Poesia e Morte em Vila Rica - Tarquinio J.B. de Oliveira

POESIA E MORTE EM
VILA RICA
Tarquínio José Barbosa de Oliveira
1974
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Índice das Matérias
Dedicatória Aos Grandes De Portugal
Confíteor
I. Os Romances De Tiradentes
1.1 Retratos Fora de Foco.
1.2-O homem Joaquim José
1.30 Romance Inexistente
1.4- As Filhas do Alcaide
1.5- Equívoco
1.6- Epílogo
II. Casos Da Rua Dos Cobertos
2.1- Uma Rua no Porto
2.2- A Casa do Capitão Clarque
2.3- Estudante Carioca
2.4- O Rio de 1703
2.5- Origem dos Gonzagas
2.6- O Segundo Carioca
2.7- Os estudos de Dirceu
2.8- O abandono do sobrado
2.9- A roda da Fortuna
III. Ressurreição De Eulina
3.1- O Lado Oculto
3.2- Pintura de Poeta
3.3- Os Personagens do Vila Rica
3.4- A Eulina de Glauceste
3.5- Libidos Mancos
3.6- Tristeza do Poeta
IV. A Difícil Historiografia das Evidências sem Provas
4.1- As limitações do Subjetivo
4.2- O Espírito da Época
4.3- As Ideologias Paralelas
4.4- Epitáfio do Latim
4.5- O Grande Oriente de Paris
4.6- A Tentação dos Sábios
4.7- O Submundo Colonial
4.8- Subterrâneos da Inconfidência
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V. Prisão E Morte Do Dr. Cláudio
5.1- Tema Velho e Novo
5.2- A Causa-Mortis
5.3- Implicações Sincrônicas
5.4- Paralelo Jovem
5.5 - A Conveniência dos Detalhes
5.6- Os Sufrágios Religiosos
5.7- Teoria da Reabilitação
Apêndice
Obras de Tarquínio José Barboza de Oliveira
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À Isabela, minha Neta
À Dona Hipólita Teixeira, a grande
heroína da Inconfidência Mineira,
ainda não lembrada.
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DEDICATÓRIA AOS GRANDES DE PORTUGAL
Da feia tirania e de aspereza
fazem direito e vã severidade;
leis em favor do rei se estabelecem,
as em favor do povo só perecem.
(Lusíadas IX: 28)
Nenhum ambicioso que quisesse
subir a grandes cargos cantarei
***
nem quem acha que é justo e que é direito
guardar-se a lei do rei severamente
e não acha que é justo e bom respeito
que se pague o suor da servil gente.
(Idem, VII:84 e VI:86)
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Confíteor
I. OS ROMANCES DE
TIRADENTES
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II. CASOS DA RUA DOS
COBERTOS
2.1- Uma Rua no Porto.
Quando se diz rua imagina-se a faixa de circulação marginada de ambos os lados por edifícios. A rua dos Cobertos, na cidade
do Porto, é diferente. Numa só margem, os sobrados são montados
em arcarias. Fachadas voltadas para o Rio Douro. Atrás deles, na
escarpa que foi há séculos o Morro da Judiaria, o casario parece
empilhado.
Primitivamente a rua chamava-se Praia da Miragaia. Ou simplesmente a Praia, situada na curva graciosa do rio que contorna os
pés do grande empório vinícola português.
A arcaria que sustenta os sobrados é uma lição aprendida
com as inundações periódicas. Solução individualista, de quem encara o sistema público como mal nem sempre necessário.
Como os arcos recobram e dão sombra às calçadas, o povo
cunhou o nome certo: Rua dos Cobertos.
Alguma administração progressista aterrou a praia, elevando-a acima do nível das piores águas. E consoante o espírito utilitário, construiu uma cortina de pedra aparando o aterro e separando a Rua dos Cobertos de sua paisagem. Sobre o aterro, moderna rua paralela. Além desta, contemplando o rio, o casarão da
Alfândega.
Com perfeita lógica, mudaram oficialmente o nome da rua
oprimida para Rua de Miragaia, de onde já não se mira nada.
A linha dos sobrados se interrompe para encaixar o Largo de
São Pedro, cuja igreja situa-se de flanco. Única posição adequada,
pois a abside já grimpa o morro. Pelo lado externo sobe a Rua de
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Tomás Gonzaga, ladeira que vai ao Largo de São João Novo, meia
escala para quem sobe à cidade alta, entrando pela Sé Velha.
Os Cobertos, quando eram o centro de Miragaia e não haviam sofrido as inovações urbanísticas, falavam bem mais alto
das tradições que povoam. Nasceu Miragaia sob o domínio romano. Era ela o Portus, na Via de
Antonino Pio. Ai o minério, oriundo do norte, era embarcado
para a margem oposta do
Douro: Cale. A magnífica estrada
vinha de Braga (Brachara Augusta) e seguia além, para Lisboa (Felicitas Júlia).
Cale é a atual Gaia. E o
antiquíssimo Portus cedeu o
nome ao todo, passando a simO Sobrado da Rua dos
ples mira-Caia, modesto bairro
Cobertos, 104-105
de beira-rio. Quando se fortificou o Porto, para proteger o
néctar produzido pelas cepas da Borgonha que o Conde D. Henrique
trouxe, o bairro piorou de condição no estado de extramuros.
Portus-Cale foi o traço de união entre a Galicia e a Lusitânia.
Quem diria fosse ele a semente de um novo mundo?
Camões certamente esqueceu o modesto bairro:
"Lá na leal cidade donde teve
origem, como é fama, o nome eterno
de Portugal, armar madeiro leve...
manda o que tem o leme do governo."
(Lus. 6:52)
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Piedosos cronistas disseram que no lugar da igreja de São
Pedro, lá pelos idos de 50 d.C., existiu um pequeno templo com um
grande discípulo de Jesus: São Basílio. Rival de Santiago de Compostela, falira por escassa produção de milagres. Documentaristas impenitentes duvidam hoje do santo e do templo.
A roupagem barroca que vestiu a sé românica é de 1742.
Construíram-na belamente com os célebres azulejos de Miragaia.
Se o divino Taco fez a grandeza da região, o povoamento do
Brasil, por qualidade e quantidade, deve incenso à padroeira oculta:
Vênus.
"Mas quem pode livrar-se porventura
dos laços que nos ama brandamente
entre as rosas e a neve humana pura,
o ouro e o alabastro transparente?
Quem de ũa peregrina fermosura,
de um vulto de Medusa propriamente,
que o coração converte, que tem preso,
em pedra não, mas em desejo aceso? "
(Lus. 3:923)
2.2- A Casa do Capitão Clarque.
Na Rua dos Cobertos, o sobrado que ainda existe sob o número 104-105 foi adquirido em 1703 pelo Capitão de Navios João
Clarque, comerciante entre as rotas das Canárias e Londres. Era inglês de nação, embora nascido em Laguna, capital de Tenerife. E
católico, como convinha sê-lo no comércio por águas lusas e castelhanas. O pai, John Clark, nascera em Londres e se especializara no
tráfico com as Ilhas Afortunadas. Lá se casou com Mary Sirach, uva
da terra, cuja família abandonara os tecidos de Antuérpia e transmigrara via Inglaterra. João Clarque introduziu nas rotas paternas
as escalas no Porto. Combinava o leve e seco vinho das Canárias,
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branco, com o rico licor do Douro. Ambos tocados pela genialidade.
Em casa de Domingos Ramos e sua mulher, Tomásia Jason (casados
em 7-06-1675), conheceu e se casou com Mariana (1676-1753). Sirach e Jason (de Jacobson, Jameson, e como estes patronímicos de
corrente uso entre judeus ingleses) refletem sangue de cristãonovo, embora as crenças fossem velhas e sinceras.
As viagens do marítimo atrasaram onze anos a compra do
sobrado. Nos róis de 1703 e 1707, o capitão é dado por ausente:
sinal de que andava navegando. E navegando faleceu em Londres
no ano de 1721.
Mariana tinha uma única irmã, Teresa Jason, batizada em
19-08-1678. Ainda moravam com Domingos Ramos, quando se deu
o primeiro caso.
A história do sobrado, entretanto, influiria em fatos tão remotos como as Cartas Chilenas e a Capitania de Minas. Suas lembranças no decurso do século são a essência desta narrativa.
2.3- Estudante Carioca.
Chamava-se Tomé do Souto Gonzaga e fora diplomar-se em
Coimbra. Estava no quarto ano de Leis quando foi conhecer a cidade
do Porto, em 1702. É difícil conceber como chegou a travar relações
com a cunhada do Capitão Clarque.
Teresa, aos 24 anos, não devia ser tonta.
Perdeu-se de amores por Tomé e este se perdeu pelos amores. Sendo os problemas de família regulados pelo direito canônico,
o assunto foi levado ao Vigário Geral. Tomé, recolhido às grades do
aljube13, preferiu a solução honrosa: casou-se. Voltou à Universidade e em fevereiro de 1703 estaria formado.
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Cárcere, masmorra, prisão
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Mariana e os filhos (Ana, Tomás e Isabel) passavam para a
casa nova em Miragaia, quando Teresa e Tomé embarcavam para o
Rio de Janeiro, instalando-se no bairro da Candelária, na casa de D.
Maria do Souto, sem nenhuma pressa de criar herdeiros.
Nessa época, o espraiado de Miragaia fazia parte do Rocio.
Seria por muitos anos o cenário de fogos, touros e cavalhadas com
que o Senado do Porto comemorava nascimentos e matrimônios
reais. Espetáculos gostosamente vistos dos balcões de casa.
As ladeiras de Miragaia e as de Vila Rica se parecem.
E as festas também.
A diferença lastimada por Critilo seria entre os encantos do
Douro e do Córrego do Funil, inflado por várias formas nos ricos
projetos de Fanfarrão.
“Nas margens, Doroteu, do sujo córrego
que banha da cidade a longa fralda,
há uma curta praia toda cheia
de já lavados seixos. Neste sítio
um formoso passeio se prepara."
(C.Ch. 6:219)
"No meio do passeio estão abertas
duas pequenas covas pouco fundas
que lagos se apelidam... Sobre as bordas
ardem mil tigelinhas, e o azeite
que corre, Doroteu, dos covos cacos,
inda é mais do que são as sujas águas
que nem os fundos cobrem destes tanques."
(C.Ch. 6:231)
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O Funil jamais pensou em competir com o Douro, belo rio
de farto caudal onde as naus se abasteciam. E pitorescos rebelos,
de proas empinadas ainda sobem e descem transportando vinhos.
Porém, a casa do Ouvidor na Rua Direita de Antônio Dias,
em Vila Rica, tem proporções mais belas que o estreito sobrado das
arcarias em Miragaia. Se o Tripui14 se escondia à vista da janela, a
varanda interior mostrava lindas meninas no quintal do vizinho.
As festas pouco diferiam, embora o ribeiro aurífero recebesse mais o nome que o possante colega de Portugal que não se
priva, nos dias comemorativos, dos ricos cortejos de barcos engalanados.
Sobretudo, as famílias Clarque e Gonzaga, que o Atlântico
separa, iriam ter maiores afinidades em tempo vindo.
2.4- O Rio de 1703.
O ouro das Gerais tirara a pacata cidade da tranquilidade
paradisíaca. Navios e conventos se despovoavam na corrida para os
Cataguazes e o Sabarabuçu. Caminho difícil e áspero: pelas praias e
morros até Guaratiba; de barco até Parati, em pleno fulgor, brilhando mais que o ouro transformado em barras na Casa de Fundição de Carlos Pedroso da Silveira; a subida abrupta da Serra até Taubaté. Aí, o choque com os senhores paulistas e seus capangas tupis.
E de novo subir: a Mantiqueira e outras cadeias de quando
em quando até o Rio das Mortes, quando São José era mais importante que São João.
E ainda mais serras. E rios como nunca se viram. E afinal os
distritos do Carmo e de Cataguazes, os acampamentos mineiros instalados em choças de madeira e palha, despontando uma ou outra
capela de pau a pique e frente em proa.
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Ribeirão que cruza Ouro Preto
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Mais chão adiante, o Sabará do tenente-general Borba Gato,
cofre aberto da fortuna e da turbulência.
O guarda-mor geral, herdeiro de Fernão Dias, o desvendador do sertão no sonho das esmeraldas, deixara o cargo entregue a
Medeiros e se pusera a abrir mato em direção ao Rio. Em 1705, ao
terminar a picada, ainda se preferiria o contorno paulista por redobrada distância. as chuvas de outubro a março era tudo intransitável. O espectro da fome andava de braço dado com o tesouro e a
morte...
A inteligência de Tomé preferiu a advocacia à beira-mar.
Não que os riscos fossem menores. O ilhote de Villegagnon estaria
sempre lembrando a origem corsária da cidade. Amarais Gurgeis e
Amarais Coutinhos bem falavam do truculento sangue de piratas
em mistura com os vencedores dos trugimãos e soldados do Cavaleiro de Malta.
Os Gonzagas preferiam outras riquezas.
Os paulistas foram derrotados em 1708 pelos emboabas de
Manuel Nunes Viana. Quando se preparavam para a desforra, em
1709, o caminho de Garcia Rodrigues mostrou sua utilidade prática.
Antônio de Albuquerque, incapaz de detê-los em Taubaté, enviaria
por ele a tropa de dragões que foi auxiliar, na Ponta do Morro do
rio das Mortes, a resistência forasteira.
A primeira aparição dos franceses de Saint-Malo acabou em
pleno Rocio da cidade, graças à bravura de dois ex-chefes emboabas: o jovem Brás do Amaral Coutinho, genuíno carioca, e o espantoso frade Meneses. Duclerc rendeu-se com a surpresa, encurralado a dez passos da Candelária, em 19 de setembro de 1710.
A segunda foi um autêntico desastre local. Brás do Amaral
Coutinho morreu no primeiro embate. Frei Meneses embarcara
para Portugal, onde serviria longos anos como procurador dos mineiros.
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Dugay-Trouin encontraria no governo de Francisco de Castro Morais a origem do jeitinho incruento: comprou-se a cidade ao
corsário. Antônio de Albuquerque chegara tarde com seus bravos
caçadores de ouro. Em novembro de 1711, a esquadra francesa deixava a
Guanabara à vista do General de São Paulo e Minas.
O primeiro filho de Tomé e Teresa completava um ano de
idade. Batizou-se com o nome de João Bernardo. João, por causa
do avô.
Em 1719, quando Assumar15 contemporizava em Minas com
o fermento revolucionário, nascia Lourença Filipa, segundo e último
rebento do casal. Neste ano, o Dr. Tomé arrematou um engenho.
Associado a Manuel Rodrigues de Alcântara, em 1725, adquiriria
sesmaria no rio Iguaçu.
Brilhante causídico, serviu esporadicamente a cargos da Coroa e da Câmara. Enviou João Bernardo para Coimbra em 1727. E
faleceu, no ano de 1738, depois de obrigar um luso familiar do
Santo Ofício de Lisboa, Feliciano Gomes das Neves, a casar-se com
Lourença Filipa.
Tomé do Souto Gonzaga sempre gozou do maior respeito.
Cérebro excepcional, língua ferina e coragem desassombrada para
usá-la garantiram-no contra amigos e inimigos.
Fundamentalmente honesto, enriqueceu sem desdouro e
serviu ao público com independência.
Ao contrário do pai, contribuiu pouco para desenvolver a
população carioca, orçada em 1710 na casa dos doze mil habitantes.
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Pedro Miguel de Almeida Portugal e Vasconcelos (1688 – 1756),
3.° Conde de Assumar, 3.° Governador e Capitão-mor da Capitania de São
Paulo e Minas do Ouro em Mariana Minas Gerais, no Brasil.
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2.5- Origem dos Gonzagas.
O gosto do lendário levou alguns biógrafos do poeta Dirceu
a entroncá-lo naqueles duques mantuanos de cuja truculência nasceu, na Itália seiscentista, a pureza virginal de São Luís Gonzaga.
Tomé, entretanto, é o fundador de sua gloriosa estirpe. Desprezava brasões heráldicos, porém tinha extrema exigência quanto
a atributos de caráter e talento. O poeta Dirceu saiu ao avô.
Os Gonzagas brasileiros, ao contrário do santo jesuíta, nasceram sob o signo da paisagem tropical e dos horizontes fecundos
da liberdade. Costumes fortes e carne fraca, como convém às terras
novas.
As virtudes religiosas, no mundo colonial português, apenas
impunham alguma discrição ao sexo. O convento, única via de
acesso à cultura para as inteligências sem fortuna, zelava pelo humanismo sem perder a humanidade, e contribuía não raro para a
multiplicação da espécie.
Acontece que Tomé era neto de D. Joana do Souto, mulher
nobre e de estimação como reza a crônica. Viúva inflexível a quem
o capitão da Fortaleza de São João, na barra da Guanabara, legara
como únicos bens a pensão pobre e quatro belas filhas. Todas as
filhas se desonestaram. E cada uma foi expulsa de casa pela piedosa
senhora.
Assim, a menina Maria, nascida na Sé, mudou-se para a Candelária para ser doceira.
Os contemporâneos estimaram-na muito, hipocritamente
lastimando que tivesse vários filhos de diversos pais, o que é estatisticamente falso.
Não se pode negar que D. Maria fosse profundamente religiosa. Se gostava de homens talentosos e cultos, dava nítida preferência aos crentes. A união mais fiel foi-lhe com o excelente músico,
cuja arte dominou saraus, festas e missas cariocas nas vésperas da
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corrida do ouro: Antônio Domingos Maciel, ou melhor, Frei João do
Rosário, da ordem seráfica.
"Grande músico! Cantamos juntos várias vezes.” comenta
para o Santo Ofício Frei Bento da Conceição, já septuagenário, ao
recordar-se do amigo o jubilado pregador beneditino.
Frei João nasceu na vila alentejana de Campo Maior, situada
num ponto montanhoso de onde se vê Elvas, em Portugal, e Badajoz, na Espanha. Vocação das paisagens amplas. A vila merecera nos
forais grandes privilégios: não era permitido pôr nela presídio nem
guarnição de soldados, ainda que fossem naturais da região.
Na terra natal, a música de Frei João valeu-lhe o apelido de
Papa-Solfa: era capaz de ler pautas musicais até pelas costas. Deverá transmigrar para o Rio ao redor de 1670 e já havia regressado
a Lisboa, como comissário dos franciscanos, em 1690.
A despeito da maledicência, D. Maria do Souto reservou-se
para o bom capucho. São dele três dos quatro filhos que deu ao
mundo. Isto, se dermos crédito a Frei Manuel de São Roque, gabola
do próprio pai e soberbo de considerar-se meio irmão de Frei Manuel da Madre de Deus, um dos irmãos do Dr. Tomé.
A gabolice, tais os encantos de D. Maria, atingia mesmo o
Arcediago da Sé, Padre Dr. José de Sousa Ribeiro de Araújo, que
disse ao Santo Ofício que o velho pai também amara a extraordinária dama.
Os amores de D. Maria reunidos dariam uma esplêndida
academia de artes: Frei Columbano, o admirável pintor do mosteiro
de São Bento; Frei Inácio da Graça, brilhante orador carmelita, que
chegou a ser mencionado como pai de Tomé, sem justo título; além
dos aspirantes leigos supra referidos.
Quanto aos filhos, talento sobrava: Domingos Maciel, Frei
Manuel da Madre de Deus Gonzaga, o Dr. Tomé do Souto Gonzaga.
O mais obscuro parece ter sido Antônio Maciel, batizado na Cande-
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lária a 18-09-1689 (C.C.RHEINGATZ, Primeiras Famílias do Rio de Janeiro, Rio, 1967). Rheingantz se engana ao supor que Frei João, que
compareceu ao batismo com o nome civil, ter nascido em 1669,
data em que provavelmente nasceram seus amores…
Uma neta de Toussaint Gurgel, fundador da estirpe dos
Amarais Gurgéis no Rio, casada com Gonçalo de Castro Peixoto,
honraria muito da amizade de Frei João, pois o filho nascido em
1674, ao ingressar para os capuchos, adotaria o mesmo nome franciscano.
Frei João do Rosário, não tendo descurado os bens terenos,
deixou os filhos amparados. Naturalmente, D. Maria do Souto contribuiu com os doces.
O patronímico Gonzaga é de fino gosto e reflete o ouvido
musical na escolha. Na Universidade de Coimbra dos seiscentos, encontra-se um Gonzaga nascido em Campo Maior. Parece-nos, entretanto, que o nome adotado por dois filhos de D. Maria foi gratidão. Homenagem sutil a Frei Francisco Gonzaga, ministro geral da
Ordem, que um século antes mandara botar em Olinda o primeiro
convento, determinando a ereção do Brasil em Custódia...
Discípulo do panteísmo seráfico de São Francisco de Assis,
Frei João amou a harmonia universal. Os peixes e as feras. E a mais
bela criação divina: D. Maria do Souto.
O Dr. Tomé, casado com Teresa no aljube do Porto, não se
deixou tentar pelo ouro das Gerais. Viveu bem o Rio principiante do
novo ciclo. Sua mordacidade jamais temeu inimigos. Até Francisco
Gomes Ribeiro, camarista e comerciante abastado, generoso protetor da Misericórdia, somente à socapa ousava dizer que Tomé era
filho de frade. De frade judeu..., mas queria referir-se a Frei Inácio
da Graça e não aos Jasons de Miragaia.
E poderia poetar como Dirceu:
"A Cresso não igualo no tesouro,
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mas deu-me a sorte com que honrado viva. “
(L. 11:0)
"Eu revolvo os teus dons na minha idéia:
só dons que vem do céu são minha glória.
Graças, ó Nise bela,
graças à minha estrela!"
(L. 11:49)
Nascido em 1675, aos 63 anos apenas trocou de paraíso, o
primeiro Gonzaga carioca. Foi ouvir, na Corte metafísica, as deliciosas rodinhas de Frei João.
2.6- O Segundo Carioca.
O Dr. Tomé, em 1727, despachou para Coimbra o rapazola
João Bernardo Gonzaga, recém saído da filosofia e retórica franciscana. As vinculações com a Ordem Terceira de São Francisco são
muito profundas para que o menino frequentasse o Colégio Jesuíta.
João foi recebido nos Cobertos com o calor afetuoso da
gente portuguesa. A viúva Tia Mariana andava com a casa deserta.
Ana casara-se com o comerciante José Lobo e lhe dera o primeiro
neto: José Lobo Clarque, mais tarde emigrado para a Bahia, onde
progrediu na carreira militar. Tomás tomara ordens a viria distinguir-se nas Guerras do Sul como capelão de Gomes Freire de Andrade. Isabel e Teresa recolheram-se ao Convento de Santa Clara.
Restavam no sobrado: Tomásia (n. 1707) e Raimundo (n. 1715), este
já se encaminhando para o ser sacerdócio secular.
Repetiu-se o caso, porém com extrema discrição. Tomásia e
João se amaram além da conta e o estudante andava por Coimbra
quando nasceu Marianinha. Levaram-na a batizar em outra freguesia como exposta de pais incógnitos. João diplomou-se (07-1734),
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nas voltara ao sobrado para casar ano e meses antes (20-11-1732).
Seguiu-se a habilitação no Desembargo do Paço e a carreira judiciária. Preferiu andar nas proximidades do Porto, residindo com D.
Mariana.
A primeira filha oficial, Francisca, nasceu ao formar-se. Por
ocasião da habilitação judiciária, veio Antônio. Foi no ano (1730) em
que o Dr. Tomé faleceu no Rio de Janeiro. Enquanto espera a primeira nomeação (1739), Tomásia deu à luz José Gomes (provável
homenagem ao cunhado Feliciano Gomes das Neves). No triênio de
juiz-de-fora em Montalegre (1740-42), nascem João (1740) e Ifigênia (1741). Aí ordenou-se Raimundo. O Des. João Bernardo Gonzaga
esperava nova designação quando lhes nasceu o sétimo e último
filho: Tomás Antônio (11-06-1744).
A certidão de batismo, lavrada a 2 de setembro na igreja de
São Pedro de Miragaia, tem a data rasurada no 11 do nascimento
(motivo de múltiplas confusões entre os biógrafos do poeta). Era
Vigário da freguesia o padre Antônio Gomes de Castro, Estiveram
presentes ao ato o padre Raimundo Clarque (cujo nome foi às vezes
estropiado para Ricardo), o abade Manuel da Cruz, e os padrinhos:
o cónego magistral da Sé do Porto, rev. Antônio de Deus Campos,
representando o rev. Domingos de Abreu Ferreira, de Lisboa, e o
ministro da Relação, Des. João Barroso Pereira.
Há várias coincidências astrológicas no berço de Dirceu. O
dia 11 caiu na sexta-feira, dia dedicado a Vênus. Os horoscopistas
dizem (Encyclopaedia of Occult Sciences, N. York, 1968) que as pessoas nascidas sob tal influxo terão compleição rosada, faces coradas, cabelos iridescentes em largas ondas, nariz reto, boca, e olhos
sorridentes, voz suave e terna. E decidida vocação para as artes.
Tomás Antônio foi o sétimo filho, embora Marianinha não
fosse registrada como irmã mais velha. O número 7, ímpar e primo,
é o número cabalístico por excelência, desde os sete dias da semana, aos sete sacramentos, sete pecados capitais, sete pragas do
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Egito, sete estrelas, as sete maravilhas e os sete sábios da Grécia. E
também as sete cores do arco-íris e as sete notas musicais. Significa
inteligência, força e aventuras extraordinárias. Tão indiscutível
como o 13, dia da morte.
"Não rias, Doroteu, dos meus agouros.
Os antigos romanos foram sábios,
tiveram agoureiros. Estes mesmos,
muitas vezes, choraram por tomarem
os avisos celestes como acasos."
(C.Ch. 1:182)
Oito meses depois D. Tomásia Isabel faleceria. E Critilo ficou
órfão, passando aos cuidados redobrados da vovó Mariana.
O Dr. João Bernardo Gonzaga já se distancia mais: foi ser
juiz-de-fora em Tondela, vila da Beira-Alta, por um quadriênio
(1747-1750).
Lá recebeu a notícia de que a mãe viúva, D. Teresa, chegava
do Brasil com Lourença Filipa e Feliciano Gomes das Neves. Traziam
duas filhas e duas sobrinhas destinadas ao Convento de Santa Clara.
Já lá estavam duas filhas de João Bernardo: Francisca e Ifigênia.
Com tal costume, que seria do mundo lusitano não fossem
as índias e mulatas?
As duas viúvas, Mariana e Teresa, não se viam há 44 anos. O
menino Tomás, de três anos (1747), as reuniria definitivamente em
terno afeto. Voltaram a distanciar-se no ano seguinte, com o regresso ao Rio dos visitantes. Teresa morreu pouco tempo depois de
chegar (1749).
Terminado o mandato em Tondela, o desembargador foi
promovido a Ouvidor Geral de Recife. Partiu com dois garotos: José
Gomes (12 anos) e Tomás Antônio (7 anos). A posse em Pernambuco deu-se em 11 de março de 1752.
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D. Mariana, no ano seguinte, legou a Marianinha o Sobrado
dos Cobertos, tutelada pelo tio, padre Raimundo Clarque, que pagava os foros. Os irmãos restantes, Antônio (15 anos) e João (14
anos), andariam nos estudos e, talvez, seguissem a carreira do comércio com o tio José Lobo.
O ouvidor de Recife serviu praticamente sete anos (175250) antes de passar à Bahia como Intendente do Ouro e Presidente
da Mesa de Inspeção. São anos agitados em Portugal: o terramoto
de Lisboa (1755) e a ascensão fulminante de Sebastião de Carvalho,
o futuro marquês de Pombal. A Capitania de Pernambuco foi confiada, em 1756, a Luís Diogo Lobo da Silva - o mesmo que assumiria
a Capitania de Minas (1703) e desamparará a carreira de Cláudio
Manuel da Costa na Secretaria do Governo (1755).
José Cornes e Tomás Antônio frequentam os estudos franciscanos.
Uma senhora da terra, D. Madalena Tomásia, desperta os
interesses afetivos do Ouvidor, perturbando, no âmbito doméstico,
o monopólio filial. Quase cinquentão, os ardores do Dr. João Bernardo não eram alarmantes, sobretudo porque os ministros eram
proibidos de casar na jurisdição sem licença real, informada pelo
Desembargo do Paço.
A reminiscência ficaria nas lembranças do menor, pois Critilo (1706-99) ainda pragueja:
"uma velha madrasta me persiga,
uma mulher zelosa me atormente
e tenha um bando de gatunos filhos
que um chavo16 não me deixem, se este chefe
não fez ainda mais do que eu refiro."
(C.Ch. 1:61)
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Chavo: substantivo masculino Moeda de pouco valor. Quantia insignificante
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A pernambucana parece ter sido velha, ciumenta e viúva pejada de horríveis garotos. O processo evocativo de lembranças recônditas é frequente no poeta Gonzaga. Ressurge, por exemplo, no
ciúme inconsciente do neto de D. Mariana contra o avô inglês de
nação: está no retrato de Matúsio:
"E peralta, rapaz de tesas gâmbias,
tem cabelo castanho e brancas faces;
tem um ar de mylord e a todos trata
como a inúteis bichinhos."
(C.Ch. 1:128)
O Des. João Bernardo raspou-se para o novo cargo baiano,
embora o compromisso moral ainda o ficasse perturbando. Começa o trabalho em 18 de fevereiro de 1759. A situação é tensa
com a clara perseguição pombalina aos jesuítas. Os estrangeiros
haviam sido encarcerados e expulsos meses antes.
Os lusos e brasileiros seriam cercados no Colégio, a 26 de
dezembro, transferidos para Jequitaia, e antes de se completarem
quatro meses conduzidos às prisões de Lisboa ou mandados ao exílio.
Não importam os sentimentos íntimos locais, nem a contínua messe de grandes serviços à educação e à catequese. Não há
lepra que mais isole que o desfavor do poder...
A formação em Filosofia e Retórica dos rapazes se completaria com os bons capuchos, cuja cultura já produzira no Brasil Frei
Vicente do Salvador, Frei Apolinário e Jaboatão.
As impressões de Dirceu (causa de farto desperdício de tinta
entre biógrafos) são relatadas na Lira 60:
"Pintam que os mares sulco da Bahia,
22
onde passei a flor da minha idade;
que descubro as palmeiras, e em dois bairros
partida a grã cidade.
