunicação. As mudanças de costumes que no passado levariam
100 anos pra acontecer hoje acontecem em apenas uma década. A velocidade das
mudanças assusta muitas pessoas que se sentem perdendo suas referências,
referências de como devem se comportar, referências do que é certo e do que é
errado. É natural que toda mudança gere resistência pois o ser humano é um ser de
hábitos, de costumes, que vão se passando de geração em geração. Mas as mudanças
não cessam de acontecer só porque resistimos a elas.
As formas de se relacionar afetivamente também estão se transformando muito
rapidamente e cada vez mais casais estão questionando se os antigos paradigmas lhe
servem ou se não seria hora de aderir a novos modelos relacionais. Um dos
questionamentos mais frequentes é com relação à exigência da monogamia no
casamento. Será que ela é realmente tão importante assim como sempre se pregou?
Ou seria apenas mais um costume herdado que está ficando ultrapassado, que não
cabe mais nos dias de hoje onde a noção de individualidade vem ganhando cada vez
mais relevância?
Há quem diga que muito em breve os relacionamentos não-monogâmicos
consensuais serão o novo normal. Pode ser difícil acreditar, mas imagine se nos anos
de 1950 uma pessoa afirmasse que em um futuro breve as moças deixariam de se
casar virgens? E se dissessem que o divórcio seria algo comum? Todos achariam essas
afirmações uma loucura pois eram costumes muito relevantes naquela época. Mas
vejamos pelo lado positivo, essas mudanças estão vindo para nos libertar. O que está
mudando mesmo é o costume da imposição, do imperativo, da coerção moral. Hoje
uma moça se quiser PODE se casar virgem, mas não é mais uma imposição. Hoje quem
quiser PODE não se divorciar, mas não é mais uma coerção. Hoje quem quiser PODE
ser monogâmico, mas não é mais um imperativo!
Estamos cada vez mais livres para escolhermos como queremos viver e com mais
liberdade vem mais responsabilidade. Por isso falamos em não-monogamia
RESPONSÁVEL. A não-monogamia sempre ocorreu em toda história humana, a
questão é que ela sempre ocorreu por debaixo dos panos, de forma não consensual.
Agora estamos tendo a possibilidade de experimentarmos uma não-monogamia
consciente, ética, responsável e cuidadosa. Ainda assim, quem não tiver nenhuma
inclinação para a não-monogamia, poderá continuar tranquilamente se relacionando
de forma monogâmica, conscientemente e não mais por imposição.
Nesse sentido, só devemos celebrar os avanços da modernidade que nos convidam a
sermos mais maduros e aprendermos a escolher por conta própria, sendo honestos
com a nossa verdade e respeitando a verdade dos outros. Quanto mais respeito, mais
amor e mais felicidade.
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