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Conferências Pode se transigir em Religião O-papel da Igreja na conversão e na santificação GustavoCorcao

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PODE-SE TRANSIGIR EM
RELIGIÃO?
Gustavo Corção
O tema que me foi dado, nesta série de conferências, é o da transigência ou
dos limites de tolerância em matéria religiosa. Antes porém de aplicá-lo à
religião, creio que será útil esclarecer o próprio conceito de tolerância ou
transigência, porque, pelo que tenho ouvido, muita gente atribui a esses
vocábulos um sentido absoluto e simplificado. A maioria das pessoas, ou
melhor, a maioria dos brasileiros, considera a tolerância uma virtude moral,
e às vezes a maior das virtudes. Diz-se que Fulano de Tal é tolerante, em
tom de elogio, como se diz de outro que é honesto, justo ou temperante. E
acusa-se Cicrano de intolerante em tom repreensivo, como se diz de alguém
que é injusto ou desonesto.
Há outra raça de gente que inverte o tom daquelas proposições, e que
vêem a virtude na intolerância. Para começar devo dizer — e nisto conto
com a simpatia dos ouvintes — que não simpatizo de modo algum com o
intolerante absoluto. Acho-o desagradável e enfatuado. Digo melhor: acho
que esse tipo de intolerante é intolerável. Mas sou forçado a acrescentar —
e nisto certamente desagradarei a muitos ouvintes — que o tolerante
sistemático não é menos errado do que o outro, embora seja mais
simpático. Diria até que é simpático demais. E em certas circunstâncias,
quando por exemplo reclama a intransigência de alguém, o tolerante é
incoerente com seu credo, porque, sendo intolerante em tudo, deveria
tolerar também a intolerância; e se não tolera é porque sabe que nem tudo
se tolera, e por conseguinte em alguma coisa é intolerante.
É preciso, pois, estabelecer que aqueles termos têm valor moral relativo e
que ora designam virtude ora vício. A dificuldade em que se encontra o
homem de reto agir é a de distinguir bem o caso em que se aplica a
transigência e o caso em que se obriga a intransigência. A educação da
prudência ou do senso moral consiste precisamente na fina discriminação
da atitude que se deve tomar diante da atitude dos outros; ou, no caso
vertente, consiste no discernimento da reação diante do erro dos outros.
Que fazer ou que dizer quando esbarramos no erro alheio? Corrigir? Nem
sempre é recomendável. Silenciar? Nem sempre é generoso.
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Imaginemos um caso concreto. Um velho amigo meu vem dizer-me que a
nossa república foi proclamada por Pedro Álvares Cabral em 1° de abril. Não
posso, decentemente, responder-lhe: “Você pode estar com a razão” ou
então “vá lá, esse é o seu ponto de vista”. A verdade histórica bem
assentada não permite essa capitulação. Que devo então fazer?
Tentarei mostrar ao amigo que ele se engana no herói e na data; ou que foi
vítima de alguma pilhéria de 1° de abril. Se entretanto não conseguir
demovê-lo, posso desistir da retificação porque há muitos casos em que o
esforço de convencer é inútil. Há nos livros sapienciais da Sagrada Escritura
uma passagem que nos autoriza e até nos aconselha a deixar o tolo andar
com sua tolice. Diz lá o autor inspirado que ensinar ao tolo é o mesmo que
tentar a cola de um vaso quebrado em muitos pedaços; e é o mesmo que
falar a um indivíduo que dorme e que, acordando estremunhado, pergunta:
hein? como?
Quem vive de ensinar sabe que há casos de irremediável indocilidade. É
triste, mas nesses casos, como diz agora o próprio Senhor Jesus, é melhor
sacudir o pó das sandálias e ir pregar em outras freguesias.
Mas nem por isso — no caso concreto imaginado — deixo eu de manter
boas relações com o obstinado indivíduo que se aferra ao seu erro histórico.
Seu erro não me impede de visitá-lo, de jantar com ele, de passar telegrama
em seu aniversário, etc, etc. Se, como professor não posso capitular, como
amigo não posso abandonar o outro somente porque ele se obstina em
deslocar uma data nacional. As regras de convivência são mais apertadas,
nesse ponto, do que as regras da pedagogia.
Pondo em linguagem abstrata o caso anterior, teremos uma primeira
aproximação: “Em relação ao erro, e por amor da verdade, sou intolerante;
em relação à pessoa que erra, e por amor dela, serei tolerante”.
Imaginemos agora que aquele meu amigo se candidata à cátedra de
História do Brasil no Pedro II. Já não posso manter a mesma tolerância com
ele. Devo adverti-lo. Estou obrigado, em consciência, a prevenir meu amigo
que não vejo com bons olhos seu insensato propósito de tornar oficial a
perturbação das datas e dos heróis nacionais.
Imaginemos finalmente que a banca examinadora — como já tem
acontecido em outros concursos — dê grau dez à tese, e entregue a
cátedra, e consequentemente os ouvidos dos meninos, ao desvairado
historiador. Sendo eu jornalista, e sabendo pertinazmente que a nossa
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república não foi proclamada por Pedro Álvares Cabral, devo escrever
artigos denunciando a impostura do concurso e a estridente injustiça do
resultado.
