UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LARA TALINE DOS SANTOS MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL AMERICANA (1861-1865) CURITIBA 2010 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ LARA TALINE DOS SANTOS MEN OF COLOR, TO ARMS!: AS TROPAS NEGRAS NA GUERRA CIVIL AMERICANA (1861-1865) Monografia apresentada como requisito parcial para conclusão do Curso de História – Licenciatura e Bacharelado, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientadora: Martha Daisson Hameister CURITIBA 2010 AGRADECIMENTO Agradeço à minha amada família, sobretudo a minha mãe, pela confiança em mim depositada; Ao namorado e fiel amigo Cristiano, por sempre estar ao meu lado; À professora Martha pela imensa dedicação e atenção; A todos os colegas que me acolheram, pois eu consigo com uma pequena ajuda dos meus amigos; À Eloisa e Fabiano pelas noites de rock n´roll; À Amanda e Fernanda; irmãs do coração; Ao amigo Filipe, sem sua amizade e musicalidade este projeto nunca se tornaria realidade. RESUMO Após 145 anos de seu término, a guerra civil norte-americana - ou Guerra de Secessão (1861-1865) - continua sendo tema amplamente discutido entre os pesquisadores - em sua maioria norte-americanos - que propõe-se a estudar este conturbado período da história dos Estados Unidos. O conflito dividiu a nação que havia sido formada pela Declaração de Independência (1776) e envolveu os Estados da União do Norte contra os Estados Confederados do Sul, que almejavam a separação da federação. A eclosão deste embate marcou profundamente a jovem nação americana e ainda é tema delicado entre os historiadores, visto sua dimensão política, social e econômica. A partir disso, tem-se como objetivo geral caracterizar a formação dessas tropas dentro do espaço da União, buscando compreender seus aspectos básicos relativos à institucionalização, treinamento, recebimento de soldo e armamento. Palavras-chave: Estados Unidos, guerra civil, tropas negras ÍNDICE INTRODUÇÃO ........................................................................................................6 1º A GUERRA DE SECESSÃO NORTE-AMERICANA: O EMBATE ENTRE OS ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIÃO............................................11 2º RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: OS SOLDADOS NEGROS NA GUERRA DE SECESSÃO ........................................26 Os soldados negros no norte ................................................................................27 Os soldados negros no sul....................................................................................28 As consequências da institucionalização: de acordo com Confiscation Act e o Militia Act ...............................................................................................................33 Quem eram e o que queriam os soldados negros da União e da Confederação? 35 3º AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDÊNCIAS DOS SOLDADOS E SEUS OFICIAIS ...........................................................................41 A guerra e a palavra escrita ..................................................................................41 Os soldados negros e a palavra escrita ................................................................42 Os oficiais brancos e as palavras escritas pelos e sobre os soldados negros ......47 Entre o Norte e o Sul, os negros preferem a liberdade .........................................54 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................57 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................60 ANEXOS ...............................................................................................................62 6 INTRODUÇÃO A guerra civil norte-americana, ou Guerra de Secessão, deflagrou-se nos Estados Unidos da América entre os anos de 1861 e 1865, e envolveu estados na porção Norte contra aqueles situados mais ao Sul do país. A eclosão deste embate transformou a ameaça separatista em realidade, inclusive com a possibilidade de consolidação do desmembramento do sul em um novo país; Os Estados Confederados do Sul. Essa organização manteve-se apenas entre os anos 1861 a 1865, entretanto, seu impacto político e econômico para toda a federação foi incalculável1. Este conflito foi fruto de profundas divergências – políticas, sociais e econômicas - que somaram-se a uma a questão central, um divisor de águas: a escravidão. A antiga instituição escravista, herança do período colonial, constituiu o ponto de divergência mais profundo entre Norte e Sul dos Estados Unidos, contribuindo para que outros aspectos de desacordo emergissem e acabassem por encaminhar o jovem país a secessão. Este debate acerca da importância da escravidão para o desencadeamento dos conflitos da secessão é especialmente problemático para os historiadores, sobretudo, aqueles de origem norte-americana. A relação entre a escravidão e a Guerra Civil tem sido abordada com cuidado, uma vez que consiste em um tema delicado para a historiografia estadunidense. A Guerra de Secessão foi o conflito mais brutal de toda a América. Milhares de pessoas perderam a vida, sendo a maioria soldados das forças armadas norteamericanas. Inicialmente, esses soldados eram recrutas voluntários, porém esse tipo de alistamento angariava poucos homens para as fileiras dos exércitos do norte e sul. Na medida em que o enfretamento entre a União e os confederados estendeu-se, o número de soldados requeridos tornou-se maior, enquanto que o número de voluntários sentia visível decréscimo. Assim, o alistamento obrigatório foi instituído. Mesmo com essa medida, um número maior de soldados ainda era necessário. 2 1 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47. 2 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 03-20. 7 Foi neste contexto que se deu, em 22 de setembro de 1862, a assinatura da Proclamação de Emancipação pelo então presidente Abraham Lincoln. Esse documento determinava a libertação de todos os escravos oriundos dos estados confederados, aprovando seu ingresso nas fileiras do exército da União a partir de 01 de janeiro do ano seguinte. Posteriormente, o alistamento de afro-americanos no Norte tornou-se obrigatório. Assim, grande número de homens de cor tornaram-se soldados da União, sendo parte significativa deles ex-escravos oriundos do sul confederado3. Os estados sulistas, por sua vez, também necessitavam contingente humano para incorporar ao exército que partia para a luta contra União. Primeiramente os negros não eram vistos como uma opção viável, porém o número de homens brancos em idade de serviço militar encontrava-se bem abaixo do que era requerido pelo exército. Desta forma, mesmo ameaçando sua lógica escravista, os estados do Sul também passaram ao recrutamento de sua população negra livre e escrava. A partir disso, examinar-se-á o surgimento e desenvolvimento dos regimentos de negros na Guerra de Secessão, procurando identificar a forma com que se deu o ingresso dos homens de cor na instituição militar; seus padrões de recrutamento e constituição formal. Buscar-se-á, não menos, delimitar as diferenças e aproximações existentes entre os regimentos de brancos e negros dentro no âmbito dos corpos militares, destacando a interação social entre os soldados de cor e seus comandantes brancos. Assim, objetiva-se uma análise do processo de desenvolvimento das tropas compostas por homens de cor nos Estados Unidos, buscando compreender como se deu sua institucionalização. Por fim, se pretende ainda uma análise da questão da liberdade para os negros que engrossavam as fileiras do exército tanto da União, quanto da Confederação. A produção historiográfica atinente ao tema Guerra de Secessão é um campo pouco explorado por autores brasileiros. Entretanto, é notável o trabalho de alguns autores nacionais, como Victor Izecksohn, autor de “Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norteamericano antes da Secessão” e “Deportação ou Integração. Os dilemas negros 3 Ibidem, pp. 12-20. 8 de Lincoln”. A historiografia sobre este tópico tem, portanto, predomínio de autores norte-americanos e sua vasta literatura atinente ao tema. Analisando a produção estadunidense, percebe-se a importância e singularidade do tema da Secessão - tanto para a opinião pública, quanto para a comunidade acadêmica – tomado como um momento muito delicado na constituição da nação norte-americana. Neste contexto, é interessante notar que grande parte da vasta produção sobre o tema privilegia uma análise da vitória da União, sendo escassos os trabalhos que procuram, compreender o porquê da derrota sulista. A historiografia norte-americana procurou, igualmente, imortalizar a imagem de líderes do conflito - como Lincoln e o general Grant - que passaram a ser tratados como os grandes heróis nacionais. Outra característica desta historiografia é relativa à sua produção, que parte de uma divisão com relação ao posicionamento dos autores que se ocupam do tema da guerra civil, uma verdadeira disputa entre os historiadores 4. As discordâncias iniciam-se quanto as próprias origens do conflito, suas demandas e seu impacto a longo prazo na constituição da sociedade estadunidense.5 Entretanto, para além dessas questões, uma divisão se faz ainda mais evidente. Esta separação – que não será objeto desse trabalho – centra-se no delicado tema da relação Guerra Civil e abolição. Sobre este tema, a historiografia tradicional tenta ocultar o estreito vínculo entre o conflito e a questão abolicionista. Por outro lado, uma segunda grande corrente - a que se toma aqui como base para esse projeto - assume esse vínculo e trata de desvendar seus meandros. Com relação à formação das tropas de homens de cor durante os embates da Secessão, os poucos autores inseridos nesta corrente privilegiam a análise de alguns tópicos em especial; como a desenvolvimento das tropas, aspectos de sua constituição formal e a questões sociais. O autor Noah Andre Trudeau, em Like Men of War. Black Troops in the civil war (1862-1865), privilegia questões relacionadas à concepção dessas tropas, analisando aspectos sobre o armamento, fardamento e pagamento de soldo. Sua análise centra-se, não menos, em aspectos relacionados à institucionalização das 4 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. pp. 09-11. 5 Ibidem, p. 01. 9 tropas de homens de cor. Notavelmente, esse autor apenas dá ao leitor um panorama geral da questão social e das discussões a cerca da inserção do homem negro no exército. 6 Diferentemente, o autor Joseph T. Glatthaar, em Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white officers, privilegia justamente essas questões. Sua análise, fundamentada na participação dos homens brancos no comando de regimentos negros, trata de questões de armamento e treinamento a partir de uma perspectiva da interação entre os diferentes grupos sociais no âmbito das corporações militares7. Notavelmente, tanto Trudeau, quanto Glatthaar têm sua análise baseada do caso da União. A questão confederada é discutida, porém não é aprofundada. O autor Steven Hahn, em A nation under our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to the great migration, vai, por sua vez, centrar sua análise justamente no Sul dos Estados Unidos, analisando a instituição escravista confederada e a grande migração que se deu entre os escravos que, cada vez mais, abandonavam o sul em busca de uma vida melhor no norte. 8 No âmbito da questão da escravidão na historiografia sobre a secessão, é interessante a análise realizada por Eric Hobsbawm, em “A era do Capital”. O autor atenta para o fato de que não é necessária apenas uma compreensão da escravidão como sendo a causa primordial dos embates entre Sul e Norte. Para além dessa questão é preciso entender porque a escravidão conduziu o país a guerra civil e a secessão, ao invés de encontrar uma solução que levasse a coexistência9. Seguindo esta linha inaugurada por Hobsbawm, são notáveis os escritos que visam compreender a Guerra Civil a partir de uma perspectiva de análise do avanço do capitalismo nos Estados Unidos, procurando, paralelamente, entender como, quando e porque a escravidão acabou por conduzir a jovem nação a secessão. Assim, novos trabalhos privilegiam a o viés da história social e dos 6 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. XVII-XX. GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. IX-X. 8 HAHN, Steven. A nation under our feet. Black political struggles in the rural south from slavery to the great migration. Belknap Harvard, 2003. pp. 01-10. 9 HOBSBAWM, Eric. Op. Cit. pp. 153-157. 7 10 estudos de gênero e afros. 10 Este debate estende-se a vários teóricos e pensadores. Neste sentido, salientam-se os trabalhos traduzidos para o português, de Eric Foner, em sua obra Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado 11 e Eugene Genovese, em A economia política da escravidão12. O presente estudo baseou-se, basicamente, nesta ampla bibliografia norteamericana, atrelando essas leituras a análise de fontes primárias. Esta documentação, ampla e diferenciada entre si, é oriunda dos volumes de documentos e ensaios do projeto Freedmen and Southern Society 13 , da Universidade de Maryland - EUA. Este grande número de documentos encontrase transcrito e disponível no acervo on-line do projeto. 10 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. pp. 02-13. 11 FONER, Eric. Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. 12 GENOVESE, Eugene. A Economia Política da Escravidão. RJ: Pallas, 1976. 13 O projeto é iniciativa do departamento de história da Universidade de Maryland, tendo como diretora Leslie S. Rowland e contando com um grande número de colaboradores. Seu acervo online encontra-se disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 11 A GUERRA DE SECESSÃO NORTE-AMERICANA: O EMBATE ENTRE OS ESTADOS CONFEDERADOS DO SUL E A UNIÃO “Os americanos haviam se transformado em dois povos, um povo para a liberdade e um para a escravidão. Entre os dois o conflito era inevitável”. Horace Greely. 14 O século XIX foi palco do conflito mais violento do território americano. A Guerra Civil norte-americana, também conhecida na historiografia como Guerra de Secessão, rendeu os combates em que mais se mataram americanos no solo de seu próprio continente. O conflito deflagrou-se nos Estados Unidos da América envolvendo os estados do sul contra os estados do norte do país. A eclosão deste embate, visando o governo do Estado nacional, transformou a ameaça separatista em realidade, inclusive com a possibilidade de consolidação do desmembramento do Sul em um novo país: Os Estados Confederados do Sul. Essa organização manteve-se apenas entre os anos 1861 a 1865, entretanto, seu impacto político e econômico para toda a federação foi incalculável, dividindo a nação criada pela Declaração de Independência e pela Constituição nacional. 