ÍNDICE INTRODUÇÃO 5 1° Capítulo: CAMINHO E META DA ORAÇÃO CONTEMPLATIVA 6 Contemplação para todos 6 Sobre os nomes do dito exercício 8 2° Capítulo: TRÊS MODOS DE ORAR 10 Oração Vocal 10 Oração meditativa do coração 11 Contemplação: Oração do amor 12 Analogias 13 Como devemos lidar com o sono 14 Torna-te cego, surdo e mudo 15 Do conhecimento de Deus 18 Sobre a mansidão 19 3° Capítulo: PÕE TUA MENTE EM ESTADO DE PROFUNDO REPOUSO E SILÊNCIO 21 Acalmar o espírito 21 De como fazemos a nossa mente silenciar 23 Sobre os três tipos do silêncio 25 Contestação dos inexperientes 28 O bom resultado da contemplação confere segurança 29 Sobre o valor e a essência da oração contemplativa 31 Atenção vigilante em Deus 33 O Mergulho em Deus 34 4° capítulo: FORMAS E IMAGENS DA GRAÇA 36 Contemplação e humanidade de Cristo 36 Amizade com Deus 39 As águas da graça 41 O que é melhor: Entrar no seu interior ou superar a si mesmo? 43 A prisão do amor 43 Nosso coração — um castelo 44 A oliveira 46 Casulo e borboleta 47 5° Capítulo: A HUMILDADE COMO CONDIÇÃO DE CRESCIMENTO ESPIRITUAL 49 O que é humildade? 49 Uma qualidade notável da humildade 51 Como devemos diminuir, ao crescermos 52 Sobre a importância de crescer na humildade 54 Louvor da humildade 56 6° Capítulo: DE TUDO DEVEMOS TIRAR AMOR 58 Deus 58 As criaturas 59 Alegria e dor 59 Amante e amado 60 7° Capítulo: A COROA DA VIDA 61 Seguimento de Cristo 61 Oração permanente 62 Sobre a tristeza espiritual 62 Envolver a Deus em tudo 63 Da perseverança 64 INTRODUÇÃO O autor Francisco de Osuna nasceu na Espanha no ano de 1492. Entrou numa ala da Ordem Franciscana chamada dos Observantes, onde, naquele tempo, surgiu a voz: De volta ao deserto! Era um movimento eremítico que zelava pela contemplação. Neste ambiente, Osuna se tornou aluno e depois mestre de espiritualidade, e foi ali que escreveu as obras que dele fizeram a grande autoridade espiritual. A principal obra de Francisco de Osuna chama-se Abecedário espiritual (escrito entre 1525-1554). Divide-se em seis partes com os seguintes conteúdos: a Paixão de Cristo a preparação para a disciplina ascética; a união mística com Deus; os mistérios do amor uma guia para o rico e uma consolação para o pobre; tratado sobre as chagas de Jesus Cristo. O “Terceiro Abecedário” (portanto, a terceira parte), escrito em 1527, chegou às mãos de Santa Teresa de Ávila em 1538. Nesse tempo, ela estava procurando um mestre. O exemplar que ela usou ainda existe, cheio de anotações e comentários. O livro foi fonte inspiradora para suas obras. A presente edição não é tradução do “Terceiro Abecedário” e sim tradução para o português de uma versão alemã que Erica Lorenz apresentou em 1982. Muitas vezes, não se encontra registro das alusões bíblicas, porque Osuna usa de muita liberdade ao citar e comentar a bíblia. O mestre quer ensinar a arte de orar, quer mostrar o caminho da profundidade e da interiorização, que muitos hoje procuram nas religiões orientais. Osuna conduz à contemplação que conhece métodos e, ao mesmo tempo, sabe de seus limites. O que ele quer é a atitude de entrega que se abre à direção de Deus sem reserva. Adolfo Temme 5 1° Capítulo: CAMINHO E META DA ORAÇÃO CONTEMPLATIVA Contemplação para todos Escrevi este livro na intenção de tornar o exercício da contemplação acessível a todos. Isto é: quero ensinar a todos como se pode chegar ao supremo Senhor, que aceita qualquer um no seu serviço e que gostaria de ser amigo de todos. Está escrito: “A sabedoria chama os filhos dos homens com voz mansa e amável, não somente nos altos dos montes, mas também nos portões da cidade. E ela enche as praças com seu perfume”. Há gente que não vai gostar de que eu passe um exercício de tão alto valor a pessoas mergulhadas em pecados e metidas em negócios mundanos. A isto quero responder que ensino e escrevo somente para a pessoa, seja quem for, que guarda os mandamentos de Deus. Vem e procura aqui tua paz. Não penses que precisas entender a lógica e a metafísica para poder dedicar-te à oração contemplativa. A teologia mística (que é sinônimo de contemplação) encontra-se na escola do coração. Diferente da teologia escolástica, ela pode ser adquirida por qualquer fiel, homem ou mulher, independente do grau de instrução. Até podemos dizer que doutores e dignatários têm mais dificuldade em conquistar a necessária quietude e o despojamento da alma do que pessoas simples, que não têm o peso de cargos e deveres públicos. Também aos casados não devemos recusar nenhum tipo de oração. O matrimônio é um sacramento, sinal de consagração, sinal da graça que a alma recebeu. O estado matrimonial é também uma Ordem, não fundada por São Domingos ou São Francisco ou São Pedro, mas fundada pela Palavra Eterna no Paraíso terrestre. A “via da negação”, o caminho do não-saber, do qual este livro trata, é estranho e difícil de entender para todo mortal. Este caminho tem veredas, ramificações e locais secretos, tão desconhecidos como a via principal. Tudo o que se escreve sobre isto é obscuro para o principiante. Mas, se ele se confiar, como um cego, à direção do Senhor, Deus o guiará, como nos é prometido no livro de Jó. Foi assim que o Senhor conduziu o Apóstolo Paulo que, mesmo cego, foi elevado até o terceiro céu para aquele estado que lhe permitia a graça de ver a Deus como os anjos, como se expressou Santo Agostinho. 6 O contemplativo foi comparado a uma águia. Diz a Escritura: “Como uma águia que vigia o ninho e fica voando sobre os filhotes, assim ele (o contemplativo) estendeu suas asas, tomou o ninho e levou-o em suas asas”. Aquele que aprendeu o voo alto da contemplação e construiu o ninho do recolhimento nas alturas (nos cumes), não deve esquecer-se daqueles que ficaram embaixo. Ele tem que animar-nos a voar também. Se nosso desejo é este, é justo que ele estenda as asas sobre nós e nos mostre como chegou a voar. E se não der para ensinar numa única lição, prepara-te para ir até o fim. Porque principiantes têm que ser instruídos a fundo, já que se trata de um voo tão alto como a contemplação. Pode acontecer que o orante suba tanto que perca de vista a si mesmo. Considera bem que ninguém se torna mestre numa arte, se não se exercita muito. Quanto mais ele treina e se acostuma com a arte, tanto mais avança. O que vale para outras artes e práticas também vale para este exercício: 1. A pessoa aprende um ofício para tornar-se mestre e não para ser um eterno principiante, como acontece com pessoas medíocres. Como é tolo o homem que constrói sua casa e não a termina o quanto antes, para poder valer-se dela. Se ele passa anos neste trabalho por relaxamento, o povo vai dizer que ele investe a vida numa coisa que não vai para frente e só traz custo e esforço. Meu irmão, se quiseres construir a casa da Contemplação, estejas disposto e decidido. Dispõe-te como alguém que aprende o ofício do carpinteiro e conclui o aprendizado como mestre. Porque a arte só te ajuda, na medida em que a dominas. 2. Só alcançarás o desempenho desejado, com exercício constante. Davi foi obrigado a desfazer-te da arma com que não estava treinado (a espada de Saul). Ele percebeu que ela lhe seria um obstáculo, enquanto ao homem treinado ela é de grande valia. Aqueles que não treinam bastante na contemplação têm a mesma sorte. Eles acham que ela é perda de tempo e atrapalha na oração, mas a verdade é que todos os que a exercitaram acharam nela força e coragem para realizar grandes coisas. Se não puderes perseverar por amor, obriga-te com santo zelo e passa pela porta estreita da contemplação, porque Deus dá a graça do saber àquele que se atreve a perseverar. Considera que Deus te fez unicamente para a oração. Ele não exige outra coisa de ti, a não ser que O adores em espírito e verdade. Assim, tua habilidade nesta arte será treinada, na qual um dia serás mestre. 7 Sobre os nomes do dito exercício Este exercício, por ser tão especial, tem muitos nomes, tanto na Sagrada Escritura, como nos livros dos Santos e Doutores. Alguns lhe dão o nome de “Teologia mística”, isto é, teologia misteriosa, porque nosso bom Mestre Jesus Cristo a ensina no oculto esconderijo do coração. Este magistério, Ele o reservou em grande parte para si mesmo e, neste campo, deu aos servos menos poderes do que em todas as outras áreas do saber. Acontece que existem dois tipos de teologia: uma é a teórica e pesquisadora, o que é a mesma coisa, e a outra é oculta: é desta que este livro trata. Não é que eu me atrevesse a ensiná-la, porque nenhum mortal é capaz. Cristo reservou para si o encargo de revelar a teologia misteriosa desta ciência divina para aqueles corações que Ele habita. A teologia mística, da qual falamos, não se alcança por raciocínios e argumentos e, sim, pelo amor dedicado e pelo exercício das virtudes que purificam as almas e as preparam para Deus. Ela necessita das virtudes teologais e dos dons do Espírito para alcançar os três degraus, a saber, a purificação, a iluminação e a perfeição. O que vale para animais, tanto mais se vê no homem: Quando o saber é pouco, o amor e a afeição são tanto maiores. Isto se vê nas crianças que mostram mais amor aos pais quando ainda não usam a razão. A mesma coisa acontece com os noviços que, no primeiro ano, na sua singeleza, têm mais fervor do que quando se tornam doutores. Disto resulta que este tipo de alta teologia não carece de ciência, embora não dispense o saber divino infuso, que na verdade não falta àqueles que se aplicam a ele. Eles sabem pela fé que Deus é sumamente amável e que Ele é a perfeição do amor. Se a nossa afeição for purificada, provada e pronta, nada impede que ela se transforme Nele, que se inflame Nele e se eleve a Ele, que é o fundamento e o solo, ou melhor, a fonte do amor. Este tipo de oração também é chamado arte de amar, porque sem amor não se realiza, e ela faz crescer o amor mais do que todas as outras artes. Cristo, Deus de amor, ensina-a àqueles que têm um coração cheio de amor. Às vezes, nós vencemos pela arte, quando pela força não poderíamos vencer, como aconteceu com Davi, que venceu Golias não pela força e sim pela sua arte. A mesma coisa se vê no caçador que vence o elefante pela arte. É por isso que o nosso exercício se chama arte, porque com suas poucas forças vence o Onipotente, leva-o preso ao seu interior e prende-o com algemas, como diz a noiva dos Cantares “Eu o segurei e não soltei mais”. 8 Esta oração também se chama arte de amar, porque ela é forte como a morte que a todos vence. Nisto se vê que o exercício da contemplação contém arte e força ao mesmo tempo, as duas coisas indispensáveis para dominar qualquer dificuldade. Também lhe é dado o nome de União, porque o homem, quando se une a Deus, com Ele se torna um só Espírito pela permuta da vontade. Nem o homem quer outra coisa do que Deus quer, nem Deus se separa do querer do homem. São unânimes em tudo como criaturas que se unem a tal ponto que, de certo modo, se anulam para formar um terceiro ser. É assim que acontece neste processo em que, de início, Deus e o homem têm um querer distinto, mas, no fim, as vontades consentem em tudo, de modo que já não há o menor descontentamento. Esta união faz com que o homem também se una ao seu próximo. De modo que, se todos nós estivéssemos neste estado, a multidão dos fiéis seria um só coração e uma só alma no Espírito Santo, que procede do Pai e do Filho. Assim, o Espírito Santo nos une no amor para nos encher de graça e para nos entregar a Deus como um todo, de modo que não precisa conduzir um por um a Deus. Este exercício também é chamado de submersão, porque ele entra na escuridão e na profundidade. Sua base está no fundo e na interioridade do coração humano, que por natureza é obscuro. Quer dizer: quando estiver privado do saber humano e, portanto, estiver totalmente no escuro, o Espírito de Deus há de pairar sobre suas águas e dizer: Faça-se a Luz! 9 2° Capítulo: TRÊS MODOS DE ORAR Querendo falar da oração numa linguagem simples, devemos dizer primeiro que existem três modos de oração que correspondem aos três degraus: dos principiantes, dos mais avançados e dos quase perfeitos. Mas é difícil saber quem é principiante, quem é da segunda e da terceira categoria, porque o critério não é a piedade do coração, nem a duração do exercício, nem é questão de personalidade ou de dons recebidos. Se alguém, por humildade, se considera principiante, pode ser que a humildade o seduza para uma avaliação errada: Para evitar um elogio, prefere contrafazer-se. Mas, em geral, é melhor descer um degrau, porque, quando o homem pensa que está subindo, na verdade vai descendo. Às vezes, o Senhor derruba aqueles que antes elevou, para que aprendam que não subiram por esforço próprio, e sim carregados por Ele. Isto reconhecemos melhor, quando caímos do que quando somos elevados. Oração Vocal O primeiro modo de orar é vocal. É o ofício das horas e outras orações que nossa boca pronuncia para a glória do Senhor. A oração mais abençoada entre elas é o Pai-Nosso, que tem a preferência por causa daquele que a ensinou. Quem profere esta oração com devoção pede o Pai em nome do Filho, do qual ela vem, e por isso o Pai atende o Pai-Nosso com mais presteza do que a qualquer outra oração. O Senhor ordenou que não falássemos muitas palavras na oração, mas que multiplicássemos nossa afeição e nosso amor. O próprio Senhor obedeceu a esta regra, porque fez uma oração curta e começou com as palavras “Pai Nosso”. Assim, desperta o amor de Deus desde a primeira palavra, porque o chamamos de Pai. Com a segunda palavra despertamos o amor ao próximo, porque com o “nosso”, o semelhante se torna nosso irmão e filho de Deus por graça. Assim, rezamos pelo próximo como quem reza por si mesmo, porque chamamos o Senhor o Pai universal de todos os homens. O mais importante nesta oração é que a rezemos com grande confiança e sem dúvidas, como condiz com estas palavras benditas que dirigimos àquele que no-las deu. A oração é tão curta, porque 10 em poucas palavras ela prova a boa vontade do Senhor de atendernos. Em breve, nos será dado o que em breves palavras pedimos. Se Ele não quisesse atender-nos logo, iria entreter-nos com mais palavras. Mas, sabendo que nosso bom Pai tem mais cuidado com seus filhos queridos do que eles próprios, Ele encurta o pedido para estender logo a mão que nos presenteia. Oração meditativa do coração O segundo modo de rezar acontece no interior do nosso coração, sem formar palavras com os lábios. Somente o coração se dirige ao Senhor no oculto, onde ninguém nos ouve. As graças aumentam, porque nós falamos – por assim dizer – no pé do ouvido de Deus. Foi assim que Davi rezou, quando falou “O teu servo achou dentro do coração a oração que a ti dirige”. Para rezar desta maneira, a pessoa deve preparar o seu coração e expulsar todo o pensamento nocivo e superficial. Foi desta maneira que o santo Profeta Moisés rezou, quando fez Israel sair do Egito. Quando sua boca se calou e o coração falou, Deus lhe perguntou: Porque gritas tanto? Com isto, Deus mostrou que ouve melhor os pensamentos do que as palavras. Pensamentos têm valor por si mesmos, enquanto palavras sem pensamento não valem nada. Deus vê o coração e não os lábios, que recebem seu valor do coração. O coração, por sua vez, não precisa da língua, a não ser na profissão de fé que, em certos casos, deve ser pronunciada com a língua e os lábios. Neste modo de rezar que só o coração pratica enquanto os lábios se calam, entra a santa e devota meditação da Paixão do Senhor ou da Santa Igreja, do Juízo Final ou de outros objetos de devoção. Meditando a Santa Paixão ou seus pecados, a pessoa está rezando, porque ninguém pensa nos seus pecados, a não ser para pedir perdão. Para este modo de oração que se faz com santos pensamentos e consideração devotas, é preciso que a pessoa recorde a história bíblica e os mistérios do Senhor. É necessário que escute e leia coisas boas sobre isto, porque assim junta lenha para alimentar o fogo do altar do Senhor. A meditação mais proveitosa que se pode fazer é a da paixão do Senhor. Mas é bom que os assuntos mudem conforme as festas do ano litúrgico. Quantos mais espirituais, tanto mais difíceis são os assuntos. Não devemos desistir da meditação, mesmo que nela nos falte a devoção. Esta impressão pode enganar-nos é o demônio que quer 11 afastar-nos das coisas mais elevadas. Por isso, não estranhe, se no primeiro ano quase não surge devoção na meditação. Mas depois ela vem com tanta força que preenche nosso coração quase o dia todo, e a pessoa vai ver que um dia assim vivido vale mais do que um ano cheio de oração vocal. Contemplação: Oração do amor O terceiro modo de oração é chamado oração interior, na qual a parte mais elevada de nossa alma se dirige a Deus da maneira mais pura e amável, carregada pelas asas do desejo e pelo sentimento radicado no amor. Quanto maior o amor, tanto menos precisa de palavras, e estas poucas palavras serão mais iluminadas e essenciais. Porque, quando o amor é sincero, não precisa de discursos; ele realiza grandes coisas em silêncio. Ele sabe: Deus o acolhe tanto mais generosamente, quanto mais ele se afasta das coisas criadas e Nele se recolhe totalmente. Quanto mais sua entrega for completa e apaixonada, tanto mais o amor é correspondido por Deus. O Senhor diz no Evangelho: Os verdadeiros