Subido por sebastian vargas

Cidade dos Espiritos Robson Pinheiro

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Este livro é o resultado de uma inspiração, de uma
transpiração, de uma parceria entre dois mundos.
O mundo do médium e a mão do editor.
Muitos autores dedicam seus livros a familiares, amigos
ou pessoas ilustres que os inspiraram de alguma maneira.
Quero dedicar este a alguém que por vezes é esquecido pelos
autores e pelos leitores. Dedico-o a quem me inspira e me
faz transpirar, a quem me impulsiona de perto, junto com o
mentor e, algumas vezes, vestindo a máscara do obsessor.
A LEONARDO MÕLLER, MEU EDITOR.
Não sei se eu conseguiria dar uma roupagem tão digna e
valorosa ao trabalho que os espíritos fazem através de mim
sem sua participação, sem que fizesse seu papel.
A você, editor, amigo e companheiro, meu muito obrigado,
meu reconhecimento público e verdadeiro por tudo que
representa em relação ao livro, ao livro espírita em particular.
INTRODUÇÃO
pelo espírito Ângelo Inácio,
CAPÍTULO
O l a d o avesso da vida, 14
1
CAPÍTULO
2
U m a nova civilização, 50
CAPÍTULO
3
L e v a n t a n d o o véu, 84
CAPÍTULO
4
Os I m o r t a i s , 130
CAPÍTULO
5
A s o m a das d i f e r e n ç a s , 178
CAPÍTULO
6
Z o n a s de i m p a c t o , 222
CAPÍTULO
7
A festa de O x u m , 292
CAPÍTULO
8
S e n h o r e s do caos, 334
CAPÍTULO
9
C i d a d e dos g u a r d i õ e s , 392
REFERÊNCIAS
SOBRE
O
BIBLIOGRÁFICAS,
AUTOR,
458
456
x
XI
pelo
espírito
ÂNGELO
A V I D A NA
INÁCIO
erraticidade. Sem vagar e n t r e n u v e n s de incer-
tezas, todos nós vivemos e viveremos apesar da morte, da
dor e do sofrimento. Sem nos p e r d e r no n a d a i n c o m p r e e n sível ou diluir a consciência, fundindo-a ao t o d o inexplicável pelo vocabulário h u m a n o , seja religioso ou científico,
sobrevivemos e sobreviveremos e n t r e as estrelas.
O h o m e m é p r o d u t o das estrelas e p a r a as estrelas r e t o r n a r á um dia, q u a n d o p u d e r alçar voo r u m o ao país da
eternidade. Lá é o n d e m o r a m os sonhos, o n d e vivem os
Imortais, o n d e as luzes se fazem gente e o n d e os seres são
feitos de p u r a luz. É o n d e fica a cidade h a b i t a d a pelas consciências que d e s p e r t a r a m para a vida além dos limites dem a r c a d o s p o r fronteiras, e s t a n d a r t e s ou bandeiras; o n d e
cessam os p a r t i d a r i s m o s políticos, ideológicos ou religiosos. Esse é o m u n d o o n d e não há medo, n e m culpa, n e m
cobrança. Essa é a A m a n d a de t o d o s os povos, de todas as
gentes, a cidade dos espíritos.
O país das estrelas p o d e ser c a n t a d o em prosa, em verso, ao som de atabaques ou e n t r e melodias refinadas de
Xll
i n s t r u m e n t o s mil. A cidade dos espíritos ou, s i m p l e s m e n te, A r u a n d a é o céu, o o r u m , o paraíso, p a r a muitos. Pode
ser t a m b é m o fulgor das estrelas, o cantar dos pássaros ou,
então, a habitação de pais-velhos, a t e r r a de caboclos, de
b r a n c o s e negros, asiáticos, índios, de peles v e r m e l h a s , p r e tas ou amarelas; afinal, essa m e t r ó p o l e é a pátria daqueles
que não se sujeitam mais aos a c a n h a d o s c o m p o r t a m e n t o s
exclusivistas e sectários das sociedades h u m a n a s . Ali, e n t r e
as estrelas, é o n d e o espírito se r e t e m p e r a , o n d e é capaz de
h a u r i r forças p a r a as tarefas de redenção, auxílio ou intervenção n o m u n d o dos h o m e n s .
Cidade dos agentes da justiça divina — essa é a realidade da A r u a n d a . O n d e a justiça e a e q u i d a d e se aliam
p a r a e s t a b e l e c e r o Reino n o s c o r a ç õ e s h u m a n o s e na Terra, em t o d a s as d i m e n s õ e s . Dela p a r t e m g u a r d i õ e s , caravanas q u e i n t e r f e r e m n o m u n d o e m n o m e d a divina j u s t i ça. É o n d e me e n c o n t r e i , a o n d e fui c o n d u z i d o pela e s p a d a
flamejante de um guerreiro que descortinou, ante minha
visão estreita, as luzes e os c a m i n h o s de A r u a n d a , t a m b é m c o n h e c i d a p o r alguns c o m o I l h a Sagrada, p o r o u t r o s ,
c o m o Shamballa; p a r a m i m , s o m e n t e A r u a n d a , a c i d a d e
dos I m o r t a i s .
Xlll
Um estilo de vida, um conceito de paz, u m a filosofia,
u m a política divina — t u d o isso faz da cidade dos espíritos
um lugar mítico, u m a escola o n d e se p r e p a r a m espíritos,
forjam-se heróis anônimos, q u e l u t a m pelo progresso da
humanidade. Onde residem encantos e encantados, onde
lendas e n c o n t r a m sua explicação e o n d e o tipo e n c o n t r a o
antítipo. Da A m a n d a , o n d e me encontrei depois de abertos
os portais da m o r t e e o n d e até hoje me inspiro e respiro,
q u a n d o posso, a fim de r e t o r n a r à Terra dos m e u s e n c a n t o s
e dos m e u s antigos amores, é de o n d e trago, na b a g a g e m da
alma, a poesia da imensidade.
ÂNGELO
INÁCIO
São Paulo, 3 de março de 2013.
17
O P R I N C Í P I O ME d e s l u m b r e i com a possibilidade de estar fora do corpo, e m b o r a s o m e n t e aos poucos me desse conta de q u e a situação era irreversível. Os p e n s a m e n tos das pessoas no velório, familiares p e n s a n d o em c o m o
ficariam os direitos intelectuais de m i n h a s obras e outras
situações q u e considerei insólitas naquele m o m e n t o ; t u d o
contribuiu p a r a formar u m q u a d r o m u i t o diferente daquilo que eu vira até então. N u n c a havia p e n s a d o em c o m o seria cômico, até, p o d e r p e n e t r a r nas emoções das pessoas
ou q u a n t o seus p e n s a m e n t o s e r a m permeáveis. Mas aquilo
t u d o não era brincadeira. Aos poucos surgia um s e n t i m e n to de saudade, um quê de gratidão pelo corpo q u e repousava no caixão. E n q u a n t o isso, o u t r a p a r t e do m e u cérebro, se
é que eu ainda tivesse um cérebro depois de morto, parecia
se divertir c o m a situação ou, se não isso, ao m e n o s observava c o m certa curiosidade as pessoas, seus s e n t i m e n t o s e
emoções, e a realidade p o r detrás da fantasia de sofrimento h a b i l m e n t e d e m o n s t r a d a por m u i t o s ali p r e s e n t e s . Mas
as emoções... essas eu não conseguiria disfarçar por m u i t o
tempo. Na verdade, disfarçava t a m b é m p o r saber, no fundo, que não havia retorno. Deveria r e a p r e n d e r a viver c o m o
m o r t o vivo e, q u e m sabe, até m e s m o c o m e ç a r t u d o de novo,
18
soletrar o bê-á-bá o u t r a vez, pois o m u n d o para o qual fora
transferido de m a n e i r a definitiva era algo c o m p l e t a m e n t e
distinto de t u d o q u a n t o conhecia ou a q u e me acostumara.
Comecei a p e n s a r em c o m o me c o m u n i c a r com os possíveis h a b i t a n t e s deste lugar, deste universo o n d e agora me
encontrava. E havia o u t r o s habitantes. Disso eu n ã o p o deria duvidar, pois a lógica do raciocínio me d e m o n s t r a v a
isso. Se eu estava ali vivo, p e n s a n d o , raciocinando, apesar
do corpo e s t e n d i d o sobre o leito, n a t u r a l m e n t e o u t r o s t a m b é m haviam sobrevivido à m o r t e . Aliás, se acontecia comigo, e n t ã o t o d a a h u m a n i d a d e sobreviveria; não era eu n e n h u m privilegiado, nesse sentido.
Não sofri p o r estar morto. Senti, sim, u m a espécie de
nostalgia ao concluir que t u d o o que construíra, todas as
pessoas c o m q u e m convivera e a realidade c o m a qual me
relacionava t i n h a m ficado para trás — p a r a sempre. Puxa!
Para sempre é m u i t o t e m p o . M u i t o m e s m o ! Porém, foi assim que pensei naquele m o m e n t o , e esse p e n s a m e n t o foi
suficiente p a r a p r o d u z i r certa melancolia em m i n h a alma.
Logo, logo me peguei p e n s a n d o em escrever sobre o assunto... mas escrever p a r a q u e m ? Por quê? Q u e m leria m i n h a s
crônicas e poesias, m i n h a p r o d u ç ã o literária de m o r t o vivo?
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Poderia e u c o n t i n u a r s e n d o u m jornalista depois d e m o r t o ?
E n q u a n t o a m u l t i d ã o visitava o c o r p o cujo coração r e solvera e n t r a r em colapso, p a r a r de vez, tive de enfrentar
o avesso das coisas. O outro lado da realidade a q u e todos
os
humanos
estavam
habituados.
E
tive
de me
enfrentar.
Mas Deus me livre de sofrer p o r isso. Escolhi jamais sofrer,
m e s m o depois de m o r t o . Como? Não dei i m p o r t â n c i a aos
p e n s a m e n t o s de dor, t o r m e n t o , revolta ou culpa. De m o d o
algum p o d e r i a me p e r m i t i r esse tipo de situação íntima
q u a n d o a m i n h a curiosidade p o r essa vida do Além s u p e rava q u a l q u e r possível t e n d ê n c i a ao m a s o q u i s m o . Que sofresse q u e m quisesse. Eu, d e c i d i d a m e n t e , não t i n h a t e m p o
p a r a isso. E olhe q u e t e m p o , a partir de então, é o q u e não
me faltava. Mas não queria n e m p o d e r i a desperdiçá-lo c o m
sofrimentos e lamúrias que a n a d a me c o n d u z i r i a m .
Notei certo q u ê de s a u d a d e ou de v o n t a d e de rever min h a filha, que, q u e m sabe, estivesse em condições de vir
me ver, já que eu chegava a este o u t r o lado c o m o m o r a d o r
definitivo. Mas... pensei: "Apesar da s a u d a d e dela, a m e s ma s a u d a d e que te levou à d e p r e s s ã o há alguns dias, deixe-a seguir seu c a m i n h o " . O u t r a h o r a eu voltaria ao assunto.
Agora queria explorar t u d o ao m e u redor, a c o m e ç a r pelos
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p e n s a m e n t o s das pessoas ali p r e s e n t e s . E curtir a p a n t o m i ma a q u e se entregavam, r e p r e s e n t a n d o u n s p a r a os outros.
Acreditavam p i a m e n t e que o m o r t o em n e n h u m a h i p ó t e se p o d e r i a c o n h e c e r o q u e pensavam. A maioria n e m seq u e r cogitava q u e o m o r t o não estivesse tão m o r t o assim.
E a s a u d a d e de m i n h a filha parecia c o m p e t i r infinitamente
c o m m i n h a curiosidade, s o b r e m a n e i r a e x a c e r b a d a n a q u e les primeiros m o m e n t o s de vida de morto. Senti v o n t a d e de
t o m a r um vinho. H u m m m ! Como seria o m e u predileto vin h o madeira? Como seria o original dele neste o u t r o lado
do véu de ísis? Mas tive de deixar p a r a depois os martínis,
os vinhos, fossem da Madeira, do Porto ou qualquer outro,
e n t r e tantas coisinhas preciosas, s e m falar no r e e n c o n t r o
c o m m i n h a filha. Afinal, ela t a m b é m era r e c é m - c h e g a d a
a esta vidona de m e u Deus e, c o m o viria a confirmar mais
tarde, suspeitei que talvez estivesse se r e c u p e r a n d o , digamos, do cansaço da g r a n d e viagem.
Logo, logo me acostumei c o m a ideia de que as coisas
aqui não seriam e x a t a m e n t e o prosseguimento das que deixara — ao contrário, p a r e c i a m - m e b e m melhores! Nossos
amores e afetos, e m b o r a continuassem amores e afetos, passavam a ser tão s o m e n t e outras almas, marujos no m e s m o
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mar, a singrar o oceano desconhecido da imortalidade. Nossas emoções, caso nos entregássemos a elas, constituiriam o
passaporte perfeito para a infelicidade e o inferno, q u e trazemos todos d e n t r o de nós. Por isso, ao me ver de pé ao lado
do antigo corpo, tomei a decisão acertada, segundo avalio
até hoje. Nada de sentimentalismo. Se na clínica, q u a n d o
dos últimos m o m e n t o s , h o r a ou outra a tristeza havia me
visitado, aqui a curiosidade substituíra por completo a tristeza. Havia a saudade, mas já que d i s p u n h a da e t e r n i d a d e
pela frente e já que o n a d a inexistia, então, que esperassem
os reencontros, que aguardassem as saudades, pois eu ainda
teria muita coisa a fazer pelo resto de m i n h a vida eterna.
Não escolhi sofrer. E, ao p e n s a r assim, descobri q u e
neste lado da existência pensava de m a n e i r a a b s o l u t a m e n te diferente do q u e nos d e r r a d e i r o s m i n u t o s da antiga existência. A consciência da m o r t e e, p a r a d o x a l m e n t e , do fato
de que c o n t i n u á v a m o s vivos parecia modificar por c o m p l e to a realidade interna, íntima. O p e n s a m e n t o voava; não encontrava apenas p e d r a s no caminho. Havia m u i t o mais do
que simples p e d r a s no caminho... Havia construções, m u i t o
mais do que areia; havia u m a civilização invisível, em t u d o
presente, viva, ativa, p u l u l a n t e de vida. E eu agora era par-
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te desta civilização extracerebral, extrafísica, e x t r a c o r p ó rea. Isso era incrível e merecia ser celebrado. Mas eu ainda
n ã o t i n h a acesso a m e u saboroso vinho madeira, n e m t a m p o u c o ao martíni. Assim, eu c o m e m o r a v a i n t e r n a m e n t e ,
c o m mil p e n s a m e n t o s , c o m s e n t i m e n t o s novos, c o m u m a
euforia na alma, q u e dificilmente eu p o d e r i a expressar em
palavras. Celebrava o fato de ser um vivo imortal. N ã o um
imortal vivo, c o m o aqueles da velha Academia de Letras.
Não. Era um vivo imortal. E sem precisar, para tanto, t e r
sorvido algum elixir milagroso q u e prolongasse a vidinha
no corpo físico. Não; não d e p e n d i a mais do limitado corpo
envelhecido. E foi e n t ã o que resolvi testar os p o d e r e s ocultos da m i n h a imortalidade.
C o n c e n t r e i - m e por longo t e m p o . Na verdade, u n s dez
a q u i n z e m i n u t o s — t e m p o demais p a r a q u e m é imortal.
C o n c e n t r e i - m e de tal m a n e i r a que revi o corpo q u e tivera
mais de 20 anos antes. Pensei tão f o r t e m e n t e nele e c o m
tal intensidade e riqueza de detalhes que, ao abrir os olhos,
s u r p r e e n d i - m e ao constatar q u e m e u c o r p o se t o r n a r a exat a m e n t e igual àquele que visualizei. E t a m a n h a era a alegria ao descobrir o p o d e r fantástico de m i n h a condição de
imortal q u e gritei:
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- Viva!
Cerrei o p u n h o direito e, c o m o um adolescente, gritei
a plenos p u l m õ e s e saí c o r r e n d o em t o r n o do caixão, z o m b a n d o do povo q u e se contorcia p a r a dar o último adeus ao
m o r t o que não estava tão m o r t o c o m o aparentava.
— Ah!! — pulei n o v a m e n t e de alegria... — Que v e n h a m
a m o r t e e seus desafios!
Sentia-me resoluto, agora. Desrespeitei m e u p r ó p r i o
velório e gritei e pulei c o m o nunca. A m o r t e até q u e não
é lá g r a n d e coisa, não. Ou melhor: a morte, ao m e n o s para
mim, era o elixir da vida eterna! Decidi naquele m o m e n t o
mesmo, diante do velho corpo que repousava frio no caixão: a partir dali não sofreria jamais. Resolvi que aproveitaria t o d o o t e m p o disponível p a r a ser feliz à m i n h a m a n e i ra, isto é, estudando, trabalhando, m a t a n d o a curiosidade e
escrevendo. Escreveria q u a n t o p u d e s s e p a r a falar da vida
nova da imortalidade, das descobertas e da realidade da
vida além, sem fantasias, s e m r o m a n t i s m o s , m a s da realidade da vida assim c o m o ela é.
Algum m o m e n t o , p e n s a r i a e m c o m o m a n d a r m i n h a
p r o d u ç ã o p a r a a i m p r e n s a do m u n d o antigo, dos q u e se
consideram vivos. Mas, p o r ora, descobrira o p o d e r do pen-
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samento, da vontade, da imortalidade. E exploraria ao máximo a ocasião, aquele novo m o m e n t o de m i n h a vida, da
existência. P e r a n t e o a p a r e n t e milagre do rejuvenescimento da alma, esqueci-me inclusive das s a u d a d e s da filha. E
gritei n o v a m e n t e , c o m o um jovem alegre, inebriado com a
vida nova e c o m as possibilidades que se abriam diante de
m e u espírito ávido por novidades, p o r novos c o n h e c i m e n tos e, acima de tudo, por trabalho.
-Viva!!
— Alegre assim, Ângelo?
Virei-me rápido para o local de o n d e eu julgara ter vindo a voz. Ainda não vira n e n h u m defunto vivo, além de m i m
mesmo, n e m ouvira n e n h u m p e n s a m e n t o , além daqueles
provenientes das pessoas que se achavam vivas e n t r e os
c h a m a d o s vivos. Mas ouvir a voz de outro imortal, era a primeira vez. Virei-me no m e s m o instante e vi um h o m e m diferente. Sorria, mas de alguma m a n e i r a ele era diferente.
— Seja b e m - v i n d o ao novo m u n d o ! — falou, sorrindo
um sorriso disfarçado, discreto. Mirei b e m aquele ser estranho. Um h a b i t a n t e do novo m u n d o , da nova vida e da nova
civilização o n d e eu aportara. E r a alto, cabelos cortados de
tal m a n e i r a q u e me r e m e t i a aos militares. Roupas q u e e r a m
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e s t r a n h a s para mim. As calças, s e m e l h a n t e s a b o m b a c h a s ,
lembravam soldados do III Reich. Apenas lembravam, pois
havia u m a diferença m a r c a n t e , q u e não consegui descobrir
de imediato. A camisa, algo i m p o n e n t e , parecia um traje de
gala ou algo assim: gola de padre, mangas longas, um distintivo ou símbolo no lado e s q u e r d o do peito. Era diferente de t u d o e de todos os militares que c o n h e c e r a na Terra.
Mas c o m certeza era alguém que ocupava um cargo import a n t e neste m u n d ã o novo q u e eu começava a descobrir. Parecia alguém de u n s 30 a 35 anos, no m á x i m o . Eu analisava cada detalhe. E ele soube disso. Sorriu agora um sorriso
largo, magnético, enigmático.
— Eu sou J a m a r ! M u i t o prazer.
— E eu me c h a m o Ângelo, Ângelo Inácio. Muito prazer,
também.
Medindo-me, como a penetrar meus pensamentos, e
eu i n c o m o d a d o c o m esse fato, a c e n t u o u b e m as palavras:
— Ora, ora! Já que você conseguiu chegar aqui s e m o
peso da culpa que m u i t o s forjam em suas m e n t e s , p a r e c e
claro que se liberou c o n s c i e n t e m e n t e de u m a carga m u i t o
pesada. Não p e r c a m o s t e m p o ; você não p o d e mais continuar aqui. Vamos embora!
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— C o n t i n u a r aqui? Ir embora?
— Ou você p e n s a q u e c o n t i n u a r á velando o p r ó p r i o
corpo c o m o esse povo t o d o aí, ainda mais agora que já d e s cobriu a inutilidade dessa d e s p e d i d a que fazem? E c o m o
já sabe dos p e n s a m e n t o s que p a s s a m pela cabeça daqueles
que o h o m e n a g e i a m , então, por q u e ficar aqui? P e r d e n d o
t e m p o ? Temos m u i t a coisa pela frente! Há m u i t o trabalho
p o r fazer e você precisa c o m e ç a r logo. Tem de se p r e p a r a r
para voltar.
— Voltar p a r a onde?
— Na h o r a certa, você saberá. Por hora, t e m o s de sair
daqui. Outros espíritos já estão a c a m i n h o para fazer o que
t e m de ser feito.
Hesitei p o r alguns m o m e n t o s , até q u e o vi envolvido
p o r u m a luz quase mística. Ao redor, irradiações magnéticas d e s e n h a v a m o q u e me p a r e c i a m asas, c o m o se fossem
de anjo ou algo do gênero. A visão foi m u i t o rápida, p o r é m
o suficiente para saber q u e lidava com alguém especial ou,
no mínimo, diferente de t u d o e todos q u e conhecia. D e s e m b a i n h o u em seguida u m a espada, até e n t ã o não p e r c e bida, e b r a n d i u - a no ar. A m e d i d a q u e intensificava aquelas
energias em t o r n o de si, na forma de asas, conforme inter-
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pretei na ocasião, suas r o u p a s p a r e c i a m se diluir n u m a frequência diferente, n u m a luz t a m b é m distinta, mas que lhe
conferia a aparência de um anjo guerreiro, talvez m e u anjo,
o anjo de guarda. E m i n h a m e n t e de imediato fez as c o n e xões necessárias, a fim de que eu n ã o me d e m o r a s s e mais
ali. Não p o d e r i a recusar o convite de um ser desses. Eu era
convidado para ir ao lado dele p a r a sei lá onde, e soube q u e
não havia c o m o recusar.
— Vamos, Ângelo! — falou, c o m o sorriso enigmático.
E n q u a n t o falava, c o m u m a m ã o e s t e n d i d a p a r a m i m e a
outra segurando a espada, instrumento que naquele mom e n t o n ã o tive c o n d i ç õ e s de analisar, ele s i m p l e s m e n t e
abriu um rasgo no e s p a ç o à sua frente. U m a p o r t a no e s p a ç o ou e n t r e d i m e n s õ e s ? N ã o saberia definir, ainda. M a s
a e s p a d a de fato abriu u m a b r e c h a no universo, q u e m
sabe, e p u d e vislumbrar, através d a q u e l a fenda, um m u n d o diferente, talvez u m a cidade, m u i t o d i s t a n t e . E s t r e las q u e p a r e c i a m d e o u t r o m u n d o , estrelas q u e p a r e c i a m
me fitar... e o h o m e m , Jamar, e s t e n d i a - m e a mão, e m b o r a
o convite se fizesse m e s m o pelo p e n s a m e n t o , q u e t a m b é m
rasgava o m e u , e p e n e t r a v a - m e i n t e r n a m e n t e c o m o se fosse o fio de sua espada.
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Eu olhava fascinado pela a b e r t u r a dimensional instaurada pela espada do guerreiro, do guardião, c o m o ficaria
sabendo mais tarde. E aquele m u n d o diferente, iridescente, cheio de estrelas; aquela cidade, cujo esboço eu via entre os sóis da amplidão, rebrilhando entre nuvens ou poeira de estrelas, parecia me magnetizar. E o fenômeno todo
daquele instante parecia diluir m i n h a alma, de tal m o d o
que, ao tocar a m ã o estendida de Jamar, senti c o m o se min h a alma t o d a se abrandasse e engrandecesse; acalmavam-se m e u s p e n s a m e n t o s , tranquilizavam-se m i n h a s emoções.
A curiosidade inata repousou por um instante, pois me senti a d o r m e c e r c o m o n u m sono agradável, sereno e povoado
de sonhos. Sonhei com um país diferente, sem ditadura n e m
ditadores, sem limites fixados por bandeiras ou fronteiras
hostis. Um país para o qual eu era levado pelas mãos de Jamar, o anjo que me a c o m p a n h a v a em direção ao início de
u m a vida nova, u m a aventura espiritual que jamais teria fim.
Q u a n d o abri os olhos, fui t o m a d o de surpresa. E n c o n trava-me deitado n u m a espécie de barco, q u e deslizava
s u a v e m e n t e sobre águas calmas. Seria um mar? Não saberia precisar, embora, p a r a o n d e q u e r que olhasse, p e r c e b e s se s o m e n t e águas e mais águas. Esforcei-me e me p u s de
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pé, devagar, s e n t a n d o - m e logo após. E J a m a r estava lá, de
pé, ereto, na p r o a da embarcação, ainda rebrilhando, p o r é m discretamente, c o m o se quisesse disfarçar sua a p a r ê n cia. De um lado e outro, dois outros h o m e n s r e m a v a m c o m
notável tranquilidade, a m b o s em pé, e s o m e n t e eu sentado. Brisa suave parecia vir de algum lugar; ao longe, à frent e d o barco, avistava-se u m brilho, u m t r e m e l u z i r d e u m a
luz que, a mim, p a r e c i a m - m e as luzes de u m a cidade. Seria
a cidade que eu p e r c e b e r a q u a n d o J a m a r rasgara o espaço
com sua espada? Seria a cidade das estrelas? Não saberia
dizer. Aliás, eu não sabia sequer c o m o a d o r m e c e r a e n e m
c o m o fora p a r a r ali.
— Este é o M a r da Serenidade! — falou Jamar, sem
olhar para m i m .
Deliciava-me ao c o n t e m p l a r a paisagem marítima, e
agora t i n h a a confirmação de q u e estava diante de um mar.
Águas e x t r e m a m e n t e claras e de tal m a n e i r a translúcidas
que p o d i a divisar golfinhos nos seguindo, p u l a n d o ora aqui,
ora ali, ao lado da embarcação, além de diversos outros habitantes das águas. Ainda sem olhar p a r a mim, mas fixando
longe aquilo q u e devia ser u m a cidade, mas cujos detalhes
me escapavam, J a m a r continuou:
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— Estes são guardiões, que estão nos remos. São servidores c o m o eu e m e u s o u t r o s irmãos.
Olhei para os dois h o m e n s que estavam de pé remando,
cada qual de um lado do barco, e os vi sorrir. Um sorriso largo,
aconchegante, espontâneo. Foi o suficiente para me sentir em
casa; era como se conhecesse essa gente de longa data. Até
m e s m o Jamar, o anjo que nos conduzia. De repente, fui surpreendido por um enxame de seres que pareciam borboletas.
— Não são borboletas. Olhe b e m , Ângelo!... — falou Jamar, s e m se voltar p a r a mim, ainda fitando ao longe.
N o v a m e n t e observei e notei que o p a n a p a n á — ou seja
lá c o m o se classificasse essa c o m u n i d a d e de seres — p a r e cia b r i n c a r sobre as águas, a r r a s t a n d o - s e em g r a n d e velocidade. E r a m fosforescentes, a m e u ver, e irradiavam u m a
tonalidade azulada, quase c o m o neon. Mas p a r e c i a m quase
humanos, muito embora o tamanho menor que uma mão
h u m a n a . Brincavam, sorriam e d a n ç a v a m sobre as águas
em bandos, e n q u a n t o alguns cavalgavam um ou o u t r o golfinho, q u e pelo jeito se deliciavam c o m a p r e s e n ç a daqueles
seres p e q u e n i n o s . Pensei que estava s o n h a n d o , ainda.
— Não está s o n h a n d o , Ângelo. São seres reais, são habit a n t e s das águas e v ê m nos recepcionar. Para o n d e iremos,
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você se a c o s t u m a r á c o m a p r e s e n ç a deles. São os c h a m a d o s
elementais.
1
M i n h a m e n t e p a r e c e u u m turbilhão. M i n h a s e m o ç õ e s
a r r e b e n t a v a m de d e n t r o de m i m ao p e r c e b e r a vida abund a n t e naquele novo ambiente. E m i n h a reação foi a mais
h u m a n a possível: comecei a chorar. Só e n t ã o J a m a r voltou-se p a r a mim.
— Não há c o m o não se emocionar com a riqueza da vida
ao nosso redor. Sinta-se à vontade, amigo. T a m b é m choro
muitas vezes diante da manifestação da n a t u r e z a sideral.
Olhei ao r e d o r e vi os golfinhos levando vários seres na
garupa, os quais se divertiam visivelmente. E r a m habitantes daquele m u n d o diferente, novo, e s t u a n t e de vida. E eu
exultava ao p r e s e n c i a r t u d o aquilo.
1
Para maiores esclarecimentos sobre os elementais naturais, agrupados sob a de-
nominação espíritos da natureza na codificação espírita (cf.
KARDEC.
O livro dos
a
espíritos. I ed. esp. Rio de Janeiro: FEB, 2005. p. 337-340, itens 536-540), consulte
o volume 2 da série Segredos de Amanda
(PINHEIRO.
Pelo espírito Ângelo Inácio.
a
Amanda. 13 ed. rev. ampl. Contagem: Casa dos Espíritos, 2011. p. 86-98, cap. 7). Há
esclarecimentos importantes nesse trecho, inclusive sobre a opção por adotar a nomenclatura do esoterismo clássico, elementais.
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— Estamos c h e g a n d o — informou um dos guardiões
que remavam. D e i x a r a m os r e m o s de lado, e o barco d e s lizava sozinho, pelo m e n o s d e d u z i assim. Mas não! E r a m
os golfinhos e os seres p e q u e n i n o s que c o n d u z i a m a embarcação no t r e c h o p r ó x i m o à h o r a de atracar. C h e g a m o s
deslizando, l e n t a m e n t e , sobre as águas calmas daquele m a r
sereno, em t u d o diferente do q u e eu conhecia. Mais e mais
seres das águas se mostravam às dezenas, às centenas. E o
m a r parecia g a n h a r vida, u m a vida n u n c a antes percebida
por m i m ou, q u e m sabe, ainda d e s c o n h e c i d a de t o d o s na
face da Terra. D e s e m b a r c a m o s devagar e m e u s pés se m o l h a r a m naquela água ligeiramente fresca, agradável. C o m o via-me com cada detalhe do m u n d o novo. Foi q u a n d o notei
q u e havia gente nos recepcionando.
Logo ao pisarmos o solo, um grupo de crianças, adolescentes e outros personagens diferentes, exibindo trajes de
diversas épocas e estilos, vinham em nossa direção. Alguns
correndo, brincando, soltando gritos de felicidade. No meio
deles, para m i n h a surpresa, Maria, a m i n h a Maria vinha me
receber. Além, um pouco mais vagaroso, como dando t e m p o
para os demais se apresentarem, notei um h o m e m elegante, um senhor já de idade, terno branco, alvíssimo, de linho
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puro. Sorriso largo nos lábios, olhava-nos, enquanto eu recebia das mãos de u m a criança um colar semelhante a um colar
havaiano, p o r é m feito de flores reais, naturais, perfumosas.
Chorei ao rever Maria, m i n h a a d o r a d a filha. E a saudade a r r e b e n t o u d e n t r o de mim, d i s p u t a n d o espaço com
emoções novas. Sem sofrimento, p o r é m . Senti-me renovado ao abraçá-la.
— Estou aqui apenas e s p e r a n d o a sua chegada, m e u pai.
Apenas por um pouco de t e m p o , p a r a que saiba que estou
b e m e viva — disse ela. A b r a ç a m o - n o s ali m e s m o , e me senti aconchegado em seus braços por um t e m p o muito longo.
Ou seria impressão m i n h a ? Sei que, q u a n d o nos soltamos
um dos braços do outro, sentia-me ainda mais jovem do que
q u a n d o mentalizei o corpo de alguns anos antes. E Maria
olhava-me, e falava mais c o m o olhar do q u e c o m palavras.
Logo veio o ancião vestido de t e r n o branco, e n q u a n t o
algumas crianças me c o n d u z i a m pelas mãos. Maria ficou a
certa distância, o l h a n d o - m e e sorrindo:
— Não se preocupe, m e u pai. Você está em casa. Estaremos juntos, a partir de agora — e senti que isso era verdade.
— Seja b e m - v i n d o ao lar, Ângelo Inácio! — s a u d o u - m e
com largo sorriso o ancião que me recebera, a c o m p a n h a -
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do p o r Jamar, que curvava l e v e m e n t e a cabeça, c o m o se o
reverenciasse.
— Obrigado pela acolhida generosa! Mas sabe o m e u
n o m e , e eu não o c o n h e ç o ainda...
— C h a m e - m e de João! Apenas João. Isso é o b a s t a n t e
por e n q u a n t o , m e u filho.
— Este é um dos anciãos que c o m p õ e m o colegiado de
nossa cidade — explicou Jamar.
— Colegiado?
— Mais t a r d e será d e v i d a m e n t e informado.
Olhei ao r e d o r e vi campos, florestas, m o n t a n h a s . Ao
longe, talvez a alguns quilômetros, ainda, a cidade que se
erguia majestosa, e n t r e bosques, trepadeiras, jardins e rios,
que p a r e c i a m e s c o r r e r d e m o n t a n h a s ; havia t a m b é m p r é dios e outras construções. Era u m a paisagem diferente,
exótica, maravilhosa, d e s l u m b r a n t e , em t u d o diferente das
cidades q u e eu c o n h e c e r a e da p r ó p r i a cidade maravilhosa de o n d e viera. T u d o parecia repleto de vida, de cor e de
a r o m a s únicos e inebriantes.
O ancião negro à m i n h a frente segurava u m a espécie
de cajado ou bengala, e m b o r a n ã o precisasse de n a d a para
apoiar-se, afigurando-se mais c o m o acessório a compor-
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-lhe o visual do que auxílio à locomoção, de m o d o a torná-lo ainda mais elegante. E n t r e as crianças e adolescentes
que me recepcionaram, p u d e n o t a r algo curioso: a g r a n d e
variedade de etnias ali r e p r e s e n t a d a s , n u m amálgama b o nito de se ver. Negros, mulatos, b r a n c o s e ruivos dos traços os mais diversos, além de indígenas de t o d a parte, dos
peles-vermelhas aos aborígenes e outros mais, s e m falar
nos r e p r e s e n t a n t e s de povos asiáticos, em t o d a sua riqueza;
enfim, um mosaico de etnias, povos e culturas que me impressionou. Ao que me parecia, conviviam t o d o s de m a n e i ra h a r m o n i o s a . Seria ali o Céu? A a n t e c â m a r a do paraíso?
Sorrindo s e m p r e de m o d o sincero e generoso, João olhou
para m i m e, colocando a m ã o sobre m e u o m b r o direito,
a p o n t o u para a cidade ao longe.
— Não é o Céu ainda, Ângelo. Ainda, não! — disse rindo c o m um sorriso farto, espontâneo. — Aqui não t e m anjos
n e m santos — falava p a u s a d a m e n t e —, a p e n a s seres h u m a nos c o m o você, eu e J a m a r ou c o m o os bilhões na superfície
do planeta. Aqui t a m b é m e s t u d a m o s , a p r e n d e m o s , e r r a m o s
muito, mas m u i t o m e s m o , e t e n t a m o s acertar ao m á x i m o .
Aqui é s i m p l e s m e n t e a A r u a n d a de todos os povos, de todas
as gentes. Apenas a Aruanda.
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Não saberia dizer o porquê, mas esse n o m e me tocou
profundamente o coração desde o instante em que o ouvi
ser pronunciado pela primeira vez. Seu eco em m i n h a m e n te parecia mexer fundo com m e u s sentimentos e emoções, e
ainda não havia p e n e t r a d o os limites da cidade, em si. Estava
na periferia, digamos assim. E n q u a n t o mirava a cidade, que
para m i m se afigurava deveras distante, fui insistentemente
c h a m a d o por um jovem adolescente, que apontava em determinada direção, t e n t a n d o me mostrar ao longe, do lado oposto àquele onde se via o m a r por onde chegáramos. Apontava
as m o n t a n h a s no horizonte. E me encantei com o que vi.
C h o u p a n a s , bangalôs de t r a ç a d o incrivelmente elegante, c o n t r a s t a n d o c o m a simplicidade de sua estrutura. E r a m
casas que, a m e u s olhos, p a r e c i a m feitas de madeira, mas
conviviam tão h a r m o n i o s a m e n t e c o m a paisagem n a t u r a l
que formavam um q u a d r o encantador, em meio a riachos,
cachoeiras e vegetação de tons variados, além de pássaros
e outros animais que jamais imaginava p o d e r e n c o n t r a r
após a morte, ou após a vida, em outra vida, em qualquer
lugar do universo. Havia t a m b é m outras construções, q u e
p a r e c i a m feitas de concreto ou alguma substância similar,
mas na ocasião d e s c o n h e c i a p o r m e n o r e s p a r a descrevê-las
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melhor. Do m e s m o m o d o , exibiam beleza e conviviam pacificamente c o m a natureza, d e n o t a n d o que o paisagismo
fora d e t a l h a d a m e n t e planejado, de forma a preservar t a n t o
a elegância das c o n s t r u ç õ e s q u a n t o o relevo e a vegetação
e x u b e r a n t e no e n t o r n o de cada u m a delas. E me encantei, e
chorei n o v a m e n t e de emoção, de alegria por me sentir vivo
e por saber q u e faria p a r t e de t u d o aquilo, daquela paisagem extraordinária, diante da qual as belezas naturais da
cidade d e o n d e v i n h a e r a m apenas u m a amostra, u m esboço, talvez. Nada se comparava àquilo q u e m e u s olhos enxergavam. Nada. Enfim, aquela era a A r u a n d a da qual João
me falava e que as crianças e jovens me mostravam. Eu respirava fundo o ar fresco e o frescor q u e parecia me trazer,
i m p r e g n a d o do a r o m a de flores de laranjeira.
— As c o n s t r u ç õ e s que l e m b r a m algumas que você já
viu na Terra, Ângelo, feitas de concreto, são m u s e u s , o n d e
os artistas da nossa cidade e de outras e x p õ e m suas obras,
p r o d u t o de criações mentais. No total, são 1,2 mil m u s e u s
dispostos em meio às m o n t a n h a s , vales e planícies. As
c h o u p a n a s , casas simples e bangalôs são habitações de espíritos, daqueles que preferem viver em meio à natureza,
de m a n e i r a mais direta e intensa, e que não apreciam t a n t o
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a vida u r b a n a , isto é, na cidade, p r o p r i a m e n t e . Adiante —
c o n t i n u o u Jamar, a p r o x i m a n d o - s e de m i m e de João, que
ainda repousava o b r a ç o sobre m e u s o m b r o s — há outras
habitações, laboratórios de e x p e r i m e n t o s c o m a natureza,
e n t r e outros d e p a r t a m e n t o s , q u e você t e r á b a s t a n t e t e m p o
p a r a explorar.
T u d o aquilo era m u i t o novo para m i m . E m b o r a me sentisse à v o n t a d e diante das pessoas que me recebiam, àquela
altura p e r c e b i - m e ainda um p o u c o fraco. Não sei se devido ao fato de ter m o r r i d o p a r a o m u n d o , ou desencarnado,
conforme algumas c o r r e n t e s espiritualistas diziam, certo é
que a transição parecia ter afetado de alguma m a n e i r a min h a vitalidade. Não era um cansaço profundo ou pesado,
c o m o q u a n d o se está esgotado, após u m a j o r n a d a de trabalho intensa. Não! E r a algo mais ameno, mas que me deixava
claro ser necessário repousar. Repousar? Ali m e s m o veio à
t o n a o q u e s t i o n a m e n t o cruel: o n d e p o d e r i a eu descansar?
D e que forma e n c o n t r a r u m local para m e h o s p e d a r o u m o rar? Acabara de chegar a este mundo espiritual, conforme
c h a m a v a m a vastidão daquele universo de almas e h o m e n s .
Não me senti confortável p a r a falar a respeito e logo p e n sei em m i n h a filha. Ela chegara poucos dias antes de mim,
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p o r t a n t o talvez p u d e s s e ficar com ela; assim, t e r í a m o s t e m po p a r a conversar. Mal formulei o p r o b l e m a e João dava
mostras de c o n h e c e r p r o f u n d a m e n t e m e u s p e n s a m e n t o s e
questionamentos:
— Não se p r e o c u p e , Ângelo. Você será e n c a m i n h a d o a
um dos nossos hotéis na cidade. Lá se sentirá tão à v o n t a d e
que talvez seja difícil convencê-lo a sair de lá, depois. Mas
t u d o a seu t e m p o . Maria o a c o m p a n h a r á , j u n t o c o m Jamar.
— Hotel? C o m o assim? Há hotéis por aqui?
— E como não? — falou Maria ao aproximar-se de mim,
t o m a n d o o lugar de João e abraçando-me. — Aprenda de vez,
m e u pai: o m u n d o aqui é o m u n d o original, primordial; lá, na
Terra que eu e você deixamos há pouco, está apenas a cópia.
L e m b r e i - m e de alguns hotéis o n d e havia me h o s p e d a do, em cidades do Brasil e do m u n d o . E vários deles foram
b o n s hotéis.
— Então, se na Terra m u i t a coisa é de b o a qualidade,
imagino o original, do lado de cá...
— Pois é, m e u q u e r i d o — r e t o r n o u Maria, d a n d o - m e
maior atenção ainda. — Em p o u c o t e m p o me s u r p r e e n d i
c o m m u i t a coisa, mas creio que p a r a você, c o m sua curiosid a d e inata, o c a m p o de pesquisa seja m u i t o mais vasto.
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— Por acaso posso c o n t i n u a r escrevendo aqui? Posso
ser jornalista, t a m b é m ?
Antes q u e Maria me respondesse, J a m a r assumiu a
dianteira e falou:
— Claro, Ângelo. Você verá em breve que terá muito
t r a b a l h o a fazer nessa sua área. Terá m u i t o s e l e m e n t o s a
pesquisar e um c a m p o b e m amplo a ser explorado e com e n t a d o n u m outro tipo de jornalismo. Poderá, inclusive,
c o n h e c e r a redação do nosso jornal e, q u e m sabe, queira
ser um dos escritores do Correio dos Imortais.
— E n t ã o terei c o m o fazer o que mais gosto, escrever...
— Sim! Para os vivos do nosso lado e p a r a os que contin u a m na c a r n e — c o m p l e t o u ele.
— Não e n t e n d i . Q u e r d i z e r q u e n ã o se f e c h a r a m p a r a
s e m p r e as p o r t a s de c o m u n i c a ç ã o c o m o m u n d o d o s vivos? — i m p r e s s i o n e i - m e .
— E você, eu e sua filha, por exemplo, não estamos vivos, t a m b é m ?
— Eu sei, eu sei, mas falo dos que vivem no m u n d o , no
m u n d o que deixei...
— Ah! Sei do q u e está falando — J a m a r se fazia de bobo
de propósito. — Basta p o r ora saber que você p o d e r á voltar,
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sim. E m u i t o mais breve do q u e p o d e r i a imaginar!... Mas
vamos ao hotel.
Fiquei d u p l a m e n t e intrigado, curioso ao extremo. Ir
a um hotel n u m a cidade feita p o r espíritos e p a r a espíritos. De outro lado, a possibilidade de r e t o r n a r ao m u n d o ,
de t r a b a l h a r c o m o repórter, escritor, jornalista. C o m o p o deria ser isso? M i n h a m e n t e estava febril; antes m e s m o das
outras surpresas que viria a ter, parece que m e u cansaço
havia passado. Não conseguia p e n s a r em n a d a mais, a não
ser o que eu escreveria sobre o m u n d o novo que começava
a conhecer. M a s aquilo era a p e n a s a p o n t a do iceberg; jamais imaginaria quais experiências me aguardavam. M e s mo assim, fui descobrindo p o u c o a p o u c o que este m u n d o
novo talvez fosse mais desafiador, ao m e n o s no que tange
a ideias e descobertas, do que o m u n d o antigo, q u e deixei
j u n t o c o m o corpo físico.
Um veículo a p r o x i m o u - s e r a p i d a m e n t e de nós. E esse
foi mais um desafio p a r a o tipo de ideia que eu ameaçava
fazer da vida de espírito. Era um veículo p e q u e n o , b e m ao
estilo dos automóveis que desfilavam nas ruas da Cidade
Maravilhosa e de outras tantas cidades do mundo... Não
fosse o fato de q u e n ã o precisava de rodas! Deslizava a al-
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g u n s c e n t í m e t r o s do chão daquele novo lar. Olhei para Jamar, que sorria d i s c r e t a m e n t e — aliás, dificilmente o vi sorrir de m a n e i r a mais aberta, explícita, gargalhando, c o m o se
vê e n t r e os c h a m a d o s vivos. Abriu-se a p o r t a do veículo e
e n t r a m o s , Maria, o p r ó p r i o J a m a r e eu. Não explicou, apenas a c o m p a n h o u m e u s p e n s a m e n t o s . Naquele ponto, era
claro para m i m que ele conhecia os c a m i n h o s intricados
que trilhavam m e u s p e n s a m e n t o s .
— São aeronaves, m e u pai — s o c o r r e u - m e Maria. —
Aqui t a m b é m existe m u i t a tecnologia. Já vi m u i t a coisa, em
poucos dias.
— Mas não somos todos espíritos? Por que não saímos
v o a n d o p o r aí?
— N ã o é simples assim. Você a p r e n d e r á logo, logo. Fique quieto que terá outras surpresas por aqui.
O veículo partiu n u m a velocidade altíssima p a r a os padrões t e r r e n o s . Deslizava c o m tal facilidade que não p e r c e bi n e n h u m sinal de m o v i m e n t o s e m e l h a n t e ao que ocorre
c o m os carros convencionais ao frear ou acelerar. Depois
de algum t e m p o , elevou-se ao alto e saiu voando, e m b o ra parecesse planar e n q u a n t o adentrava a metrópole, p r o p r i a m e n t e dita. E fiquei d e s l u m b r a d o . Seria Niemayer o
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arquiteto mágico de t u d o isso? Mas não; ele p e r m a n e c i a
e n c a r n a d o q u a n d o abandonei o corpo físico. Ou teria ele
e s t u d a d o aqui antes de nascer no m u n d o ? Q u e m sabe alg u m artista, esteta ou escultor e n t a l h a r a ou projetara aquela maravilha da arquitetura, c o m o se fosse u m a o b r a - p r i m a
engastada n a p r ó p r i a n a t u r e z a desse m u n d o imponderável,
invisível aos olhos h u m a n o s ? M e u Deus!... Fui t o m a d o de
d e s l u m b r e ao p e n s a r no autor de t u d o o q u e via.
Edifícios q u e p a r e c i a m esculpidos em cristal ou substância similar; outros, em u m a m a t é r i a tão sutil, etérea,
q u e m sabe d e d e t e r m i n a d a constituição n u n c a antes d e tectada, d e s c o b e r t a ou c o n h e c i d a e n t r e os mortais. T u d o
brilhava, cintilava e n t r e formas e cores que em n e n h u m a
hipótese havia p e r c e b i d o ou vislumbrado. No meio da nat u r e z a preservada, cultivada, eis que trafegavam os veículos, u n s imensos, o u t r o s m e n o r e s e alguns outros, vistos ao
longe, r o m p e n d o o h o r i z o n t e , p a r e c i a m sair da atmosfera.
N u n c a m e senti tão p e q u e n i n o c o m o naquele m o m e n t o .
E, na Terra, c o m o a gente se gabava de ter c o n s t r u í d o u m a
civilização... Descerrava-se ali a v e r d a d e i r a civilização do
planeta Terra. M e u coração e n c h e u - s e de t e r n a gratidão à
vida, e n q u a n t o lágrimas desciam à m i n h a face.
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O veículo se dirigiu a d e t e r m i n a d o p o n t o da g r a n d e
metrópole, q u e se assemelhava a bairros residenciais da
paisagem urbana, de certa maneira. Pairamos no a n d a r baixo de um edifício de linhas m o d e r n a s , em local que parecia
estar reservado ao veículo que nos conduzia. J a m a r desceu
primeiro, a b r i n d o a p o r t a para nós.
E n c o n t r a m o s u m a m u l h e r elegante, trajando u m a roupa que lembrava a belle époque e os anos 1920 da antiga Paris, c o m um c h a p é u igualmente elegante e m o l d u r a n d o os
cabelos. M a q u i a g e m discreta, traços fisionômicos que inspiravam confiança e segurança, ao m e s m o t e m p o .
— Seja bem-vindo, guardião da noite. Sejam todos b e m -vindos. Já estamos e s p e r a n d o p o r vocês.
Olhei p a r a J a m a r c o m o a p e d i r alguma explicação. Ele
ignorou m i n h a curiosidade.
— Fique quieto, m e u pai — falou Maria. — Em breve
você saberá q u e m é J a m a r e por que está a b o n a n d o nossa
estadia aqui.
A d e n t r a m o s o a m b i e n t e , q u e à p r i m e i r a vista não se
diferenciava de um dos ó t i m o s hotéis, diria quase de luxo,
d e u m a capital europeia. Porém, distinguia-se pela sobriedade, elegância e b e l e z a i n c o m u n s , s e m n a d a q u e r e m e -
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tesse a fausto e opulência. Havia u m a r e c e p ç ã o e um balcão, o n d e e r a m registrados os h ó s p e d e s , c o m o de c o s t u m e .
Para lá nos dirigimos, na c o m p a n h i a da m u l h e r que nos
conduzia.
— Já o aguardávamos aqui, Sr. Ângelo! M e u n o m e é Dayane e p o d e ficar à v o n t a d e para p e r g u n t a r o q u e lhe convier. Contudo, preciso q u e p r e s t e atenção a algumas informações que devo lhe passar.
Olhei p a r a Maria e t a m b é m p a r a Jamar, m a s eles pareciam m a n c o m u n a d o s . D e i x a r a m - m e a sós c o m m i n h a
curiosidade quase mórbida, que aflorava a t o d o vapor.
— Não é necessário p r e e n c h e r q u a l q u e r ficha por aqui.
Preciso apenas que o s e n h o r seja s u b m e t i d o ao sensor de
emoções. Mas não d e m o r a o p r o c e d i m e n t o ; é algo simples,
cujo funcionamento p o d e r e i lhe explicar, mais tarde.
C o n d u z i u - m e ao balcão e lá me o r i e n t o u a colocar a
m ã o e s p a l m a d a sobre um aparelho, que t i n h a a superfície
feita, ainda, de u m a variação de um cristal cintilante. Assim
que p u s a m ã o ali, à m i n h a frente se ergueu u m a espécie de
tela holográfica, c o m várias informações sobre m i n h a vida,
e algumas outras que não p u d e e n t e n d e r naquele m o m e n to. "Altíssima tecnologia", pensei.
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— C o m certeza — afirmou Jamar, r o m p e n d o o silêncio.
— Pois b e m , s e n h o r — falou Dayane, a d a m a q u e nos recebera, e n q u a n t o o u t r a s pessoas ou espíritos t a m b é m e r a m
atendidos p o r seres que ali trabalhavam. — Temos aqui
u m a espécie de hotel. Na verdade, assim o c h a m a m o s p a r a
m e l h o r facilitar o e n t e n d i m e n t o das pessoas que c h e g a m à
nossa cidade diariamente, t a n t o advindos da Terra q u a n t o
de outras cidades do espaço. Existem a p e n a s duas regras:
convivência pacífica c o m a n a t u r e z a e respeito aos limites.
Não se paga nada; sua estadia é abonada por seres mais exp e r i e n t e s q u e p a t r o c i n a m sua v i n d a à nossa A r u a n d a . Ficará aqui t e m p o r a r i a m e n t e ; m e s m o assim, e s t r u t u r a m o s um
tipo de a p a r t a m e n t o de acordo c o m suas necessidades particulares e alguns de seus hábitos na Terra, de tal m a n e i r a
que não sofrerá g r a n d e impacto no novo ambiente. Fique à
v o n t a d e p a r a pedir q u a l q u e r coisa através do aparelho de
c o m u n i c a ç ã o que e n c o n t r a r á em seus aposentos.
A m u l h e r saiu p a r a logo c o m e ç a r o a t e n d i m e n t o a outra pessoa que chegava ao local. Não imaginei q u e fosse
simples assim o a t e n d i m e n t o e tão rápido c o m o se deu.
— Voltarei mais tarde, Ângelo. Devo c o m u n i c a r a alg u n s amigos sua chegada. D a r e m o s um t e m p o p a r a q u e se
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recupere; p o r é m , fique atento, pois daqui a e x a t a m e n t e 4
h o r a s c h e g a r á um m é d i c o para ver seu estado energético e
emocional. É alguém m u i t o h u m a n o , c o m o você e eu; não
se p r e o c u p e . Aconselho que descanse, d u r m a um p o u c o e
deixe a curiosidade p a r a depois. Terá m u i t a coisa c o m que
se o c u p a r breve, breve. Aproveite, pois espero que n ã o fique t e m p o demais por aqui — J a m a r saiu, d e s p e d i n d o - s e
de Maria e de m i m e fazendo um aceno discreto p a r a a m u lher que nos recebeu naquele a m b i e n t e tão acolhedor.
Olhei mais d e t i d a m e n t e em volta e comecei, então, a
notar diferenças mais m a r c a n t e s em relação às c o n s t r u ç õ e s
terrenas. Mas e r a m tantas, t a n t a tecnologia que eu n u n c a
vira na Terra, que pensei estar inserido n u m s o n h o tridimensional de ficção. No entanto, a p r e s e n ç a de m i n h a filha
me fez crer q u e aquilo t u d o era realidade — era a nova realidade c o m a qual eu teria de conviver a partir dali. Respirei
fundo. Abraçado c o m Maria, deixei-me c o n d u z i r p o r ela e
por outro espírito q u e logo se apresentou, no novo ambiente o n d e eu repousaria por certo t e m p o . Iniciava-se ali min h a d e s c o b e r t a daquela cidade espantosa, maravilhosa e
s o b r e t u d o diferente de todas q u e conheci d u r a n t e a existência física. Eis que agora eu morava na A m a n d a ; ao m e -
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nos p o r e n q u a n t o era h ó s p e d e e m u m a m e t r ó p o l e espiritual que os h u m a n o s e n c a r n a d o s n e m sonhavam existir.
Era a cidade dos espíritos, a cidade das estrelas.
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ESPERTEI
EXATAMENTE
QUATRO
h o r a s depois, ou m e -
lhor, d o r m i três h o r a s apenas, pois d u r a n t e u m a das h o r a s
a m i m concedidas fiquei bisbilhotando o hotel e t e n t a n d o
obter informações sobre seu funcionamento. Era t u d o m u i to inusitado e extraordinário p a r a mim, e m b o r a estivesse
satisfeito c o m o fato de estar vivo, apesar da m o r t e . Não
obstante, e n c o n t r a r u m a e s t r u t u r a tão c o m p l e x a e ainda incompreensível p a r a m i m era algo que definitivamente me
intrigava e me instigava o espírito aventureiro e a curiosid a d e inata, que fazia d e s p e r t a r em m i m o interesse p o r tantas coisas.
Acordei me s e n t i n d o satisfeito, inspirado, quase em
plena saúde. Assim q u e me levantei, descobri que o m é d i co já me aguardava na antessala. Alto, claro, magro e vestido de m a n e i r a sóbria, impecável, parecia haver chagado
ali há apenas um m i n u t o . Mas esperava p o r mim. Mal havia
me colocado de pé e ouvi tocar um i n s t r u m e n t o , q u e soou
para m i m c o m o u m a c a m p a i n h a , e m i t i n d o u m som suave.
Apressei-me até a p o r t a e vi o médico em pé diante de mim.
Não d e m o n s t r o u hesitação: e n t r o u i m e d i a t a m e n t e no amplo q u a r t o o n d e me encontrava e c o m e ç o u a conversa, quase sem se apresentar:
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— Boa tarde, Ângelo! Não t e m o s m u i t o t e m p o , m e u irmão. Sou um dos servidores da cidade e estou aqui p a r a
avaliar sua condição energética ou saúde espiritual. Sente-se, m e u caro.
Fiquei um p o u c o perdido, confesso, m a s obedeci quase
cegamente, pois sentia u m a ascendência moral naquele h o m e m , c o m o se fosse um carisma irradiante. Ia esboçar u m a
p e r g u n t a q u a n d o ele c o n t i n u o u por si m e s m o :
— D u r a n t e o t e m p o em q u e dormia, dois de nossos
m a g n e t i z a d o r e s ficaram a postos no q u a r t o ao lado, m a n i p u l a n d o suas energias, m a g n e t i z a n d o - o , de m a n e i r a q u e
p u d e s s e se sentir m e l h o r q u a n d o acordasse. Espero que t e n h a sentido os resultados.
E n q u a n t o discorria, tirava de u m a maleta alguns inst r u m e n t o s e os colocava n u m a m e s i n h a ao lado. Aliás, devo
acrescentar, u m a m e s i n h a sem pés, que de alguma forma
eu não havia reparado, flutuava no a m b i e n t e c o m o um balão, a a p e n a s alguns c e n t í m e t r o s do chão. Colocou ali dois
aparelhos m u i t o p e q u e n o s , m e n o r e s q u e u m a m ã o h u m a n a ,
e, ao tocar-lhes a superfície, s e m botões aparentes, foram
acionados e c o m e ç a r a m a funcionar. E n q u a n t o isso, retirou
u m a espécie de t u b o de u n s 2 0 c m do m e s m o lugar de o n d e
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extraíra os i n s t r u m e n t o s anteriores. Tocava em m i m levem e n t e , em alguns p o n t o s que p a r a m i m não significavam
g r a n d e coisa, ao m e n o s naquele m o m e n t o . Provavelmente,
n o t a n d o m i n h a curiosidade sobre a forma c o m o praticava
sua medicina, achou p o r b e m esclarecer:
— Nossa m e d i c i n a aqui é b e m mais avançada que a
medicina terrena, isto é, dos e n c a r n a d o s . Do lado de cá
da vida, c o n t a m o s c o m especialistas na tecnologia sideral
que desenvolvem i n s t r u m e n t o s a p r o p r i a d o s p a r a devassar
o corpo espiritual de m e u s irmãos. Estes dois i n s t r u m e n tos são usinas de energia q u e e m i t e m radiação e eletricidade que seriam suficientes, c o m p a r a t i v a m e n t e , p a r a abastecer duas das grandes m e t r ó p o l e s da Terra p o r mais de 20
anos. G u a r d a m u m potencial q u e n ã o p o d e ser m e n s u r a d o
apenas pelo seu t a m a n h o . Quanto à nossa medicina, ela é
energética, psicossomática. Avaliamos c o m i n s t r u m e n t o s
ultrassensíveis os c a m p o s de força, as c o r r e n t e s de energia
e a condição das emoções de nossos pacientes. Não utilizamos em nossa cidade m é t o d o s tradicionais c o m o cirurgias invasivas, injeções ou outros recursos usados na Terra
e t a m b é m em muitas cidades espirituais. Aqui nosso tratam e n t o usa técnicas avançadas de m a g n e t i s m o e alguns p r o -
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c e d i m e n t o s mais intensos, em caso de necessidade, p o r é m
não invasivos. Isso t a m b é m é possível p o r q u e nos hospitais
da cidade não t e m o s espíritos d e m e n t a d o s ou em condições de significativo desajuste. Mais tarde, p o d e r á visitar-nos as instalações médicas, caso queira.
O h o m e m falava e n q u a n t o me analisava. Sentia q u e o
aparelho p r o d u z i a e m m i m u m a sensação d e formigamento, q u e até me parecia u m a leve anestesia. Porém, o médico
não entrava em detalhes. Mal eu esboçava u m a p e r g u n t a ou
pensava em falar e logo ele prosseguia:
— C o m o eu imaginava, algumas sessões de m a g n e t i s m o
e um a c o m p a n h a m e n t o d e t a l h a d o de seu estado emocional
serão suficientes p a r a você se sentir mais pleno e em condições de trabalhar. T e n h o lhe a c o m p a n h a d o desde algum
t e m p o antes de realizar a g r a n d e viagem. O d e s c a r t e biológico foi p r o g r a m a d o d e t a l h a d a m e n t e p o r nossa equipe e tivemos o cuidado de a c o m p a n h á - l o nos p r i m e i r o s m o m e n tos p ó s - m o r t e , d i s p e r s a n d o os fluidos que p o d e r i a m ser
mal utilizados p o r inteligências da oposição. Afinal, você
era alvo dos opositores do Cordeiro. T í n h a m o s q u e cuidar
b e m de você devido ao potencial p a r a o trabalho e t a m b é m
ao passado ligado a nós, de certa maneira.
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— Posso p e r g u n t a r alguma coisa?
— Mas você está p e r g u n t a n d o , m e u amigo, só que me
adianto aos seus p e n s a m e n t o s apenas p o r q u e não dispon h o de m u i t o t e m p o . M a s p o d e perguntar, sim. Sinta-se à
vontade, ou melhor, n e m tão à v o n t a d e assim, pois t e n h o
c o m p r o m i s s o s u r g e n t e s e m outro d e p a r t a m e n t o .
— Qual... — comecei a selecionar b e m as palavras, dem o r a n d o um p o u c o a formular a frase. Mas parece que o
espírito à m i n h a frente era mais ágil ou não t i n h a t a n t a paciência assim.
— J o s e p h Gleber, à sua disposição, m e u querido.
E voltando-se em direção à saída, c a m i n h o u , d e t e n d o -se mais um p o u c o s o m e n t e para acrescentar:
— Existe um gravador ao lado de sua cama. Fique à
vontade p a r a formular p e r g u n t a s no seu t e m p o e no seu ritmo. Q u a n d o terminar, basta e n c a m i n h a r u m a solicitação a
J a m a r e eu r e s p o n d e r e i c o m os devidos esclarecimentos.
Estarei s e m p r e ao seu dispor, m a s n ã o posso me d e t e r por
muito t e m p o . E s p e r o que c o m p r e e n d a q u e nosso t r a b a l h o
aqui é intenso e daqui a cinco m i n u t o s t e n h o de realizar
u m a conferência em o u t r a cidade, o q u e r e q u e r m i n h a d e dicação imediata. Deus seja contigo, amigo.
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E s i m p l e s m e n t e saiu! E sumiu. E eu ali, boquiaberto,
sozinho, me s e n t i n d o um lixo espiritual... n e m t a n t o lixo
assim — t u d o b e m , seria um exagero —, mas q u e m sabe solitário ou, ainda, m e l i n d r a d o com a situação.
"E esse cara e n t r a aqui assim, apressado, s e m me fazer n e n h u m a pergunta, c o m esse sotaque r u d e q u e me faz
l e m b r a r sei lá o quê... Parece um Sr. Spock do Além, cheio
de parafernálias tecnológicas, quase mágicas, e n e m me
m a n d o u respirar fundo, não m e d i u m i n h a pressão. Afinal,
m o r t o t a m b é m deve ter pressão arterial e, t e n d o ou não,
a m i n h a deve estar nas alturas, neste m o m e n t o . " Me senti desprezado. Não era s o m e n t e na Terra que as consultas
médicas d u r a v a m tão pouco. Parece que aqui, no tal m u n d o
original e primitivo, as coisas t a m b é m e r a m rápidas, m u i t o
rápidas. "Quero protestar. Aqui t a m b é m deve existir um órgão de reclamações. Q u e m esse tal Dr. J o s e p h Gleber p e n sa que é p a r a me t r a t a r assim? N e m me deu c h a n c e de perg u n t a r nada..."
— Eu lhe dei c h a n c e sim, m e u irmão — ressoou u m a
voz em m e u s p e n s a m e n t o s , d e i x a n d o - m e arrepiado. Arrepiado m e s m o ! Descobri ali que espírito t a m b é m arrepia
de medo, de pavor. O h o m e m já havia saído e d e m o n s t r a v a
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saber o que eu pensava. — Peço-lhe desculpas, amigo, mas
passei apenas p a r a u m a visita rápida, u m a vez q u e você
será atendido p o r o u t r o amigo de m i n h a equipe. Quis apenas me certificar de q u e não precisaria ficar i n t e r n a d o no
hospital. Mas estou a t e n t o a você em todo m o m e n t o .
— E n t ã o p o r que n ã o r e t o r n a p a r a conversarmos?...
— Sinto muito, já n ã o me e n c o n t r o na m e s m a cidade
espiritual que você. Estou a mais de 5 mil quilômetros daí,
se assim posso dizer.
Levei as m ã o s à cabeça e gritei:
— M e u Deus, q u e horrível é conviver c o m gente assim!
Esse h o m e m está falando d e n t r o de mim, e está em o u t r a
cidade, a mais de 5 mil quilômetros!... Não posso entender.
— Deixe de d r a m a s , m e u irmão! Você não leva jeito
para isso. T e m m u i t o o q u e a p r e n d e r e d e s a p r e n d e r ainda. E m u i t o desafio pela frente. Ah! O tal d o u t o r não é n a d a
mais do que um simples servidor. Não me c h a m e de doutor,
por favor. Fique bem!
E a voz silenciou p o r completo. Comecei a apalpar min h a cabeça d e s e n c a r n a d a , c o m o t e n t a n d o identificar se havia um implante de algum microfone ali, m a s não identifiquei nada. E r a s o m e n t e eu, m e s m o .
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"Desisto, vou esperar J a m a r chegar, pelo m e n o s ele parece ter algum t e m p i n h o p a r a mim..."
Um som de c a m p a i n h a se fez ouvir no quarto. "Tamb é m , parece que p o r aqui n i n g u é m dá t e m p o de a gente
descansar!" Atendi a porta, e era alguém ligado à recepção
do c h a m a d o hotel.
— Desculpe, m e u senhor, mas haverá u m a reunião no
salão de conferências, logo após sua p r i m e i r a alimentação,
q u e p o d e r á ser servida aqui m e s m o em seu q u a r t o ou, se
preferir, j u n t o aos demais q u e c h e g a r a m da Terra, em nosso refeitório principal. Onde prefere, senhor?
— E espírito c o m e t a m b é m ?
— Por acaso não sente v o n t a d e de se alimentar? — redarguiu o h o m e m à m i n h a frente.
— Talvez um pouquinho...
Sorrindo largamente ele se apresentou, desculpando-se:
— Queira me perdoar, Sr. Ângelo. Não me apresentei.
Sou B e r n a r d o e estagio aqui há b e m p o u c o t e m p o , por isso
a inexperiência. D e s c u l p e - m e a indelicadeza, senhor.
— Mas você não foi indelicado...
— Bem, senhor, n o t a r á q u e t r o u x e m u i t a coisa de sua
h u m a n i d a d e consigo. E alimentar-se é algo muitíssimo na-
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tural e p r a z e r o s o em nossa cidade. Que prefere: que sirvamos no q u a r t o ou no refeitório?
Pensei um pouco, m a s não tanto, c o m m e d o de o rapaz à m i n h a frente ler m e u s p e n s a m e n t o s , igual ao m é d i c o
apressadinho, e logo c o m u n i q u e i m i n h a decisão:
— Creio q u e prefiro ir ao refeitório. Quero c o n h e c e r
outras pessoas.
— Pois não, senhor, assim será feito. Se precisar de algo
mais, eu m e s m o estou à disposição neste andar, com m e u s
amigos estagiários, para servir no que for necessário.
— E em qual a n d a r estamos? O n d e fica o refeitório?
— Estamos no trigésimo sétimo andar, senhor. E o refeitório fica no quinquagésimo, o a n d a r rotativo. Temos 10
refeitórios e mais 5 de apoio, caso seja necessário. Assim
que e n t r a r no elevador será informado c o m o chegar lá. Eu
m e s m o esperarei pelo senhor.
— C h a m e - m e de você, m e u rapaz!
— Pois não, senhor! Quer dizer, você. Ou melhor...
— Vá, vá, m e u caro! Eu entendi.
E ele se foi, d e i x a n d o um ar de descontração, e m b o r a
t e n h a ficado sem graça. E eu me esforcei m u i t o para não
corrigir o rapaz ali m e s m o , no p r i m e i r o encontro. Parecia
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b o a pessoa. Talvez eu p u d e s s e falar c o m ele e sugerir que
fizesse um curso de português, de c o m u n i c a ç ã o e expressão... Q u e m sabe p o r aqui t a m b é m e n c o n t r e escolas, u n i versidades ou coisas do gênero?
E n t r e i no q u a r t o e respirei fundo. Quinquagésimo andar... Bom, p a r a um m u n d o de m o r t o s vivos, até que as coisas aqui e r a m b e m m a r c a n t e s .
Q u a n d o me dirigia à janela, pois ainda não tivera oport u n i d a d e de observar a paisagem no e n t o r n o , notei q u e havia algo p e n d u r a d o n u m cabide, à m i n h a frente. Um bilhete dizia:
"Meu pai, deixo este traje p a r a q u e possa usá-lo nos
p r ó x i m o s e n c o n t r o s . Parece que está ainda c o m um tipo de
r o u p a igual a que u s a r a m p a r a abrigar o corpo q u e foi enterrado. Sei que aprecia algo mais elegante. Use-o, se gostar. Depois nos levarão às lojas p a r a c o m p r a r m o s trajes n o vos." Assinava Maria.
M i n h a filha fora cuidadosa, mas c o m o ela deixou o traje ali? Teria sido levado pelo médico ou pelo Bernardo? Ou
se materializara diante de m i m e eu não percebera? E esse
negócio de ir às lojas? Como assim? Naquela cidade havia
lojas, comércio, o m e s m o sistema de c o m p r a e venda, c o m o
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na Terra? Em t o d o lugar do m u n d o espiritual as coisas
e r a m s e m e l h a n t e s a esta cidade? E r a m muitas p e r g u n t a s
e algumas delas não faziam sentido n e m p a r a mim. Mas...
eu teria de a p r e n d e r a esperar. C o m certeza, as respostas
viriam. E eu teria de me p r e p a r a r p a r a elas. Mas espíritos
fazerem c o m p r a s em lojas? Não soava fantasioso demais?
M i n h a filha não estaria delirando? E r a u m a espécie de
transe provocado pela morte? Preferi n e m pensar, pois até
m e u s p e n s a m e n t o s ainda p a r e c i a m os dos vivos incorporados, encorpados, e n c a r n a d o s ou sei lá o quê. E então? Teria
eu que a p r e n d e r u m a nova linguagem? Haveria aqui t a m b é m u m a gramática diferente? Acordos gramaticais, sentidos diferentes p a r a as palavras? Não, eu t i n h a de p a r a r imediatamente, senão ficaria louco. Um m o r t o vivo louco.
Preferi desligar esses p e n s a m e n t o s e fui t r o c a r de roupa. Estava longe de ser o t e r n o mais perfeito que já vestira,
mas Maria n u n c a foi lá tão b o a assim ao escolher r o u p a s
para mim; s e m p r e era preciso fazer ajustes. Pelo jeito, aqui
t a m b é m deveriam ser feitos os devidos reajustes, m a s por
ora era o bastante.
Esqueci-me de olhar pela janela mais u m a vez. Virei-me e fui em direção à porta. O c o r r e d o r do hotel era ex-
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tenso, largo e iluminado. Um t a p e t e de e x t r e m o b o m gosto
cobria o pavimento, e os detalhes na decoração pelo m e n o s
fugiam à m e s m i c e tão frequente nos hotéis em geral, m e s mo os mais requintados. Bem, eu não conhecia os piores, os
medianos. Mas ao m e n o s ali havia, sem dúvida, um t o q u e
de arquiteto, u m a estética delicada, sem exageros e luxo,
de b o m gosto. Em seguida, toquei n u m lugar mais sensível,
a p e n a s iluminado, p r ó x i m o ao elevador. Na verdade, havia
oito elevadores no c o r r e d o r o n d e me encontrava, de m o d o
que não esperei m u i t o t e m p o . Logo que a p o r t a se abriu n o tei a p r e s e n ç a de Maria, que me recebeu c o m um abraço.
— Que b o m que você está b e m , papai!
Havia mais de 20 pessoas no elevador... M u i t a gente.
"Mas, c o m o espírito não deve pesar muito, acredito que
não cairemos."
— Verá c o m o a cidade é b o n i t a e aconchegante. Logo
após a reunião no salão de conferências, t e r e m o s a o p o r t u n i d a d e de sair um p o u c o por aí.
— Pelo jeito, então, n e m m e s m o aqui a gente está livre
de reuniões...
— É, m a s aqui as coisas são um p o u c o diferentes da forma c o m o o c o r r e m na Terra. Verá por si m e s m o . Ainda não
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me acostumei, m u i t o e m b o r a esteja meio eufórica, apesar
da s a u d a d e de casa.
Notei um leve t o m de melancolia nas palavras de Maria. E n t r e m e n t e s , o elevador chegou ao a n d a r sem q u a l q u e r
ruído, s e m n e m m e s m o p e r c e b e r m o s que se movera. Será
m e s m o que se movera? A p o r t a se abriu e fomos recebidos
por u m a m u l h e r que aparentava ser mais idosa, p o r é m c o m
u m a vivacidade de d a r inveja. Nobre, s o b r i a m e n t e vestida,
trajava um uniforme que lembrava o u s a d o por Bernardo,
que, aliás, estava mais ao longe e fez um gesto c o m a cabeça em m i n h a direção. U m a música irritante era ouvida no
ambiente. O v o l u m e estava baixo, mas não me agradei da
trilha sonora logo que a escutei. M a s t u d o b e m , pois ali ninguém era perfeito. Aliás, e r a m h u m a n o s demais p a r a o m e u
gosto. Podia até a p a r e c e r alguém assim, mais perfeito, mais
superpoderoso, mais...
— Pai, acorde! Vamos! Vamos para a mesa. Está na h o r a
do desjejum.
"Essa m e n i n a me irrita!" — pensei, s a b e n d o que ela
não t i n h a s u p e r p o d e r e s mentais ainda... ainda! Quase formal demais p a r a a ocasião c o m m e u costume, dirigi-me à
mesa que apresentava u m a placa com nosso n o m e . E dei
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aquela o l h a d a pelo salão. Vi u m a m e s a de frutas e sucos e
o u t r a c o m petiscos; havia até m e s m o frios fatiados, jamón
e p r e s u n t o de Parma, ao lado de queijos variados, mas não
me p a r e c e r a m b o n s c o m o os de Minas.
— Que b o m saber q u e há p r e s u n t o s n o b r e s por aqui!
E n t ã o e n c o n t r a r e i t a m b é m carnes, peixes e coisas c o m u n s
assim aos mortais... m e s m o que agora sejam imortais. E
sabe de u m a coisa? Sabe o que mais gostei?
— De p o d e r comer, diga logo, m e u pai! — falou Maria,
sorrindo.
— Não é nada disso. O que mais gostei é o fato dos espíritos que até agora conheci não se assemelharem nada com
santos, n e m religiosos extremistas, n e m serem dados a crise
de santidade. Ser h u m a n o e continuar sendo como eu era na
Terra é a melhor coisa para mim... E q u a n d o vejo t u d o isso a
m e u redor, os alimentos todos iguaizinhos aos que conheci,
vejo que poderei ter o m e s m o tipo de gosto e as preferências,
o m e s m o estilo de vida, sem precisar forçar para ser santo ou
anjo. Ah! Como detesto anjos. Já lhe falei sobre isso?
— Sim, Seu Ângelo! Já me falou diversas vezes, mas
ainda q u a n d o estávamos na Terra. Agora, veja se alimenta
esse seu c o r p i n h o de espírito. Vá se servir, vá...
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S u r p r e e n d i - m e c o m o sabor dos alimentos. Os sucos,
então, sabiam m u i t o mais intensos ao paladar do q u e aqueles q u e e x p e r i m e n t e i q u a n d o no corpo físico. I n d e s c r i tíveis e r a m os sabores. Ai, c o m o eu q u e r i a e x p e r i m e n t a r
m e u v i n h o do Porto. Só p a r a saber se era tão b o m quanto...
só p a r a conferir!
Após o p r i m e i r o desjejum de d e s e n c a r n a d o , sentia-me
b e m mais refeito. Foi q u a n d o a recepcionista do hotel p e diu-nos, os recém-vindos da Terra, que nos r e u n í s s e m o s no
salão de conferências. Desta vez fui sem Maria, pois ela já
havia passado pelo p r o c e d i m e n t o . Alguns esclarecimentos
deveriam ser feitos, a fim de q u e soubéssemos sobre a cidade dos espíritos, a m a n e i r a de nos p o r t a r m o s e, t a m b é m ,
as condições sob as quais p o d e r í a m o s ser admitidos c o m o
m o r a d o r e s do local. Para lá nos dirigimos, um g r u p o a p r o x i m a d a m e n t e de 140 espíritos.
Era um anfiteatro que acomodava confortavelmente
mais de 3 0 0 pessoas, e m b o r a naquele m o m e n t o estivéssemos em m e n o r n ú m e r o . À nossa frente, um palco c o m
todos os recursos de iluminação c o m u n s a um t e a t r o m o derno, além de aparelhos que irradiavam imagens tridimensionais, c o m o n u m a projeção holográfica. Definitiva-
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m e n t e , n ã o era u m a tecnologia trivial, n e m m e s m o para os
países desenvolvidos da época.
Observava t u d o nos m í n i m o s detalhes. Dayane, a mesma s e n h o r i t a elegante que nos recepcionara ao chegarm o s ao hotel, foi q u e m p r i m e i r o subiu ao palco p a r a dar as
boas-vindas oficiais ao g r u p o de seres r e c é m - c h e g a d o s da
experiência física.
— Q u e r o dar as boas-vindas a t o d o s vocês, que chegam
à nossa cidade, e dizer que t o d o s estamos aqui c o m o estagiários a serviço da c o m u n i d a d e de espíritos. Por certo não
ignoram q u e não mais p e r t e n c e m ao c h a m a d o m u n d o dos
vivos. De u m a ou o u t r a maneira, sabem que a m o r t e visitou cada u m , r o m p e n d o definitivamente os laços q u e os ligavam ao antigo corpo. C h e g a r a m hoje à nossa cidade; d e p e n d e r á de vocês se c o n t i n u a r ã o conosco ou partirão para
outras estâncias, outras cidades ou m e s m o postos de apoio
nesta ou em outras dimensões, mais p r ó x i m a s à Crosta.
Quero lhes a p r e s e n t a r alguém que d a r á as informações
necessárias para e n t r a r e m em c o n t a t o c o m o cotidiano de
nossa m e t r ó p o l e espiritual.
A p o n t a n d o a m ã o direita em d e t e r m i n a d a direção, perc e b e m o s u m emissário d e aspecto africano, u m h o m e m n e -
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gro, sorridente, vestido em trajes típicos de algumas nações
daquele continente. Dayane fez um gesto c o m a cabeça, r e verenciando o h o m e m q u e assumiu seu lugar, saindo por
outro lado, n a t u r a l m e n t e p a r a se dedicar às atribuições com u n s à vida de espírito desencarnado, vocábulo c o m o qual
eu haveria de me acostumar, q u e m sabe.