Vejam bem que agora modificou-se a situação. Continuo a ser intolerante
em relação à verdade histórica; mas já não tenho a mesma tolerância com a
pessoa que erra, por causa dos meninos, isto é, por causa da maior
significação social e moral do erro.
Se em vez de mau historiador o indivíduo de nosso exemplo se mostra um
mau cidadão, ou melhor se seu erro é moral e político, então a minha
reação deverá ser ainda mais viva e poderá chegar até o rompimento de
relações pessoais. Se na qualidade de jornalista eu denuncio um Fulano de
Tal como ladrão, eu não posso mais jantar com ele no Jockey Club, ou
abraça-lo quando o encontrar no salão de barbeiro. O adversário do bem
comum não pode ser meu amigo particular. Eu devo aos outros essa nitidez
de atitudes; e, por incrível que pareça, eu devo principalmente ao ladrão,
por amor de sua alma, a sanção de minha intransigência.
O Brasil se perde porque os melhores são complacentes com os piores. Os
brasileiros se abraçam demais, sem que essa cordialidade sem normas
signifique virtude. O jornalista João denuncia o patife José. Mas João abraça
Pedro que abraça José. Com poucos elos intermediários, e às vezes sem
nenhum, o mais eloqüente denunciador de desordens se encontra, em
abraços ou jantares, com os mais indignos aproveitadores das mesmas
desordens.
Quem fizer o contrário, isto é, quem sair da sala em que é bem recebido um
autor de escândalo público, é apontado como intransigente. Quem denuncia
a gritante injustiça de um concurso de filosofia é tido por fanático. Espero
ter mostrado que a tolerância com a pessoa que erra não se pode manter
quando mudam as circunstâncias e quando a persistência no erro tem grave
alcance social. E por quê? De onde nasce essa exigente intolerância? Onde
se origina esse imperativo novo? Espero que meus ouvintes já tenham
descoberto que essa intolerância nasce da justiça e do amor. Concluiremos
então que só será incondicionalmente tolerante, que só será sempre
amável, cordato, benigno, compreensivo, simpático, o indivíduo que não dá
valor à Verdade, que não serve à Justiça e que não ama o Amor.
*
Li dias atrás, numa folhinha, esta sentença: “o segredo da felicidade
conjugal está na mútua tolerância”. Há nessa frase uma boa parte de
verdade. Nos casais, para uma razoável convivência, é indispensável que
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cada um seja tolerante com os defeitos do outro. A regra é boa, mas não
pode ser elevada a norma suprema e absoluta. No jogo da convivência a
disposição à tolerância deve ser acompanhada da disposição complementar
à correção mútua. É difícil, em cada caso concreto, decidir qual dos dois
elementos terá a primazia. Muitas vezes o desejo de correção é
impertinente e inoportuno; mas muitíssimas vezes a tolerância significa
apenas comodismo e capitulação. A grande doença de nossa época, e
principalmente de nosso país, é a da insensibilidade moral travestida em
bondade. Todos toleram tudo, e depois se espantam com o antinômico
resultado dos vagões de gases.
Na vida familiar, onde é mais denso o campo de forças afetivas, é difícil
manter o equilíbrio entre a salutar exigência e a salutar transigência.
Esquecido um dos componentes, desmorona a família. E se todos resolvem
seguir à risca a sentença da folhinha, isto é, se todos, na casa de família,
resolvem ser tolerantes, a casa de família se transforma em casa de
tolerância.
*
A dificuldade de discernir, na situação concreta, e determinar os justos
graus de tolerância ou intolerância, cresce com a gravidade dos elementos
em jogo. E chega a um máximo de tensão no mais importante dos
problemas humanos: a religião. Aqui, mais do que em qualquer outra
questão, os erros extremos são catastróficos. E esses erros têm sido
cometidos. Há na constituição vital da Igreja Católica uma intransigência
moral e uma absoluta intolerância dogmática de que falaremos a seguir,
mas desde já convém assinalar que essa dupla intolerância se aplica à vida
interna da Igreja. Para ser católico é indispensável aceitar a Igreja como ela
é, e aderir aos mandamentos e aos dogmas. A Igreja espera de nós uma
nitidez de opção que é anterior a qualquer programa de perfeição. Antes de
sermos plenamente católicos pela santidade, devemos sê-lo pela aceitação
de sua doutrina e de seu governo. Esse tipo de intransigência não pode
molestar os espíritas e os protestantes porque começa por nós mesmos e a
nós mesmos interessa.
Há porém um problema mais difícil para nós; o das relações entre a Igreja e
a sociedade, sobretudo no que concerne aos outros cultos. Certos autores,
julgando interpretar o pensamento da Igreja, querem estender a
intransigência, que livremente aceitamos, à sociedade civil. Dizem que em
país de maioria católica os outros cultos não devem ser permitidos. E
sonham reprimir o erro religioso com medidas policiais. Eu não acredito
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muito em país de maioria católica. Faltam-me dados para julgar com
exatidão o que se passa na Espanha, que tem servido de exemplo aos
autores que praticam esse tipo de intolerância. Admiro-me, se admitir a tal
maioria naquele país, que uma sociedade tão piedosa precise ser governada
como um presídio. Acho também muito esquisita a necessidade de ofender
a dignidade natural do homem para conseguir dele uma dignidade
sobrenatural.
