Subido por Juan Pablo Cuevas

Gênero e suas intersecções

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GÊNERO E SUAS INTERSECÇÕES: UMA ANÁLISE DE “QUARTO DE
DESPEJO”, DE CAROLINA MARIA DE JESUS (1960)
Maíra Dutra de Oliveira¹ & Miguel Rodrigues de Sousa Neto²
1 – Pesquisadora bolsista – Graduanda do curso de História da UFMS/CPAQ
2 – Orientador – Docente do curso de História da UFMS/CPAQ
RESUMO: Objetivo com esse trabalho fazer a apresentação de Quarto de Despejo de Carolina
Maria de Jesus sob o olhar interseccional, abrangendo a leitura para aspectos nos quais Carolina é remetida
ao longo de sua trajetória como mulher, negra e favelada, bem como analisar a produção bibliográfica
constituída a partir de Carolina e sua retratação na mídia nos períodos compreendidos a partir de 1960 a
2018. Para tanto, analiso aqui, não somente Carolina e seu Quarto de Despejo, mas todo o contexto ao qual
ela e a obra estão inseridos e, primordialmente, de onde Carolina fala.
Palavras Chave: 1) Interseccionalidade 2) Quarto de Despejo 3) Carolina Maria de Jesus
O Quarto de Carolina – e de tantas mais.
Em 1960, Carolina Maria de Jesus, uma mulher negra, pobre e mãe solteira
de três filhos, publica um livro retratando o cotidiano da favela do Canindé, local onde
foi moradora por mais de dez anos. Sua trajetória de miséria sai do anonimato quando o
acaso a coloca frente a frente com o repórter Audálio Dantas. A partir de então, Carolina
em seu “Quarto de Despejo” (1960) espalham uma crueza na descrição da vida na favela
para o Brasil e para o mundo. O sucesso do livro, que mais soa como um desabafo da
autora, sobretudo por tratar-se de um diário construído a partir de cadernos e papeis que
Carolina encontra enquanto catadora, é tanto foi traduzido para mais de treze línguas.
Considerando, especificamente que, até então, a literatura que retratava a
pobreza era escrita por “intelectuais” sem quaisquer vivências como as de Carolina, o
sucesso do diário transformado em livro é estrondoso. A escrita áspera de uma
semianalfabeta que pode frequentar somente os primeiros anos de escolarização é a
demonstração pura e genuína de sua experiência. Experiência, essa, que ela utiliza como
arma para descrever os momentos trágicos da miséria que a acompanha e que fez com
que Carolina fosse uma das escritoras mais faladas e renomadas após o lançamento de
seu livro, equiparando-se e, por vezes, ultrapassando o próprio Jorge Amado com a obra
“Gabriela, cravo e canela”, em vendas.
Por manter uma cronologia e formatos de diário, é possível notar os empecilhos
constantes de Carolina para manter-se viva e, ao mesmo tempo, manter seus filhos
alimentados e bem cuidados. Os confrontos não são somente com a pobreza, mas,
segundo a própria autora, o problema também estava, e definitivamente não se tratava de
um fator secundário, na própria favela e em seus moradores. Crítica, Carolina não poupa
palavras ao descrever a frieza e maldade que via naqueles que a cercavam. Vale salientar,
inclusive, que Carolina não se via como “um deles”, justamente por acreditar ser
totalmente o oposto daquilo que ela descrevia em seu diário. Suas críticas sobre o
ambiente em que viveu por tantos anos eram infindáveis, de forma que tratava o diário
como forma de ameaçar os habitantes da favela do Canindé. Repetia constantemente que
os colocaria em seu livro e que não retiraria seus nomes. Por esse fator, o de considerarse detentora de algo que os outros não possuíam, Carolina acreditava ser vítima de
perseguição das mulheres e homens, que perseguiam também aos seus filhos. Outro fator
importante a ser destacado é que Carolina era mãe solteira em um ambiente onde boa
parte das mulheres eram casadas, muito embora sofressem violência constante, o que
Carolina abominava, pois possuía verdadeiro afeto por crianças e priorizava manter seus
filhos longe de violências, muito embora o ambiente, em si, fosse uma violência
constante, não só com ela, mas com seus filhos e os outros habitantes, afinal, a
marginalização desses sujeitos já implica em uma violência sofrida cotidianamente.
Necessário pontuar sobre o valor da escrita para Carolina, que consciente de
sua posição de desigualdade, questionava políticos em seu diário, questionava se em
outros países haveria tamanha pobreza e miséria, questionava se algum dia seus filhos
veriam mudança no cenário...os questionamentos da autora eram tantos que nota-se a sua
falta de esperança em ela mesma perceber qualquer mudança enquanto viva. Detinha em
si verdadeira noção de sua posição social, relatando que ali mesmo, onde ela vivia, era o
despejo humano da cidade.
Tratando-se de uma mulher que reconhece sua falta de direitos, crítica em
relação a políticos e a política destes, detentora de um diário que circularia o mundo,
Carolina adentra o mundo da literatura, sendo apagada anos depois no círculo midiático
por um projeto desenvolvimentista, que incluía a camuflagem de toda a pobreza ainda
existente no país. O surto de reportagens, notas, críticas e vendas sobre “Quarto de
Despejo” compreende o período de 1960 a 1964 em dois jornais do eixo Rio-São Paulo
(Jornal O Globo e Jornal Folha de São Paulo), tornando a mencioná-la assiduamente e
retomar as discussões acerca de seu livro e de sua experiência como mulher, negra e
favelada somente no ano de 1977, com sua morte. Carolina morre pobre, parcialmente
desconhecida e invisibilizada.
Todo esse contexto de exclusão de Carolina dentro da literatura parte também
de uma academia que restringe as margens e suas representações, especificamente
tratando-se de uma escritora semianalfabeta.
