Subido por Agamenon Porfírio

Crítica Biográfica

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CADERNOS DE
ESTUDOS CULTURAIS
Crítica Biográfica
Cadernos de estudos culturais
Campo Grande, MS
v. 1
n. 4
p. 1 ‐ 204
jul./dez. 2010
Reitora
Célia Maria da Silva Oliveira
Vice‐Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini
CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS
Programa de Pós‐Graduação
Mestrado em Estudos de Linguagens – Literatura Comparada
Câmara Editorial
Edgar Cézar Nolasco – UFMS – Presidente
André Luis Gomes – UnB
Biagio D'Angelo – PUC – São Paulo
Claire Varin – Universidade de Montreal, CA
Claire Williams – University of Oxford, UK
Denilson Lopes Silva – UFRJ
Eneida Leal Cunha – UFBA/PUC ‐ Rio
Eneida Maria de Souza – UFMG
Fernanda Coutinho ‐ UFC
Florencia Garramuño ‐ UBA
Ivete Walty – UFMG
Jaime Ginzburg – USP
Luiz Carlos Santos Simon – UEL
Maria Adélia Menegazzo – UFMS
Maria Antonieta Pereira – UFMG
Maria Zilda Ferreira Cury ‐ UFMG
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos – UFGD
Rachel Esteves Lima – UFBA
Renato Cordeiro Gomes – PUC ‐ Rio
Rosani Ketzer Umbach – UFSM
Sílvia Maria Azevedo – UNESP – Assis
Silviano Santiago – UFF
Vânia Maria Lescano Guerra – UFMS
Vera Lúcia Lenz Vianna – UFSM
Vera Moraes – UFC
Edgar Cézar Nolasco
Editor e Presidente da Comissão Organizadora
Marcos Antônio Bessa‐Oliveira e José Francisco Ferrari
Editores Assistentes
Comissão Organizadora
Edgar Cézar Nolasco, Marcos Antônio Bessa‐Oliveira, Flávio Adriano Nantes Nunes, Marta Francisco Oliveira, Rony Márcio
Cardoso Ferreira, Arnaldo Pinheiro Mont’Alvão Júnior, Daniel Rossi, Quelciane Ferreira Marucci, Giselda Paula Tedesco,
José Francisco Ferrari, Leilane Hardoim Simões, Rafael Cardoso‐Ferreira, Jeferson de Moraes Zigart, Luiza de Oliveira,
Marcia Maria de Brito, Willian Rolão Borges da Silva, Francine Rojas.
Revisão
Edgar Cézar Nolasco, Marcos Antônio Bessa‐Oliveira
Planejamento Gráfico, Diagramação e capa
Marcos Antônio Bessa‐Oliveira
Sobre a imagem da Capa
Fotografia da folha da Mandioca ‐ Manihot esculenta – manipulada digitalmente.
Produção Gráfica e Design
Lennon Godoi e Marcelo Brown
A reprodução parcial ou total desta obra, por qualquer meio, somente será permitida com a autorização por escrito do
autor. (Lei 9.610, de 19.2.1998).
CIP‐BRASIL. CATALOGAÇÃO‐NA‐FONTE
SNEL – Sindicato Nacional de editores de livros
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenação de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS. Brasil)
_________________________________________________________
Cadernos de estudos culturais. – v. 1, n. 4 (2010)‐ . Campo Grande,
MS. Ed. UFMS, 2010‐
v. ;XXcm.
Semestral
ISSN 1984‐7785
1 Literatura. – Periódicos. 2. Literatura Comparada – Periódicos.
|. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
CDD (22) 805
CADERNOS DE
ESTUDOS CULTURAIS
Crítica Biográfica
Esta é uma publicação que faz parte de um Projeto maior
intitulado Culturas locais que, por sua vez, está preso ao
NECC – Núcleo de Estudos Culturais Comparados –
UFMS.
Apoio: PREAE/UFMS
EDITORIAL
Os CADERNOS DE ESTUDOS CULTURAIS obtiveram, com apenas três
volumes e um ano e meio de existência, avaliação e indexação no Portal de
Periódicos da CAPES com “Qualis B1”.
Considerando a avaliação significativa, que redobra os CADERNOS em
importância Institucional (UFMS) e intelectual, agradeço, de modo especial:
À Magª Reitora Profa. Dra. Célia Maria da Silva Oliveira;
Ao Ilmo. Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Prof. Dr. Dercir Pedro de
Oliveira;
Ao Ilmo. Pró-Reitor de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis Prof. Dr.
Milton Augusto Pasquotto Mariani;
A todos os autores que tiveram seus ensaios publicados nos CADERNOS;
Aos Editores-Assistentes que não mediram esforços para a realização e
publicação dos CADERNOS;
À Comissão Organizadora dos CADERNOS, pelo empenho constante;
A todos os membros efetivos do NECC – Núcleo de Estudos Culturais
Comparados, pela seriedade nos trabalhos executados.
Agora com “Qualis B1”, este quarto número dos Cadernos de Estudos
Culturais visa a cumprir, mais do que nunca, os objetivos que fazem parte de seu
projeto editorial, entre os quais destaco os mais significativos: 1) dar continuidade
às discussões realizadas no espaço da disciplina obrigatória Literatura
Comparada: fundamentos, do Programa de Pós-graduação – Mestrado em
Estudos de Linguagens – UFMS; 2) criar um espaço para o debate crítico, tendo
por base os ensaios críticos dos intelectuais convidados para participar dos
CADERNOS; 3) oportunizar aos mestrandos, que desenvolvem projetos sobre a
cultura local, ou cultura latino-americana, que tornem públicas suas pesquisas
acadêmicas; 4) discutir com mais propriedade intelectual a cultura local
fronteiriça do Estado de Mato Grosso do Sul (Brasil, Paraguai, Bolívia); 5)
incentivar o intercâmbio cultural entre os Estado de Mato Grosso do Sul ( Brasil)
e seus dois países lindeiros (Paraguai e Bolívia); repensar em conjunto as
divergências e convergências instauradas em torno da diversidade cultural que
diferencia a cultural local sul-mato-grossense, assim como em um pseudoconceito de cultura que quase sempre o Estado quer fazer prevalecer.
Para melhor atender aos objetivos que originaram a ideia dos CADERNOS,
os mesmos são de natureza temática: o primeiro número levou a rubrica de
Estudos culturais, justificando, inclusive, o próprio título dos CADERNOS. O
segundo denominou-se Literatura comparada hoje, atendendo, por sua vez, a
disciplina do Programa de Pós-Graduação mencionada. O terceiro, Crítica
contemporânea, deu relevância para a perspectiva transdisciplinar que vem
embasando e norteando a proposta política dos próprios CADERNOS. Este
quarto, Crítica biográfica, agrupa ensaios em torno de uma visada crítica ainda
pouco explorada no país. Com a publicação deste volume, os CADERNOS se
consolidam como uma publicação de ponta no Brasil e fora, não apenas por seu
caráter nada endógeno, mas especificamente pelo valor incontestável que os
trabalhos arrolados propõem. É salutar registrar que os CADERNOS saem na
frente, uma vez que este volume é o primeiro periódico brasileiro a dedicar-se,
com afinco, ao gênero crítica biográfica. O leitor deste volume terá a
oportunidade de estabelecer comparações críticas entre os ensaios (seguidos de
uma Resenha crítica) que, ao final, lhe proporão maior lucidez sobre a reflexão
crítica que embasa o pensamento deste século que se inicia. Por fim, e o mais
importante, agradeço a todos os amigos, professores, críticos, orientandos,
intelectuais e neccenses que contribuiram para que o Projeto dos Cadernos se
tornasse possível.
Edgar Cézar Nolasco
SUMÁRIO
COM A PALAVRA, O AUTOR – exercícios de crítica biográfica na
contemporaneidade
Ana Cláudia Viegas ..................................................................................... 9 ‐ 26
ESCRITA, TRADUÇÃO e Psicanálise
Betty Bernardo Fuks ................................................................................. 27 ‐ 38
POLÍTICAS DA CRÍTICA biográfica
Edgar Cézar Nolasco ................................................................................. 39 ‐ 58
CRÍTICA BIOGRÁFICA, ainda
Eneida Maria de Souza ............................................................................. 59 ‐ 66
MATÉRIAS‐PRIMAS: entre autobiografia e autoficção
Evando Nascimento.................................................................................. 67 ‐ 86
ANIMAIS BIOGRÁFICOS EM Poliedro, de Murilo Mendes
Lyslei Nascimento & Filipe Amaral Rocha de Menezes ............................87 ‐ 106
MÍTICO LORCA: el poeta como simulacro
María Ángeles Grande Rosales .............................................................. 107 ‐ 140
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 7‐8, jul./dez. 2010.
A MEMÓRIA EM DERRIDA: uma questão de arquivo e de sobre‐vida
Maria José R. F. Coracini ........................................................................ 141 ‐ 154
O DIÁRIO DO CORAÇÃO DESNUDADO: migração de um projeto de
Poe a Baudelaire
Myriam Ávila ......................................................................................... 155 ‐ 166
GRAFIAS NA PEDRA: traços de João Cabral
Roniere Menezes................................................................................... 167 ‐ 184
RETRATOS EM MOVIMENTO NA OBRA contínua de Herberto Helder
Sabrina Sedlmayer ................................................................................ 185 ‐ 192
ESPAÇOS DAS SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS: o novo
território das biografias – Resenha do livro O espaço biográfico, de
Leonor Arfuch
Marta Francisco Oliveira ................................ Erro! Indicador não definido. ‐ 202
SOBRE A PRÓXIMA EDIÇÃO
Editor, Editores Assistentes & Comissão Organizadora .................................. 203
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 7‐8, jul./dez. 2010.
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COM A PALAVRA, O AUTOR – exercícios de crítica biográfica na
contemporaneidade
Ana Cláudia Viegas1
Uma releitura de dois textos clássicos sobre a figura do autor – O que é um
autor, de Michel Foucault (1992), e “A morte do autor”, de Roland Barthes
(1988) – nos leva a identificar a noção de autor como “o momento forte da
individualização” (FOUCAULT, 1992, p. 33) na história das ideias, dos
conhecimentos, das literaturas, da filosofia e das ciências, e a relacionar a “função
autor” à emergência do indivíduo moderno. Apesar de a crítica literária moderna
já ter posto em questão o caráter absoluto e o papel fundador do sujeito, quando
passou a privilegiar a análise interna da obra em detrimento das referências
biográficas ou psicológicas do autor, Foucault propõe uma retomada dessa
questão, não no sentido de restaurar um sujeito originário, mas para analisá-lo
como “uma função variável e complexa do discurso”. Supõe que não seja
indispensável a permanência da função autor, imaginando uma cultura em que os
discursos circulassem e fossem recebidos sem ela, “no anonimato do murmúrio”.
Na contramão desse desejo foucaultiano, a figura do autor nunca deixou de rondar
a noção de obra. Pelo menos no campo literário, permanece em nós, leitores, a
vontade de encontrar do outro lado da página um ser que nos abrace; o que
mantém o fetiche em torno de exposições de objetos pertencentes aos escritores
(livros, máquina de escrever, fotos, documentos pessoais, entre outros) ou da
oportunidade de ter a presença do autor seja em programas de televisão seja ao
vivo, nas tão badaladas “mesas de escritores”. O próprio Barthes, ao mesmo
tempo em que assinala a “morte do autor”, reconhece sua permanência “nos
1
Ana Cláudia Viegas e professora da UERJ.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
manuais de história literária, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos
periódicos, e na própria consciência dos literatos, ciosos por juntar, graças ao seu
diário íntimo, a pessoa e a obra” (BARTHES, 1988, p. 66). Assistimos hoje a um
“retorno do autor”, não como origem e explicação última da obra, mas como
personagem do espaço público midiático.
Sabemos que um dos motores da formação do indivíduo moderno foram as
diversas manifestações da “escrita de si”, de modo que o questionamento daquele
também coloca em questão as formas canônicas do relato autobiográfico. Surgem
hoje, no horizonte midiático da cultura contemporânea, expressões concorrentes
dos gêneros biográficos consagrados. Para além de biografias, autobiografias,
memórias, diários íntimos, correspondências, temos entrevistas, perfis, retratos,
testemunhos, histórias de vida, relatos de auto-ajuda, talk-shows, reality-shows,
blogs – fazendo do relato de experiências pessoais e da exposição pública da
intimidade, um fenômeno característico de nosso tempo. Com o objetivo de ler a
articulação dessas ocorrências num “clima de época”, Leonor Arfuch (2010)
formula o termo “espaço biográfico”, não como uma enumeração de tipos de
relatos, mas como confluência de múltiplas formas, gêneros e horizontes de
expectativa. Mais do que uma especificação particular de cada gênero, importaria
a interatividade entre eles, tanto quanto à circulação de modelos de vida como a
aspectos formais dos discursos.
A partir da constatação de que a relevância do biográfico-vivencial nos
gêneros discursivos contemporâneos se estende para além do universo da cultura
de massa, numa trama de interações, hibridações, contaminações de lógicas
midiáticas, literárias e acadêmicas, Arfuch se propõe a investigar como se
articulam os gêneros autobiográficos “canônicos” com a proliferação de fórmulas
de autenticidade, a obsessão do “vivido”, o mito do “personagem real”. A
visibilidade do privado, o voyeurismo, sendo um dos registros prioritários na cena
contemporânea, tem levado a considerações críticas acerca da expansão do
particular sobre o público. A autora argentina apresenta um outro enfoque da
questão, que não considera esses espaços como dissociados, mas numa
permanente dinâmica de interação. O biográfico se definiria, assim, justamente
como um espaço intermediário, de mediação ou indecidibilidade entre o público e
o privado.
A noção de “espaço biográfico” nos inspira a ler a formação do sujeito-autor
transversalmente nos diferentes “momentos biográficos” dispersos nas entrevistas,
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
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nos depoimentos, nos blogs, nas autoficções. Nestas, a presença de uma primeira
pessoa autobiográfica num texto que se apresenta como ficcional problematiza a
autobiografia canônica e suas distinções em relação à ficção, perturbando a
clássica separação entre autor, narrador e escritor empírico. A criação de
narrativas que sustentam a ambiguidade entre o espaço da ficção e as referências
extratextuais, aproximando-se do conceito de autoficção, é uma das marcas do
narrador em 1ª pessoa da atualidade. Essas “ficções de si” constituem-se como
narrativas híbridas, ambivalentes, tendo “como referente o autor, mas não como
pessoa biográfica, e sim o autor como personagem construído discursivamente”.
Na autocriação configurada nos blogs, crônicas, contos e romances
contemporâneos o escritor se exibe como personagem, “ao mesmo tempo
indagando sobre a subjetividade e posicionando-se de forma crítica perante os
seus modos de representação” (KLINGER, 2007, p. 62). Na perspectiva aqui
adotada, mais do que tentar distinguir as especificidades de cada uma dessas
categorias, importa pensar sua articulação tanto nesse gênero quanto em seu
diálogo com as demais atuações “daquele que escreve”.
O Autor, como já afirmara Barthes, volta ao seu texto, mas “a título de
convidado”, inscrevendo-se nele “como uma das personagens, desenhada no
tapete”. No Texto, “sem a inscrição do Pai”, a vida do autor “não é mais a origem
das suas fábulas, mas uma fábula concorrente com a obra” (1988, p. 76). No
contexto da cultura midiática, entretanto, as performances do escritor não se
limitam ao ato de escrever, de modo que, ao lermos um texto, não temos apenas o
nome do autor como referência, mas sua voz, seu corpo, sua imagem veiculada
nos jornais, na televisão, na internet. A obsessão contemporânea pela presença
nos afasta da concepção barthesiana desse autor como um “ser de papel”.
Alguns anos depois das reflexões de Walter Benjamin a respeito da perda da
autenticidade e da incomunicabilidade da experiência, os contemporâneos
parecem afirmar a possibilidade de se narrarem experiências. Mais que a
possibilidade, uma certa necessidade e urgência. Em contraposição ao ideal de
objetividade buscado pelo realismo oitocentista, os novos realistas se propõem “a
reconstituir a textura da vida e a verdade abrigadas na rememoração da
experiência”, constituindo uma tendência, tanto acadêmica quanto do mercado de
bens culturais, de revalorização da primeira pessoa como ponto de vista. Impõese, nas palavras de Beatriz Sarlo, uma “guinada subjetiva”, “em que a identidade
dos sujeitos voltou a tomar o lugar ocupado, nos anos 1960, pelas estruturas”,
restaurando-se a “razão do sujeito” (SARLO, 2007, p. 18-19).
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A leitura crítica da correspondência entre escritores, de seus diários,
entrevistas, manuscritos, anotações pessoais, alargando-se o conceito de “obra”, se
liga intrinsecamente à “guinada subjetiva” no campo dos estudos literários. A
consideração desses textos como objeto de estudo desconstrói princípios
valorizados por algumas correntes da teoria da literatura do século XX, pautados
na “morte do autor” e na análise imanente da obra. A nova crítica biográfica, sem
retornar ao biografismo oitocentista, “ao escolher tanto a produção ficcional
quanto a documental do autor – correspondência, depoimentos, ensaios, crítica –
desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe
de relações culturais” (SOUZA, 2002, p. 111). O autor retorna ao campo dos
estudos literários não como origem e explicação última da obra, mas como “ator
no cenário discursivo”: “A figura do escritor substitui a do autor, a partir do
momento que ele assume uma identidade mitológica, fantasmática e midiática.”
(SOUZA, 2002, p. 116).
Se a volta da problemática do sujeito nas artes, na crítica, na filosofia, na
antropologia pode ser pensada como uma crítica ao recalque modernista do sujeito
da escrita, a tendência à revalorização da experiência pessoal e das estratégias
autobiográficas não significa uma volta substancialista de um sujeito pleno. Nas
práticas contemporâneas de uma “escrita de si”, a primeira pessoa se inscreve de
maneira paradoxal num quadro de questionamento da identidade, em que o eu
perde sua coerência biográfica e psicológica, e a relação entre as noções de real e
ficcional são problematizadas.
Dentro dessa perspectiva, nos propomos a delinear a formação de três
diferentes figuras autorais no cenário da produção literária brasileira
contemporânea: Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato e Milton Hatoum.
Considerando que as construções da figura autoral na atualidade podem ser
pensadas numa trama interdiscursiva tecida pelas diversas performances do
escritor, que não se limitam ao ato de escrever, mas se estendem a suas
intervenções na mídia, nos eventos literários, num reenvio entre anúncios, notas,
entrevistas e resenhas, nosso corpus inclui tanto obras publicadas por esses
autores como “momentos biográficos” dispersos em entrevistas, depoimentos,
sites e blogs.
Leonor Arfuch destaca a entrevista como um gênero predominante na
comunicação mediatizada. Cena ideal da narração diante de um outro – que se
desdobra no entrevistador e no público –, a dinâmica da entrevista expressa
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
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eloquentemente a concepção contemporânea das identidades como posições de
sujeito, relações contingentes e transitórias, não suscetíveis de representar uma
totalidade essencial nem de fixar-se em uma suma de atributos pré-definidos e
diferenciais. A entrevista desfaz a pretensão de toda inscrição autobiográfica de
deixar uma marca única. A possível “unicidade” ou singularidade do personagem
que fala torna-se, pela voz do outro, propriedade comum, experiência comparável,
ilustração do já conhecido. O momento autobiográfico da entrevista se
transformará de imediato num elemento a mais da cadeia da interdiscursividade
social.
Esse gênero dialógico por excelência condensaria e dramatizaria os tons de
nossa época: a compulsão de realidade, a autenticidade, a presença, apresentando,
auraticamente, a narração da vida (que não representa algo pré-existente, mas
configura a própria vida) fazendo-se, em tempo real, sob nossos olhos. Encenando
a oralidade na era midiática, a entrevista gera um efeito de espontaneidade,
autenticidade e proximidade. Arfuch destaca em seu corpus de análise as
entrevistas de escritores, consideradas duplamente emblemáticas pelo mito da
“vida e obra” e por tratar-se de sujeitos que também criam relatos diversamente
autobiográficos.
Selecionamos em entrevistas dos três autores em questão, intervenções a
respeito das relações entre literatura e “realidade brasileira”, tema sempre presente
em nossa crítica literária, certamente pelo lugar central que a literatura ocupou nos
projetos de construção da identidade nacional nos séculos XIX e XX, e que volta
hoje como parte das discussões a respeito do “retorno do real” que caracterizaria
boa parte da produção cultural da atualidade. A expressão, cunhada por Hal
Foster, refere-se a uma demanda de referencialidade não só nas manifestações
artísticas, mas na cultura contemporânea em geral. Depois de um cenário de
“desaparição do real” em meio à profusão de imagens e simulacros produzidos
pelos meios de comunicação, assistiríamos a um “novo realismo”, que se
diferenciaria da tradição do realismo histórico do século XIX porque, no lugar de
uma proposta mimética, “visa a realizar o aspecto performático e transformador
da linguagem literária e da expressão artística” (SCHOLLHAMMER, 2004, p.
226).
Dos três autores mencionados, o mais identificado com a estética do “novo
realismo” é Ruffato, constantemente citado para caracterizar o “realismo afetivo”,
isto é, esse “outro tipo de realismo cuja realidade não está na verossimilhança da
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descrição representativa, mas no efeito estético da leitura, que visa a envolver o
leitor afetivamente na realidade da narrativa” (SCHOLLHAMMER, 2004, p.
224). Situado entre os escritores comprometidos simultaneamente com os temas
da realidade social brasileira e a inovação formal e técnica, no texto fragmentado,
híbrido, não-linear de Ruffato, “a vontade da literatura de procurar novas formas
de experiência estética se une à preocupação do compromisso de testemunhar e
denunciar os aspectos inumanos da realidade brasileira contemporânea”
(SCHOLLHAMMER, 2004, p. 219).
Seu premiado livro Eles eram muitos cavalos compõe-se de “setenta flashes,
takes, zoons avançando sobre a sufocante pauliceia”, como afirma Fanny
Abramovich, na apresentação. Numa espécie de zapping urbano, os setenta
fragmentos, numerados e intitulados, não apresentam nenhuma espécie de
continuidade: não há resquício de um enredo como fio condutor, apenas a
“montagem efervescente” de closes que se entrecortam e se justapõem. Trata-se
de um mosaico de diversos tipos de textos − um cabeçalho, previsões
meteorológicas, anúncios classificados, orações, cartas, cardápios, conselhos
astrológicos, simpatias, lista de livros, recados de secretária eletrônica, duas
páginas com um retângulo preto − dispostos com diferentes diagramações,
formatos de letras, sinais tipográficos.
Os ecos modernistas nos levam aos fragmentos também numerados e
intitulados de Memórias sentimentais de João Miramar, nos quais igualmente se
misturam vários gêneros textuais e se ressalta a materialidade gráfica. Parece, no
entanto, que os cortes cinematográficos e a escrita telegráfica de Oswald de
Andrade se aceleraram ainda mais, desfazendo-se até mesmo a tênue trajetória da
personagem que perpassa aquelas memórias descontínuas. A montagem
cinematográfica cede lugar ao zapping, imagens que surgem e desaparecem como
se pelo comando de um controle remoto. Neste caso, entretanto, diferentemente da
linguagem televisiva, nem as imagens têm baixo teor semântico, nem os cortes
são aleatórios. A página, ao assimilar um traço característico da estética televisiva,
o suplementa: alternando o deboche, a ternura, a violência, a ingenuidade, a
esperança, a decepção, expõe feridas, tensões, causando impacto no leitor. Se o
ritmo alucinante da cidade contemporânea, expresso num texto em permanente
movimento, leva a uma “atenção distraída”, esta, ao focalizar-se
instantaneamente, o faz de maneira muito mais intensa.
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Embora Ruffato afirme em entrevistas que tenta caminhar na seara da
literatura realista, estabelecendo uma reflexão sobre o real a partir do real, não se
trata de um realismo ingênuo em busca da representação fiel da realidade ou da
objetividade narrativa. Tanto quanto com a vertente realista, o autor mostra-se
engajado com as questões formais:
O instrumento romance, com começo-meio-fim, não faz sentido diante da quantidade de
informações de hoje, ficou obsoleto. Minha opção pelo fragmentário foi uma
provocação mesmo. [...] Quero colocar em xeque essas estruturas. Não quero fazer uma
reflexão só sobre a realidade política, mas também questionar por meio do conteúdo a
forma. (RUFFATO, 19 mar. 2005).
Em encontro com alunos e professores da Uerj em 2005, afirmou ter se
inspirado, para o formato de Eles eram muitos cavalos, numa instalação exposta
numa Bienal de Artes em São Paulo, feita de diferentes calçados recolhidos na
cidade, de modo que esse livro pode ser considerado uma espécie de “instalação
literária”.
A partir de 2005, Ruffato publicou quatro livros – Mamma, son tanto felice
(2005a), O mundo inimigo (2005b), Vista parcial da noite (2006) e O livro das
impossibilidades (2008) – que fazem parte de uma série de cinco volumes com o
título de Inferno provisório. Através de textos fragmentados, passíveis de serem
lidos separadamente, mas, ao mesmo tempo, complementares, esses romances
narram a desestruturação da vida rural frente à modernização, e a formação das
metrópoles paulista e carioca a partir da migração. O primeiro volume é
ambientado em Rodeiro, na década de 1950; o segundo, em Cataguases, nos anos
1960 e 70; o terceiro, também em Cataguases, nas décadas de 1970 e 80; o quarto,
em Cataguases, Rio de Janeiro e São Paulo, nos anos 80 e 90; e o último, ainda
inédito, em São Paulo, no início do século XXI. Nota-se, portanto, que o espaço e
o tempo das narrativas acompanham o processo de migração dessa região de
Minas Gerais em direção aos grandes centros urbanos do Sudeste. Os personagens
dos primeiros livros, pequenos agricultores, imigrantes italianos pobres da Zona
da Mata mineira e da cidade de Cataguases, sofrem as consequências sociais e
emocionais do processo de industrialização ocorrido no Brasil a partir dos anos
1950. As histórias de um e de outro volume retomam e entrelaçam personagens e
situações, fazendo da leitura e da construção de sentido um efeito da interseção de
planos. Passado e presente se misturam em fragmentos de memória, encaixando
peças de um “quase-romance desestruturado” (NINA, 2005). Mudanças
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
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tipográficas chamam a atenção do leitor para os diferentes tempos e vozes
presentes nos textos.
Enquanto em Mamma, son tanto felice, predominam o imaginário rural e
uma linguagem próxima à oralidade, a partir do segundo volume, no qual alguns
personagens começam a migrar para as cidades grandes, o ritmo da narrativa se
acelera, avançando em direção à linguagem de Eles eram muitos cavalos, e
acompanhando o aumento da velocidade e da intensidade de estímulos,
característico da formação das metrópoles. Exemplo de uma referencialidade que
se expressa por efeitos sensoriais, o cotidiano de São Paulo, paisagem do romance
de 2001 e destino dos personagens da série Inferno provisório, se expressa na
própria materialidade do texto. A comparação entre os primeiros volumes da série
e o premiado romance também nos leva a perceber que os personagens, que
naqueles têm nome e sobrenome, vão se tornando anônimos, de acordo com o
processo de desenraizamento que acompanha a migração em direção às
metrópoles. Conforme nos lembrou Ruffato, no citado encontro na Uerj, a mulher
do interior que escreve a carta ao filho morador de São Paulo, no fragmento 50 de
Eles eram muitos cavalos, poderia ser uma personagem do primeiro ou segundo
volume do Inferno provisório. Podemos observar, assim, que não só os volumes
da série se relacionam entre si, mas também esses com a narrativa do dia 9 de
maio de 2000, em São Paulo.
O próprio Ruffato se considera um “re-escritor” e seu texto, sempre
“provisório”. Reafirma esse traço nas notas ao fim dos volumes Mamma, son
tanto felice e O mundo inimigo, nas quais adverte que alguma passagem desses
livros pode ser reconhecida, já que aí se encontram, “reembaralhadas”, histórias
narradas nas primeiras obras publicadas pelo autor, Histórias de remorsos e
rancores (1998) e (os sobreviventes) (2000). De acordo com entrevista concedida
em 2001, seu objetivo nesses dois primeiros romances era “traçar um painel da
vida proletária sob a ditadura militar, [através de] histórias que se passassem nas
décadas de 60 e 70, em Cataguases”, projeto ao qual retorna depois da publicação
de Eles eram muitos cavalos.
Embora não seja o caso de classificar o autor como um regionalista, seu
projeto literário é bem delimitado geograficamente:
Não acho piegas, embora seja hoje démodé, assumir como projeto contar a história de
um povo. Acho, no entanto, muita pretensão... Na verdade, me daria por satisfeito se
conseguisse demarcar meu pequeno território: a história de algumas pessoas nascidas no
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século XX entre Rodeiro e Cataguases e que migraram para São Paulo e Rio de Janeiro.
(RUFFATO, 2005c).
O interesse pela cidade natal e pelas migrações se mantém em seu último
romance, Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), escrito “sob encomenda”
dentro do projeto “Amores Expressos”, que enviou dezesseis escritores brasileiros
a diferentes cidades do mundo por um mês, para escreverem uma história de
amor: “escrever sobre Lisboa, para mim, é escrever sobre um personagem de
Cataguases em Lisboa. [...] Então, a minha Lisboa não é a Lisboa de cartão-postal,
com certeza.” (RUFFAFO, jan. 2009). Em contraste irônico com o título, que
alude aos souvenirs comprados por turistas, o romance narra as experiências de
um imigrante pobre que sai de Cataguases para tentar enriquecer trabalhando na
capital portuguesa: “interrogou o que então me trazia à Europa, e delatei o
desemprego em Cataguases [...] e meu pensamento de trabalhar firme por um
tempo, ganhar bastante dinheiro e voltar pro Brasil, comprar uns imóveis, viver de
renda, e, esperançoso, quem sabe [...].” (RUFFATO, 2009, p. 40).
Por identificar na formação da sociedade brasileira “um histórico de exílios”
(“Exilados os primeiros portugueses pobres [...], os negros arrancados à força da
África, os imigrantes europeus de fins do século XIX, deslocamentos absurdos de
nordestinos e mineiros [...]”. [RUFFATO, 2005d].), Ruffato incorpora nesse
último romance a imigração característica da atualidade: das periferias para o
centro. Mantém, dessa forma, seu propósito de “fazer uma literatura
profundamente engajada na história do Brasil” (RUFFATO, 2005d), confundindo
com a História as histórias pessoais. Inclusive a sua, ele mesmo um migrante, e
neto de imigrantes portugueses e italianos. Na verdade, “exílio e errância são
tomados na obra de Ruffato como a própria condição de existência de uma vasta
gama de brasileiros” (DEALTRY, 2009).
Definindo-se como um “escritor monotemático”, cujo “tema é imigração,
desterritorialização, perda da identidade em função do deslocamento espacial”
(RUFFATO, 4 set. 2009), Ruffato reafirma as relações entre todos os seus livros:
O Serginho, personagem de Estive em Lisoba e lembrei de você, viveu a vida inteira em
Cataguases e provavelmente manteve contato, mesmo que de passagem, com os
personagens do Inferno provisório. É possível que a história de Serginho seja conhecida
e comentada pelos personagens do Inferno provisório. Portanto, o meu universo
ficcional foi totalmente preservado. (RUFFATO, 4 set. 2009).
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
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Assim como os romances da série Inferno provisório incorporam a
linguagem da população rural de origem italiana, também em Estive em Lisboa,
que mantém traços de oralidade como cabe a um “depoimento”, o falar lusitano e
o das ex-colônias africanas adentram sua escrita; o que talvez indique que, menos
do que um interesse em registrar falares locais, como se poderia esperar numa
estética regionalista, a apropriação de termos e da sintaxe de cada região reitera a
relação intrínseca entre forma e conteúdo presente no projeto estético de Ruffato.
Como eco modernista, podemos ler, na referência final à tabacaria, o
diálogo com Fernando Pessoa, poeta da Lisboa do início do século XX, de quem
Ruffato organizou a antologia Quando fui outro (2006). O sonho e a desesperança
convivem no famoso poema de 1928: “Não sou nada. / Nunca serei nada. / Não
posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
(PESSOA, 1980, p. 256), assim como no narrador Sérgio: “o desalento imigrante
de quem sabe que de nada serve essa vida se a gente não pode nem mesmo aspirar
ser enterrado no lugar próprio onde nasceu” (RUFFATO, 2009, p. 73). A divisão
do livro em duas partes, “Como parei de fumar” e “Como voltei a fumar”,
reafirma a casualidade e a falta de sentido da existência. Também o poeta
continua a fumar: “Depois deito-me para trás na cadeira / E continuo fumando. /
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.” (PESSOA, 1980, p.
260).
Menos ousada formalmente que os livros anteriores, a narrativa joga com o
interesse atual pelos testemunhos, atribuindo a história a um depoimento de seu
narrador, conforme nota no início do livro, assinada por L. R.:
O que se segue é o depoimento, minimamente editado, de Sérgio de Souza Sampaio,
nascido em Cataguases (MG) em 7 de agosto de 1969, gravado em quatro sessões, nas
tardes de sábado dos dias 9, 16, 23 e 30 de julho de 2005, nas dependências do Solar
dos Galegos, localizado no alto das escadinhas da Calçada do Duque, zona histórica de
Lisboa. A Paulo Nogueira, que me apresentou a Serginho em Portugal, e a Gilmar
Santana, que o conheceu no Brasil, oferto este livro. (RUFFATO, 2009, p. 13).
As detalhadas localizações de tempo e espaço funcionam como falsas pistas
da veracidade da história narrada. Embora cite, como em suas outras obras, nomes
de ruas e de lugares, e os descreva com “precisão de naturalista, nada disso existe
de verdade, porque são evocações dos personagens e eles evocam a memória, ou a
sensação do lugar, não o lugar” (RUFFATO, 2005c). Também é pelo viés da
memória que Milton Hatoum alinhava histórias pessoais, familiares, da cidade de
Manaus e do Brasil.
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Memória e imaginação são a matéria da novela Órfãos do Eldorado (2008).
Logo nas primeiras páginas, Arminto Cordovil, seu narrador e protagonista,
afirma: “Quando olho o Amazonas, a memória dispara, uma voz sai da minha
boca, e só paro de falar na hora que a ave graúda canta.” (HATOUM, 2008, p.
14). Narrador oral, próximo, portanto, do narrador tradicional privilegiado por
Benjamin, cuja sabedoria se expressa na capacidade de dar conselhos, “tecidos na
substância viva da existência” (BENJAMIN, s/d [1936], p. 200). O narrador
benjaminiano alimenta a tradição oral, retirando da experiência o que ele conta e
incorporando as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O narrador oral
criado nas páginas escritas por Hatoum não quer dar continuidade ao império
construído por seu pai, ignorando a empresa herdada. Assim como o típico
narrador de romance, é um indivíduo isolado: “A morte de Florita rompeu os
laços com o passado. Eu, sozinho, era o passado e o presente dos Cordovil. E não
queria futuro para homens da minha laia. Tudo vai acabar neste corpo de velho.”
(HATOUM, 2008, p. 94). Sua história individual, entretanto, está tecida tanto na
memória coletiva das tradições orais, como na história social e econômica da
região em que vive. Apogeu e declínio do ciclo da borracha permeiam sua história
de amor, assim como as lendas ouvidas dos índios e traduzidas por Florita.
Tradição oral e escrita se enredam na construção dessa novela, que usa
como fonte lendas amazônicas, histórias indígenas. Nesse ato de incorporar lendas
e tradições, remete a Mário de Andrade, autor do romance-rapsódia Macunaíma.
As frases e os casos do “herói de nossa gente” são preservados do esquecimento
pelo papagaio que, depois de ouvi-los do próprio Macunaíma e repeti-los na fala
da tribo, os conta ao narrador-autor, apresentado ao leitor no epílogo do livro:
“Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou
eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história.” (ANDRADE, 1980, p.
135). Também numa tapera, o narrador Arminto conta sua história para um
homem que entra para descansar na sombra do jatobá, pede água e tem paciência
para ouvir um velho. Histórias mais violentas e trágicas que a do herói
Macunaíma, narradas na solidão e no silêncio de um ambiente decadente, cujo
morador também “olhava o brilho inútil das estrelas” (HATOUM, 2008, p. 95).
Diferente do autor de Macunaíma, Hatoum escolhe o foco narrativo em 1ª pessoa,
encenando a oralidade do narrador.
No posfácio, um outro narrador (o autor?) nos conta sobre uma visita a seu
avô num domingo de 1965 em que ele lhe contou uma história ouvida em 1958,
numa de suas viagens ao interior do Amazonas. Era uma história de amor, que
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evocava o mito amazônico da Cidade Encantada, do qual o mito do Eldorado
relatado por conquistadores e viajantes europeus sobre a Amazônia pode ser
considerado uma variante. Impressionado pela história ouvida, anos depois, numa
viagem pelo Médio Amazonas, ele procura o narrador que a contara a seu avô.
Este se recusa a lhe contar novamente a história: “Já contei uma vez, para um
regatão que passou por aqui e teve a gentileza de me ouvir. Agora minha memória
anda apagada, sem força...” (HATOUM, 2008, p. 106). De fragmentos das lendas
se compõe a novela que lemos, “traduzindo” em palavra escrita e história mais
uma versão do mito do Eldorado. “Quando alguém morre ou desaparece, a palavra
escrita é o único alento.” – afirma Estiliano, advogado e amigo de Amando
Cordovil, pai de Arminto. A exploração ficcional do Norte brasileiro empreendida
por Hatoum em seus vários romances e nos contos de A cidade ilhada (2009) vai
recolhendo os estilhaços das tradições locais, misturados às transformações
sociais, econômicas e culturais trazidas pela história. Às possíveis histórias
ouvidas de seu avô se mistura a tradição literária, aprendida no ofício de professor
de literatura.
As relações entre tradição/modernidade, identidade/memória são traços
comuns a várias obras de Hatoum, assim como um narrador que conta a partir de
alguns fatos testemunhados e outros que ouviu contar, numa comunhão de
discursos próprios e alheios. Como exemplo, Nael, o narrador de Dois irmãos:
“Isso Domingas me contou. Mas muita coisa do que aconteceu eu mesmo vi,
porque enxerguei de fora aquele pequeno mundo. Sim, de fora e às vezes distante.
Mas fui o observador desse jogo e presenciei muitas cartadas, até o lance final.”
(HATOUM, 2000, p. 29).
Mesmo que tenha afirmado, em entrevista na época do lançamento da
novela de 2008, estar “falando do Brasil” (HATOUM, 29 fev. 2008), sua
reinterpretação do histórico pela ficção, com o entrecruzamento de vários planos
da memória (individual/familiar/histórica; oral/escrita), da imaginação e do
esquecimento, o afasta de um projeto de mimesis da realidade, dando preferência
às “versões fantasiadas pelo tempo e suas vozes” (HATOUM, 2000, p. 152).
Dos três autores aqui comentados, o mais avesso a ser identificado com uma
estética realista parece ser Bernardo Carvalho, que afirma sua posição contrária à
“literatura que serve de ilustração de uma teoria sociológica do Brasil”
(CARVALHO, 4 jul. 2009). Embora seus livros façam referências a fatos e
pessoas reais, faz questão de afirmar que “em última instância, é tudo ficção”
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(CARVALHO, 23 set. 2002). No romance Nove noites (2002), a narrativa se
constrói a partir da tentativa de decifração do suicídio do antropólogo americano
Buell Quain, em agosto de 1939, durante uma pesquisa de campo entre os índios
krahôs, no Brasil. Este personagem do mundo real é trazido para o mundo da
ficção a partir da curiosidade de um dos narradores, que, ao tomar conhecimento
de sua estranha morte, casualmente, através de um artigo de jornal, decide
vasculhar cartas, depoimentos, jornais e outros documentos, visando à decifração
do episódio. As motivações para tal interesse estão ligadas à vida pessoal desse
narrador, cujo pai fora proprietário de terras próximas à Ilha do Bananal,
propiciando um contato seu com os índios na infância. A complexa e requintada
rede tecida entre ficção e realidade apresenta ainda outras sutilezas: o próprio
autor, Bernardo Carvalho, bisneto do Marechal Rondon, conviveu com índios
durante suas férias na infância, experiência registrada, por exemplo, na foto de um
menino ao lado de um indígena que figura na orelha do livro, com a legenda: “O
autor, aos seis anos, no Xingu”. Os fragmentos desse relato, em primeira pessoa,
se alternam com o testemunho de Manoel Perna, sertanejo, amigo de Quain,
deixado para um futuro pesquisador. A advertência inicial – “Vai entrar numa
terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até
aqui.” (CARVALHO, 2002, p. 7) – anuncia o terreno da ambiguidade que o texto
habita.
Apesar de partir de um fato real, a narrativa joga o tempo todo com a
expectativa – tanto do narrador quanto do leitor – de revelação dos segredos em
torno do suicídio, mas não para esclarecê-los: “O fato de que nenhum de nós
provavelmente jamais conhecerá os fatos torna ainda mais difícil nos
desembaraçarmos deles.” (CARVALHO, 2002, p. 88). Desde a primeira página
do romance, o narrador sertanejo avisa: “o segredo, sendo o único bem que se leva
para o túmulo, é também a única herança que se deixa aos que ficam, como você e
eu, à espera de um sentido, nem que seja pela suposição do mistério, para acabar
morrendo de curiosidade.” (CARVALHO, 2002, p. 7). Herdeiro da desconfiança
do narrador moderno em relação à possibilidade de relatos seguros e objetivos,
esse narrador contemporâneo a compartilha com o leitor:
Mas não me peça o que nunca me deram, o preto no branco, a hora certa. Terá que
contar apenas com o imponderável e a precariedade do que agora lhe conto, assim como
tive de contar com o relato dos índios e a incerteza das traduções do professor Pessoa.
As histórias dependem antes de tudo da confiança de quem as ouve, e da capacidade de
interpretá-las. E quando vier você estará desconfiado. (CARVALHO, 2002, p. 8).
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Para esse leitor “desconfiado” – que também duvida da sensação
reconfortante de alcançar uma verdade única – “a ficção [serve] de mitologia,
[sendo] o equivalente dos mitos dos índios” (CARVALHO, 2002, p. 96). Ficção e
mitologia têm em comum a suspensão dos critérios de falso e verdadeiro, o que se
estende na cultura contemporânea para além do campo literário. Nos sistemas
culturais midiáticos, a realidade não pode ser entendida como dados objetivos por
trás das imagens, mas como o resultado do cruzamento das múltiplas
interpretações e versões distribuídas por essas imagens, de modo que a fronteira
rigorosa entre fatos e ficções tenderia a se tornar irrelevante ou a desaparecer.
As fontes e documentos usados pelo narrador se apresentam de forma
ambígua. Quase no final da narrativa, ficamos sabendo que “Manoel Perna não
deixou nenhum testamento” (CARVALHO, 2002, p. 135) e que o narrador
imaginou a hipotética oitava carta escrita pelo antropólogo antes de se matar, a
qual elucidaria o mistério de seu suicídio a um possível investigador. Mesmo as
cartas e depoimentos supostamente reais não garantem o acesso à verdade, já que,
ao examiná-los, “cada um verá coisas que ninguém mais poderá ver”
(CARVALHO, 2002, p. 48) O valor documental das fotografias também é posto
em questão: “Na minha obsessão, cheguei a me flagrar várias vezes com a foto na
mão, intrigado, vidrado, tentando em vão arrancar uma resposta dos olhos de
Wagley, de dona Heloísa ou de Ruth Landes.” (CARVALHO, 2002, p. 32).
A partir de pistas apreendidas da leitura de cartas da família de Quain, o
narrador tenta entrar em contato com seus sobrinhos através do envio de
correspondência a todos os assinantes das listas telefônicas de Chicago, Seattle ou
do estado do Oregon com o sobrenome Kaiser. Essa remessa postal, assim como
um possível contato com uma produtora de televisão famosa por desenterrar
mistérios que ninguém mais conseguia descobrir, são interrompidos “quando dois
aviões de passageiros diante dos olhos atônitos de todo o planeta, atingiram e
derrubaram as duas torres do World Trade Center” (CARVALHO, 2002, p. 154155). A inclusão no enredo do romance do evento da destruição das torres
gêmeas, vivido como espetáculo e fartamente analisado enquanto paradigmático
das reversões entre fato e imagem no mundo contemporâneo, reitera a afirmação
de que “a realidade seria sempre muito mais terrível e surpreendente do que [se]
podia imaginar” (CARVALHO, 2002, p. 157). Diante do inexplicável, resta ao
narrador escrever uma ficção. Este também parece ser o destino de certos “fatos”:
A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos. A edição do The New
York Times, de 19 de fevereiro de 2002, que distribuíram a bordo, anunciava as novas
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
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estratégias do Pentágono: disseminar notícias – até mesmo falsas, se preciso – pela
mídia internacional; usar todos os meios para “influenciar as audiências estrangeiras”.
(CARVALHO, 2002, p. 158).
Embaralham-se as categorias de ficcionalidade e verdade, reservadas, desde
a segunda metade do século XVIII, para caracterizar, respectivamente, os
processos comunicativos literários e o contexto referencial dos modelos sociais.
As ficções avançam para a esfera pública, assim como os dados referenciais
imiscuem-se nas narrativas literárias. Podemos ver na frustrada busca pela
verdade por parte do narrador jornalista uma crítica à demanda de realidade
característica da contemporaneidade:
A diluição da fronteira entre a reportagem realista e o romance, entre documento e
ficção não conduz aqui a uma ficcionalização da realidade, mas ao reconhecimento da
insuficiência do realismo para dar conta da complexidade e das múltiplas facetas e
versões da verdade. (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 128).
Segundo o próprio autor, em entrevista ao jornal Rascunho, essa demanda
de referencialidade foi o que o motivou a escrever Nove noites: “entendi o que as
pessoas queriam: história real, livro baseado em história real. Pensei: ‘se é isso
que eles querem, é isso que eu vou fazer’. Mas resolvi fazer algo perverso para
enganar o leitor, criar uma armadilha.” (CARVALHO, 2007).
Examinando o diálogo desses autores com a demanda de referencialidade
característica da cultura contemporânea – seja buscando “novos realismos” ou
problematizando a eficácia das narrativas realistas de darem conta do real –,
procuramos delinear traços de suas figuras autorais e seus projetos estéticos,
tecidos tanto na obra que vão construindo, quanto em suas atuações no cenário
discursivo dos diferentes media do presente.
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26
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 9‐26, jul./dez. 2010.
ESCRITA, TRADUÇÃO e Psicanálise1
Betty Bernardo Fuks2
Para dar início à apresentação da experiência do processo de escrita do livro
Freud e a judeidade, a vocação do exílio (Fuks, 2000) e da tradução para o inglês,
gostaria de começar contando de que modo foi possível construir uma resposta à
espinhosa e recorrente questão das marcas da cultura judaica sobre a psicanálise
sem cair no vício, tão comum na literatura especializada, de judeizar a psicanálise,
psicanalisar o judaísmo ou erigir uma psicobiografia do pai da psicanálise. Em
primeiro lugar, a escolha de permanecer fiel à escuta analítica me levou a ler
Freud com Freud, isto é, ler-escutar o que disse e escreveu sobre o tema e acatar
seus silêncios foi fundamental aos meus propósitos. Somou-se a este
procedimento o fato de ter encontrado no conceito de judeidade, introduzido nos
estudos sobre a cultura judaica pelo escritor Albert Memmi (1975), uma
ferramenta de trabalho precisa. Diferentemente do termo judaísmo - o conjunto
das tradições culturais e religiosas; judeidade (judéité) diz respeito
exclusivamente ao fato de sentir-se judeu, ao “modo como cada judeu o é,
subjetiva e objetivamente. Trata-se de algo a ser definido e construído, jamais
terminado, mesmo que o judaísmo enquanto religião não conte mais para o
sujeito. Portanto um devir
1
Este texto tem por base as palestras proferidas na Universidade da Califórnia (UCLA), na New
School of Arts (New York) em outubro de 2009 e na associação Speaking of Lacan Psychoanalytic
Group (Toronto) em setembro de 2010 por ocasião dos lançamentos do livro Freud and
Jewishness, nos Estados Unidos e no Canadá.
2
Betty Bernardo Fuks é professora da Universidade Veiga de Almeida – RJ.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 27‐38, jul./dez. 2010.
Devir, de acordo com G. Deleuze ao longo de sua obra, designa uma
realidade processual e não simplesmente o processo de transformação de alguma
coisa em outra que alcança uma realidade estática um ser final. Portanto, um
projeto subjetivo que transgride a simples observância dos modelos do passado,
escapa às contingências relativas ao mero nascimento e determina a inserção do
sujeito no futuro. Por exemplo, o devir-mulher implica a noção da impossibilidade
de um ser final, pois não há A Mulher na qual o sujeito possa se transformar de
uma vez por todas, mesmo quando se é mulher. No devir-judeu, o que se coloca é
a impossibilidade do ser judeu; isto é, na expressão devir-judeu é preciso colocar a
ênfase sobre o devir e não sobre o judeu. Essa não-identidade consigo mesmo
evidentemente não é exclusiva da feminilidade ou da judeidade. Mas quem ousará
dizer que estas figuras não são paradigmáticas do processo subjetivo de tornar-se
outro?
Conjeturar sobre o devir judeu de Freud e o que este movimento pode ter
trazido à teoria e a prática clínica que inventou me levou, ao final da pesquisa,
aquilo que penso ter sido a única via de acesso que moveu a questão inicial: uma
arqueologia da cultura do judaísmo na psicanálise só pode aparecer quando e no
que esta cultura tenha sido transformada pelo próprio Freud, ao melhor estilo
goethiano, segundo a máxima do poeta citada por Freud em Totem e tabu:
“Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o, para fazê-lo teu” (Goethe, apud
Freud, 1976). O verbo conquistar usado pelo poeta me dirigiu ao cerne da
hipótese: O devir judeu de Freud encontrou na psicanálise sua expressão maior
como a última expressão da prática do não-idêntico, de desidentificação e do
desejo de diferença. Considero que a própria construção da judeidade de Freud
afetou diretamente a invenção da psicanálise, quer seja sob o aspecto da
marginalidade social de seu inventor, de onde sustentou as resistências à
psicanálise, quer sob a forma de um devir-judeu
Duas observações feitas pelo próprio Freud que envolvem
significativamente a circunstância de ter sido ele, um judeu ateu, quem inventou a
psicanálise foram decisiva na minha escolha de ingressar no estudo que resultou
na escrita de “Freud e a judeidade.....”. A primeira diz respeito à influência da
absorção precoce da história bíblica em sua formação intelectual (Freud, 1976
[1925a]). O fato de pertencer à minoria judaica e ter apreendido com isso a resistir
no isolamento, revelou-se também extremamente positivo e fortalecedor em sua
luta contra as resistências internas e externas à psicanálise (Freud, 1976 [1925b]).
Esta observação adquiriu relevo maior quando me deparei com as inúmeras
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desterritorializações, êxodos e exílios sofridos pela família paterna de Freud, ao
longo de várias gerações, até se fixar na Áustria (Freud, 1976 [1925a]). Tais
experiências, que num certo sentido reafirmavam a perspectiva de errância e
nomadismo inscrita na historia do povo judeu, atravessam também a história da
psicanálise desde antes de sua fundação em Viena até o exílio de seu fundador em
Londres.
Fazer das dificuldades uma vantagem, um meio de triunfar sobre o
sofrimento que, historicamente, o outro impõe ao judeu, foi a recomendação que
Freud deu a Max Graff, o pai do Pequeno Hans, na ocasião em que este lhe
perguntou sobre a possibilidade de batizar o filho para protegê-lo do antisemitismo. Freud recomenda ao amigo que deixasse o filho crescer como judeu,
que não o privasse de aprender a combater como um judeu, e desenvolver a
energia necessária para enfrentar o antissemitismo. Não é difícil acompanhar o
modo como o próprio inventor da psicanálise desenvolveu esta energia, a partir da
experiência que chamou de “splendid isolation: as vantagens e encantos da
solidão. Lutar pelo reconhecimento da psicanálise e por um modo de ser judeu
que ele inventa significava − nas palavras de que Freud fez uso para dar seu
conselho ao pai do pequeno Hans − ter de suportar resistências, buscar “fontes de
energias” internas para lhes dar “combate”, aprender a encarar a resistência como
“vantagem”, ou melhor, aprender a tirar vantagem ao invés de deixar-se por ela
abater.
O caso dos judeus como minoria à parte de uma sociedade de iguais
remonta ao exílio multimilenar − babilônico no século VI a.C., romano, e
finalmente, pós-romano −, que lançou o judeu na experiência da Diáspora.
Diáspora significa dispersão: “estar disperso entre os povos, “estar fora de”, ou
melhor, “não pertencer a”. Na própria palavra está a ideia da experiência de
ruptura que toca os fundamentos da existência do povo judeu. Desde seus
primórdios, a posição da psicanálise freudiana na cultura encontra-e muito
próxima à do povo judeu: estar sempre em movimento, fora do espaço da maioria,
em muitos outros espaços. A invenção freudiana vive no “entre e dois”, frequenta
o pais da ciência, arte, da filosofia, da literatura, da religião e do mito.
Como homem da diáspora, Freud praticou a estratégia política do entre-dois
(in between). Reforçou “alianças espirituais” com colegas judeus e, ao mesmo
tempo, exerceu uma política antichauvinista, evitando o perigo de tornar o
inconsciente um assunto nacional judaico. Por um lado queria eleger Jung, cristão
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 27‐38, jul./dez. 2010.
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e filho do pastor, para dirigir o movimento. Por outro, seguiu os impasses do
destino judaico frente os paradoxos de um processo social que obrigava a si
mesmo e a cada um dos colegas, ter que se pensar como judeu, positiva ou
negativamente.
O fato é que quando indagavam sobre sua identidade judaica, Freud sempre
optou por responder pela retórica do incontido na significação. Embora ele se
reconhecesse como judeu no fato de estar constantemente disposto e travar uma
luta perpétua com a “maioria maciça” e “homogeneizada,” fosse ela externa ou
interna ao próprio judaísmo, paradoxalmente sustentava ser da ordem do
impossível definir tal identidade. Mesmo porque defini-la, envolveria negar suas
próprias percepções sobre o logro de qualquer identidade. E neste sentido antecipa
pensadores como J. Derrida para quem os desconfortos da errância judaica são
uma alegoria do próprio movimento da escrita impondo-se como um vir-a ser. Diz
o filósofo que na “a identidade do Judeu consigo mesmo talvez não exista. Judeu
seria o outro nome da impossibilidade dele ser ele próprio” (Derrida, 1971, p.55).
