NÃO-MONOGAMIA RESPONSÁVEL ABRINDO A RELAÇÃO COM O CUIDADO QUE ELA MERECE FILIPE STARLING @NAO_MONOGAMIA_RESPONSAVEL WWW.NAOMONOGAMIARESPONSAVEL.COM INTRODUÇÃO ASPECTOS HISTÓRICOS E CONTEXTUAIS HISTÓRIA DA MONOGAMIA O DECLÍNIO DO MODELO TRADICIONAL DE CASAMENTO E DA MONOGAMIA HISTÓRIA DAS RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS HISTÓRIA DA REPRESSÃO SEXUAL HISTÓRIA DAS MENTALIDADES E COSTUMES NÃO-MONOGAMIA POLÍTICA E OPRESSÕES ESTRUTURAIS MITOS SOBRE A NÃO MONOGAMIA NÃO-MONOGAMA É O MESMO QUE POLIGAMIA “SE QUER SER NÃO-MONOGÂMICO, ENTÃO É MELHOR FICAR SOLTEIRO” “SE AMASSEM O PARCEIRO DE VERDADE NÃO CONSEGUIRIAM VÊ-LOS COM OUTRA PESSOA.” PESSOAS EM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICOS NÃO SE AMAM DE VERDADE PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM PROBLEMAS PSICOLÓGICOS PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM DIFICULDADE PARA SE COMPROMETER OU DIFICULDADE COM INTIMIDADE NÃO MONOGAMIA É PARA PESSOAS CONFUSAS QUE NÃO SABEM O QUE QUEREM RELACIONAMENTO ABERTO É UM NOME CHIQUE PARA PROMISCUIDADE RELACIONAMENTO ABERTO É PERIGOSO PARA A SAÚDE CASAMENTO ABERTO É UM AMBIENTE RUIM PARA A CRIAÇÃO DE CRIANÇAS É SÓ UMA FASE DO RELACIONAMENTO É UMA TENTATIVA DESESPERADA DE SALVAR A RELAÇÃO NÃO MONOGAMIA É O MESMO QUE INFIDELIDADE OS DIFERENTES TIPOS DE RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS COMO ESCOLHER ENTRE AS DIFERENTES FORMAS DE RELACIONAMENTO NÃO MONOGÂMICO? RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ? MOTIVAÇÕES INADEQUADAS PARA SE ABRIR A RELAÇÃO COMO SABER SE O RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ? O QUE FAZ UM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICO FUNCIONAR AUTOCONFIANÇA E BOA AUTOESTIMA CONSENTIMENTO SABER BEM NO QUE ESTÁ SE METENDO CAPACIDADE DE AUTORREFLEXÃO E AUTOCONHECIMENTO INTELIGÊNCIA EMOCIONAL ABERTURA PARA SER HONESTO E VERDADEIRO EM RELAÇÃO A TUDO CONSCIÊNCIA DOS PRÓPRIOS LIMITES CAPACIDADE DE LIDAR COM CONFLITOS BOA CAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO TER CLAREZA SOBRE O QUE ESTÁ SENDO ACORDADO ESTABELECENDO REGRAS E COMBINADOS REGRAS X COMUNICAÇÃO REABRINDO A RELAÇÃO PROBLEMAS COMUNS, ARMADILHAS E DESAFIOS DAS RELAÇÕES ABERTAS MANEJO DO TEMPO E NEGLIGÊNCIA DO RELACIONAMENTO PRINCIPAL USAR A ABERTURA PARA FUGIR DA RELAÇÃO USAR A ABERTURA PARA ATINGIR O OUTRO QUANDO UM SENTE QUE ESTÁ APROVEITANDO MENOS QUE O OUTRO PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO QUEBRA DE COMBINADOS QUANDO UM DOS PARCEIROS SE APAIXONA POR ALGUÉM DESAPROVAÇÃO DE AMIGOS, FAMÍLIA E SOCIEDADE LIDANDO COM O CIÚME E OUTROS SENTIMENTOS DIFÍCEIS COMPERSÃO: ANTÍTESE DO CIÚME? ABRINDO A RELAÇÃO COM O CUIDADO QUE ELA MERECE PROPONDO A ABERTURA DA RELAÇÃO QUANDO NÃO SE CHEGA A UM ACORDO INTELIGÊNCIA ERÓTICA: CULTIVANDO A INDIVIDUALIDADE NAS RELAÇÕES CUIDANDO CADA UM DA PRÓPRIA SEXUALIDADE RECURSOS TECNOLÓGICOS PARA NAVEGAR NO UNIVERSO DA NÃO-MONOGAMIA FONTES DE INFORMAÇÃO DE QUALIDADE ONLINE FILMES E SÉRIES DO NETFLIX RECADOS FINAIS REFERÊNCIAS LIVROS ARTIGOS CIENTÍFICOS SITES, MATÉRIAS E ARTIGOS DA INTERNET INTRODUÇÃO Relacionamentos amorosos não-monogâmicos não são um fenômeno recente na história da humanidade. O que é recente mesmo é a frequência com que novos casais vêm optando consensualmente por este modelo de relacionamento. Nunca na história tantas pessoas optaram por abrir mão conscientemente da exclusividade sexual nas relações amorosas, exclusividade esta que vem sendo a pedra angular dos relacionamentos desde a revolução neolítica, há cerca de 10.000 anos atrás. Há muito tempo o casamento vem trazendo como sua cláusula pétrea a exigência de monogamia compulsória e vitalícia, o que implica numa apropriação da sexualidade do parceiro, remetendo a uma lógica semelhante à da propriedade privada aplicada aos relacionamentos amorosos: assim como o carro é meu e só eu posso dirigi-lo, também a pessoa é minha e só eu posso transar com ela. O eminente filósofo Immanuel Kant, em seu livro “Metafísica dos Costumes” de 1797, já definia o casamento como a “união de duas pessoas de sexos diferentes para a posse mútua e vitalícia de suas qualidades sexuais”, evidenciando claramente essa lógica da apropriação do outro. Vemos então que a ideia de posse já está atrelada ao casamento há milhares de anos, mas é fato que neste século isso vem se modificando rapidamente e os casais têm optado por abrir suas relações com cada vez mais frequência por diversos motivos, seja porque estão buscando diversificar sua vida sexual ou simplesmente para quebrar a monotonia e a rotina do relacionamento. Porém, ao mesmo tempo em que abrir o relacionamento pode trazer inúmeros benefícios, também traz consigo enormes desafios e riscos para a relação. É exatamente por essa razão que é muito importante que o processo seja conduzido de forma responsável e cuidadosa para não correr o risco de prejudicar o relacionamento ao invés de aprimorá-lo. Para alguns, a simples ideia de ver o seu parceiro com outra pessoa pode disparar emoções muito perturbadoras de medo e traição ou até mesmo ativar feridas antigas relacionadas ao abandono e rejeição. Ao mesmo tempo em que somos seres adultos e racionais, também trazemos dentro de nós o que os psicólogos clínicos costumam chamar de “criança emocional”. Essa parte de nós pode reagir de forma bem irracional ao se sentir ameaçada e não adianta querer passar por cima dela com argumentos racionais de que ciúme é bobagem ou coisas do gênero! Todos nós fomos condicionados a acreditar piamente que a monogamia é uma prova de amor. Sendo assim, abrir mão dessa exigência pode facilmente nos fazer sentir preteridos ou não amados. A ideia de abrir a relação e de dar liberdade para o outro pode até fazer muito sentido do ponto de vista racional, mas do ponto de vista emocional nossa experiência pode ser muito diferente. Devemos lembrar que o ser humano não tem apenas ideias e conceitos, ele também experimenta emoções e sentimentos que muitas vezes podem ser experimentados de forma bastante contraditória em relação aos pensamentos. Em outras palavras, podemos concordar racionalmente com a ideia de liberar o outro, mas ainda assim, do ponto de vista emocional, nos sentirmos magoados com isso ou sentirmos muito ciúme. É importante, então, não consideramos apenas as reflexões racionais libertárias, mas também o modo como nos sentimos em relação a tudo isso. As ideias não podem se sobrepor às emoções, ambas as dimensões precisam ser contempladas e às vezes a dimensão emocional leva mais tempo para ser digerida do que a racional. Roberto Freire, médico, psiquiatra, jornalista e escritor brasileiro, descreveu muito bem essa contradição entre ideias e emoções no seu livro “Sem Tesão Não Há Solução”: Assim, poucas são as pessoas que não desejariam propiciar essa liberdade aos próprios sentimentos e à pessoa que ama; porém, parece ser muito difícil e arriscado conciliar seus impulsos e desejos libertários com a realidade dos resíduos da formação burguesa em si mesmos e nos parceiros. Esses resíduos, estimulados pelo ambiente social, opõem-se radicalmente aos impulsos e desejos libertários, parecendo que isso é natural, quando, na verdade, não passam de deformações de caráter incutidas pela educação autoritária e capitalista que estimula o desejo de poder e só dá segurança na apropriação e na dominação, tanto no plano material quanto no afetivo.1 É comum também que as pessoas iniciem um relacionamento afetivo trazendo dentro de si registros psíquicos de experiências de abandono, rejeição, humilhação ou traição - marcas emocionais que muitas vezes nem temos consciência. Todas essas feridas podem vir à tona neste processo de abertura da relação e às vezes o simples fato de se começar a discutir o assunto pode ser um poderoso gatilho emocional para algumas pessoas, trazendo bastante sofrimento e turbulência para a relação. Por isso mesmo, todo o processo deve ser feito com muita calma e respeito pelas emoções e sentimentos de ambos os parceiros. Só podemos dizer que se trata de uma não-monogamia RESPONSÁVEL quando este processo é conduzido de forma conversada, consensual e amorosa, levando em consideração os sentimentos e percepções de todos os envolvidos, a partir de uma ética do cuidado e da autonomia. É importante lembrar que quando optamos por renunciar à exclusividade afetivo-sexual em nosso relacionamento estamos fazendo isso para melhorar a relação e não o contrário. Fazemos para aumentar as possibilidades de prazer, gozo e alegria, ou seja, é para somar e não subtrair! Logo, se por algum motivo optarmos por renunciar à tradição de tomar posse da sexualidade e do afeto da outra pessoa e seguir pelo caminho do relacionamento nãomonogâmico consensual, é absolutamente crucial que esse processo seja feito de forma cuidadosa para não gerar sofrimento desnecessário e colocar em risco nosso relacionamento, que muitas vezes é o que temos de mais precioso na vida. Este é o propósito básico deste livro, instrumentar as pessoas a navegarem pelo universo das relações não-monogâmicas de forma responsável e cuidadosa, visando 1 FREIRE, R. (1987). Sem Tesão Não Há Solução. Ed. Guanabara beneficiar ao máximo o relacionamento e minimizar os possíveis percalços que possam surgir nessa caminhada. Visão geral do livro Neste livro vamos abordar os diferentes modelos de relações não-monogâmicas consensuais, descrevendo as características que os diferenciam e elencando as possíveis indicações e desafios associados a cada um. Discutiremos também alguns aspectos históricos associados ao casamento, amor romântico, sexualidade e monogamia, além de refletir sobre como se modificam as mentalidades e costumes ao longo do tempo. Descreveremos as motivações mais frequentes que levam as pessoas a optarem por relacionamentos não monogâmicos, bem como alguns elementos que devem ser considerados para avaliar se este modelo de relação é realmente indicado para você. Além disso, abordaremos alguns mitos relacionados à não-monogamia e veremos o que faz um relacionamento aberto funcionar e o que pode atrapalhar. Vamos abordar também a questão da inteligência erótica, o conceito de nãomonogamia política, critérios para estabelecer os combinados que vão reger a relação e, por fim, vamos descrever como construir a relação aberta ideal para você e como lidar com o ciúme e outros sentimentos intensos que podem surgir neste processo. Ao longo do livro também serão apresentados diversos depoimentos verídicos de pessoas que optaram pela não-monogamia consensual em seus relacionamentos. Por uma questão meramente prática, optamos por manter a linguagem toda no masculino, mas todos os gêneros e orientações sexuais estão sendo contemplados nesta obra. Boa leitura! ASPECTOS HISTÓRICOS E CONTEXTUAIS A instituição do casamento como conhecemos atualmente é muito recente. Durante a maior parte da história, o casamento teve o papel apenas de organizar as alianças familiares, sempre em função de interesses políticos e econômicos, sendo impensável levar o amor em consideração neste processo. O casamento era visto mais como um negócio, algo muito sério para se misturar com amor. Foi só muito recentemente na história que o amor entrou no casamento e isso começou a acontecer mais ostensivamente após a revolução industrial, que promoveu um grande êxodo em direção às cidades, o que favoreceu o fortalecimento da família nuclear em contraposição às grandes famílias rurais. Neste contexto de profundas mudanças estruturais na sociedade, os relacionamentos amorosos surgiram para compensar essa perda afetiva advinda do afastamento das famílias de origem, quase como um remédio contra o isolamento e a solidão das grandes cidades. Porém, embora a experiência amorosa seja universal, a vivência desse sentimento não ocorre da mesma maneira em todas as sociedades e variou muito ao longo da história. Durante o Iluminismo, por exemplo, o amor foi vinculado ao ridículo, por afastar o homem da razão que o devia guiar. Mesmo nos tempos atuais o amor é vivido de forma diferente de acordo com a cultura... Enquanto no modelo de amor romântico desenvolvido no ocidente tentamos nos sentir inteiros a partir de algo externo a nós - a relação amorosa com outra pessoa - os orientais, ao contrário, se voltam para dentro de si mesmos em busca da completude. Eles desconhecem o amor romântico e se propõem, por conta própria, a amenizar a sensação de falta através de um processo de individuação, numa busca por si mesmo ao invés do outro.2 O modelo de amor vigente no mundo ocidental - o modelo do amor romântico - surgiu no período do Romantismo como um contraponto à racionalização excessiva do Iluminismo. Este modelo de amor foi impulsionado pelos filmes de Hollywood e 2 Citado em NAVARRO, Regina (2012). O Livro do Amor (Vol 1). Ed. Best Seller. entrou pra valer no casamento a partir de 1940, como analisa o sociólogo Túlio Cunha Rossi em sua pesquisa de doutorado publicada no livro “Uma sociologia do amor romântico no cinema”. Neste livro, o autor revela como o cinema constrói regras de sentimento, normas que são compartilhadas socialmente e que dirigem a maneira pela qual nós devemos ou deveríamos sentir as emoções, em particular, o amor.3 Uma das características deste modelo de amor romântico tão propagado pela indústria cultural de Hollywood é que nele a derivação de todas as necessidades do indivíduo passa a vir do casamento. Como explica Esther Perel em seu livro “Sexo no cativeiro: Como manter a paixão nos relacionamentos”: Matrimônio era uma instituição econômica em que havia uma parceria por toda a vida em relação aos filhos, status social, sucessão e companhia. Hoje em dia queremos que nosso parceiro continue a nos dar tudo isso e, além disso, quero que seja meu melhor amigo, meu confidente e meu amante apaixonado, sem contar que vivemos o dobro do tempo. Então nós basicamente pedimos a uma pessoa que nos dê o que antes um vilarejo inteiro nos fornecia. Dê-me merecimento, identidade, continuidade, mas também transcendência, mistério e admiração, tudo junto. Dê-me conforto e limite. Dê-me novidade e familiaridade. Dê-me previsibilidade e surpresa. A psicanalista Regina Navarro descreve a ideologia do amor romântico que rege os relacionamentos no ocidente da seguinte forma: O amor romântico apresenta atitudes e ideais próprios. Contém o conceito de que duas pessoas se transformam numa única, havendo complementação total entre elas, sem nada lhes faltar. E abarca ainda outas expectativas, que na prática não são realistas: a de que quem ama não sente desejo sexual por mais ninguém, de que o 3 Uma versão resumida do texto pode ser encontrada aqui: https://associacaoportuguesasociologia.pt/ix_congresso /docs/final/COM0037.pdf amado é a única fonte de interesse do outro e que não é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo.4 É justamente por isso que a exclusividade sexual é tão importante neste modelo do amor romântico, porque ela confirma que o outro pode satisfazer todas as nossas necessidades, não sendo necessário mais ninguém de fora. E quando alguém demonstra interesse por outro, isso abala os alicerces dessa idealização, pois implica que o parceiro ou a parceira não são tudo na vida um do outro. Neste contexto, quando nos pegamos atraídos por outras pessoas, sentimo-nos culpados porque entendemos que não deveríamos estar sentindo aquilo. Alguns vão negar o desejo e acabar alimentando um ressentimento por negarem algo que era importante para si. Já outros vão para o lado da indulgência, cedendo ao impulso pela via da traição; enquanto outros vão terminar o relacionamento e iniciar um novo, levando ao que se convencionou chamar de monogamia serial. Uma estratégia alternativa seria conversar abertamente sobre a questão, enfrentar os medos e o julgamento dos outros e reconhecer que uma só pessoa não é, nem deveria ser capaz de satisfazer todas as nossas necessidades emocionais e sexuais. A partir dessa aceitação pode-se optar, de uma forma ética e responsável, por abrir espaço na relação para buscar a satisfação de algumas necessidades com pessoas de fora, seja individualmente ou em conjunto com o parceiro, levando ao modelo que chamamos de não-monogamia responsável, onde existe abertura consensual na relação para satisfação de algumas necessidades e desejos com outras pessoas que não o parceiro. Olhando de fora, pode parecer que esses casais estão abrindo mão da segurança da monogamia, mas isso não é necessariamente verdade. Em primeiro lugar porque sabemos que a traição é uma das coisas mais comuns nos relacionamentos ditos monogâmicos. Em segundo lugar porque quando deixamos o outro livre, passamos a 4 Essa entrevista com Regina Navarro pode ser encontrada aqui: https://veja.abril.com.br/cultura/o-fim-do-amorromantico-por-regina-navarro-lins/ entender que ele está com a gente porque está a fim e não porque está sendo obrigado. Afinal de contas, de que adianta a pessoa ficar só comigo apenas porque está proibida de ficar com outras pessoas? Ou como expressou poeticamente Richard Bach: “Se você ama alguém, deixe-o livre. Se ele voltar, é seu. Se não, nunca foi”. A monogamia é a pedra angular do modelo de amor romântico que rege o que se espera dos relacionamentos no mundo ocidental nos dias de hoje, mas sua origem se remete a um período muito anterior. HISTÓRIA DA MONOGAMIA De onde vem essa exigência cultural da monogamia? Será que a humanidade sempre viveu assim? Certamente não! A monogamia surgiu em um contexto muito específico para atender a uma demanda muito pragmática do período neolítico. A humanidade existe há cerca de 200.000 anos, mas somente nos últimos 10.000 anos, na passagem do período paleolítico para o neolítico, é que surgiu a exigência da monogamia. Com a revolução agrícola e pecuária, as famílias passaram a se estabelecer em uma terra fixa, surgindo com isso a propriedade privada ou o que se convencionou chamar de “minha terra, meu rebanho”. A partir do momento em que temos a propriedade das terras bem estabelecidas, surge a necessidade de se passar a herança da posse para os legítimos herdeiros - os filhos do dono. Para garantir a proteção da linhagem paterna, surge a exigência de monogamia compulsória para as mulheres, pois só assim se poderia ter certeza de que a criança gerada era realmente do proprietário da terra, como explica Amanda Gomes: Sendo a mulher monogâmica, seria possível assegurar a filiação biológica do homem, garantindo, assim, a sucessão da propriedade privada da família para filhos legítimos. Historicamente, portanto, o surgimento da monogamia foi tardio, sendo concomitante à criação da propriedade privada, em um período de transição da sociedade matriarcal para a patriarcal. Constata-se que seu objetivo era de proteção do patrimônio da família e, consequentemente, da linhagem de filiação do casal.5 Vemos então que a monogamia se insere exatamente no contexto do surgimento da sociedade patriarcal, aonde todo o poder passa a estar nas mãos do homem. Por isso essa exigência era feita somente para as mulheres: Na família Monogâmica, o homem é o centro do poder. A família é mais sólida, pois somente o homem pode encerrar o casamento. O homem tem o direito irrestrito de ser infiel e satisfazer sua libido. Porém, a mulher é totalmente expropriada desse direito, pois, por razões econômicas, o homem precisa ter seus filhos legítimos, filhos da sua mulher oficial. Para garantir que estes filhos sempre fossem seus, a mulher jamais poderia se relacionar com outro.6 Em sua obra “A origem da família, da propriedade privada e do Estado”, Friedrich Engels argumenta que a monogamia (...) nasce conjuntamente com a opressão de classe, com o surgimento da propriedade privada, inclusive de outros homens na forma de escravos, e a opressão feminina com a subordinação da mulher ao direito paterno para garantir a transmissão de sua linhagem e propriedade.7 Por essa razão, Engels afirma que a derrota histórica do gênero feminino ocorreu com o advento da propriedade privada: Enquanto entre os caçadores e coletores e mesmo no início da horticultura com estaca ou enxada, as mulheres viviam em condições igualitárias e eram as mais importantes fornecedoras de comida e criadoras dos artesanatos, com a expansão da agricultura extensiva e o surgimento de excedentes, sua condição social decaiu para um tipo de servidão.8 5 GOMES, Amanda. Monogamia: princípio ou delírio coletivo? Este texto pode ser encontrado aqui: https://amandagomes75.jusbrasil.com.br/artigos/663607728/monogamia-principio-ou-delirio-coletivo?ref=feed 6 VERSALLES, L.; VIANA, G.; ZANARDO, L. C. (2018). Nas Grades do Estado. Ed. Clube de Autores. 7 Idem. 8 Ibidem. Enquanto existíamos como caçadores e coletores, por quase 200.000 anos, as relações sexuais eram vistas como expressão de um intercâmbio generalizado, não havendo nenhuma exigência de exclusividade. Um exemplo desse regime é registrado por um cronista jesuíta entre os índios do Canadá, no século XVIII, quando ao tentar convencer um indígena a abdicar dessa “promiscuidade” na qual sua esposa frequentava diversos outros homens, argumentou-lhe que ele, assim, não poderia nem sequer ter a certeza da paternidade sobre seus filhos, ao que o indígena respondeu que isso “não lhe importava, pois se entre os brancos um homem ama apenas seus filhos, na sua tribo os homens amavam igualmente todas as crianças.”9 A situação muda por completo com o surgimento da propriedade privada e aos poucos a monogamia foi se convertendo na norma social que rege as relações afetivosexuais no ocidente. Inicialmente essa exigência era feita apenas para as mulheres, a fim de garantir a procriação de filhos legítimos. Posteriormente, com o advento da moral cristã, essa exigência passa a se estender também para os homens. Com o passar do tempo, o amor romântico acabou incorporando essa exigência de monogamia como forma de idealização do casamento, como explica Amanda Gomes: A aproximação da monogamia com o amor romântico surge no século XVIII, com o Romantismo nas artes, sendo Jean-Jacques 9 VERSALLES, L.; VIANA, G.; ZANARDO, L. C. (2018). Nas Grades do Estado. Ed. Clube de Autores. Rousseau um dos precursores do movimento que idealizou a união entre casamento, sexo, amor e monogamia. O filósofo acreditava que, através da realização pessoal dos indivíduos no seio familiar, era possível alcançar o bem-estar comum.10 Uma vez estabelecida como prática social recorrente, torna-se um fato jurídico relevante a passa a ser normatizada nos termos da lei. No Código Civil brasileiro de 2002, por exemplo, a fidelidade recíproca aprece no rol de deveres de ambos os cônjuges no matrimônio, devendo estes se relacionarem sexual e afetivamente apenas entre si. Para se ter uma ideia, ainda em 2015, o adultério era considerado crime em 21 estados dos Estados Unidos, com penas variando entre uma multa de 10 dólares no estado de Maryland até quatro anos de prisão em Michigan.11 Vemos então que essa cultura da monogamia compulsória e vitalícia que herdamos é fruto de um alinhamento ideológico entre Sociedade, Estado e Religião, sendo que em muitos lugares essa exigência se faz cumprir pela lei. Não é de se estranhar, então, que quando tentamos sair deste modelo imposto culturalmente sintamos tanto receio. Afinal, é muito difícil ir no contrafluxo das tradições estabelecidas, sendo algo que gera muita insegurança e medo de reprovação social. O DECLÍNIO DO MODELO TRADICIONAL DE CASAMENTO E DA MONOGAMIA O modelo de casamento tradicional calcado nas ideias do amor romântico vem apresentando sinais de desgaste nas últimas décadas e aparenta estar, pouco a pouco, saindo de cena. Chega-se a essa conclusão ao se constatar que ao longo do tempo a taxa de casamento vem caindo sucessivamente enquanto as taxas de divórcios só crescem. Pelo menos 50% das pessoas que se casam hoje vão se separar nos próximos 10 anos. Isso é um fato estatístico. 10 Este texto pode ser encontrado aqui: https://amandagomes75.jusbrasil.com.br/artigos/663607728/monogamiaprincipio-ou-delirio-coletivo 11 Citado na matéria jornalística “Traição pode ser mais do que fim da relação. É um crime”: https://www.dn.pt/globo/traicao-pode-ser-mais-do-que-fim-da-relacao-e-um-crime-4748116.html Além disso, mais e mais casais optam por construir suas relações em outras bases, com menos idealização e mais liberdade. Em grande parte, essas mudanças estão acontecendo como fruto das revoluções culturais que experimentamos na segunda metade do século XX, incluindo aí o movimento feminista que libertou as mulheres de sua escravidão doméstica, o movimento de contracultura que passou a questionar seriamente os valores das gerações anteriores e a revolução sexual que se consolidou em 1960 com o desenvolvimento da pílula anticoncepcional. Nos tempos modernos, cada vez mais o desenvolvimento da própria individualidade vem se tornando um valor e isso vai na contramão da ideologia do amor romântico, que prega a anulação do indivíduo em prol da relação (dois se tornando um). Ao invés de o indivíduo trabalhar pela relação, mais e mais se espera que a relação sirva aos interesses dos indivíduos. O desencanto com o modelo tradicional de casamento e a ideologia do amor romântico surge quando se constata que na realidade é impossível que uma só pessoa satisfaça todas as nossas necessidades. Não só isso é impossível como é injusto esperar isso de alguém, como explica a psicanalista Regina Navarro: O resultado dessas crenças na vida a dois é que, com frequência, um acaba imaginando o outro como ele não é e espera dele coisas que não pode dar. O tempo vai mostrando como essa forma de amor se desenrola. É difícil resistir à convivência diária do casamento. Nela, a excessiva intimidade torna obrigatório enxergar o parceiro como ele é e, assim, a idealização não tem mais como se sustentar. O desencanto é inevitável e aí vem o tédio, o sofrimento e a sensação de ter sido enganado. Quando percebemos que o outro não é a personificação de nossas fantasias, nos ressentimos e geralmente o culpamos.12 Segundo a escritora Laura Kipnis, quando as expectativas oferecidas por este modelo não se cumprem, tendemos a ficar muito frustrados, achando que a culpa foi nossa ou que talvez não tenhamos realmente encontrado a pessoa certa... Mas talvez o 12 Essa entrevista com Regina Navarro pode ser encontrada aqui: https://veja.abril.com.br/cultura/o-fim-do-amorromantico-por-regina-navarro-lins/ problema seja do próprio modelo de relacionamento que adotamos, que é calcado nos ideais inalcançáveis do amor romântico: Quando cai por terra a expectativa do romance e da atração sexual eternos, surge a pergunta: "O que há de errado comigo?" Essas pessoas provavelmente acreditam que o problema não esteja na instituição em si ou nas suas expectativas impossíveis. Para esses otimistas, o problema é que por algum motivo eles falharam em encontrar a pessoa certa ou cometeram algum erro. Ficam imaginando: "Se eu tivesse colocado as meias no cesto de roupa suja em vez de largá-las no corredor, tudo teria dado certo". A questão que eu coloco é: talvez o problema não seja do indivíduo, mas da incapacidade do casamento em cumprir as promessas de felicidade. 13 O resultado de toda essa dinâmica é uma enorme frustração. E quando nos sentimos frustrados, sempre procuramos um culpado para responsabilizar. Só pode ser o parceiro com quem estamos que não está oferecendo o que eu preciso. Ou mudo de parceiro ou então eu tento mudar o parceiro: O casamento transforma pessoas agradáveis em tiranos domésticos. Criticar os hábitos do parceiro torna-se a conversa-padrão do casal e a diversão favorita passa a ser modificar o comportamento do cônjuge. Existe algum momento na vida do casal que não seja permeado por regras, desde o modo como você coloca os pratos na máquina de lavar louça até o que pode dizer em uma festa? 14 Outro indicador da falência do casamento é o fato de a traição ter virado uma epidemia global. De acordo com algumas estatísticas, 75% dos homens e 68% das mulheres já admitiram ter traído de alguma forma ao menos uma vez na vida. Em 1953 o relatório Kinsey já constatava que 50% dos homens haviam traído ao menos uma vez até os 40 anos, mostrando que esse problema não é de hoje. Atualmente existem até sites especializados em traição como o Ashley Madison que conta com 65 13 14 KIPNIS, L. (2005). Contra o amor - uma polêmica. Ed. Record. Idem. milhões de usuários no mundo todo que buscam formas mais eficientes de pular a cerca. Hoje sabemos que esse alto número de pessoas traindo não é meramente um desvio moral ou uma falha de caráter, como afirmam David Barash e Judith Eve Lipton em seu livro seminal “O mito da monogamia – Fidelidade e infidelidade entre pessoas e animais”: Os conservadores sociais preferem assinalar o que veem como uma ameaça crescente aos valores familiares. Mas eles não têm a mais vaga ideia de como essa ameaça é realmente grande ou de onde ela vem. A família monógama está definitivamente sitiada, e não pelo governo nem pelo declínio da fibra moral, e certamente não por uma ampla campanha homossexual... mas pelos ditames da própria biologia. Usando tecnologias de DNA hoje tão comuns em processos de reconhecimento de paternidade, os biólogos, pela primeira vez, puderam comprovar com segurança que a regra na natureza é a não-monogamia e não o contrário: Ao tentarem manter um vínculo social e sexual que consista exclusivamente em um homem e uma mulher, os aspirantes a monógamos estão contrariando algumas das inclinações evolutivas mais profundas com as quais a biologia desenvolveu a maioria das criaturas, inclusive o Homo sapiens (...) graças aos recentes desenvolvimentos na biologia da evolução, combinados com a mais moderna tecnologia, simplesmente não há nenhuma dúvida que de o desejo sexual por múltiplos parceiros é natural. Ele é. Da mesma forma, simplesmente não há nenhuma dúvida de que a monogamia é natural. Ela não é. Curiosamente, Freud já havia afirmado há mais de um século, em seu artigo de 1908 “Moral Sexual 'Civilizada' e Doença Nervosa Moderna", que: As relações sexuais no casamento só são satisfatórias durante alguns poucos anos (...) após esse três, quatro ou cinco anos, o casamento torna-se, pelo menos em relação à satisfação das necessidades sexuais, um fracasso. Seu discípulo, o psiquiatra Wilhelm Reich, seguiu na mesma linha de raciocínio afirmando em seu livro “A Função do Orgasmo” que: É preciso aprender a ver claramente o problema do casamento. (...) As necessidades sexuais podem ser satisfeitas com um e mesmo companheiro durante algum tempo apenas. Então, se você estiver tendo dificuldade para se manter monogâmico em uma relação, acredite, talvez isso não seja culpa sua! A natureza nos projetou de modo a valorizar fortemente a variedade sexual. A vasta maioria das espécies animais são não-monogâmicas. Helen Fisher, autora do livro “Por que nós amamos: a natureza e a química do amor romântico”, afirma o seguinte: Tenho uma teoria de que desenvolvemos três sistemas cerebrais distintos para acasalamento e reprodução. Um deles é o impulso sexual, o desejo por gratificação sexual. O segundo é o amor romântico, essa obsessão, o desejo, o êxtase, a atenção concentrada, a motivação para conquistar um determinado parceiro de acasalamento; aquele amor romântico precoce e intenso. E o terceiro sistema cerebral é o apego, aquela sensação de calma e segurança que você pode sentir com um parceiro de longa data. O que acho mais notável sobre esses três sistemas é que muitas vezes eles não estão conectados. Você pode sentir uma forte sensação de apego a um parceiro de longa data enquanto sente um intenso amor romântico por outra pessoa, ao mesmo tempo que sente esse forte impulso sexual por toda uma gama de pessoas diferentes. Aqui cabe uma ressalva muito importante! O fato de apontarmos que a monogamia não tem nada de natural - antes pelo contrário - não quer dizer que as pessoas não possam optar por ela. Algumas pessoas se identificam sim com a monogamia, se sentem monogâmicas e provavelmente vivem melhor assim. O importante é cada um descobrir o que é melhor para si e só o autoconhecimento pode trazer essa consciência para a pessoa. Estamos apenas tentando desconstruir essa obrigação de ser monogâmico, que é tão ruim quanto a obrigação de ser nãomonogâmico. Vemos que a questão não se reside em ser ou não ser monogâmico, mas sim em sermos ou não sermos obrigados a viver de um modo que não representa a nossa verdade. Como veremos mais pra frente, o movimento pela não-monogamia é um movimento contra as opressões estruturais, contra os mecanismos de opressão existentes em nossa sociedade que normatizam como as pessoas devem ser, roubando delas a possibilidade de serem elas mesmas, de agirem conforme sua natureza interior. Há de se ter muito cuidado para que essa defesa da não-monogamia não se torne uma nova forma de opressão, por exemplo com um discurso de que a não-monogamia é uma opção mais evoluída que a monogamia. A luta é pela liberdade de escolha, pela não-opressão normativa. Em resumo, o que está em jogo aqui não é a questão da monogamia versus não-monogamia e sim a questão da liberdade de escolha versus coerção normativa. Essa imposição normativa se dá via um discurso moral que define o que é o normal, o que seria o certo e como as pessoas deveriam ser. Na perspectiva que estamos colocando aqui, entendemos que as pessoas deveriam ser como elas se percebem que são. Deve haver espaço e encorajamento para que cada um manifeste sua singularidade e sua autenticidade, sem coerção moral ou de nenhum outro tipo! HISTÓRIA DAS RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS Como mencionamos anteriormente, relacionamentos não-monogâmicos não são um fenômeno recente na história humana, embora atualmente estejam se popularizando como nunca antes. O mais emblemático casal representante desta modalidade de relacionamento foi Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre, que nunca se casaram oficialmente, mas em 1º de outubro juraram devoção mútua um ao outro com total liberdade sexual para ambos. [ O movimento de contestação da monogamia começou a se intensificar principalmente a partir da revolução sexual, que tem seu auge entre os períodos de 1960 até os anos 1970. O advento da pílula anticoncepcional catalisou este processo, libertando a mulher de sua escravidão reprodutiva, permitindo-a fazer sexo sem se preocupar com a gravidez – o que a colocou em pé de igualdade com os homens pela primeira vez na história. A música de Raul Seixas lançada em 1975 - “A Maçã” - ilustra bem essa contestação dos valores monogâmicos que se seguiram ao período da revolução sexual: Se esse amor Ficar entre nós dois Vai ser tão pobre amor Vai se gastar Se eu te amo e tu me amas Um amor a dois profana O amor de todos os mortais Porque quem gosta de maçã Irá gostar de todas Porque todas são iguais Se eu te amo e tu me amas E outro vem quando tu chamas Como poderei te condenar Infinita é tua beleza Como podes ficar presa Que nem santa num altar? Quando eu te escolhi Para morar junto de mim Eu quis ser tua alma Ter seu corpo, tudo enfim Mas compreendi Que além de dois, existem mais Amor só dura em liberdade O ciúme é só vaidade Sofro, mas eu vou te libertar O que é que eu quero Se eu te privo do que eu mais venero Que é a beleza de deitar Quando eu te escolhi Para morar junto de mim Eu quis ser tua alma Ter seu corpo, tudo enfim Mas compreendi Que além de dois, existem mais Amor só dura em liberdade O ciúme é só vaidade Sofro, mas eu vou te libertar O que é que eu quero Se eu te privo do que eu mais venero Que é a beleza de deitar Apesar de já haverem existido diversas iniciativas individuais de não-monogamia consensual como a de Sartre e Simone em todo o século XX, sabe-se que a primeira forma organizada de não-monogamia moderna surgiu nos Estados Unidos com a prática do Swing (troca de casais). Em 1964 foi lançado o livro “Swap Clubs” (Clube de Trocas), relatando os resultados de uma pesquisa sobre o estilo de vida swinger onde foram entrevistadas 800 pessoas em mais de 25 cidades dos Estados Unidos. Em 1969 se formou a primeira associação de swingers nos Estados Unidos, chamada de Lifesstyles Organization. Em 1970 foi fundada a North American Swing Club Association (NASCA). A primeira convenção swinger foi realizada em 1973 e em 1980 essas convenções já atraiam mais de 1.000 casais por evento. Só em 1990 se estimava que existiam cerca de 3 milhões de swingers apenas nos Estados Unidos. Já em 1972 foi publicado o primeiro livro sobre casamento aberto que se tem notícia. Com o título de “Open Marriage: A New Life Style for Couples” (Casamento aberto: um novo estilo de vida para casais), o livro de Nena e George O´neill vendeu 1,5 milhões de cópias. O modelo de casamento proposto pelos autores enfatiza a comunicação honesta e aberta, além da liberdade compartilhada. Eles enxergam o casamento aberto como uma ferramenta para o crescimento pessoal onde um dá suporte para o desenvolvimento do outro, focado no fortalecimento da individualidade de ambos. Segundo estes autores, Casamento aberto pode ser definido como um relacionamento em que os parceiros estão comprometidos com o seu próprio crescimento e com o crescimento um do outro. É uma relação honesta e aberta de intimidade e autorrevelação baseada na igualdade de liberdade e identidade de ambos os parceiros. O apoio e confiança crescentes nas identidades individuais possibilitam o compartilhamento do crescimento pessoal com uma outra pessoa significativa, que incentiva o seu próprio crescimento e o de seu companheiro. É uma relação flexível o suficiente para permitir mudanças e que está em constante renegociação à luz das mudanças nas necessidades, consenso na tomada de decisões, aceitação e incentivo ao crescimento individual e abertura a novas possibilidades de crescimento. Em 1973 Larry e Joan Constantine cunharam o termo “casamento multilateral” em seu livro “Group Marriage: A Study of Contemporary Multilateral Marriage” (Casamento grupal: um estudo sobre casamentos multilaterais contemporâneos). O casamento multilateral foi definido como um casamento consistindo em três ou mais parceiros que se consideram todos casados entre si, sendo este o protótipo do que se chama hoje de polifidelidade, um tipo de poliamorismo que será abordado mais adiante. Swing, Casamento Aberto e Casamento Multilateral foram as primeiras formas organizadas e documentadas de não-monogamia consensual. Já com relação ao termo poliamorismo, a primeira menção que se encontra é de 1953, na Illustrated History of English Literature, por Alfred Charles Ward, que se refere ao rei Henrique VIII como “determinado poliamorista”, com uma conotação negativa. Em 1969 temos então a menção por Joseph McEnlroy, em sua obra de ficção Hind’s Kidnap — A Pastoral on Family Airs, que se refere a uma “tribo poliamorosa” que estava contribuindo para o declínio da instituição família. Em 1971 é fundada a Comunidade Kerista (Kerista Commune), que existiu até 1991, em San Francisco, Califórnia, EUA e é creditado a este grupo a criação de algumas palavras como “polifidelidade”, “compersão” e “poli-intimidade”.15 Em 1984 surgiu uma revista chamada “Loving More”, dedicada a explorar relações consensuais multi-amorosas (poliamor). As primeiras comunidades poliamorosas começaram a surgir em 1990. Ainda na década de 90 foram publicados 5 livros sobre o tema, sendo o mais influente de todos o livro publicado em 1997: “The Ethical Slut: 15 Citado no artigo de Nana Miranda, Newton Jr e Simone Bispo: “Por que não-monogamia política?”