TEMPOS CONSERVADORES estudos críticos sobre as direitas Organização Lucas Patschiki Marcos Alexandre Smaniotto Jefferson Rodrigues Barbosa Goiânia, 2016 Copyright © 2016 Edições Gárgula A marca — Edições Gárgula — está organizada como Selo Editorial do Núcleo de Estudos e Pesquisas em História Contemporânea da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (NEPHC/FH/UFG) e do Grupo de Pesquisa – Capitalismo e História: Instituições, Cultura e Classes Sociais (UFG/CNPq). Seu propósito editorial é o de publicar a produção acadêmica dos professores e pesquisadores que compõem o NEPHC e o GP — Capitalismo e História. Tratase de um Selo Editorial de autores associados e sem fins lucrativos. Todas as obras editadas e publicadas pelas Edições Gárgula são custeadas pelos membros participantes do núcleo e do grupo de pesquisa e, eventualmente, por verbas de custeio originadas de editais públicos de agências de fomento à pesquisa. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas / Organização: Lucas Patschiki, Marcos Alexandre Smaniotto e Jefferson Rodrigues Barbosa. Goiânia: Edições Gárgula, 2016. ISBN: 978-85-68205-11-2 1. História. 2. História do Brasil. 3. Ciência Política. 4. Lucas Patschiki. 5. Marcos Alexandre Smaniotto. 6. Jefferson Rodrigues Barbosa. Editores Prof. Dr. David Maciel (FH/UFG) Prof. Dr. João Alberto da Costa Pinto (FH/UFG) Conselho Editorial Carla Luciana (Unioeste) Cláudio Maia (UFG/Catalão) Dilma de Paula Andrade (UFU) Eurelino Coelho (UEFS) Fábio Maza (UFS) Gilberto Calil (Unioeste) Gilson Dantas (NEPHC) Marcos Del Roio (Unesp/Marília) Maria Letícia Corrêa (UERJ) Maurício Sardá de Faria (UFPB) Walmir Barbosa (IFG/Goiânia) Organização Lucas Patschiki Marcos Alexandre Smaniotto Jefferson Rodrigues Barbosa Editoração eletrônica Carol Piva Revisão Ana Carolina Neves Sumário Apresentação 6 Pedro Leão da Costa Neto Introdução 8 Gilberto Calil Paulo Francis, o polemismo a serviço da agenda ultraliberal Alexandre Blankl Batista 12 “A voz do povo, o espírito da França”: uma análise sobre a ascensão da nova líder da Frente Nacional, Marine Le Pen (2011-2014) Guilherme Ignácio Franco de Andrade 35 Gen pés descalços e o nacionalismo japonês: interseções 53 Janaina de Paula do Espírito Santo Skinheads chauvinistas: integralistas, os “carecas do subúrbio” e o nacional-socialismo brasileiro Jefferson Rodrigues Barbosa 77 A burguesia dependente-associada e a crise: o Instituto Millenium em suas análises sobre 2008 97 Lucas Patschiki A direita “filantrópica”: o Rotary Clube em debate 121 Marcos Alexandre Smaniotto Democracia e o pensamento conspiratório: uma análise sobre a função das teorias da conspiração na sociedade a partir das manifestações anti-PT 2014-2015 148 Marcos Meinerz Golpe de Estado e luta de classes: o caso argentino de 1976 171 Marcos Vinicius Ribeiro Reflexões sobre a teologia do livre mercado: democracia e livre mercado segundo o Instituto Ludwig von Mises Brasil 194 Raphael Almeida Dal Pai O Instituto Brasileiro de Filosofia: contrarrevolução e justificação ideológica da autocracia burguesa (1964-1965) Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves 219 Agradecimentos a Paulo Jeca Schulz, Carol Piva, Ana Carolina Neves, Gilberto Calil, Pedro Leão da Costa Neto, David Maciel, João Alberto da Costa Pinto, Jonas Christmann Koren, Thomaz Herler, Julius Daltoé, Alexandre de Almeida e César Saad. Apresentação Pedro Leão da Costa Neto O presente volume reúne diferentes contribuições de nove historiadores e um cientista social, apresentando-nos os resultados de suas pesquisas acadêmicas, que foram realizadas, em particular, na Unioeste de Marechal Cândido Rondon e em distintos centros de pós-graduação — UFG, UFPR, UFRGS, PUC-RS e Unesp. Tempos conservadores: estudos críticos sobre as direitas revela, em seu caráter crítico, a homogeneidade das fontes primárias consultadas, destacando-se uma forte influência do teórico marxista italiano Antonio Gramsci e seus conceitos de intelectual orgânico e aparelhos privados de hegemonia, bem como uma análise temática sobre as manifestações teóricas e práticas da direita, em escala nacional e internacional, desde os anos 1970, mas com claro predomínio de experiências das últimas décadas. Desse modo, o livro analisa manifestações da ofensiva conservadora, abrangendo as diferentes internacionais — o Golpe de Estado Militar da Argentina, em 1976; as críticas nacionalistas ao mangá Gen pés descalços, publicado no Japão em 1973 e difundido no país por mais de uma década; e a evolução da Frente Nacional francesa, entre 2011 e 2014, quando Marine Le Pen assumiu-lhe a direção. Sobre a direita no Brasil, temos um conjunto de artigos dedicados a alguns de seus intelectuais representativos (Miguel Reale, Paulo Mercadante e o polemista Paulo Francis, cujo estilo tem-se tornado um modelo para os intelectuais da direita), bem como a seus diferentes institutos de pesquisa (Instituto Millenium e sua influente divulgação das políticas neoliberais, o Instituto von Mises Brasil e o Instituto Brasileiro de Filosofia). Há também abordagens acerca da atuação do Rotary Clube em Marechal Cândido Rondon, do nebuloso universo das teorias conspiratórias e da evolução dos movimentos skinheads em âmbito nacional. 6 As discussões aqui propostas são bastante atuais, sobretudo nessa época dominada por uma ofensiva cultural e política da direita cada vez mais aberta e, necessariamente, disposta a cumprir seu objetivo e complemento econômico e social: a destruição dos direitos dos trabalhadores. Neste sentido, o livro representa uma relevante contribuição e um importante instrumento de combate à tentativa de construção de uma hegemonia conservadora no Brasil. 7 Introdução Gilberto Calil Há 30 anos era lançado o livro Tempos Conservadores,1 organizado pelo historiador equatoriano Agustín Cueva, uma obra fundamental para a compreensão dos efeitos do processo internacional de direitização na América Latina. Sob o impacto dos governos de Reagan e Thatcher, tratava-se de identificar e compreender a popularidade de teóricos reacionários como Hayek e Friedman, a seriedade com que eram tratadas pseudociências como a sociobiologia e o avanço ou retomada de fenômenos antigos como o racismo, o machismo e a xenofobia. Tratava-se então de uma “virada conservadora” — título de um capítulo escrito pelo próprio Cueva. A década seguinte veria o auge do neoliberalismo, do irracionalismo e do pós-modernismo, sob o efeito político e ideológico da queda do Muro e do desmoronamento do “socialismo realmente inexistente” (feliz expressão proposta por Edmundo Dias). A eleição de Hugo Chávez, em 1998, marcou o início de uma etapa distinta na América Latina, onde, a despeito de inúmeras contradições e ambiguidades, constituíram-se, em grande parte do subcontinente, governos situados “à esquerda”, com perspectivas reformistas em distintos graus, ainda que sempre dentro dos marcos do sistema capitalista. A despeito de seus evidentes limites, a contraposição com o período de fundamentalismo neoliberal alimentava esperanças. O ciclo de governos petistas no Brasil (2003-2016) se insere neste contexto, ainda que em um formato muito particularmente conservador e conciliador, restringindo-se a algumas políticas econômicas anticíclicas e a políticas assistencialistas focalizadas. 1 CUEVA, Agustín. Tiempos Conservadores: América Latina y la derechización de Occidente. Quito: El Conejo, 1987. A edição brasileira foi lançada dois anos depois, pela Hucitec. 8 Os atuais “Tempos Conservadores” são marcados pelo fim deste ciclo, com a derrocada ou fragilização dos chamados governos progressistas e uma violenta ofensiva ideológica da direita e, particularmente, da extrema-direita. Se em âmbito internacional este processo é marcado simultaneamente por políticas neoliberais, crescimento de partidos fascistas e por fortes resistências que se expressam de distintas formas (como a recente greve na França e a mobilização popular em torno da candidatura Sanders nos EUA), na América Latina e, em especial, no Brasil as forças de esquerda encontram-se na defensiva, com escassa capacidade de disputa hegemônica, enquanto visões de mundo conservadoras, fundamentalistas e antissociais são crescentemente compartilhadas. No Brasil atual, o avanço da direita e da extrema-direita é facilmente perceptível nas manifestações públicas, na disseminação de visões conservadoras nos terrenos social, político, econômico, cultural, educacional e moral e no avanço de articulações políticas envolvendo grupos religiosos fundamentalistas, lideranças ruralistas e tradicionais grupos políticos antipopulares. Uma obra coletiva recentemente lançada — A onda conservadora2 — colocou em destaque alguns dos aspectos e formas de manifestação desta ascensão da direita: atuação de meios de comunicação; criação e fortalecimento de aparelhos privados de hegemonia voltados à disseminação de visões de mundo reacionárias; privatizações e ajuste social; repressão policial; machismo; instrumentalização do discurso “anticorrupção”; reordenamento urbano excludente; mercantilização da vida; avanço do “politicamente incorreto” agressivo e desqualificador... Estas são algumas dentre as muitas expressões e evidências deste processo e, certamente, há muito mais a ser investigado e discutido, e neste sentido, a contribuição deste livro é certamente valiosa.3 2 DEMIER, Felipe & HOEVELER, Rejane (Orgs.). A onda conservadora: ensaios sobre os atuais tempos sombrios no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 2016. 3 Nota dos organizadores: indicamos, junto com a obra citada, o livro organizado por Sebastião Velasco e Cruz, André Kaysel e Gustavo Codas, Direita, volver! O retorno da direita e o ciclo político brasileiro (São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2015) e o amplo dossiê Direitas, política e ideologia, organizado pelo Marxismo21. Disponível em: <http://marxismo21.org/direitas-politica-ideologia>. Acesso em: 13.6.2016. 9 A disseminação de visões de mundo conservadoras e antipopulares acompanha todo o ciclo dos governos petistas e é facilitada pelas suas contradições e inconsistências e pela renúncia à confrontação ideológica por parte de um governo que era identificado como sendo “de esquerda”. A burocratização e a cooptação dos sindicatos, entidades estudantis e movimentos sociais promoveram a decapitação da direção dos subalternos e abriram caminho para que a atuação dos aparelhos privados de hegemonia controlados pela direita tivesse sua eficácia potencializada. Os efeitos deste processo são enormes e apenas recentemente foi possível que tenham se constituído à esquerda mobilizações e ações massivas comandadas por uma nova geração que já não identifica o Partido dos Trabalhadores como referência de esquerda — as mais destacadas são Jornadas de Junho de 2013 e as ocupações das escolas, iniciadas em 2015 e, atualmente, em curso em vários Estados. Os governos petistas pavimentaram o caminho para a ascensão conservadora através de um conjunto de escolhas conscientes. A intocada subordinação ao capital financeiro determinou estritos limites às políticas sociais, sobretudo em momentos de acirramento da crise. Propostas como a “Agenda Brasil”,4 apresentada pelo governo Dilma, em agosto de 2015, e caracterizada por um sistemático ataque aos direitos trabalhistas e pelo favorecimento ao grande capital favorecem a visão simplória de que “os políticos são todos iguais”, tão cara à extrema-direita que sempre se apresenta como um elemento externo ao sistema. E, para completar, a Lei Antiterrorismo — proposta pelo governo Rousseff, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidenta poucos dias antes de seu afastamento — proporciona um salto de qualidade na escalada repressiva, criando base legal para o enquadramento dos movimentos sociais como organizações terroristas. A rendição ideológica conduzida pelo Partido dos Trabalhadores é, portanto, elemento fundamental do quandro em que se dá o avanço ideológico da direita, sobretudo porque desqualifica e deslegitima perspectivas e projetos que proponham pensar a organização da sociedade em outras bases, ao mesmo tempo em que torna possível que a direita atribua à “esquerda” os perversos efeitos sociais da crise 4 Agenda Brasil (2015). Disponível em: <imguol.com>. Acesso em: 18.8.2015. 10 capitalista, mesmo permanecendo a economia gerida sob a perspectiva de total subordinação aos interesses e imposições do capital financeiro transnacionalizado. A vigência de um governo que se apresenta como sendo de esquerda, juntamente com sua opção sistemática pelo não enfrentamento ideológico contra a direita — e, na maior parte dos casos, operando mesmo a explícita reificação das premissas ideológicas do capitalismo —, ofereceu condições ótimas para o avanço da direita e da extrema-direita, ao menos até o afastamento de Rousseff. É inegável o avanço ideológico de posições socialmente conservadoras, culturalmente obscurantistas e economicamente liberais e antipopulares, aliado a uma expressiva popularização de intelectuais e lideranças políticas que podem ser caracterizadas como de extrema-direita, defendendo posições fascistizantes e um discurso violentamente antipopular. É igualmente inegável que a virulenta oposição aos governos petistas, em especial de Dilma Rousseff, é combustível decisivo para este avanço. O PT e o governo Rousseff aparecem como objeto principal contra o qual se dirige este discurso. O paradoxo é aqui perceptível: como é possível que seja apresentado como “ameaça comunista” um governo que impõe contrarreformas, mantém uma política econômica estritamente neoliberal, ainda que temperada por políticas assistencialistas focalizadas e, ainda, consegue manter parte dos movimentos sociais submissa? Tudo indica que se trata da construção de uma tropa de choque fascista, cujo crescimento é fomentado pelas misérias do governo petista, mas que visa sobretudo aos movimentos populares autônomos e às eventuais alternativas reais em processo de formação, que têm como perspectiva a construção de uma hegemonia do mundo dos trabalhadores. 11 Paulo Francis, o polemismo a serviço da agenda ultraliberal Alexandre Blankl Batista1 Franz Paul Trannin da Matta Heilborn, o Paulo Francis, chegou a ter o maior salário do jornalismo brasileiro na década de 1990. Para alguns, surpreende que o teor de seu conteúdo textual tenha sido tão valorizado durante aquela época. No final dos anos 1980 e durante os anos 1990, vários leitores espantavam-se diante dos apelos preconceituosos e conservadores de Paulo Francis em suas colunas na Folha de S. Paulo (FSP) e, depois, n’O Estado de S. Paulo (OESP). A despeito dessa fase, o jornalista tem ainda relevante incursão na produção sobre crítica cultural e cobertura da política estadunidense na imprensa brasileira durante a segunda metade do século XX. Foi também um dos maiores polemistas do país e influenciou vários profissionais da imprensa que, em boa medida, hoje, sendo também polemistas, procuram imitar algumas características de seu estilo. Paulo Francis declarava-se trotskista na juventude, tendo uma produção jornalística mais identificada com a esquerda, especialmente na década de 1960. Ao longo da década de 1970, percebe-se uma “fase de transição” em sua postura político-ideológica e, especificamente, a partir de meados da década de 1980, uma guinada ao liberalismo. Na transição da década de 1980 para 1990, Francis apresentava a sua faceta conservadora, registrando em seus textos e avaliações político-sociais o preconceito contra afrodescendentes e nordestinos, além de sua 1 Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor do Colegiado de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. 12 vulgata ultraliberal, reproduzida do pensamento único, reinante na grande imprensa brasileira naqueles tempos. Este texto objetiva apresentar alguns resultados de pesquisa, tratando brevemente do polemismo e da trajetória de Paulo Francis a partir de sua atuação na imprensa. O polemismo de Francis O polemismo, atualmente, parece ser uma ferramenta bastante difundida em blogs de internet, na televisão e em determinados espaços de jornais e revistas da grande imprensa. Tem sido apresentado para vulgarizar posições ideológicas e constituir um chamariz que atraia público, pró ou contra as ideias em pauta. Diante da popularização dos blogs, os textos de polemistas são comumente replicados nas redes sociais, tanto por simpatizantes de determinado blogueiro, para mostrar o grau de identificação com o texto replicado, quanto por opositores daquele discurso, para contrastar o ponto de vista com argumentos distintos e tentar desqualificá-lo. Na televisão, tanto aberta como a cabo, Arnaldo Jabor e Diogo Mainardi foram os primeiros a destacarem-se como os potenciais “herdeiros de Francis”. Mainardi é seu confesso admirador, tentou imitar seu estilo agressivo, permutado a certas doses de aparente erudição, quando escrevia na revista Veja. Jabor, por sua vez, foi quem ocupou espaços importantes na grande imprensa e mídia deixados por Paulo Francis.2 Sobre uma eventual pretensão de Jabor em se parecer com Paulo Francis, o jornalista Paulo Henrique Amorim conta que, em certo momento da trajetória do ex-cineasta, teria se passado o seguinte: “Arnaldo Jabor tinha acabado de saber que o Evandro Carlos de Andrade decidiu dar-lhe uma coluna diária no Jornal da Globo. No térreo do prédio da Globo, na Terceira Avenida, ele celebrou comigo: ‘Vou ser o Francis brasileiro!’. E foi” (AMORIM, 2015, p. 139). Além de Arnaldo Jabor e Diogo Mainardi, hoje, destacam-se variados polemistas, os quais, diversas vezes, lembram o “estilo Paulo Francis”. Esses 2 Nos telejornais da Rede Globo, Jabor passou a ocupar os espaços que antes eram de Francis, imitando o teor irônico e ácido de seus comentários. Tinha ainda substituído Francis na Folha de S. Paulo, quando este migrou para o Estadão. Da mesma forma, o substituiu no Programa Manhattan Connection, do qual, posteriormente, Diogo Mainardi participou. 13 profissionais não apenas ocuparam espaços deixados por ele, mas os ampliaram consideravelmente, levando em conta o advento das novas mídias e nichos da internet, não existentes na época de Francis. Entre eles, podem-se citar os escritores Reinaldo Azevedo, Rodrigo Constantino, Luiz Felipe Pondé e Olavo de Carvalho. Este último, por exemplo, como destaca Patschiki, “irá emergir na imprensa no vácuo deixado pela morte de Paulo Francis em 1997, em plena conjuntura onde a grande mídia batalhava ostensivamente pela implementação do ultraliberalismo” (PATSCHIKI, 2013, p. 35). Outros, ainda, criaram-se na esteira do antipetismo exacerbado, neste novo milênio, inaugurado após as eleições presidenciais brasileiras de 2002. Essa maneira de escrita, caracterizada pelo tom polêmico, não é apenas um estratagema político-ideológico. Tem estado em evidência e tem o seu lugar garantido nos meios jornalísticos justamente porque atrai o leitor, tanto o simpatizante quanto o opositor do sujeito que escreveu a polêmica. No caso de Francis, não faltam depoimentos alegando que essa era uma faceta importante de seus textos, ou seja, atraía tanto os admiradores quanto os opositores.3 Por estar em evidência, esse mote começa a despertar o interesse de pesquisadores, especialmente os da área de comunicação social e jornalismo, mas também os das ciências sociais em geral. Alguns estudos dão conta deste tema como estratégia para atrair a atenção do leitor, por uma questão meramente mercadológica ou como artifício para construir uma espécie de ethos, um espaço jornalístico para o qual o leitor seja atraído e permaneça interessado em virtude da polêmica (PEREIRA, 1997; WAINBERG, 2002; BISSON, 2004; PETRIK, 2006; FERREIRA, 2009). Os principais elementos do polemismo — cuja característica fundamental é a linguagem ferina — são o cinismo, a violência verbal e a ênfase na ironia. Desse modo, estimulam-se ou até criam-se casos aparentemente banais, mas que acabam tomando uma proporção maior do que a expectativa comum poderia supor, tendo em vista o ataque a pessoas, a grupos ou organizações político-partidárias e a 3 Cf. o depoimento de Boris Casoy, entre outros, no documentário CARO Francis. Direção: Nelson Hoineff. Brasil. 2010, 98 min, DVD. 14 movimentos sociais, evidenciando-se, assim, o caráter político da postura polemista. Além disso, os profissionais que adotam tal postura possuem, frequentemente, laços orgânicos com aparelhos privados de hegemonia, visando determinado projeto de classe ou atuando como vulgarizadores de certa agenda ideológica. Da mesma forma, o “politicamente correto” tem sido desqualificado e até ridicularizado como uma perspectiva de hipocrisia político-filosófica. Mostram-se, então, os traços conservadores que visam legitimar uma postura reacionária frente a temas progressistas, como a contraposição agressiva à atitude feminista e a discussões sobre gênero, por exemplo, ou à aceitação social da homossexualidade, dentre outros assuntos. O mais curioso é que tais posturas são colocadas pelos seus autores como “corajosas”, ou como “desafiadoras do lugar comum” e dos “posicionamentos intelectuais abjetos”.4 Francis foi um precursor recente dessa faceta, pois reunia em seus textos boa parte dos elementos elencados acima. A linguagem ferina de Paulo Francis, no entanto, sempre foi uma característica de seus textos, mesmo em sua fase declaradamente trotskista. 5 Todavia, é importante lembrar que, antigamente, especialmente nos anos que precederam o golpe de 1964, a imprensa brasileira era bastante incisiva em suas críticas sobre política, assumindo a parcialidade editorial e estimulando a verve de seus colunistas. Naquele ambiente é que se forjou o polemismo de Francis, ainda quando era crítico teatral nos anos 1950. Na década de 1960, adaptou seu estilo para atacar outro polemista da época, o famoso político e jornalista Carlos Lacerda. No jornal Última Hora, entre 1962 e 1964, quando Paulo Francis atuava como colunista político, é que se moldou boa parte do seu “polemismo político”. A primeira de suas polêmicas famosas, no entanto, aconteceu em 1958, quando era crítico teatral do jornal Diário Carioca e atacou a atriz Tônia Carrero, deixando entender que ela ascendera na carreira apenas por sua beleza. Além disso, 4 MAINARDI, Diogo. Acabou o antídoto contra o abjeto. In: Revista Veja, ano 30, n. 6, 12.2.1997, p. 79. 5 Apesar de Francis, ao que parece, nunca ter militado em uma organização trotskista, em sua atuação jornalística na década de 1960 percebem-se indícios de posturas estratégicas que vão ao encontro do trotskismo brasileiro de então. Entre eles, a defesa do brizolismo no pré-golpe de 1964 e a simpatia pelo “nacionalismo militar” de Gal Afonso Augusto de Albuquerque e Lima, em plena ditadura, às vésperas do AI-5. 15 insinuava que a atriz dormia com seus colegas de palco e que informantes lhe teriam oferecido, a ele, Francis, fotos provocantes de Tônia, em poses sensuais, publicadas em uma revista pornográfica dos EUA. A reação imediata veio de Adolfo Celi, produtor de Tônia Carrero, que teria dado uma bofetada no jornalista, e do colega de Tônia nos palcos, Paulo Autran, que, ao término de uma peça teatral em que Francis fazia-se presente, soltou-lhe uma cusparada no rosto (MOURA, 1996; NOGUEIRA, 2010). Houve outros ataques pessoais de relevante repercussão, como aqueles direcionados a Carlos Lacerda, no Última Hora, chamado de “fascista” ou “Her Carlos”; a Roberto Marinho, n’O Pasquim, classificado como “um homem chamado porcaria”; e a Roberto Campos, em diversos momentos, e em vários periódicos de imprensa, compreendido como o grande vilão da nação brasileira.6 Do mesmo modo, Caetano Veloso, na FSP, foi menosprezado por Francis, acusado de subserviente diante de Mick Jagger, em uma entrevista, ao que Caetano respondeu, chamando-o de “bicha amarga”. No mesmo jornal, tornaram-se muito conhecidas as polêmicas e ataques ao primeiro ombudsman da FSP, Caio Túlio Costa, ao Partido dos Trabalhadores, de modo geral, a Luiz Inácio Lula da Silva e Luíza Erundina, em particular. Ainda, disparou impropérios e difundiu preconceitos contra nordestinos e a afrodescendentes. Quando atuou n’OESP, Francis conviveu com dois processos acarretados por sua “língua afiada”. Ao referir-se, seguidamente, a Eduardo Suplicy como “Mogadon” (medicamento que, entre os seus efeitos colaterais, deixa o usuário sonolento), foi proibido pela justiça de mencionar o nome dele em suas colunas. O processo movido pelos diretores da Petrobrás também data dessa época, mais precisamente de 1996. No entanto, embora Paulo Francis tivesse feito acusações semelhantes, antes, no próprio jornal, aquele processo teria sido motivado em virtude de uma manifestação do jornalista no programa Manhattan Connection, acusando os diretores da estatal de manterem contas secretas na Suíça, oriundas, supostamente, de desvio de dinheiro público. 6 A partir de 1985, contudo, Francis passava a considerá-lo um grande intelectual, uma espécie de referência na área político-econômica. 16 Da mesma maneira, o jornalista direcionava ataques de agressividade verbal de menor repercussão, mas com teor igualmente ácido, bem como manifestava com proeminência seus rancores políticos e viés ideológico. Parte deles são suas diversas manifestações contrárias, ao longo dos anos 1980 e 1990, ao Movimento Sem Terra e à Central Única dos Trabalhadores, aos grevistas de várias categorias, ao ensino público (considerado ineficaz), a diversos grupos estatais, ao Partido Comunista Brasileiro, à esquerda brasileira em geral, aos professores universitários com viés marxista, especialmente os lukacsianos, mencionados em fins dos anos 1970 em textos da FSP, e os gramscianos, mais citados nos anos 1980. A polêmica de Paulo Francis também parece conservar um estreito limite entre o caráter informativo do jornalismo e a forma de expor o ponto de vista de maneira descompromissada. Em parte, isso explicaria os diversos erros e imprecisões cometidas por ele, além das trocas de datas e nomes. A confiabilidade das fontes e a checagem das informações parecem ficar em segundo plano frente ao impacto do que se quer dizer ou fazer pensar. Segundo Paulo Henrique Amorim, que conviveu de perto com o polemista no escritório da Rede Globo de TV, em Nova Iorque, Francis, a certa altura, não escrevia mais as colunas para a Folha — até ser defenestrado — e depois para o Estadão e O Globo. Apenas se deitava na cadeira da redação, usava o telefone da Globo e ditava a coluna — geralmente em torno do que tinha acabado de gravar. Outras vezes, no auge da crise da dívida, ele dizia: “Conversei com um banquei-ro…” E espinafrava o Brasil. Geralmente, o “ban-quei-ro” era o Pimenta das Neves, funcionário subalterno do serviço de imprensa, em Washington, do Banco Mundial, outro que espinafrava o Brasil no Estadão. Ou Francis se baseava num relato precário de um produtor d’O Globo e da Globo, Régis Nestrovski, que ia às coberturas da dívida e captava o que cabia nos termos do futebol americano, tema em que se especializou (AMORIM, 2015, p. 138). É esclarecedor constatar que uma das causas que o aborreceram na polêmica contra o ombudsman, na FSP, foi o fato de Caio Túlio Costa afirmar, em 17 certo momento, que Francis não faria jornalismo na Ilustrada: 7 “Ali ele é mais o Francis ficcionista, o cronista dos tempos, diz besteiras e coisas sábias. Escreve o que muitos pensam e não ousam falar em voz alta. É preconceituoso, vulgar, chuta alguns dados […]” (COSTA, 2006). O exemplo torna-se simbólico, referente ao legado que Francis deixou, já que um de seus pretensos imitadores de estilo, ao que parece, acabou sendo defendido com o mesmo argumento de que não deveria ser levado a sério. Este foi o caso de Arnaldo Jabor, tendo a incumbência de comentar sobre política nos telejornais da Rede Globo.8 Por tudo isso, não é à toa que Francis tornou-se um guru para vários jornalistas controversos e polemistas brasileiros contemporâneos. Foi assim com Rodrigo Constantino e Diogo Mainardi, desde cedo apontados como pretensos prodígios, potenciais continuadores do estilo Francis. Ele também tem sido a referência para Arnaldo Jabor nos seus comentários televisivos, para Reinaldo Azevedo (que se diz ex-trotskista, a exemplo do que ocorria com Francis) e até para Olavo de Carvalho, que combina uma linguagem de baixo calão com aparência de erudição. Aquilo que Bernardo Kucinski chamou de “método Paulo Francis”, ou “Paulo Francis, uma tragédia brasileira” tem protelado a incumbência de “chocar e divertir”, como dizia o autor, e menos informar (KUCINSKI, 1998), o que vai contra a essência de um jornalismo feito com maior seriedade. 7 Em depoimento para o documentário CARO Francis, já citado, Daniel Piza relata: “Chamar de cronista, neste contexto, é uma coisa meio negativa… ‘Ah, não é um jornalista!’ E ele era um jornalista, só que um jornalista de opinião”. 8 Luiz Carlos Azenha relatou o seguinte sobre Jabor, quando explicava um caso de assédio moral que teria sofrido, relacionado ao processo político eleitoral de 2006: “Argumentei, então, que o comentarista de política da Globo, Arnaldo Jabor, havia dito em plena campanha eleitoral que Lula era comparável ao ditador da Coreia do Norte, Kim II-sung, e que não acreditava ser essa postura compatível com a suposta imparcialidade da emissora. Resposta do editor, que hoje ocupa importante cargo na hierarquia da Globo: Jabor era o ‘palhaço’ da casa, não deveria ser levado a sério”. AZENHA, Luiz Carlos. Globo consegue o que a ditadura não conseguiu: calar a imprensa alternativa. In: Carta Capital, 30.3.2013. Disponível em: <www.cartacapital.com.br>. Acesso em: 31.3.2013. 18 Trajetória jornalística e virada ideológica de Francis Podemos identificar os principais motes da atuação intelectual de Paulo Francis, entre a década de 1960 até o seu falecimento, no início de 1997, tentando compreender sua atuação orgânica em determinados momentos e, em outros, uma indefinição quanto ao apoio de agendas políticas, junto aos periódicos de imprensa para o quais escrevia. Nesse percurso é preciso destacar tópicos como o processo de sua transformação ideológica e os momentos em que desempenhou o papel de intelectual orgânico, na defesa de agendas socioeconômicas e no apoio a programas políticos e a certos candidatos em determinados pleitos eleitorais. Desse modo, é preciso esclarecer que, durante a trajetória intelectual do jornalista, projetam-se fases ideológicas distintas. Paulo Francis descobriu o trotskismo na década de 1950 e, após o golpe de 1964, sofreu o impacto oriundo do advento da ditadura, que impôs um período de mais de vinte anos de repressão político-social ao país. Decorreria daí uma gradual transformação de sua postura intelectual, passando da esquerda para a direita do espectro político, apresentandose como um vigoroso defensor da agenda ultraliberal implantada no país na década de 1990 e tornando-se hegemônica na grande imprensa a partir daquela mesma época. Parte dessas informações, grosso modo, com alguma variação interpretativa, encontra-se nas avaliações de seus principais biógrafos e em certos artigos e dissertações acadêmicas sobre o jornalista. Assim, objetivamente, vamos tentar identificar as prerrogativas que, de uma forma ou outra, estiveram associadas às mudanças que o seu perfil ideológico foi tomando. Uma das questões importantes diz respeito ao seu propalado trotskismo. Notamos em nosso estudo que Francis, aparentemente, jamais militou em quaisquer organizações trotskistas, talvez desconhecesse boa parte delas ou, pelo menos, não as mencionava em seus textos, limitando-se a falar sobre Leon Trotsky ou acerca de seus comentadores. Uma obra em particular parece tê-lo marcado. Trata-se da conhecida trilogia biográfica sobre Trotsky, escrita por Isaac Deutscher. Paulo Francis chegou a participar da equipe editorial de tradução brasileira dessa obra, publicada no final da década de 1960 pela Civilização Brasileira, editora de seu amigo Ênio Silveira. Não é possível descartar completamente uma atuação de 19 Francis em torno das estratégias do trotskismo brasileiro, na época, e das teses de suas organizações militantes. Sabe-se, por exemplo, que o Partido Operário Revolucionário Trotskista (POR ou PORT), no Brasil, defendeu as teses do trotskismo argentino de vertente posadista, especialmente a partir de 1963, quando passou a defender o nacionalismo de Leonel Brizola até antes do golpe de 1964, além de alinhar-se ao “nacionalismo militar” de Albuquerque e Lima, em meio à ditadura (PEREIRA NETO, 2003). Essas posturas encontram simetria com os escritos de Francis, primeiro no jornal Última Hora, onde atuou até 1964, depois no Correio da Manhã, onde escreveu até o final de 1968. Dessa forma, em sua atuação jornalística pré-1964, mais do que defender Brizola, alinhou-se ao “bloco populista” identificado com lideranças do PTB, alternando, por vezes, apoio condicional com críticas mais contundentes ao então presidente João Goulart. O jornal Última Hora, em seu editorial, assim como em muitos dos textos do próprio Francis, estava focado em defender o governo Goulart e atacar seus adversários políticos, sobretudo o então governador da Guanabara, Carlos Lacerda. Portanto, pode-se dizer que o jornalista teve papel conectivo como intelectual, atuando a favor da permanência daquele bloco no poder, predicando um projeto nacionalista de desenvolvimento econômico e social do país. Para isso, utilizou-se do jornalismo diário, adotando, embora com alguma reticência, o perfil editorial da Última Hora, em que apontava caminhos possíveis, tentando persuadir os leitores, por meio de suas ideias, de prováveis soluções dos problemas enfrentados pelo governo brasileiro de então. Todavia, é necessário deixar claro que esse chamado “bloco populista” não era coeso. Entre outras divergências e disputas, havia o enfático interesse de Brizola em liderá-lo. No jornal Última Hora, o jornalista e repórter Samuel Wainer, chefe do jornal, era amigo de João Goulart e o defendia como a principal liderança do PTB. Paulo Francis, ao contrário, deixava clara a sua predileção por Leonel Brizola em vários de seus artigos naquele mesmo periódico. Além disso, existem dados que confirmam Francis como um atuante intelectual orgânico do brizolismo, por um curto período, entre o final de 1963 e 1964. Ainda no final de 1963, tornou-se membro de um dos “grupos dos onze”, os quais foram concebidos por Leonel Brizola (em 29 de 20 novembro de 1963, Brizola anunciava a concepção de formação desses grupos em um de seus programas na rádio Mayrink Veiga). Além disso, Francis foi um dos principais articulistas do efêmero jornal O Panfleto, que circulou entre fevereiro e março de 1964, tendo apenas sete números publicados. Esse jornal, pouco estudado até hoje, foi organizado por Brizola para divulgar as suas pretensões nacionalistas e demais estratégias políticas.9 A crítica político-social e a condenação ao chamado “stalinismo” — elementos claramente ligados ao trotskismo — só viriam mais delineadas na produção textual de Francis no período pós-1964. Nesse momento, os seus textos expressavam, fundamentalmente, a preocupação com a falta de liberdade intelectual. Não foi coincidência que esse assunto ganhou dimensão em seus artigos a partir de então. Francis chegou a escrever bastante contra a ditadura civil-militar brasileira em suas colunas do Correio da Manhã e em artigos para a Revista Civilização Brasileira. No entanto, após o AI-5, seus artigos passaram a refletir indiretamente sua insatisfação com a situação nacional, apontando exemplos externos à realidade do país. O regime político soviético foi alvo constante de seus textos para O Pasquim, bem como o exemplo do regime cubano, ambos apontados como ditaduras que cerceavam e reprimiam a liberdade de expressão e a vontade individual dentro do conjunto social. Anos mais tarde, Francis argumentava que essas suas posturas comprovavam que nunca fora conivente com certas práticas da esquerda brasileira, essencialmente as defendidas pelo PCB, pois a crítica ao stalinismo seria produto de sua formação trotskista. Consideramos que, de fato, essa conduta esteve presente na trajetória de Francis, sendo inaugurada, mais evidentemente, após o AI-5, quando publicou um longo artigo para a revista Realidade, em 1969, seguindo linha semelhante em sua produção para O Pasquim. Apesar disso, é difícil encontrar em seus textos uma defesa explícita do trotskismo. Até mesmo eventuais inclinações à esquerda, supostamente vinculadas ao marxismo, na prática, são difíceis de 9 A historiadora Elenice Szatkoski publicou recentemente o resultado de sua pesquisa de doutorado, estudando e analisando o conteúdo deste jornal, o qual se encontra, segundo ela, preservado apenas no acervo da Fundação Alberto Pasqualini, no Rio de Janeiro (SZATKOSKI, 2014). 21 identificar, haja vista a sua atuação orgânica pré-1964 junto ao projeto nacionaldesenvolvimentista perseguido pelo PTB, no Última Hora, e reafirmada em seus textos produzidos antes do AI-5, quando apoiou abertamente, mesmo com alguma hesitação, a corrente nacionalista da ditadura, contrária à corrente representada por Castello Branco. Francis afirmava-se continuamente como um intelectual pragmático, bradando a necessidade de optar sempre pelo “mal menor”. A postura antistalinista foi uma prerrogativa de vários intelectuais de prestígio, reconhecidos mundialmente durante a Guerra Fria. A própria CIA teria utilizado e estimulado a produção desses intelectuais como forma de reforçar a propaganda antissoviética, dentro e fora dos EUA (SAUNDERS, 2001). Entre eles, encontravam-se vários trotskistas. Paulo Francis envolveu-se profundamente naquele caldo de cultura, já que acompanhava as tendências intelectuais diretamente a partir de diferentes publicações da grande imprensa estadunidense. Não é incorreto aventar que tenha contribuído, mesmo que involuntariamente, para a desejável propaganda ocidental por parte do establischment anticomunista do período. N’O Pasquim, por exemplo, foram comuns comentários seus argumentando sobre a degenerescência do Estado soviético: Algumas pessoas me consideram inimigo profissional da União Soviética. Ainda não me chamam, que eu saiba, de lacaio da embaixada americana, talvez porque eu seja um crítico tão veemente do imperialismo americano como do soviético, mas conhecendo a intolerância de certos tipos e os antolhos que usam, acho que esse dia chegará. Respondo que lido com fatos. […] À parte realizações materiais, considero a URSS um Estado bárbaro (FRANCIS, 1970, p. 10). Afinal, ao passo que tecia críticas aos EUA por conta do intervencionismo militar (Francis denunciou avidamente os graves e violentos excessos cometidos pelos EUA no Vietnã), elogiava o ambiente de maior liberdade individual encontrada naquele país comparado com países de orientação comunista no cenário mundial da época. As críticas mais intensas aos EUA foram diminuindo na mesma proporção em que aumentava sua aversão à URSS e ao PCB, coincidindo com seu exílio voluntário nos EUA e o ingresso na grande imprensa paulista, no jornal FSP, a partir do final do 22 ano de 1975. No entanto, sua autodeclarada virada ideológica viria em fins dos anos 1970, incorporando elementos novos nos anos subsequentes. Em 1979, por exemplo, declarava na FSP que havia abandonado a esquerda e, conforme dizia, não acreditava mais no socialismo. Assim, confirmava não só ceticismo que já era possível perceber em seus romances Cabeça de Papel, de 1977, e Cabeça de Negro, de 1979, mas também demonstrava uma clara mudança, mais ponderada, quanto à reavaliação de suas críticas políticas, percebidas n’O Pasquim. Sugerimos que sua ponderação naquele momento foi motivada pela repressão do regime ditatorial e foi também um produto de sua revisão em sua condição de intelectual. É difícil assinalar uma posição de organicidade de Francis naquele período, que decorre de sua participação n’O Pasquim, em 1969, até os primeiros anos da década de 1980. Uma publicação, com um título significativo, que já refletia bem a hesitação em suas posições ideológicas, foi Certezas da Dúvida, de 1977, quando expunha uma síntese de suas reflexões intelectuais ao longo da década de 1970. Nessa época, Francis vacilava em apontar caminhos e soluções para os problemas sociais, econômicos e políticos nos âmbitos nacional e mundial. Para ele, os modelos experimentados no capitalismo e no socialismo não serviam. Observava que, na verdade, não havia socialismo nos países do Leste Europeu e em parte alguma. Todas as experiências nesse sentido teriam se transformado em regimes tirânicos e perversos. É bastante expressivo o fato de que pouco tenha argumentado em favor de uma proposição ou projeto social de cunho trotskista como alternativa ao poder constituído no período. Ao contrário, enfatizamos este ponto, percebe-se que jamais militou a favor do trotskismo, sendo, no máximo, um simpatizante de comprometimento distante com a causa e com suas ramificações e organizações. Em fins dos anos 1970, Francis chegou a flertar com o chamado “eurocomunismo”, elogiando em suas colunas para a FSP as concepções democráticas que, segundo ele, guiariam o perfil daqueles projetos elencados por certos PC’s da Europa. A debilidade daqueles projetos, entretanto, parece ter tirado as últimas crenças do jornalista em relação à possibilidade socialista. É preciso frisar que, em 1979, quando declarava o abandono do socialismo, ainda permaneceu 23 hesitante quanto a posições ideológicas melhor definidas. A síntese dessa postura é identificada em várias passagens de seu primeiro livro de memórias, O afeto que se encerra, publicado em 1980. Um ano depois, a partir de 1981, foi contratado por Roberto Marinho, o mesmo que ele havia insultado n’O Pasquim, chamando-o de “porcaria”. Sua figura pública colocou-se em maior evidência com as frequentes inserções de seus comentários nos telejornais da Rede Globo de TV. Paulo Francis, então, começou a tornar-se mais popular, também, devido às imitações que os humoristas realizavam de sua performance caricata enquanto apresentava suas crônicas internacionais nessas inserções televisivas. A sua “virada ideológica assumida” somente se completaria em meados dos anos 1980. Precisamente em 1985, no mês de fevereiro, Francis escrevia uma coluna redimindo o até então desafeto Roberto Campos. O economista foi alvo histórico de Francis, execrado desde os seus escritos para o Última Hora, passando pelo Correio da Manhã e pela FSP, em diversas colunas do jornalista. A partir de então, Francis não apenas eximia Campos de boa parte dos males que afligiam o país, como o tomava por guru e grande intelectual brasileiro. Era o início de sua condição orgânica em favor da construção de uma agenda ultraliberal para o país, que se tornaria mais evidente na década de 1990, mas que tinha seus primeiros elementos constitutivos já nesta época. Conforme Francis: Roberto Campos é um guerreiro. Pouca gente é tão odiada no Brasil. […] Mas Campos é respeitado, intelectualmente. Não é um adversário fácil, num debate. Melhora horrores, em pessoa. […] Escrevi coisas brutais sobre Campos. São erradas. Retiro-as. “Como eu não ia dizendo…”. Acontece. Nunca tive a pretensão de ser santo milagreiro. Corro os riscos que sempre levam a erros. […] Mas cheguei à conclusão que capitalismo num país rico é opcional. Num país pobre, no tipo de economia inter-relacionada do mundo de hoje, a suposta saída que se propõe no Brasil de o Estado assumir e administrar, e é o que mais leio neste jornal, leva à perpetuação da miséria, do atraso, da estagnação. Capitalismo no Brasil é uma questão de sobrevivência. […] O que ele [Campos] propõe no Brasil é mais adequado à nossa realidade econômica e social. Ele tem sido xingado por muita gente. É tolice. Se os recursos que o Estado brasileiro canalizou para o estatismo tivessem sido postos ao dispor da iniciativa privada, o Brasil hoje seria uma potência de peso médio e talvez mais. E quanto mais gananciosos os capitalistas, melhor. Ganância é sinônimo de ambição. Se ganha 24 dinheiro no capitalismo produzindo e vendendo, produzir e vender requerem garra e gana, ambição. Ganhar dinheiro requer criação de empregos e mercados (FRANCIS, 1985). Não é coincidência que a FSP, jornal em que atuava, passava por transformação idêntica. A FSP alterava seu perfil editorial exatamente naquele ano, mais precisamente entre julho e agosto de 1985 (FONSECA, 2005). Até aquele momento, o jornal defendia um modelo de desenvolvimento capitalista próximo ao que se entende por “nacional-desenvolvimentismo”, bastante similar àquele com que Paulo Francis simpatizava desde que começou no jornalismo político. Essas posturas confluentes, possivelmente, integraram um grande redirecionamento das classes e frações de classes dominantes, refletidas pela grande imprensa e grande mídia, como resposta à crescente crise econômica e política há tempos sentida no país, oriunda de fatores internos (aumento inflacionário, instabilidade social e econômica) e externos (crise do petróleo, ascensão de um neoconservadorismo nos países centrais do capitalismo mundial, descrédito e penalizações impostas pelos organismos internacionais aos países latino-americanos, etc.). Tudo isso desgastou a ditadura civil-militar e foi parte dos elementos causais que conduziram o país ao processo de transição do governo militar para o governo civil em meados dos anos 1980. A partir de então, Paulo Francis tornou-se, gradativamente, um dos grandes vulgarizadores da agenda ultraliberal aconselhada pelos grandes organismos internacionais, mediadores do controle da economia mundial capitalista, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, tendo respaldo e amparo insinuantes dos EUA para a concretização daquela agenda, formalmente instituída a partir do Consenso de Washington, em 1989. A mesma recomendava o equilíbrio fiscal, exigindo corte de gastos estatais, diminuição da máquina pública e estímulo às privatizações e à abertura dos mercados econômicos. Paulo Francis foi um insistente e agressivo agente defensor das privatizações do setor público brasileiro, seguindo muitos argumentos formulados pelo antigo desafeto Roberto Campos, tentando convencer seus leitores sobre a suposta ineficiência irrecuperável das grandes estatais nacionais e do sistema de ensino público. 25 Na mesma proporção de sua atuação orgânica ultraliberal, cresceu a sua aversão aos socialmente desfavorecidos, o seu preconceito racial e regional e, sobretudo, o seu anticomunismo. Acreditamos que essas características são indissociáveis da própria agenda ultraliberal. É necessário lembrar que, na década de 1980, tanto nos EUA como na Inglaterra, multiplicaram-se os discursos de ódio e de aversão ao “terceiro-mundismo”, ao comunismo, ao socialismo e às minorias raciais (CUEVA, 1987). O polemismo de Francis sintetizou todos esses elementos em um só alvo, no final dos anos 1980, ao atacar a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva à eleição para a Presidência da República. Na oportunidade, hostilizava o fato de Lula ser, em primeiro lugar, supostamente ignorante, porque era oriundo do Nordeste brasileiro, além de não ter frequentado as cátedras superiores de ensino; em segundo lugar, por sustentar uma ideologia socialista, na contramão de tudo o que estaria acontecendo na Europa e no restante do mundo. Segundo Francis, essas seriam características que o desqualificariam para o posto de Presidente da República. Conforme ele mesmo explica: Mais um amigo por dentro e inteligente com quem almoço. […] Pergunto-lhe quem vai ganhar a eleição. Lula. Temos de ir ao fundo do poço. Chafurdar. A ala albanesa dos petelhos, prevê meu amigo, proporá legislação, porque é uma das treze alas do PT. Marilena Chauí convocará reunião ministerial para determinar se é democrático que haja serventes que varram os ministérios. […] Lula nos coloca au niveau de Cuba e Nicarágua. É uma besta quadrada. Não sabe de nada do que está falando […]. Com Lula, seriam porteiras abertas. O cangaço se tornaria nacional e prestigiado pelo governo federal. As classes produtoras se defenderiam. Entropia. Sudão. Já escrevi aqui várias vezes que todo mundo que conheço que pesa acha que Lula leva a eleição. […] Com Lula o dinheiro todo brasileiro já foi ou vai embora. Só quem não puder tirar é que deixará qualquer coisa aí. E as estatais vão falir e a hiperinflação vem. […] Adverti daqui o leitor de que não dissesse “pior do que Ribamar não pode haver”. Há Lula. Os petelhos, Érundíina, que se parece com Jeff Chandler, a República do paraíba, do pérapado, e, como diz Veja, Lula se assemelha ao eleitor médio... (FRANCIS, 1989). Analisando-se as diversas colunas de Francis na FSP, percebe-se claramente a sua procura, a exemplo do editorial do próprio jornal em que publicava 26 seus textos, por um candidato que representasse os pressupostos da agenda por ele vulgarizada. O apoio a Collor de Mello fora circunstancial e estratégico. Embora ele não fosse o candidato ideal, era o mais próximo do projeto que Francis defendia, especialmente pelo anticomunismo declarado e pela promessa de abertura da economia brasileira. A grande imprensa nacional, de maneira geral, teve posição semelhante, apoiando-o nas eleições, visivelmente no segundo turno, mas sendo reticente no início de seu mandato, além de tomar cuidados ao apoiar as metas de seu governo. Depois da famosa ação de confisco das poupanças, da dificuldade de sustentação das bases e dos escândalos de corrupção, a grande imprensa foi rapidamente abandonando o apoio ao governo e endossou a cassação do mandato do Presidente. Nesse lapso de tempo, Francis já havia trocado o jornal FSP pelo rival, OESP. Neste periódico, de posição editorial semelhante à FSP, quanto à vulgarização e adoção da agenda ultraliberal no país, mas com de viés mais conservador (FONSECA, 2005), Francis consolidou sua posição ultraliberal. Provavelmente, em nenhum momento precedente de sua carreira jornalística tenha sido tão lido quanto nos anos 1990. É necessário lembrar que o contrato com a FSP exigia exclusividade, ao passo que o contrato com OESP permitia que seus textos fossem publicados em jornais de outros Estados. Desse modo, Francis passou a colaborar com O Globo, no Rio de Janeiro, o Zero Hora, no Rio Grande do Sul, dentre outros periódicos, tornando-se, nessa época, o jornalista mais bem pago do país. Seu sucesso esteve ligado ao seu potencial de gerar polêmicas, ao seu estilo de polemismo calcado na ironia e no cinismo, pautado em uma peculiar erudição, reconhecida por alguns e muito contestada por outros, haja vista os diversos erros que cometia e os imponderados julgamentos que fazia. Certos analistas como Luís Augusto Fischer (1998), Carlos Bissón (2004) ou mesmo Isabel Lustosa (2000) reconhecem certo valor literário, e até histórico, em seu estilo jornalístico, ou mesmo sua importância como divulgador cultural de obras literárias e de produções musicais e cinematográficas. Entretanto, não é objeto de nossa análise realizar semelhante avaliação de estética literária. Este artigo, em particular, e nossa pesquisa, de forma geral, tentam sobretudo evidenciar a importância que Francis teve dentro da 27 imprensa brasileira como comentador da política nacional. Neste sentido, não cabe insistir dizendo que sua trajetória representou um saldo positivo ou negativo para a nossa história e a história da imprensa no país, e sim reforçar que, de fato, Francis cumpriu um papel importante como intelectual de imprensa e colunista político. Sua organicidade e status jornalístico, percebidos em diversos momentos de sua carreira profissional, atestam sua importância como intelectual, tanto mais próximo à esquerda quanto à direita do espectro político. O último ponto que destacamos sobre sua trajetória intelectual diz respeito à sua avaliação do golpe e da ditadura civil-militar no Brasil. Em um momento bastante confortável da carreira, ao publicar, em 1994, seu segundo livro de memórias, Trinta anos esta noite, Francis sintetiza várias impressões de sua visão contextual sobre a ditadura brasileira, seus agentes, suas causas e consequências para o processo histórico brasileiro. Imbuído do comprometimento com a agenda ultraliberal, o jornalista realiza uma verdadeira revisão de algumas das suas leituras feitas anteriormente sobre o período, como no imediato pós-1964. Entre outros temas, destacam-se o seu silêncio sobre a ação e o envolvimento empresarial durante o regime; a relativização do conceito de golpe de Estado, ao tratar acerca dos episódios que marcaram 1964; a sobrevalorização de sujeitos atomizados como condutores dos acontecimentos, em detrimento de grupos sociais, classes ou quaisquer representações coletivas; e a minimização do papel dos EUA no golpe e na manutenção da ditadura brasileira (BATISTA, 2012). A maioria dessas posições são conciliáveis com a revisão que tem sido reproduzida por importantes empresas jornalísticas da grande imprensa nacional, como o Grupo Folha, as Organizações Globo e a editora Abril. Nos editoriais d’OESP, também prevalecem alguns elementos elencados na interpretação de Francis resumida acima. A questão fundamental, talvez, diga respeito à “interpretação liberal”, que é reforçada pela grande imprensa, e que ganhou importante divulgação na coleção publicada, a partir de 2002, pelo também jornalista Elio Gaspari (2002). Para Gaspari, assim como para Francis, o período presidido pelo ditador Castello Branco representou uma importante renovação econômica, materializada em um projeto com feições liberais que previa maior abertura do mercado brasileiro e foi 28 contraposto pela ala nacionalista de Costa & Silva. Segundo Gaspari, Castello Branco tinha a intenção de retomar o processo democrático, sendo essa fase da ditadura intitulada de “envergonhada” pelo autor. Porém, esse termo não foi criação de Gaspari, uma vez que ele já constava nas análises de Francis, em Trinta anos esta noite, embora num sentido mais amplo, para designar as sucessões de lideranças no interior do mais alto escalão do regime ditatorial (FRANCIS, 1994). Gaspari e Francis eram amigos e essa sociabilidade, de maneira geral, guardava mais afinidades acerca do tema em questão, em seus aspectos fundamentais, do que divergências. A ideia de “ditadura envergonhada” também diz respeito a uma tentativa de atenuação das perversidades cometidas durante o regime ditatorial no Brasil. A comparação com outros regimes congêneres latino-americanos, como o argentino e o chileno, por exemplo, sugere que esses regimes não poderiam ser comparados com o caso brasileiro, tendo em vista que produziram maior contingente de mortos e desaparecidos. Essa é a mesma lógica adotada pelo conhecido editorial da FSP, de 17 de fevereiro de 2009, que apresentou o período de mais de vinte anos de ditadura no Brasil como uma “ditabranda”. A revista Veja, da editora Abril, também utilizou, entre a década de 1990 e início dos anos 2000, um expediente semelhante ao dos demais veículos da grande imprensa, evidenciando a voz dos militares e sua versão dos acontecimentos. Em cada uma dessas falas, e no conjunto delas dentro das diferentes edições da revista, a ditadura é claramente apresentada como um mal necessário para evitar uma suposta ditadura de esquerda e a consequente contenção do comunismo (SILVA, 2013). A grande imprensa nacional, em especial a do centro do país, tem realizado um “trabalho pedagógico” notório em relação à interpretação da natureza da ditadura brasileira, agregando à atuação de seus (considerados) protagonistas as (vistas desta forma) inevitáveis limitações da democracia no período e o levantamento de “saldos positivos” resultantes das opções práticas adotadas na época. A disputa pelo consenso não se dá apenas em âmbito meramente jornalístico, mas também na divulgação de obras acadêmicas oportunas e mais próximas deste conjunto elencado de concepções. 29 Diante disso, temos mais um significativo aspecto do intuito “pedagógico” de Francis. Ao dispor de uma série de argumentos para vulgarizar a agenda ultraliberal em suas variadas publicações, utilizava o polemismo, o status e o lugar privilegiado que dispunha na imprensa, com amplo espaço para expor suas ideias. Consequentemente, além de comentar o cotidiano e a rotina das estratégias políticas e econômicas, envolvendo a situação do país e sua interação com a realidade internacional, o polemista voltava seu olhar para o passado e interpretava a história, usando exemplos considerados positivos e agregadores para o desenvolvimento socioeconômico brasileiro, mesmo no interior do regime ditatorial. Assim, foi um dos precursores importantes dos trabalhos de Gaspari e da construção consensual que vem se formando na grande imprensa a respeito da interpretação da ditadura-civil militar brasileira. Entretanto, sobre uma eventual contribuição acerca da interpretação geral do período, na época em que escreveu, não trouxe nada de muito original, nem mesmo fontes inéditas, transformando Trinta anos esta noite, hoje, no nosso modo de ver, em mais uma produção memorialística do cenário histórico nacional de outrora, importante, porém, para compreender esse movimento de construção hegemônica a respeito das explicações que tentam dar sentido aos episódios do período. A produção de Francis na imprensa, entre 1962 e 1975, até o momento, foi pouco estudada e, por coincidência ou não, é pouco exibida e esmiuçada, tanto pela grande imprensa quanto pelos seus biógrafos. Francis ocupou espaços importantes nos periódicos Última Hora, Correio da Manhã, Revista Civilização Brasileira, O Pasquim e Tribuna da Imprensa. Durante a ditadura, alternou a postura mais agressiva com um posicionamento mais defensivo e reticente referente a uma estratégia de ação, fazendo uma oposição que variava de um discurso mais incisivo e combativo, contra alguns dos generais que disputavam o poder entre 1964 e 1968, até um distanciamento político mais hesitante a partir de 1969, pós-AI-5. 30 Considerações finais Certos estudiosos da trajetória de Francis o colocam como um intelectual independente, sem vínculo significativo com as empresas jornalísticas em que atuou ou sem qualquer compromisso com agrupamentos sociais próximos ao poder. Nosso posicionamento é de que não foi bem assim. A própria sociabilidade de Francis comprova o contrário. Quando seu núcleo de amizades e ambiente profissional estiveram circunscritos a profissionais de determinados jornais, próximos de um projeto nacional desenvolvimentista, ou mesmo identificados com setores da esquerda, o jornalista aproximou-se de tais posicionamentos políticos. Mudando-se para Nova Iorque, foi adquirindo status como jornalista, ingressou na grande imprensa e passou a conviver com grandes empresários, banqueiros e a frequentar os bastidores do poder político, de modo que se aproximou da direita. Foi nessa época que travou amizade com homens como Delfim Neto e, posteriormente, com Roberto Campos, civis respeitados e poderosos dentro da ditadura civil-militar. Possivelmente, deslumbrou-se com o centro do capitalismo em contraste com o Brasil, distinguindo-se dos bairros provincianos do Rio de Janeiro das décadas de 1950 e início de 1960, bem como registrando a lembrança do Nordeste brasileiro que conheceu quando viajou com o Teatro do Estudante do Brasil, momento em que teve contato com a pobreza do interior brasileiro. A ditadura, como bem reconhecia Paulo Francis, contribuiu para que ele rompesse com a expectativa inocente de transformar o país em uma nação forte, rica e independente. Ademais, outros analistas insistem que as mudanças de opinião eram comuns nas ponderações do jornalista que frequentemente se contradizia. Isso tem servido para justificar uma pretensa independência intelectual de Francis, especialmente em sua fase ultraliberal, atuando na imprensa. Esse viés de intelectual atuando na imprensa é importante, significativo e diferencia-se do jornalista intelectual da imprensa. Certamente, Francis conheceu maior liberdade para escrever na FSP e n’OESP, não só em virtude do status jornalístico que ele mantinha, mas também por suas posições políticas e intelectuais, as quais não divergiam em essência dos editoriais daquelas empresas. O comprometimento de Francis foi maior com a agenda política internacional hegemônica do período do que 31 com qualquer outra coisa. Por essa razão, nessa fase, foi um intelectual orgânico nos jornais, mais do que dos jornais, mas de modo algum “independente”. O que observamos, na verdade, é uma quase inabalável defesa da agenda ultraliberal em voga, de seus princípios fundamentais e da crença na necessidade de sua aplicação prática, concepções que o jornalista passou a defender desde meados dos anos 1980 até o fim de sua vida, em princípios de 1997. Por outro lado, certas posições contraditórias existiram e, algumas delas, serviram ao seu polemismo, destacando-se como uma espécie de chamariz para o texto do jornalista, tanto por parte de seus admiradores como de seus opositores. __________________________ Fontes FRANCIS, Paulo. A grande tonteria. In: Folha de S. Paulo (Ilustrada), 23.11.1989. ________. Dicas. In: O Pasquim, n. 41. Rio de Janeiro, 2-9.4.1970. ________. O guerreiro Roberto Campos. In: Folha de S. Paulo (Ilustrada), 9.2.1985. Referências bibliográficas AMORIM, Paulo Henrique. O quarto poder: uma outra história. São Paulo: Hedra, 2015. AZENHA, Luiz Carlos. 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São Paulo, 2002, p. 47-68. 34 “A voz do povo, o espírito da França”: uma análise sobre a ascensão da nova líder da Frente Nacional, Marine Le Pen (2011-2014) Guilherme Ignácio Franco de Andrade1 A Frente Nacional (FN) — partido francês, originalmente criado como Front National pour l'unité Française (MAYER & SENEAU, 2002, p. 43) — foi fundada em 5 de outubro de 1972, procurando reunir o eleitorado dos conservadores franceses. A direita francesa se encontrava em situação delicada na década de 1970, tendo em vista que os movimentos conservadores não vislumbravam a confiança e o respeito da população. Após várias tentativas de organização partidária, ou de formação de outros movimentos conservadores, a direita estava desorganizada, dividida em pequenas facções. Durante o período do pós-guerra até a década de 1970, os grupos conservadores haviam falhado em suas tentativas de representação política e de união partidária (VIZENTINI, 2000, p. 51). A FN surge, nesse contexto, influenciada pelo sucesso eleitoral do partido neofascista italiano — Movimento Sociale Italiano (MSI). O próprio logotipo da FN foi 1 Doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Sociedade, Urbanização e Imigração, sob orientação do Prof. Dr. Leandro Pereira Gonçalves. Bolsista do CNPq. E-mail: [email protected]. 