É através deste retrato da favela que Carolina nos incita a inúmeros
questionamentos envolvendo sua vivência como mulher, negra e pobre em um país que
ruma um traço desenvolvimentista e excludente, especialmente com todos os atributos
que a envolvem. Isto é, gênero, raça/etnia e classe. Voltar-se para esses atributos, é olhálos sob o aspecto interseccional. Para tanto, Avtar Brah, em seu “Diferença, Diversidade
e Diferenciação”, nos direciona para encarar as especificidades de opressões particulares.
Nesse caso, é necessário estabelecer que Carolina, mulher, negra e favelada,
enquadra-se em três minorias específicas. Ao mesmo tempo em que, somente por existir,
luta contra o machismo, ela luta com o racismo e com a elite que, como a autora mesmo
descreve em sua obra, a despreza. De acordo com Brah, as opressões relacionadas a
Carolina são ligadas umas às outras, de modo que a diferença racial se liga aos outros
marcadores como o gênero e a classe.
É tratando-se da ligação de marcadores, através de Brah, que a discussão acerca
da interseccionalidade e de como Carolina Maria de Jesus é involuntariamente parte de
opressões particulares se dá.
Para isso, a interseccionalidade auxilia na compreensão por reconhecer as
múltiplas camadas de sua vida com as quais se é necessário lidar, como no caso de
Carolina, não somente o machismo, não somente o racismo e não somente com a
invisibilidade que a pobreza lhe garante, mas com todos em conjuntos, como fatores não
dependentes, porém interligados. Uma abordagem interseccional procura denunciar esses
fatores. Portanto, para Brah (2006, p. 341), “nosso gênero é constituído e representado de
maneira diferente segundo nossa localização dentro de relações globais de poder”, ou
seja, mulheres brancas experienciam o sexismo de forma diferente das mulheres negras.
Nesse aspecto, a autora explica sobre “a construção social de diferentes categorias de
mulheres envoltas em um campo ideológico e estrutural mais amplo” (BRAH, 2006, p.
341), estrutura esta que se dá por meio de raça/etnia e classe, uma vez que a colocação do
sexismo já está nítida na vida de uma mulher, tomada por “segundo sexo” e parte de uma
estrutura de dominação que tem como principal aliado o patriarcado.
As teóricas do feminismo radical, no entanto, tendem a excluir ou invisibilizar
fatores como o racismo ou a classe no discurso de enfrentamento ao patriarcado, haja
vista que consideram o sexismo como único e maior elemento para a opressão sofrida por
mulheres e desconsideram as estruturas étnicas e econômicas como interligadas as de
gênero. Isolam parcialmente as experiências específicas de categorias diferentes de
mulheres e concebem uma visão unificadora de combate ao patriarcado, que, no caso das
inúmeras categorias de mulheres, não é o único combate diário.
A autora Avtar Brah (2006, p. 344) introduz o conceito de racialização do
gênero, exemplificando que cada racismo possui sua própria história e modo de
concepção. No caso de Carolina, vale salientar que trata-se de um Brasil estruturado por
uma escravidão negra com um fim tardio e que resultou em uma sociedade com um traço
marcado fortemente pelo racismo, muito embora seja um país miscigenado. No caso, a
racialização do gênero, permite que se trabalhe com o que é comum, mas que não exclua
a heterogeneidade das experiências provindas de mulheres com diferentes vivências, ou
seja, que experienciam outros elementos necessários de combate.
Para compreensão, é necessário introduzir aqui um ponto específico a respeito
dos feminismos e de suas pautas prioritárias, ainda segundo Brah. O feminismo
majoritariamente branco, provindo de mulheres que estruturalmente são mulheres “para
casar”, enfrenta conceitos como os de reprodução, o de dominação familiar do sexo
masculino, alegando que o modo com que são tratadas deriva de um modelo feudal e que
sua liberdade no meio social é fundamental para o projeto progressista. Friso que esse é
um modelo de enfrentamento de feministas brancas ocidentais, que novamente procuram
centralizar o ocidente como superior “aos outros”.
No caso das feministas negras, seus enfoques são voltados para a objetificação e
o constante racismo sofrido no cotidiano por parte não só de homens brancos, mas
também de homens negros que veem seus corpos como disponíveis para sua satisfação
sexual. Como bem cita Elza Soares em sua canção “A carne”: A carne mais barata do
mercado é a carne negra. Especialmente a de mulheres negras, aviltadas por opressões de
todos os lados. Neste sentido, vale salientar que, em um discurso social racista, misógino
e elitista, mulheres como Carolina de Jesus não servem para muito além de trabalho e
para ser objeto sexual masculino.
Assim, é de fácil entendimento que, num percurso trilhado por diferentes
categorias femininas em que todas sofrem de uma opressão em comum, a intensidade em
que esta ocorre varia de forma significativa. Para isso, basta voltar-se para o fator de que,
enquanto mulheres brancas lutam por melhorias em suas condições como cidadãs e como
pessoas, as mulheres negras lutam para serem reconhecidas como tal, criando políticas de
enfrentamento contra a objetificação de seus corpos e, ao mesmo tempo, lutando contra
o racismo imposto em uma sociedade que absorve sem problematização um discurso
masculinizado, branco, ocidental, heterossexual e elitista.
É através desse olhar que Carolina Maria de Jesus é observada quando ascende
com a publicação de seu livro. Uma academia que recusa a voz marginal, uma mídia
tendenciosa, uma política juscelinista desenvolvimentista e, após, uma ditadura militar
que pretende invisibilizar os fossos sociais e desigualdades, mantendo Carolina no
esquecimento logo após estrondoso sucesso, dentro e fora do país. A retratação fiel e a
aspereza em seus escritos chamam atenção de inúmeros estudiosos de outros locais, que
a concebem de forma muito mais atenta do que os próprios brasileiros acerca de uma
situação em seu próprio território, situação, esta, que era a mesma de mais de 130 mil
pessoas no ano de 1977, segundo reportagem do Jornal Folha de São Paulo.
Carolina reconstrói sua identidade através de sua escrita, visibilizando sua
própria vivência e dando real valor, isto é, enfrentando as forças repressivas do Estado
que implicam que figuras como Carolina Maria de Jesus devam permanecer no
anonimato. A questão que deve ser posta a respeito da identidade de Carolina é justamente
a de que por pertencer ao setor marginalizado no momento da escrita de seu diário, a
autora sonha em passar para o outro lado e realmente sentir-se parte da sociedade, como
crítica cidadã, como detentora de direitos simples, enfim, como ser humano.