Pintam leve escaler, e que na prancha
o braço já te of’reço reverente;
que te aponta c’o dedo, mal te avista,
amontoada gente."
Neste ano floresce, do Des. José de Mascarenhas, a academia Brasílica dos Renascidos. Cláudio Manuel da Costa enviaria de
Minas, a 3-11-1759, carta agradecida pela honra de ser-lhe escolhido membro. Junta envia o juramento pela Imaculada Conceição
da Virgem Mãe de Deus e apontamentos para se unir ao Catálogo
dos Acadêmicos. Porém, o Dr. João Bernardo se interessa pouco por
literatura. Da Mesa do Inspeção, apenas comparece José Lores Ferreira, fiscal representante da corporação dos homens de negócio.
O nacionalismo indianista mal disfarça o iluminismo francês,
cujo reformismo universalista se inspirara exatamente no bom selvagem tamoio, que os trugimãos da Guanabara tanto exaltavam antes, durante e depois da aventura de Villegagnon.
A safra de talentos congregados em Salvador é extraordinária. E francamente decidida a história em profundidade a cultura e
os fatos nacionais.
Tal é o clima vivido na Bahia pelo jovem Gonzaga.
Serafim Leite o supôs aluno do Colégio (Hist. Cia. Jesus no
Brasil, V:103), mas por mera indução.
Pombal mandaria instruções para Mascarenhas transferirse ao Rio. No Rio, seria preso e mandado a “sepultar" na fortaleza
da Ilha de Ratones, em Santa Catarina. O ditador não dava margem
a equívocos e o brilhante desembargador cometera vários. Talvez o
maior seja o de oferecer uma reunião da Academia aos oficiais de
23
uma frota francesa que se abriga em Salvador. Isto, sob os olhos
atentos dos ingleses, ancorados no mesmo porto...
Para ser classificado de louco na correspondência pombalina, o erro seria de natureza internacional.
O Vice-Rei D. Antônio de Almeida Portugal já chegara de Angola gravemente enfermo. Entre a posse (0-01-1700) e a morte (407) nada pôde fazer. O chanceler da Relação, Dr. Tomás Rubi, exintendente dos diamantes no Tejuco (1754-1757), ao invés do clássico triunvirato interino, pura e simplesmente assumiu o poder.
Pombal nomeou nova junta e chamou Rubi de volta à Corte.
O Dr. João Bernardo estava com os filhos prontos para retomarem a Portugal: tempo de ingressarem na Universidade. Em 3107 requereu discretamente a licença real de casamento com D. Madalena Tomásia, sem intenção de receber resposta oportuna. José
Gomes e Tomás Antônio Gonzaga partiram para o sobrado dos Cobertos na frota saída em 4 de outubro de 1761. A mesma em que o
chanceler Rubi voltava a Lisboa.
Dois anos mais tarde, na frota de outubro, o des. João Bernardo regressava também, promovido para a Relação do Porto. Diz
Rodrigues Lapa, de notável idoneidade intelectual, que estagiaria
brevemente na Casa da Suplicação de Lisboa, antes de ir apertar os
estudos do número sete. José Gomes Gonzaga, certamente, teria
preferido o comércio com o tio e os irmãos mais velhos.
2.7- Os estudos de Dirceu.
Quem melhor os conta é Critilo, nas Cartas Chilenas. Os interesses são múltiplos:
"Não és tu, Doroteu, aquele mesmo
que pedes que te diga se é verdade
o que se conta dos barbados monos
24
que à mesa trazem os fumantes pratos?
Não desejas saber se há grandes peixes,
que abraçando os navios com as longas,
robustas barbatanas os suspendem,
inda que o vento, que d'alheta sopra,
lhes incha os soltos, desrinzados panos?
não queres que te informe dos costumes
dos incultos gentios? Não perguntas
se entre eles não há nações que o beiço furam
e outras que matam com piedade falsa
os pais que afrouxam ao poder dos anos?
Pois, se queres ouvir notícias velhas,
dispersas por imensos alfarrábios... “
(C.Ch. 1:35)
Vê-se que era apaixonado por etnologia, fundada com o
nome de "História dos Costumes" pelo proibido Voltaire. Dos bancos filosóficos e retóricos da Bahia, limita-se a duas pinturas:
"A mim nunca apanharam os capuchos,
quando no raso assento defendia
que a natureza não tolera o vácuo,
que os cheiros são ocultas entidades,
com outras mil questões da mesma classe.
(C.Ch. 7:123)
"Já foste, Doroteu, a um convento
de padres franciscanos, quando chegam
as horas de jantar? "
(C.Ch. 2:215)
25
Quanto à Universidade de Coimbra, em cuja Faculdade de
Leis matriculou-se em 1-10-1762, mas logo deu parte de doente e
atrasou de um ano o reingresso no 1º ano, as opiniões de Critilo são
curiosas:
"Eu mesmo, Doroteu, que fui dos santos
que em Salamanca andaram, umas vezes
doenças afetava, outras fingia
necessitar de livros, ou de traste
para mandar de mimo a certo Lente.
Maldita sejas tu, harpia Olaia,
que enquanto não abria a minha bolsa,
não mostravas também alegre os dentes!"
(C. Ch. 11:170)
E imagina que abismo não seria Fanfarrão:
"Se entrasse en Salamanca a ali ouvisse
explicar a questão daquela escrava
que foi admitida em testamento,
se três filhos parisse. E outras muitas
que os lentes nos ensinam desta casta! "
(C.Ch. 9:326)
"Carece, Doroteu, qualquer Ministro,
apertados estudos, mil exames..."
(C. C. 2:260)
De 1762 a 1760, o pai jarreta, que o obrigava a tantas pequenas manobras para a satisfação do sexo, fê-lo estudar com seriedade e bolsa curta. Formou-se a 7-02, com pouco mais de 23 anos.
Alvarenga Peixoto, o estroina rico, terminou um ano antes. Tomé
26
Joaquim Gonzaga, primo carioca com quem foi confundido o autor
de Marília de Dirceu, estava apenas passando para o 2º ano de Leis.
A excepcional cultura jurídica de Gonzaga se deve ter desenvolvido no decênio seguinte à formatura, provavelmente fazendo
advocacia à sombra do pai, Ministro da Relação do Porto, no comércio dos irmãos.
Ao analisar as contas de Marquésio, diverte-se com Doroteu
na intrincada matéria contábil-jurídica:
"E tu, meu doce Amigo, pretendias
convencer-me em matéria em que dar posso
a todos, de partido, a sota e o basto? "
(C. C. 7:127)
De fato, podia dar a todos a dama e o ás de paus nos vários
ramos do direito Privado e Público.
No interregno, aspirou a conquistar uma cátedra na Universidade de Coimbra. Crera nas intenções da reforma Pombalina de
1772. Matriculou-se no livro dos candidatos e se foi orientar com
um dos modernos, Pascoal José de Melo Freire, lente substituto de
Direito Pátrio. Para fazer pontos, recomendava-se ao candidato (o
termo equivalente da época era opositor) escrever trabalhos, ingenuidade cujos efeitos persecutórios Teófilo Braga (História da Universidade de Coimbra, 4 vls., Lisboa, 1992-1902) bem esclarece.
Terá levado mais de ano na elaboração do "Tratado de Direito Natural", com abundante estudo dos revolucionários confessáveis perante o sistema. O conformismo irônico tem iludido distinguidos críticos modernos, mas não iludiu o Marquês onipotente. O
manuscrito morreu nos arquivos da Universidade. Diz-se que o des.
João Bernardo ajudou o filho a copiá-lo. Ambos devem ter desagra-
27
dado o suspicaz Ministro. Tomás Antônio só pôde ingressar na carreira judiciária e João Bernardo só foi promovido à Casa da Suplicação de Lisboa após a queda do implacável.
O poema da Aclamação de D. Maria I, em tom didático e claríssimo, expõe a filosofia política do convertido ao iluminismo.
2.8- O abandono do sobrado.
Desde a morte do padre Raimundo (1771), quem passou a
pagar os foros da casa dos Cobertos foi o das. João Bernardo.
A habilitação ‘de genere’, perante o Desembargo do Paço,
foi excepcionalmente rápida em 1778. Dirceu não mente quando se
declara brasileiro na petição inicial. No mais estrito sentido jurídico
da época, era carioca, sendo o Rio de Janeiro berço do pai e do avô.
O Dr. João Bernardo veio morar aos Anjos, em Lisboa, e
trouxe consigo Marianinha. Já estaria casada e com filhos, beirando
os cinquenta anos. Tomás Antônio foi logo nomeado para o cargo
de juiz-de-fora em Beja (1779-91), primeiro emprego na magistratura. Suas provas no Desembargo do Paço foram consideradas excepcionais. Seria preciso investigar na universidade de Coimbra, o
título de doutor granjeado entre 1774 e 1777, talvez preparatório
para a frustrada carreira de Lente.
O segundo emprego, nomeado mal deixava Beja, foi a ouvidoria mais cobiçada de além mar: a de Vila Rica de Nossa Senhora
do Pilar do Ouro Preto, cuja comarca precedia as demais da Capitania.
Em malo (6), nesse 1703, tomou empréstimo de 1:540$ a
Custódio José Ferreira (Lisboa). Conta Rodrigues Lapa, embora o
não tenha publicado ainda, que deixara amor e filho em Beja. No
mês de setembro, partia para assumir o cargo no Brasil, enquanto
o jovem primo carioca, Joaquim Antônio Gonzaga, irmão do Tomé
Joaquim, se habilitava no Desembargo do Paço.
28
A 12 de dezembro se empossou em Vila Rica. De passagem,
no Rio, visitaria a tia Lourença Filipa e o filho desta, alferes Feliciano
José Neves Gonzaga.
Dirceu está com 34 anos e 4 meses no dia em que sucede o
ouvidor Manuel Joaquim Pedroso. Seu primeiro e grande amigo é o
intendente Francisco Gregório Pires Bandeira, a quem em 1783 escreveu as Cartas sobre a Usura.
O sobrado da rua dos Cobertos continuou deserto.
Em algum momento, o idoso ministro da Casa da Suplicação
se deu conta de profunda injustiça: Marianinha continuava como
filha de pais incógnitos no registro de batismo da freguesia de Vitória...Talvez fosse quando pretendeu escrever seu testamento.
João Bernardo voltou ao Porto (1783) e fez corrigir os assentos de 1728: Tomásia Isabel e ele haviam começado tudo quase
quatro anos antes do casamento. Quando a juventude é mais imperativa que os preconceitos...
O tempo continuou a correr lento na cidade de Lisboa. Esparsas notícias do Brasil.
Decreto real de 1-09-1786, divulgado pela A Gazeta de Lisboa, entre outras promoções no judiciário, incluía a dos ouvidores
de Vila Rica e do Rio das Mortes, respectivamente Tomás Antônio
Gonzaga e Luís Ferreira de Araújo e Azevedo. Promovidos à Relação
da Bahia com porta aberta para a Relação do Porto, na Corte.
El-Rei concederia ao primeiro (22-02-1787) a vantagem de
receber os vencimentos de ministro da Relação antecipadamente.
O Dr. João Bernardo não descurava da carreira filial.
Receberia duas gratas notícias em fins de 1788: Tomás ia afinal casar-se. O pedido de licença real foi logo encaminhado ao Paço.
A segunda constava de um grosso manuscrito. O portador fora o
comerciante Francisco de Araújo Pereira (ADIM 4:247).
29
A justificação matrimonial recebeu o primeiro despacho a 7
de setembro. Neste mesmo dia, em Vila Rica, Tomás transferia a
ouvidoria ao Des. Pedro José Araújo de Saldanha.
O velho pai folhearia o manuscrito carinhosamente, de lágrimas nos olhos. Eram trinta e três liras contando os amores de
Dirceu e o retrato indefinido de Marília. Marília de Dirceu. Presente
régio de casamento à jovem morena Maria Dorotéia Joaquina de
Seixas. Dirceu não era rico, mas podia dar-lhe os tesouros da imortalidade. E dava-o. Indicou ser apenas a Primeira Parte.
Depois a sucessão de notícias graves: o filho preso como réu
de crime de lesa-majestade! Esperanças e desesperos. E também
empenhos.
A 30 de outubro de 1790, deixava o Tejo uma nau portadora
de alento: o chanceler da Alçada Vasconcelos Coutinho e os juízes
Antônio Diniz e Gomes Ribeiro. Era estranho que também fosse
também o Regimento de Extremoz, destinado a reforçar a guarnição do Rio de Janeiro... Entraria na Guanabara a 24 de dezembro,
véspera do Natal.
Tomás, no início de 1792, parecia convencido de vencer a
luta das evidências... Em Lisboa, o liberal ministro D. Rodrigo de
Sousa Coutinho oficiará ao General das Minas, Visconde de Barbacena, autorizando D. Maria Dorotéia Joaquina de Seixas a embarcar
para o Reino na companhia de D. Clara Gertrudes de Seixas Fonseca
Borges.
Tudo se esboroa com a sentença da Alçada (18-04), o exouvidor era condenado a degredo perpétuo em Pedras do Ancoche,
Angola, e o confisco de metade dos bens.
Sem considerar embargos, o acórdão é reformado em 2 de
maio por mercê da Soberana: pena de dez anos em Moçambique,
mantido o meio-confisco.
Gonzaga ainda tenta, com novos embargos de próprio punho que o advogado José de Oliveira Fagundes subscreveria em 630
05, obter menor prazo de degredo. Que, ao menos, lhe dessem Angola, mais próxima do Brasil e de Portugal.
Três dias após, a Alçada considerou definitiva a sentença.
O noivado com Marília foi desfeito.
A 25 de maio, a nau Princesa do Brasil levantou ferros com
destino à distante colônia africana. Levava sete degredados.
Chegaria a Moçambique com uma boa viagem no último dia
de julho. O ouvidor Dias Barros, de braços abertos, deu calor à acolhida. Queria Gonzaga por seu hóspede na própria casa. Os demais
foram conduzidos à Cadeia por falta de melhor lugar. Em agosto gozavam de plena liberdade nas ruas de Moçambique, pequena ilha
paradisíaca de palmeirais ao vento. Infelizmente no ano seguinte
assumiria o governo D. Diogo de Sousa. Exigiu a dispersão dos condenados por localidades diversas e tomou ares antipáticos com Tomás Antônio Gonzaga.
Para que a felicidade parecesse impossível, uma velha Gazeta de Lisboa, datada de 10-11-1792, noticiaria a Gonzaga:
“Sahio à luz: MARILIA DE DIRCEO, primeira parte das Poesias
lyricas de T. A. G. Vende-se por 240 rs. na loja da Gazeta, e na do
livreiro da Academia.”
Presente do casamento que não aconteceu. O êxito literário
só cederia lugar aos Lusíadas, despertando conjecturas as mais variadas. Pensou-se até que o autor fosse Tomé Joaquim Gonzaga das
Neves, o primo-irmão teatrólogo que desempenhava as funções de
auditor do Regimento do Cais em Lisboa.
O volume pequenino chegaria a Vila Rica no primeiro trimestre de 1793. Manuel Teixeira de Queiroga, o Roquério das Cartas Chilenas, amante de bons livros, deve tê-lo recebido...
Seria por curiosidade poética o assédio à noiva inconformada? Ou efeito da primavera nos jardins de Antônio Dias? Ou
31
ainda a notícia de que Dirceu se unia a D. Juliana de Sousa Mascarenhas (9-05-1793) na África que lhe parecera tão inóspita?
La Fontaine fabularia que os frutos inalcançáveis deixam de
apetecer... por verdes.
O Dr. João Bernardo Gonzaga findou em 1797 na cidade de
Lisboa.
"Eu vejo ao velho Pai que lentamente
arrasta a mim os passos.
Ah! como vem contente!
De longe, mal me avista,
já vem abrindo os braços. “
(L. 56:73)
Mariana não regressará mais ao sobrado de Miragaia.
2.9- A roda da Fortuna.
Lavrou-se a escritura em Miragaia mesmo. O cônego dr. José
de Barros, da Sé Catedral do Porto, foi procurador da vendedora.
Ano de 1804.
“Dona Maria Ana Ifigênia Gonzaga Jason, moradora em Miragaia e de presente nesta cidade de Lisboa …”
Assim começa o mandato. Seiscentos mil réis livres e forros.
Cento e um anos se transcorriam desde que João Clarque, capitão
de navios, inglês de nação, nascido na ilha de Tenerife, o comprara.
Mariana tem 76 anos. Tomás Antônio, ali nascido em 11 de
agosto de 1744, nunca mais voltaria das plagas longínquas.
Moçambique, 16 de fevereiro de 1810, sexta-feira.
32
À cabeceira de Dirceu, assiste-lhe os últimos momentos
uma sombra do passado: Salvador de Carvalho do Amaral Gurgel,
cirurgião-mor do Regimento da capital moçambicana. Senhor de
grande família, ilustre e considerada em toda a Capitania. Requerera licença para voltar ao Brasil que a Corte do Rio de Janeiro considerara não dever atender para não desfalcar de cidadão tão prestante a pobre colônia.
O corpo do Procurador da Coroa e Juiz da Alfândega foi solenemente acompanhado até a Matriz, aonde com pesar geral seria
inumado. Dia de sábado.
Na segunda-feira, dia 19, foi indispensável ao Governador e
Capitão-General prover interinamente o cargo de Juiz da Alfândega.
Esperaria até 2 de março para nomear o mesmo substituto ao cargo
de Procurador da Coroa.
***
Rua dos Cobertos, no bairro de Miragaia, cidade do Porto.
No alto do estreito sobrado, modesta placa assinala o berço de Dirceu. Não menciona que fora inconfidente o amante de Marília. Para
Portugal, Critilo será sempre Dirceu.
E Dirceu, na alma do povo, o eterno Critilo.
Marília sentiria, naquele setembro de 1793, que os frutos
sazonados se renovam a cada novo outono. Estaria triste e só. Imortal embora, desejou que revivesse a vida. Um momento que fosse
e que nunca mais se repetisse.
Fechou os olhos em Antônio Dias, na mesma casa que pertencera ao tenente-general de Mestre de Campo Bernardo da Silva
Ferrão, seu nem lembrado avô. À companheira fiel, deixaria com
que vivesse até a morte. Todos os mais bens seriam do dr. Anacleto
33
Teixeira de Queiroga, cujo registo de batismo declarava não ter
mãe...
"Como me queixo da Fortuna tanto,
se sei não há Fortuna?
Os fados, os destinos, essa deusa
que os sábios fingem que uma roda move,
é só a oculta mão da Providência,
a sábia mão de Jove.“
(L. 88:23)
O termo Glauceste (quando teria sido? em qual dos três
anos que Dirceu passara no cárcere do Rio de Janeiro?) já não estava entre os viventes, quando recebera aquela evocação sofrida:
"Quando passar pela rua
o meu companheiro honrado,
sem que me vejas com ele caminhar emparelhado,
tu dirás: Não foi tirana
somente comigo a sorte.
Também cortou desumana
a mais fiel união.
Mandarás aos surdos deuses
novos suspiros em vão. "
(L. 74: 41)
Marilia ouviria finalmente a voz cansada de Doroteu alçarse na imprecação desesperada:
Ó, senhores! Ó, reis! Ó, grandes! quanto
são para nós as vossas leis inúteis!
34
Ancestrais de Tomaz Antonio Gonzaga
35
Família Materna de Tomaz Antonio Gonzaga
1-Capitão John Clark (-)
+Mary Sirach (-)
2-Capitão João Clark (1676-maybe 1721)
+Mariana Jason (maybe 1676-1753)
3-Ana Maria Jason Clark (26 Jul 1693-)
+José Lobo (-)
4-José Clark Lobo (maybe 1730-)
+Mariana Jason Gonzaga (7 Dec 1728-)
5-Ana Tomásia Gonzaga Jason (-)
3-Tomásia Isabel Jason Clark (1707-2 May 1745)
+Des. João Bernardo Gonzaga (1707-1798)
4-Mariana Jason Gonzaga (7 Dec 1728-)
+José Clark Lobo (maybe 1730-)
5-Ana Tomásia Gonzaga Jason (-)
4-Francisca Jason Gonzaga (29 Jan 1733-22 Dec 1761)
4-Antonio Gonzaga (12 Oct 1738-)
4-José Gomes Gonzaga (25 Sep 1739-)
4-João Gonzaga (22 Sep 1740-)
4-Efigênia Gonzaga (17 Dec 1741-)
4-Tomaz Antonio Gonzaga (8 Nov 1744-maybe 1809)
+Juliana de Souza Mascarenhas (-)
5-Ana Mascarenhas Gonzaga (-)
5-Alexandre Mascarenhas Gonzaga (-)
+Madalena Tomásia de Jesus (-)
3-Freira Isabel Tomásia Jason Clark (-)
3-Freira Tereza Raimunda Jason Clark (-)
3-Pe. Tomaz Clark (-)
3-Pe. Raimundo Clark (maybe 1715-24 Mar 1771)
2-George Clark (-)
36
Família Paterna de Tomaz Antonio Gonzaga
1-Pe. João Antonio "Frei João do Rosário" Maciel (-)
+Maria do Souto (-)
2-Joaquim Antonio Gonzaga (-)
2-Tomé do Souto Gonzaga (maybe 1678-1738)
+Teresa Jason (maybe 1678-)
3-Des. João Bernardo Gonzaga (1707-1798)
+Tomásia Isabel Jason Clark (1707-2 May 1745)
4-Mariana Jason Gonzaga (7 Dec 1728-)
+José Clark Lobo (maybe 1730-)
5-Ana Tomásia Gonzaga Jason (-)
4-Francisca Jason Gonzaga (29 Jan 1733-22 Dec 1761)
4-Antonio Gonzaga (12 Oct 1738-)
4-José Gomes Gonzaga (25 Sep 1739-)
4-João Gonzaga (22 Sep 1740-)
4-Efigênia Gonzaga (17 Dec 1741-)
4-Tomaz Antonio Gonzaga (8 Nov 1744-maybe 1809)
+Juliana de Souza Mascarenhas (-)
5-Ana Mascarenhas Gonzaga (-)
5-Alexandre Mascarenhas Gonzaga (-)
4-Tomásia de Jesus Maria Gonzaga (-)
3-Lourença Felipa Gonzaga (5 Sep 1719-)
+Feliciano Gomes Neves (1708-)
4-Bel. Tomé Joaquim Gonzaga Neves (1750-)
4-Bel. Joaquim Antonio Gonzaga (1756-)
4-Freira 1 Neves (-)
4-Freira 2 Neves (-)
2-Domingos Maciel (-)
2-Frei Manuel da Madres de Deus Gonzaga (-)
37
Ressurreição de Eulina
À Antonio Joaquim Machado (1907-1996) e
Lúcia Machado de Almeida (1910-2005)
38
III. RESSURREIÇÃO DE EULINA
3.1- O Lado Oculto.
Mestre Cláudio Manuel da Costa teve grande poder sobre a
cultura de sua geração. Pena que tenha sido premiado com o infeliz
estado de herói intocável.
No estribilho dos louvores ao talento e das lástimas à tragédia dos últimos dias, vibra monotonamente o ciúme intelectual de
notáveis admiradores. Ciúme que esconde a ferida personalidade,
inseparável dos gestos simples e humanos que geralmente se chamam fraquezas na vida morta dos grandes.
Camões o dirá melhor:
"No mar tanta tormenta e tanto dano,
tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
onde terá segura a curta vida,
que não se ame o se indigne o Céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?"
(Lus. 1: est. 100)
Não é preciso gênio para compreendê-lo. Mas é preciso que
a taxidermia literária não o empalhe no culto, nem o empulhe no
mito. Condição essencial para restituí-lo ao amor de todos.
Os florilégios insistem nos mesmos sonetos. E os elogios
apenas cansam; não esclarecem. As poucas edições desprezam-lhe
os textos, eivando-os de erros incompatíveis.
39
Conhecedor da língua e da poética, Cláudio experimentou o
quadro completo dos chavões em que se debateu a Coimbra de seu
tempo: labirintos, músculos métricos, números harmônicos, e outros jogos charadistas, brincos do tempo perdido.
Éclogas, epitalâmicos, romances e cantatas, usando modelos dos divinos Teócrito e Virgílio, mostram só uma verdade: a intransferência dos símbolos.
Restou o sonetista exímio. Aqui, o colete de aço dos catorze
versos não permitia verbalismo pirotécnico.
O contínuo apetite do novo, na frágil paciência literária,
cansa à toa das formas que não são autênticas. Miguel Couto diria
dos remédios: é preciso tomá-los enquanto fazem efeito...
Cláudio alçou voo tentando alcançar a épica camoniana.
Voo de nambu em céus de águias raras. A mediocridade dos arroubos mergulhou no esquecimento o historiador significativo. Glauceste17 fora o primeiro pesquisador legítimo das origens. Historiografia genuína e nobre. Assunto esplêndido. O voo curto de sua imaginação épica teria vantagem indiscutível para a boa e clara prosa.
Usou as funções públicas e o complexo de ser paulista para
a cata paciente de documentos preciosos. E testemunhos dos que
assistiram os fatos, ou viveram próximos aos grandes personagens
do bandeirismo.
Foi-lhe destinado oferecer a lição e o tema. Outros os converteriam em proveito imediato ou obra imperecível.
Na poética, Dirceu merece lugar de honra. Não sofreria nenhum vexame em tomar de Cláudio ideias completas e vesti-las
com a música insuperável de suas liras.
17
Apelido com que Tomás Antonio Gonzaga (Dirceu) o batizou.
40
Na história, o dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos18 ganha a todos. Amava tanto a Cláudio que o despojou sem piedade.
Glauceste ampliou o Fundamento Histórico do poema Vila Rica num
substancioso manuscrito: Notícia da Capitania de Minas Gerais. O
documentário reunido seria imenso. Diogo toma-lhe capítulos inteiros e, com eles, acrescenta-se de encômios recebidos do oficialismo colonial. Porém, silencia a fonte...
Um dia, ao relacionar os homens notáveis da Capitania,
deve ter padecido o dilema: incluir Cláudio e denunciar-se, ou persistir na omissão. Houve quem o justificasse atribuindo-lhe respeito
à sentença de infâmia com que a Alçada brindou o Inconfidente.
Infâmia que não afetará praticamente a nenhum dos condenados:
justiça jeitosa do temperamento brasileiro.
Se lembrasse a fonte, Diogo receava que lhe descobrissem
a melhor parte de suas monografias... A atitude exibe apenas o subalterno legítimo, bem compreensível num sistema em que os cargos eram benesses prodigalizadas aos lisonjeiros. Era indiferente
que fossem competentes. Porém, amava a Cláudio. Guardou-lhe o
documentário e atentamente o leu. E fez mais: comprou à real Fazenda a casa da Rua Direita de Antônio Dias, esquina da Rua de São
Francisco. A casa do poeta. Talvez seja o único caso de ser conservada até hoje, em Vila Fica, uma propriedade em contínua sucessão
hereditária. Mérito indiscutível. Bem maior que o culto vazio, sem
interesse profundo pelo homem e pela integridade da obra.
Por incrível que pareça, o lado oculto do poeta vazou-se liricamente nas frestas da épica do poema Vila Rica. Exatamente onde
se frustra o elã da libido que a aguda sensação de pecado reprimia
defeituosamente.
18
Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos (1758-1815) foi um historiador autor, entre outras, de Breve Descrição Física, Política e Geográfica da
Capitania de Minas Gerais.
41
O bom lirismo é desenfreado, expressão livre e profunda da
natureza íntima. Revelações subjetivas que se universalizam, porque a verdade emocional de cada um é a verdade emocional de todos. São sínteses expressionais que acalmam, porque dão liberdade
à vivência reprimida pela mudez de mente na maioria, pela censura
em muitos, e pelos medos racionais interiores em alguns.
A forma mais bruta e elementar do mundo mental é o palavrão. A mais sublime é o verso, síntese com que o poeta serve à
humanidade para definição de ansiedades geralmente inexprimíveis.
Os medos racionais e irracionais de Cláudio, o lírico, exigem
o exame de sua formação.
3.2- Pintura de Poeta.
A expressão pintura é de Critilo. Expressão certa, porque
emprega as palavras como pinceladas de fins objetivos:
"Não repares, Amigo, que te conte
este sucesso que parece estranho.
Este grande Roquério é um daqueles
que assenta à sua mesa o nosso Chefe.
Agora, Amigo, vê se esta pintura
não pode muito bem à nossa história
sem violência servir também de enfeite.
(C.Ch. 5:320)
O fato fundamental na formação de Cláudio é que se destinava à carreira eclesiástica. Auriu, no Colégio Jesuíta do Rio de Janeiro, as limitações individuais que fazem a grandeza das coletividades disciplinadas. Frugalidade mística no trato do corpo; da
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carne, como preferia. dizer. · Ascetismo férreo no uso da mente.
Mudez quase completa no que diz respeito à intimidade emocional.
Ainda em vida do pai, foram três irmãos para Coimbra. Dois,
ambos trinitários19, morreram no decênio vital dos vinte. Como
Cláudio nos informa de sua pálida doença (VR 9:9), ou seja, da tuberculose crônica, é bem provável que o contágio familiar os dizimasse. Em Glauceste, a infecção tardia deve ter assumido a forma
fibrosa que remite longa sobrevida. O quarto irmão, João Antônio
da Costa, apesar dos biógrafos de Cláudio sepultarem-no em várias
datas sucessivas, parece ter vivido bastante. Um sobrinho (ABN
65:202) permite situá-la nas proximidades de 1787. Morte discreta
em Vila Rica, porque os móveis do de cujus foram recolhidos aos
porões da casa de Glauceste e, depois, foram liberados do sequestro.
O pai português também desencarnou cedo. Tinha o sangue
modesto dos mercadores de azeite no Vizeu. A família havia de concentrar-se só nas origens paulistas da linha materna. D. Teresa Ribeiro de Alvarenga e cepa ligada direta e indiretamente ao grande
Fernão Dias Pais e a todo o bandeirismo conquistador dos sertões
de Minas. E é-lhe o irmão, Frei Francisco Vieira, procurador geral
dos trinitários no Brasil, quem orienta a vocação religiosa dos sobrinhos.
O ter um obscuro emboaba por pai, ligado ao brilho mameluco maternal, havia de conduzir ao apaulistamento progressivo do
orgulho e da autoestima.