— Pois b e m , m e u s amigos! Sou c o n h e c i d o c o m o Nassor, o seu servidor, e v e n h o apenas esclarecer. Não sou n e n h u m espírito iluminado, superior ou h a b i t a n t e de regiões
sublimes; s o m e n t e u m c o m p a n h e i r o que chegou aqui m u i to antes de vocês. T a m b é m estou a p r e n d e n d o a viver na
A m a n d a , em h a r m o n i a c o m a n a t u r e z a espiritual deste
lugar. C o m o disse nossa amiga Dayane, sejam todos m u i to bem-vindos à nossa metrópole, à nossa q u e r i d a A m a n da. Alguns q u e aqui se e n c o n t r a m tiveram u m a formação
cultural espiritualista, o u t r o s talvez nunca, d u r a n t e a vida
terrena, estabeleceram contato direto c o m alguma religião;
outros, ainda, talvez n e m e n t e n d a m por que estão aqui.
"De q u a l q u e r forma, é b o m c o m e ç a r m o s a esclarecer
que nossa m e t r ó p o l e n ã o é a única em nossa dimensão;
existem diversas outras cidades, redutos, c o m u n i d a d e s de
espíritos, colônias ou c o m o q u e i r a m d e n o m i n a r a c o m u -
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n h ã o de seres c o m objetivos s e m e l h a n t e s , os quais se reún e m em coletividades c o m o a nossa. Cada u m a das cidades
espirituais t ê m objetivos b e m claros e definidos, p o r isso a
característica p r e d o m i n a n t e e o tipo espiritual q u e nelas
habita divergem bastante. Em nosso caso, aqui, na A m a n da, t e m o s u m a especialidade. R e c e b e m o s aqueles que t ê m
gosto e potencial p a r a estudar e ajudar a h u m a n i d a d e , cuja
m e n t a l i d a d e já t e n h a se elevado sobre as preferências e os
debates, as disputas e os a p a d r i n h a m e n t o s d e n o m i n a c i o nais, religiosos ou de c u n h o nacionalista. Ou seja, aqueles
espíritos que, em suas vidas e r e e n c a r n a ç õ e s , a p r e n d e r a m ,
de alguma maneira, a viver em c o m u n i d a d e , n u m a c o m u n i d a d e universal, s e m fronteiras, s e m barreiras, e não aliment a m a necessidade de brigar p o r p o n t o s de vista, t a m p o u co i n t e n t a m i m p o r sua ótica sobre as demais, ignorando as
v e r d a d e s alheias. Nesse sentido, não somos u m a c o m u n i d a d e de seres evoluídos, no sentido literal do t e r m o . Somos
h u m a n o s a serviço da h u m a n i d a d e ; s o m e n t e isso. Mas h u m a n o s cujas m e n t e s estão, em alguma medida, mais abertas à p r o c u r a da v e r d a d e no universo. E s t a m o s conscientes
de q u e não t e m o s aqui v e r d a d e s absolutas, inamovíveis ou
inquestionáveis.
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"A fim de q u e o espírito seja admitido aqui, obrigator i a m e n t e t e r á sido avalizado pela confiança de alguém ou
a p o n t a d o c o m o t e n d o forte potencial para ser um servidor
da h u m a n i d a d e . D u r a n t e dois anos, cada um de vocês t e r á
acesso a todas as d e p e n d ê n c i a s de nossa c o m u n i d a d e . Serão avaliados s e g u n d o os m e s m o s critérios u s a d o s c o m t o dos nós. E n t r e t a n t o , s o m e n t e p e r m a n e c e m c o m o habitantes d a A m a n d a aqueles espíritos q u e o b s e r v a m três n o r m a s
ou aspectos principais, a fim de s e r e m admitidos em caráter p e r m a n e n t e .
"A primeira delas é que se m a t r i c u l e m em nossas universidades e se d e d i q u e m ao a p r i m o r a n d o contínuo, estud a n d o sempre. Sem estudar, sem se aprimorar, não há como
o espírito p e r m a n e c e r aqui conosco, devido à vocação ou
especialidade da nossa A m a n d a . Evidentemente, não ficam
desamparados aqueles que não se a d a p t a m ou não se sentem
à vontade c o m u m a das exigências de nossa comunidade.
Temos vasta relação de cidades espirituais cujos métodos
diferem dos nossos e p o d e m muito b e m abrigar qualquer
um daqueles que não se sentirem à vontade em nosso meio."
E n q u a n t o Nassor falava, mostravam-se em projeção
holográfica as universidades e escolas da m e t r ó p o l e . I m e n -
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so p a r q u e escolar, c o m o eu j a m a i s vira. Espíritos indo e vindo em diversas direções e veículos que desciam e subiam
na atmosfera, t r a n s p o r t a n d o pessoas p a r a aquilo que nos
parecia ser um diversificado conjunto educacional. Nassor
apontava p a r a a projeção e n q u a n t o se dirigia à plateia. É lógico que adorei t a n t o a forma c o m o falava q u a n t o a possibilidade de estudar, de dar c o n t i n u i d a d e a m u i t o s projetos e,
q u e m sabe, a p r e n d e r m u i t o sobre a vida espiritual e as implicações de ser, dali em diante, um espírito.
— Temos, aqui na Aruanda, três universidades. Cada
u m a delas abrange m u i t o s d e p a r t a m e n t o s espalhados p o r
toda a c o m u n i d a d e , a fim de q u e seja oferecida o p o r t u n i d a de tanto aos espíritos que aqui h a b i t a m q u a n t o àqueles que
nos visitam a p e n a s para ensinar e aprender. Todos os est u d o s desenvolvidos no p l a n e t a p o d e m t e r sequência aqui,
nos vários d e p a r t a m e n t o s dessas universidades, sendo possível escolher e n t r e r a m o s diversos, tais como: ciências do
espírito, e s t u d o informativo e c o m p a r a d o das religiões e
sua influência no psiquismo e na cultura dos povos, c o n h e c i m e n t o da vida no universo e a evolução e n t r e m u n d o s , no
âmbito dos planetas. Aquele que se interessar p o d e e s t u d a r
sobre as i n ú m e r a s possibilidades da r e e n c a r n a ç ã o e e s p e -
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cializar-se, a fim de desenvolver futuros trabalhos e p r o jetos em sua p r ó x i m a vida, c o m e ç a n d o desde já a estagiar,
nos diversos setores da metrópole, na m e s m a profissão q u e
d e s e m p e n h a r á q u a n d o voltar à Terra, em novo corpo. Para
aqueles q u e preferem aspectos ligados à saúde, t e m o s amplos laboratórios q u e oferecem especialização t a n t o na m e dicina convencional, q u a n t o na naturalista e na h o m e o p á tica, e n t r e outros segmentos, que p o d e r ã o ser escolhidos
conforme a área de interesse individual. Ainda há cursos
ligados à natureza, às ervas, à fitoterapia e à botânica, assim
como os q u e se d e d i c a m a questões psíquicas, c o m o m e d i u nidade, p a r a n o r m a l i d a d e , magnetismo, psicobioenergética.
Essas são algumas e n t r e tantas possibilidades oferecidas
por nossas escolas, que, p a r a a t e n d e r ao n ú m e r o de habitantes p e r m a n e n t e s e aos alunos itinerantes, funcionam 24
horas p o r dia. Aliás, t o d o s os serviços de nossa A m a n d a ,
devido à g r a n d e d e m a n d a e à diversidade i m e n s a de seres e
culturas, funcionam dia e noite, em t e m p o integral.
As cenas se s u c e d i a m à m e d i d a q u e Nassor discursava,
e m u i t o s p a r e c i a m e n c a n t a d o s c o m a ideia de viver n u m a
c o m u n i d a d e desse p o r t e e c o m tais características. Após ligeira p a u s a p a r a q u e p u d é s s e m o s absorver m e l h o r e obser-
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var o as imagens dinâmicas q u e e r a m exibidas, o espírito
continuou:
— A s e g u n d a condição para q u e q u a l q u e r espírito cont i n u e vivendo conosco no p e r í o d o e n t r e vidas é q u e ele
c o n t r i b u a c o m a c o m u n i d a d e p o r meio do trabalho. N ã o
u s a m o s m o e d a de troca p a r a c o n c e d e r benefícios que qualquer espírito possa usufruir em nosso meio. Isto é, aqui não
a d o t a m o s o sistema praticado, p o r exemplo, em colônias ou
cidades c o m o Nosso Lar, Vitória Régia ou Halo de Luz, as
2
quais utilizam o c h a m a d o b ô n u s - h o r a . Na A m a n d a , é p r e ciso q u e todo espírito t r a b a l h e pela c o m u n i d a d e em alguma atividade. Porém, n ã o i m p o m o s c o m o regra q u e deva
t r a b a l h a r 8 h o r a s i n i n t e r r u p t a s , ou q u a l q u e r o u t r o n ú m e r o
de horas. C o m o todas as nossas atividades t r a n s c o r r e m 24
h o r a s p o r dia, o espírito p o d e chegar ao seu a m b i e n t e de
t r a b a l h o à h o r a q u e lhe for mais conveniente ou favorável,
s e g u n d o o perfil individual, observando a necessidade de
2
A célebre e pioneira descrição da realidade extrafísica que toma por base a colônia
Nosso Lar, em livro homônimo, apresenta a moeda usada ali (cf. "Bônus-Hora". X A VIER,
a
Francisco Cândido. Pelo espírito André Luiz. Nosso lar. 3 ed. esp. Rio de Ja-
neiro: F E B , 2010. p. 131-136. A vida no mundo espiritual, v. 1. (ed. inaugural de 1944).
75
conciliar o t e m p o c o m os estudos e o lazer. Assim, p o d e r á
t r a b a l h a r 1 hora, 10 h o r a s ou dosar sua dedicação conforme
o grau de responsabilidade assumido na tarefa abraçada. O
p r ó p r i o espírito p o d e d e t e r m i n a r o t e m p o que e m p r e g a r á
no trabalho. Mas, d u r a n t e o p e r í o d o estipulado, ele deve
estar 100% disponível para d e s e m p e n h a r a tarefa q u e lhe
cabe e é intransferível.
"Se p u d é s s e m o s classificar nossa metodologia, de maneira a facilitar o e n t e n d i m e n t o , nos a v e n t u r a r í a m o s a dizer que somos u m a c o m u n i d a d e b a s e a d a e m u m e c u m e n i s mo respeitoso e um m é t o d o de convivência similar ao que
talvez d e n o m i n á s s e m o s socialismo cristão. Claro, espero
que me c o m p r e e n d a m que são a p e n a s t e r m o s de referência, mais a título de comparação; nossa metodologia n a d a
t e m a ver c o m c o r r e n t e s políticas defendidas na Terra."
Nassor respirou fundo, pois c o m c e r t e z a sabia q u e n e m
todos ali lhe c o m p r e e n d e r i a m a forma de e x p o r ou o significado das palavras. Ele prosseguiu, s e m esperar nossa
aprovação:
— Por último, a terceira exigência p a r a que q u a l q u e r
espírito c o n t i n u e h a b i t a n d o e n t r e nós, na Aruanda, d u r a n te a vida na erraticidade, é o convívio pacífico c o m a n a t u -
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reza, r e s p e i t a n d o o a m b i e n t e o n d e vive e t r a b a l h a n d o para
q u e t u d o e todos c o n t i n u e m usufruindo de todas as possibilidades q u e nossa m e t r ó p o l e oferece, com o m á x i m o de
qualidade.
À m e d i d a que falava, as imagens m o s t r a v a m a vida urb a n a da cidade, as pessoas indo e vindo e a n a t u r e z a e x u b e rante: árvores, parques, b o s q u e s e c a m p o s em meio a u m a
a r q u i t e t u r a c u i d a d o s a m e n t e planejada em cada detalhe, de
m o d o q u e as construções formassem u m a só composição
com a natureza.
— Temos à disposição dos cidadãos, o p e r a n d o em h o rário integral, exatos 128 teatros ou casas de espetáculo,
q u e exibem u m a p r o g r a m a ç ã o artística b a s t a n t e diversificada, d a n d o mostras da pluralidade de culturas aqui r e p r e sentadas. Tais espaços oferecem u m a variada e rica oferta
cultural, revelando talentos de nossa cidade t a n t o q u a n t o
de outras mais, cujos artistas v ê m a p r e s e n t a r r e p e r t ó r i o s
de alta qualidade p a r a todos os gostos.
" H á música típica dos estilos c o n h e c i d o s na Terra, visando a t e n d e r diversos gostos e afinidades, q u e vão d e s de rock, blues e jazz até os ritmos brasileiros, c o m o s a m b a
de raiz, bossa nova, maracatu, baião e frevo, p a s s a n d o pela
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música latina — m a m b o , guajira, r u m b a , tango etc. —, isso
pra f i c a r a p e n a s n o c o n t i n e n t e americano. H á ainda m u i tas outras tradições, a c o m p a n h a d a s de espetáculos típicos
de dança, c o m o flamenco, os diversos ritmos africanos, s e m
falar na música oriental, indiana... Todos t ê m livre acesso
a essa ampla oferta artística e cultural, d e s d e q u e estejam
inseridos no contexto da vida em c o m u n i d a d e e de acordo
com a política vigente aqui, conforme apresentei a vocês.
"Além de t u d o isso que falei, antes de liberá-los é p r e ciso esclarecer sobre o m é t o d o de direção ou a c o o r d e n a ção da nossa Aruanda."
E as imagens foram e n t ã o direcionadas a um i m p o n e n te pavilhão, à p r i m e i r a vista situado na periferia da cidade,
que não devia em n a d a em beleza e elegância às regiões q u e
pareciam centrais na projeção holográfica.
— Nosso governo é formado por um colegiado, com r e p r e s e n t a n t e s de diversos povos e culturas, que aqui convivem pacificamente. C o m o p o d e r ã o observar mais tarde, se
ainda não o fizeram, a maioria dos h a b i t a n t e s da A r u a n d a
é c o m p o s t a por espíritos p r o c e d e n t e s de etnias africanas
ou daquelas derivadas ou influenciadas pela c u l t u r a negra
ou afro. O colegiado reflete essa realidade, mas é c o m p o s t o
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t a n t o de seres advindos de culturas africanas, c o m o antigos
pais-velhos, q u a n t o de chefes indígenas, m o n g e s budistas e
alguns m e s t r e s do antigo Oriente.
D a n d o uma pausa, Nassor fez c o m q u e a projeção parasse e nos s u r p r e e n d e u , a p r e s e n t a n d o - n o s seres q u e não
fazíamos ideia estivessem ali ou fossem t a m b é m nos receb e r no nosso p r i m e i r o e n c o n t r o na m e t r ó p o l e espiritual.
— Quero apresentar-lhes alguns espíritos r e p r e s e n t a n tes do nosso conselho, q u e v ê m lhes dar as boas-vindas.
Fiquei surpreso. Em que lugar do universo os próprios
dirigentes de u m a cidade c o m o esta, deste porte, viriam
p e s s o a l m e n t e receber novos candidatos a h a b i t a n t e s do local? Eu n e m sabia c o m o avaliar u m a atitude assim tão delicada q u a n t o inusitada.
Mas a m i n h a maior surpresa, e creio q u e da maioria de
nós ali p r e s e n t e s , foi p e r c e b e r a singularidade da aproxim a ç ã o desses seres q u e c o m p u n h a m o colegiado. Q u a n d o
vieram, quase levitando, inicialmente se m o s t r a r a m a nós
na forma espiritual que tiveram em suas culturas, m u i tos c o m feição oriental ou de antigos sacerdotes de culturas e civilizações que, decerto, haviam se p e r d i d o na noite
dos t e m p o s . Outros vestiam-se de m a n e i r a mais exótica ou
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chamativa, m a s igualmente r e p r e s e n t a v a m seus povos ou
culturas originais. E n t r e t a n t o , à m e d i d a q u e se aproximavam de nós, a s s u m i a m a aparência de pais-velhos, mães-velhas, caboclos e, ainda, h o u v e dois que t o m a r a m forma de
criança, além de outros espíritos q u e vi, t a m b é m se t r a n s formando d i a n t e de nós, q u e a d q u i r i a m o aspecto e os trajes típicos de m o n g e s tibetanos.
A p r e s e n ç a do colegiado ali n o s r e c e p c i o n a n d o m a r c o u
p r o f u n d a m e n t e nossos espíritos. A r r a n c o u da b o c a de t o dos um "Ohhh!" de admiração, e s p a n t o e até euforia, devido à forma c o m o se revelavam a nossos olhos de espíritos
r e c é m - c h e g a d o s . Eu n ã o sabia o que dizer. Todos se coloc a r a m de pé quase ao m e s m o t e m p o , ante os seres à nossa frente. No meio deles r e c o n h e c i o h o m e m q u e e n c o n trei antes; depois da transformação, voltou a se a p r e s e n t a r
como o ancião que me r e c e b e r a j u n t o a Jamar. Era o s e n h o r
que conheci c o m o n o m e de J o ã o que estava e n t r e os d e mais do colegiado... No entanto, ao contrário do q u e era de
esperar, que algum deles fizesse um p r o n u n c i a m e n t o à plateia, eles o u t r a vez nos s u r p r e e n d e r a m . D e s c e r a m do palco e se dirigiram a cada um de nós, a b r a ç a n d o - n o s e d a n d o
as boas-vindas individualmente, d e i x a n d o - n o s ainda mais
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b o q u i a b e r t o s com a atitude inusitada, s o b r e t u d o p o r q u e vin h a de dirigentes de u m a cidade espiritual. Era um gesto
d i a m e t r a l m e n t e oposto à atitude dos políticos da Terra, de
q u a l q u e r cidade ou nação terrena; não havia c o m p a r a ç ã o .
Ali m e s m o , e n t r e seres c o m aparência de crianças, índios, negros africanos, m e s t r e s orientais e r e p r e s e n t a n t e s
de outras culturas, a reunião transformou-se n u m a espécie
de confraternização. Ainda no palco, observando sorridente, e n c o s t a d o n u m a pilastra, o h o m e m de aspecto africano que nos falara no início, Nassor, parecia se divertir com
nossa estupefação, r i n d o g o s t o s a m e n t e da situação. Todos
envolveram p o u c o a p o u c o os r e p r e s e n t a n t e s do colegiado,
que nos r e c e b e r a m de m a n e i r a tão i n c o m u m , m a s nos deix a r a m c o m p l e t a m e n t e à vontade. Por fim, eles p e r m a n e c e r a m n o m e i o d a t u r m a d e recém-vindos d a Crosta, e n q u a n to alguns de nós se a t r e v e r a m a formular p e r g u n t a s sobre
aquela cidade, q u e mais parecia feita de estrelas, as quais
foram r e s p o n d i d a s c o m g r a n d e solicitude e generosidade.
João me fitava, c o m o a esperar algum q u e s t i o n a m e n t o .
Sorriu p a r a mim, um largo sorriso e m o l d u r a d o pela b a r b a
b r a n c a c u i d a d o s a m e n t e talhada e os cabelos t a m b é m b r a n cos, aparados de m a n e i r a exemplar. O t e r n o q u e vestia pa-
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recia ser feito do mais p u r o linho, alvíssimo, o que realçava
a sua cor n e g r a de m a n e i r a tão bela, t o r n a n d o a composição
m u i t o h a r m o n i o s a . Fomos nos a p r o x i m a n d o u m d o outro,
e naquele m o m e n t o e n t e n d i que ele era alguém especial
naquela c o m u n i d a d e , e que estaríamos de alguma m a n e i ra ligados p o r laços que, e m b o r a invisíveis, já p o d e r i a m ser
percebidos naquele encontro, que m a r c o u p r o f u n d a m e n t e
m e u ser. Não saberia dizer p o r quê, n a q u e l a ocasião, mas
s i n c e r a m e n t e eu soube que havia sido conquistado por
aquele espírito. M e u ser dizia isso, e m b o r a não p u d e s s e explicar, não tivesse palavras.
E assim m e s m o , s e m palavras, João foi saindo do meio
do g r u p o de espíritos, s e m p r o n u n c i a r n e n h u m a frase. Naquele m o m e n t o mágico, senti seu m a g n e t i s m o vigoroso e
fui atraído pela força do seu olhar, olhos negros, grandes, e
pelo sorriso e s t a m p a d o em seu rosto. Segui-o, p o r ora abst e n d o - m e de q u a l q u e r pergunta. Apenas o segui, ávido por
novos a p r e n d i z a d o s , s e d e n t o de sabedoria, mas n ã o mais a
sabedoria das universidades, dos h o m e n s da Terra; p o d e r i a
ser apenas a sabedoria daquele preto-velho. M e u coração,
ah!... C o m o ele parecia a r r e b e n t a r de emoção, b a t e n d o forte, c o m o se t a m b o r e s houvesse d e n t r o dele, tocando, rufan-
82
do, fazendo o b a r u l h o característico dos filhos da África ou
c o m o o t o q u e c a d e n c i a d o dos t a m b o r e s de Angola. O coração a p e n a s acelerava, e p u d e me sentir m u i t o mais vivo do
q u e vivo estava antes, e n q u a n t o J o ã o me conduzia, s e m palavras e s e m p e r g u n t a s , p a r a ver, para c o n h e c e r a Aruanda,
a m o r a d a dos espíritos.
87
ESMO A N T E S D E
sairmos pelas ruas da A m a n d a e e n q u a n -
to os demais espíritos p e r m a n e c e r a m no salão conversando c o m os dirigentes da cidade, J o ã o e eu nos r e t i r a m o s
devagar, c o m o se estivéssemos p a s s e a n d o , ainda d e n t r o
do hotel q u e nos acolhera. Foi s o m e n t e e n t ã o q u e observei mais d e t i d a m e n t e os p o r m e n o r e s da decoração. Lustres d e s l u m b r a n t e s p e n d i a m do teto; arranjos florais de incrível b o m gosto e h a r m o n i a coloriam o local. No e n t a n t o ,
foram as obras de a r t e q u e mais me c h a m a r a m a atenção.
Belíssimos q u a d r o s pelas p a r e d e s , assinados p o r artistas
r e n o m a d o s , e m p r e s t a v a m c h a r m e e singularidade ao a m biente. U m dos q u a d r o s e m p a r t i c u l a r m e m a r c o u profund a m e n t e . E r a assinado por Debret, Jean-Baptiste D e b r e t .
3
A tela retratava cenas da colonização do Brasil, e m b o r a
n u n c a a tivesse visto em n e n h u m m u s e u da Terra. No Rio
de J a n e i r o e em o u t r a s cidades i m p o r t a n t e s havia visitado m u s e u s c o m alguma frequência, p o r é m esta tela diferia das d e m a i s q u e eu vira, do m e s m o autor, as quais fizera
q u a n d o e n c a r n a d o . Pois aquela apresentava cores tão marcantes, e os p e r s o n a g e n s ali r e t r a t a d o s p a r e c i a m tão vi-
3 Paris, 1768-1848. Viveu no Brasil entre 1816 e 1831.
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vos q u e me dava a i m p r e s s ã o de q u e a q u a l q u e r m o m e n t o
saltariam da tela, m o v i m e n t a n d o - s e . O céu t i n h a aspecto
i g u a l m e n t e vivo; ao o l h a r atento, suas n u v e n s deslizavam
— l e n t a m e n t e , mas deslizavam. Seria ilusão de ótica? Enq u a n t o eu estava ali p a r a d o a d m i r a n d o a p i n t u r a q u e me
p r e n d e r a a atenção, J o ã o t o c o u - m e l e v e m e n t e o ombro,
c o m o a c h a m a r - m e de volta à realidade, e p r o n u n c i o u alg u m a s p o u c a s palavras:
— Esta tela, D e b r e t a p i n t o u e n q u a n t o e n c a r n a d o , nos
m o m e n t o s de d e s d o b r a m e n t o , em q u e visitava nossa cidade, recém-fundada, à época. Você t e r á a o p o r t u n i d a d e de
c o n h e c e r alguns m u s e u s e apreciar de p e r t o a obra de diversos artistas — as originais, c o m o esta.
Sem e n t e n d e r m u i t o b e m as palavras do ancião, continuei seguindo-o pelo hall do hotel. Foi aí q u e me dei conta
de q u e p o d e r i a lhe p e r g u n t a r algo que estava de certa form a i n c o m o d a n d o m i n h a dileta curiosidade:
— Não e n t e n d o c o m o n u m a cidade de espíritos exista
até m e s m o hotel. E t a m b é m estes funcionários... C o m o ent e n d e r a existência de funcionários em um local c o m o este,
se aqui, pelo que nos foi explicado, não há moeda, dinheiro
ou o u t r a forma de p a g a m e n t o ?
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— Nossa cidade, m e u filho — iniciou João, r e s p o n d e n d o - m e c o m a b o a v o n t a d e q u e eu d e s c o b r i r i a ser-lhe
característica, a o passo q u e n o s s e n t á v a m o s e m p o l t r o nas confortáveis, o l h a n d o o m o v i m e n t o da r u a —, é u m a
cidade q u e a t u a l m e n t e abriga 10 m i l h õ e s de espíritos de
forma p e r m a n e n t e , ou seja, d u r a n t e seu p e r í o d o na e r r a ticidade, a n t e s d e m e r g u l h a r e m n a c a r n e n o v a m e n t e . M a s
recebemos também u m a população itinerante de aproxim a d a m e n t e 5 m i l h õ e s de seres, d i a r i a m e n t e , a d v i n d o s de
o u t r a s c i d a d e s da i m e n s i d ã o , c o m as quais m a n t e m o s int e r c â m b i o . Essa p o p u l a ç ã o i t i n e r a n t e v e m visitar m u s e u s ,
parques, centros de treinamento, mas principalmente as
escolas ligadas às n o s s a s u n i v e r s i d a d e s , as quais funcion a m em t e m p o integral, c o n f o r m e foi explicado, c o m o
toda a vida u r b a n a da n o s s a A r u a n d a . Os h o t é i s foram
criados h á séculos p a r a r e c e b e r essa p o p u l a ç ã o , m a s t a m b é m aqueles q u e c h e g a m d a e x p e r i ê n c i a r e e n c a r n a t ó r i a ,
c o m o você, n o p e r í o d o d e a d a p t a ç ã o a o novo m u n d o q u e
e n c o n t r a m aqui.
P a u s a n d o um p o u c o e d a n d o relativa atenção a alguns
espíritos que passavam p r ó x i m o s de n ó s e olhavam para
ele, João prosseguiu, s e m se apressar:
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— Mas os tais funcionários que você vê neste ambiente
não são funcionários no sentido que se dá ao t e r m o na Terra.
Na verdade, são estagiários, alunos que e s t u d a m em nossa
universidade visando à reencarnação futura. Aqui desenvolv e m habilidades interpessoais, pois, ao reencarnar, lidarão
com o público na área de atuação que elegeram. Afinal, lá
na Crosta, existem i n ú m e r a s o p o r t u n i d a d e s de trabalho
profissional em que é requerida a habilidade c o m pessoas,
com seres h u m a n o s . Esse estágio em algumas instituições
do lado de cá ajuda a d e s p e r t a r aptidões adormecidas ou a
desenvolvê-las para, mais tarde, esses espíritos exercitarem
funções c o m o essas. Muitos aqui e s t u d a m matérias ligadas
à hotelaria e se p r e p a r a m para funções q u e d e s e m p e n h a r ã o ;
trata-se de t r e i n a m e n t o constante na área escolhida conforme a preferência pessoal. Quando for a h o r a de trabalhar, na
nova experiência reencarnatória, já terão impresso na m e m ó r i a espiritual o que a p r e n d e r a m aqui. Lá embaixo apenas
praticarão e a p r i m o r a r ã o o c o n h e c i m e n t o adquirido.
— E n t ã o não são m e s m o funcionários, mas estagiários,
c o m o me falou um dos espíritos que me auxiliou...
— E x a t a m e n t e . Sob esse aspecto, aqui somos todos estagiários, aprendizes. Isso ocorre em todo o ambiente da
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metrópole. Há lugar para desenvolver as mais variadas habilidades que t ê m probabilidade de eclodir nas futuras reencarnações. Aqueles que t r a b a l h a m em nossas lojas de roupa,
por exemplo, o fazem por p u r a afinidade, seja aperfeiçoando a forma de a t e n d e r o público, seja a p r e n d e n d o alguma
faceta do ofício da moda, desde a p r o d u ç ã o — desenho, m o delagem, estilismo — até o negócio, m e s m o — gestão, administração, atendimento, e n t r e tantos outros aspectos. Todos
na A m a n d a estão em processo de experimentação, pois na
universidade escolheram cursos e especialidades de acordo com seus gostos. Enfim, t r a b a l h a m aqui para se p r e p a r a r
para as futuras experiências no corpo físico.
— M a s você falou em lojas. Existe comércio p o r aqui
também? Insisto: não falaram que não existe m o e d a ou
qualquer sistema de troca?
— Creio que você precisa visitar u r g e n t e m e n t e o bairro
onde se localizam as lojas de roupa. Assim terá u m a ideia m e lhor. Vamos, m e u filho! Eu o a c o m p a n h o — falou João, m e u
instrutor, ao levantar-se. Antes de cruzarmos a porta, dois espíritos reverenciaram o ancião, e um deles o interpelou:
— Já vai, Pai João? Nos sentimos m u i t o h o n r a d o s c o m
sua p r e s e n ç a aqui.
92
— Breve retornarei, m e u s filhos. Vim receber este nosso amigo q u e r e t o r n a da Terra. Mas breve voltarei para falar c o m vocês.
Fiquei meio s e m e n t e n d e r a forma c o m o se dirigiram
ao m e u amigo João. E não hesitei em perguntar:
— Por q u e ele o c h a m o u de Pai João? E a forma como
n o r m a l m e n t e se t r a t a m por aqui?
— Nada disso, Ângelo. Pode me c h a m a r c o m o quiser;
fique à vontade, filho. Cada um deve se sentir livre para
c o m p o r t a r - s e ou falar c o m o m e l h o r lhe convém... — E não
tocou mais no assunto.
Saímos. Na r u a à frente do edifício havia intensa m o vimentação. G r a n d e n ú m e r o de jovens conversava e caminhava pelas calçadas muito largas, e n e n h u m carro na rua,
e m b o r a houvesse d e m a r c a ç ã o para veículos que, no mínimo, e r a m daquele tipo voador no qual fui t r a n s p o r t a d o . De
um e o u t r o lado da rua, cafeterias m u i t o s e m e l h a n t e s a alg u m a s europeias. Não consegui a p r e e n d e r de imediato a finalidade e especialidade de alguns tipos de loja. Notei um
edifício de a r q u i t e t u r a requintada, que denotava forte influência da cultura árabe, e n t r e tantos outros prédios o n d e
espíritos entravam e saíam. Em meio a t u d o isso, trepadei-
93
ras p e n d i a m dos prédios de m a n e i r a q u e jamais vira, enquanto árvores frondosas erguiam-se de a m b o s os lados da
rua. F r e q u e n t e m e n t e , os r a m o s e galhos se entrelaçavam no
alto, iluminados por um sol que mais parecia de inverno,
não m u i t o quente, projetando u m a claridade n a d a excessiva e r e s u l t a n d o n u m a t e m p e r a t u r a a m b i e n t e e x t r e m a m e n t e
agradável, eu diria balanceada, s e m excesso de calor e sem
o i n c ô m o d o do frio intenso. Vi animais: cachorros, gatos,
pássaros e o u t r o s que, na Terra, d e c i d i d a m e n t e não vi n e m
em zoológicos. Todos passeavam guiados por algum espírito. "Se isso n ã o é o paraíso, é algo m u i t o p r ó x i m o " , pensei.
A população que se via nas ruas era e x t r e m a m e n t e h e terogênea. Havia africanos ou ao m e n o s espíritos de pele
negra, além de outros c o m traços fisionômicos indígenas.
Os dois grupos r e u n i a m belos e x e m p l a r e s dos dois povos,
de etnias variadas, e e r a m maioria. Certos índios lembravam os peles-vermelhas do c o n t i n e n t e n o r t e - a m e r i c a n o ;
outros e r a m t i p i c a m e n t e brasileiros. Aqueles não envergavam i n d u m e n t á r i a s típicas c o m p l u m a s e peles de animal, mas a m b o s se a p r e s e n t a v a m m u i t o b e m vestidos. Os
trajes r e m e t i a m de alguma m a n e i r a à origem de cada um e
exibiam notável elegância — aliás, c o m o t u d o na Aruanda,
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ao m e n o s até o n d e conhecera. Vi jovens e adultos vestidos
c o m o monges, ainda q u e para m i m mais se assemelhassem
a adeptos do m o v i m e n t o H a r e Krishna. Um g r u p o desses
espíritos passava ao longe na m e s m a avenida por o n d e agora transitávamos, um g r u p o de mais de 50 deles, cantando
músicas de forma alegre e contagiante.
O espírito Pai João não falava nada, apenas dirigia-se
p a r a o b a i r r o das lojas ou do comércio, c o m o eu denomin a r a o local. Q u a n t o a mim, limitava-me a apreciar a população de seres exóticos, tão diferentes e n t r e si, p o r é m
usufruindo de u m a convivência pacífica. Avistei um grupo uniformizado, q u e mais parecia de soldados. Altos, imp o n e n t e s , c o m o se r u m a s s e m a u m a p a r a d a militar, p o r é m
s e m p o r t a r armas. Na cabeça, um q u e p e de estilo antigo,
mais p r e c i s a m e n t e um bibico, q u e trazia alguma insígnia
c o m o decoração. Passaram p o r n ó s e m e n e a r a m a cabeça
p a r a João. Desta vez n ã o aguentei e perguntei:
— Por aqui t a m b é m há soldados, policiamento?
— Claro q u e sim, Ângelo. L e m b r e q u e aqui é o m u n d o
4
original, primitivo. Lá embaixo é cópia. Estes que você ob-
4
Cf.
KARDEC.
O livro dos espíritos. Op. cit. p. 112-113, itens 84-86.
95
serva são os guardiões superiores. Temos p o u c o s deles aqui
n a Aruanda; a p e n a s u m contingente p e q u e n o , q u e v e m d a r
aulas a aspirantes a guardiões, na universidade. A tarefa dos
aspirantes se restringe a u m a área específica... c o m o t e m p o
ficará s a b e n d o os detalhes. Mas t e m o s diversos contingentes de guardiões. E n t r e outros, há aqueles q u e c h a m a m o s
de sentinelas, e há t a m b é m as guardiãs, u m a espécie de p o lícia feminina especializada nos e n t r e c h o q u e s vibratórios
que envolvem e m o ç õ e s e s e n t i m e n t o s mais densos. Depois
o levarei até o quartel dos guardiões e p o d e r á ver de p e r t o
a diversidade de categorias existentes e a especialidade de
cada u m a delas.
E n q u a n t o prestava atenção na explicação de Pai João
— m e n t a l m e n t e acabei me a c o s t u m a n d o a chamá-lo assim
—, interessei-me pela população de jovens espíritos que se
reunia no q u e me p a r e c e u ser um pub b a s t a n t e m o v i m e n tado. Mais u m a vez m i n h a curiosidade foi aguçada... e Pai
João não e s p e r o u q u e a manifestasse v e r b a l m e n t e .
— Está assustado, m e u caro? Por aqui a vida social é
movimentadíssima. Não p a s s a m o s nosso t e m p o r e z a n d o ,
recitando ladainhas ou cultivando o fanatismo religioso
salvacionista, q u e r e n d o ir ao u m b r a l o t e m p o t o d o resgatar
96
almas sofredoras. A A m a n d a r e ú n e os espíritos afins com
a p r o p o s t a da justiça divina. Temos u m a vida social muito
mais intensa, interessante e envolvente do que muitas cid a d e s e m e t r ó p o l e s da Terra. Os pubs e bares são locais frequentadíssimos. Neles se r e ú n e t a n t o a população itinerante q u a n t o m u i t o s dos h a b i t a n t e s da m e t r ó p o l e . Conversam
sobre t e m a s os mais variados, d e s d e as manifestações artísticas e culturais até os projetos r e e n c a r n a t ó r i o s e familiares, planejando seu regresso à Terra. Neste pub, especialm e n t e , é h o r a de e n c o n t r o dos jovens alunos de ciências.
D i s c u t e m inventos e descobertas, e o debate é acalorado.
Este pub é mais frequentado p o r e s t u d a n t e s dedicados às
descobertas e invenções tecnológicas. Se e n t r a r lá, com
certeza ficará eletrizado c o m as discussões. Servem-se bebidas cujos sabores e aromas l e m b r a m m u i t o de p e r t o os da
Terra. E olhe que t e m o s até a velha cerveja, c o n h e c i d a sua,
e o v i n h o da mais p u r a procedência.
— E os espíritos daqui b e b e m t a m b é m , c o m o os h u m a nos r e e n c a r n a d o s ?
— Somos h u m a n o s t a m b é m , Ângelo! Tanto q u a n t o os
que h a b i t a m a Crosta. A diferença é q u e nossas bebidas não
t ê m teor alcoólico. M a s afirmo que o sabor é maravilhoso,
97
e as bebidas, cotadíssimas e n t r e os cidadãos, e m b o r a t o d a
a experiência esteja cercada de profundo senso de limite,
m e s m o não h a v e n d o g r a d u a ç ã o alcoólica. E n t r e elas, há algumas desconhecidas dos h o m e n s , mas b a s t a n t e apreciadas aqui. C o m o não há c o m p r a e venda, todas são servidas
pelos espíritos que estagiam nesses lugares a q u e m queira
experimentar, p o r é m u m a cota racionada p a r a cada espírito; n a d a de abusos p o r aqui.
— E n t ã o há r a c i o n a m e n t o , controle, u m a espécie de
controle de q u a n t i d a d e ? —, p e r g u n t e i sorrindo.
— Não há controle no sentido tradicional, q u e r e q u e r
fiscalização, m a s sim um sistema ou m é t o d o de regulação
que foi adotado pelos fundadores de nossa cidade e que
funciona n a t u r a l m e n t e . O princípio é o seguinte: t u d o o
que for de uso c o m u m da população não p o d e estar sujeito a c o n s u m o em excesso, até porque, se há excesso de um
lado, provavelmente haverá escassez de outro. Assim, c o m o
t u d o na A r u a n d a é formado a partir dos fluidos da a t m o s fera, dos fluidos dispersos no espaço, caso alguém queira
utilizar u m a cota maior do que seu c o r p o energético t e n h a
necessidade ou capacidade de processar a d e q u a d a m e n te, aquele m e c a n i s m o e n t r a em ação. No caso da bebida,
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por exemplo, na hipótese de c o n s u m o excessivo, o copo e
o líquido na m ã o do indivíduo se diluem na atmosfera de
m o d o natural, c o m o que se d e s m a t e r i a l i z a n d o em suas próprias mãos. De m o d o que não há desperdício n e m excesso
por aqui. E isso vale r i g o r o s a m e n t e p a r a tudo: alimentação,
vestuário e os demais recursos. Todo excesso, p o r m í n i m o
que seja, é reintegrado ao manancial da n a t u r e z a na forma
de fluido, no m o m e n t o de sua concretização. Isso contribui
para que cada habitante, cada pessoa aqui possa respeitar
os próprios limites. Para nós, esse sistema serve c o m o fator reeducativo importantíssimo; afinal, todos c o m e t e m o s
excessos e precisamos desse m e c a n i s m o para usufruir das
b ê n ç ã o s que a vida oferece, com m o d e r a ç ã o .
— E n t ã o a b e b i d a aqui não teria a m e s m a finalidade das
bebidas alcoólicas da Terra, ou seja, talvez alegrar, despertar o paladar p a r a novas sensações, ainda que, em alguns
casos, criando d e p e n d ê n c i a .
— N e m sei se essa é u m a característica das bebidas na
Crosta ou se os h o m e n s , c o m os excessos que lhes são peculiares, fizeram do p r a z e r de b e b e r isso q u e se vê hoje em
dia lá no m u n d o dos c h a m a d o s vivos. Seja c o m o for, aqui
o objetivo é e x p e r i m e n t a r sabores novos, ricos, q u e des-
99
p e i t e m o p r a z e r sensorial no q u e ele t e m de melhor, assim
como a satisfação em conviver e socializar-se. O c o n s u m o
na m e d i d a certa t a m b é m faz com q u e cada um a p r e n d a que
não é o uso da b e b i d a q u e faz mal, mas o excesso, o que extrapola o equilíbrio. De todo m o d o , c o m o eu disse, nossas
bebidas não c o n t ê m teor alcoólico, ou seja, não t e m o s espíritos b ê b a d o s por aqui — falou Pai João, sorrindo. — N e m
alimentamos o vício de n e n h u m espírito. Você ouviu no
hotel as condições p a r a se viver aqui. Não r e c e b e m o s em
nossa cidade espíritos c o m esse tipo de c o m p o r t a m e n t o ; aí
está u m a regra universal na Aruanda.
— É... T a m b é m n ã o vi n i n g u é m fumando p o r aqui —
comentei.
— Em h i p ó t e s e a l g u m a é p e r m i t i d o o uso do cigarro
e m nossa cidade, Ângelo. J á t i v e m o s i n ú m e r o s p r o b l e m a s
no p a s s a d o e fizemos u m a espécie de plebiscito há mais
de 150 anos, ocasião em q u e c o n s e g u i m o s abolir o consumo do t a b a c o sob q u a l q u e r forma. Espíritos q u e a i n d a
cultivam esse h á b i t o são e n c a m i n h a d o s a o u t r a s cidades
do espaço, o n d e são a d m i t i d o s t e m p o r a r i a m e n t e , até se liv r a r e m dele. Q u a n d o e s t i v e r e m livres p o d e m até ser admitidos n a A r u a n d a .
100
"Mas voltando aos nossos c o s t u m e s aqui, você precisa
c o n h e c e r os hábitos n o t u r n o s de nossa população. Precisa
vir aqui à noite!"
Olhando para mim, para ver a m i n h a reação, continuou:
— Aqui t e m o s t a m b é m a noite. E como são lindas as noites da Amanda... Como a Lua aqui é m u i t o mais brilhante,
parece muito maior e mais vívida do que vista do m u n d o dos
encarnados. A vida n o t u r n a é muitíssimo mais fervilhante.
As trocas de experiência, os encontros de namorados, futuros parceiros na j o r n a d a reencarnatória — t u d o isso encanta
na A m a n d a . Espere até c o n h e c e r os lugares especialmente destinados ao e n c o n t r o de diferentes culturas, ao intercâmbio de ideias e experiências que ali se dá, entre espíritos de etnias e procedências distintas. É algo que encanta,
envolve, apaixona. Não t e m ideia de quanto são concorridos esses m o m e n t o s por aqui. A noite, aqueles que gostam
p o d e m , ainda, ir a festas, ouvir b o a música ou a música que
lhes apetece. Dançar, cantar, expressar sua veia artística ou
simplesmente participar das celebrações em meio a espíritos ou pessoas, como queira dizer, nesses lugares que de alg u m a forma l e m b r a m as danceterias do plano físico, e m b o ra dotados de u m a tecnologia que você n e m imagina.
101
Antes que Pai João prosseguisse c o n t a n d o as novidades da A m a n d a , c h e g a m o s ao local para o n d e nos dirigíamos. Ruas largas, espaços naturais e amplos jardins e n t r e
as lojas ou, melhor, lojas em meio a praças ou jardins, c o m
cafés movimentadíssimos, frequentados p o r gente b o n i t a
dos mais variados estilos. Seres trajados de m o d o às vezes
inusitado, c h a r m o s o ou a p e n a s diferente do que me era
habitual. Graças a Deus n ã o vi espíritos vestindo m a n t o s
brancos e esvoaçantes!
Antes de a d e n t r a r m o s alguma das lojas, Pai J o ã o deu
algumas explicações:
— Aqui funciona assim, Ângelo: n e m t o d o espírito
t e m a c a p a c i d a d e m e n t a l de e l a b o r a r sua v e s t i m e n t a simp l e s m e n t e a p a r t i r da força do p e n s a m e n t o ; m u i t o pelo
contrário, isso o c o r r e a p e n a s c o m a m i n o r i a . E n t ã o , há o
que c h a m a m o s de p a r q u e industrial. T r a b a l h a m lá os espíritos q u e na T e r r a d e s e n v o l v e r a m ou d e s e n v o l v e r ã o as
profissões de estilista, designer e o u t r a s mais, ligadas à indústria da m o d a e à p r o d u ç ã o de r o u p a s , calçados e acessórios em geral. Eles e x e r c i t a m a criação m e n t a l , a c o n figuração e t r a n s f o r m a ç ã o dos fluidos da n a t u r e z a em
peças de v e s t u á r i o ou, em c e r t o s casos l i g e i r a m e n t e dis-
102
tintos, em i n s t r u m e n t o s e f e r r a m e n t a s de t r a b a l h o . Trata-se d e u m p a r q u e d e d e s e n v o l v i m e n t o d o espírito h u m a no e do p o t e n c i a l do p e n s a m e n t o , o n d e se aperfeiçoam as
h a b i l i d a d e s r e l a c i o n a d a s a isso. Criam, i n v e n t a m , desenvolvem ideias e p r o d u z e m itens de a c o r d o c o m o contexto e a d e m a n d a de nossa m e t r ó p o l e . À m e d i d a q u e o fazem, capacitam-se individualmente para desempenharem
mais t a r d e , ao r e e n c a r n a r e m , funções s e m e l h a n t e s às que
a p r e n d e r a m aqui.
"Pois b e m , m e u filho, o p r o d u t o de suas criações é exposto nas diversas lojas e d e p a r t a m e n t o s existentes na
A r u a n d a e em outras cidades do espaço. Os espíritos que
não desenvolveram essa habilidade do p e n s a m e n t o ou que
não t ê m esse interesse v ê m aqui e e s c o l h e m o tipo de roupa
ou acessório que m e l h o r lhe pareça, t e n d o em vista a bagag e m cultural e espiritual, os c o s t u m e s q u e t i n h a na Terra
e suas preferências. Como de resto, não há c o m p r a e venda, n e n h u m tipo de transação monetária, e m b o r a e n t r e o
a t e n d e n t e e o interessado haja, sim, u m a espécie de negociação... Você verá. Como foi explicado antes, aos recém-chegados, c o m o todos t r a b a l h a m e e s t u d a m em nossa cidade, todos p o d e m usufruir livremente daquilo q u e está à
103
disposição nos diversos centros de distribuição. Basta c h e gar, pedir aos estagiários e a t e n d e n t e s , e eles — q u e investem no desenvolvimento das próprias habilidades no contato com o público, visando às futuras experiências físicas
— orientarão da m e l h o r forma que p u d e r e m . Mas não espere perfeição no serviço prestado! São todos a p r e n d i z e s e
muitas vezes c o m e t e m equívocos.
"A u m a coisa você deve ficar atento, pois se trata de
u m a regra para t u d o aqui, em nossa cidade. C o m o já disse,
não p o d e haver desperdício. Se você deseja um traje, p o r
exemplo, de u m a m a r c a conceituada, com o m e l h o r caimento, p o d e escolher à vontade nas diversas lojas e e n t r e
os diversos modelos. Contudo, se precisa s o m e n t e de um
traje para a vida social e de outro p a r a o t r a b a l h o que d e senvolverá, seja aqui na cidade ou em outras regiões mais
densas, e levar ainda q u e seja apenas um a mais, terá u m a
decepção. O traje e x c e d e n t e se desmaterializará ou se dissolverá assim q u e você o g u a r d a r em seu alojamento, seja
no hotel ou em q u a l q u e r m o r a d i a p a r a o n d e for. O supérfluo logo é absorvido pela n a t u r e z a astral, e a m a t é r i a da
qual é constituído, fluídica, dissolve-se e se reintegra ao
plano extrafísico no qual transitamos."
104
— Ou seja, n a d a de t e r dois t e r n o s S t u n n e r da Brioni
5
Vanquish, por exemplo...
Pai J o ã o sorriu largamente, e n t e n d e n d o a ironia.
— Bem, mas eu posso ter, então, mais um terno, q u e m
sabe da Kiton; algo b e m simples, assim...
Pai João me olhou ainda sorridente, e n t e n d e n d o min h a b r i n c a d e i r a esnobe.
— Então vamos lá, Ângelo, pois já é h o r a de trocar esse
traje com que Maria lhe presenteou, sem que soubesse seu
t a m a n h o certo. Quando a p r e n d e r ou quiser usar a força do
p e n s a m e n t o para materializar sua indumentária, poderá
dispensar a visita às lojas. Mas confesso que esse é um prazer que gosto de cultivar. Poder escolher, experimentar, descobrir novas criações dos estudantes e estilistas da A m a n d a
e de outras cidades espirituais... Me parece impossível não
sentir prazer com essa experiência. A alternativa de materializar as coisas pela força mental, sem sentir prazer no que
se faz... Ao menos para mim, fazer qualquer coisa que não
gere prazer e c o n t e n t a m e n t o é algo que não posso conceber.
5
Grife italiana de forte tradição em costumes e ternos de alfaiataria, hoje conheci-
da apenas como Brioni.
105
— É, a vida social aqui na A m a n d a é r e a l m e n t e envolvente, apaixonante. Vamos lá, eu me c o n t e n t o c o m algo
simples mesmo, acho até que t e n h o de desenvolver mais a
h u m i l d a d e após a m o r t e do corpo. Não precisa ser n a d a tão
requintado assim, Pai João. O n d e fica m e s m o a loja da marca E r m e n e g i l d o Zegna?
Rimos g o s t o s a m e n t e e r u m a m o s para as lojas, a fim de
que eu e x p e r i m e n t a s s e a forma de vida da m e t r ó p o l e , a experiência insólita de escolher m e u p r i m e i r o traje de m o r t o
metido a vivo.
Comecei p o r observar a fim de escolher u m a loja: ler o
nome, apreciar a logomarca e a c o m u n i c a ç ã o visual, as cores c o m as quais o estabelecimento fora pintado, até que
a d e n t r a m o s d e t e r m i n a d o ambiente. Acho que Pai J o ã o não
sabia da m i n h a chatice n e m do nível de exigência que me
caracterizava. Não sou n a d a h u m i l d e n e m fácil de agradar,
devo confessar. Fomos atendidos por um rapaz que, logo
se via, era iniciante. Assim q u e r e c o n h e c e u Pai J o ã o a m e u
lado, passou a o u t r o a t e n d e n t e a função e ficou nos observando de longe.
— Bom dia, senhores! Sejam b e m - v i n d o s ao nosso centro de distribuição.
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Não p o d e r i a ser mais gentil o espírito. Parece-me que
estava há algum t e m p o estagiando ali, q u e m sabe se prepar a n d o para lidar c o m um púbico tão diversificado e eclético
c o m o o q u e ia e v i n h a na m e t r ó p o l e . Havia b a s t a n t e gente no d e p a r t a m e n t o de roupas. A decoração era sóbria, chique, e os t r a b a l h a d o r e s ali t i n h a m certo c h a r m e e presença.
O espírito q u e nos atendeu, c o m o a maioria dos habitantes
da cidade, era negro, p r o d u t o de alguma m i s t u r a étnica que
lhe conferira traços finos e delicados. Alto e esbelto, sorriso farto, d e n t e s branquíssimos, vestia um c o s t u m e elegantíssimo, mas ousado, de linhas m o d e r n a s . Não t i n h a visto
ainda um traje c o m o aquele. Fiquei impressionado com o
e x t r e m o b o m gosto.
— Nosso amigo Ângelo q u e r escolher um tipo de roupa
para u s a r em nossa cidade — adiantou Pai João, se dirigindo ao espírito.
— Pois bem! C h a m o - m e Watambi e serei seu servidor
e n q u a n t o estiver em nosso d e p a r t a m e n t o — disse, enquanto
me deixava à vontade para aproveitar m e u primeiro contato
social post-mortem. Medi cada detalhe, cada pessoa ali presente e a fisionomia de cada um. Os trajes usados pelos espíritos que vinham escolher novas roupas me impressionaram.
107
Havia negras vestidas de m o d o a l e m b r a r as baianas
tradicionais de Salvador. Outras usavam peças fartamente
coloridas, com tecidos enrolados, cuja inspiração era claramente africana. Cabelos arrojados, n u m estilo afro impossível de não ser notado, o s t e n t a n d o a beleza dos povos do
continente africano. Ao lado daquelas figuras, havia u m a senhora requintada, à m o d a europeia do início do século x i x ,
embora talvez destoasse dos demais e da m o d e r n i d a d e reinante; a m e u ver, era c o m o u m a d a m a r e t r a t a d a por artistas
renomados da época. H o m e n s b e m vestidos e alguns jovens
trajando esporte fino. Fiquei impressionado. Nada de espírito u s a n d o longos m a n t o s de cor b r a n c a ou azul, que se arrastassem pelo solo ou cobertos de glória, luzes e auréolas.
Pai João me deixou à vontade. Observei tudo, t o d o s os
detalhes, as expressões fisionômicas e o tipo h u m a n o ali r e presentado por t o d a aquela gente morta. E p a r a q u e m estava morto até que eles estavam m u i t o b e m .
— Senhor Ângelo, aceita um suco ou alguma b e b i d a em
particular, e n q u a n t o aprecia nossos trajes?
Olhei p a r a Pai João, e ele sorriu disfarçadamente.
— Apenas água, por favor.
— Algum tipo específico, senhor?
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E eu ainda podia escolher a água? Hesitei, s e m saber o
q u e fazer. L e m b r e i - m e logo da Perrier, m a s fiquei encabulado de d e m o n s t r a r t a n t a simplicidade...
— Se me p e r m i t e — interferiu W a t a m b i —, sugiro que
e x p e r i m e n t e nossa água da A m a n d a . Em n a d a deixa a desejar se c o m p a r a d a à tradicional Perrier ou à San Pellegrino, velhas conhecidas de a m b i e n t e sofisticados da Terra.
Nossa água é de excelente qualidade — falou, c o m o se adivinhasse m e u p e n s a m e n t o . Para disfarçar m i n h a h u m i l d a de infinita, respondi:
— Então pode me servir essa mesmo. Aceito sua sugestão.
E Pai João acrescentou:
— Ele se e s q u e c e u de dizer, Ângelo, que só t e m o s esta
água aqui!... Mas não vai se d e c e p c i o n a r de jeito n e n h u m
c o m o sabor, a suavidade e a característica r e n o v a d o r a da
água da nossa dimensão.
Após ser servido de m a n e i r a b a s t a n t e cortês, eu diria
m e s m o c o m serviço de primeira, nosso anfitrião me auxiliou na escolha do p r i m e i r o traje do o u t r o m u n d o .
— Aqui t e m o s diversos modelos. Devo dizer: os espíritos que t r a b a l h a m na criação m e n t a l se e s m e r a m no d e senho, na m o d e l a g e m e na confecção, mas p r i n c i p a l m e n -
109
te q u a n d o materializam a matéria-prima, que é m u i t o mais
p u r a e de m e l h o r qualidade do que a e n c o n t r a d a nos tecidos da Crosta. Afinal, t e n t a m a qualidade ao grau máximo,
pois disso d e p e n d e o futuro deles na Terra, q u a n d o retorn a r e m e eclodirem as intuições e a vocação p a r a o g ê n e r o
de atividade q u e d e s e m p e n h a m aqui.
"Portanto, a p r e s e n t o - l h e o m e l h o r que temos, vindo
diretamente da nossa linha de produção — disse, voltando-se
para determinado grupo de peças. — Sem levar ectoplasma
e m sua confecção, mas materializado e m nossa, d i m e n s ã o
através da m a t é r i a u n i c a m e n t e mental, criou-se esta textura m u i t o mais a p r i m o r a d a do q u e o mais p u r o linho conhecido na Terra. C o m o sabe — c o m o se eu soubesse —, o
ectoplasma cria u m a sensação mais grosseira na m a t e r i a lização. Os detalhes, senhor, p o d e observar p o r si m e s m o .
N e n h u m a costura p o d e ser vista, u m a vez q u e os p r o d u tores e executores do projeto m e n t a l fizeram de t u d o p a r a
ocultá-las e deixar à m o s t r a s o m e n t e as d o b r a d u r a s , eleg a n t e m e n t e distribuídas de m a n e i r a a realçar mais ainda a
beleza do tecido e a suavidade das formas."
Fiquei perplexo. Diante de m i m havia pelo m e n o s 18
tipos diferentes de trajes, desde costumes clássicos até os
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mais m o d e r n o s , s e m e l h a n t e s ao que o espírito à minha
frente vestia. Difícil escolher. Foi aí q u e descobri que espírito t a m b é m t e m dúvidas ao escolher a vestimenta, sua
r o u p a de m o r t o vivo. Espírito sofre... E que sofrimento é
este, m e u Deus! C o m o W a t a m b i n o t o u m i n h a hesitação ao
o p t a r por este ou aquele modelo, acrescentou outras informações, talvez p e n s a n d o em me ajudar na escolha. Depois
do d r a m a mental, da ironia não expressa em palavras, resolvi ouvir mais a t e n t a m e n t e ; afinal, eu era assim, difícil de
contentar.
— Este traje aqui, p o r exemplo, é feito de u m a matéria
fluídica especial. Ele se ajusta a u t o m a t i c a m e n t e ao corpo
do indivíduo, a s s u m i n d o a forma mais a p r o x i m a d a possível
dos c o n t o r n o s do corpo.
N ã o era o m e u caso. M e s m o t e n d o rejuvenescido alg u n s anos na aparência, não ostentava lá aquele c o r p i n h o
q u e m e r e c e s s e ser realçado. Não sei p o r q u e , m a s me p a r e ceu q u e os espíritos ali escolhiam c o m d e s e n v o l t u r a suas
r o u p a s ou, talvez, n ã o se i m p o r t a s s e m em escolher m u i tas, pois sabiam q u e o excesso era dissolvido m a g i c a m e n t e
nos c h a m a d o s fluidos ambientes... M a s eu, não! Eu n ã o era
tão simples assim. N ã o me b a s t a r a m as explicações de Wa-
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tambi. D e m o r e i mais de 2 h o r a s e, s i n c e r a m e n t e , não consegui me decidir.
Resolvi p r o c u r a r o u t r a loja, outros modelos. Despedi-me do a t e n d e n t e , não e s p e r a n d o voltar ali. Pai João, paciente, me a c o m p a n h o u . Ao sair à rua, m e s m o m o v i m e n tada e cheia de gente de aparências mil, não h o u v e c o m o
não p e r c e b e r a p r e s e n ç a de u m a mulher, eu diria, radiante demais, devido aos trajes de p r o c e d ê n c i a andaluz. Alta,
p o r é m não muito, porte charmoso, m a g r a e c o m os cabelos
pretos envoltos n u m tipo especial de véu negro c o m alguns
fios d o u r a d o s , desfilava à nossa frente, c h a m a n d o a atenção
de alguns outros espíritos. Vestido u s a d o por ciganas espanholas, leque à m ã o direita, passou p o r nós e, após alguns
passos, deteve-se b r u s c a m e n t e . Voltou-se p a r a mim, ignorando p o r completo a p r e s e n ç a de Pai João, abiu o leque de
maneira escandalosa, p r o d u z i n d o aquele b a r u l h o característico de q u a n d o se abre um leque, e falou:
— Pelo teu tipo, gajo, deves estar vivendo o maior drama m e n t a l s i m p l e s m e n t e p a r a escolher u m a r o u p a p a r a ti.
Imagino o teu sofrimento... maior do q u e o das almas p e r d i das nas furnas u m b r a l i n a s ! E d i z e m que espírito n ã o sofre
nos planos superiores... — ironizou a mulher.
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Fiquei meio p a s m o c o m o jeito dela, arrojado, quase atrevido. Abriu o leque n o v a m e n t e , de forma a c h a m a r
mais ainda a atenção, e se apresentou, e s t e n d e n d o - m e a
mão, à m o d a antiga:
— Consuela, encantada!
— Ângelo, Ângelo Inácio — respondi, meio sem saber
c o m o m e comportar.
Voltando-se para Pai João, acrescentou:
— Deixe o gajo p o r m i n h a conta, m e u velho. Darei a ele
t o d o o apoio necessário para a sua visita ao nosso barrio;
sei q u e t e m m u i t a coisa a fazer. Caso queira, q u a n d o t e r m i n a r m o s o levo até o n d e você indicar.
Pai João parecia já c o n h e c e r a mulher, pois, s e m dizer
u m a palavra, ao m e n o s não palavras articuladas, pois p o d e riam m u i t o b e m estar conversando pelo p e n s a m e n t o , deixou-nos, m e n e a n d o a cabeça para mim. Também, depois
do t e m p o que gastei na loja, c o m certeza Pai João d e d u z i u
q u e não me c o n t e n t a r i a indo apenas a um ou dois lugares,
s o b r e t u d o p o r q u e teria de escolher s o m e n t e um traje. Fiquei meio inquieto c o m o c o m p o r t a m e n t o da espanhola,
m a s ela soube me deixar à v o n t a d e e me divertir c o m seu
jeito m a r c a n t e e irreverente. T ã o logo Pai João saiu, dei-
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l a n d o - n o s em frente a u m a praça, ela curvou o braço, c o m o
me convidando a segurá-lo, e disse-me:
— Não vai deixar u m a d a m a e s p e r a n d o assim, não é,
gajo? Pelo visto você t e m estirpe e não fica b e m u m a d a m a
de sangue n o b r e ficar e s p e r a n d o e c a m i n h a n d o ao lado de
um gajo desprotegida assim. E suspirando, n u m a p a r e n t e
exagero, acrescentou:
— Ai, c o m o sou desprotegida! Corro t a n t o risco no
meio desse povo sem estirpe...
Não sei e x a t a m e n t e o q u e ela p r e t e n d i a , m a s aquele
espírito me c o n q u i s t o u c o m seu jeito irônico, i r r e v e r e n t e
e impetuoso. Dei o b r a ç o a ela e saímos em direção a o u t r a
loja. Aliás, o u t r a s lojas. Visitamos mais de 20 lojas a n t e s
que me decidisse. E depois de t a n t o andar, c o n h e c e r g e n t e
de todo tipo, voltei à p r i m e i r a loja, q u e visitara na c o m p a nhia de Pai João. W a t a m b i foi e x t r e m a m e n t e cortês, auxiliando-me u m a vez mais. F o r a m mais 90 m i n u t o s analisando e e x p e r i m e n t a n d o . Afinal, c o m o dizia Consuela, ela
não ouvira as explicações de W a t a m b i sobre os fios e s p e ciais, o tecido sedoso e os fluidos e m p r e g a d o s na m a t e r i a ização dos m o d e l o s à escolha. Ele teve de explicar t u d o
de novo, e ela, ereta, a b a n a n d o o leque e r e s p i r a n d o fun-
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do, exigia mais d e t a l h e s a n t e s q u e eu e x p e r i m e n t a s s e cada
traje. Dizia:
— Afinal, n ã o sairei p o r aí ao lado de um espírito malvestido e c o m r o u p a s que não c o n d i z e m com a estirpe espiritual a q u e estou habituada.
Ri gostosamente. N u n c a me diverti t a n t o assim em tão
p o u c o t e m p o . Mais t a r d e eu contaria t u d o a Pai João, que
diria s o m e n t e : "É u m a m e n i n a m u i t o levada essa m i n h a filha. Mas é b o a gente!".
Saímos dali, eu todo empertigado com m e u novo traje
de m o r t o vivo. Afinal, escolhi algo b e m prático, simples mesmo, mas funcional. Consuela adora brincar, fala muito e se
ofereceu para me mostrar algumas das praças da cidade. Foi
um passeio muito interessante. A noite já caía na metrópole
espiritual. U m a espécie de nostalgia parecia querer se instalar em m i n h a alma, mas Consuela não me deixava t e m p o
livre para sequer pensar em tristeza. Meu primeiro dia do
lado de cá foi algo realmente fantástico. Muito mais t a r d e eu
entenderia que fora t u d o planejado nos mínimos detalhes,
a fim de evitar que eu me entregasse à depressão post-mortem, c o m o é c o m u m a muitos espíritos. Mas naquele m o m e n t o eu não sabia n a d a disso. E não era m e s m o para saber.
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A primeira praça que fiquei c o n h e c e n d o foi a c h a m a d a
Praça dos Orixás. Jamais vi t a m a n h a beleza e expressividade da cultura negra. Vários orixás representados em maravilhosa obra de estatuária. Chegamos a um dos lugares mais
concorridos, onde espíritos de procedências e estilos diversos se reuniam, a maioria com trajes típicos africanos, m u i tos lembrando antigos baianos das décadas finais do século
XIX e das primeiras do século XX. Apresentações teatrais e
exibições de dança afro ocorriam ali, c o m precisão e beleza
exemplares. Os dançarinos elevavam-se entre 5 e 8 m e t r o s
de altura, deslizando na atmosfera ambiente e revolucionando para, logo depois, p o u s a r e m ao som de instrumentos —
congas, surdos, tablas, flautas transversais, violões e diversos outros que n u n c a vira, desenvolvidos do lado de cá por
espíritos experientes na criação de instrumentos musicais.
E m d a d o m o m e n t o , Consuela, talvez mais p a r a m e
mostrar a tecnologia u s a d a na cidade dos espíritos do que
para descansar, c o n v i d o u - m e a sentar n u m dos b a n c o s da
praça. Havia vários o u t r o s espíritos sentados, e n t r e eles
casais que mais me p a r e c i a m apaixonados, n a m o r a d o s , do
que s i m p l e s m e n t e amigos espirituais. Assim q u e nos sentamos, comentei:
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— Puxa, a vida social aqui n ã o deixa t e m p o para tristezas. E olha q u e não c o n h e ç o n e m 1% das atividades realizadas na cidade! Pensei que vida de m o r t o era um verdadeiro
tédio, indo e vindo e n t r e n u v e n s e louvores sem fim... Ledo
engano! Ainda bem!
E n q u a n t o eu falava, o som dos i n s t r u m e n t o s e da conversa dos espíritos a p e q u e n a distância v i n h a em nossa direção o b e d e c e n d o ao m e s m o processo pelo qual o som se
p r o p a g a no a m b i e n t e da Crosta. Então, Consuela tocou
n u m a lateral do banco o n d e estávamos sentados, n u m a espécie de botão escondido n u m nicho. Logo percebi u m a película finíssima erguer-se em t o r n o do b a n c o e, logicamente, de nós dois, c o m o se fosse um c a m p o de p u r a energia,
t r a n s p a r e n t e ao máximo, mas perceptível, devido a certo
brilho que irradiava ou refletia. C o m o por encanto, o barulho e x t e r n o cessou. Consuela c o m e n t o u :
— Assim é melhor. Em todo local público por aqui tem o s essa tecnologia, t a n t o em a m b i e n t e s fechados, como
pubs e casas de e n c o n t r o dos jovens, q u a n t o ao ar livre,
c o m o nas praças. P o d e m o s erguer esse c a m p o de c o m p e n sação, c o m o é c h a m a d o aqui, e s o m o s isolados do som ambiente. É u m a forma discreta de preservar-nos ou m a n t e r
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nossa privacidade, sem q u e outras pessoas p r e c i s e m participar da conversa que t e m o s . No m o m e n t o em que desejar,
pode s i m p l e s m e n t e tocar no dispositivo ao lado dos b a n c o s
e voltar a ouvir t u d o ao redor.
Não é preciso dizer q u e já estava estupefato com a tecnologia u s a d a na metrópole, m a s essa s i m p l e s m e n t e me
conquistou. U m a das coisas que mais me irritava na vida
t e r r e n a era a obrigação de escutar as pessoas c o n v e r s a r e m
n u m v o l u m e d e s c o n c e r t a n t e , de ouvir assuntos que não me
interessavam e a impossibilidade de me isolar completam e n t e q u a n d o conversava com alguém. E r a s i m p l e s m e n t e
irritante isso t u d o . Mas aqui... não! Senti-me tão c o m p r e e n dido, como se essa tecnologia tivesse sido desenvolvida especialmente p a r a mim... Que m á x i m o ! E mais ainda: c o m o
dissera Consuela, em t o d o local era possível optar p o r isolar-se do ambiente, p e r m i t i n d o conversar de m a n e i r a harmoniosa, sem a interferência de música, b u r b u r i n h o ou
outro tipo de som indesejado. Achei isso o ápice da privacidade. Agora, só me faltaria descobrir c o m o ocultar os p e n samentos. Pois, ao que parecia, alguns espíritos t i n h a m a
mania besta de devassar os p e n s a m e n t o s alheios, de m a n e i ra q u e deveria rever u r g e n t e m e n t e o conceito de privacida-
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de. Antes que eu p u d e s s e falar sobre isso, é claro, descobri
que a tal Consuela t a m b é m t i n h a essa habilidade.
— Não são todos os espíritos que p o d e m conhecer nossos pensamentos. São somente alguns, aqueles que desenvolveram habilidades psíquicas, como a telepatia, por exemplo.
Olhei p a r a ela c o m o que r e p r i m i n d o o fato de ela saber
o que eu pensava.
— Mas n ã o se p r e o c u p e , gajo, aqui a p r e n d e m o s o verdadeiro significado daquilo que na Terra é c h a m a d o de discrição e ética. Não devassamos os p e n s a m e n t o s secretos, as
questões íntimas; n ã o conseguiríamos fazer isso, ainda que
quiséssemos.
O l h a n d o para m i m c o m seu leque e m m o d o b a r u l h e n t o
— em oposição a m o d o silencioso —, acrescentou:
— Na verdade, não são os espíritos com habilidades
mentais q u e lêem ou p e n e t r a m p e n s a m e n t o s ; as pessoas
é q u e são permeáveis. P e n s a m c o m t a n t a intensidade que
n ã o há c o m o os mais hábeis e c o n h e c e d o r e s das leis do
m e n t a l i s m o não n o t a r e m as formas mentais, os clichês, cores e f o r m a s - p e n s a m e n t o criadas, m a n t i d a s ou alimentadas
pela gente despercebida. E c o m o essas formas m e n t a i s irradiam-se além dos limites do corpo espiritual, c o m o elas,
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por assim dizer, povoam a aura dos espíritos, os mais experientes p e r c e b e m , veem, leem nas entrelinhas o q u e se p a s sa no m u n d o íntimo.
— E n ã o t e m c o m o a gente evitar q u e ouçam, e n t e n d a m
ou leiam o que p e n s a m o s ?
— Ah! Gajo, isso é o u t r a história! Terá de estudar as leis
do m e n t a l i s m o em nossa universidade e a p r e n d e r á m é t o dos que c h a m a m o s de educação do p e n s a m e n t o e das e m o ções. Pois há espíritos que t a m b é m c o n s e g u e m distinguir e
interpretar nossas emoções de forma b e m precisa.
— Ai, m e u Deus! Isso não t e m fim? Não há c o m o levantar u m a b a r r e i r a p r o t e t o r a em t o r n o do nosso cérebro espiritual ou extrafísico? Algo s e m e l h a n t e ao q u e você fez aqui
na praça, em t o r n o do banco? Assim, a gente ficaria mais
isolado m e n t a l m e n t e .
— Como lhe disse, gajo, é questão de e d u c a r o pensamento. E isso não sei c o m o ensinar. Você t e r á m u i t o t e m p o
para aprender. Aqui, t e m p o é o q u e não nos falta.
Fazendo m e n ç ã o de se levantar, fechou seu leque elegantemente, não s e m fazer o b a r u l h o característico, e me
convidou, q u e m sabe meio sem paciência c o m m i n h a s n e u roses de espírito r e c é m - d e s e n c a r n a d o :
120
— Está na h o r a de levá-lo de volta ao hotel. Você já
a p r e s e n t a sinais de desgaste vital.
— Eu? E u z i n h o ? Estou me s e n t i n d o m u i t o b e m , se me
permite...
— Nada disso! O velho está d i z e n d o q u e você precisa
descansar. Será analisado pelos médicos de nossos hospitais. Afinal, é seu p r i m e i r o dia aqui. Precisa dormir. Aman h ã estarei c o m você n o v a m e n t e . Isto, é claro, se desejar.
E saiu quase me arrastando, e n q u a n t o o c a m p o de
c o m p e n s a ç ã o se desfazia à nossa volta e o som característico do pessoal r e u n i d o na praça, da música e de t o d o o contexto da a p r e s e n t a ç ã o artística invadia nosso c a m p o auditivo e nossos sentidos, e m b o r a de forma h a r m o n i o s a , sem
causar n e n h u m mal-estar. C o m o estávamos mais ou m e nos distantes do hotel, Consuela optou p o r pegar um transp o r t e público, o c h a m a d o aeróbus. Visualmente, era muito
s e m e l h a n t e aos t r e n s rápidos da E u r o p a . E n t r a m o s e, logo
q u e nos sentamos, Consuela começou:
— Aqui t e m o s estes veículos. Os espíritas e n c a r n a d o s
os c h a m a m de aeróbus. Eu odeio esse n o m e . Prefiro chamá-lo a p e n a s de veículo aéreo; u m a questão de gosto, apenas. Existem diferentes modelos p a r a finalidades as mais
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diversas. Usar veículos c o m o este — s o b r e t u d o q u e m não
a p r e n d e u a levitar ou não o faz sem g r a n d e esforço — evid e n t e m e n t e e c o n o m i z a u m b o c a d o d e energia mental, que
p o d e ser e m p r e g a d a em outras realizações.
E n q u a n t o se desenrolava nossa conversa, o veículo percorria lugares diferentes; c o m certeza, pararia p r ó ximo ao local o n d e deveríamos descer. Mas u m a coisa me
inquietou: ao invés de subir na atmosfera, ele literalmente
desceu, c o m o se fosse um m e t r ô , viajando logo abaixo da
superfície da cidade. M i n h a amiga p e r c e b e u m e u e s p a n t o
de imediato.
— Não fique assim tão c h o c a d o com este nosso m u n d o ,
gajo. Como eu disse, existem vários tipos de veículo. Este
aqui, q u e t r a n s p o r t a u m a q u a n t i d a d e maior de pessoas,
percorre as vias no subsolo, c o m o os velhos e c o n h e c i d o s
m e t r ô s da Terra, e m b o r a estejam em operação em nossa cidade desde o ano de 1695. Temos desde veículos que v o a m
pela atmosfera astral afora até aqueles projetados p a r a descer a regiões mais profundas do s u b m u n d o , no c o n h e c i d o
umbral ou m e s m o em lugares mais densos. Pessoalmente,
adoro os que se p r e s t a m a sair da atmosfera t e r r e n a r u m o
à Lua, por exemplo, os quais são potentíssimos, m u i t o e m -
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b o r a pouquíssimos espíritos t e n h a m autorização de sair do
a m b i e n t e do p l a n e t a em direção ao espaço cósmico. Então,
vá se a c o s t u m a n d o com as diversas faces da vida espiritual.
Vamos descer n u m a estação antes do hotel, pois quero lhe
m o s t r a r alguma coisa antes de você descansar.
— Já falei q u e não me sinto cansado!
— Vamos descer, de t o d o jeito. — E acrescentou: — De
qualquer p o n t o o n d e estiver na cidade, e n c o n t r a r á u m a estação a no m á x i m o 4 0 0 m e t r o s a pé, o n d e p o d e r á e m b a r c a r
em algum dos veículos. É u m a m a l h a de t r a n s p o r t e público
que funciona c o m u m a eficiência de nos deixar orgulhosos.
Seja p o r terra, pelo ar ou pelo subsolo, c o m o no caso deste
comboio, s e m p r e haverá um tipo de t r a n s p o r t e ao alcance
dos h a b i t a n t e s da metrópole, de m o d o p e r m a n e n t e .
D e s c e m o s n u m e n t r e p o s t o de t r a n s p o r t e ou, como
c h a m o u Consuela, n u m a estação. C a m i n h a m o s pouco. Na
verdade, para chegar à superfície havia a opção de levitarmos, impulsionados p o r u m a espécie de colchão de ar, ou
s u b i r m o s em esteiras rolantes, q u e e r a m um c h a r m e à parte; algo b e m futurista. Adorei as possibilidades, mas preferimos ir a pé m e s m o , circulando em meio aos pedestres,
que, diante de tantas opções de t r a n s p o r t e , não e r a m em
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n ú m e r o tão g r a n d e assim. Foi u m a experiência m u i t o diferente p a r a um espírito, mas t a m b é m muitíssimo gratificante. Em alguns e n t r o n c a m e n t o s e passagens s u b t e r r â neas, s e m e l h a n t e s a túneis confortavelmente largos, havia
obras artísticas a decorar o percurso. E n t a l h a d a s em material ainda d e s c o n h e c i d o p a r a mim, erguiam-se colunas
portentosas, e o teto parecia haver sido pintado, q u e m sabe,
por algum Michelangelo, t a m a n h a era a precisão nos traços e a beleza observada ali, b e m c o m o nas demais obras
de arte. Em d e t e r m i n a d o local, p o u c o antes de e m e r g i r m o s
à superfície, deparei c o m um espaço mais amplo, m e s m o
d e n t r o dos túneis. E r a u m a espécie de praça, c o m algumas
cadeiras dispostas h a r m o n i o s a m e n t e . Espíritos assentados
admiravam a música de qualidade a p r e s e n t a d a talvez p o r
m e m b r o s de alguma sinfônica — poucos, na verdade, m a s
suficientes para p r o d u z i r algo q u e tocava o espírito mais
exigente em relação à b o a música.
Subimos, então, o ú l t i m o lance antes de a s c e n d e r à superfície, e n q u a n t o Consuela chamava a atenção p o r o n d e
passávamos, c o m o traje t i p i c a m e n t e andaluz, elegante c o m o ela só. E eu t o t a l m e n t e absorvido pela decoração,
pela beleza em cada detalhe.
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Q u a n d o c h e g a m o s à superfície, m i n h a amiga e guia de
t u r i s m o do m u n d o espiritual a p o n t o u em direção ao céu. As
estrelas me e n c a n t a r a m . E r a m visíveis quase na totalidade
as estrelas da Via Láctea. U m a profusão de luzes inundava
s u a v e m e n t e o c a m p o visual, e vários espíritos ficavam parados, c o m o nós, olhando, observando, inspirando-se, talvez, no espetáculo de belezas imortais. Pela p r i m e i r a vez,
eu chorei. Chorei de nostalgia, de enlevo, c o m p l e t a m e n t e
envolvido pela beleza da imensidade, da A m a n d a . E antes
q u e m e u c h o r o se convertesse em pranto, talvez pela m i n h a
t e n d ê n c i a post-mortem de transformar as coisas em melodrama, m i n h a amiga c o n v i d o u - m e a voltar os olhos para o
lado oposto do firmamento. Notei que diversos indivíduos,
de um e o u t r o lado da rua, t a m b é m fixavam aquele lugar.
E o que vi me e n c a n t o u mais u m a vez. G r a n d e quantidade de espíritos se aproximava, levitando na atmosfera da
cidade. Faziam u m a espécie de ziguezague ou bailavam ao
se deslocar em suspensão. L e m b r a v a m borboletas iluminadas, radiantes, de e s t o n t e a n t e beleza. Na Terra, os relógios m a r c a v a m alguns m i n u t o s após as 18 horas. A população parecia extasiada, olhar fixo ora n u m ponto, ora noutro,
c o n t e m p l a n d o a beleza da n a t u r e z a e a manifestação da-
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queles seres que desenvolviam u m a coreografia inspirada,
quem sabe, em alguma música que m e u s ouvidos ainda não
eram capazes de perceber. E r a m mais de 2 0 0 espíritos indo
e vindo em perfeita h a r m o n i a , no espaço acima de nós. Alguns veículos aéreos i n t e r r o m p e r a m seu curso, p a i r a n d o
nas alturas e n q u a n t o os o c u p a n t e s assistiam ao espetáculo
de belezas indescritíveis. Se algo na Terra p u d e s s e se a p r o ximar m u i t o p á l i d a m e n t e do que presenciei, talvez fosse
uma apresentação do Cirque du Soleil, q u a n d o artistas circenses se elevam ao alto graças a suportes de vida, cabos de
aço ou cordas elásticas. M a s é m u i t o pálida essa c o m p a r a ção. Seja c o m o for, era impossível não ficar a d m i r a d o diante
das capacidades do espírito h u m a n o . C o m o a arte expressa
com perfeição u m a das faces mais interessantes da criação
e da p r ó p r i a sabedoria divina! Deixei-me tocar i n t i m a m e n te por toda aquela beleza, e assim ficamos ali p o r cerca de
30 minutos, parados, na mais absoluta contemplação.