Não é difícil de encontrar as raízes dessa incoerência no Antigo Testamento,
um dos arquivos da psicanálise. Algumas narrativas bíblicas dão a impressão de
que o nomadismo, tão característico da sociologia e da ética da Tora, não é outra
coisa senão a expressão de um êxito sempre refeito. Por exemplo: a história de
Abraão, o patriarca do povo judeu, inaugura uma nova noção de exílio que é
partida do “ser diante de si mesmo”, uma aprendizagem de Alteridade, isto é, uma
experiência de diferença. Para o hebreu, termo cuja significação etimológica é ser
de passagem, de ruptura, de transgressão e de transmissão, o existir é devir: no
hebraico a ausência do verbo ser no presente, rebate a ideia de transitoriedade
embutida na própria raiz da palavra que diz o hebreu.
Sabe-se que a psicanálise cria, a rigor, condições para que o sujeito venha a
experimentar o que lhe é estranho; dito de outro modo: a invenção freudiana opera
uma separação radical do sujeito com relação ao idêntico, a qual termina por
conduzi-lo a uma experiência que podemos chamar de “exílio”. Esse exílio
consiste em fazer o sujeito buscar − nos desconfortos da repetição e na
desconstrução paulatina da própria idolatria (narcisismo do eu e mandatos do
supereu) − o encontro com o que há de mais estranho a ele próprio, o face à face
com o desconhecido, que envolve o risco de encontro com o impessoal da força
pulsional sempre errante, força de todos os tempos e de todos os homens.
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Aproximadamente um ano depois ter seus textos queimados nas fogueiras
de Berlin, Freud começa escrever Moisés e o monoteísmo (1939[1934-1939]) um
hipertexto, cuja escrita não se presta à captura: múltiplos sentidos — mas não
arbitrários — borbulham em suas páginas. Como um enigma, ele se abre para
vários níveis de entendimento. Trata-se de um escrito em que Freud reescreve a
metapsicologia e o mito do assassinato do pai introduzido em Totem e Tabu em
base ao mito de Édipo, a escuta clínica e aos trabalhos de antropólogos e
historiadores. O leitor de Moisés pode também ter acesso ao pensamento
freudiano sobre a segregação, em especial às reflexões sobre a estrutura religiosa
do nazismo que, sob o signo do ódio, fomentava uma cultura de hostilidade mortal
ao outro em nome do fortalecimento da identidade nacional.
Este é um dos motivos pelo quais Freud insiste, logo no primeiro capítulo,
em “destituir um povo do homem que ele celebra como o maior de seus filhos.”
(1939 [1934-1939]), p. 29). Pode-se dizer que desconstruindo a figura do profeta
Freud, afirmava que o judaísmo é produto de uma construção que se faz através da
experiência de estrangeiredade e que se marca pela incompletude. Mas é
impossível deixar de reconhecer que trata-se, também, de uma desconstrução que
remete à ferida que a psicanálise causou à humanidade, ao anunciar que o eu não é
senhor de sua própria casa. Qualquer identidade é efeito da multiplicidade de
identificações inconscientes.
Moises, o egípcio, inventa o Judeu, então, todo o judeu é um egípcio, isto é,
está para alem da raça, da língua e da identidade nacional. Moisés o egípcio
introduz uma concepção de Deus cuja presença se define por uma ausência radical
e absoluta. Com efeito, o Texto encerra a estranha ideia de um Deus feito de nada,
pura ausência: sem nome nem rosto, sem imagem nem essência. A proibição de
representar Deus mergulhou a doutrina mosaica numa exigência iconoclasta
irreversível, a ética de superação da idolatria. Não é difícil reconhecer a presença
desta iconoclastia no pensamento de Freud, quando denuncia os efeitos fetichistas
de um mundo gerado pela idolatria do eu fixado no espelho.
A construção de Moisés, responde, também, à questão que Freud perseguiu
desde Totem e Tabu (1913) , “Como se transmite, de geração em geração uma
Herança arcaica” - os traços de memória arrastados pelo fluxo caudaloso do
tempo. No texto de 1939, o autor se orienta pela nova concepção de trauma que
introduziu a partir do conceito de pulsão de morte e da noção de compulsão a
repetição. O monoteísmo judaico e a situação histórica da diáspora ligados por
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uma cadeia de cortes e de perdas traumáticas impuseram ao judeu uma série de
lutos que os obrigaram a traduzir na linguagem da razão o não metabolizável. A
transmissão implica nela mesma a impossibilidade de uma continuidade, da
imposição de conteúdos. Sua força reside de maneira assombrosamente indireta
(1976 [1934-39], p. 119), em sua verdade histórica - relação singular que cada
cultura e/ou sujeito é chamada a viver em relação à herança recebida das
civilizações/ gerações anteriores -.
Neste ponto observa-se que Freud está totalmente implicado na leitura
do texto bíblico. Lê o Êxodos como lê o Inconsciente. Sua escrita envolve a
responsabilidade de narrar a saga do outro excluído, ampliar e garantir a
transmissão dos conceitos teóricos da psicanálise. Como escreveu Michel de
Certau (1982, p. 305) pela metáfora, recurso da retórica, varias coisas
funcionam no mesmo lugar: não há como separar o Judeu, a Psicanálise e o
homem Freud quando se analisa a produção da escrita de Moisés.
E com isto, passo ao cerne da argumentação que sustentou minha escrita:
os traços de exílio e de êxodo inscritos na história do povo judeu e a prática de
leitura-escritura infinita do Antigo Testamento, desempenham papel essencial
na descoberta freudiana. Nômade, como as letras hebraicas que se aglomeram
no branco de um pergaminho ancestral, os doutores da Lei e os comentadores
do Texto ousaram dizer sempre mais do que no Livro aparecia manifesto,
tornando-o, desde tempos imemoriais, um território que se prestou ao amplo
acolhimento das subjetividades emergentes. Assim, vagando pelo mundo
através dos séculos e das gerações com letras e palavras transbordantes de
sentidos, o povo judeu soube fazer da interpretação uma prática de deixar às
letras a possibilidade de serem letras e de aproveitar os brancos do Texto como
uma reserva de sentido sempre disponível para o leitor/intérprete. Esta
incessantemente reencetada missão de ler as letras, multiplicar as combinações
entre elas, reescrevendo-as num movimento contínuo de construções
significantes singulares acerca da origem, do valor e do sentido da vida e da
morte, fez com que tanto Freud quanto Lacan designa-se o judeu como aquele
que sabe ler.
A leitura à letra aproxima a psicanálise do método ancestral de leitura
talmúdica. A leitura à letra garante a lei antiidolátrica do segundo mandamento
e o ateísmo da escritura. Na transmissão da psicanálise, a pratica de leitura à
letra é a guardiã do ateísmo da escrita freudiana garantia de sua reinvenção
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 27‐38, jul./dez. 2010.
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infinita. E disso, com certeza já sabia Freud, melhor do que ninguém. Basta
lembrar que as vésperas de seu êxodo a Londres, dando continuidade à
construção de sua judeidade declara aos colegas a intenção de no exílio fazer
como o Rabino bem Zakkai que por ocasião da expulsão de Jerusalém pediu
licença, em terra estrangeira, para prosseguir a transmissão de uma tradição
que não se baseia apenas em obediência cega mas sim na reivindicação de
fazer valer um dizer sobre o dito. Sem dúvidas, o desejo explicito de Freud
nesta passagem da historia da psicanálise era o de afiançar a transmissão da
teoria e prática psicanalítica pelos séculos.
Três anos haviam se passado desde o lançamento da edição brasileira do
meu livro, quando colegas da Associação Psicanalítica Apré-Coup (Nova York),
demonstraram interesse de publicá-lo em inglês. Naquele momento , não poderia
imaginar que tamanha hospitalidade imporia a árdua tarefa de aprender a suportar
a alteridade do meu texto em terra estrangeira. De fato, a recepção dada à obra
pelo leitor brasileiro provocara forte sentimento de estranheza no interior de
minha própria língua, o que me obrigava a retornar às hipóteses iniciais, para dizer
melhor o que havia escrito e/ou enunciar o que até então não havia enunciado.
Quando da edição do livro nos Estados Unidos, juntou-se a estes movimentos o
questionamento incessante em torno da tradução e estilos de edição.
Reconheço que durante todo o processo de tradução pude apreender melhor
o que Derrida descreveu como relações de endividamento recíproco entre o
escritor e o tradutor. Minha dívida para com o tradutor, o poeta Paulo Brito, é
enorme. Ler e reler o texto, impondo-se o trabalho de traduzi-lo e retraduzí-lo para
além dos parâmetros de um simples transporte de significado estáveis, parte
integrante da responsabilidade do que este poeta assumiu em transmitir, com
absoluta liberdade, o indecidível de minha escrita.
A tradução como escritura, inevitavelmente deixa restos. Paulo Ottoni,
citando Derrida, comenta que restos são impurezas de cada língua, o que faz com
que traduzir seja a um só tempo possível e impossível. “Uma boa tradução nos diz
simplesmente isto: há língua, é por isso que se pode traduzir e que não se pode
traduzir porque há alguma coisa como língua” (Derrida apud Ottoni 2008, p. 4).
Derrida (2002) usou a história bíblica de Babel para ilustrar o double bind da
tradução – possibilidade e impossibilidade da escritura como leitura tradutora.
Conta o Gênese que a tribo de Shem (palavra que significa nome em hebraico)
quis impor uma única língua a todas as tribos da terra, edificando uma torre para
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atingir os céus. Gritando seu nome Bavel ou Babel, confusamente parecido com a
palavra hebraica que significa “confusão”, Deus destrói a torre, estabelece a
diferenciação entre as línguas, a dispersão dos povos sobre a terra e condena todos
os homens à confusão e à impossibilidade de tradução. Esta maldição impediria,
para sempre, o homem de alcançar a tradução perfeita; o que significa a
impossibilidade de uma língua única. Em meio às múltiplas interpretações que se
pode fazer desta história bíblica sobressai a ideia de que ao enunciar
confusamente o tetragrama impronunciável – IHVH – que deu seu nome, Deus
deixou o homem condenado à incompletude do trabalho de tradução.
Portanto, não será preciso justificar porque os restos produzidos pela
tradução do livro do português para o inglês exigiram dos editores americanos,
imediata tradução suplementar. Os editores e psicanalistas Paola Mieli e Mark
Stafford, não pouparam esforços em retraduzir a tradução-escritura de Britto. Aos
poucos ratificaram em ato a ideia de que toda tradução deflagra a existência de
diferentes línguas, numa língua. Todo o empenho dos colegas girou em torno do
fazer com que a ideia original pudesse ser dita, mais ainda, na edição de língua
inglesa. Neste sentido, o titulo da obra em inglês Freud and the Invention of
Jewishness (Fuks, 2008), é exemplar: nomeia a ideia que estava latente em minha
Tese de Doutorado, mas que só pôde ser formulada após várias retraduções
produtivas. Durante todo o processo de edição foi possível manter com os editores
o princípio de fidelidade à insuperável diferença e complementaridade das línguas
e culturas. Atribuo esse ganho à forte transferência de trabalho sustentada pelo
desejo de todos em transmitir a hipótese freudiana da escritura psíquica - o
inconsciente.
Efetivada, agora, as edições do livro em inglês e espanhol (Editora Siglo
XXI, 2005) posso dizer, a posteriori, que uma das razões do êxito do livro, está
ligada ao modo como emprego o conceito de judeidade. Como resultado e contra
tudo o que se costuma designar, a psicanálise não é uma metáfora do judaísmo e
sim o oposto: a judeidade pode ser uma metáfora da psicanálise. Bem diz da
experiência de diferença que leva o sujeito em análise, buscar, através da palavra
uma designação para aquilo que vindo de fora, está nele mesmo, embora lhe seja
estranho. Mas atenção: toda metáfora é parcial, isto é, produz um resto de
significação, a judeidade não pode esgotar a função e o campo analítico, embora
seja uma belíssima e privilegiada representante. Estimula o analista a pensar,
como inseparáveis, a origem e o devir da psicanálise e, com isso, assegurar sua
transmissão de modo criativo e original.
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Judeidade e psicanálise e, também, judeidade e tradução. Porque no devir
outro da judeidade e no próprio devir da psicanálise encarnam-se certas ideias
fundamentais expressadas no conceito de tradução como ato de produção e
transformação de significados. Com efeito, a psicanálise como prática de
diferença não pode conceber a tradução como transporte de significados de um
sistema para outro de maneira estável e consciente. Freud insistia em que o
inconsciente apresenta uma pluralidade de sentidos e de vozes que testemunham a
sobredeterminação de suas formações. Na verdade esta é a tese defendida em A
interpretação dos sonhos, onde o autor faz uma severa critica ao colega W. Stekel
pelo fato de pretender reduzir a interpretação psicanalítica a um trabalho
meramente exegético, limitando-a à tradução de símbolos oníricos em detrimento
das associações do sonhador (Freud, 1900/1976, p. 356). De extrema relevância à
reflexão sobre o dispositivo da interpretação no processo analítico, essa critica
envolve a linguagem como tradução; o que faz com que justamente muitos autores
considerem Freud um dos mais importantes teóricos da tradução (Cf. Ottoni,
2002, p. 2).
Minha emoção maior ao viver esta experiência de ter um livro publicado em
terra estrangeira, é a de poder afirmar que minha confiança na transmissão da
psicanálise, isto é, no futuro da psicanálise, consiste em saber que a crítica do
analista, com seus meios específicos, à cultura faz parte da arte de reiventar a
prática e a teoria psicanalítica. O analista não pode ignorar que seu ofício
estabelece um laço social com o outro, o que significa manter em seu horizonte a
subjetividade de sua época e conhecer bem, como proferiu Lacan, “a função de
intérprete da discórdia das línguas” (1998, p. 332), a terceira fonte do desconforto
humano.
Nada poderia ilustrar melhor esta ideia do que evocar uma pequena história
de Kafka - O cavaleiro do balde (1917) - escrita na primeira pessoa do presente,
cujo ponto de partida uma situação bastante real: a falta de carvão no inverno
austríaco assolado pela guerra. O narrador está prestes a morrer congelado. Pega
um balde ao pé da “estufa impiedosa” e sai cavalgando neste objeto vazio que
chega a erguê-lo à altura do primeiro andar das casas. Sua intenção era a de obter
do carvoeiro uma pá cheia de carvão. A carvoaria fica no subsolo e o cavaleiro do
balde voa alto demais, tem dificuldades em fazer-se compreender pelo carvoeiro
que, em princípio, parecia estar disposto a atendê-lo. No banco da estufa da casa,
a carvoeira a tricotar, chega a ouvir o apelo sem se sensibilizar, em nenhum
momento pelo sofrimento do outro. Convence o marido de que não há ninguém lá
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fora e sobe sozinha para o andar de onde vinha a voz suplicante. A mulher tira o
avental e espanta o intruso como se estivesse a enxotar uma mosca. Afugentado o
cavaleiro kafkiano ascende às montanhas geladas, até se perder para nunca mais.
Não seria exagero afirmar que esta narrativa, por si só, garante a seu escritor
um lugar privilegiado na fileira dos escritores que melhor disseram poeticamente,
o inexprimível da parcela indomável da constituição do psiquismo: a crueldade
humana. Numa análise primorosa deste conto, Ítalo Calvino (1988) defende a
ideia de que talvez o escritor de Praga, quisesse apenas dizer que sair à procura de
um pouco de carvão, numa fria noite em tempo de guerra, se transforma em busca
de cavaleiro errante, travessia de cavaleiro nômade pelo deserto. O escritor
italiano chama atenção para o fato de que a ideia do balde vazio que eleva o
sujeito acima do nível onde se encontra a ajuda alheia, o vazio como “signo de
privação, de desejo e de busca, que nos eleva a ponto de nossa humilde oração já
não poder ser atendida” (1988, p. 41) é, também, uma figura exemplar para se
enfrentar a crise contemporânea da linguagem: sendo o balde vazio signo de uma
virtude, a leveza, propõe, que a entrada do terceiro milênio que estava por vir,
quando da escrevia estas considerações, pudesse ser feita a cavalo no balde vazio,
“sem esperar encontrar neste século nada além daquilo que seremos capazes de
levar” (idem).
Qual a lição que o analista pode retirar do conto kafkiano e da interpretação
que dele fez Calvino? Antes de mais nada, quero dizer a vocês que o Cavaleiro do
balde é virtuosamente semelhante ao cavaleiro do cavalo errante do chiste citado
por Freud em carta a Fliess, para explicar do que se tratava o Inconsciente.
Discorrendo sobre o estado no qual se encontrava A interpretação dos sonhos,
Freud escreve: “Meu trabalho foi inteiramente ditado pelo inconsciente, segundo o
famoso princípio de Itzig, o cavaleiro dominical: -Para onde estás indo, Itzig? – E
eu sei? Não tenho a menor ideia. Pergunte a meu cavalo!” (Masson 1986, p. 320)
Ditado pelo inconsciente. Freud apresenta ao dileto amigo, o inconsciente
como um cavaleiro que se deixa levar pela força do cavalo errante.
Errante, à procura do carvão necessário à escrita do inconsciente, o analista
sem esperar encontrar neste século nada além daquilo que pode escutar, encontra
na atualidade as mesmas resistências à psicanálise que Freud encontrou em seu
tempo, apesar do que a cultura já pôde dela assimilar e banalizar.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 27‐38, jul./dez. 2010.
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Seria o caso de perguntar mais claramente: o que significa a psicanálise? Por
que isto existe? Entre as múltiplas respostas, escolho a que diz que isto existe para
que exista a ideia do particular que dá conta do universal. A experiência é o
viveiro de nossas descobertas, o balde vazio de Kafka, signo do desejo, de busca
pelo outro. E mesmo sendo verdade que depois de Freud, a experiência
psicanalítica só pode acontecer se estiver em intima consonância com os conceitos
fundamentais da psicanálise, isto não invalida o fato de que os analistas tenham de
sempre inventar novos procedimentos para proteger a verdade do sujeito do
inconsciente e minorar os avanços da pulsão.
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das letras. 1988.
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Universitária, 1982.
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_____. Torres de Babel. Belo Horizonte. UFMG. 2002
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Luiz Etchverry, Amorrortu Editores, 1976. V. 4
_____. Presentación autobiográfica” (1925a). Op. Cit. V. 10
_____. “Las resistências contra el psicoanálisis” (1925b). Op. Cit. V. 10.
_____. “Moisés e o monoteísmo” (1939[1934-1939]). Op Cit. V. 23.
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MEMMI, Albert. O homem dominado. Lisboa. Seara Nova. 1975
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OTTONI, Paulo. Tradução: reflexões sobre desconstrução e psicanálise. Pulsional
Revista
de
Psicanálise.
N.
158.
Disponível
em
HTTP:/www.editoraescuta.com.br/pulsional.
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Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 27‐38, jul./dez. 2010.
POLÍTICAS DA CRÍTICA biográfica
Edgar Cézar Nolasco1
Para Eneida, sempre.
Para os mestrandos da disciplina Memória e narrativa de 2010.
A vida de um homem, única assim como sua morte, sempre será mais do que
um paradigma e outra coisa que não um símbolo. E é isto mesmo que um
nome próprio sempre deveria nomear.
DERRIDA. Espectros de Marx, p. 7.
A maior quebra de paradigma da crítica biográfica nessa virada de século foi
a inserção da figura do intelectual no ensaio crítico, a presença mesma de sua
persona, a ponto de poder-se propor a réplica existo, logo penso ao cogito
cartesiano. Discussões de natureza vária saíram das ciências humanas que
contribuiram para a guinada que será privilegiada pela crítica do bios, a exemplo
do que disse Jacques Derrida em Políticas da amizade (1994), O monolinguismo
do outro: ou a prótese de origem (1996) e Da hospitalidade (2003); Michel
Foucault, em O uso dos prazeres (1984), O cuidado de si (1984) e Ditos e escritos
(2006); e Gilles Deleuze, com Conversações (1992). Já no Brasil as leituras
pioneiras sobre a crítica biográfica são de autoria de Eneida Maria de Souza,
principalmente com os livros O século de Borges (1999), Pedro Nava: o risco da
memória (2004), Tempo de pós-crítica (2007) e o ensaio “Notas sobre a crítica
biográfica”, do livro Crítica cult (2002). No rol de autores por mim elencados,
merece destaque a trilogia do espanhol Francisco Ortega: Amizade e estética da
existência em Foucault (1999), Para uma política da amizade: Arendt, Derrida,
Foucault (2000) e Genealogias da amizade (2002). Por fim, quero mencionar o
1
Edgar Cézar Nolasco é professor da UFMS.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, por contribuições significativas que se
encontram em livros, como O laboratório do escritor (1994), Formas breves
(2004) e O último leitor (2006). O campo do bios, ou melhor, da crítica
biográfica, é regido por um saber biográfico resultante da inter-relação entre vida,
obra e cultura, tanto do sujeito analisando (escritor, artista, intelectual) quanto do
analista (crítico, intelectual).
Endossa nossa reflexão a afirmativa de Eneida Maria de Souza de que a
crítica biográfica é de natureza compósita.2 Tendo por base essa natureza híbrida,
rizomática e heterogênea que mina e alicerça o campo variegado da crítica
biográfica, este ensaio, para melhor aferir o campo aqui em discussão, propõe
duas razões que se complementam, posto que ambas permitem juntas uma leitura
circunscrita ao campo da crítica biográfica: razões de princípio e razões do
coração. Os termos são de Derrida, mas aqui serão empregados num sentido um
pouco diferente. Tais razões são sempre da ordem da lei, do direito, da ética, do
compromisso e do amor, e estão sempre relacionadas ao papel e lugar do crítico
biográfico.
Condenadas que estão, numa primeira instância, a burlar toda ordem de
direito e de justiça, essas razões, que sofrem duma ausência de regra, de norma e
de critério, pelo menos aparentemente, e que se encontram, por conseguinte, numa
situação de fora da lei, unem-se, por uma força de lei,3na tarefa que consiste em
inter-relacionar o que é da seara de ambas as razões. Queremos entender que a
“irredutibilidade” da justiça ao direito proposta por Derrida em Força de lei pode
ser correlata ao que é da ordem de princípio e da ordem do coração.
Do campo das razões de princípio, podemos elencar a literatura, o ensaio, a
crítica, o valor, a lei, o direito, o documento, a obra, o arquivo, a biografia etc; já
do campo das razões do coração, destacamos a escolha pessoal, as imagens, as
amizades pessoais, a escolha, a dívida, a transferência, a herança, a recepção, a
vida, as paixões, o arquivo, a morte, a experiência, as leituras, a biblioteca, as
viagens, os familiares, as fotografias, os depoimentos etc. Talvez reste-nos dizer
que se estamos separando as razões, tal separação é somente para contemplar uma
2
SOUZA. Notas sobre a crítica biográfica, p. 111.
3
Faço, aqui, uma alusão direta ao título do livro Força de Lei, de Jacques Derrida, cuja leitura
norteia minha reflexão neste ensaio sobre crítica biográfica.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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proposição do próprio ensaio, já que, na elaboração de uma leitura crítica
biográfica, essa separação esboroa-se na articulação demandada por esse tipo de
crítica.
Entre os vários tópicos encontrados nas razões mencionadas, ou que podem
a elas serem agregados, mencionaremos de agora em diante aqueles que, de nosso
ponto de vista, mais presentes se fazem no campo minado do bios, ou que mais
ajudam-nos a elaborar o campo compósito (SOUZA) atinente à crítica biográfica.
NUNCA FALO do que não admiro
Jacques Derrida faz essa afirmação no momento em que discute “a escolha
de sua herança”, ou seja, sua relação com seus amigos, seus precursores, sua
dívida com uma tradição. Sobre sua herança, Derrida diz que sempre agiu de
forma fiel e infiel ao mesmo tempo. Chega a afirmar que “me vejo passar
fugazmente diante do espelho da vida como a silhueta de um louco (ao mesmo
tempo cômico e trágico) que se mata para ser infiel por espírito de fidelidade”.4
Postula o filósofo que, apesar de o passado permanecer inapropriável, é preciso
fazer de tudo para se apropriar dele. Aproximamos aqui essa apropriação de uma
filiação, de uma plêiade de amigos, de uma cultura a serem escolhidos e, por
conseguinte, herdados. Não se trata somente de aceitar tal herança escolhida, mas
de mantê-la viva no presente. Não escolhemos essa ou aquela herança; antes é ela
que nos escolhe, sobrando-nos, apenas, escolher preservá-la viva. Derrida chega
ao ponto de amarrar, definir a vida, o ser-em-vida, a uma tensão interna da própria
herança. Mantém-se viva a herança por meio de uma filiação, que se assemelha a
uma eleição, uma seleção, ou uma decisão. O crítico biográfico escolhe, elege e
toma decisão ao mesmo tempo em que é escolhido pelo outro. Nesse contexto, a
vida, ou melhor, a palavra “vida”, deve vir sempre entre aspas, alertando-nos de
que todo cuidado é pouco. E também porque a vida não seria mais própria, nem
mais de um único sujeito, mas uma herança que se herda no presente. “Seria
preciso pensar a vida a partir da herança, e não o contrário”, alerta-nos Derrida.5
4
DERRIDA; ROUDINESCO. De que amanhã: diálogo, p. 12.
5
DERRIDA; ROUDINESCO. De que amanhã: diálogo, p. 13.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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Na esteira das proposições do filósofo, des/construir a vida de alguém, tratar
dessa vida demoradamente, viver essa vida, não deixa de ser uma declaração
amorosa do crítico, onde se inscreve uma admiração, uma dívida impagável, um
reconhecimento. Essa relação dá-se atravessada por uma fidelidade à herança,
visando sua reinterpretação e reafirmação, as quais não se dão sem uma
infidelidade. Se a herança impõe ao crítico biográfico, por exemplo, tarefas
contraditórias (como a receber e a escolher a vida de um outro que veio antes e ao
mesmo tempo reinterpretar essa vida), isso mostra que ela atesta a finitude do
próprio crítico (nossa finitude). Por sermos finitos, estamos condenados,
obrigados a herdar, a falar do outro, isto é, a tratar discursivamente daquilo que
independe de viver ou de morrer. Nesse sentido, o campo compósito da sobrevida
prepara o terreno para o discurso da crítica biográfica. A própria crítica biográfica,
enquanto uma responsabilidade designada a falar, ou responder pelo outro,
inscreve-se como uma herança, antes mesmo de se ver como responsável por uma
herança. O crítico biográfico encontra-se numa condição de duplamente
endividado: é responsável pela vida que veio antes de si (pela vida de outrem), da
mesma forma que é responsável pela vida que está por vir. Tomar a figura do
crítico biográfico como um herdeiro é querer entender que ele não é apenas
alguém que recebe, mas é alguém que escolhe, e que se empenha em decidir sobre
o outro, sobre a vida do outro e sobre a sua própria vida.
A herança, atravessada pela crítica biográfica, demanda a presença de uma
fidelidade infiel (Derrida). A figura de um amigo, ou melhor, qualquer amizade,
demanda, desde o princípio, uma aliança, um compromisso sem status
institucional, reservando o espaço necessário à crítica. Esse espaço já é o lugar
onde o crítico habita, trabalha, escreve e ensina, por exemplo. O crítico encontrase nesse espaço e dele demanda a presença do amigo. Um espaço político, por
excelência, para fazer alusão ao livro Políticas da amizade, de Derrida, no qual o
crítico herda uma herança e o direito de justiça de falar infinitamente dessa
herança recebida e escolhida ao mesmo tempo. Por tudo isso, o crítico biográfico
padece de uma fidelidade infiel:
a fidelidade me prescreve ao mesmo tempo a necessidade e a impossibilidade do luto.
Insta-me assumir o outro em mim, a fazê-lo viver em mim, a idealizá-lo, a interiorizá-lo,
mas também a não consumar o trabalho de luto: o outro deve permanecer o outro. Ele
está efetivamente, atualmente, inegavelmente morto, mas, se o assumo em mim como
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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uma parte de mim e se, por conseguinte, “narcisizo” essa morte do outro por um
trabalho de luto consumado, aniquilo o outro, amenizo ou denego sua morte. A
infidelidade começa aí, a menos que assim continue e se agrave mais.6
Qualquer discussão, em torno dessa fidelidade infiel, dessa herança, dessa
escolha, dessa amizade fiel e infiel, dá-se atravessada por razões de princípio e do
coração ao mesmo tempo, pela lei e sua recusa, pela justiça e sua ausência. O
mundo semovente e compósito do bios, em parte, estrutura-se aí. O crítico
biográfico precisa saber disso. Sendo infiel, mesmo que movido por um espírito
de fidelidade, o exercício da herança é uma experiência de uma desconstrução que
nunca acontece “sem amor” (Derrida), e essa experiência, por sua vez, começa
naquele momento em que se rende uma homenagem àquele a quem a própria
experiência (herança) está presa.
Nunca falar do que não admira e a herança nunca acontecer sem amor
mostram que as relações humanas afetivas (e críticas) são determinadas por uma
transferência entre os sujeitos imbricados nessa relação. Nesse sentido, podemos
dizer que a política da crítica biográfica resume-se, pelo menos em parte, na tarefa
de propor, ou estabelecer, relações transferenciais entre a produção do sujeito
analisando, sua vida e a vida do próprio crítico. Em uma abordagem psicanalítica,
Susan R. Suleiman assim conceituou transferência:
Emaranhamentos entre pessoas, personagens, textos, discursos, comentários e
contracomentários, traduções e notas de rodapé e outras notas de rodapé de histórias
reais e imaginadas, cenas vistas e contadas, reconstruídas, revistas, negadas;
emaranhamentos entre o desejo e a frustração, o domínio e a perda, a loucura e a razão
[...] Resumindo numa palavra, amor. Que alguns chamam de transferência. Que alguns
chamam de leitura. Que alguns chamam de escritura. Que alguns chamam de écriture.
Que alguns chamam de deslocamento [displacement], deslizamento [slippage], fenda
[gap]. Que alguns chamam de inconsciente.7
Essa relação amorosa entre pessoas pontuada por Suleiman, na qual
histórias vividas e imaginadas se misturam e se fundem, atravessadas ambas pelo
desejo, encontra endosso na conceituação que Lacan faz do que entende por
transferência. Para ele, segundo Arrojo, “transferência e amor são
indistinguíveis”:
6
DERRIDA; ROUDINESCO. De que amanhã: diálogo, p. 192.
7
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 38.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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Considerei necessário defender a ideia da transferência como algo indistinguível do
amor, com a fórmula do sujeito suposto saber. Não posso deixar de sublinhar a nova
ressonância que essa noção de conhecimento recebe. A pessoa em quem presumo existir
conhecimento adquire meu amor [...] Transferência é amor [...] Insisto: é amor dirigido,
dedicado ao conhecimento.8
Dessa relação transferencial amorosa instaurada entre eu e o outro,
interessa-nos aqui pensar na condição necessária entre o crítico biográfico e o
objeto escolhido ou o outro e a vida desse outro. Como aquilo que o crítico
biográfico deseja saber da vida do outro analisando está neste outro, e seu trabalho
é buscar esse conhecimento, ou seja, aquilo que ele, enquanto analista, não sabe
sobre a vida desse outro, então resta ao crítico biográfico pôr-se na condição de
sujeito suposto saber: deste lugar, ou condição, ele imagina saber os segredos da
vida do outro, inclusive aquilo que o outro mesmo não sabe sobre sua vida. A
questão que se impõe nessa relação dá-se em querer saber como separar aquilo
que o crítico biográfico “descobre” da vida do outro do que ele ”inventa”, acresce
de sua própria vida. Apropriando-nos do que diz Arrojo, mas num sentido meio
inverso, diríamos que a descoberta e a interpretação que o crítico biográfico faz da
vida do outro sempre trarão algo que precisa ser analisado naquilo que o crítico
atribui a essa vida “alheia”, porque o que ele descobre e interpreta na vida do
outro é, em última instância, algo que o crítico dessa natureza quer e precisa dizer.
É nesse sentido que tratar criticamente sobre a vida de um outro é também uma
forma de se encontrar em análise, submetido que está às seduções desse outro,
seus caprichos e desejos. Nesse sentido, a materialização do trabalho crítico é o
tornar público as consequências dessa relação amorosa envolta a amor e ódio. Mas
depois voltaremos à figura do crítico biográfico como aquele que ocupa o lugar do
“sujeito suposto saber”.
Esse emaranhamento que prende o crítico biográfico à vida de um outro, na
tentativa de “descobrir” como se arquiteta a vida alheia, encontra respaldo
também no que Derrida entende por desconstrução:
Desconstruir um texto [acrescentaríamos uma vida] é revelar como ele funciona como
desejo, como uma procura de presença e satisfação que é eternamente adiada. Não se
pode ler sem se abrir para o desejo da linguagem, para a busca daquilo que permanece
ausente e alheio a si mesmo. Sem um certo amor pelo texto [pela vida], nenhuma leitura
8
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 158-159.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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seria possível. Em toda leitura, há um corps-à-corps entre leitor e texto, uma
incorporação do desejo do leitor ao desejo do texto.9
Desconstruir, no contexto aqui usado, não pode ter o sentido de decifrar a
vida do outro, mas, antes, revelar a forma como essa vida alheia funciona como
um jogo, um desejo do outro (e agora do sujeito crítico envolvido na relação),
enfim, a vida como uma procura de algo jamais encontrado e que, ao mesmo
tempo, satisfaz o sujeito crítico nessa busca sem objeto definido. O trabalho do
crítico biográfico não se resume apenas a um desejo preso à linguagem ensaística,
mas também àqueles princípios que são tanto da ordem do coração como da razão,
quando se trata da vida de outrem, e, mesmo assim, sempre ficará algo dessa vida
que permanecerá ausente do conhecimento do crítico e alheio ao seu domínio
enquanto crítico. Com base na passagem mencionada de Lacan, podemos dizer
que o outro, o analisando, o biografado, enfim, aquele que se presume existir o
conhecimento sobre sua própria vida, adquire o amor do crítico biográfico,
permitindo, por conseguinte, que este descubra, “invente” e narre a vida do outro
como se fosse, em certo sentido, sua própria vida. Nesse caso, é pelo
conhecimento da vida do outro ser sempre “aquilo que desejo no outro”10, ou
melhor, por ele ser o que já existe, mas sempre no Outro11, que o crítico
biográfico ocupa, sempre, o lugar do “sujeito suposto saber”: aquele que não sabe
sobre a vida do outro mas precisa fingir que sabe, para que aí se instaure a
descoberta daquilo que nenhum dos dois sujeitos envolvidos na situação críticoanalítica sabiam aprioristicamente. Enfim, é somente ocupando o lugar do
“sujeito suposto saber” que está facultado ao crítico biográfico saber o que ele
quer e precisa saber sobre a vida do outro (amigo).
Na esteira da leitura esclarecedora que Arrojo faz de Derrida, diríamos que
não pode haver nenhuma relação entre o crítico biográfico e o sujeito biografado
sem a inscrição da imprevisibilidade inerente a um relacionamento de natureza
biográfica, “sempre motivado e determinado pelo desejo ─ esse atributo
essencialmente humano que marca todas as nossas produções com o desenho de
9
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 157.
10
ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 159.
11
Ver ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 144.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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nossa própria história”.12 Mais do que o desenho, diríamos que vai se esboçando,
em pano de fundo, a história mesma do sujeito crítico. Nessa relação de amizade,
recheada de amor e ódio e atravessada por desejos pessoais, ocorre uma ação
parricida e protetora ao mesmo tempo: o crítico biográfico deseja tomar posse do
lugar e da vida do biografado ao mesmo tempo em que visa a mantê-lo sobrevivo
em outro momento histórico (o da recepção crítica). A cada relação proposta pelo
crítico biográfico, uma história pessoal alheia é invadida pelo “decifrador de vidas
alheias” e, por conseguinte, um “romance familiar” é estabelecido por meio do
“intrujão” que usurpa o lugar, o desejo e, às vezes, a vida do outro. É nesse
sentido que entendemos que qualquer produção de natureza crítica biográfica é,
em algum sentido, a escritura de uma autobiografia (do próprio crítico).
Escrever sobre a vida de um outro, se, por um lado, mostra a problemática
inerente a esse tipo de crítica do bios, por outro, põe em cena uma briga restrita à
questão autoral sobre quem tem direito de e sobre a vida do outro. Nesse campo
minado por relações sempre perigosas, onde se demandam e se dramatizam as
relações imbricadas, a presença do crítico biográfico torna-se uma exigência mais
do que necessária, posto que é ele quem “assina o que eu [o analisando
biografado] digo e o que escrevo” (Derrida), uma vez que a assinatura somente
pode ocorrer “no lado do destinatário”:
A assinatura de Nietzsche não ocorre quando ele escreve. Ele diz claramente que ela
ocorrerá postumamente, em consequência da linha de crédito infinita, que ele abriu para
ele mesmo, quando o outro vem assinar com ele, se aliar a ele e, para que possa fazer
isso, escutá-lo e compreendê-lo. Para escutá-lo, tem que se ter um ouvido aguçado. Em
outras palavras, [...] é o ouvido do outro que assina. O ouvido do outro fala de mim para
mim e constitui o autor de minha autobiografia. Quando, muito mais tarde, o outro terá
percebido com um ouvido suficientemente aguçado o que eu terei dirigido ou destinado
a ele ou a ela, aí minha assinatura terá ocorrido.13
O que Derrida afirma sobre a autobiografia de Nietzsche vale para pensar o
lugar do crítico biográfico enquanto o outro, o destinatário, aquele, enfim, que
assina pelo biografado. Na esteira do que diz o filósofo, podemos afirmar que a
assinatura do biografado somente acontece quanto o crítico biográfico escreve
sobre a vida desse outro, num gesto sempre a posteriori. Nesse sentido, a escrita
12
ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 129.
13
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 67.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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biográfica é, em certa medida, sempre póstuma e epitáfica: como póstuma, seria
aquela que nasceu depois da morte do pai, do autor (biografado), justificando, por
conseguinte, a briga autoral que se instaura entre o crítico biográfico e o outro.
Como inscrição do epitáfio, está-se sempre, de algum modo, tecendo elogios
breves mas ininterruptos a um corpo morto, uma vida consignada que se exuma.
Quase sempre notada de uma intenção poética, presta homenagem a um morto
como se estivesse vivo, podendo ocorrer também o contrário: trata de um vivo
como se estivesse morto. Póstuma ou epitáfica, em ambos os casos o que retira a
escrita biográfica dessa condição de post mortem é o fato de ela ser sempre da
ordem da sobrevida. Nem pós-morte, nem pós-vida, a escrita biográfica deixa
sempre a ideia de uma escrita póstera, que ainda vai acontecer, da ordem de um
post-scriptum. A linha de crédito infinita, que o escritor, que o artista de um modo
geral, deixa aberta para si mesmo, é a porta de entrada pela qual passa, mais tarde,
o crítico biográfico para, depois de escutar e compreender a vida desse outro,
assinar a vida alheia. Já sua vida, como crítico biográfico, será assinada somente
muito mais tarde por um outro. Mais do que um bom entendedor, o crítico
biográfico precisa ser um bom escutador, porque é por meio de sua escuta que ele
assina a biografia do outro. Quer seja no caso do biógrafo, quer seja no caso do
sujeito biografado, sempre “é o ouvido do outro que assina”. Como explica
Derrida, “o ouvido do outro fala de mim para mim e constitui o autos de minha
autobiografia.” Na direção do que afirma o filósofo, podemos dizer que à medida
que o crítico biográfico escreve a biografia do outro, constrói-se,
simultaneamente, sua própria autobiografia. É por meio dessa textualidade entre
vidas própria e alheia, entre textos de si, entre desejos comuns, é por meio do
ouvido sempre afiado que o crítico biográfico deve ter que, à medida que ele
escuta e escreve sobre a vida do outro, esse mesmo ouvido denuncia o “parentesco
indissolúvel” entre as vozes e as vidas diferentes dos amigos que se encontram
atravessados por essa relação transferencial e desejante. Não é por acaso que, para
Derrida,
todo texto [e aqui acrescentaríamos toda vida] responde a essa estrutura. É a estrutura da
textualidade em geral. Um texto é assinado apenas muito mais tarde pelo outro. E essa
estrutura testamentária não acontece a um texto como que por acidente, mas o constrói.
É assim que um texto acontece.14
14
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 67.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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Queremos postular a ideia de que a escrita de e sobre uma vida acontece
devido a essa textualidade feita da sobreposição de vidas e de assinaturas,
interesses e desejos comuns, onde papéis autorais são trocados por conta de brigas
nem sempre declaradas. Nessa relação onde se instaura um “parentesco
indissolúvel”, onde há uma linha de crédito infinita, bem como uma história de
um débito nunca quitado, onde remetentes e destinatários oscilam de papéis, um
“empréstimo” liga o devedor (o crítico biográfico) àquele de quem tomou
emprestado (o biografado). Aliás, como afirma Derrida, “o empréstimo é a lei”:
Sem tomar emprestado, nada começa, não há fundos adequados. Tudo começa com a
transferência de fundos e há juros ao se tomar emprestado [...] Tomar emprestado lhe dá
um retorno, produz mais-valia, é o principal agente de todo investimento. Sempre se
começa, portanto, com uma especulação, apostando-se num valor para se produzir como
se fosse a partir do nada. E todas essas metáforas confirmam, como metáforas, a
necessidade do que dizem.15
A relação transferencial na qual se encontra o crítico biográfico permite a
ele tomar emprestado tudo o que lhe interessa da vida do biografado. Se tomar
emprestado da vida do outro, por um lado, gera um juro impagável, por outro,
permite a instauração de um fundo sólido textual e culturalmente falando que,
depois de tornado público, resulta na produção intelectual do crítico biográfico, o
que equivale ao retorno, à mais-valia, enfim, ao resultado final de um
investimento iniciado por uma mera especulação. Na verdade, o que a crítica
biográfica faz é especular, no sentido derridaiano do termo, sobre a “história
interminável” da construção de um nome, sobre uma vida por vir, na tentativa de
“recontar um contar impossível, a história de um débito e de uma culpa
inevitáveis”.16 Nesse recontar crítico, o crítico biográfico aposta no que não sabe,
no que não conhece sobre a vida do outro, mas que precisa supor saber para,
assim, construir narrativamente a vida desse outro. Parodiando o final da
passagem derridaiana acima, diríamos que é somente metaforicamente que o
crítico biográfico aproxima-se e apropria-se da vida do outro: o crítico biográfico,
como um “especulador”, especular e metaforicamente ocupa o lugar do
15
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 110.
16
DERRIDA. Cartão-postal, p. 416.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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“legatário” e de forma especular ─ sobrevida17 narra essa vida para além da morte
da vida. Como se vê, o que fascina o crítico biográfico enquanto especulador da
vida do outro é o que essa vida tem de inconcebível: essa vida alheia se impõe ao
crítico biográfico no momento de escrever (e nesse momento ela é “questão da
vida da morte, de prazer-desprazer e de repetição”), obrigando-o que ele elabore
para si e para o outro essa vida/conceito inconcebíveis. Uma vida alheia, um
conceito inconcebível, uma produção biográfica da ordem do indecidível.
Sobrevida.
VIVER É APRENDER a morrer
O conceito de sobrevida de Derrida é sumamente necessário para a
articulação proposta pela crítica biográfica, sobretudo porque propõe uma
discussão que se dá para além da dualidade hierárquica vida e morte. Na direção
do que defende o filósofo, podemos afirmar que a escrita ensaístico-ficcional, que
ancora a crítica biográfica, não seria, pois, “nem a vida nem a morte” do texto da
vida/morte do biografado, mas, antes, sua “sobrevivência, sua vida após a vida,
sua vida após a morte”.18 Em entrevista concedida, intitulada “Estou em guerra
contra mim mesmo”, Derrida diz que sempre se interessou pela temática da
sobrevida, “cujo sentido não se acresce ao fato de viver e ao de morrer. Ela é
originária: a vida é sobrevida. Sobreviver no sentido corrente quer dizer continuar
a viver, mas também viver depois da morte”.19 Nessa direção proposta pelo
17
Faço aqui referência ao título do livro de Derrida Especular - sobre “Freud.” “O especulador
deve assim sobreviver ao legarário, e essa possibilidade está inscrita na estrutura do legado e até
mesmo nesse limite da auto-análise, cujo sistema sustenta a escritura um pouco como um caderno
quadriculado. A morte precoce e, logo, o mutismo do legatário que nada pode contra isso, eis uma
das possibilidades do que dita e faz escrever” (DERRIDA. O cartão-postal, p. 339). Sobre o
conceito e a palavra “especulação”, Derrida é levado a se perguntar: “O que fazer com esse
conceito inconcebível? Como especular com essa especulação? Por que ela fascina Freud, sem
dúvida de modo ambíguo, porém irresistível? O que é que fascina sob essa palavra? E por que ela
se impõe no momento em que é questão da vida da morte, de prazer-desprazer e de repetição?”
(DERRIDA. O cartão-postal, p. 306).
18
Apud ARROJO. Tradução, desconstrução e psicanálise, p. 78.
19
DERRIDA. Estou em guerra contra mim mesmo. In: MÁRGENS/MARGENES, p. 13. (Grifos
do autor)
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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filósofo, podemos dizer que o biografado continua a sobreviver, mesmo depois de
morto, na biografia crítica que se esboça no trabalho da crítica biográfica. Com
base no que diz Derrida, podemos dizer também que o biografado sobrevive não
só à sua morte, mas à sua obra, assim como um livro sobrevive à morte de seu
autor. Depois de afirmar que a sobrevida não deriva nem de viver nem de morrer,
conclui Derrida que “todos os conceitos que me ajudaram a trabalhar, sobretudo o
de rastro ou de espectral, estavam ligados a ‘sobreviver’ como dimensão
estrutural”.20 A sobrevida, em Derrida, está muito presa à herança e, por sua vez, à
uma plêiade de amigos que, de uma forma bastante única, marcou a vida do
sujeito para sempre. É nesse sentido que um ethos da sobrevida se inscreve no rol
das razões, antes mencionadas, que, de alguma forma, estruturam a reflexão na
qual se assenta o campo da crítica biográfica. Toda a política da amizade que se
desenha em torno da vida de um sujeito parece advir (devir) dessa condição de
sobrevida. Mais adiante nos deteremos especificamente nessa questão em torno da
amizade. “Estou em guerra contra mim mesmo”, se, por um lado, mostra uma
condição pessoal na qual se encontra o homem Jacques Derrida, por outro,
também reforça a ideia de que, para todo o projeto da desconstrução do filósofo, a
sobrevida não é simplesmente o que resta, é a vida mais intensa possível.21
Também em Torres de babel Derrida detém-se na questão da sobrevida. Ali,
o autor centra-se na tarefa do tradutor, via Benjamin. Aqui, podemos dizer que a
figura do crítico biográfico é correlata à do tradutor, na medida em que ambos
encontram-se na condição de “sujeito endividado, obrigado por um dever, já em
situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente dentro de uma genealogia, como
sobrevivente ou agente de sobrevida”.22 A condição de herdeiro endividado do
crítico biográfico o obriga a ter que tratar das obras e da vida do outro, inclusive, e
aqui diferente da tarefa do tradutor, da condição autoral do outro. Ao discutir a
tarefa do tradutor, Derrida transcreve esta passagem de Benjamin:
Da mesma forma que as manifestações da vida, sem nada significar para o vivo, estão
com ele na mais íntima correlação, também a tradução procede do original. Certamente
menos de sua vida que da sua ‘sobrevida’ (‘Uberleben’). Pois a tradução vem depois do
20
DERRIDA. Estou em guerra contra mim mesmo. In: MÁRGENS/MARGENES, p. 13.
21
Cf DERRIDA. Estou em guerra contra mim mesmo. In: MÁRGENS/MARGENES, p. 17.
22
DERRIDA. Torres de babel, p. 33.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
50
original e, para as obras importantes, que não encontram jamais seu tradutor
predestinado, no tempo de seu nascimento, ela caracteriza o estado de sua sobrevida
[Fortleben, desta vez, a sobrevida como continuação da vida mais que como vida post
mortem]. Ora, é na sua simples realidade, sem metáfora alguma [in vollig
unmetaphorischer Sachlichkeit], que é preciso conceber para as obras de arte as ideias
de vida e de sobrevida (Forleben).23
Na esteira do que propõe Benjamin, compete, entre as tarefas que são da
responsabilidade do crítico biográfico, saber que as manifestações da vida do
biografado se, por um lado, em nada possam interessar ao biografado, apesar da
íntima correlação entre as manifestações e sua vida, por outro lado, podemos dizer
que tais manifestações interessam sobremaneira ao crítico biográfico, sobretudo
porque quase tudo que é do estofo dessa crítica advém de um “original”, mesmo
que alheio/não comprovável em sua essência, denominado vida. Como a (na)
tradução, interessa mais à crítica biográfica aquilo que advém mais do campo da
sobrevida que da vida mesma. Como a uma tradução, a leitura crítica biográfica
vem depois da vida original, e essa sua condição de a posteriori, uma vez que a
figura de um crítico biográfico predestinado e ideal não existe, permite que ela
seja, ou ocupe o lugar de “sobrevida” daquela vida original. Mais nesse sentido,
mas pensamos em todos os sentidos, o que propõe a crítica biográfica é sempre
uma continuação daquela vida (que volta). Quando Benjamin diz que é preciso
tomar as ideias de vida e de sobrevida sem metáfora alguma, queremos entender
que o que é da ordem da “sobrevida” excede a vida e esbarra no espírito e
sobretudo no histórico. Nesse sentido, Derrida reitera que Benjamin “convoca a
pensar a vida a partir do espírito ou da história e não a partir apenas da
‘corporalidade orgânica’”:
É reconhecendo mais a vida em tudo aquilo que tenha história, e que não seja apenas
teatro, que se faz justiça a esse conceito de vida. Pois é a partir da história, não da
natureza [...] que é preciso finalmente circunscrever o domínio da vida. Assim nasce
para o filósofo a tarefa (Aufgabe) de compreender toda vida natural a partir dessa vida,
de mais vasta extensão, que é aquela da história.24
Pensar, compreender a vida do outro a partir do espírito ou da história, é
tomar a sobrevida como aquele momento no qual a “vida” existe para além da
23
Apud DERRIDA. Torres de babel, p. 32.
24
Apud DERRIDA. Torres de babel, p. 32.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
51
vida ou da morte. É com base nesse mundo da sobrevida, que se circunscreve
tendo em pano de fundo a história, o espírito e as obras, que se desenha o único
conceito de vida que interessa à crítica biográfica. Nesse sentido, qualquer
domínio que o crítico biográfico venha a ter da vida do outro (do biografado)
passa pela compreensão histórica dessa vida. Como a um tradutor de vidas
alheias, aí reside a tarefa de todo crítico biográfico. Há pouco falávamos do crítico
biográfico como um sujeito endividado. Tal endividamento dá-se, não entre
textos, como na tradução, mas entre vidas: a vida original do biografado e a vida
do biógrafo. “O original é o primeiro devedor, o primeiro demandador, ele
começa por faltar”, adverte-nos Derrida. Por trás desse endividamento está a lei
estrutural da transferência, um “duplo bind” que liga as duas vidas pelos nomes
(assinatura), que permite que a vida original de um sobreviva e se transforme na
do outro.
Viver é aprender a morrer dialoga com a velha injunção filosófica platônica
“filosofar é aprender a morrer”, mencionada por Derrida em “Estou em guerra
contra mim mesmo”. O filósofo diz acreditar nessa verdade sem a ela se entregar
inteiramente. Sobre o aprender a viver, confessa que nunca aprendeu a viver, e
que “aprender a viver deveria significar aprender a morrer, a levar em conta, para
aceitá-la, a mortalidade absoluta”.25 Estou em guerra contra mim mesmo pode ser
o lugar, ou melhor, a condição na qual o sujeito (Derrida) se encontra entre o
sobreviver à morte e o continuar a viver. Derrida abre seu livro Espectros de
Marx exatamente se perguntando sobre quem sabe, quem pode dar lição sobre o
aprender a viver: “aprender a viver, aprender por si mesmo, sozinho, ensinar a si
mesmo a viver (‘eu queria aprender a viver enfim’) não é, para quem vive, o
impossível?”26 Uma política da vida, da memória, dos fantasmas e dos espectros,
da herança e das gerações ronda “o mundo fora dos eixos” que constitui o campo
da sobrevida perseguido pela filosofia de Derrida. Talvez seja atravessada por
essa política da vida que, em Derrida, a amizade (philía) começa pela
possibilidade de sobreviver: “sobreviver é então ao mesmo tempo a origem e a
25
DERRIDA. Estou em guerra contra mim mesmo. In: MÁRGENS/MARGENES, p. 13.
26
DERRIDA. Espectros de Marx, p. 10.
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possibilidade, a condição de possibilidade da amizade, é o acto enlutado do amar.
Este tempo do sobreviver dá assim o tempo da amizade”.27
POLÍTICAS DA CRÍTICA biográfica
Não se pode amar sem se estar vivo e sem saber que se ama, mas pode amarse o morto ou o inanimado que assim nunca o saberão. É mesmo pela
possibilidade de amar o morto que uma certa amância vem a decidir-se.
DERRIDA. Políticas da amizade, p. 24.
Chegamos, assim, ao livro Políticas da amizade, cujo título serviu-nos para
pensar, desde o começo, as políticas que se armam no entorno das discussões
sobre a crítica biográfica. Não é demais lembrar que esse livro de Derrida, que a
história da filosofia nos legou no século XX, é o que temos de melhor não
somente sobre a história da amizade no Ocidente, como também a reflexão mais
cabal sobre a política no mundo moderno dito democrático. Não nos convêm,
aqui, arrolar todos os adjetivos que qualificam o livro como tal, obrigando,
inclusive, que qualquer crítico, seja o da crítica biográfica ou não, o insira no rol
de suas leituras políticas contemporâneas. Da perspectiva da crítica biográfica,
sobressaem, de nosso ponto de vista, duas considerações que se impõem quando a
discussão se pauta nas relações de amizade: uma dá-se sobre a conceituação da
fraternização e as relações nela imbricadas, com a democracia, família, irmão etc.