. Pode ser acessado aqui: https://naomonoemfoco.com.br/por-que-nao-monogamia-politica/ A Practical Guide to Polyamory” (A Vagabunda Ética: Um Guia Prático para o Poliamorismo), considerada por muitos a bíblia do poliamorismo e atualmente em sua terceira edição. Com a internet, os grupos se multiplicaram e hoje existem milhares de comunidades, organizações, grupos online e conferências sobre swing, casamento aberto e poliamorismo. Em 2007, um levantamento feito pela Oprah.com com 14.000 pessoas constatou que 21% das pessoas estavam em relações não-monogâmicas.16 Essa expansão dos relacionamentos não-monogâmicos consensuais é um movimento muito significativo, principalmente tendo em vista o amplo histórico de repressão sexual que registramos ao longo de toda a história humana, principalmente no ocidente. HISTÓRIA DA REPRESSÃO SEXUAL Você já parou para pensar no porquê que todo palavrão que usamos está de uma forma ou de outra relacionada a sexo? Por exemplo, quando chamamos alguém de "pentelho" ou de "escroto", por que será que usamos essas palavras? E por que que elas acabam tendo um significado pejorativo? Pelo simples e único motivo de estarem associadas anatomicamente aos órgãos genitais. Isso por si só já é suficiente para dar uma conotação pejorativa à palavra! O mesmo acontece com a expressão “ai que saco”, que utilizamos quando estamos incomodados com alguma coisa (vem do termo anatômico “saco escrotal”). Tem até uma piadinha com isso que diz assim: “o pior inquilino é o espermatozoide, pois ele mora na casa do caralho, o prédio é um saco e os vizinhos da frente são um pentelho”. 16 Citado no livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. Em inglês, por exemplo, é comum se utilizar a expressão "he is such a dick". Neste caso a palavra dick, cuja tradução oficial seria pênis, acaba ganhando o significado de "idiota" ou "babaca”. No português nós vemos essa mesma lógica quando mandamos alguém "tomar no c..." ou quando mandamos alguém "se fud..." ou mesmo quando chamamos alguém de "filho da pu...." ou mandamos pra “pu.... que pariu”, novamente tudo associado a sexo. O mesmo vale para a expressão super popular que virou até título de livro: “foda-se”. E a lista não para por aí... o elemento sexual aparece também em xingamentos como piranha, corno, veado, arrombado, boiola, vagabunda, etc. Mesmo os termos que costumamos utilizar para nos referirmos aos órgãos genitais acabaram virando palavrão. É comum usarmos os termos caralho ou buceta quando alguma coisa de ruim acontece, como por exemplo, quando uma pessoa tropeça e diz: “ai caralho” ou então “ai buceta”. Inclusive, é comum em alguns lugares do Brasil se utilizar a expressão “embucetada” para se referir a um estado de aborrecimento, raiva ou estar de mal com a vida, como podemos ver neste dicionário online: Os exemplos são inúmeros e praticamente todos os palavrões que utilizamos estão em algum nível atrelados à sexualidade. E por que será que é assim? Se todo mundo veio ao mundo através de uma atividade sexual, por que então que essa função biológica, que deveria ser tão honrada, acabou se convertendo em algo tão depreciativo como um palavrão? Nossa origem sexual pode ser constatada, por exemplo, no termo genital, que vem do latim genitale, ou “aquilo que gera”. Neste caso, aquilo que gerou a vida de cada ser humano neste planeta! A palavra sêmen, por exemplo, tem a mesma origem da palavra semente e curiosamente, na linguagem popular, se converteu no termo “porra", mais um palavrão! E por que tudo isso é importante? Porque a linguagem reflete diretamente o universo psíquico das pessoas. Esses termos que citamos aqui representam o inconsciente coletivo da nossa sociedade e demonstram a relação negativa que sem perceber carregamos em relação ao sexo. A gente sabe que a criancinha não nasce com nenhum antagonismo em relação ao seu corpo ou à sua sexualidade. Tanto é que ela espontaneamente aprende a se masturbar e faz isso sem nenhum constrangimento. Em que momento será que a situação muda e ela passa a enxergar o sexo como algo hostil e depreciativo? E afinal de contas, de onde será que veio esse gritante rebaixamento da sexualidade na história humana? Sem sombra de dúvidas essa desqualificação do sexo está diretamente atrelada ao surgimento e expansão do cristianismo, como sintetiza o pesquisador Luis Felipe Ribeiro: A influência da tradição judaico-cristã sobre a sexualidade ocidental é bem conhecida. Interdição, repressão e negação são a herança de dois milênios de presença cristã no mundo.17 É muito fácil demonstrar essa relação entre cristianismo e repressão sexual. Por exemplo, quando pensamos na pessoa de Jesus Cristo, costumamos atribuir a ele todas as qualidades possíveis, como amor, bondade, caridade, compaixão, paz, pureza, verdade, santidade, justiça, etc., não é mesmo? Mas qual é a única coisa que nunca iremos associar à figura de Jesus? Isso mesmo... sexo! Chega até a ser uma heresia pensar na vida sexual de Jesus, heresia digna de fogueira! Mas por que seria tanta heresia assim? Ora, porque uma pessoa tão iluminada quanto Jesus não poderia ter nenhuma relação com algo tão mundano como o sexo! Até mesmo com relação ao seu nascimento o cristianismo conseguiu operar, convenientemente, uma assepsia de qualquer vestígio de sexualidade, alegando que ele teria nascido de uma mãe virgem, realizando assim um apagamento completo das suas origens sexuais! Como é possível engravidar sem o ato sexual? Isso contraria todas as normas da biologia, mas a mensagem subliminar não poderia ser mais clara: um ser tão divino não poderia vir ao mundo através de um ato tão obsceno como o sexo. Não, ele veio ao mundo através de uma mãe virgem e imaculada. E por que IMACULADA? Justamente porque concebeu sem a mácula do pecado original, ou seja, sem o sexo! Esse é o motivo pelo qual ainda hoje é difícil para nós associarmos maternidade com sexualidade. No nosso psiquismo isso vem como uma contradição, pois uma coisa é pura e a outra é obscena - o que na verdade é um grande paradoxo porque não existiria maternidade se não houvesse sexo! A não ser no caso de Jesus... 17 RIBEIRO, L. F. (2007). Sexualidade cristã primitiva nos catálogos de vícios: história e arqueologia de uma interdição. O texto completo pode ser encontrado aqui: https://www.metodista.br/revistas/revistasmetodista/index.php/oracula/article/view/5888 O fato é que há claramente aí nessa visão de mundo uma ideologia de menosprezo por esse aspecto tão vital da existência que acabou sendo apresentado ao mundo pelo cristianismo como algo sujo, vergonhoso e pecaminoso, que deve ser evitado ao máximo, a não ser para procriação, mas nunca por prazer! São Paulo, por exemplo, estipulou que o ideal de conduta era o celibato: “Bom seria que o homem não tocasse em mulher.” (1 Corintios 7) Mas para aqueles que não conseguem se controlar, devem pelo menos se casar, como ensina o Apóstolo: “Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que se abrasar.” Aliás, até mesmo o sexo marital com a finalidade única de procriação já foi considerado pecaminoso, pois, segundo escreveu o teólogo Huguccio no século 12: “Sempre ocorre com excitação e prazer, que não existem sem pecado”.18 A verdade é que o cristianismo instaurou uma verdadeira guerra contra os prazeres do corpo, corpo este que passou a ser visto como o grande inimigo do espírito. Papa Gregório, o Grande, chegou a dizer que o corpo era a “abominável roupa da alma”. Por isso digo: Vivam pelo Espírito, e de modo nenhum satisfarão os desejos da carne. Pois a carne deseja o que é contrário ao Espírito; o Espírito, o que é contrário à carne. Eles estão em conflito um com o outro, de modo que vocês não façam o que desejam. (Gálatas 5:1617) A masturbação, por exemplo, que é fundamental para o autoconhecimento sexual, foi e ainda é severamente condenada pelo cristianismo. A página do Vaticano na internet ainda hoje insiste em dizer que a “A masturbação, em particular, constitui um distúrbio muito sério, que é ilícito em si mesmo e não pode ser moralmente justificado.”19 18 Citado na matéria da Revista Super Interessante "O prazer em suas mãos": https://super.abril.com.br/ciencia/oprazer-em-suas-maos/ 19 https://www.vatican.va/content/vatican/pt.html Não é à toa que muitos pais se sentem angustiados com o comportamento de masturbação dos seus filhos, afinal, criança é pura e o sexo é “ilícito”, como explicou o Vaticano. Este exemplo da masturbação demonstra claramente o casamento da ciência com a religião na propagação de valores morais repressores. Na narrativa bíblica, a figura de Onã é fulminada por Deus como castigo pelo delito de “derramar a semente no chão”, já que na cultura cristã qualquer atividade sexual que não leve à reprodução é condenada. Isso vale da masturbação até o sexo homossexual, passando pelo sexo apenas por prazer, como ocorre nos relacionamentos não-monogâmicos. Nos livros penitenciais que serviam como guia para orientar os padres nas confissões, “os pecados sexuais possuíam vários itens e punições muito severas”, como explica a pesquisadora Valéria Melki: Nessa lista, poderíamos encontrar: sexo fora do casamento, adultério, masturbação, prostituição, coito interrompido, homossexualidade, sexo oral, sexo anal, sexo com mulher grávida e sexo com mulher que já não pode engravidar – todos partiam da mesma fundamentação, pois eram atos de luxúria, já que não tinham finalidade de procriar.20 Todo esse antagonismo em relação à sexualidade acabou se estendendo aos órgãos genitais também. De acordo com o escrito Moacyr Scliar em seu livro “Manual da paixão solitária”, no hebraico antigo, tocar a própria genitália era vedado aos homens até na hora de urinar. Segundo o autor, “Na tradição judaica, o pênis já nasce impuro. Tanto que é preciso tirar um pedaço dele na circuncisão”. No célebre registro de Pero Vaz de Caminha para a Corte Portuguesa quando da descoberta do Brasil, o escrivão cristão se mostra muito surpreso com a naturalidade com que os índios mostravam seus corpos, sem nenhuma vergonha: "Eles andam nus, 20 BUSIN, V. M. (2012) Juventude, religião e ética sexual. Pode ser encontrado aqui: http://www.bibliotecadigital.abong.org.br/bitstream/handle/11465/312/CDDBR_juventude_religiao_etica_sexual.pdf?sequence=1&isAllowed=y sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas”21 Chama atenção o fato do escrivão se referir aos órgãos genitais como “vergonhas”, mas esse foi o legado deixado pela ideologia cristã a respeito do corpo nu: algo vergonhoso que deve ser escondido. Ainda hoje alguns pais ensinam os filhos que se dormirem pelados o anjo da guarda não irá visitá-los à noite, como se houvesse algo intrinsecamente errado com nosso próprio corpo. Já na Grécia antiga o corpo era venerado e as estátuas eram esculpidas enaltecendo o corpo nu. Com a expansão do cristianismo, passou-se a cobrir os órgãos genitais dessas estátuas com folhas de figueira, pois o corpo nu virou um sinal de vergonha. O Papa Pio IX foi ainda mais longe... pegou um malho e cinzel e saiu cortando fora os pintos das estátuas em 1857. Por incrível que pareça, os resquícios dessa vergonha permanecem até hoje. Em 2019 a UNESCO obrigou o artista plástico a cobrir suas estátuas com calcinha para não ofender o pudor dos visitantes. 21 A carta pode ser acessada aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_de_Pero_Vaz_de_Caminha O que importa é perceber que essas ideologias, de uma forma ou de outra, acabam tendo um efeito muito opressor sobre as pessoas, gerando culpa, medo e vergonha. Muitas pessoas sofrem com isso, em especial porque o cristianismo também traz a concepção de um Deus punitivo e onisciente, que sabe tudo o que fazemos e escrutina cada pensamento nosso, mesmo quando estamos sozinhos - e ai de quem desobedecer, pois pode ser condenado ao fogo eterno do inferno. Para aumentar ainda mais o controle dos fiéis, a Igreja instaurou o mecanismo da confissão que obriga os cristãos a revelarem qualquer deslize no controle dos impulsos, até mesmo no nível do pensamento, como explicou o pensador Michel Foucault no seu livro a “História da Sexualidade – A vontade de saber”: Todas as insinuações da carne: pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo isso deve entrar agora em detalhe no jogo da confissão e da direção espiritual. Tudo deve ser dito. É difícil conhecer o sofrimento das pessoas com toda essa repressão sexual religiosa porque em geral as pessoas vivem isso no seu íntimo e não costumam compartilhar essas dores. Porém, o Big Brother Brasil acaba fornecendo uma oportunidade única para conhecermos as pessoas em sua intimidade e na 21ª edição pudemos testemunhar o sofrimento da maquiadora Juliette Freire, que expôs abertamente os problemas que teve durante muitos anos com sua sexualidade por conta da religião cristã: Por muito tempo eu associei a sexualidade e a relação sexual, eu misturava com o conceito da moralidade cristã. A vida cristã tem um conceito de virtude que eu não concordo e isso me ocasionou graves problemas sexuais. Por exemplo: eu vim me masturbar adulta. Eu me culpava o tempo inteiro. Tanto é que, para eu perder a virgindade de 20 para 21 anos de idade, mesmo em um relacionamento sério com uma pessoa, eu não conseguia. Tinha crise de pânico. Me sentia suja. Sentia que estava fazendo algo contra minha família e contra Deus. Eu não tinha uma relação sexual normal e não foram meus pais que me botaram isso. Eu lia a Bíblia e queria ser fiel ao que ela prega, mas eu não sabia separar as coisas. Eu perdi minha virgindade praticamente sem querer. Quantos milhões de pessoas será que passam pelos mesmos conflitos da Juliette e nunca ficaremos sabendo? Outro participante do BBB 21, o Gil do Vigor, também explicitou seu sofrimento por conta da condenação religiosa à sua orientação sexual: Ai, é muito chato você ficar se podando o tempo inteiro (...) tudo que eu passei, até minha sexualidade dentro da igreja tendo que esconder. Então como é que você vive sabendo, olhando na escritura que você é amaldiçoado? Porque na bíblia fala: maldito é o homem que se deita com outro. Eu não fiz mal a ninguém. Aí eu fico me culpando pedindo desculpas se eu não fiz nenhum mal a ninguém, entendeu? É muito chato ficar me sentindo errado o tempo inteiro. Um estudo da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, concluiu que a probabilidade de um homossexual cometer suicídio é cinco vezes maior do que um jovem heterossexual. O jovem gay Yago Oliveira foi uma dessas vítimas, não aguentou a pressão da família extremamente religiosa e preconceituosa que não o aceitava e acabou se matando. Em seu último post nas redes sociais Yago fez o seguinte desabafo: “A vergonha da minha família sou eu pelo simples fato de ser gay, afinal, como eles dizem, ser gay é pecado”. A mãe de Yago, muito cristã, se disse aliviada com o suicídio do filho gay afirmando o seguinte: “antes morto do que em pecado!” Muitos outros homossexuais e transexuais morrem a cada dia no mundo em função do preconceito inspirado por esses dogmas sectários que condenam tudo que não segue um modelo estrito do que seria determinado por Deus. Outro elemento da cultura cristã que gera muito sofrimento é a obsessão com a virgindade e a abstinência sexual antes do casamento. Essa obsessão cristã com a exigência de se casar virgem leva inúmeras pessoas a se casarem de forma prematura, apenas para terem o “direito” a fazer sexo sem pecar. Essa mesma exigência de abstinência sexual antes do casamento gera muita contradição interna e leva diversas pessoas a burlarem essa norma fazendo apenas sexo anal para se manterem virgens até o casamento. Claro que isso tudo é vivido com muita culpa e vergonha. O pior de tudo é que toda essa proibição em cima da sexualidade só fez gerar uma gigantesca obsessão com sexo. Essa é uma lei psíquica básica, tudo que é proibido é desejado, toda repressão gera obsessão. Não é nenhum pouco à toa que 30% de todo o tráfico mundial de dados da internet gira em torno da pornografia. Cerca de 29 petabytes de dados são transferidos pelos internautas todo mês, quase 50 gigabytes por segundo. Apenas um único site de pornografia, o xvideos, tem mais de 350 milhões de visitantes por mês e o vício em pornografia só cresce no mundo. A grande verdade é que essas ideologias repressivas adoeceram o ser humano, fazendo-o lutar contra ele mesmo, o ego lutando contra o corpo, contra os ditos pecados da carne ou como ensinou o evangelista Pedro (1 Pedro 2:11): “os desejos carnais que guerreiam contra a alma”. O psiquiatra austríaco Wilhelm Reich afirmou em seu livro seminal “A Função do Orgasmo” que o homem adoeceu psiquicamente em função de tamanha distorção no terreno da sexualidade. Segundo ele, As enfermidades psíquicas são a consequência do caos sexual da sociedade (...) o homem é a única espécie biológica que destruiu a sua própria função sexual natural e está doente em consequência disso (...) Por causa da sua educação sexualmente defeituosa, a grande maioria dos homens e mulheres é sexualmente perturbada. Reich acreditava também que quando nos voltamos contra a sexualidade, sem perceber acabamos nos voltando contra tudo que ela representa, como o prazer, a potência, a conexão e o amor! O pensador inglês Bertrand Russel, em um de seus livros, seguiu nessa mesma linha de raciocínio afirmando que: Mantendo numa prisão o amor sexual a moral convencional concorreu para aprisionar todas as outras formas de sentimento amistoso e para tornar os homens menos generosos, menos bondosos, mais arrogantes e mais cruéis.22 Freud, em 1908, já havia apontado essa relação entre distúrbio sexual e desequilíbrio psicológico. Segundo ele, “Podemos, portanto, considerar o fator sexual como o fator básico na causação das neuroses propriamente ditas (...)”. Em sua concepção, essas neuroses (...) derivam das necessidades sexuais de indivíduos insatisfeitos, representando para os mesmos uma espécie de satisfação substitutiva. Portanto, todos os fatores que prejudicam a vida sexual, suprimem sua atividade ou distorcem seus fins devem também ser vistos como fatores patogênicos das psiconeuroses.23 Mas no final das contas, a pergunta que não quer calar é: por que é que o cristianismo investiu tanta energia em controlar o comportamento sexual das pessoas, punindo e condenando quem ousasse agir diferente? Segundo a pesquisadora Bruna Suruagy do Amaral Dantas, a motivação seria a ampliação do poder político da igreja: Ao longo da história, a Igreja cristã desenvolveu mecanismos de observação e instrumentos de controle para manter desejo e sexo 22 Citado no artigo de Regina Navarro “Abstinência como política: por que achamos que sexo é sujo e perigoso?”, que pode ser encontrado aqui: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2020/02/01/sobre-a-abstinencia-sexual/ 23 FREUD, S. (1908). Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna. Pode ser encontrado aqui: https://docplayer.com.br/131159840-Moral-sexual-civilizada-e-doenca-nervosa-moderna.html sob sua tutela com o propósito de ampliar seus dispositivos de poder. (...) Por intermédio das confissões, o clero adquiriu um tipo específico de saber que ampliou o poder de dominação e controle da Igreja. As estratégias eclesiásticas consistiam em utilizar o saber obtido nas práticas confessionais para dominar o corpo e o desejo dos fiéis, tornando-o dócil e obediente, com o propósito de consolidar a autoridade moral e o poder político da Igreja cristã.24 Segundo o psiquiatra Wilhelm Reich, toda essa luta contra a sexualidade teria uma razão muito objetiva, enfraquecer as pessoas para que elas fossem mais facilmente dominadas: A supressão sexual tem a função de tornar o homem dócil à autoridade exatamente com a castração dos garanhões e dos touros tem a função de produzir satisfeitos animais de carga25. O touro representa potência e vitalidade, por isso é utilizado como símbolo da economia norte-americana - a mais poderosa do planeta - como mostra essa escultura em Wall Street. 24 DANTAS, B. S. A. (2010). Sexualidade, cristianismo e poder. Estudos e Pesquisas em Psicologia. Pode ser encontrado aqui: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/8909/6790 25 REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942) Para domesticar um touro e deixá-lo dócil e submisso é preciso primeiro castrá-lo, assim ele fica manso e subserviente, fazendo todo tipo de serviço pesado sem se rebelar. Mesmo antes de Reich, Freud já chamava atenção para o fato de que a castração da sexualidade tendia a produzir indivíduos fracos e submissos à autoridade: A abstinência sexual com frequência produz homens fracos, mas bem-comportados, que mais tarde ser perdem na multidão que tende a seguir os caminhos apontados por indivíduos fortes.26 A natureza dotou os seres humanos de um intenso instinto de sobrevivência, assim como todos os animais. O sexo representa o instinto de sobrevivência da espécie como um todo e por isso este impulso vital é tão forte em nós. Suprimir este impulso é crucial para manter o controle sobre as pessoas. Os fazendeiros sabem que para controlar um animal é preciso suprimir seus instintos selvagens desde cedo. Em visita a uma fazenda pude observar esse processo de amansamento sendo feito com uma bezerrinha que havia acabado de nascer. Logo 26 Citado em: REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942) em seguida ela foi amarrada ao mourão do curral e após muito se debater, ela acabou desistindo e ficou colapsada sem reação. O dono da fazenda explicou que “Todo bezerro que nasce deve passar um mês amarrado para amansar, caso contrário, depois que cresce não vai querer nem entrar no curral”. Segundo o fazendeiro, isto só funciona se for feito logo no início da vida, já que depois que crescem se torna bem difícil amansá-los. Freud explicou muito bem como esse processo acontece da mesma forma com o ser humano através do controle da sexualidade. Segundo ele, Psicologicamente, uma comunidade cultural justifica-se, com perfeição, ao começar proibindo as manifestações da vida sexual desde a infância, pois não conseguiria refrear os desejos sexuais dos adultos se o terreno não houvesse sido preparado na infância27. Cabe salientar que nem toda religião se opôs tanto à sexualidade quanto a religião judaico-cristã. Nas religiões africanas, como o candomblé e a umbanda, existe o orixá EXU que está ligado à sexualidade e fertilidade masculinas e costuma ser representado com seu ogó, um bastão de madeira em formato fálico, simbolizando o poder de criar e perpetuar a vida. 27 Idem. Também são bem conhecidos os templos de Khajuraho na Índia com diversas escultura eróticas - que são um belo exemplo da ligação possível entre erotismo e religião. [[ O tantra e o taoísmo são belos exemplos também de tradições espirituais cuja sexualidade faz parte das práticas de autodesenvolvimento e cujos fluidos sexuais, inclusive, são vistos como "substâncias poderosas" e usados ritualisticamente. Na tradição hindu se utilizam os termos yoni e lingan para se referir aos órgãos sexuais femininos e masculinos, respectivamente. Yoni é uma palavra do sânscrito que significa "passagem divina", "lugar de nascimento", "fonte de vida" e "templo sagrado" e também representa o órgão sexual feminino. Costuma-se dizer que a vagina é o portal mais sagrado entre o céu e a terra, é a ligação de Deus com o ser humano, a ligação com o invisível e o tangível. Já o Lingam é uma palavra em sânscrito utilizada para denominar o órgão genital masculino e significa coluna de sustentação. No tantra o Lingam é honrado como o “bastão de luz” que canaliza energia criativa e prazer. Já no ocidente optamos por nos referir aos órgãos sexuais como caralho, pau, cacete, buceta, racha, xereca, etc. Por que essa diferença tão grande na forma de denominação dos mesmos órgãos genitais? Porque a linguagem é um reflexo do psiquismo humano e como no ocidente a principal matriz de formação cultural é judaico-cristã, naturalmente desenvolvemos termos linguísticos que refletem o desgosto que sentimos pelo sexo e tudo que está associado a ele. Foi para se contrapor a essa tendência de desqualificação da sexualidade que surgiu o movimento global chamado sex-positivity (sexopositividade), que luta pelo desenvolvimento de uma cultura sexual positiva no mundo. Segundo a ativista Allena Gabosch, sexpositivity é “uma atitude em relação à sexualidade humana que considera todas as atividades sexuais consensuais como fundamentalmente saudáveis e prazerosas, encorajando o prazer sexual e a experimentação”. 28 Já a escritora Carol Queen define sexpositivity como "uma filosofia cultural que entende a sexualidade como uma força potencialmente positiva na vida de alguém e pode, é claro, ser contrastada com a cultura sexual negativa, que vê o sexo como problemático, perturbador e perigoso.” 29 E que relação será que existe entre a repressão sexual e a tradição de monogamia compulsória no casamento? A tradição de monogamia compulsória se desenvolveu no pano de fundo moral da repressão sexual propagada pela religião judaico-cristã. Afinal de contas, se sexo fosse considerado algo tão bom assim, por que criaríamos uma regra para restringir as relações sexuais ao invés de encorajá-las? A partir do momento em que passamos a enxergar o sexo de forma mais positiva, começa a fazer mais sentido que busquemos arranjos sociais que favoreçam o desenvolvimento sexual dos indivíduos, como por exemplo, os relacionamentos nãomonogâmicos. Lembremos que para o cristianismo o sexo só tem legitimidade se for para a reprodução, por isso o adultério sempre foi tão condenado, porque é feito apenas por prazer e não para fins reprodutivos. A bíblia está cheia de versículos condenando o adultério: 28 O discurso original de Allena Gabosch no Southplains Leatherfest Festival pode ser encontrado em https://allenagabosch.wordpress.com/2014/12/08/a-sex-positive-renaissance/ 29 QUEEN, C. (1997). Real Live Nude Girl: Chronicles of Sex-Positive Culture. Ed. Cleis Press Mas o homem que comete adultério não tem juízo; todo aquele que assim procede a si mesmo se destrói. (Provérbios 6:32) Vocês ouviram o que foi dito: 'Não adulterarás'. Mas eu digo: Qualquer um que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. (Mateus 5:27-28) Se um homem cometer adultério com a mulher de outro homem, com a mulher do seu próximo, tanto o adúltero quanto a adúltera terão que ser executados. (Levítico 20:10) O casamento deve ser honrado por todos; o leito conjugal, conservado puro; pois Deus julgará os imorais e os adúlteros. (Hebreus 13:4) Adúlteros, vocês não sabem que a amizade com o mundo é inimizade com Deus? Quem quer ser amigo do mundo faz-se inimigo de Deus. (Tiago 4:4) O cristianismo também difundiu a ideologia do sacrifício, ilustrada pela ideia de que Jesus havia dado sua vida para nos salvar. O sacrifício foi então enaltecido na perspectiva cristã e associado a um ato de amor - quem ama deve se sacrificar pelo amado. Por essa perspectiva, nada mais razoável do que se abrir mão do próprio desejo para agradar ao parceiro, sacrificar a liberdade sexual como forma de demonstrar amor. A própria ideia cristã de que o sexo deveria servir apenas à reprodução vai contra os estudos desenvolvidos pelo psiquiatra Wilhelm Reich. Em sua vasta obra, este autor defende a ideia de que a sexualidade saudável é aquela que é “regulada pela satisfação dos impulsos sexuais e não por normas morais.”30 Ou seja, a sexualidade deveria ser regida em função da satisfação e prazer que ela proporciona ao sujeito e não por normas morais criadas pela cultura. A sexualidade saudável seria, então, aquela regulada pelas necessidades do indivíduo e não pela necessidade de atender às demandas de instituições sociais como o casamento e a religião. 30 REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942) Reich considerava tão importante que as pessoas pudessem explorar livremente sua sexualidade que ele advogava que deveria haver leis para “salvaguardar a felicidade sexual das pessoas”.31 Segundo ele, cada indivíduo deveria experimentar em torno de 3.000 a 4.000 orgasmos ao longo da vida para se manter saudável. A conclusão que tiramos de toda essa reflexão é que para ter uma vida sexual saudável e satisfatória é crucial se libertar dessa moralidade repressora que herdamos da cultura judaico cristã. Definitivamente sexo e moral não combinam. Toda ação humana deve sim ser conduzida por princípios éticos, mas isso é muito diferente de uma moralidade repressora que normatiza o que é certo e errado, o que é aceitável e o que não é, deixando um saldo psicológico de frustração, culpa e medo, além de vergonha e sentimento de inadequação. Ética é muito diferente de moral. A moral dita o que é certo e errado, de fora para dentro, sem considerar a vivência interna de cada um. A moralidade insufla a patrulha ideológica dos costumes, que fica pronta para julgar e recriminar qualquer um que saia da linha. Já a ética se refere a princípios universais de respeito e cuidado com o próximo e a si mesmo. A sabedoria antiga sempre exaltou a importância do autoconhecimento. No Templo de Apolo em Delfos, consta a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, bastante semelhante ao provérbio que se encontrava no templo de Luxor, no Antigo Egito: "Homem, conhece a ti mesmo, assim conhecerá os deuses." Talvez, no que se refere ao desenvolvimento sexual, seja mais importante se conhecer do que obedecer a regras de conduta estabelecidas pelas religiões - e não tem como se conhecer sem experimentar. E para experimentar é necessário deixar de fora toda preocupação com o certo e o errado e se permitir ser guiado pelo prazer e pela curiosidade, tendo sempre o autoconhecimento e a ética como balizadores da nossa ação. 31 REICH, W. (1975). A Função do Orgasmo. Ed. Brasiliense. (Original publicado em 1942) Sexo é uma necessidade biológica, assim como dormir e se alimentar. Não precisamos de moralidade na hora das refeições, basta fazer escolhas inteligentes e saudáveis. O mesmo vale para o sexo - a regra é explorar e descobrir o que nos faz bem, sem neura e sem culpa. Simples assim! HISTÓRIA DAS MENTALIDADES E COSTUMES É muito interessante ver como os costumes e as mentalidades mudam ao longo do tempo. Coisas que eram muito importantes há 50 anos hoje têm pouca relevância e vice-versa. Isso nos mostra o quanto o certo e o errado são relativos e o quanto é importante encontrarmos as referências do que é bom para gente mais em nós mesmos do que nos costumes culturais. Leonie Linssen, coaching de relacionamento e co-autora do livro “Amor Sem Barreiras – As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e Poliamorosos nos Dias De Hoje”, faz uma importante consideração sobre a forte pressão social que sofremos para nos adaptarmos à cultura: A pressão social para adaptação é enorme. Alguém que queira viver uma vida baseada em verdadeira autenticidade pessoal precisa, antes de tudo, ter coragem de ser quem realmente é. Para muitos, esse é um processo minucioso que implica, em primeiro lugar, descobrir como entrar em contato com a nossa fonte interior da verdade, o nosso ser mais íntimo. Depois desse olhar interior honesto, começamos a tomar consciência do modo como fomos ensinados a nos comportar, das nossas crenças herdadas e muitas vezes indiscriminadas, dos nossos bloqueios mentais e emocionais e dos valores e das normas que consideramos verdadeiros (...). Vejamos, a título de exemplo, diversas mudanças que ocorreram nas últimas décadas e que ilustram como os costumes são circunstanciais e servem aos propósitos de cada época, propósitos estes que nem sempre estamos cientes. O patriarcado, por exemplo, dividiu o mundo em homens e mulheres, tendo elas ficado submetidas ao poder deles. Ainda no século passado, às mulheres só cabia o papel de mãe e dona de casa. As mulheres não podiam trabalhar fora, não podiam votar, não podiam estudar, não podiam ter prazer, só podiam cuidar dos filhos, da casa e do marido. A mulher tinha que ser delicada, frágil, sensível, cheirosa, dependente, pouco competitiva, indecisa, pouco ousada, recatada e chorar com facilidade. Grandes pensadores da humanidade endossaram esse quadro, como por exemplo Arthur Schopenhauer, que afirmou: É evidente que a mulher é, por natureza, destinada a obedecer e a prova disso é que ela se liga não importa com que homem, para que ele a dirija e domine, pois ela precisa de um senhor. Se é jovem, procura um amante, se é velha, um confessor32. Hoje as mulheres ocupam cargos de liderança em grandes empresas e lideram grandes países como a Alemanha, de Ângela Merkel e a Nova Zelândia, cuja primeira ministra é a Jacinda Ardern, de apenas 40 anos de idade. Há poucas décadas a virgindade era um grande valor, uma moça que não a preservasse teria muita dificuldade em se casar. Algumas décadas depois, a vergonha, para muitas pessoas, é chegar à idade adulta ainda virgem. O divórcio era vivido de forma dramática, representando uma grande vergonha para a família, a ponto de alguns colégios não permitirem a matrícula de filhos de pais separados. Algumas décadas depois, a vergonha é não se separar quando se encontra em um relacionamento fracassado. Aliás, a lei do divórcio no Brasil só foi promulgada em 1977 e enfrentou enorme resistência dos conservadores que alegavam que isso iria acabar com a família, como se vê nessa foto da época. 