35 inspirado no símbolo usado pelo MSI; apenas as cores foram substituídas para fazer referência às cores da bandeira da França. A FN se originou, segundo Paulo Fagundes Vizentini, como uma mistura de várias vertentes do pensamento conservador, incluindo os nostálgicos de Vichy, neofascistas, intelectuais e ativistas, sob a liderança de Jean-Marie Le Pen e François Duprat. Os membros dos partidos de extrema-direita da Europa apresentavam particularidades distintas, conforme observa Vizentini: Os partidos de extrema-direita tinham uma composição etária curiosa. Eram formados por pessoas acima de 60 anos e que haviam sido nazistas no passado; e depois seguia-se a faixa de pessoas de meia idade, onde a pirâmide reduzia-se drasticamente; abaixo, uma ampla base social de jovens entre dezesseis e vinte e quatro anos. [...] Fora essa exceção, normalmente os partidos viviam uma vida vegetativa e semiclandestina; veteranos de guerra, entre outros, que tinham seus clubes e associações e que utilizavam certas causas periféricas (cabe salientar que essa é uma forma de retomar-se a linha política) (VIZENTINI, 2000, p. 51). Dentre esses grupos distintos, destacam-se membros do governo de Vichy, do movimento Poujadista, opositores do general de Gaulle, neofascistas, militantes que participaram da Fédération des Etudiants Nationalistes2 (FEN), da Jeune Nation3 (JN) e ativistas que, embora não possuíssem vínculo partidário, simpatizavam com a ideia de organizar um partido de extrema-direita. Após a formação do partido, Jean-Marie Le Pen foi escolhido para presidi-lo, pois decidiu-se que o presidente deveria ser alguém cujo passado não fosse marcado por uma militância violenta ou por envolvimento com grupos neofascistas (MARCUS, 1995, p. 18). Para Milza, Jean-Marie Le Pen era um bom orador e possuía uma boa reputação política entre os membros da extrema-direita, considerando que era um grande defensor do patrimônio nacional e que não tinha uma carreira política marcada por ações violentas, embora existam relatos sobre sua participação em torturas durante a Guerra da Argélia (MILZA, 1987, pp. 341-342). 2 Federação dos Estudantes Nacionalistas. 3 Jovem Nação. 36 A primeira formação hierárquica do partido evidencia, tendo em vista os membros que o compõem, suas lideranças, sua essência radical e sua aproximação com o fascismo. Embora no plano discursivo tal formação se apresente como um movimento político com a pretensa ideia de modernizar o pensamento da extremadireita, notamos a participação de vários sujeitos com ampla experiência em movimentos extremistas. Para Jonathan Marcus, a criação da FN já era esperada, pois sempre existiu na França uma extrema-direita ativa, o único problema era a forma de organização desses grupos. O autor assinala ainda que a grande virtude de Jean-Marie Le Pen foi saber trabalhar com os diferentes projetos existentes dentro da FN e transformálos em uma plataforma partidária. O FN foi legalmente criado em 1972, mas na realidade ele herdou um número de tendências políticas muito mais antigas. A grande virtude de Jean-Marie Le Pen é que ele conseguiu unificar todas estas tendências, ele unificou todas essas tendências para criar uma força coerente, no FN, encontram-se ex Poujadistas que se juntaram ao partido simplesmente por razões fiscais e econômicas, católicos tradicionais que estavam escandalizados pela influência socialista na igreja, bem como veteranos da guerra da Argélia revoltados com o fracasso da política de Charles de Gaulle. Eu poderia listar ainda mais motivos até sobre os monarquistas. Na realidade, uma extrema direita verdadeiramente determinada existe desde antes da Segunda Guerra Mundial (MARCUS, 1995, p. 19). Os grupos autoritários da França ficaram por muito tempo desacreditados da política. Devido à existência de diversos grupos franceses de pequeno porte, a extrema-direita até então havia falhado em suas tentativas de conseguir representação parlamentar (WILLIAMS, 2006, p. 35). O partido ficou marcado pelo seu discurso xenófobo e sua postura agressiva contra a imigração: […] na França, um partido de extrema-direita, a Frente Nacional, que procura negar a sua identidade neonazista, mas que a todo o momento faz referência ao passado do regime de Vichy, ganha base de apoio social, a ponto de políticos de esquerda, socialistas ou comunistas, serem obrigados às vezes, nas suas circunscrições eleitorais, a defender políticas restritivas à imigração (VIZENTINI, 2000, p.15). 37 A FN, em seu “programa de governo”, mantinha uma estrutura política e ideológica baseada na defesa da identidade nacional — ameaçada pela imigração, pela internacionalização do comércio e pela globalização — e no retorno do “glorioso” nacionalismo francês. Em seu alegado plano de defender a França, lançava-se contra os inimigos internos (anteriormente judeus, maçons e protestantes, agora imigrantes, principalmente árabes e muçulmanos) e os inimigos externos (especulação internacional e as forças das multinacionais e do corporativismo). A FN defende valores tradicionais e instituições que, segundo ela, devem pautar a identidade francesa pelos princípios de família, exército, autoridade e catolicismo (HAINSWORTH, 2004, p. 44). Até hoje, muitos membros do partido mantêm conexões com grupos neonazistas e neofacistas da Europa, mesmo que, oficialmente, a FN, no intuito de conquistar a respeitabilidade do meio político, negue qualquer tipo de ligação com esses grupos. Todavia, individualmente e principalmente, a ala mais jovem (e também a mais radical) é quem mais se aproxima desses grupos. Existem diversos grupos, como o Front National de la Jeunesse4 (FNJ) e a Renouveau Étudiant5 (RE), que fazem panfletagem para a FN, colaborando com as campanhas políticas e, geralmente, agindo como tropa de choque nas passeastas do partido (DECLAIR, 1999, p. 66). Em sua primeira eleição, ocorrida em 1973, a FN intitulava-se como um partido defensor do nacionalismo e das raízes do povo francês. Assim, ela entendia a nação francesa como resultado de uma entidade orgânica, construída por uma civilização etnicamente homogênea, sendo produto da história, da cultura e da sua civilização (BOURSEILLER, 1991, p. 88). Segundo a FN, a França seria uma nação construída a partir das memórias das grandes batalhas, do sofrimento e do sacrifício da população francesa. Dessa forma, todo cidadão francês deveria honrar e reverenciar os costumes, as tradições e as conquistas, respeitando, assim, o passado de glória (BOURSEILLER, 1991, p. 89). Segundo Jean-Marie Le Pen, 4 Frente Nacional da Juventude. 5 Renovação Estudantil. 38 O que nós temos de mais comum entre nós, aqui, hoje, e com nossos compatriotas franceses que estão no exterior deste recinto é a noção de patrimônio, seu patrimônio cultural acumulado por séculos de trabalho e de sacrifícios, por gerações que nos precederam, seu imenso patrimônio moral cultural (LE PEN, 1987, p. 10). Seguindo o mesmo raciocínio, Jean-Marie Le Pen assinala que “a nação é a comunidade de língua, de interesse, de raízes, seus mortos, o passado, a hereditariedade e a herança. Tudo o que a nação lhe transmite no nascimento tem já um valor inestimável” (LE PEN, 1987, p. 10). Podemos pontuar aqui que o discurso de exaltação das batalhas e do militarismo e a ideia de nacionalismo hereditário nos remete às pseudociências, às teorias raciais e de eugenia difundidas nos séculos XVIII e XIX. Esse discurso de Jean-Marie Le Pen é uma tentativa de sensibilizar a população quanto às questões nacionalistas, visto que parte dos militantes da FN — sobretudo os ex-combatentes da Argélia e da Coréia — sente frustração frente à derrota da França na manutenção das colônias africanas. No processo de construção do projeto político da FN, percebemos que, além de priorizar a questão militar para reforçar o nacionalismo, o partido também procurou construir outros símbolos, sobretudo buscando heróis e personalidades históricas francesas que pudessem reforçar e simbolizar o novo nacionalismo desenvolvido pela FN. Desse modo, o catolicismo se fortalece dentro do partido, tendo em vista que, para representar o nacionalismo da FN, foi escolhida a figura de Joana D’Arc, uma heroína francesa, nacionalista, católica, devota à nação, que sacrificou sua vida em prol da liberdade do país, sem ter qualquer ação individualista, ou seja, priorizando a nação acima de qualquer desejo individual. A escolha de Joana D’Arc como símbolo do partido também reforça a busca pela tradição histórica do país, demonstrando orgulho do passado histórico. Ademais, essa escolha é uma forma de unir todas as células dentro da FN, colocando um novo foco a ser seguido, supondo que isso supere antigas figuras como Napoleão Bonaparte, Marechal Pétain, General Boulanger, Charles Maurras e Pierre Laval. O uso da História Antiga pela extrema-direita na França já ocorria desde o governo de Vichy. Segundo Glaydson José da Silva, hoje a FN procura utilizar o passado para recriar uma identidade nacional, 39 É da História, como grande campo de alusões e de suas relações com a “identidade nacional” que Le Pen extrai referências para seus discursos, estabelecendo paralelos com heróis (sobretudo Joana D’Arc) e atos fundadores da História nacional, criando uma França mítica da qual o partido tem necessidade e faz apelo na justificativa de suas posições ideológicas (SILVA, 2007, p. 11). Parte da inspiração da FN também surge do governo de Vichy. Os saudosistas do antigo regime buscavam se inspirar em algumas leis racistas do governo provisório, tentando incorporá-las ao programa da FN, principalmente quando ainda se discutia o antissemitismo no partido. A influência do catolicismo é bastante presente na FN, quando identificamos o uso de sujeitos importantes para a Igreja Católica francesa, símbolos do nacionalismo e do cristianismo francês. Dessa forma, verificamos não só o uso da figura de Joana D’Arc como símbolo católico e nacionalista, mas também a figura de Clóvis, o rei do império franco, responsável por unir os diversos povoados francos. Clóvis é uma figura bastante importante para a cultura francesa, principalmente para os católicos. Ele foi responsável pela mudança religiosa nos territórios francos, pois se converteu ao catolicismo, abandonando os cultos nórdicos e germânicos que predominavam em grande parte da população (DAVIES, 1993, pp. 10-17). Quando Clóvis se torna cristão, ele promove o processo de cristianização em seu reino. Assim, a figura dele é importante para a FN em dois sentidos: primeiro, porque ele representa um ícone do nacionalismo francês, na medida em que unificou os territórios francos e deu início ao que se tornaria futuramente a França; em segundo lugar, porque ele representa forte apelo católico junto à ala católica do partido (DAVIES, 2010, pp. 576-587). Para Peter Davies, a elevação de Joana D’Arc e de Clóvis como símbolos do partido corresponde à nova visão da FN sobre nacionalismo, tendo esses dois sujeitos simbolizando o que há de mais puro e fiel à história e à tradição da França (DAVIES, 2010, p. 20). Com relação ao nacionalismo, a FN procurou se posicionar em defesa dos cidadãos naturais franceses. Noutros termos, o sujeito defendido pela FN equivale ao cidadão francês proveniente de uma longa geração de franceses (o francês 40 branco caucasiano), católico, nacionalista, identificado com sua terra e com a história da França, orgulhoso de suas raízes e que valoriza o desenvolvimento da nação acima da vontade individual (FRONT NATIONAL, 1973). Para Jean-Yves Camus a questão da nação é algo central na FN, sendo seu principal ponto de referência ideológico. Podemos afirmar que o nacionalismo é fundamental para o discurso do partido e sua principal fonte de luta (CAMUS, 1989, p. 17). Dar ênfase à nação é a questão chave para ocupar os espaços deixados pelos outros partidos. A defesa da nação como pauta da agenda política da FN tem dois objetivos: primeiro, legitimar a ideia de que o nacionalismo lhe pertence, ou seja, caso outro partido utilize dessa tática, a FN o acusa de apropriação política; segundo, obrigar outros partidos a também fazerem um discurso que defenda a soberania nacional (CAMUS, 1989, p. 18). Na concepção do nacionalismo da FN, para Bruno Megret e George-Paul Wagner, a identidade francesa é mais que nacionalismo, é um “instinto natural”. Um dos secretários da FN, Jean-Pierre Stirbois, em um artigo publicado na revista do partido, a National Hebdo, afirma que “a FN se tornou referência, quando tomou como prioridade a política nacional” (STIRBOIS, 1988, p. 217). Jean-Marie Le Pen assinala, na mesma revista, que a “a nação é uma entidade política fundamental, é a crença de que o nacionalismo prospera em situações concretas, em que indivíduos e grupos se unem para sobreviver, proteger e se reproduzir” (LE PEN, 1989, p. 4). Marine Le Pen Marine Le Pen ingressou na FN em 1986, aos 18 anos de idade, ao mesmo tempo em que ingressou na militância estudantil do partido, a FNJ (LISZKAI, 2011, p. 64). Por vários anos, ela foi uma das principais lideranças e referências políticas da FNJ. Nos anos iniciais em que esteve no partido, porém, sua atuação era mais esporádica, pois ela estava cursando a universidade, de modo que não podia dedicar parte integral do seu tempo à carreira política do partido (DÉZÉ, 2012, p. 132). Marine se formou em Direito e fez mestrado em Direito Penal. Em sua trajetória enquanto advogada, trabalhou com o deputado da FN, Georges-Paul 41 Wagner, cujo escritório era conhecido por defender militantes da extrema-direita. Georges-Paul Wagner foi militante da Action Française (AF) em sua juventude e ingressou na FN em 1988. Durante sua vida profissional, ele ficou marcado por ter defendido os militantes da Organisation Armée Secrète6 (OAS), que planejaram os atentados contra o general Charles de Gaulle, bem como por ter advogado nos processos em que Jean-Marie Le Pen era acusado de antissemitismo e racismo. Marine Le Pen dedicou-se às áreas do direito penal e civil, principalmente atuando em questões ligadas à imigração ilegal. Após alguns anos trabalhando, ela abandonou a carreira de advogada para se dedicar à militância (LISZKAI, 2011, pp. 23-24). Sua carreira política teve início em 1998, momento em que, efetivamente, ingressou na política francesa, assumindo, de 1998 a 2004, seu primeiro cargo político como Conselheira Regional7 da região de Nord-Pas-de-Calais (DÉZÉ, 2012, p. 13). Após concluir seu mandato, Marine Le Pen foi eleita como Conselheira Regional em Île-de-France, onde exerceu o cargo de 2004 a 2010. Ela também atuou em outras funções, pois, conforme permitido pela legislação francesa, poderia acumular mais de um cargo político, sendo eleita Conselheira Municipal da cidade industrial de Hénin-Beaumont, de 2008 a 2011 (DÉZÉ, 2012, p. 131). Marine Le Pen atuou na parte jurídica da FN, logo ingressando no comitê executivo, posição importante dentro do partido (MESTRE & MONNOT, 2011, p. 110). Com o sucesso eleitoral da FN nas eleições presidenciais de 2002, tendo Jean-Marie Le Pen alcançado o segundo turno, a diretoria da FN procurou explorar esse momento político, no intuito de manter o crescimento do partido. Dessa forma, o comitê político da FN, na tentativa de avançar, indicou Marine Le Pen à vicepresidência do partido e também renovou o comitê executivo. Marine Le Pen, em 2003, foi encarregada de organizar a campanha política do partido para as eleições presidenciais de 2007 (DÉZÉ, 2012, p. 132). Depois de se tornar vice-presidente da FN, ela passou por um processo de amadurecimento e procurou se especializar em comunicação e publicidade. 6 Organização Armada Secreta. 7 Cargo equivalente ao de governador de Estado. 42 Após as eleições de 2007, quando a FN não conseguiu repetir a mesma campanha de 2002, tendo alcançado um número de votos bem abaixo do esperado, Jean-Marie Le Pen anunciou sua aposentadoria política, tornando-se presidente de honra do partido (MESTRE & MONNOT, 2011, p. 110). Com o fim do “reinado” de Jean-Marie Le Pen, a FN iniciou o processo de candidaturas para os membros do partido interessados em assumir o cargo de futura presidência. Esse momento representou uma passagem importante para o partido, pois, durante quase 40 anos, Jean-Marie Le Pen o comandou com mãos de ferro, sempre controlando e articulando a militância para seguir sua linha política. A mudança de liderança, neste sentido, permitiu aos militantes uma oportunidade de modificar o partido. Com a formalização das candidaturas de Marine Le Pen e Bruno Gollnisch para a presidência da FN, a base do partido ficou fragmentada. Marine Le Pen representava a ideia da renovação e transformação do partido, sendo vista pelos seus seguidores como aquela que daria novos rumos ao partido (MESTRE & MONNOT, 2011, p. 111). A base eleitoral de Marine Le Pen era representada pela ala jovem do partido, cujos militantes simpatizavam com as ideias de Marine Le Pen, pois muitos deles foram seus companheiros na FNJ, acompanharam sua trajetória e crescimento no cenário político. Segundo Sarah Proust, a ala mais jovem da FN se identificava com Marine porque acreditava em sua capacidade de liderança e transformação. A ala mais jovem do partido é contemporânea de Marine, ou seja, fruto das mesmas condições determinantes. Portanto, a considera capaz de compreender a sociedade atual e os problemas apontados pelas novas gerações (PROUST, 2013, p. 43). Em contrapartida, os jovens que apoiam a candidatura de Marine não reconhecem Bruno Gollnisch como alguém capaz de lidar com os problemas do desemprego, da desqualificação profissional, da diminuição do padrão de vida e da falta de perspectiva com relação ao futuro. Segundo Sarah Proust, a pouca empatia dos jovens com a candidatura de Bruno Gollnisch diz respeito ao fato de essa geração ter nascido em uma sociedade globalizada, dominada pelo neoliberalismo, fruto da internet e das redes sociais. Desse modo, esses jovens não são ressentidos com a Guerra da Argélia, não tiveram participação nas lutas do movimento estudantil 43 nas décadas de 1960 e 1970, não cresceram durante a Guerra Fria (portanto, não dispõem do sentimento anticomunista), tampouco são saudosistas da Revolução Nacional que ocorreu durante o regime de Vichy (PROUST, 2013, p. 44). Após oficializar sua candidatura no Congresso da FN — com uma aprovação esmagadora, contando com o apoio de Jean-Marie Le Pen e da maioria dos membros do Comitê Central —, Marine iniciou sua campanha para a presidência da FN. Durante quatro meses, ela realizou reuniões com 50 delegacias da FN espalhadas pela França, a fim de explicar seu projeto político e indicar os novos rumos e posições que o partido assumiria, caso fosse eleita. Ela ainda buscava demonstrar que o vencedor da eleição interna deveria automaticamente ser o candidato do partido à presidência da França. Sua argumentação era baseada na questão da receptividade do novo nome da FN, o qual deveria não somente representar a maioria do partido, mas também uma imagem renovada para a FN. Durante os quatro meses de campanha, Marine Le Pen intensificou seu discurso sobre as transformações necessárias para colocar a FN no centro do debate político da França. O partido deveria ressurgir com um novo formato. Assim, ela iniciou o processo de “humanização do partido”, ou seja, segundo ela, seria necessário “desdiabolizar” a imagem da FN e neutralizar a rejeição sofrida por parte expressiva da população francesa. Em suas apresentações, Marine Le Pen gostava de deixar claro que não estava ali para construir um projeto que fosse estabelecido apenas internamente, mas uma alternativa política para a população, um projeto de mudança que deveria ser o centro da reforma política do país. O quartel general da campanha de Marine Le Pen se localizava na cidade de Hénin-Beaumont, conhecida por ter sido um polo industrial importante para o país, representando uma fatia expressiva da economia francesa. Porém, na atualidade, Hénin-Beaumont enfrenta uma crise econômica, caracterizada pela falência de várias indústrias e por uma elevada taxa de desemprego em ascensão. Ainda assim, a cidade representa a maioria dos eleitores da FN, sendo a região que mais apoia Marine Le Pen. Durante sua campanha para a presidência da FN, Marine Le Pen indicava as modificações que faria no partido, caso vencesse as eleições. Nas delegacias pelas 44 quais passava, discutia sobre quase todos os temas centrais em debate na França, principalmente sobre a economia do país, o aumento do desemprego, a União Europeia, a segurança pública, o aumento da criminalidade e a suposta perda da identidade francesa. Marine Le Pen contestava a imigração e tecia críticas ao governo do então presidente Nicolas Sarkozy que, segundo ela, teria concedido ainda mais espaço para a entrada de imigrantes ilegais no país. A campanha de Marine Le Pen contra a imigração tinha o intuito de demonstrar o avanço da religião muçulmana na França, como o cotidiano dos cidadãos franceses supostamente teria sido transformado em virtude da ocupação dos espaços públicos para as cerimônias religiosas, como os comércios locais teriam sido modificados com o crescimento de restaurantes e comerciantes árabes. No discurso de Marine Le Pen, o uso da retórica xenófoba procurava criar um ambiente hostil, como se os franceses estivessem se tornando minoria em seu próprio país. Para a FN, defender a preservação da cultura francesa é primordial, frente ao suposto avanço da islamização no país. Desde o início do partido, com as ideias de François Duprat, a FN se encarrega de defender o que acredita ser uma “cultura” francesa. Em vários artigos das revistas Identité e National Hebdo, a FN tem-se dedicado a elaborar um discurso que supostamente defende a França e os valores morais do Ocidente cristão, em detrimento da invasão bárbara dos árabes. A “cruzada cultural” que a FN defende objetiva, em primeiro lugar, criar um novo inimigo no imaginário da população e, em seguida, criar um bode expiatório que seja responsável pelos problemas sociais e políticos que o país atravessa. Marine Le Pen procurou enfatizar a crítica à atual direita, acusando a União por um Movimento Popular (UMP), partido de Nicolas Sarkozy, de ter instalado o “caos social” no país. De acordo com ela, a “imigração descontrolada” é a grande fonte de tensão na República, já que o governo de Sarkozy não foi capaz de criar formas para que os novos habitantes se adaptassem aos “padrões franceses aceitáveis”, ou seja, abandonassem a cultura e a língua do país de origem e se tornem cidadãos franceses (FRONT NATIONAL, 2012, p. 1). Marine Le Pen assinala que a formação de guetos em Paris — os quais não reconhecem a língua e a cultura francesa — tem causado conflitos, brigas e provocações entre vizinhos, o que 45 configura desrespeito ao “povo genuíno” (FRONT NATIONAL, 2012, p. 2). Além disso, tais conflitos também resultam do forte apelo religioso existente nas novas comunidades dominadas pelos imigrantes muçulmanos, os quais vivem conforme suas crenças. O cenário político e social em questão, segundo a FN, é consequência de um processo maciço de islamização do território francês. Nesse contexto, a população islâmica se torna cada vez mais expressiva, lutando para garantir seu espaço e seu predomínio cultural e político (FRONT NATIONAL, 2011). Durante sua campanha política, Marine Le Pen atacou o multiculturalismo, dizendo que o conceito seria uma invenção da esquerda socialista para corromper os Estados nacionais. Ela sugere que o debate proposto pela esquerda durante vários anos, de aceitação das diferenças culturais dos imigrantes, é incompatível com as sociedades ocidentais, pois estas foram forjadas no centro da democracia, da liberdade e da república, ao passo que a história dos imigrantes é direcionada para o fundamentalismo religioso, para o autoritarismo e para a submissão religiosa e patriarcal. Desse modo, os imigrantes considerados “bárbaros” pela FN não teriam condições de viver uma plena democracia, pautada pela neutralidade e laicidade do Estado. Logo, a adaptação deles seria algo impossível e corrosivo para ambas as culturas (FRONT NATIONAL, 2011, p. 1). Quanto ao posicionamento da FN em relação à situação econômica, Marine Le Pen difere-se de seu antecessor, pois acredita que um Estado soberano deve defender seus direitos econômicos e controlar a soberania nacional. Em um discurso em frente ao banco de investimentos Dexia, no distrito de La Défense, em Paris, Marine Le Pen convocou uma conferência para atacar a crise econômica e o sistema bancário francês (FRONT NATIONAL, 2010), demonstrando-se contrária à manobra do Estado francês de injetar dinheiro em bancos para evitar a falência dos grupos de investidores, pois, segundo ela, estes não passavam de especuladores que lucram com a exploração dos bens estatais e com a pobreza da população (FRONT NATIONAL, 2010). Ao mesmo tempo, ela defendia o final da lei Pompidou-Giscard, de 1973, cujas diretrizes proíbem que o Estado francês, quando necessário, contraia empréstimos no Banco Central Francês (FRONT NATIONAL, 2010). De acordo com essa lei, o Estado não pode contrair empréstimos no seu próprio banco sem taxas 46 ou a juros baixos, o que o força a recorrer ao mercado internacional, vendendo títulos da dívida ou contraindo empréstimos em outras instituições, com taxas de juros elevadas (FRONT NATIONAL, 2010a). Segundo dados apresentados pela FN, no ano de 2010, o Estado teria pagado 135,5 trilhões de euros em juros da dívida, dos quais cerca de 1.650 trilhões representavam a dívida nacional (FRONT NATIONAL, 2010a). No discurso em que a FN se colocava contra o domínio do neoliberalismo, que, para Marine Le Pen, permanecia intocável, mesmo diante de uma recessão econômica, ela priorizava, sobretudo, o protecionismo econômico das empresas nacionais e do comércio nacional (FRONT NATIONAL, 2010). Neste sentido, ela parece beber do antigo projeto de Bruno Mégret, procurando apresentar uma alternativa ao atual sistema capitalista, uma “via alternativa” ou, nas palavras de Mégret, uma “terceira via”. Em entrevista para a revista do partido Nation Press, Marine Le Pen enfatiza essa mudança econômica e fala sobre a necessidade de se posicionar frente ao capitalismo e contra os especuladores. Para Marine Le Pen, o Estado deve ser forte e controlar a economia para garantir o desenvolvimento nacional, posição contrária à política da FN durante mais de 30 anos, quando o partido se declarava ultraliberal. Aqui, percebemos um dos pontos que diferenciam o programa político da FN de Marine Le Pen das antigas posições assumidas por Jean-Marie Le Pen. Quando ela discursava, por exemplo, demonstrava-se desfavorável à alteração dos planos de pensão promovida pelo governo do presidente Nicolas Sarkozy, condenando a política liberal-conservadora da UMP de ampliar as políticas de austeridade e defendendo a ampliação e a manutenção dos direitos sociais adquiridos pela população (FRONT NATIONAL, 2010b). O primeiro turno das eleições presidenciais da França foi marcado para ocorrer no dia 22 de abril de 2012, ao passo que o segundo turno ficou estabelecido para o dia 6 de maio de 2012. Conforme determina a Constituição francesa, os candidatos teriam até o dia 16 de março de 2012 para homologarem suas candidaturas, apresentando suas 500 assinaturas, cuja conferência é feita pelo Conselho Eleitoral e depois oficializada pelo Jornal Oficial. Assim, no dia da divulgação oficial, foram homologadas, além das inscrições de Marine Le Pen e de 47 Nicolas Sarkozy, as dos seguintes candidatos: Nathalie Arthaud (Parti Lutte Ouvrière8 — LO); Jacques Cheminade (Parti Solidarité et Progrès9 — PSP); Philippe Poutou (Nouveau Parti Anticapitaliste 10 — NPA); Nicolas Dupont-Aignan (Debout la République 11 — DLR); Eva Joly (Europe Écologie Les Verts 12 — EELV); Jean-Luc Mélenchon (Front de Gauche13 — PFG); e François Hollande (do Partido Socialista — PS). A campanha oficial teve início no dia 20 de março, momento em que cada partido teve espaço nos meios de comunicação para divulgar seu programa eleitoral. Nos trinta dias que antecedem o primeiro turno, a legislação francesa determina que todos os candidatos possuam o mesmo espaço para apresentação dos seus programas políticos. Os programas políticos e de generalidades, veiculados nas rádios e tevês, são obrigados a contar o tempo de intervenção de cada concorrente. O Conselho Superior Audiovisual define as regras para garantir a pluralidade da expressão política, determinando o tempo das intervenções, as análises e as reportagens políticas. A imprensa escrita não está submetida a este tipo de regulamentação, ou seja, os candidatos têm liberdade para disponibilizar acessos à comunicação virtual. Entretanto, na véspera das eleições, todos os sites montados por eles são fechados. A campanha de Marine Le Pen foi pautada pelo nacionalismo. Durante seus discursos, seu grupo de campanha organizava o ambiente com enormes bandeiras da França, com símbolos dourados e representações de Joana D’Arc. O objetivo dessa campanha era criar um sentimento de patriotismo na população e, ao mesmo tempo, atribuir um sentido para a campanha de Marine Le Pen, sendo esta comparada à Joana D’Arc. Conforme demonstramos anteriormente, Joana D’Arc é uma personagem histórica da França, símbolo do nacionalismo, do amor à pátria, da entrega e devoção 8 Partido Luta Operária. 9 Partido Solidariedade e Progresso. 10 Novo Partido Anticapitalista. 11 (Partido) Levantar a República. 12 (Partido) Europa Ecologia – Os Verdes. 13 (Partido) Frente de Esquerda. 48 à nação e da libertação do país. Não apenas uma heroína para a história da França, mas também figura emblemática para a Igreja Católica francesa, sendo considerada a santa padroeira da França. Joana D’Arc foi chefe militar durante a Guerra dos Cem Anos, ocorrida entre a França e a Inglaterra. Ela foi capturada e executada em 1431, tornando-se uma mártir do nacionalismo francês, sobretudo por ter devotado sua vida em defesa do país. A tentativa de associar Marine Le Pen à figura histórica de Joana D’Arc revela a estratégia de campanha da FN, ou seja, colocar Marine Le Pen no estandarte do nacionalismo, representando sua devoção e patriotismo. Considerações finais Podemos concluir que a transformação cristalizada do programa político de Marine Le Pen é, em parte, resultado de um processo que teve início na década de 1990. Quando as lideranças intelectuais do partido — Bruno Mégret, Bruno Gollnisch e Jean-Marie Le Pen — organizaram-se para reformar o projeto político da FN, o fizeram tendo em vista uma nova leitura da conjuntura social e política inaugurada após a Guerra Fria, definida, em especial, pelo avanço da globalização e do neoliberalismo. Os militantes mais jovens da FN — como Marine Le Pen, Steeve Briois, Louis Aliot, Marion Marechal Le Pen, Nicolas Bay, Florian Philippot — são os responsáveis por essas mudanças. Vale lembrar que esse processo de transformação não aconteceu de forma passiva, visto que é resultado das lutas internas e dos embates entre as diferentes vertentes da FN. A aceleração desse processo de modernização é fruto, sobretudo, da liderança de Marine Le Pen, na medida em que ela não se limitou às antigas posições do partido, reestruturando sua política interna. Em grande medida, a transformação da FN deve ser creditada à liderança política encabeçada por Marine Le Pen, favorecendo uma nova leitura da conjuntura política nacional e internacional. Essa leitura da atual situação do sistema capitalista não só passa pelo impacto da União Europeia sobre a economia francesa, pelo enfraquecimento industrial do país e pela forma como o FMI impulsiona o projeto neoliberal, mas também proporciona mudanças significativas no campo discursivo, no programa econômico e na tentativa de aproximação com os trabalhadores. A FN, 49 hoje, representa o partido defensor dos interesses dos pequenos burgueses que são atingidos diretamente pelo livre mercado existente na União Europeia. A grande concorrência dos produtos nacionais provenientes dos pequenos empresários não consegue competir com as grandes empresas de outros países sem que o Estado intervenha de forma protecionista. Desse modo, a pequena burguesia e a classe média sentem-se desamparadas pelo governo. Nesse contexto, a FN, enquanto representante do espectro fascista e de defesa da classe média, consegue avançar politicamente. __________________________ Fontes FRONT NATIONAL. Afin d'absorber notre dette: abroger la loi de 1973! In: Front National. Paris, 2010a. Disponível em: <www.frontnational.com/videos>. Acesso em: 12.12.2014. ________. Défendre les Français, C’est le programme du Front National. In: Front National, n. 3. Paris, 1973. ________. Marine Le Pen devant la tour Dexia. In: Front National. Paris, 2010. 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No quadrinho, o enredo começa em 1945, nos arredores de Hiroshima, concentrandose na trajetória de seu personagem principal, um garoto chamado Gen, que presencia a destruição de sua cidade pela guerra e, especialmente, pela bomba atômica, tendo que lidar com as consequências do conflito e com os efeitos da explosão, bem como com a posterior ocupação estadunidense. Nakazawa, o autor da série, também foi um sobrevivente do cataclisma atômico: “a série foi baseada em minha experiência pessoal sobre a bomba. As cenas de família, as personagens e vários episódios que aparecem em Gen são pessoas e eventos reais que eu vi, dos quais ouvi falar ou que eu mesmo vivenciei” (NAKAZAWA, 2003, p. 13). Embora seja a mais conhecida, Gen pés descalços não foi a única nem a primeira obra em que Nakazawa tentou escrever sobre a experiência da bomba 1 Doutoranda em História pela Universidade Federal de Goiás e professora no Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa. E-mail: [email protected]. 53 vivida por ele. Ainda em 1966, ele publicou um mangá intitulado Kuroi Ame Ame ni Utarete (Batido pela chuva negra), no qual descrevia, em cinco volumes, uma história fictícia sobre os sobreviventes de Hiroshima envolvidos no mercado negro do pósguerra. Na década de 1970, também publicou uma história chamada Ore wa Mita (Eu vi) em uma das revistas mais populares de mangás do Japão, a Shonen Jump, cujas histórias são publicadas em capítulos semanais. É essa revista que acaba por dar início àquela que se tornaria a sua obra principal, de maior difusão e impacto globalizado: De sua publicação original durante a mais de setenta edições da revista semanal Shonen Jump até agora, a obra já foi traduzida para diversas línguas (do alemão e francês até o esperanto e indonésio), foi adaptada para o cinema, transformada em animação, especial para a televisão e até mesmo em ópera. Somente no Japão já vendeu mais de cinco milhões de exemplares, nos Estados Unidos foi incluída em uma lista de livros recomendados para escolas públicas. A obra possui um simbolismo tão profundo que em 2007 foi levado para Veneza pelo governo japonês para ser utilizado no debate sobre o tratado de não proliferamento de armas nucleares (MOREIRA, 2014, p. 32). Desde sua publicação, Gen pés descalços foi encarada como uma narrativa representativa do discurso pacifista que definiu a intelectualidade japonesa no período do pós-guerra. Este signo representou, inclusive, um elemento marcante para Gen enquanto obra, uma vez que sua primeira tradução resultou de um projeto coletivo, em que a informação funcionaria, de maneira geral, como uma espécie de avanço contra as armas nucleares. Sob este enfoque, o mangá foi encarado como “esforço pela paz”, uma forma de discutir e difundir os efeitos da bomba atômica. A história de Gen trata de pessoas que vivem situações desumanas, tanto nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, como também depois de um ataque nuclear (retratado nos volumes posteriores). Esperamos que Gen sirva como mais um alerta do sofrimento que a guerra traz a pessoas inocentes e como documento único de uma fonte de desespero particularmente horrível: a bomba atômica (NAKAZAWA, 2004, p. VIII). 54 Apesar de todo o alcance de Gen e das questões propostas pelo quadrinho, recentemente ele foi alvo de uma polêmica encabeçada pelo Conselho Escolar Municipal de Matsue (cidade localizada no sudoeste do Japão) que decidiu retirá-lo das bibliotecas escolares. A medida e a polêmica não duraram muito. Em pouco mais de dois meses, grande parte dos diretores escolares de Matsue se manifestaram contrários à medida, e a obra continuou onde estava. Todavia, um adendo foi criado: o diretor e a escola poderiam optar por manter ou não o livro acessível aos estudantes e/ou diminuir o impacto do discurso antimilitarista promovido pelo autor, amenizando o retrato que ele traça do exército japonês. É interessante mencionar que a medida foi inspirada, segundo representantes do conselho, em um volume constante de cartas contrárias à abordagem histórica de Gen, especialmente no que diz respeito ao tratamento do conflito japonês com a Coreia. Algumas agências de notícias afirmam que tais cartas, embora chegassem constantemente, eram elaboradas por um único cidadão da província; outras não chegam a dar detalhes sobre os autores ou o possível autor desse tipo de reclamação. Esse evento, ainda que possa ser tomado como pitoresco ou como alguma espécie de falta de tato isolada de um grupo governamental específico, também representa um eco da resistência nacionalista que, por vezes, acompanha a obra em questão e outros mangás e livros que optam por uma abordagem questionadora frente ao exército japonês ou à participação nipônica na Segunda Guerra Mundial, bem como no período anterior a ela. De fato, no período de publicação, a opção de Nakazawa de apontar o papel central do militarismo e do nacionalismo japonês ia na contramão de um certo conservadorismo político, que marcou a explicação mais cara aos historiadores japoneses, entre as décadas de 1960 e 1980, centrada em uma afirmação do papel do Japão como uma grande vítima atômica do conflito mundial. Como relembra a historiadora Shimazu: Nesta atmosfera de crescente conservadorismo político, a atitude do pós-guerra popular tradicional para a guerra — de que os japoneses foram realmente as vítimas da guerra — foi estabelecida. A autovitimização dos japoneses, como um meio de chegar a um acordo com o passado, sugere que a memória da guerra precisa ser selecionada e higienizada para enfatizar o sofrimento, ao contrário da agressão. Em nenhum lugar essa tendência foi mais evidente do que na televisão, que 55 se tornou o meio de comunicação mais poderoso da década de 1960 em diante. Em geral, os programas de televisão sobre a guerra são comemorativos, sendo exibidos em datas de importância histórica, ou seja, nos aniversários das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, e no dia da rendição incondicional, em 15 de agosto de 1945. Escusado será dizer que a intenção por trás, concentrando programas nestas comemorações particulares, é retratar os japoneses como as vítimas do militarismo, ao invés de os agressores. Além disso, mesmo o mais pequeno pormenor pode ser usado para afetar o retrato geral do Japão nesses dias. O melhor exemplo é o termo usado para descrever 15 de agosto. É comumente conhecido como o “bi shusen”, traduzido como “o fim da guerra”, em vez de “haisenbi”, ou “o dia d”! (SHIMAZU, 2006, p. 106 — tradução nossa). Em seu estudo sobre o Japão, Renato Ortiz chama a atenção para a permanência da mentalidade nihonjinron (no original, 日本人論, que, em tradução livre, poderia significar algo como teorias/discussão sobre o “ser japonês”, “japonidade”), que é, na verdade, uma tentativa de, em um “pan-orientalismo”, reafirmar a “superioridade” japonesa entre os diferentes países da Ásia, usando, para isso, argumentos muito concentrados nas discussões sobre a identidade nacional. Um dos argumentos centrais destas discussões é justamente um mito que coloca o Japão como uma sociedade racialmente homogênea e, por isso mesmo, socialmente pura, o que permitiria que sua essência se mantivesse quase inalterada com o passar dos anos (ORTIZ, 2000, p. 25). Nesta perspectiva, a “característica” do povo japonês seria a sua originalidade “excepcional”, ou a sua natureza “única”, o que o colocaria em um patamar diverso de outros povos, tanto no Oriente como no Ocidente. Essa diferenciação, eventualmente, é retomada pela intelectualidade como um indicativo de uma certa “liderança natural” inerente ao país e como justificativa para incursões do governo de caráter expansionista. O argumento em torno de uma sociedade nipônica naturalmente superior não é nova e, ao longo da história do Japão, reaparece, em diferentes configurações, de tempos em tempos. No século XIX, por exemplo, esse tipo de discurso foi utilizado como uma ferramenta de resgate e revalorização da religião xintoísta, o que acabou 56 por fortalecer o culto à figura do imperador e enfraquecer a Restauração Meiji. Estas diferentes leituras em torno do nihonjinron, ao longo dos anos, vão sendo adaptadas ao contexto político-social da nação e aos interesses políticos dos grupos no poder. Pode-se considerar o fascismo como um fenômeno político e supranacional. O fascismo, para autores como René Remónd (1994), é um protesto do instinto, um sobressalto contra o racionalismo. Ademais, é um movimento pragmático que enfatiza a eficácia e os valores da nação. Desta maneira, considerar o fascismo japonês como uma pálida tentativa de ocidentalização, ainda no início do século XX, desconsidera todo um universo de transformações bastante marcantes, nesse período, ocorridas em um país que, em meio século, tinha passado de uma economia com características medievais para um sistema de produção modernizado, ultrapassando a posição da Grã-Bretanha na região e passando a disputar mercados no Pacífico, dominados pelos EUA. Não se pode pressupor que o fascismo europeu e japonês formassem uma frente unificada, embora algumas das suas orientações e proposições políticosociais se aproximassem, ou seja, existiam pontos de contato entre o fascismo italiano e as diretrizes que o imperador Hirohito tentava executar no Japão. A este grupo, mais tarde se juntou a Alemanha. Estava formado, assim, um eixo comum de interesses e práticas ideológicas: “Nesses três países, comungava-se principalmente a exaltação da coletividade nacional; o desprezo ao individualismo liberal, o crescente dirigismo estatal, o culto ao chefe de Estado e ao nacionalismo defendendo-se as virtudes da raça” (GONÇALVES, 2011, p. 3). O regime em vigor no Japão era uma Monarquia de implicações liberais. No ano de 1926, com o falecimento do imperador Taishô, seu sucessor imprime em sua administração um militarismo chauvinista de fortes características fascistas — o que o associa ideologicamente aos movimentos europeus. Ainda que, usualmente, a figura do imperador Hirohito, fascista em essência, fosse apontada como o ponto definidor da política japonesa — uma vez que ela se fundava na existência de um grande líder, a exemplo de Hitler, na Alemanha, ou Mussolini, na Itália —, percebemos que o fortalecimento da liderança já estava presente anteriormente. A figura central, neste sentido, é o próprio Japão. Noutros termos, ainda que a 57 convivência com diferentes partidos políticos fosse encarada como particularidade nipônica menor, diante da crença japonesa na origem divina do imperador e, portanto, de uma liderança naturalizada frente à Ásia, isso garantiria seu posto como um líder de peso semelhante às outras duas lideranças fascistas do período. A leitura usual, por vezes, desconsidera a complexidade do pan-asianismo e do basho, seu grande elemento norteador. Para os pensadores e políticos do período, que tentavam construir o pan-asianismo enquanto uma agenda de ação política, divulgar o basho era uma tentativa de usar elementos do poeta mais famoso do Japão até o momento como símbolo e síntese do caráter e dos objetivos do povo japonês: sabi (simplicidade), shiori (sugestão), hosomi (amor às pequenas coisas) e karumi (senso de humor) (FRÉDÉRIC, 2008). Desta maneira, dentro do movimento, naturalizar e sintetizar o caráter do povo japonês era uma forma de sustentar intelectualmente os projetos de uma liderança nipônica em todo o continente asiático. Ainda que ela encontrasse um símbolo na figura do imperador, para a intelectualidade e para os partidos políticos envolvidos com essa ideologia naquele período, a predominância japonesa sempre esteve além de sua autoridade formal. Essa presença marcante de uma liderança política, envolvida avidamente no processo de modernização industrial de um país como o Japão, remete-nos à definição de Leandro Konder, que enxerga o fascismo como […] uma tendência que surge na fase imperialista do capitalismo, que procura se fortalecer nas condições de implantação do capitalismo monopolista de Estado, exprimindo-se através de uma política favorável à crescente concentração do capital; é um movimento político de conteúdo social conservador, que se disfarça sob uma máscara “modernizadora”, guiado pela ideologia de um pragmatismo radical, servindo-se de mitos irracionalistas e conciliando-os com procedimentos racionalistas-formais de tipo manipulatório. O fascismo é um movimento chauvinista, antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário. Seu crescimento num país pressupõe condições históricas especiais, pressupõe uma preparação reacionária que tenha sido capaz de minar as bases das forças potencialmente antifascistas (enfraquecendo-lhes a influência junto às massas); e pressupõe também as condições da chamada sociedade de massas de consumo dirigido, bem como a existência nele de um certo nível de fusão do capital bancário com o capital industrial, isto é, a existência do capital financeiro (KONDER, 2009, p. 53) 58 Nos anos anteriores à ascensão de Hirohito ao poder, o Japão iniciou um processo de industrialização acelerada, tornando-se, em pouco tempo, a nação mais industrializada da Ásia e, por isso mesmo, a grande fornecedora de produtos manufaturados para a região asiática. Essa rápida modernização e tomada de mercados adjacentes contribuiu para que o país tomasse consciência de sua limitação geográfica. Já sob o domínio do imperador Taishô, o aumento do poderio bélico e as guerras de expansão do território foram as táticas adotadas para impedir a estagnação do mercado exportador japonês, caracterizado pela ausência de matérias-primas. Crises econômicas e tensões sociais marcam o período posterior. O sufrágio universal (limitado ao sexo masculino) trouxe uma série de disputas sociais e reações conservadoras. Como para o Estado japonês não havia uma definição muito nítida no que concerne aos limites entre matérias pública e privada, o respeito ao governo era traduzido como um “senso de lealdade” esperado de todos os setores sociais. Por consequência, discussões ideológicas — como o direito ao voto ou a proposta de reforma socialista — eram vistas como um ataque direto à existência do Estado. Essa violência de Estado foi bastante presente no momento de transição do imperador Taishô para seu sucessor, Hirohito, que, no anos 1930, tentando reafirmar seu poder, usava de coerção, intimidação e controle, nos mais diferentes meios. Essa tática também se apoiava na ideia de “superioridade manifesta” japonesa, apregoada por uma elite em ascensão naquele momento. O sentido do basho era um dos sustentáculos teóricos da prática coercitiva. Formulada por Kitaro Nishida, sua proposição considerava, a partir das concepções da filosofia de Aristóteles, que o universo era formado de forças complementares que se dispunham não em torno de uma síntese, mas de um equilíbrio constante entre elas. O Japão, nessa perspectiva, deveria ser a força complementar do Ocidente, uma espécie de líder do Oriente. E o imperador, como líder do líder, não poderia ser contestado, enquanto traçava um caminho para a realização da liderança nipônica. Ainda que o imperador Hirohito tenha usado de força para garantir seu poder desde o primeiro momento, sua liderança estave calcada em um equilíbrio entre diferentes partidos. De maneira indistinta, estes partidos defendiam a volta de todas as propriedades para o imperador, visando, para eles, uma redistribuição mais 59 equilibrada entre os súditos. Ao mesmo tempo, o fascismo japonês divulgava seu “apoio” à luta do proletariado contra o capitalismo, mas de uma maneira reinterpretada: as justificativas para que o Japão representasse uma liderança política natural no Oriente fundamentavam-se no “espírito nipônico”, considerado mais forte do que qualquer interesse social, visto que estava imbuído de uma origem divina e de uma missão perante a Ásia. A adoração ao imperador, noutros termos, aniquilaria os interesses econômicos e igualaria todos ao patriotismo, como se as classes fossem “apagadas” por esse objetivo comum, além do bushido, ou seja, a devoção e o culto aos antepassados e à religião comum. Na interpretação dada pelo fascismo japonês, em suma, a docilidade esperada do súdito apagaria a desigualdade e a luta de classes. Analisando o desenrolar desse período histórico, percebemos que a interpretação usual, construída no pós-guerra, imputa uma passividade ao imperador Hirohito, demonstrando que ele foi levado, muitas vezes, a tomar decisões contra sua vontade, em virtude das forças militares. Essa explicação justifica a invasão da Manchúria e uma série de manobras políticas e militares posteriores e, por vezes, o próprio militarismo japonês. Essa narrativa, chamada por Yoshikuni Igarashi de “narrativa fundadora”, é uma espécie de discurso conformador entre EUA e Japão, que, no pós-guerra, passaram de inimigos a aliados: No final da Guerra, os EUA e o Japão, em certo sentido, escalaram a si mesmos como personagens de um melodrama que culminou na demonstração de um poder atômico nunca antes visto. Através da bomba, os EUA, classificados como um sujeito salvaram e converteram o Japão, classificado como objeto feminino. A chamada decisão divina de Hirohito, participou deste drama ao aceitar o poder superior dos EUA. Apesar dessa hipérbole, essa narrativa popular foi efetiva ao definir a percepção dos dois países da guerra e como ela chegou ao fim (IGARASHI, 2011, pp. 59-60). Em síntese, essa narrativa — que apresenta o Japão como o objeto passivo do conflito — contribui, no processo de manutenção do poder imperial, para que a explicação histórica usual coloque o imperador também como vítima do militarismo externo, o que marcou a política expansionista japonesa, ainda no período anterior à Segunda Guerra Mundial. 60 O expansionismo japonês e os quadrinhos A política expansionista japonesa teve início ainda na Era Meiji. O primeiro conflito desse cenário desembocou na Primeira Guerra Sino-Japonesa, em que Japão e China se enfrentaram em uma disputa pelo território da Coreia. Saindo vitorioso desse conflito, o Japão ocupou a Coreia entre 1910 e 1945, impondo sua língua e seus costumes em todo o território. Ao mesmo tempo, um tênue equilíbrio entre Rússia e Japão se estabeleceu na disputa pelos territórios da Manchúria. Em 1931, o Japão realizou uma série de invasões também no território chinês. Estes conflitos eram chamados de jihen (conflito), já que não havia uma declaração de guerra formal. O governo de Tóquio, também naquele ano, aproveitando-se do caos interno que a guerra civil provocou entre as diversas províncias chinesas, desembarcou tropas na Manchúria, onde criou um protetorado, o Manchukuo. O país tentava ampliar sua influência na região, já no início do século XX, durante a guerra contra o império russo, o que causou um grande número de baixas no lado russo. A vitória japonesa é vista como o início do imperialismo japonês e da transformação do país em uma nação industrializada. Essa avanço é uma novidade no equilíbrio político da Ásia Oriental, pois colocou o Japão em disputa de mercado com os EUA, bem como com países da Europa. Essa mudança desencadeou forte pressão norte-americana no sentido de controlar e impedir o avanço industrial japonês. É a partir do desdobramento deste conflito que se dá a entrada oficial do Japão na Segunda Guerra, com a autorização do ataque nipônico às bases militares anglo-americanas situadas no Oceano Pacífico. Após essas ações bélicas, o Japão direcionou seus ataques a outras instalações militares anglo-americanas localizadas na Malásia, Indonésia, Birmânia, Singapura, Guam e Índias Orientais Holandesas. Neste sentido, na perspectiva nipônica, a participação do Japão no conflito mundial foi um desdobramento de uma política expansionista anterior. É neste contexto que Nakazawa começa a contar a história do menino Gen. O quadrinho do autor narra o que aconteceu antes, durante e após a detonação da bomba, tendo como fio condutor a história de uma família à imagem e semelhança da família do próprio Nakazawa. Ademais, é uma crítica à militarização da sociedade 61 japonesa durante a Segunda Guerra Mundial e à fé cega dos japoneses no imperador. Os primeiros quatro volumes de Gen pés descalços foram publicados em inglês em 1976, sendo um dos primeiros mangás veiculados nos EUA, ainda que o resto da série tenha levado décadas para ser publicado integralmente. A edição em português, publicada pela editora Conrad, no fim da década de 1990, é uma tradução da edição estadunidense. A história completa começou a ser publicada no Brasil somente em 2014. O volume 10, que encerra a história, saiu no Brasil em maio de 2016. Tal atraso, no caso dos EUA, muitas vezes é imputado ao teor crítico do mangá e à mensagem transmitida pelo próprio Nakazawa através de seu trabalho, continuamente condenando a decisão dos americanos pela explosão da bomba atômica e acusando os comandantes militares americanos de terem usado os civis japoneses como cobaias para testar os efeitos secundários criados por essa explosão. De fato, em cada volume de Gen, Nakazawa amaldiçoa o imperador Hirohito (considerado pela sociedade japonesa, antes da derrota pela guerra, como tendo origem divina) e seus conselheiros. A resistência à guerra é demonstrada pelo pai de Gen, já nas primeiras páginas do mangá. Os meses anteriores à explosão atômica são retratados como momentos de intensa mobilização por parte da população, em diferentes esforços de guerra. O pai de Gen, neste sentido, satiriza tais esforços e tece muitas críticas ao imperador, sendo hostilizado pelos vizinhos e conduzido à prisão. Ao contraporse à guerra, tendo em vista a Coreia e as atrocidades cometidas pelos japoneses nesta região, o pai de Gen fundamenta toda a crítica posterior que é construída por Nakazawa, ou seja, a necessidade de romper com a irracionalidade da guerra. Conforme ilustra a figura abaixo, a crítica do personagem é direta: 62 Figura 1: O pai de Gen discursa para os seus vizinhos durante um treinamento promovido pela associação do bairro. 2 2 Fonte: NAKAZAWA, Keiji. Gen pés descalços: o nascimento de Gen, o trigo verde (vol 1). São Paulo: Conrad, 2011, p. 17. 63 Como recurso narrativo, o pai de Gen não só representa uma homenagem do autor ao seu próprio pai — que, da mesma forma, acabou preso por se envolver com o movimento pacifista —, mas também constrói o contraponto que sustenta toda a história. No desenho, seu discurso é acompanhado pela imagem de soldados feridos com expressão vazia aos pés de um oficial festejando uma vitória. É o modo, de imageticamente, apresentar-se o paradoxo entre o discurso nacionalista da guerra e o custo social da batalha. No quadrinho final (já que a leitura deve ser feita em ordem invertida com relação ao padrão ocidental), o pai de Gen quebra a espada de bambu usada nos treinos enquanto diz: “Chega”. Isso assinala a ruptura do personagem e o enfrentamento da família Nakaoka contra o nacionalismo acrítico dos seus vizinhos. Contada por pessoas comuns, voltada ao cotidiano e aos custos sociais da guerra para a população japonesa, a posição pacifista do pai de Gen também permite a aproximação de outro personagem, que, de tempos em tempos, vai mudar os rumos da família Nakaoka: o vizinho, sr. Bok. É através dele que Nakazawa discute a postura belicosa de seu país frente à Coreia. Ele relata o conflito: Depois que a Coreia se tornou colônia do Japão, fomos trazidos para cá, para fazer trabalhos forçados e lutar nos campos de batalha. Nem imaginam quanto os coreanos estão sofrendo com essa guerra. Quero muito que essa guerra acabe. Quero voltar para minha esposa e filhos (NAKAZAWA, 2011, p. 74). A postura do Japão e do exército japonês durante a guerra é alvo de uma discussão constante, de modo que uma série de narrativas, de tempos em tempos, tem ocupado espaço na mídia internacional, sobretudo no que tange às “mulheres de conforto”. A ação do exército japonês era bastante violenta e envolvia campos de trabalhos forçados, torturas, armas químicas e as mulheres de conforto, ou seja, escravas sexuais, recrutadas à força, sendo consideradas, atualmente, vítimas de abuso sexual. A prostituição em massa ainda é alvo de controvérsia, uma vez que o governo japonês é bastante reticente ao admitir a ligação destes grupos com o exército japonês. Especialmente desde que os nacionalistas voltaram ao poder, o discurso oficial evita admitir ou discutir grande parte dos chamados crimes de guerra 64 neste período. O modus operandi das forças armadas no país era bastante agressivo: Pode não ter sentido tentar estabelecer qual dos dois agressores do Eixo na II Guerra Mundial, Alemanha ou Japão, foi o mais brutal para as pessoas que vitimou. Os alemães mataram 6 milhões de judeus e 20 milhões de russos [isto é, de cidadãos soviéticos]; os japoneses assassinaram algo como 30 milhões de filipinos, malaios, vietnamitas, cambojanos, indonésios e burmeses e pelo menos 23 milhões de chineses étnicos. Ambas as nações saquearam os países conquistados, em uma escala monumental, embora os japoneses tenham pilhado mais, por um período mais longo, do que os nazistas. Ambos escravizaram milhões e os exploraram como trabalhadores forçados — e, no caso dos japoneses, como prostitutas [forçadas] para tropas nas linhas de frente. Se você era um prisioneiro de guerra dos nazistas de origem britânica, estadunidense, australiana, neozelandesa ou canadense (mas não russa) tinha 4% de chance de morrer antes do fim da guerra; [comparativamente] o índice de mortalidade dos prisioneiros de guerra aliados mantidos pelos japoneses era de quase 30% (JOHNSON, C., 2003, s. p. — tradução nossa). Até como uma forma de conformação com a derrota, de maneira geral, mesmo na atualidade, não é grande a discussão acadêmica, pelo menos no âmbito escolar, acerca da guerra ou das ações do exército japonês. A perda da batalha representa muito mais o fim de um processo que resulta em uma espécie de lição aprendida do que um espaço gerador de reflexões. Assim, na construção de sentido histórico japonês, a guerra representa o espaço de encerramento que gerou a paz pela qual as gerações posteriores são definidas. O menino Gen, a guerra e o pós-guerra Como já foi dito, a história do mangá acompanha Gen, um menino de 8 anos. A narrativa tem início meses antes da explosão atômica, o que é demonstrado ainda no primeiro dos dez volumes que compõem a série. Neste primeiro volume, observamos a vida cotidiana, a carestia, a falta de comida, os treinamentos de sobrevivência e o medo constante dos bombardeios, ou seja, grande parte da história trata desses temas, por vezes questionadores para Gen e seus irmãos. Em 65 virtude da atitude crítica tomada pelo pai — contrapor-se à postura conformista e belicosa da sociedade japonesa—, sua família é muito hostilizada pelos vizinhos, todos contagiados pelo nacionalismo militarista, que, narrativamente, figura como o grande sustentáculo do povo, seu espaço de conformação. Há um momento da narrativa em que o irmão mais velho de Gen acaba testemunhando o suicídio de um de seus colegas de batalhão, uma vez que este não aguenta os abusos físicos e psicológicos a que é submetido, ainda durante o treinamento para a batalha. Seu suicídio é encoberto pelos superiores e os pais dele partem para casa sentindo orgulho do filho, cuja morte só poderia ser honrada para um soldado naquele momento, pois transmitia respeito ao imperador. O testemunho de todos estes acontecimentos permite que o irmão de Gen assimile o discurso pacifista engendrado pelo pai e reflita dessa maneira: “Por quê? Por que as pessoas não conseguem pensar direito? Até quando serão manipuladas por essa guerra cheia de mentiras? Se cada japonês não aprender a se valorizar, essa guerra nunca terá fim” (NAKAZAWA, 2011, p. 229). Nos primeiros volumes, a crítica à guerra assume um teor bastante pessoal, sobretudo gerado nos pensamentos dos personagens. O único a se posicionar abertamente contra a guerra é o pai do Gen, sem, todavia, encontrar espaço para que sua crítica se transforme em um diálogo. Esse é um recurso empregado pelo autor para se referir aos efeitos do imperialismo, pois, ainda que existisse discordância quanto a este, ele acabava sendo uma experiência restrita à consciência dos envolvidos, em detrimento da coletividade. Mesmo que o foco narrativo de Nakazawa seja a vida cotidiana, questões políticas e motivações do governo japonês para a batalha aparecem de maneira constante em todos os volumes. Essas questões são, primeiramente, suscitadas pelo pai do personagem principal, o que ajuda a manter a coerência da narrativa, dado que, quando esta se inicia, o protagonista ainda é uma criança; em seguida, ele se torna mais e mais crítico da guerra e da situação do Japão, como resultado direto de suas experiências para sobreviver. Da mesma forma, a mãe de Gen assume o papel de crítica do exército japonês. Em suma, servindo-se tanto do pacifismo (presente em todos os momentos e em grande parte das falas dos personagens), como dos 66 pais de Gen (do pai, nos primeiros volumes, e da mãe, no meio da história), o autor apresenta o contraponto de sua história, ou seja, demonstra que, ainda que vítima, o Japão foi protagonista de uma série de atrocidades e crimes de guerra. Situado entre a ficção e autobiografia, pode-se dizer que Gen pés descalços é uma obra que se situa também entre a memória, o discurso histórico, o imaginário e a crítica posterior de seu autor. De certa forma, constitui um espaço de intersecção de “verdades” em torno da experiência. Para Willian Moreira seria Interessante notar que, ao contrário do discurso histórico, aqueles que derivam da tematização do imaginário contém outra relação com a ideia de verdade, que é derivada do desejo e valores do seu agente. Nesse sentido, o discurso ficcional aparece como resultado do anseio de produzir algo diferente e questionadora da “verdade” socialmente estabelecida. A ficção e a autobiografia não se distinguem porque a segunda não se contamina com o imaginário, até porque se deixa levar pelas imagens, mas não pode se entregar inteiramente a esse aspecto. Por seu estilo discursivo, a autobiografia lida com uma constante instabilidade e tende em alguns momentos a se aproximar do discurso histórico, e em outros do discurso ficcional (MOREIRA, 2014, p. 98). No momento em que Nakazawa se dedicou a escrever sua obra e ressignificar sua experiência, o mundo já não era mais o mesmo, considerando que as bombas já tinham sido lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki, os japoneses viviam em uma nação ocupada, o sistema capitalista sofrera uma mudança essencial e o poderio industrial de uma nação lhe dava poder de decidir um conflito, muito mais do que a batalha direta de seus soldados. Neste sentido, a rendição e a capitulação, vivenciadas em 2 de setembro de 1945, serviram como reconhecimento de que a força estava no capital e não na pátria, em uma espécie de American way of life planetário. Esta mudança também aparece em algumas nuances da construção narrativa do mangá, quando este retrata as dificuldades de sobrevivência enfrentadas por uma cidade destruída pela bomba atômica. Ao passo que o primeiro volume é marcado pela explosão da bomba, grande parte do segundo nos apresenta Gen como testemunha da destruição causada por ela. Pessoas e animais, em diferentes graus de sofrimento, passam pelo protagonista, que busca sua família e a 67 encontra soterrada em sua própria casa. Gen e sua mãe, os únicos sobreviventes, assistem à morte da família em um incêndio, sob os escombros, sem poder socorrêlos. Em sua autobiografia, o autor assinala que esta é uma das principais diferenças entre sua história e a de seu personagem principal. Embora seu pai tenha tido uma morte semelhante, Keiji Nakazawa não a presenciou, além de ter encontrado sua mãe, testemunha do incêndio que aniquilou-lhe a família, muitas horas depois do acontecido. A menção ao acontecimento, para o autor, foi uma forma de honrar seu pai: O que difere a morte do meu pai do pai de Gen é que eu eu não estava na cena do crime. Mamãe me falou sobre isso, em detalhes macabros. Ela estava na minha cabeça, então no mangá eu decidi que Gen estaria lá e tentaria salvar seu pai. Minha mãe sempre teve pesadelos com isso. Ela dizia que era insuportável, que ainda podia ouvir os gritos do meu irmão dizendo: “Eu vou morrer com você”. Ela o segurava pelos braços, mas não importava o quanto ela o puxasse, não podia libertá-lo. Enquanto isso, meu irmão dizia: “Está quente!”