Não é surpreendente, nesse cenário, compreender porque o sucesso de Carolina
no exterior foi maior do que em seu próprio país de origem. Documentários alemães e
estadunidenses tiveram proibidas suas transmissões no Brasil nas décadas de 60 e 70,
muito embora em 1961, houvessem peças de teatro retratando Carolina e sua trajetória na
favela do Canindé, através de sua obra “Quarto de Despejo”.
Tratando-se de um testemunho de sua vivência e ao mesmo tempo de um texto
de cunho político-social, Quarto de Despejo detém inúmeras críticas, notas e reportagens
as quais analiso no eixo Rio-São Paulo, com base nos jornais O Globo e Folha de São
Paulo. Além disso, analiso a bibliografia produzida acerca de Carolina nesse presente
trabalho.
Proponho, então, uma análise sob um olhar interseccional.
Leituras do Quarto
Acerca de Carolina Maria de Jesus e de “Quarto de Despejo”, a bibliografia
encontrada é vasta e especialmente voltada para o campo das Letras, muito embora as
Ciências Sociais também se apropriem da obra para análise estrutural e social. Dentre as
trinta e três teses, dissertações, monografias ou artigos, acentuo cinco que me auxiliaram
na construção do presente trabalho.
O primeiro deles, “The Political, Social, Historical, and Literary Significance of
the Writings of Carolina Maria de Jesus” de autoria de Kristin Alexis Brown, tese das
Ciências Sociais, chama a atenção para aspectos relacionados a forma como Carolina é
retratada pela mídia, que sempre pontua fatores como seu baixo nível de escolaridade e o
fato de ser uma ex favelada. Para Brown, explicitar marcadores como esses é tentar
bloquear a passagem de Carolina de “ex-favelada” para “escritora”, como se um fato
anulasse o outro. Brown se fixa na ideia de que a constante menção da posição social de
Carolina deveria ser evitada, muito embora em Quarto de Despejo essa seja a principal
abordagem. Supor que é uma tentativa de desqualificação da escritora mencionar sua
posição social, como se “ex favelada” fosse um modo pejorativo de referir-se a Carolina
é errôneo da parte de Brown justamente por manter o padrão de que a margem da
sociedade não deveria falar do local onde ela está inserida. Carolina Maria de Jesus era
uma escritora e era uma ex favelada. E um marcador como o de ser ex moradora da favela
do Canindé não a exime de ser uma escritora.
Muito embora o pejo no discurso de “ser ex favelada” persista no contexto da
estrutura social, retirar esse marcador de cena como forma de “limpar” o nome de
Carolina como escritora é invisibilizar esse aspecto, assim como a própria fora
invisibilizada durante o período ditatorial, de 64 em diante. É, basicamente, remeter toda
a denúncia social explícita contida em Quarto de Despejo ao esquecimento e trazer à tona
uma nova Carolina, uma Carolina “limpa” dentro da mídia brasileira e internacional.
Nessa proposta, portanto, a marginalidade de Carolina como ex favelada é novamente
camuflada.
Outro ponto significativo mencionado por Brown é a liberdade com que Carolina
menciona seus encontros sexuais em seu diário. Brown (2011, p.13) diz: “Carolina
predominantly had sexual relations with white men, whom she chose to be with. The idea
of female sexual independence was an unsettling idea during the 1960's for many people,
as the feminist movement was still in its beginning stages throughout the world as well
as in Brazil.”. Tratava-se, portanto, de um assalto duplo ao conforto da família tradicional
de classes mais abastadas, primeiro pelo assolamento da realidade econômica e, em
contrapartida, também pela moral.
Volto-me agora para José Carlos Sebe Bom Meihy em seu “Repensando Carolina
Maria de Jesus”, que nos pontua aspectos relacionados ao antes e depois do golpe militar
de 1964 de Carolina na mídia. Diz (2015, p. 525): “Com a instalação da ditadura, o clima
de suspeita, atento aos tipos de pobre que se aproximavam do que seria vulgarizado como
“subversivo”, sutilmente cuidou de afastá-la de cena”. Para Sebe Bom Meihy, o
afastamento de Carolina e de Quarto de Despejo no cenário nacional foi justificado pelo
acobertamento dos fossos sociais escancarados no livro. A retratação da luta diária pela
sobrevivência de seus filhos e de si mesma narrada por Carolina na favela do Canindé,
faz com que sua figura seja vista pelos atentos olhos da censura com um traço de rebeldia
em uma época em que a intenção não era a de agitar uma insatisfação popular motivados
pela desigualdade explícita, mas de cidadãos obedientes, conformados e, principalmente,
que subalternos como Carolina não tivessem liberdade para indignar-se abertamente,
tampouco para narrar sua experiência, como era o planejamento de Carolina. A própria
nunca pensara a respeito de tornar-se uma “revolucionária” ou uma “voz das minorias”.
Esse fato, o de mencionar inúmeras vezes que apenas pretendia contar sua trajetória e
trazer o sustento para sua família, ou seja, desejos pessoais, foi um dos motivos para que
Carolina fosse frequentemente excluída tanto do âmbito acadêmico, quanto da esquerda
e da direita. Ou seja, a invisibilidade de Carolina fora pensada triplamente.
Mesmo que a invisibilidade nacional fosse uma tendência colaborativa pelo
regime militar, pelos conservadores que a olhavam através de sua liberdade sexual e
relacionamentos casuais e pela esquerda que não a enxergava como uma figura
revolucionária, Carolina e seu diário percorreram inúmeros países rapidamente, sendo até
hoje um dos livros nacionais mais lidos no mundo.