Mas a vocação de Cláudio era religiosa sem sombra de dúvida. Na Universidade de Coimbra, o convívio é eclesiástico. Entrara
para a Faculdade de Cânones, instrumento formador da hierarquia
religiosa do sistema, como a Faculdade de Leis era-o da formação
das elites administrativas e civis do imenso império. Os frustrados
19
Pertencente à Ordem da Trindade
43
nas intenções vocacionais vinham enriquecer a messe de solicitadores e advogados nos auditórios ultramarinos. É preciso não esquecer que os direitos da família e das sucessões eram canônicos.
O falecimento do pai impôs a Cláudio a responsabilidade
pela mãe viúva e pelas duas irmãs. Por isso desviou-se da orientação trinitária dos irmãos mais velhos e tentou a habilitação ‘de gênere’ para o hábito secular de São Pedro. As obrigações domésticas
que alega na petição eram impeditivas da vida monástica, mas não
o eram da vala comum dos párocos e vigários. Abdicação de pretensões e não surgimento tardio de uma vocação interesseira,
como parece ter sido a interpretação mais corrente emprestada ao
processo ‘de gênere’...
Os negócios familiares tinham de ser dirigidos pessoalmente
e eram significativos: sem trabalho não rendiam. Tendo recebido
em Coimbra (05-1750) a infausta notícia, Cláudio pode aguentar-se
por lá até a formatura (10-04-1753). Em julho de 1754 estava em
Mariana chefiando o clã familiar. provável que o irmão João Antônio da Costa, menos capaz, tivesse vindo assumir os encargos transitoriamente, pois o primeiro "falecimento" que se lhe atribui remonta a 1749...
Assim, Cláudio foi atrasando a alternativa do hábito secular
até que já nada mais significava para o advogado próspero e mineiro hábil. Três anos depois de chegar a Mariana, começa a frequentar Vila Rica por interesses profissionais. No início de 1750,
quando o processo eclesiástico era informado pelo Bispo de São
Paulo, o poeta contrata fazer a "Carta Topográfica do Termo de Vila
Rica" e passa a residir na Casa da Câmara da capital, segundo nos
informa Ivo Porto de Meneses.
No convívio dos frades em Portugal, aprendera a amar as
artes plásticas. Seus desenhos são ricos de iluminuras e sabe caligrafar quando julga necessário. No fim de 1759, além de receber
boa soma pela Carta Topográfica, já descobrira os prazeres do sexo.
44
Com amor e dinheiro e sucesso público, não há virtude que mantenha as aspirações sacerdotais...
É curioso observar que, em Cláudio, os impulsos épicos estão condicionados por ondas de revivescência amorosa. No momento em que Francisca Cardoso lhe concebe uma filha xará, o poeta se atira febrilmente à composição da Fábula do Ribeirão do
Carmo. Vê-se que o eterno feminino tem importância bem cabida
na assunção de atitudes heroicas, executivas ou imaginativas, na
descendência macha de Adão.
A musa é fruto da terra, o que o sublima em ardores patrióticos (no sentido restrito da época, isto é, de vinculação ao local de
nascimento). O nascimento da filha Francisca coincide com o convite para participar da Academia Brasílica dos Renascidos, floração
baiana do mais autêntico nativismo e, talvez, a primeira loja maçônica a plantar iluminismo francês em terras do Pindorama.
O vírus político deve ter-se insinuado na alma do poeta, pois
no ano seguinte (1760) Cláudio anda metido a redator anônimo de
representações da Câmara de Pitangui contra o capitão-mor e o vigário da vara daquela turbulenta vila anti-emboaba. José Antônio
Freire de Andrada, governador interino das Minas na ausência de
Gomes Freire, abre devassa e só depois de ter nomeado a Cláudio
para procurador interino da Coroa é que veio a descobrir lhe os dotes de redator no momentoso caso. Parece ter poupado o nosso
jovem, pois a gratidão deste jamais esmoreceu.
As limitações de Cláudio na política são evidentes. É tímido.
O entusiasmo pelo marinismo, durante a formação coimbrã, caracteriza lhe a alma terna e temerosa. As escolas herméticas, na literatura, são sempre as preferidas pelos recalcados e reprimidos. O vício marinista das mensagens camufladas em metáforas e metonímias, inversões constantes de frase, verbalismo que esconde os
pensamentos mais preciosos e cheios de risco, deve um dia ser estudado em correlação com as pressões sociais do poder exagerado,
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inclusive metafísico, a que os hipersensíveis se submetem disfarçando o medo de reagir abertamente. A coragem intelectual, em
regra, prefere a lucidez da frase clara e contundente: disfarça a autoria, mas não disfarça o pensamento.
Possuidor de inteligência especulativa e prática, Glauceste
percebia os hábitos mal adquiridos e tinha a insatisfação dos próprios limites. Por isso foi sobretudo mestre. Mestre de bom gosto.
É preciso anotar o defeito de ser paulista de sangue no conceito luso-colonial.
A cultura bandeirante é de compromisso entre o branco utilitário e a hedonística natural do índio. O mameluco refere inclusive
a língua tupi, riquíssima no vocabulário descritivo da natureza física,
dos acidentes da terra, da fauna e da flora.
A cultura europeia abundante nos instrumentos do poder,
tanto econômico como religioso, obedece a interesses de previsão
e poupança, de acumulação de bens. Até a religião é utilitária: transação contínua para se assegurar um lugar estável na hierarquia celeste. Paga-se em abstenção de pecado e em atos propiciatórios litúrgicos a boa vontade divina, na organização colonial do céu.
O nomadismo indígena, o seu espírito heroico da guerra lúdica com os vizinhos (hoje convertida em esporte), apenas adquiriu
no bandeirante uma feição utilitária: a preia dos capangas, mais do
que de escravos. Os que não serviam para capangas, estes sim eram
vendidos como escravos a áreas distantes. Mas a importância de
um paulista era determinada pelo valor e número de arcos e flechas
a seu serviço. Anchieta tinha bem razão, quando velho provincial da
Companhia, em escrever palavras saudosas do Piratininga. O bandeirante vive e convive com seus índios. É cacique de metas determinadas, mas adora igualmente a natureza, a paisagem nova, a caça
e a pesca, o nomadismo invencível, a liberdade dos horizontes.
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Tudo isto é incompatível com o espírito emboaba, isto é, do
forasteiro branco que chega para enriquecer, ganhar status, praticar uma exploração racional e espoliativa do meio. Estável, em consequência.
Monteiro Lobato, ao pintar o caboclo no Jeca Tatuzinho indolente por força da verminose e da subnutrição, engana-se substancialmente. O Jeca, culturalmente, é índio mestiçado de branco.
Prefere a vara de pescar, a espingarda, o mato e o rio. Não compreende a utilidade da submissão disciplinada, o suor intensivo e paciente, a segurança urbana ou semiurbana, que serve à riqueza e ao
poder.
Os povos subjugados e espoliados se tornam suspeitos à
casta dominante. Ao se defrontarem duas culturas diversas, a utilitária vence pela massa. Ao vencer, ou reduz a cultura dominada aos
serviços elementares, liquidando-a, ou, se ainda resta força aos espoliados, estes tomam o caminho de novas plagas bem distantes.
O paulista foi vencido pelo emboaba. O colonialismo já de
muito antes tinha a independência do bandeirante, aliás garantida
pelo sertão. Procura conquistá-lo com títulos militares não profissionais, sem remuneração pecuniária, mas só em casos extremos lhe
confia função pública na hierarquia do sistema.
Os dominados que ficam e procuram adaptar-se às circunstâncias, situam-se no limbo das incompreensões e suspeitas. Adotam e exageram os hábitos e atitudes da casta dominante, pretendendo compensar-se procedendo como esponjas. Com isto perdem
a beleza e o vigor da própria cultura anterior.
Cláudio adquiriu tardiamente a coragem das origens. Conseguiu equiparar-se aos melhores portugueses, para sentir mais vivamente as frustrações do sangue materno. A instrumentação adquirida tornou-o prisioneiro da forma e do estilo. No momento da
coragem de ser, não possuía mais a liberdade criativa, não ade-
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quava a mensagem paulista às roupas literárias. Basílio da Gama seria bem melhor sucedido, talvez porque vivesse em Portugal, cujo
contraste com as plagas natais tornava a estas mais nítidas na lembrança, além de sentir-se mais seguro sob a sombra do trono.
Critilo descreve a relevância deste fator:
"Infeliz, Doroteu, de quem habita
conquistas de seu dono tão remotas!
Aqui o povo gene, e os seus gemidos
não podem, Doroteu, chegar ao Trono.
E, se chegam, sucede quase sempre
o mesmo que sucede nas tormentas,
aonde o leve barco se soçobra,
aonde a grande nau resiste ao vento. "
(C.Ch. 5:114)
Mestre Cláudio, na Epístola (v. 155 e seguintes), glosa a crítica ao mesmo tempo que lisonjeia o ministro amigo:
" co'os ministros de menor esfera
que falam vossas leis. Nos Chefes vossos
somente o despotismo impera e reina.
Gozar da sombra do copado tronco
é só livre ao que perto tem o abrigo
dos seus ramos frondosos. Se se aparta
da clara fonte o passageiro, prova
turbadas águas e maior distância. “
Por múltiplas razões, Cláudio se considera ‘frágil e leve
barco’. Evita as tormentas por precaução. Daí a superabundância
do encomiástico na sua produção poética. Sublimação do modo,
48
mais do que efeito de interesses vulgares. Era homem rico, a despeito de Critilo o achar um pouquinho somítico.
Basílio da Gama, que assimilou mal o jesuitismo, era na
Corte apenas pitoresco e diferente. Aqui, seria francamente subversivo. O mal dos sistemas absolutos não é a autoridade dos generais
supremos, mas a truculência dos cabos de esquadra em que se sustentam.
Em suma, Cláudio é um frade sem burel. Fidelíssimo. Pôde
viver no altar de Eulina, despido das chochas ninfas coimbrãs, por
vinte e nove anos com crises de libido épica entre 1759-60 e 177273, mas sempre com a mesma mulher.
3.3- Os Personagens do Vila Rica.
Glauceste, no camoniano Vila Rica (que Camões o perdoe!),
usa um boneco e dois personagens. O boneco é o herói Albuquerque que jamais chega a adquirir consistência corpórea. Os dois personagens centrais são Garcia Rodrigues Pais, o herdeiro e continuador do grande Fernão Dias, e Bulinda - Eulina.
Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho veio do Maranhão a governar a Repartição Sul, compreensiva das Capitanias do
Rio de Janeiro e São Paulo (vinculando-se a esta o sertão das Minas
recém-descobertas).
Tomou posse no Rio em 11-05-1709, data em que o antecessor, D. Fernando de Lencastre, chegava ao distrito das Minas
com a humilhação imposta no passo do Ititiaia pelos emboabas de
Manuel Nunes Viana. Estes barraram-lhe o caminho em março do
mesmo ano. Lembremo-nos que a insurreição principiara no rio das
Velhas (Sabará-Caeté) no dia 29-10-1700, quando Viana obrigou o
Superintendente Borba Gato e os paulistas em geral a se refugiarem
em Pitangui, baluarte bandeirante tão facinoroso que, ainda em
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1720 sob o Conde de Assumar, não admitia entrada da emboaba na
vila.
Em 21-12-1703, ergue-se o distrito das Minas Gerais (Ouro
Preto e Carmo, atual Mariana). Manuel Nunes Viana, tendo por secretário de governo a Frei Francisco de Meneses, é proclamado General de todos os distritos mineiros, com missa e Te-Deum, no dia
de Natal. O Serro, domínio de paulistas, manteve-se alheio ao conflito. O Rio das Mortes, embora de maioria emboaba, evitou agressões enquanto pôde. O fracasso de D. Fernando de Lencastre no
passo de Ititiaia, proximidades de Ouro Preto, talvez se deva a
Bento do Amaral Coutinho, proclamado sargento-mor de batalha
dos insurretos, sob a direção geral de Viana. D. Fernando entrara
em Minas com o apoio integral dos paulistas e passara o Rio das
Mortes sem encontrar resistência. Sua derrota incruenta no distrito
das Minas Gerais e consequente retirada, também devida à próxima chegada do sucessor, deve ter determinado o êxodo para São
Paulo dos remanescentes bandeirantes. É bem provável que a chacina dos retirantes, no Capão da Traição, as mãos da tropa emboaba
de Bento do Amaral Coutinho, ocorresse em abril ou maio de 1709.
Albuquerque, ao passar por Pernambuco, designado para a
espinhosa missão no Sul, determinara o deslocamento do Terço
Pago, comandado pelo Mestre de Campo Manuel Alves de Morais
Navarro para região do Serro, sabidamente anti-emboaba. O deslocamento se fez pelo Rio São Francisco com o nítido objetivo de apanhar pela retaguarda os rebeldes, no momento em que Albuquerque avançava pelo sul.
O aparato militar se mostraria desnecessário pois Albuquerque evitaria e distrito das Gerais dirigindo-se diretamente para Caeté em ação quase certamente concertada com Sebastião Pereira
de Aguilar e o próprio Manuel Nunes Viana, pois este lhe entregaria
o governo das Minas na mesma Caeté em 30-10-1709.
50
Cláudio, francamente pró-paulista, reserva o Canto V para
sua versão histórica dos acontecimentos, Por licença poética, ou insuficiência informática, omite o regresso de Antônio de Albuquerque ao Rio em abril de 1710, ocasião do encontro em Taubaté com
a comando vingador de Amador Bueno, a quem tentaria dissuadir
inutilmente dos ímpetos guerreiros. Mal chegado ao Rio, enviaria
pelo Caminho de Garcia Rodrigues Pais (só praticável na estação
seca, de abril a setembro) reforços à Ponta do Morro sob o comando do capitão Leonel da Gama. Foi a aproximação desta tropa
que determinou a interrupção do cerco paulista ao Rio das Mortes
e consequente retirada de Amador Bueno para Piratininga.
A 18-06-1710, Antônio de Albuquerque cumpria as instruções de separar as Capitanias do Rio de Janeiro e de São Paulo-Minas, transferindo o governo da primeira a Francisco de Castro Morais (23-04-1710) e partindo a empossar-se em São Paulo da segunda, o que ocorreu em 18-06-1710.
Só então, e na qualidade de General e Governador de São
Paulo-Minas, retorna às Alterosas para dividi-las em três comarcas
e fundar as vilas de Ribeirão do Carmo (8-04-1711), Vila Rica (8-071711) o Sabará (17-07-1711). Recebeu a notícia da invasão do Rio
por Dugay-Trouin em 21-09, levantando enorme tropa mineira com
que marchou em auxilio da cidade. A rendição e covardia de Francisco de Castro de Morais o obrigaria a reassumir a direção da Capitania do Rio (28-11), voltando a exercer o governo da Repartição
Sul por mais 18 meses, quando foi sucedido no Rio por D. Francisco
Xavier de Távora (7-06-1713) e em São Paulo por D. Brás Baltasar
da Silveira (31-03-1713).
Eis, em breves e sumários traços, a atuação do herói do poema Vila Rica. Pequenas infidelidades historiográficas pontilham o
enorme labor de Glauceste. O lado delicado da épica é que o herói
não ganha estatura proporcional ao excelente assunto.
51
Restam os dois personagens que respondem pela intimidade do poeta...
Garcia Rodrigues Pais é que realmente impressiona e fala à
alma de Glauceste. É seu parente por laços do sangue materno. Entra no poema pela imaginação do Autor, pois parece certo que não
acompanhou a Albuquerque em nenhuma das duas estadias em Minas. Na lenda (em verdade um fato histórico) das índias Aurora e
Célia, que introduz no Canto II, confunde-o com Manoel Garcia Velho. No Canto III e IV cria um incidente inautêntico e sobretudo inverossímil, em que o parente Garcia abre mão de sua amante Aurora em favor do índio Argaço.
O Canto VI introduz Eulinda que, por ciúme de Argaço, leva
Teriféia a matar Aurora e põe em fuga, numa intriga que enfurece
a tribo, a Garcia e ao padre Faria Fialho. No Canto VII, Eulinda se
converte em Bulina e se apaixona por Garcia, a quem desvenda os
segredos auríferos do Itacolomy, dando-lhe um gênio por pai. Garcia e Bulina somem em sonhos de pura volúpia que se apudoram
em tesouros e profecias nos Cantos VIII e IX, sendo que neste Garcia
e o herói se reencontram e os emboabas se rendem após discurso
acomodatício de Albuquerque. E afinal, no Canto X, funda-se Vila
Rica com descrições da mineração do ouro e das lavouras da terra...
Ocorre que Bulina é a amada do poeta que ele empresta a
Garcia porque, no fundo, Garcia é o poeta.
Observação inoportuna: os índios do poema têm nomes
horríveis. Não condizem em nada com o nheengatu20 próprio do
grupo puri, raro da nação tupi: Argaço, Blazimo, Argante, Elpinira...
Diga-se que as figuras indígenas de Antônio Diniz da Cruz e Silva, na
fase brasileira do ministro da Relação do Rio de Janeiro, têm melhores apelidos, apesar de igualmente falsos.
20
Língua indígena falada pelos Puris, indígenas coroados do Espírito
Santo e Minas Gerais
52
3.4- A Eulina de Glauceste.
Sendo Cláudio, em seu pudor jesuítico, escasso de pormenores biofísicos, é preciso recorrer a Dirceu, moldado à mesa farta
franciscana.
Eu, Glauceste, não duvido
ser a tua Eulina amada
pastora formosa,
pastora engraçada.
Vejo a sua cor rosada,
vejo o seu olhar divino,
vejo os seus purpúreos beiços,
vejo o peito cristalino,
nem há cousa que assemelhe
ao crespo cabelo louro.
Ah! que a tua Eulina vale,
vale um imenso tesouro!
Sim, Eulina é uma deusa;
mas anima a formosura
de uma alma de fera,
ou inda mais dura.
***
Tenha embora branca face
meigos olhos, fio de ouro,
a tua Eulina não vale,
não vale imenso tesouro.
O fuzil que imita a cobra
também aos olhos é belo,
nas quando alumeia
tu tremes de vê-lo.
Que importa se mostre cheia
do mil belezas a ingrata?
53
Não se julga formosura
a formosura que mata.
Evita, Glauceste, evita
o teu estrago e desdouro.
A tua Eulina não vale,
não vale imenso tesouro.
(Lira FL 20)
Sublinhou-se o que há de importante na fisionomia pintada
por Dirceu. Seria possível alegar complexas influências europeias
(v.g. as heroínas de Tasso e de Petrarca) para fugir a contradições
flagrantes entre o real e o poético, como nosso talentoso mestre
Alberto de Faria gostava de fazer. Mas Gonzaga é um indivíduo de
olhos extremamente objetivos: quando escreve uma coisa é porque
é aquilo. Ou está fazendo uma daquelas grossas ironias aprendidas
em Portugal...
Francisca Arcângela de Sousa (ou Cardoso) não é loura.
Sua tez é um pouco mais colorida que a rosa: dir-se-ia cor
de jambo. É engraçada no duplo sentido brasileiro: espirituosa e
cheia das graças naturais. Tem purpúreos beiços, e peito cristalino,
isto é, daquela transparência que a juventude dá às carnes saudáveis. Meigos e belos olhos. E crespo cabelo. Mas não é loura.
Seria fera ciumenta, capaz de liquidar rivais e pôr em polvorosa os amigos do poeta (Garcia e o padre Faria Fialho) no retrato
de Eulina, porém nunca mulata sarará.
Francisca não tem sombra de complexo, contente de ser
linda e legitima mulata cor de jambo, puxando para o claro.
Não gozassem elas, negras e mulatas, de grande ascendência sobre os senhores vindos do reino, não se teriam baixado tantos
bandos proibindo-lhes usar sedas e joias como as senhoras nobres.
Proibição, aliás, absolutamente inócua. El-Rei, por exemplo, mandaria dedicar o capítulo 9 da Lei e Pragmática de 24-05-1749 ao
54
"uso de certas cousas e vestidos que lhes foi proibido nas Conquistas". Não durou quatro meses, pois um alvará de 19-03-1749 revogou tudo. Uma ação tão rápida no Conselho Ultramarino indica que
na mesma Corte sua influência era de temer.
Os preconceitos raciais não tinham consistência nem
mesmo entre os poetas nos assuntos de coração: Camões e Dirceu
amaram tintas bem mais escuras no além-mar.
No entanto, poder-se-ia objetar contra a identidade de Eulina recorrendo ainda uma vez a Gonzaga na capa de Critilo:
"O que vou contar-te, jurar deves
pelos olhos da tua amada esposa,
por seu loiro cabelo, e pelo dia
em que viste na sua alegre boca
o primeiro sorriso, que não hás-de
duvidar do que leres, bem que sejam
desordens que pareçam impossíveis! "
(C.Ch. 10:35)
Ora, a única mulher a intervir vigorosamente na existência
de Cláudio, a dar-lhe amor e filhos numa constância exemplar de
afeto, tanto ou maior que o de amada esposa, a receber inequívocas provas de generosidade apaixonada, é Francisca Arcângela de
Sousa. E Eulina não era, nem nunca foi sarará...
Árduo mistério. A solução, não obstante, salta meridianamente lúcida do poema Vila Rica. Nem o mais hermético marinista
consegue fugir ao traidor lastro de suas vivências íntimas...
Convém, na sacrificada leitura do épico, suprimir as tiradas vingativas do mineiro-paulista contra o mineiro-emboaba e
passar além do lado insosso das estórias puris. As reais fraquezas de Cláudio estão no ar de fofoca que imprime ao romântico,
desmerecendo os casos... Procede ao contrário de Camões e de
55
Virgílio. O primeiro dá gigantescas proporções humanas à fome
sexual dos marítimos do Gama, disparados atrás de ninfas negras, numa cena que seria ridícula não fosse o gênio lusitano:
"Nuas por entre o mato, aos olhos dando
o que as mãos cobiçosas vão negando."
(Lus. IX, 72)
"oh! que famintos beijos na floresta!
E que mimoso coro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta
que em risinhos alegres se tornava!
O que mais passam na manhã e na sesta,
que Vênus com prazeres inflamava,
melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
mas julgue-o quem não pode experimentá-lo."
(Lus. IX, 93)
Quanto a Virgílio, reúne Enéas e Dido num amor cujo anacronismo Critilo acusa (invertendo adora as datas; 7:70 ou PL 8:70),
mas cuja beleza épica enternece.
Glauceste frequentemente, como na anedota popular, usa
o binóculo pelo oposto: converte jacarés em lagartixas. Entretanto,
é o defeito que se torna supinamente revelador.
A lei portuguesa proibia dar o nome de negro aos índios, já
que permitia a escravidão africana o vedava a do aborígene brasílico, preceito confirmado por alvará de 17-09-1750. Se proibisse o
contrário, criaria sério problema para Cláudio...
A mulata Eulina foi sublimada em índia no poema, porém
mantendo a maquilagem corrente das crioulas de Vila Rica. Maquilagem que, na insistência do poeta, parece freudianamente excitante para a sua libido.
56
Chico-Rei todos os anos conduzia seu povo aos altos de
Santa Ifigênia. Carapinhas empoadas de ouro, as mulheres lavavam-nas na pia da igreja, oferecendo ao divino a riqueza que as tornava mais belas.
Eulina é useira e vezeira neste refinamento. Até nos leva a
supor que a "borracha com bocal de prata contendo 61,5 oitavas de
ouro em pó" que o sequestro encontra entre os bens de Glauceste
e confia a Adão Cardoso para assisti-lo na prisão, lá estivesse para
os momentos íntimos...
Dirceu, que muito lera tudo que Cláudio escrevera, divertese em aloirar Eulina, com fundamento indisfarçável nestes trechos
do Vila Rica:
"Um murmúrio sonoro só de Eulina
repete o nome. A maravilha estranha
inda mais se adianta. Ao longe apanha
uma ninfa, na areia, os montes de ouro
com que esmalta o cabelo e o toma louro."
(VR 2:164)
Para que se não suponha simples coincidência, a pintura se
reitera:
"Ouve Garcia o canto e não atina
de onde tanto prodígio. Mas de Eulina
a delicada face está patente.
Fita os olhos e vê, desde a corrente,
lançar a mão à praia a ninfa bela:
toma uma areia de ouro e já com ela
pulveriza os cabelos. (...)
(VR 7:71)
57
E para dar inteira confirmação estatística, lá surge outra vez
a mesma cena reveladora dos prazeres do poeta:
"
(...)
desde o roto
seio do rio, o loiro pó juntara.
Dele costuma usar Eulina clara
para dar novo lustre a seus cabelos."
(VI. 0:132)
As primeiras cópias manuscritas do Vila Rica, dedicado ao
segundo Bobadela, José Antônio Freire de Andrada, circularam em
1773 - ano em que nasce Fabiana, a caçula de Cláudio e Francisca.
A composição remonta, diversamente do que pensava Joaquim
Norberto, no máximo ao ano anterior e não a 1770.
A ‘forma mentis’ de Cláudio, que aí se revela, conduz a uma
revisão mais nítida da obra anterior. Sentindo-se livre, o poeta autobiografa o seu amor através de Garcia Rodrigues Pais. A única verdade histórica na trama romântica é a própria experiência.
Em 1759, quando lhe nasceu a primeira filha (Francisca),
Glauceste apenas iniciava lenta liberação íntima. Personaliza-se no
Itacolomy (que enfeia com o apelido de Itamonte) para uma confissão amorosa interessantíssima na alegoria da Fábula do Ribeirão do
Carmo:
"Fui da florente idade
pela cândida estrada
os pés movendo com gentil vaidade.
E a pompa imaginada
de toda a minha glória, num só dia
trocou de meu destino a aleivosia.
Pela floresta e prado,
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bom polido mancebo
girava, ao meu poder tão confiado
que até do mesmo Febo
imaginava o trono peregrino
ajoelhado aos pés do meu destino.
Não ficou tronco ou penha
que não desse tributo
a meu braço feliz que já desdenha,
despótico absoluto,
as tenras flores, as mimosas plantas,
em rendimentos mil, em glórias tantas.
Mas ah! que amor tirano,
no tempo em que a alegria
se aproveitava mais do meu engano,
por aleivosa via
introduziu cruel a desventura,
que houve de ser mortal por não ter cura.
Vizinho ao berço caro,
aonde a pátria tive,
vivia Eulina, esse prodígio raro
que não sei se inda vive
para brasão eterno da beleza,
para injúria fatal da natureza.
Era Eulina de Aucolo
a mais prezada filha.
Aucolo, tão feliz que o mesmo Apolo
se lhe prostra, se humilha
na cópia da riqueza florescente,
destro na lira, no cantar ciente.
59
De seus primeiros anos,
na beleza nativa,
humilde Aucolo, em ritos não profanos,
a bela ninfa esquiva
em voto ao sacro Apolo consagrara
e dele, em prêmio, tantos dons herdara.
Três lustros, todos de ouro,
a gentil formosura
vinha tocando apenas, quando o louro
brilhante Deus procura
acreditar do pai o culto atento,
na grata aceitação do rendimento.
Mais formosa, de Eulina
respirava a beleza:
de curo, a madeixa rica e peregrina
dos corações faz presa;
a cândida porção da neve bela
entre as rosadas faces se congela.
Nas. inda que a ventura
lhe foi tão generosa,
permite o meu destino que uma dura
condição rigorosa,
ou mais aumente enfim, ou mais ateie
tanto esplendor para que mais me enleie.
Não sabe o culto ardente
de tantos sacrifícios
abrandar o seu nume. A dor veemente,
tecendo precipícios,
60
já quase me chegava a extremo tanto,
que o menor mal era o mortal quebranto.
Vendo inútil o empenho
de render-lhe a fereza,
busquei na minha indústria o meu desempenho.
Com ingrata destreza,
fiei de um roubo (oh, mísero delito!)
a ventura de um bem que era infinito.
Sabia eu como tinha
Eulina por costume
(quando o maior planeta quase vinha
já desmaiando o lume
para dourar de luz outro horizonte)
banhar-se nas correntes de uma fonte.
A fugir desatinado
com o furto precioso,
desde a pátria onde tive o berço amado,
recolhi numeroso
tesouro, que roubara diligente
a meu pai, que de nada era ciente.
Assim, pois, prevenido,
de um bosque à fonte perto
esperava o portento apetecido
da ninfa. E descoberto
me foi apenas, quando (oh, dura empresa!)
chego, abraço a mais rara gentileza.
Quiz gritar. Oprimida
61
a voz entre a garganta:
Apolo? diz Apol....A voz partida
lhe nega força tanta.
Mas ah! Eu não sei como, de repente,
densa nuvem me põe do bem ausente.
Inutilmente, ao vento
vou estendendo os braços.
Buscar nas sombras o meu bem intento.
Onde a meus ternos laços?...
Onde te escondes, digo, amada Eulina?
Quem tanto estrago contra mim fulmina?
mas ia por diante,
quando, entre a nuvem densa
aparecendo, o como mais brilhante
eu vejo (oh, dor imensa!)
passar a bela ninfa, já roubada
do nume a quem fora consagrada.
Em seus braços a tinha
o louro Apolo presa.
E já, ludíbrio da fadiga minha
Por amorosa empresa,
era despojo da deidade ingrata
o bem que de meus olhos arrebata.
Então, já da paciência
as rédeas desatadas,
toco de meus delírios à inclemência.
E de todo apagadas
do acerto as luzes, busco a morte ímpia
62
de um agudo punhal na ponta fria.
As entranhas rasgando
e sobre mim caindo,
na funesta lembrança soluçando,
de todo confundindo
vou a verde campina. E quase exangue
entro a banhar as flores do meu sangue.
Inda não satisfeito,
o nume soberano
quer vingar ultrajado o seu respeito,
permitindo em meu dano
que, em pequena corrente convertido,
corra por estes campos estendido
.
E, para que a lembrança
de minha desventura
triunfe sobre a trágica mudança
dos anos, sempre pura
do sangue que exalei, oh, bela Eulina!
a cor inda conservo peregrina."
Esta é a história íntima de Cláudio, a que chama fábula, para
transferir a imagem, daí por diante, ao Itacolomy rasgado nas entranhas pela ambição dos homens.
A história da Eulina feroz e vingativa, que amava Argaço e
faz morrer Aurora, para depois transfigurar-se por Garcia, na Eulina,
é uma urdidura tosca de verdade. Romances, quando imaginários
se coadunam aos processos lógicos. Não sei quem já observava que
a única forma de um homem ser coerente consigo próprio é ser in-
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coerente. Amor e ódio são o mesmo valor com sinais opostos. Escárnio e louvor, quando sinceros, apenas refletem os choques íntimos.