adoradores adorarão o Pai no espírito e na verdade, pois Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade. Quanto mais existir concordância entre o adorador e o Senhor adorado, tanto maior a chance de ser atendido. Se, portanto, o Pai é espírito puro e em nada participa do que é corporal, nossa oração será tanto mais adequada, quanto mais se afastar de figuras e representações e também dos pensamentos do coração. Pois estes, por mais que se elevem, sempre ficam muito abaixo da realidade divina. Mas a saudade que abraça a Deus na sua essência e sem imagem corporal e o amor que dispensa as palavras adoram a Deus de um modo tão espiritual e imediato que a alma só usa as palavras dos Cantares que diz: “Meu amado é meu, e eu sou do meu amado!” Não há palavras mais espirituais e intimas e iluminadas do que estas. Não há palavras que melhor expressem onde se quer chegar com este modo de oração. O máximo que Deus pode fazer pelo amado é entregar-se a ele; e o máximo que o homem pode fazer por Deus é doar-se a Ele. Só que nós não somos capazes de uma entrega perfeita sem a sua ajuda. É por isso que a noiva diz primeiro: “Meu amado é meu” e não “Eu sou do meu amado!” Mas tem que ser dito: esta doação do homem a Deus e de Deus ao homem é um dom irrestrito: parece que Deus entrou totalmente no ser humano. Quero dizer com isto: 12 se a fé não iluminasse a pessoa que sente a Deus dentro de si, ela iria dizer que Deus está nela inteiramente e em nenhum outro lugar. A alma do verdadeiro adorador sente-se, muitas vezes, de tal maneira preenchida por Deus que ela tem a impressão de confinar no seu pequeno peito a Ele que sem dúvida é infinito. Muitas vezes as pessoas contemplativas se doam a Deus tão profusamente que não reservam nada para si. Renunciam à sua liberdade e vontade pela sua sintonia e entrega a Deus, esquecem-se de si mesmas, como se não existissem. Analogias A oração vocal é como mensagem que enviamos ao nosso amigo. A meditação é uma mensagem enviada para alguém que nos é muito caro. A contemplação dispensa o correios e entrega a mensagem em mãos. O primeiro modo beija os pés; o segundo, as mãos; e o terceiro beija a boca. O primeiro baseia-se na fé que professamos com a boca. O segundo, na esperança que carregamos no coração. O terceiro, no amor que provamos nas obras. O primeiro faz parte da purificação. O segundo, da iluminação, e o terceiro, da perfeição. Com o primeiro modo de oração, melhoramos a memória; com o segundo, a inteligência; e com o terceiro, a vontade. É costume comparar os três modos de orar com os três estados, a saber: os casados, os padres seculares e os monges. Mas a verdade é que em cada estado existem principiantes, mais avançados e quase perfeitos. Por isso, prefiro dizer que, em cada estado, pode haver os três modos de orar, dependendo de cada pessoa que a executa. E ninguém se orgulhe com a perfeição do seu estado, se lhe falta, pessoalmente, essa perfeição. Porque é melhor ser fiel no pouco (nos mandamentos), do que ser infiel no muito (os conselhos evangélicos). Em cada pessoa, se acham as três maneiras de orar, conforme tempos e circunstâncias. Às vezes, nos dispomos mais para uma, outras vezes preferimos a outra. Há vezes em que avançamos muito e depois caímos tanto que precisamos começar tudo de novo. A todos que praticam estas três maneiras de orar recomendo: faça uma oração antes de dormir e volte para a oração logo que acordar. 13 Como devemos lidar com o sono Uma pessoa notável me falou que o homem piedoso deve preparar-se para o sono, como o pecador para a morte. Porque seremos julgados da maneira como a morte nos encontra. Por isso, devemos entrar no sono como no juízo. Porque a morte pode levarnos dormindo. Conheci uma pessoa que se deitou com perfeita saúde e morreu sem poder dizer onde doía. Você deve acostumar-se tanto com a oração antes de dormir que sempre, ao deitar-se já sente necessidade de rezar quinze minutos, a saber, rezar no oculto, de modo que só o Pai o veja. Quando se deita, não pare de guardar no seu coração com cuidado, tanto assim que você tem a impressão que se deita para rezar e não para dormir. Quando acorda, volte para a oração, com a ansiedade de uma criança que adormeceu segurando um bolo que a mãe lhe deu e, ao acordar, quer saber se este bolo continua em sua mão ou se caiu enquanto dormia. Quem sempre reza antes de dormir se acostuma tanto que já não acha sono sem oração. E a alma que se acostuma com o recolhimento profundo e a contemplação não consegue dormir sem se recolher antes. Como o corpo precisa de calma para dormir, a alma precisa acalmar-se para orar. Para poder dormir, o homem precisa recolher seu coração e aquietar-se, interior e exteriormente, desligando-se das moções do sentir e perceber. Faze a mesma preparação para a oração; então acontece que a alma cai num santo sono espiritual, mesmo antes do corpo. Muitos testemunharam que, quanto mais fervorosamente rezavam antes de dormir, tanto mais ligeiro voltavam para a oração depois de acordar. E pode acontecer uma coisa incrível: a alma já se encontra em oração, antes de acordar. Acontece que a pessoa, antes de acordar exteriormente, já se desperta interiormente e volta à oração ainda dormindo. Às vezes, acontece que a pessoa pode decidir se quer acordar ou não, porque o acordar de dentro é diferente do despertar exterior. A alma está de tal maneira presente em si, como a água viva debaixo do gelo, como o pinto no ovo e como o profeta Jonas que, na barriga da baleia, conseguia rezar. Os que avançaram no caminho da contemplação expulsam o sono por meio de profundo recolhimento e mesmo só precisam de pouco sono. Enquanto o principiante precisa de 6 horas, o avançado se contenta com 5 horas. Os que se aperfeiçoaram na oração interior costumam dormir muito pouco, porque sentem uma 14 coisa que, de dentro, os mantém acordados, quando buscam o sono. Entre anoitecer e amanhecer, dormem menos de 3 horas, e o menor barulho os faz acordar. E esta dormida é um sono em pequenos goles, porque não podem tomar o seu sono de uma vez. Mas o Senhor lhes dá em alegria o que lhes falta em sono. “Ele os tira de todas as aflições”, como já cantava Davi, se bem que os sentidos ficam sentindo alguma falta. Eu conheci homens contemplativos que passaram anos com menos de 3 horas de sono. Conheci um que confidenciou ao seu melhor amigo que em 7 anos não dormiu tanto como se dorme normalmente em 4 meses. Teria outras coisas para relatar sobre ele, mas não se pode publicar, porque ninguém mais o sabe. Ele se escondia, em geral, na sua cela, de modo que ninguém sabia se dormia ou se estava acordado. Bem-aventurados aqueles que rezam antes de dormir e que continuam logo ao acordar. Eles passam em oração o maior tempo do que outros passam dormindo. Mesmo se dormiram pouco, sabem, ao acordar, que sua alma descansou nos braços do Amado. Torna-te cego, surdo e mudo Com este título queremos lembrar que, ao fechar os sentidos exteriores, abrimos os sentidos interiores que devemos exercitar. Assim como conhecemos o mundo corporal com os sentidos exteriores, reconhecemos as coisas elevadas e espirituais com os sentidos da alma, na medida em que os desenvolvemos. Acontece, porém, que nossa percepção de tudo que é divino é como o da coruja ou do morcego, que não têm capacidade de perceber o clarão do sol, porque são totalmente destinados para a escuridão. Assim, também nós devemos esconder-nos, como os animais quase cegos, e dizer com o salmista “Estou como mocho das ruínas” (Sl 102,7), porque só na luz do além nosso olhar será fortificado pelo Cordeiro, de modo que veremos a Deus com mais nitidez do que com o olhar da águia, sem interrupção e sem piscar, face a face. Para reconhecer as coisas exteriores, precisamos não só da luz do sol, porque ao cego nada adianta o clarão. Tampouco só a nossa visão vai resolver, porque, no escuro da noite, nada enxergamos com os olhos abertos. Tem que haver as duas coisas, a luz externa e a luz interna dos nossos olhos, para que possamos perceber as coisas visíveis. 15 Isto vale também para a mais alta percepção espiritual. O clarão, que procede da capacidade natural do nosso espírito, juntase com a luz divina e celeste, e, assim, somos capazes de reconhecer coisas que nunca vimos. Com Davi podemos dizer: “Com tua luz vemos a luz” (Sl 36,10). É a fé que ilumina o ser humano, sua luz se junta com a luz de nossa alma pelo consentimento e pela entrega com que a recebemos. E, nesta luz dobrada, reconhecemos, na fé, as coisas eternas que são desejo natural da alma pois ela sempre busca o melhor. Quem medita sobre isto fortifica sua fé na nova luz das verdades e ganha santos pensamentos, tanto da Escritura, como das coisas criadas. Ele aproveita a Luz dos sentidos da alma e abre os olhos do coração, i.é, ele presta atenção nas mensagens dos objetos e das suas alegorias. E assim ganha conhecimentos mais profundos. Outros não vão pela via da meditação, porque são conscientes de como é fraca a sua luz natural, em comparação com a luz de Deus. Eles desistem de servir-se da luz própria que, na verdade, é importante diante da glória e da grandeza da divina majestade e lembram o primeiro capítulo do Apocalipse, onde São João relata sua visão de Cristo: "Sua face era como sol. Ao vê-lo, caí morto a seus pés” (Ap 1, 16-17). João caiu como morto, porque, como diz o filósofo Aristóteles, a percepção destrói o órgão perceptivo, quando esta for forte demais. Sabemos, por experiência; um som muito alto ensurdece o ouvinte e, quando miramos diretamente o sol, ficamos cegos pelo seu esplendor. Se tocamos um ferro em brasa, queimamos a mão e já não podemos pegar em nada. Portanto: quando o objeto da percepção ultrapassa a nossa medida, ele destrói o sentido que para ele se volta. Nas almas dos santos, acontecem revelações que poderiam destruir a inteligência. Mas, como esta é indestrutível, elas anestesiam, por assim dizer, para que pare seu funcionamento. É por isso que S. João diz que caiu como morto aos pés do Senhor, quando viu o seu rosto que brilhava como o sol. Os olhos de nossa alma se turvam, quando queremos ver o que é de Deus, enquanto ainda vivemos no exílio terrestre. A alma sofre a sorte do mosquito, que de noite vê a luz da chama: voa no seu rumo e queima-se. Por isso, dizemos aos que procuram a Deus: Seja cego, surdo e mudo com toda a mansidão. Moisés no monte abrigou-se no escuro da nuvem que encobria o cume. Ele não viu a Deus, mas falou com Ele diretamente. Nos Cantares, o Senhor diz para a alma 16 que o ama: “Afasta de mim teus olhos, senão vou ter que fugir” (Ct 6,5). Acontece, muitas vezes, que uma alma torna a perder uma graça, porque queria conhecer e saber demais. Deus gostaria que abraçássemos a Ele e seus dons, com os braços e com as asas do coração, com tanta paixão que a curiosidade nem se desperta. O cego pega nas mãos o que recebe, sem conhecê-lo com a visão. Sua afeição se apoia mais no sentimento do que no reconhecimento. A comparação com Moisés mostra ao contemplativo: Retira o fraco olhar de tua alma de minha majestade, porque não podes conhecê-la. O exemplo do cego quer indicar: Não desista da vontade de contemplar-me mas desista da arrogância de querer reconhecer-me. “Devemos ser cegos”: isto não quer dizer que nada reconhecemos, e, sim, que reconhecemos mais e melhor. Quem usa óculos não é porque não enxerga nada, mas é para que enxergue melhor. Portanto: Sê cego, para que vejas melhor. Isaac, na sua cegueira, profetizou ao seu filho Jacó coisas mais importantes do que no tempo em que enxergava. A cegueira fê-lo conhecer mistérios mais elevados. Porque, quando se assustou com o que havia feito na sua cegueira, Deus lhe revelou que era nisto que a vontade divina se realizava e que a (aparente) injustiça tinha que acontecer (Gn 27, 1-29). Bem-aventurado aquele que não tem olhos, porque Deus lhe serve de olho. Feliz aquele que perdeu os dois pés, porque Deus o carrega, como diz o livro de Jó (29,15): “Eu era olhos para o cego e pés para o coxo!” Aqueles que se tornam cegos para enxergar a Deus, Ele mesmo os conduz, para que não se percam. Até vão com mais sucesso, porque Deus os conduz em veredas desconhecidas para uma meta que, de olho aberto, não teriam achado. É por isso que o Senhor fala por Isaías: “Conduzirei os cegos por um caminho que não conhecem, fa-los-ei andar por veredas que não conhecem: na sua frente mudarei as trevas em luz” (Is 42,16). O caminho mais distante e desconhecido é esta “via negativa” da qual este abecedário trata. Ela tem vários ramais, exercícios difíceis, tão desconhecidos como a via principal. Tudo isto é obscuro para os principiantes na contemplação. Mas, quando eles se tornam voluntariamente cegos, confiando fielmente naquele que os conduz, o Senhor há de guiá-los da maneira que o profeta prometeu. Foi assim que Deus conduziu São Paulo e o elevou – assim que cegou – até o terceiro céu, para que ali enxergasse a Deus com os anjos e através da maneira de ver dos anjos, como disse Santo 17 Agostinho. E eu afirmo que naquele dia cegaram não somente os seus olhos, mas também cegou sua alma, porque tudo estava desligado: os sentidos externos e internos e até sua inteligência. Durante o êxtase, tudo estava suspenso e parou de trabalhar. Normalmente, ninguém pode ver a Deus na condição de sua vida terrestre. Santo Agostinho cite nesse ponto: “O homem não pode ver-me e continuar vivendo” (Ex 33,20). Do conhecimento de Deus Na meditação, a pessoa serve-se do saber e das impressões como se fossem os olhos da alma. Mas na contemplação, nem os sentidos do corpo nem os sentidos espirituais da alma, que precisam da mediação das impressões exteriores, nos ajudam. Porque Deus é puro de espírito que não pode ser percebido pelos sentidos da alma. Quando Elias esteve no monte de Deus, que é o monte da contemplação, ele cobriu o seu rosto com um manto para não ver a Deus que vinha para consolá-lo. O profeta bem sabia que os olhos carnais não podem ver o Deus invisível. Por isso, se fez cego e cobriu os olhos com o seu manto para mostrar que a luz do conhecimento não passava além do manto, que significa a humanidade de Deus. Os carrascos em Jerusalém tomaram ao Senhor o seu manto, o seu corpo, quando o crucificaram. Coisa semelhante lemos sobre Moisés, que suplicou a Deus que lhe permitisse ver a sua face como sinal de sua graça. Mas, quando Deus vinha passando, ele cobriu os seus olhos, até que o Senhor tivesse passado (Ex 33,25) Moisés só pôde ver as costas de Iahweh. Conhecimento de Deus ainda é possível, mas pelo pecado dos nossos pais no paraíso está quase morto e enterrado, porque eles perderam aquela santa cegueira que antes possuíam em alto grau. Nós devemos conquistar esta cegueira de novo, fazendo-nos cegos para tudo que não é de Deus. Esta capacidade recebemos de graça, como as plantas e sementes, que crescem graças ao sol que é o seu pai natural. Elas só se desenvolvem, se o sol brilhar e se, pela sua luz e calor, as despertar e incentivar. Assim nós, que temos a capacidade de contemplar a divindade, precisamos da luz da justiça que nos estimula e incentiva. O ovo é chocado e torna-se vivo pelo calor do pombo, isto é, pela graça do Espírito Santo. Portanto, torna-te cego como a semente na terra e como o pinto dentro do ovo. 18 Além disso, devemos ser mudos. Não é bom falar sobre a réstia de luz e sobre revelações que tivermos recebido. Quem fala assim procura a admiração dos outros. Uma coisa á agradecer a Deus por uma graça e outra coisa é fazer os outros entenderem. Quem não tem este dom se contente em sentir o gozo e fique calado. Quem falou asneira se arrepende depois. Também devemos ser mudos na oração: nenhuma palavra, nem que seja a mais espiritualizada. Deus é doutor em todas as ciências, e Ele gostaria que o adorássemos calados, em espírito e verdade, mas não com palavras. Quanto maior o silêncio na oração, tanto melhor Deus nos escuta e atende nosso pedido. Isto vemos na história de Moisés (Ex 14,15): Embora ele orasse no maior silêncio, Deus lhe respondeu impaciente: Porque gritas tanto? Deus dá com presteza a quem se cala na sua presença. Quem é mudo em geral também é surdo. Devemos ser mudos no espírito, calando os pensamentos, e devemos ser surdos para tudo o que vem de fora e que possa inquietar-nos. O primeiro homem deixou-se inquietar, quando ouviu o convite do tentador. Dali nasceu um grande mal. Nosso tentador é o prazer dos sentidos, ao qual a inteligência não deve dar ouvidos. Assim, podemos aplicar as três palavras “cego, surdo, mudo”: a inteligência seja cega, a vontade seja surda para o amor das criaturas que desvia de Deus, a memória seja muda e não traga nenhum assunto que nos seduza falar. Assim Jesus pode entrar em nós, não segundo a carne e, sim, segundo o espírito. Quando o Ressuscitado veio ver os discípulos, encontrou as três portas fechadas. Deus entra na alma pela porta do consentimento interior. Ele só vem, se a alma se fecha para tudo, menos para Ele, e o procura com sede ardente, conduzida por um saber intuitivo que não liga para as coisas criadas, porque supera tudo isto. Sobre a mansidão Mansos são aqueles que vivem na serenidade e não se deixam abalar tão facilmente por eventos exteriores. Sua mansidão, que se torna sua natureza, favorece a boa saúde. Eles não provocam ninguém e não se deixam provocar. Não causam dano e não se deixam prejudicar. Não se intrigam com ninguém e usam auto-disciplina. Não se abalam com o vento, mas se deixam corrigir. Não combatem o mal de frente e sabem sofrer golpes sem chorar as feridas. Não são tristonhos e acham motivo de alegrar-se em tudo. São pessoas fáceis no trato e abertas, são simples e sem 19 falsidade. Não escondem o que pensam e o que sentem. São cheios de paciência, doçura e de ânimo nobre, sem perseguir a própria vantagem. Portanto, os mansos são mais humanos. O homem por sua natureza é um ser manso, como se vê no semblante. Pessoas irascíveis parecem-se mais com animais selvagens, sem misericórdia e sem humanidade. Os mansos, de fato, possuem os bens desta terra, porque, ao perdê-los, não perdem a mansidão. Deixam partir em paz o que perderam e assim mostram que não são possuídos por aquilo (Mt 5,4). Felizes os mansos. Nas guerras deste mundo, estão protegidos como por fardos de algodão que os defendem dos tiros da artilharia inimiga e dos golpes de espada da perseguição deste mundo. São como vasos de vidro envoltos em palha e feno, que não se quebram com as batidas. A mansidão é um escudo forte que rebate as flechas da ira e as despedaça. Felizes os mansos. Parecem com o ímã que atrai o ferro. Nada melhor do que a brandura para amansar corações endurecidos. Davi, na sua mansidão, sempre de novo amolecia o coração do seu inimigo Saul e lhe provocava lágrimas de misericórdia. Felizes os mansos. O Senhor não lhes fecha o seu ouvido. Está escrito em Jt 9,16: “Sempre vos foram aceitas as preces dos mansos e humildes”. Felizes os mansos. Deus é seu defensor e vingador, quando são injustiçados. Isto se mostra em Moisés: Quando Deus ouviu o que Miriam e Aarão falavam a seu respeito, ficou encolerizado, porque Moisés era o homem mais manso do mundo. E ele, na sua grande mansidão, alcançou de Deus mais graça e favor do que todos os contemporâneos. A sua santidade e brandura eram, na frente dos outros, como a verdade comparada com o sonho e o corpo comparado com a sombra. Contemplação e mansidão se favorecem uma a outra e crescem uma com a outra. Se uma faltar, a outra desaparece também; não se deixam separar; só se encontram juntas. São como as irmãs Marta e Maria que se amam muito e que recebem o Senhor em casa. Elas se ajudam para servir o Senhor da melhor maneira. 