Ao se perguntar por que seria o amigo como um irmão, Derrida diz que
“sonhamos, nós, com uma amizade que se eleva para além desta proximidade do
duplo congênere. Para além do parentesco, tanto do mais como do menos natural,
quando ele deixa a sua assinatura, desde a origem, tanto no nome como no duplo
espelho de um tal par. Perguntemo-nos então o que seria a política de um tal ‘para
além do princípio de fraternidade’”.28 Resumindo, de forma brevíssima a questão,
o amigo não estaria para o irmão, justificando, por conseguinte, que a crítica
biográfica que leva em conta a questão fraternal pode estar propondo um engodo
no livre-arbítrio das relações (humanas) intelectuais que ela estabelece na cultura.
Nesse sentido, a política da crítica biográfica teria muito a aprender com as
27
DERRIDA. Políticas da amizade, p. 28.
28
DERRIDA. Políticas da amizade, p. 10.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 39‐58, jul./dez. 2010.
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políticas da amizade propostas pelo filósofo, sobretudo no tocante às relações
fraternais demais que, quase sempre, escamoteiam o político que subjaz em toda
amizade e em toda crítica de natureza biográfica. Francisco Ortega, ao discutir a
política da amizade proposta por Derrida, mostra a diferença entre a amizade e a
fraternidade: “a amizade exprime mais a humanidade do que a fraternidade,
precisamente por estar voltada para o público. Ela é um fenômeno político,
enquanto a fraternidade suprime a distância dos homens, transformando a
diversidade em singularidade e anulando a pluralidade”.29
A outra consideração que interessa sobremaneira à crítica biográfica referese à “boa amizade” que, segundo Derrida, supõe a desproporção:
exige uma certa ruptura de reciprocidade ou de igualdade, e também a interrupção de
toda a fusão ou confusão entre tu e eu. [...] A ‘boa amizade’ não se distingue da má
senão ao escapar a tudo quanto se acreditou reconhecer sob o mesmo nome de amizade.
[...] A boa amizade nasce da desproporção: quando se estima ou respeita o outro mais
do que a si mesmo. O que não quer dizer, precisa Nietzsche, que se o ame mais do que a
si mesmo [...]. A ‘boa amizade’ supõe, claro, um certo ar, um certo toque de
‘intimidade’, mas uma intimidade sem ‘intimidade propriamente dita’.30
A “boa amizade” proposta por Derrida demanda uma política da amizade da
“boa distância”. Na verdade, é essa política da “boa distância” que vai permitir à
crítica biográfica estabelecer relações de fundo metafóricas entre autores e obras,
por exemplo. Por todo o decorrer deste ensaio, falamos das relações
transferenciais (amorosas), mas, por nenhum momento, sequer mencionamos a
palavra “intimidade”. No caso específico da crítica biográfica, o crítico precisa
saber manter uma “boa distância” dupla: uma, quando estabelece comparações ou
aproximações entre os objetos estudados e/ou autores. A outra, manter a devida
distância entre o sujeito biografado e o próprio crítico. As vidas se complementam
na diferença. O que diz Ortega é esclarecedor para pontuar a relação entre o
crítico biográfico e o biografado: “é preciso aprender a cultivar uma ‘boa
distância’ nas relações afetivas, um excesso de proximidade e intimidade leva à
confusão, e somente a distância permite respeitar o outro e promover a
sensibilidade e a delicadeza necessárias para perceber sua alteridade e
29
ORTEGA. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, p. 31.
30
DERRIDA. Políticas da amizade, p. 74.
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singularidade”.31 Nietzsche, em Humano, demasiado humano, já advertia que “a
boa amizade surge quando nos abstemos prudentemente (weislich) da intimidade
propriamente dita e da confusão do eu com o tu”.32 Na esteira do que postula
Ortega, diríamos que compete ao crítico biográfico, sobretudo na cultura
contemporânea dominada pela “tirania da intimidade”, preservar um ethos da boadistância quando põe sub judice a vida do outro.
Da desconstrução da amizade fraternal e clássica, como faz Derrida por todo
o livro, emerge um novo tipo de amizade que é da ordem do impossível, por
constituir a experiência mesma do impossível. Três elementos conceituariam essa
amizade: a inconstância, a imprevisibilidade e a instabilidade.33 Tais adjetivos
seriam da ordem das relações, mas devem ser também da parte do próprio crítico
biográfico, isto é, seu trabalho estrutura-se nesse campo atravessado pelo
inconstante, pelo imprevisível e pelo instável. Como a amizade, a crítica
biográfica assim articulada está aberta para o acontecimento, para o novo, para a
invenção e para a experimentação.
A crítica biográfica como um exercício do político constitui uma nova
forma de ler as relações pessoais, sociais e culturais de modo crítico diferente.
Sobretudo por estar baseada no cuidado e na preservação da boa-distância que
precisa ser mantida. Em vista disso, o crítico biográfico aceita o desafio de pensar
as relações de amizade para além das amizades propriamente ditas, do bios para
além do bios, mesmo que esteja condenado a passar, primeiro, por esse bios,
pouco importando que esse seja seu ou do outro.
Para fechar a discussão, pelo menos por enquanto, valemo-nos de uma
pergunta conclusiva da qual Derrida se faz, quase ao final de Políticas da
amizade: “a pergunta ‘O que é a amizade?’, mas também ‘quem é o(a) amigo(a)?
não é outra que a questão ‘O que é a filosofia?”34, para nos perguntar: O que é a
crítica biográfica? A resposta pode ser da ordem do impossível. Mas qualquer
31
ORTEGA. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, p. 82.
32
Apud ORTEGA. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, p. 82.
33
Ver ORTEGA. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida, Foucault, p. 83.
34
DERRIDA. Políticas da amizade, p. 245.
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55
reflexão crítica de natureza biográfica passa por razões que são da ordem de
princípio e do coração, como dissemos logo de início.
REFERÊNCIAS
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imago Ed., 1993.
DERRIDA, Jacques. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a
nova internacional. Trad. de Anamaria Skiner. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1994.
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UFMG, 2002.
DERRIDA, Jacques. Políticas da amizade. Trad. de Fernanda Bernardo. Porto:
Campo das letras, 2003.
DERRIDA, Jacques. O Cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Trad. de
Simone Perelson e Ana Valéria Lessa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2007.
DERRIDA, Jacques. In: Revista de Cultura Margens/Márgenes, n.5, jul.-dez.,
2004, p. 12-17: “Estou em guerra contra mim mesmo”
DERRIDA, Jacques, ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Trad.
de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
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Clarice Lispector. São Paulo: Annablume Editora, 2004.
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reinvenção do arquivo da memória cultural da América Latina. São Carlos: Pedro
& João Editores, 2010.
ORTEGA, Francisco. Para uma política da amizade: Arendt, Derrida e Foucault.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
RODRIGUES, Valéria Aparecida, NOLASCO, Edgar Cézar. In: GUERRA,
Vânia Maria Lescano, NOLASCO, Edgar Cézar (org.) Formas, espaços, tempos:
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56
reflexões linguísticas e literárias. Campo Grande: Editora UFMS, 2010, p. 41-64:
O bios nas fábulas de Clarice Lispector.
SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: Crítica cult. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 111-121.
57
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58
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CRÍTICA BIOGRÁFICA, ainda1
Eneida Maria de Souza2
A estreita e bem humorada relação entre obra e vida, teoria e ficção se deve
ao depoimento de Richard Rorty, filósofo pragmático americano, falecido em
2007. Confessou, em texto publicado na Folha de S. Paulo, que sofria do mesmo
mal de Jacques Derrida, o câncer no pâncreas. Segundo Rorty, a coincidência era
tributária da excessiva leitura que ambos faziam de Hegel, o vício intelectual visto
como a causa do mal. A doença é diagnosticada, no entender do filósofo, pela
escolha profissional do paciente e pela leitura de determinado autor, não havendo,
portanto, separação entre vida e trabalho. A justificativa se apóia na inversão da
causa física da doença pela profissional, pela criação do mal pelo próprio
indivíduo, graças à sua formação e desejo intelectual. Rorty, filósofo pragmático e
um dos seguidores da difícil obra de Hegel, morre, como Derrida, daquilo que
viveu, de sua paixão pelo conhecimento e por uma particular forma de saber.
A declaração de Rorty, à primeira vista dotada de efeito humorístico, é
capaz de suscitar reflexões que iluminam a questão biográfica e a aproxima do
livro de Michel Schneider, Mortes imaginárias.3 São aí escritos e encenados os
últimos momentos e as prováveis frases pronunciadas por alguns escritores, assim
como a situação, o lugar ou as condições de sua morte. Esse exercício
teórico/ficcional remete ao fascínio biográfico motivado pela vida literária e a
sensível aproximação entre teoria e ficção.
1
Cf. artigo de minha autoria, “Notas sobre a crítica biográfica”. In: Crítica cult. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007. Este ensaio dá continuidade à reflexão ali iniciada.
2
Eneida Maria de Souza é professora Emérita da UFMG.
3
SCHNEIDER, Michel. Morts imaginaires. Paris: Grasset, 2003.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 59‐66, jul./dez. 2010.
É digna de nota a pesquisa pioneira de Susan Sontag a respeito das doenças
e suas metáforas, como a tuberculose, o câncer e a Aids. Descrevendo as
moléstias entre as que eram aceitas e as excluídas pela sociedade, estabelecendo a
relação entre arte e vida, contribui do ponto de vista social, cultural e político para
o avanço das discussões sobre a crítica biográfica. A utilização da metáfora para a
discriminação das doenças na sociedade funciona de forma negativa, ao servir
como reforço ao preconceito e à exclusão. Reelabora, assim, conceitos arraigados
e como resultado de crenças e superstições, como a culpa, a vitimização e a
irresponsabilidade social atribuídas aos pacientes.4
A metáfora literária, utilizada como mediação por escritores para justificar a
vocação pela vida intelectual, tem em Roland Barthes um dos exemplos mais bem
sucedidos. Em Roland Barthes por Roland Barthes, a legenda que registra a foto
do escritor ainda criança, “Contemporâneos?”, enlaça seu destino ao de Proust,
pela relação entre seus primeiros passos e o término da Busca. A
contemporaneidade é construída no presente, ao ser conferida à criança um
passado literário: “Contemporâneos?/Eu começava a andar, / Proust ainda vivia
e/terminava a Busca.”5 Silviano Santiago se vale igualmente dessa metáfora para
construir relatos pseudo-autobiográficos, utilizando-se da data de seu nascimento,
1936, para apontar aí coincidências entre eventos vividos por escritores de sua
predileção, como Graciliano Ramos e Antonin Artaud.6 O destino literário é
marcado por injunções biográficas, pela escolha de precursores que garantam a
entrada do escritor no cânone. Entende-se, portanto, a concepção de biografia
intelectual como resultado de experiências do escritor não só no âmbito familiar e
pessoal, mas na condensação entre privado e público. As datas recebem
tratamento alegórico e a história pessoal se converte em ficção, pela intromissão
do outro na narrativa.
4
Cf. SONTAG, Susan. A doença e suas metáforas. São Paulo: Graal, 1984; A aids e suas
metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
5
BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés.
São Paulo: Estação Liberdade, 2003, p. 35.
6
SANTIAGO, Silviano. Em liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.; Viagem ao México. Rio
de Janeiro: Rocco, 1995.
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É importante, enfim, assinalar a contribuição de teóricos latino-americanos
para a leitura pós-colonial do gênero autobiográfico, na qual são introduzidas
cenas que remetem ao ato de leitura dos escritores. O livro, a leitura, a pose do
leitor assumem significado semelhante à iniciação do sujeito na escrita, gesto não
apenas individual e particular, mas cultural. Nesse sentido, os relatos
autobiográficos giram em torno da experiência do leitor latino-americano em
relação ao arquivo europeu, promovendo distorções e leituras desencontradas,
com o objetivo de desconstruir o mito da escrita como controle da barbárie. As
incursões de Ricardo Piglia no universo da leitura; de Sylvia Molloy na escrita
autobiográfica; de Walter Mignolo na revisão dos conceitos de local e global nos
textos pós-coloniais; e de Julio Ramos na relação entre escrita e modernização na
constituição de saberes descontextualizados e, por esta razão, inaugurais,
autorizam a vertente cultural e comparada de minhas leituras.
No que diz respeito à abordagem mais pontual da crítica biográfica, é
preciso distinguir e condensar os pólos da arte e da vida, por meio do emprego do
raciocínio substitutivo e metafórico, com vistas a não naturalizar e a reduzir os
acontecimentos vivenciados pelo escritor. Não se deve argumentar que a vida
esteja refletida na obra de maneira direta ou imediata ou que a arte imita a vida,
constituindo seu espelho. A natureza artificial da arte recebeu do dandy e
decadentista Oscar Wilde a definição primorosa: a vida imita a arte. A presença de
mediações, de terceiras pessoas, da relação oblíqua entre arte e vida é passível de
intervenções entre as duas instâncias, sem que o lastro biográfico se defina pela
empiria e pela interpretação textual baseada em soluções fáceis e superficiais. A
preservação da liberdade poética da obra na reconstrução de perfis dos escritores
reside no procedimento de mão dupla, ou seja, reunir o material poético ao
biográfico, transformando a linguagem do cotidiano em ato literário. Ainda que
determinada cena recriada na ficção remeta a um fato vivenciado pelo autor, devese distinguir entre a busca de provas e a confirmação de verdades atribuídas ao
acontecimento, do modo como a situação foi metaforizada e deslocada pela
ficção. O nome próprio de uma personagem, mesmo que faça referência a pessoas
conhecidas do escritor, não impede que sua encenação embaralhe os dados e
coloque a verdade biográfica em suspenso.
Pelo fato de a crítica literária se expandir em várias e múltiplas vertentes,
incluindo-se aí a critica comparada, a cultural, a biográfica, a genética, a textual –
sem que os preconceitos e as hierarquias sejam prioritárias no tratamento das
mesmas – torna-se às vezes difícil impor limites para sua prática. Diante do
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 59‐66, jul./dez. 2010.
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aspecto abrangente das disciplinas e de sua abertura transdisciplinar, revela-se
inoperante e retrógrada a separação entre domínios específicos, embora deva ser
exigida a definição de pressupostos teóricos e de metodologias na realização de
um trabalho crítico.
A crítica biográfica se apropria da metodologia comparativa ao processar a
relação entre obra e vida dos escritores pela mediação de temas comuns, como a
morte, a doença, o amor, o suicídio, a traição, o ódio, relações familiares, como o
tema dos irmãos inimigos, da busca do pai, da bastardia, do filho pródigo, e assim
por diante. Reunidos por um fio temático e enunciativo, independente de
intenções ou da época em que viveram, escritores e pensadores constituem
matéria biográfica a ser explorada no nível teórico e ficcional. A comparação
conta, portanto, com a ajuda de critérios biográficos, ao promover encontros entre
escritores e incentivar a criação de diálogos muitas vezes inesperados. Esse
procedimento é dotado de liberdade criativa, por conceder ao crítico certa
flexibilidade ficcional sobre o objeto em análise, não se prendendo à palavra do
autor, mas indo além dela. Por essa razão, o elemento factual da vida/obra do
escritor adquire sentido se for transformado e filtrado pelo olhar do crítico, se
passar por um processo de desrealização e dessubjetivação.
Essa crítica não se concentra, contudo, apenas em obras de teor biográfico
ou memorialista, por entender que a construção de perfis biográficos se faz
independentemente do gênero. Nas entrelinhas dos textos consegue-se encontrar
indícios biográficos que independem da vontade ou propósito do autor. Por essa
razão, o referencial é deslocado, por não se impor como verdade factual. A
diferença quanto à crítica biográfica praticada durante esses últimos anos consiste
na possibilidade de reunir teoria e ficção, considerando que os laços biográficos
são criados a partir da relação metafórica existente entre obra e vida. O importante
nessa relação é considerar os acontecimentos como moeda de troca da ficção, uma
vez que não se trata de converter o ficcional em real, mas em considerá-los como
cara e coroa dessa moeda ficcional. Consiste ainda na liberdade de montar perfis
literários que envolvem relações entre escritores, encontros ainda não realizados,
mas passíveis de aproximação, afinidades eletivas resultantes das associações
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 59‐66, jul./dez. 2010.
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inventadas pelo crítico ou escritor. Esses perfis exercem, em geral, papel
importante na elucidação de propostas literárias, questões teóricas e contextuais.7
Se considerarmos que a realidade e a ficção não se opõem de forma radical
para a criação do ensaio biográfico, não é prudente checar, no caso de
autobiografias ou de biografias, se o acontecimento narrado é verídico ou não. O
que se propõe é considerar o acontecimento – se ele é recriado na ficção –
desvinculado de critérios de julgamento quanto à veracidade ou não dos fatos. A
interpretação do fato ficcional como repetição do vivido carece de formalização e
reduplica os erros cometidos pela crítica biográfica praticada pelos antigos
defensores do método positivista e psicológico, reinante no século 19 e princípios
do 20. O próprio acontecimento vivido pelo autor – ou lembrado, imaginado – é
incapaz de atingir o nível de escrita se não são processados o mínimo
distanciamento e o máximo de invenção. A crítica biográfica não pretende reduzir
a obra à experiência do autor, nem demonstrar ser a ficção produto de sua
vivência pessoal e intransferível. As relações teórico-ficcionais entre obra e vida
resultam no desejo de melhor entender e demonstrar o nível de leitura do crítico,
ao ampliar o pólo literário para o biográfico e daí para o alegórico.
A retomada de conceitos referentes à autobiografia, como o de autoficção,
inaugurada por Serge Doubrovsky em 1977, teve o mérito não só de rever a
relação complexa entre ficção e realidade, como de reforçar a incapacidade do
sujeito de se manter íntegro e onipotente. Considerada pela crítica como “aventura
teórica”, a autoficção, longe de se impor como chave que abre todos os enigmas
da autobiografia – e se contrapõe a ela –, guarda, segundo Jean- Louis Jeannelle, o
conhecido estatuto conferido ao sujeito pelas teorias psicanalíticas, foucaultianas e
barthesianas, da ficcionalização de si, da encenação de subjetividades no ato da
escrita e do discurso. Essa aventura foi proclamada por Roland Barthes em Roland
Barthes por Roland Barthes, de 1975, ao admitir na sua “autobiografia”, que
7
Cf. meu livro Pedro Nava – o risco da memória, especialmente o capítulo inicial sobre sua
morte. Sem me preocupar com a razão do suicídio do escritor, analiso o acontecimento segundo
critérios ligados à elucidação da modernização urbana do final do século, do lugar deslocado do
sujeito diante das mudanças operadas pelo tempo. De flâneur o escritor passa a voyeur, além de se
integrar ao patrimônio da cidade do Rio de Janeiro, no momento em que comete suicídio em pleno
espaço público, lugar que soube tão bem lutar por sua preservação. SOUZA, Eneida Maria de.
Pedro Nava-o risco da memória. Juiz de Fora: Funalfa, 2004.
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“com as coisas intelectuais, nós fazemos ao mesmo tempo da teoria, do combate
critico e do prazer.”8 Para Serge Doubrovsky, a autoficção é a forma pósmoderna, quer dizer, pós-holocauto, da autobiografia, pois, “ mesmo que todos os
detalhes sejam exatos, o relato é sempre reinvenção do vivido. (...) ou mais à
frente, “Não se lê uma vida, lê-se um texto.” Ou: “Mais uma vez, alguma
autobiografia nem alguma autoficção não pode ser a fotografia, a reprodução de
uma vida. Não é possível. A vida se vive no corpo; a outra, é um texto. (…) A
autoficção, é o meio de ensaiar, de retomar, de recriar, de remodelar num texto,
numa escrita, experiências vividas, de sua própria vida que não são de nenhuma
maneira uma reprodução, uma fotografia... É literalmente e literariamente uma
invenção.”9
A autoficção, pela sua defesa da narrativa a meio caminho entre o
testemunho e a ficção, se declara uma narrativa pós-holocausto, por ter sido a
narrativa do holocausto sempre pautada pela obediência às normas de fidelidade
aos acontecimentos vividos, embora tal exigência se revelasse equivocada. Não
resta dúvida de que a publicação, em 1998, (e em português, em 2008), do livro de
Giorgio Agamben, O que resta de Auschwitz, evidencia o avanço teórico das
narrativas do holocausto, ao afirmar, com a ajuda de outros pensadores, como
Primo Levi, que todo testemunho contém necessariamente uma lacuna, pois quem
teria mais condições de se expressar com mais autoridade sobre o fato, os
considerados “muçulmanos”, não o fizeram. Como testemunhos integrais, não
puderam expressar sua experiência, por se encontrarem na condição de nãohumanos, entregando sua vida ao destino, sem vontade nem para sofrer, à
semelhança do “muslim”, o suposto fatalismo islâmico. Eram denominados
8
JEANNELLE, Jean-Louis. Où en est la réflexion sur l ´autofiction? In: JEANNELLE, JeanLouis; VOLLET, Catherine. (dir.). Genèse et autofiction. Louvain-la Neuve, Bruylant- Academia,
2007, p. 17.
9
DOUBROVISKY, Serge. Les points sur les “i”. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET,
Catherine. (dir.). Genèse et autofiction. Op. cit., p. 63-64. “ Encore une fois, aucune
autobiographie ni aucune autofiction ne peut être la photographie, la reproduction d´une vie. Ce
n´est pas possible. La vie se vit dans le corps; l´autre, c´est un texte. (…) L´autofiction, c´est le
moyen d´essayer de rattraper, de recréer, de refaçonner dans un texte, dans une écriture, des
expériences vécues, de sa propre vie qui ne sont en aucune manière une reproduction, une
photographie…C´est littéralement et littérairement une reinvention.”
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 59‐66, jul./dez. 2010.
64
figuras, manequins, por se situarem, como sobreviventes, na zona intermediária
entre a vida e a morte, o humano e o inumano. 10
Outras indagações referentes à autoficção conduzem à desestabilização do
referencial, ao seu deslocamento, assim como aos deslocamentos espaçotemporais, considerando serem os protocolos enunciativos mais livres. O autor
tem a liberdade de utilizar o mesmo nome para sua personagem ou narrador, sem
que tal gesto interfira no grau de fidelidade/infidelidade narrativa, em posição
distinta daquela defendida por Philippe Lejeune quanto ao pacto autobiográfico.
Essa estratégia referencial às avessas reveste-se ainda da antiga poética narrativa,
marcada pelo gesto de “mentir-vrai”, “mentir- verdadeiramente”, operação que
reúne princípios enunciativos ligados ao teatro e ao romance, construindo uma
cenografia da enunciação. A desestabilização do referencial produz, com efeito, a
invenção e a estetização da memória, esta não mais subordinada à prova de
veracidade. Trata-se da ação deliberadamente ficcional por parte do sujeito, do
gesto de dessubjetivação que o insere no jogo fabular da narrativa. Estar ao
mesmo tempo no interior da linguagem e fora dela consiste na operação paradoxal
da presença/ausência do sujeito na complexa cena enunciativa. Essa premissa
ficcional é ainda assumida por muitos dos autores modernos – e pós-modernos.
Entre eles, a figura de Louis Aragon, na literatura francesa, e a de Silviano
Santiago, na brasileira, com o Falso mentiroso, de 2004 e Histórias mal contadas.
(2005) 11 O artigo de Silviano Santiago, “Meditação sobre o oficio de criar”,
10
“Soit le paradoxe de Levi: ´Le musulman est le témoin intégral.´Il implique deux propositions
contradictoires: 1.´Le musulman est le non-homme, celui qui ne peut en aucun cas témoigner.´ 2.
´Celui qui ne peut témoigner est le vrai témoin, le témoin absolu.´” AGAMBEN, Giorgio. Ce qui
reste d ´Auschwitz. Traduit de l´italien para Pierre Alferi. Paris: Rivages Poche, 2003. p. 164.
11
O artigo de Maryse Vassevière, “ Autofiction et mentir-vrai chez Aragon: les aveux de la
génétique”, define com clareza esta proposta teórico/poética do escritor: “ Porque em Aragon, o
discurso autobiográfico tem sempre anseio do necessário desvio pela ficção. É o que ele teorizou
sob o nome de mentir-verdadeiramente e que se pode considerar seja como uma pura teoria do
romance se o acento é colocado sobre o mentir, seja como um território no vasto continente da
autoficção se se coloca o acento sobre o verdadeiro.” (Tradução da autora). “Car chez Aragon, le
discours autobiographique a toujours besoin du nécessaire détour par la fiction. C´est ce qu´il a
théorisé sous le nom de mentir-vrai et que l´on peut considérer soit comme une pure théorie du
roman si l´on met l´accent sur le mentir, soit comme un territoire dans le vaste continent de
l´autofiction si l´on met l´accent sur le vrai...”. VASSEVIÈRE, Maryse. “Autofiction et mentir-
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 59‐66, jul./dez. 2010.
65
recém-publicado pela Revista Aletria, n. 18, esclarece sobre o conceito de
autoficção, além de ilustrar uma das tendências mais controvertidas e, mesmo
assim, mais presentes na literatura e nas artes contemporâneas:
Um dos grandes temas que dramatizo em meus escritos, com o gosto e o prazer da
obsessão, é o da verdade poética. Ou seja, o tema da verdade na ficção, da experiência
vital humana metamorfoseada pela mentira que é a ficção. Trata-se do óbvio paradoxo,
cuja raiz esta entre os gregos antigos. Recentemente, encontrei a forma moderna do
paradoxo num desenho de Jean Cocteau, da série grega. Está datado de novembro de
1936. No desenho vemos um perfil nitidamente grego, o do poeta Orfeu. De sua boca,
como numa história em quadrinho, sai uma bolha onde está escrito: “Je suis un
mensonge qui dit toujours la verité”. (Sou uma mentira que diz sempre a verdade). Esse
jogo entre o narrador da ficção que é mentiroso e se diz portador da palavra da verdade
poética, esse jogo entre a autobiografia e a invenção ficcional, é que possibilitou que eu
pudesse levar até as últimas consequências a verdade no discurso híbrido. De um lado, a
preocupação nitidamente autobiográfica (relatar minha própria vida, sentimentos,
emoções, modo de encarar as coisas e as pessoas, etc), do outro, adequá-la à tradição
canônica da ficção ocidental.12
66
vrai chez Aragon: les aveux de la génétique”. In: JEANNELLE, Jean-Louis; VOLLET, Catherine.
(dir.). Genèse et autofiction. Op. cit., p. 90.
12
SANTIAGO, Silviano. Meditação sobre o ofício de criar. Revista Aletria. Belo Horizonte, n. 18,
jul/dez. 2008, p. 178.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 59‐66, jul./dez. 2010.
MATÉRIAS‐PRIMAS: entre autobiografia e autoficção1
Evando Nascimento2
L'autobiographie est toujours, en fait, une autofiction.
[Na verdade, a autobiografia é sempre uma autoficção.]
Serge Droubovsky
Farei inicialmente alguns esclarecimentos, como introdução ao tema das
relações entre autobiografia e o que atualmente se chama de autoficção.
A primeira vez que ouvi falar de autoficção foi numa palestra de Régine
Robin, organizada por Eurídice Figueiredo, na Universidade Federal Fluminense,
em 1997. Tive na ocasião a possibilidade de conversar com a conferencista, que
só viria a reencontrar textualmente mais de dez anos depois, por meio de seu
último livro publicado na França, Mégapolis (2009), obra que discorre sobre
megacidades como Nova York, Buenos Aires, Tókio, São Paulo e Rio de Janeiro.
Francesa radicada no Canadá, Robin é não só uma das teóricas e críticas mais
relevantes do que hoje usualmente se chama de autoficção, como também a
pratica. Seu sítio da Internet, Page des papiers perdus, comporta duas entradas,
uma para a professora e crítica literária e a outra para a escritora de origem
judaica.3
1
Texto lido numa mesa-redonda sobre “Autobiografia e Autoficção”, na Universidade Federal de
Juiz de Fora, em 26 de maio de 2010. Participaram também da mesa Eneida Maria de Souza
(UFMG), Diana Klinger (UFF) e Jovita Noronha (UFJF).
2
Evando Nascimento é professor da UFJF.
3
Cf. http://www.er.uqam.ca/nobel/r24136/ (consulta realizada em 20/04/2010).
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 67‐86, jul./dez. 2010.
Aquele primeiro encontro foi decisivo para tudo o que faria a partir daí.
Antes disso, o tema da autobiografia e da confissão já entrara em minha vida, no
momento em que escrevendo a tese sobre Derrida, me senti na obrigação de ler
uma de suas muitas referências, as Confissões de Rousseau.4 Esse livro, que é um
verdadeiro fetiche para o teórico da autobiografia, Philippe Lejeune, causou forte
impacto. Nunca consegui lê-lo pelo viés do “pacto autobiográfico”, ou seja, como
definiu e redefiniu recentemente o próprio Lejeune, por um compromisso com a
verdade. Certamente já contaminado por Derrida, tomei cada uma das palavras de
Rousseau como uma vasta ficção, por assim dizer um romance filosófico. Cada
linha desse belíssimo volume me dizia, “Não creia literalmente no que digo, pois a
vida só é possível reinventada” – enxertei aqui de propósito os versos célebres de
Cecília Meireles, que já citei em outras ocasiões, como um mote para qualquer
vida que se queira minimamente literária.5 Lembro de passagem que Derrida faz
parte daquela categoria de pensadores que, como Rousseau, Nietzsche e
Benjamin, ousaram filosofar na primeira pessoa.
O livro de Rousseau e as leituras de Derrida me prepararam o espírito não
para o “pacto autobiográfico” de Lejeune, autor que só viria a ler depois, mas para
a autoficção de Serge Doubrovsky, escritor francês que criou esse termo até certo
ponto como provocação à teoria, em muitos aspectos limitada, de Lejeune, o qual
viria também a lhe dar a réplica, num ciclo de provocações sem fim.
Assinalo que toda a questão da classificação de um texto como
“autobiografia” seria quanto a saber o limite entre o autobiográfico e o nãoautobiográfico, e isso é fundamental para compreender a invenção de
Doubrovsky, a “autoficção”. A definição do gênero autobiográfico foi feita em
meados dos anos 19706 e mantida por Lejeune na revisão que fez de seu percurso
em 2001, em “Le Pacte autobriographique, vingt-cinq ans après” [O Pacto
autobiográfico, vinte e cinco anos depois],7 baseando-se essencialmente no
4
Rousseau, Jean-Jacques. Les confessions. Paris: Gallimard, 1996.
5
Cf. Meireles, Cecília. Reinvenção. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985, p. 195.
6
Lejeune, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.
7
Lejeune, Philippe. Le Pacte autobiographique, vingt-cinq ans après. In: Signes de vie: le pacte
autobiographique 2. Paris: Seuil, 2005, p. 11-35. (Salvo indicação contrária, todas as traduções são
minhas.)
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imperativo do pacto. É preciso que um texto se inscreva num “pacto de verdade”
com seu leitor, por meio de um performativo que prometa e garanta estar dizendo
a verdade, não mais do que a verdade. Eis como ele define os critérios que regem
a Associação, por ele fundada, em prol da autobiografia e do patrimônio
autobiográfico: “Aceitamos para depósito e leitura todos os textos de vida inéditos
que nos propõem: autobiografias, relatos de infância, de guerra, de doença, de
viagens, diários pessoais, cartas – mas solicitamos que sejam regidos por um
pacto de verdade. Descartamos as ficções e as coletâneas de poemas.
Evidentemente às vezes acontece de hesitar em estabelecer a fronteira. Mas há
uma fronteira. A coerência e o valor de uso do acervo [fonds d’archives] que
constituímos depende disso”.8 Curiosamente, nesse texto que faz um balanço de
seu percurso tem-se também uma confissão autobiográfica: Lejeune fala da
relação de amor e de distanciamento para com o diário e outras “escritas do eu”. A
certa altura, cita Paul Valéry: “Na verdade, não existe teoria que não seja um
fragmento, cuidadosamente preparado, de alguma autobiografia”. Em seguida,
comenta: “Meu próprio desejo autobiográfico explica, portanto, ao mesmo tempo
o lado normativo de L’Autobiographie en France, a escolha do projeto
rousseauista e minha cegueira em relação ao diário”.9 Esse texto é precioso para
se ver o lado autobiográfico de toda teoria; os interesses nunca são neutros, mas
resultantes de “frustrações e desejos” do teórico e crítico, como o próprio Lejeune
sublinha.
Já a proposta de Doubrovsky viria para completar o quadro traçado por
Lejeune em seu famoso estudo dos anos 1970. Na quarta-capa de seu livro Fils
(1977),10 Doubrovsky propõe o termo de autoficção para o tipo de narrativa em
que os nomes do autor, do narrador e do protagonista coincidem. Assim, no
romance Fils, mais do que simples autobiografia, tem-se a encenação da vida
privada do autor Serge Doubrovsky sob forma de (auto)ficção.
Feita essa anotação conceitual, retomo o curso da pequena anamnese acima
esboçada. A atitude diante da autoficção, que me chegava pela palavra falada e
8
Ibid., p. 27, grifos meus.
9
Ibid., p. 27-28.
10
Doubrovsky, Serge. Fils. Paris: Grasset, 1977.
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impressa de Robin – pois li seu livro fundamental Le Golem de l’écriture11 –, era
tanto de absoluto fascínio quanto da maior desconfiança. Também por meio de
Derrida, aprendi a desconfiar de tudo o que leva o prefixo “auto”, de toda carga
excessiva colocada no “eu”, no “me” e no “mim”, além, é claro, do nome dito
próprio. Tal como desenvolvi num dos capítulos de Derrida e a literatura,12 tudo
o que leva a marca do que chamamos de “eu” tanto me sidera quanto me põe em
guarda, atento aos riscos do narcisismo exacerbado.
Antes de tudo, porque tanto Derrida quanto Lévinas, aquele como leitor
deste, tornaram patente a precedência do outro sobre o eu.13 Tudo o que sou, tudo
o que somos, vem dos outros e das outras que nos conceberam, deram um nome,
cuidaram e até hoje nos chamam. Antes da consciência do próprio nome, há o
chamado (Clarice Lispector), o apelo à convivência e ao compartilhamento da
experiência, a qual jamais é inteiramente solipsista. Estou convencido de que toda
experiência do eu passa pelo encontro com a alteridade, de forma estrutural e
irredutível. “Eu” só existe porque o outra/a outra (que pode ter inúmeros nomes:
mundo, universo, natureza, Deus, pai, mãe, família, sociedade, acaso, lei, norma
etc.) lhe deu existência. É nesse sentido que se deveria ler a famosa frase de
Rimbaud no contexto original da carta em que se inscreve: eu é um outro14 porque
é esse outro e essa-outra que me fundam, desde antes do nascimento, quando
ainda não passo de uma ideia na mente e no corpo de meus pais. “Eu” é e sempre
será outro, igual e diferente de si: esse diferimento vem da alteridade que nos
habita. Tal é o primado ético da existência: antes de mim o outro ou a outra que
me deram vez e lugar. Na verdade, parafraseando a epígrafe acima de
Doubrovsky, diria que o eu não passa de uma ficção do outro. Pois o outro é que
me inventa, a meu desconhecimento e até a minha revelia. Desde a certidão de
nascimento até o atestado de óbito, quem cuida sempre de nossas vidas são os
outros, sem os quais nada seríamos, nada somos.
11
Robin, Régine. Le Golem de l’écriture: de l’autofiction au cybersoi. Montréal: Ed. XYZ, 1997.
12
Nascimento, Evando. Derrida e a literatura. 2ª. ed. Niterói: EdUFF, 2001, p. 306-311.
13
Cf. Derrida, Jacques. Psyché: inventions de l’autre. Paris: Galilée, 1987. Lévinas, Emmanuel.
Totalité et infini: essai sur l’exteriorité. Paris: Kluwer Academic, 1994. Lévinas, Emmanuel.
Autrement qu’être ou au-delà de l’essence. Paris: Kluwer Acdemic, 1996.
14
Rimbaud, Arthur. Lettres de la vie littéraire. Paris: Gallimard, 1990.
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Por esse motivo sempre preferi, em vez do neologismo autoficção, um
outro, um pouco mais estranho, o de alterficção ou ainda o de heteroficção, para
marcar que tudo vem do outro e a ele-ela retorna, malgrado a passagem necessária
pelo eu. Todavia, deixo de lado a heteroficção, em proveito da alterficção, pois a
primeira corre o risco de se confundir com a heterossexualidade, reduzindo-se a
um novo sexismo. Alterficção é uma autêntica “ficção do interlúdio” (para citar
Pessoa), lugar intervalar onde o eu se constitui entre dois outros, um que o
antecede e outro que o sucede. Será preciso, num outro momento, pensar juntos a
heteronímia pessoana e a auto/alterficção, com e além de Serge Doubrovsky. Se
neste texto recorrero a maior parte do tempo à autoficção, deixo desde logo claro
que esse operador textual se encontra de ponta a ponta modulado pela alterficção.
Alterficção: ficção de si como outro, francamente alterado, e do outro como uma
parte essencial de mim.
Retorno novamente ao contexto de meus esclarecimentos (mas não de
minhas confissões). Além da autoficção, surgiu no texto de Robin o termo
bioficção, que vim a utilizar em mais de um momento, em particular num artigo
publicado na Cult, sobre o poeta e amigo Waly Salomão, “Os Favos da (quase)
poesia”.15 O maior efeito do encontro com essa categoria foi a decisão tomada a
partir de então de considerar tudo o que viesse a escrever como fragmento de um
grande diário, pouco importando se se tratava de ensaio universitário ou de ficção
pura e simples. Mas no ano seguinte ao daquele luminoso encontro, em 1998, me
veio o desejo imenso de escrever de fato um diário ficcional, que teria a forma de
um romance reinventado. Fazia parte do projeto datar qualquer coisa que viesse a
escrever, mesmo a simples anotação à margem de um livro ou numa caderneta
que passei a utilizar.
Datar e assinar embaixo, circunstanciar a escrita, dando-lhe uma
materialidade temporal, eis todo o paradoxo da ficção auto ou alterbiográfica. Em
1998, portanto, comecei a escrever um livro que foi aos poucos se configurando
como “diário fictício”, oximoro absolutamente voluntário. De modo que me vi
envolvido num projeto dentro do projeto: se tudo para mim virara diário então por
que não escrever um romance-diário, contando uma história que outra não fosse
senão a de minha própria e minúscula vida? A referência é sem dúvida Vidas
15
Nascimento, Evando. Os favos da (quase) poesia. Cult, ano V, nº 51. SP: outubro, 2001, p. 1013.
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minúsculas, de Pierre Michon.16 Por razões que não caberia explicar aqui, esse
primeiro romance ficou arquivado. Acabei por publicar um outro, escrito entre
2004 e 2007, o Retrato desnatural.17
Cabe lembrar que a ideia do diário, para além da influência ou da
confluência da autoficção de Doubrovsky e de Robin, foi marcada por três outras
referências. A primeira delas foi uma passagem de um belo ensaio de Barthes, em
que ele diz não suportar o gênero diário porque nele se diz “eu” o tempo todo.18
Mas o próprio Barthes propõe uma saída para esse solipsismo, ao reconsiderar que
o diário é possível, sim, como escritura, desde que reinventado, ou seja, como
forma de reescrita literária.19 Esse texto ressoou por um longuíssimo período, e
decerto jamais se apagou; como tantas coisas de Barthes, a marca escritural ficou
e surtiu efeito. Muito do que fiz e faço vem desse outro professor universitário,
duplo de scriptor. A segunda referência foram os filmes de Woody Allen, a meu
ver, todos de cunho autoficcional, mesmo os mais impessoais – como pode se
comprovar com o derradeiro e belo Whatever works (Tudo pode dar certo). A
última referência foram os dois filmes de Nanni Moretti Caro diário e Abril, que
vi quando já estava em pleno curso. Esse último caso foi mais de reconhecimento
do que de alumbramento, como quem diz “eu também quero”. Esse desejo de
mímica, de mímesis ou de emulação me parece decisivo para todo gesto escritural:
emular para imitar e rivalizar (como já diz o termo latino emulatio) é tudo o que
interessa hoje, mais do que nunca.
Enquanto isso, do final dos anos 1990 para cá, o termo autoficção ganhou
mundo, deixando as fronteiras da francofilia. Não por acaso, uma das grandes
16
Michon, Pierre. Vies minuscules. Paris: Gallimard, 1984.
17
Nascimento, Evando. Retrato desnatural (Diários 2004-2007). Rio de Janeiro: Record, 2008.
18
Barthes, Roland. Délibération. In: Oeuvres completes: (1974-1980), t. 3. Paris: Seuil, 1995, p.
1004-1014. “Como escrever um Diário sem egotismo? Eis a questão que me impede de fazê-lo
(pois estou um tanto farto do egotismo)”.
19
“[...] provavelmente seria preciso concluir que posso salvar o Diário, com a única condição de
trabalhá-lo até a morte, até ao ponto extremo da exaustão, como um texto quase impossível:
trabalho ao fim do qual talvez o Diário assim mantido em nada se pareça com um Diário” (p.
1014).
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estrelas do ano da França no Brasil foi a artista Sophie Calle, arrolada por Robin
como um dos grandes exemplos da prática.20
Destacaria ainda outros incômodos em face da autoficção, além do já
mencionado. Primeiro, é o temor de que se converta em definitivo em novo
gênero, reduzindo-se a clichês e ideias fixas. A graça e o frescor da invenção
doubrovskyana é ter sido uma provocação literária ao papa do sacrossanto gênero
da autobiografia, Lejeune. Converter autoficção num gênero com características
definidas e repetidas à saciedade, parece-me uma traição ao impulso inventivo
original. Ao nomear o aparentemente inexistente, mas paradoxalmente já aí
(segundo uma noção cara a Heidegger), Doubrovsky provocou um abalo no
existente e consagrado. Como ele próprio veio a descobrir, não foi a decisão
consciente de nomear o que propunha na quarta-capa de seu livro Fils, que gerou
o termo autoficção; como pesquisas de crítica genética comprovaram, isso ocorreu
na própria invenção do livro. A palavra já se inscrevia nos originais do romance
autoficcional, que somavam cerca de três mil páginas, reduzidas para seiscentas
na versão publicada.21 A ficção e não a consciência autoral a respeito da obra foi
que engendrou a autoficção.
Segundo Derrida em Gêneses, genealogia, gêneros, e o gênio, desde o
momento em que um texto se inscreve nas paragens da literatura, de imediato se
torna difícil e por vezes impossível discernir a fronteira entre o verdadeiro e o
ficcional.22 Muito da ficção atual brinca com esses limites, pois em diversos casos
a atestação só depende daquele que fala e empenha sua palavra. Tal é o caso do
francês Pierre Michon, do catalão Enrique Vila-Matas, do chileno Roberto
Bolaño, da francesa Hélène Cixous, do norte-americano Paul Auster, do alemão
G. W. Sebald, do sul-africano J. M. Coetzee e do brasileiro João Gilberto Noll,
20
Cf. Robin, Régine. Être sans trace: Sophie Calle. In: Le Golem de l’écriture, op. cit., p. 217-229.
Calle, Robin. Histórias, reais. Trad. Hortencia Santos Lencastre. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
21
Para essas questões, cf. Grell, Isabelle. Pourquoi Serge Doubrovsky n’a pu éviter le terme
d’autofiction. In: Jeanelle, Jean-Louis; Viollet, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction. Bruxelles:
Academia Bruylant, 2007, p. 40-51. Toda a coletânea dispõe de excelentes ensaios e depoimentos
de escritores sobre autoficção, entre os quais Doubrovsky e Lejeune. Devo a Eneida de Souza a
recomendação desse volume.
22
Derrida, Jacques. Genèses, généalogies, genres et le génie: les secrets de l’archive. Paris:
Galilée, 2003.
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entre muitos outros. Em todos esses autores comparece algum grau de autoficção.
A força da autoficção é que ela não tem mais compromisso algum nem com a
autobiografia estrito senso (que ela não promete), nem com a ficção igualmente
estrito senso (com que rompe). Ao fazer coincidir, na maior parte das vezes, os
nomes e as biografias do autor, do narrador e do protagonista, o valor operatório
da autoficção cria um impasse entre o sentido literal (a referência real da
narrativa) e o sentido literário (a referência imaginária). O literal e o literário se
contaminam simultaneamente, impedindo uma decisão simples por um dos pólos,
com a ultrapassagem da fronteira.
É essa ausência de compromisso com a verdade factual, por um lado, e a
simultânea ruptura com a convenção ficcional, por outro, que tornam a chamada
autoficção tão fascinante, e por isso mesmo defendo que não seja redutível a um
novo gênero. O interesse da auto ou da alterficção é romper as comportas, as
eclusas, os compartimentos dos gêneros com que aparentemente se limita, sem
pertencer legitimamente a nenhum deles. Ela participa sem pertencer nem ao real
nem ao imaginário, transitando de um a outro, embaralhando as cartas e
confundindo o leitor por meio dessas instâncias da letra. Diferentemente do
romance autobiográfico ou de memórias, que ainda quer pertencer a um gênero
tradicional, a autoficção põe em causa a generalidade do gênero, sua
convencionalidade, correndo decerto o risco de cair em novas armadilhas. Daí ser
necessário multiplicar as suspeitas, duvidar dos acertos, contestar as vitórias fáceis
do eu.
Pode-se então dizer acerca dessa espécie sui generis de discurso que se o
termo servir apenas para designar um novo gênero, nenhum interesse especial
terá. Porque a modernidade viveu e vive ainda de inventar e destruir gêneros, e foi
sobre essa pulsão classificatória que se debruçou a obra inicial de Foucault,
especialmente As Palavras e as coisas e a Arqueologia do saber. Não podemos
viver sem os gêneros (sexuais, discursivos, literários), mas o aprisionamento a
gêneros engendra a asfixia do pensamento. Ademais, não há gênero que não
dependa daquilo que se faz dele, das palavras que engendram coisas e das coisas
que engendram efeitos. Essa seria uma nova versão de “como fazer coisas com
palavras”, para lembrar o magnífico título de Austin. Desse aspecto performativo
e performático de qualquer discurso, ou seja, de sua pragmática, a autoficção tira
um máximo proveito. Pois toda sua força pensante está em desafiar as definições,
as regras genéricas e generalizantes, em suma, em fundar uma “ciência” do
particular e do intransferível, ali onde manda o bom método basear-se o
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conhecimento na generalidade e na universalidade previamente concebidas.
Talvez autoficção não passe disso, o que não é pouca coisa: um saber singular,
francamente indefinível, perturbador ao mostrar a ficcionalidade de todo discurso,
mesmo ou sobretudo aqueles que se querem rigorosamente científicos. Como diz
Barthes: “Com efeito, a Ficção não se opõe de modo simplista à verdade; somente
diz que a verdade deve levar em conta o desejo, e, se posso dizer assim,
carregando-o na garupa, senão corre o risco de se reduzir à fantasia da
castração”.23
Dizer que todo relato, e mesmo que todo discurso é uma ficção não implica
dizer que todas as ficções se equivalem, ao contrário, o interesse repousa em que
modalidades de ficção se está falando quando se passa do jornal ao romance, das
memórias à correspondência, do ensaio ao poema, até chegar à monografia
acadêmica. A ficcionalidade define menos um gênero do que o estatuto híbrido de
qualquer discurso. Por um lado, todo documento, mesmo o mais verídico, detém
traços de ficcionalização; por outro, todo romance, todo poema detém valor
documental. Ficção ou verdade, imaginação ou documento deixam de ser, por si
mesmos, critérios de definição do gênero, pois a distinção é de grau e não de
natureza. Já os gêneros se definem menos por uma essência que os teria gerado do
que pela história de seus usos e significações, de suas perfomances históricas, se
quiserem.
Outra grande diferença entre o dispositivo de autoficção e a autobiografia ou
o romance autobiográfico tradicionais é que estes tendem a ser autolaudatórios.
As memórias ou confissões visam a enaltecer e/ou desculpar o autor-narradorprotagonista (caso prototípico de Rousseau), enquanto os autoficcionistas partem
do inacabamento e da fragilidade de suas vidas. Não pode haver épica na
autoficção, com o risco de empobrecimento da experiência vital e literária.
Epopeia, quando ocorre, é por meio da micronarrativa, pois como diz
Doubrovsky, seguindo voluntariamente os passos de Lyotard, os grandes relatos e
as grandes autobiografias se não estão mortos pelo menos se tornaram
problemáticos. Isso ocorre pela constatação mesma da precariedade de todo relato,
de toda narrativa, de toda história com h maiúsculo ou minúsculo. Pois a história,
gênero científico, tanto quanto a literatura, gênero artístico, perderam o caráter
23
Barthes, Roland. Il n’existe aucun discours qui ne soit une Fiction. In: Oeuvres completes:
(1974-1980), t. 3. Paris: Seuil, 1995, p. 385-386.
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redencionista que muitas vezes assumiram, sobretudo a primeira. Não há mais
sentido redentor nem figura soterológica, encarnada num narrador neutro de
terceira pessoa. Restou o lugar vazio da dúvida, da imprecisão. Nesse sentido,
toda narrativa não é mais do que o rastro, o vestígio ou a ruína (Benjamin) de um
acontecimento que nunca se apresentou de todo em sua identidade pontual. A
ficção literária é um segundo evento em relação ao primeiro e disperso evento do
real.
Assim, o único pacto hoje possível é com a incerteza, jamais com a verdade
factual e terminante, tantas vezes contestada por Nietzsche. O pacto que os
narradores podem fazer com seus leitores é quanto à força e à legitimidade de seu
relato, fundado numa experiência instável, dividida, estilhaçada, como se fosse
verdade, no fundo marcadamente estética. Mesmo o de-verdade da história virou
interpretação, sem abrir mão do estatuto da verdade, que apenas se tornou
infinitamente mais problemática, todavia nem de longe inócua. Diria, ao contrário,
que a verdade hoje é o que mais importa, sobretudo sob as vestes da imaginação.
A verdade em literatura, eis do que não gostaria nunca de desistir, embora essa
verdade esteja sempre por construir, refazer, desconstruir...
Eu são sempre vários, era o que dizia, como vimos, o multicitado trecho da
carta de Rimbaud. Talvez seja isso o que tenha descoberto Riobaldo-Tatarana na
invenção de si como outro que é o Grande sertão. “Aqui a estória se acabou./
Aqui, a estória acabada./ Aqui a estória acaba”,24 ou depois: “E me cerro aqui,
mire e veja. Isto não é o de um relatar passagens de sua vida, em toda admiração.
Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras”25 – diz Riobaldo a seu
silencioso e muito paciente interlocutor. Aqui começa a vida, diremos nós,
repercutindo o pacto dessa suposta ficção autobiográfica, dessa vera autoficção
como tanatografia, pois no centro da vida está a morte do outro ou da outra,
Reinaldo-Diadorim-Deodorina. Tudo acaba e recomeça justamente neste ponto
instável para onde convergem ficção e realidade, numa linha demarcatória que
sempre se afasta, quando cremos tangenciá-la. Indecidível, como tanto defendeu
Derrida. Ali onde os pastos se veem des-marcados, para citar outro famoso trecho
24
Rosa, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19ª. ed., edição especial. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001, p. 616.
25
Ibid., p. 623, grifos meus.
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do Grande sertão, é que começa a verdadeira e indecidível história, entre
literatura e realidade, arte e vida, ficção e testemunho, imaginação e seus supostos
contrários. No grande sertão literário, nem tudo é verdade, mas o pouco de
verdade que se alcança basta para fazer funcionar o maquinário literário e literal.
O que há de verdadeiramente ficcional num romance ou num conto é menos
a definição do gênero ficção como oposto à realidade, como mera ilusão, portanto,
do que como impossibilidade de discernir os limites entre ficção e realidade. O
fictício do ficcional reside na impossibilidade do limite absoluto, e não na
natureza dos territórios demarcados (ficção x realidade). A ficção está no limite e
não nos territórios discursivos, nos gêneros. Essa é a instável novidade da
autoficção, e não a identificação simplista entre narrador e autor. Quando na
“Dedicatória do Autor” de A Hora da estrela vem escrito entre parênteses “na
verdade Clarice Lispector”, a ficção começa nisso que na dissertação de mestrado
sobre A Hora da estrela chamei de intertroca de papéis. Intertroca e não
identificação: Rodrigo S.M. é e não é Clarice Lispector. Nessa indecidibilidade
entre um gênero (masculino) e outro (feminino) surge a ficção de Macabea e tudo
o que dá vez à Hora da estrela. O narrador Marcel, nomeado assim de forma rara
ao longo de Em busca do tempo perdido, é e não é Marcel Proust. Nessa tensão
entre narrador, autor e personagem, é que se insere a verdadeira ficção para
Barthes: a do leitor, 26 que quase nunca é mencionado nas discussões sobre
autoficção, exceto pelo próprio Doubrovsky. O leitor é convocado a intertrocar
papéis com todas essas máscaras ficcionais, atribuindo também algo de sua
própria vida, sem o que a literatura permanece letra morta. A vida de toda ficção
depende do bios leitoral, sem o qual nada acontece. Pois a autoficção só existe de
fato como efeito e não como um novo dogma de criação. A autobiografia depende
mais do autor e do crítico especializado; já a autoficção se vincula
pragmaticamente ao leitor, constituindo esse efeito de estranhamento (obtido em
graus diferenciados por cada receptor, de acordo com suas próprias experiências)
que ocorre quando se percebe uma confusão mais ou menos intencional entre
autor empírico e autor-narrador ficcional. O mal-estar ou o prazer derivam dessa
dificuldade de discernimento, daí os processos legais que alguns autoficcionistas
26
Barthes, Roland. La mort de l’auteur. In: Oeuvres completes: (1966-1975) t. 2. Paris: Seuil,
1994, p. 491-495.
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sofrem por parte de parentes e conhecidos, que alegam ter tido sua intimidade
exposta em público.27 Um verdadeiro escândalo ficcional...