Não é esse, aliás, o pensamento de Pio XII. Em recente alocução dirigida aos
jornalistas católicos. Sua Santidade ensina que nem sempre constitui dever
a repressão positiva ao erro religioso e moral e que, ao contrário, em certas
circunstâncias, a tolerância e o convívio com outros grupos religiosos é
ensinamento evangélico: “Deixai que no campo do mundo cresçam juntos o
joio e o trigo”... (Mat. XIII, 24 a30). E logo em seguida diz o Papa: “Não
pode, portanto, ser norma última de ação, o dever de reprimir os desvios
morais e religiosos. Cumpre que esse (dever) se subordine a normas mais
altas e mais gerais que, em algumas circunstâncias permitem e até
recomendam, como melhor solução, não impedir o erro, para promover um
bem maior”.
Não afina, pois, com o pensamento oficial da Igreja, a idéia de fazer
incondicional apelo a medidas repressivas contra as práticas religiosas
erradas. Não representam bem o sentimento da Igreja os autores que
invocam o caso da Espanha para sonhar com uma Igreja Policial, mais
madrasta do que mãe.
Outra coisa entretanto, errada em sentido oposto, seria imaginar que a
Igreja tolera o erro religioso e o erro moral. Esse tipo de intolerância,
dogmática e moral, que muitos, de fora, vêem como um anacronismo ou
como uma dureza, é o mais alto apanágio da Igreja, que deriva de sua
intrínseca santidade.
Mas não devemos confundir a intransigência moral que repele o divórcio, o
aborto, o anticoncepcionalismo, etc. com a idéia de ser preciso ser perfeito
para pertencer à Igreja. Essa idéia seria insensata porque a Igreja não é um
fim, não é uma sociedade para exclusivo abrigo dos puros, e sim um
instrumento de salvação.
Santa por seu Fundador, santa por seu Espírito, santa por seus membros
que vivem na Glória, e santa pelo princípio de divinização participada que
em nós opera, a Igreja, na sua peregrinação pelo mundo, envolve membros
dignos e indignos, justos e pecadores. Intolerante no seu estatuto salutar, a
Igreja é solícita e acolhedora de todos os que , malgrado todas as humanas
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fraquezas, querem aceitar os mandamentos e procuram na eficácia de
graça um divino remédio.
A Igreja, na sua passagem histórica, é uma arca. É uma enorme Casa de
Saúde. Ora, se é verdade, pelo nome e pelo fim, que as casas de saúde são
feitas para dar saúde, é também verdade que nelas se encontram
numerosos enfermos. É pueril admirar-se que existam doentes nos
hospitais; mas é insano pensar que só existam doentes. Não. Em nossa
grande e santa Casa de Saúde existem médicos, e existem almas
robustíssimas que dia e noite renovam o plantão da enfermagem.
Ainda mais insano, porém, seria a idéia de uma casa de saúde em que, por
espírito de tolerância, os médicos resolvessem abrir mão dos estatutos e
passar a ver na própria doença uma coisa admirável e tolerável. Só é
possível curar acolhendo doentes para expulsar as doenças. E isto só é
possível quando se une à solicitude do acolhimento a intransigência em
relação ao mal.
Moralmente, podemos distinguir o pecador e o mau católico. O primeiro, por
mais grave que seja seu ato, quer curar-se, quer obedecer, e do fundo do
abismo clama pela misericórdia de Deus. O segundo, ainda que não cometa
atos muito reprováveis, recusa os estatutos, e pretende em sua estultícia
ter um pronunciamento próprio sobre o divórcio ou sobre o jejum. E esse
orgulho, que se encontra nos católicos liberais, é certamente pior do que a
pobre miséria do pecador que não pretende dar nomes diferentes na lama
em que escorregou.
*
Quanto à intransigência dogmática, permitam que lhes avive a memória
para alguns dados essenciais de nossa doutrina. Como sabem, a nossa Fé
teologal é uma virtude infusa, que Deus nos dá, e que nos capacita para ver
com nova pupila e aderir com a vontade à Revelação. Nossa Religião é
essencialmente constituída de Graça e Revelação. Deus mesmo nos dá a
virtude sobrenatural para ver e aderir ao fundamento divino de sua
Revelação. E é dessa Revelação divina que nos vêm os dogmas, que são o
tesouro guardado pela Igreja. Um resumo desses dogmas está no Símbolo
dos Apóstolos: “Creio em Deus Pai Todo Poderoso, Criador do céu e da terra,
em Jesus Cristo, um só seu Filho, Nosso Senhor; o qual foi concebido pelo
Espírito Santo; nasceu de Maria Virgem, padeceu sob o poder de Pôncio
Pilatos, etc”.
Nós cremos em cada um dos artigos desse credo por causa de seu motivo
central: porque eles vêm de Deus; porque Deus revelou; e porque Ele
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mesmo nos deu o princípio sobrenatural, a Graça, que nos capacita a esse
ato de sobrenatural confiança. Creio em cada um e em todos os artigos,
porque Deus disse.
