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Construindo a Cidade Moderna:
a Introdução dos Esportes
na Vida Urbana do Rio de Janeiro
Gilmar Mascarenhas de Jesus
o objetivo disso tudo era tomar a vida social ,la cidade estável,
predizível, produtiva e, acillla de tudo, veloz (. .)
Para (...) tomarem-se velozes e adaptadas às nwdenzas fontes de energia
as pessoas tinham de ser fisicamente cO/uficiO/ladas
Foi para isso que os espartes modernosforam illve,zrados.
Sevcenko(I993: 82)
.
.
IlItrodllção
Parece desnecessário, por sua notória ubiqüidade, reafirmar que os
esportes ocupam lugar de incontestável destaque no mundo contemporâneo. Em
suas atuais estruturas, a vida urbana abriga inúmeros espaços destinados à prática
esportiva, seja ela de caráter profissional, apresentada como espetáculo nos
Nota: Este texto (em sua origem em pesquisa efetuada para a disciplina Geografia da Cidade do Rio de
Janeiro, em curso realizado no segundo semestre de 1997 no Programa de Pós-Graduação em Geografia da
UFRJ. Agradecemos a revisão crítica e os valiosos comentários do professor Maurício de Almeida Abreu,
responsável por essa disciplina.
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estudos históricos
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grandes estádios, autódromos, ginásios cobertos etc., seja ela uma atividade
físico-educacional ou ainda de mero enrretenimento informal, amplamente
disseminada pelo tecido urbano nas escolas ou em locais improvisados nas ruas
e praças. Para atingir esse patamar de inserção na dinâmica espacial da cidade,
os esportes cumpriram historicamente um longo e complexo itinerário, do qual
analisaremos aqui uma etapa que julgamos crucial.
•
Trabalhamos com o pressuposto básico de que um momento decisivo do
processo histórico de consrrução desse amplo cenário "coincide" e guarda im­
portantes conexões com o advento da modernidade urbana. O que Sevcenko quer
afirmar no rrecho supracitado é que os esportes modernos (não as esrritas
modalidades em si, com seu corpo específico de regras e equipamentos, mas os
esportes como prática social de amplo significado) adquiriram tal pujança na
sociedade justamente por responderem prontamente a certas demandas histori­
camente detelIllinadas. Em ourras palavras, os esportes foram "inventados", num
primeiro momento, no âmbito da recreação escolar, por exemplo, para depois
serem "reinventados" no bojo da modernidade urbana e, nesse segundo mo­
mento, adquiriram conotações simbólicas e uma dimensão político-econômica
.
ate entao Imprevistas.
,
-
'
A modernidade, com sua reiterada aura otimista e sua fé inabalável no
progresso, impulsionou nas cidades novos valores comportamentais, dos quais
destacamos aqui a cultura fisica. Vale regisrrar que entendemos a arrnosfera
moderna como portadora não apenas de todo um conjunto de novas expectativas
e práticas sociais, mas também de rransfolInações decisivas na espacialidade
urbana, que destruíram velhas urbanidades e as substituíram por novos fOlma­
1
tos. As grandes refolInas urbanas européias do século XIX abriram amplos
espaços públicos, preencheram-nos com monumentos que expressavam o rriunfo
da burguesia e dotaram-nos de eventos e cerimoniais atléticos de apologia ao
ideário da mens sana in corpore sano. Nesse contexto de transform ações, queremos
verificar como se comportou a cidade do Rio de Janeiro.
Nesse sentido, este rrabalho se esrrutura a partir de dois objetivos
cenrrais. O primeiro é tentar demonsrrar, arravés de dados e situações concretas,
que a cidade do Rio de Janeiro vivenciou, a partir de 1850 e mais intensamente
no período que se estende pelas rrês primeiras décadas de vida republicana, uma
rica atividade esportiva, caraterizada pela inrrodução e multiplicação de novas
modalidades de esportes e pela proliferação de associações civis criadas para esse
fim. Tal foi a intensidade desse movimento que podemos falar na ocorrência de
uma verdadeirafebre esportiva, em alusão às famosas epidemias que tanto preocu­
param a cidade então. Com uma peculiaridade, porém: essa epidemia, diferente­
mente das demais, afetava majoritariamente os segmentos abastados da popu­
lação carioca, sendo portanto bem aceita e estimulada. O segundo objetivo é
18
COllstruilldo a Cidade Modema
levantar e debater algumas hipóteses que expliquem tal fenômeno. Buscamo-las
não apenas na escala local (no âmbito das profundas transformações no uso e na
forma dos espaços públicos), mas também no contexto das metrópoles européias,
onde se originou a onda mundial de glorificação do fisiculturismo e dos esportes,
como divertimento e via de obtenção uma vida saudável, e ainda como espetáculo
2
para a nascente indústria do entretenimento urbano.
3
Em se tratando de um exercício de geografia histórica, uma preocupação
que atravessa todo o trabalho é a de relacionar o amplo movimento supracitado
com as mudanças na forma e dinâmica urbanas. Queremos vincular o surto da
febre esportiva
ao momento em que a espacialidade urbana finalmente se tomou
apta a vivenciá-la. A análise do material obtido nos sugere que a cidade levou
algumas décadas para "responder" positivamente aos apelos de desenvolvimento
dos esportes, que nos chegavam pela zona portuária e pelos jovens bacharéis
recém-vindos da Europa, mas que também já ocorriam no interior da vida urbana
4
carioca, por iniciativa dos ingleses que aqui viviam.
Procuramos assim enfatizar o papel dos espaços públicos, que aqui
aparecem como logradouros em geral, espaços baldios ou praias, e também como
equipamentos de uso coletivo destinados (ou apropriados) ao lazer. Tal preocu­
pação não é gratuita: o movimento que difundiu amplamente a prática esportiva
apresentou dois fortes apelos relacionados diretamente aos espaços públicos. De
um lado, a busca de áreas amplas para reunir espectadores em tomo de um
espetáculo esportivo - e nesse aspecto as praças antecederam os modernos
estádios. De outro, a busca da atividade ao ar livre, tendo o sol e a oxigenação
como ingredientes de uma prática saudável. Uma de nossas hipóteses é que a
relativa demora da cidade do Rio de Janeiro em absorver o modismo europeu da
5
esportizaçã0 em parte se explica pela situação e uso de seus espaços públicos: o
estado precário de conservação, o porte acanhado, a tradição cristã de uso austero
e ritualizado (pela sacralização), o aparato de controle e vigilância da Igreja e da
burocracia estatal e, por fim, a escravidão dotavam tais espaços de um significado
. predominantemente pejorativo e mesmo repelente para as parcelas dominantes
da sociedade.
Este uabalho se divide em dois segmentos. No primeiro, tratamos da
cidade colonial brasileira, e em particular do Rio de Janeiro (até o meado do
século XIX), como um espaço urbano pouco permeável à introdução da atividade
esportiva. A rigidez que caracterizou o uso de seus (poucos) espaços públicos
imprimiu uma sociabilidadé restrita e muito pouco aberta a novas formas de
comportamento. O objetivo é exatamente contrapor um cenário urbano colonial
relativamente "fechado" a um outro, posterior, caracterizado (ao menos no plano
das idealizações burguesas) pela abertura cosmopolita a novas idéias e atitudes,
algo que Marshall Berman (1986: 18) definiu como euforia da modernidade:
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exacerbação dos prazeres mundanos, atmosfera de agitação e rurbulência, arurdi­
mento psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e
destruição de barreiras morais. Ainda que tal atmosfera se tenha implantado por
aqui de forma bastante incompleta (ou mesmo artificial), ela pode ajudar a
explicar a velocidade com que a cidade passou a absorver os esportes na virada
do século.