Eulina tinha quinze anos apenas quando o poeta de trinta e
alcançou-lhe as graças. Em pleno sucesso advocatício, poético, plástico (a Carta Topográfica), e também nas lavras de ouro que o pai
deixara à família, Glauceste encontra Eulina em Vila Rica. Era moça
escrava criada na família Cardoso, família humilde. Deve ter sido
vendida à família Sousa na ocasião do amor alucinatório que despertou em Cláudio. Este acabou por comprá-la a qualquer preço.
Mas só alforriou Francisca Arcângela de Sousa (os escravos adotavam o patronímico dos senhores) depois do nascimento de Feliciano Manuel da Costa (1705), pois este aparece no Tombo de 1812
como pardo forro, o que significa que nasceu de mãe ainda escrava.
Os que duvidam da sensibilidade aguda de Cláudio, susceptível a depressões mortais, podem ver na ‘Fábula do Ribeirão do
Carmo’ uma provável tentativa de suicídio ante o amor frustrado.
A biografia do poeta revela que, em 1761, requereu o Hábito de Cristo por ter quintado oito arrobas de ouro. O ouro é das
lavras familiares. O poema deve ter sido terminado nesse período.
No ano anterior, vemos Cláudio emprestar 24$000 a Gregório de Sousa Bittencourt e a Miguel Soares Cardoso, empréstimo
que fica em aberto por toda a vida de Glauceste.
Em 1762, Cláudio foi provido interinamente na Secretaria do
Governo (posse a 11-08), cargo que perderia para o efetivo nomeado na Corte, José Luís Saião, em 31-08-1705. Vimos que é o ano de
Francisca Arcângela de Sousa dar-lhe o segundo filho, Feliciano Manuel da Costa, início de produtivo idílio dali por diante. E a alforria
da bela Eulina deve ter corrido antes do nascimento de Maria
(1767), pois esta filha é inteiramente livre desde o berço, como o
foram depois Ana (1769) e Fabiana (1773).
64
Para confronto com a veracidade autobiográfica da fábula,
vê-se que a imaginação do poeta não é fantasiosa, pois se repete
onze anos mais tarde:
“
(...)
Vem Fialho.
Afirma que seguindo um breve atalho
o fundo registrara de Itamonte;
que vira o vale e a aprazível fonte
onde de Eulina inda a memória vive.”
(VE 9:215)
Ao contrário de Dirceu, que mudava de amor, mas tinha a
precaução de manter o nome arcádico nas amadas a fim de evitar
perigosas confusões e não perder versos antigos, Cláudio é homem
de uma só paixão. Não havia risco ao chamar a constante ninfa de
Nise vez por outra...
3.5- Libidos Mancas.
Uma diferença bastante séria nas personalidades de Glauceste e de Gonzaga reside na atitude. Os símbolos mitológicos para
um e outro, adequados, seriam: Apolo ou Febo, para o árcade mineiro, quando poetiza amor; Fauno lúbrico, despudorado, no caso
de Dirceu-Critilo.
Dirceu só admite beiços nas gostosas bocas das mulheres
amadas e jamais os trata por lábios, salvo o caso de não interessarem. Critilo vai mais longe, pois descreve a mulata dançando batuque "mexendo a bunda", sem nenhuma discrição literária.
O fébico Glauceste jamais conseguiu vencer a disciplina
eclesiástica. A sensação de ser pecado manca-lhe imagens que prometiam muito...
65
Eis um encontro de Garcia (sublimação heroica de Cláudio)
com Eulina (transfiguração de Francisca Arcângela de Sousa):
"Ela o vê e não o teme. E já se inflama
de amor por ele. Aos braços o convida.
E abrindo o seio o rio, uma luzida
urna de fino mármore os sepulta
recebendo-os em si. Ficou oculta
a maravilha. (...) “
(VR 7:80)
De fato, ficou oculta. O poeta, envergonhado, leva dois cantos para ganhar coragem outra vez.
Quando promete, contra a censura impenitente, algo mais
substancioso:
“Mas já, Garcia amante, me convidas
a descrever as horas entretidas
nos braços a que Eulina te trouxera.”
(VT 7:90)
O poeta foge da alcova e desanda a descrever entranhas...
as entranhas das minas de ouro.
Basta sentir o sexo para pensar logo em dinheiro ou riquezas. Não fosse ele de formação tão asceticamente jesuíta, pensaríamos num complexo de prostituta, ou numa tendência a "coronel".
Dirceu confirma o temperamento de Eulina: o contraste entre a Bulinda ciumenta capaz de desatinos, e a mulher de meigos e
belos olhos, cuja ausência leva o amante ao desespero. Tudo começou quando Francisca Arcângela de Sousa atingia os quinze anos de
idade. Ora, a idade calha com precisão com o censo de Vila Rica de
1804, que registra Francisca aos 60 anos. Teria nascido em 1744 e,
66
em consequência, é fácil concluir que a ‘Fábula do Ribeirão do
Carmo’ situa-se em 1759. O conflito afetivo do primeiro encontro
virou escândalo, com medidas drásticas tomadas pelo senhor da escrava adolescente e grávida. Tudo indica que Cláudio a raptara, delito sujeito à pena de prisão, além de obrigar indenização pecuniária
ao dono e talvez pai: o humilde Aucolo, músico proeminente de Vila
Rica.
A despeito dos sofrimentos amorosos (Cláudio oscila entre
lamúrias de Jó e queixas de Jeremias), Francisca se estabilizaria no
coração do poeta como sustentáculo e estímulo insubstituíveis. Em
compensação, foi assistida generosamente tanto pela bolsa particular do amante, como por benefícios que a Câmara lhe outorgava
sob a influência do homem público.
Ser infeliz no amor, no barroco lusitano, é uma atitude literária típica. Camões, gênio do pensamento e da língua, com ser o
trinca-fortes21 da aventura, fizera moda do insucesso natural nas lides românticas: mulheres criadas para casar e ter filhos preferem
virtudes tranquilas e heróis domésticos. Os heróis truculentos e instáveis, em contínuo conflito da fantasia grandiosa com a realidade
parca, assustam-nas.
O amor clássico é uma entidade em si, anatomizado em Vênus e Cupido. O gênio aventureiro colhe a flor de um instante e leva
em si as próprias reações subjetivas. A saudade. A obsessão da
perda. A frustração do destino impossível. Incapaz de dar o que não
tem: estabilidade по lar. A pintura da mulher há de ser de frieza
cauta ou de ciúme na entrega insatisfeita. Ou o escraviza ou é sempre ingrata à inconstância do amante. E este sofre porque exige, em
troca do pouco oferecido, que a mulher o ame em efígie eternamente.
21
arruaceiro
67
Os pacatos imitadores do amor camoniano se sentem obrigados à infelicidade que não têm, autêntica no original, fictícia no
homem de casa.
Pondo de parte a formação eclesiástica de Glauceste, e ele
o homem doméstico por excelência. Inimigo de aventuras. Fidelíssimo. Inautêntico ao vestir-se com a roupa imaginária do trinca-fortes. Ao contrário de Dirceu, não vê virtude em ser como é.
Gonzaga rompe com a figura camoniana e sublima o herói
burguês:
"Eu, Marília, não sou algum vaqueiro
que viva de guardar alheio gado,
de tosco trato, de expressões grosseiro,
dos frios gelos e dos sóis queimado.
Tenho próprio casal e nele assisto;
dá-me vinho, legume, fruta, azeite;
das brancas ovelhinhas tiro o leite
e mais as finas lãs de que me visto.
Graças, Marília bela,
graças à minha estrela! "
(Lira Pl 53:1)
"O ser herói, Marília, não consiste
em queimar os impérios. Move a guerra,
espalha o sangue humano
e despovoa a terra
também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo,
e tanto pode ser herói o pobre
como o maior Augusto."
***
"Eu vivo, minha bela, sim, eu vivo
68
nos braços de descanso e mais do gosto.
Quando estou acordado,
contemplo no teu rosto
de graças adornado.
Se durmo, logo sonho e ali te vejo.
Ah! nem desperto nem dormindo sobe
a mais o meu desejo!"
(L 45: 25 a 49)
Não há aí sombra do trinca-fortes, cuja biografia inteira se
contém na identidade dos versos com a própria alma:
"Vive o homem e nasce
neste mundo, qual mundo mais pequeno.
Eu, tudo desordeno
em todos dividido.
A boca no ar, na terra o entendimento:
dá-me este amor; dá-me essa o pensamento.
O coração no fogo é consumido,
mas a água, que dos olhos sempre desce,
tem efeito tão vário
que, em um humor contrário, o fogo cresce. “
(Canções, XIII:15)
Um único soneto de Cláudio nos fala de Eulina e já reflete
menos submissão aos cânones:
"Formosa é Daliana: o seu cabelo,
a testa, a sobrancelha é peregrina.
Mas nada tem que ver co’a bela Eulina
que é todo o meu amor, o meu desvelo.
69
Parece escura a neve em paralelo
da sua branca face, onde a bonina
as cores misturou na cor mais fina
que faz sobressair seu rosto belo.
Tanto os seus lindos olhos enamoram
que arrebatados, como em doce encanto
os que a chegam a ver, todos a adoram.
Se alguém disser que a engrandeço tanto,
veja, para desculpa dos que choram,
veja a Eulina. E então suspenda o pranto.”
(Son. XI)
Porém, em matéria de libido, só na épica o querido Cláudio
se deixa surpreender. Para fugas igualmente épicas, o que jamais
ocorre nos díspares Camões e Dirceu. A este, sobretudo, impressionam os purpúreos beiços, o peito cristalino, a beleza das carnes.
Glauceste sempre disfarça nos cabelos...
3.6- Tristeza do Poeta.
Eulina, a nossa Francisca Arcângela de Sousa, é lenitivo e estímulo otimista na sensibilidade depressiva de Glauceste. É a imagem que o arranca das mágoas íntimas e o desperta novamente
para a consciência de seu valor.
Talvez o momento da conversa com o espelho mais sincero,
em toda a obra claudiana, esteja no poema Vila Rica (9:3):
“ (...)
nem a lira
tenho tão branda já, como se ouvira
quando a Nise cantei, quando os amores
70
cantei das belas ninfas e pastores.
Vão os anos correndo, além passando
do oitavo lustro. Às forças, vai quebrando
a pálida doença. E o humor nocivo
pouco a pouco destrói o suco ativo
que da vista nutria a luz amada.
Tão pouco vi a testa coroada
de capelas de ouro. Nem de tanto
Preço tem sido o lisonjeiro canto
que os mesmos que cantei me não tornassem.
duro prêmio. Se a mim me não sobrassem
estímulos de honrar o pátrio berço,
deixara de espalhar pelo Universo
algum nome. Deixara..., Mas Eulina
me chama. Já soara a voz divina. "
Idade de quarenta e três anos, passado o oitavo lustro. A
pálida doença (tuberculose crônica) mina-lhe as forças. Conjuntivite
e miopia o fazem sofrer e usar óculos: os óculos pequeninos de nariz que o sequestro só lhe tira depois da morte.
Gastara versos inúteis com os mandarins em trânsito. Com
o ingrato "Conde meu de Valadares" e muitos outros indignos de
apreciar-lhe o talento. Malbaratou sonetos, modelos clássicos da
língua, em louvores que não mereciam perpetuidade. Se não fosse
Eulina, a sua voz divina, que estímulos teria de honrar o pátrio
berço?
A forma espontânea e natural de Glauceste é o soneto, em
que se aproxima algumas vezes do gênio camoniano.
No épico, a imagética pequenina fazia minguar a estória
grandiloquente. O universo é reduzido ao particularismo individual,
quando a lição do Mestre bem mostrava o caminho inverso: tirar
"do bicho da terra tão pequeno" aquela força humana milagrosa e
71
transformá-la em universal. Mas é erro, de que nos penitenciamos,
lastimar-lhe a épica. É ela quem revela o autobiógrafo e quem projeta o historiador pioneiro, o caçador de informações legítimas, o
perquiridor paciente da documentação enfadonha.
Na épica do Vila Rica só entremeiam raras joias líricas na
forma invencível dos quatorze versos. Assim é o fecho do Canto VI,
soneto perfeito e triste como a alma do Inconfidente:
“Jamais se viu segura uma alegria,
nem estável jamais pode algum dia
sustentar-se a fortuna de um ditoso.
Espere sempre o inverno proceloso
aquele por quem passa a primavera.
Amor que, em brandas almas só, pudera
empregar toda a força dos seus tiros,
fará que troque as glórias em suspiros
àquele que em vão crera aos desenganos.
Oh, vós, felizes! vós que os doces anos
entregais à virtude, eu vos agouro
o sempre imarcescível fresco louro
que vos há de levar, na longe idade,
muito além da cansada humanidade. “
Na liberdade de amigo fraterno, o injusto e irreverente Dirceu tinha inveja das qualidades de Francisca Arcângela de Sousa, de
evidente superioridade moral sobre a ingrata Maria Joaquina Anselma de Figueiredo. Errava dizendo:
“Evita, Glauceste, evita
72
o teu estrago e desdouro.
A tua Eulina não vale,
não vale imenso tesouro,"
Eulina, a quem o amante dá um de seus nomes árcades, talvez para significar que a considerava como a si mesmo. Eulina, a
quem chamou consorte várias ocasiões; cuja cor de jambo e condição de ex-escrava a separava do casamento com um portador do
Hábito de Cristo. Cuja cor de jambo, o poeta ainda teima em simular
mais clara que a neve lusitana, neve fria; cujo crespo cabelo torna
louro, por imitação de Camões, sem confessar abertamente a arte
da maquiagem no uso do ouro em pó...
Dos trinta aos sessenta, só Eulina. Eulina que lhe criava os
filhos no sobrado da rua de São José, discretamente, esfuziando
centelhas de ciúme no olhar (talvez contra o volúvel Dirceu), e o
cercava de amor na rua Direita de Antônio Dias.
Eulina que o assiste, através de Adão Cardoso, na angústia
atroz da prisão na cela da Casa dos Contos. E que o terá levado o
corpo morto a enterro santo na noite do suicida.
A beira do túmulo desconhecido, rezar-se-á a Cláudio a oração camoniana que rezou a Salício, o irmão:
"Espírito imortal, tu que rasgando
essa esfera de luzes vais pisando
do fresco Elísio a região bendita,
se nesses campos onde a glória habita,
centro do gosto, do prazer estância,
entrada se permite à mortal ânsia
de uma dor, de um suspiro descontente,
se lá relíquia alguma se consente
73
desta cansada, humana desventura,
não te ofendas que a vítima tão pura,
que em meus ternos soluços te ofereço,
busque seguir-te pra lograr o preço
daquela fé que, há muito consagrada,
nas aras da amizade foi jurada.”
(Epicédio II:1)
74
IV. A Difícil Historiografia
das Evidências sem Provas
Tarquínio (centro) e Teixeirão (à direita)
Infindáveis tertúlias na Fazenda São José
do Manso (1976).
À João Gomes Teixeira (1902-1979)
Diretor do APM – Arquivo Público Mineiro de 1949 até 1973.
Dizem dele os arquivos do APM: “Era um excêntrico solteirão,
extremado nas afeições e desafeições. Adorava política
e cultivava os melhores clássicos.”
Dono de memória prodigiosa era profundo conhecedor
de genealogia mineira a ponto de ser, jocosamente, considerado
o autor das Listas Telefônicas de Minas Gerais.
75
IV. A DIFÍCIL HISTORIOGRAFIA
DAS EVIDÊNCIAS SEM PROVAS
4.1- As limitações do Subjetivo.
Há três aspectos da historiografia que conturbam seriamente o pesquisador:
a) a mitologia;
b) as pseudo-sínteses;
c) os preconceitos culturais.
Se, como afirma a sabedoria oriental, teoria sem exemplos
é o mesmo que malabarismo sem nexo, vale explicar os aspectos
que nos surpreendem. Mas na ordem inversa.
O preconceito cultural é onímodo e ubíquo. Einstein, pela
relatividade universal, mostra também a relatividade da posição do
historiador. Não se está num ponto absoluto, estranho ao curso da
civilização, do qual se analisa o passado e interpreta os fenômenos
sociais de nosso tempo. O historiador é tão móvel quanto o tempo.
Produto do antecedente até ontem. Produtores, em maior ou menor escala, de conceitos que geram consequentes no amanhã.
O último conceito de hoje começa a ser o preconceito do
futuro.
Aceite-se o inevitável com a única atitude condigna: certa
dose de humor temperada de humildade consciente.
As pseudo-sínteses se confundem às vezes com generalizações necessárias. O historiador, como os pintores, dispõe-se a
aprender realidades complexas, de mil minúcias, em grandes pinceladas. Os perigos são nítidos. Pode cair na caricatura para ser
compreendido. Ou no hermetismo, se os símbolos adotados forem
demasiado exclusivos.
76
Os muito objetivos (aparente presunção que encobre ceticismo) querem examinar galáxias com microscópio. Correm risco de
confundir estrelas com grãos de areia.
A síntese exprime um subjetivismo. Mero retrato do que se
tem convencionado chamar pensamento desejoso.
Eis o exemplo que oferece Gonzaga-Critilo. Aos literatos parece que os extremos da poesia são os gêneros épico e satírico. Gêneros opostos.
Critilo confidenciava contrariamente que a melhor inspiração da sátira era Virgílio, o épico da Eneida. Considera-se o épico de
Fanfarrão Minésio. Não tem culpa do herói ser safado.
Conquanto não o diga, lera muito Voltaire, o épico da Henriada. Certamente na tradução feita pelo Dr. Tomás de Aquino Belo
e Freitas22, poeta de excelentes versos brancos decassílabos. Critilo
terá aprendido dele o metro solto que dá sabor excepcional às Cartas Chilenas. O original francês é rimado, note-se.
Gonzaga-Dirceu repete os iguais conceitos na afetada ingenuidade da lira 31:
“Não toques, minha Musa, não, não toques
na sonorosa lira
que, às almas como a minha, namoradas,
doces canções inspira.
Assopra no clarín que, apenas soa,
enche de assombro a terra.
Naquele a cujo som cantou Homero,
cantou Vergílio a guerra.
***
Cantemos o herói que, já no berço,
22
Tomás de Aquino Belo e Freitas foi médico e tradutor da Henriada . Aparece nas Cartas Chilenas como “Frondélio”, “bom doutor” ou “sábio professor”.
77
as serpes despedaça;
que fere os Cacos; que destronca as Hidras
mais os leões que abraça.
Cantemos, se isto é pouco, a dura guerra
dos Titães e Tifeus
que arrancam as montanhas e, atrevidos,
levam armas aos céus.
***
Anima, pois, ó Musa, o instrumento.
que a voz também levanto.
Porém, tu deste muito acima o ponto!
Dirceu não pode tanto.
Abaixa, minha Musa, o tom que ergueste;
eu já, eu já te digo.
Mas ah! Vou a dizer herói e guerra,
e só Marília digo.
***
Feres as cordas d'ouro? Ah, sim!
Agora meu canto já se afina
e a humana voz parece que,
ao som delas, se faz também divina.
O mesmo que cercou de muro a Tebas
não canta assim tão terno...
Nem pode competir comigo aquele
que desceu ao negro inferno.
***
Mal repito Marília, as doces aves
mostram sinais de espanto,
erguem os colos, voltam as cabeças,
param o ledo canto.
Move-se o tronco. O vento se suspende.
Pasma o gado e não come.
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Quanto podem meus versos! Quanto pode!
só de Marília o nome!
Este jogo humorístico, em que o poeta amoroso contrapõe
o épico tonitruante ao páthos suave do lírico, confirma o auto posicionamento de Critilo na Carta Nona:
Nasceu o sábio Homero entre os antigos
para o nome cantar do grego Aquiles.
Para cantar também ao pio Enéias,
teve o povo romano о seu Vergílio.
Assim, para escrever os grandes feitos
que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,
entendo, Doroteu, que a Providência
lançou na culta Espanha o teu Critilo.
Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo
a cumprir, respeitoso, os meus deveres.
(C. Ch. 9:23)
Chega-se afinal ao terceiro aspecto perturbador da História:
a mitologia.
Inconscientemente o narrador desumaniza os heróis afetivos. Esta cirurgia, separando alma e corpo, os desencarna. Roubalhes motivações de extrema gravidade. Mitifica-os. Críticos adversos dirão que os mistifica.
Que tem isto que ver com o iluminismo?
Sobretudo, porque o tema parece tão distante da Independência e de seu sesquicentenário, tema que suscitou esta pesquisa?
Está mesmo?
79
4.2- O Espírito da Época.
As considerações feitas pretendem transmitir, tão proximamente quanto possível, o método de ser, pensar e de sentir no século das luzes. Atitude racionalista e irônica da época em que Voltaire pontificava, mas que Rousseau revolucionou.
Evitando nova digressão, fixe-se bem que todo processo da
independência das Américas se calca no gênio de Rousseau. Na ideologia de Rousseau.
A única exceção americana é o Brasil. A libertação de Portugal é eminentemente voltairiana.
Considerando-se o gesto da independência como uso efetivo de soberania, deve-se recuar para 1808 a data da ascensão brasileira ao concerto das nações livres. E quando o Brasil recebe, em
seu território, esta figura de regente e rei, habilíssimo Sancho, modelo de visão prática e de bom senso: D. João VI de Portugal, mas
primeiro do Brasil.
Em termos concretos, no ano de 1808, aqui se assumiu a liderança do império luso. Lisboa sentiu-se conscientemente reduzida à condição de colônia. Colônia com o rei fora invasor francês
dentro.
O fenômeno de 1822 foi forçado por Portugal. O Brasil, retendo o herdeiro e devolvendo de véspera o seu João, consentiu
que a Corte de Lisboa retomasse as sobras de um império que não
queriam aqui.
Sob o prisma ideológico, o fenômeno é de retrocesso. Da inconfidência republicana à independência monárquica, dá-se marcha-a-ré no tempo.
A monarquia, alicerçada na manutenção econômica da
energia humano-escrava, sobrevive 67 anos montada no vulcão republicano.
No segundo Império, dirigido pelo neto de D. João e, como
este, supinamente prático e fecundamente ausente, a emancipação
80
da escravatura trouxe no bojo a consagração finalista do liberalismo. República à moda de Rousseau: defesa do cidadão contra a
hipertrofia do Estado.
Talvez seja esta uma pseudo-síntese. Talvez esteja influenciada pelo culto à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
e não consiga o historiador pensar, à moda de Atenas, que se pode
ser livre mantendo mais de metade da população como energia em
cadeias. Mas na Grécia, o escravo era presa de guerra. Aqui ele foi
mantido como combustível anônimo das lavouras.
Dir-se-á: a república não libertou o negro na América do
Norte, criando o clima para uma das mais sangrentas guerras da
história. O fenômeno é apenas lastimável: a incoerência com que a
economia justifica seus abusos contra o homem.
O drama da atual época, polarizada na economia de massas,
contrasta os enormes acervos de realizações e destruições, e suprime o equilíbrio político entre o indivíduo e a multidão, entre a
liderança e a equipe. O talento da renovação é individual, como o
mérito da produção é social. Este é quantitativo. Aquele, qualitativo. Sem justo termo entre liderança e massa, as máquinas sociais
caminham cegas para ainda maiores destruições.
Neste momento, não se trata de uma pseudo-síntese.
4.3- As Ideologias Paralelas.
Breve retorno ao século das luzes. A Voltaire e Rousseau.
Os dois ideólogos surgem, quando uma língua flexível e viva
acaba de derrotar, como instrumento de cultura e ciência, o latim
morto.
As universidades haviam nascido, cinco séculos antes, como
instituição eclesiástica. Formavam a instrumentação do poder divino e o dos reis, confundidos um com o outro.
81
A revelação das Escrituras não dava margem a outros horizontes de inteligência. O latim é a voz da teocracia metafísica.
Se Galileu, com seu telescópio, girando a terra para que passem a lua e as estrelas, é preciso declará-lo mentiroso e ameaça à
fé. Ou Josué, se desacreditado, desacredita a própria Bíblia.
A verdade tem v maiúsculo. É imutável e dogmática.
Quem descrê da ordem instituída fere o status quo e a classe
dominante. Para perfeito controle, Deus e as universidades pensam, escrevem e falam latim.
Se o curioso imprudente indaga porque uns têm o privilégio
de mandar e os demais a obrigação de obedecer, há de submeterse a opção: ou a fogueira, ou a explicação teologal de que os reis
são ungidos do Senhor. É o Senhor quem discrimina governante e
governados.
Mas o francês Rabelais, um monge penetrado pela tentação
do saber, alcança no estudo das ciências humanas o título de médico pela Universidade de Montpellier. Com humor e graça sugere
a moral consoante a natureza e a razão.
O francês Montaigne mostra a delícia da conversa entre
amigos, ou seja, da tolerância recíproca e do uso despreocupado da
inteligência.
Descartes propõe a descoberta da Verdade (com V maiúsculo) pela dúvida racional e sistemática das verdades (com v minúsculo).
Montesquieu esquece momentaneamente a fonte divina
das leis e cria uma goteira no telhado do céu: revela princípios imanentes à natureza humana. Descreve a gangorra das estruturas de
governo em três sistemas: república, cuja base é o amor da pátria,
isto é, a igualdade; monarquia, fundada na honra; e despotismo,
que se sustenta no medo.
82
Pesquisa também a origem das sociedades. Conclui pela indispensabilidade de Deus, mas debita à natureza humana quatro,
impulsos para a boa vida em comunidade:
1) paz;
2) necessidade de comer;
3) atração entre indivíduos da mesma espécie, atração que
se converte em encanto quando diferem de sexo;
4) necessidade de intercomunicação.
Sustentáculo de tudo: a ideia de um Criador. Isto em perfeita e clara exposição francesa.
4.4- Epitáfio do Latim.
A importância da superação do latim pelo francês transparece no Journal des Savants. Já, desde 1665, sendo redigido nesta
última língua.
REAU (L'Europe Française, Paris 2a. ed. 1971) transcreve deliberação da Academia de Ciências de Berlim em 1743:
“As Academias, para serem úteis, devem comunicar suas
descobertas na língua universal, e esta língua é o francês.”
Voltaire e Rousseau, iluministas ambos, contraditórios entre
si, a manejam admiravelmente bem. Primas donas do racionalismo,
encontram o ocidente apto à influência transformadora.
O primeiro aprendera no exílio inglês os méritos da tolerância e dos governos constitucionais. A burguesia além-Mancha,
desde 1688, adquirira igualdade legal em face da aristocracia militar. A igreja anglicana, insurgindo-se contra Roma, fez do Rei seu
papa. Rei que já estava atrelado ao carro das cartas limitativas.
Igreja, portanto, submissa.
83
Como Montesquieu, Voltaire considera impossível a harmonia social sem a existência de Deus. Ninguém obedeceria às leis sem
medo do castigo divino. Se o ente supremo não existisse, seria preciso inventá-lo para freio das ralés. Mas o Criador devia ser retirado
da praça pública e recolhido à vida doméstica...
O teísta, quanto às formas de governo, preferia o déspota
virtuoso, desde que tivesse por primeiro ministro um sábio.
Vítima de perseguições, havia de lutar pela tolerância. E
contra tudo que oprime a liberdade de pensar. E contra a Infame,
isto é, a teocracia da inquisição eclesiástica.
A dose é excessiva para o absolutismo da época. Hoje talvez
mereça ser canonizado pela defesa desinteressada de injustiçados
e perseguidos. Na república das letras, foi monarca incontestável.
Passemos a Rousseau.
Seu gênio deu forma concreta às democracias. Ao transferir
de Deus ao Povo a origem do poder, purificou a ralé de Voltaire.
Suprimindo-lhe o mito do pecado original, ruindade natural
da pessoa humana, criou o mito do bom selvagem.
O bom selvagem é ancestralmente o tupinambá carioca, o
tamoio paradisíaco, que Thevet23, Lery24 e os trugimãos25 normandos erigiram em modelo da vida perfeita.
O que distingue Rousseau de Montesquieu é que, tornando
o indivíduo um santo, converte a sociedade em agente deformador.
De boa e necessária, ela passa a ruim por definição.
Inventou os consensos de maioria, fazendo da liberdade a
essência da criatividade civilizadora.
23
André Thevet (1516-1590) foi um frade franciscano francês, explorador, cosmógrafo e escritor.
24
Jean de Léryry (c. 1534 –c. 1611) foi um pastor, missionário e escritor francês e membro da igreja reformada.
25
Trugimão ou turgimão: 1. intérprete oficial de uma legação ou
embaixada europeia, nos países do Oriente. 2. Figurado: alcoviteiro.
84
O Contrato Social se reflete em documentos decisivos da
consciência universal:
a) a Declaração dos Treze Estados Unidos da América, em 4
de julho de 1776, cuja redação principal esteve a cargo de Thomas
Jefferson:
b) a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, redigida, entre outros, por La Fayette, Mounier, Mirabeau, Rabaut
Saint-Étienne, e consagrada pela Assembleia Nacional Francesa,
como preâmbulo da nova Constituição, em 26 de agosto de 1789;
c) a Declaração dos Direitos Humanos, em nossos dias, com
que a Organização das Nações Unidas se universalizou.
Não esquecer a Declaração dos Direitos dos Trabalhadores
e dos Povos Explorados, proclamada em janeiro de 1913 na Rússia
Soviética, pois embora criticando a filosofia burguesa, também era
filha de Rousseau.
Voltaire é o reformismo. Rousseau a revolução.
A carta do primeiro ao segundo, em 30 de agosto de 1755,
traduz a barreira intransponível entre ambos:
“Recebi, Senhor, seu novo livro contra o gênero humano, que
lhe agradeço. Certamente agradará aos homens, cujas verdades
lhes diz; mas não os corrigirá. É impossível pintar com cores mais
fortes os horrores da sociedade humana, em que nossa ignorância
e nossa fraqueza se prometem tantas consolações. Nunca se empregou tanto espírito em nos tornar animais. Dá vontade de andar
sobre quatro patas ao ler sua obra. Entretanto, como há mais de
sessenta anos perdi esse hábito, infelizmente sinto que é impossível
retomá-lo; deixo esta postura natural aos mais dignos que vosmecê
e eu. Também não posso partir ao encontro dos selvagens do Canadá: primeiro, porque as enfermidades que me acabrunham me
retêm perto do maior médico da Europa e eu não acharia a mesma
85
assistência entre os Missouris26; segundo, porque a guerra grassa
naquelas regiões, onde os exemplos de nossos países tornaram os
selvagens quase tão ruins como nós.”