20 3° Capítulo: PÕE TUA MENTE EM ESTADO DE PROFUNDO REPOUSO E SILÊNCIO Acalmar o espírito O cosmo é um livro e uma parábola, pelo qual nós, que somos um microcosmo, podemos entender o nosso interior. Ele nos ensina que todo o movimento natural tente a aquietar-se, e todas as coisas seguem esta regra. Nada se move que não volte finalmente ao repouso, que é o fim último de tudo que foi criado. Assim também o homem deve acalmar sua alma, já que até a mente reclama sossego. Diz a escritura: A alma que repousa é um eterno banquete! Segurança e repouso do coração não se acham tanto na meditação como no recolhimento interior. Só assim o coração descansa. O sábio diz: O eterno pensar discursivo prejudica a saúde. E eu acrescento; também o espírito se prejudica, porque nossos pensamentos nunca alcançam a altura divina. É melhor deixar de lado toda a reflexão e satisfazer-se com a fé singela que consegue introduzir a pessoa em grandes mistérios. É por isso que Santo Agostinho diz: Não te preocupes em entender muito, mas procura amar muito com aquele amor que é a vida da alma. São Boaventura adverte-nos: Pode acontecer que a árvore do conhecimento nos empate de comer da árvore da vida. É por isso que diz este capítulo: Põe a tua mente em profundo repouso e silêncio. Temos duas coisas para fazer: acalmar a mente e silenciá-la. Acontece que a nossa mente tem duas funções: a de guiar-nos em tudo o que fazemos ou deixamos de fazer, e a de pensar e perscrutar coisas misteriosas e ocultas. Por causa destas duas razões e funções distinguimos a mente prática e a mente especulativa. Se quiseres que o teu espírito esteja em profunda paz, de modo que não possa levantar a voz contra ti, não faças nada de injusto e de mal. Então a sua faísca não vai queimar o teu coração, mas há de tornar-se uma luz suave para tua alma e movêla para o bem, e ela terá alegria nas boas obras. Santo Agostinho convida-nos neste sentido: Se quiseres a paz verdadeira que foi prometida aos cristãos na vida eterna, saibas que podes alcança-la no meio da mais amarga tribulação, guardando os mandamentos daquele que te prometeu este repouso. Os frutos da justiça são muito mais doces do que os frutos da maldade. Há mais felicidade numa vida dura com consciência boa do que na cômoda riqueza 21 com a consciência acusadora. Quem segue este conselho no seu agir, em breve, terá pacificado o seu espírito, porque o seu coração não o acusa de nada. O homem sente-se bem numa casa boa e, ainda mais, numa consciência tranquila. Os que temem o Senhor aqui vão entrar, quando em silêncio avaliam o seu agir. Aqui vão achar um lar e boa companhia. O diálogo com a boa consciência é sem amargura, porque não há acusação. Antes, como diz o Apóstolo, lhe serve de glória, e o homem se alegra dos bons frutos que procedem de sua vida, como os filhos nascem de um matrimônio abençoado. Mas o repouso do espírito vai além da serenidade da consciência. É precisar guardar os mandamentos da vida. S. Gregório Magno ensina: Para o homem alcançar o prêmio da vida eterna, é preciso que ele guarde já na terra a regra básica da salvação futura. Isto vale para a boa consciência de qualquer um, mas de modo especial para o contemplativo que não pode onerar o seu pensar com preocupações nem deve dar ênfase aos acontecimentos do cotidiano e assustar-se com eles. Que ele viva o momento e não chame os cuidados de amanhã para hoje. Já dizia Sêneca: Não antecipes tua miséria e não andes ao encontro do teu azar, imaginando o mal, antes que aconteça. É melhor que digas: talvez terei sorte. Não faças conjeturas, criando fantasmas. Abandona os negócios que se podem evitar. Não procures o que é teu, e, sim, o que é de Jesus Cristo. Imagina que es um espargo que bota a cabeça para fora da terra: como é modesto. Ocupa-te pouco com a tua pessoa para te ocupar totalmente com Deus. Considera-te inferior, para te livrar da busca de sucesso e para achar a verdadeira paz na humildade, que não teme a queda nem espera subir. Não te importes com eventos mundanos, se quiseres alcançar o repouso. Não interessa conquistar conhecidos e amigos. Se procuras a paz profunda, não perguntes se outros te apoiam ou rejeitam. Confia plenamente que nosso Deus e Senhor, se entrares no silêncio, vai assumir tua causa. Não temas o prejuízo nem ames o lucro: Não te faltará o necessário para viver. Não há lucro que te deixe sem outro desejo. O lucro material pode ser perda espiritual. Reconheça para o bem do teu descanso interior: Ninguém pode roubar tuas virtudes, e teu vícios nada podem contra a tua vontade decidida. 22 De como fazemos a nossa mente silenciar Este é o segundo ponto deste capítulo, que se refere à mente especulativa, o pensar discursivo que procura descobrir o mistério das coisas por meio das considerações para lá e para cá. É um meio inadequado para chegar ao conhecimento de Deus. Devemos deixar isto, para reconhecer a Deus pela via negativa, como foi dito acima. São Gregório Magno diz: O que podemos ver na contemplação, nada disto é Deus. Mas enxergamos algo legítimo de Deus, quando temos plena consciência de que nada podemos reconhecer. Para o contemplativo, a escolha deste caminho estreito ajuda muito. Seu conhecimento de Deus se torna mais essencial e profundo. Além disso, ele aprende a orar de um modo mais imediato e mais curto. Deus nos pediu para não falarmos muitas palavras na oração, já que Ele sabe do que precisamos, antes de abrirmos a boca, porque Ele é o Deus que tudo sabe. Por esta maneira de silenciar a mente e acordar o amor, a oração se torna curta e penetra o céu num instante, Ela é curta, não porque demora pouco tempo, e, sim, porque não precisa de outro método para alcançar a Deus, a não ser unicamente do amor, que pode unir-se a Ele sem mais nada. No céu não há lugar para a fé que pertence ao intelecto. Só precisamos dela, enquanto não temos acesso imediato a Deus. Na terra encontramos o Senhor, como diz São Paulo, pela meditação das criaturas que nos dão testemunho dele. Portanto, sabemos algo de Deus pelas suas criaturas, mas não o amamos por causa delas. Nós o amamos por causa dele mesmo; e quando fazemos isto, temos o amor que permanece eternamente e que nos une imediatamente com Deus. No céu, esta união vai ser mais intensa ainda, porque lá o amor é maior. A nossa mente nos conduz até Deus para o conhecermos. Mas já que ela não pode passar para nós sua essência, devido à nossa limitação, devemos procurar outros meios de conhecer o Senhor. Acontece que o amor nos faz sair de nós, para nos dar morada naquilo que amamos. Ele tem asas para subir e penetrar o mistério mais escondido, enquanto o intelecto tem que ficar do lado de fora da porta, com as criaturas. É por isso que o cisterciense Arnoud de Bonneval diz: Não é fácil emitir qualquer definição sobre Deus. É melhor renunciar aos conceitos, dizendo o que Ele não é, em vez de definir o que Ele seja. Porque Ele não pode ser um objeto dominado pela nossa capacidade intelectual, já que supera todo entendimento. Também tudo aquilo que podemos ouvir e ver e degustar não dá ideia de sua majestade. 23 Assim acontece que nossos sentidos são inadequados neste tocante. A luz invisível encandeia-nos perante o ser inacessível, envolvido pelo Serafim com seis asas. Ele se esconde de nós tanto quando voa como quando para. Parado, simboliza o Eterno que não se move; voando, representa sua Alteza. A alteza divina supera tanto todas as coisas que o homem não pode chegar lá, por mais que eleve o seu coração. A sagrada escritura aconselha-nos, muitas vezes, e esperarmos nossa salvação no silêncio, para que no estado de abertura silenciosa, como os Santos a viveram, a palavra poderosa possa ser acolhida. Ela desce do seu trono para entrar no nosso coração. Não é fácil guardar este silêncio, porque o dragão malvado tenta perturbá-lo com um exercito de pensamentos, para que Deus não encontre repouso no céu de nossa alma. São Gregório pedenos um esforço dobrado, para que Deus possa descansar em nós. Não podemos interromper este silêncio nem por meia hora. Também é dito que não devemos acordar do silêncio da alma bendita e devota, enquanto ela não quer. Felizes os que permanecem na proteção deste mistério oculto. Dele se diz: “Sua felicidade era o seu silêncio, e o Senhor os levou para o porto de sua vontade. Louvado seja o Senhor por sua misericórdia e pelas maravilhas que opera nos filhos dos homens”. Este porto, ao qual o Senhor nos leva, é o repouso que os amantes de Deus almejam. Quem põe sua mente no silêncio o alcança com segurança. Acontece, porém, que nosso esforço não basta para silenciar a mente, já que este esforço nos envolve em outras mil perguntas; mas, se fazemos a nossa parte, Deus mesmo nos dá o dom do repouso almejado, conforme Isaias: “O reto agir traz quietude e segurança”. Mesmo que nosso próprio silêncio seja sempre imperfeito, mesmo que não seja permanente e talvez só leve meia hora, não podemos desistir do nosso esforço. Porque o Senhor pode aperfeiçoa-lo, conforme prometeu o profeta quando falou: “Não temas, ó Sião, não desfaleçam tuas mãos, porque o Senhor, teu Deus, é forte em teu meio. Ele há de salvar-te; Ele se alegra de ti e se calará no seu amor”. Existe um silêncio maravilhoso e louvável: o silêncio do amor que cala o intelecto, quando faz uma experiência que o preenche profundamente. Sabemos que os parceiros se calam na união amorosa e o amor substitui o que lhes falta em palavras. Todo medo de uma criança se vai, quando a mãe a segura em seus braços: nem pensa em falar, e também a mãe se cala em seu amor. Inefável e inexplicável é o silêncio, quando Deus e a alma no amor se calam; quando as águas de Siloé borbulham vindas da Fonte 24 viva que é o Senhor; quando cessam as palavras e as obras começam; quando a alma se cala, porque não tem mais o que pedir, satisfeita em todos os desejos; quando o Senhor se cala, porque já não encontra defeito naquele que tanto amor lhe demonstra: na verdade, é inefável este silêncio. Quando a alma se encontra toda casta e provada pelo amor, toda entregue ao Criador; quando sua pureza abriga o Senhor que lhe perdoa todo pecado e deixa branca como a pomba, lavada com o leite imaculado de sua graça; então ela dorme, porque o pensar já não a perturba. Mas o seu coração vigia, porque o amor jamais adormece naquele que ama. É só o intelecto que dorme, e a vontade descansa, porque está com Deus e se tornou um só espírito com Ele. Assim ela vive o Domingo dos Domingos, o repouso do Senhor, porque o descanso de sua imaginação produz a paz da vontade, que, incendiada e absorvida pelo fogo que não se acaba, já não precisa da lenha da meditação para manter viva a chama do amor. A rainha de Sabá e o rei Salomão, em silêncio reservado, trocavam maravilhosos presentes de amor. Deus fala ao coração, não com palavras e sim com angélicas batidas de asa. Tais sinais falam mais alto do que todas as palavras. Deus e a alma dormem juntos, como amigos íntimos no albergue. E o amor os tornou de tal maneira semelhantes que já não são distintos: tanto assim que se atribui a um o que o outro faz. Sobre os três tipos do silêncio Na oração contemplativa existem três tipos de silêncio. O primeiro acontece, quando dentro de nós cessam todos os pensamentos, todas as noções e imagens do visível, e a alma se cala, por assim dizer, diante das coisas criadas, assim como Jó desejava, quando falou: “Ah se eu pudesse me aquietar e dormir. No sonho descansaria junto com os reis e soberanos da terra que edificaram eremitérios para si”. Frente às coisas temporais, mergulhamos no sono, como diz Gregório Magno, e silenciamos, quando nos recolhemos no oculto da nossa alma para contemplar o Criador. Os santos, aqui chamados reis e soberanos, construíram estes eremitérios; seu coração já não é perturbado por desejos mundanos e desordenados. Com a mão direita da santa devoção, afastam todas as aspirações proibidas do leito do seu coração, desprezando o que 25 é passageiro. Eles não se apegam ao que é terrestre e gozam de grande paz na sua alma. O segundo tipo de silêncio é como aquele repouso espiritual no qual Maria se pôs aos pés do Senhor e (com o salmista) falou: “Quero ouvir o que diz meu Senhor e Deus dentro de mim”. Para ela se destinavam as palavras do Senhor: “Escuta, minha filha, olha para mim e inclina para mim teu ouvido, esquece o teu povo e a casa do teu pai”. Este segundo tipo de silêncio é como o ato de ouvir, porque o ouvinte não somente cala sua boca e, sim, faz calar tudo em si; só assim poderá atender realmente ao que fala para ele; ainda mais quando não sabe onde este se encontra, como é o caso, neste segundo tipo de silêncio. Porque o Evangelho nos diz: Ouvimos a voz de Deus e seu apelo, mas não sabemos de onde vem nem para onde vai. É por isso que devemos manter o máximo silêncio e a maior atenção. Resumindo, temos dois tipos de silêncio: o primeiro, quando pensamentos e imagens param de circular na nossa cabeça, e o segundo, quando nos esquecemos de nós mesmos, em total atenção do homem interior a Deus somente. No primeiro silêncio, as coisas emudecem para nós. No segundo, nós mesmo emudecemos em profundo repouso e nos abrimos para Deus em humilde entrega. Esta se parece com os santos seres alados que Ezequiel descreve; “Ficavam parados e erguidos, baixando as asas, como se ouvissem uma voz vinda do firmamento acima de suas cabeças”. Esta voz é a divina inspiração, que o ouvido de nossa alma só capta, quando sente a presença de Deus. É por isso que Elifas (no livro de Jó) diz que lhe foi confidenciada uma palavra oculta e ele só percebeu o sopro de um sussurro. Esta voz da inspiração aparece acima do firmamento, na parte superior de nosso espírito que se une diretamente com Deus no amor. Os santos seres alados são os contemplativos. Eles estão parados, porque, quando a voz ressoa na alma, esta se levanta para grandes obras e entra em Deus como aconteceu aos apóstolos, quando viram o Senhor subir ao céu. Também Ezequiel recebeu a ordem de colocar-se de pé, porque Deus estava falando. Estar de pé diante de Deus é adoração silenciosa, em total dependência de Deus. As forças da alma quase paralisam sua atividade, porque a alma tem que ser calma e humilde, para que possa receber sabedoria. O rebaixar de asas significa que outras forças superiores da alma se ativam para captar a divina inspiração que ela recebeu. Orantes contemplativos sabem que suas próprias forças não são adequadas para isto. Em silêncio, entregam a Deus o que é seu, para receber dele o que lhes faltar. O salmista diz: 26 “Minh’alma não se consolou. Lembrei-me do Senhor e me alegrei. Não me apartei dele, e o meu espírito foi suspenso”. O terceiro tipo de silêncio realiza-se em Deus, quando toda a alma está transformada em Deus e em plenitude goza de amabilidade. Nela adormece, como a noiva dos Cantares adormeceu na adega, e ela