. Papai também dizia: “Faça alguma coisa!” Minha irmã mais velha, Eiko, talvez porque estivesse presa entre as vigas, não dizia nada. No momento, minha mãe dizia que ela mesma já estava enlouquecida. Ela chorava: “Eu vou morrer com você”. Felizmente, um vizinho que passava lhe disse: “Por favor, pare; Não adianta. Não há necessidade de você morrer com eles”. Tomando-a pela mão, ele conseguiu fazer com que que ela fugisse do local. Quando ela voltou atrás, as chamas eram ferozes, e ela podia ouvir claramente os gritos do meu irmão: “Mãe, está quente!”. Era insuportável. Uma maneira cruel de matar (NAKAZAWA, 2010, p. 19 — tradução nossa). Quando o mangá foi publicado, o autor comenta que era comum receber cartas perguntando se todas aquelas coisas tinham realmente acontecido, se a situação de Hiroshima, de fato, assemelhava-se à retratada pelo quadrinho. As críticas à ocupação estadunidense — materializadas no texto a partir dos pensamentos de Gen e de seus amigos, órfãos da bomba — contribuíram para que, por algum tempo, o autor fosse classificado como politicamente alinhado à esquerda, sendo convidado para fazer parte do Partido Comunista Japonês. Além de denunciar o imperialismo japonês, ele também se posiciona quanto à luta proletária e à perseguição aos sindicatos, que tiveram lugar no pós-guerra. Para tanto, cria a 68 personagem de um professor que auxilia Gen a elaborar críticas sobre a realidade enfrentada pelo Japão, conforme podemos observar na figura abaixo: Figura 2: Gen e seu professor discutem a situação política do país no pós-guerra.3 O encontro com o professor, neste sentido, contribui para que Gen participe das manifestações pacifistas e questione os políticos em discursos e palestras. À medida que vai tomando consciência da falta de liberdade do Japão durante o processo de ocupação americana, o personagem assume um papel de enfrentamento aos estadunidenses. Esse enfrentamento é acompanhado de rancor, ao considerá-los como responsáveis pela bomba atômica que matou seus pais e 3 Fonte: NAKAZAWA, Keiji. Gen pés descalços (vol. 8). São Paulo: Conrad, 2015, p. 120. 69 irmãos. Em alguns momentos, a posição de revide aos EUA conduz o personagem a pequenos enfrentamentos e vandalismos contra o exército estadunidense, ou seja, contra o inimigo que, mesmo não reconhecendo a culpa pela destruição de Hiroshima, separa o Japão de sua liberdade. A ocupação americana é retratada, na maioria das vezes, como desdobramento de um mecanismo complicado de controle dos trabalhadores, dos governantes, dos sobreviventes e, especialmente, das informações sobre os efeitos cauados pela bomba. No quadrinho acima, o peso do discurso do professor faz com que Gen adormeça pensando em aprofundar-se nos estudos. Tudo isso acaba por revelar a imaturidade do personagem, com 13 anos na ocasião, correspondente à própria imaturidade do Japão, ainda traçando caminhos no pós-ocupação. As condições e tratamentos de saúde são retratados como desdobramentos do mercado negro, já que, em troca de cadáveres e de pacientes afetados pela bomba, os soldados ofereciam remédios a altos preços, enriquecendo-se às custas do desconhecimento e da falta de condições da população, de maneira geral. O controle das greves e das pessoas aparece, de tempos em tempos, como um mecanismo difícil de ser burlado, mas sempre alvo do pensamento crítico do protagonista. Ao mesmo tempo, os efeitos da ocupação vão, sutilmente, assumindo seu espaço, tendo em vista a imitação dos ianques feita por Gen e seus amigos, a adoção natural de termos e expressões em inglês por eles, além da absolvição do beisebol e da moda ocidental como parte do cotidiano deles, em maior ou menor grau. O cinema é retratado como o espaço em que o discurso da guerra é amenizado; ao lado do esporte, representa, para o japonês comum, uma folga de suas dificuldades cotidianas, bem como um Ocidente absorvido e ressignificado. Edward Said, ao escrever sobre o orientalismo, chama a atenção para o fato de que nossa aproximação com o Oriente sempre passa por um saber construído, organizado e normatizador do outro: [...] o intercâmbio entre os sentidos acadêmico e mais ou menos imaginativo do orientalismo é constante, e desde o final do século XVIII tem havido um comércio considerável, totalmente disciplinado — talvez até regulado — entre os dois. Neste ponto eu chego ao terceiro sentido do orientalismo, que é algo mais histórica e materialmente definido do 70 que qualquer dos outros dois. […] o orientalismo pode ser discutido e analisado como a instituição organizada para negociar com o Oriente — negociar com ele fazendo declarações ao seu respeito, autorizando opiniões […] governando-o […] em um estilo ocidental para dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente (SAID, 1990, pp. 15-16). No caso do Japão, a explicação conformadora, de uma nação que “aprendeu” com a guerra, assume contornos ainda mais fortes: o uso da bomba atômica pelo vencedor, paradoxalmente, adquire expressão salvadora, passando a justificar o fim da guerra. Noutros termos, uma arma de destruição em massa de alcance tão profundo acaba representando o sacrifício final em nome da “paz”. Trocando em miúdos, o alinhamento bastante rápido do Japão a esta “nova ordem mundial”, capitaneada pelos EUA, apagou os crimes de guerra do imperialismo japonês, como um acordo tácito entre os dois países, uma compensação pela destruição da bomba. Em cima desta tradição inventada, explicações geradas tanto no Ocidente quanto no Oriente se constroem e se difundem. É importante notar o caráter aglutinador que a Segunda Guerra Mundial, enquanto acontecimento, acaba representando para os dois lados. Tudo isso faz de Gen uma obra de intersecção, de corte, ainda que, em alguns momentos, alinhe-se às explicações sobre o significado do conflito mundial. Todavia, ao mesmo tempo, representa uma voz dissidente, no âmbito da experiência vivenciada e testemunhada por seu autor. A resistência ao imperialismo, ao nacionalismo e aos conflitos se manifesta justamente no âmbito da experiência do indivíduo. A resistência, neste sentido, pode ser individual ou familiar, manifestando-se em grupos pequenos, em redes de apoio e em espaços de troca, sobretudo espaços sociais e coletivos. Mesmo diante dessas constatações, o discurso revisionista — que prevê a responsabilidade do Japão pela guerra e desconstrói seu papel de vítima, conformado com a posição na nova ordem mundial — muitas vezes incomoda. Tanto é que Gen foi alvo de críticas negativas. Sua narrativa não é a da história oficial, ainda preocupada em resguardar o espaço do imperador e do império. Na época em que Nakazawa estava crescendo e vivenciando o que ia se tornar sua arte sequencial, esse discurso garantia o militarismo e o nacionalismo das massas. Hoje, guarda um sentido conformador, também penhor da “ordem”. O caráter perturbador de Gen pés 71 descalços não só testemunha uma grande calamidade, mas também esconde ecos desse nacionalismo, que tem se fortalecido no Japão e no mundo. Gen convoca todos a serem soldados e testemunhas da paz. Há lugar para a paz fora de suas páginas? Ao desafiar o próprio trauma, Nakazawa traz para o quadrinho um saber que não pode ser vetado, que tem o peso de um testemunho, por vezes contrário ao testemunho da história tradicional. Para além do peso usual dado aos quadrinhos, caracterizados pela simplicidade e pelo passatempo, histórias como Gen revelam que a arte sequencial pode suscitar reflexões sobre a existência de um mal, a necessidade de não esquecê-lo e, muito menos, banalizá-lo. Por outro lado, as críticas que a atualidade imputa à obra de Nakazawa são indicativos do crescimento de uma ideologia nacionalista no território japonês. O embate político entre a esquerda e a direita no Japão é, nos dias de hoje, um embate que também se dá por meio dos animes e mangás. Partindo deste pressuposto, fica mais fácil entender o lugar daquela petição que propunha a retirada de Gen das bibliotecas japonesas. Vale ressaltar que os termos “esquerda” e “direita” empregados aqui não são exatamente acurados no que concerne à política japonesa, uma vez que eles se referem, de maneira mais direta, à disputa entre o nacionalismo (representado pela direita) e o pacifismo (representado pela esquerda). Valores nacionalistas, militaristas, revisionistas e xenófobos são constantemente incorporados à pauta das reivindicações políticas do Jimintou (partido da direita japonesa), bastante influente no cenário político do Japão desde 1955 (em virtude de uma grande derrota, sua participação foi interrompida em 1992, afastando-se do poder entre 1993 e 1994) e, recentemente, influente graças à ascensão do ministro Shinzo Abe, símbolo da retomada dos setores mais conservadores do partido ao poder. Mesmo contando com alas “moderadas” e “conservadoras”, a agenda comum deste grupo “liberal-democrata” tem, desde os anos 1950, investido contra o artigo 9º que, em renúncia à guerra e à autodefesa, aboliu o exército japonês. Ainda que não sejam, hoje, pontos absolutos, esses temas sempre foram alvo de discussão e emendas deste grupo político. Para Eduardo Alves: 72 As discussões persistem no presente, e com as recentes alterações legislativas podem tomar um novo rumo no sentido de efetivação da Reforma Constitucional, no entanto, os esforços do governo tem focado na remoção de bases militares americanas do território japonês, notadamente a Base dos Fuzileiros Navais em Futennma. Tais esforços podem, por outro lado, representar a tentativa de legitimar a efetiva remilitarização do país (ALVES, 2011, p. 77). Outros pontos de embate dentro do nacionalismo conservador do Jimintou são a retirada dos poderes constitucionais do imperador e a chamada “ordem pública”, considerando que o militarismo anterior cedeu lugar a algumas políticas focadas em garantir um Estado de bem-estar social. Em suma, estes são os pontos que estiveram sempre na pauta de mudanças deste grupo político. Shinzo Abe foi um defensor do país durante a Segunda Guerra Mundial e já cogitou retirar alguns dos “pedidos de desculpas”, manobras diplomáticas de reconhecimento da ação bélica e violenta do exército japonês. Ainda que, nas análises sociais do retorno político desta ala conservadora ao poder, tal fato seja imputado à crise política e ao discurso protecionista do partido, o supranacionalismo e a defesa de uma historiografia conservadora são faces de um mesmo fenômeno. Em nome de um “resgate do espírito japonês”, associações como o Zaitokukai (um grupo de extremadireita contra o direito dos estrangeiros) ou a Atarashii Rekishi Kyōkasho o Tsukuru Kai (associação japonesa que busca reformar os livros de história no Japão) têm adquirido cada vez mais força em suas mobilizações. As petições contra Gen pés descalços são um exemplo disso. Desse modo, a política interna e externa japonesa tem sido marcada não por fatos isolados, mas por pontos de apoio que preveem toda uma reforma legal. A guinada nacionalista tem espaços diversos de inserção: está presente nos quadros políticos, formadores de opiniões, celebridades e organizações privadas. Ernani Oda, ao resgatar as análises dos intelectuais japoneses no entendimento deste fenômeno, chama a atenção para o fato de que o nacionalismo acaba adquirindo contornos de produto de consumo, que investe pesadamente na tentativa de ser aceito em um “mercado simbólico” global (ODA, 2014, p. 195). Ainda assim, as batalhas discursivas não podem ser encaradas como 73 uma resposta isolada à globalização de maneira geral, mas como um alinhamento em torno do passado que tem um espaço de difusão cada vez mais amplo. Fábio Bertonha chama a atenção para o significado dessas transformações: O governo de Shinzo Abe criou recentemente um conselho nacional de segurança baseado no modelo americano, para onde convergem todas as informações relevantes. Desse modo, defende Abe, os japoneses poderão reagir com maior rapidez aos acontecimentos referentes às políticas externa e de segurança. Além disso, a coalizão governista de Abe conseguiu aprovar na câmara baixa do Parlamento uma controversa lei de segredos de Estado para impedir o vazamento de informações. No Japão, informações confidenciais costumam vazar com tamanha facilidade que os diplomatas e militares americanos têm por hábito compartilhar o mínimo possível com seus aliados japoneses e tal situação pode ser, no mínimo, suavizada com a nova lei. A nova END ainda não significou um rompimento completo com o status japonês de suposto “país pacifista”, mas é mais um passo nessa direção (BERTONHA, 2014, p. 40). Tudo isso pressupõe não apenas uma disputa discursiva sobre o passado, mas sugere os indicativos de uma transformação política mais ampla que tem marcado a atualidade. Pontos da conhecida agenda fascista ressurgem com nova roupagem, como uma alternativa em tempos de crise. Os desdobramentos dessa nova ordem mundial devem ser entendidos e explorados, não tomados como nota de rodapé. Diante disso, podemos dizer que o estudo dos quadrinhos a partir de uma perspectiva histórica pode contribuir tanto para formularmos uma espécie de entendimento sobre os processos em que o passado adquire sua modelagem histórica específica, como para percebermos que a história é constituída de atos discursivos, formas de comunicação e padrões de pensamento. Esse dado também constitui um espaço importante na construção das mediações possíveis entre os quadrinhos e o conhecimento, neste caso, sobre o nacionalismo japonês, seus impactos, percepções e reflexos. 74 __________________________ Fontes NAKAZAWA, Keiji. Gen pés descalços: o nascimento de Gen, o trigo verde (vol 1). São Paulo: Conrad, 2011. ________. Gen pés descalços: o trigo é pisoteado (vol. 2). São Paulo: Conrad, 2011. ________. Gen pés descalços: trigo, é hora de brotar (vol. 3). São Paulo: Conrad, 2011. ________. Gen pés descalços: cresça firme, trigo verde (vol. 4) São Paulo: Conrad, 2011. ________. Gen pés descalços (vol. 5). São Paulo: Conrad, 2012. ________. Gen pés descalços (vol. 6). São Paulo: Conrad, 2013. ________. Gen pés descalços (vol. 7). São Paulo: Conrad, 2014. ________. Gen pés descalços (vol. 8). São Paulo: Conrad, 2015. ________. Gen pés descalços (vol. 9). São Paulo: Conrad, 2015. Referências bibliográficas ALVES, Eduardo Mesquita Pereira. Constituição e constitucionalismo no Japão: reflexões em torno do art. 9º, renúncia à guerra e à autodefesa. Monografia de conclusão de curso. UFPR, 2011. BERTONHA, João Fábio. A nova estratégia nacional de defesa japonesa. In: Meridiano 47, vol. 15, n. 142, mar.-abr. 2014. Disponível em: <periodicos.unb.br>. Acesso em: 27.3.2016. GERTZ, René. O Fascismo no Sul do Brasil. Porto Alegre: Mercado, 1987. GONÇALVES, Ana Cristina. Representações de Hiroshima: a problemática da representação a partir de Gen pés descalços. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade de São Paulo, 2011. HIDALGO, Cora Requena. 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Popular Representations of the Past: The Case of Postwar Japan. In: Journal of Contemporary History, vol. 38, n. 1, jan. 2003, p. 101-116. 76 Skinheads chauvinistas: integralistas, os “carecas do subúrbio” e o nacional-socialismo brasileiro Jefferson Rodrigues Barbosa1 Uma questão divide chauvinistas tradicionalistas e chauvinistas modernos na contemporaneidade: os primeiros guardam lealdade às experiências da primeira metade do século XX, como o fascismo, o nazismo e, no caso brasileiro, o integralismo. Os segundos opõem-se aos tradicionalistas, pois consideram prejudicial a identificação de suas propostas com os modelos ideológicos, estéticos e organizacionais estigmatizados pelos desdobramentos da Segunda Guerra Mundial. Para os membros desta segunda vertente chauvinista, os indivíduos em sociedade são definidos pelo sentimento de pertencimento a comunidades culturais específicas, que dão sentido e valor à sua existência. Daí se originam certas concepções hoje em voga, pautadas pelo repúdio aos imigrantes, tendo em vista um discurso impregnado de um sentido específico de lógica territorial, para justificar a xenofobia e o racismo, como acontece com a Frente Nacional — partido chauvinista francês. Nacionalismo regional ou nacionalismo étnico é a forma como denominou Manuel Florentin: “São os grupos que rejeitam o atual conceito de Estado-nação e atribuem essa categoria à comunidade orgânica de idêntica etnia, cultura ou língua” 1 Professor de Teoria Política do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Unesp. E-mail: [email protected]. 77 (FLORENTÍM, 1994, p. 73). As organizações em questão são caracterizadas por um discurso fortemente moralizador que sempre focaliza o conteúdo de sua propaganda contra o caráter materialista da vida moderna, referenciando-se a princípios de ordem simbólica como, por exemplo, o pertencimento a uma comunidade étnicocultural que precisa ser protegida. Não só na Europa e nos EUA, mas também na América Latina, os herdeiros dessa insanidade parecem profundamente divididos entre organizações chauvinistas tradicionalistas e modernas. As primeiras — a quem a imprensa jornalística e alguns trabalhos acadêmicos acrescentam o prefixo “neo” (fascista ou nazista) — insistem na herança histórica de Hitler e Mussolini e em sua simbologia característica (a exemplo de uniformes), assim como na defesa inalterável e irrefutável dos seus pressupostos ideológicos. Já as segundas se interessam em adaptar suas concepções diante da conjuntura contemporânea, negando a simbologia de outrora, na busca de maior inserção para suas concepções irracionalistas. No emaranhado dos grupos chauvinistas contemporâneos, destacam-se grupos juvenis que, sem dispensar certos símbolos anacrônicos na afirmação de sua identidade política, buscam firmar presença como portadores de valores nacionalistas extremados ou de “superioridade étnica”. Neste caso, não focalizando partidos políticos, mas organizações e movimentos sociais regressivos, alguns grupos skinheads nacionais apresentam-se como portadores de valores irracionalistas e violentos, como é o caso de determinados grupos skinheads brasileiros. Os nacionais-socialistas “White Power” e os integralistas “Carecas do Subúrbio”, por exemplo, são expressões destas manifestações e, em geral, são denominados como grupos de extrema-direita pelos meios de comunicação e por trabalhos acadêmicos. 78 Gênese da cultura skinhead: tendências, diferenciações e ideologias É necessário pontuar as origens do movimento skinhead, surgido na Inglaterra no final da década de 1960. A Inglaterra, naquele período, era o cenário de muitos grupos juvenis, a exemplo dos rudeboys ou rudies (grupos de migrantes jamaicanos conhecidos por posturas violentas e machistas) e dos mods (gangues violentas retratas no filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick). Os skinheads surgiram, inicialmente, como um grupo juvenil não racista que frequentava os círculos dos mods (conhecidos como hard mods) e dos rudeboys nas festas de ska e reggae. Eram, em sua maioria, filhos de operários e vangloriavam-se de pertencer a um movimento genuíno de trabalhadores nacionalistas na construção de suas fronteiras de identidade social e territorial. Ao mesmo tempo que nutriam um sentimento exacerbado pelo futebol (defesa do território), os primeiros skins articularam a construção de sua identidade social, servindo-se de elementos associados à estética dos operários ingleses, tais como botas, suspensórios e calças jeans. Ademais, em oposição aos hippies — que, segundo os skinheads, eram cabeludos, usuários de entorpecentes e alienados —, utilizavam como marca identitária as cabeças raspadas, o que foi legado à cultura skin contemporânea. Fontes bibliográficas apontam que a estética das cabeças raspadas é oriunda também de estratégias para melhor desempenho nas brigas de ruas, de modo que os skins não possam ser agarrados pelos cabelos, e tem relação com a ideia de higienização (COSTA, 1993). As cabeças raspadas e o fisiculturismo, neste sentido, correspondem à ideia de saúde, força e virilidade, ao passo que a conduta moral rígida corresponde à ideia de força moral. A Inglaterra, durante as primeiras manifestações skinheads, recebeu um grande número de imigrantes, sobretudo jamaicanos e paquistaneses, os quais foram inseridos no país como mão de obra barata. Com a crise econômica da década de 1970, ocasionada pela alta mundial do preço do petróleo, as taxas de desemprego começaram a aumentar e, para muitos ingleses, os imigrantes que disputavam com eles o mercado de trabalho eram os responsáveis por isso. Naquele contexto, começaram a ocorrer na Inglaterra as primeiras ações violentas de 79 skinheads contra esses imigrantes que passaram a ser acusados e responsabilizados pelo desemprego. Somam-se aos conflitos entre os skinheads e as culturas juvenis então em voga os reflexos da crise econômica: Tratava-se de uma revolta antiburguesa que reivindicava os valores da comunidade e da solidariedade da classe operária, um fenômeno de banda e de moda em que o racismo estava ausente: os skinheads escutavam duas variantes da música negra, o ska e o steady beat. Depois, no começo dos anos de 1970, ocorreu uma evolução fundamental: os jovens trabalhadores brancos e os jovens negros divergiram musicalmente quando o reggae se tornou uma música de reivindicação cultural do rastafarianismo. O movimento skinhead (inglês) cessa, então, de ser multirracial, e a radicalização ideológica dos skinheads começa: alguns se tornam membros do National Front ou do British Movement, outros engrossam a fila dos hooligans nos estádios de futebol (CAMUS, 2000, p. 420). Naquele contexto, concepções chauvinistas (nacionalismo radical) e xenófobas (aversão ao estrangeiro) passaram a fazer parte dos valores defendidos pelos skinheads, alterando-lhes a configuração ideológica. Começavam, assim, a aparecer os primeiros sinais da inclinação de determinados segmentos desta cultura urbana-juvenil às estratégias racistas e violentas para afirmação de sua identidade enquanto grupo social. Na década de 1980, ocorre um segundo momento na construção da identidade skinhead, a construção de uma identidade mais politizada, quando muitos grupos começaram a se rearticular, identificando-se com propostas de partidos chauvinistas, a exemplo do National Front, partido político inglês defensor de valores nacionais-socialistas. Desse modo, ocorre entre os skins ingleses a inserção de valores relacionados à pureza racial e a suposta defesa da necessidade de um espaço vital para uma sociedade inglesa sem imigrantes, para a construção de uma Inglaterra somente para os ingleses. A partir daquele contexto, a constante pressão da mídia acerca da infiltração do preconceito racial dentro de grupos skinheads proporcionou o surgimento de um maior engajamento político entre eles (tanto aqueles à esquerda quanto à direita), resultando na fragmentação de vários submovimentos rivais. Desde então, existem conflitos entre as diversas tendências 80 sobre o legado da cultura skinhead. Ainda na década de 1980, muitas organizações skins passaram a se identificar de forma explícita com ideias nazistas, ganhando visibilidade a vertente skinhead “White Power” (ou boneheads, como são pejorativamente chamados dentro da cultura skinhead). Começavam também a aparecer, em outros países, jovens que assumiram os valores e a estética skinhead; nos EUA, por exemplo, muitas organizações skins estabeleceram vínculos com os remanescentes da Ku Klux Klan (KKK), organização racista atuante desde o final do século XIX, conhecida pelo extermínio de negros no sul daquele país. Os antagonismos e diferenças ideológicas entre as facções skinheads se tornam ainda mais complexas, tendo em vista o surgimento dos skins antifascistas (antifas), 2 o que potencializou as divergências entre esquerdistas e direitistas, racistas e não racistas, politizados e apolíticos. Assim, surgiram os “Skin Heads Against Racial Prejudice” 3 (SHARP), cujo princípio é ser contra toda forma de discriminação racial e fascismo, apresentando-se como apolíticos, e os “Red and Anarchists Skinheads”4 (RASH), que promovem ideologias de esquerda, a princípio mais como uma forma de combater o White Power.5 Neste sentido, estes grupos, em específico, não se ajustam à conceituação de chauvinistas. O terceiro momento na construção da identidade skinhead acontece no final da década de 1980 e início de 1990, a partir da organização de grupos internacionais, como a organização “Blood and Honour” e a “Hammerskin Nation” (organização neonazista originária dos EUA, atualmente com filiais em vários países): É necessário bem compreender que o movimento skinhead não está organizado segundo uma lógica nacional e sim supranacional: há grupos em todos os países da Europa, nos EUA e no Canadá, na Austrália e na Nova Zelândia, assim como na maior parte dos países da América Latina. Eles intercambiam jornais, participam de algumas 2 Sobre as ações antifascistas, cf. o documentário que apresenta maiores detalhes sobre os enfrentamentos urbanos envolvendo esse grupo: ANTIFA: Chasseurs de skins, 2008. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=CRKymsEuD1M>. Acesso em: 26.2.2016. 3 “Skinheads contra o preconceito racial”. 4 “Skinheads vermelhos e anarquistas”. 5 Sobre os diferentes grupos cf. o documentário: SKINHEAD Attitude. Direção: Daniel Schweizer, 2003, 90 min. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=8vnH_SZAL5Q>. Acesso em: 11.3.2016. 81 manifestações comuns e se comunicam pela internet. Além disso, a tecnologia do CD tem permitido a grupos musicais venderem as suas produções a baixo preço e para além das fronteiras do país de que um grupo skin é originário [...] o movimento se dividiu, em plano mundial, em várias facções, que concorrem entre si de forma impiedosa: por um lado os “Hammerskins”, de origem americana, ligados em sua origem aos grupos religiosos neopagãos dos Identity Churches, como o Aryan Nation ou a Igreja do Criador; por outro, o movimento “Blood and Honour”, de origem britânica, próximo dos neonazistas [...]. Entretanto, é na Europa Oriental que o fenômeno tem conhecido crescente inquietude [...] (CAMUS, 2000, p. 420). No ano de 2005, por exemplo, ocorreram, em Portugal, grandes manifestações promovidas pela Frente Nacional portuguesa (organização composta também por militantes skinheads que integram a “Hammerskin”), cujos discursos subordinaram-se a temas contra a identidade cultural e a imigração. A mobilização de organizações internacionais como a “Hammerskin” e a “Blood Honour” traduz uma nova dimensão da articulação entre tendências skinheads chauvinistas e racistas, bem como reflete o resultado de articulação destes grupos, os quais potencializam suas ações de propaganda através de tecnologias de comunicação e de iniciativas no campo da cultura,6 a exemplo dos festivais de música e da difusão de bandas, como a RAC (Rock Against Comunist). Skinheads no Brasil: “Carecas” e skins integralistas No Brasil, as primeiras organizações skinheads datam também do início da década de 1980, sem vínculo direto com os ideais nazistas. Oriundos de facções divergentes existentes dentro do movimento punk brasileiro, os skinheads logo se organizaram de forma independente, tornando-se inimigos do punk devido à incompatibilidade ideológica entre suas ideias nacionalistas e conservadoras em oposição às posturas libertárias defendidas pelo movimento punk e aos valores anarquistas, difundidos, em especial, pelos anarcopunks. 6 Sobre as modalidades de propaganda e mobilização, bem como iniciativas no campo da cultura de caráter regressivo cf.: WHITE Terror. Direção: Daniel Schweizer, 2005, 89 min. Disponível em: <http://www.dschointventschr.ch/en/movies/documentaries/white-terror>. Acesso em: 23.2.2016. 82 Os primeiros skinheads brasileiros atuavam inicialmente na Zona Leste da cidade de São Paulo. Como limitavam-se a essa região periférica, foram denominados de “Carecas do Subúrbio”, organização composta de jovens trabalhadores das indústrias e do comércio de São Paulo, segundo dados levantados pelos pesquisadores Alexandre Almeida e Márcia Costa (2011).7 A influência de partidos e organizações chauvinistas buscando atrair os jovens dessa organização foi marcante, surtindo o efeito de dividi-los entre aqueles que se identificavam com as ideias integralistas e aqueles que começaram a identificar-se com o nacional-socialismo e suas concepções políticas: A aproximação de alguns membros dessas organizações com os “Carecas do Subúrbio” pode ser considerada um dos motivos que aprofundou o fracionamento do grupo, resultando no surgimento de outras facções. Esse processo começou a ocorrer mais ou menos por volta de 1985 e se aprofundou, com problemas e contradições, como em parte veremos a seguir, no decorrer da década seguinte. Postulamos que esses grupos nacionalistas, formados ou rearticulados a partir dos anos 1980, tiveram um papel fundamental na politização e consequente fracionamento dos skinheads locais, e apontamos principalmente a Ação Integralista Brasileira (AIB), o Partido Nacional Socialista Brasileiro (PNSB) e o Movimento Participativo Nacionalismo Social (PARNASO), cuja articulação propiciou reagrupamento de uma parte dos skinheads, que passaram inicialmente a se considerarem integralistas ou nacionais- 7 “Os primeiros skinheads que apareceram no Brasil assumiram a denominação de “Carecas do Subúrbio”. Eles surgiram em nosso país mais ou menos no ano de 1978, na Zona Leste da cidade de São Paulo, e em cidades localizadas na região metropolitana. As informações que chegaram para jovens sobre a existência de skinheads na Inglaterra e Estados Unidos tiveram procedências diversas, como meios de comunicação de massa (revistas, jornais e programas de televisão) e discos importados das bandas desse estilo musical, que eram pirateados em fitas cassete, para viabilizar a venda, por conta do baixo preço. Além disso, seguindo uma forma de atuar herdada dos punks, os Carecas teceram uma rede alternativa nacional e até internacional que incluía troca de informações e contatos entabulados de diversas maneiras, como fanzines, cartas e músicas. O contínuo fluxo de informações trouxe dados sobre as particularidades e transformações na cena skinhead internacional. Dessa maneira, relatos sobre a atuação de organizações racistas entre os skinheads europeus e norte-americanos também começaram a circular entre os Carecas brasileiros. Na minha pesquisa sobre a formação do Poder Branco Paulista, uma facção skinhead local, entrevistei um antigo membro dos “Carecas do Subúrbio", que me relatou os intensos contatos com o exterior, por meio de correspondência, e como foram importantes para conhecer algumas características da cena Skinhead White Power, e também as bandas e os skinzines, como o inglês Blood And Honour e o belga Pure Impact. Todos esses contatos foram importantes e, como veremos a seguir, a relação com organizações nacionalistas brasileiras revelou-se fundamental em todo o processo de politização vivido pelos skinheads locais.” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 248). 83 socialistas. A seguir, houve o surgimento em São Paulo dos denominados skinheads “White Power”, conhecidos na época como Poder Branco Paulista (ALMEIDA, 2011, p. 250). Diante da crise econômica da década de 1980, responsável por afetar o mercado de trabalho da região onde atuavam os “Carecas do Subúrbio”, eles se propagaram com a afirmação de uma identidade baseada nos pressupostos ideológicos de um “nacionalismo proletário”, em repúdio às transformações oriundas das políticas neoliberais do período. Para os “Carecas do Subúrbio” que, posteriormente, organizaram-se no Rio de Janeiro e em outras regiões do país, também sob a denominação de “Carecas do Brasil”, o movimento não era “nem racista nem fascista” (COSTA, 1993). A internet, sendo cada vez mais acessada pela imprensa, constitui-se em um dos territórios de atuação de vários grupos chauvinistas nacionais de diferentes vertentes. A articulação entre grupos nacionalistas foi, assim, potencializada através dos recursos de comunicação, o que possibilitou o armazenamento e o compartilhamento de informações e a sociabilização de recursos imagéticos, tais como vídeos, fanzines virtuais, textos de formação política e informações sobre encontros e shows musicais. A atuação dos grupos skinheads brasileiros pode ser evidenciada pelo número expressivo de sites, blogs e vídeos disponibilizados na internet. A exemplo disso, no vídeo intitulado “Carecas e nacionalistas unidos Ativismo 7 de setembro, anti-comunismo, anti Dilma, PT, Foro de SP” 8 são disponibilizadas imagens de “carecas” de diferentes tendências participando do desfile ocorrido em 7 de setembro, na cidade do Rio de Janeiro. Abaixo do vídeo está inscrito: “Ativismo Patriota conservador no Rio de Janeiro” e, entre as siglas das organizações que participaram do ato, há referência ao Movimento Integralista Linearista Brasileiro (MIL-B). Dentre as fontes analisadas nesta investigação, há um vídeo esclarecedor sobre a relação entre os skinheads e os “carecas” integralistas. Intitulado “Carecas 8 Disponível em: <http://www.youtube.com>. Acesso em: 14.4.2012. 84 Força Nacionalista”, 9 esse vídeo demonstra as estratégias e ações adotadas por esse grupo para a propaganda de concepções chauvinistas. Desse modo, os “carecas” são apresentados durante um desfile militar, no qual ostentam cartazes com frases nacionalistas, sob a música da banda Anti Narcose, Manifesto Nacionalista, cuja letra homenageia o antissemita Gustavo Barroso. Ao final do vídeo, há a seguinte mensagem: “Agradecimento ao Núcleo Integralista do Estado do Rio de Janeiro (NIERJ), Carecas do Subúrbio SP e todas as forças nacionalistas”. Em sua maioria, as vítimas das agressões empenhadas pelos skinheads são militantes de esquerda, homossexuais, consumidores de entorpecentes e grupos juvenis, tais como roqueiros e punks; em suma, estes são os inimigos mais comuns dos skins, cuja violência adquire, sobretudo, justificativas homofóbicas (aversão aos homossexuais). Nesse caso, ações de perseguição e espancamento de homossexuais tornaram-se, em muitos países, uma das marcas mais distintivas dos skinheads homofóbicos. De qualquer forma, é importante ressaltar que a homofobia não é um elemento compartilhado pelo universo ideológico que orienta todas as tendências dos skinheads. A diferença mais notória entre os diferentes grupos skinheads 10 pode ser percebida no grupo “White Power”, defensor da supremacia branca. Para este, os principais alvos do combate nas ruas são os negros, as pessoas portadoras de necessidades especiais, os judeus, os imigrantes, os anarquistas e marxistas. No caso brasileiro, em especial, muitas vezes a vítima é o imigrante nordestino. Para diferenciar o conjunto de skinheads brasileiros é necessário pontuar que existem facções com diferentes graus de influência no espectro político e cultural, a exemplo 9 Disponível em: <http://www.youtube.com>. Acesso em: 14.4.2012. 10 “Os ‘Carecas do Subúrbio’ já apresentavam em seu interior diferenças de concepções e divergências entre lideranças. No início da segunda metade da década de 1980, o estilo skinhead se espalhou por várias cidades brasileiras, na forma de facções, assumindo novas denominações e ostentando contradições e disputas internas. Essas novas facções, tanto em maior ou menor grau, se aproximavam dos ‘Carecas do Subúrbio’, quanto refletiam novas facetas dos skinheads existentes em outros países, relações tecidas com determinados grupos racistas e nacionalistas, e mesmo a sociedade em geral, particularidades e processos locais. Assim, surgiram os ‘Carecas do ABC’, ‘Carecas do Ceará’, ‘'Carecas da Baixada’, ‘Carecas da Bahia’, ‘Carecas do Vale do Paraíba’, entre outros grupos. Já o ‘Poder Branco Paulista’, ao negar a postura nacionalista e propor uma ‘São Paulo branca’ contra um ‘Brasil mestiço’, se constituiu em outra facção” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 253). 85 dos “Carecas do Subúrbio” que, em parte, são integralistas. Assim, defendem o lema integralista “Deus, Pátria e Família” (difundido pelos seguidores de Plínio Salgado, na década de 1930), o que evidencia o arcabouço moral desse grupo. Noutros termos, a característica ideológica singular desta facção skinhead fundamenta-se em elementos do catolicismo. Segundo Almeida e Costa (2011), como reação à associação da imagem skinhead ao racismo e como manifestação de uma ideologia “genuinamente nacional”, segmentos skinheads do ABC começaram, na década de 1980, a identificar-se com o integralismo: A partir de meados da década de 1980, vários skinheads da segunda geração, e alguns da primeira geração que por serem muito jovens à época não tinham posição de liderança, procuraram constituir um novo movimento mais politizado, distante, se possível, da violência e com alguma consistência ideológica coerente com o contexto multicultural brasileiro, se afastando do nazismo, em contraposição aos skinheads do “Poder Branco Paulista”. Para atender essas expectativas, grupos de skinheads nacionalistas de várias localidades do país tomaram o Integralismo como referencial. Entre esses skinheads, alguns passaram a se afirmar integralistas, principalmente por influência de militantes de organizações nacionalistas, que tentavam cooptar jovens para suas fileiras, pois, tal como as antigas milícias da Ação Integralista Brasileira, lideradas por Gustavo Barroso, os skinheads “verdes” seriam a nova força nacionalista nas ruas. Eles dizem seguir o Integralismo da “linha de Gustavo Barroso” e se autoproclamam skinheads de “Terceira Posição”, ou seja, nacionalistas (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 7). A relação entre skinheads que se apresentam como seguidores da ideologia do sigma e os integralistas organizados é polêmica, 11 pois, para os militantes 11 “Cito dois exemplos desses momentos de tensão. Um deles ocorreu durante o evento em comemoração ao Dia do Trabalho, na década de 1980, na Praça da Sé (SP). O evento, organizado por partidos, sindicatos e organizações de esquerda sofreu uma tentativa de invasão por parte de um grupo de nacionalistas, encabeçado por Anésio Lara Campos, com a participação de alguns ‘Carecas do Subúrbio’. Segundo alguns entrevistados que estavam presentes no evento, Anésio foi acusado de manipulá-los provocando assim a prisão de vários membros dos ‘Carecas’, enquanto ele saiu incólume. Pouco tempo depois, Anésio seria agredido por alguns desses skinheads. O segundo exemplo foi uma discussão entre o militante integralista Cássio Silveira e ex-membros dos ‘Carecas do Subúrbio’, durante o I Congresso Integralista para o século XXI, realizado em São Paulo, em 2004. Durante o debate sobre a formação do Movimento Integralista Brasileiro (MIB), a participação de skinheads foi rechaçada por Cássio Silveira, por considerá-los muito violentos. Tal acusação foi rebatida pelos ex-menbros do grupo, justificando a aceitação dos skins, pois para eles esses grupos podem ser considerados a ‘porta de entrada’ para os jovens que se interessam pelo nacionalismo” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 6). 86 integralistas, os skinheads, em sua maioria, são estigmatizados como desordeiros e violentos, ao passo que, para os skins, os integralistas são vistos como muito “intelectualizados” e pouco propensos à ação direta: A relação entre os skins “verdes” e outros militantes do Integralismo é marcada por momentos de aproximação e tensão, pois muitos militantes das organizações integralistas viam e vêem com certa apreensão, a inclusão de skinheads em seus grupos. Essa apreensão é motivada pela imagem estigmatizada do grupo e pela consequente repercussão negativa na imprensa; pela conduta violenta de alguns membros e pelos possíveis conflitos com grupos rivais, como punks e “Antifascistas”; pelas discordâncias doutrinárias (como a questão do antissemitismo e a negação do Holocausto); pela ameaça de deturpação da doutrina; pela falta de disciplina e recusa de muitos skins de abandonar seu estilo, especialmente no que diz respeito à estética visual belicosa. Os skins criticavam e ainda criticam os militantes integralistas “tradicionais” por considerá-los manipuladores e indivíduos demasiadamente “intelectualizados” e não realizarem atividades do tipo “ação direta” nas ruas (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 6). Como apontam Almeida e Costa (2011), entretanto, os segmentos de skinheads brasileiros denominados “carecas” identificam-se com o nacionalismo e com o culto à Plínio Salgado, bem como vinculam-se a elementos ideológicos, a exemplo do anticomunismo e de valores conservadores, estes últimos representados pelo primado da religião e da ordem social sob fundamentos moralizantes: Estes skins buscam constituir um movimento autônomo com uma identidade política própria, sincretizando elementos da cultura skinhead (em especial a estética visual e sonora) com elementos de organizações e partidos “tradicionais”, como a simbologia e algumas ideias de força, no sentido de se apresentar como uma continuidade desses movimentos, adaptados aos tempos modernos. Criam assim, não só um movimento autônomo, mas o que podemos chamar de uma “ideologia skinhead”. Neste sentido, o lema “Deus, Pátria e Família” foi apropriado pelos skins por sintetizar, segundo relatos, a essência de um verdadeiro nacionalista e por dar sentido e consistência ideológica à existência ao movimento local. Desta maneira, os skinheads entusiastas do Integralismo têm como principais características identitárias o anticomunismo, o repúdio às drogas e ao aborto, a homofobia, o antirracismo, o antisionismo, o antiliberalismo, a xenofobia, a defesa do 87 Estado forte e interventor e dos valores cristãos. Ainda assim, não é totalmente correto afirmar que um “abismo” divide esses dois grupos, pois existem skins que se mantêm ligados a alguns dos grupos citados e há certo respeito pelas partes, em especial aos militantes integralistas de longa data. Também não é incomum, em eventos como os desfiles cívico-militar, em comemoração aos aniversários da Revolução Constitucionalista de 1932 e da Independência do Brasil, a convivência respeitosa entre militantes integralistas “tradicionais” e skinheads (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 7). Conforme assinalam os pesquisadores em questão, independentemente das divergências ideológicas entre facções skinheads e grupos nacionalistas, existem elementos que comprovam a articulação entre eles. Neste sentido, os autores destacam o papel de Anésio Lara Campos, importante militante integralista entre as décadas de 1980 e 1990, que buscou tornar os skinheads próximos da ideologia integralista.12 Nacional-socialismo brasileiro: PNSB e os skins “White Power” Em 1985, foi fundado o Partido Nacional Socialista Brasileiro (PNSB) por Armando Zanine, 13 antigo oficial da Marinha. A base deste nacionalismo é a 12 “As relações e contatos entre esses skinheads, particularmente os ‘Carecas do Subúrbio’, ocorreram, ainda que eventualmente surgissem discordâncias de algumas lideranças com o PNSB. E, portanto, apesar dos ‘Carecas do Subúrbio’ negar a proximidade com o ideário defendido pelo PNSB, em 1989, durante as comemorações dos 100 anos do nascimento de Adolf Hitler, membros dos ‘Carecas do Subúrbio’ e skinheads do PNSB estiveram, como no caso de São Paulo, presentes nas comemorações realizadas em várias localidades do Brasil. Entre os integralistas que se aproximaram dos skinheads, uma figura de destaque foi o advogado A. L. C., anticomunista, monarquista, defensor da ideia de um Estado cristão, no qual a autoridade do estado viria de Deus. Ele também negava a existência do Holocausto, apoiava o revisionismo histórico e ainda afirmava que entre os integralistas existiam centenas de membros representantes da ‘mistura de todas as raças’ formadora do povo no Brasil” (ALMEIDA & COSTA, 2011, p. 253 e p. 257). 13 “Nascido no Rio de Janeiro, em 1930, Armando Zanine, um oficial da Marinha Mercante e exmilitante do Partido Socialista Brasileiro, tornou-se conhecido ao fundar, em 1985, o PNSB (Partido Nacional Socialista Brasileiro), baseado no partido nazista alemão. Esse partido, que se denominava sem rodeios de nazista, pleiteou por várias vezes o seu registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim de lançar candidatos próprios aos diversos cargos políticos, obtendo a rejeição do TSE em todas as suas investidas, por se chocar com vários pontos do artigo 17 da Constituição Brasileira, que se refere a liberdade de criação de partidos políticos desde que sejam resguardados os direitos fundamentais da pessoa humana. Ainda que não tenha sido legalmente registrado, o PNSB, dissolvido a poucos anos, contava com filiados em vários estados brasileiros, como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Espírito Santo, Santa Catarina e Paraná. O seu principal grupo de sustentação era o movimento dos ‘carecas’, considerados os skinheads brasileiros” (GUIMARÃES, 2000a, p. 451). 88 construção do que seu fundador denominava de “raça brasileira”, para a qual seriam aceitas pessoas de todas as “raças e religiões”: Nas entrevistas concedidas à imprensa, Zanine — simpatizante das ideias de Hitler, Mussolini e Enéas Ferreira Carneiro (“os carecas e o Enéas foram as melhores coisas que surgiram nesses últimos anos no que se refere a Brasil”) — expõe com convicção e sem hesitar o seu pensamento nitidamente conservador que tem atraído muitos adeptos provocado grande polêmica. A base de seu raciocínio é o nacionalismo exacerbado, xenófobo, apoiado na construção do que denomina de “raça brasileira”, para a qual seriam aceitas pessoas de todas as raças e religiões “obrigatoriamente brasileiras”. Ao contrário do racismo nazista, mestiços e negros seriam bem-vindos já que “raça ariana só existe na Europa” (GUIMARÃES, 2000a, p. 451). O PNSB tentou, por várias vezes, o seu registro junto ao Tribunal Superior Eleitoral, a fim de lançar seus candidatos em eleições, obtendo do TSE rejeição todas as vezes, devido às garantias constitucionais que repudiam qualquer forma de apologia ao nazismo. Ainda que não tenha sido legalmente registrado, o PNSB contava com uma articulada rede de comunicação de âmbito nacional, composta de militantes distribuídos em vários Estados brasileiros, sobretudo nas regiões Sul e Sudeste, mas também em Estados do Nordeste, como o Sergipe e a Bahia. Sob este enfoque, a base do pensamento nacional-socialista ganhou novos traços e significados, tanto históricos como locais. Os integrantes do PNSB, assim, são nacionalistas ferrenhos no sentido político e pautam-se pelos princípios de caráter distributivistas e igualitários, porém restringem seus benefícios exclusivamente aos membros de suas comunidades, ou seja, àqueles que compartilham uma espécie de sentimento de pertencimento às comunidades imaginárias, norteadoras das concepções destes grupos. Nas décadas de 1980 e 1990, em específico, o PNSB teve como principal núcleo de sustentação os “Carecas” — grupo surgido como um desdobramento dos skinheads europeus —, cujos membros buscavam a construção de um movimento de “cabeças raspadas” genuinamente nacional. 89 No blog Nacional socialismo em rede, 14 por exemplo, os internautas têm acesso a vários vídeos do youtube sobre a atuação de organizações nacionaissocialistas em diversos países. Além disso, há um site intitulado Partido Nacional Socialista Brasileiro,15 em que a utilização da suástica e de outros símbolos nazistas articula-se à propaganda que busca apresentar uma releitura do nacional-socialismo adaptado à realidade brasileira. Clicando no link “ativismo”,16 abrimos o texto “Leis do lobo solitário”,17 cuja revisão, segundo dados do site, foi elaborada pela “diretoria do PNSB”, o que coloca em evidência a continuidade da ação deste grupo. Não se sabe, porém, se existe uma relação direta entre os antigos e os novos militantes do PNSB. No texto mencionado, são colocadas, de forma explícita, estratégias para que o “lobo solitário” haja com eficiência e descrição nas suas atividades de militante nacional-socialista. A referência aqui de parte do texto tem o intuito de fazer com que os leitores reflitam sobre o seu conteúdo velado, ou seja, o estímulo à violência veiculado livremente na internet.18 É interessante, tendo em vista a diversidade dos grupos chauvinistas na contemporaneidade, a bricolagem formada pelos herdeiros das ideologias violentas. Na perspectiva desta investigação, militantes do PNSB, skinheads nacionaissocialistas e integralistas representam o aspecto do irracionalismo e o retorno à 14 Disponível em: <http://nacionalsocialismoemrede.blogspot.com>. Acesso em: 14.5.2009. 15 Disponível em: <http://nacional-socialismo.com>. Acesso em: 14.5.2009. 16 Disponível em: <http://nacional-socialismo.com/Ativismo.htm>. Acesso em: 14.5.2009. 17 Disponível em: <http://nacional-socialismo.com/LoboSolitario.htm>. Acesso em: 4.4.2009. 18 “Qualquer um é capaz de ser um Lobo Solitário. Resistência é um estilo de vida, basta ter perseverança e fé na Revolução Nacional-Socialista. Sucesso e experiência virão com o tempo. Sempre comece aos poucos. Saiba ponderar ‘custo-benefício’, riscos e objetivos de cada ação. Conhecimento é poder. Aprenda com seus erros e com os erros dos outros. Nunca se apresse ao fazer nada, tempo e planejamento são as chaves do sucesso. Quanto menos um estranho souber, mais seguro e mais chances de sucesso você terá. Mantenha sua boca fechada e seus ouvidos abertos. Nunca confesse nada, ou mesmo diga coisas que você acredite que não venham a comprometer o grupo ou sua ação individual. [...] Lembre-se, até as menores coisas farão diferença. Nunca deixe nenhum registro de suas atividades que possam te conectar à mesma. Tenha em mente que repetir as atividades na mesma área irá deslocar a atenção possivelmente a você. Quanto mais você mudar suas táticas, mais efetivas elas serão. [...] Não descartamos a possibilidade de existir uma hora quando pequenas células e Lobos Solitários se envolverão em uma alta estrutura, uma grande organização com grandes líderes. E essa é a proposta no PNSB, em longo prazo. Mas essa hora não é agora e parece estar longe de se realizar, pelo menos feita uma leitura atual da situação. Tenha a consciência de que o seu ativismo pode significar não mais do que a preparação para as futuras gerações – ‘manter acesa a chama do NS’ – e que isso de forma alguma representa um fator de desânimo para o militante” (Trechos do texto “Leis do lobo solitário”, idem, ibidem). 90 insanidade caracterizada pelas práticas violentas e excludentes destes grupos. Neste sentido, como desdobramento da cultura política de decadência ideológica e do irracionalismo (LUKÁCS, 1959), é possível a análise comparativa das atuais formas de organização de determinados segmentos skinheads como uma dimensão da generalização da cultura da violência que marca muitas organizações de formação miliciana e de valores segregadores. Porém, existem algumas diferenciações ideológicas entre aqueles que se apresentam como “cabeças raspadas”; desse modo, diversas tendências devem ser consideradas quando enfocamos a cultura skinhead como objeto de análise de certas expressões do comportamento político-juvenil. As diferenças entre militantes e organizações que fazem apologia às concepções ideológicas de Adolf Hitler devem ser destacadas, pois, no Brasil e em outros países, nem todo nazista é skinhead, ainda que o “White Power” se apresente como nazista. Entretanto, muitos militantes das organizações contemporâneas nacionais-socialistas não têm vínculo ou relação direta e explícita com grupos skins. Nesta lógica, nem todo skinhead ou “careca” é necessariamente um apoiador do nazismo enquanto ideologia; porém, muitos compartilham de determinados valores difundidos pelos intelectuais da suástica, como evidenciou o estudo de Márcia Costa (1993) sobre os “Carecas do Subúrbio”. Assim, é possível considerar que algumas características da cultura skinhead têm relação com as as práticas e valores políticos de caráter fascistizante. Considerações: skinheads, chauvinismo e violência Existem várias facções skinheads, nem todas aderem aos mesmos componentes ideológicos, embora o chauvinismo seja a marca identitária mais expressiva entre as duas vertentes analisadas aqui de forma suscinta: os “Carecas do Subúrbio”, autodenominados antirracistas — porém conservadores, homofóbicos e violentos — são portadores de pressupostos chauvinistas, sendo o integralismo fundamento ideológico singular entre outras vertentes skinheads de âmbito nacional. Somam-se a este mosaico de insanidade os nacionais-socialistas, representados pelo grupo skinhead “White Power”, marcado por características ideológicas de racismo, homofobia e xenofobia. 91 Ambas as vertentes são relativamente organizadas nas grandes cidades, em grupos autônomos; o “White Power” é o segmento mais singular, fato que exacerba os antagonismos deste grupo com os demais. Por outro lado, em cidades do interior, onde existem poucos skinheads, é comum a presença, em eventos musicais ou em manifestações públicas, de militantes de grupos diferentes, o que ocasiona, muitas vezes, a tolerância entre esses membros, devido ao respeito pela cultura skin e pelos valores nacionalistas. O movimento skinhead no início do século XXI é segmentado, isso deve ser ressaltado para evitarmos generalizações deficitárias. A cultura skinhead caracteriza-se por tendências ideológicas distintas. Embora nem todos segmentos skinheads sejam racistas, a violência é um elemento comum na maioria deles, o que pode ser percebido, por exemplo, nos embates ocorridos entre skins neonazistas e antinazistas. Tendo em vista os confrontos entre as diversas tendências de grupos skinheads, mais um fato sobre a violência difundida pela cultura skinhead foi noticiado. Nesse caso, durante um show realizado na cidade de São Paulo, em 4 de setembro de 2011, ocorreu um conflito envolvendo grupos skins neonazistas e antifascistas.19 As ações dos “cabeças raspadas”, nesse contexto, evidenciam seus reais valores. A esse respeito, também é emblemático o caso em que dois adolescentes — ambos com cabelos compridos e trajando camisetas de bandas de rock — foram atacados por “carecas” em um trem na região metropolitana de São Paulo, em 7 de dezembro de 2003.20 O adolescente Flávio Augusto do Nascimento 19 “Briga de skinheads na zona oeste de SP deixa um morto. Uma briga envolvendo cerca de 70 membros de diferentes gangues de skinheads deixou ao menos uma pessoa morta e outra gravemente ferida, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo, neste sábado. Gangues de skinheads neonazistas, entre elas a Front 88 e a Terror Hooligan, estavam na porta da boate Carioca Club, na rua Cardeal Arcoverde, onde a banda de punk inglesa Cock Sparrer iria se apresentar. Outra facção de gangues skinheads, que se posicionam contra as ações fascistas, desceu a rua também em direção ao clube. Havia cerca de 35 pessoas de cada facção. Quando as facções se encontraram, iniciaram um confronto usando armas de fogo, facas e coquetéis molotov. Cerca de 400 pessoas estavam na frente da boate no momento da briga. Segundo testemunhas, carros estacionados foram depredados. A polícia usou spray de pimenta para conter o tumulto. A assessoria do HC (Hospital das Clínicas) confirmou uma morte e um ferido em estado grave. Oito pessoas foram detidas para averiguação e encaminhadas para o 14º DP (Pinheiros)” Disponível em: <www.folha1.uol.com.br> Acesso em: 4.9.2011. 20 Disponível em: <www.folha1.uol.com.com>. Acesso em: 4.6.2009. 92 Cordeiro, de 16 anos, perdeu o braço direito, enquanto que Cleiton da Silva Leite, de 20 anos, morreu após traumatismo craniano. Na verdade, eles foram obrigados a pular de um trem em movimento para não serem assassinados pelos skins dentro do vagão. Cabe aqui reiterar que os vídeos do youtube disponibilizados na internet possibilitam o acesso a programas jornalísticos sobre os crimes e a atuação de grupos skinheads. A bibliografia aqui referenciada assinala os elementos ideológicos que revelam a aproximação entre muitas organizações skinheads no Brasil e organizações skinheads atuantes em diversos países. De qualquer forma, alguns sites e blogs disponibilizados por skinheads pregam a não violência entre eles, embora sejam minoritários, se comparados à grande maioria dos grupos de “cabeças raspadas”. Esse grupo minoritário representa os defensores da vertente skin tradicionalista e preza, em especial, a cultura, a estética e a musicalidade do movimento. De fato, a popularização da cultura skinhead em diversos países contribuiu para que muitos jovens crescessem em um ambiente de contato contínuo com as músicas e a estética skinhead, assimilando tal identidade como manifestação apenas de uma cultura urbana, uma “cultura das ruas”. Todavia, analisando as origens da cultura skinhead inglesa, a partir do final da década de 1970, e seus desdobramentos em certos segmentos de skins na atualidade, é pontual ressaltar os vínculos ideológicos existentes nas práticas de muitas organizações e os valores propagados há décadas por extremistas de direita, como a defesa do território, baseada em um paradigma chauvinista e xenófobo, e a afirmação de suas convicções políticas através da violência contra seus antípodas. É evidente que a cultura skinhead é multifacetada e pressupõe uma diversidade de tendências. Um aspecto que marca muitos skinheads é a valorização da cultura militar, associada, sobretudo, à preparação física, ao treinamento para o combate através de táticas de confronto, ao conhecimento de esportes de contato e, em alguns casos, à utilização de armas brancas ou de fogo. Quanto a isso, os boletins policiais registram o porte de armas por determinados skins, não só no Brasil, mas em outros países, o que remete ao modelo organizacional paramilitar e corresponde às formas 93 de organização de determinados grupos skinheads. Como exemplo, o livro de Márcia Regina Costa (1993) — elaborado a partir de várias entrevistas com “Carecas do ABC” 21 e “Carecas do Subúrbio” — demonstra que muitos dos militantes entrevistados articulam uma hierarquia composta de soldados e generais. Ademais, segundo a autora, os “Carecas do Subúrbio” afirmaram que “um dia teriam um exército de carecas para salvar o Brasil”. Os militantes de muitas organizações skinheads apresentam em suas práticas a afirmação de valores conservadores, fundamentados em princípios de conduta social, sexual e familiar, com destaque para o repúdio às concepções políticas igualitárias; em suma, essas organizações elegem o chauvinismo como paradigma político. Os valores chauvinistas e violentos também foram expressos pela “Juventude Nacionalista Brasileira”, organização articulada na segunda metade da década de 1990 por segmentos dos “Carecas do ABC”, os quais buscaram se vincular ao integralismo, no intuito de proporcionar uma identidade política nacional aos skinheads brasileiros, uma vez que estes estavam sendo influenciados por culturas skinheads estrangeiras, a exemplo dos skins racistas e dos vinculados ao movimento SHARP.22 21 Modelo de skinhead surgido na região da grande São Paulo, nas cidades de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano. 22 “[...] uma parcela dos “Carecas do ABC” optou em se vincular novamente ao Integralismo e, na segunda metade da década de 1990, estruturaram um movimento denominado ‘Juventude Nacionalista Brasileira’ (JNB). Esse movimento articulou-se com outros grupos skinheads brasileiros que tinham fracassado na tentativa de implantar o SHARP e adotaram elementos do Integralismo, mesclado com a conduta skinhead, como ideologia. Tal rearticulação estava em consonância com um processo em âmbito internacional no qual grupos skinheads nacionalistas buscavam se afastar do nacional-socialismo e criar organizações inspiradas nos movimentos nacionalistas históricos locais e estes, por sua, vez ligados a uma organização chamada ‘Internacional Terceira Posição’. O Integralismo seria o movimento nacionalista local nos qual os skinheads dos anos 1990 se inspirariam. Basicamente, havia dois polos da JNB: um em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, e o outro em Niterói (RJ), formado pelos skinheads daquela localidade, além de núcleos em Fortaleza (CE), Barra do Piraí (RJ) e Porto Alegre (RS). Em entrevista ao jornal Diário do Grande ABC, em 1995, membros da JNB do ABC paulista afirmaram que objetivo do movimento recém-criado era ‘despertar um instinto patriótico, nacionalista e defender os interesses nacionais até pegando em armas se for o caso’; consideravam Plínio Salgado e Gustavo Barroso seus ideólogos, acusavam o então presidente Fernando Henrique Cardoso de ‘entreguista’, não admitiam a homossexualidade, o consumo de drogas e o capital estrangeiro investido no país. Também não aceitavam envolvimento com a criminalidade por parte de seus membros, e ainda diziam acreditar que tanto Hitler quanto Mussolini tinham sido ‘úteis à suas nações’, mas que as ideologias nacional-socialista e fascista eram incompatíveis com a realidade vivida no Brasil” (ALMEIDA, 2011, p. 253 e pp. 259-260). 