32 Citado nessa matéria da Revista Galileu: https://revistagalileu.globo.com/Sociedade/noticia/2020/06/como-cienciacontribuiu-com-machismo-e-racismo-ao-longo-da-historia.html Há algumas décadas o homem tinha de ser machão, não podia chorar, não podia ser delicado nem vaidoso. Hoje já se enaltece o homem sensível e se critica o macho tosco e a masculinidade tóxica. Até pouco tempo atrás não se admitia que um homem usasse cabelo comprido e muito menos brinco. Mulheres nem sonhavam em dirigir ou usar calça jeans. A homossexualidade era um pecado, uma doença. A medicina, travestida de ciência, até o século XIX defendia que a masturbação gerava graves doenças, inclusive deixar a mão cabeluda. E esse era um dos “efeitos colaterais” mais brandos que se atribuíam ao sexo solitário. A lista de doenças masturbatórias era imensa: tuberculose, loucura, cegueira, anemia, envelhecimento precoce, calvície e epilepsia são apenas algumas delas, como demonstra o livro “Solitairy Sex – A Cultural History of Masturbation” (Sexo solitário – Uma História Cultural da Masturbação), do historiador americano Thomas Laqueur. Hoje em dia não conseguimos nem imaginar qualquer cientista afirmando uma coisa dessas! No que se refere às formas de se viver o amor e a sexualidade, também vemos que as crenças, valores e expectativas que determinam o que é desejável ou não na conduta íntima de homens e mulheres são sempre narrativas culturais de uma determinada época e seguem variando com o tempo e com as circunstâncias de cada sociedade. Essas narrativas culturais atuam sempre no sentido de reforçar as dinâmicas de poder existentes na sociedade, o que for conveniente para manter o status quo será encorajado. Na Grécia antiga, por exemplo, a mulher era colocada em situação de inferioridade, invariavelmente condenada à submissão e à obediência. Apenas o homem era valorizado, fazendo muito sentido que as relações homossexuais entre homens fossem encorajadas. Foi nesse contexto que surgiu a prática da pederastia na Grécia, onde um homem mais velho iniciava sexualmente um adolescente para que fosse inserido na sociedade. As relações pederásticas eram realizadas pelo erasta - normalmente um homem com mais de 30 anos, denominado amante – e pelo eromeno – um jovem de idade entre 12 e 18 anos, denominado amado. Na cidade de Esparta, em Roma, a homossexualidade também era comum e tinha a função social de fortalecer o exército para a batalha, como podemos ver nesta descrição: Sendo assim, a pederastia em Roma influenciava na formação de um exército uno, fortalecido, e servia como base para as formações e estratégias de guerra dos espartanos. A colônia espartana de Tebas era exemplo disso, pois tinha um pelotão de guerra que era considerado quase imbatível, o Pelotão Sagrado de Tebas. Sua formação era caracterizada totalmente por duplas, que guerreavam bravamente durante as batalhas a fim de proteger seus parceiros, vencendo muitas batalhas e tornando-se uma tropa de elite espartana. Sendo assim, as relações pederastas não afetavam em nada a masculinidade dos soldados de Esparta.33 Após a expansão do cristianismo, que condenava todas as formas de prazer e só autorizava a sexualidade para fins reprodutivos, faz todo sentido que a homossexualidade tenha sido condenada, já que era uma relação sexual que não culminava na procriação. O mesmo vale para a masturbação e o adultério, são todas 33 Esta citação pode ser encontrada neste versículo da Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Homossexualidade_na_Gr%C3%A9cia_Antiga experiências de cunho sexual que não visam a reprodução e por isso foram fortemente condenadas. Em alguns momentos da história o sexo foi visto como algo abominável. Qualquer coisa que tornasse o corpo mais atraente era entendida como um incentivo ao pecado. Evitavam-se banhos e a sujeira se tornou virtude. Os piolhos eram chamados de pérolas de Deus e estar sempre cobertos por eles era marca indispensável à santidade. Há registros de freiras que ficaram 53 anos sem tomar banho, um motivo de extremo orgulho para elas.34 Com tanta variação de costumes morais ao longo da história podemos nos perguntar: afinal de contas, qual é o comportamento correto? É certo se divorciar? É certo se masturbar? É correto fazer sexo apenas por prazer? É correto o sexo homossexual? É certo o adultério? O certo é se casar virgem? É correto a não-monogamia? A conclusão inevitável é que não existe nada que seja naturalmente certo ou naturalmente errado, são sempre construções culturais. A moral é uma construção cultural que está em permanente mutação. Então quer dizer que tudo pode? Sim, desde que não prejudique outras pessoas nem a si mesmo, pois se a moral é relativa, a ética não é. Ética se refere a princípios universais de respeito à vida, respeito ao outro, respeito à liberdade, respeito às diferenças. São esses princípios gerais que devem governar nosso comportamento e não a moral cultural que é extremamente circunstancial e em geral só serve para manter o status quo, reforçar o establishment, defendendo os interesses de um pequeno grupo e ignorando as necessidades e singularidades da vasta maioria dos indivíduos. Nessa perspectiva, podemos dizer até que a moralidade pode ser muito antiética pois toda vez que desconsideramos a experiência interna do indivíduo estamos sendo antiéticos na medida em que não respeitamos a singularidade de cada um. Imagine 34 NAVARRO, Regina. O livro do Amor (Vol. 1) – Da pré-história à renascença. Ed. Best Seller. uma pessoa com orientação homossexual sendo obrigado a transar com pessoas do sexo oposto simplesmente por conta dos costumes morais. Isso é uma violência brutal, assim como seria uma violência coagir uma pessoa heterossexual a se relacionar sexualmente com pessoas do mesmo sexo contra a sua vontade. E por que nos apegamos tanto aos valores morais de uma época se eles são tão relativos? Porque eles nos dão um caminho a seguir, uma referência sobre como se portar e isso facilita muito a vida! É muito mais fácil alguém nos dizer como temos que nos comportar do que se nós mesmos tivermos que decidir por conta própria. Dá muito trabalho seguir o nosso próprio caminho, é muito mais fácil seguir um rebanho. Além disso, a necessidade de pertencimento é muito forte no psiquismo humano e não queremos correr o risco de sermos rejeitados pelas pessoas que amamos e das quais tanto necessitamos para nos sentirmos seguros. Então, por uma questão de segurança, preferimos seguir as normas culturais acriticamente, pois em tese assim não tem como errarmos - afinal de contas, estamos fazendo o que todo mundo faz, o que todos nos disseram para fazer. Um outro motivo pelo qual tendemos a seguir acriticamente os modelos estabelecidos é por causa do processo de hegemonização cultural a qual todos fomos submetidos, que é (...) o domínio de uma sociedade culturalmente diversa pela classe dominante, que manipula a cultura dessa sociedade - ou seja, as crenças, as explicações, as percepções, os valores e os costumes - de modo que a visão de mundo imposta por esta classe se torne uma norma cultural, a ideologia dominante e universalmente válida, que justifica o status social político e econômica como natural e inevitável, perpétuo e benéfico a todos e não como uma construção social artificial que beneficia apenas a classe dominante.35 A forma como os costumes e comportamentos são definidos como a norma padrão nunca é por acaso... Estes são sempre definidos de forma a dar suporte à dominação 35 Enciclopédia Columbia, 5ª edição, 1994, página 1.215 de um grupo sobre outro. Em outras palavras, o grupo dominante define o que seria o correto - a norma cultural - de acordo com o que vai beneficiá-lo. Um belo exemplo desse mecanismo em ação é a forma pela qual representamos a figura de Jesus Cristo: um homem branco, loiro, alto e de olhos azuis. É óbvio que Jesus nunca poderia ter tido esta aparência nascendo no Oriente Médio. Aliás, diversos empreendimentos científicos buscaram reconstruir como seria aproximadamente o rosto de Jesus. Um deles utilizou como base três crânios do século 1, lançando mão de softwares de modelagem 3D para determinar qual seria o formato do nariz, dos olhos, da boca… enfim, do rosto de um adulto típico da época e o resultado foi que Jesus deve ter tido uma aparência mais ou menos como a seguinte:36 [ Mas os Europeus o retrataram conforme sua imagem e semelhança: 36 https://super.abril.com.br/historia/jesus-era-moreno-baixinho-e-invocado/ O próprio fato de Deus ser representado como homem já faz parte de um processo de hegemonização cultural, pois coloca o homem acima da mulher. Aliás, pai, filho e espírito santo, estão todos no masculino; Eva veio da costela de Adão e assim por diante... Já as religiões da Grécia antiga, por exemplo, eram politeístas e continham diversas Deusas em seu panteão. O mesmo ocorre com o Hinduísmo. As religiões politeístas tendem a aceitar melhor a diversidade cultural, já as monoteístas tendem a querer impor uma verdade única sobre todos os povos. No dia 12 de agosto de 2008, por exemplo, o “São Paulo”, jornal semanal editado pela Arquidiocese de São Paulo, trouxe a seguinte manchete: “Igreja alerta sobre lei da família”, com matéria de página inteira. O alerta dizia respeito à votação, que deveria acontecer em breve pelo Congresso Nacional, do Estatuto da Família, criticado pela Igreja católica nos seguintes termos: Além da descaracterização da família como tal, o projeto propõe a completa equiparação entre a família fundada no matrimônio, a união estável, a união homoafetiva e a união parental e monoparental. Não se fala mais de família e sim de “entidades familiares”; e atribui a todas as entidades familiares a mesma dignidade e igual merecimento de tutela, sem hierarquia entre elas. Além disso, são previstos tempos acelerados para a realização do divórcio, que pode ser conseguido inclusive de modo extrajudicial.37 37 BUSIN, Valéria Melki. (2011). Religião, sexualidades e gênero. Revista Rever, Ano 11, Nº 01. Ou seja, a Igreja estava criticando a noção de “entidades familiares”, pois a lei estaria atribuindo a todas elas a “mesma dignidade”. Para a Igreja, somente um modelo de família pode existir e todos os outros (união estável, união homoafetiva, união parental, monoparental, polifidelidade, etc...) devem ser considerados hierarquicamente inferiores e não dignos. Isso é hegemonia cultural, colocar uma forma como superior a todas as outras a fim de auferir algum benefício particular neste caso, a garantia da propagação dos valores cristãos para as futuras gerações. A Igreja sempre precisou estimular a valorização família tradicional pois ela serve como um local privilegiado para transmissão e reprodução dos valores cristãos, como explica a pesquisadora Valéria Melki Busin: A família é, para diversas tradições religiosas, um lócus privilegiado de transmissão e/ou socialização de valores e princípios religiosos. Como as religiões não dispõem de mecanismos coercitivos, elas instituem uma aliança com a família – fazendo a apologia desta –, que inculca em seus membros, especialmente nos das gerações sucessoras, os valores morais defendidos pelas religiões. (...) Por isso, a principal estratégia utilizada pelo Catolicismo para impor seus valores morais para a sociedade pressupõe um forte investimento na família de origem e na manutenção do modelo nuclear de família.38 Por isso, tudo que atenta contra essa estrutura familiar é tido como errado, indesejável e pecaminoso, como por exemplo a homossexualidade, o adultério, o divórcio, etc. Recentemente ocorreu outro exemplo que ilustra essa tentativa, por parte de alguns grupos que estão no poder, de imposição autoritária de um único modelo cultural sobre as pessoas. No dia 12 de julho de 2021 diversas mídias repercutiram a decisão da Funarte de reprovar o pedido de apoio do Festival de Jazz do Capão, negando o financiamento ao festival realizado na região da Chapada da Diamantina sob o argumento de que “a música deveria servir à Deus” e isso não ocorreria no evento. Vemos então que as pessoas que estão no poder querem determinar até a música 38 BUSIN, Valéria Melki. (2011). Religião, sexualidades e gênero. Revista Rever, Ano 11, Nº 01. que merece ou não ser ouvida, de acordo com os critérios deles. Isso considerando que nosso Estado é laico! A questão central é que por conta desses processos autoritários de hegemonização cultural, sempre existe alguém tentando nos impor a forma como deveríamos ser e nos comportar. Nunca somos encorajados a descobrir e seguir a nossa própria verdade. Muito pelo contrário, somos educados e treinados para seguir o que nos dizem que é certo e errado sem questionar – quase como um adestramento. Desta forma, não temos a oportunidade de construir a nossa própria subjetividade, o nosso próprio jeito de ser no mundo. Somos, na verdade, formatados para obedecermos acriticamente ao que nos dizem que é certo ou errado e se sairmos um pouquinho da linha que nos é imposta, somos severamente julgados e nos sentimos culpados e inadequados. Além de sermos acusados pelo nosso “juiz interior”, existe toda uma patrulha dos costumes do lado de fora pronta para nos recriminar, repreender e difamar... assim corremos um sério risco de isolamento caso não voltemos para linha. Em ambos os casos, seja a acusação vindo de dentro ou de fora, o resultado é sempre o mesmo: ficamos com medo e inseguros e preferimos obedecer! Existe um grande rolo compressor cultural que não permite que as pessoas descubram sua própria verdade. Nós mesmos nos controlamos mutuamente para ter certeza de que ninguém sairá da linha! E uma pessoa com medo e insegura irá facilmente seguir os outros como uma ovelhinha, afinal, somos muito carentes para correr o risco de perder a aprovação das pessoas significativas em nossas vidas. Quem vai querer arriscar seguir no contrafluxo? É o medo, eis o inimigo. O medo principalmente do outro, que observa atentamente tudo o que fazemos — sempre pronto a criticar, a condenar, a pôr restrições — porque fazemos diferente dele. Só por isso. Nossa diferença diz para ele que sua mesmice não é necessária. Que ele também pode tentar ser livre — seguindo sua estrela. Que sua prisão não tem paredes de pedra, nem correntes de ferro. Como a de Branca de Neve, sua prisão é de cristal – invisível. Só existe na sua cabeça. Mas sua cabeça contém — é preciso que se diga — todos os outros que de dentro dele o observam, criticam, comentam — às vezes até elogiam! Porque vivemos fazendo isso uns com os outros — nos vigiando e nos obrigando — todos contra todos — a ficarmos bonzinhos dentro das regrinhas do bem-comportado — pequenos, pequenos. Sofremos de Megalomania porque no palco social nos obrigamos a ser todos anões. Nós nos obrigamos a ser, todos, pequenos e insignificantes E ai de quem se salienta — fazendo de repente o que lhe deu na cabeça. Fogueira para ele! Ou você pensa que a fogueira só existiu na Idade Média?39 É muito mais fácil viver em um mundo onde tudo já está previamente definido. Como ser homem, como ser mulher, como ser um marido, como ser uma esposa, como fazer sexo, como não fazer sexo, o que pode e o que não pode. Abrir mão dessas referências é como seguir a vida sem um manual de instruções! Dá trabalho descobrir por conta própria o que é de fato bom para VOCÊ, qual é de fato a SUA necessidade, a SUA verdade. O convite que fazemos então, leitor, é para que você descubra qual modelo de relacionamento atende melhor às suas necessidades ao invés de se encaixar em um modelo pré-estabelecido de relacionamento que nos foi imposto sem levar em conta as nossas singularidades. Não tem como um só modelo servir para milhões de pessoas diferentes, cada qual vai ter que criar uma forma que se encaixe bem com seus valores, com as suas características de personalidade, sua história de vida, seu momento atual, seus desafios, etc. E viva a liberdade tão duramente conquistada! 39 Trecho do artigo As Carícias e o Iluminado, de José Ângelo Gaiarsa. Pode ser encontrado aqui: https://letraefilosofia.com.br/as-caricias-e-o-iluminado-jose-a-gaiarsa/ NÃO-MONOGAMIA POLÍTICA E OPRESSÕES ESTRUTURAIS Como explicamos anteriormente, a monogamia surgiu no mundo como um sistema de controle do comportamento sexual das mulheres a fim de servir ao interesse dominante dos homens proprietários de terras e animais. Em muitos sentidos a monogamia surgiu como um mecanismo de escravidão da mulher para fins reprodutivos. Historicamente, mulher e filhos se somavam às terras e bens materiais do patriarca como suas propriedades. Então, de partida vemos algo de muito negativo na tradição monogâmica, ela coisifica as pessoas, transforma as pessoas em objetos que servem ao interesse de outrem. No passado o interesse era o controle do corpo feminino para geração de herdeiros legítimos. Com a expansão do cristianismo, essa exigência se generalizou para os homens também e o controle do comportamento sexual de todos passou a servir como um mecanismo de dominação política da igreja. De todo modo, a monogamia sempre serviu como um mecanismo de controle do corpo de alguém, seja para fins materiais ou para fins políticos. Hoje em dia a monogamia tem sido utilizada com o propósito de garantir segurança psicológica para o parceiro, segurança de que a pessoa não será trocada por outra. Ainda assim, é uma coisificação do outro, é uma forma de utilizar a sexualidade da outra pessoa para satisfazer uma necessidade psicológica própria (neste caso, necessidade de segurança). Por conta desta perspectiva é que muitas pessoas no universo não-monogâmico argumentam que devemos enxergar a não-monogamia não apenas como um modelo relacional, mas como um ato político, como uma luta contra as opressões estruturais. Nessa perspectiva politizada, “não-monogamia não é sobre quantidade de pessoas que se pega. É sobre não se autorizar a legislar a sexualidade/afetiva de outra pessoa.”40 A não-monogamia enquanto escolha política é uma desconstrução de paradigmas impostos por uma sociedade racista, machista e patriarcal. Paradigmas que determinam como as pessoas devem ser ao invés de as encorajarem a serem elas mesmas. Nesse sentido a monogamia é aliada de outros mecanismos normativos de opressão como a heteronormatividade, a cisnormatividade e o machismo. O sistema monogâmico também se articula com o da propriedade privada e este, por sua vez, com todo o racismo estrutural, como explica Geni Núñez: Romper com a lógica monogâmica é romper com uma cultura cisheteropatriacal e branca. Para isso, é necessário, um posicionamento anti-machista, anti-racista e anti-LGBTQIfóbico também.41 Nessa perspectiva, pode-se entender a não-monogamia também como uma identidade e não só como uma prática relacional, como explica Nana Miranda: Se entender não-mono contempla a busca por emancipação na construção da identidade política, nos dando a oportunidade de romper com uma homogeneidade social que é a monogamia. 42 Sendo assim, mesmo sendo solteiro, ainda é possível ser não-monogâmico, no sentido de buscar se relacionar sem controlar a afetividade/sexualidade das outras pessoas. A luta não-monogâmica é para permitir que as pessoas sejam livres para escolherem como querem se relacionar, sem nenhuma coerção. Da mesma forma que as pessoas devem ser livres para manifestarem a sua orientação sexual sem preconceito. Da mesma forma que a expressão de gênero deve ser livre, sem preconceito. Da mesma forma que os homens devem ser livres para chorar e expressarem seus afetos sem 40 Não-monogamia e as opressões estruturais - Reflexões anticoloniais. Artigo de autoria de Geni Núñez, publicado em: https://medium.com/naomonoemfoco/n%C3%A3o-monogamia-e-as-opress%C3%B5es-estruturais7c8d7241b552 41 Idem. 42 A não-monogamia como identidade política. Artigo de Nana Miranda, publicado em: https://medium.com/naomonoemfoco/a-n%C3%A3o-monogamia-como-identidade-pol%C3%ADtica-d132bcf15e45 julgamento. Da mesma forma que os meninos devem ser livres para usarem cor de rosa e as meninas devem poder jogar futebol e assim por diante! Toda normatização é opressiva e coercitiva pois não dá para um modelo só valer para todas as pessoas. Há quem goste de ser monogâmico e há quem goste de ser nãomonogâmico - não deveríamos definir a priori qual é a norma e sim deixar as pessoas livres para manifestarem sua verdade, sua singularidade, sem terem seu valor e sua dignidade diminuídos por isso. Manifesto por uma não-monogamia política43 A Não-monogamia Política é anticolonial e antirracista, por entender a estrutura monogâmica como imposição colonial violenta e por entender a importância de se opor à colonização, inclusive de nossos desejos e afetos. A Não-monogamia Política é anticapitalista, por entender a estrutura monogâmica como estrutura diretamente ligada à propriedade privada. Por entender que a monogamia é essencial para a manutenção do trabalho doméstico não remunerado e a criação da mão de obra para o capital, bem como a exploração e a criação da opressão de gênero. A Não-monogamia Política é antiLGBTfobia, por entender que o sistema monogâmico está atrelado a estrutura cisheteropatriarcal. Uma hegemonia que se consolidou excluindo e subalternizando corpos dissidentes. Uma estrutura que surge excluindo e gerando violências diretas e indiretas a esses corpos. Nossos desejos e afetos foram invadidos e colonizados. Nos foi imposto uma única forma de amar e se relacionar. A monogamia é uma imposição social, jurídica e religiosa/cristã. A Não-monogamia Política é a construção coletiva de um projeto de 43 Reprodução de trechos do “Manifesto por uma não-monogamia política” do coletivo NM em Foco: https://naomonoemfoco.com.br/manifesto-por-uma-nao-monogamia-politica/ emancipação dessa invasão, além do reconhecimento do sistema monogâmico como mais uma forma de violência a qual somos submetidos. A estrutura monogâmica empobrece as nossas conexões. São as comunidades que movem o mundo, não a família nuclear. O sentido ancestral da vida sempre foi coletivo, apesar de tentarem nos dizer incessantemente que não. A Não-monogamia Política é a busca pelo fortalecimento dessas conexões e pelo fim das estruturas de opressão. Questões de gênero: evitando o abuso nas relações não-monogâmicas Já que estamos falando sobre opressão estrutural, não poderíamos deixar de mencionar as questões de gênero subjacentes à não-monogamia. Relações abertas funcionam melhor quando existe uma relação igualitária entre os membros da relação, onde ambos têm voz e igual autonomia decisória. Porém, como vivemos em uma sociedade patriarcal, sabemos que infelizmente os homens, de forma geral, costumam ter mais poder que as mulheres, inclusive nas relações afetivas. Por isso, é possível que os homens se utilizem desses discurso não-monogâmico para obter benefícios para si próprio, sem levar em consideração os interesses da parceira. Neste caso, haverá a reprodução do modelo patriarcal em que o homem utiliza a mulher para satisfazer seus interesses pessoais. Essa assimetria de poder na relação pode levar a situações muito opressoras, principalmente no universo do swing, onde muitas vezes as mulheres acabam se submetendo a participar de experiências sexuais aversivas somente porque o parceiro quer. Ou então a mulher acaba sendo utilizada como “moeda de troca” para o parceiro ter acesso a diferentes mulheres. Nada disso pode ser descrito como nãomonogamia responsável, que é pautada sempre pela ética do cuidado e da autonomia de todos os participantes. Para se proteger contra essa situação, os autores do livro “Relações Livres – Uma Introdução” elaboraram essa lista com cinco perguntas que as pessoas, especialmente as mulheres, devem fazer a si mesmas para compreender melhor sua posição nessa abertura da relação. Uma resposta positiva a qualquer uma delas indica necessidade de examinar a situação com atenção: 1. Eu quero uma relação não-monogâmica de fato ou estou aceitando somente por medo de perder o parceiro? 2. O comportamento de meu parceiro dificulta, de alguma forma, que eu seja livre, que eu saia com outras pessoas? 3. Meu parceiro (ou parceira) força a barra para que eu me relacione com outras mulheres (ou homens), mesmo eu não estando certa se é isso que eu quero? 4. Sou bi e meu parceiro só fica tranquilo quando me relaciono com mulheres, “dando trabalho” se saio com homens? 5. Tenho a impressão de que meu parceiro só está a fim de transar comigo, mesmo que estejamos nos propondo a estabelecer uma relação também afetiva? MITOS SOBRE A NÃO MONOGAMIA Como descrevemos no capítulo anterior, as pesquisas científicas evidenciam que o comportamento não-monogâmico é muito mais prevalente na natureza do que a monogamia, o que contraria o mito de que as relações abertas são antinaturais e imorais. A definição do que é certo ou errado varia conforme os costumes de cada época, por isso preferimos entender que o correto mesmo é seguir a sua própria verdade e criar relacionamentos honestos e éticos que estejam adaptados às suas necessidades e a de seu parceiro. Mesmo com grandes mudanças culturais, ainda assim a ideia da não-monogamia não costuma ser bem recebida pelas pessoas, que criticam ferozmente essa possibilidade relacional, como podemos ver através das críticas recebidas em nosso perfil do instagram @não_monogamia_responsavel: douglasferreira.g: A clássica putaria pagã da antiguidade. Quanta pobreza! Linguaecogitandi: Então... Isso soa tipo: quero a segurança do casamento, mas sem abdicar de umas aventurazinhas. E isso independe de ser homem ou mulher, sem essa! pacismateus: Fruto de uma sociedade cada vez mais fluída, promíscua e rala. É a nova moda. wolfgangschlogel: Somente quem não sabe o que é o amor verdadeiro aceitaria isso. flavio_srf: A poligamia acaba quando o cara vê ou descobre que a mulher que ama está dando pra outro. Ou quando o homem amado é flagrado com outra. É impossível saber que a mulher que vc ama chupa o pau de outros caras. Desculpe a sinceridade, mas é isso! amauryaqui: Auto-engano para nossas taras. Renomear um ato falho é auto-engano. sambex.da.massa: Resumindo, promiscuidade. ga_tatu: Gente degenerada do cacete. Vão se tratar, doentes. A atriz Fernanda Nobre, quando decidiu revelar que estava em um casamento aberto, também recebeu inúmeras críticas em seu perfil do instagram: marialuciateixeira99: eu te admirava como atriz e acho vc mt linda mais tô chocada com esta sua escolha de relação. Mulher de pouco cérebro, sem amor próprio. goulart5781: não aceito um relacionamento assim, se fosse minha mulher não dividiria com mais ninguém. Imaginem outro homem possuindo minha mulher. De jeito algum... isso é levar piruca de touro... beka.trajano. Sinceramente respeito mas não concordo! A modernidade está destruindo as formas de pensar das pessoas. danilohguimaraes. Realmente é uma trouxa conformada! kkk perigoso_4.0. Uma forma elaborada pra dizer que adora uma putaria. fefearmando: Deus me livre de ter uma relação dessa! Essas críticas ilustram os diversos mitos envolvendo os relacionamentos nãomonogâmicos e também a mentalidade possessiva e machista que ainda predomina em nosso mundo. O comentário de goulart5781 é bem ilustrativo dessa mentalidade possessiva. Diz ele que não “dividiria” a mulher com mais ninguém, como se a mulher fosse um bem ou um produto que pudesse ser “dividido” com os outros. Depois ele diz: “imaginem outro homem possuindo a minha mulher”. A própria linguagem denuncia a mentalidade possessiva que coisifica a mulher como uma propriedade do homem – embora no fundo essa mentalidade independa do gênero. O comentário de flavio_srf também ilustra esse machismo estrutural baseado na posse: “é impossível saber que a mulher que vc ama chupa o pau de outros caras”. Aliás, 90% dos comentários críticos à não-monogamia vem precisamente dos homens e isso não é por acaso. Esse detalhe foi percebido por uma das leitoras da nossa página no instagram, que disse assim: É interessante ver que a maioria dos comentários contrários vem de perfis masculinos, sendo que do ponto de vista da estatística homens seguem traindo mais que mulheres. Talvez estejamos nos deparando com a “não permissão” de que mulheres possam optar por relacionamentos não-monogâmicos. Tendo em vista que muitos homens mantêm esse tipo de relacionamento, mas de forma escondida, caracterizando a traição. A seguir, vamos elencar os principais mitos que cercam os relacionamento nãomonogâmicos e comentar algumas dessa falsas verdades propagandeadas pelos críticos da não-monogamia. NÃO-MONOGAMA É O MESMO QUE POLIGAMIA Essa é uma confusão bastante comum, mas na verdade, trata-se de coisas muito distintas. Poligamia é um termo de origem grega, que significa muitos casamentos. É um sistema onde o homem tem mais de uma mulher ao mesmo tempo (poliginia) ou até mesmo onde a mulher tem mais de um marido simultaneamente (poliandria) – sendo que esta é bem menos comum que a poliginia. A poligamia está presente em vários países, mas tem caído em desuso com o passar do tempo. No islamismo ela é praticada há séculos, inclusive pelo profeta Maomé, e até hoje é adotado em países muçulmanos, regulado pelo Alcorão - o livro sagrado dos muçulmanos - que permite que o homem tenha, no máximo, quatro esposas. A diferença da não-monogamia para a poligamia é muito simples. Na poligamia, essa autorização para se ter outros parceiros é unilateral, em geral somente o homem pode se casar com outras mulheres, sendo que elas são obrigadas a continuarem monogâmicas. A não-monogamia responsável pressupõe uma igualdade de oportunidades, por isso só funciona em uma relação igualitária. A poligamia costuma ocorrer em países machistas onde o patriarcado ainda vigora com muita força, normalmente sancionado pela religião oficial e pelas leis do Estado. Além disso, a poligamia (...) onde é culturalmente aceita e permitida pela legislação, é também a norma coercitiva, tal qual a monogamia. É um arranjo centrado em uma pessoa, ou seja, mantém centralizado o poder hierárquico, e as outras envolvidas não se relacionam entre si. Por isso não-monogamia deve na nossa opinião ser também uma não poligamia, no sentido de se opor a essa estrutura nuclear de posse.44 “SE QUER SER NÃO-MONOGÂMICO, ENTÃO É MELHOR FICAR SOLTEIRO” Vemos que em nossa sociedade existe essa crença muito arraigada de que nós sempre temos que escolher entre sermos solteiros e continuarmos livres OU nos casarmos e ficarmos presos. É como se tivéssemos que optar entre ter um amor OU ser livres, numa visão bem maniqueísta da realidade: ou isto ou aquilo. Se optarmos por sermos solteiros podemos ficar com várias pessoas, mas se optarmos por um relacionamento só poderemos ficar com uma pessoa e fim de papo! Ora, as pessoas não mudam só porque iniciaram um relacionamento. Se elas gostavam de ser livres para conhecer outras pessoas enquanto estavam solteiras, não é só porque elas entram em um relacionamento que vão deixar de curtir essa liberdade. Afinal de contas, elas continuam sendo as mesmas pessoas e tendo as mesmas necessidades! A grande verdade é que nós sempre vamos ter essas duas necessidades na vida: amar E ser livres. Temos necessidade de nos sentirmos vinculados, de sentirmos segurança, previsibilidade e estabilidade – todas essas coisas que um relacionamento oferece mas também temos necessidade de aventura, novidade, adrenalina e frio na barriga. Como bem explica a psicoterapeuta de casal Esther Perel: De um lado, nossa necessidade de segurança, previsibilidade, proteção, dependência, confiança e permanência, todas essas experiências fundamentais das nossas vidas que chamamos de lar. Porém, temos também uma necessidade igualmente forte, homens e mulheres, por aventura, novidade, mistério, risco, perigo, o desconhecido, o inesperado e a surpresa. O casamento tal como conhecemos costuma atender à primeira dessas duas necessidades apenas, trazendo muita segurança e previsibilidade, mas a verdade é 44 Artigo de Newton Jr, Nana Miranda e Simone Bispo. Mas afinal, o que é não-monogamia. Pode ser encontrado em: https://naomonoemfoco.com.br/mas-afinal-o-que-nm/ que o anseio pela novidade não deixa de existir só porque entramos em um relacionamento! Por isso, faz todo sentido que queiramos ter as duas coisas ao mesmo tempo como ocorre na não-monogamia: amar E ser livre. Nada poderia ser mais natural que isso... SE AMASSEM O PARCEIRO DE VERDADE NÃO CONSEGUIRIAM VÊ-LOS COM OUTRA PESSOA. O pressuposto aqui é de que amar implica em querer possuir o outro só pra si. Esse é um tipo de raciocínio de quem enxerga o amado como propriedade, acaba sendo uma coisificação da outra pessoa. Essa forma de pensar está muito alinhada com a definição de casamento que apresentamos no início do livro, proposta pelo filósofo Immanuel Kant, que o definiu como a “união de duas pessoas de sexos diferentes para a posse mútua e vitalícia de suas qualidades sexuais”.45 Nessa perspectiva, é como se amar automaticamente desse o direito de exclusividade sobre o corpo da outra pessoa, como se a certidão de casamento fosse uma escritura de posse. É curioso que em geral costumamos ter a partilha como um valor, ensinamos nossos filhos a partilhar os brinquedos, mas quando se refere ao amor, queremos ele todo só para nós mesmos! Como coloca o psicólogo e escrito britânico Adam Philips: “Podemos crer que partilhar seja uma virtude, mas parecemos não acreditar em compartilhar aquilo que mais valorizamos na vida: nossos parceiros sexuais”.46 Amar é querer ver o outro feliz, é querer ver o outro se realizando, se expandindo, se descobrindo, tendo alegria, prazer, etc. Quando amamos alguém desejamos tudo de melhor para essa pessoa, incluindo aí a liberdade e a oportunidade de ter experiências significativas caso elas assim desejem. As pessoas que fazem esse tipo de crítica na verdade amam mais a própria sensação de segurança do que a outra pessoa. 45 46 KANT, I. (1797). Metafísica dos Costumes. PHILLIPS, A. (1999) Monogamy. Ed. Vintage. Preferem privar o outro de uma alegria genuína do que enfrentarem seus próprios medos. PESSOAS EM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICOS NÃO SE AMAM DE VERDADE Aqui o pressuposto é o de que quando amamos de verdade não temos mais necessidades de ficar com nenhuma outra pessoa. Esse é exatamente o cerne da ideologia do amo romântico que aprendemos ao longo de toda vida nos filmes, nas músicas, nas novelas e nos contos de fada: quem ama não precisa de mais ninguém nem se interessa por mais ninguém. Daí advém o famoso “casaram-se e foram felizes para sempre”. Essa é a ideologia da alma gêmea, da cara metade que vai nos completar e nos fazer inteiros novamente, quando então não sentiremos mais falta de nada. O mito da alma gêmea foi apresentado por Platão em seu livro “O Banquete”. Um dos momentos mais fascinantes do texto é quando toma a palavra o comediógrafo Aristófanes. Ele faz um discurso belo e que se imortalizou como a teoria da alma gêmea. Aristófanes começa dizendo que no início dos tempos os homens eram seres completos, de duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, o que permitia a eles um movimento circular muito rápido para se deslocarem. Porém, considerando-se seres tão bem desenvolvidos, os homens resolveram subir aos céus e lutar contra os deuses, destronando-os e ocupando seus lugares. Todavia, os deuses venceram a batalha e Zeus resolveu castigar os homens por sua rebeldia. Tomou na mão uma espada e cindiu todos os homens, dividindo-os ao meio. Dessa forma, os homens caíram na terra novamente e, desesperados, cada um saiu à procura da sua outra metade, sem a qual não conseguiriam viver. Tendo assumido a forma que nós temos hoje, os homens estão fadados eternamente a procurarem por sua outra metade.47 É preciso entendermos que ninguém completa ninguém. Não é saudável exigir que alguém satisfaça todas as nossas necessidades e anseios. O outro nos acompanha em nosso processo de desenvolvimento, mas esse processo é individual e cada indivíduo tem as suas próprias necessidades de acordo com seu processo pessoal e sua história de vida. Idealizar que alguém possa satisfazer todas as nossas necessidades pode gerar muita frustração e um jogo de cobranças e acusações muito perverso. Podemos sim amar e desejar outras pessoas e está tudo certo com isso. PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM PROBLEMAS PSICOLÓGICOS Uma pesquisa baseada em testes psicológicos padronizados mostrou que pessoas em relacionamentos não monogâmicos não são mais nem menos disfuncionais, narcisistas, neuróticas, patológicas, psicóticas ou perturbadas do que pessoas em relacionamentos monogâmicos.48 Isso não significa dizer que as pessoas em relacionamentos abertos sejam todas bem ajustadas e psicologicamente saudáveis. Significa apenas que não há diferença entre pessoas monogâmicas e não monogâmicas quanto a estes quesitos. Outro estudo mostrou que o indivíduo em um relacionamento aberto tende a ser "um realizador acadêmico, criativo, inconformado, estimulado pela complexidade e pelo caos, inventivo, relativamente não convencional e indiferente ao que os outros dizem, preocupado com os seus próprios valores e sistemas éticos, e disposto a correr riscos para explorar possibilidades”.49 Segundo este mesmo estudo, como os relacionamentos abertos requerem habilidades relacionais bem desenvolvidas, essas 47 Citado no texto de João Francisco P. Cabral “O mito da alma gêmea”: https://brasilescola.uol.com.br/filosofia/mitoalma-gemea.htm 48 PEABODY, S. A. (1982). Alternative Life Styles to Monogamous Marriage: Variants of Normal Behavior in Psychotherapy Clients. Revista Family Relations, Vol. 31, No. 3, pp. 425-434. Ed. National Council on Family Relations. 