Autoficção é, pois, um termo que veio para pôr em evidência que todo
discurso, mesmo o mais neutro e anônimo, guarda as marcas do sujeito que o
enunciou, marcas estas ambiguamente verdadeiras e fictícias; mas também, em
contrapartida, alguns textos levam essa hibridização ao extremo, ao fazerem dos
fatos documentais a matéria mesma da ficção, ou seja, ao se utilizarem da capa
ficcional do real como matéria romanesca. O mais perturbador não é ver a vida
convertida em romance, poesia, drama ou ensaio (isso a literatura sempre fez, com
os mais diversos recursos), mas perceber que o próprio tecido vital está infestado
de ficcionalidade. Se posso autoficcionalizar minha vida é porque ela mesma,
como a de todos, dá um ótimo romance, a depender é claro do talento do narrador.
Mesmo a mais medíocre das vidas, a mais miserável, sob certo ângulo pode
receber um enfoque inaudito, a partir de sua própria mesquinhez e não a despeito
dela. Lembremos de Félicité (personagem de Flaubert), de Macabéa (de Clarice) e
de Bartleby (de Mellville), todas vidas minúsculas. O que mais fascina e estranha
na autoficção, quando bem realizada, é a dimensão ficcional do real, e não tanto
a referencialidade imediata da literatura, como em princípio se poderia supor.
A autoficção só pode ser então efetivamente compreendida dentro de uma
pragmática discursiva, e não numa ontologia tradicional dos gêneros. Importa
menos o que é a autoficção, do que o que podemos fazer com ela, seja como
autores de romances, peças de teatro ou obras de artes plásticas (como Sophie
Calle e Hélio Oiticica), seja como escritores de textos dissertativos. Tal é a
dimensão ensaística da autoficção: as tentativas de realizar a passagem da vida à
obra, não por esteticismo, mas para fazer re-verter a matéria-prima de volta à
própria vida. Isso não se dá por uma metafísica da transgressão, mas sim pela
passagem necessária entre as esferas da vida e da arte, como vasos
intercomunicantes, e não mais como compartimentos estanques. A referida
expressão Minha vida daria um romance é potencialmente válida para todos e
para ninguém (como falava o Zaratustra de Nietzsche). Para todos, por tudo o que
já disse; para ninguém, porque é indispensável ser dotado da força capaz de
27
Nesse sentido, cf. os testemunhos dos escritores Philippe Vilain, Catherine Cusset, Philippe
Forest e Camille Laurens. In: Jeanelle, Jean-Louis; Violet, Catherine (Dir.). Genèse et autofiction,
op. cit.
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escrita, de reinvenção. Em estado bruto, a vida de qualquer um é só um romance
em potencial ou, se quiserem, um romance virtual. Para vir a ser de fato romance,
carece de técnica narrativa, de seleção, recorte, investimento na linguagem,
reflexão, política de citação (omitir certas fontes, explicitar outras, deturpar
intencionalmente etc.), endereçamento (prefácios, notas, quartas-capas), e o mais
que faz de um romance romance.
Sinalizaria igualmente que Jean-Louis Jeanelle identificou muito bem outro
aspecto estranhamente familiar no aparente neologismo autoficção. Esse
procedimento aponta para mais um fenômeno de hibridização no próprio real.
Trata-se de um dispositivo capaz de congregar modalidades que sempre se
ignoraram e até mesmo se hostilizaram: a instituição literária, a instituição
universitária e a mídia. A autoficção comparece com grande intensidade nessas
três instâncias, não sem muitos conflitos. E mais, do ponto de vista da produção,
ela pode e frequentemente reúne num mesmo sujeito diversas “funções” ou, antes,
diversas máscaras profissionais: o escritor, o professor, o ensaísta, o pensador: “A
autoficção só se tornou esse formidável catalisador teórico em razão da
indefinição [flou] de que se cerca: escritores, críticos e universitários nela
encontram um terreno de entendimento [entente], ou antes de desentendimento
[mésentente], mas de um desentendimento produtivo”.28 Autoficção não será
jamais um gênero literário e consensual, mas sempre um dispositivo que nos
libera a reinventar a mediocridade de nossas vidas, segundo a modulação que
eventual e momentaneamente interessa: ora na pele do poeta, do romancista ou do
dramaturgo, ora na pele do crítico, universitário ou não, ora na pele do jornalista.
Etc. Mais uma vez, não há equivalência entre essas designações, mas todas são
modos da heteronomia criativa, fazendo com que sejamos sempre mais de um,
mesmo ou sobretudo quando ostentamos um mesmo rosto, aparentemente uma
única feição.
Um último e maior desconforto com o velho-novo termo vai também muito
além das fronteiras do mundo acadêmico. Sem dúvida nos últimos tempos, o “eu”
passou a ocupar obsessivamente o espaço da mídia, fenômeno que foi muito bem
28
Jeanelle, Jean-Louis. Où en est la réflexion sur l’autofiction? In: Jeanelle, Jean-Louis; Violet,
Catherine (Dir.). Genèse et autofiction, op. cit., p. 36.
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descrito no inteligente livro de Paula Sibilia, O Show do eu.29 Indagaria qual o
interesse de se falar em nome do eu, no momento em que os egos se converteram
em mil celebridades por segundo. Se no final dos anos 1990 o uso e o abuso do
“auto” incomodava, agora se tornou quase intolerável ouvir e ler um discurso que
só sabe dizer “eu”.
Talvez hoje o maior prazer seja também o de poder dizer ele ou ela, como
defende Beatriz Sarlo, em seu belo Tempo passado.30 Quando se tornou
imperativo afirmar eu (penso, existo, falo...), dizer ele seria um bom modo de
escapar ao espírito da época – deslocando-o.
Quando tudo virou escrita do eu, dos romances aos contos, das teses aos
ensaios, dos documentários às correspondências virtuais, quem sabe o grande
interesse seria voltar a falar na terceira pessoa. Não mais, todavia, como a
narrativa clássica, acreditando numa hipotética neutralidade, não mais como o
plural de majestade de um pretenso nós, mas sim o romanesco ele, que Roland
Barthes, contradizendo a si mesmo, enuncia quando despudoradamente aceita
falar de si por meio de biografemas, em Roland Barthes por Roland Barthes.31 E o
faz ficcionalmente, como personagem de romance. A maior audácia estaria em
fazer uma autoficção na terceira pessoa, espécie inquietante e estranha de “três em
um”: ele, ela em “mim”. E é isso que arrisca a desconcertante narrativa de O Filho
eterno, romance que se tornou um filho pródigo, de Cristóvão Tezza.32
Resisti muito tempo a ler O Filho eterno, desconfiando de uma ficção que
explorasse os estigmas de uma criança com síndrome de Down. Sinalizaria que
ainda guardo certa dúvida, embora considere que a leitura do livro tenha dissipado
parte da desconfiança. Mas não de todo. Fui convencido a ler por amigos que me
anteciparam alguns desdobramentos da trama, a qual levaria o roteiro além do
previsível, ou seja, os sofrimentos de um pai, tendo que aprender a lidar com um
29
Sibilia, Paula. O show do eu: a intimidade como espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2008.
30
Sarlo, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Trad. Rosa Freire
d’Aguiar. S. Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2007.
31
Barthes, Roland. Roland Barthes par Roland Barthes. In: Oeuvres completes: t. 3, op. cit., p. 79249.
32
Tezza, Cristóvão. O filho eterno. 9ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.
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filho portador da síndrome no começo dos anos 80, momento em que as terapias
para o caso estavam bem pouco desenvolvidas e em que a deficiência ainda era
chamada preconceituosamente como “mongolismo”.
Duas coisas redobraram as dificuldades em dissipar o viés de autoajuda e de
autocomiseração a posteriori que o livro contém. Por um lado, a obsessão do
narrador-autor com a noção de “normalidade” e o equivalente adjetivo “normal”,
palavras que se repetem dezenas de vezes ao longo da narrativa, sem que a
inserção dentro de uma norma seja devidamente questionada mas apenas
tangenciada como problema. Por outro lado, o assinalado recurso da terceira
pessoa, um ele repetido estilisticamente à exaustão – tal recurso mal disfarça a
presença obsessiva do eu. Egocentrismo escandalosamente evidente nos poucos
comentários relativos ao sofrimento da esposa-mãe e menos ainda aos sentimentos
da irmã, e mesmo da empregada. Como sublinhava Silviano Santiago ao caderno
Mais!, numa resenha publicada bem antes que o livro se tornasse o sucesso de
crítica e de público que veio a ser, a ausência já não diria da voz mas do ponto de
vista feminino, empobrecendo a narrativa.33 Todo o universo das dúvidas se
concentrava nesse “eu-falo” logo existo, sob os disfarces do “ele”. Como se nada
mais existisse do que esse projeto de escritor que é o retrato do narrador quando
jovem. Finalmente, e em terceiro lugar, apenas com exceção de um momento, a
narrativa jamais assume o ponto de vista do maior interessado, o filho autista, este
olhar da fronteira, que daria ficcionalmente toda uma coloratura diferencial à voz
narrativa. Cito o trecho em que isso ocorre de modo pontual, com alguns
desdobramentos até o final: “Quando o filho se vê nas gagues filmadas, o pai
pensa – o que ele está vendo? Em que dimensão percebe a si mesmo?”34 Aqui o
ele-narrador é outro mesmo, e não um simples avatar do eu.
O Filho eterno é um romance de formação e de deformação. Formação de
um escritor durante muitos anos fracassado todavia conhecido, e que só terá pleno
reconhecimento justamente com esse livro em que a deformação constitutiva do
filho – causada pela trissomia genética – trouxe enfim o ambicionado sucesso. A
“falha” ou o “defeito de fabricação” constitutivos do outro ironicamente trazem a
sonhada vitória de um escritor que acumulará com essa ficção seis prêmios de
33
Cf. Santiago, Silviano. Caminhos tortuosos. Mais!, Folha de S. Paulo, 2 set. 2007.
34
Tezza, Cristóvão. O filho eterno, op. cit., p. 189 (o livro tem 222 pp.).
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primeira categoria em concursos nacionais. A autoficção se faz, portanto, em
dupla clave, entre um tempo “presente”, mas na verdade já muito passado, pois
decorre nos anos 1980, e outro anterior, os anos 1970 da ditadura em que viveu na
Europa como estudante e trabalhador clandestino (mas há também um episódio
mais antigo, da adolescência no interior do Paraná). O nome do autor não é
repetido dentro da obra, porém o atestado de autoficção é dado pela coincidência
dos livros que o personagem, futuro escritor reconhecido, publica e aqueles que de
fato o escritor Cristóvão Tezza publicou. Assim, a formação do escritor será
inelutavelmente marcada pelo sofrimento do pai com a “deformação” genética do
filho. Como se nesse caso não fosse possível a afirmação do ditado, mas apenas a
incerteza quanto a tal pai, qual filho. Porque para ser filho é preciso ter algo do pai
no próprio queixo, nas expressões faciais, no jeito, ainda que de um modo
totalmente outro, conforme uma das epígrafes do volume – a de Kierkegaard.
Dentro do código da dita normalidade, um filho com coordenação motora
reduzida e incapaz de plena autonomia, ainda que em tudo o mais detenha as
características de um ser humano considerado normal, não é exatamente um filho.
Para ser filho, é preciso parecer, sem maiores deformidades – a semelhança da
prole confirma a identidade dos pais, mas sobretudo do Pai, no regime
falocêntrico em que ainda vivemos e que determina o curso da narração.
Apesar da delicadeza de algumas passagens, O Filho eterno desperdiça uma
maravilhosa oportunidade de expor, sob diversos ângulos, as aflições por que
passam todos os atores envolvidos nesse caso-limite de suposto desvio da
normalidade. Ao se centrar nas angústias do autor-escritor-narrador-protagonista,
o livro encerra a autoficção nos limites da afirmação às avessas do eu, numa
relação especular com o autismo do filho, como aliás vem tematizado. O fato de
também por em evidência o “autismo” de quem fala infelizmente não basta para
abrir a narrativa em direção às paragens improváveis do outro, a não ser por
alguns reflexos de memória. Se a dor persiste, é como um aguilhão que confirma a
existência de quem sofre (o pai), muito aquém da quase inexistência social
daquele (o filho) que está do outro lado de uma invisível fronteira: o assim
batizado Felipe, o filho eterno.
Os momentos mais belos, a meu ver, são exatamente aqueles (poucos) em
que se sublinha a teatralidade das relações sociais. Destacam-se, pois, as
microperformances, os teatros do eu em suas dificuldades com o outro, sobretudo
quando esse outro – Felipe – tende a reinterpretar a seu modo a teatralidade do
mundo. A performance é o discurso verbal e corporal que assume esse teatroCadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 67‐86, jul./dez. 2010.
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mundo em relação ao qual o escritor nem de longe está isento. O escritor de
autoficção seria, por definição, aquele que, ao fazer coisas com palavras, performa
sua vida como o teatro em que o outro (ou a outra) tem vez e voz, e em que o
protagonista pode ser destronado pelos supostos coadjuvantes. Para que
finalmente, despojado de seus atavios, o monarca deposto (o autor) sirva a quem
deve tudo – o leitor.
Para concluir, citaria ainda um exemplo mais antigo de autoficcionalidade,
por assim dizer antes da letra. Cioso da necessidade de deixar um testemunho
acerca de sua formação literária para a posteridade, José de Alencar escreveu
aquilo que seria o primeiro capítulo de um livro por vir. “Seria esse o livro de
meus livros”,35 diz e grifa o autor de Iracema. Como e porque sou romancista
acabou sendo o único capítulo escrito, sob forma de carta dirigida a um amigo,
dentro de um dos raros e mais interessantes testamentos da literatura dita
brasileira. Inscrevendo-se explicitamente no gênero da “autobiografia literária” (a
expressão é de Alencar, com toda sua ambivalência, sem que se saiba o que pesa
mais, se o adjetivo ou o substantivo), o texto contém diversos elementos de
autoficção. De forma que pode ser lido de modo dúbio: tanto como a
autobiografia “verídica” de um autêntico homem de letras, quanto como sua
autoficção, um pequeno romance sob forma de ensaio. Nesse pequeno e inacabado
romance ensaístico, cujo tema principal é justamente a forma-romance, em
especial o romance romântico, em que Alencar se formou e que desenvolveu ao
longo de sua vida – nesse romance à revelia, autor empírico, narrador e
protagonista trocam os papéis. A intertroca se torna possível pela ampla
ficcionalização dos fatos reais, ainda que pagando tributo a uma autoglorificação
própria ao gênero autobiográfico. Declara Alencar: “Estes fatos jornaleiros
[cotidianos], que à própria pessoa muitas vezes passam despercebidos sob a
monotonia do presente, formam na biografia do escritor a urdidura da tela, que o
mundo somente vê pela face do matiz e dos recamos [ornatos]”.36
Todavia, mais do que simples testemunho, o denso texto de Alencar é uma
avaliação, em sentido nietzschiano, da instituição literária no Brasil do século
XIX. Está ali registrado basicamente o gesto de ficção que é assumir uma carreira
35
Alencar, José de. Como e porque sou romancista. 2ª. ed. Campinas: Pontes, 2005, p. 12.
36
Ibid., p. 12, grifos meus.
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de escritor, desde os primeiros escritos da adolescência até as publicações da
maturidade. A ficção começa aí: querer ser escritor. Ressalta a pobreza intelectual
do meio cultural brasileiro da primeira metade do século XIX, até que se consiga
estabelecer o sistema mínimo de uma literatura com seus produtores e sua crítica
especializada, já na segunda metade.
Haveria que aproximar esse libelo alencariano do Ecce homo, em que
Nietzsche faz um balanço de sua vida por meio de suas obras, defendendo ambas
da inépcia dos contemporâneos. Alencar se queixa, entre outras coisas, do silêncio
em torno de seus primeiros livros, mas também de como a indiferença inicial
passou à hostilidade diante do sucesso. Precioso é também o registro em relação
ao leitor comum, não-especializado, que para ele constitui um parâmetro decisivo
de sua atividade.
No momento atual em que a literatura se virtualiza e em que segue uma
deriva que ninguém sabe aonde vai dar, a avaliação alencariana é indispensável
para pensarmos o lugar hoje dessa estranha instituição chamada literatura. À
diferença da crítica niilista, porém não desprovida de algum acerto, de Flora
Süssekind publicada no Prosa & Verso, do jornal O Globo,37 vale apostar num
porvir de nossa literatura no contexto da literatura mundial, em tempos de
globalização. Sem nos limitarmos às leis do mercado, cabe nos indagarmos o que
de fato acontece quando alguém se senta e escreve ao correr da pena, ou ao correr
do teclado. Que ficção é essa que leva a dizer que se vai escrever um poema, um
romance, uma peça, um ensaio, quando ninguém lhe pede. Em contrapartida,
quando se ganha certa reputação, há sempre quem pergunte pelo próximo livro,
ainda que o formato livro esteja se refazendo, noutras páginas. Foi isso o que
diagnosticou em entrevista recente o escritor norte-americano Philip Roth.38
Depois de publicar três dezenas de livros, numa consagração internacional, Roth
interroga com espanto seu empresário, indagando-nos também, o que se tornará a
partir de agora a publicação. Pergunta aflitiva para a qual ninguém tem nenhuma
resposta. Cabe, no entanto, acreditar que as penas e os teclados literários
37
Süssekind, Flora. A crítica como papel de bala. Prosa & Verso, O Globo, 24 de maio de 2010, p.
1-2.
38
Roth, Philippe. Medo de perder talento liga Philippe Roth a protagonista de “A Humilhação”.
Entrevista concedida a Cristina Fibe. Ilustrada, Folha de S. Paulo, 22 de maio de 2010.
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continuarão correndo, pelo menos até que surja outro invento com mesmo grau de
ficção – ou, se quiserem, de auto ou de alterficção.
Rio de Janeiro, 10 de maio de 2010.
Juiz de Fora, 26 de maio de 2010.
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ANIMAIS BIOGRÁFICOS EM Poliedro, de Murilo Mendes
Lyslei Nascimento1 & Filipe Amaral Rocha de Menezes2
A intrigante imagem do poliedro suscitada pelo título do livro de Murilo
Mendes, como um “sólido geométrico com quatro ou mais faces, delimitado por
polígonos planos”,3 remete o leitor para as muitas faces da poesia. Desde a
etimologia grega da palavra: póly (vários) e hedra (faces), Murilo Mendes em
cada um de seus verbetes, deixa vislumbrar, sob o manto diáfano da biografia,
seres imaginários e animais que, ficcionalmente, passam a existir, imaginados
pelo seu poeta-criador.
O prefácio de Eliane Zagury, “Murilo Mendes e o Poliedro”,4 introduz o
microcosmo de Poliedro.5 Nesse texto, a ênfase recai sobre o caráter metafísico da
poética de Mendes e são ressaltadas outras características das múltiplas faces da
obra, como a visionariedade – a capacidade de unir elementos opostos, “o geral ao
particular, o regional ao universal, o inefável ao grosseiramente concreto”,
estabelecendo certo caos intencional, meio pelo qual o poeta exprime sua
ideologia.6 Segundo Zagury, em Poliedro, o poeta alcança a densidade máxima
1
Lyslei Nascimento é professora da UFMG.
2
Filipe Amaral Rocha de Menezes é Mestre em Letras: Teoria da Literatura, pela UFMG.
3
POLIEDRO. In: AULETE DIGITAL. Disponível em: http://www.auletedigital.com.br.
4
ZAGURY, Eliane. Murilo Mendes e o Poliedro. In: MENDES, Murilo. Poliedro. Rio de Janeiro:
José Olympio Editora, 1972. p. vii-xii.
5
MENDES, Murilo. Poliedro. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1972.
6
ZAGURY, 1972, p. ix.
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que a língua suporta. A aparente fragmentação é irreal e o formato da obra, na
verdade,
não se trata de uma simples coletânea de fragmentos de prosa lírica, mas sim de uma
estrutura cerrada, orgânica, bem montada sobre os alicerces de toda a obra anterior,
outras partes do poliedro agora vislumbrado.7
Poliedro é dividido em partes que o escritor chamou de setores: “Setor
microzoo”, dedicado a José Geraldo Vieira; “Setor Microlições de Coisas”, a
Paulo Mendes de Almeida; “Setor a Palavra Circular”, a Haroldo de Campos; e
“Setor Texto Délfico”, a José Guilherme Merquior. Acompanha, ainda, uma
introdução chamada “Microdefinição do Autor”. Com características próprias,
cada uma dessas partes, apesar da correlação entre si e dos elementos em comum,
cumprem tarefas distintas: os animais são os objetos do “Setor microzoo” – foi
criado para cada um deles um verbete no qual o poeta os descreve e relaciona
diversas ideias e conceitos; no “Setor Microlições de Coisas”, são os objetos
cotidianos que trazem as lições propostas pelo título; em “Setor a Palavra
Circular”, objetos, conceitos, frases e pensamentos intitulam cada um dos
verbetes, criando um ambiente ainda mais livre para a criação poética; no “Setor
Texto Délfico”, como a pitonisa de Delfos, inebriada pelos humores provindos das
fendas no solo, o poeta prediz os seus aforismos, oráculos e divagações.
São quinze os animais que compõem o “Setor microzoo”. Além desses,
Poliedro contém mais dois seres mitológicos, parte do “Setor a palavra circular”,
e alguns objetos animados do “Setor microlições de coisas”. O “Setor microzoo” é
estruturalmente um bestiário, entretanto, o seu conteúdo difere do comum nesse
gênero. Nesse ponto, Mendes converge dois conceitos para criar o seu zoológico
pessoal, do bestiário e do zoológico. O conceito de bestiário por Ettore FinazziAgrò, em parte, é aceitável para o trabalho do poeta: “Os bestiários são listas de
animais das mais variadas espécies – e não necessariamente existentes –
catalogados segundo as suas propriedades naturais e os seus valores simbólicos”.8
O “Setor microzoo” é, assim, uma lista de animais não existentes, mas
baseados em modelos reais, classificados por suas propriedades naturais e valores
7
ZAGURY, 1972, p. xi.
8
BESTIARIO. In: LANCIANI, Giulia; TAVANI, Giuseppe. Dicionário da literatura medieval
galega e portuguesa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 2000. p. 83.
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simbólicos. Mendes, certamente, não se utiliza do modelo bestiário para repassar
ensinamentos religiosos, mas como espaço livre para os seus aforismos, conceitos
e memórias. Como exemplo, tome-se o verbete “A baleia”.9
No início desse verbete, o poeta propõe que a baleia é um “cetáceo da
dinastia dos Balinídeos de forma quadradoredonda, cor de burro quando foge”.10
O que seria científico – classificar esse animal como um cetáceo – passa, assim, a
ser uma forma irônica de se classificar, não chegando nem a ser pseudocientífica,
mas humorística – ao concluir que é um animal que tem a forma
“quadradoredonda” e de uma cor inclassificável, como a de “burro quando foge”.
Outro dado que faz uma paródia com os tratados científicos é a citação a Herman
Melville, de Moby Dick,11 sobre a aorta da baleia, que seria “maior no calibre do
que o tubo maior do sistema de encanamentos de Londres”.12 Essa citação
fortalece o mito do animal monstruoso, de proporções não mensuráveis.
Entre todas essas informações pseudocientíficas, o poeta tem espaço para
seus aforismos como: “A baleia: auto-suficiente, melvilleana, inexpugnável” e
suas memórias: “Consultei a propósito um amigo de casa, o engenheiro Póvoa.
Ele, conversando com meu pai, disse que eu estava nos arredores de perder o
juízo: ‘É alarmante essa preocupação contínua do seu filho com arpão e baleia’”.13
A aproximação de “Setor microzoo” dos bestiários é feita propondo adequações
do modelo medieval ao modelo moderno e muriliano, que absorve as influências
vanguardistas do surrealismo e da sua poética essencialista.
Outro conceito presente na escrita de Mendes, o dos zoológicos, dista em
pouco dos bestiários: ambos são construções, uma textual, outra física, para a
observação dos animais. Para Mendes, a ideia de zoológico se aproxima do
conceito dado pela Associação Americana de Parques Zoológicos e Aquários,
9
MENDES, 1972, p. 14 e 15.
10
MENDES, 1972, p. 14.
11
MELVILLE, Herman. Moby Dick, or, The white whale. New York: Washington Square, 1949.
12
MENDES, 1972, p. 15.
13
MENDES, 1972, p. 14.
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segundo a qual, o zoológico seria “uma instituição organizada e permanente,
essencialmente numa proposta educacional e estética”.14
No caso do “Setor microzoo”, pode-se concluir que o seu zoológico teria
essas propostas educacional, estética e ideológica. Composto por seres textuais,
não reais, baseados em arquétipos, o zoológico particular de Mendes compõe-se
de animais domésticos, selvagens, aquáticos e insetos, descritos como num
bestiário, mas dispostos nas suas jaulas-páginas a serviço de uma proposta
estético-ideológica: seus animais metafísicos construídos sob uma estética
surrealista cumprem a função de vetores do pensamento crítico e aforístico de
Mendes.
Outra noção importante que se tomou emprestado do texto muriliano, para a
análise de sua obra e de todos os bestiários aqui estudados, é retirada de uma frase
que se repete reiteradamente em Poliedro: “Embora admirando-os, nunca me senti
muito à vontade com os bichos; mesmo algumas plantas ou certos frutos, por
exemplo a begônia e o maracujá causavam-me receio. Desde o começo a natureza
pareceu-me hostil”.15 Com essa confissão, pareceu possível depreender toda uma
noção de mundo e de si por meio dos animais, partindo-se de um escritor que teria
todo esse receio com a natureza hostilizada, a não ser pelo fato de ter reificado os
animais, como a lagosta do “Setor microzoo”: “finalmente abatida, bloqueada,
passada à máquina, e máquina de escrever”.16
Os animais surgem, então, na obra de Mendes, como objetos, semelhantes
ao peão que o Jogador de Diabolô17 embala de um lado para outro, em acrobacias
textuais, usando-se como bem entende para criar seus cenários e repassar uma
série de ideias, conceitos, memórias. Os autores dos textos bestiários estudados no
primeiro capítulo desta dissertação também se utilizam de seus animais-objetos
para os mais diversos fins. Nas produções literárias contemporâneas que relêem os
14
CONWAY, William G. Zoo and Aquarium Philosophy. In: SAUSMAN, Karen. Zoological park
and aquarium fundamentals. Wheeling: American Association Zoological Parks and Aquarium,
1982. p. 3.
15
MENDES, 1972, p. 7.
16
MENDES, 1972, p. 35.
17
Em referência ao autor. “O jogador de diabolô” é o nome de uma das divisões do primeiro livro
de Murilo Mendes, Poemas.
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bestiários, como é o caso de Mendes, os autores, tributários de uma herança
européia, escrevem seus livros, não conforme a prosa pseudocientífica ou
moralizante do Physiologus,18 mas por meio de usos simbólicos, metafóricos, ou
somente como uma retomada lúdica do gênero.
Dessa forma, o estudo desses bestiários contribuiu para um mapeamento de
seu estilo e estruturação. Para o alcance mais aprofundado da obra de Murilo
Mendes, especificamente de Poliedro, foi necessário verificar como os escritores
que releem os bestiários metaforicamente “passam à máquina” seus bichos e
como, a partir disso, dessa textualização, constroem seus textos. Essa releitura
pode ser dividida em dois grupos conforme as estruturas e os conteúdos e pela
presença dos animais. Assim, existe uma literatura bestiária, na qual estão
contidos os livros compostos por verbetes, sobre animais reais ou imaginários, e
os bestiários, propriamente ditos, de origem na Idade Média; há, igualmente, uma
literatura zoológica, na qual estão contidos os livros que tratam de animais, mas
de forma diferente do formato bestiário, retratando-os nesse espaço de
confinamento e de coleção que é o zoológico: eles são ainda mais transformados
em objetos, pois ficam atrás de grades, sob o olhar atento ou distraído de
passantes ou visitantes.
Essa divisão foi planejada em dois grupos para facilitar as comparações e as
associações com suas fontes e obras fundadoras. No primeiro grupo, focou-se a
estrutura dos bestiários medievais como base para as aproximações, levando-se
em conta o fundo comum: os animais como meros instrumentos para uma
determinada intenção do seu autor. Assim, poderiam ser científicos, moralreligiosos, românticos. No segundo grupo, com maior interesse nos animais em si,
mesmo sendo eles peças de uma exposição, buscaram-se os conceitos da
instituição zoológica, o zoológico em si, para comparar a estrutura dessas
entidades com a dos livros, coleções de animais presos em jaulas de papel e tinta.
O texto abrangente de Poliedro, que se vale desses dois modelos, o bestiário
e o zoológico, pôde, assim, ser estudado em sua estrutura: com verbetes-jaulas nos
quais se introduzem microcosmos compostos por aforismos e pensamentos, além
18
COOK, Albert Stanburrough; PITMAN, James Hall. The old english physiologus: text and
prose translation. London: Humphrey Milford, Oxford University Press, 1921.
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das memórias fragmentadas. É no espaço da criança, no zoológico, que Mendes
relembra as ingênuas anedotas de uma infância.
O “Setor microzoo” é uma espécie de conclusão de toda uma zoologia
metafísica de Mendes, que passa por vários livros de sua obra. Os outros verbetes,
poemas e citações sobre animais fora de Poliedro mantêm estrita relação tanto
com a forma como são abordados, quanto ao conteúdo, com os animais do “Setor
microzoo”. Poemas como “As andorinhas”,19 de Convergência, “Os peixes”,20 de
Poesia liberdade, “Cavalos” e “Começo de biografia”,21 de As metamorfoses,
contêm os mesmos elementos dos verbetes de Poliedro, apesar de não manterem a
mesma estrutura de prosa-poética. Focados em animais insólitos, alguns reais
outros míticos, portam os aforismos e traços da biografia de Mendes: a menina
Dorinha colega de infância, em “As andorinhas”, os peixes restituídos ao “abismo
totalitário”, na crítica política na época da escrita de “Os peixes”, os cavalos azuis
que relincham para os aviões da Segunda Guerra Mundial, em “Cavalos”, e o
pássaro lendário, diurno e noturno de “Começo de biografia”.
O humor também pode ser encontrado de forma sutil e vai além das
combinações insólitas, sendo, igualmente, baseado nas anedotas pessoais do
escritor. Em Poliedro, o narrador ao mesclar traços autobiográficos com sua
erudição e imaginação, às possíveis relações com os animais, objetos e conceitos,
compõe, como uma colcha de retalhos, os retalhados verbetes. Esses traços variam
conforme o tamanho de suas inserções, como em “A magnólia”,22 no qual o
verbete inicia-se: “1915. De uma janela da casa paterna distingo no pomar a
magnoleira, magnífica de largas folhas e flores”. Nesse caso, nessa única frase
introdutória ao fragmento, o traço biográfico de Mendes apenas situa o leitor no
tempo. Noutros momentos, compostos por parágrafos inteiros, além de estabelecer
a relação com o objeto em questão no verbete, apresentam-se com humor fatos
biográficos, como em “A caixinha de música”, no qual as anedotas pessoais
ocupam quase totalmente o texto, como em:
19
MENDES, Murilo. Convergência. In: _____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, p. 735.
20
MENDES, Murilo. Poesia liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 109.
21
MENDES, Murilo. As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002. MENDES, 1994, p. 68 e 52.
22
MENDES, 1972, p. 54.
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Na infância desmontei na casa de meu pai uma caixinha de música existente no oco
dum grande álbum de retratos, com os mortos de sobrecasaca ressuscitados
posteriormente pelo poeta Drumond, mais a mortas de vestido de cauda, espartilho e
cabelos frisados. Eu queria ver a música da caixinha. Os meninos (não só os meninos)
gostam mais de desmontar do que de montar coisas.23
Nota-se nesse trecho, além da memória de infância na casa do pai,
elementos grotescos do humor surrealista, com a referência intertextual aos
“mortos de sobrecasaca ressuscitados pelo poeta Drumond”.24 As anedotas
pessoais trazem esses elementos memorialísticos, mas quase sempre
acompanhados de situações que beiram o grotesco como o enfrentamento do
menino com o galo, o primeiro armado de um bilboquê, o seu consequente
desmaio ao deparar com a aranha caranguejeira, animal que inspirava medo tanto
pelo seu nome quanto pela sua aparência ou os olhos da zebra, que lembravam os
de dona Isaura, “uma das minhas mais simpáticas professoras primárias”.25
Segundo Cassiano Nunes, na poética muriliana explode um humor carioca,
que contém alegria e uma visão dionisíaca da vida.26 Sendo mineiro, Mendes
passou parte de sua vida no Rio de Janeiro, e a essa influência de uma cultura
mais despojada e leve, Mário de Andrade atribui sua “inconcebível leveza,
elasticidade, naturalidade com que o poeta passa do plano do corriqueiro pro da
alucinação e os confunde”, além de afirmar que o mineiro de nascença é “dono de
todas as carioquices”.27 Igualmente sobre o humor muriliano, Antônio Carlos
Villaça tipifica cada um dos seus componentes, entre o surrealista e o bíblico,
como feitos de “explosões temperamentais, revelações cristãs, ímpetos de
santidade e um fundo excêntrico de profeta” (tradução nossa).28
23
MENDES, 1972, p. 62.
24
ANDRADE, Carlos Drummond de. Os mortos de sobrecasaca. In: _____. Sentimento do mundo.
ed. especial. Rio de Janeiro; São Paulo: Record: Fundação Nestlé de Cultura, 1999.
25
MENDES, 1972, p. 32.
26
Cf. NUNES, Cassiano. O humor na poesia moderna do Brasil. In: _____. Breves estudos de
literatura brasileira. São Paulo: Saraiva, 1969. p. 96-112.
27
ANDRADE, Mário de. A poesia em 1930. In: _____. Aspectos da literatura brasileira. Rio de
Janeiro: Americ, 1943. p. 43.
28
VILLAÇA, Antônio Carlos. El humor en la literatura brasileña. Revista de cultura brasileña.
Barcelona, n. 40, dez. 1975, p. 69-78.
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Por fim, o essencialismo e a abstração do tempo e do espaço, seu ponto
central, caracterizam Poliedro, mesmo sendo este localizado cronologicamente
distante dos primeiros textos emergidos sob essa influência. Segundo Murilo
Marcondes Moura, essa corrente de pensamento seria o aspecto propriamente
ideológico do pensamento muriliano.29 Para Mendes, o sistema essencialista
criado por seu amigo Ismael Nery é baseado na abstração do tempo e do espaço, e
apenas mediante essa abstração seria possível se alcançar a essência do homem e
das coisas. Com um fundo ideológico aproximado do surrealismo, procurava
eliminar o que fosse supérfluo de forma a libertar o homem para uma vivência
plena.
2 ANIMAIS E MONSTROS: um zoológico onírico
Em “Setor microzoo”, alguns desses verbetes apropriam-se da imagem do
animal, ser real, físico, palpável, para interpor questionamentos e concluir por
meio de aforismos, questões metafísicas ou outras relativas a preocupações
filosófico-religiosas do poeta. Assim sendo, pode-se dividir o esse setor de
Poliedro em dois conjuntos, sobre os verbetes metafísico-aforísticos, com os
quais, por meio das características de um animal, quer reais ou imaginárias, o
poeta apresenta o seu pensamento, sua cultura e comentários diversos sobre os
mais variados assuntos, criando uma trama em volta da figura animal, que deixa
de ser física para se tornar uma abstração. O outro grupo seria composto pelos
verbetes metafísico-biográficos, abordados posteriormente.
Nos verbetes, Mendes se apropria de diversas tradições e culturas, na
literatura e cultura popular, nas suas memórias e na antropofagia modernista. O
poeta toma para si o que lhe convém, utiliza da forma que lhe interessa, para
montar uma obra multifacetada, poliédrica. Contrariamente ao apelido dado por
Manuel Bandeira, de “bicho-da-seda da poesia brasileira”,30 que retiraria tudo de
si mesmo para seu fazer poético, Mendes, na verdade, utiliza-se de todo um
29
Cf. MOURA, Murilo Marcondes de. Murilo Mendes: a poesia como totalidade. São Paulo:
Edusp, 1995, p. 40.
30
BANDEIRA, Manuel; CARPEAUX, Otto Maria. Apresentação da poesia brasileira: seguida de
uma antologia de poetas brasileiros. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [19--]. p. 150.
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arcabouço adquirido em sua sólida formação cultural e humanística para construir
os elaborados verbetes de Poliedro.
O primeiro verbete com essas características metafasíco-aforísticas tem
como tema a tartaruga.31 Sobre o fato de esse animal ter uma carapaça, que ao
mesmo tempo protege o seu frágil corpo e serve-lhe de abrigo, o poeta inicia a
construção do texto com um argumento, baseado na tradição chinesa de que a
tartaruga sustentaria o céu. Segundo Jean-Paul Ronecker, em O simbolismo
animal,32 num argumento que confirmaria as afirmativas do poeta, esse réptil é
“um cosmóforo, porque suas quatro patas, curtas e grossas, assemelham-se a
pilares ou a colunas: é, pois, a ideia de solidez que predomina aí. Esse papel de
suporte do mundo a aparenta com as mais altas divindades”.33 Além disso, é
adjetivada de cariátide e autocariátide,34 concluindo-se que o poeta lhe atribuiria o
poder de sustentar o mundo e de se autossustentar, em suas pernas-colunas.
Nos verbetes de Murilo, algumas palavras ou conceitos funcionariam como
hiperlinks de uma enciclopédia e um arquivo pessoal, ao mesmo tempo universal.
Pode-se afirmar que seria uma memória enciclopédica na qual existe a tentativa de
inventariar o mundo, de se colocar tudo dentro do texto, num outro sentido: de um
passeio pelo seu intelecto, no qual um conceito puxa outro, ou um assunto lembra
um autor, que lembra um poema, e assim, em Mendes, tudo estaria entrelaçado
por uma corrente intelecto-sentimental. Além disso, faz-se o enorme trabalho da
citação.
Em toda a obra de Murilo Mendes é possível encontrar trechos de textos de
outros autores e a citação direta, com confirmação da fonte, com menção do nome
do citado em notas deixadas em alguns de seus livros. Em nota de Janelas verdes,
o escritor afirma: “Às vezes cito versos de Camões, Bocage, Cesário Verde, etc.,
31
MENDES, 1972, p. 9.
32
RONECKER, Jean-Paul. O simbolismo animal: mitos, crenças, lendas, arquétipos, folclore,
imaginário. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Paulus, 1997.
33
TARTARUGA. In: RONECKER, 1997, p. 336-338.
34
Tipo de coluna com figura feminina esculpida, originária da Grécia antiga, cuja função é a de
sustentar um entablamento. CARIÁTIDE. In: AULETE DIGITAL. Disponível em:
http://www.auletedigital.com.br.
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sem aspas. Não faço ao leitor a injúria de pensar que os desconhece”.35 Em
Retratos-relâmpago – 1ª série confessa: “Em alguns casos, dispensando aspas,
inseri no texto palavras de escritores abordados. ‘Raimundo Corrêa’, logo se vê,
resulta numa colagem”.36
Segundo Julio Castañon Guimarães em Territórios/conjunções,37 sobre o
trabalho de citação de Mendes, o que o escritor pretendia fazer era “construir um
discurso próprio”, ao utilizar-se de diversos excertos das mais variadas obras
literárias, críticas e até mesmo pictóricas e musicais, como as comparações com a
obra mozarteana. Dessa forma, o poeta elabora a sua tessitura costurando os mais
variados trechos de diversas origens, citações e fontes com sua prosa e poética
para criar o seu discurso e seu estilo.
Ao adjetivar a girafa, no verbete homônimo,38 como douce, macia, delicada,
atenciosa, o poeta passa a explicar a palavra francesa e desenvolve esse conceito
até encontrar a expressão “a dolce vita da girafa”. Nesse momento, remete ao
cineasta Federico Fellini, diretor do famoso filme La dolce vita,39 de 1960. Assim,
as preferências cinematográficas do narrador, já explicitadas anteriormente, são
novamente reafirmadas ao concluir que o cineasta italiano pertenceria a um seleto
grupo de pessoas que teriam visto o animal. Segundo o narrador, somente os
“visionários-realistas (ou os realistas-visionários) conseguem vê-la”. Assim como
o título de um dos setores de Poliedro, Mendes perfaz o caminho da “palavra
circular”, no qual, por intermédio do jogo de uma palavra/conceito puxando outro,
ele novamente chega no início, como um uroboro textual.
Outro verbete-animal é sobre a cobaia, no Brasil conhecido como
porquinho-da-índia.40 Em apenas um parágrafo, o poeta descreve o seu animal,
35
MENDES, Murilo. Janelas verdes. In: _____. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, 1994, p. 1445.
36
MENDES, 1994, p. 1702.
37
GUIMARÃES, Julio Castañon. Territórios/conjunções: poesia e prosa críticas de Murilo
Mendes. Rio de Janeiro: Imago editora, 1993.
38
MENDES, 1972, p. 16-17.
39
LA DOLCE Vita. Direção: Federico Fellini. Itália: Koch-Lorber Films, 1960. 174 min.
40
MENDES, 1972, p. 23.
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“muito gracioso e fino, nada erpe”, teria sido visto pela primeira vez num poema
de Manuel Bandeira. Esse poeta, que sempre teve uma relação amistosa com
Mendes, escreveu o poema biográfico “Porquinho-da-índia”,41 no qual o animal
foge dos carinhos da criança, refugiando-se debaixo do fogão. Iniciado pela
expressão cronológica “quando eu tinha seis anos”, conta sobre o presenteado
animalzinho e o seu esconderijo, mesmo com todo o esforço do menino, ele “não
fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...”. O poema conclui com a afirmativa
que o animal teria sido a primeira namorada do poeta.
Além dos citados acima, há dois verbetes que não tratam de animais, mas
monstros, ou seres imaginários, como queria Jorge Luis Borges, e talvez pelo
conteúdo não foram localizados dentro do “Setor microzoo”. Ambos se encontram
no “Setor a palavra circular”, que seria o setor mais aberto de Poliedro: nele há
espaço para uma diversidade de temas, conceitos, anedotas, descrições e
aforismos, permitindo, assim, o lugar dessas figuras mitológicas. “A Górgone”42
apresenta o monstro pertencente à mitologia greco-romana, definida por Pierre
Commelin: “ora representam-nas como as Gréias, com um só olho e um só dente
para as três, ora dão-lhes uma beleza estranha e atrativos fascinadores”.43 As
górgonas eram três irmãs, Estênio, Euríale e Medusa, essa última a mais famosa
por possuir enorme beleza causando inveja à deusa Minerva, que transformou
seus cabelos em serpentes e dotou seu olhar do poder de transformar em pedra
tudo o que visse.44
A Górgone muriliana é claramente a Medusa, entretanto, é como se as três
irmãs fossem fundidas em um único ser, que se apresenta com uma “triplaface”.
No pequeno verbete, pouco o narrador comenta do personagem e afirma conhecêla de vista e de ouvido, e não de “gosto, de cheiro e de toque”, por falta de
coragem. Além da Medusa, a sua coragem também é limitada pelos objetos: o
serrote, a torquês e o martelo.
41
BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira: poesias reunidas. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1966. p. 110.
42
MENDES, 1972, p. 82.
43
COMMELIN, Pierre. Mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s.d.]. p. 114.
44
Cf. COMMELIN, [s.d.], p. 114.
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O outro monstro apresentado, em verbete homônimo, é o tibetano Ietí.45 É
estranha a referência a um monstro mitológico tão distante e sobre o qual se tem
tão pouco escrito. Entretanto, o que parece atrair o poeta são os fantasiosos
intentos de se capturar tal besta, dos quais se ri, comentando terem eles tido pouco
êxito, só “conseguindo captar suas pegadas”. Esse verbete contém o que seria uma
teoria muriliana sobre o mito. O poeta estuda em poucas linhas a sua construção
de um mito e, para ele, o Ietí tem por ofício o seu silêncio. Caso fosse capturado,
não precisariam de “laço, espada ou bomba: bastaria entrevistá-lo, fotografá-lo,
filmá-lo, televiosioná-lo”.
Para Mendes, a comprovação material da existência desse monstro seria o
suficiente para destruí-lo. Assim, o mito, para continuar existindo, deve manter-se
inalcançável e inexplicável, sendo possível apenas encontrar poucas pistas, caso
contrário, sendo comprovada sua existência, deixaria de ser mito, passaria a ser
realidade. O seu Ietí está sempre em fuga para sua sobrevivência, “enquanto os
rádios desencadeados no mundo inteiro discutem a existência ou não do
‘abominável’ homem da neve” – a dúvida é o que lhe mantém a vida.
3 OS ANIMAIS biográficos
No segundo grupo de verbetes sobre animais em Poliedro – construídos a
partir de fragmentos de pensamentos, citações, aforismos – são acrescidos de
alguns traços biográficos do escritor. Esses traços, ou biografemas, com diria
Roland Barthes,46 são comuns à obra de Mendes, desde o seu primeiro livro,
Poemas.47 Entende-se o conceito de biografema de Barthes como na definição de
Eneida Maria de Souza em Crítica cult: “responde pela construção de uma
imagem fragmentária do sujeito, uma vez que não se acredita mais no estereótipo
45
MENDES, 1972, O Ietí, p. 103.
46
Cf. BARTHES, Roland. Prefácio. Sade, Fourier, Loyola. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2005. p. xvii.
47
MENDES, Murilo. Poemas 1925-1929. Juiz de Fora: Editorial Dias Cardoso, 1930.
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da totalidade e nem no relato de vida como registro de fidelidade e
autocontrole”.48
Basear-se num conceito carente de credibilidade na totalidade e aplicá-lo à
obra muriliana parece contraditório, entretanto, mesmo sendo um obcecado pelo
“todo”, os tênues traços biográficos localizados em diversos pontos de sua obra,
especificamente em Poliedro, não conseguem reconstituir um todo, mas
fragmentos de um corpo outro, que para Barthes seria um “sujeito disperso, um
pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte”.49
Em Roland Barthes, Leyla Perrone-Moisés acrescenta que os biografemas
comporiam uma biografia descontínua: “essa ‘biografia’ diferiria da biografiadestino, onde tudo se liga, fazendo sentido. O biografema é o detalhe
insignificante, fosco”.50 Assim, os diversos traços biográficos encontrados nos
verbetes sobre animais do “Setor microzoo”, compostos de fragmentos de
memórias totalmente deslocados e libertos de uma cronologia, compõem uma
biografia fragmentada, repleta de detalhes pouco relevantes numa oposição clara
ao modelo de um livro de memórias, o qual é composto por fatos comprováveis.
As pistas memorialísticas apresentadas em Poliedro podem constituir uma
“memória” ou uma “autobiografia”, pois o narrador se cerca de diversos
elementos, ali dispostos para compor um cenário, formando certa aura factível,
palpável, mas impossível de ser comprovada de fato. Essa memória não é
compatível com a biografia do escritor Murilo Mendes, mas, como Barthes
afirma, de um sujeito disperso, fictício, ou seja, outro Murilo Mendes. Como
exemplo, toma-se o primeiro verbete do “Setor microzoo”, “O galo”.51
De todos os verbetes, apenas em “O galo” a escrita biográfica toma
completamente o texto. No primeiro parágrafo, o narrador já apresenta os
elementos do seu cenário, como: “Quando eu era menino”; “talvez viesse das abas
redondas de Chapéu d’Uvas” e “ou das praias que eu imaginava no Mar de
Espanha”. Essas três referências são dispostas para dar a localização cronológica
48
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 113.
49
BARTHES, 2005, p. xvii.
50
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Roland Barthes. São Paulo: Brasiliense, 1983. p. 15.
51
MENDES, 1972, p. 7-8.
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do fato ocorrido com o próprio poeta Murilo Mendes: apelando para a infância, o
narrador apresenta referências geográficas de Juiz de Fora, onde o poeta nasceu,
citando “Chapéu d’Uvas”, nome de região rural e Mar de Espanha, localidade de
nome curioso e intrigante a qualquer criança, ambos próximos a sua cidade.
Já desenhado parte do seu cenário, o narrador inicia a anedota sobre o
enfrentamento entre um menino e um galo recém-chegado ao galinheiro de sua
família. O galo é descrito como “soberbo, fastoso, corpo real, portador de
plumagem azul-verde-vermelha”. O menino, aqui como narrador-personagem,
tenta em vão uma aproximação com o animal, que o olha desconfiado. O galo o
examinou e posicionou-se para um enfrentamento, causando perplexidade no
menino que recuou por medo que o bicasse ou lhe disparasse um jato de dejeções.
Em seguida, o menino esgueirou-se para dentro do galinheiro empunhando um
bilboquê. Novamente, o narrador se cerca de um detalhe para dar crédito ao teor
biográfico. Esse brinquedo já fora apresentado em outros poemas de Mendes que
tomariam por referência sua infância e também em A idade do serrote,52 obra
repleta de conteúdo biográfico. Nesse enfrentamento, o galo vence, “abanou a
cabeça rindo, um riso voltaireano, adstringente” e em seguida, cobriu duas
galinhas, para despeito do menino que recua furioso.
Outros elementos alimentam a ira do menino, como a lembrança de que “o
galo denunciara São Pedro na noite da entrega de Jesus Cristo à polícia”, ao que
considera o animal um “espoleta, raça de gente que sempre odiei”. Assim, como o
narrador afirma, mesmo “ignorante de que o galo era um dos bichos consagrados
a Apolo, sem rodeios nem consideração pela sua caleidoscópica plumagem”, o
menino invade o galinheiro e estrangula o galo. Assim, pode finalmente voltar a
ouvir o canto “dos galos distantes de Chapéu d’Uvas ou Mar de Espanha”, e esses
seriam animais de outra raça, diferente do “quinta-coluna que denunciara São
Pedro”.
Da mesma forma, com as várias associações, o poeta apresenta o verbete “A
baleia”.53 Os adjetivos compostos por prefixos “auto” são usados para demonstrar
a grandeza da baleia, que seria para ele o animal completamente autossuficiente,
“movida a óleo de autopropulsão, se auto-informa, se auto-espanta e não se
52
MENDES, Murilo. Meu pai. In: _____. A idade do serrote. Rio de Janeiro: Record, 2003.
53
MENDES, 1972, p. 14-15.
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comunica com pessoa alguma ou bicho”. É um “automuro”. Considerada
impossível de se eliminar. Nesses fragmentos a baleia se assemelha às bestas de
um bestiário medieval:
é chamada de baleia (cetus – peixe grande) por causa do seu aterrorizante corpo e por
que esse animal engoliu (excepit – receber, acolher) Jonas, e sua barriga era tão grande
que as pessoas pensavam ser o próprio inferno. Jonas, ele mesmo, lembrou: Ele me tirou
das entranhas do inferno.54
Esse animal fantástico, mas real, é passível de várias referências,
principalmente com a Bíblia, pela história do profeta Jonas, e com a mais famosa
de todas as baleias, Moby Dick, de Herman Melville. O poeta a caracteriza como
“melvilleana”, ou seja, com as grandiosas proporções do monstro descrito pelo
escritor norte-americano. No último fragmento do verbete, há uma colagem de
Moby Dick, sobre o tamanho da aorta da baleia, que teria maior calibre “do que o
tubo maior do sistema de encanamento de Londres, e a água que ruge na
passagem de tal tubo é inferior em ímpeto e velocidade ao sangue que jorra do
coração da baleia”.
O poeta inverte a tradição bíblica e no seu texto é a baleia que entra no oco
de Jonas, “restituindo assim a visita que o profeta fizera anteriormente ao seu
próprio oco”, e, dentro do seu corpo, a baleia depara com histórias e fatos
fantásticos, “deste e de outro mundo, que os profetas sabidos conhecem, ruminam,
difundem entre os homens e os bichos”. O texto bíblico na história do profeta
Jonas (Jn 1:17)55 traz a expressão “grande peixe”, entretanto, é aceitável para
muitos estudiosos e críticos a acepção de baleia56 – significado esse que de forma
alguma faz perder o sentido da história bíblica e sua riqueza de sentidos e
ensinamentos.
Ao contrário da baleia branca de Melville, a de Mendes é “cor de burro
quando foge”, de certa cor inclassificável ou desconhecida, própria da imaginação
54
THE WHALE. In: WHITE, T. H. The bestiary: a book of beasts. New York: Capricorn Books,
1960.
55
BIBLIA SAGRADA. A. T. Jonas. 1997. cap. 1, p. 1280.
56
Cf. BALEIA. In: CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos,
sonhos, costumes, formas, figuras, cores, números. 7. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Jose
Olympio, 1993.
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do poeta. Classificada como cetáceo, essa baleia, “animal bárbaro, barbado”
pertenceria à dinastia dos Balenídeos. O poeta afirma que “in illo tempore”
(naquele tempo), sonhava em construir um arpão para aferrar essa baleia mítica do
profeta Jonas, motivo de alarme para um amigo de sua família. Esse engenheiro
Póvoa teria afirmado para o pai do poeta: “É alarmante essa preocupação contínua
do seu filho com o arpão e baleia”, ao que o narrador responde com todas as
“auto” características maravilhosas da baleia, concluindo que “todas as coisas são
alarmantes; por sinal que a baleia não é das mais”.
A marcação do tempo na época da infância com a frase “quando menino nas
viagens pelo interior de Minas com a família” inicia o verbete “O boi”.57 O traço
biográfico constrói a primeira comparação, entre a velocidade do cavalo e a força
e a valentia do boi – montado sobre este, o menino se “sentiria muito mais
seguro”. Sobre a figura mítica deste animal, irmanada com a do touro, pode-se
depreender várias associações. No segundo parágrafo, apropriando-se de uma
longa tradição, o poeta comenta sobre “costumes derivados dos egípcios, gregos e
romanos” para as comemorações do equinócio de primavera e se lembra de uma
festa medieval francesa.
O texto do verbete “Pavão” ao iniciar-se por “de menino conheci o pavão”,
professa suas bases biográficas. A presença desse animal imponente no “jardimlabirinto” da residência de suas primas, de sua Persépolis particular, faz com que
seja “mais realista que fantasista”: ele próprio afirma, “não de Persépolis, mas de
Juiz de Fora”. Essa é a portada de seu verbete, e por meio dele se abre um
microcosmo de significados e pensamentos encadeados.