No segundo segmento, visando a atingir o primeiro objetivo central já
aqui mencionado, tratamos de descrever a ampla ocorrência de atividades espor­
tivas, que atingiu seu ponto culminante na cidade no início do período republi­
cano. Novamente, procuramos inserir tal movimento no contexto da dinâmica
sócio-espacial urbana de então, sugerindo hipóteses que articulam afebreesportiva
ao movimento geral da sociedade e substancialmente à espacialidade moderna.
Observando a difusão dos esportes na cidade de São Paulo nas primeiras
décadas deste século, Nicolau Sevcenko (1993) localiza importantes agentes
sociais promotores da "culrura fisica", como a influente Academia de Direito do
Largo de São Francisco, e atores particulares, como Fernando de Azevedo,
autoridade educacional de grande audiência nos meios políticos de então. Neste
nosso trabalho, não chegamos a detectar agentes específicos (certamente eles
existiram, como Coelho Neto, por exemplo) pois não tivemos tal preocupação.
Interessou-nos tão-somente delinear o contexto espacial propício ao fenômeno
da febre esportiva no Rio de Janeiro.
Toda uma abordagem geográfica dos esportes está por ser construída no
Brasil. Contamos com os caminhos já trilhados por geógrafos europeus (Bale,
1989, 1993; Augustin, 1995), mas é preciso compatibilizar tais contribuiçôes com
as particularidades de nossa realidade histórica e sócio-espacial. Este trabalho
pretende oferecer uma pequena contribuição nesse sentido.
A
cidade colonial: espaço de sedC/ltarismo e sociabiliflades ,.estritas
Operar uma distinção absoluta entre um urbano colonial e um outro que
lhe é consecutivo e "moderno" é reconhecidamente uma tarefa arriscada. No caso
brasileiro, esses dois períodos da evolução urbana comparecem de forma visível
em cidades como o Rio de Janeiro, mas isso não significa dizer que se pode
estabelecer um momento preciso de ruprura, em que um passado colonial cedeu
lugar à modernidade. A vida urbana encena facetas diversas, e cada uma delas
pode apresentar um movimento relativamente diferenciado do conjunto. No
plano político-administrativo, por exemplo, a cidade perdeu sua condição colo­
nial em 1822, com a proclamação formal da independência nacional. No plano
econômico, entretanto, as estruturas de dominação e exploração colonial persis­
tiram, sob a égide do Império Britânico, posto que, segundo os telmos talvez
20
CO/lstrui/ldo a Cidade Moderna
exagerados de Gilberto Freyre (1948: 15), PortUgal já não passava de um vinhedo
dos ingleses. Se observatnlOS, por outro lado, a fOlIna urbana, poderemos con­
cordar com Maurício Abreu (1987: 67) e dizer que a herança colonial-escra­
vocrata só foi removida definitivamente da paisagem carioca com a radical
reforma de Pereira Passos, já no início do século XX, quando o traçado irregular
e acanhado das vielas, largos e becos da área central cedeu lugar aos amplos e
retilíneos bulevares de arquitetura monumental, símbolos da modernidade capi­
talista.
No plano das sociabilidades e dos usos dos espaços públicos na cidade
do Rio de Janeiro, talvez seja prudente basearmo-nos num longo processo de
transição das estruturas da vida cotidiana, que se iniciou discretamente em 1808
com a abertura dos portos e a chegada da família real, trazendo um novo conceito
de vida urbana. O movimento adquiriu força a partir de 1850, com a adesão
crescente ao "mundanismo" (Buarque, 1994), e iria consolidar-se já em plena
Belle Epoqlle, quando finalmente novas possibilidades de experiência encon­
traram um cenário urbano propício. Estudando o advento dos esportes modernos
no Rio de Janeiro, é essa a dimensão que nos interessa, a da passagem gradual de
uma cidade vigiada e de escassa sociabilidade ao ar livre para uma outra, em que
o espírito laico e hedonista da modernidade veio subverter e dessacralizar os
espaços públicos. Comecemos então pelo urbano colonial.
,
A cidade colonial brasileira, quase privada de poder, dinamismo e vida
cultural, pouco contribuiu para o desenvolvimento de uma rede de sociabilidades
sobre a qual pudessem mais tarde getminar as associações esportivas. Debret nos
deixou registrado que o único esporte praticado no Brasil colonial era a caça.
Fernando de Azevedo, influenciado pelo nacionalismo de seu tempo, procurou
negar a influência inglesa e tentou acrescentar outras modalidades (que Gilberto
Freyre trataria apenas como nossos quase-esportes rurais), como a cavalhada,
espécie de mimetismo da guerra, herança da cavalaria medieval. Havia ainda a
eventual tourada, mas o próprio Azevedo (1930: 25) admite que até 1888 nossa
prática esportiva era ínfima, pois "a vida social, tolhida de preconceitos, não
estimulava os exercícios físicos".
Excetuando-se o vasto mundo rural, podemos dizer que no meio urbano
colonial brasileiro a disponibilidade de espaços abertos para as manifestações
coletivas era muito pequena. Ademais, muitos desses espaços estavam associados
diretamente à Igreja e seu consistente aparato de vigilância, sendo o adro "o único
largo generoso ou capaz, ainda que modesto, de abrigar todos do lugar e das
redondezas", segundo afirma Murilo Marx (1991: 54). A vigilância cotidiana
também se realizava através do forte controle do poder estatal: somente a
presença ameaçadora do pelourinho, instituição medieval portUguesa que dotava
o espaço circundante de silêncio e terror, poderia elevar um povoado brasileiro
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à condição de vila ou cidade. Abreu (1996: 155) nos alena para o fato de que, "na
verdade, o Estado ponuguês se insinuava por todas as dimensões da vida urbana,
e muito especialmente nas cidades reais". Tratava-se de um mundo de pouca
flexibilidade no domínio da "economia de gestos", para utilizar a expressão
criativa e muito apropriada de Margareth Rago (1987).
As limitações da sociabilidade não se restringiam às praças, rossios e
largos da cidade colonial: as ruas, segundo Reis Filho (1968: 130-1), não apenas
apresentavam o por demais conhecido aspecto medieval, com sua escassa largura
e grande irregularidade, como também não tinham, na maior parte dos casos,
qualquer significado como local de pe!!llallêllcia. Nas palavras de Sílvio Z31lcheti
(1987: 13):
Não se vivia, definitivamente, dentro dos perímetros
urbanos, com exceção dos administradores da Coroa ou dos artesãos. (...)
muitos viajantes estrangeiros, que cruzaram o interior do país, [foram
levados] a interpretar as cidades brasileiras como simples pontos de
reunião dominical dos latifundiários da área.
