NÓS POR CÁ, TODOS BEM – 5 de Dezembro de 2020 OS ATAQUES CONTINUAM, INFELIZMENTE Diz a Carta de Moçambique em https://cartamz.com/index.php/politica/item/6696terroristas-voltam-a-emboscar-e-matar-elementos-das-fds que vinte e cinco militares foram mortos pelos terroristas numa aldeia do distrito de Muidumbe. É uma péssima notícia, em primeiro lugar, pelos mortos, sacrificados em defesa da pátria; em segundo lugar, porque todos nos regozijámos na semana passada com o anúncio pelo comando das nossas forças de que a vila-sede de Muidumbe tinha sido retomada e agora vemos que essa retomada não implicou o controlo do distrito, os terroristas ainda andam por ali em grande actividade. Entretanto, tivemos o bizarro incidente, se assim se pode chamar, da reunião do órgão de defesa e segurança da SADC em que um dos temas da agenda era a guerra contra os terroristas em Cabo Delgado, com versões contraditórias do que se passou, uma dada pelo jornal sul-africano Daily Maverick, a outra, uma resposta “oficiosa” do regimista Egídio Vaz. O DM diz que os PRs presentes (Botswana, África do Sul, Zimbabwe, Malawi e R D Congo), para além do VP da Tanzania, estranharam a ausência do nosso PR, que se fez representar pelo ministro da Defesa. E que, além disso, Moçambique se tinha limitado a apresentar uma “shopping list” de equipamento militar, nada dizendo sobre como pensava reverter a actual e pouco favorável situação militar. Segundo especulação do DM, Moçambique revelava, deste modo, não estar verdadeiramente interessado num forte apoio da SADC mas quer poder dizer que pediu esse apoio e não o obteve para se virar para outro lado que acha mais interessante. Por seu lado, Egídio Vaz, nas páginas do Notícias de 4 de Dezembro, diz que o nosso PR não tinha nada que ir à cimeira porque ele é o actual presidente da SADC e não pode ser convocado por um órgão subordinado; que o DM é um jornal da elite branca que pretende informação detalhada para que sejam “os seus” a vender o armamento que Moçambique pretende; e que Moçambique não tem nada que apresentar a sua estratégia de combate aos terroristas em tal reunião de um órgão da SADC porque iria cair “nas mãos do inimigo” (o DM) e daí não tardaria a ser do conhecimento dos terroristas. Eu não tenho meios de saber quem é que anda a especular mais ou a dizer, usando um termo que se tem popularizado, “inverdades” (qualquer coisa que não é verdade mas que se tem vergonha de dizer que é mentira). O que me parece é que o nosso governo, que nos representa, devia ser o principal interessado em conseguir apoio dos que nos são próximos, estando numa situação em que parece algo ridículo ficarmos presos a hierarquias e protocolos. Uma boa notícia é que, no âmbito do processo DDR, foi encerrada a sexta base militar da Renamo, esta na província de Inhambane. Mas ainda falta desmobilizar cerca de dois terços dos homens armados da Renamo, a pandemia atrasou o processo. Do lado postivo, no dia 3 tive a oportunidade de assistir a um webinar organizado pelo OMR – Observatório do Mundo Rural e pelo GAPI, sobre o tema “Desenvolvimento integrado de Cabo Delgado – ângulos de reflexão”, tendo como apresentadores João Feijó, Jerry Makenzi e Francisco Souto, com uma discussão por João Mosca e moderação de Abdul Carimo Issa. Achei as apresentações muito interessantes, em particular o projecto que o GAPI pretende levar a cabo, financiando pequenos empreendimentos de jovens em distritos de Cabo Delgado e dando-lhes apoio de formação e acompanhamento para garantir o sucesso das iniciativas, de modo a retirar campo de recrutamento aos al-shabaab e criar uma zona tampão que evite o alastramento da actividade terrorista. Também o debate que se seguiu foi muito bom e permitiu que se discutissem alternativas, obstáculos e se clarificassem alguns aspectos apresentados. Uma excelente iniciativa, parabéns ao OMR e ao GAPI. COMO VAI A PANDEMIA Sinto-me optimista, deve ser da proximidade do Natal. Os números do covid-19 em Moçambique continuam a baixar em todos os principais indicadores semanais – número de infectados, número de internados, número de mortes. Os gráficos mostram a queda nos números semanais de novos infectados