O pavão, juntamente com uma diversidade de outros bichos nos jardins da
casa de Titiá, imponente residência da Baronesa de Santa Helena, ainda habitava o
parque da Villa Sciarra, próximo à residência dos Mendes em Roma, era
perseguido por outras crianças, entretanto, segundo o poeta, já esquecido devido
ao declínio da poesia e da pintura simbolistas, dos quais era uma espécie de ave
símbolo, é modelo por sua vida utilitária, ao fornecer as suas penas
industrializadas, e por “ditadores e gerarcas”, que o imitam levantando suas
caudas, ruantes. O poeta ainda se lembra da fêmea do pavão, a pavana, palavra
57
MENDES, 1972, p. 19-20.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 87‐106, jul./dez. 2010.
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para ele ignorável, sendo por ele preferidas as pavanas compostas por JeanBaptiste Lulli e Maurice Ravel, dança popular de “lentos ademanes”.
A memória intelectual do poeta, aquela que vai além de lembranças
pessoais, constitui um aparato para a construção de seu texto. O percevejo que
incomodava seu sono na infância é relembrado de um texto de André Gide, Les
caves du Vatican. O poeta afirma que o inseto “vai e volta, sinuoso, sem que se
consiga situá-lo”, ao passo que o francês explica: “Les punaises ont des moeurs
particulières; elles attendent que la bougie soit soufflée, et, sitôt dans le noir,
s'élancent. Elles ne se dirigent pas au hasard; vont droit au cou, qu'elles
prédilectionnent” (os percevejos têm modos particulares; eles esperam que a vela
seja apagada, e, no meio da escuridão, atacam. Eles não se movem ao acaso, vão
diretamente ao pescoço, sua predileção. Tradução nossa).58 Por toda a sua obra,
Mendes exerce esse ofício de colagem, como já analisado anteriormente, e, como
nesse caso, reconstitui o texto colado à sua maneira, dando-lhe sua particular
versão.
O inseto farejador de sangue humano foi utilizado na guerra do Vietnã pelos
norte-americanos para encontrar os vietnamitas em suas trincheiras, o que faz o
narrador afirmar que só pode ser anulado pelas chamas. Desse fogo para seu
combate, são retiradas mais algumas lembranças de sua casa paterna. Apenas pela
eliminação dos colchões queimados no quintal seria possível livrar a família de
uma “esquadrilha de percevejos”. Com esse fato, o narrador, temeroso do inseto
sugador de sangue, sentia-se “meninissimamente vingado e aliviado”, por meio
desse “rito de purgação”.
O menino que observa as chamas consumirem os colchões infestados é o
adulto que visita o jardim zoológico, o espaço próprio da criança. Nos últimos
verbetes abordados, os animais enquadrados são apresentados ao narrador em
zoológicos, “em plena juventude”, no do Rio de Janeiro, “A preguiça”,59 e no de
Antuérpia, “há vários anos atrás”, “A zebra”.60 A preguiça, animal assim
denominado pelos portugueses na época da colonização “por ser tão preguiçoso e
58
GIDE, Andre. Les caves du Vatican. Project
http://www.gutenberg.org/etext/6739. Acesso em: 6 abr. 10.
59
MENDES, 1972, p. 29-31.
60
MENDES, 1972, p. 32-33.
Gutenberg.
Disponível
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 87‐106, jul./dez. 2010.
em:
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tardo em mover os pés e mãos, que, para subir a uma árvore, ou andar um espaço
de vinte palmos, é mister meia hora”,61 é velho conhecido do narrador, como ele
mesmo afirma: “muito cedo descobri, naturalmente, o bicho-preguiça”.
Entretanto, o seu encontro no zoológico do Rio foi fundamental para que ele
obtivesse a “revelação de sua importância”.
Os pequenos fatos biográficos dispersos pelos verbetes, pistas
memorialísticas poderiam recriar a memória ou uma imagem fragmentada de um
indivíduo, bem a exemplo do conceito de biografema de Barthes. A ideia de um
texto autobiográfico muriliano, mesmo que considerada toda a sua obra literária,
não seria possível nos moldes apresentadas por Philippe Lejeune em O pacto
autobiográfico.62 Para Lejeune, esse texto contém algumas características
peculiares, e “a autobiografia é o gênero literário que, por seu próprio conteúdo,
melhor marca a confusão entre autor e pessoa”.63 Essa caracterização, entretanto,
não é suficiente para definir os verbetes de Poliedro.
Assim, esse gênero biográfico carece de uma retrospectiva, e o seu assunto
deveria ser principalmente a vida individual do seu personagem – personagem que
se confunde com o narrador e com a figura do autor. Essa retrospectiva procuraria
basear-se na totalidade das experiências de um indivíduo, sabidamente uma
missão impossível, mas ao menos uma cobertura de fatos imprescindíveis em
determinado período cronológico de sua vida. A idade do serrote se aproximaria
desse conceito por delimitar os fatos da infância de Mendes; mesmo assim, a
biografia do seu narrador é repleta de lacunas comumente preenchidas em textos
de caráter histórico-biográficos.
Outra questão proposta por Lejeune, que não é completamente satisfeita por
Poliedro, seria o pacto autobiográfico. Esse pacto estabelecido entre o autor e o
seu leitor seria a confirmação de uma intenção biográfica, no qual o narrador se
comprometeria a repassar para o seu leitor informações de sua vida. A partir do
nome próprio é que se estabeleceria essa relação, como afirma Lejeune:
61
PREGUIÇA. In: CASCUDO, Luiz da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 10 ed. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2007, p. 732.
62
LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à Internet. Trad. Jovita Maria
Gerheim Noronha e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
63
LEJEUNE, 2008, p. 33.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 87‐106, jul./dez. 2010.
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É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos de autor: única marca
no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que
solicita, dessa forma, que lhe seja, em última instância, atribuída a responsabilidade da
enunciação de todo o texto escrito.64
Entretanto, essa outra condição é também apenas cumprida em partes por
Mendes. Não há afirmação de que aquilo que será exposto em Poliedro, ou
mesmo em A idade do serrote, será a biografia do poeta, mesmo com o uso
contínuo da primeira pessoa narrativa, ou como no poema “Murilo menino”,65 de
Poesia liberdade, e nas diversas pistas que poderiam confirmar sua localização
geográfica e de elementos familiares comprováveis, como os nomes de amigos da
família, o engenheiro Póvoa ou de sua professora primária dona Isaura,
respectivamente nos verbetes “A baleia” e “A zebra”.
O tratamento dado aos traços biográficos em Poliedro, baseado no conceito
de biografema de Barthes, seria uma melhor compreensão do elemento
autobiográfico e sua função na obra. Poder-se-ia depreender de Poliedro uma
minibiografia de certo indivíduo passível de ser identificado com o poeta Murilo
Mendes, sobre fatos esparsos de sua infância como alguma viagem feita pelo
interior de Minas com sua família, conforme “O boi”, ou aprazíveis momentos em
um jardim-labirinto em companhia de suas primas, em “O pavão”, ou a lembrança
de pobres lambaris do rio Paraibuna, de “O peixe”.
Diante disso, salienta-se a afirmativa de Leyla Perrone-Moisés que o
biografema “teria por objeto pormenores isolados, que comporiam uma biografia
descontínua”,66 e este seria o que o poeta compõe por meio de lembranças
insignificantes, de momentos cronologicamente desconexos. Cria-se, dessa forma,
um texto descontinuado, repleto de lacunas as quais não se interessa em
preencher, mas fornecer ao seu leitor momentos de pequenos prazeres, tal qual
queria Barthes: uma vida reduzida a alguns pormenores, a alguns gostos, a
algumas inflexões, que comporiam um corpo futuro, prometido à mesma
64
LEJEUNE, 2008, p. 23.
65
MENDES, 2001, p. 49.
66
PERRONE-MOISÉS, 1983, p. 15.
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dispersão.67 Assim, Mendes se empenharia em oferecer ao seu leitor vestígios de
um corpo futuro, personagem de si mesmo.
Os animais, quando passados pela “máquina de escrever”, são finamente
subjugados e colocados a serviço de um rememorar. As memórias da infância,
boas ou más, não são mais do que associações nascidas do exercício de criação
dos verbetes, isto é, o microcosmo de todo um intelecto, memórias, conhecimento
e cultura acumulados, como a apresentação de cada lado de uma vida poliédrica
em um verbete, de forma a recriar-se textualmente esse personagem de si. O corpo
futuro visualizado nos verbetes do “Setor microzoo” é um holograma, uma
imagem verossímil desse personagem que se apropria de todo um arcabouço
intelecto-sentimental para se materializar.
Os traços de memória, como flashes de experiências corriqueiras, como a
expressão alarmada do engenheiro Póvoa ao perceber a obsessão do filho do
amigo, pai do narrador, com um arpão para aferrar a baleia melvilleana, ou as
labaredas que comem os colchões infestados de percevejos no quintal da casa
paterna, ou ainda o canto distante de um galo desconhecido, vão surgir, vez por
outra, nos textos de Murilo Mendes em concomitância com a narrativa em que
animais são citados, referenciados ou aludidos, isto é, ao se enfocar determinado
animal, o poeta rememora uma experiência simples e comum de caráter
autobiográfico. É nesse processo, respondendo ao estímulo causado pelo enfoque
a algum animal, que a escrita de Poliedro parece compor um mosaico biográfico.
Nesse espaço lúdico, na maioria das vezes, da infância, o poeta se reinventa. No
traço indelével dos animais em sua memória, o poeta se reinventa biograficamente
na escrita.
67
Cf. BARTHES, 2005, p. xvii.
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MÍTICO LORCA: el poeta como simulacro
María Ángeles Grande Rosales1
Quiero dormir un rato,
un rato, un minuto, un siglo,
pero que todos sepan que no he muerto
De la muerte oscura, F. García Lorca
INTRODUCCIÓN
Hoy, 18 de Agosto, he recibido un correo electrónico con la invitación a
asistir a un homenaje en conmemoración de la muerte de Federico García Lorca,
con lectura de sus versos a cargo de la actriz Blanca Portillo y uno de los poetas
granadinos más relevantes, Luis García Montero. Acabo de pasar casualmente por
el Parque emblemático que se le dedicó en 2006 en torno a la Huerta de San
Vicente. Los periódicos hablan del éxito rotundo de Poema del Cante Jondo,
representado en los Jardines del Generalife en las noches de este caluroso Agosto
como una atracción turística más de la ciudad, e igualmente, en los Veranos del
Corral del Carbón, antiguo corral de comedias de Granada, la Compañía Teatro
para un instante estrena La Tragicomedia de Don Cristobal y la Señá Rosita. No
cabe duda de que Federico García Lorca* es un poeta vivo, un símbolo de la
ciudad, hasta tal punto que incluso da nombre al aeropuerto granadino.
Su proyección institucional también es amplia: García Lorca tiene
Fundación, revista propia, una Casa-Museo en Fuentevaqueros, el pueblo donde
nació, y otra en la Huerta de San Vicente, Cátedra en la Universidad de Granada,
un premio universitario en su honor, así como numerosas biografías y evocaciones
1
María Ángeles Grande Rosales é professora da Universidad de Granada – Espanha.
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a cargo de intelectuales y artistas relevantes, historiadores y críticos, una
proliferación informativa que lo singulariza frente a otros poetas españoles de su
tiempo. Esculturas y retratos del insigne autor pueblan la geografía andaluza,
española y americana; calles, plazas y teatros llevan su nombre. Su amplio
espectro llega a también a lo más trivial: en Londres y San Francisco pubs y
restaurantes se acogen a las connotaciones exóticas que emana su personalidad, el
metro de Londres simboliza en él lo hispánico por antonomasia y su figura y
grafía inconfundible se multiplican en su Granada natal en infinitos souvenirs
apilados junto a la escenografía kitsch de los trajes de gitana, camisetas decoradas
y carteles taurinos. Entre los innumerables ejemplos a los que podríamos aludir,
Manolo Blakhnik, el famoso diseñador de zapatos, acaba de afirmar en una
entrevista que García Lorca es el centro de su colección española, y comenta que
su poesía le ha dictado los tonos de su nuevo modelo Madrid: "el matiz del albero,
el malva y los granas están en el Romancero gitano. Me limito a copiar".
Sin duda, esa fama se debe a la peculiaridad de la leyenda vital que él
mismo fomentó, aunque el mito Lorca se crea a partir de la muerte prematura y
brutal del poeta que simboliza la herida abierta de la Guerra Civil española (19361939). En efecto, el asesinato de Lorca es uno de los factores desencadenantes del
interés biográfico sobre su figura, mientras que su vida, elevada a la categoría de
mito, se entremezcla de forma sinuosa con el sentido y supervivencia de su
creación literaria. María Delgado, autora de un excelente estudio sobre el autor
(2008), afirma que Lorca es una “marca nacional”, un icono político
contracultural garante de beneficios valiosos que se exportan a través del mercado
cultural global:
His eventful life has proved an enduring trope in reading his poetic and dramatic output.
It has been the performance of his life rather than the performance of his work that has
served as the primary prism through which to refract his dramaturgy (…) The
conspicuous absence of his dramaturgy on the Spanish Stage during the early years of
Franco´s dictatorship, and the absence of a complete edition of his work until 1953,
rendered him the forbidden “other”, more desired in death than in life” (2).
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I. DE LA CRÍTICA BIOGRÁFICA a la crítica cultural
La vida es incoherente, pero pedimos que una biografía no lo sea, que
intente estructurar el azar. El relato biográfico, tradicionalmente un género
instrumental, subsidiario de la historia, ha ido dejando cada vez más de lado a lo
largo del siglo XX su servidumbre historiográfica para convertirse en un género
literario. Aunque la distancia entre sujeto biográfico y sujeto histórico siempre
acababa siendo insalvable, la nueva biografía agudiza esta brecha y apuesta, en
conciencia, por el simulacro y la construcción literaria. Frente a la impostura de la
realidad, la narración construiría la única identidad posible de un sujeto carente de
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 107‐140, jul./dez. 2010.
certezas ontológicas, renovando así la ilusión de conocimiento mediante la
palabra.
De forma similar, la crítica biográfica ha proporcionado una mirada
ambivalente sobre la creación artística y literaria en general. Puesto que el autor,
el creador, es la causa más evidente de una obra de arte, explicar su vida, su
personalidad y vivencias pemitiría un acceso directo a su alma. Si el objeto
estético expresa la intimidad del autor, adentrarse en una obra literaria supone
acceder a la individualidad que la ha creado, en una especie de simbiosis animista.
En otras palabras, dado que el objeto estético es una creación que incluye en sí
misma al creador, conociendo el objeto se conocerá el sujeto que lo ha creado y
viceversa, conociendo al hombre se conocerá su obra. Fue Sainte-Beuve quien
generalizó este método extendiéndolo como modelo explicativo de la producción
crítica del XIX (y aún del XX). Quizá la forma más simplista de crítica histórica,
sancionada por el estudioso francés a mediados del siglo XIX, se impone como
visión claramente antropológica de lo literario, donde el centro de gravedad del
crítico está basado en lo biográfico. Desde esta perspectiva, interesa mucho más el
hombre que la obra y la investigación literaria queda subordinada a la biográfica.
Tres son los casos más comunes de la utilización de este método: interesarse por
ciertos datos de la biografía del autor que arrojan luz sobre la obra, interesarse por
datos que explican la personalidad del autor o interesarse por datos que de forma
general pueden ser utilizados para el estudio de la psicología de la creación
artística.
Por su parte, el horizonte positivista también sostiene la utilidad del estudio
biográfico, en tanto que la literatura consiste en la expresión del espíritu humano a
través de los textos. También es propia del positivismo la idea de que describir un
objeto es conocerlo, por lo que la lectura de los biografemas de un autor supone
“comprender” su obra, aprehender y poseer en grado sumo la verdad de sus
creaciones. Aún así, pese a que en los manuales de teoría literaria se advierte que
el biografismo ingenuo y su ambición de llegar al “alma” del escritor parecen
completamente desterrados en la actualidad (p.ej. Viñas, 2002: 329), están
bastante más presentes en el proceso de canonización literaria de lo que podemos
imaginar. En cualquier caso el célebre “Contra Sainte-Beuve” de Proust dejaba
claro que era inoperante la identificación del “yo” personal del autor con el “yo”
autor de la obra. El “yo” del escritor solo está en sus libros. La única manera de
conocer ese secretum poeticum es por medio de la “simpatía” en sentido
etimológico, cuestión sobre la que redunda Philippe Lejeune al insistir en que lo
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esencial no es la existencia cotidiana del escritor, su vida privada, sino el “yo” de
la creación, inmediatamente público. Resulta cuestionable y del todo injustificado
buscar la relación causa-efecto entre la vida privada de un escritor y su obra, que
de existir quedaría las más de las veces en el ámbito de lo anecdótico. Quizá
muchas veces se olvida que desde el punto de vista crítico hay siempre prioridad
de la obra sobre el autor, y que el circuito de comprensión va de la obra al autor
para retornar a la obra, y no del autor a la obra para retornar al autor.
El biografismo siempre ha sido una parte importante de la historia literaria,
aún denostado por su subjetividad intrínseca, por el hecho de constituir una
mirada externa sobre la realidad. Como aproximación extrínseca a la literatura, el
formalismo del primer tercio del siglo XX menospreció su importancia como algo
ajeno al núcleo cientifista del objeto literario, al estudio técnico-formal del
artefacto estético, esa literariedad resbaladiza hasta ahora excesivamente lastrada
de humanismo. Los nuevos críticos rebatirían la intentional phallacy, en el fondo
la defensa de la propiedad del sentido del texto por parte del escritor, mientras que
Sklovski manifestaría de forma epidíctica que el autor es el punto de intersección
geométrico de fuerzas que operan fuera de él. El antihumanismo estructuralista,
por su parte, haría el resto: Barthes profetizaría la muerte del autor, mientras que
Foucault hablaba de la posibilidad de hacer una historia sin sujeto donde los
vectores discursivos trazados desde el poder y el saber dinamitaran la lógica
imaginaria de un sujeto burgués defensor de una igualdad teórica y una libertad
abstracta. Por su parte, Derrida atacaba la psicobiografía, que intentaría apresar lo
inaferrable dado que la escritura es, ante todo, la manifestación de una ausencia.
Pese a todo, es un hecho de que a la teórica muerte del autor corresponde en la
actualidad una curiosidad creciente por el autor de carne y hueso, por la imagen
pública del escritor elevado las más de las veces a la categoría de mito. Cabe
replantearse, por tanto, desde la encrucijada de la crisis discursiva actual, la licitud
de esta perspectiva crítica injustamente denostada desde el inmanentismo teórico
del siglo XX.
Si desde los Estudios Culturales la literatura se considera en su carácter
sistémico como una entidad no autosuficiente, sino interrelacionada con múltiples
factores externos, el hecho biográfico puede reconsiderarse como uno de los
mismos, en la misma medida en que otros factores tradicionalmente excluidos de
la visión teórica de la literatura como el género, la identidad o la raza constituyen
en la actualidad categorías relevantes de alcance insospechado en la consideración
de la literatura. Éste es el hilo conductor de este trabajo, mostrar en qué medida la
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institución literaria tiene sus propios mecanismos de funcionamiento que
confieren a un autor, como es el caso que nos ocupa, la categoría de fenómeno
discursivo complejo. En él la vida, la anécdota biográfica, se vuelve crucial, no
por razones estrictamente literarias, sino culturales. Solo un enfoque amplio puede
dar cuenta de la literatura como hecho cultural, incluso antropológico, definitorio
de una colectividad. Como veremos más adelante, una biografía como la de Ian
Gibson de Federico García Lorca (1998) supone el culto a una personalidad, que
en una curiosa usurpación de funciones se convierte en potencial objeto de
valoración estética.
Así, la biografía como interés por los datos de la vida de un escritor que
arrojen luz sobre su obra literaria constituye sin ninguna duda parte de un proceso
absolutamente legítimo de hermenética de recuperación de un autor, que pretende
reconstruir el contexto original de producción de los textos. Como género
historiográfico, a nadie se le oculta la importancia de una información que explica
e ilustra la creación poética, de la misma manera que la ecdótica o la crítica
filológico-textual contextualizaron e hicieron legibles los documentos literarios
del pasado. Salvo en el malentendido productivo de Sainte-Beuve, la crítica
biográfica rigurosa va mucho más allá de constatar la relación causa-efecto entre
vida privada y obra literaria. El arte nunca es completamente autoexpresión,
transcripción en bruto de sentimientos y experiencias personales, ya que este
material siempre se procesará de acuerdo con las reglas del arte, puesto que una
creación artísitica nunca es un “documento” biográfico.
Por otra parte, si bien el biografismo es un ingrediente más en el
macrocosmos literario, desde luego su valor exegético es impagable, así como la
información que nos proporciona sobre el campo discursivo –recordemos a
Bourdieu- en el que se inscribe la obra: lecturas del poeta, relaciones personales,
viajes, ciudades en las que vivió…todo ello forma un material impagable para
valorar la tradición de la que un escritor forma parte, el estudio de las
correlaciones culturales de su tiempo que funcionan sobre la base de pertinencias
recíprocas. En cualquier caso, todo esto resulta ajeno a la apreciación estética de
la obra, ya que ningún suceso biográfico puede afectar a la valoración artística. La
pretendida “sinceridad” de un autor es algo trivial o irrelevante en la apreciación
literaria (forma parte de la sustancia, del material en bruto sin transformar) desde
el carácter ficcional que define la autonomía artística, ya que solo la elaboración
formal de cualquier motivo temático puede proporcionale eficacia estética.
Considerar el arte como pura y simplemente autoexpresión, transcripción de
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sentimientos y experiencias personales constituye una falacia romántica
magníficamente rebatida desde el escepticismo contemporáneo. Solo cuando
sabemos que la literatura, o la poesía es mentira, podemos escribirla de verdad.
Todo procedimiento artístico subraya su carácter construido, indirecto: “el arte es
la emoción revivida en tranquilidad”, decía Wordsworth. La literatura, el único
ámbito cósmico del mismo tamaño que la luna, no es la transmisión transparente y
directa de una vivencia, sino una técnica que asume la tradición y las
convenciones literarias al uso. Como afirma Wellek, “El poema existe; las
lágrimas, derramadas o no, las emociones personales, se han desvanecido y no
pueden reconstruirse, ni hay por qué” (Wellek, 1953: 96).
A continuación, intentaremos analizar la funcionalidad de la crítica
biográfica en relación con Federico García Lorca, uno de los autores españoles
contemporáneos más reconocidos e influyentes. Se intentará explicar, aún
brevemente, cómo se produce la mitologización de Lorca, su proyección canónica,
trascendencia estética y fetichización mercantil. Se demostrará de qué manera su
vida ha cambiado la manera de leer su obra, los juicios axiológicos y el sentido de
la misma. Frente a una lectura exclusivamente apreciativa o exegética de la obra
lorquiana, se pretende llevar a cabo una suerte de mirada sintomática que
demuestra el funcionamiento de la literatura como mercado de valores simbólicos.
Dicho de otra manera, hablaremos de Lorca a pesar de sí mismo, argumentaremos
la imposibilidad de llevar a cabo una lectura “inocente” o “transparente” de su
legado.
Más allá de la innegable valoración estética, en su originalidad, belleza y
profundidad, de una obra trascendental, es posible realizar preguntas culturales a
un texto literario, si entendemos la literatura como práctica cultural particular.
Como se ha puesto de manifiesto por parte de la crítica de la recepción, los hechos
literarios no existen aisladamente sino dentro de un determinado horizonte de
expectativas que proyecta una serie de supuestos en relación al encuentro de los
receptores con el fenómeno literario. Así ocurre con Federico García Lorca, su
obra está inevitablemente mediatizada por una serie de procesos ajenos al ámbito
estrictamente literario. En primer lugar, el caos de su legado, desde la desgraciada
transmisión sexual de su obra debida a su temprana e inesperada desaparición, a la
continua elaboración sobre poemas y libros enteros y el trasvase de los mismos
hasta la pluralidad interpretativa que proyecta su obra como potencialmente
indescifrable. Especialmente interesante en cuanto que aúna hipótesis de lectura
diferentes y encontradas, problemas textuales, estéticas contradictorias,
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 107‐140, jul./dez. 2010.
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encontramos dos visiones opuestas sobre un mismo autor perseguido por la
leyenda de su asesinato político y estigmatizado por su condición de homosexual.
Por último, hablar de Lorca supone instalarnos en una cadena hermenéutica
de lujo: un ejército de críticos-Penélope teje y desteje el sentido de su obra
siempre abierta, siempre inacabada. Aún cuando la tendencia más acusada de sus
exegetas es la de “hacerlo visible”, analizarlo, interpretarlo y mostrar en último
término el sentido final, la verdad latente de su escritura cifrada. Esto ocurrió
incluso con su teatro más insondable, el borrador incompleto de ese teatro
enigmático que para él prefiguró el teatro del futuro: la criptografía de El público
incluso dio lugar a un juego espiraliforme mediante el cual se dio a conocer el
análisis del drama antes que el propio manuscrito lorquiano, de forma que una
lectura tan clarificadora casi obviaba la necesidad de acudir al texto original. En la
actualidad, sin embargo, nuevas perspectivas críticas nos han prevenido sobre los
límites de dicha interpretación, pero sobre todo los límites de la interpretación y
del intento canónico y erudito de dominar el texto, vencer su resistencia aún desde
la mitología personal y simbólica de la producción poética lorquiana, lo que
resulta en último término en la asunción de una única verdad trascendente en la
escritura susceptible de ser descubierta, un único sentido que monopoliza la
hirviente multiplicidad significativa de unos textos indescifrables, polivalentes,
ilimitados.
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II. MÁS ALLÁ DEL ESPEJISMO de la identidad
El biografismo está absolutamente presente en la valoración crítica de la
obra de Lorca, inevitablemente se mezclan ambos discursos, de manera que sus
circunstancias vitales acaban siendo una categoría literaria. De hecho los datos de
su vida se han ido entretejiendo con los de su obra hasta el punto de que son
indiferenciables: insistentemente cualquier alusión a Lorca se coteja con su
epistolario, conferencias, entrevistas y testimonios, cumpliendo una doble función
historiográfica, acerca de la composición y circunstancias de sus escritos, y
hermenéutica: explicar su sentido último. Aunque las inconsistencias se salven
con alusiones al ludismo engañoso de su autor en relación con algunos episodios
de su vida, el ocultismo de los momentos más privados e íntimos o la versatilidad
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informativa del propio autor: Poeta en Nueva York, un líbro sincero y torrencial,
escandaloso y radical como ningún otro, muestra una ciudad que apenas se
reconoce en la ciudad descrita en sus cartas. La performatividad de su discurso es
cambiante en función del interlocutor al que se dirige. Por lo demás, estas
publicaciones se han beneficiado de la revalorización del individualismo, la
preferencia del historiador moderno por el sujeto literario. De hecho, la actual
euforia editorial sobre escritura subjetiva en general consiste en el gusto del lector
por sumergirse en la ilusión de realidad que ofrece al texto un referente histórico,
cansado ya de la artificialidad que la metaliteratura imprime al hecho literario.
La mayoría de los testimonios sobre la vida del poeta provienen de amigos,
conocidos y testigos presenciales de su vida (Soria, 1998b: 227-242). Excepcional
resulta la de su hermano, Francisco García Lorca, y en la misma línea intimista
sobre su infancia y juventud la del periodista granadino José Mora Guarnido, más
testimonio de los años de iniciación que relato biográfico tradicional. Conocer al
personaje y el entusiasmo que le procura da al discurso de este último un tono más
creativo y menos referencial. En este caso la cercanía y la amistad con el poeta
transforma el sujeto biográfico en la versión mitológica del personaje. El diario
del diplomático chileno Carlos Moya Lynch dará cuenta de sus andanzas por
Madrid, información complementada por el libro de Marcelle Auclair que visitó
España entre 1933 y 1936, Enfances et mort de García Lorca. No cabe duda, sin
embargo, de que el gran biógrafo sobre Federico García Lorca es Ian Gibson, que
publicó inicialmente una monografía imprescindible sobre la muerte del poeta
titulada La represión nacionalista en Granada y la muerte de García Lorca
(1971). El enigmático asesinato se reconstruía por primera vez con enorme rigor
como ejecución ordenada por el poder usurpado a la legitimidad republicana
frente a la cínica propaganda del Régimen que había considerado su muerte un
hecho fortuito o privado, o que había defendido la inverosímil hipótesis de que,
como sostenía Jean-Louis Schonberg, se debía a un ajuste de cuentas entre
homosexuales.
En cualquier caso, su investigaciones biográficas posteriores culminarían en
el año de su centenario con un título tan rimbombante y excesivo como Vida,
pasión y muerte de Federico García Lorca (1898-1936), donde el positivismo
inequívoco de los hechos se relativiza en ocasiones desde la interpretación
subjetiva del historiador. Se trata de una obra que responde a una concepción
tradicional o romántica del género biográfico, según la cual se describe el
encuentro espiritual entre un historiador-biógrafo y un lector privilegiado que
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“capta” las intenciones del primero, lo “comprende” y se “identifica” con él en
una suerte de diálogo intersubjetivo, aplicando unas pseudohipótesis cientifistas
en la exhaustividad de los datos recabados y la interpretación de los mismos. En
este caso, en un proceso de descontextualización que resulta paradójico frente a
sus primeras investigaciones, el autor se centra desde el principio en dos temas
hasta ahora supuestamente descuidados en la biografía del poeta, la
homosexualidad y la revolución -heterodoxia sexual y social-. De hecho, la
mayoría de los investigadores lorquianos han cuestionado la licirud de esta, por
otra parte, minuciosa reconstrucción de la vida de García Lorca. Como pone de
manifiesto Andrés Soria (1998b: 241-2):“…la paradoja estriba en que la biografía
de un artista es una investigación sobre un delicado, múltiple, complejo proceso
de invención y creación. Y en esa dirección, el “magnus opum” de Gibson,
reeditado en 1998 con el título (tan elocuente, en sus intenciones, como el de
1971) de Vida, pasión y muerte de Federico García Lorca (1898-1936) adolece de
cierta endeblez epistemologica e interpretativa”.
A este respecto, Luis Fernández Cifuentes (1988) ya había demostrado que
en el fondo se trataba de un intento espúreo de simplificar la vida de un poeta
desde determinadas claves o tópicos al uso, como la “frustración sexual” y la
“heterodoxia”. El proceso de lectura ontológica que ha caracterizado el estudio de
su producción literaria se invierte para alcanzar su propia vida. Parecería este uno
de esos casos en los que la biografía es una extensión del elogio, del panegírico o
del discurso laudatorio: el biógrafo tiende a acentuar los rasgos favorables a su
intención, y, al emitir juicios de valor explícitos, es lícito sospechar que la
reconstrucción de la vida del personaje ha sido en cierta medida “distorsionada”.
Quizá por ello las monografías de Gibson superan el concepto de “biografía”, en
tanto que no son puramente informativas, ya que este género de paisaje brumoso a
horcajadas entre la historia y la literatura tiene la finalidad última de entender una
vida, y hace uso a discreción de métodos diferentes de carácter psicológico o
psicoanalítico para adueñarse de su secreto. Lo que tradicionalmente era
entendido como “estricta representación de una vida” ahora se convierte en
descripción de una individualidad, llegando incluso en algún momento, desde el
contenido inferido de los hechos históricos, a conertirse en una suerte de
“novelización” inconsciente del individuo. En cierto modo viene así a cumplir las
directrices de la biografía moderna “fórmula de acceso a la verdad mediante la
ficción, sería entendida en la medida que se acepte la construcción artística como
medio de conocimiento” (Molero de la Iglesia, 1998: 526). Como ejemplo de esta
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lectura “tendenciosa”, podemos por ejemplo mencionar la descripción de García
Lorca, según la tesis del psicoanalista Emilio Valdivieso, como “ñiño
abandónico”, es decir , como víctima de de la frialdad de carácter y distancia
materna, que tanto repercutiría en el bienestar emocional de un niño hipersensible
lastarado por la “ansiedad de la separación” (Gibson, 1998: 25).
Del mismo modo, Gibson explica la vivencia lorquiana del crack de Nueva
York como causa de su aproximación a “un análisis marxista de la condición
humana” (321) o restringe la polivalencia significativa de un proyecto
cinematográfico como Viaje a la luna como expresión del sentimiento del andaluz
de “aniquilación sexual” (322). No extraña por tanto que en la película Muerte en
Granada, basada en los libros de Ian Gibson, esta misión redentora se sancione en
cuanto que el héroe no es ya el poeta sino el biógrafo empeñado en averiguar la
verdad circunstancial de la muerte el poeta que pagará caro su atrevimiento (en
realidad, se trataba de una dramatización del trabajo investigador de Agustín
Penón, predecesor e importante fuente de inspiración de Gibson).
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III. EL MITO Lorca
Lorca fue muy célebre en su tiempo, dado su extraordinario talante artístico
y su carácter extrovertido y jovial. Los retratos de sus amigos -Cernuda, Buñuel,
Dalí, Alberti- cuando recitaba sus versos, leía alguna composición o tocaba alguna
pieza al piano, redundan en la imagen del poeta como alguien magnético, brillante
y encantador, además de que él mismo fue el primero en contribuir al proceso de
mitologización biográfica, creándose su propia aura o máscara legendaria. Se le ha
considerado “icono andaluz” -su irreconciliable enemigo Borges lo calificaba
como “andaluz profesional” (cit. en Gibson, 1998: 440) –desde el mito de la
gitanería, el folklore, el duende- y poeta nacional: Lorca como esencia de España
(Neruda), español hasta la exageración (Cernuda) y corporeización de lo hispánico
(Johnston), hasta cierto punto extendiendo el tópico central de nuestra cultura
basado en el folklorismo. Incluso se le ha considerado representante de la
panhispanidad, habida cuenta de sus visitas y lazos de amistad con los países de
América Latina (véase Delgado, María, 2008: 10-33).
Por otro lado, su estancia en la Residencia de Estudiantes (1919-1936),
emblema de la España progresista, le permitió relacionarse con las figuras más
importantes de la intelectualidad literaria y cultural del momento (incluyendo a
personalidades como el Premio Nobel Vicente Aleixandre, el pintor José Moreno
Villa, el poeta José María Hinojosa, el director del Teatro Eslava Juan Ramón
Gómez de la Serna, el neurólogo merecedor del Nobel Ramón y Cajal, el también
Nobel Severo Ochoa, el profesor de fisiología que luego sería Primer Ministro de
la República, Juan Negrín o el poeta Juan Ramon Jiménez. Aunque lo más
llamativo y sorprendente fue ese eje emblemático Buñuel-Dalí-Lorca que extendió
el Surrealismo como avanzada cultural del momento. La relación Lorca-Dalí,
impregnada de connotaciones homoeróticas, fue fecunda en lo personal y en lo
artístico, así como la presencia de Buñuel siempre supuso un desequilibrio que
alcanzaría la forma definitiva en el cortometraje de Dalí y Buñuel dedicado
malévolamente a su amigo, El perro andaluz. Además, en la década de los veinte,
entre Lorca, Buñuel y Dalí existió un fuerte grado de contaminación de las
prácticas artísticas que responden a casi un único programa estético. Tras la
publicación de Romancero gitano, bestseller fulminante, Federico obtiene fama y
reconocimiento, salvo por parte de sus amigos íntimos, Dalí -“el día que pierdas el
miedo, te cagues en los Salinas, abandones la Rima, en fin el arte como se
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entiende entre los puercos, arás cosas divertidas, orripilantes, crispadas, poéticas
como ningún poeta ha realizado”- y Luis Buñuel, quien desde su característica
homofobia lo calificó como “poesía pura que gusta a los poetas maricones y
cernudos de Sevilla” (cit. en García Pintado, 1987: 7).
Podemos conjeturar, por tanto, que desde la afinidad hacia los presupuestos
de los surrealistas españoles y la intransigencia iconoclasta, Federico García Lorca
dará un giro insospechado a su poética justo en el viaje a Nueva York, viaje
creativo que compagina la experiencia en directo del crack de la bolsa neoyorkina
con su época creativa más fértil, vigorosa y equívoca (la de Poeta en Nueva York,
El Público, Así que pasen cinco años, Comedia sin titulo). Desde luego la
influencia de Dalí y Buñuel será clave en el giro hacia la experimentación que se
observa en el final de la producción literaria lorquiana, que denominará “su nueva
manera espiritualista”, la escritura de una “poesía de abrirse las venas” y “evadida
de la realidad” (García Lorca, 1954: 951-962). Por otra parte, su producción
inédita, su poesía neoyorkina y teatro imposible, o los Sonetos del amor oscuro, a
su vez pusieron de manifiesto la existencia de un Lorca desconocido, maldito,
impronunciable e irredento, alejado de neopopulismo y gitanería. Encarna Valero
(2005: 111-136) califica este suceso como acercamiento a la inquietante categoría
de lo siniestro según el célebre ensayo de Freud, categoría intermedia entre el
ámbito tradicional de lo sublime y lo grotesco.
Su mesianismo, por lo demás, ha alcanzado también a su condición sexual.
Mientras estudios tempranos notablemente evitarían referencias a la
homosexualidad (Mora Guarido, 1958; Río 1952), las lecturas subculturales han
reivindicado a Lorca como exponente de dicha cultura desde parámetros
absolutamente ajenos al autor. Feal Deibe (1981) o Huélamo Kosma (1989) han
proporcionado lecturas psicoanalíticas de su obra, mientras que la evocación
repetida de sus tratamientos progresistas de género y sexualidad son indicativos de
su contemporaneidad. De nuevo, la lectura tendenciosa de la obra lorquiana
supone un acto simplista de falsificación crítica, independientemente de que este
tema admita planteamientos más serios. Como señalaba Foucault, la
homosexualidad es uno de los espacios modelos de la exclusión y la diferencia
junto al espacio de la locura.
También ha sido tildado de poeta social, con obras clave para discernir la
sociedad en la que vivía y trabajaba, además de que Federico siempre ha sido
considerado un mártir de la izquierda, con notorias manifestaciones a favor del
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liberalismo de la II República. Mientras Buñuel manifestaba que él no estaba muy
interesado en polítca y Dalí reforzaba este punto de vista llámandolo por esencia
“la persona más apolítica de la tierra”, su asesinato y afiliación a la agenda
cultural republicana lo han proyectado como emblema de la causa frentepopulista.
Durante la Guerra Civil, los milicianos ignorantes memorizaban sus baladas y
canciones convirtiéndolos en himnos políticos (1944: 12-13). De hecho participó
activamente en el discurso democratizador de la cultura con La Barraca, su
proyecto de teatro itinerante por toda la geografía española, que se proponía
divulgar a los clásicos. La asociación de Lorca con la izquierda pudo atestiguarse
de muchas maneras, como la participación en manifestaciones en defensa de los
mineros o representaciones teatrales en beneficio de los presos, o la firma de un
manifiesto a favor del Frente Popular en el periódico comunista Mundo Obrero.
Pero la ambigüedad sigue latente: unas manifestaciones inéditas de Luis Rosales,
que han levantado ampollas, lo describían como “defensor de una dictadura”
(Tapia, Juan Luis, 2010).
En cualquier caso, la dimensión mítica de Lorca se acabaría de fraguar a
partir de una muerte envuelta en misterio. Asesinado por las tropas fascistas poco
después del alzamiento militar de 1936 que provocó durante tres años la Guerra
Civil en España, su nombre permaneció como potente símbolo de una era liberal
brutalmente abortada por la alianza ilegítima de fuerzas de la derecha. De hecho,
esta encrucijada alcanza hasta hoy, puesto que su asesinato traiciona los intentos
de la nación de enterrar las cicatrices del conflicto fratricida. Permanece como
repetida imagen proyectada de la necesidad de exorcizar el pasado e intentar de
alguna forma ajustar cuentas con lo que se ha denominado el holocausto español.
No es de extrañar, por tanto, que el legado lorquiano haya adquirido unas
connotaciones trascendentes y singulares en la España de la Transición y de la
normalización democrática. De hecho, la obra de Lorca ha estado marcada por la
presencia de tres efémerides conmemorativas en la España postfranquista. Así, en
1986 se conmemoró el asesinato del poeta en una amplia serie de actividades
académicas e institucionales que dieron lugar a un numeroso catálogo de literatura
crítica. Era un momento de relativa avidez y entusiasmo por la escritura lorquiana,
solo publicada parcialmente, después de los cincuenta años transcurridos tras el
oneroso asesinato. Ediciones de textos inéditos provocaban un auténtico
“descubrimiento” de otro Lorca más allá del populismo y folklore, además de que
las múltiples y novedosas formas de leer todos los textos desde insospechadas
metodologías críticas suponía una canonización del poeta sin precedentes. Nadie
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dudaba de que se trataba de un terreno abonado y aún había mucho que hacer. Se
trataba de dinamitar la oposición entre un “Lorca de la luz” y un “Lorca de las
tinieblas” .
Seis años más tarde, en 1992, se celebró con entusiasmo el cincuentenario
de la edición de Poeta en Nueva York, el gran poemario póstumo de Lorca, el de
mayor calidad y envergadura, el más difícil, críptico y rupturista en relación con
su obra anterior, y según su espléndido exégeta Miguel García-Posada “quizá el
único libro proteiforme de la historia universal de la poesía” (1974: 22). El
centenario de su nacimiento, 1998, como no podía ser menos, supuso otro enclave
trascendental en la apoteosis académica e institucional del mito Lorca, ya
constituido indiscutiblemente como “clásico moderno”. Precisamente el momento
en el que uno de los mayores expertos en la obra lorquiana, Luis Fernández
Cifuentes, observaría cierto “agotamiento”, desde la hipótesis de que el exceso de
todo el creciente corpus bibliográfico acerca de este autor llegaba a ser menos
productivo como estudio de la obra de Lorca que como testimonio o síntoma de
los tiempos, basándose en la sospecha de que “domina así en el corpus crítico
sobre la obra de García Lorca un vocabulario adoptado y adaptado menos de la
filosofía que de la antropología social, con términos como mito, rito, misterio,
magia, arquetipo, primitivo, primario, cósmico, etc, etc” (1998: 227). Por lo
demás, advertía cómo la crítica tradicional “constructiva, ordenadora,
monumental” se había visto asaltada, desde la producción inédita del poeta y las
nuevas coordenadas críticas, por una nueva perspectiva que ahondaba en lo
“indecidible, en lo imposible de desmantelar con algún grado de certeza” (229).
En efecto, la mayoría de los trabajos de Lorca se resuelven en esta
contradicción. Curiosamente, tanto los críticos más conservadores, como los más
formalistas y los más radicales encontraron un mismo punto de fuga: el carácter
inagotable e impenetrable de gran parte de la obra de Lorca, su naturaleza en
último término indescifrable (misterio, duende). Frente a la falacia de las
conclusiones totalizadoras, Lorca pervivía esencializado en el misterio, y hallaba
en su enigmática muerte su mejor metáfora. Pese a los intentos de dominar su
discurso hermético o semi-hermético en lecturas metafóricas y legibles, Lorca
siempre escapaba al sentido, sobre todo en las obras más autorreferenciales. Si su
obra críptica era autobiográfica, conocer su vida seria la clave para desentrañar las
máscaras metafóricas del poeta. En un movimiento que hemos visto con
anterioridad, el enigma de su poética se dinamita en la perspectiva difusa,
igualmente inaprehensible, de su propia vida.
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Ésta fue la premisa que marcó su centenario: acercarse al “verdadero
Lorca”, al “espíritu de Lorca”. En palabras de Monegal, se trataba de resucitar
fantásmáticamente la exégesis animista, en la medida en que se seguía pensando
que Lorca había sido malentendido, demasiado atado a los estereotipos
dominantes que han falseado su imagen. La crítica se supedita al afán biográfico
que busca una verdad en la personalidad del autor más allá de la muerte, un vicio
necrófilo al que se opone “la práctica de la autopsia, la disección y la exploración
del cuerpo del texto como metodología científica de conocimiento” (Monegal,
1998: 62). Lo curioso es que estos dos modelos contrapuestos en relación al autor
y a su obra –conocer al autor para entender su obra o desentrañar los textos para
acceder al autor- se producen en función de la muerte en un proceso hermenéutico
paralelo. Cabe afirmar que la muerte forma parte del horizonte de expectativas de
la obra de Lorca en la medida en que atiende al lugar del sentido irrecuperable
(manuscritos inéditos inconclusos, textos desperdigados o encomendados a
amigos, versiones diferentes) y cierra del círculo mitológico en torno al autor en
un asesinato secreto y cobarde lleno de incógnitas.
Es ya un lugar común referirse a los versos premonitorios, a los detalles de
su escritura que pudiesen anticipar su desgraciado final. Podemos mencionar,
entre otros, ya que que tenemos numerosas referencias al respecto, el poema
“Fábula y rueda de los tres amigos”, en Poeta en Nueva York: “Cuando se
hundieron las formas puras / bajo el cri cri de las margaritas, / comprendí que me
habían asesinado. / Recorrieron los cafés y los cementerios y las iglesias, /
abrieron los toneles y los armarios, / destrozaron tres esqueletos para arrancar sus
dientes de oro. / Ya no me encontraron. / ¿No me encontraron? No. No me
encontraron. / Pero se supo que la sexta luna huyó torrente arriba, /y que el mar
recordó ¡de pronto! / los nombres de todos sus ahogados, o en la breve
composición “Canción de la muerte pequeña”: “Me encontré con la muerte. /
Prado mortal de tierra”. Igualmente su drama Así que pasen cinco años se escribió
justamente un quinquenio antes de su muerte…
La muerte de Lorca afecta a cómo nos acercamos a Lorca, a cómo lo
leemos, aunque se trata de una pulsión no espontánea, proyección del lector:
“El mito de la muerte, al igual que el de la gitanería…no lo puede tratar de hecho sino
los relatos explicativos, elevados al rasgo de clave, mediante los que se orienta la
lectura, forma parte del horizonte de expectativas que rige la recepción de la obra de
Lorca (…) La muerte acaba jugando un papel en nuestras pregunta acerca del sentido de
los textos de la misma manera que juega un papel en nuestras preguntas acerca del
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sentido de la vida. Justamente una de las convenciones de la biografía es que el sentido
de una vida se hace desde la muerte, desde su conclusión. Desde este punto de vista,
tiene su lógica el que Gibson investigara la muerte de lorca antes de narrar su biografía”
(Monegal, 1998: 64).
También es muy conocida la opinión de Lorca de que la publicación de sus
poemas era una forma de muerte. Precisamente el sentido que discierne Monegal,
al referirse a la célebre locución de El Público, “la verdad de las sepulturas” como
doble muerte, la del autor y la de la escritura como clave de la proyección crítica
lorquiana. El absurdo de una muerte política se complementa con la conciencia de
que búsqueda de la verdad es del todo infructuosa. Así pues, el misterio de su
producción es irresoluble, dado que reside en la misma literalidad de la escritura.
La verdad de las sepulturas es imposible de profanar y la metáfora hace referencia
no a un “cuerpo” o “espíritu”, sino al hueco, a la ausencia, al vacío: “el sentido se
instala en la brecha de la discursividad, en un vacío de referencialidad que es
contrarrestado por la capacidad poética, es decir, productiva del propio lenguaje”.
Escapa tanto al sujeto como al destinatario, convirtiéndose en una presencia
textual. Frente al espiritismo y la disección, dice Monegal, se impone una nueva
modalidad de lectura, basada en la elegía, “discurso de duelo por una pérdida una
pregunta acerca del sentido en la medida en que se trata de un sentido
determinado por la muerte” (75).
En la actualidad, el espectro de García Lorca continua acechando nuestra de
psique de manera simbólica y literal (Montero Barrado, 2010). Su enterramiento
en una fosa común en un lugar anónimo del noroeste de Granada lo convierte en
un potente símbolo de los más de 30.000 cadáveres de la Guerra Civil que
descansan en lugares anónimos. Durante el año 2000, la Asociación para la
Recuperación de la Memoria Histórica, respaldada por el gobierno de José Luis
Rodríguez Zapatero, ha abanderado la exhumación de cientos de cadáveres de la
guerra y la postguerra como proyecto legítimo de justicia histórica. En el caso de
Lorca, las aspiraciones de las familias de aquéllos enterrados con él inició un
proceso sin precedentes al que la familia Lorca no pudo poner coto. Mientras que
la Fundación García Lorca presidida por su sobrina Laura García Lorca de los
Ríos, pedía que sus restos descansaran en paz, el historiador Ian Gibson –
respaldado por sus indagaciones acerca de la muerte y amplio conocimiento de la
biografía de Federico- defendió la búsqueda del cadáver para confirmar el lugar
del asesinato y verificar detalles del mismo. La legítima recuperación de la
memoria –la necesidad psicológica de suturar la herida de un presente
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irreversiblemente incompleto- acabó sin embargo en una aguda controversia para
algunos (que aludían a intereses inmobiliarios de fondo) y en un circo mediático
para otros. Desafortunadamente y pese a las expectativas creadas, en las
excavaciones de 2009 no se descubrieron los restos de García Lorca ni de las
personas que lo acompañaron en su fusilamiento. Sin necesidad de fantasmáticos
desenterramientos, la existencia de una fosa común con cuerpos anónimos
continúa siendo el único homenaje lícito a la memoria del espeluznante pasado.
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IV. ¿HERMENÉUTICA DE RECUPERACIÓN o sintomática?
Frente a la hermenéutica de la recuperación del sentido originario de los
textos, existe también una hermenéutica de la sospecha, que busca expresar los
supuestos ocultos en que se fundamenta un texto (políticos, sexuales, filosóficos o
lingüísticos). El problema estriba en ir más allá del texto y negar su especificidad,
en convertir la interpretación del texto en símbolo de algo no textual –vida
psíquica del autor, tensiones sociales, homofobia- aún cuando si se centra en la
práctica cultural en que se engloba la obra, puede ser valiosa. Por ejemplo, la
crítica se ha empeñado en construir a Lorca como sujeto homosexual. Ello no
significa que la homosexualidad no ha sido una cuestión clave para interpretar la
poesía lorquiana, que lo es, a la vez que un rasgo biográfico incómodo para el
oficialismo cultural, pero desde luego no “define” a Lorca ni es la única. Pese a
todo, usaremos este concepto como uno de los más productivos en relación con la
crítica biográfica existente sobre el poeta, dado que el hecho de la
homosexualidad del autor ha afectado la supervivencia de parte de su producción
poética, ha distorsionado la lectura e interpretación de parte de la existente, y, por
otra parte, constituye un excelente ejemplo de la manera en que el biografismo
crítico puede usar la anécdota vital o las vivencias de un autor de forma pertinente
o no en la exégesis adecuada de su producción, además de cómo motivo
trascendente en la psicología del acto creador, por ejemplo desde la metodología
crítica psicoanalítica.
Podemos empezar advirtiendo cómo, incluso en la actualidad, esta cuestión
ha incidido en una estrategia política desculpabilizadora que pretende neutralizar
las ominosas circunstancias políticas del asesinato, sosteniendo que Lorca fue
asesinado por su condición sexual. Cuenta Marcelle Auclair que, poco después de
la ejecución de Federico García Lorca, los diarios se hicieron eco de la noticia
aludiendo a la “dudosa” sexualidad del poeta (1968: 417). Tampoco faltan detalles
escabrosos al respecto: en el cautiverio, según el testimonio de Andrés Sorel
(1977: 203), sufrió el escarnio por parte de sus captores: “Sí, le torturaron, sobre
todo en el culo; le llamaban maricón, y ahí le golpearon. Apenas si podía andar”.
La ejecución fue llevada a cabo por el falangista J. L. Trescastro, que se
vanagloriaba de “haberle dado a Lorca un tiro en el culo por maricón”.
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Se impuso entonces la versión oficial de la muerte de García Lorca atribuida
a la intolerancia de la sociedad granadina por su condición de famoso y
homosexual. Obviamente, si bien su homosexualidad fue uno de los motivos que
empujaron a torturarlo y matarlo, no se pueden negar las connotaciones políticas
del asesinato. Por otra parte, la cesura creativa que desencadenó su obra más
rupturista (Poeta en Nueva York y El Público), siempre se ha relacionado con la
influencia de un abandono sentimental. Con motivo de la aparición de Poeta en
Nueva York informa Juan Larrea desde México de la evidencia después repetida
hasta la saciedad de que ese libro correspondía a conflicto íntimo propiciado por
su inadaptación social ante lo que la sociedad consideraba anormalidad congénita,
una anomalía sexual repulsiva. Sorprende la actitud abierta de este testimonio en
contradicción con el oscurantismo, vacilaciones y ocultamientos con que esta
cuestión se trató por parte de sus amigos y conocidos. La tendencia generalizada
era la de destruir datos y documentos “comprometedores” o incompatibles con la
cultura establecida. La imagen de Lorca que interesaba era la de un Lorca
encantador, siempre alegre y sonriente, aunque obviamente ésta era una imagen
distorsionada de la realidad.
Ángel Sahuquillo ha recorrido minuciosamente la historia de silencios y
distorsiones, el falseamiento del legado lorquiano, en aras de su “normalización”
social, precisamente por los integrantes de su círculo social más íntimo (1986).
Por poner solo un ejemplo de la manera en que eso ha afectado a la supervivencia
de la producción de Lorca, podemos mencionar el hecho de D.M. Loynaz rompió
y tiró a la papelera uno de los manuscritos de El Público, porque la obra le había
parecido absurda y escandalosa (Auclair, 1968: 455). Por su parte, Philip
Cummings se deshizo de un manuscrito de cincuenta y tres páginas, acción que
justificaba (obsérvese la tendenciosidad del argumento) “tanto por Federico como
por todos los que le quisimos era preferible que todo se destruyese”. La bola
negra, manuscrito desaparecido o destruido mostraba el problema de la represión
sexual sobre los homosexuales, igual que La destrucción de Sodoma, otro texto
del que nada se sabe, salvo su tema.
Cartas inéditas guardadas celosamente por sus amigos como Martínez
Nadal, o censuradas, como las del epistolario Lorca-Dalí, inciden sobre esta nube
de humo crítica. En cambio, documentos como FGL, L´homme, l’oeuvre (1956)
romperían la inercia al uso. Jean–Louis Schoenberg hace en él una interpretación
homosexual de la obra de Lorca y gran parte de los hechos acaecidos en su vida
(algo usual en los relatos biográficos en uso hasta la fecha). Independientemente
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de su anacronismo militante en ocasiones, fue ferozmente atacado. Se denunciaba
desde su “obsesión sexual” hasta su metodología crítica freudiana, se
menospreciaba su trabajo como afán de notoriedad. José Mora Guarnido lo
calificó de “perro”, en recuerdo de “la desgracia –no otra cosa que la desgracia- de
una vital e irresistible tendencia a la inversión sexual” (1958: 229).