se cala, porque já não tem nada a desejar. Até de si mesma a alma está suspensa, porque se esquece da fraqueza da natureza e se vê toda divinizada: unida a Deus, revestida do seu esplendor como um segundo Moisés, que sai da nuvem que circunda o monte. O apóstolo São João experimentou coisa ainda mais profunda: faltavam-lhe todos os sentidos, quando depois da ceia repousou junto ao peito do Senhor. Neste terceiro tipo de silêncio pode acontecer que a nossa mente emudece tanto, ou melhor, tanto mergulha que não entende nada do que se fala ao redor e não pode apreciar o que acontece em volta dela, porque não compreende o que ouve. Um homem experimentado me falou entre outros segredos: Acontece durante uma pregação que eu não entendo uma única palavra, e nenhuma criatura consegue tomar forma em mim. Quando falei que seria melhor procurar a solidão, ele respondeu que o falar ressoa para ele como a música polifônica, e a alma se alegra apesar de não entender nada. Ele tem a impressão de estar cantando o contraponto, louvando o Senhor de um modo que se sente e não se pode explicar. Não afirmamos que a consciência deve se calar e, sim, a mente. Ricardo de S. Victor diz: O entendimento das coisas invisíveis pertence à consciência pura. E esta consciência pura se manifesta, quando o espírito permanece na mais alta verdade sem mistura de pensamentos figurado. Para chegar até lá, tu deves aprender a recolher os “filhos dispersos de Israel” e acabar com o vagar das lembranças e imaginações. Acostuma-te a permanecer na tua profundidade e de esquecer tudo o que vem de fora, se é que queres a contemplação das coisas celestes e a experiência de Deus. Ricardo de S. Victor diz ainda: A consciência pura não percebe as coisas invisíveis de Deus com a inteligência, que reconhece coisas ocultas e ausentes, partindo de causa e efeito. A consciência pura reconhece as coisas sobrenaturais na imediatez de nossa visão corporal, com a qual enxergamos coisas materiais presentes. Só que ela reconhece na visão o seu conteúdo espiritual, sabendo que este não depende de figuras externas nem se prende a elas. Assim, acontece que o contemplativo não usa sua imaginação que projeta coisas materiais nem usa o intelecto que procura captar 27 objetos espirituais e corporais pela lei de causa e efeito. Antes, o contemplativo tem Deus diante dos olhos, o espírito puro, livre de toda a projeção. Se o orante permanecer nesta atenção depurada sem pensar em outras coisas, pode-se dizer que ele está no estado de consciência pura, espiritual. Contestação dos inexperientes Os que não têm experiência vêm com a pergunta: Por que não devemos pensar em nada? Vendo nisto um empobrecimento, ironizam: Se colocarmos o espírito em profundo repouso e silêncio, é claro que não precisamos pensar coisa nenhuma. Eles aplicam a palavra: Do nada não vem nada. Gregório Nazianzeno falou: “Quem se dá bem com seu modo de rezar não tem direito de rebaixar o modo de rezar dos outros que ele não conhece”. Ele pode ferir aqueles que chegam até Deus, por meio de uma sábia ignorância que os doutores deste mundo não alcançam. A perfeição dos contemplativos não está em não pensar nada; então, os que dormem e os que estão em coma seriam os mais perfeitos. Se alguém te diz: Não penses em nada, entende bem que este é o conselho para os principiantes, para que aprendam a deixar suas distrações e a voltar-se a Deus humildemente. Na verdade, os que trilham o caminho da contemplação buscam unicamente o avivamento do amor de Deus, um amor maduro que fala por si. Eles não têm necessidade de argumentos, porque estão decididos a amar a Deus sobre todas as coisas e a elevar sua alma para o altíssimo bem que é uma fonte perene de amor. Os experientes sabem a diferença de quem busca conhecimento e de quem busca amor. É verdade que não podemos amar os que não conhecemos, mas quem encontrou a Deus pela fé não duvida que só Ele é digno de ser amado por causa dele mesmo. Por isso, nos recolhemos no nosso coração, onde podemos sentir e amar sua presença. A mesma coisa acontece com um amigo: na sua presença não refletirmos sobre a natureza do nosso amor por ele. O pensar segue depois. Assim que a mente acaba com seu esforço, surge com grande vigor o querer e o sentir que gera amor. Se o orante se põe inteiramente na presença de Deus, não há necessidade de buscar razões para amar aquele que é todo amor. O artista aplica as regras de sua arte sem refletir. O orante já passou de toda justificação e só faz amar. 28 O não-pensar é mais do que parece. No fundo não dá para explicar o que é, assim como Deus, que é seu alvo, não é explicável. Pensando em nada, pensamos na verdade em tudo, porque, sem sequência de pensamentos, pensamos naquele que é Tudo por sua glória maravilhosa. Ao menor sinal deste não-pensar surge no contemplativo uma atenção simples e fina, voltada unicamente para Deus. Gerson chama atenção para o seguinte: “Aqui o diabo não pode fazer nada, porque ele sempre utiliza os sentidos”. O não-pensar é uma entrega a Deus. O homem solta-se e liberta-se para voar com seu coração até Deus, que o deseja inteiro e sem divisão. Este modo de rezar pode-se encontrar num antigo filósofo ou num judeu. Uma coisa boa não perde sua força pelo fato de servir também para não cristãos. Ele age conforme a índole de cada um e conserva o seu valor. O bom resultado da contemplação confere segurança Tudo isto reforça o conselho: Põe tua mente em profundo repouso e silêncio. Isto vale tanto para principiantes como para avançados, porque o demônio costuma perturbar o pensamento com inspirações falsas. Ele faz surgir do coração ao espírito palavras e frases que parecem boas, e quem não se cuida pode pensar que Deus esteja falando nelas. Para completar o engano, ele faz o orante crer que a nenhum ser vivo já aconteceu coisa igual; e que ele deve guardar silêncio sobre suas revelações que são incríveis. Todos estes truques do inimigo tu poderás vencer com o dito conselho. Talvez digas que, sem pensar em coisa criada e sem permitir pensamentos aparentemente bons, serias no fim nada mais que uma estátua sem vida. Mas não é isto. A renúncia do pensamento em si não é um bem. E o fim do nosso exercício não é pura e simplesmente o não-pensar. Silencias o teu pensar para colocar toda a tua atenção em Deus. Se voltar o teu coração para Ele, já conseguiste muita coisa. Se perseverares, receberás a Deus, que logo derrama a sua graça. Mas não por meio de pretensas profecias e inspirações que são, segundo São Bernardo, sapos que não param de gritar, e, sim, por um toque muito intimo que move o teu coração. Bonneval descreve isto desta maneira: Nós provamos o gosto, o apalpamos e sentimos o cheiro, de tão perto que está. Mas, se quiseres agarrá-lo, o fazes recuar. É como um raio que rompe uma nuvem, mas não te faz enxergar e, sim, te encandeia: 29 assim sentes vários toques que não sei descrever. Tu sentes uma coisa, mas não sabes quem tocou em ti. Ouves palavras ocultas no intimo, que são fora de dúvida, mas que não sabes repetir. É desta forma que Ele está contigo e dentro de ti, Ele que pede pela tua mão. O mesmo monge explica também o que acontece no fundo do recolhimento: as palavras percebidas são inefáveis, porque são antes moções do que palavras; por elas o Espírito Santo se comunica conosco e atesta ao nosso espírito, como diz o Apóstolo, que somos filhos de Deus e nele confiamos como filhos. Ele é nosso Pai que nos trata bem e tudo providencia. Esta é a vantagem deste exercício que não dá valor a revelações ou mensagens, mas unicamente à verdadeira experiência espiritual que – como diz Gerson – te dá um conhecimento imediato; não pelo pensamento lógico e, sim, pela percepção daquele que está presente na alma. Com isto, a mente se acalma de tal maneira que desiste de investigar. No mundo exterior existem palavras e ações. No mundo interior é a mesma coisa. No lugar das palavras surgem pensamentos e argumentos. No lugar das ações, entra a atenção intensa e viva que voltamos unicamente a Deus com o amor, a afeição e a moção interior que a alma a Deus oferece por nossa vontade. Nosso exercício tem aqui seu fundamento. Por isso, o Senhor não nos responde com palavras, e sim com ação ou moção. Ele sabe que o contemplativo só reage assim, porque pôs sua mente no silêncio a tal ponto que balbucia como o profeta e se extasia como a rainha de Sabá que admirava a glória de Salomão. Quem silenciou a mente completamente, chega a ponto de não saber mais o que está rezando. Ele vai receber graças que superam o entendimento. Hugo de S. Victor faz a alma falar como se fosse a esposa de Deus: “Quem é que me toca de vez em quando e me encanta com doçura apaixonada? Já começo a ficar arrebatada e não sei aonde sou conduzida. Meu espírito se enche de felicidade, esqueci toda a dor, meu coração se inflama, todos os meus desejos se cumpriram. Sinto no meu interior o abraço do amor. Não compreendo o que acontece comigo, mas me esforço para não perdê-lo jamais. Minha alma luta para que não fuja aquilo que ela gostaria de abraçar para sempre. Será que é o meu Amado? Diga-me, por favor, para que eu saiba. E se ele voltar, vou suplicar que ele não saia, que Ele fique para sempre. Na verdade, minh’alma, este é teu amado que te visita. Ele vem de maneira invisível, ele vem ocultamente para te tocar”. 30 Com estas palavras, Hugo mostra que a mente não volta os olhos de sua percepção para Deus, por causa da claridade que brilha do seu rosto, quando desce do Monte da Glória para se comunicar com os vivos no vale das lágrimas. A mente não pode voltar seus olhos para Deus. Só a morte tira de nossa face o véu da fé que esconde o Divino. Enquanto isto, o nosso exercício é este que Gerson recomenda: “De maneira inefável, une a tua alma com aquele que é inefável e irreconhecível”. É isto que treinamos: Entrar no silêncio! E fechar o espírito dentro de nós! Esta é nossa tarefa. Esforcemo-nos com toda a nossa paixão para alcançar. Entra na solidão e supera-te a ti mesmo, se puderes. Se não o conseguires, apesar do esforço, não fujas para o alívio da leitura ou da conversa. Se o silêncio se tornar um peso e o repouso ficar aparentemente sem fruto, vence o desânimo com perseverança esperançosa, porque Deus não vai desprezar tua alma. Certamente, há de mostrar sua misericórdia, se o procuras cheio de confiança e se invocas o seu nome. Sobre o valor e a essência da oração contemplativa Se encontrares pessoas que falam mal sobre a oração contemplativa, com certeza eles agem por ignorância e falta de experiência. Se forem superiores de um convento, não têm desculpa, porque eles precisam ser experientes em coisas espirituais para poderem desfazer as dúvidas das pessoas a eles confiadas. Para tanto, devem aconselhar, mas nunca ridicularizar os bons exercícios, nem desestimular os que se esforçam por isto. Eles deveriam saber que a contemplação dá plena segurança, como diz Gerson no tratado “De Verbo Gloriae”. Ela é livre dos enganos e dos laços do demônio, porque fecha para ele as portas traiçoeiras dos sentidos, de onde ele costuma atacar. É por isso que este exercício oferece o melhor refúgio para quem vive a dois com Deus. Neste recolhimento contemplativo existem vários graus e modalidades. Uma delas é a renúncia de todo pensamento, comparada com um sono restaurador e um silêncio repousante que não é invadido por nenhum som, nem perturbado por nada. Se um pensamento surgir do coração, é remetido de volta, antes que a pessoa se dê conta, assim como avisamos alguém que chega de longe: Não chegues perto. Este procedimento é seguro e funciona sem falha: o orante até se admira. Ele nem sabe o que veio perturbá-lo: só sabe que algo queria atrapalhar e não conseguiu. 31 Este tipo de recolhimento não é para principiantes. É uma graça, porque a alma sente grande bem-estar, embora a experiência seja somente de algo agradável. Há outro tipo de recolhimento, onde a mente colabora ativamente. A pessoa vigia com cuidado sobre a manutenção do recolhimento, prestando atenção no que acontece e se esforça para não sair fora. Os avançados adquirem grandes experiências. Pode acontecer que o recolhimento contemplativo leve ao total esquecimento de si mesmo. Os que rezam deste modo não sabem mais onde estão. Quando voltam a si, por acaso, perguntam à sua consciência de onde veio, o que fez e o que experimentou. Mas não recebem resposta. Este tipo de contemplação pode tornar-se normal para os avançados. Mas eles devem evitar interesses e tumultos mundanos. Finalmente, há outro tipo de recolhimento, onde a alma se tranca dentro do corpo como numa caixa segura e se alegra com o próprio calor espiritual, livre dos cinco sentidos, como se estes não existissem. Ela não entende nada que se possa explicar, mas se deleita como uma criança no seio da mãe e não quer saber de nada que a possa distrair: nem olhos nem ouvidos nem uma porta para sair. Em todas estas modalidades de contemplação, a mente não silencia a ponto de ser passiva de urna vez. Sempre resta urna faísca, o suficiente para o orante perceber que experimenta algo, a saber, Deus. A mente registra calmamente o que acontece, de modo que a inatividade é aparente. Mas, na verdade, a alma gostaria de morrer e perder-se total mente em Deus. Assim, há momentos em que a mente parece que não existe, como se a alma não fosse um ser espiritual. Depois, ela descobre de novo a faísca viva do saber simples e se maravilha das grandes graças que recebeu pela parada total do pensamento. Ela se dá conta disto, quando volta para a vida comum e sai da neblina, mas não sabe de onde e como recebeu a graça. Para receber ainda mais, ela gostaria de recolher-se de novo e desligar todo entendimento. Por isso, mergulha nas águas profundas e volta com o desejado. A alma não sente o tempo passar, e uma hora é como um respiro. às vezes, a experiência quer escapar do coração. Aí, só há um jeito para segurá-la: recolher-se de novo na profundidade. Às vezes, acontece ao contemplativo avançado que ele recebe a graça de, ao mesmo tempo, poder pensar algo. Mas, se ele se distrai demais com isto, a graça se desfaz e o abandona no meio dos pensamentos. É melhor receber a Deus no oculto, como que no escuro. Ele é amante da solidão e se esconde no escuro. Tua imaginação e tua mente têm que repousar. Não permitas lhe 32 nenhuma atividade, seja o que for. Mesmo quando percebes que o Senhor quer se comunicar contigo, não digas palavras de amor para Ele; a alma alegra-se com isto, mas é melhor recolher-se e mergulhar cada vez mais. O coração que se orienta para Deus quer abraçá-lo. E isto se faz melhor pelo amor calado. Muitas vezes, Ele quer que o deixemos agir sozinho em silêncio. Só que pode acontecer que nos encontremos em tamanha fraqueza que é preciso recorrer a toda ajuda de fora e de dentro para alcançar a adoração silenciosa. Melhor é renunciar a todo esforço e permanecer na veneração. Porque então é Deus quem age, e teu ardor humilde e receptivo alcança mais do que pensas, porque este se une mais intensamente com Ele que é sua salvação. Atenção vigilante em Deus Conforme diz Ricardo de S. Victor: “A meditação é uma orientação permanente na mesma direção”. E eu acrescento: Há duas maneiras de meditar: urna se volta para as coisas criadas, e a outra para o que não é criado. E esta segunda é a contemplação, que é uma intensa orientação do coração somente para Deus. Esta contemplação trata de coisas, sobre as quais não se pode falar. É por isso que Davi diz no SI 77, 7: “Eu meditava de noite com meu coração, e o meu espírito se exercitava e era varrido”. Davi não fala do assunto sobre o qual meditava. Só diz que era de noite. Em outro lugar, declara que a felicidade o irradiava, e isto porque a contemplação oculta e a orientação unicamente para Deus preenche a alma com um gozo misterioso que ela percebe nitidamente, e é isto que Davi chama de iluminação. Já que não pode explicar aos outros o que é, ele diz que foi de noite. Além disso, Davi diz que contemplava com o coração. A meditação das coisas criadas tem lugar dentro do coração, mas a sublime contemplação acontece com o coração. Podemos comparar isto com um pobre que se apresenta calado diante do rico e, assim, expressa sua pobreza não com palavras e sim com toda a sua situação real. Sirva-nos de exemplo o cachorrinho: Com a máxima vivacidade e com o abano atencioso do rabo, ele se coloca perto da mesa, com o pescoço esticado, de modo que toda sua posição demonstra o que lhe falta. E não te admires que eu compare o orante com o cachorro, porque não há outra explicação melhor para esta maneira de orar. A mulher cananéia, que é grande na oração, diz com significado alegórico que os cachorrinhos comem as 33 migalhas que caem da mesa dos senhores (Mt 15,27). Observa bem como o cachorro, ao lado da mesa, é atenção total, tanto assim que só falta pular em cima. Além da atenção total, ele dá gemidos que indicam o que ele quer. Portanto, se tu vieres à mesa da oração que São Francisco chamava de “távola dos seus irmãos espirituais”; se te aproximares desta mesa na qual o Senhor vai cear com os seus, esquece de tudo, como faz o cachorrinho, e não tenhas outros anseios e desejos. Orienta o homem interior e exterior totalmente para aquele que está à mesa, a saber, Deus. E