A ADOÇÃO DE TECNOLOGIA CONCEBIDA COMO MUDANÇA CONCEITUAL 1 Haloysio Mechelli de Siqueira 2 1. Revendo a questão da “resistência a mudanças tecnológicas” Ao longo da história do extensionismo rural brasileiro, foi muito comum a rotulação dos agricultores familiares, em sua maioria, como “resistentes a mudanças tecnológicas”. Tal conduta, que em parte justificou a concentração do atendimento da Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) junto aos agricultores patronais, teve como pressuposto uma concepção equivocada sobre o processo de aprendizagem das inovações tecnológicas pelos agricultores. A aprendizagem era entendida como “mudança de comportamento baseada no condicionamento” 3, resultante de certos estímulos oferecidos aos agricultores. O objetivo da ATER resumia-se em modelar o comportamento dos agricultores, fazendo com que saíssem de seu tradicionalismo e passassem a adotar as modernas tecnologias, ou seja, a assumir um “jeito moderno de ser agricultor”. O principal estímulo que condicionou essa mudança de comportamento foi a oferta abundante de crédito rural subsidiado. É claro que para a maioria dos agricultores familiares, que sequer tiveram acesso ao crédito subsidiado, menores foram as chances de modernização, refletida no nível tecnológico de seus sistemas de produção. Os projetos de difusão de tecnologia 4 que o serviço de ATER conduziu, através dos métodos de condicionamento operante, acabaram tratando os agricultores como meros objetos passivos que poderiam ser facilmente “treinados” (à semelhança do adestramento de animais), visando persuadi-los a adotar as tecnologias modernas (intensivas em capital), que eram apresentadas como fator determinante de melhoria da renda e da vida no campo. Acreditamos que essa concepção sobre aprendizagem e adoção de tecnologia é inadequada para capacitar criticamente os técnicos da ATER, considerando que seu trabalho é de natureza essencialmente educativa dos agricultores para que sejam sujeitos do seu próprio desenvolvimento. Por isso, defendemos a busca de uma concepção alternativa, cujos elementos básicos o presente artigo pretende apresentar, a partir de uma adaptação da Teoria da Aprendizagem como Mudança Conceitual 5, visando enriquecer o referencial teórico da ATER. 1 Artigo publicado originalmente na revista “Economia Rural” (DER-UFV), n.3, jul./set. 1998. Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), campus de Alegre-ES, nas áreas de Sociologia Rural e Extensão Rural. E-mail: [email protected]. 3 Essa é a concepção da vertente behaviorista em Psicologia da Aprendizagem, tendo no “condicionamento operante”, de Skinner, sua expressão mais aprimorada. Ver mais detalhes em Giusta (1985). 4 Todos esses projetos se fundamentaram no referencial teórico que ficou conhecido como “difusionismo”. Sobre este referencial, ver Rogers e Shoemaker (1974). 5 Extraída de Gomes (1991). 2 2. Apresentando a teoria da aprendizagem como mudança conceitual A teoria da mudança conceitual também assume uma posição construtivista da aprendizagem. De acordo com essa teoria, a aprendizagem é concebida como um processo de mudança conceitual, pelo qual as pessoas incorporam conceitos formais à sua ecologia conceitual, por assimilação ou acomodação. A assimilação ocorre quando um novo conceito é incorporado à ecologia conceitual sem choque com os pré-existentes, enquanto a acomodação ocorre, após o conflito conceitual, quando um novo conceito substitui conceito antagônico da ecologia conceitual da pessoa. Essa teoria da aprendizagem trabalha com a seguinte conceituação básica: - Ecologia conceitual: é o conjunto de conceitos que a pessoa possui e que influencia a seleção de novos conceitos. - Conceitos alternativos: são representações mentais sobre certo conteúdo, que as pessoas constrõem na sua relação com o ambiente natural e social. Fazem parte do senso-comum, do saber popular. - Conceitos formais: são representações mentais sobre certo conteúdo que as pessoas constrõem no processo de ensino-aprendizagem, e que correspondem à ótica acadêmica (saber técnico e científico) em certo momento histórico. - Conflito conceitual: é o conflito entre os conceitos alternativo e formal, vivenciado pelo educando, considerando que apenas um pode ser plausível em certa situação. As condições para ocorrência da mudança conceitual, por acomodação, conforme o modelo “PSHG” 6 são: insatisfação com os conceitos alternativos; inteligibilidade dos conceitos formais; e plausibilidade dos conceitos formais. Considerando tais condições, é essencial que o educador tenha consciência do significado dos conceitos alternativos existentes no contexto de seu trabalho, diagnosticando-os. A partir disso, deve motivar a insatisfação dos educandos com tais conceitos, baseada na análise crítica dos educandos sobre os mesmos, e apresentar os conceitos formais de modo inteligível e plausível. O educador deverá ser um desafiador e facilitador da aprendizagem. Vale ressaltar que enquanto o conflito conceitual (conceito alternativo X conceito formal) não for resolvido, não haverá aprendizagem. 