Se desprezar um só, se duvidar de um só, então não é só esse que perde
para mim o teor divino. São todos. Pois se duvido de um, é do critério
central que duvido. Para quebrar a confiança não preciso descrer de tudo o
que uma pessoa me diz; basta duvidar de algumas coisas; basta descrer de
uma só.
Se eu disser: “nisto eu creio, naquilo não”. sou eu então que estou
escolhendo, sou eu que estou julgando. E nesse momento deixou de ser,
para mim, divina, a revelação e passou a ser opinião pessoal, minha,
escolhida por mim, julgada por mim. Não é Deus que me diz que é Senhor
do Céu e da Terra; sou eu que lhe dou esse título. Sou eu que nomeio Deus
para o alto cargo de governar os astros do céu, os peixes do mar, as flores
do campo, e as almas do mundo. E, se sou eu que decido o que é e o que
não é verdade a respeito de Deus, então eu sou maior e mais divino do que
Deus.
Salta aos olhos o ridículo dessa atitude. Entende-se bem que os índios e os
pagãos, que não receberam a Revelação, tenham procurado, cada um com
os recursos de sua cultura, um modo de pensar em Deus e de honrá-lo. A
religião natural vem do homem, da natural inclinação da alma humana para
seu fim. Nesse estado, pré-religioso, o homem faz um Deus à sua imagem, e
tira de si mesmo a religião. Entende-se a variação, e diria até a falta de
certo rigor lógico nessa religiosidade natural.
Mas para o cristão que recebeu a Revelação, que conhece o preço do seu
selo, é ridícula qualquer atitude que fuja à intransigência dogmática.
Uma coisa lhes digo. Se me viessem oferecer, anos atrás, quando eu
procurava a notícia de Deus, uma religião em cujo credo eu pudesse
escolher os artigos de minha simpatia, e em cujos livros santos pudesse dar
a interpretação que bem entendesse, eu recusaria indignado tal religião e
tal Deus sem exigências de verdade. Meus antigos professores de
geometria ou de física eram maiores do que esse deus da tolerância
dogmática, pois haviam ensinado que a verdade da geometria ou da física
não dependem de minha interpretação e sim da natureza dos corpos e das
definições das figuras. E se me oferecessem uma religião em cujo culto se
pudesse tirar, acrescentar ou modificar, eu a recusaria enfadado, porque
esse culto seria inferior a uma partida de futebol onde as regras são regras.
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Ninguém me obrigou a aceitar o cristianismo. Eu também não posso obrigar
ninguém a correr atrás de Jesus Crucificado e a entrar nesse jogo de amor e
justiça cujas regras nos foram dadas por Deus e por sua Igreja. Admito que
alguém não queira sequer examinar essa doutrina e experimentar esse
jogo, alegando, por exemplo, que tudo isso foi inventado pelos papas. No
momento em que encontrei o Fato, a Coisa católica eu tive pelo menos uma
grande tranqüilidade: essa religião tinha uma imensa vantagem: não fora
inventada por mim. Mais tarde, vi que também não fora inventada pelos
papas, e então a idéia de origem divina se impôs e me forçou a dobrar o
joelho endurecido.
Torno a dizer: eu poderia ter recusado em bloco o Símbolo dos Apóstolos;
mas nunca me passou pela idéia a estupidez de aceitá-lo em parte. Bem
sabia que se fizesse tal discriminação seria eu o fundador dessa variante
cristã. Com material cristão eu estaria fabricando uma seita e um deus de
minha invenção. Felizmente nunca me ocorreu essa cômica idéia; e
continuo a admirar-me que ela possa ocorrer a alguém. O protestantismo
consiste precisamente nisto. À Igreja Católica, única, global, maciça, os
protestantes opõem mais de mil glosas que apareceram ao sabor da livre
interpretação e do relativismo dogmático. E essa multiplicação de seitas,
em confronto com a unidade católica, é a prova da decomposição de um
corpo sem alma.
Mas não vim aqui para me esgrimir com os protestantes, nem para apontar
os erros internos do espiritismo que considero uma forma de materialismo
com todos os seus fluidos que nada tem de espiritual. Transijam eles,
protestantes ou espíritas; tolerem todas as variações que em suas doutrinas
complacentes surgirem; nós acharemos razoável essa tolerância interna de
doutrinas frouxas que confessadamente não fazem questão absoluta da
verdade. Transigiremos nós com eles, e com outros, no que concerne ao
convívio humano, nos termos ensinados por Pio XII; mas não transigiremos
com a estrutura dogmática e moral de nossa Igreja. Se nos julgam loucos ou
tolos por aceitarmos as arestas traçadas por Deus, toleraremos que assim
nos julguem e que não queiram partilhar da mesma loucura. Mas não
toleraremos que um católico, continuando a dizer-se católico, queira ser
divorcista, ou queira inventar uma explicação sua para o mistério da
Trindade.
O católico que escolhe seus dogmas e seus mandamentos não é católico, é
protestante. O católico que freqüenta sessões espíritas, ou utiliza médicos
fantasmas, comete pecado contra a virtude da religião, ou contra a Fé, e
sobretudo demonstra um insensato orgulho ou uma intolerável falta de
caráter.
