Subido por Simone de Sá

Terceiro abecedário da vida espiritual

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ÍNDICE
INTRODUÇÃO
5
1° Capítulo: CAMINHO E META DA ORAÇÃO CONTEMPLATIVA
6
Contemplação para todos
6
Sobre os nomes do dito exercício
8
2° Capítulo: TRÊS MODOS DE ORAR
10
Oração Vocal
10
Oração meditativa do coração
11
Contemplação: Oração do amor
12
Analogias
13
Como devemos lidar com o sono
14
Torna-te cego, surdo e mudo
15
Do conhecimento de Deus
18
Sobre a mansidão
19
3° Capítulo: PÕE TUA MENTE EM ESTADO DE PROFUNDO
REPOUSO E SILÊNCIO
21
Acalmar o espírito
21
De como fazemos a nossa mente silenciar
23
Sobre os três tipos do silêncio
25
Contestação dos inexperientes
28
O bom resultado da contemplação confere segurança
29
Sobre o valor e a essência da oração contemplativa
31
Atenção vigilante em Deus
33
O Mergulho em Deus
34
4° capítulo: FORMAS E IMAGENS DA GRAÇA
36
Contemplação e humanidade de Cristo
36
Amizade com Deus
39
As águas da graça
41
O que é melhor: Entrar no seu interior ou superar a si mesmo?
43
A prisão do amor
43
Nosso coração — um castelo
44
A oliveira
46
Casulo e borboleta
47
5° Capítulo: A HUMILDADE COMO CONDIÇÃO DE
CRESCIMENTO ESPIRITUAL
49
O que é humildade?
49
Uma qualidade notável da humildade
51
Como devemos diminuir, ao crescermos
52
Sobre a importância de crescer na humildade
54
Louvor da humildade
56
6° Capítulo: DE TUDO DEVEMOS TIRAR AMOR
58
Deus
58
As criaturas
59
Alegria e dor
59
Amante e amado
60
7° Capítulo: A COROA DA VIDA
61
Seguimento de Cristo
61
Oração permanente
62
Sobre a tristeza espiritual
62
Envolver a Deus em tudo
63
Da perseverança
64
INTRODUÇÃO
O autor Francisco de Osuna nasceu na Espanha no ano de
1492. Entrou numa ala da Ordem Franciscana chamada dos
Observantes, onde, naquele tempo, surgiu a voz: De volta ao
deserto! Era um movimento eremítico que zelava pela
contemplação. Neste ambiente, Osuna se tornou aluno e depois
mestre de espiritualidade, e foi ali que escreveu as obras que dele
fizeram a grande autoridade espiritual.
A principal obra de Francisco de Osuna chama-se Abecedário
espiritual (escrito entre 1525-1554). Divide-se em seis partes com
os seguintes conteúdos: a Paixão de Cristo a preparação para a
disciplina ascética; a união mística com Deus; os mistérios do amor
uma guia para o rico e uma consolação para o pobre; tratado sobre
as chagas de Jesus Cristo.
O “Terceiro Abecedário” (portanto, a terceira parte), escrito em
1527, chegou às mãos de Santa Teresa de Ávila em 1538. Nesse
tempo, ela estava procurando um mestre. O exemplar que ela usou
ainda existe, cheio de anotações e comentários. O livro foi fonte
inspiradora para suas obras.
A presente edição não é tradução do “Terceiro Abecedário” e
sim tradução para o português de uma versão alemã que Erica
Lorenz apresentou em 1982. Muitas vezes, não se encontra registro
das alusões bíblicas, porque Osuna usa de muita liberdade ao citar
e comentar a bíblia.
O mestre quer ensinar a arte de orar, quer mostrar o caminho
da profundidade e da interiorização, que muitos hoje procuram nas
religiões orientais. Osuna conduz à contemplação que conhece
métodos e, ao mesmo tempo, sabe de seus limites. O que ele quer
é a atitude de entrega que se abre à direção de Deus sem reserva.
Adolfo Temme
5
1° Capítulo: CAMINHO E META DA ORAÇÃO
CONTEMPLATIVA
Contemplação para todos
Escrevi este livro na intenção de tornar o exercício da
contemplação acessível a todos. Isto é: quero ensinar a todos como
se pode chegar ao supremo Senhor, que aceita qualquer um no seu
serviço e que gostaria de ser amigo de todos. Está escrito: “A
sabedoria chama os filhos dos homens com voz mansa e amável,
não somente nos altos dos montes, mas também nos portões da
cidade. E ela enche as praças com seu perfume”.
Há gente que não vai gostar de que eu passe um exercício de
tão alto valor a pessoas mergulhadas em pecados e metidas em
negócios mundanos. A isto quero responder que ensino e escrevo
somente para a pessoa, seja quem for, que guarda os
mandamentos de Deus.
Vem e procura aqui tua paz. Não penses que precisas
entender a lógica e a metafísica para poder dedicar-te à oração
contemplativa. A teologia mística (que é sinônimo de contemplação)
encontra-se na escola do coração. Diferente da teologia escolástica,
ela pode ser adquirida por qualquer fiel, homem ou mulher,
independente do grau de instrução. Até podemos dizer que
doutores e dignatários têm mais dificuldade em conquistar a
necessária quietude e o despojamento da alma do que pessoas
simples, que não têm o peso de cargos e deveres públicos.
Também aos casados não devemos recusar nenhum tipo de
oração. O matrimônio é um sacramento, sinal de consagração, sinal
da graça que a alma recebeu. O estado matrimonial é também uma
Ordem, não fundada por São Domingos ou São Francisco ou São
Pedro, mas fundada pela Palavra Eterna no Paraíso terrestre.
A “via da negação”, o caminho do não-saber, do qual este
livro trata, é estranho e difícil de entender para todo mortal. Este
caminho tem veredas, ramificações e locais secretos, tão
desconhecidos como a via principal. Tudo o que se escreve sobre
isto é obscuro para o principiante. Mas, se ele se confiar, como um
cego, à direção do Senhor, Deus o guiará, como nos é prometido no
livro de Jó. Foi assim que o Senhor conduziu o Apóstolo Paulo que,
mesmo cego, foi elevado até o terceiro céu para aquele estado que
lhe permitia a graça de ver a Deus como os anjos, como se
expressou Santo Agostinho.
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O contemplativo foi comparado a uma águia. Diz a Escritura:
“Como uma águia que vigia o ninho e fica voando sobre os filhotes,
assim ele (o contemplativo) estendeu suas asas, tomou o ninho e
levou-o em suas asas”. Aquele que aprendeu o voo alto da
contemplação e construiu o ninho do recolhimento nas alturas (nos
cumes), não deve esquecer-se daqueles que ficaram embaixo. Ele
tem que animar-nos a voar também. Se nosso desejo é este, é justo
que ele estenda as asas sobre nós e nos mostre como chegou a
voar.
E se não der para ensinar numa única lição, prepara-te para ir
até o fim. Porque principiantes têm que ser instruídos a fundo, já
que se trata de um voo tão alto como a contemplação. Pode
acontecer que o orante suba tanto que perca de vista a si mesmo.
Considera bem que ninguém se torna mestre numa arte, se
não se exercita muito. Quanto mais ele treina e se acostuma com a
arte, tanto mais avança. O que vale para outras artes e práticas
também vale para este exercício:
1. A pessoa aprende um ofício para tornar-se mestre e não
para ser um eterno principiante, como acontece com pessoas
medíocres. Como é tolo o homem que constrói sua casa e não a
termina o quanto antes, para poder valer-se dela. Se ele passa
anos neste trabalho por relaxamento, o povo vai dizer que ele
investe a vida numa coisa que não vai para frente e só traz custo e
esforço. Meu irmão, se quiseres construir a casa da Contemplação,
estejas disposto e decidido. Dispõe-te como alguém que aprende o
ofício do carpinteiro e conclui o aprendizado como mestre. Porque a
arte só te ajuda, na medida em que a dominas.
2. Só alcançarás o desempenho desejado, com exercício
constante. Davi foi obrigado a desfazer-te da arma com que não
estava treinado (a espada de Saul). Ele percebeu que ela lhe seria
um obstáculo, enquanto ao homem treinado ela é de grande valia.
Aqueles que não treinam bastante na contemplação têm a mesma
sorte. Eles acham que ela é perda de tempo e atrapalha na oração,
mas a verdade é que todos os que a exercitaram acharam nela
força e coragem para realizar grandes coisas.
Se não puderes perseverar por amor, obriga-te com santo
zelo e passa pela porta estreita da contemplação, porque Deus dá a
graça do saber àquele que se atreve a perseverar. Considera que
Deus te fez unicamente para a oração. Ele não exige outra coisa de
ti, a não ser que O adores em espírito e verdade. Assim, tua
habilidade nesta arte será treinada, na qual um dia serás mestre.
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Sobre os nomes do dito exercício
Este exercício, por ser tão especial, tem muitos nomes, tanto
na Sagrada Escritura, como nos livros dos Santos e Doutores.
Alguns lhe dão o nome de “Teologia mística”, isto é, teologia
misteriosa, porque nosso bom Mestre Jesus Cristo a ensina no
oculto esconderijo do coração. Este magistério, Ele o reservou em
grande parte para si mesmo e, neste campo, deu aos servos menos
poderes do que em todas as outras áreas do saber.
Acontece que existem dois tipos de teologia: uma é a teórica e
pesquisadora, o que é a mesma coisa, e a outra é oculta: é desta
que este livro trata. Não é que eu me atrevesse a ensiná-la, porque
nenhum mortal é capaz. Cristo reservou para si o encargo de
revelar a teologia misteriosa desta ciência divina para aqueles
corações que Ele habita. A teologia mística, da qual falamos, não se
alcança por raciocínios e argumentos e, sim, pelo amor dedicado e
pelo exercício das virtudes que purificam as almas e as preparam
para Deus. Ela necessita das virtudes teologais e dos dons do
Espírito para alcançar os três degraus, a saber, a purificação, a
iluminação e a perfeição. O que vale para animais, tanto mais se vê
no homem: Quando o saber é pouco, o amor e a afeição são tanto
maiores. Isto se vê nas crianças que mostram mais amor aos pais
quando ainda não usam a razão. A mesma coisa acontece com os
noviços que, no primeiro ano, na sua singeleza, têm mais fervor do
que quando se tornam doutores.
Disto resulta que este tipo de alta teologia não carece de
ciência, embora não dispense o saber divino infuso, que na verdade
não falta àqueles que se aplicam a ele. Eles sabem pela fé que
Deus é sumamente amável e que Ele é a perfeição do amor. Se a
nossa afeição for purificada, provada e pronta, nada impede que ela
se transforme Nele, que se inflame Nele e se eleve a Ele, que é o
fundamento e o solo, ou melhor, a fonte do amor.
Este tipo de oração também é chamado arte de amar, porque
sem amor não se realiza, e ela faz crescer o amor mais do que
todas as outras artes. Cristo, Deus de amor, ensina-a àqueles que
têm um coração cheio de amor. Às vezes, nós vencemos pela arte,
quando pela força não poderíamos vencer, como aconteceu com
Davi, que venceu Golias não pela força e sim pela sua arte. A
mesma coisa se vê no caçador que vence o elefante pela arte. É
por isso que o nosso exercício se chama arte, porque com suas
poucas forças vence o Onipotente, leva-o preso ao seu interior e
prende-o com algemas, como diz a noiva dos Cantares “Eu o
segurei e não soltei mais”.
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Esta oração também se chama arte de amar, porque ela é
forte como a morte que a todos vence. Nisto se vê que o exercício
da contemplação contém arte e força ao mesmo tempo, as duas
coisas indispensáveis para dominar qualquer dificuldade.
Também lhe é dado o nome de União, porque o homem,
quando se une a Deus, com Ele se torna um só Espírito pela
permuta da vontade. Nem o homem quer outra coisa do que Deus
quer, nem Deus se separa do querer do homem. São unânimes em
tudo como criaturas que se unem a tal ponto que, de certo modo, se
anulam para formar um terceiro ser. É assim que acontece neste
processo em que, de início, Deus e o homem têm um querer
distinto, mas, no fim, as vontades consentem em tudo, de modo que
já não há o menor descontentamento. Esta união faz com que o
homem também se una ao seu próximo. De modo que, se todos
nós estivéssemos neste estado, a multidão dos fiéis seria um só
coração e uma só alma no Espírito Santo, que procede do Pai e do
Filho. Assim, o Espírito Santo nos une no amor para nos encher de
graça e para nos entregar a Deus como um todo, de modo que não
precisa conduzir um por um a Deus.
Este exercício também é chamado de submersão, porque ele
entra na escuridão e na profundidade. Sua base está no fundo e na
interioridade do coração humano, que por natureza é obscuro. Quer
dizer: quando estiver privado do saber humano e, portanto, estiver
totalmente no escuro, o Espírito de Deus há de pairar sobre suas
águas e dizer: Faça-se a Luz!
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2° Capítulo: TRÊS MODOS DE ORAR
Querendo falar da oração numa linguagem simples, devemos
dizer primeiro que existem três modos de oração que correspondem
aos três degraus: dos principiantes, dos mais avançados e dos
quase perfeitos.
Mas é difícil saber quem é principiante, quem é da segunda e
da terceira categoria, porque o critério não é a piedade do coração,
nem a duração do exercício, nem é questão de personalidade ou de
dons recebidos. Se alguém, por humildade, se considera
principiante, pode ser que a humildade o seduza para uma
avaliação errada: Para evitar um elogio, prefere contrafazer-se.
Mas, em geral, é melhor descer um degrau, porque, quando o
homem pensa que está subindo, na verdade vai descendo. Às
vezes, o Senhor derruba aqueles que antes elevou, para que
aprendam que não subiram por esforço próprio, e sim carregados
por Ele. Isto reconhecemos melhor, quando caímos do que quando
somos elevados.
Oração Vocal
O primeiro modo de orar é vocal. É o ofício das horas e outras
orações que nossa boca pronuncia para a glória do Senhor.
A oração mais abençoada entre elas é o Pai-Nosso, que tem
a preferência por causa daquele que a ensinou. Quem profere esta
oração com devoção pede o Pai em nome do Filho, do qual ela
vem, e por isso o Pai atende o Pai-Nosso com mais presteza do
que a qualquer outra oração.
O Senhor ordenou que não falássemos muitas palavras na
oração, mas que multiplicássemos nossa afeição e nosso amor. O
próprio Senhor obedeceu a esta regra, porque fez uma oração curta
e começou com as palavras “Pai Nosso”. Assim, desperta o amor
de Deus desde a primeira palavra, porque o chamamos de Pai.
Com a segunda palavra despertamos o amor ao próximo, porque
com o “nosso”, o semelhante se torna nosso irmão e filho de Deus
por graça. Assim, rezamos pelo próximo como quem reza por si
mesmo, porque chamamos o Senhor o Pai universal de todos os
homens.
O mais importante nesta oração é que a rezemos com grande
confiança e sem dúvidas, como condiz com estas palavras benditas
que dirigimos àquele que no-las deu. A oração é tão curta, porque
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em poucas palavras ela prova a boa vontade do Senhor de atendernos. Em breve, nos será dado o que em breves palavras pedimos.
Se Ele não quisesse atender-nos logo, iria entreter-nos com mais
palavras. Mas, sabendo que nosso bom Pai tem mais cuidado com
seus filhos queridos do que eles próprios, Ele encurta o pedido para
estender logo a mão que nos presenteia.
Oração meditativa do coração
O segundo modo de rezar acontece no interior do nosso
coração, sem formar palavras com os lábios. Somente o coração se
dirige ao Senhor no oculto, onde ninguém nos ouve. As graças
aumentam, porque nós falamos – por assim dizer – no pé do ouvido
de Deus. Foi assim que Davi rezou, quando falou “O teu servo
achou dentro do coração a oração que a ti dirige”. Para rezar desta
maneira, a pessoa deve preparar o seu coração e expulsar todo o
pensamento nocivo e superficial.
Foi desta maneira que o santo Profeta Moisés rezou, quando
fez Israel sair do Egito. Quando sua boca se calou e o coração
falou, Deus lhe perguntou: Porque gritas tanto? Com isto, Deus
mostrou que ouve melhor os pensamentos do que as palavras.
Pensamentos têm valor por si mesmos, enquanto palavras sem
pensamento não valem nada. Deus vê o coração e não os lábios,
que recebem seu valor do coração. O coração, por sua vez, não
precisa da língua, a não ser na profissão de fé que, em certos
casos, deve ser pronunciada com a língua e os lábios.
Neste modo de rezar que só o coração pratica enquanto os
lábios se calam, entra a santa e devota meditação da Paixão do
Senhor ou da Santa Igreja, do Juízo Final ou de outros objetos de
devoção. Meditando a Santa Paixão ou seus pecados, a pessoa
está rezando, porque ninguém pensa nos seus pecados, a não ser
para pedir perdão.
Para este modo de oração que se faz com santos
pensamentos e consideração devotas, é preciso que a pessoa
recorde a história bíblica e os mistérios do Senhor. É necessário
que escute e leia coisas boas sobre isto, porque assim junta lenha
para alimentar o fogo do altar do Senhor. A meditação mais
proveitosa que se pode fazer é a da paixão do Senhor. Mas é bom
que os assuntos mudem conforme as festas do ano litúrgico.
Quantos mais espirituais, tanto mais difíceis são os assuntos.
Não devemos desistir da meditação, mesmo que nela nos falte a
devoção. Esta impressão pode enganar-nos é o demônio que quer
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afastar-nos das coisas mais elevadas. Por isso, não estranhe, se no
primeiro ano quase não surge devoção na meditação. Mas depois
ela vem com tanta força que preenche nosso coração quase o dia
todo, e a pessoa vai ver que um dia assim vivido vale mais do que
um ano cheio de oração vocal.
Contemplação: Oração do amor
O terceiro modo de oração é chamado oração interior, na qual
a parte mais elevada de nossa alma se dirige a Deus da maneira
mais pura e amável, carregada pelas asas do desejo e pelo
sentimento radicado no amor. Quanto maior o amor, tanto menos
precisa de palavras, e estas poucas palavras serão mais iluminadas
e essenciais. Porque, quando o amor é sincero, não precisa de
discursos; ele realiza grandes coisas em silêncio. Ele sabe: Deus o
acolhe tanto mais generosamente, quanto mais ele se afasta das
coisas criadas e Nele se recolhe totalmente. Quanto mais sua
entrega for completa e apaixonada, tanto mais o amor é
correspondido por Deus.