Os p e n s a m e n t o s , n a t u r a l m e n t e , eu n e m sabia p o r o n d e
iam, mas de u m a coisa tive certeza: sentia-me i m e n s a m e n te grato a q u e m q u e r que fosse que me avalizou, a b r i n d o a
possibilidade a b e n ç o a d a de viver, e s t u d a r e t r a b a l h a r nesta
atmosfera de beleza, diversidade e respeito, nesta g r a n d e
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escola de convivência mais h a r m o n i o s a c o m a vida universal. A gratidão b r o t o u no m e u coração c o m o n u n c a perceb e r a até ali. Gratidão a Deus, à vida, ao universo.
N e m me dei conta, t r a n s c o r r i d o aquele t e m p o , de que
estávamos b e m p r ó x i m o s do hotel. Consuela, s e m se preoc u p a r e m disfarçar u m a lágrima discreta n u m canto d e
olho, c o n v i d o u - m e a caminhar. E c a m i n h a m o s em silêncio.
Aliás, n u n c a vi t a m a n h o silêncio c o m o o que percebi naquele m o m e n t o . Parece que t o d a a população da cidade dos
espíritos prosseguia em silêncio r u m o aos mais diversos
afazeres. Simplesmente, todos estavam tocados c o m as impressões de beleza q u e cada um tivera, conforme sua situação íntima, s e g u n d o mais t a r d e me contaria Pai João. Dei
graças p o r haver p e r c e b i d o aquele espetáculo de maneira
tão intensa.
Aliás, eu s e m p r e fora sensível a t u d o que é belo, ao sentido estético das coisas, das pessoas, de t u d o à m i n h a volta. Mas descobri ali, naqueles m o m e n t o s de enlevo, que de
alguma forma a m o r t e parecia haver amplificado t u d o em
mim. E a beleza fazia m u i t o mais sentido em m i n h a alma,
m u i t o mais do que antes de e x p e r i m e n t a r a c h a m a d a morte do corpo. E t a m b é m ali, e n q u a n t o caminhava em silên-
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cio ao lado de Consuela, p u d e p e n s a r no q u a n t o a m o r t e e o
m o r r e r a b r e m as portas da alma, e s c a n c a r a m os sentidos do
espírito, libertam do m e d o e das limitações do e n t e n d i m e n to. Isso, n a t u r a l m e n t e , d e p e n d e r á da a b e r t u r a q u e d a m o s às
o p o r t u n i d a d e s e da p o s t u r a m e n t a l do indivíduo. Por mim,
estava mais que decidido: dali em diante, não p e r d e r i a jamais u m a c h a n c e de t r a b a l h a r e aprender, estudar e p r o g r e dir de alguma forma, pois descobri nesta cidade m e u verdadeiro lar. Se havia sobrevivido em m i m alguma v o n t a d e de
r e t o m a r o corpo que ficou na Terra, essa v o n t a d e apagou-se
de vez ante as belezas e as possibilidades no novo lar, na pátria à qual regressara pelos braços generosos da morte.
A d e n t r a m o s o a m b i e n t e do hotel e me d e s p e d i da nova
amiga. N ã o sei p a r a o n d e ela iria, se t i n h a u m a casa, um
bangalô ou m o r a v a na área u r b a n a da cidade. D e s p e d i -me dela grato p o r haver e n c o n t r a d o pessoas afins, c o m as
quais conviveria c o m satisfação, e deixei-me e m b a l a r p e los p e n s a m e n t o s repletos das novidades q u e reservava a
cidade dos espíritos, a A r u a n d a de todos os povos, de todas
as gentes.
N e m me r e c o r d o de c o m o cheguei ao quarto. Sei apenas que, q u a n d o passei pela porta, deparei c o m um b u q u ê
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de flores sobre a mesa, n u m vaso que n e m era lá do meu
gosto, mas não deixava de ser belo. A s u r p r e s a trazia um bilhete subscrito pela equipe do hotel: Seja muito bem-vindo
ao novo lar! Esperamos fazer parte de sua família espiritual.
Que sua estadia entre nós seja uma descoberta diária de felicidade e satisfação. Conte conosco, Sr. Ângelo Inácio — e várias assinaturas p r e e n c h i a m o r e s t a n t e do espaço no cartão.
Não sou m u i t o chegado a esse tipo de manifestação,
de flores e coisas do gênero, mas, confesso, me emocionei.
Ao cheirar as flores, o a r o m a me t o m o u p o r completo e um
leve sono p a r e c e u p r e e n c h e r m i n h a s sensações. Dirigi-me
à cama. Colchão macio, lençóis e l e g a n t e m e n t e arrumados,
c o m um tecido de qualidade superior — em cuja composição n a t u r a l m e n t e n ã o entrava ectoplasma, c o m o diria o
a t e n d e n t e da loja q u e visitei —, c o m um t o q u e sedoso que
me convidava a deitar-me.
Relaxei assim q u e me encostei n a q u e l e n i n h o que me
abrigava o espírito. E sonhei. Sonhei c o m as estrelas de
A m a n d a e c o m um país o n d e todos p o d i a m conviver em
paz, o n d e reinava u m a política diferente, c o m leis simples,
q u e b e m serviam aos propósitos da população de seres que
ali habitava. Sonhei c o m u m a vida diferente, c o m u m a nova
129
civilização, c o m Maria, m i n h a filha. Apenas sonhei e me r e temperei; refiz m e u espírito em meio aos fluidos balsâmicos da A m a n d a de Pai João, de J a m a r e dos amigos novos
que eu c o n h e c e r a ali, e n t r e as estrelas.
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u i A C O R D A D O P O R Jamar, m e u amigo guardião ou anjo
da guarda. Ele foi m u i t o discreto e só a d e n t r o u o a m b i e n t e
do a p a r t a m e n t o após me chamar, t a m b é m d i s c r e t a m e n t e .
Confesso que, se ele tivesse deixado, d o r m i r i a até mais tarde. E r a o p r i m e i r o sono v e r d a d e i r a m e n t e r e p a r a d o r depois
da transição e da desativação do corpo físico. Acordei me
sentindo b a s t a n t e fortalecido, energizado e com u m a disposição íntima excelente.
J a m a r me esperava na antessala. Ele precisaria aguardar p o r mais algum t e m p o , na v e r d a d e , pois senti v o n t a d e
d e t o m a r u m b a n h o d e m o r a d o . E u não t i n h a noção d o q u e
ele faria d u r a n t e o t e m p o da m i n h a higiene, se ficaria ali
e s p e r a n d o ou sairia p a r a resolver algo. Sei b e m q u e esse
espírito não é lá de ficar a g u a r d a n d o sentado, e s p e r a n d o o
t e m p o passar.
O fato é q u e me dirigi ao toalete e e n c o n t r e i u m a banheira g r a n d e o suficiente p a r a me a c o m o d a r de m o d o
confortável. Ao lado, n u m a espécie de deck o n d e se alojava a banheira, alguns vidros c o n t i n h a m extratos de ervas, e
pareciam estar ali há pouco. Q u e m os teria providenciado?
Não saberia dizer. Talvez Bernardo, o rapaz que se dispusera a auxiliar nos m o m e n t o s de adaptação. E n c o n t r e i diver-
134
sos frascos c o m algum c o n t e ú d o verde, um tipo de s u m o ou
extrato que resolvi experimentar.
Assim que segurei o p r i m e i r o deles, notei um rótulo
c o m as informações: Extrato concentrado de ervas. E havia instruções: Recomendado para liberar energias densas e
emoções mais intensas e pesadas. Derramar o conteúdo na
água
e permanecer imerso por aproximadamente 20
minu-
tos. O s e g u n d o frasco era indicado para se r e c o m p o r após
o d e s c a r t e biológico, c o m p r o p r i e d a d e s t e r a p ê u t i c a s energizantes. E assim por diante, um a um trazia a indicação específica. Escolhi o que acreditei me serviria melhor, e, tão
logo a b a n h e i r a se e n c h e u , o q u e não d e m o r o u , deitei o cont e ú d o do frasco. O resultado foi m u i t o s e m e l h a n t e ao que
se vê na Terra, q u a n d o se d e r r a m a m sais de b a n h o na água.
Após me despir, entrei na b a n h e i r a e fiquei s u b m e r s o por
alguns instantes, para logo relaxar c o m a água até os ombros. Não era hidromassagem, mas n e m t u d o p o d e ser tão
perfeito. Respirei fundo e percebi os a r o m a s agradáveis, intensos, p e n e t r a n t e s . Parecia q u e alguma coisa se d e s p r e n dia do m e u c o r p o espiritual — aprendi ser esse o n o m e do
novo envoltório que me servia —, mas era algo m u i t o d e n so. Fluidos ainda se m a n t i n h a m i m p r e g n a d o s nas células
135
ultrassensíveis do m e u organismo, s e g u n d o me explicaram
mais tarde. Creio q u e o extrato q u e escolhi t i n h a alguma
p r o p r i e d a d e t e r a p ê u t i c a que liberava ou sugava de m e u ser
tudo aquilo q u e excedia o necessário p a r a m i n h a vida ali,
naquele r e c a n t o a b e n ç o a d o do universo.
Relaxei a p o n t o de não me d a r conta do t e m p o que se
passou. Será q u e m e u anjo guardião ainda me esperava lá
fora ou desistira de mim? Levantei-me de sobressalto e foi
então que percebi quão mais leve eu estava. C a m i n h e i pelo
quarto c o m a impressão que p e r d e r a b o a q u a n t i d a d e de
fluido denso, de energia p e s a d a ou sei lá c o m o me referir à
sensação tão agradável e de leveza que e x p e r i m e n t e i após
o b a n h o . O sabonete era um misto de calêndula, c a r d a m o mo e cânfora, e talvez alguma o u t r a erva, mas não li toda
a composição, no rótulo da embalagem. Sei é q u e já na banheira senti u m a suavidade incrível em m e u corpo espiritual. M e s m o agora faltam-me palavras p a r a descrever em
sua a m p l i t u d e a sensação q u e me dominava. Vesti o t e r n o
que havia sido escolhido tão r a p i d a m e n t e no dia anterior,
na c o m p a n h i a da amiga Consuela, e saí p a r a ter c o m Jamar.
Ele estava de pé na antessala, e m b o r a houvesse ali um espaço confortável e p o l t r o n a p a r a se instalar.
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— Sente-se melhor, Ângelo? E s p e r o q u e t e n h a experim e n t a d o o efeito r e g e n e r a d o r e e s t i m u l a n t e do b a n h o . Aqui
em nossa cidade, a água exerce um papel fundamental para
todos nós.
— Você ficou aí me e s p e r a n d o esse t e m p o todo?
— Não! Acabei de chegar.
— Mas ouvi a c a m p a i n h a tocar e você me c h a m a r pelo
aparelho de comunicação...
— Ah! C o m o t e m p o você a p r e n d e r á muitas coisas por
aqui. Estava ainda no QG dos guardiões q u a n d o você me ouviu e adentrei aqui e x a t a m e n t e no m o m e n t o em que abriu a
porta. Não podia aguardar; sabe c o m o são os compromissos.
L e m b r e i - m e do médico que viera no dia anterior me
consultar. E m b o r a o t e m p o aqui fosse mais dilatado do que
aquele ao qual havia me a c o s t u m a d o na superfície, parecia
que alguns espíritos p r e e n c h e m seu t e m p o c o m tanto trabalho e responsabilidade que não lhes sobra m u i t o para curtir. Sofrem de s í n d r o m e do trabalho compulsivo, imagino.
Jamar, vestido c o m um traje s e m e l h a n t e ao que usara
nas ocasiões anteriores, m a n t i n h a o p o r t e ereto, sóbrio e,
acima de tudo, a atmosfera em seu e n t o r n o . A compleição
física do guardião denotava m a r c a n t e m a s c u l i n i d a d e ou vi-
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rilidade, além de u m a força d e s c o m u n a l . N u m a p r o p o r ç ã o
muito acima da média, parecia exalar energia yang de cada
átomo do corpo espiritual. Não obstante, e r a a calma em
pessoa; m a n t i n h a - s e tranquilo e inspirava s e g u r a n ç a e um
quê de p a t e r n i d a d e , de m o d o que estar em sua p r e s e n ç a fazia b e m . F o r ç o s a m e n t e ocupava u m a posição de c o m a n d o
naquela c o m u n i d a d e .
— Temos de ir, m e u amigo. Alguns dos imortais nos
aguardam, e você precisa c o n h e c e r algumas pessoas centrais em nossa c o m u n i d a d e . O t r a b a l h o q u e t e m a realizar
não p o d e ser adiado.
— Trabalho? Mas eu mal m o r r i e já t e m t r a b a l h o p a r a
mim? E o tal do descanso eterno? Não t e n h o direitos?
— E deveres, t a m b é m . Não se esqueça de que c o n h e cimento e m u i t a habilidade a c a r r e t a m g r a n d e c o m p o n e n t e
de responsabilidade. Você não veio p a r a nossa c o m u n i d a d e
por acaso. Você não escolheu; foi escolhido.
— E n t ã o n ã o vou mais descansar?
— Sente-se cansado?
— Talvez... D e p e n d e do que me espera!
— Vamos! Alguns c o m e n t á r i o s n ã o m e r e c e m resposta
— falou sério, m a s s e m n e n h u m a expressão de gravidade.
138
Parecia q u e ele não t i n h a t e m p o a perder, m e s m o ; não era
c o m o Consuela. Não m e s m o !
Saímos do hotel, e logo me c h a m o u atenção o veículo. "Como é m e s m o o n o m e espírita p a r a ele?" Àquela altura, não p u d e r e c o r d a r o n o m e que Consuela me falou no
dia anterior. Soube a p e n a s q u e era algo feio, sem elegância n e m criatividade. Enfim, entrei n a q u e l a espécie de automóvel e e n t ã o notei mais um h o m e m e u m a mulher; ela
estava vestida c o m um uniforme similar ao de Jamar. Era
l e v e m e n t e mais descontraída, e m b o r a t a m b é m inspirasse
segurança e responsabilidade. J a m a r nos apresentou:
— Essa é Semíramis, a r e p r e s e n t a n t e das guardiãs, e
Watab, u m amigo servidor e m nossa corporação.
A m b o s m e c u m p r i m e n t a r a m sorridentes, p o r é m n o tei ainda certa reserva. W a t a b era alto, magro, com dentes b r a n q u í s s i m o s . O traje, um t a n t o solene, diferia bast a n t e do de Jamar. Era um tipo de r o u p a que se ligava ao
corpo, d e i x a n d o - l h e as formas e os músculos mais evidentes. L e m b r o u - m e algum bailarino q u e havia visto na Terra,
em apresentação. Ri sozinho. Não sei se me p e r c e b e r a m o
p e n s a m e n t o , mas J a m a r logo se manifestou, esclarecendo
nosso objetivo e ignorando ou ao m e n o s d e s c o n s i d e r a n d o o
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que pensei. Graças a Deus, pois viver no meio de um povo
que sabe o t e m p o t o d o o que você pensa não é fácil, não. E
esse negócio de imortalidade? M e u Deus, c o m o me p a r e ceu difícil conviver c o m gente que não m o r r e nunca, n u n quinha... E o pior: s e n d o assim, eles não t ê m m e d o da morte e, não t e n d o m e d o da morte, p o d e m ter m e d o de alguma
coisa na vida? J a m a r i n t e r r o m p e u m e u s diletos p e n s a m e n tos e raciocínio profundos.
— Vamos a u m a reunião — dirigiu-se a m i m — em q u e
alguns de nossos m e n t o r e s e m e s t r e s q u e r e m conhecê-lo
ou dar-se a conhecer. São seres mais experientes, c o m um
grau de responsabilidade p a r a c o m a h u m a n i d a d e do qual
nem sabemos a extensão verdadeira. Sabemos, contudo,
que t r a b a l h a m n u m a d i m e n s ã o m u i t o mais alta e c o m tarefas mais expressivas do que a nossa. Mas fique tranquilo;
são h u m a n o s , na v e r d a d e i r a acepção do t e r m o . Riem, brinc a m e e n t e n d e m nossos dilemas e limitações.
— E n t ã o p o d e m o s dizer q u e são espíritos de luz? —
perguntei, c o m certa dose de sarcasmo, reconheço, mais
pelo t o m piegas dessa expressão...
— Não os classificamos assim; nós os c h a m a m o s de
orientadores evolutivos da h u m a n i d a d e e nossos, t a m b é m .
140
A audiência será rápida, pois não d i s p õ e m de t e m p o para
se dedicar a u m a conversa mais d e m o r a d a .
— Tempo, tempo... Parece q u e aqui vocês não sabem
aproveitar o t e m p o e t e r n o q u e t ê m pela frente.
— Em breve, você verá q u e há m u i t o o que fazer pela
h u m a n i d a d e , s o b r e t u d o neste p e r í o d o da história. Muitos
lances do g r a n d e conflito d e p e n d e m de nossa ação rápida e
constante. Há m u i t o mais em jogo q u e nossa simples condição de espíritos em aprendizado. — A conversa adquiriu
um t o m mais grave. Olhei p a r a Semíramis e ela esboçou um
sorriso contido, talvez d a n d o a e n t e n d e r que me c o m p r e e n dia o jeito h u m a n o de falar, não s o m e n t e h u m a n o , mas irreverente; irônico, até.
C h e g a m o s a um edifício m u i t o estilizado, se comparado aos demais que vira até então. Formas m o d e r n a s , arrojadas, iluminado, pelo sol. O veículo p o u s o u n u m local
p r e p a r a d o no alto do prédio, que, ao que parecia, situava-se na periferia da cidade. D e s c e m o s n u m a espécie de elevador, q u e funcionava c o m um sistema s e m e l h a n t e àquele
do hotel, c o m um tipo tecnologia q u e não existia nas instalações da Crosta. Semíramis t o m o u a dianteira, seguida por
J a m a r e Watab, e logo atrás ia eu, c a m i n h a n d o n u m passo
141
mais lento p r o p o s i t a d a m e n t e , a fim de observar t u d o ao redor. M i n h a m e n t e , s e m p r e atenta, registrava cada detalhe.
A d e n t r a m o s u m a m b i e n t e acolhedor, c o m poltronas confortáveis, o n d e u m a recepcionista nos aguardava. Semíramis a p r e s e n t o u a si e a Jamar.
— Olá! Somos a g u a r d a d o s pela administração da m e trópole. T r a z e m o s u m convidado r e c é m - c h e g a d o d a Crosta. Poderia nos anunciar, por favor?
— Desculpe, senhores, senhora, m a s o c o r r e u u m a
emergência n u m dos países do e x t r e m o Oriente e nossos
dirigentes tiveram de se dirigir i m e d i a t a m e n t e p a r a o campo de b a t a l h a espiritual. P e d i r a m p a r a avisá-los q u e retornarão em alguns m i n u t o s . Por favor, s e n t e m - s e e n q u a n t o
aguardam. Desejam algo? Alguma bebida, q u e m sabe?
— Obrigado, m i n h a q u e r i d a — r e s p o n d e u Semíramis. —
Vamos aguardar por aqui, e n q u a n t o conversamos c o m nosso convidado.
M e u s novos amigos sentaram-se, e n q u a n t o eu notava
os detalhes do ambiente. A m e s a de c o n t o r n o s n o b r e s parecia ter sido d e s e n h a d a especialmente p a r a aquele lugar.
O t a m p o flutuava s e m p e r n a s aparentes, ao passo q u e um
discreto dispositivo eletrônico sobre a m e s a mostrava ima-
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gens ou paisagens d e s c o n h e c i d a s p a r a m i m . Dirigi-me até
as janelas e observei a vida intensa da m e t r ó p o l e . Daqui era
possível t e r u m a ideia mais a m p l a d a q u e l a sociedade de seres que viviam fora do corpo. E r a u m a v e r d a d e i r a civilização espiritual.
O l h a n d o para a direita, via-se a vida na m e t r ó p o l e ; veículos indo e vindo em várias direções e espíritos levitando
n a atmosfera, s e m p r e e m grupos, p e r c o r r e n d o u m a estrada invisível, c o m o se bailassem ao som de alguma música q u e n ã o se escutava. Do lado oposto, incontáveis casas,
bangalôs, p a r q u e s , campos, b o s q u e s e florestas, q u e se avistavam mais além, de m a n e i r a que, à m i n h a visão, parecia
não ter fim o mosaico de verde e h a r m o n i o s a s intervenções
h u m a n a s sobre a paisagem natural. Pululava de vida aquele r e c a n t o do universo. Pássaros exóticos, outros q u e já conhecia, e u m a infinidade de seres diferentes avistavam-se
ao longe. M i n h a visão parecia t e r sido dilatada ao extremo, por algum m e c a n i s m o ignorado. Olhei p a r a baixo do
p r é d i o e vi seres estranhos, diferentes n ã o t a n t o pela vestim e n t a , c o m o pela conformação externa, física, a qual diferia l a r g a m e n t e do tipo h u m a n o convencional. A esta altura
de m i n h a s observações, J a m a r se a p r o x i m o u e esclareceu:
143
— São nossos i r m ã o s do espaço. Seres e x t r a t e r r e s tres, q u e c o n v i v e m aqui conosco, h a r m o n i o s a m e n t e . Temos u m c o n t i n g e n t e desses seres n o s v i s i t a n d o t a n t o aqui,
e m n o s s a m e t r ó p o l e , q u a n t o e m a l g u m a s o u t r a s cidades
d e espíritos, e m t o r n o d o planeta. São p o u c o s , m a s t r a z e m
e n o r m e c o n t r i b u i ç ã o no p r e p a r o dos g u a r d i õ e s p a r a o m o m e n t o de r e u r b a n i z a ç ã o extrafísica ou de t r a n s m i g r a ç ã o
intermundos.
Olhei s e m e n t e n d e r direito p a r a o amigo guardião, e
ele e n t e n d e u t a n t o m i n h a curiosidade q u a n t o m i n h a s dúvidas, q u e c e r t a m e n t e extravasavam do m e u interior.
— Sim, Ângelo. Há vida em o u t r o s m u n d o s , e n ã o som e n t e vida depois da vida c o n h e c i d a na Terra. No e n t a n to, as coisas não são e x a t a m e n t e c o m o afirmam alguns grupos na Crosta. Esses seres estão há t e m p o s em contato com
diversas c o m u n i d a d e s em t o r n o do globo, mas evitam interferir d i r e t a m e n t e nas questões planetárias, a m e n o s que
essas questões p o s s a m afetar d i r e t a m e n t e o equilíbrio da
vida universal.
— E n t ã o eles interferem de alguma maneira? Existe algum caso específico em que p o r v e n t u r a t e n h a m agido, de
forma mais direta?
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— Claro! Desde algumas décadas, há países q u e já sab e m da existência desses seres; alguns destes inclusive já
fizeram contato direto c o m certos governos do m u n d o .
Q u a n d o da a m e a ç a b a s t a n t e plausível de u m a nova guerra
nuclear, eles interferiram intensa e i n e s p e r a d a m e n t e , como
o c o r r e u c o m o governo n o r t e - a m e r i c a n o . Estabeleceram
c o n t a t o com os h u m a n o s no p o d e r e a m e a ç a r a m u m a investida mais direta, aberta e ostensiva, caso aquela nação
n ã o modificasse a política a r m a m e n t i s t a . Teriam condições, tecnologia e autorização cósmica p a r a atuar a ponto
de afetar os e q u i p a m e n t o s elétricos e eletrônicos do planeta, i m p e d i n d o m e s m o q u e b o m b a s nucleares fossem disparadas n o v a m e n t e . P o d e r i a m agir na r e d e de comunicação
do planeta, o q u e causaria um caos completo. Com isso, alg u n s governos resolveram modificar a política e a forma
de a d m i n i s t r a r os recursos tecnológicos, a fim de evitar a
g u e r r a nuclear. Esse é a p e n a s um dos casos.
— E n t ã o certos governos da Terra s a b e m da existência
de vida em o u t r o s planetas?
— Não s o m e n t e sabem c o m o t a m b é m t ê m contato direto c o m algumas inteligências e x t r a t e r r e s t r e s atuantes no
sistema solar, em dado tipo de tarefa. Porém, caso a d m i t a m
145
tal fato p u b l i c a m e n t e ou provas v e n h a m a público de maneira oficial, d e c e r t o r u i r i a m p o r c o m p l e t o e i m e d i a t a m e n te m u i t o s paradigmas, sejam de caráter político, filosófico
ou religioso. I m a g i n a o caos que se seguiria, p r i n c i p a l m e n te em âmbito religioso, de forma geral? M u i t a s teorias admitidas c o m o v e r d a d e s intocáveis cairiam por Terra, e de
m o d o abrupto.
— Isso significa q u e o povo n u n c a saberá ao certo a respeito desses seres? — indaguei. — P e r m a n e c e r á na ignorância, indefinidamente?
— De forma n e n h u m a , Ângelo. Os p r ó p r i o s governos
e agências de inteligência de d e t e r m i n a d o s países paulatin a m e n t e a p r e s e n t a r ã o d o c u m e n t o s e provas p a r a a p o p u lação. I g u a l m e n t e planejam, sob a pressão dos e x t r a t e r r e s tres, é claro, várias estratégias de ação q u e visam p r e p a r a r
o povo p a r a aceitar a existência deles antes q u e se m o s t r e m a b e r t a m e n t e . M u i t a s peças de c o m u n i c a ç ã o de massa,
como filmes, por exemplo, são e n c o m e n d a d a s p o r agências
de inteligência de certas nações e p a t r o c i n a d a s por órgãos
governamentais. M u n d o afora, p r o g r a m a s de televisão vão
ao ar e m a t é r i a s são publicadas na i m p r e n s a visando habituar l e n t a m e n t e o povo, até que a ideia da existência de se-
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res fora do p l a n e t a Terra seja admitida de m a n e i r a global.
A m u d a n ç a cultural é gradual, m a s consistente, e está em
p l e n o a n d a m e n t o . Em algum m o m e n t o no início do milênio, d o c u m e n t o s virão à t o n a e, mais tarde, provas consid e r a d a s cabais. Não se p o d e e s q u e c e r de q u e a população
do m u n d o ultrapassa 7 bilhões de almas r e e n c a r n a d a s ; seg u n d o a contabilidade espiritual, são cerca de 9 bilhões de
d e s e n c a r n a d o s . Levando em c o n t a a diversidade cultural e
religiosa dos h a b i t a n t e s do planeta, certas situações devem
ser levadas ao público de m a n e i r a gradativa, e m b o r a constante, a fim de não provocar colapso em m u i t o s setores da
vida t e r r e n a .
Olhei o universo à m i n h a frente e e n t e n d i que havia
m u i t o mais coisas a a p r e n d e r do que eu s u p u n h a . E n o r m e
v a r i e d a d e de c o n h e c i m e n t o s novos estavam à m i n h a disposição, e s p e r a n d o a h o r a de iniciar o a p r e n d i z a d o .
M u d a n d o r a d i c a l m e n t e o r u m o de nossa conversa, perguntei a J a m a r :
— E q u a n d o p o d e r e i me m a t r i c u l a r nas escolas da cidade? Queria fazer um e x a m e p a r a ver em q u e situação me
e n c o n t r o e, tão logo possível, colocar-me à disposição tanto
p a r a os estudos q u a n t o p a r a as atividades.
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— Não se p r e o c u p e , amigo. Em breve t e r á t a n t a coisa a
fazer que suplicará p o r m o m e n t o s de descanso. — E riu um
sorriso discreto, mas i m e d i a t a m e n t e r e t o r n a n d o à seriedade costumeira.
Passados alguns m i n u t o s , m e u amigo falou:
— Terá hoje a o p o r t u n i d a d e de c o n h e c e r alguns de
nossos o r i e n t a d o r e s espirituais, m e n t o r e s ou guias, c o m o
alguns preferem chamá-los. São espíritos mais e x p e r i e n t e s
do que a maioria e do q u e nós que o convidamos.
— São p o r v e n t u r a anjos guardiões? Seres de luz?
— Não falamos assim, p o r aqui. Esses t e r m o s , em geral,
são e m p r e g a d o s na Terra por religiosos, q u e t e n t a m associar à p e r s o n a l i d a d e de tais espíritos o conceito de santid a d e ou elevação elaborado nas religiões. Longe de s e r e m
santos ou seres redimidos, são, c o m o nós, apenas h u m a n o s ,
m u i t o e m b o r a d o t a d o s d e vasta experiência t a n t o q u a n t o
de grandes responsabilidades, as quais m u i t o s de nós estão
distantes de c o m p r e e n d e r . Alguns estão envolvidos c o m
u m tipo d e t r a b a l h o q u e t r a n s c o r r e n u m âmbito b e m maior
do que s u p o m o s ou c o n h e c e m o s . São s i m p l e s m e n t e nossos
mentores e orientadores, mas n ã o isentos de lutas pessoais.
Não são anjos, q u e d e s c o n h e c e m o s aqui; t a m p o u c o se ca-
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r a c t e r i z a m p o r aquele tipo de elevação que muitas religiões
da Terra lhes atribuem, e que chega a se confundir com
certa passividade contemplativa.
" M e s m o e m meios q u e t e o r i c a m e n t e d i s p õ e m d e con h e c i m e n t o espiritual mais avançado, c o m o o espírita, a
maioria dos adeptos é i m p r e g n a d a ou c o n d i c i o n a d a pelo
tipo de visão t i p i c a m e n t e medieval. Da m e s m a forma são
os conceitos, as ideias e crenças q u e a l i m e n t a m a respeito do t r a b a l h o t a n t o q u a n t o da n a t u r e z a dos espíritos que
nos dirigem. T r a n s p u s e r a m a forma de p e n s a r católica e
os p e n s a m e n t o s seculares, f r a n c a m e n t e ultrapassados e
obsoletos, p a r a a prática religiosa ou p r e t e n s a m e n t e filosófica que adotam. Essa visão arcaica de m u n d o , limitada
por conceitos moralistas e maniqueístas, p e r m a n e c e como
p a n o de fundo das consciências; estas, m e s m o c o m a c h e gada das luzes esclarecedoras, p a r e c e m estar a c o m o d a d a s
ou rearranjadas de tal m a n e i r a q u e a velha realidade m e n tal não seja ferida.
"Assim, no discurso a existência de anjos e santos é refutada, em acordo com os princípios da filosofia espírita; na
prática, p o r é m , os m e n t o r e s espirituais p r e e n c h e m o lugar
dos velhos ídolos e são t r a t a d o s c o m devoção e veneração,
149
como se fossem entes divinos e s u p r a - h u m a n o s . F r e q u e n temente, não se admite em hipótese alguma q u e tais espíritos sejam questionados, n e m sequer p a r a e n t e n d e r suas
orientações e m e l h o r c u m p r i r eventuais d e t e r m i n a ç õ e s ,
quanto mais para discordar ou pedir explicações mais pormenorizadas. De m o d o geral, os adeptos são pessoas c o m
muita b o a vontade, m a s religiosos ao extremo, apegados
i n a d v e r t i d a m e n t e a conceitos de religiões do passado, que
trazem vivos, enraizados na m e n t e . A v e r d a d e é q u e nossos o r i e n t a d o r e s espirituais não são n a d a disso e p a r e c e m
muito p o u c o c o m o q u e c o m u m e n t e se fala a respeito deles.
Verá por si mesmo."
— D e v e m ser seres m u i t o sérios, c o m p e n e t r a d o s , cientes de suas obrigações com a h u m a n i d a d e .
— Sim, é verdade, em certa medida. M a s seriedade não
implica severidade, rabugice, chatice ou falta de b o m h u mor. Aliás, alguns desses espíritos t ê m t a m a n h a leveza e
bom h u m o r q u e se c o n f u n d e m com a população c o m u m .
São superiores, sim, mas não espíritos puros, m u i t o m e nos santos, e não d e t ê m sabedoria plena. Enfim, não abdicaram de sua h u m a n i d a d e , do p r a z e r de vivenciar certas
experiências p u r a m e n t e h u m a n a s , t a m p o u c o se conside-
150
r a m missionários, c o m o m u i t o s e n c a r n a d o s os consideram.
C o m o na d i m e n s ã o física o peso da h e r a n ç a católica é ainda m u i t o g r a n d e nos meios espírita e espiritualista, esses
nossos i r m ã o s e n c a r n a d o s a c a b a m por beatificar espíritos
p r o t e t o r e s e aqueles q u e alcançaram um estágio maior de
experiência. I m p u t a m a eles os m e s m o s atributos de infalibilidade e santidade que fiéis c o s t u m a m atribuir ao papa e
aos santos católicos. Mas q u e r saber de u m a coisa, Ângelo?
N e n h u m desses seres a q u e m c h a m a m o s superiores têm
qualquer coisa disso q u e se diz a seu respeito.
— Então, m u i t a gente, religiosa ou não, q u a n d o ultrapassar os portais da m o r t e pelo descarte do corpo físico,
talvez se decepcione a m a r g a m e n t e ao c o n h e c e r de p e r t o os
p r ó p r i o s guias ou anjos da guarda, não é?
— Isso ocorre com larga frequência, p r i n c i p a l m e n t e
c o m m é d i u n s que q u e r e m a t o d o custo que seus m e n t o r e s
sejam mais adiantados, mais evoluídos ou d e t e n t o r e s de
tão g r a n d e c o n h e c i m e n t o que, para muitos, é quase como
se fossem o p r ó p r i o Cristo. A p r e s e n t a m seus m e n t o r e s tão
envolvidos em luzes, irradiando t a m a n h a b o n d a d e e detentores de tal grau de santidade e elevação que, ao ouvir tais
descrições, cabe desconfiar. Será q u e elas se referem mes-
151
mo a m e n t o r e s ou se p a r e c e m mais c o m a descrição de algum santo católico idealizado?
"Ao c h e g a r e m aqui, e n c o n t r a m seus m e n t o r e s , q u a n d o
os e n c o n t r a m , vestidos c o m o h o m e n s simples; d e s c o b r e m
que a visão que t i n h a m de seus orientadores não passava de
uma visão pessoal, r e q u i n t a d a pelo orgulho e pelo desejo
de ser especial. D e p a r a m com pessoas de b o m coração, mas
ainda seres c o m u n s . E tantos são os m é d i u n s que descrevem
seus m e n t o r e s de m a n e i r a p o r t e n t o s a que m u i t a gente crédula acredita que se trata da mais p u r a verdade. Q u e r e n d o
ser ainda mais diferente, há q u e m afirme que seus m e n t o r e s
são extraterrestres, como se isso fosse sinônimo de elevação
espiritual, e que decepção t ê m ao a p o r t a r em nossa d i m e n são e constatar que não passam de espíritos familiares. São
pais, irmãos, parentes de outras vidas, cada qual com seu
sistema de crenças pessoais e culturais, como qualquer outro espírito. Não raro e n c o n t r a m o s m é d i u n s d e s e n c a r n a d o s
totalmente transtornados, decepcionados c o m seus m e n t o res reais, em contraposição àqueles idealizados."
— Se é assim, por q u e não interferem, de m a n e i r a a
desmistificar as questões relacionadas à vida espiritual,
aos espíritos em particular? U m a a b o r d a g e m sem misticis-
152
mo, s e m o c o m p o n e n t e de religiosismo, talvez servisse para
d e s p e r t a r alguns na Crosta e m o s t r a r a vida do lado de cá
sem mistérios, s e m o c o m p o n e n t e r o m â n t i c o q u e faz com
que os m é d i u n s , ao d e s e n c a r n a r e m , se d e c e p c i o n e m ou ent r e m e m depressão.
O l h a n d o p a r a seus amigos Semíramis e Watab, J a m a r
sorriu mais u m a vez d i s c r e t a m e n t e , d e i x a n d o algo no ar.
— Falei algo errado, p o r v e n t u r a ?
— Não é isso, m e u Ângelo! Você terá o p o r t u n i d a d e de
ouvir dos I m o r t a i s o projeto de t r a b a l h o q u e o espera. Verá
c o m o eles planejam u m a tarefa q u e t r a r á resultados mais
amplos...
Antes de J a m a r ou qualquer dos seus amigos falarem
mais, ousei p e r g u n t a r :
— Por q u e vocês c h a m a m esses espíritos de Imortais?
Não somos t o d o s imortais, afinal? Os espíritos não são todos eternos?
— É apenas u m a convenção, Ângelo, u m a forma de nos
referirmos àqueles que alcançaram maior experiência e
u m a visão mais ampla das questões da vida.
— T a m b é m falamos assim — interferiu Watab, pela primeira vez — ao nos referirmos àqueles espíritos que talvez
153
não t e n h a m tanta necessidade de reencarnar, c o m o a maioria de nós, m e s m o p o r q u e passam períodos de t e m p o m u i to maiores na erraticidade do que a maioria. E m b o r a voltem
ao palco da vida física como a esmagadora maioria dos seres
que já descartaram ou desativaram seus corpos materiais,
não m e r g u l h a m mais na carne com as m e s m a s necessidades.
— M a s p o d e m o s diferenciar imortalidade e eternidade
de m a n e i r a a e n t e n d e r m e l h o r — falou Semíramis c o m u m a
voz p o t e n t e , e m b o r a feminina. — C o n s i d e r a m o s e t e r n o
aquilo ou aquele q u e não teve início n e m t e r á fim. Portanto,
segundo essa c o m p r e e n s ã o de eternidade, só o Pai é eterno,
o Criador, em cuja direção todos c a m i n h a m o s . Imortalidade, por o u t r o lado, p o d e ser vista c o m o atributo daqueles
que foram criados, ou seja, de q u e m teve início, p o r é m não
terá fim. Dessa forma, t o d o s os espíritos são imortais.
"Ainda assim, há outro aspecto a considerar, outro p o n to de vista, q u a n d o nos referimos a d e t e r m i n a d a categoria de espíritos c o m o Imortais. Eles r e p r e s e n t a m , t a m b é m ,
aqueles seres que já d e s c a r t a r a m o s e g u n d o corpo, isto é,
o corpo espiritual ou períspirito, de m o d o q u e vivem e vibram n a d i m e n s ã o p u r a m e n t e mental. Não p a d e c e m d a
necessidade inexorável de adotar um organismo mais m a -
154
terial, quer seja de m a t é r i a física ou astral, a fim de que a
consciência possa se manifestar, como a maioria de nós;
aqui. Em razão disso, os I m o r t a i s são seres cujo compromisso com a h u m a n i d a d e é m u i t o mais abrangente, e cujas
responsabilidades, em âmbito universal e mental, escapam
p o r completo ao c o n h e c i m e n t o e ao e n t e n d i m e n t o da maioria dos seres c o m u n s , c o m o nós m e s m o s . Em suma, trata-se apenas de u m a forma de distinguir os mais avançados,
aquelas almas cujo c o m p r o m e t i m e n t o c o m as leis da vida
extrapola a noção q u e t e m o s do assunto. Apesar de tudo
isso, à s e m e l h a n ç a do q u e ocorre conosco, ainda erram, com e t e m falhas, e m b o r a em d i m e n s ã o e escala b e m diferentes do que c o n s i d e r a m o s habitual. Enfim, são autênticos espíritos do b e m , mas de m o d o algum espíritos puros."
6
— Entendi... Então, esses I m o r t a i s a q u e se referem...
Fomos i n t e r r o m p i d o s pela assistente q u e nos c h a m a v i
— Desculpem, m e u s senhores, mas nossos dirigentes já
estão de volta e os a g u a r d a m na sala ao lado. Por favor, me
acompanhem!
6
Cf. "Escala espírita". In:
100-113.
KARDEC.
O livro dos espíritos. Op. cit. p. 117-127, item
155
Ao a d e n t r a r m o s o ambiente, elegante, p o r é m minimalista, tive um c h o q u e ao p e r c e b e r o m é d i c o q u e me h a via e x a m i n a d o a n t e r i o r m e n t e . Ele estava ali, olhos claros,
meio sério, vestido de b r a n c o . Aliás, era o único vestido de
branco e n t r e os demais. O ancião Pai J o ã o estava mais r e cuado, p r ó x i m o a um arranjo floral, única p e ç a p r o p r i a mente de d e c o r a ç ã o vista no a m b i e n t e . Trajava um cost u m e b e m cortado, n a cor a z u l - m a r i n h o , q u e contrastava
com a camisa b r a n q u í s s i m a e a gravata e s p a n t o s a m e n te m o d e r n a e coerente. Mais o u t r o s espíritos estavam ali,
sorridentes. Havia um mais idoso, de b a r b a s fartas, olhos
a m e n d o a d o s , q u e irradiava u m a d o ç u r a imensa, mas todos,
absolutamente todos, e r a m m u i t o h u m a n o s p a r a m e u gosto. Todos me observavam silenciosos. Fui a p r e s e n t a d o a
Saldanha, J ú l i o Verne, A n t o n e alguns o u t r o s de a p a r ê n c i a
espiritual mais excêntrica, ao m e n o s p a r a os p a d r õ e s a q u e
eu estava familiarizado.
M e s m o t e n d o J a m a r e os guardiões falado a respeito
de c o m o esses espíritos eram, eu s i n c e r a m e n t e esperava
encontrar anjos ou algo do gênero. Mas... e r a m h u m a n o s ,
tão h u m a n o s ! O sorriso farto nos lábios de alguns desfazia c o m p l e t a m e n t e q u a l q u e r ideia p r e c o n c e b i d a de que
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os c h a m a d o s I m o r t a i s fossem seres iluminados, radiantes
de energia ou transfigurados em focos de luz iridescente.
Nada disso. De fato, me decepcionei! Esperava m e s m o q u e
J a m a r e Semíramis estivessem a t e n u a n d o a característica
daqueles espíritos apenas p a r a me deixar à vontade. Mas
não! E r a m e x a t a m e n t e conforme descrito.
— Seja bem-vindo, Ângelo Inácio — falou o médico
p a r a mim, u m a vez que, n a t u r a l m e n t e , já me conhecia. —
Sejam bem-vindos todos.
— E s t a m o s felizes p o r encontrá-los n o v a m e n t e — falou
Jamar, exalando u m a aura de tranquilidade e felicidade legítima. E r a contagiante a satisfação que demonstrava, e m b o r a conservasse o aspecto de um g u e r r e i r o s e m p r e a postos, s e m p r e atento a tudo.
— Estes são os nossos amigos B e z e r r a — falou Joseph
Gleber, o médico que conheci antes e q u e lera m e u s pensam e n t o s —, Séfora, do Oriente, Z a r t h ú , o Indiano, Eurípedes
Barsanulfo e Anton, um dos chefes da s e g u r a n ç a planetária. Você c o n h e c e João Cobú, nosso convidado especial, e
os demais — a p o n t o u p a r a a equipe —, q u e mais t a r d e serão
seus c o m p a n h e i r o s mais p r ó x i m o s nas tarefas que t e m a
realizar. Infelizmente, o u t r o s amigos q u e q u e r i a m se apre-
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sentar n ã o p u d e r a m permanecer, pois situações e m e r g e n ciais no e x t r e m o Oriente r e q u e r e m a p r e s e n ç a deles.
Todos nos o l h a r a m de m a n e i r a tão n a t u r a l e nos deixaram tão à v o n t a d e que pensei estar e n t r e amigos, e n t r e colegas escritores e jornalistas c o m os quais convivi no passado. Me senti em família.
Sem d e m o r a , indicando o t r a b a l h o intenso que esses
seres administravam, J o s e p h i n t r o d u z i u a pauta:
— Recebemos aval de nossa c o o r d e n a d o r a de u m a dimensão mais elevada, nossa mãe, Maria, p a r a eleger alguém que p u d e s s e nos auxiliar na t r a n s m i s s ã o de novas
ideias e de u m a visão mais dilatada da vida espiritual, levando ao m u n d o essa m e n s a g e m , mas p r i n c i p a l m e n t e t e n do os amigos espiritualistas c o m o alvo.
Neste p o n t o da conversa, interveio o espírito Bezerra:
— Nossos amigos espíritas e espiritualistas precisam
expandir o c a m p o de visão, c o n t e m p l a n d o u m a realidade mais ampla. Por essa razão, nós o t e m o s a c o m p a n h a d o
desde há algum t e m p o e verificamos q u e suas disposições
mentais e emocionais provavelmente p o s s a m servir p a r a
nos auxiliar c o m o i n t é r p r e t e j u n t o aos e n c a r n a d o s . Em certo m o m e n t o , na Crosta, d u r a n t e o p e r í o d o da internação,
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p e s s o a l m e n t e o a c o m p a n h e i , q u a n d o a d e p r e s s ã o o consumia. Em d e c o r r ê n c i a disso, decidimos apressar sua vinda
para o lado de cá, em v i r t u d e dos trabalhos q u e precisam
ser levados a efeito.
Desta vez, J o s e p h Gleber voltou a se pronunciar, enq u a n t o os orientais Z a r t h ú e Séfora m a n t i n h a m - s e calados:
— Precisamos de suas habilidades c o m a escrita. E n c o m e n d a m o s u m e s t u d o aprofundado sobre diversos espíritos r e e n c a r n a d o s cuja p a r t i c u l a r i d a d e no c a m p o profissional trouxesse e l e m e n t o s q u e nos p u d e s s e m auxiliar.
Atrevi-me a interferir e p e r g u n t a r :
— M a s p o r aqui vocês n ã o t ê m espíritos c o m essa habilidade ou competência?
— Espírito é espírito, m e u irmão — t o r n o u Gleber —,
t a n t o no corpo c o m o fora dele.
— N ã o é só isso! — falou E u r í p e d e s Barsanulfo — "Meu
Deus, q u e nome!", pensei. — Dispomos, sim, de alguns espíritos, jornalistas e outros, q u e até já escreveram através de
m é d i u n s m u i t o respeitáveis e n t r e os espiritualistas. Porém,
a p r e s e n t a m ligação mais estreita c o m certas c o r r e n t e s do
m o v i m e n t o das ideias libertadoras ou, ainda, identificam-se c o m u m a tradição já estabelecida, de m a n e i r a mais ou
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menos rígida ou engessada. É e x a t a m e n t e esse alvo q u e nos
p r o p o m o s atingir c o m novos escritos, além de o u t r o s a d e p tos do p e n s a m e n t o espiritualista, q u e s u r g e m c o m mentalidade mais a b e r t a ou receptiva.
— Por isso, caro Ângelo — retomou J o s e p h Gleber, com
o sotaque carregado, lembrando um alemão t e n t a n d o falar
português —, você foi indicado, j u s t a m e n t e por não ter se envolvido com a visão espírita padronizada, segundo o enfoque de determinados médiuns e autores espirituais, por mais
boa vontade ou compromisso que t e n h a m . Precisamos de alguém mais ligado à literatura de forma geral, e não tanto à
literatura espírita. Mas, entenda, a tarefa não é tão simples
como possa imaginar; e não se trata apenas de escrever. Você
terá de estudar muito aqui, em regime p e r m a n e n t e ; deverá
se envolver com os guardiões e conhecer muitos aspectos
de suas atividades. João Cobú, a q u e m você já conheceu, se
encarregará diretamente de conduzi-lo. Apresentará a você
pessoas encarnadas, desdobradas além do limite de seus corpos, tanto quanto espíritos, que já descartaram o corpo físico,
a fim de que e n t e n d a melhor o que o aguarda como tarefa.
"Meu pai!" — pensei, e s q u e c e n d o q u e a maioria ali, senão todos, p o d e r i a escutar m e u s p e n s a m e n t o s — "Então
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m i n h a s férias de espírito a c a b a r a m m e s m o . D u r a r a m apenas um dia..."
— Você se p r e p a r a r á ao longo de 8 a 10 anos p a r a escrever através de um m é d i u m . C o m o no passado participou da
Revolução Francesa, redigindo p e n s a m e n t o s e difundindo
ideias c o m b a s t a n t e esmero, e, mais tarde, no último mergulho na carne, a p r i m o r o u esse c o n h e c i m e n t o e as habilid a d e s narrativa e descritiva, e s c o l h e m o s alguém q u e tem
algo em c o m u m c o m suas experiências. Trata-se de um
c o m p a n h e i r o do seu passado, velho c o n h e c i d o nosso e dos
guardiões. Mas terá q u e p r e p a r a r esse m é d i u m , além de se
preparar. Ele constituirá seu desafio, c o m o espírito. Repito:
não será fácil.
Comecei a ficar t e m e r o s o diante daqueles espíritos e
sua proposta. Parece q u e i m e d i a t a m e n t e desconfiaram de
m e u s m e d o s e apreensões, e logo, logo o espírito Bezerra
veio em m e u socorro, a b r a ç a n d o - m e e s o r r i n d o um sorriso
tão cativante e envolvente que me acalmou os p e n s a m e n tos e as emoções.
— Deixemos os detalhes p a r a depois. P r i m e i r a m e n t e ,
você será a p r e s e n t a d o ao trabalho dos guardiões e à universidade. Assim, p o d e r á ficar mais tranquilo para, oportu-
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namente, decidir. Não se sinta pressionado, m e u filho. Porém, e s p e r a m o s que esteja atento a cada e l e m e n t o q u e lhe
será mostrado. Fará u m a excursão, por assim dizer, a certos
recantos obscuros do m u n d o inferior, a c o m p a n h a d o por
Jamar. Mais tarde, A n t o n m e s m o o levará ao q u a r t e l - g e n e ral dos guardiões e lhe m o s t r a r á as tarefas que realizam em
nível planetário.
— Isso m e s m o ! — falou J o s e p h Gleber. — C e r t a m e n t e
se sentirá mais à v o n t a d e para decidir sobre nossa p r o p o s t a
após c o n h e c e r mais a respeito da vida espiritual e dos p r o jetos que levamos avante em nossa dimensão. Mas e n t e n d a :
você foi a p o n t a d o c o m o um dos prováveis seres a d e s e m p e nhar um papel i m p o r t a n t e ao lado de nossa equipe. Aproveite a o p o r t u n i d a d e e, q u a n d o se sentir mais à v o n t a d e ou
tiver decidido, p r o c u r e - n o s , ou q u e m sabe se sinta m e l h o r
com J a m a r e João Cobú.
Olhei p a r a o ancião, p a r a Pai João, e me senti mais
apoiado, mais envolvido e, q u e m sabe, seu olhar doce e
tranquilo me transmitisse um quê de serenidade. Confirmei ali m e s m o a impressão de que m e u t e m p o de férias no
outro m u n d o havia t e r m i n a d o . M e u s p e n s a m e n t o s d e r a m
u m a reviravolta. Agora, c o n h e c e r i a e examinaria a cidade e
162
seus t r a b a l h a d o r e s c o m novo olhar. Bezerra aproveitou min h a s disposições íntimas e acrescentou:
— Enquanto estive abraçado com você, meu filho, não
p u d e me furtar à análise de sua condição espiritual. Sugiro que procure u m a de nossas unidades hospitalares para se
submeter a um tratamento rápido, p o r é m necessário, a fim de
que se sinta melhor, mais leve e liberto de algumas impressões físicas naturais de quem é recém-chegado da Crosta.
Olhei p a r a Pai João c o m o a p e d i r socorro. Ele comp r e e n d e u m e u p e d i d o e se a p r o x i m o u tranquilo, segurando
m e u braço esquerdo.
— Eu o a c o m p a n h o , Ângelo. Não se preocupe, não precisará ficar internado. Aliás, aqui quase não t e m o s espíritos em regime de internação. Será s u b m e t i d o a um proced i m e n t o magnético, s o m e n t e isso. Depois lhe explico.
— Pois bem, m e u irmão — voltou a falar o médico alemão. — Aguardaremos até você se sentir em condições de se
definir. Mas não p o d e m o s esperar muito. Outros espíritos
com experiências semelhantes às suas estão esperando até
que se decida e, caso recuse a tarefa, p r o c u r a r e m o s um deles. Mas terá o devido t e m p o — e, falando assim, o espírito se
dissolveu à m i n h a frente, como se fosse t r a n s p o r t a d o para
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um outro m u n d o . Da parte dele, deu o caso por encerrado.
Bezerra, Z a r t h ú e Séfora se d e s p e d i r a m de mim, s e n d o
que Z a r t h ú transmitiu u m p e n s a m e n t o m u i t o audível p a r a
meu cérebro de m o r t o d e s e n c a r n a d o : "Estarei contigo,
meu filho. Fique tranquilo, t e r á t e m p o suficiente p a r a t o mar a decisão mais acertada. O que tiver de ser, será". Eurípedes, p o r sua vez, saiu da m a n e i r a convencional, apenas
m e n e a n d o a cabeça p a r a mim, ao c r u z a r a porta. Os demais
se dissolveram à m i n h a frente. Fixei J ú l i o Verne, desejando u m a entrevista ou um bate-papo, mas não foi diferente;
t a m b é m ele se dissolveu c o m as forças do espírito, assim
como Saldanha e Anton. Fiquei c o m Pai João, além de Jamar, Watab e Semíramis, que p e r m a n e c e r a m quietos durante a conversa c o m os c h a m a d o s Imortais.
Após algum t e m p o me observando, Pai João r o m p e u o
silêncio e disse:
— Não se assuste c o m o jeito dos nossos irmãos. Eles
precisam a t e n d e r outras urgências e t a m b é m c o o r d e n a r
atividades em o u t r a s cidades espirituais. Q u a n t o ao m é todo de t r a n s p o r t e q u e utilizaram, é algo c o m u m e n t r e os
espíritos mais experientes. Eles p o d e m s i m p l e s m e n t e caminhar, c o m o q u a l q u e r pessoa, lançar m ã o dos veículos à
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disposição em várias cidades do astral ou, então, transportar-se c o m o p o d e r da m e n t e , do p e n s a m e n t o . E claro, não
são todos os espíritos q u e c o n s e g u e m essa proeza.
Sem registrar os p o r m e n o r e s de m u i t a coisa do que
ocorria à m i n h a volta, fui c o n d u z i d o pelos amigos a um
complexo hospitalar n u m a região mais afastada da metrópole, e m b o r a p r o p o r c i o n a s s e ampla visão de b o a parte
dela. Só suspeitei q u e era um hospital q u a n d o já adentrava o a m b i e n t e m u i t o limpo, t a m b é m minimalista, de cores
suaves e c o m intenso tráfego de gente m o r t a viva no saguão. Na p r e s e n ç a de m e u s a c o m p a n h a n t e s , fui logo admitido e, em seguida, n o v a m e n t e c o n d u z i d o p o r eles. Foi apenas q u a n d o me vi no a n d a r mais alto do p r é d i o em forma
de "L" que me apercebi: aquele era m e s m o o hospital da
c o m u n i d a d e , o u u m dos hospitais. D o ú l t i m o a n d a r pude
avistar u m a t o r r e d e p r o p o r ç õ e s m o n u m e n t a i s . Seria u m
edifício? Estava m u i t o distante, talvez no c e n t r o da cidade.
A t o r r e parecia singrar os céus e a altura dela era complet a m e n t e d e s c o n h e c i d a p a r a m i m . Em m e i o a devaneios e
t a n t a s cogitações de m e u espírito acerca do que ouvira dos
Imortais, fui s u r p r e e n d i d o p o r Jamar, que se aproximou
l e n t a m e n t e de mim.
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— A t o r r e não é um edifício, Ângelo, m a s a p e n a s u m a
torre m e s m o , u m a espécie de antena, que capta energias de
planos mais sutis. T e m 3 0 0 m de altura, a c o n t a r do solo, e,
nesta parte, ela capta e m a n a ç õ e s da energia cósmica e outras mais, advindas de d i m e n s õ e s superiores à nossa. E m bora em o u t r o plano, localizamo-nos na região da atmosfera terrestre d e n o m i n a d a termosfera, c a m a d a mais extensa,
que vem após a mesosfera. Apesar das t e m p e r a t u r a s e x t r e mas do a m b i e n t e físico, em nossa d i m e n s ã o a t o r r e de energia canaliza d e t e r m i n a d o s recursos sutis que nos e x i m e m
dos efeitos de certas partículas da atmosfera e nos deixam
ao abrigo de radiações prejudiciais à nossa vida em sociedade. Abaixo do solo da cidade, em sentido contrário, a torre igualmente se estende, por mais ou m e n o s 2 0 0 m , apontando d i r e t a m e n t e p a r a a superfície do planeta. Somos u m a
cidade móvel, ou seja, a cidade inteira p o d e se deslocar até
outros p o n t o s do planeta, conforme a situação exigir. A torre inferior, c o m o c h a m a m o s a q u e a p o n t a no sentido da
Crosta, c a p t a irradiações magnéticas advindas do interior
do planeta, ou aquilo que é c o n h e c i d o c o m o energia telúrica, a r m a z e n a n d o - a na região i n t e r n a da cidade, em baterias
específicas p a r a esse fim.
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"Essas energias combinadas, de n a t u r e z a t a n t o cósmica q u a n t o telúrica, possibilitam erguer um robusto campo de p r o t e ç ã o em t o r n o da metrópole, e ao m e s m o t e m p o
u m a c a m a d a de invisibilidade, os quais i m p e d e m a localização e o acesso à cidade por p a r t e de entidades sombrias
ou h a b i t a n t e s de regiões densas. De mais a mais, como nossa localização geográfica ultrapassa os 5 0 0 k m de distância em relação à crosta terrestre, t o r n a - s e impossível a tais
espíritos atacar-nos d i r e t a m e n t e , pois n u n c a conseguem
alcançar esta dimensão, t a m p o u c o esta altitude. Não obstante, não p r e s c i n d i m o s da c h a m a d a polícia de vibrações
— J a m a r discorria t o d o o t e m p o c o m o n u n c a o ouvira, nit i d a m e n t e apaixonado pelo t e m a q u e abordava, e isso me
contagiava, t i r a n d o - m e da situação m e n t a l anterior e faz e n d o - m e c o n e c t a r o p e n s a m e n t o c o m a realidade que ele
explicava tão habilmente.
"A polícia de vibrações, c o m o a d e n o m i n a m o s , é composta por peritos q u e i n t e g r a m a equipe dos guardiões. São
especializados em r e c h a ç a r ou, conforme o caso, captar e
transformar q u a l q u e r espécie de energia mais d e n s a proveniente da Crosta. G r a n d e cota de vibrações densas é des e n c a d e a d a p o r g u e r r a s constantes no planeta e pela exsu-
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dação de ectoplasma p r o v e n i e n t e dos milhares de m o r t e s
violentas que d e c o r r e m não só das g u e r r a s e n t r e as nações,
mas dos conflitos civis, c o m o homicídios e crimes diversos.
Esse v o l u m e d e s c o m u n a l de energia, que atinge d i a r i a m e n te as d i m e n s õ e s mais p r ó x i m a s do m u n d o , p o d e interferir
no equilíbrio de muitas cidades espirituais ou colónias q u e
estejam mais p r ó x i m a s da Crosta."
E r a m m u i t a s as informações q u e J a m a r me trazia naqueles breves m o m e n t o s de vivência na m e t r ó p o l e espiritual. Vislumbrei o q u e me aguardava em m a t é r i a de estudo
e iniciação nos t e m a s da vida extrafísica. T u d o aquilo me
encantava, me fascinava, e m e u espírito a c o s t u m a d o a formular indagações, m i n h a curiosidade inata de escritor fizeram com que m e u s p e n s a m e n t o s voassem para situações e
proezas mentais jamais imaginadas.
Foi q u a n d o Pai J o ã o me c h a m o u p a r a os tais exames e
então "aterrissei", de volta ao contexto do hospital. Confesso que esperava e n c o n t r a r e q u i p a m e n t o s de última geração,
u m a infinidade de c o m p u t a d o r e s d e s e n c a r n a d o s ou extrafisicos, que fizessem jus à tecnologia dos habitantes desta cidade de imortais. Mas q u a n d o entrei na sala, onde vi
apenas u m a m a c a à m i n h a frente, quase desisti de e n t e n d e r
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aquele lugar. Em n a d a combinava com o que vira até aquele
m o m e n t o ; não fazia sentido haver apenas u m a maca e uma
decoração tão singela ou nula... Outra vez, fiquei profundam e n t e decepcionado. Duas m u l h e r e s e n t r a r e m no ambiente e me p e d i r a m para deitar-me na maca, mais por meio de
gestos que de conversa. D e c e r t o iriam fazer aparecer algum
e q u i p a m e n t o oculto em u m a das paredes. Esperava algo
que beirasse a ficção científica, no mínimo. Mas não. Elas
tão s o m e n t e e s t e n d e r a m as mãos sobre mim. E eu, olhos arregalados, tentava perceber, ver, olhar t u d o à m i n h a v o l t a
Mas nada! Apenas as m ã o s deslizando a alguns centímetros
do m e u corpo espiritual. Começavam no alto da cabeça e
deslizavam até m e u s pés. Em silêncio. E Pai João observava
tudo, t a m b é m silencioso, m e d i n d o m i n h a s reações.
Depois de algum t e m p o , c h a m a r a m Pai João a u m a sala
ao lado e d e i x a r a m - m e deitado. Na verdade, sentia-me mais
e mais leve. Parece que, a cada e t a p a vivida na nova cidade,
deixava alguma coisa de material, algo não percebido n e m
c o n h e c i d o p o r mim, mas, c o m efeito, me sentia b e m mais
leve. Após algum t e m p o , Pai J o ã o regressou, auxiliando-me
a levantar-me da maca. Por um instante, pensei q u e iria flut u a r — e quase flutuei, no v e r d a d e i r o sentido do t e r m o .
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— C e r e s e Altina são duas e x c e l e n t e s m a g n e t i z a d o ras de nosso hospital — p r i n c i p i o u Pai João. — São e s p e cializadas no diagnóstico das pessoas r e c é m - c h e g a d a s da
Crosta e d e t e r m i n a m se p r e c i s a m de t r a t a m e n t o e qual o
tipo de q u e p r e c i s a m . Nesta ala do nosso Hospital do Silêncio n ã o t r a b a l h a m o s c o m e q u i p a m e n t o s eletrônicos
sofisticados c o m o você esperava, Ângelo — ele leu m e u s
p e n s a m e n t o s de novo! D e c i d i d a m e n t e , os leu. — Aqui só
t r a b a l h a m o s c o m m a g n e t i s m o . De t o d o m o d o , seu caso
dispensa q u a l q u e r i n t e r v e n ç ã o mais drástica, c o m o cirurgias espirituais, uso de e q u i p a m e n t o s da técnica sideral e
outros r e c u r s o s mais i n t e n s o s ou sofisticados q u e t e n h a mos. O m a g n e t i s m o será suficiente e eficaz p a r a liberar
certas cargas de e c t o p l a s m a ainda a d e r i d a s a seu c o r p o espiritual, além de alguns c ú m u l o s energéticos densos, com u n s n o tipo d e d e s e n c a r n e q u e você e x p e r i m e n t o u . D e verá c o m p a r e c e r aqui pelo m e n o s p o r dois meses, u m a vez
ao dia, a fim de r e c e b e r o t r a t a m e n t o m a g n é t i c o q u e lhe
foi prescrito.
"Ah! — acrescentou. — Nossas duas amigas m a g n e t i zadoras p e d e m desculpas se não o c u m p r i m e n t a r a m n e m
conversaram com você, m e u filho. Elas t r a b a l h a m em com-
170
pleto silêncio, c o n c e n t r a d a s ao m á x i m o , a fim de auscultar
o corpo espiritual do consulente. E s c r u t i n a m cada detalhe
do corpo astral e analisam cada c e n t r o de força minuciosam e n t e , verificando t a m b é m os órgãos perispirituais ou paraórgãos. Mais tarde, no d e c u r s o do t r a t a m e n t o , conversarão um p o u c o c o m você, o r i e n t a n d o - o inclusive acerca dos
p r o c e d i m e n t o s a q u e será submetido.
"De qualquer m a n e i r a — c o n t i n u o u Pai João —, não espere explicações teóricas ou científicas a respeito do que
lhe será ministrado; isso você obterá nos estudos da universidade ou, q u e m sabe, j u n t o ao m é d i u m que você visitará no
plano físico. M u i t a coisa, aliás, p o d e r á absorver da m e n t e
do m é d i u m , aproveitando os m o m e n t o s em que estabelecerão sintonia vibratória. Tanto ele absorverá c o n h e c i m e n t o s
de você, os quais eclodirão na m e n t e dele c o m o intuições
ou informações que b r o t a r ã o e s p o n t a n e a m e n t e d u r a n t e palestras e conversas informais com os c o m p a n h e i r o s , quanto
você t a m b é m absorverá m u i t a coisa dele. Sendo assim, con h e c i m e n t o s sobre certos aspectos da vida espiritual, que
o m é d i u m que lhe foi designado já possui, serão automatic a m e n t e transmitidos a você, tão logo se conecte à m e n t e
dele. Trata-se de u m a parceria, um intercâmbio.
171
"Mas não espere q u e t u d o seja dessa forma. Você t e r á
de e s t u d a r muito. Em breve, lhe serão a p r e s e n t a d o s alguns
autores d e s e n c a r n a d o s , além de outros e n c a r n a d o s , em estado de d e s d o b r a m e n t o , que p o d e r ã o lhe ser úteis na aquisição de novos c o n h e c i m e n t o s , em suas pesquisas e coisas
do gênero. O trabalho de p r e p a r o para a escrita e t r a n s m i s são das ideias novas c o m e ç a já."
Pai João me deixou a cargo de J a m a r e sua equipe e retirou-se dali de maneira tal que não o vi dissolver-se à m i n h a
frente, como os outros espíritos, classificados como Imortais.
Nem m e s m o o vi sair à m o d a convencional. Simplesmente,
quando voltei m i n h a atenção para J a m a r e Semíramis, esperando deles o convite para sair r u m o a algum lugar ou, q u e m
sabe, a fim de receber novas instruções, ao voltar-me para o
local onde antes estava Pai João, de fato havia sumido, desaparecido. Um povinho metido a desaparecer como este eu
não havia conhecido antes. E o pior é que e r a m elegantes na
forma como o faziam; nada de fenômenos, nuvens de fogo
ou estrondos de relâmpagos e trovões. T u d o absolutamente
calmo, silencioso, mas n e m por isso corriqueiro.
Respirei fundo, c o m o que b u s c a n d o absorver aquilo
tudo, mas decidi me controlar para não falar n a d a incon-
172
veniente. W a t a b deu u m a e s t r o n d o s a gargalhada, m a s imed i a t a m e n t e cessou. Ficou ali, p a r a d o c o m o u m a estátua,
c o m o se n u n c a houvesse emitido n e n h u m som. Estranho
esse sujeito. E era um dos guardiões mais graduados, amigo
de Jamar. Mas estranho, assim m e s m o .
Saímos do edifício, e foi s o m e n t e e n t ã o que p u d e observar ao derredor. O j a r d i m r e a l m e n t e vasto do lado de
fora dava ao local um ar residencial, n a d a parecido com o
de um hospital. I m e n s o b o s q u e no e n t o r n o fazia c o m que
um ar puríssimo b a n h a s s e o a m b i e n t e hospitalar. Diversas
pessoas c a m i n h a n d o pelo b o s q u e e pelo j a r d i m e r a m acomp a n h a d a s d i s c r e t a m e n t e p o r outros espíritos, q u e pareciam enfermeiros. Aqui e ali, ilhotas formadas p o r estátuas
belíssimas, chafarizes e bancos, o n d e alguns se p u n h a m a
ler. Havia livros dispostos nesses recantos, à disposição de
q u e m se s u b m e t i a a t r a t a m e n t o , s e g u n d o deduzi. O complexo possivelmente estava localizado no topo de u m a
m o n t a n h a , pois era possível divisar as curvas sinuosas de
m o n t e s q u e c o m p o r t a v a m bangalôs e o u t r o s tipos de const r u ç ã o incrustados e s p a ç a d a m e n t e ali e acolá. U m a coisa
me c h a m o u a atenção: o completo silêncio no lugar. M e s m o
as pessoas conversando, e m b o r a n u m v o l u m e baixo e civi-
173
lizado, era c o m o se alguma coisa absorvesse o som do a m biente, d a n d o a sensação curiosa do mais absoluto silêncio.
— Essa vibração q u e você observa, Ângelo — explicou
Semíramis, que até e n t ã o p e r m a n e c e r a sem falar n a d a —,
deve-se a nossas plantas, ao tipo de vegetação ao redor.
Elas foram desenvolvidas pelos pais-velhos e mães-velhas
nos laboratórios da A m a n d a . Q u a n d o o vento toca as folhas
das árvores, elas e m i t e m um tipo de som ou u m a frequência registrada s o m e n t e p o r nosso cérebro extrafísico, n a d a
audível. Isso p r o d u z em nós a sensação de q u e há um silêncio completo no ambiente.
— São p r o d u t o de modificação genética, então?
— Algo assim — r e s p o n d e u Semíramis. — Alguns pais-velhos, mais experientes, são estudiosos da n a t u r e z a e se
especializaram em plantas e ervas, nos t e m p l o s do passado, t a n t o na Atlântida c o m o em o u t r o s centros iniciáticos,
entre eles os de Tebas e Alexandria, no Egito, e os da antiga
Pérsia. Atualmente, v e s t e m a r o u p a g e m fluídica de pais-velhos, em conformidade c o m a última experiência reencarnatória, que se deu em países c o m o Brasil, Angola e outras
terras da África. Não obstante, c o n s e r v a m o c o n h e c i m e n to ancestral e dele l a n ç a m m ã o ao desenvolver pesquisas
174
em nossos laboratórios, c o m p a r t i l h a n d o os resultados com
cientistas da A m a n d a e de outras cidades de nossa d i m e n são. Estas árvores em particular, assim c o m o outras cultivadas nas p r o x i m i d a d e s dos hospitais, são fruto dessas experiências. Isso explica o n o m e do local: Hospital do Silêncio.
"Este hospital, especificamente, é especializado em terapias q u e utilizam o magnetismo, daí a n a t u r e z a dos pacientes aqui tratados. Não verá injeções, p r o c e d i m e n t o s invasivos no períspirito ou qualquer coisa que se assemelhe
aos t r a t a m e n t o s convencionais praticados na Crosta. Além
disso, este v e r d e e x u b e r a n t e e a p r e s e n ç a de espíritos ligados à natureza, c o m o os pais-velhos que h a b i t a m as c h o u panas, bangalôs e outras vivendas no sopé das m o n t a n h a s :
t u d o faz deste um lugar especial. Na v e r d a d e — a c e n t u o u
Semíramis e n q u a n t o c a m i n h á v a m o s em direção ao estacion a m e n t o , o n d e nos aguardavam os carros voadores —, cost u m o c h a m a r isto aqui de spa espiritual, e não de hospital.
C o m o você virá aqui diariamente, t e r á o p o r t u n i d a d e de con h e c e r a biblioteca; é u m a atração à parte. Terá i n ú m e r a s
descobertas e surpresas aqui. Você verá."
O ú l t i m o c o m e n t á r i o da guardiã me deixou curiosíssimo. U m a biblioteca do outro m u n d o . Fiquei imaginando
175
como seriam os tratados, os livros mais antigos, aos quais
talvez p u d e s s e ter acesso; ler originais de diversos autores,
alguns p e r d i d o s na poeira do tempo...
De fato, acabei me t o r n a n d o frequentador assíduo da
biblioteca do Hospital do Silêncio. O p r o c e d i m e n t o m a g n é tico em si durava apenas 30 m i n u t o s p o r sessão, m a s eu ficava pelo m e n o s duas ou três h o r a s na biblioteca, saboreando e sorvendo t u d o q u a n t o podia. Descobri, ainda p o r cima,
que aquele era apenas um dos acervos da c o m u n i d a d e .
Sentia-me cada vez mais leve e revigorado. A quase
uma s e m a n a de e n c e r r a r o t r a t a m e n t o , e x p e r i m e n t e i pela
primeira vez a levitação. C a m i n h a v a pelo j a r d i m do Hospital, lendo um v o l u m e riquíssimo sobre literatura brasileira;
quando me dei conta, havia ultrapassado os limites do jardim e andava em pleno ar, m o v i m e n t a n d o as pernas, mas
sobre um precipício logo abaixo de mim. Levitava, sentia-me c o m o u m a pluma. E não é q u e esse tal de magnetismo funcionava m e s m o ? Parecia que os últimos resquícios
de m a t é r i a que eu t r o u x e r a da experiência física haviam
se dissipado d u r a n t e os a t e n d i m e n t o s c o m Ceres. Um dia
depois, estava tão c o n c e n t r a d o em cima da maca, tão relaxado, que, q u a n d o ela t e r m i n o u o p r o c e d i m e n t o magnéti-
176
co, eu flutuava sobre o leito, meio abobalhado, s e m saber
n e m ao m e n o s c o m o me pôr de pé, Ela me olhou sorrindo,
apenas. E n t e n d i que t u d o t i n h a seu t e m p o . Pouco a p o u c a
a p r e n d i a a lidar com as percepções, os fluidos, a natureza
do corpo espiritual e n q u a n t o estudava, estudava, estudava.
181
PÓS D I A S D E
dedicação aos estudos e à terapia magnética,
p u d e e n t e n d e r m e l h o r o que alguns espíritos disseram sobre t r a t a m e n t o não invasivo. E n t e n d i que, em alguns casos,
existe m e s m o a necessidade de fazer u m a cirurgia nos tecidos e órgãos do corpo espiritual e r e c o r r e r a m é t o d o s m u i to parecidos c o m aqueles utilizados na Terra, em hospitais
convencionais. Porém, na A m a n d a se usava metodologia
bastante diversa. E m b o r a t o d a a tecnologia à disposição dos
médicos e servidores dos hospitais, ao alcance t a m b é m dos
demais d e p a r t a m e n t o s da cidade, em m a t é r i a de saúde tal
recurso era e m p r e g a d o de forma acessória. Sobretudo, na
composição de diagnósticos e c o m o auxiliar na p r o d u ç ã o e
m a n u t e n ç ã o de energias de n a t u r e z a astral ou psíquica. H a a instrumentos capazes de amplificar a força mental, b e m
como de gerar c a m p o s energéticos de caráter desconhecido na Terra, q u e favorecem a recomposição das matrizes
do organismo espiritual, do seu veículo, q u e aprendi chamar-se perispírito ou corpo astral. No Hospital do Silêncio,
não se faziam incisões cirúrgicas, e m b o r a existissem outros
hospitais na erraticidade que usavam desse m é t o d o q u a n d o
necessário. C o m p r e e n d i de fato tal opção após verificar o
talento com q u e os espíritos radicados na A m a n d a m a n e -
182
javam os recursos da natureza, e x p l o r a n d o de m o d o sábio e
responsável a força das matas, dos rios e das fontes de água
pura, assim c o m o i n ú m e r o s e l e m e n t o s dispersos na atmosfera, c u r i o s a m e n t e à disposição de todos, e m b o r a n e m sempre conhecidos da multidão de habitantes.
I m e r s o nesses p e n s a m e n t o s , nas novas descobertas do
p e r í o d o e n t r e vidas, n e m percebi a p r e s e n ç a de m e u amigo p r o t e t o r e o r i e n t a d o r Jamar, q u e se aproximou de mim.
c o n d u z i n d o - m e a novas experiências.
— Agora é preciso c o n h e c e r algumas questões, Ângelo,
relativas a seu roteiro evolutivo, ou seja, ao planejamento de
seus estudos, c o m o ocorre em qualquer área profissional na
Terra, mas levando em conta as atividades futuras program a d a s para você. Creio q u e é h o r a de levá-lo até u m a das
bases dos guardiões, u m a vez que seu trabalho estará intim a m e n t e ligado ao nosso. Antes, p o r é m , é b o m que retornemos à vida u r b a n a de nossa cidade, a fim de nos j u n t a r m o s a
alguns amigos que nos a c o m p a n h a r ã o . Pai João o conduzirá e n q u a n t o faço contato com alguns guardiões; preciso me
desincumbir de algumas tarefas, m a s será rápido. Logo nos
r e e n c o n t r a r e m o s nos arredores da metrópole para, então,
irmos a um dos postos avançados de nossa equipe.
183
— T e n h o a impressão de q u e você dá t a n t a i m p o r t â n c i a
a esse p r o g r a m a de aprendizado, esse m e u curso intensivo,
que fico apreensivo em relação ao que me aguarda. M e s m o
t e n d o lido alguma coisa no acervo da biblioteca, parece que
vem algo m u i t o sério pela frente.
— Não fique assim, amigo. Você terá um t e m p o g e n e r o so para se h a b i t u a r c o m a situação e se familiarizar c o m as
informações novas. Nada de d r a m a s .
— Não estou s e n d o dramático! E que noto um t o m de
gravidade em sua voz...
— Desculpe m e u jeito, mas é que ao m e s m o t e m p o em
que estou aqui c o n v e r s a n d o c o m você devo me m a n t e r
7
atento, c o m os olhos abertos, se posso dizer, pois existem
outras situações mais complexas que d e p e n d e m de m i m
neste m o m e n t o . Mais t a r d e c o m p r e e n d e r á .
Falando assim, p a r t i m o s em direção à região central da
cidade, o n d e já nos aguardava o amigo Watab. J a m a r nos
deixou a sós por um t e m p o ; parecia absorto em p e n s a m e n tos que d e c i d i d a m e n t e eu não queria n e m t i n h a condições
7 0 personagem faz alusão à ubiquidade dos espíritos (cf.
ritos. Op. cit. p. 114-115, item 92).
KARDEC.
O livro dos espí-
184
de sondar. Ele ficou em c o m p l e t o silêncio, c o m o se espreitasse alguma coisa.
À nossa volta, espíritos iam e v i n h a m nas diversas atividades cotidianas da A m a n d a . A esta altura, eu já via a
vida da c o m u n i d a d e de m a n e i r a diferente. Não estava a
passeio, de férias, t a m p o u c o a e s m o na m i n h a dileta eternid a d e ou no p e r í o d o e n t r e vidas. Não sei p o r que, mas, desde o e n c o n t r o com os Imortais, m i n h a vida m u d o u . Meus
p e n s a m e n t o s p a r e c i a m abarcar novas situações, que antes
n e m imaginava conhecer; mais ainda, u m senso d e responsabilidade parecia t o m a r conta do m e u ser, de m a n e i r a inc o m u m , e n u m a d i m e n s ã o m u i t o mais ampla. Não havia
c o m o encarar aqueles seres, t e r um e n c o n t r o tête-à-tête
c o m eles e c o n t i n u a r do m e s m o jeito. C o m o se não bastasse, Jamar, ao me falar sobre o p r o g r a m a de estudos, deixou- m e p r o f u n d a m e n t e interessado, mas, ao m e s m o tempo,
deveras p r e o c u p a d o . C o m o eu me sairia c o m o novo aluno
de u m a escola de vida, m u i t o mais abrangente, c o m o esta
que encontrei? Aqui, m e u s estudos, m i n h a formação conquistada na Terra p a r e c i a m a p e n a s um ensaio n u m a escola
de p r é - p r i m á r i o — ou pré-escola da vida. Teria m u i t o pela
frente: um p e r í o d o m í n i m o de 8 anos consecutivos de estu-
185
do, s e m g r a n d e s intervalos, visando atualizar m e u s c o n h e cimentos p a r a ser, c o m sorte, admitido n u m estágio c o m o
colaborador dos guardiões, possivelmente. S o m e n t e c o m o
t e m p o saberia maiores detalhes.