Apesar de a citação acima se adequar mais a pequenas vilas do que a uma
cidade de 30 mil habitantes e capital do vice-reino, como era o caso do Rio de
Janeiro em 1800, não podemos ignorar a debilidade da vida de relações no
cotidiano dos espaços públicos cariocas de então, sobretudo no âmbito do
segmento social detentor de posses e títulos de nobreza ? Delgado de Carvalho
(1994: 105), por exemplo, comenta a falta de dinamismo social nas ruas ao apontar
para o fato de inexistir nas elites e classes médias do Rio de Janeiro, até o meado
do século XIX, o hábito de sair de casa, a não ser pela freqüência socialmente
obrigatória à missa dominical. A intenção das classes dominantes era bastante
clara nesse aspecto: deixar evidente sua profunda diferença em relação àqueles
que, desprovidos de qualquer nobreza, necessitavam trabalhar com base no
esforço muscular. Tal atitude deixaria profundas marcas nos espaços públicos de
nossas cidades: durante a maior parte do tempo estes seriam povoados quase que
exclusivamente pelas massas de negros escravos em sua pesada labuta cotidiana:
o varejo ambulante, a coleta de água, o transporte de pessoas e mercadorias etc.
Benchimol (1990: 28-32), em seu exaustivo levantamento sobre as con­
dições materiais da cidade às "vésperas" da refolma Passos, comenta que os
escravos dominavam a paisagem das ruas, em trajes indecentes para os padrões
"familiares". Outros aspectos, como o mau cheiro, o tráfego intenso, barulhento
e perigoso dos carroceiros, além do péssimo estado do calçamento das ruas,
tornavam os espaços públicos muito pouco convidativos, sobretudo para as
senhoras brancas, que praticamente viviam encIausuradas em seus lares.
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COlIstnlilldo a Cidade Moderna
o cotidiano do Rio de Janeiro sofreria um incremento dinamizador em
1808, com a impactante chegada da corte portuguesa, habituada a uma vida social
urbana bem mais intensa desde a refolllla pombalina da cidade de Lisboa
(Lousada,
1995). Ainda assim, o Rio de Janeiro manteria basicamente as estrU­
turas cotidianas fundamentais da
sociedade de ordem:
religiosos e militares ali­
mentavam as procissões e cerimoniais públicos que preenchiam o dia-a-dia da
cidade com rigorosos rituais espetacularizados ao longo do rico calendário anual
de feriados.8 Silva (1978:
67) alerta para o depoimento de viajantes europeus que
viam o Rio de Janeiro da época como uma cidade monótona e sem diversões ou
reuruoes
. -
.
.
SOCiaIS.
Richard Grabam externa as impressões de um viajante que, em
1865,
notou a inexistência de esportes praticados ao ar livre, algo tão difundido na
Inglaterra vitoriana. Preocupado em detectar e dimensionar a forte influência
inglesa no Brasil, diz ele: ''Antes de
1880 ou 1890, um jovem de boa família não
dava nenhuma atenção aos esportes e exercícios físicos, tendendo muito mais
para a poesia e a política ou aventuras amorosas com atrizes de companhias
visitantes" (Graham, 1973:
127).
Para se engajar no modismo europeu das práticas esportivas (como
veremos no próximo segmento), a sociedade brasileira precisou superar seu forte
preconceito em relação às atividades que exigem esforço muscular. Durante nês
séculos e meio, qualquer atividade física mais exigente era encarada como
moralmente degradante, incluindo-se aí até mesmo o mero ato de transportar
nas mãos um pequeno pacote, confOlme atestam inúmeros relatos de viajantes
europeus no Brasil. Quando Rui Barbosa, na condição de chefe da comissão
estadual de ensino, propôs em 1882 a introdução do exercício físico no currículo
escolar, baseado na crença de que a debilidade física comprometia o desempenho
intelectual, não foi levado a sério (Azevedo, 1930:
clássico
Sobrados
e
mocambos (1951: 171-2),
15-6). Gilberto Freyre, em seu
faz referência a essa aversão da
sociedade patriarcal brasileira aos exercícios fisicos, recorrendo às palavras
condenadoras do médico Lima Santos:
( ...) metidos em casa, e sentados a mor parte do tempo,
entregues a uma vida inteiramente sedentária, não tardam que não caiam
em um estado de preguiça mortal (...) sair à rua o menos possível, ser
visto o menos possível, e se confundir o menos possível com essa parte
da população que chamam de povo e que tanto abominam.
Não podemos, entretanto, imputar apenas ao modelo de sociedade
escravista, ao desenho urbano e à suposta insuficiência da vida social nas cidades
do Brasil colonial a responsabilidade pela preponderância de uma conduta
individual fisicamente passiva ou acomodada ao conforto e à privacidade do lar.
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Até mesmo porque tal comportamento não era uma especificidade brasileira: ao
contrário, havia-se consolidado na Europa desde o início da era medieval, arráves
da difusão do ideário cristão.
Richard Sennen (1997) assinala a profunda transição no uso do corpo
ocorrida entre o Império Romano e a Idade Média, da orgia pública pagã às
renúncias corporais do espaço cristão. Foi justamente o imperador romano
Teodósio, no ano de 349, portanto já em plena vigência da hegemonia cristã, que
proibiu a continuidade dos Jogos Olímpicos, que existiam havia mais de mil anos.
O corpo deveria resignar-se aos imperativos da alma, que se queria purificar
através do controle severo dos impulsos carnais. Nesse sentido, encontram-se
facilmente registros policiais de perseguição implacável às práticas esportivas
populares nas cidades medievais, tais como ofutebol ancestral oufolk football (Elias
e Dunning, 1985): a movimentaçao descontrolada de centenas de homens em
lUla por uma "pelota" provocava nas estreitas ruas medievais confusão, delitos,
gestos considerados imorais e danos à propriedade privada.
Com o advento da era renascentista, os estudos sobre o corpo, a
biomecânica, e toda uma filosofia de apoio à "educação física" começaram a se
expandir, ocupando mentes privilegiadas como as de Leonardo da Vinci, Mon­
taigne e Francis Bacon, que estabeleceram os exercícios físicos como o ideal de
uma educação cortesã (Oliveira, 1994: 36-7). Foram assim retomados alguns
ideais greco-romanos relacionados ao uso do corpo, instaurando-se uma nova
fase de desenvolvimento da cultura física. Todavia, mesmo no Renascimento, os
esportes que exigiam grande aplicação de força e/ou atritos corporais se man­
tiveram desprestigiados, dada a grande importância atribuída pelos humanistas
à erudição em detrimento da atividade muscular. Também o zelo moralista e o
severo intelectualismo da Reforma e da Contra-Reforma, segundo o estudioso
Huizinga (1996), investiram contra a prática esportiva. Somente no último
quartel do século XVIII, já no contexto do Iluminismo, foi que efetivamente se
expandiram as idéias de resgate e revalorização dos exercícios físicos, tendo em
vista agora o desenvolvimento individual. Tal movimento será melhor abordado
no proxlmo segmento.
•
•
Por enquanto, o que nos importa é frisar a transição vivida pela cidade
do Rio de Janeiro no tocante à experiência corporal pública e socializada. A partir
de um determinado momento, a tradicional rigidez de nossos espaços públicos,
vigente durante a maior parte do ano, tornou-se coisa do passado. Segundo
Roberto Moura (1995: 76):
A complexidade crescente da cidade do Rio de Janeiro
e a diversificação social de sua população gerariam nos últimos anos do
século um público novo, a quem não mais satisfariam, em sua ânsia de
24
•
"
CO/lstmi/ldo a Cidade Modema
divertimentos, os dias de entrudo e as festas religiosas ao longo do ano
cristão oferecidas pelas paróquias,
Na última década do século XIX, o movimento de adesão aos espones e
ao lazer ao ar livre adquiriu força e velocidade inéditas, inserindo-se na perspec­
tiva de retomada dos espaços públicos e de liberalização dos costnmes: assistiu-se
à ascensão da figura do sportsman, que aposentou o pince-IJez e o ar de austeridade
do vestuário escuro e pesado para expor alegre e publicamente seus músculos,
Segundo Luís Edmundo (1938: 319), surgiu, no início do século XX, uma nova
geração bem distinta daquela que proclamou a República, formada de homens
lâllguidos e raquíticos, sempre enrolados em grossos cache-nez de lã.