e de mortes. O número de novos infectados continua a aumentar na África do Sul mas é muuuito mais baixo do que no pico da pandemia, cerca de um sexto. Em África, os números começaram a decrescer tal como no Zimbabwe. Na Europa, que sofreu uma terrível segunda vaga, os números estão a cair mais ou menos rapidamente nos países mais afectados, França, Reino Unido, Espanha, Itália e também em Portugal. Mesmo assim, vale a pena atentar no apelo do Director do CDC África aos governos do continente para não relaxarem, como parece estar a acontecer, porque África não está imune a uma possível segunda vaga, como aconteceu na Europa. O Reino Unido vai ser o primeiro país a começar o processo de vacinação com uma vacina aprovada pela autoridade de saúde do país, a vacina da Pfizer / BioNTech. Esta é uma vacina com grandes exigências logísticas no que toca ao armazenamento e transporte, obrigando a manter uma temperatura de -70ºC. Não é, por isso, uma vacina própria para Moçambique ou para África em geral. Mas há outras vacinas que estão perto de poderem ser submetidas para aprovação e que não colocam o mesmo tipo de exigências logísticas. Em 2 de Outubro, a Índia, que é o maior fabricante mundial de medicamentos, e a África do Sul, o maior fabricante no continente, uniram-se para pedir à Organização Mundial do Comércio para permitir a todos os países não respeitarem patentes de vacinas, medicamentos, meios de diagnóstico e outras tecnologias relacionadas com a pandemia do covid-19 enquanto a imunidade de grupo não for atingida a nível global. A proposta foi de imediato apoiada pela OMS e pelos Médicos Sem Fronteiras mas encontrou forte resistência por parte dos países desenvolvidos (Estados Unidos, União Europeia, Canadá, Japão, Reino Unido, Suíça). Segundo a Oxfam, estes países, que representam 13 por cento da população mundial, compraram já 51 por cento do stock das cinco potenciais vacinas a serem produzidas. O nosso ministro da Saúde anunciou que a OMS nos vai garantir em 2021 seis milhões de vacinas. Vai dar para vacinar 20 por cento da população em lugar dos 6070 por cento considerados necessários para se chegar à imunidade de grupo. Lembrome que, quando a pandemia se instalou, houve quem declarasse, lagriminha ao canto do olho: Estamos todos no mesmo barco. Pois, está-se a ver. 1600 1400 1200 1000 800 600 400 200 30 35 27 29 25 31 33 23 25 19 21 15 17 9 11 13 7 5 3 1 0 14 12 10 8 6 4 2 0 0 5 10 15 20 35 40 UMA ÉPOCA HÚMIDA POUCO CHUVOSA NO SUL Tem chovido razoavelmente na região Centro do país, a sul do rio Zambeze, a Beira já sentiu os efeitos. Choveu pouco até agora na região Norte. E não choveu quase nada na região Sul, a mais sequiosa. Já vamos em Dezembro, terceiro mês do nosso semestre húmido, e a situação aqui no Sul afigura-se cada vez mais preocupante. O volume armazenado na albufeira de Pequenos Libombos, principal fonte de água para o abastecimento ao Grande Maputo, continua a diminuir, está abaixo de vinte por cento da capacidade da albufeira (e não sabemos se a transferência de água a partir da barragem de Corumana já está operacional). Oxalá chova bastante a partir deste fimde-semana, como anunciado pelo INAM. O PLANO DE CONTINGÊNCIA DA ANE A ANE – Administração Nacional de Estradas publicou no Notícias, julgo que pela primeira vez, o seu plano de contingência para a próxima época chuvosa. Em muitas páginas, aquelas páginas enormes do nosso dinossáurico jornal, a ANE listou, para cada província, as estradas e pontes que podem ser afectadas, os troços em risco e vias alternativas em caso de corte, caso tais vias existam. É, sem dúvida, um bom e útil esforço, os viajantes podem fazê-lo mais precavidos. Mas pareceu-me curto. Esperava ver, neste plano de contingência, como é que a ANE se dispõe a intervir para repor a normalidade se houver um corte numa estrada ou uma ponte for galgada e até eventualmente danificada. Assim como está, o plano transmite uma imagem de impotência. O que, num plano, não deixa de ser desolador. BOAS INTENÇÕES NÃO CHEGAM No Conselho Coordenador do ministério da Saúde realizado durante esta semana, o ministro anunciou que, até ao fim do presente mandato, ou seja, nos próximos