Foi absorto nesses p e n s a m e n t o s que Pai João me encontrou. Chegou a m e u lado, t i r a n d o - m e do silêncio que
havia sido estabelecido e n t r e W a t a b e m i m :
— Ora, Ângelo, não se a t o r m e n t e c o m p e n s a m e n t o s tão
sérios n e m se cobre t a n t o assim! Em nossa realidade aqui
na A m a n d a , vamos t r a b a l h a n d o p o u c o a pouco, a p r e n d e n do s e m p r e e d e s a p r e n d e n d o aquilo que for necessário. Ah!
Meu filho... — enfatizou o pai-velho — há t e m p o p a r a tudo!
0 essencial é que c o n t i n u e e s t u d a n d o , q u e não desista;
quanto ao resto, Deus saberá nos usar na m e d i d a certa em
que estivermos p r e p a r a d o s . Não espere saber muito, filho.
Faça o que p o d e e c o m o pode, sabendo q u e ainda iremos
errar m u i t o antes de acertar. É preciso ter compaixão consigo m e s m o .
" E m t e m p o s remotos, a A m a n d a era apenas um campo de t r e i n a m e n t o , u m a c o m u n i d a d e o n d e e r a m acolhidos
espíritos advindos de experiências r e e n c a r n a t ó r i a s difíceis ou amargas, p r i n c i p a l m e n t e em países o n d e a escravi-
186
dão havia se espalhado c o m o erva d a n i n h a . C o m o passar
do t e m p o , a administração da cidade foi especializando os
espíritos, de tal m a n e i r a que, hoje, em nossa abençoada com u n i d a d e , r e ú n e - s e q u e m p r e t e n d e desenvolver atributos
de força m e n t a l e espiritual em benefício da h u m a n i d a d e .
Em outras palavras, estabelecem-se aqui, de m o d o mais ou
m e n o s p e r m a n e n t e , seres q u e já p a s s a r a m p o r esferas inferiores na j o r n a d a e n t r e vidas e b u s c a m aprimorar-se, r u m o
a recantos mais iluminados, a estâncias mais felizes dos
m u n d o s invisíveis. Na A m a n d a , essas consciências encerr a m u m a g r a n d e etapa da c a m i n h a d a individual e se prep a r a m p a r a atuar em favor da h u m a n i d a d e de forma mais
abrangente, destituída de fronteiras, b a n d e i r a s e barreiras
erguidas pelas civilizações. M a s somos h u m a n o s , Ângelo, e
n u n c a se esqueça disso! C o m efeito, aqui t e r m i n a u m a fase
do processo evolutivo, baseada em modelos típicos de esferas inferiores à nossa, o q u e implica dizer que foram sup e r a d a s dificuldades ou limitações de d e t e r m i n a d o gênero.
Mas, se essa constatação é verdadeira, é igualmente verdade que aqui se inicia um ciclo de g r a n d e s desafios p a r a tais
espíritos, cuja consciência já está p r e p a r a d a para voos mais
amplos em serviço incondicional à h u m a n i d a d e . "
187
Respirei fundo, s e n t i n d o certo alento ao ouvir o q u e
Pai João falava a respeito dos h a b i t a n t e s da m e t r ó p o l e espiritual e dos objetivos de um estágio nessa dimensão.
— As experiências vividas pelos espíritos antes de c h e garem até esta d i m e n s ã o da A m a n d a , ao m e n o s pela m a i o ria dos q u e aqui se e n c o n t r a m , g e r a l m e n t e d e t e r m i n a r a m
o desenvolvimento de um b o m conjunto de qualidades íntimas. De u m a ou o u t r a maneira, a t u a m c o m o espíritos familiares e auxiliares da evolução; aos olhos daqueles q u e
se m o v i m e n t a m em d i m e n s õ e s mais baixas, são figuras de
referência, u m a vez que s u p e r a r a m b a r r e i r a s e obstáculos
que afligem os m e m b r o s de seu círculo de atuação. Esse
é um dos fatores q u e os capacita, agora, a se d e d i c a r e m a
nova e t a p a de a p r e n d i z a d o . Em g r a n d e parte, p o r t a n t o , são
espíritos c o m potencial p a r a s e r e m a d m i t i d o s c o m o p r o t e tores ou guias de m u i t a gente, até m e s m o de g r u p o s e co8
m u n i d a d e s por t o d o o m u n d o . Talvez, na Terra, m e u filho,
os espíritos ligados à nossa m e t r ó p o l e espiritual sejam conhecidos mais c o m o anjos de guarda, m e s m o q u e t o d o s
8 "Anjos de guarda, espíritos protetores, familiares ou simpáticos". In:
Livro dos espíritos. Op. cit. p. 317-330, item 489-521.
KARDEC.
O
188
aqui p r e c i s e m o s m u i t o de a p r e n d e r e de d e s a p r e n d e r tanta coisa arquivada em nosso psiquismo. C o n c l u i n d o : temos
pela frente o desafio de ajudar o m u n d o sem i m p o r barreiras, d e r r u b a n d o preconceitos, d e s c o n s t r u i n d o mitos ou
d e s t r o n a n d o ídolos erguidos pela ignorância h u m a n a . Esse
l e m a é o q u e n o r t e i a t u d o e t o d o s p o r aqui, é nossa principal m e t a e n t r e as demais, relacionadas às lutas individuais.
E n q u a n t o Pai J o ã o falava, m i n h a m e n t e se ocupava em
absorver o q u e podia. Talvez, mais tarde, p u d e s s e me sentir mais integrado ao ideal n o b r e que motivava a A m a n d a e
em condições similares às dos espíritos ali residentes, part i l h a n d o de sua visão e de seus objetivos.
Saímos a n d a n d o , c a m i n h a n d o pelas ruas da cidade espiritual q u e me recebia — um c a m p o de atividades, u m a oficina de t r a b a l h o e u m a universidade de vida incomparável.
Incomparável, sim, ao m e n o s p a r a mim, q u e sentia, agora
n u m a d i m e n s ã o b e m maior, o novo g ê n e r o de desafios que
se abria d i a n t e de m e u espírito. Fiquei sensibilizado diante da p o s t u r a do pai-velho, de não exigir que eu estivesse
pronto, p r e p a r a d o d e s d e já p a r a o que me aguardava.
Foi assim, c a m i n h a n d o e n t r e árvores, prédios e paisagens d a q u e l e m u n d o novo, q u e alcançamos u m bosque.
189
s e m p r e a c o m p a n h a d o s de Watab, s e m p r e silencioso, seguindo atrás de nós.
C h e g a n d o ao b o s q u e — belíssimo, p o r sinal, c o m i m e n sas sequoias e tantas outras árvores e plantas desconhecidas para m i m —, avistei diversas pessoas passeando, outras
lendo ou e s t u d a n d o debaixo das árvores; de alguma m a n e i ra, acho q u e todos estavam e s t u d a n d o . Aqui e ali, grupos
de espíritos orientados por q u e m parecia mais e x p e r i e n t e
d e m o n s t r a v a m e s t u d a r a rica flora naquele recanto cheio
de verde e de vida. O u t r a t u r m a c l a r a m e n t e recebia aulas
de d e s e n h o e pintura, pois os vi d e s e n h a n d o a paisagem,
as pessoas, as árvores e os animais que c o m p u n h a m aquele bosque. Havia u m a atividade intensa e, ao m e s m o t e m po, um quase silêncio no entorno, c o m o n u n c a vira em ambientes assim, no m u n d o físico.
— Aqueles são e s t u d a n t e s de botânica e fitoterapia —
esclareceu Pai João. — A p r e n d e m aqui, j u n t o à natureza, as
matérias q u e e s t u d a r a m na universidade. Depois irão p a r a
os arredores, o n d e e n t r a r ã o em contato c o m pais-velhos e
mães-velhas, caboclos e índios h a b i t a n t e s de nossa A m a n da, que o r i e n t a r ã o os alunos c o m seu c o n h e c i m e n t o mais
apurado do assunto q u e e s c o l h e r a m estudar.
190
D e c e r t o n o t a n d o m i n h a curiosidade a respeito da fauna e da flora e sobre o objetivo dos espíritos reunidos na
A m a n d a , o amigo Pai João foi um p o u c o mais longe em
suas considerações:
— Esta cidade, em sua e s t r u t u r a atual, através do variado p r o g r a m a de serviço, e s t u d o e realização que oferece, serve ao propósito de mesclar seres advindos de regiões
extrafísicas, c o m o o plano astral, ou de cidades aí localizadas, àqueles provenientes de d i m e n s õ e s superiores. Comp o n e n t e s de ambas as esferas p a s s a m a conviver, p o r um
p e r í o d o mais ou m e n o s dilatado, e m b o r a aqui o t e m p o seja
calculado de m o d o um p o u c o diferente de c o m o é na Crosta. Aqueles q u e se d e s t a c a m nos estudos e no trabalho, que
alcançam um d e s e m p e n h o maior, p o d e m se orgulhar de
descer a planos mais inferiores não apenas c o m o socorristas, m a s c o m o agentes da justiça divina. Outros, guias que
v ê m se instruir e acabam por se especializar na função de
instrutores espirituais, espíritos p r o t e t o r e s ou m e s m o figuras de inspiração, c o n s e g u e m oferecer aos assistidos
ou pupilos maior grau de experiência. Ou seja, caso se sobressaiam no p r o g r a m a evolutivo, n u m a espécie de curso
intensivo cá na Aruanda, t ê m a c h a n c e de contribuir com
191
mais capacitação e eficácia do q u e a massa de espíritos que
c o m u m e n t e assiste os e n c a r n a d o s .
— E qual é o papel q u e lhe cabe aqui na cidade, Pai
João? Tanto q u a n t o o de Jamar, W a t a b e os Imortais, ante
os quais me vi c o m o u m a criança espiritual?
— Nossa tarefa aqui, Ângelo, é de t r a b a l h o intenso, esforço c o n s t a n t e e estudos i n i n t e r r u p t o s . E n q u a n t o aqui
estagiamos, p o r períodos de t e m p o a d m i n i s t r a d o s exclusivamente por espíritos superiores, m a n t e m o s u m a m ã o erguida em direção ao alto, por assim dizer, absorvendo conhecimento, a l i m e n t a n d o nossos espíritos e t o c a n d o de
perto a aura de planos mais avançados, e n q u a n t o a outra
p e r m a n e c e a p o n t a d a p a r a regiões inferiores, o n d e exercitamos algum reflexo de amor, no exercício de doação que
procura impedir que o mal dissemine sua vibração pelo
a c a m p a m e n t o dos h o m e n s .
À m e d i d a q u e eu ouvia Pai João, que c o n t i n u o u falando da vocação da c o m u n i d a d e c o n h e c i d a c o m o Aruanda, e
sobre o trabalho e o significado da p r e s e n ç a dele nesta esfera, c o m o ele m e s m o se refere à cidade dos espíritos, p u d e
c o m p r e e n d e r p o r que t a n t o s seres de outras d i m e n s õ e s a
procuram, h a b i t a n t e s de outras p a r a g e n s espirituais q u e ali
192
a p o r t a m em busca de c o n h e c i m e n t o nas diversas escolas
da universidade local.
E n t r e m e n t e s , c h a m o u - m e a atenção d e t e r m i n a d o grupo de pessoas que analisava, na p r e s e n ç a de um instrutor,
a n a t u r e z a que vicejava com e s p l e n d o r naquele bosque,
q u e mais parecia um j a r d i m ou p a r q u e de p r o p o r ç õ e s mais
amplas que os demais, que c o n h e c e r a na cidade. Notei, em
meio aos q u e ali transitavam, casais de espíritos de mãos
dadas, alguns t r o c a n d o beijos e afagos comedidos, m a s sob r e t u d o d e m o n s t r a n d o carinho e afeto, de u m a forma que
não esperava e n c o n t r a r e n t r e os c h a m a d o s m o r t o s ou des e n c a r n a d o s . Pai João me s u r p r e e n d e u os p e n s a m e n t o s ,
vindo a m e u e n c o n t r o :
— São casais que e s c o l h e r a m t e r u m a vida em c o m u m
aqui em nossa c o m u n i d a d e , Ângelo.
— Mas p o r aqui as pessoas se casam, c o m o na Terra?
— E por q u e não, m e u filho? Somos todos h u m a n o s , na
mais p u r a expressão do t e r m o . Almas e n c o n t r a m afinidades e n t r e si e e s c o l h e m viver j u n t a s em seus recantos, em
suas habitações, e m u i t o s até oficializam a união c o m cer i m ô n i a s matrimoniais, qual o c o r r e na Terra. Só q u e aqui
as cerimônias visam m u i t o mais ao convívio social, como
193
celebração e confraternização e n t r e amigos, u m a vez q u e
a verdadeira união é e n t r e almas, motivada pela afinidade
de gostos e p e n s a m e n t o s , propósitos e sentimentos. Talvez
possamos dizer q u e a c e r i m ô n i a seja apenas a oficialização
de algo q u e já existe d e n t r o daquelas duas pessoas.
C o m p l e m e n t a n d o a ideia, Pai João acrescentou:
— De acordo com a ligação religiosa ou espiritual, os
indivíduos p o d e m celebrar a união em conformidade c o m
a fé e as tradições que t ê m ou que d i z e m respeito à identidade energética e à b u s c a de espiritualidade de cada u m .
Como temos, aqui em nossa A m a n d a , r e p r e s e n t a n t e s de
diversas culturas, p o d e - s e escolher desde u m a c e r i m ô n i a
oficiada p o r um espírito q u e teve experiências c o m o p a d r e
católico até u m a c o n d u z i d a por u m sacerdote druida, p o r
exemplo, p a s s a n d o p o r opções tão distintas c o m o as tradições m u ç u l m a n a , protestante, b u d i s t a ou indígena. C o m o
dispomos dessa t r e m e n d a variedade e riqueza cultural, r e "osa e de espiritualidade, as pessoas elegem livremente
o que q u e r e m , de acordo c o m suas preferências. E isso não
é tudo. Acontece, t a m b é m , de e s c o l h e r e m fazer tal evento
em outras cidades espirituais com as quais t e m o s convivência mais estreita.
194
— Mas é c a s a m e n t o m e s m o ou a p e n a s u m a encenação?
— C o m o encenação, filho? Casam-se m e s m o e passam
a viver juntos, p r e p a r a n d o - s e p a r a a existência física, quando então p o d e r ã o executar os planos q u e t r a ç a r a m aqui, em
nossa dimensão. Aqui é o m u n d o original! Na Terra é onde
t e m o s um tipo de ilusão dos sentidos necessária p a r a levar
avante os projetos iniciados ou delineados do lado de cá. A
Terra, c o m o você a deixou e c o m o a c o n h e c e m o s , o m u n d o
físico, este sim é o reflexo ou a r e p r e s e n t a ç ã o do q u e vivem o s no plano da imortalidade. Jamais se esqueça, Angelo:
aqui é o m u n d o real, primitivo, original.
9
— Se é assim, c o n s i d e r a n d o - s e os espíritos de forma feminina, existe gravidez do lado de cá? Ou qualquer coisa
parecida c o m u m parto?
— Não e x a t a m e n t e da forma c o m o se observa na Terra. A s e m e l h a n ç a é que, t a n t o aqui c o m o lá, o espírito não
9
"O mundo espírita [ou dos espíritos] é o mundo normal, primitivo, eterno, pree-
xistente e sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de
existir, ou não ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita" ("Introdução ao estudo da doutrina espírita". In:
espíritos. Op. cit. p. 31, item vi).
KARDEC.
O livro dos
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produz outro espírito, ou melhor, não o concebe, propriamente, mas lhe fornece um envoltório corporal que o capacita a usufruir das experiências n a q u e l a dimensão. Ocorre que muitas almas, advindas de regiões inferiores e t e n d o
vivido experiências infelizes, p e r d e m seus corpos espirituais e transformam-se naquilo q u e c h a m a m o s de espíritos
ovóides — trata-se de um processo complexo, que você terá
o p o r t u n i d a d e de estudar em nossas escolas. G r a n d e p a r t e
dos casais que se j u n t a m do lado de cá, t r a n s c o r r i d o mais
ou m e n o s t e m p o da união efetiva, aliam o desejo de formar
um núcleo familiar e os preparativos para a r e e n c a r n a ç ã o
à vontade de fazer algo por aqueles que vivem s e m e l h a n t e
drama. Sendo assim, muitos espíritos femininos, c o m o você
denominou, oferecem o ú t e r o perispiritual para que os espíritos ovóides ou em processo de ovoidização possam ser
acoplados a ele, m a g n e t i c a m e n t e , d a n d o origem a u m a espécie de gravidez extrafísica. Na verdade, aqui d e n o m i n a mos essa experiência de gravidez espiritual ou energética.
Nos seres d e s e n c a r n a d o s , o ú t e r o m a t e r n o é u m a câmara de materialização divina, q u e p r o p o r c i o n a ao espírito
ovoide a possibilidade de r e c u p e r a r a forma original, h u mana, r e c o m p o n d o as m a t r i z e s do períspirito. Este a s s u m e
196
a conformação h u m a n a l e n t a m e n t e , qual se dá n u m a gravi dez na Terra. Depois do t e m p o previsto de 9 meses, o espírito é desacoplado do ú t e r o de sua m ã e espiritual, por meio
do magnetismo, e e n t ã o ela o recebe no lar, c o m o filho ou
pupilo, à s e m e l h a n ç a t a m b é m do que ocorre, ao m e n o s teoricamente, c o m as crianças q u e r e n a s c e m na Terra. Como
o pai e a m ã e d e s e n c a r n a d o s já p o s s u í a m um lar construído aqui em nossa cidade espiritual, j u n t o s eles se tornam
responsáveis diretos pela reeducação daquele ser, guiando-o c o m o p o d e m , até que, n u m t e m p o mais ou m e n o s breve,
seja r e c o n d u z i d o a novo corpo físico, no mundo."
Acho q u e Pai João notou q u e era m u i t a explicação para
m i m naqueles primeiros m o m e n t o s , e m b o r a e u conseguisse, de algum m o d o e até certo ponto, e n t e n d e r o que ele falava. Mas e r a m m u i t a s informações que chegavam de uma
vez só. Por outro lado, creio que esse b o m b a r d e i o ocasionava u m a espécie de t e m p e s t a d e cerebral ou extracerebral,
mental, íntima, r e s u l t a n d o n u m a integração cada vez maior
ao modus vivendi do lado de cá. A vida na A r u a n d a era u m a
s u r p r e s a atrás de outra.
Mal o pai-velho encerrou aquelas explicações, fui surpreendido por um grupo de h o m e n s que passavam de mãos
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dadas, alguns trocando afagos discretos, carinho e demonstrando um afeto tão natural que me surpreendi com o que via.
Outra t u r m a menor, de mulheres, espíritos femininos, também passeava abraçada, lado a lado, ou t a m b é m de mãos dadas, evidenciando certo tipo de comportamento social que, à
época, ainda era muito mal compreendido na Terra. Tratava-se decididamente de homossexuais. E isso me chocou, pois
não sabia que do lado de cá encontraria com t a m a n h a naturalidade espíritos que se definiam sexualmente dessa maneira
ou adotavam esse tipo de identidade — n e m soube como dizer.
— Aqui t o d o s são vistos com a m e s m a naturalidade,
Angelo. Fora da matéria, não há p o r que n i n g u é m esconder-se c o m m e d o de ser rejeitado. É certo que e n c o n t r a m o s
ainda algumas cidades espirituais cujos a d m i n i s t r a d o r e s
são m u i t o religiosos e ligados a u m a forma de p e n s a r arcaica ou medieval, vamos dizer. Nesses casos, espíritos que,
diante de sua constituição energética, identificam-se c o m o
gays ou homossexuais, provavelmente não serão vistos c o m
a naturalidade c o m que os v e m o s aqui.
Antes que Pai João continuasse, fomos abordados p o r
dois n a m o r a d o s , espíritos em forma masculina, que p e d i m licença p a r a se dirigir ao pai-velho.
198
— Desculpe, m e u pai — falou um dos rapazes. Perman e c e r a m de mãos dadas com a maior naturalidade, decerto s a b e n d o que não seriam discriminados n e m recriminados. — Queríamos que o s e n h o r p u d e s s e nos dar a h o n r a de
a b e n ç o a r nossa união.
— Claro, m e u s filhos! Afinal, vocês t e r e m se reencontrado, depois de tantas dificuldades, e reatado seu a m o r é algo
que m e r e c e ser festejado. Para q u a n d o será a cerimônia?
Preciso me preparar, sem que afete outros compromissos.
— Q u e m sabe p o s s a m o s fazer assim? O s e n h o r consulta seus compromissos, sua agenda, e no t e m p o q u e estiver disponível nós o r g a n i z a r e m o s tudo, faremos os convites e oficializaremos nossa união. Já t e m o s inclusive o local
o n d e iremos morar.
— Que b o m , m e u s filhos. Assim fica m e l h o r p a r a m i m e
e s p e r o q u e p a r a vocês, t a m b é m . Quero ser o p r i m e i r o a visitar sua casa; não d e i x e m de me convidar. Q u e m sabe nosso amigo aqui — a p o n t o u para m i m —, q u e se c h a m a Ângelo Inácio, t a m b é m n ã o possa ir comigo?
— Caso queira — r e s p o n d e u um dos rapazes —, você é
nosso convidado! M e u n o m e é Camilo e este é m e u n a m o rado, Mike. E s t a m o s nos p r e p a r a n d o p a r a a futura vida fí-
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sica. E s t u d a m o s j u n t o s e p r e t e n d e m o s realizar um trabalho conjunto, tão logo estejamos de volta ao plano físico.
E n q u a n t o isso, p r e t e n d e m o s ser admitidos na equipe dos
guardiões. Se conseguirmos, a experiência nos capacitará
para nosso projeto na Crosta, ao r e e n c a r n a r m o s .
— Por falar em guardiões, Ângelo — l e m b r o u Pai João
—, J a m a r já deve estar de regresso.
Voltando-se para Mike e Camilo, convidou-os:
— Caso q u e i r a m vir conosco, vamos visitar um dos postos avançados dos guardiões em regiões inferiores. Sintam-se à vontade, caso seus afazeres o p e r m i t a m .
— Temos de nos a p r e s e n t a r às atividades na universidade, m e u pai. Hoje será a p r i m e i r a fase da prova de a d m i s são, a fim de ingressarmos na equipe de guardiões. Depois,
eu e Mike a s s u m i m o s um c o m p r o m i s s o j u n t o a um g r u p o
de espíritos c o m tarefas n u m país islâmico. Na p r ó x i m a vez
que nos convidar, c o m certeza iremos, ou melhor, vamos
nos p r o g r a m a r para isso. Por ora, espero q u e c o m p r e e n d a .
— Sintam-se à vontade, m e u s filhos. Eu os r e c o m e n d a rei a J a m a r pessoalmente, afinal, vocês já t ê m um currículo
com serviços e estudos que dificilmente seria m e n o s p r e z a do pelo guardião da noite. Vão em paz. Se p r e c i s a r e m de
200
algum reforço na tarefa, p o r favor, não se a c a n h e m ; podem
m e procurar.
— Obrigado, m e u pai! E você, Ângelo, é nosso convidado para o evento que p r e p a r a r e m o s .
O l h a n d o p a r a Watab, que continuava silencioso como
ele só, a c r e s c e n t a r a m :
— Não se esqueça: você t a m b é m , guardião, é nosso
convidado — Watab m e n e o u a cabeça em agradecimento.
Jamais eu esqueceria algo assim. Um casamento de dois
espíritos, na d i m e n s ã o extrafísica. E dois espíritos de aspecto masculino! Assim q u e os dois se foram, muitas dúvidas e q u e s t i o n a m e n t o s surgiram em m i n h a m e n t e febril
Não tive c o r a g e m de olhar d i r e t a m e n t e para Pai João, pois
sabia m u i t o b e m que ele c o n h e c i a m e u s mais secretos pens a m e n t o s . E r a novato naquela c o m u n i d a d e de seres, na cid a d e dos espíritos; ainda não a p r e n d e r a a ocultar minhas
emoções e p e n s a m e n t o s . E Pai João sabia disso m u i t o bem.
M i n h a m e n t e fervilhava.
— Fique tranquilo, m e u filho — c o n f o r t o u - m e Pai João.
— Você t e r á suas respostas em breve.
Ele foi discreto por demais. Não ousou mais do que
isso, d e i x a n d o - m e e n t r e g u e aos mais intricados p e n s a m e n -
201
tos, conjecturas e indagações acerca da n a t u r e z a h u m a n a ,
da forma c o m o e r a vista, no m u n d o espiritual, a união dos
seres e dos sexos, e sobre o p r ó p r i o conceito de c a s a m e n to entre d e s e n c a r n a d o s . T u d o isso mexia comigo de u m a
maneira q u e n u n c a imaginara. Cheguei a suspeitar que Pai
João me levou àquele lugar já de caso pensado, ou melhor,
levou-me ao e n c o n t r o daquele casal já v i s l u m b r a n d o algo
no futuro mais ou m e n o s distante.
Com o t e m p o , percebi q u e aquele espírito, que dia a
dia eu a p r e n d i a a reverenciar e respeitar, sob o n o m e de Pai
João, não fazia n a d a s e m um plano ou u m a finalidade, s e m
que fossem p o n d e r a d o s os detalhes, visando ao crescimento e às tarefa futuras. Q u a n d o ousei levantar a cabeça e fitar seus olhos negros, eles brilhavam fortemente. Ao lado
dos cabelos brancos, tão b e m c o m b i n a d o s c o m a b a r b a alva
como a neve, em contraste c o m a e p i d e r m e negra, e j u n t o
com o sorriso farto, os olhos do pai-velho ocultavam a sabedoria milenar escondida por trás daquela r o u p a g e m de um
simples ancião.
Logo após nossa c h e g a d a a u m a região mais afastada
da metrópole, p u d e ver g r a n d e q u a n t i d a d e de casas, bangalôs, c h o u p a n a s e outras construções, a maioria p a r e c e n d o
202
ser feita de m a d e i r a ou algum material similar. Perdiam-se
de vista as construções em meio aos bosques, florestas, jardins e m o n t a n h a s . Aquele estilo arquitetônico parecia ser a
maioria absoluta ali na metrópole, ao contrário do que imaginara antes, ao ver os prédios e n o r m e s do espaço urbano,
e m b o r a tão b e m integrados à paisagem, r e s p e i t a n d o o princípio de t u d o na Aruanda: a convivência pacífica com a natureza. Mas ali, o n d e nos e n c o n t r á v a m o s a convite de Pai
João, é c o m o se m i n h a visão do e n t o r n o ou dos subúrbios
da A r u a n d a tivesse se dilatado, e p u d e apreciar a vastidão
da cidade espiritual. Aliás, os a r r e d o r e s da cidade dos espíritos e r a m e n c a n t a d o r e s , v e r d a d e i r o paraíso em meio a
m o n t e s , vales, rios, m a t a s e lagos. Pássaros exóticos, descon h e c i d o s por mim; animais domésticos e outros c o m o leopardo, o n ç a e leão, além de cavalos, zebras, girafas e u m a
fauna m u i t o variada — t o d o s os bichos p a r e c i a m conviver
amigavelmente, soltos pelas campinas, planícies e ambientes cheios de vida e verde. Vi crianças c a m i n h a n d o ao lado
de pacíficos leões ou m o n t a d a s sobre eles, guiados p o r alg u m o u t r o espírito — algo impensável no m u n d o físico.
E não havia zoológicos. Por t o d o lugar, observava-se vida
e x u b e r a n t e , e os animais integravam o cotidiano da comu-
203
nidade de m a n e i r a tranquila e natural, c o m o n u n c a imaginara possível.
A cada dia, a cada hora, fazia c o n t a t o c o m as s u r p r e sas de um m u n d o novo, de u m a cidade espiritual na qual
me fixaria e q u e se t o r n a r i a a b a s e p a r a atividades futuras.
Morar na A m a n d a era u m a ideia q u e dia após dia tomava
mais corpo; era realidade. Fascinavam-me as o p o r t u n i d a des de a p r e n d i z a d o e e s t u d o q u e se d e s d o b r a v a m d i a n t e
de m e u espírito.
— Antes de e n c o n t r a r Jamar, visitaremos u n s amigos
em nossa cidade, p a r a você t e r u m a ideia de c o m o funciona
a vida em família p o r aqui, em nossa dimensão.
Enfim teria o p o r t u n i d a d e de ver de p e r t o u m a família
de espíritos. E isso me excitava. Dirigimo-nos a u m a casa
belamente c o n s t r u í d a n u m a espécie d e b a i r r o residencial.
Não havia m u r o s , a p e n a s jardins s e p a r a n d o u m a casa da
outra. E r a o tipo de projeto urbanístico que lembrava b a s tante o dos subúrbios de algumas cidades n o r t e - a m e r i canas. Todas as residências da região p a r e c i a m ser construídas de m a d e i r a ou algo m u i t o s e m e l h a n t e , ainda q u e
estruturadas e m f l u i d o s desta dimensão. Havia u m espaço
generoso e n t r e u m a casa e outra, e isso me fez p e n s a r na
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extensão da cidade c o m o um todo. Neste m o m e n t o Watab
r o m p e u seu silêncio e falou:
— Hoje, a A r u a n d a t e m mais ou m e n o s a d i m e n s ã o da
G r a n d e São Paulo, p o r é m u m n ú m e r o b e m m e n o r d e habit a n t e s . Por isso, c o m o p o d e ver, há e s p a ç o p a r a t o d o s confortavelmente, s e m i n c o r r e r na alta d e n s i d a d e demográfica q u e se observa em cidades tão p o p u l o s a s c o m o a capitai
paulistana.
— De q u a l q u e r forma, m e u filho — c o m p l e t o u Pai João
—, c o m o vivemos em u m a d i m e n s ã o extrafísica, o problema
do espaço aqui é diferente do que o c o r r e na Terra. A população é m o n i t o r a d a , de m a n e i r a q u e n ã o ultrapasse muito
a m a r c a dos 10 milhões de habitantes. Há um fluxo razoável daqueles q u e r e e n c a r n a m e o u t r o s — e m b o r a poucos,
se c o m p a r a d o s a outras cidades — que v ê m da Terra e de
outras m e t r ó p o l e s espirituais p a r a cá. Ou seja, t e m o s u m a
população balanceada, u m n ú m e r o compatível c o m uma
vivência tranquila e sadia j u n t o à natureza. Já p ô d e reparar q u e a área u r b a n a de nossa cidade é ampla, mas ainda
assim a maior p a r t e da população prefere viver nas casas e
em outras construções s e m e l h a n t e s ao r e d o r do centro, da
região mais d e n s a m e n t e povoada.
205
E n q u a n t o c a m i n h á v a m o s r u m o à visita à família espiritual da qual Pai João falara, p e r g u n t e i algo que, de certo
modo, causava-me e s t r a n h a m e n t o :
— Não vi igrejas p o r aqui. O n d e os religiosos se r e ú n e m
para rezar e adorar a Deus ou suas divindades?
— É p o r q u e a d o t a m o s um tipo de e s t r u t u r a espiritual
que difere de outras cidades no m u n d o extrafísico. Não há
templos s e m e l h a n t e s aos que existem no plano físico. Cada
grupo afim se r e ú n e em meio à natureza; incentivamos os
espíritos a se r e u n i r e m em família. As formalidades dos
cultos, conforme existem na Terra, d e i x a r a m de existir p o r
aqui há mais de 2 0 0 anos. Mas, caso algum espírito ou grupo de espíritos queira, existem diversos recantos, belíssimos por sinal, verdadeiros paraísos, que p o d e m ser utilizados por q u e m p e n s a e reza de m a n e i r a semelhante, ou seja,
irmãos de fé. Todos são livres p a r a adorar a Deus ou não,
segundo crêem. Há até m e s m o liberdade p a r a não se e n volver c o m q u a l q u e r manifestação de religiosidade, e m b o ra por aqui não existam ateus. Para m u i t o s espíritos, a ciência é a religião q u e a d o t a m p a r a p e r s c r u t a r e m a v e r d a d e do
universo; o u t r o s necessitam de certos aparatos, rituais e
crenças; há, ainda, q u e m prefira se dizer sem religião. Sob a
206
ótica da administração da cidade, t u d o está b e m , desde que
sejam respeitadas as poucas regras de convivência pacífica.
— E n t ã o existem espíritos q u e não professam n e n h u ma religião?
— Sim, pelo m e n o s n e n h u m a religião q u e se identifique c o m alguma das d e n o m i n a ç õ e s existentes ou c o m o
que estas ensinam. Não p o d e m o s forçar n i n g u é m a acreditar em nada. Mas t e m o s c o m o regra o e s t u d o das leis universais. Sob esse p o n t o de vista, p o d e m o s dizer que, para
m u i t a gente, a religião v e r d a d e i r a está d e n t r o de si; trata-se de u m a forma pessoal de se c o n e c t a r à divindade e de se
relacionar com as leis sublimes da vida. Respeitamos q u e m
assim procede, c o m o não podia deixar de ser.
Fomos i m p e d i d o s de c o n t i n u a r o assunto, pois chegamos a u m a das casas da região o n d e nos e n c o n t r á v a m o s .
Pai João e Watab p a r e c i a m ser velhos c o n h e c i d o s ali. Assim que se a p r o x i m a r a m da construção, um tipo de sobrado
com t r e p a d e i r a s a d o r n a n d o a fachada e algumas flores dispersas pelo jardim, as quais d e m o n s t r a v a m o cuidado dos
m o r a d o r e s do lugar, u m a m u l h e r saiu de d e n t r o da casa,
s a u d a n d o efusivamente o pai-velho e o guardião. De súbito, senti certa e m o ç ã o me envolvendo, de m o d o a r e c o r d a r
207
m i n h a antiga família na Terra. Parecia que estava voltando
para casa depois de u m a viagem m u i t o longa.
— Sejam bem-vindos, todos. Que h o n r a recebê-lo, m e u
velho! — falou a mulher, visivelmente alegre ante a p r e s e n ça de Pai João. — E você, guardião silencioso, m e u q u e r i d o
Watab, q u a n t o t e m p o , hein?
— Estamos de volta, Laura! E s t a m o s de volta... E você,
como está? E as crianças?
— E s t a m o s m u i t o b e m , m e u pai... Vamos, e n t r e m ! E n trem, logo — convidou-nos festiva.
— Este é Ângelo Inácio, nosso amigo r e c é m - c h e g a d o
da Terra — a p r e s e n t o u - m e Pai João.
— E n t ã o você é o escritor e jornalista? Já ouvimos falar
de você, m e u caro. Seja b e m - v i n d o !
Não sabia o q u e dizer diante de t a n t a n a t u r a l i d a d e e
boa v o n t a d e c o m q u e fui recebido. Parecia a hospitalidade
mineira. Em instantes me habituei c o m o jeito de Laura.
— As crianças estão na escola, Pai João. E Alberto está
agora nas fábricas, treinando um processo de criação m e n tal e manipulação de fluidos visando à construção de habitações. Quando reencarnar, ele p r e t e n d e ser arquiteto. Imagine
quantas oportunidades terá nas fábricas de formas mentais...
208
Depois de um breve silêncio, eu talvez t e n h a percebido
u m a s o m b r a de p r e o c u p a ç ã o em seu semblante, logo disfarçada c o m a conversa, q u e parecia ser interessante:
— Estou me o c u p a n d o mais i n t e n s a m e n t e do nosso
menino, o Régis. Assim que o a d o t a m o s em nosso lar, e após
o p e r í o d o de desenvolvimento do corpo espiritual em m e u
ú t e r o de mãe, ele logo c o m e ç o u seu t r a t a m e n t o magnético.
Mas t e m o q u e precise ser transferido a outra c o m u n i d a d e ,
a u m a o u t r a cidade, m e u pai.
E n q u a n t o sentávamos n u m a p o l t r o n a confortabilíssima, L a u r a confidenciou suas p r e o c u p a ç õ e s , agora mais plen a m e n t e visíveis.
— O Régis é um espírito q u e não t e m n e n h u m a afinid a d e c o m nossa família. O adotei p o r q u e estava muitíssimo
necessitado de r e c o m p o r sua forma perispiritual e eu ansiava pela o p o r t u n i d a d e de ser m ã e n o v a m e n t e . Confesso,
m e u pai, que foi mais p o r egoísmo de m i n h a p a r t e do que
p o r amor...
Pai João colocou sua m ã o sobre a m ã o de L a u r a e confortou-a c o m u m jeito b e m paternal:
— M a s não i m p o r t a isso agora, m i n h a filha. O mais imp o r t a n t e é q u e ajudou nosso Régis a se r e c o m p o r espiri-
209
m a l m e n t e , pelo m e n o s no que tange à forma espiritual. E
você não desistiu de e n c a r a r o u t r a etapa, a b r a ç a n d o t a m bém a c o n d u ç ã o do seu espírito.
— Pois é, m e u pai... Ocorre que, como sabe, ele veio diretamente de u m a situação em que foi submetido ao trato
hipnótico por um dos habilidosos magos das regiões inferiores. T i n h a o psiquismo totalmente nublado, n u m processo de
amnésia espiritual forçada ou induzida. Assim que o retiramos do contato mais direto com m e u períspirito, por meio do
magnetismo, isto é, assim que renasceu em nossa dimensão,
num corpo de criança mais reestruturado, parece que seu cérebro perispiritual começou a recobrar memórias. N e m imagina as situações que temos enfrentado em nosso lar para
aconchegá-lo e conduzi-lo a um estado mais harmonioso.
— Confesso q u e n e m imagino, Laura. Mas p o d e m o s falar d i r e t a m e n t e c o m a equipe de e d u c a d o r e s da Nova Galileia, pois eles d e t ê m recursos educativos e u m a forma de
abordar o psiquismo de seres nessas condições, que você
precisa conhecer. É r e a l m e n t e b a s t a n t e eficiente a m e t o d o logia que u s a m .
— Ah! M e u pai... Sabia que sua vinda aqui seria u m a
bênção p a r a nossa família. Já t i n h a ouvido falar nessa esco-
210
la, m a s não tive a o p o r t u n i d a d e de c o n h e c e r n e n h u m espírito ligado a ela...
Voltando-se p a r a m i m e Watab, a anfitriã falou, cheia
de cuidados:
— Me p e r d o e m vocês dois, m e u s queridos, mas sabem
c o m o é o coração de mãe. Do lado de cá da vida, Ângelo, as
coisas não são tão diferentes do que acontece c o m a maioria das mães, na Terra. Vou p r e p a r a r alguma coisa p a r a nós.
F i q u e m à v o n t a d e ou, então, me a c o m p a n h e m até a cozinha... Por favor!
L e v a n t a m o - n o s e a seguimos até a cozinha. Lembrei-me mais u m a vez dos c o s t u m e s q u e vi em Minas Gerais,
mais p r e c i s a m e n t e no interior. A c o z i n h a e r a imensa. Uma
b a n c a d a ficava no meio, c o m diversos a p e t r e c h o s c o m u n s
a u m a c o z i n h a qualquer, e m b o r a houvesse alguns equip a m e n t o s que eu desconhecia. M a s a geladeira, o fogão
m o d e r n o por demais... Porém, não vi fogo no fogão. Parecia q u e o calor irradiava da boca do fogão, sobre a qual se
apoiava um vasilhame em t u d o s e m e l h a n t e às panelas que
conhecia, e m b o r a parecesse ser feito de louça, e não de
metal. S e n t a m o - n o s em t o r n o da bancada, n u m a conversa
animada. Foi s o m e n t e e n t ã o que vi Watab descontrair-se,
211
e n t r a n d o na conversa e auxiliando L a u r a a p r e p a r a r alguma coisa p a r a c o m e r m o s . Na verdade, eu não sentia fome,
mas os sucos e os bolinhos p r e p a r a d o s p a r e c i a m ressuscitar em m i m o p a l a d a r e a v o n t a d e de degustar quitutes caseiros. N u n c a havia e x p e r i m e n t a d o sabores tão intensos e
bolinhos tão saborosos. Sentia-me em casa. Em d e t e r m i n a do m o m e n t o de nossa conversa, L a u r a dirigiu-se a m i m de
maneira especial:
— E n t ã o você está ainda n u m hotel, Ângelo? Ainda não
considerou m o r a r e m sua p r ó p r i a casa? U m chalé, u m b a n galô ou, q u e m sabe, pelo seu jeito, um loft?
— Ainda me sinto m u i t o novo neste m u n d o de espíritos, Laura. Aliás, n ã o me habituei c o m p l e m e n t e ao fato de
ser um espírito.
— Então, q u e m sabe não p o d e m o s ser mais úteis a esse
processo de adaptação do lado de cá? Caso queira, p o d e r á
ficar conosco p o r algum t e m p o . Alberto, m e u marido, c o m
certeza ficará e x t r e m a m e n t e feliz c o m sua p r e s e n ç a em
nosso meio, pois a d o r a seus p o e m a s e é um h o m e m m u i t o
dedicado a estudar; é m u i t o culto, p o r sinal, ao contrário de
mim, q u e sou a p e n a s u m a d o n a de casa e colaboro em serviços mais simples da nossa c o m u n i d a d e .
212
— L a u r a não está se valorizando c o m o merece, Ângelo.
Ela é excelente artista; toca p i a n o c o m o n e n h u m espírito
q u e eu c o n h e ç a — falou Watab.
— Na verdade, uso a música p a r a acalmar corações e
emoções; só isso. M a s acho que preciso alargar m e u s h o rizontes. T e n h o me d e d i c a d o de m a n e i r a insuficiente a est u d a r outros i m p o r t a n t e s r a m o s do c o n h e c i m e n t o . Acabo
u s a n d o c o m o desculpa o fato de precisar me dedicar mais
aos filhos espirituais.
Queria m u i t o c o n h e c e r de p e r t o o dia a dia de u m a família de espíritos e parece que esta seria u m a c h a n c e ímpar
p a r a mim. Pai João n o t o u m e u interesse em estar mais perto da família de L a u r a e falou, dirigindo-se a mim:
— Pois é, m e u filho! Acho q u e as o p o r t u n i d a d e s são excelentes p a r a você. Se desejar, p o d e m o s providenciar u m a
casa p a r a você p o r aqui. Q u e m sabe se sinta à v o n t a d e no
hotel... no entanto, chegará a h o r a em q u e desejará um lugar t o d o seu, que t e n h a sua cara.
— Acho que, se me d e r e m a chance, vou preferir m o r a r
neste bairro residencial. Talvez possa ficar mais p r ó x i m o
da família de L a u r a e, assim q u e me for possível, construirei ou reunirei m i n h a p r ó p r i a família espiritual.
213
— Que seja assim, Ângelo! — exclamou Pai João. —
Laura e sua família p o d e r ã o ser p r a você u m a espécie de
ancora ou referência em seu novo estágio na erraticidade.
— Ficaremos felizes em p o d e r ajudá-lo, de alguma forma, a se instalar mais definitivamente aqui na Aruanda. Podemos lhe m o s t r a r a cidade com mais detalhes e n q u a n t o
você se encaixa em alguma atividade ou g r u p o de estudos.
Fiquei e m o c i o n a d o mais u m a vez. Senti-me em casa,
aconchegado por u m a família e c o n t e n t e c o m a perspectiva de construir um lar. Diante dessa possibilidade, não me
via mais c o m o um visitante ou a p e n a s um espírito itinerante, que estivesse de passagem p a r a e s t u d a r na cidade; c o m
efeito, sentia-me um h a b i t a n t e daquela c o m u n i d a d e de espíritos. C o m a c o n s t r u ç ã o do novo lar e a reunião da família
espiritual, eu me sentiria integrante e p a r t i c i p a n t e ativo da
vida espiritual da m e t r ó p o l e . Isso me fez um b e m imenso,
p r i n c i p a l m e n t e porque, em breve, seria a p r e s e n t a d o a outra realidade, ao t r a b a l h o dos guardiões amigos da h u m a nidade. E r a i m p o r t a n t e que estivesse integrado ao m o d o de
vida da Aruanda. Dessa forma, c o m m i n h a autoestima reafirmada ou elevada, p o d e r i a colaborar c o m mais qualidade
nas tarefas q u e me aguardavam.
214
Após nos d e s p e d i r m o s de L a u r a e t o m a r m o s o c a m i n h o
de volta, p u d e observar m e l h o r a vegetação que c o m p u n h a
os jardins em t o r n o das casas. Sinceramente, n e m m e s m o
c o m modificação genética e avanços de mais 100 anos seria
possível ver, na Terra, algo q u e ao m e n o s se assemelhasse à
n a t u r e z a das plantas e, até m e s m o , de minerais, p e d r a s e da
p r ó p r i a t e r r a que pisávamos. Algumas flores p a r e c i a m cantar, e m i t i n d o certa s o n o r i d a d e à m e d i d a que passávamos
p e r t o delas. N o v a m e n t e p u d e p e r c e b e r seres p e q u e n i n o s
esvoaçando em t o r n o de flores e plantas, sentados sobre as
p e d r i n h a s q u e c o m p u n h a m os jardins, a d o r n a n d o fontes
ou m e s m o d e m a r c a n d o espaço para algum arranjo diferente de arbustos e flores exóticas, a m e u ver.
U m a vez q u e p e r m a n e c i a e m silêncio, n u m silêncio
criativo, p e n s a n d o i n t e n s a m e n t e em t u d o que vira e ouvira,
no convite de L a u r a e na p r o p o s t a de Pai João, Watab rompeu a quietude, falando direto a mim:
— Aqui, Ângelo, c o m o verá em todo lugar em nossa cidade, t u d o quanto na Crosta era classificado c o m o sem vida
ou inanimado, sem inteligência e p e r t e n c e n t e a reinos biológicos inferiores ao h u m a n o , na verdade está cheio de vitalidade, de energia, u m a energia radiante, que interage com
215
tudo à volta. Dessa maneira, as plantas, as flores e até m e s m o
as pedras e o solo abaixo de nós r e s p o n d e m aos estímulos
mentais e emocionais dos habitantes. As cores modificam-se de acordo com o teor do p e n s a m e n t o dos espíritos mais
próximos; a tonalidade do verde se intensifica ou esmaece
de acordo com o s e n t i m e n t o e a aura de q u e m se achega. Do
mesmo modo, as construções, elaboradas a partir do fluido
cósmico, dos fluidos mais sutis da atmosfera do planeta, refletem a qualidade emocional dos moradores. L e n t a m e n t e ,
as formas se modificam. Nas cores das paredes, nos móveis
mais ou m e n o s elegantes, nas linhas mais arrojadas ou singelas, evidencia-se a característica de cada m o r a d o r ou de
cada pessoa que e n t r a em contato direto e constante c o m
tais criações. Enfim, t u d o aqui vive e vibra; n a d a é morto,
nem as pedras, n e m as m o n t a n h a s , n e m o ar que respiramos. T u d o vive e está cheio de vida, em todo lugar.
J u n t o com m i n h a s impressões sobre a vida familiar,
brotava em m i n h a alma um respeito p o r t u d o o que via ao
meu redor. A natureza, as coisas mais simples até as mais
complexas: t u d o para m i m renascia sob novo prisma, e me
fazia sentir cada vez mais vivo, e m b o r a t a m b é m me p e r c e besse p e q u e n i n o n a q u e l e m o m e n t o , ao atestar a riqueza a
216
m e u redor. A e s t r u t u r a íntima da m a t é r i a — se é q u e posso
c h a m a r assim esse tipo de material q u e via no e n t o r n o —
na qual fora erguida e edificada a cidade era algo impressionante e, ao m e s m o t e m p o , p a r a mim, inexplicável, t e n d o
em vista o c o n h e c i m e n t o r e d u z i d o sobre o funcionamento
das coisas nesta dimensão.
E n q u a n t o me diluía em s e n t i m e n t o s de respeito e gratidão, tocado i n t i m a m e n t e p o r tudo, extasiado p e r a n t e a
e s t r u t u r a q u e me cercava, Pai J o ã o c o m p l e m e n t o u a palavra de Watab, o guardião:
— T a m b é m c h a m a m o s m a t é r i a os e l e m e n t o s q u e tem o s à disposição nesta d i m e n s ã o .
10
Pode-se dizer matéria
mental, astral ou m e s m o fluido mais ou m e n o s condensado, assim m e s m o segue s e n d o um tipo especial de matéria,
desde a substância c o m p o n e n t e dos trajes usados pelos espíritos até aquilo q u e é e m p r e g a d o nas c o n s t r u ç õ e s da ci-
10
"Mas a matéria existe em estados que ignorais. Pode ser, por exemplo, tão etérea
e sutil, que nenhuma impressão vos cause aos sentidos. Contudo, é sempre matéria. Para vós, porém, não o seria"
(KARDEC.
O livro dos espíritos. Op. cit. p. 81-82,
item 22). "O que te parece vazio está ocupado por matéria que te escapa aos sentidos e aos instrumentos" (Ibidem, p. 88, item 36).
217
dade. Se lhe disséssemos que as construções n ã o são t a n t o
u m a forma, mas um s e n t i m e n t o cristalizado ou coagulado,
talvez você me interpretasse, m e u filho, c o m o falando p o r
parábolas, u s a n d o u m a figura de linguagem, devido à sua
formação acadêmica e profissional. Pode-se dizer, apenas
para efeito de comparação, q u e nossas c o n s t r u ç õ e s são feitas de luz — luz líquida ou coagulada, que é m o l d a d a p e los s e n t i m e n t o s dos m o r a d o r e s . Em algum m o m e n t o você
c o m p r e e n d e r á melhor, provavelmente q u a n d o estiver em
sua p r ó p r i a casa, s e g u n d o o d e s e n h o q u e escolher, isto é,
q u a n d o emoções e p e n s a m e n t o s mais profundos se refletirem em t u d o a seu redor: nas paredes, nas cores, nos m ó veis e nos utensílios. Aí, verá c o m o seus s e n t i m e n t o s estão
i n t i m a m e n t e relacionados c o m o a m b i e n t e particular. Assim é a A m a n d a ; assim, o Invisível, o m u n d o dos espíritos.
Conforme c a m i n h á v a m o s e m e u s s e n t i m e n t o s p a r e ciam se dilatar, m i n h a visão da cidade e dos a r r e d o r e s parecia dilatar-se, t a m b é m . C o m p o u c o esforço, p u d e ver ou
perceber p o r m e n o r e s das m o n t a n h a s ao longe; sobre colinas distantes, erguiam-se majestosas construções, que dav a m a impressão de templos, e m b o r a t e m p l o s ali não h o u vesse. Apresentavam-se na forma de torres, arcos, pátios e
218
cúpulas, em meio à vegetação farta que eu percebia. Mais
u m a vez, Pai João me socorreu, à m e d i d a que nos aproxim á v a m o s do p o n t o de e n c o n t r o com Jamar:
— As cúpulas e t o r r e s q u e você vê, Ângelo, cuja cintilação impressiona os olhos e o brilho e n c a n t a a alma, são
constituídas de e l e m e n t o s que, na Terra, seriam classificados c o m o p e d r a s preciosas. D e c e r t o já ouviu alguma vez,
em leituras da Bíblia, a referência à Nova Jerusalém,
11
ci-
d a d e espiritual q u e o apóstolo João descreve no livro Apocalipse: ruas de ouro, portas de p e d r a s preciosas e coisas
semelhantes.
12
É q u e aqui, n u m a esfera de vida além da co-
n h e c i d a na Crosta, as possibilidades do espírito são ilimitadas. A e x u b e r â n c i a da vida coloca à disposição, n u m a escala b e m mais ampla, incontáveis recursos da natureza. São
fluidos c o n d e n s a d o s ou energia coagulada pela força m e n tal dos espíritos construtores, q u e modelam, através desses
m e s m o s fluidos, e l e m e n t o s q u e são c o n h e c i d o s na Terra,
p o r é m n u m a d i m e n s ã o diferente da q u e se observa entre
os e n c a r n a d o s . A luz coagulada p o d e assumir p r a t i c a m e n t e
11
Cf. Ap 21.
12
Cf. Ap 21:11,18-21.
219
todas as formas conhecidas no m u n d o físico, mas aqui são
muito mais intensas, precisas e h a r m o n i o s a s .
"As c o n s t r u ç õ e s são m u s e u s , onde, em diversos deles,
trabalham e e s t u d a m seres de nossa cidade ou de outras,
que v ê m em b u s c a de c o n h e c i m e n t o arquivado nos b a n c o s
de dados ou sob a forma de acervo. Cada p e d r a preciosa,
cada gema, i n d e p e n d e n t e m e n t e do t a m a n h o e da forma,
têm um significado. As g e m a s preciosas refletem as auras,
os p e n s a m e n t o s e emoções, s e n t i m e n t o s e características
de cada visitante ou t r a b a l h a d o r do local, b e m c o m o das
obras expostas nos m u s e u s . Essas construções, sim, talvez
fossem confundidos c o m t e m p l o s pelos mais religiosos, tão
significativas são a arquitetura, as exposições e o acervo ali
oferecido aos estudiosos da ciência do espírito."
Pai João despertava em m i m admiração e respeito
como n u n c a tivera, nessa medida, por n e n h u m ser c o m o
qual convivera. De o u t r o lado, havia a gratidão, s o b r e t u d o
por fazer p a r t e deste lugar, que, s o m e n t e agora, descobria
em maiores detalhes, ainda q u e soubesse faltar g r a n d e núm e r o de coisas p a r a c o n h e c e r na n a t u r e z a da vida extrafísica. Havia m u i t o que aprender. C e r t a m e n t e , o e n c o n t r o c o m
Jamar, que me apresentaria u m a base de apoio dos guar-
220
diões, descortinaria novos c o n h e c i m e n t o s e mais reverência p e r a n t e a g r a n d e z a da vida e as tarefas que me a
davam no porvir. N u n c a imaginei que m o r r e r era viver,
viver c o m intensidade.
225
UANDO JAMAR CHEGOU, já me encontrava b e m mais t r a n quilo e integrado ao tipo de vida que a cidade espiritual
oferecia. E r a m m u i t o s fatores recentes e novos p a r a mim.
Primeiramente, a visita ao lar de Laura, que revelara porm e n o r e s da vida familiar e doméstica na A m a n d a , desde
a forma de se alimentar até a m a t e r n i d a d e . Antes m e s m o
disso, d e p a r a r c o m vários casais, c o n t e m p l a r a vida conjugal no Além e observar a diversidade e a pluralidade dos
tipos h u m a n o s foram coisas que me fizeram refletir sobre
o m o d o c o m o todos e r a m t r a t a d o s e se tratavam na A m a n da. No que diz respeito à vida afetiva, p u d e observar t a n t o
espíritos que tiveram experiências na heterossexualidade
como seres com identidade energética voltada à h o m o s s e xualidade, mas ambos na mais singela normalidade, c o m o
se esse aspecto não fizesse a m e n o r diferença; parecia ser
mesmo irrelevante. Cada casal levava a vida conforme m e lhor lhe parecesse, c o m respeito m ú t u o ; traçavam planos,
usufruíam de todas as o p o r t u n i d a d e s que a c o m u n i d a d e
lhes podia oferecer.
J u n t e - s e a isso a e n o r m e variedade de manifestações
culturais e religiosas, de aparências, estilos e preferências
dos espíritos, b e m como de e l e m e n t o s étnicos e raciais, e
226
me peguei p o r m u i t o s m o m e n t o s a d m i r a n d o a capacidade desta gente de conviver c o m o diferente e a diversidade.
De abrigar, acolher e encorajar t a m a n h a riqueza do espírito h u m a n o , sem moralismos ou códigos de c o n d u t a que
se p a u t a s s e m por o u t r a coisa senão os valores mais nobreque todos c o n h e c e m : a m o r genuíno, h a r m o n i a no convívio,
educação e gentileza, respeito às escolhas e ao jeito de cada
u m . Enfim, n a d a q u e segregasse, confinasse o espírito aos
limites estreitos das crenças e c o n c e p ç õ e s particulares ou
ditasse regras rígidas e insensatas, que sufocassem a vastidão das possibilidades h u m a n a s .
Tantas vivências e reflexões d e s c o r t i n a r a m diante de
m e u espírito t o d a u m a m a n e i r a d e p e n s a r razoavelmente
distinta do q u e c o n h e c i a e cultivava antes, q u a n d o encarnado. O sentido de lar e família deveria ser refundido, reescrito, pois aqui c o m e ç a r a a divisar novo h o r i z o n t e e nova
concepção, mais larga, do que v e m a ser lar. As construções
da Aruanda, então, i m p r e s s i o n a v a m - m e a cada m o m e n t o .
A m a t é r i a da qual e r a m feitas merecia e s t u d o à parte. E as
plantas, as flores, os animais e t o d o o resto? Simplesmente, não poderia formar u m a ideia exata s e m me aprofundar
em estudos da ciência universal, e não s o m e n t e da ciência
227
h u m a n a dos e n c a r n a d o s , que avançava d e n t r o dos rígidos
limites de p a r a d i g m a s antigos e ortodoxos, d e d i c a n d o - s e
apenas à realidade material, que era ainda mais estreita. Este plano ou d i m e n s ã o n ã o seria um m u n d o à p a r t e
do planeta? Outro c o n t i n e n t e no espaço, q u e m sabe? U m a
extensão do orbe ou u m a realidade paralela? Estava longe
d e obter respostas p a r a tantas p e r g u n t a s q u e e m e r g i a m d e
meu interior; p o r é m , p a r a que elas viessem, era necessário
de estudar. E e n t ã o c o m p r e e n d i o p o r q u ê da obrigatoriedade dos estudos neste m u n d o novo.
Um lugar o n d e a p r ó p r i a n a t u r e z a irradia cores, sons,
música. Descobri q u e o som t e m cores e a cor emite som e
faz música. Mas isso jamais será c o m p r e e n d i d o p o r q u e m
pensa o m u n d o apenas por meio dos sentidos, restrito pela
visão material. S o m e n t e libertando-se da ilusão da m a t é r i a
— da convicção da vida material c o m o realidade absoluta
— é possível c o m p r e e n d e r algo q u e t r a n s c e n d a os estreitos
limites dos cinco sentidos. Conheci cores m u i t o diferentes
daquelas q u e são vistas no m u n d o físico, e m b o r a todas que
conheci na Terra aqui estivessem, em intensidade e n u a n ces s u r p r e e n d e n t e s e superiores. Ao ser i n t r o d u z i d o no
ambiente o n d e residiam L a u r a e sua família, e o b s e r v a n d o
228
o tipo de habitação dos demais espíritos, entrei em contato c o m o significado e a h a r m o n i a das cores. Soube que, de
acordo c o m os s e n t i m e n t o s dos habitantes, c o m o trabalho
e a ocupação a q u e se entregassem, seja de caráter mental
ou não, as diversas cores se misturavam, f o r m a n d o outras,
q u e passavam a i m p r i m i r na atmosfera, no a m b i e n t e a sua
volta, a m a r c a profunda ou a aura particular daquele espírito. Esse m e c a n i s m o explica p o r que as casas e construções da A m a n d a vibram e r e s p o n d e m ao p e n s a m e n t o do
morador. A m a t é r i a sutil em q u e são elaboradas é tão sensível à ação da m e n t e q u e as paredes, o mobiliário e t u d o o
mais que cerca o espírito dão resposta imediata ao influxo
de p e n s a m e n t o s e emoções. Aí está um fator ou m e c a n i s m o
que favorece, a todo instante, a r e e d u c a ç ã o das emoções e
dos p e n s a m e n t o s dos h a b i t a n t e s da cidade.
E c o m o a m ú s i c a faz p a r t e da vida dos moradores... É
tão i m p o r t a n t e q u e d e t u d o e m a n a som, música, melodia.
13
13
"A música possui infinitos encantos para os Espíritos, por terem eles muito de-
senvolvidas as qualidades sensitivas. Refiro-me à música celeste, que é tudo o que
de mais belo e delicado pode a imaginação espiritual conceber"
dos espíritos. Op. cit. p. 207, item 251).
(KARDEC.
O livro
229
As flores c a n t a m , as folhas e m i t e m vibrações sonoras e a
A r u a n d a é t o d a musicalidade, q u e p e n e t r a no â m a g o dos
espíritos e auxilia na pacificação dos seres que aí h a b i t a m .
A música é p a r t e da vida, da energia, da substância da qual
é c o n s t r u í d a a cidade e a c o m u n i d a d e . E não há filho da
A r u a n d a q u e não se deixe envolver e n ã o se envolva c o m
música, arte e poesia. Em p o u c a s palavras, a m ú s i c a e m a na da alma dos espíritos desta cidade. Assim c o m o e m a n a d a p r ó p r i a n a t u r e z a desta d i m e n s ã o , deste o u t r o m u n do, e t a m b é m das flores, das plantas, das águas, dos seres
de todas as formas. Cores, m ú s i c a s e sons n ã o são coisas
inanimadas, m a s d e t e n t o r a s de vida própria, de ritmo, harmonia e vibração p e r f e i t a m e n t e palpáveis, perceptíveis e
mensuráveis.
As edificações residenciais, conforme verifiquei no
lar de L a u r a e, mais tarde, nos demais locais o n d e passei,
não foram erguidas p a r a a p r o t e ç ã o das pessoas ou dos espíritos, conforme acontece na Terra. Não. T u d o é feito de
modo a c o n c e n t r a r as energias dos m o r a d o r e s ; trata-se de
u m a espécie de c o n d e n s a d o r de emoções, emissões fluídicas e p e n s a m e n t o s , ou melhor, da qualidade dos pensamentos dos q u e ali habitam. Assim, a energia peculiar a
230
cada morador, c o n c e n t r a d a nas paredes, no teto, nas cores
e na substância m e s m a das residências, faz c o m que estas
se t o r n e m u m a pilha energética particular, de o n d e cada
inquilino p o d e h a u r i r forças e reabastecer-se. Pode, ainda,
direcionar o r e c u r s o ali a r m a z e n a d o p a r a q u e m dele necessite ou enviá-lo, sem p e r d a de qualidade, a lugares distantes, movido pela necessidade ou pelo desejo de ajudar. Isso
é u m a maravilha p o r si só! Difere de t u d o e de t o d a concepção do plano físico a respeito de e n g e n h a r i a civil, de função da habitação e de critérios para a escolha do ambiente
o n d e se vai viver e morar. Não posso dizer q u e exista alg u é m que não se e n c a n t e c o m a n a t u r e z a deste m u n d o chamado Amanda.
Q u a n d o ainda hoje p e n s o naqueles p r i m e i r o s m o m e n tos de c o n t a t o com a n a t u r e z a sideral deste universo novo,
e n c h o m e u espírito de gratidão e não há c o m o i m p e d i r que
v e r t a u m a lágrima de e m o ç ã o diante de t a m a n h a diversidade, t a m a n h a pluralidade e g r a n d e z a da vida espiritual. De
m o d o que, em m i n h a s reflexões, cheguei à seguinte conclusão: era preciso ir além das convicções t e r r e n a s e refazer as
c o n c e p ç õ e s de certo e errado, de v i r t u d e e pecado, de natural e subversivo. O n d e me encontrava, ou refazia m i n h a s
231
ideias de n o r m a l i d a d e e a n o r m a l i d a d e ou, simplesmente,
não conseguiria me incluir e n t r e os agentes do Cordeiro
que trabalhavam n u m a d i m e n s ã o mais ampla do que aquela na qual t r a n s c o r r e a vida na Terra.
Por ora, não c o n h e c i a ainda outras cidades espirituais.
Apenas ouvira falar de Nosso Lar, G r a n d e Coração, Vitória- Régia e o u t r a s mais. T a m b é m ignorava c o m o se comportavam os h a b i t a n t e s daquelas cidades ou colônias, c o m o
se costumava c h a m a r as c o m u n i d a d e s m e n o r e s . Mas aqui,
na Aruanda, não havia c o m o p e r m a n e c e r c o m as acanhadas formas de p e n s a r e agir, tal qual a maioria dos h u m a nos e n c a r n a d o s e, t a m b é m , d e s e n c a r n a d o s . T u d o o que vira
até e n t ã o serviu p a r a alargar os h o r i z o n t e s do m e u c o n h e cimento e refundir conceitos, a b r i n d o m i n h a m e n t e para
u m a forma mais universalista de pensar. Até m e s m o a maneira de lidar c o m as questões h u m a n a s , s e m o peso da culpa e sem cobranças, foi p a r a m i m um tipo de bênção.
Ante m e u passado cheio de equívocos, não me senti cobrado por n e n h u m tribunal, t a m p o u c o deslocado ao realizar m e u a p r e n d i z a d o na metrópole, em tarefas ou condições diversas daquelas às quais estava acostumado. Fui
respeitado i n t i m a m e n t e , inclusive nos gostos, no t e m p e r a -
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m e n t o e no jeito de ser, m e s m o c o m as manias e a acidez característica, ao criticar t u d o e todos à m i n h a volta. Não precisei abdicar do m e u humor, do jeito de me expressar. Tudo
isso foi respeitado c o m o aquisição da m i n h a alma, e assim
me senti mais h u m a n o . E foi s o m e n t e a partir de e n t ã o que
senti vontade de modificar alguma coisa d e n t r o de mim,
de fazer u m a reavaliação íntima, sem n e n h u m a imposição
n e m discurso moralista, muito m e n o s o peso religioso que
p r e s u m i v e l m e n t e pudesse a c o m p a n h a r certos e n s i n a m e n tos transmitidos a m i m nesta o u t r a vida que encontrei. Não!
M u d e i apenas p o r q u e cheguei à conclusão de que queria
mudar. O t e m p o todo ouvi que eu era apenas h u m a n o .
Pai João, Jamar, Watab, Consuela, da qual não posso
e s q u e c e r jamais, o e n c o n t r o com L a u r a em seu lar, c o m Camilo e Mike, s e m falar nos Imortais q u e dirigem os destinos
desta c o m u n i d a d e — n e n h u m deles, em n e n h u m m o m e n to, jamais se a p r e s e n t o u a m i m c o m o p o r t a d o r de g r a n d e
elevação espiritual ou de u m a santidade incompreensível.
Deparei tão s o m e n t e c o m seres h u m a n o s c o m u n s , e m b o r a
dignos de respeito e consideração. N e n h u m espírito havia
que se dissesse elevado ou que fosse tido c o m o um p r i m o r
de evolução. E n c o n t r e i - m e e n t r e h u m a n o s , e isso fez t o d a a
233
diferença d e n t r o de mim. As m u d a n ç a s c o m e ç a r a m a acontecer n a t u r a l m e n t e , s e m c o b r a n ç a n e m força, s e m imposições n e m pregações religiosas, santificacionistas ou "espiritualizadas". Segui a p e n a s o curso c o m u m e natural, sem
pressa e sem martírio.
Os espíritos c o m q u e m travava c o n t a t o n ã o se cansavam de dizer q u e n i n g u é m ali era anjo e n ã o se ocupava de
d e s a c e r t o s e erros de q u e m q u e r que ali estagiasse. Em n e n h u m m o m e n t o , e n t r e o s h a b i t a n t e s d a cidade espiritual,
senti s e q u e r um t r a ç o de d o r moral, do p e s o e do rigor típicos das p o s t u r a s de culpa e cobrança. E isso me c o n q u i s tou de vez. S e n t i a - m e i n t e g r a d o à vida da m e t r ó p o l e espiritual, c o m seus mais de 10 m i l h õ e s de h a b i t a n t e s , de t o d a s
as etnias e povos do planeta. E r a m indivíduos q u e haviam
palmilhado, c a d a qual a seu t e m p o , diversos c a m i n h o s , dos
mais c o r r i q u e i r o s aos mais extravagantes da h u m a n i d a de. Haviam s u p e r a d o — ou ao m e n o s se colocado em via
de s u p e r a r as b a r r e i r a s do p r e c o n c e i t o , da culpa, das p r e ferências religiosas e, p r i n c i p a l m e n t e , da n e c e s s i d a d e de
fazer proselitismo religioso ou político. Definitivamente, vivia n u m a c o m u n i d a d e de seres c o m p r o m e t i d o s mais
i n t e n s a m e n t e c o m o b e m da h u m a n i d a d e , e não c o m u m a
234
d o u t r i n a ou filosofia em particular. Assim e r a m os habit a n t e s da A m a n d a . E havia o u t r a s A r u a n d a s no universo,
no Invisível.
— Desculpe i n t e r r o m p e r suas reflexões, m e u amigo
— falou Jamar, delicadamente. — M a s é que t e m o s de partir p a r a as zonas inferiores, o n d e você terá c o n t a t o com a
realidade de nossa escola de guardiões. Precisamos tomar
precauções, pois sairemos dos limites da cidade espiritual
e m e r g u l h a r e m o s n u m tipo de vibração em q u e nos sujeit a m o s ao i m p a c t o dos p e n s a m e n t o s , t a n t o de encarnados
q u a n t o de d e s e n c a r n a d o s , os quais p o d e m c o m p r o m e t e r o
equilíbrio do grupo.
Fiquei p e n s a n d o em que consistiria essa c h a m a d a zona
de impacto. Seria u m a espécie de inferno? Um purgatório,
conforme ensinava a igreja? Estava longe de ter u m a ideia
mais acertada a respeito. J a m a r continuou:
— Semíramis irá conosco, pois as guardiãs são especializadas em dissolver f o r m a s - p e n s a m e n t o e e m o ç õ e s cristalizadas; além disso, d e t e c t a m h a b i l m e n t e influxos energéticos carregados de forte teor emocional, os quais advêm de
planos inferiores. Pai João t e m outras atividades ao lado do
colegiado, na administração da cidade; assim, n ã o poderá
235
ir conosco nesta escala pelas regiões ínferas. Watab se encarregará de você p a r t i c u l a r m e n t e , a m p l i a n d o o e s c u d o de
proteção à sua volta, até que t e n h a condições de fazê-lo p o r
si próprio. Alguns o u t r o s amigos irão conosco, m a s a eles
você será a p r e s e n t a d o no caminho.
D e m o n s t r a n d o pressa ou até urgência p a r a c o m e ç a r
nossa j o r n a d a , J a m a r o r d e n o u :
— Vamos! Não p o d e m o s p e r d e r mais t e m p o .
— Temos de aproveitar — a c e n t u o u Semíramis, q u e
estava a c o m p a n h a d a de mais três guardiãs. — Neste m o mento, há um intervalo regular no influxo das formas- p e n s a m e n t o . Aproveitaremos a z o n a neutra, e n t r e um feixe e outro, p a r a p a s s a r m o s s e m m a i o r prejuízo ou desgaste
energético.
Assim que J a m a r deu a o r d e m , Watab e s t e n d e u as
mãos acima de mim, e logo depois desceu a m b a s l e n t a m e n te, f o r m a n d o u m a espécie de círculo ou b o l h a em t o r n o do
meu organismo espiritual, a qual, n a q u e l e instante, eu ainda não conseguia enxergar. Fiquei p e n s a n d o se seria algum
ritual excêntrico, mas não. Depois percebi que havia se form a d o em t o r n o de m i m u m a espécie de película, q u e se ligava d i r e t a m e n t e à cabeça de Watab p o r um fio finíssimo.
236
Mais p r e c i s a m e n t e , tal fio de energia parecia e n t r a n h a r - s e
e n t r e seus olhos, ligando-se à m e n t e do guardião. Senti certo conforto, que não saberia descrever m i n u c i o s a m e n t e ; de
q u a l q u e r maneira, notei u m a sensação de t r a n q u i l i d a d e e
u m a resposta emocional interessante. M i n h a confiança naquela e q u i p e havia a u m e n t a d o de m a n e i r a extraordinária.
Seria fruto da ação de Watab?
E n t r a m o s n u m veículo aéreo cuja forma diferia da de
todos q u e eu vira até ali. Havia, na p a r t e da frente, abert u r a s circulares, q u e me p a r e c e r a m a p r o p r i a d a s p a r a canhões, fato que me provocou e s t r a n h a m e n t o . Tive receio
de perguntar. Não sabia, ainda, que existia a r m a m e n t o de
tal p o r t e n a q u e l a dimensão, q u a n t o mais a d a p t a d o aos veículos. E r a novidade a maioria das coisas que presenciava.
E n t r e m e n t e s , nos limites da Aruanda, o veículo levantou
voo e saiu c o m relativa facilidade. T ã o logo deixamos o p e r í m e t r o da cidade, as coisas c o m e ç a r a m a se modificar. Nuvens mais espessas e de tonalidades fortes a p a r e c i a m de
um lado e outro do veículo. Leve t r e m o r lembrava os m o m e n t o s de t u r b u l ê n c i a em viagens de avião, e m b o r a fosse
um tipo especial de turbulência, q u e os aviões t e r r e s t r e s
talvez n u n c a e x p e r i m e n t a s s e m .
237
— Vamos ficar atentos — ressoou a voz de Jamar. — E s t a m o s em alta velocidade e c o m e ç a m o s a a d e n t r a r as zonas
de impacto m e n t a l e emocional.
O veículo b a l a n ç o u ainda mais i n t e n s a m e n t e . Q u a n do olhei, vi b o l h a s de luz, u m a luz fosca, de um v e r m e l h o
escuro, vindo em nossa direção. M a s n ã o atingiu o veículo
diretamente.
— E r g u e r os c a m p o s de proteção! — gritou Semíramis
p a r a a guardiã que pilotava o veículo. Balançamos novam e n t e e, q u a n d o o p e t a r d o de energia quase nos atingiu,
formou-se u m a b a r r e i r a energética em t o r n o da nave, dist r i b u i n d o o i m p a c t o q u e parecia fulminante. C e r t a dose
de medo ou apreensão tomou conta de mim. Medo semelhante ao q u e o c o r r e c o m alguém d e n t r o de um avião que
enfrenta turbulência. Algo assim. M e u coração de d e s e n c a r n a d o c o m e ç o u a b a t e r mais i n t e n s a m e n t e . W a t a b olhou
para m i m t r a n q u i l i z a n d o - m e , m a s não conseguiu fazê-lo
t o t a l m e n t e . O u t r o p e t a r d o veio em nossa direção, m a s a
c o n d u t o r a do veículo desviou a t e m p o , p o r é m não c o n s e guiu desviar-se de raios q u e riscavam os céus d a q u e l a r e gião, os quais atingiram em cheio a nave q u e nos conduzia.
Balançamos feito folhas ao vento, e eu me segurei em al-
238
g u m lugar, um tipo de aresta do veículo, p r ó p r i a p a r a isso.
Arregalei os olhos.
— À esquerda, cuidado! — falou n o v a m e n t e Semíramis,
s e m p r e atenta. — Ativar os c a n h õ e s de energia! — comandou a guardiã, enérgica.
E eu ali, s e m e n t e n d e r n a d a de nada. Eles não me explic a r a m que ocorreria algo dessa natureza. Estávamos sendo
atacados? E r a u m a guerra? N e m tive t e m p o d e p e r g u n t a r
— e confesso que não conseguiria m e s m o . Quase molhei as
calças do m e u sagrado t e r n o d u r a m e n t e c o n q u i s t a d o nas
lojas da cidade. Aliás, pensei m e s m o q u e houvesse me m o lhado. Mas não. Espírito n u n c a se molha. Elimina ectoplasma!... Só acordei p a r a o perigo real da situação q u a n d o vi
os c a n h õ e s e m e r g i r e m à frente da nave, das a b e r t u r a s que
n o t a r a mais cedo, e c u s p i r e m fogo ao redor. As bolhas de
luz a v e r m e l h a d a s explodiam antes de nos atingir. Os raios
p a r e c i a m t e r sido i n t e r c e p t a d o s pela energia dos canhões,
da qual n a d a sabia, n e m s e q u e r a respeito de sua n a t u r e z a
e seu p o d e r de impacto. Apenas presenciava, c o m o coração quase saindo pela boca. Pouco a p o u c o as coisas foram
se acalmando. J a m a r m a n t e v e - s e em silêncio o t e m p o todo
d u r a n t e o ataque energético.
239
— P r o n t o ! C r u z a m o s tranquilos a z o n a neutra... Breve
c h e g a r e m o s à base de apoio dos guardiões.
Z o n a n e u t r a ? Tranquilos? Será que n e n h u m deles m e
viu, p o r acaso, quase m o l h a n d o as calças do m e u elegante traje de d e s e n c a r n a d o ? Aquilo p o r v e n t u r a era u m a z o n a
neutra? J a m a r olhou p a r a m i m e me senti envergonhado.
Infelizmente ele sabia o q u e eu pensava, ou sentia. J u r e i
u m dia a p r e n d e r c o m o m e p r o t e g e r m e n t a l m e n t e .
— Não se p r e o c u p e , Ângelo! T e r m i n a r a m os ataques —
falou Semíramis p a r a mim, e n q u a n t o a m u l h e r na direção
do veículo ria g o s t o s a m e n t e das m i n h a s reações. — E r a m
s o m e n t e f o r m a s - p e n s a m e n t o dos e n c a r n a d o s . N e m e x p e r i m e n t o u ainda o ataque de e n t i d a d e s perversas. Aí, sim,
você vai se m o l h a r todo! — e riu t a m b é m . Todos riram. Eu
ri de raiva e nervosismo. Tive raiva de Semíramis saber o
que eu pensava. Será que raiva era p e c a d o aqui?
— Fomos atingidos pelos i m p a c t o s das formas m e n tais vindas d i r e t a m e n t e de e n c a r n a d o s — explicou Jamar,
agora mais descontraído, e m b o r a eu não p u d e s s e dizer se
ele estava alegre ou triste; a p e n a s descontraído. — Estamos
nos a p r o x i m a n d o de u m a de nossas bases. Observe o a r r e dor p a r a não criar n e n h u m a expectativa q u a n t o à n a t u r e z a
240
deste lugar. Não e s t a m o s mais na A m a n d a . Este é o início
das zonas inferiores, conhecidas pelos espíritas c o m o u m bral — a r r e m a t o u .
— E olhe que, ainda assim, trata-se de u m a região t r a n quila, se c o m p a r a d a aos locais o n d e e s t a m o s h a b i t u a d o s a
t r a b a l h a r e enfrentar espíritos criminosos e o u t r o s tipos
q u e mais t a r d e você c o n h e c e r á — disse Watab.
E n t ã o n e m t u d o e r a m flores n o m u n d o dos espíritos.
Se conheci de p e r t o o conforto e a vida social relativamente
tranquila da A m a n d a , agora entrava em c o n t a t o c o m a realidade das c h a m a d a s z o n a s ínferas.
Ainda suava frio, após vivenciar os impactos de energia
d i s c o r d a n t e q u e v i e r a m em direção ao aeróbus. De repente,
um feixe m a i o r daquela substância veio em nossa direção.
Algo h o r r e n d o e de tal p r o p o r ç ã o que o veículo balançou
m u i t o mais do que nas descargas anteriores. Parecia q u e
pegara os guardiões desprevenidos.
— Vamos sair do veículo! — gritou Jamar, em meio à
fumaça e ao estrondo, q u e parecia vir de d e n t r o do p r ó p r i o
carro voador. Saímos um a um, e Watab s e m p r e p r ó x i m o de
mim, e n v o l v e n d o - m e n u m c a m p o protetor.