3. Propondo uma abordagem alternativa dos processos de difusão e adoção de tecnologia agropecuária Tomando como exemplo uma técnica bastante elementar, como é o caso do plantio em curva de nível, vamos fazer uma abordagem alternativa dos processos de difusão e adoção de tecnologia, com base no modelo teórico antes exposto. Essa técnica representa um conceito formal, cujo antagonista seria o conceito tradicional (popular) do plantio “morro-abaixo”. 6 Gomes (1991) relata que esse modelo ficou assim conhecido por ter sido elaborado por Posner, Strike, Hewson e Gertzog. Adotamos tal modelo como referencial teórico devido a sua ênfase no processo de “acomodação”, que é o mais problemático e desafiante aos projetos de ATER. Numa comunidade de agricultores familiares onde o conceito do plantio “morro-abaixo” foi consolidado, historicamente, através de sua difusão cultural, geração após geração, somente poderia ocorrer mudança conceitual se os agricultores se sentissem insatisfeitos com tal modo tradicional de plantio. É óbvio que enquanto o plantio “morro- abaixo” estiver enquadrado dentro da lógica de trabalho e produção desses agricultores, correspondendo a uma explicação coerente com sua percepção sobre os processos ecológicos e socioeconômicos que vivenciam, eles não sentirão necessidade de mudança. Diante de um quadro como esse, o técnico (educador) deve, primeiramente, buscar o conhecimento profundo da realidade e da percepção dos agricultores visando compreender a lógica subjacente ao seu modo de plantio, como ponto de partida para a construção de uma outra lógica, que possa justificar o plantio em curva de nível. Essa construção deverá ser um processo consciente dos próprios agricultores, mas facilitado pelo técnico que poderá trabalhar, por exemplo, a análise crítica sobre as causas e os efeitos da erosão do solo. A percepção da erosão como problema, pelos agricultores, é essencial. Métodos de trabalho do tipo “motivação dedutiva” 7 ajudarão bastante nesse sentido. Feita a problematização, num segundo momento caberá ao técnico explicar o conceito do plantio em curva de nível, de tal forma que os agricultores não só entendam plenamente o significado desse plantio, mas também percebam que o mesmo é adequado às suas condições de terra, de trabalho e de vida. Por isso, será fundamental que os agricultores participem da análise operacional da técnica, especificamente para tais condições, pois não se pode impor um procedimento padronizado de introdução da técnica. Quanto maior o grau de compreensão do significado e de percepção da adequabilidade do plantio em curva de nível, maior a insatisfação dos agricultores com seu plantio tradicional e, consequentemente, maiores as possibilidades de ocorrência da mudança conceitual. Ao passarem a conhecer a nova técnica, os agricultores vivenciarão um conflito conceitual, entre as duas modalidades de plantio em análise, de cuja resolução dependerá a aprendizagem. 4. Concluindo O principal mérito da abordagem proposta, no presente artigo, é acreditar e investir na capacidade de análise/síntese e compreensão dos agricultores sobre sua realidade e as mudanças necessárias, atribuindo a eles um papel ativo na construção de conhecimentos técnicos que sejam plenamente adaptados às suas condições ecológicas e sócioeconômicas. Dessa forma, julgamos estar contribuindo para a formulação de pressupostos teóricos que, efetivamente, possam tornar os processos de educação não-formal, próprios da ATER, verdadeiros fatores de Desenvolvimento Rural. 7 Por meio desse método de trabalho, os agricultores são motivados, pelo técnico, a desenvolver seu pensamento dedutivo, a partir da observação sistemática de, por exemplo, simulações de campo. A formulação de questões sequenciais aos agricultores é recomendada para facilitar as deduções. 5. Referências GIUSTA, A. S. Concepções de aprendizagem e práticas pedagógicas. Educ. Rev., Belo Horizonte, n.1, p. 24-31, jul. 1985. GOMES, M. P. R. M. A construção do conceito de aprendizagem como mudança conceitual: uma estratégia baseada no modelo PSHG. 1991. 103p. Tese (Doutorado em Educação) Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. ROGERS, E. M.; SHOEMAKER, F. F. La comunicacion de innovaciones; un enfoque transcultural. México: AID, 1974.