15 Entre a 1776, data da Declaração de Independência, e uma década antes da eclosão da guerra, a grande maioria dos estados dos Estados Unidos da América vivenciaram um período de rápidas e profundas mudanças no âmbito econômico e político. Essas transformações, advindas de processos de modernização e industrialização, vinham aliadas a um singular aumento no número de habitantes do país, contando com grande volume de imigrações, atreladas a expansão territorial e a urbanização. Os avanços eram notáveis, porém, as mudanças levaram a conflitos com a ala mais tradicional do governo norte-americano. Este grupo, quase sempre vinculado aos grandes plantadores 14 Citado em FORNER, Free Soil. Free Labor, Free Men: The ideology of the Republican Party before the Civil War. Oxford University Press: Oxford, New York, 1995. p. 310. 15 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 47. 12 escravistas, buscava conter as mudanças a partir da promulgação de leis de caráter restritivo e de medidas centralizadoras. 16 Apesar dos embates já se darem a tempo considerável no campo político e diplomático - uma vez que as discussões acerca da expansão territorial e da escravidão já vinham agravando-se desde 1848 17 - os conflitos bélicos iniciaram- se apenas em 1861, com a exigência dos sulistas de que as tropas da União abandonassem o estratégico Forte Sumter, localizado na Carolina do Sul. Notavelmente, este foi o primeiro estado a ter sua separação reconhecida e oficializada em convenção. Em 1961 os confederados tinham controle de todo o território ao Sul dos Estados Unidos, excetuando dois fortes que estavam sob controle federal. Um deles, o Forte Sumter, localizava-se em uma ilha no porto de Charleston e encontrava-se isolado, sem acesso aos mantimentos necessários para os homens que ali estavam. Diante desta situação, o presidente da confederação Jefferson Davis proclamou que as forças nortistas estavam proibidas de atender ao forte, sob ameaça de represália armada. Entretanto, as tropas da União avançaram e em 12 de abril de 1861, às 4:30 da manhã, o General Beauregard comandou as forças separatistas em Charleston e iniciou o combate que daria início a Guerra Civil norte-americana. 18 Até então o Norte ainda relutava em utilizar forças armadas para intervir na situação do Sul, entretanto, o episódio do Forte Sumter foi o estopim para a ação nortista. A operação em Sumter gerou uma onda de verdadeira “indignação patriótica” 19 . Assim, entre os anos de 1860 e 1861, vários processos similares levados a cabo, com o Sul aderindo quase em sua totalidade à causa da secessão. 20 Entretanto, é importante salientar que nem todos os estados do Sul aderiram à causa separatista. Delaware, Maryland, Kentucky e Missouri não 16 Ibidem, pp. 48-50. ALLEN, H.C. História dos Estados Unidos da América. Tradução de Ray Jungman. Rio de Janeiro: Forense, 1968. 18 Ibidem, p. 137. 19 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. p. 10. 20 IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 20, JaneiroJunho de 2010, Volume 11. p. 64. 17 13 saíram da União, provavelmente por medo de tornarem-se palco do conflito, visto sua condição fronteiriça. Segundo Izechsohn, esses estados, conhecidos como border states, nesse momento servindo como estados “tampões”, tiveram papel de destaque ao manter a guerra, durante certo tempo, restrita a territórios sulistas. A escravidão nessas regiões não foi extinta, e acabou por tornar-se um grande empecilho a abolição no país. Isso não significa que essa questão fosse prioridade, pelo contrário, as discussões sobre igualdade e liberdade ainda estavam iniciando-se nos Estados Unidos na década de 1860. 21 De fato Sul e Norte não eram, em todo, divergentes. Inicialmente, as duas regiões compartilhavam padrões populacionais, representação no governo central e volume de exportações, vivenciando um processo de desenvolvimento econômico. É notável que por, mais de uma vez, Sul e Norte aliaram-se; como foi o caso da guerra empreendida contra o México (1846-1848) e das invasões a Oeste (iniciada por volta da década de 1790). Neste contexto, o sul ditava os rumos de um processo de expansão rumo ao Pacífico que iniciou-se em meados de 1814 e perdurou até a Guerra Civil. A marcha para o Oeste – como é conhecido este processo de expansão – só foi possível devido ao bloqueio inglês as pretensões norte-americanas com relação ao resto do continente. A marinha inglesa ainda era forte e impossibilitava os Estados Unidos de dirigirem-se a outras regiões da América. É diante desta situação que nasce uma causa americana unindo estados do Norte e Sul em torno da Doutrina Monroe22, que defendia a não criação de novas colônias no Novo Continente, a não intervenção européia nos assuntos americanos e demarcava uma posição de neutralidade dos Estados Unidos com relação a conflitos ocorridos na Europa. 23 A marcha para o Oeste significou também uma expansão em terras que eram habitadas por indígenas, fato que ocasionou conflitos. Entretanto, geralmente as guerras geram unidade. Os inimigos à frente – a metrópole inglesa e os indígenas que resistiam – eram mais fortes do que as diferenças internas entre nortistas e sulistas. 21 Ibidem, p. 64. Sobre a Doutrina Monroe, ver PERKINS, Dexter. A History of the Monroe Doctrine. 23 ALLEN, H.C. Op. Cit. pp. 111-121. 22 14 Tanto Sul, quanto Norte compartilhavam uma mesma concepção para as políticas mais amplas, voltada ao expansionismo e à afirmação da superioridade branca. Americanos de ambas as regiões do país sonhavam com os Estados Unidos como potência dominante no esquecido Hemisfério Ocidental. 24 Estas idéias estavam diretamente ligadas à doutrina do Destino Manifesto25, teoria de origem calvinista que defendia a crença dos Estados Unidos como nação eleita por Deus. 26 No âmbito econômico, as duas localidades mantinham relações comerciais. Porém, progressivamente, a diferenciação econômica entre as duas regiões foi aumentando, sendo que interesses regionais passaram a desestabilizar a integridade nacional norte-americana 27. Neste contexto, o próprio conflito com o México, que antes unira as duas regiões, agora era motivo de desacordo, uma vez que esse embate passava a ser criticado frente a um temor de que o processo expansionista contribuísse com a manutenção de uma política escravocrata, aumentando, consequentemente, o poder político e influência sulista. O espaço mexicano foi, notavelmente, ocupado pelos grandes proprietários sulistas, que visavam expandir sua área de produção. Entretanto, as autoridades nortistas não gostaram da idéia da expansão sulista-escravocrata, apesar de não terem tomado medidas efetivas contra a ocupação. É provável que o norte não tenha adotado postura mais ofensiva contra a ação no México por não querer ou talvez por não poder desenvolver um projeto diferente do projeto sulista na região. Porém, é preciso salientar que este episódio demonstrou as grandes divergências entre os dois blocos políticos, sociais e econômicos dentro da federação. 28 Definitivamente, Sul e Norte possuíam aproximações e relações. Porém, as diferenças entre as duas regiões intensificavam-se progressivamente. As afinidades existentes foram suplantas pelas profundas divergências que 24 Ibidem, p. 112. Sobre o Destino Manifesto, ver WEINBERG, Manifest Destiny: A Study of Nationalist Expansionism in American History. 26 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. pp. 48-64. 27 Ibidem, pp. 47-54. 28 IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 20, JaneiroJunho de 2010, Volume 11. p. 61. 25 15 emergiam. Uma vez que os inimigos externos haviam sido superados as tensões internas voltaram a aflorar novamente. O Norte vivenciava um período de grande desenvolvimento econômico a partir de um processo industrialização, com preponderância das indústrias naval e têxtil que orientavam sua produção de acordo com o capitalismo mundial. Era um período de rápida diversificação da economia, com a região atrelando-se ao capitalismo comercial mundial a partir de uma verdadeira revolução de mercado que incorporou novas atividades e trouxe um grande volume de riquezas para o Norte. Indústrias nas mais diversas áreas, como ferro e aço, botas e sapatos, papel, comestíveis empacotados, armas de fogo, maquinário agrário, mobília e ferramentas, desenvolveram-se rapidamente. O volume de empréstimos concedidos e seguros vendidos pelos bancos teve aumento exponencial. As estradas de ferro e a produção de barcos a vapor movimentou a indústria dos transportes. Serviços e bens passaram a movimentar a quantia de 2 a 3 bilhões de dólares anuais e o volume de exportações atingiu o valor de 400 milhões de dólares.29 No âmbito social, essa região, mais populosa, tinha alto número de alfabetizados e um considerável número de imigrantes estrangeiros30. Além disso, o contexto de desenvolvimento industrial propiciou o surgimento de uma nova grande classe; a classe dos trabalhadores assalariados.31 Com relação à população escrava, é notável que na maior parte dos estados do Norte, o número de negros – em proporção ao número de habitantes – era pequeno e pouco significante economicamente. 32 Enquanto o Sul abrigava, na década de 1860, quase 4 milhões de escravos33, nos estados do Norte este número muito inferior. New Jersey era o estado nortista com o maior percentual de escravos com relação a população total, possuindo 3,76% da população escrava. Enquanto 29 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy Blackwell Publishing, 2005. p. 53. 30 KARNAL, PURDY, FERNANDES, MORAIS. Leandro, Sean, Luiz Estevam, Marcus Os EUA no século XIX. História dos Estados Unidos, das origens ao século XXI. Contexto, 2ª edição, 2007. pp. 129-136. 31 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy Blackwell Publishing, 2005. p. 03. 32 Ibidem, p. 02. 33 ALLEN, H.C. Op. Cit. p. 129. K, (edição). Vinícius de. São Paulo: K, (edição). 16 isso, estados como New Hampshire e Massachussets mantinham a porcentagem de escravos abaixo da margem de 1% da população. 34 Nos estados do Sul a situação era diferente. Os proprietários sulistas encontravam dificuldade em utilizar tecnologias recentes na sua produção e a inda estavam profundamente ligados a uma idéia pastoril, que defende que o trabalho na terra é aquele que detém maior valor para o homem35. Assim, a agricultura ainda era a principal atividade regional, estando baseada no trabalho escravo africano. A produção agrária sulista também foi afetada pela mesma revolução de mercado identificada no Norte. Entretanto, nos estados do Sul ela teve efeito de expansão e intensificação da agricultura comercial, bem como colaborou para arraigar a idéia da necessidade de uma expansão das grandes plantations para o Oeste, suplantando as pequenas propriedades destinadas à subsistência. Neste sentido, é importante atentar para o fato de que os grandes proprietários das plantations não constituíam maioria entre a população, pelo contrário. Porém, eram eles os detentores do poder econômico e do prestígio social, comandando as decisões políticas. 36 Em suma, os diferentes projetos de colonização – a quase inexistência de projetos e o mosaico de formas diferenciadas de conceber-se americano, muito calcado nos tipos humanos, políticos e religiosos diferenciados que já existiam desde a colônia e que continuaram existindo após a independência - evidencia essas diferenças internas recobertas por uma capa de unidade que era a federação dos estados. Esses eram muito diferentes entre si, porém mantinhamse unidos porque gozavam de uma relativamente forte autonomia dentro da federação. Ou seja, só podiam ser “um só”, porque o tipo de organização adotada permitia que essas diferenças existissem, já que o pressuposto dessa organização era a autonomia dos estados. Isso também evidencia que no momento da guerra civil a questão da escravidão era tão forte que o princípio da autonomia dos estados da federação foi à breca quando o Norte interfere no modelo de organização política, social e econômica no Sul. 34 Censo disponível em: http://www.slavenorth.com/ Acesso em: 25 de novembro de 2010. IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. pp. 47-51. 36 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. pp. 03-05. 35 17 Para além dessas questões, é notável que o Sul ainda mantinha fortes laços com a antiga metrópole inglesa. Laços, sobretudo econômicos, que a Revolução Americana de 1776 não foi capaz de cortar imediatamente. A produção local mantinha-se dependente do mercado britânico, sempre procurando expandir os domínios de sua monocultura algodoeira e a área de abrangência da comercialização de sua produção agrícola para territórios situados mais ao Norte, o que de certo modo, representa complementaridade das produções de ambos os territórios. Assim, a diversificação da economia não era uma realidade possível no Sul, enquanto que no Norte ela já era acentuada. No âmbito político também havia diferenciação entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos. No congresso, o Sul procurava equilibrar as diferenças que existiam nos planos econômicos e sociais, defendendo e impondo suas concepções escravistas e agrárias de forma radical. “O Sul escravista ao mesmo tempo controlava o Estado americano e tornava-se o mais sério adversário da sua expansão nos anos que antecederam a Guerra” 37 . Desta forma, as divergências e debates só foram intensificados com o desenrolar do conflito bélico. As visões relativas ao papel desenvolvido pelo governo central, a forma com que estava dividido o poder federal e o próprio exercício da democracia, foram se distanciando e tornando-se contrárias. Assim, o separatismo chegava à política e passava a ameaçar a unidade da federação. 38 Entretanto, é necessário atentar para o fato de que o ensejo da guerra ia muito além das causas políticas. O objetivo do conflito não era apenas a preservação da União, pelo contrário39. Os motivos da secessão possuíam raízes muito mais profundas, que remetiam ao período colonial. As diferenças entre Norte e Sul se davam no plano dos projetos políticos de cada região, em muito devido à ação da administração inglesa. A coroa britânica ausentou-se no início da colonização, moldando uma perspectiva de auto-determinação em seus colonos. Disso decorre não ser nada surpreendente que uma grande área tenha 37 IZECKSOHN, Vitor. Op. Cit. p. 58. Ibidem, pp. 47-63. 39 ALLEN, H.C. p.129. 38 18 um projeto político, econômico e social muito diferente das linhas gerais do projeto de seus vizinhos. A essas diferenças na composição econômica e política das duas regiões, somou-se a questão da escravidão. Após a independência, em 1776, procurou-se organizar os Estados em uma União federalista. Entretanto, essa organização deixou de lado demandas cruciais na formação da nação, entre elas a da escravidão. Primeiramente, a própria igualdade era limitada, estando negros e índios prontamente excluídos, sem direito a nenhuma representação política. Os negros, particularmente, eram vistos como passageiros em solo americano, sendo a escravidão uma instituição a ser superada pelas forças do desenvolvimento econômico e político. Assim, a igualdade encontrava-se restrita aos homens brancos por “(...) disporem de prerrogativas extraordinárias, ausente da vida das demais nações” 40 . Essas concepções não sofreram modificações significativas, mesmo no século XIX. Assim, estas questões viriam à tona mais tarde, notavelmente, com o processo de expansão territorial norte-americano, que mobilizou tanto os estados do Norte, quanto do Sul dos Estados Unidos. 