O Senhor diz no Evangelho: Os verdadeiros adoradores
adorarão o Pai no espírito e na verdade, pois Deus é espírito, e os
seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade. Quanto
mais existir concordância entre o adorador e o Senhor adorado,
tanto maior a chance de ser atendido. Se, portanto, o Pai é espírito
puro e em nada participa do que é corporal, nossa oração será
tanto mais adequada, quanto mais se afastar de figuras e
representações e também dos pensamentos do coração. Pois
estes, por mais que se elevem, sempre ficam muito abaixo da
realidade divina. Mas a saudade que abraça a Deus na sua
essência e sem imagem corporal e o amor que dispensa as
palavras adoram a Deus de um modo tão espiritual e imediato que a
alma só usa as palavras dos Cantares que diz: “Meu amado é meu,
e eu sou do meu amado!” Não há palavras mais espirituais e
intimas e iluminadas do que estas. Não há palavras que melhor
expressem onde se quer chegar com este modo de oração.
O máximo que Deus pode fazer pelo amado é entregar-se a
ele; e o máximo que o homem pode fazer por Deus é doar-se a Ele.
Só que nós não somos capazes de uma entrega perfeita sem a sua
ajuda. É por isso que a noiva diz primeiro: “Meu amado é meu” e
não “Eu sou do meu amado!” Mas tem que ser dito: esta doação do
homem a Deus e de Deus ao homem é um dom irrestrito: parece
que Deus entrou totalmente no ser humano. Quero dizer com isto:
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se a fé não iluminasse a pessoa que sente a Deus dentro de si, ela
iria dizer que Deus está nela inteiramente e em nenhum outro lugar.
A alma do verdadeiro adorador sente-se, muitas vezes, de tal
maneira preenchida por Deus que ela tem a impressão de confinar
no seu pequeno peito a Ele que sem dúvida é infinito. Muitas vezes
as pessoas contemplativas se doam a Deus tão profusamente que
não reservam nada para si. Renunciam à sua liberdade e vontade
pela sua sintonia e entrega a Deus, esquecem-se de si mesmas,
como se não existissem.
Analogias
A oração vocal é como mensagem que enviamos ao nosso
amigo. A meditação é uma mensagem enviada para alguém que
nos é muito caro. A contemplação dispensa o correios e entrega a
mensagem em mãos.
O primeiro modo beija os pés; o segundo, as mãos; e o
terceiro beija a boca.
O primeiro baseia-se na fé que professamos com a boca. O
segundo, na esperança que carregamos no coração. O terceiro, no
amor que provamos nas obras.
O primeiro faz parte da purificação. O segundo, da iluminação,
e o terceiro, da perfeição.
Com o primeiro modo de oração, melhoramos a memória;
com o segundo, a inteligência; e com o terceiro, a vontade.
É costume comparar os três modos de orar com os três
estados, a saber: os casados, os padres seculares e os monges.
Mas a verdade é que em cada estado existem principiantes, mais
avançados e quase perfeitos. Por isso, prefiro dizer que, em cada
estado, pode haver os três modos de orar, dependendo de cada
pessoa que a executa. E ninguém se orgulhe com a perfeição do
seu estado, se lhe falta, pessoalmente, essa perfeição. Porque é
melhor ser fiel no pouco (nos mandamentos), do que ser infiel no
muito (os conselhos evangélicos).
Em cada pessoa, se acham as três maneiras de orar,
conforme tempos e circunstâncias. Às vezes, nos dispomos mais
para uma, outras vezes preferimos a outra. Há vezes em que
avançamos muito e depois caímos tanto que precisamos começar
tudo de novo. A todos que praticam estas três maneiras de orar
recomendo: faça uma oração antes de dormir e volte para a oração
logo que acordar.
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Como devemos lidar com o sono
Uma pessoa notável me falou que o homem piedoso deve
preparar-se para o sono, como o pecador para a morte. Porque
seremos julgados da maneira como a morte nos encontra. Por isso,
devemos entrar no sono como no juízo. Porque a morte pode levarnos dormindo. Conheci uma pessoa que se deitou com perfeita
saúde e morreu sem poder dizer onde doía.
Você deve acostumar-se tanto com a oração antes de dormir
que sempre, ao deitar-se já sente necessidade de rezar quinze
minutos, a saber, rezar no oculto, de modo que só o Pai o veja.
Quando se deita, não pare de guardar no seu coração com cuidado,
tanto assim que você tem a impressão que se deita para rezar e
não para dormir. Quando acorda, volte para a oração, com a
ansiedade de uma criança que adormeceu segurando um bolo que
a mãe lhe deu e, ao acordar, quer saber se este bolo continua em
sua mão ou se caiu enquanto dormia.
Quem sempre reza antes de dormir se acostuma tanto que já
não acha sono sem oração. E a alma que se acostuma com o
recolhimento profundo e a contemplação não consegue dormir sem
se recolher antes. Como o corpo precisa de calma para dormir, a
alma precisa acalmar-se para orar.
Para poder dormir, o homem precisa recolher seu coração e
aquietar-se, interior e exteriormente, desligando-se das moções do
sentir e perceber. Faze a mesma preparação para a oração; então
acontece que a alma cai num santo sono espiritual, mesmo antes
do corpo.
Muitos testemunharam que, quanto mais fervorosamente
rezavam antes de dormir, tanto mais ligeiro voltavam para a oração
depois de acordar. E pode acontecer uma coisa incrível: a alma já
se encontra em oração, antes de acordar. Acontece que a pessoa,
antes de acordar exteriormente, já se desperta interiormente e volta
à oração ainda dormindo.
Às vezes, acontece que a pessoa pode decidir se quer
acordar ou não, porque o acordar de dentro é diferente do despertar
exterior. A alma está de tal maneira presente em si, como a água
viva debaixo do gelo, como o pinto no ovo e como o profeta Jonas
que, na barriga da baleia, conseguia rezar.
Os que avançaram no caminho da contemplação expulsam o
sono por meio de profundo recolhimento e mesmo só precisam de
pouco sono. Enquanto o principiante precisa de 6 horas, o
avançado se contenta com 5 horas. Os que se aperfeiçoaram na
oração interior costumam dormir muito pouco, porque sentem uma
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coisa que, de dentro, os mantém acordados, quando buscam o
sono. Entre anoitecer e amanhecer, dormem menos de 3 horas, e o
menor barulho os faz acordar. E esta dormida é um sono em
pequenos goles, porque não podem tomar o seu sono de uma vez.
Mas o Senhor lhes dá em alegria o que lhes falta em sono. “Ele os
tira de todas as aflições”, como já cantava Davi, se bem que os
sentidos ficam sentindo alguma falta.
Eu conheci homens contemplativos que passaram anos com
menos de 3 horas de sono. Conheci um que confidenciou ao seu
melhor amigo que em 7 anos não dormiu tanto como se dorme
normalmente em 4 meses. Teria outras coisas para relatar sobre
ele, mas não se pode publicar, porque ninguém mais o sabe. Ele se
escondia, em geral, na sua cela, de modo que ninguém sabia se
dormia ou se estava acordado.
Bem-aventurados aqueles que rezam antes de dormir e que
continuam logo ao acordar. Eles passam em oração o maior tempo
do que outros passam dormindo. Mesmo se dormiram pouco,
sabem, ao acordar, que sua alma descansou nos braços do Amado.
Torna-te cego, surdo e mudo
Com este título queremos lembrar que, ao fechar os sentidos
exteriores, abrimos os sentidos interiores que devemos exercitar.
Assim como conhecemos o mundo corporal com os sentidos
exteriores, reconhecemos as coisas elevadas e espirituais com os
sentidos da alma, na medida em que os desenvolvemos. Acontece,
porém, que nossa percepção de tudo que é divino é como o da
coruja ou do morcego, que não têm capacidade de perceber o
clarão do sol, porque são totalmente destinados para a escuridão.
Assim, também nós devemos esconder-nos, como os animais
quase cegos, e dizer com o salmista “Estou como mocho das
ruínas” (Sl 102,7), porque só na luz do além nosso olhar será
fortificado pelo Cordeiro, de modo que veremos a Deus com mais
nitidez do que com o olhar da águia, sem interrupção e sem piscar,
face a face.
Para reconhecer as coisas exteriores, precisamos não só da
luz do sol, porque ao cego nada adianta o clarão. Tampouco só a
nossa visão vai resolver, porque, no escuro da noite, nada
enxergamos com os olhos abertos. Tem que haver as duas coisas,
a luz externa e a luz interna dos nossos olhos, para que possamos
perceber as coisas visíveis.
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Isto vale também para a mais alta percepção espiritual. O
clarão, que procede da capacidade natural do nosso espírito, juntase com a luz divina e celeste, e, assim, somos capazes de
reconhecer coisas que nunca vimos. Com Davi podemos dizer:
“Com tua luz vemos a luz” (Sl 36,10). É a fé que ilumina o ser
humano, sua luz se junta com a luz de nossa alma pelo
consentimento e pela entrega com que a recebemos. E, nesta luz
dobrada, reconhecemos, na fé, as coisas eternas que são desejo
natural da alma pois ela sempre busca o melhor.
Quem medita sobre isto fortifica sua fé na nova luz das
verdades e ganha santos pensamentos, tanto da Escritura, como
das coisas criadas. Ele aproveita a Luz dos sentidos da alma e abre
os olhos do coração, i.é, ele presta atenção nas mensagens dos
objetos e das suas alegorias. E assim ganha conhecimentos mais
profundos.
Outros não vão pela via da meditação, porque são
conscientes de como é fraca a sua luz natural, em comparação com
a luz de Deus. Eles desistem de servir-se da luz própria que, na
verdade, é importante diante da glória e da grandeza da divina
majestade e lembram o primeiro capítulo do Apocalipse, onde São
João relata sua visão de Cristo: "Sua face era como sol. Ao vê-lo,
caí morto a seus pés” (Ap 1, 16-17).
João caiu como morto, porque, como diz o filósofo Aristóteles,
a percepção destrói o órgão perceptivo, quando esta for forte
demais. Sabemos, por experiência; um som muito alto ensurdece o
ouvinte e, quando miramos diretamente o sol, ficamos cegos pelo
seu esplendor. Se tocamos um ferro em brasa, queimamos a mão e
já não podemos pegar em nada. Portanto: quando o objeto da
percepção ultrapassa a nossa medida, ele destrói o sentido que
para ele se volta.
Nas almas dos santos, acontecem revelações que poderiam
destruir a inteligência. Mas, como esta é indestrutível, elas
anestesiam, por assim dizer, para que pare seu funcionamento. É
por isso que S. João diz que caiu como morto aos pés do Senhor,
quando viu o seu rosto que brilhava como o sol. Os olhos de nossa
alma se turvam, quando queremos ver o que é de Deus, enquanto
ainda vivemos no exílio terrestre. A alma sofre a sorte do mosquito,
que de noite vê a luz da chama: voa no seu rumo e queima-se.
Por isso, dizemos aos que procuram a Deus: Seja cego, surdo
e mudo com toda a mansidão. Moisés no monte abrigou-se no
escuro da nuvem que encobria o cume. Ele não viu a Deus, mas
falou com Ele diretamente. Nos Cantares, o Senhor diz para a alma
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que o ama: “Afasta de mim teus olhos, senão vou ter que fugir” (Ct
6,5).
Acontece, muitas vezes, que uma alma torna a perder uma
graça, porque queria conhecer e saber demais. Deus gostaria que
abraçássemos a Ele e seus dons, com os braços e com as asas do
coração, com tanta paixão que a curiosidade nem se desperta. O
cego pega nas mãos o que recebe, sem conhecê-lo com a visão.
Sua afeição se apoia mais no sentimento do que no
reconhecimento.
A comparação com Moisés mostra ao contemplativo: Retira o
fraco olhar de tua alma de minha majestade, porque não podes
conhecê-la. O exemplo do cego quer indicar: Não desista da
vontade de contemplar-me mas desista da arrogância de querer
reconhecer-me. “Devemos ser cegos”: isto não quer dizer que nada
reconhecemos, e, sim, que reconhecemos mais e melhor. Quem
usa óculos não é porque não enxerga nada, mas é para que
enxergue melhor. Portanto: Sê cego, para que vejas melhor. Isaac,
na sua cegueira, profetizou ao seu filho Jacó coisas mais
importantes do que no tempo em que enxergava. A cegueira fê-lo
conhecer mistérios mais elevados. Porque, quando se assustou
com o que havia feito na sua cegueira, Deus lhe revelou que era
nisto que a vontade divina se realizava e que a (aparente) injustiça
tinha que acontecer (Gn 27, 1-29).
Bem-aventurado aquele que não tem olhos, porque Deus lhe
serve de olho. Feliz aquele que perdeu os dois pés, porque Deus o
carrega, como diz o livro de Jó (29,15): “Eu era olhos para o cego e
pés para o coxo!” Aqueles que se tornam cegos para enxergar a
Deus, Ele mesmo os conduz, para que não se percam. Até vão com
mais sucesso, porque Deus os conduz em veredas desconhecidas
para uma meta que, de olho aberto, não teriam achado. É por isso
que o Senhor fala por Isaías: “Conduzirei os cegos por um caminho
que não conhecem, fa-los-ei andar por veredas que não conhecem:
na sua frente mudarei as trevas em luz” (Is 42,16).
O caminho mais distante e desconhecido é esta “via negativa”
da qual este abecedário trata. Ela tem vários ramais, exercícios
difíceis, tão desconhecidos como a via principal. Tudo isto é
obscuro para os principiantes na contemplação. Mas, quando eles
se tornam voluntariamente cegos, confiando fielmente naquele que
os conduz, o Senhor há de guiá-los da maneira que o profeta
prometeu.
Foi assim que Deus conduziu São Paulo e o elevou – assim
que cegou – até o terceiro céu, para que ali enxergasse a Deus com
os anjos e através da maneira de ver dos anjos, como disse Santo
17
Agostinho. E eu afirmo que naquele dia cegaram não somente os
seus olhos, mas também cegou sua alma, porque tudo estava
desligado: os sentidos externos e internos e até sua inteligência.
Durante o êxtase, tudo estava suspenso e parou de trabalhar.
Normalmente, ninguém pode ver a Deus na condição de sua vida
terrestre. Santo Agostinho cite nesse ponto: “O homem não pode
ver-me e continuar vivendo” (Ex 33,20).
Do conhecimento de Deus
Na meditação, a pessoa serve-se do saber e das impressões
como se fossem os olhos da alma. Mas na contemplação, nem os
sentidos do corpo nem os sentidos espirituais da alma, que
precisam da mediação das impressões exteriores, nos ajudam.
Porque Deus é puro de espírito que não pode ser percebido pelos
sentidos da alma.
Quando Elias esteve no monte de Deus, que é o monte da
contemplação, ele cobriu o seu rosto com um manto para não ver a
Deus que vinha para consolá-lo. O profeta bem sabia que os olhos
carnais não podem ver o Deus invisível. Por isso, se fez cego e
cobriu os olhos com o seu manto para mostrar que a luz do
conhecimento não passava além do manto, que significa a
humanidade de Deus. Os carrascos em Jerusalém tomaram ao
Senhor o seu manto, o seu corpo, quando o crucificaram.
Coisa semelhante lemos sobre Moisés, que suplicou a Deus
que lhe permitisse ver a sua face como sinal de sua graça. Mas,
quando Deus vinha passando, ele cobriu os seus olhos, até que o
Senhor tivesse passado (Ex 33,25) Moisés só pôde ver as costas
de Iahweh.
Conhecimento de Deus ainda é possível, mas pelo pecado
dos nossos pais no paraíso está quase morto e enterrado, porque
eles perderam aquela santa cegueira que antes possuíam em alto
grau. Nós devemos conquistar esta cegueira de novo, fazendo-nos
cegos para tudo que não é de Deus. Esta capacidade recebemos
de graça, como as plantas e sementes, que crescem graças ao sol
que é o seu pai natural. Elas só se desenvolvem, se o sol brilhar e
se, pela sua luz e calor, as despertar e incentivar. Assim nós, que
temos a capacidade de contemplar a divindade, precisamos da luz
da justiça que nos estimula e incentiva. O ovo é chocado e torna-se
vivo pelo calor do pombo, isto é, pela graça do Espírito Santo.
Portanto, torna-te cego como a semente na terra e como o pinto
dentro do ovo.
18
Além disso, devemos ser mudos. Não é bom falar sobre a
réstia de luz e sobre revelações que tivermos recebido. Quem fala
assim procura a admiração dos outros. Uma coisa á agradecer a
Deus por uma graça e outra coisa é fazer os outros entenderem.
Quem não tem este dom se contente em sentir o gozo e fique
calado. Quem falou asneira se arrepende depois. Também
devemos ser mudos na oração: nenhuma palavra, nem que seja a
mais espiritualizada. Deus é doutor em todas as ciências, e Ele
gostaria que o adorássemos calados, em espírito e verdade, mas
não com palavras. Quanto maior o silêncio na oração, tanto melhor
Deus nos escuta e atende nosso pedido. Isto vemos na história de
Moisés (Ex 14,15): Embora ele orasse no maior silêncio, Deus lhe
respondeu impaciente: Porque gritas tanto? Deus dá com presteza
a quem se cala na sua presença.
Quem é mudo em geral também é surdo. Devemos ser mudos
no espírito, calando os pensamentos, e devemos ser surdos para
tudo o que vem de fora e que possa inquietar-nos. O primeiro
homem deixou-se inquietar, quando ouviu o convite do tentador.
Dali nasceu um grande mal. Nosso tentador é o prazer dos
sentidos, ao qual a inteligência não deve dar ouvidos.
Assim, podemos aplicar as três palavras “cego, surdo, mudo”:
a inteligência seja cega, a vontade seja surda para o amor das
criaturas que desvia de Deus, a memória seja muda e não traga
nenhum assunto que nos seduza falar. Assim Jesus pode entrar em
nós, não segundo a carne e, sim, segundo o espírito. Quando o
Ressuscitado veio ver os discípulos, encontrou as três portas
fechadas. Deus entra na alma pela porta do consentimento interior.