quatro anos, vão ser construídos mais 49 hospitais distritais (actualmente existem 65) e mais 30 armazéns de medicamentos e vacinas, para além de treinar mais profissionais de saúde de modo a melhorar o rácio de 11 para 17 profissionais por dez mil habitantes. É um programa ambicioso, necessário e útil – mas possível nas nossas condições, em quatro anos? Vamos construir, garantir pessoal e equipar 12 hospitais distritas por ano? E 8 armazéns de medicamentos em cada um dos próximos quatro anos? E formar e recrutar 4500 novos profissionais de saúde em cada ano, admitindo que não sejam todos contínuos, serventes e guardas? É que estamos todos cansados de promessas e planos mirabolantes que depois se evaporam e ninguém vem explicar porque é que não se concretizaram. A CORRIDA POR UM LUGARZINHO NA CNE Os nossos processos eleitorais são geridos por duas entidades, a CNE e o STAE. O STAE – Secretariado Técnico de Administração Eleitoral devia ser um órgão apartidário, com gente tecnicamente competente, honesta e isenta. Não é, está totalmente ao serviço do partido no poder embora também tenha por lá uns quantos elementos da Renamo. A CNE – Comissão Nacional de Eleições devia ser o órgão que supervisa todo o processo, controlando o STAE e garantindo que as eleições eram livres, transparentes e justas. Tornou-se cada vez mais evidente ao longo destes vinte e cinco anos que as eleições não o são e que a CNE não só não faz frente às pressões da Frelimo como é cúmplice dos atropelos, apesar de ter lá representantes da Renamo, do MDM e da sociedade civil. O escândalo dos trezentos mil eleitoresfantasma na província de Gaza nas últimas eleições retirou-lhe qualquer parcela de credibilidade que ainda lhe restasse. A CNE tem 17 elementos: 5 indicados pela Frelimo, 4 pela Renamo, 1 pelo MDM e 7 indicados pela sociedade civil. Estes 7 poderiam ser o tal muito necessário garante da liberdade, transparência e justiça das eleições, até porque um deles é escolhido para presidir à CNE. O problema é que “sociedade civil” é um conceito nebuloso e a escolha dos 7 para o novo mandato da CNE tem-nos obrigado a assistir a um espectáculo triste. O processo passa pela indicação por organizações da sociedade civil dos seus candidatos, depois uma comissão ad hoc da AR (3 Frelimo, 2 Renamo, 1 MDM) elabora uma lista curta de 16 e, finalmente, o plenário da AR vota para escolher os sete. Este ano há nada mais nada menos do que 146 candidatos, alguns provenientes de organizações constituídas à pressa para poderem apresentar os seus representantes. Há certamente gente boa entre os candidatos, pessoas que querem servir e não servir-se. Mas deve haver inúmeros candidatos que querem o lugar por causa do alto salário e das mordomias, reforma incluída, para além de, acomodandose, nem terem de trabalhar muito, podem entrar mudos e sair calados. ELEIÇÕES NA VENEZUELA Realizam-se amanhã, domingo, dia 6, eleições para o parlamento da Venezuela, para um mandato de cinco anos a partir de 5 de Janeiro de 2021. Vão ser eleitos 277 deputados – 48 em listas nacionais e 96 em listas regionais, num sistema de representação proporcional usando o método de Hondt; 130 em circunscrições por eleição uninominal; e 3 deputados indígenas. O sistema de votação da Venezuela é um dos mais sofisticados e seguros de todo o mundo mas isso de nada serve para convencer a União Europeia que, na sua tenebrosa coligação com os Estados Unidos da Trampa, já disseram que rejeitam os resultados e que só o guaidinho é que é. O Venezuela Analysis, de que o Ricardo é editor, explica todo o processo e o que está em jogo, em https://venezuelanalysis.com/analysis/15062. A GUERRA É A GUERRA? E os crimes nesse âmbito, se cometidos pelos “nossos”, deixam de ser crimes? Há muito tempo que o International Criminal Court pretende julgar crimes de guerra cometidos por tropas americanas no Afeganistão e por Israel na Palestina, gerando grande indignação dos estadunidenses, democratas ou republicanos, trumpistas ou bidenistas, tanto faz, assim como dos israelitas e sionistas espalhados pelo mundo. Então o ICC não foi criado só para julgar dirigentes africanos e dos Balcãs, que são as únicas