41 A expansão para o oeste havia ampliado a própria escravidão - com um singular crescimento demográfico da população de origem africana concentrada no Sul - transformando os Estados Unidos da América em um país essencialmente escravista, processo que havia se iniciado com a lei de proibição do tráfico negreiro, em 1808, e com o aumento no número de escravos no Sul 42 . A escravidão, remanescente do período colonial, era defendida pelos grandes proprietários sulistas, que visavam proteger interesses econômicos ligados as plantations baseadas no trabalho escravo africano. Esses grandes proprietários ainda contavam com o apoio de produtores menores, em uma aliança que visava continuar a subordinar a população negra.43 Para tanto, os dirigentes do Sul utilizavam uma leitura própria da Constituição e princípios federalistas para 40 IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 20, JaneiroJunho de 2010, Volume 11. p. 56. 41 Ibidem, pp. 56-58. 42 Ibidem, p. 58. 43 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. p. 08. 19 garantir a manutenção da escravidão em seus estados, compreendida como uma espécie de “mal necessário” a composição da nação norte-americana. Ademais, como define Victor Izecksohn: “O crescimento constante da população cativa, aliado à expansão do cultivo algodoeiro, reforçou a posição dos setores escravistas que paulatinamente assumiram uma atitude agressiva na política norteamericana, demandando territórios, financiamento e proteção por parte do Estado” 44 . A partir disso, a elite escravista do Sul cunhou concepções que versavam sobre a legalidade e necessidade de manutenção da ordem escravista, afirmando que “(...) a escravidão garantia a equidade civil dos homens brancos e protegia o sistema social do Sul das tendências radicais do proletariado livre” 45. Idéias como essa, vindas do Sul, alarmaram os nortistas, que surpreenderam-se e condenaram as demandas sulistas. Essas entraram em conflito direto com as idéias abolicionistas que surgiam no Norte, inclusive no âmbito do congresso nacional, abrindo as portas para uma linha de pensamento seccional que levou a guerra civil. Tal demanda abolicionista havia surgido entre os nortistas como conseqüência direta do processo de expansão do mercado local, que levou a criação de novos padrões de humanitarismo e ao esforço abolicionista no Norte. 46 A partir disso, é válido dizer que a escravidão foi fator crucial para a eclosão da Guerra Civil, promovendo um combate ideológico entre as duas porções do país. A partir disso, os próprios termos do debate político da década de 1850 foram reformulados, dividindo ainda mais os Estados Unidos e sendo fundamental no próprio processo de formação da nação norte-americana.47 Entretanto, é necessário relativizar uma imagem abolicionista defendida por grande parte da historiografia norte-americana. 44 Ibidem, p. 58. Ibidem, p. 09. 46 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. pp. 04-08. 47 IZECHSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. pp. 47-57. 45 20 “A Abolição ganhou respeito no Norte apenas quando seus oponentes ultrapassados do Sul republicano passaram a tentar silenciar os inimigos da escravidão. Represálias violentas contra os abolicionistas, aliadas ao desdém e desafio aberto dos sulistas, fortaleceu o movimento anti-escravidão a longo prazo.” 48 Grande parte dos republicanos nem mesmo chegou a elaborar uma crítica pesada sobre o tema da expansão da escravidão. Muitos assumiam posição mais moderada, simplesmente preocupados com a expansão da escravidão para o oeste e seu impacto no grau influência do Sul junto ao senado. 49 A chamada Crise do Missouri, de 1819, foi o estopim dos desacordos entre Norte e Sul acerca da questão escravista. O estado do Missouri havia solicitado inclusão como estado escravocrata, tendo apoio irrestrito do Sul, fato que causou grande comoção no Norte. Assim, as disputas entre as duas regiões iniciavam-se no âmbito político, com o Sul demonstrando que não iria abandonar um projeto de expansão da escravidão para territórios a Oeste. Os defensores da escravidão compreendiam a instituição escravista como um benefício, um alicerce para a economia e política do Sul. Assim, os representantes sulistas estavam dispostos a defender a causa da escravidão de maneira radical. Desta forma, a organização partidária norte-americana passou a ser abalada por conflitos de interesses regionais, fato que impulsionou um processo de desintegração da unidade nacional. 50 Diante do impasse criado pela Crise do Missouri os congressistas optaram por uma solução conciliatória. Assim, foi assinado o Compromisso do Missouri, que admitiu o estado como escravista e ainda regularizou a situação do estado nortista do Maine, que passou a ser considerado livre. A partir disso, buscava-se a manutenção de certo equilíbrio entre os congressistas do norte e aqueles oriundos de estados livres e escravocratas. Este episódio demonstrou que a escravidão não configurava-se enquanto uma instituição decadente, pelo 48 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. p. 04 49 Ibidem, p. 09. 50 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p.57. 21 contrário. A escravidão possuía força econômica e política, amparada por grande parcela da sociedade sulista que defendia sua expansão. Diante desta situação, os senadores do Sul uniram-se em prol da defesa da escravidão, repudiando qualquer pretensão nortista de impor limites a prática escravista. 51 A Carolina do Sul também foi importante quanto aos debates acerca a questão escravista. Aguerrido defensor da escravidão, este estado sulista lutava pela reabertura do tráfico de escravos africano e, portanto, contra as diretrizes de política internacional do maior parceiro comercial externo do sul algodoeiro, a Inglaterra. A elite local – defensora arraigada dos princípios federalistas desafiava frequentemente a administração central, protagonizando a chamada Crise de Nulificação, circunstância na qual recusou-se a pagar impostos ao governo federal. Esse episódio demonstrou a força das elites locais sulistas, que se unidas poderiam levar o país a secessão, como de fato o fizeram. 52 Por volta dá década de 1840, vinte anos antes da eclosão da guerra, a escravidão voltou a ser tema de grandes debates e inflamadas discussões entre os estados do Norte e do Sul. Com a anexação de territórios anteriormente pertencentes ao México, a expansão também tomou lugar nas discussões, provocando um realinhamento partidário53. A ampliação do território norteamericano era amplamente defendida pelos representantes sulistas no congresso, uma vez que representaria a alargamento de sua fronteira agrícola e do próprio número de escravos necessários para manter as novas terras anexadas produtivas. Em contraponto, a opinião pública nortista encontrava-se profundamente dividida acerca deste tema. A própria anexação do território do Texas enquanto estado escravista em 1844 e a guerra empreendida contra os mexicanos entre 1846 e 1848 foram amplamente contestadas por grupos que temiam uma expansão da instituição escravista - para o resto do país. 54 Essas tensões acerca dos temas da escravidão e da expansão territorial foram exacerbadas no ano de 1846, data em que o país ficou, pela primeira vez, à 51 Ibidem, p. 57. Ibidem, p. 63. 53 IZECKSOHN, Vitor. Deportação ou Integração. Os dilemas negros de Lincoln. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 20, JaneiroJunho de 2010, Volume 11. p. 61. 54 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 64. 52 22 beira da secessão. Neste ano, foi promulgada a chamada Emenda Wilmot, na qual o deputado democrata oriundo do estado da Pensilvânia David Wilmot demandava a abolição da escravidão das regiões incorporadas nas quais a prática escravista não existia anteriormente, tais como o estado do Missouri. Tal resolução, como era esperada, gerou grande revolta entre os representantes sulistas no congresso, o que obrigou os políticos moderados do Norte a buscarem, uma vez mais, soluções conciliatória e diplomáticas, visando a manutenção da unidade federal. 55 Além disso, a atuação do próprio governo norte-americano acabou por agravar as divergências entre Norte e Sul. A influência sulista junto ao governo - e mesmo junto ao próprio presidente - era grande, o que possibilitava a entrada de políticas favoráveis a escravidão no âmbito da administração central56 . Um bom exemplo desta influência é a promulgação da Lei dos Escravos Fugidos em 1850. Esta legislação continha uma clara concessão aos apelos sulistas, prevendo o direito dos proprietários de escravos de readquirirem - por meio de agentes federais – os cativos fugidos e abrigados em estados do Norte. Enquanto isso, os negros eram formalmente excluídos de qualquer meio de defesa legal. Assim, esta nova lei chocou os estados do Norte. Além de ferir seus princípios de autonomia federalista, tal legislação mostrou a força da bancada sulista e sua influência no governo central, alimentando idéias conspiratórias sobre a relação dos deputados sulistas e a administração federal. Esse episódio foi central para a criação, no Norte, de concepções radicalmente contrárias aos sulistas, afastando ainda mais no plano ideológico e político as duas regiões. 57 Conflitos localizados começavam a aparecer em diferentes estados, como no Kansas, Illinois e outras regiões do meio-oeste dos Estados Unidos. Essas regiões, vivenciavam conflitos internos por fazerem fronteira entre Norte e Sul, convivendo com o embate direto entre as duas regiões. No Kansas, especificamente, esta situação foi agravada por concepções federalistas que 55 Ibidem, p. 64. ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 57 Ibidem, p.64. 56 23 levaram a criação de dois governos na região, um representando os ideais do Norte e outro do Sul. 58 A situação de descontentamento, sobretudo quanto a questão da escravidão, era tamanha entre os dirigentes nortistas que iniciou-se uma organização partidária própria com fins de defender os interesses do Norte junto ao governo central e barrar a influência sulista. “Este partido expressava uma aliança entre pequenos e médios fazendeiros e grandes industriais e comerciantes. O que mantinha estes grupos unidos era a comum aversão ao poder sulista visto como 59 desagregador da nação” Dessa forma, o ano de 1858 marca a fundação do Partido Republicano, com um programa de desenvolvimento industrial e social aliado à abolição que tinha no Sul agrário e escravista seu entrave. Importante notar que os membros deste partido definiam a si mesmos em oposição à economia baseada no trabalho escravo praticada no Sul, frisando o caráter da elite escravocrata dessa região como opressora. Além dessas questões, o Sul era compreendido como um entrave ao desenvolvimento da União como um todo. Os problemas sociais identificados no Norte eram compreendidos como fruto da política escravista do Sul, que atrasava a economia norte-americana. 60 O novo partido não demorou a desbancar a antiga maioria sulista democrata - na bancada nacional, contando com grande apoio da opinião pública, que tendeu a apoiar os republicanos e seu programa firme de oposição a escravidão e a sua expansão61. Assim, “os dois principais não mais conseguiam excluir as divergências seccionais do debate parlamentar, dividindo-se em linhas geográficas claramente associadas às formas de trabalho livre ou escrava”. 58 62 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 62. 59 Ibidem, p. 66. 60 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 61 Ibidem, p. 09. 62 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norteamericano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 62. 24 Desta forma, a disputa tomava contornos morais, regionalistas e econômicos. A partir desse momento os embates entre nortistas e sulistas só se tornaram ainda mais acirrados, com disputas no legislativo, executivo e judiciário. Estando o governo central nas mãos dos republicanos, sua política foi orientada para o fim da escravidão. Para tanto, visava-se o enfraquecimento dos representante sulistas na bancada federal, fatos que agravavam a difícil convivência entre Norte e Sul. O Norte tornava sua posição cada vez mais radical, enquanto o Sul defendia suas idéias escravistas de forma exacerbada. Assim, em fins de 1850 a Guerra de Secessão era eminente. O Sul entendia a escravidão como um direito constitucional que deveria ser garantido pelo governo nacional, enquanto o Norte entendia a escravidão como uma instituição arcaica e que estava fadada ao desuso e ao desaparecimento. Diante da medida contrária tomada pela administração central em consonância com tais anseios nortistas, o Sul viu-se em posição de separar-se do resto da União. 63 Somando-se a esse contexto já crítico havia o fato de que os Estados Unidos estava passando por um período eleitoral. “A eleição do republicano moderado Abraham Lincoln, em novembro de 1860, instigou a crise final através da qual a maioria dos 64 Estados do Sul separou-se da União” . A alçada de Lincoln a presidência desesperou os sulistas, que temiam restrições à prática escravista. Por outro lado, a posse de Lincoln foi o momento ideal para a ação dos deputados separatistas, que viam no novo presidente um isolamento do Sul e o gradual enfraquecimento da escravidão65. Assim, o jovem Lincoln se viu diante de um processo de divisão do país; processo este frequentemente subestimado pelos republicanos e pelo próprio presidente. 63 IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. In: TOPOI, Revista semestral do Programa de Pósgraduação em História Social da UFRJ, nº 6, Janeiro-Junho de 2003, Volume 04. p. 66-71. 64 Ibidem, p. 71. 65 ___________. A Companion to the Civil War and Reconstruction. In: FORD, Lacy K, (edição). Blackwell Publishing, 2005. p. 09. 25 Subestimado principalmente porque os republicanos não contavam com a extensão do apoio popular aos Estados Confederados do Sul. Assim, no Norte a escravidão tornou-se problemática, enquanto que no Sul a manutenção da instituição escravista configurava-se como o único meio de manter o modo de vida esboçado em ideais aristocráticos. A partir disso, a secessão tornou-se uma realidade, notavelmente muito mais violenta e radical do que supunham os dirigentes nortistas. “Para restaurar a União seriam necessários quatro anos de guerra, a destruição da escravidão no Sul e a reorganização da economia política da confederação pela coalizão vencedora” 66 . Desta forma, a guerra foi o maior sintoma do abismo existente entre duas regiões que possuíam concepções distintas, ao passo que também foi o modo de reunificar – ou unificar pela primeira vez – os interesses e projetos que eram tão discrepantes. 66 Ibidem, p. 74. 