V árias modalidades esportivas conquistaram então ampla aceitação em
nossos principais centros urbanos. A nascente indústria de entretenimento
popular, particularmente na cidade do Rio de Janeiro, apresentou nesse período
um fOlmidável ritmo de expansão, Novos hábitos foram sendo rapidamente
incorporados ao cotidiano das cidades brasileiras, expandindo as formas de lazer
e refimcionalizando os espaços públicos, num processo que alguns autores definem
como de laicização ou dessacralização da vida cotidiana. Buarque (1994: 16-7) nos
lembra que a própria noção de mundano se alterou radicalmente entre o século
XVIII e o final do século XIX: de algo ilícito, que segue a máxima e o ditame
contrários à lei de Crisw, tornou-se algo muito mais aceito (e até louvável, dentro
do espírito capitalista), que se ocupa demasiado da coisas do mundo.
Corpos são máqllinas: o frmes; controlado da cidade modern a
A modernidade urbana, segundo MarshaII Berman, se configurou nas
principais cidades européias do final do século XIX como atmosfera de excitação
e entusiasmo pelas novas fOImas aceitáveis de conduta em público, Os espones
eram um componente desse movimento, e não escaparam às observações atentas
e.peculiares de MareeI Proust (1985: 13): "sobretudo depois da voga da cultura
física, a ociosidade assumiu um caráter esportivo a traduzir-se, ainda fora das
horas de exercício, por uma vivacidade febril que imagina não deixar ao tédio
nem tempo nem lugar para desenvolver-se,"
A adesão coletiva aos esportes começou a se esboçar léntamente 11m
século antes da torrente hedonista da Bel/e Epoque, por razões associadas à
perspectiva difundida de uma suposta via de desenvolvimento saudável do corpo
e do espírito, Na segunda metade do século XVIII, tornou-se habituaI nos
colégios ingleses a prática de jogos viris (que freqüentemente exigiam mais
empenho muscular que propriamente habilidades mais nobres, como destreza e
equilíbrio), extraídos e reelaborados pelos jovens a partir de jogos da tradição
popular, como o folk fooebaU, A elite agora iniciava-se em práticas esportivas
•
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estudos históricos. 1999
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23
diferentes daquelas consideradas próprias da nobreza, tais como a esgrima, a
equitação, a caça, o arco, o salto etc. (Dunning e Sheard, 1979: 1-3). Tal mudança
comportamental se inseria no movimento crescente de resgate de valores clássi­
9
cos que encontrava sua melhor tradução no princípio da mens sana in corpore salUJ.
Em 1830, a educação fisica estava plenamente inserida nas public schools
inglesas e, com ela, o incentivo oficial à prática de jogos populares. A crescente
regulamentação a que estes foram submetidos resultaria na "invenção" de diver­
sas modalidades es80rtivas de ampla aceitação mundial posterior, como o futebol,
!
o rugby e o cricket. Entre 1820 e 1870, as escolas públicas inglesas funcionaram
como laboratórios de invenção dos esportes modernos (Augustin, 1995: 20). Tais
esportes logo ultrapassaram os muros escolares para conquistar os amplos espaços
abertos criados pelo urbanismo vitoriano a partir de 1845 e largamente dissemi­
nados a partir de 1880, conhecidos como recreaMn grounds (Lavery, 1971: 112).
Cumpre não esquecer que no século XIX os ingleses chegaram a dominar
1/4 do planeta, e que das ilhas britãnicas partiu mais de 1/3 da volumosa onda
migratória européia entre 1850 e 1890 (Said, 1995), período que coincidiu
exatamente com a consolidação dos esportes ingleses. Tais fatores contribuem
para explicar o sucesso dos sporn em sua difusão pelo mundo. E assim que já em
1844 um alemão escrevia sobre os sporn: "não temos palavra para isso, e somos
quase forçados a introduzir o termo em nossa língua". Mais tarde, a expressão
spon seria consagrada não apenas na Alemanha, mas em todo o planeta: "a
terminologia inglesa se difundiu tal como os termos técnicos italianos no campo
da música" (Elias e Dunning, 1985: 188).
,
Entre 1808 e 1924, excetuando-se os anos da Primeira Guella Mundial,
os ingleses efetivamente dominaram o comércio exterior brasileiro: ao longo do
século XIX, o porto do Rio de Janeiro avistou mais bandeiras inglesas que de
todas as demais nacionalidades somadas, inclusive portuguesas e norte-america­
nas (Manchester, 1973: 261). E pelo litoral do Brasil penetraram não apenas os
numerosos produtos da poderosa indústria inglesa, mas também os valores e
ll
comportamentos considerados civilizadores, entre os quais a prática esportiva.
Nesse movimento destacou-se o Rio de Janeiro, por sua condição de mais
movimentado porto do país, somente superado em volume de comércio em todo
o continente americano por Nova Iorque e Buenos Aires (Sevcenko, 1983: 27).
Por volta de 1850 ou 1860, através das zonas portuárias e dos empreendi­
mentos britânicos, começaram a chegar ao Brasil com maior freqüência infor­
mações sobre os novos sporn e seu pretenso papel de fortalecer o corpo e
simultaneamente o espírito. Os próprios ingleses procuravam entre si praticar
esportes ao ar livre, gerando reações de estranhamento e despertando ampla
curiosidade popular. Em 1865, por exemplo, o Cricket Club solicitou à Câmara
Municipal do Rio de Janeiro permissão para praticar no Campo da Aclamação
26
COlIstn.illdo a Cidade Moden,a
um divernmenUJ ;,'g!ês, "não necessitando para tal fim mais do que alisar o terreno
que lhe for demarcado". 12
É interessante notar que
as expressões utilizadas pela
associação inglesa Cricket Club denotam a necessidade de explicações (sobre as
condições do terreno, por exemplo) ao poder público, até então completamente
alheio àquela novidade. No tramitar do processo, aliás, um vereador solicitou
esclarecimentos sobre o que seria, afinal, esse tal "divertimento inglês".
O remo passou a ser praticado sistematicamente na cidade desde pelo
menos 185 I, quando se fundou o grupo "os mareantes". Nas últimas duas décadas
do século XIX, multiplicaram-se os clubes de regatas e realizaram-se com­
petições muito disputadas (Melo, 1997: 232). Tais eventos demandaram, como
qualquer outra modalidade esportiva, alterações inéditas na materialidade ur­
bana, até então desprovida de locais e equipamentos adequados. O Pavilhão de
Regatas da praia de Botafogo foi uma das realizações de Pereira Passos que muito
contribuiu para a popularidade do remo na cidade. As regatas tornaram-se de
imediato um importante e concorrido evento na vida social carioca. Em 1906, a
municipalidade estabeleceu exigentes condições para a exploração privada de um
"bar à européia" no interior do pavilhão, "proporcionando diversões elegantes",
mas sem t.lrejudicar a Federação de Remo e os clubes de regatas que desfrutavam
do local.