Ele só vem, se a alma se fecha para tudo, menos para Ele, e o
procura com sede ardente, conduzida por um saber intuitivo que
não liga para as coisas criadas, porque supera tudo isto.
Sobre a mansidão
Mansos são aqueles que vivem na serenidade e não se
deixam abalar tão facilmente por eventos exteriores. Sua mansidão,
que se torna sua natureza, favorece a boa saúde. Eles não
provocam ninguém e não se deixam provocar. Não causam dano e
não se deixam prejudicar. Não se intrigam com ninguém e usam
auto-disciplina. Não se abalam com o vento, mas se deixam corrigir.
Não combatem o mal de frente e sabem sofrer golpes sem chorar
as feridas. Não são tristonhos e acham motivo de alegrar-se em
tudo. São pessoas fáceis no trato e abertas, são simples e sem
19
falsidade. Não escondem o que pensam e o que sentem. São
cheios de paciência, doçura e de ânimo nobre, sem perseguir a
própria vantagem. Portanto, os mansos são mais humanos. O
homem por sua natureza é um ser manso, como se vê no
semblante. Pessoas irascíveis parecem-se mais com animais
selvagens, sem misericórdia e sem humanidade.
Os mansos, de fato, possuem os bens desta terra, porque, ao
perdê-los, não perdem a mansidão. Deixam partir em paz o que
perderam e assim mostram que não são possuídos por aquilo (Mt
5,4).
Felizes os mansos. Nas guerras deste mundo, estão
protegidos como por fardos de algodão que os defendem dos tiros
da artilharia inimiga e dos golpes de espada da perseguição deste
mundo. São como vasos de vidro envoltos em palha e feno, que
não se quebram com as batidas. A mansidão é um escudo forte que
rebate as flechas da ira e as despedaça.
Felizes os mansos. Parecem com o ímã que atrai o ferro.
Nada melhor do que a brandura para amansar corações
endurecidos. Davi, na sua mansidão, sempre de novo amolecia o
coração do seu inimigo Saul e lhe provocava lágrimas de
misericórdia.
Felizes os mansos. O Senhor não lhes fecha o seu ouvido.
Está escrito em Jt 9,16: “Sempre vos foram aceitas as preces dos
mansos e humildes”.
Felizes os mansos. Deus é seu defensor e vingador, quando
são injustiçados. Isto se mostra em Moisés: Quando Deus ouviu o
que Miriam e Aarão falavam a seu respeito, ficou encolerizado,
porque Moisés era o homem mais manso do mundo. E ele, na sua
grande mansidão, alcançou de Deus mais graça e favor do que
todos os contemporâneos. A sua santidade e brandura eram, na
frente dos outros, como a verdade comparada com o sonho e o
corpo comparado com a sombra.
Contemplação e mansidão se favorecem uma a outra e
crescem uma com a outra. Se uma faltar, a outra desaparece
também; não se deixam separar; só se encontram juntas. São como
as irmãs Marta e Maria que se amam muito e que recebem o
Senhor em casa. Elas se ajudam para servir o Senhor da melhor
maneira.
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3° Capítulo: PÕE TUA MENTE EM ESTADO DE PROFUNDO
REPOUSO E SILÊNCIO
Acalmar o espírito
O cosmo é um livro e uma parábola, pelo qual nós, que somos
um microcosmo, podemos entender o nosso interior. Ele nos ensina
que todo o movimento natural tente a aquietar-se, e todas as coisas
seguem esta regra. Nada se move que não volte finalmente ao
repouso, que é o fim último de tudo que foi criado. Assim também o
homem deve acalmar sua alma, já que até a mente reclama
sossego. Diz a escritura: A alma que repousa é um eterno
banquete!
Segurança e repouso do coração não se acham tanto na
meditação como no recolhimento interior. Só assim o coração
descansa. O sábio diz: O eterno pensar discursivo prejudica a
saúde. E eu acrescento; também o espírito se prejudica, porque
nossos pensamentos nunca alcançam a altura divina. É melhor
deixar de lado toda a reflexão e satisfazer-se com a fé singela que
consegue introduzir a pessoa em grandes mistérios. É por isso que
Santo Agostinho diz: Não te preocupes em entender muito, mas
procura amar muito com aquele amor que é a vida da alma. São
Boaventura adverte-nos: Pode acontecer que a árvore do
conhecimento nos empate de comer da árvore da vida. É por isso
que diz este capítulo: Põe a tua mente em profundo repouso e
silêncio.
Temos duas coisas para fazer: acalmar a mente e silenciá-la.
Acontece que a nossa mente tem duas funções: a de guiar-nos em
tudo o que fazemos ou deixamos de fazer, e a de pensar e
perscrutar coisas misteriosas e ocultas. Por causa destas duas
razões e funções distinguimos a mente prática e a mente
especulativa. Se quiseres que o teu espírito esteja em profunda
paz, de modo que não possa levantar a voz contra ti, não faças
nada de injusto e de mal. Então a sua faísca não vai queimar o teu
coração, mas há de tornar-se uma luz suave para tua alma e movêla para o bem, e ela terá alegria nas boas obras. Santo Agostinho
convida-nos neste sentido: Se quiseres a paz verdadeira que foi
prometida aos cristãos na vida eterna, saibas que podes alcança-la
no meio da mais amarga tribulação, guardando os mandamentos
daquele que te prometeu este repouso. Os frutos da justiça são
muito mais doces do que os frutos da maldade. Há mais felicidade
numa vida dura com consciência boa do que na cômoda riqueza
21
com a consciência acusadora. Quem segue este conselho no seu
agir, em breve, terá pacificado o seu espírito, porque o seu coração
não o acusa de nada.
O homem sente-se bem numa casa boa e, ainda mais, numa
consciência tranquila. Os que temem o Senhor aqui vão entrar,
quando em silêncio avaliam o seu agir. Aqui vão achar um lar e boa
companhia. O diálogo com a boa consciência é sem amargura,
porque não há acusação. Antes, como diz o Apóstolo, lhe serve de
glória, e o homem se alegra dos bons frutos que procedem de sua
vida, como os filhos nascem de um matrimônio abençoado.
Mas o repouso do espírito vai além da serenidade da
consciência. É precisar guardar os mandamentos da vida. S.
Gregório Magno ensina: Para o homem alcançar o prêmio da vida
eterna, é preciso que ele guarde já na terra a regra básica da
salvação futura. Isto vale para a boa consciência de qualquer um,
mas de modo especial para o contemplativo que não pode onerar o
seu pensar com preocupações nem deve dar ênfase aos
acontecimentos do cotidiano e assustar-se com eles. Que ele viva o
momento e não chame os cuidados de amanhã para hoje.
Já dizia Sêneca: Não antecipes tua miséria e não andes ao
encontro do teu azar, imaginando o mal, antes que aconteça. É
melhor que digas: talvez terei sorte. Não faças conjeturas, criando
fantasmas. Abandona os negócios que se podem evitar. Não
procures o que é teu, e, sim, o que é de Jesus Cristo. Imagina que
es um espargo que bota a cabeça para fora da terra: como é
modesto.
Ocupa-te pouco com a tua pessoa para te ocupar totalmente
com Deus. Considera-te inferior, para te livrar da busca de sucesso
e para achar a verdadeira paz na humildade, que não teme a queda
nem espera subir. Não te importes com eventos mundanos, se
quiseres alcançar o repouso. Não interessa conquistar conhecidos e
amigos. Se procuras a paz profunda, não perguntes se outros te
apoiam ou rejeitam. Confia plenamente que nosso Deus e Senhor,
se entrares no silêncio, vai assumir tua causa. Não temas o prejuízo
nem ames o lucro: Não te faltará o necessário para viver. Não há
lucro que te deixe sem outro desejo. O lucro material pode ser
perda espiritual. Reconheça para o bem do teu descanso interior:
Ninguém pode roubar tuas virtudes, e teu vícios nada podem contra
a tua vontade decidida.
22
De como fazemos a nossa mente silenciar
Este é o segundo ponto deste capítulo, que se refere à mente
especulativa, o pensar discursivo que procura descobrir o mistério
das coisas por meio das considerações para lá e para cá. É um
meio inadequado para chegar ao conhecimento de Deus. Devemos
deixar isto, para reconhecer a Deus pela via negativa, como foi dito
acima. São Gregório Magno diz: O que podemos ver na
contemplação, nada disto é Deus. Mas enxergamos algo legítimo
de Deus, quando temos plena consciência de que nada podemos
reconhecer.
Para o contemplativo, a escolha deste caminho estreito ajuda
muito. Seu conhecimento de Deus se torna mais essencial e
profundo. Além disso, ele aprende a orar de um modo mais
imediato e mais curto. Deus nos pediu para não falarmos muitas
palavras na oração, já que Ele sabe do que precisamos, antes de
abrirmos a boca, porque Ele é o Deus que tudo sabe.
Por esta maneira de silenciar a mente e acordar o amor, a
oração se torna curta e penetra o céu num instante, Ela é curta, não
porque demora pouco tempo, e, sim, porque não precisa de outro
método para alcançar a Deus, a não ser unicamente do amor, que
pode unir-se a Ele sem mais nada. No céu não há lugar para a fé
que pertence ao intelecto. Só precisamos dela, enquanto não temos
acesso imediato a Deus. Na terra encontramos o Senhor, como diz
São Paulo, pela meditação das criaturas que nos dão testemunho
dele. Portanto, sabemos algo de Deus pelas suas criaturas, mas
não o amamos por causa delas. Nós o amamos por causa dele
mesmo; e quando fazemos isto, temos o amor que permanece
eternamente e que nos une imediatamente com Deus. No céu, esta
união vai ser mais intensa ainda, porque lá o amor é maior. A nossa
mente nos conduz até Deus para o conhecermos. Mas já que ela
não pode passar para nós sua essência, devido à nossa limitação,
devemos procurar outros meios de conhecer o Senhor. Acontece
que o amor nos faz sair de nós, para nos dar morada naquilo que
amamos. Ele tem asas para subir e penetrar o mistério mais
escondido, enquanto o intelecto tem que ficar do lado de fora da
porta, com as criaturas. É por isso que o cisterciense Arnoud de
Bonneval diz: Não é fácil emitir qualquer definição sobre Deus. É
melhor renunciar aos conceitos, dizendo o que Ele não é, em vez
de definir o que Ele seja. Porque Ele não pode ser um objeto
dominado pela nossa capacidade intelectual, já que supera todo
entendimento. Também tudo aquilo que podemos ouvir e ver e
degustar não dá ideia de sua majestade.
23
Assim acontece que nossos sentidos são inadequados neste
tocante. A luz invisível encandeia-nos perante o ser inacessível,
envolvido pelo Serafim com seis asas. Ele se esconde de nós tanto
quando voa como quando para. Parado, simboliza o Eterno que não
se move; voando, representa sua Alteza. A alteza divina supera
tanto todas as coisas que o homem não pode chegar lá, por mais
que eleve o seu coração.
A sagrada escritura aconselha-nos, muitas vezes, e
esperarmos nossa salvação no silêncio, para que no estado de
abertura silenciosa, como os Santos a viveram, a palavra poderosa
possa ser acolhida. Ela desce do seu trono para entrar no nosso
coração. Não é fácil guardar este silêncio, porque o dragão malvado
tenta perturbá-lo com um exercito de pensamentos, para que Deus
não encontre repouso no céu de nossa alma. São Gregório pedenos um esforço dobrado, para que Deus possa descansar em nós.
Não podemos interromper este silêncio nem por meia hora.
Também é dito que não devemos acordar do silêncio da alma
bendita e devota, enquanto ela não quer. Felizes os que
permanecem na proteção deste mistério oculto. Dele se diz: “Sua
felicidade era o seu silêncio, e o Senhor os levou para o porto de
sua vontade. Louvado seja o Senhor por sua misericórdia e pelas
maravilhas que opera nos filhos dos homens”.
Este porto, ao qual o Senhor nos leva, é o repouso que os
amantes de Deus almejam. Quem põe sua mente no silêncio o
alcança com segurança. Acontece, porém, que nosso esforço não
basta para silenciar a mente, já que este esforço nos envolve em
outras mil perguntas; mas, se fazemos a nossa parte, Deus mesmo
nos dá o dom do repouso almejado, conforme Isaias: “O reto agir
traz quietude e segurança”. Mesmo que nosso próprio silêncio seja
sempre imperfeito, mesmo que não seja permanente e talvez só
leve meia hora, não podemos desistir do nosso esforço. Porque o
Senhor pode aperfeiçoa-lo, conforme prometeu o profeta quando
falou: “Não temas, ó Sião, não desfaleçam tuas mãos, porque o
Senhor, teu Deus, é forte em teu meio. Ele há de salvar-te; Ele se
alegra de ti e se calará no seu amor”.
Existe um silêncio maravilhoso e louvável: o silêncio do amor
que cala o intelecto, quando faz uma experiência que o preenche
profundamente. Sabemos que os parceiros se calam na união
amorosa e o amor substitui o que lhes falta em palavras. Todo
medo de uma criança se vai, quando a mãe a segura em seus
braços: nem pensa em falar, e também a mãe se cala em seu amor.
Inefável e inexplicável é o silêncio, quando Deus e a alma no amor
se calam; quando as águas de Siloé borbulham vindas da Fonte
24
viva que é o Senhor; quando cessam as palavras e as obras
começam; quando a alma se cala, porque não tem mais o que
pedir, satisfeita em todos os desejos; quando o Senhor se cala,
porque já não encontra defeito naquele que tanto amor lhe
demonstra: na verdade, é inefável este silêncio.
Quando a alma se encontra toda casta e provada pelo amor,
toda entregue ao Criador; quando sua pureza abriga o Senhor que
lhe perdoa todo pecado e deixa branca como a pomba, lavada com
o leite imaculado de sua graça; então ela dorme, porque o pensar já
não a perturba. Mas o seu coração vigia, porque o amor jamais
adormece naquele que ama. É só o intelecto que dorme, e a
vontade descansa, porque está com Deus e se tornou um só
espírito com Ele. Assim ela vive o Domingo dos Domingos, o
repouso do Senhor, porque o descanso de sua imaginação produz
a paz da vontade, que, incendiada e absorvida pelo fogo que não se
acaba, já não precisa da lenha da meditação para manter viva a
chama do amor.
A rainha de Sabá e o rei Salomão, em silêncio reservado,
trocavam maravilhosos presentes de amor. Deus fala ao coração,
não com palavras e sim com angélicas batidas de asa. Tais sinais
falam mais alto do que todas as palavras. Deus e a alma dormem
juntos, como amigos íntimos no albergue. E o amor os tornou de tal
maneira semelhantes que já não são distintos: tanto assim que se
atribui a um o que o outro faz.
Sobre os três tipos do silêncio
Na oração contemplativa existem três tipos de silêncio. O
primeiro acontece, quando dentro de nós cessam todos os
pensamentos, todas as noções e imagens do visível, e a alma se
cala, por assim dizer, diante das coisas criadas, assim como Jó
desejava, quando falou: “Ah se eu pudesse me aquietar e dormir.
No sonho descansaria junto com os reis e soberanos da terra que
edificaram eremitérios para si”.
Frente às coisas temporais, mergulhamos no sono, como diz
Gregório Magno, e silenciamos, quando nos recolhemos no oculto
da nossa alma para contemplar o Criador. Os santos, aqui
chamados reis e soberanos, construíram estes eremitérios; seu
coração já não é perturbado por desejos mundanos e
desordenados. Com a mão direita da santa devoção, afastam todas
as aspirações proibidas do leito do seu coração, desprezando o que
25
é passageiro. Eles não se apegam ao que é terrestre e gozam de
grande paz na sua alma.
O segundo tipo de silêncio é como aquele repouso espiritual
no qual Maria se pôs aos pés do Senhor e (com o salmista) falou:
“Quero ouvir o que diz meu Senhor e Deus dentro de mim”. Para ela
se destinavam as palavras do Senhor: “Escuta, minha filha, olha
para mim e inclina para mim teu ouvido, esquece o teu povo e a
casa do teu pai”.
Este segundo tipo de silêncio é como o ato de ouvir, porque o
ouvinte não somente cala sua boca e, sim, faz calar tudo em si; só
assim poderá atender realmente ao que fala para ele; ainda mais
quando não sabe onde este se encontra, como é o caso, neste
segundo tipo de silêncio. Porque o Evangelho nos diz: Ouvimos a
voz de Deus e seu apelo, mas não sabemos de onde vem nem para
onde vai. É por isso que devemos manter o máximo silêncio e a
maior atenção. Resumindo, temos dois tipos de silêncio: o primeiro,
quando pensamentos e imagens param de circular na nossa
cabeça, e o segundo, quando nos esquecemos de nós mesmos, em
total atenção do homem interior a Deus somente.
No primeiro silêncio, as coisas emudecem para nós. No
segundo, nós mesmo emudecemos em profundo repouso e nos
abrimos para Deus em humilde entrega. Esta se parece com os
santos seres alados que Ezequiel descreve; “Ficavam parados e
erguidos, baixando as asas, como se ouvissem uma voz vinda do
firmamento acima de suas cabeças”. Esta voz é a divina inspiração,
que o ouvido de nossa alma só capta, quando sente a presença de
Deus. É por isso que Elifas (no livro de Jó) diz que lhe foi
confidenciada uma palavra oculta e ele só percebeu o sopro de um
sussurro. Esta voz da inspiração aparece acima do firmamento, na
parte superior de nosso espírito que se une diretamente com Deus
no amor. Os santos seres alados são os contemplativos. Eles estão
parados, porque, quando a voz ressoa na alma, esta se levanta
para grandes obras e entra em Deus como aconteceu aos
apóstolos, quando viram o Senhor subir ao céu. Também Ezequiel
recebeu a ordem de colocar-se de pé, porque Deus estava falando.