Nesse sentido, é interessante avaliar, através de Sebe Bom Meihy, que o
estrondoso sucesso internacional e nacional de Carolina e seu desaparecimento, afastado
por um receio de que seus escritos fossem “rebeldes” demais e tentadores para militantes
de uma esquerda que visualizasse e abrangesse subalternos como Carolina, não foi o
suficiente para que a mesma não chamasse atenção de produtores de documentários em
diversos países, incluindo a Alemanha (com a exibição proibida em solo nacional).
Já em “A literatura vista de baixo” de Emanuel Régis Gomes Gonçalves, voltome para questões relacionadas ao gênero e a raça em Carolina. Na dissertação, Gonçalves
aplica a questão da hegemonia nos discursos acerca da escritora e nos discursos praticados
pela própria. Como a figura controversa que é conhecida, Carolina não se diferencia nesse
aspecto. Como bem chama a atenção nessa dissertação, Gonçalves pontua sobre Carolina
ora aproximar-se dos favelados em seus discursos e ora distanciar-se, justamente por
acreditar diferenciar-se deles por deter o poder da escrita: “ora a narradora-personagem
identifica-se aos outros negros e mulheres que circulam em sua narrativa, ora distanciase deles, enxergando-os como outros, aproximando-se, neste último caso, das
representações do negro e da mulher dos discursos hegemônicos, que os vêm, de um
modo geral, apenas enquanto objetos.” (GONÇALVES, 2014, p. 55)
É evidente a forma como a hegemonia dos discursos afeta Carolina, muito embora
a mesma seja crítica e, por vezes, assuma postura de orgulho acerca do “ser mulher” e do
“ser negra”. Em trechos, Carolina repete discursos de desvalorização racial ou de gênero,
ao mesmo tempo em que não tolera a desvalorização dos mesmos e critica acidamente
atitudes racistas ou machistas, mesmo que a estrutura do período compreendesse a
normalidade dessa forma.
É interessante destacar a normalidade desses discursos e da própria estrutura,
especialmente quando voltados a Carolina. Como bem frisa Gonçalves, apesar de sua
controversa opinião acerca de determinados assuntos que a abrangem, Carolina ainda se
mantém, socialmente, à margem e minoritária em todos os aspectos observados. Seja num
olhar sob a etnia da mesma, em um país onde os resquícios do fim tardio da escravidão
resultaram em uma sociedade racista, seja num olhar sob o gênero da mesma, que o
patriarcado estrutura como uma posição subalternizada e seja num olhar sob a classe da
mesma, nesse caso, favelada, semianalfabeta e ascendendo socialmente com um livro que
denuncia o descaso com todos os atributos que a marginalizam, muito embora a finalidade
não fosse exatamente essa.
Sobre a questão de ser uma mãe solteira de três filhos e de ser mulher na década
em que o livro fora escrito, Graciela Gonçalves Scherdien e Juliana Néri Munhoz em
“Carolina de Jesus e a vivência de uma mulher na década de cinquenta” pontuam as
condições impostas para Carolina de modo que ela não pudesse seguir “o padrão de
mulher” da época. As condições, no caso, são principalmente levadas ao fator de classe.
A existência de Carolina era, por si, uma luta diária contra a fome, o que a levava
constantemente a desumanização. Principalmente por ser provedora do sustento de seus
filhos e de si, Carolina era vítima de uma descriminação constante das demais moradoras
da favela, em sua grande maioria casadas, muito embora sofressem violência de seus
maridos, conforme explícito por Carolina inúmeras vezes no diário.
O padrão para mulheres na década de cinquenta, como acentuado pelas autoras, é
o de “dona de casa”, mulher submissa ao marido e, certamente, não provedora do lar,
como é o caso de Carolina. Além do distanciamento da escritora das demais moradoras
da favela do Canindé no aspecto matrimonial, Carolina ainda mantinha relações sexuais
casuais com homens que ela almejasse, numa espécie de liberdade sexual que ela mesma
propunha para si. Para as demais mulheres, Carolina deveria manter-se na normalidade.
Tal normalidade sendo a imposta pela classe dominante, criada por e para essa, e não para
mulheres como Carolina. Carolina virava-se como podia. Sobrevivia como podia. Era
provedora de uma casa, alimentava três crianças e dedicava-se a escrita quando tinha
tempo. Sua forma de vida estava longe do “padrão de mulher da década de cinquenta”,
embora a vida das demais mulheres também estivesse, considerando que apesar de seu
laço matrimonial, a vida destas ainda era cercada de violências e marginalizações, não
somente dentro de seus barracos, como acentua Carolina diversas vezes em explanações
no diário, mas também como a parte excluída da sociedade, de forma geral.
Interessante salientar esse aspecto justamente para atribuir à discussão o fator das
experiências vividas diferentemente, avançando para fora do barraco da própria Carolina.
A narração no diário abrange em níveis os demais moradores, que vivenciam a favela de
forma diferente de Carolina. Apesar da consciência que existe no “existir na favela”, a
favela é experienciada de forma distinta pelos seus habitantes, seja a partir do gênero, de
sua etnia e até mesmo de fatores como o matrimônio ou a quantidade de filhos. Ou seja,
a discussão deve se estender para fora do aspecto de classe.
Muito embora Carolina tivesse a noção de que não precisasse de um marido,
especialmente pelas constantes agressões sofridas por mulheres faveladas no âmbito
doméstico, a escritora sabia que haviam preconceitos que a aviltavam por esse fator. Não
somente não se abatia, como também se mostrava orgulhosa de si pela independência
com que criava seus filhos.
Em “Retrato da solidão da mulher negra em Quarto de Despejo de Carolina Maria
de Jesus” de Keila Karina Sousa Martins, o distanciamento de Carolina dos demais
habitantes do Canindé e a presença da interseccionalidade são evidentes: “Nesse aspecto,
Carolina é uma mulher negra que habita a favela, sofre com a dominação branca e trabalha
todos os dias para sustentar sua família sozinha. Essa descrição da vida de Carolina
denuncia os descasos que uma mulher negra pode sofrer durante a vida. Os relatos feitos
a partir dessa realidade cruel que era submetida revela certo distanciamento da narradora
para com os demais habitantes da favela. “ (MARTINS, 2016, p. 23)
É, portanto, explícito que a classe, fator que aproxima Carolina dos demais
moradores da favela e que distancia Carolina do resto da sociedade, não deve ser
visualizado como um fator isolado na análise da escritora e de sua obra. Outros
marcadores (BRAH, 2016, p. 331), devem ser considerados, especialmente tratando-se
de uma mulher como Carolina, subalternizada sob os olhares dominantes e dominados,
no que se trata do aspecto de classe.