guarda o silêncio, como convém na ceia. Se ainda não receberes o que desejas, a esperança no teu coração solte gemidos com a voz, sem palavras, para que no silêncio da palavra a obra interior comece a orar, porque está escrito: “Deus não deixa morrer de fome as almas dos justos” (Sb 10,3). Além disso, Davi diz que se exercitava, porque esta oração exige exercício. E varria o seu espírito, o que indica a purificação da alma. O ato de varrer tem que ser bem feito, de modo que não fique nenhuma poeira de pensamentos humanos que não seja expulsa pela santa vontade, que se faz de vassoura, enfaixada e amarrada. O que foi dito aqui é confirmado pelo abade Isaac (Cisterciense inglês que atuou na França pelos anos 1100) que explicou como Jesus deseja que rezemos: No quarto silencioso devemos suplicar a Deus, logo que tivermos expulsado do coração todo o barulho de pensamentos e preocupações. De maneira oculta e confiante, expressamos a Deus nossos pedidos. Oramos com a porta fechada, se fecharmos os lábios e em silêncio suplicarmos o perscrutador do nosso interior, não com a voz, e, sim, do fundo do coração. Nós rezamos no oculto, se expressarmos nossos pedidos unicamente com o coração e com a alma totalmente voltada para Deus. Se rezarmos assim, os poderes inimigos não podem saber o que estamos pedindo. É por isso que devemos rezar em silêncio absoluto. O Mergulho em Deus Para mergulhar em si mesmo, é preciso estar em casa consigo mesmo, entrar no seu interior e fazer os degraus que levam para a própria profundeza. Esta entrada na alma produz uma dupla ação contemplativa: mergulhar e observar este mergulho. Vejamos um vigia que está atento e ainda desconfia de sua vigilância. Ele não se distrai e pensa numa só coisa. A vigilância não corta o 34 silêncio, antes acrescenta um olhar atento sobre o homem silencioso, como é o caso de alguém que se cala de propósito, consciente e teimoso. O ser humano tem que aplicar todas as forças para conquistar o Reino dos céus. Há gente que faz tanto esforço que fica com grande dor de cabeça, e os olhos começam a lacrimejar, seja pelo cansaço da mente, seja pela repressão das forças vitais. Isto não dá para aguentar muito tempo. Aplica com moderação o que foi dito, porque se a dor de cabeça aumentar, a pessoa vai relaxar na contemplação e vai ter que contentar-se com o puro e simples recolhimento. Este tipo de cansaço não pode ser remediado nem pelas forças da alma nem pelos sentidos, nem por uma atenção orientada. Permanece em calma tranquilidade que deixa o coração como que dormindo. Assim vai passar a dor causada pela oração. O que podemos dizer sobre a graça que se recebe neste duplo exercício? Ela inflama a vontade, como se ardesse no peito um fogo manso, que não se deixa expressar em palavras. A mente é tão clara e lúcida, como se tivesse achado a chave de todo o saber. Mas este saber parece reduzido a uma única frase ou a uma única palavra, cheia de sentido. E porque este saber não é prolixo, e o coração não se derrama nele. Ele não vem nem por via de revelações nem por visões alucinantes: a inteligência espiritual é tão iluminada que os agraciados, quando pensam em Deus, quando falam ou escrevem sobre ele, rapidamente e com leveza expressam grandes verdades. A memória é serena, e ela não procura isto ou aquilo: com facilidade lembra o que visa no momento. No peito, e às vezes no corpo todo, surge um sentimento como se o espírito vital e as forças humanas se recolhessem para dentro. E o que é mais importante, a pessoa sente um crescimento maravilhoso, no qual o espírito se alarga como uma luva no qual se sopra. O peito cresce e alarga-se além do seu tamanho natural para dar lugar à graça. Este crescimento não causa dor, antes é assim: quanto maior a extensão, tanto maior a felicidade, porque a unção recebida faz o corpo ceder mansamente. Estas graças não se alcançam com facilidade nem rapidamente. Primeiramente, temos que passar muitos anos com a oração interior. Este livro, que ensina o mergulho, pode servir para isto. 35 4° capítulo: FORMAS E IMAGENS DA GRAÇA Contemplação e humanidade de Cristo Este caminho de contemplação não prejudica ninguém que o deseja de coração. Mas, mesmo assim, sabemos que ele não serve para todos. Alguns são conduzidos até ele diretamente por Deus. Outros o encontram, porque o buscam com fervor. Mas há pessoas com inclinação para coisas ocultas que vão por caminhos tortuosos, se bem que muitos Santos deram orientações sábias nos seus escritos. Nestas práticas finas e profundas, cada erro é fatal. Muitas pessoas fracassam, não porque seguem o caminho, e sim porque, achando que estão no caminho, na verdade se perdem em caminhos laterais, mais agradáveis. Fracassam por não observarem os escritos dos Santos a respeito do tema, dos quais queremos citar e explicar os mais importantes. Muitos assuntos da Teologia mística não podem ser explicados em termos comuns, nem podem ser compreendidos por gente sem experiência. Mas queremos dizer que a Santa Humanidade de Cristo, nosso Senhor e Deus, nunca poderá impedir ou atrapalhar a contemplação, seja ela sublime e pura como for. Ela não é um obstáculo. A prova é a Mãe de Deus: enquanto servia ao menino Deus, a presença dele nunca lhe causou distração espiritual que tivesse diminuído sua atenção permanente em Deus, atenção esta que ela possuía em grau mais alto que todos os Santos. Disto concluímos que a Santa Humanidade do Senhor não impede a sublime concentração da alma unicamente em Deus. É antes por nossa imperfeição que precisamos abstrair nossa atenção das coisas criadas para podermos elevar nosso pensar unicamente em Deus. Podemos dizer, portanto, que nem a Santa Humanidade de Cristo, nem as coisas criadas por si, podem impedir a contemplação, mesmo que seja de alto grau. e afirmamos no entanto, que as coisas criadas nos atrapalham, o problema é a nossa mente estreita, que não consegue alcançar muita coisa de vez. De Cristo foi dito que ele se tornou pedra de tropeço para os judeus e escândalo para os pagãos, porque eles mudaram o Bem em Mal. Em tudo só podiam pecar. Mas no caso da contemplação não se trata de pecado e sim de um bem menor, se somos impedidos por aquilo que não nos deveria impedir. Se, de fato, as 36 criaturas prejudicassem a contemplação, a escritura não poderia dizer que elas lutarão no dia do juízo contra os maus, colocando-se do lado do Senhor que os criou (Sb 5,20-23). Se for assim, é claro que não é para nos impedir e sim para nos ajudar. O que é corporal foi feito para ajudar o espiritual, de modo especial para ajudar a alma, que precisa partir do corporal para elevar-se às coisas invisíveis de Deus. As criaturas não somente ajudam aos homens, mas também aos anjos que, conforme Agostinho, quando foram criados, cresceram no conhecimento de Deus, enquanto contemplavam, uma após a outra, as obras dos seis dias. Do mesmo modo, nós subimos e descemos a escada, cada um de sua maneira, que é feita da ordem das coisas criadas. A gente sobe para o conhecimento do criador e desce para o conhecimento de si mesmo. Somente Deus permanece imóvel no topo da escada, porque ele está cheio da luz de si mesmo. Ele não desce, porque contém todas as coisas em si; nem Ele sobe, porque o seu conhecimento próprio não pode aumentar: Se é que as coisas criadas formam uma escada na qual os pés dos sábios sobem até Deus, muito mais nos faz subir a Santa Humanidade de Cristo, que é caminho, verdade e vida. Ele veio para que tivéssemos a vida em plenitude: para que, aproximando-nos da sua Divindade e tornandonos semelhantes à sua Humanidade, pudéssemos alcançar a nossa vocação. A lgreja canta este mistério: Pelas coisas visíveis conhecemos a Deus, para sermos atraídos ao amor das coisas invisíveis, se as outras coisas visíveis nos elevam para o amor de Deus, a Santa Humanidade nos arrebata de uma vez. É por isso que o profeta Ezequiel comparou a Face de Cristo com a beleza de um diamante luminoso e com a pedra de fogo, da qual a contemplação tira, com um leve toque, a forte faísca do amor que incendeia os corações inflamáveis e preparados. Disto nos dá testemunho o apóstolo Tomé que achou cura nas chagas de sua alma ao tocar as chagas do Senhor. Ele chegou ao conhecimento da Divindade de Cristo que desde então começou a proclamar. Embora as coisas criadas contenham em si a verdade plena, achamos nos escritos a advertência que é melhor para os contemplativos distanciar-se de tudo que é criado e da Santa Humanidade de Cristo, para alcançar as coisas puramente espirituais, de um modo mais perfeito. Bonneval diz: “A plenitude da presença divina não podia entrar em ação, enquanto Cristo estava presente aos apóstolos de forma corporal”. Bernardo, Gregório, 37 Agostinho e Gerson e outros escreveram que o Senhor subiu ao céu para poder mandar o Espírito Santo. Eles dizem também: Os apóstolos estavam limitados no seu amor pela Santa Humanidade. Tinham que separar-se dela para alcançar as coisas mais sublimes. Só assim podiam esperar a vinda do Espírito Santo que os ensinaria a reconhecer Cristo de modo verdadeiro, não corporalmente e sim no espírito. Mas realmente não foi a Humanidade de Cristo, formada pelo Espírito Santo, que impedia a vinda deste Espírito. O mundo pode certamente abrigar aquilo que no pequenino ventre da Virgem entrou, sob a sombra do Espírito. Mas podemos afirmar: foi pela imperfeição dos apóstolos que a Humanidade de Cristo constituía uma dificuldade. Se o Senhor afirma que precisa partir, é por causa deles, que ainda não podiam receber toda a plenitude com coração agradecido. Se para os apóstolos era melhor abster-se por um pouco da contemplação da Humanidade do Senhor para dedicar-se ao Divino, a mesma coisa vale para outros que gostariam de elevar-se a uma vida espiritual mais intensa. Porque em geral não se passa de um estado imperfeito a outro perfeito sem que tenha um estado intermediário que prepara um degrau. Por isso, é bom deixar temporariamente o bom pelo melhor, para possui-lo no fim de modo perfeito. Com isto nos apartamos de nossa imperfeição. O rico separa-se da riqueza, não porque ela fosse ruim em si, e sim por causa da avareza e das preocupações que se ligam a ela, devido à imperfeição dele mesmo. É assim que faz também o gavião: ele deixa sua caça para não cansar no voo. A criança de colo é privada do leite, para que aprenda a comer alimento sólido. O homem, porém, que desenvolveu critério espiritual, pode comer de tudo, já que não vai comer além da medida. Os verdadeiros contemplativos podem abraçar tudo de um modo bem ordenado, porque para eles favorece o que para outros é empecilho. Bernardo diz: Há dois tipos de amor: um é corporal, e outro espiritual. Dali se deduzem quatro modos de amar: amar o carnal de maneira carnal, amar o espiritual de maneira carnal, amar o carnal de maneira espiritual, amar o espiritual de maneira espiritual. Nestes quatro degraus progredimos e subimos das coisas inferiores às superiores, porque Deus criou as coisas carnais, para 38 que os homens já não amassem o visível de um modo carnal, mas que nisto pudessem crescer, até saber amar a Deus de um modo espiritual. Quando Ele viveu com os homens e com eles falava, estes o amavam primeiro de maneira carnal, Mas, quando quis entregar sua vida pelos amigos, já amavam o seu espírito, se bem que ainda de um modo carnal. Foi por isso que Pedro respondeu ao Senhor, quando este falava de sua paixão: “Deus o livre, Senhor! Não aconteça tal coisa!” Mas quando viram que nesta Paixão se cumpria o mistério da redenção, amavam na paixão a carne de um modo espiritual. Depois da ressurreição e ascensão aprenderam a amar o espiritual de um modo espiritual e confessaram alegres: “Nós conhecíamos o Cristo segundo a carne, mas agora já não o conhecemos assim”. Portanto, devemos reconhecer que o amor chamado carnal não é ruim e que não devemos entendê-lo neste sentido pejorativo, que em geral lhe é dado. Os quatro modos de amar são distintos apenas por menor ou maior intimidade. Assim, aprendemos a amar nosso Senhor de um modo cada vez mais puro e imediato, como mostra o exemplo dos Apóstolos. Amizade com Deus Devemos saber dos três pilares que dão embasamento aos exercícios espirituais. Em primeiro lugar, devemos admitir: Amizade e relação com Deus são possíveis nesta vida terrestre. E esta relação pode ser mais intensa e mais forte do que aquela que se vive entre irmãos ou entre mãe e filho. O fato de esta amizade e relação entre Deus e o homem ser espiritual não diminui o seu grande significado e sua intensidade. Não estou falando aqui da aceitação do homem por Deus em geral, nem das dúvidas que os mortais têm, se estão no estado de graça ou não. Estou falando desta união que os orantes e os amantes de Deus procuram, união esta que é mais real do que todas as coisas do mundo e tão bem-aventurada que nada se iguala ao seu valor. Deus, nosso Senhor, tem tanta saudade de amigos que — como diz a escritura — corre ao encontro do pecador que chega a ele de terras distantes como um escravo. Sim, ele corre ao seu encontro e supera em amor uma mãe que, em geral, não se levanta, mas somente estende os braços para receber o seu filho. Em segundo lugar, devemos admitir: Já que Deus não faz diferença de classe, esta relação é tão acessível a ti como a 39 qualquer outra pessoa. Tu foste criado à sua semelhança como os outros, e eu creio que tua sede de felicidade não é menor do que a deles. Mas, se o teu progresso foi por vontade própria e não por Deus, talvez dirás que tua idade ou tua profissão, tua constituição ou doença ou até teu gênio te escusam ou distanciam de tal amizade. O que posso te responder, a não ser o que falou Salomão: “Quem tem vontade de separar-se do seu amigo procura conflitos e sempre achará algo para acusá-lo”. Eu não sei se as tuas desculpas te deixam tranquilo. A mim me irritam, e eu te digo, com Agostinho, que não acredito em ti de jeito nenhum, porque não há desculpa, quando a coisa só depende de ti. Se tu me dissesses: não posso jejuar, não posso me flagelar, não posso usar roupas grosseiras, nem trabalhar, nem fazer peregrinação: tudo isto posso admitir. Mas se disseres: Não posso amar, eu não acredito nisto. Em terceiro lugar, devemos assegurar que, seja qual for o meio de procurar esta união com Deus, na alma se encontra uma profunda inquietação, que nos leva a buscar unicamente a Deus: sem esta busca e procura, ninguém alcança a Deus, sejam quais forem os caminhos andados. Também é certo que a pessoa não pode determinar como vai achar e o que vai alcançar. Existem duas maneiras de buscar a Deus: uma provém do próprio Deus, e a outra nasce do nosso esforço. Se a busca for dada por Deus, a pessoa nem dorme nem come nem vive sossegada. Quem é movido por Deus cuide de aproveitar o presente, porque este ardor e esta sede costumam durar pouco. Por isso, escolhe os melhores meios e apressa-te: com o favor de Deus, em um ano farás maiores progressos do que farias sem ele em três anos. É como se recebesses um animal de carga emprestado por certo tempo para fazer trabalhos necessários e tu deixasses este animal sem fazer nada. Virá o tempo em que o pedem de volta, e o teu serviço não foi feito. Não aconteça tal coisa! Deus quer que seus dons sejam aproveitados e que lucres ainda mais com os talentos que Ele te dá. Não deixes morrer tua sede. Senão a vela se apaga, e tu estarás no escuro. Se a graça te for retirada, estarás mais relaxado do que se nunca a tivesses possuído. Alguns não souberam corresponder com a graça, já que pensavam que bastava fazer penitências corporais. Estas têm pouco proveito, como diz São Paulo, se o nosso interior não tem parte nelas. Outros respondem só com palavras e com leitura, sem entrar na vida interior. Então tudo se desfaz em fumaça, como o mercúrio que evapora, se não estiver protegido. Por isso, irmão, se quiseres tirar o maior proveito, procura a Deus no teu coração. Não 40 te afastes de ti mesmo, porque Ele é mais íntimo de ti do que tu mesmo (Agostinho diz: Tu intimior intimo meo!). As águas da graça Isaías tem três comparações que falam do valor das lágrimas devotamente derramadas: O orante contemplativo é como um jardim irrigado; em segundo lugar, é como uma fonte; e em terceiro lugar, para mostrar que no exercício contemplativo nunca podem faltar as lágrimas da piedade, o profeta acrescenta que as águas nascidas da fonte dos olhos nunca secam. A graça também é chamada de rio, porque ela procede do lugar da bem-aventurança, quando Deus sai de si mesmo para tornar felizes as nossas almas. A graça é também uma chuva, porque ela molha o chão do nosso coração, para que este dê ricos frutos em boas obras. Também é chamada de orvalho celeste que penetra em nossas almas, que, como ostras, devem abrir-se, para receber este orvalho na praia dos mares deste mundo. E ele há de produzir nelas as pérolas preciosas de muitas virtudes, como o faz o orvalho. Já que o Senhor nos disse que devemos bater para que a porta seja aberta, é evidente que devemos bater na porta mais próxima que é nossa própria casa. Embora o Senhor tenha muitas moradas, é dentro de nós que o encontramos com mais facilidade, e não temos necessidade de procurar santuários, nem de peregrinar para terras distantes. Onde quer que a pessoa se encontre: para achar a Deus, só precisa entrar dentro de si. Salomão dá testemunho disto, quando diz: Beba água de tua cisterna e da corrente do teu poço! Com estas poucas palavras, o sábio citou a cisterna, o poço e a corrente de água. É claro que poço é mais do que a cisterna, e a corrente de água é mais do que o poço. Assim acontece também com os três degraus de místicos: Os principiantes têm a cisterna. Os avançados servem-se da água que sai da bica do poço, e os quase perfeitos possuem uma corrente, da qual distribuem a outros. É destes que o sábio fala, ao afirmar, que as fontes transbordam, e a água é distribuída nas praças. Não é sem uma razão oculta que Salomão escolhe suas imagens, se bem que pareçam sem lógica ao raciocínio comum, porque uma cisterna não se desenvolve nem para poço nem para torrente. 