Estar de pé diante de Deus é adoração silenciosa, em total
dependência de Deus. As forças da alma quase paralisam sua
atividade, porque a alma tem que ser calma e humilde, para que
possa receber sabedoria. O rebaixar de asas significa que outras
forças superiores da alma se ativam para captar a divina inspiração
que ela recebeu. Orantes contemplativos sabem que suas próprias
forças não são adequadas para isto. Em silêncio, entregam a Deus
o que é seu, para receber dele o que lhes faltar. O salmista diz:
26
“Minh’alma não se consolou. Lembrei-me do Senhor e me alegrei.
Não me apartei dele, e o meu espírito foi suspenso”.
O terceiro tipo de silêncio realiza-se em Deus, quando toda a
alma está transformada em Deus e em plenitude goza de
amabilidade. Nela adormece, como a noiva dos Cantares
adormeceu na adega, e ela se cala, porque já não tem nada a
desejar. Até de si mesma a alma está suspensa, porque se esquece
da fraqueza da natureza e se vê toda divinizada: unida a Deus,
revestida do seu esplendor como um segundo Moisés, que sai da
nuvem que circunda o monte. O apóstolo São João experimentou
coisa ainda mais profunda: faltavam-lhe todos os sentidos, quando
depois da ceia repousou junto ao peito do Senhor.
Neste terceiro tipo de silêncio pode acontecer que a nossa
mente emudece tanto, ou melhor, tanto mergulha que não entende
nada do que se fala ao redor e não pode apreciar o que acontece
em volta dela, porque não compreende o que ouve. Um homem
experimentado me falou entre outros segredos: Acontece durante
uma pregação que eu não entendo uma única palavra, e nenhuma
criatura consegue tomar forma em mim. Quando falei que seria
melhor procurar a solidão, ele respondeu que o falar ressoa para
ele como a música polifônica, e a alma se alegra apesar de não
entender nada. Ele tem a impressão de estar cantando o
contraponto, louvando o Senhor de um modo que se sente e não se
pode explicar.
Não afirmamos que a consciência deve se calar e, sim, a
mente. Ricardo de S. Victor diz: O entendimento das coisas
invisíveis pertence à consciência pura. E esta consciência pura se
manifesta, quando o espírito permanece na mais alta verdade sem
mistura de pensamentos figurado. Para chegar até lá, tu deves
aprender a recolher os “filhos dispersos de Israel” e acabar com o
vagar das lembranças e imaginações. Acostuma-te a permanecer
na tua profundidade e de esquecer tudo o que vem de fora, se é
que queres a contemplação das coisas celestes e a experiência de
Deus. Ricardo de S. Victor diz ainda: A consciência pura não
percebe as coisas invisíveis de Deus com a inteligência, que
reconhece coisas ocultas e ausentes, partindo de causa e efeito. A
consciência pura reconhece as coisas sobrenaturais na imediatez
de nossa visão corporal, com a qual enxergamos coisas materiais
presentes. Só que ela reconhece na visão o seu conteúdo espiritual,
sabendo que este não depende de figuras externas nem se prende
a elas.
Assim, acontece que o contemplativo não usa sua imaginação
que projeta coisas materiais nem usa o intelecto que procura captar
27
objetos espirituais e corporais pela lei de causa e efeito. Antes, o
contemplativo tem Deus diante dos olhos, o espírito puro, livre de
toda a projeção. Se o orante permanecer nesta atenção depurada
sem pensar em outras coisas, pode-se dizer que ele está no estado
de consciência pura, espiritual.
Contestação dos inexperientes
Os que não têm experiência vêm com a pergunta: Por que
não devemos pensar em nada? Vendo nisto um empobrecimento,
ironizam: Se colocarmos o espírito em profundo repouso e silêncio,
é claro que não precisamos pensar coisa nenhuma. Eles aplicam a
palavra: Do nada não vem nada.
Gregório Nazianzeno falou: “Quem se dá bem com seu modo
de rezar não tem direito de rebaixar o modo de rezar dos outros que
ele não conhece”. Ele pode ferir aqueles que chegam até Deus, por
meio de uma sábia ignorância que os doutores deste mundo não
alcançam.
A perfeição dos contemplativos não está em não pensar nada;
então, os que dormem e os que estão em coma seriam os mais
perfeitos. Se alguém te diz: Não penses em nada, entende bem que
este é o conselho para os principiantes, para que aprendam a
deixar suas distrações e a voltar-se a Deus humildemente.
Na verdade, os que trilham o caminho da contemplação
buscam unicamente o avivamento do amor de Deus, um amor
maduro que fala por si. Eles não têm necessidade de argumentos,
porque estão decididos a amar a Deus sobre todas as coisas e a
elevar sua alma para o altíssimo bem que é uma fonte perene de
amor.
Os experientes sabem a diferença de quem busca
conhecimento e de quem busca amor. É verdade que não podemos
amar os que não conhecemos, mas quem encontrou a Deus pela fé
não duvida que só Ele é digno de ser amado por causa dele
mesmo. Por isso, nos recolhemos no nosso coração, onde
podemos sentir e amar sua presença. A mesma coisa acontece
com um amigo: na sua presença não refletirmos sobre a natureza
do nosso amor por ele. O pensar segue depois. Assim que a mente
acaba com seu esforço, surge com grande vigor o querer e o sentir
que gera amor. Se o orante se põe inteiramente na presença de
Deus, não há necessidade de buscar razões para amar aquele que
é todo amor. O artista aplica as regras de sua arte sem refletir. O
orante já passou de toda justificação e só faz amar.
28
O não-pensar é mais do que parece. No fundo não dá para
explicar o que é, assim como Deus, que é seu alvo, não é
explicável. Pensando em nada, pensamos na verdade em tudo,
porque, sem sequência de pensamentos, pensamos naquele que é
Tudo por sua glória maravilhosa. Ao menor sinal deste não-pensar
surge no contemplativo uma atenção simples e fina, voltada
unicamente para Deus. Gerson chama atenção para o seguinte:
“Aqui o diabo não pode fazer nada, porque ele sempre utiliza os
sentidos”. O não-pensar é uma entrega a Deus. O homem solta-se
e liberta-se para voar com seu coração até Deus, que o deseja
inteiro e sem divisão.
Este modo de rezar pode-se encontrar num antigo filósofo ou
num judeu. Uma coisa boa não perde sua força pelo fato de servir
também para não cristãos. Ele age conforme a índole de cada um e
conserva o seu valor.
O bom resultado da contemplação confere segurança
Tudo isto reforça o conselho: Põe tua mente em profundo
repouso e silêncio. Isto vale tanto para principiantes como para
avançados, porque o demônio costuma perturbar o pensamento
com inspirações falsas. Ele faz surgir do coração ao espírito
palavras e frases que parecem boas, e quem não se cuida pode
pensar que Deus esteja falando nelas. Para completar o engano,
ele faz o orante crer que a nenhum ser vivo já aconteceu coisa
igual; e que ele deve guardar silêncio sobre suas revelações que
são incríveis. Todos estes truques do inimigo tu poderás vencer
com o dito conselho.
Talvez digas que, sem pensar em coisa criada e sem permitir
pensamentos aparentemente bons, serias no fim nada mais que
uma estátua sem vida. Mas não é isto. A renúncia do pensamento
em si não é um bem. E o fim do nosso exercício não é pura e
simplesmente o não-pensar. Silencias o teu pensar para colocar
toda a tua atenção em Deus. Se voltar o teu coração para Ele, já
conseguiste muita coisa. Se perseverares, receberás a Deus, que
logo derrama a sua graça. Mas não por meio de pretensas profecias
e inspirações que são, segundo São Bernardo, sapos que não
param de gritar, e, sim, por um toque muito intimo que move o teu
coração. Bonneval descreve isto desta maneira: Nós provamos o
gosto, o apalpamos e sentimos o cheiro, de tão perto que está.
Mas, se quiseres agarrá-lo, o fazes recuar. É como um raio que
rompe uma nuvem, mas não te faz enxergar e, sim, te encandeia:
29
assim sentes vários toques que não sei descrever. Tu sentes uma
coisa, mas não sabes quem tocou em ti. Ouves palavras ocultas no
intimo, que são fora de dúvida, mas que não sabes repetir. É desta
forma que Ele está contigo e dentro de ti, Ele que pede pela tua
mão.
O mesmo monge explica também o que acontece no fundo do
recolhimento: as palavras percebidas são inefáveis, porque são
antes moções do que palavras; por elas o Espírito Santo se
comunica conosco e atesta ao nosso espírito, como diz o Apóstolo,
que somos filhos de Deus e nele confiamos como filhos. Ele é
nosso Pai que nos trata bem e tudo providencia.
Esta é a vantagem deste exercício que não dá valor a
revelações ou mensagens, mas unicamente à verdadeira
experiência espiritual que – como diz Gerson – te dá um
conhecimento imediato; não pelo pensamento lógico e, sim, pela
percepção daquele que está presente na alma. Com isto, a mente
se acalma de tal maneira que desiste de investigar.
No mundo exterior existem palavras e ações. No mundo
interior é a mesma coisa. No lugar das palavras surgem
pensamentos e argumentos. No lugar das ações, entra a atenção
intensa e viva que voltamos unicamente a Deus com o amor, a
afeição e a moção interior que a alma a Deus oferece por nossa
vontade. Nosso exercício tem aqui seu fundamento. Por isso, o
Senhor não nos responde com palavras, e sim com ação ou moção.
Ele sabe que o contemplativo só reage assim, porque pôs sua
mente no silêncio a tal ponto que balbucia como o profeta e se
extasia como a rainha de Sabá que admirava a glória de Salomão.
Quem silenciou a mente completamente, chega a ponto de
não saber mais o que está rezando. Ele vai receber graças que
superam o entendimento. Hugo de S. Victor faz a alma falar como
se fosse a esposa de Deus: “Quem é que me toca de vez em
quando e me encanta com doçura apaixonada? Já começo a ficar
arrebatada e não sei aonde sou conduzida. Meu espírito se enche
de felicidade, esqueci toda a dor, meu coração se inflama, todos os
meus desejos se cumpriram. Sinto no meu interior o abraço do
amor. Não compreendo o que acontece comigo, mas me esforço
para não perdê-lo jamais. Minha alma luta para que não fuja aquilo
que ela gostaria de abraçar para sempre. Será que é o meu
Amado? Diga-me, por favor, para que eu saiba. E se ele voltar, vou
suplicar que ele não saia, que Ele fique para sempre. Na verdade,
minh’alma, este é teu amado que te visita. Ele vem de maneira
invisível, ele vem ocultamente para te tocar”.
30
Com estas palavras, Hugo mostra que a mente não volta os
olhos de sua percepção para Deus, por causa da claridade que
brilha do seu rosto, quando desce do Monte da Glória para se
comunicar com os vivos no vale das lágrimas. A mente não pode
voltar seus olhos para Deus. Só a morte tira de nossa face o véu da
fé que esconde o Divino. Enquanto isto, o nosso exercício é este
que Gerson recomenda: “De maneira inefável, une a tua alma com
aquele que é inefável e irreconhecível”. É isto que treinamos: Entrar
no silêncio! E fechar o espírito dentro de nós! Esta é nossa tarefa.
Esforcemo-nos com toda a nossa paixão para alcançar. Entra na
solidão e supera-te a ti mesmo, se puderes. Se não o conseguires,
apesar do esforço, não fujas para o alívio da leitura ou da conversa.
Se o silêncio se tornar um peso e o repouso ficar aparentemente
sem fruto, vence o desânimo com perseverança esperançosa,
porque Deus não vai desprezar tua alma. Certamente, há de
mostrar sua misericórdia, se o procuras cheio de confiança e se
invocas o seu nome.
Sobre o valor e a essência da oração contemplativa
Se encontrares pessoas que falam mal sobre a oração
contemplativa, com certeza eles agem por ignorância e falta de
experiência. Se forem superiores de um convento, não têm
desculpa, porque eles precisam ser experientes em coisas
espirituais para poderem desfazer as dúvidas das pessoas a eles
confiadas. Para tanto, devem aconselhar, mas nunca ridicularizar os
bons exercícios, nem desestimular os que se esforçam por isto.
Eles deveriam saber que a contemplação dá plena segurança,
como diz Gerson no tratado “De Verbo Gloriae”. Ela é livre dos
enganos e dos laços do demônio, porque fecha para ele as portas
traiçoeiras dos sentidos, de onde ele costuma atacar. É por isso que
este exercício oferece o melhor refúgio para quem vive a dois com
Deus.
Neste recolhimento contemplativo existem vários graus e
modalidades. Uma delas é a renúncia de todo pensamento,
comparada com um sono restaurador e um silêncio repousante que
não é invadido por nenhum som, nem perturbado por nada. Se um
pensamento surgir do coração, é remetido de volta, antes que a
pessoa se dê conta, assim como avisamos alguém que chega de
longe: Não chegues perto. Este procedimento é seguro e funciona
sem falha: o orante até se admira. Ele nem sabe o que veio
perturbá-lo: só sabe que algo queria atrapalhar e não conseguiu.
31
Este tipo de recolhimento não é para principiantes. É uma graça,
porque a alma sente grande bem-estar, embora a experiência seja
somente de algo agradável. Há outro tipo de recolhimento, onde a
mente colabora ativamente. A pessoa vigia com cuidado sobre a
manutenção do recolhimento, prestando atenção no que acontece e
se esforça para não sair fora. Os avançados adquirem grandes
experiências. Pode acontecer que o recolhimento contemplativo
leve ao total esquecimento de si mesmo. Os que rezam deste modo
não sabem mais onde estão. Quando voltam a si, por acaso,
perguntam à sua consciência de onde veio, o que fez e o que
experimentou. Mas não recebem resposta. Este tipo de
contemplação pode tornar-se normal para os avançados. Mas eles
devem evitar interesses e tumultos mundanos.
Finalmente, há outro tipo de recolhimento, onde a alma se
tranca dentro do corpo como numa caixa segura e se alegra com o
próprio calor espiritual, livre dos cinco sentidos, como se estes não
existissem. Ela não entende nada que se possa explicar, mas se
deleita como uma criança no seio da mãe e não quer saber de nada
que a possa distrair: nem olhos nem ouvidos nem uma porta para
sair.
Em todas estas modalidades de contemplação, a mente não
silencia a ponto de ser passiva de urna vez. Sempre resta urna
faísca, o suficiente para o orante perceber que experimenta algo, a
saber, Deus. A mente registra calmamente o que acontece, de
modo que a inatividade é aparente. Mas, na verdade, a alma
gostaria de morrer e perder-se total mente em Deus. Assim, há
momentos em que a mente parece que não existe, como se a alma
não fosse um ser espiritual. Depois, ela descobre de novo a faísca
viva do saber simples e se maravilha das grandes graças que
recebeu pela parada total do pensamento. Ela se dá conta disto,
quando volta para a vida comum e sai da neblina, mas não sabe de
onde e como recebeu a graça. Para receber ainda mais, ela
gostaria de recolher-se de novo e desligar todo entendimento. Por
isso, mergulha nas águas profundas e volta com o desejado. A alma
não sente o tempo passar, e uma hora é como um respiro. às
vezes, a experiência quer escapar do coração. Aí, só há um jeito
para segurá-la: recolher-se de novo na profundidade.
Às vezes, acontece ao contemplativo avançado que ele
recebe a graça de, ao mesmo tempo, poder pensar algo. Mas, se
ele se distrai demais com isto, a graça se desfaz e o abandona no
meio dos pensamentos. É melhor receber a Deus no oculto, como
que no escuro. Ele é amante da solidão e se esconde no escuro.
Tua imaginação e tua mente têm que repousar. Não permitas lhe
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nenhuma atividade, seja o que for. Mesmo quando percebes que o
Senhor quer se comunicar contigo, não digas palavras de amor
para Ele; a alma alegra-se com isto, mas é melhor recolher-se e
mergulhar cada vez mais. O coração que se orienta para Deus quer
abraçá-lo. E isto se faz melhor pelo amor calado. Muitas vezes, Ele
quer que o deixemos agir sozinho em silêncio. Só que pode
acontecer que nos encontremos em tamanha fraqueza que é
preciso recorrer a toda ajuda de fora e de dentro para alcançar a
adoração silenciosa. Melhor é renunciar a todo esforço e
permanecer na veneração. Porque então é Deus quem age, e teu
ardor humilde e receptivo alcança mais do que pensas, porque este
se une mais intensamente com Ele que é sua salvação.
Atenção vigilante em Deus
Conforme diz Ricardo de S. Victor: “A meditação é uma
orientação permanente na mesma direção”. E eu acrescento: Há
duas maneiras de meditar: urna se volta para as coisas criadas, e a
outra para o que não é criado. E esta segunda é a contemplação,
que é uma intensa orientação do coração somente para Deus. Esta
contemplação trata de coisas, sobre as quais não se pode falar. É
por isso que Davi diz no SI 77, 7: “Eu meditava de noite com meu
coração, e o meu espírito se exercitava e era varrido”. Davi não fala
do assunto sobre o qual meditava. Só diz que era de noite. Em
outro lugar, declara que a felicidade o irradiava, e isto porque a
contemplação oculta e a orientação unicamente para Deus
preenche a alma com um gozo misterioso que ela percebe
nitidamente, e é isto que Davi chama de iluminação. Já que não
pode explicar aos outros o que é, ele diz que foi de noite. Além
disso, Davi diz que contemplava com o coração. A meditação das
coisas criadas tem lugar dentro do coração, mas a sublime
contemplação acontece com o coração. Podemos comparar isto
com um pobre que se apresenta calado diante do rico e, assim,
expressa sua pobreza não com palavras e sim com toda a sua
situação real.
Sirva-nos de exemplo o cachorrinho: Com a máxima
vivacidade e com o abano atencioso do rabo, ele se coloca perto da
mesa, com o pescoço esticado, de modo que toda sua posição
demonstra o que lhe falta. E não te admires que eu compare o
orante com o cachorro, porque não há outra explicação melhor para
esta maneira de orar. A mulher cananéia, que é grande na oração,
diz com significado alegórico que os cachorrinhos comem as
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migalhas que caem da mesa dos senhores (Mt 15,27). Observa
bem como o cachorro, ao lado da mesa, é atenção total, tanto
assim que só falta pular em cima. Além da atenção total, ele dá
gemidos que indicam o que ele quer. Portanto, se tu vieres à mesa
da oração que São Francisco chamava de “távola dos seus irmãos
espirituais”; se te aproximares desta mesa na qual o Senhor vai
cear com os seus, esquece de tudo, como faz o cachorrinho, e não
tenhas outros anseios e desejos. Orienta o homem interior e
exterior totalmente para aquele que está à mesa, a saber, Deus. E
guarda o silêncio, como convém na ceia.