O livro criticado é o Discurso sobre a Origem da Desigualdade. Não era o primeiro choque. Em 1751, o velho Arouet27 ridicularizaria o jovem genebrino, dialogando em Timon sobre o Discurso sobre as Ciências e as Artes...
4.5- O Grande Oriente de Paris.
LE BIHAN (Comissão de História Econômica e Social da Revolução Francesa, Memórias e Documentos, v. XIX) ressuscitou recentemente os arquivos do Grande Oriente de França (Século XVIII)
encontrados na Biblioteca Nacional de Paris. A relação alfabética
dos franco-maçons parisienses inclui nomes muito familiares.
Rousseau, Jean Jacques. Mestre em cirurgia. Membro da
Loja Irmãos Unidos de Santo Henrique, 1781-82.
Não é o nosso Jean-Jacques, falecido três anos antes. Mas a
influência deste ressurge a cada passo. Na Loja São João da Escóssia, de Avignon, D'Astier o cita como fraterno amigo. Outras lojas
adotam o cognome: "do Contrato Social". A ideologia maçônica de
então parece moldada, em muitos centros, pela filosofia rousseauniana.
Adiante, não há erro de pessoa: Voltaire (François-Marie
Arouet de Voltaire), gentilhomme ordinaire do Rei, da Academia
Francesa, etc., inscrito membro da Loja As Nove Irmãs no ano de
sua morte.
Diderot não seria aceito, porque ateu.
26
Índios norte-americanos
François-Marie Arouet (1694 — 1778) foi um escritor, historiador
e filósofo iluminista francês, conhecido por seu codinome M. de Voltaire.
27
86
Às vésperas da Revolução Francesa, mais de 500 lojas maçônicas povoam o país. São instrumentos ativos da pregação iluminista e liberal. Seus membros saem de todas as classes: burguesia
ascendente, intelectualidade, nobreza e clero esclarecido.
Os princípios têm latitude ampla para a admissão dos homens de boa vontade: fraternidade, igualdade, liberdade, e crença
no Grande Arquiteto do Universo. E o compromisso de sigilo absoluto, sobretudo dos segredos iniciáticos.
As lojas das colônias inglesas, antes filiadas ao Grande Oriente de Londres, se transferem maciçamente para França, na eclosão das lutas de independência. Franklin e Jefferson encontraram
em Paris o apoio indispensável. São maçons. Como maçom é também o Marquês de La Fayette, membro da Loja S. João da Escóssia
do Contrato Social, em 1782, general a serviço das Treze Colônias.
É evidente que o Papa Leão XII, em 1825, atribui à maçonaria toda a responsabilidade pela Revolução de 1789. São palavras
suas na Quod Graviora:
“apesar de tanto tempo decorrido depois que, pela primeira
vez, (tais sociedades secretas) acenderam na Europa o facho revolucionário, e a despeito das brilhantes vitórias sobre elas alcançadas
pelos mais poderosos príncipes, tão brilhantes que esperávamos
lhes dessem cabo, não é para temer haja novas perturbações e novas sedições ainda naquelas partes em que parecia ter serenado a
tempestade? “
O antecessor, Pio VII (1021), descobriu na franco-maçonaria
o próprio espírito de Satã. Já acentuamos o perigo das pseudo-sínteses, ainda em inteligências de escol. Aí vai um exemplo claro.
Mathiez, na monografia sobre a Revolução Francesa (Encyclopaedia of the Social Sciences, N.York, 1944), declara:
87
“O papel de conspirata que se atribui algumas vezes à
Franco-Maçonaria é pura lenda. As lojas do período anterior 1789
não tinham nenhuma semelhança com as lojas continentais de hoje,
salvo em seu ritual. Compunham-se de grands-seigneurs, funcionários, sacerdotes, burgueses ricos. Mais salões que clubes, eram frequentadas pela flor do exército, pelos homens do mundo, pelos
campeões do status quo.”
Contudo, Mathiez distingue claramente as múltiplas revoluções da mesma Grande Revolução:
1) convocação dos Estados Gerais pelos nobres, querendo
impor ao Rei maiores privilégios;
2) revolução burguesa e intelectual, que suprime as instituições do ancien régime;
3) revolução popular que derruba o trono com os girondi28
nos ;
4) Terror de 1793 a 1794, ao qual se segue o Diretório até
1799.
Um grand-seigneur, o Marquês de La Fayette, luta pela república na América do Norte. Um sacerdote, Sieyes, inspirador da
eleição aos Estados Gerais de deputados quase exclusivamente do
Terceiro Estado (burguesia), atua em todo o processo revolucionário. Seria demasiado longo enumerar supostos campeões do status
quo situados na vanguarda das revoluções...
É verdade que, em 1797, apenas restavam 18 lojas maçônicas abertas em toda a França. É verdade que muitos "iniciados"
emigraram. Mas só partiram com a queda das respectivas facções,
as mesmas que na véspera suplantaram correntes anteriores. A
maioria sucumbiu à guilhotina do Terror!
Mathiez pensa que as reivindicações populares alcançadas,
só o foram na medida em que a liderança burguesa e intelectual
28
membro do partido da Gironda, formado em França em 1791.
88
forçou os sans-culottes a lutarem pelos próprios interesses. Tem
sido assim sempre...
Pseudo-sínteses contraditórias. Kafker e Laux, professores
da Universidade de Cincinnati, ao invés de desmerecê-las (as contradições), usam-nas para confronto esclarecedor de culturas diversas (The French Revolution: Conflicting Interpretations, N. York,
1968).
O método é inteligente e ressalta os preconceitos deformantes de cada lado.
Nos exemplos históricos de sedições vitoriosas, não é exceção unirem-se ideologias contrárias para a conquista do poder. As
sociedades secretas, reunidas ao redor do Grande Oriente de
França, foram a vanguarda de levantes sucessivos que já não puderam controlar. E os fatos se comprovam aquém do Atlântico.
4.6- A Tentação dos Sábios.
Há quase quinze anos, saiu um livro de título altamente sugestivo: O Diabo na Livraria do Cônego de Eduardo Frieiro.
O autor é muito querido. O Prof. Américo Lacombe considera-o invulgar talento a serviço da historiografia, mas sobretudo
da cultura brasileira.
O livro é magnífico por duas razões: uma mitológica; outra
de preconceito cultural.
Introduziu o Diabo nos estudos da Inconfidência Mineira,
com advertência simpática à presença de Lúcifer, o rebelde iluminado, nos bastidores coloniais.
Excelente pesquisa, feita por mestre, preenche lacunas que
pareciam intransponíveis.
Aquele Diabo era o racionalismo infiltrado em Minas, solapando os tratados de teologia e metafísica. Era o predomínio do
89
francês sobre o latim, com autores que ousaram intitular-se filósofos sem tratar das primeiras causas. E sem ligar a mínima para as
artes da revelação divina.
O título é uma síntese verdadeira e feliz.
A mitologia tem a propriedade de indicar rumos fecundos à
investigação. Lúcifer, para Isaías, é apenas um rei da Babilônia, cuja
glória o profeta compara a estrela da manhã, fonte das luzes. Tertuliano supôs a passagem bíblica relacionada com a queda de Satã.
A palavra hebraica Satã, no entanto, significa apenas inimigo. Depois é que os intérpretes a institucionalizaram na figura do Mal Supremo.
Josué, ao tomar a Terra da Promissão com a artilharia dos
milagres de Jeová, transforma o Baal das minorias conquistadas
num pobre diabo.
Frieiro acertou o nome exato para definir a tentação dos sábios, vítimas, como o primeiro homem (a palavra Adão significa exclusivamente isto), do fruto proibido: a ciência sem bem nem mal.
E fenômeno do racionalismo insurgente; à medida que
vence as máquinas sociais de repressão, abala-se pelas crenças e
sub crenças irracionais que afloram da memória recôndita humana.
Os misticismos entram e tomam assento no carro do vencedor.
O extremismo lógico do século das luzes (Condillac29) aperfeiçoaria a filosofia inglesa e faria derivar dos sentidos toda a atividade espiritual. Diderot avançou mais e negou a existência da alma,
considerando o pensamento "simples secreção do cérebro".
Da maré montante das reivindicações de liberdade (de que
as sociedades secretas foram o instrumento eficiente) renasceu o
29
Étienne Bonnot, abade de Condillac (1714 –1780) foi um filósofo
francês, e o maior expoente de uma teoria radicalmente empirista do funcionamento da mente a que se costuma referir desde então como sensualismo.
90
extremismo místico. A própria maçonaria revestiu seu Grande Arquiteto de ritos e lendas cuja origem remonta à noite dos tempos.
Seria necessário, para fazer respeitar o compromisso de sigilo, o
medo metafísico dos velhos infernos?
Há discriminações classistas nas mesmas fraternidades, internamente.
Um manuscrito inglês (1593) distingue o maçom iluminado
do maçom grosseiro e proíbe que o primeiro revele ao segundo segredos iniciáticos:
Nenhum maçom pode mostrar de nenhuma forma o esquadro ou régua a qualquer maçom grosseiro.
Palou (La Franc-maçonnerie, Paris, 1964) acrescenta que os
princípios fundamentais da antiga arquitetura mística, origem da
maçonaria, se expressavam em dois símbolos:
O triângulo equilátero, que os pitagóricos teriam adotado
como símbolo de Minerva (ou da Sabedoria) e que o cristianismo
mais tarde converteu em símbolo da Santíssima Trindade;
O dodecágono, resultante do triângulo superposto ao círculo, combinação que na antiguidade encerrava toda a harmonia
musical e astronômica.
Na Europa, o afloramento lendário no meio racionalista se
comprova por lojas maçônicas anômalas fundadas por Saint-Martin
e Svendborg, curandeiros miraculosos. E por Mesmer, adepto célebre do hipnotismo esotérico. E pelo mágico Cagliostro, que muitos
consideram autêntico charlatão... E por Weishaupt, cujos "novos
iluminados" congregaram até o Bispo de Kherson e cinco príncipes
germânicos, além de numeroso clero.
Teosofismo e espiritismo andam de mistura, quando não em
sincretismo, com os racionalistas libertários. Tratando-se de sociedades herméticas, também o inverso pode ser verdadeiro...
91
4.7- O Submundo Colonial.
A Inconfidência Mineira realmente cria insegurança em relação ao que só pode ser induzido e não documentado.
Tiradentes se engrandece, na Devassa, pela inteligência luminar e pela capacidade incrível de, sem mentir objetivamente,
despistar indiscrições. O triângulo equilátero, como símbolo da Santíssima Trindade, parece devoção estranha no alferes, mais afeito
ao segredo de uma iniciação maçônica, do tipo que nos refere Jean
Palou.
Acresce que o simbolismo sincrético poderia permitir-lhe,
caminhando tranquilo e impávido para a força, transmitir a mensagem de esperança na vitória futura, aos "iniciados" que lhe assistissem a passagem. Símbolo jurado e secreto de uma fraternidade de
ideais a que Alvarenga Peixoto dera como dístico o verso Virgílio:
Libertas quae sera tamen...
Estamos em face da liberdade, ideal da maçonaria europeia
e americana, casada com o símbolo de duplo sentido.
O padre Toledo, a cada aliciamento, fazia o iniciado jurar segredo, sob pena de morte...
Frieiro, paciente, percorre a livraria do cônego Luís Vieira da
Silva e identifica obras e autores. Eis os vários aspectos da diabologia revolucionária:
a) Curiosidade intensa pela natureza física do homem e do
universo, pela ciência e pela tecnologia:
b) Idem pela História. Não mais a crônica dos escribas cortesãos, modestos comensais da cozinha aristocrática. Porém a história dos costumes e das civilizações, do homem que domina a natureza pela cultura e pela ciência;
c) O filosofismo racionalista: Rousseau e Voltaire dominando os títulos.
Há duas deduções apenas em que Frieiro não convence:
92
A abundância de literatura médica não prova que o cônego
exercesse habitualmente a clínica. A existência de um tratado de
arte militar, na livraria, não permite afirmar que Vieira da Silva fosse
o estratego da Inconfidência.
O estrategista que exsurge da Devassa é Tiradentes. Dá aulas ao comandante. É quem sugere as manobras adequadas. Sem
ele, esvazia-se a liderança militar. Sem ele, foi inútil que uma hierarquia secreta obtivesse a nomeação do capitão Maximiano de Oliveira Leite para o comando do Caminho do Rio, e do capitão Manuel
da Silva Brandão para a chefia do Destacamento Diamantino: as
duas portas da Capitania cobertas contra a entrada de tropas lusas.
Nos demais quadrantes, o Sul estava defendido pelos paulistas de
Baependi e Taubaté, parentes do padre Toledo, e pelas tropas auxiliares de campanha do Rio Verde, cujo comando era de Alvarenga;
o Oeste não oferecia risco, era o sertão turbulento que os paulistas
abriram.
Admitida a sugestão de Frieiro, seria forçoso identificar o cônego com Critilo, autor das Cartas Chilenas. A Carta Nona fez completa avaliação das forças da Capitania. Os comentários sobre a pequena guerra de Saxe indicam leitura de Grandmason. E formula,
no disfarce de uma censura, meditações bélicas de profundo alcance.
Critilo admoesta a má seleção dos quadros. A prepotência,
infundida nas tropas de Fanfarrão, pelo desrespeito contumaz aos
magistrados. Temeria que isto viesse a constituir obstáculo grave
ao controle e disciplina posteriores.
Chega a desesperar-se quando observa:
“Não há, não há distúrbio nesta terra
de que mão militar não seja autora.”
93
Porém, após o ridículo, faz paralelo que é tomada de consciência.
“Não rias, Doroteu, das nossas tropas.
De que gente formou um corpo invicto
o luso Viriato? Foi de moços
criados desde a infância nas campanhas?
Não foi, meu Doroteu. Foi de uns pastores,
de uns pastores incultos que, animados
do esforço do seu Chefe, conseguiram
vitórias singulares contra um povo
que o mundo sujeitou à força de armas.
Os homens, Doroteu, são todos fortes
em cima das muralhas que defendem
as chorosas mulheres e as fazendas,
os ternos filhos e os avós cansados.”
A despeito da opinião adversa de Capistrano, a Inconfidência constituiu profunda convulsão na sociedade brasileira.
Porque seus ideais republicanos foram preteridos, quando
eram eles os coerentes com todo o contexto libertário americano?
Porque o Brasil ingressou num sistema monárquico, com retrógrada tendência absolutista, se a república fora aspiração constante das lojas secretas apoiadas no Grande Oriente de França e nas
lojas itinerantes inglesas, estas também fundamentalmente avessas ao absolutismo ibérico?
As respostas documentadas virão no fim.
A causa imediata parece residir na conjuntura criada com a
transferência da sede do império português para o Rio de Janeiro.
As condições de independência já antes eram irreversíveis.
94
A família real, a classe dirigente da Corte, transmigrando
para o Brasil, fez da capital do Vice-Reino (logo elevado a Reino) um
domínio de gente nova, ainda estranha ao contexto americano.
A super casta estabelecida se afogou nas profundas liderança local. As lutas de rua, nas vésperas da decisão final, são conflitos de tropas mercenárias, regimentos e funcionários portugueses, contra brasileiros e luso-brasileiros adaptados aos costumes do
novo continente.
Mas D. João VI adquirira o sabor do clima social e físico.
Parte a contragosto a defrontar-se com dois problemas insuperáveis na Corte lisboeta:
1) tentar reerguer o decaído epicentro europeu à condição
de capital do império;
2) sofrear as reivindicações do liberalismo antiabsolutista,
paradoxalmente impregnado de ressentimentos contra a ex-colônia. Mesmerismo racionalista...
Problemas impossíveis. Foi obrigado a aceitar a amputação
da América, para manter o domínio das colônias afro-asiáticas, com
a conivência do herdeiro deixado no Brasil. E aliou-se aos adversários liberais, para salvaguardar a presença da Coroa num estado
constitucional. Entregou os anéis para poupar dedos...
Ao morrer surgiria a inevitável reação da pobreza ideológica: o absolutismo miguelista. Tão frágil, que o imperante do Brasil,
aqui forçado à abdicação, erigiu-se em paladino da própria filha,
numa epopeia de retorno cavalheiresca e comovente. Unido aos liberais do Porto, seus adversários ferrenhos na independência do
Brasil, derrotaria os resquícios do passado extinto.
D. Pedro, apesar de impulsivo, esteve em 1822 sob completo domínio de homens secretamente compromissados a impedir
a regressão colonial. Os liberais daqui abriram mão da ideologia em
favor da unidade territorial brasileira. Os liberais de lá fizeram o
mesmo, forçando uma atitude colonialista que resultou na ruptura.
95
Mal conquistada a independência, assiste-se à cisão em alas: Andradas práticos contra maçons ortodoxos de Gonçalves Ledo. Passou-se às lideranças contrastantes, processo iterativo em busca de
rumos incertos.
A revolução republicana silenciaria sob a montanha dos interesses escravocratas. Depois recomeçaria o proselitismo, a efervescência de lutas com raízes obscuras, mas que agitam a superfície
aparentemente calma.
Vieira Fazenda nos informa: no dia seguinte ao da independência, o povo das ruas começou espontaneamente a exaltar, contra o monarquismo, a figura heroica do alferes Joaquim José da Silva
Xavier. É ela que nos liga ao restante da América, que ombreia com
Bolívar e San Martin. Sombra que o patíbulo projetou sobre os 67
anos da monarquia local.
Esta visão talvez peque por excesso de síntese. Para comprová-la é preciso repassar os fatos históricos, frequentemente esquecidos, do racionalismo iluminista.
Sua origem é anterior à inconfidência: a correspondência
trocada entre o estudante José Joaquim da Maia e Thomas Jefferson, na França. Os nomes, que costumam aparecer estropiados nos
documentos, serão naturalmente corrigidos.
Francisco Antônio Lopes, pesquisador ilustre e autor de livros preciosos, já apontara com lucidez os dois personagens aos
quais Cláudio Manuel da Costa comparou o Tiradentes: Ravaillac30
e Amiens, que na verdade é Damiens. Ambos foram acusados de
tentativa de regicídio. Ambos foram terrivelmente torturados. Ambos souberam calar e morrer. Na literatura pré-revolucionária francesa, eram havidos por mártires e heróis. terceiro nome citado por
Cláudio, jacques, não designa uma pessoa e sim o campesinato er-
30
François Ravaillac (c.1577-1610) foi o assassino de Henrique IV,
Rei de França, em 14 de Maio de 1610.
96
guido em armas contra a nobreza espoliativa. A jacquerie é considerada, até hoje, como a mais importante e significativa revolução
rural da França.
0 Diabo não andava exclusivamente na livraria do Cônego...
José Joaquim da Maia aparece, na maioria dos que escrevem sobre a independência do Brasil, como um episódio perdido no
cenário. Um pobre filho de mestre-pedreiro carioca atirado em
Montpellier... Num acesso de febre, tenta e consegue avistar-se
com о ministro da América Inglesa. Este não teria dado importância
ao fraca-roupa, como dizia a gíria da época.
Domingos Vidal Barbosa tê-lo-ia acompanhado ao encontro.
Fora quem trouxera a notícia, exagerando-a, para o Brasil. Na base
de uma simples conversa de estudantes, Tiradentes fizera pregão
de falsos apoios...
É preciso investigar com paciência os caminhos do Diabo.
O professor de retórica Silva Alvarenga (nomeado para o
cargo em agosto de 1782) iniciou o magistério no Rio com grande
sucesso. Desde 1779 era sócio correspondente da Academia Real
das Sciências de Lisboa. O instituto, na opinião do intendente Pina
Manique, seria o principal foco maçônico de Portugal e se valia das
imunidades reais para receber literatura proibida, infestada do iluminismo francófilo e americano.
O Vice-Rei Luís de Vasconcelos, cujo irmão José era sócio supranumerário da Academia, aparece como severo perseguidor de
libertários, nas palavras de Alvarenga Peixoto. Mas bem ao contrário, não admite que Barbacena envolva em suspeitas Luís Beltrão
de Gouveia, intendente dos diamantes no Tejuco nem Joaquim Antônio Gonzaga, Ouvidor do Serro. Ainda mais, é quem patrocina os
estudos botânicos de Frei José da Conceição Veloso e consagra a
Sociedade Literária do Rio de Janeiro, que Silva Alvarenga fundou
em 1789.
97
Luís de Vasconcelos desmoraliza o sobrinho, Capitão General de Minas. Não admite sequer a inquirição de Silva Alvarenga e
do professor de grego na Devassa de 1789. A carta do Barbacena (3
de julho) relata ter ouvido cousas de Domingos Vidal Barbosa, na
noite anterior, que exigiam sérias providências...
Onze meses depois, assume novo Vice-Rei: o Conde de Rezende. Uma das primeiras providências é mandar fechar a Sociedade Literária...
Depois da execução de Tiradentes, Frei Raimundo de Penaforte (que a acompanhou e assistiu aos demais réus) nos legou um
relato gongórico de tudo, fotografando as próprias ideias em negativo. Viria ele a brigar com Silva Alvarenga, embora não tenha chegado à vileza de denunciá-lo. Menos de ano e meio (9-12-1794) do
embarque do último libertário degredado, o Conde de Rezende
prenderia a Silva Alvarenga e aos companheiros daquela Sociedade,
que continuara a funcionar secretamente.
Da devassa (presidida pelo Chanceler e poeta Antonio Diniz
da Cruz e Silva) sabe-se que lá se lia o Mercure de France. Em reuniões clandestinas, conversavam coisas incríveis de jacobinismo na
Rua do Cano (e depois na Rua do Ouvidor).
Este é o quadro ostensivo em plagas cariocas. Veja-se o reverso:
José Joaquim da Maia fora aluno de Silva Alvarenga. O pai
era comerciante estabelecido ao pé da Lapa. Por que Vidal Barbosa
o qualificou de mestre-pedreiro? José de Maia e Brito tinha recursos para manter pensão razoável ao filho tanto em Coimbra, desde
1783, como em Montpellier, de 1785 a 1787, onde José Joaquim
fora doutorar-se em Medicina. Sua tese de doutor, Febre Erisipelatosa, deu-lhe o título em 10 de maio de 1787.
A correspondência com Jefferson, ministro americano em
Paris, iniciou-se em 2 de outubro de 1786. Foi intermediário o colega francês, Dr. José Maria Joaquim Vigarous, filho de um ilustre
98
professor de Montpellier, de cuja cátedra anos mais tarde foi sucessor.
LE BIHAN nos dá as seguintes indicações sobre Vigarous:
membro da loja maçônica L'Amenite, de Paris, de 1785 a 1787, ano
em que passa a fazer parte da loja La Modération, também filiada
ao Grande Oriente de França.
Ao contrário do que se escreveu até hoje, foi Jefferson quem
se propôs ir ao encontro com Maia (em Montpellier ou Nîmes, com
todo o sigilo) por carta de 26 de novembro de 1786. A recomendação fora prestigiosa.
Vendek (criptônimo de Maia) desculpa-se do atraso na resposta (5-1-1787) motivado por doença. E sugere Nîmes, indagando
data exata e pedindo confirmação do local.
Pela correspondência de Jefferson a John Jay, Secretário de
Estado de Filadélfia, vê-se que o encontro se deu na arena de Nîmes
(primeira semana de março de 1787). O longo relatório: transcreve
informações preciosas sobre o Brasil colonial. Jefferson confiou no
jovem doutorando, simpatizou com ele, deu-lhe vários conselhos:
como conduzir a insurreição com os comerciantes do Rio; como obter recursos dos Estados Unidos; como defender-se de qualquer reação lusa. Informa que voluntários americanos, sem patrocínio oficial, poderiam engajar-se em apoio do levante.
Não há qualquer referência aos contemporâneos de Maia
em Montpellier: Domingos Vidal Barbosa e José Mariano Leal. Vidal
Barbosa partiria para Bordéus para terminar lá seu doutorado. Chegaria ao Brasil, via Lisboa, em dezembro de 1738. Deve ter partido
antes do doutoramento de Maia, porque não teve dele conhecimento e supôs o amigo falecido na França...
Pode-se afirmar que o Dr. Vigarous credenciou maçonicamente o colega brasileiro junto a Jefferson. Tem base histórica,
igualmente, o apoio dos comerciantes de Bordéus a uma insurreição dos comerciantes do Rio. A intervenção do Grande Cliente de
99
França não se faria apenas em prol da república norte-americana.
A franca assistência que deram aos réus da Inconfidência Mineira
merece lugar proeminente ao escrever-se sua história definitiva.
Quem deu a notícia sobre as gestões de Maia, no Rio, não
foi Vidal Barbosa. Este apenas as confirmou em 1789, aos inconfidentes de São João D'El Rei.
O informante foi o Dr. José Alvares Maciel que (1788) se
achava em Lisboa, ao regressar da Inglaterra onde passara 18 meses. No dia 23 de fevereiro pôs anuncio na Gazeta de Lisboa: "Precisa-se de um guarda-livros." Seu endereço era defronte ao Chafariz
do Carmo, casa do Marquês de Pombal, primeiro andar da Escada,
junto à casa de José Maria Mazza.
Seu pai, José Alvares Maciel, o velho, sofria ameaças e vexames por parte de Fanfarrão Minésio, pois fora caixa dos contratos
das entradas arrematados pelos Veigas e suas contas eram reputadas caso de cadeia pelo atrabiliário Governador de Minas...
Maciel, o moço, cuja estadia em Lisboa vai até maio, esteve
certamente com o Dr. Maia nesse interregno. Recebeu deste as
mensagens sediciosas. Jurara com outros brasileiros a luta pela Independência. Assistira ao falecimento em Lisboa daquele companheiro, pois é ele quem dá a infausta noticia aos comerciantes do
Rio e a Tiradentes.
Maciel arribou ao Rio em fins de julho de 1788. Certamente
se hospedou com o concunhado (casado com irmã do ten. Cel. Francisco de Paula Freire de Andrade), o comerciante Francisco José
Freire. Deixa em casa deste uma caixa de livros, e dentre eles: a História da América Inglesa, adquirida em Birmigham.
Nas duas semanas iniciais de agosto, convive com Tiradentes em tal intimidade que lhe conta todo o ocorrido e o anima com
o apoio certo de França e dos Estados Unidos. E encontra tempo de
opinar sobre os projetos de Tiradentes (abastecimento de água e a
100
melhoria do porto) encruados na resistência da Câmara que alegava
prejuízos eventuais aos vendedores de água e aos canoeiros...
Tiradentes não é homem que minta. Ao partir para Minas
(meados de agosto, pois chegou a Vila Rica a 28 desse mês), levava
as mensagens de que Maciel fora portador. Na subida, escoltava o
novo ouvidor geral, des. Pedro José de Araújo e Saldanha, substituto de Tomás Antônio Gonzaga. As Cartas Chilenas lançam profícua luz sobre as relações de ambos.
Os contatos na viagem, a despeito do ouvidor acompanhado, garantem adesões indiscutíveis: José Aires Gomes, padre
Manual Rodrigues da Costa, Luis Alves de Freitas Belo e José Dias
da Mota. Não há tempo de chegar à terra natal, São José, nem a
vizinha São João.
Passou os meses de setembro e outubro em Vila Rica, em
parte brigando com Antônia Maria do Espirito Santo, de quem o alferes se separou definitivamente. Em parte, aplicado ao aliciamento de amigos e colegas de Regimento. É Tiradentes quem assegura o retorno do padre José Rolim e promove-lhe hospedagem em
casa do compadre Domingos de Abreu Vieira.
Durante novembro e grande parte de dezembro, está na Comarca do Rio das Mortes. Sabemos que em São José, onde era numerosa sua família, aliciara Antonio de Afonseca Pestana, coronel
de auxiliares.
.
É mera coincidência que o ex-ouvidor Tomás Antônio Gonzaga passe o mês de outubro em São João, batizando o filho de Alvarenga Peixoto? Em setembro, Barbacena viria buscar no Registro
do Paraibuna a família que ficara no Rio. Dentre os acompanhantes
desta, está Jose Alvares Maciel, o moço, que subia para Minas. Detém-se na Cachoeira; incumbe-se de pesquisar minerais para o Capitão General e ir ver minas em Sabará e Jaguara; pensa em salitre
para fabricação de pólvora. Jazidas indicadas por Tiradentes.
101
Na noite de 26 de dezembro estão todos em Vila Rica. Noite
do complô. Pura diabologia.
4.8- Subterrâneos da Inconfidência.
Durante as devassas da Inconfidência Mineira (vê-se por documentos esparsos, tópicos sutis, cartas de comerciantes) os réus
são continuamente assistidos. Não obstante, nenhum morador da
cidade do Rio foi incriminado.
Nicolau, o escravo de Domingos de Abreu Vieira, é levado à
praça por ordem dos juízes. E arrematado por um comerciante. Nicolau volta à cela de seu senhor para servi-lo fielmente, com carta
de alforria, até a morte em África.
Frei Raimundo de Penaforte, ainda íntimo de Silva Alvarenga, frequentava como confessor as prisões...
O professor de grego, João Marques Pinto, convenceu a
todo o mundo de que o Barbacena, capitão general de Minas, era
um fantasista. Até o criado de quarto do ten.-cel. Camilo Maria Tonelet, ajudante de ordens do Vice-Rei, espinafra o escuso Joaquim
Silvério dos Reis.
Em Vila Rica, o Dr. Diogo foi informado das prisões no Rio
dois dias antes do Visconde sabê-lo. E o encapuçado também.
A república, ideal essencialmente maçônico-francês, sub
merge por dezesseis anos. Quando o Brasil adquire ‘status’ de nação soberana, como Reino Unido e sede do império português, reaparece nas ruas. É reprimida sob o reino e dois períodos imperiais.
Em 1888 vence definitivamente a batalha da libertação dos escravos. Em 1889 conquista o poder.
É difícil espanar a poeira mitológica de sociedades secretas,
onde se jura uma ideologia e o seu absoluto silêncio. Evidências sem
prova.
102
Na loja de Silva Alvarenga, professor de retórica, lia-se o
Mercure de France e se discutiam os métodos de libertação da
América, a par das lições de Voltaire e Rousseau.
Quanto tempo leva uma ideia entre o formar-se num cérebro e o converter-se em modo social de vida coletiva?