Foi nesse mesmo período que a utilização das praias para fins de banho
adquiriu uma conotação mais ampla, ultrapassando o conceito estrito de banho
somente por prescrição médica, para sanar problemas dellll3tológicos. Até
aproximadamente
1850, 14 quando se iniciou a expansão do uso terapêutico dos
banhos de mar, as praias eram utilizadas basicamente como depósito de dejetos
urbanos e para a coleta de mariscos ou a pesca pelos setores socialmente matgi­
nalizados. Mesmo a prescrição médica encontrava alguma resistência, por ser o
mar um domínio particularmente denso de crenças mágicas. Afinal, com a
difusão do banho de mar para fins terapêuticos, iniciou-se um processo de
apropriação da praia como local de lazer. Em
1896, uma crônica na imprensa
alertava para a excitação e alegria dos banhistas que começavam a freqüentar
diariamente a praia por prazer (Araújo,
1995: 322). Tratava-se de uma mudança
comportamental que afetaria fortemente a atuação do capital imobiliário (e seria
também por ele impulsionada), imprimindo à cidade um novo padrão de dis­
tribuição interna das classes sociais, radicalmente distinto daquele vigente até
aproximadamente 1890 graças à difusão da ideologia do morar à beira-mar como
estilo de vida moderno. \
�
Esse movimento de refuncionalização completa das praias cariocas se
inseria, ao nosso ver, no processo mais amplo de adesão a novas práticas corporais
de entretenimento que glorificavam a atividade muscular ao ar livre. O uso
medicinal do banho de mar vinculava-se a descobertas cienúficas do meado do
27
estudos históricos. 1999
-
23
século XVIII que apontavam para seus benefícios físicos, mas sua intensificação
com fins de lazer foi um dado cultural do século XIX, quando se desenvolveu
toda uma "arquitetura do mar" (Corbin, 1989: 274-80). Esse fenômeno parece ter
tido também origem inglesa: a conexão ferroviária entre a grande metrópole
londrina e o balneário de Brighton, em 1841, propiciou paulatinamente a
formação de um fluxo maciço de banhistas de veraneio, que buscavam nova forma
de entretenimento (Morris, 1984: 323). Essa informação nos chegou, tal como
haviam chegado as atividades esportivas, como mais uma grande novidade
civilizadora.
Nesse movimento, também o turfe merece destaque. Em 1850 já existia
no Rio de Janeiro uma pista situada entre Benfica e a Quinta da Boa Vista onde
se realizavam espetáculos turfistas com movimento de apostas, promovidos por
ricos comerciantes, eles mesmos proprietários dos cavalos. A atividade evoluiu
rapidamente, e no ano de 1868 se edificou por iniciativa privada um verdadeiro
hipódromo (pista dotada de arquibancadas), o Prado Fluminense, próximo da
estação ferroviária de São Francisco Xavier (Ribeiro, 1944). Já no ano seguinte
eram ali realizadas corridas que atraíam até quatro mil pessoas, incluindo toda a
elite imperial. Segundo Renault (J 982: 200), em 1886 já existiam na cidade quatro
hipódromos, com 63 páreos e grande movimento de apostas, além de uma revista
especializada, O Jóquei. Simultaneamente, a prática da equitação também se
difundiu na cidade: em 1877, por exemplo, um particular solicitou autorização
!6
para estabelecer uma escola de equitação na rua do Riachuelo.
O ciclismo, que já se difundira na Europa a ponto de ser considerado o
primeiro esporte de massa de escala continental (Hobsbawn e Ranger, 1984:
188-9), gozou também de enorme popularidade no Brasil no final do século
passado. Os fabricantes de bicicleta na Europa conseguiram alçá-Ia à condição
de um dos símbolos máximos da liberdade individual, baseados em sua grande
!7
mobilidade. Também investiram na promoção de corridas, para fins de pub­
licidade, edificando no Rio de Janeiro do final do século XIX o Velódromo
Nacional, enquanto no Passeio Público e no Parque de Vila Isabel se realizavam
animadas competições (Araújo, 1993: 330-1).
Também o futebol se inseriu nessa onda de adesão a uma vida su­
postamente adética e sã. Esse esporte aportou no Brasil no final do século XIX
(assim como o basquetebol, o tênis e a natação) e já encontrou nas grandes cidades
uma cultura esportiva bastante disseminada. Nesse sentido, é importante notar
que muitos clubes de futebol no Rio de Janeiro se originaram de clubes preexis­
tentes - de regatas (C. R. Flamengo, C. R. Vasco da Gama), de cricket (Paissandu),
de ciclismo e corridas a pé (América F. C.) -, ou mesmo de extintos clubes
excursionistas (Botafogo F. C.) (Mattos, 1997: 46). Curiosamente, esse ambiente
favorável que o futebol encontrou para sua aceitação é freqüentemente ignorado
28
COllstruilldo « Cidade Modem«
pela historiografia futebolística no Brasil, que tende a concentrar suas análises
na alta capacidade sedutora do futebol e em sua fácil assimilação.
Vale talvez registrar que o futebol carioca somente ultrapassaria o remo
em popularidade no transcorrer da década de 1910, quando enfim proliferaram
os clubes suburbanos (Pereira, 1996). E curioso observar essa resistência do remo
em se deixar suplantar por um esporte que já alcançara, na Bahia, no Rio Grande
do Sul e em São Paulo, suprema aceitação popular Gesus, 1998). Podemos
levantar aqui a hipótese de que a reforma Passos, ao privilegiar o embelezamento
da orla e sua acessibilidade, favoreceu a prática e o espetáculo das regatas, que, já
antes prestigiadas, passaram a reunir multidóes. Os esportes, como qualquer
outra atividade econômica, dependem fundamentalmente da materialidade ur­
bana e da organização interna da cidade. Sugerimos, para um estudo mais
aprofundado, que o remo, relativamente beneficiado pela refolllla urbana do
início do século XX, tenha retardado no Rio de Janeiro a ascensão praticamente
18
inevitável do futebol à condição de principal esporte na preferência popular.
•
Foi sem dúvida muito grande a receptividade da população carioca aos
esportes na virada do século. Tal atitude se vinculava diretamente não apenas ao
fato de estes representarem uma via para a vida saudável, mas sobretudo ao fato
constituírem um elemento civilizador do ideário burguês importado da Europa,
.
.
19Q
uanto as
numa conJuntura em que ser moderno era d eseJar
' ser estrangeiro.
camadas populares, parecem ter-se mantido inicialmente reticentes ao surto
esportivo, até porque a adesão a esse modismo implicava custos materiais ele­
vados (todo o equipamento era importado) e mesmo a assimilação de estranhos
20
códigos de conduta.
.
A adesão maciça aos esportes respondeu a um conjunto geral de profun­
das transformaçôes na vida urbana, relacionadas ao advento da modernidade.
Nicolau Sevcenko (1993: 87), ao tratar o caso paulistano de forma brilhante,
expõe o "pano de fundo" desse fenômeno, uma cidade em acelerado crescimento
e caracterizada pela diversidade émico-cultural:
Pressionada pela pobreza extrema, essa população de
destituídos havia perdido seus laços familiares comunitários e territo­
riais. Dentro do novo ambiente, esses homens eram estranhos uns aos
outros, mal falavam uma linguagem comum, assim como eram estranhos
à vida urbana moderna, precisando portanto desesperadamente de uma
nova identidade e de novas bases de solidariedade. As autoridades
aprenderam como explorar essa vulnerabilidade cultural e essa necessi­
dade espiritual, fornecendo-lhes uma nova mitologia (. .).