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Como Fr. Boaventura lhes mostrou abundantemente, e como poderão ler no
seu artigo publicado na Revista Eclesiástica Brasileira, o espiritismo nega a
transcendência da Revelação, nega o milagre, nega a inspiração divina da
Sagrada Escritura, nega a autoridade do magistério eclesiástico, nega a
instituição divina da Igreja, nega o mistério da SS. Trindade, e nega a
divindade de Cristo. Como pode um católico pactuar com qualquer
cerimônia dessa crença sem trair a doutrina que custou o sangue de nosso
Salvador?
Um espírita pode negar tudo aquilo continuando a ser credor de nossa
respeito como homem. Ele tem, ao menos, a coerência de desprezar as
coisas que julga não serem verdadeiras. Mas o católico-espírita é uma
espécie de monstro que desobedece a Igreja em que crê e colabora nas
práticas do que diz não acreditar. É incoerente na doutrina e incoerente nas
atitudes práticas. Há certamente torcedores de futebol que são mais fiéis ao
seu clube do que esses católicos à sua Igreja.
Querem transigir? Por que não começam pelo futebol? Por que não praticam
a livre interpretação dos sinais de tráfego? Porque não toleram, antes dessa
amálgama de religiões, a amálgama das relações conjugais, trocando
maridos e esposas? Vamos, vamos transigir? Sendo professor, pouco me
importará que o aluno aproveite ou não; pouco me interessará, ao examinálo, que ele conheça ou não a matéria. Admitamos que ele é protestante em
geometria e espírita em química. Sendo médico, não irei zangar-me com a
enfermeira por causa de uma troca de injeções. Sendo engenheiro,
transigirei com os fornecedores que roubam nas medidas e nas
especificações. Por que deverei ser zeloso nos negócios dos homens se sou
tolerante nas coisas de Deus? Vamos transigir em tudo se podemos transigir
em religião.
Agora mesmo, se eu aqui me pusesse a cantar, ou a recitar poesias, todos
diriam severamente: — O conferencista fugiu ao tema. Se eu chegasse
atrasado meia hora, diriam: — o homem não é pontual; será verídico? Se eu
desandasse a falar num idioma inventado por mim, comentariam: — Ele
está zombando de nós ou ensandeceu...
E teriam razão. Há regras. Há compromissos. Há convenções a que não se
pode fugir sem tornar possível a convivência. Que dizer então das verdades,
que dizer então da natureza das coisas que são o que são? Posso eu,
usando o privilégio da livre interpretação, dizer que o cão mia e que o gato
ladra?
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É claro que não. Todos concordam que não podemos transigir com o tema,
com o horário, com o idioma, e com o miado dos gatos. Mas parece que se
pode transigir com a Santa Doutrina que foi arrematada com o grito de dor
de um Deus crucificado.
Dirijo-me aos católicos-liberais, e digo-lhes que a sua transigência
doutrinária prova simplesmente que, para eles, a Religião é a coisa menos
importante do mundo. Ora, o catecismo nos ensina, ao contrário, que a
Religião é infinitamente mais importante do que o mais alto dos negócios
humanos. Nós outros que em tempo e contratempo procuramos ser fiéis à
doutrina, e que levamos a sério a nossa religião, seremos necessariamente
intolerantes. E seremos lógicos, porque uma religião-sem-importância é um
absurdo impensável!
Na verdade, a inconsistência moral do catolicismo complacente se explica
por uma espantosa subversão: o que se procura nesse tipo de religião é um
deus vantajoso, um deus que nos sirva, que acorra aos nossos caprichos.
Ora, mal ou bem, às vezes indignamente, nós outros professamos uma
religião e procuramos um Deus como os magos de Belém: para adorá-lo e
para servi-lo. Não podemos, por isso, parar nas esquinas mais próximas,
para oferecer nosso incenso aos ídolos mais acessíveis, porque o nosso
Deus é um Deus de absoluta intransigência que disse: “Eu sou aquele que
sou”; e logo acrescentou: “Não terás outros deuses diante de minha face”.
Nosso Deus quer ser amado sem erro de pessoa. Quer ser louvado e
adorado como Ele próprio, pela santa humanidade de seu Filho, nos
ensinou. Quer ser seguido. Quer ser ouvido e obedecido: “O meu discípulo é
aquele que ouve e guarda os meus preceitos”.
*
A tradição católica sempre comparou a tolerância religiosa a um adultério.
No Livro dos Provérbios (VI, 20-35) encontramos passagens como estas:
“Meu filho guarda os preceitos de teu pai e não recuses os ensinamentos de
tua mãe. Fixa-os no teu coração. Amarra-os ao teu pescoço. Eles te
preservarão da mulher perversa, da língua sedutora da estrangeira...”. E
também: “Meu filho, sê atento à minha sabedoria e inclina o ouvido à minha
inteligência, a fim de conservares a reflexão e para que teus lábios guardem
a ciência. Porque os lábios da estrangeira destilam o mel e o seu paladar é
suave, mas no fim ela é amarga como o absinto e aguda como a faca de
dois gumes. Seus pés conduzem à morte...”.
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Essa mulher perversa é a heresia; é a sedução que faz cócegas nos ouvidos
como dirá mais tarde o Apóstolo.