São justamente os outros marcadores que afastam Carolina de outras mulheres,
mesmo que essas também sejam habitantes da favela, mesmo que essas também estejam
sujeitas às opressões diárias que as envolvem acerca da classe e do gênero. Reconhecer,
assim, que Carolina, como mulher, negra e pobre existindo no contexto
desenvolvimentista e lutando para sua própria sobrevivência, abrange todo o descaso
estatal com a marginalização de grupos excluídos é compreender o motivo pelo qual
Carolina fora invisibilizada durante o período ditatorial e também compreender o motivo
pelo qual Carolina é resgatada atualmente, tanto pelo feminismo interseccional quanto
pelo próprio feminismo negro.
Ainda acerca da monografia de Martins, a autora pontua interessante observação
no que se refere ao fato de Carolina manter-se sozinha, sem intenção de seguir o padrão
heteronormativo de casamento: “Os laços afetivos precisam de segurança e respeito, o
que na perspectiva da narradora não existe na favela. Como ela diz, a favela é onde se
joga tudo o que não presta. Esse pensamento a distância da possibilidade de vínculo tanto
social quanto amoroso, porém, viver em sociedade significa manter vínculos, socializar,
fazer parte de algum grupo que traga satisfação ou felicidade, o que para a narradora não
isso não é possível. ” (MARTINS, 2016, p. 27)
A autora frisa, principalmente, a questão envolvendo a raça, que, de forma geral,
cria mulheres negras para sentirem-se inseguras em relacionamentos, inseguras com elas
mesmas e inseguras sobre seu papel na sociedade. Para mulheres negras, isso lhes é
impregnado. Agora, como no caso de Carolina, para mulher, negra e favelada, isso é
praticamente uma imposição. A violência simbólica a qual Carolina é submetida por seus
marcadores sustenta-se, inclusive, em sua própria personalidade solitária.
Volto-me agora para as representações de Carolina na mídia no eixo Rio-São
Paulo, buscando analisar através dos jornais Folha de São Paulo e O Globo, sob o viés da
interseccionalidade presente na vivência de Carolina.
No jornal O Globo, Carolina é citada, principalmente, por pequenas notas
relacionadas justamente à vendagem nacional e internacional de Quarto de Despejo, às
novas edições e às publicações do livro em outras línguas. Além de que, no Rio de Janeiro,
as peças teatrais retratando a vida e obra de Carolina eram noticiadas também.
Ressalto, novamente, o apagamento de Carolina e de seu livro no período
ditatorial. O sucesso de Quarto de Despejo e a visibilidade da escritora de 1960 a 1962
no jornal carioca tem uma totalidade de dezoito citações, incluindo notas, vendagens,
críticas e reportagens. Carolina ressurge no jornal após sua morte, em 1977, em uma
reportagem denominada “Carolina de Jesus morre em São Paulo aos 62 anos”. Na
reportagem, o jornal ressalta que a morte de Carolina por uma bronquite asmática aguda
interrompeu seus planos de uma viagem aos Estados Unidos, a convite de uma indústria
de cinema, que pretendia adaptar o livro Quarto de Despejo e a queria como protagonista.
Além disso, interrompeu também sua seleção de contos, poemas e provérbios para a
publicação de um novo livro.
É nesta reportagem que Joana, nora de Carolina, casada com seu filho José Carlos,
revela que Carolina pretendia lançar um livro novo e com o dinheiro que conseguisse
através desse livro, ajudaria o filho, a nora e os três netos a viverem em uma casa melhor,
com dignidade que ela conseguiu prover durante o sucesso de Quarto de Despejo. Afinal,
na concepção de Carolina, o livro/diário fora a obra mais descuidada da escritora. O que
ela desejava era escrever poesia, contos e provérbios que ressaltassem a beleza de viver
de forma digna, ou seja, o oposto do que está disposto em seu livro de maior sucesso.
Muito embora sua obra de maior sucesso revelasse as misérias de viver na condição de
subalterna, Carolina acreditava ser capaz de constituir um livro longe dessas condições.
Dessa forma, seus poemas e contos voltavam-se para o que Carolina acreditava ser sua
maior dádiva: sua vida como mãe. E além disso, para sua vida como mãe solteira e que
conseguira criar seus filhos com êxito, mantendo-os livres das violências cotidianas aos
quais os moradores da favela do Canindé e as inúmeras crianças que ali residiam eram
submetidos, inclusive a morte por desnutrição ou por doenças causadas pela ingestão de
alimentos comprometidos, muitas vezes recolhidos do lixo, como a própria Carolina
testemunhara e anotara em seu diário publicado.
Justamente por esse aspecto áspero, cru da realidade da favela, incluindo a morte
e a miséria acompanhando os moradores do Canindé o livro percorre o mundo, retratando
e denunciando a marginalidade de seres humanos subalternos no Brasil com um plano
recorrente de “ordem e progresso”. A imprensa internacional questiona a questão
progressista quando se depara com a realidade de inúmeras Carolinas presentes na
sociedade brasileira.
Essa mesma retratação da favela é alvo de críticas da própria Carolina em uma
reportagem de 1970 intitulada “Carolina pede sossego para escrever livro de verdade”.
Dez anos após o lançamento de seu livro cercado de denúncias sociais como forma de
desabafo, Carolina lamenta seu “português ruim” enquanto escrevia o livro. Diz sentir-se
horrorizada por ter escrito algo daquela forma, principalmente pelo português e por
aparentar estar fraca de espírito. Segundo a mesma, dez anos depois, Carolina estava mais
esclarecida, mais culta e com um português mais digno de ser lido. Acusa a si mesma por
ter escrito o diário e relata que o livro deu a ela e aos seus filhos a fama de “rica sem
dinheiro”. Dessa forma, Carolina deixa explícito o discurso hegemônico persistente em
sua cabeça de que seu livro não merecia ser lido não somente pelo português, como
também por toda a trajetória narrada.