— Vez ou o u t r a isso acontece, e m b o r a a frequência dos
241
ataques esteja m e n o r a cada dia — falou Semíramis.
— Sim — a r r e m a t o u Jamar. — Precisamos ficar atentos,
afinal, estamos n u m a z o n a purgatorial. C o n t i n u a r c o m o
veículo será c h a m a r a atenção das e n t i d a d e s sombrias que
vivem nessa região. Vamos deslizando nos fluidos a m b i e n tes ou m e s m o c a m i n h a n d o e n t r e os vales sombrios.
— Enviarei um sinal à nossa e q u i p e p a r a q u e v e n h a a
nosso e n c o n t r o — falou u m a das guardiãs, dirigindo-se a
J a m a r e Semíramis, que, pelo visto, e r a m os líderes e n t r e
os guardiões. M a n t i v e - m e em silêncio, t e m e n d o que m e u s
c o m p a n h e i r o s s o u b e s s e m q u a n t o m e d o eu sentia. Escorria
suor e m m i n h a fronte. J a m a r m e olhou, t r a n s m i t i n d o segurança, p o r é m dessa vez ficou calado, g u a r d a n d o p a r a si o
que talvez ouvira de m e u s p e n s a m e n t o s . Senti-me confortado na p r e s e n ç a dele, c o m o s e m p r e .
Descíamos p o r u m a região q u e parecia sombria d e mais, se c o m p a r a d a c o m q u a l q u e r experiência q u e tivera
até então. Abaixo de nós e no entorno, surgiam c a m a d a s de
nuvens de cores variadas, mas s e m p r e de tonalidade mais
escura. Do cinza passavam ao v a p o r negro; as avermelhadas se mesclavam a u m a cor que talvez p u d e s s e ser cham a d a de roxo — talvez, pois acredito que era u m a cor d e s -
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c o n h e c i d a p a r a q u e m acabara de vir da t e r r a dos mortais.
O l h a n d o mais i n t e n s a m e n t e o u c o n c e n t r a n d o m i n h a atenção, era c o m o se visse u m a espécie de auréola em t o r n o do
planeta, ao longe, no h o r i z o n t e , mas não luminosa n e m cintilante. Em meio àquelas s o m b r a s e à m e d i d a q u e nos a p r o ximávamos, notei q u e o p r ó p r i o globo estava envolvido
n u m tipo de escuridão, c o m o se pairasse e n t r e n u v e n s de
fuligem e vapores. Nesse m o m e n t o , Semíramis adiantou-se
e posicionou-se a m e u lado e de Watab, t e n t a n d o explicar o
q u e ocorria:
— São criações m e n t a i s ou f o r m a s - p e n s a m e n t o c a r r e gadas de e m o ç õ e s fortes. A g r a n d e maioria a d v é m de r e giões da T e r r a o n d e a g u e r r a v e m ceifando a vida de habit a n t e s do m u n d o , além de espalhar luto, miséria e d o r e n t r e
os q u e ficam.
— P a r e c e m vivas as nuvens.... Sinto c o m o se houvesse
um m o v i m e n t o o r d e n a d o , talvez até p r o g r a m a d o ou m e s mo inteligente.
— As formas m e n t a i s inferiores são, por si sós, um p e rigo p a r a a vida dos h a b i t a n t e s do m u n d o . Associam-se nat u r a l m e n t e a seres d e m e n t a i s e, c o m o ocorre e n t r e a d r o ga e o usuário, viciam os espíritos da n a t u r e z a q u e vivem
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nestas regiões. Por isso você n o t a certo m o v i m e n t o naquilo
que classifica c o m o nuvens, Ângelo. Na verdade, são egrégoras, ou seja, a união de um s e m - n ú m e r o de formas-pensamento. Nesse caso em especial, lidamos c o m p e n s a m e n tos e emoções gerados em meio ao sofrimento das guerras.
— Só p a r a você ter u m a ideia, m e u amigo — acrescentou Watab —, no p r e s e n t e m o m e n t o o c o r r e m mais de 180
conflitos a r m a d o s espalhados p o r diferentes recantos do
planeta. Isso, s e m c o n t a r os e m b a t e s existentes do lado de
cá, na d i m e n s ã o astral o n d e agora estamos. — D a n d o - m e
um t e m p o p a r a absorver o q u e falavam, pois p a r a m i m t u d o
era novo, Watab logo c o n t i n u o u . — Considere, por um instante, a q u a n t i d a d e de pessoas q u e d e s e n c a r n a m a b r u p t a
e v i o l e n t a m e n t e em todas as guerras, b e m c o m o daquelas
que p e r m a n e c e m vivas e n t r e os mortais, m a s cheias de dor,
ódio e rancor, devido ao h o r r o r q u e vivem nesses eventos.
Assim, p o d e imaginar q u a n t o as descargas mentais de milhões de espíritos, dos dois lados da vida, p o v o a m e contam i n a m a atmosfera psíquica do orbe.
A fala de W a t a b parecia abrir em m i n h a m e n t e u m a
nova p o r t a p a r a observar a realidade do m u n d o , de m o d o
t o t a l m e n t e diferente do m e u habitual. E aquilo era s o m e n -
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te u m a p a r t e da realidade, q u e se descortinava diante de
m e u olhar de espírito.
— Você está c o m e ç a n d o a entender, m e u caro — falou
Jamar, voltando-se p a r a mim.
À m e d i d a q u e c a m i n h á v a m o s , c o m imensa dificuldade, a paisagem se desdobrava ao redor. Ainda não havíamos
d e p a r a d o c o m e n t i d a d e s ditas das sombras, mas s o m e n t e
c o m energias, formas m e n t a i s dos e n c a r n a d o s e desencarnados, além das miríades de d e m e n t a i s , que organizavam
as f o r m a s - p e n s a m e n t o e emoções. M e s m o alguns deles se
t o r n a n d o viciados, acabavam p o r evitar q u e as egrégoras
densas p u d e s s e m regressar e afetar c o m i n t e n s i d a d e brutal
a m o r a d a dos h o m e n s .
A p a i s a g e m t o r n a v a - s e m a i s e mais e s c u r a e densa.
Os fluidos d a q u e l e a m b i e n t e se a s s e m e l h a v a m , a m e u s
olhos, a faixas de gaze sujas ou a formas q u a s e liquefeitas, c o m o tiras gigantes de tecido a se a r r e m e s s a r e m aqui
e ali, d e s o r d e n a d a m e n t e . F o r m a s escuras, verdes, v e r m e lhas; a l g u m a s vezes, p e r c e b i a coloração m a r r o m em m e i o
àquelas n u v e n s de e m o ç ã o e p e n s a m e n t o c o n t u r b a d o s , as
quais se originavam do ódio e da a m a r g u r a e x c r e t a d o s p e las almas em sofrimento. A nosso redor, movia-se alguma
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substância cuja n a t u r e z a eu n e m s e q u e r imaginava, mas,
pelo q u e m e e x p l i c a r a m o s g u a r d i õ e s , e r a m raios m e n tais, energias d i r e c i o n a d a s , e n ã o a p e n a s dispersas aleator i a m e n t e , q u e se dirigiam c o n t r a os c a u s a d o r e s das guerras. Movia-se gelatinosa aquela s u b s t â n c i a d e d e n s i d a d e
absurda, c o n s i d e r a n d o - s e q u e e s t á v a m o s t o d o s n u m a dim e n s ã o astral, fora da m a t é r i a . Ia e v i n h a de um lado p a r a
outro, e p o r vezes t í n h a m o s de nos afastar, b a i x a n d o - n o s
p a r a evitar q u e tais criações, q u e agora p a r e c i a m s e r p e n tes do inferno, p u d e s s e m nos t o c a r o c o r p o espiritual. Vi-me c o b e r t o d e fuligem, u m a espécie d e pó, s u b p r o d u t o d a
atmosfera d a q u e l e plano.
Foi q u a n d o avistamos os exércitos dos guardiões. Dispostos em forma de meia-lua, m a r c h a v a m em perfeita ordem, c o m alguns espíritos destacados do conjunto, à frente, c a r r e g a n d o aquilo que me p a r e c e r a m baterias elétricas
ou algo do gênero. Suas vestes rebrilhavam e, a mim, p a r e ciam espalhafatosas p o r demais, em cores vivíssimas, quase l e m b r a n d o t o n s fosforescentes. Talvez p o r isso, e r a m
p l e n a m e n t e visíveis, em meio a tantas e t e n e b r o s a s nuvens.
Um b a t a l h ã o de polícia feminina parecia vir de dois lados
ao m e s m o t e m p o ; e r a m as guardiãs. Semíramis emitiu um
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assobio n u m v o l u m e tão alto e n u m t o m tão agudo que me
i n c o m o d o u . Logo mais, J a m a r se p r o n u n c i o u :
— Para lidar c o m as f o r m a s - p e n s a m e n t o e emoções
cristalizadas nesta dimensão, s o m e n t e as guardiãs. Repare
c o m o elas lidam c o m a situação de m a n e i r a habilidosa.
Observei e vi c o m o muitas das m u l h e r e s - s o l d a d o se revolviam no ar, por e n t r e os fluidos do a m b i e n t e astral. Sub i a m sibilando, ao passo que os fluidos densos envolviam
cada uma, adquirindo forma de caracol, p a r a em seguida
serem sugados em lugar ainda mais alto, desconhecido por
m i m naquele m o m e n t o . I m e d i a t a m e n t e depois, u m a explosão, s e m e l h a n t e a u m a fornalha ardente, c o n s u m i a as form a s mentais inferiores em pleno ar, e n q u a n t o as guardiãs
voltavam levitando, suavemente, c o m seus bastões ou armas
energéticas em p u n h o . A região ficou m u i t o mais limpa e
agora era mais fácil se m o v i m e n t a r através dela. C o m a limp e z a do ambiente, sobressaiu a vegetação raquítica de um
chão pedregoso em alguns lugares, ressequido em outros,
com r a c h a d u r a s q u e lembravam o solo sertanejo do Nordeste brasileiro, no auge da estiagem. O batalhão de guardiões chegou e um de seus r e p r e s e n t a n t e s p a r o u diante de
todos, c u m p r i m e n t a n d o J a m a r e colocando-se às ordens.
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— Estamos a postos, Jamar! As guardiãs seguirão pelos
flancos, e n q u a n t o dividiremos nosso b a t a l h ã o em dois. Um
seguirá à frente, e o outro, ficará na retaguarda. Não serão
i n c o m o d a d o s n e m s u r p r e e n d i d o s n a c a m i n h a d a restante.
— Obrigado, guardião. F i q u e m todos à vontade. Vamos
logo ao nosso c a m p o de apoio.
Prosseguimos a j o r n a d a escoltados e, p o r t a n t o , mais
tranquilos. Pelo m e n o s eu estava mais tranquilo, pois não
notara da p a r t e de Jamar, Semíramis e suas amigas, t a m pouco de Watab, q u a l q u e r insinuação de q u e estivessem
assustados. M a n t i n h a m - s e s e m p r e vigilantes, atentos, mas
não tensos n e m assustados. Penso que e r a m h a b i t u a d o s a
situações do gênero. C o n t i n u a m o s pela paisagem astral, cam i n h a n d o r u m o ao quartel dos guardiões. M e s m o assim,
ainda se observava no e n t o r n o algum resquício daquela
substância r e p u g n a n t e q u e descrevi. E n q u a n t o eu examinava ao derredor, refletindo sobre a n a t u r e z a dos pensamentos e c o m o influenciam o m u n d o , Semíramis falou baixinho, dirigindo-se s o m e n t e a mim:
— Não p o d e m o s d e s a n i m a r a n t e as lutas na Terra, m e u
amigo. Não é preciso t e m e r q u a n d o p r e s e n c i a m o s fatos
como esses ou o u t r o s c o m os quais você t e r á c o n t a t o b r e -
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v e m e n t e . Nosso t r a b a l h o consiste em i m p l a n t a r a política
do Cordeiro, a base do Reino no m u n d o todo, em todas as
d i m e n s õ e s da vida.
"Esta substância escura e repulsiva, que r e p r e s e n t a a
soma dos p e n s a m e n t o s de angústia de nossos amigos encarnados, b e m c o m o da massa de d e s e n c a r n a d o s em aflição, está na p r ó p r i a Terra. O planeta g e m e c o m o quando
se está p a r a dar à luz um novo ser. Nesse caso, trata-se da
geração d e u m novo h o m e m , u m a nova h u m a n i d a d e . Mas
essa escuridão t o d a é a p e n a s a extensão do q u e vai dentro
do h o m e m . E seu lado sombrio, n a d a mais."
Calando-se p o r u m breve m o m e n t o , visivelmente e m o cionada, Semíramis prosseguiu n u m t o m ligeiramente diferente, carregado de s e n t i m e n t o s q u e p a r e c i a m irradiar-se
de sua aura:
— Precisamos d a r as m ã o s e desenvolver, q u a n t o pud e r m o s , respeito, amor, a m i z a d e e c o m p r e e n s ã o das diferenças. S o m e n t e assim, d e i x a n d o p a r a trás as barreiras do
preconceito e as de o r d e m denominacional, religiosa e política, é que conseguiremos renovar o m u n d o ao nosso redor. A Terra e s p e r a por nós, e nossa ajuda é incrivelmente
necessária neste m u n d o que todos a m a m o s .
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A fala de S e m í r a m i s t o c o u - m e p r o f u n d a m e n t e . Não
conseguia imaginar c o m o a h u m a n i d a d e , c o m o os h o m e n s c o n s e g u i a m viver e r e s p i r a r em m e i o àqueles elem e n t o s m e n t a i s e fluídicos, q u e p a r e c i a m se aglutinar
em t o r n o de sua m o r a d a . C o m o se m o v i m e n t a r e interagir em m e i o a esse caldo de f o r m a s - p e n s a m e n t o e e m o ções tão d e n s a s e c a r r e g a d a s de d o r e sofrimento? A cada
m o m e n t o p o d i a c o m p r e e n d e r m e l h o r a e x t e n s ã o do trabalho dos g u a r d i õ e s d o b e m , d a q u e l e s q u e e r a m c o m p r o m e t i d o s c o m a h u m a n i d a d e . Sem eles, s e m as g u a r d i ã s e
os guardiões, n ã o é exagero dizer q u e a vida na atualidade seria impossível na crosta t e r r e n a . Invisíveis aos olhos
humanos, trabalhavam diuturnamente para manter certa
cota de equilíbrio no o r g a n i s m o sensível do planeta, q u e
gemia, s e g u n d o o d i z e r de Semíramis, sofrendo o p a r t o de
u m a nova geração d e h o m e n s mais c o n s c i e n t e s . M a s era
um p a r t o ; talvez este fosse o m o m e n t o das d o r e s e c o n t r a ções, q u e a n t e c e d e m o p a r t o cósmico, p r o p r i a m e n t e . De
todo m o d o , até q u e o h o m e m novo nascesse, a p r e n d e s s e a
viver em p a z c o m o m u n d o , atingisse a m a t u r i d a d e espiritual, m u i t o t r a b a l h o esperava pelos g u a r d i õ e s e p o r t o d o s
os espíritos r e p r e s e n t a n t e s da política superior, q u e inspi-
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rava os seres da A r u a n d a e, e v i d e n t e m e n t e , de t a n t a s outras cidades espirituais.
J a m a r deteve seu olhar sobre m i m um instante, talvez
sabendo de m e u s p e n s a m e n t o s , m i n h a s reflexões. A esta altura, eu já não me importava q u e qualquer um dos guardiões
ou dos Imortais conhecesse m e u s mais secretos p e n s a m e n tos. Queria fazer p a r t e daquele time; aliás, eu fazia parte daquela equipe, que trabalhava pela renovação do m u n d o .
Já nos a p r o x i m a n d o do a m b i e n t e no qual se localizava
o r e d u t o dos guardiões, J a m a r falou:
— O que nos cabe, Ângelo, é a p r e n d e r q u a n t o pudermos, absorver ao m á x i m o o c o n h e c i m e n t o advindo das experiências da h u m a n i d a d e , t a n t o boas c o m o más, aprend e n d o a t r a n s m u t a r t u d o à nossa volta, do m e s m o modo
c o m o a planta absorve a luz solar e do ar retira elementos
q u e favorecem a m a n u t e n ç ã o da vida. Após o labor noss o — e das miríades d e exércitos d o S e n h o r q u e trabalham
nas regiões inferiores — provar a existência ou d e t e r m i n a r
quais casos são t e m p o r a r i a m e n t e insolúveis, estes serão
c o n d u z i d o s a regiões mais profundas da vida astral. Trata-se de um lugar em alguma m e d i d a comparável à concepção de inferno dos católicos. Ali, alguns espíritos a p r e n d e -
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rão, c o m outros professores da vida, a reavaliar a c o n d u t a e,
q u e m sabe, acordarão p a r a as claridades de u m a vida c o m
maior qualidade. No que tange a nós, estamos a salvo não
p o r q u e t e n h a m o s resolvido todas as questões íntimas ou
p o r q u e talvez t e n h a m o s enfrentado as p r ó p r i a s sombras
internas. Não! Isso ocorre a p e n a s p o r q u e t r a b a l h a m o s do
lado vencedor, e estamos s e n d o capacitados p a r a nossa tarefa; então, estamos a salvo na m e d i d a em q u e l u t a m o s do
lado de nosso líder, o Cristo.
Pela p r i m e i r a vez na vida ouvi u m a referência a Cristo
sem ser c o m forte conotação religiosa. Ele era a p r e s e n t a d o
ali, nas palavras de Jamar, c o m o o líder m á x i m o dos exércitos dos céus. E r a algo m u i t o novo p a r a m i m esse tipo de
abordagem. Fiquei satisfeito, pois constatava, a cada passo,
que eu t a m b é m fazia p a r t e desse exército do Cordeiro.
Astrid, u m a das guardiãs que a c o m p a n h a v a Semíramis
mais de perto, a p o n t o u ao longe, e olhei, j u n t a m e n t e c o m
todos de nossa equipe. Olhamos e vimos, p a r a d o em t o r n o
de u m a i m p o n e n t e muralha, n u m e r o s o g r u p o de seres, os
guardiões q u e nos esperavam em um local que mais parecia
u m a p e q u e n a cidade, u m a fortaleza em meio a t a n t a paisagem desoladora.
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Abaixo de u m a cadeia de m o n t a n h a s , localizava-se a
base dos sentinelas do b e m . Longa escadaria levava diretam e n t e p a r a a fortaleza, o n d e J a m a r parecia ser a referência
p a r a aquelas c e n t e n a s de almas que se capacitavam contin u a m e n t e p a r a o trabalho de Cristo. A visão das m o n t a n h a s
era algo impressionante. E a escadaria parecia levar não som e n t e até o local o n d e os guardiões se r e u n i a m , c o m o tamb é m , s e g u n d o p u d e enxergar naquele m o m e n t o , subia até
o pico do m o n t e mais i m p o n e n t e e n t r e os demais. Um tipo
de luz i m p e n e t r á v e l jazia no t o p o deste m o n t e q u e se sobressaía. Parecia i m p e n e t r á v e l para mim, c o n s i d e r a n d o - s e
m i n h a visão ainda n ã o a c o s t u m a d a aos efeitos da d i m e n são extrafísica. Por certo, t a n t o J a m a r q u a n t o outros mais
d e sua e q u i p e e r a m capazes d e p e r s c r u t a r p r o f u n d a m e n t e
aquela luz q u e encobria o c u m e .
Assim que c h e g a m o s à cidade dos guardiões, base onde
se r e u n i a m mais de 10 mil espíritos sob o c o m a n d o de Jam a r e Semíramis, p u d e ver em detalhes os exércitos que
ali estavam albergados sob a b a n d e i r a do b e m . Por sobre
as escadas, m o r r o acima, c e n t e n a s de seres aguardavam
seu c o m a n d a n t e , q u e retornava ao c a m p o de apoio. Não
sei q u a n t o s lugares c o m o este existiam naquelas paragens
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ou espalhados pelo plano astral, m a s sei q u e a visão dos seres acima da escadaria e dos outros, em frente às m u r a l h a s ,
c a u s o u - m e forte impressão. E eu chorei. Ali m e s m o , ante
a i m a g e m fantástica de t a n t a g e n t e boa t r a b a l h a n d o pelo
b e m da h u m a n i d a d e , chorei de emoção. A cena era arrebatadora, em grau ainda mais elevado q u a n d o a d e n t r á v a m o s
as m u r a l h a s da cidade.
Perto de nós, v í a m o s os espíritos, u m a legião deles,
vestidos d e u m a r o u p a tecida d e f l u i d o s r a d i a n t e s . O u t r a
e q u i p e usava u n i f o r m e s de cores e m a t i z e s d e s c o n h e c i dos p o r m i m , e n ã o c o n h e c i a palavras c a p a z e s de d e s c r e ver as n u a n c e s inusitadas. Os g u a r d i õ e s a postos, no t o p o
das escadarias, as quais levavam m o n t a n h a acima, sugeriam t a m a n h a i m p o n ê n c i a e m seu p o r t e , q u e era c o m p a rável a p e n a s à das vestes q u e ostentavam. Parecia haver
diversas o r d e n s de guardiões, pois envergavam trajes distintos, c e r t a m e n t e c o n f o r m e o a g r u p a m e n t o a q u e p e r t e n ciam. Alguns e r a m a t a r r a c a d o s , o u t r o g r u p o mais p a r e c i a
de p i g m e u s ; outros, ainda, l e m b r a v a m na a p a r ê n c i a certos povos asiáticos. E s t a v a m t o d o s ali a g u a r d a n d o - n o s , no
espaço d e d i c a d o ao q u a r t e l dos g u a r d i õ e s da noite, c o m o
mais t a r d e vim a saber. Tratava-se de um local de estudos,
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de a p r i m o r a m e n t o ; a escola o n d e e r a f o r m a d a a m a i o r parte dos espíritos q u e t r a b a l h a v a m nessa falange de soldados
do bem.
Fui acolhido de m a n e i r a generosa. C o n d u z i r a m - m e a
u m a p o s e n t o espaçoso, o n d e p u d e m e limpar d a poeira com u m à d i m e n s ã o o n d e transitávamos. Logo depois fui me
alimentar, j u n t o c o m os guardiões. Confesso q u e esperava
u m a refeição s e m e l h a n t e à q u e e n c o n t r e i na Aruanda, mas
aqui as coisas e r a m um t a n t o diferentes. Estávamos n u m a
z o n a de transição, cujas vibrações e r a m m u i t o densas. Enc o n t r a m o - n o s n u m amplo saguão d a q u e l a construção ímpar. N e m tive t e m p o de observar direito a p a r t e externa,
pois me sentia cansado. Ali o clima era de descontração e
riso, m a s m u i t a s p e r g u n t a s :
— E n t ã o você é o escritor q u e veio da Terra r e c e n t e m e n t e ? T r a b a l h a r á conosco? — p e r g u n t o u um guardião,
s e n t a n d o - s e a m e u lado.
— Sim, sou eu m e s m o , Ângelo Inácio. E você, q u e m é?
— Sou um e s t u d a n t e da escola dos guardiões. Não ten h o p a t e n t e ainda, ou seja, não t e r m i n e i m i n h a especialização. M e u n o m e é Ferreira. M a s você irá m e s m o se integrar
à nossa escola?
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— N ã o sei e x a t a m e n t e o q u e me aguarda. Por ora, fui
apenas convidado a c o n h e c e r de p e r t o este posto avançado
dos guardiões. De resto, e s p e r o q u e J a m a r me oriente a respeito de t u d o .
— Você é amigo do chefe? Que b o m ! — falou quase aos
b e r r o s o u t r o sentinela, que foi logo se a p r o x i m a n d o ; igualm e n t e descontraído, d e i x o u - m e mais à v o n t a d e ainda.
Logo, logo se formou em t o r n o de m i m um g r u p o de
espíritos, cujo c o m p o r t a m e n t o era p a r e c i d o c o m o dos soldados da Terra. C o n t u d o , respeitoso, s e m n e n h u m excesso.
Riram, b r i n c a r a m e me d e i x a r a m m u i t o à vontade. E n t r e
u m a conversa e outra, p u d e n o t a r algo peculiar. E r a m b a s t a n t e instruídos, estudavam c o m afinco e c o n h e c i a m a vida
astral e m profundidade. C e r t a m e n t e , c o m q u a l q u e r u m daqueles que se e n c o n t r a v a m no salão de refeições eu a p r e n deria muito.
Em meio ao clima de alegria, e n t r o u u m a guardiã. U m a
voz ressoou no a m b i e n t e :
— U m a guardiã! Todos a postos!
Todos se l e v a n t a r a m quase ao m e s m o t e m p o , fazendo
um gesto c o m o b r a ç o direito, colocando a m ã o sobre o peito. Bem, o g r u p o era c o m p o s t o p o r u m a espécie de militar
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do plano astral; de fato, até seus gestos p a r e c i a m de militar,
e m b o r a sem o rigor c o s t u m e i r o visto na Crosta por parte
de cadetes frente a seus c o m a n d a n t e s .
T ã o logo se levantaram, um dos guardiões c e d e u o lugar à mulher, q u e e n t r o u elegante, vestindo uniforme azul-cobalto e um tipo de capacete. Tirou o capacete e colocou-o
sobre uma das mesas, dirigindo-se aos demais. C o m o todos
fizeram silencio, o u v i r a m - n a facilmente.
— Sintam-se à vontade, c o m p a n h e i r o s . Sou Astrid, da
força-tarefa das guardiãs do hemisfério norte. — Todos se
s e n t a r a m , c o n t i n u a n d o a conversar alegremente, após a
a p r e s e n t a ç ã o de Astrid. Já a vira antes, no veículo j u n t o
c o m Semíramis; parecia q u e ocupava u m a posição de dest a q u e no a g r u p a m e n t o . Assim que me viu, deixou seu lugar
e se dirigiu aonde eu estava.
— E n t ã o já se e n t u r m o u c o m nosso pessoal?
— Não t e m c o m o não se sentir à v o n t a d e p o r aqui. A
t u r m a parece b e m animada.
Havia um g r u p o de mais ou m e n o s 15 espíritos a m e u
redor. Não dava p a r a ignorar a energia feminina e m a n a d a
de Astrid; p o r isso, alguns olhares, b e m h u m a n o s , por sinal,
voltaram-se p a r a ela de m a n e i r a especial.
257
— Rapazes!... — falou Astrid, alto e b o m som, sorrindo
em seguida.
— Desculpe, senhora... — r e s p o n d e u um dos espíritos,
quase gaguejando de vergonha.
Astrid riu gostosamente, e n t e n d e n d o a situação e deix a n d o a r a p a z i a d a descontraída. Em seguida falou comigo,
d e i x a n d o q u e a t u r m a ouvisse c l a r a m e n t e o que dizia:
— Bem, são h u m a n o s , Ângelo, c o m o todos aqui. E h o m e n s , t a m b é m — olhou rindo p a r a um deles. — Bem, quase
todos, não é?
Não e n t e n d i naquele m o m e n t o a brincadeira; s o m e n te mais t a r d e consegui i n t e r p r e t a r a insinuação de Astrid,
pois e n t r e os guardiões havia espíritos que viveram, q u a n do e n c a r n a d o s , c o m o homossexuais. E ali havia m u i t o s
deles. Porém, o c o m e n t á r i o da guardiã denotava razoável
intimidade c o m esses espíritos, não h a v e n d o n e n h u m a conotação depreciativa.
Os rapazes a nosso lado se abraçavam, r i a m e conversavam. Um deles, q u e se a p r e s e n t o u c o m o n o m e de Kelsey, de p r o c e d ê n c i a n i t i d a m e n t e inglesa, c e d e u lugar p a r a
a guardiã. E n q u a n t o Astrid conversava comigo, abraçados
c o m o velhos amigos, c o m e ç a r a m a cantarolar u m a canção.
258
Brincavam, implicavam u n s c o m os outros, faziam gracejos, m a s t u d o c o m o se fossem amigos de longa data, como
r e a l m e n t e e r a m — vim a saber em seguida. A guardiã, sentindo-se à v o n t a d e a m e u lado, disse n u m t o m mais baixo,
d e i x a n d o a música dos guardiões ao fundo, m e s m o q u e eles
estivessem tão p r ó x i m o s de nós:
— Estão aqui há um b o m t e m p o , m e u amigo. Neste posto de especialização, todos e s t u d a m i n t e n s a m e n t e .
Nestes m o m e n t o s de folga, q u a n d o se r e ú n e m p a r a refeição e descanso, se m o s t r a m c o m o crianças. São necessários m o m e n t o s assim, de d e s c a n s o e descontração, senão
n i n g u é m aguenta. O p r o g r a m a de e s t u d o dos guardiões é
intenso. D e d i c a m - s e pelo m e n o s 10 anos seguidos a estudos e l e m e n t a r e s , antes de s e r e m admitidos definitivamente
c o m o guardiões. Por isso, J a m a r p e r m i t e estes m o m e n t o s .
Os g r u p o s se revezam: e n q u a n t o estes estão aqui, os outros
t r e i n a m , e s t u d a m o u a t u a m e m campo, m o n t a n d o guarda
em algum r e c a n t o obscuro do astral.
A música dos rapazes parecia estar cada vez mais interessante, pois não s o m e n t e o g r u p o ao nosso r e d o r estava
cantando, c o m o t a m b é m u m n ú m e r o cada vez maior parecia se deixar envolver c o m a canção. Era algo q u e inspirava
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saudades, q u e falava da vida na Terra e da falta que s e n t i a m
d e seus lares, p o r é m n u m t o m n a d a triste, e m b o r a inspirasse um s e n t i m e n t o de nostalgia.
— Vê q u e s e n t e m s a u d a d e das famílias t e r r e n a s e dos
antigos lares?
— P u x a vida, Astrid! N u n c a imaginei que os espíritos
p u d e s s e m se c o m p o r t a r de m a n e i r a tão h u m a n a assim...
Astrid riu, o l h a n d o p a r a a t u r m a , que, abraçada, balançava-se, m e x e n d o u n s c o m os outros, divertindo-se na
c o m p a n h i a alheia, n u m a franca expressão de carinho.
— F o r m a m u m a família espiritual. E n t r e eles, encont r a m o sossego das emoções. Muitos deles, Ângelo, deixar a m o c o r p o físico d u r a n t e batalhas no seu país de origem
ou longe dos familiares queridos, pois haviam sido enviados para g u e r r a s ou missões em n o m e da pátria. D e s p e r t a r a m do lado de cá da vida cheios de s a u d a d e s do lar. F o r a m
aconchegados p o r outros guardiões e lhes foi oferecida a
o p o r t u n i d a d e de trabalhar, e s t u d a r e lutar p o r u m a causa
maior, por u m m u n d o sem fronteiras, p o r u m ideal universal. Assim a p o r t a m aqui d e z e n a s de espíritos, e J a m a r os
acolhe c o m sua equipe. Semíramis os adota c o m o pupilos,
e n q u a n t o a p r e n d e m sobre questões relevantes p a r a o tra-
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balho que d e s e m p e n h a r ã o e m algum m o m e n t o d a jornada.
— Mas você falou antes que e s t u d a m d u r a n t e 10 anos
consecutivos até s e r e m admitidos c o m o guardiões? Não é
m u i t o t e m p o ? Isso deve desencorajar m u i t a gente.
— Aqui não, Ângelo. Esse t e m p o é o m í n i m o necessário
para e n t r a r e m em c o n t a t o c o m o c o n h e c i m e n t o básico, essencial, e t a m b é m t e s t a r e m em c a m p o o q u e a p r e n d e r a m .
Afinal de contas, especializam-se em assuntos m u i t o delicados e complexos; p r e c i s a m de t e m p o p a r a aprofundar
seus estudos.
C o n c e d e n d o - m e u m instante p a r a pensar, e n q u a n t o
ouvíamos novas canções dos cadetes a nosso redor, Astrid
continuou:
— Afinal, que são 10 anos diante da eternidade? Muitos
passam até 100 anos do lado de cá da vida sem r e e n c a r n a r e,
conforme a especialização de alguns, até b e m mais tempo.
— C o m o assim? D e m o r a m t a n t o a voltar? Não existe
um limite m á x i m o p a r a esses espíritos ficarem aqui?
— Nada é absoluto, amigo. C o m o t e m p o , verá que t u d o
d e p e n d e de você m e s m o , da dedicação, das responsabilid a d e s assumidas e assim p o r diante. Por exemplo: examin e m o s o caso daqueles espíritos q u e m a n i p u l a m ectoplas-
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ma d i r e t a m e n t e , seja j u n t o aos e n c a r n a d o s , seja associados
a inteligências sombrias, as quais u s a m esse combustível
quase material p a r a levar a cabo seus projetos. U m a vez
que lidam c o t i d i a n a m e n t e c o m efeitos mais materiais ou físicos, tais espíritos d e m o r a m mais a reencarnar. Isso se dá
p o r q u e o c o n t a t o estreito c o m fluidos de n a t u r e z a material
ou semimaterial, c o m o o ectoplasma, lhes p r o p o r c i o n a r e lativa sensação de materialidade, na c o m p a r a ç ã o c o m outros d e s e n c a r n a d o s . Lidar c o m ectoplasma, d o m o d o c o m o
me refiro, é c o m o se fosse u m a r e e n c a r n a ç ã o em m e n o r espaço d e t e m p o , u m a m i n i r r e e n c a r n a ç ã o .
— Você fala em ectoplasma assim, c o m o se eu fosse um
e n t e n d i d o do assunto!
— Ah! Me desculpe, Ângelo. Esqueci que você ainda
não c o m e ç o u os estudos e não teve, na Terra, u m a formação que lhe transmitisse c o n h e c i m e n t o na área.
Assim q u e Astrid falou essas palavras, um guardião
de olhos claros, alto e corpulento, i n t r o m e t e u - s e em nossa
conversa, de m a n e i r a até respeitosa, mas assim m e s m o int r o m e t e n d o - s e , e falou baixinho, em m e u ouvido:
— P r e p a r e - s e , camarada. Você ficará m u i t o t e m p o conosco e s t u d a n d o antes de c o m e ç a r a trabalhar. Dez anos é
262
um t e m p o considerável, m e s m o aqui em nossa d i m e n s ã o —
o l h a n d o de soslaio p a r a a guardiã, afastou-se lentamente,
talvez e s p e r a n d o u m a r e p r e e n s ã o q u e não veio.
Naquele m o m e n t o , outras guardiãs p e n e t r a r a m o ambiente, e a música p a r o u de vez. Todos os rapazes olharam
para as m u l h e r e s , s e m p r e respeitosos, logo e s q u e c e n d o Astrid e eu. Elas e n t r a r a m em formação militar e em seguida
se d i s p e r s a r a m e se s e n t a r a m à m e s a j u n t o deles. Nada daqueles c o m e n t á r i o s bobos ou p i a d i n h a s sem graça que se
o u v e m n a Crosta, e n t r e o s h o m e n s , q u a n d o u m g r u p o d e
m u l h e r e s a d e n t r a u m a m b i e n t e p r e d o m i n a n t e m e n t e masculino. Riam, conversavam c o m o antes, m a s conservavam
certa discrição na p r e s e n ç a das guardiãs.
Em seguida, veio a refeição. C o m o já disse, foi d e c e p cionante p a r a mim, q u e esperava algo igual ou b e m próximo do q u e usufruíamos na cidade dos espíritos, a A m a n d a .
Serviram-se sucos e outras bebidas s e m e l h a n t e s àquelas
c o n h e c i d a s na Terra. Porém, ao tomá-las, notei que t i n h a m
c o n t e ú d o a l t a m e n t e revitalizante, pois, logo após o primeiro copo de suco, já me sentia refeito e p l e n a m e n t e satisfeito. Foi distribuída u m a espécie de comida c o m aparência
m u i t o p r ó x i m a a pão, além de algumas guarnições — pou-
263
cas, aliás. C o m o suco já me senti deveras saciado, mas assim m e s m o e x p e r i m e n t e i o novo alimento, q u e em n a d a
lembrava a fartura da Aruanda. Felizmente, n a d a de sopin h a s ou caldos. E me senti quase e m p a n t u r r a d o ao ingerir
a refeição oferecida ali.
Um dos guardiões a p r o x i m o u - s e e falou baixo, m a s
quase alegre demais:
— Acostume-se, amigo. Aqui as coisas são m u i t o mais
racionadas do q u e lá em cima — a p o n t o u para o alto. E eu
c o m p r e e n d i q u e falava da cidade espiritual. — M a s t e m o s
algo de m a i o r qualidade nutritiva, pois nestas regiões n e cessitamos de um alimento m u i t o mais calórico, vamos assim dizer. Lidamos com energias mais densas. No c a m p o
de batalha, então, as coisas m u d a m . Levamos conosco outro tipo, mais c o n c e n t r a d o , de alimento fortificante. Logo
você saberá, se ficar conosco.
Após p e q u e n a p a u s a no c o m e n t á r i o inesperado, o
guardião de n o m e Yurik, d e c e r t o advindo da antiga União
Soviética, a r r e m a t o u , quase n u m convite direto:
— E e s p e r a m o s que fique e n t r e nós! T e m o s m u i t a
curiosidade e v o n t a d e de a p r e n d e r por aqui e, t a m b é m ,
q u e r e m o s ter notícias da velha Terra.
264
Neste p o n t o da conversa, Watab e n t r o u no ambiente,
e logo t o d o s se colocaram de pé. O guardião fez um gesto
c o m a mão, e todos se s e n t a r a m n o v a m e n t e , descontraindo-se e c o n t i n u a n d o a conversa.
— Está na hora, Ângelo! J a m a r p e d e que se apresente p a r a c o n h e c e r de p e r t o nosso e s q u e m a de segurança
— a p r o x i m o u - s e de m i m e de Astrid, colocando a m ã o esq u e r d a sobre m e u o m b r o . — Aqui parece q u e você já se ent u r m o u . Ao q u e t u d o indica, os rapazes ficaram contentes
c o m sua chegada. Só se ouve falar de você em vários depart a m e n t o s . Isso ocorre q u a n d o a pessoa que chega traz certa
bagagem de c o n h e c i m e n t o , pois p a r a eles significa a possibilidade de se a p r o f u n d a r e m nos estudos.
O l h a n d o à volta, c o m o a conferir alguma coisa, Watab
convidou-nos:
— Vamos, então, amigos? — dirigindo-se a Astrid, convidou-a t a m b é m . — Se desejar ir, será b o a c o m p a n h i a para
nós. Venha, Semíramis t a m b é m está à espera. Vamos deixar
os rapazes e as m e n i n a s à vontade. Afinal, eles t ê m só mais
alguns m i n u t o s , antes de se a p r e s e n t a r e m ao trabalho.
Saímos, r u m o ao pátio o n d e J a m a r nos aguardava. Som e n t e e n t ã o p u d e n o t a r a g r a n d e z a das instalações, a im-
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p o n ê n c i a que t r a n s m i t i a m . O s guardiões, u m n u m e r o s o
contingente deles, dividiam-se em tipos h u m a n o s e especialidades, até o n d e p u d e r deduzir. D i s p u n h a m - s e , conforme a p r o c e d ê n c i a cultural, em pelotões de mais ou m e n o s
5 0 0 soldados. A g r u p a r a m - s e no hall do colégio dos guardiões ou do p r é d i o central.
O hall apresentava formato circular c o m um ligeiro
a l o n g a m e n t o n u m dos lados, quase se confundindo c o m
u m a forma oval. E r a r e a l m e n t e e n o r m e , pois, m e s m o cont a n d o - s e as pessoas aos milhares, t a n t o h o m e n s q u a n t o
m u l h e r e s , havia espaço de sobra. Os guardiões m a r c h a v a m ,
fazendo revoluções diante de nós. E r a algo belíssimo de se
ver, pois o faziam de tal m a n e i r a q u e não havia n e n h u m a
q u e b r a ou i n t e r r u p ç ã o no ritmo. A polícia feminina, se assim posso c h a m a r as guardiãs, esteve irrepreensível d u r a n te a apresentação. Os rapazes t a m b é m se e s m e r a r a m , c o m o
se estivessem i m b u í d o s de um ideal mais profundo, algo
que hoje em dia m u i t o r a r a m e n t e se vê na Terra, e n t r e os
encarnados.
Existia u m a t r i b u n a à frente. Estávamos ali Jamar, Watab, Semíramis, Astrid e eu. Havia o u t r o s r e p r e s e n t a n t e s
dos guardiões, t a m b é m , a q u e m mais t a r d e eu seria a p r e -
266
sentado; e r a m líderes de falanges de espíritos. De repente,
algum som foi ouvido, c o m o o soar de u m a t r o m b e t a , e os
diversos g r u p o s de guardiões, cada qual uniformizado de
m a n e i r a diferente, posicionaram-se em perfeita o r d e m à
frente da t r i b u n a o n d e nos e n c o n t r á v a m o s .
— N e m s e m p r e é assim, Ângelo. Convoquei os guardiões especialmente p a r a a p r e s e n t a r a você nossos contingentes. Isso será de g r a n d e valia para seu a p r e n d i z a d o e
p a r a o d e s e m p e n h o das tarefas que lhe competirão. Afinal
— falou J a m a r sério, c o m o um general frente a seus subordinados —, um escritor do Além precisa de m u i t o s elementos p a r a p o d e r se r e p o r t a r aos futuros leitores.
Sinceramente, não e n t e n d i direito ou c o m p l e t a m e n t e o
alcance das palavras de Jamar. M a s fiquei tão impressionado c o m o q u e via, que n e m me arrisquei a p e r g u n t a r nada,
p o r m e d o d e p e r d e r t r e c h o s das apresentações.
Um espírito foi c h a m a d o à tribuna, u m a espécie de artista ou cantor. Ele c o m e ç o u um hino, n u m r i t m o tão envolvente que me fez chorar, pela s e g u n d a vez; vi t a m b é m
algumas lágrimas discretas nos olhos dos guardiões a meu
redor. Todos os demais a c o m p a n h a r a m o hino, e s o m e n t e
e n t ã o u m a b a n d e i r a foi h a s t e a d a no pátio, e n q u a n t o todos
267
a fitavam, c o m certa reverência. E r a u m a flâmula de fundo
branco, q u e trazia a i m a g e m do p l a n e t a Terra em três dimensões, ao que me pareceu, de tão real se mostrava. Em
t o r n o do planeta, várias estrelas de um amarelo suave, quase d o u r a d o .
— O símbolo da Terra unificada — falou Semíramis
p e r t o de m i m —, da Terra pacificada.
Os guardiões p a r e c i a m hipnotizados, tal era o ardor, o
fervor c o m que cantavam o hino. Não conseguiria r e p r o duzir a letra aqui nestas páginas, pois ainda agora, q u a n d o
me l e m b r o do evento, e m o c i o n o - m e p r o f u n d a m e n t e . Era
algo v e r d a d e i r a m e n t e belo. Este g r u p o de seres vivendo
fora da matéria, u n i d o s em favor do b e m da h u m a n i d a d e ,
e a b a n d e i r a hasteada, que não era de n e n h u m a pátria, de
n e n h u m a nação e m particular, m a s d o p l a n e t a todo, d a h u m a n i d a d e , enfim — isso era e m o c i o n a n t e de se ver. Após o
hino, cada equipe passou a se a p r e s e n t a r p e r a n t e seu líder
ou chefe de falange, c o m o me explicaria Semíramis, mais
tarde. U m a falange, neste posto de guardiões, e r a c o m p o s t a
de 5 0 0 espíritos. U m a legião seria algo em t o r n o de 12 mil
entidades. Portanto, ali havia u m a legião de guardiões c o m
diversas falanges a serviço do Cordeiro. E n q u a n t o se a p r e -
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sentavam aos seus c o m a n d a n t e s , W a t a b falava baixo, para
que s o m e n t e eu escutasse:
— Aqui valorizamos m u i t o a m ú s i c a e a utilizamos
m u i t a s vezes em nossas investidas nas regiões das trevas e
do abismo. Além de tocar os corações mais e m p e d e r n i d o s ,
a música, p r i n c i p a l m e n t e em forma de h i n o s e marchas,
m o v i m e n t a recursos fluídicos tais q u e nos facilitam o trabalho, q u e n ã o raro é penoso, em regiões ainda b e m mais
densas do q u e esta o n d e estamos.
D u r a n t e o silêncio que logo se fez nas falanges de guardiões, notei que os g r u p o s se m o v i a m l e n t a m e n t e , em perfeita o r d e m e sincronia. Alguns ficaram de pé, mais ao fundo. Outros, no meio, s e n t a r a m - s e em p e q u e n o s bancos, que
eu n e m p e r c e b e r a c o m o foram postos ali. Pelo visto, ainda
teria i n ú m e r a s s u r p r e s a s nesta d i m e n s ã o da vida; não poderia me i n c o m o d a r c o m isso. A frente, o u t r o contingente
assentou-se em lugar mais baixo, de m o d o que cada grupo estava n u m p a t a m a r diferente, n ã o a t r a p a l h a n d o o de
trás, que p o d e r i a ver tão b e m q u a n t o o da frente. Um e outro guardião e guardiã e r a m c h a m a d o s à frente, a fim de entoar u m a canção de sua respectiva equipe. À m e d i d a que
cantavam, u m a a u m a as falanges exibiram u m a coreografia
269
própria, à frente dos demais, q u e ilustrava características
do trabalho sob sua alçada. Assim, fiquei s a b e n d o que havia
arte ali, t a m b é m . M e s m o nas regiões mais inferiores, a arte
era ensinada, estimulada e valorizada, de m a n e i r a a atuar
c o m o i n s t r u m e n t o p a r a enfrentar os desafios a p r e s e n t a d o s
pelas entidades sombrias.
E n q u a n t o se davam as apresentações artísticas das diversas equipes de guardiões, J a m a r falou comigo n u m v o l u m e e m q u e todos d a t r i b u n a ouviam, p o r é m sem i n c o m o d a r ninguém:
— Todos os guardiões, no início de nossas atividades
no planeta, fomos p r e p a r a d o s c o m m u i t a pressa, a fim de
e n t r a r m o s logo na peleja do b e m , c o n t r a a propagação do
mal. A c e l e r a d a m e n t e , as primeiras equipes de guardiões
foram convocadas e, ao longo dos séculos, g r a d a t i v a m e n te, formou-se a e s t r u t u r a maior, a t u a n t e hoje nas diversas
d i m e n s õ e s da vida t e r r e n a . Nos dias atuais, nosso colegiado dispõe de recursos quase ilimitados, u m a vez q u e estam o s t r a b a l h a n d o c o m maior sintonia j u n t o aos g o v e r n a d o res espirituais do orbe. E m a n a n d o do p r ó p r i o Cristo e de
Miguel, o r e p r e s e n t a n t e m a i o r da justiça divina no m u n d o ,
as v i r t u d e s e os p o d e r e s são transferidos e infundidos nos
270
diversos d e p a r t a m e n t o s da segurança planetária. Este aqui
é apenas um dos diversos a g r u p a m e n t o s responsáveis pela
segurança energética da Terra. À p r o p o r ç ã o q u e os espíritos se integram, e s t u d a m e se d e d i c a m ao trabalho, sua cap a c i d a d e m a g n é t i c a t a m b é m a u m e n t a , d e m a n e i r a que rep r e s e n t a m considerável obstáculo aos r e p r e s e n t a n t e s das
sombras. Nesse aspecto, s o m o s de tal forma estimulados
p o r nossos superiores, p o r Miguel em particular, q u e nossa
capacidade de visão c o m u m e n t e é ampliada, q u a n d o estam o s a serviço nas zonas mais inferiores, na subcrosta.
"Devido à necessidade de intervenção nessas regiões e
de fazer c o n t a t o c o m as inteligências mais sombrias e criminosas, nossa capacidade de ver e ouvir é muitas vezes
maior do que a dos o r i e n t a d o r e s evolutivos das pessoas, ou
seja, dos m e n t o r e s habituais. Há regiões no abismo mais
profundo a o n d e n e m m e s m o certos m e n t o r e s t ê m autorização p a r a ir, assim c o m o m u i t o s n e m d e t ê m t r e i n a m e n t o
para lidar c o m os agentes do mal ou as energias poderosas
p r e s e n t e s e m seus redutos.
"Sendo assim, talvez você consiga e n t e n d e r — falava
Jamar, solene — a necessidade de nos d e d i c a r m o s por tanto
t e m p o aos estudos em regiões c o m o esta. Temos de desen-
271
volver nossa capacidade de atuar nas esferas mais densas,
abaixo de nós, t a n t o q u a n t o de elevarmos nossa frequência
a regiões mais altas da espiritualidade, a fim de nos abastec e r m o s c o m as inspirações q u e nos o r i e n t a m as tarefas."
Ao ouvir a exposição de J a m a r sobre a n a t u r e z a das
atividades realizadas pela equipe, e n q u a n t o observava a
apresentação dos guardiões, i m p r e s s i o n e i - m e c o m a grandeza do t r a b a l h o desses espíritos e da e s t r u t u r a a seu serviço, ou seja, o p o d e r q u e r e p r e s e n t a v a m . Após ligeira p a u s a
para que eu assimilasse o que explicava, o guardião da noite continuou:
— T r a b a l h a m o s p r o f u n d a m e n t e ligados às e s t r u t u r a s
de p o d e r superiores, aos Imortais. Deles v ê m as deliberações, as inspirações, e vez ou o u t r a r e c e b e m o s a visita de
um dos Imortais, q u e nos b r i n d a m c o m sua p r e s e n ç a nas
regiões de transição. Servimos em sintonia c o m o c o m a n do s u p r e m o dos guardiões, q u e mais t a r d e lhe apresentarei.
Aqueles que se o c u p a m de tarefas em regiões mais inferiores ou densas, em lugares c o m u m e n t e ignorados ou m e s mo vedados a espíritos c o m u n s , r e c e b e m intuição e orientação dos espíritos mais avançados, que a s s u m e m encargos
em d i m e n s õ e s mais etéreas, m e n o s materiais. J a m a i s estão
272
sozinhos os q u e a t u a m na frente de c o m b a t e ou defesa. Há
u m a e s t r u t u r a espiritual invejável, c o o r d e n a d a pelo próprio Cordeiro de Deus e p o r seu emissário maior, Miguel, o
p r í n c i p e dos exércitos celestiais.
14
— Então, são todos guerreiros a serviço de Cristo? —
perguntei.
— Isso m e s m o , guerreiros do b e m . E assim seremos até
que a Terra esteja c o m p l e t a m e n t e renovada pelas diretrizes a p r e s e n t a d a s pela política divina.
J a m a r silenciou-se p o r um t e m p o , d u r a n t e o qual eu
assistia, cada vez mais interessado, às apresentações. Neste
m o m e n t o , as guardiãs e n t r a r a m em cena e, elevando-se ao
alto, a p r e s e n t a v a m interessante coreografia no espaço logo
acima de nós. Semíramis parecia orgulhosa de sua equipe. E era r e a l m e n t e p a r a orgulhar-se, pois n e n h u m a outra
equipe se igualou à das guardiãs, especialistas singulares da
equipe geral. Em seguida, J a m a r me a p r e s e n t o u algumas
das falanges e sua especialidade. Muitas delas estavam rep r e s e n t a d a s na A m a n d a , pois na universidade local davam
14
Cf. Dn 12:1; Ap 12:7. Cf.
PINHEIRO.
Pelo espírito Ângelo Inácio. A marca da besta.
Contagem: Casa dos Espíritos, 2010. p. 605-614.
273
instruções e formavam espíritos, a fim de que, mais tarde,
integrassem a g r a n d e hoste do b e m formada pelos servidores de Cristo nas regiões inferiores.
— P r i m e i r o é necessário que você c o n h e ç a a inspiração
ou concepção da e s t r u t u r a m o n t a d a no p l a n e t a — r e t o m o u
ele — para, depois, e n t e n d e r nossa p r ó p r i a especialização
c o m o guardiões.
"Ninguém ignora q u e a maioria dos h a b i t a n t e s da Terra é c o m p o s t a p o r pessoas cujo passado religioso t e m grande peso em sua formação espiritual e cultural, a tal p o n t o
que a maior p a r t e é de religiosos ou ex-religiosos. Design a m o s esses espíritos c o m o agentes da misericórdia divina
q u a n d o se colocam a serviço da h u m a n i d a d e ou de Cristo,
ainda que c o n s e r v e m cada qual sua cultura espiritual ou
sua m a n e i r a de ver e p e n s a r s e g u n d o antigas convicções.
De m a n e i r a geral, são seres q u e se d e s t a c a m p o r a p r e s e n t a r e m característica í n t i m a do tipo emotivo. Desenvolveram
em si a capacidade de auxiliar, e m b o r a n e m s e m p r e auxiliar signifique amar. D e s c e m às regiões u m b r a l i n a s e exercitam aquilo q u e a religião ensinou, no q u e c o n c e r n e ao
a m o r ao p r ó x i m o . F u n d a d o s nessa tradição, criaram cidades, colônias e e s t r u t u r a s de governo do lado de cá da vida,
274
no intuito de acolher, c o n d u z i r ou orientar, exortar ou dout r i n a r espíritos necessitados, convalescentes ou em sofrim e n t o , q u e b u s c a m t r a z e r das z o n a s de purgação. São muitas as equipes de socorro que se r e ú n e m sob a a l c u n h a de
agentes da misericórdia. M e s m o e n t r e os e n c a r n a d o s , são
maioria absoluta. E notável c o m o progride na Terra, atualm e n t e , o n ú m e r o de iniciativas de o r d e m assistencial, de
p r o m o ç ã o h u m a n a e de socorro aos necessitados, nos mais
diversos r e c a n t o s do globo. E assim precisa ser, pois ainda
há m u i t o sofrimento nos dois lados da vida. Não obstante,
g e r a l m e n t e tais servidores se e n c o n t r a m ligados à forma de
p e n s a r e de ver a vida s e g u n d o o m o v i m e n t o religioso que
fez p a r t e de sua história pessoal."
J a m a r falava de tal m a n e i r a q u e eu percebia imagens
m e n t a i s a ilustrar o que me dizia. Será q u e ele estava realm e n t e p r o j e t a n d o e m m i n h a m e n t e t u d o aquilo? Era telepatia esse f e n ô m e n o intrigante e especial? Sem me respond e r as indagações, o guardião da noite prosseguiu:
— Contudo, Ângelo, os guardiões fazem p a r t e de outro time, e m b o r a s e m p r e sob a orientação de Cristo. Somos
o que se p o d e caracterizar c o m o agentes da justiça divina.
E n c a r n a d o s t a n t o q u a n t o d e s e n c a r n a d o s , não nos d e t e m o s
275
para ouvir o p r a n t o dos o p r i m i d o s n e m t a m p o u c o socorrer
os aflitos. Nossa atuação visa r e c o m p o r a o r d e m e a disciplina, evitando que o caos se estabeleça no m u n d o , nas várias d i m e n s õ e s . Nosso t r a b a l h o n ã o se antagoniza c o m as
tarefas dos agentes da misericórdia; pelo contrário, lhe é
complementar. E n q u a n t o u m g r u p o s e especializa e m d e t e r m i n a d o aspecto, c o m o auxílio e amparo, ajudas h u m a nitárias e e r g u i m e n t o dos caídos, a o u t r o g r u p o c o m p e t e
evitar o caos. T a m b é m s o m o s conhecidos, em algumas dimensões, c o m o agentes de vibrações. Seja lá qual for o n o m e
pelo qual nos designam, nossa tarefa principal é fazer o p o sição ao mal e estabelecer as bases da política divina, de
maneira q u e p o s s a m o s auxiliar a Cristo na administração
e na renovação planetárias. Essa é a forma mais r e s u m i d a
possível q u e e n c o n t r e i para lhe apresentar, m e u amigo, ambas as faces do governo oculto do m u n d o .
"Por um lado, os agentes da misericórdia se caracterizam pela n a t u r a l p r o p e n s ã o a ajudar s e m p r e , quase sem
olhar a q u e m auxiliam, e p o r i m p r i m i r nas atividades certa
conotação moral e religiosa. Por o u t r o lado, a maioria desses espíritos e n t e n d e m a p r ó p r i a s o m b r a c o m o algo i n d e sejável. C o s t u m e i r a m e n t e , referem-se a seu passado cul-
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poso e à necessidade de se reformarem; em seu d i s c u r s a
salientam quão longe estão de atingir os objetivos suprem o s do a m o r e das virtudes. De m o d o geral, c o m raríssimas exceções, são espíritos que t r a z e m um s e n t i m e n t o de
culpa p r o f u n d a m e n t e arraigado, j u s t a m e n t e devido à forte
influência da cultura religiosa na formação espiritual. Por
isso, não raro, nota-se em sua fala a ênfase na necessidade
de t r a b a l h a r m u i t o e sempre, de n ã o descansar jamais ou
quase nunca, de e s t u d a r o Evangelho o t e m p o todo, restringindo a ele as conversas e explanações. N ã o gostam de tocar em assuntos considerados polêmicos ou controversos e.
c o m frequência, são b a s t a n t e políticos, pois desejam agradar a todos, em n o m e da paz, do a m o r e da união fraternal.
" E v i d e n t e m e n t e , isso não é um mal em si, mas difere
largamente da característica espiritual dos agentes da justiça divina, os quais a d o r a m e n t r a r n u m a briga, d e s d e que
ela seja útil e resolva a situação. Não são n a d a políticos,
q u a n d o m u i t o se esforçam p a r a ser diplomáticos, visando
a d e t e r m i n a d a estratégia. Definem-se a b e r t a m e n t e a favor da ética, m a s de m o d o algum são moralistas a p o n t o de
classificar as coisas mais sérias da vida s e g u n d o um sistema
simplista de b e m e mal, certo e errado, v i r t u d e e pecado.
277
Os agentes da justiça n ã o t e m e m enfrentar o mal, m e s m o
que este esteja disfarçado de b e m , e e n t r a m em discussão acalorada p a r a solucionar os distúrbios de emoção, de
c o m p o r t a m e n t o ou de intrusão do mal. E m b o r a se d e i x e m
sensibilizar c o m a dor do outro, sua tarefa consiste m u i t o
mais em enfrentar os opositores do b e m no c a m p o de batalha do que em e n x u g a r lágrimas. T i p i c a m e n t e , não são de
falar manso, b a i x i n h o ou de forma discreta; i n c o m o d a m e
polemizam q u a n d o há alguma discussão ou manifestação
de ideias. T e n d e m a ser mais seguros de si, pois precisam
defender o que é ético, sobre o qual t ê m p l e n a convicção.
Nós, os guardiões, c o m o já disse, somos agentes da justiça
divina, c o m o p o d e notar.
"Dito isso, m e u amigo, vamos à a p r e s e n t a ç ã o de alguns
poucos g r u p o s e n t r e os guardiões. Não haveria t e m p o de
lhe a p r e s e n t a r todos; eis os q u e mais se d e s t a c a m em nossa
corporação."
Fiquei b o q u i a b e r t o diante da explanação de Jamar.
Não imaginava tão g r a n d e abrangência do m é t o d o de trabalho do lado de cá da vida. Antes q u e ele continuasse ou
começasse a me a p r e s e n t a r as diversas faces dos guardiões,
ousei i n t e r r o m p ê - l o e p e r g u n t a r :
278
— E c o m o classificar os espíritos q u e vivem na A m a n da? São agentes da justiça ou da misericórdia?
J a m a r o l h o u p a r a mim, c o m o q u e intrigado por eu
n ã o t e r p e r c e b i d o isso ainda. M e s m o assim, r e s p o n d e u - m e
s e m hesitar:
— Claro q u e a A m a n d a é u m a região espiritual onde
se r e ú n e m agentes da justiça divina. Se quiser c o n h e c e r os
amigos nossos que t r a b a l h a m c o m o agentes da misericórdia, deverá se dirigir a Nosso Lar, Vitória Régia e outras cid a d e s do Além.
Sem me d a r t e m p o para réplica, i n t r o d u z i u os guardiões. A p o n t a n d o cada guarnição de soldados da justiça divina, explicou:
— Aqueles vestidos de verde-oliva são os guardiões da
noite, espíritos especializados no trato c o m magos negros,
os mais cruéis obsessores conhecidos no s u b m u n d o — Jam a r levantou a mão, e logo u m a g u a r n i ç ã o de mais ou m e nos 100 soldados do astral adiantou-se em direção à tribuna, t o r n a n d o possível observá-los d e t i d a m e n t e .
O traje que usavam i m p u n h a respeito. A calça masculina lembrava aquela u s a d a pelo exército alemão na Segunda
Guerra, u m a espécie de b o m b a c h a . No entanto, a jaqueta
279
diferia b a s t a n t e desse estilo; t i n h a t r a ç a d o mais m o d e r no, design arrojado p a r a a tradição militar. Mostrava gola
de padre, algumas p o u c a s insígnias no ombro, cuja função
parecia ser distinguir a especialidade ou d e t e r m i n a r a classe de guardiões a que esses espíritos p e r t e n c i a m . As m u lheres ou espíritos femininos que c o m p u n h a m esse pelotão de especialistas desfilavam c o m um figurino não m e n o s
impressionante. Todas t r a z i a m cabelos curtos, u m a espécie
de q u e p e a d o r n a n d o a cabeça, calças c o m p r i d a s e t a m b é m
usavam insígnias, p o r é m do o m b r o direito. Todos, h o m e n s
e m u l h e r e s , p o r t a v a m algum tipo de arma, q u e s o m e n t e
mais t a r d e vim a saber tratar-se de e q u i p a m e n t o de segurança q u e utilizava radiação. O p o r t u n a m e n t e , J a m a r explicou-me que lhe davam o n o m e de arma de pulsos, cuja
finalidade é enfrentar os magos e cujo efeito é fazer d e s m o ronar seus c a m p o s de invisibilidade.
— Os guardiões da noite são hábeis na utilização de
m a g n e t i s m o e e l e t r o m a g n e t i s m o dispersos na atmosfera
astral. C o n s e g u e m m a n i p u l a r c o m e x t r e m a eficiência esses
f l u i d o s , i n d e p e n d e n t e m e n t e d e e m p r e g a r e m o u não equip a m e n t o p a r a tal finalidade. P o d e m usar as mãos, c o m o se
fossem antenas, ou i n s t r u m e n t o s guiados pelo p e n s a m e n -
280
to — h a b i l m e n t e t r e i n a d o d u r a n t e pelo m e n o s 40 anos, antes de e n f r e n t a r e m o c a m p o de batalha; assim, aglutinam
raios de g r a n d e poder. Por meio dessa técnica, são capazes
de formar c a m p o s de força e de c o n t e n ç ã o em t o r n o de espíritos e ambientes. São eles, t a m b é m , os responsáveis diretos pelo colégio dos guardiões, na A m a n d a .
Fiquei impressionado já com a descrição r e s u m i d a que
J a m a r fazia da habilidade daqueles espíritos. Não imaginava
que fosse tão minuciosa a capacitação de seres do plano extrafísico. Se era assim, é p o r q u e existia d e m a n d a , ou seja, decerto havia um sistema de p o d e r nas regiões inferiores que
precisava ser enfrentado da m a n e i r a mais eficaz possível.
Antes q u e m e u s p e n s a m e n t o s p u d e s s e m voar nas reflexões p r o d u z i d a s pelo q u e eu presenciava, o guardião
c o n t i n u o u a apresentação. Levantou a m ã o e deu novo sinal. A p r o x i m a r a m - s e agora os espíritos de formação cultural n i t i d a m e n t e indiana. Vestiam calças b r a n c a s e jaquetas
muitíssimo diferentes das anteriores. T r a z i a m inscrita no
peito, assim c o m o n u m a flâmula b r a n c a que carregavam,
u m a cruz azul, símbolo da ligação com d e t e r m i n a d a hierarquia espiritual. T u r b a n t e s azuis e n c i m a v a m a cabeça; eram
n o t a d a m e n t e sérios, e t r a n s m i t i a m certa s e g u r a n ç a e fascí-
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nio com sua presença. Desfilaram diante da t r i b u n a c o m o
os outros, a p r e s e n t a n d o - s e de m a n e i r a irrepreensível, c o m
m o v i m e n t o s quase robóticos de tão alinhados. Obedeciam
rigorosamente ao r i t m o da m a r c h a ; até m e s m o a expressão
facial parecia sincronizada.
— Esta é a Legião de Maria — falou Jamar, e m p e r t i g a n do-se e r e s p o n d e n d o ao sinal a p r e s e n t a d o por aqueles espíritos. Era algo c o m o um c u m p r i m e n t o militar, e m b o r a m u i to diferente do q u e se vê na Crosta. — Eles são c o o r d e n a d o s
por Zura, um dos nossos mais c o m p e t e n t e s guardiões, q u e
agora está em tarefa j u n t o aos e n c a r n a d o s . A m a i o r especialidade desses espíritos é lidar c o m q u e m c o m e t e u suicídio ou habita vales de d o r e sofrimento. A eles coube reest r u t u r a r os vales existentes no plano astral. O r g a n i z a r a m a
reurbanização do vale dos suicidas, em particular. M e d i a n te a colaboração de espíritos de outras áreas, transformaram a região em um posto de socorro avançado, c o m h o s pitais, escolas e toda u m a e s t r u t u r a de apoio àqueles seres,
cuja carga tóxica exige depuração, além da necessária r e e ducação espiritual, m e n t a l e emocional.
"Os legionários de Maria sabem c o m o n i n g u é m resgatar almas m a n t i d a s em cativeiro pelos magos negros, em
282
prisões localizadas nas zonas abissais ou na região astral
c o r r e s p o n d e n t e às águas oceânicas mais profundas. Agem
s e m p r e em g r u p o s de mais de 50 espíritos e t r a b a l h a m sob
a inspiração de Maria de Nazaré. T a m b é m d e t ê m grande
habilidade na defesa direta, à frente do c a m p o de batalha.
Através de suas lanças, p r o j e t a m p o d e r o s a radiação, emitida p o r e l e m e n t o s radioativos retirados do interior do plan e t a e ainda d e s c o n h e c i d o s dos e n c a r n a d o s . Tais radiações
são capazes de desestruturar, em instantes, as construções
m e n t a i s dos magos e cientistas da oposição, além de causar
o colapso dos c a m p o s de força q u e estes m a n t ê m através de
e q u i p a m e n t o s eletrônicos e tecnologia científica."
Logo depois, o u t r o g r u p o de espíritos se apresentou,
vestindo roupas s e m e l h a n t e s às q u e usavam alguns povos
asiáticos no início do primeiro milênio. Pareciam feitas de
peles de animais, e m b o r a o traço rústico não se fizesse presente na m a n e i r a de desfilarem. Era um pelotão composto
por mais de 2 0 0 espíritos, e o ritmo c o m o m a r c h a v a m à nossa frente lembrava m u i t o o estilo e a disciplina observados
nas forças a r m a d a s chinesas e japonesas, nos dias atuais.
— Estes são os mongóis — explicou Jamar. — Seu com a n d a n t e é c o n h e c i d o pelo n o m e de Gengis Khan, em h o -
283
m e n a g e m ao líder mongol. C o m o i n s t r u m e n t o s de c o m bate nas regiões inferiores, u s a m formas extrafísicas de
animais, tais c o m o cavalos, os quais cavalgam n u m a velocid a d e alucinante, deslizando sobre os fluidos mais p e s a d o s
c o m notável habilidade. C o s t u m a m s u r p r e e n d e r legiões de
espíritos m a u s c o m seu a r m a m e n t o favorito, o arco e flecha, t e n d o seu arco o formato típico dos asiáticos, b a s t a n te curvo Na verdade, trata-se de um e q u i p a m e n t o de alta
tecnologia forjado c o m esse aspecto. Q u a n d o atiradas dur a n t e o cavalgar nas regiões mais densas, as flechas a b r e m
caminho, rasgando e q u e i m a n d o os fluidos ambientes. Ao
atingir o alvo, como, p o r exemplo, as c o n s t r u ç õ e s extrafísicas de e n t i d a d e s sombrias, p r o v o c a m sensível estrago. L e vam a substância astralina da qual tais c o n s t r u ç õ e s é feita a
explodir, esfacelando m u r a l h a s , casas, castelos ou q u a l q u e r
edificação das e n t i d a d e s do mal.
"A falange dos mongóis é m u i t o t e m i d a nas regiões ínferas, nos lugares o n d e se r e ú n e m antigos políticos e seus
exércitos de seres sombrios. T e m agilidade e capacidade defensiva e ofensiva comparáveis s o m e n t e às dos nossos amigos índios peles-vermelhas, q u e você c o n h e c e u na
Aruanda, Ângelo. Os mongóis são ciosos de seu dever e es-
284
pecialistas nas culturas da Ásia, c o n h e c e n d o mais q u e outros g r u p o s de guardiões não a p e n a s a cultura, mas o território astral daquele continente. T a m b é m são nossos
aliados nos planos abissais q u e c o r r e s p o n d e m a d e t e r m i n a da região do Oceano Pacífico, b e m c o m o nas profundezas
do M a r Cáspio, locais o n d e se r e ú n e n u m e r o s o g r u p o de
magos q u e se g r a d u a r a m nos colégios iniciáticos da Ásia.
Geralmente, e n t r a m em ação apenas q u a n d o a h a r m o n i a e
a disciplina estão ameaçadas, e m b o r a t r a b a l h e m em estreita associação c o m os guardiões da noite em suas investidas.
C o m o disse, c o n s t i t u e m um dos g r u p o s mais t e m i d o s e respeitados, n o t a d a m e n t e naquelas regiões do s u b m u n d o . O
símbolo, que p o d e ver d e s e n h a d o na b a n d e i r a dessa falange, consiste n u m lobo q u e parece vivo, apesar de ser apenas
u m desenho."
Não havia c o m o não se i m p r e s s i o n a r c o m aquele pelotão de guardiões. Era r e a l m e n t e e s t o n t e a n t e imaginar o
que era capaz de fazer. Assim que t e r m i n a r a m de passar à
nossa frente, o u t r a e q u i p e da m e s m a categoria veio do alto,
com seus integrantes m o n t a d o s em cavalos negros, crinas
b e m visíveis. F i z e r a m u m a revolução nos fluidos acima de
nós, p a r a logo em seguida baixarem, aterrissando diante de
285
todos c o m seu a r m a m e n t o de g u e r r a c o n t r a as hostes sombrias à mostra. Eu estava eletrizado com o que via. Porém,
não se e n c e r r o u aí a a p r e s e n t a ç ã o dos guardiões. Logo após
veio o u t r o grupo, desfilando c o m g r a n d e orgulho, disciplina e altivez. E r a m os legionários r o m a n o s , pelotão formado
por soldados do p r i m e i r o e s e g u n d o séculos, além de espíritos cristãos daquele t e m p o de perseguição, q u e se oferec e r a m para defender a política do Cordeiro.
— São o r i e n t a d o s p o r Sérvulo Túlio, chefe desta legião. Estão a postos p o r t o d a a A r u a n d a e são m u i t o r e s peitados nas regiões u m b r a l i n a s mais p r ó x i m a s à Crosta.
Especializaram-se em lidar c o m espíritos v â n d a l o s e alguns c o m p o n e n t e s energéticos m a i s d e n s o s advindos d e
regiões inferiores, emitidos s o b r e t u d o p o r d e s e n c a r n a dos — t a n t o p o r aqueles em sofrimento q u a n t o p o r b a n dos c o n h e c i d o s c o m o quiumbas, s e g u n d o a n o m e n c l a t u r a
de algumas c o r r e n t e s espiritualistas. Os r o m a n o s s a b e m
rebater os d a r d o s inflamados enviados p o r tais espírito e,
se preciso for, vão a b e r t a m e n t e , à frente dos d e m a i s guardiões, na luta c o n t r a as h o s t e s q u e se o p õ e m ao t r a b a l h o
do b e m ou q u e investem c o n t r a as obras c o m u n i t á r i a s , sociais e de g r u p o s religiosos.
286
Talvez p a r a não ficar cansativo demais, J a m a r passou
a me fornecer explicações antes m e s m o de os espíritos se
a p r e s e n t a r e m . O g r u p o do qual ele falou em seguida nem
m e s m o estava p r e s e n t e no quartel, mas J a m a r fazia questão de falar sobre eles.
— Há t a m b é m os puris. São antigos índios, não espíritos s u p e r i o r e s ou esclarecidos c o m o alguns caboclos, mas
índios g u e r r e i r o s primitivos, p o r é m c o n d u z i d o s e orientados ao b e m pela figura de antigos c o m a n d a n t e s , caciques e
chefes de falange. E n t r e eles, t e m o s guerreiros, no verdadeiro sentido da palavra. Flecheiros e g u e r r e i r o s das antigas tribos de t u p i n a m b á s , g u a i c u r u s e tupis-guaranis, além
de r e p r e s e n t a n t e s de algumas n a ç õ e s indígenas da América do Norte. Os puris são, por excelência, os c o m b a t e n tes dos obsessores. Não são m u i t o esclarecidos q u a n t o a
questões de ciência ou magia, m a s t r a b a l h a m c o m o recrutas, soldados de c a m p o de batalha, q u e s a e m pelo umbral,
sob o c o m a n d o dos caboclos, em cavalos b r a n c o s , invadindo as bases s o m b r i a s e d r i b l a n d o as forças das trevas. São
m u i t o t e m i d o s p o r q u i u m b a s e h o r d a s de obsessores, pois
d e t ê m u m a força b r u t a invejável, além de m a n i p u l a r e m
h a b i l m e n t e os fluidos mais grosseiros da n a t u r e z a . Foram
287
exclusivamente índios, selvagens, p o r assim dizer, em suas
últimas e n c a r n a ç õ e s .
"Como chefes dessa falange, t e m o s os caboclos mais
ilustrados. Estes, sim, espíritos mais instruídos, em cujo
passado espiritual viveram diversas experiências c o m o com a n d a n t e s , especialistas em ciências naturais ou, então, for a m verdadeiros iniciados de tradições ainda mais remotas,
e e s c o l h e r a m r e e n c a r n a r e n t r e as nações indígenas c o m o
orientadores evolutivos. Esses caboclos são m u i t o c o m u m e n t e vistos nas ruas da A r u a n d a . C o m certeza, em breve
saberá maiores detalhes sobre eles."
Queria m u i t o ver tais espíritos em ação algum dia, pois
me fascinava, em larga medida, p e n s a r sobre a c u l t u r a indígena e ver c o m o foram valorosos em alguns países, resistindo à invasão do h o m e m branco. I n d i g n a r a - m e n u m e r o sas vezes, q u a n d o e n c a r n a d o , ao constatar c o m o as nações
europeias de conquistadores d i z i m a r a m a maior p a r t e da
população e da cultura indígenas. Mais ainda, eles contin u a m t r a b a l h a n d o no m u n d o oculto, mas agora em prol do
equilíbrio e da h a r m o n i a dos a m b i e n t e s o n d e os h o m e n s da
civilização ocidental vivem e labutam. Q u e atitude louvável, de tirar o chapéu...
288
E n q u a n t o refletia a respeito dessas questões, Jamar
deu um sinal e, então, veio à frente um batalhão de mais de
700 espíritos.
— Estes são a p e n a s os chefes de falange de o u t r o grupo,
q u e é o dos exus. Os que aqui se a p r e s e n t a m t r a z e m nomes
c o m conotação cabalística, escritos e p r o n u n c i a d o s numa
linguagem mística, e m b o r a saibamos seus n o m e s particulares, usados fora dos círculos de e n c a r n a d o s . T a m b é m são
c o n h e c i d o s c o m o guardiões de rua, pois s e m eles a situação
nas cidades, nas rodovias, no a m b i e n t e h u m a n o , enfim, seria insustentável, incapaz de se a d m i n i s t r a r c o m a mínima
o r d e m e disciplina.
E, c o m o se eu hesitasse, ele reiterou.
— Sem a atuação desses espíritos, seria impossível
m a n t e r o controle e o equilíbrio nas cidades e em t u d o o
mais que envolve de p e r t o a p o p u l a ç ã o h u m a n a . Os chefes ou m e n t o r e s r e c e b e r a m especialização nas escolas da
A m a n d a e de algumas poucas cidades do astral superior.
"O papel mais i m p o r t a n t e que d e s e m p e n h a m os exus.
de m o d o geral, é p r o m o v e r a limpeza energética e mental
do a m b i e n t e dos h o m e n s , além de auxiliar na m a n u t e n ç ã o
da o r d e m e da disciplina nas r u a s e nos locais públicos. São
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os guardiões que mais se a s s e m e l h a m à figura dos soldados
ou dos policiais c o n h e c i d o s no m u n d o físico."
Notei que se vestiam e l e g a n t e m e n t e — pelo m e n o s t o dos ali, os c h a m a d o s chefes de falange. Apresentavam-se
c o m t e r n o s e trajes q u e l e m b r a v a m seguranças de elite, que
se e n c a r r e g a m da p r o t e ç ã o de a u t o r i d a d e s e personalidades em a m b i e n t e s públicos. Ou seja, à paisana, p o r é m elegantes, c o m um p o r t e que denotava força, domínio e autoridade. J a m a r esclareceu q u e os espíritos mais c o m u n s
dessa falange, à exceção evidente de seus o r i e n t a d o r e s ou
líderes, n e m s e m p r e e r a m espíritos esclarecidos, m a s e r a m
b e m intencionados e guiados pelos guardiões q u e lhe são
i m e d i a t a m e n t e superiores.
— Bem, Ângelo, aqui você teve u m a descrição r e s u m i da de diversas equipes de guardiões que t r a b a l h a m mais
p a r t i c u l a r m e n t e ligadas a nós, aqueles que r e p r e s e n t a m o s
a política do Cordeiro, a que d e n o m i n a m o s política divina.
Será convidados um r e p r e s e n t a n t e de cada equipe que aqui
se a p r e s e n t o u para um m o m e n t o mais íntimo com você, no
qual terá o p o r t u n i d a d e de tirar dúvidas e se instruir mais a
respeito. E n t r e t a n t o , n ã o t e m o s u m t e m p o m u i t o dilatado
à nossa disposição, pois a A m a n d a c h a m a p o r você — aliás,
290
Pai João, que t e m outras questões a lhe mostrar, q u e farão
p a r t e de seu projeto de t r a b a l h o futuro.
Depois de um p e r í o d o razoável de conversa e orientações sobre o t r a b a l h o dos guardiões, r e t o r n e i à A m a n d a ;
mais do que n u n c a , trazia o espírito decidido. E a g r a d e c i d a
i m e n s a m e n t e agradecido por fazer p a r t e dessa equipe de
agentes da justiça divina. Sentia-me m u i t o envolvido com
o trabalho dos guardiões. À noite ainda teria um encontro
particular, sob a orientação do pai-velho, é claro. Aguardava novas sensações na descoberta da vida espiritual. Queria me p r e p a r a r logo, estudar m u i t o e me sentir o mais útil
possível, n e m q u e fosse apenas d e n t r o de 10 anos, c o m o os
espíritos me disseram. M a s eu queria c o m e ç a r já. Na verdade, m e u s estudos já haviam se iniciado, e m b o r a naquele
m o m e n t o não soubesse disso.