Todos conhecem, ao menos vagamente, as perseguições sangrentas que os
cristãos sofreram nos primeiros séculos de nossa história. Os católicos
complacentes terão visto talvez o filme “Quo Vadis”, e na falta de melhor
informação já terão uma pequenina idéia do tratamento que era ministrado
aos cristãos daqueles tempos. Ora, querem agora saber o que exigiam os
juizes romanos dos réus que lhes traziam? Muito pouco. Queriam apenas
que os cristãos incensassem os ídolos, ou que pronunciassem uma palavra
negando o Cristo. Bastava um gesto insignificante, uma palavra sem grande
importância — diriam hoje — para que o acusado salvasse a vida. Ora,
milhares e milhares de cristãos recusaram-se e foram supliciados. Com o
preço da vida a jovem Perpétua, moça, mãe de filhos, esposa amada, e Inês,
quase adolescente, e Lourenço, e Sebastião, e tantos, tantos outros
pronunciaram essa palavra formidável que, nós aqui repetimos hoje, sem
perigo imediato de vida, mas pedindo a Deus que a grave em nossos
corações: Não podemos transigir!
Essa é a intolerância católica, a santa intolerância dos mártires.
Agora consideremos o catolicismo complacente que faz vista grossa aos
mandamentos. A atitude de seus praticantes é outra: por uma dor de
cabeça procuram tendas espíritas, amuletos, curandeiros desencarnados,
caboclos do astral ou não sei que mais. Para reatar um namoro eles fazem o
que os mártires recusavam fazer para fugir ao dente dos leões.
No fim de contas o que querem é uma religião que nada queira deles; o que
exigem é uma religião sem exigências; o que procuram é uma coisa vaga e
mole que combine com a falta de caráter de seus adeptos. Muitos desses
católicos são divorcistas porque a simples idéia de um compromisso sério
lhes causa horror. Acham então que a Igreja precisa evoluir, nessa matéria,
sem perceberem que justamente foi por evolução moral que o casamento
chegou à forma monogâmica e indissolúvel. Querem o divórcio, que Ruy
Barbosa chamou o “sacramento do adultério”; como querem praticar a
superstição curandeira que é o adultério do sacramento.
Aos católicos mais conscientes de seus deveres eu diria que precisamos
redobrar nosso trabalho de esclarecimento e de doutrina. Discordo nesse
ponto, com o devido respeito, das vozes que apontaram no espiritismo o
maior flagelo religioso do Brasil. Será, na linha das conseqüências. Mas na
consideração das causas o número um, a triste primazia, deve ser dada ao
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catolicismo liberal, ao catolicismo complacente, ao catolicismo tolerante, ao
catolicismo que traz a Igreja a moleza, a falta de caráter, a esperteza, que
são os vícios de nossas virtudes, o modo brasileiro de deteriorar o que seria
bondade e magnanimidade se lograsse retificação e purificação.
Mais do que em qualquer outro ponto do planeta, nós, aqui no Brasil,
precisamos aprender a dura e viril arte de não transigir.
E para isso temos de lutar em duas grandes frentes: na formação moral, e
na difusão da Doutrina. Em fórmula mais vulgar e concisa eu diria,
parodiando Capistrano de Abreu, que no Brasil católico o que falta é
catecismo e vergonha na cara.
*
Volto a dirigir-me agora aos não-católicos, às pessoas mal informadas que
nos acusam de intolerantes e que confundem, às vezes por culpa nossa, a
santa intolerância com a intolerância política dos que vêem na Espanha um
ideal católico. A essas pessoas, se têm boa vontade, eu peço que não
meçam a Igreja pelos nossos desatinos, mas pela doutrina de Cristo e pelo
sangue dos mártires. E se querem ler autores modernos que exprimam o
pensamento e o sentimento da Igreja eu lhes pediria que começassem por
ler Pio XII.
[Nota da Permanência: Corção só vai conhecer os massacres dos
comunistas na Espanha mais tarde. Ele fará as retratações necessárias em
O Século do Nada. Também nesse livro escreveu um admirável capítulo
sobre a Guerra da Espanha]
Considerem a Igreja no seu conjunto, no seu grande itinerário. Mesmo sem
fé é impossível não ver o milagre visível da Igreja. É impossível não ver a
grandiosa confusão que através dos séculos vem trazendo intato o seu
grande tesouro que seria frágil se fosse apenas humano.
Dizem que ela é rígida demais, anacrônica e intolerante. Como se explica
então a maravilhosa plasticidade que garantiu sua sobrevivência através
dos tempos, dos choques de raças, das transformações dos costumes?
Nascida entre asiáticos ignorantes ela passa à Roma imperial. Penetra o que
parecia inacessível. Converte escravos e fidalgos. Pobres e ricos. Explode o
Império Romano. E logo, em meio da latinidade culta chega a onda dos
bárbaros. Parece um fim de mundo! A Igreja está em perigo, diziam os
assustados cristãos do Mediterrâneo. Mas os bárbaros se convertem. A
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mesma doutrina que triunfara nas famílias romanas vai agora plantar-se
entre hordas de bárbaros. E nasce o mundo medieval, saldo dessa
combinação estranha de selvagens com o apuro romano e com o requinte
bizantino.