Na reportagem “Carolina Maria de Jesus prepara um novo livro” de 1972, é
esclarecido como Carolina viveu durante a época de invisibilidade provocada pelo
afastamento de cena que a censura lhe acometeu. Ali, orgulhosa, Carolina diz não sentir
falta do sucesso que obteve durante 1960 a 1963. Vivia em um sítio na região de
Parelheiros, cuidava da criação que obteve com o restante do dinheiro da vendagem do
livro. Ainda que Carolina considerasse que não desejava o sucesso que obteve com
Quarto de Despejo, sua constante necessidade em lançar um novo livro parecia desmentila. Retomo, portanto, a discussão acerca da forma como a própria Carolina se via e via
seus escritos anteriores, renegando completamente toda a sua trajetória exposta no seu
livro de maior sucesso. Torna-se evidente, portanto, que a negação do sucesso, não
provém do livro em si, mas de sua condição subalternizada narrada nas páginas do
Quarto.
Mesmo que Carolina considerasse, dez anos após o lançamento, que Quarto de
Despejo fora um erro, em 1961, a escritora julgava ter sido vítima de uma sabotagem
vinda do autor de Gabriela, cravo e canela, Jorge Amado, que fixara o total de cinquenta
livros que poderiam ser vendidos por Carolina no festival de escritores do Rio de Janeiro.
A indignação da escritora fora tanta que ela explanou em entrevista que se algum dia
encontrasse com o escritor baiano, pediria ressarcimento pelo prejuízo sofrido naquele
dia. É, portanto, evidente o apreço de Carolina pelo sucesso do livro, fazendo com que a
mesma não poupasse críticas ácidas inclusive para um dos escritores mais influentes
daquele momento. A crença de Carolina de que seu livro seria mais vendido, não fosse a
imposição da quantidade estabelecida, demonstra o conhecimento de Carolina acerca da
necessidade de um livro como aquele no cenário brasileiro. Evidentemente que a mesma
não fazia ideia do que seria a invisibilidade a qual seria submetida quatro anos mais tarde.
Evidentemente também que não fazia ideia de que aquele seria o seu livro de maior
sucesso e almejava lançar outros inúmeros, incluindo os de poesia e os de contos, que não
fossem relacionados a sua realidade como favelada.
Voltando agora para Carolina retratada no jornal paulista, no dia quatro de
setembro de 1960, na sessão Opiniões, a escritora e seu Quarto de Despejo são citados
positivamente por Luís Martins, que se refere a Carolina como “uma escritora
surpreendente” e ressalta que o livro “empolga e marca”. Marca justamente pelo seu
contexto de realidade e a crueza de detalhes do dia a dia de uma mulher negra, pobre e
favelada. Põe em pauta, portanto, fatores que até então, ocupavam a total obscuridade no
âmbito social. Toda essa “empolgação” a respeito do Quarto faz com que o mesmo seja
objeto de inúmeras mesas redondas, inclusive televisionadas, como uma nota nesse
mesmo jornal anuncia no dia 24 de agosto de 1960, que contava com a presença de
historiadores, sociólogos, políticos e da própria e utilizava como linha de debate as
catástrofes da desigualdade social brasileira.
Apesar de servir para debate, o livro e Carolina são pouco mencionados nos anos
seguintes. O grande ápice de notas e reportagens a seu respeito compreende o ano de
1961, onde o que mais se encontra são notas que anunciam novas edições e traduções
para outras línguas. Retorna para o jornal, também, com a notícia de sua morte, tornandose novamente um assunto relevante para as pautas paulistanas. O anúncio de sua morte é
feito através de uma nota no dia 14 de fevereiro de 1977, com poucas palavras e retendose ao motivo e ao fato de que a mesma acabara de descobrir que sua trajetória viraria
filme nos EUA. Sobre seu enterro, o jornal paulista insere como título os dizeres “Simples
como sua vida”, aproximando o leitor do fato de que o enterro de Carolina havia sido
realizado com a presença de poucas pessoas, em geral, pessoas de origem mais humilde.
Chama a atenção nessa reportagem o discurso de um orador popular de improviso, que
discursa na beira do caixão de Carolina, dizendo que não a conhecia em vida e que
lamentava o fato de somente as pessoas mais humildes, com as quais Carolina convivera
a vida inteira, fossem ao seu enterro para lhe prestarem o último adeus.
A ascensão social alcançada por Carolina no auge de seu sucesso e a invisibilidade
logo em seguida não foram o suficiente para que em seu velório comparecessem grandes
personalidades, como o jornal faz questão de ressaltar na reportagem. Carolina nasce
pobre e invisibilizada e morre da mesma forma. Poucas pessoas se solidarizam o
suficiente para lhe prestarem uma última homenagem além do prefeito de Embu-Guaçu
e Audálio Dantas, jornalista que a ajudara na publicação do livro de maior sucesso,
embora houvessem controvérsias entre João José, filho de Carolina, e o jornalista. João
José, em tom acusatório, dissera que a mãe havia sido injustiçada por Dantas. Apesar das
ofensas destinadas ao jornalista, João permanecera ao seu lado durante toda a solenidade.
Nas ruas, hoje
Apesar de todo o sucesso e estrondosos debates acerca de seu livro, a intenção de
Carolina nunca foi ser reconhecida somente como uma ex favelada, como todas as notas
relacionadas a ela, principalmente no jornal Folha de São Paulo, frisavam. Carolina
gostaria de ser reconhecida como uma escritora, gostaria que sua trajetória não fosse
somente lembrada pela miséria que a perseguia na década de cinquenta, mas que, além
disso, fosse possibilitada de compartilhar com o mesmo leitor que a viu falar sobre a
“amarela” inúmeras vezes, as alegrias do existir em uma condição social melhor.