49 Citado em TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. pessoas tendem a ter mais autoconsciência, melhores habilidades de comunicação e um melhor senso de identidade. PESSOAS EM RELACIONAMENTOS ABERTOS TÊM DIFICULDADE PARA SE COMPROMETER OU DIFICULDADE COM INTIMIDADE O pressuposto aqui é que a intimidade só pode ser experimentada com uma pessoa apenas e que o amor é algo quantificável, então se estiver com mais de uma pessoa ele acaba se diluindo. Porém, sabemos que os pais amam vários filhos e o fato de amar um não implica em reduzir o amor que sente pelo outro, muito menos o compromisso. As pessoas em relações não-monogâmicas não estão necessariamente evitando a intimidade ou o compromisso, estão simplesmente cultivando um estilo de relacionamento que atende às suas necessidades ao invés de se adequar a um modelo imposto pela cultura e pela sociedade que não contempla as necessidades e singularidades de cada indivíduo. Intimidade é a disposição de se manter aberto, honesto e vulnerável ao seu parceiro. A monogamia não garante intimidade assim como a não-monogamia não garante a não intimidade. O mesmo vale para o comprometimento. Uma pessoa pode estar altamente investida na relação e optar pela não-monogamia, até mesmo como uma forma de cuidar melhor dessa relação, tendo em vista que essa exigência de exclusividade pode ser sufocante e prejudicial para algumas pessoas. Nesse sentido, a opção pela não-monogamia pode ser entendida como uma forma de cuidado com a relação e uma profilaxia de problemas futuros como a traição e os segredos, por exemplo. NÃO MONOGAMIA É PARA PESSOAS CONFUSAS QUE NÃO SABEM O QUE QUEREM Em verdade, parece ser justamente o oposto: a maioria das pessoas não monogâmicas tem muita clareza sobre o que querem e precisam de seus relacionamentos e do porquê estão optando pela não-monogamia. E não é que elas não consigam escolher entre os diferentes parceiros, é que elas não querem e acreditam firmemente que não precisem escolher um só. É preciso saber muito bem o que se quer quanto se opta por seguir um caminho diferente do tradicional pois certamente é muito mais fácil seguir o rebanho do que se arriscar desbravando uma nova rota. RELACIONAMENTO ABERTO É UM NOME CHIQUE PARA PROMISCUIDADE Gostar de se relacionar sexualmente com mais de uma pessoa não é algo necessariamente negativo. Muitas pessoas solteiras têm este comportamento e não as julgamos por isso. Não é só porque uma pessoa se casou que ela perde o interesse de se relacionar sexualmente com outras pessoas assim como quando era solteira. O ato de se casar não muda magicamente nossas disposições. Essa alegação de promiscuidade está bastante associada à cultura sexual negativa que foi mencionada na introdução. Nos fizeram acreditar que sexo era uma coisa ruim e, portanto, fazer sexo com muitas pessoas passou a ser moralmente condenado pois quanto menos sexo se fizesse melhor e de preferência só para reprodução. Mas como dissemos anteriormente, nem todas as religiões desenvolveram uma visão repressora da sexualidade. No taoísmo, por exemplo, acredita-se que ter múltiplos parceiros sexuais pode favorecer o crescimento espiritual, como podemos ver nesse trecho do livro “Os Segredos da Câmara de Jade”, escrito pela Sacerdote Taoísta Ch’ing Nu em 980 d.C: A troca frequente de parceiros traz benefícios crescentes (...) Se uma pessoa mantém relações sexuais sempre com o mesmo parceiro, seu ching-ch’i (vitalidade sexual) torna-se fraco, e isso não só não lhe traz grande proveito, mas fará com que o seu parceiro se torne mirrado e macilento.50 Quando olhamos para a sexualidade como algo positivo e benéfico para o desenvolvimento humano, percebe-se que fazer sexo com diversas pessoas não é algo negativo. Como pontuamos anteriormente, sexo é uma necessidade biológica, assim como dormir e se alimentar. Além disso, vale frisar que relacionamento aberto não é somente uma questão de sexo. É um estilo de vida que pode envolver questões muito mais profundas como liberdade, transparência e respeito à individualidade. Algumas formas de nãomonogamia podem incluir, inclusive, liberdade afetiva além de sexual, como é o caso do poliamor e das relações livres. RELACIONAMENTO ABERTO É PERIGOSO PARA A SAÚDE Ter múltiplos parceiros sexuais não te coloca automaticamente em risco de pegar DSTs. O comportamento de sexo desprotegido com pessoas desconhecidas é que aumenta o risco e isso pode acontecer tanto com solteiros como com pessoas que estão em relacionamento monogâmico e traem seus parceiros. Aliás, poucos sabem, mas, 870 mil mulheres são infectadas pelo HIV todos os anos no mundo e 80% foram contaminadas pelos maridos ou namorados. Tal dado coloca a AIDS como a maior causa de mortes entre mulheres em idade reprodutiva (de 15 a 49 anos) globalmente, segundo a Unaids. Vale ressaltar que, em geral, o combinado mais prevalente nas relações abertas é a obrigatoriedade de se fazer sexo seguro. Já nas relações monogâmicas, onde o sexo extraconjugal acontece de forma não combinada via traição, não existe essa regra explícita de se fazer apenas sexo seguro fora da relação - até mesmo porque nem se cogita essa possibilidade. Por mais frequente que possa ser a traição em nossa 50 Citado em: LINSSEN, L. & WIK, S. (2012). Amor sem barreiras: As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e Poliamorosos nos Dias de Hoje. Ed. Pensamento. sociedade, nenhum casal irá discutir como deve-se agir nessas situações, o que impede a implementação de um combinado como este, afinal, não dá para se planejar para uma situação que nem está sendo considerada. Sendo assim, consideramos que todas as pessoas que têm uma vida sexual ativa devem se preocupar com sua saúde sexual, independentemente do tipo de relação que estiverem tendo. Quem está em um relacionamento aberto tem a vantagem de poder discutir o sexo extraconjugal abertamente, se antecipando à ocorrência dele. Cabe lembrar também que o termo DSTs (doenças sexualmente transmissíveis) caiu em desuso e hoje os infectologistas falam em ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) e o motivo para essa mudança na nomenclatura é bem concreto: muitas pessoas podem estar infectadas sem manifestar nenhum sintoma de doença. Esse é mais um motivo para todos se cuidarem, independente da forma de relacionamento que optarem. CASAMENTO ABERTO É UM AMBIENTE RUIM PARA A CRIAÇÃO DE CRIANÇAS As crianças necessitam de amor e suporte dos adultos e responsáveis. A vida afetivosexual dos pais não necessariamente afeta a qualidade do cuidado que se têm com os filhos. Famílias nucleares tradicionais podem ser tão disfuncionais quanto qualquer outro arranjo familiar, independente de envolverem ou não exclusividade sexual. É SÓ UMA FASE DO RELACIONAMENTO Casais em relações abertas escutam essa pergunta com frequência: “A relação ainda é aberta?”, como se fosse um estágio. Em geral as pessoas falam isso por não levar o relacionamento aberto a sério, como se a única forma de relacionamento que é digna de respeito fosse o relacionamento fechado, monogâmico. Pode até ser que o casal, em algum momento, decida se tornar monogâmico, mas isso não significa que houve uma evolução no caráter da relação, significa apenas que era aberto e aí ficou fechado. Simples assim. É UMA TENTATIVA DESESPERADA DE SALVAR A RELAÇÃO A abertura da relação para que se possa sair com outras pessoas também costuma ser vista como uma forma de salvar a relação, mas não é necessariamente o caso. Pode até ser que algum casal opte pela relação aberta numa última tentativa de salvar a relação (embora essa não seja uma boa ideia), mas não é a regra. Da mesma forma que para alguns a exclusividade sexual pode ter um fim em si mesma, também a liberdade sexual pode. Ou seja, não necessariamente a relação aberta é um meio para algum fim específico, pode ser simplesmente mais coerente com o modo de pensar dos sujeitos. NÃO MONOGAMIA É O MESMO QUE INFIDELIDADE Um conceito que precisa ser completamente ressignificado em nossa sociedade é o conceito de fidelidade. Definitivamente, ser fiel não é o mesmo que se manter monogâmico. Uma pessoa pode facilmente ser monogâmica e infiel. Vejamos os seguintes exemplos dados pela psicanalista Regina Navarro de duas pacientes diferentes que ela atendeu em seu consultório: 51 Caso 1 Esther, uma professora de inglês de 35 anos que parou de trabalhar quando se casou com Rui. Logo tiveram dois filhos e a partir daí seu dia passou a se dividir entre a administração da casa, aulas de ginástica, encontro com as amigas e compras no shopping. Após 8 anos de casamento não sente mais desejo algum de fazer sexo com 51 Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”: https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O o marido. Tem o hábito de criticá-lo, sempre o desvaloriza e ridiculariza o marido para as amigas. Impotente por não poder se separar porque o marido a sustenta e ela não consegue se bancar sozinha, o seu ódio cresce a cada dia. Mas a Esther nunca teve um relacionamento com outra pessoa, nenhuma relação extraconjugal. Caso 2 Ângela, uma jornalista de 34 anos, está casada com Mauro há 7. Além de trabalhar numa revista ela participa de outras atividades culturais que ela gosta muito. Considera sua relação com o marido ótima. Além de serem grandes amigos, têm uma vida sexual intensa. Viajam nos fins de semana, vão ao cinema, teatro, tem grupo de amigos, etc. Cada um convive com os amigos em comum e amigos em separados. Respeitam-se sem que um tente controlar a vida do outro. A obrigação de fidelidade nunca foi discutida entre eles, nunca tocaram nesse assunto. Ângela considera essa uma questão menor e define assim a visão que tem do seu casamento: Amo muito meu marido e sinto muito tesão por ele. Acho que foi a pessoa que mais me satisfez no sexo até hoje. Eventualmente sinto desejo por outro homem e quando isso acontece não vejo razão para me reprimir. Desde que casamos tive 4 relações extraconjugais que não abalaram em nada o que vivo com Mauro. Suponho que ele também deva ter tido alguns romances. Ano passado, acho até que andou meio apaixonado. Chegava em casa calado, ficava pensativo, parecia estar em outro mundo, mas eu não perguntei nada. Após algumas semanas ele voltou ao normal, foi um alívio para mim. Mauro é a pessoa que mais amo no mundo, admiro e respeito. É com ele que prefiro conviver, fazer sexo, viajar, passar o réveillon. Quando fico doente, quero ser cuidada por ele e também cuidar dele. Mas não vejo por que não deva transar com outro homem por causa disso. Se fizermos uma análise superficial desses dois casos vamos dizer que a Esther é considerada uma mulher fiel ao marido, mesmo que ela o odeie, esteja com ele só porque a sustenta e seja desleal falando mal pelas suas costas. Já Ângela é o que se considera uma mulher infiel ao marido, mesmo tendo uma vida maravilhosa com o marido e sendo muito leal a ele. Vemos então que fidelidade não tem nada a ver com sexo. Ser fiel tem a ver com lealdade e honestidade – é honrar o compromisso afetivo. Fidelidade é também respeitar os acordos que regem a relação. Infidelidade envolve mentira, decepção e a quebra de um compromisso previamente estabelecido, mesmo que não exista relacionamento extraconjugal. Na não-monogamia consensual, ética e responsável deve haver lealdade, transparência e comunicação aberta, além de que todos os combinados devem ser respeitados pelos envolvidos – por isso não se trata de uma forma de infidelidade. Aliás, o fato de haver ou não relações sexuais fora do casamento não é necessariamente um problema. A pesquisadora Catherine Hakim concluiu em suas pesquisas sobre casamento e divórcio que muitas vezes ter um caso extraconjugal pode ajudar bastante na manutenção do casamento: As pesquisas mostram que, nos países com menor taxa de divórcio, os casos extraconjugais são mais aceitáveis e praticados. Nos Estados Unidos, onde a infidelidade é vista como pecado e não se tolera a mínima escapada, metade dos casamentos termina em divórcio. Na Europa, há uma cultura de que a fidelidade sexual no casamento não é tão importante assim. Não é à toa que, na Espanha e na Itália, a taxa de divórcio fica em torno de 10%.52 Além disso, fala-se muito em traição ao parceiro, mas costuma-se desconsiderar a traição que muitos cometem contra si mesmos ao deixarem de realizar algo que é importante para si. Por que se fala tanto em ser fiel ao outro e se ignora a importância de sermos fiéis a nós mesmos em primeiro lugar? Será que é possível ser fiel ao outro sem antes ser fiel a si mesmo? Como explica Esther Perel, Ter mais de um desejo pode ser o maior tabu da intimidade moderna, mas amontoar a totalidade de uma libido nos estreitos limites 52 HAKIM, C. (2010). Capital Erótico. Ed. Best Business domésticos e concordar com mundo de desejos pré-retraídos também é pra alguns auto-traição no sentido mais pleno.53 E quando sentimos que estamos nos traindo, renunciando a experiências que consideramos ser importantes para nós mesmos, existem grandes chances de acabarmos ficando ressentidos com a outra pessoa, como explica a psicanalista Regina Navarro: É nesta altura que se manifesta um estado crítico de irritação contra o outro, irritação que, conforme o temperamento de cada um, se exterioriza ou é reprimida. Em qualquer dos casos, e conforme demonstra a análise de situações desse gênero, gera-se e desenvolve-se sem cessar um ódio inconsciente contra o outro, pelo fato de ele impedir a satisfação e frustrar os outros desejos sexuais.54 53 Citado no artigo de Regina Navarro Lins “Quem ama também trai”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2019/10/05/quem-ama-tambem-trai/ 54 Citado no texto de Regina Navarro: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2019/03/11/amo-meu-maridomas-tenho-um-caso-estou-com-medo-das-consequencias-disso/ OS DIFERENTES TIPOS DE RELAÇÕES NÃO-MONOGÂMICAS Relacionamentos não-monogâmicos são relações que prescindem da exclusividade sexual e/ou afetiva entre os membros da relação, o que implica que a sexualidade e/ou afetividade podem circular para fora da relação também. Isso pode acontecer de muitas diferentes formas porque as pessoas são distintas e manifestam necessidades e características únicas. Vamos abordar alguns dos arranjos mais típicos que encontramos neste universo das relações não-monogâmicas consensuais. Relação Aberta ou Casamento Aberto Na relação aberta ou casamento aberto, as relações extraconjugais costumam ser temporárias, casuais e não românticas. A não-monogamia neste caso seria apenas sexual, pois do ponto de vista emocional, o casal se mantém monogâmico. Por isso mesmo em geral existe o pressuposto básico de não se envolver afetivamente com outras pessoas, o que quer dizer que o foco primário do tempo e energia de cada um dos parceiros é no seu relacionamento principal. Nesta modalidade, os parceiros podem sair sozinhos com outras pessoas, sempre respeitando as regras e os combinados estabelecidos pelo casal. Swing É também um modelo de não-monogamia sexual com monogamia emocional, ou seja, pressupõe-se que não haverá envolvimento afetivo com pessoas de fora da relação, apenas sexo casual ou sexo recreativo, como bem explica Elaine, praticante do swing: As pessoas precisam entender que o objetivo do swing é apenas sexo. Nada de romance. “Quero te ver de novo” não existe. Lá você está mexendo com pessoas bem-casadas. Tem que ter ética, não pode destruir o casamento dos outros. Quem quiser romance, vai para outro lugar.55 A diferença do swing para o relacionamento aberto é que a unidade nesse caso é o casal, ou seja, em geral o casal tem relações extraconjugais juntos, não se podendo sair sozinho com pessoas de fora da relação. Muitos participantes, inclusive, se consideram ciumentos. Por isso gostam de acompanhar tudo o que está acontecendo e, também por este motivo, não abrem a relação para o parceiro sair sozinho com outras pessoas, como explica Silvana, praticante de swing: Tenho enorme prazer quando vejo meu marido transando com outra mulher e, claro, também gosto de experimentar outros parceiros, mas morro de ciúmes se ele atende o celular e eu não sei quem é56. Existem variações na forma de se praticar o swing. Alguns casais praticam o que se chama de soft swing, que envolve apenas troca de carícias entre os casais ou então sexo no mesmo ambiente. Já no hard swing a troca é completa, com direito a tudo, inclusive penetração. Os swingers costumam ter suas próprias casas noturnas para frequentar ou então organizam eventos privados. Existe, inclusive, toda uma indústria girando em torno do swing, como agências de turismo, cruzeiros, hotéis, etc. Uma coisa que se percebe no meio swinger é que os casais tendem a ser, em geral, mais conservadores. A bissexualidade masculina é bem mais rara neste meio. Já a bissexualidade feminina é quase que uma unanimidade. Poliamorismo A diferença crucial entre o poliamorismo, o swing e o casamento aberto é que no poliamorismo a não-monogamia é sexual E afetiva também, ou seja, existe a 55 Citado na matéria de Simone Demolinari “Vale a pena experimentar um swing?”: https://www.hojeemdia.com.br/horizontes/vale-a-pena-experimentar-um-swing-1.369268 56 Idem possibilidade de envolvimento afetivo com outras pessoas fora do relacionamento, podendo ser desde um breve romance até um relacionamento amoroso de longo prazo mesmo. Daí advém o termo poli amor, ou seja, múltiplos amores, múltiplos relacionamentos amorosos ao mesmo tempo. O poliamorismo é indicado para pessoas que sentem que têm a capacidade e o desejo de amar e se comprometer afetivamente com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. O poliamorismo pode se manifestar em diferentes modalidades, sendo a principal delas o poliamorismo hierárquico, onde apesar de haver múltiplas relações afetivosexuais, ainda assim existe uma que é a principal, ou seja, existe uma hierarquia de importância e prioridade entre os diversos relacionamentos estabelecidos. Neste caso, a relação pode ser a principal pelo fato de o casal viver juntos ou por terem filhos juntos, ou simplesmente por estarem juntos há mais tempo. Cada parceiro pode ter outras relações secundárias ou terciárias e assim por diante. A grande vantagem deste tipo de poliamorismo é que existe uma clareza de qual relação é a prioritária e isso ajuda a organizar a questão do tempo, da dedicação, etc. Quando existe mais de um parceiro principal, esse tipo de poliamorismo é chamado de polifidelidade. Podem ser três pessoas vivendo juntas, por exemplo. Neste caso chamamos de trisal e os três se sentem casados entre si. Uma série da Netflix que ilustra bem este arranjo é a série “Eu, Tu e Ela”. Quando não existe uma relação principal ou uma que seja mais importante do que as outras, isso é chamado de poliamorismo não hierárquico. Neste caso, não existe uma relação que seja prioritária sobre as outras. Este modelo costuma estar associado a uma visão de mundo que rejeita a hierarquização entre as pessoas, como por exemplo a filosofia chamada de “anarquia relacional”. Vejamos o depoimento de Beth, que ilustra um caso de poliamorismo não-hierárquico: Eu me sinto diferente em relação a todos os meus amantes. Cada um deles toca uma parte diferente de mim. Eles nutrem diferentes aspectos de mim mesmo. Até mesmo diferentes aspectos sexuais de mim. Alguns são mais emocionais, alguns mais intelectuais, alguns mais físicos, alguns bastante espirituais.57 Relações livres Em 2006 surgiu um movimento no Rio Grande do Sul que se autodenominou de Rli, como abreviatura de Relações Livres. O objetivo deste Coletivo, segundo consta no livro “Relações Livres – Uma Introdução” seria o de (...) levantar o debate tanto sobre questões práticas quanto sobre aspectos filosóficos e éticos, buscando embasamento para construir uma sociedade na qual a monogamia deixe de ser a norma condicionante tal como se apresenta nos dias de hoje. 58 Procura-se fazer uma distinção entre esta forma de não-monogamia e as outras já estabelecidas, como o casamento aberto, o swing e o poliamor. O grande diferencial é que nas relações livres a ênfase recai mais sobre o indivíduo do que sobre o casal. As relações livres pressupõem cultivo da autonomia em vez de buscar a fusão de duas pessoas em um casal. As Rlis – como se costuma chamar as pessoas que optam pelas relações livres - advogam pela plena autonomia afetiva e sexual e nesse sentido elas são mais distantes do formato clássico de casal. RLi é uma forma consensual, política e militante de não-monogamia que critica ativamente o amor romântico. Não só defende a possibilidade de vários amores, como no poliamor, mas tem como base a autonomia dos envolvidos, na livre vivência de seus desejos afetivos e sexuais tanto em relações casuais quanto relações duradouras. Outra diferença é em relação ao casamento, que enquanto no poliamor é possível a polifidelidade e a união conjugal entre mais pessoas, na RLi qualquer forma de relação nãomonogâmica fechada é rechaçada.59 57 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. 58 RODRIGUES, Marcos et al. Relações livres – uma introdução. Ed. Coleção RLI 59 Artigo de Newton Jr, Nana Miranda e Simone Bispo “Mas afinal, o que é não-monogamia”. Pode ser encontrado em: https://naomonoemfoco.com.br/mas-afinal-o-que-nm/ Nas relações livres também não se determinam relações primárias e secundárias como pode ocorrer no poliamorismo: Não hierarquizar significa não deixar as pessoas numa posição previamente estipulada sobre qual é sua importância em nossas vidas (...) Rlis estão centrados na autonomia da pessoa e não na prioridade do casal principal60. Rlis também não fazem contratos sobre acontecimentos afetivos futuros, por isso a ideia de se casar não cabe dentro dessa modalidade. Idealmente, na concepção Rli, cada qual deveria ter um espaço habitacional próprio, do indivíduo, onde a pessoa possa exercitar sua personalidade e tomar suas próprias decisões. Embora as relações livres sejam uma forma de se relacionar não-monogamicamente, neste livro não vamos nos ater às Rlis pois como vimos elas não estão centradas em um relacionamento e sim nos indivíduos que desenvolvem as relações livres. Relacionamentos podem até ser estabelecidos, porém não existe necessariamente um anseio por perpetuá-lo no tempo, deixando-se livre para acontecer o que tiver que acontecer, sem um compromisso com a permanência do casal. Não existe nem a ideia de casamento no universo das relações livres. De fato, as Rlis se opõem a esse modelo hegemônico de organizar as relações em torno da figura do casal, já que isto acabaria “pressupondo um nível de anulação da identidade pessoal em benefício da identidade de casal”61 Já o swing, o casamento aberto e o poliamorismo continuam girando em torno de relações de compromisso, em torno da criação de casais que visam a continuidade ao longo do tempo, mesmo que sejam casais estendidos como vemos na polifidelidade (um trisal por exemplo). 60 61 RODRIGUES, Marcos et al. Relações livres – uma introdução. Ed. Coleção RLI Idem. Neste livro vamos utilizar o termo relações abertas para se referir genericamente a todos os tipos de relações não-monogâmicas, pois todas elas são abertas para experimentação sexual e/ou afetiva com parceiros de fora. COMO ESCOLHER ENTRE AS DIFERENTES FORMAS DE RELACIONAMENTO NÃO MONOGÂMICO? Algumas decisões têm que ser tomadas quando se decide prescindir da exclusividade afetivo e/ou sexual em um relacionamento e isso varia de acordo com as necessidades dos membros do casal. A primeira importante decisão a se tomar é se essa liberdade será restrita apenas à esfera sexual ou se também haverá liberdade de envolvimento amoroso com pessoas de fora da relação. O segundo passo é definir se essa liberdade poderá ser vivida separadamente ou apenas quando ambos estiverem juntos. A resposta para essas duas perguntas já dá mais ou menos uma noção de qual rumo esse contrato não-monogâmico pode levar. Se o casal optar por ampliar a liberdade para a esfera afetiva além da sexual, isso tende a caracterizar um contrato poliamoroso que permite o envolvimento afetivo com mais de uma pessoa ao mesmo tempo. Neste caso, ainda assim é necessário definir se será uma relação poliamorosa hierárquica (onde existe uma relação principal e as outras são consideradas secundárias ou terciárias) ou não hierárquica (onde nenhum parceiro terá um status especial em relação aos outros). Caso a ausência de exclusividade se refira apenas à esfera sexual, isso pode caminhar para um casamento aberto (onde cada um pode viver sua liberdade de forma separada) ou pode também caminhar para uma relação do tipo swing, onde as experiências extraconjugais acontecem com ambos os parceiros presentes. É o que vemos por exemplo, na experiência do ménage ou quando ocorre troca de casais. O que caracteriza este caminho é que ambos realizam suas fantasias juntos, diferenciando da relação aberta, onde os parceiros podem sair sozinhos com outras pessoas. Esses diferentes caminhos trazem implicações distintas. Relações poliamorosas, onde ocorre um envolvimento afetivo com mais de uma pessoa, certamente são as mais desafiantes e mais arriscadas do ponto de vista da estabilidade do casal, além de mais difícil de serem equacionadas na prática. Por outro lado, trazem possibilidades ilimitadas também, permitindo ampliar o leque de experiências afetivas e relacionais. Muitas pessoas que podem até prescindir da exclusividade sexual nunca admitiriam a ideia de ver o companheiro envolvido afetivamente com outra pessoa, já que isso pode gerar muita insegurança quanto ao futuro da relação. É preciso muita confiança na solidez da relação e no amor dos cônjuges para tolerar esse nível de liberdade afetiva. Por isso mesmo, o poliamorismo acaba não sendo para todos, já que envolve um desprendimento muito grande. Além disso, exige muita autoestima e autoconfiança do parceiro que vê seu amado envolvido com outra pessoa. Os casamentos abertos com liberdade apenas sexual seriam um meio termo mais facilmente digerível, pois cada um pode sair sozinho com outras pessoas, porém com um foco estritamente sexual, sem perspectiva de continuidade ou aprofundamento do vínculo extraconjugal. Ainda assim, algumas pessoas não se sentem confortável porque não estão acompanhando o que se passa no encontro que o parceiro está tendo fora da relação. Essa experiência de não saber como está sendo o encontro pode fazer com que algumas pessoas fiquem bastante inseguras, podendo levar à uma sensação de não estar no controle. Uma modalidade de relação não-monogâmica que aparentemente traz menos riscos para a relação do casal seria o swing, ou seja, realizar experiências sexuais extraconjugais em conjunto com o parceiro. A grande vantagem para a relação é que a experiência deixa de ser apenas do indivíduo e passa a ser uma experiência do casal, semelhante a um programa de casal mesmo, assim como ir ao cinema, um restaurante ou a uma boate - com a diferença de que neste caso é um programa que inclui sexo extraconjugal. A grande desvantagem dessa modalidade é que nem sempre os interesses de um são semelhantes aos interesses do outro, o que pode dificultar muito a viabilidade prática, já que as necessidades de um podem não bater com as necessidades do outro e viceversa. Por exemplo, pode ser que o casal conheça um outro casal e o marido se interesse pela mulher, porém a esposa não se interesse pelo homem. Neste caso, não pode valer apenas a vontade de um, tem que haver concordância entre todos os 4 envolvidos. Essa concordância generalizada pode ser complexa às vezes, podendo levar à frustração de quem estava com vontade mas não pôde seguir em frente por conta da objeção do parceiro. Vemos então que cada modalidade traz benefícios e desafios distintos e apenas a partir de muito diálogo e autoconhecimento é que se pode chegar a uma definição de qual seria o melhor arranjo para cada casal. O importante é que ambos se sintam confortáveis e contemplados com o arranjo definido após a conversa. O formato da sua relação deve refletir seus valores, seus desejos, suas necessidades e seus objetivos de vida, lembrando sempre de ser muito cuidadoso com os sentimentos e o tempo de cada parceiro. Buscamos descrever os arranjos mais comuns neste universo da não-monogamia, mas a verdade é que cada um é livre para escolher como quer se relacionar, podendo personalizar sua relação da forma que mais convier aos indivíduos envolvidos. Os modelos servem apenas como inspiração para que se possa compreender as diferentes possibilidades e ter um ponto de partida para reflexão. RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ? Se você está considerando a possibilidade de abrir a relação para um formato nãomonogâmico é importante primeiro se avaliar de forma honesta e em profundidade para ver se essa é a escolha mais adequada para você. Abrir a relação pode trazer muitos benefícios, ao mesmo tempo em que traz enormes desafios também. É importante saber o que está motivando esta escolha. Para ajudar nessa reflexão, vejamos algumas das motivações mais comuns que levam as pessoas a optarem por um relacionamento não-monogâmico. Quebrar a monotonia e a rotina do relacionamento Monogamia às vezes combina com monotonia. Muitos casais reclamam que a vida de casal, após algum tempo, acaba caindo na mesmice, numa rotina monótona e previsível. Abrir a relação pode trazer novos ares para a relação, tornando-a mais dinâmica e imprevisível, trazendo uma excitação há muito tempo esquecida. Todo relacionamento precisa lidar com um importante paradoxo humano. Ao mesmo tempo em que ansiamos por segurança, previsibilidade e proteção, também necessitamos de aventura, novidade e mistério, como bem descreveu a terapeuta de casal Esther Perel: De um lado, nossa necessidade de segurança, previsibilidade, proteção, dependência, confiança e permanência, todas essas experiências fundamentais das nossas vidas que chamamos de lar. Porém, temos também uma necessidade igualmente forte, homens e mulheres, por aventura, novidade, mistério, risco, perigo, o desconhecido, o inesperado e a surpresa.62 O casamento fechado tal como conhecemos costuma atender à primeira dessas duas necessidades, trazendo muita segurança e previsibilidade, o que preenche somente a 62 Extraído do TED Talk de Esther Perel “O Segredo do Desejo em um Relacionamento Duradouto”: https://www.ted.com/talks/esther_perel_the_secret_to_desire_in_a_long_term_relationship/transcript?language=pt -br um dos nossos anseios fundamentais. Abrir a relação pode ajudar a trazer o elemento da aventura e da novidade para dentro da relação, contribuindo para satisfazer ambas as necessidades que todo ser humano anseia. Apimentar a vida sexual do casal Será que podemos desejar o que já temos? Como problematiza Esther Perel, “em todo lugar onde o romantismo entrou, parece existir uma crise do desejo, uma crise de já se possuir o que se quer.” No centro deste problema da sustentação do desejo a longo prazo em um relacionamento monogâmico está a questão de se conciliar essas duas necessidades humanas fundamentais que comentamos no tópico anterior além do fato de existir um certo paradoxo na relação entre amor e desejo: Neste paradoxo entre amor e desejo, o que parece ser desconcertante é que os ingredientes que nutrem o amor interdependência, reciprocidade, proteção, preocupação e responsabilidade pelo outro - são os mesmos que podem sufocar o desejo. Porque o desejo vem com uma série de sentimentos que nem sempre são os favoritos do amor: ciúmes, possessividade, agressão, poder, domínio, safadeza, ofensa. Basicamente muitos de nós se excitam à noite pelas mesmas coisas que se manifestam contrárias durante o dia.63 A própria idealização do outro que vem embutida no amor romântico já é algo que desfavorece a manutenção do desejo. A idealização pressupõe que o outro seja responsável por atender a todas as nossas expectativas e, por isso mesmo, muitas vezes não permite que os parceiros sejam completamente autênticos para não correr o risco de decepcionar o outro. Para nos adaptarmos ao que esperam de nós, renunciamos ao impulso de transgressão que alimenta o desejo: A mente erótica não é muito politicamente correta (...) em nossa mente existe uma série de coisas acontecendo que nem sempre 63 Extraído do TED Talk de Esther Perel “O Segredo do Desejo em um Relacionamento Duradouto”: https://www.ted.com/talks/esther_perel_the_secret_to_desire_in_a_long_term_relationship/transcript?language=pt -br sabemos como dizer à pessoa que amamos, porque achamos que amor vem com abnegação e na verdade o desejo vem com uma dose de egoísmo no melhor sentido da palavra: a habilidade de estar conectado consigo mesmo na presença do outro.64 Temos que poder ser verdadeiros com o nosso desejo se queremos que ele se fortaleça. Não dá pra exigir do outro que sinta um forte desejo desde que seja somente por você. O desejo por definição é algo indômito, não pode ser domesticado. Assim como um passarinho selvagem que quando é colocado na gaiola perde muito do seu encanto, também o desejo perde muito da sua potência quando passa a ser domesticado pelo casamento. Explorar diferentes fantasias sexuais Mesmo que o casal esteja satisfeito com sua vida sexual, ainda assim pode haver diversas fantasias que simplesmente não podem ser realizadas apenas entre o casal. É o caso, por exemplo, da fantasia de ménage, onde um quer transar com duas pessoas ao mesmo tempo - aliás, a fantasia sexual mais comum segundo alguns levantamentos. É simplesmente impossível explorar essa fantasia dentro de uma estrutura estritamente monogâmica. Outras fantasias como o gangbang (transar com 3 ou mais parceiros ao mesmo tempo) ou a fantasia de cuckold (pessoas que sentem prazer em ver o companheiro transando com outros) também necessariamente envolvem um arranjo nãomonogâmico. Podemos citar também fantasias de voyeurismo, exibicionismo, dogging (transar com estranhos em local público), dentre outras. Vivemos em uma época onde cada vez mais existe liberdade e encorajamento para se explorar a própria sexualidade, sem tabus nem julgamentos. Durante muito tempo a cultura e a religião nos desencorajaram e nos dissuadiram de explorar e viver todas as infinitas possibilidades que a sexualidade pode nos oferecer. Felizmente estamos 64 PEREL, E. (2018). Sexo no cativeiro: Como manter a paixão nos relacionamentos. Ed. Objetiva. vivendo novos tempos em que nos sentimos no direito de explorar nosso corpo como nos convém. Aumentar a intimidade entre o casal Para alguns casais, poder revelar as próprias fantasias sexuais, por exemplo, pode trazer muita aproximação. A intimidade cresce muito quando podemos nos revelar por inteiro. Nos casamentos monogâmicos tradicionais, em geral nossos desejos e fantasias acabam tendo que ficar em segredo e essas partes escondidas nunca são reveladas, o que inevitavelmente cria uma barreira entre o casal. Além disso, viver experiências significativas junto com o parceiro aumenta a intimidade e a conexão, como ilustra os seguintes depoimentos de praticantes da não-monogamia consensual: Fazer sexo com outros casais nos torna mais íntimos um do outro. Isso me ajuda a me comunicar abertamente com meu parceiro e a mergulhar fundo em meus sentimentos, o que é algo difícil de fazer. Depois de ir a uma festa de swing e fazer sexo com outras pessoas, o sexo que fazemos um com o outro é íntimo e incrível.65 Janice Em geral, depois de uma noite brincando com outras pessoas, ficamos bem excitados um com o outro, fazemos o sexo mais incrível e sentimos os mais fortes sentimentos de confiança em nosso próprio relacionamento66. João Eu amo a liberdade de poder ser tão sexual com outras pessoas e não ter que mentir sobre esse meu aspecto para ter um companheiro que me ama pelo que eu sou. É brilhante que ele me ame por este aspecto 65 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. 