O drama das civilizações é o permanente choque entre a
imaginação criadora, basicamente individual (única força renovadora das sociedades organizadas) e a indispensável educação política das massas. Montesquieu apontava três forças antagônicas
para sustentar um estado: a igualdade, fundamento do amor entre
cidadãos; a vaidade, que inspira as hierarquias delirantes; ou o
medo, sustentáculo dos tiranos. Cada uma delas define, de uma
parte, o exato papel da liderança; e de outra, a cultura das coletividades em movimento.
O século XVIII deu liberdade ao talento. Em nome da liberdade, operários passaram a trabalhar, com mulheres e crianças,
doze e mais horas diárias, produzindo poupança (como se chama
modernamente a capitalização de recursos). Há talentos variados e
contraditórios...
Marx definiu, pelos exemplos observados, as lutas entre
classes. Analisava o fato substancial de que as sociedades têm de
produzir para o atendimento de necessidades próprias ou alheias.
Produzir economicamente. E se retratam no modo de organizar aspectos básicos: os meios de produção de uma parte, e as relações
entre tais meios de outra.
A atual civilização, civilização de massas, parece discutir
apenas a forma de distribuição do resultado: se cabe às grandes
empresas aproveitá-lo, ou se cabe ao estado político usufruí-lo...
Marx, grande estatístico de números, esqueceu o papel da
liderança. Nas máquinas, a inteligência criadora passa ser suspeita.
Organizam-se, para o status quo, resistências destruidoras de qualquer forma de individualismo.
103
O mundo todo, com ou contra Marx, se estrutura como máquina de produzir.
Caminha-se para uma nova idade média, dogmática e suspicaz?
Ou ainda há tempo de ressuscitar Voltaire e Rousseau, exigindo ao mesmo tempo, um lugar para a mente humana, depois do
estômago farto? Os computadores fazem milagres dispensando esforços repetitivos infinitos na informática. As telecomunicações
contraem e distendem a unidade do gênero humano.
Mas quem usará a informação transformando-a em novos
ensaios de Montaigne, em novas leis humanas que não sejam a simples normativa técnica dos lazeres, mas sim o convívio em tolerância e amor e amizade?
O antirracionalismo não estará confundido com o super-racionalismo de nossos dias?
Só os historiadores de amanhã poderão responder.
104
V. Prisão e Morte do
Dr. Cláudio
À Ivo Porto de Meneses
Caro Ivo:
Já estava parcialmente escrito. Parcialmente,
porque seu trabalho de 14 anos atrás trouxe
o primeiro documento sério de dar à tese
tradicionalista o direito de estudo e investigação
para valer. Procurei encaixar a sua contribuição
e discuti-la. Receba como amizade fraterna
de quem muito o admira.
Tarquínio
Belo Horizonte, 28/02/1974
105
V. PRISÃO E MORTE DO
DR. CLÁUDIO
5.1- Tema Velho e Novo.
A etnografia se enriquece dos casos que a história não alcança explicar documentadamente. Ou quando o historiador, sob o
influxo inconsciente do páthos social contemporâneo, introduz no
fato a metamorfose de sua própria cultura e a ideologia que o sensibiliza.
Cria-se uma estória que contrasta a história e adquire vida
por si mesma, nutrindo-se da tradição em que se crê e do pensamento que se deseja converter em realidade objetiva.
Supõe-se ser este processo criador a origem da mitologia,
ciência que no fundo é o estudo das crenças mortas, das religiões
passadas cujo poder demiúrgico despiu-se da fé e do esoterismo.
Robert Graves, com raro brilho, dedicou-se a interpretar historicamente as raízes formadoras da lenda e do mito no panteão
greco-romano. É mais fácil fazê-lo em relação a culturas diversas no
tempo e no espaço, quando já não existe envolvimento emocional
do pesquisador. Por outro lado, a diferenciação entre o fato e o
mito (lenda ou estória) é muito mais flagrante ao termo da metamorfose do que durante o seu processo.
O tema do suicídio ou assassínio de Cláudio Manuel da Costa
ainda desperta atitudes passionais após quase dois séculos. A opinião pública tende uniformemente a considerar a morte de um
preso político como responsabilidade da autoridade dominante.
Haja ou não indícios positivos. A tendência se acentua nos regimes
opressivos e impopulares.
Não seria de admirar houvesse no clima social da Inconfidência a desconfiança, e que ela se multiplicasse em toda a fase
monárquica depois da independência. A tradição nutria os ideais
106
republicanos reprimidos aqui, mas vitoriosos no restante da América.
O martirológio é indispensável ao vigor das ideologias ascendentes e ao desprestígio progressivo das forças decadentes. Excluída a hipótese da morte natural, os preconceitos religiosos a tese
política do assassínio, unindo a caridade cristã à simpatia espontânea pela figura humana do poeta.
Embora a Bíblia não proíba expressamente o suicídio, desde
Santo Agostinho o cristianismo o considerou crime e pecado - tanto
mais grave pela impossibilidade do arrependimento na hora da
morte. As penas de infâmia e confisco, enforcamento e esquartejamento do cadáver, foram aplicadas em vários países. A inumação
do suicida, em outros, era vedada em terra consagrada, e se fazia
obrigatoriamente no segredo da noite e sem ritos religiosos.
A influência clássica infiltrou nas camadas cultas, pouco a
pouco, o conceito greco-romano de que era um direito do indivíduo
privar-se da própria vida. Montaigne, Montesquieu, Voltaire e Rousseau protestaram vigorosamente contra a condenação religiosa
e jurídica dos suicidas, relaxando-se na segunda metade do século
XVIII a atitude social, ainda que subsistissem na letra algumas penalidades civis e canônicas. Certos costumes resistiram formalmente: o enterro noturno, discreto, e a proibição de inumá-los em
terra consagrada. Seu racional religioso, em pleno iluminismo, já
não é a punição, mas a inutilidade de sufragar a quem, por definição, não tivera a chance do arrependimento, estando com a alma
condenada ao fogo eterno.
Cabe notar que o Código Penal Brasileiro, ainda hoje, considera crime o suicídio, conquanto na prática apenas se investigue a
indução ao mesmo por terceiros e, caridosamente, as certidões de
óbito o desnaturem em meros acidentes, na maioria dos casos.
Cientificamente, é considerado tão só o ato extremo de uma
neurose de angústia. Perda da autoestima por crise emocional de
107
tal ordem que supera o mais forte instinto animal (humano, inclusive): o da própria conservação. A psicanálise salienta na personalidade suicida a incapacidade de pronta adaptação a novas condições
de vida, seja por fatores extrínsecos (perda da honra, do amor, ou
iminente pobreza), seja por fatores intrínsecos (medo, doença, velhice, ou crise depressiva extrema).
A estatística revela que a incidência, no sexo masculino, é
três vezes superior à do feminino. Mais da metade dos casos ocorre
na faixa de idade superior a 45 anos, faixa esta que não alcança os
20 % da população31 - o que toma a incidência relativa quatro vezes
maior na velhice. Fenômeno altamente complexo na pluralidade
das circunstâncias em que ocorre, está sempre presente entre as
causas de mortalidade com taxas que variam de 0,5 a 4 por dez mil
óbitos, segundo os países do mundo, por mais diversos que sejam
os cânones culturais e as condições socioeconômicas. Convém salientar que na Suíça, país de formação cristã e, portanto, propenso a
condenar o suicídio, a incidência é maior que no Japão onde o Harakiri resulta em grande prestigio para as vítimas voluntárias.
As opiniões tradicionalistas que favoreceram, em quase dois
séculos, a tese do assassínio de Cláudio Manuel da Costa, invariavelmente associam o suicídio às conotações de horror, infâmia, desonra, covardia. Conotações que vão esmorecendo, depois para psicopatia e, afinal, fraqueza...
Para as autoridades do tempo significou uma confissão de
culpa, confirmatória das declarações prestadas. Para o confessor
que ouviu na prisão, o suicídio foi ato de puro desespero: Cláudio
lhe havia dito não ter nenhuma esperança, porque seu crime (inconfidência, ou consentimento a ela ativo ou passivo) era de primeira cabeça, com pena de confisco total, morte na forca e infâmia
para filhos e netos. A infâmia os inabilitaria em todo o sempre para
qualquer honra ou empregos públicos.
31
Dados disponíveis em 1974
108
Ivo Porto de Meneses, pesquisador da maior seriedade, introduziria novo elemento no velho tema do assassínio: os sufrágios
determinados por duas Irmandades a que pertencera o réu, rezados na Matriz do Pilar e pagos pela Fazenda Real. O terem sido pagos pelo sistema sugere influência iluminista em muito maior escala
que a evidenciada pela Inconfidência, cheia de sacerdotes amantes
de Voltaire...
5.2- A Causa-Mortis.
O veredito oficial (suicídio) foi subscrito por seis testemunhas, coparticipantes na verificação da ocorrência: dois ouvidores,
dois tabeliães e dois cirurgiões. E ainda um oficial comandante da
guarda da Casa do Contrato. Causa-mortis: enforcamento pelas
próprias mãos.
O termo lavrado e assinado transitou tranquilamente todas
as instâncias administrativas e judiciárias: Barbacena apenas o conheceu onze dias após e nele se louva; os ouvidores do Rio (Torres
e Cleto) lastimam, duas semanas depois da ocorrência, que o suicídio inabilitasse as declarações da vítima quanto a terceiros, pois impedia a revalidação deste documento; os vogais da Alçada, quase
três anos mais tarde, o consideram pacifico.
Torres e Cleto, na verdade, censuravam seus colegas da jurisdição mineira. A incúria de Saldanha e Manitti omitira a assistência obrigatória de um tabelião de fé pública aos interrogatórios. A
incúria foi sanada em relação aos demais inquiridos até então e corrigiu-se em definitivo. Como o direito português já sofrera franca
revisão iluminista, exigia-se que o réu fosse perguntado sem coação
(livre de ferros) e jurasse segunda vez o depoimento. Sobretudo no
que concerne a terceiros, de modo a definir a responsabilidade de
falso juramento e alcançar a convicção judicial acareando declarações contraditórias.
109
Dois anacronismos têm sido perpetrados por pesquisadores
recentes: confundem os tribunais civis pós-pombalinos com a Santa
Inquisição, cujos suplícios e tratos haviam alcançado execração universal na obtenção de confissões; e os confundem também com a
polícia política contemporânea, sabendo-se que os furores de Pina
Manique, ao tempo de Pombal e de D. Maria I, eram exatamente
contra o franco liberalismo do judiciário...
No caso de Cláudio, suas respostas em relação a terceiros
ficaram insanáveis: não tinham sido nem juradas, nem contrastadas
entre declarantes e referidos, nem assistidas por tabelião. Isto enfraqueceu o libelo contra três cabeças: Gonzaga, Alvarenga e o padre Toledo. A sentença máxima contra os três, em qualquer circunstância, estaria sujeita à confirmação da Soberana: gozavam de privilégio expresso legal por serem respectivamente ministro da Coroa, coronel de auxiliares, e eclesiástico.
D. Maria I, atenuando antecipadamente as penalidades,
apenas se reservou a confirmação das sentenças contra os eclesiásticos. Compreende-se: sofria de alucinações religiosas que a conduziram à loucura total. Via D. José I, o pai, debatendo-se nas chamas
do inferno. Para isto contribuiu eficazmente o já impotente Marquês de Pombal: manteve inflexivelmente, na devassa que lhe abriram, a responsabilidade do falecido Rei por todos os seus atos.
Uma das fraquezas da versão lendária do homicídio é a variedade imaginada para a causa-mortis.
Cláudio teria sido: esganado por dois soldados; esganado
com uma só mão; envenenado; ou sofrera morte violenta sem definição de forma...
As bases alegadas correspondem a três linhas de transmissão diversas:
1) Paracatu, que falou a Francisco Joaquim Moreira de Sá
(depois de 1808), que falou à mulher, que já viúva falou ao filho, Dr.
110
Miguel Antônio Heredia de Sá, que divulga o sabido em 21-12-1876.
Um primo-irmão deste confirmá-lo-ia em data posterior.
2) Américo de Urzeda, adolescente de Vila Rica em 1789 que
falara a Melo Morais, divulgador da versão em 1876, (7 e 13-03).
3) Francisco Ribeiro de Andrade, soldado da Tropa Paga de
Minas, guarda da prisão em 3-07-1789, que confidenciara o boato
ao Inconfidente padre Manuel Rodrigues da Costa, que falara a
Jorge Benedito Ottoni, que falou a Cristiano Ottoni, divulgador da
tradição sob o pseudônimo de Um Mineiro, também em 1876.
Deixamos de referir a mais antiga (Almanaque da Prov. de
Minas Gerais, 1864, Rio, redigido por A. de Assis Martins e J. Marques de Oliveira): "(...) Joaquim José da Silva Xavier, Cláudio Manuel
da Costa, Gonzaga, Alvarenga e outros, que depois foram deportados, estrangulados e sufocados, como com justas suspeitas pensase que o foi Cláudio Manuel da Costa." Esta linha de tradição refere
a existência de muitas pessoas que ouviram aos coevos de Cláudio:
foi sufocado por dois soldados de ordem superior; depois se fez espalhar o boato de ter-se suicidado abrindo uma veia com o garfo da
fivela dos calções; escreveu na parede dístico com o próprio sangue; foi mandado enterrar no campo, mas o Vig. Vidal, ajudado do
sacristão, o desenterrou e inumou da Matriz do Pilar numa das três
sepulturas abaixo do presbitério do lado esquerdo; poucos dias antes de morrer, foi conduzido à presença do Barbacena, com quem
discutiu; Barbacena o chamou de traidor ao Rei, e Cláudio respondeu que traidor fora o avô dele, que vendeu a Pátria. O redator supõe que esta foi a determinante do assassínio... (fls.57 e 58).
A despeito da opinião do douto Afrânio de Melo Franco (RINHB 106:292) apoiado em J.A. Teixeira de Melo (RIHGB 53:138), é
preciso escoimar o que há de incongruente ou absurdo no que o
benemérito Xavier da Veiga cria "por ser a tradição continua".
***
111
Paracatu consta ser o apelido de Caetano José Cardoso efetivamente um dos dois cirurgiões que descreveram o óbito na presença dos ouvidores, tabeliães e oficial da guarda.
De 1808 a 1822, foi cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria de Linha de Minas, trabalhando no Hospital Real Militar de Vila
Rica (ABN 45:223). (titulava-se cirurgião anatômico, em 1818. Viveu
e morreu em Vila Rica, provavelmente naquele 1822, já bem idoso.
Não se sabe como pudera frequentar reuniões na fazenda do fidalgo Moreira de Sá em Santo Antônio do Rio Abaixo, situada em
voo de avião a 200 km ao norte...
Teria assinado no dia 4 a certidão de óbito que, no dia 5,
reassinaria por ordem de Barbacena em papel novo com versão de
suicídio. Ocorre que o documento contém a assinatura de mais um
cirurgião e outras cinco pessoas. Admitindo-se que Manitti fosse,
como era, desonesto, sempre o foi vendendo "inocências". Saldanha era zeloso ouvidor e responsável pelo processo da devassa.
Barbacena desconfiava que fosse amigo dos réus. Quanto a José Veríssimo da Fonseca, escrivão da Ouvidoria, este era íntimo de Cláudio e de Gonzaga: não se prestaria a falsificar papéis públicos. O tabelião Macedo também. Quanto ao oficial da guarda, alferes Joaquim José Ferreira, pertencia ao Esquadrão do Vice-Rei. O Visconde
não se fiaria dele para uma trampolinagem, pois desconfiado do tio,
Luis de Vasconcelos, ainda mais se isolara no Palácio da Cachoeira
a redigir longo relatório ao Ministro Martinho de Melo Castro, aliás
bastante complacente com Cláudio de quem recebera somente o
termo das perguntas (2-07) e de cujo suicídio apenas teve notícia a
14 ou 15 de julho. O referido relatório é de 11 de julho.
É impossível prestar crédito a tal versão.
***
Américo de Urzeda, ao tempo da conversa com o fantasioso
Melo Morais, estaria perto dos cem anos de idade e a mais de 80
da ocorrência. E já testemunhava por ouvir dizer...
112
***
Francisco Ribeiro de Andrade mentiu de saída. A Casa do
Contrato (já assim chamada em 1785, como a Ponte de São José era
também denominada Ponte do Contrato, por ser vizinha à casa de
Macedo), depois de 1794 batizada de Casa dos Contos, foi alugada
parcialmente pela Câmara e adaptada para receber a tropa do Rio.
O Esquadrão do Vice-Rei (uma companhia sob comando do cap. Botelho) ali se instalou no dia 24 de junho e respondia pela segurança
dos presos de maior consideração ou por privilégios sociais ou de
religião. Jamais a Casa dos Contos recebeu qualquer guarda do Regimento de Minas - altamente suspeito inclusive ao Visconde de
Barbacena.
Na época em que veio a debate a morte de Cláudio, recrudescia a campanha republicana e abolicionista no país (1876). Era
um argumento a mais, ainda que mítico, contra o sistema monárquico transmigrado de Portugal...
É-se obrigado a rejeitar, numa crítica objetiva, a validade da
estória do soldado.
***
A versão divulgada em 1864 estende o processo mítico a outros Inconfidentes, dando duas versões à causa-mortis e inventando por conta própria um incidente justificativo, incompatível
com os personagens. Nem Cláudio, tuberculoso e reumático, se disporia a longas jornadas a cavalo para ir ao Palácio da Cachoeira,
nem o Visconde o considerava dos principais culpados... Pelo menos até 2 de julho.
***
113
Cabia abordar o tema do assassínio por forma menos fluida.
As vagas discussões sobre a imprecisão do laudo dos cirurgiões Cardoso e Santiago, despertaram a ansiedade científica: Mendonça de
Azevedo, impressionado com a autoincriminação de Cláudio, pediu
uma perícia grafíticas sobre a assinatura de 2-07-1789, comparada
com duas ou três fotografias ou clichês de assinaturas bem anteriores à devassa. E Sertório de Carvalho recorreu a um médico legista
para opinar sobre o auto de corpo de delito de 4-07-1789.
Se ambos não quisessem ilustrar a tese do homicídio, os técnicos consultados não se sentiriam tão inseguros.
O grafólogo esclarece de início que não é possível comparar
os materiais recebidos de maneira confiável. Estudos deste gênero
não se fazem com clichês. A fisionomia da letra é de Cláudio. O
exame seria o possível: macroscópico. Quase nunca conclusivo,
salvo em imitações grosseiras. Os grafismos, que poderiam sugerir
alguma base de raciocínio, não podiam ser verificados. Não sabia o
perito que as assinaturas de paradigma datavam de quando Cláudio
servira de Secretário do Governo (1762 a 1765), mais de 20 anos
antes. Tão pouco foi informado do estado emocional, sanitário e da
idade do réu ao firmar as declarações. Nem se lhe disse que aquelas
declarações, pelas ocorrências que narra, só podiam ser feitas por
uma pessoa: o próprio Cláudio. Em consequência, opina que podia
ser uma falsificação: pelo mesmo, ou por terceiro. Exclui a primeira
hipótese porque injuriosa ao poeta.
O pensamento desejoso, em Mendonça de Azevedo, grande
e benemérito pesquisador, levá-lo-ia a declarar provado o assassínio.
***
114
Sertório de Carvalho também queria um parecer, agora médico-legal, que fortalecesse a tese do homicídio, como declara candidamente.
O Dr. Nilton Sales (1952) se calca da mesma prudência. Os
ignorantes cirurgiões, sem ciência e sem escolaridade especializada, seriam reprovados pela incorreção terminológica e pela insuficiência do documento lavrado em 1789, que não atende aos requisitos mínimos de um simples relatório de ocorrência...
Entretanto, a descrição do que vira, parecia "corresponder
com fidelidade" ao quadro observado. Seria possível que se tratasse
de um homicídio? Sim: por esganadura em que o criminoso utilizasse apenas a mão direita. E esquece que, em tal caso, à lesão deixada no lado direito do pescoço da vítima (pressão do polegar) deveria corresponder, no lado esquerdo, à pressão dos quatro dedos
restantes...
Pondo de parte contradições e fantasias, a despeito das imperfeições naturais num laudo de 1789, é possível reconstruir com
certa prova documental o que ocorreu na madrugada de 4 de julho
daquele ano.
***
LOCAL DA MORTE. Ivo Porto de Meneses sugere que talvez
a Casa do Real Contrato não fosse a de Macedo. Seria a do rendeiro
José Pereira Marques, primeira que se seguia à Ponte de São José,
lado direito. As razões alegadas: o contrato das entradas, no triênio
de 1788 a 1790, pertencia a Marquésio. É mera confusão entre o
período gerador do tributo e a duração do contrato perante o fisco.
Enquanto houvesse quantia a arrecadar do contribuinte pelo rendeiro, e enquanto este devesse recolher parcelas de seu débito (valor da arrematação) aos cofres da Fazenda Real, o contrato vivia. E
não só vivia, como convivia e litigava com arrematantes de outros
triênios e de outros tributos. Macedo devia aos cofres reais 750
115
contos (1786) e teria a arrecadar ainda maior quantia dos contribuintes. Quando afinal a Real Fazenda sequestrou-lhe os bens, o alcance era de 634 contos (adjudicação em 1803). Depois de João de
Sousa Lisboa, falecido em 1765 (mas cujos contratos viveram sob
administração da Junta há cerca de 30 anos), foi o maior e mais importante rendeiro das Minas.
A mansão de João Rodrigues de Macedo ocupa todo o lado
direito da Rua de São José, antes da Ponte. Iniciada a construção
em outubro de 1780, o projeto original já se concluíra em 1782. Antes da construção da Cadeia e Casa da Câmara (atual Museu da Inconfidência) era de longe o segundo edifício em importância da Capitania. A planta de Vila Rica, executada em 1785 por P.D. Almeida.
As Cartas Chilenas · Fontes Textuais a mostra como um retângulo
com testada de 14 braças por 7, da frente aos fundos. As pernas do
U foram acrescidas para instalarem-se lá a Casa dos Contos e a Intendência do Ouro, de 1792 a 1794.
A sugestão do Prof. Meneses argumenta ainda na eventualidade de ter a casa de Marquésio, sobre o pórtico lateral, umas cafuas de 1 m x 2 m, que supôs servirem para segredos (ou celas,
como se diz atualmente). Marquésio certamente negociava negros,
o que explicaria as cafuas. Ivo, porém, esqueceu os privilégios de
casta. Até hoje, comerciantes e doutores têm direito a prisão especial...32
A casa de Macedo (Ivo o comprova) foi alugada à Câmara,
por ordem do Barbacena, para servir de quartel as tropas do Rio naturalmente instaladas nos anexos adaptados de morro acima.
No piso térreo, prepararam-se duas celas especiais para presos de relevo. Eram as duas salas que, em cada ala, constituíam o
fundo das lojas. Na da esquerda, recolheu-se o cônego Luís Vieira
da Silva (transferido de Mariana a 24-06); na da direita, com acesso
32
O autor escreve em 1974.
116
pela porta sob a escadaria monumental, foi recolhido Cláudio Manuel da Costa (25-06). Aquele tinha privilégio eclesiástico; este,
além de formado em Cânones na Universidade de Coimbra, era portador do Hábito de Cristo. E, em todo o decorrer da Devassa MG, os
presos a elas recolhidos foram pessoas de qualidade.
A palavra segredo, além de cela, significava a incomunicabilidade na prisão. Já por Decreto de 7 de agosto de 1702 se proibia
"o ter os réus nele por mais de cinco dias, por ser uma espécie de
tormento, que já não tem lugar." Quando conviesse prolongá-lo por
mais tempo, a lei era especiosa nas condições limitantes ao abuso
da autoridade. Em 1789, usa-se a palavra incomunicável para exprimir a segregação de contato externo até o interrogatório inicial,
mas a incomunicabilidade não exclui nem a assistência ao preso,
nem se podia prolongar indefinidamente.
A cela de Cláudio (a atual sala dos fundos da Delegacia do
Ministério da Fazenda, na Casa dos Contos) foi preparada às pressas. Fechou-se a porta de comunicação com a loja de frente, trancando-se com três prateleiras o respectivo vão. Serviriam de armário ao réu. A prateleira inferior a cerca de 50 cm do chão (0,5 vara),
a superior à altura de 2 m, a intermediária a aproximadamente 1,35
m (1,5 vara). Cláudio, com o braço erguido, alcançaria a prateleira
superior e seu joelho ficaria um pouco abaixo da inferior.
A descrição do laudo de 1789 é perfeitamente clara. Não há
qualquer erro de pormenor. E sobretudo coerente. A única abertura de iluminação, na sala, é a janela bem alta, inacessível por fora
e por dentro. Detalhe óbvio, porque a sala dá para o exterior do
edifício.
Não se encontrou vela acesa ou extinta nas prateleiras. Daí
se deduz que Cláudio, insone e sob tensão de angústia, esperou as
primeiras luzes da madrugada. Por outro lado, era míope, tendo
boa visão próxima, o que o dispensou dos óculos para as laçadas e
nós.
117
Tirou os cordões de seda da bainha do calção de sécia33 encarnada. Tais cordões ou ligas serviam para segurar as meias, cujo
canhão vinha até o joelho, por baixo da bainha do calção. Dava-se
ampla laçada lateral, servindo o laço também de enfeite, com fivela.
Emendou os dois cordões para ter o 1,35m necessários. Preparou o nó corrediço e o pôs no pescoço, pois precisaria da mão
direita livre para enlaçar a outra ponta na prateleira superior e darlhe o nó de fixação.
Vestia o calção de seda preta e as meias de lã preta, mas não
os sapatos pretos com fivelas de luto com que fora para a prisão.
Alçou-se com os pés na prateleira inferior, enquanto se segurava
com a mão esquerda na prateleira superior, para enlaçá-la com a
direita. Ambos os braços erguidos. Mal terminara a fixação da extremidade livre, seu pé esquerdo escorregou da prateleira inferior
e a mão esquerda não aguentou o enorme esforço, tentando ainda
agarrar-se com a mão direita no cordão por cima da prateleira superior. O corpo em desequilíbrio, mas ainda apoiado na direita, girou em sentido contrário ao do relógio, à medida que se produziu a
queda fatal. Seu calção, ao resvalar pela prateleira intermediária,
rasgou-se.
Encontraram-no com a cabeça pendida do laço "esganado e
sufocado na parte superior da laringe". Ao completar-se o desequilíbrio, estaria praticamente de costas para as prateleiras, pois o nó
corrediço correu-lhe pela face direita do pescoço. O braço direito
travado contra as articulações pelo cordão distendido, e a mão direita tentando agarrar-se ainda à prateleira superior, ficaram erguidos como não podia deixar de ser. A perna direita, no giro, entrou
pelo vão da prateleira inferior. Completado o estrangulamento, seu
joelho se apoiou nessa. Corpo de pé, isto é, na vertical, pendido do
cordão de seda, com todo o lado esquerdo livre. A ponta do pé es-
33
enfeite
118
querdo quase tocando o chão. As costas encostadas à prateleira intermediária na da descrição, extremamente objetiva quando não se
busca descobrir nela nem a inconsciência dos ignorantes cirurgiões,
nem a fantasiosa tese de um homicídio.
Cláudio, aos sessenta anos cumpridos, com a pálida doença
e os achaques reumáticos, na posição difícil e instável a subida nas
prateleiras, forças esgotadas por noites e noites de angústia e insônia, escorregou e caiu fatalmente alguns segundos antes da morte
que buscava voluntariamente.
"E logo, na presença dos ditos ministros e de mim tabelião,
e mencionado escrivão desta ouvidoria, e cirurgiões, foi por Joaquim José Ferreira, alferes pago do esquadrão de cavalaria da
guarda do Ilmo. e Exmo. Sr. Vice-Rei do Estado do Brasil, que se
achava nas mesmas casas de quartel com sua companhia, que faz
guarda aos presos que existem nos sobreditos segredos..."
"(...) e entrando nele os ditos ministros, e oficiais, cirurgiões
(...)
“(...) a morte do referido Doutor Cláudio Manuel da Costa
só fora procedida daquele mesmo laço e sufocação, enforcando-se
voluntariamente por suas mãos (...)"
"(...) e para constar, de todo o referido mandou ele dito
Doutor Desembargador e Ouvidor Geral lavrar logo este auto, que
depois de ser lido, o assinaram os ditos ministros e escrivão desta
Ouvidoria e cirurgiões, comigo Antônio Joaquim de Macedo, tabelião público do judicial e notas, que o escrevi e assinei. (aa) Antônio
Joaquim de Macedo/ Caetano José Cardoso / Manuel Fernandes
Santiago / José Veríssimo da Fonseca / Saldanha / Manitti. " (Obras
Completas ..., Rio, 1903, 1:74)
***
Dispensamo-nos de dizer que numa cafua de 2 metros quadrados não caberia tanta gente, mais a vítima, mais o armário, mais
tudo que se levou ao segredo para seu conforto e assistência...
119
O argumento ex-auctoritate pouco significa em heurística.
Porém os grandes historiógrafos pátrios, acostumados à avaliação
serena e justa documental, não aceitaram a versão lendária: Lúcio
José dos Santos, Barão do Rio Branco, Rafael Galanti, João Ribeiro,
Varnhagen, Rocha Pombo, Pedro Calmon, Carlos Góis, Sacramento
Blake. E Joaquim Norberto, laborioso, mas nem sempre lúcido. E
Pereira da Silva, de méritos louváveis, mas frequente em lapsos.
Isto em nada diminui os que cederam ao afeto, à ideologia,
à caridade cristã, aos preconceitos com que todos convivemos. O
próprio Homero cochilou algumas vezes...
5.3- Implicações Sincrônicas.
A participação de Cláudio Manuel da Costa na Inconfidência,
em atos efetivos, foi sabidamente secundária. Suas condições de
saúde, seu temperamento tímido, a alma delicada do poeta, avançada idade, a profissão, só permitiam: ouvir amigos, concordar, colaborar discretamente numa provável literatura jurídica. E sofrer.
Sofrer além das possibilidades de um organismo velho e alquebrado.