41 Ela só faz juntar a chuva e não tem água por si mesma. O coração humano, no entanto, tem uma tendência natural de abrir-se para a graça e para a adoração divina. É verdade que nada se faz, se o Senhor não manda primeiro a chuva de sua graça generosa, porque sem ela o coração é só como terra seca que se pode cavar e que, como cisterna, pode receber o orvalho e as gotas de chuva que lhe forem enviadas. Mas o coração tem a capacidade de acolher e guardar estas gotas da graça com tanta eficiência que se torna um poço jorrante, logo que tiver juntado o suficiente. O desejo natural de Deus pode crescer muito no coração, e com isto cresce a sede de devoção interior, sem a qual ele fica como antes, totalmente morto e seco. A mesma coisa se pode observar no gelo que, se não for tocado pelo sol ou pela água, é duro como cristal, e nele se pode cavar uma cisterna. Mas, se vierem sol e chuva, o gelo tem que derreter-se, e a cisterna se torna um poço ou mesmo uma fonte que jorra, depois que tiver juntado água em sua cavidade. Do mesmo modo, a alma, a não ser que esteja muito endurecida e desesperada, pode receber a água pura e a corrente que o Senhor lhe manda, se bem que antes parecia mais nada que uma cisterna vazia e seca. Mas, se nesta alma, havendo um coração profundo, cair uma grande graça, ela se tornará um poço, logo que o natural desejo de Deus estiver acordado e vitalizado. Sim, ela se transforma num poço tão receptivo que jorra, e do seu interior nascerá amor de Deus e adoração sincera. Esta cresce cada vez mais, até que se torne uma água viva de íntima veneração de Deus, que, crescendo e pulando, alcança a vida eterna. Com isto a alma volta àquela origem da qual lhe adveio a graça. Isto só é possível, se a pessoa entrar em si mesma para de lá subir até Deus. Porque ninguém pode subir até Ele, se não tiver descido primeiro até a sua própria interioridade. Quanto mais intensa e profunda for a sua entrada interior, tanto mais ele vai subir porque quem se humilha será exaltado. Acontece com ele como se vê na bola: quanto mais forte for arremessada contra a terra, tanto mais alto vai pular. Na água se vê a mesma coisa: é na queda que ela ganha força para subir. E o esportista que pula se abaixa, para alcançar um pulo maior. É por isso que os principiantes devem entrar em si, muitas vezes, e doer-se com a má vida do passado: em silêncio, na paciência e na esperança de emendar-se. Os avançados também precisam interiorizar-se, para vencer, em silenciosa quietude, todas as distrações do coração, na expectativa fiel da graça, que em breve esperam receber do seu generoso Senhor. Também os 42 quase perfeitos precisam entrar no seu interior para manterem, no recolhimento interior, a vigilância do coração voltada para Deus. Por isso, permanecem em profundo silêncio diante de todas as coisas criadas e alimentam uma esperança tão forte e imperturbável que um leve desejo já basta para elevá-los às coisas celestes. O que é melhor: Entrar no seu interior ou superar a si mesmo? Quem se exercita na contemplação e já possui alguma experiência, às vezes, tem dúvida: o que é melhor para a pessoa: entrar em si mesmo ou ir além de si mesmo? Queremos deixar claro que as duas coisas fazem parte da contemplação e que nem uma nem outra se alcançam sem recolhimento contemplativo. Entrando em si mesma, a pessoa dá o primeiro passo para superar-se. Aqui se torna verdade a palavra do Senhor: Quem se humilha a si mesmo, será exaltado. As duas coisas podem ser alcançadas por este exercício: tanto a interiorização como a superação de si mesmo. São estas duas graças que a pessoa mais deve buscar na contemplação, porque só elas satisfazem o coração profundamente. Porém, é mais fácil entrar em si mesmo do que superar-se. Por isso, me parece melhor dar prioridade ao primeiro, embora a alma esteja disposta e capacitada para as duas coisas. Sem esforço alcançarás a superação de ti mesmo, que brotará de um modo mais puro e mais espiritual como fruto de rua interiorização. No entanto, observa qual das duas possibilidades tua alma mais procura. Obedece a voz interior e experimentarás graça e vantagem maior. Não deixes que o espírito fique vagando, mas faze com que ele esteja inteiramente no teu interior ou elevado acima de ti, para que sempre preserve a unidade. A prisão do amor A alma como prisioneira Não te assustes com as dificuldades do começo, porque, depois de vencidas na perseverança, elas te parecerão leves, e chegará o dia em que começarás com intensa interioridade a procurar a deliciosa sabedoria que se encontra na escola da contemplação. 43 Então já não poderás deixá-la. Antes te acharás maravilhosamente cativo na prisão do amor, da qual nunca mais pedirás soltura. Deus como prisioneiro A alma prende a Deus, para sequestrá-lo com os laços do amor e da paixão, e Deus não consegue desfazer-se do amor. Antes, se dá por vencido como o pássaro, quando o falcão se precipita sobre ele. Depois que Deus estiver preso desta maneira pelo amor, a alma o conduz não somente para a casa de sua mãe, como também para o leito de sua mãe, conforme dizem os Cantares. A mãe da alma é a vontade amorosa, a quem ela agradece a ventura. A casa da alma é o coração: Deus é conduzido não somente para dentro da casa e sim para o recolhimento da contemplação que é a cama em que Deus sente todo o conforto. Ele escurece a morada, fecha as janelas dos sentidos e leva a alma a experimentar muita coisa, como diz a noiva nos Cantares. A alma Lhe dá uma bebida que faz dormir, para tê-lo sempre perto de si, um vinho com muitos aromas. Todo o seu querer só se volta para Deus. Ela lhe serve, na taça da pureza, o vinho da romã, a saber, o ardor de sua íntima profundidade, resplendente de amor. Por isso: prova, irmão, para ver como o Senhor é amável. Quando a alma lhe dá de beber seu bem-querer e sua saudade, é ela quem se inebria do vinho do amor ardente. É por isso que o Senhor insiste nos Cantares: Não acordeis minha amada antes que queira, depois que ela tomar o vinho. É ela que determina a hora, porque sempre é Deus quem ama por último. A noiva diz: O Senhor colocou a mão esquerda sob a minha cabeça, para assim elevar a parte superior da alma acima de todas as coisas criadas. Mas com a direita Ele abraça a amada e envolve-a de eternidade. Nosso coração — um castelo A alma tem três forças principais: a força da inteligência com a qual se governa, a força da coragem que é sua defesa e a força do querer com a qual providencia tudo de que precisa. Estas três forças devem ser os vigias do castelo do nosso coração, para que ele esteja seguro de todos os lados. Salomão diz que seu coração 44 tem medo de três coisas: do engano, da violência e da fome. São estes os três perigos para o coração. Por isso, devemos seguir o conselho dos sábios, chamando os ditos três vigias. Quem nos defende do engano é a inteligência que avalia. Isto se vê no exemplo da Santa Virgem que ponderou as palavras do anjo da Luz, para ver se não tinha algum engano atrás das palavras boas ou algo escuro atrás do clarão. Assim não entrou nada no seu coração que não fosse examinado com afinco, O segundo portão do castelo, pelo qual costumam invadir violência e medo, seja vigiado pela força da coragem, que expulsa todos os temores da noite. O terceiro portão, que é ameaçado pela fome, ou melhor, pela ganância e inúmeros desejos, seja munido pela saudade das coisas celestes. É por isso que o anjo diz no livro de Daniel: “Eu vim para te ensinar, porque tu és o homem do reto desejo”. As coisas da terra não atingem aquele que tem sede das coisas do céu. É importante saber que basta um portão sem vigia, para que o diabo penetre no castelo do coração. Ele usa ora esta, ora aquela tática, nunca todas as três na mesma pessoa. Basta uma, para que o homem se perca. Portanto, se quisermos ter certeza, devemos colocar vigias de todos os lados ao redor do coração, porque ele é a sede da vida. Esta vigilância deve ser absoluta: diante do paraíso Deus colocou os Querubins com espada de fogo, para proteger o caminho da árvore da vida. O coração dos fiéis é um paraíso terrestre, no qual o Senhor entra para descansar. Ele diz: Meu prazer é estar com os filhos dos homens. Também para nós ele é um paraíso de gozo, porque nele começamos a sentir a bem-aventurança, quando Deus nele habita. Esta felicidade que o coração sente vale mais do que todas as alegrias do mundo. Grandes senhores costumam possuir castelos no campo, os quais eles procuram para a alegria do descanso. Salomão e Xerxes tinham casas assim, na sua floresta ou no seu jardim. Também Deus, nosso Senhor, que não se satisfez com o paraíso celeste, mandou construir na terra um castelo para a sua alegria: o coração humano. Deus o chama “paraíso terrestre”, porque “o coração do justo é um paraíso”. Sim, paraíso, porque qualquer lugar em que Ele se encontre é um paraíso. Ele o chama “terrestre”, porque tem lugar no nosso corpo que vem da terra. Deste paraíso está escrito: “A graça é como um jardim que ecoa de louvores, e a misericórdia permanece na terra”. Salomão fala mais da graça do que do coração, pois este só se tornou um paraíso pela graça de Deus, que nele veio morar. Ela é como uma fonte que rega o paraíso do coração. Diz a escritura 45 que esta fonte se divide em quatro rios, que alimentam em nosso coração: as quatro virtudes cardeais, a saber: a justiça, a temperança, a força e a prudência. Com estes dons, o coração consegue realizar inúmeras boas obras. O sábio fala de um paraíso cheio de louvores, porque o coração nunca pára de louvar a Deus, já que tudo é presente de Deus, não adquirido por esforço humano. Por que ele diz que a misericórdia permanece no mundo? E porque Deus não para de ter misericórdia deste mundo, de modo especial quando um coração, que era paraíso terrestre, alcança a eternidade, onde, para sempre, será um paraíso celeste. E isto que Deus promete pelo profeta Isaías, quando diz: Glorificarei a casa da minha majestade! A oliveira Flor encantadora é a alma, que abriga em si a graça e, com ela, a promessa do fruto da vida eterna. A graça é uma chave do céu, com a qual entramos no nosso interior. Ela é um navio, no qual navegamos com segurança no mar deste mundo, e que nos faz chegar ao porto da salvação. Comparamos a graça também com o óleo, porque ela nos torna agradáveis a Deus e porque se derrama em nós com abundância por Cristo, nosso redentor, que é chamado “oliveira fértil na casa de Deus”, sua igreja. Esta árvore dá rico fruto, de onde é tirado aquele óleo maravilhoso, símbolo da graça. Ele cura todas as feridas do homem assaltado pelos ladrões, isto é, ele cura as chagas de todo pecador. O Senhor ordenou aos seus que ungissem os doentes com este óleo e os curassem de toda enfermidade. Eles ficaram curados no corpo e na alma, porque, o que se realizou por dentro para fora se manifestou. O óleo de oliveira também tem a capacidade de tornar agradável o que amargo. É por isso que se usa no preparo de ervas. Do mesmo modo, a graça livra a aflição de sua amargura. Por esta razão, ela é mencionada entre os presentes que Deus dá para Jerusalém, quando se diz: Deu-lhe óleo como alimento, querendo dizer, deu-lhe a graça de sofrer as aflições com serenidade. E esta graça não é pequena. Outra propriedade, tanto do óleo como da graça, é a unção do ser humano para certas dignidades. O chamado é consagrado a Deus e ungido com o santo óleo. Se a graça não nos for dada por Deus, não podemos salvarnos nem pelos mais ricos dons naturais. Pode alguém ser o maior 46 mestre na sua arte ou mão de obra, ele não faz nada sem o seu instrumento. Capacidades e dotes não bastam para adquirir a vida eterna, se a graça divina não se juntar ao esforço. É ela quem molda a livre vontade e faz as obras renderem; só assim elas podem se tornar merecedoras da vida eterna. O óleo também nos livra da morte, como vemos em Jr 4,8: Ismael, disposto para matar, deixou escapar com vida aqueles que tinham guardado sua reserva de óleo. Isto quer dizer que o demônio é impotente contra aqueles que na batalha da vida conduzem a graça consigo. Ó alma, se quiseres receber dignamente o teu esposo, enche primeiro a vasilha do teu coração com óleo, para que possas sair com segurança da tua morada terrestre junto com as virgens prudentes e ser recebida nas núpcias celestes, onde sem óleo não terás acesso. Mas, se achares difícil obter este óleo, faze como o doente que pede os santos óleos, quando sabe que vai morrer. Basta pedir para receber a força do sacramento. Pensa bem: todo dia morremos, porque todo dia pecamos. Por isso, persevera em pedir com lágrimas o óleo da graça. Então a pomba do Espírito Santo não vai demorar em vir a ti e trazer não somente o ramo da graça, mas a própria oliveira frondosa que é o Cristo. Planta as raízes desta árvore com carinho no teu coração, então ela crescerá em ti. Rega o seu pé com lágrimas puras, para que ele se torne cada vez mais viçoso. Se vier o demônio para te dar de beber o veneno da tentação e do pecado, só precisas pedir a Deus com lágrimas o óleo da graça. Imediatamente ele te protege e liberta de tudo que é nocivo e perigoso. Casulo e borboleta Todos os que procuram a perfeição só alcançam o cume, quando deixam de buscar as próprias virtudes, o próprio progresso, e buscam unicamente a Deus, de modo que sejam movidos só pelo amor. Eles são como a borboleta que, depois da missão cumprida, sai do casulo. Ela só se alimenta de amor e não liga para mais nada. Isto não pode ser explicado com poucas palavras. Mesmo quem pratica isto não pode falar, porque já não dá atenção às virtudes e obras, mas unicamente ao amor, sem o qual tudo lhe parece pequeno. Digamos que duas pessoas soubessem voar, O primeiro sobe sem olhar para trás, enquanto o outro olha para baixo, para ver o quanto já subiu. E claro que o segundo fica atrás 47 do primeiro, que não pergunta pela altura, porque este só contempla o que está na sua frente e o que falta alcançar. Não deixes que teu amor se prenda às virtudes. Procura unicamente o Deus altíssimo, para onde voamos. Para o filósofo, a virtude é a meta e fim. Para o cristão, ela é somente um meio para chegar ao perfeito amor de Deus. Ele não procura as virtudes pela satisfação que proporcionam, e, sim, porque sem elas não pode alcançar o amor de Deus que é o fim e a meta de nossa vida. 48 5° Capítulo: A HUMILDADE COMO CONDIÇÃO DE CRESCIMENTO ESPIRITUAL O que é humildade? Quem refletiu em profundidade sobre os assuntos deste livro poderá me objetar: este capítulo deveria estar no começo, porque a humildade é base e fundamento de todo edifício; nela se apóia todo exercício espiritual, e é desta raiz que provêm os frutos da árvore. Se o amor é a raiz, então a humildade é o húmus, o solo fértil, do qual a árvore se alimenta e de onde lhe vem a força de produzir o fruto. A humildade também se compara com o sal, porque ela é tão necessária para todo exercício, como o sal é indispensável para dar sabor a todas as comidas. A humildade é a porta da vida religiosa; ela se compara com o primeiro passo de Cristo no mundo. Quem quiser levar uma vida que agrade a Deus seja modesto na vida particular e não espere nada especial, porque a humildade sempre foi condição indispensável da santidade. Em tudo se precisa de humildade, mas de modo especial nos exercícios espirituais. Quanto mais santa for a pessoa, tanto mais precisa ser humilde. Quanto mais alta a árvore, quanto mais magnífica a casa, tanto mais precisa aprofundar as raízes ou os fundamentos. Os santos foram também os mais humildes. Coloco este capítulo sobre a humildade neste lugar, porque quero mostrar que na sua essência ela parece muito com a contemplação. São João Batista mostra humildade, quando diz: “Ele tem que crescer, eu devo diminuir”. A meta da humildade é libertar a pessoa de si mesma. A mesma coisa faz a contemplação: ela nos salva do egocentrismo, para que Deus tenha lugar no nosso coração. Uma coisa nos é dada e outra coisa é tirada. São Paulo diz, de um lado, que não é capaz de um bom pensamento por si mesmo e, por outro, afirma que tudo pode naquele que é sua força. Desta maneira, aquele que se humilha é elevado até o altíssimo coração de Deus, e quem se retira na contemplação encontra a Deus em grande medida. Por isso, a palavra de Pedro se aplica às duas coisas: “O homem oculto do coração, com seu ser indestrutível, com o seu espírito tranquilo e moderado, é precioso aos olhos de Deus!” Não é por acaso que Pedro diz: O homem do coração se ocultou na fortaleza indestrutível de sua essência. 