En 1966 aparece en Minnesota una tesis doctoral donde se habla
abiertamente de la homosexualidad de Lorca, Erotic Frustration and its
Consequences: the Drama of Federico García Lorca, y alude a las únicas escenas
conocidas de un drama hasta ahora inédito de El Público. Esta tendencia se
incrementó en la década de los setenta, especialmente en la contribución de la
aplicación sistemática del psicoanalisis freudiano a la elucidación de la obra de
Lorca por parte de Carlos Feal. La tibia interpretación de Martínez Nadal de El
Público (1970) publicada como pusimos de manifiesto antes que el propio drama
en 1978, dio pie a críticos relevantes para desenmascarar el estado de la cuestión,
denunciando el “convencionalismo ético inmovilista y regresivo” de Martínez
Nadal, la aberración de ocultar el tema de la homosexualidad como clave
interpretativa para entender correctamente la obra lorquiana. Francisco Umbral
afirma con perspicacia que el ocultamiento de Martínez Nadal “está aplicando
juicios morales a la obra maravillosamente amoral de Federico García Lorca”
(Francisco Umbral, 1975: 45). Otro crítico igualmente prestigioso, Miguel GarcíaPosada, el intérprete más prestigioso de Poeta en Nueva York, escribe en El País
con motivo de la publicación privada de los Sonetos del amor oscuro (1984), que
el tema de la homosexualidad se ha tratado de forma tendenciosa y vulgar, y que
un concepto como el de “amor oscuro” “no puede dejarse en manos de exégesis
virulentas”.
Excedería los objetivos del presente artículo analizar pormenorizadamente
la manera en que la homosexualidad ha contribuido a explicar el universo creativo
lorquiano, aunque hoy en día resulta inviable estudiar seriamente su producción
poética y teatral sin aludir a esta cuestión. Por mencionar algunos ejemplos
indiscutibles, podemos esgrimir la revitalización del mito platónico del andrógino
que actualiza Lorca en Poeta en Nueva York (según el cual los hombres se dividen
en dos mitades: una mitad, o un tipo de mitad, que busca su complemento en la
mujer, y la otra mitad, o el otro tipo de mitad, que necesita complementarse con el
amor de otro hombre). En esta obra es el yo poético de Lorca quien acusa, y lo
escupe a la cara a toda la gente que margina o ignora, a “la otra mitad”, más
adelante dirá, “irredimible”, esa otra mitad que, según el poeta “me escucha”, un
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mundo de marginalidad donde desde luego está inscrito el mundo de la sexualidad
heterodoxa: “Yo denuncio a toda la gente/ que ignora la otra mitad/la mitad
irredimible/ (…) Os escupo en la cara” (1954: 517).
En la obra antes mencionada se extiende esta problemática, por ejemplo, a la
simbología fálica de cabezas y cuellos, así como de las acciones de morder y
degollar. La degollación funciona como símbolo de la penetración sexual -en la
tradición clásica, degollar es utilizado como símbolo inequívoco de “desvirgar”mientras que en el mundo poético lorquiano parece haber preferencia por degollar
a hombres en general y a marineros en particular. En sus textos en prosa recrea
numerosas degollaciones, como la Degollación del Bautista, en la que el
“cuchillo” del degollador entra en el sitio donde acaba el “cuello” (“donde el
cuerpo se desmaya”, siendo cuello un ambiguo símbolo sexual con connotaciones
fálicas y también referente a los órganos sexuales femeninos, como el “cuello del
útero”).
En el caso de El Público –drama sobre la accidentalidad del amor y la
necesidad de defender un nuevo discurso sobre la sexualidad y el teatro que
supusiera un desafío a los convencionalismos sociales- la representación de
Romeo y Julieta interpretada por un actor y una actriz principal que resultan ser
dos hombres (el escándalo de la referencia metateatral en la interpretación de El
Público tiene lugar al descubrir que “Romeo es un hombre de 30 años y Julieta un
muchacho de quince”), muestra también la analogía o la asociación entre el beso
amoroso y el degüello: “Si me besas, yo abriré la boca para clavarte después tu
espada en el cuello”.
En cambio, resulta cuestionable una lectura “sintomática” de la cuestión que
restringe toda su poética a una cuestión de identidad sexual. Es el caso de
Francisco Umbral (1075: 10 y ss.) quien, bastante provocativo, habla de los
“enmascaramientos sexuales” de Lorca, esgrimiendo como argumento e hecho de
que Lorca describe a la mujer por su cuerpo y no por su rostro, lo que le hace
sospechar que estar mujeres son en realidad “hombres enmascarados en formas
femeninas”. Todo el teatro de Lorca consistiría así en un largo quejido sexual, la
búsqueda de lo masculino vital, incluso en el caso de Yerma, expresión de un
conflicto sexual en ciderto modo trasunto de la esterilidad forzosa a que
inevitablemente condenaba al poeta su condición homosexual. Ni qué decir tiene
que la arrogancia y reduccionismo de esta perspectiva es difícilmente sostenible y
la ecuación a que da lugar, como mínimo, peligrosa.
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En suma, la actitud de biógrafos y críticos sobre la homosexualidad es ahora
indispensable aunque no única para entender la obra póstuma de Lorca, un Lorca
transgresor e incisivo que hasta hace relativamente poco se nos ha escamoteado.
En lo que se refiere a Poeta en Nueva York y El Público, la explicitud del tema no
admite controversia alguna. Por otra parte, es ya un lugar común asumir la cesura
creativa en la obra de Lorca a partir de estas obras. Dado el aspecto transgresor de
la nueva poética respecto a la estética convencional del momento, el propio autor
se vió en la necesidad de dar una serie de conferencias explicando el contenido de
Poeta en Nueva York, mientras que calificaba su obra de El Público como
“irrepresentable”.
En cualquier caso, el exhaustivo análisis crítico de las mismas ha enfatizado
el hecho de que ambas parecen estar construidas sobre una estructura radial,
donde todo tiende a confluir en la interioridad del protagonista. No parece casual
que coincida con la época de la mayor parte de los autorretratos de sus dibujos.
Quizá por ello el autor había admitido que el poemario debía titularse “Nueva
York en un poeta”, así como la trascendencia de un conflicto dramático que
rompía con la tradicional ficción dramática. De hecho, así lo manifiesta en su
célebre afirmación “para demostrar mi personalidad y tener derecho al respeto, yo
he hecho otras cosas, en estas comedias imposibles está mi verdadero propósito”
(1954: 671-676). Dichas obras son sin duda las más condicionadas
biográficamente en la hermeneusis del proceso de ficcionalización de temas
capitales como la injusticia social, la homosexualidad y la pérdida de la fe
religiosa. Resulta excepcional la contribución de autores como Darío Villanueva
que entienden el poemario como écfrasis neoyorkina. Es innegable, por otra parte,
que Poeta en Nueva York muestra un vínculo indudable entre el autor y una
concreta realidad histórica y geofísica, es decir, en el poemario, el plano intimista
se dilata para abarcar la universalidad. Muchos de esos poemas suponen explicar
el sufrimiento y el vacío espiritual en la jungla moderna y desproporcionada que
significa Nueva York, sociedad deshumanizada y artificial que rompe el equilibrio
entre lo humano y lo natural donde el poeta asocia la sexualidad perversa de los
“maricas de las ciudades” (véase la “Oda a Walt Whitman”, 1954: 528) con el
desorden social.
Irremediablemente, también, la muerte ha mediatizado la transmisión textual
del legado lorquiano: la recuperación de los inéditos lorquianos, la salida a la luz
de su producción última, como los Sonetos del amor oscuro (1984) se ha visto
mediatizada por los acontecimientos de su muerte, que han dado un protagonismo
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inusitado a los depositarios de los manuscritos. Aún queriendo huir del
biografismo acabamos topándonos con él: las versiones originales se han
publicado desde el interdicto de aquéllos a quienes se les habían confiado proceso de transformación póstuma de los textos en “obras” -, reconstruyendo un
trabajo inacabado de forma espúrea. De hecho estas versiones se han cuestionado
ampliamente por la crítica en lo cuanto que han distorsionado ecdóticamente el
original, o en cuanto que se ha “dirigido” su interpretación en un sentido
determinado, aunque fuese desde el conocimiento personal del autor, como ocurre
con Rafael Martínez Nadal y su interpretación de El Público (1970). Y sin
embargo se da la fascinante paradoja de que es este Lorca último hermético el que
prefigura la dirección de su trayectoria poética interrumpida trágicamente.
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V. EL POETA como simulacro
La canonización de Lorca comenzó como consecuencia inmediata de su
muerte. Así por ejemplo, el Nobel Pablo Neruda escribe en sus memorias: “la
tierra española, que cambió mi poesía, empezó para mí con la desaparición de un
poeta”). El posicionamiento de Lorca como parte de una élite intelectual llevada al
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sacrificio, lo adentra, dice María Delgado, en “the emotionally charged terrain of
martyrdom” (2008: 175). Como pone de manifiesto Jesús Montero:
La literatura ha dejado reflejado a través de poemas memorables las muestras de dolor y
condena por su muerte. Así lo hicieron en su momento Antonio Machado (Muerto cayó
Federico / -sangre en la frente y plomo en las entrañas- / …Que fue en Granada el
crimen / sabed -¡pobre Granada!-, en su Granada), Rafael Alberti (No tuviste tu
muerte, la que a ti te tocaba), Miguel Hernández (¡Qué sencilla es la muerte: qué
sencilla, / pero qué injustamente arrebatada!), Pablo Neruda (“Federico, te acuerdas /
debajo de la tierra, / te acuerdas de mi casa con balcones en donde / la flor de Junio
ahogaba flores en tu boca?”), Luis Cernuda (Por esto te mataron, porque eras / verdor
en nuestra tierra árida / y azul en nuestro oscuro aire), Emilio Prados (¿En dónde está
Federico? / Sólo responde el silencio: / un temor se va agrandando, / temor que encoge
los pechos), Pedro Salinas (Mataron a un ruiseñor / tan sólo porque cantaba), Pedro
Garfias (También yo quiero hablarte, Federico / con esa ruda voz que ahora me brota /
del mar de mi garganta), Nicolás Guillén (Salió el domingo, de noche, / salió el
domingo, y no vuelve. / Llevaba en la mano un lirio, / llevaba en los ojos fiebre; / el
lirio se tornó sangre, la sangre tornóse muerte), entre otros.
También poetas de otras nacionalidades se han inspirado en él como por
ejemplo como demuestra Jiménez Hefferman (1998) en lo que denomina “la
muerte inglesa de Lorca”.
Igualmente las artes visuales han recreado la figura pero sobre todo la
iconografía de su sórdida ejecución (véase Delgado, 2008: 172-201). Es inevitable
referirse a Dalí, impresionado vivamente por la personalidad de Federico, cuyo
rostro e imagen usó como motivo para muchos de sus cuadros. Lorca es una
presencia palpable –desmembrada, superimpuesta, metamorfoseada- así como
sancionador del andalucismo tópico y el carácter sacrificial de su muerte. Por
mencionar solo un ejemplo, en la escenografía que Dalí presentó para el ballet de
la Argentinita, Café de Chinitas (1943), basado en las canciones que Lorca
compuso para el piano en 1931, la guitarra crucificada sangrando funciona como
un recuerdo emblemático de martirio. Su imaginería resuena así mismo en las
composiciones que Terry Frost realizó del poeta en 1989 “Lamento por Lorca”,
“Lamento por Ignacio Sánchez Megías”, “Cinco a las cinco de la tarde (Lorca)”.
Por otra parte, las dos películas producidas en 1987 y 1997 respectivamente,
Lorca, muerte de un poeta, dirigida por José Antonio Bardem y La desaparición
de Federico García Lorca, por Marcos Zurinaga, ambas se centran en idéntico
motivo dramático, la aniquilación definitiva de su vida y de su obra. Lorca,
muerte de un poeta comienza con la recreación de este episodio: el poeta, vestido
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impecablemente de blanco, sin huella del tiempo pasado en el calabozo y
flanqueado por dos banderilleros y un maestro de escuela, es trasladado en una
camioneta descubierta al lugar de su asesinato. La iconografía cristiana que algún
crítico advierte –composición triángular de Cristo y los dos ladrones- se refuerza
en las imágenes del final de la película, cuando se recrea la escena de nuevo. Esta
vez, se acentúan las cualidades heroicas del artista, que anima a sus compañeros y
se arrodilla estoicamente en confesión bajo una luz deslumbrante y casi
sobrenatural después de ser informado extraoficialmente de su muerte. Muerte
imbuida del lenguaje religioso de la redención, todos los aspectos de la vida se
reducen en último lugar a la inevitabilidad de la muerte, la narración de este
obituario con un final predeterminado e inestable.
En palabras de María Delgado:
The myth of Lorca serves as repository for fantasies about the symbolic body
trascending death in an act of integrity that bestows on him the immortality he now
enjoys as the ultimate cultural patriarch of the new Spain exemplified by film director
Pedro Almodóvar. ‘Bodiless’ he may be but his spirit is seen to epitomize an ethereal
agency; in death a corpus containing within it the possibility of a nation’s self-reflection
(182).
Lorca se proyecta como un héroe y una víctima del alzamiento; su tragedia
particular se proyecta en términos universales, la rememoración de su infancia
siendo un fácil recurso a una incontaminada y orgánica relación con la tierra.
Personificado por Nicholas Cage y en su carácter de símbolo universal, no
muestra rasgos de dialecto andaluz y sus vínculos granadinos solo se recrean en
las imágenes de fondo de la más célebre geografía monumental turística de la
ciudad. El obvio maniqueísmo político, por lo demás, que caricaturizaba de forma
ominosa a los falangistas, militares y guardia civil, provocó quejas en la primera
emisión televisiva de la serie (1987-1988) por su humillante falta de precisión
histórica. También hubo opiniones de que el retrato mítico del escritor difuminaba
su talento artístico, aquí desdibujado como algo secundario a su fabulosa vida.
De forma similar, en La desaparición de García Lorca, el actor cubano
Andy García refracta al poeta a través de la imaginería hispánica
desnacionalizándolo para mostrar su relevancia sin fronteras. La esencia española
se criba a través del filo de la panhispanidad, propiciando a su vez de forma
subliminal analogías generalizadas entre Lorca y los que murieron en la
revolución cubana. El tratamiento ficcional del tema es amplio: desde la
refundición de Luis Rosales y sus hermanos en el falangista Néstor González
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hasta la recreación de una Granada repleta de bares bohemios con prostitutas,
cantaores y ¡marineros!. Lo curioso de esta película es que narra la vida de un
célebre biógrafo de Lorca -trasunto de Agustín Penón-, desde la premisa de que
solo mediante la identificación total, siguiendo escrupulosamente los pasos de
Lorca, puede llegar a entender su trabajo, expresión máxima del biografismo
crítico llevado hasta las últimas consecuencias. Por su parte, Jaime Camino dirigió
en 1984 El balcón abierto, aproximación personal a la obra del escritor y
dramaturgo desde la anécdota de un homenaje escolar a la figura del poeta,
mientras que la película de Miguel Hermoso del 2003, El fin del misterio, fantasea
con la posibilidad de que el poeta genial y comprometido no estuviese muerto y
solo hubiese sufrido una amnesia temporal.
Como cabría esperar, también las puestas en escena que recrean la vida de
Federico constituyen una de las tendencias más acusadas de los escenarios
españoles en los últimos años, estimuladas, aún más directamente que en los casos
anteriores, por los múltiples homenajes conmemorativos de su nacimiento y
trágica muerte que caracterizaron la gestión cultural del gobierno socialista
(Sánchez Trigueros, 1998). Entre los numerosos montajes que podemos
mencionar se encuentra Federico (1982), obra dramática de Lorenzo Piriz
Carbonell del mismo año dirigida por César Oliva, sobre la vida del poeta
granadino en un doble plano onírico y real (inspirada en la iconoclasta novela de
Carlos Rojas El ingenioso hidalgo y poeta Federico García Lorca asciende a los
infiernos). Unos años más tarde, en Víznar o muerte de un poeta (1998), el mismo
César Oliva acomete la realización de la obra de José María Camps del mismo
nombre.
Igualmente con motivo de la conmemoración del cincuentenario de la
ejecución de García Lorca, se estrenaron diversos montajes en U.S.A., como la
escenificación de la pieza The Assassination of Federico García Lorca (1986) de
Lavonne Mueller y de la ópera Lorca's Gypsy New York: A Street Opera, de
Arnold Weinstein Tony Greco. El texto dramático de José Antonio Rial La muerte
de García Lorca, estrenado en Caracas por el grupo Rajatabla, se repuso con
idéntico motivo, inquietud a la que también respondía Los caminos de Federico
(1986), obra estrenada por Lluís Pasqual en el María Guerrero y protagonizada
por Alfredo Alcón. En Federico García Lorca, un andaluz sin fronteras (1998), el
excelente actor argentino Fernando Vegal junto a la Compañía de Teatro de
Buenos Aires ofrecía, en su estreno en el Teatro Alhambra de Granada, una visión
mítica y personal de la figura de Lorca. Sinceramente Federico García Lorca
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(1998) fue el particular homenaje cubano al poeta a través de un espectáculo
básicamente coreográfico interpretado sólo por bailarinas en torno a la Muerte y
los míticos personajes femeninos de su universo dramático, mientras que Un rato,
un minuto, un siglo (1998) resolvía la aproximación al mundo de Federico, bajo la
dirección de José Sámano, la participación de la actriz Lola Rerrera y la cantaora
Carmen Linares, a través de los múltiples testimonios de sus amigos -Luis Buñuel,
Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Antonio Machado, Luis Cernuda, etcétera-,
sus gustos musicales o sus propios versos.
Montajes de inspiración más libre son los de FGL Oídos de Larca (1998) y
Ombra (1998). lncrepaciones Danza propone en el XVI Festival Internacional de
Teatro de Granada un recorrido musical por la vida de Lorca, con piezas
armonizadas por el propio Federico y música de coetáneos como Manuel de Falla
o Isaac Albéniz o George Gerswhin. Por su parte, La Fura dels Baus también
acudió a la cita casi obligada con Lorca con Ombra y concluyó el año de su
centenario con un multitudinario montaje que a partir de textos de David Martín
dirigió Hansel Cereza. Lola Guerrero en El crimen de una novia (2006) usa la
investigación preparatoria de una actriz que hace el papel de novia en Bodas de
sangre para interrogarse sobre la mitología que rodea su obra. Igualmente, Pepe
Rubianes en Ellos fueron todos Lorca intenta la reconstrucción creativa de la
muerte de Lorca (el título recrea el epitafio que está en el lugar donde se pensó
que murió Federico), obra muy polémica por las alusiones políticas que fue
censurada en el Teatro Español de Madrid, cuyo Ayuntamiento estaba gobernado
por el Partido popular.
En otro orden de cosas, De Granada a la luna (1998) constituye uno de los
más ambiciosos homenajes dedicados a Lorca por su planteamiento, un proyecto
cultural multimedia consistente en la realización de doce vídeos de creación y
doce temas musicales basados en textos de Federico y la vida del propio poeta
significada bajo la parábola del viaje. Coproducción de Ático siete -que ha
coordinado y dirigido el proyecto a través de José Sánchez-Montes-, la
Delegación de cultura de la Junta de Andalucía y Canal Sur Televisión, en él han
participado profesionales de distintos ámbitos culturales, tanto del cine como de la
literatura o la música. Entre éstos figuran nombres como Enrique Morente,
Santiago Auserón, María del Mar Bonet, Amancio Prada, Compay Segundo,
Mariano Barroso, etcétera.
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En lo que a música se refiere, María Delgado trata ampliamente esta
cuestión y rastrea la huella de Lorca en músicos de distintos estilos, desde Robert
Wyatt, fundador de Soft Machine, a Camarón de las Islas o el punk británico. Éste
es el caso de la mítica banda The Clash, que cantaba “Federico is dead and gone”
en Spanish Bombs, haciendo referencia a Lorca como símbolo permanente de lo
que se perdió con la derrota republicana en la Guerra Civil o “Take This Waltz”
(1988), una de las canciones más famosas del cantautor canadiense Leonard
Cohen basada en una traducción del poema lorquiano “Pequeño vals vienés”,
quien puso de nombre “Lorca” a su hija como homenaje al poeta. En suma, aún
desde una perspectiva forzosamente parcial, puede advertirse la gigantesca
presencia del universo estético de Lorca, e incluso del propio poeta elevado a la
categoría de mito, como referente cultural ineluctable en todo el horizonte cultural
contemporáneo.
CONCLUSIÓN
El mito de García Lorca (1998-1936) es tan imponente que supera con
creces al escritor real. La leyenda vital de Federico, que en su momento fue “su
propia obra maestra”, en palabras de Luis Buñuel, así como su trágico asesinato
han acentuado la interpretación de su obra, incompleta y parcialmente inédita
hasta hace un par de décadas, como autobiografía velada. Sin duda, constituye uno
de los grandes descubrimientos de la España de la normalización democrática en
los ochenta bajo un gobierno socialista, al mismo nivel que la movida madrileña,
la cinematografía de Pedro Almodóvar –que asume referencias lorquianas
explícitas en su filmografía- o las grandes efemérides de la Exposición Universal
de Sevilla y las Olimpiadas de Barcelona en 1992. La integración de España en las
estructuras políticas y económicas de la Unión Europea ha facilitado la
exportación de todo un símbolo nacional de la contienda fratricida de 1936, guerra
en la que se asesinaban poetas, convirtiéndose en el autor español más traducido,
con una personalísima poética exótica, populista, deslumbrante y en ocasiones
cuasihermética, exponente de un experimentalismo vanguardista sin precedentes.
Su obra, objeto ilimitado de fascinación académica, permanece como símbolo
universal marcado por la tragedia de su vida sesgada tempranamente y por un
legado literario en la que la muerte futura parece a la vez anticipada y
conmemorada.
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*Federico García Lorca nació en Fuentevaqueros (Granada) en 1898. Inició las
carreras de Letras y Derecho, acabando solo la segunda, que compaginaba con
la afición a la música. En 1919 se instala en la Residencia de Estudiantes de
Madrid, donde entabla relaciones con artistas consagrados como Juan Ramón
Jiménez y con poetas y artistas jóvenes como Vicente Aleixandre, Dalí o
Buñuel. Durante el curso 1929-1930 marcha a Nueva York, experiencia que lo
marcará profundamente. De regreso a España, funda en 1932 La Barraca, grupo
teatral universitario con el que recorre los pueblos de España representando
obras clásicas. En 1933 viaja a Buenos Aires, donde sus dramas tienen gran
éxito. De nuevo en España, prosigue su dedicación infatigable como poeta,
autor dramático, director escénico, conferenciante, hasta su fusilamiento a
comienzos de la guerra civil en agosto de 1936.
En cuanto a su producción poética, tras su primeros libros, obtiene un gran éxito
con libros como Canciones (1927) o Poema del Cante Jondo (1931). Si
Canciones es un libro heterogéneo en su concepción, Poema del Cante Jondo
posee una completa unidad: es el libro de la “Andalucía del llanto” -Lorca se
identifica con la pena y el quejido del flamenco andaluz-, un libro lleno de
sentimiento trágico que muestra una personalísima asimilación de lo popular.
Por su parte, Romancero Gitano se publica con extraordinario éxito en 1928,
tanto que el poeta se ve abrumado y defiende el “gitanismo” de su libro
únicamente como motivo literario. Para la crítica, Lorca eleva el mundo de los
gitanos a la altura de un mito moderno, cercano a los grandes mitos clásicos.
1929 es un año crucial para Lorca. En ese año, antes de viajar a Nueva York en
Junio, se ha visto afectado por la ruptura con el escultor Emilio Aladrén, y el
alejamiento de Dalí influido por Buñuel, ambos formando parte ahora de la
vanguardia parisina. Su carrera se ha consolidado, goza de un prestigio
indiscutido entre la intelectualidad madrileña y granadina, pero las críticas al
Romancero por parte de sus amigos le herirán profundamente, lo que influirá en
un giro radical en su trabajo creador. La posterior estancia en los Estados
Unidos, precisamente en el momento dramático del crack de la bolsa
neoyorkina, marca un hito crucial en la vida de Lorca. Nueva York le resulta un
mundo opresivo, materialista y asfixiante -“Geometria y angustia”-.
Poeta en Nueva York será la expresión poética de esta estancia, y en él
desarrolla una impactante poética cercana al surrealismo, que consigue renovar
su lenguaje y hacerle alcanzar una nueva cima, desde el verso libre y las
imágenes audaces. El materialismo, la esclavitud del hombre por la máquina, la
injusticia social, la deshumanización, en fin, son los temas del libro. La raza
negra ocupa el lugar que previamente habían ocupado en sus poesía los gitanos,
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y en ella ve Lorca la única esperanza, lo más espiritual de ese mundo agónico.
Compondrá más adelante, entre otros, el Llanto por Ignacio Sánchez Mejías
(1935), los poemas íntimos del Divan del Tamarit (1936), y los tardíamente
conocidos Sonetos del amor oscuro. En cuanto a su teatro, tuvo mucho éxito
con su trilogía rural -Yerma (1930), Bodas de sangre (1933) y La casa de
Bernarda Alba (1936)- piezas que complementó con sus famosas farsas, como
Doña Rosita la Soltera o el lenguaje de las flores (1935) o La zapatera
prodigiosa (1930). Sus piezas más vanguardistas, que traducen el clima
surrealista del momento, incluyen Así que pasen cinco años (1931), El Público
y Comedia sin título. Su fama es universal y aunque en parte se deba a razones
extraliterarias, puede considerarse el escritor español más importante y
traducido del siglo XX.
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Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 107‐140, jul./dez. 2010.
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A MEMÓRIA EM DERRIDA: uma questão de arquivo e de sobre‐vida
Maria José R. F. Coracini1
O primeiro sentido que nos vem à memória, tão logo falamos de “memória”,
a nós, professores de línguas, herdeiros que somos de teorias da
aquisição/aprendizagem da segunda metade do século XX, é o de competência
cognitiva, capacidade maior ou menor, segundo o grau de inteligência de cada um
(medido pelo QI ou por outros testes psicológicos), de retenção dos dados que
chegam até os nossos sentidos para serem arquivados, estudos que fazíamos ou
que fazemos com o objetivo de buscar instrumentos que auxili(ass)em o aluno em
seu processo de aprendizagem, na crença, cientificamente ingênua, de que é
possível manipular ou controlar esse “aparelho” mental. Mas, não é da memória
cognitiva, ou, pelo menos, não em primeira instância, de que vamos nos ocupar
neste texto, mas de outro tipo de memória, da memória que nos remete ao
passado, talvez à origem, à origem de nós mesmos que é sempre e
necessariamente feita de outros, por outros e, desta vez, num primeiro momento,
esse outro ou esses outros – porque cada um é muitos outros na sua constituição
heterogênea e, portanto, fragmentária – é o próprio Derrida.
1. DERRIDA, in memoriam
Impossível falar de memória em Derrida, sem trazer a ele próprio, espectro
que nos/me habita há pelo menos 22 anos, quando assisti, pela primeira vez, um
seminário seu em Paris, na Ecole Normale Supérieure da Rue d’Ulm, época em
que, confesso, compreendia muito pouco o que ele dizia, mas que preparou
1
Maria José R. F. Coracini é professora da UNICAMP.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 141‐154, jul./dez. 2010.
terreno, se assim se pode dizer, para leituras que, desde o Doutorado que tinha
início naquele ano – 1984 –, não cessaram de se produzir, arquivos dentro de
arquivos, fragmentos de textos que se encadearam noutros textos, noutros autores,
constituindo o que ele denomina, em Farmácia de Platão, a tessitura de textos
outros. Tessitura, tecido, rede que garante a sobre-vida daquele que, vivo, nos
presenteia(va), sem cessar, com textos que produze(ia)m outros e outros mais,
mas, que morto, continua vivo, mais presente do que nunca, na memória – que
não se fecha – e nos textos que continuam abertos – escancarados – a múltiplas
interpretações, prosseguindo sua missão, ou função, de inquietar, provocar,
problematizar, convocar, comprometer.
Ora, como afirma o próprio Derrida, o compromisso provém da herança;
herança que, sem querer – nem ele, Derrida, nem nós – recebemos. Sobretudo
aqueles que, como eu, embora tenhamos desejado um contato mais próximo –
talvez desenvolver uma pesquisa sob sua direção – não fomos dignos dessa honra.
Mas, ainda assim, consideramo-nos herdeiros de seus textos. Herança essa que
não torna ninguém, gratuitamente, rico, mas que significa, como ele próprio
afirma, trabalho: o que fazer com ela? É a pergunta que sempre fazemos ao
receber uma herança: podemos não fazer nada ou fazê-la produzir, dar frutos,
transformar-se, sobre-viver. Voltaremos a essa questão mais adiante. Por
enquanto, convoquemos, invoquemos, chamemos Derrida e sua memória – se
ousadia demais não for – para nos ajudar a contar um pouco de sua vida2.
Jacques Derrida nasceu na Argélia, mais precisamente no Maghreb, em ElBiar, aos 15 de julho de 1930; é, portanto, franco-magrebino, embora “o silêncio
desse hífen não pacifique ou não acalme nada, nenhum tormento, nenhuma
tortura” (DERRIDA, 1996, p.27), que permaneceu em sua memória, na história
das relações entre França e o Maghreb, na história do próprio Derrida. Ainda
menino, sofreu as consequências da colonização imposta e esmagadora, uma
espécie de “assimilação profunda” em apenas duas gerações. Seus pais não
quiseram que aprendesse árabe: devia falar francês e aprender francês na escola.
Na juventude, perdeu, sem nada haver perguntado ou dito, a cidadania francesa,
sem que nenhuma outra fosse colocada no lugar. Anos depois, recuperou-a,
também sem mais nem menos: era jovem demais para compreender as
2
Os dados que aqui trazemos foram coletados, sobretudo, do documentário D’Ailleurs, Derrida,
produzido por Safaa Fathy em 1999, e da obra de Derrida Le Monolinguisme de l’Autre.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 141‐154, jul./dez. 2010.
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implicações políticas de tudo isso. Tal acontecimento tomou de surpresa todos os
judeus da Argélia, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, decisão unilateral do
governo francês, já que não houve, como testemunha o próprio filósofo, nenhuma
Ocupação alemã naquele país. Essa atitude, arbitrária, injusta e, ao mesmo tempo,
sem sentido, deixou, certamente, marcas traumáticas na identidade – sua e do seu
grupo –, "na pertença ou não-pertença da língua, nessa filiação à língua"
(DERRIDA, 1996, p. 35) francesa, a sua língua, a única que ele possuía, mas que
não lhe pertencia, como não cessa de repetir Derrida em seu Monolinguismo do
Outro.
Aliás, uma língua não pertence nunca a ninguém, embora tenhamos essa
impressão: algo está impresso em nós de que a língua que denominamos materna,
a língua que nos constitui enquanto sujeitos, que nos faz sujeitos, nos pertence e,
com ela, todos os arquivos culturais que constituem a memória de um povo, do
povo que nos acolhe(u). Mas, Derrida – assim como outros – sentiu-se des-filiado,
sem cidadania, sem pertença, sem identidade, lançado à memória de tudo o que os
tornava rejeitado, excluído, marginalizado.
Aos 22 anos de idade, Derrida seguiu para a metrópole, a fim de prosseguir
seus estudos em filosofia na Ecole Normale Supérieure em Paris, onde lecionou
de 1965 a 1984. Etienne Balibar testemunha em seu texto “Adieu, Derrida”, como
aluno, amigo e colega, que, quando Derrida já era conhecido como “melhor
fenomenólogo da França”, ele era sobretudo para ele e seus colegas, “o autor de
um ensino maravilhoso sobre a origem da geometria de Husserl”, no qual a
questão da historicidade da verdade se impunha nos debates entre o sociologismo
e o psicologismo. E Balibar prossegue:
Ele ia diretamente ao mais difícil: a questão das condições de possibilidade da
demonstração, fazendo-a passar de um problema de garantia formal a um problema de
reprodução no tempo, antecipando sua temática do ‘traço’ (la trace) ou da conexão
entre a atividade do pensamento e a materialidade da escritura. Seus cursos eram
eloquentes, mas, sobretudo, rigorosos no estabelecimento dos conceitos e na leitura dos
textos (...).
De 1960 a 1964, lecionou na Sorbonne. No início dos anos 70, dividiu seu
tempo entre Paris e os Estados Unidos, onde lecionou em universidades como
Johns Hopkins, Yale e University of California at Irvine. Se Derrida era
conhecido como grande intelectual e filósofo, ele sempre foi, sobretudo,
professor, como ele próprio confessa em D’ailleurs Derrida.
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Um dos grandes pensadores da geração de 68, centrou suas críticas, como os
demais, na epistemologia ocidental baseada no primado da racionalidade e da
busca da verdade, no sujeito idealizado da época das Luzes. Essa perspectiva
projetou-o, bem como a seus colegas Foucault, Barthes, Lacan e outros, na pósmodernidade ou no pós-estruturalismo, já que, segundo alguns críticos, esses
pensadores e Derrida em particular projetam suas obras na crítica ao
estruturalismo.
A obra de Derrida efetua o que se convencionou denominar de
desconstrução, modo de pensar que problematiza de dentro o que parece natural,
óbvio, familiar, de modo a provocar, exatamente aí, estranhamentos, a trazer
questionamentos sobre as articulações e as decorrências. Não se trata, portanto, de
“destruir” para construir sobre novas bases: não é possível, segundo o filósofo,
estar fora, no exterior daquilo que nos constitui, como é o caso da epistemologia
ocidental baseada no primado da racionalidade e na busca da verdade e da
perfeição. Os trabalhos de Derrida focalizam a linguagem e subvertem as
concepções vigentes de leitura, escritura e texto, questionando-o como fonte de
seu sentido e deslocando a noção de texto para todo e qualquer acontecimento
Alguns críticos confundem desconstrução com destruição e consideram que suas
obras destroem os primados metafísicos da filosofia; na verdade, Derrida mostra
as tensões inevitáveis entre o desejo de coerência que governa a filosofia – e eu
acrescentaria (como, aliás, ele o fez em diversos momentos) toda disciplina, área
de conhecimento ou ciência – e as evidências de sua impossibilidade.
Aos 8 de outubro de 2004, morre em Paris, aos 74 anos para permanecer
entre nós como espectro, mais presente e mais vivo do nunca, como o grande,
senão o maior e mais famoso, filósofo dos últimos tempos. Pouco tempo antes,
mais precisamente em novembro de 2003, confessou em uma entrevista ao jornal
Le Monde sua fragilidade diante da morte, ele, que tantas vezes discutira o tema
da morte e do luto, ele que sabia que morremos a cada instante, a cada
experiência, que a morte faz parte da vida, confessa que não aprendera a viver
porque não aprendera a morrer:
Você sabe, aprender a viver é sempre narcísico (...): a gente quer viver o máximo
possível, salvar-se, perseverar e cultivar todas essas coisas que, infinitamente maiores e
poderosas do que você, fazem, entretanto, parte desse pequeno “eu” que transbordam
por todos os lados. Pedir-me para renunciar a tudo isso que me formou, ao que tanto
amei, ao que foi minha lei, é me pedir para morrer. Nessa fidelidade, há uma espécie de
instinto de conservação. (DERRIDA, 2005, p. 30)
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Derrida estava em guerra contra ele mesmo, contra a doença (o câncer) que
o estava atacando e debilitando: era humano, demasiadamente humano, para
parafrasear Nietzsche – um dos filósofos que se encontram na base de seu
pensamento –, mas, paralelamente, discorria sobre o perdão e a hospitalidade, dois
temas tão necessários num mundo invadido por tantas hostilidades, guerras,
disputas, sobretudo contra aqueles que mais próximos estão uns dos outros. Como
lembra Freud, em Mal-estar da Civilização, quanto mais semelhantes são, mais se
agridem, mais um cutuca no outro o que está recalcado, daí o desejo de um
exterminar o outro, de enterrá-lo, de fazer o trabalho de luto, ainda que tudo isso
seja inconsciente.
Derrida (1995[2001]3) afirma, retomando Freud, na obra referida, que o
trabalho de luto pretende – quase sempre de forma inconsciente – assegurar-se de
que o morto não volte, de que seu cadáver permaneça localizável, em lugar
seguro, em decomposição, exatamente onde foi colocado (DERRIDA, 1993
[1994, p.134], que sua memória se apague ou que reste apenas como arquivo
morto, fechado, acabado, esquecido, finalizado. Derrida referia-se a Marx, mas
podemos pensar em qualquer outro...
Não é, entretanto, o que vemos acontecer com Derrida que permanece vivo
nos rastros que deixou em quem apenas o viu, o ouviu algumas vezes:
simplicidade, grande humildade, respeito pelo outro, ao lado de uma inteligência
incomparável, de uma sabedoria profunda que constituía sua memória de que
deixou vários arquivos abertos a todos quantos quiserem interpretar, pensar, fazer
prosseguir sua (in)terminável caminhada. Ainda que sempre haja aqueles que, no
desejo de proteger o seu sepulcro, na reta intenção de não permitirem que o
matem com sacrilégios, se colocam como guardas em torno de seu esquife, seu
espectro escapará, através de sua obra, pelo excesso de vida que nela transborda
não permitindo que o matem, que o enterrem, que o encerrem em interpretações
controladas e autorizadas, para não dizer, autoritárias.
3
A primeira data corresponde à publicação da obra original e a segunda, entre colchetes, à
publicação da obra traduzida consultada. As demais ocorrências da mesma obra trarão apenas a
referência à data da publicação da obra consultada.
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2. A MEMÓRIA em Derrida
O arquivo é outro sentido de memória que Derrida traz à baila em sua obra
Mal de Arquivo (2001), tema de uma conferência proferida em Londres, no dia 5
de junho de 1994, denominada “Memória: a questão dos arquivos”. De uma certa
maneira, esse tema é retomado, em vários momentos, em Espectros de Marx
(1994), já que a memória é constituída de um sem-número de espectros, de
fantasmas, de espíritos se assim quisermos, de fragmentos de sujeitos que
atravessa(ra)m nossa existência e que vão constituindo arquivos, ora mais, ora
menos organizados, segundo a função que desempenha(ra)m na vida de cada um.
Na maior parte das vezes, eles se misturam, se combinam, se confundem,
constituem uma rede, fios emaranhados, cuja origem heterogênea e híbrida
permanece, desconhecida, no inconsciente.
O sentido mais comum de memória e, por extensão, de arquivo, é, como
sabemos, de retorno à origem, ao passado, o que nos remete ao desejo de
completude, de totalização, de controle de si e do outro, de tudo enfim. Nesse
sentido, a memória remete a arkhé – raiz do termo arquivo –, arcaico e
arqueológico, lembrança ou escavação, busca do tempo perdido no passado e que
gostaríamos, de forma consciente ou não, de resgatar. Trata-se de conjuntos
complexos de traços, de marcas, verdadeiras inscrições que vão se
complexificando com o tempo, mas que não se apagam jamais.
É importante compreender que, para Derrida, nem a memória individual é
inocente, neutra, uma retomada da origem intacta, pura, do acontecimento em sua
objetividade, ainda que esse acontecimento tenha sido vivido, presenciado,
testemunhado... A memória será sempre interpretação, invenção, ficção, que se
constitui a posteriori do acontecimento, num momento em que outros já se
cruzaram e fizeram história. Por essa razão, a memória será sempre incompleta,
sempre faltosa, de certa maneira sempre verdadeira e, ao mesmo tempo,
mentirosa.
Essa ficção ou essa interpretação se submete, sempre, às leis ou às regras – o
que significa ao poder – do momento que se está vivendo. Afirma Derrida, a
memória, ou o arquivo, segue as mesmas leis do inconsciente, que, através de
recalcamentos, de internalizações da(s) lei(s), faz o que o poder quer; este leva à
apropriação de um documento, à sua detenção, retenção ou interpretação
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 141‐154, jul./dez. 2010.
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(DERRIDA, 2001, p. 07). O poder, que pode ser representado por cientistas ou
intelectuais ou por arquivistas, faz, por exemplo, com que nos detenhamos sobre
um certo número de documentos e desprezemos outros, que valorizemos um
arquivo e não outro, com que valorizemos este e não aquele, com que
interpretemos desta e não daquela maneira. Isso no plano oficial da constituição
dos arquivos de informação, mas o mesmo se passa com a memória ou os
arquivos que vamos constituindo internamente, a nosso respeito ou a respeito do
passado de outros.
Aliás, vale a pena insistir: é justamente no lugar de uma anamnese4
impossível em sua experiência espontânea, viva e interior, no lugar da falta
originária e estrutural da chamada memória que o arquivo tem seu lugar
(DERRIDA, 2001, p. 22), na tentativa, vã, diga-se de passagem, de preenchê-la,
de completá-la, de fixá-la. Assim, um livro ou mesmo uma foto pode constituir
um arquivo, na medida em que esta procura congelar na imagem um ou vários
acontecimentos importantes e, com ele(s), uma série de lembranças, que retomam
outras e estas, outras mais. Nesse sentido, uma música pode também constituir um
arquivo, desde que algo se organize, se materialize nela. Enfim, o arquivo
resultaria daquilo que, internalizado na memória, parecia impossível de
organização, apenas fragmentos, por vezes desconexos e embaralhados.
A psicanálise – que Derrida retoma, em Mal de Arquivo, como modelo para
tornar compreensível o método do arquivo – fala, com razão, de estocagem das
impressões, de cifragem de inscrições no inconsciente, mas também de censura,
de recalcamento, de repressão, de tensões, contradições, aporias – insolúveis,
constitutivas, indeléveis. Marcas que provêm do exterior e que marcam a
singularidade do sujeito; marcas que se inscrevem no corpo próprio, por vezes de
modo explícito, através de um corte, de uma circuncisão, no caso dos judeus, que
deixa uma cicatriz – incisão na pele que recobre outras peles, inscrição posta e
imposta (já que a criança não decide) numa sociedade, numa cultura, numa
religião (conjunto de crenças); marcas que se inscrevem nos hábitos, nas roupas,
na alimentação, no corpo. Incisão que é sempre memória. Memória que se recebe
por herança e que permanece como traço indelével, ainda que se queira apagar,
denegar, sepultar, depositar num lugar determinado para vigiar o morto, como
4
História de vida, retrospectiva que se pretende fiel aos acontecimentos vividos.
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afirma Derrida a respeito do próprio Freud que, inutilmente, tentou ocultar a
origem judia da psicanálise.
Entretanto, mesmo quando essa marca não é tão fisicamente visível, tão
publicamente explícita, voluntária, consciente, toda memória, todos os fantasmas
que nos habitam, todas as marcas, sobretudo os traços primários – responsáveis,
segundo Lacan, pela singularidade do sujeito – deixam marcas em nosso corpo,
em nossa aparência física, ainda que essa aparência nos torne semelhantes aos de
nossa geração, aos que conosco convivem, na historicidade compartilhada. O que
não significa que, sobre essas marcas indeléveis, outras não se inscrevam: a moda,
a historicidade na qual mergulha o sujeito provoca deslocamentos,
transformações, inscrições sobre inscrições.
Mas, outro sentido aflora do termo arquivo: se ele remete a começo, remete
também a comando (ordem, autoridade). Derrida (2001, p. 12) lembra que archive
(fr.), usado inicialmente, em francês, no masculino singular, provém do grego
arkheîon, “inicialmente uma casa, um domicílio, um endereço, a residência dos
magistrados superiores, os arcontes, aqueles que comandavam”. Eles
representavam a lei, pois a detinham. Considerando sua autoridade publicamente
reconhecida, era em seu lar, nesse lugar (casa particular, da família, casa
funcional) que se depositavam, então, os documentos oficiais. Os arcontes foram
os primeiros guardiães. Não eram apenas responsáveis pela segurança física do
depósito e do suporte; a eles cabiam o direito e a competência hermenêuticos:
tinham o poder de interpretar os arquivos.
Assim se estabeleceu o poder arcôntico, que remetia às funções de
unificação, classificação, acrescidas do poder de consignação. Este aponta para a
designação de um lugar, sobre um suporte, mas também para o ato de reunir
signos (“com-signar”). Ora, deduz-se daí que a classificação, a reunião de signos
devem obedecer a uma certa ordem, a uma certa lógica, a leis, a regras. “Num
arquivo, afirma Derrida, não deve haver dissociação absoluta, heterogeneidade ou
segredo que viesse a separar (scernere), compartimentar de modo absoluto. O
princípio arcôntico do arquivo é também um princípio de consignação, isto é, de
reunião” (DERRIDA, 2001, p. 14).
Desse modo, todo arquivo precisa de um lugar (instância topológica) e de
lei(s) – autoridade – (instância nomológica), para se constituir, ou melhor, se
construir. Quem não reconhece aí as origens do que, ainda hoje, denominamos
arquivos – impressos ou virtuais? Arquivos de dados para (ou resultantes de)
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 141‐154, jul./dez. 2010.
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pesquisas ou arquivos em bibliotecas? Todos precisam de um lugar e de leis de
ordenação, de organização, o que pressupõe, necessariamente, escolha,
hierarquização, exclusão de dados.
O princípio de consignação significa, também, que não há arquivo sem uma
técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. O arquivo deve assegurar a
possibilidade de repetição, de memorização, de reprodução ou de reimpressão. E,
lembra Derrida (2001, p. 23), a lógica da repetição, a compulsão à repetição é,
segundo Freud, indissociável da pulsão de morte, ameaça de destruição.
Tanto na figura do espectro quanto na ideia de arquivo, há o desejo de
permanência, de eternização, de infinitude. O espectro retorna ou permanece no,
para, com o outro, como uma sombra fantasmática a per-seguir o caminho desse
outro – desejante ou não. O arquivo resulta do investimento de um trabalho
sedutor, remédio para o tão temido desaparecimento da memória. Mas,
paradoxalmente, a pulsão de morte ameaça todo desejo de arquivo, ou melhor,
mina por dentro o arquivo, constitui o próprio arquivo, na medida em que este
tenta fixar o passado, estabilizar os dados, estancar a memória. No caso do
espectro, é o desejo de abafar o recalcado ou o reprimido: o morto passa por um
trabalho de luto, logo após um traumatismo que pode ser resumido em atos de
exorcização, de sepultamento, garantia de que o morto realmente morreu e de que
permanecerá numa sepultura a ele destinada, onde seu desaparecimento possa, de
algum modo, ser controlado.
Em ambos os casos, trata-se da memória que remete ao passado, que,
evidentemente, se desejaria guardar, preservar, conservar tal e qual (se possível),
em vista de um por-vir, de um futuro e, portanto, do outro, de uma alteridade em
direção à qual o presente se projeta inexoravelmente. Mas, ao mesmo tempo e
contraditoriamente, desejar-se-ia eliminar, destruir, paralisar toda possibilidade de
porvir. Pulsão de vida e pulsão de morte, de prazer e de violência, pulsão de
conservação e de destruição, preservação e aniquilação de si, do outro e do outro
de si.
A essa contradição interna Derrida denomina “mal de arquivo”: se o arquivo
existe é porque o esquecimento, a finitude rondam a memória; ao tentar conservar
os dados que constituem os acontecimentos, o arquivo os destrói, os corrompe,
porque os classifica, modifica, hierarquiza, transforma e, sobretudo, paralisa,
destrói, mata.
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Assim se pronuncia Derrida (2001, p. 32) a respeito:
Não haveria certamente desejo de arquivo sem a finitude radical, sem a possibilidade de
um esquecimento que não se limita ao recalcamento. Sobretudo, e eis aí o mais grave,
além ou aquém deste simples limite que chamam finitude, não haveria mal de arquivo
sem a ameaça desta pulsão de morte, de agressão ou de destruição [...]
É importante lembrar, ainda, que arquivo, em Derrida, aponta para
“impressão”, termo tomado em seus múltiplos sentidos, dentre os quais, ele
destaca: a) a impressão como inscrição, ao modo de uma impressora que permite a
reprodução, a repetição daquilo que, como um carimbo se recalca (sempre no
inconsciente em sua operação e em seu resultado), ou se reprime. Freud chama a
repressão de segunda censura, aquela que opera entre o consciente e o préconsciente e que afeta o afeto; b) impressão como noção vaga, imprecisa,
indefinida: “tenho a impressão, mas não a certeza, de que x aconteceu” ou “algo
me impressiona”; c) ligada à primeira, como marca em sua cultura, que se
imprime fora e dentro de cada um: algo se imprime em nós como o “rastro de uma
incisão diretamente na pele. Mais de uma pele, em mais de uma era. Literal e
figurativa, acumula muitos arquivos sedimentados, alguns dos quais se inscrevem
na epiderme do corpo próprio” (DERRIDA, 2001, p. 33), no caso da circuncisão.
Essas im-pressões (prensas em) constituem marcas de uma escritura ao
mesmo tempo interna e externa que inscreve o sujeito numa cultura, isto é, em
arquivos, de que, não raro, ele deseja, em vão, se desfazer, como tentou Freud,
segundo Derrida (2001) a partir do texto de Yerushalmi (1991), ocultando a
origem (judia) da psicanálise, seu próprio nome (Shelomoh Sigismund Freid), sua
religião e importantes acontecimentos familiares reveladores de suas origens.
Mas, apesar disso, há rastros espalhados em sua obra que denunciam suas origens
recalcadas e denegadas.
Assim, se a memória, na sua contradição constitutiva, se faz de
esquecimentos, de recalques e repressões, pois é impossível um retorno vivo e
inocente às origens de acontecimentos que, ao se re-construírem, se transformam e
se formam (são, portanto, ao mesmo tempo, o mesmo e o diferente), os arquivos,
sínteses parciais, ainda que se queiram totais ou totalizantes dessa memória,
vocacionados que são, ou queremos que assim sejam, à clausura, mantêm-se
incompletos, inexoravelmente abertos a novas incorporações, acréscimos,
interpretações, reclassificações. Por seu caráter repetitivo, o arquivo se encontra
na injunção da memória (passado) e da promessa do futuro (por vir), da chegada
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 141‐154, jul./dez. 2010.
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de um novo acontecimento; assim, a tarefa do arquivo se justifica no outro porque
houve um evento arquivado, porque a lei já se inscreve na memória histórica
como injunção, permitindo que outro evento a ele se ligue ou a ele se
contraponha.
O mais importante, portanto, é que todo arquivo significa “a impaciência
absoluta de um desejo de memória” (DERRIDA, 2001, p. 09), mas uma “espera
sem horizonte acessível”, porque o arquivo não se fecha a não ser ilusoriamente,
“como um fantasma que vê sem ser visto” (DERRIDA, 2001, p. 80), apesar do
mal de arquivo, que Derrida define como decorrente da pulsão de morte em Freud,
da violência de tornar um o que é múltiplo, simples o que é complexo, porque
híbrido, heterogêneo, “na figura da reunião totalizante” (DERRIDA, 2001, p.
101), representada pela lei do arconte, pela lei da consignação, união de
fragmentos ou partes, documentos, para constituírem o único. Assim se pronuncia
Derrida a respeito:
Talvez seja da estrutura do próprio arquivo que esse corpo e nome sejam espectrais,
incorporando o saber que se demonstra sobre esse tema, o arquivo aumenta, cresce,
ganha em autorictas. Mas perde, no mesmo golpe, a autoridade absoluta e metatextual
que poderia almejar. Jamais se poderá objetivá-lo sem um resto. O arquivista produz o
arquivo e é por isso que o arquivo não se fecha jamais. Abre-se a partir do futuro.
(DERRIDA, 2001, p. 88)
E é a partir desse lugar, do lugar do futuro, do lugar do morto, que
“deixando de falar, ele faz falar, não respondendo nunca senão para se calar, não
se calando senão para deixar a palavra ao paciente, o tempo de transferir, de
interpretar, de trabalhar” (DERRIDA, 2001, p. 81). Essa seria a tarefa do analista.
Mas, não
ARQUIVANDO... por enquanto
Em Mal de Arquivo, Derrida encontra no texto freudiano um modelo
exemplar para a compreensão da estrutura do arquivo. Isso porque as funções
dominantes das técnicas do arquivo (impressão, repressão, supressão) estão
relacionadas com a psicanálise. Por outro lado, a própria psicanálise freudiana
constitui em si um arquivo heterogêneo, híbrido, em que a história de Freud e a da
psicanálise – desejo de ciência e, ao mesmo tempo, impossibilidade – estão
irremediavelmente imbricadas e nelas, a memória do povo judeu, pois a obra de
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Freud, judeu austríaco, está perpassada de fragmentos, fios, por vezes
descosturados, dessa memória (ver Totem e Tabu, Moisés e o Monoteísmo dentre
outros trabalhos). Afinal, é preciso lembrar, em Derrida, a memória, ainda que
individual, é sempre subjetiva porque construída, fruto de interpretação, e sempre
social, porque herdada e, como tal, transformada, deformada.
Como procuramos explicitar, o conceito de arquivo em Derrida não coincide
com a definição usual, pois traz uma multiplicidade de sentidos, dos quais
procuramos trazer os mais pertinentes. Para o filósofo, arquivo é tudo aquilo que
retém em si acontecimentos passados que se deseja reter de forma ordenada,
organizada, mas é, também e ao mesmo tempo, uma substanciação plural de
conhecimento histórico, aberto para futuras interpretações, que dependerão
sempre das circunstâncias históricas em que se produzirão. Nenhum dado
passado, nenhum aspecto da memória permanece inalterado, em seu estado puro e
original: sempre haverá leis, regras, interesses que orientarão os olhares para este
ou aquele aspecto, para a valorização de certos acontecimentos em detrimento de
outros, de certas informações e não de outras.