66 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. da minha sexualidade, ao invés de apesar dele. Cada um de nós precisava de um parceiro que realmente não fosse possessivo ou ciumento. Eu amo o vínculo incrível que surge com o bom sexo, e ser capaz de espalhar alegria, diversão e prazer. Adoro saber que meu marido está se divertindo com outras pessoas; nosso sexo é sempre melhor quando estamos sozinhos novamente. Quanto mais homens eu transo, mais amo meu marido. 67 Alice Quando um dos parceiros têm fantasias que o outro não curte ou não quer participar Embora em geral nós costumemos nos aproximar de pessoas semelhantes a nós, ainda assim nenhuma combinação é 100% perfeita. Vemos muito isso acontecer na esfera sexual. A sexualidade de cada indivíduo é muito singular, até mesmo porque cada história de vida é única. Quando uma diferença sexual entre os parceiros emerge em um relacionamento monogâmico – por exemplo quando um tem uma fantasia sexual que o outro não curte – ou a pessoa desiste de realizar aquela fantasia ou então tem que trocar de parceiro. Alguns casais optam por um caminho diferente, eles abrem a relação para que se possa experimentar com um parceiro externo aquela dimensão da sexualidade que não está encaixando bem no seu relacionamento. Digamos, por exemplo, que um dos dois queira explorar uma dinâmica de dominação/submissão, mas o outro não está disponível para acompanhá-lo nisso. Estes são casos em que uma relação aberta pode ajudar a preencher a lacuna, como podemos ver no seguinte depoimento verídico de um casal que optou pela não-monogamia consensual: Dani, que estava casada há 10 anos, viu um especial na HBO sobre BDSM. Ela ficou super empolgada com a ideia e quis explorar. O marido se dispôs a experimentar, mas não gostou, então eles chegaram à conclusão de que ela teria que realizar este desejo com outra pessoa, como explicou a Dani: 67 Idem. “Foi muito difícil no início, mas assim que ele percebeu que era uma necessidade minha e que ele não conseguia ou não queria me acompanhar, então ele disse: você vai ter que realizar esse seu desejo em outro lugar”.68 Para poder explorar a bissexualidade de um dos parceiros Cada vez mais se vem descobrindo que a bissexualidade humana é um fenômeno bem mais comum do que se imaginava antigamente. As estatísticas mostram que grande parte das pessoas já sentiu, de alguma forma, desejo por ambos os sexos. Pesquisas indicam que nos Estados Unidos em torno de 40% dos homens se envolveram em sexo com outros homens. A respeitada antropóloga Margaret Mead declarou o seguinte: Acho que chegou o tempo em que devemos reconhecer a bissexualidade como uma forma normal de comportamento humano. É importante mudar atitudes tradicionais em relação à homossexualidade, mas realmente não conseguiremos retirar a carapaça de nossas crenças culturais sobre escolha sexual se não admitirmos a capacidade bem documentada (atestada no correr dos tempos) de o ser humano amar pessoas de ambos os sexos.69 O pesquisador americano Alfred Kinsey acredita que a homossexualidade e a heterossexualidade exclusivas representam apenas os extremos do amplo espectro da sexualidade humana. Para ele, a fluidez dos desejos sexuais faz com que pelo menos metade das pessoas sinta, em graus variados, desejo pelos dois sexos. Em 1948, este pesquisador desenvolveu a famosa escala Kinsey70 para medir a homo, a hétero e a bissexualidade. Entrevistando 12 mil homens e 8 mil mulheres, ele 68 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. 69 Citago no artigo de Regina Navarro Lins “A bissexualidade no futuro”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2014/05/27/a-bissexualidade-no-futuro/ 70 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. elaborou uma classificação da sexualidade que contempla todo o espectro de possibilidades de orientação sexual, incluindo as seguintes possibilidades: • Exclusivamente heterossexual. • Predominantemente heterossexual, apenas incidentalmente homossexual. • Predominantemente heterossexual, mais do que eventualmente homossexual. • Igualmente heterossexual e homossexual. • Predominantemente homossexual, mais do que eventualmente heterossexual. • Predominantemente homossexual, apenas incidentalmente heterossexual. • Exclusivamente homossexual. Digamos então que um dos parceiros no relacionamento se descubra bissexual e sinta necessidade de explorar essa dimensão da sua sexualidade. Este é um exemplo de situação que não pode ser equacionada dentro dos limites de uma relação monogâmica, mas que pode ser facilmente contemplada em um relacionamento nãomonogâmico, como podemos ver no seguinte depoimento: Já que sou bissexual casado com um heterossexual, se não fôssemos sexualmente abertos, não poderíamos estar juntos, não importa o quão profundo seja o nosso amor um pelo outro. Ter parceiros externos para preencher as lacunas em nossa compatibilidade evita ressentimentos e decepções; dessa forma, ninguém é visto como deficiente ou inadequado. Shari Para equacionar os diferentes ritmos sexuais É muito raro que ambos os parceiros numa relação tenham exatamente o mesmo apetite e disposição sexual. É muito mais comum que um ou outro tenha uma libido maior e isso pode causar grande desgaste na relação pois ambos acabam se frustrando - um porque não teve o tanto de sexo que desejaria e o outro por estar sempre se sentindo pressionado e cobrado a fazer mais sexo do que gostaria. Achar uma solução satisfatória para este dilema vem sendo um importante desafio para grande parte dos casais. Uma das possíveis maneiras de se contornar este desgaste é dar liberdade para o parceiro que tem mais libido fazer sexo com outras pessoas, para que não tenha que colocar toda sua expectativa e demanda em cima de uma pessoa apenas. Isso pode evitar muito sofrimento e desgaste para a relação, pois um não é obrigado a satisfazer todas as expectativas e demandas do outro e não faz sentido acabar com uma relação que está dando certo em vários aspectos apenas por essa diferença de ritmos sexuais. Diversificação sexual e emocional Mesmo que haja total compatibilidade sexual entre o casal, pode ser que um dos dois ainda assim sinta um anseio por explorar experiências eróticas e emocionais com outros parceiros pelo simples desejo de variar mesmo. Afinal de contas, costumamos gostar de variação em toda as esferas da vida, não é mesmo? Os casais gostam de variar o destino de viagem e também gostam de variar de restaurante de vez em quando, por que não haveriam de gostar de variar de corpos eventualmente? Como bem ilustrou a socióloga Catherine Hakim: “Gostar de comer em casa diariamente não nos impede de ir ao restaurante de vez em quando.”71 A sociedade quer que acreditemos que uma pessoa só pode satisfazer todas as nossas necessidades e desejos: físico, emocional, financeiro, espiritual e sexual. Para isso bastaria encontrar a nossa cara-metade, a alma gêmea ou o príncipe encantado. Os que optam pela não-monogamia consensual reconhecem que o outro não PODE nem DEVERIA ser responsável por dar conta de nos satisfazer totalmente e está tudo bem com isso. Isso permite que o casal crie relações únicas que nutram e contemplem os anseios de cada um dos parceiros, como relata Caio: “O relacionamento aberto me 71 Extraído do artigo “O amante... Outra vez.”: http://tmetade.blogspot.com/2012/10/o-amante-outra-vez.html ajuda a não me sentir frustrado ou ressentido com um parceiro se ele não for tudo para mim.”72 Acabar com o fantasma da traição Muitas pessoas em relacionamentos monogâmicos passam, às vezes, a vida inteira com medo do fantasma da traição. Toda vez que estamos com medo tendemos a recorrer ao controle, mas a psicologia explica que toda vez que tentamos controlar o comportamento de alguém acabamos por fortalecer mecanismos de contra controle, como por exemplo, a mentira. Quanto mais tentamos prender alguém mais estimulamos essa pessoa a buscar formas de escapar dessa prisão. Não é à toa que utilizamos a metáfora da “pulada de cerca” para as experiências de traição. Aliás, sempre achei curiosa essa metáfora da “pulada de cerca”. Em geral utilizamos cercas em presídios ou nos parquinhos infantis. Por que estamos utilizando essa metáfora da cerca para relações entre adultos? O fato é que, enquanto houver prisioneiros, sempre haverá tentativas de fuga, isso é óbvio. Afinal de contas, a proibição nunca resolveu nada, só torna o proibido mais desejável. É incrível que apesar de todas as punições que a sociedade já criou para o adultério - incluindo a pena de morte por apedrejamento que até hoje existe em alguns países - ainda assim, homens e mulheres de todas as épocas e lugares se envolveram e ainda se envolvem em relações extraconjugais. Não existe cultura em que o adultério não seja conhecido e parece não haver nada capaz de fazê-lo deixar de existir. Como explicita a antropóloga Helen Fisher: A nossa tendência a ligações extraconjugais parece ser o triunfo da natureza sobre a cultura. (...) Dezenas de estudos etnográficos, sem mencionar inúmeras obras de história e de ficção, são testemunhos da prevalência das atividades sexuais extraconjugais entre homens e mulheres do mundo inteiro. Embora os seres humanos flertem, 72 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. apaixonem-se e se casem, eles também tendem a ser sexualmente infiéis a seus cônjuges.73 A verdade é que se quisermos realmente acabar com as puladas de cercas definitivamente, talvez a única saída seja mesmo derrubar as cercas de uma vez por todas e investir nossa energia em um diálogo aberto e transparente, trazendo consciência para essas dinâmicas ao invés de simplesmente tentar tapar o sol com a peneira! As pessoas não-monogâmicas reconhecem e aceitam que durante toda uma vida você poderá e irá inevitavelmente se atrair por outras pessoas, mesmo que esteja em um relacionamento maravilhoso. Elas optam, então, por abrir espaço para isso ao invés de permitir que essa questão cause ansiedade, ciúmes e fantasias destrutivas, como podemos ver no depoimento de Carla: Eu consigo viver conectado com a realidade de saber que meu parceiro e eu temos desejos pelos outros e somos capazes de negociá-los e explorá-los com respeito um pelo outro como o parceiro principal.74 Casais que se conheceram muito cedo na vida e tiveram poucas experiências sexuais podem optar por abrir a relação para buscarem experiências que não tiveram Essa é uma situação que acontece com certa frequência. Casais que se casam com o primeiro parceiro e depois se lamentam por não terem podido viver experiências diferentes. Alguns até se separam simplesmente para poderem viver o que não tiveram a oportunidade de viver antes. Num arranjo não-monogâmico, isso pode ser facilmente realizado sem que a relação amorosa seja desfeita. Mas, como explica a 73 Citado no artigo de Regina Navarro “A fidelidade não é natural”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2013/02/16/a-fidelidade-nao-e-natural/ 74 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. psicoterapeuta de casais Esther Perel, alguns casais às vezes preferem matar a relação do que flexibilizarem essa exigência da exclusividade monogâmica: Tão arraigada é nossa fé na monogamia que a maioria dos casais, sobretudo heterossexuais, raramente toca abertamente no assunto. Não tem necessidade de discutir o que é um dado. Preferimos matar uma relação do que questionar sua estrutura.75 Não há nada de errado em querermos realizar nossos desejos. O desejo nos remete à nossa singularidade e é um caminho para o autoconhecimento. O filósofo Spinoza do século XVII afirmava que “o desejo é a própria essência do homem”. Já o psicoterapeuta Reichiano Ângelo Gaiarsa explica que a palavra desejo Vem do latim de-si-derio; provém da raiz "sid", da língua zenda, significando ESTRELA - como se vê em sideral (relativo às estrelas). Seguir o desejo é seguir a estrela — estar orientado — saber para onde se vai — conhecer a direção...76 Busca pelo autoconhecimento e crescimento pessoal Algumas pessoas optam por abrir o relacionamento como um caminho para o crescimento pessoal e o crescimento da relação. Eles querem confrontar seus sentimentos de ciúme e possessividade, querem sair da zona de conforto e produzir transformação pessoal, como revela o relato de Elizabeth: Sou uma pessoa muito independente, autônoma e aventureira. Eu começo a me sentir sufocada e impaciente quando minha vida parece muito doméstica e mundana. Ter vários relacionamentos me 75 Extraído do artigo publicado por Regina Navarro Lins “Por que é difícil falar contra a exclusividade sexual obrigatória?”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2018/09/27/por-que-e-dificil-falar-contra-a-exclusividadesexual-obrigatoria/ 76 Trecho do artigo As Carícias e o Iluminado, de José Ângelo Gaiarsa. Pode ser encontrado aqui: https://letraefilosofia.com.br/as-caricias-e-o-iluminado-jose-a-gaiarsa/ força a ficar no momento e alerta emocionalmente, a me comunicar melhor e enfrentar o medo diariamente.77 Alguns acreditam que se abrir para múltiplos relacionamentos faz parte de sua identidade e prática espiritual, como vemos no relato de Kathleen: Parte do meu trabalho nesse planeta é expressar e experimentar amor. Tradicionalmente temos uma visão muito estreita de como isso deve acontecer. Eu não acredito que exista uma alma gêmea. Acredito que exista um Deus de amor lá fora, por que então ele nos limitaria a apenas um amor? MOTIVAÇÕES INADEQUADAS PARA SE ABRIR A RELAÇÃO É muito importante saber o que nos move antes de tomarmos uma decisão dessa magnitude como a de abrir a relação. As motivações que descrevemos a seguir podem ser bem problemáticas e prejudiciais, podendo levar a consequências desastrosas para o relacionamento. Abrir para salvar o relacionamento Abrir a relação pode fortalecer ainda mais uma relação que já está forte, mas dificilmente vai consertar uma relação que já está fragilizada. Se você está passando por dificuldades no relacionamento, abrir a relação só vai realçar ainda mais essas dificuldades. É como querer apagar incêndio com gasolina! O ideal é que o casal esteja vivendo um momento estável e harmônico antes de buscar essa transição para um modelo de relacionamento não-monogâmico. Abrir porque está na moda e todos estão fazendo isso 77 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. A motivação para abrir a relação deve ser muito intrínseca. Tem que ser algo que você realmente acredite que faça sentido pra você, não deve ser apenas para seguir o rebanho. Abrir a relação sem esse lastro na sua compreensão e convicção pode colocar em sério risco o seu relacionamento. Abrir só porque o parceiro quer ou abrir para não perder o parceiro Não-monogamia responsável pressupõe, necessariamente, que o processo seja totalmente consensual. Ninguém deve abrir a relação se sentindo coagido ou pressionado pois uma concessão negativa como essa pode acabar gerando muito ressentimento inconsciente e isso, mais cedo o mais tarde, vai estourar. Abrir a relação acreditando que é só uma fase do seu parceiro e logo isso vai passar Este processo tem que ser feito com muita transparência. Motivações secretas implicam que ainda não há honestidade suficiente na relação e isso deve ser resolvido antes de se optar pela transição para algum tipo de relacionamento nãomonogâmico. Abrir por insatisfação com o relacionamento Algumas pessoas querem abrir o relacionamento porque não estão gostando muito do parceiro, então abrem a relação para conhecerem outras pessoas até acharem uma companhia melhor que a atual. Isso é uma forma cruel de usar as pessoas, seria melhor que a pessoa fosse honesta e assumisse que não está satisfeita. Nãomonogamia responsável necessariamente envolve transparência, honestidade e responsabilidade afetiva. Abrir para evitar o aprofundamento da relação Algumas pessoas usam do artifício da relação aberta como uma forma de evitar se aprofundar no relacionamento atual, como uma forma de manter a relação superficial e evitar mergulhar na intimidade com o parceiro. A meu ver, abrir o relacionamento é uma forma de enriquecer a relação, de se aprofundar ainda mais na intimidade, favorecendo com que cada um se revele em um nível mais profundo, sem máscaras e com maior transparência e honestidade, podendo levar a um grande aprofundamento do vínculo e da relação. COMO SABER SE O RELACIONAMENTO ABERTO É PARA VOCÊ? Se você se reconheceu em algumas das motivações descritas acima, pode ser que você tenha motivos para querer abrir a relação. Porém, não adianta ter motivos sem ter um perfil adequado. O autoconhecimento é fundamental neste processo, precisamos saber exatamente o que queremos e por que queremos, bem como quais são nossos valores e no que acreditamos. Abaixo estão algumas perguntas que você deveria se fazer ao considerar abrir a relação. Essas perguntas vão ajudar a nortear algumas reflexões que podem ser bem úteis neste processo. É importante que você consiga responder as seguintes questões antes de seguir pelo caminho do relacionamento aberto. Você pode respondê-las em um caderno ou discutir com o parceiro, um amigo ou até mesmo um terapeuta. O fato é que quanto mais você refletir sobre os fundamentos da sua decisão, mais fácil será trilhar essa jornada desafiante da não-monogamia responsável. • Quais são suas crenças em relação à monogamia? • Como foram suas experiências com suas relações monogâmicas anteriores? Funcionaram para você? Sentiu falta de poder interagir sexual ou afetivamente com outras pessoas? • Você acredita que é possível desejar mais de uma pessoa ao mesmo tempo? • Você acredita que é possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo? • Qual é o papel que a sexualidade tem na sua relação? Qual importância isso tem pra você? • Qual é a importância que a liberdade tem pra você? • Qual é a importância que tem a preservação das individualidades na relação? • Você consegue fazer sexo sem envolvimento emocional? • Qual é a relação que existe entre sexo e amor pra você? • Como você define fidelidade? • Quais são as características mais importantes em um relacionamento na sua visão? • O que significa compromisso pra você? • Como você define intimidade? • Você conhece pessoas que estão em uma relação não-monogâmica? Como você lida com as emoções? • Você se considera uma pessoa ciumenta? • Como você lida com emoções fortes como raiva, ciúme e ressentimento? • Você consegue estabelecer limites claros e comunicar bem esses limites? • Você se considera tendo uma boa habilidade de comunicação? • Quando algo te incomoda, você consegue comunicar com facilidade o incômodo? Ou você guarda tudo pra você e acumula ressentimento? • É fácil pra você se comunicar aberta e honestamente sobre assuntos delicados e questões difíceis? • Quando surge um conflito em sua relação, como você reage? Quão disponível você é? • Você tem tempo pra investir em mais de uma relação? • Realisticamente, você sente que conseguiria sair com outras pessoas e ainda assim investir tempo e afeto no seu relacionamento principal? Se você já está em um relacionamento, é importante também responder às seguintes indagações: • Como está sua relação no momento? • Sua relação é estável e segura? • Quais são os conflitos mais frequentes entre vocês? • Ambos querem explorar algo novo? • Como está a vida sexual de vocês? • Você tem desejos sexuais e fantasias que não estão sendo satisfeitos nesta relação? • Sente falta de algo na relação que um novo arranjo poderia ajudar a suprir? • Como essa mudança poderia afetar seu relacionamento? • Quais são as possíveis implicações negativas dessa mudança? • O que te assusta nessa mudança? • Quais são as possíveis implicações positivas dessa mudança? • O que te agrada nessa mudança? • O que você precisa para ajudar a tornar a transição provocada por essa mudança mais fácil? Alguns exercícios mentais também podem te ajudar a compreender se a relação aberta é realmente adequada para você. Se você está em um relacionamento, pode partilhar essas reflexões com seu companheiro. Imagine seu parceiro tendo relação sexual com outra pessoa: • Como você se sente ao imaginar essa cena? • Que emoções isso traz à tona? • O que seria ruim pra você nesse cenário? • Qual seria seu maior medo neste cenário? • Como isso poderia acontecer de uma forma mais tranquila pra você? • O que você precisaria pra se sentir mais seguro em um contexto como este? Imagine seu parceiro tendo um relacionamento afetivo com outra pessoa: • Como você se sente ao imaginar essa cena? • Que emoções isso traz à tona? • O que seria ruim pra você nesse cenário? • Qual seria seu maior medo neste cenário? • Como isso poderia acontecer de uma forma mais tranquila pra você? • O que você precisaria pra se sentir mais seguro em um contexto como este? Além do autoconhecimento, outras habilidades são necessárias para fazer um relacionamento não-monogâmico funcionar e este é o tema do nosso próximo capítulo. O QUE FAZ UM RELACIONAMENTO NÃO-MONOGÂMICO FUNCIONAR Alguns fatores podem ajudar imensamente na hora de implementar um relacionamento não-monogâmico. Seguir essas orientações e buscar desenvolver as habilidades requeridas são uma boa forma de se abrir o relacionamento com o cuidado que ele merece. Vejamos alguns destes fatores. AUTOCONFIANÇA E BOA AUTOESTIMA Um dos grandes desafios para os envolvidos em um relacionamento nãomonogâmico é que nossa autoestima costuma ser muito testada nessas relações. Isso porque ver o parceiro se relacionando com outras pessoas pode fazer aflorar muita comparação e realçar sentimentos de menos valia que porventura possamos trazer dentro de nós. Alguns questionamentos negativos podem vir à tona, como por exemplo: “Será que ele não gosta mais de mim? Será que eu não estou sendo bom o suficiente? O que a outra pessoa tem que eu não tenho? E se a outra pessoa for muito mais interessante que eu, será que eu serei trocado?” Um forte senso de valor pessoal pode ajudar bastante a minimizar esses conflitos, daí a importância de ambos estarem em dia com seu processo de desenvolvimento pessoal. Além disso, é importante deixar para trás os condicionamentos da nossa bagagem histórica monogâmica, que nos faz acreditar que quem ama não deseja mais ninguém e que deveríamos dar conta de satisfazer todos os nossos desejos e necessidades apenas com uma pessoa. Se nos sentimos inseguros em relação à gente mesmo ou em relação ao nosso relacionamento, cabe aprofundar para entender o porquê. Talvez tenha um trabalho para ser feito em relação ao nosso senso de valor pessoal ou até mesmo com relação à nossa independência emocional. Quando dependemos do outro emocionalmente, a tendência é querermos controlá-lo para evitar qualquer risco de perder a pessoa da qual tanto necessitamos. De todo modo, cabe ressaltar que existe uma diferença entre não se sentir amável e não se sentir amado! Não se sentir amável tem relação com a baixa autoestima, já não se sentir amado pode ser uma constatação da realidade mesmo, pois todos nós precisamos nos sentir assegurados de que o outro nos ama, de que somos importantes, de que o outro está comprometido com a relação, etc. Numa relação aberta, se torna ainda mais importante que o outro nos assegure de estar comprometido com a relação. O relacionamento aberto não pode ser uma desculpa pra fugir de uma relação que não está boa. Aliás, se o relacionamento não está bom ou se não valorizamos nosso relacionamento, isso é um bom indicativo para não se abrir a relação. Abrir o relacionamento é uma forma de melhorar um relacionamento que já está bom, em que ambos se amam e se admiram. É para se aprofundar e não para se esquivar da relação. CONSENTIMENTO Para consentir não basta apenas não dizer não, deve-se esperar por um sim categórico e explícito. O processo de abrir um relacionamento tem que ser uma construção conjunta, ambos têm que estar no mesmo barco. Não pode haver coerção, nem pressão de nenhum tipo. Lembrando que para o sim ter valor, o não tem que ser realmente uma possibilidade. Ou seja, tem que haver real opção para que a escolha tenha sentido. A pessoa que está propondo ao parceiro deve dar espaço para o outro assimilar, processar e decidir, sem pressa. Quem está recebendo a proposta deve ter o direito de discutir e tirar todas as dúvidas antes de se comprometer com qualquer mudança no formato da relação. É importante ter clareza quanto ao que de fato está sendo consentido e lembrar-se que não é uma boa ceder simplesmente para manter a relação ou para agradar o parceiro. Mais cedo ou mais tarde essa concessão vai se transformar em ressentimento e essa conta vai ser cobrada do outro, mesmo que inconscientemente. SABER BEM NO QUE ESTÁ SE METENDO É importante estudar e refletir seriamente sobre o assunto antes de optar por essa modalidade de relacionamento. Apesar dos benefícios evidentes deste arranjo relacional, nem tudo são flores. Junto com os benefícios vêm os desafios e quanto mais conhecimento e reflexão houver antes de se abrir a relação, maiores as chances de dar certo. Hoje há muita literatura sobre o tema, cursos, workshops, séries, filmes, grupos de discussão, enfim, todo tipo de material disponível a um clique de distância. Pode ser muito útil também conversar com outras pessoas que vivem relacionamentos não-monogâmicos consensuais e esclarecer todas as suas dúvidas e discutir seus anseios e receios. CAPACIDADE DE AUTORREFLEXÃO E AUTOCONHECIMENTO É muito importante saber de que lugar você está partindo, saber bem o que você quer, o que é importante para você, como você pensa e quais são seus objetivos com a abertura da relação. Relacionamentos em geral exigem maturidade, relacionamentos não-monogâmicos mais ainda pois os desafios podem se tornar mais complexos quando se envolve outras pessoas. É muito importante saber como você funciona emocionalmente, quais são suas fragilidades e seus limites. Se uma pessoa tiver sérios problemas de autoestima ou insegurança crônica, por exemplo, ela precisa estar ciente de que isso poderá se tornar um grande empecilho nessa jornada não-monogâmica. Neste caso, pode ser importante trabalhar essa questão previamente, seja em terapia ou outro processo de autodesenvolvimento, como meditação, retiros espirituais, ou qualquer outra forma que funcione para a pessoa. É fato que quanto mais você se trabalhar mais bem equipado estará para lidar com os desafios advindos dessa escolha pela nãomonogamia consciente. INTELIGÊNCIA EMOCIONAL Perceber bem suas emoções e saber comunicá-las com clareza é uma habilidade importante em qualquer relacionamento, porém ainda mais relevante quando se trata de um relacionamento não-monogâmico. Quando não expressamos nossos sentimentos para nosso parceiro, isso acaba criando um afastamento emocional, uma desconexão afetiva. Infelizmente a maioria de nós não foi alfabetizada emocionalmente pois em nossa cultura o sistema educacional somente prioriza o desenvolvimento intelectual em detrimento do desenvolvimento emocional. Assim, muito adultos apresentam dificuldade para reconhecerem o que sentem, nomearem adequadamente e comunicarem para o parceiro seus sentimentos. Tendemos a guardar conosco o que sentimos, principalmente quando se trata de emoções desconfortáveis. Mas em um relacionamento não-monogâmico isso pode ter grande impacto, levando ao acúmulo de frustrações e ressentimentos que acabam estourando em algum momento. ABERTURA PARA SER HONESTO E VERDADEIRO EM RELAÇÃO A TUDO Outra coisa que não aprendemos em nossa cultura é como sermos honestos, verdadeiros e transparentes. De forma geral sempre somos incentivados a usar máscaras e agir como os outros esperam que nós ajamos. A própria exigência de monogamia compulsória estimula as pessoas a esconderem o que sentem, suas fantasias e seus desejos. É lamentável, mas até compreensível que a principal forma de não-monogamia existente no mundo seja não consensual e desonesta. A sociedade nos ensinou desde a mais tenra idade sobre como devemos nos relacionar, haja vista, por exemplo, os contos de fadas. Esses valores são reforçados continuamente através de filmes, novelas, cerimônias de casamento, etc. Leva-se um tempo para se descondicionar de toda essa bagagem e aprender a ser realmente verdadeiro e transparente. CONSCIÊNCIA DOS PRÓPRIOS LIMITES É muito importante estar em contato com o que nos agrada e o que nos desagrada. Conhecer os próprios limites é saber defender o próprio espaço, é não deixar ninguém te invadir ou impor coisas sobre você que você não queira. Em última instância, é uma questão de clareza quanto ao que você necessita e quanto aos seus valores, quanto ao que você quer e o que você não quer. Conhecer bem seus limites e saber comunicálos pode ajudar muito a evitar mágoas e ressentimentos em um relacionamento aberto. Às vezes não colocamos limites adequados em função do medo da rejeição ou medo de confrontar o outro e às vezes até por culpa mesmo, por não termos aprendido que é nosso direito colocar limite na ação dos outros. Dicas para estabelecer limites saudáveis • Quando você identificar a necessidade de estabelecer um limite, faça-o com clareza, calma, firmeza, respeito e com o mínimo de palavras possível. Não justifique, fique com raiva ou peça desculpas pelo limite que você está estabelecendo. • Lembre-se que você não é responsável pela reação da outra pessoa ao limite que está estabelecendo. Você só é responsável por comunicar seus limites de maneira respeitosa. Se isso incomodar a outra pessoa, saiba que isso é problema dela. • No início, você provavelmente se sentirá egoísta, culpado ou envergonhado ao estabelecer um limite. Faça assim mesmo e lembre-se de que você tem o direito de cuidar de si mesmo. Definir limites exige prática e determinação. Não deixe que a ansiedade, o medo ou a culpa o impeçam de cuidar de si mesmo. • Quando você sente raiva ou ressentimento possivelmente você precisa estabelecer um limite. Ouça a si mesmo, determine o que você precisa fazer ou dizer e, em seguida, comunique-se de forma assertiva. • Desenvolva um sistema de apoio de pessoas que respeitem seu direito de estabelecer limites. Elimine pessoas tóxicas - aquelas que querem manipular, abusar e controlar você. • Aprender a estabelecer limites saudáveis leva tempo. É um processo. Lembrese: o autocuidado é a melhor forma de cuidado. CAPACIDADE DE LIDAR COM CONFLITOS Conflitos sempre vão surgir em qualquer tipo de relacionamento. Todo relacionamento envolve diferenças e toda diferença é potencialmente conflitante e possivelmente geradora de desconfortos emocionais. Sendo assim, todo relacionamento vai gerar algum tipo de conflito, porque são duas pessoas com histórias de vida diferentes tendo que viver uma história conjunta. Estudos de psicologia clínica com casais já atestaram que um dos fatores mais importantes para a resolução de conflitos entre casais é a aceitação das diferenças. Aceitação, neste caso, não quer dizer submissão ou resignação, mas uma escolha intencional de tolerar o comportamento que gera algum tipo de aversão porque você enxerga esse comportamento como parte de um contexto maior de quem seu parceiro é, ou seja, você não o reduz àquela característica que te incomoda. Como explica o psicoterapeuta de casal Stelios Sant´Anna Sdoukos: A aceitação possui duas características terapêuticas, a primeira é que ela intenciona transformar os problemas em veículos para a promoção de intimidade, que pode ser desenvolvida em razão dos problemas e não apesar deles. A segunda é auxiliar os parceiros a renunciarem ao esforço de mudar um ao outro, o que envolve tanto abrir mão das concepções prévias de que suas diferenças são intoleráveis, quanto de que devem remodelar um ao outro a partir de imagens idealizadas de como deveria ser o cônjuge. 