94 A atuação dos movimentos e partidos políticos chauvinistas é complexa e difusa, tendo em vista que se faz presente desde o início do século XX, em diversos países, ganhando configurações e perfis distintos em cada época histórica. Assim, tais grupos podem atuar na sociedade como gangues de skinheads ou através de grupos políticos mais estruturados, como é o caso das organizações políticas sem registro partidário, a exemplo dos integralistas contemporâneos ou dos nacionaissocialistas brasileiros do PNSB. Entre as expressões chauvinistas, as manifestações regressivas dos skinheads nacionais-socialistas e integralistas contribuem para a configuração de um panorama diversificado, caracterizado por formas de nacionalismo extremado, instrumentalizado como fundamento para as práticas violentas dos ativistas destas respectivas organizações. __________________________ Fontes Carecas: Força Nacionalista Disponível em: <www.youtube.com>. Acesso em: 14.4.2012. Carecas e nacionalistas unidos Ativismo <www.youtube.com>. Acesso em: 14.4.2012. 7 de setembro. Disponível em: FOLHA DE S. PAULO. Skinheads se apresentam à polícia de Mogi das Cruzes em SP. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 4.6.2009. PARTIDO NACIONAL-SOCIALISTA BRASILEIRO. Ativismo. Disponível em: <http://nacionalsocialismo.com/Ativismo.htm>. Acesso em: 14.5.2009. ________. Leis do lobo solitário. Disponível socialismo.com/LoboSolitario.htm>. Acesso em: 4.6.2009. em: <http://nacional- SASSAKI, Raphael. Briga de skinheads na zona oeste de SP deixa um morto. In: Folha de S. Paulo, 4.9.2011. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br>. Acesso em: 4.9.2011. 95 Referências bibliográficas ALMEIDA, Alexandre de & COSTA, Márcia Regina. Os Skinheads brasileiros e os movimentos nacionalistas contemporâneos. In: LUSTOSA, Rogério V. (Org.). À Direita da Direita. Goiânia: Editora PUC-GO, 2011. ALMEIDA, Alexandre. Nem vermelho, nem racista: os skinzines integralistas. In: GONÇALVES, Leandro Pereira & SIMÕES, Renata Duarte (Orgs.). Entre tipos e recortes: histórias da imprensa integralista (vol. 2). Guaíba/RS: Editora Sob Medida, 2012. ________. Integralismo e ideologia autocrática chauvinista regressiva: crítica aos herdeiros do sigma. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Universidade Estadual Paulista, Marília, 2012. BARBOSA, Jefferson Rodrigues. Entre milícias e militantes IV: neointegralistas ou integralismo contemporâneo. In: PassaPalavra, jul. 2009. Disponível em: <http://passapalavra.info/?p=8711>. Acesso em: 19.2.2011. CAMUS, Jean-Yves. Skinheads. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (Orgs.). Dicionário crítico do pensamento da direita. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2000. COSTA, Márcia Regina. Os “Carecas do Subúrbio”: caminhos de um nomadismo moderno. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1993. FLORENTÍM, M. Guia da Europa Negra: sessenta anos de extrema direita. Portugal: Publicações Europa América, 1994. GUIMARÃES, Valéria Lima. Armando Zanine. In: SILVA, Francisco Carlos Teixeira da; MEDEIROS, Sabrina Evangelista; VIANNA, Alexander Martins (Orgs.). Dicionário crítico do pensamento da direita. Rio de Janeiro: FAPERJ/Mauad, 2000. LUKÁCS, G. El asalto a la razón. México: Fundo de Cultura Economica, 1959. 96 A burguesia dependente-associada e a crise: o Instituto Millenium em suas análises sobre 2008 Lucas Patschiki1 Introdução O Instituto Millenium (IMIL) foi fundado em 2005 pela economista Patrícia Carlos de Andrade, sendo chamado, naquele momento, de Instituto da Realidade Nacional.2 Seu “manifesto” afirma que foi lançado “com a finalidade de promover valores e princípios de uma sociedade livre”, dentre os quais destacam-se: “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia, estado de direito, economia de mercado, democracia representativa, responsabilidade individual, eficiência e transparência” (IMIL, on-line).3 Ademais, o instituto é responsável por organizar uma série de conferências e palestras, debates e colóquios públicos, além de manter um “canal” de televisão on-line (transmitindo programas por podcast); um boletim eletrônico; um projeto para “sala de aula”; e diversas campanhas (geralmente veiculadas através de anúncios em revistas e jornais de grande circulação). Também reúne atualmente uma equipe fixa de 10 pessoas e mais de 200 colaboradores, sendo a maioria fixos (idem, ibidem). 1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás. Pesquisa financiada pela Capes. 2 A troca para o atual nome aconteceu em 2006, durante o Fórum da Liberdade realizado na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. 3 Disponível em: <www.institutomillenium.org.br>. Acesso em: 15.9.2015. 97 O IMIL articula uma série de intelectuais representantes de diversos grupos e frações da burguesia brasileira e estrangeira, trazendo questões para o debate e a disputa, buscando produzir consenso. A atuação do IMIL busca tanto a formação de consenso intraclasse, através do “financiamento de pesquisas de opinião acessíveis somente aos associados e mantenedores” (SILVEIRA, 2011, s. p.), quanto posiciona-se abertamente para a disputa ideológica, através da “promoção de eventos abertos ao público bem como a divulgação de artigos curtos acerca de temas diversos”, almejando a “conscientização do público”. Seus colaboradores também atuam cotidianamente como “experts em meios de comunicação (televisão, rádio, jornais)” (idem, ibidem). Além disso, cumpre um papel de mediador das negociações com o Estado, mantendo discussões políticas, públicas e privadas com legisladores. Na sua página de prestação de contas, consta que sua receita alcançou 620 mil reais, em 2009; 1.091.000 reais, em 2010; 965 mil reais, em 2011; e 1.071.593 reais, em 2012 (IMIL, on-line).4 Sua maior frente de atuação é on-line, o que pode ser observado na popularidade de seu domínio na web. Conforme registra o Alexa (on-line), 5 ferramenta de ranking da internet, o IMIL ocupa, dentre todos os sites brasileiros, a posição de 10.890, ao passo que, em comparação global, situa-se na posição 354.306. Isso demonstra um alcance altamente considerável em torno de seus visitantes, já que, segundo informações oficiais, ele habita um universo composto de mais de 2.763.360 de sites cuja inscrição finaliza em “.com.br” (CETIC, on-line).6 Seu público possível corresponde a 37,4% da população total brasileira, isto é, mais de 75.982.000 de brasileiros, o que equivale a 3,6% da população mundial usuária da rede (ECOMMERCE, on-line).7 Embora os integrantes do IMIL prefiram intitular-se simplesmente de “liberais”, militam para o avanço e o aprofundamento do neoliberalismo como programa histórico-social em disputa, determinado pelas relações de forças em sua 4 Disponível em <http://www.imil.org.br/institucional/prestacao-de-contas>. Acesso em: 18.9.2014. 5 Disponível em: <www.alexa.com>. Acesso em: 17.9.2013. 6 Disponível em: <http://www.cetic.br/dominios/index.htm>. Acesso em: 13.2.2012. 7 Disponível em: <http://www.e-commerce.org.br/stats.php>. Acesso em: 13.2.2012. 98 historicidade, ou seja, não sendo resultado automático das formulações de seus teóricos; assim como nos planos militares, não é possível fixar anteriormente todos os seus detalhes, “mas só […] seu núcleo e esboço central” (GRAMSCI, 2002, p. 25). O IMIL afirmou-se como o maior espaço de produção de consenso para as frações da classe dominante brasileira. É um aparelho privado de hegemonia por excelência, dado que não está diretamente ligado às relações de produção, distribuição e venda. Desse modo, não cumpre as responsabilidades de sindicato patronal, federação industrial, associação comercial, etc., atuando, segundo interpretação fundamentada em Gramsci (2002, pp. 341-342), como “uma nomenclatura de classe” que visa expandir o grupo social do qual se origina, correspondendo a “organismos que, na sociedade civil, não só elaboravam as diretrizes políticas, mas educavam e apresentavam os homens supostamente em condição de aplicá-las”. Ainda segundo Gramsci “[em sociedade] ninguém é desorganizado e sem partido, desde que se entendam organização e partido num sentido amplo, e não formal” (idem, pp. 253254). O IMIL resulta da iniciativa de diversos atores de peso da classe dominante brasileira, além de contar com a participação direta de representantes do capital estrangeiro, mobilizando ampla parcela da intelectualidade a seu dispor. Sua hierarquia interna divide-se em câmaras (câmara de fundadores e curadores, câmara de mantenedores, câmara de instituições, além da “câmara” de financiadores); no conselho de governança; no conselho fiscal; no comitê gestor; e no conselho editorial.8 8 Destacam-se, nestas instâncias, nomes como os de Armínio Fraga, Gustavo Franco e Henrique Meirelles (ex-presidentes do Banco Central); Gustavo Marini (Santander); João Roberto Marinho e Luiz Eduardo Vasconcelos (Organizações Globo); Grupo Abril; Daniel Feffer (Suzano); Jorge Gerdau Johannpeter (Gerdau); Ricardo Diniz (Thomson Reuters); Pedro Henrique Mariani (Banco BBM, Latapack e Petroquímica da Bahia); Salim Mattar (Localiza); Sergio Foguel (Oderbrecht, Conselho Nacional de Turismo); William Ling (Petropar); Jayme Garfinkel (Porto Seguro); Antonio Carlos Vidigal (siderúrgica TenarisConfab); Helio Beltrão (Ultra e Ediouro); João Accioly (Bio100 Agroindustrial); André de Paiva Leite (Statoil); Augusto Teixeira de Freitas (corretora Ativa); Antonio Carlos Pereira (editor chefe do Estado de São Paulo); Eurípedes Alcântara (ex-diretor chefe da Veja, demitido recentemente); Luiz Felipe D’Ávila (escritor e editor); Patrícia Carlos de Andrade, Paulo Guedes, Samuel Kinoshita e Rodrigo Constantino (economistas); Carlos Pio e Eduardo Viola (cientistas políticos); e Guilherme Fiuza e Pedro Bial (jornalistas). Dentre as instituições e entidades associadas ao IMIL, constam a Confederação Nacional dos Jovens Empresários; Espírito Santo em Ação; Instituto Atlântico; Instituto de Estudos Empresariais; Instituto Liberal; Instituto Liberdade; e Instituto Ling. Disponível em: <http://www.imil.org.br/institucional/prestacao-decontas>. Acesso em: 18.9.2014. 99 As formulações políticas e ideológicas criadas e disseminadas pelo IMIL participam diretamente das disputas da fração hegemônica da classe dominante, sendo este aparelho privado de hegemonia espaço fundamental na produção de consensos para a burguesia. Neste sentido, as disputas em torno do programa neoliberal (e seu referencial) constituem linguagem comum para estruturar consensos mínimos de modo ativo, relacionando questões e interesses imediatos com as necessidades de reprodução ampliada do capital-imperialismo. Deste modo, compreender as formulações desenvolvidas pelo IMIL sobre a crise de 2008 deve superar uma análise descritiva (limitada a demonstrar as representações de seus intelectuais), assinalando, em especial, as disputas e as questões que guiaram as diferentes interpretações programáticas e os planos gerais visando a intervenção de seus membros no Estado estrito e na sociedade civil. Para tanto, iremos explorar, primeiramente, as premissas teóricas do instituto, buscando assinalar suas disputas em torno da linguagem ideológica comum e os marcos que orientam suas leituras sobre a realidade, de modo que possamos esclarecer como o editorial do IMIL, a fim de constituir um ponto de vista “homogêneo” e coerente, filtra e depura as distintas interpretações elaboradas por seus especialistas. Em seguida, analisaremos os diagnósticos “concretos” dos especialistas e editores do IMIL sobre a crise. Nesse momento, intentaremos verificar se existem, nessas variadas interpretações, distintos interesses que acabam por conformar disputas abertas em torno da construção de um consenso provisório. Por fim, examinaremos as “soluções” e proposições políticas (positivas e negativas) sugeridas pelo IMIL, as quais servirão para normatizar e guiar a atuação política coletiva. Esta análise associa-se a uma pesquisa mais abrangente e nos permitirá, posteriormente, vislumbrar a capacidade de atuação política do IMIL (sua “efetividade real”) nas diversas relações que estabelece com a sociedade política. A crise internacional A crise econômica de 2008, surgida, não por acaso, nos EUA, originou-se da crise da bolha imobiliária estadunidense que estoura naquele ano. Esta crise, como as ocorridas no modo de produção capitalista, é resultado da superprodução de 100 mercadorias, não da escassez, sendo gerada, exatamente, em virtude do bom funcionamento do sistema capitalista e configurando-se não como uma crise conjuntural (que teria origem em algum evento específico), mas estrutural, capaz de desencadear uma série de outras crises. Segundo os membros do Observatório Internacional da Crise: Desde o surgimento do capitalismo existiram crises cíclicas e periódicas, de menor ou maior intensidade, extensão e duração. Desta vez, no entanto, trata-se de uma crise nova, com características distintas; é uma crise mais extensa, profunda multidimensional e com alcance global. Nós nos referimos, mais que a outra crise cíclica do capitalismo, a uma grande crise estrutural no marco de uma “Crise da Civilização”, com o potencial de eventualmente redesenhar a geografia socioeconômica e a história planetária (DIERCKXSENS et al., 2010, p. 11). A crise imobiliária e creditícia dos EUA origina-se, especialmente, no chamado mercado subprime que, graças à inadimplência, corresponde a um nível mais arriscado de investimento, garantindo lucros maiores para a empresa que oferece este tipo de crédito. Após a bolha da Nasdaq 9 (National Association of Securities Dealers Automated Quotations) estourar, o Federal Reserve System (FED), para não diminuir o nível de investimentos financeiros, passou a diminuir os juros da economia interna, tanto é que, em 2003, chegaram a cair para 1% ao ano, o que permitiu o crescimento avassalador do mercado imobiliário americano. Assim, a demanda cresceu de maneira drástica, já que os financiamentos e, principalmente, as hipotecas acompanharam estas mesmas taxas. A hipoteca passou a ser a grande alavanca para o crédito, amplamente utilizado para aquecer o mercado interno; ademais, a necessidade de aumento da demanda não poderia excluir os “grupos de risco” (os chamados “maus pagadores”), o que foi supostamente resolvido pelo recurso do subprime. A Fannie Mae e Freddie Mac (duas grandes hipotecárias estadunidenses) chegaram a deter, sozinhas, quase metade dos 12 trilhões de dólares em hipotecas do país. Em 2008, “4 em cada 5 hipotecas [eram] vendidas e só uma [estava] com o credor original” (SOARES, 2008). Ainda no ano de 2005 estava constituída a bolha do setor: 9 Mercado de ações automatizado norte-americano. 101 [...] comprar uma casa (ou mais de uma) tornou-se um bom negócio, na expectativa de que a valorização dos imóveis fizesse da nova compra um investimento. Também cresceu a procura por novas hipotecas. [...] Em busca de rendimentos maiores, gestores de fundos e bancos compram esses títulos “subprime” das instituições que fizeram o primeiro empréstimo e permitem que uma nova quantia em dinheiro seja novamente emprestada, antes mesmo do primeiro empréstimo ser pago. Também interessado em lucrar, um segundo gestor pode comprar o título adquirido pelo primeiro, e assim por diante, gerando uma cadeia de venda de títulos (FOLHA DE S. PAULO, 11.7.2008). Noutros termos, quando não se consegue pagar a dívida inicial (a hipoteca), um ciclo em cascata de não pagamentos é gerado, o que resulta em uma crise de liquidez, de retração de crédito. Isso ocorreu quando o FED, a partir de 2005, passou a aumentar os juros, aumentando, com efeito, a inadimplência, derrubando os preços dos títulos imobiliários, o que forçou empresas e pessoas a retirar dinheiro para o consumo, em vez de consumir e investir através do crédito. Os bancos, sem dinheiro suficiente para cobrir tais retiradas, buscaram crédito, mas este, devido aos juros, encontrava-se restrito; desse modo, o mercado financeiro não conseguiu garantir as retiradas.10 Assim, [...] entram os Bancos Centrais, injetando dinheiro a juros baixos para garantir dinheiro no caixa dos bancos. Se isso não resolver, a solução é abrir falência (e sim, se você tivesse dinheiro lá ele simplesmente sumiria) ou tentar que alguém compre o banco e garanta dinheiro no caixa. Diversos bancos tradicionais acabam sendo incorporados por outros ainda maiores, numa tentativa de evitar uma quebradeira e, pior, uma crise de confiança, aonde todos iriam aos seus bancos retirar seus dinheiros e aí todos os bancos quebrariam de uma só vez (SOARES, 1.10.2008). Mesmo que tal investimento signifique o aumento da dívida pública e, portanto, a socialização da dívida, ele não foi capaz de promover o revigoramento da economia. Sob este enfoque, como veremos adiante, vários países capitalistas centrais praticamente faliram. Nos EUA, o investimento produtivo “diminuiu 24% 10 No funcionamento “normal” do mercado, os bancos trabalham com cerca de 1/3 de lastro para a retirada dos fundos de seus clientes. 102 desde o final de 2007, o que provocou um aumento do desemprego e afetou a renda. As dívidas sem capacidade de pagamento e a queda da renda implicam uma contração generalizada da demanda. A crise da economia real, em outras palavras tornou-se evidente” (DIERCKXSENS et al., 2010, p. 11). Conforme demonstra a Folha de S. Paulo: Em setembro do ano passado, o BNP Paribas Investment Partners — divisão do banco francês BNP Paribas — congelou cerca de 2 bilhões de euros dos fundos Parvest Dynamic ABS, o BNP Paribas ABS Euribor e o BNP Paribas ABS Eonia, citando preocupações sobre o setor de crédito “subprime” (de maior risco) nos EUA. Segundo o banco, os três fundos tiveram suas negociações suspensas por não ser possível avaliálos com precisão, devido aos problemas no mercado de crédito “subprime” nos EUA. Depois dessa medida, o mercado imobiliário passou a reagir em pânico e algumas das principais empresas de financiamento imobiliário passaram a sofrer os efeitos da retração; a American Home Mortgage (AHM), uma das 10 maiores empresas do setor de crédito imobiliário e hipotecas dos EUA, pediu concordata. Outra das principais empresas do setor de financiamento imobiliário nos EUA, a Countrywide Financial, registrou prejuízos decorrentes da crise e foi comprada pelo Bank of America. A Countrywide responde por cerca de um quinto de todas as hipotecas nos EUA e foi uma das instituições mais atingidas pela crise das hipotecas “subprime”. O choque da crise chega agora a colocar em risco as duas gigantes americanas do setor hipotecário, Fannie Mae e Freddie Mac. Ambas contam com o respaldo do governo — que pode ter de intervir e assumir o comando de ambas, caso a situação financeira delas se agrave, segundo o diário americano “The New York Times” (“NYT”). As ações chegaram a cair cerca de 40%. [...] as duas empresas têm cerca de US$ 5 trilhões em débitos assegurados. Se as duas empresas ficarem impedidas de obter novos empréstimos — devido ao temor de que caiam em “default” (inadimplência) —, ficariam impedidas também de adquirir hipotecas de outras companhias do setor (11.7.2008). Nesse contexto de “crise de confiança” — crise representada, na verdade, pela incapacidade de estas instituições financeiras gerirem os títulos que perderam valor (ou melhor, pela capacidade de determinarem a extração acelerada de maisvalia para cobrir o lucro que supostamente seria gerado automaticamente) — os Estados nacionais aparecem como elementos cruciais para salvar o sistema. Os EUA aprovaram um pacote de 700 bilhões de dólares para comprar os ativos “podres” 103 relacionados às hipotecas dos bancos e financeiras. O FED ofereceu 600 bilhões de dólares para dívidas relacionadas às hipotecas e mais 200 bilhões, no intuito de incentivar a oferta de crédito para o consumo. A Casa Branca ofereceu 17 bilhões e 400 milhões de dólares do “Programa de Alívio para Ativos Problemáticos” (destinado a empréstimos emergenciais), especialmente direcionados à indústria automobilística. A gestão Barack Obama complementou estas ações destinando 787 bilhões de dólares para conter, especialmente, a onda de desempregos, tendo em vista a criação de 3 milhões e meio de empregos (O ESTADO DE S. PAULO, 9.10.2008). Nem todos os países do mundo contavam com essa capacidade de endividamento. Nesse caso, os primeiros afetados de maneira mais incisiva pela crise foram Irlanda, Grécia e Portugal, que haviam endividado-se pesadamente nos últimos 10 anos, o que contribuiu para que sua capacidade de novos empréstimos fosse bastante reduzida. Ao mesmo tempo, eles não poderiam simplesmente declarar moratória, pois cumprem acordos com a União Europeia e com o Banco Central Europeu, o que mantém as taxas de juros pagas pelos governos integrantes da Zona Euro baixas, supostamente sob a condição de que proveriam recursos e apoio aos países da região, evitando, assim, calotes. A moratória dos países em questão aumentaria os custos dos empréstimos feitos pelos países menores da União Europeia, os quais já têm dificuldades em manter o pagamento de suas dívidas externas. Os bancos credores desses países enfrentariam sérios problemas de solvência, abrindo intervenção e necessitando de salvamento por parte das instituições financeiras supranacionais (BBC Brasil, 29.7.2011). As exigências impostas aos empréstimos destes países aprofundaram a expropriação dos direitos sociais e o desmonte do Estado, trazendo-lhes consequências sociais graves. A Grécia, desde então, encontra-se em situação de quase guerra civil (DANTAS, 2010, pp. 79-91). 104 A crise no Brasil No Brasil, desde a quebra do Lehman Brothers, o Estado, sob o signo da crise, viabilizou investimentos diretos no mercado, a exemplo da liberação de quase meio trilhão de dólares no sistema financeiro, especialmente através dos compulsórios adicionais, visando o fortalecimento do sistema bancário e financeiro nacional através da centralização das carteiras de créditos nas maiores empresas do setor. O mercado financeiro ainda contou com o Banco Central como fiador para a proteção cambial, a partir da venda de dólares ao mercado futuro. Ampliou-se a liberação de crédito sob formas de empréstimo para as grandes empresas e para o agronegócio, cuja parcela exportadora ainda passou a contar com a garantia de dólares para o comércio, através do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. A agricultura, a construção civil e demais projetos de infraestrutura receberam crédito de quase 50 bilhões de reais, descontando a liberação de crédito que seria destinado a investimentos futuros, como as Olímpiadas e a Copa do Mundo. O crédito ao consumidor individual foi elevado para 10 mil reais, com o governo subsidiando a compra de eletrodomésticos e automóveis através da diminuição do Imposto sobre Produtos Industrializados. Segundo Leda Maria Paulani: Os impactos pelo lado real têm chegado aos poucos e têm vindo principalmente da deterioração das expectativas, que poderão reverter os indicadores relativos à formação bruta de capital fixo (ou seja, investimento) que, a duras penas, estavam se recuperando, depois de duas décadas de estagnação. Os investimentos governamentais como o PAC e o pacote habitacional poderão substituir em parte o investimento privado, mas dificilmente serão suficientes para compensar a redução deste último. Do lado do consumo, o crédito não foi tão afetado, apesar de certa retração no início, particularmente no que tange a financiamento de bens de alto valor, como automóveis. [...] A manutenção do nível de consumo tem feito que o Brasil seja visto hoje como o paraíso das multinacionais, pois, dado o tamanho do mercado interno brasileiro e a já famosa engorda da classe C (20 milhões a mais de pessoas com renda para consumir alguma coisa além do essencial), nossa economia tem sido vista como uma alternativa de obtenção de lucros num mundo em retração. O grande problema é que o consumo não tem dinamismo para puxar a economia, como o tem o investimento, e consumo puxado por crédito não é sustentável no longo prazo, como 105 nos mostra o espelho americano. Esse arranjo macroeconômico, em que o investimento está novamente ameaçado de reversão e em que um consumo puxado por crédito aparece como o elemento dinâmico, está de forma evidente completamente invertido, mas é um arranjo típico de um processo de acumulação em que a finança está no comando, fomentando o crescimento de riqueza fictícia (PAULANI, 2009, p. 35). Essa série de medidas — associadas a diversas complementações nos quatro anos seguintes — buscaram deixar o país apto a enfrentar a crise. Todavia, tais medidas pressupõem investimentos diretos do Estado na economia, sem nenhum controle ou garantia sobre eles, visto que são feitos através de empréstimos, crédito e abono fiscal. O Brasil, desse modo, aprofundou o processo de monopolização da economia em torno de conglomerados transnacionais, mantendo elevados os lucros dos bancos privados do país e garantindo o pagamento dos juros das dívidas externa e interna. Nesse contexto, foram emitidos, entre 2009 e 2010, mais de 180 bilhões em títulos da dívida interna para os financiamentos do BNDES, o que, graças ao forte arrocho, resultou na sequência de superávits recordes (O ESTADO DE S. PAULO, 9.4.2009). A crise configura diferentes reações em diferentes formações sociais. Sob este enfoque, o Estado assume papel de protagonista, pois, como já foi dito, é o único agente capaz de sociabilizar as perdas privadas, adotando medidas de austeridade e, ao mesmo tempo, gerindo as forças de repressão de forma nacionalmente integrada. O Estado é o único agente capaz de garantir a reprodução ampliada do capitalismo financeirizado. Sob a declaração enfática de que determinados conglomerados financeiros privados são “grandes demais para quebrar”,11 os países capitalistas centrais colocaram-se como fiadores últimos do sistema econômico “tal como ele já existe”, ou seja, deram a prerrogativa para que os bancos e financeiras agissem da maneira que lhes conviesse. As ações em torno da austeridade foram exigências dos organismos supranacionais que compõem a 11 Segundo Maria Lucia Fattorelli (apud SILVA, 2015), “os bancos privados criaram derivativos em cima de derivativos. Papéis podres que estavam inundando seus balanços. Ou seja, eles estavam quebrados, mas foram considerados grandes demais para quebrar e continuaram com seus patrimônios intocáveis. [Contudo] quem está assumindo esse ônus são os países, e é um ônus que não tem fim”. 106 teia do capital-imperialismo (FMI, Banco Mundial, Troika, etc.), ao passo que as ações em torno da sucessiva violência estatal ocupam-se da luta de classes, delimitada ao território nacional-estatal (como processo de derrota do internacionalismo revolucionário). Ambas as ações são, de fato, exigidas pela classe dominante em luta aberta contra sublevações das classes populares e trabalhadoras. Segundo Panayota Gounari (2014), que analisa a crise na Grécia: Este experimento neoliberal, como implementado atualmente na Grécia, gera destrutividade e morte e ressoa com formas de “necrofilia social”. Por necrofilia social, me refiro ao contundente esforço organizado por parte do sistema político doméstico e centros neoliberais estrangeiros para implementar políticas econômicas e medidas de austeridade que resultam em destruição física, material, social e financeira de seres humanos: políticas que promovem morte, seja física ou simbólica. O objetivo da ofensiva capitalista em curso na forma da doutrina neoliberal é o de destruir simbolicamente e fisicamente os estratos mais vulneráveis da população, para colocar a sociedade inteira em um estado moribundo, para impor medidas de austeridade sem precedentes e assim gerar mais lucro para as classes mais privilegiadas internacionalmente (GOUNARI, 2014). Essas medidas, impopulares e antipopulares, necessitam, para sua validação, da anuência de parte da população que lhes garanta base social de suporte. Não por acaso, é nesse contexto que se percebe um forte crescimento dos projetos fascistas, ora diretamente representados, caso da Ucrânia, ora tendo suas pautas diluídas pelo campo político. No caso brasileiro, a violência se deu pela quebra do “pacto social” lulista, o que corrobora a forma política de submissão petista aos desmandos do capital. Não há possibilidade nenhuma de se conceber um pacto social amplo em torno de um programa político-econômico entre atores histórica e estruturalmente desiguais, com interesses contraditórios. Os atores e movimentos sociais que foram às ruas no Brasil, nos dois últimos anos, conheceram a violência da “direita” tradicional e da “esquerda” transformada. Lembrando as possibilidades que a crise oferece ao aprofundamento da ofensiva do capital, via “doutrina do choque”, como entende Naomi Klein: “o estado de choque é facilmente explorável porque as pessoas tornam-se vulneráveis e confusas. Elas são privadas de suas ferramentas vitais para entenderem a si mesmas e suas posições no contexto sociopolítico”. 107 A crise segundo o IMIL Partindo do pressuposto de que a crise aprofunda as relações sociais capitalistas, aumenta a taxa média da exploração e sociabiliza, via Estado, as perdas anteriores, tudo nos levou a crer que o IMIL teria uma leitura, se não positiva, ao menos “empreendedora” daquele momento, aos moldes schumpeterianos, nos termos da “destruição criadora”.12 Entretanto, seja em virtude do lugar subalterno que ocupam no sistema de produção e financeiro global, seja por receio do alcance daquela crise, há uma retração analítica, o que fica explícito em artigo de Gustavo Franco, quando retoma John Maynardes Keynes: Há muita gente celebrando o fim do capitalismo, ou do neoliberalismo, os termos são usados como sinônimos. [...] Embora a atmosfera esteja carregada demais para vaticínios, parece razoável supor [...] como disse recentemente Paul Samuelson, a economia de mercado tem cerca de mil anos de serviços prestados, ao passo que os experimentos sob os auspícios de Marx, Lênin, Stálin, Fidel, Chávez são nada menos do que trágicos. Tal como a democracia, o capitalismo tem muitos defeitos, mas bate a concorrência por ampla margem. Vale lembrar que as crises financeiras existem desde sempre, e que invariavelmente são combatidas por intervenções salvadoras dos governos, que terminam fazendo o sistema mais robusto. John Maynard Keynes, tão lembrado recentemente, foi um dos heróis na vitória sobre uma grande crise e estava muito longe de ser hostil ao que hoje se chama de neoliberalismo. [...] Fica-se com a impressão de que “intervenções do Estado no domínio econômico” têm mais chances de funcionar quando feitas por gente que acredita em mercados e que vê a intervenção como exceção, não como regra (FRANCO, 20.11.2008). Embora as grandes questões ainda não enfocassem os atores específicos, responsáveis pela resolução da crise, já era atribuída ao Estado a intervenção política sobre a economia, em ampla expectativa sobre a atuação da gestão Barack Obama nos EUA. Mohamed El-Erian, um dos gestores de um grande fundo de investimentos americano e autor de “Quando os mercados colidem” 12 Em 2014, tal expressão é registrada como verbete na página “IMIL explica”. 108 (2008), apontava inevitáveis mudanças no horizonte: (1) A economia americana tem pela frente um longo período de baixo crescimento, enquanto se cura do endividamento excessivo. (2) O crescimento global vai depender mais das economias emergentes. (3) Os países emergentes, por sua vez, vão depender mais de uma dinâmica própria de crescimento do consumo interno e menos do desempenho das exportações (GUEDES, 20.11.2008). Diante disso, chama-nos a atenção o fato de que sequer a linguagem comum, a neoclássica, emerge organicamente na resolução da crise. As “soluções” são sempre limitadas, pois o capitalismo dependente-associado periférico gestou e gere um sistema em crise. Na conjuntura nacional — dando continuidade ao argumento de Franco (2008) “de que ‘intervenções do Estado no domínio econômico’ têm mais chances de funcionar quando feitas por gente que acredita em mercados e que vê a intervenção como exceção, não como regra” —, ideologicamente amplia-se o combate às possíveis soluções populares para a crise, atacando a gestão federal do Partido dos Trabalhadores. Isso pode ser visualizado em um artigo que critica a utilização de Medidas Provisórias para a contenção da crise em âmbito nacional: [...] exemplo de desprezo à democracia veio poucos dias depois. O ministro da Economia e o presidente do Banco Central compareceram ao Congresso Nacional para detalhar as providências do governo no combate à crise. Exatamente no dia seguinte, sem nenhum aviso prévio aos parlamentares, foi editada a MP 443, que autorizou o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a adquirirem participações em instituições financeiras privadas. [...] ainda não houve apreciação pelo Congresso Nacional, mas, quase certamente, a MP será aprovada em sua integralidade. A comparação entre as soluções adotadas pelo Brasil e pelos Estados Unidos traz um incômodo (seríamos tão democráticos quanto se é propagado?) e principalmente, uma lembrança: não se pode abrir mão de princípios fundamentais em nome de maior eficiência e rapidez na tomada de decisões. Afinal de contas, em nome dessa agilidade (ou de qualquer outro motivo estabelecido como de “interesse público”) a democracia pode tornar-se gradativamente uma ditadura. Que o digam nossos vizinhos sul-americanos (MOREIRA, 20.11.2008). Esse fim — supor que uma gestão presidencial de esquerda, aos moldes de uma democracia burguesa, carrega a possibilidade de tornar-se, de fato, um regime de esquerda — destoa do discurso daqueles que defendem a intervenção no 109 momento da crise. Falando claramente, elogia-se a medida intervencionista, mas com a ressalva de que esta não poderia ser instrumento de decisão do Poder Executivo sobre as outras esferas decisórias eleitas. Existe um forte elemento de retórica ideológica nesse posicionamento contra o Executivo, visto que o IMIL foi e é participante ativo tanto do Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social do Gabinete da Presidência da República (responsável, em caráter consultivo, pela política econômica do governo) como da Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade (responsável pela flexibilização do aparelho de Estado). Não por acaso, Jorge Gerdau — um dos principais financiadores do IMIL e membro destes dois conselhos (atuando como presidente no segundo) — assinala que cabe ao Estado investir na produção e na infraestrutura e, ao mesmo tempo, cortar despesas públicas: O aumento da eficiência e da competitividade do agronegócio e da indústria passa obrigatoriamente pela melhoria da infraestrutura do país. Precisamos de estradas, ferrovias, portos e aeroportos com melhor qualidade para exportar mais. No mercado interno, a melhoria da logística poderá reduzir os custos para os consumidores, pois essa atividade possui um peso importante na formação dos preços dos produtos. Aumentar custos, neste momento, não é uma boa política. Diante do cenário de redução de atividade econômica em que milhares de pessoas lutam para manter seus empregos, o aumento dos salários do funcionalismo público em 2009 parece ser, em muitos casos, inadequado (GERDAU, 5.1.2009). As sugestões propostas por Gerdau são contrariadas pelo próprio IMIL, o que evidencia que existem percepções distintas entre as frações de classe que dão conta exatamente da origem principal dos seus lucros. De qualquer forma, se essas posições não divergem a ponto de armar o conflito, indicam que a questão ainda se encontrava em disputa. O artigo de Alfredo Peringer (2009) é emblemático neste sentido, onde retorna para o liberalismo, fundamentando-se nas proposições de Adam Smith, considerando a baixa intervenção do Estado na economia como “progresso”, o único meio de gerar verdadeiro crescimento econômico: Infelizmente, ainda que as crises sejam o “produto de doutrinas que atribuem a governo o poder mágico de criar riqueza do nada”, como demonstra Ludwig Von Mises em The Theory of Money and Credit, o 110 desentendimento monetário vem levando alguns economistas a receitar, nos períodos recessivos, a ação estatal para suprir a “falta de dinheiro” ou de crédito. O receituário, de origem keynesiano-monetarista, é tão falso como um bombeiro receitar gasolina para apagar um fogo. Nas crises não há falta de dinheiro na economia. Há, naturalmente, um aumento da demanda por moeda, provocado pelo medo e pelas incertezas em relação ao futuro. Indivíduos, empresas e bancos requerem, nesses períodos, mais tempo para formar suas expectativas e tomar suas decisões de gastos, investimentos e empréstimos. Keynes está certo ─ ao menos nisso ─ quando, referindo-se ao aumento das injeções de moeda e crédito na economia, afirma que “não adianta levar um cavalo à fonte, se ele não tem sede”. Só que, em vez de aceitar as soluções de mercado (não há outras!), foi mais infeliz ainda: achou que o governo deveria agir como agente gastador, investidor e emprestador desses recursos na economia (PERINGER, 12.1.2009). Peringer ainda ataca o keynesianismo porque este, supostamente, não gera crescimento (se o fizesse de fato, seria “ilusório”), afirmando também que políticas estatais e intervencionistas são pretexto para que a burocracia política libere mais verbas para os seus gastos (públicos). Ambos os artigos foram publicados quando o mercado tinha a expectativa de que a “marolinha” de Lula se tornasse um “tsunami”, discurso fortemente vendido pelo oligopólio midiático, o que, em 2010, poderia vir a alterar de maneira drástica as expectativas de continuidade petista na gestão federal. Compondo um quadro de relação de forças mais crível, é convocado, para o mês de dezembro de 2008, um Colóquio do IMIL, intitulado: “Efeitos do novo panorama mundial sobre os valores da democracia, da economia de mercado e da liberdade”, do qual participa uma série de debatedores do instituto e convidados: Aloísio Araújo, Eduardo Giannetti, Ilan Goldfajn, Paulo Guedes, Alberto Carlos Almeida, Amaury de Souza, Demétrio Magnoli e Eduardo Viola. Na primeira parte do Colóquio, os debatedores concentraram-se em torno de questões relacionadas ao “papel da economia de mercado como doutrina e política econômica nos novos tempos”. A primeira ponderação deteve-se na possibilidade de colapso da civilização ocidental em virtude da crise; quanto a isso, ressalvadas as diferenças entre os economistas mais otimistas e mais pessimistas, todos concordaram que a crise não ofereceria riscos à civilização ocidental, alguns prevendo que ela demoraria mais tempos para ser superada, outros menos. Alguns 111 sugeriram, inclusive, que problemas ambientais e de escassez de recursos poderiam ser mais desastrosos do que a crise financeira em si. Em suma, os debatedores concordam que a crise estrutural do capital afeta-lhe a reprodução, mas dissociam isso da sincronia da crise econômica, como se dessem conta de questões diferentes e isoladas. Segundo Paulo Guedes (COLÓQUIO IMIL, on-line),13 “uma coisa é uma disputa intelectual entre correntes de economistas que veem falhas de mercado visà-vis intervenções inadequadas do governo, quem tem maior responsabilidade…”, para concluir que “embora numa crise desse tipo todos tenham. Os excessos envolvem vários. Várias dimensões. Todo mundo tem uma parte no processo”. Aloísio Araújo prossegue: Realmente, se olharmos historicamente, na Grande Depressão americana, a gente fica um pouco assustado, porque depois dali se falou em guerra, em evolução do socialismo, do nacional-socialismo… Uma porção de alternativas. Se a pergunta é sobre crise de valores, é por aí. Mas eu tenho muito menos medo disso porque são hipóteses que já foram tentadas e que tiveram fracassos muito maiores do que a crise que a gente está tendo agora. Tenho muito mais medo de excessos keynesianos do que de Marx. Acho que é um perigo muito maior. São duas atitudes ruins: uma é dizer “ah, não houve nada, o mercado funciona, de vez em quando a gente tem crise, está tudo bem”; acho que não, a gente tem que evitar ter crises tão grandes quanto essa (idem, ibidem). Diante disso, Ilan Goldfajn (idem, ibidem) conclui: “acho que nossa disputa no curto prazo é com… Quem chamar de keynesianismo, chama”, evidenciando, assim, a ascensão do nacionalismo protecionista e a possível quebra das regras do jogo internacional, ou seja, a defesa soberana da economia popular pelos Estados nacionais, o que exigiria combate via cooperação em âmbito internacional, visto que teríamos “vários exemplos de democracias autocráticas ao redor do mundo. A começar pela Rússia, passando pelos nossos vizinhos bolivarianos, o próprio modelo chinês…” (COLÓQUIO IMIL, on-line). 14 Como se nota, embora diferentes chaves 13 Disponível em: <http://www.imil.org.br/artigos/coloquio-millenium-parte-1/>. Acesso em: 15.9.2014. 14 Disponível em: <http://www.imil.org.br/artigos/coloquio-millenium-parte-2/>. Acesso em: 16.9.2014. 112 explicativas sejam apresentadas, elas tomam sentido no discurso do IMIL como ação direta de um único espectro do cenário político: a esquerda. Sobre isso, Demétrio Magnoli diz que: A esquerda no mundo, e em particular na América Latina, já escreveu que o socialismo não está no horizonte, mas que há uma nova fase preparatória rumo ao socialismo que é o capitalismo de Estado. Isso não é uma interpretação. É um programa; o chavismo se baseia nesse programa. [...] Então, assim como a recessão traz um problema para a economia de mercado e para a democracia política talvez traga um problema maior para a ideia do autoritarismo político e do capitalismo de Estado (idem, ibidem). A solução, neste sentido, seria defender os “valores liberais”, considerando que já existem em sociedades não liberais. Todavia, Magnoli (idem, ibidem) assinala que nas “sociedades democráticas de massa [...] há uma série de incentivos para se atacar esses valores [...] o Estado tem incentivos para atacar esses valores, [aqui] esses valores são erodidos o tempo todo [...]”. Em seguida, Amaury de Souza ainda busca afirmar que qualquer discussão sobre “estatização” pela historicidade da formação do pensamento econômico, supostamente de esquerda, latino-americano teria obrigatoriamente forte influência fascista: [...] a perspectiva de que esses valores estão ameaçados necessita explicitar uma alternativa a eles [...]. A partir da Europa Oriental, sobretudo Hungria e Romênia, que foram os países que enfrentaram mais de perto o impacto do fechamento do comércio internacional [em 1929], eram os emergentes da época, foram os grandes pensadores que acabaram criando a nossa CEPAL, como Mihail Manoilescu, Georgescu, Rötgen… Foram os romenos que vieram para a América Latina com uma visão fascista, a bem da verdade — são dois modelos de fascismo desenvolvimentista por excelência, e que deram na CEPAL e na esquerda latino-americana. Mas era uma alternativa. Qual alternativa factível temos hoje à globalização? Com alguma base doutrinária e teórica. É o que eu me pergunto a respeito dos valores liberais. Qual alternativa? (idem, ibidem). 113 Ao que Magnoli responde de imediato: “Qual a alternativa aos valores liberais? A tirania”. A partir disso, o debate torna-se mais acirrado, sendo finalizado com a fala de Amaury de Souza: [...] o simples fato de que você tenha na América do Sul uma pressão para que você tenha alternância de poder já mostra que você teve, também no plano das instituições democráticas, um avanço. Portanto esta virada dos anos 1990 não é uma virada definitiva, de que se possa dizer: “Bem, estamos todos caminhando em direção a um modelo populista, autoritário”, ou que isso é uma ameaça forte. Porque a alternância de poder se tornou uma condição sine qua non de qualquer governo na América do Sul. Vai mudar? Pode. Pode mudar. Mas o quadro, digamos assim, de circunstâncias que seguram a volta de governos ditatoriais a meu ver é muito forte. Voltaremos a um processo democrático mais institucionalizado? Eu chamaria a atenção apenas para o seguinte: em todos os casos em que tivemos essa chamada democracia popular ou democracia direta ao estilo bolivariano, em todos eles o que vimos ao longo dos anos foi a criação e o crescimento de uma oposição muito mais institucionalizada e muito mais aguerrida. É o que vem acontecendo em todos esses países. Portanto, acho que a perspectiva de médio prazo não é tão ruim (idem, ibidem). Tal constatação traduz a perspectiva que deve pautar os diversos posicionamentos da burguesia reunida em torno do IMIL, o que é facilmente amplificado graças ao controle quase completo exercido pelos membros representantes da mídia brasileira. Esse cenário hoje passa a ser conhecido como o ressurgimento da direita (o surgimento de uma “nova direita”, nos termos dos próprios atores), capaz de dar base social tanto para o avanço da ação coercitiva do Estado — visível em toda sua plenitude durante as Jornadas de Junho de 2013 e durante os protestos ocorridos na Copa do Mundo em 2014 — quanto para o avanço das organizações fascistas. Este movimento infiltra-se no campo político, tendo em vista a atuação desses atores via guerra de posições, associada, em dado momento, à capacidade midiática de propor pautas políticas (notadamente através de veículos do Grupo Abril, um dos principais integrantes do IMIL). A fim de cumprir a ação exploratória que buscou compreender os posicionamentos do IMIL como históricos, sujeitos a suscitar disputas e questões que se puseram como problemas (a burguesia é pragmática em seus interesses, não 114 há corpus doutrinário que se imagine estático diante das vias pelas quais o capitalismo se reproduz de modo ampliado), abordaremos um texto de 2009, reeditado em 2013, intitulado “A crise de 2008 vista por um prisma liberal”, cujo autor, Rodrigo Constantino, agora é sacralizado pelos seus pares midiáticos como “comentarista de direita”, graças ao seu livro Esquerda Caviar e, especialmente, à sua coluna na Veja Online. Muitos celebram a retomada da economia americana e, por tabela, o sucesso das medidas adotadas pelo governo. Considero tal comemoração precipitada. A economia americana ainda é refém dos estímulos monetários, que terão de ser retirados em algum momento. [...] Pretendo mostrar abaixo uma análise diferente das causas desta crise financeira, utilizando um prisma liberal. Meu objetivo será demonstrar que as impressões digitais do governo americano estão em todas as cenas do crime. Em primeiro lugar, os Estados Unidos não experimentam mercados verdadeiramente livres há quase um século. O governo intervém ativamente usando tanto a política fiscal como a monetária, além de inúmeras regras regulatórias. Um dos principais preços de mercado é justamente a taxa de juros, e ela vem sendo sistematicamente manipulada pelo governo, através do Banco Central. A emissão de papel-moeda e as operações no open market são instrumentos à disposição do banco central para a criação de mais oferta monetária. [...] O Banco Central atua como emprestador de última instância, o que é análogo a uma rede de segurança para trapezistas. Sabendo-se a priori que esta rede de segurança estará lá para proteger no caso de uma queda eventual, os trapezistas naturalmente irão ousar mais nas manobras. [...] Durante sua gestão [de Alan Greenspan] no comando do Fed, o mercado financeiro criou a expressão “Greenspan Put”, exatamente para se referir a esta rede de segurança garantida pelo Banco Central no caso de alguma catástrofe (CONSTANTINO, 2013). Para não explicitar os modos pelos quais a riqueza é constituída, Constantino foca seu ponto de vista na distribuição e no controle dessa riqueza, apagando o chão social da economia. Assim a autonomiza como campo dotado de regras, valores e temporalidades próprias que a fazem escapar da política, seu elemento de instabilidade, visto que existiria um ciclo ideal que historicamente se concretizaria, caso fossem deixadas as tarefas do mercado financeiro (entendido como sendo toda a economia) para o próprio mercado. O colunista ainda concebe para a irracionalidade do mercado um fator médio cíclico (nenhuma novidade sobre isso e, 115 novamente, ver Schumpeter), o que tanto escapa da historicidade do sistema, como encobre as contradições idealizadas, exatamente por considerar o elemento “instável” e “histórico” alheio aos desdobramentos do sistema — o que é simplesmente mentiroso, visto o papel fundamental do Estado em sua reprodução. O importante, afinal, é achar um “inimigo” externo que seja culpado; nesse caso, surgem os pobres: Mas a intervenção do governo não se restringiu à área monetária. O setor imobiliário sempre foi foco de muita atenção por parte dos políticos, pois a demanda pela casa própria costuma ser uma prioridade para muitos cidadãos. Em 1977 foi criado o Comunity Reinvestment Act (CRA), com o objetivo de obrigar bancos a emprestar uma parte dos seus ativos às comunidades carentes. Em 1994, o governo estendeu as metas do CRA, e em 2005, após um escândalo contábil envolvendo a Freddie Mac, o governo resolveu punir a empresa demandando mais crédito hipotecário para as classes de baixa-renda. Em outras palavras, o governo exerceu enorme pressão para que o crédito imobiliário chegasse às classes mais baixas, com menor condição de pagamento. Foi justamente este setor subprime do crédito imobiliário que experimentou o maior crescimento nos últimos anos, caracterizando uma verdadeira bolha que depois estourou (idem, ibidem — grifos meus). O autor segue listando os aparatos (estatais e privados) de regulação do mercado, os quais seriam cúmplices da jogatina financeira, o que, em certo ponto, é verdade, mas que não se faz em âmbito separado, capaz de efetivar-se como verdadeiros órgãos de controle diante dos diferentes lobbies e da participação orgânica das investidoras na política e no Estado: Os reguladores podem até ser acusados de negligência, mas não faz sentido falar em ausência de regulação. Como espero ter deixado mais claro no resumo acima, as intervenções do governo americano estão no epicentro da crise atual. Evidentemente, isso não exime de culpa os agentes do setor privado, principalmente no mercado financeiro. De fato, houve claros excessos fruto de irresponsabilidade de muitos desses agentes. Mas quando todos erram ao mesmo tempo, deve-se procurar a causa em algum fator exógeno. As manipulações que o governo vem fazendo no mercado, principalmente no que diz respeito à oferta monetária, explicam melhor estes erros coletivos num mesmo momento. Enfim, aplicam-se os mesmos instrumentos causadores do 116 mal como se fossem parte da cura agora. É como tentar curar a leucemia usando sanguessugas [...] Insanidade, como lembrou Einstein, é fazer tudo igual novamente e esperar resultados diferentes (idem, ibidem — grifos meus). Após a exposição desses diversos registros, podemos entender que as disputas em torno do discurso ideológico do IMIL não se configuram como questões de cunho semântico, mas social, pois dizem respeito aos interesses da classe dominante e irão estruturar a sua ação política comum, formulando consensos provisórios. Essa diversidade de posicionamentos dentro do IMIL encontrará dado consenso, elegerá uma explicação vitoriosa para a crise. Esta será a do artigo de Constantino, muito mais próximo dos posicionamentos do capital financeiro. Considerações finais Sobre as variadas interpretações dos intelectuais do IMIL, nossa primeira hipótese era a de que essas diferenças nos permitiriam observar conflitos entre as distintas frações da classe dominante representadas no instituto. Durante nossa investigação, essa hipótese não se confirmou, aliás, revelou-se exatamente o contrário: as frações, embora distintas quanto à origem de seu capital, nivelam-se ao Estado estrito, corolário histórico da sociedade civil no Brasil (FERNANDES, 1976). Ademais, o Estado é o agente histórico que não só implementou e garantiu as atuais formas de espoliação sob o modelo neoliberal (taxa de lucros e correções cambiais absurdas em favor do capital; aumento sem precedentes das garantias para o capital; financiamentos e isenções sem nenhuma contrapartida social; privatizações e concessões; etc.) (GONÇALVES, 2014), como também implementou as novas formas de superexploração sob o signo da reestruturação produtiva (FILGUEIRAS, 2005, pp. 49-56). Esse consenso é possível, porque, embora as diferentes frações da burguesia brasileira diferenciem-se em virtude da origem de seu capital, elas passam a compartilhar o mercado financeiro como agentes ativos. Ao mesmo tempo, os agentes financeiros passam a explorar os setores produtivos, sobretudo aqueles advindos das privatizações. 117 Como explica Marcos Arruda (2009, p. 50), “uma grande quantidade de atores produtivos está continuamente tentada a investir no financeiro porque rende mais, com muito menos esforço e risco. Então eles se financeirizam”. Aliás, se houvesse realmente uma brecha entre os interesses dessas frações do capital, o momento de crise seria também de acirramento do conflito, o que não ocorre. Obviamente não ocorreu porque todos os participantes inserem-se em um contexto de extrema acumulação — feita a um altíssimo custo social para a esmagadora maioria da população, permitindo fortes implicações estruturais no desenvolvimento econômico e social do país. O discurso “vitorioso” é o do aprofundamento do arrocho, do aumento de garantias ao capital, da expropriação de direitos, da precarização da vida, da violência estatal e da desigualdade social. Assim, “as pessoas tornam-se coisas sem vida enquanto o mercado torna-se vivo. Enquanto as pessoas estão perdendo a sua humanidade, com o governo abandonando suas funções sociais e de bem-estar, [o mercado], considerado um ser vivo, passa a ser o objeto de cuidado e preocupação” (GOUNARI, 2014). __________________________ Fontes COLÓQUIO IMIL. Efeitos do novo panorama mundial sobre os valores da democracia, da economia de mercado e da liberdade (parte 1), 15.12.2008. Disponível em: <http://www.imil.org.br/artigos/coloquio-millenium-parte-1/>. Acesso em: 15.9.2014. ________. Efeitos do novo panorama mundial sobre os valores da democracia, da economia de mercado e da liberdade (parte 2), 16.12.2008. Disponível em: <http://www.imil.org.br/artigos/coloquio-millenium-parte-2/>. Acesso em: 16.9.2014. 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Acesso em: 14.1.2012. 120 A direita “filantrópica”: o Rotary Clube em debate Marcos Alexandre Smaniotto1 Podemos afirmar que o estudo da direita e do conjunto de seus projetos e ações políticas é importante quando o que se procura é o entendimento, mais claro e objetivo, das estratégias e táticas da classe dominante na manutenção e/ou ampliação de seu poder, procurando constituir, estruturar ou manter a sua hegemonia sobre a classe trabalhadora. Neste sentido, o desenvolvimento da pesquisa sobre a formação e atuação da Guarda Mirim2 levou-nos a entender outras organizações das frações da classe dominante, dentre elas o Rotary Clube.3 Foi no intuito de demonstrar um pouco da atuação local desta organização internacional que produzimos este artigo. Este estudo, portanto, não é desinteressado ou imparcial, mas visa criar algumas induções e deduções para aqueles que se antagonizam com a visão de mundo burguesa na luta de classes, de modo que possam ter, por seus “prismas”, um canal de interpretação.4 1 Doutor em História pela Universidade Federal de Grande Dourados. 2 O texto aqui apresentado é parte da pesquisa realizada para a confecção da dissertação de mestrado em História A Burguesia Rondonense em Ação: a formação e atuação da Guarda Mirim (1966-1979), realizada na Unioeste – Campus de Marechal Cândido Rondon – e defendida em 2008. Cabe destacar, ainda, que o texto foi modificado e ampliado no que se refere à teoria e à prática, criando, assim, as condições mínimas necessárias para aqueles que desconhecem o clube minimamente entenderem-no em sua composição político-ideológica. 3 Quando nos referirmos ao Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon, estamos falando do Rotary Clube Marechal, fundado em 23.6.1969, o primeiro a se estabelecer no município. Cf. <http://rotarymarechal.blogspot.com.br>. 4 Trata-se, como alertava Antonio Gramsci, de indicar a possibilidade e “A capacidade do intelectual profissional de combinar habilmente indução e dedução, de generalizar sem cair no formalismo vazio, de transferir certos critérios de discriminação de uma esfera a outra do julgamento, adaptando-os às 121 A pesquisa utilizada para a elaboração deste texto deteve-se nos arquivos do noticiário Frente Ampla de Notícias, da Rádio Difusora do Paraná, e abrange os anos de 1966 a 1976. Este exaustivo trabalho na busca de fontes mostrou as ligações entre os grupos organizados em interesses comuns, como o Rotary Clube, o Lions Clube, a Câmara Júnior, a Associação Comercial, Industrial e Agropecuária de Marechal Cândido Rondon (Acimacar), igrejas, clubes locais, sindicatos patronais e a própria Rádio Difusora. Neste sentido, cabe ressaltar que o texto não aborda, especificamente, a discussão sobre a análise do discurso jornalístico, ou seja, as reportagens foram analisadas tendo em vista informações sobre a atuação políticoideológica dessas entidades em Marechal Cândido Rondon. Acreditamos, dessa forma, que as manifestações, individuais ou coletivas, públicas ou privadas, são a indicação da relação direta com a realidade concreta em que estas pessoas ou grupos estão inseridos. Noutros termos, as reportagens da Rádio Difusora expressam a vontade de determinadas frações de classe, organizadas em um ou mais “aparelhos privados de hegemonia” e/ou em uma ou mais extensões do Estado em sentido restrito — conceitos que serão debatidos mais adiante. Acreditamos que o entendimento dialético sobre o Rotary Clube e suas ações de classe deve partir daquilo que é aparente, ou seja, da própria definição do clube sobre ele mesmo e do senso comum que o envolve. Com o auxílio da teoria — desde o início apresentada — e das fontes históricas proporcionadas pelo estudo de caso, poderemos desenvolver alguns contrapontos a essa visão, matizando e problematizando a entidade, reconstruindo uma visão que preservará elementos iniciais de sua formação, mas trazendo outros, antes “submersos” e escamoteados devido à predominância do senso comum em relação ao Rotary. Existem teorias sociais sobre a sociedade capitalista, suas formas de organização, funcionamento, estrutura econômica e organização ideológica (política e cultural) que, embora sejam diversas nas suas bases interpretativas, defendem, em última instância, a manutenção do modo capitalista de produção. novas condições, etc., constitui uma ‘especialidade’, uma ‘qualificação’, não um dado do senso comum vulgar. É por isso, portanto, que não basta a premissa da ‘difusão orgânica, por um centro homogêneo, de um modo de pensar e de agir homogêneo’. O mesmo raio luminoso, passando por prismas diversos, dá refrações de luz diversas: se se pretende obter a mesma refração, é necessária toda uma série de retificações nos prismas singulares” (GRAMSCI, 2001, p. 206). 122 Posicionamentos liberais, neoliberais, de tendências fascistas, desenvolvimentistas, neodesenvolvimentistas, conservadores e outros congêneres divergem na forma de entender as “melhores” diretrizes político-econômicas a serem implementadas. De outra parte, também existem as teorias socialistas sobre a sociedade capitalista, identificando, interpretando e denunciando os limites deste modelo socioeconômico, mantendo a coesão na defesa de que este sistema é contraditório, excludente, explorador, desumano, injusto e precisa ser transformado em sua base de sustentação (propriedade privada, trabalho assalariado e lucro). Portanto, teoricamente, existem posicionamentos pró e contra o capitalismo e, como a neutralidade é impossível para aqueles que trabalham com História, manifestam-se embates teóricos entre defensores e críticos deste sistema. Neste sentido, antes de começarmos a analisar o Rotary Clube, cabe indicar o entendimento — e o posicionamento — deste historiador nesse contexto, por meio dos conceitos utilizados para a formulação do presente texto que serão fundamentais para compreender a instituição estudada. Conceitos para interpretação da “filantropia” rotariana Sobre a ideologia, os intelectuais e sua ação política para a propagação e naturalização de suas ideias e de seus ideais, na defesa de um projeto ético-político (independente da classe social a que pertencem/defendem), utilizamos alguns dos conceitos de Antonio Gramsci. Procuramos, por meio dos escritos deste intelectual, identificar aspectos que passam pelo entendimento da sociedade por meio da dialética burguesia x trabalhadores. Conforme Antonio Gramsci: Uma ideologia, nascida em um país mais desenvolvido, difunde-se em países menos desenvolvidos, incidindo no jogo local das combinações. A religião, por exemplo, sempre foi uma fonte dessas combinações ideológico-políticas nacionais e internacionais; e, como a religião, outras formas internacionais, como a Maçonaria, o Rotary Club, os judeus, a diplomacia de carreira, que sugerem recursos políticos de origem histórica diversa e os fazem triunfar em determinados países, funcionando como partido político internacional que atua em cada nação com todas as suas forças internacionais concentradas; mas religião, maçonaria, judeus, etc., podem ser incluídos na categoria social dos “intelectuais” (GRAMSCI, 2002, p. 42 — grifos meus). 