Chega a Renascença, época de audácias, e a Cruz singra os mares e vem
cravar-se em novos continentes. Tornam-se orgulhosos os homens por
causa das conquistas e da ciência. Alguns deles profetizam o fim próximo da
Igreja, mas quando menos se espera, em pleno século XX, vê-se no mundo
inteiro o ressurgimento do cristianismo. E aqui no Brasil já ninguém ousará,
como há 50 anos, contrapor a ciência à Fé ou inculcar-nos como
imbecilizados pela água benta. Já são muitos, louvado seja Deus, os que
poderão confundir nos seus próprios domínios os cientificistas pedantes que
no séculos passado pareciam triunfantes.
Como se explica que a dureza e a intransigência tenham realizado tão
prodigiosa adaptação e tão extraordinária conquista? Terá a Igreja
transigido para comprar adeptos? Terá alargado sua tolerância dogmática e
moral? Os próprios adversários nos prestam essa homenagem: não
transigimos. Como se explica então esse misterioso resultado?
Responderíamos muito simplesmente: explica-se tudo pela Verdade da
doutrina, e pela presença de Deus na sua Igreja.
Mas para completar essa resposta eu acrescentaria que a Igreja não é pura
e simplesmente intolerante. Dissemos no princípio desta conferência que a
tolerância aqui é virtude e ali é vício. Que em certas coisas devemos
transigir e noutras não. Ora, é na Igreja que se realiza, ao máximo, esse
duplo aspecto, esse complementarismo que conjuga a santa intolerância
com a santa tolerância.
Há na Igreja um mistério semelhante ao de Maria Santíssima: o mistério da
maternidade virginal. Pela maternidade ela é solícita e conquistadora; pela
virgindade é zelosa e intransigente. Onde pode adaptar-se, ela se adapta,
se debruça, com generosidade de mãe; onde não pode transigir, ela se
firma com castidade de Virgem Santa. Pela boca de seu ardente apóstolo a
Igreja mãe diz aos seus inquietos gálatas: “Ó filhinhos meus por quem sofro
as dores do parto até que o Cristo Jesus esteja formado em vós!” (Gal. IV,
19). Mas na mesma Epístola fala a Virgem intolerante: “Eu me espanto que
tão depressa tenhais abandonado o Evangelho de Cristo para buscar um
outro Evangelho (...). Ah! Quando vos aparecer alguém anunciando um
evangelho diferente — ainda que seja um anjo do céu — rejeitai-o!”.
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Ouçam agora, na mesma voz, os inconfundíveis acentos da maternidade
católica: “Sendo livre, fiz-me servo de todos, a fim de conquistar um número
maior. Com os judeus, fiz-me judeu para ganhar os judeus. Com os que
estão sob a Lei, eu que não estou sujeito, fiz-me sujeito para ganhar os que
estão sob a Lei. E com os gentios, que não estão sob a Lei, eu que não estou
isento, fiz-me livre para ganhar os que estão fora da lei. Com os fracos fizme fraco para ganhar os fracos. Fiz-me tudo de todos para salvá-los todos. E
eu faço isto por causa do Evangelho, e a fim de cumpri-lo” (I Cor. IX 9 e
seg.).
Em outra Epístola (II Cor. XI, 26 e seg.) temos um pequeno e dramático
resumo da história da Igreja, isto é, do seu zelo missionário: “Labores,
fadigas, vigílias numerosas, fome, sede, jejuns freqüentes, frio, desamparo!
E antes de tudo o mais, meu cuidado de todos os dias, e a solicitude por
todas as igrejas. Quem é fraco que eu também não seja fraco? Quem
tropeça sem que eu me consuma de febre?”.
*
Há, pois, na vida da Igreja, em vez de uma tolerância mediana, a
complementar exaltação de dois máximos: o zelo máximo para adaptar o
que pode ser adaptável; e o zelo máximo, levado até o sacrifício da vida, de
não transigir no que não pode admitir transigência. Sem a insaciável
maternidade não se explicaria a história da Igreja. Sem a intransigente
virgindade, não se explicaria a unidade da Igreja e a integridade da
doutrina.
*
Sendo apostólica e missionária, como podem julgar que seja ela em tudo
intolerante? Sendo depositária da palavra de Deus, como podem esperar
que ela transija? A maternidade virginal da Igreja, pela qual a figura do
Corpo Místico de Cristo se assemelha à de Maria, exalta a solicitude de
adaptação para a conquista das almas, e exalta ao mesmo tempo o rigor, a
dureza adamantina, a santa intransigência daquilo que não passará ainda
que passem os regimes e as civilizações.