Se ainda não receberes o que desejas, a esperança no teu
coração solte gemidos com a voz, sem palavras, para que no
silêncio da palavra a obra interior comece a orar, porque está
escrito: “Deus não deixa morrer de fome as almas dos justos” (Sb
10,3).
Além disso, Davi diz que se exercitava, porque esta oração
exige exercício. E varria o seu espírito, o que indica a purificação da
alma. O ato de varrer tem que ser bem feito, de modo que não fique
nenhuma poeira de pensamentos humanos que não seja expulsa
pela santa vontade, que se faz de vassoura, enfaixada e amarrada.
O que foi dito aqui é confirmado pelo abade Isaac
(Cisterciense inglês que atuou na França pelos anos 1100) que
explicou como Jesus deseja que rezemos: No quarto silencioso
devemos suplicar a Deus, logo que tivermos expulsado do coração
todo o barulho de pensamentos e preocupações. De maneira oculta
e confiante, expressamos a Deus nossos pedidos. Oramos com a
porta fechada, se fecharmos os lábios e em silêncio suplicarmos o
perscrutador do nosso interior, não com a voz, e, sim, do fundo do
coração. Nós rezamos no oculto, se expressarmos nossos pedidos
unicamente com o coração e com a alma totalmente voltada para
Deus. Se rezarmos assim, os poderes inimigos não podem saber o
que estamos pedindo. É por isso que devemos rezar em silêncio
absoluto.
O Mergulho em Deus
Para mergulhar em si mesmo, é preciso estar em casa
consigo mesmo, entrar no seu interior e fazer os degraus que levam
para a própria profundeza. Esta entrada na alma produz uma dupla
ação contemplativa: mergulhar e observar este mergulho. Vejamos
um vigia que está atento e ainda desconfia de sua vigilância. Ele
não se distrai e pensa numa só coisa. A vigilância não corta o
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silêncio, antes acrescenta um olhar atento sobre o homem
silencioso, como é o caso de alguém que se cala de propósito,
consciente e teimoso. O ser humano tem que aplicar todas as
forças para conquistar o Reino dos céus.
Há gente que faz tanto esforço que fica com grande dor de
cabeça, e os olhos começam a lacrimejar, seja pelo cansaço da
mente, seja pela repressão das forças vitais.
Isto não dá para aguentar muito tempo. Aplica com
moderação o que foi dito, porque se a dor de cabeça aumentar, a
pessoa vai relaxar na contemplação e vai ter que contentar-se com
o puro e simples recolhimento. Este tipo de cansaço não pode ser
remediado nem pelas forças da alma nem pelos sentidos, nem por
uma atenção orientada. Permanece em calma tranquilidade que
deixa o coração como que dormindo. Assim vai passar a dor
causada pela oração.
O que podemos dizer sobre a graça que se recebe neste
duplo exercício? Ela inflama a vontade, como se ardesse no peito
um fogo manso, que não se deixa expressar em palavras. A mente
é tão clara e lúcida, como se tivesse achado a chave de todo o
saber. Mas este saber parece reduzido a uma única frase ou a uma
única palavra, cheia de sentido. E porque este saber não é prolixo,
e o coração não se derrama nele. Ele não vem nem por via de
revelações nem por visões alucinantes: a inteligência espiritual é
tão iluminada que os agraciados, quando pensam em Deus, quando
falam ou escrevem sobre ele, rapidamente e com leveza expressam
grandes verdades. A memória é serena, e ela não procura isto ou
aquilo: com facilidade lembra o que visa no momento. No peito, e às
vezes no corpo todo, surge um sentimento como se o espírito vital e
as forças humanas se recolhessem para dentro. E o que é mais
importante, a pessoa sente um crescimento maravilhoso, no qual o
espírito se alarga como uma luva no qual se sopra. O peito cresce e
alarga-se além do seu tamanho natural para dar lugar à graça. Este
crescimento não causa dor, antes é assim: quanto maior a
extensão, tanto maior a felicidade, porque a unção recebida faz o
corpo ceder mansamente. Estas graças não se alcançam com
facilidade nem rapidamente. Primeiramente, temos que passar
muitos anos com a oração interior. Este livro, que ensina o
mergulho, pode servir para isto.
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4° capítulo: FORMAS E IMAGENS DA GRAÇA
Contemplação e humanidade de Cristo
Este caminho de contemplação não prejudica ninguém que o
deseja de coração. Mas, mesmo assim, sabemos que ele não serve
para todos. Alguns são conduzidos até ele diretamente por Deus.
Outros o encontram, porque o buscam com fervor. Mas há pessoas
com inclinação para coisas ocultas que vão por caminhos tortuosos,
se bem que muitos Santos deram orientações sábias nos seus
escritos.
Nestas práticas finas e profundas, cada erro é fatal. Muitas
pessoas fracassam, não porque seguem o caminho, e sim porque,
achando que estão no caminho, na verdade se perdem em
caminhos laterais, mais agradáveis. Fracassam por não observarem
os escritos dos Santos a respeito do tema, dos quais queremos citar
e explicar os mais importantes.
Muitos assuntos da Teologia mística não podem ser
explicados em termos comuns, nem podem ser compreendidos por
gente sem experiência. Mas queremos dizer que a Santa
Humanidade de Cristo, nosso Senhor e Deus, nunca poderá impedir
ou atrapalhar a contemplação, seja ela sublime e pura como for. Ela
não é um obstáculo. A prova é a Mãe de Deus: enquanto servia ao
menino Deus, a presença dele nunca lhe causou distração espiritual
que tivesse diminuído sua atenção permanente em Deus, atenção
esta que ela possuía em grau mais alto que todos os Santos. Disto
concluímos que a Santa Humanidade do Senhor não impede a
sublime concentração da alma unicamente em Deus. É antes por
nossa imperfeição que precisamos abstrair nossa atenção das
coisas criadas para podermos elevar nosso pensar unicamente em
Deus. Podemos dizer, portanto, que nem a Santa Humanidade de
Cristo, nem as coisas criadas por si, podem impedir a
contemplação, mesmo que seja de alto grau. e afirmamos no
entanto, que as coisas criadas nos atrapalham, o problema é a
nossa mente estreita, que não consegue alcançar muita coisa de
vez. De Cristo foi dito que ele se tornou pedra de tropeço para os
judeus e escândalo para os pagãos, porque eles mudaram o Bem
em Mal. Em tudo só podiam pecar. Mas no caso da contemplação
não se trata de pecado e sim de um bem menor, se somos
impedidos por aquilo que não nos deveria impedir. Se, de fato, as
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criaturas prejudicassem a contemplação, a escritura não poderia
dizer que elas lutarão no dia do juízo contra os maus, colocando-se
do lado do Senhor que os criou (Sb 5,20-23). Se for assim, é claro
que não é para nos impedir e sim para nos ajudar. O que é corporal
foi feito para ajudar o espiritual, de modo especial para ajudar a
alma, que precisa partir do corporal para elevar-se às coisas
invisíveis de Deus.
As criaturas não somente ajudam aos homens, mas também
aos anjos que, conforme Agostinho, quando foram criados,
cresceram no conhecimento de Deus, enquanto contemplavam,
uma após a outra, as obras dos seis dias. Do mesmo modo, nós
subimos e descemos a escada, cada um de sua maneira, que é
feita da ordem das coisas criadas. A gente sobe para o
conhecimento do criador e desce para o conhecimento de si
mesmo. Somente Deus permanece imóvel no topo da escada,
porque ele está cheio da luz de si mesmo. Ele não desce, porque
contém todas as coisas em si; nem Ele sobe, porque o seu
conhecimento próprio não pode aumentar: Se é que as coisas
criadas formam uma escada na qual os pés dos sábios sobem até
Deus, muito mais nos faz subir a Santa Humanidade de Cristo, que
é caminho, verdade e vida. Ele veio para que tivéssemos a vida em
plenitude: para que, aproximando-nos da sua Divindade e tornandonos semelhantes à sua Humanidade, pudéssemos alcançar a nossa
vocação.
A lgreja canta este mistério: Pelas coisas visíveis conhecemos
a Deus, para sermos atraídos ao amor das coisas invisíveis, se as
outras coisas visíveis nos elevam para o amor de Deus, a Santa
Humanidade nos arrebata de uma vez. É por isso que o profeta
Ezequiel comparou a Face de Cristo com a beleza de um diamante
luminoso e com a pedra de fogo, da qual a contemplação tira, com
um leve toque, a forte faísca do amor que incendeia os corações
inflamáveis e preparados.
Disto nos dá testemunho o apóstolo Tomé que achou cura
nas chagas de sua alma ao tocar as chagas do Senhor. Ele chegou
ao conhecimento da Divindade de Cristo que desde então começou
a proclamar.
Embora as coisas criadas contenham em si a verdade plena,
achamos nos escritos a advertência que é melhor para os
contemplativos distanciar-se de tudo que é criado e da Santa
Humanidade de Cristo, para alcançar as coisas puramente
espirituais, de um modo mais perfeito. Bonneval diz: “A plenitude da
presença divina não podia entrar em ação, enquanto Cristo estava
presente aos apóstolos de forma corporal”. Bernardo, Gregório,
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Agostinho e Gerson e outros escreveram que o Senhor subiu ao
céu para poder mandar o Espírito Santo. Eles dizem também: Os
apóstolos estavam limitados no seu amor pela Santa Humanidade.
Tinham que separar-se dela para alcançar as coisas mais sublimes.
Só assim podiam esperar a vinda do Espírito Santo que os
ensinaria a reconhecer Cristo de modo verdadeiro, não
corporalmente e sim no espírito.
Mas realmente não foi a Humanidade de Cristo, formada pelo
Espírito Santo, que impedia a vinda deste Espírito. O mundo pode
certamente abrigar aquilo que no pequenino ventre da Virgem
entrou, sob a sombra do Espírito. Mas podemos afirmar: foi pela
imperfeição dos apóstolos que a Humanidade de Cristo constituía
uma dificuldade. Se o Senhor afirma que precisa partir, é por causa
deles, que ainda não podiam receber toda a plenitude com coração
agradecido.
Se para os apóstolos era melhor abster-se por um pouco da
contemplação da Humanidade do Senhor para dedicar-se ao
Divino, a mesma coisa vale para outros que gostariam de elevar-se
a uma vida espiritual mais intensa. Porque em geral não se passa
de um estado imperfeito a outro perfeito sem que tenha um estado
intermediário que prepara um degrau.
Por isso, é bom deixar temporariamente o bom pelo melhor,
para possui-lo no fim de modo perfeito. Com isto nos apartamos de
nossa imperfeição. O rico separa-se da riqueza, não porque ela
fosse ruim em si, e sim por causa da avareza e das preocupações
que se ligam a ela, devido à imperfeição dele mesmo.
É assim que faz também o gavião: ele deixa sua caça para
não cansar no voo. A criança de colo é privada do leite, para que
aprenda a comer alimento sólido. O homem, porém, que
desenvolveu critério espiritual, pode comer de tudo, já que não vai
comer além da medida. Os verdadeiros contemplativos podem
abraçar tudo de um modo bem ordenado, porque para eles favorece
o que para outros é empecilho. Bernardo diz: Há dois tipos de amor:
um é corporal, e outro espiritual.
Dali se deduzem quatro modos de amar:
amar o carnal de maneira carnal,
amar o espiritual de maneira carnal,
amar o carnal de maneira espiritual,
amar o espiritual de maneira espiritual.
Nestes quatro degraus progredimos e subimos das coisas
inferiores às superiores, porque Deus criou as coisas carnais, para
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que os homens já não amassem o visível de um modo carnal, mas
que nisto pudessem crescer, até saber amar a Deus de um modo
espiritual. Quando Ele viveu com os homens e com eles falava,
estes o amavam primeiro de maneira carnal, Mas, quando quis
entregar sua vida pelos amigos, já amavam o seu espírito, se bem
que ainda de um modo carnal. Foi por isso que Pedro respondeu ao
Senhor, quando este falava de sua paixão: “Deus o livre, Senhor!
Não aconteça tal coisa!” Mas quando viram que nesta Paixão se
cumpria o mistério da redenção, amavam na paixão a carne de um
modo espiritual. Depois da ressurreição e ascensão aprenderam a
amar o espiritual de um modo espiritual e confessaram alegres:
“Nós conhecíamos o Cristo segundo a carne, mas agora já não o
conhecemos assim”.
Portanto, devemos reconhecer que o amor chamado carnal
não é ruim e que não devemos entendê-lo neste sentido pejorativo,
que em geral lhe é dado. Os quatro modos de amar são distintos
apenas por menor ou maior intimidade. Assim, aprendemos a amar
nosso Senhor de um modo cada vez mais puro e imediato, como
mostra o exemplo dos Apóstolos.
Amizade com Deus
Devemos saber dos três pilares que dão embasamento aos
exercícios espirituais.
Em primeiro lugar, devemos admitir: Amizade e relação com
Deus são possíveis nesta vida terrestre. E esta relação pode ser
mais intensa e mais forte do que aquela que se vive entre irmãos ou
entre mãe e filho. O fato de esta amizade e relação entre Deus e o
homem ser espiritual não diminui o seu grande significado e sua
intensidade. Não estou falando aqui da aceitação do homem por
Deus em geral, nem das dúvidas que os mortais têm, se estão no
estado de graça ou não. Estou falando desta união que os orantes e
os amantes de Deus procuram, união esta que é mais real do que
todas as coisas do mundo e tão bem-aventurada que nada se
iguala ao seu valor.
Deus, nosso Senhor, tem tanta saudade de amigos que —
como diz a escritura — corre ao encontro do pecador que chega a
ele de terras distantes como um escravo. Sim, ele corre ao seu
encontro e supera em amor uma mãe que, em geral, não se
levanta, mas somente estende os braços para receber o seu filho.
Em segundo lugar, devemos admitir: Já que Deus não faz
diferença de classe, esta relação é tão acessível a ti como a
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qualquer outra pessoa. Tu foste criado à sua semelhança como os
outros, e eu creio que tua sede de felicidade não é menor do que a
deles. Mas, se o teu progresso foi por vontade própria e não por
Deus, talvez dirás que tua idade ou tua profissão, tua constituição
ou doença ou até teu gênio te escusam ou distanciam de tal
amizade. O que posso te responder, a não ser o que falou Salomão:
“Quem tem vontade de separar-se do seu amigo procura conflitos e
sempre achará algo para acusá-lo”. Eu não sei se as tuas
desculpas te deixam tranquilo. A mim me irritam, e eu te digo, com
Agostinho, que não acredito em ti de jeito nenhum, porque não há
desculpa, quando a coisa só depende de ti. Se tu me dissesses:
não posso jejuar, não posso me flagelar, não posso usar roupas
grosseiras, nem trabalhar, nem fazer peregrinação: tudo isto posso
admitir. Mas se disseres: Não posso amar, eu não acredito nisto.
Em terceiro lugar, devemos assegurar que, seja qual for o
meio de procurar esta união com Deus, na alma se encontra uma
profunda inquietação, que nos leva a buscar unicamente a Deus:
sem esta busca e procura, ninguém alcança a Deus, sejam quais
forem os caminhos andados. Também é certo que a pessoa não
pode determinar como vai achar e o que vai alcançar.
Existem duas maneiras de buscar a Deus: uma provém do
próprio Deus, e a outra nasce do nosso esforço. Se a busca for
dada por Deus, a pessoa nem dorme nem come nem vive
sossegada. Quem é movido por Deus cuide de aproveitar o
presente, porque este ardor e esta sede costumam durar pouco.
Por isso, escolhe os melhores meios e apressa-te: com o favor de
Deus, em um ano farás maiores progressos do que farias sem ele
em três anos. É como se recebesses um animal de carga
emprestado por certo tempo para fazer trabalhos necessários e tu
deixasses este animal sem fazer nada. Virá o tempo em que o
pedem de volta, e o teu serviço não foi feito.
Não aconteça tal coisa! Deus quer que seus dons sejam
aproveitados e que lucres ainda mais com os talentos que Ele te dá.
Não deixes morrer tua sede. Senão a vela se apaga, e tu estarás no
escuro. Se a graça te for retirada, estarás mais relaxado do que se
nunca a tivesses possuído.
Alguns não souberam corresponder com a graça, já que
pensavam que bastava fazer penitências corporais. Estas têm
pouco proveito, como diz São Paulo, se o nosso interior não tem
parte nelas. Outros respondem só com palavras e com leitura, sem
entrar na vida interior. Então tudo se desfaz em fumaça, como o
mercúrio que evapora, se não estiver protegido. Por isso, irmão, se
quiseres tirar o maior proveito, procura a Deus no teu coração. Não
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te afastes de ti mesmo, porque Ele é mais íntimo de ti do que tu
mesmo (Agostinho diz: Tu intimior intimo meo!).
As águas da graça
Isaías tem três comparações que falam do valor das lágrimas
devotamente derramadas: O orante contemplativo é como um
jardim irrigado; em segundo lugar, é como uma fonte; e em terceiro
lugar, para mostrar que no exercício contemplativo nunca podem
faltar as lágrimas da piedade, o profeta acrescenta que as águas
nascidas da fonte dos olhos nunca secam.
A graça também é chamada de rio, porque ela procede do
lugar da bem-aventurança, quando Deus sai de si mesmo para
tornar felizes as nossas almas. A graça é também uma chuva,
porque ela molha o chão do nosso coração, para que este dê ricos
frutos em boas obras. Também é chamada de orvalho celeste que
penetra em nossas almas, que, como ostras, devem abrir-se, para
receber este orvalho na praia dos mares deste mundo. E ele há de
produzir nelas as pérolas preciosas de muitas virtudes, como o faz
o orvalho.
Já que o Senhor nos disse que devemos bater para que a
porta seja aberta, é evidente que devemos bater na porta mais
próxima que é nossa própria casa. Embora o Senhor tenha muitas
moradas, é dentro de nós que o encontramos com mais facilidade,
e não temos necessidade de procurar santuários, nem de
peregrinar para terras distantes. Onde quer que a pessoa se
encontre: para achar a Deus, só precisa entrar dentro de si.