.
Tjtação esportiva chegou ao ponto de se implantar na cidade a corrida
Aa
de pombos.
E cabe aqui frisar que, ao que indica o material consultado, essa
29
estudos históricos
•
1999
-
23
"febre" esteve bem mais relacionada à indústria do espetáculo como entreteni­
mento urbano nascente do que propriamente ao advento de uma consciência
fisiculturista. Nesse sentido, nos códices relacionados a diversões públicas e
esportes do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, abundam solicitações
para a construção de hipódromos, velódromos, frontões, para uso de vias públicas
para corridas etc., equipamentos e atividades que de fato congregavam adetas
mas acabavam por reunir um número muito maior de espectadores.
A rirualização do espetáculo esportivo, ingrediente da modernidade
urbana, não foi apenas destinada às elites. A partir de 1880, o futebol inglês e o
baseball
cumpriram nos EUA o papel de oferecer diversão de massa aos trabal­
hadores em gigantescos estádios. Em 1888, uma multidão compareceu ao duelo
de baseball entre as equipes de Nova York e Pittsburgh, e muitos tiveram de ficar
do lado de fora, outros tantos amontoados na beira do campo, contornando-o
como uma cerca humana. Segundo Barth (1980:
148), aquela multidão vibrante
"experiellced in/he ball park lhe quintesse1lCe ofurban leisure: UJalChing olhers do Ihings".
Para o autor, um esrudioso da culrura urbana que emergiu nas grandes cidades
do século XIX, a formação de grandes platéias é um dado que transcende o
universo específico dos esportes.
Vale registrar que a "espetacularização" dos esportes como forma de
entretenimento já se verifica no século XVIII amplamente em países como
1987) e França (Gaillard, 1984) e razoavelmente nos
Estados Unidos (Christensen e Levinson, 1996), sendo parte integrante de um
Inglaterra (Brailsford,
processo mais amplo de mercantilização do lazer na transição do antigo regime
para a ordem burguesa (Sennett
1995: 32). Mas esse "rirual" apresentou um
sentido completamente distinto a partir do final do século XIX, quando passou
a envolver sentimentos nacionalistas e todo um discurso moral que elevava o
esporte à condição de fator de regeneração socioculrural. No Brasil, para captar
elementos dessa nova significação do esporte, podemos recorrer ao discurso
proferido por Monteiro Lobato em
1905 (apud Rosenfeld, 1993: 79-80), após
assistir a um acinado duelo futebolístico entre ingleses e jovens da elite paulis­
tana:
,
E desta espécie de homens que precisamos. Menos
doutores, menos bajuladores, menos parasitas e mais
struggle-for-life.
Mais homens, mais nervos, mais corpúsculos vermelhos, para que um
Camilo Castelo Branco não possa repetir que ele tem sangue corrompido
nas veias e farinha de mandioca nos ossos.
A forma urbana, conforme já registramos aqui, não estava preparada para
abrigar o amplo leque de novos eventos sociais introduzidos pela súbita epidemia
30
Construindo a Cidade Modema
de febre esportiva e seu forte apelo ao espetáculo. Novamente nos reportamos a
Sevcenko(I993: 83):
Como mdo aquilo era uma absoluta novidade na cidade,
não havia locais ou pistas especiais construídas especificamente para a
prática e o divertimento com o esporte. Assim, mdo era feito nas ruas e
em outras áreas públicas, sobremdo no centro da cidade (...). (... ) a
Avenida Paulista, com toda a sua centralidade, imponência, visibilidade
e conotações heróicas, era obrigatória quando o assunto eram corridas,
qualquer que fosse o tipo.
Mais do que imaginar as inúmeras intervenções e adaptações sofridas
pelo espaço urbano para adequar-se às novas demandas sociais, pretendemos
atentar para o fato de que as próprias transfOlDlações na espacialidade, com o
advento da modernidade, propiciaram a concretização de tais demandas. Em
OUtras palavras, a abermra de amplos espaços públicos e sobremdo sua mudança
simbólica e de uso, via dessacralização, configuraram um novo contexto no qual
se inseriu aqui a adesão geral à prática esportiva. De uma cidade colonial, alheia
aos esportes e marcada por fortes restrições de uso dos já escassos espaços
públicos, passamos a uma outra cidade, onde fervilhava a prática esportiva, e os
espaços públicos, novos ou ampliados, eram socialmente preenchidos de fOlma
bem mais intensa. O que não significou, entretanto, uma vida urbana menos
controlada ou predizível.
Retomando a primeira citação de Nicolau Sevcenko, que abre este artigo,
podemos sugerir que os esportes modernos não foram exatamente criados para
atender a demandas da ordem burguesa de aceleração de corpos e espíritos. Mas
foi sem dúvida essa ordem burguesa que instaurou 11m cenário urbano propício
à difusão dos esportes. E, ao fazê-lo, a cidade moderna não apenas serviu de solo
fértil às atividades esportivas, mas sobremdo dotou-as de significados novos e
ampliados, recriando pois o esporte, reiventando-o, ao ritmo e ao sabor da
modernidade urbana. O esporte foi a tal ponto transformado que Sevcenko
preferiu afirmar que a nova ordem o inventou.
Conclusão
Pretendemos agora meramente arrolar alguns dos fatores que, julgamos,
contribuirarn para a confOlmação dessa epidemia defebre esponiva. Em primeiro
lugar, destacaremos os fatores extra-locais, examinando que parcela do mundo se
projetou sobre o lugar Rio de Janeiro, tomando de Milton Santos (1996) os
conceitos de lugar e mundo.22 A seguir, levantaremos algumas condições locais
31
estudos históricos
•
1999
-
23
que provavelmente colaboraram na
importaçao de novos comportamentos, man­
tendo porém a singularidade inerente ao lugar.
São alguns fatores extra-locais:
a) a progressiva retomada, desde o Renascimento, de valores greco-ro­
manos, entre eles a estética muscular, dentro de um modelo ideal de fisicultu­
rismo acoplado ao desenvolvimento do espírito;
b) a introdução sistemática da educação fisica nas escolas européias do
início de século XIX, e sua crescente vinculação aos interesses dos Estados
nascentes (discurso nacionalista);
c) a adaptação, no mesmo período, no interior das escolas inglesas, de
jogos populares remanescentes do período medieval, tomando-os menos violen­
tos e dotando-os de regras que posteriormente se mundializaram;
d) a brutal expansão dos capitais europeus, sobretudo de origem
britânica, no final do século XIX, exportando também novos valores e hábitos
culturais, entre os quais a prática esportiva.