78 78 O papel da aceitação na Terapia Comportamental Integrativa de Casal (IBCT), publicado em: https://comportese.com/2019/06/25/o-papel-da-aceitacao-na-terapia-comportamental-integrativa-de-casal-ibct O objetivo no trabalho com a aceitação é diminuir o apego às idealizações e as tentativas de transformar a outra pessoa, é (...) compreender as características aversivas do parceiro como sendo uma parte constituinte, mas não definidora do parceiro, promovendo desse modo, real empatia e intimidade para o casal em conflito e diminuindo as tentativas beligerantes de modificar o outro.79 É claro que muitas coisas podem ser modificadas também e para isso é fundamental uma conexão empática em torno dos problemas, visando encontrar soluções conjuntas para lidar com as diferenças naturais que existem entre duas pessoas. Quando vocês estiverem conversando sobre a abertura do relacionamento, é bem possível que alguns conflitos emerjam. Caso isso ocorra, é importante seguir as seguintes diretrizes para ajudar na administração construtiva desses conflitos.80 Acalmar-se primeiro, só depois comunicar e agir Quando nos sentimos ameaçados, entramos em um modo de funcionamento biológico chamado de “luta ou fuga”, mecanismo este que mobiliza raiva e adrenalina. Isso quer dizer que temos grandes chances de atacar o outro no calor dos acontecimentos, pois é isso que a raiva no impele a fazer. Se agirmos na impulsividade há grandes chances de isso causar danos ao nosso relacionamento. Respire fundo, se acalme primeiro e depois converse. Se for necessário, é sempre possível postergar a conversa para um momento mais favorável em que ambos estejam se sentindo mais equilibrados. Duvidar do que se pensa pode ser saudável 79 O papel da aceitação na Terapia Comportamental Integrativa de Casal (IBCT), publicado em: https://comportese.com/2019/06/25/o-papel-da-aceitacao-na-terapia-comportamental-integrativa-de-casal-ibct 80 Texto adaptado de “Os dez mandamentos para lidar com um conflito no relacionamento”: https://amenteemaravilhosa.com.br/dez-mandamentos-conflito-no-relacionamento/ Costumamos ter muita certeza sobre o que pensamos e isso pode parecer uma coisa boa. Porém, a dúvida também pode ser muito saudável e construtiva. A dúvida abre espaço para a escuta sincera. Quando temos certeza prévia de tudo, quando achamos que somos o dono da razão, não vemos sentido em escutar verdadeiramente o outro, antes de ouvi-lo já temos a resposta pronta em nossa cabeça. Deixe a outra pessoa expor suas razões, suas ideias e emoções. Abra a mente para compreender outros pontos de vista. Isso é a base da empatia. Se abrir para compreender verdadeiramente a experiência do outro pode ser um investimento com retorno muito alto para seu relacionamento. Evitar uma perspectiva maniqueísta Maniqueísmo é um tipo de pensamento simplificado que reduz tudo a certo ou errado, bom ou mal, etc. No mundo real vemos que a vida é bem mais complicada que isso. É muito comum que ambos os parceiros estejam corretos ao seu modo, a partir de sua perspectiva. Abrir mão dessa simplificação do maniqueísmo pode ajudar a nos tirar da rigidez psicológica e entender que a realidade é sempre muito mais complexa do que gostaríamos. Isso pode fazer com que também desenvolvamos mais empatia pela perspectiva do nosso parceiro, nos levando a querer entender melhor por que ele enxerga as coisas de um determinado modo, diferente do nosso. Exponha o que você sente com honestidade Uma das melhores maneiras de lidar com um conflito no relacionamento é se concentrar no que você sente mais do que no que você pensa. Expor seus sentimentos com sinceridade é algo libertador para você e enriquecedor para o outro. As expressões que nascem do coração promovem a compreensão e acabam estreitando o vínculo entre duas pessoas. Não grite, não maltrate Os gritos e os maus-tratos alimentam o conflito e prejudicam a dignidade. Embora no calor da briga possamos ignorá-la, essa é uma máxima que acaba prevalecendo. Ao gritar e abrir mão do cuidado você autoriza o outro a fazer o mesmo. Isso, a longo prazo, apenas promove distância e ressentimento. Assuma primeiro suas próprias responsabilidades Temos a tendência de buscar a resposta para nossas ações e emoções nos atos de outras pessoas. “Você me tirou do sério”, dizemos, como se o outro pudesse controlar o que sentimos. A atitude mais madura é sempre começar qualquer análise da situação determinando primeiramente a sua responsabilidade no que aconteceu, evitando a todo custo entrar no papel da vítima. Tentar culpar o outro não resolve o conflito no relacionamento, muito pelo contrário, só o coloca numa posição ainda mais defensiva e acusatória. Ouça em silêncio Em silêncio podemos trabalhar melhor o nosso diálogo interno, aquelas mensagens que dedicamos a nós mesmos. Além disso, em uma conversa, ele é o prelúdio educado para a troca de palavras. Interromper o parceiro que está falando é algo que gera uma tensão adicional, porque irrita e reflete um desejo de se impor, além de refletir desconsideração pela posição do outro. Focar em soluções É muito mais fácil enfrentar um conflito no relacionamento quando existe uma atitude construtiva em relação a ele. Isso se manifesta quando entramos em uma discussão com o objetivo de buscar soluções e saídas, em vez de fazê-lo para aprofundar ainda mais o desconforto. Se a ênfase estiver em como resolver o problema, a solução para o conflito estará muito mais próxima do que se a ênfase for em acusar e culpar o outro. O passado admite reparos, mas não retornos Evite ficar voltando ao passado se não for para usá-lo de forma construtiva, como uma referência do que deve ser modificado no futuro. Ficar voltando ao passado apenas para jogar na cara do outro só ajuda a criar um clima de hostilidade e ressentimento. Ameaças não têm vez As ameaças de terminar a relação ou de fazer algum mal correspondem a uma forma de violência psicológica. Em determinado momento podem dar a sensação de funcionar, porém, no entanto, nunca serão a verdadeira solução para um conflito. Com elas, um vence e o outro perde, há vencedores e perdedores, o que talvez seja o pior resultado de qualquer negociação em um relacionamento. Também não é bom alimentar rancores. Nas relações, todos nós temos que perdoar e ser perdoados em algum momento. Todos nós erramos e merecemos uma oportunidade para reparar o dano e pedir desculpas. Não basta ter razão Muitas vezes quando iniciamos uma discussão fazemos de tudo para provar que somos nós quem temos razão. Mas é importante lembrar que não basta ter razão, ter razão por si só não resolve o problema. Lembre-se de que vocês estão no mesmo time e ninguém quer ganhar do outro e sim resolver a situação. Não deixe o amor virar rivalidade e competição. Evite ficar defendendo muito a sua posição ou argumentando para tentar ganhar a discussão, o importante é que vocês fiquem bem e entrem em um acordo. Não deixe acumular mágoas pois elas podem acabar virando uma bomba-relógio É importante que o casal dialogue com frequência para não deixar as mágoas acumularem. Tenha o hábito de resolver os problemas logo quando estes aparecem, como uma forma de higiene relacional. BOA CAPACIDADE DE COMUNICAÇÃO Comunicação pode ser a habilidade mais relevante para quem quer estabelecer um relacionamento não-monogâmico. Se você é uma pessoa que não está aberta para conversar e discutir aspectos relevantes da sua relação, pode ter certeza que você não tem o perfil adequado para um relacionamento não-monogâmico. Esteja preparado para ouvir cuidadosamente, fazer empatia, se abrir para o sentimento do seu parceiro e para se abrir também. Se você acha isso um tédio, talvez você deva reconsiderar o tipo de relacionamento que procura, porque saber conversar sobre a relação é fundamental para fazer um relacionamento nãomonogâmico funcionar de forma saudável. Aliás, para qualquer tipo de relacionamento! A conversa se fará necessária em diversos momentos em um relacionamento aberto, como por exemplo: • Na hora de introduzir a ideia de abrir a relação • Na hora de negociar as regras e os combinados que vão reger a relação • Na hora de conversar sobre como estão sendo os encontros e as experiências com outros parceiros • Na hora em que surgirem sentimentos difíceis, como por exemplo o ciúme ou a insegurança • Na hora de chegar em acordos e soluções para algum conflito que possa emergir • Na hora de renegociar os acordos e combinados quando forem necessários ou quando as coisas mudarem • Na hora de comunicar necessidade e limites Toda comunicação de qualidade pressupõe a existência de autopercepção, não julgamento, empatia, respeito à diferença, validação do sentimento do outro, autorresponsabilidade e capacidade de se vulnerabilizar (se revelar sem defesas). Um modelo de comunicação bastante apropriado para os relacionamentos nãomonogâmicos é o da Comunicação Não-Violenta (CNV), desenvolvida por Marshall Rosenberg e apresentada originalmente no livro “Nonviolent comunication: a language of life” (Comunicação não-violenta: uma linguagem da vida). A CNV parte da premissa básica de que fomos educados para julgar e de que pensamos e nos comunicamos em termos de certo ou errado. Além disso, costumamos pedir o que queremos fazendo demandas e expressamos nossos sentimentos em função do que a outra pessoa fez com a gente. A CNV funciona retreinando as pessoas a se observarem cuidadosamente para especificar com clareza os comportamentos e as condições que estão afetando-a. Além disso, na CNV aprendemos a: • Identificar e articular com clareza o que estamos sentindo e querendo em uma determinada situação. • Entrar em contato com o que você está sentindo e expressar com clareza • Observar os fatos objetivos ao invés de fazer juízo de valores • Escutar de forma aberta, sem julgamento e acusação • Ouvir com compaixão ao invés de ficar no modo defensivo • Reconhecer e expressar com clareza nossas necessidades e o que desejamos que aconteça • Se expressar a partir da primeira pessoa, usando a linguagem do EU ao invés do VOCÊ. • Assumir a responsabilidade pelo que você está sentindo ao invés de acusar o outro por te fazer se sentir de tal modo De forma resumida, a utilização da CNV nas relações pressupõe estruturar a comunicação em termos de 4 elementos básicos: 1) Observação: descrever a realidade de forma objetiva, sem entrar em juízo de valores 2) Sentimento: entender qual sentimento a situação desperta em você e nomear esse sentimento 3) Necessidades: a partir da compreensão do sentimento, reconhecer quais necessidade estão ligadas a ele 4) Pedido: fazer uma solicitação específica, deixando claro o que se espera da outra pessoa Exemplo de comunicação não violenta em um conflito no trabalho: Joana, quando você grita comigo no ambiente de trabalho (observação), eu me sinto diminuído e irritado (sentimento) porque preciso sentir que sou respeitado e que meus colegas querem ajudar a me desenvolver (necessidades). Você poderia me chamar para conversar em particular quando se sentir irritada comigo? (pedido). É muito importante utilizar essas diretrizes em um relacionamento aberto porque a comunicação não-violenta é um estilo não combativo de comunicação, além de estimular a compaixão e a gentileza. É também uma forma de evitar que a comunicação se transforme em um jogo de acusações e julgamentos, que só faz ferir e levar ao distanciamento do casal. Este modo de comunicação nos leva a focar no que sentimos e no porquê sentimos isso, além de nos ensinar a nos apropriarmos das nossas emoções (auto-responsabilização). Quando cada um se responsabiliza pelo que sente, evitamos o condicionamento de culpar o outro pelo que sentimos. Para evitar cair no jogo da acusação, deve-se sempre utilizar a linguagem do EU. Isso também ajuda muito na auto-responsabilização. Por exemplo, ao invés de dizer: “você me magoou muito quando decidiu sair com alguém mesmo quando eu estava doente”, pode-se dizer assim: “eu fiquei muito triste quando você saiu porque eu realmente gostaria que você tivesse ficado em casa cuidando de mim”. Vemos neste exemplo o conceito de vulnerabilização. Ao invés de entrar no modo defensivo e cair no jogo da acusação (“você é muito insensível de não perceber que eu estava doente”) optou-se pelo caminho da vulnerabilização, puxando a linguagem para a primeira pessoa: Eu fiquei muito triste (sentimento) quando você saiu mesmo eu estando doente (observação). Eu gostaria muito (necessidade) que você tivesse ficado em casa cuidando de mim (pedido). Revelações Duras X Revelações Suaves Em psicoterapia de casal é comum o terapeuta estimular o casal a utilizar “revelações suaves” ao invés de “revelações duras”, o que vai bem ao encontro da comunicação não-violenta. Em geral acabamos optando automaticamente pelas revelações duras (expressão de raiva ou acusação) porque essas tendem a trazer uma sensação de proteção, enquanto as revelações suaves (expressão da dor, tristeza ou medo) tendem a nos deixar vulneráveis. Porém, as revelações duras tendem a manter a polarização e o distanciamento, porque essa é a natureza da raiva, afastar para proteger. Já a expressão da dor ou da tristeza tende a gerar compaixão no ouvinte, gerando aproximação e empatia. Revelações suaves são o equivalente à vulnerabilização e têm o efeito de abrandar o ouvinte e por isso são fundamentais no diálogo conjugal. Essa é a grande importância da vulnerabilização, ela muda completamente a disposição emocional dos parceiros e isso faz toda diferença na comunicação do casal. Perceba a diferença entre essas duas formas de se expressar no seguinte exemplo e veja o que cada uma delas gera em você: Revelação dura: “Você é um insensível que não considera os meus sentimentos” Revelação suave: “Quando você age assim eu fico muito triste porque parece que meus sentimentos não estão sendo valorizados” TER CLAREZA SOBRE O QUE ESTÁ SENDO ACORDADO Todo relacionamento amoroso envolve algumas regras e combinados, mesmo que estes não sejam explicitados. A exigência de monogamia costuma ser um desses combinados que não é explicitado no início da relação. Para um relacionamento nãomonogâmico funcionar bem, é muito importante que esses combinados sejam discutidos e explicitados. É muita idealização achar que dá para administrar um relacionamento não-monogâmico na base do vale-tudo. Na prática isso é simplesmente inviável pois todos necessitam de um mínimo de previsibilidade para se sentirem seguros. No capítulo seguinte vamos abordar este importante elemento das relações não-monogâmicas. ESTABELECENDO REGRAS E COMBINADOS Todo relacionamento envolve algum tipo de negociação. Nos relacionamentos nãomonogâmicos essa negociação se torna ainda mais crucial pois não costumamos ter referências sobre como se relacionar dessa forma. Já que fomos criados em uma cultura que prega a monogamia como padrão, acabamos ficando sem referência quando partimos para um modelo distinto do tradicional. Isso implica que cada detalhe deve ser negociado e discutido até se chegar a um modelo de relação que atenda às necessidades e anseios de ambos os parceiros. Combinados ajudam as pessoas a se sentirem seguras e terem alguma previsibilidade. No caso das relações não-monogâmicas, os combinados servem para que o casal possa definir o que buscam com a abertura do relacionamento, o que exatamente querem experimentar e, não menos importante, o que não querem. Nesse sentido, estabelecer combinados tem a ver com respeitar os limites de cada um. Para isso, é muito importante que ambos tenham voz na hora de estabelecer os combinados, daí a importância de existir autonomia entre os indivíduos da relação. Não pode haver coerção ou ameaça, deve ser sempre uma negociação amorosa. Ambos têm que sentir que suas necessidades e limites foram levadas em consideração. O timing também é importante, dê preferência para iniciar essa negociação quando o casal estiver bem e equilibrado. Lembre-se que o melhor é sempre ir devagar neste processo, avançando gradativamente, sem pressa. O ideal é que nenhum desses combinados fiquem implícitos, quanto mais explícito melhor, podendo até serem feitos por escrito. Mas é claro que mesmo com o máximo de explicitação possível, ainda assim vão surgir questões que não foram antecipadas e tem que haver espaço para acomodar novas situações, rediscutindo os combinados se for o caso. Por isso mesmo, esses combinados devem ser dinâmicos, assim como são as pessoas e a vida. Logo, deve haver espaço para que os combinados possam ser revistos e renegociados caso alguém não esteja se sentindo confortável com o acordo estabelecido. Vejamos a seguir as principais questões que podem ser definidas na hora de elaborar os combinados que vão reger o contrato de relação não-monogâmica do casal. Qual é o contorno geral da relação não-monogâmica? Queremos ter só variedade sexual ou afetiva também? Sairemos sempre juntos ou pretendemos sair sozinhos também? Vai ser swing, relação aberta, poliamorismo ou uma combinação dos três? O que pretendemos experimentar com outras pessoas? Só sexo, sem romance? Só amassos e beijo, sem sexo? O sexo tem que ser feito sempre com camisinha? Vale tudo no sexo, incluindo sexo oral e anal? Ter encontros não sexuais, tipo ir pro cinema ou almoçar juntos está valendo? E ficar trocando mensagens durante o dia, por exemplo? Com quem pretendemos sair? Só com desconhecidos? Pode sair com amigos? E pessoas do trabalho, tá valendo? Pode sair com homem e mulher? E com casais? Quando e com que frequência pretendermos sair com outras pessoas? Pode sair sempre que quiser ou está limitado a alguns dias da semana ou do mês? Só quando estiver fora da cidade, por exemplo? Só quando o outro já tiver algum compromisso? Só pode sair quando a relação estiver boa, sem conflitos? Para onde pode ir? Somente a lugares públicos? Só em casas noturnas? Pode trazer alguém para casa? Pode transar com alguém na cama do casal? Pode dormir fora de casa? Outros detalhes importantes: Pode sair mais de uma vez com a mesma pessoa? Deve-se compartilhar as experiências com o parceiro ou guarda pra si? Tem que avisar o parceiro previamente? O outro vai ter poder de veto? Um pode ter acesso à comunicação do parceiro com as pessoas que ele sai? Pode fazer perfil em aplicativos de paqueras? Os seguintes depoimentos ajudam a ilustrar como os casais vêm elaborando estes combinados em suas relações não-monogâmicas: Nós não namoramos amigos ou alguém que conhecemos – incluindo qualquer pessoa de quem somos amigos nas redes sociais. Certa vez, vi um perfil no Facebook de alguém com quem ele acabou transando e ela estava absolutamente deslumbrante. Isso foi difícil para mim porque eu não pude deixar de me comparar com a forma como a percebi na internet (a maioria era apenas ilusões preenchidas por meu próprio cérebro, é claro). Mas nós passamos por isso juntos. Só porque ele era a causa da minha mágoa, isso não significava que eu não podia esperar para correr pros seus braços. Nós fizemos uma nova regra então: Não dormir com amigos do Facebook nem amigos em geral.81 Beth Podemos “brincar” casualmente com outras pessoas individualmente (...) podemos fazer qualquer coisa, desde que não haja necessidade de látex e que fiquemos em um local público ou povoado de outra forma (um bar ou festa - não um quarto privado ou outro lugar onde ficaríamos sozinhos com a pessoa). Podemos brincar com outras pessoas, mas sem sexo vaginal ou anal. Pode haver contato genital, orgasmos, fisting e penetração com brinquedos. 82 Ricardo e Samantha Nossos combinados são os seguintes: Inicialmente sair apenas com casais. Quando for com solteiro, só pode sair uma vez, não sendo permitido repetir encontro com a mesma pessoa. O outro participa de todo o processo de escolha e tem que dar o aval com antecedência. O outro tem acesso à toda comunicação. Só pode sair para encontros quando o outro estiver bem e quando a relação estiver boa. As outras pessoas com quem sairmos tem que saber que estamos num relacionamento e que não quereremos compromisso. Só pode sair para encontros no máximo uma vez por semana.83 81 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. 82 Idem. 83 Ibidem. Paulo e Receba Sexo em nossa cama está bem, mas sexo na sala de meditação está completamente proibido. Meu quarto é meu. Ele não tem permissão para fazer sexo lá. Da mesma forma comigo em seu quarto. 84 Ronaldo e Camila REGRAS X COMUNICAÇÃO ABERTA E CONTINUADA Por mais que combinados e regras sejam relevantes, é preciso também deixar espaço para a experiência ir se descortinando naturalmente e cada um descobrir o que faz sentido para si à medida que as vivências acontecem. O modelo de combinados e regras, dependendo de como é conduzido, pode acabar enrijecendo a experiência, pois como mencionamos anteriormente, a realidade é muito dinâmica e não sabemos como vamos nos sentir quando estivermos em contato com a experiência concreta. É muito difícil prever como as coisas vão se desenrolar quando adentramos o universo das relações não-monogâmicas. Então, talvez mais importante do que estabelecer regras e combinados rígidos, seja a capacidade de manter uma comunicação aberta e continuada sobre tudo o que for emergindo. Dessa forma, fica mais fácil de acompanhar a vivência de cada um enquanto o casal se mantém aberto para aprender com a evolução dessas experiências. Ao invés de reduzir os combinados a uma lista de permissões e proibições do que se pode ou não fazer, talvez faça mais sentido pensar nos combinados como diretrizes, como uma direção para onde o casal quer caminhar, como um alinhamento de intenções, entendimentos e expectativas sobre o que cada um deseja e anseia, bem como o que vislumbra ser melhor para si e para o casal. 84 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. Por exemplo, “queremos abrir a relação, mas não pretendemos nos envolver com outras pessoas afetivamente.” Essa é uma intenção, o casal quer seguir nessa direção. Mas pode ser que aconteça algum envolvimento afetivo, já que nem sempre controlamos isso. Neste caso, deve haver espaço para conversar a respeito, mesmo que isso não estivesse previamente no combinado, porque muitas vezes a experiência se sobrepõe às teorizações e isso não é necessariamente ruim, desde que tenhamos flexibilidade para acolher o que ocorre e processar essas experiências on the fly, ou seja, na medida em que elas vão acontecendo. Quando pensamos em termos de regras rígidas, o risco é não haver espaço para contemplar as experiências que forem emergindo ao longo do percurso e também não haver espaço para cada um ir descobrindo o que faz bem para si e que tipo de experiências anseia viver. Regras rígidas tendem a enrijecer o processo e roubar um pouco da autonomia e espontaneidade dos sujeitos. Na prática, o que vemos ocorrer com os casais é iniciarem a relação aberta com muitas regras rígidas e depois, gradativamente, se moverem para um modelo mais fluido, com menos regras e mais diálogo constante. Nesta evolução natural, a tendência é que cada parceiro tenha cada vez mais autonomia para escolher que experiências gostaria de ter e a negociação passa a recair mais sobre como se conduzir na prática essas vivências e não tanto sobre o que se está autorizado ou não a fazer. Deste modo, a relação favorece com que cada sujeito tenha autonomia de escolha sobre seu desejo e os combinados vão servir mais para definir a melhor forma de realizar essas experiências. Mesmo que muitos casais não estejam prontos ainda para dar total autonomia de escolha a seus parceiros essa pode ser uma perspectiva boa no horizonte. O fato é que apenas aprendemos a sentir segurança através do controle mas essa é uma segurança um tanto precária. O controle e a proibição são uma espécie de paliativo. A verdadeira segurança é aquela que emerge da força do vínculo do casal. Quando mais sólido é o vínculo e a conexão do casal e mais transparente é a comunicação, maiores são as chances de o casal permanecer juntos ao longo do tempo. É a conexão e a intimidade que fortalecem a relação e não as regras e normas. REABRINDO A RELAÇÃO Como tudo na vida, as relações também evoluem e os acordos que foram feitos no início do processo podem não ser mais válidos agora, então é preciso estar sempre disposto a rever os combinados. Devemos ter flexibilidade e espaço interno para repactuar a relação quando for necessário, sem rigidez excessiva. Pode ser que um parceiro descubra um novo desejo que não tinha antes e queira espaço pra realizá-lo na relação. Pode ser que vocês dois começaram saindo sempre juntos, mas agora um dos dois sente vontade de poder sair sozinho também. Pode ser que um se descubra bissexual e queira explorar essa possibilidade. Enfim, assim como as pessoas, as relações também evoluem. O importante é que se vocês conseguiram chegar a um acordo uma vez, certamente têm condição se repactuar e encontrar um novo equilíbrio nessa negociação. PROBLEMAS COMUNS, ARMADILHAS E DESAFIOS DAS RELAÇÕES ABERTAS Optar por um relacionamento não-monogâmico pode trazer inúmeros benefícios para o relacionamento, como por exemplo: • Viver honestamente e sem hipocrisia • Evitar se sentir sufocado, limitado ou preso numa relação fechada • Ser livre para reconhecer que sente atração e desejo por outras pessoas, sem se sentir culpado por causa disso • Ser livre para criar relacionamentos personalizados que funcionem para você ao invés de ter que se adaptar a um modelo hegemônico que a sociedade impõe • Ter vários parceiros sexuais e experiências emocionais diferentes • Poder experimentar a excitação do flerte e da sedução • Não ter a obrigação de satisfazer todas as necessidades do parceiro e vice-versa • Trabalhar no autoconhecimento e enfrentar desafios como ciúme e outras questões Se a opção for por um relacionamento poliamoroso ou uma relação livre, você poderá desfrutar ainda de alguns benefícios adicionais, como: • Ter múltiplos relacionamentos ao invés de um só • Não ter necessidade de acabar um relacionamento para iniciar outro • Ser desafiado a aprender e crescer por meio de múltiplos relacionamentos • Poder atender a diferentes necessidades com diferentes pessoas • Explorar diferentes dinâmicas sexuais ou relacionais Porém, como tudo na vida, existe o outro lado da moeda e os relacionamentos nãomonogâmicos também podem trazer inúmeros desafios e armadilhas que vamos analisar agora. MANEJO DO TEMPO E NEGLIGÊNCIA DO RELACIONAMENTO PRINCIPAL Às vezes a empolgação com a possibilidade de realizar nossos desejos e fantasias pode fazer com que deixemos a relação principal negligenciada e isso a longo prazo prejudica muito o relacionamento. Quando estamos em um relacionamento aberto, seja de que tipo for, é muito importante guardar tempo de qualidade para esta relação, um tempo intencional e significativo. Devemos saber de nossas prioridades e dos nossos limites para não negligenciarmos nosso relacionamento. Para isso é importante lidar bem com agenda, negociar bem os melhores horários para os encontros extraconjugais ou, em último caso, sair sempre juntos para realizar as fantasias a dois e ninguém se sentir preterido. USAR A ABERTURA PARA FUGIR DA RELAÇÃO Quando alguma não vai bem na relação, podemos nos sentir impelidos a querer nos afastar dela para evitar entrar em contato com a dificuldade que está se manifestando. Algumas pessoas fazem isso mergulhando no trabalho, por exemplo. Quando se está em um relacionamento aberto, a própria abertura que a relação proporciona pode acabar se convertendo em uma possibilidade de fuga. Somente o autoconhecimento pode ajudar a reconhecer qual está sendo a motivação para buscar algo fora. É para fugir da relação ou é simplesmente para enriquecer a vida do casal? É importante identificar e sermos honestos com nós mesmos e nossos parceiros, pois os problemas não somem simplesmente porque não damos atenção a eles - pelo contrário, eles tendem a ficar maiores quando os evitamos. Como dissemos anteriormente, o ideal é que o relacionamento esteja em harmonia antes de se pensar em abrir a relação. O objetivo é expandir as possibilidades e não se esquivar da relação. Os relacionamentos abertos certamente funcionam melhor quando o casal se ama e se relaciona bem e a abertura da relação é usada para aprimorar ainda mais a relação. USAR A ABERTURA PARA ATINGIR O OUTRO Toda ferramenta pode ser mal ou bem utilizada. Com o relacionamento aberto é a mesma coisa. Ao mesmo tempo em que abrir a relação traz a possibilidade de crescer juntos e enriquecer o relacionamento, se utilizado sem consciência, pode ser uma forma de atingir o outro, de magoar. Assim como mencionado no tópico anterior, devemos estar atentos às motivações que estão conduzindo nosso comportamento para ter certeza de que a abertura da relação esteja à serviço de uma causa construtiva. Se vocês estão se magoando com frequência, cabe fazer uma pausa e analisar por que isso está ocorrendo. Existem mágoas ou ressentimentos inconscientes? QUANDO UM SENTE QUE ESTÁ APROVEITANDO MENOS QUE O OUTRO Uma das possíveis armadilhas de um relacionamento não-monogâmico é quando um sente que o outro está aproveitando mais que a gente. Pode ser porque o outro tem mais tempo livre para aproveitar as oportunidades, ou porque o outro tem mais desenvoltura e capacidade de encontrar parceiros ou até mesmo porque um é mais atraente que o outro. O fato é que esse tipo de situação pode gerar um tipo de ciúmes que na verdade está mascarando uma inveja ou até mesmo uma sensação de impotência de um dos parceiros. Como qualquer incômodo que venha a surgir em um relacionamento nãomonogâmico, o parceiro que está se sentindo incomodado deve se pronunciar e ambos vão buscar uma solução conjunta para o desconforto que está sendo apresentado. Uma possibilidade seria definir, por exemplo, que um só vai poder se encontrar com outras pessoas quando o outro também conseguir agendar um encontro. Como sempre, tudo pode ser resolvido a partir de um diálogo franco e honesto. PROBLEMAS DE COMUNICAÇÃO Alguns dos problemas de comunicação mais comuns em relacionamentos não monogâmicos são os seguintes: Não ser suficientemente específico nos combinados. Digamos que vocês façam um combinado de que não se pode fazer programas românticos com os parceiros extraconjugais. Mas pode ser que cada um tenha uma concepção diferente do que é um programa romântico. Por exemplo, almoçar juntos é um programa romântico? Por isso, quanto mais específicos e explícitos forem os combinados, melhor. Fazer pressuposições e não confirmar Às vezes pressupomos que sabemos como o outro vai se sentir ou como irá reagir e por isso não nos damos o trabalho de consultar e confirmar nossas suposições. Podemos criar muitos conflitos quando agimos com base na nossa perspectiva sem considerar que a do outro pode ser diferente. Por exemplo, um dos parceiros pode pensar assim: “ah, eu não me importaria com isso, então acho que ele também não vai se importar”. Desafio da zona cinzenta A zona cinzenta aparece quando ocorre uma situação que não foi totalmente especificada na negociação. Isso é mais comum do que se imagina. Digamos que vocês combinam que não é para ter casos com pessoas do trabalho. Aí em uma determinada festa você encontra o irmão de um amigo do trabalho. Neste caso, você poderia ficar com ele ou não? Essa é uma zona cinzenta porque está além do que foi definido, mas ao mesmo tempo está próximo. O ideal seria perguntar para o seu parceiro como se comportar neste caso, mas nem sempre vocês vão conseguir se comunicar imediatamente. Então, vale ter como regra a seguinte máxima: na dúvida, abstenhase até que a questão possa ser mais bem discutida. QUEBRA DE COMBINADOS Se existe uma infidelidade nos relacionamentos não monogâmicos, essa infidelidade é a quebra dos combinados - essa é a traição no universo da não-monogamia. Quando expressamos e combinamos claramente como as coisas devem ser, machuca muito quando isso não é respeitado. Quando isso acontece, tem que ver se foi realmente uma violação do combinado, uma falha de comunicação ou até mesmo uma confusão pertencente à zona cinzenta. Deve-se analisar com profundidade o que aconteceu. Foi intencional a quebra de combinado? Foi só uma confusão? Ou foi uma quebra deliberada por vingança, ressentimento ou raiva? Às vezes alguém aceita uma regra mesmo não concordando muito e acaba quebrando depois de forma reativa, como num protesto, numa manifestação de raiva passivo-agressiva. A pessoa que falha tem que assumir a responsabilidade pelo que fez e se desculpar sinceramente e não só da boca pra fora. É preciso fazer empatia com a dor provocada no outro e saber que leva um tempo pra confiança se reestabelecer. Porém, nem toda quebra de combinado tem o mesmo peso. Fazer sexo sem camisinha é mais grave do que combinar de ligar quando estiver voltando para casa e não ligar. O ideal é que nossa reação à quebra do combinado seja proporcional à gravidade do ato. Quando ocorre uma quebra no acordo, é importante buscar entender o que causou isso. Pode ser que alguém tenha aceitado algum aspecto do combinado sem estar realmente convencido dele, mas apenas para agradar o outro. Por isso é importante que as pessoas tenham de fato autonomia para escolherem o que querem ou não fazer, porque assim elas tendem a ficar mais comprometidas com o acordo. QUANDO UM DOS PARCEIROS SE APAIXONA POR ALGUÉM É um fato que em todo relacionamento existe sempre o risco de um dos parceiros se apaixonar por alguém, independente de se estar em um relacionamento aberto ou não. A verdade é que nem tudo pode ser controlado, embora algumas coisas possam ser antecipadas. Se vocês sabem que um dos dois tem muita facilidade de se apaixonar, vocês podem optar por saírem apenas em conjunto e com pessoas casadas (swing), o que minimiza imensamente a possibilidade de envolvimento afetivo. Afinal, em ambos os lados os respectivos parceiros estão presentes, o que naturalmente força um devido distanciamento afetivo. Em último caso, se um dos parceiros se apaixonar por alguém, isso pode ser conversado e se chegar a um acordo sobre a melhor forma de lidar com a situação. Em uma relação monogâmica tradicional quando um se apaixona não tem muita opção a não ser terminar tudo ou desistir do novo afeto. Os relacionamentos nãomonogâmicos permitem uma terceira opção, que seria incluir a possibilidade de um relacionamento paralelo, mesmo que sendo secundário. Nesta situação teríamos um caso de poliamorismo hierárquico. Veja que nem sempre se apaixonar por outra pessoa é necessariamente ruim e nem sempre isso é a tragédia que se imagina. Muitas vezes a paixão é passageira e paradoxalmente, dar espaço para ela pode até ajudar a passar mais rapidamente, mesmo porque sempre existe um quê de fantasia nos apaixonamentos e o contato com a realidade pode até ajudar a ressignificar esse sentimento. DESAPROVAÇÃO DE AMIGOS, FAMÍLIA E SOCIEDADE Até que ponto vale a pena contar para as outras pessoas que você está em um relacionamento não-monogâmico? Essa é uma questão delicada que exige bastante reflexão. Como toda decisão, existem prós e contras. Existe o risco de você ser alvo de fofocas ou até mesmo ser muito criticado pelos amigos, colegas de trabalho e até mesmo pela família. As principais críticas que as pessoas costumam fazer são: • Ser não monogâmico não é o que Deus espera de nós • Você está correndo perigo de pegar DSTs • Pessoas que não conseguem ser monogâmicas têm dificuldades psicológicas e precisam de terapia (dificuldade de assumir e manter compromisso) • Você ainda não encontrou a pessoa certa, quando encontrar você será monogâmico • Isso é porque seu último relacionamento não deu certo, né? • Isso vai destruir seu relacionamento • Isso é porque vocês não se amam mais • Se vocês se amassem mesmo não aguentariam ver seu parceiro com outra pessoa Muitas dessas questões foram problematizadas no capítulo em que falamos sobre os mitos da monogamia e as informações contidas naquele capítulo podem te ajudar a elaborar uma resposta adequada para essas colocações. Quanto mais consciente você estiver da sua decisão, mais fácil será responder às críticas e colocações feitas por outras pessoas. Claramente, também existem benefícios de compartilhar essa informação com outras pessoas próximas. Um dos benefícios é não ter que esconder nada dos outros e poder agir espontaneamente. Outro benefício é evitar especulações indesejadas, pois se alguém testemunhar um dos parceiros ficando com outras pessoas e não souber que vocês que estão em um relacionamento não-monogâmico, vão acabar concluindo que está acontecendo uma traição, afinal, essa forma de não-monogamia ainda é muito mais prevalente em nossa sociedade do que a não-monogamia consensual. Vejamos alguns depoimentos envolvendo questões referente à revelação ou não do status relacional de pessoas que estão em relacionamentos não-monogâmicos. O mais difícil é viver em uma cultura que não sanciona tais relacionamentos. Ou seja, se alguém compartilha seu estilo de vida com outra pessoa, pode ser rotulado de "louco por sexo" ou pior.85 Natalia Há momentos em que gostaríamos de agir de acordo com nossas crenças, mas por causa do sistema de crenças prevalecente, devemos ser muito cautelosos em como nos comportamos em público. Isso às vezes é difícil para nós e causa sentimentos de repulsa, ressentimento e desagrado com a sociedade (...) as pessoas se intrometem, bisbilhotam, condenam, evangelizam e fofocam.86 Renato No capítulo seguinte vamos falar de um desafio quase que universal para as pessoas que optam por relacionamentos não-monogâmicos: o ciúme. 85 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. 86 Idem. LIDANDO COM O CIÚME E OUTROS SENTIMENTOS DIFÍCEIS Nos relacionamentos, nossos gatilhos são ativados, nossa bagagem emocional é revelada, demônios internos são confrontados e velhas feridas são abertas - experimentamos todas as emoções conhecidas. Os relacionamentos podem ser difíceis, desgastantes, frustrantes e dolorosos. A citação acima é do livro “Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships”87 e se mostra muito pertinente para a discussão sobre o ciúme. Relacionamentos são desafiadores porque podem ativar intensas emoções e o fato é que ao longo da vida não aprendemos a lidar bem com as emoções. Passamos mais de uma década na escola e muito provavelmente a maioria das pessoas não teve nenhuma única aula voltada ao manejo saudável das emoções ou a uma verdadeira alfabetização emocional. Relacionamentos dependem de autoconhecimento e também nunca fomos incentivados em nossa educação a olharmos para dentro, o foco sempre foi e ainda é conquistar alguma coisa fora. Relacionamentos dependem que aprendamos a ficar conscientes do que sentimos e a expressar esses sentimentos. Isso pressupõe a coragem de nos vulnerabilizarmos e mostrarmos nossas inseguranças e nossas sombras. Por isso, é muito importante que ambos os parceiros se trabalhem de uma forma ou de outra, seja por terapia, seja por meditação, seja por trabalhos de autodesenvolvimento, trabalhos espirituais, grupos de apoio, ou uma combinação dessas formas. O ciúme é um sentimento bem universal, mas em grande parte aprendido culturalmente. Somos ensinados que devemos ter ciúme quando estamos namorando, até mesmo como uma prova de amor, pois há quem acredite que se o outro não sente ciúme ele não nos ama, o que é um grande equívoco. Se todos nós houvéssemos nascidos em famílias cujos pais tivessem relacionamentos nãomonogâmicos consensuais, certamente o ciúme não seria tão comum, mas desde 87 TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. crianças aprendemos o contrário, aprendemos a sentir segurança apenas no controle do outro. É melhor pensar nos sentimentos negativos como um sinal de que algo não está bem e depois tentar chegar ao que está por trás do que sentimos, como ensina Leonie, coaching de relacionamentos: O mais importante sobre os sentimentos negativos e os medos é que sempre existem desejos ou necessidades escondidos debaixo deles, esperando ser descobertos. Por exemplo, sob o medo de ser abandonado pode estar uma necessidade de afirmação e valorização. Sob a raiva, pode estar uma necessidade oculta de defender os próprios limites. O medo de perder alguém pode esconder uma necessidade de segurança. A necessidade de controlar pode indicar a necessidade de ser soltar ou de se entregar. Sob o medo de não ser bom o suficiente pode se encontrar a necessidade de significar alguma coisa para alguém ou um desejo de mais autoconfiança, que, por sua vez, é algo que podemos desenvolver. Se conhecermos as nossas necessidades ocultas, também poderemos chegar aos meios de atendê-las. Às vezes, outras pessoas podem ajudar (...) outras vezes, nós mesmos podemos satisfazê-las – como melhorar a autoconfiança. Ao atendermos as nossas necessidades, os sentimentos de ciúme aos poucos amenizam. 