regiões do mundo onde se cometem barbaridades? Os exércitos das grandes e exemplares democracias do mundo são puros, puros, puros, como sabem os mais novos, desde Abu-Ghraib, e os mais velhos, desde o Vietnam. Agora, uma investigação conduzida pela ADF (Australian Defense Force) e que levou quatro anos a fazer concluiu que militares australianos cometeram crimes de guerra no Afeganistão, como noticia o Guardian em https://www.theguardian.com/australia-news/2020/nov/19/key-findings-of-thebrereton-report-into-allegations-of-australian-war-crimes-in-afghanistan e em https://www.theguardian.com/australia-news/2020/dec/01/photo-reveals-australiansoldier-drinking-dead-taliban-prosthetic-leg. A guerra é a guerra? A GUERRA (FRIA, POR ENQUANTO) DOS EUA COM A CHINA Leio no Público, há dias. A Administração Trump prepara-se para adicionar a principal fabricante de circuitos integrados (“chips”) na China e uma petrolífera estatal chinesa à sua “lista negra”, uma medida que vai restringir o investimento de empresários norteamericanos nestas empresas e que promete aumentar a tensão com Pequim a poucas semanas de o Presidente eleito, Joe Biden, tomar posse. De acordo com a Reuters, citando três fontes sob anonimato e documentos a que teve acesso, a Semiconductor Manufacturing International Corporation (SMIC), maior produtora de circuitos integrados na China, e a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC), produtora de petróleo e gás, vão ser classificadas pelo Departamento de Defesa como empresas com ligação ou controladas pelo Exército chinês. Recentemente, o Presidente Donald Trump assinou uma ordem executiva que proíbe os americanos de investirem ou negociarem com empresas que integrem esta lista, dizendo que o Partido Comunista Chinês está a “explorar o capital dos Estados Unidos para obter recursos e modernizar os seus equipamentos militares”, pondo em causa a segurança nacional. Em Setembro, a SMIC já tinha sido alvo de restrições por parte dos EUA, com a exigência de uma licença aos fornecedores que queiram trabalhar com a empresa, no que foi considerado uma tentativa de aumentar a pressão sobre a Huawei. Para além do interesse geral de irmos acompanhando esta guerra comercial feita pelos defensores do comércio livre (mas só quando isso lhes traz vantagens), a notícia interessa-nos directamente porque refere a CNOOC. Esta empresa chinesa é accionista do consórcio de exploração de uma das áreas de gás natural do Rovuma. Sabendo que a colocação na “lista negra” pelos EUA corresponde a tornar a empresa pestífera, bloqueando que outras empresas que usem o sistema financeiro dos Estados Unidos (ou seja, quase todas) façam negócios com ela, esta acção, a concretizar-se pode criar-nos (mais) um problema no desenvolvimento do projecto do gás natural. SE FALAS MAL DE ISRAEL, ÉS ANTI-SEMITA Claro que não se pode falar mal de Israel, é, por proclamação, certamente divina, a única democracia no Médio Oriente. E para que ninguém tenha dúvidas sobre tão indisputável verdade e para que se cale quem tem dúvidas, Israel dispõe de um lobby fortíssimo nos EUA e em boa parte do mundo ocidental. Esse lobby pró-Israel anda a usar uma arma potente: assimilar qualquer crítica ao regime fascista de Israel e à terrível opressão que impõe ao povo palestino a anti-semitismo. Esta arma tem sido usada de forma tão escandalosa que até David Feldman, director do Pears Institute for the Study of Antisemitism em Birkbeck, University of London, se sentiu obrigado a reagir, considerando ser má ideia a directiva do governo britânico a exigir que, no seu esforço para combater o anti-semitismo nos seus campos, as universidade usem como definição de anti-semitismo a da International Holocaust Remembrance Alliance (IHRA), que é suficientemente vaga para que qualquer crítica a Israel possa ser qualificada de anti-semitismo, https://www.theguardian.com/commentisfree/2020/dec/02/the-government-shouldnot-impose-a-faulty-definition-of-antisemitism-on-universities No Reino Unido, a direita blarista do Labour usou a acusação de anti-semitismo para conseguir afastar Corbyn e os seus apoiantes e concretizar a sua ansiada viagem de regresso ao centro (direita) onde se sentem confortáveis para continuarem a trair os trabalhadores, deve estar a aparecer a quarta via. O IRÃO É O ALVO MAIS IMEDIATO A ABATER O assassinato de um dos maiores cientistas nucleares pela Mossad israelista não foi apenas mais um crime dos milhentos cometidos pelo regime de Israel. Foi uma tentativa, provavelmente “sugerida” por Trump, com apoio da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, para provocar uma reacção violenta do Irão e, com isso, terem um pretexto aceitável para um bombardeamento retaliatório maciço e altamente destruidor. Felizmente, os iranianos contiveram-se, devem ter achado que é preferível engolir este crime e esperar por Biden. E fizeram, por outro lado, uma declaração notável a que a imprensa liberal de referência não anda a dar o destaque que merece: o Irão irá cumprir na íntegra o acordo nuclear assinado com as potências ocidentais e a Rússia (JPCOA) se os EUA regressarem ao acordo e levantarem todas as sanções ao Irão. Estará Biden disposto a isso? Com a pressão de Israel e das democracias suas aliadas, a referida Arábia Saudita e os Emirados, e com a vontade / necessidade permanente dos Estados Unidos de terem um inimigo externo em cada região do mundo, não sei, não. De facto, a grande qualidade de Biden é não ser Trump. Para além disso, há muito pouco que possamos esperar. A MALÁRIA MATA MAIS DO QUE O COVID Há cada vez mais pessoas a morrer de malária, a maioria bebés nas regiões mais pobres de África, alertou a Organização Mundial de Saúde (OMS) — no ano passado, registaram-se mais de 409 mil mortes pela doença. “Esta é uma doença que sabemos como se evita — por isso não o fazermos é uma escolha”, disse Peter Sands, director do Fundo global para o combate à sida, tuberculose e malária. Em comparação com a covid-19, doença para a qual ainda não há medicamentos de prevenção ou tratamento, as mortes adicionais por malária vão muito provavelmente ser, em 2020, mais do que as causadas directamente pelo coronavírus, diz a OMS num relatório. (tirei isto de qualquer lado, talvez do Público, mas não tenho a certeza). Segundo a OMS, 94 por cento das mortes por malária são em África. O MAPEADOR DE AUSÊNCIAS O novo romance de Mia Couto, o primeiro desde a sua merecidamente celebrada trilogia à volta de Gungunhana, “As areias do Imperador”, marca o regresso do escritor à cidade da Beira onde nasceu e cresceu. É também uma homenagem ao seu pai, o poeta e jornalista Fernando Leite Couto. Diogo Santiago é um prestigiado poeta e professor universitário em Maputo, cuja vida está em crise desde que a mulher o deixou. Regressa à Beira, sua cidade natal, depois de longos anos de ausência, a elite local pretende homenageá-lo. O regresso acontece quando a cidade está ameaçada pela iminente chegada do ciclone Idai, em Março de 2019. Encontra-se com a bela Liana Campos, que o informa ser neta de Óscar Campos, inspector da PIDE que prendera o pai de Diogo, o poeta e jornalista Adriano Santiago, não muito antes de se dar o 25 de Abril em Portugal. Esse encontro abre-lhe a porta (e ao romance) para acontecimentos passados nesse tempo, anterior à Independência, em que Adriano era um oposicionista ao regime colonial e se desloca a Inhaminga para obter informação sobre o terrível massacre que se dizia lá ter ocorrido. Assim se vai desenvolvendo a história, alternando entre os dois planos temporais. Pelo dossier da PIDE sobre Adriano Santiago e sua família, que Liana herdou do avô, vamos conhecendo personagens do passado, algumas delas reencontradas no presente: a mulher e a mãe de Adriano, Diogo quando jovem, o primo Sandro, os vizinhos da família Sarmento, o empregado Benedito Fungai, agora um alto quadro da Frelimo na Beira, os “toupeiras brancas” que incluem, além de Adriano, um estereotipado comunista e um farmacêutico goês, o inspector Óscar Campos, a velha e imponente Maniara e o seu marido, o régulo Capitine, os padres holandeses de Inhaminga que dão testemunho do massacre. O romance cria algumas figuras fascinantes, particularmente as duas que, ausentes, são o centro de gravidade do romance: Ermelinda, filha do inspector Campos, mais conhecida por Almalinda, talvez