26 RALLY MEN OF COLOR, AT ONCE FOR YOUR COUNTRY!: OS SOLDADOS NEGROS NA GUERRA DE SECESSÃO “Nós cultivamos o algodão, nós cultivamos o milho; Nós somos soldados de cor Yankes, agora, tão certo como vocês nasceram; Quando os mestres nos ouvirem gritando, eles pensarão que é a trombeta de Gabriel; 67 E nós marcharemos.” No presente capítulo realizar-se-á um esboço da cronologia da criação das tropas negras, tanto dos confederados como da União. Nessa cronologia, se analisarão detidamente proclamações oficias do presidente Lincoln acerca das tropas de negros, o Militia Act e o Segundo Confiscation Act, fontes primárias para a elaboração desse capítulo. A análise desses documentos são essenciais para compreensão do processo de incorporação de homens de cor nos exércitos norteamericanos e muito do que ocorrerá no pós-abolição. Com a eclosão do conflito da secessão, o presidente norte-americano Abraham Lincoln passou a mobilizar forças voluntárias para enfrentar as tropas separatistas do Sul. Cerca de 75.000 voluntários atenderam ao apelo presidencial e juntaram-se ao exército da União. Entre os homens que apresentaram-se aos centros de recrutamento, é notável a participação de centenas de negros livres do Norte e escravos fugidos do Sul. Entretanto, as autoridades governamentais alegaram que não havia necessidade da incorporação de negros a instituição militar, uma vez que não cabia a eles lutar em um conflito que era compreendido como uma guerra apenas de homens brancos. 68 Desta forma, em um primeiro momento, os estados nortistas e sulistas passaram a um recrutamento maciço de suas populações brancas. Logo, percebeu-se que o número de homens brancos em idade de combate não era suficiente, problema identificado nos exércitos tanto do Sul, quanto do Norte. Assim, passou-se, primeiramente, ao alistamento de homens de outras 67 Verso da canção militar John Brown´s Body, composto por abolicionistas de Nova York para o 1º regimento de infantaria do Arkansas (descendentes de africanos). In: TRUDEAU, Noah André. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 99. 68 MCCORMICK, Jayne. The Black Troops of the Civil War. 2001. Disponível em: http://www.bitsofblueandgray.com/feb2001.htm. Acesso em: 25 de outubro de 2010. 27 nacionalidades. Foram organizadas tropas compostas de alemães, escoceses, irlandeses, suecos, escandinavos e italianos.69Entretanto, o número de alistados era muito inferior ao demandado, permanecendo o problema da insuficiência militar. Além disso, haviam ainda causalidades, epidemias, deserções e resignações, que traziam baixas aos efetivos militares. Em vista de tais problemas, recorreu-se ao recrutamento de homens negros. 70 1. Os soldados negros no norte. Os estados da União foram os primeiros a recrutar descendentes de africanos. A política restritiva aos negros estava sendo, por força da necessidade, abandonada. A guerra não era mais um conflito somente dos homens brancos, agora os negros eram incitados a combater. 71 Entretanto, é necessário relativizar a idéia de que no Norte os negros alistados foram incorporados sem problemas às corporações militares. Os desconfortos e embates com oficiais e soldados brancos eram corriqueiros, havendo grande desconfiança na capacidade das tropas compostas apenas por homens de cor72. Entretanto, o desenvolvimento da guerra exigia o recrutamento de descendentes de africanos. Neste contexto o ano de 1862 mostra-se paradigmático, tanto para a organização de tropas na União, quanto na confederação. No âmbito dos estados nortistas, ao final deste ano criou-se a 1º Kansas Colored Volunteer Infantry 73 , que manteve-se por um tempo independente do controle federal. Este regimento contrariou os céticos quanto ao desempenho dos soldados negros ao sair vitorioso de várias batalhas, entre elas a Batalha da Ilha Mound, no estado fronteiriço do Missouri. Sendo um border state74 , o Missouri era fundamental nas pretensões nortistas de vencer os confederados. Assim, a operação do 1º Kansas Colored Volunteer foi fundamental 69 BURTON, William L. Melting Pot Soldiers. The Union´s Ethnic Regiments North´s Civil War. Fordham University Press, 1998. p. 52. 70 Ibidem, p.47. 71 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 03-20. 72 Ibidem, p. 112. 73 Este nome designava o 1º regimento de voluntários coloridos do Kansas. 74 Os border states (estados “tampões”) eram estados escravistas situados na União. Eram quatro os border states: Missouri, Delaware, Maryland e Kentucky. 28 ao expulsar as tropas sulistas da região, fato que rendeu a esta infantaria honrarias e fama entre os militares.75 Exemplo da importância dada a este destacamento, é que em meados de 1863 o 1º Kansas Colored Volunteer já integrava formalmente o serviço militar norte-americano76, sendo um dos regimentos negros da União a angariar este posto, a lado de tropas de destaque, como as do Distrito de Columbia e Ohio. 77 O estado do Kansas figura, desta forma, entre os estados que organizaram tropas de homens de cor mesmo sem uma oficialização da gestão Lincoln, demonstrando a força do princípio federalista norte-americano, regido pela idéia de autonomia dos poderes das localidades e dos estados. Os estados, diante da falta de ação do governo quanto às demandas por mais homens, resolveram organizar sua defesa de forma independente. Em seus estados, governadores passaram a agir de forma autônoma para garantir a integridade territorial e conter as forças confederadas78. Assim, quando se dá uma legislação específica acerca dos regimentos negros, essa lei vem apenas regulamentar uma realidade já existente há tempo considerável nos estados da União, uma vez que a utilização de soldados negros se dava desde o início dos conflitos, porém sem a organização em unidades.79 2. Os soldados negros no sul. Apesar da grande desconfiança e aversão quanto à integração de negros a instituição militar, os estados do Sul – frente ao avanço nortista – passaram também ao recrutamento de descendentes de africanos. Assim, o ano de 1862 marca a primeira organização sulista quanto às tropas negras, com o First Louisiana Native Guards sendo formalmente integrado ao exército dos Estados Unidos. Este constituiu o primeiro regimento totalmente negro, exceto no oficialato, a entrar na USCT durante a Guerra Civil. Era um grupo motivado, mesmo com todo o racismo por parte dos oficiais brancos. Porém, ainda estavam 75 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p. As tropas negras que integravam o serviço militar norte-americano era designadas pela sigla USCT – United States Colored Troops (Tropas de cor dos Estados Unidos) 77 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 103-115. 78 BURTON, William L.Op Cit..pp. 15-17. 79 Ibidem, pp, 03-05. 76 29 sendo testados em trabalhos manuais menores, para só depois serem empregados na batalha contra a União80. No mês de maio do mesmo ano iniciou-se o recrutamento de negros para o corpo militar do estado confederado da Carolina do Sul, a fim de integrar homens de cor ao primeiro regimento do estado. Estes soldados – em sua maioria – encontravam-se em situação de grande pobreza. Muitos enfrentavam dificuldades quanto ao que vestir e calçar. Mesmo assim, nenhum uniforme foi providenciado para tais soldados, muito menos qualquer tipo de pagamento ou soldo. 81 Desta forma - mesmo repletos de tensões sociais - os estados sulistas de New Orleans e Louisiana, frente às vitórias da União que quebravam com o rígido regime escravista local, foram igualmente pioneiros no que tange ao armamento de tropas negras. Entretanto, haviam restrições e pesados encargos financeiros. As armas eram pessoais, porém só poderiam ser usadas para defesa de algum posto. Os custos com uniformes, por sua vez, ficavam a cargo do próprio soldado, sendo que o soldo dos homens negros era muito inferior ao dos recrutas brancos. 82 Um grande número de escravos nem mesmo chegava a pisar em um campo de batalha, sendo a maioria era empregada na construção de fortificações e defesas. Outros - como aqueles que compunham a defesa do estado confederado do Tennessee - marchavam como servos de seus proprietários ou trabalhavam em funções de cozinheiros, enfermeiros, trabalhadores nas ferrovias ou na indústria bélica confederada83. Esses escravos, apesar de integrados ao exército, continuavam a ser propriedade de seus senhores, sendo utilizados nas forças armadas em trabalhos similares aos que tinham nas plantations e outras atividades que empregavam a mão de obra escrava. Esses negros não eram compreendidos como soldados, e sim como “necessidade militar”, sendo indispensável enviá-los - ao fim do conflito - novamente aos seus senhores84. Chegou-se a aventar – em meados de 1864 – a possibilidade dos sulistas empregarem escravos no exercício militar prometendo, aqueles que eventualmente sobrevivessem ao conflito, a liberdade ao término da guerra. 80 Ibidem, p. 09. MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 82 BURTON, William L.Op Cit..p. 09. 83 Ibidem, p. 09. 84 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 109-112. 81 30 Entretanto, esta medida não chegou a ser aplicada, uma vez que as tropas as quais se prometeu a liberdade não chegaram a atuar no embate com os nortistas85. A partir de 1862 a dependência do exército com relação a essas tropas formadas por negros passou a tornar-se cada vez maior, exigindo uma regulamentação, por parte do governo Lincoln, com relação à sua constituição formal. Uma ação neste sentido contrariava a política de não institucionalização empregada pela administração Lincoln desde os primórdios do conflito com o Sul. O presidente adotou tal postura, em muito, pela atitude evasiva do governo quanto à questão escravista. Lincoln compreendia o peso dessa questão e as controvérsias que ela geraria, sobretudo nos border states, no quais a escravidão ainda era uma prática comum, enraizada socialmente. É neste contexto que insere-se a relutância de Lincoln em permitir o alistamento de negros no exército da União. 86 Inicialmente, a administração Lincoln resistiu a qualquer esforço no sentido de armarem-se os negros. Apesar de seu desejo pessoal de integrar negros as tropas da União, o presidente não via essa necessidade, uma vez que o alistamento voluntário ainda supria as necessidades nortistas e o sul não havia ainda angariado vitórias significativas. É neste contexto que são promulgados em 17 de julho de 1862 o Segundo Confiscation Act e o Militia Act. Ambos os atos são aprovados pelo congresso norte-americano com o objetivo de alargar os poderes do presidente para usar milícias de homens negros. A promulgação do Militia Act dava ao presidente total autoridade para aprovar o recrutamento de competentes descendentes de africanos que atuariam no exército e na marinha, além de conceder-lhe o direito de nomear os oficiais que ficariam no comando de tais milícias. Este documento tinha como finalidade estabelecer: “(...) padrões federais para a organização das milícias, um ato a mais para prover a defesa nacional, estabelecendo uma milícia uniforme ao 87 longo dos Estados Unidos” . 85 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. Idem, Ibidem. 87 Militia Act (1862). Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm Acesso em: 28 de outubro de 2010. Tradução livre. 86 31 Para tanto, buscavam-se situar modelos quanto ao recrutamento, treinamento e armamento de todos os soldados, brancos e negros. O alistamento, segundo o Militia Act deveria estender-se a todos os homens entre 18 e 45 anos, sendo que após seis meses de ingresso na milícia esses soldados deveriam estar armados com rifles ou mosquetes, munidos de balas em uma mochila ou bolsa88. Entretanto, a área de atuação dos soldados negros nortistas continuava, não raro, restrita a construção de trincheiras e outros trabalhos físicos. O Militia Act estabeleceu também à forma com que deveria se dar a convivência entre brancos e negros no âmbito militar, reiterando que os negros não deveriam ser tratados como iguais, sendo que este tratamento diferenciado se estenderia a questão do soldo. Uma das alegações discriminatórias refere-se ao fato dos soldados negros não haverem integrado o exército no início do conflito da secessão – e, portanto, não haviam lutado desde os primeiros embates. Por esse motivo, alegava-se não possuírem direito ao mesmo valor de soldo dos brancos. Os valores baixos pagos a todos os soldados, eram ainda mais baixos para os soldados negros. Os soldados brancos recebiam U$ 13,00 mensais, com um adicional de U$3,50. Já os soldados negros recebiam U$10 mensais, entretanto, U$3 eram descontados por conta dos uniformes, restando apenas 7 dólares para cada soldado89. O Segundo Confiscation Act, por sua vez, visava acabar com o dilema relativo à incorporação de escravos na corporação militar. Assim, os poderes de Lincoln, com relação às milícias negras, foram alargados para melhor se combater as forças confederadas, como explicita-se na seção onze do documento: “(...) o Presidente dos Estados Unidos é autorizado para empregar muitas pessoas de descendência africana como pode julgar necessário e próprio para a supressão desta rebelião, e para este 88 89 Idem, Ibidem. MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. 32 propósito pode ele organizar e os usar de tal maneira como ele julgar melhor para o bem-estar público”. 90 A proclamação trata, igualmente, da situação dos cativos nos estados que haviam deixado a União. Assim, o Segundo Confiscation Act constituiu um esforço inicial no sentido de emancipá-los. Os confederados que não se adequassem às exigências do Ato em até 60 dias após sua aprovação seriam punidos por crime de traição contra os Estados Unidos da América, tendo como pena a libertação de seus escravos. Assim, o documento constituiu uma tentativa de enfraquecimento da política separatista da Confederação, propondo metidas de retaliação aos estados que se unissem aos “rebeldes”. Além disso, instituía-se uma política de remissão para aqueles que resolvessem reitegrar-se a União, como é explicitado na seção 13: “o Presidente é autorizado por este meio, a qualquer hora daqui por diante, através de proclamação, estender a pessoas que podem ter participado na rebelião existente em qualquer Estado ou parte, perdão e anistia, com tais exceções e a tal tempo e em tais condições como ele pode julgar expediente para o bem-estar público.” 91 Os acts constituíam uma ingerência na autonomia dos estados, entretanto, sua promulgação acenava com uma saída honrosa para os que resolvessem mudar de idéia e reintegrar-se a União. O Segundo Confiscation Act planejava uma cisão na Confederação, já que aqueles agentes – individuais ou coletivos – que temendo as medidas do confiscation regulamentavam as suas tropas negras, punham-se em oposição àqueles que ainda assim desafiavam os decretos do presidente. O Ato também trata da relação entre os escravos e as tropas da União, que estavam avançando no território sulista. Notavelmente, o número de escravos a buscar refúgio nos acampamentos nortistas era cada vez maior, e os oficiais não sabiam como lidar com a situação. Diante desta conjuntura, a seção nove 90 Second Confiscation Act (1862). Disponível em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559 Acesso em: 28 de outubro de 2010. Tradução livre. 91 Idem, Ibidem. 