49 Porque, pensando bem, esta fortaleza da alma é a humildade. Nela se acha seguro quem vive do espírito, com as portas trancadas para todas as vaidades mundanas, de modo que nem louvor nem glorificação têm entrada. Há gente que diz: o coração do pecador é um vaso com rachadura, que não segura a plenitude de Deus. Mas o coração do puro é um vaso sem defeito, formado pela humildade que é indestrutível e inteiriça. Dele não se perde uma gota, porque ele não anda contando vantagens. Este vaso do coração, corrigido pela humildade, capaz de segurar o que colhe, tem uma propriedade especial: ele pode crescer sem rachar-se, para caber ainda mais graças divinas. É por isso que o titulo diz: A humildade é a condição indispensável para o crescimento espiritual. Alguns acham que humildade é coração estreito, natureza desprezível e pouco enérgica de uma pessoa que não luta por grandes coisas. Outros pensam que humildade é aspecto doentio e espírito pequeno, que se manifestam no porte, no modo de vestir e no comportamento. Alguns identificam humildade com covardia e medo. Outros ainda acham que é prova de humildade o fato de não dispor de nenhuma capacidade ou de esconder os dons. Todas estas opiniões estão erradas e não têm nada a ver com humildade. Para entendermos a majestade da humildade, temos que saber que ela tem uma irmã que é a nobreza da alma. As duas são companheiras que se amam muito, de tal maneira que uma não vai sem a outra. Elas são as duas asas com as quais a noiva, ou melhor, a alma, levanta voo para Deus e vai para a solidão da contemplação. Assim como a pobreza do espírito não se reduz ao desprezo das coisas temporais, mas conquista a riqueza do sobrenatural, do mesmo modo a humildade não pára na recusa de honrarias, mas progride para a sublimidade dos bens espirituais. Levanta teus olhos para reconhecer esta grande virtude da humildade. Olha esta semente de mostarda que deves plantar no jardim de tua consciência. É pequena aos olhos dos homens, corno diz a escritura, mas aos olhos de Deus é maior do que todas as plantas e todos os exercícios espirituais. Anima-te a subir pelos galhos desta árvore, embora seja difícil alcançar o seu topo. Ela é muito alta, e entre todas as criaturas só houve uma que alcançou o topo, aquela que em sua humildade falou: Sou a serva do Senhor. Ela teve a grandeza de espírito de querer dar à luz o filho eterno de Deus na condição humana. São Bernardo assustou-se com isto e exclamou: “Que humildade tão elevada que despreza a honra e não dispensa a glória”. 50 É assim o crescimento da humildade: de um lado, é diminuição e, de outro, se for verdadeira, é uma enorme elevação. Diz Santo Agostinho: Ela cresce na mesma medida em que se rebaixa. Quanto mais ela desce, tanto mais se eleva. Altura e profundidade são iguais, as duas crescem juntas para poderem convencer. O crescimento da tua humildade mostra-se na diminuição do Ego. Progresso em geral é aumento, por isso, não te admires se o teu progresso seja chamado de atraso. Porque humildade é um candeeiro com facho que consome. Quando tiveres alcançado a perfeição, todo orgulho estará queimado. Uma qualidade notável da humildade Se uma pessoa humilde se aperfeiçoa de verdade, sua humildade cresce ao mesmo tempo. Nisto poderás perceber a natureza da verdadeira humildade que aumenta com os dons da graça. Ela não se impressiona com o que recebe, mas leva em conta o que deve dar em troca, o compromisso que surge daí. Por isso, ela não se enaltece, mas se rebaixa, e respira ofegante com o peso dos dons, pensando no que lhe será exigido. Porque grandes dons significam grandes deveres. Longe de se orgulhar, ela se inclina profundamente para a terra (humus), de onde recebeu o nome. Comporta-se como a árvore que, cheia de frutos, deixa os galhos cair. Por outro lado, quando a árvore carrega frutos podres e cheios de bicho, ela não se abaixa tanto, como quando tem frutos de substância sadia, que pesam mais e puxam silenciosamente os galhos para perto do chão. Assim, temos um sinal seguro para diferenciar os dons de Deus daqueles que são ilusão do demônio. Já que as dádivas de nosso Senhor são maravilhosas, plenas de verdade, de grande peso e valor, elas humilham, e a pessoa anda inclinada, mais do que outra que não as recebeu. Mas, quando o demônio simula tais presentes, estes envaidecem o homem. Em vez de abaixá-lo, o enaltecem, para precipitar o coitado lá das alturas e esmagá-lo nas profundezas do inferno. Uma coisa é humilhar, e outra coisa é dar humildade. O desavisado costuma dizer que Deus lhe tirou algo, quando quer humilhá-lo. Seria melhor que dissesse: Ele me tirou algo para me envergonhar e fazer-me pensar, porque eu era orgulhoso e relaxado. Quando Deus quer propiciar humildade para alguém, ele não costuma tirar, e, sim, dar. Ele sabe que os seus dons por si 51 mesmos são tão bons que naturalmente tornam humilde a pessoa dotada, a não ser que esteja enfraquecida por algum vício. É o que acontece com o vinho bom que chega a fermentar num barril perfeito. Mas, se o barril tem defeito, o vinho também se arruína. Humildade provada enfrenta o perigo com calma e tira mel até de um grão de fuligem, como a abelha, da qual se conta o seguinte: Na hora de grandes tempestades que poderiam esmagá-la, a pequena criatura segura uma pedrinha entre os pés e, com ela, voa para baixo. Se o vento aumentar, ela simplesmente se deixa cair, puxada pela pedrinha da humildade, de modo que a alma chega ao chão com segurança: o peso que a faz descer é a consciência de que por si mesma ela não é nada. A comparação da árvore, da qual falei acima, mostra: Quando achamos numa pessoa o dom e a humildade ao mesmo tempo, podemos concluir que este dom provêm do Espírito Santo. Parece que Isabel possuiu este tipo de reconhecimento frente à mãe de Deus. Quando esta veio até ela cheia de benção, Isabel exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre”. Ela quis dizer: Tu és tão bendita que eu não sou digna de que venhas visitar-me e me saúdes com tanta humildade. Deve ser o fruto do teu ventre que age em ti e te conduz a mim em tamanha simplicidade. Disto podemos concluir: basta a menor pretensão de grandeza para mostrar quais são os dons que não provêm de Deus; porque, quando o fruto é leve e sacode dentro da casca, ele não vale nada. Todas as dúvidas sobre nossos sentimentos para com Deus e todos os medos que nos atacam encontram o seu remédio no título deste tratado: Humildade é condição indispensável de todo progresso espiritual. Se em tua vida a humildade crescer junto com a graça recebida, acredita-me que estás progredindo. Aqui, não há perigo de engano, e esta palavra te leva à verdade. Como devemos diminuir, ao crescermos Quando se trata da criação e da manutenção do mundo, Deus gosta de companhia, e permite que a criatura o ajude a dar vida a novos seres. Mas a redenção do mundo, ele a reservou para si mesmo por causa da sua importância singular. Da parte dos homens, para o pecador ser justificado, é preciso somente isto: que ele se humilhe profundamente e renuncie ao pecado. A partir daí, o microcosmo humano será recriado, pela graça, do seu aniquilamento e elevado a um novo ser, assim como antes o 52 macrocosmo foi criado do nada, como sabemos. Esta profunda humildade, esta consciência de aniquilamento, deve abranger até os méritos éticos, fazendo-nos entender que estes por si não adiantam nada. Como diz Beda: “A fé dos homens é perfeita, quando eles, depois de terem cumprido o que lhes foi ordenado, se consideram imperfeitos”. E São Paulo acrescenta: “Os sofrimentos deste mundo, (ou os atos sofridos), não são dignos de ser mencionados”. Portanto, o Espírito Santo faz o que todos os méritos não alcançam. Se nossas boas obras, mesmo feitas sem pecado e nascidas da livre vontade, não podem salvar-nos e no fundo não constituem méritos, fica evidente que um grão de trigo alcança o seu destino com mais facilidade do que o homem. Porque, ao grão de trigo bastam as circunstâncias naturais, para que cresça e produza fruto. Mas a pessoa humana precisa mais do que isto, para que produza frutos dignos da plenitude almejada. Apesar disto, ninguém diga que nosso esforço é em vão. Mesmo que nossas boas obras não sejam suficientes para nos justificar, elas, no entanto, nos preparam para a justificação que Deus previu para a nossa salvação. Assim como pelo sol vem a luz e o calor, do mesmo modo por Deus vem a justificação e a vida eterna. Mas, para receber a luz do sol, a gente tem que abrir os olhos. E, no entanto, só recebemos esta luz, se o sol envia os seus raios. Em abrir os olhos, possibilitamos o recebimento da luz. Assim também nossas boas obras nos tornam hábeis para a justificação. Se a pessoa estiver em pleno sol sem querer abrir os olhos, a culpa é dela, se não enxergar nada. Por isso, também é culpa tua, se não te preparas humildemente com boas obras para receber a justificação pelo sol da justiça, isto é, o Cristo, que conduz os humildes à salvação, ainda mais ligeiro do que o sol envia os seus raios. Quem cresce interiormente em boas qualidades se prepara para Deus, mas esta preparação não serve, se faltar a humildade. Tudo é em vão, se não reconhecermos humildemente que nosso esforço não pode alcançar a salvação. Nossas boas obras não somente são insuficientes para chegar até Deus, mas até lhe desagradam e se tornam ruins, sem a humildade. E isto que Gregório diz: “Mesmo a obra mais importante não nos eleva, mas nos deprime, se ela for realizada com soberba. Quem pratica virtudes sem humildade semeia poeira contra o vento e colhe cegueira”. 53 Sobre a importância de crescer na humildade Se quiseres progredir interiormente, a humildade tem que crescer junto com as outras virtudes. De outro modo, elas se tornam perigosas para ela que ainda é fraca. Portanto, se quiseres progresso espiritual, a humildade é a primeira que deve crescer. Acontece, porém, que a própria humildade é o seu pior inimigo, porque, se a pessoa se considera humilde, já deixa de sê-lo. Sim, não há soberba maior do que quando o homem pensa que é humilde. Desta maneira, ele se coloca no primeiro lugar, enquanto afirma que está no último. Este é um engano muito perigoso. Por isso, diz Bernardo: O verdadeiro humilde prefere ser desprezado a ser elogiado por sua humildade. Portanto, a verdadeira humildade permanece inconsciente. No começo, parece difícil entender que a pessoa se considere inferior quando faz progresso. Mas, quem tem experiência na oração entenderá: É o caso do caminheiro que sobe a um alto e, chegando na altura, avista mais desafios que outros atravessaram antes dele. Assim, reconhece que apenas venceu um pequeno pedaço do caminho, e quanta coisa falta enfrentar, coisa que outros venceram mais ligeiro. Ah, quantos não há que se consideram perfeitos e muito avançados que, se não ficassem parados, iriam descobrir, do outro lado da colina, inúmeras outras para subir. Assim veriam que ainda não passaram de uma jornada e que eles só se consideram mais avançados do que os outros, porque não souberam reconhecer as virtudes deles. Davi nos diz: “É bom para mim, quando sou desprezado” (no caso de Semei que o amaldiçoava, cf. 2 Sm 16,6). Ele dá a entender que a humildade aumenta em nós, sempre que crescemos no conhecimento e no amor a Deus. Podemos dar crédito ao que nos vem como amigo e nos diz a verdade, a saber, que não somos nada. É o que sente o anão frente ao gigante: quanto mais o anão se aproxima do gigante, tanto mais sente a sua pequenez. A escritura confirma que as pessoas intimamente unidas a Deus eram as mais humildes. Davi ensina também: Quem se considera inferior não se interessa pelo que os outros pensam sobre ele num julgamento exterior. Por isso, é uma contradição, se tu mencionas um mérito teu e depois pedes o outro para não falar sobre isto. Dizes assim, não porque desejas o silêncio respeitado, e, sim, porque queres ser humilde aos olhos do outro, sem ser humilde. Assim ficas afirmando sobre ti o que tu mesmo não acreditas. 54 Pode acontecer contigo o que Gerson contou sobre uma monja reclusa: Ela tinha costume de falar coisas desagradáveis sobre si mesma aos visitantes no locutório. Um dia aconteceu que uma menina, sua criada, atendeu uma dama junto à grade, e esta perguntou como era o jeito de sua patroa. A menina respondeu exatamente com as palavras que sempre ouvia a monja dizer: “Ela é uma velha ordinária, dorminhoca e sem qualquer piedade, que não merece o bocado que come”. Ouvindo isto, a velha monja correu e gritou com raiva: “O que estás dizendo? Ó minha Senhora, não acredites na mentira dela, porque sempre madrugo e faço tudo que está no meu poder”. Assim, há muitos que se humilham de aparência e não querem que alguém leve a sério o que eles mesmos afirmam a seu respeito. Nisto se vê que carecem da humildade e também da verdade, porque não querem que alguém confirme o que disseram. E se alguém disser: Falaste bem!, o repelem e mostram assim que faltaram com a sinceridade. Quem é humilde de verdade aceita que lancem no seu rosto o seus defeitos. Ele gosta de ouvir aquilo, mesmo que apontem para ele com o dedo. Porque ele faz questão de conhecer os seus defeitos e pede para que os outros lhe mostrem seus erros para poder corrigi-los. Quem quer viver na humildade olhe em primeiro lugar suas fraquezas e peça ajuda dos outros para que possa reconhecê-las. Ele implore a Deus para abrir os seus olhos para que veja os seus erros e nada mais, como diz Davi: “Meu coração fica ardendo, e meus rins se contorceram dentro de mim. Fui reduzido ao nada e não o sabia. Estou diante de ti qual um animal e sempre estarei contigo”. Com estas palavras, Davi cai de um extremo ao outro, porque, de um lado fala do coração em chamas, o que por Dionísio Areopagita é atribuído aos Serafins, e do outro lado se considera um ser irracional, de modo que se comporta como alguém que de grande altura se precipita para baixo. É assim que age a mais profunda humildade, que arde de amor divino. E é justamente por isso que o humilde não se detém muito com seus tesouros. Ele não perde de vista os seus defeitos e frente a Deus se comporta como o pobre que na porta da Igreja pede esmola, escondendo os seus membros sadios, sabendo que assim o povo tem pena dele mais facilmente. Com grande confiança, o humilde se senta na porta da misericórdia. Ele não ousa entrar com os grandes, porque não se considera digno de ser ouvido. Em vez disto, manifesta a Deus e aos Santos na sua oração todos os seus defeitos, que são as 55 chagas de sua alma, e esconde a bondade, como se não a tivesse, porque exige cada vez mais de si mesmo. É por isso que Salomão diz: “Humilha-te diante de Deus e espera por suas mãos”. O humilde sabe que as mãos auxiliadoras de Deus sempre se estendem ao pobre que se rebaixa. Por isso, não pára de inclinar-se diante de Deus e somente diante dele, sem se importar com os homens, aos quais se sujeita só por amor de Deus, contemplando neles o próprio Deus. Não é assim que agem os soberbos. Como vendedores de legume, colocam em cima o repolho fresco e escondem o que há de podre, isto é, escondem seus defeitos e mostram o que consideram suas qualidades. É por isso que diz o Salmista: “Com sua boca tocam o céu e não põem freio à sua língua”. Pessoas assim não vão receber esmola de Deus, que atenta para o pobre e do orgulhoso desvia seus olhos. Isto se vê na parábola do publicano e do fariseu: Ao que colocou a boca no trombone, exaltando suas boas obras, não lhe foi dado nada. O outro confessou suas faltas e voltou para casa justificado. O fariseu ficou suspenso no alto do seu orgulho, onde se tinha exaltado (cf. o caso do Absalão que ficou suspenso no galho da árvore. Nota do tradutor). Louvor da humildade Ó humildade, altíssima virtude, mãe e multiplicadora do bem. Não há poeta que possa louvar-te. Não há coração bastante generoso que possa amar-te sem falsidade. Tu és amada por Deus e pelos homens. Com tua submissão calada submetes o demônio. Mesmo o teu inimigo, o orgulho, gostaria de ter a tua veste, para disfarçar-se de servidor. Tu dás ao coração grandeza e profundidade, para fazer jorrar com mais abundância a fonte da graça e para acolher em ti a riqueza de Deus cada vez mais intensamente. Só tu estás segura da queda, porque sempre escolhes a parte baixa e, mesmo que fores derrubada, não serás machucada. Tu exaltaste o Cristo, o maior entre os homens, e derrubaste o maior entre os anjos, porque ele não te amava. Aos que lutam tu dás coragem e és como a terra que dá força aos seus filhos, quando nela tocam ao cair no campo de batalha. Tu não te sentes desonrada, quando algo te é negado. Por isso, sempre alcanças o que pedes junto àquele que espera por tua prece. Só tu és incansável, porque nunca te satisfazes com aquilo que conseguiste fazer, antes consideras tudo sem valor. Na casa de Deus colocas tudo pelo avesso, pondo os últimos em primeiro lugar 56 e mandando os primeiros para o fim. Só tu sabes quanto a criatura precisa de Deus e sabes que todo serviço a ele prestado, na verdade, é outra graça que dele recebemos sem o perceber. Tu te sentes feliz em ser devedora do Senhor que nunca te retira o seu favor. Tendo recebido muito, reparas a grandeza daquele que te cumulou com sua graça e o dever que nasce daí. Se não receberes nada, olhas para tua pequenez e te reconheces indigna, dando razão a quem cortou para ti o fio da graça. Em seguida, tentas fazer reparação do teu erro. De muitos que caíram em tentação tu desvias a ira castigadora de Deus, se eles aceitam o bom conselho. A alma que te ama, tu a fortaleces tanto que ela vence o orgulho do mundo, que nos quer privar de todos os bens. E assim a tornas agradável aos olhos de Deus, os quais se voltam para os humildes para fazê-los crescer no progresso espiritual, até que recebam em felicidade quanto possuíam em humildade. 