sobrevivente do afogamento em que se quis; e Sandro, homossexual, num tempo e num lugar em que tal era considerado pior do que a lepra. Há, parece-me, algumas inconsistências na história, nos muitos fios em que esta se e nos enreda, fruto talvez da ambição de contar tudo – e o tudo que o grande escritor pretendeu incluir é muito. Mas é, sem sombra de dúvida, um romance muito interessante, sobre um período crítico da nossa história imediatamente antes da Independência. Foram horas de leitura muito prazerosa. A ESSÊNCIA DO CINEMA EM DOIS MINUTOS Um poema a duas vozes, uma criança que pede em voz alta, um ramo de flores, uma criança que implora mudamente, flores que impedem que uma ponte se desmorone, uma criança que sorri, um velho casal que ainda sabe o que é o amor. https://www.youtube.com/watch?v=XXx_Hw34V-Q&feature=emb_logo THE TWO POPES Este “Os dois papas” é um filme que nos prende no seu decorrer, que nos encanta e que, depois, quando reflectimos sobre ele, nos faz pensar que talvez tenhamos sido levados no embalo. Os dois papas são o actual papa Francisco quando ainda era o cardeal Jorge Bergoglio e o seu antecessor, Benedito XVI, quando ainda era papa e não papa emérito como agora. O filme trata dos diversos encontros entre os dois, desde o conclave em que Benedito foi eleito e Bergoglio, o segundo mais votado ao encontro no Vaticano em que Bergoglio tenta desesperadamente que o papa lhe aceite o pedido de renúncia sem que Benedito lhe dê oportunidade para isso. As conversas entre os dois, protagonizadas pelos excelentes Anthony Hopkins (Benedito) e Jonathan Pryce (Bergoglio), sobre questões teológicas, papel da Igreja, mas também sobre futebol, a música dos Abba ou Bergoglio dançar o tango, são fascinantes. O realizador dá-lhes imensa vivacidade, evitando que se transformem em debates áridos. Mas, apesar de o título referir “os dois papas”, o centro do filme é Bergoglio, com uma bela interpretação de Juan Minujin a fazer de Bergoglio quando jovem. É aqui que o filme atinge o seu melhor – como é que o jovem Jorge foi para o sacerdócio e se tornou jesuíta, a sua amizade com outros dois jovens padres, a sua ascensão na hierarquia dos jesuítas na Argentina, o corte brutal com a instauração da ditadura militar nesse país, o jogo de cintura tentado por Bergoglio, fazendo compromissos com os generais mas não conseguindo proteger os seus jesuítas, o exílio por dez anos a que a hierarquia da Companhia de Jesus o condena quando cai a ditadura, o seu regresso e ascensão ao cardinalato. É um filme muito bem feito, com cenas magníficas, excelente cinematografia. Mas, ao reflectir sobre ele, vários aspectos soaram-me a falso. Benedito foi um papa muito conservador, na esteira de João Paulo II (mas menos activamente reaccionário do que este), mas era um brilhante intelectual e profundo conhecedor da doutrina da Igreja. Vê-lo no filme quase incapaz de argumentar com Bergoglio não me convenceu. O entendimento entre os dois surge demasiado fácil, harmonioso – e não foi nem é nada disso, como aliás se viu na recente intervenção pública de Benedito, https://www.biography.com/news/pope-francis-pope-benedict-relationship. Finalmente, o filme debruça-se longamente sobre a actuação de Bergoglio como chefe da Igreja Católica argentina durante a ditadura militar, não o absolvendo mas, pela ênfase que dá ao seu sofrimento interior em contraste com os sofrimentos bem mais graves dos que ele não protegeu, dão dele uma imagem mais clara do que ele merece. Se calhar estou a exagerar mas o filme, muito bem feito e atraente, parece ser parte de uma campanha do tipo “OMO lava mais branco”. Eu acho que o papa Francisco está muito mais perto de João XXIII do que qualquer dos outros papas que lhe sucederam nos quase sessenta anos já decorridos. Mas prefiro vê-lo como um ser humano, carregando o seu passado como todos nós, do que transformado em santo ainda em vida. VIDA E OBRA DE BEETHOVEN – Programa 15 No início de 1822, enquanto finalizava a Missa Solemnis, de que ouvimos extractos no programa passado, Beethoven já tinha na cabeça o projecto de uma grande sinfonia. No Verão, escreveu a um dos seus editores, Peters, em Leipzig, propondolhe