33 decretava que todos os negros refugiados entre a União deveriam ser compreendidos enquanto prisioneiros de guerra, sendo prontamente libertados92. Entretanto, é necessário compreender que apesar de constituir os primórdios da política de emancipação dos escravos, o Segundo Confiscation Act não ofereceu nenhuma garantia de manutenção dos direitos civis dos exescravos, uma vez que o objetivo da emancipação era servir aos interesses nortistas e governamentais, não garantir melhores padrões de vida aos descendentes de africanos. De fato, o documento apoiava a emigração de negros para a América Central e do Sul, aonde, supostamente, se adaptariam melhor ao clima tropical e poderiam desfrutar de sua condição de homens livres, como fica explicito na seção 12 do Ato. Além disso, o Segundo Confiscation Act restringiu a libertação dos escravos apenas aos estados rebeldes, sendo que os negros fugidos dos border states, leais a União, seriam prontamente devolvidos aos seus senhores. Assim, o Segundo Confiscation Act apresenta-se como uma tentativa do governo Lincoln de promover uma emancipação gradual e compensada dos escravos, a fim de não perder o apoio dos estratégicos border states. Entretanto, foi justamente o traço abolicionista contido nessas medidas que retirou os estados do Tennessee e Vírgina da União. 93 3. As conseqüências da institucionalização: segundo Confiscation Act e o Militia Act. A questão do recrutamento de homens de cor estava agora em âmbito nacional, com Lincoln dobrando a política governamental de exclusão do negro das corporações militares. Desta forma, a emancipação se dava progressivamente, iniciando-se ainda em 1862 com a promulgação de uma proclamação de emancipação preliminar. A assinatura deste documento transformava a guerra em um conflito não apenas para salvar a União, mas 92 Idem, Ibidem. The Historical Times Illustrated Encyclopedia of the Civil War. FAUST, Patricia (ed), Harper and Row, New York, 1986. 93 34 também para abolir a escravidão. Processo que vai conduzir a emancipação oficial dos escravos, em 1 de janeiro de 1863. 94 A partir disso, o ingresso de homens negros ao exército da União foi regularizado. Negros passaram a ser oficialmente alistados e agrupados em tropas sob o comando de oficiais brancos. Porém, apesar da boa receptividade da emancipação entre alguns comandantes brancos, os negros não encontraram todas as fileiras do exército amistosas a sua integração. Muitos oficiais, temerosos de perder o controle sobre seus homens, não concordavam com o armamento e institucionalização dessas tropas de homens negros, agora livres. Práticas concebidas sob a égide do preconceito racial eram freqüentes. Para esses comandantes, os negros eram homens ignorantes e o trabalho de organizar, educar e disciplinar tais soldados deveria incluir rígidas punições físicas e psicológicas, mesmo quando os deslizes eram mínimos. É notável que inúmeros oficiais brancos não acreditavam que os negros teriam coragem suficiente para lutar, muito menos, que poderiam realizar com destreza tal função.95 Assim, os maiores problemas enfrentados pela USCT relacionavam-se a castigos excessivamente severos e abusivos e a desconfiança por parte dos oficiais brancos.96 Entretanto, os rumores sobre o avanço das tropas de descendentes africanos passavam a percorrer todo o país. Os regimentos negros angariavam, cada vez mais, elogios e reconhecimento por parte dos próprios comandantes brancos, que salientavam a sua coragem e bravura - uma vez que bem treinados, disciplinados e conduzidos por esses oficiais. Porém, sempre existiam tensões e animosidades entre os tais chefes militares e os soldados negros. Inicialmente, o choque cultural foi imenso e levou a criação de concepções racistas e preconceituosas. Para muitos oficiais brancos, os soldados negros possuíam fortes traços de ingenuidade e imaturidade. Assim, os ex-escravos eram compreendidos como seres primitivos. 97 94 MCCORMICK, Jayne, Op. Cit. s/p. Idem, Ibidem. 96 GLATTHAAR, Joseph T. Forged in Battle: the civil war alliance of black soldiers and white officers. New York: Fist Meridian Printing, January, 1991. p. 113. 97 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. p. 109. 95 35 4. Quem eram e o que queriam os soldados negros da União e da Confederação? Cerca de 180.000 negros ingressaram no exército da União, sendo muitos deles ex-escravos98. Não raro, encontravam-se entre esses homens, alguns que possuíam notável conhecimento a cerca das letras e da matemática. Importante salientar que nem todos estavam necessariamente comprometidos com uma agenda política sendo recrutados de modo mais ou menos coercitivo ou por visarem benefícios mais diretos. O exército, para esses homens de cor, era visto como uma promessa de alçada financeira e reconhecimento social, bem como de esperança de um futuro melhor. 99 No norte, apesar da integração de negros ao exército, as discussões sobre a questão da igualdade ainda não haviam sido desencadeadas. As unidades negras eram separadas dos regimentos brancos e – como já dito - seus comandantes não poderiam ser oficiais de cor100. Desta forma, havia uma manutenção da concepção da raça negra como inferior, havendo grande desconfiança quanto ao desempenho como soldados. A opinião pública e as tropas brancas, em geral, baseavam-se em estereótipos raciais, compreendendo os negros como infantis, selvagens e limitados. Estes, só tiveram seu ingresso no serviço militar tolerado devido à confiança da opinião pública de que a raça inferior seria fortalecida nos campos de batalha. 101 Mesmo assim, alguns poucos oficiais negros conseguiam galgar postos elevados entre os brancos, transpondo e fragilizando as barreiras impostas pelo preconceito, pelo menos no âmbito do exército. É notável que a população alimentava um temor generalizado quanto as práticas militares realizadas por soldados de cor. Para tanto, o governo norte-americano teve de tomar medidas que impediam os soldados negros de conviverem com as populações locais, visto a grande desconfiança que geravam entre os moradores. A União adotara uma política que visava preparar as tropas negras para o combate, incluindo a criação de campos de treinamento específicos para esses 98 Ibidem, p. XVIII. GLATTHAAR, Joseph T. Op. Cit. p. X. 100 Idem, pp. IX-X. 101 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 101-117. 99 36 soldados. É o caso do renomado Camp William Penn, localizado na cidade da Philadelphia, no estado nortista da Pensilvânia. Fundado em 1863, este campo de permanência, sendo exclusivo para treinamento das tropas negras, representou uma conquista sobre todo o preconceito que permeava as concepções sobre os negros no exército. Apenas neste campo foram graduados 11 regimentos compostos por negros comandados por experientes oficiais brancos, aspecto que auxiliou na manutenção de concepções relacionadas ao trabalho em grupo, fundamental para um bom treinamento dessas tropas. Era necessário, antes de tudo, compreender os negros como homens, soldados em potencial, para então passar a designá-los para missões, atribuindo-lhes responsabilidades e elevando sua moral. 102 Um treinamento eficaz no menor espaço de tempo possível era aspecto essencial dentro das pretensões nortistas na guerra. Neste contexto, o curso e duração do conflito dependiam, em muito, da habilidade dos soldados negros armados de baionetas e mosquetes, sendo necessária rapidez e precisão nas suas ações. Entretanto, uma das áreas mais críticas e negligenciadas do treinamento era justamente a que cabia a utilização de armas de fogo. Enquanto os soldados brancos possuíam armas individuais e recebiam as instruções adequadas quanto ao seu uso, aos negros eram impostas diversas barreiras, sobretudo, por um temor ainda existente quanto à conduta desses indivíduos. A este panorama, somava-se o fato de que os senhores proibiam o acesso de seus escravos a armas de fogo, como muito soldados eram ex-escravos, não raro, regimentos completos nunca haviam sequer tocado em um mosquete. Outro aspecto fundamental na organização das tropas negras dizia respeitos a formações táticas. Essas eram repetidas exaustivamente nos campos de treinamento, pelo menos naqueles que formaram as primeiras tropas de negros que entraram na guerra, uma vez que com o desenvolver do conflito o tempo disponível para exercício adequado das tropas foi sendo diminuído drasticamente, quando não atrapalhado pela eclosão de conflitos localizados. Sem tempo para treinar, eram repassadas a essas tropas apenas táticas básicas de sobrevivência no campo de batalha. Para além desse problema, os comandantes de tropas negras ainda tinham que lidar com as ordens vindas dos 102 TRUDEAU, Noah Andre. Op. Cit. pp. 125-129. 37 oficiais superiores. Estes, geralmente, empregavam as tropas negras em trabalhos manuais que não se ligavam diretamente ao exercício bélico. Isso reduzia drasticamente o tempo e a direção do treinamento dos regimentos compostos por homens de cor. 103 Apesar do consistente programa de treinamento, que incluía cartilhas e manuais, as tropas compostas por homens negros ainda enfrentavam problemas institucionais no Norte, sobretudo relativos à questão do pagamento de soldo. Não raro, essas tropas não recebiam o pagamento adequado e, muitas vezes, prometido. Não eram poucos os soldados que encontravam-se em situação de grande pobreza, pelo contrário. Assim, muitos revoltaram-se contra a situação de não recebimento do soldo. Uma ação nesse sentido acarretava atitudes do oficialato branco, que tinha suas decisões marcadas pelo exagero e pelas motivações raciais. Um dos exemplos mais salientes desse problema é o protesto organizado pelos soldados da 11ª U. S Colored Heavy Artillery104, tropa que levou a cabo um manifestação de grandes dimensões reivindicando pagamento igualitário entre soldados brancos e negros. 105 Entretanto, é notável que os comandantes de tropas de cor nortistas levavam vantagem substancial sobre seus homólogos do Sul. As unidades organizadas pelos oficiais brancos do norte possuíam número significativo de negros letrados, o que facilitava a leitura, por exemplo, de manuais de treinamento. Além disso, nos campos de treinamento localizados ao Norte dos Estados Unidos, o tempo disponível para a disposição e treinamento das tropas de negros era, quase sempre, maior. 106 Desta forma, as diferenças entre as tropas formadas no Norte e no Sul eram evidentes. Os soldados da União, assim como seus companheiros brancos, possuíam noções de disciplina e estrutura militar. A função da própria disciplina era, acima de tudo, transformar homens de cor em soldados do Exército dos Estados Unidos da América. Mas o fator crucial era que esses negros, em grande número, ex-escravos, haviam provado da liberdade e não hesitariam em lutar para defendê-la. Alguns comandantes dessas tropas faziam, inclusive, questão de 103 GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. pp. 99-106. Este nome designava o 11º regimento de artilharia pesada de homens de cor dos Estados Unidos. 105 Ibidem, pp. 111-116. 106 Ibidem, p. 101. 104 38 marcar a diferença entre o escravo e o soldado, entendendo a importância desta distinção – sobretudo, disciplinar - para o desempenho do regimento. Enquanto isso, seus “irmãos” do Sul continuavam atrelados à lógica escravista, uma vez que, frequentemente, o ingresso em uma milícia não significava o rompimento dos laços escravistas com os grandes senhores. Assim, para muitos desses homens a estrutura militar, com os brancos acima dos negros, representava uma mera extensão da relação entre o senhor e seus escravos. Esta concepção abria espaço para uma reação – por razões raciais - de inúmeros soldados negros contra a autoridade dos oficias brancos. 107 Desta forma, os Confederados evitavam ao máximo esse tipo de organização, Entretanto, a presença de um grande número dessas tropas no exército da União não passou despercebida pelos confederados. Os regimentos de cor eram cada vez mais requisitados para a defesa das novas possessões que a União vinha tomando dentro de território sulista, domínios esses, notavelmente, escravistas108. No Sul, ao organizarem-se as primeiras tropas compostas por negros, restringiu-se sua área de atuação. Soldados negros deveriam ser empregados unicamente em serviços de apoio. 109 Isso não significa que os descendentes de africanos ao sul também não almejassem lutar pela defesa de territórios das duas parcelas em contenda, pelo contrário. Não eram poucos os negros, seja do sul ou do norte, que entendiam a guerra civil em termos regionais. Muitos estavam dispostos a lutar do lado dos brancos para defender seus lares. Entretanto, havia grande temor em armarem-se os negros em meio a uma população tão grande de descendentes africanos. Por este motivo, os soldados negros nem sempre recebiam treinamento ou soldo110. Entretanto, a condição do Sul de dependente das tropas formadas por negros levou o governo confederado a tomar medidas que conservassem tais regimentos sob a autoridade a organização bélica sulista. Desta forma, em 1863 o Sul já passava a incorporar regimentos negros ao seu serviço militar regular, demonstrando a importância dessas tropas nas pretensões confederadas. Assim, 107 Ibidem, pp. 108-120. BURTON, William L.Op Cit. pp. 10-20. 109 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. XVIII-XIX. 110 Ibidem, p. XIX. 108 39 o 2º Regimento da Carolina da Norte foi o primeiro a fazer parte, oficialmente, da USCT. Atrelado a isso, ocorria uma mudança na própria visão sulista das tropas negras, da sua competência e capacidade. Cada vez mais oficiais salientavam a obediência e capacidade dos negros de realizar satisfatoriamente todas as funções dadas a um soldado branco, inclusive lutar. 111 As tropas compostas por negros também estavam alterando as concepções nortistas. Com participação decisiva em várias batalhas, soldados negros passaram, paulatinamente, a angariar mais respeito e admiração no âmbito militar dos estados da União. Tornavam-se inúmeros os elogios dos comandantes brancos, que salientavam o patriotismo e coragem de seus comandados negros. Os soldados de cor eram tidos como exemplo da eficácia de programas de treinamento atrelados à disciplina, fundamental para manter os soldados em suas posições, não importando a condição favorável, ou não, da batalha. As comparações com regimentos brancos eram inevitáveis, uma vez que era notável que a maioria dos soldados brancos entendia o ingresso na instituição militar como um dever patriótico, enquanto que os negros viam a oportunidade como uma honra e um privilégio. 112 Em maio de 1863, a União já contava com, aproximadamente, 160 regimentos e 10 baterias de artilharia leve compostas por negros. É notável que houveram, inclusive, oficiais negros condecorados pelo Congresso norteamericano. Foram cinco oficiais da marinha nortista e dezoito de campo a serem homenageados com medalhas de honra ao mérito. Um número expressivo, visto o contexto de preconceito e restrição a ação de soldados de descendência africana. 