295
UANDO CHEGUEI À A m a n d a , m i n h a m e n t e fervilhava c o m
tantas ideias e t a n t o c o n h e c i m e n t o que haviam me t r a n s mitido ao longo dos últimos dias. Era tal o n ú m e r o de coisas
novas que, sinceramente, até tentei me deitar naquela que
seria m i n h a última noite no hotel, antes de me m u d a r d e finitivamente para a zona residencial da cidade dos espíritos, b e m p r ó x i m o à família de Laura. Insisti no propósito de
conciliar o sono, mas não consegui me acalmar m e n t a l m e n te e, então, resolvi sair, sabendo que a vida social da cidade
funcionava 24 horas por dia, i n i n t e r r u p t a m e n t e . M e s m o assim, fui t o m a d o de surpresa, pois não imaginava que era tão
intensa. Ao sair do hotel encontrei n o v a m e n t e a amiga Consuela. Elegante e extravagante ao m e s m o tempo, ela conseguia j u n t a r essas duas características de m a n e i r a ímpar.
— E então, gajo? Qual foi sua impressão das atividades
dos guardiões?
— Você já sabe que estive n u m a das bases dos nossos
amigos?
— C o m o não? — falou abrindo seu leque de m a n e i r a
chamativa.
— Puxa, as notícias p a r e c e m correr muito mais velozes
por aqui. Mal cheguei e você já sabe de tudo?
296
— Inclusive, sei q u e esta será sua ú l t i m a noite no hotel.
A m a n h ã já estará em sua p r ó p r i a habitação — olhou de soslaio p a r a mim, c o m o me t e n t a n d o a d a r maiores detalhes.
— É, você sabe m e s m o !
— Brincadeira, gajo! É que andei c o n v e r s a n d o sobre
você c o m o velho.
— Pai João?
— E q u e m mais? Parece q u e ele e o guardião estão decididos a tutelar você p o r u n s t e m p o s .
Ri i n t i m a m e n t e , de satisfação.
— Mas não fique assim tão eufórico c o m a situação.
Essa gente t e m cada mania que você n e m imagina. Trabalho, trabalho, trabalho... descobrirá logo.
— O pior é que já descobri... N e m me d e r a m t e m p o
para u m a s férias do lado de cá. Estou adorando. Mas e você,
Consuela, o n d e m o r a aqui na cidade?
— N e m imagina, gajo! Sofro m u i t o só de p e n s a r nisso.
E lá sou p o r acaso um espírito superior? Vivo na h u m i l d a d e
e na p o b r e z a absoluta e voluntária. Me c o n t e n t o c o m u m a
casinha lááá nos a r r e d o r e s da cidade. Discretíssima e pobre
c o m o só!...
— Discreta? Sua casa?
297
Suspirando fundo, Consuela continuou, c o m o se fosse
a mais sofredora de todos os espíritos do u m b r a l :
— É u m a casinha assim! — gesticulou c o m as mãos, form a n d o um q u a d r a d o no ar. — Retinha, c o m u n z i n h a , tão
pobre, m e u Deus, q u e n e m sei ainda p o r q u e os s u p e r i o res não a t e n t a r a m p a r a t a n t a h u m i l d a d e que vai d e n t r o de
mim. Deviam se inspirar em m i n h a vida de absoluta p o b r e za e simplicidade.
— Quero ver o n d e você mora, Consuela. Será que você
me convidaria algum dia destes?
— Ah! Gajo! N ã o sei se c o m seu b o m gosto s u p o r t a r i a
ver t a m a n h a singeleza... — falou c o m t a n t a ênfase e teatralidade q u e me senti r e a l m e n t e t o c a d o p o r suas palavras. —
Mas se é assim que quer, p o d e m o s ir lá t o m a r um chá ou
c o m e r u m a s tapas a c o m p a n h a d a s de alguma b e b i d a de sua
preferência.
Após o breve diálogo, dirigimo-nos à z o n a residencial
onde Consuela morava. Assim que a d e n t r a m o s essa p a r t e
da cidade, realmente, c o m o ela havia me falado, era possível n o t a r nos a r r e d o r e s a diferença em relação ao local
onde residia Laura. E r a m casas belíssimas, e m b o r a a de
Laura t a m b é m fosse bela. No entanto, aquelas ali p a r e c i a m
298
de o u t r o porte, mais suntuoso. Procurava com os olhos a.
casinha da p o b r e Consuela, e n t r e as demais que apareciam
à m e d i d a q u e avançávamos.
É que, na A m a n d a , o espírito escolhia viver n u m local
de conformidade c o m seus gostos; cada um idealizava o lar
de acordo c o m a inspiração, o m o m e n t o , os sentimentos c
as emoções q u e lhe caracterizassem. E não havia n e n h u m
juízo de valor, caso alguém optasse p o r viver n u m apartam e n t o na região central da cidade, n u m bangalô singelo
nas m o n t a n h a s , n e m t a m p o u c o n u m a mansão. E m suma,
cada cidadão buscava viver em local mais compatível com
sua i d e n t i d a d e energética, e isso sem n e n h u m a culpa ou
s e n t i m e n t o d e inferioridade, o u m e s m o d e s u p e r i o r i d a d e
Todos t i n h a m igual acesso a tudo.
Esperei p o r alguns instantes ver a casa de Consuela, o
local o n d e ela escolhera viver com maior simplicidade. Ela
trazia e s t a m p a d a na face u m a expressão que inspirava tam a n h a comiseração que concluí que, no caso dela, lhe fora
imposto viver n u m casebre p r ó x i m o àquelas elegantes casas do bairro residencial, a fim de a p r e n d e r alguma lição.
— Puxa, c o m o são bonitas as residências aqui — comentei. — E aquela casa ali, então?
299
Apontei para u m a c o n s t r u ç ã o q u e sobressaía, de contornos majestosos. Devia t e r sido projetada p o r algum arquiteto r e n o m a d o . As linhas sofisticadas da edificação,
muitos vidros ou coisa parecida, r o d e a d a p o r e n o r m e jardim, c o m t r e p a d e i r a s que recaíam sobre as laterais da m a n são. Algo que impressionava os sentidos. U m a beleza clássica. Assustei-me q u a n d o Consuela se dirigiu j u s t a m e n t e
para aquele local. A c o m p a n h e i - a c o m m e u s p e n s a m e n t o s
em revoada. Será q u e ela conhecia os m o r a d o r e s ? Me a p r e sentaria aos donos?
— Vamos, gajo! Mas não se assuste, está t u d o una confusión; não t e n h o t e m p o de a r r u m a r nada. Sinto até vergon h a de lhe receber em m i n h a h u m i l d e morada...
M e u Deus! E r a o lar de Consuela!
— Ai, c o m o sofro aqui. Fico e n v e r g o n h a d a c o m m e u s
vizinhos. Ainda b e m que eles são almas boas e e n t e n d e m
m i n h a escolha de viver n u m lugar tão singelo — falava quase c h o r a n d o e n u m t o m tão d r a m á t i c o que parecia realm e n t e estar p a d e c e n d o h o r r o r e s .
— Mas Consuela... — ameacei falar alguma coisa enquanto e n t r á v a m o s na belíssima casa o n d e morava. Ela me
interrompeu:
300
— N e m me fale, Ângelo! N e m precisa falar! Bem que
eu merecia algo mais elaborado, mas devo ser um exemplo
de h u m i l d a d e p a r a os q u e sofrem. Até tentei ser diferente
— respirava fundo, e n q u a n t o eu ficava a b i s m a d o com tanto requinte, e m b o r a s e m opulência, mas assim m e s m o com
t r e m e n d a beleza à volta. — Mas sabe c o m o são as coisas
p o r aqui, não? A g e n t e t e m de se esforçar ao m á x i m o para
ser referência p e r a n t e aqueles q u e sofrem e os mais simples de coração.
A m a n s ã o — era esta a palavra c o r r e t a p a r a descrever
a m o r a d a " h u m i l d e " de Consuela — era u m a obra de arte
em si m e s m a . T u d o à volta, ainda que o a m b i e n t e interno
revelasse u m q u ê minimalista, era d e e x t r e m o b o m g o s t a
Quadros i m p r e s s i o n a n t e s nas p a r e d e s lembravam obras
de Salvador Dali, Pablo Picasso e El Greco, além de outros
desse naipe. Consuela n o t o u m i n h a admiração pelas obras
de arte e logo, logo se explicou:
— São cópias m u u u i t o mal feitas. Não t e n h o méritos
para t e r um original destes autores...
I m p r e s s i o n e i - m e c o m a beleza das obras. Não havia
c o m o não a d m i r a r algo tão majestoso. Inspirava qualquer
espírito e arrebatava a visão. Aliás, p o u c o a p o u c o percebi
301
que t o d a a casa se assemelhava a u m a galeria de arte. E m b o r a no formato de u m a residência, cada p o r m e n o r ali fora
disposto de m o d o a c o n c e b e r u m a galeria com a exposição de alguns dos mais r e n o m a d o s artistas espanhóis. H a via obras atribuídas a Diego Velasquez, Francisco de Goya,
J o a n M i r ó e outros mais, t a l e n t o s a m e n t e distribuídas p e las paredes. Em meio àquilo tudo, móveis q u e r e m o n t a v a m
a épocas diferentes, conforme os c ô m o d o s da residência e
galeria. Não tive dúvidas: Consuela, com t o d a aquela "humildade", era alguém ligado à arte, talvez c u r a d o r a de alg u m dos m u s e u s da cidade. Mas ali ela era t o d a h u m i l d a d e ,
simples c o m o n i n g u é m . E p e n s a r que, p o r um m o m e n t o ,
acreditei que ela r e a l m e n t e estivesse falando de si c o m sinceridade, sobre a r e n ú n c i a em viver n u m lugar p a u p é r r i m o
por escolha própria.
Ainda q u a n d o eu formulava esse p e n s a m e n t o , quase
me d e r r e t e n d o n u m a gargalhada mental, ouvi o suspiro e
o b a r u l h o do leque de Consuela atrás de mim. Na verdade, fiquei tão absorto pela beleza do lugar e pelas obras esplêndidas q u e n e m m e dei conta d o t e m p o que t r a n s c o r r e ra desde q u e entrei n a q u e l e a m b i e n t e tão simples...
— Veja c o m o sofro aqui, Ângelo! Eu m e s m a escolhi vi-
302
ver neste casebre cheio de objetos antigos. Nada de superficialidade; acho que t u d o deve refletir a beleza interior, a
simplicidade de alma que vai d e n t r o de nós — e falando assim, e n q u a n t o me virava para ela, ainda não acreditando no
q u e via, na sua casinha tão singela, c o n t i n u o u . — Sei que
você me e n t e n d e . Afinal, m e u amigo, nós, pessoas como
eu e você e alguns p o u c o s espíritos no m u n d o , sabemos o
que significa viver n u m local t o t a l m e n t e diferente da nossa
natureza; algo assim — e n x u g o u u m a lágrima invisível no
canto do olho, r e s p i r a n d o fundo e em profundo l a m e n t o —.
incompatível c o m nossos mais secretos gostos e elevação.
Mas t u d o b e m . Já falei p a r a o velho q u e aceito de b o m grado a tarefa de q u e fui incumbida.
Ela exagerava c a r i c a t u r a l m e n t e na expressão de sua
h u m i l d a d e infinita. M e u Deus!... C o m o adorava a cada hora
viver na A m a n d a . Havia lugar p a r a t u d o e todos, s e m cob r a n ç a s de santidade — aliás, era o que mais faltava ali, em
m i n h a amiga sofredora. Virando-se r a p i d a m e n t e , c o m leque em p u n h o , o sofrimento p a r e c e ter cedido com extrema rapidez a o u t r o estado de espírito.
— Vamos t o m a r u m a bebida, Ângelo. Acho q u e você
merece, depois de t a n t o penar.
303
E me t r o u x e m i n h a bebida favorita, m e u sagrado e aromático v i n h o madeira.
— Claro que não é n a d a comparável aos nossos vinhos
de E s p a n h a , mas...
— Eu aceito este sofrimento, Consuela! Eu aceito! — falei, irônico.
E ela, b r i n d a n d o c h a r m o s a m e n t e , deixou de lado as
b r i n c a d e i r a s e exageros ao levantar a taça do mais p u r o
cristal e sorvermos, juntos, o delicioso vinho c o m o sabor
mais a c e n t u a d o q u e já provei em toda m i n h a vida de encarn a d o ou d e s e n c a r n a d o .
— C o m o disse o velho, m e u amigo, aqui é o m u n d o original e t u d o aqui é m u i t o original m e s m o ; o da Terra é que é
a cópia. E lá, pelo q u e sei, p a r a aproximar-se ao m á x i m o do
que t e m o s no m u n d o primitivo e original, as bebidas p r e cisam ficar em barris de carvalho, passar p o r um p r o c e s so especial, envelhecer e otras pequenas cosas. E t u d o isso
s o m e n t e p a r a se a p r o x i m a r do sabor original, q u e é este
acá — ela falava n u m a m i s t u r a de e s p a n h o l e p o r t u g u ê s ou
um p o r t u n h o l perfeito. Rimo-nos gostosamente. E eu a p r e ciando o e x t r e m o b o m gosto do lugar, até que alguém se
anunciou. E r a o velho, c o m o ela c h a m a v a Pai João.
304
Ele v i n h a a c o m p a n h a d o de um sujeito estranho. Aliás,
pela p r i m e i r a vez vi alguém q u e n ã o me p a r e c e u habitante
do lugar. E r a alto, esguio, cabelos longos e um olhar curioso, aliás, m u i t o mais curioso do q u e o meu.
— Este é um amigo e n c a r n a d o , Ângelo! Está aqui desdobrado, fora do corpo, e o t r o u x e para que possa conhecé-lo — informou Pai João, após c u m p r i m e n t a r Consuela.
Fomos apresentados, e o sujeito à m i n h a frente pareceu e n c a n t a d o c o m o eu pelo estilo de Consuela, impresso
em cada detalhe da decoração.
— Puxa! — exclamou. — Isto aqui é p u r a Espanha...
— E c o m o não, chico? — r e s p o n d e u Consuela, t o m a n d o
o rapaz pelo b r a ç o e m o s t r a n d o - l h e cada cômodo.
E n q u a n t o isso, eu e Pai João conversávamos.
— Não imaginava q u e Consuela vivesse n u m lugar destes, lindo assim.
— Era o sonho dela q u a n d o chegou aqui na Aruanda.
m e u filho. Queria fazer u m a galeria de arte e viver e respirar em meio à arte. Ela queria respirar beleza e viver assim,
r e c e b e n d o visitantes q u e quisessem aulas de arte e s p a n h o la. Então, n a d a m e l h o r do que construir u m a residência que
servisse t a m b é m c o m o galeria. Consuela é um dos espíritos
305
responsáveis, na universidade, pelas aulas de arte. Ela con h e c e m u i t o b e m a história da arte, não s o m e n t e e s p a n h o la, c o m o t a m b é m de outros países da E u r o p a . E m e s t r a no
assunto, e n ã o se assuste se algum dia a vir p o r aí desfilando
ao lado de Pablo Picasso, que vez ou o u t r a v e m nos visitar
em nossa c o m u n i d a d e . Consuela c o n h e c e m u i t o b e m a colônia dos artistas e t e m r e l a c i o n a m e n t o estreito c o m eles.
Mas prefere, c o m o diz, esconder-se p o r trás de seu m a n t o
espanhol da mais profunda h u m i l d a d e .
— É, dá p a r a n o t a r a simplicidade dessa pobre alma —
brinquei, r i n d o gostosamente.
— Mas você n o t o u o rapaz aí? Nosso amigo e n c a r n a d o ?
Queria m u i t o que você o conhecesse melhor. Seria de m u i ta valia para seu futuro trabalho.
— E q u e m é ele? Alguém em especial?
— Alguém que servirá a você de i n s t r u m e n t o e c o m p a nheiro de trabalho, ao m e s m o t e m p o .
— Não e n t e n d i .
— Não precisa se apressar, m e u filho. M a s c o m o ele é
o i n s t r u m e n t o que t r a b a l h a r á j u n t o a você, c o m p e t e - l h e
aproximar-se dele, fazer amizade, estabelecer laços e moldá-lo, c o m o se m o l d a u m a escultura, já q u e estamos falan-
306
do de obras de arte. Pense nele s o b r e t u d o c o m o um amigo e
aproxime-se o m á x i m o que puder. A p a r t i r de hoje, ele virá
aqui, a nossa cidade, pelo m e n o s três vezes p o r semana.
Nós o t r a r e m o s através do d e s d o b r a m e n t o , e n q u a n t o estiver d o r m i n d o . F r e q u e n t a r á nossa universidade e, assim,
você t e r á maior t e m p o para aproximar-se d e v i d a m e n t e e
fazer do m é d i u m um i n s t r u m e n t o mais afinado. Mais tarde,
Z a r t h ú , nosso amigo do colegiado, lhe t r a r á mais detalhes a
respeito dele.
— Ele é m é d i u m ? Sabe q u e está aqui na A r u a n d a ? Tem
consciência disso?
— No m o m e n t o , não! Tivemos o cuidado de interferir
em sua consciência, de m a n e i r a que as l e m b r a n ç a s ficarão
impressas, p o r é m inacessíveis q u a n d o estiver em vigília.
S o m e n t e no m o m e n t o o p o r t u n o ele se r e c o r d a r á do encontro com você. Por ora, é o que basta a ele. Mas vocês precisam aproximar-se u m d o outro.
— E n t ã o ele é médium... Que e s t r a n h o é o sujeito.
— Bem, é o q u e t e m o s no m o m e n t o . Você verá o porqué
assim que estiver mais p r ó x i m o dele. Terá mais ou menos
10 anos p a r a prepará-lo e achegar-se o m á x i m o possível
de nosso amigo. Depois... bem, o t r a b a l h o intenso, os desa-
307
fios naturais do intercâmbio. Coisas assim, c o m o diria Consuela — ao falar nela, acercou-se de nós n o v a m e n t e , ainda
de braços dados ao m é d i u m . Mas ele parecia estar absorto
com t u d o ao redor. E q u e m não estaria?
— E o rapaz aí, Pai João? Ele sabe do t r a b a l h o q u e o
aguarda?
— Sabe sim, m e u filho. Ele conviveu c o m os guardiões
no p e r í o d o e n t r e vidas e sabe m u i t o b e m o que o aguarda.
Só que a m e n t e dele foi p r e p a r a d a antes de r e e n c a r n a r p a r a
que as l e m b r a n ç a s aflorem no m o m e n t o certo. Mas não lhe
resta dúvida q u a n t o à tarefa que t e m a d e s e m p e n h a r .
— Quer dizer que neste exato m o m e n t o ele n ã o t e m
consciência do trabalho q u e nos aguarda?
— E por aí! — r e s p o n d e u Pai João, s o r r i n d o para o rapaz. — Ele é um velho amigo. Cuide b e m de fazer u m a amizade sólida e não se assuste c o m o jeito dele. C o m o t e m p o ,
irá se acostumar.
— C o m o assim? Acostumar?
— Você descobrirá c o m o t e m p o — Pai J o ã o riu, discretamente. — No mais, você será a p r e s e n t a d o em breve
à equipe e n c a r n a d a c o m q u e m trabalhará. Mas vamos p o r
partes; cada coisa t e m sua hora.
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Levantei-me e entabulei u m a conversa c o m o rapaz,
e n q u a n t o Consuela, c o m todo aquele sofrimento íntimo,
confabulava c o m Pai João, talvez sobre alguma m a t é r i a que
ministrava na universidade local. Vez ou outra, ela nos fitava c o m olhar enigmático. De r e p e n t e , o rapaz começou a
dissolver-se à m i n h a frente, e fiquei intrigado c o m o fenóm e n o . Pensei logo no jeito do espírito J o s e p h Gleber, sair
assim, s u m i n d o feito fantasma...
— Ele está c o m fome, Ângelo. Por isso o corpo físico o
p u x o u de volta. Neste m o m e n t o , um dos guardiões o acomp a n h a até a base física. Não se p r e o c u p e . Esta é u m a das
coisas com q u e você t e r á de se acostumar.
— C o m esse tipo de sumiço? Essa dissolução total,
completa, irreversível?
— Não, chico! — i n t r o m e t e u Consuela, r i n d o e abrindo seu leque de m a n e i r a estrondoso. — C o m a fome dele! É
algo sobre-humano...
E Pai João, j u n t a m e n t e c o m Consuela, riu u m a risada
que dava gosto de ouvir, e m b o r a eu n ã o e n t e n d e s s e nada
n a q u e l e m o m e n t o . Mas descobriria b r e v e m e n t e o q u e significava t u d o isso que envolvia o rapaz m é d i u m . Havia outras surpresas também... muitas outras. Afinal, seriam 10
309
anos de p r e p a r o ! E estavam a p e n a s no inicio.
Depois de algum t e m p o conosco, n u m a alegre conversa, Pai João convidou-me:
— Bem, Ângelo, está na h o r a de irmos. Temos ainda alguns amigos para lhe apresentar. Acho q u e t e r á u m a noite
m u i t o intensa p o r aqui.
D e s p e d i m o - n o s de Consuela, q u e abanava seu leque
s u s p i r a n d o d e t a n t a h u m i l d a d e , e n q u a n t o enxugava u m a
lágrima sentida e invisível, e saímos Pai João e eu r u m o às
c h o u p a n a s ali perto, localizadas n u m dos b o s q u e s nos a r r e dores da cidade.
Eu via beleza em tudo, mas as c h o u p a n a s e chalés e r a m
algo especial. A h a r m o n i a arquitetônica fazia jus ao n o m e
de c o n s t r u ç ã o ecológica. M u i t a s árvores no e n t o r n o , jardins b e l a m e n t e floridos, crianças p o r t o d o lado... M e s m o
s e n d o noite na A r u a n d a , eu as via alegres, festivas e sempre a c o m p a n h a d a s de algum adolescente, que talvez fosse
a forma c o m o os e d u c a d o r e s se m o s t r a s s e m a elas, a c o m p a n h a n d o - a s de perto. I m a g i n o que assim se sentissem mais
à vontade.
Havia d e z e n a s e d e z e n a s de espíritos nos a g u a r d a n d o
n u m local a c u r t a distância de u m a c h o u p a n a em particu-
310
lar. Parecia-me um lugar de r e u n i ã o ao ar livre, u m a espécie de praça ou u m a clareira em meio a m a t a s e bosques e
à e s t o n t e a n t e paisagem natural ao redor. Seria alguma reunião planejada, t a m b é m c o m a finalidade de me orientar,
ou s o m e n t e u m a recepção, por p a r t e de espíritos que não
c o n h e c e r a ainda?
G r a n d e era a m o v i m e n t a ç ã o no ambiente. Muitos espíritos estavam ali reunidos, naquilo que parecia ser alguma
c o m e m o r a ç ã o . E havia algo a c o m e m o r a r em toda a cidade,
pelo jeito. Pelas conversas, d e d u z i q u e era a p e n a s o início
de u m a série de eventos em t o d a a c o m u n i d a d e , a fim de
h o m e n a g e a r alguém ou c o m e m o r a r algo. Era o c o m e ç o das
festividades.
E s t r a n h a m e n t e p a r a mim, ao m e n o s pelo que observei
à p r i m e i r a vista, n a q u e l e r e c a n t o havia s o m e n t e espíritos
c o m aparência de índios brasileiros, sul-americanos e norte-americanos, além daqueles que se mostravam c o m o negros de várias etnias. Os peles-vermelhas vestiam-se com
trajes que lembravam, em alguma medida, as vestimentas
típicas de suas nações indígenas, ao passo que os sul-americanos t r a z i a m m a n t a s de cor branca, c r e m e ou amarela
jogadas sobre o corpo. N e n h u m deles usava os célebres pe-
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nachos
ou
qualquer
apetrecho
comumente
observado
nos
indígenas dos diversos povos ali r e p r e s e n t a d o s . Tão d e s p o j a d o q u a n t o as vestes era o p o r t e da maior p a r t e daqueles
seres, e m b o r a se notasse em alguns um tipo espiritual garboso, que sugeria r e p r e s e n t a r e m u m a hierarquia mais alta
no sistema de vida daquela c o m u n i d a d e .
Os n e g r o s c h a m a v a m a a t e n ç ã o pela aparência. As
m u l h e r e s , na maioria, vestiam trajes típicos africanos, c o loridíssimos, c o m os cabelos estilizados e a d o r n a n d o b e l a m e n t e a cabeça. O u t r a s vestiam-se c o n f o r m e o c o s t u m e
o b s e r v a d o nas b a i a n a s típicas de Salvador e do Pelourinho,
e m b o r a sem excesso d e b a l a n g a n d ã s . E r a u m a v e s t i m e n t a
linda de se ver, de u m a alvura inacreditável, ou e n t ã o em
tons pastel, e s p e c i a l m e n t e a m a r e l o suave. Os b o r d a d o s e
r e n d a s e r a m de u m a r i q u e z a e um nível de d e t a l h e s encantador. S e m p r e , c o m o t u d o o q u e via na A r u a n d a , a b e leza e a elegância d o m i n a v a m , t a n t o na a p a r ê n c i a q u a n t o
na expressão.
Alguns dos espíritos apresentavam-se nitidamente com
aparência de mais idade q u e os demais, p o r é m sem q u e o
peso dos anos lhes roubasse vitalidade, c o m o ocorre c o m
a m a i o r p a r t e das pessoas idosas na Crosta. E m p e r t i g a d o s ,
312
esguios em sua maioria, d e n o t a v a m certo c h a r m e , vestindo t e r n o s e c o s t u m e s claros, m u i t o s em tecidos s e m e l h a n tes ao linho, o q u e lhes conferia u m a aparência tropical ou
descontraída. Outros t i n h a m r o u p a s mais simples, p o r é m
de e x t r e m o b o m gosto. Não vi n e n h u m a extravagância por
ali, c o m o de resto.
Fiquei p o r alguns m o m e n t o s o b s e r v a n d o ao redor, enq u a n t o limpava m e u s preciosos óculos de m o r t o metido a
vivo e n t r e os imortais. Pai J o ã o d e i x o u - m e à v o n t a d e por
alguns instantes, pois d e c e r t o sabia de m i n h a curiosidade e
de c o m o eu examinaria cada detalhe. Ele, o pai-velho, semp r e m u i t o elegante em sua forma de se apresentar, vestia
t e r n o b r a n c o e t i n h a cabelos e b a r b a b e m aparados, como
se fosse p a r a u m a festa i m p o r t a n t e . E, afinal, era u m a festa
m u i t o i m p o r t a n t e , c o m o logo p u d e descobrir.
Q u a n d o Pai J o ã o voltou-se p a r a mim, s o r r i d e n t e e animado, v i n h a j u n t a m e n t e c o m u m a s e n h o r a q u e aparentava t e r e n t r e 60 e 65 anos de idade, e m b o r a c o m o viço de
u m a jovem mulher. Óculos grossos, c o m o se precisasse deles p a r a enxergar alguma coisa. Sabia q u e ela não precisava; no entanto, talvez fosse um c o s t u m e trazido da última
experiência física. A d o r n a d a b e l a m e n t e c o m r o u p a s que
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lembravam as baianas p r a t i c a n t e s do c a n d o m b l é , todas de
renda, encimava-lhe a cabeça um lenço o r n a m e n t a d o e disposto de m a n e i r a um t a n t o exótica. Teria algum significado
aquele adereço? Alguns colares de contas coloridas enfeitavam-lhe o pescoço, m a s de m a n e i r a discreta. A composição
toda inspirava b o m gosto e h a r m o n i a .
— M e u Deus!... — pronunciei, n u m misto de admiração
e surpresa. — Será q u e m estou p e n s a n d o ? Será m e s m o ?
Pai João sorriu n o v a m e n t e , em silêncio, e n q u a n t o a
m u l h e r veio me abraçar n u m abraço longo, d e m o r a d o ,
cheio de vida, calor e energia.
— Esta é nossa q u e r i d a Maria Escolástica, a nossa M e nininha — disse Pai João, a p r e s e n t a n d o - n o s formalmente.
Como admirava essa p e r s o n a l i d a d e e c o m o queria e n c o n trar-me com ela!
— Salve, m e u filho! — falou-me M e n i n i n h a , c o m um
sorriso cativante, i r r a d i a n d o u m a luz suave em t o r n o de si,
c o m o se fora i l u m i n a d a pelas estrelas.
E n q u a n t o ela colocava o braço em t o r n o do m e u , fomos em direção aos o u t r o s r e p r e s e n t a n t e s daquelas culturas tão i n c o m p r e e n d i d a s pela maioria dos encarnados,
mas que ocupavam um lugar de d e s t a q u e e n t r e os filhos da
314
Aruanda. A c h e g a r a m - s e a nós alguns espíritos de cultura
indígena, os quais me foram a p r e s e n t a d o s p o r Pai João:
— Estes são nossos amigos Pena Verde, Pena Branca,
T u p i n a m b á , N u v e m Vermelha, Cobra Coral e N u v e m Cinzenta. São nossos amigos de longa data e r e p r e s e n t a m diversas hierarquias espirituais d e n t r o das nossas tarefas na
Aruanda. P o d e m ser c h a m a d o s de caboclos ou, simplesm e n t e , p o r seus n o m e s de p r o c e d ê n c i a indígena. Fique à
vontade, Ângelo.
Notei q u e alguns t r a z i a m o s e m b l a n t e m u i t o sério.
O u t r o s s o r r i r a m , e m b o r a a firmeza dos t r a ç o s e a a p a r ê n cia q u e inspirava c e r t a altivez, p r ó p r i a d a q u e l a gente. Ao
sorrir, m o s t r a v a m u m a d e n t i ç ã o invejável. N e n h u m deles
usava a p l u m a g e m c o s t u m e i r a m e n t e o b s e r v a d a em fotografias e gravuras dos livros. Fui convidado a ficar ao lado
de M e n i n i n h a e N u v e m Vermelha, além de dois o u t r o s espíritos d e p r o c e d ê n c i a africana, q u e m e d e i x a r a m m u i t o
à vontade.
Parecia que algum evento estava prestes a começar.
Todos silenciaram-se e alguns se posicionaram a nosso
lado, p o r é m de forma a ver m u i t o além, de o n d e parecia vir
u m a n u v e m se m o v i m e n t a n d o , a p r o x i m a n d o - s e da plateia
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de espíritos. Não d e m o r e i m u i t o a p e r c e b e r que a n u v e m
era, na verdade, um g r u p o de espíritos, que v i n h a deslizando nos fluidos da A m a n d a r u m o ao local o n d e estávamos.
Cavalgavam velozes cavalos, q u e p a r e c i a m galopar em pleno ar, até se colocarem à nossa frente, c o m o um exército de
índios — estes sim, c o m o figurino completo, conforme os
costumes de cada tribo. Julgo que houvesse pelo m e n o s 5
mil espíritos em completo silêncio, dispostos c o m o tropas
n u m a formação perfeita, c o m o se fossem guerreiros p r o n tos para o combate.
A nossa frente, e n q u a n t o eu p e r m a n e c i a ao lado da
mais bela das oxuns, o Chefe T u p i n a m b á t o m o u a iniciativa
e leu algum tipo de manuscrito, talvez u m a reedição da antiga carta de um velho cacique, dirigida aos h o m e n s b r a n cos. Desta vez, p o r é m , eu a ouvia redirecionada, como um
apelo aos espíritos de índios, caboclos e peles-vermelhas,
concitando-os a trabalhar e ajudar os irmãos de h u m a n i d a de. A cada palavra eu me emocionava, em cada letra podia
ver, viva, a m e m ó r i a de um povo. E foram estas as palavras
pronunciadas pela boca de um cacique, de um espírito cuja
vida se voltara para a ajuda àqueles que um dia massacraram seu povo e suas esperanças:
316
— Em n o m e do G r a n d e Espírito do universo, q u e r e m o s
hoje assegurar a amizade, a benevolência e a generosidade
de todos os caboclos c o m os h o m e n s da Terra. E m b o r a saib a m o s que o h o m e m no m u n d o dificilmente imagina o que
nos inspira a amizade, e s t a r e m o s a seu lado no m o m e n t o
de d e s p e r t a m e n t o da consciência espiritual. Se algum dia
as a r m a s dos h o m e n s t i r a r a m nossa t e r r a e nos t i r a r a m nossa gente, t e m o s a c o m p r e e n s ã o de q u e foi u m a transição
necessária p a r a estabelecer u m a nova e t a p a na vida dos p o vos do m u n d o . Nossa palavra e nossa dedicação são como
as estrelas; não e m p a l i d e c e m nunca.
"Aqui na A r u a n d a , na t e r r a dos caboclos e de todas
as gentes, s a b e m o s a g r a n d e z a e o valor dos nossos céus.
do ar q u e r e s p i r a m o s e do calor que a q u e c e nossas almas.
Aqui s a b e m o s que n ã o somos d o n o s da p u r e z a do ar ou do
b r i l h o da água. Somos a p e n a s espíritos q u e os preservam,
e q u e um dia utilizamos tais r e c u r s o s em favor de nosso povo. Toda a T e r r a e seus h a b i t a n t e s são e serão semp r e sagrados p a r a nossa gente, do m e s m o m o d o c o m o a
A r u a n d a r e p r e s e n t a p a r a nós o céu o n d e os g u e r r e i r o s se
r e ú n e m em n o m e do sagrado, em n o m e da vida e do Grande Espírito.
317
"Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada
véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e todos
os insetos a z u m b i r são sagrados em nossa A m a n d a , t a n t o
q u a n t o na Terra que a m a m o s , s e g u n d o as sagradas tradições e crenças dos nossos ancestrais.
"Sabemos q u e o h o m e m no m u n d o não c o m p r e e n d e
nosso m o d o de t r a b a l h a r em seu favor; os religiosos muitas
vezes nos rejeitam, pois d e s c o n h e c e m o valor de nosso con h e c i m e n t o ou não acreditam que p o s s a m o s ter sabedoria.
Mas não importa! Eles, nossos irmãos b r a n c o s e de muitas
raças, ainda ignoram q u e um t o r r ã o de t e r r a é igual ao outro. Que somos todos iguais p e r a n t e o Espírito do universo.
"A t e r r a é nossa irmã, é nossa amiga e, depois de cultivá-la com sabedoria, o h o m e m b r a n c o a deixará r e n o v a d a
p a r a sua descendência, e virá ele t a m b é m algum dia para a
A m a n d a , o n d e verá o fruto de seus dias e o valor da n a t u r e za à sua volta. É preciso p r e p a r a r os h o m e n s para a plantação da sabedoria, n u m a Terra que será a h e r a n ç a p a r a seus
filhos, e o respeito a ela r e v e r t e r á em seu p r ó p r i o benefício.
"A l e m b r a n ç a dos antepassados e a ciência dos espíritos garantirá aos nossos irmãos na Terra o direito de viver e m n u m m u n d o renovado, q u a n d o então, talvez, p o s s a m o s
318
r e t o r n a r em novos corpos, um dia, para ajudar nossos irmãos a s e m e a r e m um novo t e m p o , u m a nova h u m a n i d a d e .
As cidades dos h o m e n s , cheias de vida e de c o n h e c i m e n to, precisam de nós, a fim de lhes g a r a n t i r m o s u m a vida de
paz — não a paz e n g a n a d o r a do silêncio, m a s a paz que será
c o n s t r u í d a c o m m u i t o trabalho, suor e nossa contribuição.
"Não se p o d e e n c o n t r a r paz sem a t o m a d a de consciência da vida espiritual, sem saber que somos todos espíritos,
filhos do G r a n d e Espírito, e assim respeitar nossa divina
herança.
"Aqui na A m a n d a é o lugar o n d e a t u a l m e n t e p o d e m o s
ouvir o d e s a b r o c h a r da folhagem na primavera, o z u n i r das
asas dos insetos ou o b a r u l h o da revoada dos pássaros; é
o n d e p o d e m o s conviver de m a n e i r a pacificada c o m o lobo.
o l e o p a r d o e a s e r p e n t e . E aqui é o lugar a partir do qual
i n s p i r a r e m o s o ser h u m a n o p a r a q u e possa aguçar seus ouvidos e voltar a ouvir voz do G r a n d e Espírito d e n t r o de si
m e s m o ; q u e m sabe r e a p r e n d e r a ouvir a voz dos rouxinóis
e da cotovia?
"Sei q u e nossos espíritos preferem ouvir o suave suss u r r o do vento sobre as águas e sentir o cheiro da brisa, purificada pela chuva ao meio-dia, c o m o a r o m a do pinho, da
319
alfazema ou do limão. Mas voltaremos à Terra para levar essas aragens benfazejas aos sentidos de nossos irmãos b r a n cos; é nossa tarefa protegê-los de seus inimigos íntimos ou
espirituais. Q u e m sabe auxiliemos os h o m e n s no m u n d o a
voltar seus sentidos p a r a as paisagens internas, até que um
dia p o s s a m vir p a r a a A m a n d a , ou p a r a outras t e r r a s no espaço, r e a p r e n d e n d o a viver c o m o filhos do G r a n d e Pai.
"Sabemos que o h o m e m , nosso irmão, carece de valores que s o m e n t e daqui, da Aruanda, p o d e m o s lhe inspirar.
Assim c o m o o ar é precioso p a r a o h o m e m vermelho, porque todos os seres vivos r e s p i r a m o m e s m o ar — os animais,
as árvores e as flores —, os h o m e n s nossos irmãos t a m b é m são preciosos p a r a nossos espíritos, e os a b r a ç a r e m o s
como irmãos q u a n d o aqui a p o r t a r e m , depois de atravessar
o g r a n d e rio da vida.
"Somos considerados por muitos como selvagens, que
não c o m p r e e n d e m como as descobertas e invenções do novo
m u n d o dos brancos possam ser mais valiosas que a natureza,
da qual nós, peles-vermelhas, usufruímos um dia na m e d i d a
certa, o suficiente para sustentar nossa própria existência.
"Que é o h o m e m sem nossa ajuda? Poderá sobreviver
a si m e s m o ? Aos seus inimigos íntimos e espirituais? O h o -
320
m e m precisa de nós, os caboclos, os índios, os considerados
selvagens, e de todos os que h a b i t a m a A m a n d a , de todas
as gentes e todos os povos, para que não m o r r a de solidão
espiritual. Não p o d e m o s p e r m i t i r q u e o que aconteceu e
acontece c o m os animais na Terra aconteça t a m b é m com
os h o m e n s , seus filhos e seus espíritos. De alguma maneira, t e m o s de ajudar nossos irmãos a sobreviver, s e m afetar
a vida em t o r n o de si. Sobreviver c o m o m á x i m o de qualid a d e q u e lhe for possível. Para isso, nossas falanges de espíritos da n a t u r e z a p r e c i s a m limpar o a m b i e n t e psíquico da
m o r a d a h u m a n a , senão d e n t r o em breve será difícil para o
h o m e m b r a n c o respirar n o p r ó p r i o m u n d o o n d e vive. Lemb r e m o s , m e u s i r m ã o s índios, peles-vermelhas, puris, caboclos de todas as nações indígenas, que t u d o q u a n t o fere a
Terra, fere t a m b é m os filhos da Terra, os próprios homens,
nossos irmãos.
"Se vossos filhos v i r a m um dia os p r ó p r i o s pais humilhados na derrota, ante a e x t e r m i n a ç ã o de nossa raça, é
h o r a de nossos guerreiros, q u e s u c u m b i r a m sob o peso da
v e r g o n h a ao florescer a civilização dos brancos, recuperar e m sua glória, ajudando o m e s m o h o m e m a m a n t e r viva a
c h a m a da fé no G r a n d e Espírito e m a n t e r a Terra em paz.
321
Um dia r e t o r n a r e m o s ao m u n d o em novas r o u p a g e n s e p r e cisamos auxiliar agora, a fim de e n c o n t r a r m o s um m u n d o
pelo m e n o s um p o u c o m e l h o r do q u e aquele que deixamos.
"De u m a coisa s a b e m o s c o m absoluta certeza, caboclos: o h o m e m b r a n c o v e m do m e s m o G r a n d e Espírito que
nós todos viemos, e um dia, c o m certeza, ele irá descobrir
que nosso Deus é o m e s m o Deus. Julga, talvez, q u e p o d e
ser d o n o Dele, da m e s m a m a n e i r a c o m o desejou possuir a
p r ó p r i a t e r r a e outros seus irmãos. Então, avante, guerreiros de Aruanda! Vamos em direção à m o r a d a dos h o m e n s ,
vamos com nossos arcos e flechas, nosso grito de guerra,
limpando o c a m i n h o espiritual de todos os povos, de todas
as gentes e ajudando nossa raça — a raça h u m a n a — a m e lhorar-se, a sobreviver e viver c o m h a r m o n i a , m e s m o ante
a realidade invisível que m u i t o s ainda desconhecem."
E n c e r r a n d o sua fala, T u p i n a m b á a p r o x i m o u - s e de M e nininha e falou, emocionado:
— Nosso tributo de gratidão em n o m e de todos os líderes espirituais de nossa terra, do povo de Aruanda, à mais
doce de todas as oxuns, à m ã e espiritual da nossa A r u a n d a .
Não havia c o m o n ã o se emocionar. Chorei, chorei, deixei abertas as r e p r e s a s da alma e m e r g u l h e i m e u espírito
322
n a q u e l a sabedoria m i l e n a r e x p r e s s a ali, nas palavras de
u m caboclo, u m d o s h a b i t a n t e s mais r e s p e i t a d o s d a cidade
dos espíritos.
Pai João, t o m a n d o agora a palavra, falou p a r a mim, enq u a n t o as falanges de espíritos se revezavam, indo e vindo
no espaço, n u m a coreografia realizada sobre nossas cabeças, de m o d o a nos deixar perplexos p e r a n t e o movimento q u e faziam, n u m tributo a M ã e M e n i n i n h a , q u e visitava
a A m a n d a n u m a passagem p a r a outros planos, outras dim e n s õ e s celestes. Pai João aproveitava a c o m e m o r a ç ã o feita pelos espíritos p a r a me esclarecer:
— Na Aruanda, t r a b a l h a m o s com u m a diversidade cultural m u i t o grande. Os espíritos que dirigem esta falange
de caboclos e índios são, na verdade, espíritos mais experientes, q u e viveram sob o sol de o u t r o s continentes, cont i n e n t e s perdidos. Geralmente, Ângelo, apesar de vestirem
a r o u p a g e m espiritual dos povos que floresceram nas Américas, c o m o a dos índios n o r t e - a m e r i c a n o s e tupiniquins,
e n t r e outros, trata-se de g r a n d e s iniciados do passado e de
antigas civilizações. D e t e n t o r e s de um c o n h e c i m e n t o ancestral invejável, m u i t o s deles a s s u m i r a m a conformação
de pais-velhos, b e m c o m o de chefes, x a m ã s e outras figu-
323
ras representativas dessas raças. C o m isso, i n t e n t a m auxiliar esses povos em sua c a m i n h a d a de a p r e n d i z a d o e cresc i m e n t o espiritual. Muitos, inclusive os chefes de falange
dos espíritos que viveram no Brasil c o m o índios, n ã o quiseram r e e n c a r n a r e n t r e os h o m e n s da civilização m o d e r n a .
Preferiram r e t o r n a r à Terra em meio a esses povos considerados primitivos ou ultrapassados, j u s t a m e n t e p o r q u e aí
e n c o n t r a r a m um espírito virgem, p o r assim dizer, tal c o m o
a p e d r a bruta, isto é, não e n r e d a d o pela m a n e i r a c o m o os
h o m e n s b r a n c o s c o n s t r u í r a m sua cultura e civilidade. Mas,
sobretudo, p o r q u e e n t r e os índios e n c o n t r a r a m solo fértil
para deitar nos corações a s e m e n t e da sabedoria milenar.
E n q u a n t o as c o m e m o r a ç õ e s da noite prosseguiam, h o m e n a g e a n d o a ialorixá das mais representativas da cultura
afro, Pai J o ã o prosseguiu:
— T e m o s aqui, em nossa cidade, os espíritos mais r e presentativos das nações t u p i n a m b á , tupi-guarani, apache,
c o m a n c h e , navajo, dakota, sioux, pawnees e miccosukee, entre outras tribos, além de r e p r e s e n t a n t e s dos antigos astecas e maias, t a m b é m considerados civilizações e espíritos
primitivos p o r alguns, que d e s c o n h e c e m o v e r d a d e i r o sentido da ciência e da sabedoria desses povos. Muitos estu-
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diosos ou iniciados da ciência p r e t é r i t a — magos brancos,
sacerdotes e outros sábios — a s s u m i r a m v o l u n t a r i a m e n t e a
v e s t i m e n t a perispiritual de caboclos daquelas tribos, assim
c o m o de negros de etnias africanas, e hoje são os grandes
r e p r e s e n t a n t e s desses espíritos p e r a n t e o governo oculto
do planeta. Q u a n d o c h e g a m a se manifestar através de médiuns, nas poucas vezes em que travam contato c o m os habitantes da Crosta mais d i r e t a m e n t e , levam mensagens gerais, de c u n h o moral e direcionadas à c o m u n i d a d e , e não
p r o p r i a m e n t e a pessoas em particular.
C o m o m i n h a curiosidade sobre o t e m a havia sido desp e r t a d a c o m todo o vigor, p e r g u n t e i a Pai João algo que me
causava certo incômodo:
— E qual é a especialidade desses espíritos nesta dim e n s ã o da vida, já q u e c o n s e r v a m a aparência e o conhecim e n t o o r i u n d o s de suas experiências c o m o indígenas?
— Aqui, m e u filho, t e m o s i m e n s a v a r i e d a d e de contribuições q u e eles p r e s t a m a nossa c o m u n i d a d e e a outras
do espaço. Falando de m a n e i r a abrangente, os caboclos são
g r a n d e s guardiões, defensores da lei e da disciplina, que
c o m b a t e m as falanges do mal ou daqueles que se o p õ e m ao
progresso e ao b e m c o m u m . Se necessário, investem contra
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as bases das sombras, p r i n c i p a l m e n t e os índios puris e os
antigos guerreiros em geral. C o m o p o d e r de m a n i p u l a r efic a z m e n t e as energias da natureza, r e p r e s e n t a m u m a força
considerável, ante a qual se d o b r a m os agentes do mal. Os
c o m a n d a n t e s e líderes caboclos são d e t e n t o r e s de g r a n d e
m a g n e t i s m o e, p o r essas razões, e n t r e outras, são respeitados e t e m i d o s pelas entidades do mal, desde os c h a m a d o s
q u i u m b a s até m e s m o os magos antigos, que ainda persist e m em e m p r e g a r seu c o n h e c i m e n t o em oposição ao p r o gresso do m u n d o .
"Alguns, mais ligados à libertação e à r e e d u c a ç ã o do
ser h u m a n o , lideram falanges q u e t r a b a l h a m c o m o sentim e n t o e as emoções, o p e r a n d o d i r e t a m e n t e na r u p t u r a de
imantações magnéticas que vinculam indivíduos a formas- p e n s a m e n t o e e n t i d a d e s perversas. E n t r e os m e s t r e s ou líderes espirituais dessas falanges, há m u i t o s cientistas que,
sendo c o n h e c e d o r e s da natureza, a t u a m nos laboratórios
da A r u a n d a e de outras c o m u n i d a d e s do espaço, de m o d o
a auxiliar a h u m a n i d a d e . Contudo, q u a n d o se m o s t r a m a
m é d i u n s e n c a r n a d o s o u e m o u t r o s m o m e n t o s , c o m o sucede agora, transfiguram-se e a s s u m e m a aparência q u e mais
lhes faz sentido, de acordo c o m o que realizarão."
326
— E c o m relação ao q u e se passa aqui, m e u pai, o q u e
está o c o r r e n d o , na realidade? O que se c o m e m o r a com a
p r e s e n ç a de t a n t o s de espíritos, v e r d a d e i r a legião de seres
q u e aqui c o m p a r e c e m esta noite? Noto q u e c h e g a m mais e
mais espíritos de t o d o r e c a n t o da cidade.
Pai João, o l h a n d o mais a m e u lado, a p o n t o u para Menin i n h a e falou:
— Os r e p r e s e n t a n t e s das culturas negra, indígena e outras mais de nossa cidade v ê m p r e s t a r reverência e h o m e n a g e m à mais c o n h e c i d a e respeitada missionária da cultura afro no Brasil. O x u m nos h o n r o u p a s s a n d o o último ano
aqui conosco, na orientação de muitas almas advindas desse celeiro cultural; aproveitou a estadia em nossa c o m u n i d a d e p a r a realizar conferências dirigidas a g r a n d e n ú m e r o
de espíritos. Hoje recebe nossa h o m e n a g e m e despedida.
Daqui, logo p a r t i r á r u m o a altos planos, em regiões por nós
ainda desconhecidas.
— L e m b r o - m e b e m da música, ou melhor, da oração de
Dorival C a y m m i dedicada a ela.
E M e n i n i n h a , a m e u lado, a p e r t o u m e u braço discretam e n t e , c o m o dizendo p a r a não c o m e n t a r n a d a mais. E me
calei. M a s não p o d e r i a deixar de l e m b r a r aquela maravilha
327
de saudação, de h o m e n a g e m e reverência à p e r s o n a l i d a d e
missionária da o x u m do Gantois.
Logo após, os espíritos negros, africanos, baianos e outros r e p r e s e n t a n t e s da cultura afro, desfilaram, t o c a r a m
atabaques e o u t r o s i n s t r u m e n t o s , ao som dos quais m u i tos i n t e r p r e t a r a m u m a coreografia maravilhosa em pleno
ar; em seguida, d e s c e r a m m a j e s t o s a m e n t e à frente da sacerdotisa do Gantois, i l u m i n a n d o os céus da Aruanda. E n q u a n t o a saudavam, flores iluminadas caíam sobre t o d a a
plateia de espíritos; pétalas de rosas exalavam um perfume
indescritível e d e r r a m a v a m - s e sobre nós. Reverenciavam a
o x u m mais bonita e n t o a n d o canções n u m a língua que m e
era desconhecida; elas falavam da generosidade, do trabalho e da g r a n d e z a dessa alma q u e viera ter c o m seu povo na
cidade dos espíritos. Pais-velhos, mães-velhas, caboclos e
tantos mais se u n i a m n u m a sinfonia da c u l t u r a negra e dos
orixás, e apresentavam-se na mais bela c o m e m o r a ç ã o q u e
já presenciei até hoje.
Depois de t u d o , a i n d a o u v i n d o ao fundo as m ú s i c a s e
melodias e n t o a d a s p o r u m a espécie d e coral d e seres d e
p r o c e d ê n c i a n i t i d a m e n t e africana, eis q u e surgiu alguém
e n t r e nós, d e s c e n d o do alto. Fazia-se a c o m p a n h a r p o r
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mais de u m a c e n t e n a de espíritos de ex-escravos, negros
e m u l h e r e s vestidos de m a n e i r a sui generis, de conformid a d e c o m os c o s t u m e s do c a n d o m b l é de kêtu. C a m i n h a n do n u m a e s t r a d a de flores — rosas b r a n c a s , lírios e outras
mais, q u e se m e s c l a v a m ao formar um t a p e t e iluminado
e p e r f u m o s o —, v i n h a a e n t i d a d e c o m os b r a ç o s abertos
na d i r e ç ã o da o x u m mais b e l a e n t r e t o d a s as o x u n s . Menin i n h a se d e s p e d i a da A r u a n d a p a r a r u m a r a o u t r o s sítios
do u n i v e r s o . U m a voz melodiosa, q u e t o c o u o coração de
t o d o s nós, formava o p a n o de fundo p a r a se d e s p e d i r da
alma i l u m i n a d a q u e d e s c e u até aquele lugar abençoado. á
s e m e l h a n ç a d e u m d i a m a n t e e n c r a v a d o e n t r e a s estrelas
do firmamento.
M e n i n i n h a abraçou cada integrante das nações africanas ali p r e s e n t e s , abraçou e abençoou cada u m a das entidades representativas das c o m u n i d a d e s da Aruanda. Na ponta do rastro de luz q u e descia sobre todos, ela alçava voo a
outros recantos do m u n d o espiritual — insondáveis, ao menos por ora, ao m e n o s para nós. Não h o u v e q u e m não ficasse p r o f u n d a m e n t e tocado diante daquela cena. Pela primeira vez, vi Pai João chorar. Os demais caciques, xamãs e
líderes espirituais das falanges da A r u a n d a ajoelharam-se
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r e s p e i t o s a m e n t e , s a u d a n d o a m u l h e r que, c o m seus e n c a n tos e e n c a n t a d o s , deixou sua m a r c a e t e r n a no coração e na
vida de t a n t a gente.
Naquela m e s m a noite, em h o m e n a g e m à mais linda estrela da Bahia e em n o m e do colegiado de espíritos
d a A m a n d a , Pai João i n a u g u r o u u m a reserva natural, u m
m u s e u a céu aberto n u m dos lugares mais belos de nossa
cidade espiritual, que foi batizado de M u s e u Natural M e n i n i n h a do Gantois. Tratava-se de um tributo aos negros
ex-escravos, aos povos q u e t r a b a l h a r a m e viveram sob o r e gime da escravidão e, u m a vez libertos, brilhavam, m u i t o s
deles, c o m o estrelas na eternidade, mas p r i n c i p a l m e n t e na
A m a n d a , pois era este o caso de g r a n d e p a r t e de seus habitantes. Ao longe, os t a m b o r e s rufavam, e novo espetáculo
de d a n ç a c o n t e m p o r â n e a era realizado por artistas da cult u r a afro, que saíram bailando atrás da comitiva que c o n d u zia o x u m a seu orum.
15
A m a n d a estava em festa. Pais-velhos, mães-velhas e outros cidadãos reuniam-se para conversar sobre as características daquele m u s e u e para apreciá-lo, u m a vez que fora
15
Orum. Do ioruba: mundo dos espíritos, Além.
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especialmente projetado, nos m í n i m o s detalhes, visando rep r e s e n t a r os povos da m ã e Africa com o m á x i m o de deferência. T r e m u l a n d o sob o pórtico dos orixás, as bandeiras
de todas as nações do continente africano formavam um espetáculo à parte.
Retirei-me da multidão de espíritos verdadeiramente
emocionado. Vi os pais-velhos c a m i n h a n d o e confabulando
e n t r e si, m u i t o e m b o r a não se portassem da m a n e i r a caricata c o m u m e n t e observada nos terreiros, isto é, curvados e
u s a n d o palavreado de pessoas idosas e sem escolaridade. Ao
contrário, apresentavam-se eretos e articulados, cada qual
se vestindo segundo as preferências pessoais. Alguns trajavam t e r n o b r a n q u i n h o , p a r e c e n d o de linho, e n q u a n t o outros seguravam um cajado, ou então u m a espécie de bengala, e outros, ainda, simplesmente andavam, portando-se
c o m o um idoso saudável dos dias atuais. Demonstravam
u m a beleza incomum, u m a alegria e um sorriso contagiante.
Muitas vezes, presenciei gargalhadas e n t r e eles, talvez
o b s e r v a n d o este ou aquele aspecto das coisas a seu redor
ou, q u e m sabe, do c o m p o r t a m e n t o excêntrico de certos espíritos. P u d e vê-los, naquele m o m e n t o e em outros, geralm e n t e em intensa atividade p o r todo o a m b i e n t e social da
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cidade. Pelo que p u d e notar, gostam m u i t o de se vestir de
branco, inclusive as mães-velhas, t a n t o as q u e se m o s t r a m
negras c o m o as q u e se a p r e s e n t a m c o m o brancas. Assim,
não e n c o n t r e i aqui apenas pretos-velhos e pretas-velhas.
T a m b é m havia ali m u i t a s brancas-velhas; m u i t a s índias
idosas, q u e conservavam esse aspecto p o r q u e talvez lhes
recordasse algum m o m e n t o precioso que viveram em alguma de suas existências.
Ainda q u a n d o eu fitava os h a b i t a n t e s d a q u e l a joia espiritual a q u e c h a m á v a m o s A m a n d a , Pai João a p r o x i m o u - s e
de m a n e i r a lenta, q u e m sabe para não atrapalhar m i n h a s
reflexões. Pela p r i m e i r a vez, percebi sua aproximação sem
precisar me virar p a r a vê-lo. Ri i n t i m a m e n t e de alegria,
pois já conseguia e n t r a r em contato c o m a a u r a do o u t r o espírito, p e r c e b e n d o - l h e a presença. C a m i n h a n d o a m e u lado
por um b o m t e m p o , sem dizer palavra, Pai João respeitou
m e u silêncio até q u e lhe dei um sinal, um p e n s a m e n t o a p e nas, e ele falou:
— Estes são os fundadores da nossa cidade, m e u filho. R e p r e s e n t a m os povos q u e um dia a p o r t a r a m do n o s so lado da vida e e r g u e r a m as bases de u m a civilização na
parte mais etérea dos fluidos do planeta. T e n h o certeza de
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q u e um dia, n u m futuro b e m próximo, você d a r á voz a muitos deles através da pena, da escrita, falando das belezas da
i m e n s i d a d e ao m u n d o dos nossos amigos e n c a r n a d o s , ajud a n d o a retirar o véu do preconceito, q u e n u b l a a m e n t e de
m u i t o s dos filhos da Terra.
— Eu, Pai João? Não me sinto p r e p a r a d o para u m a tarefa de t a m a n h a responsabilidade. Diante de t u d o q u e têm
me mostrado, da realidade dos guardiões, dos pais-velhos,
caboclos e outras e n t i d a d e s q u e t r a b a l h a m pelo b e m da
h u m a n i d a d e neste m u n d o invisível, sinto que terei de reap r e n d e r muita, m u i t a coisa. Toda m i n h a cultura mostra-se
ínfima p e r a n t e a r i q u e z a e a diversidade cultural q u e encontrei aqui.
— Pois é, m e u filho, t o d o s t e m o s m u i t o a aprender. Mas
é preciso t e r c o r a g e m p a r a devassar o m u n d o invisível sem
a visão p r e c o n c e i t u o s a e d e t u r p a d a que m u i t o s fazem da
vida espiritual. Em breve, você será c h a m a d o à luta. Novos
h o r i z o n t e s se abrirão a seu olhar espiritual, e nós, os m e n sageiros da Aruanda, jamais o a b a n d o n a r e m o s .
A b r a ç a n d o - m e c o m o a um filho, senti-me aconchegado nos b r a ç o s amigos da e n t i d a d e que a p r e n d i a a d m i r a r e
respeitar, sob o n o m e de Pai J o ã o de Aruanda. Q u a n d o abri
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os olhos, depois desse aconchego de almas, vi a nosso lado
o m é d i u m q u e o pai-velho me a p r e s e n t a r a em casa de Consuela. Estava j u n t o dela e fora trazido ali pela p r ó p r i a espanhola, que viera participar da festa.
Ao longe, as estrelas do firmamento p a r e c i a m festejar
a passagem de M e n i n i n h a pela A m a n d a , ao passo que p o r
t o d a a cidade havia festa, m ú s i c a e a p r e s e n t a ç ã o de vários
artistas da imensidade, m u i t o s advindos de outras cidades
espirituais. Fervilhava de gente nossa c o m u n i d a d e .
Levando em conta a p r e s e n ç a de Pai João a m e u lado,
de Consuela e do rapaz c o m o qual deveria me habituar,
c o m vistas a u m a parceria, aproveitei p a r a passear pela cid a d e e c o n h e c e r aspectos da vida espiritual ainda ignorados. E r a u m a o p o r t u n i d a d e í m p a r p a r a e n t r a r e m contato
c o m espíritos de p r o c e d ê n c i a s as mais variadas, analisar
aspectos da cultura espiritual em incontáveis p o r m e n o r e s
e matizes; enfim, me e n t u r m a r , c o m o diriam alguns amigos
na Terra. Eu renascia e n t r e as estrelas, m e s m o que p a r a r e nascer t e n h a sido necessário m o r r e r primeiro, a fim de d e s p e r t a r p a r a esta tão intensa vida, em o u t r a dimensão.
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STAMOS CANSADOS DE esperar os acontecimentos na Terra! — falou o guardião Antony H e p p k i n s p a r a a guardiã
Merlíades, c o m um t i m b r e de voz que demonstrava irritação. — Já há um ano t e m o s vigiado b e m de p e r t o a situação e visto c o m o se complica dia a dia a política e as relações internacionais desses países que o guardião superior
pediu que observássemos. Estamos p r a t i c a m e n t e s e m notícias sobre o que nossa base principal na Lua t e m avaliado,
visando intervir na região em que d e t e c t a m o s a possibilidade de um conflito iminente. Gostaria de saber se J a m a r já
está no lado oculto da Lua, se p r e p a r a n d o p a r a a intervenção ou, ao menos, se obteve permissão do governo do planeta p a r a isso.
A base móvel dos guardiões continuava girando sobre
a região espiritual no Oriente Médio, entre a península da
Arábia e o Irã. Mais precisamente, a fortaleza voadora dos
guardiões policiava a corrente astral em d e t e r m i n a d o ponto, localizado geográfica e estrategicamente acima do Golfo
Pérsico. O c o m a n d o da estação móvel estava sob a responsabilidade da guardiã Merlíades, especialista nos conflitos
da região. Um dos especialistas de plantão, espírito bastante
esperiente em matéria de possibilidades mentais e telepa-
338
tia, de n o m e Ashter, tentava captar p e n s a m e n t o s ou formas- p e n s a m e n t o dos líderes dos países vizinhos e dar-lhes as
devidas interpretações. O resultado das observações era enc a m i n h a d o d i r e t a m e n t e para a base principal dos guardiões,
situada no satélite natural da Terra. A m e n t e de Ashter permanecia atenta ao que ocorria j u n t o aos governos da região:
Emirados Árabes, Arábia Saudita, Bahrein, Kuwait, Qatar.
Irã e Iraque. Tanto Ashter q u a n t o Merlíades e r a m especialistas na cultura, na mentalidade e na política dessas nações.
— Recebemos o r d e m de e s p e r a r e ficar de olho na região, pois há um conjunto de fatores q u e indica a presença
de magos negros e alguns o u t r o s r e p r e s e n t a n t e s de poder
do s u b m u n d o a se c o n c e n t r a r nesta região astral. Um conflito é iminente, não há dúvida.
Antony H e p p k i n s passou a m ã o e n t r e os cabelos perfeitamente aparados, de cor acobreada, n u m claro gesto de
impaciência.
— Está bem, está b e m , Ashter. Acontece que eu sou um
guardião, e não um a n i m a l z i n h o q u e fica s e n t a d o à espera
do dono, n e m me p r e s t o a ficar inerte e n q u a n t o forças da
oposição se r e ú n e m , colocando em risco a segurança energética do planeta.
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— Sua fala significa algum tipo de insinuação sobre a
responsabilidade de nosso c o m a n d a n t e , J a m a r ? Porque, se
for assim — i n t r o m e t e u - s e Merlíades —, sua p o s t u r a será
i n t e r p r e t a d a c o m o insubordinação e indisciplina, guardião.
Antony pediu desculpas pela forma c o m o falara ao especialista e t e n t o u se justificar. Mas a guardiã era intransigente e n ã o p e r m i t i u q u e ele continuasse c o m a p o s t u r a
inquieta. Passou-lhe u m a r e p r i m e n d a à altura da r e s p o n sabilidade assumida p o r eles. Alguém na base v o a d o r a deu
u m a gargalhada estridente, d e s c o n t r a i n d o o ambiente.
Os especialistas em visão à distância Mário Pitanga e
Simon O r m u t z e n t r e o l h a r a m - s e , mas ficaram quietos. O
primeiro era expert em política internacional, e ambos pertenciam ao g r u p o de força psíquica do exército especial dos
guardiões. A d m i r a r a m - s e de q u e Antony tivesse ficado tão
quieto assim após a r e p r e e n s ã o da guardiã, pois lhe c o n h e ciam o jeito de agir e reagir às situações. C o m a cara mais
inocente do m u n d o , depois de um t e m p o mais longo, Antony fez um comentário, c o m o se não houvesse falado n a d a
anteriormente:
— A base l u n a r está cada vez mais capacitada. Parece que A n t o n e seus auxiliares r e c e b e m a cada dia mais e
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mais tecnologia de d i m e n s õ e s superiores. I m a g i n o até que
saibam de algo i m i n e n t e e c o m p r o m e t e d o r sobre esta região do planeta.
O u t r a base móvel dos guardiões, ainda que de proporções b e m maiores, orbita o planeta, em velocidade pouco
maior do que a da rotação da Lua, p o r é m em sentido contrário a este movimento, a u m a distância a p r o x i m a d a de
2 0 0 mil quilômetros da superfície do planeta. Isto é, pouco mais da m e t a d e da distância q u e separa a Lua da Terra. Nessa base, o u t r o s guardiões o b s e r v a m d e t i d a m e n t e
a ação de e n t i d a d e s perversas e sombrias q u e t e n t a m influenciar de m o d o decisivo a e s t r u t u r a de p o d e r nos governos do m u n d o . Existem várias bases espalhadas estrategic a m e n t e pela região astral da Terra. A base sob o c o m a n d o
de Merlíades era u m a das mais i m p o r t a n t e s , pois se localizava estrategicamente n u m dos p o n t o s de m a i o r conflito
do Oriente Médio e, afinal, de t o d o o globo. Todos os guardiões nesse c e n t r o de operações especiais usavam o mesmo uniforme, e dificilmente se distinguiria o posto ocupado por eles através de sinais externos.
— Como faremos p a r a intervir no caso de u m a g u e r r a
e n t r e os países envolvidos no jogo de p o d e r desta região?
341
— Já disse a n t e r i o r m e n t e — falou Merlíades, sabendo
que seu n o m e era alvo de brincadeiras e n t r e os guardiões,
pois era de procedência persa, algo q u e a maior parte não
entendia, de m o d o que soava e s t r a n h o aos ouvidos deles. —
Só agiremos depois que nosso c o m a n d a n t e J a m a r t r o u x e r
as ordens da Lua. Até lá, faremos t o d o o possível para entender a situação por aqui, anotar cada lance que ocorre nos
bastidores da vida, no que tange aos países observados, e,
com base nisso, elaborar estratégias de ação p a r a sugerir no
caso de deflagrarem a g u e r r a que se esboça no horizonte.
Antony t e n t o u mais u m a vez interferir:
— Conforme v i n h a dizendo... — esboçou ele.
Mas a guardiã foi mais ágil e ardilosa e, pela p r i m e i r a
vez, Merlíades o s u r p r e e n d e u , quase m u d a n d o o r u m o da
conversa ou, talvez, d a n d o - l h e novo enfoque:
— Que tal p e d i r m o s a J a m a r q u e e n t r e em contato c o m
a A m a n d a ? C o m o se t r a t a de u m a m e t r ó p o l e itinerante,
ou seja, que p o d e se deslocar nos fluidos do planeta, talvez
possam nos auxiliar mais d i r e t a m e n t e nesta região.
Antony ainda refletia sobre o que p r e t e n d i a dizer
q u a n d o o novo c o m e n t á r i o de Merlíades modificou c o m pletamente o r u m o de seus p e n s a m e n t o s . M a s c o m o lhe
342
era característico em certos m o m e n t o s , pensava u m a coisa
e falava o u t r a c o m p l e t a m e n t e diferente. Dessa forma, som e n t e Merlíades e Ashter, capacitados a se aprofundar nos
p e n s a m e n t o s de outros, c o n s e g u i r a m i n t e r p r e t a r de forma
correta o que o guardião queria efetivamente dizer. Os demais ficaram sem c o m p r e e n d e r o sentido de suas palavras:
— A esta altura, a situação deve ser ainda mais difícil
em relação aos espíritos das regiões sombrias, já q u e os magos se i n t r o m e t e m j u n t o c o m cientistas q u e desenvolver a m a habilidade hipnótica... Talvez s o m e n t e especialistas
consigam ficar i m u n e s aos h i p n o c o m a n d o s desses seres. Se
A m a n d a enviasse alguns de seus peritos!
Merlíades olhou p a r a Ashter, t r o c a n d o impressões que
ficaram s o m e n t e no nível m e n t a l mais profundo, i m p e r c e p tíveis aos demais guardiões.
— E n t r a r e i em c o n t a t o imediato c o m J a m a r — falou a
guardiã, de certo m o d o r e c o n h e c e n d o a habilidade de Antony em prever certos lances de um conflito de c a r á t e r mais
abrangente. — C o m certeza ele saberá c o m o p r o c e d e r ao
e n t r a r em contato c o m os a d m i n i s t r a d o r e s da m e t r ó p o l e .
Antony sorriu i n t i m a m e n t e . De alguma forma conseguira influenciar a opinião da guardiã. Ele t i n h a absoluta
343
convicção acerca da urgência que cercava os a c o n t e c i m e n tos. E n q u a n t o Merlíades assumia o posto de c o m u n i c a ç ã o
da base, Antony c o m e n t o u n u m t o m mais baixo q u e o usual:
— Se continuarmos sentados só observando, talvez ocorra u m a tragédia m u i t o maior do que e s p e r a m o s . Os governantes da região e de outros países q u e lhes são antagônicos talvez sejam induzidos por c o m a n d o s hipnóticos dos
especialistas da oposição. Os magos e cientistas do astral
inferior não b r i n c a m em serviço. Não p o d e m o s ficar d a n do u m a de espiões, apenas. Temos de advertir as diversas cidades no espaço, a fim de ficarem em prontidão, pois
u m a g u e r r a se precipita e não s a b e m o s a extensão dos danos n e m a q u a n t i d a d e de espíritos q u e p o d e r ã o a b a n d o n a r
o corpo físico de m a n e i r a brutal. Eis um p r o b l e m a difícil de
enfrentar, até m e s m o p a r a os p o d e r o s o s guardiões.
O especialista Simon O r m u t z acrescentou:
— Temos de c o n t a r c o m a estação móvel dos guardiões,
que descreve a órbita em t o r n o do planeta. C o m seu p o t e n cial de t r a b a l h a d o r e s e especialistas, talvez consigamos interferir decisivamente no palco dos conflitos.
Foi nesse m o m e n t o que Ashter comentou, talvez soando
como se estivesse advogando a causa defendida por Antony:
344
— C o m o você disse, amigo, a base móvel descreve u m a
órbita em t o r n o do planeta, mas, o b e d e c e n d o ao conjunto de forças n a t u r a i s do orbe, não p o d e n e m acelerar n e m
r e v e r t e r sua trajetória. A b a s e não p o d e se virar constant e m e n t e p a r a a Crosta. Por isso, acho a c e r t a d a a p r e s e n ç a
d e u m a m e t r ó p o l e q u e possa c o n t r o l a r seus m o v i m e n t o s
p a r a o n d e q u e r q u e sejam necessários. Além da A r u a n d a ,
t e m o s mais duas outras cidades espirituais q u e p o d e m nos
socorrer. U m a está sobre os céus da E u r o p a e outra, sobre
a Antártida. Elas t a m b é m p o d e m se deslocar, em caso de
necessidade.
Ashter conseguiu convencer os guardiões c o m seus com e n t á r i o s . Mais u m a vez, Antony riu silenciosamente. Ele
sabia da urgência da situação. O Golfo Pérsico era um barril
de pólvora prestes a explodir.
Q u a n d o Merlíades conseguiu c o n t a t o c o m a base dos
guardiões, localizada em regiões mais profundas do plano astral, J a m a r já estava atento e i m e d i a t a m e n t e convocou e n o r m e c o n t i n g e n t e c o m a n d a d o pelo oficial Watab. A
nave ou, m e l h o r dizendo, o carro voador que transportava
um c o n t i n g e n t e invejável de guardiões da noite t i n h a mais
ou m e n o s 3 0 0 m de d i â m e t r o e era protegido p o r um gigan-
345
tesco c a m p o energético, i m p e r t u r b á v e l e impenetrável. Representava u m p o d e r q u e n ã o p o d e r i a ser ignorado pelas
forças do mal e da oposição à política do Cordeiro. Havia
u m t r a n s m i s s o r m o n t a d o n o p o r t e n t o s o aeróbus, desenvolvido especificamente p a r a enfrentar t e m p o s de guerra.
Emitia c o n s t a n t e m e n t e u m c h a m a d o p a r a diversas cidades
e colônias astrais, p r i n c i p a l m e n t e as mais p r ó x i m a s da r e gião o n d e o confronto se desenhava.
P r ó x i m o ao local o n d e ficava o transmissor, n u m a sala
mais ampla, estava um d e s t a c a m e n t o de v a n g u a r d a dos
guardiões, que partiria r u m o aos lugares críticos e a d e t e r m i n a d o s países, que haviam se aliado p a r a enfrentar a
possibilidade da guerra, mas que, no final, t e r i a m participação mais intensa. Estados Unidos, Grã-Bretanha, França,
Arábia Saudita, Egito e Síria e r a m os alvos principais p a r a
onde o g r u p o seria enviado, na tentativa de a d m i n i s t r a r
ou a m e n i z a r a provável intervenção internacional na r e gião. Outro c o m a n d o de guardiões ficou de p r o n t i d ã o j u n to aos governos do I r ã e da antiga União Soviética, p r o c u rando incitá-los de alguma forma a intervir, n u m a tentativa
de paz e n t r e os países envolvidos. O conflito do Golfo estava armado, e as forças dos guardiões, de prontidão, deslo-
346
cavam seu exército c o m p o s t o de espíritos das diversas falanges: mongóis, legionários de Maria, guardiões da noite e
o u t r o s especialistas. Além do mais, aguardavam u m a equipe de pais-velhos peritos no trato c o m os magos, pois a região espiritual nas imediações do evento que se precipitava
constituía um p o n t o de c o n c e n t r a ç ã o de antigos magos das
r e m o t a s civilizações da Pérsia e da Babilônia.
A nave dos guardiões p e r c o r r i a o espaço dimensional
e n t r e os planos astral e físico, cercada pelo c a m p o defensivo iluminado n u m a cor a z u l - t u r q u e s a intensa, q u e a p r o tegia c o n t r a q u a l q u e r ataque. A Aruanda, r e s p o n d e n d o ao
c h a m a d o dos guardiões, deslocava-se, qual fortaleza p o d e rosa, movida por forças gravitacionais direcionadas e devid a m e n t e controladas por técnicos especialistas. E n q u a n t o
realizava u m a m a n o b r a ligeira, imperceptível aos habitantes da c o m u n i d a d e , foram evacuados mais de 5 milhões de
espíritos visitantes, q u e estavam na cidade a p e n a s para est u d o ou lazer. Restaram a p e n a s os h a b i t a n t e s da cidade.
O conflito no plano físico era d a d o c o m o certo, princip a l m e n t e devido às posturas do ditador da região, que se
envolvera em antigas disputas territoriais. Ele assumia esse
p o s i c i o n a m e n t o n a q u e l e m o m e n t o histórico perigoso com
347
a desculpa de defender sua política de preço do petróleo.
Além disso, exigia absurdas indenizações do país vizinho.
No meio daquele confronto de d i m e n s õ e s espirituais e
históricas foi que tive m e u p r i m e i r o c o n t a t o c o m as forças
que c o s t u m e i r a m e n t e os guardiões c h a m a m de forças da
oposição. Esse t e r m o fora c u n h a d o p a r a designar as hostes
inimigas do bem, contrárias à política do Cordeiro, n o m e
dado ao g o v e r n a d o r espiritual da h u m a n i d a d e , mais c o n h e cido e n t r e os h o m e n s pelo n o m e de J e s u s Cristo.
Estava a b o r d o do p o d e r o s o comboio, que mais parecia
u m a nave de guerra. Havia especialistas por t o d o lado. Da
A m a n d a , c h e g a r a m t a m b é m diversos pais-velhos, que, tão
logo se m a t e r i a l i z a r a m no a m b i e n t e da nave, transformaram a v e s t i m e n t a perispiritual, de m o d o a assumir a aparência q u e tiveram em e n c a r n a ç õ e s mais recuadas, c o m o
magos b r a n c o s e sacerdotes dos colégios iniciáticos antigos. Precisavam enfrentar os magos q u e se r e u n i a m n u m a
localidade e n t r e os rios Tigre e Eufrates, o n d e no passado
existiu i m p o r t a n t e c e n t r o de iniciação espiritual.
O e n o r m e comboio se colocou acima dos M o n t e s Taurus, na Turquia, n u m a região logo ao n o r t e da ilha de Chipre, e aí fixou a base dos guardiões. Antes m e s m o que fos-
348
se d e c r e t a d a a guerra, Pai João, s e c u n d a d o por sua equipe
especialista no t r a t o c o m os magos, j u n t a m e n t e c o m Jamar.
localizaram u m a base dos temíveis magos negros n u m a dim e n s ã o subcrostal que ficava abaixo da região de Al-Qurna, no sudeste iraquiano. Ali foram c o n c e n t r a d o s os esforços dos guardiões e dos pais-velhos. As cidades espirituais
do Velho M u n d o foram todas acionadas p a r a ficarem em
estado de alerta, caso h o u v e s s e d e s c a r r e g a m e n t o de u m a
cota e x t r a de e c t o p l a s m a na atmosfera espiritual do planeta, devido aos prováveis d e s e n c a r n e s em massa. Havia muita tensão no ar.
Voltando sua atenção para mim, J a m a r falou, não me
d a n d o m a r g e m p a r a discordância:
— Você p e r m a n e c e r á conosco por um p o u c o de tempo.
Ângelo. Não c o n v é m que se e x p o n h a d i r e t a m e n t e e de maneira intensa ao e m b a t e de forças discordantes. Pelo m e nos, ainda não. Portanto, não e s t r a n h e se, depois de algum
t e m p o , o convidarmos a r e t o r n a r à cidade e ficar ao abrigo
das energias aqui d e s e n c a d e a d a s .
— M a s eu gostaria de participar...
— Como eu disse — a c e n t u o u J a m a r —, ficará certo tempo conosco, mas não p o d e m o s colocar em risco sua integri-
349
dade espiritual, pois é recente sua estadia conosco. É p r e ciso e n t e n d e r que n e m t u d o p o d e ser conforme queremos.
Não havia c o m o d e b a t e r com o guardião. M e u anjo p r o tetor não deixava dúvidas quanto à sua decisão. Só me restava calar e torcer para q u e p u d e s s e ver a maior p a r t e dos
lances do conflito iminente. Precisava recolher informações, m a s não sabia até q u e ponto m i n h a presença seria útil
a m i m ou prejudicial à ação dos guardiões. Eu esperaria.
N u m plano dimensional p r ó x i m o à Crosta, diversos
servidores do Cordeiro se r e u n i a m na base móvel dos guardiões, o g r a n d e comboio, com o intuito de discutir t e m a s
i m p o r t a n t e s p a r a o m o m e n t o , em q u e a g u e r r a era p o r d e mais significativa e determinava, no c ô m p u t o do t e m p o , o
inicio de u m a nova etapa do processo de seleção e colheita, como se referiam ao p e r í o d o intenso de atividades vivid o pela h u m a n i d a d e . J a m a r e x p e d i r a u m boletim n o qual,
além da dar notícia dos a c o n t e c i m e n t o s que se desenrolar a m no plano dos h o m e n s , convocava as c o m u n i d a d e s do
espaço a s o m a r e m esforços p a r a enfrentar os h o r r o r e s de
uma g u e r r a iminente e de graves consequências globais.
Vieram r e p r e s e n t a n t e s de várias colônias e cidades do
Além, reunidos em prol da h u m a n i d a d e . E n t r e os espíritos
350
ali p r e s e n t e s , Merlíades e Antony, Asher e outros mais da
e q u i p e aguardavam os p r ó x i m o s lances.