a edição das suas obras completas, sugerindo ainda que, para cada categoria de música, incluiria uma composição nova. Esta preocupação de Beethoven acompanhou-o até ao seu leito de morte. No Outono, a Missa Solemnis estava completada e Beethoven começou a trabalhar na sua nova sinfonia. Quando Rossini visitou Viena, procurou por Beethoven, tendo os dois mantido um encontro cordial, apesar da surdez de um e da ignorância de alemão do outro. Em Novembro, Beethoven recebeu com alegria a notícia de que a representação de “Fidélio” em Viena fora um grande sucesso. Em Dezembro, Beethoven recebeu uma carta do príncipe russo Galitzine que lhe pedia a composição de três quartetos, não discutindo o preço. A encomenda foi aceite mas, absorvido na composição da sua sinfonia, Beethoven apenas viria a satisfazê-la três anos mais tarde. Em 1823, o príncipe Lichnowsky sugeriu a composição duma missa dedicada ao Imperador para, desse modo, conseguir assegurar a Beethoven um apoio financeiro permanente mas este, focado em desenvolver as ideias para a nova sinfonia, recusou tal como propostas para uma nova ópera. Para além de composições de menor dimensão para piano, como as “Bagatelas” e as “Variações Diabelli”, o único grande projecto que tinha na cabeça, para além da Nona Sinfonia, eram os quartetos de cordas, tanto os encomendados pelo príncipe Galitzine como outros que propôs ao editor Peters. De facto, estes quartetos de cordas, os três para o príncipe Galitzine e mais dois, numerados de 12 a 16, e ainda a extraordinária Grande Fuga, inicialmente composta para ser o último andamento do Quarteto nº 13, foram as últimas grandes obras que Beethoven compôs, trabalhando no último até pouco antes da sua morte. Apesar de um sério problema de vista, Beethoven finalizou a Nona Sinfonia antes de 1823 findar mas a sua decadência física tornou-se visível para os amigos. Uma excelente notícia para Beethoven e um grande apoio nos últimos anos da sua vida foi que o grande amigo e violinista Schuppanzigh, regressou a Viena. Foi Schuppanzigh quem, desde o seu regresso, promoveu a audição dos quartetos de cordas de Beethoven, já esquecidos pelo público vienense, enquanto aguardava que os novos fossem compostos. Hoje, vamos ocupar a parte musical do nosso programa com o Quarteto nº 14, o preferido de Beethoven. Tem uma estrutura pouco habitual, com sete andamentos tocados quase sem pausa entre eles: I. Adagio ma non troppo e molto espressivo, II. Allegro molto vivace, III. Allegro moderato – Adagio, IV. Andante ma non troppo e molto cantabile – Andante moderato e lusinghiero – Adagio – Allegretto – Adagio, ma non troppo e semplice – Allegretto V. Presto VI. Adagio quasi un poco andante VII. Allegro https://www.youtube.com/watch?v=pA4_FnH49tA (interpretação do Quarteto Alban Berg) O SENHOR PICUÍNHAS Faleceu o ensaísta português Eduardo Lourenço e logo meio mundo e arredores se desdobraram em elogios, incluindo, claro, os inefáveis Marcelo e Costa, só faltou canonizá-lo de imediato. O Público encheu páginas e páginas a exaltar o génio, apenas Diogo Ramada Curto apareceu a deitar alguma água na fervura, com argumentos bem fundados (o Eugénio Lisboa tem um artigo a sair onde também reduz Eduardo Lourenço a uma dimensão não endeusada). No meio de toda esta verborreia de panegíricos, surgiu um episódio caricato com um “literas”, Reinaldo Serrano, chamado a pronunciar-se sobre o falecido na SIC. A certa altura, o Serrano saiu-se com esta: É curioso que ele em muitos textos, sobretudo em crónicas, utilizava uma expressão também lindíssima da literatura e que já ninguém usa: depois da crónica dizia "Vence em...." 2000, por exemplo. Ou seja aquela crónica tinha uma data de validade porque a própria realidade e a sua dinâmica faz com que nada seja definitivo… Ninguém é obrigado a saber que Eduardo Lourenço fixou residência em Vence, no Sul da França, desde 1965. Agora que um “literas” não o saiba e “interprete” Vence dessa maneira é uma maravilha de chico-espertismo literário. Por cá, temos Amad Camal, agora colunista da Carta de Moçambique. Na sua mais recente coluna, para além de falar do catolicismo e da Igreja Católica, que obviamente conhece