113 Os dados quantitativos relativos ao número de negros integrados aos exércitos do Norte e do Sul durante o conflito da secessão são variáveis. Entretanto, a autora Jayne McCormick aponta para um número de alistados que ficaria em torno de 178 a 210 mil negros. Os estados separatistas do Sul e os border states foram responsáveis pelo alistamento de, aproximadamente, 135 mil negros. A União, com grande volume de negros incorporados ao exército, empregou apenas em sua marinha 50 mil descendentes de africanos. De todos 111 TRUDEAU, Noah André. Op. Cit. pp. 115-118. GLATTHAAR, Joseph T.Op. Cit.. pp. 99-108. 113 MCCORMICK, Jayne. Op. Cit. s/p. 112 40 esses alistados – somando-se os efetivos do Sul e do Norte - cerca de 36 mil perderam a vida durante o conflito da secessão.114 114 DAVIS, Burke. The civil war, strange and fascinating facts. Disponível http://www.civilwarhome.com/casualties.htm . Acesso em: 26 de outubro de 2010. em: 41 AS TROPAS NEGRAS EM COMBATE: AS CORRESPONDÊNCIAS DOS SOLDADOS E SEUS OFICIAIS “Eu nunca acreditei em negros antes, mas por Jesus, eles são como o inferno quando lutam.” 115 1. A guerra e a palavra escrita Com o advento da Guerra Civil, os estados da União adotaram postura que visava desestabilizar os separatistas. O objetivo era manter os estados do sul isolados política e economicamente do restante dos Estados Unidos. Para tanto, pretendeu-se um bloqueio que impedisse os sulistas de receberem munições e mantimentos. Também as comunicações entre áreas pertencentes às duas facções beligerantes foram afetadas pela guerra. O serviço postal no sul foi cortado, os selos dos estados separatistas não possuíam validade no Norte e as cartas endereçadas ao sul frequentemente retornavam aos seus remetentes. O United States Postal Service116, (USPS) criado em 1775 por Benjamim Franklin, tinha importância vital em termos militares em um período de guerra, mas também era importante para as famílias dos combatentes em um combate que, muitas vezes, mal compreendiam. Assim, o sul - seus habitantes e seu contingente militar - foram profundamente afetados pelo bloqueio nortista no USPC. Entretanto, sempre se encontraram meios de transpor o bloqueio. Muitas cartas chegaram aos seus destinos no norte por meio de navios tipo de “bandeira de trégua”. Essa estratégia funcionou satisfatoriamente até o norte passar a efetuar o bloqueio também dos portos confederados. A partir desse momento, novas estratégias para a entrega de correspondências foram criadas, utilizandose, sobretudo, de portos estrangeiros. Por esse motivo, essas cartas demoravam muito tempo para alcançar seus destinos. Mesmo assim, essa ainda era a única 115 Frase proferida por um oficial branco comandante de um regimento do First Kansas Colored. In: TRUDEAU, Noah André. Like Men of War: Black Troops in the civil war (1862-1865). New York: Castle Books, 2002.p. 108. Tradução livre. 116 Serviço Postal dos Estados Unidos. 42 forma de muitas pessoas manterem contato com familiares ou amigos que foram afastados pela divisão do país. 117 A comunicação entre soldados e seus familiares era particularmente difícil, já que instaurado o conflito, as correspondências militares eram prioridade. A princípio, para a entrega de correspondências pessoais, seria relativamente fácil encontrar os soldados em seus acampamentos, nos quais permaneciam por semanas. Entretanto, com o recrudescimento das batalhas, era cada vez mais difícil localizar as tropas que encontravam-se em constante movimento. Desse modo, a entrega das correspondências tornava-se um desafio. Entretanto, os familiares, amigos e os próprios soldados no front de batalha não desistiam de estabelecer a única forma de contato possível com seus entes queridos. Assim, apesar de todos esses complicadores, aos quais se somam os não poucos extravios, sobreviveram ao tempo e às vicissitudes um volume considerável de cartas para o período da Guerra Civil. À correspondência recebida pelos soldados era importante fator para a elevação do moral das tropas. No âmbito militar tanto do norte quanto do sul, a motivação dos soldados dependia muito do recebimento de noticias e palavras de afeto vindas de suas famílias118. Durante o tempo de batalha tornava-se necessário deixar manifesto a esses homens que eles não haviam sido esquecidos. Porém, é notável que a correspondências estabelecida entre os soldados e seus parentes civis nem sempre reportavam-se apenas a sentimento e lembranças dos tempos de paz. Não raro, essas cartas denunciavam as atrocidades da guerra e o cotidiano dos homens que lutavam pela causa da União ou dos confederados. 119 As correspondências serviam, portanto, tanto como veículo de afeto quanto de um local onde os soldados faziam seus desabafos aos seus queridos. 2. Os soldados negros e a palavra escrita 117 BURKE, Kathryn. Letter Writing in América - Civil War Letters. Disponível em: http://www.postalmuseum.si.edu/letterwriting/lw04.html Acesso em: 24 de novembro de 2010. 118 Idem, Ibidem. 119 Idem, Ibidem. 43 Muitos desses soldados que lutavam pela União ou pelos confederados eram negros - livres, fugidos ou escravos - que relatavam suas experiências no âmbito do exército. Como parte da metodologia para a análise dessas correspondências, elas foram aglutinadas a partir dos assuntos que mais são abordados, com especial atenção para a delicada relação estabelecida entre soldados negros e os oficias e colegas brancos. Observou-se que não raro, soldados negros apontam para o preconceito e para os atos de descriminação existentes na instituição militar constando esses temas em pelo menos duas cartas de um conjunto analisado de quatro correspondências escritas por soldados de cor. Nestas cartas, ficou evidente o tratamento diferenciado dispensado para os soldados brancos. Importante para detectar essas diferenciações foram os não raros soldos recebidos por descendentes de africanos bastante inferiores aos dos soldados brancos, ainda que desempenhassem funções semelhantes. Como exemplo disso tem-se: “O senhor Steeter o Assistente Superientende de Negros na Ilha de Roanoke (...) é um homem que diz que não é nenhuma parte abolicionista. Não tem nenhum cuidado com as pessoas coloridas e não tem nenhuma simpatia com as pessoas coloridas”. 120 Acerca do fardamento, os soldados negros frequentemente eram proibidos de usá-lo. Junto com isso, evidenciou-se que possuíam pouco acesso a ajuda médica quando doentes ou feridos, uma vez que os médicos nos acampamentos relutavam em prestar atendimento a soldados negros. Desse fato resultou o número de soldados negros mortos por doenças ser duas vezes maior do que no restante das tropas.121 A partir da análise dessas cartas escritas por soldados negros também pode-se traçar um panorama do analfabetismo entre os descendentes de 120 Sargento Richard Etheredge e Wm. Benson para o General Howard, Maio ou Junho de 1865. Cartas Recebidas não registradas, Bureau de Refugiados, Homens Livres, and Terras Abandonadas, Grupo de Registro 105, Arquivos Nacionais. Outro soldado no 36º USCT informou ao chefe de brigada dele que seu regimento fora transportado da Virgínia para o Texas. Trata também do assunto das rações cortadas para as famílias na Ilha de Roanoke. Publicado em: The Black Military Experience, pp. 729–30, in Free at Last, pp. 228–29, e em: Families and Freedom, pp. 125–26. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 121 BURKE, Kathryn. Op. Cit. Disponível em: http://www.postalmuseum.si.edu/letterwriting/lw04.html Acesso em: 24 de novembro de 2010. 44 africanos. É visível que os ingleses alfabetizavam os negros de forma rudimentar, apenas com fins de torna-los cristãos ou ainda a hipótese que parte desses que foram alfabetizados o fizeram por esforço próprio, podendo ou não contar com a boa vontade de algum homem ou de alguma mulher livres, mas jamais como um esforço conjunto da sociedade norte-americana em torná-los bons leitores e escritores, limitando-se essa a uma parca iniciação nas letras e não vinculando-se a algum projeto educacional. Assim também eram raros os esforços no sentido de se esclarecerem os homens de cor sobre as questões mais importantes no momento. Essa pouca ação no sentido de alfabetizá-los e mesmo de inseri-los por completo nas práticas religiosas era, entre outros motivos, tomada como medida preventiva. Primeiramente, pela existência de uma lei não escrita e apoiada na religião que proibia qualquer cristão, mesmo que negro, de ser tomado como escravo. Desta forma, muitos proprietários de escravos proibiram o acesso dos negros a leitura e escrita, pois sendo protestantes a maioria das religiões praticadas nos Estados Unidos, o contato direto das escrituras fazia-se necessário para ser um fiel. Mantendo-os analfabetos, aumentava a distância para tornarem-se cristãos plenos e, portanto, não escravizáveis. Isso perdurou até o bispo de Londres declarar que a escravidão, mesmo dos negros convertidos ao cristianismo, era religiosamente justificada. 122 Isso não significa que não houvesse, em paralelo a essa pouca vontade em torná-los alfabetizados, instituições espalhadas por vários pontos do território a propiciar educação em escolas para os negros. A primeira escola para negros foi inaugurada em 1620, como a maior parte das instituições de ensino da América inglesa, era uma instituição privada123. Em 1704 é inaugurado um estabelecimento similar na cidade de Nova York. A cidade de Charleston, no estado sulista da Carolina do Sul, teve sua primeira escola para negros em 1744, contando inclusive com professores negros, os ditos mais aptos para ensinar sua própria raça as primeiras letras. Assim, no longo intervalo entre os anos 1760 a 1835 são abertas instituições de ensino básico e até mesmo superior a negros nos estados nortistas de Massachusetts, New Jersey, Pennsylvania e Ohio, além 122 FUNKE, Loretta. The negro in education. The Journal of Negro History. Volume 5, ano 1, janeiro de 1920. p. 03. 123 KARNAL, PURDY, FERNANDES, MORAIS. Leandro, Sean, Luiz Estevam, Marcus Vinícius de. Os EUA no século XIX. História dos Estados Unidos, das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2ª edição, 2007. p.47. 45 do estado da Virgínia, localizado ao sul dos Estados Unidos. A iniciativa de criar essas escolas era, em sua grande maioria, advinda de diferentes organizações religiosas e, não por isso, deixava de enfrentar duras críticas da opinião pública que chegou até mesmo a vetar o funcionamento de alguns estabelecimentos de ensino, como uma escola no estado nortista de New Hampshire que teve de ser fechada em meados de 1835 por pressão da população local. 124 Apesar da existência de algumas escolas, em geral, o ensino de negros estava desorganizado e enfrentava o poder de uma legislação que restringia o acesso de descendentes de africanos a educação. Em 1740 a Carolina do Sul proibiu os negros de trabalharem como escriturários. Em Ohio, o ano de 1848 marcou a proibição dos negros de freqüentarem escolas. Em 1850 uma nova legislação expulsou os negros das escolas no estado nortista de Indiana. Pensase que o fato dessas escolas existirem já era, por si só uma vitória para as comunidades negras norte-americanas. Havendo restrições, também havia resistência a elas., Sendo assim, foram organizadas algumas escolas clandestinas destinadas ao ensino dos negros, sobretudo, nos estados do sul, onde tais restrições se faziam sentir mais forte. Destaca-se a ação dos estabelecimentos escolares nas cidades de Charleston (Carolina do Sul), Savannah (Georgia) e New Orleans (Louisiana) antes da década de 1860. 125 Nos anos que antecedem a eclosão do conflito da secessão tanto estados do norte – Washington D.C - como do sul –Louisiana – abrigavam cerca de 20 escolas clandestinas que ensinavam aproximadamente 4.000 jovens negros a ler e a escrever. Entretanto, esses números eram ainda muito pequenos se comparados à parcela da população negra na sociedade norte-americana. O censo do ano de 1860 indica uma população total de 31.183.582 habitantes nos Estados Unidos. Deste montante, negros livres somavam 476,748 pessoas, enquanto que os escravos chegavam ao total de 3.950.528; ou seja, 13% da população total. 126 O emprego de mão de obra escrava, muito maior em áreas rurais do que urbanas, causou seus efeitos na alfabetização e escolarização da população 124 Idem, p. 03. Idem, p.04. 126 Census 1860. Disponível em: http://www.civil-war.net/census.asp?census=Total Acesso em: 24 de novembro de 2010. 125 46 negra norte-americana. A maioria dos escravos, e mesmo uma grande parcela dos libertos, encontrava-se na zona rural, o que dificultava ou impedia o acesso ao ensino, posto que as escolas se concentravam principalmente nas cidades mais importantes dos estados. Em meados de 1863 – ano singular no estabelecimento de tropas de negros ao longo de todos os Estados Unidos – apenas 5% da população negra encontrava-se alfabetizada.127 A maioria dos homens que ingressavam nas fileiras dos exércitos do norte e, sobretudo, do sul, eram, portanto analfabetos. Esta condição de analfabetos ou parcamente alfabetizados, por sua vez, também causou seus efeitos. Por um lado não lhes proporcionou registrar com precisão grande parte das suas experiências e por outro, também dificultou as ações militares.128 Nesse aspecto, os intentos de exclusão da população negra dos bancos escolares apresenta-se como paradoxo nos termos das ações militares, pois os soldados que eram alfabetizados acabavam por constitui uma vantagem nos acampamentos e campos de batalha. Eram importantes peças na cadeia de repasse de ordens e determinações e na comunicação inter e intra tropas. Neste sentido, é importante reiterar que os comandantes brancos de tropas de cor nortistas tinham sob seu comando regimentos com um bom número de negros com conhecimento acerca da leitura e escrita. Este fator auxiliava os oficiais na tarefa de treinar as tropas e manter sua moral elevada. 129 Mesmo havendo soldados negros alfabetizados, não é grande o número de cartas escritas por soldados negros, visto a dificuldade de envio das correspondências e o pouco acesso à alfabetização entre esta parcela da população como um todo. A despeito de todos esses senões, a análise das cartas desses soldados demonstra suas experiências e dificuldades, ajudando-nos a compreender melhor o ingresso e institucionalização das tropas compostas por descendentes africanos. Para além dessas questões, é ainda possível identificar os anseios desses soldados que partiam para guerra ainda escravos – não raro fugidos do sul – ou livres, geralmente deixando suas famílias desamparadas em seu local de origem, como exemplificado anteriormente. 127 FUNKE, Loretta, Op. Cit. p. 4. GLATTHAAR, Joseph. Op. Cit. p. 103. 129 Ibidem, p. 101. 