Salomão dá testemunho disto, quando diz: Beba água de tua
cisterna e da corrente do teu poço!
Com estas poucas palavras, o sábio citou a cisterna, o poço e
a corrente de água. É claro que poço é mais do que a cisterna, e a
corrente de água é mais do que o poço. Assim acontece também
com os três degraus de místicos: Os principiantes têm a cisterna.
Os avançados servem-se da água que sai da bica do poço, e os
quase perfeitos possuem uma corrente, da qual distribuem a outros.
É destes que o sábio fala, ao afirmar, que as fontes transbordam, e
a água é distribuída nas praças.
Não é sem uma razão oculta que Salomão escolhe suas
imagens, se bem que pareçam sem lógica ao raciocínio comum,
porque uma cisterna não se desenvolve nem para poço nem para
torrente.
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Ela só faz juntar a chuva e não tem água por si mesma. O
coração humano, no entanto, tem uma tendência natural de abrir-se
para a graça e para a adoração divina.
É verdade que nada se faz, se o Senhor não manda primeiro
a chuva de sua graça generosa, porque sem ela o coração é só
como terra seca que se pode cavar e que, como cisterna, pode
receber o orvalho e as gotas de chuva que lhe forem enviadas. Mas
o coração tem a capacidade de acolher e guardar estas gotas da
graça com tanta eficiência que se torna um poço jorrante, logo que
tiver juntado o suficiente. O desejo natural de Deus pode crescer
muito no coração, e com isto cresce a sede de devoção interior,
sem a qual ele fica como antes, totalmente morto e seco.
A mesma coisa se pode observar no gelo que, se não for
tocado pelo sol ou pela água, é duro como cristal, e nele se pode
cavar uma cisterna. Mas, se vierem sol e chuva, o gelo tem que
derreter-se, e a cisterna se torna um poço ou mesmo uma fonte que
jorra, depois que tiver juntado água em sua cavidade. Do mesmo
modo, a alma, a não ser que esteja muito endurecida e
desesperada, pode receber a água pura e a corrente que o Senhor
lhe manda, se bem que antes parecia mais nada que uma cisterna
vazia e seca. Mas, se nesta alma, havendo um coração profundo,
cair uma grande graça, ela se tornará um poço, logo que o natural
desejo de Deus estiver acordado e vitalizado. Sim, ela se
transforma num poço tão receptivo que jorra, e do seu interior
nascerá amor de Deus e adoração sincera. Esta cresce cada vez
mais, até que se torne uma água viva de íntima veneração de Deus,
que, crescendo e pulando, alcança a vida eterna.
Com isto a alma volta àquela origem da qual lhe adveio a
graça. Isto só é possível, se a pessoa entrar em si mesma para de
lá subir até Deus. Porque ninguém pode subir até Ele, se não tiver
descido primeiro até a sua própria interioridade. Quanto mais
intensa e profunda for a sua entrada interior, tanto mais ele vai subir
porque quem se humilha será exaltado. Acontece com ele como se
vê na bola: quanto mais forte for arremessada contra a terra, tanto
mais alto vai pular. Na água se vê a mesma coisa: é na queda que
ela ganha força para subir. E o esportista que pula se abaixa, para
alcançar um pulo maior.
É por isso que os principiantes devem entrar em si, muitas
vezes, e doer-se com a má vida do passado: em silêncio, na
paciência e na esperança de emendar-se. Os avançados também
precisam interiorizar-se, para vencer, em silenciosa quietude, todas
as distrações do coração, na expectativa fiel da graça, que em
breve esperam receber do seu generoso Senhor. Também os
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quase perfeitos precisam entrar no seu interior para manterem, no
recolhimento interior, a vigilância do coração voltada para Deus. Por
isso, permanecem em profundo silêncio diante de todas as coisas
criadas e alimentam uma esperança tão forte e imperturbável que
um leve desejo já basta para elevá-los às coisas celestes.
O que é melhor: Entrar no seu interior ou superar a si mesmo?
Quem se exercita na contemplação e já possui alguma
experiência, às vezes, tem dúvida: o que é melhor para a pessoa:
entrar em si mesmo ou ir além de si mesmo? Queremos deixar
claro que as duas coisas fazem parte da contemplação e que nem
uma nem outra se alcançam sem recolhimento contemplativo.
Entrando em si mesma, a pessoa dá o primeiro passo para
superar-se. Aqui se torna verdade a palavra do Senhor: Quem se
humilha a si mesmo, será exaltado.
As duas coisas podem ser alcançadas por este exercício:
tanto a interiorização como a superação de si mesmo. São estas
duas graças que a pessoa mais deve buscar na contemplação,
porque só elas satisfazem o coração profundamente. Porém, é mais
fácil entrar em si mesmo do que superar-se. Por isso, me parece
melhor dar prioridade ao primeiro, embora a alma esteja disposta e
capacitada para as duas coisas. Sem esforço alcançarás a
superação de ti mesmo, que brotará de um modo mais puro e mais
espiritual como fruto de rua interiorização. No entanto, observa qual
das duas possibilidades tua alma mais procura. Obedece a voz
interior e experimentarás graça e vantagem maior.
Não deixes que o espírito fique vagando, mas faze com que
ele esteja inteiramente no teu interior ou elevado acima de ti, para
que sempre preserve a unidade.
A prisão do amor
A alma como prisioneira
Não te assustes com as dificuldades do começo, porque,
depois de vencidas na perseverança, elas te parecerão leves, e
chegará o dia em que começarás com intensa interioridade a
procurar a deliciosa sabedoria que se encontra na escola da
contemplação.
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Então já não poderás deixá-la. Antes te acharás
maravilhosamente cativo na prisão do amor, da qual nunca mais
pedirás soltura.
Deus como prisioneiro
A alma prende a Deus, para sequestrá-lo com os laços do
amor e da paixão, e Deus não consegue desfazer-se do amor.
Antes, se dá por vencido como o pássaro, quando o falcão se
precipita sobre ele. Depois que Deus estiver preso desta maneira
pelo amor, a alma o conduz não somente para a casa de sua mãe,
como também para o leito de sua mãe, conforme dizem os
Cantares.
A mãe da alma é a vontade amorosa, a quem ela agradece a
ventura. A casa da alma é o coração: Deus é conduzido não
somente para dentro da casa e sim para o recolhimento da
contemplação que é a cama em que Deus sente todo o conforto.
Ele escurece a morada, fecha as janelas dos sentidos e leva a alma
a experimentar muita coisa, como diz a noiva nos Cantares. A alma
Lhe dá uma bebida que faz dormir, para tê-lo sempre perto de si,
um vinho com muitos aromas. Todo o seu querer só se volta para
Deus. Ela lhe serve, na taça da pureza, o vinho da romã, a saber, o
ardor de sua íntima profundidade, resplendente de amor.
Por isso: prova, irmão, para ver como o Senhor é amável.
Quando a alma lhe dá de beber seu bem-querer e sua saudade, é
ela quem se inebria do vinho do amor ardente. É por isso que o
Senhor insiste nos Cantares: Não acordeis minha amada antes que
queira, depois que ela tomar o vinho. É ela que determina a hora,
porque sempre é Deus quem ama por último. A noiva diz: O Senhor
colocou a mão esquerda sob a minha cabeça, para assim elevar a
parte superior da alma acima de todas as coisas criadas. Mas com
a direita Ele abraça a amada e envolve-a de eternidade.
Nosso coração — um castelo
A alma tem três forças principais: a força da inteligência com a
qual se governa, a força da coragem que é sua defesa e a força do
querer com a qual providencia tudo de que precisa. Estas três
forças devem ser os vigias do castelo do nosso coração, para que
ele esteja seguro de todos os lados. Salomão diz que seu coração
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tem medo de três coisas: do engano, da violência e da fome. São
estes os três perigos para o coração.
Por isso, devemos seguir o conselho dos sábios, chamando
os ditos três vigias. Quem nos defende do engano é a inteligência
que avalia. Isto se vê no exemplo da Santa Virgem que ponderou as
palavras do anjo da Luz, para ver se não tinha algum engano atrás
das palavras boas ou algo escuro atrás do clarão. Assim não entrou
nada no seu coração que não fosse examinado com afinco, O
segundo portão do castelo, pelo qual costumam invadir violência e
medo, seja vigiado pela força da coragem, que expulsa todos os
temores da noite. O terceiro portão, que é ameaçado pela fome, ou
melhor, pela ganância e inúmeros desejos, seja munido pela
saudade das coisas celestes. É por isso que o anjo diz no livro de
Daniel: “Eu vim para te ensinar, porque tu és o homem do reto
desejo”. As coisas da terra não atingem aquele que tem sede das
coisas do céu.
É importante saber que basta um portão sem vigia, para que o
diabo penetre no castelo do coração. Ele usa ora esta, ora aquela
tática, nunca todas as três na mesma pessoa. Basta uma, para que
o homem se perca. Portanto, se quisermos ter certeza, devemos
colocar vigias de todos os lados ao redor do coração, porque ele é a
sede da vida. Esta vigilância deve ser absoluta: diante do paraíso
Deus colocou os Querubins com espada de fogo, para proteger o
caminho da árvore da vida.
O coração dos fiéis é um paraíso terrestre, no qual o Senhor
entra para descansar. Ele diz: Meu prazer é estar com os filhos dos
homens. Também para nós ele é um paraíso de gozo, porque nele
começamos a sentir a bem-aventurança, quando Deus nele habita.
Esta felicidade que o coração sente vale mais do que todas as
alegrias do mundo. Grandes senhores costumam possuir castelos
no campo, os quais eles procuram para a alegria do descanso.
Salomão e Xerxes tinham casas assim, na sua floresta ou no seu
jardim. Também Deus, nosso Senhor, que não se satisfez com o
paraíso celeste, mandou construir na terra um castelo para a sua
alegria: o coração humano. Deus o chama “paraíso terrestre”,
porque “o coração do justo é um paraíso”. Sim, paraíso, porque
qualquer lugar em que Ele se encontre é um paraíso. Ele o chama
“terrestre”, porque tem lugar no nosso corpo que vem da terra.
Deste paraíso está escrito: “A graça é como um jardim que ecoa de
louvores, e a misericórdia permanece na terra”.
Salomão fala mais da graça do que do coração, pois este só
se tornou um paraíso pela graça de Deus, que nele veio morar. Ela
é como uma fonte que rega o paraíso do coração. Diz a escritura
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que esta fonte se divide em quatro rios, que alimentam em nosso
coração: as quatro virtudes cardeais, a saber: a justiça, a
temperança, a força e a prudência. Com estes dons, o coração
consegue realizar inúmeras boas obras.
O sábio fala de um paraíso cheio de louvores, porque o
coração nunca pára de louvar a Deus, já que tudo é presente de
Deus, não adquirido por esforço humano. Por que ele diz que a
misericórdia permanece no mundo? E porque Deus não para de ter
misericórdia deste mundo, de modo especial quando um coração,
que era paraíso terrestre, alcança a eternidade, onde, para sempre,
será um paraíso celeste. E isto que Deus promete pelo profeta
Isaías, quando diz: Glorificarei a casa da minha majestade!
A oliveira
Flor encantadora é a alma, que abriga em si a graça e, com
ela, a promessa do fruto da vida eterna. A graça é uma chave do
céu, com a qual entramos no nosso interior. Ela é um navio, no qual
navegamos com segurança no mar deste mundo, e que nos faz
chegar ao porto da salvação. Comparamos a graça também com o
óleo, porque ela nos torna agradáveis a Deus e porque se derrama
em nós com abundância por Cristo, nosso redentor, que é chamado
“oliveira fértil na casa de Deus”, sua igreja. Esta árvore dá rico fruto,
de onde é tirado aquele óleo maravilhoso, símbolo da graça. Ele
cura todas as feridas do homem assaltado pelos ladrões, isto é, ele
cura as chagas de todo pecador.
O Senhor ordenou aos seus que ungissem os doentes com
este óleo e os curassem de toda enfermidade. Eles ficaram curados
no corpo e na alma, porque, o que se realizou por dentro para fora
se manifestou.
O óleo de oliveira também tem a capacidade de tornar
agradável o que amargo. É por isso que se usa no preparo de
ervas. Do mesmo modo, a graça livra a aflição de sua amargura.
Por esta razão, ela é mencionada entre os presentes que Deus dá
para Jerusalém, quando se diz: Deu-lhe óleo como alimento,
querendo dizer, deu-lhe a graça de sofrer as aflições com
serenidade. E esta graça não é pequena. Outra propriedade, tanto
do óleo como da graça, é a unção do ser humano para certas
dignidades. O chamado é consagrado a Deus e ungido com o santo
óleo.
Se a graça não nos for dada por Deus, não podemos salvarnos nem pelos mais ricos dons naturais. Pode alguém ser o maior
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mestre na sua arte ou mão de obra, ele não faz nada sem o seu
instrumento. Capacidades e dotes não bastam para adquirir a vida
eterna, se a graça divina não se juntar ao esforço. É ela quem
molda a livre vontade e faz as obras renderem; só assim elas
podem se tornar merecedoras da vida eterna.
O óleo também nos livra da morte, como vemos em Jr 4,8:
Ismael, disposto para matar, deixou escapar com vida aqueles que
tinham guardado sua reserva de óleo. Isto quer dizer que o demônio
é impotente contra aqueles que na batalha da vida conduzem a
graça consigo. Ó alma, se quiseres receber dignamente o teu
esposo, enche primeiro a vasilha do teu coração com óleo, para que
possas sair com segurança da tua morada terrestre junto com as
virgens prudentes e ser recebida nas núpcias celestes, onde sem
óleo não terás acesso. Mas, se achares difícil obter este óleo, faze
como o doente que pede os santos óleos, quando sabe que vai
morrer. Basta pedir para receber a força do sacramento. Pensa
bem: todo dia morremos, porque todo dia pecamos. Por isso,
persevera em pedir com lágrimas o óleo da graça. Então a pomba
do Espírito Santo não vai demorar em vir a ti e trazer não somente o
ramo da graça, mas a própria oliveira frondosa que é o Cristo.
Planta as raízes desta árvore com carinho no teu coração, então ela
crescerá em ti. Rega o seu pé com lágrimas puras, para que ele se
torne cada vez mais viçoso. Se vier o demônio para te dar de beber
o veneno da tentação e do pecado, só precisas pedir a Deus com
lágrimas o óleo da graça. Imediatamente ele te protege e liberta de
tudo que é nocivo e perigoso.
Casulo e borboleta
Todos os que procuram a perfeição só alcançam o cume,
quando deixam de buscar as próprias virtudes, o próprio progresso,
e buscam unicamente a Deus, de modo que sejam movidos só pelo
amor. Eles são como a borboleta que, depois da missão cumprida,
sai do casulo. Ela só se alimenta de amor e não liga para mais
nada.
Isto não pode ser explicado com poucas palavras. Mesmo
quem pratica isto não pode falar, porque já não dá atenção às
virtudes e obras, mas unicamente ao amor, sem o qual tudo lhe
parece pequeno. Digamos que duas pessoas soubessem voar, O
primeiro sobe sem olhar para trás, enquanto o outro olha para
baixo, para ver o quanto já subiu. E claro que o segundo fica atrás
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do primeiro, que não pergunta pela altura, porque este só
contempla o que está na sua frente e o que falta alcançar.
Não deixes que teu amor se prenda às virtudes. Procura
unicamente o Deus altíssimo, para onde voamos. Para o filósofo, a
virtude é a meta e fim. Para o cristão, ela é somente um meio para
chegar ao perfeito amor de Deus. Ele não procura as virtudes pela
satisfação que proporcionam, e, sim, porque sem elas não pode
alcançar o amor de Deus que é o fim e a meta de nossa vida.
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5° Capítulo: A HUMILDADE COMO CONDIÇÃO DE
CRESCIMENTO ESPIRITUAL
O que é humildade?
Quem refletiu em profundidade sobre os assuntos deste livro
poderá me objetar: este capítulo deveria estar no começo, porque a
humildade é base e fundamento de todo edifício; nela se apóia todo
exercício espiritual, e é desta raiz que provêm os frutos da árvore.
Se o amor é a raiz, então a humildade é o húmus, o solo fértil, do
qual a árvore se alimenta e de onde lhe vem a força de produzir o
fruto. A humildade também se compara com o sal, porque ela é tão
necessária para todo exercício, como o sal é indispensável para dar
sabor a todas as comidas.
A humildade é a porta da vida religiosa; ela se compara com o
primeiro passo de Cristo no mundo. Quem quiser levar uma vida
que agrade a Deus seja modesto na vida particular e não espere
nada especial, porque a humildade sempre foi condição
indispensável da santidade.
Em tudo se precisa de humildade, mas de modo especial nos
exercícios espirituais. Quanto mais santa for a pessoa, tanto mais
precisa ser humilde. Quanto mais alta a árvore, quanto mais
magnífica a casa, tanto mais precisa aprofundar as raízes ou os
fundamentos. Os santos foram também os mais humildes.
Coloco este capítulo sobre a humildade neste lugar, porque
quero mostrar que na sua essência ela parece muito com a
contemplação. São João Batista mostra humildade, quando diz: “Ele
tem que crescer, eu devo diminuir”. A meta da humildade é libertar
a pessoa de si mesma. A mesma coisa faz a contemplação: ela nos
salva do egocentrismo, para que Deus tenha lugar no nosso
coração. Uma coisa nos é dada e outra coisa é tirada. São Paulo
diz, de um lado, que não é capaz de um bom pensamento por si
mesmo e, por outro, afirma que tudo pode naquele que é sua força.
Desta maneira, aquele que se humilha é elevado até o altíssimo
coração de Deus, e quem se retira na contemplação encontra a
Deus em grande medida. Por isso, a palavra de Pedro se aplica às
duas coisas: “O homem oculto do coração, com seu ser
indestrutível, com o seu espírito tranquilo e moderado, é precioso
aos olhos de Deus!” Não é por acaso que Pedro diz: O homem do
coração se ocultou na fortaleza indestrutível de sua essência.