Gostaria, portanto, de explanar sobre as belezas como aquela que ela ressaltava quando
havia comida na mesa ou gordura fritando algo que fosse alimentar a ela e aos seus filhos.
É através desse viés que Carolina é resgatada atualmente, principalmente por
ativistas e estudiosos do feminismo interseccional e do feminismo negro, que analisam
na trajetória da escritora pontos cruciais, incluindo, principalmente sua invisibilidade,
seja através da mídia, seja através da sociedade que constantemente a exclui e persiste
excluindo inúmeras Carolinas presentes na nossa atualidade. Seja numa violência
simbólica que resiste através dos tempos para com mulheres negras, seja numa violência
escancarada.
Nesse âmbito, Carolina e Quarto do Despejo prosseguem sendo pautas de debates
sociais. Pela academia, a escritora ressurge, especialmente no campo das Letras, mas não
unicamente. A análise da estrutura social que englobou Carolina na década de cinquenta
e que ainda se assola nacional e mundialmente falando, devido ao advento da
desigualdade social que persiste em função do sistema capitalista, faz com que toda a sua
trajetória continue atualíssima e persistente na academia.
No que se refere aos estudos de gênero e aos estudos subalternos, Carolina tornase figura presente em inúmeras discussões. Principalmente quando engloba-se a
intereseccionalidade.
Quarto de Despejo é realmente uma obra que fere principalmente sob olhar
econômico. Toda a tragédia da miséria de Carolina, que narra todos os dias suas lutas
acerca de necessidades humanas básicas como a alimentação e o escancarar de portas para
um Quarto que, para quem detém o poder e para o próprio Estado, é maléfico e deveria
permanecer na obscuridade, é um salto imenso, especialmente no que se refere aos
estudos marginais e invisibilizados pela classe dominante.
É deste modo e partindo desse princípio que Carolina, mulher, negra, mãe solteira,
periférica, torna-se objeto de estudo para um novo modo de se fazer história, o de um
olhar interseccional, abrangendo aspectos considerados, até então, pouco importantes
para a formação da figura tomada como subversiva durante o período ditatorial. Não é à
toa que Carolina fosse considerada uma ameaça à naturalidade do projeto
desenvolvimentista. Sua ascensão social por meio de um ato não designado ao subalterno,
o de falar, narrar experiências próprias, movimenta toda uma classe, a classe maioritária,
quantitativamente falando.
A intenção principal desse projeto não era o de desenvolver políticas públicas que
contivessem a desigualdade social brasileira e tampouco que houvessem condições
humanas para que as famílias moradoras de favelas, como Carolina e seus filhos,
pudessem ascender socialmente. O projeto visava encobrir essas pessoas. Marginalizar
ainda mais. Se possível, que não houvesse um contato com os habitantes do que Carolina
chamara de “sala de visitas”.
Tudo o que Carolina concebia sobre sua posição de favelada e sobre habitar o
“quarto de despejo” da cidade, sua posição acerca dos habitantes da favela e sobre a forma
como a sociedade, de forma geral, os percebia, é explícito e nada velado. Volto-me para
seu livro quando ela se debruça sobre seu cotidiano nas ruas de São Paulo, recebendo
olhares que a diziam diretamente e com enorme frieza que ela não pertencia àquele lugar.
A higienização presente nos discursos e pensamentos de pessoas comuns que avistavam
Carolina nas ruas e, de repente, decidiam por ela e por todos que aquele não era o seu
lugar, demonstra a enorme conivência com a desigualdade existente e, ao mesmo tempo,
repúdio à existência de pessoas pobres como ela. Em seu caso, uma pessoa triplamente
desqualificada pela subalternização de todas as suas principais características de
identidade, que a mesma constantemente se queixa sobre ou se exalta sobre: o ser mulher,
o ser negra e o ser pobre. As contradições em sua visão sobre si provêm de um discurso
hegemônico que desqualifica-a em violências cotidianas, que a fazem duvidar de si, do
ser e do que poderia vir a ser. Em determinados momentos, suas controvérsias nos
pensamentos explanados no diário dão visibilidade maior aos preconceitos propagados
constantemente contra ela mesma. Ela acata ou se rebela contra eles. A questão é que
Carolina não era uma vigilante nesse aspecto e tampouco via-se como uma revolucionária
disposta a mudar o corpo social. Era somente Carolina. E Carolina que queria ser vista,
como pessoa. Carolina que queria contar sua história. Tratava-se de um desejo pessoal.
A história e trajetória de Carolina na favela foi contada pela própria. Foi contada
por outros. Foi contada no teatro, no cinema, em livros biográficos. Hoje, Carolina é
objeto de estudo, tanto quanto seus escritos. O que Carolina, em 1970, abominava em
Quarto de Despejo hoje é documento para visualizar e repensar as diversas Carolinas do
Brasil. Sua importância no cenário da academia perpassa o ramo dos estudos de classe,
avaliando todos os marcadores de sua identidade.
Quarto de Despejo permanece sendo um dos livros de maior sucesso no exterior.
E a importância devida no cenário nacional reaparece, principalmente, com o
protagonismo e engajamento do feminismo negro. Nesse aspecto, é notório o quanto
Carolina representa mulheres negras e o quanto sua relevância é justificada. Sua trajetória
solitária assemelha-se a de inúmeras mulheres negras brasileiras, que cercam-se
involuntariamente de violências cotidianas. A influência de Carolina, portanto, vai além
de assemelhar-se a essas mulheres, muito embora venham de períodos diferentes no
recorte temporal: trata-se justamente do poder da fala.
Quando Carolina menciona as adversidades da vida como mulher negra e pobre,
ela atinge mulheres que compreendem seus dizeres. Atinge mulheres que também
experienciam a vida social da forma descrita em seu diário e atinge, principalmente,
mulheres negras que convivem cotidianamente com o que é SER uma Carolina.
Portanto, a figura da escritora permanece atualíssima e é revivida constantemente
por qualquer mulher que venha a vivenciar o que ela escreve.