E n t r e os desafios a p r e s e n t a d o s t a n t o p o r J a m a r quanto
p o r Semíramis e Pai João, estava a necessidade de ampliação das áreas adjacentes às cidades espirituais e colônias
do plano astral. E r a preciso capacitar as cidades vibrator i a m e n t e mais p r ó x i m a s da Terra a receber os milhares de
espíritos que d e s e n c a r n a r i a m em condições t r a u m á t i c a s e
em p e q u e n o espaço de t e m p o . E isso não exclusivamente
naquela g u e r r a q u e fora d e c r e t a d a pela insanidade de um
tirano, mas t a m b é m em cataclismos c o m o t e r r e m o t o s , tsunamis, m a r e m o t o s e o u t r o s mais, cuja incidência a u m e n t a ria. A isso se s o m a r i a m outros conflitos bélicos e revoltas,
atentados e outros atos de violência, p a t r o c i n a d o s pela insensatez h u m a n a , r e d u n d a n d o n o a u m e n t o d o n ú m e r o d e
d e s e n c a r n e s e m massa.
— P r e c i s a m o s invocar o auxílio dos espíritos const r u t o r e s , pois h a v e r á n e c e s s i d a d e de a m p l i a r as áreas de
socorro nas colônias, cidades espirituais e m e t r ó p o l e s do
p l a n o astral mais p e r t o da Crosta — falou Pai João, agora
n u m a r o u p a g e m fluídica diferente da habitual. — Os cham a d o s postos de socorro, localizados em regiões inóspitas
351
do c o n h e c i d o u m b r a l e em d i m e n s õ e s mais d e n s a s , n ã o
s o m e n t e d e v e m ser a m p l i a d o s , c o m o t a m b é m d e v e m o s
f o r m a r m a i s t r a b a l h a d o r e s . T e m o s na A r u a n d a o c a d a s t r o
d e n u m e r o s o s seres, a i n d a e n c a r n a d o s , q u e p o d e r ã o servir de auxiliares d e s d o b r a d o s . C o l o c a r e m o s nossos regist r o s desses filhos à disposição das diversas c i d a d e s e colônias do astral.
O l h a n d o a t e n t a m e n t e os espíritos q u e participavam da
reunião emergencial, o pai-velho continuou, a c e n t u a n d o
mais ainda suas palavras:
— As várias cidades espirituais que se a p r e s e n t a r a m
p a r a colaborar nos eventos críticos q u e enfrentaremos p r e cisam a p r i m o r a r a r e d e de comunicação, estabelecendo
intercâmbio eficiente e n t r e elas t a n t o q u a n t o c o m t o d o o
sistema de cidades do plano astral do planeta, a fim de r e ceber e c o m p a r t i l h a r recursos e orientações do Alto. U m a
r e d e de c o m u n i c a ç ã o estreita e funcional deve e n t r a r em
operação u r g e n t e m e n t e .
Após d a r um t e m p o p a r a os diversos espíritos p r o c e s sarem as ideias, o pai-velho continuou:
— Nós, da Aruanda, p o d e m o s oferecer nossa universidade e seus diversos d e p a r t a m e n t o s p a r a a formação de
352
trabalhadores, q u e p o d e r ã o ser e n c a m i n h a d o s p a r a servir
nas diversas frentes de batalha espiritual. Nosso amigo Anton, um dos r e p r e s e n t a n t e s maiores dos guardiões, enviará
o registro de m é d i u n s e t r a b a l h a d o r e s de diversos países, a
fim de q u e se faça um apelo p a r a q u e u n a m seus esforços
neste m o m e n t o crítico.
Q u a n t o a mim, ficava o t e m p o t o d o s o m e n t e ouvindo,
pois ainda não t i n h a adquirido n e n h u m a habilidade para
me dispor c o m o servidor nesta h o r a grave. Observei como
os r e p r e s e n t a n t e s de algumas cidades espirituais estavam
m u i t o sensíveis ao q u e se desenrolava no Oriente Médio.
Foi q u a n d o Semíramis t o m o u a palavra e c o m p l e m e n tou a fala de Pai João:
— Algo t a m b é m me preocupa a partir deste momento,
que, para nós, é somente o início das provações coletivas.
Falo, ainda, sobre a necessidade de preparação das cidades
espirituais. A readequação das cidades e a capacitação de
mais trabalhadores precisam ocorrer de maneira planejada
e inteligente, a fim de formarmos trabalhadores com competência e discernimento, e não somente com boa vontade. Assim, teremos a possibilidade de socorrer e a m p a r a r os seres
que desencarnarão com o m á x i m o de habilidade e eficácia.
353
"Não p o d e m o s esquecer que q u e m virá da Terra nos
próximos anos, em levas ou desencarnes coletivos, será p r o veniente das experiências mais variadas, no q u e concerne a
religiões e cultos. Então, pergunto: como promover a a d o ção de u m a linguagem que, se não todos, ao m e n o s a maioria
compreenda? Creio que precisamos nos reunir, tanto os administradores quanto os líderes de equipes das diversas cidades, a fim de ajustar um m é t o d o eficaz de c u m p r i r a missão que está diante de nós, além de estabelecer u m a cadeia
de auxílio mútuo, levando em conta os desafios de abrigar e
conduzir milhares de espíritos que reclamarão amparo."
E n t e n d i que n e m p a r a os espíritos mais e x p e r i e n t e s
era fácil lidar c o m culturas espirituais tão diversas c o m o
as que existiam em t o r n o do globo terrestre. O p r o b l e m a
cultural e religioso persistia, além da sepultura, c o m o um
grande desafio, agravando-se nos m o m e n t o s de crise espiritual e resgates coletivos.
Ainda com o m e s m o p e n s a m e n t o , Astrid pediu a palavra p a r a c o m e n t a r :
— Sei que p o d e ser p r e m a t u r a esta proposta, principalmente n u m a h o r a de urgência c o m o esta, mas aproveito a
presença de r e p r e s e n t a n t e s das diversas c o m u n i d a d e s do
354
espaço para fazer um apelo. Precisamos enfrentar um desafio m u i t o grande, mas que, e n c a r a d o em conjunto, pode
surtir um resultado valioso e facilitar o trabalho no f u t u r a
O desafio que vejo se esboçar é o de inspirar os servidores e
a p r e n d i z e s dos diversos cultos e religiões, principalmente
os de c u n h o espiritualista, o n d e ocorra atividade mediunica ostensiva, a se u n i r e m e d e i x a r e m de lado as diferenças
em prol de um ideal maior.
Notei q u e alguns espíritos se e n t r e o l h a r a m , pois, entre
os q u e faziam p a r t e da assembleia naquele m o m e n t o , alg u n s não p e r t e n c i a m a r a m o s q u e a d m i t i a m declaradamente a prática mediúnica. Havia, por exemplo, cinco espíritos
r e p r e s e n t a n t e s da crença católica, provenientes de cidades
espirituais q u e foram construídas d e n t r o desse ideal, além
de dois m e m b r o s de colônias de feição manifestamente
evangélica. E a palavra de Astrid p a r e c e u m e x e r m u i t o com
eles. Pai João, habilmente, conseguiu deixá-los mais à vontade, e m b o r a vissem alguns dos espíritos da A r u a n d a com
certa reserva. M e s m o assim, colaboraram ante o apelo dos
guardiões e se colocaram p r o n t o s a servir. Pelo m e n o s ali e
naquele m o m e n t o , d e i x a r a m de lado os p o n t o s de vista disc o r d a n t e s para auxiliar c o m o podiam.
355
Além deles, pais-velhos, caboclos e espíritos que se apresentavam neste m o m e n t o com forma diferente da habitual,
todos a t e n d e r a m ao c h a m a d o deflagrado pelos guardiões.
Havia colaboradores do extremo oriente asiático, médicos
do espaço e espíritos comprometidos com o b e m ligados à
religiosidade do povo brasileiro. Ainda se viam espíritos p r o cedentes de alguns países da Europa, inclusive do leste e u r o peu, que ali se reuniam t a m b é m para ajudar quanto p u d e s sem. Todos conversavam sobre estratégias para a u m e n t a r o
contingente de trabalhadores, reurbanizar diversas cidades
do Além, preparando-as m e l h o r para receber, educar e auxiliar, da melhor maneira possível, os espíritos da Terra.
R e c e b e r a m de b o m grado a p r o p o s t a de J a m a r e J o ã o
Cobú, b e m c o m o de Antony, A s h t e r e Merlíades, que participavam da r e u n i ã o na base v o a d o r a dos guardiões. Não
somente naquele m o m e n t o crítico da g u e r r a q u e estava
em a n d a m e n t o , e m b o r a em fase inicial, mas t a m b é m nos
eventos futuros, precisavam aprofundar a união. Os espíritos especialistas precisavam de mais colaboradores c o m o
máximo de capacitação e responsabilidade, m a s s o b r e t u d o
que não ficassem b r i g a n d o p o r seu p o n t o de vista sobre a
vida espiritual.
356
Disse J o ã o Cobú, a c e n t u a n d o a opinião de espíritos
que trabalhavam sob a feição espiritual de pais-velhos:
— Temos de ficar muito atentos, pois do lado de cá ainda
temos nossas diferenças culturais e espirituais muito marcantes e, principalmente nesta região onde estamos agora,
no Golfo Pérsico, a diversidade cultural e religiosa é enorme.
A composição étnico-linguística é na maior parte árabe, com
u m a minoria curda. Devemos estar atentos ao lidar com esses espíritos, u m a vez que mais de 9 0 % da população de encarnados e desencarnados teve ou t e m formação religiosa
islâmica. Mais ainda: pelo menos nesta região, a maior p a n e
de nossos amigos muçulmanos, de um e outro lado pertenc e m à facção xiita. Assim como os demais, todos dignos de
consideração em nossos planos de auxílio, constituem um
povo cioso de seus costumes e interpretações religiosas, que
perpassam de forma m a r c a n t e todos os aspectos de sua vida.
" T a m b é m é i m p o r t a n t e l e m b r a r que é necessário atuar
nos países que se o p õ e m ao regime e à política do ditador que c o m e ç o u o conflito, isto é: Estados Unidos, Reino
Unido e os outros — cerca de 30 nações — que formam a
coalizão liderada pelos n o r t e - a m e r i c a n o s . Seus governos
precisam ser a c o m p a n h a d o s p o r nossos representantes.
357
Sabemos que este será u m m a r c o i m p o r t a n t e , q u e d e t e r m i nará o inicio de um p e r í o d o de lutas intensas p a r a os povos
da Terra. Então, m e u s amigos, é h o r a de selecionar os espíritos mais c o m p e t e n t e s e q u e mais e n t e n d e m de política
internacional, pois d e v e m o s m a n t e r contato c o m os líderes
mundiais e, de todas as m a n e i r a s possíveis, b u s c a r a m e n i zar a situação q u e se d e s e n h a . Não p o d e m o s esquecer que,
entre os r e p r e s e n t a n t e s espirituais da cultura islâmica, t e mos valiosos colaboradores, t a n t o e n t r e d e s e n c a r n a d o s
quanto e n t r e e n c a r n a d o s . Fora do corpo, m u i t a s vezes, estes p o d e m colaborar c o m mais celeridade, s e m as rivalidades que vemos e n t r e os homens."
Fiquei o l h a n d o a expressão dos espíritos ali p r e s e n tes; não havia c o m o não n o t a r certa aversão aos m e m b r o s
da cultura islâmica. Esse sentimento, ao que t u d o indicava, havia se dilatado p a r a este lado da vida. Ou seja, aqui
t a m b é m vi que, e n t r e os r e p r e s e n t a n t e s de diversas cidades
espirituais, havia aqueles nos quais persistia alguma n ó d o a
de preconceito. Os religiosos, p r i n c i p a l m e n t e , p a r e c i a m
ter dificuldade de se liberar dos p o n t o s de vista pessoais e
doutrinários, de c o m u n g a r c o m q u e m pensava diferente ou
rezava por u m a cartilha distinta. M e s m o assim, e r a m espí-
358
ritos dispostos a servir, a auxiliar nos m o m e n t o s de crise
política e espiritual. Talvez observando o m e s m o que eu.
foi J a m a r q u e m t o m o u a decisão:
— Distribuirei especialistas da noite que trabalham
mais i n t e n s a m e n t e c o m as lideranças m u n d i a i s ao lado
dos respectivos líderes de cada país envolvido no conflito.
Sabemos que, p o r trás das ações de diversos governos do
m u n d o , existem inteligências sombrias, espíritos inteligentes e astutos, p r i n c i p a l m e n t e magos negros, que intentam
d o m i n a r o planeta, de alguma maneira. Por isso, acho mais
a p r o p r i a d o que sejam os guardiões a assumir essa responsabilidade em particular. Mas t a m b é m p o r q u e — acentuou
J a m a r —, c o m o guardiões, não p o d e m o s agir motivados por
d o u t r i n a s religiosas ou atitudes sectárias. Nossos parceiros
são todos os h o m e n s de boa vontade, ou melhor, aqueles
q u e se i r m a n a m em prol da h u m a n i d a d e . Os pais-velhos.
c o m o especialistas da nossa m e t r ó p o l e na a b o r d a g e m dos
temíveis magos negros, sugiro q u e a s s u m a m essa questão
mais i n t e n s a m e n t e . Quanto aos demais, d u r a n t e a guerra,
d e d i q u e m - s e ao aspecto que mais lhes diz respeito.
Todos c o n c o r d a r a m . A decisão de J a m a r havia trazido
certa tranquilidade a alguns r e p r e s e n t a n t e s de outras cida-
359
des espirituais. Eles não t e r i a m de lidar d i r e t a m e n t e c o m
questões q u e c e r t a m e n t e emergiriam, em razão da diversid a d e cultural e religiosa dos espíritos q u e seriam envolvidos na g u e r r a iminente.
M u d a n d o d e assunto d e u m m o m e n t o para outro, Jam a r a p r e s e n t o u u m a p r o p o s t a aos iniciados da cidade dos
espíritos ali presentes:
— Aproveito a o p o r t u n i d a d e p a r a p e d i r a c o l a b o r a ç ã o
dos h a b i t a n t e s d a A r u a n d a . E s t a m o s d e posse d e m a p a s
q u e i n d i c a m u m a b a s e m u i t o p r e c i o s a d o s nossos v e l h o s
c o n h e c i d o s magos negros. C o m o m u i t o s iniciados são
exímios m a g n e t i z a d o r e s , c o n h e c e d o r e s d e leis d o m u n do oculto q u e m u i t o s espíritos, m e s m o alguns especialistas, d e s c o n h e c e m , v e n h o p e d i r - l h e s a c o n t r i b u i ç ã o . N ã o
se faz n e c e s s á r i o a p e n a s d e s a r t i c u l a r r e c a n t o s u s a d o s p e los magos. Será preciso t a m b é m levar a eles o u l t i m a t o
c o n c e r n e n t e t a n t o a esta g u e r r a em a n d a m e n t o , q u e t e r á
u m a r e p e r c u s s ã o i n s u s p e i t a n a s o c i e d a d e dos e n c a r n a dos, q u a n t o aos efeitos desse a c o n t e c i m e n t o na e s t r u t u r a d e p o d e r n a s regiões inferiores. Para essa missão, n ã o
vejo n e n h u m a c a t e g o r i a d e e s p í r i t o s m a i s i n d i c a d a q u e
os pais-velhos.
360
Após longa discussão que se seguiu, a respeito da política na região e da influência m e n t a l e espiritual dos espíritos do mal sobre governos e governantes, ficou b e m claro
q u e os pais-velhos t e r i a m t o d a a a u t o n o m i a para agir nos
a m b i e n t e s inferiores, o n d e d e t e r m i n a d o s magos mantin h a m bases e laboratórios. Ficou a c e r t a d o q u e Pai J o ã o organizaria a equipe, j u n t a m e n t e c o m mais três pais-velhos,
além de r e c o r r e r a um m é d i u m p a r a auxiliá-los na tarefa,
desdobrado, caso precisassem de energias mais animalizadas ou de u m a cota de ectoplasma mais intensa, algo que
não p o d e ser d e s c a r t a d o q u a n d o se trata de ações visando
aos magos negros.
Deixando o g r u p o d e b a t e n d o a situação que ocorria no
c a m p o de lutas no plano dos e n c a r n a d o s envolvidos com
a política, e n t r e os cidadãos dos países c o m p r o m e t i d o s no
conflito, Pai João retirou-se e eu o segui, s e m p r e observando, m u i t o e m b o r a i n t i m a m e n t e receoso, ainda ignorando
os ardis dos c h a m a d o s magos.
João Cobú acionou alguns guardiões ligados a seu trabalho, depois de analisar d o c u m e n t o s c o m p a r t i l h a d o s por
Jamar, m u i t o i m p o r t a n t e s para os p r ó x i m o s lances do conflito em d i m e n s ã o p r ó x i m a à Crosta. O pai-velho soubera
361
de u m a reunião de um g r u p o de magos que p r e t e n d i a fazer
frente aos chefes de legião das sombras, nas e t e r n a s disputas e n t r e facções existente d e n t r o da oposição; p a r a c u m prir o intento, eles t e n t a r i a m a r r e g i m e n t a r forças e n t r e os
encarnados, após os conflitos que p a t r o c i n a v a m e inspiravam d i r e t a m e n t e . C o m o o império do mal a cada dia e r a
questionado e parecia soçobrar c o m o u m a n a u n u m oceano
em t e m p e s t a d e , havia diversos grupos p r e t e n d e n d o formar
um d o m í n i o à parte; e s t r u t u r a s de p o d e r de u m a política
cada vez mais delirante. Por isso, aqueles magos o u s a r a m
influenciar um de seus m é d i u n s ou, m e l h o r dizendo, u m a
de suas m a r i o n e t e s no plano físico. Resolveram, t a m b é m ,
lançar m ã o d e o u t r o s i n s t r u m e n t o s h u m a n o s , p r e p a r a n d o -os para d e s e n c a d e a r u m a g u e r r a mais mortal e absurda.
Recorreram a um g o v e r n a n t e do Oriente e o u t r o do Ocidente; a m b o s seriam o estopim p a r a o que intentavam.
Esses espíritos precisavam saber q u e os r e p r e s e n t a n t e s
do Cordeiro, os guardiões, estavam atentos e t i n h a m condições de intervir de forma a cercear a ação dos magos nas
zonas u m b r a l i n a s e na superfície, e n t r e os c h a m a d o s vivos.
Aceitando a i n c u m b ê n c i a a p r e s e n t a d a p o r J a m a r em
nome do governo oculto do planeta, os pais-velhos parti-
362
r a m em direção às regiões ínferas, que c o n h e c i a m muito b e m , e n q u a n t o equipes socorristas iam e v i n h a m , de
um lado a outro, p r e p a r a n d o - s e p a r a receber as vítimas da
guerra. E n t r e m e n t e s , n u m plano m u i t o mais sutil, espíritos c o n s t r u t o r e s começavam o trabalho de expansão da est r u t u r a espiritual da A m a n d a , visando ao acolhimento de
almas com d e t e r m i n a d a i d e n t i d a d e energética q u e viriam
da Terra. Da m e s m a forma, outras equipes trabalhavam em
outras colônias e cidades do astral, ampliando as estruturas de trabalho, c o m o hospitais e c a m p o s de apoio, forjando mais e q u i p a m e n t o s e a r r e g i m e n t a n d o n ú m e r o maior de
trabalhadores.
Os calendários da Terra m a r c a v a m o dia 17 de janeiro
de 1991 q u a n d o um maciço ataque aéreo dava início a u m a
represália à t e r r a dos califas. Depois disso, mais de meio
milhão de soldados foram enviados à guerra, que geraria
u m pesado t r i b u t o d e dor abrindo c a m i n h o p a r a outras batalhas que viriam t r a z e r o t e r r o r a um povo que sofreria por
longo t e m p o c o m um governo aterrador. Foi esse, exatam e n t e , o dia em q u e d e s c e m o s r u m o ao r e c a n t o do abismo
o n d e se refugiavam os temíveis obsessores do s u b m u n d o
da escuridão.
363
Ao transitar p o r regiões inóspitas e seguir d i r e t a m e n te a um dos r e d u t o s assinalados nos m a p a s cedidos pelos
especialistas do m u n d o superior, os pais-velhos c h e g a r a m
a um e n t r o n c a m e n t o energético q u e parecia e s c o n d e r a tal
base do g r u p o sombrio. E foi aí, e x a t a m e n t e , q u e e n c o n t r a r a m o precioso segredo g u a r d a d o a sete chaves pelos magos negros.
O local parecia u m a caverna, incrustada n u m a rocha da
paisagem astral, em regiões profundas da subcrosta. No entanto, por fora, a tal caverna gozava de um disfarce: u m a espécie de crosta de musgo a envolvia, e m b o r a fosse u m a vegetação u m tanto distinta daquela composta p o r e l e m e n t o s
conhecidos do reino vegetal. Em alguns m i n u t o s de observação, um dos m é d i u n s que nos acompanhava, d e s d o b r a d o
e a c o m p a n h a d o de um dos pais-velhos, sentiu suas forças se
esvaírem. Algo d e c i d i d a m e n t e sugava suas energias, deixando-o quase desacordado, em questão de minutos. Foi o pai-velho conhecido c o m o Rei Congo q u e m o socorreu, elimin a n d o de sua aura os elementos sutis exalados pelo musgo.
Tratava-se de um gás, além de outros elementos invisíveis,
perfeitamente sentidos pelo m é d i u m ; pareciam ser expelidos de d e n t r o da caverna disfarçada. Passaram-se mais de
364
duas horas até que ele recobrasse os sentidos e a lucidez
fora do corpo. Por várias noites retornaria àquele c a m p o de
batalha espiritual, até que o conflito estivesse decidido.
E n q u a n t o eu anotava tudo, o b s e r v a n d o s e m p r e cada
detalhe e cheio de curiosidade, João Cobú acercou-se de
dois pais-velhos — todos modificados em sua forma espiritual, que se transfigurara na aparência de antigos magos
— e fizeram o r e c o n h e c i m e n t o da área. Certificaram-se de
que se tratava e x a t a m e n t e do local a p o n t a d o pelos mapas
dos especialistas.
Os e l e m e n t o s da flora astral ali p r e s e n t e s guardavam
a característica de absorver energia e fluido vital de qualq u e r m é d i u m e v e n t u a l m e n t e desdobrado. Talvez fosse u m a
modificação da substância c o m p o n e n t e dos vegetais, p r o d u z i d a em laboratório pelos magos que d o m i n a v a m o local. Além do perigo que r e p r e s e n t a v a m para os viventes, havia indícios de q u e entidades vampiras estivessem a postos,
t a m b é m disfarçadas, para a g u a r d a daquele sítio. O que não
combinava de forma alguma com u m a base dos magos era
o fato de haver um c a m p o de forças envolvendo o lugar, reb r i l h a n d o discretamente, de m a n e i r a tal que s o m e n t e espíritos mais experientes c o m o os pais-velhos p u d e s s e m per-
365
cebê-lo, pois era quase invisível. Isso n a t u r a l m e n t e era obra
de entidades que lidavam mais d i r e t a m e n t e com a ciência, e
não de magos negros, cuja especialidade era a manipulação
de forças mentais e seres elementais, além de algumas leis
do m u n d o oculto, desconhecidas da maioria. No entanto, ali
estava o tal campo. Erguia-se c o m o u m a cúpula em t o r n o da
m o n t a n h a o n d e estava incrustada a caverna. Teriam de t e r
cuidado, pois a n a t u r e z a daquele c a m p o era ignorada.
Após observações mais acuradas, o espírito conhecido c o m o Pai J o a q u i m n o t o u que aquele c a m p o fazia c o m
que a m o n t a n h a t o d a — e n ã o s o m e n t e a e n t r a d a da caverna, q u e d e s c o b r i r a m por acaso — assumisse aspecto diferente, c o m o se desaparecesse ou fosse aplainada e se misturasse à paisagem no e n t o r n o , f o r m a n d o um ilusório vale
profundo. Esse era o segredo do e s t r a n h o c a m p o de força:
ocasionava no observador u m a espécie de alucinação e, por
isso m e s m o , suscitava dúvidas sobre o que ele via, se e r a
realidade ou u m a ilusão dos sentidos. A m o n t a n h a ora estava ali, diante dos olhos de q u e m observasse, ora deixava
de existir, pelo m e n o s visualmente, revelando um extenso
vale. Leve t r e m e l u z i r marcava o m o m e n t o em que a formação desaparecia, c o m o se o c a m p o energético estivesse
366
prestes a e n t r a r em colapso. Tratava-se de um r e c u r s o antigo, e m p r e g a d o por certos magos ao criar ilusões, imagens e
projeções mentais, de m a n e i r a a confundir q u e m q u e r que
fosse. Caso os pais-velhos estivessem corretos em suas percepções e conclusões, a base dos magos p r o p r i a m e n t e dita
estaria ainda a considerável distância; ali era s o m e n t e a entrada, camuflada e repleta de perigos e a r m a d i l h a s criados
pelos donos do lugar. Não p o d e r i a ser de o u t r a forma, pois
assim agiam os magos tradicionalmente, s e g u n d o Pai João
p ô d e explicar. E foi ele q u e m assumiu a frente do grupo,
tão logo Pai J o a q u i m relatou a descoberta.
P r i m e i r a m e n t e , J o ã o Cobú fez um p e d i d o d i r e t a m e n te à A r u a n d a e a J a m a r para q u e enviassem mais guardiões
e especialistas. E parece que J a m a r já estava de prontidão,
atento a t u d o e a todos os detalhes, pois não t a r d o u a chegar o reforço requerido. Na sequência, os pais-velhos se colocaram e m p o n t o s estratégicos e m t o r n o d a m o n t a n h a ,
m e s m o que sua visão se alternasse c o m a do vale projetado
pelos magos. O r e p r e s e n t a n t e do colegiado da A r u a n d a deixou o m é d i u m que doava energias animalizadas necessárias ao trabalho, sob a custódia dos guardiões, por ora evit a n d o q u e fosse exposto d e s n e c e s s a r i a m e n t e .
367
Foi s o m e n t e depois de confirmar que ele estava em segurança que os pais-velhos c o m e ç a r a m a b a t e r no solo do
astral com seus cajados, que, segundo mais t a r d e vim a saber, e r a m c o n d e n s a d o r e s energéticos de g r a n d e potência. A
batida cadenciada e cada vez mais ritmada, mais forte e intensa provocou a q u e d a do c a m p o vibratório que envolvia
a m o n t a n h a sagrada dos magos, o local q u e e s c o n d i a m de
q u e m a observasse. A cena lembrava a e n t r a d a dos israelitas
na t e r r a p r o m e t i d a de Canaã, q u a n d o Josué, o c o m a n d a n te guerreiro, sitiou a cidade de Jericó. Na ocasião, os soldados de Israel m a r c h a r a m de m o d o cadenciado em t o r n o das
m u r a l h a s e, ao t o c a r e m trombetas, t a m b é m o b e d e c e n d o ao
ritmo d e t e r m i n a d o por seu líder, as m u r a l h a s da cidade ruiram.
16
Assisti a algo semelhante, e não era obra de magia,
mas de u m a lei da física, p o r é m levada a cabo n u m a região
astral b e m p r ó x i m a da Crosta, por c o m p e t e n t e s guerreiros
da luz, que sabiam manejar com maestria seus i n s t r u m e n tos de trabalho disfarçados de cajados ou coisa similar.
Ao som dos i n s t r u m e n t o s utilizados na ofensiva ao laboratório dos magos negros, o c o r r e r a m fenômenos dig-
16
Cf. Js 6:1-20.
368
nos de nota. À m e d i d a que os cajados se chocavam contra
o chão, despejando no solo astral energias por m i m descon h e c i d a s na ocasião, a e s t r u t u r a energética do c a m p o de
força cedia, pelo p o d e r e c o n h e c i m e n t o dos pais-velhos.
P r i m e i r a m e n t e , surgiram faíscas; p e q u e n o s raios pipoc a r a m em diversos p o n t o s da r e d o m a energética, c o m o se a
técnica e m p r e g a d a houvesse provocado curto-circuito em
e q u i p a m e n t o s que regulavam a estabilidade da fonte m a n t e n e d o r a da p r o t e ç ã o eletromagnética da base oculta. Logo
após, o c o r r e r a m explosões em locais o n d e o c a m p o tocava
o solo astral, p a r a em seguida t o d o o complexo ruir, ao som
cadenciado dos cajados dos pais-velhos, q u e desencadear a m forças a c u m u l a d a s em seus i n s t r u m e n t o s , as quais pen e t r a r a m o solo sob a r e d o m a c o m p o d e r o s a vibração.
Assim q u e a e s t r u t u r a energética ruiu, c a u s a n d o um
ruído estrondoso, instaurou-se v e r d a d e i r o colapso nas defesas das entidades, que não contavam c o m a p r e s e n ç a ali,
na região, de pais-velhos e altos iniciados de t e m p l o s do
passado r e m o t o . As entidades vampiras foram vistas; seu
disfarce pôs-se a descoberto no m e s m o instante em que a
r e d o m a dos magos se d e s m a n t e l o u . Ao n o t a r e m q u e ficar a m s e m a p r o t e ç ã o da invisibilidade t e m p o r á r i a , ensaia-
369
r a m um ataque aos guardiões, pais-velhos e ao p r ó p r i o m é d i u m desdobrado. O vivente era o alvo mais cobiçado, pois,
sendo d e t e n t o r de força vital, desejavam a t o d o custo v a m pirizá-lo. E n t r e t a n t o , a providência t o m a d a p o r Pai João,
convocando o reforço de guardiões, m o s t r o u - s e eficaz.
A equipe de sentinelas que veio da A r u a n d a assumiu
a frente e, sem n e n h u m escrúpulo, investiu c o n t r a os espíritos vampiros. Resultado: n e m s e q u e r as e n t i d a d e s esboç a r a m o ataque e logo foram c o m p l e t a m e n t e d o m i n a d a s
pelos guardiões, q u e as atacaram c o m p o d e r o s o arsenal
magnético de a r m a s elétricas, que despejavam raios sobre
a t u r b a de obsessores, c a u s a n d o e n t o r p e c i m e n t o dos sentidos espirituais. A d o r m e c e r a m logo q u e foram atingidos
pelas descargas das mais de 50 armas. Em meio a gritos e
p o n t a p é s , desferidos pelas e n t i d a d e s v a m p i r a s q u e escap a r a m ao furacão dos raios narcotizantes, os sentinelas enviados de A r u a n d a os p r e n d e r a m m a g n e t i c a m e n t e , de maneira q u e não mais p u d e s s e m r e p r e s e n t a r q u a l q u e r perigo
p a r a a equipe.
E n t r e m e n t e s , os pais-velhos cessaram o m o v i m e n t o
com os cajados, pois a vibração no solo astral p o d e r i a fazer
t o d a a caverna ou sua e n t r a d a ser destruída.
370
M e u coração parecia q u e r e r sair pela garganta, de tal
forma fiquei envolvido pela situação e, h o n e s t a m e n t e , c o m
m e d o do desfecho q u e se daria. Se já n a q u e l e p o n t o da jorn a d a e n c o n t r a m o s t a m a n h a resistência das e n t i d a d e s que
defendiam os magos, q u e dizer, então, dos p r ó p r i o s magos negros? Confesso q u e m e u p r i m e i r o c o n t a t o c o m as
regiões inferiores não foi n a d a confortável n e m tranquilo
para m i m . Por m u i t o s dias, p e r m a n e c e r i a r e v e n d o aquela
cena na cabeça.
Ao t e m p o em q u e esses a c o n t e c i m e n t o s ocorriam nas
regiões sombrias p r ó x i m a s à Crosta, A n t o n resolvera sair
da base principal no satélite lunar e visitar o c a m p o de
guerra. J u n t a m e n t e com Jamar, conversava c o m u m dos
guardiões do Oriente, sob a supervisão de Zura, a respeito da situação dos países envolvidos no conflito do Golfo
Pérsico e sobre o q u e essa g u e r r a representava para o futuro político e socioeconómico do planeta. O Oriente Médio
causava g r a n d e p r e o c u p a ç ã o nos guardiões naquele m o m e n t o ; além de I r a q u e e Kuwait, palco dos conflitos, observavam Israel e as demais nações palestinas, e sobretudo países árabes da África setentrional, c o m o Egito e Líbia.
Falavam sobre os ditadores que cairiam e aqueles q u e se-
371
riam fantoches m a n i p u l a d o s pelos magos negros no exercício do poder.
Nos EUA, na sede da ONU, na G r ã - B r e t a n h a e no r e s t a n t e dos países aliados, p o d e r o s o s g u a r d i õ e s m o n t a v a m
guarda, pois sabiam q u e tais países r e m e t e r i a m t r o p a s
cada vez mais letais p a r a a região. Havia u m a m o v i m e n tação i n t e n s a dos dois lados da vida. Os especialistas de
J a m a r desarticulavam e s t r u t u r a s erguidas e m t o r n o dos
governantes, em seus gabinetes de governo — a p a r a t o s eng e n d r a d o s pelos magos negros e seus asseclas. Os habilidosos r e p r e s e n t a n t e s d o p o d e r e m lugares ocultos sabiam
b e m c o m o m a n i p u l a r o s h o m e n s , q u e acreditavam piam e n t e na p r ó p r i a a u t o n o m i a ao t o m a r decisões. Havia, no
e n t a n t o , u m f l u x o d e influência intenso, p o r m e i o d a h a bilidade h i p n ó t i c a dos magos, a n t a g o n i z a n d o O r i e n t e e
Ocidente, a p o n t o de c u m p r i r e m o i n t e n t o de d e s e n c a d e a r
u m a g u e r r a q u e assinalaria o início de um p e r í o d o de agrav a m e n t o das a n i m o s i d a d e s , g e r a n d o i n t e n s a s d o r e s e p r o vas p a r a a p o p u l a ç ã o global.
E n q u a n t o isso ocorria nos bastidores da política internacional, os guardiões interferiam. Após confabular com
Anton, que trazia informações preciosas da base principal
372
dos guardiões, J a m a r assumiu a dianteira pessoalmente.
Elevou-se ao ar c o m sua aura r e b r i l h a n d o c o m o p o t e n t e irradiação magnética, e todos os guardiões o v i r a m elevar-se
c o m o um anjo guerreiro. Plainando sobre o local do confronto, sobrevoou cidades i m p o r t a n t e s do Oriente P r ó x i m o
e n q u a n t o rasgava os céus do planeta, r u m a n d o ao cerne da
g u e r r a de Saddam H u s s e i n .
Ao m e s m o t e m p o , W a t a b e um g r u p o de guerreiros dirigiram-se ao c o n t i n e n t e n o r t e - a m e r i c a n o , p o s t a n d o - s e
lado a lado com George H. W. Bush, ocasião em que liberar a m agentes do governo das garras de entidades associadas
aos magos, b e m c o m o d e s a r t i c u l a r a m sofisticados equipam e n t o s das sombras, instalados d i r e t a m e n t e na Casa Branca, sede do p o d e r estadunidense, a fim de m a n t e r a força
hipnótica sobre os h o m e n s daquele governo e de m u i t o s
outros da coalizão. Mas a ação de W a t a b n ã o se limitava a
esse continente. Ele ia e v i n h a n u m a velocidade alucinante,
e n t r e o c o n t i n e n t e n o r t e - a m e r i c a n o e o palco dos confrontos, no Golfo Pérsico, s e m p r e que era necessária u m a atuação mais decisiva e conjunta com o chefe dos guardiões.
J a m a r mergulhou no cerne do conflito. Q u a n d o desceu
sobre o abrigo de Hussein, mais de 20 magos, de plantão
373
ao lado do ditador, viram a luz imortal brilhando, a e m a n a r
potentes forças magnéticas, e n q u a n t o o guardião d e s e m bainhava a espada e rasgava, com um só golpe, o c a m p o de
força formado por magos e científicos em t o r n o do comandante iraquiano. U m a comitiva de magos elevou-se a alguns
metros do solo, emitindo vibrações intensas contra o guerreiro que descia em n o m e da política do Cordeiro. Um deles
conseguiu atingir J a m a r c o m a irradiação poderosa e quase
fatal ao seu equilíbrio, não fosse o fato de tal golpe ter sido
desferido e x a t a m e n t e contra o mais capacitado chefe da segurança espiritual. J a m a r desviou-se para o flanco esquerdo,
e n q u a n t o duas outras entidades o envolveram n u m c a m p o
vibratório potentíssimo. O guerreiro contorceu-se, envolto
n u m a energia desconhecida, que cerceava seus movimentos. Gargalhadas foram ouvidas ressoando no ambiente enquanto o guardião detinha seu voo e concentrava-se. Mais
alguns minutos de completa imobilidade e ele literalmente
explodiu o c a m p o de forças, i m e d i a t a m e n t e c o m e ç a n d o a
girar, cada vez mais rápido, pegando o g r u p o de magos desprevenido. Duas entidades a p a r e n t e m e n t e especialistas em
ciência a p o n t a r a m o alvo, que se libertara do robusto campo energético, m i r a n d o nele com armas invencíveis, segun-
374
do consideravam. J a m a r parou o giro em t o r n o de si mesmo,
n o t a n d o que um furacão parecia varrer a base inimiga.
E n q u a n t o isso, na Crosta, acontecia a o p e r a ç ã o que ficou c o n h e c i d a c o m o T e m p e s t a d e no Deserto. Duas ousadas e m p r e i t a d a s o c o r r i a m s i m u l t a n e a m e n t e . Em um e outro lado da vida, a c o n t e c i m e n t o s singulares m a r c a r i a m o
f i m d e u m p e r í o d o sangrento d e batalhas.
O guardião da noite c o n c e n t r o u - s e mais u m a vez e,
em voo rasante, zinguezagueando, despistou a artilharia
dos científicos e pairou suavemente, c o m o se usasse paraquedas, logo acima das cabeças dos magos e seus aliados.
Observou c o m olhar a t e n t o as e n t i d a d e s q u e envolviam
Saddam e ficou impassível ao que ocorria, n u m t r e m e n d o
esforço de concentração. Aguardava as notícias de Pai João
e sua equipe de iniciados, q u e se e n c o n t r a v a m nas regiões
inferiores do planeta, a fim de dar o golpe final. Os magos
não e n t e n d e r a m a r e p e n t i n a imobilidade do guerreiro. Não
suspeitavam do q u e sucedia mais abaixo vibratoriamente,
e n t r e os seus aliados no s u b m u n d o , no lugar o n d e a g u e r r a
era arquitetada pelos d e t e n t o r e s do p o d e r na região.
Em outros recantos do m u n d o , guardiões especialistas
a s s u m i a m controle sobre a situação, no que tange aos lide-
375
res governamentais. Nos Estados Unidos, envolviam Colin
Powell, o então militar de mais alta p a t e n t e no D e p a r t a m e n to de Defesa, e o C o m a n d a n t e - e m - C h e f e General N o r m a n
Schwarzkopt; além deles, cercavam o ministro da defesa
egípcio M o h a m e d Tantawi, assim c o m o o p r e m i ê britânico
J o h n Major e o rei saudita Fahd. Ao lado desses e de outros expoentes do p o d e r temporal, grupos de 5 guardiões
foram estrategicamente posicionados, no intuito de aniquilar qualquer ação dos magos dirigida a esses m e m b r o s da
c o m u n i d a d e internacional, peças-chave no conflito em curso, visando desfazer o que p u d e s s e m da e s t r u t u r a de domínio hipnótico sobre eles. Do m e s m o modo, guardiões cercar a m as famílias dos atores principais da guerra. M o h a m e d
H u s s e i n Tantawi recebeu especial atenção dos guardiões,
pois, através dele, magos mais habilidosos m o n t a r a m um
aparato especial, d e s m a n t e l a d o com dificuldade. P r e t e n diam usá-lo mais i n t e n s a m e n t e em seus planos na região.
Jamar, ainda impassível acima dos magos no escritório
de Saddam, a c o m p a n h a v a tudo, d a n d o o r d e n s aos seus oficiais, à distância, a fim de que t o m a s s e m as devidas providências e liberassem o m a r e c h a l egípcio da influência articulada pelos magos. A partir de então, t r a r i a m d i a r i a m e n t e
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o estrategista d e s d o b r a d o a u m a das bases dos guardiões,
na tentativa de explicar-lhe os lances e as implicações do
conflito que se desenrolava, e conscientizá-lo da i m p o r t â n cia de sua ajuda no futuro político da região. Todavia, d e p e n d i a m do M a r e c h a l Tantawi sintonizar-se c o m a p r o p o s ta dos guardiões.
Semíramis, a c o m p a n h a d a de mais 10 especialistas e algumas guardiãs lideradas por Astrid, p a r t i r a m em direção
à Arábia Saudita, m o n t a n d o g u a r d a j u n t o ao Rei Fahd bin
Abdul Aziz Al-Saud. Ali Semíramis r e u n i u suas guardiãs e
libertou o rei das a m a r r a s impostas por um g r u p o seleto de
magos. Desdobrando-o, ela lhe a p r e s e n t o u u m a proposta
de reformas políticas, visando d e s e n c a d e a r a receptividade a novas interpretações da religião islâmica. Semíramis e
Astrid pessoalmente se envolveram com Fahd e sua equipe
mais próxima, na tentativa de c o n d u z i r o governo a u m a visão mais aberta. O resultado dessa ação, era claro para elas,
s o m e n t e seria visto no futuro, a partir de 30 anos. Mas as sem e n t e s foram ali plantadas, e n q u a n t o os guardiões c o m p e tiam c o m o g r u p o de magos da antiga Babilônia que m o n t a vam quartel no palácio do governo. Watab, requisitado por
Semíramis, encarregava-se pessoalmente das questões poli-
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ticas mais p r e m e n t e s , inspirando Sua Majestade a dar apoio
à c a m p a n h a para liberar a região das forças de Saddam.
J a m a r coordenava tudo, envolvido em seu c a m p o de
energia particular. Dali, conversava m e n t a l m e n t e c o m cada
equipe disposta em vários recantos do m u n d o . Os magos
hesitavam, sem saber o que fazer, i m p o t e n t e s p a r a atingir
o guardião.
Pai João, por sua vez, a c o m p a n h a v a t u d o p o r meio da
conversa m e n t a l do guardião da noite. No cenário do planeta, na Crosta, a situação geopolítica exigia providências
imediatas. Mais de 30 mil m o r t o s e m u i t o mais de 70 mil
feridos na g u e r r a despejavam na atmosfera u m a cota m a ciça de ectoplasma, d e c o r r e n t e dos d e s e n c a r n e s coletivos
que ocorriam em meio a u m a atmosfera de medo, dor e sofrimento indizíveis. Carga tóxica de p r o p o r ç õ e s m o n u m e n tais derramava-se na região astral. Ante essa realidade, a cid a d e de A r u a n d a e n t r o u em ação.
Na e s t r u t u r a psicofísica da m e t r ó p o l e itinerante, havia
duas g r a n d e s torres ou antenas: uma, erguida em direção ao
alto, captava energias advindas de regiões superiores; a outra descia abaixo da superfície da cidade dos espíritos, em
direção à Terra. A m b a s foram acionadas. A inferior absor-
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via o c o n t e ú d o energético de diversas regiões do Golfo, sug a n d o a cota e x c e d e n t e de fluido vital, e x s u d a d a em razão
das m o r t e s violentas de milhares de vítimas. Ao se concent r a r o excesso de energia na base da e s t r u t u r a da Aruanda,
evitava-se que tal r e c u r s o fosse utilizado pelos magos como
combustível para suas atividades repulsivas. Ao m e s m o
t e m p o , espíritos de antigos caboclos, em conjunto c o m os
legionários de Maria, realizavam v e r d a d e i r a v a r r e d u r a astral, dispersando, no a m b i e n t e astral, e l e m e n t o s residuais
da guerra. De outro lado, equipes de espíritos socorristas
levavam g r a n d e c o n t i n g e n t e de seres p a r a a periferia da
Aruanda, o n d e e r a m atendidos p o r pais-velhos e mães-velhas, além de índios, q u e auxiliavam os seres r e c é m - d e s e n c a r n a d o s fazendo c o m que a d o r m e c e s s e m , visando evitar
tragédias desnecessárias em nossa dimensão. Após serem
atendidos em caráter de emergência, e r a m c o n d u z i d o s a
outras cidades e colônias do espaço, mais capacitadas a lid a r com indivíduos daquele perfil espiritual, os quais deixavam o corpo no c a m p o de batalha. A A r u a n d a não era o
destino final desses espíritos, mas ali e r a m atendidos e levados aos mares, às cascatas e florestas, a fim de reabastec e r e m as forças nos recantos n a t u r a i s da m e t r ó p o l e .
379
Fora c o n s t r u í d a ampla rede de auxílio e n t r e as cidades
espirituais. Caso alguém do plano físico p u d e s s e ver, observaria naves p o r t e n t o s a s d e c o l a n d o com i n ú m e r o s espíritos
a b o r d o , voando em direção a outras cidades da imensidade, o n d e os d e s e n c a r n a d o s seriam mais d e t i d a m e n t e amparados. Muitos deles n e m sequer p u d e r a m ser ajudados,
pois preferiram ficar prisioneiros nos c a m p o s de combate,
jungidos m e n t a l m e n t e à dor e ao sofrimento, à angústia e
à sede de vingança. Todavia, m e s m o ali, j u n t o aos e s c o m bros de guerra, c o m u n i d a d e s foram levantadas e espíritos
benfeitores auxiliavam no resgate e na assistência a q u a n tos quisessem ajuda.
J a m a r coordenava tudo, m e n t a l m e n t e ligado a todas as
equipes, e n q u a n t o Anton dava c o b e r t u r a com seu destacam e n t o de especialistas.
No m o m e n t o em q u e os pais-velhos a d e n t r a r a m o
g r a n d e laboratório de experiências paracientíficas dos magos negros, e n c o n t r a r a m o h o r r o r e s t a m p a d o no olhar de
um dos nove iniciados do passado. Pareciam h i p n o t i z a d o s
diante de u m a câmara, o n d e flutuavam à sua frente figuras
representativas de m e m b r o s do alto escalão de diversos governos mundiais.
380
U m a substância gelatinosa parecia se a d a p t a r e revestir o corpo espiritual t o t a l m e n t e deformado dos seres diante de nós. Um deles sobressaía aos demais. Era curvo, alto,
sem cabelos; t i n h a a pele t o t a l m e n t e ressequida e enrugada. N i t i d a m e n t e exercia um d o m í n i o fantástico sobre os
demais, que se localizavam n u m nível abaixo deste q u e parecia ser o líder. E s t r a n h o m a n t o descia sobre as costas do
ser h e d i o n d o à nossa frente. Estremeci.
A cor d o m i n a n t e no a m b i e n t e era roxa, a fim de favorecer a c o n c e n t r a ç ã o dos magos. Eles acreditavam estar tot a l m e n t e a salvo de quaisquer invasores, e essa crença tão
forte, d e c e r t o alimentada por b o a dose de presunção, não
p e r m i t i u q u e p e r c e b e s s e m de imediato nossa aproximação. Ademais, estavam s o b r e m o d o c o n c e n t r a d o s nos líderes mundiais, a tal p o n t o que t u d o o mais escapava a seu
conhecimento.
O mago alfa, c o m o c h a m e i mais t a r d e aquele q u e sobressaía aos demais, s e m dúvida alguma era o chefe do
grupo. Pai J o ã o confirmou tal fato. Olhos negros sombriam e n t e expressivos, p o r é m estáticos, davam-lhe u m aspecto b i z a r r o e ao m e s m o t e m p o temível. Os globos oculares
refletiam a luz do ambiente, m u i t o e m b o r a não se deixas-
381
s e m inebriar. Apesar do a p a r e n t e t r a n s e em que se achava seu dono, aqueles olhos denotavam um processo m e n t a l
complexo e t r e m e n d o , ao qual se agarravam c o m afinco o
mago e sua equipe de iniciados. A alma desse ser parecia
um oceano abismal de superlativos de h o r r o r — e tal realidade t r a n s p a r e c i a em seu olhar. Um fanatismo h e d i o n d o ,
calcado no desejo de governar o m u n d o , jorrava na a t m o s fera m e n t a l que absorvia o grupo, m a s s o b r e t u d o da aura
do mago sobre o qual c o n c e n t r á v a m o s a atenção. Qualquer
tentativa de expressar c o m exatidão o c o n t e ú d o de seu ser,
ou de descrever a força e m p r e g a d a para i m p o r suas ideias
fanáticas e extravagantes seria improdutiva. Os p e n s a m e n tos exalados e as imagens mentais que e r a m refletidas no
ambiente, c o m o se fossem flashes ideoplásticos, falavam
p o r si sós acerca da degeneração daqueles espíritos e da
impossibilidade de e x p r i m i r através de q u a l q u e r vocábulo
a h e d i o n d e z das intenções que alimentavam. Conectavam-se e n t r e si de tal m a n e i r a que davam a impressão de ser
u m a única inteligência.
Parte da m e n t e dos magos, condicionada e dirigida
pelo chefe da horda, estendeu para além de si laços m e n tais, os quais se alongavam até outros países, passando por
382
u m a dimensão invisível aos sentidos h u m a n o s . A consciência dos nove dirigia-se exclusivamente aos chefes de estado e seus auxiliares mais próximos, principalmente àqueles
que serviriam de m o d o mais direto aos planos de transform a r a g u e r r a em algo n u n c a antes visto pelos h u m a n o s encarnados; de levá-la a proporções inéditas, se não inimagináveis. A vantagem que d e t i n h a m sobre os governantes era
exatamente a invisibilidade e a capacidade n a d a desprezível de estimular e influenciar, a partir de sua dimensão, as
m e n t e s que se lhes associavam, n u m processo complexo de
obsessão ou c o m p a r t i l h a m e n t o de intenções. A consciência
diabólica do mago que chefiava a quadrilha armazenava as
informações colhidas no contato parapsíquico estabelecido c o m as autoridades dos países em foco. E n q u a n t o isso,
c o m a n d a n t e s de esquadras, generais, ministros de guerra e
estadistas de nações como Estados Unidos, França, Reino
Unido, Bélgica, Egito, Canadá, Paquistão e algumas outras
coligadas d e s e m p e n h a v a m suas atividades t o t a l m e n t e induzidos ou hipnotizados pelos magos, que se conectavam integralmente a suas marionetes, jogando u n s contra os outros,
na tentativa de fazer a g u e r r a alastrar-se por territórios cada
vez mais amplos, até finalmente t o m a r os cinco continentes.
383
De r e p e n t e , Pai J o ã o e um g r u p o de iniciados de prim e i r o grau, r e p r e s e n t a n t e s de um alto colegiado de sacerdotes que c o m p u n h a a equipe p r o v e n i e n t e da A m a n d a e de
outras cidades, dirigiram a atenção, em conjunto, ao mago
principal. O fluxo m e n t a l dos pais-velhos, antigos sábios e
sacerdotes, p e n e t r o u c o m o lanças ou tentáculos na m e n t e
a l t a m e n t e c o n c e n t r a d a do mago negro. Um pesadelo sacudiu a consciência do ser demoníaco, ao p e r c e b e r u m a int r u s ã o m e n t a l em seu a m b i e n t e psíquico. O subconsciente
agitou-se e rebelou-se, mas os pais-velhos n ã o seriam demovidos de seu i n t e n t o tão facilmente. C o n c e n t r a r a m - s e
mais e mais i n t e n s a m e n t e . Verdadeira b a t a l h a espiritual se
travava n u m a d i m e n s ã o que eu d e s c o n h e c i a p o r completo.
O consórcio de m e n t e s h e d i o n d a s foi p o r fim r o m p i d o ,
devido à pressão psíquica, n u m e m b a t e que já durava mais
de três horas. A t e n s ã o espiritual p a r e c e u atingir o clímax
q u a n d o os magos c o m e ç a r a m a gemer, agonizar, s e m que
fosse i n t e r r o m p i d o , de m a n e i r a definitiva, o processo mórbido de influência à distância que exerciam sobre os líderes
internacionais.
Um dos magos, e n t r e t a n t o , não s u p o r t o u a intromissão
m e n t a l levada a cabo pelos mensageiros da Aruanda. Estre-
384
m e c e u mais que os oito restantes e, sobressaltado, s u c u m biu, a c o r d a n d o do sonho-pesadelo, do estado de t r a n s e aut o i n d u z i d o a que se entregara j u n t a m e n t e c o m os demais.
Cambaleou, caiu ao chão, r e c o b r a n d o a consciência muito l e n t a m e n t e e p e r c e b e n d o que seu r e d u t o fora descoberto, que havia seres p o d e r o s o s interferindo em seu lúgubre
plano de dominação. A c o n c r e t u d e do q u e acontecia p a r e ceu d e t o n a r u m a b o m b a m e n t a l no íntimo de seu cérebro
extrafísico. O ser s u c u m b i a à dor, u m a dor indescritível. A
constatação p e r e m p t ó r i a de que seus planos haviam sido
descobertos e, mais ainda, de q u e havia r e p r e s e n t a n t e s dos
p o d e r o s o s guardiões ali, no r e d u t o mais sagrado dos magos, lhe fez sentir c o m o se um p e d a ç o de metal incandescente tivesse sido cravado no p r ó p r i o peito. Mas não havia
c o m o acordar os o u t r o s do t r a n s e a q u e estavam entregues.
Pai João voltou-se para o mago q u e rolava no chão de
pavor e dor e intensificou seu p e n s a m e n t o sobre ele, de
m a n e i r a a a m e n i z a r o efeito que sentia na m e n t e em franco colapso. Tentáculos m e n t a i s apalpavam a sede da consciência do mago negro, que, incapaz de evitar a t o r r e n t e de
p e n s a m e n t o s intrusos do mago branco, buscava escapar a
t o d o custo da força que lhe invadia o ser, r a s g a n d o - o e des-
385
n u d a n d o - o , de forma a p a t e n t e a r - l h e as intenções tão abert a m e n t e . Pai João c o n c e n t r o u ainda mais o p e n s a m e n t o e
conseguiu afastar o pavor e o m e d o que d o m i n a v a m o mago
negro, que o levavam à beira da loucura. O famigerado ser
t o m b o u definitivamente, i m p o t e n t e diante da força m e n t a l
que o assaltara e dobrara. Assim q u e o m a g o se prostrou,
Pai João voltou a somar-se a Vovô Rei Congo, Pai J o a q u i m e
os demais espíritos, altos iniciados do passado. Era noite na
esfera dos h o m e n s .
Nesse exato m o m e n t o , J a m a r t o r n o u a m o v i m e n t a r -se c o m o se fosse um pião, girando em volta de si m e s m o .
O m o v i m e n t o r e p e n t i n o s u r p r e e n d e u os magos. O guardião d e s e m b a i n h o u sua e s p a d a e ergueu-a no ar n u m gesto ameaçador. Dela saíram raios, relâmpagos, e, p o r algum
m e c a n i s m o ignoto, o i n s t r u m e n t o do guardião da noite rasgou o espaço dimensional à sua frente, s u b i t a m e n t e e n g o lindo os temíveis magos q u e m o n t a v a m g u a r d a no gabinete
de Saddam. J a m a r elevou-se n o v a m e n t e e r u m o u ao p e l o tão de guardiões q u e guardava posição no gabinete de governo n o r t e - a m e r i c a n o .
E n t r e m e n t e s , os pais-velhos liderados por Pai João
concentravam ainda mais a atenção nos outros magos. Estes
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pareciam t o t a l m e n t e absortos. Os pais-velhos concentravam-se progressivamente, p e n e t r a n d o mais e mais em sua
mente. A comunicação do g r u p o do t e r r o r com os governantes manipulados, levada a efeito pela obstinada associação dos magos, finalmente sofreu a r u p t u r a necessária, muito e m b o r a os sacerdotes da destruição ainda mantivessem
estreita sintonia e n t r e si, auto-hipnotizados e hipnotizando,
de alguma maneira. No m o m e n t o em que o elo mental se
quebrava e os principais alvos e r a m libertos da ligação aterradora, a força de coalizão atacava mais u m a vez, no plano
físico. O patriarca do g r u p o de magos não saberia explicar,
depois, como o consórcio mental fora invadido, c o m o outra
união de mentes, investida de habilidades psíquicas superiores às suas, se imiscuíra nessa rede de comunicação..
O m o n s t r o principal, o ser mais h e d i o n d o que eu con h e c e r a até aquele m o m e n t o , o principal dos magos, ameaçou se mexer, e m b o r a n ã o conseguisse expressar n e n h u m
p e n s a m e n t o perceptível, n e m t a m p o u c o emitir qualquer
som. Apenas abriu quase l e n t a m e n t e demais os olhos negros e sombrios, q u e refletiam o mais obscuro dos sentim e n t o s . Abriu-os sem p o d e r e n t e n d e r o q u e se passava ao
r e d o r de si. D e m o r o u um t e m p o dilatado até q u e logras-
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se sair do t r a n s e ao qual se entregara. Nesse m o m e n t o , os
olhos cheios de um t e r r o r impossível de descrever p a r e ciam transformar-se em fogo, n u m fogo ameaçador, p o r é m
i m p o t e n t e para q u e i m a r além da p r ó p r i a consciência. As
veias em sua cabeça calva e e n r u g a d a p a r e c i a m q u e r e r arrebentar, t a m a n h a a c o n c e n t r a ç ã o e o nervosismo. As jugulares t r e m i a m no pescoço e a c r i a t u r a infernal contorcia-se toda, ao p e r c e b e r o que s u c e d e r a a seu precioso grupo.
De repente, ante um influxo de p e n s a m e n t o mais tenaz dos
pais-velhos, o ser à nossa frente imobilizou-se por c o m p l e to. Olhos vítreos, se eu não soubesse se t r a t a r de seres fora
do corpo, p o d e r i a j u r a r que ele estava m o r r e n d o , desencarnando. N ã o obstante, não havia c o m o deixar de n o t a r q u e
o coração da e s t r a n h a criatura, se é que ainda possuía um
coração, batia de forma alucinante, q u e m sabe p o r sentir-se
sobrecarregado das emoções descontroladas e ensandecidas de seu dono.
Em d e t e r m i n a d o m o m e n t o , q u a n d o os pais-velhos se
d e r a m as mãos, f o r m a n d o u m a ligação ainda mais intensa
que a n t e r i o r m e n t e , u m a substância gelatinosa e cinzenta,
c o m rajadas negras, parecia v e r t e r do c o r p o de cada mago,
c o m o se estivesse se d e r r e t e n d o .
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— M e u Deus! — exclamei, em voz alta, n u m misto de
pavor e curiosidade...
À m i n h a visão i n e x p e r i e n t e de r e c é m - c h e g a d o da dim e n s ã o física, e r a c o m o se seus c o r p o s se desintegrassem.
Mais tarde, soube q u e os magos negros rejeitam a reenc a r n a ç ã o d u r a n t e séculos e até milênios, de m o d o que os
c o r p o s d e f o r m a d o s ao e x t r e m o são m a n t i d o s tão s o m e n t e
pela força do p e n s a m e n t o , e v e n t u a l m e n t e favorecido pelo
auxílio de alguns e q u i p a m e n t o s , c o m o era o caso d a q u e la horda, em particular. U m a vez q u e a g u e r r a m e n t a l lhes
esgotava as reservas energéticas, as células perispirituais
se desestabilizavam ante a força m e n t a l dos pais-velhos,
que b u s c a v a m p r o m o v e r a t o d o custo o colapso do consórcio de p e n s a m e n t o s das e n t i d a d e s perversas. Parte da
substância semimaterial c o n s t i t u i n t e de seus períspiritos
dissolvia-se, desagregava-se p e r a n t e nossa visão espiritual.
Os magos resistiam à ação dos pais-velhos, p o r é m , ao e m p r e g a r o p o d e r m e n t a l p a r a defender-se ou atacar os pais-velhos, s u c u m b i a m a q u a l q u e r tentativa de conservar a
forma espiritual.
Forte abalo sacudiu a m o n t a n h a o n d e estava incrustada a caverna. Muitos espíritos de vampiros, q u e se esguei-
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ravam na escuridão, caíram ao chão, à m e d i d a q u e os p r ó prios magos negros deixavam-se tombar, um a u m , devido
à c o n c e n t r a ç ã o m e n t a l dos pais-velhos. Um série de abalos
sacudia ainda mais f o r t e m e n t e a m o n t a n h a , no m e s m o inst a n t e em q u e os magos se agitavam e e s t r e m e c i a m no chão.
Pareciam sofrer violento ataque epiléptico; convulsionav a m - s e em estertores. Um dos magos, após o incrível fenôm e n o que eu presenciara, abriu os olhos finalmente e, ao
divisar os r e p r e s e n t a n t e s da A m a n d a , iniciados tal c o m o
ele, mas e m b a i x a d o r e s de um p o d e r superior, deu um grito
assustador, a t e r r a d o r e logo desmaiou.
Mais tarde, ao conversar c o m Jamar, Watab, Semíramis
e os demais p a r a saber o que o c o r r e r a nos outros c a m p o s
da luta em q u e estiveram trabalhando, não consegui tirar
a imagem dos magos negros de m i n h a cabeça. Fiquei por
m u i t o s dias impressionado e requisitei voltar ao Hospital
do Silêncio p a r a novas sessões de magnetismo. Precisava
me recompor. Porém, Pai João n o t o u m i n h a dificuldade em
absorver tantas informações e evocou p a r a me auxiliar um
guardião que r e s p o n d i a pelo n o m e de Sete. Este c o n d u z i u -me aos pórticos de A m a n d a e, em meio aos c a m p o s e à natureza, fui me retemperar, a g u a r d a n d o o desfecho da guer-
390
ra, que, no futuro breve, J a m a r me relataria. E r a demais
para mim, naquele m o m e n t o . Deveria e s t u d a r muito, avançar no a p r e n d i z a d o , mas eu s i n c e r a m e n t e vibrava, delirava
de alegria por p o d e r p e r t e n c e r a tal g r u p o de pessoas, comp r o m e t i d a s c o m o b e m da h u m a n i d a d e .
E n t r e as estrelas da A m a n d a , prossegui m e u aprendizado, confiante de que, futuramente, q u e m sabe em alguns
poucos anos, pudesse c o m p o r de maneira definitiva a equipe
de guardiões ou de agentes da justiça divina. E este era um
motivo muito especial para que me dedicasse aos estudos.
T i n h a a eternidade pela frente, e a A m a n d a c o m o pátria.
395
RANSCORRIDO
CERTO TEMPO após e n t r a r e m contato
c o m a realidade espiritual, p u d e notar que t o d a v e r d a d e
t e m o lado s o m b r a e o lado luz, e que lado s o m b r a não significa n e c e s s a r i a m e n t e lado ruim, negativo, como se p r e cisássemos lhe atribuir juízo de valor. T a m b é m descobri
que há algo que nos impele a c o m p r e e n d e r e conviver com
nosso p r ó p r i o lado sombra, incita-nos a aceitar que somos
como somos, que faz p a r t e de nós o e l e m e n t o h u m a n o , vulnerável, permeável, c o m u m a todos os seres. Tanto q u a n t o
existe em nós o aspecto divino, superlativo, t r a n s c e n d e n t e ,
c o m infinitas possibilidades, e m b o r a não esteja completo,
ainda. Ele r e q u e r dedicação p a r a crescer e frutificar. Contudo, desenvolver nossas habilidades divinas não implica
matar, negar ou sufocar nossa h u m a n i d a d e , n e m m e s m o
nosso lado sombra.
Foi assim que descobri um aspecto interessante. Se p o r
um lado os m e n t o r e s , os c h a m a d o s Imortais, p o d e m ser
classificados c o m o o que há de mais representativo em matéria daquilo que c h a m a m o s de luz — por falta de um termo mais refinado ou preciso —, p o r sua vez os guardiões
sintetizam a justiça, a equidade, o fiel da balança. Portanto,
lançando m ã o de u m a alegoria — igualmente devido à es-
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cassez de vocabulário para m e l h o r caracterizá-los —, talvez p o s s a m o s chamá-los de lado e s q u e r d o de Deus.
T r a ç a n d o um paralelo, a A r u a n d a não é s o m e n t e o que
vi nos planos mais sublimes, nesse m e u p r i m e i r o contato
c o m a vida além. A r u a n d a é t a m b é m a região escura, o n d e
os guardiões t ê m seu refugio, seu c a m p o de experiências e
de trabalho. A r u a n d a é t a m b é m o r u m , o Céu ou as regiões
mais sublimes ainda, das quais s o m e n t e ouvi falar; A r u a n d a
é a erraticidade p a r a uns, o lugar mais sagrado para outros.
Pode ser, s i m p l e s m e n t e , o paraíso s e m formas, o m u n d o
mental, s o b r e - h u m a n o , o n d e as a p a r e n t e s discordâncias, os
a p a r e n t e s p a r a d o x o s se e n c o n t r e m , fundam-se, u n a m - s e ,
de tal m a n e i r a q u e h u m a n o e divino façam p a r t e de u m a só
entidade; que luz e s o m b r a sejam vistas c o m a m e s m a naturalidade, despidas da visão moralista e m a n i q u e í s t a que
elege um c o m o b o m e o u t r o c o m o ruim.
Verifiquei q u e estar em sintonia c o m o Alto não significa o b r i g a t o r i a m e n t e c o n c o r d a r c o m t u d o q u e v e m do
Alto, não implica p e n s a r de m o d o idêntico, t a m p o u c o form a t a r o cérebro, seja físico ou extrafísico, p a r a falar o m e s mo idioma espiritual ou professar a m e s m a d o u t r i n a filosófica. Há beleza na diversidade. Há u m a beleza terrífica
397
nas sombras, t a n t o q u a n t o há algo de a t e m o r i z a n t e na luz,
d e p e n d e n d o da cor e da i n t e n s i d a d e que tiver, até p o r q u e
luz n e m s e m p r e significa claridade. Descobri m u i t a s coisas
nesse p o u c o t e m p o de vida no Além.
Mas m i n h a s descobertas não p a r a r a m p o r aí. Foi q u a n d o m e r e e n c o n t r e i c o m m i n h a f i l h a M a r i a q u e m e dei conta de q u e m e u lugar não era e n t r e os anjos, n e m os santos,
n e m m e s m o e n t r e o s Imortais:
— E agora, m e u pai? Qual será o p r ó x i m o passo? Que
fará a p a r t i r daqui?
— Não há mais c o m o ficar a g u a r d a n d o as o p o r t u n i d a des a p a r e c e r e m . Creio, Maria, que terei de criar m i n h a s
p r ó p r i a s o p o r t u n i d a d e s . Que tal ir comigo à universidade?
— Não poderei, m e u pai. Me desculpe! Porém, t e n h o
de c o m p a r t i l h a r algo c o m você.
— Não me diga q u e vai voltar ao m u n d o físico, isto é,
reencarnar?
— Não é isso, m e u pai. Eu vou m o r a r em o u t r a cidade
espiritual!
— C o m o assim? Por que não fica aqui, na A r u a n d a ?
— D e s d e o início eu sabia que n ã o p o d e r i a ficar aqui.
Os a d m i n i s t r a d o r e s me c h a m a r a m a p e n a s p a r a ajudá-lo, de
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alguma forma, a se sentir em casa. Mas n ã o é aqui o m e u lugar. T e n h o o u t r o tipo de a p r e n d i z a d o diferente do seu.
— Não sei o que dizer, Maria...
— O m e l h o r de t u d o é q u e p o d e r e m o s nos ver, como
o c o r r e na Terra q u a n d o as pessoas que se a m a m m o r a m em
cidades diferentes.
— Mas p a r a que local você irá? Já sabe em qual cidade
ficará m o r a n d o , a p r e n d e n d o e e s t u d a n d o ?
— Vou para u m a região mais próxima da Terra, vibratoriamente. Já fui visitar o local. É u m a colônia, na verdade;
não u m a metrópole grande como esta. Mas preciso ir para lá,
pois t e n h o muitos laços afetivos que preciso reatar, e as pessoas com q u e m devo conviver mais de perto, tanto quanto
as experiências que preciso vivenciar, sei que as encontrarei
por lá. Mas o seu lugar é aqui. Um dos guardiões me falou,
papai. Sabia que você seria p r e p a r a d o para algo importante.
— Não i m p o r t a n t e , filha, m a s necessário. Prefiro pensar assim. M a s se você já se decidiu, acho q u e devo lhe oferecer apoio, c o m o s e m p r e . Bom, pelo m e n o s t e m o s carros
voadores e comboios através dos quais p o d e m o s nos locomover e n t r e as d i m e n s õ e s . Não e s t a r e m o s isolados, de
q u a l q u e r forma.
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— Além do mais, p o d e m o s nos falar c o n s t a n t e m e n t e ,
através dos aparelhos de comunicação.
M a r i a c o n v i d o u - m e a a c o m p a n h á - l a até o local o n d e
pegaria o veículo para viajar até a cidade o n d e passaria a
residir. Fomos r u m o a um tipo de aeroporto. Batizei-o de
astroporto, p o r estar no limiar das d i m e n s õ e s astral e espiritual, p r o p r i a m e n t e dita, ou d i m e n s ã o mental. O lugar era
s u r p r e e n d e n t e . Via-se g r a n d e diversidade de veículos voadores, alguns e n o r m e s p a r a os p a d r õ e s t e r r e n o s . Observei
desde e q u i p a m e n t o s voadores mais simples, s e m e l h a n t e s
aos helicópteros da Terra, e m b o r a s e m as hélices, até outros i m p o n e n t e s , de formato t o t a l m e n t e diferente d a q u e le q u e vira na cidade. O espaço o n d e estavam p o u s a d o s era
circular. E os carros voadores não precisavam taxiar, à sem e l h a n ç a do que ocorre c o m os aviões na d i m e n s ã o física.
Tão s o m e n t e levantam voo na vertical e, depois, deslizam
na direção do local desejado. Os maiores e q u i p a m e n t o s
de voo e r a m de formato esférico, i m p o n e n t e s , de proporções r e a l m e n t e singulares. Não soube qual a finalidade d e les, mas c o m c e r t e z a deveriam ter u m a função específica,
e e r a m poucos esses gigantes da técnica astral. Vi t a m b é m
veículos m e n o r e s , pilotados p o r espíritos e x p e r i e n t e s e tri-
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pulados p o r guardiões. C o m estes eu já havia tido contato
q u a n d o fomos visitar a base dos guardiões.
Tanto Maria q u a n t o eu estávamos maravilhados com
as possibilidades técnicas dos espíritos. D e c e r t o eu acabaria d e s c o b r i n d o p a r a que servia cada tipo de veículo. Por
ora, precisava desfrutar da p r e s e n ç a de m i n h a filha. E foi
n u m hall m u i t o grande, u m a espécie de sala de e m b a r q u e ,
o n d e c e n t e n a s ou até milhares de seres chegavam e partiam d a A m a n d a , q u e m e despedi d e m i n h a f i l h a , u m a desp e d i d a sem dor, s e m sofrimento, a p e n a s c o m leve quê de
melancolia ou saudosismo antecipado. Não cheguei a p e n sar que ela se integraria aos trabalhos a p r e s e n t a d o s a m i m
pelos guardiões. Ela n e m s e q u e r participou de alguma das
visitas q u e fiz ou de q u a l q u e r r e u n i ã o j u n t o comigo.
M a r i a tivera um papel naquilo t u d o . Ela a p a r e c e u logo
no início de m i n h a c h e g a d a e em seguida sumiu, talvez
p a r a e n t r a r em contato c o m sua p r ó p r i a realidade espiritual. No m e u caso, me envolvi de tal m a n e i r a c o m as n o vas experiências q u e acabei n ã o s e n t i n d o mais a s a u d a d e
i m e n s a de Maria que sentira nos últimos m o m e n t o s de min h a vida no m u n d o físico. E r a m t a n t a s as coisas a p r e s e n t a das a m i m que a s a u d a d e em si ou foi disfarçada em meio
401
aos a c o n t e c i m e n t o s ou, então, diluíra-se definitivamente.
C o m o eu sabia que m i n h a filha e eu não estávamos m o r t o s ,
n e m t e r m i n a n t e m e n t e separados, c o m efeito essa constatação serviu p a r a diluir de vez q u a l q u e r resquício de a p e r t o
emocional. Estávamos vivos, e isso era o q u e importava.
Após me d e s p e d i r de Maria, dirigi-me à universidade.
O p r é d i o principal era um edifício i m p o n e n t e , c o m u m a arq u i t e t u r a q u e lembrava b a s t a n t e u m t e m p l o r o s a c r u z e m
sua fachada ou, q u e m sabe, os traços egípcios. E r a dotado de pórticos i m p r e s s i o n a n t e s e um pátio m u i t o maior do
q u e q u a l q u e r u n i v e r s i d a d e que eu c o n h e c e r a na Terra. Os
demais prédios apresentavam aspecto q u e me r e m e t i a aos
m u s e u s da velha E u r o p a .
Havia m u i t a s c ú p u l a s e a a r q u i t e t u r a privilegiara a
c o n s t r u ç ã o de vários salões e bibliotecas. O prédio central
era cercado p o r j a r d i n s m u i t o b e m cuidados e as flores que
o r n a m e n t a v a m a e n t r a d a cintilavam c o m o p e d r a s preciosas de m u i t a s cores. Havia estátuas dispostas c o m o n u m
g r a n d e m u s e u , f o r m a n d o extenso corredor, e fontes e chafarizes refrescantes, t u d o com intenso m o v i m e n t o de pessoas por t o d o lado. De m o d o geral, os espíritos m o v i m e n t a v a m - s e em grupos. R a r a m e n t e se via alguém sozinho. A cor
402
d o m i n a n t e nas c o n s t r u ç õ e s era o d o u r a d o , e m b o r a outras
se m o s t r a s s e m em alguns arranjos na cidade universitária.
Sim, trata-se de v e r d a d e i r a cidade o complexo educacional.
D e n t r e os vários edifícios, escolhi aquele o n d e encontraria m e u s orientadores. Logo que me aproximei do hall
de entrada, fui recebido p o r um dos dirigentes do local.
N o v a m e n t e percorri os olhos em d e r r e d o r e me apaixonei
pelo conjunto que via. Tive a nítida sensação de q u e n u n c a
me cansaria de observar os p r é d i o s clássicos, os quais p r o vavelmente exigiriam s e m a n a s a fim de s e r e m completam e n t e conhecidos.
Ao longe, envolvendo o conjunto da obra, havia m u ros altos, q u e se e s t e n d i a m em forma de meia-lua. Sobre os
m u r o s , m a n t e n d o considerável distância e n t r e si, havia observadores ou atalaias, c o m o se diz p o r aqui. E n c a r r e g a m -se de noticiar q u a n d o c h e g a m visitantes de outras cidades
ou colônias, além de organizar as diversas manifestações
dos alunos, que, de t e m p o s em t e m p o s , c o n s t i t u e m g r u p o s
para realizar práticas e estudos no pátio principal.
O p r e c e p t o r n o t o u m i n h a curiosidade e q u a n t o me deliciava o b s e r v a n d o o a m b i e n t e em volta. Talvez mais para
captar m i n h a atenção, c o m e n t o u :
403
— Ora, ora, Ângelo! E n t ã o já sabe da notícia?
— Notícia? Que notícia? Vim a p e n a s discutir sobre o
c u r s o intensivo. Fui informado de q u e deveria p r o c u r a r a
direção da universidade.
— Ah! Me desculpe se interferi, a d i a n t a n d o a surpresa.
— Que surpresa, m e u amigo? Vamos, fale! N ã o me m a t e
de curiosidade...
— Não há c o m o m a t a r n i n g u é m aqui, Ângelo... Você já
m o r r e u , lembra?
— Você me e n t e n d e u — falei, quase m o r r e n d o de verdade. A curiosidade e r a m e u fraco.
— Então, v a m o s até a recepção e logo saberá. Não quero q u e b r a r o encanto. Lá e n c o n t r a r á alguns amigos.
Desisti de p e r g u n t a r alguma coisa mais. Resolvi que
iria direto ao setor responsável para discutir, se fosse o
caso, m e u projeto de estudos na A m a n d a .
No m o m e n t o em q u e a d e n t r a m o s o a m b i e n t e — um
local arejado, c o m j a n e l a s g r a n d e s , através das quais era
possível c o n t e m p l a r t o d o o pátio da escola —, notei a p r e s e n ç a de alguns espíritos q u e já haviam sido a p r e s e n t a d o s
a m i m . Além de Jamar, estavam ali J ú l i o Verne, W a t a b e
o u t r o s mais.
404
Jamar, alto, forte, cor de b r o n z e , ficou s e g u r a n d o a espada, um i n s t r u m e n t o de alta tecnologia q u e ele parecia
não largar, c o m o se estivesse o t e m p o todo p r e p a r a d o para
e n t r a r em ação. Seus olhos p e n e t r a n t e s fitavam ao longe ou
p r o f u n d a m e n t e , c o m o se devassassem o interior da alma da
gente. Outro guardião se encontrava ali: era Zura, dos legionários de Maria, ao qual fui a p r e s e n t a d o em seguida. A
i n d u m e n t á r i a do sentinela era algo q u e impressionava. Ele
era a i m a g e m de um guerreiro das h o s t e s celestiais. Um gigante! C o r p o maciço, acobreado, cuja aura brilhava c o m o
um relâmpago, s e m e l h a n t e à de Jamar. Refulgia com a luz
que o envolvia, de m a n e i r a que lhe percebi a elevação. Assim c o m o o guardião da noite, trazia um i n s t r u m e n t o em
forma de espada, q u e segurava apoiada no chão, descansando u m a das m ã o s sobre ela.
Fiquei p r e o c u p a d o , pois não sabia que havia necessid a d e de tantas pessoas i m p o r t a n t e s assim; além do mais,
m i n h a intenção e r a s o m e n t e discutir m e u p r o g r a m a d e est u d o s no curso intensivo.
— E s t a m o s e s p e r a n d o p o r você, Ângelo. Temos novid a d e s m u i t o interessantes que lhe d i z e m respeito, pessoalm e n t e — principiaram.
405
— N ã o me digam q u e desistiram de mim?!
— Nada disso, m e u amigo — falou J a m a r e n q u a n t o eu
cumprimentava a todos, e me postava ao lado de Júlio Verne.
— C o n v e r s a m o s e n t r e nós sobre a necessidade de você
se especializar em alguns assuntos. A tarefa que lhe cabe
r e q u e r e r á intenso p r e p a r o , que já c o m e ç o u aqui na cidade. No entanto, c o m o sabe, nossa m e t r ó p o l e engloba outros
c a m p o s de t r a b a l h o e laboratórios de experiência.
— Não sei a o n d e você q u e r chegar.
— Bem, você c o n h e c e u nossa base de t r a b a l h o nas r e giões inferiores. P o d e m o s dizer que é u m a p a r t e da A m a n da, e m b o r a seja mais um tipo de faculdade, o n d e os espíritos se p r e p a r a m em regime intensivo p a r a tarefas mais
expressivas e d e t e r m i n a d a s . Lá, Ângelo, é o n d e julgamos
que você t e r á mais c a m p o p a r a a p r e n d e r e aprofundar-se
em situações c o m as quais conviverá no futuro, e q u e farão
p a r t e de seu m a p a de estudos.
— E n t ã o não vou mais viver aqui na cidade?
— Bem, não é e x a t a m e n t e o que p e n s a m o s , amigo —
adiantou-se um p r e c e p t o r responsável pelo e s t u d o de filosofias na universidade. — A cidade dos guardiões ou base
de apoio está s e n d o ampliada. Você n ã o a r e c o n h e c e r á
406
q u a n d o lá chegar. Após os eventos da última g u e r r a e do
e m b a t e c o n t r a os filhos da noite — os magos —, fez-se n e cessário ampliar a e s t r u t u r a do quartel dos guardiões. Por
isso, a c h a m a m o s agora de cidade, e não s o m e n t e de base.