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Porque, pensando bem, esta fortaleza da alma é a humildade. Nela
se acha seguro quem vive do espírito, com as portas trancadas
para todas as vaidades mundanas, de modo que nem louvor nem
glorificação têm entrada.
Há gente que diz: o coração do pecador é um vaso com
rachadura, que não segura a plenitude de Deus. Mas o coração do
puro é um vaso sem defeito, formado pela humildade que é
indestrutível e inteiriça. Dele não se perde uma gota, porque ele não
anda contando vantagens. Este vaso do coração, corrigido pela
humildade, capaz de segurar o que colhe, tem uma propriedade
especial: ele pode crescer sem rachar-se, para caber ainda mais
graças divinas. É por isso que o titulo diz: A humildade é a condição
indispensável para o crescimento espiritual.
Alguns acham que humildade é coração estreito, natureza
desprezível e pouco enérgica de uma pessoa que não luta por
grandes coisas. Outros pensam que humildade é aspecto doentio e
espírito pequeno, que se manifestam no porte, no modo de vestir e
no comportamento. Alguns identificam humildade com covardia e
medo. Outros ainda acham que é prova de humildade o fato de não
dispor de nenhuma capacidade ou de esconder os dons. Todas
estas opiniões estão erradas e não têm nada a ver com humildade.
Para entendermos a majestade da humildade, temos que
saber que ela tem uma irmã que é a nobreza da alma. As duas são
companheiras que se amam muito, de tal maneira que uma não vai
sem a outra. Elas são as duas asas com as quais a noiva, ou
melhor, a alma, levanta voo para Deus e vai para a solidão da
contemplação. Assim como a pobreza do espírito não se reduz ao
desprezo das coisas temporais, mas conquista a riqueza do
sobrenatural, do mesmo modo a humildade não pára na recusa de
honrarias, mas progride para a sublimidade dos bens espirituais.
Levanta teus olhos para reconhecer esta grande virtude da
humildade. Olha esta semente de mostarda que deves plantar no
jardim de tua consciência. É pequena aos olhos dos homens, corno
diz a escritura, mas aos olhos de Deus é maior do que todas as
plantas e todos os exercícios espirituais. Anima-te a subir pelos
galhos desta árvore, embora seja difícil alcançar o seu topo. Ela é
muito alta, e entre todas as criaturas só houve uma que alcançou o
topo, aquela que em sua humildade falou: Sou a serva do Senhor.
Ela teve a grandeza de espírito de querer dar à luz o filho eterno de
Deus na condição humana. São Bernardo assustou-se com isto e
exclamou: “Que humildade tão elevada que despreza a honra e não
dispensa a glória”.
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É assim o crescimento da humildade: de um lado, é
diminuição e, de outro, se for verdadeira, é uma enorme elevação.
Diz Santo Agostinho: Ela cresce na mesma medida em que se
rebaixa. Quanto mais ela desce, tanto mais se eleva. Altura e
profundidade são iguais, as duas crescem juntas para poderem
convencer. O crescimento da tua humildade mostra-se na
diminuição do Ego. Progresso em geral é aumento, por isso, não te
admires se o teu progresso seja chamado de atraso. Porque
humildade é um candeeiro com facho que consome. Quando tiveres
alcançado a perfeição, todo orgulho estará queimado.
Uma qualidade notável da humildade
Se uma pessoa humilde se aperfeiçoa de verdade, sua
humildade cresce ao mesmo tempo.
Nisto poderás perceber a natureza da verdadeira humildade
que aumenta com os dons da graça.
Ela não se impressiona com o que recebe, mas leva em conta
o que deve dar em troca, o compromisso que surge daí. Por isso,
ela não se enaltece, mas se rebaixa, e respira ofegante com o peso
dos dons, pensando no que lhe será exigido. Porque grandes dons
significam grandes deveres. Longe de se orgulhar, ela se inclina
profundamente para a terra (humus), de onde recebeu o nome.
Comporta-se como a árvore que, cheia de frutos, deixa os galhos
cair.
Por outro lado, quando a árvore carrega frutos podres e
cheios de bicho, ela não se abaixa tanto, como quando tem frutos
de substância sadia, que pesam mais e puxam silenciosamente os
galhos para perto do chão. Assim, temos um sinal seguro para
diferenciar os dons de Deus daqueles que são ilusão do demônio.
Já que as dádivas de nosso Senhor são maravilhosas, plenas de
verdade, de grande peso e valor, elas humilham, e a pessoa anda
inclinada, mais do que outra que não as recebeu. Mas, quando o
demônio simula tais presentes, estes envaidecem o homem. Em
vez de abaixá-lo, o enaltecem, para precipitar o coitado lá das
alturas e esmagá-lo nas profundezas do inferno.
Uma coisa é humilhar, e outra coisa é dar humildade. O
desavisado costuma dizer que Deus lhe tirou algo, quando quer
humilhá-lo. Seria melhor que dissesse: Ele me tirou algo para me
envergonhar e fazer-me pensar, porque eu era orgulhoso e
relaxado. Quando Deus quer propiciar humildade para alguém, ele
não costuma tirar, e, sim, dar. Ele sabe que os seus dons por si
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mesmos são tão bons que naturalmente tornam humilde a pessoa
dotada, a não ser que esteja enfraquecida por algum vício. É o que
acontece com o vinho bom que chega a fermentar num barril
perfeito. Mas, se o barril tem defeito, o vinho também se arruína.
Humildade provada enfrenta o perigo com calma e tira mel até
de um grão de fuligem, como a abelha, da qual se conta o seguinte:
Na hora de grandes tempestades que poderiam esmagá-la, a
pequena criatura segura uma pedrinha entre os pés e, com ela, voa
para baixo. Se o vento aumentar, ela simplesmente se deixa cair,
puxada pela pedrinha da humildade, de modo que a alma chega ao
chão com segurança: o peso que a faz descer é a consciência de
que por si mesma ela não é nada.
A comparação da árvore, da qual falei acima, mostra: Quando
achamos numa pessoa o dom e a humildade ao mesmo tempo,
podemos concluir que este dom provêm do Espírito Santo. Parece
que Isabel possuiu este tipo de reconhecimento frente à mãe de
Deus. Quando esta veio até ela cheia de benção, Isabel exclamou:
“Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre”.
Ela quis dizer: Tu és tão bendita que eu não sou digna de que
venhas visitar-me e me saúdes com tanta humildade. Deve ser o
fruto do teu ventre que age em ti e te conduz a mim em tamanha
simplicidade. Disto podemos concluir: basta a menor pretensão de
grandeza para mostrar quais são os dons que não provêm de Deus;
porque, quando o fruto é leve e sacode dentro da casca, ele não
vale nada.
Todas as dúvidas sobre nossos sentimentos para com Deus e
todos os medos que nos atacam encontram o seu remédio no título
deste tratado: Humildade é condição indispensável de todo
progresso espiritual. Se em tua vida a humildade crescer junto com
a graça recebida, acredita-me que estás progredindo. Aqui, não há
perigo de engano, e esta palavra te leva à verdade.
Como devemos diminuir, ao crescermos
Quando se trata da criação e da manutenção do mundo, Deus
gosta de companhia, e permite que a criatura o ajude a dar vida a
novos seres. Mas a redenção do mundo, ele a reservou para si
mesmo por causa da sua importância singular. Da parte dos
homens, para o pecador ser justificado, é preciso somente isto: que
ele se humilhe profundamente e renuncie ao pecado. A partir daí, o
microcosmo humano será recriado, pela graça, do seu
aniquilamento e elevado a um novo ser, assim como antes o
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macrocosmo foi criado do nada, como sabemos. Esta profunda
humildade, esta consciência de aniquilamento, deve abranger até
os méritos éticos, fazendo-nos entender que estes por si não
adiantam nada. Como diz Beda: “A fé dos homens é perfeita,
quando eles, depois de terem cumprido o que lhes foi ordenado, se
consideram imperfeitos”. E São Paulo acrescenta: “Os sofrimentos
deste mundo, (ou os atos sofridos), não são dignos de ser
mencionados”.
Portanto, o Espírito Santo faz o que todos os méritos não
alcançam. Se nossas boas obras, mesmo feitas sem pecado e
nascidas da livre vontade, não podem salvar-nos e no fundo não
constituem méritos, fica evidente que um grão de trigo alcança o
seu destino com mais facilidade do que o homem. Porque, ao grão
de trigo bastam as circunstâncias naturais, para que cresça e
produza fruto. Mas a pessoa humana precisa mais do que isto, para
que produza frutos dignos da plenitude almejada. Apesar disto,
ninguém diga que nosso esforço é em vão. Mesmo que nossas
boas obras não sejam suficientes para nos justificar, elas, no
entanto, nos preparam para a justificação que Deus previu para a
nossa salvação. Assim como pelo sol vem a luz e o calor, do
mesmo modo por Deus vem a justificação e a vida eterna. Mas,
para receber a luz do sol, a gente tem que abrir os olhos. E, no
entanto, só recebemos esta luz, se o sol envia os seus raios. Em
abrir os olhos, possibilitamos o recebimento da luz. Assim também
nossas boas obras nos tornam hábeis para a justificação.
Se a pessoa estiver em pleno sol sem querer abrir os olhos, a
culpa é dela, se não enxergar nada.
Por isso, também é culpa tua, se não te preparas
humildemente com boas obras para receber a justificação pelo sol
da justiça, isto é, o Cristo, que conduz os humildes à salvação,
ainda mais ligeiro do que o sol envia os seus raios.
Quem cresce interiormente em boas qualidades se prepara
para Deus, mas esta preparação não serve, se faltar a humildade.
Tudo é em vão, se não reconhecermos humildemente que nosso
esforço não pode alcançar a salvação.
Nossas boas obras não somente são insuficientes para
chegar até Deus, mas até lhe desagradam e se tornam ruins, sem a
humildade. E isto que Gregório diz: “Mesmo a obra mais importante
não nos eleva, mas nos deprime, se ela for realizada com soberba.
Quem pratica virtudes sem humildade semeia poeira contra o vento
e colhe cegueira”.
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Sobre a importância de crescer na humildade
Se quiseres progredir interiormente, a humildade tem que
crescer junto com as outras virtudes.
De outro modo, elas se tornam perigosas para ela que ainda é
fraca. Portanto, se quiseres progresso espiritual, a humildade é a
primeira que deve crescer. Acontece, porém, que a própria
humildade é o seu pior inimigo, porque, se a pessoa se considera
humilde, já deixa de sê-lo. Sim, não há soberba maior do que
quando o homem pensa que é humilde. Desta maneira, ele se
coloca no primeiro lugar, enquanto afirma que está no último. Este é
um engano muito perigoso. Por isso, diz Bernardo: O verdadeiro
humilde prefere ser desprezado a ser elogiado por sua humildade.
Portanto, a verdadeira humildade permanece inconsciente.
No começo, parece difícil entender que a pessoa se considere
inferior quando faz progresso. Mas, quem tem experiência na
oração entenderá: É o caso do caminheiro que sobe a um alto e,
chegando na altura, avista mais desafios que outros atravessaram
antes dele. Assim, reconhece que apenas venceu um pequeno
pedaço do caminho, e quanta coisa falta enfrentar, coisa que outros
venceram mais ligeiro. Ah, quantos não há que se consideram
perfeitos e muito avançados que, se não ficassem parados, iriam
descobrir, do outro lado da colina, inúmeras outras para subir.
Assim veriam que ainda não passaram de uma jornada e que eles
só se consideram mais avançados do que os outros, porque não
souberam reconhecer as virtudes deles.
Davi nos diz: “É bom para mim, quando sou desprezado” (no
caso de Semei que o amaldiçoava, cf. 2 Sm 16,6). Ele dá a
entender que a humildade aumenta em nós, sempre que crescemos
no conhecimento e no amor a Deus. Podemos dar crédito ao que
nos vem como amigo e nos diz a verdade, a saber, que não somos
nada. É o que sente o anão frente ao gigante: quanto mais o anão
se aproxima do gigante, tanto mais sente a sua pequenez. A
escritura confirma que as pessoas intimamente unidas a Deus eram
as mais humildes.
Davi ensina também: Quem se considera inferior não se
interessa pelo que os outros pensam sobre ele num julgamento
exterior. Por isso, é uma contradição, se tu mencionas um mérito
teu e depois pedes o outro para não falar sobre isto. Dizes assim,
não porque desejas o silêncio respeitado, e, sim, porque queres ser
humilde aos olhos do outro, sem ser humilde. Assim ficas afirmando
sobre ti o que tu mesmo não acreditas.
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Pode acontecer contigo o que Gerson contou sobre uma
monja reclusa: Ela tinha costume de falar coisas desagradáveis
sobre si mesma aos visitantes no locutório. Um dia aconteceu que
uma menina, sua criada, atendeu uma dama junto à grade, e esta
perguntou como era o jeito de sua patroa. A menina respondeu
exatamente com as palavras que sempre ouvia a monja dizer: “Ela
é uma velha ordinária, dorminhoca e sem qualquer piedade, que
não merece o bocado que come”. Ouvindo isto, a velha monja
correu e gritou com raiva: “O que estás dizendo? Ó minha Senhora,
não acredites na mentira dela, porque sempre madrugo e faço tudo
que está no meu poder”.
Assim, há muitos que se humilham de aparência e não
querem que alguém leve a sério o que eles mesmos afirmam a seu
respeito. Nisto se vê que carecem da humildade e também da
verdade, porque não querem que alguém confirme o que disseram.
E se alguém disser: Falaste bem!, o repelem e mostram assim que
faltaram com a sinceridade. Quem é humilde de verdade aceita que
lancem no seu rosto o seus defeitos.
Ele gosta de ouvir aquilo, mesmo que apontem para ele com o
dedo. Porque ele faz questão de conhecer os seus defeitos e pede
para que os outros lhe mostrem seus erros para poder corrigi-los.
Quem quer viver na humildade olhe em primeiro lugar suas
fraquezas e peça ajuda dos outros para que possa reconhecê-las.
Ele implore a Deus para abrir os seus olhos para que veja os seus
erros e nada mais, como diz Davi: “Meu coração fica ardendo, e
meus rins se contorceram dentro de mim. Fui reduzido ao nada e
não o sabia. Estou diante de ti qual um animal e sempre estarei
contigo”.
Com estas palavras, Davi cai de um extremo ao outro, porque,
de um lado fala do coração em chamas, o que por Dionísio
Areopagita é atribuído aos Serafins, e do outro lado se considera
um ser irracional, de modo que se comporta como alguém que de
grande altura se precipita para baixo. É assim que age a mais
profunda humildade, que arde de amor divino. E é justamente por
isso que o humilde não se detém muito com seus tesouros. Ele não
perde de vista os seus defeitos e frente a Deus se comporta como o
pobre que na porta da Igreja pede esmola, escondendo os seus
membros sadios, sabendo que assim o povo tem pena dele mais
facilmente.
Com grande confiança, o humilde se senta na porta da
misericórdia. Ele não ousa entrar com os grandes, porque não se
considera digno de ser ouvido. Em vez disto, manifesta a Deus e
aos Santos na sua oração todos os seus defeitos, que são as
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chagas de sua alma, e esconde a bondade, como se não a tivesse,
porque exige cada vez mais de si mesmo. É por isso que Salomão
diz: “Humilha-te diante de Deus e espera por suas mãos”. O
humilde sabe que as mãos auxiliadoras de Deus sempre se
estendem ao pobre que se rebaixa. Por isso, não pára de inclinar-se
diante de Deus e somente diante dele, sem se importar com os
homens, aos quais se sujeita só por amor de Deus, contemplando
neles o próprio Deus.
Não é assim que agem os soberbos. Como vendedores de
legume, colocam em cima o repolho fresco e escondem o que há de
podre, isto é, escondem seus defeitos e mostram o que consideram
suas qualidades. É por isso que diz o Salmista: “Com sua boca
tocam o céu e não põem freio à sua língua”. Pessoas assim não
vão receber esmola de Deus, que atenta para o pobre e do
orgulhoso desvia seus olhos. Isto se vê na parábola do publicano e
do fariseu: Ao que colocou a boca no trombone, exaltando suas
boas obras, não lhe foi dado nada. O outro confessou suas faltas e
voltou para casa justificado. O fariseu ficou suspenso no alto do seu
orgulho, onde se tinha exaltado (cf. o caso do Absalão que ficou
suspenso no galho da árvore. Nota do tradutor).
Louvor da humildade
Ó humildade, altíssima virtude, mãe e multiplicadora do bem.
Não há poeta que possa louvar-te. Não há coração bastante
generoso que possa amar-te sem falsidade. Tu és amada por Deus
e pelos homens. Com tua submissão calada submetes o demônio.
Mesmo o teu inimigo, o orgulho, gostaria de ter a tua veste, para
disfarçar-se de servidor. Tu dás ao coração grandeza e
profundidade, para fazer jorrar com mais abundância a fonte da
graça e para acolher em ti a riqueza de Deus cada vez mais
intensamente. Só tu estás segura da queda, porque sempre
escolhes a parte baixa e, mesmo que fores derrubada, não serás
machucada. Tu exaltaste o Cristo, o maior entre os homens, e
derrubaste o maior entre os anjos, porque ele não te amava. Aos
que lutam tu dás coragem e és como a terra que dá força aos seus
filhos, quando nela tocam ao cair no campo de batalha. Tu não te
sentes desonrada, quando algo te é negado. Por isso, sempre
alcanças o que pedes junto àquele que espera por tua prece. Só tu
és incansável, porque nunca te satisfazes com aquilo que
conseguiste fazer, antes consideras tudo sem valor. Na casa de
Deus colocas tudo pelo avesso, pondo os últimos em primeiro lugar
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e mandando os primeiros para o fim. Só tu sabes quanto a criatura
precisa de Deus e sabes que todo serviço a ele prestado, na
verdade, é outra graça que dele recebemos sem o perceber. Tu te
sentes feliz em ser devedora do Senhor que nunca te retira o seu
favor.
Tendo recebido muito, reparas a grandeza daquele que te
cumulou com sua graça e o dever que nasce daí. Se não receberes
nada, olhas para tua pequenez e te reconheces indigna, dando
razão a quem cortou para ti o fio da graça. Em seguida, tentas fazer
reparação do teu erro.