Assim, é possível dizer que os arquivos, embora tenham por vocação
primeira a preservação da memória, constituem práticas ativas e discursos que
criam hierarquias e exclusões; nessa medida, servem ao poder, nos planos político
e cultural. Os arquivos constituem, pois, segundo Papatheodorou (1999, p. 199200) linguagens do passado, ativadas em conformidade com as demandas
científicas e sociais e o conteúdo dessas escolhas está marcado pelo modo como
buscamos (ou somos levados a buscar) a informação. Nossa escolha, portanto, não
se orienta por nenhum princípio abstrato, neutro, mas é uma negociação orientada
ideologicamente, relacionada de bem perto com as políticas de interpretação. E
esse aspecto político, esse compromisso social Derrida não encontra na
psicanálise que, portanto, nesse aspecto, não constitui modelo, pois não é capaz de
dar conta da importante estrutura social do arquivo.
Resta uma última reflexão que considero de extrema importância e que
provém da concepção de memória e arquivo em Derrida. Todo arquivo se dá a ler
e não é possível ler, interpretar, estabelecer seu objeto, isto é, uma herança dada,
senão inscrevendo-se nele, isto é, abrindo-o e enriquecendo-o a mais não poder,
para, só então, aí ocupar um lugar em pleno direito (DERRIDA, 2001, p. 88). E é
isso o que deseja Derrida, para quem a memória e o arquivo – que já estavam
constituindo, de si, de sua obra e das obras que possuía em vida, desde que
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completou 70 anos –, enfim, a sobre-vida, não significam continuar presente
depois da morte, mas
... a vida para além da vida, a vida mais do que a vida, e o discurso que mantenho não é
mortífero, ao contrário, é a afirmação de um vivente que prefere o viver e portanto o
sobreviver à morte, pois a sobrevida não é simplesmente o que resta, é a vida mais
intensa possível. (DERRIDA, 2005, p. 55)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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l’Humanité, 11/10 (www.mideastdilemma.com/featured.html) 1994.
DERRIDA, Jacques. Apprendre à vivre enfin – entretien avec Jean Birnbaum.
Paris: Galilée / Le Monde. 2005.
_____. D’Ailleurs, Derrida. Film documentaire (super 16 mm; durée: 68’).
Auteur-réalisateur: Safaa Fathy. Production: Laurent Lavolé et Isabelle Pragier.
Gloria Films, La Sept Arte.Trad. du texte: Élida Ferreira.1999.
_____. Le Monolinguisme de l’Autre. Paris: Galilée.1996.
_____. (1995) Mal de Arquivo. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 2001.
_____. (1993) Espectros de Marx. Trad. Anamaria Skinner. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1994.
_____. (1972) A Farmácia de Platão. Trad. Rogério da Costa. São Paulo:
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FREUD, Sigmund. (1930) O Mal-Estar na Civilização. In Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Trad.: José
Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997. v. XXI, p. 73-171.
PAPATHEODOROU, Yiannis. Review of Jacques Derrida, Mal d'Archive
(1995). History in the promised land of memory , volume 1, Athens.1999, p. 199200.
YERUSHALMI, Yosef Hayim. Le Moïse de Freud, judaïsme terminable et
interminable. Paris: Gallimard.1991.
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O DIÁRIO DO CORAÇÃO DESNUDADO: migração de um projeto de
Poe a Baudelaire
Myriam Ávila1
In the desert
I saw a creature, naked, bestial,
Who, squatting upon the ground,
Held his heart in his hands,
And ate of it.
I said, “Is it good, friend?”
“It is bitter – bitter,” he answered,
“But I like it
Because it is bitter,
And because it is my heart.”
(Stephen Crane)
Edgar Allan Poe, em janeiro de 1848, publicou na Graham Magazine um
artigo em que dizia:
Se a algum ambicioso viesse a ideia bizarra de revolucionar de uma só vez todo o
universo do pensamento, da opinião pública e do sentimento dos homens, o caminho
que o pode conduzir a uma glória imorredoura encontra-se aberto, e sem obstáculos a
sua frente. Para o efeito, bastar-lhe-á escrever e publicar um livrinho muito modesto. O
título desse livro não tem de ser muito complicado – apenas algumas palavras que todos
1
Myriam Ávila é professora da UFMG.
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compreenderão: Meu coração desnudado. No entanto, esse livrinho deve cumprir as
promessas contidas no seu título.
O parágrafo seguinte mantém o tom blasé e levemente irônico do primeiro,
mas termina repleto de pathos:
Ora, não deixa de ser muito singular que, com a furiosa sede de notoriedade que
distingue tão grande parte da humanidade – tantos, inclusive, que não dão a mínima
para o que se pensará deles após a sua morte, não se encontre um único homem que seja
empedernido o suficiente para escrever esse livrinho? Para escrever, digo. Há dez mil
homens que, uma vez que o livro estivesse escrito, rir-se-iam da ideia de se sentirem
incomodados com sua publicação ainda durante sua vida e que não poderiam ao menos
conceber por que deveriam se opor a ele ser publicado após a sua morte. Mas escrever,
aí está a questão. Nenhum homem ousa escrevê-lo. Nenhum homem jamais ousará
escrevê-lo. Nenhum homem poderia escrevê-lo, mesmo se o ousasse. O papel se
contorceria e queimaria a cada toque da pena flamejante.
Cerca de vinte anos depois – a data não foi plenamente estabelecida –
Charles Baudelaire iniciou a escrita de uma série de notas em folhas separadas,
sempre sob a rubrica “Meu coração desnudado” – Mon coeur mis a nu – que as
distinguia uma a uma de outra série de anotações intitulada Fusées (Projéteis, na
tradução de Fernando Guerreiro), que a antecedera. As folhas das duas séries
foram publicadas postumamente sob seus respectivos títulos, ambas classificadas
como escritos íntimos ou diários. Algumas cartas de Baudelaire a sua mãe,
escritas entre os anos de 1863 e 65, dão conta de que o poeta pretendia fazer
dessas notas um livro cuja publicação fizesse furor, superando em franqueza as
Confissões de Rousseau. Este livro de “todas as minhas iras” prometia Baudelaire,
haveria de “mostrar de forma muito clara que me sinto como um estranho em
relação ao mundo e aos seus cultos. Voltarei contra toda a França o meu real
talento para a impertinência. Sinto necessidade de me vingar – tal como um
homem fatigado deseja um banho que o restabeleça”. Seus planos para o livro
eram de tal forma radicais que o poeta tinha em vista só publicá-lo quando tivesse
fortuna suficiente para se refugiar fora da França, “caso seja necessário”. Embora
não mencione o artigo de Poe, tanto o título como o teor que projetava dar ao livro
apontam para o desejo de encarar o desafio proposto pelo escritor que tanto
admirava.
Quando lemos as poucas páginas deixadas por Baudelaire do que seria o
furibundo livrinho, no entanto, é inevitável a quebra de expectativa com relação à
descrição pelo autor do Corvo do estrondoso efeito que tal obra necessariamente
teria. A quebra de expectativa não vem de um deficit de realização de Baudelaire,
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de uma falha em atingir a pungência propugnada por Poe: o que causa estranheza
é que o poeta francês nem ao menos parece ter tentado mostrar-se à altura do
desafio. Não há confissões ou segredos revelados, onde o texto de Poe nos teria
feito esperar um relato de perversidades, recheado com chocantes detalhes de
inclinações e atos pecaminosos, veemente o bastante para fazer o papel contorcerse e queimar-se. Em lugar disso, Baudelaire produz uma série de notas curtas cujo
lado mais agressivo é composto de diatribes contra a “canalha literária” ou contra
esse e aquele autor em particular. Sua misoginia é agressiva mas não muito mais
forte do que a que a que frequentava a conversa de rua de sua época. Deus é
questionado, Satã às vezes é trazido para o primeiro plano, mas em geral a religião
é mais prezada por esse “poeta maudito” do que seria de se esperar.
Encontramos em suas notas opiniões contundentes sobre diversos aspectos
da sociedade, notas em que a originalidade e a franqueza ressaltam, sem, no
entanto, apresentar caráter destrutivo e anarquizante:
Só existem três tipos respeitáveis:
O padre, o guerreiro e o poeta. Saber, matar e criar.
Todos os outros homens não passam de indivíduos moldáveis e serviçais, bons para
a estrebaria (isto é, próprios para exercer o que chamam profissões).
Sua mágoa relativa à pouca atenção recebida de uma patronesse das artes se
exprime de forma moderada: “Madame de Metternich, apesar de ser uma princesa,
esqueceu-se de responder-me a propósito de tudo o que disse a seu respeito e de
Wagner. Costumes do século XIX.”
Essa performance relativamente contida apesar da personalidade vigorosa
que deixa transparecer aponta para uma minimização do projeto do poeta que fora
sua grande inspiração. Seria consciente no discípulo o amesquinhamento da visão
do mestre? Baudelaire, que em uma de suas notas afirma rezar todas as manhãs a
Deus, tomando Poe como seu intercessor, dificilmente subestimaria as opiniões do
poeta mais velho, que tanto fizera para tornar conhecido na França. É mais
razoável supor que ele pretendia responder ao desafio de Poe da forma mais
radical e honesta que pudesse. O pressuposto do presente trabalho é que ele fez
exatamente isso, embora por um viés inesperado.
Tomemos como contraste o romance de Joyce Carol Oates publicado em
1998 com o título My heart laid bare. Com mais de 500 páginas, o livro narra a
saga de uma família marcada pela perseguição do poder a todo custo, movida por
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interesses escusos e gravada de segredos terríveis. Embora incapaz de causar a
revolução que o livro imaginado por Poe provocaria, a história, recheada de
peripécias e revelações, estaria mais próxima do que o leitor do artigo da Graham
Magazine esperaria do livro assim intitulado. Não cabe aqui uma avaliação do
romance de Oates, que também foge da injunção de Poe ao fazer ficção ao invés
de autobiografia. Mas o enredo concebido por ela mostra a direção que o projeto
de Poe impõe à imaginação do leitor.
As escassas páginas do diário de Baudelaire não têm a mesma pretensão de
desvelar os subterrâneos da alma humana. Existem, porém, indicações de que suas
notas seriam memorandos para um livro que ele mais tarde desenvolveria em sua
totalidade, o que nos autoriza a supor que a versão final poderia tomar outro rumo.
Algumas das entradas explicitam a intenção de desdobrar as anotações sumárias:
“Não esquecer um longo capítulo sobre as artes da adivinhação: pela água, pelas
cartas e pela leitura da mão, etc.” Ou: “Um capítulo sobre a indestrutível, eterna,
universal e engenhosa ferocidade dos homens” Ou ainda: “Um capítulo sobre A
Toilette”. É muito duvidoso, de todo modo, que o poeta algum dia chegasse a
encarar a tarefa de transformar suas notas em livro. O próprio caráter aforístico de
muitas das notas vai contra a ideia de que estas foram concebidas para serem
desenvolvidas no futuro, já que elas derivam sua força justamente de sua
peremptoriedade e da ausência de vínculo entre o que vem antes e o que se segue
a cada sentença e nada ganhariam em expressão se fossem desenvolvidas em
argumentos completos. Veja-se, por exemplo:
“1848 só foi encantador pelo seu excesso de ridículo.”
“Robespierre só é respeitado por ter feito algumas belas frases. beautiful sentences.”
“A Revolução, por meio do sacrifício, confirma a superstição.”
A forma fragmentária apresenta-se assim como a mais adequada ao tiroteio de
opiniões, censuras e exclamações que compõem Mon coeur. Deste modo,
aceitando o texto nos termos em que ele se coloca, sem a referência ao projeto de
Edgar Allan Poe, farei a seguir um exame de seus aspectos específicos com a
intenção de depois voltar ao artigo de Poe através de uma nova perspectiva.
Os quatro elementos formadores de Meu coração desnudado são a parataxe,
o non-sequitur, a não-narratividade ou temporalidade estanque e a “vaporização
do eu”. Os dois primeiros se integram ao terceiro por serem procedimentos
formais que evidenciam a recusa à narratividade. Esta, porém, vai além desses
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procedimentos e imbrica-se no tema da “vaporização do eu” proposto por
Baudelaire na primeira linha de seu caderno de notas. Embora os quatro elementos
se unam para criar o efeito final e dependam estreitamente um do outro, uma
exposição separada de cada um pode nos ajudar a compreender melhor esse efeito.
A parataxe, figura de estilo elevada a conceito crítico em famoso ensaio do
filósofo alemão Theodor Adorno, diz respeito à justaposição de frases sem
encadeamento sindético, chegando, no texto de Baudelaire, a configurar uma
simples enumeração:
“O que penso do veto e do direito a eleições. – São direitos dos homens.
O que em qualquer função há de vil.
Um Dândi limita-se a não fazer nada.
Poder-se-á imaginar um Dândi falando ao povo a não ser para o espezinhar?”
O uso de frases nominais em sequência enumerativa é constante:
“A garota dos editores.
A garota dos chefes de redação.
A garota espantalho, monstro, assassina da arte.
A garota e o que ela é na realidade. Uma tolinha e uma safada: a maior imbecilidade e a
maior das depravações juntas.”
Ou:
“Da música
Da escravidão.
Das senhoras da sociedade.
Das prostitutas.
Dos magistrados.
Dos sacramentos.
O homem de letras é o inimigo do mundo”
Existem algumas notas mais estendidas, em que se encontram períodos mais
longos, hipotaticamente organizados. Ainda aí, no entanto, prevalece uma relação
de justaposição de parágrafo a parágrafo, expressa pela descontinuidade de
assunto, perspectiva ou tom. Essa descontinuidade constitui o segundo elemento
destacado aqui, o non sequitur, de largo uso nos textos nonsense, dificultando a
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percepção de uma linha de pensamento ou argumentação. O efeito da justaposição
– mais brusca no non-sequitur – é, por acumulação, a de quebra da hierarquização
de ideias em proposições principais e secundárias. Cada frase – que, em Meu
coração cabe chamar de sentença, devido a seu caráter sentencial – fala por si,
sem tomar sua autoridade de um discurso articulado, sem contribuir para uma
argumentação sequencial e tributária de uma retórica. Outro efeito da colagem de
expressões e frases é imprimir ao texto um ritmo entrecortado, rápido – moderno,
pode-se dizer.
O non sequitur intensifica a impressão de desarticulação de ideias, temas e
tom, já que uma proposição não deriva da anterior ao modo do silogismo assim
como não chega a assumir o estatuto de premissa. Demonstra ainda uma certa
impaciência na elaboração da reflexão, que passa de um objeto a outro
continuamente. O procedimento não é incomum na escrita diarística, marcada
pelo inacabamento e a disposição do instante.
Como foi dito acima, parataxe e non-sequitur são, no livro de Baudelaire,
promotores da não-narratividade, o grande princípio formador do texto. Tal
princípio porém, expressa-se de forma mais essencial via uma insistência no uso
do tempo presente e do infinitivo, configurando uma temporalidade estanque.
Recusando já na proliferação de frases nominais a sequencialidade da narrativa,
Meu coração desnudado mostra, mesmo nas poucas vezes em que o passado é
invocado, uma tendência a apor aos curtos trechos narrativos um comentário
generalizante relativo ao estado de coisas atual, como recaída em uma
temporalidade ideal, sem avanço ou recuo, da ordem da reflexão.
“Meu furor ante o golpe de Estado. Como suportei tantos tiros de fuzil! Mais um
Bonaparte! que vergonha!
No entanto, depois tudo se pacificou. Não terá o Presidente nenhum direito a invocar?
O que é o imperador Napoleão II. O que ele vale. Procurar uma explicação para a sua
natureza e o seu caráter providencial.”
A lembrança da infância dura igualmente pouco:
“Criei-me, em grande parte, no meio do ócio.
Para meu grande mal; porque, não tendo fortuna, ele aumenta as minhas dívidas, assim
como o aviltamento que trazem consigo.
Mas para meu bem – no que respeita à sensibilidade, à reflexão e a uma tendência para
o dandismo e a diletância.
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Os outros homens de letras, na sua maioria, não passam de uns cavadores ignorantes.
Outras referências à infância são igualmente apenas o prólogo de um
comentário mais geral, observação que nos leva ao último elemento formador do
texto, que é a “vaporização do eu”. Meu coração desnudado começa com a
seguinte frase, que toma como lema: “Da vaporização e centralização do Eu. Tudo
reside nisso”. Podemos especular a respeito do significado dessa divisa que
inaugura a escrita// recorrendo ao uso da primeira pessoa nas notas que se seguem.
A primeira constatação é que o eu é muitas vezes abandonado em favor do nós,
seja indicando um agrupamento ideológico (“1848 divertiu-nos porque todos
arquitetávamos utopias como se fossem castelos no ar”) ou a comunidade humana
(“Ocupamos quase toda a nossa vida com entretenimentos mesquinhos”).
Baudelaire afirma, entretanto, que “o verdadeiro herói se diverte sozinho”. Esse
herói solitário mas, como todo herói, exemplar encarna-se na figura excepcional
do dândi, sempre mencionado em terceira pessoa. O eu não é, em Meu Coração,
nem a personagem primordial da experiência nem o pressuposto do ato
enunciativo. Deve ser, restritivamente, para Baudelaire, o apanágio dos que o
mereceram: “A qualquer pessoa, desde que saiba entreter os outros, é dado o
direito de falar de si”.
Mesmo a centralização do Eu, que se quer tão decisiva quanto sua
vaporização, tem o caráter de processo, de tarefa a executar, de esforço de
posicionamento em uma cena já previamente ocupada2. Como vimos, a função Eu
não é nesse livro uma construção no tempo, que toma como seu aval uma origem
à qual seu desenvolvimento remeterá a cada momento para legitimar-se. Seu uso
tende a associar-se aos verbos performativos, mas essas formulações cedem lugar
constantemente a enunciados sem sujeito determinado, mesmo quando caberia
explicitar a primeira pessoa. O seguinte fragmento, que demonstra um raro uso
explícito, mas em proposição negativa, do Eu, mostra um movimento em direção
à despersonalização:
Tudo o que existe tem um fim. Logo, a minha existência tem um fim. Qual?
Desconheço.
Não fui eu quem o determinou.
Foi alguém mais sabedor do que eu.
2
Judith Butler p.32
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Deve-se portanto pedir-lhe que me ilumine. É a posição mais razoável.
Percebe-se no decorrer do texto a colocação do Eu pelo menos como
posição suspeita, a ser evitada no discurso. A própria escolha do pronome na
divisa que dá início ao livro indica sua obliquidade: moi. Embora a tradução
natural para o português nesse caso seja “eu”, o confronto com a fórmula de
Rimbaud, “je est um autre” mostra que o sentido do pronome é mais um “si
mesmo” (self) objetal do que a nomeação de um sujeito altissonante. Ocorre-nos
aqui o aforismo de Theodor Adorno na Minima Moralia: “Em muitas pessoas, já é
um descaramento dizerem Eu”.
Judith Butler, em seu livro Giving an account of oneself, contesta a
primordialidade do eu diante do tu, argumentando que o aquele só surge em cena
em consequência da pergunta: quem é você? A resposta a essa demanda é
habitualmente uma narrativa, ou a conclusão de uma narrativa. Como tal, ela será
eternamente insatisfatória:
Se pedimos que alguém seja capaz de contar em forma narrativa as razões pelas quais
sua vida tomou tal ou tal rumo, ou seja, ser um autobiógrafo coerente, podemos estar
preferindo a forma inconsútil da história a algo que talvez caiba chamar a verdade da
pessoa (...) p.64. Na linguagem que articula oposição a um início inenarrável reside o
medo de que a ausência da narrativa conjure uma certa ameaça, uma ameaça à vida// e
colocará o risco, se não a certeza, de um tipo de morte, a morte de um sujeito que não
pode, que jamais poderá recuperar as condições de sua própria emergência.
Mas essa (...) é apenas a morte de um tipo de sujeito, que na verdade nunca foi possível,
a morte de uma fantasia de domínio inexequìvel, portanto a perda do que nunca se teve.
É significativo, nesse contexto de emergência do eu, que Baudelaire abdique
totalmente da infância como topos narrativo. As poucas referências à infância
(seis fragmentos em um total de quarenta e oito) são vazadas na iteratividade do
pretérito imperfeito e nunca ultrapassam o espaço de duas frases:
Em criança eu ora queria ser papa – mas um papa militar- ora ser comediante.
Os prazeres que tirava destas duas alucinações.
ou:
Desde criança que sinto em mim dois impulsos contraditórios: um de horror e outro de
exaltação pela vida.
O que é bem característico de um indolente nervoso.
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Uma prova direta da repulsa de Baudelaire pela forma narrativa se encontra
em suas raivosas críticas à escritora Georges Sand, que define como “uma dessas
atrizes velhas que não querem nunca deixar o palco”. Baudelaire sarcásticamente
comenta: “Ela possui esse famoso estilo fluente, tão querido da burguesia.” e
prossegue: “Ela é tola, pesada e falastrona.” A menção desdenhosa ao “estilo
fluente” lembra a famosa boutade de Paul Valéry, que se declarou incapaz de
fazer um romance, pois lhe seria impossível escrever coisas como “A marquesa
saiu às cinco horas”. Baudelaire, que criou o lema “Ser sempre poeta, mesmo em
prosa”, teria igual dificuldade de narrar, no sentido de delinear uma sequência de
acontecimentos ocorrendo de forma encadeada no passado. A aderência do poeta
ao presente do indicativo, como marca de atemporalidade, tem o efeito colateral
de imergir sua sensibilidade na hora que passa, no transitório e no contingente que
representavam para ele a essência de uma época, a modernidade. Pode-se
argumentar, ademais, que para qualquer escritor em qualquer tempo, tanto o
passado como o futuro jazem necessariamente no futuro da escrita. O passado não
pode ser visto como tendo existência prévia, já que ele ainda está para ser
construído em termos de palavras e frases. Em última análise, porém, é o presente
que prevalece, já que a escrita só pode ser experienciada no momento de sua
emergência – enquanto tinge o papel ou preenche a tela do computador. A mesma
experiência se dá no processo de leitura, que reencena a escrita no presente do
leitor.
Voltemos agora à questão: teria Baudelaire, com suas notas concisas e
multidirecionais amesquinhado o projeto a que Poe atribuiu um potencial de
extraordinária repercussão e impacto? Uma leitura detalhada dos termos em que
Poe coloca o seu desafio nos ajudará agora a avaliar o modo como ocorre a
migração da ideia do coração desnudado de um a outro escritor.
Poe indica aos interessados um meio seguro e fácil de atingir a glória
imorredoura: escrever um pequeno livro (não um livro de 500 páginas como o de
Joyce Carol Oates) com o título My heart laid bare.
Condição única: este livro deve cumprir as promessas do título, isto é, de
fato mostrar um coração desnudo. Uma vez publicado, o sucesso é garantido:
todos os voyeurs serão seus leitores o que, de certa forma, sugere que todos os
leitores são voyeurs e que o móvel da leitura é o voyeurismo.
Seguem-se os pontos de argumentação, com as implicações diretas que
deles se podem tomar:
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1. o título exerce um domínio total sobre o conteúdo, assumindo uma
posição de protagonismo.
2. o livro pode ser publicado, sem objeções ou obstáculos. Mas não pode ser
escrito.
3. muitos ousarão publicá-lo, mas ninguém ousará escrevê-lo: o problema
não está no conteúdo e sua divulgação.
4. ninguém poderá escrevê-lo, mesmo que o ouse: portanto, o problema não
está na postura do escritor. Existe um impedimento que está fora de sua alçada e
que é da ordem da pena e do papel, ou seja, da execução material da escrita.
Resumindo, a impossibilidade da execução desse projeto aparentemente
simples reside em dois elementos: o título e o contato entre pena e papel (este se
contorceria e queimaria ao contato daquela, consumindo os sinais da escrita). É
justificado ver no texto de Edgar Allan Poe uma tal atenção à materialidade do ato
criativo? Uma breve releitura de seu ensaio “A filosofia da composição” nos
autoriza a isso. Mesmo se se contesta que a feitura do Corvo se deu da forma
descrita por Poe, ainda que todo o arcabouço revelado por ele possa ter sido
montado a posteriori, o ensaio comprova sua atenção ao aspecto material da
composição literária. Considere-se também que o romantismo como atitude
estética tem no distanciamento irônico sua proposta mais duradoura. A filiação de
Poe a essa proposta é reconhecida por críticos como G.R. Thompson, que a vê
como uma postura que acentua o caráter de máscara e representação da imagem
do escritor em sua produção literária. A ironia permite ao autor do Corvo
problematizar a imediatidade da experiência na escrita, enquanto apenas uma
compreensão ingênua dessa imediatidade faria crer na possibilidade de um
coração ser desnudado no papel. Pois, se tomarmos a perspectiva menos literal na
leitura do artigo de Poe, teremos de concluir que a escrita é justamente a capa que
de todo modo envolveria o coração na tentativa mesma de expô-lo através dela.
Ampliando o argumento, podemos propor que – dessa perspectiva – toda
narrativa é mentirosa, por exigir uma organização do vivido ou do real em uma
ordem de outra natureza: a verbal, controlada por uma sintaxe e viciada em
artifícios representativos de toda ordem, a começar pela retórica. Lembremos que
Poe só apresenta a proposta de um My heart laid bare como impossibilidade cabal.
Baudelaire compreende a natureza auto-impeditiva da tarefa assim que inicia seu
livro, com a frase: “(Poderei começar Meu coração desnudado em qualquer lugar
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e não importa como, continuando-o dia a dia, segundo a inspiração e as
circunstâncias – desde que a inspiração se mantenha viva).” A partir daí, em
nenhum momento resvala na tentação de pintar a realidade ou a experiência por
meio da escrita, não obstante as intenções declaradas na correspondência com sua
mãe.
Como, porém, ver a negação da narratividade em Baudelaire como tributária
de Poe, cujo investimento narrativo é evidente em seus habilíssimos contos?
Baudelaire criticou o estilo fluente de Georges Sand, que lhe era repulsivo. Para
ele, a inconsciência demonstrada por aquela escritora dos impedimentos gravosos
à escrita fluente que a modernidade acarreta fariam de Sand um erro a ser apagado
na literatura francesa.
O fato de que o próprio Poe organiza seus textos em formações hipotáticas,
com toda a aparência de fluência, não torna o seu caso análogo ao de Georges
Sand. A francesa seria cúmplice da indolência mental burguesa ao tentar dar um
aspecto natural á narrativa, de modo que seu leitor se sentisse confortavelmente
assistindo às cenas de uma vida se desenrolarem diante de si. Poe, por outro lado,
afasta-se da escrita como simulacro do natural, dando à retórica ares de
artificialidade teatral para que o leitor não perdesse, com a espetacularidade do
narrado, a espetacularidade da narração. Edgar Allan Poe estava heroicamente
fechando uma era em face da emergência da modernidade. Tendo explorado as
últimas fronteiras do romantismo, sua obra tem o poder de tornar inócua qualquer
tentativa posterior naquela direção, pois, a partir dela, toda produção romântica
terá um inevitável caráter de pastiche ou paródia.
Se concordarmos que a empresa de Poe tinha como um pressuposto
necessário a colocação em primeiro plano da escrita como aquilo com que o
escritor tem de lutar para alcançar sua expressão (“lutar com palavras é a luta mais
vã/ entanto lutamos mal rompe a manhã”) , poderemos ver a pena flamejante que
queimaria o papel se alguém tentasse compor My heart laid bare como a exata
metáfora da operação da escrita que está sempre em vias de, consumindo-se no
próprio ato de sua realização. A ironia romântica traz consigo a visão
metalinguistica do empreendimento literário que se tornará o próprio núcleo da
literatura de vanguarda do século XX. Nesse sentido, seu projeto traz consigo
desde o início a impossibilidade da execução tanto devido à natureza sempre
espectral do “eu” como à natureza espectral do “eu” em face da modernidade.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 156‐166, jul./dez. 2010.
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Assim, o Meu coração desnudado de Baudelaire é uma invectiva contra
aqueles que acreditam poder ver um coração se desnudar na escrita. Ao presumir
que Baudelaire não usou o título de Poe como mera rubrica para suas notas
esparsas, reconhecemos que o poeta francês buscou expor-se por inteiro nas
poucas páginas que, no entanto, não conseguem abalar o leitor do século XXI.
Onde estará a falha? Na nudez insuficiente de Baudelaire? Na sensibilidade
amortecida do leitor atual? Não seria a injunção de Poe menos ousada do que ele
quis fazer parecer? Proponho que se entenda o título de Poe e Baudelaire não
como implicando uma revelação da interioridade de um indivíduo, mas como uma
afirmação da disposição de encarar o mundo – e a papel em branco – da forma
mais desguardada possível, deixando de lado os filtros com os quais manipulamos
as condições externas da emergência do eu. Expondo-se ao vendaval da
modernidade, aquele mesmo que na imagem de Walter Benjamin está o tempo
todo empurrando o Angelus novus de Paul Klee em direção ao futuro – Baudelaire
mostrou-se à altura do legado de Poe – nunca acomodatício, nunca autoindulgente – nunca um eu senão um que estivesse em permanente processo de
lapidação pelas mãos do tempo. Poe levou o romantismo a seu acabamento,
Baudelaire deu o passo decisivo em direção da modernidade. Para prestar contas
de seu coração ele tinha de admitir tê-lo perdido para o instante. Para dar sentido a
seu empreendimento teve de abandonar a narratividade e render-se ao assemblage
incerto do diário.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 156‐166, jul./dez. 2010.
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GRAFIAS NA PEDRA: traços de João Cabral
Roniere Menezes1
João Cabral de Melo Neto nasce em 9 de janeiro de 1920, em Recife. No
poema “Autobiografia de um só dia”,2 do livro A escola das facas, de 1979, o
poeta expõe-se, como poucas vezes ocorre em sua obra. Relata o próprio
nascimento e revela o comportamento aristocrático e religioso da família diante do
evento: os filhos deveriam nascer sempre na casa do avô materno. A família
desloca-se do interior, do Engenho Poço, para a cidade. Como a mãe dorme, após
a chegada, no “quarto-dos-santos/ misto de santuário e capela”, antes de se dirigir
ao quarto tradicional dos partos, o menino nasce, de madrugada, ali mesmo:
“nascemos eu e minha morte,/ contra o ritual daquela Corte/ (...) / Parido no
quarto-dos-santos,/ sem querer, nasci blasfemando”. O novo poeta gauche nasce
com “sangue e grito”, já questionando a “freirice dos lírios”.
Primo por parte de pai de Manuel Bandeira e por parte de mãe de Gilberto
Freyre, Cabral vive até os dez anos nos engenhos de cana-de-açúcar da família,
em Pernambuco. O poema “Descoberta da literatura”,3 de A escola das facas,
apresenta uma crítica do poeta ao “lugar comum” do cordel, forma narrativa que,
no entanto, serve-lhe de iniciação à arte literária. O assunto do texto é a leitura de
romances populares que o poeta, ainda criança, fazia para os cassacos do eito da
fazenda, no engenho. A “audição” senta-se numa roda de carro de boi como se
essa, retirada de sua função diária, conduzisse-a a viagens de espanto e de
imaginação. Ao empreender o discurso, “como puro alto-falante”, o menino
1
Roniere Menezes é professor do CEFET-MG.
2
MELO NETO. Obra completa, p. 439-440.
3
MELO NETO. Obra completa, p. 447.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
prendia a atenção de todos com a tensão da história, mesmo quando essa variava
pouco em relação às anteriores. A voz criava um mundo mágico, entretanto o
poeta receava que confundissem o que lia com a coisa lida, “o de perto com o
distante”, tomando-o como o próprio autor das façanhas ou imaginando-o a
enfrentar “as brabezas do brigante”. Descobre o poder da ficção, o seu tênue
limite com a realidade. Desconfia, porém, do efeito. O menino poeta marca a
diferença em relação aos trabalhadores por impor uma fronteira invisível para os
outros, entre a voz e a autoria, entre a platéia imantada pela fantasia e a leitura
distanciada, de “alto-falante”. Essa fronteira esgarça-se, no entanto, mais tarde, no
momento de escrever o poema, quando o espaço mágico confunde-se um pouco
mais com a realidade.
Em 1930, a família retorna ao Recife e o menino João é matriculado no Colégio
de Ponte d’Uchoa, dos Irmãos Maristas. Ficará na escola até a conclusão do
secundário, aos 15 anos. Em 1935, torna-se campeão juvenil de futebol pelo Santa
Cruz Futebol Clube e em 1938 passa a frequentar o Café Lafayete, lugar onde se
encontravam os intelectuais recifenses.
Em “Porto dos cavalos”,4 poema do livro A escola das facas, o poeta retoma
imagens do rio pernambucano presentes na memória infantil. Como um íntimo
cão, o rio Capibaribe segue os passos do poeta. No lugar chamado Porto dos
cavalos, existe um recanto onde o rio “se remansa” e conversa, em sesta, com seu
amigo. Para o poeta, o rio pressentiu naquele menino um “amigo-inimigo”,
imagem criada para explicar a questão da diferença e da repetição na
representação poética. O artista, desde muito jovem, entende o que o outro diz,
mas repete “noutro ritmo”. O rio, como objeto da escrita, não diz tudo, revela-se
de forma incidental, e o poeta não imita o que apreende. Por esse motivo, a
tradução, em forma de criação literária, detém uma potência criativa ímpar.
No poema “The return of the native”, do livro Agrestes, de 1985, Cabral
desconstrói os fulgores da lembrança almejados em “Porto de cavalos”. No novo
poema, o pernambucano declara ser impossível reencontrar o espaço ligado à
experiência da infância e da juventude. Em quase tudo o que escreve há um
Pernambuco, mas “nenhum pernambucano reconhece”. As dissonâncias da
“língua” cabralina não atingem os conterrâneos, mesmo que o poema discorra
4
MELO NETO. Obra completa, p. 460-461.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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sobre esse território. Há um estranhamento das próprias paisagens por parte dos
moradores. O poeta menciona que “o Pernambuco de seu bolso”, articulado à sua
“ ideia de céu”, distingue-se daquele que ele pode rever. E alinhava o poema:
“Assim é impossível dar-se/ a volta a casa do nativo./ Não acha a casa nem a rua,
e quem não morreu dos amigos,// amadureceu noutros sóis:/ não fala na mesma
linguagem/ e estranha que ele estranhe a esquina/ em que construíram tal
desastre.”5
Em 1940, Cabral viaja ao Rio de Janeiro com a família e conhece Murilo
Mendes. O poeta mineiro apresenta-o a Drummond e ao grupo de intelectuais que
se encontrava no consultório de Jorge de Lima. Muda-se para o Rio de Janeiro em
1942, ano em que lança seu primeiro livro, Pedra do sono. Na viagem, atravessa
vários territórios e depara com a realidade de homens, mulheres e crianças
vivendo à míngua, sob o forte sol sertanejo. Sai de Pernambuco e passa pelos
estados de Alagoas, Sergipe, Bahia, Minas Gerais, levando 13 dias para completar
a jornada. O percurso foi feito de trem, de barca e de ônibus. Devido aos
bombardeios de submarinos alemães, o transporte marítimo entre o Nordeste e o
Sudeste brasileiros estava impedido. Durante a viagem, conhece o lugarejo
chamado Brejo das Almas, no norte de Minas, de onde envia telegrama a
Drummond, que havia intitulado com esse nome o seu segundo livro: “De
passagem Brejo das Almas. Abraço caro amigo. João Cabral.”6 Era a trombeta
anunciando a chegada de mais um anjo torto à cidade das musas da literatura e dos
funcionários de gabinete.
Como não havia concurso em andamento para o Itamaraty na época em que
chega ao Rio, Cabral presta concurso para o DASP (Departamento Administrativo
do Serviço Público). É aprovado e nomeado, em 1943, para trabalhar como
Assistente de Seleção do órgão. Ingressa no Itamaraty em 1945, mesmo ano em
que publica O engenheiro, seu segundo livro. Em 1947, é transferido para a
Espanha. Em Barcelona, publica Psicologia da composição, obra impressa por ele
mesmo. Sobre a escolha da diplomacia como trabalho, afirma Cabral:
Quando fiz o concurso eu só tinha publicado Pedra do sono. O engenheiro saiu em
junho de 1945 e eu fui nomeado em dezembro. Nunca acreditei que pudesse viver de
5
MELO NETO. Obra completa, p. 532-533.
6
SÜSSEKIND (Org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, p. 183.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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literatura. Eu via o Lêdo Ivo e o Benedito Coutinho se matarem em jornal, e dizia: vou
ser funcionário público, procurar uma carreira que me dê um certo bem-estar para que
eu possa ler e escrever. Havia duas opções: uma, a carreira diplomática, e a outra, ser
fiscal de consumo. Se eu fosse diplomata, o pior lugar a que poderiam me mandar seria
Cádiz; se fosse fiscal de consumo, poderiam me mandar para Loeiras, no interior do
Piauí.7
Vivendo na cidade de Barcelona e sofrendo de uma angústia que parece ser
cada vez mais presente em sua vida, procura um médico. Este, acreditando
encontrar uma explicação para os problemas descritos na tensão acumulada,
ressalta a necessidade de o diplomata exercitar-se. Em lugar de praticar algum
esporte com frequência, o obsessivo Cabral compra uma prensa mecânica para,
com ela, realizar exercícios físicos. Monta, assim, uma “academia” insólita. Entre
1947 e 1950, produz 13 livros, com um refinamento ímpar, em um pequeno
cômodo ao lado do seu quarto de casal. Na época, vivia com a mulher Stella e
com Rodrigo, o primeiro filho. As edições tinham de 100 a 150 exemplares e
eram distribuídas entre os pares. Segundo Castello, seu biógrafo,
Usa papel de luxo da marca Guarro, que seleciona com pruridos de estilista. Imprime,
ao longo de quatro anos, seu novo livro O cão sem plumas, de 1949, textos de amigos
brasileiros como o poema Pátria Minha, de Vinicius de Moraes, e poemas de amigos
espanhóis como Joan Brossa e Joan Edoardo Cirlot.8
O livro Mafuá do malungo, de Bandeira, é impresso por Cabral em sua
pequena tipografia de Barcelona. Em carta a Vinicius, datada de 16 de setembro de
1947 e escrita em Barcelona, Cabral comenta sobre a fundição que havia
comprado, uma das melhores que existiam. Objetivava iniciar uma coleção a que
daria o nome de “O livro inconsútil”, dedicada a poetas de sua geração, brasileiros e
espanhóis. Sua intenção é trazer maior consciência formal ao meio, pois desconfia
de que o soneto camoniano brasileiro representa um automatismo com o ritmo
decassílabo, e não uma consciência mais clara e “louvável” de produção poética.
Torna-se evidente a persistência de Cabral em enxergar a própria arte como
potencialidade crítica. O poeta diplomata que desejava ser crítico passa a atuar no
campo da editoração. A inquietação com os lugares demarcados e enrigecidos e a
7
MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral, p. 27.
8
CASTELLO. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & diário de tudo, p. 81.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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fuga constante da acomodação e da rotina são dados intrínsecos à personalidade e
às obras dos três autores aqui estudados:
Minha pergunta (pergunta mais do que convite; porque ninguém está obrigado a
acreditar em minhas possibilidades artesanais), assunto desta carta, é a seguinte:
gostaria você que eu publicasse “Cordélia e o peregrino” (...) Falo de “Cordélia e o
peregrino” porque o sei pronto ou quase. Entretanto, o convite se refere a qualquer outra
coisa que v. queira ver publicada antes, fora de comércio e em luxo (a peça “Orfeu”, os
poemas para crianças, etc.) que me diz você?9
Em carta a Manuel Bandeira, datada de 11 de janeiro de 1948, Vinicius
informa-lhe que enviará o texto de “Cordélia e o peregrino” para Cabral. Vinicius
afirma que o manuscrito tem cerca de dez anos, mas apresenta dados interessantes
a respeito do Brasil. E diz ainda: “Soube por ele que você também vai fazer uma
edição na prensinha manual que ele comprou. Achei ótimo. Ele me mandou uma
página de amostra, que é de se lamber os beiços de alinhada.”10
Em sua busca incessante por desvelar o cotidiano, o poeta carioca utiliza-se
das tecnologias mais avançadas do momento. Enquanto Vinicius caminha em
direção ao cinema e à música popular – mesmo enfatizando a delicadeza artística
do cinema mudo e em preto e branco –, Cabral realiza travessia inversa, buscando
o “artesanato” tipográfico. Em carta a Clarice Lispector, escrita entre 1947 e 1948,
o pernambucano escreve sobre pequenos erros que, inicialmente, aparecem nas
impressões que realiza em sua singular editora. Com tal atividade, passa a
valorizar ainda mais a superioridade das boas edições: “É, inegavelmente, a mais
difícil de todas as tarefas, lograr-se uma boa impressão.”11
A grande questão da “indústria cultural” é a distribuição, mais que a
fabricação. Se Cabral pretendia encontrar uma expressão inovadora por meio de
sua arte, esta, por outro lado, circularia de modo mais restrito. Perde-se em
público, mas ganha-se em qualidade de leitura. A arte moderna torna-se produto
de uma oficina operada manualmente por quem possui total domínio da “linha de
9
MELO NETO. Carta a Vinicius. Barcelona, 16 de setembro de 1947. Fundação Casa de Rui
Barbosa. VM cp 417.
10
MORAES. Correspondência entre Manuel Bandeira e Vinicius de Moraes. Arquivo Vinicius de
Moraes. Fundação Casa de Rui Barbosa. VMcp 063.
11
MELO NETO. Carta a Clarice Lispector, p. 180.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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produção”. Os livros encantam o “editor” como objeto. De acordo com Cabral, o
livro que imprime, Psicologia da composição, apresenta uma portada que agrada
pelo “ar antigo, de livro do século XVII e XVIII”.12
Cabral relata, na carta a Clarice citada acima, o interesse em publicar uma
“revista minoritária, de 200 exemplares, distribuída a pessoas escolhidas pelos
diretores.” A revista seria impressa por ele e configurar-se-ia “fora do tempo e do
espaço – um pouco como nós vivemos.”13 O poeta assinala que deseja contar com
a colaboração da escritora, por meio do envio de texto. Declara ter pensado numa
revista que circulasse apenas entre escritores brasileiros residentes fora do Brasil;
porém, desistiu do empreendimento, devido a comparações que poderiam surgir
entre esse projeto e propostas culturais do Itamaraty. O projeto de edição da
“revista minoritária” demonstra, mais que um ideal artístico elitista, o interesse
por evidenciar um modo particular de tecer artefatos literários formalmente
arrojados – “o que presta de todos nós”, como pensa o diplomata. O objeto seria
bem cuidado desde a capa e compartilhado entre os pares. A revista funcionaria
como espaço de intervenções, diálogos e reflexões voltadas para o experimento
estético.
A temporada londrina do poeta é interrompida em 1952, quando é obrigado
a retornar ao Rio de Janeiro para depor em um inquérito administrativo e criminal
em que foi acusado de subversivo. Cabral, como segundo-secretário da embaixada
do Brasil em Londres, escrevera carta ao diplomata Paulo Cotrim Rodrigues, seu
amigo, funcionário em Hamburgo, Alemanha, encomendando artigo a ser
publicado em uma revista que tinha relações com o Partido Trabalhista Inglês. A
carta é interceptada por outro colega de profissão, Mário Mussolini Calábria, e
enviada, por este, ao estado-maior do Exército. Mussolini – cujo nome
curiosamente assemelha-se ao do ditador – anexa à carta um bilhete em que
chama a atenção do exército para um movimento de aspirações comunistas que
estaria começando a infiltrar-se no Itamaraty. Como os militares não se interessam
pelo assunto, o próprio Mussolini envia a carta a Carlos Lacerda, que, em sua
oposição a Vargas, publica a notícia no jornal Tribuna da imprensa. Em 1953,
Cabral – ao lado de outros quatro diplomatas, entre os quais Antônio Houaiss – é
12
MELO NETO. Carta a Clarice Lispector, p. 180.
13
MELO NETO. Carta a Clarice Lispector, p. 180-181.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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acusado de subversão. O poeta tem de responder a um inquérito administrativo e
criminal. O Itamaraty coloca-o em disponibilidade, sem direito a vencimentos. No
mesmo ano, entra com um processo no Supremo Tribunal Federal contra a
sentença. O Itamaraty o inocenta, mas Getúlio ainda envia o processo para o
Conselho de Segurança Nacional.14
Em 1953, vivendo no Rio de Janeiro, Cabral escreve o poema O rio –
publicado no ano seguinte – e trabalha nos jornais Vanguarda e Última hora. Com
o arquivamento do processo, o poeta retorna a Recife, onde vive às custas do pai,
até ser novamente reintegrado à diplomacia, em 1954, quando, de volta ao Rio,
inicia trabalho no Departamento Cultural do Itamaraty. Permanece na então
capital do país até 1956, quando novamente segue para Barcelona. Nesse ano,
publica, no livro Duas águas, os textos inéditos de Morte e vida severina,
Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina.15 Em Duas águas, o poeta reúne, na
primeira água – mais voltada para o projeto de construção estética – , os livros
Pedra do sono, O engenheiro, Psicologia da composição, O cão sem plumas,
Uma faca só lâmina e Paisagens com figuras; na segunda água – mais
preocupada com a tonalidade social –, agrupa os livros Os três mal-amados, O rio
e Morte e vida severina.
Em carta a Cabral, escrita de Washington, em 07 de maio de 1957, Clarice
Lispector relata, ao amigo, as impressões de leitura do livro Duas águas:
(...) Recebi, sim, “Duas águas”. Li duas vezes, em ocasiões diferentes. Das duas vezes,
com admiração integral, com respeito, com alegria, com esse espanto-surpresa que
tenho diante de quem milagrosamente acha a palavra certa. Acha não: de quem inventa
a palavra certa, de quem nasceu com a possibilidade de descobrir a única palavra certa.
Depois, a limpeza da construção. Não há um fio solto na sua poesia. (...) Saio de sua
poesia com um sentimento de aprofundamento de vida, com o espanto de não ter podido
14
MELO NETO apud CASTELLO. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & diário de tudo,
p. 116.
15
Cabral iniciou sua produção poética recebendo influências do discurso surrealista. Em momento
posterior, o poeta pernambucano, segundo o crítico Modesto Carone, “passa pelo ardor da
construção e da lucidez, discute a pureza e a decantação da poesia antilírica e, descartando a
desconfiança (então em moda) quanto à possibilidade de dizer o mundo e os seus conflitos,
assume, de Morte e vida severina em diante, o lado sujo da miséria do Nordeste.” CARONE.
Severinos e comendadores, p. 166.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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“ver” antes, de ter precisado que você dissesse para que eu pudesse ver. Ao mesmo
tempo, “reconheço” o que você diz. (...).16
Clarice assinala que o “reconhecer” é a contribuição dela à poesia cabralina.
Esse movimento, no entanto, surge da própria construção textual do autor. A
escritora mostra-se grata pelo fato de poder ler “com tanta participação” o que o
amigo escreve. A poesia do pernambucano, ao mesmo tempo, seduz, apura o olhar
e traz inquietação. Tomada pela obra, Clarice declara: “você não enfeita nenhuma
emoção”.17
De 56 a 62, durante o governo JK, Cabral está fora do país. Trabalha como
diplomata na Espanha, vive em Barcelona, Madri e Sevilha. A respeito dessa
última cidade, em depoimento, assinala:
Sevilha foi para mim uma revelação. É a cidade, depois de Recife, em que gostei mais
de viver. É uma cidade íntima. Você anda nas ruas de Sevilha como se estivesse
andando no corredor de sua casa. Não é uma cidade dinâmica, barulhenta, cheia de
automóveis.18
Ao mesmo tempo que a cidade irrompe como revelação exterior, configurase como espaço de intimidade. O poeta passeia por suas ruas com a naturalidade
de um nativo. Os detalhes das calçadas, das casas, da vida cultural grudam em sua
pele, penetram em seu corpo, a cada nova quadra percorrida. Depois da cidade de
Recife, guardada na memória, Sevilha apresenta-lhe novas possibilidades de
alumbramento. O prazer surge do alheamento em relação ao dinamismo da vida
moderna, possibilitado pela calma da cidade. Esta reveste-se de sinais de sua
própria poesia. O silêncio das esquinas convida ao caminhar solitário, forma
melhor de o poeta viajante refletir sobre o estar no mundo; nas ruas, nas tabernas,
Cabral pode recolher detalhes e matizes a serem trabalhados em sua arte.
Quando Cabral vai viver em Marselha, sente-se bastante contrariado. Ao
contrário de Sevilha, cidade solar e arejada, Marselha parece-lhe sombria,
16
LISPECTOR, Clarice. Carta a Cabral. Washington, 07 de maio de 1957. Arquivo de João Cabral
de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa. JCMNCp.
17
LISPECTOR, Clarice. Carta a Cabral. Washington, 07 de maio de 1957. Arquivo de João Cabral
de Melo Neto. Fundação Casa de Rui Barbosa. JCMNCp.
18
SÜSSEKIND (Org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, p. 245.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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fechada, cheirando a antiquário.19 A solidão sentida pelo poeta em Marselha
quebra-se com a visita de Antônio Abujamra. No período, o ator realizava estudos
sobre teatro na Espanha e passa uma temporada com o poeta na França.
A produção poética do diplomata sofre constantes interferências dos
encontros ocorridos em diversas partes do mundo e com representantes de
distintas expressões artísticas e intelectuais. A poesia parece construir-se à deriva,
em territórios assumidos como instâncias de passagem.
Antônio Abujamra comenta, em entrevista à Revista Caros Amigos, a
importância do encontro com Cabral, em 1958. Após deixar Madri e viajar pela
Espanha, passando por Granada, Sevilha, até Cádiz, percorre, de modo
vagabundo, o norte da África: Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia, Egito. No Cairo
consegue dinheiro na embaixada brasileira para seguir de avião até a cidade de
Marselha:
Chego em Marselha doente, sem dinheiro, mochila rasgada. Procuro o consulado do
Brasil, cônsul: João Cabral de Melo Neto. Fui lá, toquei a campainha: “Quero falar com
o João Cabral, sou brasileiro”. “Pois não.” Ele vem me atender e eu digo: “Sou um
diretor de teatro estudante, não sei o que fazer, estou doente, não sei onde morar, não
tenho dinheiro pra nada”. João Cabral, com a generosidade que só os grandes poetas
têm, abriu a porta e disse: “Entre, a casa é sua”. Fiquei 28 dias na casa de João Cabral
de Melo Neto, aprendi mais poesia do que em cinquenta anos de universidade brasileira.
E por João passavam todas as grandes cabeças do mundo, Ezra Pound, por exemplo. (...)
E eu lá com João Cabral, aprendendo coisas. E aí minha cabeça começou a dar uma
mudada, começou a estudar o concreto. (...) Ele me perguntou: “Você já leu Brecht?”
“Já li Mãe Coragem.” “Você precisa conhecer mais o Brecht, precisa saber quem ele é,
precisa ir lá, precisa ver como é o Berliner Ensemble.” Aí a minha vida foi melhorando,
comi bem, maravilhoso, formidável (...). E aí o João conseguiu uma bolsa pra mim em
Paris para estudar teatro.20
O diplomata acolhe o jovem estudante de arte, rebelde, sem dinheiro, sem
moradia. Oferece-lhe casa, alimento e amizade. A convivência traz ao dramaturgo
conhecimentos ainda não encontrados no Brasil nem no curso em Madri. Cabral
19
MELO NETO. Carta a Murilo Rubião. Marselha, 1.XII.958. Arquivo Murilo Rubião. Acervo de
Escritores Mineiros da UFMG.
20
ABUJAMRA.
Entrevista
à
Revista
Caros
Amigos.
Disponível
em:
<http://carosamigos.terra.com.br/da_revista/ edicoes/ed94/valeapena.asp.>. Acesso em: 20 maio
2008.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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esquece a vida entediante de Marselha, propondo-se renovar a própria produção
poética. O livro Dois parlamentos é planejado a partir da convivência com
Abujamra. 21
Derrida, em Politiques de l’amitié 22, propõe uma forma de amizade em que
um ser possa expressar-se melhor na interação com o outro. Não há eliminação de
subjetividades e de posicionamentos, pois a relação pressupõe momentos de
diálogo, de abertura para o outro, como também de singularidade, numa
perspectiva diferencial. Essa relação discursiva, que aparece no corpo das obras
analisadas, relaciona-se também ao conceito deleuziano de “agenciamento
coletivo de enunciação”.23
Num agenciamento coletivo de enunciação cruzam-se vários elementos que,
após a interação, saem transformados, cada um levando consigo a força positiva
do outro. Deleuze demonstra que os agenciamentos funcionam sobre múltiplos
fluxos. Por meio deles, busca-se fugir do “livro de ponto” da sociedade de
controle, que inscreve o homem de forma objetiva, enquadrada, fixa, pois as
sociedades necessitam produzir um rosto. Para deslocar-se desse espaço
territorializado seria necessário criar e habitar cartografias desterritorializadas. O
escritor-diplomata deixa a voz do desterrado pronunciar-se junto à sua, a partir de
seus inventários e de suas invenções.
O trabalho diplomático, as relações com o outro, a tentativa de criar acordos
– que ao mesmo tempo aproximem os discursos e marquem suas diferentes
intenções – refletem-se na criação artístico-intelectual dos escritores em estudo.
O diplomata Cabral teve a oportunidade, em suas funções consulares, de
oferecer um rosto humano e sensível à instância política. Os projetos
governamentais pautam-se sempre mais por critérios burocráticos, sendo
constantemente absorvidos por interesses privados. O escritor articula, pelas
margens dos mecanismos oficiais de poder, às vezes em países distantes,
encontros inusitados entre proposições artísticas e intelectuais. Dessa forma,
contribui para a construção de novas modelagens culturais que se firmam no
21
MELO NETO apud ATHAYDE. Ideias fixas de João Cabral de Melo Neto, p. 113.
22
Cf. DERRIDA. Politiques de l’amitié.
23
Cf. DELEUZE; PARNET. Diálogos.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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espaço brasileiro, nos campos do teatro, da música e da literatura. A compreensão
político-social do autor não abole a dimensão estética.
Em 1961, Cabral é nomeado chefe de gabinete do ministro da Agricultura,
Romero Cabral da Costa, seu parente, e volta ao Brasil, passando a residir em
Brasília. Com a renúncia de Jânio Quadros, retorna a Madri. Em 1964-1965 atua
em Genebra, Suíça, junto à ONU. O poeta diplomata trabalha em Londres (19511952) e Liverpool (1952), na Inglaterra; Berna, na Suíça (1965-1966); Assunção,
no Paraguai (1970-1972); Dacar, em Senegal (1972-1979); Quito, no Equador
(1979-1982); Tegucigalpa, em Honduras (1982-1983), e em Porto, Portugal
(1984-1987).