88 Pesquisas indicam que o ciúme é a principal causa de crime passional, o que demonstra que esta emoção pode ser bastante intensa e desestabilizadora. Mas na verdade, ciúme é uma emoção guarda-chuvas, pois abriga outras emoções como inveja, competitividade, insegurança, inadequação, possessividade, medo de abandono, sentimento de não ser amado e sentimento de exclusão. A inveja, por exemplo, pode aparecer quando um parceiro está tendo mais sucesso que o outro em conseguir parceiros fora do relacionamento. Isso pode ser percebido como ciúme, mas na verdade é uma inveja disfarçada de ciúmes, até mesmo porque 88 LINSSEN, L. & WIK, S. (2012). Amor sem barreiras: As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e Poliamorosos nos Dias de Hoje. Ed. Pensamento. é mais fácil assumir ciúme do que inveja - que é uma emoção que denota certa fraqueza. A insegurança pode se manifestar pela comparação. Por exemplo: “a mulher que ele está saindo é muito mais bonita que eu, é mais gostosa, é mais nova, ou é melhor de cama, tem mais tesão, é mais safada, etc.” Aqui o ciúme se apresenta mascarando uma insegurança, uma sensação de menos valia, uma baixa autoestima. O ciúme pode significar que estamos nos sentindo excluídos. Às vezes isso pode ser resolvido combinando de se fazer programas juntos ao invés dos parceiros saírem separadamente (por exemplo, fazer um ménage ou swing). Uma outra opção quando nos sentimos excluídos é arranjar um programa para fazer quando o parceiro estiver saindo com outra pessoa (caso também não tenhamos ninguém para sair naquele dia). Pode-se também combinar com o parceiro de agendar suas saídas para um dia que já estaríamos ocupados mesmo, por exemplo, assistindo a uma aula na faculdade ou saindo com os amigos. O ciúme também pode estar encobrindo um ressentimento. Nos sentimos ressentidos quando sentimos que não estamos sendo tratados como deveríamos. Às vezes nos sentimos ressentidos porque fazemos uma concessão que não deveríamos. Neste caso a responsabilidade é nossa, porque sempre temos que honrar o que sentimos e fazer concessões insinceras é certeza de ressentimento adiante. A melhor forma de evitarmos o ressentimento é expressarmos o que sentimos sempre, mesmo quando achamos que o que sentimos é irracional pois ainda assim temos que honrar nossos sentimentos. O ciúme pode representar também baixa autoestima e incapacidade de ficar bem sozinho. Quem é inseguro não se acha possuidor de qualidades e tem uma imagem desvalorizada de si próprio, temendo ser trocado por outro a qualquer momento. Quem tem a autoestima elevada e se considera interessante e com muitos atrativos não supõe que será trocado com facilidade, e se a relação terminar, sabe que vai sentir saudade, vai ficar triste, mas também sabe que vai continuar vivendo sem desmoronar. O ciúme pode estar relacionado também à possessividade, à necessidade de controle, necessidade de acreditar que o outro nos pertence. Essa possessividade pode ser, inclusive, uma forma de avareza (“quero tudo só pra mim, não divido com mais ninguém”). O ciúme também pode representar resquícios de experiências infantis que não foram totalmente elaboradas, temores mal resolvidos da infância que trazemos para a vida adulta. Quando nascemos, logo nos primeiros meses de vida após o nascimento, ainda nos percebemos muitos ligados à mãe, num estado de completa indiferenciação. Em algum momento do nosso desenvolvimento infantil nos damos conta de que somos diferentes e estamos separados da nossa mãe. Essa percepção de ausência da mãe faz com que nós sintamos nossa sobrevivência ameaçada. A partir dessa consciência da separação, qualquer coisa ou pessoa que possa “roubar” essa presença da mãe passará a ser considerada como uma verdadeira ameaça. A psicanalista Regina Navarro explica que O útero da mãe é o único lugar do mundo onde podemos obter a satisfação imediata de todas as nossas necessidades. Ali desconhecemos a fome, a sede e a falta de aconchego. Depois que nascemos, precisamos respirar com nossos próprios pulmões, reclamar da fralda molhada, nos desesperamos com a cólica. Somos tomados por um profundo sentimento de falta, uma angustiante sensação e desamparo.89 A criança tem ciúmes da mãe porque se a mãe desaparecer ela morre. É uma questão de sobrevivência. Na vida adulta, se a dependência infantil que se tinha da mãe na infância não tiver sido bem elaborada, ao se entrar em uma relação amorosa, esta 89 Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”: https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O dependência pode reaparecer com bastante força e nesses casos o ciúme tende a ser muito intenso. O reaparecimento da insegurança infantil leva a pessoa a exigir exclusividade total no amor e sentir um medo terrível de perder a pessoa da qual sente que depende para sobreviver. Como explicam os autores do livro “Relações Livres: uma introdução”, Esse medo do abandono poderia ser trabalhado para se tornar apenas uma pedra enterrada lá na infância, na qual aprenderíamos a não tropeçar na vida adulta. Mas em vez de incentivar a superação desse medo, nossa cultura se vale dele. Demonstrações de “ciúme moderado” são esperadas como garantia de que um parceiro continua a ter afeto pelo outro. O problema é que mesmo na monogamia os limites entre o “ciúme moderado” e o “ciúme destrutivo” são tênues e não convém estimular um sentimento com potencial tão explosivo, que não raro se mistura com outros componentes de nossa sociedade transformando-se em violência. O ciúme é também um subproduto da experiência psicológica de escassez afetiva. Quando experimentamos muita falta e privação na infância, internalizamos este registro de escassez e o casamento monogâmico traz este apelo muito sedutor de nos oferecer um amor garantido, permanente e exclusivo. Para quem experimentou tanta privação na vida, nada poderia ser mais tentador: "Finalmente um amor só pra mim, tudo que eu sempre quis". O paradoxo é que a maior parte de nós somos filhos de casamentos monogâmicos e ainda assim somos tão carentes, experimentamos tanta privação afetiva. Então é bem possível que na atmosfera do nosso lar não houvesse amor esbanjando, por mais monogâmico que nossos pais fossem. A verdade é que um círculo vicioso foi instaurado em nossa sociedade. Aprendemos que o amor deve ser controlado e exclusivo, então aprisionamos o amor na gaiola do casamento e, por isso mesmo, logo logo esse amor se esgota pela falta de renovação, pela impossibilidade de circular livremente. O amor é um fenômeno que prospera na liberdade, na espontaneidade. O casamento monogâmico é uma tentativa de institucionalizar este amor, de torná-lo certo e garantido, mas isso acaba é sufocando e extinguindo o amor. Porque ou o amor é livre ou não é amor. Nesse sentido, amor livre é um belo pleonasmo. Se não há liberdade, não existe verdadeiramente amor. Possessividade não é amor. Amor é quando eu digo para você assim: “sua sexualidade pertence apenas a você, faça o que quiser com ela.” O amor liberta... Se o amor te aprisiona de alguma forma, não pode ser verdadeiramente amor. Assim como o fogo precisa do ar, o amor também precisa da liberdade pra fluir, tem que ser um fenômeno espontâneo, tem que poder circular livremente pois ele ganha força na medida que pode pulsar livremente, sem as fronteiras rígidas e artificiais que a cultura monogâmica criou. Acreditamos que essas fronteiras vão nos proteger da perda ou da reedição da perda primária experimentada lá atrás na infância. Por isso, o medo da perda leva ao reflexo defensivo de exclusão dos outros, que passam a ser vistos como fontes de ameaça. Isso é o ciúme, a disputa pelas pessoas, a demarcação de um território. Porém, como explica Brigitte Vasallo em seu ensaio “Abrir amores, fechar fronteiras?”: O medo da perda não se resolve fechando-se fronteiras para evitar a chegada da alteridade que nos ameaça, porque as fronteiras são apenas portas corta-fogo que nunca ficam de pé por muito tempo. O medo da perda se resolve apagando o fogo. Desativando a ameaça. Desativando a ideia da alteridade como ameaça. Afinal de contas, estamos falando de amor, ou estamos falando de Estados? O ciúme, então, seria como um pânico da alteridade, como explica Brigitte: A possibilidade de nos relacionarmos a partir de dinâmicas nãomonogâmicas desencadeia o pânico da alteridade. Essa “outra” que vem roubar nossa tranquilidade, nosso bem-estar, nosso cotidiano, nosso conforto, nossa segurança. Que vem competir conosco e nos tirar a centralidade, o privilégio e o poder que a centralidade nos confere. Que vem nos colocar em perigo. E então revelamos o pior de nós mesmas. Como afirma a cultura popular, no amor como na guerra, tudo vale. E vale tudo: o combate, o ataque, a violência, a auto violência. Como é possível assassinar sua parceira ou exparceira com a desculpa do ciúme? Como é possível assassinar “a outra”? Como é que nos ferimos por amor ou por desamor? Como é que infligimos tanta violência a nós mesmas e como aceitamos tantos maus-tratos sob o pretexto do amor? Nesse sentido, o ciúme seria (...) um sistema que nos diz que a chegada do “outro” nunca é uma notícia boa, que nunca nos trará novas energias, novos conhecimentos, novos pontos de vista, novos laços, que nunca nos fará melhores, nem mais felizes, nem mais reais, nem mais luminosos, nem mais alegres. Um sistema que nos diz que o outro não tem direito de existir.90 Não existe uma receita de bolo para aprendermos a lidar com o ciúme ou com os sentimentos difíceis em geral, porém algumas indicações podem ajudar no processo: • Não se critique por sentir ciúmes. Sentir ciúme é compreensível; agir conforme manda o ciúme não. • Permita-se sentir o ciúme, não resista nem fuja dele. Mesmo que você entenda que ele não é racional, ainda assim ele é real e deve ser validado e legitimado. • Quanto mais você abrir espaço para acolher o que está sentindo, menos sobrecarregado você fica com a emoção. Respire fundo, sinta seu corpo e perceba que você não se resume a essa emoção. • Pode ser que seu ciúme seja uma reação aprendida, reforçada culturalmente, então vale a pena refletir se você não está simplesmente reproduzindo algo que aprendeu mas que não realmente reflete seus valores pessoais. • Quando você sentir ciúmes se pergunte o que pode estar por baixo desse sentimento. Você está se sentindo deixado de fora? É inveja porque o outro está fazendo algo que você não está conseguindo fazer? É uma necessidade de 90 VASALLO, Brigitte (2020). Abrir amores, fechar fronteiras? Edições Chão da Freira. controle? Você está se comparando com alguém e se sentindo diminuído por causa disso? Você está se sentindo ameaçado ou desrespeitado? Aconteceu alguma coisa específica que ativou seu ciúme? • Pode ser útil conversar com seu parceiro, com um amigo, um parente ou até mesmo com um terapeuta. Alguém de fora poderá ajudar você a entender se sua percepção da situação está correta ou exagerada. • Pense no que você precisa para se sentir melhor. Talvez seja fazer algum programa que você goste, talvez seja passar mais tempo com seu parceiro ou então talvez você tenha necessidade que seu parceiro demonstre mais que valoriza e está comprometido com a relação. A resposta para essas perguntas depende de uma auto investigação sincera. • O autocuidado nessa hora é muito importante, fazer algo que gosta, ler um livro, assistir uma série, exercício físico, sair com amigos. • Já outros precisam desabafar com alguém ou com o parceiro, lembrando-se sempre de falar na primeira pessoa para se responsabilizar pelo sentimento. Depois de desabafar diga o que necessita para se sentir bem. • O ciúme pode estar relacionado a experiências do passado que nada tem a ver com seu relacionamento atual. Às vezes apenas ter consciência dessa relação causal já pode atenuar a intensidade da emoção, outras vezes precisaremos de um trabalho mais profundo para desfazer os danos causados ao nosso sistema emocional. Já quando é o nosso parceiro que diz que está se sentindo enciumado, nosso trabalho é validar o sentimento dele mesmo que não entendamos ou concordemos. Nosso primeiro objetivo será sempre ouvir e tranquilizar a outra pessoa sobre nosso compromisso com o relacionamento. No momento em que um parceiro estiver tendo sentimentos intensos como mágoa, insegurança, ciúme ou traição, valide esses sentimentos e respeite-os, mesmo que não os compreenda. Não tente dissuadir ninguém de como está se sentindo com argumentos racionais; dizer a eles por que eles não deveriam se sentir de certa forma não levará vocês a lugar nenhum e pode gerar ressentimento pelo fato do parceiro não se sentir compreendido. Uma opinião mais objetiva sobre o que está acontecendo a partir de sua perspectiva racional pode vir mais tarde. Compartilhe a sua versão da situação, lembrando-se de assumir a responsabilidade por seus sentimentos e ações. Digam um ao outro o que vocês precisam para resolver o problema. Estejam preparados para fazer concessões quando for necessário. Lembrem um ao outro de seu amor, afeto e respeito. Vejamos os depoimentos91 de algumas pessoas que se encontram em relacionamentos não-monogâmicos e como eles lidam com os sentimentos difíceis que às vezes emergem em suas relações: Quando percebo emoções desagradáveis surgindo, tomo algum tempo para pensar a respeito. Raramente eu reajo de imediato às emoções. Vou verificar minhas crenças e ver se a emoção é baseada em valores que escolhi conscientemente ou se é um resquício do meu treinamento social anterior. Por exemplo, certa vez, em uma festa, vi Renata se beijando e se aninhando com seu novo namorado e fiquei com um pouco de ciúme. Se fosse seguir pelos livros que li e os filmes que assisti, eu deveria ficar com ciúme ou fazer algum tipo de cena. Estou em território desconhecido sobre como me comportar numa situação dessas. Eu não vi boas reações poliamorosas retratadas em filmes e tal. Na época, saí da festa e repassei meus valores: será que acredito que Renata tem controle total sobre seu tempo, energia e afeto? Sim. Eu confio que Renata ainda me ama? Sim. E assim por diante, até concluir que meus sentimentos vinham de um sistema de valores que recusei conscientemente. Pedro Se eu sentir que meu parceiro está fazendo algo que me deixa inseguro, peço a ele que não faça isso, desde que não seja algo que vá interferir muito em sua vida. Por exemplo, ao invés de simplesmente pedir pra pessoa para de se encontrar com fulano 91 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. porque está me incomodando eu posso falar assim: "querido, você poderia parar de dizer para mim o quão maravilhoso fulano é? Ou se você fizer isso, será que poderia intercalar com um elogio semelhante para mim também?” Coralina Tratamos os sentimentos uns dos outros com cuidado, urgência e sem julgamento. Muitos presumem que uma pessoa quando sente ciúmes é responsável por se sentir assim e deve cuidar sozinha dessas emoções. Vemos que os sentimentos pertencem ao relacionamento, portanto, ambos somos responsáveis pelo cuidado, resolução e nutrição deles. Clarice Eu não tendo a ter ciúmes enquanto sinto que estou recebendo atenção, energia e tempo "suficiente". Se eu sentir ciúme por mais do que um pequeno flash, é um sinal de que sinto que estou recebendo menos do que quero ou espero, o que significa que é hora de bater um papo com minha companheira. Raul Muitas pessoas, até mesmo as pessoas poliamorosas, parecem ficar apavoradas com o ciúme... Eu penso no ciúme como a luz de advertência no seu painel. Diz que algo está errado, mas não diz o que fazer a respeito. Quando você sente ciúme, significa que é hora de parar e avaliar o que está acontecendo, e só então fazer algo a respeito. Luís Quando estou com ciúme, me pergunto: “será que tenho tão pouca fé em mim mesma e em meu valor como pessoa que acho que poderia ser facilmente substituída?” Mais uma vez, trata-se de me forçar a cuidar de mim mesmo. Quando eu acredito firmemente em meu valor como pessoa, há espaço para outras pessoas na vida de meus parceiros. Elizabeth COMPERSÃO: ANTÍTESE DO CIÚME? O termo compersão foi criado pelos membros da comunidade poliamorista Kerista. Foi definido como “sentimento positivo sobre a intimidade do seu parceiro com outras pessoas, o oposto do ciúme”. Outra definição que o termo recebeu foi: “sentir prazer ou alegria em ver seu parceiro se engajando afetiva ou sexualmente com outra pessoa”. Em síntese, compersão é se alegrar com a alegria do seu parceiro. Alguns acreditam que a compersão pode ser aprendida como tudo na vida e ela só não é mais comum porque não foi reforçada culturalmente como o ciúme. Assim como podemos ficar muito feliz com a realização profissional de nosso companheiro também podemos ficar feliz com sua realização sexual e/ou amorosa. Se uma conquista é importante para o nosso companheiro, é natural que seja importante para a gente também. Vejamos alguns depoimentos92 reais de compersão em relacionamentos nãomonogâmicos: Alice me apoiou, pressionou e me desafiou a ficar com esse menino trans por quem eu tinha uma grande paixão... foi uma experiência nova para mim (...) eu estava muito nervoso e hesitante sobre isso. Ele e eu acabamos ficando naquela noite e em várias outras ocasiões. Alice e eu nos divertimos muito com a coisa toda. Foi a primeira vez que eu realmente agi em relação à minha atração por alguém além da minha parceira de uma maneira verdadeiramente honesta, aberta e polida... Definitivamente, foi surpreendente, confuso e absolutamente maravilhoso que Alice tenha sido tão solidária e interessada - muitas vezes bem na sala ao lado, quando estávamos nos agarrando. Fernando 92 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. Gosto de ver meus outros parceiros felizes com outra pessoa. Fico feliz em vê-los felizes e felizes por alguém. Também fortalece nosso relacionamento porque eles trazem esse amor e felicidade de volta para nós. Joana A compersão erótica acontece quando você tem prazer em ver seu parceiro se relacionando sexualmente com outros. Vejamos alguns depoimentos93 reais de compersão erótica em relacionamento não-monogâmicos: Quando essa pessoa estava fazendo sexo anal com meu parceiro, deitei-me na outra cama e comecei a me masturbar com a Varinha Mágica. Fiquei tão excitada em ver meu esposo sendo fodido que tive um dos orgasmos mais poderosos que já experimentei. Patrícia Quando meu marido e eu estávamos namorando pela primeira vez e ele estava namorando outra pessoa, eu sabia que a intenção deles era fazer sexo. Eu estava sozinha naquela noite. Então eu estava meio que sentada com uma sensação horrível tipo, “Oh meu Deus, o que isso significa, talvez eu não seja bonita o suficiente” - todas essas coisas insidiosas - aí eu apenas comecei a imaginar os dois juntos. Era tão incrivelmente lindo, era excitante. Então eu trouxe meu Hitachi (vibrador) e tive orgasmos incríveis pensando sobre eles fazendo sexo juntos. De alguma forma, erotizar isso tirou a repugnância e substituiu-a por excitação. Mariana 93 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. ABRINDO A RELAÇÃO COM O CUIDADO QUE ELA MERECE Como mencionamos na introdução do livro, abrir o relacionamento pode ser um empreendimento bastante desafiante. Por mais que tenhamos motivos racionais para fazê-lo, ainda assim temos que lidar com nossas suscetibilidades emocionais. Não adianta seguir apenas a razão e passar por cima das emoções. Como explica a coaching de relacionamentos Leonie Linssen em seu livro “Amor sem Barreiras”, abrir a relação É um processo que pode trazer paixão renovada, diversão e momentos emocionantes a uma relação, mas também oferecerá desafios que realmente a coloquem em teste. Em outras palavras, abrir um relacionamento pode demandar tempo e energia e requer cuidados para assegurar que decepções sejam evitadas ou adequadamente tratadas. Um pressuposto básico da não-monogamia responsável é que a abertura da relação deve servir para melhorar e expandir a relação, tem a função de trazer mais verdade e profundidade, além de liberdade para os indivíduos poderem ser autênticos e buscarem sua realização pessoal. Em última instância, isso tudo tem relação com o amor, amor por si mesmo, amor pelo companheiro e amor pela relação. O objetivo é criar condições para que possamos amar e ser livres ao mesmo tempo. Todos queremos a segurança do amor e o frescor da liberdade, são estes os dois anseios essenciais de todo ser humano. Para que esse movimento de abertura da relação tenha coerência, é necessário que o casal esteja sinceramente buscando melhorar a relação, esteja sinceramente querendo aprofundar a relação e investir no amor entre o casal. A base do amor é a cumplicidade, é se importar com o outro, é gostar de ouvir, gostar de conversar, gostar de estar com o outro. Além disso, amar também é uma ação, um ato de vontade, é uma escolha por se dedicar a alguém. A não-monogamia responsável deve surgir nesse contexto e ser coerente com esses princípios. O objetivo não é usar o outro pra se satisfazer, o objetivo é enriquecer o vínculo, aumentando a intimidade, a cumplicidade e a proximidade. Se usarmos a possibilidade de relação aberta para nos distanciarmos do outro, contrariaremos esses princípios básicos de qualquer relacionamento amoroso de longo prazo e não seria uma relação não-monogâmica responsável como estamos propondo neste livro. Todas essas ressalvas são importantes porque os relacionamentos não-monogâmicos podem machucar ambos os parceiros quando malconduzidos. Quanto mais sólido for o amor entre o casal, menos chance de isso acontecer. O seguinte depoimento ilustra bem a importância de se ter um relacionamento primário que seja seguro e bem administrado. Eu acho que os relacionamentos externos têm um enorme potencial para o crescimento pessoal, tanto individualmente quanto para o seu relacionamento principal. Mas isso só é verdade se você tiver um relacionamento que seja seguro e próspero. 94 Lucas Um pressuposto básico da não-monogamia responsável é de que liberdade exige responsabilidade. Quanto mais livres queremos ser, mais responsáveis temos que ser também para administrar as consequências da nossa ação, dentro de uma ética do cuidado consigo mesmo, com nosso companheiro e com as pessoas de fora que vamos encontrar. Primeiro passo para abertura da relação Toda relação aberta deve se iniciar primeiramente pela COMUNICAÇÃO ABERTA. Antes de se abrir a relação, é importante que nós possamos nos revelar por inteiro e que essa revelação seja acolhida sem julgamentos pelo outro. Este é o melhor caminho para pavimentar um relacionamento aberto não-monogâmico. 94 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. A ideia da relação aberta é favorecer com que cada um possa ser o que verdadeiramente é. A ideia é encorajar a expressão do nosso ser mais autêntico, com o objetivo de fortalecer a nossa individualidade. Essa foi a proposta original de casamento aberto publicada no livro e 1972 com o título de “Open Marriage: A New Life Style for Couples” (Casamento aberto: um novo estilo de vida para casais). O modelo de casamento proposto pelos autores enfatiza a comunicação honesta e aberta, além da liberdade compartilhada. Eles enxergam o casamento aberto como uma ferramenta para o crescimento pessoal onde um dá suporte para o desenvolvimento do outro, focado no fortalecimento da individualidade de ambos. Segundo estes autores, Casamento aberto pode ser definido como um relacionamento em que os parceiros estão comprometidos com o seu próprio crescimento e com o crescimento um do outro. É uma relação honesta e aberta de intimidade e autorrevelação baseada na igualdade de liberdade e identidade de ambos os parceiros. O apoio e confiança crescentes nas identidades individuais possibilitam o compartilhamento do crescimento pessoal com uma outra pessoa significativa, que incentiva o seu próprio crescimento e o de seu companheiro. É uma relação flexível o suficiente para permitir mudanças e que está em constante renegociação à luz das mudanças nas necessidades, consenso na tomada de decisões, aceitação e incentivo ao crescimento individual e abertura a novas possibilidades de crescimento. A sociedade nunca encorajou a expressão autêntica do nosso ser, nunca encorajou o fortalecimento dos indivíduos, pelo contrário. Passamos a vida toda aprendendo a usar máscaras e a esconder nosso verdadeiro self, tendo vergonha do que sentimos, do que pensamos e dos nossos desejos. E quando nos sentimos inadequados, nos apequenamos, nos escondemos ainda mais, fingindo ser algo que não somos apenas para recebermos aprovação das pessoas com quem nos importamos, como explicou o psicólogo Carl Rogers: Cada pessoa aprende cedo na vida que tem mais probabilidade de ser amado se comportar-se de acordo com as maneiras que são aprovadas pelas pessoas que lhe são importantes, do que se o seu comportamento for a expressão espontânea dos próprios sentimentos. Por isso, começa a desenvolver uma carapaça de comportamentos externos, pela qual se relaciona com o mundo exterior. 95 A verdade é que a sociedade prefere seres frágeis, que se conformam e muitas vezes os relacionamentos amorosos acabam reproduzindo essa lógica de submissão dos indivíduos, supostamente em prol da relação. Em geral, nos relacionamentos, a identidade do casal é priorizada em detrimento das identidades individuais, como se pudesse haver uma relação forte com indivíduos fragilizados. Abrimos mão do que somos para cabermos na relação, ou seja, nos conformamos novamente, assim como fomos ensinados a vida toda! Relacionamento aberto é antes de tudo uma escolha por honrar e proteger as individualidades. Como as relações são feitas de indivíduos, quanto mais empoderados esses indivíduos forem, mais forte será a relação. É a relação que deve servir aos indivíduos e não o contrário! Ou será que os relacionamentos não foram concebidos para nos beneficiar? A abertura deve, então, começar pela transparência, para que possamos revelar nosso mundo interior e acolher as revelações do outro. Precisamos reaprender essa lógica da permissão interna para sermos o que nós somos ao invés do que deveríamos ser, ao invés do que o outro precisa que eu seja. O convite deve ser para o outro se apresentar como é e não como eu gostaria que ele fosse! A partir do momento que podemos conversar sobre tudo e conseguimos acolher todas as emoções que emergem neste processo de revelação mútua, aí fica mais fácil de materializar a experiência do relacionamento aberto, mas antes disso pode ser prematuro. Relacionamentos abertos precisam de uma base sólida e essa base é a verdade, a cumplicidade, a parceria em torno de assumirmos o que realmente somos 95 Citado em PERCHES, Tatiana (2009) Plantão psicológico: o processo de mudança psicológica sob a perspectiva da psicologia humanista. Pode ser encontrado aqui: https://www.passeidireto.com/arquivo/50387037/doc-0 e não o que deveríamos ser. Essa parceria cria a atmosfera propícia para concretização da relação aberta. Vejamos algumas outras dicas que podem ajudar a minimizar os percalços nessa caminhada de abertura da relação. Não apressar o processo Se tem uma coisa para a qual não devemos ter pressa é na hora de abrir a relação. Nosso relacionamento é muitas vezes o que temos de mais precioso na vida e merece todo cuidado do mundo. Mesmo que o processo de abertura leve mais tempo, às vezes meses ou até anos, ainda assim é importante optarmos pelo caminho do cuidado, porque amar é isso, é cuidar, é se importar com o outro, é considerar suas necessidades e seus sentimentos. Leonie Linssen, coaching de relacionamento, atenta para o fato de que: Abrir um relacionamento não é algo que normalmente seja feito por capricho. Não é uma decisão que tomamos no sábado à noite e na sexta-feira seguinte estamos prontos para executá-la. Muitos casais falam sobre isso, mas não se arriscam a partir para prática com medo do impacto sobre a própria relação. Outros casais discutem a ideia durante anos antes de decidir ampliar seus limites de relacionamento. Mesmo assim, pode ser necessário que se passem meses ou até anos antes que os parceiros envolvidos encontrem a melhor maneira de manter seu relacionamento aberto.96 Idealmente, a iniciativa de se abrir a relação deve começar inicialmente apenas no plano da conversa, no nível da reflexão e das ideias. Vocês podem debater questões como: “O que cada um pensa sobre o assunto? Que benefícios e malefícios isso poderia trazer pra relação de vocês? O que vocês acham interessante nisso? O que 96 LINSSEN, L. & WIK, S. (2012). Amor sem barreiras: As Alegrias e os Desafios dos Relacionamentos Abertos e Poliamorosos nos Dias de Hoje. Ed. Pensamento. acham que tem de ruim? Quais os receios e anseios de cada um com relação a essa questão?” Essa reflexão pode começar também com a leitura de livros, assistindo a séries e filmes sobre o assunto, ouvindo podcasts, etc. (ver indicações mais à frente). À medida que vocês vão lendo e assistindo, vários temas vão surgir para aprofundar a reflexão. Depois deve-se partir para o nível das emoções. “O que é que essas ideias causam em mim? Como eu me sinto ouvindo meu companheiro falar sobre o assunto? Que medos me vêm à cabeça? Como será que eu me sentiria vendo meu parceiro com outra pessoa?” É preciso que as emoções estejam assentadas antes de partir para a ação. Em geral, existe muita tensão envolvendo este tema e é importante conseguir ficar à vontade emocionalmente antes de partir para concretização, para que ninguém se sinta atropelado emocionalmente com a experiência. Depois vem o nível do planejamento estratégico. “Então, afinal, o que vamos fazer com tudo isso? Como vamos organizar esse processo de abertura da relação? Como podemos ir começando aos poucos? Qual seria um bom primeiro passo? Que combinados vamos estabelecer?” E por último, depois de passar por todas essas etapas, aí pode-se começar a colocar alguma coisa em prática, pouco a pouco, respeitando o planejamento e os combinados estabelecidos. Uma forma boa de se começar talvez seja entrando em um aplicativo de casais e conversando com outras pessoas que fazem parte deste universo não-monogâmico. Outra possibilidade é ambos visitarem uma casa de swing só para olhar, para sentir o clima. Mesmo que não façam nada nessa primeira vez já vão começando a sentir o clima, o que ajuda no necessário distensionamento emocional em torno dessa temática. Depois de fazer um primeiro movimento concreto, é hora de voltar pra relação e conversa mais um pouco. “E aí, como foi? Como se sentiu? Estamos bem pra continuar?” Essas conversas sucessivas vão pouco a pouco gerando uma sensação de confiança para vocês poderem de fato começar a interagirem com outras pessoas de fora da relação. Lembrando sempre que queremos liberdade E segurança, por isso a importância de ir com calma. Não tenham receio de dar alguns passos para trás caso sintam que alguma coisa não está dando certo Não hesitem em dar alguns passos para trás caso surja algum conflito ou algum incômodo com a relação aberta. Se algo de ruim acontecer parem tudo e fiquem um tempo sem sair com ninguém de fora até a harmonia entre vocês se reestabelecer. É muito comum essas idas e vindas no início do processo porque é um aprendizado mesmo. Aos poucos vocês vão encontrando um equilíbrio ideal entre segurança e liberdade na relação de vocês, através de tentativas e erros mesmo. Não se desanimem caso sintam dificuldade no início, afinal de contas, nunca aprendemos a nos relacionar assim, nem tivemos modelos para servir como referência. Uma regra de ouro é só sair com outras pessoas quando a relação estiver boa, quando ambos estiverem bem, quando o casal estiver equilibrado. Quando um dos parceiros está mal, essa pessoa fica muito mais suscetível a sentir ciúmes ou a se sentir preterida, então nessa hora é importante a tônica se mover da liberdade individual para o cuidado com a relação. Por exemplo, quando um dos parceiros está doente, faz todo sentido que o outro cancele seus compromissos para dar mais atenção ao parceiro que está precisando de uma atenção especial. Outro exemplo seria quando um dos dois está passando por dificuldades no trabalho ou está se sentindo fragilizado por um motivo qualquer. Assim se pratica a responsabilidade afetiva. Voltando temporariamente à monogamia Pode ser indicado, até mesmo, voltar temporariamente a um arranjo monogâmico quando surgir uma necessidade de força maior, como vemos neste depoimento: Quando meu parceiro se mudou para o outro lado do país para morar comigo, decidimos ser monogâmicos por seis meses enquanto ele se mudava para uma nova cidade, um novo emprego, basicamente uma vida totalmente nova. Com tanta coisa para ele se ajustar, eu queria dar a ele uma sensação de segurança e deixá-lo saber que ele seria minha prioridade.97 Fernanda Vemos neste depoimento um exemplo de priorização do relacionamento, acima inclusive da abertura da relação. Isso nos lembra que a abertura deve servir ao relacionamento e não o contrário. É um movimento dialético, nós cuidamos da relação e a relação se fortalece permitindo que sejamos cada vez mais livres. À medida que nos sentimos mais livres, tendemos a querer retribuir cuidando ainda mais da relação, gerando um círculo virtuoso de amor e liberdade. Dedicar tempo de qualidade ao relacionamento Lembre-se sempre que a prioridade é o casal. Ambos têm que estar se sentindo valorizados, tem que sentir que a relação está em primeiro lugar, senão não se pode falar em não-monogamia RESPONSÁVEL. Queremos aumentar as possibilidades de gratificação, mas sem reduzir a qualidade do vínculo. O depoimento de Beatriz ilustra bem essa priorização do relacionamento principal: Essa foi a primeira regra que inventamos: esse é o nosso principal relacionamento. Fazemos questão de não gastar muito tempo com parceiros secundários. Nós podemos, e às vezes nos tornamos amigos deles, especialmente se ficarmos juntos por um tempo 97 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. considerável, mas temos que cortar a relação se ela se tornar invasiva.98 Vale a pena de vez em quando deixar um tempo só para o casal. Por exemplo, um final de semana por mês é só do casal. Ou talvez combinar que durante as férias ficam temporariamente suspensos os encontros extraconjugais. Ou o contrário, relacionamentos extraconjugais são permitidos apenas nas férias. Há que se dedicar tempo de qualidade para o relacionamento regularmente pois sem isso nenhum relacionamento amoroso pode prosperar. O cuidado com a relação é o alicerce sólido que permite uma maior liberdade individual. É justamente porque sentimos que a relação está sólida que permitimos que o outro seja livre. Caso contrário, se existe uma fragilidade do vínculo, a tendência é querermos nos sentir seguros através do controle e aí fica difícil dar liberdade para o outro. Quando estamos com medo, nossa tendência é contrair e segurar o outro. Infelizmente todos nós aprendemos a sentir segurança no controle e o que estamos propondo aqui é a possibilidade de criar segurança através do fortalecimento do vínculo e da cumplicidade e não através do controle e da castração. PROPONDO A ABERTURA DA RELAÇÃO É muito raro que ambos os parceiros tenham a ideia de abrir a relação no mesmo momento. Em geral a iniciativa parte de um dos parceiros que faz a proposta para o outro. Como fomos condicionados a acreditar que deveríamos realizar todas as nossas necessidades com uma só pessoa, a simples proposta de abertura pode precipitar mágoas no parceiro que a recebe, pois essas idealizações têm muita força no nosso psiquismo. Leva-se um certo tempo para se descondicionar