De muitos que caíram em tentação tu desvias a ira
castigadora de Deus, se eles aceitam o bom conselho. A alma que
te ama, tu a fortaleces tanto que ela vence o orgulho do mundo, que
nos quer privar de todos os bens. E assim a tornas agradável aos
olhos de Deus, os quais se voltam para os humildes para fazê-los
crescer no progresso espiritual, até que recebam em felicidade
quanto possuíam em humildade.
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6° Capítulo: DE TUDO DEVEMOS TIRAR AMOR
Deus
Não poderíamos ter a ousadia de crer que Deus se doa por
amor de nós, se não tivéssemos a sua santa promessa: “Quem me
ama guardará os meus mandamentos; meu Pai o amará, e nós
viremos a ele e nele faremos morada”. O Senhor achou que não
nos bastaria a promessa de que Ele nos amará. Por isso,
acrescenta que virá até nós, unicamente para fazer nossa vontade.
O salmista diz que Deus fará a vontade daqueles que o amam com
sinceridade e atende os seus pedidos. Para não pensarmos que
sua vinda é passageira, diz que irá morar conosco. Porque o amor é
de tão grande valor que, por assim dizer, compra a Deus, não
somente por uma hora ou por um ano, mas por todo tempo que a
Ele concedemos.
Mas, se deixamos de amá-lo, tudo volta ao velho estado. Se o
Senhor vê que nos arrependemos da compra, Ele junta suas coisas,
de modo que perdemos tudo o que já havíamos adquirido no
tocante à vida eterna. Se Lhe negamos nosso amor, o Senhor se
vai, indo de passos lentos e hesitantes, com a cabeça para trás. Ele
quer que tu reconheças o teu dano e entendas que estás perdido.
O amor é tão forte que arrasta o homem atrás de si. O seu
coração ultrapassa a si mesmo e leva-o para onde está o seu amor.
Deus também é arrastado pelo seu amor onipotente. Ele diz: Onde
estiver o meu amor, lá estarei eu também. Como Deus é inteiro e
indiviso, aquele que ama o Filho também tem o Pai e o Espírito
Santo. Ele possui toda a riqueza de Deus, porque não existe
nenhum bem que não esteja em Deus. Os cidadãos do céu vivem
mais em Deus do que dentro deles. O amor faz com que vivam
sempre na sua companhia. Por isso, onde existe o amor, lá
encontramos o paraíso completo. Sim, o paraíso é, na verdade, o
amor de Deus.
Por isso, irmãos, vamos buscar o fundamento no amor e nele
lançar raízes. Assim, estaremos enraizados e fundados para
sempre no amor de Deus que faz de nós sua morada e seu templo.
Enraizados também no amor ao próximo, como árvore frutífera com
folhas medicinais e frutos nutrientes.
Os que estão enraizados e fundados desta maneira
conseguem intuir qual é a largura, o comprimento, a altura e a
profundidade do amor. Sua largura alcança até os inimigos, seu
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comprimento permanece até o fim, sua profundidade não atribui
nada a si mesmo, mas tudo ao amor com que Deus nos ama. Ele
se parece com um paraíso portátil que sempre levamos conosco.
Nele encontramos clarividência, fidelidade, apreço, liberdade,
constância e clareza, suavidade, segurança no discernir e força de
penetração.
As criaturas
Ó minha alma, se experimentares como o Senhor é bom, o
adorarás, bendizendo e louvando o seu nome e anunciando a sua
glória. Ama o teu Senhor em sua criação, em cada uma de suas
criaturas e percebe-o, mais com a profundidade do sentimento do
que com a mente. Assim, poderás tirar amor de tudo, porque, desta
maneira, devolves tudo àquela origem da qual tudo procedeu pelo
poder do amor.
Não há nada, por menor que seja, que não possa derramar
amor em nós. Porque o amor é a origem de todos os dons divinos e
está contido em tudo que foi criado. Daí nasce a obrigação de
agradecer, não somente pela dádiva a nós confiada, mas também
pelo carinho com que ela nos foi dada. Assim, poderás tirar amor de
tudo e responder com amor condizente.
A meditação das coisas criadas é muito boa para aumentar o
amor. Tudo se sustenta pelo amor próprio. Mas o homem, que está
num grau mais alto, precisa, para o seu sustento, de um amor mais
nobre. Por isso, deve procurar o amor divino que, agora e sempre,
sustenta o céu e na terra encontra o seu par, quando consegue
tocar em nós. Assim, deves tirar amor de tudo que Deus fizer
contigo.
Alegria e dor
Olhando bem, o amor é o fiel da balança, e a balança é o
coração. Se o amor é sincero, este fiel não vai inclinar-se nem para
o lado da dor nem para o lado do consolo, mas há de mostrar o
mesmo ânimo para todos os lados, aceitando tudo como graça de
Deus. Mas, de fato, a experiência mostra: em caso de dúvida, o
amor se inclina antes para a aflição do que para as alegrias, porque
neste mundo o caminho da dor é mais seguro. Por isso, o amor se
manifesta mais claramente no sofrer do que na felicidade. Ele
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parece com o cavaleiro: É na luta que ele prova o que é, muito mais
do que quando corteja as damas.
O amor é uma abelha: De qualquer flor tira mel para sua
colméia. Por isso, ele se alegra com o bem que há no próximo,
aproveita como lição e leva a Deus como oferta. Todos nós somos
membros de Cristo, e Ele é também a tua cabeça.
Nós ganhamos amor da direita e da esquerda, se
entendermos que Deus usa favores e contrariedades como esporas
para que corramos mais velozes na pista do seu amor. Reconhece,
pois, que usaste mal o passado, para não desperdiçar a vida curta e
incerta que te sobra. Então, há amor a esperar-te na frente e por
trás. Dos vales e dos montes, das profundezas e das alturas, de
tudo saberás tirar amor, se te deixares provar por ele na vida ativa e
contemplativa; se te exemplares pela sorte dos pecadores e te
espelhares pela vida dos justos.
Amante e amado
Deus não espera em primeiro lugar a tua entrega, mas que
Ele possa entregar-se a ti; porque sem Ele não consegues nada.
Amar a Deus não é outra coisa do que acolher a plenitude dos seus
dons. O seu amor, que experimentas, nunca chega ao fim, e Ele
gostaria de dar-te sempre coisas maiores ainda.
Deus fez todas as coisas para poder amar e para que seja
amado. Por isso, diz este capítulo que devemos tirar amor de tudo.
Devolvemos o amor para à fonte da qual jorrou. Assim, nos
tornamos um pouco como os cidadãos do céu que têm o ofício de
amar e que na grande comunidade do amor esperam crescer no
amor de Deus.
Porque, sendo o amor de Deus infinito, eles não conseguem
amar na mesma medida em que são amados. Mas o amor tudo
espera, e, por isso, eles gostariam de dar tanto amor quanto
recebem.
Eles são como o imenso litoral do mar, porque jogam as
ondas impetuosas do amor com toda força de volta para a fonte de
onde procederam. Assim, permanecem por toda eternidade
amantes e amados. Bem-aventurado aquele que tem parte do amor
de Deus e se une a Ele para amar sempre mais.
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7° Capítulo: A COROA DA VIDA
Seguimento de Cristo
Há duas maneiras de seguir o Cristo. A primeira é
condicionada pelas circunstâncias exteriores da vida. Mas ela
precisa, para se realizar, do consentimento interior e da participação
do coração. Cristo veio do céu como guia e lutador, para mostrar o
melhor caminho a todos os que querem chegar até lá. Por isso,
Davi agradece ao Senhor, dizendo: “Eles viram os rastos dos teus
pés, os passos do meu Deus e do meu Rei no seu santuário”. As
palavras querem dizer que, se não encontrarmos o céu, não é por
não conhecer o caminho, porque os rastos de Cristo são visíveis, de
modo que, quem quiser pode segui-los. Davi diz “Deus é Rei”, para
expressar que Cristo é Deus e homem. O “seu santuário” significa o
santo corpo de Cristo, pelo qual ele nos mostrou o caminho na
terra, para que nós, apegados à terra, pudéssemos segui-lo.
Mas, se queres seguir o Cristo, precisas saber: De lá para cá
caiu neve em cima dos seus rastos.
O amor encontra-se hoje tão esfriado que se pode dizer: Caiu
neve, e o caminho do céu está debaixo de uma camada de neve.
Mas assim mesmo a maldade deste mundo não conseguiu roubá-lo
de vez de nossa vista, embora precisemos de ajuda para achá-lo.
Já que poucos andam nele, a neve não se derreteu.
Por outro lado, o caminho já estava com gelo, quando Cristo
nele avançou. Ao ser elevado, afastou o gelo, o que facilitou o
seguimento. Onde havia espinhos, ele os tirou. Se o caminho era
estreito, ele o alargou. O profeta Zacarias diz: “Deus, o meu Senhor,
virá. Naquele dia, não haverá luz; só gelo e frio”.
De fato, não havia luz no mundo, quando veio a verdadeira
luz, Cristo, a luz do mundo. Assim, iluminou, no seu caminhar, a
vereda da salvação. E por isso que diz o Senhor: “Quem me segue
não anda nas trevas, mas possui a luz da vida”.
Deus quis diminuir para nós a imensidão dos sofrimentos,
simbolizados pelo mar da amargura. Ele deixou para os seguidores
somente uma gota, em comparação com o que ele mesmo teve que
sofrer, quando bebeu o cálice até o fim. Ele mesmo tomou sobre si
o que os seus deveriam sofrer.
O homem exterior, nosso corpo terrestre, nasce para o
cansaço e o labor e deve seguir o Cristo na penitência, na dureza e
na pobreza. Mas nossa alma, com sua parte mais elevada, é um
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pássaro leve que nasceu para voar até Deus. Por isso, não basta
que sigas o Cristo corporalmente; também tua alma tem que
estender-se para Deus. Esta leveza no andar, este voo espiritual, o
homem apegado a terra não consegue levantar.
Oração permanente
Irmão, se quiseres permanecer sempre na oração e servir a
Deus desta maneira, toma este conselho: Orienta tua alma de um
modo que ela sinta estímulo a viver todo tempo como na oração. Se
fizeres assim, e se o Senhor perceber o teu esforço, ele vem ao teu
encontro um pedaço do caminho e te leva adiante. O que
começaste em ti ele há de completar por graça. Ele te servirá de
coluna de fogo, e esta te guiará, se estiveres disposto a segui-la
incondicionalmente aonde ela quiser te levar.
Esta orientação da alma é pelo amor. Isto implica também que
sejas sereno e alegre. No caminho da contemplação, avança mais
quem conserva um coração alegre. Esta é a melhor dádiva para
Deus, que ama o doador satisfeito. Mas, para conservar esta
alegria, deves ficar longe da tristeza mundana o quanto possível. Se
estiveres mais avançado no caminho da contemplação, nada vai te
contristar, a não ser ofensa a Deus e a perda de sua graça. Tua
alegria será a harmonia com a vontade de Deus, sem a qual não se
mexe uma folha na árvore.
Sobre a tristeza espiritual
Além da tristeza que todos os orantes conhecem, quando
rezam sem gosto, ainda há uma outra que só os contemplativos
conhecem. Esta é maior do que a primeira, pois assalta a pessoa
com um sofrimento profundo e o faz preferir lugares escuros. Quem
está nesta tristeza não pode ser consolado por nada. É difícil saber
de onde vem. Ela escurece a alma e penetra o coração como um
pássaro de asas escuras. Um véu de luto encobre o exterior como o
interior, e a pessoa sente-se tão abatida que prefere morrer. O seu
interior se enche de tremor e desespero. A vontade é de chorar, e a
pessoa não sabe por quê.
Alguns que fazem esta experiência percebem, com o olhar
interior, que uma espécie de sombra ou fumaça ou neblina se
assenta sobre a sua cabeça. Como não sabem o que é, têm medo
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e tentam ignorá-lo como algo irreal, dizendo que é coisa da fantasia
ou ilusão.
Esta tristeza imensa, implantada no coração, eu a aprecio
mais do que a primeira, dependendo do grau de crescimento
espiritual dos que fazem esta experiência. E tu, se tiveres um
encontro com ela no decorrer da tua busca contemplativa, faze
amizade com ela, que é parte deste caminho. Entrega-lhe o teu
coração e acolhe-a de boa vontade e sem condição. Mas eu te
aconselho: Não tentes segurá-la nem afastá-la, mas deixa que ela
siga o seu caminho. Em recusá-la, tu perdes um grande bem. Mas
se a acentuas, está tirando algo do seu próprio valor. Portanto,
deixa que ela trabalhe em ti e não atrapalhes a sua obra. É isto que
os Provérbios querem dizer: “O coração do sábio permanece com a
tristeza”. Não quer dizer que a gente deva procurá-la. Esta tristeza,
não podemos nem procurá-la nem achá-la; ela vem sozinha. Não
devemos nem aumentá-la nem fugir dela e, sim, perseverar e
acompanhá-la interiormente enquanto durar.
Mesmo que haja grande diferença entre os dois tipos de
tristeza espiritual, a pessoa inexperiente quase não sabe distinguir.
A tristeza sobre uma oração estéril e seca é cansativa e cruel. É
como a tristeza do garimpeiro que não pega ouro. Mas esta outra
tristeza do caminho contemplativo é uma melancolia sem tormento
que traz uma certa passividade e que procura a solidão. Ela é
também bondosa e conformada.
Sobre este tipo de melancolia que eu aprecio mais do que
todas as tristezas, nunca li coisa nenhuma a respeito. Mas quero
mencioná-la para consolo de todos os que a experimentam, ou
melhor, que a recebem, porque Deus a faz descer na alma de tal
jeito que suas raízes profundas nos ficam ocultas.
Na vida contemplativa, há três tipos de tristeza espiritual. O
primeiro tipo é próprio dos iniciantes e é causado por uma ofensa a
Deus. O segundo é dos avançados. Ele vem quando falta a
experiência de Deus. O terceiro tipo, que há pouco foi explicado, é
dos quase perfeitos. Ele é tão oculto que não se sabe de onde vem.
Mas eu o considero uma espécie de dom espiritual de Deus que só
Ele entende.
Envolver a Deus em tudo
Podemos envolver a Deus em tudo, por exemplo, quando
admiramos o que ele criou. Isto não é empecilho para a
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contemplação, já que estamos vendo como Deus dá vida a tudo e o
mantém vivo.
Do mesmo modo, envolves a Deus em tudo, se o deixas
participar em tudo o que fazes. Presta honra a ele nas tuas honras,
alegra-te com ele nas tuas alegrias. Chama por ele em dificuldades
e sofrimentos, porque é para isto que ele fica conosco até o fim do
mundo. Tem Deus contigo, não somente como companheiro, a
exemplo dos israelitas no deserto, mas volta teus olhos para ele
como meta do agir e do desejo, assim como a flecha procura o
ponto preto no alvo. Elevando em tudo o teu coração a Deus, tê-loás sempre contigo, como os reis magos tiveram sua estrela, e como
os navegantes têm sua bússola.
Terás Deus em tudo, se consideras que tudo recebeste de
sua mão, exceto o pecado. Teu coração achará repouso tranquilo,
se acreditares firmemente que tudo, alegria e dor, só acontece com
seu consentimento. Então, podes dizer com Jó: “O Senhor deu, o
Senhor tirou. Louvado seja o nome do Senhor”.
Tudo o que nos acontece é pelo desígnio de Deus que nos
acontece. Ele sabe o que faz, mas nós não o entendemos, porque
não conhecemos o fim. Devemos satisfazer-nos em saber que tudo
está previsto em sua sabedoria. E que de todos os males que ele
permite nos pode advir ganho não imaginado. Por isso, envolve a
Deus até com teus contratempos, reconhecendo que ele quer
provar o teu amor: será que ele para ti não vale mais do que todas
as alegrias e tentações do mundo? Tudo podes vencer com ele que
te guarda com o santo zelo do seu amor, para que, por amor a ele,
te livres até da menor mancha do pecado. Louvado seja ele para
sempre.
Da perseverança
Ao cansado Cristo concede a força da perseverança. Por esta
virtude, devemos suplicar a Ele, que seguiu em sua corrida qual
herói incansável. Estão enganados todos aqueles que consideram
tempo perdido a oração ou meditação, quando não é uma chuva de
sentimentos devotos. A eles quero dizer: o esforço e a luta contra
os pensamentos impetuosos e inquietantes alcançam maiores
méritos do que possa merecer um recolhimento sem problema. Os
que lutam assim na perseverança servem a Deus com custo
próprio, com grande cansaço e vencendo a si mesmos. Mas é
preciso que dêem tempo, que deixem tudo de lado e fiquem no seu
posto, tanto faz se recebem uma experiência espiritual ou não. Sim,
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é preciso perseverar e não desistir. Quem se aborrecer com isto,
acrescente mais meia hora e espere a graça divina na consciência
de sua indignidade. Tendo passado assim uma hora, prolongue o
exercício por outra hora. Aí pode acontecer que a última meia hora
lhe aproveite mais do que todo o tempo anterior.
Feliz és tu, se seguires este chamado e permaneceres firme
no exercício da contemplação, em vez de levantar-te, andando por
aí com ânimo inconstante. Se mudares muitas vezes, serás como a
planta que não prospera, porque é replantada de vez em quando.
Portanto, não sejas negligente e completa o que começaste. Cuida
de correr a tua estrada de um jeito que o teu zelo incansável
alcance o prêmio, porque só o perseverante se alegrará de ver a
meta do caminho. Persevera no bem, na unção do princípio, como
diz São João, então receberás a coroa da vida.
Afasta-te de tudo o que atrapalha e zela pela tua oração não
menos como zelas pelo teu sono. Assim como afastas todo barulho
e toda agitação e te retiras para dormir, do mesmo modo deves
deixar as preocupações do mundo, quando queres orar,
entregando-te unicamente ao recolhimento espiritual. Se desde o
começo exercitares o teu coração na oração contemplativa com
toda a perseverança, o exercício te fará muitas vezes entrar em ti
mesmo como era o teu desejo. Porque o amor, uma vez aceso,
estimula o teu coração e não se aquieta até que se una diretamente
a Deus que procura com imenso desejo. A Ele a glória e a honra
por todo tempo e pela eternidade. Amém.
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