Nós outros que vivemos na Igreja, com a Igreja, para a Igreja, e que da
Igreja vivemos, temos de afinar nossas vidas por esse dualismo feito de
uma forte intransigência e de uma larga transigência. Temos de ser tudo de
todos; servos dos que procuram o Evangelho; perdigueiros do bom Pastor;
pacientes na espera das almas; impacientes na busca; ressonantes com as
aflições. Quem chorará que não choraremos com ele? Quem cairá sem que
a febre nos abrase? Quem se alegrará sem que nos alegremos? Ah! bem
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quiséramos nós agradar a todos para trazê-los todos! Mas se nos pedem
agrados dos homens que são desagrados de Deus, não podemos, não
queremos transigir. Se esperam negociar conosco propondo cem mil
adeptos novos pelo preço de um iota, nós não podemos e não queremos
negociar. Aliás, permitam-me um reparo: aquela concessão seria errada até
sob o ponto de vista da esperteza e do cálculo. Não são os transigentes, os
moles, os simpáticos, os afáveis, os mundanos, os maneiros que conquistam
as almas. Pela flacidez de seus instrumentos são maus pescadores. Ao
contrário, os grandes pescadores de corações foram homens severos e
duros. Duros e severos consigo mesmos e com a Doutrina. De São Paulo,
por aquelas amostras, já vimos que sua imensa ternura pelos discípulos não
anulava a severidade moral e a absoluta intransigência pela integridade do
Evangelho. Sua alma era um enorme cristal líquido. Seu ímpeto era o que
Maritain chamou “un ouragan docile”. Em São Bento, o patriarca do
Ocidente, notamos a mesma nitidez inflexível e ao mesmo tempo o zelo
discreto, a sabedoria pastoral, a brandura de exigências “para que os fracos
não desanimem e os fortes possam ser generosos”. São Bernardo, o asceta
terrível que misturava cinza na comida, enche as salas de Claraval, enche a
Igreja de Deus. São Domingos, Santo Inácio, São Francisco com seu rigor na
pobreza, Santa Catarina de Sena com seu ódio ao pecado, Santa Teresa
D’Ávila, a reformadora, eis aí as almas de cristal e os corações de fogo, que
não transigiram, e que atraíram a Deus milhares de almas perdidas!
A Igreja é, como seus santos, virgem na inteireza de sua Verdade, casta na
custódia de sua doutrina. Mas é mãe dos homens. Debruça-se. Corre atrás
dos que se extraviam, chora os que perde, ri com os que ganha. É dona de
casa que varre o chão, o grande chão do mundo, à procura da dracma
perdida. É pastora que anda pelos montes no encalço da ovelha
tresmalhada. É mulher que vive curvada, debruçada, atenta, na posição
clássica das mães. Abaixa-se. Faz-se criança com as crianças; é índia entre
os índios; amarela entre os amarelos; negra entre os negros. Se o tempo é
propício para gravar em pedra as orações, levantam-se as catedrais. Mas se
é preciso espalhar-se, branca e humilde, constrói capelinhas de roça,
caiadas de branco, nos lugares ingênuos e pobres. É tudo de todos.
Universal. Católica. Estuda com os estudiosos. Canta, se é tempo de cantar.
Brinca, se é tempo de brincar. É a mulher forte que retém o grande riso
venturoso do seu dia definitivo. No meio tempo, enquanto espera, multiplica
seus cuidados e providencia o agasalho de seus filhos.
Mas agora vejam o que acontece quando cai um coração novo nas malhas
da incontestável pescadora. Observem: a Igreja que correu mundo, que
debruçou-se, que tolerou, que foi tudo para todos, espera agora o
catecúmeno na porta da Casa de Deus. Espera-o imóvel, de pé, implacável,
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quase como se fora ele um inimigo, e só lhe abrirá as portas do Batismo se
ele pedir, se ele insistir, se ele renunciar à vida do mundo. A mãe é agora
virgem intolerante. Noiva castíssima. E o zelo de conquistar transmutou-se
em zelo de guardar.
*
Nós, que vivemos da Igreja, devemos afinar nossos gestos por seu Espírito.
Ela nos ensina onde devemos ser tolerantes, e onde não podemos transigir.
Ela nos dá o exemplo da fome de almas e nisto, no fogo da caridade, não
nos traça nenhum limite.
Venham, espíritas, protestantes, indiferentes, venham como homens,
criaturas de Deus, corações desejados, e saibam todos que nós temos o
santo dever de recebê-los e de encaminhá-los. Estamos oferecidos aos
dentes que procuram a verdade. Não podemos economizar. Não podemos
negar. Não podemos fugir. Vejam! Vejam que imprudente propaganda
fazemos de nosso suor e de nossas lágrimas, para seguir de perto a
propaganda que o Cristo fez de seu sangue. “As raposas têm as suas tocas,
as aves têm os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde
descansar a cabeça”. E como pode o discípulo ser maior que o mestre?
Estamos expostos. Oferecidos. Qualquer pessoa, em nome do Cristo Jesus
pode fazer de um de nós um servo. Venham pois. Fomos dados em
espetáculo do mundo! Venham, peçam pregação, canseira, vigília,
compreensão, suor e até lágrimas. Devorem-nos.
Se, porém, nos pedem o cancelamento de um iota; se nos convidam a
tomar parte de uma sessão espírita; se querem discutir conosco em mesaredonda ou quadrada as verdade de Deus; se esperam que concordemos
com o divórcio ou com o aborto; se nos oferecem, para nossas cólicas, uma
consulta médica com almas do outro mundo; então, nós não poderemos
transigir; porque, se transigimos, daríamos prova de que não fazemos caso
da Verdade, não servimos à Justiça e não amamos o Amor.
Conferência pronunciada em 26 de novembro de 1953, no programa
organizado pela J.F.I. da Paróquia de São José.
Revista A Ordem, fevereiro de 1954.
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