É nesse cenário, o de semelhança com inúmeras mulheres brasileiras e por ser
referência por tratar-se de uma das principais escritoras negras que Carolina foi
homenageada no carnaval de 2018 pela escola de samba Acadêmicos do Salgueiro. A
iniciativa da escola de samba, que carregava em carros trechos de Quarto de Despejo em
um livro gigante e uma Pietá afro na alegoria, foi justamente resgatar a memória de
Carolina como uma das principais figuras negras do Brasil e ressaltar também a
importância do livro/diário.
Sua importância no cenário atual rende discussões acerca do estereótipo de
“escritora da favela”, que intelectuais como Kristin Brown, mencionada no início dessa
discussão, e o literário Tom Farias que lançou sua biografia de Carolina intitulada
“Carolina – Uma biografia” no dia 15 de março de 2018. Nessa biografia, o autor
apresenta a vida da escritora antes do sucesso. Segundo Farias, o boicote sofrido por
Carolina fora “feio, sem sentido, colonial e assustador”. É também nessa recente
entrevista e após a leitura de jornais e diálogos com familiares e pessoas próximas à
escritora que Farias diz que Carolina alegava que “malandros haviam roubado suas
poesias” por seu caráter exótico de moradora da favela não “servir” para que jornais a
publicassem, muito embora a mesma tivesse publicado alguns de seus trabalhos. É
também nessa entrevista que Farias explana que “muitos a consideravam louca” no fim
de sua vida. Isso se devia devido ao fato de que Carolina voltara a catar papeis nas ruas
e, aos olhos do literário, havia feito isso somente para atrair a atenção da mídia para si,
depois de anos no ostracismo, porque a mesma possuía um sítio, onde plantava e colhia
e consequentemente, não passava fome. Ainda segundo Farias na entrevista realizada no
dia 14 de março pelo jornal O Globo, Carolina aparentava sentir falta dos tempos de
sucesso, justamente o tempo no qual a escritora ia até o Hotel Fasano em São Paulo para
tomar chá ou quando comprava vestidos de Denner, estilista da primeira-dama Maria
Teresa Goulart, que custavam aproximadamente dezoito mil cruzeiros. É relembrado na
entrevista que Carolina vendia um quilo de papel por um cruzeiro em sua época de
moradora da favela do Canindé.
Além disso, pontuo o fato de que o início do diário marca o dia do aniversário de
Vera Eunice, sua filha mais nova, e Carolina explana que desejaria comprar um par de
sapatos para a mesma, como forma de presenteá-la.
O processo de resgate da memória de Carolina na biografia lançada em 2018
pontua aspectos antes e depois da fama e do dinheiro que conseguiu arrecadar com a
vendagem de Quarto de Despejo, afinal, os demais livros lançados pela autora em
conjunto com a invisibilidade propagada pela censura estatal da ditadura militar, não a
fizeram repetir o feito do sucesso extremo. Tanto Casa de Alvenaria (1961) quanto
Pedaços da fome (1963) não a renderam a mesma glória e o dinheiro que Quarto de
Despejo.
A escritora foi lembrada especialmente nos cem anos de Carolina, como bem
pontua a reportagem do jornal O Globo do dia 06 de setembro. Uelliton Farias Alves,
jornalista e escritor ressalta um ponto importante quando diz que Carolina dissera que
seria melhor nunca ter feito sucesso e ter continuado a morar na favela antes de sua morte
em 1977. Farias diz: “Em verdade, nunca lhe saíram da curtida pele os efeitos de sua
pobre vida, como catadora de papel e intelectual da miséria”, pontuando então, os danos
psicológicos de Carolina pela vida que tivera, com pouca consideração pela sua dignidade
e humanidade.
As inúmeras biografias relacionadas à Carolina, que continuam sendo produzidas
inclusive nos dias atuais, com outros olhares, alguns voltados para o âmbito econômico
das mudanças sociais e geopolíticas iniciadas na época em que o diário fora escrito e
outros voltados para o pessoal da vida de Carolina como sujeito histórico e objeto de
estudo, especialmente de gênero e étnicos. Atentar o olhar para Carolina nesses aspectos
é reconhecê-la como provedora de questionamentos que continuam a ser evitados
inclusive nos dias atuais. Enviar luzes no Quarto de Despejo, retirando-o da obscuridade
ao qual os subalternizados como Carolina são submetidos diariamente é comprometer-se
com um novo modo de historicizar sujeitos tomados como abjetos por discursos
hegemônicos associados aos olhares de cima para os que estão em baixo, como a própria
escritora e o restante dos habitantes da favela do Canindé.
Observar as estruturas subalternas que compunham Carolina não somente no
âmbito econômico como também aliando-se ao patriarcado que a sujeitava a inúmeros
preconceitos provindos de habitantes da favela, da academia, da mídia, da moral
conservadora brasileira, que persiste até os dias de hoje, e também da esquerda brasileira,
é compreender o gênero como um fator decisivo para a formação da identidade de
Carolina na sua visão sobre si e na visão do outro sobre a mesma. Alia-se também, nesse
aspecto, a raça que, em um país racista e que tende a violentar simbólica e
escancaradamente negros e negras, invisibilizando-os e subtraindo-os da sociedade,
boicotando-os em locais majoritariamente habitados por brancos e homens, como por
exemplo, o local que Carolina habitou por tempos: o de escritora. A voz da favela não era
bem recebida pela união desses marcadores em um Brasil que repudia a fala do pobre,
que repudia a fala da mulher e que repudia a fala do negro. De forma geral, o repúdio era
triplo.
Não é sem motivações que os estudos interseccionais, subalternos e negros
abraçam as obras e a vida de Carolina Maria de Jesus. Aviltada por opressões de um poder
que ainda permanece subalternizando Carolinas, as luzes voltadas diretamente para
Quartos de Despejos no Brasil e no mundo ascendem Carolinas em volta do globo e as
analisam como figuras históricas, como intelectuais e, principalmente, como centrais,
mesmo em um majoritário funcionamento que insiste em envolvê-las, ainda, na
obscuridade e no silêncio.
Carolinas falam. Carolinas existem. Carolinas resistem.
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