57 6° Capítulo: DE TUDO DEVEMOS TIRAR AMOR Deus Não poderíamos ter a ousadia de crer que Deus se doa por amor de nós, se não tivéssemos a sua santa promessa: “Quem me ama guardará os meus mandamentos; meu Pai o amará, e nós viremos a ele e nele faremos morada”. O Senhor achou que não nos bastaria a promessa de que Ele nos amará. Por isso, acrescenta que virá até nós, unicamente para fazer nossa vontade. O salmista diz que Deus fará a vontade daqueles que o amam com sinceridade e atende os seus pedidos. Para não pensarmos que sua vinda é passageira, diz que irá morar conosco. Porque o amor é de tão grande valor que, por assim dizer, compra a Deus, não somente por uma hora ou por um ano, mas por todo tempo que a Ele concedemos. Mas, se deixamos de amá-lo, tudo volta ao velho estado. Se o Senhor vê que nos arrependemos da compra, Ele junta suas coisas, de modo que perdemos tudo o que já havíamos adquirido no tocante à vida eterna. Se Lhe negamos nosso amor, o Senhor se vai, indo de passos lentos e hesitantes, com a cabeça para trás. Ele quer que tu reconheças o teu dano e entendas que estás perdido. O amor é tão forte que arrasta o homem atrás de si. O seu coração ultrapassa a si mesmo e leva-o para onde está o seu amor. Deus também é arrastado pelo seu amor onipotente. Ele diz: Onde estiver o meu amor, lá estarei eu também. Como Deus é inteiro e indiviso, aquele que ama o Filho também tem o Pai e o Espírito Santo. Ele possui toda a riqueza de Deus, porque não existe nenhum bem que não esteja em Deus. Os cidadãos do céu vivem mais em Deus do que dentro deles. O amor faz com que vivam sempre na sua companhia. Por isso, onde existe o amor, lá encontramos o paraíso completo. Sim, o paraíso é, na verdade, o amor de Deus. Por isso, irmãos, vamos buscar o fundamento no amor e nele lançar raízes. Assim, estaremos enraizados e fundados para sempre no amor de Deus que faz de nós sua morada e seu templo. Enraizados também no amor ao próximo, como árvore frutífera com folhas medicinais e frutos nutrientes. Os que estão enraizados e fundados desta maneira conseguem intuir qual é a largura, o comprimento, a altura e a profundidade do amor. Sua largura alcança até os inimigos, seu 58 comprimento permanece até o fim, sua profundidade não atribui nada a si mesmo, mas tudo ao amor com que Deus nos ama. Ele se parece com um paraíso portátil que sempre levamos conosco. Nele encontramos clarividência, fidelidade, apreço, liberdade, constância e clareza, suavidade, segurança no discernir e força de penetração. As criaturas Ó minha alma, se experimentares como o Senhor é bom, o adorarás, bendizendo e louvando o seu nome e anunciando a sua glória. Ama o teu Senhor em sua criação, em cada uma de suas criaturas e percebe-o, mais com a profundidade do sentimento do que com a mente. Assim, poderás tirar amor de tudo, porque, desta maneira, devolves tudo àquela origem da qual tudo procedeu pelo poder do amor. Não há nada, por menor que seja, que não possa derramar amor em nós. Porque o amor é a origem de todos os dons divinos e está contido em tudo que foi criado. Daí nasce a obrigação de agradecer, não somente pela dádiva a nós confiada, mas também pelo carinho com que ela nos foi dada. Assim, poderás tirar amor de tudo e responder com amor condizente. A meditação das coisas criadas é muito boa para aumentar o amor. Tudo se sustenta pelo amor próprio. Mas o homem, que está num grau mais alto, precisa, para o seu sustento, de um amor mais nobre. Por isso, deve procurar o amor divino que, agora e sempre, sustenta o céu e na terra encontra o seu par, quando consegue tocar em nós. Assim, deves tirar amor de tudo que Deus fizer contigo. Alegria e dor Olhando bem, o amor é o fiel da balança, e a balança é o coração. Se o amor é sincero, este fiel não vai inclinar-se nem para o lado da dor nem para o lado do consolo, mas há de mostrar o mesmo ânimo para todos os lados, aceitando tudo como graça de Deus. Mas, de fato, a experiência mostra: em caso de dúvida, o amor se inclina antes para a aflição do que para as alegrias, porque neste mundo o caminho da dor é mais seguro. Por isso, o amor se manifesta mais claramente no sofrer do que na felicidade. Ele 59 parece com o cavaleiro: É na luta que ele prova o que é, muito mais do que quando corteja as damas. O amor é uma abelha: De qualquer flor tira mel para sua colméia. Por isso, ele se alegra com o bem que há no próximo, aproveita como lição e leva a Deus como oferta. Todos nós somos membros de Cristo, e Ele é também a tua cabeça. Nós ganhamos amor da direita e da esquerda, se entendermos que Deus usa favores e contrariedades como esporas para que corramos mais velozes na pista do seu amor. Reconhece, pois, que usaste mal o passado, para não desperdiçar a vida curta e incerta que te sobra. Então, há amor a esperar-te na frente e por trás. Dos vales e dos montes, das profundezas e das alturas, de tudo saberás tirar amor, se te deixares provar por ele na vida ativa e contemplativa; se te exemplares pela sorte dos pecadores e te espelhares pela vida dos justos. Amante e amado Deus não espera em primeiro lugar a tua entrega, mas que Ele possa entregar-se a ti; porque sem Ele não consegues nada. Amar a Deus não é outra coisa do que acolher a plenitude dos seus dons. O seu amor, que experimentas, nunca chega ao fim, e Ele gostaria de dar-te sempre coisas maiores ainda. Deus fez todas as coisas para poder amar e para que seja amado. Por isso, diz este capítulo que devemos tirar amor de tudo. Devolvemos o amor para à fonte da qual jorrou. Assim, nos tornamos um pouco como os cidadãos do céu que têm o ofício de amar e que na grande comunidade do amor esperam crescer no amor de Deus. Porque, sendo o amor de Deus infinito, eles não conseguem amar na mesma medida em que são amados. Mas o amor tudo espera, e, por isso, eles gostariam de dar tanto amor quanto recebem. Eles são como o imenso litoral do mar, porque jogam as ondas impetuosas do amor com toda força de volta para a fonte de onde procederam. Assim, permanecem por toda eternidade amantes e amados. Bem-aventurado aquele que tem parte do amor de Deus e se une a Ele para amar sempre mais. 60 7° Capítulo: A COROA DA VIDA Seguimento de Cristo Há duas maneiras de seguir o Cristo. A primeira é condicionada pelas circunstâncias exteriores da vida. Mas ela precisa, para se realizar, do consentimento interior e da participação do coração. Cristo veio do céu como guia e lutador, para mostrar o melhor caminho a todos os que querem chegar até lá. Por isso, Davi agradece ao Senhor, dizendo: “Eles viram os rastos dos teus pés, os passos do meu Deus e do meu Rei no seu santuário”. As palavras querem dizer que, se não encontrarmos o céu, não é por não conhecer o caminho, porque os rastos de Cristo são visíveis, de modo que, quem quiser pode segui-los. Davi diz “Deus é Rei”, para expressar que Cristo é Deus e homem. O “seu santuário” significa o santo corpo de Cristo, pelo qual ele nos mostrou o caminho na terra, para que nós, apegados à terra, pudéssemos segui-lo. Mas, se queres seguir o Cristo, precisas saber: De lá para cá caiu neve em cima dos seus rastos. O amor encontra-se hoje tão esfriado que se pode dizer: Caiu neve, e o caminho do céu está debaixo de uma camada de neve. Mas assim mesmo a maldade deste mundo não conseguiu roubá-lo de vez de nossa vista, embora precisemos de ajuda para achá-lo. Já que poucos andam nele, a neve não se derreteu. Por outro lado, o caminho já estava com gelo, quando Cristo nele avançou. Ao ser elevado, afastou o gelo, o que facilitou o seguimento. Onde havia espinhos, ele os tirou. Se o caminho era estreito, ele o alargou. O profeta Zacarias diz: “Deus, o meu Senhor, virá. Naquele dia, não haverá luz; só gelo e frio”. De fato, não havia luz no mundo, quando veio a verdadeira luz, Cristo, a luz do mundo. Assim, iluminou, no seu caminhar, a vereda da salvação. E por isso que diz o Senhor: “Quem me segue não anda nas trevas, mas possui a luz da vida”. Deus quis diminuir para nós a imensidão dos sofrimentos, simbolizados pelo mar da amargura. Ele deixou para os seguidores somente uma gota, em comparação com o que ele mesmo teve que sofrer, quando bebeu o cálice até o fim. Ele mesmo tomou sobre si o que os seus deveriam sofrer. O homem exterior, nosso corpo terrestre, nasce para o cansaço e o labor e deve seguir o Cristo na penitência, na dureza e na pobreza. Mas nossa alma, com sua parte mais elevada, é um 61 pássaro leve que nasceu para voar até Deus. Por isso, não basta que sigas o Cristo corporalmente; também tua alma tem que estender-se para Deus. Esta leveza no andar, este voo espiritual, o homem apegado a terra não consegue levantar. Oração permanente Irmão, se quiseres permanecer sempre na oração e servir a Deus desta maneira, toma este conselho: Orienta tua alma de um modo que ela sinta estímulo a viver todo tempo como na oração. Se fizeres assim, e se o Senhor perceber o teu esforço, ele vem ao teu encontro um pedaço do caminho e te leva adiante. O que começaste em ti ele há de completar por graça. Ele te servirá de coluna de fogo, e esta te guiará, se estiveres disposto a segui-la incondicionalmente aonde ela quiser te levar. Esta orientação da alma é pelo amor. Isto implica também que sejas sereno e alegre. No caminho da contemplação, avança mais quem conserva um coração alegre. Esta é a melhor dádiva para Deus, que ama o doador satisfeito. Mas, para conservar esta alegria, deves ficar longe da tristeza mundana o quanto possível. Se estiveres mais avançado no caminho da contemplação, nada vai te contristar, a não ser ofensa a Deus e a perda de sua graça. Tua alegria será a harmonia com a vontade de Deus, sem a qual não se mexe uma folha na árvore. Sobre a tristeza espiritual Além da tristeza que todos os orantes conhecem, quando rezam sem gosto, ainda há uma outra que só os contemplativos conhecem. Esta é maior do que a primeira, pois assalta a pessoa com um sofrimento profundo e o faz preferir lugares escuros. Quem está nesta tristeza não pode ser consolado por nada. É difícil saber de onde vem. Ela escurece a alma e penetra o coração como um pássaro de asas escuras. Um véu de luto encobre o exterior como o interior, e a pessoa sente-se tão abatida que prefere morrer. O seu interior se enche de tremor e desespero. A vontade é de chorar, e a pessoa não sabe por quê. Alguns que fazem esta experiência percebem, com o olhar interior, que uma espécie de sombra ou fumaça ou neblina se assenta sobre a sua cabeça. Como não sabem o que é, têm medo 62 e tentam ignorá-lo como algo irreal, dizendo que é coisa da fantasia ou ilusão. Esta tristeza imensa, implantada no coração, eu a aprecio mais do que a primeira, dependendo do grau de crescimento espiritual dos que fazem esta experiência. E tu, se tiveres um encontro com ela no decorrer da tua busca contemplativa, faze amizade com ela, que é parte deste caminho. Entrega-lhe o teu coração e acolhe-a de boa vontade e sem condição. Mas eu te aconselho: Não tentes segurá-la nem afastá-la, mas deixa que ela siga o seu caminho. Em recusá-la, tu perdes um grande bem. Mas se a acentuas, está tirando algo do seu próprio valor. Portanto, deixa que ela trabalhe em ti e não atrapalhes a sua obra. É isto que os Provérbios querem dizer: “O coração do sábio permanece com a tristeza”. Não quer dizer que a gente deva procurá-la. Esta tristeza, não podemos nem procurá-la nem achá-la; ela vem sozinha. Não devemos nem aumentá-la nem fugir dela e, sim, perseverar e acompanhá-la interiormente enquanto durar. Mesmo que haja grande diferença entre os dois tipos de tristeza espiritual, a pessoa inexperiente quase não sabe distinguir. A tristeza sobre uma oração estéril e seca é cansativa e cruel. É como a tristeza do garimpeiro que não pega ouro. Mas esta outra tristeza do caminho contemplativo é uma melancolia sem tormento que traz uma certa passividade e que procura a solidão. Ela é também bondosa e conformada. Sobre este tipo de melancolia que eu aprecio mais do que todas as tristezas, nunca li coisa nenhuma a respeito. Mas quero mencioná-la para consolo de todos os que a experimentam, ou melhor, que a recebem, porque Deus a faz descer na alma de tal jeito que suas raízes profundas nos ficam ocultas. Na vida contemplativa, há três tipos de tristeza espiritual. O primeiro tipo é próprio dos iniciantes e é causado por uma ofensa a Deus. O segundo é dos avançados. Ele vem quando falta a experiência de Deus. O terceiro tipo, que há pouco foi explicado, é dos quase perfeitos. Ele é tão oculto que não se sabe de onde vem. Mas eu o considero uma espécie de dom espiritual de Deus que só Ele entende. Envolver a Deus em tudo Podemos envolver a Deus em tudo, por exemplo, quando admiramos o que ele criou. Isto não é empecilho para a 63 contemplação, já que estamos vendo como Deus dá vida a tudo e o mantém vivo. Do mesmo modo, envolves a Deus em tudo, se o deixas participar em tudo o que fazes. Presta honra a ele nas tuas honras, alegra-te com ele nas tuas alegrias. Chama por ele em dificuldades e sofrimentos, porque é para isto que ele fica conosco até o fim do mundo. Tem Deus contigo, não somente como companheiro, a exemplo dos israelitas no deserto, mas volta teus olhos para ele como meta do agir e do desejo, assim como a flecha procura o ponto preto no alvo. Elevando em tudo o teu coração a Deus, tê-loás sempre contigo, como os reis magos tiveram sua estrela, e como os navegantes têm sua bússola. Terás Deus em tudo, se consideras que tudo recebeste de sua mão, exceto o pecado. Teu coração achará repouso tranquilo, se acreditares firmemente que tudo, alegria e dor, só acontece com seu consentimento. Então, podes dizer com Jó: “O Senhor deu, o Senhor tirou. Louvado seja o nome do Senhor”. Tudo o que nos acontece é pelo desígnio de Deus que nos acontece. Ele sabe o que faz, mas nós não o entendemos, porque não conhecemos o fim. Devemos satisfazer-nos em saber que tudo está previsto em sua sabedoria. E que de todos os males que ele permite nos pode advir ganho não imaginado. Por isso, envolve a Deus até com teus contratempos, reconhecendo que ele quer provar o teu amor: será que ele para ti não vale mais do que todas as alegrias e tentações do mundo? Tudo podes vencer com ele que te guarda com o santo zelo do seu amor, para que, por amor a ele, te livres até da menor mancha do pecado. Louvado seja ele para sempre. Da perseverança Ao cansado Cristo concede a força da perseverança. Por esta virtude, devemos suplicar a Ele, que seguiu em sua corrida qual herói incansável. Estão enganados todos aqueles que consideram tempo perdido a oração ou meditação, quando não é uma chuva de sentimentos devotos. A eles quero dizer: o esforço e a luta contra os pensamentos impetuosos e inquietantes alcançam maiores méritos do que possa merecer um recolhimento sem problema. Os que lutam assim na perseverança servem a Deus com custo próprio, com grande cansaço e vencendo a si mesmos. Mas é preciso que dêem tempo, que deixem tudo de lado e fiquem no seu posto, tanto faz se recebem uma experiência espiritual ou não. Sim, 64 é preciso perseverar e não desistir. Quem se aborrecer com isto, acrescente mais meia hora e espere a graça divina na consciência de sua indignidade. Tendo passado assim uma hora, prolongue o exercício por outra hora. Aí pode acontecer que a última meia hora lhe aproveite mais do que todo o tempo anterior. Feliz és tu, se seguires este chamado e permaneceres firme no exercício da contemplação, em vez de levantar-te, andando por aí com ânimo inconstante. Se mudares muitas vezes, serás como a planta que não prospera, porque é replantada de vez em quando. Portanto, não sejas negligente e completa o que começaste. Cuida de correr a tua estrada de um jeito que o teu zelo incansável alcance o prêmio, porque só o perseverante se alegrará de ver a meta do caminho. Persevera no bem, na unção do princípio, como diz São João, então receberás a coroa da vida. Afasta-te de tudo o que atrapalha e zela pela tua oração não menos como zelas pelo teu sono. Assim como afastas todo barulho e toda agitação e te retiras para dormir, do mesmo modo deves deixar as preocupações do mundo, quando queres orar, entregando-te unicamente ao recolhimento espiritual. Se desde o começo exercitares o teu coração na oração contemplativa com toda a perseverança, o exercício te fará muitas vezes entrar em ti mesmo como era o teu desejo. Porque o amor, uma vez aceso, estimula o teu coração e não se aquieta até que se una diretamente a Deus que procura com imenso desejo. A Ele a glória e a honra por todo tempo e pela eternidade. Amém. 65