muito mal, o que não o impede de discorrer sobre ela com arrogante ignorância, escreveu esta pérola: Como exemplo, podemos visitar a Constituição Britânica… Constituição Britânica? Quando não sabe, o homem inventa. João Mosca escreveu no Savana de ontem um interessante artigo, com o qual estou basicamente de acordo, “O país que os libertadores sonharam é o Moçambique de hoje?”, mas enganou-se quando falou em 24 de Julho de 1976, dia das nacionalizações. O dia das nacionalizações foi 24 de Julho de 1975. JOHN LENNON ASSASSINADO HÁ QUARENTA ANOS John Lennon foi assassinado na noite de 1 de Dezembro de 1980, à porta do edifício Dakota, em frente a Central Park, Nova Iorque, quando ele e a mulher, Yoko Ono, regressavam a casa, ao fim de um cansativo dia de trabalho. Soube-o no dia seguinte. Eu e a Isabel estávamos a estudar em Delft e, no primeiro intervalo das aulas, um nosso amigo brasileiro, o Afonso, veio ter connosco: Mataram o John Lennon, a rádio anunciou, estão a dar músicas dele e dos Beatles. Há casos em que a morte de alguém que não é famíliar nem amigo nos toca como se fosse de família chegada, foi o caso de John. Talvez o sentimento seja partilhado por quem, como eu, cresceu em LM durante os teen years nos anos sessenta a ouvir a Estação B do Rádio Clube de Moçambique, emissão em inglês, e tenha vivido aquilo que sentimos como uma revolução nas nossas vidas, como se os Beatles nos estivessem a dizer que as amarras de convenções estúpidas do passado eram para quebrar, que podíamos gritar, que a energia que sentíamos se transformava em canções míticas como o “She loves you”, que as nossas colegas raparigas tinham direito à mini-saia se o quisessem, que a vida estava ali e era nossa obrigação vivermo-la. E, do quarteto inesquecível, John era o mais rebelde, fazia gala de fugir às regras. Brian Epstein andava a insistir que deviam aceitar o convite para participarem no Royal Variety Show e os Beatles, oriundos da working class de Liverpool, a resistirem até que finalmente concordaram em ir actuar perante a realeza. Mas John preparou a vingança. Antes do seu último número, “Twist and Shout”, dirigiu-se à audiência: – For our last number, I would like to ask for your help. The people in the cheapest seats, clap your hands. And the rest of you, you can just rattle your jewelry. POEMAS PARA O FIM-DE-SEMANA Florbela Espanca nasceu num dia 8 de Dezembro. Suicidou-se num outro 8 de Dezembro, fazia nesse dia trinta e seis anos. AMIGA Deixa-me ser a tua amiga, Amor; A tua amiga só, já que não queres Que pelo teu amor seja a melhor A mais triste de todas as mulheres. Que só, de ti, me venha mágoa e dor O que me importa a mim?! O que quiseres É sempre um sonho bom! Seja o que for, Bendito sejas tu por mo dizeres! Beija-me as mãos, Amor, devagarinho... Como se os dois nascêssemos irmãos, Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho... Beija-mas bem!... Que fantasia louca Guardar assim, fechados, nestas mãos Os beijos que sonhei pra minha boca! VOLÚPIA No divino impudor da mocidade, Nesse êxtase pagão que vence a sorte, Num frêmito vibrante de ansiedade, Dou-te o meu corpo prometido à morte! A sombra entre a mentira e a verdade... A nuvem que arrastou o vento norte... - Meu corpo! Trago nele um vinho forte: Meus beijos de volúpia e de maldade! Trago dálias vermelhas no regaço... São os dedos do sol quando te abraço, Cravados no teu peito como lanças! E do meu corpo os leves arabescos Vão-te envolvendo em círculos dantescos Felinamente, em voluptuosas danças… SER POETA Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma e sangue e vida em mim E dizê-lo cantando a toda gente! CONTO DE FADAS Eu trago-te nas mãos o esquecimento Das horas más que tens vivido, Amor! E para as tuas chagas o unguento Com que sarei a minha própria dor. Os meus gestos são ondas de Sorrento... Trago no nome as letras de uma flor... Foi dos meus olhos garços que um pintor Tirou a luz para pintar o vento... Dou-te o que tenho: o astro que dormita, O manto dos crepúsculos da tarde, O sol que é d'oiro, a onda que palpita. Dou-te comigo o mundo que Deus fez! - Eu sou Aquela de quem tens saudade, A Princesa do conto: “Era uma vez...”