128 47 3. Os oficiais brancos e as palavras escritas pelos e sobre os soldados negros Além das cartas escritas pelos soldados de descendência africana ainda há de se atentar para a correspondências assinada por oficias brancos comandantes das tropas negras. Essa correspondência pode nos revelar muito acerca da interação entre brancos e negros no âmbito militar, bem como a respeito do tratamento e dos direitos que eram concedidos aos soldados de cor. Para tanto, foram utilizadas fontes primárias oriundas dos volumes de documentos do projeto Freedmen and Southern Society130, da Universidade norte-americana de Maryland. As correspondências são atinentes ao período de 1861 a 1867 e apresentam diferenças tipológicas. Como recurso metodológico para a abordagem dessa correspondência, optou-se pelo uso de apenas quatro dessas missivas, nas quais estão presentes elementos importantes para que se elucidem questões levantadas nos capítulos anteriores. Do conjunto das correspondências dos exércitos, Nem sempre as cartas eram endereçadas a familiares ou amigos. Pelo contrário, não eram poucas as correspondências - muitas vezes de regimentos completos - que recorriam aos superiores na cadeia de comando militar para pedir melhorias nas condições dos soldados negros e um tratamento mais igualitário com relação aos seus homólogos brancos. Através delas pode-se se ter idéia não somente dessas reivindicações dos soldados requerentes, mas também dos caminhos possíveis dessas reivindicações nas cadeias de comando das forças militares. Dão a noção de quão longe poderiam ir as demandas dos soldados surgidas no dia-a-dia do front e o seu impacto nas esferas mais altas dos exércitos de do poder político. 3.1. As palavras escritas por e sobre os soldados de cor no Norte Esse tipo de cartas poderia incluir requerimentos enviados ao próprio Abraham Lincoln, como é o caso da correspondência enviada pelo Corpo Negro de Massachusetts ao presidente. O estado de Massachusetts situa-se entre os 130 O projeto é iniciativa do departamento de história da Universidade de Maryland, sob a direção de Leslie S. Rowland e contando com um grande número de colaboradores. Seu acervo documental e ensaístico encontra-se disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 48 estados da União, entretanto, no momento do envio dessa correspondência estes soldados encontravam-se em território confederado, na Ilha Morris, estado da Carolina do Sul. Escrita em 28 de setembro de 1863, a carta é redigida pelo comandante das tropas James Henry Gooding, que apresenta ao presidente norte-americano os anseios de seus soldados, sobretudo com relação ao pagamento de soldo. Não tendo sido escrita pelos soldados negros, denota a preocupação do oficialato com as condições de seus comandados. Problemas que surgiam entre os soldados de pouca patente atuando diretamente em situações de guerra eram percebidos pelos oficiais, causavam-lhes comoção suficiente a ponto de repassarem essas preocupações às cadeias de comando mais altas que, por sua vez, as direcionaram ao próprio presidente. Andavam na contra-mão das ordens que recebiam, tanto no sentido do trato para com os soldados negros como no sentido do fluxo das comunicações de ordens militares. Essa correspondência – assim como muitas outras - nos revela a situação de irregularidade no pagamento das tropas formadas por negros. Não raro, eram feitas promessas de pagamento de soldo igualitário e regular, porém, costumeiramente não eram cumpridas. Esse panorama fica explicito na carta escrita por um soldado negro remetida a Lincoln, que revela aspectos importantes da prática do pagamento dos soldos a esses homens e a desconfiança desses nas promessas e acordos estabelecidos: 131 “no dia 06 do último mês, o paymaster do departamento informou-nos que tínhamos decidido receber a soma de 10 dólares por mês. Ele viria e nos pagaria essa soma, mas, ao sentar no congresso, o regimento vai, em sua opinião, permitir os outros três (dólares). Ele não nos deu nenhuma garantia de que isso ia acontecer, certamente ele não tem autoridade para nos fazer qualquer garantia, e nós não podemos 132 supor que ele está agindo de qualquer forma que nos interesse.” A irregularidade e as promessas não cumpridas com relação ao pagamento de soldo geravam clima de desconfiança por parte dos soldados, essa deixava-os em situação difícil no interior das tropas e nas suas vidas pessoais. Parte da 131 O paymaster era um oficial designado para aprovar e efetuar o pagamento das tropas norteamericanas. 132 Soldado James Henry Gooding para Abraham Lincoln, 28 de setembro de 1863. In: Harper & Irmãos para Abraham Lincoln, 12 de outubro de 1863. Cartas recebidas, Divisão de Tropas Colorida, Escritório do ajudante general, Grupo de Registro 94, Arquivos Nacionais. Publicado em: The Black Military Experience, pp. 385–86, in Free at Last, pp. 461–63, e in Freedom's Soldiers, pp. 114–16. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 49 preocupação dos soldados em relação aos soldos que recebiam, ao seu baixo valor e aos recorrentes atrasos era relativo à suas vidas fora do âmbito militar. Muitos possuíam famílias que dependiam do dinheiro para sobreviver, sendo que os próprios soldados salientam sua situação de pobreza e necessidade. Assim, os recrutas negros do estado de Massachusetts indagam o presidente: “Agora a questão principal é: somos soldados ou trabalhadores?”133. Essa pergunta era problemática e permeava a realidade de muitos regimentos negros. Se inicialmente foram convocados para a atuação na retaguarda dos combatentes, em atividades muito assemelhados aos de trabalhadores braçais de pouca qualificação, o início da década de 1860 foi marcado pelo reconhecimento da atuação em combate desses soldados negros. Os soldados negros que serviam a União executavam suas funções satisfatoriamente, sendo que muitas vezes - como no caso deste regimento estavam tão bem armados e treinados como seus homólogos brancos. De trabalhadores braçais com foi o início de sua atuação na guerra, foram transformados em soldados. Por estes motivos os negros reclamavam seu direito de tratamento adequado e igualitário. Buscavam tanto os soldos como a nova definição de sua situação, o reconhecimento da função de soldados que de fato exerciam. Entretanto, na maioria das vezes essa demanda não era atendida. Percebe-se portanto, que a mudança na importância da função exercida não passou desapercebida por esses homens e, longe de serem passivos ante o momento, atuam no reconhecimento de sua condição. O problema evidenciado nos campos de batalha percorreu as cadeias de comando do exército, tornando evidente a existência concreta de soldados negros e a necessidade de um reajuste na hierarquização dos exércitos de tal modo que comportasse essas tropas compostas de homens de cor em seu interior. Este documento também nos revela a presença de concepções preconceituosas no âmbito do exército. Muitos oficiais e regimentos brancos – negligenciando seu papel enquanto motivadores das tropas que iam para o fronte de batalha - alimentavam idéias relativas à supremacia racial, salientando a questão do negro como infantil e ignorante. Inúmeros soldados negros conviviam com esta realidade diariamente, não raro, relacionando-a a um passado de 133 Idem, Ibidem. 50 escravidão. Essa era a realidade daqueles que compunham o Corpo Negro de Massachusetts, porém este destacamento é um exemplo dos poucos regimentos que conseguiram ultrapassar as barreiras impostas pelo preconceito, angariando a confiança de seus oficiais, que “compraram a idéia” de comandar tropas de homens de cor que se mostravam tão valorosos quanto os soldados brancos. Os homens de cor, com armas e uniformes acabaram provando que estavam em par de igualdade com os soldados brancos, como observa-se na correspondência: “ “Temos nos administrado para a satisfação completa dos oficiais gerais que foram preconceituosos contra nós, mas que nos dão agora todo o encorajamento e tem dívida de honra conosco. (...) Os confiantes descendentes de africanos tingiram o chão com 134 sangue em defesa da União e da democracia”. O Corpo Negro de Massachusetts, como se destacou anteriormente, era um regimento que possuía acesso a armamento e um bom programa de treinamento, em muito, equivalente aquele que preparava as tropas brancas. Entretanto, esta não constituía a realidade da maioria dos regimentos, seja na União ou entre os Estados Confederados. Na maioria das vezes o acesso a armamento era restrito e o treinamento irregular, questões problemáticas desde a organização das primeiras tropas de negros nos Estados Unidos. A própria formação dessas tropas se deu de forma complexa, uma vez que a utilização de negros como soldados foi inicialmente vetada. Porém, a demanda de um maior contingente humano na frente de batalha obrigou o governo norte-americano a integrar um maior número de homens ao exército, capacitando e equipando-os com armas de fogo. Este caso é registrado na carta do Corpo Negro de Massachusetts ao presidente, na qual salienta-se a situação inicial de proibição dos negros ingressarem nas fileiras do exército: “Mas, quando a guerra soou o trompete pela terra, quando os homens não conheceram o amigo do traidor, o homem negro, colocou sua vida no altar da nação – e ele foi recusado. Quando as armas da União foram disparadas no primeiro ano da guerra e o Executivo pediu mais comida para o seu sustento, novamente o homem negro implorou o privilégio de ajudar seu país na 135 necessidade, sendo esse pedido novamente recusado”. 134 135 Idem, Ibidem. Idem, Ibidem. 51 De algum modo, essa tropa excepcional atentava para o esforço dos soldados negros, que mesmo com toda a dedicação ainda não eram considerados merecedores do mesmo soldo ou benefícios dos soldados brancos regulares. Os soldados que compunham o Corpo Negro de Massachusetts, assim como tantos outros que encontravam-se em outros regimentos, condenavam práticas que visavam a manutenção da desigualdade entre soldados brancos e negros, uma vez que os negros eram naturalmente obedientes e pacientes, só lhe faltando um conhecimento melhor do alfabeto para que melhor se expressassem – em seu ver a única grande desvantagem que tinham frente aos soldados brancos. Os negros que ingressavam no exército da União eram soldados livres e viam-se como tal. Acima de tudo, consideravam-se americanos que exigiam ser tratados como tais. 3.2. As palavras escritas por e sobre os soldados de cor no Sul É notável que esses negros almejassem ser soldados, sendo essa uma opção de vida estável. Muitos descendentes de africanos que viviam no norte encontravam-se em situação de risco, vivendo em condição de extrema pobreza. Paralelamente, muitos dos negros ainda escravos que adentravam o exército no Sul viam na carreira militar uma promessa de liberdade e a passagem para uma vida melhor. Desta forma, para muitos negros do norte ou do sul o ingresso na instituição militar representava uma chance de melhorar sua condição social e garantir uma qualidade de vida melhor para suas famílias e romper com os limites do cativeiro. Assim, é compreensível que o número de negros a procurarem o alistamento militar fosse alto. Esse alto índice de homens alistados é relatado pelo Comissário para a Organização de Tropas Negras no Tennessee Oriental e Central, o Major G.L.Stearns. Este oficial respondeu algumas questões diante da Comissão de Investigação dos liberto-americanos na cidade de Nashville, Tennessee, em 23 de novembro de 1863. Essas perguntas e respostas foram compiladas em uma correspondência que nos revela o desejo de muitos negros de adentrarem as fileiras do exército sulista. 52 Notavelmente, os negros possuíam condições de trabalho extremamente precárias e injustas, mesmo para aqueles que eram empregados como homens livres. Desta forma, é compreensível que grande parte deles preferisse o serviço militar a um trabalho regular ou a escravidão nas grandes plantations sulistas. O major Stearns revela esse desejo dos homens de cor quando indagado a respeito: “Eu deveria dizer que dois terços deles prefeririam ser soldados a ser trabalhadores” 136. Entretanto, apesar do emprego de homens de cor no exército, a desconfiança acerca da sua capacidade e dedicação era ainda muito grande. Mesmo assim, sempre houve aqueles oficiais, sulistas e nortistas, que defenderam e exaltaram os feitos das tropas negras em combate. Ao ser indagado sobre a disposição que esses soldados possuíam ao serem designados para qualquer trabalho no âmbito da corporação militar, o major Stearn reafirma a determinação de seus comandados, dando créditos a qualquer homem que passasse por um processo de treinamento durante um período de 6 meses. Soldados negros bem treinados ficariam em pé de igualdade com qualquer soldado branco. O major afirma que sob seu comando encontravam-se três regimentos compostos, ao todo, por aproximadamente 3.000 negros. A grande maioria desses homens deixou para trás mulheres, filhos e parentes que ainda necessitavam de cuidados e dinheiro para o seu sustento. Essa constituía uma questão particularmente problemática não só para os soldados, mas também para o próprio governo e para os oficias que tinham de manter elevada a moral das tropas e evitar manifestações. O major Stearns denuncia este panorama, destacando a importância do soldo para esses soldados manterem suas famílias: “Neste momento, há um número grande deles que são destituídos (de suas famílias), porque são soldados e trabalhadores nas fortificações (...). Devido a esta destituição das famílias que estavam nos pressionando muito severamente (...). O negro está muito ansioso para saber o que restará a família dele se ele se alista, e estaria alegre de dividir o pagamento dele para o apoio deles. Se o Governo lhe pagar $13,00 por mês, ele pode 136 Relato do Maj. Geo. L. Stearns frente a American Freedmen's Inquiry Commission (A Comissão de Investigação dos Liberto-americanos), 23 de novembro de 1863. Arquivado como O-328 1863, Cartas recebidas, Escritório do ajudante general, Grupo de Registro 94, Arquivos Nacionais. Publicado em: The Wartime Genesis of Free Labor: The Upper South, pp. 415–20. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 53 poupar $10.00; mas o dinheiro nunca chegará à família dele, eles 137 se espalham pelo país”. Tratando especificamente da questão do soldo, o major é indagado acerca do recebimento desse pagamento pelos soldados negros. Stearns reitera que o pagamento é irregular e insuficiente, afirmando que a administração sulista faria um investimento mais consistente caso mantivesse essas tropas pagas regularmente, isso porque a falta de soldo desmotiva os homens e prejudica seu desempenho, mesmo que nos trabalhos mais ordinários. Mesmo estando restrito a tratar dos negros do Tennessee, o major Stearns afirma que a melhor forma de se tratar os soldados negros seria lhes concedendo soldo justo e regular: “Elemento importante na civilização do negro é salário bom, regularmente pago. Ele sabe bem o que ele quer, e ele sabe adquirir o que ele quer, se ele tem pagamento justo e a liberdade dele, ele sabe, também, o que ele deveria evitar, e tem uma 138 percepção muito justa de egoísmo e sagacidade considerável”. Destaca-se no trecho citado acima, o papel “civilizador” da remuneração paga aos negros no exército, em paradoxal contraste com a idéia de que a guerra visava manter a população negra escrava, o que por sua vez não requer trabalho remunerado e dentro da mesma lógica, afasta os negros do projeto de inclusão na civilização, sendo que esse propósito de civilização sempre fora um dos argumentos para a manutenção da escravidão negra no ocidente. A correspondência descortina também a luta do soldado negro, ex-escravo ou não, contra o preconceito no exército dos Estados Confederados do Sul. Esses homens eram tidos, não raro, como seres inferiores e indignos de respeito. Eram freqüentes os casos de oficiais brancos que abusavam do poder e exerciam dura rotina de disciplina no comando das tropas negras, aplicando severos castigos e restrições. Aos soldados que buscavam recorrer diante de atitudes racistas e injustas restavam os Tribunais Federais, entretanto, esses eram desiguais quanto ao julgamento de questões oriundas se soldados brancos e negros. Soldados de cor possuíam pouco acesso a esses tribunais e encontravam grandes empecilhos para ganhar qualquer causa. O major Stearns, aponta para o posicionamento nortista com relação a essas práticas. Apesar do exército nortista não estar livre de tais práticas racistas 137 138 Idem, Ibidem. Idem, Ibidem. 