A cidade do Rio de Janeiro, que desde
1808 abrira seu movimento
portuário às influências (não apenas materiais) do mundo dito civilizado, passou
a receber contínuas infOlmações sobre as novidades européias e aderiu a muitas
delas. Entretanto, no tocante ao desenvolvimento dos sports, que começaram a se
insinuar mais efetivamente pela cidade por volta de 1850 (através de ingleses que
trabalhavam em fitmas britânicas aqui atuantes), a receptividade carioca foi mais
lenta. Esse período de relativa rejeição ao modismo europeu de apologia do
fisiculturismo (e a decorrente refuncionalização dos espaços públicos) parece
ter-se estendido na cidade até aproximadamente
1890. Sugerimos os seguintes
fatores como explicação dessa relativa inércia local:
a) a força da tradição: em todo o período colonial o Brasil não desen­
volveu uma vida social urbana tão intensa quanto a verificada na fase seguinte (a
da modernização urbana), seja pelo porte e natureza de nossas vilas e cidades, seja
pelo aparato de vigilância montado pela metrópole lusitana e pela Igreja;
b) a persistência, até
1888, do regime escravista, fator de desvalorização
do esforço muscular. Ainda que a abolição já encontrasse urna situação prati­
camente definida quanto ao término desse regime, havia toda urna poderosa
ideologia em vigor, montada em três séculos de escravidão. E, no Rio de Janeiro,
o contingente negro era muito significativo;
c) a presença vigorosa do imaginário cristão, a atribuir ao corpo urna
atitude de autocontrole severo dos instintos e a desvalorizá-lo em relação ao papel
preponderante da "alma".
Quanto aos fatores locais que permitiram, no final do século passado,
uma adesão maciça aos esportes no Rio de Janeiro, temos:
32
COIIstnlÍlldo a Cidade Modm.a
a) a atmosfera particularmente favorável à adoção de modismos
europeus, como form a de ruptura republicana com o passado, na qual o índio, o
negro, o mestiço e mesmo o lusitano eram vistos como elementos retrógrados,
que empenavam o progresso;
b) a necessidade de novas formas de lazer para o segmento populacional
proveniente da Zona Rural, geralmente emigrantes das decadentes zonas
cafeicultoras fluminenses, incluindo negros libertos. A vida no campo oferecia
oportunidades de entretenimento baratas ou mesmo gratuitas (pesca, caça, banho
em rios e cachoeiras etc.) que o ambiente urbano negava ou dificultava, susci­
tando um vazio a ser preenchido;
c) a dessacralização dos espaços públicos e da vida social urbana em geral,
impulsionada pelo ambiente hedonista da Belle Epoque e pelos ventos positivistas
,
republicanos, de ruptura com o domínio paroquial da Igreja;
d) a reforma Passos, que, mesmo sem destinar aos esportes qualquer
papel substantivo (diferentemente do Plano Agache, em 1930), facilitou o acesso
à orla marítima e, mais que isso, tornou-a lugar centraI no novo estilo de vida que
se impunha, estimulando o uso recreativo das praias e os esportes náuticos.
Certamente, a reforma Passos já foi estudada sob os mais diversos ângulos, mas
sua contribuição ao desenvolvimento da atividade esportiva da cidade é ainda
uma razoável lacuna.23
Não podemos deixar de frisar o caráter elitista que todo esse movimento
assumiu inicialmente: a imposição de uma nova atitude corporal, através da
assimilação de esportes importados, se inseriu plenamente no projeto civilizador
da classe dominante, refletindo a intolerância de nossa Belle Epoque para com a
cultura popular, e não apenas para com o passado colonial. Assistiu-se, na época,
à europeiwção do carnaval carioca e ao cerceamento a festas populares (da Penha,
da Glória), e "mesmo a fOlma de jogo popular mais difundida, o jogo do bicho,
[foi] proibida e perseguida, muito embora a sociabilidade das elites elegantes se
fizesse em torno dos cassinos e do Jockey Club" (Sevcenko, 1983:
33). Índios,
ciganos, imigrantes nordestinos e negros foram elementos que o projeto de
"cidade moderna", a princípio, foi incapaz de abso�er.
A febre esportiva vivenciada pela cidade, que aqui apenas delineamos
em certos aspectos relacionados ao advento de uma atmosfera e de uma espaciali­
dademodernas, merece ser estudada mais detidamente. Os esportes, aliás, somente
nos últimos anos vêm encontrando lugar na agenda brasileira de estudos históri­
cos, sociológicos, geográficos ou antropológicos. Considerado como uma faceta
"menor" da totalidade social, o esporte foi sistematicamente relegado ao segundo
plano durante décadas de investigação acadêmica, seja pela corrente da "história
oficial" de matriz positivista, seja pela via de um marxismo pretensamente
ortodoxo, fundado no economicismo.24
33
estudos históricos. 1999
-
23
Um dos caminhos de valorização da atividade esportiva enquanto
temário de pesquisa foi aberto pela história social inglesa (sobretudo a partir de
Eric Hobsbawm) em sua busca de facetas menosprezadas das estruturas do
cotidiano (em particular o cotidiano das classes trabalhadoras). Tal enfoque
favoreceu uma perspectiva mais rica das condições de vida de amplos segmentos
urbanos e, ao ser aplicado ao estudo da história do esporte, propiciou a contex­
tualização de um leque de atividades até então praticamente isolado, pela histo­
riografia, do conjunto da sociedade. Acreditamos que, ao iluminar detenninados
momentos e lugares do processo de esportivização da sociedade carioca no início
do século, estamos contribuindo para uma compreensão mais ampla do que
significou, no plano das estruturas da vida cotidiana, nossa inserção na Belle
Epoque.
,
No tas
1. Pautamo-nos na idéia de "produção
social do espaço urbano" e no conceito de
urbanidade de Henri Lefebvre (1991).
2 Para atingir nossos objetivos
mergulhamos na bibliografia específica
da história do laur e dos esportes no Rio
de Janeiro, cujas graves limitações nos
levaram a consultar a ampla literatura
sobre a vida urbana carioca no período
em pauta. Desta colhemos notas
dispersas para atenuar as carências da
bibliografia específica. Também
recorremos a algllns periódicos de época
e aos códices relacionados a diversões
públicas e esportes no Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro. Servimo-nos
ainda das leituras e debates sobre
espones propiciados por nossa breve
estadia no Sir Nonnao Chester Centre
for Football Research, da Leicester
University, u.K., em maio de 1997.
3. A geografia histórica, infelizmente
muito pouco desenvolvida no Brasil, mas
rambém carente no mundo inteiro de
maior rigor e aprofundamento
34
te6rico-conceirual e mesmo de maior
clareza sobre seus propósitos, propõe-se
abordar geograficamente um lugar
pretérito, uma região ou lima formação
sócio-espacial do passado, numa tentativa
de '(congelar" o fluir do tempo histórico
para deter-se no estudo de uma paisagem
e poder identificar o funcionamento de
um lugar e suas aniculações com o
mundo circundante em determinado
período. Nas palavras de Chris Philo
(1996), trata-se de lima coleção eclética de
investigações que pode adicionar urna
enriquecedonl "sensibilidade geográfica"
aos fenômenos históricos.
4. Desejamos salientar o papel de urna
nova espacialidade urbana nesse
processo, ainda que reconheçamos que a
modernidade constitui um conjunto de
transformações que se operou mais
efetivamente no campo das
representações simbólicas do que
propriamente no domínio da base
territorial (Pesaoento,
1995).
CO/lstrui/ldo a Cidade Modema
5. Conceito utilizado em Elias &
Dunning (1985) para abarcar o amplo
processo de transição dos jogos (de
tradição local, sem regras escritas) para os
esportes modernos (fenômeno
explicitamente regulado e aceito
mundialmente), no bojo do que Norbert
Elias define como "processo civilizador".
6. O conceito de sociabilidade encontra
na literatura acadêmica usos diversos.