de toda bagagem histórica monogâmica que herdamos, por isso a pessoa que faz a proposta deve dar bastante 98 Depoimento extraído do livro de TAORMINO, Tristan (2008). Opening Up: A Guide to Creating and Sustaining Open Relationships. Ed. Cleis Press. tempo para o outro assimilar e ressignificar as crenças que traz sobre o que seria um relacionamento ideal. O parceiro que for propor inicialmente a abertura da relação deve fazer isso de forma suave e não confrontativa, sondando a disponibilidade do outro aos poucos. Por exemplo: “você viu aquela matéria que saiu na revista sobre relacionamentos abertos? O que você achou?” A pessoa que estiver ouvindo a proposta deve manter a mente aberta e evitar críticas e julgamentos. Evite cair na armadilha de acreditar que existe algum problema com você. Lembre-se que a sociedade quer que acreditemos que uma pessoa deve dar conta de satisfazer todas as necessidades do parceiro, mas isso é algo irreal, um mito. Procure manter a mente aberta para considerar novas possibilidades, pois se o outro está fazendo a demanda, é porque de algum modo isso é importante para ele. Devese evitar ao máximo julgar e condenar o outro por estar sendo transparente e honesto na relação, já que isso é muito melhor do que trair pelas costas como a maioria das pessoas fazem. Quem faz a proposta deve escolher um bom momento para levantar a questão da abertura da relação. Além disso, deve evitar pressionar o outro para tomar uma decisão logo pois esta é uma decisão que tem vastas implicações para a dinâmica do casal. Lembre-se que a abertura da relação tende a realçar as dificuldades do relacionamento, como explica a terapeuta Joy Davidson: Quando os parceiros primários trazem à tona a questão da não monogamia pela primeira vez, o paradigma do relacionamento é imediatamente alterado e a conversa que segue força a exploração de necessidades que não estão sendo atendidas e segredos emocionais que possivelmente foram mantidos ao longo do tempo.99 Confrontar os padrões disfuncionais e as necessidades não atendidas em seu relacionamento não é fácil, e este pode ser um bom momento para procurar aconselhamento ou terapia de casal. Idealmente, deve-se resolver quaisquer conflitos 99 Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”: https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O e questões importantes para se chegar a um equilíbrio no relacionamento antes de se abrir a relação. Do contrário, é provável que as coisas e desestruturem muito rapidamente. QUANDO NÃO SE CHEGA A UM ACORDO Na medida em que a não monogamia consensual se torna cada vez mais comum, muitas pessoas que antes presumiam que os relacionamentos deveriam ser necessariamente exclusivos agora estão se perguntando se não valeria a pena abrir a relação. Isso significa que não é incomum encontrar pessoas que entraram em um relacionamento monogâmico pensando que era o que elas queriam e depois resolvem mudar de ideia. Até aí tudo bem, porque todos têm o direito de mudar de ideia. A questão é que não necessariamente o parceiro vai gostar da novidade. Propor abertamente para seu parceiro seu interesse em abrir a relação mesmo sem saber o que ele pode pensar a respeito é um ato de integridade, pois é melhor ser honesto do que trair pelas costas. Mas assim como você tem o direito de expressar sua preferência pela não-monogamia, seu parceiro também tem o direito de declarar sua preferência pela monogamia. Então o que fazer se o casal tiver preferências diferentes neste quesito? Primeiro, esclareça os mal-entendidos Muitas pessoas têm medo da não-monogamia porque não entendem realmente o que é e acabam associando com traição. É importante explicar que na verdade a nãomonogamia consensual é justamente uma forma de evitar a traição. Além disso, é importante explicar que não é um vale tudo, mas na verdade um processo organizado que envolve regras e combinados. Também pode ser explicado que existem várias formas de não-monogamia consensual, inclusive com os dois parceiros experimentando simultaneamente, como no caso do swing ou através de um ménage por exemplo. Neste caso, nenhum dos dois estaria saindo sozinho com outra pessoa, o que já pode trazer uma certa segurança. Além disso, a implementação pode ser bem gradual, não precisa ser de uma hora para outra e é tudo conversado previamente. Esclareça as motivações de ambos É importante explicar para o seu o seu parceiro exatamente que tipo de relacionamento você está imaginando e que seu objetivo não é prejudicar a relação de vocês e sim aprimorá-la, trazendo mais intimidade e sinceridade. Ofereça recursos para o parceiro compreender melhor o assunto, como livros, séries, filmes, sites, etc. Explique suas motivações e o que está te levando a fazer tal proposta. Esclareça que não tem nada a ver com seu amor por ele e que não é nada pessoal contra ele. Ao mesmo tempo, se o parceiro se mostrar resistente, é importante compreender qual é a motivação para ele não querer abrir a relação. É medo de ser abandonado? Será que a pessoa tem um histórico de ter sido traída? Saber o motivo pelo qual o outro não concorda com a abertura da relação por si só já pode ajudar a saber como abordar a questão. A partir da explicação da outra pessoa, você pode propor alguma forma de contornar a objeção que ela está fazendo. Muitas das dificuldades podem ser contornadas com os combinados estabelecidos. Por exemplo, se o medo é de ser abandonado, vocês podem combinar de somente saírem juntos. O importante é buscar uma abordagem criativa, de modo que as necessidades de todos sejam contempladas e atendidas. De todo modo, não cobre uma decisão imediata do seu parceiro. Talvez você já venha pensando sobre o assunto há muito tempo, mas para seu parceiro pode ser a primeira vez que ele está refletindo sobre essa questão. Se seu parceiro se mostrar disposto a manter uma conversa com a mente aberta e refletir mais sobre o assunto, já é um bom começo. Entenda também que é possível que seu parceiro fique com o ego machucado ao saber que você tem interesse em ficar com outras pessoas. Está tudo bem com isso. Como todos viemos de uma tradição monogâmica - que tem como dogma central a ideia de que quem ama não deseja mais ninguém - isso pode afetar a percepção que seu parceiro tem do seu amor por ele. É absolutamente necessário não ter pressa nessa hora. Dê bastante tempo para o outro digerir. Aprendam a fazer concessões e busquem soluções criativas que sejam boas para ambos Quando um casal realmente quer ficar juntos, é importante que ambos estejam dispostos a fazer alguma concessão de modo a contemplar a necessidade de todos os envolvidos, buscando uma abordagem criativa para solucionar as divergências e chegar em um lugar que fique confortável para ambos. Se importar com as necessidades e anseios do seu parceiro também é uma forma de amor. Uma análise que pode ajudar a identificar as concessões que podem ser feitas é ter clareza do quão custoso seria para cada um abrir mão de sua preferência. Ou seja, o quão custoso seria para a pessoa que quer abrir a relação desistir deste anseio? E o quão custoso seria para a pessoa que prefere manter a relação fechada abrir mão da monogamia? Lembrando que toda concessão deve ser feita com muita consciência, porque quando cedemos em algo que é absolutamente fundamental para nós, isso pode deixar um saldo grande em termos de ressentimento, fazendo com que a pessoa que renunciou ao que era fundamental para si acabe se vingando inconscientemente do outro mais pra frente, como explica o psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa: Reprimir os verdadeiros desejos não significa eliminá-los, por questões morais pode-se controlar esse impulso, mas é impossível impedi-lo de existir. O parceiro que teve excessiva consideração tende-se a se sentir credor de uma gratidão especial, a considerar-se vítima e a tornar-se intolerante100. É importante considerar que nem tudo nessa esfera é uma questão de mera escolha. Para alguns a questão da orientação monogâmica ou não-monogâmica é quase uma questão identitária mesmo, sendo melhor entendida como uma questão de orientação sexual, ou seja, algo que não escolhemos, mas que simplesmente reconhecemos em nós. Uma pessoa heterossexual simplesmente reconhece que se sente atraída por pessoas do sexo oposto, não é uma escolha. O mesmo vale para o homossexual que simplesmente percebe-se sentindo atração por pessoas do mesmo sexo. Sabemos também que algumas pessoas se sentem atraídas por pessoas de ambos os sexos, o que tampouco é uma escolha. Nessa perspectiva, podemos pensar que existem pessoas que simplesmente se reconhecem orientadas não-monogamicamente a ponto de estabelecerem uma identidade em torno dessa posição e vice-versa. Isso certamente é verdade, por exemplo, para algumas pessoas que desde muito cedo sempre se percebem nãomonogâmicos. Como explica a Ph.D e autora de inúmeros livros sobre relacionamentos não-monogâmicos Elizabeth Sheff, Pessoas que se consideram poliamoristas-por-orientação-sexual frequentemente mencionam sentirem-se atraídas por múltiplas pessoas desde a infância, fingindo ter mais de um cônjuge ao brincar de casinha ou socializando em grupos ao invés de ter um único melhor amigo. Muitos enfatizam sentir um grande desconforto na monogamia e não conseguirem permanecer em relações monogâmicas.101 Essas pessoas não-monogâmicas por orientação sexual não conseguem enxergar um futuro possível que inclua a monogamia. Em suas pesquisas, Elizabeth Sheff 100 Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”: https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O 101 SHEFF, Elisabeth. (2016). Is Polyamory a Form of Sexual Orientation? Publicado em: https://www.psychologytoday.com/intl/blog/the-polyamorists-next-door/201610/is-polyamory-form-sexualorientation?fbclid=IwAR0lkDBUbOgFL9JQp2zbCKbDrVvGCtpHDdZn9PBv9BL_ps_-VmBLBww82Jg entrevistou um participante que resumiu suas relações monogâmicas da seguinte forma: É como usar sapatos dois números menores — você até pode esmagar seus pés ali momentaneamente, mas não vai ser prazeroso e você não vai conseguir ir muito longe com eles. Elizabeth Sheff também entende que existem os não-monogâmicos por escolha ou mesmo por ideologia. São pessoas que já se sentiram confortáveis em relações monogâmicas em algum momento de suas vidas e afirmam que considerariam a monogamia como escolha possível no futuro. Para essas pessoas, (...) há muito mais flexibilidade para encontrar realização numa variedade de estilos de relacionamento. Em alguns casos, escolhem o poliamor por um período específico da vida: quando são jovens e sem filhos, depois de um divórcio, quando querem jogar com suas possibilidades de forma aberta e honesta, ou depois que os filhos saíram de casa e eles se sentem mais livres para experimentar com sua sexualidade.102 Procurem ajuda especializada Quando não existe nem disposição para explorar o assunto e refletir e buscar soluções conjuntas para que ambos se sintam confortável na relação, então talvez seja hora de reavaliar o relacionamento. Mas se ambos têm certeza de que valorizam a relação e querem ficar juntos e ainda assim não estão conseguindo lidar com esse conflito de interesses, não se desesperem. Tenham paciência um com outro e saibam que vocês podem sim chegar a um acordo que contemple as necessidades de ambos. Uma possibilidade real é a de um relacionamento misto onde um dos parceiros é nãomonogâmico e o outro se mantem monogâmico de acordo com sua convicção. Neste caso ninguém se sente desrespeitado. Entenda que da mesma forma que seria muito ruim obrigar uma pessoa monogâmica a se relacionar com diversas pessoas contra 102 Idem. sua vontade também é bem cruel obrigar uma pessoa não-monogâmica a se abster de se relacionar com várias pessoas contra sua vontade. Mas caso o casal não esteja conseguindo alcançar um consenso, buscar uma ajuda especializada pode ser de grande valia, por exemplo com um psicoterapeuta de casal. O importante é que esse profissional esteja familiarizado com as questões relacionadas às relações não-monogâmicas. INTELIGÊNCIA ERÓTICA: CULTIVANDO A INDIVIDUALIDADE NAS RELAÇÕES Este livro trata dos relacionamentos não-monogâmicos, onde o casal abre consensualmente a possibilidade de experimentação com outras pessoas além do parceiro de relacionamento. Ainda assim, é importante que o casal continue se curtindo juntos na cama também para fortalecer a relação e não ficar sempre na dependência de alguém de fora pra ter prazer. Todos sabem como é difícil sustentar o desejo sexual pelo parceiro em um relacionamento de longo prazo. Esther Perel, psicoterapeuta belga e autora do livro “Sexo no cativeiro – Driblando as Armadilhas do Casamento”, argumenta que uma das estratégias para manter a chama acesa seria ampliar “nossa inteligência erótica.” Em seu livro a autora descreve alguns paradoxos que vivemos nos relacionamentos amorosos de longa duração, como por exemplo o paradoxo da intimidade: Ironicamente, o que contribui para uma intimidade gostosa nem sempre contribuiu para um sexo gostoso. O aumento da intimidade afetiva muitas vezes é acompanhado por uma diminuição do desejo sexual, a desintegração do desejo parece uma consequência não intencional da criação da intimidade.103 É necessário, então, saber manter uma certa distância na relação, como explica a autora: Desejamos criar intimidade nas nossas relações, preencher a lacuna que há entre nós e nosso parceiro, mas ironicamente essa mesma lacuna entre eu e o outro que é a sinapse erótica. Para trazermos sensualidade pra casa precisamos recriar a lacuna que fizemos tanto esforço pra preencher. Inteligência erótica é criar distância, depois dar vida a essa lacuna. Em vez de sempre procurar intimidade há 103 Citado no artigo de Regina Navarro Lins “Amo meu marido mas não consigo sentir desejo por ele”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2019/05/20/amo-meu-marido-mas-nao-consigo-sentir-desejo-porele/#:~:text=A%20terapeuta%20de%20casal%20belga,uma%20diminui%C3%A7%C3%A3o%20do%20desejo%20sexual. qualquer preço os casais talvez possam estar em situação melhor cultivando suas individualidades.104 Isso não quer dizer que não deva haver intimidade na relação do casal, mas sim que essa intimidade não deve acontecer às custas das individualidades dos parceiros. Como explica Esther Perel, “A individualidade é vital para o desejo (...) Para isso, é necessário haver egoísmo, no melhor sentido da palavra: a habilidade de estar conectado consigo mesmo na presença do outro”.105 Muitos casais, porém, confundem intimidade com simbiose, o que tende a levar a uma anulação das diferenças individuais. A intimidade saudável é aquela que não anula as diferenças. Para isso é necessário haver um forte senso de autonomia individual, como explica a psicanalista Regina Navarro: Ter uma relação de intimidade quer dizer entrar na vida do outro sem perder o sentido da própria identidade. Para isso é necessário haver uma forte autonomia individual. (...) Ao contrário da simbiose, a intimidade precisa da manutenção de um forte sentido de individualidade: só a pessoa que confia em si própria pode soltar as amarras e enfrentar o mar aberto de uma relação envolvente com o outro106. Porém, a ideologia do amor romântico que povoa o mundo ocidental acaba contribuindo para um enfraquecimento das individualidades na medida em que estimula que um não viva sem o outro, que sejamos apenas metades procurando nossa contrapartida, etc. O que é estimulado nesse modelo de relacionamento é justamente a dependência emocional e não a intimidade saudável. 104 Citado no artigo de Regina Navarro Lins “O que é inteligência erótica e como podemos desenvolvê-la”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2018/05/10/o-que-e-inteligencia-erotica-e-como-podemos-desenvolvela/#:~:text=Desejamos%20criar%20intimidade%20em%20nossas,fizemos%20tanto%20esfor%C3%A7o%20para%20pre encher. 105 Citado na matéria do portal Metrópoles “Guru de relacionamentos, Esther Perel convida casais a repensarem a traição”: https://www.metropoles.com/colunas/claudia-meireles/guru-de-relacionamentos-esther-perel-convidacasais-a-repensarem-a-traicao 106 Citado no curso de especialização da Regina Navarro Lins: “Relações Amorosas – Um novo olhar”: https://hotmart.com/product/especializacao-regina-navarro-lins/N38215289O A dependência emocional entre um casal é encarada por todos com naturalidade porque se confunde com amor e é reforçada pelo modelo do amor romântico que pressupõe que um vai satisfazer todas as necessidades do outro. Isso favorece com que reeditemos experiências muito primitivas da infância, quando dependíamos totalmente da mãe para sobrevivermos, como explica a psicanalista Regina Navarro: As relações amorosas do adulto funcionam mal porque a maioria tende a reeditar inconscientemente com o parceiro a relação típica da infância. E isso fica claro na forma como se vive o amor, só se aceitando como natural se for um convívio possessivo e exclusivo com uma única pessoa107. No parceiro é depositada a certeza de ser cuidado e de não ficar só. A distância faz sentir o desamparo, da mesma forma que se sentia quando a mãe se ausentava. A dependência emocional que se estabelece torna comum depositar no outro a garantia de não ficar só. O medo da solidão e do desamparo leva à exigência de que o parceiro não tenha olhos para mais ninguém. O receio de ser abandonado ou trocado por outra pessoa leva a se exigir do parceiro que não tenha interesse nem ache graça em nada fora da vida a dois, longe da pessoa amada. Se o marido ou a mulher for tomar um chope com os colegas ao sair do trabalho, isso já pode causar uma grande dor no outro, que entende essa atitude como desinteresse e uma ameaça à estabilidade da relação. Nenhum tipo de prazer individual é admitido quando se espera ser a única fonte de interesse do outro. O psicoterapeuta Paulo Lemos, em seu livro “Educação Afetiva – Por que as pessoas sofrem no amor?”, explica que: Algumas pessoas realmente se sentem amarradas e presas quando estão numa relação, como se não pudesse mais viver ou gozar a liberdade. Elas absorveram a ideia de que conviver significa absterse de ter vida própria. (...) Possuir um espaço próprio dentro de uma relação torna-se então uma questão de higiene – manutenção da saúde da relação. Como a maioria de nós foi educada para estar 107 Citado no artigo de Regina Navarro “Por que a maioria deseja se casar”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2015/12/01/por-que-a-maioria-deseja-se-casar/ grudado, quando intuitivamente um dos pares começa a reivindicar espaço maior para si parece que algo estranho está acontecendo. Surgem as fantasias de abandono, surge o ciúme. Por isso é muito importante cultivar espaço para a individualidade dentro do relacionamento. Cada um deve manter suas amizades, ter seus próprios projetos, ter um tempo só seu, enfim, uma parte de si mesmo que esteja fora do âmbito da relação, algo que te diferencie do seu parceiro. Essa diferenciação entre os parceiros ajuda também a manter o desejo aceso, como explica Esther Perel: Para mim, se há um verbo que vem junto com amor é o ter. E um verbo que vem junto com desejo é o querer. No amor, nós queremos ter, queremos conhecer o amado. Queremos minimizar a distância. Queremos diminuir o espaço. Queremos neutralizar as tensões. Queremos proximidade. Mas no desejo, temos a tendência de não querer voltar aos lugares em que já estivemos. O conhecido não mantém nosso interesse. No desejo, queremos um Outro (...) no desejo, queremos uma ponte para atravessar (...) algumas vezes digo que o fogo precisa do ar. O desejo precisa de espaço. 108 Uma boa forma de visualizar esse espaço próprio tão necessário de ser cultivado pelos membros da relação é através de uma representação gráfica. O que caracterizaria uma intimidade saudável seria a existência de espaços distintos: a vida própria de A, a vida própria de B e a vida em comum de ambos, que pode ser representado da seguinte forma: 108 Extraído do TED Talk de Esther Perel “O Segredo do Desejo em um Relacionamento Duradouto”: https://www.ted.com/talks/esther_perel_the_secret_to_desire_in_a_long_term_relationship/transcript?language=pt -br VIDA EM COMUM DO CASAL AeB VIDA PRÓPRIA DO PARCEIRO A VIDA PRÓPRIA DO PARCEIRO B Já o que vemos no processo de simbiose é a perda da individualidade dos parceiros, sendo que a vida a dois ocupa a totalidade das vidas dos indivíduos, podendo ser representado da seguinte forma: A verdade é que não somos metades procurando complementos, somos inteiros em nós mesmos e optamos por partilhar essa inteireza com outra pessoa. Estamos com outra pessoa não porque PRECISAMOS dela, mas porque QUEREMOS estar com ela, é por prazer e não por necessidade. Como explica Scott Peck, Quando se precisa de outra pessoa para sua sobrevivência, se torna um parasita dessa pessoa. Não existe escolha nem liberdade na sua relação. É mais uma questão de necessidade do que de amor. O amor é exercício da escolha livre. Duas pessoas sentem amor uma pela outra apenas quando são capazes de viver uma sem a outra mas escolhem viver uma com a outra.109 Para Esther Perel, precisar é desestimulante: “Já procurei, mas ainda não encontrei uma pessoa que se excite por alguém que precisa dela.”110 O desejo vem quando o outro é visto como independente. A autora, que viajou por dezenas de países promovendo seu livro e realizando pesquisas sobre o sexo no relacionamento, observa que onde o romantismo entrou, instalou-se uma crise do desejo. Ela resolveu, então, fazer a pergunta: quando você sente mais atração pelo seu parceiro? Apesar de proverem de culturas, religiões e gêneros diferentes, as respostas foram bastante semelhantes e permitiram ser reunidas em três grupos: Primeiro grupo: “sinto mais atração pelo meu parceiro quando estamos longe e nos reencontramos.” Aqui vemos o componente da distância e da saudade contribuindo para o desejo. Segundo grupo: “sinto mais atraída pelo meu parceiro quando o vejo se destacando em seu ambiente ou fazendo algo que gosta muito, quando é o centro das atenções, 109 Citado no artigo de Regina Navarro Lins “Dependência emocional e amor se confundem: é seu caso?”: https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/2018/10/18/dependencia-emocional-e-amor-se-confundem-e-o-seucaso/ 110 Citado no artigo de Letícia Iolandi “Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os dilemas atuais do casamento?”: https://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2013/06/28/noticiassaude,194361/relacao-aberta-ou-inteligencia-erotica-existe-uma-resposta-unica-para.shtml por exemplo, quando minha mulher faz uma apresentação de trabalho para centenas de pessoas sem nem perceber que estou ali na plateia.” Aqui vemos a importância dos parceiros terem suas individualidades fortalecidas, estarem centradas em suas próprias vidas. Nessa hora, aquela pessoa familiar volta a ter um certo mistério, neste espaço nasce o movimento, o impulso erótico. O desejo vem quando o outro é visto como independente. Terceiro grupo: “sinto mais atração pela minha parceira quando estou surpreso, quando rimos juntos, quando há alguma novidade.” Aqui vemos a importância do elemento da novidade que não necessariamente tem nada a ver com novas posições na cama ou novas técnicas e sim com se descobrir, se renovar. Vemos então que para o desejo surgir, não existe a necessidade obrigatória de uma nova pessoa, bastam novos comportamentos e novas iniciativas. É um esforço, um trabalho contínuo de renovação. A inteligência erótica “está vinculada ao impulso de manter-se vivo, à conexão com a força energética vital”, explica Esther. A autora esclarece que, no Ocidente, o erotismo é automaticamente associado ao sexo, mas a inteligência erótica não é necessariamente uma habilidade sexual. O ato sexual não pode ser o único objetivo. O erotismo é a poesia do sexo, é o sexo transformado pela nossa imaginação, e isso está além da cama – tem a ver com quem eu sou, com a identidade de cada um. Tem a ver com descobrir como é possível manter a novidade, a curiosidade e o espírito explorador dentro de um relacionamento duradouro (...) Se vejo o erotismo como inteligência, então é algo que cultivo, principalmente com a imaginação. (...)As crianças têm uma capacidade de imaginação, curiosidade e inovação constante. Elas estão dispostas a brincar, explorar e descobrir. Essas características fazem parte da inteligência erótica, mas não nascemos com elas – precisamos cultivá-las.111 Uma grande frustração que muitos casais têm, segundo Esther, é acreditar que o sexo entre o casal deve ser igual ao do início do relacionamento. O desejo, com o tempo, passa a vir de forma mais calma, mas nem todos aceitam isso pois o casamento inspirado pelo amor romântico traz expectativas irreais e acaba virando um motor de insatisfações. Uma vez que o desejo deixa de ser espontâneo, ele passa a ser premeditado, planejado mesmo, e está tudo bem com isso. O sexo espontâneo no casamento de longa duração é um mito. Se aceitamos que é necessário empenho em outras áreas da vida, também na sexualidade conjugal isso se faz necessário. Da mesma forma como acontece quando decidimos cozinhar um prato especial e precisamos pensar na receita, comprar os ingredientes, definir a apresentação do prato, etc. Como pontua Esther Perel, “o desafio erótico é integrar a relação de duas necessidades humanas fundamentais e opostas – uma relação comprometida, estável, segura e previsível de um lado; e a surpresa, a novidade, o mistério e o fascínio pelo desconhecido, de outro”.112 Como é impossível que a mesma pessoa seja naturalmente estável e surpreendente, familiar e inovadora, previsível e misteriosa, a psicóloga insiste na importância do esforço, da ação intencional. Outros aspectos que dificultam o sexo no casamento, segundo Esther Perel, são: o egoísmo do parceiro, a dificuldade em comunicar suas preferências sexuais, o desapontamento com as preferências do outro, a rotina, a idade avançada, o sexo focado apenas na parte genital do corpo, a falta de orgasmo para alguns e o foco apenas no orgasmo para outros. E temos ainda o fato de não gostar do próprio corpo. “Se você não gosta do próprio corpo, como vai convidar alguém para desfrutá-lo junto 111 Citado no artigo de Letícia Iolandi “Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os dilemas atuais do casamento?”: https://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2013/06/28/noticiassaude,194361/relacao-aberta-ou-inteligencia-erotica-existe-uma-resposta-unica-para.shtml 112 Idem. com você? A tirania do corpo que existe em vários países, inclusive no Brasil, exacerba essa frustração”.113 Além disso, parece ser importante a capacidade de tolerar a existência de conflitos na relação. Muitos casais apostam em uma vida sem brigas e se nenhuma agressividade, mas a raiva pode trazer a distância que estimula o erotismo. Afeição permanente pode abafar o tesão, a agressividade saudável deve ter seu espaço na relação. CUIDANDO CADA UM DA PRÓPRIA SEXUALIDADE Neste capítulo estamos abordando alguns aspectos relacionais que favorecem a vida sexual do casal, porém, existem diversos aspectos relacionados ao próprio indivíduo que também podem favorecer ou atrapalhar uma vida sexual mais plena. Um desses fatores é o cuidado com a saúde. Sexo depende de vitalidade e vitalidade depende de como cuidamos do nosso corpo. Exercício físico regular e um sono de qualidade são elementos cruciais na manutenção da vitalidade e da libido. O manejo do estresse também deve entrar nessa equação, pois se sabe hoje em dia que a resposta biológica do estresse crônico envolve desligar determinados mecanismos corporais, sendo um deles a função reprodutiva e sexual. Ou seja, quanto maior o nosso estresse, menos libido e menos desejo sexual. A comunicação assertiva também é amiga da sexualidade. Quanto melhor consigo comunicar ao meu parceiro o que me faz bem e o que me traz prazer, mais chances eu tenho de aproveitar a relação sexual. Não devemos esperar que o outro adivinhe nossos gostos. 113 Citado no artigo de Letícia Iolandi “Relação aberta ou inteligência erótica: existe uma resposta única para os dilemas atuais do casamento?”: https://www.uai.com.br/app/noticia/saude/2013/06/28/noticiassaude,194361/relacao-aberta-ou-inteligencia-erotica-existe-uma-resposta-unica-para.shtml Mas até mesmo para que seja possível comunicar ao parceiro o que nos dá prazer, é preciso primeiro se conhecer bem, explorar o próprio corpo a sós. Nesse sentido a masturbação é um grande aliado do autoconhecimento sexual. Quanto mais você se toca e se experimenta mais saberá o que ajuda seu prazer. Outra dica importante é aprender a sair da mente e se conectar com as sensações corporais na hora do ato sexual. Ficar pensando nas contas que tem a pagar certamente não ajuda no prazer sexual durante a relação. RECURSOS TECNOLÓGICOS PARA NAVEGAR NO UNIVERSO DA NÃO-MONOGAMIA Nos tempos atuais a internet vem ocupando um espaço cada vez maior em todos os aspectos das nossas vidas. Cada vez mais questões são solucionadas através da internet e não seria diferente com o universo das relações não-monogâmicas. Existem, por exemplo, redes sociais e aplicativos que auxiliam muito a navegar por essa experiência. Como temos advogado ao longo deste livro, o processo de abertura da relação deve ser gradual, progressivo e cuidadoso. Quanto mais lento for o processo, mais fácil fica digerir emocionalmente esse novo paradigma relacional. Umas das formas de ir se aproximando gradativamente deste campo de relações não-monogâmicas pode ser justamente através de algum aplicativo ou rede social voltada para este fim. Uma boa opção para conhecer melhor o universo do swing é através do Sexlog, a maior rede social de sexo e swing do brasil. Em seu site consta a seguinte descrição: Somos uma rede social exclusiva para maiores de 18 anos, formada por mais de 10 milhões pessoas interessadas em sexo, swing, encontros, fetiches, fantasias, festas liberais, livecam e o que mais a sua imaginação mandar114. Ao navegar pelas páginas do site você poderá encontrar diversos perfis de pessoas interessadas em sexo, podendo restringir a busca por casais ou solteiros, homo ou heterossexuais. Mesmo que seja só para conversar, já é uma grande opção para ir aos poucos adentrando este universo. Outra ferramenta que ajuda bastante a adentrar o universo das relações abertas é o aplicativo Ysos115, que funciona ao modo de um Tinder liberal, voltado para casais que querem se aventurar pelo universo das relações não-monogâmicas, em especial o 114 115 https://sexlog.com https://ysosapp.com.br/ swing. Também é possível encontrar solteiros ou solteiras para experiências de ménage. FONTES DE INFORMAÇÃO DE QUALIDADE ONLINE A internet também se mostra essencial como ferramenta de busca de informações. Há diversos canais de vídeos do Youtube, blogs e perfis de Instagram que abordam o tema das relações não-monogâmicas. Uma grande fonte de informações de qualidade sobre não-monogamia política é o Blog intitulado de NM EM FOCO, que pode ser acessado através de qualquer navegador no endereço https://naomonoemfoco.com.br/ Outro blog com informações de qualidade é o Blog da escritora e psicanalista Regina Navarro, que pode ser acessada no link https://reginanavarro.blogosfera.uol.com.br/ No Instagram existem diversos perfis especializados na temática não-monogâmica, como por exemplo: @naomonogamia, @nao_monogamia_responsavel, @compersao, @chamegamos, @naomonodate, @naomonoemfoco, @policompoly. No Youtube podem ser encontrados diversos vídeos sobre não-monogamia. Um canal com bastante informação é o canal Pessoas Não Mono, que pode ser acessado aqui: https://www.youtube.com/c/PessoasNaoMono. Um excelente podcast sobre questões ligadas ao desenvolvimento sexual é o Podcast do UOL sobre sexualidade chamado Sexoterapia: https://www.uol.com.br/play/universa/podcast/sexoterapia/ FILMES E SÉRIES DO NETFLIX Também existem diversas produções cinematográficas que ajudam a adentrar o universo das relações não-monogâmicas. Um filme que ilustra a modalidade do Relacionamento aberto é o Newness, do Netflix. A série Eu, Tu e Ela, do Netflix, ilustra bem uma experiência poliamorista no formato do trisal. Já a série Wanderlust mostra um casal que após muito tempo de casado passou a ter dificuldades sexuais e optaram por abrir a relação para que pudessem transar com outras pessoas e acabaram evoluindo para um poliamorismo. Vale a pena conferir também a série Easy, do Netflix, cujo episódio 6 (Utopia) ilustra uma experiência de ménage. Para quem quer entender um pouco mais sobre as origens da monogamia existe uma série do Netflix chamada Explicando que tem um episódio sobre a origem da monogamia Uma lista mais completa de filmes com a temática não-monogâmica pode ser encontrada monogamicos/ aqui: https://contosdeantheia.com/2018/10/03/17-filmes-nao- RECADOS FINAIS Segundo alguns pensadores, estamos vivendo a era da aceleração da história humana. As mudanças estão acontecendo cada vez mais rápido, graças à globalização e às tecnologias de comunicação. As mudanças de costumes que no passado levariam 100 anos pra acontecer hoje acontecem em apenas uma década. A velocidade das mudanças assusta muitas pessoas que se sentem perdendo suas referências, referências de como devem se comportar, referências do que é certo e do que é errado. É natural que toda mudança gere resistência pois o ser humano é um ser de hábitos, de costumes, que vão se passando de geração em geração. Mas as mudanças não cessam de acontecer só porque resistimos a elas. As formas de se relacionar afetivamente também estão se transformando muito rapidamente e cada vez mais casais estão questionando se os antigos paradigmas lhe servem ou se não seria hora de aderir a novos modelos relacionais. Um dos questionamentos mais frequentes é com relação à exigência da monogamia no casamento. Será que ela é realmente tão importante assim como sempre se pregou? Ou seria apenas mais um costume herdado que está ficando ultrapassado, que não cabe mais nos dias de hoje onde a noção de individualidade vem ganhando cada vez mais relevância? Há quem diga que muito em breve os relacionamentos não-monogâmicos consensuais serão o novo normal. Pode ser difícil acreditar, mas imagine se nos anos de 1950 uma pessoa afirmasse que em um futuro breve as moças deixariam de se casar virgens? E se dissessem que o divórcio seria algo comum? Todos achariam essas afirmações uma loucura pois eram costumes muito relevantes naquela época. Mas vejamos pelo lado positivo, essas mudanças estão vindo para nos libertar. O que está mudando mesmo é o costume da imposição, do imperativo, da coerção moral. Hoje uma moça se quiser PODE se casar virgem, mas não é mais uma imposição. Hoje quem quiser PODE não se divorciar, mas não é mais uma coerção. Hoje quem quiser PODE ser monogâmico, mas não é mais um imperativo! Estamos cada vez mais livres para escolhermos como queremos viver e com mais liberdade vem mais responsabilidade. Por isso falamos em não-monogamia RESPONSÁVEL. A não-monogamia sempre ocorreu em toda história humana, a questão é que ela sempre ocorreu por debaixo dos panos, de forma não consensual. Agora estamos tendo a possibilidade de experimentarmos uma não-monogamia consciente, ética, responsável e cuidadosa. Ainda assim, quem não tiver nenhuma inclinação para a não-monogamia, poderá continuar tranquilamente se relacionando de forma monogâmica, conscientemente e não mais por imposição. Nesse sentido, só devemos celebrar os avanços da modernidade que nos convidam a sermos mais maduros e aprendermos a escolher por conta própria, sendo honestos com a nossa verdade e respeitando a verdade dos outros. Quanto mais respeito, mais amor e mais felicidade. REFERÊNCIAS LIVROS BERGSTRAND, C. R. & SINSKI, J. B. (2010). Swinging in America: Love, Sex and Marriage in the 21st Century. Ed. ABC CLIO. BREEDLOVE, W. & J. (1964). Swap Clubs. Ed. Sherbourne. BUSIN, V. M. (2012) Juventude, religião e ética sexual. Ed. Católicas pelo direito de decidir. CONSTANTINE, L. L. (1974). Group Marriage: A Study of Contemporary Multilateral Marriage. Ed. Colier Macmillan. DANTAS, B. S. A. (2010). Sexualidade, cristianismo e poder. Estudos e Pesquisas em Psicologia. FISHER, H. (2006). 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