123 Antonio Gamsci se refere a um “país mais desenvolvido” relacionando-o aos países nos quais o capitalismo tinha mais desdobramentos e complexidade (capital financeiro presente e influente; capital industrial em franca expansão; relações imperialistas dominando países economicamente dependentes; dentre outros), como é o caso dos EUA no início do século XX, onde e quando foi criado o Rotary Clube. Das afirmações de Gramsci é importante reter que até o desenvolvimento técnico-científico e o aprofundamento das relações sociais capitalistas, no século XVIII e principalmente no XIX, a religião foi a forma que se fazia mais eficaz em disseminar política e ideologicamente seus princípios em âmbito internacional (católica em especial, mas também o protestantismo, dentre outras). Depois do avanço do capitalismo, organizações como Rotary Clube (que alguns acreditam estar ligada inicialmente com a maçonaria e o protestantismo) se organizaram e instituíram-se como “intelectuais” em “aparelhos privados de hegemonia”, ampliando o número de “trincheiras” de combate político e ideológico. No sentido de entender a constituição histórica do Rotary Clube, sua proposta política e ideológica, para além dos fatores citados, Antonio Gramsci afirmou que […] o Rotary não pretende ser nem confessional, nem maçom; todos podem ingressar nas suas fileiras: maçons, protestantes e católicos (em alguns lugares arcebispos católicos aderiram ao Rotary). Parece que o seu programa essencial baseia-se na difusão de um novo espírito capitalista, na ideia de que a indústria e o comércio, antes de serem um negócio, são um “serviço social” (GRAMSCI, 1984, pp. 415-416 — grifos meus). É impressionante a lucidez de Gramsci ao perceber, ainda na década de 1920, a tendência ideológica dos rotarianos em pretender associar a indústria e o comércio ao “serviço social”. Isso seria, supostamente, o objeto e a finalidade maior dos rotarianos, colocando-se como os portadores natos da capacidade de direção da filantropia, caridade e benevolência, dada a posição social de seus membros — maioria ligada com funções de gerência, profissionais liberais, comerciantes, 124 pequenos industriais, empresários, enfim, pequena burguesia 5 que, portanto, não precisava de “caridade”. Continuando com o entendimento teórico sobre a análise do Rotary Clube, se levarmos em consideração as afirmações anteriores, podemos dizer que Antonio Gramsci nos remete a dois outros conceitos importantes: “intelectuais” e “aparelhos privados de hegemonia”. Para Antonio Gramsci: Os intelectuais são os “prepostos” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” dado pelas grandes massas da população à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) obtida pelo grupo dominante por causa de sua deposição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparelho de coerção estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais desaparece o consenso espontâneo. Esta colocação do problema tem como resultado uma ampliação muito grande do conceito de intelectual, mas só assim se torna possível chegar a uma aproximação concreta à realidade6 (GRAMSCI, 2000, p. 21 — grifos meus). 5 Há integrantes da grande burguesia no Rotary de Marechal Cândido Rondon, embora não seja presença majoritária. Cf. Setton (2004) para mais informações sobre a origem social dos rotarianos. 6 É importante destacar que Antonio Gramsci escrevia esta conceituação tendo em mente, naquele momento, a separação da Itália entre o Norte industrializado e o Sul agrário, mais especificamente no processo de Risorgimento (entre 1815 e 1870, quando a Itália passava por lutas pela unificação). O autor, assim, podia observar a atuação de funcionários de nível médio (engenheiros, professores, advogados, etc.), responsáveis pela adequação da ideologia burguesa como norma econômica, política e cultural nas funções da vida prática que a Itália assumia. Também é necessário frisar outro aspecto caro à formulação do conceito de intelectuais por Gramsci, isto é, a questão da organicidade destes. Para Antonio Gramsci todos são intelectuais, dada a capacidade que todas as pessoas têm de formular e defender visões de mundo – com complexidades variadas, evidentemente. No entanto, há, para Gramsci, os “intelectuais tradicionais” e os “intelectuais orgânicos”. Os primeiros associamse à perspectiva tradicional de intelectual, vinculados à erudição simples e “desinteressada”, não necessariamente vinculada à atuação política prática (intelectuais de “monastério”). Os “intelectuais orgânicos” associam-se à base político-econômica que defendem ou em que estão inseridos. Neste sentido, existem os “intelectuais orgânicos da classe dominante” e os “intelectuais orgânicos da classe trabalhadora”. Ambos têm ligação orgânica com o grupo social que defendem e se caracterizam pela proposição de ideias e ideais práticos, vinculados à defesa de suas posições e de seus grupos. 125 Neste sentido, os intelectuais orgânicos da classe dominante desempenham a função subalterna (em relação a uma camada econômica e politicamente superior de decisão) de tentar criar coesão política e ideológica para que a hegemonia burguesa — ou uma de suas frações — seja predominante, hegemônica. Trata-se dos funcionários do consenso espontâneo, sobre os quais mencionou Gramsci, indicando a necessidade de mediações intelectuais para que o grupo dominante se mantenha enquanto tal, até que desapareça e entre em cena a coerção. Os intelectuais orgânicos da classe dominante são, como apontou Gramsci, os “prepostos” dos grupos ligados ao mundo da produção, a exemplo dos cientistas políticos liberais e neoliberais, jornalistas, professores, dentre outros tantos que estão a serviço de um grupo social específico ou de um modo de produção específico, o que pode ser visto quando a burguesia “direciona” a ciência rumo aos interesses da indústria e do agronegócio (hoje letra comum nas universidades). Neste sentido, Antônio Gramsci problematizava a questão: § 1. Os intelectuais são um grupo autônomo e independente, ou cada grupo social tem uma sua própria categoria especializada de intelectuais? O problema é complexo por causa das várias formas que assumiu até agora o processo histórico real de formação das diversas categorias intelectuais. As mais importantes dessas formas são duas: 1) Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político: o empresário capitalista cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma nova cultura, de um novo direito, etc. Deve-se observar o fato de que o empresário representa uma elaboração social superior, já caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, não somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas também em outras esferas, pelo menos nas mais próximas da produção econômica (deve ser um organizador de massa de homens, deve ser um organizador da “confiança” dos que investem em sua empresa, dos compradores de sua mercadoria, etc.). Se não todos os empresários, pelo menos uma elite deles deve possuir a capacidade de organizar a sociedade em geral, em todo o seu complexo organismo de serviços, até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criar as condições mais favoráveis à expansão 126 da própria classe; ou, pelo menos, deve possuir a capacidade de escolher os “prepostos” (empregados especializados) a quem confiar esta atividade organizativa das relações gerais exteriores à empresa. Pode-se observar que os intelectuais “orgânicos” que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo são, na maioria dos casos, “especializações” de aspectos parciais da atividade primitiva do tipo social novo que a nova classe deu à luz. (GRAMSCI, 2001, p. 15-16 — grifos meus). Os membros do Rotary Clube, por exemplo, podem ser entendidos como intelectuais orgânicos da classe dominante, como afirmado por Antonio Gramsci, devido às características apontadas anteriormente e, também, porque se posicionam e atuam levando um conjunto de valores marcadamente burgueses, internacionalmente defendidos, atuando como os “prepostos” de uma fração da classe dominante (urbana — com interesses na indústria e no comércio, em detrimento do campo — ou do agronegócio, nos dias atuais), como veremos mais adiante. Com certa segurança, poderíamos afirmar que, no sentido do exposto, tanto o Rotary Clube, como o Lions Clube,7 devem ser entendidos tendo em vista suas funções sociais enquanto “intelectuais orgânicos” da burguesia e suas relações dentro de seus “aparelhos privados de hegemonia”. 8 Sobre estes “aparelhos”, conforme Antonio Gramsci: 7 O Lions Clube é uma instituição criada seis anos depois da fundação do Rotary, com objetivos congêneres. Conforme Setton (2004, p. 26): “Hoje, o Lions Internacional destaca como seus objetivos primordiais duas proposições bastante semelhantes àquelas expressas pelo movimento rotário, quais sejam, o bom relacionamento entre os povos e nações visando à paz entre todos, e a procura do bemestar moral, social e cívico da comunidade. A atenção dada a valores comportamentais de um controle efetivo na formação moral dos indivíduos é uma preocupação constante nesse tipo de associação. Assumem o compromisso de formadores de opinião, mas também de conduta social”. 8 A discussão sobre os “aparelhos privados de hegemonia” precisa levar em consideração a “Teoria Ampliada do Estado” ou simplesmente “Estado Ampliado”. Esta é uma expressão utilizada inicialmente por Cristine Buci-Gluksmann (1980). Trata-se, grosso modo, de uma formulação teórica de Gramsci que identifica no Estado (também chamado de Estado restrito) e suas instituições inerentes, conflitos entre e intra classes sociais (luta de classes), dado o entendimento de que o Estado é uma relação social. Não é algo a pairar, apartado dos interesses e dos conflitos sociais. Dentro do entendimento da ampliação do Estado está a questão da sociedade civil, que é formada, também a grosso modo, pelas organizações privadas e associações políticas de uma formação social – como as entidades de interesse comum e mútuo, como o Rotary Clube, por exemplo, o Lions Clube, a Associação Comercial, a Federação das Indústrias, etc. 127 Parece-me que o que de mais sensato e concreto se pode dizer a propósito do Estado ético e de cultura é o seguinte: todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar à grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. A escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes (GRAMSCI, 2002, p. 284). A categoria gramsciana de “aparelhos privados de hegemonia” pode ser entendida como o conjunto das organizações privadas de interesse comum e mútuo, situadas na esfera da “sociedade civil”, como, por exemplo: clubes de serviço (Rotary, Lions, Maçonaria, etc.); entidades de educação diretamente ligadas às empresas (como as Fundações); organizações de empresários e industriais visando a educação para o trabalho (como o Senai, Sesi, etc.); organizações de empresários (como Associações Comerciais e Industriais ou, ainda, as Federações — da Indústria, do Comércio, etc.), dentre muitas outras. Esses “aparelhos” ainda podem ser definidos como coletivos, voluntários e relativamente autônomos da “sociedade política”. São justamente estes “aparelhos” que irão “ampliar” o Estado. Neste sentido, os “aparelhos privados de hegemonia” da classe dominante representam a organização e a propagação de uma ideologia/cultura que, no sistema capitalista, é a capitalista. São estes “aparelhos” que dão forma aos interesses privados como sendo coletivos, que atuam para deixar de ser apenas classe dominante e se transformarem em classe dirigente, enfim, que ampliam o Estado em benefício próprio.9 9 Há, ainda, os “aparelhos privados de hegemonia” voltados para a organização dos explorados na defesa dos seus interesses que, no sistema capitalista, são anti-capitalistas, e, sobre eles, – continuando a citação acima iniciada – Gramsci ponderou que “Na realidade, só o grupo social que se propõe o fim do Estado e de si mesmo como objetivo a ser alcançado pode criar um Estado ético, tendente a eliminar as divisões internas de dominados, etc., e criar um organismo social unitário técnico-moral” (2002, pp. 284-285). 128 Atuação da direita “filantrópica” O Rotary Clube é uma organização espalhada pelo mundo, criada em Chicago, nos EUA, no início do século XX. Naquele momento, os EUA passavam por uma extensa reorganização desenvolvimento/refinamento proporcionada pela das urbana relações ampliação e no contexto capitalistas racionalização de do tanto do produção — setor industrial (taylorismo/fordismo) — como de sua política (econômica e militar) imperialista. 10 Podemos afirmar que o Rotary Clube também é uma das mais antigas organizações internacionais autodenominadas de “clubes de serviço”. 11 Segundo sua autoidentificação, Os associados a esses clubes são chamados de rotarianos. Eles são homens e mulheres que prestam serviços voluntários às comunidades onde atuam profissionalmente, ajudando a promover a ética nos negócios e desenvolvendo projetos em diversas áreas, como saúde e educação, cujo grande objetivo é estimular a boa vontade e a paz mundiais. Atualmente, o Rotary está presente em 218 países e regiões geográficas, atuando por meio de mais de 35 mil Rotary Clubs, que reúnem mais de 1,2 milhão de voluntários. Cada clube escolhe seus próprios dirigentes e tem uma considerável autonomia, respeitando os estatutos e o regimento interno estabelecidos pelo Rotary International. Regionalmente, estes clubes estão agrupados em distritos. Tradicionalmente um dos países onde o Rotary é mais forte, o Brasil, 10 Sobre as transformações econômicas, políticas e culturais, além da mudança do eixo econômico dominante mundial da Europa aos EUA, confira o texto “Americanismo e Fordismo” de Gramsci (2001b). 11 Teoricamente, um clube de serviço pode ser entendido como uma organização em que prevalece: a) trabalho voluntário; b) atividades sem fins lucrativos; c) presença de reuniões regulares. Veremos que, quando analisadas sob o prisma do materialismo histórico e da luta de classes, esta definição precisa ser ampliada, identificando posicionamentos e interesses que ultrapassam o caráter aparentemente desprendido e desinteressado presente no Rotary Clube. Outras interpretações, como as utilizadas por Maria Setton, evocam outros autores para tratar do tema, mas, em nossa opinião, não conseguem identificar – devido à preocupação maior com o indivíduo e sua relação com o outro no âmbito associativista – os interesses de classe presentes na instituição. Segundo Setton (2004, pp. 28-29), “Para compreendermos o fenômeno do associativismo voluntário é preciso considerar um complexo feixe de motivos que concorrem para a sua formação. Devemos compreender este fenômeno a partir de uma teia articulada de determinações de ordem social, política e econômica que interagem para o seu surgimento. Alex de Tocqueville, Max Weber e George Simmel são os autores clássicos a que nos remetemos para analisar o associativismo como um tipo de sociabilidade característica de um novo modelo de sociedade. […] Entre os pensadores modernos, utilizamos as contribuições de Norbert Elias e Antony Giddens”. 129 conta com 2.382 Rotary Clubs e mais de 55 mil rotarianos (estes dados são de fevereiro de 2016). Três brasileiros já presidiram o Rotary International, cuja sede está em Evanston, no estado de Illinois, nos EUA (REVISTA ROTARY BRASIL, on-line12 — grifos meus). Neste sentido, aparentemente, a organização filantrópica-empresarial (por mais estranho que essa junção possa parecer) pode ser entendida como uma entidade que tem como uma de suas primeiras finalidades a pretensão de moralizar as relações capitalistas, supostamente dando-lhes ética. De outra parte, no conjunto de suas atividades, projetos na área de saúde e educação visam gerar mais boa vontade e incentivar a paz no mundo. Para que os objetivos rotarianos sejam alcançados, o “aparelho” mantém uma rígida hierarquia e organização interna, do âmbito internacional ao local, perpassando todos os “distritos”, ou seja, todas as suas “filiais” pelo mundo. Neste sentido, conforme Setton: A estrutura hierárquica rotariana reflete uma organização voltada para um controle interno bastante rígido. Há vários níveis administrativos com responsabilidades diferentes, mas com tarefas semelhantes de supervisão, isto é, todos os níveis hierárquicos têm a obrigação de supervisionar a forma de veiculação da filosofia rotária e a atuação de seu colega hierárquico imediatamente inferior (SETTON, 2004, p. 27). Trata-se, portanto, de um “aparelho” que funciona aos moldes de uma empresa privada, normatizada e legislada, sobretudo porque quem conduz esse “aparelho” são empresários e/ou pessoas ligadas à dinâmica empresarial, na busca de moralizar o capitalismo (“ética nos negócios”), fomentar a boa vontade e a paz no mundo. Continuando o entendimento a respeito do clube, podemos dizer que sobre o surgimento, função e principais práticas do Rotary Clube Internacional, achou-se importante apresentar a visão de um dos fundadores da seção do Rotary Clube em Marechal Cândido Rondon, Antonio Maximiliano Ceretta — que foi vereador, rotariano e diretor-geral da Rádio Difusora. Conforme o Jornal Frente Ampla de Notícias 12 Disponível em: <http://revistarotarybrasil.com.br/rotary/definicao>. Acesso em: 25.3.2016. 130 Hoje é um dia particularmente grato a todos os rotarianos do mundo. O Rotary Internacional nasceu na cidade de Chicago, Estados Unidos, no dia 23 de fevereiro de 1905. Naquele tempo a cidade de Chicago era um reduto de aventureiros de todas as raças, crenças e nações. Todos queriam enriquecer, custasse o que custasse. Valia tudo no sentido de arranjar dinheiro, mesmo que isso fosse por meios ilícitos e menos morais. Mas havia naquela cidade um homem de profundos sentimentos cristãos, de formação moral ilibada e sentia que aquilo não poderia continuar assim. As profissões e empregos eram assaltados por pessoas sem escrúpulos e a ética profissional era coisa sem valor algum na escala de valores humanos. Era ele Paul Harris [...] que com o engenheiro Gás Lör [...] e mais o alfaiate Hairam Shórei [...] falavam sobre esse assunto quando surgiu a ideia de se fundar uma sociedade que valorizasse as funções do homem. Seria um clube que congregasse as mais variadas profissões e esses homens tentariam impor moral e ordem numa cidade conturbada como era Chicago daqueles velhos tempos. A ideia teve seus seguidores e ali nasceria. […] Não há Rótaris em países comunistas, mas fora da Cortina de Ferro, não há país, por pequeno que seja, que não esteja representado. O Rotary […] tem por lema o ideal de Bem Servir […] O que o rotariano tem como ponto de honra é fazer o máximo para que, dentro de sua profissão, alcance o máximo. […] Cada Rotary não poderá ter mais do que três membros de uma mesma profissão, visando assim que uma mesma profissão não se sobressaia sobre as demais, reconhecendo que todas as profissões são dignas e todas elas procuram visar a um fim máximo: melhorar e aperfeiçoar o profissional. Além disso o Rotary se empenha em campanhas de interesse imediato (Rádio Difusora, 23.2.1970 — grifos meus). Em termos gerais, podemos dizer que o Rotary Clube é um clube privado ao qual as pessoas, mediante convite, podem ser “associadas”, caso mantenham um conjunto de especificidades morais, dentre elas um “ilibado” caráter. Com a pesquisa, pudemos constatar que, na década de 1970, em Marechal Cândido Rondon, pessoas com pouco capital não frequentavam os “quadros sociais” do clube, ou porque simplesmente não podiam participar, ou porque não foram convidadas. Afirmamos isso uma vez que não foi identificado, nas reportagens do Frente Ampla de Notícias, nenhum membro desprovido de propriedade privada dos meios de produção. Ademais, os integrantes eram sempre “profissionais liberais” de áreas específicas (médicos, advogados, dentistas, professores, etc.); noutros termos, não eram associados ao clube pedreiros, marceneiros, carpinteiros, 131 motoristas, mecânicos, garis, boias-frias, etc. Esta constatação se contrapõe à afirmação de Antonio Maximiliano Ceretta, quando ele diz que o Rotary acredita na dignidade de todas as profissões. Como se nota, somente uma classe social é convidada para integrar o Rotary Clube. O registro de Maximiliano Ceretta revela, na verdade, o “norte” das atividades do clube. É interessante a afirmação de que “não há rótaris em países comunistas”. Isso, evidentemente, ocorre porque se não houvesse propriedade privada dos meios de produção, não exerceriam a “ética nos negócios”; se não houvesse pobres e classes sociais, não poderiam exercer a “filantropia” e o “bem servir”. Neste sentido, visando defender o sistema socioeconômico no qual estavam assentadas as bases não declaradas da organização (ou seja, no capitalismo), o apoio (tácito ou explícito) à ditadura civil-militar no Brasil não parece ser absurdo. Comunismo não, ditadura sim. Neste sentido, é interessante ilustrar, por meio de uma reportagem, a correspondência do assessor de Emílio Garrastazu Médici endereçada ao Rotary em 19 de janeiro de 1970: Apraz-me agradecer o empenho de vossas senhorias na campanha “Uma Bandeira para cada Sala de Aula”. Certo que a participação desse clube de serviço muito contribuiu para o bom êxito de nosso empreendimento, aceite nossas atenciosas saudações. Coronel Otávio Costa, coronel assessor, chefe de assessoria de relações públicas da presidência da república (Rádio Difusora, 19.1.1970). Possivelmente, tal mensagem de agradecimento foi direcionada a todos os Rotaris do Brasil, mas não deixa de sugerir que a campanha pela ditadura foi desenvolvida no município. Em outras palavras, o Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon posicionava-se também como um dos defensores da ditadura civil-militar, atuando pedagogicamente para a aceitação do regime, por meio, neste caso, da apologia ao patriotismo e ao nacionalismo, contribuindo com a construção ideológica da ditadura. É interessante perceber que, internacionalmente, até pela característica intrínseca dos membros do Rotary (formados mormente por empresários e profissionais liberais), a defesa era, em última instância, do sistema liberal e do capitalismo. Diante do suposto “perigo comunista” que propagandeava a direita civilmilitar do Brasil no pós-1964, o que importava era a manutenção do sistema 132 capitalista, já que é por meio dele e da consequente divisão social em classes que os privilégios de poucos se sobrepõem aos interesses de muitos, ou seja, é por meio da manutenção do liberalismo e do capitalismo — sob qualquer meio administrativo (democracia, ditadura, fascismo, etc.) — que os empresários conseguem se manter economicamente dominantes e, no caso de integrarem o Rotary, também “éticos e filantrópicos”. Alguns meses à frente, em um dos seus tradicionais jantares, o Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon comemorou a chegada do general ditador Emílio G. Médici ao topo do “aparelho”. Segundo consta no Frente Ampla de Notícias: Os rotarianos reuniram-se ontem em janta festiva, para comemorar a alta investidura do general Emílio G. Médici, Presidente da República, como governador honorário do Rotary no Brasil. Os rotarianos manifestaram a sua satisfação, comunicando-a ao novo governador honorário e agradecendo o decreto de declaração de utilidade pública do Rotary Internacional, do Lions Clube e da Casa da Amizade13 (Rádio Difusora, 25.4.1970 — grifos meus). O caráter conservador da representação do Rotary em Marechal Cândido Rondon está caracterizado. Não temos certeza em afirmar o que mais se comemorava: a “investidura” de um ditador a governador honorário ou a declaração de utilidade pública do Rotary e Lions Clube do município, mas um jantar era sempre proposto para festejar tais acontecimentos. Aqui é importante assinalar que, por meio desses fatos, podemos identificar a posição política e ideológica do “aparelho privado de hegemonia” e sua função orgânica no sistema capitalista, atuando em sua defesa, independente dos meios para tal. Surge, então, outra possibilidade interpretativa para o Rotary Clube, não tão ilibada e ética quanto propõe sua autoidentificação. As principais preocupações e consequentes áreas de atuação político-econômica do Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon e região, no início dos anos 1970, podem ser observadas através de outra reportagem do Frente Ampla de Notícias: 13 A Casa da Amizade é o local onde as reuniões e os jantares do Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon são realizados. Formalmente, ela “É composta por senhoras de rotarianos, cuja ação principal é o da benemerência e a filantropia. No Brasil, a associação de senhoras de rotarianos, ou Casa da Amizade, é uma entidade civil considerada de utilidade pública pela Lei [Federal] 5.575/69”. Disponível em: <http://www.distrito4440.com.br/html/casaamizade.htm>. Acesso em: 18.10.2007. 133 Com a participação dos Rótaris de Toledo, Foz do Iguaçu, Cascavel e Marechal Cândido Rondon, realizou-se ontem em Toledo o 1º Fórum Regional da Avenida de Serviços da Comunidade. O ambiente decorreu cordial e quatro comissões foram organizadas, cada qual sob a presidência de um dos Rótaris convidados. Assuntos de suma importância foram tratados, debatidos e votados. Destacamos os seguintes: Criação de comissões municipais de assistência ao menor abandonado, ao menor excepcional e ao menor fisicamente aleijado [...] estudo de possibilidade de instalação no Oeste de um asilo para velhos, aproveitando incentivos fiscais de acordo com a lei, organização de sociedade mantenedora, doação e contribuição dos futuros candidatos ao asilo, o máximo de empenho ao combate à verminose, aproveitando a experiência feita por um grupo de médicos e laboratoristas do Rótari de Cascavel, com ótimos resultados... criação de bancos de sangue inclusive com sugestão às secretarias de segurança de que, na carteira de identidade, se ponha o teor de sangue de seu portador... incentivar a criação de bibliotecas públicas, em colaboração com as prefeituras e órgãos culturais [...] participação dos rotarianos num melhor entendimento entre pais e filhos, especialmente em relação às atitudes da moderna juventude, tornando os pais mais compreensivos e os filhos mais ligados à família... apoio integral à MOBRAL,14 Projeto Minerva15 e outros que visam dar mais cultura para o Povo Brasileiro... sugerir aos possuidores de prédios com mais de um andar a instalar extintores, 14 “O Movimento Brasileiro de Alfabetização – Mobral – surgiu como um prosseguimento das campanhas de alfabetização de adultos iniciadas por Lourenço Filho, só que com um cunho ideológico totalmente diferenciado do que vinha sendo feito até então. Apesar de os textos oficiais negarem, sabemos que a primordial preocupação do Mobral era tão somente fazer com que os seus alunos aprendessem a ler e a escrever, sem uma preocupação maior com a formação do homem. Foi criado pela Lei número 5.379, de 15 de dezembro de 1967, propondo a alfabetização funcional de jovens e adultos, visando ‘conduzir a pessoa humana a adquirir técnicas de leitura, escrita e cálculo como meio de integrá-la a sua comunidade, permitindo melhores condições de vida’. Apesar da ênfase na pessoa, ressaltando-a, numa redundância, como humana (como se a pessoa pudesse não ser humana), vemos que o objetivo do Mobral relaciona a ascensão escolar à uma condição melhor econômica de vida, deixando à margem a análise das contradições sociais inerentes ao sistema capitalista. Noutros termos, basta aprender a ler, escrever e contar e estará apto a melhorar de vida”. Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/heb10a.htm>. Acesso em: 6.2.2007. 15 “O Projeto Minerva nasceu no Serviço de Radiodifusão Educativa do Ministério da Educação e Cultura. Foi iniciado em 1º de setembro de 1970. O nome Minerva é uma homenagem a deusa grega da sabedoria. Do ponto de vista legal foi ao ar tendo como escopo um decreto presidencial e uma portaria interministerial de nº 408/70, que determinava a transmissão de programação educativa em caráter obrigatório, por todas as emissoras de rádio do país. A obrigatoriedade é fundamentada na Lei 5.692/71. O objetivo maior do projeto atendia à Lei nº 5.692/71 (Capítulo lV, artigos 24 a 28) que dava ênfase à educação de adultos. O parecer nº 699/72 determinava a extensão desse ensino, definindo claramente as funções básicas do ensino supletivo: suplência, suprimento, qualificação e aprendizagem. A meta a atingir pretendia utilizar o rádio para atingir o homem, onde ele estivesse, ajudando-o a desenvolver suas potencialidades, tanto como ser humano, quanto como cidadão participativo e integrante de uma sociedade”. Disponível em: <www.eps.ufsc.br>. Acesso em: 9.2.2007. 134 explicando-lhes que, para efeito de seguro contra fogo, as tarifas são menores... sugerir às Prefeituras a formação de um grupo de bombeiros civis voluntários, com aparelhagem de pouco custo, a exemplo do que acontece em várias cidades de Santa Catarina... maior intercâmbio cultural e esportivo entre membros de clubes de serviço... apelar às Prefeituras e ao DER para a sinalização das estradas, especialmente nos cruzamentos... visitas periódicas aos colégios, levando-lhes o espírito e a filosofia do bem servir... dar oportunidade para jovens inteligentes e promissores a se aprimorarem por meio da Fundação Rotary que dá bolsas de estudo para qualquer país democrático do mundo... Em síntese, essas as teses levantadas, debatidas e aprovadas neste encontro regional de alto alcance para o oeste. A Secretaria Geral do Rotary ficou encarregada de mandar correspondência aos altos órgãos do governo, apelando aos rotarianos que ocupam altos cargos, para sua colaboração no atendimento das propostas aprovadas (Rádio Difusora, 26.10.1970 — grifos meus). Inicialmente, merece destaque a relação entre “filantropia” e ações políticoideológicas presentes nas atividades programadas pelos membros dos Rotaris da região Oeste do Paraná. “Filantropicamente” o Rotary Clube tentava promover a assistência aos menores abandonados ou a portadores de algum tipo de necessidade especial; a instalação de asilos; o combate à verminose; a criação de bancos de sangue e de corpo de bombeiros voluntários; e a instalação de extintores e de sinalização nas rodovias. No âmbito político-ideológico, visava a criação de bibliotecas municipais, apoio ao Mobral e ao Projeto Minerva, além de visitas periódicas aos colégios, “levando-lhes o espírito e a filosofia do bem servir”. Também buscava futuros “intelectuais orgânicos” que compusessem seus quadros, por meio das bolsas de estudo “para qualquer país democrático do mundo”. Neste sentido, faz-se atual a análise que Antonio Gramsci (1984, pp. 415-416) elaborou sobre a propagação de um “novo espírito capitalista”, difundindo a ideia de que a indústria e o comércio são, antes de um negócio, um serviço social prestado “filantropicamente” pela burguesia às camadas expropriadas. Dessa forma, transmitia-se a ideia de uma suposta importância social desse “aparelho” para o conjunto da sociedade, negando, historicamente, os prejuízos que o capitalismo traz para os trabalhadores. Assim, podemos afirmar que, na década de 1970, o Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon atuava paternalisticamente, autopromovendo-se em campanhas e 135 outras atividades com finalidade filantrópica (como será visto um pouco mais adiante no texto), indicando o “novo espírito capitalista”, supostamente ético e socialmente responsável. Ainda com base nas informações da citação anterior e a fim de indicar a função orgânica do Rotary Clube na sociedade capitalista, podemos lembrar de outra indicação teórica de Antonio Gramsci (2000, p. 21), quando demonstrou que a burguesia promove seus intelectuais, os quais são os “prepostos” do grupo dominante, ou seja, exercem uma função subalterna em relação à hegemonia social, aproximando-se das camadas populares e educando-as diretamente, tarefa não realizada pelo conjunto dos grandes acumuladores de capital. Assim, podemos dizer que, embora o Rotary Clube atue com práticas filantrópicas, promove, em última instância, a aceitação — implícita ou explícita — dos valores liberais como justos e necessários. Dentre outras avaliações que poderiam ser feitas, tendo em vista o noticiário acima citado, teoricamente destacamos aquelas que sugerem a “ampliação do Estado” e a função político-ideológica presente nas ações do Rotary Clube da região Oeste do Paraná: a) a entidade apropria-se de funções que são conferidas ao Estado (em sentido restrito), a exemplo da criação de um corpo de bombeiros, da sinalização de trânsito, da construção de asilos, dentre outras; b) ela também preocupa-se com os menores (crianças e adolescentes empobrecidos), incumbindose novamente da tarefa do Estado e, ao mesmo tempo, ampliando-a, do comum assistencialismo para o assistencialismo-educação; c) a entidade arregimenta “jovens inteligentes”, fomentando as suas capacidades a partir da conhecida educação voltada para a criação de intelectuais orgânicos da classe dominante; d) por fim, a entidade demonstra a intenção de contatar os rotarianos ocupantes de “altos cargos” no Estado restrito, acionando-os para que as propostas do clube fossem executadas. O conjunto dessas ações explicita que o Estado não paira sobre a sociedade e que as organizações (políticas, não governamentais, associativas, filantrópicas, religiosas, entre outras) não são alienadas do conjunto políticoideológico que forma a luta de classes na sociedade capitalista. A disputa pela direção do Estado restrito — visando, dentre outros aspectos, proporcionar mais 136 recursos/logística para potencializar a efetividade prática da visão de mundo (política, econômica e cultural) — deve ser tema presente quando pensamos a atuação do Rotary Clube como “preposto”, ou seja, ele é, em última instância, um “aparelho privado de hegemonia” que trabalha em sua “trincheira”, defendendo posições para a manutenção do capitalismo industrial/comercial — fonte de seu poder e distinção social. Neste sentido, muito da condição social e histórica da região Oeste do Paraná pode ser observada através do plano de atividades formulado pelo “aparelho”. Esse plano demonstra, também, as principais áreas de atuação nas quais o Rotary Clube, inicialmente, investiu suas ações, destacando-se a educação, a exemplo das “visitas educacionais” que foram feitas mesmo antes da reunião de diretrizes ter sido realizada. Segundo o Frente Ampla de Notícias: Continua com pleno êxito o ciclo de conferências que estão sendo realizadas por elementos do Rotary desta cidade. [...] Hoje a noite ele [Antonio Maximiliano Ceretta] irá para Pato Bragado para realizar a sua conferência sobre política. Em Mercedes esteve o rotariano Dr. Nori Pooter falou sobre cárie dentaria e suas implicações. Amanhã a noite estará em Mercedes o Dr. Leopoldo Pietroswki falando sobre cooperativismo e o Dr. Joaquim Felipe Leginski em Pato Bragado falando sobre o humanismo e a paz (Rádio Difusora, 15.4.1970). Dessa forma, conferências sobre política, cárie dentária e suas implicações, cooperativismo, humanismo e paz correspondiam à atuação dos rotarianos na área “filantrópica”/política/educacional, de modo que o clube exercia seu “preposto” papel de grupo organizado para a manutenção dos seus interesses; nesse caso, através da educação para o consenso. Destacamos essas características, pois os interesses comuns dos quais partilhavam Antonio Maximiliano Ceretta, Nori Pooter, Leopoldo Pietroswki16 e Joaquim Felipe Leginski relacionam-se às posições sociais 16 A título de complementação, podemos dizer que é de conhecimento comum o “problema” financeiro ocorrido na Copagril na década de 1970, quando o rotariano Leopoldo Pietrowski a presidia. Segundo o Jornal Rondon Hoje, “A fiscalização do INCRA que está efetuando levantamentos na Copagril teria constatado um ‘furo’ de caixa de 27 milhões de cruzeiros, que a direção da Cooperativa vinha disfarçando nas prestações, declarando-a na rúbrica de notas a receber. […] O prejuízo existe e vem sendo mascarado, segundo se diz, há dois ou três anos, para evitar que os agricultores associados dele tomem conhecimento”. (Jornal Rondon Hoje. Marechal Cândido Rondon, 22-29 de abril de 1978). Antes disso, Leopoldo Pietrowski fazia parte da diretoria do Sindicato Rural Patronal de Marechal Rondon. Cf. <http://www.memoriarondonense.com.br/calendario-historico-single/08/9>. 137 ocupadas por eles: o primeiro, intelectual orgânico da classe dominante e vereador; o segundo, empresário e vereador; o terceiro, veterinário; o último, médico. Possivelmente, durante as palestras mais técnicas ou específicas (como no caso da saúde), tratou-se menos da política e suas implicações na transformação social das crianças e adolescentes, alvos das inserções rotarianas. No entanto, direta e/ou indiretamente, as palestras sobre política, 17 cooperativismo, 18 humanismo 19 e paz, certamente, expressaram a ideologia liberal rotariana de mundo, proporcionando uma visão unilateral sobre esses temas. Outra fração do Rotary Clube, direcionada, em especial, à realização de ações “filantrópicas” e “humanitárias” é a denominada “Senhoras Damas de Rotarianos”. Conforme o Rotary Clube Marechal, A Associação de Senhoras de Rotarianos (ASR) é uma entidade prestadora de serviços de caráter assistencial, moral, cultural sem fins lucrativos, que anda paralelamente ao Rotary. Em Marechal Rondon a ASR é quase tão antiga quanto o Rotary. Ela surgiu um ano depois da fundação do Rotary Marechal, no dia 28 de agosto de 1970. Na época Nori Pooter era o presidente do Rotary. As fundadoras foram Mirian Pooter, Leonora Sakuragui, Maria Alice Cruzatti, Neuza Reuter, Rose Maria Wanderer, Doris Feiden, Zita Zart, Everly da Silva, Elzira Granich, Ana Nely Welp, Wirika Poersch e Mirian da Cruz Vianna. Destas, destaca-se Neuza Reuter, que até hoje participa da Associação. A primeira diretoria em 1970/71 teve Mirian Pooter como presidente, Dóris Feiden como vice-presidente, Leonora Sakuragui como secretária e Rose Maria Wanderer como tesoureira. As primeiras reuniões aconteciam no Clube Concórdia, no Lord Restaurante ou mesmo nas residências das integrantes da ASR (ROTARY MCR, on-line).20 17 Recordemos que em 15.4.1970 vivíamos em plena ditadura civil-militar no Brasil e, ainda, nunca é demais lembrar a relação entre o ditador Emílio Garrastazu Médici e o Rotary Clube, apontado nas fontes anteriores. 18 Só para lembrar que este foi o ano de formação da Cooperativa Agrícola Mista Rondon Ltda. (Copagril). 19 O humanismo para os rotarianos associa-se à tendência renascentista de valorização dos atributos humanos – em detrimento dos sobrenaturais –, procurando, na “humanidade” e na cultura, melhorar a condição humana. No Manual de Procedimentos de 2013 (Guia de Referência sobre as Normas do Rotary), o item que trata sobre a natureza jurídica da entidade demonstra que “Esta será uma sociedade sem fins lucrativos. Seus propósitos serão humanitários e beneficentes, para manter as relações de clube membro do Rotary International”. Portanto, a “humanidade” referida pode ser relacionada à “filantropia” e às ações que levariam mais “humanidade” àqueles que dela necessitassem. Disponível em: <www.google.com.br/search>. Acesso em: 16.2.2016. 20 Disponível em: <http://rotarymarechal.blogspot.com.br>. Acesso em: 12.2.2016. 138 Uma das primeiras atividades que as “Senhoras Damas de Rotarianos” realizaram em Marechal Cândido Rondon pode ser evidenciada por meio de uma reportagem do Frente Ampla de Notícias, quando informava que As Sras. Damas Rotarianas promoveram em nossa cidade uma campanha para [arrecadar] cobertor[es] aos pobres. Esta campanha já está chegando ao seu término e já na próxima terça-feira, nas dependências do Clube Concórdia vai ser feita a entrega dos respectivos cobertores, antes porém haverá uma visita às famílias pobres e será entregue um cartão, para a retirada do cobertor. A Rádio Difusora participou nesta campanha, através do programa Chapéu de Palha [dirigido e apresentado pelo rotariano Dirceu da Cruz Vianna], e os ouvintes enviaram a quantia de 107 cruzeiros, dinheiro este já entregue às Damas de Rotarianos, e neste jornal falado agradecemos a atenção que os ouvintes dispensaram a este apelo (Rádio Difusora, 23.6.1971). O Rotary Clube Internacional não admitia mulheres em sua organização, as quais foram aceitas somente a partir de 1989, ou seja, 84 anos após a fundação do clube. As “Senhoras Damas de Rotarianos” eram importantes para impulsionar ainda mais a visão beneficente do “aparelho”. Mais adiante, demostrando que a campanha “filantrópica” das senhoras foi um sucesso (na opinião dos rotarianos) e, ainda, que a preocupação delas era também com as crianças, o Frente Ampla de Notícias (Rádio Difusora, 1.7.1971) apontava que “Depois de encerrada a campanha [...] as senhoras entregaram o material arrecadado, [...] [e este] certamente serviu para agasalhar muitas criancinhas que como nós também sentem a fome e o frio”. Ampliava-se, portanto, o número de tentáculos de que a burguesia dispunha na defesa de seus interesses — além destes havia a maçonaria; as Arenas (duas no município, pois as frações da classe dominante não queriam se identificar com oposição ao regime ditatorial); a Associação Comercial; os meios de comunicação (rádio e jornal); dentre outros, bem como, evidentemente, a inserção de membros do Rotary no Estado restrito, conforme veremos. Sobre o quadro de direção do Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon podemos utilizar uma reportagem da Rádio Difusora (4.7.1975), quando informou que o “Rotary Clube tem Hoje Novos Mandatários”: 139 O Rotary Clube Internacional que tem em Marechal Cândido Rondon uma extensão social, formada por pessoas que gozam do melhor prestígio de nosso meio, tem realizado por diversas vezes campanhas altamente meritórias, levadas unicamente pelo desejo de servir à comunidade. O Rotary Clube local, funcionando há vários anos, vem nesta última gestão contando com o trabalho de linha de frente, movimentado pelo presidente Nori Pooter e auxiliado diretamente pelo secretário Ilmar Priesnitz, pelo tesoureiro Saudy Kaefer e tendo no protocolo o Sr. Roberto Bespalez. [...] O Presidente do Rotary que assumia hoje em solenidade será o Sr. Ilmar Priesnitz, tendo como secretário o senhor Saudy Kaefer e na tesouraria o senhor Plínio Schutz (Rádio Difusora, 4.7.1975 — grifos meus). Visando complementar esse registro, para melhor compreender a composição político-ideológica do Rotary Clube de Marechal Cândido Rondon, na década de 1970, acreditamos ser interessante expor os nomes dos presidentes do Rotary Marechal que atuaram nessa época e evidenciar quem eram aquelas “pessoas que gozam do melhor prestígio de nosso meio”: 1969/1970 — Miguel Patino Cruzatti; 1970/1971 — Nori Pooter; 1971/1972 — Harry Feiden; 1972/1973 — Gernot Reuter; 1973/1974 — Romeu Saatkamp; 1974/1975 — Nori Pooter; 1975/1976 — Ilmar Priesnitz; 1976/1977 — Roberto Bespalez; 1977/1978 — Egon Wanderer; 1978/1979 — Plínio Ari Schütz (ROTARY MCR, on-line).21 Na década de 1970, Miguel Patino Cruzatti foi médico; Nori Pooter, profissional liberal e vereador; Harry Feiden, profissional liberal e vereador; Gernot Reuter, profissional liberal; Romeu Saatkamp, profissional liberal e vereador; Nori Pooter, profissional liberal e vereador; Ilmar Priesnitz, professor, comissionado na prefeitura; 22 Roberto Bespalez, profissional liberal; Egon Wanderer, empresário e irmão de Werner Wanderer, o “alemãozinho bom de voto”;23 Plínio Schütz, profissional 21 Disponível em: <http://www.rotarymcr.org.br/presidentes>. Acesso em: 11.2.2016. 22 Foi o primeiro prefeito eleito após a ditadura. O município, por fazer fronteira com o Paraguai, era considerado “Área de Segurança Nacional”, de modo que Ilmar Priesnitz foi indicado pela ditadura. 23 Eis uma informação sobre Werner Wanderer: “Ao deixar a Prefeitura, estava financeiramente quebrado. Havia perdido todo o meu patrimônio devido ao “caso Cirosa”, ocorrido em 1967/68. Cirosa era uma sociedade anônima constituída por empresários da cidade, que visava a instalação de uma indústria de extração de óleos vegetais. Para mostrar que se tratava de coisa séria, emprestei meu 140 liberal e vereador. Nota-se, portanto, que a maioria dos membros da diretoria do Rotary Clube em Marechal Cândido Rondon, na década de 1970, compunha-se de profissionais liberais (médicos, dentistas, bioquímicos, farmacêuticos, dentre outros), os quais ou foram vereadores ou tiveram políticos de carreira em sua família. Além disso, esses membros não se limitaram à carreira de empresário, na medida em que compuseram uma entidade “sem fins lucrativos e filantrópica”, participando, efetivamente, do Estado restrito. Assim, propostas e projetos do “aparelho” passariam a ter o aval público para sua realização. Ampliava-se o Estado para que os interesses e a visão de mundo de um grupo pudessem sobressair-se aos demais, diversos ou até mesmo contrários a esse grupo. Em seu estudo sobre a instituição, Maria Setton aponta algumas importantes características que acreditamos ser importantes no entendimento do Rotary Clube e de suas práticas de classe. Segundo ela: Como resposta a um princípio prático e racional adquirido desde os seus primeiros anos de socialização, os rotarianos, como representantes de um segmento da sociedade, parecem agir em consonância com uma necessidade real de distinguir-se dos demais grupos sociais. A posse de um título escolar, a “guarra” e a perseverança, tão valorizadas por eles, parecem não se constituir em instrumentos suficientes para a sua reprodução. Foi necessário mudar as estratégias destinadas a reproduzir ou elevar suas posições sociais. Avaliando, inconscientemente, as condições e as possibilidades de acesso às posições almejadas ou manutenção das posições já alcançadas, os rotarianos fizeram-se adeptos de um tipo de prática de sociabilidade que lhes garante, de certo modo, uma estabilidade social. Adeptos de um associativismo voluntário, tecem uma rede de relações duráveis propensa a render-lhes mais uma fonte de recursos e poder (SETTON, 2004, pp. 15-16). Desta forma, julgamos adequado entender a distinção que os rotarianos almejam. Neste sentido, podemos apontar para o fato de o governador do Rotary Clube estar em Marechal Cândido Rondon, em 1975, promovendo a entidade e sua nome ao empreendimento. Eu era o diretor-presidente, assinava a papelada, mas outros tocavam o projeto. A indústria chegou a ser construída, mas estourou pouco antes de entrar em funcionamento. Como numa S/A o responsável é o diretor-presidente, fiquei com o abacaxi. Eu tinha bens, inclusive uma propriedade de 170 alqueires, e estava muito bem de vida” (REVISTA OESTE apud KOLING, 2007, p. 357). 141 “filosofia”. Para tanto, solicitou entrar em contato com o prefeito e com a imprensa, indicando que trataria de um dos temas mais caros ao “aparelho”: a prova quádrupla. Noticiava o Frente Ampla de Notícias: Os rotarianos preparam-se para receber o governador Cassio Bittencourt de Macedo do Distrito 464 ao qual pertence o clube local. [...] O Sr. Cássio solicitou antecipadamente entrevistas com o prefeito municipal e representantes da imprensa, oportunidade em que serão tratados dos objetivos do Rotary. [...] A prova quádrupla, a que respondem os rotarianos será colocada em evidência e está sendo agora adotada com sucesso nos negócios, governos e escolas, a volta ao mundo para aferir-se da incerteza de cada conduta. É A VERDADE??? É JUSTO para todos os interessados??? Criará BOA VONTADE e MELHORES AMIZADES??? Será BENÉFICO para todos os interessados??? São estas as quatro perguntas da prova quádrupla que sistematizam os trabalhos do clube a serviço da comunidade (Rádio Difusora, 2.10.1975 — grifos meus). Tendo em vista as diretrizes da prova quádrupla como norteadoras do Rotary Clube Internacional e o entendimento de que elas deveriam se estender do “aparelho” para “negócios, governos e escolas”, é necessário mostrar um outro viés de interpretação, no intuito de criticar a visão de mundo compartilhada pelos integrantes do Rotary Clube, nacional e internacional, buscando sair do senso comum e entender um pouco mais a fundo a prova quádrupla em um contexto socioeconômico mais amplo. Para compreender a “prova” há a necessidade de entender minimamente algumas categorias formuladas por Karl Marx (1983). A “teoria do fetichismo” foi usada como base das interpretações, pois achamos que traduz a facilidade de ocultamento do trabalho como referencial sobre produtos, obscurecendo também a exploração que a burguesia exerce sobre os trabalhadores.24 O fetiche é um ídolo, um amuleto, algo enfeitiçado, que tem poderes inexplicáveis, de origens misteriosas. Segundo Marx, a mercadoria tem, em sua aparência, essas características. Esse fenômeno reside: 24 São juntamente aqueles que não têm trabalho – ou têm e não conseguem sobreviver com o salário que recebem da força de trabalho – os beneficiados pela “filantropia” rotariana, assim como pelas demais entidades burguesas de ações “humanitárias”. 142 [...] no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtos com o trabalho total como uma relação existente fora deles, entre objetos (MARX, 1983, p. 71). A parte final do processo pelo qual o trabalho se transforma em capital corresponde ao momento em que a mercadoria se torna fetiche, pois, graças à sua capacidade de “mutação”, o trabalho demandado para a sua produção torna-se ocultado, quando, na verdade, deveria estar disposto como elemento central para a imposição de valores — de troca, especificamente: Objetos de uso se tornam mercadorias apenas por serem produtos de trabalhos privados, exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados forma o trabalho social total. Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados só atuam de fato, como membros do trabalho social total, por meio das relações que a troca estabeleceu entre os produtos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre produtores (MARX, 1983, p. 71). Por isso, o valor das mercadorias parece ser um dado objetivo, considerando que este valor tem por base o trabalho humano nela objetivado. Dessa forma, é o trabalho humano despendido em cada mercadoria que lhe estabelece o valor. No entanto, a economia política clássica tende a não considerar esse trabalho. Karl Marx mostrou que as relações sociais de produção têm como resultados: mais-valia; exército industrial de reserva; trabalho alienado; ideologia; mercadoria; lucro; propriedade privada; dentre outros. Ele comprovou que as relações sociais capitalistas geram a exploração do trabalhador; consequentemente, geram também a miséria, a fome, a falta de atendimento médico, a educação técnica-alienante (para a classe trabalhadora), a exploração da mão de obra, falta de habitação, combate à reforma agrária, etc. Neste sentido, uma das práticas mais utilizadas pela burguesia é o não questionamento sobre os mecanismos do mercado, a livre concorrência e a suposta liberdade (que, por vezes, é uma liberdade formal, jurídica, que se expressa 143 no mercado — liberdade de escolha). Em suma, o que está oculto é que a inserção dos homens na sociedade capitalista se dá mediante a propriedade privada, tanto dos meios de produção como do resultado desta produção. No caso dos rotarianos, o que se transforma, como em um passe de mágica, do concreto para abstrato, é a exploração do trabalho — e/ou a defesa de um sistema socioeconômico que tem esta característica em sua essência — em “filantropia”. O capitalismo necessita de mão de obra sempre abundante e barata,25 no intuito de que os empresários lucrem mais por meio da mais-valia absoluta ou relativa. Mão de obra barata significa trabalhadores empobrecidos e dispostos a trabalharem por qualquer quantia salarial — essa é uma característica fundamental do sistema capitalista. Sob este enfoque, o Rotary Clube atua, por meio de sua “filantropia”, buscando minimizar os estragos provocados pelo modo capitalista de produção, sem, no entanto, questionar a fonte da pobreza e da miséria dos trabalhadores. O “bem servir” rotariano está, portanto, limitado à comodidade e à manutenção de sua posição de classe e de sua “distinção social”. Neste sentido, procuramos entender o outro lado da “filantropia”, quando esta pode ocultar o fato de que a “direita filantrópica” é também a promotora da mesma miséria que quer aparentemente minimizar. Em outras palavras, os rotarianos, sejam eles homens, mulheres ou os filhos deles, unem-se, em dias de frio e/ou festa, para amenizar a pobreza que eles, direta e indiretamente, proporcionam. Estaríamos sendo injustos ao aplainar todos os rotarianos em um mesmo nível. Mas, mesmo sabendo que nem todos os seus membros são pertencentes à classe dominante, ou melhor, que nem todos os seus membros são proprietários dos meios de produção e de capital, o que os nivela é o fato de eles estarem vinculados a uma entidade essencialmente defensora dos valores burgueses. Sendo assim, os seus membros, pequena ou grande burguesia, defendem o capitalismo (sob qualquer base política — democrática, ditatorial, etc.) e, através dele, o que se constata é a cáustica pobreza, miséria, sofrimento e muitas outras dificuldades que os trabalhadores diariamente enfrentam. 25 Cf. conceito de Exército Industrial de Reserva. 144 A ação do Rotary Clube, objetivando minimizar as mazelas sociais geradas pelo sistema capitalista, é uma aparente contradição com seus próprios posicionamentos sociais. No entanto, há a necessidade de “filantropia” para proporcionar o mínimo de segurança — contendo possíveis ações extralegais (principalmente aquelas que causam danos à propriedade privada e à segurança pessoal) — àqueles que estão privados de qualquer tipo de propriedade. Assim, entendemos que a “direita filantrópica” não quer acabar com a pobreza e a miséria, as doenças ou a fome, mas amenizá-las, mantendo-se discursivamente sempre como benfeitora ilibada, quase alheia à expropriação e à exploração dos trabalhadores. __________________________ Fontes DISTRITO 4440. Casa da Amizade. Disponível em: <www.distrito4440.com.br>. Acesso em: 18.10.2007. MEMÓRIA MCR. Calendário histórico. Disponível em: <www.memoriarondonense.com.br>. Acesso em: 12.2.2016. RÁDIO DIFUSORA. Frente Ampla de Notícias, 19.1.1970. ________. Frente Ampla de Notícias, 23.2.1970. ________. Frente Ampla de Notícias, 15.4.1970. ________. Frente Ampla de Notícias, 25.4.1970. ________. Frente Ampla de Notícias, 26.10.1970. ________. Frente Ampla de Notícias, 23.6.1971. ________. Frente Ampla de Notícias, 1.7.1971. ________. Frente Ampla de Notícias, 4.7.1975. ________. Frente Ampla de Notícias, 02.10.1975. 145 REVISTA OESTE — Revista Mensal de Informação. O Alemãozinho Bom de Voto: decano dos políticos do Oeste paranaense, o deputado federal Werner Wanderer fala sobre seus 26 anos de vida pública. Ano VI, n. 71, abril de 1992, pp. 7-12. REVISTA ROTARY BRASIL. Definição. Disponível em: <revistarotarybrasil.com.br>. Acesso em: 25.3.2016. ROTARY. Guia de Referência sobre as Normas <www.google.com.br/search>. Acesso em: 16.2.2016. do Rotary. Disponível em: ROTARY MCR. Principal. Disponível em: <http://rotarymarechal.blogspot.com.br>. Acesso em: 12.2.2016. ________. Presidentes. Disponível em: <http://www.rotarymcr.org.br/presidentes>. Acesso em: 11.2.2016. Referências bibliograficas BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. BUCI-GLUKSMANN, Cristine. Gramsci e o Estado. São Paulo: Paz e Terra, 1980. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Arte Nova, 1977. GIDDENS, Antony. 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São Paulo: Zahar, 1979. 147 Democracia e o pensamento conspiratório: uma análise sobre a função das teorias da conspiração na sociedade a partir das manifestações anti-PT 2014-2015 Marcos Meinerz1 Após os acontecimentos da última eleição à Presidência da República do Brasil (2014) e das manifestações exigindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff que ocorrem desde o primeiro semestre de 2015, ficou evidente que as teorias conspiratórias atingem cada vez mais as pessoas. Acusações sobre a suposta implementação do comunismo no país, maquinada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), exacerbaram-se durante o período eleitoral, no qual pudemos observar certo irracionalismo que grassou em nossa sociedade, substituindo as filosofias da história pelas teorias conspiratórias. Nesse ambiente, podemos perceber facilmente a existência dos sentimentos de ódio, racismo, xenofobia, e o preconceito contra pobres.2 1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Paraná. 2 Para citarmos alguns exemplos, esses discursos preconceituosos e conspiratórios podem ser observados em: <www.facebook.com/revoltadosonline>; <http://moralbrasileira.blogspot.com.br>; <www.youtube.com>. De qualquer forma, é importante ressaltar que a quantidade de sites sobre o assunto cresce cada vez mais. 148 Teorias da conspiração de vários tipos fazem parte da história humana há séculos. Desde o final do XX e início do XXI, essas teorias ganharam uma maior visibilidade e destaque no meio social, tornando-se, desde então, lugar-comum nos meios de comunicação (literatura, internet, jornais, revistas, cinema e televisão), o que as transformaram em um fenômeno cultural e de massas. Embora pouco estudadas, face ao enorme alcance que têm na sociedade, acreditar em teorias da conspiração tornou-se tema de interesse para sociólogos, filósofos, psicólogos, historiadores e especialistas em folclore. Como nascem? Como se espalham? Quais são as suas características? Qual é o perfil de quem as produz? Quais os seus efeitos na sociedade? Quem as segue e por quê? Estas são as principais perguntas feitas nos estudos até então publicados. O que torna esse tipo de pensamento interessante e historicamente importante de se estudar, é que, em determinados períodos, ele frequentemente afeta milhares de pessoas, sendo difundido entre amplos setores da sociedade. Neste sentido, há uma necessidade de estudarmos as teorias da conspiração de uma forma teórica, metodológica e empírica adequada. Nesse estudo, portanto, abordamos as principais características das teorias conspiratórias, o seu caráter corrosivo na democracia, como elas se apresentam ao público, bem como a sua influência sobre as massas, ou seja, de que maneira as pessoas se deixam seduzir ou não por elas. História Somos todos sofredores da história, mas o [conspiracionista] é um duplo sofredor, uma vez que ele está aflito não só pelo verdadeiro mundo, como o resto de nós, mas por suas fantasias também. Richard Hofstadter, 1964, p. 86 De acordo com Micah Issit (2012), algumas das teorias da conspiração mais persistentes da história se originaram antes do século XVIII. Muitas delas influenciaram vários acontecimentos históricos, sendo até mesmo aceitas como uma descrição precisa da realidade por um grande número de pessoas de todos os estratos sociais, incluindo chefes de Estados. Para alguns historiadores, segundo Issit, o medo de uma suposta conspiração tramada pela elite judaica com o objetivo 149 de tomar o controle da Europa cristã desempenhou um papel importante na formação dos sentimentos dos cidadãos europeus, motivando-os a fazerem parte das Cruzadas entre 1095 e 1291. Essa mesma teoria teria sido usada mais tarde pelos nazistas para justificar o Holocausto e tem sido utilizada no século XXI por alguns grupos antissemitas radicais para justificar a desconfiança ou ódio pelo povo judeu (ISSIT, 2012). Durante e após a Revolução Francesa (1789-1799), surgiram suposições de que vários grupos poderosos estavam instigando a violência revolucionária com o objetivo de influenciar mudanças no governo francês. Foi também durante este período que os Maçons e os Iluminatis ganharam infâmia e alcunha como duas das sociedades secretas mais poderosas do mundo. Nos séculos XVIII e XIX, o panorama político dos EUA já estava repleto de teorias da conspiração. Desde o processo de Independência até a Guerra Civil, muitos políticos e cidadãos acreditavam que algumas lideranças europeias estavam tentando se infiltrar no país para provocar a queda do governo norte-americano, a fim de governá-lo. Segundo Issit, alguns norteamericanos também comparavam a Igreja Católica a uma monarquia estrangeira, em que o Papa servia como um soberano. Havia a suspeita de que os católicos, agindo em nome do pontífice, prejudicariam ou tentariam derrubar o governo que era dominado por funcionários protestantes. A crença na conspiração católica levou ao desenvolvimento de várias políticas anticatólicas que tiveram um substancial impacto na política interna do país em meados do século XIX (ISSIT, 2012). Durante a Guerra Fria, muitos americanos acreditavam na existência de um complô entre líderes comunistas empenhados em controlar o governo dos EUA por meio de agentes secretos disfarçados como cidadãos norte-americanos. Nas décadas de 1940 e 1950, o senador Joseph McCarthy decretou uma série de projetos de lei que visavam descobrir e penalizar aqueles que tivessem algum envolvimento com atividades comunistas nos EUA (política que ficou conhecida como Macartismo). Nesse período, milhares de norte-americanos foram detidos e interrogados por suspeita de participação em operações antiamericanas. Anos mais tarde, as medidas políticas adotadas por McCarthy tornaram-se símbolo de como as teorias conspiratórias podem levar à paranoia e à perseguição (ISSIT, 2012). 