— E de certo m o d o ela é u m a extensão da Aruanda, e m b o r a não esteja na m e s m a d i m e n s ã o — falou Watab, olhando p a r a J ú l i o Verne, que pedia a palavra.
— T e m o s de convir que, se você se e n c a r r e g a r á de levar notícias ao m u n d o dos c h a m a d o s vivos sobre o que
existe além das fronteiras do r o m a n t i s m o espiritual, e n t ã o
t e r á de travar c o n t a t o direto c o m a realidade, tal qual ela é.
E n a d a m e l h o r do q u e ficarmos j u n t o s n u m a região c o m o
a que se e n c o n t r a a cidade dos g u a r d i õ e s — u m a espécie
de a n t e c â m a r a da A r u a n d a , um posto avançado em regiões
mais densas.
— Isso me p r e o c u p a — falei meio sem jeito diante da
proposta. — Já estava me a c o s t u m a n d o c o m a b o a vida aqui
na metrópole...
— É amigo, isso aqui vicia q u a l q u e r u m . Não há como
não se h a b i t u a r com coisa boa.
— M a s t e m o s de convir q u e sua tarefa, de m a n e i r a específica, será m u i t o mais abrilhantada com u m a estrutu-
407
ra de a p r e n d i z a d o ligada d i r e t a m e n t e ao palco das lutas
mais a r d e n t e s q u e t e m o s levado a cabo nas regiões inferiores. Ademais, e n t r e os guardiões, você c o n t a r á c o m u m a infraestrutura muitíssimo especializada. E p o d e r á visitar a
A r u a n d a q u a n d o quiser, além de ter aqui o seu refúgio p e s soal, j u n t o ao lago, o n d e foi c o n s t r u í d a sua m o r a d a .
— E, não há do que reclamar. Se é assim, estou de pleno
acordo.
E falando baixinho, c o m o se tentasse evitar que os d e mais ouvissem, J ú l i o Verne c o m e n t o u c o m o u t r o espírito
ali p r e s e n t e :
— C o m o se houvesse opções disponíveis...
I g n o r a n d o a observação, que p a r a m i m foi apenas um
gracejo, ousei p e r g u n t a r sobre d e t e r m i n a d a coisa que não
ouvira n i n g u é m mencionar, até então:
— Como me disseram q u e eu teria de p r e p a r a r o m é d i u m c o m o qual devo t r a b a l h a r no futuro, c o m o ficará essa
aproximação? O rapaz será c o n d u z i d o t a m b é m p a r a as regiões inferiores, ao invés de vir aqui p a r a a cidade?
— P r i m e i r a m e n t e , m e u amigo, é b o m q u e saiba um
p o u c o mais sobre os c o m p a n h e i r o s de trabalho na d i m e n são física.
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— Mas não será s o m e n t e com u m a pessoa, um m é d i u m ,
que trabalharei?
— Bem, de m a n e i r a mais íntima, sim. E falo de intimid a d e no sentido de c o m p a r t i l h a r p e n s a m e n t o s e emoções
c o m o rapaz q u e lhe servirá de intérprete. No entanto, nen h u m trabalho s e realiza s o m e n t e c o m u m trabalhador.
Você t e r á de se afinar c o m o p e q u e n o g r u p o de pessoas q u e
lhe servirá de apoio e n t r e os e n c a r n a d o s . Trata-se dos comp a n h e i r o s do m é d i u m com o qual trabalhará; isto é, terá de
p r e p a r a r a equipe t a m b é m , e não apenas o m é d i u m .
— Mas não seria mais fácil o ambiente da metrópole para
que o m é d i u m fosse preparado? Cheguei a encontrá-lo aqui
algumas vezes... Talvez por aqui se sentisse mais à vontade....
J a m a r olhou p a r a m i m de m a n e i r a significativa, como
se estivesse p e r d e n d o t e m p o precioso. M e s m o assim, ele
prosseguiu calmo, d a n d o - m e mais detalhes:
— Ocorre o contrário, Ângelo. O rapaz q u e terá q u e
p r e p a r a r p a r a ser seu intérprete, e nosso t a m b é m , sente-se
mais à v o n t a d e nas regiões inferiores. C o m o t e m p o c o n h e cerá a história dele no p e r í o d o e n t r e vidas e c o m p r e e n d e r á
m e l h o r o q u e lhe falo. Por o u t r o lado, n ã o é n a d a fácil desd o b r a r o m é d i u m e elevar a frequência do seu corpo espi-
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ritual, a fim de q u e se manifeste em nossa m e t r ó p o l e c o m
consciência plena ou suficiente. Esse tipo de ação exige
e n o r m e dispêndio de energia de nossa parte. C o m o ele t e r á
de se inscrever n u m curso regular do lado de cá da vida,
além, é claro, de participar de algumas tarefas conosco, ficar no plano mais p r ó x i m o à Crosta é m u i t o mais fácil p a r a
ele — e t a m b é m para nós. Afinal, ele p e r t e n c e a este lugar,
ao m u n d o dos guardiões. E na escola que e s t r u t u r a m o s na
z o n a de apoio, mais p r ó x i m a à superfície do orbe, t e r ã o a
disposição n ã o s o m e n t e as m a t é r i a s e materiais p a r a estudo e aprendizado, c o m o t a m b é m p o d e r ã o e n t r a r em contato, na nova cidade dos guardiões, com espíritos de longa
bagagem, no que tange às incursões a planos mais densos.
No m o m e n t o não e n t e n d i b e m o que J a m a r p r e t e n dia c o m sua explicação, m a s senti q u e era o m e l h o r p a r a
mim. Só aos poucos clarearam as coisas q u e antes n ã o faziam sentido p a r a m e u espírito. Foi q u a n d o Z u r a prosseguiu c o m o p e n s a m e n t o de J a m a r :
— Para q u e m q u e r se especializar, os planos mais d e n sos oferecem recursos de a p r e n d i z a d o q u e não e n c o n t r a m o s em n e n h u m a o u t r a dimensão. O contato c o m zonas de
impacto e c o m seres mais ou m e n o s materializados, imer-
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sos n u m a realidade p r ó x i m a ao q u e e n c o n t r a m o s no m u n do dos e n c a r n a d o s , evoca certa familiaridade. Verá como
seu agente no m u n d o dos escarnados, q u a n d o em desdob r a m e n t o j u n t o aos guardiões, g u a r d a r á mais lembranças
do q u e e n t r e as estrelas da A m a n d a .
— Mas eu p o d e r e i voltar à cidade q u a n d o quiser, para
me retemperar?
— Se você conseguir sozinho... — insinuou Watab, de
m a n e i r a reticente. Ou seria irônica?
— O que você quer dizer com isso? — perguntei, ligeir a m e n t e desconfiado.
— Você descobrirá, Ângelo. Chegar à nossa cidade não
é tão fácil assim. L e m b r a - s e de c o m o chegou aqui? Foi trazido pelos guardiões. Por Jamar, pessoalmente.
Fiquei meio e n s i m e s m a d o , p e n s a n d o na oferta de estudos j u n t o aos guardiões e nas implicações de t o d a a p r o p o s ta. Afinal de contas, não teria o b r i g a t o r i a m e n t e q u e conc o r d a r de imediato, mas c o m o havia ali seres responsáveis
e mais esclarecidos que eu...
— Está b e m . Vou aceitar a p r o p o s t a de e s t u d o na base
de apoio dos guardiões. Depois, d u r a n t e m i n h a s tarefas por
lá, talvez e n t e n d a m e l h o r o que q u i s e r a m dizer. Aceito!
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J a m a r olhou os demais com certo brilho no olhar. Em
todo caso, ficaria mais p e r t o dele e dos novos amigos que
f i z n a A m a n d a . U m a vez q u e não p e r d e r i a m i n h a m o r a d a
na cidade, d e d u z i que, à m e d i d a q u e o t e m p o passasse, p o deria regressar, c o m a ajuda de Jamar, à cidade q u e p a r a
m i m era c o m o o paraíso. Se eu t i n h a u m a tarefa pela frente,
que t u d o fosse feito em função dessa tarefa.
Deixei a universidade cheio de expectativas, já q u e
compartilharia da p r e s e n ç a de Jamar, Watab, Z u r a e dos
demais guardiões de m o d o mais p r ó x i m o e p e r m a n e n t e .
E m b o r a as belezas da cidade dos espíritos, s e g u n d o o q u e
m e u s amigos explicaram, a cidade dos guardiões era parte da A m a n d a , um e n t r e p o s t o dos espíritos q u e se c o m p r o m e t i a m com a h u m a n i d a d e , c o m o b e m da h u m a n i d a de. Então, apesar da diferença marcante, t a n t o na paisagem
ao r e d o r q u a n t o na distância vibratória, se c o m p a r a s s e a
A m a n d a ao local o n d e eu residiria, veria q u e estávamos conectados i n t i m a m e n t e devido aos ideais.
— Ah! Ângelo, me esqueci de lhe falar. Terá em nossa
cidade u m a espécie de instrutor, q u e p o d e r á auxiliar até
que você se adapte aos fluidos mais densos e ao tipo de vida
mais ou m e n o s militar de nossa cidade. C o m o estamos lo-
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calizados em d i m e n s ã o hostil, t e m o s de m a n t e r certo rigor
no t o c a n t e ao m o d o de vida e aos hábitos, pois nossa cidade é u m a espécie de cidade universitária e militar, o n d e especializamos m u i t a gente p a r a lidar c o m vibrações mais
densas e pesadas ou espíritos mais inteligentes, e m b o r a em
oposição à política do Reino.
Um instrutor! Não imaginava precisar de alguém mais intimamente ligado a mim, mas, considerando o tipo de fluido
com os quais deveria me habituar, até que a ideia não era tão
sem fundamento. E lá fui me despedir de Consuela, de Laura
e dos amigos que fiz neste m e u primeiro m o m e n t o na Aruanda. Quando conversava com Consuela, ela me surpreendeu:
— E p e n s a q u e vai p a r a a cidade dos guardiões sozinho? Pelo que fiquei sabendo, um g r u p o n u m e r o s o de espíritos irá j u n t o p a r a formar a e q u i p e c o m a qual você vai
trabalhar. E conte comigo! Toda vez q u e sair algum veículo
em direção às regiões mais densas, p r o c u r a r e i ir j u n t o ou
enviarei notícias de nossa h u m i l d e m o r a d a — c o m o sempre, Consuela dramatizava.
— Que espíritos são esses? Você os conhece?
— Claro q u e c o n h e ç o alguns, m a s é u m a t u r m a m u i t o
grande. Acho q u e você os c o n h e c e r á assim q u e chegar. Es-
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p e r o que dê t u d o certo. Assim que vier se r e t e m p e r a r nos
a m b i e n t e s de nossa cidade, seu lugar estará a r r u m a d i n h o ,
t u d o no lugar, e s p e r a n d o p o r você.
D e s p e d i - m e dos amigos, m e n o s de Pai João, pois ele
nos guiaria até a base dos guardiões, a cidade dos s e n t i n e las, localizada nas regiões mais densas. Estava ansioso p a r a
me ver e n t r e o pessoal de Jamar, no local que visitara antes.
T ã o logo entrei no veículo, q u e estava na espécie de
h a n g a r d e o n d e p a r t i a m o s aeróbus, e n t r o u u m a m u l h e r
em t u d o diferente de t o d a s as o u t r a s q u e eu c o n h e c e r a
nos p r i m e i r o s t e m p o s n a A r u a n d a . Parecia m u i t o m a i s
u m a pessoa e n c a r n a d a do q u e d e s e n c a r n a d a . Algo era diferente nela. E a familiaridade c o m q u e conversava c o m
os guardiões indicava s e r e m velhos conhecidos. Mais tarde, soube que se chamava I r m i n a Loyola e era um agente
dos guardiões e n t r e os c h a m a d o s vivos. Atuava fora do corpo j u n t o aos r e p r e s e n t a n t e s da A r u a n d a , em várias frentes
de trabalho. S o m e n t e mais t a r d e eu viria a saber que ela fazia p a r t e da equipe. Aliás, a equipe dos guardiões era m u i to g r a n d e e contava c o m várias pessoas e n c a r n a d a s , que,
d u r a n t e o sono físico, colocavam-se a serviço dos emissários da justiça divina. A r e d e de t r a b a l h a d o r e s em t o r n o do
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p l a n e t a era algo incrível e, mais ainda, não d e p e n d i a de r e ligião n e m de s e r e m os envolvidos pessoas religiosas. Bastava estar sintonizado c o m a p r o p o s t a de auxiliar a h u m a n i d a d e de m a n e i r a intensa e genuína.
A p r i m e i r a r e u n i ã o que presenciei foi presidida pelo
espírito J o s e p h Gleber, q u e deu início à sessão c o m um com e n t á r i o q u e me abriu a m e n t e , de m a n e i r a inusitada, p a r a
questões até e n t ã o desconsideradas p o r mim. Ele fez um
convite p a r a que e u presenciasse, j u n t a m e n t e c o m I r m i n a
e mais dois m é d i u n s e n c a r n a d o s em d e s d o b r a m e n t o , alg u n s eventos relativos ao m o v i m e n t o espírita. Seria import a n t e c o n h e c e r as características do movimento, pois em
alguma m e d i d a me envolveria com espíritos espíritas ou
m é d i u n s espíritas. Pai João participava silencioso da reunião, e um g r u p o de mais de 100 guardiões estava ali t a m b é m , d e m o n s t r a n d o interesse no assunto.
— C o m c e r t e z a não será n a d a agradável p a r a vocês
p e r c e b e r e m que os amigos e n c a r n a d o s mais envolvidos
c o m a renovação do p e n s a m e n t o e o esclarecimento espiritual não são n a d a resolvidos e n t r e si — falou o médico de
p r o c e d ê n c i a alemã. — Por essa e outras razões, vocês precisam ficar atentos, pois inicialmente enfrentarão resistência
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c e r r a d a e n t r e aqueles q u e d i z e m r e p r e s e n t a r a luz do p r o gresso espiritual. Notarão, t a m b é m , que, e m b o r a falem em
progresso e evolução do p e n s a m e n t o , m e u s irmãos encarn a d o s no m o v i m e n t o espírita são, de m o d o geral, os mais
resistentes a novas ideias e à p r ó p r i a característica renovadora e inovadora da m e n s a g e m espiritual.
Sinceramente, não e n t e n d i c o m o pessoas que afirmav a m divulgar ideias renovadoras e r e p r e s e n t a r um movim e n t o de libertação p u d e s s e m , em algum nível, c o m b a t e r
ou ao m e n o s c o n t r a r i a r o objetivo da m e n s a g e m q u e diziam propagar. N ã o tivera ainda c o n t a t o mais íntimo c o m
espíritas. Será que eu teria surpresas pela frente?
De q u a l q u e r forma, p a r a mim, e q u e m sabe para os d e mais espíritos ali p r e s e n t e s , seria ó t i m a a o p o r t u n i d a d e
de ter contato estreito c o m a realidade de integrantes do
m o v i m e n t o c o m o qual lidaríamos. Tratava-se da p r i m e i r a
aproximação direta; e x p e r i m e n t a r i a a p r i m e i r a impressão
do c a m p o de trabalho em q u e militaria.
J o s e p h Gleber deu p r o s s e g u i m e n t o à sua fala, discorr e n d o sobre a ocasião q u e t e r í a m o s de observar o diálogo
e n t r e um dirigente e n c a r n a d o em d e s d o b r a m e n t o e seus
m e n t o r e s . Pediu q u e r e p a r á s s e m o s na dificuldade enfren-
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t a d a pelos espíritos responsáveis pela tarefa educativa dos
agentes e n c a r n a d o s ao lidar c o m as limitações e crenças
pessoais dos pupilos. Após a breve introdução, continuou:
— Os eventos q u e m a r c a m o final do século xx no plan e t a Terra indicam que, apesar de certas conquistas no âmbito dos m o v i m e n t o s religiosos — t a n t o aqueles declaradam e n t e espiritualistas, que t r a b a l h a m a b e r t a m e n t e com a
m e d i u n i d a d e e a c o m u n i c a ç ã o c o m o Invisível, q u a n t o os
q u e não a d m i t e m tal prática —, apesar do progresso alcançado e admitido e n t r e os r e p r e s e n t a n t e s das ideias renovadoras, no t o c a n t e a diversos c a m p o s da ciência espiritual,
ainda há m u i t o a ser feito, q u a n d o se considera o objetivo
de levar u m a visão nova e mais dilatada da vida além-túmulo. Há m u i t o c a m p o a ser desbravado e m u i t o s mitos a
s e r e m dissipados ou desconstruídos.
" T a m b é m se p o d e p e n s a r o seguinte, a partir do e s t u d o
mais aprofundado do m o v i m e n t o r e n o v a d o r da alma h u m a na. Levando-se em conta as manifestações de religiosidade
do povo brasileiro, em particular, e as n u a n c e s que lhes são
próprias; c o n s i d e r a n d o - s e os avanços do m o v i m e n t o espírita no âmbito m u n d i a l e as ações e reações q u e observam o s n o p a n o r a m a i n t e r n o desse movimento; t o m a n d o - s e
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por base o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e m é d i u n s , o r a d o r e s e d e mais e l e m e n t o s que se d e c l a r a m divulgadores da terceira
m e n s a g e m , chega-se a u m a conclusão inequívoca: o movim e n t o espírita está em crise. N u m a crise sem p r e c e d e n t e s .
"Os espíritas mais religiosos — que se inspiram em
h o m e n s - m i t o s , e m indivíduos q u e t o m a m c o m o referência de santidade e c o m p o r t a m e n t o , quase beatificados p e los conceitos católicos i m p o r t a d o s para a prática espírita,
que e n g e n d r a m sua visão de espiritualidade — c o m b a t e m
q u a l q u e r u m q u e ouse m o s t r a r u m a visão mais ampla d a
realidade espiritual e p r o c u r e lhes alargar os h o r i z o n t e s .
Outros, os q u e se d i z e m mais científicos, p r e t e n d e m fazer um espiritismo sem espíritos, u m a quase-igreja, palco de disputas, de teorias pseudocientíficas, de p r e t e n s õ e s
de pessoas q u e se a c h a m na v a n g u a r d a das i n t e r p r e t a ç õ e s
mais acaloradas e atuais.
"Por o u t r o lado, aqueles que ficam no meio, q u e t e n t a m fazer u m m o v i m e n t o d e qualidade, estabelecendo u m a
p o n t e e n t r e ambos os lados, a p a r t i r do c o n h e c i m e n t o de
v e r d a d e s de ponta, q u e c h e g a m c o t i d i a n a m e n t e através da
m e d i u n i d a d e , m a s que sabem s e r e m relativas, são atacados
pelos dois outros setores."
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J o s e p h Gleber deu u m t e m p o a o g r u p o r e u n i d o n a cid a d e dos guardiões, de m o d o a avaliarmos a n a t u r e z a do
m o v i m e n t o com o qual iríamos interagir mais i n t e n s a m e n te. Em seguida, continuou:
— Os mais estudiosos, aqueles q u e se p e r m i t i r a m ir
além das ideias cristalizadas ou m e r a m e n t e r e p r o d u z i d a s
e mimetizadas, que o u s a r a m ultrapassar conceitos engessados e práticas farisaicas, na m e d i d a em que p r o c u r a r a m o
p e n s a m e n t o evolucionário e progressista do codificador do
espiritismo, iniciaram u m a transição. S o m e n t e c o m m u i t a
c o r a g e m e e s t u d o é que são capazes de avançar nas observações a respeito de outros sistemas de vida nas d i m e n s õ e s
mais p r ó x i m a s à Terra.
"É tarefa impostergável desta equipe de espíritos aqui
r e u n i d a levar ao c o n h e c i m e n t o dos m e u s irmãos e n c a r n a dos a realidade tal qual ela é, ou ao m e n o s um r e t r a t o dela
que seja o mais fiel possível. É fundamental descortinar,
diante da visão de q u e m queira se aprofundar nas observações e estudos, a possibilidade de a n t e v e r e m o t r a b a l h o de
certas inteligências mais sofisticadas, e m b o r a voltadas p a r a
u m a ética s e r i a m e n t e questionável. É necessário que m e u s
irmãos e n c a r n a d o s p e r c e b a m as implicações dos c h a m a d o s
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processos psíquicos complexos, no t o c a n t e às obsessões, e
p o s s a m ir um p o u c o adiante.
"Vocês t e r ã o a o p o r t u n i d a d e e a responsabilidade de
m a p e a r o t r a b a l h o de inteligências e x t r a c o r p ó r e a s em r e giões inferiores, na subcrosta e no g r a n d e abismo. Este ousado e m p r e e n d i m e n t o espiritual será u m a das maiores tarefas a p r e s e n t a d a s a vocês. Mas n ã o se e n g a n e m , pois o
fato de se fazerem porta-vozes de c o n h e c i m e n t o mais dilatado, ou de levarem ao m u n d o suas experiências mais árduas do lado de cá, será visto c o m o a m e a ç a p o r aqueles q u e
se e n c o n t r a m cristalizados, cujas m e n t e s encaixotadas par a r a m n u m a fase que já deveria ter sido ultrapassada. Paradoxalmente, t e m e m pelo progresso e q u e r e m m a n t e r o m o v i m e n t o r e n o v a d o r estacionário."
Fiquei p e n s a n d o , após as palavras de J o s e p h . Se, p o r
um lado, nós estávamos fora do corpo físico, de certa maneira incólumes aos c o m e n t á r i o s malsãos que p o d e r i a m
advir de nosso t r a b a l h o ou das avaliações a seu respeito,
o q u e seria dos nossos agentes, os m é d i u n s e a equipe q u e
nos r e p r e s e n t a r i a no m u n d o ? Por certo não seria n a d a fácil p a r a eles. Olhei para o lado, o n d e se e n c o n t r a v a m dois
de nossos amigos e n c a r n a d o s em d e s d o b r a m e n t o , e fiquei
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imaginando q u a n t a c o r a g e m e d e t e r m i n a ç ã o deveriam ter,
n e c e s s a r i a m e n t e , p a r a d a r a cara a t a p a em nosso lugar.
E x a t a m e n t e isso, pois seriam eles a r e c e b e r as agressões
verbais e os ataques nervosos dos opositores do progresso;
mais ainda, a estar na m i r a da raiva explícita daqueles que
se sentissem a m e a ç a d o s c o m o resultado de nossa parceria.
Respirei fundo, apreensivo q u a n t o ao futuro de nossos amigos no plano físico.
E n q u a n t o tais p e n s a m e n t o s passavam e m m i n h a m e n te, o espírito amigo retomava a fala, antes de nos liberar
para o b s e r v a r m o s certos a c o n t e c i m e n t o s i m p o r t a n t e s , a
fim de q u e formulássemos nossa visão acerca do contexto
espiritual c o m o qual e n t r a r í a m o s em contato.
— Dia após dia, s u r g e m novos g r u p o s , c o m a n d a d o s
p o r legítimos r e p r e s e n t a n t e s d o p r o g r e s s o d a h u m a n i d a de e do m o v i m e n t o espírita. G r u p o s formados por cientistas da alma, p e s q u i s a d o r e s de certas v e r d a d e s , m é d i u n s
que se s e n t e m na responsabilidade de desmistificar as crendices a r e s p e i t o do p l a n o extrafísico, e m u i t o s o u t r o s , que
se especializaram no trato com os habitantes da dimensão extrafísica e m a l g u m t i p o d e a b o r d a g e m d a p r o b l e mática humana.
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" F i n a l m e n t e — disse c o m maior ênfase —, grupos de
pessoas q u e r e p r e s e n t a m organizações não espíritas, de outras filosofias e religiões, cujo t r o n c o não está d i r e t a m e n t e
ligado à gênese do espiritismo, d e s p e r t a r ã o t a m b é m p a r a
a necessidade de se u n i r e m n u m m o v i m e n t o de v a n g u a r d a
mundial, a fim de aprofundar as observações e e x p e r i m e n tações q u e investigam o m u n d o invisível.
"Contudo, várias batalhas estão em curso e são travadas e n t r e aqueles q u e deveriam r e p r e s e n t a r o Cordeiro de
D e u s no m u n d o . E m b o r a t o d o s estejam à p r o c u r a de m e lhores i n s t r u m e n t o s e i n s t r u m e n t a l i d a d e s para s e r e m ativos colaboradores da renovação planetária, p e r d e m precioso t e m p o ao brigar e n t r e si, d i s p u t a r posições ilusórias ante
as vistas de m u i t a s lideranças e, q u e m sabe, e s p e r a r aplauso e possível beatificação da p a r t e dos h o m e n s . E n x a m e i a m
as p r e t e n s õ e s à conquista de um suposto p o d e r e o desejo
de alguns m é d i u n s de ser considerados missionários; graças a Deus, p o r é m , essa p o s t u r a não m a c u l a r á a face verdadeira da m e n s a g e m , que paira acima das manifestações h u m a n a s e do p r ó p r i o m o v i m e n t o criado pelos h o m e n s .
"Esse estado de coisas, c o m u m em a g r u p a m e n t o s h u m a n o s — mas não e s p e r a d o e n t r e os r e p r e s e n t a n t e s do
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Cristo, e m b o r a p r e s e n t e e n t r e eles —, d e s p e r t a a atenção de
seres da oposição t a n t o q u a n t o daqueles q u e d e f e n d e m os
ideais nobres esboçados pelo espírito Verdade. De um dos
lados, o desejo de c o n h e c e r mais p r o f u n d a m e n t e as fraq u e z a s dos opositores; de outro, o e m p e n h o em pesquisar,
catalogar tais fraquezas, visando dar novo fôlego ao movim e n t o , de m o d o a investir no lado b o m de cada indivíduo."
Talvez p o r q u e estivéssemos m u i t o envolvidos c o m
a t e m á t i c a a p r e s e n t a d a e, mais ainda, p o r q u e a situação
e n u n c i a d a nas palavras do espírito amigo diziam respeito
d i r e t a m e n t e ao t r a b a l h o q u e realizaríamos a partir de então, p a r e c e q u e ele c o m p r e e n d e u c o m o suas palavras desp e r t a v a m em n ó s u m a e m o ç ã o m u i t o intensa. O médico
J o s e p h Gleber deu p o r e n c e r r a d a sua participação nessa p a r t e de nosso aprendizado, d e i x a n d o q u e J a m a r e sua
equipe nos c o n d u z i s s e m nos p r ó x i m o s passos do contato
c o m a realidade íntima de alguns t r a b a l h a d o r e s espíritas.
D e c i d i d a m e n t e , nosso a p r e n d i z a d o , nosso c u r s o intensivo
havia começado.
D a n d o - n o s a c o n h e c e r certas particularidades do ambiente espiritual o n d e nos m o v i m e n t a r í a m o s ao levar o fruto de nossas observações por i n t e r m é d i o da m e d i u n i d a d e ,
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J a m a r c o m p a r t i l h o u conosco, através de u m a projeção tridimensional, certos arquivos dos guardiões m o s t r a n d o alguns poucos lances em dois m o m e n t o s e d i m e n s õ e s diferentes. As imagens p a r e c i a m tão palpáveis q u e me lembro
de p e n s a r q u e dificilmente saberia distinguir se era u m a
projeção ou um fato observado in loco.
— D e n t r o em breve a h u m a n i d a d e se verá às voltas c o m
u m a crise m u i t o mais d e o r d e m espiritual, d i f e r e n t e m e n t e
da que ocorre nestas três ou q u a t r o d é c a d a s que m a r c a m o
final deste milênio e o início do outro, a qual abala as estrut u r a s sociais e econômicas do m u n d o — dizia um espírito
r e p r e s e n t a n t e de esferas superiores ao um amigo de trabalho. E a conversa e n t r e ambos denotava certa p r e o c u p a ç ã o
c o m os parceiros e n c a r n a d o s .
— Sim, essa crise talvez a n u n c i e e p r e c e d a acontecim e n t o s m u n d i a i s de consequências m u i t o graves, c o m o
ainda não se verificou na história atual da civilização. Veja
a G u e r r a no Golfo, p o r exemplo. Não foi u m a g u e r r a c o m o
outra qualquer; ela r e p r e s e n t o u m u i t o mais do q u e se p o deria imaginar. M a r c a o início de eventos cósmicos, de alcance mundial. E não há c o m o ignorar que o m o v i m e n t o
espiritualista precisa se erguer sobre bases de v e r d a d e i r a
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fraternidade e d a r as m ã o s p a r a enfrentar m o m e n t o s d e cisivos da vida coletiva. Os r e p r e s e n t a n t e s do Alto ora enc a r n a d o s talvez sejam inspirados a deixar de lado as brigas
e disputas, q u e só t ê m servido p a r a d i m i n u i r a m a r c h a do
progresso, q u e é inevitável.
— M u i t a s vezes, me p a r e c e q u e o processo de espiritualização d a h u m a n i d a d e p a t r o c i n a d o pelo m o v i m e n t o
espírita dá sinais de estar em crise, pois deveria ser algo
q u e o c o r r e s s e c o m m a i o r agilidade e c o m a u n i ã o d a q u e les q u e i n t e r p r e t a m a m e n s a g e m c o n s o l a d o r a e de espirit u a l i d a d e no m u n d o . Creio que, a t u a l m e n t e , o m o v i m e n t o
dos espíritas d e s e m p e n h a u m papel i m p o r t a n t e n a história
do m u n d o , m a s não p o d e m o s deixar de c o n s i d e r a r os m é d i u n s e d e m a i s figuras a t u a n t e s desse m o v i m e n t o , de forma particular.
— Na b a t a l h a que nos aguarda em prol da implantação definitiva do Reino
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sobre a Terra, t e m o s de conside-
rar certas diferenças e n t r e os r e p r e s e n t a n t e s do Cristo no
m u n d o : espíritas, u m b a n d i s t a s , esoteristas ou espiritualistas, de forma abrangente. Creio que, por ora, essas parti-
17
Cf. Mt 4:23; 6:10,13; 8:12; 13:19,38; 24:14; Ap 17:12.
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cularidades exigem de nós maior investimento, investigações mais aprofundadas, pois as pessoas q u e se e n c o n t r a m
à frente do trabalho e aquelas q u e seriam c h a m a d a s a participar mais ativamente nesse m o v i m e n t o m u n d i a l t ê m f i c a do perdidas, em meio às disputas particulares. L u t a m contra fantasmas.
Um dos espíritos, mais ligado à área de educação do
espírito, c o m p a r t i l h o u sua apreensão:
— Nós, os espíritos, n ã o p o d e m o s nos furtar a essa luta.
M u i t a s vezes, s e n t i m o - n o s incapazes de interferir. A forma
de p e n s a r de m u i t o s de nossos r e p r e s e n t a n t e s no m u n d o é
tão diferente da nossa q u e eu, pessoalmente, me vejo aflito
diante da m a n e i r a de p e n s a r e agir daqueles que deveriam
ser nossos m é d i u n s e parceiros.
— Sei c o m o se sente! Muitas vezes, nossos m é d i u n s ,
t a n t o q u a n t o b o m n ú m e r o de dirigentes, se s e n t e m atacados t o d a vez q u e enviamos recursos em forma de conhecim e n t o , a fim de q u e se i n s t r u m e n t a l i z e m melhor. I g n o r a m
que estão no meio de u m a batalha espiritual e q u e r e m viver
na fantasia; preferem a visão r o m â n t i c a da vida espiritual,
cheia de fantasias q u a n t o a seus m e n t o r e s e à realidade. Há
de chegar o dia em que os espiritualistas, e os espíritas em
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particular, r e c o n h e c e r ã o que esse tipo de reação não p o d e rá ser c o n s i d e r a d o sadio n e m útil p a r a o futuro do movim e n t o renovador. C h e g a r á a h o r a em que p e r c e b e r ã o que
é necessário se p r e p a r a r c o m c o n h e c i m e n t o s mais detalhados e aprofundados, q u e q u e r e m o s enviar p a r a a esfera física, pois p r e c i s a m estar cientes das táticas dos opositores do
progresso n o m u n d o .
Nesse m o m e n t o do diálogo, um dos amigos espirituais
se posicionou mais i n t e n s a m e n t e :
— N i n g u é m se m a n t é m firme n u m a g u e r r a de âmbito m u n d i a l e caráter espiritual, c o m graves consequências,
s e m c o n h e c e r e m a p e a r o território do inimigo, sem ter
consciência das possibilidades, dos t r u q u e s , enfim, da cap a c i d a d e q u e este d e t é m . Nossos parceiros no m u n d o verão q u e precisam atualizar e a p r i m o r a r a metodologia de
a b o r d a g e m do m u n d o extrafísico, o c o n h e c i m e n t o e, sob r e t u d o , o c o m p o r t a m e n t o que a d o t a m p e r a n t e aqueles irm ã o s q u e p e n s a m de m a n e i r a diferente. Caso contrário, os
espíritas c o r r e r ã o o risco de se diluir e n t r e as diversas seitas e religiões do m u n d o , p e r d e n d o a característica principal, q u e é o caráter progressista e de revelação da d o u t r i n a
q u e abraçaram.
427
— Esperamos que chegue o m o m e n t o em que esses diversos representantes da verdade relativa de ponta, que estão encarnados no m u n d o , convivam com respeito e consideração uns pelos outros. Até lá, pelo menos para nós, teremos
muito trabalho, muito esforço. Precisamos conhecer e acomp a n h a r de perto a forma como se c o m p o r t a m os representantes do Cordeiro de Deus, a fim de d a r m o s um impulso
novo, r u m o à união de todos no ideal que deveria ser comum.
— Sei, amigo — falou um dos espíritos. — Mas se a nós
nos p r e o c u p a a situação do m o v i m e n t o espírita e espiritualista em geral, há t a m b é m interesse p o r p a r t e dos espíritos r e p r e s e n t a n t e s da oposição, pois igualmente almejam
c o n h e c e r mais de p e r t o nossos pupilos, m a p e a r as reações
psicológicas e as respostas de nossos parceiros, os m é d i u n s
e demais agentes do m o v i m e n t o . Q u e r e m saber se eles são
r e a l m e n t e p r e p o s t o s do Cristo ou s i m p l e s m e n t e se comp o r t a m c o m o inimigos u n s dos outros.
Após as imagens do diálogo e n t r e os e m b a i x a d o r e s das
ideias progressistas, outras imagens foram mostradas, agora ilustrando o g r u p o oposto e oposicionista às ideias de espiritualidade. N u m o u t r o lugar, em outra dimensão, novo
diálogo, novas p e r s o n a g e n s :
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— Você deverá fazer u m a excursão ao a c a m p a m e n t o
do inimigo. Esses religiosos de c a r t e i r i n h a p r e t e n d e m instrumentalizar-se, t e n t a n d o enfrentar-nos. D e s c o n h e c e m
nossas possibilidades reais. P e n s a m q u e estamos parados
no t e m p o , c o m o eles ficaram por décadas. E n q u a n t o perm a n e c e r a m isolados do progresso espiritual, c o n c e n t r a n d o
a atenção a p e n a s em alguns de seus m é d i u n s e em receitas de paz, de espiritualização e de santidade, e alçando as
questões s e n t i m e n t a i s e emocionais ao p r i m e i r o plano, nós
p r o g r e d i m o s em nossos métodos, atualizamos nossa tática.
Fiquei i m p r e s s i o n a d o ao p e r c e b e r a tecnologia dos
guardiões. Não c o n t e n t e s em enviar um tipo de agente duplo à base dos inimigos do b e m , dos espíritos que faziam
oposição ao q u e c h a m a m o s sistema do Cordeiro, t a m b é m
gravaram cada palavra dita p o r eles — inclusive, percebíam o s as e m o ç õ e s p r e s e n t e s no diálogo das entidades sombrias. Presenciar os diálogos e as emoções dessas entidades
fez c o m q u e eu visse nossa tarefa s e m n e n h u m r o m a n t i s mo, tal qual seria: um desafio, e dos grandes.
— Eles p e n s a m q u e estamos ainda na é p o c a da inquisição — falava a entidade. — A c h a m que e s t a m o s com o
p e n s a m e n t o voltado para as questões i n t e r n a s do seu m o -
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vimento, e n q u a n t o já formamos aliados no m u n d o todo,
e n t r e os r e p r e s e n t a n t e s das nações. Estes seguidores do
Cordeiro estão p a r a d o s no t e m p o . Sabem q u e o m u n d o físico progride, u s a m de tecnologia m o d e s t a m e n t e avançada na esfera física e, ainda assim, m u i t o s imaginam que do
lado de cá c o n t i n u a m o s c o m os m e s m o s m é t o d o s de 100
anos atrás. Esse p e n s a m e n t o v e m b e m a calhar para nossos
propósitos. Sem q u e r e r e sem saber, eles colaboram conosco ao defender técnicas ultrapassadas, ao c o m b a t e r e m ent r e si, d e i x a n d o - n o s mais à v o n t a d e p a r a agir.
— Ou, então, não agir. Pois, se ficam c o m b a t e n d o ent r e si, d e i x a m p o u c o serviço para nós. Se a u t o d e s t r o e m . E o
q u e é melhor: em n o m e da p r ó p r i a filosofia e v e r d a d e que
j u l g a m defender.
A partir desse p o n t o da conversa e n t r e as inteligências
sombrias, p u d e e n t e n d e r o que planejavam — e eu vira som e n t e u m a p e q u e n a p a r t e d o véu ser levantado. P u d e entender, t a m b é m , por q u e aqui, na cidade dos guardiões, era
mais fácil nos i n s t r u i r m o s acerca desses detalhes, q u e possivelmente n e m interessassem à maioria dos espíritos com
os quais convivíamos na Aruanda. Aqui p o d e r í a m o s ficar
mais à vontade, nos aprofundar nas observações e e s t u d a r
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a metodologia e m p r e g a d a pelos seres que faziam frente ao
progresso espiritual da h u m a n i d a d e .
Prosseguindo na conversa, um dos espíritos interessados em m i n a r o m o v i m e n t o de renovação continuou:
— Temos de observar de p e r t o alguns d e n t r e eles, que
t ê m d e s p o n t a d o c o m o r e p r e s e n t a n t e s d e u m a ciência dos
superiores. Muitos espíritos foram c h a m a d o s a r e e n c a r n a r
no m u n d o c o m o objetivo de levantar o véu da ilusão que
encobre a visão espiritual dos dirigentes e dos defensores
da p u r e z a . Precisamos ficar atentos, catalogar todas as informações q u e p u d e r m o s ter a respeito desses enviados e
de seus seguidores.
" E n q u a n t o observamos, c o n t i n u a r e m o s nossa investida, nosso investimento em escala mais ampla, mundial.
Novas lideranças d e v e m subir ao p o d e r e n t r e os representantes das nações; novas alianças d e v e m ser feitas e n t r e os
políticos, pois os emissários do Cordeiro rejeitam a ideia
de se envolver na política h u m a n a . Gradativamente, estab e l e c e r e m o s bases e sintonia com os h o m e n s públicos, rep r e s e n t a n t e s do povo. Afinal, n i n g u é m no m o v i m e n t o espiritualista c o s t u m a se p r e o c u p a r em a b o r d a r as questões
espirituais desses líderes mundiais.
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"À m e d i d a que i n s p i r a m o s disputas e dissensões e n t r e
os defensores das ideias do Cordeiro, e d u r a n t e os conflitos
pessoais daí d e c o r r e n t e s , t r a b a l h a r e m o s em silêncio, p r e p a r a n d o o c a m i n h o p a r a a h o r a do anticristo. Q u a n d o os
parceiros do Cordeiro d e s p e r t a r e m p a r a a realidade, já t e r e m o s d o m i n a d o m u i t a s m e n t e s representativas."
Vi o ardil dos planos excêntricos das e n t i d a d e s perversas. E p r e t e n d i a m m u i t o mais.
— Mas t a m b é m faremos c o m que nossas ideias p e n e t r e m nesse movimento, e não só em nossos aliados. Enviar e m o s alguns hábeis h i p n o t i z a d o r e s de multidões, a fim de
d e f e n d e r e m nossos interesses de d e n t r o das fileiras desse
m o v i m e n t o . Q u e r e m o s estabelecer alianças em t o d o lugar.
— E o que farei, de m i n h a parte? Tem alguma tarefa especial para mim? — perguntou u m a das entidades sombrias.
— É claro, n o b r e colega — r e s p o n d e u o interlocutor,
d a n d o estrondosa gargalhada. Suas u n h a s afiadas, c o m o
garras, raspavam a m e s a que lhe servia de suporte. — P r e ciso que você nos r e p r e s e n t e , fazendo a p e n a s observações.
Quero que siga de p e r t o as reações de alguns r e p r e s e n t a n tes do m o v i m e n t o do inimigo e nos traga todas as i m p r e s sões. Não interfira, n ã o gaste suas forças c o m eles. Aja com
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prudência, c o m e x t r e m a habilidade política. Queremos
apenas m a p e a r o m o v i m e n t o deles, a fim de sabotarmos,
mais tarde, q u a l q u e r plano que nos pareça ameaçador. Isto
é, q u e r e m o s informações sobre as reações dos parceiros do
Cordeiro, pois aí, na h o r a certa, agiremos c o m a estratégia
mais eficaz.
O l h a n d o significativamente p a r a os olhos negros e fundos de seu colega, disse:
— E n t r e g o - l h e especialmente o cadastro de alguns que.
t e m o s certeza, foram enviados c o m objetivos b e m definidos, p a r a tarefas no m u n d o . Quero o m á x i m o de sigilo, de
detalhes e de acerto em suas observações.
"As informações contidas nas fichas dos t r a b a l h a d o r e s
q u e serão investigados foram colhidas d u r a n t e anos de silenciosas observações p o r p a r t e dos c h a m a d o s 'olhos' ou
agentes duplos. Foram m a p e a d a s emoções, sentimentos,
reações e atitudes desenvolvidas em cada atividade, desde
a profissional até o envolvimento social e familiar de cada
u m . Essas fichas constituem, na verdade, m a p a s mentais
muitíssimo detalhados."
Depois do diálogo ocorrido em regiões inferiores e ignotas da d i m e n s ã o extrafísica, o emissário da escuridão
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p a r t i u em direção ao m u n d o dos h o m e n s . T i n h a m u i t o o
q u e observar, catalogar, registrar. Por e n q u a n t o , n a d a mais!
Afinal, não deveria gastar t e m p o , por ora, c o m b a t e n d o os
r e p r e s e n t a n t e s do Cordeiro. Estes estavam m u i t o o c u p a d o s
e n t r e si; digladiavam, disputavam títulos e posições, aplausos e reconhecimento. Muitos representantes do abismo e
das regiões inferiores p o d e r i a m tirar férias, não fossem
seus planos mais ambiciosos, em âmbito planetário. Os espíritas e espiritualistas, s e g u n d o e n t e n d i a m , estavam n u m a
luta sem p r e c e d e n t e s contra si m e s m o s ; p e r d i a m longo t e m p o fazendo relatórios q u e c o n d e n a v a m os próprios
c o m p a n h e i r o s de ideal; divulgavam ideias u n s sobre os outros de m o d o q u e mais p a r e c i a m inimigos. E essa atitude os
espíritos das s o m b r a s aplaudiam.
Fiquei abismado ao e n t r a r em contato c o m aquela realidade. Não teria podido s e q u e r s u p o r o q u e nos aguardava
no futuro, especialmente d e n t r o do p r ó p r i o m o v i m e n t o espiritualista. Ao ouvir o diálogo das entidades perversas, seu
planejamento estratégico inteligente e minucioso, fiquei a
imaginar c o m o nossos parceiros no plano físico seriam atacados. Precisávamos r e a l m e n t e estabelecer u m a frequência
mais íntima, um tipo de r e l a c i o n a m e n t o mais estreito, u m a
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rede de p r o t e ç ã o eficiente, a fim de a m p a r a r nossos agentes
e n c a r n a d o s q u a n d o as ideias que a p r e s e n t a r í a m o s fossem
levadas a público. F i n a l m e n t e , eu começava a ter u m a ideia
mais exata do q u e os guardiões me falaram sobre o p r e p a r o
da equipe que deveria t r a b a l h a r em sintonia conosco.
— Diante da i m i n e n t e crise de valores q u e ameaça os
religiosos e as religiões do m u n d o , incluindo os espiritualistas — iniciava nova cena —, faz-se u r g e n t e c o n h e c e r não
s o m e n t e as a r m a s e o potencial dos inimigos do bem, do
Reino, mas t a m b é m suas fraquezas. É preciso, além disso,
t o m a r ciência do que ocorre em nossas p r ó p r i a s fronteiras, quais e l e m e n t o s t e m o s d e n t r o de seu p e r í m e t r o , a fim
de averiguar se p o d e m o s c o n t a r c o m obreiros conscientes
e m u n i d o s do c o n h e c i m e n t o do Alto ou se devemos lidar,
ainda, c o m i r m ã o s envolvidos em intrigas da política religiosa, q u e grassou nos séculos passados. Diante de desafios
em escala cada vez maior, urge c o n h e c e r nossas forças internas, c o m o m o v i m e n t o de renovação, de novos h o m e n s .
Em breve, c o m o h u m a n i d a d e , t e r e m o s de nos s u b m e t e r a
provas e desafios que p o r ã o em c h e q u e nossa p r e t e n s a espiritualidade, q u a n d o o m u n d o enfrentar os m o m e n t o s difíceis da transição planetária.
435
"Sabemos q u e as provas às quais seremos s u b m e t i d o s
nos p r ó x i m o s anos deixarão para trás quaisquer outras q u e
o povo de Deus, os filhos do Reino t e n h a m passado até então. As revelações a respeito das a r t i m a n h a s da oposição,
dos espíritos das sombras, já c o m e ç a m a se disseminar. De
acordo c o m o que ouvi em conversas de e n t i d a d e s que se
o p õ e m à política do Reino, não há c o m o negar que e s t a m o s
em pleno c a m p o de b a t a l h a espiritual.
"Muita gente ainda d o r m i t a em meio a expressões de
boa vontade, e m b r i a g a d a c o m conceitos religiosos ultrapassados. Contudo, s o m e n t e o c o n h e c i m e n t o amplo e irrestrito das questões ligadas ao g r a n d e conflito espiritual
que está em c u r s o — desde as a r m a s e m p r e g a d a s na batalha de m e n t e s e emoções até as estratégias da g u e r r a q u e se
passa nos bastidores da história h u m a n a — é q u e será capaz de p r o p o r c i o n a r u m a visão a c u r a d a e mais precisa dos
desafios inerentes ao t e m p o em q u e vivemos.
"No aspecto subjetivo, apenas a firmeza o r i u n d a do con h e c i m e n t o de nossas p r ó p r i a s dificuldades íntimas tanto q u a n t o de nosso potencial p o d e r á p r o p o r c i o n a r a vitória certa c o n t r a as ciladas do inimigo, pois, c o m o assevera
o apóstolo dos gentios: Não temos de lutar contra a carne e
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o sangue, e, sim, contra os principados, contra as potestades,
contra os poderes deste mundo
tenebroso,
contra as forças
18
espirituais da maldade nas regiões celestes".
As imagens se s u c e d e r a m , e o u t r o aspecto foi revelado na projeção dos guardiões. O a m b i e n t e agora era outro.
Creio que J a m a r queria acabar, de u m a vez por todas, com
q u a l q u e r fantasia que alimentássemos em nosso espírito
a respeito de possíveis facilidades na tarefa pela frente. O
q u e vimos a partir dali era algo que merecia nossa reflexão;
os guardiões e a p r e n d i z e s estavam todos atentos para o que
se passava em três dimensões.
— Vamos t r a z e r nosso amigo J a i m e até aqui — falou um
dos espíritos responsáveis pela orientação do m o v i m e n t o
espírita na região. Era n a d a mais, n a d a m e n o s do que Cícero Pereira, o e m i n e n t e professor q u e se dedicara ao m o v i m e n t o doutrinário. Cícero estava p r e o c u p a d o com a atit u d e de J a i m e em relação a um g r u p o espírita envolvido
na divulgação das ideias de renovação. O g r u p o se formara p o r orientação superior e fazia o possível p a r a firmar-se,
18
Ef 6:12 (Todas as citações extraídas de:
BÍBLIA
corrigida de Almeida. São Paulo: Vida, 1995.)
de referência Thompson. Edição
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em sua e s t r u t u r a energética, a fim de c u m p r i r as orientações que recebia de mensageiros da d i m e n s ã o invisível. O
p e q u e n o g r u p o ainda teria um papel a d e s e m p e n h a r no
Brasil, p r i n c i p a l m e n t e ; de m a n e i r a mais precisa, traria n o vos e l e m e n t o s para que o m o v i m e n t o p u d e s s e r e p e n s a r sua
metodologia de t r a b a l h o e seu c o m p r o m i s s o c o m as esferas
de espiritualização da h u m a n i d a d e .
Jaime, dirigente regional, fizera-se inimigo público núm e r o um desse g r u p o e de alguns de seus r e p r e s e n t a n t e s ,
em particular. Segundo víamos na projeção, ele não a d m i tia que alguém ou algum g r u p o p u d e s s e obter a expressão
que o p e q u e n o a g r u p a m e n t o estava conseguindo em meio
às outras casas espíritas.
— Não p o d e m o s p e r m i t i r que Jaime, q u e é um b o m trabalhador, se equivoque assim q u a n t o aos c o m p r o m i s s o s espirituais de nossos irmãos. Nós o t r a r e m o s à nossa d i m e n são e v e r e m o s o q u e se p o d e fazer. Dialogaremos q u a n t o
for possível, pois, sem se dar conta, c o m b a t e nossos r e p r e sentantes, seus irmãos.
A projeção m o s t r o u a ação dos benfeitores d u r a n t e o
p e r í o d o de sono do dirigente espírita. À noite, um dos espíritos responsáveis dirigiu-se à cidade o n d e residia Jaime,
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um t r a b a l h a d o r dedicado, p o r é m equivocado e envolvido
na política i n t e r n a do m o v i m e n t o espírita. Q u a n d o a equipe espiritual de trabalhadores, c o o r d e n a d o s p o r Anastácia,
a d e n t r o u o a m b i e n t e da casa de J a i m e a pedido de Cícero, a
situação q u e e n c o n t r a r a m não era n a d a boa.
O a m b i e n t e doméstico estava repleto de criações m e n tais, que fervilhavam em t o r n o do q u a r t o de Jaime. Ele
dormia, m a s não um sono tranquilo, pois parecia estar
m e r g u l h a d o em rancor, expresso através das imagens que
c o m p u n h a m seu q u a d r o íntimo. Anastácia, ao ver a situação, realçou a i m p o r t â n c i a deste trabalhador, no que tange aos atropelos de seus desafios pessoais, íntimos, os quais
estavam definindo, m u i t a s vezes, suas reações no movim e n t o de q u e participa:
— J a i m e está envolvido em fantasias h e r d a d a s de seu
passado espiritual. Ficou p r e s o aos conceitos de d o m í n i o e
agora a m a r g a as imagens m e n t a i s q u e criou e às quais se
e n r e d o u — falou Anastácia ao outro espírito.
— T a m b é m , p u d e r a . Segundo t e m o s notícias do histórico pessoal, J a i m e foi alguém m u i t o ligado ao catolicismo
no passado. Parece q u e ele se ajustou p e r f e i t a m e n t e ao papel de sacerdote da igreja.
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— É, m e u amigo, t e m o s m u i t o s ex-católicos r e e n c a r n a dos no m o v i m e n t o espírita. Por um lado isso é b o m , u m a
vez que t ê m o p o r t u n i d a d e de reavaliar sua visão a respeito
de espiritualidade; p o r o u t r o lado, t r a z e m os resquícios do
passado p a r a a prática espírita. Nesse caso, veja c o m o Jaime ressuscita a velha fórmula católica de gerir os centros
espíritas. Ele não p e r m i t e n a d a novo, n e m q u a l q u e r coisa
que não passe pelo aval daquilo que convencionou c h a m a r
de movimento oficial, em contraste ao conceito e r r ô n e o que
convencionou e que c h a m o u de movimento paralelo.
— Não e n t e n d o essa coisa de m o v i m e n t o paralelo,
Anastácia.
— N e m você, n e m n i n g u é m . Trata-se de u m a invenção
de dirigentes espíritas que q u e r e m d o m i n a r o m o v i m e n t o ,
de espíritos católicos q u e r e e n c a r n a r a m p a r a a t r a p a l h a r a
m a r c h a do espiritismo. Qualquer pessoa ou c e n t r o espírita
q u e p o r v e n t u r a se d e s t a q u e nas pesquisas ou no trabalho
q u e realiza e que não baixe a cabeça e peça b ê n ç ã o àqueles
que q u e r e m ditar n o r m a s aos demais, é t a c h a d o de paralelo. Isso é a p e n a s política rasteira que fazem, a fim de m a n ter um status que não t ê m mais e, além disso, u m a posição
insustentável p a r a a época atual.
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Ao ouvir o diálogo das e n t i d a d e s q u e t e n t a v a m auxiliar Jaime, p u d e vislumbrar m e l h o r o q u e nos aguardava
no porvir. Não seria fácil nossa tarefa. J a m a r parecia saber
disso m u i t o bem, pois não nos poupou, n e m sequer aos m é d i u n s desdobrados, d e ouvir u m p o u c o mais.
D e i x a n d o de lado os c o m e n t á r i o s sobre a política de alg u n s dirigentes, os dois espíritos dirigiram-se a Jaime. Disp e r s a r a m as formas m e n t a i s invasivas q u e gravitavam no
interior do a m b i e n t e doméstico e, em seguida, Anastácia
m a g n e t i z o u Jaime, c o m passes longitudinais lentos. À p r o p o r ç ã o que o m a g n e t i s m o agia sobre o h o m e m deitado, seu
corpo espiritual desdobrava-se na d i m e n s ã o extrafísica,
c o m aparência b a s t a n t e diferente. Aparecia u m sacerdote
católico, em toda a sua r o u p a g e m , vestido c o m i n d u m e n t á ria representativa p a r a as convenções daquela religião.
— M e u Deus do céu! — p r o n u n c i o u Nélio, assustado
c o m o r o m p a n t e do h o m e m desdobrado.
J a i m e trazia sob o braço um e x e m p l a r de O livro dos
espíritos, de Allan Kardec — algo que não combinava com a
r o u p a de sacerdote.
— Olá, m e u amigo! — falou Anastácia. — A g u a r d a m o s
você p a r a u m a conversa séria a respeito de nosso movi-
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m e n t o . Mas, antes, acho que p o d e m o s modificar sua aparência. O que acha?
O l h a n d o p a r a si m e s m o , Jaime-espírito t a m b é m se assustou c o m a r o u p a g e m fluídica q u e trazia e s t a m p a d a em
sua aparência perispiritual. A um c o m a n d o de Anastácia,
Nélio m a g n e t i z o u l e n t a m e n t e Jaime, t e n t a n d o modificar-lhe a aparência ou a i n d u m e n t á r i a c o m que se a p r e s e n t a va. M a s não conseguiu c o m p l e t a m e n t e . Alguns e l e m e n t o s
p a r e c i a m resistir ao magnetismo.
Olhando para o companheiro espiritual, Anastácia falou:
— Parece q u e a p o s t u r a do sacerdote católico está tão
arraigada que, m e s m o sob ação externa, não há c o m o desvencilhá-lo daquilo que para ele r e p r e s e n t a u m a insígnia
de poder. Não obstante, não p o d e r í a m o s deixá-lo t o t a l m e n te c o m o estava, pois essa figura reforça em seu psiquismo
u m a posição que não mais d e t é m e q u e é por demais p r e tensiosa. Vamos levá-lo conosco.
As imagens projetadas se modificaram t o t a l m e n t e . Vim o s o u t r o ambiente. I r m i n a parecia i n c o m o d a d a com a situação. Talvez p o r q u e ela, e n t r e todos nós, era a única que
não teria n e n h u m a ligação direta c o m o m o v i m e n t o espiritualista. Mas diante de um olhar significativo de um dos
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guardiões, ela se aquietou. A projeção c o n t i n u o u por mais
algum t e m p o .
Jaime foi conduzido pelos dois espíritos amigos a um
ambiente da dimensão extrafísica o n d e poderia se expressar
aos benfeitores e t a m b é m ouvir algo que o fizesse refletir.
— Q u e r e m o s conversar um p o u c o com você, m e u amigo — i n t r o d u z i u o c o m p a n h e i r o espiritual que pretendia
orientá-lo.
— Não vejo p o r que me t r o u x e r a m aqui; t e n h o muita
coisa a fazer no m o v i m e n t o espírita. Mas, aproveitando a
o p o r t u n i d a d e , trago algumas considerações p a r a as quais
p r e t e n d o pedir m e d i d a u r g e n t e da p a r t e de vocês — o h o m e m d e s d o b r a d o fazia suas reivindicações.
Aprendi m u i t o nesses poucos m o m e n t o s e m que presenciava a gravação que os guardiões exibiam. Era interessante observar a p o s t u r a de alguém fora do corpo, ver o
m o d o pelo qual se expressava c o m o espírito, e n ã o s o m e n t e
como encarnado.
— C o n s i d e r a m o s a situação do m o v i m e n t o espírita e
sabemos que m u i t a s casas espíritas t ê m surgido e se destacado, b u s c a n d o atuar conforme as diretrizes recebidas
de nossa d i m e n s ã o — falou um dos espíritos m e n t o r e s do
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m o v i m e n t o regional. — Segundo informações que d e t e m o s ,
provenientes de planos mais superiores, nosso m o v i m e n to carece de u r g e n t e união, e m u i t a s casas, c o m o n a u s n u m
oceano, p r e c i s a m de apoio a fim de se s u s t e n t a r e m , visando
às tarefas que lhes reserva o futuro.
— Existem m u i t o s que estão f o r m a n d o g r u p o s fora do
m o v i m e n t o de unificação. Fazem um m o v i m e n t o paralelo
e t e n t a m fazer espiritismo de u m a forma diferente — argum e n t o u Jaime.
— Mas c o m o p o d e haver unificação s e m união, m e u
amigo? Como p r e t e n d e r q u e todos falem a m e s m a linguagem q u a n d o colocam argueiros n o s p r ó p r i o s olhos, q u e
i m p e d e m de ver as p r ó p r i a s limitações, a deficiência na
m a n e i r a de se c o m u n i c a r c o m irmãos do m e s m o ideal ou,
ainda, as barreiras de caráter político, atinentes à a d m i n i s tração do m o v i m e n t o ? Será que não seria h o r a de, ao m e nos, escutar aqueles q u e você classifica c o m o participantes
de m o v i m e n t o paralelo?
— N ã o a d i a n t a diálogo. Veja o caso da casa espírita
c o m a qual t e n h o lidado p e s s o a l m e n t e . A t r e v e m - s e a p u blicar livros, divulgar e v e n t o s e, a i n d a p o r cima, t ê m gan h a d o t e r r e n o e público e x e c u t a n d o um t r a b a l h o espiri-
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tual p a r a o qual n ã o nos p e d i r a m p e r m i s s ã o , n e m s e q u e r
nos i n f o r m a r a m .
— Mas qual é o papel dos dirigentes do m o v i m e n t o espírita? Seria ditar n o r m a s de c o n d u t a para os centros? É
gerir i n t e r n a m e n t e aqueles g r u p o s q u e surgiram com u m a
p r o p o s t a inspirada pelo Alto, e m b o r a você m e s m o confesse
não se d a r ao t r a b a l h o de c o n h e c e r tal proposta?
I g n o r a n d o o q u e o amigo espiritual dizia, J a i m e prosseguiu c o m seus a r g u m e n t o s :
— Os dirigentes dessa casa, por exemplo, não t ê m comp e t ê n c i a p a r a decidir a respeito de livros q u e devem ser
lançados em n o m e da Doutrina. Estão c a u s a n d o confusão
e a b o r d a m assuntos polêmicos; q u e r e m divulgar o trabalho
do m é d i u m deles sem que o c o n t e ú d o dos livros passem
por nosso crivo, o conselho doutrinário.
Eu não sabia q u e existia um conselho doutrinário. Sinc e r a m e n t e , fiquei impressionado c o m a ideia apresentada
pelo dirigente e n c a r n a d o .
— M a s me r e s p o n d a u m a coisa, amigo — insistiu Anastácia, interessada na conversa. — Baseados em que orientação ou conselho de Kardec vocês instituíram esse crivo a
que se refere, esse conselho doutrinário? Melhor, ainda: as
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pessoas que c o m p õ e m o tal conselho foram investidas de
que a u t o r i d a d e p a r a se j u l g a r e m em condição de definir o
que deve ou n ã o ser publicado, divulgado ou pregado?
— Nós t e m o s o dever de zelar pela p u r e z a d o u t r i n á ria! — e s q u i v o u - s e Jaime, d e s d o b r a d o , convicto, em m e i o
àquela assembleia.
— Mas você não me r e s p o n d e u ainda, q u e r i d o Jaime. N ã o e n c o n t r a m o s r e s p a l d o algum p a r a as p r e t e n s õ e s
descabidas de arrogar-se o direito de dar a ú l t i m a palavra
a respeito de q u a l q u e r assunto, o q u e não c o m p e t e a n e n h u m dirigente. Você acredita r e a l m e n t e q u e está p r e s t a n d o um serviço ao m o v i m e n t o espírita c o m essa atitude,
b o i c o t a n d o ou c o m b a t e n d o os t r a b a l h o s de u m a instituição q u e faz de t u d o p a r a levar a cabo as tarefas de divulgação d o u t r i n á r i a q u e lhe foram confiadas? Acha r e a l m e n t e
que você foi investido de algum p o d e r político ou censor,
papel q u e jamais passou pelas cogitações do p r ó p r i o Allan
Kardec reivindicar?
— Se nós somos os r e p r e s e n t a n t e s legítimos do m o v i m e n t o de unificação do espiritismo, nos cabe zelar por
t u d o aquilo que é difundido, pelo c o n t e ú d o dos livros, jornais e revistas q u e as editoras publicam, e até m e s m o pelo
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q u e é e n s i n a d o d e n t r o dos centros — falou Jaime, n u m t o m
já nervoso.
Mais p a s m o ainda fiquei. Não imaginava que, no futuro, possíveis m e n s a g e n s e informações que eu levasse pelo
correio e n t r e os dois m u n d o s t e r i a m de ser s u b m e t i d a s a
um crivo, u m a c e n s u r a espiritual. Estava arrepiado com o
q u e ouvia. Realmente, J a m a r conseguira dissipar qualquer
ilusão de q u e a tarefa q u e t e r í a m o s pela frente seria simples. Creio que o guardião p e r c e b e u q u e as projeções m e x e r a m c o m a maioria de nós. Ele não prosseguiu m u i t o
mais c o m as imagens tridimensionais; m e s m o assim, ainda
ouviríamos o u t r o t r e c h o do diálogo.
Respirando fundo, c o m o que p a r a d a r um t e m p o até os
ânimos se acalmarem, Cícero interveio:
— Fico p r e o c u p a d o , m e u caro Jaime, s i n c e r a m e n t e
p r e o c u p a d o c o m o destino de nosso m o v i m e n t o espírita.
Vejo q u e t e m o s m u i t a s pessoas de b o a v o n t a d e c o m b a t e n do e n t r e si, c o m o se fossem rivais. E falta diálogo. Pergunto-lhe, r e s p e i t a n d o seu p o n t o de vista: q u a n d o foi que você
visitou a casa espírita que acusa de fazer " m o v i m e n t o paralelo"? Já conversou c o m os dirigentes, c o m o amigo, c o m o
c o m p a n h e i r o de um ideal q u e está acima das questões p o -
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líticas e administrativas do m o v i m e n t o ? Já lhes deu a oport u n i d a d e de se expressarem, de falarem a respeito do trabalho que realizam? E ainda, c o m o dirigente do m o v i m e n t o
de unificação, você c o n h e c e as diretrizes do t r a b a l h o espiritual dessa casa, os projetos q u e n o r t e i a m a fundação da
casa e o t r a b a l h o dos dirigentes?
Quase e m b u r r a d o , não c o n s e g u i n d o e s c o n d e r na fision o m i a o desgosto de participar daquela reunião, J a i m e expressou-se, n u m r o m p a n t e :
— Não t e n h o de c o n h e c e r nada! Eles é que t ê m de vir
até nós, em nossa sede, e m a r c a r u m a r e u n i ã o conosco, subm e t e n d o suas ideias a nosso Conselho. Não p o d e m fundar
um t r a b a l h o assim, sair por aí fazendo divulgação da D o u trina sem q u e haja c o n s e n t i m e n t o da direção do m o v i m e n to. Afinal — c o m p l e m e n t o u , quase irado —, t e m o s u m a diretoria e um dever maior, q u e é c o o r d e n a r o espiritismo
local, n ã o p e r m i t i n d o abusos da p a r t e de n i n g u é m .
N o v a m e n t e foi Anastácia q u e m interferiu:
— Vejo que a questão não se atém m e r a m e n t e ao que você
falou, a respeito dos companheiros da tal instituição formar e m um movimento paralelo. Creio, Jaime, que você t e m algo
muito malresolvido com a questão da autoridade e do poder.
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Pareceu que Anastácia tocara no p o n t o fraco e no calc a n h a r de Aquiles do dirigente desdobrado. C o n t i n u a n d o ,
ela avançou em seu raciocínio:
— C o m certeza você traz na m e m ó r i a espiritual o registro de outros tempos, nos quais liderou um g r u p o religioso; então, na atualidade, quer fazer de t u d o para continuar
exercendo o p r e t e n d i d o domínio em seu círculo de ação.
— Eu não preciso ouvir t a m a n h a s barbaridades! Sou psicólogo, t e n h o m e u título reconhecido pelo conselho e, acima
de tudo, sou legítimo representante do m o v i m e n t o espírita!
— e, sem considerar a elevação do espírito com q u e m falava,
sobrepôs sua voz, d a n d o vazão a seu p e n s a m e n t o e ao orgulho ferido. — Q u e m é você que pensa p o d e r me influenciar
com seu p e n s a m e n t o antidoutrinário? O espiritismo precisa
u r g e n t e m e n t e de pessoas que o defendam dos misticismos e
dos exageros daqueles que p r e t e n d e m macular a sã Doutrina. E vocês p e n s a m que p o d e m deter os abusos com seus arg u m e n t o s fracos e sem consistência doutrinária?
As imagens cessaram p o r aí. J a m a r observou a plateia de espíritos q u e c o m p u n h a a equipe de divulgação de
novas ideias, q u e seria responsável p o r desbravar o m u n do extrafísico de m a n e i r a inusitada. Ele próprio, Jamar,
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u m dos c o m a n d a n t e s dos guardiões, estaria j u n t o daquela
equipe. D e i x a n d o - n o s refletir um p o u c o sobre o que víramos, o guardião da noite t o m o u a palavra:
— Acredito, m e u s amigos, que esta projeção dá u m a
ideia b e m a p r o x i m a d a do q u e nos espera d u r a n t e os p r ó ximos anos. Vamos deixar para trás t o d o s o n h o e ilusão.
Me p e r d o e m se estou s e n d o tão franco, m a s esta será nossa realidade, de m o d o que cabe a vocês, a partir de agora,
definirem-se ante a p r o p o s t a a p r e s e n t a d a pelos e m i n e n t e s
espíritos q u e nos dirigem.
Pai João, ainda calado, olhava-nos, talvez p e r s c r u t a n do nossos p e n s a m e n t o s no intuito de sentir mais de perto o t e r r e n o de nossos corações. J o s e p h Gleber se retirara
p a r a outras tarefas. O guardião deu por e n c e r r a d a esta parte de nossas atividades. Terminava ali m e u p r i m e i r o e mais
i m p a c t a n t e contato c o m a realidade do m o v i m e n t o com o
qual eu desenvolveria, a partir daquele m o m e n t o , profunda
intimidade.
Saímos do a m b i e n t e da projeção e fomos r u m o ao pátio. Eu pensava febrilmente sobre o q u e assistira. Afastei- m e ligeiramente de m e u s c o m p a n h e i r o s e me dirigi a um
chafariz no meio do e n o r m e pátio, que era d e c o r a d o com
450
esmero, e m b o r a sóbrio. Notei q u e a base dos guardiões estava r e a l m e n t e s e n d o ampliada. Não era mais a p e n a s um
dos quartéis o n d e eles se r e u n i a m , mas agora se assemelhava a u m a cidade, c o m c o n s t r u ç õ e s à altura. Havia atividade
da p a r t e dos espíritos c o n s t r u t o r e s em r i t m o acelerado, vis a n d o ampliar aquele lugar, que, de fato, estava em franca
expansão. Olhei no e n t o r n o , percebi os fluidos a m b i e n t e s e,
logo mais, Pai J o ã o se a p r o x i m o u de mim, s e g u r a n d o - m e .
Estava a c o m p a n h a d o p o r I r m i n a e pelo rapaz q u e ele p r ó prio me apresentara, na casa de Consuela.
Ainda r e s p e i t a n d o m e u m o m e n t o de reflexão, diante
dos desafios que enfrentaríamos juntos, o pai-velho olhou
p a r a o alto, e x p r e s s a n d o talvez um q u ê de gratidão ou esperança. A p o n t o u silencioso u m a luz q u e brilhava b e m alto,
apesar da d e n s i d a d e vibratória da região o n d e estávamos, e
p u d e sentir seu p e n s a m e n t o pela p r i m e i r a vez:
— A m a n d a ! É o q u e nos basta saber no m o m e n t o , m e u s
amigos. A m a n d a é a certeza de que n ã o e s t a r e m o s sozinhos. Que vocês não estarão sozinhos; afinal, os filhos de
Pai João b a m b e i a m , mas não caem...
Senti o c a r i n h o expresso no p e n s a m e n t o daquele ser
admirável. O m é d i u m a p r o x i m o u - s e de mim; Irmina, ins-
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pirada na atitude do rapaz, t a m b é m se achegou. A b r a ç a m o -nos os três, o l h a n d o para a estrela que brilhava na i m e n sidão, reflexo daquele paraíso q u e nos abrigou. S o m e n t e
e n t ã o o pai-velho c o m e n t o u , r o m p e n d o o silêncio:
— Que v e n h a m as dificuldades, que v e n h a m as lutas! O
i m p o r t a n t e , m e u s filhos, é q u e p e r m a n e ç a m o s unidos. Saib a m que, o n d e vocês estiverem, estarei junto. Caso caiam,
cairei antes, ao chão me jogarei p a r a ampará-los em m e u s
braços. E s t a r e m o s i n t i m a m e n t e ligados pelos mais sagrados laços de afeto, e, e m b o r a as i n c o m p r e e n s õ e s naturais
ao c a m i n h o dos desbravadores, nossa fidelidade a J e s u s estará acima de q u a l q u e r espécie de dificuldade.
O l h a n d o - n o s c o m i m e n s o c a r i n h o e, q u e m sabe, sond a n d o nossas almas um p o u c o assustadas diante dos desafios que nos aguardavam no porvir, c o m p l e m e n t o u , estend e n d o suas m ã o s n u m a bênção:
— O n d e Pai J o ã o põe a mão, Deus, q u e é poderoso, põe
a sua bênção!...
O céu estava claro, limpo de fluidos perniciosos e cont a m i n a ç õ e s energéticas. E m b o r a não tão claro q u a n t o o visto da Aruanda, mas i m e n s a m e n t e mais claro, se c o m p a r a d o
ao q u e víamos em derredor, n a q u e l a d i m e n s ã o o n d e se lo-
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calizava a cidade dos guardiões. I l u m i n a d a d i s c r e t a m e n t e
c o m a luz que irradiava da A m a n d a , que p e r m a n e c i a c o m o
u m a estrela vista ao longe, um farol de d i m e n s õ e s mais altas, e fortalecida c o m o p e n s a m e n t o dos guardiões que ali
trabalhavam e estudavam, era m u i t o b o m ver aquela estância tão limpa e t r a n s f o r m a d a n u m a cidade esplêndida, ant e c â m a r a da m e t r ó p o l e espiritual.
J a m a r e Watab iniciaram um deslizar suave sobre a
nova cidade. Voavam sobre os fluidos a m b i e n t e s c o m o se
asas tivessem; p a i r a r a m c o m o se suas asas imaginárias
b e m abertas estivessem — ou, talvez, c o m o se planassem
de paraquedas, quase p r e g u i ç o s a m e n t e , acima da cidade
dos guardiões, em seu p e r c u r s o p a s s a n d o sobre a escola de
guardiões. Embaixo, os diversos d e s t a c a m e n t o s das hostes
dos sentinelas da luz. Os dois guerreiros voavam, p l a n a n d o
cada vez mais baixo sobre algumas c o n s t r u ç õ e s e, logo em
seguida, subiram o altiplano, a u m e n t a n d o a velocidade lent a m e n t e para depois p a i r a r e m mais acima.
Observando-os, vi que, tão logo c h e g a r a m ao topo, pareciam pairar quase imóveis acima de nós, talvez m e d i t a n do, p e r s c r u t a n d o os detalhes da cidade c o n s t r u í d a n u m a
d i m e n s ã o quase material, mas além das percepções h u m a -
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nas. Em seguida, m o v e r a m - s e n o v a m e n t e sobre os fluidos
ambientes, modificaram a rota do seu voo e detiveram-se,
enfim, d e s c e n d o l e n t a m e n t e , feito u m a pluma, logo acima
do p o n t o mais alto da m o n t a n h a . J a m a r a p o n t o u p a r a baixo, e logo u m a m u t i d ã o de guardiões se posicionou desde a base da m o n t a n h a sagrada até p o u c o abaixo do c u m e .
U m a legião de trabalhadores, de guerreiros a serviço do
b e m da h u m a n i d a d e , sob a supervisão de Miguel, o príncipe dos exércitos celestes. Dois p o n t o s de luz logo surgiram;
c o m o águias com suas poderosas asas voaram, deslocaram-se r u m o ao local o n d e estacionaram os guardiões J a m a r e
Watab. E r a m Semíramis e Astrid, guardiãs que supervisionavam um d e s t a c a m e n t o de forças femininas, t a m b é m sob
o c o m a n d o do p r í n c i p e Miguel, as quais e r a m especialistas
nos e n t r o n c a m e n t o s energéticos e n t r e a razão e a emoção.
O b a t a l h ã o estava a postos. E n q u a n t o J a m a r d e s e m b a i n h a v a a espada, q u e rebrilhava em m e i o à s e m i m a t é r i a
daquela d i m e n s ã o do m u n d o invisível, os guardiões alçar a m voo, todos, em conjunto, d e s c r e v e n d o u m a coreografia
no ar para i m e d i a t a m e n t e p a r t i r r u m o ao planeta dos h o m e n s , ao m u n d o dos e n c a r n a d o s . C o m o paraquedistas, pair a r a m os milhares de guardiões sobre a cidade erguida sob
454
o patrocínio da A m a n d a , sob as b ê n ç ã o s de pais-velhos e de
sábios de todas as nações, e e n t ã o v o a r a m c o m destino à dim e n s ã o dos filhos dos h o m e n s .
J a m a r e Watab, Semíramis e Astrid a t u d o observavam
c o m as espadas erguidas; o l h a r a m além do véu a h u m a n i d a de, e suas almas rejubilaram p o r q u e p e r m a n e c e r i a m invisíveis, n u m a t e r r a encravada e n t r e as estrelas, velando pelo
destino do m u n d o . E e n q u a n t o muitos, milhões d o r m i a m
ou se p e r d i a m em m e i o ao nevoeiro da ilusão, do maia,
m e r g u l h a d o s e c o m p l e t a m e n t e absortos no cenário oferecido pela d i m e n s ã o física, e n t r e a materialidade e a realidade primitiva do m u n d o original, eles, os guardiões, trabalhariam p a r a o m u n d o d e s p e r t a r e para preservar o m e s m o
m u n d o da destruição, das a r m a d i l h a s da corrupção, das investidas das forças inimigas do progresso e da evolução. Ali
estariam eles, invisíveis, mas p r e s e n t e s nos gabinetes de
governos, nas regiões mais ignotas, em meio à multidão ou
o n d e q u e r que a h u m a n i d a d e deles precisasse. Se porvent u r a os h o m e n s p u d e s s e m levantar o véu que separa as dimensões, veriam os espíritos q u e velam p o r eles, os c o n d u z e m e os influenciam, em grau m u i t o maior do q u e sequer
p o d e r i a m imaginar.
457
BÍBLIA
de referência T h o m p s o n . Edição corrigida de Al-
meida. São Paulo: Vida, 1995.
a
O livro dos espíritos. I ed. esp. Rio de J a n e i r o :
K A R D E C .
F E B , 2005.
P I N H E I R O .
a
Pelo espírito Ângelo Inácio. Amanda. 1 3 ed.
rev. ampl. Contagem: Casa dos Espíritos, 2011. (Segredos
de A m a n d a , v. 1.)
Pelo espírito Ângelo Inácio. A marca da besta. Contagem: Casa dos Espíritos, 2010.
XAVIER,
Francisco Cândido. Pelo espírito A n d r é Luiz.
a
Nosso lar. 3 ed. esp. Rio de Janeiro: F E B , 2010. (A vida no
m u n d o espiritual, v. 1.)
459
R O B S O N P I N H E I R O é mineiro, filho de Everilda Batista.
Em 1989, ela escreve por i n t e r m é d i o de Chico Xavier: "Meu
filho, q u e r o c o n t i n u a r m e u trabalho através de suas mãos".
É autor de mais de 30 livros, quase t o d o s de caráter m e d i ú nico, e n t r e eles Legião, Senhores da escuridão e A marca da
besta, q u e c o m p õ e a trilogia O Reino das Sombras, t a m b é m
do espírito Ângelo Inácio. F u n d o u e dirige a Sociedade Espírita Everilda Batista desde 1992, q u e integra a Universid a d e do Espírito de Minas Gerais. Em 2 0 0 8 , t o r n o u - s e Cidadão H o n o r á r i o de Belo H o r i z o n t e .
OUTROS LIVROS DE ROBSON PINHEIRO
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A
deuses
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olhar
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dos
O
T R I L O G I A
a
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meu
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I N Á C I O
show
(pelo espírito W. Voltz)
E S P Í R I T O
PAI
Sabedoria
JOÃO
de
Pai
D E
A R U A N D A
preto-velho
João
Negro
PELO
E S P Í R I T O
A força
Pelas
P E L O
T E R E S A
D E
eterna
amor
ruas
E S P Í R I T O
Medicina
de
do
Calcutá
J O S E P H
da
C A L C U T Á
alma
G L E B E R
Além da matéria
Consciência: em
mediunidade,
você precisa saber
o que está fazendo
PELO
E S P Í R I T O
A L E X
Z A R T H Ú
Gestação da Terra
Serenidade: uma terapia para a alma
Superando os desafios
P E L O
Apocalipse:
E S P Í R I T O
uma
E S T Ê V Ã O
interpretação espírita
Mulheres
PELO
íntimos
E S P Í R I T O
do
das profecias
Evangelho
E V E R I L D A
B A T I S T A
Sob a luz do luar
Os dois lados do espelho
P E L O
E S P Í R I T O
F R A N K L I M
Canção da esperança:
diário de um jovem que viveu com aids
O R I E N T A D O
J O S E P H
G L E B E R ,
P E L O S
A N D R É
L U I Z
Energia: novas dimensões da
C O M
E S P Í R I T O S
L E O N A R D O
E
JOSÉ
G R O S S O
bioenergética humana
M Õ L L E R
Os espíritos em minha vida: memórias
www.casadosespiritos.com
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