Em entrevista a José Castello, Cabral comenta a influência da diplomacia,
dos diversos espaços em que viveu, no ofício poético. O acaso entremeia-se nas
linhas do enredo. Para Cabral, se o seu roteiro como diplomata tivesse sido outro,
suas influências também poderiam ser diferentes. À pergunta sobre a demarcação
da rede de influências que formou sua poesia, responde:
– É, posso dizer quais foram as leituras que me marcaram. Meu primeiro posto foi na
Espanha. Eu, na Espanha, procurei ler minuciosamente os primeiros autores épicos
espanhóis. Essa poesia primitiva espanhola me impressionou muito. Fui marcado por
ela. Depois, eu me mudei para Londres. Aí descobri a poesia inglesa. Porque, quando eu
estava aqui no Brasil a gente tinha – e tem – a tendência de abordar a poesia inglesa, em
geral, pelos românticos. (...). Quando eu fui para Londres, então, eu pude ler a poesia
metafísica inglesa que eu não conhecia e isso foi uma coisa que me marcou muito. John
Donne, George Herbert, Andrew Marvell, poetas que aqui no Brasil são desconhecidos.
(...).24
O pensamento é fruto de acasos, de encontros inesperados. Forças
desconhecidas entram em cena, às vezes, demonstrando uma violência pragmática
e conceitual que abala nossas certezas e amplia nossas percepções.25 No período
em que morou em Barcelona, entre 1947 e 1950, seus primeiros anos na Espanha,
Cabral estabeleceu amizade com alguns dos mais importantes nomes da arte e da
intelectualidade espanhola, entre eles Joan Miró, Joan Brossa, Jorge Guillén,
Carles Ribas e Antoni Tàpies. As relações, os “agenciamentos” estabelecidos com
essas pessoas foram fundamentais não apenas para transformar a visão de arte e de
24
CASTELLO. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & Diário de tudo, p. 259-260.
25
Cf. LEVY. A experiência do fora: Blanchot, Foucault, Deleuze.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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poesia de Cabral, como também para que fosse redimensionada a percepção dos
amigos sobre o objeto artístico. Esse fato é demonstrado em cartas e entrevistas de
alguns dos interlocutores espanhóis do poeta brasileiro. A ocorrência e a força dos
possíveis encontros são fundamentais para o surgimento de um pensamento que se
desloca da interioridade para os espaços da superfície, articulados por uma rede de
entrelaçamentos não dicotômicos.
O espaço de Cabral na poesia brasileira marca-se preponderantemente pela
visualidade e pela plasticidade. As artes plásticas e a arquitetura recebem mais
destaque em seus poemas do que a música, considerada irmã gêmea da arte
poética. No entanto, ao contrário do que afirma, com frequência, parte da crítica, a
música não está de todo ausente do texto cabralino. Mesmo com presença menor
nas criações do poeta, a música aparece em sua obra por meio da incorporação de
ritmos e de melodias populares do Nordeste do Brasil e da Espanha, considerados
como propiciadores de estranhamento à audição. É possível também ler a obra
cabralina em diálogo com a música dodecafônica. O dodecafonismo de
Shoenberg, Webern e Alban Berg elabora uma arte aberta aos ruídos, às
dissonâncias, ao jogo com as séries, aos intervalos e aos timbres inusitados.
Predominam, nesse tipo de composição, elementos espaciais, em detrimento dos
elementos temporais, mais comumente encontrados no ordenamento da música
tonal.26
A poesia cabralina recebe influências musicais relacionadas ao frevo, ao
flamenco, ao dodecafonismo. Os “acordes” do poeta desviam-se da música tonal
europeia – portadora de uma visão linear da história –, sem, porém, renegá-la
totalmente. Seus textos buscam abrir-se a múltiplas interações, às vezes,
antimelódicas, não antimusicais, com uma rítmica que desperta a atenção, em vez
de adormecê-la.
Apesar de a poesia cabralina revelar diálogos, por exemplo, com a música
dodecafônica, é preciso levar em conta a posição do poeta contra o
26
No Brasil, o maestro Hans-Joachim Koellreutter é nome forte do dodecafonismo. Tendo
chegado ao país em 1937, fugindo do nazismo, Koellreutter foi professor de Tom Jobim e
influenciou com suas dissonâncias e harmonias diferenciais os caminhos da música brasileira, da
bossa nova ao Tropicalismo.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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abstracionismo. Em carta a Manuel Bandeira, datada de 11 de dezembro de 1951,
Cabral assinala:
Por que v. não toma a frente de um movimento contra essa arte abstrata? (...) você com
sua autoridade podia muito bem tomar a frente de um movimento de denúncia do
abstracionismo em pintura, de seu equivalente atonalismo na música e do
neoparnasianismo-esteticismo da Geração de 45.27
O poeta assegura ter se interessado por esse tipo de manifestação artística,
enquanto morava no Brasil, mas na Europa descobriu ser algo “trágico” e
“ridículo” para os brasileiros entregarem-se a tal requinte:
Porque da Europa é que pude descobrir como o Brasil é pobre e miserável. Isto é:
depois de ver o que é a miséria europeia – enorme da Espanha, Portugal, dura na
França, na Inglaterra – acho que é preciso inventar outra palavra para a nossa, cem
vezes mais forte.28
Para Cabral, o fato de um artista brasileiro tentar ser “universal” ou
“cosmopolita” significa, antes de tudo, empobrecimento. Inclusive porque os
europeus valorizam bem mais os músicos, pintores e escritores que, sem ser
exóticos, revelem, na produção, peculiaridades de modelagem estética distantes
do padrão artístico da Europa. O poeta elabora sua arquitetura literária buscando o
constante equilíbrio entre as expressões artísticas de vanguarda, as questões
sociais e as boas soluções artísticas de tonalidade brasileira encontradas em obras
como as de Villa Lobos, Portinari e José Lins do Rego, conforme endossa na carta
a Bandeira. Por mais que Cabral trace, com competência, seu caminho estético
particular, continua estabelecendo, por toda a vida, um diálogo subjacente com a
poética do antigo mestre Carlos Drummond de Andrade.
A crítica considera Cabral, prioritariamente, como um poeta afeito à
racionalidade, ao pensamento lógico, à certeza matemática. Embora não
discordemos dessa visão crítica, que parece realmente corresponder a um aspecto
importante da poética cabralina, acreditamos que é possível abrir a perspectiva
analítica a partir de alguns questionamentos. Não seria a busca da exatidão na
poesia de Cabral a demonstração, pelo avesso, da dificuldade de viver o
imponderável da existência e de lidar com as incertezas da realidade? A
27
SÜSSEKIND (Org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, p. 145.
28
SÜSSEKIND (Org.). Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond, p. 146.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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consideração exclusiva do aspecto “racionalizante” da estética cabralina não seria
uma forma de tentar escamotear a dicção popular, o humor, aspectos da vida
cotidiana com os quais, na verdade, Cabral dialoga em diversos momentos de sua
criação?29
Cabral elimina qualquer ideia de “inspiração”, de “iluminação” ou de
“êxtase” vinculada ao momento criativo. Destitui a emoção do fazer estético,
erigindo, junto com o poema, a própria consciência ascética e severa. Enfatiza, na
construção poética, a precisão metódica do cientista. No entanto, esse trabalho não
existiria, não produziria força e beleza estéticas, se não tivesse sido moldado pelo
enredamento entre as forças da sensibilidade e as da precisão. Revela-se, assim,
uma outra forma de sensibilidade, pouco afeita à languidez amorosa e ao
narcisismo romântico. Por meio do relacionamento objetivo com o mundo
exterior, o poeta demonstra extrema sensibilidade, retirando beleza dos
minúsculos e secos minerais ou da ressequida vida sertaneja. O recorte efetivado
no plano real revela-o de modo particular na configuração estética. O
empreendimento temático, visando a afastar a subjetividade lírica, conduz-se pela
imaginação criadora. Esta não se manifesta sem a diluição das fronteiras fixas da
realidade, até mesmo para torná-las mais visíveis. Como todo grande poeta,
Cabral é um fingidor; a imagem que ele constrói de si é a de um “homem sem
alma”, cuja razão é apenas a do frio matemático.
A firmeza, a constância, a precisão e a frieza demonstram, no conjunto da
produção cabralina, uma postura distante do sentimentalismo, da verborragia, da
languidez. A partir de uma escritura cristalina, áspera e afiada, por meio da
concretude de seu objeto, Cabral enfrenta os elementos vagos e incertos que
habitam o mundo.30 O seu raciocínio agudo revela, ao mesmo tempo, a mente
atenta à composição dos versos e ao caminho dos párias pelo território sertanejo.
29
No poema dedicado ao poeta pernambucano, “Retrato à sua maneira”, publicado em Antologia
poética, em 1954, Vinicius realiza um questionamento amigável da dureza fria de Cabral. Vinicius
considera-a uma dureza valiosa, como a do diamante. Cf. MORAES. Poesia completa e prosa, p.
421. Em “Resposta a Vinicius de Moraes”, do livro Museu de tudo, de 1988, Cabral dá seu retorno
ao poeta carioca, revelando seu lado fluido, ilógico e imaterial. Seria justamente pelo fato de não
conseguir viver e criar na presença do vago e do indefinido que “quer de toda forma evitá-lo”. Cf.
MELO NETO. Obra completa, p. 390.
30
CASTELLO. João Cabral de Melo Neto: o homem sem alma & diário de tudo, p. 25.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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Como sabemos, a poética cabralina coloca-se de modo contrário à
transmissão de sentimento do poeta ao leitor, por intermédio do poema. No
entanto, o poeta não pretende controlar a emoção desenvolvida pelo leitor no
instante em que este entra em contato com o objeto artístico. A experiência
estética, o sentimento do belo devem surgir da materialidade, da disposição das
palavras e dos versos no texto, elidindo a perspectiva segundo a qual o artefato
poético constitui-se em instância de mediação lírica.
Cabral declara ser o arquiteto e pintor cubista Lincoln Pizzie a sua grande
influência. As leituras dos livros de Pizzie foram fundamentais para sua formação
intelectual. O trânsito entre as artes encontra no diplomata um incansável
articulador de discursos: “o livro decisivo para minha carreira de escritor foi
escrito por um arquiteto”.31 Em Cabral, a poesia desliza de seu terreno habitual,
delimitado pela linha melódico-temporal, e envereda-se por outras paragens,
pouco convencionais em relação ao intertexto com as formas artísticas. O poeta
caminha com um esteta matemático, deslumbra-se com o cálculo preciso e com o
equilíbrio da arquitetura moderna, encanta-se com a pintura cubista. A
musicalidade convencional, provocadora de sentimentos fortuitos e evanescentes,
possui pouco espaço em seus textos, conforme comentamos. A sonoridade de sua
poesia não é aquela a que nossos ouvidos estão acostumados, esperando o
próximo acorde acontecer. A poética cabralina, marcada pela quebra do
ordenamento rítmico-melódico e pela desconstrução dos lugares habituais da arte
e do pensamento, revela-se uma poética da ruptura, contra o sono, contra o
acomodamento.
Já ao final da vida, Cabral fica cego devido a um erro médico durante uma
cirurgia na qual recebe luz em excesso nos olhos. O fato de não poder mais ler,
ver pinturas e imagens arquitetônicas de traços estranhos, construídas com rigor e
com invenção, foi certamente a causa da angústia maior de seus últimos dias. O
poeta morre em 12 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro.
O excesso de luz produz a cegueira. Durante a vida, as luzes vinham pouco
a pouco, medidas, controladas. Surgiam das lâminas das facas, das manhãs de
praia, dos vidros de Brasília. O brilho do sol brotava na cruz do cemitério, na
31
MELO NETO. Entrevista: considerações do poeta em vigília, p. 28.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
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ossada do agreste, na espada do toureiro, da pele suada do griot32 africano –
imagens que atiçavam o pensamento e a criação e abriam margens para outras
visões, reais e imaginárias. A luz do equipamento cirúrgico, entretanto, parece
trazer todas as cores do mundo de uma só vez, no peso imponderável da
escuridão. Destrói a possibilidade de leitura combinada das paisagens que o poeta
habitou ou que sonhou existir. Cabral buscou, a vida inteira, a clareza, a técnica
apurada, escondendo continuamente o mundo nublado, indeciso, irrefletido, mas
perdeu o controle do mundo exterior pelo excesso de luz ácida. Na mesa de
trabalho demonstrava saúde – mesmo com as dores de cabeça – para enfrentar as
luzes dos ambientes com os quais trabalhava, transformando-os em arte. Na mesa
de cirurgia estava impossibilitado, fraco para domesticar o brilho forte construído
pela ciência e que lhe roubou as formas da vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DERRIDA, Jacques. Politiques de l’amitié. Paris: E. Galilée, 1994.
32
Na tradição oral de vários povos africanos, os griots são um misto de poeta, contador de história
e criado.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
182
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Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
183
184
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 167‐184, jul./dez. 2010.
RETRATOS EM MOVIMENTO NA OBRA contínua de Herberto Helder
Sabrina Sedlmayer1
“A biografia é uma hipótese cuja contradição não esgoto.”
Herberto Helder
Gallimard, editor da obra de Proust, relatou um dia que os hábitos de revisão
do memorialista francês perante os originais levavam os tipógrafos à loucura. As
margens das folhas eram sempre devolvidas preenchidas por um novo material, e
os erros e lapsos gráficos passavam despercebidos uma vez que o que era
imperativo para o autor eram as lembranças, e estas, como agudamente
demonstrou Walter Benjamin num ensaio seminal, de 1929, eram regidas pela lei
do esquecimento. Idealizava a sua obra em um único volume, sem parágrafos,
com colunas duplas, posto que “a unidade do texto está apenas no actus purus da
própria recordação, e não na pessoa do autor, e muito menos na ação” (Benjamin,
1994, p. 37).
O que Proust escrevia no momento da revisão não estava, assim, vinculado
ao que criara anteriormente quando enviara os manuscritos, nem muito menos à
esfera do vivido e do biografável. Tratava-se de construir um tecido movido por
um método rigoroso em que não se buscava reencontrar o passado, mas, sim, abrir
a experiência da escrita às lembranças involuntárias.
No que tange às experiências sempre moventes de escrita, Proust e o escritor
português Herberto Helder se encontram em preciosos pontos: no desvio da
linearidade narrativa ou cronológica; nos gestos de deambulação e deriva nos
textos já escritos; nos acréscimos, sejam através de correções, emendas,
1
Sabrina Sedlmayer é professora da UFMG.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 185‐192, jul./dez. 2010.
supressões ou rasuras; na severa exigência de solidão e, particularmente, na
fidelidade à noção do texto como algo vivo e mutável. Mas, se ambos os autores
trabalham a memória como se fossem colmeias articuladas, Helder leva ao
extremo a noção de continuidade e circularidade da escrita biográfica e talvez seja
um dos casos mais exemplares na literatura de língua portuguesa de recusa diante
da noção moderna de autoria como instância individual e da obra como extensão
da figura tutelar do autor.
Proponho, assim, neste texto, uma reflexão sobre a relação vigilante entre
vida e obra empreendida por esse poeta português que trabalha com gestos
reiterados de alteração da memória editorial e de suas leis de comércio e consumo,
e coloca, de forma oblíqua, pertinentes e incômodas questões para a crítica
biográfica. Lido por muitos críticos como autor de uma poesia “obscura”,
“incompreensível”, “indecifrável”, tomamos aqui, como espécie de uma ética de
leitura, a lúcida advertência dada pela ensaísta Silvina Rodrigues Lopes (2009, p.
171):
Sendo a poesia incompreensível, as duas piores coisas que se podem fazer com ela são:
lamentar a sua incompreensibilidade ou enaltecê-la como valor em si. No primeiro caso,
pretende-se reduzir a poesia à lógica gramatical, no segundo, sacralizá-la em função de
uma verdade reservadas aos iniciados. Isto não vale apenas para a poesia de Herberto
Helder, que não se pode caracterizar por ser mais ou menos compreensível, por trazer
mais ou menos problemas à leitura. A compreensibilidade, legibilidade ou ilegibilidade
são construções da leitura, como construções dela são os problemas que apresenta, cuja
apresentação é da responsabilidade dela, que não pode ser iludida pela sua pretensão a
ser comentário.
No artigo intitulado “Investigações poéticas sobre o terror”, Lopes insiste
em como a noção de experimentação encontra-se atrelada à poesia de Helder e
como o imperativo de se tornar poeta, “tornar-se desconhecido, de si-mesmo e dos
outros”, “perturbar a estabilidade dos nomes”, tornar-se resistente ao “ser isto” são
linhas de fuga que levam à criação de um estilo em que não existe poeta fora do
poema, não há voz que se deseja pessoalizar-se. Há uma insistência, poderíamos
acrescentar ao pensamento de Lopes, em não se estancar nem cristalizar uma
identidade biográfica una. Exemplo contundente é a imensa quantidade de
súmulas que esse autor opera em sua produção bibliográfica como forma de
interferência no que possa ser considerado como dado e acabado. Cria limiares
tênues marcados pelo uso reiterado da ironia. A esse propósito, em Photomaton &
vox, há um fragmento em que o poeta responde ao epíteto de “difícil” que
esclarece alguns dos pontos aqui abordados:
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 185‐192, jul./dez. 2010.
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Desejei então ser eu mesmo o mais obscuro dos enigmas vivos, e aplicar as mãos na
matéria primária da terra. Gostaria de ser um entrelaçador de tabaco. Não sou vítima de
nada; não sou vítima da ilusão do conhecimento. Escrever é literalmente um jogo de
espelhos, e no meio desse jogo representa-se a cena multiplicada de uma carnificina
metafisicamente irrisória. (Helder, 1995, p. 12)
O jogo de espelhos relacionado ao ato de escrita é amplificado por inúmeros
gestos de intervenção. Para melhor situar a abrangência dos gestos que
efetivamente demonstram a “dissipação da vida e afirmação da experiência
poética”, segundo feliz expressão de António Guerreiro (1994), vale recuperar,
mesmo que de forma exaustiva (e repetitiva para alguns leitores), certos
movimentos desse processo que mescla crítica, antologização e criação. As
inumeráveis súmulas talvez representem mais fortemente a perturbação e
instabilidade referidas anteriormente. Poesia toda (1973), volume que oferece a
maior amostra de sua produção, vem recebendo cortes, e poemas inteiros não são
reeditados ou simplesmente amputados das edições subsequentes. Após 14 anos
sem lançar nenhum inédito, Helder publicou, em 2008, A faca não corta o fogo,
súmula & inédita, numa reduzida tiragem de três mil exemplares, que se
esgotaram do mercado em menos de uma semana.
No livro Cobra, de 1977, cada exemplar possui correções únicas,
manuscritas, que fazem com que todas as versões sejam diferentes entre si e cada
livro seja um único livro. Entre a segunda e terceira edição dos contos (ou poemas
em prosa, como preferem outros ensaístas) intitulados Os passos em volta, Helder
lança Retratos em movimento (1967) e Apresentação do rosto (1968), que são
lidos, na altura, como “autobiografia” e “autobiografia romanceada”.
Posteriormente, no entanto, o autor retira ambos os livros de circulação, não os
reedita, e mescla trechos de um no outro, descarta dezenas de fragmentos, agrega
prefácios de livros anteriores e intitula essa nova obra de Photomaton & vox
(1979), que se encontra até a data presente à venda. Em Do mundo (1994) também
há trechos inteiros dessas duas obras “autobiográficas” que há anos deixaram de
existir.
Contrário à noção de tradução como transposição de sentido e som de um
idioma para outro, Helder afirma desconhecer línguas estrangeiras e muda poemas
para o português das línguas asteca, quíchua, francesa, inglesa, egípcia, árabe,
hebraica e outras, como se pode observar nas edições Doze nós na corda (1997)
ou em Poemas ameríndios (1997). A propósito desse seu singular método,
esclarece:
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 185‐192, jul./dez. 2010.
187
Quanto a mim, não sei línguas. Trata-se da minha vantagem. Permite-me verter poesia
do Antigo Egipto desconhecendo o idioma, para o português. Pego no Cântico dos
cânticos, em inglês e francês, e, ousando, ouso não só um poema português como
também, e sobretudo, um poema meu. Versão indirecta, diz alguém. Diletantismo
ocioso, diz alguém. Não digo nada, eu. Se dissesse, diria: prazer. O meu prazer é assim:
deambulatório, ao acaso, por súbito amor, projectivo. Não tenho o direito de garantir
que esses textos são traduções. Diria: são explosões velozmente laboriosas. O meu labor
consiste em fazer com que eu próprio ajuste cada vez mais ao meu gosto pessoal o clima
geral do poema já português: a temperatura da imagem, a velocidade do ritmo, a
saturação atmosférica do vocábulo, a pressão do adjectivo sobre o substantivo. (Helder,
1995, p. 72)
Se a regra de ouro para Helder é a liberdade, em 1985, lançou uma singular
antologia, Edoi Lelia Doura: antologia das vozes comunicantes da poesia
moderna portuguesa, em que ressalta a ausência de critérios críticos como seleção
e parcialidade: “Fica indiscutível que é uma antologia de teor e amor, unívoca na
multiplicidade vocal e ferozmente parcialíssima” (Helder, 1985, p. 8). Sem
conceder entrevista desde 1968, ele também não aceitou, em 1984, o Prêmio
Pessoa, o que demonstra a severa vigilância diante da exposição pessoal e o
cuidado rigoroso em relação à solidão.
Segundo o autor, foi 1968 o ano da descoberta do silêncio “e também um
ano que me custou quase a respiração” (Helder, 1995, p. 43). Isolamento, sigilo e
solidão, características do laboratório do escritor que seguem a tradição
shakespeariana, conforme Ricardo Piglia, são somados à recusa diante da fala em
espaços canonizados como celebração da cultura livresca – lançamentos, feiras,
premiações, entrevistas, palestras, aulas magnas. Sem apresentação do rosto,
Helder reenvia o leitor à face poética. Desloca-o das conhecidas e seguras
estratégias de leitura ao demonstrar de que modo a experiência é um tipo de
invenção. E questiona os limites do gênero autobiográfico, como veremos a
seguir. E alerta: “O autobiógrafo é a vítima do seu crime. Mas a única graça
concedida ao criminoso é o seu próprio crime” (Helder, 1995, p. 33).
ANTIautobiografias
Na literatura contemporânea encontramos uma imensa quantidade de textos
que se assumem como autobiografias ficcionais e antiautobiografias, como
também metaficções e outras modalidades híbridas que se posicionam contra o
tradicional gênero autobiográfico. O conhecido pacto de Philippe Lejeune –
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 185‐192, jul./dez. 2010.
188
narração em prosa, vida individual, semelhança entre identidade do autor e do
narrador e visão retrospectiva –, os requisitos que supostamente asseguravam a
definição do gênero e de um “contrato de leitura” foram e estão sendo explorados
por autores que criam novas tipologias de escrita justamente como formas
fronteiriças com a da autobiografia moderna. São autores que trabalham com os
paradoxos que a visão pragmática evita, muitas vezes, abordar, tais como: o que é
identidade? O que é contrato de leitura? O que é verdade? O que é ficção? O que é
referencialidade? O que é subjetividade?
Como é impossível delinear, neste momento, a abrangência de questões que
esse tema suscita, circunscrevemo-nos no caso específico de Photomaton & vox,
de Helder. Antes, porém, deve-se salientar que a vitalidade da prosa literária
portuguesa, evidenciada na obstinada produção de autores como Irene Lisboa,
Ruben A., Agustina Bessa-Luís, Maria Gabriela Llansol e António Lobo Antunes,
entre outros, não parece ter sido enredada pelo convite da vanguarda no que se
refere ao fenômeno heteronímico, nem contaminado pela recepção de inúmeras
leituras essencialistas e substancialistas que dominaram parcela considerável dos
estudos pessoanos no século XX. Percebe-se, na escrita dos autores mencionados,
um vínculo estreito, um diálogo fecundo com a obra pessoana e com o gênero
memorialístico no que tange à noção de fragmento, de insignificância e
interrogação à Modernidade.
Constata-se, ao examinar essas vozes autorais, uma heterogeneidade de
formas e de modelos narrativos, além de uma pluralidade estilística que merece
ser estudada, problematizada e analisada. De Bailado, de Teixeira de Pascoaes,
autor contemporâneo de Fernando Pessoa, que não só escreveu um livro de
memórias como também fragmentos em que o reflexivo se conjuga com a
memória, até a “falsa autobiografia” de Al Berto – projeto inacabado que será
publicado proximamente –, uma série de questões que envolvem a primeira
pessoa, o corpo e a voz de quem enuncia deve ser investigada. Não basta vincular
os autores a concepções teóricas, grupos e correntes ou afirmar genericamente que
a geração de 90 no romance português do século XX é antissubjetivista, realista e
descritivista.2 Gesto desnecessário opor desconstrutivismo de linguagem,
experimentalismo de novos processos narrativos passados com recusa de
2
Ver a propósito o livro de Miguel Real Geração de 90: romance e sociedade no Portugal
contemporâneo, como também o ensaio de João Barrento em Umbrais.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 185‐192, jul./dez. 2010.
189
investimento estético no presente. Ou, em outra direção, tomar o hedonismo, o
consumo e a eudemonia como os principais elementos constitutivos dos enredos
contemporâneos.
Diferentemente das posições mencionadas, seria interessante realizar uma
cartografia de obras em que se perceba a configuração de certo atrito na prosa
portuguesa pós-Pessoa – como bem define a ensaísta Silvina Rodrigues Lopes,3
escritos em que se demonstre certa resistência à categorização do sujeito como
sinônimo de individualidade, perspectivas artísticas que apontem para a
configuração de uma subjetividade não mais totalizadora, mas ainda aliada à
possibilidade de se criar um relato de uma experiência pessoal calcado na
interrogação da fidedignidade da memória, da restituição do passado e na
desconfiança da autoridade de quem narra.
A importância da subjetivação no romance, maduramente explicitada por
Bakhtin, demonstrou que o eu é muito mais que um objeto temático. É sabido que
o que chamamos hoje de “autobiografia”, por exemplo, não se deu sempre dessa
forma. No Iluminismo, o limite entre ficção e não ficção já se torna fronteiriço:
quem é Jean-Jacques e quem é Rousseau?
Encontramos, atualmente, uma considerável quantidade de diários, cadernos
de apontamentos, confissões, memórias, souvenirs e ensaios com afinidades
temáticas e estilísticas com o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa. Essa
obra, uma autobiografia sem fatos, atribuída a Bernardo Soares, ajudante de
guarda-livros da cidade de Lisboa, pode ser tomada como ponto de partida e ao
mesmo tempo referência para a delimitação de uma linhagem literária que insiste
em apresentar certa “potência do não” como cerne da experiência literária.
Escritos que veementemente colocam em questão a dificuldade de se realizar a
3
Em Literatura, defesa do atrito, há um instigante ensaio sobre a necessidade de se ter uma
consciência da importância da crítica da cultura como compreensão distanciada, como adverte
Bourdieu. A autora alerta que o termo “cultura” tem sido, muitas vezes equivocadamente, utilizado
como sinônimo de “produção literária”. Em uma ampla análise, pondera sobre o uso insistente dos
pastiches na contemporaneidade, sobre a proliferação de escritos íntimos e de memórias que
cultuam a personalidade envoltos nos mais estéreis jogos narcísicos. Nessa homogeneização,
entretanto, esquecem que “enquanto experiência, que nada tem de pessoal nem impessoal, a
literatura ignora os limites estreitos da unicidade do sujeito e dá a experiência a natureza de uma
multiplicidade incontrolável, em devir” (LOPES, 2003, p. 31).
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obra e de se criar uma imagem identitária, que estabelecem uma estreita relação
entre negatividade, linguagem e construção subjetiva.
Seria interessante, assim, investigar mais detalhadamente o que vem a ser a
noção aristotélica de que toda possibilidade é também potência do não. Toda
potência de ser ou de fazer qualquer coisa é, para Aristóteles lido por Giorgio
Agamben, também potência de não ser ou de não fazer, porque senão a potência
sempre se transformaria em ato e sempre se confundiria com ele. O pensador
italiano negrita, então, como a “potência do não” é o segredo cardeal da doutrina
aristotélica.4 Daí se entende todo o volteio do pensamento: é nessa constelação
filosófica (que inclui também os leitores árabes de Aristóteles, Abulafia,
Avicenna, Ibn-Arabi) que se encontra a literatura de Melville, que se encontra
Bartleby, o copista, e, segundo a hipótese que gostaria de levantar, é que se
encontraria o ajudante de guarda-livros da cidade de Lisboa, Bernardo Soares.
Sabemos que Helder estabelece com Pessoa um diálogo estreito. Na
antologia Eloi Lelia Doura, de sua autoria, Pessoa é uma das “vozes
comunicantes”. O caráter de inacabamento das obras, de interrupção e cesura, a
disposição ensaística, a recusa na exibição de uma voz em primeira pessoa como
um retrato definido de um personagem, a heterogeneidade genológica, todos esses
elementos presentes tanto em Pessoa quanto em Helder, em diferentes graus e
tonalidades, servem para demonstrar como ambos se interessam pela
experimentação diante da escrita do eu.
Como pontua Diana Pimentel (2007, p. 122), é fulcral na leitura da obra
helderiana “alargar o conceito de ‘biografia’ ao de ‘vida’”. Há marcas biográficas,
no entanto a primeira pessoa não se propõe a testemunhar referencialmente nada.
Para concluir, necessário marcar como opera-se um desvio de temporalidade nessa
escrita contínua e nos retratos fugazes que, cinematograficamente, se colocam em
movimento numa “incontrolável gramática sonhadora”, como diz Helder (1995, p.
23), no fragmento intitulado “(apostila insular)”:
4
O crítico italiano admite a dificuldade que é pensar a potência, e completa: “uma experiência da
potência enquanto tal só é possível se a potência for sempre também potência do não (fazer ou
pensar alguma coisa)”. E mais para frente acrescenta: “Se Bartleby renuncia ao condicional, é só
porque lhe interessa eliminar todo o vestígio do verbo querer, mesmo até no seu uso modal”
(Agamben, 2008, p. 19-25).
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O passado, a memória, a experiência constituem esse fundo de irrealidade que,
semelhante a um feixe luminoso, aclara este momento de agora, revela como ele é cheio
de surpresa, como já se destina à memória e é já essa incontrolável gramática
sonhadora.
Porque:
Le volonté pourrait délirer, mais l’incontrôlable rétablit toujours le cours de l’irrealité
poétique (Ribemont-Desaignes).
È como este sistema de imagens fundamentais, onde se vão enxertando novas
constelações de outros lucros de experiência, que se enfrentam as hipóteses do mundo.
O imaginário, sempre aberto e crescente, apodera-se de todas essas hipóteses reais e
converte-as na muito astuta e operante realidade do imaginário. O mundo acaba por ser
uma matéria residual inactiva, aquilo que não pôde ser integrado na coerência
energética do espírito. É quando o mundo já não consegue propor hipóteses que
inquietem, movam, comovam.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Bartleby: escrita da potência. “Bartleby, ou Da
Contingência” seguido de Bartleby, O Escrivão de Herman Melville. Edição de
Giorgio Agamben e Pedro A.H. Paixão. Lisboa: Assírio&Alvim, 2007 a.
BENJAMIN, Walter. “A imagem de Proust”. Obras escolhidas. Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.Tradução de Sérgio
Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 7 ed. São Paulo: Brasiliense:
1994.
HELDER, Herberto. Photomaton & vox. 3 ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1995.
LOPES, Silvina Rodrigues. Literatura, defesa do atrito. Lisboa: Vendaval, 2003.
LOPES, Silvina Rodrigues. “Investigações poéticas do terror”. Diacrítica- Revista
do Centro de Estudos Humanos. Série Ciências da Literatura. Número 23/3.
Universidade do Minho, 2009. http:// ceh.ilch.uminho.pt. Acesso em 27 de
setembro de 2010.
PIMENTEL, Diana. Ver a voz, ler o rosto. Uma polaróide de Herberto Helder.
Autores da Madeira. Ensaios. 2007. Campo das Letras –Editores, S.A., 2007.
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ESPAÇOS DAS SUBJETIVIDADES CONTEMPORÂNEAS: o novo
território das biografias – Resenha do livro O espaço biográfico, de
Leonor Arfuch
Marta Francisco de Oliveira1
A memória é costureira, e costureira caprichosa. A memória faz a sua agulha
correr para dentro e para fora, para cima e para baixo, para cá e para lá. Não
sabemos o que vem em seguida, o que virá depois. Assim, o ato mais vulgar
do mundo, como o de sentar-se a uma mesa e aproximar o tinteiro, pode
agitar mil fragmentos díspares, ora iluminados, ora em sombra, pendentes,
oscilantes, e revirando-se como a roupa branca de uma família de quatorze
pessoas, numa corda ao vento.
WOOLF. Orlando, p. 44.
Para os atuais estudos de Literatura, os Estudos Culturais tornaram-se uma
referência para análises que encaram o texto como sendo, também, um produto
cultural. A crítica biográfica, inserida que está nos Estudos Culturais, privilegia o
não-ficcional da mesma forma que o ficcional, unindo-os para se obter uma visão
mais completa da obra literária, visto que pode criar pontes entre obra e fatos,
incluídos fatos culturais. Seus desdobramentos são múltiplos, visto que o interesse
por seu objeto de estudo, os relatos de vida, individuais e sociais, tornou-se mais
intenso, ultrapassando os limites do mero interesse pelo privado, para chegar até a
mídia e à ampla exposição da intimidade como temos visto na atualidade. Tema
vigoroso nos estudos mais recentes que abarcam várias áreas do conhecimento, a
subjetividade expressa através das biografias – relatos de vida, baseados na
memória, memória caprichosa, conforme a epígrafe - que se tornou foco das
1
Marta Francisco de Oliveira é professora da UFMS/CPCX.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 193‐202, jul./dez. 2010.
pesquisas da professora Leonor Arfuch, compartilhadas com o público leitor
através da publicação de O espaço biográfico: dilemas da subjetividade
contemporânea (EdUERJ, 2010, 368 páginas). Embora a primeira edição,
argentina, seja de 2002, a tradução brasileira apenas foi publicada em 2010.
Apesar do atraso, é oportuna a publicação em língua portuguesa para uma leitura
mais atenta, visto a obra ser considerada referência bibliográfica para uma ampla
variedade de estudiosos, nas áreas de Letras e Linguística, Comunicação, Estudos
Culturais, Artes, Ciências Sociais, História e Educação. Além disso, é relevante o
fato de que a obra, nestes oito anos, recebeu ampla divulgação em todo o
continente latino-americano.
Podemos considerar, portanto, que esta continuará sendo uma obra de
referência para pesquisadores no campo dos estudos que abarcam a cultura, e mais
especificamente a biografia, relacionados à literatura e às linguagens. No campo
literário, os postulados da crítica biográfica consideram que muito da ficção está
pautada no social, em elementos de vivência, o que permite dizer que as
personagens ficcionais são na realidade desdobramentos da própria persona social
e culturalmente modelada que se torna escritora.
De acordo com o que postula Eneida Maria de Souza, a crítica biográfica
permite que se expandam as formas de interpretação da literatura, visto que ao
analisar a complexa relação entre obra e autor, e ao deixar de concentrar-se apenas
na produção ficcional para também englobar a produção documental, a crítica
biográfica constrói “pontes metafóricas entre o fato e a ficção”, o que resulta no
deslocamento do “lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande
o feixe das relações culturais”.2 A crítica biográfica recompõe o cenário literário e
cultural do escritor, principalmente através dos “biografemas”, ou fragmentos de
biografia, no conceito de Roland Barthes. Fatos de experiência tornam-se uma
representação do vivido ao se integrarem ao texto ficcional, deixando de serem
considerados como um registro fidedigno de um relato de vida. Dessa forma de
representação do vivido resultaram, segundo Souza, os grandes temas existenciais
da literatura, como suicídio, morte, amor, entre outros; temas estes que “guardam
2
SOUZA. Crítica cult, p. 111.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 193‐202, jul./dez. 2010.
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sua natureza ficcional e se espraiam na página aberta do espaço textual e nos
interstícios criados pelo jogo ambivalente da arte e do referente biográfico”.3
Por se considerar a vida como texto e cenário representativo no qual as
personagens aparecem como figurantes, “o exercício da crítica biográfica irá
certamente responder pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a crítica
cultural e a literatura comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força
teórica inserida em toda ficção”.4 Seguindo esta linha, convém observar que o
escritor pode muitas vezes adotar um certo bovarismo, (conforme aprendemos
com Gustave Flaubert, para projetar-se no outro, mesclando a sinceridade e a
artificialidade da criação) e, através da literatura, unir experiências pessoais a
experiências criadas ficcionalmente na construção de uma rede imaginária em seu
texto. O trabalho da crítica, ou mais precisamente do crítico biográfico, é o de
apropriação não só da vida como também da ficção, utilizando-se das margens do
texto ficcional, que são também um texto, buscando as relações estabelecidas
entre eles e recontextualizando a obra, de modo que esta seja tomada como aberta,
móvel, uma citação que pode retornar sempre a si mesma, para reler-se, rever-se.
Vai além do texto e além da vida, entrelaçando-os para interpretar o texto
biográfico.
A obra O espaço biográfico – Dilemas da subjetividade contemporânea,
portanto, preocupa-se com os elementos que compõem a vida e a própria
experiência tomados como tematização para a cultura contemporânea da
subjetividade, cultura esta que extrapola as formas mais antigas de relatos ‘do que
aconteceu’, para abarcar o horizonte midiático e interativo da atualidade. Como
um convite à leitura, nossa proposta é fazer uma pequena síntese de alguns
elementos abarcados nesta extensa obra que reflete o trabalho minucioso de
investigação da autora.
Já na apresentação do livro, a autora fala dos infinitos matizes da narrativa
vivencial, que captam a atenção das ciências sociais, cada vez mais voltados para
o sujeito como ator social, e também a atenção do mercado, ávido por novidades
lucrativas, atento ao interesse de um crescente público pela intimidade e
subjetividade do outro. Como resultado, o antes tido como particular pode
3
SOUZA. Crítica cult, p. 119.
4
SOUZA. Crítica cult, p. 119-120.
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converter-se em um “relato de todos”, em um espaço amplo, heterogêneo e
híbrido, com seus inúmeros desdobramentos. O espaço biográfico, visto como
ponto de partida para uma possível compreensão de todo o vasto território do bios
(vida) e seus relatos, expandidos às novas tecnologias, envereda-se por entre
gêneros literários diversos e múltiplos, colocando em cena o “eu” e o “outro”.
Para traçar os caminhos do tema, Leonor Arfuch procura situar a
conformação do espaço da interioridade, do privado, numa dimensão histórica,
recuando no tempo em busca de práticas de escrita de si e do outro, e sua relação
com as questões sociais relevantes para o chamado processo de civilização,
conforme o compreendemos atualmente, em O espaço biográfico: mapa do
território. Uma vez iniciado, o exercício da escrita do privado ampliou seu espaço
de atuação e desdobrou-se em uma grande variedade de relatos e registros que vão
desde as formas clássicas às mais modernas formas de exposição e visibilidade da
esfera do íntimo, para compor a moderna narrativa vivencial. As considerações
sobre os trabalhos de Barthes, Lejeune e Gadamer são essenciais para a
compreensão da ideia de totalidade da vida em tais relatos; embora
autobiográficos, dão-nos conta do além de si de cada vida particular. Essa
característica, portanto, pode ajudar a elucidar o interesse que o tema da biografia,
da violação do privado, tem despertado ao longo dos anos, renovando-se na
contemporaneidade.
Biografia, autobiografia e outras formas de expor a memória ou a vivência
conformam-se como uma construção imaginária de si mesmo como outro, na
expressão de Ricoeur. Biógrafo, biografado, leitores, todos se aproximam mais
pela narração da vida em si do que pela ordenação de fatos sobre a vida de outro;
pautada em Bakhtin, essa ideia remete ao valor biográfico de compreensão, visão
e expressão da própria vida, para outorgar sentido à experiência, à vivência
fragmentária e caótica da identidade. Aparentemente, o espaço biográfico é
infinitamente amplo; é, portanto, o lugar onde congregam diversas memórias
individuais e coletivas, relatadas de formas tão diversas que extrapolam todos os
limites do que pode abarcar a literatura, bem como outros campos do saber. São
narrativas de vida em circulação nos mais variados gêneros, nas quais se
percebem tanto a intertextualidade como a interdiscursividade, em praticamente
todas as formas de registro, que ajudam a caracterizar o (amplo) cenário cultural
do qual são oriundas.
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Hoje, este espaço rompeu os limites da escrita e da narrativa tradicionais;
até mesmo um simples objeto ou outras marcas da vida do autor ou do biografado
agregam em si tais relatos, que vão além de sua materialidade. Indo mais além,
engloba toda a heterogeneidade dos gêneros discursivos e todas as formas de uso
da linguagem, visto que, segundo Lacan, o sujeito tanto advém quanto se constitui
nela; ao usá-la para narrar a ou sua subjetividade, em sua construção narrativa,
importam as estratégias ficcionais de autorrepresentação empregadas. O interesse
por relatos de vida de si ou do outro constitui um desejo que se relaciona à noção
de sujeito e identidade; um sujeito não essencial, aberto a múltiplas identificações,
constrói a narrativa de sua identidade sobre a caótica flutuação da memória e
sobre o arquivamento da mesma, ao mesmo tempo produzindo e registrando a
vivência.
O segundo capítulo, Entre o público e o privado: contornos da interioridade,
a autora se baseia nos estudos de Hannah. Arendt, Jürgen Habermas e Norbert
Elias para fazer um exame crítico da esfera do público e do privado, com suas
origens no social e no político, traçando a articulação que se estabelece entre o
‘eu’ e o ‘nós’, o interesse pela subjetividade que se expande a todas as esferas do
social, tornando-se múltipla. Estabelecem-se modelos de conduta e valores
coletivos que conformam a identidade de um indivíduo social, marcado pela
interação dialógica e interdependente entre si, como indivíduo, e a sociedade com
suas redes de interação e urdiduras marcadas por sua historicidade que preexistem
ao sujeito ao mesmo tempo em que se tornam produto de sua relação com outros,
tais como a língua, a linguagem.
No horizonte contemporâneo, o espaço público e o espaço privado rendemse ao mercado, às novas tecnologias, às transformações políticas e ao novo
desenho geográfico mundial, sendo por eles modificados. Como resultado, ocorre
a invasão do público no privado e do privado no público, em mútuas
interferências e influências. É bastante relevante o ponto de vista da autora sobre
como a visibilidade dos meios de comunicação que expõem o público e o privado
serve para pensar seu alcance e seus efeitos, no sentido da diferença, da falta, do
desejo (individual ou social?) e na resultante ampliação do espaço biográfico. As
narrativas do eu concorrem para a constituição de um nós, para a afirmação da
subjetividade na intersubjetividade. As narrativas biográficas geram o
reconhecimento de uma pluralidade de vozes (para além do individual de cada
uma delas, para além da tradição e das novas memórias) que dão conta dos vários
espaços públicos e privados coexistentes. A exposição da vida do outro, de sua
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 193‐202, jul./dez. 2010.
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conduta e comportamento, deu espaço para a criação de um novo gênero/fora do
gênero, nem testemunho nem ficção e ambos ao mesmo tempo. E, do ponto de
vista político-filosófico, é válido refletir sobre as considerações, talvez infinitas, a
partir da ideia de constituição de narrativas plurais que ao passo que falam de um
eu, da criação de si, ao mesmo tempo falam de solidariedade e informam sobre
outros, sobre a comunidade.
Para pensar sobre as narrativas como forma de estruturação da vida e da
identidade, e não como simples forma de contar histórias ou experiências de vida,
o terceiro capítulo, A vida como narração, é iniciado com a citação de Paul
Ricouer: “as vidas humanas precisam e merecem ser contadas”. Vida e linguagem,
narração e experiência se influenciam mutuamente, mas a inquietação da
temporalidade é uma constante: tempo físico, tempo psíquico, tempo do relato,
tempo linguístico. Para o espaço autobiográfico, a presença de vozes na instância
atual do relato e nas instâncias de tempos passados (tempo da memória) busca a
identidade narrativa, relacionada à história e à experiência no espaço biográfico, e
o relato da experiência se torna possível através da temporalidade mediada pela
trama. Não se pode, porém, ignorar o jogo duplo que se instaura nas narrativas ao
se colocar, lado a lado, fatos de vida e fatos históricos , ou a memória e a ficção.
Parece essencial, para mapear o espaço biográfico, identificar, reconhecer,
perceber a voz narrativa, que se inscreve através das vozes do relato. Como
narração de uma experiência, há um ‘eu’ presente, mas também há um ‘você’,
remetendo à instância da leitura, da recepção. A nosso ver, entender a vida como
narração talvez exija estabelecer algumas distinções entre formas genéricas do
espaço biográfico. Pensar sobre a autobiografia faz refletir sobre como esta
propõe um espaço figurativo para um ‘eu’ sempre ambíguo, incerto porque
pautado na oscilação entre memória e mímesis, num exercício de autoficção.
Quanto à biografia, este é um gênero que apesar da atenção que desperta, também
se move sobre o território incerto entre testemunho, romance e relato histórico.
Quanto à forma de narrativa, parece impossível fazer a distinção entre um ‘eu’ e o
‘outro’, sujeito e coletividade, sem que ambos exerçam certa medida de influência
entre si. Justapostos às formas clássicas de exposição do biográfico, tais como
diários íntimos e correspondências de vários tipos e formatos, de caráter mais
reservado e de maior profundidade no que se refere ao mergulho na intimidade do
‘eu’, surgem, nos últimos tempos, os meios que permitem que essa troca de
correspondências sem regras rígidas, abertas ao improviso, seja tornada pública
através da internet. Campo de estudo recente, sem dúvida gera bastante interesse
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 193‐202, jul./dez. 2010.
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entre estudiosos que se preocupam com a expressão contemporânea da
subjetividade e o chão movediço do autêntico e do ficcional nas narrativas da
vida.
Nestas novas perspectivas quanto ao espaço biográfico, a mídia popularizou
novas facetas das práticas autobiográficas e biográficas. O capítulo intitulado
Devires biográficos: a entrevista midiática mostra como a entrevista pode agregar
em si diversas formas de narrativas da vida, aliando as ideias de voz, de presença,
de autenticidade por estar ancorada na palavra dita. Implica, sem dúvida, conceder
a voz ao entrevistado para dar rosto e forma às suas histórias de vida. Fruto das
indústrias e do mercado cultural, a entrevista permite que a vida seja narrada a
várias vozes, no jogo que se estabelece entre entrevistador e entrevistado e no
jogo implícito entre o que se diz e o que se quer dizer, ou até mesmo, que não se
quer dizer, do qual faz parte o destinatário final da interação. Processo com
múltiplos desdobramentos, na entrevista estão incluídas intenções que podem ir
dando pistas das marcas da trama discursiva. Atribuir a palavra diretamente a
alguém cria o efeito de vida real, de presença, nos espaços abertos pelos turnos de
intervenção, nem sempre respeitados nos sistemas conversacionais. A voz que se
instaura e que narra estabelece uma estranha relação com a temporalidade, nem
sempre linear, e com as outras vozes que se mostram na construção do discurso,
no espaço sempre compartilhado das histórias (possíveis) de vida. Os relatos dão
conta do ser comum, da infância, das afetividades, de uma verdade hipotética e
esquiva, que atrai e impregna a cultura contemporânea.
No contexto literário, as narrativas da vida dos escritores seduzem os
leitores tanto quanto as obras. Em Vidas de Escritores, o foco torna-se a relação
entre imaginação e vida a serviço da ficção, ou da própria literatura. Para Leonor
Arfuch, o território biográfico privilegiado que a entrevista conquistou foi o dos
escritores, teóricos, críticos, intelectuais que, atuando com a palavra, podem
inventar vidas e obras. No entanto, o exercício da escrita exige a presença de outra
voz como suplemento. As entrevistas apresentadas neste capítulo mostram a
estreita relação vida/obra que tanto interessa à crítica biográfica, conforme
destacado no início deste trabalho. Porém relativas ao espaço e ao momento da
entrevista, em que um autor se assume como objeto de conhecimento e constrói
uma imagem de si mesmo através de sua própria voz e com base em seu trabalho
de autoria, ao assumir um texto com seu nome. Muitas vezes o diálogo
estabelecido na entrevista tenta ir além do dito para buscar o que está oculto sob o
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 193‐202, jul./dez. 2010.
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material da imaginação, na trama entre vida e literatura e também no movimento
oposto, quando a literatura de certa forma molda a vivência.
A entrevista se tece, portanto, como autobiografia. O escritor, como figura
central ao emitir sua voz, permite a espiadela sobre sua dupla identidade de
autor/leitor, sobre a ‘cena da escrita’, ou o trabalho de composição, e sobre a ‘cena
da leitura’, que revela não só as bases (explícitas ou escamoteadas) de suas
leituras como também do leitor que (nem) sempre projeta durante a criação de seu
texto. No entanto, assim como um leitor mais atento pode perceber os ardis
empregados pelo escritor ao tecer ao seu texto ficcional com base em sua
vivência, também o destinatário da entrevista pode perceber os mistérios da
criação ao ver personificada a voz que fala de suas memórias, de gestos
cotidianos, da gênese de sua escrita, enfim, do relato ou da narração do ‘eu’, e
percebê-los como uma ‘vida artificial’, como a criação de outro texto ficcional
que lhe fala de outros registros do conhecer, de outras buscas, outras formas de
saber.
Os dois últimos capítulos conversam mais diretamente com as ciências
sociais, interessadas que estão nos questionamentos sobre esse vasto território e
sobre o trabalho obstinado da pergunta. Em O espaço biográfico nas ciências
sociais, a entrevista aparece como indagação sobre a voz do outro, num diálogo
que se converte em pesquisa. O ato de perguntar ganha relevância. Como afirma o
crítico e escritor Silviano Santiago, a pergunta traduz o desejo de intelectualizar a
problemática que ela levanta, para perceber de modo conceitual o objeto
questionado. E, na resposta, quem perguntou pretende fazer do objeto analisado
um objeto de conhecimento, um objeto cultural. No espaço biográfico, isso
implica fazer da vida um objeto cultural.
O interesse pelas formas tradicionais de deixar que outra voz se pronuncie
agora divide espaço com os relatos midiáticos, de homens e mulheres comuns ao
lado de celebridades, políticos, escritores, expondo o privado aos olhos do
público, ou expondo a misteriosa relação entre vida e obra em usos de âmbito
científico.
O percurso crítico feito pela autora mostra como o dar voz ao outro implica
a questão quanto ao que fazer com essa voz, num trabalho que visa colocar em
foco o caráter narrativo e construído da experiência. Oralidade e escrita, nos
relatos de vida e no registro da experiência, convertem-se em um trabalho amplo
com a própria linguagem, em toda sua complexidade dialógica e existencial,
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necessários para o exercício da interpretação. São relatos polifônicos e
multiculturais, marcados por um eu ao mesmo tempo em que dão conta do
discurso alheio, no jogo da linguagem e na trama da narrativa. A enunciação,
portanto, também é produzida de acordo com certos interesses e intenções, desejos
e faltas, num discurso que se constrói no devir atual do diálogo; é nesse momento
de montagem através da narração que a vida ganhará forma e sentido, e a
identidade ganhará seus contornos.
Nessa trajetória pelo espaço biográfico através de relatos da experiência, o
último capítulo apresenta uma série de entrevistas biográficas sobre emigração de
argentinos, a maioria com dupla cidadania, à Itália, entre 1991 e 1993. As vozes
que narram suas histórias falam de deslocamento, de identidade em conflito
quando há a dúvida quanto ao lugar de pertencimento. O registro de uma memória
biográfica foi montado através da voz do outro, ou seja, não dos emigrantes, mas
dos familiares, o que resultou numa construção discursiva bastante interessante a
respeito do ausente e, mais além, a respeito da identidade. Nos relatos, assim
como nas entrevistas de escritores, a narrativa se faz aqui e agora, e o destinatário
está inserido e é levado em conta através da presença do entrevistador, sugerindo
a participação imaginária do público na construção biográfica.
O valor da narrativa da experiência, como constituinte do espaço biográfico,
está, portanto, na exaltação do ter vivido, ou na exaltação da própria vida.
Discurso uno que se torna múltiplo, por permitir a ilusória inclusão do nós nos
relatos de vida, o espaço biográfico se expande e redesenha os dilemas da
subjetividade contemporânea, no movediço território que separa/aproxima vida e
vida contada/criada/desejada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico:
contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010.
dilemas
da
subjetividade
CEVASCO, Maria Elisa. Dez lições sobre Estudos Culturais. Boitempo Editorial:
São Paulo, 2003.
NOLASCO, Edgar Cézar. Restos de ficção. São Paulo: Annablume, 2004.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Cadernos de estudos culturais, Campo Grande, MS, v. 1, p. 193‐202, jul./dez. 2010.
201
SARLO, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais, arte e vídeo-política
na Argentina. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.
WOOLF, Virginia. Orlando. Trad. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 10 ed., 1978.
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SOBRE A PRÓXIMA EDIÇÃO
Editor, Editores Assistentes
& Comissão Organizadora
Informamos que o n. 5 dos Cadernos de Estudos
Culturais, a sair no primeiro semestre de 2011, cuja temática é
Subalternidade, já se encontra em fase de preparação. Para
tanto, intelectuais nacionais e internacionais, principalmente
aqueles que têm suas pesquisas voltadas para a crítica
subalternista ou crítica cultural, foram convidados para
contribuir com a temática em pauta. Subalternidade procurará
pontuar o papel e lugar da guinada crítica que privilegia a
questão atinente aos subalternos e sua inserção na cultura
hegemônica que impera no Brasil, na América Latina, no
pensamento ocidental e fora dele. Além do Grupo
Subalternista Asiático, o Grupo Latino-Americano de
Subalternistas vem acentuando a importância de tais estudos
dentro e fora da Academia.
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