150 Outras tantas teorias conspiratórias pululam o imaginário ocidental: óvnis e extraterrestres, Nova Ordem Mundial, 11 de setembro, Protocolos dos Sábios de Sião, John Kennedy, Elvis Presley, Área 51, IV Reich. 3 Basta fazer uma rápida pesquisa na internet que você encontrará centenas dessas teorias. Para termos uma ideia mais geral, Michael Newton publicou, em 2006, o livro The Enciclopedia of conspiracies and conspiracy theories (NEWTON, 2005), uma enciclopédia com mais de 400 páginas, na qual o autor descreve as mais famosas teorias conspiratórias existentes, envolvendo países, instituições e pessoas. No Brasil, não podemos esquecer que um dos motivos para que o golpe civil-militar — ocorrido no dia 31 de março 1964 — acontecesse, como nos lembra Carlos Fico (2014), foi o medo existente em uma grande parcela da população de que o presidente Jango Goulart, com suas reformas de base, estaria conspirando para implementar o comunismo no país. Esse “perigo comunista” ou “perigo vermelho” serviu como justificativa para o golpe de 1964 e, dessa forma, foi um dos elementos que precederam o evento. No que diz respeito à presença das teorias conspiratórias nas manifestações que estão ocorrendo no Brasil desde 2014, seja nas ruas ou nas redes sociais, uma pesquisa coordenada por Pablo Ortellado, filósofo e professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, e Esther Solano, professora de relações internacionais da Unifesp, revelou que a maioria dos manifestantes de São Paulo que estiveram na Avenida Paulista no dia 12 de abril de 2015, exigindo o impeachment da presidente Dilma Rousseff, acreditam em teorias conspiratórias. Segundo a pesquisa, que ouviu 571 pessoas: 64% acham que o PT quer implantar um regime comunista no Brasil; 56% creem que o Foro de São Paulo quer criar uma ditadura bolivariana no Brasil; 53% acham que o Primeiro Comando da Capital (PCC) é um braço armado do PT; e 42% concordam que o PT trouxe 50 mil haitianos para votar na Dilma nas últimas eleições. 4 Além disso, há os que acreditam que o programa do governo federal chamado “mais médicos” financia uma ditadura cubana e que os médicos que 3 Sobre as teorias conspiratórias envolvendo a ideia da formação do IV Reich na América Latina, cf.: Meinerz (2013). 4 A pesquisa completa, que teve o objetivo de analisar a confiança no sistema político e as fontes de informação, está disponível em: <www.lage.ib.usp.br/manif> e <www.pragmatismopolitico.com.br>. Acesso em: 13.5.2015. 151 trabalham no país são espiões comunistas empenhados em ajudar o governo a implementar o comunismo no Brasil. Uma rápida pesquisa no “Google imagens” sobre o assunto revela centenas de cartazes confirmando essas estatísticas: “Não ao Foro de São Paulo. Comunismo no Brasil Jamais”.5 Esse cartaz, segurado por uma criança, apresenta as duas letras “o” da palavra “comunismo” com pequenos chifres e caudas, simbolizando o diabo. “Contra a ditadura bolivariana e o comunismo. Intervenção militar já! Exército queremos nosso país de volta”.6 “We don’t want communism in Brazil”.7 “Comunismo é o império do mal. PT é a estrela da morte. Dias Tofolli é o advogado do diabo”.8 “Não à ditadura comunista no Brasil”.9 “Comunista é bom morto. Dilma, maduro, Hugo, Fidel, Cristina, Lula — Lixo do Mundo”.10 Nesse ambiente, onde as teorias conspiratórias se propagam, o discurso de ódio e o clima de intolerância ganham força, passando a coexistir com as reivindicações que clamam pela saída do governo petista do comando do país. Não somente nas ruas, mas principalmente na internet e nas redes sociais que ajudam a disseminar tais discursos, expandem-se ideias, antes à sombra, e amplificam-se polarizações políticas, sociais e culturais existentes. Importante atentarmos para o fato de que o ódio e a intolerância não se restringem ao governo e seus partidários, mas contibuem para amedrontar, por exemplo, um frentista haitiano que ocupa o emprego de um brasileiro, devido a uma suposta maquinação do PT para cooptar pessoas que ajudariam a implementar o comunismo no país. 11 Pode-se observar 5 Disponível em: <http://aluizioamorim.blogspot.com.br>. Acesso em: 24.3.2016. 6 Disponível em: <http://g1.globo.com>. Acesso em: 24.3.2016. 7 Disponível em: <www.dw.com>. Acesso em: 24.3.2016. 8 Disponível em: <http://noticias.uol.com.br>. Acesso em: 24.3.2016. 9 Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br>. Acesso em: 24.3.2016. 10 Disponível em: <http://brasilligado.com.br>. Acesso em: 24.3.2016. 11 O caso ocorreu na cidade de Canoas, no Estado do Rio Grande do Sul. Cf.: <http://g1.globo.com>. Acesso em: 24.3.2016. 152 mais discursos com essas características em várias redes sociais, como Facebook, Twitter, blogs, dentre outras. A esse respeito, destaca-se uma postagem sobre uma empregada doméstica e o PT. Em seguida, um comentário anônimo divulgado em um blog de direita: Acabei de demitir a empregada [eleitora da Dilma], que era boazinha mas muuuuito (sic) ruim de serviço e não dava conta da casa. Sabe como eu justifiquei a dispensa dela, dentre outras coisas? Disse que, com a reeleição da Dilma, haverá uma recessão tão grande que pessoas como eu não terão mais condições de ter uma empregada doméstica [...]. Daqui pra diante vai ser assim. Sempre que eu tiver oportunidade vou fazer essas pessoas sentirem na pele a consequência da merda que estão fazendo. Caridade daqui pra frente? Não faço mais para eleitores do PT. Não voluntariamente, pois já sou obrigada a sustentar muitos deles durante todo o ano. Essa é a única língua que eles entendem? Então vou fazer a minha parte para fazê-los entender. E não venham vocês, petistas, com esse mimimis (sic) de menos ódio e mais amor. O ódio entre as classes e raças foi disseminado pelo PT, só que vocês estão cegos demais para enxergar isso.12 Devemos dar ao petismo goles homeopáticos do seu próprio veneno até que ele mora ou perceba que seu ‘inimigo’ acordou para a vida. Sou prático e vou lhe dar um exemplo. Sou servidor público e trabalho com processos. Tem um advogadozinho (sic) petista que desde o dia 27/10 não faz outra coisa no balcão da Vara onde trabalho a não ser falar mal da era FHC. Isso porque o PT está há doze anos no poder e com perspectiva de ficar mais quatro. Pois bem, toda petição desse imbecil que vem na minha mesa entra em processo errado, todo processo dele que precisa ser despachado, vai para o fim da pilha, todo alvará que precisa ser liberado para ele, vai para daqui a 15 dias ou um mês. Entendeu como se luta no dia a dia. Bandido tem que receber tratamento para bandido! Chega!!! Esse bando ganhou eleição porque é sujo!! Chegou a hora de jogar sujo. Pra cima deles!! Eu quero ver petista pegando fogo pra eu apagar com gasolina!!! Coturno na canela pra rachar!!!13 Sob a perspectiva dessa conjuntura social atual, devemos compreender como as teorias conspiratórias funcionam e agem na sociedade, quais suas principais características políticas e culturais e o que leva as pessoas a acreditarem em tais teorias. 12 13 Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br>. Acesso em: 21.3.2016. Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br>. Acesso em: 21.3.2016. 153 Características das teorias conspiratórias Em caráter nacional, as pesquisas sobre esse tipo de fenômeno ainda são relativamente poucas, quase inexistentes. 14 Em âmbito internacional, nas últimas duas décadas, teóricos ingleses, franceses e norte-americanos têm-se debruçado cada vez mais nas influências das teorias conspiratórias em sociedade. Dentre os estudos publicados, podemos destacar autores como: Richard Hofstadter (1964), Michael Barkun (2003) e Raoul Girardet (1987).15 Um dos primeiros a se preocupar em estudar as teorias da conspiração foi o historiador norte-americano Hofstadter que, em 1964, publicou o ensaio “The Paranoid Style in American Politics” (O estilo paranoico na política americana), na edição de outubro da revista Harper’s Magazine. Para Hofstadter existe uma ligação entre conspiração e paranoia, possuindo duas origens inter-relacionadas: a primeira origem, e mais geral, diz respeito à semelhança entre os sistemas delirantes de paranoias e as tramas imaginadas por teóricos da conspiração; a segunda origem demonstra que, ao contrário do paranoico clínico, o paranoico político acredita que o complô não é dirigido somente contra si, mas contra uma nação, uma cultura, um modo de vida, a milhões de outros. As teorias da conspiração apresentam uma explicação alternativa para qualquer acontecimento histórico, desmentindo a versão oficial e tentando, de certa forma, desmascarar os intentos malévolos e ocultos de certos indivíduos. Segundo Issit (2012), alguns historiadores têm sugerido que as teorias da conspiração são uma consequência natural de um desejo de explorar e descobrir facetas da experiência humana que permanecem sem explicação. Outros sugerem que tais teorias são o produto de frustrações relacionadas à natureza secreta de algumas organizações e operações políticas, sociais e históricas. De acordo com Michael Barkun (2003) — especialista em extremismo político e na relação entre religião e violência —, adeptos às crenças conspiratórias possuem 14 Por exemplo: Meinerz (2013); Samways (2014); Castro (2014). 15 Além dos autores utilizados ao longo deste ensaio, ainda há muitos outros, como: Dentith (2012); Byford (2011); Fenster (2008); Camp (1997); Brion (1971); Graumann (1987); Moscovici (1987); Pipes (1995). 154 visões de mundo que podem ser caracterizadas como maniqueístas, ou seja, eles entendem o mundo como uma luta mítica entre a luz e as trevas, entre os reinos do bem e do mal, e acham que esta polarização persistirá até o final da história, quando o mal finalmente será derrotado. Em seu mais amplo significado, as teorias da conspiração veem a história como controlada por enormes forças ocultas e demoníacas. O conspirador, ou seu grupo, é visto como alguém dotado de grande poder, capaz de influenciar, através de seus planos, um acontecimento, o funcionamento de um sistema, ou uma totalidade (BARKUN, 2003). Uma visão de mundo conspiratória pressupõe um universo governado por um projeto bastante aleatório que se manifesta em três princípios, os quais são encontrados em praticamente todas as teorias da conspiração: (1) Nada acontece por acaso. Conspiração sugere um mundo baseado na intencionalidade, a partir do qual acidente e coincidência não existem. Tudo que acontece ocorre porque foi desejado, planejado. Na sua forma mais extrema, o resultado é um mundo de fantasia, muito mais coerente do que o mundo real. (2) Nada é como parece. As aparências enganam, porque os conspiradores querem enganar a fim de disfarçar suas identidades ou as suas atividades. (3) Tudo está conectado. Porque no mundo dos seguidores das teorias da conspiração não há espaço para acidentes e coincidências, o complô está em toda parte, ainda que escondido da vista (BARKUN, 2003, p. 3). Apesar de as teorias da conspiração compartilharem essas características gerais, elas podem ser distinguidas, principalmente, por seu escopo. Barkun as caracteriza em três diferentes tipos, por ordem crescente de abrangência: (1) Eventos conspiratórios: aqui, a conspiração é considerada responsável por eventos discretos ou conjunto de eventos. (2) Conspirações sistêmicas: acredita-se que seus objetivos são concebidos para garantir o controle sobre um país, uma região, ou até mesmo o mundo inteiro. O maquinário conspiratório geralmente é simples: uma única organização maligna implementa um plano para se infiltrar e subverter as instituições existentes. 155 (3) Superconspirações: este termo refere-se a construções conspiratórias em que várias conspirações estão ligadas hierarquicamente. Eventos e sistemas conspiratórios estão unidos em complexas maneiras, de modo que as conspirações são encaixadas uma dentro da outra. No cume da hierarquia uma distante, mas todopoderosa força do mal, manipula toda a conspiração (BARKUN, 2003, p. 6). Uma dada teoria da conspiração também tenta explicar fatos históricos que deixaram lacunas, cuja explicação não consegue ou não dá conta de nos fazer compreender eventos que fogem à racionalidade humana, como, por exemplo, o nazismo. Por tudo o que representou o governo de Hitler para a história, o simples término desse governo e as duvidosas causas da morte do Führer suscitam maiores questionamentos dos predispostos a acreditar em conspirações envolvendo o regime nazista, antes e após a guerra. A explicação simples e causal não é suficiente para essas mentes. Deve haver algo maior por trás de acontecimentos como a Segunda Guerra Mundial. Barkun afirma que essas pessoas preferem aceitar uma complicada teoria conspiratória em vez da explicação oficial, desejando desvendar os mistérios e segredos por trás das explicações geralmente aceitas de processos históricos (BARKUN, 2003, p. 6). Sandra Silva também afirma que as teorias da conspiração associam-se à criação de uma explicação fantasiosa para um fato, habitualmente fundamentada em um juízo que contesta a versão oficial de um acontecimento passado ou atual. A despeito de essas versões serem sustentadas por instituições e profissionais respeitáveis, os criadores e adeptos das teorias conspiratórias observam com ceticismo algumas explicações dadas à sociedade, atribuindo outro significado e interpretação a determinado evento (SILVA, 2010, p. 10). A conspiração, neste sentido, parece ser poderosa a ponto de controlar praticamente todos os meios através dos quais as informações são disseminadas — universidades, escolas, mídia e assim por diante. Noutros termos, os seguidores dessas teorias distanciam-se ostensivamente das instituições tradicionais do saber, desprezando e desconfiando da academia e da intelectualidade, pois argumentam que elas controlam a mente das pessoas, fazendo-lhes lavagem cerebral. Do mesmo modo, tais seguidores 156 desconfiam dos meios de comunicação como falsificadores e encobridores da verdade, considerando-os como parte da conspiração, ou seja, uma ferramenta controlada pelos conspiradores a fim de iludir o público (BARKUN, 2003, p. 6). Esses fatores explicam, em parte, a escolha por conhecimentos que contrariam os fatos comumente aceitos. Diante disso, o intelectual perde espaço porque detém o saber, ao passo que o mentiroso (ou a conspiração) é mais bem-aceito. Sobre a mentira na política, Wolfang Heuer afirma que a tentação de inventar uma história que se pretende real costuma ser potencializada pelo fato de que a mentira, ao contrário da verdade, possui uma força criativa (HEUER, 2006). Sobre esse assunto Heuer cita Hannah Arendt que, por ocasião das discussões e polêmicas em torno do seu livro Eichmann em Jerusalém, delineou o que de fato é a verdade e quais são as vantagens da mentira sobre a verdade. Segundo Heuer, a autora distingue três tipos de discurso: mentir, dizer a verdade, e destacar determinadas realidades em favor do interesse de um grupo: No primeiro caso, segundo Arendt, o mentir sempre constitui “em primeiro lugar, uma ação”, enquanto o dizer a verdade não o é. O dizer a verdade é algo totalmente independente, e por isso sua posição dentro da discussão pública e da política é complicada. Pois, “na vida política praticamente não existe um tipo de humano que desencadeie dúvidas tão fortes sobre sua veracidade quanto aquele que deve dizer a verdade por razões profissionais, que sugere representar uma harmonia preestabelecida entre interesses e verdade. Em contrapartida, aquele que mente não precisa recorrer a meios tão duvidosos para atingir seus fins políticos. Ele tem a vantagem de estar sempre em meio à política. Seja lá o que ele disser, não se trata apenas de algo dito, mas de uma ação. Ele diz o que não é, porque deseja modificar aquilo que é. Ele é o grande beneficiário do inegável parentesco entre a capacidade humana de modificar as coisas e a misteriosa capacidade de dizer ‘o sol brilha’, enquanto lá fora está chovendo aos cântaros”. Não se acredita naquele que diz a “verdade por profissão”, porque tanto a verdade quanto o dizer a verdade correm perigo tão logo interesses entram em jogo. A aparente harmonia entre verdade e interesse é praticamente impossível — e isso não acontece só na esfera política [...] (HEUER, 2006, p. 46). O fato é que, para Arendt, o enganador (ou quem inventa teorias conspiratórias) transforma-se mais facilmente em vítima de suas próprias mentiras 157 quão mais bem-sucedida for sua propagação pelo mundo. Ademais, justamente por crer nas suas próprias mentiras, ele parece merecer muito mais credibilidade e confiança do que quem afirma uma inverdade de forma consciente e soberana, provocando com isso sua própria armadilha (HEUER, 2006, p. 46). Nas próprias palavras da autora: Nossa apreensão da realidade depende da nossa partilha do mundo com os outros homens. Por outras palavras, quanto mais o mentiroso tem êxito, mais verossímil é que seja vítima de suas próprias invenções. De resto, o brincalhão preso na sua própria mentira, que embarca no mesmo navio que as suas vítimas, parecerá infinitamente mais digno de confiança que o mentiroso de sangue frio que se permite saborear a sua farsa exterior. Só o engano de si é suscetível de criar uma aparência de credibilidade e, num debate sobre os fatos, o único fator persuasivo que tem, por vezes, uma possibilidade de prevalecer sobre o prazer, o medo e o interesse, é a aparência pessoal (ARENDT, 2013, p. 314). Seguindo esse raciocínio de Arendt sobre a dicotomia verdade/mentira, podemos afirmar que esse é um dos motivos da enorme audiência e popularidade das teorias conspiratórias na sociedade. Ao questionarem as versões oficiais dos fatos, essas teorias questionam a verdade estabelecida ou a pessoa investida dessa verdade, o que contribui para que pareçam muito mais aceitáveis do que a realidade. Outro efeito da descrença nos meios de comunicação, nos intelectuais e nas instituições tradicionais do saber, é que os crentes nesse tipo de teoria assimilam a internet como o meio mais seguro para adquirir informações e, neste sentido, ela torna-se o meio de excelência para a difusão e permanência das teorias conspiratórias na sociedade contemporânea. Para Barkun, a internet é atraente em virtude de sua grande audiência, do baixo investimento necessário para a sua utilização e, em especial, da ausência de intermediários que podem censurar o conteúdo das mensagens, ou seja, não há editores e produtores entre o conteúdo e a distribuição da mensagem (BARKUN, 2003). De acordo com Silva, sem barreiras à entrada, acessível a uma enorme quantidade de pessoas no mundo e aberta à publicação de qualquer conteúdo, a internet é considerada a grande impulsionadora 158 das teorias da conspiração (SILVA, 2010).16 Aquele cuja visão de mundo é construída em torno da ideia da conspiração dificilmente busca informações que contrariam as suas convicções. Desse modo, limita-se a comunidades virtuais da internet que estejam em sintonia com suas ideias e sua mente. Outra característica, segundo Hofstadter, é que a literatura conspiratória, se não totalmente racional, é, pelo menos, intensamente racionalista. Tal literatura pretende ser empiricamente relevante, ou seja, a fim de fundamentar as suas alegações, elabora e acumula provas tangíveis que, muitas vezes, imitam a metodologia de citação de fonte, bem como a apresentação de evidências encontradas em estudos científicos (HOFSTADTER, 1964). Por outro lado, quanto mais a história é contada e quanto mais as pessoas a escutam, mais provavelmente irão acreditar nela. O resultado é que as mesmas fontes são repetidas várias vezes, produzindo uma espécie de pseudoconfirmação — se a fonte é citada muitas vezes “deve ser verdade”. Aqui chegamos a um ponto importante: a distinção do senso comum entre fato e ficção se derrete no mundo conspiratório. De acordo com Barkun, muitas vezes os conspiracionistas alegam que aquilo que o mundo considera como fato é, na verdade, ficção, ao passo que aquilo que se apresenta como ficção é realmente verdade. Neste sentido, a verdade toma forma de ficção (através da literatura, do cinema e da televisão), porque uma representação direta da realidade seria muito perturbadora, precisando, assim, ser envolta em uma ficção. Em outros casos, a ficcionalização da verdade é considerada parte da campanha dos conspiradores visando doutrinar ou preparar um público ingênuo para algum desenvolvimento futuro importante (BARKUN, 2003). Nenhum autor até agora citado abordou a teoria da conspiração como parte de um imaginário político-social. Por isso, o estudo do historiador francês Raoul Girardet torna-se imprescindível para a compreensão desse fenômeno, pois introduziu a teoria conspiratória no cerne dos mitos políticos presentes no imaginário de nossa sociedade. 16 Não podemos nos esquecer da enorme produção literária, jornalística, cinematográfica e televisiva existente sobre o tema. 159 O imaginário político-conspiratório Para Girardet, são quatro os principais mitos políticos presentes no imaginário de nossa sociedade: (1) o mito da Conspiração maléfica que tende a submeter os povos à dominação de forças obscuras e perversas; (2) o mito do Salvador ou apelo ao chefe salvador, restaurador da ordem ou conquistador de uma nova grandeza coletiva; (3) o mito da Idade de Ouro — na qual convém redescobrir a felicidade — ou de uma Revolução redentora que permite à humanidade entrar na fase final de sua história e assegurar para sempre o reino da justiça; (4) o mito da Unidade, ou seja, a ideia de uma sociedade coesa, feliz e igualitária (GIRARDET, 1987, p. 11). Para os propósitos desse trabalho, focaremos a atenção apenas no Mito da Conspiração. Um imaginário conspiratório possui todo um jogo simbólico que podemos identificar. Nos seus discursos existe algo que podemos chamar de “bestiário do complô”: reúne tudo o que rasteja, infiltra-se, esconde-se; tudo o que é ondulamente viscoso; tudo o que é tido como portador de sujeira e da infecção como a serpente, o rato, a sanguessuga, o polvo; o subterrâneo ou seu equivalente (cripta, jazigo, quarto fechado) (idem, ibidem). Esse imaginário carrega consigo um fluxo de imagens, de fantasmas e de representações simbólicas: Medo dos porões tenebrosos, das paredes sem saída que se fecham, das fossas escuras de onde não se sob de novo, medo de ser entregue a mãos desconhecidas, de ser roubado, vendido ou abandonado, medo, enfim, do ogro, dos dentes carniceiros dos animais de presa, de tudo o que tritura, despedaça e devora. [...] O inimigo opera subterraneamente, clandestinamente versátil, inapreensivel, capaz de infiltrar-se em todos os meios, sua habilidade suprema é a da manipulação; suas tropas invisíveis mas presentes em todas as partes (GIRARDET, 1987, p. 57). Também encontramos a demonização do homem do complô, isto é, o “príncipe das trevas” permanece, em pessoa, como o herói privilegiado de uma vasta literatura, inspirando pavor, fascínio e, no mínimo, curiosidade. Como assegura Girardet (1987, p. 48), “a multidão de seus fiéis é ainda suficientemente numerosa para permitir escroques diversos prosseguir com lucrativas mistificações”. Quaisquer que sejam a natureza e a aparente motivação da conspiração, tratam-se sempre de 160 corresponder a uma inesgotável vontade de poder e de retornar o sonho eterno da construção de um Império em escala universal, da unificação do globo sob uma única e total autoridade. Uma construção mitológica conspiratória pode ser interpretada como uma resposta a uma ameaça ou, pelo menos, como uma reação quase automática a tal sentimento: Não há complô cuja descoberta não se apresente como uma descida progressiva para longe da luz, ali onde as trevas se fazem mais e mais densas. É quase sempre a noite que os conjurados escolhem para se reunir, dispersando-se com o nascer do dia. E envoltos em vestimentas sombrias que os representa geralmente o abundante conjunto de imagens que lhes é consagrado (GIRARDET, 1987, p. 42). Os homens do complô serão antes de tudo instruídos a esconder-se. Eles praticam a corrupção, a depreciação dos costumes, a desagregação sistemática das tradições sociais e dos valores morais. Nas narrativas conspiratórias, é sentida a presença de certa angústia, [...] a dos alçapões bruscamente abertos, dos labirintos sem esperança, dos corredores infinitamente longos e de suas duras paradas, impenetráveis e lisas. Homens da sombra, os homens do complô escapam por definição às regras mais elementares da normalidade social. Constituem, no interior de toda comunidade consciente de sua coerência, um corpo exógeno obscuramente submetido às suas próprias leis, obedecendo apenas a seus próprios imperativos ou a seus próprios apetites. Surgidos de outra parte ou de parte alguma, os fanáticos da conspiração encarnam o Estrangeiro no sentido pleno do termo (GIRARDET, 1987, p. 42). Girardet afirma que um discurso mítico está inserido em um meio social no qual já exista certa situação de disponibilidade, certo estado precedente de receptividade. O que significa que, em sua estrutura, para ter alguma possiblidade de eficácia, a mensagem a ser transmitida deve corresponder a certo código já inscrito nas normas do imaginário e do real: Nenhum dos mitos políticos se desenvolve, sem dúvida, no exclusivo plano da fábula, em um universo de pura gratuidade, de transparente abstração, livre de todo contato com a presença das realidades da história. Mas, no que diz respeito à mitologia do Complô, aceita-se de 161 boa vontade que a carga de densidade histórica se revela, com toda evidência, particularmente pesada: com efeito, nenhuma, ou quase nenhuma, de suas manifestações ou de suas expressões que não possa ser relacionada mais ou menos diretamente com dados factuais relativamente precisos, facilmente verificáveis em todo caso, e concretamente apreensíveis (GIRARDET, 1987, p. 51) Conforme o autor assinala, a denúncia de uma conspiração, de um complô, não deixa de se inscrever em um clima psicológico e social de incerteza, insegurança, temor ou angústia. São nos “períodos críticos” da sociedade que os mitos se afirmam e aparecem com maior clareza, impõem-se com mais intensidade e exercem com mais violência seu poder de atração. É ao longo das linhas das mais fortes tensões sociais que se desenvolvem os mitos políticos. Não há nenhum dos sistemas mitológicos — idade de ouro, revolução redentora ou complô — que não se ligue diretamente a fenômenos de crise: “aceleração brutal do processo de evolução histórica, rupturas repentinas do meio cultural ou social, desagregação dos mecanismos de solidariedade e de complementaridade que ordenam a vida coletiva” (GIRARDET, 1987, p. 180). Todos eles se relacionam a conjunturas de vacuidade, inquietação, angústia ou contestação. Na mesma linha de raciocínio, Issit (2012) afirma que as teorias da conspiração são historicamente mais comuns em períodos de agitação ou mudança social. Em tempos de crise e incerteza, as teorias da conspiração podem surgir entre grupos que acreditam estar em desvantagem política ou social em comparação com outros grupos, julgados por possuírem um status social superior. Os apelos dos mitos políticos de nosso tempo, em sua multiplicidade e em suas contradições, podem refugiar em nós mesmos “virtualidades de resposta, já que foi em nós mesmos, por nós mesmos, na banalidade de nosso inconsciente, que encontraram sua primeira expressão, manifestaram suas primeiras exigências” (GIRARDET, 1987, p. 186). Deste modo, um mito, um imaginário, antes mesmo de ser coletivo, é individual: O nascimento do mito político situa-se no instante em que o traumatismo social se transforma em traumatismo psíquico. É na intensidade secreta das angústias ou das incertezas, na obscuridade dos impulsos 162 insatisfeitos e das esperas vãs que ele encontra sua origem. [...] Os grandes mitos políticos das sociedades contemporâneas não podem deixar de aparecer como uma das formas de expressão de bom número das principais constantes psicológicas inerentes à pessoa humana. A denúncia do complô é libertadora do medo, do ressentimento e da cólera (GIRARDET, 1987, p. 181). Aqui cabe uma pergunta: por que as pessoas acreditam em teorias conspiratórias? Compartilhamos da ideia de que a crença em uma dada teoria da conspiração, em última análise, torna-se uma questão de fé, crença e sentimento, em detrimento de alguma prova empírica. A crença em teorias conspiratórias Teorias conspiratórias sempre florescem, quando as pessoas se sentem excluídas do processo político. A ascensão da classe política e a distância cada vez maior entre as elites e o eleitorado ajudam a estimular a crença em conspirações. Nicholas Goodrick-Clarke, 2004, p. 381 Teorias conspiratórias são atrativas porque elas surgem como um grão de verdade envolto em crenças sociais preexistentes. Em entrevista ao Portal Terra, Barkun afirma que uma necessidade de explicar o mundo está por trás das teorias conspiratórias, e que existem muitas razões para a sua aceitação: [...] mas eu acredito que a maior razão é para tentar atribuir um sentido ao mundo. Obviamente, as pessoas querem que o mundo faça sentido, elas querem ser capazes de entendê-lo, e uma das coisas que as teorias conspiratórias fazem é simplificar o mundo. Elas pegam uma realidade que pode parecer caótica e complicada, e dizem que há uma causa simples. Então elas estabelecem uma causa para eventos que as pessoas não conseguem explicar satisfatoriamente de outra forma. E isso fornece um benefício psicológico para as pessoas que acreditam nessas teorias (BARKUN, on-line)17 17 Disponível em: <http://noticias.terra.com.br>. Acesso em: 10.11.2014. 163 Porém, ao mesmo tempo em que as teorias conspiratórias tentam explicar o mundo, simplificando-o, elas parecem ser construções mentais bastante complexas. Barkun acredita que essas teorias complexas são criadas quando as pessoas têm dificuldade de aceitar a explicação oficial de um determinado evento. Isso acontece porque a relação entre os efeitos (as coisas ruins que aconteceram) e a causa que foi dada oficialmente não é considerada aceitável ou plausível (BARKUN, 2011). Desse modo, torna-se mais fácil para essas pessoas aceitar uma elaborada teoria conspiratória do que aceitar a explicação oficial. Barkun crê que o mesmo se aplicou: às teorias conspiratórias que tratam sobre o assassinato do presidente John Kennedy, em 1963, onde você tem esse presidente jovem e dinâmico assassinado por Lee Harvey Oswald, que era um ninguém, um perdedor, um preguiçoso, e a ideia de que esse presidente dinâmico pudesse ser assassinado por alguém assim era algo, de novo, que eu acho que para muitas pessoas foi difícil de aceitar, e foi mais fácil para elas acreditar que alguma organização o havia matado, fosse o crime organizado, fossem os comunistas, ou outros. Então, há situações em que pode ser mais satisfatório aceitar uma complexa teoria conspiratória do que uma simples (BARKUN, 2011). O que nos leva a crer que é verdadeiro o que vemos ou lemos em teorias conspiratórias? Para Steve Clarke (2002, p. 11), isso é facilitado pelos sentimentos e emoções que elas despertam e provocam no público. David Hume — no livro Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral (HUME apud SILVA, 2010, p. 11) — verificou que a paixão de surpresa e admiração provocada por milagres, essa uma emoção afável, contribui para que as pessoas se sensibilizem com esses eventos, bem como afirmou que isso acontece com as teorias da conspiração. “Por mais fantasiosos que os milagres, as ficções, ou as teorias conspiratórias possam parecer, as pessoas tendem a acreditar nelas pelas boas sensações que experimentam quando tomam conhecimento dos mesmos” (SILVA, 2010, p. 11). Soma-se a isso o fato de as teorias conspiratórias serem passíveis de despertar nos indivíduos a sensação de posse sobre algo secreto e não acessível a todos, de modo que se sintam especiais e privilegiados. Para Clarke, as pessoas acreditam em tais teorias baseando-se em mínimas evidências, provando que é plausível admitir que elas são “emocionalmente atraídas” por esse tipo de ideia (CLARKE, 2002, p. 11). 164 Qual o grupo que mais acredita em teorias conspiratórias? O senso comum, o público em geral e as massas são os que mais facilmente se deixam seduzir e influenciar pelas teorias da conspiração. Silva assegura que muitos estudiosos defendem que as teorias conspiratórias são direcionadas para as massas e somente por elas aceitas, acreditando que as elites intelectuais são mais imunes aos seus efeitos (SILVA, 2010). Clarke, no mesmo norte, defende que os criadores destas teorias formam ideias que geralmente são bastante populares perante as massas. Para ele, as ideias promulgadas pelos conspiradores são muito impopulares no seio dos intelectuais: As teorias da conspiração há muito que têm sido favorecidas por políticas populistas, que são quase invariavelmente anti-elitistas e, portanto, anti-intelectuais também. As teorias da conspiração são mais populares entre os membros do público em geral, que são, talvez, afectados por subculturas de teóricos da conspiração. A juntar ao facto de que as teorias da conspiração serem muitas vezes baseadas em convicções, sem uma comprovação prática e objectiva, bem como algo fantasiosas, os intelectuais sentem vergonha de admitir que acreditam nelas (CLARKE apud SILVA, 2010, p. 13). Neste sentido, é evidente que as massas e o senso comum (vistos como propensos a fantasiar e fáceis de manipular) são os maiores fomentadores dessas teorias, cuja aceitação tende a aumentar nas épocas de tensão social. Silva explica que, nesses períodos, as teorias da conspiração podem moldar a opinião das pessoas, considerando que toda a aura de secretismo intimamente ligada a tais teorias fundamenta-lhe a crença, popularidade e grande alcance. Além disso, há uma tendência de elas parecerem cada vez mais credíveis, elaboradas, lógicas e bem fundamentadas (fato que não podemos ignorar). Como as teorias conspiratórias são amplamente difundidas pelos meios de comunicação, trata-se da necessidade de reconhecê-las e compreendê-las como meios que operam, de forma crescente, com uma racionalidade produtora e organizadora de sentidos, afetando e produzindo sentimentos, aspirações, medos, angústias e inseguranças. Em consequência, atuam como uma instância que configura a realidade social, interferindo nas memórias e nos imaginários produzidos. Como afirma Douglas Kellner, em uma cultura contemporânea dominada pela mídia, 165 os meios dominantes de informação e entretenimento contribuem para moldar nosso comportamento, pensamento, crenças, desejos, temores, dentre outras coisas. Além disso, influenciam o modo como as pessoas pensam e se comportam, como se veem e veem os outros e como constroem sua própria identidade (KELLNER, 2001). De acordo com Denise Cogo (2011), é importante entender como os meios de comunicação convertem-se em cenários cotidianos de reconhecimento social, na medida em que se encarregam de construir, expressar, oferecer e selecionar imaginários sociais relacionados a modos de ser, expectativas, medos, desejos, esperanças, os quais passam a ser reconstruídos pela memória. Isso posto, a memória histórica atua não só como algo crucial para a internalização dos imaginários, mas também como processo decisivo de fixação e seleção dos fatos veiculados pelos meios de comunicação. Como afirma Bronislaw Baczko, a influência dos imaginários sobre a mentalidade coletiva depende da sua difusão e dos meios que garantem tal difusão. Sob este enfoque, os meios de comunicação de massa, principalmente desde as primeiras décadas do século XX, possuem grande poder de controle sobre os imaginários políticos e sociais existentes, pois possibilitam que um determinado imaginário atinja uma ampla audiência (BACZKO, 1985). Considerações finais Os teóricos da conspiração estão corretos sobre uma coisa: o status quo não é aceitável. Conspiradores têm entendido com precisão que existem desigualdades de poder e privilégio do mundo que precisam ser corrigidas. O que falta aos teóricos da conspiração é o desejo ou a capacidade de seguir as regras básicas da lógica e da pesquisa investigativa. Chip Berlet, 2009, p. 4 Por iniciativa própria ou involuntariamente, verifica-se que há várias pessoas expostas a teorias conspiratórias. Constatamos que, no Brasil, desde a década de 1960, elas já estavam presentes na sociedade, tanto é que influenciaram o golpe civil-militar ocorrido em 1964. A partir de 2014, elas exacerbaram-se no país de uma maneira nunca antes vista, sendo disseminadas nas manifestações populares ocorridas nas ruas de várias cidades e, em especial, nas redes sociais da internet. 166 Devemos entender que o fato de uma teoria da conspiração ser absurda ou esdrúxula não pressupõe que muita gente não acredite nela e, dada a sua permeabilidade no corpo social, não é seguro deixar passar qualquer teoria sem uma análise racional. Conforme assinala Hofstadter, o caráter corrosivo das teorias conspiratórias no debate público e político é que, na medida em que elas prejudicam a capacidade de diálogo dentro da sociedade, transformam adversários em inimigos e, consequentemente, ameaçam a ordem democrática. Se o adversário conspira, as ferramentas da democracia não funcionam, formando um crescente discurso que gera ressentimentos, 18 podendo produzir violência, ódio e intolerância (HOFSTADTER, 1964), o que, de fato, estamos observando no Brasil atualmente. Segundo Chip Berlet, as pessoas que acreditam em alegações conspiratórias às vezes agem sobre essas crenças irracionais, o que tem consequências concretas no mundo real. As conspirações e fantasias, por mais excêntricas que possam parecer, podem ter e, frequentemente, têm implicações na realidade. Pensamentos conspiratórios são, para o autor, sintomas de atritos sociais e, como tal, são perigosos para ignorar. Estas teorias são ferramentas que podem ser usadas por certos líderes políticos para mobilizar uma massa de seguidores ou para justificar a perseguição a determinados grupos, criando um ambiente em que o racismo, o fanatismo, o antissemitismo e outras formas de preconceito e opressão podem florescer. Assim sendo, o autor considera as teorias conspiratórias tóxicas à democracia (BERLET, 2009). Do mesmo modo, Jeffrey Bale afirma que as teorias da conspiração formam ilusões coletivas que, no entanto, refletem medos reais e problemas sociais verdadeiros. Para ele, a crença em teorias da conspiração contribui para que as pessoas deem sentido a uma realidade inóspita e confusa, racionalizem as suas dificuldades atuais e aliviem parcialmente seus sentimentos de impotência. Neste sentido, não são diferentes de qualquer número de crenças religiosas, sociais ou políticas e, por isso, são merecedoras de um estudo sério (BALE, 2007). 18 Para se ter uma ideia de como o ressentimento é uma força latente na história e que suas manifestações interferem nas dinâmicas sociais e econômicas, cf.: Ferro (2009). 167 As teorias conspiratórias, para além de mera produção da fantasia humana, também são um fenômeno político, social e cultural. Elas não sugerem apenas uma falsificação, invenção ou imaginação da realidade, mas contribuem expressivamente para intervenções no real. São produtoras de opiniões, sustentando identidades, valores, ações de sujeitos e grupos sociais, assim como exercendo determinadas funções explicativas que nos auxiliam a compreender como as pessoas pensavam e sentiam o passado, bem como o presente. Portanto, as ideias desprezadas pelos historiadores — por serem consideradas “mentirosas” e por não originarem reconstituições históricas verdadeiras dos fatos pesquisados — são capazes de conter dimensões simbólicas importantíssimas, podendo revelar um rico e fértil terreno à análise histórica.19 Como nos lembra Marc Ferro (1992, p. 86), “aquilo que não aconteceu (e por que não aquilo que aconteceu?), as crenças, as intenções, o imaginário do homem, são tão História quanto a História”, ou seja, formam discursos sobre a sociedade que as produz, ressaltando as suas tensões e ambiguidades. __________________________ Referências bibliográficas AMADO, Janaína. O grande mentiroso: Tradição, veracidade e imaginação em história oral. In: Revista de História Universidade Estadual Paulista, vol. 14. São Paulo: UNESP, 1995. ARENDT, Hanna. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2013. BACZKO, Bronislaw. A imaginação social. In: LEACH, Edmund et al. Anthropos-Homem. 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Porto, 2010. 170 Golpe de Estado e luta de classes: o caso argentino de 1976 Marcos Vinicius Ribeiro1 Em 24 de março de 1976, a Argentina foi alvo de um golpe militar protagonizado pela junta de comandantes em armas. Tratava-se de uma intervenção capitaneada pelos seguintes militares: Jorge Rafael Videla (1925-2013), general do Exército; Orlando Agosti (1924-1997), almirante da Força Aérea; e Eduardo Massera (1925-2010), brigadeiro da Marinha (BORGES, 2015).2 Segundo Borges, Logo nas primeiras horas após o golpe, a Junta Militar tomou os prédios do governo e o Congresso Nacional. Pouco tempo depois os militares se apropriaram das estações de rádio e televisão de Buenos Aires e das principais cidades do interior. Em seguida, através dos principais meios de comunicação de massa, o país foi informado que uma Junta de Comandantes das três armadas havia decidido pôr fim ao agonizante exercício das atividades civis e assumia o poder político em nome do autodenominado Processo de Reorganização Nacional (BORGES, 2015). 1 Doutorando em História pela Universidade do Oeste do Paraná. E-mail: marquinhos_ [email protected]. 2 O presente artigo é uma síntese da dissertação de mestrado em História, intitulada De Perón a Videla: revisão histórica e historiográfica do Terrorismo de Estado na Argentina (1973-1978), realizada na Unioeste, Campus de Marechal Cândido Rondon, e defendida em 2009. Disponível em: <www.dominiopublico.gov.br>. 171 Os anos de 1970 apresentaram especificidades em relação ao antagonismo no terreno da luta de classes dos países latino-americanos. A hegemonia estadunidense articulou o projeto de financeirização das economias periféricas com uma exigência complementar: tratava-se de acirrar o controle de contenção aos movimentos sociais, contenção que foi reestruturada sob a perspectiva da imposição da superexploração da força de trabalho, com o objetivo claro de fraturar a resistência à imposição do projeto de recuperação de capitais, presente no binômio segurança/desenvolvimento, característico da adesão à Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Movimentos sociais de trabalhadores, a exemplo de associações, sindicatos e partidos, sofreram forte intervenção dos aparatos repressivos do Estado, tendo em vista sua desarticulação para a formação de um “tipo humano”, necessário à reestruturação do Estado e do capitalismo, reestruturação em consonância com o projeto do capital financeiro sob a hegemonia estadunidense. Na relação com a sociedade, diversos mecanismos repressivos foram ampliados aos mais diversos âmbitos da vida social. María Estela Martínez de Perón, a Isabelita, foi derrubada após uma mobilização que oscilou entre as medidas de desestabilização na segurança pública, os atentados propalados pela extrema-direita através da atuação da Aliança Anticomunista Argentina (Triple A) e o caos econômico, reflexo da extrema instabilidade gerada pela passagem de seis ministros da Fazenda em curtíssimo espaço de tempo, no ano de 1976. A sistematização do golpe foi antecedida por um lockout empresarial, proferido e organizado pelas principais associações de representação da classe burguesa argentina organizadas na Assembleia Permanente de Entidades Sindicais Empresariais (Apege). Havia o consenso de que o “caos” econômico instalado a partir da morte de Perón, em 1 de julho de 1974, e a consequente renúncia de Jose Ber Gelbard, junto ao Ministério da Economia, representavam uma conjunção de fatores que “obrigou” a paralisação geral. Gelbard era uma figura que atraía os interesses dos grupos econômicos mais influentes da Argentina para o apoio do 172 governo de Perón. Gelbard, ademais, foi fundador da Confederação Geral Econômica (CGE) que agrupou parcela significativa da pequena e média burguesia. A crise atingiu seu ápice com o “Rodrigazo”, em 4 de julho de 1975, quando Celestino Rodrigo, ministro da Economia de Isabelita, adotou medidas de promoção da inflação e desvalorização do peso. As inclinações da classe empresarial no contexto que se desenhou tornaram-se claramente golpistas. Acusavam o governo Isabelita de ser manipulado por Lopez Rega, “El Brujo”, ministro do Bem-Estar Social, e o tronco sindical da direita peronista havia se manifestado radicalmente contrário às manobras da guerrilha e do peronismo combativo, cuja aparição causou certo frisson, já no retorno de Perón de seu exílio em Madrid. Sob o governo de Isabelita, a crise econômica se refletiu em tentativas frustradas de construir uma base mínima de apoio durante a passagem de seis ministros pelo Ministério da Economia, a saber: Gerbald, Gómez Morales, Celestino Rodrigo, Pedro Bonanni, Antonio Cafiero e Emilio Mondeli. Todos eles passaram fugazmente pelo cargo e, todos juntos, não somaram mais do que 100 dias de gestão. Caíram por pressão organizada dos grupos econômicos que se alternavam na tentativa de imposição de sua pauta para a economia argentina, uma reestruturação que passava pelo alinhamento ao capital financeiro. Tratava-se de uma crise sem precedentes, pois a economia cresceu por 11 anos consecutivos. Panorama teórico Ao discutir os efeitos progressivos do “Americanismo” e do “Fordismo” nas sociedades contemporâneas, o comunista italiano Antônio Gramsci perscrutou a forma de reestruturação econômica, social e cultural necessária ao projeto de acumulação do fordismo racionalizado pelo americanismo, um modo de vida, da seguinte forma, Na América, a racionalização determinou a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de processo produtivo: esta elaboração está até agora na fase inicial e, por isso, (aparentemente) idílica. É ainda a fase de adaptação psicofísica à nova estrutura industrial, buscada através dos altos salários; ainda não se 173 verificou (antes da crise de 1929), salvo talvez de modo esporádico, nenhum florescimento de tipo “superestrutural”, ou seja, ainda não foi posta a questão fundamental da hegemonia. A luta se dá com armas tomadas do velho arsenal europeu e ainda abastardadas, que são, portanto, “anacrônicas” em relação ao desenvolvimento das “coisas” (GRAMSCI, 2007, p. 248). Com base nos argumentos do autor, pode-se relacionar a operação das ditaduras latino-americanas nas décadas de 1960-1970 a um processo de implantação do ideário americanista, porém com especificidades concernentes às diversas formações sociais, o que abriu caminho para uma miríade de soluções arbitrárias e repressivas, cujo escopo fora articulado através dos diversos serviços de inteligência. A passagem da chamada “fase idílica” — marcada pelos “altos salários”, como forma de promoção da conciliação — esgotou-se, promovendo consequências para a resistência que foi brutalmente perseguida. Pode-se dizer que, no caso argentino, a fórmula peronista do pós-guerra — cujo escopo centrou fogo no projeto de redistribuição de renda promovido pelo Instituto Argentino de Promoção do Intercâmbio (Iapi) — esgotou-se em virtude do definhamento das remessas de lucros conseguidos com a venda de carne congelada para os países em guerra, principalmente para a Inglaterra, parceiro comercial histórico da Argentina. Apresentou-se uma crise de hegemonia, avaliada por Gramsci da seguinte forma, A crise se apresenta, praticamente, na dificuldade cada vez maior para formar os governos: ela tem sua origem imediata na multiplicação dos partidos parlamentares e nas crises internas permanentes de cada um destes partidos (ou seja, verifica-se no interior de cada partido o que se verifica no Parlamento como um todo: dificuldades de governo e instabilidade de direção) (GRAMSCI, 2007, p. 96). Embora o parlamento argentino tenha sido dissolvido imediatamente após o golpe de março de 1976, é significativo entender que o projeto terrorista da ditadura, no âmbito de sua direção, deu-se sob o predomínio da força. Não tomamos a indicação de Gramsci como um elemento a mais, identifica-se nele uma aproximação 174 com o processo argentino. Neste sentido, o intelectual italiano Antonio Gramsci, nos Quaderni, indica que quando a crise se acirra, ela se torna um elemento a mais; no caso da Argentina, elemento crucial da crise de hegemonia que perpassou todo o contexto anterior ao golpe de 1976, contexto representado pelo comprometimento com ações ilegais, se tomadas do ponto de vista do Estado de direito. Gramsci indica, neste momento, uma relação que aparentemente se torna personalista e se materializa nos acordos para a sustentação do regime. As formas deste fenômeno são também, em certa medida, de corrupção e dissolução moral: cada fração de partido acredita possuir a receita infalível para deter o enfraquecimento do partido como um todo e recorre a todos os meios para assumir sua direção ou, pelo menos, para participar da direção, do mesmo modo como, no Parlamento, o partido pensa que deve ser o único a formar o governo para salvar o país, ou pelo menos pretende, para dar apoio ao governo, participar dele do modo mais amplo possível; disso resultam acordos cavilosos e minuciosos, que não podem deixar de ser personalistas a ponto de parecer escandalosos e que, frequentemente, são inconfiáveis e traiçoeiros. Talvez, na realidade, a corrupção pessoal seja menor do que parece, já que todo o organismo político está corrompido pelo esfacelamento da função hegemônica (GRAMSCI, 2007. p. 96). No contexto argentino mais amplo, por seu turno, radicalizado em termos de resistência ao imperialismo desde o início do século XX, há um itinerário de greves e lutas sociais que vão desde as greves patagônicas (também conhecidas como “Patagonia Trágica” ou “Patagonia Rebelde”, protagonizadas pelos anarcosindicalistas); a constituição do projeto peronista nos anos de 1940-1950; a radicalização da esquerda marxista com a estruturação das guerrilhas rurais e urbanas, já no ano de 1959, com a experiência dos Uturuncos (primeira guerrilha rural da Argentina inspirada na Revolução Cubana); até a implantação, já em meados de 1970, da ditadura de Terrorismo de Estado (TDE) — a solução final praticada pelo Estado, que, a fim de conter e reprimir os movimentos de massas que foram irradiados por todo o subcontinente, elaborou novas diretrizes. Segundo Enrique Padrós, 175 […] enquanto sistema estatal, o TDE implementou uma variada gama de mecanismos administrativos, propagandísticos, psicológicos e jurídicos que deram suporte às atividades, clandestinas ou não, das unidades específicas de inteligência, informação e controle, assim como de repressão física explícita (PADRÓS, 2006, p. 15). Desse modo, o TDE foi uma política extraoficial que se caracterizou pelo estabelecimento de uma relação social entre Estado e sujeitos mediada a partir do terror irradiado pelo Estado. No caso argentino, o TDE foi a marca fundamental da ditadura, na medida em que, com a atualização da subalternização imposta pela DSN, instituiu a prática de desaparição forçada, os sequestros e intimidações, a estruturação de Centros Clandestinos de Detenção (CCD’s) e a apropriação de filhos (crianças ou bebês) de detidos/desaparecidos. Ainda segundo Enrique Padrós, um dos elementos característicos do TDE é a implantação da “cultura do medo” Trata-se do cenário do silêncio, da desconfiança, da alienação, da autocensura e de um clima de temor permanente. A “cultura do medo” não deve ser confundida com a “pedagogia do medo”, entendida como a instrumentalização da aplicação das modalidades repressivas de impacto mais direto, a função “pedagógica” de ensinar e lembrar que, havendo transgressão das atitudes, comportamentos e limites permitidos, haverá duríssima punição. Neste sentido, o temor obtido funciona como fonte de obediência compulsiva ou, na menor das hipóteses, como desmobilização e paralisação militante ou de manifestações pública de descontentamento. A “pedagogia do medo”, organizada desde o aparato estatal e disseminada por todo o território nacional, impõe, através da violência — direta ou irradiada, institucional, cultural, psicológica —, o entorpecimento do raciocínio, o bloqueio da capacidade de compreensão e a acentuação do estresse, condicionamentos presentes no cenário da “cultura do medo” (PADRÓS, 2006, p. 18). A imposição do medo, portanto, é característica central das experiências do TDE e objetiva difundir atitudes de paralisia, desconfiança, resignação, silenciamento e indiferença da sociedade civil diante dos grandes problemas da realidade denunciados pela militância e pelo ativismo político. Pode-se dizer que se trata de 176 um elemento estruturador da Revolução Passiva, estudada por Gramsci. A combinação entre exploração econômica, repressão física, rigoroso controle dos espaços de atuação política e social e desinformação predominante intensifica a incerteza e a insegurança. A militarização das sociedades e a eliminação das oposições foram combinadas a um projeto ajustado pela Central Intelligence Agency (CIA). Sobre a economia dos anos de 1970, Ramirez avaliou que, Es bien conocido que el mundo entró en crisis en febrero de 1972, cuando el gobierno del presidente norteamericano Richard Nixon desvalorizó el dólar, quebrando así las reglas de juego establecidas en Breton Woods y más directamente los acuerdos de Ginebra de aquel año, que reglamentaban el precio internacional del petróleo. […] Las crisis como tales no son sucesos contingentes, manifiestan tensiones inherentes a principios organizativos de una formación social. En este caso era el fordismo, es decir, un tipo particular de acumulación capitalista que entraba en crisis al no poder hacer frente a la disminución creciente de la tasa de ganancias, la competencia entre las distintas fracciones de la burguesía internacional, industriales e financieras, y a una fuerte disputa entre los bloques de naciones, que inician su formación y comienzan a equilibrar el poder mundial y corroer la hegemonía norteamericana (RAMÍREZ, 2007, p. 169-170). Alguns documentos do Departamento de Estado estadunidense, hoje desclassificados, relacionam a atuação de funcionários do Estado à desestabilização de governos nacionais na região. Suas funções foram “desviadas”, tendo em vista certa atuação orgânica na elaboração, implementação e qualificação de ideologias golpistas (COMBLIN, 1983). Compromissos de cooperação entre quadros disciplinadores ativos na corporação militar estadunidense e latino-americana foram estabelecidos para qualificar, aparentemente, o desmantelamento das guerrilhas atuantes na região. Em um documento do ano de 1976, mais especificamente do mês de março, em que se pode observar a coordenação ativa entre brasileiros, argentinos e estadunidenses na contenção e consequente eliminação da oposição argentina, a intenção de “proteger” pode ser qualificada como seletiva. Conforme observamos: 177 The two major urban guerrilla organizations in Argentina are de the People’s Revolutionary Army (Marxis-Leninist — “ERP”) and the nominally “Peronist” Montoneros. The two groups are estimated to have approximately 2,500 combatants each, and they attract the active support of some 12,00 sympathizers. Both groups have demonstrated a high degree of coordination in the kidnapping of business executives and commando raids on small towns and military garrisons. Occasionally, they engage in actions with combined forces 3 (DEPARTMENT OF ESTATE USA, 1976). Com o acirramento da vigilância justificada pela atuação das guerrilhas no contexto argentino, buscou-se ampliar o plano de reestruturação das relações sociais com base na adoção de um novo padrão de acumulação de acordo com o capital financeiro. É certo que os Montoneros, por exemplo, protagonizaram diversas ações e atentados, assim como o Exército Revolucionário Popular (ERP). Porém, a título de reestruturação das relações sociais, o plano dos militares açambarcou o conjunto da sociedade. Embora a medida de intervenção golpista tenha sido justificada pelos militares e por boa parte da imprensa burguesa como uma medida de contenção da corrupção e da ameaça comunista, o que se viu na prática foi uma ditadura de Terrorismo de Estado que matou mais de 30 mil pessoas. Argentina, 1976 A despeito de o último golpe de Estado assumidamente civil-militar ter ocorrido em 24 de março de 1976, o histórico golpista da Argentina revela a tendência intervencionista da inteligentsia cívico-militar na dinâmica política. Podese afirmar que o século XX argentino é caracterizado pelo binômio avanço/retrocesso e/ou mobilização popular/golpe de Estado. Todos os seis golpes militares foram seguidos de repressão planificada, seletiva e retroativa, em uma espécie de revanche à mobilização, com consequente alijamento do elemento popular da 3 “As duas principais organizações de guerrilha urbana na Argentina são as do Exército Revolucionário Popular (marxista-leninista – “ERP”) e o nominalmente “Peronista” Montoneros. Os dois grupos estão estimados em cerca de 2.500 combatentes cada e atraem o apoio ativo de cerca de 12,000 simpatizantes. Ambos os grupos demonstraram um alto grau de coordenação no sequestro de empresários e incursões de comandos em pequenas cidades e guarnições militares. Ocasionalmente, eles se envolvem em ações com forças combinadas”. 