26-12-1788 - Vila Rica, em casa do ten. cel. Francisco de
Paula Freire de Andrade. A casa é a do atual Clube Aluminas na Rua
Direita de Ouro Preto. Aí se realizou, a partir das 18:00 horas, o
complô decisivo e comissivo. Antes e depois, os contatos eram pessoais, de sondagem, de informação, ou apenas corretivos do planejamento geral. Cláudio não compareceu. Explica-se: não saia à noite
nem mesmo no verão. A tuberculose crônica (Vila Rica 9:8), talvez
oriunda do contágio familiar, datava de antes de 1772. Perdera dois
irmãos na série dos vinte anos de idade, período crítico em que a
pálida doença dizimava a juventude. No homem maduro, a forma
120
fibrosa permite longa sobrevida. Quase sexagenário, os achaques
reumáticos recomendam prudência. Míope e com uma conjuntivite
crônica (Vila Rica 9:9; C. Ch. 1:4). O ardente amor de Eulina (Francisca Arcângela de Sousa) já não produz nem versos, nem filhos, calmando em cinzas mornas de cuidado e carinho (Mathias, Um Recenseamento..., Rio, 1969, pp. 92). Gonzaga batiza-o de Doroteu:
um dos três jurisconsultos que Justiniano incumbira da elaboração
das Institutas um dos grandes monumentos jurídicos da humanidade. É uma das chaves das Cartas Chilenas esclarecendo os Autos
das Devassas.
27-12-1788 - Casa de Cláudio (Rua Direita de Antônio Dias,
esquina da Rua de São Francisco): Café da manhã. Gonzaga, Alvarenga e padre Toledo o visitam narrando-lhe o complô, a bandeira
de Tiradentes e o projeto das armas republicanas (gênio quebrando
grilhões). Faltava o dístico. Cláudio sugere o lema da América Inglesa: Libertas atque spiritus, ou Aut libertas, aut nihil. (Nota: Cláudio, às vezes, peca em falsa erudição. Jamais as armas norte-americanas tiveram tal lema. Alvarenga, irreverente, julga pobre a imitação. E propõe o verso de Virgílio: Libertas quae sera tamen (Ec.
I:27), que os companheiros unanimemente aprovam e louvam
(ADIM 4:147). Ante o entusiasmo ativo do padre Toledo, que já se
despedia para ir mobilizar a Comarca do Rio das Mortes, o poeta ri
e os considera todos loucos. (Obras Completas, Rio, 1903, pp. 72).
20-01-1789 - Casa de Cláudio (escritório). Joaquim Silvério
dos Reis (Silverino), premido pela Junta da Real Fazenda às liquidações de seu falimentar contrato (período gerador: 1782/84), pactua
com Cláudio a sua defesa. E lhe pede empréstimo, que foi concedido (ADIM 1:357).
Critilo parece comentar:
121
"O velho Altimidonte certamente
tem postas nos narizes as cangalhas,
e revolvendo os grandes, gordos livros,
cos dedos inda sujos de tabaco,
ajunta ao mau processo muitas folhas
de vãs autoridades carregadas."
(C.Ch. 3:13)
22-02-1789 - Casa de Cláudio (escritório). Cláudio atende
com empréstimo a Manuel Teixeira de Queiroga (Roquério), rendeiro dos dízimos (período gerador: 1787-89). Pedante rendeiro.
Critilo o descreveria:
"Aqui o bom Robério se distingue:
compõe algumas quadras que batiza
com o distinto nome de Epigramas,
e pedante rendeiro as dependura
na dilatada frente, que ilumina,
fazendo as escrever em lindas tarjas."
(C.Ch.5:306)
Critilo comete um ato de anacronismo. Roquério era rendeiro na hora em que o poeta escrevia, mas não o era em 1786 nas
festas dos casamentos reais. A dilatada frente de sua casa ficava na
esquina da Rua Direita de Antônio Dias com o Largo do Pelourinho,
defronte à casa de Critilo. Ainda lá está o grande e belo sobrado do
comerciante, metido a pedante protetor das letras de Robério (Roberto Antônio de Lima, assecla de Fanfarrão Minésio). E prossegue,
adiante, em fina caricatura:
"Andava, Doroteu, alegre a gente
em bandos pelas ruas. Então vejo
122
ao famoso Roquério deste traje:
as chinelas nos pés, descalça a perna,
um chapéu muito velho na cabeça,
e fora dos calções a porca fralda.
Em um roto capote mal se embrulha,
e grande varapau na mão sustenta
que mais de estorvo que de arrimo serve,
pois a cachaça ardente que o alegra
Lhe tira as forças dos robustos membros
e põe-lhe peso na cabeça leve.
Não repares, Amigo, que te conte
este sucesso que parece estranho.
Este grande Roquério é um daqueles
que assenta à sua mesa o nosso Chefe.
Agora, Amigo, vê se esta pintura
não pode muito bem à nossa história,
sem violência, servir também de enfeite."
(C.Ch. 5:317)
Somente Gonzaga, vizinho da frente, poderia retratar as
duas pinturas de quem viria a dar à Marília morena um afilhado no
ano de 1794...
Critilo gostava de rir à custa de Doroteu...
15-03-1789 - Palácio da Cachoeira do Campo. Silverino delata a Inconfidência ao Visconde de Barbacena. Foi intimado a 3-03
(decisão da Junta) a vir pagar o que devia e furtava à real Fazenda.
Jamais mencionou Claudio em qualquer denúncia.
16-03-1789 Casa de Domingos de Abreu Vieira (Rua de São
José, esquina da ponte em frente à Casa dos Contos) Silverino pede
empréstimo (negado) a "um sujeito que o pode bem pagar por mais
123
que perca" (C.Ch. 7:314) isto é, ao bom Domingos, arrematante dos
dízimos no triênio gerador de 1784-86, sucessivo ao de João Rodrigues de Macedo, seu vizinho da frente. Silverino não o pede a Macedo, com quem litigara e perdera por sentença de Gonzaga, pura
e simplesmente revogada por Fanfarrão.
Silverino visita a Cláudio, seu advogado, depois do insucesso. Terá ouvido do pobre Domingos, a quem se insinuara como
inconfidente, que o Fiscal dos Diamantes, Luís Beltrão de Gouveia,
e o Ouvidor do Serro, Joaquim Antônio Gonzaga (primo-irmão do
poeta Critilo), estariam sendo aliciados pelo padre Rolim.
17-03-1789 - Palácio da Cachoeira. Silverino obteve moratória do Barbacena, a quem acrescenta a denúncia anterior com três
nomes: Domingos, Beltrão e Joaquim Antônio. Barbacena estrepouse com o Vice-Rei ao mencionar em carta os dois últimos como suspeitos... Mas o Capitão General escreve no mesmo dia à Câmara de
Vila Rica, comunicando a suspensão da derrama. Data a carta do dia
14, evidentemente para duplo disfarce: o da denúncia recebida e
para simular ter tomado a decisão no dia da reunião da Junta em
Vila Rica. A carta foi registrada na Câmara no mesmo dia 17.
18-03-1789 - Palácio da Cachoeira. Gonzaga visita o Governador, demorando-se toda a tarde, sugere ao Visconde a independência da Capitania, "para o que bastavam dois homens" (AMI
2:45), A presença de Francisco Antônio Rebelo, ajudante de ordens,
dificultaria a conversa. Gonzaga refere em inquirição, muito mais
tarde, um diálogo que teria tido com Alvarenga Peixoto (ADIM
4:277).
O diálogo teria ocorrido na casa do ex-Ouvidor, em que se
hospedava novamente Alvarenga (que regressara a 10-03 da sua fazenda no Paraopeba, ao sul de Carijós), e deve ter ocorrido no dia
seguinte àquela visita (19-03):
124
Alvarenga: "Estive com Francisco de Paula nos Caldeirões
(norte de Carijós). Perguntou-me se Minas podia mesmo tornar-se
um estado independente. Que acha vosmecê?"
Gonzaga: Acho que sim.
Alvarenga: "Dê as razões."
Gonzaga: "Minas tem riquezas próprias capazes de sustentar uma nação: ouro e diamantes."
Alvarenga: "Mas como administrar estas riquezas?"
Gonzaga: "Ocorre que o Visconde General me fez a mesma
pergunta. Um dia hei de responder a vosmecês ambos..."
A rara inteligência de Gonzaga não escapara da relação de
causa-efeito: Silverino - denúncia - suspensão da derrama. Daí a visita e a proposta ao Visconde da coroa de Minas sobre a cabeça.
Cabeça que, no complô de 26-12, por proposta do mesmo Critilo,
havia de ser cortada, pois a cabeça dos tiranos, só tinha uma utilidade: encorajar os povos uma vez cortada. O que Tiradentes se
propôs a fazer...
Na semana santa, em São José, o padre Toledo se confessou
muito aliviado à José de Rezende Costa: porque já se não cortaria o
pescoço de Barbacena. Seria enviado Serra abaixo com a família.
Alteração nos planos. E correspondência ativa, também!
Apenas Cláudio o sabia, para as declarações que fez em 2 de
julho.
26-03-1789 - Vila Rica - Matriz do Pilar. O cônego Luís Vieira
da Silva é o sermonista das Exéquias do Príncipe D. José. Gonzaga
não veste luto (por razões de economia, como havia de declarar). O
cônego Luís hospeda-se com Macedo, na Casa dos Contos. À noite
vai conversar com o Intendente Bandeira na casa defronte (a terceira desde a ponte de São José), onde encontra Gonzaga.
125
27-03-1789 - Casa de Cláudio. Almoço ao meio dia (que ao
tempo se denominava jantar). Convidados: Bandeira, Gonzaga, Alvarenga, o cônego Luís. Tema: a oportunidade do levante perdida
pela suspensão da derrama. A versão tardia, acomodatícia e escusatória, reduz a conversa a três pessoas: o cônego, Alvarenga e
Cláudio. Bandeira ficara passeando na sala de jantar. Aqueles três
na varanda vizinha. Gonzaga, recostado na escada da varanda, com
terríveis cólicas biliares. Bandeira, depois, o acompanhou à casa...
O cônego estava de partida para Mariana e sairia, finda a conversa,
montado no seu cavalo. Alvarenga anunciou sua partida para São
João a 29-03 e fez suas despedidas a Cláudio. Teria observado aos
amigos, ironicamente, que o ten.cel. Francisco de Paula não servia
de nada: covarde inoperante. Mas que o visitaria de passagem nos
Caldeirões.
28-03-1789 - Casa de Domingos de Abreu Vieira (Rua de São
José, junto à ponte). Alvarenga visita e pede empréstimo ao velho
Domingos: sessenta mil réis. Domingos dera a Tiradentes a 9-03,
quando este partia para o Rio no dia seguinte (10-3), cem mil réis.
É fácil comparar o crédito de um e outro. Alvarenga passa à casa de
Macedo e ouve de Vicente Vieira da Mota a confirmação da denúncia apresentada por Silverino a 15-03.
29-03-1789 - Casa de Gonzaga (Rua Direita de Antônio Dias,
dando frente para o Largo do Pelourinho). Alvarenga se prepara
para partir.
30-03-1789 - Palácio da Cachoeira. Alvarenga conversa com
o ajudante de ordens Antônio Xavier de Rezende, que sonda sugerindo o ânimo sedicioso dos ministros. Rezende levara uma espinafrada de Gonzaga, por tê-lo deixado de anunciar ao Visconde numa
126
das raras audiências deste no Palácio de Vila Rica. (Na carta de Barbacena ao Vice- Rei, datada de 24-03, referida a visita de Gonzaga
no dia 18, dá-se por aliviado por este não ter voltado como prometera.)
31-03-1789 - Fazenda Caldeirões (Carijós). Alvarenga hospeda-se e conta planos novos em face da denúncia de Joaquim Silvério, inteiramente confirmada. O frágil ten.cel. Francisco de Paula
diz que só esperava a licença da Corte para partir para Lisboa…
2-04-1789 - Fazenda Caldeirões (Carijós). Assim que Alvarenga partiu com destino a São João, Francisco de Paula toma da
pena e escreve vaga e inócua carta de denúncia ao Visconde de Barbacena, lastimando não poder fazê-lo pessoalmente por ter caído
do cavalo e torcido um pé... Bom cavalariano.
5-04-1789 - (São João) e 6-04-1789 (São José). Reuniões de
Alvarenga, padre Toledo e Francisco Antônio de Oliveira Lopes. Decidem tocar para diante a sedição. Alvarenga partiria para Campanha (sede de seu Regimento de Cavalaria Auxiliar) logo após o casamento da cunhada com o cel. (Aux.) Moinhos de Vilhena, também
afazendado em São Gonçalo do Sapucaí.
15-04-1789 - Palácio da Cachoeira. O bronco Basílio de Brito,
acompanhado de Francisco Antônio Rebelo, faz denúncia de suas
suspeitas em relação à Inconfidência. Referências vagas a Cláudio
Manuel da Costa, em cuja casa vira entrar Tiradentes meses antes.
Idem com relação ao cônego Luís Vieira da Silva, entusiasta da América Inglesa, segundo Ouvira de Vicente Vieira da Mota na loja de
Macedo (Casa dos Contos). Barbacena, talvez para livrar-se do
chato, encarrega-o de apurar a verdade em visitas a Cláudio, em
Vila Rica, e ao cônego, em Mariana.
127
16-04-1789 - Casa de Cláudio. Cláudio, deprimido, se queixa
de que Tiradentes falara muito, com muita gente. Acabaria perdendo a cabeça... Basílio de Brito o visita.
06 -05-1789 - Palácio da Cachoeira. Barbacena escreve ao
Governador de São Paulo, Bernardo José de Lorena, pedindo a extradição de Claro de Tal (Claro José da Mota), sobrinho do padre
Toledo, que teria assistido ou ouvido " a uma das sobreditas sediciosas conversações em casa de um advogado muito conhecido, Cláudio Manuel da Costa". E fica nisso, tudo que sabe de Cláudio. A testemunha nunca mais seria encontrada, não sendo possível apurar a
veracidade do mentecapto Basilio.
17-05-1789 - Casa de Cláudio. Ao anoitecer, Cláudio trabalhava em seu escritório cuja janela abria para a Rua de São Francisco. Um embuçado (Francisco Antônio de Oliveira Lopes, amigo
de Francisco Antônio Rebelo, e que viera para obrigar Francisco de
Paula ao levante e, se impossível, desmoralizar a denúncia de Joaquim Silvério com uma contra denúncia) chama-o à janela: "Vosmecê vai ser preso. Queime os papéis suspeitos e fuja se puder."
Cláudio, transtornado, sai em busca de José Verissimo da Fonseca
(escrivão da Ouvidoria), vizinho de Cláudio no outro lado da Rua de
São Francisco, esquina da mesma Rua Direita. Este o tranquiliza e o
acompanha de novo à casa.
O embuçado passaria na casa de Gonzaga (então ausente),
deixando o recado com a crioula cozinheira. Atravessaria a Praça,
descendo a Rua Direita de Ouro Preto até a casa vizinha (lado de
cima) do ten.cel. Francisco de Paula. Aí residia o Dr. Diogo Pereira
Ribeiro de Vasconcelos, conterrâneo de Gonzaga (nascido no Porto)
e seu afilhado de casamento, deixando-lhe igual mensagem (certamente para ser transmitida a Critilo). Este recebera (o Dr. Diogo),
128
na mesma noite, a visita do comerciante Joaquim de Lima e Melo,
chegado ao cair da tarde do Rio de Janeiro com a notícia da prisão
de Tiradentes e de Silverino (ADIM 2:200).
18-05-1789 Casa de Cláudio. O Dr. Diogo vem encontrar-se
com Gonzaga e narra o que sabia e o aviso do embuçado. Estalagem
da Praça (seria à esquerda de quem olha o atual Museu da Inconfidência): Francisco Antônio de Oliveira Lopes, que chegara a Vila
Rica c. 1-05 cujo ten.cel. Francisco de Paula tentava neutralizar-lhe
o ímpeto revolucionário, procura o ajudante de ordens Francisco
Antônio Rebelo dizendo-lhe que viera denunciar a Joaquim Silvério.
Todos sabiam-no homem louco, sem respeito e de nenhum crédito,
e que andara falando de levante na Comarca do Rio das Mortes.
Rebelo recomenda-lhe apresentar-se ao Barbacena com a maior urgência, levando escrito o que sabia (ADIM 4:338).
19-05-1789 Vila Rica, caminho para Mariana. Vão juntos
Gonzaga (a pretexto de acelerar no Bispado os papéis de casamento
com Marília) e o ten.cel. Francisco de Paula. Este estivera nos Caldeirões até 10-05, onde recebera vários avisos dos Inconfidentes do
Rio das Mortes (inclusive intimação a passar ao Serro e começar o
levante de lá, pois estavam prontos em São João e São José) (ADIM
3:388 e 4:2771A 13-05, procurara o Barbacena na Cachoeira para
uma denúncia oral, sugerindo-lhe medidas substitutivas da derrama, caso a Coroa insistisse nela... Gonzaga conta a Francisco de
Paula o aviso do embuçado e as notícias dadas pelo Dr. Diogo, seu
afilhado de casamento. Ao que parece, o chefe civil da Inconfidência tentava um último esforço de forçar à ação o covarde chefe militar. Gonzaga estava a par do plano de contra denúncia, instância
alternativa cuja execução se cometera a Francisco Antônio de Oliveira Lopes: a desmoralização de Silverino junto ao Barbacena. Ou
não escreveria na prisão a lira 64:
129
"Ama a gente assisada
a honra, a vida, o cabedal tão pouco,
que ponha uma ação destas
nas mãos dum pobre, sem respeito e louco? “
É o mesmo que diziam, depois de presos, o padre Toledo
(ADIM 4:161), Alvarenga (ADIM 4:131). E Oliveira Lopes confirmaria
o plano (4:338): deviam todos negar a existência da conjura (ADIM
4:177), salientando e focalizando em Silverino o intento interesseiro com que buscava fugir à falência...
(Nota: Os críticos literários, ignorando a história e os Autos,
há mais de século supunham referir-se Gonzaga a Tiradentes).
Enquanto Gonzaga e Francisco de Paula chegavam a Mariana, no Palácio da Cachoeira, Francisco Antônio de Oliveira Lopes
punha em marcha a contra denúncia a que o tenente-coronel tanto
se opusera. Barbacena o ouve atentamente, dá-lhe prazo para enviar por escrito o que dissera, e finalmente o adverte: "Fez muito
bem de procurar-me, porque livrou-se de boa..." Efetivamente, ao
ordenar as prisões do padre Toledo, do irmão Luís Vaz, e de Alvarenga, no Rio das Mortes, excluiria o fogoso Oliveira Lopes, fazendeiro na Ponta do Morro, ex-capitão de uma companhia do Regimento Pago...
No mesmo dia 19-05 à noite, chegava ao Palácio de Vila Rica,
o mensageiro do Vice-Rei: soldado Antônio Ferreira. Pelo Caminho
do Rio, viera espalhando a confirmação das prisões, Oliveira Lopes,
já em marcha batida para São José, ao encontro dos companheiros
que já haviam reunido na Laje mais de cem homens. Estava de semana, no Palácio, o ajudante de ordens Antônio Xavier de Rezende.
Partem ambos para o Palácio da Cachoeira. Barbacena ia dar início
à repressão, seguro de que as três companhias enviadas pelo ViceRei começavam a transpor o Paraibuna (ADIM 3:381 e AMI 2:56).
130
21-05-1789 - Palácio da Cachoeira. Barbacena da ordem a
Francisco Antônio Rebelo para prender Gonzaga, apenas aguardando confirmação do movimento das tropas do Rio. Antônio Xavier de Rezende faria a prisão de Domingos de Abreu Vieira. Aquele
seria conduzido imediatamente ao Rio, sob escolta do cap. RCR Antônio José de Araújo. O réu inofensivo seria recolhido à Cadeia de
Vila Rica. Na véspera, saíra para a Comarca do rio das Mortes o ten.
Antônio José Dias Coelho, encarregado das prisões lá programadas
para 24-05 (pe. Toledo, o irmão Luís Vaz e Alvarenga). Luís Vaz se
refugiara na Laje, local em que se haviam concentrado mais de cem
cavaleiros para dar início à sedição, caso Francisco de Paula tivesse
concordado em iniciá-la do Serro.
Igualmente, Barbacena enviara para o Tejuco o irmão de Padela (ten. Fernando de Vasconcelos Parada e Sousa) para que se
prendessem lá o padre Rolim e Nicolau Jorge (este, como óbvio preparo de uma base acusatória contra o fiscal dos diamantes, Luiz Beltrão).
Critilo escreve a Carta 9a. no decorrer de abril, pois em fins
de março Padela fora substituído no comando do Destacamento Diamantino e voltara a Vila Rica. Os dois Padelas passariam a servir
dedicadamente ao Barbacena...
21-05-1789 - Ponta do Morro (São José). Francisco Antônio
de Oliveira Lopes chegara à noite em sua fazenda. Já devia ter tido
contato com Alvarenga e padre Toledo, porque faz Francisco José
de Melo, primo da admirável D. Hipólita Teixeira, mulher do inconfidente e ela própria inconfidente, escrever ultimatum ao ten.cel.
Francisco de Paula, que Vitoriano Gonçalves Veloso se incumbiria
de levar a Vila Rica (ADIM 2:155 e 3:431). É a mensagem inutilizada
pelo padre José Maria Fajardo de Assis (ADIM 2:163 e 1:225), para
que se não comprometesse o mensageiro se viesse a ser preso:
131
"O negócio está em perigo. Veja o que quer fazer, que o faremos logo..."
No dia 23 de maio, Veloso, já nas proximidades de Ouro
Branco, veria passar preso Tomás Antônio Gonzaga e desistia de
prosseguir até Vila Rica.
22-05-1789 - Casa de Gonzaga. Almoço (dizia-se jantar) a
que compareceram Bandeira, Cláudio, os padres José Martins Machado (gordo Josefino) e Coutinho. Chegam e participam do almoço
os ouvidores Saldanha e Manitti. Cláudio queixa-se de que fora denunciado ao Barbacena. Gonzaga responde-lhe: "Não apenas vosmecê. Bandeira e eu também. É tão absurdo que não merece sequer um aborrecimento. “Quando vosmecês saírem vou até compor uma ode.” (ADIM 4:247) …
23-05-1789 - Casa de Gonzaga. É sábado. Bem cedo, Francisco Antônio Rebelo se apresenta para a prisão. Gonzaga ainda
dorme. Os ouvidores Saldanha e Manitti chegam para o sequestro
simultâneo, acautelatório do confisco a que os réus culpados de
crime de lesa-majestade estavam sujeitos. O sequestro é sempre
concomitante à prisão e é simbólico, ficando os bens arrolados entregues a depositário de confiança do suspeito, sob juramento.
Mourão, um dos protegidos e ex-criado do ministro, quem assume
a responsabilidade dos valores apreendidos, salvo o dinheiro devolvido ao réu para despesas na viagem com destino ao Rio. Gonzaga,
acompanhado por Rebelo e sob escolta ao comando do cap. Antônio José de Araújo, detém-se no Palácio da Cachoeira, onde Barbacena lhe atesta as causas de sua permanência em Vila desde a sucessão no cargo de Ouvidor: o noivado e o próximo casamento de
que "havia circunstâncias para não desistir" (ADIM 4:256) ...
132
25-05-1789 - Palácio da Cachoeira. O ten.cel. Francisco de
Paula visita o Visconde e narra-lhe a viagem a Mariana, na companhia de Gonzaga, e o que este lhe contara do aviso do Dr. Diogo
sobre as prisões no Rio e o caso do embuçado. Barbacena, que mandara apreender em separado os papéis de Gonzaga, em sacos lacrados para seu exame pessoal, surpreende-se de nada encontrar suspeito. Sobretudo porque, na apreensão de papéis a Domingos de
Abreu Vieira, preso naquele mesmo dia 23-05, os ouvidores Saldanha e Manitti encontrariam as duas cartas do padre Rolim bem significativas.
26-05-1789 - Palácio de Vila Rica. O ajudante de ordens Rezende convida Cláudio a que o informe sobre o caso do embuçado.
Nem se lavra termo das declarações do poeta, que volta à sua casa
em plena liberdade... Casa do Ouvidor Saldanha (o sucessor ficara
residindo em outro local, até que Gonzaga se casasse e partisse, liberando o prédio em que vivia, na verdade próprio público). Os ouvidores Saldanha e Manitti inquirem todos os familiares de Gonzaga, indagando seus passos nos últimos dias, os amigos, aonde enviaria seus trastes ou papéis, se passou alguém, se dormiu fora alguma noite, e que reservas tinha nas conversas e com os documentos. Única informação: os maiores amigos do poeta eram Bandeira,
Cláudio, José Veríssimo da Fonseca, e os padres Coutinho (seu capelão) e Martins (o gordo Josefino das Cartas Chilenas) (ADIN
2:441).
27-05-1789 Casa do Dr. Diogo. É preso e conduzido à Cadeia
pelo ajudante de ordens Rezende. Sendo vizinho do ten.cel. Francisco de Paula, é surpreendente que este mais tarde lhe ignorasse
o resto do nome (ADIM 3:388) ...
133
29-05-1789 Cadeia. Os ouvidores Saldanha e Manitti tomam
as declarações do Dr. Diogo e o inquirem. Este nega tudo, salvo que
fora visitado no dia 26-05 por Joaquim de Lima e Melo, o qual mencionara as prisões feitas no Rio. Naquela data, todo mundo sabia
disso em Vila Rica... E o Dr. Diogo continuou incomunicável na prisão (ADIM 2:200). E ainda os ouvidores inquiriram outro preso, o
bacharel João de Araújo e Oliveira, cobrador de um dos contratos,
que Basílio de Brito acusara de dizer, na loja da Casa do Contratador
Macedo, presença de Antônio José Soares de Castro, que o Visconde havia de ser o governador mais infeliz das Minas. Este preso,
reinquirido e acareado no dia 4-06, sairia sem culpa. Dissera-o porque dava peso prender padre, como o Visconde mandara fazer com
o padre-mestre Teodoro no Serro...
2-06-1789- Palácio da-Cachoeira. Conquanto os dois ouvidores formalizassem um esboço de abertura de devassa no dia 28-05,
a situação era indefinida quanto ao processamento jurídico-penal.
Só no dia 2 de junho, ao tomar conhecimento da Devassa-PJ aberta
a 7-05 pelo Vice-Rei, Barbacena se apercebeu da irregularidade e
do risco de comprometimento de sua jurisdição. Apressa-se a escrever a Luís de Vasconcelos aprovando os ministros escolhidos no
Rio e que já nomeara ministros para a Devassa-MG (Saldanha, como
juiz, e Manitti, escrivão) (AMI 2:58).
Barbacena informa ainda ao Vice-Rei de que Luís Vaz de Toledo não pudera ser preso e que constava, sem confirmação, que
os dois irmãos Francisco Antônio de Oliveira. Lopes e padre José
Lopes de Oliveira haviam desaparecido ao saberem das prisões no
Rio... Mais importante: agradecia o mapa e roteiro das tropas que
começavam a subir para Minas (uma companhia do esquadrão do
Vice-Rei, cavalaria de guarda; uma companhia do Regimento de Infantaria de Moura e outra do Regimento de Bragança). Em face
134
disto, chamaria o juiz presidente da Câmara de Vila Rica e o Contratador Macedo para estudarem os preparativos do aquartelamento.
A casa de Macedo, cujos anexos morro acima sofreriam rápidas
obras de adaptação, seria alugada parcialmente pela Câmara (a responsável pela conservação dos quartéis e cadeias em Vila Fica).
3-06-1789 Palácio da Cachoeira. Barbacena manda o ouvidor de São João, Azevedo, averiguar se Francisco Antônio de Oliveira Lopes havia fugido. E que, o encontrando, notificasse para vir
vê-lo em Vila Rica.
8-06-1789 - Vila Fica, Cadeia. É recolhido preso o emissário
de Francisco Antônio de Oliveira Lopes, Vitoriano Gonçalves Veloso,
que provavelmente viera trazer ao Palácio da Cachoeira a carta-denúncia daquele (prometida desde há muito), redigida pela esposa,
D. Hipólita Teixeira.
9-06-1789 Cadeia. Os ouvidores Saldanha e Manitti inquirem a Vitoriano Gonçalves Veloso. Chega do Tejuco a fracassada escolta do ten. Fernando de Vasconcelos, a quem o padre Rolim escapara. Trouxe Nicolau Jorge e Crispiniano da Luz Soares. O irmão de
Padela acusa o cap. Manuel da Silva Brandão de responsável por
aquela fuga. Barbacena manda ordem ao Comandante do Destacamento Diamantino para apresentar-se em Vila Rica (ADIM 2:133,
3:127 e 3:130). O mensageiro para o Tejuco leva instruções ao Intendente dos Diamantes, Antônio Barroso Pereira, para investigar
o caso.
11-06-1789 Palácio de Vila Rica. Barbacena, Saldanha e Manitti examinam os papéis apreendidos em São João a Alvarenga Peixoto: um poema inacabado dedicado ao Visconde um bilhete do
padre Toledo convidando-o para o complô de 26-12...
135
12-06-1789 Palácio de Vila Rica. Barbacena regulariza a Devassa-MG baixando as portarias de nomeação dos ouvidores Saldanha e Manitti para juiz e escrivão, respectivamente (ADIM 1:4), expede ordem para o ouvidor do Serro, Joaquim Antônio Gonzaga,
sequestrar os bens do padre Rolim (ADIM 5:295). Prende-se, inquire-se a acareia-se na Cadeia ao rapaz Salvador C. A. Gurgel
(ADIM 2:189 e 2:193). Francisco Antônio de Oliveira Lopes se apresenta ao Barbacena que o manda recolher à Cadeia. Salvador Gurgel, de 23 anos, fora denunciado por conversas suspeitas, pelo cap.
(Ord.) Florêncio José Ferreira (ADIM 2:417).
15-06-1789 Palácio de Vila Rica. Barbacena dá posse aos ouvidores encarregados da Devassa-MG. Estes, na Cadeia, inquirem a
Francisco Antônio de Oliveira Lopes (ADIM 2:33).
16-06-1789 - Cadeia. Os ouvidores Saldanha e Manitti inquirem a Domingos de Abreu Vieira (ADIM 1:91).
18-06-1789 Casa do Ouvidor Saldanha (talvez já mudado
para a ex-casa de Gonzaga). Os ouvidores Saldanha e Manitti ouvem
testemunhas: o padre Francisco Vidal Barbosa e o denunciante Basílio de Brito (ADIM 1:96 e 1:98). Este faz carga contra Cláudio e o
cônego Luís Vieira da Silva, aos quais andara espionando por ordem
do Barbacena. Padela, em conversa no Quartel do Regimento, estranha que Barbacena não agisse contra dois tão notórios amigos
de Gonzaga…
20-06-1789 Cadeia. Nova inquirição de Domingos de Abreu
Vieira (ADIM 2:11).