54 e injustas, o oficial sulista revela que o norte denunciava as agressões realizadas por oficiais sulistas a negros que atingiam a União, geralmente fugindo do sul: “É um engano supor que os relatórios que aparecem nos documentos do Norte de crueldades para com os negros no Sul são extremamente falsos”. 139 Nos Estados Confederados do Sul, grande parte dos negros que alistavamse no serviço militar vinham como escravos, acompanhando seus senhores ou não. Muitos ingressavam no serviço militar mediante o pagamento, por parte do exército, da indenização ao senhor, que liberava então seu escravo para tornar-se um soldado. A correspondência do major Stearns nos revela que esta prática tornava-se cada vez mais comum nos estados do sul, sendo uma saída viável para senhores que visavam o dinheiro oriundo das indenizações ou simplesmente livrar-se contingente humano indesejável: “Muitos deles desejaram os escravos deles levados, quer adquirissem compensação ou não. Foram oferecidos aproximadamente quarenta a mim no último mês.”140 Tratando mais especificamente da questão do preconceito racial, o major Stearns revela que este era um problema que tinha suas origens fora do espaço militar. Os oficiais brancos reproduziam o racismo que já acompanhava os negros desde o trabalho nos campos. Ao contrário do que geralmente se afirmava, o major não vê no exército um espaço de perpetuação de práticas racistas, mas sim um lugar no qual o preconceito pode ser extinto. Assim, ele compreendia o exército como espaço de elevação do caráter do homem negro e de construção de uma harmonia entre as duas raças. Segundo Stearn, o ingresso na instituição militar elevava socialmente os homens negros e os proporcionava melhores condições de vida. 4. Entre o Norte e o Sul, os negros preferem a liberdade A ação pedagógica que Stearn atribui à vida militar sobre os homens negros ingressos nas tropas não era a norma para o pensamento dos oficiais sulistas, assim como não era a norma os escravos sulistas conseguirem seu engajamento nos exércitos. Essa não era uma realidade palpável para os milhares de negros que continuavam escravizados nas plantations sulistas ou nos 139 140 Idem, Ibidem. Idem, Ibidem. 55 Border States integrados a União. Muitos desses escravos viam nos estados do norte uma chance de viver em liberdade e ascender socialmente alistando-se nas forças militares. Assim, era muito grande o número de negros fugidos do Sul a entrarem no exército da União. Um desses escravos, fugido do Border State de Maryland - no qual a escravidão só fora abolida em novembro de 1864 – foi John Boston, que integrou-se ao 14º Regimento do Brooklyn, no estado nortista de Nova York. Em correspondência datada de 12 de janeiro de 1862, direto do acampamento da tropa em Uptons Hills, no estado confederado da Virgínia, Boston relata para sua esposa sua nova condição de homem livre, soldado dos Estados Unidos: “Eu estou agora em segurança no 14º Regimento do Brooklyn. Neste dia eu posso escrever a você graças a Deus como um homem livre. (...) Mas como o Senhor conduziu as Crianças de Israel para a terra de Canaã, assim ele me conduziu para uma terra na qual a liberdade irá chover. (...)Eu sou livre de 141 todos os traficantes de escravos que chicoteiam” . Mesmo com esta melhora de vida significativa, é válido lembrar que a família deste, e de tantos outros ex-escravos, permanecia escravizada no sul, realidade de muitos soldados que conseguiram fugir sozinhos para o norte. É interessante apontar para o fato de que esta correspondência encontrase inclusa a carta do Major General B. McClellan para Edwin Stanton. Provavelmente era essa a forma que muitos soldados encontravam se comunicarse com suas famílias, uma vez que se efetuavam restrições ao serviço postal sulista e encontravam-se, frequentemente, em trânsito devido ao intenso deslocamento das tropas da União. Os problemas relacionados a treinamento, interação com oficiais e soldados brancos e pagamento de soldo afetam seriamente as forças do USCT 142 e esperava-se uma rápida e consistente solução para eles. Entretanto, essas questões eram complexas e em meados de 1865 estes problemas estavam longe 141 John Boston para Sra. Elizabeth Boston, 12 Janeiro de 1862, incluso em Major, 21 Janeiro de 1862. Cartas Recebidas, Escritório do ajudante general, Grupo de Registro 94, Arquivos Nacionais. O envelope é endereçado, em uma letra diferente, para “Sra. Elizabeth Boston Care aos cuidados da Sra. Prescia Owen Owensville Agência postal Maryland.” Publicado em: The Destruction of Slavery, pp. 357–58, em Free at Last, pp. 29–30, e em Families and Freedom, pp. 22–23. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 142 As tropas negras que integravam o serviço militar norte-americano era designadas pela sigla USCT – United States Colored Troops (Tropas de cor dos Estados Unidos). 56 de serem solucionados, sobretudo, entre os estados separatistas que presenciavam o avanço das tropas da União e o esgotamento de suas forças combatentes. A questão das famílias dos soldados foi problemática durante todo o curso do conflito e as portas do seu fim ela continuou sem solução. Em correspondência datada de meados de 1865 ao Comissário do Bureau de Homens Livres, os soldados negros do estado separatista da Carolina do Norte – representados pelos soldados Richard Etheredge e Wm. Benson - denunciam as falsas promessas feitas pelo governo de zelar pelo bem estar de suas famílias. Exigindo sua retirada imediata do fronte de batalha, os soldados insistem em voltar para prover seus familiares, isso porque o governo não cumpriu com seu dever em garantir a subsistência dessas pessoas: “Quando nós fomos alistados no serviço nos era prometido que nossas mulheres e família deveriam receber rações do governo. As rações para nossas esposas e família foi (e está agora cortado) metade da ração regular. Por conseguinte três ou quatro dias a cada dez dias, três não têm nada que comer”143. Além do descaso por parte do governo, grande parte dessas famílias tinha de lidar também com saques e abusos de soldados brancos, como também é denunciado na correspondência: “Nossos familiares não têm nenhuma proteção, os soldados brancos arrombam nossas casas, agem como lhes agradam, eles roubam nossas galinhas, roubam nossos jardins (...)”144. Questões como esta desmotivavam e desestabilizavam as tropas que, quase sempre revoltadas, exigiam ser dispensadas do serviço militar. Este panorama agravava ainda mais a situação da débil defesa sulista e contribuía para a vitória final da União ainda no ano de 1865. 143 Sargento Richard Etheredge e Wm. Benson para o General Howard, Maio ou Junho de 1865. Cartas Recebidas não registradas, Bureau de Refugiados, Homens Livres, and Terras Abandonadas, Grupo de Registro 105, Arquivos Nacionais. Outro soldado no 36º USCT informou ao chefe de brigada dele que seu regimento fora transportado da Virgínia para o Texas. Trata também do assunto das rações cortadas para as famílias na Ilha de Roanoke. Publicado em: The Black Military Experience, pp. 729–30, in Free at Last, pp. 228–29, e em: Families and Freedom, pp. 125–26. Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/sampdocs.htm 144 Idem, Ibidem. 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS Conclui-se com esse estudo que a inclusão de negros nas tropas que fizeram a guerra e a sua assimilação em uma nova realidade sem escravidão que dela emergiu, são parte de um processo bem maior, cujas origens não estão na Guerra Civil propriamente dita e sua conclusão não se dá com o fim dela. Se por um lado o engajamento dos negros nas tropas serviu aos interesses dos brancos norte-americanos dos dois lados da contenda, por outro, fomentou os anseios de liberdade da população escravizada, conduzindo, ao fim e ao cabo, à ruptura de um elo fundamental na estrutura sócio-econômica dessa sociedade e abrindo espaço para as novas tensões e conquistas sócio-raciais dos afro-norteamericanos. Quanto ao ingresso desses homens de cor no estabelecimento militar norte-americano, conclui-se que suas condições de serviço estavam, na maioria das vezes, aquém daquelas oferecidas aos soldados brancos. Soldados negros eram – fora alguns raros casos isolados – comandados por oficiais brancos, em grande parte pelo temor das autoridades, sobretudo sulistas, da organização de um motim entre homens da mesma cor. Neste sentido, inicialmente, soldados negros eram impedidos de portarem armamento de fogo e eram, geralmente, empregados em trabalhos menores, não chegando ao fronte de batalha. Entretanto, com o desenvolvimento do conflito da secessão, norte e sul tiveram de rever tal posição. A guerra demandava grande contingente humano, fato que levou o governo norte-americano a tornar oficial a formação de corpos militares compostos por negros. A intenção de integrar descendentes de africanos foi formalizada a partir da promulgação de dois atos presidenciais, o Militia Act e o Segundo Confiscation Act, assinados por Abraham Lincoln. A partir da oficialização as preocupações com relação a aspectos de institucionalização dessas tropas tornaram-se mais salientes. Porém, identificouse que grande número das tropas compostas por negros – tanto entre os confederados, quanto entre a União – convivia com soldos irregulares e injustos, estando geralmente abaixo daquele recebido por soldados brancos de mesma patente. Esse problema acabou por mostrar-se como um dos mais graves, sobretudo no espaço militar confederado. A irregularidade no recebimento do 58 soldo afetava não só os soldados, mas também suas famílias que viviam em situação de miséria. Atitudes como estas geraram grande descontentamento entre os soldados, desmotivando-os. Entretanto, um dos pontos de maior conflito e reclamação por parte dos soldados negros relacionava-se as promessas de liberdade que jamais concretizavam-se. Notavelmente, grande parte dos negros alistados no exército da confederação ainda encontravam-se em situação de escravidão, sendo enviados para a guerra para servirem seus senhores, a título de empréstimo ou mediante o pagamento de uma indenização ao senhor. Entretanto, muitos nunca chegaram a alcançar a tão sonhada liberdade, nem para si, nem para suas famílias. Porém, não é apenas entre soldados sulistas que encontram-se situações de claro descontentamento por parte dos soldados negros. Promessas não cumpridas com relação a soldo, treinamento, fardamento e aos cuidados necessários as famílias indignaram soldados negros também ao norte do país. Questões relativas ao treinamento também revelaram-se problemáticas. O treinamento das tropas negras também mostrava-se irregular e deficitário se comparado aquele que era proporcionado aos soldados brancos. Entretanto, é notável que, entre os estados da União, houve um esforço em se capacitarem os soldados negros, construindo campos de treinamento que visavam preparar esses homens e torna-los soldados do USCT. Notavelmente, era no âmbito dos campos de treinamento que revelam-se muitos aspectos relativos a interação entre brancos e negros no âmbito militar. O convívio entre oficiais e soldados brancos com os negros era, muitas vezes, marcado por atitudes racistas e preconceituosas. Havia a manutenção de concepções que desvalorizavam o trabalho de soldados negros e subestimavam sua capacidade. Como considerações finais, pondera-se também que, que nos Estados Unidos há um número considerável de historiadores que elegeram o Brasil como seu objeto de estudo. Os assim chamados brazilianists possuem produção vasta e fecunda, dialogando com autores brasileiros e formando centros de pesquisa em instituições prestigiadas, como Harvard e a New York University. Entretanto, essa troca acadêmica não é equilibrada. 59 No Brasil o estudo de muitos aspectos da história norte-americana é um campo ainda recente e pouco explorado. Por outro lado, não estão os pesquisadores estrangeiros, e dentre esses, os brasileiros, envolvidos “emocionalmente” com esse momento delicado da história dos Estados Unidos. Tal momento envolve a um só tempo a construção do Estado nacional norteamericano, as questões relativas às noções de liberdade e de igualdade e as questões raciais desse estado que se reorganiza. Acredita-se eles os pesquisadores brasileiros possam contribuir para esses estudos dotando-os de um maior distanciamento que por sua vez, pode produzir uma visão mais crítica desses eventos. O estudo por autores brasileiros de temas relacionados aos Estados Unidos constitui ainda um ramo novo para a historiografia. Na medida em que cresce, vai abrindo espaço para uma maior interação intelectual e pesquisas conjuntas. Com um maior desenvolvimento da Organization of American Historians, os diálogos entre historiadores brasileiros e norte-americanos vem aumentando145. Eis que o breve estudo da formação das tropas de negros durante um período crucial e problemático da história dos Estados Unidos, a Guerra Civil, que aqui se apresenta, insere-se nessa nova perspectiva, demonstrando-se que mesmo com restrições à investigação in loco da documentação, utilizando fontes disponibilizadas em acervo on-line, os projetos podem tornarem-se viáveis. Assim, há perspectiva de se produzir material em língua portuguesa atinente ao tema da constituição e desenvolvimento das tropas de negros durante o conflito da secessão. 145 WEINSTEIN, Bárbara. Diálogos Brasil - Estados Unidos. Tempo: vol.13, n.25. Niterói: 2008. Entrevista concedida a Cecília Azevedo. 60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALLEN, H.C. História dos Estados Unidos da América. Tradução de Ray Jungman. Rio de Janeiro: Forense, 1968. BLIGHT, David W. Race and Reunion. The Civil War in American Memory. Belknap Harvard, 2001. BURKE, Kathryn. Letter Writing in América - Civil War Letters. Disponível em: http://www.postalmuseum.si.edu/letterwriting/lw04.html Acesso em: 24 de novembro de 2010. BURTON, William L. Melting Pot Soldiers. The Union´s Ethnic Regiments North´s Civil War. Fordham University Press, 1998. DAVIS, Burke. The civil war, strange and fascinating facts. Disponível em: http://www.civilwarhome.com/casualties.htm . Acesso em: 26 de outubro de 2010. The Historical Times Illustrated Encyclopedia of the Civil War. FAUST, Patricia (ed), Harper and Row, New York, 1986. FONER, Eric. Nada além da liberdade. A emancipação e seu legado. Trad. Luiz Paulo Rouanet. 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