178 política. A tendência dominante e histórica dos golpes foi alijar o exercício da política ou a possibilidade de Revolução social das classes subalternizadas. Para Pilar Calveiro, o golpe de 1976 foi uma medida retroativa, Quando os grupos economicamente dominantes do país perderam a capacidade de controlar o sistema político e de ganhar as eleições — o que se deu com o surgimento do radicalismo e se aprofundou com o peronismo —, as Forças Armadas, em especial o Exército, passaram a ser consideradas um meio para alcançar o governo, através das quarteladas. Assim, transformaram-se em receptáculo dos ensaios de diferentes frações do poder que buscavam recuperar certo consenso e, acima de tudo, manter seu domínio. (CALVEIRO, 2013, pp. 23-24) Ao todo, foram registrados seis golpes de Estado durante o século XX argentino, com a seguinte cronologia: 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e 1976. Entretanto, a história dos dois últimos, ocorridos em 1966 e 1976, revela a adesão da DSN como mola propulsora do binômio “desenvolvimento”/repressão, visto que possuía como horizonte o disciplinamento da classe trabalhadora, bem como a reestruturação da economia e do Estado e, de maneira mais ampla, da sociedade ou das relações entre as classes sociais. Para Pilar Calveiro, a novidade da ditadura de 1976, com a imposição do TDE, antes mesmo do golpe de Estado durante o período do terceiro governo peronista desde 1975, foi a institucionalização do desaparecimento (Calveiro, 2013). Esta tendência se acirrou com o golpe de 1976, pois, conforme revela a Comissão Nacional pelo Desaparecimento de Pessoas (Conadep) — tendo em vista o documento oficial da Junta Militar composta das três armas —, para o golpe e, consequentemente, para a ditadura terrorista, tratava-se de uma intervenção seletiva, pois, segundo a Comissão, a Operação Piloto, no âmbito industrial, foi substituída pelo Decreto Secreto nº 504/77, intitulado Continuação da Ofensiva Contra a Subversão. O Exército agirá seletivamente sobre os estabelecimentos industriais e empresas do Estado, em coordenação com os organismos estatais relacionados ao âmbito, para promover e neutralizar as situações conflitivas de origem trabalhista, provocadas ou que possam ser exploradas pela subversão, a fim de impedir a agitação e a ação 179 insurrecional de massas, e contribuir para o eficiente funcionamento do aparelho produtivo do País (CONADEP, 1993, p. 28). A seletividade mencionada possuía como horizonte certa revanche contra uma base social mobilizada por intensas transformações no mundo do trabalho. O sindicalismo argentino de base experimentou saltos qualitativos, proporcionados pela dinâmica da luta de classes que o manteve mobilizado e atuante, mesmo nos períodos de maior repressão. Essa dinâmica chegou a minar e a derrubar a ditadura imposta pelos setores conservadores da sociedade, em 1966, no episódio do Cordobazo, em 1969. Portanto, para enfrentar a ditadura terrorista de 1976, alguns setores do movimento operário se encontravam qualitativamente preparados para o confronto, mas quantitativamente desequilibrados. Os protagonistas desse movimento eram os militantes dos partidos de esquerda — principalmente do Partido Revolucionario del Pueblo (PRT), com seu braço armado do Ejercito Revolucionario del Pueblo (ERP) — , bem como do peronismo, com sua variante armada dos Montoneros. Porém, os militares e a direita argentina acionaram o arsenal golpista, amplamente superior e desproporcionalmente truculento, ainda durante o governo de Isabelita Perón. Segundo Ceferino Reato, “Los militares aprovecharan los últimos tres meses y medio del gobierno de Isabel Perón para elaborar las listas de personas que serían detenidas inmediatamente después del golpe de Estado” (Reato, 2012, p. 70). Ainda segundo Reato, estas listas foram elaboradas com o apoio de políticos e presidentes de empresas. Entretanto, ao afirmar que os setores dominantes não tinham ideia do que estava por vir, o autor redime a burguesia argentina com relação ao plano da ditadura. Por outro lado, o engodo ideológico irradiado por jornais e revistas durante o último período do governo de Isabelita Perón alardeava um clima de guerra psicológica para contribuir/coadunar com a atuação golpista. Segundo Novaro e Palermo (2007), a questão da informação ficou secundarizada para dar espaço à campanha pela intervenção militar. Os chamados aparelhos privados de hegemonia da burguesia argentina, notadamente o Grupo Clarín, La Nación e La Razón, três dos mais significativos jornais de circulação nacional, por exemplo, envolveram-se com 180 a repressão e desaparição do empresário Luis Gavier, acusado de ligações com a guerrilha após obter a quase totalidade da Papel Prensa, empresa distribuidora de papel jornal para os jornais argentinos de circulação diária. Gavier foi eliminado em um misterioso acidente de avião ocorrido no México e, logo em seguida, os três jornais em questão fizeram uma campanha difamando o empresário, tornando-se, assim, os maiores acionistas da Papel Prensa, ou seja, monopolizando a distribuição de matéria-prima necessária para o funcionamento da imprensa. Os setores patronais e o preparo do Golpe de 1976 A burguesia argentina usou, frequentemente, toda a força de mobilização de seus setores para estabelecer a hegemonia sobre os demais setores produtivos e não produtivos da Argentina, respectivamente, trabalhadores e pequena burguesia. A correlação de forças no país foi atravessada por repressão em todos os setores da vida social, sobretudo econômicos, como consequência do aporte da violência, usada para impor o plano de reestruturação neoliberal sobre todos os aspectos da luta de classes. A hegemonia não é apenas repressão, conforme revelam os estudos produzidos pelo comunista Antonio Gramsci. Pode-se dizer que, mesmo quando os mecanismos clássicos da hegemonia burguesa demonstram seus limites, os diversos grupos da vida nacional acionam certa mobilização preparada para a disputa no terreno social. Os setores patronais argentinos fizeram a leitura oportunista com relação ao governo peronista e produziram sua pauta tendo em vista o Estado como agente da reação. As patronais aderiram à pauta golpista, seguindo a tendência dominante e o modus operandi da extrema-direita com histórico de fascistização das instituições dominadas pela pequena burguesia. A fundação de entidades representantes dos interesses da alta burguesia adotou um significado distinto no contexto do golpe. Algumas foram acionadas no intuito de manter a aura idônea de outras entidades históricas. A Apege, por exemplo, foi uma dessas entidades responsáveis por organizar os lockouts que precederam o golpe, atuando de forma orgânica, ou seja, 181 produzindo e qualificando a unidade de ação da direita empresarial para o golpe. Com estrutura de ação fugaz e alinhada ao contexto explosivo que precedeu o golpe, a Apege foi particularmente necessária na guerra de movimento. Fundada pelos setores patronais em 1975, essa entidade reuniu boa parte da burguesia argentina e unificou a pauta hegemônica do bloco econômico da alta burguesia em torno de pontos fundamentais para a atuação política. Dentre as entidades que lhe aderiram, encontramos a Sociedade Rural Argentina (SRA), o Conselho Econômico Argentino (CEA), a Confederação de Associações Rurais de Buenos Aires (Carbap), Câmara da Construção e do Comércio, Câmara de Importadores e Exportadores e as Câmaras de Bancos da Argentina. A Apege foi um importante órgão unificador da pauta da grande burguesia argentina, servindo como bureau tanto para a organização da pauta política de pressão do setor empresarial quanto para o preparo do golpe. A pauta dessa entidade não pode ser resumida, ainda que, talvez, seu foco principal fosse a supressão de todos os atributos legais considerados entraves para a ampliação dos lucros das grandes empresas argentinas, no quadro mais geral de superexploração da força de trabalho ou do circuito ampliado da exploração capitalista. Tratava-se, enfim, de atuação na guerra de posição contra os fortíssimos sindicatos argentinos, antecipando a verdadeira rapina multinacional associada e a quebra de direitos trabalhistas típicos do contexto neoliberal. O presidente da CEA, Jose Alfredo Martínez de Hoz, era membro de família abastada e da oligarquia terrateniente argentina, sendo um autêntico representante histórico dos interesses da alta burguesia dependente e associada ao imperialismo. De certa forma, vinculava-se também à fundação da SRA, visto que seu bisavô, Jose Martínez de Hoz, foi membro fundador da entidade. As duas organizações, cujos líderes históricos eram os Martínez de Hoz, lançaram, no mês de setembro de 1975, um chamado à paralisação geral dos produtores agrários. Durante os eventos que envolveram tal paralisação, ficou clara a posição da Apege a favor do golpe. A paralisação abrangeu, principalmente, o setor ganadero — representado tanto pela SRA quanto pela Carbap. O ataque direto ao governo se ampliou em várias frentes de atuação, enquanto a produção industrial caiu 182 consideravelmente, em uma ação planificada do que mais tarde seria qualificado como “Terror Econômico”, o que obrigou o governo a tentar atrair as classes fundamentais do capitalismo argentino em direção a um acordo de grandes proporções. Isso indica uma tendência bonapartista ou cesarista regressiva que encontrou paralelo na atuação histórica do peronismo, pois os trabalhadores avançaram e produziram certo salto qualitativo desde os eventos que envolveram a luta callera durante o Cordobazo (1969), o que demonstrou, sobretudo, uma organização autônoma dos trabalhadores em relação ao peronismo proscrito à época. A pressão exercida pelos membros da Apege se acirrou em novembro de 1975, quando a entidade dirigiu a segunda paralisação do setor agropecuário argentino. A partir de então, a pauta interna da entidade determinava aos seus membros que parassem de pagar suas dívidas no exterior, o que acabou por amofinar as iniciativas governamentais de rearticular uma saída para a crise econômica dos anos de 1970. Em realidade, o peronismo nunca produziu uma solução autônoma. Toda a estrutura dependente sequer foi alterada durante os três primeiros governos peronistas, ou seja, o aparato ampliado do Estado argentino foi aparelhado pelos militares, tendo em vista as possibilidades construídas, reconstruídas ou reelaboradas pelo próprio peronismo. Por exemplo, o financiamento da Triple A — órgão paramilitar criado no intuito de caçar e exterminar a oposição — provinha do Ministério de Bem-Estar, sob as ordens de seu ministro, Lopez Rega, “El Brujo”. As ações da Triple A se acentuaram, ditando o tom dos anos de 1973 e representando a segunda fase do terceiro governo peronista. A Triple A seguiu a normativa encontrada, após o golpe, na ação das chamadas “patotas”, patrulhas militares à paisana que agiam no sequestro e desaparição forçada de militantes de oposição. A Aliança Aticomunista Argentina, a Três A, fundada pouco depois de iniciar-se o governo de Perón por seu ministro de Bem-estar Social, José Lopez Rega, e outros grupos de igual inspiração fascista, como o Comando Libertadores da América (formado e conduzido a partir do II 183 Corpo do Exército, com assento em Córdoba, foi ele que criou, em 1975, o primeiro centro clandestino de detenção nessa unidade), colaborou ativamente na escalada de violência que se viveu desde 1973, e com maior intensidade ao longo de 1975; e também, em grande medida, na desarticulação e desmobilização das expressões políticas e sindicais da esquerda. Em dois anos e meio, entre fins de 1973 e princípios de 1976, esses grupos paramilitares perpetraram não menos de novecentos assassinatos (alguns estudos elevam essa cifra a mais do dobro, porém sem muitos fundamentos) (NOVARO & PALERMO, 2007, p. 104). Noutros termos, a Triple A foi uma estrutura clandestina que, pautando-se pela linha da ultradireita argentina, atuou no plano nacional com a incumbência de exterminar fisicamente não só pessoas suspeitas de militar em movimentos de esquerda, mas também aquelas que representassem ameaça. Dentre as ações de repressão perpetradas pela Triple A, destaca-se o saldo de aproximadamente mil mortes oficializadas entre os anos de 1973 e 1976, ou seja, durante o triênio do terceiro governo peronista. Concomitante à atuação das milícias terroristas da Triple A, o governo peronista, a fim de conter o descontentamento dos setores patronais, tomou algumas medidas de desvalorização da moeda argentina, o que permitiu certo salto qualitativo no processo de acumulação capitalista via setor agroexportador. Tais medidas naufragaram no episódio conhecido como “Rodrigazo”, uma referência a Celestino Rodrigo, ministro da Economia do terceiro governo peronista. Foi então que, sob a liderança da entidade patronal Apege, alguns dos principais setores agrários ligados ao ramo da exportação produziram um episódio que encontra paralelo no lockout chileno, cujo intuito foi desabastecer o Chile e derrubar o socialista Salvador Allende. Na Argentina, porém, o episódio ocorreu, segundo Muleiro, da seguinte forma, La patronal campera se había anticipado con cinco paros nacionales en 1975, el primero el de 3 de marzo, convocado por la Sociedad Rural Argentina, Confederaciones Rural Argentina y Coninagro, ya al que, luego de algunas desavenencias se sumó la Federación Agraria Argentina […] La confluencia patronal ampliada — La APEGE — se presentó en público con el pronunciamiento de agosto de 1975. Allí decía que “la Nación está atravesando una de las más graves crisis de 184 la historia” y condenaba “la inflación, desenfrenada, desabastecimiento, virtual cesación de pagos en el sector externo, quiebra empresaria, desocupación, paralización de la inversión y, sobre todo, una gangrena corruptiva que invade todas las expresiones de la relación social argentina” ante lo cual se imponían “soluciones genuinas, fundadas en normas de conducta económica que tiene universal e invariable validez”. Pero ello se constituía la APEGE “regida por los principios de la libertad de asociación, la defesa de la iniciativa privada y la dignidad de lo ser humano” (MULLEIRO, 2012, p. 128-129). A paralisação do setor agrário argentino foi o prelúdio de uma paralisação maior comandada pela Apege, em fevereiro de 1976. Esta paralisação, que reuniu 90% da burguesia argentina, representou um sinal evidente da retirada do apoio ao governo de Isabelita. Ademais, os envolvidos ocupavam um espaço de pressão deixado pela Confederación General Económica (CGE), que deixou de se constituir em uma entidade de representação empresarial. De sua parte, as classes altas, a grande burguesia financeira, industrial e latifundiária, embora se encontrasse na defensiva no cenário de 1973, tiveram margem de manobra mais do que suficiente para transgredir — por exemplo, por meio de um jogo inflacionário cujas regras não escritas conheciam melhor do que ninguém — todas as tentativas de organização econômica — em si mesmas pouco viáveis — que afetassem em alguma medida seus interesses. E desde meados de 1975 (por meio da inflamada e livre cambista Assembléia Permanente de Entidades Sindicais Empresariais — APEGE) já trabalhavam decididamente na ofensiva golpista, exacerbando o quadro de ineficácia e paralisia governamental (NOVARO & PALERMO, 2007, p. 29). A partir de então, estava concluída uma etapa que fundamentou as bases para o golpe de 1976. A despeito da avaliação conservadora de Novaro e Palermo, o bloco de poder que apoiou o terceiro governo peronista, na verdade, entrou em decadência, acompanhado de perto pelo fenecimento da legalidade na luta contra a violência da ultradireita, enquanto as entidades sindicais combativas, em vias de decapitação e/ou desmantelamento das principais lideranças que foram caçadas ou 185 exterminadas e, em alguns casos, eliminadas, travaram uma luta sem tréguas em busca da defesa de seus interesses corporativos, No último lance deste périplo, evaporar-se-ia, finalmente, de forma quase completa, a capacidade do governo e a garantia estatal da ordem. Os grupos armados, integrados pelos militares, as forças policiais, as organizações guerrilheiras, as cúpulas sindicais, empresários e setores políticos de extrema-direita, multiplicaram o medo e a desordem. A isso se somaram a deserção das figuras mais expressivas do governo peronista — à fuga de Lopez Rega, se seguiu o “estou fora” (“me borre”) de Casildo Herreras, secretário-geral da CGT, que se refugiou em Montevidéu — e o desânimo de uma classe política que admitia já não ter soluções (como expressou Balbín), enquanto os sindicatos se encerravam mais e mais em extenuantes tentativas de proteger seus interesses imediatos (NOVARO & PALERMO, 2007, p. 29). As principais lideranças do sindicalismo verticalista seguiram o mesmo caminho: “Encurralada pela violência e o desvario governamental, a vida pública afundou num marasmo do qual os atores sociais optaram por escapar, à espera de que passasse o temporal” (Novaro & Palermo, 2007, p. 39). O equilíbrio relativo de forças foi se afirmando com a participação/intervenção militar nos assuntos políticos, o que se tornou uma variável constante desde 1930. Avaliamos a discussão de Novaro e Palermo sobretudo em virtude dos fatos narrados, pois a interpretação dos autores sobre os mecanismos do Estado para conter, de forma insuficiente, os ataques da ultradireita paramilitar parece desconstruir a ação dos sujeitos em torno da resistência ao projeto. Contra tais argumentos, pode-se questionar, por exemplo, o grau de envolvimento do próprio peronismo nas ações de Terrorismo de Estado ou, ampliando a análise da relação histórica estabelecida por estes setores com o Estado, questionar sobre a possibilidade realmente existente de o peronismo ter freado o aparelhamento que ele mesmo criou. A partir de 1943, com a ascensão meteórica de Perón, que soube articular a seu favor a conjuntura política do pós-guerra, o peronismo se transformou na expressão política que preponderou sobre as demais e até mesmo secundarizou tendências revolucionárias. Neste sentido, a partir de 1955, a política, para os setores 186 peronistas, se transformou em exclusão pela ameaça constante que a organização do movimento peronista representou aos setores da classe dirigente conservadora na Argentina. O golpe de 1976, portanto, estabeleceu a chamada Disposición Final (Reato, 2012). Tratava-se da planificação do terror com a imposição das torturas e desaparição, método organizado pela corporação militar que já estava presente antes do golpe, conforme mencionado anteriormente, no caso das listas de eliminação tecidas pelos militares em conluio com as lideranças políticas e empresariais. Os setores conservadores da sociedade argentina — que, em sua grande maioria, encontravam apoio no setor recalcitrante da Igreja Católica abalada pelas interpelações dos setores progressistas da instituição — conduziram a Argentina ao golpe, que surgiu de um processo repressivo sistematicamente planejado e conduzido pelos setores civis e militares. O Terrorismo de Estado já fazia parte da cena política argentina mesmo antes do golpe. O golpe de 1976 foi a conclusão e ampliação do aparato conservador, demarcando a conquista do Estado. Martínez de Hoz, nesse contexto, foi nomeado ministro da Economia, representando uma das principais figuras de sistematização do golpe. A partir dos eventos que antecederam o golpe de 1976, ficou claro que o ataque à oposição revolucionária, a exclusão política do peronismo conjugada à mobilização dos setores patronais — com a adesão das teses implícitas na DSN por parte do militarismo argentino apoiado pela mobilização dos setores conservadores — e a atuação das milícias de extermínio paramilitares ganharam contornos repressivos e terroristas: “Gestou-se, desse modo, uma sensação angustiante que combinava o terror ante a repressão, a atribuição de culpas pelas frustrações e ‘enganos’ sofridos, e também a autoacusação mais ou menos indiscriminada de uma sociedade descarrilada” (NOVARO & PALERMO, 2007, p. 39). Ao tomar o poder, os militares colocaram em marcha um plano de reestruturação geral do Estado e da vida social. Os principais traços da intervenção militar de 1976 são destacados pelo historiador conservador Luis Romero: “Os comandos militares concentraram toda a ação em suas mãos, e os diversos grupos 187 parapoliciais que tinham operado nos anos anteriores se dissolveram ou se subordinaram a eles” (Romero, 2006, p. 197). Os grupos parapoliciais mencionados eram os que possuíam ligação com a extrema-direita do peronismo, como a Triple A. É conhecida a frase do general de divisão do exército argentino, Santiago Omar Riveros, perante a Junta Interamericana de Defesa: “Fizemos a guerra com a doutrina na mão” (CONADEP, 1993, p. 2), para justificar a ideia de uma guerra interna na Argentina. Com ela, os militares de alta patente, a partir dos julgamentos que buscavam acertar contas com o passado repressivo do país, tentaram fugir da responsabilidade pelos acontecimentos no contexto da ditadura. Romero assinala a responsabilidade dos militares de alta patente e de baixa patente pela dimensão repressiva bancada a partir do Estado, As ordens desciam pela cadeia de comando até chegar aos encarregados da execução, as Forças-Tarefas — formadas principalmente por jovens oficiais e alguns suboficiais, policiais e civis —, que também tinham uma organização específica. A execução também exigiu um complexo aparato administrativo, pois devia acompanhar o movimento — entradas, translados e saídas — de um número muito grande de pessoas. Cada preso, desde o momento em que era considerado suspeito, era registrado em uma ficha e em um prontuário. Em seguida, era feito um acompanhamento e uma avaliação de sua situação, e tomava-se uma decisão final que sempre provinha do mais alto nível militar. A repressão foi, em suma, uma ação sistemática realizada pelo Estado (ROMERO, 2006, p. 197). A estrutura burocrática criada pelo processo consistia na ideia básica de que a difusão de informações sobre as investidas militares acerca do Terrorismo e sobre as operações destinadas à prisão e tortura dos envolvidos com a oposição comprometeria o maior número de responsáveis devido, dentre outros aspectos, à pulverização da ação repressiva sistematizada em diversos órgãos e instâncias do Estado. Porém, a historicidade da repressão durante a ditadura e o desdobramento posterior dos julgamentos e punição aos responsáveis pelos crimes de lesahumanidade revelaram uma dimensão mais ampla do que o jogo restrito da cadeia de comando verticalizada da corporação militar. 188 Além disso, a referência a uma determinada pessoa que se encontrava detida devia ser apagada como forma de assegurar impunidade aos envolvidos na detenção, o que garantiria o sucesso do trabalho em longo prazo. O principal ponto de atuação dos Grupos de Tarefas consistia na execução de planos, pois “Tratou-se de uma ação terrorista, dividida em quatro momentos principais: sequestro, tortura, prisão e execução” (ROMERO, 2006, p. 197). As tarefas que compunham esses pontos fundamentais dos operativos realizavam-se, usualmente, no período noturno, envolvendo uma grande mobilização de contingentes como garantia de sucesso da investida contra o alvo escolhido. A partir de 1976, houve, nas relações entre o patronato argentino e os trabalhadores organizados em classe, o estabelecimento de novos parâmetros, marcados pela ativação da política do Terrorismo de Estado. Os dois lados deviam ceder para a passagem adiante do projeto civil-militar da ditadura terrorista, com características intrínsecas aos questionamentos levantados durante a conjuntura de crise gestada durante os anos que compreendem a segunda metade da década de 1970. Noutros termos, a crise econômica foi usada como mecanismo de convencimento para a chamada Disposição Final. Esta hipótese de trabalho nivela a responsabilidade do patronato argentino com seus parceiros econômicos multinacionais. O Estado, enquanto instituição, na visão dos golpistas, dentre eles, destacamos, o ministro da Economia da ditadura, Martínez de Hoz, devia “pairar acima dos conflitos” e negá-los, ainda que estes não deixem, em hipótese alguma, de existir. Tal assertiva foi utilizada em benefício de um projeto de recuperação de capital, mesmo que isso não fosse revelado por seus ideólogos. A leitura em perspectiva histórica do processo revela a amplitude dos mecanismos de terror experimentados no próprio parque produtivo das multinacionais que atuavam na Argentina em sintonia com os interesses multinacionais. O plano de Martínez de Hoz, a desnacionalização das indústrias e/ou desmonte do Estado, possuía como prerrogativa básica a extinção de toda resistência operária ao plano da direita livre-cambista, nos termos de Novaro e Palermo, ou, em termos marxistas, a direita neo ou ultraliberal. Para conseguir tal 189 êxito, o controle sobre os trabalhadores nas fábricas se estendeu de modo sistemático para fora delas. A extinção dos postos de trabalhos, que era parte do projeto de desindustrialização, certamente mobilizou parcela significativa dos sindicatos que optaram por não estabelecer nenhum tipo de acordo frente ao panorama que se instaurou. Sobre o saldo deste embate, é importante apresentar os números recolhidos pela Conadep em relação aos trabalhadores mortos durante a ditadura terrorista de 1976, “30,2% dos detidos desaparecidos denunciados à Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas são operários, e 17,9%, empregados (dos 21% que representavam os estudantes, um em cada três, trabalhava)” (CONADEP, 1993, p. 280). A planificação da repressão voltada para o disciplinamento dos trabalhadores, como consequência da adesão ao projeto da ditadura por parte dos setores patronais, foi responsável pelo aparelhamento da repressão nos locais de trabalho e nas vilas operárias. Nas plantas industriais da Mercedes Benz e da Ford Motors, por exemplo, houve ampla atuação da repressão com o saldo de centenas de desaparecidos. A motivação da desaparição assemelhou-se ao castigo exemplar. Tratava-se de eliminar os focos de tensão entre empresas e trabalhadores; portanto, em sua grande maioria, os desaparecidos foram escolhidos em virtude do trabalho que realizavam no sindicalismo. Entretanto, cabe destacar que a forma de atuação de tais operativos foi possibilitada pela apropriação da doutrina contrainsurgente subsumida pelo Exército argentino durante o golpe de março de 1976. O ministro do Trabalho, general Horácio Thomas Liendo, em uma entrevista veiculada pelo jornal La Nación, no dia 12 de novembro de 1977, afirmou que com “respeito à subversão no âmbito fabril, sabemos que ela tenta desenvolver uma intensa e ativa campanha de terrorismo e intimidação a nível do setor trabalhista” (CONADEP, 1993, p. 281). O protagonismo da repressão ao setor fabril, no âmbito do sucesso do processo de “redenção”/refundação da sociedade argentina, foi fundamental para os interesses do setor agroexportador e multinacional associado. Não menos explicativo, ao continuar sua explanação acerca da Doutrina por Liendo, no que 190 concerne aos interstícios do ativismo sindical nas fábricas, o general diz que “É necessário conhecer o modo de agir da subversão fabril, para combatê-la e destruíla” (CONADEP, 1993, p. 281). Neste ponto, a confluência de ações relacionadas ao Terrorismo de Estado manifestou-se em seu discurso da seguinte forma: Isto se manifesta por alguns dos procedimentos seguintes: o doutrinamento individual e de grupo, para a conquista das classes operárias, colocando-se à cabeça de falsas reivindicações desse setor; a criação de conflitos artificiais para conseguir o confronto com dirigentes empresários e o desprestígio dos autênticos dirigentes operários (CONADEP, 1993, p. 281). Se havia uma conduta tática estabelecida para decapitar o movimento operário em seu nascedouro, havia, por outro lado, objetivos pedagógicos tangíveis a tais ações que se relacionavam com a panorâmica difusão do Terrorismo de Estado enquanto política sistematizada em mecanismos específicos, com um fim imediato, contínuo e de longo prazo. Como indicou o general Liendo, referindo-se ao objetivo das ações de “doutrinamento” e “eliminação” dos quadros dirigentes do movimento sindical: “Frente a isso, o governo e as Forças Armadas comprometeram seus meios e seu máximo esforço, para garantir a liberdade de trabalho, a segurança familiar e individual de empresários e trabalhadores e o aniquilamento desse inimigo de todos” (CONADEP, 1993, p. 281). Desta forma, buscou-se difundir um projeto que, nos dizeres do general, aparecia conjugado ao interesse do “bem-estar coletivo”. Como se as ações de extermínio, de fato, atendessem ao conjunto mais geral da sociedade, continua o general Liendo: Mas cabe a reflexão de aqueles que se distanciam do desenvolvimento do “Processo”, procurando o benefício individual ou do setor, convertem-se em cúmplices dessa subversão que devemos destruir, do mesmo modo de que aqueles que não se atrevam a assumir a responsabilidade que esta situação impõe (CONADEP, 1993, p. 281). 191 Com isso, procurou-se estabelecer uma dimensão ampliada da vigilância castrense, que contou com a adesão do setor executivo-empresarial, em uma espécie de aliança Terrorista, cujo objetivo final era a pátria redimida e a implantação da pátria financeira. Por isso, a massiva ação de terror direcionada aos setores sociais da produção tinha objetivos de longo alcance: mais do que estabelecer a vitória da ditadura terrorista, tratava-se da eliminação de toda uma geração de militantes comprometidos com a revolução. Considerações finais A ditadura reacionária e terrorista na Argentina, a partir de 1976, possui especificidades sem paralelo com a história dos projetos de crise e de recuperação do capital em termos mundiais. Embora articulada ao projeto capitalista dos anos de 1970, o plano da ditadura foi terrorista. Seus efeitos foram retroativos, no que se refere ao estabelecimento de uma indústria nacional na periferia, e de longo prazo, com relação à lúpem-proletarização e privatização. Os casos ainda sem veredicto efetivo ou manifestação judicial sobre a repressão nas fábricas argentinas, cujos casos paradigmáticos abrangem empresas multinacionais como Acindar, Astarsa, Dálmine Siderca, Ford, Ledesma e Mercedes Benz, denotam ampla possibilidade de intervenção no tempo presente das organizações da sociedade civil. Trata-se de um processo inconcluso que foi retomado recentemente por diversas publicações. São casos que revelam a especificidade do projeto imposto com o golpe de 1976. No intuito de superar a “teoria dos dois demônios” — descrita por Reato (2012, p. 20) como “hubo dos terrorismos, uno de izquierda (las guerrillas) y otro de derecha (el Estado), que creían que la violencia era un recurso legítimo para alcanzar objetivos políticos de poder” —, que justificou e equiparou o golpe e a atuação da ditadura à luta das organizações de esquerda, contrárias à imposição do projeto neoliberal, é necessário, por um lado, buscar na trajetória dos militantes dos anos de 1970 um contraponto ao projeto ditatorial. Por outro lado, pela especificidade de atuação/repressão neoliberal no contexto latino-americano, torna-se mais do que necessário, além de trajetórias, recuperar projetos que foram derrotados, não como forma de balanço histórico, mas como necessidade de enfrentamento ao capital. 192 Fontes DEPARTAMENT OF STATE. Sumary of Argentine Law and Pratice of Terrorism. USA, 1976. Disponível em: <https://issuu.com>. Acesso em: 20.8.2015. 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Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 193 Reflexões sobre a teologia do livre mercado: democracia e livre mercado segundo o Instituto Ludwig von Mises Brasil Raphael Almeida Dal Pai1 O Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB) surge2 em meio a um período de intensos questionamentos sobre a forma de organização e reprodução metabólica do capital, desencadeados pela crise financeira de 2008. Neste sentido, observouse, nos EUA e na Europa, uma série de manifestações, cujos temas foram: os efeitos da crise sobre a população (demissões e ordens de despejos nos EUA); as medidas impostas para atenuar a crise (a exemplo do pacote de medidas de austeridade, o Troika, aprovado na Grécia e possuindo grande repercussão na mídia mundial); e as lutas contra os regimes ditatoriais no Oriente Médio, conhecidas como “Primavera Árabe”. Na América, tendo os EUA como epicentro da crise financeira, presenciamos a erupção de uma série de manifestações, nas quais os cidadãos da maior potência econômica e militar do globo lutavam para tomar o controle de seus destinos, dos bancos e centros financeiros; tirar de Wall Street e devolver a Main Street, ou melhor, ocupar Wall Street. 1 Mestrando em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná e professor da Secretaria de Estado da Educação do Paraná. 2 A data exata de surgimento é um tanto confusa, mas é seguro definir como entre final do ano de 2007 e início de 2008. 194 No Brasil, manifestações contra o aumento da tarifa do transporte público se espalharam por todo o país, passando a ser conhecidas como Jornadas de Junho de 2013. Obviamente que reduzir as jornadas a uma questão de aumento sobre uma tarifa é tirar-lhes toda a riqueza de questões. O cerne da questão articulada pelo Movimento Passe Livre sugere o próprio acesso e direito à cidade, ou seja, democratizar o uso da cidade àqueles que não podem usufruir dos espaços que ajudaram a construir. Essas manifestações ocorrem, de fato, em resposta a um processo relativamente recente de implementação de um projeto econômico neoliberal. Apesar de as motivações serem diversas, assim como os resultados e desdobramentos, as questões impostas por tais manifestações permeiam a reivindicação de direitos que foram sistematicamente retirados ao longo dos anos. Ademais, a efetivação das mudanças solicitadas altera conceitos de forma que estes estejam não apenas em consonância, mas também reforcem o projeto desejado. A esse respeito, é preciso adotar uma forma de convencimento que transforme — ou pelo menos transvista — interesses específicos de classe em interesses gerais. Sob este enfoque, merecem reflexão tanto as articulações e os esquemas dos teóricos visando tornar liberdade sinônimo de livre mercado, como suas concepções sobre democracia. Apesar de não parecer, à primeira vista, estes conceitos se encontram interligados, já que têm o mesmo propósito: apresentar o livre mercado como a melhor alternativa — muitas vezes a única — para o pleno desenvolvimento da humanidade. Diante disso, num primeiro momento, esse texto propõe discutir — a partir de escritos dos economistas Milton Friedman, Ludwig von Mises e artigos selecionados do IMB — como esses teóricos construíram — e, no caso do Instituto, ainda constroem — suas argumentações sobre democracia e livre mercado; em seguida, as formas de apropriação do IMB, que, partindo da teoria “libertária” alicerçada nos escritos da chamada Escola Austríaca de Economia (EAE), procura instrumentalizar a direita no Brasil, dando “nova roupagem” a velhas teorias. O uso dos escritos de Friedman procura relacionar as argumentações do IMB no esforço de destacar diferenças e semelhanças entre a perspectiva 195 anarcocapitalista e a tradição neoliberal. Ao tratar sobre democracia, Friedman e o IMB partilham de concepção semelhante, evidenciando que, de acordo com Ellen Wood, limitar o conceito de democracia ao processo de desvalorização da cidadania já era uma preocupação desde o surgimento do conceito moderno de democracia (WOOD, 2011, p. 185). O presidente e fundador do IMB, Hélio Beltrão,3 é sócio-herdeiro do Grupo Ultra e afiliado ao Mises Institute localizado na cidade de Auburn, EUA. De acordo com breve biografia contida no site do Instituto Millenium (IMIL), Beltrão é graduado em finanças com MBA pela Universidade de Columbia; trabalhou como executivo do Banco Garantia, da Mídia Investimentos e da Sextante Investimentos; foi fundador e membro do conselho consultivo do IMIL; integrou o conselho administrativo do Grupo Ultra, da Le Lis Blanc e da Artesia Investimentos, além do conselho consultivo da Ediouro Publicações e da Lab SSJ (IMIL, on-line).4 O IMB se identifica como “uma associação voltada à produção e à disseminação de estudos econômicos e de ciências sociais que promovam os princípios de livre mercado e de uma sociedade livre”, tendo como objetivos: 1) promover a teoria da EAE; 2) restaurar a importância da teoria em detrimento do conhecimento empírico; 3) “defender a economia de mercado, a propriedade privada, e a paz nas relações interpessoais, e opor-se às intervenções estatais nos mercados e na sociedade” (IMB, on-line).5 No intuito de alcançar tais objetivos, o IMB realiza diversas ações, destacando-se: divulgação nas redes sociais de livros e escritos de intelectuais “libertários”; promoção de palestras e cursos em regime de Educação à Distância (EAD); publicação semestral da Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia (o último exemplar foi publicado em 2013);6 venda de livros impressos publicados pelo IMB; e promoção da Conferência de Escola Austríaca, cuja 4ª edição 3 Filho do ex-ministro da ditadura civil-militar brasileira, também chamado Hélio Beltrão. 4 Disponível em: <http://www.institutomillenium.org.br>. Acesso em: 3.4.2016. 5 Disponível em: <http://mises.org.br>. Acesso em: 3.4.2016. 6 Cf. <http://www.mises.org.br/Product.aspx?product=74>. 196 foi realizada em 2014, na sede da Federação do Comércio de Bens e Serviços do Estado de São Paulo (Fecomercio), na cidade de São Paulo (idem, ibidem). Em agosto de 2015, a fim de divulgar novidades e mudanças no instituto, o IMB promoveu o evento “Premiére Mises Brasil”, realizado no Teatro da Fecomercio, em São Paulo. Uma dessas novidades foi a criação do curso de pós-graduação em Escola Austríaca, realizado nas dependências do Centro Universitário Ítalo Brasileiro (Uniítalo), em São Paulo, e a oferta do Mises Summer School, curso que durou quatro dias, quando os candidatos puderam ficar alojados na pousada onde o evento ocorreu (IBM, on-line).7 Os intelectuais do IMB, assim como os demais intelectuais que reivindicam os pressupostos da EAE, intitulam-se “libertários” porque defendem o fim do Estado, entendendo o livre mercado como regulador e única entidade apta a resolver os conflitos da vida em sociedade. Autoproclamam-se, neste sentido, defensores do anarcocapitalismo. Pensamento de Friedman sobre livre mercado e democracia Ao propor a discussão sobre liberdade econômica e liberdade política, Milton Friedman (1984, p. 17) estabelece que o campo econômico e o político estão intimamente relacionados, assinalando que separar os dois é “puramente ilusório, que existe uma relação íntima entre economia e política, que somente determinadas combinações de organizações econômicas e políticas são possíveis”. Friedman acrescenta que “uma sociedade socialista não pode também ser democrática, no sentido de garantir a liberdade individual”. O economista estadunidense ainda afirma que liberdade econômica é precondição para a liberdade política, pois: [...] a organização econômica é importante devido ao seu efeito na concentração ou dispersão do poder. O tipo de organização econômica que promove diretamente a liberdade econômica, isto é, o capitalismo competitivo, também promove a liberdade política porque separa o poder econômico do poder político e, desse modo, permite que um controle o outro (FRIEDMAN, 1984, p. 18). 7 Disponível em: <http://mises.org.br>. Acesso em 3.4.2016. 197 Tendo em vista esses apontamentos de Friedman, nota-se um dissenso. O economista articula sua argumentação demonstrando que a única ligação entre os planos político e econômico deve ser concebida a partir da subordinação do primeiro ao segundo. Além de contradizer sua afirmação de que existe uma relação íntima entre os dois campos, Friedman ainda estabelece uma inter-relação hierarquizada entre eles. O autor, por outro lado, afirma que “a relação entre liberdade política e econômica [é] complexa e de modo algum unilateral”, dizendo que, no início do século XIX, alguns intelectuais acreditavam que, caso o direito ao voto se estendesse a mais pessoas, estas votariam propostas ampliando o laissez-faire. Entretanto, esse pensamento liberal “No século XIX na Inglaterra foi seguido por uma reação que levou a uma crescente intervenção do governo nos assuntos econômicos. [...] O bem-estar, em vez da liberdade, tornou-se a nota dominante nos países democráticos” (FRIEDMAN, 1984, pp. 19-20). Pode-se perceber duas críticas muito sutis na explanação de Friedman. Primeiramente, ao estabelecer uma oposição entre bem-estar e liberdade, ele procura sugerir que o bem-estar é contrário à liberdade (leia-se liberdade econômica). Ora, se para o economista estadunidense, a plena liberdade tem como precondição a não intervenção do Estado na economia, chega-se à conclusão de que livre mercado e liberdade plena são sinônimos. Para que a lógica fosse minimamente o contrário de uma relação unilateral, como pontua Friedman anteriormente, não deveria haver uma relação de subordinação. No que tange à segunda sutileza, o economista estadunidense acaba afirmando que um Estado democrático não leva necessariamente ao estabelecimento de um regime econômico de livre mercado. Retomaremos a questão sobre livre mercado e democracia mais adiante. No momento, a questão é compreender como a teoria da Economia liberal transformou liberdade plena e liberdade econômica em sinônimos. De certa forma, compreender o livre mercado enquanto sinônimo de liberdade plena perpassa o próprio entendimento do Estado como uma instituição não natural criada para conter a natureza humana caracterizada pelo “todos contra todos”. Neste sentido, como bem assinalado por Virgínia Fontes (2010), o Estado, de acordo com a teoria contratualista, surge a partir de um pacto para conter a natureza 198 violenta da humanidade. Segundo ela, “[...] esse pacto derivado do sofrimento da natureza humana é não natural ou, mais propriamente, antinatural. Ele é um acordo entre os homens contra a natureza humana. A vida social seria, portanto, algo de antinatural”. Isso posto, ao compreender a humanidade como essencialmente má, este contrato firmado pela humanidade “[...] reuniria em si próprio o pior da natureza humana, sendo, por isso mesmo, um permanente monstro a espreitar cada um, mas um monstro necessário, capaz de conter, por sua natureza monstruosa, as pequenas monstruosidades que habitam em cada um (FONTES, 2010, pp. 124-125). Friedman (1984, p. 19), da mesma forma, parte de um entendimento contratualista da natureza humana ao afirmar que “o estado típico da humanidade é a tirania, a servidão e a miséria. O século XIX e o início do século XX no mundo ocidental aparecem como exceções notáveis da linha geral do desenvolvimento histórico”. Para o neoliberal estadunidense, o Estado precisa ser contido pelo livre mercado, embora em suas formulações não fique claro se ele parte do entendimento de livre mercado e propriedade privada como naturais e inerentes à humanidade. De qualquer forma, Friedman assinala que o livre mercado proporciona à civilização um molde “harmonioso” e “ordeiro”: A evidência histórica fala de modo unânime da relação existente entre liberdade política e mercado livre. Não conheço nenhum exemplo de uma sociedade que apresentasse grande liberdade política e que também não tivesse usado algo comparável com um mercado livre para organizar a maior parte da atividade econômica (FRIEDMAN, 1984, p. 19). Ao dispor do crivo da comprovação histórica (apesar de não apresentar nenhuma evidência concreta), Friedman pretende dar um tom de verdade e naturalidade às suas suposições, usando a história como o grande juiz que determina a veracidade de suas afirmações. Apesar de indicar um certo andamento natural na relação entre liberdade econômica e política, ele não demonstra claramente sua compreensão de livre mercado como parte da condição humana. Ainda assim, é possível perceber em seus posicionamentos a ideia de que, como o Estado não é 199 algo natural, deve ficar fora das relações entre os indivíduos, ocupando a função de juiz: A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente, a necessidade de um governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das “regras do jogo” e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos — e, por isso, minimizar a extensão em o que o governo tem que participar diretamente do jogo (FRIEDMAN, 1984, p. 23). Como um “árbitro”, a função do Estado seria apenas garantir o andamento normal do “jogo”, interferindo o mínimo possível em seu resultado. Este “jogo”, obviamente, seria o livre mercado, e o Estado, estando fora deste certame, asseguraria apenas que as leis do livre mercado fossem cumpridas e mantidas enquanto os indivíduos estabelecessem relações entre si. Noutros termos, justamente por ser criado para conter a natureza humana, o Estado não pode ser compreendido como parte dela, agindo como o “observador de fora”. Portanto, apesar de não colocar de forma clara o livre mercado como algo inerente à condição humana, pode-se perceber, a partir da própria lógica argumentativa de Friedman, que ele parte deste entendimento. Desse modo, para a teoria liberal, o capitalismo sempre existiu como parte da essência humana. Sob este enfoque e de acordo com Friedman, o Estado é um “observador de fora” ou — tendo em vista as considerações sobre a concepção de Estado segundo a tradição liberal apresentada por Fontes (2010) — uma entidade que restringe a natureza humana. Ao exclamar “a propensão a intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra” como algo inerente à condição humana, Adam Smith (1996, p. 73), considerado o pai da economia moderna, nega a historicidade do processo histórico de surgimento do capitalismo, maquiando que, apenas sob condições específicas de produção e reprodução humana, “intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra” fazem parte do que veio a ser conhecido como capitalismo. Em síntese, a transformação racional e consciente da natureza é essencial para a condição humana. Porém, apenas sob condições históricas específicas (extração de mais valor, trabalho assalariado, divisão da sociedade em classes, etc.) é que 200 “intercambiar, permutar ou trocar uma coisa pela outra” se tornam práticas capitalistas. Voltemos, então, para a questão sobre a relação entre livre mercado e democracia. Se o Estado é pensado como algo artificial e externo à natureza humana, suas formas de ação e intervenção também não podem ser naturais. Diante desta lógica, Friedman insere, de forma pontual e sutil, sua crítica à democracia: O aspecto característico da ação política é o de exigir ou forçar uma conformidade substancial. A grande vantagem do mercado, de outro lado, é a de permitir uma grande diversidade, significando, em termos políticos, um sistema de representação proporcional. Cada homem pode votar pela cor da gravata que deseja e a obtém; ele não precisa ver que cor a maioria deseja e então, se fizer parte da minoria, submeterse (1984, p. 23). Para Friedman, o mercado pode oferecer uma saída para as questões políticas sem forçar o que é interpretado por Tocqueville (1987) como “tirania da maioria”, de forma impessoal e imparcial. Sendo assim, o economista entende que “o papel do mercado [...] é o de permitir unanimidade sem conformidade e ser um sistema de efetiva representação proporcional”. Ao contrário do que seria “o aspecto característico da ação através de canais explicitamente políticos, que é o de tender a exigir ou reforçar uma conformidade substancial” (FRIEDMAN, 1984, p. 29). A democracia, neste sentido, não conseguiria suprir plenamente os anseios do indivíduo em detrimento do livre mercado, que, além de diversificar o campo de possibilidades, consegue prover exatamente o que os indivíduos esperam. O economista acrescenta ainda que devido ao “fato de o produto final ter que ser em geral uma lei aplicável a todos os grupos, em vez de atos legislativos separados para cada ‘parte’ representada [chega-se à conclusão de] que a representação proporcional em sua versão política não só impede unanimidade sem conformidade como também tende à fragmentação e à ineficiência” (idem, ibidem). Logo, não surpreende que a própria noção de democracia seja muitas vezes compreendida apenas como uma medida de tomada de decisões por maioria simples, considerando que a única forma de igualdade “é a igualdade mercantil, que repousa sobre a exploração cínica e brutal, sobre a desigualdade fundamental da 201 relação entre o ‘prestador’ do serviço trabalho e o ‘cliente’ que compra sua força de trabalho”. Sendo assim, é “possível transformar o reino da exploração em reino da igualdade e identificar sem nenhuma cerimônia a igualdade democrática com a ‘troca igual’ mercantil” (RANCIÈRE, 2014, pp. 30-31). Desta forma, fica a cargo das decisões políticas apenas suprir os pontos que o mercado não tem capacidade para resolver. “Há, evidentemente, determinadas questões com relação às quais a representação proporcional efetiva [leia-se decisão pelo livre mercado] é impossível. É precisamente a existência destes assuntos indivisíveis [que impediria] que se possa contar, exclusivamente, com a ação individual através do mercado” (FRIEDMAN, 1984, p. 30). Portanto, é possível perceber que não é apenas uma questão de “diminuir” o Estado, mas também a participação dele na tomada de decisões sobre as relações sociais. Ludwig von Mises sobre liberdade e democracia As questões que envolvem liberdade e democracia são tratadas de forma diferente por Ludwig von Mises. O economista ucraniano discorre mais sobre liberdade e igualdade. Ao falar de liberdade, estabelece, primeiramente, que ela é fruto do liberalismo: “Embora o fato seja frequentemente esquecido hoje em dia, tudo isto foi conquista do liberalismo. O próprio nome ‘liberalismo’ deriva de liberdade” (MISES, 2010, p. 51). O economista, neste sentido, expõe que a defesa de liberdade não é uma questão de moral, humanitária ou mesmo ética, mas basea-se no simples entendimento de que o trabalho livre é a única forma capaz de fazer com que os indivíduos alcancem suas plenas potencialidades produtivas. Afinal, Via de regra, o tratamento dos escravos por seus senhores era humano e suave [...] Contra esta objeção a favor da escravidão, há apenas um argumento que pode e, de fato refuta todos os outros: o de que o trabalho livre é incomparavelmente mais produtivo que o trabalho escravo. O escravo não tem interesse em esforçar-se ao extremo. Trabalha na medida do necessário, para escapar à punição, resultante da incapacidade de executar a tarefa mínima. O trabalhador livre, por outro lado, sabe que, quanto mais trabalhar, mais bem remunerado será. Esforça-se, ao máximo, para aumentar sua renda (MISES, 2010, p. 5152). 202 A preocupação com o trabalho escravo nem mesmo passa por uma questão moral ou humanitária, já que, segundo Mises, o tratamento dado aos escravos não era violento. Ademais, ele considera excepcionais os casos “em que servos e escravos haviam sido cruelmente tratados” (p. 51). Para ele, a preocupação dos economistas não é de ordem humanitária, mas de produção e produtividade: O liberal não lhes oporá argumentos de modo algum, uma vez que seu raciocínio em favor da liberdade para todos, sem distinção, é de natureza totalmente diferente. Nós, liberais, não afirmamos que Deus ou a natureza tenham destinado à liberdade todos os homens, porque não nos instruímos pelos desígnios de Deus e da natureza, e evitamos, em princípio, colocar Deus e a natureza nas discussões sobre questões humanas. O que afirmamos é que somente um sistema baseado na liberdade para todos os trabalhadores garante a maior produtividade do trabalho humano, e é, por conseguinte, de interesse de todos os habitantes da terra (idem, p. 52). Para Mises, a preocupação dos liberais com a defesa da liberdade é bem clara: importa-lhes apenas a melhor e mais efetiva forma de produzir, ou seja, os meios utilizados nesse processo não importam, desde que se utilize a forma mais eficaz de aumentar, consideravelmente, a produtividade. Desse modo, subordinar a liberdade à produtividade seria a verdadeira preocupação de toda a humanidade. A maneira como o economista ucraniano entende liberdade dispensa muitas explicações. Para ele, em suma, o trabalho livre deve apresentar os melhores resultados para a produção, mesmo em detrimento das condições de vida dos trabalhadores. Sobre a igualdade, Mises (2010, p. 57) também escreve de forma direta, revelando que a única coisa que torna os homens e mulheres iguais é a constituição do espírito: “O que é imperecível no homem — seu espírito — sem dúvida é o mesmo no rico e no pobre, no nobre e no plebeu, no branco e no preto”. Neste ponto, o autor encerra a a discussão sobre igualdade, defendendo com veemência o caráter naturalmente desigual da humanidade e demonstrando que é impossível alcançar a igualdade real: 203 No entanto, nada mais infundada do que a afirmação da suposta igualdade de todos os membros da raça humana. Os homens são totalmente desiguais. [...] Cada homem que nasce de sua fábrica traz consigo a marca do indivíduo, único e irrepetível. Os homens não são iguais e a exigência da igualdade por lei não pode, de modo algum, basear-se na alegação de que tratamento igual é devido a iguais (idem). É, por conseguinte, bastante injustificável arguir de imperfeição a maneira pela qual o liberalismo defende o postulado da igualdade, baseando-se em que o liberalismo tenha criado apenas a igualdade perante a lei, e não a igualdade real. Todo poder humano seria incapaz de tornar os homens realmente iguais. Os homens são e permanecerão sempre desiguais. São considerações sensatas e úteis, tais como as que aqui apresentamos, que constituem o argumento em favor da igualdade de todos os homens perante a lei. O liberalismo nunca almejou algo além disso, nem exigiu mais que isso. Está além da capacidade humana tornar o negro num branco (idem, p. 58). Mises desvia-se da questão sobre igualdade de condições, entendendo igualdade em termos biológicos. Relativiza essa questão, afirmando que a igualdade plena é simplesmente inatingível, dada as complexidades que envolvem a personalidade (cada indivíduo pensa e age de forma única). Assim, o economista desconsidera totalmente a igualdade em relação à detenção e ao controle dos meios de produção, ao uso do aparelho estatal, à propriedade, às condições de obtenção de ensino e alimentação de qualidade, enfim, às condições que proporcionam as formas desiguais da existência humana. As formas de entender essas desigualdades recaem sobre o que ele considera um privilégio — um arranjo institucional que favorece alguns indivíduos ou um certo grupo, às custas dos demais. O privilégio existe, embora beneficie somente aqueles para os quais foi criado. Todavia, Mises assinala que esse raciocínio apenas pode ser aplicado se o privilégio não beneficiar, de modo algum, a população em geral. Dito de outra maneira, o privilégio não deve corresponder às vantagens obtidas por um certo grupo, classe ou pessoa, mas aos benefícios obtidos pelo público em geral (MISES, 2010, p. 59). Tendo em vista essas constatações, a posição de um grande empresário — cujo padrão material de vida é drasticamente mais elevado que do operário assalariado por ele contratado — não equivale a privilégio, na 204 medida em que a riqueza proporcionada por ele, através de sua indústria, por exemplo, beneficia todos. Ainda segundo o economista ucraniano, a democracia é entendida apenas como uma ferramenta de decisão, por maioria simples, sobre a escolha ou deposição de um governante e/ou governo: A democracia é a forma de constituição política que torna possível a adaptação do governo aos desejos dos governados, sem lutas violentas. Se, num estado democrático, o governo não mais se conduz, segundo o desejo da maioria da população, não é necessária uma guerra civil para colocar, no governo, quem deseja governar segundo a maioria. Por meio de eleições e acordos parlamentares, processa-se a mudança de governo de modo suave e sem fricções, sem violência e sem derramamento de sangue (idem, p. 69). Mises pensa democracia apenas como uma forma de evitar conflitos que possam causar danos à propriedade privada e às vidas humanas. Conflitos como “a Revolução Francesa em 1789, representa[m] pesadas perdas em vidas e propriedades. Nossa atual economia não mais poderia suportar tais convulsões” (idem, p. 68). Impossível não deixar de notar como a democracia entendida aqui por Mises se assemelha muito com a visão que defende as manifestações “ordeiras”, ou seja, aquelas que não causam prejuízos ao patrimônio público e/ou privado. A importância de um olhar sobre os intelectuais neoliberais reside em perceber como o IMB remodela e constrói uma noção sobre o conceito de democracia e sua relação com o livre mercado. Apesar de Mises e Friedman apresentarem a democracia como “necessária”, deixam bem claro seus limites de ação, até mesmo, no caso do economista estadunidense, podendo ser substituída por uma atuação mais ampla do livre mercado. IMB sobre liberdade e democracia Mas o que dizer sobre como o IMB, partindo da tradição liberal, mais especificamente, do economista ucraniano que lhe confere o nome, aborda estas questões e as apresenta ao Brasil? 205 A ideia de relegar ao livre mercado todas as funções do Estado já estava presente nos escritos de Friedman, quando ele assinalava, por exemplo, que o livre mercado oferece a todos os indivíduos os serviços essenciais, sem que a vontade da maioria seja imposta. No entanto, o economista estadunidense evidenciou a necessidade de existência do Estado ao escrever que “o liberal consistente não é um anarquista” (FRIEDMAN, 1984, p. 39). É justamente a partir deste ponto que os “libertários” rompem com os liberais. Vale ressaltar que, embora em poucas palavras, Friedman expõe de forma veemente a necessidade de os liberais serem “consistentes” e não “flertarem” com uma concepção de “anarquia de livre mercado”. Isso pressupõe que a proposta dos autoproclamados “libertários” já poderia estar em pauta na década de 1970. Segundo a biografia de Murray Newton Rothbard, considerado o “pai do libertarianismo moderno”, ele fundou, em 1977 (data muito próxima de quando Friedman ganha o Nobel em Economia), o Journal of Libertarian Studies “em um esforço para alargar a influência do pensamento libertário no mundo acadêmico” (GORDON, on-line).8 Mises não foi “libertário”. Conforme demonstram os escritos dele aqui analisados, este conceito é ao menos citado. Murray N. Rothbard, por outro lado, partindo das ideias de Mises, dedicou-se a formular e a defender a ideologia “libertária”, criticando a posição de Mises sobre a democracia. Mises entende que a democracia é a forma de constituição política que torna possível a adaptação do governo aos desejos dos governados, sem lutas violentas. Segundo o economista ucraniano, guerras e disputas prejudicam a produção — seja em virtude do dispêndio de mão de obra que poderia ser empregada nas indústrias, seja em virtude dos possíveis danos à propriedade privada causados pelos conflitos (MISES, 2010, p. 69). A esse respeito, Rothbard faz uma crítica: Se utilizarmos o argumento de que os votos substituem o combate físico e geram o mesmo resultado, não há qualquer justificativa para dar o poder do voto a [...] grupos fisicamente delicados. E não apenas eles teriam de ser impedidos de votar, como também o mesmo critério teria de ser aplicado a todos os cidadãos que não passassem em um teste de aptidão para o combate (ROTHBARD, on-line).9 8 Disponível em: <http://mises.org.br/Article.aspx?id=37>. Acesso em: 7.6.2015. 9 Disponível em: <http://www.mises.org.br/ArticlePrint.aspx?id=771>. Acesso em: 30.9.14. 206 Rothbard ainda assinala que nem todas as pessoas estariam dispostas a combater por algum candidato e/ou partido, no caso de uma eleição em que a maioria dos votantes fossem indiferentes: Suponha que 60% da população de um país seja indiferente ou ligeiramente favorável ao atual governo ou ao atual partido político que está no governo, ao passo que os 40% restantes são contra. Suponha também que esses 40% são realmente contra o atual governo e o atual partido que está no poder, de maneira intensa e inflamada, pois são eles que estão tendo de arcar com as benesses e com os privilégios que o governo distribui para seu eleitorado cativo. Na ausência de democracia, esses 40% estariam muito mais dispostos a entrar em combates físicos (idem, ibidem). Vale ressaltar que o texto em questão foi publicado em 30 de setembro de 2014, ou seja, cinco dias antes de serem realizadas as votações de primeiro turno para presidente e governador do Brasil. Este detalhe é importante, tendo em vista o contexto das eleições brasileiras, pois, pela primeira vez no país, viu-se, nas redes sociais, uma difusão intensa da ação partidária conservadora. Dando continuidade ao pensamento de Rothbard, percebe-se uma nítida sucessão de “erros” — induzidos ou não. Primeiramente, partindo de um conceito de democracia que a compreende apenas como uma tomada de decisões por maioria simples (entendimento presente tanto em Mises como em Friedman), Rothbard chega à conclusão de que o mercado poderia ser uma solução mais eficaz e pacífica do que um regime democrático, opondo-se, inclusive, ao grande expoente do pensamento ultraliberal na atualidade, Ludwig von Mises. Rothbard conclui o artigo colocando que “ou esse argumento [a democracia evita derramamento de sangue] é abandonado — e inventa‐se outro —, ou todo o sistema deve ser abandonado” (idem, ibidem). Mas como os membros do IMB reproduzem o pensamento de Rothbard sobre democracia? Para melhor compreensão, cabe analisar as publicações de alguns deles. A exemplo disso, no intuito de colaborar com as “manifestações conservadoras” que aconteceram no Brasil, em especial com a do dia 13 de abril de 207 2015, Luciano Rocha10 publica, no site do IMB, um artigo sobre a democracia. Ele nem mesmo aborda a reflexão de Rothbard, argumentando que a democracia equivale a uma “ditadura da maioria”, ou seja, a democracia, neste sentido, prejudica os direitos individuais. Mais adiante, aponta que o conceito tem “um caráter divisor (o famoso ‘nós e eles’)”. Mais especificamente: Um regime que vê na “vontade da maioria” um exemplo de modernidade, prosperidade e respeito aos direitos individuais é, na melhor das hipóteses, incoerente; na pior, representa um atentado aos direitos de propriedade, inclusive dos mais pobres. Na democracia, sempre haverá aqueles que quererão que seus estudos, sua saúde, sua segurança, seu transporte, seus subsídios, seu assistencialismo seja pago “pelo estado”, o que, na prática significa “por outros que não eu” (ROCHA, on-line).11 Rocha (idem, ibidem), em uma linha de raciocínio que parece ser muito semelhante à de Friedman (1984, p. 23), compreende a democracia como algo que suprime direitos. Ademais, ao dizer que a política força uma “conformidade substancial”, acaba relacionando a democracia a uma noção de assistencialismo enquanto expropriação de propriedade privada: “o Estado faz caridade com o dinheiro dos outros”. Um dos evidentes problemas desta intepretação é a própria noção que ela cria sobre o que é direito. De uma perspectiva neoliberal, o papel do Estado deve ser reduzido ao mínimo possível (ao menos em teoria), limitando-se a assegurar a propriedade privada aos indivíduos. Porém, Rocha vai além ao afirmar que o dever do Estado em garantir a segurança é sinônimo de assistencialismo. Isso evidencia um ponto no qual os chamados “libertários” se diferem dos liberais que os precederam: a privatização da garantia à propriedade, já que, nem mesmo o papel de assegurar a propriedade privada, via seus aparelhos repressores, deve ser conferido ao Estado. 10 Diretor da Lynx Coach (empresa de assessoria financeira de João Pessoa), atuando como coach financeiro com ênfase em solução de dívidas e investimentos. Cf.: <http://lynxcoaching.com.br>. Luciano Rocha também é coordenador estadual do Estudantes Pela Liberdade (EPL) no Estado da Paraíba. Segundo o próprio site oficial, o EPL tem como missão dar poder a líderes estudantis “libertários”. Neste sentido, trata-se de uma organização com várias sedes pelo mundo com o objetivo de formar estudantes e lideranças estudantis na defesa do anarcocapitalismo 11 Disponível em: <http://mises.org.br/Article.aspx?id=2072>. Acesso em: 16.5.2015. 208 Para evidenciar como um regime democrático não é capaz de atender aos anseios de todos os indivíduos, Rocha usa a metáfora de uma pessoa condenada à morte, cuja execução é decidida por maioria simples; por outro lado, a decisão sobre a forma de aplicação da pena de morte contraria apenas o condenado. Desse modo, o autor ressalta que “o mais assustador da metáfora […] é que ela é muito mais branda do que a nossa realidade democrática”, pois, segundo ele, a decisão afetaria apenas o condenado. Todavia, Rocha segue dizendo que: […] no nosso sistema democrático, tanto os que não votam quanto aqueles que votam e perdem sofrem as consequências da eleição de alguém que não queriam. Não apenas sua propriedade é afetada, mas também se tornam obrigadas a viver sob políticas das quais discordam — e muitas vezes abominam. […] a única maneira de o patíbulo democrático deixar de produzir resultados que são contra a vontade da maioria das pessoas [...] é convencendo essas pessoas a se separar desse regime. E a solução mais viável é a secessão” (ROCHA, on-line).12 Frank Karsten — fundador da More Freedom Foundation na Holanda e autor do livro Além da democracia, escrito em parceria com Karel Beckman — publica um artigo assinalando que a adoção de regimes democráticos seria uma das principais causadoras dos problemas econômicos: Embora quase todos os países democráticos sofram com governos inchados, excesso de regulamentação, altos impostos e uma enorme dívida pública, poucas pessoas conseguem vislumbrar a relação causal entre estes problemas e o próprio sistema democrático”. […] para a maioria [das pessoas], a solução para estes problemas é mais democracia, e não menos. […] os próprios princípios da democracia dão origem a processos que conduzem a sociedade para o oposto da liberdade e da prosperidade (KARSTEN, on-line).13 Os princípios democráticos elencados seriam apenas três: “você tem o direito de votar, você tem o direito de concorrer a um cargo público, e a maioria decide”. Noutros termos, seriam princípios relativos à chamada democracia 12 Disponível em: <http://mises.org.br/Article.aspx?id=2072>. Acesso em: 16.5.2015. 13 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1287>. Acesso em: 10.7.2015. 