Temos a definição sumária do especialista
Maurice Agulhon (1994: 55):
"capacidade de viver em grupos e
consolidar os grupos mediante a
constituição de associações voluntárias".
Lousada (1995), por sua vez, faz um
interessante levantamento das diferentes
apropriações desse conceito e conclui que
sobre ele prevalece g..nde indefinição.
Entretanto, não deixa de tomar a sua
própria: "fonnas de convívio e de
interação exteriores aos quadros
elementares e de alguma fonna
compulsórios da vida social e coletiva".
Em ambos os autores, está implícito, pela
voluntariedade ou desobrigação, a noção
de uso coletivo do tempo livre. E
entendemos que aqui entram as
associações esportivas amadoras.
7. Certamente, entre negros escravos,
índios e brancos pobres produziram·se
outras fonnas de sociabilidade, de que
.
nao convem entretanto tratar aqUl, posto
que estamos lidando com um movimento
particular de adoção de modismos
europeus que penetravam na cidade pelas
camadas altas.
-
.
8. Apontamentos colhidos no curso
Geografia da Cidade do Rio de Janeiro,
nrinistrado pelo professor Maurício
Abreu no PPGG da UFRJ.
9. Não podemos aqui nos estender sobre
a evolução da ginástica e da educação
fisica, que partiram dos países nórdicos
no início do século XIX para conquistar
rapidamente a Europa (Oliveira, 1994:
41). O movimento encontrou impulso
adicional no discurso nacionalista em
expansão, como por exemplo no
pan·germanismo, que fomeotava o
sentimento patriótico através do
exercício físico generalizado para toda a
população, reunindo multidões ao ar
livre (Eckardt & Gilman, 1996: 129).
Também a sociedade civil tomou a
iniciativa de formar agremiações (ou
C/uh', expressão inglesa que se difundiu
mundialmente) para praticar ginástica e
espanes.
lO. O processo de regulamentação
crescente dos jogos tradicionais, que os
transformou em espones modernos,
correspondeu, na ótica do "processo
civilizador" de Norbert Elias, a uma
crescente redução da violência inerente
ao confronto fisico, coibindo diversas
possibilidades de choques inoportunos e
de situações de risco - elementos
próprios das práticas populares de então
-, de tal fonna que, em 1860, os antigos
jogadores de rngby na Inglaterra
chamavam os novos de dandies (Elias &
Duruúng, 1985: 396).
lI. Gilberto Freyre (1948: 56-7) lista
uma infinidade de contribuições inglesas
em nossa vida cotidiana, abrangendo
desde produtos de vestuário, alimentação
e bebida até práticas sociais como o
footing, os clubes, vários espones, o
escotismo e o piquenique, para não falar
do romance policial e da fala em baixo
tom.
12 Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, códice (1730) 45·244.
13. Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, códice 47·1.{;1. Nota·se a
preocupação elitista de uso do pavilhão,
mantidos porém os espones náuticos
como sua prioridade.
14. No ano de 1850 a Câmara Municipal
lançou um edital com uma série de
conselhos para a população evitar
doenças epidêmicas, incluindo entre eles
o uso repetido dos banhos de mar. Em
35
estudos históricos
•
1999 - 23
1876, foi traduzido do francês o livro
Banlws de mar (Melo, 1997: 231-2).
15. U. Abreu (1987: 47). Nesse processo,
o bairro de São Cristóvão começou a
perder seu velho ar aristocrático, ao
mesmo tempo em que a orla oceânica
definia-se como foroteira privilegiada de
expansão residencial da elite.
16. Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, c6dice 42-4-M.
17. Birley (I995: 163) nos ajuda a
visualizar O grande impacto da difusão da
bicicleta no cotidiano das g13ndes
cidades européias no final do século
passado, sobretudo para as mulheres: a
publicidade anunciava tal inovação como
"quase equivalente a voar" e capaz de nos
livrar da preguiça e da depressão.
18. EI deporte-rey, Ie sport du mele, IM
peopk's game, the world� game, são
algumas das defmiçôe5 que o futebol
adquiriu por sua ubiqüidade planetária,
conquistada no transcorrer do século
XX. Por seu baixo custo de execução,
pela simplicidade de suas regIas e por
uma série de outros attativos discutíveis
porém fartamente alegados na literatura,
o futebol adquiriu plena hegemonia no
1J00verso espomvo europeu e
sul-americano a partir 1920
(aproximadamente).
•
•
19. U. Sevcenko (1983: 36) e o
"cosmopolistismo desvairado" de então.
Ou Miran Latif (1965), que, ao comparar
a Exposição de 1908 com a de 1922
(ambas no Rio de Janiero), defme a
primeira como a "do igual " (onde se
esconde a mestiçagem e o
provincianismo) e a segunda como a "do
diferente" (onde se busca definir e com
orgulho lima cena brasilidade).
20. A capoeira permaneceu como
singularidade nesse cenário: resistiu aos
violentos e sistemáticos ataques policiais,
mantendo·se, na avaliação de Rufino dos
Santos (1981: 26), como o espone mais
popular da cidade até 1904, ano em que a
36
repressão assumiu níveis inéditos, pela
vinculação, no discurso oficial, das maltas
de capoeira à Revolta da Vacina. Em
1887, a imprensa noticiava que a capoeira
é a "grama de nossas mas; a enxada da
polícia arranca-3 de um lado, mas ela
aparece de outro" (Reuault, 1982: 99).
Entretanto, é preciso admitir que, se hoje
a capoeira é oficialmente reconhecida e
praúcada como esporte, não o era naquela
época.
21. JOI7Ull do Brasil, 26/6/1910.
22 Em texmos sucintos, Milton Santos
vem adotando largamente o conceito de
"mundo" para designar aIgu muito
próximo do tradiconal conceito de
totalidade: o termo indica o conjunto das
possibilidades de lima época, a realidade
em latência (Santos, 1996: 94-7). O "lugar"
aparece como lima parcela concreta do
mundo, seja ela um bairro, uma cidade,
uma região, 11m país, 11m continente. Não
impona a escala espacial, mas a condição de
esta portar uma realidade concreta passível
de transfonnação perante a realização das
forças do "mundo".
23. Outra pista para avaliar o investimento
esportivo da reforma Passos é o Campo de
São Cristóvão (então praça Deodoro da
Fonseca), que foi completamente
ajardinado por Pereira Passos (em 1906),
"sendo então reservad[o] para exercícios
militares de equitação e desportivos na
grande área elíptica, dominando a qual há
bancadas cobertas para espectadores"
(Rosa, 1 924 : 71).
24. Em decorrência, entre outros fatores,
do fortalecimento de políticas nacionais de
incentivo ao espone (seja pela via do
nazi-fascismo, seja através do stalinismo, ou
ainda, do Estado de bem-estar social), os
CSJX)rtes vêm melcccndo estudos Chsnntes,
no sentido de se avaliar criticamente sua
natureza e seu papel na sociedade.
Aparentemente, a obra de N�,ben Etias e,
mais lecentemenre, a de Pierre Boudieu
(diretor da revistaACtI!$ de la Recher<he en
COJlstruindo a Cidade Moderna
Sciences SociaJes) vêm definindo as linhas
metodológicas mais influentes, seguidas de
longe por contribuiçó<s decorrentes da
abordagem foucaulriana. A prop6si(Q, ver
Bourdieu (1994), Qément (1995) e
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Palavras-chave:
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(RecebiM para publicação em
dezembro de 1998)
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