136
22-06-1789 - Mariana, Cadeia. O ajudante de ordens Rezende recolhe preso o cônego Luís Vieira da Silva, enquanto o juizde-fora Antônio Ramos da Silva Nogueira procede-lhe ao sequestro
(ADIM 2:118 e 5:279). Em Vila Rica, na casa do Ouvidor Saldanha,
são ouvidas as testemunhas: Vicente Vieira da Mota (caixa do contrato de Macedo), Raimundo Correia Lobo (cel. Aux. Pardos do Tejuco), Crispiniano da Luz Soares (também do Tejuco) e Antônio José
Soares de Castro.
23-06-1789 Cadeia. Inquirição de Nicolau Jorge.
24-06-1789 Casa de Macedo (ou dos Contratos, atual Casa
dos Contos desde 1794 aproximadamente). Chega a companhia do
Esquadrão do Vice-Rei. Comandante: capitão Botelho; tenente: Miguel Nunes Vidigal (futuro personagem do romance "Memórias de
um Sargento de Milícias ", por Manuel A. Almeida); alferes: Joaquim
José Ferreira. Aboletam- se nas instalações improvisadas, adaptação dos anexos à Casa dos Contos. Na própria casa de Macedo, também se improvisam duas celas (ou segredos na linguagem forense
da época), utilizando os quartos ao fundo das lojas, uma em cada
ala. A porta de ligação para a loja foi trancada e reforçada com prateleiras (três) destinadas a servir de armário aos reclusos, ficando a
guarda no saguão, para o qual se abriam as portas das celas, uma
de cada lado. No mesmo dia 24, o cônego Luís deu entrada na cela
da esquerda, transferido da Cadeia de Mariana.
25-06-1789 - Casa de Cláudio. Por ordem de Barbacena, o
capitão José de Vasconcelos Parada e Sousa (o Padela) compareceu
na manhã para prender e levar Cláudio para a Casa dos Contos,
onde o entregaria à responsabilidade do alferes Joaquim José Ferreira, oficial do esquadrão do Vice-Rei, cuja companhia tinha a seu
137
cargo o referido imóvel. Para o sequestro, compareceram os ouvidores Saldanha e Manitti, acompanhados de José Veríssimo da Fonseca. A casa e os bens são confiados ao depositário Francisco Xavier
de Andrade Ferreira, morador defronte e amigo de Cláudio.
A Adão Cardoso dos Santos, irmão provável de Francisca
Cardoso (mulata que passara a chamar-se Francisca Arcângela de
Sousa, e que, por 29 anos foi amante do poeta, dando-lhe cinco filhos), os ouvidores entregaram "uma borracha com bocal de prata,
contendo 61,5 oitavas de ouro em pó" para que assistisse o réu na
prisão. Tal quantia é vultosa: maior que soldo trimestral de um alferes pago. Excede significativamente a quantia devolvida a Gonzaga para as despesas de uma longa viagem até o Rio (60$). Conclusão evidente: destinava-se também à manutenção de Eulina e filhos, a família putativa do poeta. Eulina seria a fornecedora dos alimentos a seu querido Glauceste. Morava na Rua de São José, lado
direito, quarta casa depois de Tiradentes. Amplo e confortável sobrado. Em 1765 ainda Francisca seria cativa, pois o filho Feliciano
Manuel da Costa, então nascido, teve de ser alforriado pelo pai. No
Tombo de Vila Rica (1812), Feliciano reside logo a seguir ao sobrado
desta, com a indicação de pardo forro. (V. Livros: Arrematações, 2412-1783; Vereações, id.; ADIM 5:263; AMI 2:86; MATHIAS, Um Recenseamento. Rio, 1969, pp. 92).
Não é a única curiosidade do sequestro. Os ouvidores determinam que uma parte dos objetos pessoais e domésticos do réu
acompanhem à prisão: tamborete, mesinha de pau, dois colchões
(sendo um de lã acolchoado), garrafa e copo, lençóis de linho, travesseiro, fronhas, toalhas de Bretanha e de linho, e dois cobertores
(um novo, de papa branca; outro encarnado), e várias peças de
roupa para muda.
Cláudio vestia: casaca e véstia de pano verde, caseada de
prata; calção de seda preta; chapéu fino; camisa de Bretanha com
babados; pescocinho de cambraia com fivela de ouro; ceroulas de
138
linho e meias de lã preta; sapatos com fivelas de luto; nos punhos,
botões de pedras encarnadas; fivelas de metal amarelo para as laçadas das ligas do calção; cabeleira na cabeça; os óculos de nariz,
pequenos; dois lenços azuis para rapé. No peito, a medalhinha do
Hábito de Cristo pregada em fita encarnada.
Em pleno inverno, gélido e úmido, veste o casacão de bae34
tão acamurçado, e ainda o capote de baetão de riscos, ambos de
cor. Para as longas horas de isolamento, pôs sob o braço dois voluminhos contraditórios: Horas Latinas, de excertos dos clássicos romanos preferidos, e Coroa de Jerusalém, conforto religioso. Nestes
trajes, acompanhou Padela.
2-07-1789 - Casa dos Contos. Os ouvidores Saldanha e Manitti o chamam para a primeira inquirição. José Álvares Maciel, o
moço, fora o primeiro a suscitar a ideia do levante a Gonzaga, assegurando a este que o cunhado, Francisco de Paula Freire de Andrade, era franco partidário. Gonzaga tinha inimigos poderosos na
Tropa (Padela, por exemplo) que se voltaram contra ele, Cláudio,
pela amizade que os unia. Depois das prisões, alguém lhe contara
que Tiradentes havia falado a diversos companheiros da Tropa (provavelmente, o ajudante de ordens Rezende na entrevista de 26-05),
ao que Cláudio contestara: "A Tropa é culpada de não o ter prendido logo, então". Atribuía a isto sua infelicidade posterior: a de ser
preso. Tê-lo-iam (Padela) intrigado com Barbacena a quem jamais
desejara ofender levissimamente... Ficara aterrorizado com a ideia
de ser preso como sócio aprovador das ideias republicanas de Gonzaga. "Os denunciantes talvez sejam mais temíveis que os denunciados" (alusão ao Padela). Incriminou os amigos: Critilo, Alvarenga e
padre Toledo. E também a Maciel, o moço, e ao tenente-coronel da
Tropa Paga, Francisco de Paula (que Alvarenga reputava um co-
34
Baetão: 1. baeta grossa. 2. cobertor ou colcha de lã grossa.
139
varde). Confessa que Tiradentes o procurara em seu escritório diversas vezes, acompanhado de outras pessoas, a consultá-lo. Compara o temperamento e fibra do alferes a dois heróis do iluminismo
nascente: Ravaillac e Damiens. E a sua coragem à dos jacques, os
camponeses de França insurgidos contra a nobreza espoliativa no
maior levante rural daquele país. E pede perdão de tanto escândalo... (Obras Completas..., Carnier, Ric, 1903, pp. 65).
Vê-se o regozijo com que Padela, executivo da prisão, tentara impressioná-lo e humilhá-lo. O mesmo Padela que Luís Beltrão
de Gouveia processara no Tejuco, devassa que chegara as mãos do
Ouvidor Gonzaga em 4-07-1788, por precatória. Cuja sentença, ilidida por Fanfarrão, Critilo define qual seja:
“ (...)
Eu conheço
que és tolo, que és brejeiro, e mais que mandas
as redradas pedrinhas. Estes dotes
te fazem, no conceito do teu Chefe,
um digno Pai-da-pátria, herói-do-reino.
Também tu, ó Padela, te distingues
na corja dos marotos. Tu conservas
de capitão o cargo, mas tu logras
o soldo de major e mais as honras.
Que foi que te fez digno de subires
à privança do Chefe? Ah! sim: eu vejo
o teu merecimento! É cousa grande:
ultrajas aos ministros e proteges
a todos os tratantes que exercitam
o furto e o contrabando. (...) “
(C. Ch. 9:155)
140
Padela voltara a Vila Rica em 28-03-1789, substituído no comando do Tejuco pelo capitão Manuel da Silva Brandão. A Carta foi,
portanto, escrita no decorrer de abril.
3-07-1789 Cela de Cláudio na Casa dos Contos. Cláudio declara a seu confessor não ter nenhuma esperança, porque o crime
era de primeira cabeça. Sua preocupação constante é com a família
e a desonra. E a miséria. Terá mentalmente revisto palavra por palavra o que dissera aos ouvidores. Envergonhou-se das imputações
feitas a amigos diletos, sem caminho de volta. A angústia irremediável... Dia frio. Noite gélida. Tirou os sapatos e recostou-se na cama
abrigado pelos cobertores. Viu as prateleiras, o calção de sécia encarnada, o de chita amarela, os cordões mais fortes, de seda encarnada. E as trevas se aprofundaram na alma e na cela. O desespero.
Sua assinatura no termo das perguntas, na mão trêmula, reflete a
progressiva desagregação da censura consciente. O suicida potencial, quando toma uma decisão inexorável, acalma-se. Torna-se
quase alegre. E com lucidez incompreensível prepara passo a passo
o momento fatal. Espera as luzes da madrugada. Tira da estante as
roupas de reserva. Examina a resistência dos cordões que une um
ao outro. Arma o laço corrediço e o põe ao redor do pescoço.
Agarra-se à prateleira superior, pisa com o pé direito na inferior e
alça o corpo. Esforço físico inaudito para velhos e exaustos músculos, para juntas reumáticas e doloridas. É impossível que o outro
inferno possa ser pior que o da alma em chagas...
Virgílio, Ovídio, Teócrito, Horácio, que ele tanto invejara no
passado. Ou Santo Agostinho? Montaigne, Montesquieu, Voltaire,
Rousseau, ou a humilhante morte em vida?
Ser ou não ser. Viver ou morrer?
Já nada importa, salvo tornar-se pó e deixar que o vento o
semeie, até que chegue de novo a primavera...
141
4-07-1789 Cela de Cláudio na Casa dos Contos. Adão Cardoso dos Santos traz o café da manhã, preparado com as lágrimas
de Eulina. A sentinela abre a pesada porta, como nos nove dias anteriores.
A cama vazia. O espetáculo lúgubre. O servidor é impedido
de entrar. Chama-se o oficial de dia: Joaquim José Ferreira, do esquadrão de guarda do Vice-Rei. Chamam-se os ouvidores, o tabelião, o escrivão da Ouvidoria, os cirurgiões...
Pode-se imaginar a dor de Veríssimo, vizinho e amigo de
tantos anos. Mal consegue assinar o termo.
"Amor, disse cruel, pois que funesto
foi o fim de um princípio tão ditoso,
pois que cortaste o vínculo gostoso
que a dita, a mesma dita, ia tecendo,
bem que o inocente impulso inda estou vendo
que animou este braço, acabe o peito
onde ele se forjou. Foto e desfeito
o véu, que cerca esta alma, ela se aparte!
Indiana adorada: ou a pagar-te,
com seu eterno pranto, a dura ofensa,
ou a pôr de teus olhos na presença
a mágoa enfim de um erro involuntário,
disse. E trepando a penha, ao chão contrário,
desesperado já se precipita."
(Vila Rica 6:226)
"Ó vós, felizes, vós que os doces anos
entregais à virtude: eu vos agouro
o sempre imarcescível fresco louro
que vos há de levar na longa idade
muito além da cansada humanidade..."
(Vila Rica 6:268)
142
5.4- Paralelo Jovem.
A cronologia acima, fastidiosa, é a concordância rigorosa de
todos os depoimentos constantes nos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira, apenas corrigidos os erros do paleógrafo e ilustrados pela documentação conexa de Vila Rica e do Visconde de Barbacena.
A maior parte dos enganos, em historiografia, provém dos
anacronismos. Da inversão involuntária de fatos, ou da transferência inconsciente de ideologias.
É indispensável um paralelo: o ocorrido com o jovem Dr. Diogo Pereira Ribeiro de Vasconcelos. Mais que amigo, era conterrâneo e afilhado de casamento do ouvidor Gonzaga. Mais que vagas
suspeitas, houve denúncia de avisos e comportamento incriminatórios.
Era muito mais culpado que Cláudio, até que este lavrasse o
seu próprio libelo no dia 2 de julho de 1789.
Foi preso e encarcerado na Cadeia quase um mês antes. Negou sistematicamente tudo, contra a palavra do tenente-coronel
Francisco de Paula Freire de Andrade. A 8 de julho ainda estava no
cárcere, quando seu tio, Dr. José Pereira Ribeiro, foi chamado a depor como testemunha (ADIM 2:79). Além de silenciar, parece ter
comprado duas personalidades: o ajudante de ordens Rezende, seu
prendedor, e o ouvidor Manitti. Ambos reincidentes em outros casos. No relatório a Martinho de Melo Castro (11-07), Barbacena já
não o cita entre os detidos.
O relatório é complacente com Cláudio:
"Além desses (Tiradentes, Gonzaga, padre Toledo e Alvarenga), estão nas prisões desta Vila o S.M. (Aux.) Luís Vaz de Toledo
Piza, irmão do vigário de São José, o cônego da Sé de Mariana Luís
Vieira, o bacharel Cláudio Manuel da Costa, advogado nos Auditó143
rios desta Vila, o Ten.Cel. (Aux.) Domingos de Abreu Vieira, contratador dos dízimos no triênio passado, e o Cel. (Aux.) Francisco Antônio de Oliveira Lopes, os quais retive e demorei até agora (com algumas pessoas das suas famílias e outras de menor consideração)
para as averiguações prontas que eram necessárias, certificar-me
de suspeitas, e outras diligências (...). Mas de todas elas, nenhuma
teve a proporção de acertado êxito que as prisões dos dois últimos
acima mencionados (...). Pela franqueza e sujeição com que se houveram e pela importância dos fatos que comunicaram, confiados na
grande Bondade de S. Maj., poderão obter, em comparação dos demais réus, alguma piedade, e não se conhecer que eles aconselharam ou cooperaram para a atrocíssima maldade que seus infames
e falsos amigos premeditavam."
***
"Do mesmo Vigário (pe. Toledo) provêm algumas passagens
(...) que fazem culpa ao cônego Luís Vieira, além das doutrinas e notícias vagas que lhe imputam algumas testemunhas (...), as quais
deram motivo justo à sua prisão e à do sobredito advogado Cláudio
Manuel da Costa, em cuja casa dizem se tiveram conversações e
conselhos que ele mesmo não pôde negar, ainda que lhes deu a melhor cor e moderação possível."
E mais nada sobre o poeta, na extensíssima exposição.
O Dr. Diogo terá recuperado a liberdade poucos dias depois,
antes de cumprir dois meses de detenção.
Em 12-08, os ouvidores Torres e Cleto, do Rio, inquirem o
denunciante Francisco de Paula, achando este muito mais culpado.
E inadmissivelmente livre (ADIM 3:386). Reperguntam o Dr. Diogo,
na qualidade de testemunha, vinte quatro horas depois (ADIM
3:394).
144
O tempo corre. No ano seguinte (13-01), o ajudante de ordens Rezende produz-lhe um atestado falso (ADIM 2:211), coonestado por inquirição prévia de três testemunhas a cargo de Saldanha
e Manitti. Saldanha sofria de terrível parkinsonismo que o vitimaria
(04-1791) e que já se reflete na tremura da letra e da firma... Manitti manobra a bem dizer livre. As testemunhas foram: Manuel Fernandes Coelho, José Veríssimo da Fonseca e Antônia da Costa. O
primeiro, tesoureiro da Intendência, visitava Verissimo naquela distante noite do embuçado; atesta a aguda tensão nervosa de Cláudio
ao procurar ajuda do vizinho. O segundo diz ter sido chamado a Palácio por Rezende junto com Cláudio (26-05) e transfere o caso do
embuçado para depois da prisão de Gonzaga. A última, negra mina
e forra, fora cozinheira de Gonzaga e pouco ou nada disse...
O caso foi definitivamente encerrado. Hábil manobra de
transposição de datas e omissão de ocorrências.
O Dr. Diogo, cujas memórias históricas copiam fartamente
manuscritos de Cláudio (sem citá-lo) e que se gaba de possuir abundantes documentos (papéis havidos na livraria de Glauceste sem
valor comercial), seria grato ao Barbacena. Ninguém o recriminará
por ter salvo o umbigo. Apenas entristece o exagero de seu regozijo
pelo fracasso da Inconfidência, na oração pronunciada em Câmara
no ano de 1792... Mais tarde continuaria calando e as fontes em
que se abeberava para excelentes trabalhos.
Perguntamos: porque o menos culpado, Cláudio (até o dia
de seu depoimento), melhor tratado, pagaria muito maior preço?
Não se pode negar que fosse habilíssimo advogado administrativo...
O Dr. Diogo foi um excelente pai e cidadão virtuoso. Fundou
estirpe à qual o Brasil deve imenso. Mas até 1797 não teve sossego
com o chantagista Manitti...
145
5.5 - A Conveniência dos Detalhes.
Voltaire não compreendia história sem visão da cultura; foi
o fundador da etnologia. Não Com a artilharia do riso e do humor,
analisando costumes e o espírito das nações, ensinou a derrubar
instituições e prosápias. Leibnitz, último indivíduo a que foi possível
abranger o universo de sua época, não o perdoará do eterno ridículo a que foi condenado na pintura de Candide. Voltaire será beatificado algum dia por pioneiro de ecumenismo e pelo amor à humanidade. Lembramo-nos dele ao verificar a restituição ao sequestro dos bens que Cláudio levou consigo para o cárcere. Sobretudo a
"medalha pequenina do Hábito de Cristo, pregada em fita encarnada" e os óculos pequenos, de nariz, com sua caixa. Pince-nez, supomos. E os dois contraditórios livros de leitura, representativos da
Roma pagã e da Roma dos Papas (ADIM 5:273).
São pormenores importantes. O detetive historiador,
mesmo sem a lente sherlockiana, encontraria neles a confirmação
fatual do exame de corpo de delito.
Seguem-se: o calção de sécia encarnada (de que tirou os
cordões de seda encarnados); o calção de seda preta (que Cláudio
vestia) roto, segundo registra o tabelião Francisco Xavier da Fonseca, filho de Veríssimo.
Os itens inventariados permitem saber inclusive a indumentária completa e digna com que se conduziu à prisão. Até os lenços
azuis para tabaco, indispensáveis ao inveterado tomador de rapé.
Outro detalhe importantíssimo: os ouvidores não pediram
que Adão Cardoso devolvesse ao sequestro a borracha com bocal
de prata cheia de ouro em pó. Pensavam discretamente nas necessidades de Eulina e seus cinco filhos...
É forçoso admitir a timidez e humildade cristã de Glauceste.
Ao invés de cortejar uma filha de família nobre, preferiu comprar e
alforriar a sua Eulina, na flor dos dezesseis anos...
146
Sua fidelidade só é comparável à do padre Rolim, imune a
treze anos de exílio.
O Prof. Meneses nos revela um documento interessante:
Cláudio, nos primeiros anos de Vila Rica, residiu na Casa da Câmara
e Cadeia. Compraria bem mais tarde a magnífica residência situada
na Rua Direita de Antônio Dias, esquina da Rua de São Francisco.
5.6- Os Sufrágios Religiosos.
Entretanto, ainda há um pormenor revelado pelo Prof. Meneses digno de investigação e análise: os sufrágios por alma do suicida. É pena faltarem as datas da realização e dos pagamentos pela
Real Fazenda a uma das Irmandades.
É preciso entrar no terreno das conjecturas: o afrouxamento
dos preceitos religiosos, no final do século XVIII em Minas, graças à
penetração profunda dos conceitos iluministas. A conjectura é coerente com a livraria, por exemplo, do cônego Luís Vieira da Silva e
de outros sacerdotes contemporâneos. A conciliação com o preconceito se explicaria ainda pela percepção de que a causa-mortis imediata seria o acidente de escorregar um minuto antes de ter tido
oportunidade o ato voluntário...
A religiosidade apenas formal do Estado, praticamente laicizado com a definitiva extirpação do Tribunal do Santo Ofício, autoriza o pagamento da Real Fazenda à Irmandade empobrecida, mas
obrigada estatutariamente a sufragar o confrade falecido.
No gesto fazendário não há traço de inferência que justifique a hipótese de homicídio a mando de Barbacena. É mesmo provável que Cláudio estivesse em atraso nas contribuições devidas à
Irmandade, mora purgada pelas autoridades do sequestro.
Cabe estudar a posição de Glauceste em relação às associações religiosas de Vila Rica.
147
As duas entidades mais importantes eram as Ordens Terceiras do Carmo e de São Francisco de Assis, cuja rivalidade se fez célebre. Fritz Teixeira de Sales aponta a primeira como aglutinadora
dos comerciantes e a segunda como dos intelectuais e altos funcionários.
Supunha Fritz que Cláudio fosse irmão de São Francisco de
Assis (Associações Religiosas no Ciclo do Ouro, B. Horizonte, 1963,
pp. 71), o que é contestado pelo cônego Raimundo Trindade com o
peso de documentação inquestionável (São Francisco de Assis de
Ouro Preto, 2a. edição, Ouro Preto, 1958, pp. 197). Apenas fora advogado da instituição, como dezenas de outros, admitido quando
respondia pela comissaria o então padre Luís Vieira da Silva (1771),
seu fraterno amigo.
Também não foi irmão Carmelita, sendo extremo o rigor inquisitório da entidade em relação à vida íntima de seus membros.
Pertencia à Irmandade da Misericórdia, com direito a assistência médica e hospitalar da Santa Casa, na qual teria entrado por
volta de 1761 (AMT 4:103).
Na Irmandade do Rosário dos Pretos, teve o lugar de secretário apesar de ser branco. Honra excepcional que lhe concedeu a
exclusivista associação, talvez por influência de Eulina.
Pertenceu, entretanto, a duas Irmandades menores, como
documenta o Prof. Meneses: a do Arcanjo São Miguel e Almas do
Purgatório, em que foi admitido em 1760, e a Irmandade de Santo
Antônio, admitido em 1765 ou data posterior. Congregavam brancos.
Foram estas que responderam pelos sufrágios, trinta missas
cada uma, por alma do Irmão.
A Irmandade de Santo Antônio, segundo Ivo, funcionaria na
Matriz do Pilar. Quer-nos parecer que tivesse originalmente a sua
sede própria, recolhendo-se os seus livros posteriormente aquela
148
matriz, como ocorreu com a do Arcanjo São Miguel e Almas do Purgatório, patronos da igreja dedicada a Bom Jesus de Matozinhos nas
Cabeças. Esta última realizaria suas festas na capela de seus patronos, conquanto devesse ter casa no Alto das Cabeças para a administração e reuniões habituais. Seria conveniente pesquisar a igreja
cujo patrono fosse Santo Antônio, sendo que os templos eram normalmente denominados pelo respectivo orago (isto é, pelo santo,
anjo ou mistério a que foram dedicados), apenas indicando-se vez
por outra os patronos que o secundam.
Primitivamente a Matriz de Antônio Dias era designada por
Nossa Senhora da Conceição (orago) e Almas (patronos)...
Nas proximidades da capela ou igreja, a Irmandade mantinha sede administrativa isolada. Gozavam elas de ampla autonomia, conquanto sujeitas à fiscalização patrimonial do Ouvidor e à
supervisão religiosa do pároco. Seus sacerdotes comissários, entretanto, podiam recorrer diretamente ao Bispado ou à Junta presidida
pelo Ouvidor, quando se consideravam lesados em suas prerrogativas.
Há conflito de jure entre a obrigação de sufragar os membros falecidos (os quais em vida pagavam para tal polpudas contribuições) e o impedimento canônico que feria os suicidas em mais
de um aspecto.
Cabanellas, em seu esplêndido ‘Diccionario de Derecho
Usual’ (Buenos Aires, 1954), aponta casos de relaxamento na espécie:
“Por costume contra lei perdeu efeito este preceito (o da
perda de todos os bens em favor do fisco, penalidade fixada na legislação histórica tanto espanhola como portuguesa) por considerar-se injusto castigar aos inocentes pais e irmãos que já haviam
sofrido a desgraça no domínio pessoal. (...) Se se tratava de um processado que punha termo à vida antes da sentença, era costume
149
enforcar simbolicamente o cadáver, se pesasse contra o indivíduo
acusação sujeita a pena mortal, o que também se considerou injusto
por supor uma condenação que, talvez, o acusado tivesse podido
rechaçar.”
O rigor canônico, considerando o suicídio o maior dos crimes contra si mesmo, a espécie e Criador, de condenação quase
segura, sofria a ressalva de um possível arrependimento, de não ser
instantaneamente mortal.
Vai distância entre o preceito e a prática, acentuada na segunda metade do século XVIII.
A pesquisa, além de tema etnológico de alto interesse, pode
conduzir à localização concreta do jazigo do poeta, pois uma das
Irmandades responderia pelo enterro do desditado, obrigação
igualmente consignada nos Estatutos.
A simpatia pelo Inconfidente, unida à caridade cristã, poderiam ter determinado interpretação liberal, in dubio pro reo, daquele incógnito que precede à morte: se houve tempo de contrição...
5.7- Teoria da Reabilitação.
A morte infausta do poeta e Inconfidente não lhe diminui as
proporções humanas. Deve ser vista no contexto da enorme tragédia intima. Não cabe falar em reabilitação de sua memória, quando
nem mesmo se pode ressarci-lo dos sofrimentos morais que padeceu.
A história de Cláudio provoca sincera simpatia pelas fraquezas das quais ninguém está imune, sobretudo porque as qualidades
e virtudes lhe sobejavam, culminando em momentos grandiosos.
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A justiça que todos lhe devemos é estudar-lhe a obra e vida
em dimensões realistas, dando relevo a seus méritos humanos e
estéticos verdadeiros.
Se não logrou atingir a plenitude da força épica nos versos,
o auto sacrifício talvez um dia venha a demonstrá-la no gesto intencional: a coragem de reparar um erro contra amigos diletos pela
única via ao alcance de um coração terno e delicado.
Frei Raimundo de Penaforte, o frade que assistia no Rio aos
réus, regista o que parece ser uma informação de Minas:
“Tal foi a sentença que a si mesmo deu este réu, pois o confessor que repetidas vezes o comunicava na prisão, pretendeu consolá-lo lembrando-lhe que o seu crime nem seria tão horroroso, nem
legalmente bem provado. “
Mas ouviu de sua boca o seguinte:
“Que diz, Padre? Este é um delito de natureza tal que basta
ser só proferido para me constituir réu de alta traição.”
O comentário de Penaforte é elucidativo das modificações
culturais reinantes, além de justificar a atitude do poeta. Porém é a
este que cabe a última palavra:
Comigo falas. Eu te escuto. Eu vejo
quanto, apesar de meu letargo e pejo,
me intentas persuadir, ó Sombra Muda,
que tudo ignora quem te não estuda.
***
Tu me dizes quão pouco ao mundo importa
esta cansada vida que suporta
das fadigas o peso intolerável.
(Epic. III).
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A história de Cláudio, constituída de fraquezas e momentos
grandiosos, talvez um dia descubra no auto sacrifício a força épica
que não logrou alcançar senão no sonho. Sonho que mata.
Mapa de Vila Rica ao tempo da Inconfidência
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APÊNDICE
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OBRAS DE TARQUÍNIO JOSE BARBOZA DE OLIVEIRA
1972- AS CARTAS CHILENAS - Fontes textuais, Editora Referência
São Paulo
1976- OURO NAS MINAS GERAIS- TJBO & Cássio Lanari,
ESAF/CECO/Casa dos Contos-O.P.
1976- ERÁRIO RÉGIO- Vol. 1, ESAF/Brasília
1976- AUTOS DE DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA - Vol. I,
1977- AUTOS DE DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA - Vol. VIII
e IX
1977- CORRESPONDÊNCIA ATIVA DE JOÃO ROIZ MACEDO Vol.I
ESAF/CECO/Casa dos Contos- O.P.
1977- ENSAIOS DA CASA DOS CONTOS- Conferências e Pesq. Históricas, ESAF/CECO/Casa dos Contos- O.P.
1977- O PRIMEIRO IMPRESSO. EM MINAS GERAIS - TJBO, João
Gomes Teixeira & Cassio Lanari ESAF/CECO/Casa dos Contos
- O.P.
1977- UM BANQUEIRO NA INCONFIDÊNCIA, ESAF/CECO/Casa dos
Contos - O.P.
1979- CORRESPONDÊNCIA ATIVA DE JOÃO ROIZ MACEDO, ESAF/CECO/Casa dos Contos-O.P.
1979- UMA EXPERIÊNCIA EM ARQUIVOLOGIA, Vol. II,
ESAF/CECO/Casa dos Contos- O.P.
1979- AS POTENCIALIDADES DE PESQUISA NA CASA DOS CONTOS, Eugênio Ferraz com assistência de TJBO
ESAF/CECO/Casa dos Contos- O.P.
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1980- OURO PRETO E MARIANA - Texto de TJBO, Desenhos de
Tom Maia, Fundação Roberto Marinho - Rio de Janeiro
1980- DISPERSOS DE VELHA HISTÓRIA Vol. I, ESAF/CECO/Casa dos
Contos- O.P.
1981- DISPERSOS DE VELHA HISTÓRIA Vol. II, ESAF/CECO/Casa
dos Contos - O.P.
1981- DEMOFOONTE EM TRÁCIA, Opera de Metastasio Adaptada
ao Teatro português por Cláudio Manoel da Costa Identificação e restauração do Texto por TJBO, ESAF/CECO/Casa dos
Contos- O.P.
1981- VILA RICA VEREANÇAS, ESAF/CECO/Casa dos Contos O.P.
1981- AUTOS DE DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA - Vols. III
e IV, Introdução e notas por Herculano G. Mathias e TJBO,
CÂMARA DOS DEPUTADOS ----GOVÊRNO DO ESTADO DE
M.G., Brasília, Belo Horizonte
Póstumos:
2023- POESIA E MORTE EM VILA RICA, TJBO
A MÚSICA OFICIAL EM VILA RICA
Lápide de TJBO no Cemitério da Igreja
de São José em Ouro Preto (Foto de Paulo Marques)
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