209 representativa, em que as pessoas têm o direito de eleger seus representantes por maioria simples e concorrer a um cargo de representação. Além disso, Karsten pontua cinco problemas causados pela adoção de regimes democráticos: 1) comportamento imediatista; 2) conflito social e parasitismo; 3) intromissão; 4) coletivismo e passividade; 5) corrupção e abuso (idem, ibidem). O comportamento imediatista vincula-se ao fato de que o cargo para o qual o candidato foi eleito é ocupado por ele apenas temporariamente. Nas palavras de Karsten, “os políticos democraticamente eleitos ficarão apenas temporariamente no cargo, e eles não são os proprietários dos recursos à sua disposição”. Em virtude disso, serão “acometidos de um irrefreável incentivo para gastar dinheiro público em projetos que os tornem populares, desconsiderando as consequências futuras de tal ato”. Os eleitores também partem de uma visão imediatista no momento de votação, pois tendem a eleger candidatos que irão beneficiá-los com “benesses e privilégios”, de modo que “a conta seja entregue a outras pessoas”. Em suma, Karsten partilha da ideia de que a democracia, inerentemente, contribui para um “imediato conflito grupal”, evidenciando, como Luciano Rocha, a tensão entre o “nós contra eles” (idem, ibidem). A associação que Karsten estabelece entre democracia a parasitismo fica mais clara em outro artigo escrito com Karel Beckman. 14 Sobre isso, os autores afirmam que, além das pessoas ligadas ao Estado (funcionários públicos, políticos, dentre outros), “há um outro grupo de pessoas que se safa muito bem no sistema democrático: aquelas pessoas que comandam empresas e instituições que devem sua existência à generosidade do governo ou a privilégios especiais” (BECKMAN & KARSTEN, on-line).15 Os autores adicionam à lista das instituições beneficiadas pela democracia as “organizações sociais — sindicatos, movimentos raciais e sexuais, instituições culturais, a televisão pública, as agências assistenciais, os grupos ambientais e assim por diante — que recebem dinheiro diretamente do governo”. Observam, em 14 Escritor e jornalista, fundador e editor-chefe do site Energy Post, foi editor-chefe da European Energy Review e trabalhou como jornalista para o Financieele Dagblad. 15 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1571>. Acesso em: 9.7.2015. 210 seguida, que a grande maioria das pessoas que “comandam tais organizações não apenas têm empregos lucrativos e estáveis, como também possuem ligações íntimas com a burocracia estatal e com políticos, algo que garante vários privilégios e muito poder a estas organizações” (idem, ibidem). Karsten ainda afirma que esse contexto não seria possível em uma sociedade em que o capitalismo segue sem amarras. Dito de outra maneira, [em uma] sociedade livre, baseada em direitos individuais, indivíduos com diferentes visões e objetivos não se tornam potenciais inimigos mútuos. Eles podem colaborar entre si, comercializar uns com os outros, ou simplesmente se isolar e não se intrometer na vida de ninguém. [Em nenhum momento, os indivíduos] terão meios coercivos com os quais obrigar outros cidadãos a satisfazer seus próprios fins (KARSTEN, online).16 Ainda segundo Karsten, quando os indivíduos estabelecem relações dentro dos parâmetros do livre mercado não lhes interessam as orientações religiosas e políticas ou mesmo questões étnicas: “Nada disso importa no curso de sua interatividade diária com as pessoas. Por meio do comércio e da cooperação, cada pessoa ajuda as outras a alcançar suas aspirações” (idem, ibidem). Mais adiante, a fim de estabelecer uma relação entre democracia e “intromissão”, Karsten demonstra a intervenção dos governos democráticos em várias esferas da sociedade. O autor argumenta que “[eles] continuamente intervêm em transações voluntárias entre vendedores e compradores, empregadores e empregados, professores e alunos, médicos e pacientes, inquilinos e proprietários, prestadores de serviços e clientes etc.”. Continuando seu raciocínio, o autor afirma que a “intromissão” desses governos também se manifesta nas escolhas pessoais, na medida em que regula “a sua escolha de fumar, de usar drogas, de se envolver em profissões específicas (para as quais você não possui uma ‘licença’), de ‘discriminar’ (isto é, de escolher com quem você quer se associar)” (idem, ibidem). A forma como o IMB trata a discriminação racial, étnica, religiosa, dentre outras, é extensa e fugiria dos objetivos deste artigo. Nesse momento, é importante 16 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1287>. Acesso em: 10.7.2015. 211 observar, em especial, que a ideia mascarada por trás da “intromissão” é a de relacionar regime democrático ao conceito de regime totalitário, de modo que o leitor seja induzido a associar a democracia ao totalitarismo. Sobre o coletivismo e passividade, Karsten defende que a possibilidade, em teoria, de que qualquer pessoa possa se candidatar e assumir uma posição no Estado permite que os indivíduos respeitem a decisão da maioria, mesmo que esta não lhes agrade: “Isto faz com que as pessoas acreditem que elas devam se submeter à regra da maioria. Elas podem não concordar com leis e regulamentos específicos, mas elas sentem que devem cumpri‐los” (idem, ibidem). O coletivismo é relacionado à própria necessidade de as decisões serem efetivadas por maioria simples, o que, segundo as formulações do autor, direciona a ação da sociedade para a “vontade de uma maioria”. A corrupção e o abuso seriam resultado do grande poder que a democracia concentra nas mãos do governo eleito: “Dado que o governo eleito tem poder virtualmente ilimitado e controla praticamente todos os recursos da sociedade, todos os tipos de grupos de interesses e lobistas irão trabalhar nos bastidores para influenciar o governo a criar e modificar leis para seu proveito próprio” (idem, ibidem). Além do abandono da democracia, existe uma outra possibilidade defendida pelo IMB: uma democracia aristocrática que é concebida de acordo com a forma que os “pais fundadores dos EUA tinham em mente” (CHRISTOFF-KURAPOVNA, online).17 O artigo de Lew Rockwell18 — publicado no site do IMB e intitulado “O que é liberalismo clássico” — elucida a forma desta democracia aristocrática. Para tanto, o autor inicia suas formulações descrevendo um sonho com o período de eleições, o presidente é apenas uma figura representativa, sem autoridade real; um símbolo, que é quase invisível para mim e para minha comunidade. [...] Ele não administra ministérios reguladores. [...] também [é] um homem de caráter excepcional, bem respeitado pelas elites naturais da sociedade. [...] sua autoridade é principalmente social, e deriva da 17 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1840>. Acesso em: 11.7.2015. 18 Chairman e CEO do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama; editor do website “LewRockwell.com”. 212 respeitabilidade que ele tem perante as elites naturais da sociedade (ROCKWELL, on-line).19 O resultado do processo eleitoral, neste sentido, não importaria, tendo em vista que os direitos de propriedade não seriam afetados, independente de quem vencesse o certame (idem, ibidem). Parece ser um elemento chave para o entendimento da sociedade idealizada por Rockwell o conceito de “elites naturais”. No artigo em questão, inclusive, há um link que conduz o leitor a um outro artigo que define essas “elites naturais”: [...] o estado é o fruto do crescimento das elites naturais: o resultado natural de transações voluntárias entre donos de propriedade privada é algo não igualitário, hierárquico e elitista. Em todas as sociedades, alguns poucos indivíduos adquirem o status de elite através do talento. Devido às suas conquistas superiores em termos de riqueza, sabedoria e bravura, esses indivíduos ganham o reconhecimento de autoridade natural, e suas opiniões e julgamentos passam a gozar de vasto respeito. [...] É para os chefes dessas famílias, que têm longos e firmados históricos de conquistas supremas, sagacidade e conduta pessoal exemplar, que os homens comuns levam suas queixas e conflitos contra outros homens (HOPPE, on line).20 Essas “elites naturais” seriam compostas de sujeitos excepcionais, cujas posições são garantidas devido ao “grande sucesso” alcançado. Neste sentido, é apenas natural que poucos alcancem tamanha posição, limitando-se a uma questão em que o mais apto, por natureza, deva reinar sobre o inapto. Mises possui uma argumentação parecida, quando afirma que “numa sociedade capitalista, o desenvolvimento dos meios de produção está sempre em mãos dos mais bem qualificados” (MISES, 1987, p. 68). Para Rockwell, a capacidade de votar deveria ser prerrogativa de um pequeno número de pessoas, ou seja, daquelas que conhecem a importância do voto e são realmente afetadas pelas decisões governamentais: 19 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=34>. Acesso em: 24.10.2014. 20 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=82>. Acesso em: 16.2.2015. 213 [...] Os que podem realmente votar, uma pequena porcentagem da população, são aqueles que verdadeiramente têm em mente os melhores interesses da sociedade. Esses indivíduos são aqueles que são donos de propriedades, chefes de famílias, e os realmente instruídos (ROCKWELL, on-line).21 O cerceamento da participação do processo eleitoral ligado ao neoliberalismo não é algo novo no Brasil. Henry Maksoud, na década de 1970, também pregava um modelo de democracia limitada semelhante ao conceito de “demarquia” (CEZAR JUNIOR, 2011). Considerações finais De acordo com Ellen Wood (2011, p. 177), o conceito moderno de democracia não surge para conferir status civil às classes subordinadas, “mas da afirmação pelos próprios senhores de sua independência em relação às reivindicações da monarquia”. Sob este enfoque, é preciso compreender a chamada “aristocracia democrática”, que, segundo os intelectuais do IMB, é compreendida como “direito das elites naturais”. Wood também assinala que isso não representa algo novo para o pensamento liberal, tendo, provavelmente, sido o ideal dos federalistas do recém EUA. O processo de independência das “Treze Colônias”, nesse contexto, acabou criando uma população politicamente ativa, o que dificultaria a exclusão da política. “Os criadores da constituição se engajaram na primeira experiência de criação de um conjunto de instituições políticas que corporificariam, e simultaneamente limitariam, o poder popular, num contexto em que já não era possível manter um corpo exclusivo de cidadãos”. O ideal federalista foi “a criação de uma aristocracia que combinasse riqueza e virtude republicana [...] mas a tarefa prática era manter uma oligarquia proprietária com o apoio eleitoral da multidão popular” (idem, p. 185). 21 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=34>.Acesso em: 24.10.2014. 214 Os ideais defendidos pelo IMB, neste sentido, visam abandonar ou limitar a democracia, tanto a democracia liberal, como a democracia representativa. Do mesmo modo, Christoff-Kurapovna (on-line) 22 — defensora de uma democracia aristocrática — diz que “a democracia igualitária, […] justamente essa que criamos e na qual vivemos, [...] está nos colocando em perigo”. Reforçando essa ideia, a autora demonstra o porquê de tamanha temeridade com relação à democracia em seu estado atual: Se, [...] as coisas continuarem como estão, a democracia irá cada vez mais assumir características totalitárias e culminar naquilo que Thomas Jefferson rotulou de “despotismo eletivo”, em que uma suposta vontade popular será incorporada em um governante que, por sua vez, irá subjugar completamente uma população impotente, indefesa e desarmada (idem, ibidem). A preocupação da autora é, na verdade, com a conjuntura de manifestações desencadeadas a partir da crise financeira de 2008. Segundo ela, esta “tendência ao totalitarismo [leia-se, socialismo no seu entendimento] pode ser vista no relativamente recente modismo de querer ‘transformar’ o capitalismo em algo que ele não é e que jamais deveria se tornar”. Evidenciando seu ponto de vista, ChristoffKurapovna chama a atenção para as “alterações sutis na terminologia [que] começaram a ganhar força desde o início da crise financeira, e só se intensificaram de lá para cá”. Além disso, de acordo com ela, teria se tornado comum intelectuais clamando por um “socialismo de mercado”, ou por um “mercado socialmente regulado”, ou por um “capitalismo comunitário”, ou por um “capitalismo social”, ou por um “empreendedorismo mais includente”, [tornando-se cada vez mais recorrentes os apelos] para se acabar com algo que chamam de “capitalismo excludente” ou “capitalismo selvagem” (idem, ibidem). Diante disso, os ataques à democracia representativa se inserem em um quadro de contestação do neoliberalismo, ou seja, o apelo por “menos democracia” se relaciona com a necessidade de conter as manifestações contrárias ao avanço 22 Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1840>. Acesso em: 11.7.2015. 215 das práticas neoliberalistas. As manifestações que reivindicam maior participação popular nas decisões contestam diretamente a forma de reprodução do capital no atual bloco histórico, demonstrando o esgotamento do projeto neoliberal, de modo que é necessária uma reformulação desse pensamento. Em outras palavras, a chamada “crise de representatividade democrática” (CASTRO & MONTEIRO, 2008) é causa direta da crise do atual projeto, tendo em vista que a democracia burguesa começa a exibir sinais de fadiga na contenção e subordinação passiva das camadas populares. O neoliberalismo avança no Brasil na mesma proporção em que se intensificam os ataques à democracia liberal, considerada, segundo os intelectuais da EAE e os articuladores do IMB, um entrave ao acirramento das relações capitalistas de produção. Vale reiterar que isso não é um dado novo, já estando presente, como foi demonstrado aqui, não apenas nos escritos de teóricos neoliberais do século XX (Ludwig von Mises e Milton Friedman, por exemplo), mas desde o surgimento do conceito moderno de democracia (WOOD, 2011). A crise financeira de 2008 lança aos “teólogos do livre mercado” a necessidade de retomar antigos posicionamentos sobre a democracia e livre mercado (este compreendido como “liberdade plena”), no intuito de apresentar alternativas, dentro da própria lógica do capital, face ao esfacelamento de economias ao redor do globo. __________________________ Fontes BECKMAN, Karel & KARSTEN, Frank. A tragédia social gerada pela democracia. Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1571>. Acesso em: 9.7.2015. CHRISTOFF-KURAPOVNA, Marcia. Por que a democracia precisa de aristocracia. Disponível em: <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1840>. Acesso em: 11.7.2015. GORDON, David. Murray N. 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São Paulo: Boitempo, 2011. 218 O Instituto Brasileiro de Filosofia: contrarrevolução e justificação ideológica da autocracia burguesa (1964-1965) Rodrigo Jurucê Mattos Gonçalves1 Neste artigo analisaremos obras publicadas por intelectuais ligados ao Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) e à Revista Brasileira de Filosofia (RBF), particularmente A consciência conservadora no Brasil (1965), de Paulo Mercadante, e Imperativos da Revolução de Março (1965), de Miguel Reale. Ao lado da liderança de Reale à frente do IBF, Mercadante foi responsável por desenvolver da forma mais acabada a concepção ibeefeana da história. Interessante notar que a publicação de seus livros se deu no ano imediato ao golpe de 1964, no contexto de afirmação das ideias conservadoras no Brasil. Diferentes autores identificam o IBF como uma instituição representativa do pensamento conservador no Brasil. Paulo Eduardo Arantes (1994, pp. 88-107) identifica, nos anos 1950 e 1960, três diferentes posições filosóficas e suas respectivas posições ideológicas: 1) a “esquerda transcendental” que se estabeleceu em torno do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCL-USP), para a qual técnicas filosóficas mais rigorosas corresponderiam a posições políticas mais avançadas; 2) 1 Doutorando em História pela Universidade Federal de Goiás e professor do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás. E-mail: [email protected]. 219 o “nacionalismo existencialista” que se desenvolveu na órbita do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e que, partindo de conceitos provenientes principalmente da filosofia existencialista, buscava formular um fundamento filosófico para o projeto nacional-desenvolvimentista; e 3) a “direita” representada pelo IBF que propunha uma análise positiva do nosso passado histórico, evitando a crítica da formação histórica do Brasil, conforme desenvolvia as duas concepções anteriores. No mesmo sentido, Leandro Konder (1998, pp. 355-374), em sua análise sobre os intelectuais brasileiros nos anos 1950 e 1960, apresenta uma tipologia em que ressalta a importância das opções filosóficas e das posições teórico-políticas das diferentes tendências intelectuais, principalmente dos historiadores: 1) a “perspectiva conservadora” — citando, por exemplo, Djacir Menezes, 2 um dos fundadores do IBF — caracteriza-se, segundo Konder, por uma despudorada apologia das forças que comandaram nossa história; 2) a “tendência nacionaldesenvolvimentista” — agrupada no IBESP 3 (que originou o ISEB) — tem por princípio um projeto intelectual comprometido com a promoção do desenvolvimento nacional autônomo; e 3) a “perspectiva marxista” é marcada por duas tendências: o “marxismo ortodoxo doutrinário”, por um lado, e, por outro, a corrente representada por dois intelectuais socialistas independentes: Antônio Cândido e Florestan Fernandes. Konder chama a atenção para um importante grupo de jovens professores da USP que formaram um seminário, no intuito de estudar O Capital de Karl Marx. Além da questão do conservadorismo, nossa análise se baseia em dois conceitos fundamentais: “aparelho de hegemonia filosófico” 4 (AHF), desenvolvido 2 Djacir Menezes defendia a dimensão da continuidade do processo histórico brasileiro, em prejuízo da importância de qualquer ruptura histórica. Isso não era gratuito, pois, dessa forma, ele afirmava o seu estreito compromisso com a ordem – concepção esta que marcou fundamentalmente a história do pensamento filosófico nacional desenvolvida pelo IBF. 3 Instituto Brasieliro de Economia, Sociologia e Política. 4 Segundo Buci-Glucksmann (1990, p. 484), o aparelho de hegemonia filosófico (AHF) “busca a difusão de uma filosofia, de uma concepção geral da vida”, é “uma organização material que visa a manter, defender, desenvolver a ‘frente teórica e ideológica’. O AHF, portanto, faz parte ‘do formidável complexo de trincheiras e fortificações da classe dominante’”. 220 por Christine Buci-Glucksmann, e “intelectuais orgânicos”,5 de Antonio Gramsci. A noção de “autocracia burguesa”, desenvolvida por Florestan Fernandes (2006), integra nosso trabalho e permite-nos problematizar os aspectos teóricos, ideológicos, políticos e sociais, em suma, paradigmáticos, da classe dominante, de acordo com as “relações de força e poder” (FERNANDES, 2006; LENIN, 1978 e 1979). O Instituto Brasileiro de Filosofia O IBF foi criado na cidade de São Paulo, em outubro de 1949. Desde 1951, publica a RBF, periódico trimestral de circulação nacional e internacional. O instituto já contou com diversas seções estaduais (em 1976, chegaram a somar 13 nos Estados do Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste). O Estatuto do IBF revela algumas de suas finalidades: Art. 2º - O Instituto Brasileiro de Filosofia (IBF) tem por fim: a) promover o desenvolvimento da cultura filosófica em nosso país [...]; b) promover congressos regionais, nacionais e internacionais para discussão de problemas filosóficos; c) publicar uma revista trimestral de filosofia [...]; e) patrocinar a publicação de obras de filosofia [...]; j) colaborar com os poderes públicos, as entidades universitárias, e as associações culturais, em tudo que se refira à obra de soerguimento intelectual de nossa gente (RBF, 1951a, p. 562). Reale nos apresenta a RBF assim que ela é lançada, em 1951: [...] O IBF inicia a publicação dessa Revista, cuja finalidade primordial é reunir, em uma obra impessoal e objetiva, os esforços criadores de quantos, em nossa terra, se dedicam aos problemas da Filosofia. Nestas páginas encontrarão acolhida todas as tendências do pensamento contemporâneo. [...] Anima-nos, no entanto, uma robusta confiança em 5 Segundo Gramsci (2004, p. 15), “todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político”. 221 nossa capacidade de pensar ou de repensar criadoramente os grande problemas, sem nos atribuirmos a tarefa inglória de receber, da Europa ou da América do Norte, a Filosofia como pensamento pronto para ser distribuído cuidadosamente em fichas. [...] Cultores da Filosofia e da Filosofia do Direito e da Sociedade encontrarão nestas páginas uma fonte de referência e contraponto (REALE, 1951, pp. 1-2). Conforme demonstram os dois registros acima, o IBF buscava transmitir uma imagem plural, aberta a todas as tendências do pensamento. Todavia, não se pode inferir, a partir destes fragmentos, uma posição política e ideológica além daquela que privilegia certa autonomia, no âmbito da filosofia, em relação à Europa e aos EUA. Desse modo, o que se observa ao longo da história desta organização é um posicionamento definido, distante e hostil ao marxismo. Neste sentido, Bruno Bontempi afirma que: [...] entre os colaboradores efetivos da RBF não figuram filósofos reconhecidamente marxistas. [...] Além disso, embora o instituto recomende a seus membros “serena objetividade na apreciação das doutrinas de que divergem”, Marx e os marxistas sofrem restrições evidentes, quando abordados em artigos e resenhas (BONTEMPI, 2003, p. 4). É certo, porém, que não havia, nos anos 1950 e 1960, uma contribuição dos marxistas brasileiros para o campo da filosofia, com exceção de pouquíssimas obras. A esse respeito, destacam-se as obras de Caio Prado Jr., Dialética do conhecimento (1952) e Introdução à lógica dialética (1959), nas quais um rol relativamente pobre de categorias marxistas foi empregado (COUTINHO, 1989, p. 116). Isso posto, não havia muitas condições para que os marxistas figurassem entre os autores do IBF. Mas não se pode ignorar o fato de que o antimarxismo representa — indubitavelmente — uma das características centrais de inúmeros artigos e resenhas da RBF. De acordo com Roland Corbisier (1978, p. 80), “Fundado e mantido pela classe patronal, o Instituto [Brasileiro de Filosofia] só poderia ter uma diretriz conservadora”. É importante salientar que, em relação ao filósofo e professor da USP, João Cruz Costa (1904-1978), conhecido por suas concepções distintas dos ibeefeanos e 222 por sua simpatia ao nacional-popular, alguns adeptos do IBF mantiveram uma relação de afastamento e, até mesmo, de hostilidade aberta. 6 Além disso, nas dezenas de fascículos da RBF, nota-se a publicação de apenas um artigo de Cruz Costa.7 Não é exagero afirmar que pontos de vista — filosóficos e ideológicos — antagônicos são o pano de fundo da rivalidade. O elenco dos principais intelectuais que compunham o IBF é outra variável a ser considerada, no intuito de estabelecer as tendências que dirigiram o AHF. No ano de sua fundação, o IBF congregava, majoritariamente, intelectuais identificados com o conservadorismo (liberal ou autoritário) e com o pensamento católico; a minoria dos integrantes simpatizava com o fascismo. Dentre os membros do instituto, podemos enumerar: o líder Reale (1910-2006); Luiz Washinton Vita (1921-1968, secretário do IBF); Teófilo Cavalcanti Filho (1921-1978); João de Scantimburgo (1915-2013); Renato Cirell Czerna (1922-2005); Vicente Ferreira da Silva (1916-1963); Hélio Jaguaribe (1923-); Cândido Motta Filho (1897-1977); e Djacir Menezes (19071996). Alguns deles tinham vínculos com as oligarquias estaduais, como Reale, ligado à oligarquia paulista, e Armando Pereira Correia da Câmara (1898-1975), ligado à oligarquia gaúcha. Ex-integralistas, como Reale e Roland Corbisier (19142005), também compunham o instituto. Além disso, é importante sublinhar a participação de intelectuais que eram conhecidos por posições não conservadoras ou de esquerda, como Corbisier, Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda (18921979) e Glaucio Veiga (1923-2010). Reale — considerado um dos principais teóricos do movimento integralista8 — foi o presidente do IBF, de 1949 até seu falecimento, atuando como seu principal líder e intelectual. Ademais, ocupou cargos públicos importantes, como a reitoria da USP (entre agosto de 1949 e julho de 1950 e entre 1969 e 1973); em 1943, passou a integrar o Departamento Administrativo estadonovista, em particular a Pasta do 6 Por exemplo, Luís Washington Vita (1958, p. 337) calunia Cruz Costa e afirma que ele é “filosofante extravagante e esquisito, que não se propõe nenhuma construção sistemática”. Reale (1961, p. 125), por sua vez, agride abertamente o professor da USP, o chamando de “menino”. 7 CRUZ COSTA, João. História das ideias e valores, In: Revista Brasileira de Filosofia, v. 10, n. 4, 1960, pp. 527-530. 8 No período integralista, Reale publicou, dentre outras, obras como ABC do Integralismo (1935) e Perspectivas Integralistas (1935). 223 Trabalho; em 1951, foi incumbido pelo presidente Vargas para representar o Brasil na 34ª Reunião da Organização Internacional do Trabalho (OIT); em 1963, publicou Pluralismo e liberdade, obra conhecida por marcar sua adesão ao liberalismo. No momento do golpe de 1964, Reale, também reconhecido como um importante jurista, pertencia ao grupo executivo ligado ao Banco Finasa de Investimento, que era associado à organização golpista Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) (DREIFUSS, 2006, pp. 830-833). Mercadante (1923-2013) é o autor de um dos clássicos do conservadorismo brasileiro, A consciência conservadora no Brasil. Embora não tenha tido a mesma repercussão de outros conservadores históricos, como Oliveira Viana e Gilberto Freyre, ele cumpriu o importante papel de sistematizar a concepção histórica do IBF. O autor passou pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), com o qual acabou rompendo, em 1956, em conjunto com outros intelectuais (Antonio Paim, Osvaldo Peralva, Porto Ferraz, Inácio Rangel). Foi a partir desse rompimento, inclusive, que Mercadante passou a se aproximar de Reale e do IBF. Ademais, ele foi um dos fundadores do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, na cidade de Lisboa. Diante destas considerações, percebe-se a primazia da diretriz conservadora da intelectualidade do IBF, ainda que alguns intelectuais não conservadores ou de esquerda tenham integrado o AHF. Sobre os intentos hegemônicos do IBF, faremos uma abordagem a partir dos fragmentos a seguir. Lucas Nogueira Garcez, governador do Estado de São Paulo entre 1951 e 1955, em discurso pronunciado durante a inauguração da sede do IBF na capital paulista, em 18 de dezembro de 1952, afirma o seguinte: São Paulo é o centro do pensamento nacional, pois revela a maturidade da nossa cultura. O que desejamos realizar no Instituto, doravante, atravessará as fronteiras, não pelo seu valor material, mas, sim, espiritual. De hoje em diante, o Instituto Brasileiro de Filosofia, graças ao auxílio que recebe do governo do Estado, e à dedicação de seus componentes, estará presente a todas realizações filosóficas mundiais, afirmando os resultados de nossa experiência mental. [...] a Filosofia é um utensílio, um instrumento, uma arma (GARCEZ, 1953, pp. 170-172). 224 Garcez, que era um destacado membro da oligarquia paulista e do grupo executivo do Banco Mercantil de São Paulo e da Cie. Financiére Eternit (DREIFUSS, 2006, pp. 830-834), ambas associadas às articulações do IPES para a tomada do Estado em 1964, tanto reafirma a “centralidade” de São Paulo, cujo governo financiava o IBF, como anuncia o uso da filosofia como uma “arma”. O IBF surge, assim, como ponta de lança da difusão da cultura paulista. Além de Garcez, Reale fornece uma importante informação quando diz, em entrevista, que a fundação do IBF está de acordo com os institutos congêneres fundados por Benedetto Croce (Itália), Ortega y Gasset (Espanha) e Jean Wahl (França): Desnecessário é dizer que vivemos em um país de reduzida elite, chamada a participar de múltiplos setores de nossa vida social e econômica. O desenvolvimento vertiginoso da vida econômica de São Paulo não pode deixar de interferir no âmbito universitário, conclamando os seus mestres para uma contribuição positiva. É esta a missão de ordem prática que estabelece um liame muito útil e fecundo entre a Universidade e os grupos da produção econômica (REALE apud RBF, 1951b, p. 325). Assim, Reale conecta diretamente a filosofia ibeefeana com a oligarquia paulista (“reduzida elite”), além de conceber um papel empresarial da universidade e de seus mestres, dizendo que há um vínculo (“liame muito útil”) destes com o empresariado (“grupos de produção econômica”). A partir destes fragmentos que demonstram as falas de Garcez e de Reale, percebemos os aspectos orgânicos da filosofia que tinha no IBF seu centro de desenvolvimento e difusão. Sob esta perspectiva, o conceito do AHF permite a seguinte problematização: a filosofia ibeefeana não era neutra, tampouco desinteressada. Ao tomar a filosofia como o seu nicho, o IBF desenvolveu um conteúdo anterior e mais profundo da atividade intelectual humana, em direção aos fundamentos do conhecimento, fornecendo uma importante — e imprescindível — base para o poder intelectual, como fundamento da hegemonia da “autocracia burguesa” (FERNANDES, 2006). O IBF, em síntese, constiuiu-se em legítimo AHF da oligarquia paulista e, ao expandir-se para outros Estados da Federação, de outras oligarquias estaduais e da autocracia burguesa no Brasil. 225 O IBF e o Golpe de 1964 O golpe de 1964 desencadeou uma onda repressiva sem precedentes na história do Brasil. A contrarrevolução buscou eliminar toda dissidência, principalmente aquela que estava ao lado das classes populares. Desse modo, até mesmo os intelectuais foram perseguidos. Contra as “classes perigosas” valia tudo para a paranoia reacionária, inclusive reprimir intelectuais ditos “subversivos”, forçosamente distanciados do povo explorado e oprimido por um precipício de analfabetismo, cujos índices eram absurdos.9 Casos emblemáticos são relatados por Nelson Werneck Sodré (MORAES, 2000). Recentemente, passados 50 anos do golpe, pouco se falou sobre o terrorismo cultural, marcado por prisões arbitrárias de intelectuais como Astrojildo Pereira, Carlos Heitor Cony (que escapou de uma tentativa de sequestro por agentes da repressão), Florestan Fernandes, Ênio Silveira (editor da Civilização Brasileira), Sodré, dentre outros. Ademais, foram registradas, naquele contexto, aproximadamente 5 mil demissões. Entre os demitidos estavam os renomados Celso Furtado, Josué de Castro e Darci Ribeiro. O regime ditatorial almejava destruir “a intelectualidade que marcou a cultura política brasileira durante quase duas décadas” (SODRÉ, 1986, p. 70). Alguns intelectuais — a exemplo de Maurício Martins de Mello, Pedro Alcântara Figueira e Joel Rufino dos Santos — foram presos, sequestrados e desaparecidos, reaparecendo dias depois. Outros se exilaram, como Paulo Freire, cujo método de alfabetização foi abolido. Bibliotecas foram fechadas ou expurgadas, em virtude das obras acusadas de “comunismo”. A sede do ISEB foi depredada, como relata Sodré: Nos primeiros dias de abril de 1964, como é sabido, o ISEB foi invadido e depredado: os autores da depredação não deixaram inteiro um móvel, um quadro, um objeto. O cenário de vandalismo foi completo, rasgaram livros e quadros, estriparam poltronas, quebraram mesas e cadeiras, arrombaram portas e gavetas, subtraíram livros e carregaram tudo aquilo que poderia servir de informação da vastíssima conspiração comunista, orientada diretamente de Moscou, que se pretendeu depois 9 No início da década de 1960, o índice de analfabetismo correspondia a 39,6% da população. Disponível em: <www.artigonal.com>. Acesso em: 25.5.2015. 226 provar ter ali sede. No Departamento de História, o que não foi destruído, foi carregado, inclusive textos das monografias da História Nova em elaboração. De contrapeso, os saqueadores levaram para o DOPS os três funcionários do ISEB ali encontrados: o copeiro, o zelador e o contínuo. [...] Até hoje [1986], no olhar desses homens, permanece a singular nota de espanto pelo que sofreram (SODRÉ, 1986, p. 122). O caso mais emblemático de perseguição aos intelectuais é o de Vladimir Herzog, jornalista assassinado em 25 de outubro de 1975, mais de dez anos após o golpe, nas dependências do DOI-CODI do II Exército, em São Paulo, algumas horas depois de ter se apresentado para depoimento. Interessante notar que os intelectuais do AHF/IBF não sofreram quaisquer desses abusos relatados, tampouco tiveram destruída a rica sede na cidade de São Paulo, doada, em meados dos anos 1950, pelo governo daquele Estado. Esses fatos revelam não só o que acontecia com os intelectuais não alinhados ao regime ditatorial, mas também como seus apoiadores mantinham-se incólumes. Ao lado da força material do Estado, que recaiu com seu poderio repressivo sobre as vozes dissonantes, era necessária a justificação moral e filosófica do golpe e da autocracia burguesa, levando a contrarrevolução ao plano intelectual. Nesse momento, surge o IBF e seus intelectuais conservadores liderados por Reale. Ao passo que o ISEB (TOLEDO 1982 e 1986) pretendia criar um pensamento (a ideologia do nacional-desenvolvimentismo) que visasse o desenvolvimento e a autonomia nacional, o IBF formulava uma ideologia conservadora travestida de “pensamento brasileiro”, a chamada “consciência conservadora”, uma de suas principais criaturas; o principal criador, Paulo Mercadante. Mesmo que o ISEB fosse útil à burguesia, seu congênere — o IBF — era visivelmente mais conservador, elitista e avesso ao nacional-popular. 227 Paulo Mercadante e A consciência conservadora no Brasil (1965) A impressão de que a sociedade, o povo, os grupos sociais, as pessoas pouco ou nada representavam era negada pelas medidas de controle e repressão que o governo punha em ação. Diante das forças sociais não representadas no bloco de poder, em face da rebeldia latente ou aberta contra os interesses dos senhores de escravos, nos engenhos de açúcar e fazendas de café, o poder monárquico agia de forma cada vez mais repressiva. A força, a sistemática e a preeminência dos interesses dos grupos e camadas dominantes representados no aparelho estatal eram de tal porte que alguns intelectuais e políticos imaginavam que a sociedade fosse amorfa e o Estado organizado; como se este pudesse existir por si. Não percebiam o protesto do escravo, a insatisfação do branco pobre no meio rural, as reivindicações de artesãos, empregados e funcionários na cidade. Sem saber — talvez — escreviam a crônica dos vencedores. Octavio Ianni, 1984, p. 13 — grifos nossos. N’A consciência conservadora no Brasil, Mercadante analisa a história do Brasil sob a perspectiva da “conciliação” de classes, que se tornou um conceito de grande valia para os intelectuais ibeefeanos, ou seja, a medida que nega a luta de classes. Essa interpretação pode ser construída porque há um escamoteamento deliberado das lutas sociais que permearam a história do Brasil no século XIX. A obra de Mercadante, com quatro edições 10 e mais de 50 anos de história, tem boa recepção entre os diversos intelectuais conservadores. Para Olavo de Carvalho (2001), a obra é “um clássico da ‘história das mentalidades’”. João Alfredo de Souza Montenegro a elogia, destacando-lhe: [o] arrojo renovador de abordagem da mentalidade insistentemente subjacente na evolução sócio-cultural brasileira, a ponto de, em momentos de crise, de impasse da Nação, sem levantar em protagonismos exacerbados, forçando recuos, aparando arestas progressistas, e plantando o gradualismo com pretensões de absorver os conflitos sociais, visualizados como impertinências demoníacas pela ótica da ética dominante (1978, p. 234). 10 As edições são: 1ª ed. (Rio de Janeiro: Saga, 1965); 2ª ed. (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972); 3ª ed. (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980); e 4ª ed. (Rio de Janeiro: Topbooks, 2003), com a qual trabalhamos neste texto. 228 Por sua vez, Antonio Olinto (2004) diz em 1965: “Saiu afinal o livro de Paulo Mercadante, A consciência conservadora no Brasil, que representa um aferimento denso e tranquilo da situação brasileira de ontem e, até certo ponto, de hoje”. Nelson Mello e Souza, prefaciador da quarta edição dessa obra, assinala que a “conciliação” de Mercadante é a descoberta da “imantação histórica”, do sentido da história do Brasil, caracterizada pelo fato de que as classes subalternizadas teriam aceitado, por vontade própria, sua condição social. O conservadorismo brasileiro seria, nas palavras de Mercadante (2003, p. 40), “avesso a revoluções, desconfiado do Estado forte, propenso a garantir as liberdades individuais contra o autoritarismo, inclinado a aceitar a lógica gradualista da história e o lento evoluir da base de valores; o conservadorismo ‘no’ Brasil assumiu perfil conciliatório”. Souza diz que Mercadante teria desvendado a “dialética da conciliação” na história do Brasil. A obra em questão é uma das maiores expressões intelectuais que culminaram com o golpe de 1964 e com os anos de chumbo da Ditadura. Noutros termos, é a negação da luta de classes e a aceitação do prisma imposto pela classe dominante. Ainda que seja expressão da onda conservadora que assolou o país, a obra de Mercadante é coesa e muito bem construída, objetivando estabelecer uma visão alternativa aos intelectuais ligados ao PCB, sobretudo Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré. Neste sentido, o autor não emprega termos e noções de mero reacionarismo político. Ao contrário, resgata a ação habilidosa da classe dominante, que, segundo ele, desde a Independência, mantinha na política uma “tendência de centro, moderada e oportunista” (MERCADANTE, 2003, p. 96). Essa política seria a reafirmação do “grande fazendeiro, espécie de gentry de caráter territorial”, que, por sua vez: É dúplice econômica e mentalmente: vive numa fazenda de escravos de látego em punho enquanto se empolga pelas ideias liberais correntes nos países europeus já libertos do feudalismo; revolucionário, quando analisa as suas relações de produção com o mercado externo, e conservador, quando reage a quaisquer ideias de abolição. Seu caminho é necessariamente o compromisso entre a escravatura e o liberalismo econômico (MERCADANTE, 2003, p. 105 — grifos nossos). 229 Assim, Mercadante busca amainar as interpretações sobre a classe dominante, além de trazer o aspecto culturalista da “mentalidade” que faria do proprietário rural um “revolucionário”. Caio Prado (2006, pp 57-81), contrariamente, busca mostrar que, diante das lutas das classes populares, ainda que incipientes do ponto de vista ideológico e organizativo, a classe dominante adotou um pragmatismo que não raro a levou à traição. Interessante, neste sentido, notar a maneira pela qual o autor caracteriza os Andradas: Em março de 1832 fundam a Sociedade Conservadora, núcleo do partido restaurador, o “caramuru”, como foi chamado. Figuravam entre eles os Andradas, inclusive José Bonifácio [...] que, de nativistas vermelhos antes da Independência, passam, com D. Pedro no trono do Império, a palacianos. Evoluem daí, quando enxotados do ministério, a ultrademagogos. Os discursos de Antônio Carlos na Constituinte ficaram como modelos de retórica demagógica. Depois de 7 de abril, tornaramse, “restauradores”, ultrarreacionários (PRADO JR., 2006, p. 70). Ainda que Mercadante fale da classe dominante como um todo, e Caio Prado dos irmãos Andrada, que também pertenciam à classe dominante, é notável como os autores apresentam um enfoque diferenciado: enquanto que a visão crítica caiopradiana busca revelar a farsa e o pragmatismo reacionário, Mercadante sugere uma classe dominante hábil e moderada, ora revolucionária, ora conservadora. Nelson Werneck Sodré, por sua vez, aponta a necessidade prática que tinha a classe senhorial de exercer e manter seu domínio sobre toda extensão territorial da ex-colônia: “A Independência é, assim, uma empresa capitaneada pela classe dominante colonial, que a configurou de acordo com seus interesses, entre os quais o de ‘manter intacta a estrutura de produção’, nela incluída ‘a continuação do trabalho escravo’, e a opção de aliar-se à burguesia europeia” (SODRÉ, 1971, p. 189 apud BROCCHI, 2008, p. 117). Em relação à “moderação”, Mercadante (2003, p. 98) argumenta que esta seria o “lastro de sábia prudência”, já que teria evitado a revolução de escravos, como ocorrera em 1804, no Haiti: 230 O temor à revolução teria sido um dos esteios do movimento pela independência. [...] Todos acabariam acordando com a forma de arranjo político, pelo qual se operaria o movimento, e do mesmo modo conformados com a ausência de participação popular. O povo fora advertido [...] de que sua atuação nos acontecimentos importantes sempre poderia proporcionar um doloroso saldo de tragédia (MERCADANTE, 2003, pp. 107-108). Mercadante expressa, assim, uma das principais caraterísticas do “moderantismo conservador”, conforme Gramsci (2006, p. 291): “temor pânico dos movimentos jacobinos, de qualquer intervenção ativa das grandes massas populares como fator de progresso histórico”. No entanto, Mercadante não traz isso de forma crítica, tampouco reflete sobre as consequências sociais do apassivamento do povo. Ademais, apresenta a participação das classes populares como negativa e indesejada, neutralizando o interesse de classes. Do mesmo modo, o autor se abstém de considerar as consequências sociais contemporâneas, limitando- se a questões sobre a ordem conservadora. De outro ponto de vista, Sodré (2002, p. 14) aponta a “contemporaneidade do não coetâneo”, ou seja, de antagonismos muitas vezes profundos e de contrastes que sobrevivem mesmo com a extinção do escravismo. Sodré aponta ainda o interesse classista dos senhores: A Maioridade tem uma significação mais profunda do que mostra a decisão formal de antecipar o governo de um príncipe conservado em reserva para utilização oportuna. Do ponto de vista exterior, o golpe importa na sequência de fidelidade da classe senhorial às instituições monárquicas, que assemelham a ex-colônia aos países do ocidente europeu. Tal fidelidade persistirá até fins do século XIX e está vinculada ao desejo de evitar alterações políticas — que é um traço característico da classe senhorial brasileira, na época. Não corresponde, entretanto, senão ao aspecto formal do problema. No fundo, para aquela classe, tratava-se de exercer o seu domínio sobre a extensão territorial que recebera da Colônia (SODRÉ, 1971, p. 189 apud BROCCHI, 2008, p. 223 — grifos nossos). Diante dos autores comunistas, Caio Prado Jr. e Nelson Wernéck Sodré, Mercadante apresenta uma visão alternativa. A partir da perspectiva da chamada “Escola Culturalista”, o autor ibeefeano busca as idiossincrasias da classe 231 dominante. Mas essa não é uma escolha eventual, pois reflete o interesse do historiador em privilegiar determinadas características e, pelo menos, abrandar os interesses de classe e os antagonismos e contradições da sociedade senhorial escravista. É certo que o autor obtém elevado grau de sucesso com seu livro, a ponto de ele ser considerado a obra mais acabada da historiografia ibeefeana. Para nós, trata-se de um clássico do conservadorismo brasileiro que não surgiu por acaso. Publicada um ano após o golpe de 1964, A consciência conservadora no Brasil surge em um momento marcado por intensos debates sobre a questão nacional brasileira, debates suscitados por autores cujas obras tornaram-se clássicas. Com relação à obra de Caio Prado Jr., Evolução política do Brasil (1933), cabe mencionar que a segunda edição, publicada em 1947, tinha-se esgotado. Desse modo, a obra foi reeditada duas vezes pela editora Brasiliense: em 1961 (3ª ed.) e 1963 (4ª ed.). Apesar de transcorridos 30 anos desde sua primeira edição, em 1933, era um clássico que se aproximava da ótica do PCB, pois destacava as lutas políticas e sociais, bem como apontava a ausência de programas políticos e de direção política, o que resultou no ímpeto difuso e desordenado das lutas regenciais (SECCO, 2008, p. 163). Este processo permeado de lutas políticas e populares era visto como uma “revolução”, a cuja concepção Prado Jr. se manteve fiel por toda vida (idem, p. 115). Além disso, o historiador marxista coloca em pauta a questão da democracia durante a Independência, que, do ponto de vista das classes pobres, foi representada por projetos que abrangiam completas transformações sociais e divisão igualitária de toda a riqueza social; já do ponto de vista dos democratas radicais (representantes das classes populares), a Independência visava remover a ordem vigente herdada da colônia (PRADO, 2006, pp. 58-59). Nos anos 1960, a questão da democracia era candente e assim permaneceria por muitos anos — até o fim da Ditadura Militar, em 1985. A partir do golpe de 1964, entretanto, tornou-se uma questão explosiva. Por isso, a obra caiopradiana, um clássico, preservou sua atualidade. Sua opção pela classe trabalhadora se confirmaria pouco tempo depois, ou seja, em 1966, quando publicava A revolução brasileira, na qual defendia, em coerência com o que já vinha fazendo na Revista Brasiliense, “uma estratégia defensiva para os trabalhadores, 232 mas ao mesmo tempo independente a centrada em objetivos concretos” (SECCO, 2008, p. 115). Em 1962, Nelson Werneck Sodré publica A formação histórica do Brasil, resultado de um curso ministrado no ISEB, onde, desde 1956, lecionava uma disciplina homônima. Na época, o autor era um “intelectual politicamente ativo na cena brasileira, vinculado a posições que buscavam uma solução nacionalista e democrática para os graves problemas do país”. Além disso, seu livro “apresenta um argumento político e uma visão lúcida das possibilidades de resolução da questão nacional e democrática em favor do Brasil e de seu povo” (GAIO, 2008, pp. 111 e 113). Na conclusão de sua obra, Sodré faz uma crítica radical à ordem vigente, sinalizando as “perspectivas da revolução”, conforme denominou o derradeiro capítulo: O sistema em que o imperialismo, o latifúndio e os empresários nacionais a ele associados encontra ainda as suas amplas possibilidades de assegurar um rendoso domínio. A manipulação de seus mecanismos, entretanto, torna-se ostensiva, já não tem condições para dissimular-se, para apresentar-se como uma fatalidade. [...] Torna-se ostensiva quando se opõe a uma política externa independente, a uma política de paz, a uma política de soberania nacional, a uma política de desenvolvimento industrial, a uma política de libertação do campo, a uma política de elevação do nível de vida do povo, a uma política de elevação de seu nível de cultura (SODRÉ, 2002, pp. 438-439). Sodré assume uma posição aberta de crítica e confronto ao imperialismo e aos setores da classe dominante a ele associados. Em 1963, publica uma edição ampliada de Introdução à revolução brasileira, que havia aparecido em 1958. Esses historiadores marxistas eram comprometidos com as classes exploradas e oprimidas, do passado e do presente. Independente da crítica a que estão submetidos e dos equívocos do PCB, eles concordavam com a linha do partido (Sodré mais do que Caio Prado, que mantinha certo distanciamento) de que “era tarefa dos comunistas integrar uma frente nacionalista, com um programa de emancipação nacional e de implementação da revolução democrático-burguesa” (SECCO, 2008, p. 105). Paulo Mercadante responderá com um posicionamento 233 diametralmente oposto. Por exemplo, quando analisa a sociedade escravista do século XIX demonstra que: Quase toda a população, aproximadamente noventa por cento, vivia nos domínios, e dessa massa apenas os senhores formavam um grupo social definido, embora restrito. Os demais moradores dos latifúndios ressentiam-se da falta de homogeneidade. Escravos, em sua maioria pessoas atrasadas e ignorantes, arrancadas com violência de seu meio e com mínimas condições de se organizarem socialmente. A instabilidade era também de outras camadas de moradores do campo. Os agregados das fazendas e engenhos, os sitiantes, pequenos proprietários com suas engenhocas primitivas, ligados todos a produtos secundários de economia agrícola — por sua dependência em relação aos senhores do domínio, e pela dispersão, não constituíam agrupamentos sociais estáveis. [...] Na enorme área dos latifúndios agrícolas, só os grandes senhores rurais existem. Fora deles, tudo é rudimentar, informe e fragmentário (MERCADANTE, 1978, p. 35). Assim, diferentemente dos autores comunistas, Mercadante faz uma análise de cunho sociológico na qual não há contradições, bem como escreve uma história que prescinde dos momentos de luta das classes populares e dos momentos de ruptura. Cotejando-se o trecho acima com a epígrafe deste tópico, de autoria de Octavio Ianni, percebe-se que o autor produziu uma crônica dos vencedores, cuja trajetória é contada como uma epopeia. Em um dos trechos finais de sua obra, Mercadante demonstra a franqueza de pensador conservador, concluindo que: “A escola da autoridade é a única legítima, porque é a única realizável; um governo filho da revolta não pode marchar um só dia em virtude de seu princípio, e expira, se o não combate” (MERCADANTE, 2003, p. 290). O autor não vislumbra nenhuma ruptura com a ordem vigente, concebida por ele como acachapante. Miguel Reale e os Imperativos da Revolução de Março (1965) O Estado jurídico é uma miragem que muito convém à burguesia, uma vez que substitui a ideologia religiosa em decomposição e esconde aos olhos das massas a realidade do domínio da burguesia. Evgny Pachukanis, 1988, p. 100. 234 A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte [...] a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. [...] Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória [...] Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a esta cabe ditar as normas. Ato Institucional nº 1, 9.4.1964 — grifos nossos. Em 1965 surgiu outra importante obra ibeefeana: Imperativos da Revolução de Março, de Miguel Reale. Escrita poucos meses após o golpe, entre junho e outubro de 1964, a obra representaria um dos primeiros esforços intelectuais dos golpistas, visando tanto justificar a tomada do Estado como sistematizar alguns princípios ideológicos fundamentais para o sucesso dessa empreitada. Primeiramente, o que chama a atenção é que — assim como o livro de Mercadante aqui analisado — a obra é lançada no início da Ditadura Militar (que ainda duraria longos 20 anos), confirmando o autor como um dos intelectuais conservadores mais relevantes do Brasil no século XX. De acordo com Diogo Cunha (2014), Reale “engajou-se [em alguns dos] grandes movimentos políticos e embates ideológicos do século XX; paralelamente construiu uma importante carreira como jurista, atuando também em outros campos do saber”. A obra em questão reúne, além da introdução do autor e da nota do editor, nove textos, uma entrevista e a transcrição de Reale da “Proclamação de Primeiro de Abril”. Esta foi difundida por rádio, momento em que o então secretário da Justiça do Estado de São Paulo colocou-se como articulador do “movimento” golpista e assegurou que “fora de dúvida é a vitória da causa da democracia e da liberdade” (REALE, 1965, p. 117). Isso comprova, de fato, a real adesão do jurista paulista ao golpismo. A publicação dos Imperativos surge em um contexto histórico específico, definido pela correlação de forças políticas e sociais, nas quais as lideranças civis e intelectuais orgânicas tinham um papel importante na consecução do golpe e do regime dele oriundo. Sob este enfoque, Reale, um intelectual orgânico renomado da direita, desempenhava uma função não menos importante. Segundo David Maciel 235 (2004, pp. 42-43), as lideranças civis tiveram um papel decisivo na articulação do golpe, já que “possuíam um contato político-ideológico estreito com empresários, políticos conservadores e lideranças da sociedade civil”. Portanto, as lideranças civis foram fundamentais na construção do consenso em torno da tomada do Estado e, conforme analisaremos a seguir, na articulação ideológica. Gostaríamos de salientar a construção ideológica que o líder do IBF faz na obra, dando projeção de longo curso à Ditadura que estava em processo de instauração, antecipando uma “reforma moral” de extensa trajetória. O autor, como abordaremos a seguir, procede duas operações: por um lado, põe em limites estreitos à revolução, concebida como reordenamento jurídico, não permitindo que ela avance além dos marcos burgueses, rumo à “revolução proletária”. Por outro lado, expande a ordem jurídica por meio do aggiornamento (reformulação e atualização) jurídico da autocracia burguesa. Neste segundo momento, projeta uma reforma moral balizada por normatização autoritária, que passa a englobar o todo, visando estabelecer novas relações de força e poder mais favoráveis à classe dominante. Como veremos, estas duas operações são unificadas pelo autor. Nos Imperativos, o jurista paulista constrói uma concepção de revolução em sintonia com o movimento golpista — esta é a primeira operação de sua construção.11 Por duas razões isso é crucial: por um lado, a ideia e questão da revolução brasileira eram decisivas na ótica dos intelectuais da esquerda (como vimos anteriormente com Caio Prado e Nelson Werneck); por outro lado, conceber a tomada do Estado de 1964 e o regime dele oriundo como “revolução” permitia escamotear o fato de que se tratava de golpe e ditadura. Neste sentido, é interessante notar o fragmento a seguir: 11 Interessante notar as fontes que o autor recorre para fundamentar sua concepção de revolução. Ele cita Alfredo Rocco (Trasformazione dello Stato, 1927) e Plínio Salgado (Psicologia da revolução, 3º. ed., 1937) (REALE, 2000, p. 86). Rocco foi responsável por desenvolver a teoria do corporativismo, que fundamentou a política econômica e social do governo fascista na Itália. Salgado é amplamente conhecido como principal líder do movimento integralista. Reale diz ainda que Lênin e Trotsky concordam com essa concepção, mas isso é jogo de pura retórica dissuasiva do autor, não condizendo com a realidade. As raízes integralistas do pensamento jurídico de Reale já foram apontadas por Athanis Rodrigues (2014). 236 Uma Revolução, que surge sem uma ideia diretora, deve constituí-la através de um trabalho de exegese, que desça serenamente até os refolhos da alma popular. [...] Se me perguntarem qual o sentido mais decisivo a atribuir-se a esta Revolução, direi que é o da “honestidade” ou da “seriedade”, não apenas como valor ético, como exigência moral, mas também como pressuposto de ordem intelectual, como imperativo de opção no plano político e administrativo (REALE, 1965, p. 12 — grifos nossos). O autor qualifica a “Revolução” de forma positiva, com o “valor da ‘seriedade’ e da ‘honestidade’” (REALE, 1965, p. 26), em contraposição à “corrupção” do “governo [de João Goulart] convertido em mestre e senhor da mazorca”. Segundo Reale, vinha se sucedendo “a deterioração da autoridade e a subversão dos valores hierárquicos” (REALE, 1965, p. 95). Na exposição da “revolução”, o jurista paulista estabelece importante diretriz ao movimento golpista, que é a da “reforma dos costumes” até as partes mais profundas (“refolhos”) da “alma popular”, fazendo da contrarrevolução não apenas um processo político e militar, mas também elevandoa à totalidade, ao englobá-la aos aspectos sociais e culturais. A outra operação realizada por Reale diz respeito ao aggiornamento jurídico (das normas e da Constituição) da autocracia burguesa. Segundo ele, diante da “solerte propaganda comuno-janguista, […] o ato revolucionário por si já implica a ruptura do ordenamento jurídico vigente”. O autor expressa a necessidade de reformular a Constituição de 1946, que teria “se mostrado incapaz de opor uma barreira ao desmando e às maquinações do comunismo internacional” (REALE, 1965, p. 99). Um dos motes principais dos estratos sociais golpistas era o anticomunismo. Segundo David Maciel (2004, p. 43), “o anticomunismo era uma noção ampla o suficiente para abarcar os setores políticos vinculados à tradição comunista ou ao marxismo, bem como toda e qualquer ação ou articulação desestabilizadora da ordem social numa perspectiva contra-hegemônica”. Assim, muito além de uma questão ética ou moral, a pregação anticomunista era um fator estratégico de desmobilização das forças contra-hegemônicas, podendo ser uma alternativa à autocracia burguesa, bem como justificação dos rumos enveredados pela Ditadura logo nos primeiros meses do regime. 237 O Ato Institucional nº 1 (AI-1) é fundamental na construção do jurista paulista. Segundo Reale (1965, p. 101), “O Ato Institucional foi [...] o caminho certo encontrado pela revolução”. Afirma ainda que “toda revolução, como escrevi em meu livro Teoria do Direito e do Estado, alberga uma ordem jurídica potencial, por ser a ruptura de uma ordem jurídica tendo em vista a instauração de um sistema novo, acompanhado necessariamente de correlativa mudança espiritual do povo” (REALE, 1965, pp. 101102), e que “toda revolução assinala o início de uma nova fase na vida do direito, possuindo valores que justificam a emanação de normas de caráter excepcional, [...] para prevenir outros atentados ao regime que se quer preservar e aperfeiçoar” (idem, pp. 105-106). O autor concebe a revolução truncada de forma unificada com a expansão da ordem jurídica, visando a reforma moral. Seguindo a indicação que o autor fornece nos Imperativos (REALE, 1965, p. 101), na obra Teoria do Direito e do Estado (1940), ele afirma que a revolução “é sempre ruptura de uma ordem jurídica tendo em vista uma ordem jurídica nova” (REALE, 2000, p. 86), o que pressupõe um limite estreito ao que venha ser uma revolução, evitando que esta seja associada à ruptura do sistema capitalista, mas, antes disso, seja não mais do que o aggiornamento dos aspectos jurídicos da autocracia burguesa. Além desse limite que trunca a revolução, enquadrando-a nos marcos da autocracia burguesa, Reale coloca a questão da Ditadura em termos de quebra da velha ordem jurídica e da necessária e subsequente reforma jurídica do Estado, com a construção de nova ordem jurídica. Isso permite ao regime a fórmula da “miragem jurídica” (PACHUKANIS, 1988, p. 100) que visa escamotear o domínio burguês, sob o manto de um “necessário” reordenamento jurídico articulado por normas apresentadas como objetivas e impessoais. A partir da contribuição de Pachukanis (1988), é possível problematizar teoricamente o autoritarismo dos juristas burgueses. O jurista paulista reafirma o AI1 e coloca de forma mais acabada o autoritarismo dos juristas burgueses quando propõe uma “reforma moral”, apreendida em termos de “reforma dos costumes” e de “mudança espiritual do povo” (REALE, 2000). Além disso, os representantes da “revolução” são apresentados como “a autoridade suprema” que “formula as normas 238 e engloba o todo” (PACHUKANIS, 1988, p. 19), fazendo da norma uma “prescrição imperativa” (idem, p. 60) para reforma da moral. Desta forma, Reale acaba por conceber a “norma como regra de conduta, formulada autoritariamente” (idem, p. 51). Por fim, não podemos ignorar o fato de que por trás da “reforma moral” que deveria descer “até os refolhos da alma popular” havia o AHF/IBF, que, conforme a definição, “busca a difusão de uma filosofia, de uma concepção geral da vida” (REALE, 2000). Tal projeto surge em conformidade com a função orgânica do AHF/IBF, que visa orientar os fundamentos da civilização burguesa, colocando-a sob o influxo da autocracia burguesa e dando um folego de duas décadas à Ditadura. Considerações finais A autocracia burguesa é incapaz de sustentar-se pelo uso da força sem o respaldo fundamental do consenso. Neste sentido, a construção da hegemonia (GRAMSCI, 2002, p. 95) 12 e do consenso não pode prescindir de intelectuais orgânicos que dão à classe dominante consciência da própria função no campo econômico, social e político. Noutros termos, conforme assinala Gramsci (2004, p. 21): “Os intelectuais são os ‘prepostos’ do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político”. No entanto, a atuação orgânica dos intelectuais não é obra individual de intelectuais isolados, visto que ela se consolida em estruturas orgânicas do poder burguês, dando-lhe homogeneidade, desenvolvimento e difusão. Neste sentido, cumpriu papel fundamental o IBF, desenvolvendo fundamentos e pressupostos no plano da ideologia e da filosofia, pressupostos indispensáveis à direção moral e intelectual da autocracia burguesa. Dessa maneira, identificamos no instituto um verdadeiro “aparelho de hegemonia filosófico”. Portanto, o IBF e sua intelectualidade cumpriram uma importante função para a autocracia: elaborar a consciência conservadora, 12 Gramsci define que “O exercício ‘normal’ da hegemonia, no terreno tornado clássico pelo regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante em muito o consenso, mas, ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria, expresso pelos chamados órgãos da opinião pública - jornais e associações -, os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados”. 239 capaz de justificar, nos planos moral, intelectual e ideológico, a ditadura de classe, que — uma vez naturalizada pela tradição conservadora remendada pelos ibeefeanos — reforçou o consenso que criou em torno de si. O IBF e seus intelectuais foram um dos responsáveis pela expansão autocrática nos planos intelectual, moral e espiritual. Ao passo que Mercadante ofereceu à autocracia burguesa secularidade e perenidade, disponibilizando uma releitura das interpretações dos intelectuais comunista, Reale, por sua vez, camuflou o autoritarismo em formulações jurídicas que aparecem sob a roupagem de normas objetivas e imparciais, uma vez que a subordinação da classe trabalhadora ao capital e sua coação não podem “surgir sob forma não camuflada” (PACHUKANIS, 1988, p. 98). Em ambos os casos, vê-se, por parte desses intelectuais conservadores, a projeção de longo curso, mirando passado, presente e futuro. __________________________ Fontes BRASIL. Ato Institucional Nº 1, de 9 de abril de 1964. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm>. Acesso em: mar. 2016. em: CARVALHO, Olavo de. Paulo Mercadante e a alma brasileira (2001). Disponível em: <http://www.olavodecarvalho.org/textos/pmercadante.htm>. Acesso em: jan. 2008. CORBISIER, Roland. Autobiografia filosófica: das ideologias à teoria da práxis. 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